Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS
UNIDADE ACADÊMICA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
NÍVEL MESTRADO
BRUNA RAFAELA DE LIMA
D
D
A
A
R
R
E
E
D
D
E
E
A
A
O
O
A
A
L
L
T
T
A
A
R
R
:
:
V
V
I
I
D
D
A
A
,
,
O
O
F
F
Í
Í
C
C
I
I
O
O
E
E
F
F
É
É
D
D
E
E
U
U
M
M
H
H
I
I
S
S
T
T
O
O
R
R
I
I
A
A
D
D
O
O
R
R
P
P
O
O
T
T
I
I
G
G
U
U
A
A
R
R
SÃO LEOPOLDO/RS
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
BRUNA RAFAELA DE LIMA
DA REDE AO ALTAR: VIDA, OFÍCIO E FÉ DE UM HISTORIADOR POTIGUAR
Dissertação apresentada como requisito parcial
para a obtenção título de Mestre, pelo
Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Orientadora: Profª. Drª. Eliane Cristina Deckmann Fleck
SÃO LEOPOLDO/RS
2009
ads:
Catalogação na Publicação: Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
L732d Lima, Bruna Rafaela de
Da rede ao altar: vida, ofício e fé de um historiador Potiguar /
por Bruna Rafaela de Lima. -- 2009.
231 f. : il. ; color. ; 30cm.
Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, Programa de Pós-Graduação em História, 2009.
“Orientação: Profª. Drª. Eliane Cristina Deckmann Fleck,
Ciências Humanas”.
1. Historiografia. 2. Historiador - Cascudo, Luís da Câmara.
3. História - Rio Grande do Norte. 4. História - Igreja. 5.
Religiosidade - Memória. I. Título.
CDU 930.1
A dois amores da minha vida que partiram para a eternidade, minha tia Luzia e minha avó Margarida.
Com amor e eterna saudade!
E aos demais amigos e familiares que me incentivaram e acreditaram nesse sonho.
AGRADECIMENTOS
Agradecer é um dos gestos humanos que considero mais sublimes, uma virtude que
dignifica nossa alma. Por pensar desta maneira, agradecer se torna, para mim, uma tarefa muito
delicada. Espero não cometer injustiças ao esquecer-me de alguém, mas se isso vier acontecer no
papel, no meu coração jamais será esquecida qualquer ajuda que recebi para concretizar esse projeto
de vida que comecei em 2007.
Primeiramente, agradeço a Deus, a fé que tenho no meu Deus de que tudo posso e de que
tudo passa, foram sentimentos essenciais para que eu chegasse até aqui. Agradeço, de forma muito
especial, à minha família, pois sem a ajuda recebida de todos que a compõem, seja de sangue, seja
de coração, eu jamais teria conseguido ir a qualquer lugar. Meu agradecimento de coração , por
tudo e sempre. De forma bem especial, quero agradecer a meu pai Agostinho e à minha mãe Maria
do Carmo, por terem me apoiado e me estimulado.
A todos da minha família de coração, na pessoa de Edeclaiton e Ivone, a todos da
minha família materna, na pessoa de minha avó Maria das Dores, a todos da minha família
paterna, na pessoa de Alaíde, e aos meus amados afilhados, pelo carinho.
Aos meus tios e tias, especiais em cada momento. Meu especial carinho para Vilma,
Valdelice e Valquíria e para os meus primos e primas, que estão sempre torcendo por mim,
principalmente, aqueles que me acompanharam mais de perto essa minha estada no Sul:
Ceição, Geraldo, Lauraci, Clara, Fernanda, Carol, Marina, Jailma, Livanilde, Alex, Ana do
Carmo, Lúcia, Josefa, Paula, Juninho e Giuliani.
Aos amigos do Rio Grande do Norte que, mesmo longe fisicamente, sempre se mostraram
muito presentes. Em especial, gostaria de destacar aqueles que me acompanharam mais de perto,
como Neto, Irís, Vanessa, Aurinete, Juliany, Arthur, Isabel, Cétura, Jaira, Milena, Maria, Bueno,
Consola, Cláudia, Arlene, Luciana, Vanúzia, Priscila, Daniela, Helder, Olívia, Daianne, Jobson,
Arlan, Dênison, Kaliana, Eva, Juciene e Wicliffe que, entre tantos outros que fazem parte da minha
vida, me auxiliaram cada um a sua maneira sempre que precisei. Meu carinhoso agradecimento
a Nonato, por ser tão especial e querido.
Nessa minha temporada acadêmica aqui no Sul, tive amigos que foram anjos mais que
pessoas especiais e que muito me ajudaram. Refiro-me à Milena, Neto, Perpétua, Íris e Vanessa.
Esses anjos queridos foram de suma importância para a realização desse sonho.
Milena, obrigada de coração, por tudo! Por você ter estado ao meu lado desde o início.
Por ter me apresentado a Unisinos, e por ter me ajudado, prontamente, na revisão da Dissertação.
Obrigada. Sempre!
Meu querido e amado amigo, Neto, procuro palavras para te agradecer, e fico sem saber
como, porque sua ajuda foi e é essencial em minha vida acadêmica e pessoal. Amigo, você é um dos
responsáveis por tudo isso!
Perpétua, o anjo do Norte que conheci no Sul e que desde 2007 faz parte da minha vida.
Não sei como teria sido viver sem as “asas” protetoras dela, a me conduzir sempre. A amizade de
Perpétua foi um presente e um dos meus maiores estímulos para a realização desse sonho. Amiga,
obrigada por você ter sido, além de amiga, mãe, enfermeira, guia, conselheira e anjo.
Irís, meu obrigada, de coração, pela presença constante e pelas palavras de carinho
sincero. Vanessa, minha amiga, valeu por saber e sentir que posso contar com você, sempre!
A todos os amigos que fiz no Sul, o meu muito obrigada! A Clô, meu agradecimento
especial, por ter se mostrado uma amiga tão verdadeira e boa ouvinte.
Agradeço, de forma muito especial, ao pessoal da Pousada Sinos, o meu lar aqui no Sul, na
pessoa do Sr. Darci. Agradeço, ainda, a todos os funcionários, a quem considero como amigos e
parte da família. E, de forma muito especial, aos amigos que fiz na Pousada: Renata, Perpétua,
Jorge, Luan e Alex. Meus fiéis companheiros, obrigada! Obrigada também a outros tantos colegas
que por lá passaram, em especial, João, Gilberto, Evandra, Lindomal e Jasson.
À família Possamai, sobretudo, ao Paulo que, desde o início, me ajudou a enfrentar o novo
e o desconhecido, e à Dª. Silda e ao Sr. Benjamin, pelo acolhimento de filha que me deram sempre
que precisei. Agradeço, também, aos demais parentes do Paulo que tão bem me acolheram.
Ao Sr. Dorival Fleck e à Camila, que de forma tão carinhosa me acolheram em sua casa.
Meu agradecimento pelo fraterno e sincero cuidado.
Às irmãs da Comunidade do Cristo Ressuscitado (Ana C., Ana F., Cristina, Inês e Susana) e
ao Padre Roque por todo apoio, carinho e amizade e a todos que integram a comunidade, junto à
qual pude vivenciar belos momentos, me sentindo, realmente, parte dela.
A todos os amigos e colegas tão queridos da Unisinos, em especial, a Samantha, Alisson,
João Ivo, Paula Tanure, Moacyr, Ney, Jones, Rosicler e Leandro. Agradeço, também, aos queridos
“pupilos” da minha orientadora: Mauro, Aninha, Cerveira, Débora, Fabiana, Paula, Fernanda,
Tafnes, Rafael, amigos e colegas, que, cada um a sua maneira, fizeram com que esses meses no Sul
fossem mais felizes e a distância de casa, suavizada. A vocês, meu agradecimento. Por tudo!
Aos professores do Programa de Pós-Graduação em História da Unisinos, meu
agradecimento pelos ensinamentos valiosos. Quero agradecer, em especial, à professora Marluza,
por toda a confiança e carinho, e à professora Maria Cristina, por ter acreditado em mim, quando eu
duvidei que conseguiria. Ao professor Cláudio Elmir e Paulo Moreira que, desde a seleção, me
acolheram e se mostraram sempre solícitos. Ao professor Martin, pela cordial disponibilidade e pela
valiosa ajuda bibliográfica sobre a História da Igreja no Brasil. Ao professor Padre Inácio, pelos
ensinamentos valiosos de vida e de história e pela consideração sincera com que sempre me tratou e
me acolhe. Às professoras Ana Sílvia e Heloísa Capovilla pelo carinho e apoio sinceros.
Meu carinhoso agradecimento à Janaina, a eficiente e sempre presente secretária do
PPGH. Obrigada pela atenção mesmo quando eu ainda me encontrava no Rio Grande do Norte
e pelo profissionalismo. Meu agradecimento muito especial às “meninas da Secretaria dos PPGs”.
Sou muito grata a cada uma delas - Loy, Dinorá, Jana, Márcia, Sayonara e Maristela pela
carinhosa acolhida e atenção.
Às bibliotecárias da Unisinos, Eliete e Carla, que de forma carinhosa e paciente, prestaram
grande e inesquecível auxílio na revisão do texto final da Dissertação.
Aos ex-professores e amigos da UFRN que, mesmo distantes fisicamente, se fizeram tão
presentes, me estimulando e ajudando no que fosse necessário. De forma especial, agradeço a
Aurinete, Fátima, Wicliffe, Nonato, Almir, Airon, Denise, Maria Emília, Luiz Eduardo, Conceição
Guilherme, Paulo, Durval e Arrais. Em especial, à Fátima, Maria Emília e Denise por terem se
mostrado sempre tão solícitas para me mostrar os melhores caminhos para o crescimento
pessoal e acadêmico.
Aos amigos do IHGRN tão queridos e solícitos que me acolheram da forma mais
fraterna. Sou eternamente grata a essa turma querida: Lúcia, Antonieta, Verônica, José Maria,
Vilma, Manoel e Geraldo. Ao presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte, Dr. Enélio Petrovich, agradeço pela inestimável colaboração. Ao Dr. Jurandir Navarro, vice-
presidente do IHGRN e diretor da Biblioteca da ANL-RN, pelo acesso que me franqueou ao valioso
acervo desta. Devo mencionar, ainda, a valiosa colaboração do professor Claudio Galvão e do
jornalista Luiz Cortez, sempre dispostos a me fornecer as informações que buscava.
À equipe do Memorial Câmara Cascudo pela cordial acolhida, e, em especial, a sua
Diretora, Sra. Daliana Cascudo, que se mostrou sempre disponível e interessada em acompanhar,
de perto, os passos e as descobertas da pesquisa que realizei. Daliana, sua ajuda foi e será sempre
lembrada. Sou muito grata por sua amizade!
Agradeço, especialmente, à principal responsável por tudo o que esta Dissertação
representa para mim, a minha orientadora, professora Eliane Cristina Deckmann Fleck. Tenho
consciência de que por mais que eu escreva, não conseguirei expressar o que ela representa na
minha vida e para a realização desse sonho, o Mestrado em História. Posso dizer que Eliane é
uma amiga que ganhei para a vida inteira. E que, além de amiga, foi mãe, professora e
orientadora, da forma mais intensa que é possível ser, conciliando todos estes papéis com
maestria. Professora, sem a sua mão a me conduzir e me cuidar eu jamais teria conseguido. Você
é um exemplo de vida que procurarei seguir. Sua orientação foi simplesmente perfeita. Obrigada,
sempre!
Cabe agradecer, ainda, à CAPES, pela concessão da Bolsa que tornou possível a
realização do Curso de Mestrado, na Universidade do Vale do Rio dos Sinos, no Rio Grande do
Sul, em terras tão distantes das potiguares, nas quais viveu e sobre as quais escreveu Câmara
Cascudo, de quem nos ocupamos nesta Dissertação.
“A forma real heroicamente humana de sentirmos e vivermos a História é procurar a normalidade da
ação, isto é, a ação no germe, não a tempestade estalando no ar como um castigo, mas acompanhar a
evaporação, a formação invisível do fenômeno, a condensação vagarosa dos elementos que deflagrarão a
rutilância cegante do meteoro”
1
.
1
CASCUDO, Luís da Câmara. Antologia do Folclore Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Global, 2001. p. 16.
RESUMO
Esta Dissertação se propõe a apresentar duas faces pouco exploradas de Luís da Câmara
Cascudo pela historiografia, a de homem de fé e a de historiador católico. Na reconstituição da
trajetória intelectual de Câmara Cascudo, destacamos as influências recebidas no ambiente
familiar; a formação escolar na infância e a acadêmica na juventude; a constituição da família
e a maturidade; a sua atuação como jornalista e como professor, para, então, nos dedicarmos,
mais detidamente, na sua produção como historiador. Além de ter sido o historiador oficial da
cidade do Natal e de ter produzido consagradas sínteses históricas sobre o seu Estado e sua
cidade de origem, Câmara Cascudo foi membro do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte e de todos os Institutos brasileiros, aspecto que abordamos a partir do debate
historiográfico sobre o seu “provincianismo incurável”, da reflexão sobre a sua concepção de
História e da análise sobre a versão de História do Brasil e do Rio Grande do Norte que
difundiu através de seus artigos e de seus livros. Debruçamo-nos, ainda, sobre as memórias
que Cascudo produziu vinculando-as à produção de uma “escrita de si” , sobre aquelas que
foram e vêm sendo produzidas sobre ele, com destaque para os lugares de memória que
celebram Cascudo na cidade do Natal. Para desvendar as razões do apreço que Câmara
Cascudo demonstrou na sua tão variada produção pelas temáticas ligadas à religiosidade
popular ou institucional e à História da Igreja no Rio Grande do Norte, voltamos nossa
atenção para a sua tradição católica familiar, para as inúmeras demonstrações de fé e de
devoção particular e, ainda, para a ligação estreita que manteve com representantes da Igreja
Católica no Estado do Rio Grande do Norte durante um determinado período de sua vida.
Palavras-chave: Luís da Câmara Cascudo. História do Rio Grande do Norte. Memória.
Religiosidade. História da Igreja.
ABSTRACT
This dissertation proposes to present two sides of Luís da Câmara Cascudo less explored by
historiography, the one of a man of faith and the one of a catholic historian. In reconstitution
of the intellectual path of Câmara Cascudo, we highlight the influences acquired in the
familial environment; the school formation in his childhood and the academic in his youth;
the constitution of the family and his adulthood; his deeds as a journalist and as a teacher, so
we can, then, set about, more closely, his production as a historian. Besides having been the
Official Historian of the city of Natal and having produced several established historical
syntheses about his State and home city, Câmara Cascudo was a member of the Historical and
Geographic Institute of Rio Grande do Norte and of all Brazilian Institutes, a fact we discuss
from the historiographic debate about his “incurable provincialism”, from the reflection about
his conception of History and from his analysis about the version of History of Brazil and Rio
Grande do Norte that he disseminated through his articles and his books. We give special
attention, as well, to the memories Cascudo produced linking them to the production of a
“self writing” , about those that were and are being produced about him, highlighting to the
places of memory that celebrate Cascudo in the city of Natal. To uncover the reasons behind
the estimation that Câmara Cascudo demonstrated in his varied production to the themes
linked with religiosity popular or institutional and to the History of Church in Rio Grande
do Norte, we divert our attention to his familial catholic tradition, to the many demonstrations
of faith and personal devotion and, then, to the narrow link he kept with representatives of the
Catholic Church in the State of Rio Grande do Norte during a certain period of his life.
Keywords: Luís da Câmara Cascudo. History of Rio Grande do Norte. Memory. Religiosity.
History of Church.
LISTA DE SIGLAS
ANL-RN - Academia Norte Rio Grandense de Letras
IAHGPE - Instituto Arqueológico Histórico Geográfico Pernambucano
IHGB - Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro
IHGCE - Instituto Histórico e Geográfico do Ceará
IHGRN - Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO....................................................................................................................13
2 PEREGRINAÇÃO EM DERREDOR DE CASCUDO....................................................29
2.1 Cascudinho: de príncipe a professor...............................................................................30
2.2 Cascudo esposo, pai e provedor da família ....................................................................39
2.3 Cascudo por múltiplos olhares........................................................................................52
2.4 O memorialista e os sustentáculos da memória cascudiana .........................................59
2.5 O “provinciano” e o “universal”.....................................................................................68
3 CÂMARA CASCUDO UM HISTORIADOR................................................................80
3.1 O historiador provinciano................................................................................................86
3.2 O historiador membro de Institutos Históricos...........................................................103
3.3 O historiador contador de histórias..............................................................................115
4 O HOMEM DE FÉ E O HISTORIADOR CATÓLICO................................................127
4.1 Um homem de fé..............................................................................................................130
4.2 O historiador e a Igreja Católica...................................................................................144
4.3 O historiador e a Companhia de Jesus .........................................................................152
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................170
REFERÊNCIAS....................................................................................................................179
ANEXO A - FOTOS REFERENTES AO PRIMEIRO CAPÍTULO..............................200
ANEXO B - FOTOS REFERENTES AO SEGUNDO CAPÍTULO................................213
ANEXO C - FOTOS REFERENTES AO TERCEIRO CAPÍTULO..............................217
ANEXO D - FOTOS REFERENTES AS CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................229
13
1 INTRODUÇÃO
“Nenhum historiador jamais escapa às indagações de seu tempo,
inclusive quando escreve uma história da memória... A história pertence,
sobretudo àqueles que a viveram e que ela é um patrimônio comum que cabe ao
historiador exumar e tornar inteligível a seus contemporâneos”
2
.
Partimos dessa reflexão do historiador Henry Rousso para iniciar a introdução da
Dissertação que ora apresentamos. Uma Dissertação que trata de um historiador, dos escritos
e das memórias
3
que ele produziu e daquelas que sobre ele já foram e vêm sendo produzidas.
Trata-se de Luís da Câmara Cascudo, de quem já nos ocupamos na monografia de conclusão
do Curso de Graduação em História na Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
Nosso interesse em Câmara Cascudo surgiu durante um Seminário de História
Moderna e Contemporânea cursado no terceiro período do Curso de Graduação. Nele,
tomamos contato não apenas com Cartas Jesuíticas que abordam a atuação dos missionários
na Capitania do Rio Grande, como avaliamos o destaque dado ao papel por eles
desempenhado na produção historiográfica norte-rio-grandense.
Assim, ao final do Curso apresentamos uma monografia que teve como principal
objetivo verificar como dois representantes da historiografia clássica norte-rio-grandense
4
e
membros do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Augusto Tavares de
Lyra
5
(1872-1958) e Luís da Câmara Cascudo (1898-1986) enfocaram a presença dos
missionários da Companhia de Jesus em solo potiguar. Para tanto, selecionamos para a análise
pretendida os livros História do Rio Grande do Norte, tanto o de autoria de Augusto Tavares
de Lyra quanto o de Luís da Câmara Cascudo, por serem referência para a historiografia do
2
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.). Usos e
abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002. p. 98.
3
Em nosso esforço de compreender como se deu a construção dessa memória cascudiana, nos valemos do conceito de
memória proposto por Henry Rousso, para quem ela tem como função primordial garantir a continuidade do tempo,
resistindo ao “tempo que muda” e às “rupturas que são o destino de toda a vida humana”. ROUSSO, Henry. A Memória não
é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.). Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio
de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 2002. p. 94-95.
4
Conforme Denise Monteiro, se trata da historiografia que serviu de matriz para a produzida posteriormente. Constituem
matrizes dessa historiografia os trabalhos de Augusto Tavares de Lyra, Francisco da Rocha Pombo e Luís da Câmara
Cascudo. Ver mais em TAKEYA, Denise Monteiro. História do Rio Grande do Norte: questões metodológicas-
historiografia e história regional. Caderno de História, Natal, v. 1, n. 1, p. 8-11, jul./dez. 1994.
5
Augusto Tavares de Lyra era natural do Rio Grande do Norte, da cidade de Macaíba. Nasceu em 1872 e faleceu em 1958,
no Rio de Janeiro. Foi um político ligado à oligarquia local (Família Albuquerque Maranhão) e “intelectual” atuante, tendo
exercido vários cargos político-administrativos no Estado do Rio Grande do Norte e no Governo Federal. Foi também
Governador do Estado, Deputado Federal e Ministro. Foi um dos empreendedores da fundação do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte. Escreveu inúmeros estudos sobre aspectos sociais, políticos e econômicos do Rio Grande
do Norte e a somatória desses trabalhos resultou no que é considerado seu livro clássico: a História do Rio Grande do Norte, de
1921. Ibid., p. 20. Sobre a atuação de Tavares de Lira na política do Rio Grande do Norte, ver mais em MONTEIRO, Denise
Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 2. ed. rev. Natal, RN: Cooperativa Cultural, 2002.
14
Rio Grande do Norte e por sua condição de marcos iniciais de divulgação da história do
Estado
6
. Ao devassar acervos e acessar os arquivos da cidade do Natal
7
, pudemos constatar
que muito havia ainda para ser pesquisado sobre a temática da monografia e que a mesma não
conseguiria abarcar todas as possibilidades de investigação sobre os historiadores que
escolhemos e sobre a atuação da Companhia de Jesus no Rio Grande do Norte.
Ao fim do Curso, mantivemos o interesse na temática, o que nos levou a pensar na
possibilidade de cursar uma Pós-Graduação e a investir na elaboração de um projeto de
Dissertação. No projeto que apresentamos para o processo seletivo ao Curso de Pós-
Graduação em História, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), propusemos o
aprofundamento da análise que iniciamos na monografia, mantendo os historiadores, aos
quais já vínhamos nos dedicando Tavares de Lyra e Câmara Cascudo , mas ampliando as
fontes que seriam alvo de consulta para a identificação das visões que difundiram sobre a
atuação dos missionários jesuítas durante o período colonial.
Se, inicialmente, pensávamos em priorizar a análise da visão dos historiadores Tavares de
Lyra e Câmara Cascudo sobre a atuação da Companhia de Jesus no Rio Grande do Norte, durante
as fases da conquista e da colonização, alteramos significativamente o projeto no segundo
semestre de 2007. As alterações decorreram, em grande medida, das disciplinas cursadas, das
leituras realizadas, dos seminários e dos encontros de orientação, bem como do produtivo retorno
às fontes nos acervos do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, do Memorial
Câmara Cascudo e da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Os documentos que localizamos
e a análise que realizamos durante o primeiro semestre de 2008 acabaram por redefinir os
objetivos e, conseqüentemente, a estrutura da Dissertação. Optamos por focar a Dissertação
exclusivamente em Câmara Cascudo, priorizando uma de suas faces menos exploradas, a de
historiador, e, especialmente, a de historiador cuja produção concentrada no período entre 1920
6
Vale ressaltar que para consulta, utilizamos a segunda edição das duas obras que possuem o mesmo título ,
isto é, de Tavares de Lyra, a do ano de 1982, e de Câmara Cascudo, a edição de 1984.
7
Consideramos importante esclarecer que empregamos cidade do Natal e não cidade de Natal, porque optamos
por seguir as recomendações feitas pelo próprio Cascudo: “Diz-se Cidade do Natal como somos obrigados,
pela lógica, a dizer e escrever Cidade de Santana do Matos e não Santana de Matos, Cidade do Martins e não
Cidade de Martins. Francisco Martins Roriz foi o proprietário da sesmaria e denominou a Serra do Martins.
Manuel José de Matos, dono da fazenda Bom Bocadinho, era o possuidor da imagem da Senhora Sant’Ana.
Daí o dizer-se a Sant’Ana do Matos, nome do português. Ninguém diz Cidade de Rio, mas do Rio. Cidade de
Recife? Não. Cidade do Recife. Cidade do Natal, por ter sido fundada num Dia do Natal. [...]Certo é viver
conforme a lógica e não ao sabor pessoal. As coisas têm regras e devem obedecer a elas. Não há revolução
social sem a criação de leis. E cada lei é uma obrigatoriedade imediata e humana. Se é assim, seja. Ou uma lei
abrigue e anule o estabelecido”. CASCUDO, Luís da Câmara. Errado é que dá certo. Diário de Natal, Natal,
RN, 14 jul. 1948. Acta Diurna. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm >. Acesso
em: 25 jan. 2009.
15
e 1980 apresenta marcas inegáveis de sua fé católica. Uma produção jornalística ou histórica
que revela a importância que Cascudo atribuiu à Igreja Católica na História do Rio Grande do
Norte, e, sobretudo, aos jesuítas no processo da conquista e da colonização do território.
Além de esta Dissertação preencher uma lacuna na historiografia norte-rio-grandense,
uma vez que poucos trabalhos se detêm na participação dos jesuítas na História do Rio
Grande do Norte, acreditamos que este trabalho contribui significativamente para divulgar a
contribuição de Câmara Cascudo como historiador
8
, uma vez que são os seus trabalhos como
folclorista e antropólogo, o Dicionário do Folclore Brasileiro e A História da Alimentação no
Brasil, os mais conhecidos fora do Rio Grande do Norte.
Este enfoque, cabe ressaltar, não invalidou o esforço que já havíamos feito em analisar
artigos e livros de Cascudo e em identificar qual a importância que o historiador havia
atribuído a esta temática. Dentre as possíveis razões para Cascudo dedicar tanta atenção à
Companhia de Jesus em seus escritos, pode estar a importância que ele atribuía ao papel de
catequizadores, civilizadores e professores que os jesuítas exerceram. Ele mesmo, em várias
ocasiões, fez questão de definir as habilidades que um bom professor deveria possuir:
O que fui essencialmente na vida? Um professor! Não havendo amor, quase
carnal, com a sua especialidade, o professor é um carregador de palavras
imóveis e não um piloto de memórias vivas. Aula não é filme, reproduzindo
indefinidamente atos de verismo impecável, mas representação em palco
aberto, onde cada exibição é uma atitude responsável, insusceptível de
revisão retificadora. As fisionomias dos ouvintes são o mais sensível radar,
devolvendo a onda impressiva. O segredo não está no tema, mas no processo
comunicante. O vocabulário justo, a imagem legítima, o gesto oportuno e
sóbrio. Nenhuma desatenção do professor
9
.
Cascudo os percebia, sobretudo, como promotores da civilização no Estado potiguar e
como responsáveis pela difusão e salvaguarda da moral cristã: “Deve o Rio Grande do Norte aos
Jesuítas o plano da fortaleza, a escolha provável do local e denominação da Cidade, a pacificação
do indígena, indispensável para o estabelecimento regular dum (sic) núcleo europeu”
10
.
8
Cabe destacar aqui a inestimável contribuição do projeto Os Descobridores, coordenado pela professora
Margarida de Souza Neves, e que aborda o Cascudo historiador, apresentando-o como um dos descobridores
do Brasil, ao lado de Gilberto Freyre e outros.
9
Texto do convite da exposição: Câmara Cascudo, cada dia mais vivo: 30 de julho “Encantamento”,
exposta no Memorial Câmara Cascudo, em Natal-RN, a partir de 30 de julho de 2008. Enviado por email por
Daliana Cascudo, neta de Luís da Câmara Cascudo e Diretora do Memorial.
10
CASCUDO, Luís da Câmara. Os jesuítas no Rio Grande do Norte. Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 3,
v. 5, n. 13-14, p. 201, jul./out. 1940.
16
Quanto à nossa motivação para estudá-lo, enquanto homem de fé e historiador católico,
é bem provável que tenha decorrido tanto de uma identificação com o personagem-alvo do
estudo, resultante, em grande medida, da criação católica que ambos tivemos, quanto do
desejo desta natalense em compreender as razões para a criação e a difusão, no meio
acadêmico e popular, de um São Cascudo.
Atestando a vitalidade de Câmara Cascudo e a sua mitificação, em 30 de julho de
2008, dia em que se completaram 22 anos de “encantamento”
11
de Luís da Câmara Cascudo,
o Memorial Câmara Cascudo idealizou uma exposição intitulada Câmara Cascudo, cada dia
mais vivo: 30 de julho - “Encantamento”. Este fato recente que destacamos, somado a
muitos outros que procuraremos explorar nesta Dissertação, confirma a construção de uma
memória sobre o ilustre historiador norte-rio-grandense. Memória assentada, em grande
medida, sobre as memórias que ele construiu sobre si mesmo. Sobre as histórias que
selecionou e quis guardar.
Indispensável para o desenvolvimento desta Dissertação foi a consulta e o diálogo que
mantivemos com a produção historiográfica norte-rio-grandense, em especial, com aquela que
se debruçou tanto sobre Câmara Cascudo, quanto sobre o período colonial da Capitania do
Rio Grande. Sobre esta última temática, foi extremamente importante o contato que tivemos
com a Tese de Doutorado
12
da professora Maria Emília Monteiro Porto, que aborda a
presença de jesuítas em terras potiguares, enfocando as missões instaladas na Capitania do
Rio Grande no período entre 1597 e 1759. Nela, Porto se debruça sobre a documentação
jesuítica para extrair a visão que apresentam da conquista e da colonização da Capitania do
Rio Grande. Também enfocando as missões religiosas instaladas na Capitania do Rio Grande,
nos valemos da Dissertação de Mestrado da professora Fátima Martins Lopes
13
que é tida
como referência para os pesquisadores sobre a temática das missões na Capitania do Rio
Grande, discutindo-a, também, numa perspectiva historiográfica. Esta abordagem que
11
O termo encantamento era empregado por Câmara Cascudo para se referir à morte ou ao falecimento de
alguém, pois não gostava da palavra morte. Segundo sua neta Daliana Cascudo, esta era uma forma poética
por ele empregada para referir-se à morte: “Ele não gostava da palavra morte. E encantamento, para ele, é
como se estivesse em outro mundo. Era o que ele sentia quando falava do assunto”. E depois que ele faleceu
os seus discípulos passaram a empregar o termo para se referir à morte de Cascudo, sendo assim, Cascudo
para esses não morreu, encantou-se. CASCUDO, Daliana (Org.). Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento.
Natal: Ed. da UFRN, 2007. p. 123.
12
PORTO, Maria Emília Monteiro. Jesuítas na Capitania do Rio Grande séculos XVI-XVIII: arcaicos e
modernos. 2000. Tese (Doutorado em História) - Universidade de Salamanca, Espanha, 2000.
13
LOPES, Fátima Martins. Missões religiosas: índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do
Rio Grande do Norte. 1999. Dissertação (Mestrado em História). Universidade Federal de Pernambuco,
Recife, 1999. A Dissertação, em 2003, foi publicada em livro: LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e
missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte. Mossoró, RN: Fundação Vingt-un Rosado,
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande, 2003.
17
perpassa o trabalho fica evidenciada na afirmação feita por Martins: “[...] Saber o que se
passou nas Missões por si só pouco acrescentaria ao conhecimento histórico. Essas relações
internas às Missões só são importantes e significativas quando colocadas no conjunto da
História do Brasil”
14
.
Imprescindíveis também para essa Dissertação em termos de aprofundamento sobre
a atuação missionária jesuítica no Brasil colônia, tema de que nos ocuparemos em subcapítulo
específico foram as leituras realizadas nas disciplinas Culturas Nativas: história e
historicidade I e História das Populações Indígenas na América Latina I, cursadas durante o
primeiro ano de Mestrado na UNISINOS. Na primeira disciplina, chamaram nossa atenção os
textos de Maria Sylvia Porto Alegre e de Maria Regina Celestino de Almeida
15
, que se
enquadram na denominada Nova História Indígena, cuja proposta vem alterando
significativamente as visões sobre os períodos da conquista e da colonização.
O estudo de Sylvia Porto Alegre trata não só do desaparecimento dos índios, como
também do silenciamento sobre a história desses grupos no Nordeste, priorizando o desmonte
do argumento da extinção dos indígenas no Brasil. Segundo a autora, o argumento de que
teria havido um “desaparecimento” dos índios surge no século XVI para dar conta da
incorporação forçada dos povos indígenas à sociedade nacional e para justificar a
expropriação de suas terras
16
. As pesquisas de Maria Sylvia evidenciam que os índios do
Nordeste não se acomodaram passivamente à política assimilacionista:
Consolidado o processo de ocupação dos seus territórios, os índios
continuaram a se rebelar, porém não mais pegando em armas como nos
primeiros tempos. Eles agora resistiam à assimilação forçada recusando-se a
sair das terras invadidas, fugindo ao trabalho compulsório nas propriedades
dos moradores, abandonando as aldeias e vagando entre as fronteiras das
Capitanias, em “correrias” sem fim, rompendo as normas impostas,
praticando “abusos’ e voltando aos “maus costumes”
17
.
14
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do Rio Grande do Norte.
Mossoró, RN: Fundação Vingt-un Rosado, Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande, 2003. p. 19.
15
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos povos
indígenas. Disponível em: http://br.geocities.com/esp_cultural_indigena/texto3. Acesso em: 25 jan. 2009;
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a história
indígena. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticas e
metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 27-37.
16
PORTO ALEGRE, op. cit.
17
Ibid., 2009.
18
Também o estudo de Celestino de Almeida se contrapõe aos trabalhos historiográficos
clássicos, apontando para aspectos geralmente por eles negligenciados, tais como o papel
desempenhado pelas aldeias indígenas coloniais no processo de ressocialização e de
reconstrução de identidades e culturas dos diversos grupos indígenas que se reuniam nestes
espaços em busca de sobrevivência, diante do caos instalado nos sertões. Essa nova postura
defende prioritariamente, que:
Os povos indígenas não estavam na América à disposição dos colonizadores,
nem com eles colaboraram por ingenuidade ou tolice. Ao contrário,
responderam ao contato de acordo com suas próprias motivações, ligadas à
dinâmica de suas organizações sociais, que igualmente se modificavam no
decorrer do processo histórico
18
.
Os estudos de Maria Sylvia Porto Alegre e Maria Regina Celestino de Almeida, apesar
de tratarem de diferentes regiões, enfocam a temática indígena no Brasil, partindo das novas
perspectivas de análise das fontes e de revisões historiográficas criteriosas, que buscam
desmistificar a história das populações indígenas brasileiras. Populações que foram
“condenadas” pela historiografia clássica até a segunda metade do século XX ao
“desaparecimento” ou “silenciamento” por parte dos historiadores.
Em se tratando da produção de Cascudo que versa sobre a etapa colonial do Rio
Grande do Norte, e, em especial, sobre a situação da população indígena durante este período,
pudemos confirmar algumas das constatações feitas por Maria Sylvia Porto Alegre:
No relato dos contemporâneos, endossado pela historiografia regional, a
maior parte dos índios aldeados enfrentou a decadência dos aldeamentos
passivamente, sem opor nenhuma resistência à integração, desaparecendo
sem deixar vestígios. É como se saíssem de cena silenciosamente, deixando
para trás suas terras, seus bens, sua cultura, seu passado e seu futuro. No
entanto, os documentos por nós localizados mostram a irrealidade dessa
visão, contando uma história bem diferente. Uma vez consolidado o
processo de ocupação dos seus territórios, os índios continuaram a se rebelar,
porém não mais pegando em armas como nos primeiros tempos. [...] No
Nordeste, há um silêncio sobre o que ocorreu com os povos indígenas que
habitavam tradicionalmente os territórios conquistados, desde meados do
século passado, quando se deu a extinção definitiva da maior parte das vilas
18
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas para a história
indígena. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história: conceitos, temáticas e
metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 29.
19
e lugares remanescentes dos antigos aldeamentos missionários, implantados
entre os séculos XVI e XVIII
19
.
Valendo-se dos relatos dos missionários e das autoridades metropolitanas, Cascudo
reproduz a tese da extinção indígena na conjuntura do processo da colonização da capitania,
como comprova a passagem que destacamos:
Agora o Forte dos Reis Magos não será um quisto isolado nas praias
nordestinas. Dele sairão colonos, instrumentos de caça e pesca, recursos,
caravanas, soldados para diligências em terras longes. [...] Também haveria
o aniquilamento implacável da raça guerreira e generosa que povoara a terra
antes do branco invasor. Seria a tropa de choque, a vanguarda, os
companheiros insubstituíveis. Depois, lenta e regularmente, iriam
desaparecendo, homem a homem, tribo a tribo, saindo da vida, indo
para a História, cumprida a missão que lhe custaria o sacrifício total da
raça admirável
20
. (grifo nosso).
As reflexões que estes dois estudos o de Porto Alegre e de Celestino de Almeida
fazem sobre a história indígena e sobre a historiografia produzida sobre os índios no Brasil
decorrem de uma qualificada análise e revisão historiográfica, e também de um cuidadoso uso
de conceitos e de uma metodologia de análise criteriosa. É, neste sentido, que a leitura desses
dois estudos contribuiu de forma inestimável para a investigação que realizamos, ao chamar-
nos a atenção para novas perspectivas de análise e para esses cuidados fundamentais.
Na segunda disciplina, História das Populações Indígenas na América Latina I,
tomamos contato com a produção de historiadores, antropólogos e de jovens pesquisadores,
cujas obras tratam dos mecanismos empregados para a incorporação do índio na sociedade
colonial. Estas leituras foram fundamentais para a compreensão do projeto colonial e do
trabalho missionário junto às populações indígenas, permitindo o estabelecimento de relações
entre as estratégias de evangelização empregadas em outras regiões e por outras ordens
religiosas.
Dentre os trabalhos a que tivemos acesso e por sua aproximação a um dos objetivos
da Dissertação , destacamos a Tese de Dóris Cypriano Margens dos Rios Madeira e
19
PORTO ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos povos
indígenas. Disponível em: http://br.geocities.com/esp_cultural_indigena/texto3. Acesso em: 25 jan. 2009.
20
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação José Augusto, 1984. p. 27.
20
Tapajós: situação de contato e dinâmica social séculos XVII e XVIII
21
, cujo principal
objetivo é o de analisar a relação que se estabeleceu entre os missionários jesuítas e os
indígenas Tapajó, Tupinambarana e Iruri, localizados nas margens dos Rios Madeira e
Tapajós, nos séculos XVII e XVIII. Vale ressaltar que a abordagem da Tese não desconsidera
a influência da ação européia nas sociedades indígenas, e as conseqüentes transformações da
ordem cultural que estas sofreram, mas propõe uma análise que parte do pressuposto de que
europeus e indígenas agiam em um mesmo plano, onde submetiam constantemente suas
pautas culturais a riscos, reavaliando-as em busca das melhores alternativas para a
manutenção de seus grupos.
Em termos de revisão bibliográfica, tivemos acesso a alguns dos mais representativos
trabalhos escritos sobre Luís da Câmara Cascudo, dentre os quais podemos destacar o livro do
seu primeiro e mais destacado biógrafo, Américo de Oliveira Costa, intitulado Viagem ao
Universo de Câmara Cascudo. Para este autor, que se valeu basicamente de depoimentos e
escritos do próprio Cascudo, a obra cascudiana não é uma ilha e sim, um arquipélago, razão
pela qual optou por apresentar as mais variadas facetas de Cascudo: as de historiador,
etnógrafo, folclorista, antropólogo, jornalista, memorialista, entre outras funções que Cascudo
se ocupou em vida. Também consultamos o livro de Diógenes da Cunha Lima, Câmara
Cascudo Um brasileiro feliz, no qual o autor, não escondendo sua amizade e profundo
respeito pelo biografado, afirma ser um de seus mais fiéis discípulos.
Valemo-nos, ainda, de alguns escritos da professora e socióloga Vânia Gico, em
especial de sua tese de Doutorado Luís da Câmara Cascudo: Itinerário de um pensador.
Foram também fundamentais os trabalhos desenvolvidos pelo Grupo de Pesquisa, coordenado
pelo professor e historiador Durval Muniz, da UFRN, e de alguns de seus bolsistas, como os
realizados por Francisco Sales Neto e Arthur Torquato, que vêm problematizando algumas
das muitas visões consagradas sobre Câmara Cascudo; bem como os do professor e
historiador Raimundo Arrais, que preocupou-se em problematizar a ligação de Cascudo com a
cidade do Natal na época da modernização da cidade, valendo-se de suas crônicas e de sua
produção histórica
22
. Também consultamos os trabalhos do jornalista Luiz Gonzaga Cortez,
com o objetivo de obtermos maiores informações sobre a vinculação de Cascudo ao
movimento integralista na cidade do Natal e no Rio Grande do Norte.
21
CYPRIANO, Doris Cristina C. de Araújo. Margens dos Rios Madeira e Tapajós: situação de contato e dinâmica
social séculos XVII e XVIII. 2005. Tese. (Doutorado em História). UNISINOS, São Leopoldo- RS, 2005.
22
O jovem Cascudo assinou sua primeira crônica no dia 10 de outubro de 1918, ainda com 20 anos incompletos,
no jornal A Imprensa. Cascudinho publicou uma crítica literária do livro Bosque Sagrado, de autoria de Leal
de Souza. Ver CASCUDO, Luís da Câmara. A Imprensa, Natal, 18 out. 1918. Bric-à-Brac.
21
Foram de extrema importância os estudos desenvolvidos entre 2003 e 2004, pelo
grupo de pesquisa coordenado pela professora e historiadora Margarida de Souza Neves, O
encantamento do passado Luís da Câmara Cascudo Historiador, que enfocam o Cascudo
memorialista, autor de livros de história regional e de textos historiográficos de caráter mais
geral, buscando vincular esta produção a sua inserção na arena pública e nas instituições
letradas. O site oficial do projeto, denominado Os Modernos Descobridores, forneceu
qualificados subsídios para nossa Dissertação.
Os vários trabalhos produzidos e organizados pelo professor e historiador Marcos
Silva foram também relevantes para a análise que nos propusemos fazer, sobretudo o
Dicionário Crítico Câmara Cascudo, livro que além de promover o reconhecimento da obra
cascudiana fora do âmbito nordestino, congrega “A multiplicidade interpretativa de todas
essas vozes em relação à obra de Câmara Cascudo, necessária para dar conta de suas diversas
facetas teóricas e temáticas e também para expressar uma contemporaneidade analítica
pluridimensional na abordagem de sua produção, procura ampliar o debate sobre esse autor
[...]”
23
.
A fim de melhor compreendermos os efeitos que determinados eventos ligados à
História da Igreja no Rio Grande do Norte e no Brasil tiveram sobre a produção cascudiana,
foram importantes autores como Thomas Bruneau, do qual exploramos, especificamente, o
seu livro O Catolicismo brasileiro em época de transição, no qual são analisadas as bases
políticas e religiosas do Catolicismo no Brasil. De acordo com Bruneau, além da doutrina
oficial, também um Catolicismo popular criou corpo no Brasil, que “pode ter alguma
semelhança com a doutrina oficial em alguns pontos, mas diverge noutros; [...] No Brasil,
prevalece o Catolicismo popular porque a instituição foi, muitas vezes, incapaz de manter
controle sobre a religião”
24
. Um outro autor que nos serviu de base para melhor
compreendermos a História da Igreja no Brasil durante o século XX foi Oscar Lustosa. Seu
livro A Igreja Católica no Brasil República foi importante, na medida em que nos permitiu
entender algumas das posições assumidas por Cascudo, sobretudo aquelas que têm relação
direta com o Catolicismo e com a Igreja católica. De acordo com Lustosa, “a ação social dos
católicos, no Brasil, foi predominantemente moralista e juridicista, muito presa aos esquemas
de comportamento individual nas normas do casuísmo tradicional. Pouco espaço se dava à
23
SILVA, Marcos (Org.). Dicionário crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal:
EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. xix.
24
BRUNEAU, Thomas. O Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola, 1974. p. 12.
22
preocupação e às tarefas de reforma da engrenagem social na qual as peças do capitalismo
eram intocáveis”
25
.
Além desses dois autores citados, nos utilizamos também do livro A Neocristandade:
um projeto restaurador, de Riolando Azzi, que aborda a História da Igreja no Brasil no
período das décadas de vinte, trinta e quarenta do século XX, fundamental para o
estabelecimento de relações entre o conservadorismo católico de Cascudo e o processo da
Restauração Católica em curso no Brasil na primeira metade do século XX. Cabe ressaltar que
este processo consistiu num “esforço de recriação de um Estado Cristão [que] concretizou-se
a partir da década de 20”, e que se assentava “num projeto bem concreto de restauração da
influência do catolicismo dentro da sociedade brasileira, contando, para isso, com o apoio
expressivo do próprio poder político”
26
.
Em termos de referencial teórico e metodológico para a execução da proposta, foram
fundamentais as leituras que realizamos de autores que se dedicam à teorização da história
cultural, da história política e da história intelectual, principalmente, daqueles que puderam
subsidiar as discussões sobre escrita da história, lugar institucional, memória, lugares de
memória, representações, leitura e recepção, poder e capital simbólico. Foram, por isso, de
inegável importância os pressupostos de Michel de Certeau, Pierre Nora, Roger Chartier e
Pierre Bourdieu.
No que se refere especificamente à história intelectual, nos valemos das reflexões de
Jean-François Sirinelli, para quem “a história dos intelectuais tornou-se [...] em poucos anos, um
campo histórico autônomo que, longe de se fechar sobre si mesmo, é um campo aberto, situado no
cruzamento das histórias política, social e cultural”
27
. Em nosso esforço de compreensão do
homem de fé e historiador católico que Cascudo foi, não descuidamos da observação feita pelo
autor de que “Nem complacente, nem membro, a contrario, de qualquer pelotão de fuzilamento
da história, o historiador dos intelectuais não tem como tarefa nem construir um Panteão, nem
cavar uma fossa comum”
28
. (grifo do autor).
Apoiamo-nos, também, em Norberto Bobbio, que definiu os intelectuais como um
“conjunto de sujeitos específicos, considerados como criadores, portadores, transmissores de
idéias”
29
. Entendemos que a partir desta definição de Bobbio Cascudo possa ser
25
LUSTOSA, Oscar F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 175.
26
AZZI, Riolando. A Neocristandade: um projeto restaurado. São Paulo: Paulus, 1994. p. 9. (História do
pensamento católico no Brasil, v. 5).
27
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história política. Tradução
Dora Rocha. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 232.
28
Ibid., p. 261.
29
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 109.
23
entendido como um intelectual, pois se enquadra perfeitamente no conceito proposto pelo
sociólogo, que ainda reforça que “após a invenção da imprensa, a figura típica do intelectual
passa a ser o escritor, o autor de livros, de libelos e depois de artigos para revistas e jornais de
manifestos, de cartas públicas”
30
. Por outro lado, consideramos extremamente importante
para o estudo aqui apresentado ter bem presente que “Falar dos intelectuais como se eles
pertencessem a uma categoria homogênea e constituíssem uma massa indistinta é uma
insensatez”
31
, mesmo porque a definição do que vem a ser um intelectual deve ter “contornos
fluídos” que decorrem de “dificuldades que se traduzem na impossibilidade de uma definição
rígida”
32
.
Para os objetivos dessa Dissertação foram também fundamentais alguns dos
pressupostos de Michel de Certeau, para quem a história é “um produto de um lugar”
33
e
deve ser encarada como uma operação, em que o lugar social, as práticas cientificas e a
escrita estão em constante acordo. É a partir desse lugar de produção, segundo De Certeau,
que o historiador delimita suas escolhas metodológicas, as fontes que serão analisadas e,
conseqüentemente, os resultados da pesquisa. Para o historiador francês, a história deve ser
percebida como um texto e uma prática construídos a partir de um lugar social, razão pela
qual o processo do “fazer história” é marcado pela subjetividade, uma vez que “não
escrevemos a História fora da História. Isto é, o conhecimento do passado é textualizado,
permeado de intervenções e interdições que configuram o saber histórico”
34
.
Em relação ao conceito de memória e de lugares de memória que empregamos, nos
apropriamos das idéias de Pierre Nora, que afirmou que a “memória pendura-se em lugares como
a história em acontecimentos” e que “os lugares de memória são, antes de tudo, restos”
35
, ou,
ainda, “a forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a
chama, porque ela a ignora. É a desritualização de nosso mundo que faz aparecer a noção”
36
.
Em nosso propósito de analisar a produção intelectual do Cascudo homem de letras, de
avaliar a recepção que tiveram e têm seus escritos, e de levantar aquilo que Cascudo leu e
dos livros que possuía em sua Biblioteca bem como das obras que consultou para a
30
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Universidade Estadual Paulista, 1997. p. 120.
31
Ibid., p. 9.
32
GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio… os intelectuais cariocas e o modernismo. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n. 11, p. 64, 1993.
33
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p. 65-119.
34
PESAVENTO, Sandra J. Palavras para crer: imaginários de sentido que falam do passado. Paris:
CERMA/EHESS, 2006. História Cultural do Brasil (Dossier coordenado por Sandra Jatahy Pesavento
28.01.06). Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org>. Acesso em: 25 jan. 2009.
35
NORA, Pierre. Entre memó ria e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10,
p. 25, dez. 1993.
36
Ibid., p.12-13.
24
elaboração dos mesmos, recorremos às reflexões de Roger Chartier sobre história da leitura e
da recepção. Este autor foi também fundamental para a análise que fizemos das
representações
37
que Cascudo construiu sobre os jesuítas e sobre a Companhia de Jesus em
suas obras, na medida em que, para o historiador francês, as representações construídas do
mundo social, embora aspirem à universalidade, são sempre determinadas pelos interesses do
grupo que as forjam. A sua concepção de História, a vinculação a Institutos Históricos
espalhados pelo país e o prestígio que desfrutava junto às autoridades eclesiásticas da Igreja
Católica no Rio Grande do Norte contribuíram, efetivamente, para a visão que as obras de
Cascudo veiculam sobre a atuação da Companhia de Jesus no Estado potiguar durante o
período colonial.
No que concerne aos conceitos de capital e de poder simbólico que empregamos nessa
Dissertação, estão embasados nos pressupostos de Pierre Bourdieu. De acordo com o
sociólogo francês, o poder simbólico pode ser compreendido como a capacidade que algumas
instituições sócio-culturais e que alguns indivíduos possuem em relação à constituição da
realidade, estabelecendo significado para o mundo social, estando presente em toda parte e em
parte alguma, e sendo exercido com conivência daqueles que não querem saber que lhes estão
subordinados ou mesmo que o exercem
38
. Esse poder é, segundo Bourdieu, revestido de um
capital simbólico, que ele distingue do capital econômico, por ser composto por valores
simbólicos, pois “o que faz o poder das palavras e das palavras de ordem ou de subverter é a
crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia, crença cuja produção não é
da competência das palavras”
39
.
As discussões sobre a “escrita de si” e a “memória de si” foram feitas a partir da
perspectiva que os trabalhos de Ângela de Castro Gomes contemplam: “a escrita de si
estabelece uma relação de domínio do tempo que está determinada por seus objetivos e pela
sensibilidade que provoca. Embora se possa considerar que toda escrita de si deseja reter o
tempo, constituindo-se em um “lugar de memória” [...]”
40
. Foram também extremamente
valiosos os trabalhos de Rebeca Gontijo, que, em vários deles, se deteve no processo de
construção de um autor monumento, construção essa feita a partir de depoimentos do próprio
autor e das correspondências trocadas com outros intelectuais. Muitos dos argumentos que
37
Para Chartier, as representações são encaradas como: “[...] esquemas intelectuais, que criam as figuras graças
às quais o presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado”. CHARTIER,
Roger. A História Cultural: entre praticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 20.
38
Ver mais em BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. F. Tomaz (Org.). Rio de Janeiro: DIFEL, Bertrand
Brasil, 1989.
39
Ibid., p.15.
40
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de
Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 18.
25
desenvolvemos na Dissertação são tributários da análise que Gontijo fez da vida e obra de
Capistrano de Abreu: “Os biógrafos consolidaram a imagem de um autor-monumento,
acentuando o caráter ímpar de sua trajetória por meio do cruzamento entre sua vida como
homem de estudos e figura excêntrica da sociedade letrada”
41
.
Apresentamos e analisamos uma ampla e variada gama de fontes nessa Dissertação.
Estamos conscientes de que essas fontes devem ser, necessariamente, tratadas
metodologicamente de forma diferenciada, e de que nenhuma dessas fontes ou as formas
como as tratamos podem nos levar à “verdade”, já que, como bem observado por Durval
Muniz: “Não existe nenhum método ou teoria que, a priori, garanta o melhor acesso à verdade
dos eventos. Uma teoria ou uma metodologia tem que ser testada quanto à sua capacidade de
resolver problemas para se estabelecer a sua utilidade ou não”
42
.
Em relação, especificamente, ao uso dos jornais como fonte, consideramos
extremamente pertinentes as recomendações feitas por Cláudio Elmir, de que “A imprensa
não informa a história, simplesmente. Se fosse assim, a história enquanto campo de
investigação precisaria apenas se apropriar dos fatos fornecidos pelos jornais”
43
, e que “Tanto
o deslumbramento quanto a desconfiança extremados prejudicam o desdobramento das
pesquisas e o tipo de conclusões a que estas chegam”
44
. Os jornais que analisamos foram,
por isso, considerados como uma fonte não inocente, já que, como apontado por Maria Helena
Capelato, por detrás de seus caracteres estão escondidos muitos interesses
45
. Em razão disso,
não descuidamos de considerar os interesses envolvidos na veiculação de determinados
artigos, mesmo porque A Imprensa, por exemplo, pertencia ao Coronel Francisco Justino
Cascudo, pai de Câmara Cascudo; já A República era o jornal oficial do Rio Grande do Norte,
enquanto A Ordem era o veículo de divulgação da Arquidiocese de Natal, controlado pela
hierarquia do clero católico e pelos leigos que eram militantes católicos no Estado.
Dentre as outras fontes que analisamos nessa Dissertação, destacamos os artigos
produzidos por Câmara Cascudo e publicados nas Revistas do IHGRN e nas revistas da
41
GONTIJO, Rebeca. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia. Revista Anos 90
Dossiê História e Memória, Porto Alegre, RS, v. 14, n. 26, p. 67, dez. 2007.
42
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. O Historiador Naif ou a análise historiográfica como prática de
excomunhão. Digitado. Disponível em:<http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/index2.htm>. Acesso em:
13 jul. 2008.
43
ELMIR, Cláudio Pereira. As armadilhas do jornal: algumas considerações metodológicas de seu uso para a
pesquisa histórica. Cadernos PPG em História da UFRGS , Porto Alegre, RS, n. 13, p. 21, dez. 1995.
44
Ibid., p. 24.
45
Vale ressaltar que para Maria Helena Capelato “A imprensa constitui um instrumento de manipulação de
interesses e intervenção na vida social. Partindo desse pressuposto, o historiador procura estudar o jornal
como agente da história e captar o movimento vivo das idéias e personagens que circulam pelas páginas dos
jornais”. CAPELATO, Maria Helena Rolim. Imprensa e História do Brasil. São Paulo: Contexto, EDUSP,
1988. p. 21.
26
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, referentes ao período em que atuou nessas
instituições, ou seja, do final da década de 1920 até final de 1980, quando faleceu. Valemo-
nos, também, de outros artigos de autoria de Cascudo publicados em revistas nacionais, locais
e regionais e de artigos publicados sobre Cascudo e sobre sua produção.
Consultamos, ainda, as edições dos jornais locais mais importantes do Rio Grande do
Norte, alguns dos quais já mencionamos, tais como: A Imprensa, A Ordem, A República, O
Diário de Natal e A Tribuna do Norte, contemplando o período da década de 1920 até final da
década de 1950. Analisamos os artigos que Cascudo publicou sobre a atuação jesuíta, sobre
temas ligados à religiosidade
46
popular ou à História da Igreja no Estado potiguar e,
relativamente ao período posterior à década de 50, selecionamos reportagens que versaram
sobre Cascudo. Junto ao Memorial e à Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, fizemos o
levantamento dos livros de autoria de Cascudo disponíveis no Acervo e, também, dos livros
que compõem sua biblioteca particular. Do Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, utilizamos as Atas, os livros de autores locais sobre Câmara Cascudo e
aqueles de autoria de Cascudo disponíveis em sua Biblioteca, além dos jornais que referimos
e que se encontram no Acervo do próprio Instituto.
A Dissertação se constitui de três capítulos que têm como principais objetivos os de
evidenciar a importância de Luís da Câmara Cascudo como historiador e apontar para as
marcas de sua fé e de seu catolicismo nos artigos e livros que produziu.
No primeiro capítulo Peregrinação em derredor de Cascudo apresentamos
Câmara Cascudo ao leitor, procurando colocá-lo em contato com as diferentes fases da vida
do historiador. Destacamos, em razão disso, as suas vivências de infância, a sua criação
católica, a sua formação familiar e educacional, a relação que manteve com os pais e amigos,
com a esposa e os filhos, e as atividades profissionais que exerceu. Nesse mesmo capítulo,
enfocamos, também, os vários lugares de memória vinculados diretamente ao historiador e
homem de fé que foi Câmara Cascudo, e que se constituem em símbolo tanto da memória que
ele construiu sobre si, quanto daquela que construíram sobre ele após sua morte. Para realizar
essa peregrinação, nos utilizamos de diversos depoimentos sobre Cascudo, de alguns que ele
concedeu ou registrou, e, ainda, de uma vasta bibliografia de referência. Ao identificarmos os
lugares de memória muitos deles, assumindo a forma de estátuas de concreto de Cascudo
46
Compreendemos religiosidade como “a forma e o sentimento com que cada indivíduo vive suas crenças e
práticas religiosas, independente de ele estar filiado a uma instituição religiosa. Tal qual a identidade, a
religiosidade pode ser inconstante, sujeita a questionamentos existenciais, a pressões e incentivos de um
grupo, a circunstâncias. BELLOTTI, Karina Kosicki. Mídia, religião e história cultural. Revista de Estudos
da Religião - PUC, São Paulo. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ rever/rv4_2004>. Acesso em: 25 jan. 2009.
27
espalhadas pela cidade do Natal , procuramos apresentá-los como símbolos do uso de sua
imagem por políticos e personalidades ilustres do Estado do Rio Grande do Norte.
Concluímos o capítulo, ressaltando o quanto é acertada a percepção de que, se Cascudo se
doou, a cidade do Natal também se doou a ele, ao mesmo tempo em que usou de seu prestígio
para legitimar o seu próprio brilho.
No segundo capítulo Câmara Cascudo um historiador do Rio Grande do Norte
nos debruçamos sobre o Cascudo pesquisador e historiador local, regional e, por vezes,
nacional , destacando a sua inserção nos Institutos Históricos do Brasil. Nos empenhamos,
ainda, em mostrar que o historiador tido como provinciano foi, sim, muito perspicaz, ao
optar por permanecer em seu Estado e se projetar como o homem de letras mais reverenciado
até os dias de hoje na sua cidade e em seu Estado de origem. Para tanto, nos utilizamos de
alguns de seus livros, artigos, discursos, e demais registros históricos, além de análises feitas
de alguns de seus livros por especialistas e reconhecidos historiadores. Procuramos,
sobretudo, desvendar qual era a sua visão de História, quais as influências teóricas e
metodológicas perceptíveis na sua produção, e qual a importância que tiveram na sua vida
e na sua obra os contatos que manteve com outros intelectuais e os espaços de
representatividade intelectual e política que freqüentou. Buscamos, principalmente,
resgatar a vida do Cascudo historiador, daquele que escreveu sobre as origens e as histórias de
seu Estado e de sua gente, e que reverenciou e divulgou para o mundo a eterna “Noiva do
Sol”, a cidade do Natal.
No terceiro e último capítulo O homem de fé e o historiador católico remontamos
à formação católica de Luís da Câmara Cascudo e destacamos algumas das inúmeras
demonstrações de fé que deu ao longo de sua vida, bem como o apreço que demonstrou na
sua tão variada produção pelas temáticas ligadas à religiosidade popular ou institucional
e à História da Igreja. Para tanto, apresentamos uma série de depoimentos, livros e artigos que
atestam a forte ligação de Cascudo com membros da hierarquia católica potiguar, sua devoção
aos santos padroeiros e sua preocupação com a preservação do patrimônio e da história de
Paróquias e Igrejas do Estado. A análise feita sobre o período da conquista e da colonização e
o destaque dado por Cascudo em seus livros e artigos à atuação da Companhia de Jesus na
História do Rio Grande do Norte
47
merece uma especial atenção nesse capítulo. E não poderia
47
Antes mesmo da publicação dos seus dois principais livros de conteúdo histórico, História da Cidade do Natal
e História do Rio Grande do Norte, Câmara Cascudo em alguns artigos publicados na década de 1930
havia se dedicado a enaltecer o papel que os missionários jesuítas haviam desempenhado na História do Rio
Grande do Norte, corroborando assim, a visão do historiador Pe. Serafim Leite SJ., de cujas informações o
historiador potiguar se valia para desenvolver sua argumentação.
28
ser diferente, uma vez que foi essa visão tão elogiosa sobre os jesuítas tão presente em seus
artigos e livros que nos despertou o interesse ainda nos tempos da Graduação na
produção histórica de Luís da Câmara Cascudo e que nos instigou a compreender as razões da
importância que o intelectual potiguar atribuiu à religião e à Igreja católica, à moral cristã e às
expressões devocionais populares em suas produções.
Ao fim dessa Dissertação, retomamos a imagem do caleidoscópio que foi fundamental
na concepção e na forma como se estruturou a Dissertação. Os desenhos que o caleidoscópio
cria a cada giro, além de sinalizarem para a multiplicidade de visões que podemos ter sobre
um assunto ou sobre um personagem, remetem às muitas e enriquecedoras experiências que
vivemos nas terras gaúchas, muito distantes da Natal de Câmara Cascudo. O mais curioso em
todo esse processo que se conclui, formalmente, com essa Dissertação é que a distância do
Rio Grande do Norte permitiu que víssemos coisas que nunca havíamos visto ou imaginado
ver sobre Cascudo e sobre Natal.
Se, por um lado, o desenho que selecionamos a face de historiador de Cascudo ,
dentre todos os que o caleidoscópio nos ofereceu, se constituiu num grande desafio, já que
poucos estudos têm sido realizados sobre ele nesta perspectiva; por outro, permitiu que,
através da análise da produção histórica cascudiana, aprofundássemos o estudo de uma
temática a atuação da Companhia de Jesus no Rio Grande do Norte que nos é muito
especial desde a Graduação. Ao explorarmos a influência que a fé de Cascudo e sua
vinculação com a Igreja católica exerceram sobre sua produção, foi inevitável o
estabelecimento de uma comparação entre a nossa fé e formação religiosa e à daquele menino
criado dentro da tradição católica e do homem devoto e de fé inabalável em Deus. Esta,
talvez, seja a explicação aquela que a razão não explica para que tenhamos optado
também por desvendar as manifestações de sua religiosidade e por identificar e analisar as
possíveis marcas de seu catolicismo em sua produção intelectual.
29
2 PEREGRINAÇÃO EM DERREDOR DE CASCUDO
“Eu sou o único homem feliz do Brasil...”.
48
O intelectual de que nos ocupamos nesta Dissertação Luís da Câmara Cascudo
foi objeto de inúmeros estudos, sendo que a maior parte deles foi produzida por historiadores
do Sudeste e do Nordeste brasileiros. Alguns deles enfatizam sua vasta produção como
folclorista, historiador e antropólogo, outros contemplam diferentes momentos de sua
existência, enfocando a sua infância, a juventude, a maturidade e a velhice. Também Cascudo
produziu inúmeras narrativas sobre suas vivências e sobre suas pesquisas, constituindo uma
certa escrita autorizada
49
, que se reproduz nas páginas de suas mais consagradas biografias.
Em vários pontos da capital do Estado do Rio Grande do Norte, onde Cascudo nasceu
e viveu até sua morte, encontramos lugares de memória
50
que homenageiam o mais ilustre
intelectual potiguar
51
. Cada um a sua maneira e em seu tempo
52
fundamentais para a difusão
de uma memória sobre Cascudo, tais como a sua Biblioteca, o Memorial Câmara Cascudo, a
Pedra do Rosário, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte (IHGRN), a
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (ANL-RN)
53
e a Faculdade Câmara Cascudo,
entre outros.
48
CASCUDO, Luís da Câmara. Entrevista. Manchete, Rio de Janeiro, 29 fev. 1964.
49
Como bem observado por Marc Bloch: “[...] a diversidade dos testemunhos históricos é quase infinita. Tudo o
que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca pode e deve informar-nos sobre ele”.
BLOCH, Marc. Introdução à História. Lisboa: Europa-América, 1965 apud RIBEIRO, Renilson Rosa. Nos
jardins do tempo: memória e história na perspectiva de Pierre Nora. Revista Virtual História e História.
Disponível em: <http://www.historiaehistoria.com.br.cfm?tb=historiadores&id=11>. Acesso em: 11 ago. 2008.
50
Empregamos a expressão lugares de memória na acepção de Pierre Nora, que a pensou como a “solução do
problema de não se ter mais memória”. Nora trabalhou com a idéia de que não existe uma memória
verdadeira e, sim, uma memória que foi reconstituída a fim de conferir um sentido de identidade possível: “Os
lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar
arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas,
porque estas operações não são naturais”. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos
lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez. 1993.
51
Luís da Câmara Cascudo é hoje sinônimo de Dicionário do Folclore Brasileiro e de cultura popular. O termo
potiguar é o gentílico usado para designar quem nasce no estado do Rio Grande do Norte e, em tupi, quer dizer
“comedor de camarão”. As tribos potiguares habitavam as regiões do litoral do Nordeste brasileiro e eram
inimigas dos portugueses. Ver mais em MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande
do Norte. 3. ed. rev. Natal, RN: Cooperativa Cultural, 2007. Nessa Dissertação, empregamos o termo potiguar
para designar não apenas as pessoas que nascem no Estado, mas também o próprio Estado do Rio Grande do
Norte.
52
Concordamos, com Pierre Nora, de que a memória deve ser entendida “em permanente evolução [...],
vulnerável a todos os usos e manipulações, susceptível de longas latências e de repentinas revitalizações”.
NORA, op. cit., p. 9.
53
Ver anexo A (foto de placa em homenagem a Câmara Cascudo fixada na ANL RN).
30
Para desvendar os processos que consagraram Cascudo como alguém digno de ser
lembrado no presente e no futuro
54
, consideramos fundamental reconstituir as diferentes
etapas de sua vida, por entendermos que estas foram determinantes na formação do intelectual
que hoje conhecemos através dos escritos que produziu
55
.
Assim que optamos neste primeiro capítulo por apresentar a vida de Cascudo à
semelhança de um caleidoscópio, imagem que nos remete não apenas as suas múltiplas faces
e etapas de vida, mas também às diversas narrativas, tanto as produzidas por ele mesmo,
quanto as que enfocam o mais renomado intelectual potiguar
56
. Nesse esforço de compreender
Cascudo nas suas mais variadas faces jornalista, professor, escritor, historiador, folclorista e
etnógrafo , não podemos ignorar a importância que a família, a educação recebida e o
catolicismo exerceram na formação do intelectual norte-rio-grandense e, por que não dizer, do
intelectual brasileiro Câmara Cascudo.
2.1 Cascudinho: de príncipe a professor
Luís da Câmara Cascudo nasceu a 30 de dezembro de 1898, na antiga Rua Senador
José Bonifácio, conhecida como Rua das Virgens
57
, no bairro da Ribeira, em Natal. Ao falar
sobre si e sua família, Cascudo costumava contar:
Me chamo Luís, em homenagem, a Luis, rei da França. Fui o terceiro filho e
único sobrevivente. Meu pai era tenente da polícia, que lutou contra
cangaceiros. A rua onde nasci tinha um nome lindo: Rua das Virgens. Um
54
GONTIJO, Rebeca. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia. Revista Anos 90
Dossiê História e Memória, Porto Alegre, RS, v. 14, n. 26, dez. 2007.
55
Para a realização desta Dissertação, procedemos ao levantamento de vasto e variado material junto a arquivos
e acervos de Natal. Destacamos os jornais natalenses A Imprensa, A Notícia, A República, A Ordem, A
Verdade, o Diário de Natal e Tribuna do Norte; as revistas, Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Revista Província, Revista da
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Revista do Centro Polymathico, Revista do Instituto Histórico de
Pernambuco e a Manchete; Correspondência ativa e passiva; arquivo documental do ex-prefeito Sylvio Piza
Pedroza; livros do acervo do IHGRN e do acervo pessoal de Luís da Câmara Cascudo, disponíveis para
consulta no Memorial Câmara Cascudo, em Natal.
56
Para o historiador Durval Muniz, “a História possui objetos e sujeitos porque os fabrica, inventa-os, assim
como o rio inventa o seu curso e suas margens ao passar. Mas estes objetos e sujeitos também inventam a
história, da mesma forma que as margens constituem parte inseparável do rio que o inventa [...]”.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz apud CESAR, Temístocles. Durval Muniz de Albuquerque Júnior.
História. A arte de inventar o passado: ensaios de teoria da história. Resenha. Revista Brasileira de História,
São Paulo, v. 28, n. 55, p. 268, jan./jun. 2008.
57
Esta rua passaria, a partir de 1955, a se chamar Rua Luís da Câmara Cascudo. Ver anexo A (foto do cartão de
comemoração, que comenta o decreto da mudança do nome).
31
dia o prefeito resolveu mudar para Rua Luís da Câmara Cascudo. Escrevi-
lhe umas cartas desaforadas, até que ele trocou, ou melhor, acrescentou algo
mais: Rua Luís da Câmara Cascudo, ex-Rua das Virgens
58
.
Nascido no crepúsculo do século XIX
59
, Luís da Câmara Cascudo teve uma infância e
mocidade de príncipe, vivendo-as intensamente em uma chácara conhecida como Vila
Cascudo
60
. Nesta chácara ocorriam, com freqüência, encontros culturais, reuniões literárias,
recitais de músicos renomados, jantares e almoços festivos, que contavam, eventualmente,
com a presença de personalidades famosas como Mário de Andrade, Plínio Salgado,
Margarida Lopes de Almeida, Olegário Mariano, entre outras. Foi nesse ambiente que cresceu
o Príncipe do Tirol
61
, o Cascudinho
62
. Segundo Jaime Wanderley, a alcunha popularizou-se
de tal forma, que Luís da Câmara Cascudo veio a instituir oficialmente o Principado do Tirol.
Foi, especialmente nas décadas de 1910 e 1920, que o Principado teve seus momentos de
nobreza e de glória, o que não impediu, como bem observado por J. Wanderley, “que a função
do ‘principado’ se prolongasse na continuidade dos anos”
63
. As razões para que Cascudo
fosse tido como o Príncipe do Tirol são explicadas, geralmente, dessa forma:
Motivado pela grande fortuna que o Cel. Cascudo desfrutava, pelo alto
conceito de que gozava nas rodas Políticas do Estado, em meio às quais as
suas palavras e suas ações sempre decididas e claras valiam por uma
58
ANGELO, Assis. O Velho que sabe tudo. Entrevista com Luís da Câmara Cascudo. Folha de São Paulo,
São Paulo, 08 jan. 1979. Folhetim. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em:
13 ago. 2008.
59
Segundo um de seus biógrafos mais conhecidos, Américo de Oliveira Costa, o século XX teria sido o “século
cultural norte-rio-grandense Luís da Câmara Cascudo”. Cf.: COSTA, Américo de Oliveira. Mestre Cascudo
em Quatro Tempos. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Natal, RN, v. 33, n. 21, p. 69-
76, maio 1990.
60
A Vila Cascudo era uma mansão, segundo relato de Jaime Wanderley, publicado na Revista Província: “[...]
uma vez chegados à Vila, recebíamos uma chave e nos dirigíamos ao quarto indicado, a fim de trocarmos a
nossa roupa, por um pijama de categoria e os sapatos por cômodos chinelos de “chagrin” [...]”.
WANDERLEY, Jaime. O Príncipe do Tirol. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 28, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara
Cascudo.
61
Câmara Cascudo era chamado de “Príncipe do Tirol” por ser filho de um dos homens mais ricos de Natal, o
Coronel da Guarda Nacional e grande comerciante, Sr. Francisco Justino de Oliveira, que possuía a maior casa
no bairro do Tirol, bairro nobre de Natal, no século XX.
62
Era desta maneira que Luís da Câmara Cascudo era chamado por seus pais na infância e mocidade. Seus
conhecidos mais íntimos também o chamaram assim durante toda a sua vida. O sobrenome Cascudo decorre
do fato de seu avô paterno, Antônio Justino de Oliveira (1829-1894), ter sido conservador e um defensor fiel
da Monarquia no Brasil. Como durante o Império, os membros do partido conservador no Rio Grande do
Norte eram chamados de “Cascudo”, o termo foi incorporado como sobrenome à família. O Coronel Francisco
Justino, pai de Cascudinho, deu prosseguimento à tradição passando-o também ao filho Luís. Tornou-se, desde
então, sobrenome oficial da família.
63
Ver mais em: WANDERLEY, op. cit., p. 32.
32
credencial de fôrça (sic), Cascudinho ficou sendo conhecido como ‘Príncipe
do Tirol’
64
.
Em sua infância, o menino Cascudo o único filho sobrevivente do casal Cel.
Francisco Cascudo e D. Ana da Câmara Cascudo teve os livros, os quadros e a música entre
seus mais fiéis companheiros e melhores amigos
65
. O fato de os três irmãos de Câmara
Cascudo terem morrido nos primeiros anos de vida, em decorrência de doenças comuns da
época, como a difteria, fez com que Cascudinho fosse criado em clima de extrema proteção,
cercado de segurança e privado de brincadeiras comuns da infância com outras crianças. Ao
falar sobre a sua infância, Cascudo costumava dizer que:
Fui uma criança profissionalmente enfermiça: pálida, doente, com pulmões
suspeitos. Assim, não tenho recordações de infância, nunca corri, nunca subi
uma árvore, nunca brinquei livremente, passava a vida sentado vendo figuras
e os jogos parados. Não tive companheiros de infância, decorrentemente,
para meu destino, já a minha meninice, a minha infância, foi uma infância de
livros, de ver figura e ver a paisagem que se transformou numa paisagem
humana, e aí começa o mistério da vocação. Sempre amei as histórias
contadas pelas amas e pelos espetáculos populares: a feira, o mercado, as
procissões. Sempre amei o cotidiano e não o excepcional, e decorrentemente,
os meus livros vêm dessa paixão pelo normal e pelo cotidiano
66
.
A religiosidade familiar parece ter sido um elemento importante na formação de
Cascudinho. O próprio Câmara Cascudo conferiria importância ao seu batizado, referindo-se
a ele no artigo “Um Provinciano Incurável”, publicado na Revista Província, editada pela
Fundação José Augusto
67
: “nasci na Rua das Virgens e o Padre João Maria batizou-me no
bom Jesus das Dôres (sic), Campina da Ribeira, capela sem tôrre (sic), mas o sino tocava as
Trindades ao anoitecer”
68
. (grifo nosso). O destaque dado por Cascudo ao seu batizado seria
64
WANDERLEY, Jaime. O Príncipe do Tirol. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 29, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
65
Donana, como era chamada a mãe de Cascudinho, gostava de música clássica e de ler romances. Era muito
religiosa e era considerada “a grande Dama da sociedade potiguar”.
66
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
67
A revista foi uma homenagem da Fundação José Augusto e do Governo do Estado a Cascudo. A presidente da
Fundação, na época, professora Ilma Diniz, fez a apresentação: “ao estudioso que cumpre, aos 70 anos, meio século
de atividade literária”. Cf. DINIZ, Ilma Melo. Apresentação. Revista Província, Natal, RN, n. 2, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
68
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 5, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
33
retomado no necrológio escrito por Enélio Lima Petrovich
69
, e publicado na Revista do
IHGRN: “[...] foi batizado pelo padre e santo João Maria
70
(09.05.1899) [...]”
71
, com menos
de um ano de idade. Infere-se desta informação que não apenas a família observava os
preceitos da religião católica, ao realizar seu batizado nos primeiros meses de vida, como
também que ela marcaria a criação de Cascudo.
Cascudinho foi como ele mesmo admitiu uma criança solitária e de poucos
amigos, o que talvez o tenha levado a prestar atenção às pessoas que visitavam sua casa, e a
fazer descrições das mais apuradas. Tal idéia é desenvolvida pelo professor Durval Muniz,
para quem Câmara Cascudo foi:
Menino solitário, que via pouca gente, preso entre os muros do seu distante
principado do Tirol, desconfiado, parece ter desenvolvido um olhar apurado
para a observação do outro que se aproximava. Menino rico, de esmerada
criação, recebendo em casa as mais influentes autoridades e os grandes
artistas e intelectuais do país e até do exterior, mimado pelos pais e pelas
serviçais, um dandi da Belle Époque, sempre vestindo as roupas da moda,
parece ter desenvolvido esse olhar atento aos detalhes dos gestos e dos
hábitos, este olhar que seleciona pela aparência, que estabelece
69
Enélio Petrovich é o atual presidente do IHGRN, ocupando o cargo desde 1963. É sócio correspondente do
IHGB, ex-secretário do Estado do Rio Grande do Norte, publicista, advogado, historiador, escritor, jornalista,
imortal da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. Foi aluno da primeira turma de Direito da UFRN e teve
Cascudo como professor. Afirma ser, acima de tudo, um discípulo de Câmara Cascudo, que tem como missão
de vida zelar pela memória potiguar. Para ele: “Cascudo foi um gênio. É o único gênio do Rio Grande do
Norte. Eu digo muito que não foi a guerra que projetou Natal, foi Cascudo. [...] Ele sempre foi uma bússola
através da qual eu fiz minha trajetória cultural. [...] ele foi o samaritano da cultura norte-rio-grandense.
Cascudo foi um grande homem. Da sua boca nunca saía palavras de mágoas e ele dizia sempre: ‘nunca some
os desenganos’. E eu tenho essa frase escrita na minha mesa. Para mim, Câmara Cascudo é um guia
permanente”. Dentre sua vasta produção bibliográfica, destacamos o livro: PETROVICH, Enélio Lima. Em
três tempos: Antônio Soares de Araújo Filho, Luís da Câmara Cascudo, Peregrino Júnior. Natal, RN:
Nordeste Gráfica, 1999; o Necrológio de Câmara Cascudo, publicado na Revista do IHGRN, além de
inúmeros artigos da Revista do IHGRN e da ANL-R, que serão utilizados ao longo dessa Dissertação.
70
Sobre a importância do Padre João Maria no Rio Grande do Norte, encontramos passagens do texto de
Umberto Peregrino (sócio correspondente do IHGRN), intitulado: “Lembrando Câmara Cascudo, que foi
publicado na Revista do IHGRN. Umberto escreveu: “[...] Para os que não sabem muito sobre o Rio Grande
do Norte elucidarei que o Padre João Maria é de fato um Santo de devoção do povo em Natal. Seu busto, na
Praça Pública, permanece dia e noite iluminado de velas que lhe levam por amor e gratidão das graças
alcançadas. Padre João Maria foi vigário da paróquia, virtuoso e caridoso como só os santos o são. Ia aos
pobres com o consolo de sua palavra cristã e as ajudas que podia dar tirando do mínimo que possuía. Um
Santo, que estava na vida também de Câmara Cascudo desde que o batizou [...]”. PEREGRINO, Umberto.
Lembrando Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN,
v. 77-78, p. 166, 1985-1986. Tais passagens nos ajudam a esclarecer um pouco da história de Padre João Maria e
sua valorização no Estado. Padre João Maria talvez venha a ser o primeiro santo do Rio Grande do Norte. Seu
processo de Canonização já está em andamento.
71
PETROVICH, Enélio Lima. Necrológio de Luís Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 160, 1985-1986.
34
distâncias e afastamentos pela mis an scene do personagem
72
. (grifo
nosso).
Essa infância marcada por uma rotina de privações e de cuidados
73
era quebrada
somente quando Cascudinho viajava de Natal para o interior do Rio Grande do Norte, a fim
de visitar parentes e para se fortalecer com o ar seco do sertão
74
.
Os pais de Cascudinho integravam a burguesia rural do Rio Grande do Norte, tendo
suas origens ligadas à cidade de Campo Grande. O pai, o Coronel Francisco Justino
simpático e muito comunicativo era mascate. Em suas andanças pelo interior fez amizade
com Pedro Velho de Albuquerque Maranhão, primeiro governador republicano do Rio
Grande do Norte e importante chefe político do Estado na virada do século XIX para o século
XX. Essa amizade contribuiu e muito para a promoção social do Coronel. Foi Pedro
Velho quem o nomeou Alferes do Batalhão de Segurança em 1892, e tenente, em 1895.
Posteriormente, outro governador, Ferreira Chaves
75
, o nomeou delegado no interior.
Mas foi a atividade de comerciante que rendeu fortunas ao Coronel, principalmente, a
partir de 1900
76
. A importância e o prestígio do comerciante Coronel Justino como era
conhecido o pai de Cascudinho , pode ser avaliada a partir deste registro: “basta lembrar o
esforço de um fornecedor para agradá-lo. Como era importador da Alemanha, certa vez, uma
fábrica enviou-lhe como lembrança nada menos do que dois mil espelhinhos de bolso com o
retrato do menino Luís”
77
.
72
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Ágeis, irrequietos e buliçosos: o corpo do povo e outros
corpos na obra de Luís da Câmara Cascudo. Digitado. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/
ppgh/docentes/durval/index2.htm>. Acesso em: 07 ago. 2008.
73
Um menino que, mesmo morando próximo ao Rio Potengi (principal Rio que corta o Estado do Rio Grande do
Norte e que divide a cidade do Natal em duas zonas, a norte e a sul) precisava fugir do zelo matriarcal, para
poder pescar ou brincar com os peixes.
74
Como consta no fascículo publicado pelo Diário de Natal que integra a coleção Personalidades da História
do RN, n. 1 Câmara Cascudo. [segunda edição] 2008: “[...] Lá (no sertão), com os parentes, costumava fazer
o que em casa lhe era vedado: tomar banho em açudes, caçar e pescar. Luís passava horas, compenetrado,
ouvindo dos mais velhos, histórias de cangaceiros e heróis, alimentando-se daquele universo que mais tarde o
tornaria um mestre, um especialista em resgatar temas guardados somente na memória dos mais antigos,
passados de geração a geração por meio da tradição oral [...]”. PERSONALIDADES da História do RN -
Câmara Cascudo. 2. ed. Diário de Natal, Natal, RN, n. 1, p. 3, 16 jan. 2008.
75
Joaquim Ferreira Chaves Filho era pernambucano, tendo exercido as funções de desembargador no Rio
Grande do Norte. Foi também o primeiro governador do Rio Grande do Norte eleito pelo povo, através do
voto em aberto ou “voto de bico de pena”. Governou o Rio Grande do Norte por dois mandatos, de 25/03/1896
a 25/03/1900 e de 01/01/1914 a 01/01/1920. Cascudo dedicou seu primeiro livro Alma Patrícia, de 1921, a
Ferreira Chaves que havia sido seu padrinho de batismo.
76
Ver mais em: PERSONALIDADES da História do RN - Câmara Cascudo. 2. ed. Diário de Natal, Natal, RN,
n. 1, p. 4, 16 jan. 2008.
77
Ibid., p. 4.
35
O pai de Cascudo, além de importante comerciante, foi também Deputado Estadual e
chegou a dirigir entidades como a Associação Comercial e a Junta Comercial do Estado do
Rio Grande do Norte. É dentre o amplo e diversificado círculo de amizades de seu pai que
encontramos os primeiros amigos de Cascudo, pessoas com as quais ele tinha contatos mais
freqüentes: “Ainda cedo Cascudo esteve envolvido com importantes figuras do cotidiano
político e das letras. Seu pai foi homem influente e possuía força nas decisões políticas,
principalmente na capital, Natal”
78
.
Foi o patrimônio acumulado e o prestígio que levaram o Coronel a montar um jornal
para seu herdeiro, na cidade do Natal. Nele, o príncipe Cascudinho colocaria à prova seus
dons artísticos e literários. O jornal recebeu o nome de A Imprensa e circulou entre 1914, ano
de sua fundação, e 1927. Apesar de se dedicar aos mais variados tipos de notícias locais,
regionais e nacionais, o jornal servia, quase que exclusivamente, para saciar a veia artística,
intelectual e cultural de Cascudinho e seus companheiros.
Essas circunstâncias de sua infância e juventude colaboraram de forma decisiva e
positiva na educação e formação do intelectual potiguar Luís da Câmara Cascudo. Os
tempos no “Principado do Tirol”, e mesmo antes, na Ribeira, determinaram, em grande
medida, a trajetória da vida do homem de letras
79
Câmara Cascudo, um menino que, ao invés
de brincar com os amigos, jogar bola em praças, passear e fazer zombarias, chegou a possuir
uma biblioteca que, à época, era tida como referência por intelectuais do Estado. Um menino
que, apesar dos muitos brinquedos muitos deles, vindos do exterior e presenteados por
amigos de seu pai passava a maior parte de seu tempo junto aos livros
80
. “Em casa, lia, lia e
lia revistas, álbuns de gravuras, viagens, curiosidades, desenhos, livros de estórias infantis
cheios de magia, cavernas de dragões, princesas e cavaleiros valentes que misturavam suas
vozes às das amas narradoras”
81
.
A formação educacional de Câmara Cascudo começou em casa. Seu pai, preocupado
com a educação do herdeiro que deveria ser das mais esmeradas , contratou professores
para darem aulas ao menino em casa, em um gabinete preparado exclusivamente para tal
78
Cfe. TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. Silenciando peças e criando lacunas: uma análise da trajetória
integralista na biografia de Luís da Câmara Cascudo (1932-1945). Monografia (Graduação em História) --
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2008. p. 22.
79
Cfe. CHARTIER, Roger. O homem de letras. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O homem do iluminismo. Trad.
Maria Georgina Segurado. Lisboa: Presença. 1997. p. 143-144.
80
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1969. p. 11.
81
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 428.
36
finalidade. Foi o professor Celestino Pimentel quem ensinou Cascudinho a escrever, a ler e a
contar.
Cascudo teve uma rápida passagem pelo Externato Sagrado Coração de Jesus, colégio
feminino dirigido por duas irmãs, Guilhermina e Maria Emília de Andrade. Contrariado com a
decisão tomada pela esposa e descontente em relação à instrução que o filho recebia, o
Coronel após retornar de uma temporada nos sertões matriculou Cascudinho no Colégio
Diocesano Santo Antônio
82
, para que nele desfrutasse da companhia de colegas meninos. Em
casa, Cascudinho teve alguns professores particulares: Pedro Alexandrino, de Literatura
Clássica, Francisco Ivo Cavalcanti
83
, de Conhecimentos Gerais, e João Tibúrcio, de Latim. Os
estudos secundários foram cursados no Atheneu Norte-Rio-Grandense, colégio modelo à
época, no qual viria a ser professor da cadeira de História do Brasil, alguns anos depois.
A partir de 1910, Cascudo começou a adquirir os primeiros livros de sua biblioteca
84
.
Alguns foram selecionados por ele mesmo
85
, outros foram indicados por seus mestres e
amigos. Os primeiros ocupantes da Babilônia
86
foram, em sua maioria, trazidos de fora do
Estado e do país, tendo em vista a facilidade que seu pai, o Coronel, tinha em mandar buscá-
los no exterior.
Matriculado em bons colégios, o menino Cascudinho teve aulas com alguns dos
professores mais renomados de Natal, na época, como os professores Pedro Alexandrino e
Francisco Ivo, que foram decisivos na formação intelectual de Cascudinho: “Foram estímulo
para pensar e arrumar suas leituras tanto indicando bibliografia como discutindo idéias.
Incentivaram o raciocínio e a decisão intelectual por si próprio e nunca por imposição alheia,
82
O Colégio Diocesano Santo Antônio era também chamado de Colégio dos Padres. Na época, era um dos
colégios católicos mais tradicionais de Natal. Acreditamos que a formação recebida nesse colégio deva ter
contribuído de forma significativa para a fervorosa devoção católica de Cascudo.
83
Francisco Ivo Cavalcanti dá nome a uma das escolas mais conhecidas da rede pública de Natal.
84
A Babilônia, sua biblioteca particular, é famosa em todo Estado, não só pela grande quantidade de volumes
que possui, mas também pela qualidade de seu acervo, que conta com obras de Jorge Amado, Gustavo
Barroso, Gilberto Freyre, Mário de Andrade entre tantos outros que, em sua maioria, contam com preciosas
dedicatórias.
85
Atualmente, a Babilônia integra o acervo do Memorial Câmara Cascudo. Em 1987, ano seguinte a sua morte,
todos os livros foram transferidos para uma sala localizada no segundo andar do Memorial, sob os cuidados de
sua diretora Daliana Cascudo, sua primeira neta. Sobre o acervo que reuniu, Cascudo costumava dizer: “A
maior alegria da minha salinha de livros é que a maioria dos livros estão autografados, e, naturalmente, com a
morte desses autores, o livro vai criando uma dimensão sentimental maior, toda vez que eu abro” CASCUDO,
Luís da Câmara. Cascudo e sua Biblioteca. In: LYRA, Carlos. Luís da Câmara Cascudo. Depoimentos.
Natal: EDUFRN, 1999. p. 60. Entrevista concedida a Carlos Lyra em 06/12/1974.
86
A Babilônia era um local sagrado para Cascudo. Até mesmo Dona Dhália, sua esposa, tinha muito cuidado ao
entrar para não atrapalhar sua concentração. Seu gabinete abrigava, além dos preciosos livros, os santos que
colecionava. Essas informações e outras mais sobre a Babilônia de Cascudo podem ser encontradas em:
CASCUDO, Luís da Câmara. Cascudo e sua Biblioteca. In: LYRA, Carlos. Luís da Câmara Cascudo.
Depoimentos. Natal: EDUFRN, 1999. p. 59-65. Entrevista concedida a Carlos Lyra em 06/12/1974.
37
o que ele reforça sempre nos seus textos”
87
. Posteriormente, Cascudo se tornaria amigo do
professor Francisco Ivo, a quem chegou a convidar para dar aulas a seu filho Fernando Luís.
Este episódio foi narrado pelo professor em depoimento publicado pela Revista Província, e
no qual nos revela um pouco do Cascudinho aluno e iniciante no mundo das letras:
Iniciei as aulas referidas, na certeza de aquêle (sic.) meu trabalho demoraria
muito pouco tempo, porque, apesar regiamente recompensado, pois o Cel.
Cascudo marcara-me a mensalidade de trinta mil réis, logo aos primeiros
contactos (sic.) com o aluno reconheci sua rebeldia, o que não se coadunava
com o meu regime de mestre-escola, habituado a dar cocorotes e puxavantes
de orelhas, nas crianças que eram por mim lecionadas. E isto fazer, no
Cascudinho, seria um crime de lesa majestade, perante os pais,
especialmente a sua genitora. [...] Ler e contar bem foi por mim alcançado
em pequeno espaço de tempo, mas fazer o Cascudinho ter boa caligrafia não
me foi possível conseguir. [...] Depois de amistosa conversa, onde, juntos
tomamos um café feito para nós dois, o Cascudinho declarou-me desejar
lecionasse eu alguma coisa ao seu filho Fernando Luís, de modo que ele
também tivesse lições que lhe fossem dadas pelo antigo professor, hoje,
seu amistoso amigo e colega. Aceitei a lembrança
88
. (grifo nosso).
Apesar da infância e da juventude solitária, Cascudo parece ter sido intensamente
marcado pelas relações afetivas que manteve, como se pode constatar no afeto dedicado,
primeiramente, aos seus pais e professores, e, posteriormente, à esposa, filhos e netos, e aos
amigos e parceiros profissionais. A gradativa emancipação da proteção familiar e, sobretudo,
do pai, parece ter se dado no momento em que Cascudinho foi pela primeira vez à escola. A
escola um espaço mais coletivo e independente foi, sem dúvida, fundamental para aquilo
que Cascudo se tornaria: um professor, um orador e um homem público que apreciava estar
cercado de ouvintes ou de falantes.
Enquanto o Cascudo-menino viveu à volta dos livros, o Cascudo da juventude que
tinha tudo para se tornar um homem calado e retraído , acabaria se tornando falastrão e
extrovertido, como ele mesmo se descreveria anos mais tarde. Privado de contatos na
infância, Cascudo despertaria para os costumes e para o cotidiano das pessoas que existiam
fora dos limites do Principado. Isto fez com que Luís da Câmara Cascudo se tornasse um
87
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 428.
88
CAVALCANTI, Francisco Ivo. Luís da Câmara Cascudo. Aluno Primário. Revista Província, Natal,
RN, n. 2, p. 50-52, 1968. Edição Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de
atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
38
intelectual que ousou romper com os limites de sua Babilônia, ao deixar o conforto de sua
escrivaninha para realizar suas pesquisas.
Os livros, sem dúvida, continuariam sendo seus companheiros, mesmo porque foram
seus grandes aliados para saciar sua imensa curiosidade. Corroborando essa idéia, Américo de
Oliveira Costa escreveu: “Na obra, ou seja, nos livros de Mestre Cascudo, há uma
característica especial que convém ressaltar: é a sua oralidade, o seu estilo coloquial. Em
qualquer livro de Cascudo, há sempre o homem que ele foi que se levanta e fala.”
89
. “A
oratória, para ele, é o atributo com que se familiarizou e por onde faz expandir, com
irradiações magníficas, a sua cultura e a sua inteligência”
90
.
A Babilônia, inegavelmente, materializaria e evidenciaria os valores que Cascudo
havia recebido e que pregaria, posteriormente, para sua família, seus alunos e companheiros
letrados. Valores que tinham como pressupostos o amor aos livros, às letras e à arte de ensinar
e aprender com o povo, e que podem ser encontrados em suas entrevistas e depoimentos:
Meu pai fundou um jornal em 1914, e em 15, com dezessete anos eu era
repórter. O hábito, a vida de repórter, junto as leituras de movimento,
fizeram de mim a curiosidade viva pelo povo, ouvindo, anotar e divulgar.
Fui, pois, um bom repórter, decorrentemente, um etnógrafo. Em 1918,
comecei a ser professor [...]
91
.
A este seu primeiro contato com o mundo das letras bastante estimulado pelos pais
se seguiu o período de atuação como jornalista, como professor na cidade do Natal e o de
formação na Faculdade de Direito do Recife, fundamental para a composição do seu perfil
intelectual. Cascudinho ingressaria por vontade do pai na Faculdade de Medicina da
Bahia, em Salvador, curso que logo abandonaria. Em 1928, Cascudo se formaria pela
Faculdade de Direito do Recife, concluindo também, no mesmo ano, o curso de Etnografia, na
Faculdade de Filosofia do Rio Grande do Norte.
Para melhor entendermos a trajetória de Cascudo como intelectual que viveria
cercado de admiradores, “discípulos” e dos inseparáveis livros , abordamos, na seqüência,
89
COSTA, Américo de Oliveira. Mestre Cascudo em Quatro Tempos. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de
Letras, Natal, RN, v. 33, n. 21, p. 73, maio 1990.
90
VIVEIROS, Paulo de. Luiz da Câmara Cascudo - orador. In: LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal,
RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 11. Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
91
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
39
tanto a sua formação acadêmica e a atuação profissional, quanto a sua vida afetiva e familiar,
na medida em que influenciaram, de forma inegável, a sua produção.
2.2 Cascudo esposo, pai e provedor da família
Os tempos de riqueza e de luxo do Principado de Cascudo chegariam ao fim em
conseqüência da crise internacional de 1929, que fez com que o Coronel perdesse sua fortuna.
A falência do pai foi motivo de muito desgosto para Cascudo, que teria chegado a comentar
com o escritor e folclorista Deífilo Gurgel que a causa da ruína do pai foi ter sido muitas
vezes “um homem muito generoso, padrinho de muita gente em Natal, [a quem] os afilhados
normalmente relacionavam [...] como avalista”
92
.
Na época, o Príncipe do Tirol estava com 31 anos e se encontrava apaixonado por uma
moça de vinte anos, Dáhlia, filha do desembargador Teotônio Freire e de dona Sinhá Freire,
com quem se casaria no dia 21 de abril de 1929, e com quem teria dois filhos, Fernando e Ana
Maria.
Na maioria das vezes que Câmara Cascudo se referia a seu casamento, fazia questão
de ressaltar a paixão que sentia por D. Dáhlia, figura destacada por seus biógrafos e em seus
próprios escritos. Luís da Câmara Cascudo conheceu Dáhlia Freire, nos tempos de Príncipe
do Tirol, quando tinha seus 27 anos e já se encontrava inserido no mundo das letras. Dáhlia
93
tinha 16 anos e era uma adolescente de família abastada e respeitada da capital. A atração que
sentiram um pelo outro levou ao casamento, como se constata neste depoimento da própria
Dáhlia Freire: “eu era uma menina, quase uma menina moça, adolescente, propriamente dita,
mas me atraí por ele, em grande parte pelos lindos olhos verdes que ele tinha. Conheci usando
na lapela umas violetas, um raminho de violetas, mas, depois, no começo do nosso namoro,
ele substituiu a violeta por uma Dahlia. Os anos passam rápido, nos casamos”
94
.
O casamento aconteceu no ano de 1929, mesmo ano da crise que atingiu a família do
Coronel Francisco Justino. Ao matrimônio com Dáhlia Freire se seguiram outras mudanças na
92
Ver mais em: PERSONALIDADES da História do RN - Câmara Cascudo. 2. ed. Diário de Natal, Natal, RN,
n. 1, p. 5, 16 jan. 2008.
93
Dáhlia Freire era filha de um juiz federal, José Teothonio Freire, “magistrado austero, ilustre e digno”, como
Cascudo escreveu na História do Rio Grande do Norte. O casamento assegurou a Cascudo, dentro da paz do
lar, junto dos dois filhos, Anna Maria e Fernando Luís, o ambiente de trabalho favorável à atividade
intelectual”. Cfe. ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento,
Recife, PE, ano 4, n. 48, p. 09, ago. 2006.
94
DEPOIMENTO de Dáhlia Freire Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog. htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
40
vida do até então Príncipe do Tirol, decorrentes da perda da fortuna familiar e das
conseqüentes trocas de endereço, que terminariam em 1947, quando a família passou a residir
na casa da Junqueira Aires, nº 377, propriedade dos pais de Dáhlia. A principal delas, no
entanto, decorreu da necessidade de prover o sustento da nova família.
Muitas são as menções de gratidão e amor eterno à esposa que foi capaz de muitas
renúncias para que Cascudo se consolidasse como intelectual:
O amor para mim foi um estímulo, não só no que realizei culturalmente,
como na serenidade do meu lar, a fidelidade àquela menina de 1925, que eu
casei-me em 29, e continua com a idade com que eu a conheci. Mas mesmo
para Dáhlia, para minha mulher, para Dalequinha, nós atravessamos a
diversidade dos amores: o amor do namoro, do noivado, do matrimônio, da
paternidade, dos filhos, dos avós. A vida foi mudando e o nosso amor foi
tomando nuanças mais penetrantes, de variedades que a nossa sensibilidade
empresta. Assim, nós dois de mãos dadas, vemos a paisagem hoje com olhos
que não víamos quando éramos namorados
95
.
Dáhlia é freqüentemente retratada como uma espécie de anjo protetor ou como uma
inspiração para seu trabalho: “mas para um trabalhador mental como eu, o amor foi um
estímulo, a força, a fidelidade, a alegria do trabalho e da posse. Ainda posso ficar ao lado da
minha mulher muito tempo de mãos dadas, sendo suficiente a sua presença”
96
. Um dos
depoimentos de D. Dáhlia chama-nos a atenção para a atitude resignada com que encarava o
distanciamento de Cascudo ou a sua entrega ao trabalho, comportamento próprio das
mulheres dos homens públicos e letrados daqueles tempos. Devotadas aos maridos, elegantes,
discretas, sóbrias e ricas
97
:
Eu acho como esposa de escritor, que ela precisa se doar e, também, ter
muito de renúncia. Eu conto isso pelo fato meu próprio. Era recém casado,
não, mas de algum tempo de casado, já tinha filhos e muitas vezes tentei,
desejei que ele me acompanhasse. Nós tínhamos um horário muito diferente,
é claro, porque ele trabalhava até quase ao amanhecer. Trocava, muitas
vezes, a noite pelo dia, quer dizer, amanhecia trabalhando em sua biblioteca.
Uma noite, já mais para a madrugada mesmo do que para a noite, eu já
estava agasalhada, mas era uma noite chuvosa, vamos dizer, na intimidade,
gostosa. Eu levantei-me, fui até a porta de sua biblioteca que era velada por
95
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
96
Ibid., 2008.
97
ABREU, Regina. Saindo da vida para entrar na História. In: ______. A fabricação do imortal: memória,
história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco: Lapa, 1996. p. 21.
41
uma cortina, não deixei que ele me visse, apenas eu abri, entreabri a cortina,
e ele estava absorvido totalmente. Eu senti que naquele momento era o
escritor, e não o homem. Se eu o chamasse naquele momento, não
encontraria o homem, nem o marido, e sim o escritor
98
. (grifo nosso).
Câmara Cascudo, é preciso lembrar, fazia parte de uma geração que nasceu na virada
do século XIX para o século XX, momento em que as Humanidades gozavam de prestígio.
Era bastante usual entre as pessoas que integravam a elite nesse período a aquisição de
livros, razão pela qual ocupavam as estantes de um espaço nobre de suas residências, como a
famosa Babilônia de Cascudinho. Esses gabinetes de trabalho eram, geralmente, lugares
próprios dos homens, dos chefes de família, cujas bibliotecas pessoais acompanhavam sua
trajetória de vida, funcionando como marca identitária
99
. Cascudinho foi um desses homens
que consideravam seu gabinete de trabalho como um lugar “sagrado” de produção.
Em muitos de seus escritos encontramos referências a sua intimidade e aos
sentimentos que nutria por seus pais, sua esposa, seus filhos e netos. O boêmio
100
que
passeava e se divertia nas ruas da Ribeira
101
é, também, descrito como o homem sensível e
apaixonado que voltava para casa, para a mulher e os filhos e, principalmente, para a sua
Babilônia. Protegido por esta atmosfera de proteção familiar, e embalado por sua rede de
dormir, Cascudo podia dedicar-se, sem sobressaltos, à boemia e aos seus escritos:
98
DEPOIMENTO de Dáhlia Freire Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog. htm> .
Acesso em: 13 ago. 2008.
99
Ver mais em: ABREU, Regina. Um Homem de Letras. In: ______. A fabricação do imortal: memória,
história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco; Lapa, 1996. p. 137.
100
Cascudo era tido como boêmio confesso , ou como definiu Vicente Serejo, um boêmio metódico, já que,
segundo Ana Maria Cascudo, filha de Cascudinho, uma vez por mês, ao sair de casa para receber seu salário,
Cascudo tomava cerveja com os amigos ou com as pessoas mais comuns. Assim, suas farras se davam uma
vez ao mês, motivando, muitas vezes, pedidos de desculpas a sua esposa, D. Dáhlia. Ver mais em Entrevista
de SEREJO, Vicente. Cascudo na mira de Serejo. O POVO, Fortaleza, CE, 19 ago. 2006. Caderno Vida &
Arte. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
101
Cascudo era assíduo freqüentador do bairro da Ribeira, “palco da convivência e da sociabilidade de Cascudo
com tipos populares que inspiraram muitos de seus trabalhos etnográficos”, razão pela qual Cascudo “é parte
da memória do bairro por muitas noitadas vividas ao lado de gente simples do povo” Ver mais em
FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de Câmara Cascudo em Natal.
Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernos descobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008. A partir de 1940, o bairro da
Ribeira passou a destacar-se pelo comércio e pela vida noturna, vindo a ser cada vez mais freqüentado
pelos boêmios letrados da cidade. Câmara Cascudo, nascido no bairro, jamais deixou de freqüentá-lo, pois
gostava de conversa, da noite, dos amigos, da viola, do violeiro e do côco-de-roda do bairro das Rocas
(vizinho da Ribeira). Ao chegar nesses bairros, Cascudinho reunia a sua volta jornalistas, estudantes,
intelectuais, poetas, meretrizes, populares e contadores de causos. GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um
Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LA
CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la Historia. Alcalá de Henares:
Calambur, 2002. v. 1, p. 427.
42
Como escritor, Luís da Câmara Cascudo foi motivado por dois impulsos
originários. Um mais acadêmico/formal, outro mais contaminado pela
subjetividade e pela criação. O aprofundamento na leitura da obra permite
entrever que esse diálogo se encontra presente na construção da escritura de
seus textos, denunciando sua emoção e sensibilidade, intuição e
conhecimento
102
. (grifo da autora).
O Cascudo que se trancava em sua Babilônia espaço que era respeitado por D.
Dáhlia, sua esposa e “flor predileta” era o mesmo que circulava entre os mais diferentes
grupos sociais, que se divertia bebendo e conversando nos bares do bairro da Ribeira, locais
que considerava privilegiados para os estudos dos costumes populares. Este hábito arraigado
faria com que o Príncipe do Tirol se apresentasse como um “canguleiro”
103
e manifestasse
seu gosto pela cultura popular:
Tenho a impressão de ser o que chamam na Itália, Uomo qualunque, um
homem igual aos outros. Toda a minha vida se resume naqueles dois versos
de Afrânio Peixoto: Ensinou e escreveu, nada mais aconteceu [...] Sempre
amei as histórias contadas pelas amas e pelos espetáculos populares: a
feira, o mercado, as procissões. Sempre amei o cotidiano e não o
excepcional, e decorrentemente, os meus livros vêm dessa paixão pelo
normal e pelo cotidiano
104
. (grifo nosso)
Muitos de seus estudos, efetivamente, versariam sobre costumes, como a História dos
nossos gestos
105
, entre outros. A maioria dos depoimentos sobre Cascudo reforça essa
descrição, a de um homem simples, que convivia com todo mundo e de quem todos gostavam:
Quase todo dia, às duas da tarde, ele saía de casa, de paletó, gravata, chapéu
e charutão no bico, sozinho em direção à ribeira... certo dia eu o segui...
(Cascudo) entrou em um barzinho vagabundo... estava sentado na cabeceira
102
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL DE
HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la Historia. Alcalá de
Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 421.
103
Denominação comum dada aos pobres do bairro da Ribeira onde Cascudo nasceu. Em seu livro O Tempo e Eu, Cascudo chegou
a afirmar: “[...] Sou, pois, um canguleiro [...]” apud COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara
Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1969. p. 10.
104
Depoimento de Luís da Câmara Cascudo. In: BRESSANE, Zita (Prod.) Depoimento. TV Cultura. Cascudo. São Paulo.
Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia: TV Cultura, 1978. 1 vídeocassete, VHS. NTSC, son., color.
105
CASCUDO, Luís da Câmara. História dos nossos gestos: uma pesquisa mímica do Brasil. São Paulo: Melhoramentos, 1976.
Este foi o último livro de Cascudo. Sua primeira edição é de 1976 e a segunda, de 1987. Nele, Cascudo narra a história, o
detalhe, a curiosidade e a evolução de gestos comuns, integrantes do dia a dia do brasileiro, comparando-os com outros povos.
apud GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la Historia. Alcalá
de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 422.
43
de uma mesa ao lado de uma garçonete e do outro estava um motorista da
praça, todos os três tomando cerveja. Eu disse: ‘Mestre você está fazendo o
quê? ’Ele disse: ‘Não está vendo meu filho, estudando costumes
106
.
(grifo nosso).
Não podemos esquecer que, durante a década de trinta, Cascudo também exerceu
importantes funções políticas
107
, apesar de se considerar e de se apresentar como
apolítico: “filho único de chefe político, ninguém acreditava no meu desinteresse eleitoral.
Impossível para mim dividir conterrâneos em cores, gestos de dedos, quando a terra é uma
unidade com sua gente”
108
.
Várias situações comprovam sua ligação com o mundo político partidário, como a
sua eleição para deputado estadual: “graças ao prestígio de seu pai e ao decidido apoio do
Governador Juvenal Lamartine, ele foi eleito Deputado Estadual com 9. 466 votos, pelo
Partido Republicano Federal, no pleito realizado no dia 27 de julho de 1930”
109
. Em uma
de suas biografias, consta que exerceu o mandato de deputado por apenas cinco dias,
devido às repercussões da Revolução de 1930 no Estado. Em suas Memórias, ao escrever
sobre o episódio, expressou claramente sua compreensão do “fazer política”: “Deputado
Estadual em 1930, assumi a 1° de outubro. No dia 3 veio a Revolução e acabou com meu
mandato. Não houve tempo de exercer benemerência ou nocividade
110
.(grifo nosso).
Cascudo teria recebido, inclusive, um convite do presidente Getúlio Vargas para ser
senador pelo Rio Grande do Norte.
O ano de 1932 foi um marco na vida do intelectual potiguar. Seu pai, sem dinheiro
para pagar as dívidas que diante da conjuntura externa cresciam a cada dia, perdeu a
chácara do Tirol, selando de vez a falência que se abateu sobre a família Cascudo. Esse fato
teria se dado, principalmente, devido à política de intervenção instituída por Getúlio Vargas,
que fez com que o pai de Cascudo perdesse o apoio político local, única possibilidade de
106
Depoimento de Veríssimo de Mello. In: BRESSANE, Zita (Prod.) Depoimento. TV Cultura. Cascudo. São
Paulo. Secretaria de Cultura, Ciência e Tecnologia: TV Cultura, 1978. 1 videocassete, VHS. NTSC, son., color.
107
A atuação política de Cascudo constitui ponto bastante controverso nas biografias produzidas sobre ele, por
ter sido orientada por uma postura conservadora. Afinal, foi monarquista durante toda a sua vida e, também,
antimarxista, o que o levou a apoiar o Golpe Militar de 31 de março de 1964.
108
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 05, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
109
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 2, 06 jan. 1999. DN-
educação, p. 23. Projeto Ler. Com as imposições da Revolução de 30 a Assembléia Legislativa do Rio
Grande do Norte foi dissolvida e o mandato de Luís da Câmara Cascudo e dos demais eleitos durou
apenas cindo dias.
110
CASCUDO, Luís da Câmara. O Tempo e Eu: confidências e proposições. Natal, RN: Imprensa Universitária,
1968 apud FERREIRA, Sônia Maria Fernandes. De como Câmara Cascudo se tornou um autor
consagrado. Natal, RN: Climas-Arte, 1986. p. 44. (Coleção Edições Clima, v. 51).
44
contornar a crise
111
. Com a falência, Cascudo passou a depender de cargos públicos, atuando
como professor e se valendo da atividade de jornalista e escritor para garantir a sobrevivência
da família. E foi nesse momento que, de acordo com Raimundo Arrais:
A política, tentação difícil de vencer para um intelectual de província,
seduziu-o naquele tempo em que as fortes ideologias nacionalistas
movimentavam as massas. Sob influência de Gustavo Barroso, folclorista,
historiador e líder integralista cearense, Cascudo torna-se o chefe local da
Ação Integralista Brasileira (da qual fizeram parte proeminentes intelectuais
do Estado, como Manuel Rodrigues de Melo e Hélio Galvão), escrevendo
entusiasmados artigos sobre o assunto
112
.
À falência, às mudanças de residência
113
e à necessidade de garantir o sustento da
família, se somaria a morte do pai de ataque cardíaco no mês de maio de 1935. O Coronel
Francisco Justino de Oliveira Cascudo, que falecia aos setenta e dois anos de idade, triste,
pobre e só, havia, contudo, conseguido deixar para o filho uma grande riqueza que se
traduziria, efetivamente, em bens simbólicos
114
e que se refletiriam num capital simbólico
115
que acabariam por direcionar a vida e definir a projeção de Cascudinho como intelectual.
111
Ver mais em: TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. Silenciando peças e criando lacunas: uma análise da trajetória
integralista na biografia de Luís da Câmara Cascudo (1932-1945). Monografia (Graduação em História) -- Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2008. f. 22.
112
ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE, ano 4, n. 48, p. 10,
ago. 2006.
113
Do Principado do Tirol a família mudou-se para uma casa menor na Avenida Junqueira Aires, onde residiram de 1933 até
aproximadamente 1936. Neste endereço, viria a falecer o Coronel Cascudo, em 1935. Mais uma mudança de endereço
ocorreria em 1937, desta vez para uma casa na Rua Conceição, no centro da cidade, onde morariam de 1937 até a
mudança para a casa dos pais de Dáhlia na Avenida Junqueira Aires, que aconteceu em 1947. Foi nesta residência em
que viveu até sua morte que Cascudinho produziu boa parte de suas obras históricas, tributárias dos tempos passados
entre os livros e as grandes personalidades no Principado do Tirol.
114
Neste trabalho, consideraremos bens simbólicos, a educação esmerada, o acesso aos livros mais atualizados, as aulas
particulares recebidas e que constituíram a base para o futuro do intelectual. Diante dessa nossa reflexão, acreditamos ser
oportuno resgatar a afirmação de Bourdieu de que: “[...] qualquer herança material é, propriamente falando, uma herança
cultural; além disto, os bens de família têm como função não só certificar fisicamente a antiguidade e a continuidade da
linhagem, e, por conseguinte, consagrar sua identidade social, mas também contribuir praticamente para sua reprodução
moral, ou seja, para a transmissão de valores, virtudes e competências [...]”. BOURDIEU, Pierre. A distinção: crítica do
social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. p 75.
115
Para Bourdieu, o capital simbólico corresponde ao capital econômico relacionado com o capital cultural e social,
apresentando-se através de rituais de reconhecimento social, prestigio, honra, status, etc. BOURDIEU, Pierre. A
distinção: crítica do social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007. O Capital Simbólico deve ser entendido como
Carisma. Consiste de uma propriedade qualquer força cultural e social, apresentando-se através de rituais de
reconhecimento social, prestígio, honra, estatus [status] físico, riqueza, valor guerreiro que, percebida pelos agentes
sociais dotados das categorias de percepção e de avaliação que lhes permitem percebê-la, conhecê-la e reconhecê-la,
torna-se simbolicamente eficiente, como uma verdadeira força mágica: uma propriedade que, por responder às
“expectativas coletivas”, socialmente constituídas, em relação às crenças, exerce uma espécie de ação à distância, sem
contato físico. Damos uma ordem ela é obedecida: é um ato quase mágico. Cf. BOURDIEU, Pierre. Razões práticas:
sobre a teoria da ação. Campinas, SP: PAPIRUS, 1996. p. 176.
45
Acreditamos que a crise financeira que se abateu sobre a família de Cascudo na
década de 30 e a morte do pai possam explicar o ingresso de Cascudo nas fileiras do
Integralismo; nas palavras de Dom Hélder Câmara, “um movimento que seduzia”
116
por sua
proposta de combate ao comunismo, levando-os a participarem ativamente da Câmara dos
Quatrocentos e a vestir a camisa verde:
[...] A organização hierárquica e patriarcal da AIB dava a Cascudo um
conforto espiritual, a figura do chefe, daquele que tem o controle nas mãos,
representando na figura de Plínio Salgado, substituía a figura do seu pai, que
perdera as forças financeiras e o prestígio político, inclusive vindo a falecer
em 1935. Cascudo vivia um período de insegurança existencial, perdendo
aos poucos os alicerces que sempre os sustentara, impondo-lhe uma
responsabilidade que não tivera até então, logo, o discurso integralista surgia
como um patamar que lhe garantiria segurança e uma forma de se erguer
social e financeiramente [...]
117
.
Há, no entanto, e é interessante mencionar um certo silenciamento sobre a
participação de Cascudo no movimento integralista
118
, que se daria, justamente, neste período.
Apesar disso, sua adesão ao Integralismo pode ser atestada em artigos que encontramos no
Jornal A Offensiva periódico publicado no Rio de Janeiro e que divulgava notícias sobre o
movimento integralista em todo Brasil e que fazem referência explícita a Câmara Cascudo.
Ao analisarmos os artigos desse jornal, chamou-nos atenção a edição de 11 de outubro de
1934 – em especial, a sessão dedicada à Província do Rio Grande do Norte que refere o seu
envolvimento e evidencia a estreita relação entre o catolicismo e o movimento integralista no
116
DOM Hélder Câmara: o santo rebelde. Direção: Erika Bauer. Produção: Andréa Glória. Brasília, DF: Cor Filmes, 2004. 1
DVD (74 min), son., color. Gênero: Documentário.
117
TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. Silenciando peças e criando lacunas: uma análise da trajetória integralista na
biografia de Luís da Câmara Cascudo (1932-1945). Monografia (Graduação em História) -- Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, Natal. 2008. f. 27.
118
Quanto às razões do “aparente” silenciamento acerca da participação de Cascudo na AIB (Ação Integralista Brasileira), na
condição de um dos chefes do movimento integralista no Rio Grande do Norte , afirma Arthur Luís Torquato: “durante
alguns momentos da pesquisa encontramos pessoas que afirmavam que a participação de Cascudo na Ação Integralista
Brasileira não passava de lenda, o que de certa forma evidencia a funcionabilidade das estratégias de silenciamento
adotadas pelo erudito. Ao silenciar esse momento de sua vida, Cascudo tentava desvencilhar sua imagem de qualquer
participação em movimentos radicais” apud TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. Silenciando peças e criando
lacunas: uma análise da trajetória integralista na biografia de Luís da Câmara Cascudo (1932-1945). Monografia
(Graduação em História) -- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2008. f. 86. Também Durval Muniz
alertou sobre este silenciamento e sobre as razões de sua manutenção: “o que ficou de fora e porque, que relação estes
critérios de pertencimento ao autor tem com a própria imagem de autor que construiu e a imagem de obra que definiu? É
preciso analisar os critérios de racionalidade aventados para delimitar sua obra, os critérios de exclusão e inclusão e como
estes se articulam com a necessidade de se construir uma biografia coerente, atravessada por certas constantes de valor,
um certo campo de coerência e concentração teórica, uma certa unidade estilística. Será que os textos que produziu em
defesa da monarquia e do integralismo fazem parte de sua obra? Os discursos panegíricos a pessoas influentes e as
saudações a autoridades fazem parte de sua obra? Porque não? Se o autor é um foco de expressão, porque tudo que ele
expressa não é sua obra?”. (grifo nosso) apud ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascudo
em “As batalhas contra o tempo”: a biografia histórica de um erudito brasileiro (1898-1986). 2004. Não paginado.
Projeto de pesquisa CNPq.
46
Estado potiguar: “[...] Continuam sem desfallecimento [sic] todos os trabalhos integralistas de
propaganda e doutrinação, falando nas sessões de domingos o secretario do D.P. e o Chefe
Provincial. Na noite de 9 do corrente, a convite do padre Dr. Walfredo Gurgel, reitor do
Seminário de São Pedro, o Chefe Provincial Dr. Câmara Cascudo pronunciou uma
conferencia aplaudidíssima sobre as Bases Integralistas em Face da Sociologia Católica”
119
.
Tornando pública sua posição contrária ao marxismo e à ameaça que representava a
Intentona Comunista de 1935
120
, Câmara Cascudo vestiria a camisa verde do Integralismo
brasileiro, tornando-se um dos membros de maior destaque
121
no Rio Grande do Norte, ao
atuar como Chefe Regional da Ação Integralista Brasileira AIB no Estado. Esse movimento
de cunho fascista exerceu fortes influências sobre a elite potiguar, da qual Cascudo fazia
parte. Confome Luís Gonzaga Cortez, escritor e jornalista que publicou estudos sobre o
integralismo no Rio Grande do Norte, a passagem de Câmara Cascudo na AIB ocorreu da
seguinte forma:
O escritor Luís da Câmara Cascudo (1898-1986), monumento maior da
cultura potiguar, foi um dos maiores divulgadores da ideologia da Ação
Integralista Brasileira, movimento político conservador e nacionalista,
liderado pelo escritor paulista Plínio Salgado, entre os anos 1932/37, época
em que as posições políticas eram de direita ou de esquerda, comunista ou
anti-comunista, fascista ou anti-fascista. Intelectual consagrado na sua terra
natal, Natal, Câmara Cascudo, ao se tornar o primeiro chefe da Ação
Integralista Brasileira-AIB, na “Província do Rio Grande do Norte”, em
1933, já era um nome conhecido nos meios culturais e políticos do Rio de
119
PROVÍNCIA do Rio G. do Norte. A Offensiva, Rio de Janeiro, p. 01, 11 out. 1934.
120
Durante a Intentona Comunista, a cidade do Natal foi sede do primeiro governo marxista da América Latina.
De acordo com a historiadora Denise Monteiro, em 1935, o Brasil assistiu à fundação da Alianca Nacional
Libertadora(ANL). Após a promulgação da Lei de Segurança Nacional, o presidente Getúlio Vargas ordena o
fechamento da ANL, levando à Insurreição Comunista em Natal, Recife e Rio de Janeiro, sucessivamente.
Em 1935, governava o Rio Grande do Norte, o governador eleito pela Assembléia Legislativa Estadual,
Rafael Fernandes Gurjão. Seu mandato foi marcado por greves e pela fundação da Aliança Nacional
Libertadora no Estado. Foi durante a Insurreição Comunista em Natal que se constituiu um Governo Popular
Nacional Revolucionário, que viria a se expandir pelo interior do Estado e seria alvo da repressão apud
MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3. ed. rev. Natal, RN:
Cooperativa Cultural, 2007. p. 214.
121
Cascudo é referido por Cortez como um dos responsáveis pelo “sucesso” do integralismo na Província do Rio
Grande do Norte, tanto pelos participantes do movimento quanto pela imprensa que divulgava as notícias
integralistas: “como todo integralista, Cascudo foi um jornalista cristão, anti-burguês, anti-capitalista,
nacionalista, anti-liberal, contra o banqueirismo internacional que ainda hoje mantém o Brasil numa situação
de dependência e escravização financeira” MELO, Luiz Gonzaga Cortez G. de. Câmara Cascudo: o
jornalista integralista. Natal, RN: CCHLA -UFRN, 1995. p. 03.
47
Janeiro e São Paulo, principalmente entre os grupos conservadores
(republicanos ou monarquistas)
122
.
O ideário integralista, segundo Arrais, teria suas asas cortadas pelo golpe do Estado
Novo de 1937, que atingiu democratas, comunistas e integralistas. Por prudência, Cascudo
teria queimado as camisas verdes e os livros integralistas, mas é “possível que essas
convicções tenham se fundido num catolicismo que ele conservará por toda a vida”
123
.
Foi com a ocupação de professor e com o salário do Atheneu que Cascudo
sustentou a família e pôde manter um hábito trazido da infância: a compra de livros. Já ao
final da década de cinqüenta, Cascudo viria atuar também como professor de Direito
Internacional e de Etnografia Geral na UFRN, Universidade da qual foi um dos patronos
fundadores e através da qual se projetou no meio acadêmico.
Escolhido por sua oratória ímpar dentre os letrados do Rio Grande do Norte para
ser o orador na cerimônia de inauguração da Universidade, em 1959, Cascudo proferiu um
discurso que o projetou ainda mais no meio acadêmico do Rio Grande do Norte. Em sua
saudação, Cascudo ressaltou a importância da Universidade como “o mais elevado acervo
cultural e educacional da sociedade civilizada, evocando a irradiação da arte helênica e do
humanismo romano, no ensino da ciência, da plástica artística e das letras”
124
. Destacou,
ainda, os esforços que os intelectuais norte-rio-grandenses faziam para superar o atraso e para
se aprimorarem no mundo das letras, expressando sua admiração e confiança no papel que a
Universidade desempenhava no Brasil, e, conseqüentemente, no Estado:
Se a Universidade se instala para viver, e viver para sempre sem serviço do
Brasil no horizonte do Universal e do Humano, é indispensável saber-se em
que direção orgânica, no ponto de vista psicológico e mesmo doutrinário,
caminhara ela, a menina -e- moça dos nossos cuidados, dedicações e ciúmes.
[...] Uma Universidade é plasmadora de Cultura em defesa ascensional da
Civilização. Se, nesta hora, não definirmos Cultura e não formos até o
122
MELO, Luiz Gonzaga Cortez G. de. Câmara Cascudo: o jornalista integralista. Natal, RN: CCHLA-UFRN,
1995. p. 01.
123
ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE, ano 4, n. 48, p. 10,
ago. 2006.
124
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso no Ato da inauguração da Universidade Federal do Rio Grande do
Norte. In: NAVARRO, Jurandyr. Rio Grande do Norte: os notáveis dos 500 anos. Natal, RN: Ed. do autor,
2004. p. 420.
48
conceito de Civilização, teremos feito crime notório contra o Espírito,
renegando o bom Combate e perdido a Fé
125
.
Cascudo exerceu o magistério por muitos anos, até se aposentar como professor de
Direito da UFRN, da qual recebeu títulos de “Professor Emérito”
126
e de “Doutor Honoris
Causa”
127
ambos pela Faculdade de Direito da UFRN instituição na qual deixou
discípulos como Enélio Lima Petrovich e Diógenes da Cunha Lima.
A carreira de professor foi desenvolvida em paralelo a de historiador e de pesquisador.
Foi no período de elaboração da tese para o concurso de ingresso como professor no Atheneu
que Cascudo revelou o gosto pela pesquisa documental, pela busca da verdade histórica, pela
erudição e pela polêmica.
Cabe lembrar que, curiosamente, esse advogado foi, por muitos anos,
professor de História no Ateneu Norte Rio Grandense. A tese apresentada
para o ingresso no magistério público em 1932, versava sobre a discussão
bizantina a respeito do acaso ou da intencionalidade no descobrimento do
Brasil, tema apaixonante para muitos dos historiadores de então
128
.
O trabalho apresentado por Cascudo para a cátedra de História do Brasil, em 1928, é
considerado um dos destaques de sua produção como historiador. Publicado em 1933, foi três
vezes reeditado
129
, como apontado por Vânia Gico:
125
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso no Ato da inauguração da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
In: NAVARRO, Jurandyr. Rio Grande do Norte: os notáveis dos 500 anos. Natal: Ed. do autor, 2004. p. 422.
126
“As instituições universitárias costumam distinguir os seus mestres de maior saber e talento com o titulo de
professor emérito. Seguindo esta tradição, a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, no reitorado do
Professor Onofre Lopes, conferiu o título de professor emérito ao escritor Luís da Câmara Cascudo. Na
solenidade de entrega deste honroso título, o Professor Américo de Oliveira Costa saudou o homenageado
perante a Assembléia Universitária, realizada no dia 21 de março de 1967” apud SOUZA, Itamar de. Câmara
Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 5, 27 jan. 1999. DN-educação, p. 91. Projeto Ler.
127
COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. À mesa com Cascudo: da água, do pasto, da horta e do pomar à cozinha
como fábrica dos sonhos. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Natal, RN, v. 46, n. 34,
p. 11-20, jan./jun. 2005.
128
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São
Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso
em: 13 ago. 2008.
129
CASCUDO, Luís da Câmara A intencionalidade no descobrimento do Brasil. Natal, RN: Imprensa Oficial,
1933. O estudo A intencionalidade no descobrimento do Brasil foi editado pela primeira vez em Portugal,
ainda na década de 30 (Funchal - Ilha da Madeira: Tipografia d’ “O Jornal”, 1937). Constitui o primeiro dos
ensaios do livro de 211 páginas intitulado Informação de História e etnografia. Recife: Tradição, 1944.
Trinta anos depois de escrito, reaparecerá sem modificações para compor um livro de 82 páginas
intitulado Dois Ensaios de História. (Natal: Imprensa Universitária, 1965).
49
Com sua entrada no magistério estadual, tornou-se professor efetivo de
História da civilização, em 1932, com apresentação de duas teses aprovadas
com distinção. Uma ‘tese sorteada’ que trata da ‘Origem do homem
americano sua evolução política e social aztecas [sic] e incas’, e a outra,
‘tese de livre escolha’ que discute ‘A intencionalidade no descobrimento do
Brasil’ editadas posteriormente, em livros e artigos. Perderia a cadeira com o
‘golpe’de Getúlio Vargas, mas, voltou à cátedra pelo imperativo
constitucional
130
.
O Câmara Cascudo-professor que encontramos em depoimentos, artigos e plaquetes
131
é um homem interessado em transmitir conhecimentos sem preocupações com as
formalidades. Um professor que, na maioria das vezes, é mais lembrado como “grande amigo
e mestre” para todas as ocasiões, do que somente como um professor, que ensina e cobra
conhecimentos. Poderíamos listar um número considerável de personalidades importantes do
Rio Grande do Norte que foram seus alunos e deixaram suas impressões sobre esta face de
Cascudo. Para ilustrá-las, selecionamos dois, de dois momentos diferentes. O primeiro, de um
ex-aluno do Atheneu Norte-Rio-Grandense, e o segundo, o de um ex-aluno de Direito da
UFRN. O jornalista, advogado e membro da Academia de Letras do Rio Grande do Norte,
Otto Guerra, ex-aluno de Cascudo do Atheneu, relembra o professor que conquistou a turma e
se tornou amigo dos alunos:
Era, sem dúvida, um professor completo. Abria novos horizontes à mente
dos alunos. Ensinava a pensar, a investigar, a procurar as razões primeiras
dos fatos, a enquadrá-los dentro do mundo, não aparecendo todos aqueles
sucessos, que os compêndios narravam, como acontecimentos à parte na
história dos povos. [...] Não adotava compêndios, não limitava terrenos. O
campo era vasto, livre o aluno. Nenhum daquela turma pode negar o quanto
deve a Câmara Cascudo, senhor absoluto da matéria, mas que ensinava como
se aquilo tudo fluísse muito natural e fosse muito fácil de aprender. E
sobretudo, que, realizando o grande ideal do mestre, sabia estimular o
trabalho do aluno, despertar o gosto pela iniciativa. Formados, casados, pais
de filhos, não esquecem o antigo professor, que absolutamente não chamam
de velho mestre, mas de amigo, jovial companheiro
132
.
O segundo depoimento é de um ex-reitor da Universidade que foi seu aluno no Curso
de Direito. Nele nos chama a atenção que Cascudo, mesmo sendo professor de Direito
130
GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: itinerário de um pensador. 1998. f. 40. Tese (Doutorado em Ciências
Sociais, mimeo.) -- PUC-SP, São Paulo, 1998.
131
Denominação usada para designar publicações com menos de cinqüenta páginas.
132
GUERRA, Otto. Luiz da Câmara Cascudo Professor. In: LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal,
RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 10. Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
50
Internacional, manifestava sua “paixão” pela cultura popular e pelos estudos dos costumes e
tradições potiguares. De acordo com o ex-reitor, Domingo Gomes:
O mestre Cascudo foi meu professor de Direito Internacional, na antiga
Faculdade de Direito, da nossa universidade. O mais interessante como
professor, é que comumente ele aproveitava os momentos destinados a sua
aula, para falar de sua experiência como homem e, sobretudo, da gente, do
povo, das visitas que ele fazia aos países, e eu me lembro muito bem, agora,
quando de uma viagem que ele fizera a África, ele comparando os costumes
e os hábitos nordestinos com os africanos. Como ele mostrava para nós
alunos, a identificação do povo africano com o povo nordestino. E, como
aluno, pouco aprendi de Direito Internacional com o velho mestre, mas
aprendi, sobretudo, do meu velho mestre, do mestre de todos nós, tudo sobre
o folclore, tudo sobre cultura popular, sobre o hábito e costumes da nossa
gente e do nosso povo. [...] Cascudo foi a universidade antes dela ter sido
criada. Ele foi o embrião da nossa universidade, e criou, muito antes de se
pensar na nossa universidade, a universidade popular, a universidade sem
muros, a universidade sem hábito, a universidade do povo
133
.
Chamou-nos a atenção que a maioria dos depoimentos de seus ex-alunos o apresenta
como um “contador de histórias”, cujas aulas eram um momento de prazer, de divertimento, a
ponto de os alunos nem verem o tempo passar. Estas recordações parecem encontrar eco na
forma como Cascudo encarava a docência e sua passagem pelo Atheneu: “[...] um colega do
magistério haver-lhe pedido a demissão ao Presidente Juvenal Lamartine, porque considerava
indignidade um professor do “respeitável” educandário andar indagando Lobisomem e
estudar Catimbó, enrolado com os “mestres” e os juremias miríficos [...]”
134
. Esse incidente
no Atheneu parece ter perturbado bastante a Câmara Cascudo, pois o encontramos referido
em vários de seus depoimentos e em entrevista que concedeu a Carlos Lyra:
Quando fui professor do Atheneu Norte-Rio-Grandense, do nosso ginásio,
professor por concurso, catedrático, um meu colega foi pedir ao governador
do Estado para que me demitisse. Eu não podia ser demitido senão por um
processo regular, porque era catedrático por concurso, e meu crime era esse:
o professor catedrático do Atheneu, que faz pesquisas a respeito do
lobisomem, burrinha de padre, do bumba-meu-boi, que ouve pastoras, que
133
DEPOIMENTO de Domingos Gomes de Lima. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/
cascudo/blog.htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
134
Trecho extraído de: COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN:
Fundação José Augusto, 1969. p. 27.
51
está desmoralizando o ensino secundário no Rio Grande do Norte. Não é
digno de subir para a cátedra e dar aulas sobre História do Brasil
135
.
Cabe lembrar que, na época, o Atheneu era o estabelecimento de ensino publico de
maior prestígio no Estado do Rio Grande do Norte. O trecho da entrevista que transcrevemos
nos remete a sua nomeação, em 1928, pelo então governador do Rio Grande do Norte,
Juvenal Lamartine, como professor interino. No ano de 1929, Cascudo foi indicado pelo
mesmo governador ao cargo de diretor do referido educandário, indicação que resultava das
influências políticas paternas e do desempenho como professor secundário. Sabe-se que,
apesar das pressões, Cascudo não perdeu seu emprego no Atheneu, vindo a, mediante
concurso, efetivar-se no cargo:
[...] A erudição, a memória, os conhecimentos extraordinários do Mestre
davam dimensões inesperadas aos temas do programa. [...] Rompia-se,
igualmente, na sua cadeira, em que a seguir, se empossaria vitalício por
concurso, a tradição, o sistema, o hábito do professor dogmático e mecânico.
Ao contrário: descia até os alunos, estabelecia pontos de passagem e ângulos
de convergência. Nada de compartimentos estanques, de zonas surdas, entre
professor e estudantes
136
.
As mudanças trazidas pela Revolução de 30, no entanto, fizeram com que perdesse o
cargo de diretor do Atheneu: “sem dúvida, o escritor Câmara Cascudo foi um dos
correligionários de Lamartine que aderiu logo à Revolução de 30. Mesmo assim, era
considerado “carcomido”
137
e, por isso, perdeu o cargo de diretor do Atheneu Norte-Rio-
Grandense”
138
.
Cascudo sempre fez questão de referir sua paixão por ensinar e o prazer que sentia em
ser professor, como se pode constatar neste depoimento: “faço questão de ser tratado por
esse vocábulo que tanto amei: professor. Os jornais, na melhor ou na pior das intenções, me
135
LYRA, Carlos. “Cascudo as razões de minha preferência”. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN,
ano 2, n. 3, p. 57, 1998. Entrevista concedida ao autor em: 19/08/1976.
136
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1969. p. 26-27.
137
Essa denominação foi dada aos adeptos do regime deposto com a Revolução de 30.
138
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 2, 06 jan. 1999. DN-
educação, p. 24. Projeto Ler.
52
chamam folclorista. [...] Eu sou um professor. Até hoje minha casa é cheia de rapazes me
perguntando, me consultando”
139
. (grifo nosso).
O Cascudo homem de letras que viveu sua vida propagandeando sua paixão pela
cultura popular, pelo magistério e pela história de sua terra e de sua gente chegaria aos seus
mais de 80 anos, afirmando que, apesar de considerar “a velhice [...] um naufrágio!”, a visão
comprometida lhe aguçava a sensibilidade e a ternura:
Assim, é sempre agradável ouvir o que não se ouve, ouvir com a
sensibilidade. Sou uma coisa rara. Sou, sabidamente, um velho bem
humorado. É porque a surdez põe muito de distância, arminho e pelúcia nos
pensamentos. É preciso muita obstinação para me ser desagradável, é preciso
escrever e insistir, mesmo assim a mensagem contundente, perde os ganchos
e as arestas, e eu transformo os cacos de vidro em bolinhas para os meus
netos brincarem
140
.
2.3 Cascudo por múltiplos olhares
Neste subcapítulo, apresentamos um breve inventário das mais representativas
biografias de Luís da Câmara Cascudo. Ressaltamos que não desconhecemos os cuidados que
uma incursão nas biografias escritas sobre Cascudo exige, na medida em que elas são, em sua
maioria, apresentadas como um “documento histórico destinado a gerações futuras”, “um
depoimento verídico”, um “resumo de [...] um magnífico esforço produtivo”, um “perfil de
um homem [...] que sempre se mostrou na sua atuação notável” ou, então, “um esboço de uma
grande existência”
141
. Também consideramos extremamente oportunas as reflexões de Pierre
Bourdieu
142
, que nos adverte de que não se pode pensar na vida de um sujeito, ou numa
biografia
143
, como uma seqüência linear ou como um todo coerente:
139
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
140
Ibid., 2008.
141
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de
Janeiro: Rocco; Lapa, 1996.
142
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.).
Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 185.
143
Pierre Bourdieu nos chama a atenção para um aspecto extremamente relevante para a proposta desta
Dissertação: nos relatos biográficos, os sujeitos se convertem em ideólogos de sua própria existência,
selecionando certos acontecimentos significativos. Ibid., p. 189-190.
53
Tentar compreender uma vida como uma série única e por si suficiente de
acontecimentos sucessivos, sem outro vínculo que não a associação a um
sujeito’ cuja constância certamente não é senão aquela de um nome próprio
é quase tão absurdo quanto tentar explicar a razão de um trajeto no metrô
sem levar em conta a estrutura da rede, isto é, a matriz das relações objetivas
entre as diferentes estações
144
.
Margarida de Souza Neves, pesquisadora carioca e autora do projeto Modernos
Descobridores do Brasil, além de atribuir a Luís da Câmara Cascudo a condição de um dos
descobridores do Brasil ao lado de Capistrano de Abreu, Cecília Meireles, Mário de
Andrade e Monteiro Lobato destaca as “muitas facetas” do intelectual potiguar que
precisam ser consideradas:
Luís da Câmara Cascudo foi homem de muitos ofícios. Estudante de medicina
que, em razão de problemas financeiros familiares, abandonou o curso que
desejava concluir, não para clinicar, mas para ter seu próprio laboratório de
pesquisa, foi plural em suas atividades. As biografias que sobre ele foram
escritas aludem, invariavelmente, a suas muitas facetas de jornalista, poeta
bissexto, professor, advogado, crítico literário, memorialista, biógrafo,
musicólogo, e também historiador, ainda que seja mais conhecido na história
cultural brasileira como folclorista e etnógrafo
145
. (grifo nosso).
Dentre as biografias de Luís da Câmara Cascudo mais citadas pela historiografia
norte-rio-grandense podemos destacar: Viagem ao Universo de Câmara Cascudo; Câmara
Cascudo - Um Brasileiro Feliz; Câmara Cascudo - Um homem chamado Brasil; Luís da
Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual 1918/1968
146
.
As duas primeiras fazem um balanço geral da vida e da obra de Cascudo, sendo que a
primeira biografia a ser produzida sobre ele foi escrita por Américo de Oliveira Costa
147
, que
144
BOURDIEU, Pierre. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.).
Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 189-190.
145
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São Paulo, n.
24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
146
As obras são: COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN:
Fundação José Augusto, 1969. LIMA, Diógenes da Cunha. Câmara Cascudo: um brasileiro feliz. 3. ed. Rio
de Janeiro: Lidador, 1998. OLIVEIRA, Gildson. Câmara Cascudo: um homem chamado Brasil. Brasília:
Brasília Jurídica, 1999. MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual 1918/1968.
Natal: Fundação José Augusto, 1970. 3 v. Bibliografia Anotada.
147
Américo de Oliveira (1910-1996) bacharel em direito, ex-professor de Direito da UFRN, foi contemporâneo,
amigo, ex- aluno e biógrafo de Câmara Cascudo. Foi, também, membro da Academia Norte-Rio-Grandense
de Letras do Rio Grande do Norte e do Instituto Histórico e Geográfico (IHGRN), tendo sido, ainda, autor do
livro Viagem ao Universo de Câmara Cascudo, publicado pela Fundação José Augusto, de Natal (RN), em
1969, bem como de vários outros trabalhos sobre a vida de Cascudo.
54
se utilizou das anotações feitas pelo próprio Cascudo
148
. Em Viagem ao Universo de Câmara
Cascudo, o autor não apenas destaca a diversidade da produção cascudiana, como as suas
inúmeras faces, ao afirmar que:
[...] A obra cascudiana não é uma ilha; é um arquipélago, pela multiplicidade
e pela variedade dos territórios que a integram. Nela, há o historiador, o
etnógrafo, o folclorista, o antropologista [sic], o sociólogo, o ensaísta, o
jornalista, o tradutor-comentador, o memorialista, o cronista, um indigitado e
insólito romancista de costumes... animais [...]
149
.
O livro de Diógenes da Cunha Lima
150
assume um outro caráter, já que foi produzido a
partir da convivência que o autor teve com seu biografado, contemplando o tempo em que
Cascudo foi seu professor, a relação entre afilhado e padrinho e a amizade construída. O livro
de Gildson Oliveira
151
faz também o balanço da vida e obra, mas se baseia, principalmente,
nas muitas entrevistas concedidas por Cascudo ao longo de sua vida e também em muitos
depoimentos. A última obra, a de Zila Mamede
152
, composta de três volumes, é um
levantamento dos escritos de Cascudo (livros e outros trabalhos) até a data de sua publicação
em 1970.
A biografia escrita pelo escritor potiguar Diógenes da Cunha Lima
153
nos apresenta
um Câmara Cascudo feliz
154
, um homem que irradiava sabedoria e felicidade. Para o autor,
148
Câmara Cascudo escreveu alguns livros de cunho memorialístico. Um dos mais citados por Américo de Oliveira Costa foi:
CASCUDO, Luís da Câmara. O Tempo e Eu: confidências e proposições. Natal, RN: Imprensa Universitária, 1968.
149
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1969. p. 7.
150
Ex-aluno de Câmara Cascudo, Diógenes da Cunha Lima também se apresenta como um de seus discípulos. Formado pela Faculdade
de Direito, foi Secretário de Estado de Educação e Cultura, reitor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e professor do
curso de Direito da UFRN. Exerceu ainda as funções de Presidente do Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras, Consultor
Geral do Estado e Presidente da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras.
151
Jornalista, filho de uma amiga pessoal de Câmara Cascudo, tendo sido amigo próximo dos filhos de Cascudo;, razão pela qual teve
acesso livre à casa da família Cascudo. Fez algumas entrevistas com o “mestre”, das quais se utilizou em seu livro. Ver mais em:
OLIVEIRA, Gildson. Câmara Cascudo: um homem chamado Brasil. Brasília: Brasília Jurídica, 1999.
152
Uma potiguar, mas que nasceu na Paraíba, e que dá nome à Biblioteca central da UFRN. Por ter sido do meio letrado potiguar se
aproximou de Cascudo, devido aos muitos amigos em comum. Foi importante escritora, poetisa, tendo publicado cinco livros de
poesias: Rosa de pedra (1953), Salinas (1958), O arado (1959), Exercício da palavra (1975) e Corpo a corpo (1978). Escreveu
ainda estudos bibliográficos sobre Câmara Cascudo e João Cabral de Melo, que a incluiu entres os maiores poetas do país.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/zila/>. Acesso em: 28 jan. 2009.
153
O livro Câmara Cascudo: um Brasileiro Feliz foi lançado, originalmente, em 1978, tendo sido reeditado em 1993 e em 1998, por
ocasião das comemorações do centenário de nascimento de Cascudo.
154
Diógenes justificou o seu interesse em escrever um livro sobre Cascudo e a escolha do título Câmara Cascudo: um Brasileiro
Feliz da seguinte forma: “Quando eu levei para Cascudo esse livro, ele disse: ‘O título não é bom porque está chamando os outros
brasileiros de infelizes’. Eu brinquei, discuti com ele e disse que ia ficar assim mesmo, mas depois ele adotou. Feliz por quê? Porque
ele fez tudo que desejava. Ele era filho único de pais ricos. Pôde estudar e dedicar-se ao estudo. O que ele queria, ele fez na vida.
Teve uma família que ficava ao lado dele e que o adorava; teve amigos em todo canto do Brasil e do mundo; realizava o seu trabalho
com amor, com dedicação e entusiasmo; procurou, na vida, entender o sentido do que é humano, do que é brasileiro e fez isso
durante uma longa existência, com êxito, em todas as atividades e profissões a que ele se dedicou. Então, um homem absolutamente
fantástico, bem humorado e, realmente, eu não conheci nenhum outro brasileiro mais feliz do que ele”. Comentário de Diógenes
sobre o lançamento da terceira edição do livro. LIMA, Diógenes da Cunha. Natal na íntegra. Arte e Cultura. Disponível em:
<http://www.tafalado.com.br/ natalnaintegra/ cultura/diogenes.htm>. Acesso em: 03 set. 2008.
55
isso era Câmara Cascudo. Um homem de bom humor, de simpatia, de extraordinárias virtudes
humanas
155
. A biografia de Diógenes é um marco na construção da memória cascudiana, pois
nela, encontramos bem evidente a preocupação de que Cascudo não fosse esquecido,
ocupando, em razão disso, espaço privilegiado na bibliografia cascudiana.
Já a obra de Zila Mamede, publicada em 1970, se apresenta sob a forma de bio-
bibliografia, reunindo todos os trabalhos produzidos por Cascudo até aquela década: os
artigos de jornais, os discursos, as conferências e os livros. Constitui-se, em razão disso, em
obra de referência para os estudiosos dos temas cascudianos. Com um propósito semelhante, o
livro de Vânia Gico
156
, de 1996, ampliou este levantamento sobre a produção cascudiana e
incluiu comentários analíticos sobre ela.
Não há como discordar de Neves em sua constatação sobre as múltiplas faces de
Câmara Cascudo. Acreditamos que uma delas, no entanto, não foi ainda suficientemente
explorada nas obras que enfocaram a sua vida e obra e que apresentamos aqui muito
brevemente : a de historiador católico
157
. É sobre esta face que queremos nos deter com mais
profundidade nessa Dissertação, apresentando Luís da Câmara Cascudo como um homem de
e como um historiador, em cuja produção se reconhecem as marcas de seu catolicismo.
Esta face nos remete ao menino que foi considerado abençoado pelos pais por ter
sobrevivido às doenças que haviam provocado a morte de seus irmãos que foi batizado com
menos de um ano de idade por um padre, que é tido pelo povo potiguar como santo, que teve
formação familiar e escolar marcada, inegavelmente, por um profundo catolicismo, e que,
já adulto, teve uma longa e forte ligação com a hierarquia da Igreja Católica do Rio Grande
Norte. Enfim, uma das faces do intelectual que, certa vez, chegaria a afirmar que, poderia
perder sua cultura e sua inteligência, mas nunca perderia sua fé
158
.
Tido como o mais importante homem de letras de seu Estado, enquanto viveu, e
reverenciado por isso até os dias atuais, Cascudo também era visto por seus amigos como um
homem de fé extremada, como fica evidente nesta afirmação de Enélio Lima Petrovich
159
e que
remete a aspecto que abordaremos com maior ênfase no último capítulo:
155
LIMA, Diógenes da Cunha. Câmara Cascudo: um brasileiro feliz. 3. ed. Rio de Janeiro: Lidador, 1998.
156
Vânia Gico é professora do Departamento de Ciências Sociais da UFRN e sócia efetiva do IHGRN. Sua tese
aborda a produção cascudiana, a partir de 1968, como uma espécie de complemento à obra de Zila Mamede.
GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: bibliografia comentada 1968/1995. Natal, RN: EDUFRN, 1996.
157
Aprofundaremos esta questão em capítulo específico da Dissertação: O Homem de Fé e o Historiador Católico.
158
Na missa de corpo presente, celebrada no dia 01 de agosto de 1986, Dom Nivaldo Monte, então arcebispo de
Natal, ressaltou a fé e a religiosidade de Câmara Cascudo, destacando suas qualidades e semelhanças com o
Criador. Cfe. EMOÇÃO na Missa. Diário de Natal, Natal, RN, p. 06, 01 ago. 1986. Vale observar que o
jornal fez uma série de reportagens que cobriram a morte e o sepultamento de Câmara Cascudo.
159
Atual presidente do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, ex-aluno de Cascudo, grande
amigo, admirador e autor de seu necrológio.
56
[...] Jamais uma palavra amarga fez brotar de seus lábios. De formação e
vivência cristãs, Comendador da Ordem de São Gregório Magno (Santa Sé)
e da Ordem Militar de Cristo, de Portugal, dignitário de todas as honrarias
nacionais e de alem fronteiras do país, levou, para o céu, entre suas mãos
dadivosas, o terço que pertenceu ao padre João Maria, o Santo Potiguar que
o batizou. [...]
160
.
Em uma homenagem prestada a Câmara Cascudo, em 1947, o Cônego José Adelino
Dantas Reitor do Seminário São Pedro
161
, à época , também ressaltaria a importância que a
religião exercia na vida e na obra de Câmara Cascudo:
Cascudo nunca enxergou qualquer incompatibilidade entre a verdade e a luz.
Homem do Evangelho e Homem dos livros, Cascudo se integraliza num
mesmo plano de valorização humana. Vive da fé servindo ao Intelecto e
proclamando o Primado eterno do eterno do Espírito. Saúdo, pois, como
amigo e Sacerdote, o querido conterrâneo, [...] mais admirado e mais
acreditado ainda por todos aqueles que, como eu, não se cansam de fazer
justiça aos seus reais méritos de homem de letras e de homem de
162
. (grifo
nosso).
Referências a sua fé podem ser também detectadas em suas autobiografias e em muitos de
seus escritos. No artigo “Um Provinciano Incurável”, ao lembrar-se da infância, Cascudo se refere
aos meses do ano, vinculando-os às datas de comemorações religiosas da cidade do Natal:
[...] Criei-me olhando o Potengi, o Monte, os mangues da Aldeia Velha onde
vivera, menino como eu, Felipe Camarão. Havia corujas de papel no céu da
tarde e passarinhos nas árvores adultas, plantadas por Herculano Ramos.
Natal de noventa e seis lampeões [sic.] de querosene. Santos Reis da
Limpa em janeiro. Santa Cruz da Bica em maio. Senhora
d’Apresentação em Novembro
163
. [...] Natal que se apavorou com o
160
PETROVICH, Enélio Lima. Necrológio de Luís Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 162, 1985-1986.
161
Seminário que é o responsável até os dias de hoje pela formação dos seminaristas, padres e diáconos, da
Arquidiocese de Natal-RN.
162
DANTAS, José Adelino. Luiz da Câmara Cascudo Homem de Fé. In: LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos).
Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 12. Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
163
A passagem grifada refere datas importantes do calendário católico do Rio Grande do Norte, constituindo-se
em marcos da religiosidade potiguar. O dia de Santos Reis festejado em janeiro celebra a festa dos três
reis magos que fazem parte da história da fundação da cidade e é feriado municipal em Natal. A festa de
Nossa Senhora da Apresentação também é celebração de referência em Natal, uma vez que a santa é a
Padroeira da cidade. O dia a ela dedicado é 21 de novembro, declarado feriado municipal na Capital. É, no
entanto, celebração que se reflete no Estado todo, pois todas as paróquias da Arquidiocese de Natal
participam com homenagens e festejos para a Santa. No texto, Cascudo nos faz pensar que não só era
conhecedor do calendário católico potiguar, como era devoto dos santos e quiçá um participante de tais
comemorações.
57
holofote, enchendo as igrejas de bramidos e arrependimentos [...]
164
. (grifo
nosso).
A passagem acima nos deixa ainda mais convencidos da importância que a religião
católica e a devoção tiveram na vida de Câmara Cascudo, a ponto de, em diferentes momentos
de sua vida, terem perpassado a sua escrita, sobretudo, daquela que podemos denominar de
“escrita de si”:
[...] podem evidenciar, assim, com muita clareza, como uma trajetória
individual tem um percurso que se altera ao longo do tempo, que decorre por
sucessão. Também podem mostrar como o mesmo período da vida de uma
pessoa pode ser “decomposto” em tempos com ritmos diversos: um tempo
da casa, um tempo do trabalho etc. [...] Os registros de memória dos
indivíduos modernos são, de forma geral, e por definição, subjetivos,
fragmentados e ordinários como suas vidas. [...] a escrita de si assume a
subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem,
construindo sobre ela a ‘sua’ verdade
165
.
Vivendo num período em que escrever sobre si era parte essencial do percurso de um
homem de letras
166
, Câmara Cascudo também investiu na construção de uma auto-
representação. O livro O Tempo e Eu é um desses exemplos. Trata-se de uma autobiografia
escrita em 1968, quando contava com 70 anos. O texto se caracteriza por não apresentar uma
narrativa baseada numa linearidade cronológica esperada em uma biografia e por investir
em pequenos flashes de memória que registram “encontros sucessivos com pessoas e coisas,
pensamentos e paisagens, idos e vividos”. Cascudo a denominou de “peregrinação ao derredor
de mim mesmo”, por apresentar passagens de sua vida enfocadas a partir de registros afetivos.
Estes ganhariam destaque no livro, ocupando a primeira e mais extensa parte do referido
trabalho, que pode ser entendida como a “construção de seu altar de convivência afetiva”, no
qual são consagrados aqueles que, segundo o próprio Cascudo, despertavam de diferentes
formas sua memória emocional, seus ‘santos do oratório doméstico’
167
. A ligação que
Cascudo mantinha com a Igreja e com os seus membros era notória e assumia singular
164
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 05, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
165
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de
Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 13-14.
166
Ibid., p. 12.
167
CASCUDO, Luís da Câmara. O Tempo e Eu: confidências e proposições. Natal, RN: Imprensa Universitária,
1968. Fichamento feito por Silvia Ilg Byington, p. 17 e p. 15. Disponível em: <http://www.modernos
descobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
58
importância em sua vida. Em O Tempo e Eu, Cascudo evidenciaria sua formação religiosa, ao
declarar: “nasci numa sexta-feira, dia de São Sabino
168
, 30 de dezembro de 1898, às 5,30 da
tarde.” (grifo nosso).
É fundamental ter presente que o que já foi escrito ou dito sobre Cascudo, em grande
medida, deriva do que ele deixou escrito sobre si e sobre o que queria que fosse lembrado,
como fica evidenciado neste depoimento:
Compreendi minha vida e vivo a minha vida. Não vivi a vida dos outros.
Estudei o que amei. Pesquisei e discuti sobre assuntos que queria escrever. O
comum é aparecer uma novidade e o sujeito largar o que está fazendo e fazer
a novidade... O segredo da vida está no entendimento. Se você não entende a
vida, torna-se desajustado. É o professor querendo ser senador e o Senado se
interpondo entre ele e a cátedra. Fui só professor na vida. Foi grande o
número de convites para sair de Natal. Casei com a moça que queria e fui o
quis ser, um professor
169
.
Apesar da insistência e até veemência com que afirmava ter sido “apenas” um
professor, em alguns momentos, Cascudo chegou a reconhecer a importância de seu trabalho
como historiador: “eu sou autor da História do Rio Grande do Norte, História da cidade do
Natal, de Mossoró, Santana do Mattos, de Cerro Corá”
170
. Mas, segundo um de seus
biógrafos, Américo de Oliveira, é a sua face “memorialista” que nos permite melhor avaliar
esse processo de construção de uma determinada memória pelo próprio Cascudo: “Um pouco
mais ou um pouco menos, mas por quase todos os seus livros, o memorialista Cascudo
sempre se denuncia. Raro aquêle [sic.] volume em que não afloram um detalhe, um episódio,
uma evocação, da infância, da mocidade, da idade madura, o Pai, a Mãe, a Espôsa [sic.], os
168
São Sabino foi bispo da cidade de Piacenza na Itália no século IV e se distinguiu pelo seu saber, pelo zelo
pastoral e pelas suas exímias virtudes. Realizou alguns milagres, e dentre eles, um foi destacado pelo Papa
Gregório Magno, o de ter salvado a cidade de Piacenza da enchente do Rio Pó. Sabino sempre se manteve
próximo dos fiéis e foi considerado por muitos deles como um pai caridoso, penitente, humilde, que andava
pelas ruas com roupas simples e, às vezes, sem sapatos. Informações obtidas em: PARÓQUIA de Santo
Afonso. Disponível em: <http://www.paroquiadesantoafonsomariadeligorio.org. br>. Acesso em: 24 ago.
2008. Cascudo tinha tão presente o calendário católico de homenagem aos santos que ao referir-se aos dias
do calendário civil acabava por vinculá-los, daí a menção feita ao dia de São Sabino.
169
Última entrevista concedida por Cascudo ao jornalista Osair Vasconcelos publicada no jornal Diário de Natal
em 11 de junho de 1986 apud SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal,
RN, n. 6, 03 fev. 1999. DN-educação, p. 114. Projeto Ler.
170
LYRA, Carlos. Cascudo as razões de minha preferência. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN,
ano 2, n. 3, p. 58, 1998. Entrevista concedida ao autor em: 19/08/1976.
59
Filhos (completados agora, nesta sua verde velhice, pela graça e a glória dos netos), os
Amigos, lugares por onde andou, cenas e ocorrências que viveu ou de que participou”
171
.
Mas, como bem lembrado por Walter Benjamin: “O importante para o autor que
rememora, não é o que ele viveu, mas o tecido de sua rememoração, o trabalho de Penélope
da reminiscência”
172
. E é sobre uma das variáveis deste delicado e ininterrupto “trabalho de
Penélope” que nos debruçaremos nos próximos subcapítulos.
2.4 O memorialista e os sustentáculos da memória cascudiana
O Câmara Cascudo que apresentamos nesse subcapítulo é aquele cuja memória não foi
perpetuada apenas por estudiosos de sua terra, mas aquela que é evocada através de sua
presença
173
nos mais variados recantos da capital. Ao percorrermos a cidade do Natal, pode-se
constatar que a produção cascudiana tem sido usada para solidificar sua memória, numa
tentativa de anular o tempo, fazendo com que o Cascudo historiador e homem de fé se
“encontrem perpetuados nesse espaço do eterno”
174
.
O texto de apresentação do Memorial Câmara Cascudo que pode ser acessado no site
da Fundação José Augusto
175
corrobora esta constatação. Dele depreende-se a existência de
um culto à memória de Cascudo pelo Governo do Estado, decorridos já 22 anos de seu
“encantamento”, com destaque para a importância desempenhada pelo Memorial Câmara
Cascudo, o mais notório e emblemático dos lugares de memória
176
:
171
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1969. p. 229.
172
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1, p. 37.
173
Entendemos que a presença de Cascudo na história de Natal e do Rio Grande do Norte ultrapassa os
limites de uma presença física, pois apesar de passados já 22 anos de seu falecimento, sua “presença”
permanece viva e atual. Um exemplo disto é a obra História da Cidade do Natal que Luís da Câmara
Cascudo escreveu e que é, ainda hoje, referida como a oficial e a mais importante para o Governo do Estado
do Rio Grande do Norte e para algumas instituições como a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras e o
Instituto Histórico do Rio Grande do Norte. Ao fazermos uma pesquisa sobre a cultura do Rio Grande do
Norte no site oficial da Fundação José Augusto, constatamos que o historiador de referência é Câmara
Cascudo e a obra indicada é Historia da Cidade do Natal.
174
SALES NETO, Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara Cascudo: um homem chamado cidade. 2008. 56 f.
Qualificação (Mestrado em História) -- Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, RN, 2008.
175
A Fundação José Augusto desde 1963 é o órgão responsável pela política cultural do Governo do Estado, está
presente na vida cultural e artística do Rio Grande do Norte.
176
Entendemos os lugares de memória como os sustentáculos que garantem que a memória não seja esquecida,
como os grandes responsáveis para que esta esteja sempre em movimento e sempre viva. Cf. NORA, Pierre.
Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São Paulo, n. 10, p. 7-28, dez., 1993.
60
Memorial Câmara Cascudo Câmara Cascudo é figura célebre da pátria
Potiguar. Maior historiador e folclorista do nosso Estado, seu memorial
conta com um acervo de cerca de 10.000 livros, móveis, cartas e documentos
que retratam e relembram sua trajetória. O local designado pelo Governo do
Estado para abrigar o Memorial Câmara Cascudo é uma construção do
século XVIII erguida para servir de sede ao Real Erário. Foi reconstruído em
1875 para servir à Tesouraria da Fazenda. Já serviu também para uso do
Quartel General do Exército Nacional. O Memorial normalmente é sede do
Encontro de Cultura Popular, que acontece durante as comemorações da
Semana do Folclore, com montagem de palco em frente ao prédio para
apresentações de grupos folclóricos. A biblioteca do Memorial é aberta aos
pesquisadores, mas não faz empréstimo externo porque são livros, alguns
muito raros, do acervo do escritor
177
.
Também o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte remete à importância
de Câmara Cascudo como intelectual do Estado. Na mais antiga instituição cultural do Estado, o
“mestre” Cascudo que “se encantou” é cultuado até os dias de hoje. Diante dessa constatação,
somos levados a concordar com Regina Abreu, quando ela afirma “que as homenagens póstumas
recriam a pessoa no templo da memória”
178
, nesse caso, esse templo seria o próprio IHGRN. O
próprio Cascudo, referindo-se ao IHGRN, escreveu: “O Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte não teve, em sua história, senão os elementos mais altos da dignidade cultural do
mundo. Foi à Casa da Justiça. Hoje é a Casa da Memória
179
. (grifo nosso).
Compreendemos que no campo da memória, os contornos do sujeito são delimitados,
fundamentalmente, a partir das construções póstumas. A confecção de máscaras mortuárias,
os discursos necrológios proferidos por ocasião do enterro e a produção de biografias são
algumas das formas empregadas para manter viva a memória do indivíduo. Memória que,
diga-se de passagem, é construída item por item
180
.
Em relação a sua máscara mortuária
181
, sabe-se que foi doada ao IHGRN em 1994, por
seu autor, o Dr. Jório Marques de Souza
182
, o que revela o poder que detinha o IHGRN, à
177
MEMORIAL Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.fja.rn.gov.br/fja_site/navegacao/ver_memorial.
asp?idmemorial=6>. Acesso em: 03 ago.2008.
178
ABREU, Regina. A fabricação do imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro:
Rocco; Lapa, 1996. p. 67.
179
Ver anexo A (Foto do texto que compõe a placa da entrada do IHGRN).
180
Ibid., p. 67.
181
Confeccionada em gesso, a partir do molde tirado do rosto do cadáver, a máscara mortuária constitui uma homenagem póstuma,
cujo sentido consiste em reter o derradeiro momento do sujeito limiar entre a vida e a morte, divisa entre dois tempos: o da vida
na terra e o da eternidade. O sentido etimológico de máscara mortuária inclui a idéia de disfarce e da aparência enganadora.
Apesar da fidelidade aos traços do indivíduo representado, trata-se de uma representação, a confecção de um artista, a partir da
utilização do gesso. Uma vez morto o indivíduo, por determinação dos deuses, inicia-se o processo de sua recriação pelos
homens. Ibid., p. 67-68.
182
As informações sobre a doação da máscara podem ser encontradas no artigo MÁSCARA Mortuária de Cascudo é doada ao
Instituto Histórico. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte: 1994-95-96, Natal, RN, v. 87, p. 77-
78, 2001. (Edição comemorativa do V Centenário do Rio Grande do Norte). Ver anexo A (foto da máscara mortuária com a
legenda informativa).
61
época, já que não foi encaminhada ao Memorial Câmara Cascudo, local destinado a ser o
principal guardião da memória
183
do intelectual potiguar.
Também no IHGRN, encontramos outro símbolo de culto à memória de Cascudo: uma
escultura de sua mão direita feita em argila em 1951, doada ao Presidente do IHGRN, Enélio
Lima Petrovich em 1991
184
.
Espalhadas pelo Instituto, encontramos inúmeras fotos das mais
diversas de Câmara Cascudo, acompanhadas de frases de sua autoria, que demarcam e
guiam os caminhos de quem percorre o local. Os percursos de visitação parecem nos sugerir
uma espécie de diálogo com Cascudo, já que dirigem nossa atenção não apenas para a
contemplação de sua história, mas também para seus ensinamentos. No IHGRN encontramos,
ainda, uma estante específica para reunir o conjunto de sua obra, o que não impede que em
outras salas do Instituto sejam encontradas referências a Cascudo ou a livros de sua autoria.
O Memorial Câmara Cascudo localiza-se no centro histórico da cidade e é um dos
locais de maior poder simbólico
185
em termos de história, além do IHGRN e do Palácio do
Governo. Encontra-se em lugar privilegiado, numa das principais praças históricas da cidade,
sendo, por isso, ponto obrigatório das excursões de turismo que percorrem as atrações
históricas e culturais da cidade. É também local de visitação de grupos escolares e de
investigações realizadas por universitários e por pesquisadores, pois sua biblioteca possui um
importante acervo aos interessados na vida e na obra de Câmara Cascudo. De acordo com
pesquisas recentes, como as realizadas pelo grupo de bolsistas coordenado pela professora
Margarida Neves, o Memorial funciona como o local de maior veneração à memória de
Cascudo na capital norte-rio-grandense, por se constituir em um espaço que:
[...] Todos os visitantes que são levados para percorrer o Forte dos Reis
Magos, marco fundacional da cidade situado na embocadura do Potengi; o
Centro de Turismo no antigo presídio da cidade, onde se abriga o principal
mercado de artesanato; a linda Igreja do galo e antiga Catedral natalense,
conhecem também a grande homenagem da cidade a seu filho mais ilustre e,
levam como testemunho de que estiveram em um dos cartões postais da
cidade, fotos em frente ao prédio do Memorial e junto ao Monumento em
bronze. [...] O Monumento erguido na praça em frente à entrada
183
Pensamos no Memorial como um dos mais significativos lugares de memória de Cascudo, um verdadeiro Guardião de memória
que guarda/possui as “marcas” do passado sobre o qual se remete, tanto porque se torna um ponto de convergência de histórias
vividas por muitos outros do grupo (vivos e mortos), quanto porque é o “colecionador” dos objetos materiais que encerram
aquela memória. Os “objetos de memória” são eminentemente bens simbólicos que contêm a trajetória e afetividade do grupo ou
do indivíduo. [...] Ser guardiã da memória torna-se um projeto. Cfe. GOMES, Ângela de Castro. A guardiã da memória. Acervo-
Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1-2, p. 17-30, jan./dez. 1996.
184
Ver anexo A (foto da mão com legenda).
185
No sentido de ser como um: “poder mágico do criador que é o capital de autoridade associado a uma posição que não poderá
agir se não for mobilizado por uma pessoa autorizada, ou melhor, ainda, se não for identificado uma pessoa e seu carisma, além
de ser garantido por sua assinatura”. Cfe. BOURDIEU, Pierre. A produção da crença: contribuição para uma economia dos
bens simbólicos. São Paulo: Zouk, 2002. p. 154.
62
principal do Memorial não deixa duvidas sobre o lugar e a estatura de
Câmara Cascudo nessa cartografia simbólica. Fundido em bronze,
forjado em tamanho natural, erguido por uma gigantesca mão, está
entronizado em Praça Pública o grande herói da Literatura Potiguar.
[...] Como os grandes heróis homenageados nas praças das cidades, Natal
homenageia o homem que inscreveu seu nome no cenário letrado do país e
Internacional. [...]
186
. (grifo nosso).
Ao nos depararmos com o Memorial Câmara Cascudo, no centro de Natal, sentimos o
quanto o capital simbólico acumulado por Cascudo foi construído de forma densa e estável,
fazendo com que ele seja tomado como símbolo ímpar da “cultura letrada” do Estado, um
verdadeiro modelo de homem de letras. Refletindo a importância dada a ele, o prédio que é a
sede do Memorial desde sua fundação até hoje é apontado como um dos mais importantes da
cidade em termos de valor patrimonial histórico, tendo sido doado pelo Governo do Estado para
tal finalidade. A doação evidencia com nitidez a percepção que o poder estadual tinha de
Câmara Cascudo e do Memorial, cuja função seria a de preservar a memória desse símbolo
estadual. Esta sua condição de símbolo de identificação com o Rio Grande do Norte pode ser
observada na afirmação feita por Mário de Andrade, quando de sua primeira viagem a Natal, em
1927: “E a entrada linda de Natal pelas doze horas. Manso o Potenji [sic]. Forte dos Reis Magos a
bombordo. Estamos enfim no Rio Grande do Norte, propriedade do meu amigo Luís da
Câmara Cascudo [...]”
187
. (grifo nosso).
O Memorial foi idealizado pela Fundação José Augusto órgão responsável pela ação
cultural do Governo do Estado e inaugurado em 1987, se constituindo numa das homenagens de
maior valor simbólico e cultural para o filho ilustre Câmara Cascudo
188
. Desde sua fundação, o
Memorial é presidido por Daliana Cascudo, primeira neta de Luís da Câmara Cascudo.
186
Cf. FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de Câmara Cascudo em Natal. Relatório de
bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004. Não paginado. Disponível em: <http://www. modernosdes
cobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
187
Mário de Andrade passou por Natal em sete de agosto de 1927, ao retornar de uma viagem à região Norte do Brasil e à
Bolívia, ocasião em que conheceu Cascudo pessoalmente. Anos depois, regressaria ao Rio Grande do Norte,
permanecendo de 14 de dezembro de 1928 a 27 de janeiro de 1929. Apesar de se corresponderem desde 1924, Mário e
Cascudo estreitaram os laços de amizade somente durante essa última visita de Mário a Natal. Acerca da passagem de
Mário de Andrade por Natal, ver ANDRADE, Mario de. O turista aprendiz. São Paulo: Duas Cidades; Secretaria da
Cultura, Ciência e Tecnologia, 1976. p. 191 e 228-306 apud SALES NETO, Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara
Cascudo: um homem chamado cidade. 2008. 56 f. Qualificação (Mestrado em História) -- Departamento de História,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2008.
188
Essa homenagem prestada a Cascudo pela Fundação José Augusto através Governo do Estado tem um valor
inestimável, a começar pelo prédio cedido para a instalação do Memorial. Sua construção data do século XVIII, tendo
servido de sede ao Real Erário da Capitania; foi reconstruído em 1875, quando assumiu sua feição neoclássica e passou a
servir à Tesouraria da Fazenda. Posteriormente, abrigou o Quartel General da 7ª Região Militar do Exército Nacional
sediado em Natal. Essas informações sobre o prédio foram obtidas em FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o
Letrado: a monumentalização de Câmara Cascudo em Natal. Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-
RJ. jun. 2004. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
63
O acervo que encontramos no Memorial Câmara Cascudo nos faz pensar que a idéia
que Cascudo plantou durante toda sua vida, a de cultivar seus conhecimentos, sua obra e
manter sua presença em constante evidência, se mantém com a ajuda de sua neta, Daliana.
Sobre ela, Cascudo costumava falar com ternura e orgulho, alegrando-se ao contar alguns
curiosos episódios, como aquele em que a neta o presenteou com uma “varinha de condão”, o
que, segundo ele, o tornava o único avô do mundo a ter ganho algo assim de presente. Este
episódio nos leva a pensar numa espécie de magia às avessas, pois a menina que o presenteou
com a varinha é quem hoje feito as fadas madrinhas que atendem aos desejos nos contos
infantis garante a preservação do local e da memória do avô
189
.
Acreditamos, sem dúvida, que o Memorial deva ser percebido como um monumento
de culto ao seu patrono, como definido por Jacques Le Goff, uma vez que o monumento é um
sinal do passado, uma marca, é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a
recordação
190
. Estas funções são plenamente desempenhadas pelo Memorial, pois nele sua
vida está em permanente evidência, através de exposições, cujos temas têm relação direta com
a vida e a obra de seu homenageado
191
.
Apesar de existirem muitos outros lugares de memória
192
dedicados a Câmara
Cascudo, o Memorial tem sido o mais ativo dentre todos, e o mais identificado com o culto a
sua memória. Enélio Petrovich, em artigo que homenageia Cascudo na Revista do IHGRN,
por ocasião de sua morte, chegou a afirmar:
Em Natal, nos informa, pelo telefone, o jornalista e consócio Paulo Macedo,
presidente da Fundação ‘José Augusto’, órgão do governo do Estado, que a
Casa da Cultura será, agora, O Memorial Câmara Cascudo, encravado na
chapada onde nasceu a cidade presépio, ao lado do nosso IHG/RN e da
Catedral Metropolitana. Mais adiante, do Palácio Potengi. É um monumento,
189
Este episódio nos leva a pensar na idéia de Michael Pollack acerca da intencionalidade na construção da
memória. Ao caracterizar a relação entre memória e identidade, Pollack afirma que a memória “é um
fenômeno construído (consciente ou inconsciente), como resultado do trabalho de organização (individual ou
socialmente). Sendo um elemento constituinte do sentimento de identidade, tanto individual como coletiva, é
também um fator extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou
de um grupo em sua reconstrução de si”. POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos
Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
190
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In:______. História e memória. Campinas: Ed. da UNICAMP,
1992. p. 535-553.
191
Só no primeiro semestre de 2008, o Memorial sediou uma exposição e apoiou outra. A primeira, em abril,
intitulada Cascudo: o olhar do etnógrafo (apoiada pelo Memorial e sediada no Museu Câmara Cascudo) e a
segunda, em julho Câmara Cascudo, cada dia mais vivo: 30 de julho -“Encantamento”. (sediada no
Memorial).
192
Consideramos como tal a sua Biblioteca particular Babilônia (hoje preservada no Memorial) , o Memorial
Câmara Cascudo, a Pedra do Rosário, o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, a
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, a Faculdade Câmara Cascudo, a Biblioteca Pública Câmara
Cascudo, o Núcleo Câmara Cascudo de Estudos Norte-Rio-Grandenses, o Museu Câmara Cascudo e etc.
64
corpo inteiro do mestre de todos nós, que fazemos parte das instituições
culturais do Estado norte-rio-grandense [...]
193
.
Há outros lugares de memória, dentre os muitos, que merecem ser destacados, como a
Pedra do Rosário
194
, que guarda um traço forte do catolicismo de Cascudo, e a casa em que
viveu e produziu Câmara Cascudo, localizada na atual Avenida Luís da Câmara Cascudo
(antiga Avenida Junqueira Aires), e onde funcionará a sede do Instituto Câmara Cascudo
195
.
A Pedra do Rosário
196
, local de grande importância para a história de Natal, pode ser
considerada um lugar de memória que atesta não apenas a forte religiosidade de Cascudo, mas
também a reverência dos natalenses pelos espaços que freqüentava. A placa de identificação
da Pedra do Rosário traz gravada uma frase de Cascudo
197
, e demarca não apenas o prestígio
do intelectual potiguar, mas sua devoção: “aqui deixo o grito de alerta, alerta de canguleiro,
devoto
198
da Padroeira”
199
.
Em depoimento publicado pelo Jornal Diário de Natal, por ocasião do enterro de
Câmara Cascudo, em 1º de agosto de 1986, o professor Ulisses de Góis homem influente,
que gozava de prestígio junto à Igreja do Rio Grande do Norte, e seu amigo particular ,
lembrou que uma de suas principais lutas na juventude havia sido a de ter dado início a “um
movimento para construir a Pedra do Rosário. Era muito católico e sempre esteve ligado
àquele local”
200
. A avaliação feita por Ulisses de Góis vem confirmar a importância que o
193
PETROVICH, Enélio Lima. Necrológio de Luís Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 180, 1985-1986.
194
Trata-se do local onde encalhou um caixote contendo a imagem de Nossa Senhora da Apresentação, Padroeira de
Natal, no dia 21 de novembro de 1753. Localiza-se às margens do Rio Potengi, e bem próximo encontra-se a Igreja
de Nossa Senhora do Rosário. É o templo mais antigo da cidade. Apesar de não ter sofrido grandes alterações ao
longo do tempo, as paredes internas do templo foram, há poucos anos, revestidas por uma barra de azulejos. O
local em que a Pedra do Rosário se localiza, no entanto, sofreu grandes alterações.
195
“INSTITUTO CÂMARA CASCUDO: instituição já criada (em outubro de 2007) e em fase de implantação.
Lá funcionará uma instituição que faça jus ao seu patrono e lute pela preservação e divulgação de sua vida e
obra. Nossa intenção é que acabando a restauração da casa, em dezembro de 2008, o Instituto seja
inaugurado”. CASCUDO, Daliana. Instituto Câmara Cascudo [mensagem pessoal]. Mensagem recebida
por <bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 4 ago. 2008.
196
Consta que da Pedra do Rosário se consegue visualizar o pôr- do- sol mais bonito da Capital à beira do Rio Potengi.
197
Fomos informados, já ao final da escrita desse trabalho, que, muito provavelmente, devido às mudanças feitas
no local em que se encontra a Pedra do Rosário uma reforma que, segundo nos relataram, transformou
radicalmente o local , a placa de identificação, inaugurada em 1953 e que tinha como autor Câmara Cascudo,
não se encontra mais no local. SALES NETO, Francisco Firmino. Sobre a Pedra do Rosário [mensagem
pessoal]. Mensagem recebida por <bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 20 jan. 2009.
198
Acreditamos que ao mencionar a “Padroeira”, Cascudo esteja se referindo à Padroeira da Arquidiocese de
Natal, Nossa Senhora da Apresentação. A Pedra do Rosário, segundo a tradição, seria o local em que os
pescadores teriam encontrado a imagem da santa trazida pelo Rio Potengi.
199
Frase da placa de identificação da Pedra do Rosário apud. FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a
monumentalização de Câmara Cascudo em Natal. Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ.
jun. 2004. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
200
Fragmento retirado da reportagem: PERDA Lamentável. Diário de Natal, Natal, RN, p. 6, 01 ago. 1986.
65
catolicismo teve na vida e na formação de Cascudo, acompanhando-o de sua infância até sua
morte. A forte ligação que Cascudo mantinha com a Pedra do Rosário
201
permite que a
percebamos também como um lugar da memória cascudiana, mais um dentre os tantos que
celebram uma memória que se irradia pelas ruas da cidade e reforçam sua condição de
símbolo da cultura do Estado do Rio Grande do Norte.
Também Cascudo construiu para si um “espaço sagrado”, o casarão da Avenida
Junqueira Aires, hoje Avenida Luís da Câmara Cascudo, que deixou de ser apenas a
residência particular de família para se tornar o espaço em que recepcionava seus convidados
ilustres, seus discípulos, alunos e curiosos pela história de Natal e do Rio Grande do Norte.
Nos dias de hoje, ao adentrarmos o casarão, constatamos que as salas que serviram de cenário
para as animadas conversas e para “criativa e intensa” produção de Cascudo, estão revestidas
de assinaturas dos visitantes que por lá passaram, e que muitas vezes, deixaram depoimentos e
saudações a Cascudo. Além disso, na entrada do casarão nos deparamos com placas
encomendadas pelas principais instituições culturais do Estado, como o IHGRN e a Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras do Rio Grande do Norte, em sua homenagem, antes mesmo
de sua morte em 1986
202
.
O casarão
203
da atual Avenida Luís da Câmara Cascudo que, na segunda metade da
década de 1940, passou a ser a residência fixa da família de Cascudo, ainda como
conseqüência do momento difícil vivido no início da década de 1930, se transformaria, anos
mais tarde, no cenário privilegiado de atuação do intelectual, do escritor, do folclorista e do
historiador. Nesse mesmo espaço, porém bastante distante da Babilônia, Cascudo também
desfrutaria de momentos de intenso e terno convívio familiar. Nele, os filhos seriam
educados, os amigos seriam recebidos e os netos chegariam:
201
Entendemos que a Pedra do Rosário possa ser percebida desta forma, por se constituir em local de culto de
devotos da Padroeira da cidade do Natal Nossa Senhora da Apresentação de quem Cascudo era devoto
declarado. Por localizar-se à margem de uma favela Paço da Pátria conhecida por ser violenta, a Pedra do
Rosário não tem podido merecer a atenção de estudiosos e pesquisadores, devido à falta de segurança no
local. A maior afluência à Pedra do Rosário se dá por ocasião da festa da Padroeira, quando os fiéis vão
prestigiar a Santa durante a procissão e a missa que são realizadas no local. A vinculação mais explícita
entre a Pedra do Rosário e Câmara Cascudo pode ser encontrada numa placa de bronze - inaugurada no
local, a 21 de novembro de 1953, - e cuja inscrição “Aqui deixo o grito de alerta, alerta de canguleiro, devoto
da Santa Padroeira" é seguida de sua assinatura.
202
Ver anexo A (fotos das placas no casarão da Av. Luís da Câmara Cascudo).
203
“O chalé que originalmente pertenceu aos pais de D. Dália, a amorosa mulher de Câmara Cascudo, data de
1900 e é um dos poucos remanescentes de um estilo considerado neoclássico na cidade. Na verdade, é uma
construção de arquitetura um tanto híbrida, com seus beirais de madeira trabalhada, seu alpendre que segue a
tradição colonial e seus janelões abertos para a rua. É uma bela casa, o que a destaca diante das outras
construções locais” apud FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de
Câmara Cascudo em Natal. Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004. Não
paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008. Ver
anexo A (foto da Casa de Câmara Cascudo).
66
Uma pequena sala que dá acesso aos quartos da casa mudam e, ao invés de
quadros de pintores nordestinos, retratos do importante círculo de amizade
do escritor e das assinaturas da biblioteca, um outro ambiente começa a se
desenhar, um espaço vedado ao público e destinado à privacidade da família
começa a ser revelado. Nas paredes, o visitante vira apenas retratos do casal,
de seus filhos e netos. Os quartos, pequenos em relação à sala ampla, ao
vestíbulo e a biblioteca, revelam um ambiente simples no qual se
desenrolava o dia a dia da família Cascudo
204
.
Numa das salas do casarão, o visitante encontra uma peça revestida de forte
“simbologia afetiva e simbólica”. Em frente a uma das paredes repleta de fotografias de
Cascudo foi colocada a cadeira que pertenceu a seu pai, o coronel rico que exerceu influência
marcante na vida de Cascudo e que foi presença forte em suas recordações pessoais. Cascudo
se referia a ela da seguinte maneira:
Junto a essa janela, a velha poltrona de meu pai, onde ele costumava sentar,
feita ainda na antiga tração Forca e Luz, pelos operários. Quando ele faleceu,
em 1935, meu sogro passava longas temporadas em nossa casa, na praça sete
de setembro, onde faleceu, numa casa que não existe mais. A poltrona
passou a ser de meu sogro, e hoje, minha, onde faço a revisão nas idéias
mais atrevidas, acomodando-as ao diário
205
.
Em contraste com este ambiente “simples” e “discreto” de convívio familiar, existia
um outro no interior do casarão , que refletia o prestígio do intelectual. Em muitas das
fotografias expostas nas paredes do Memorial, Cascudo aparece em meio aos seus livros, no
seu “espaço sagrado” de trabalho, a Babilônia
206
, reforçando a imagem de intelectual. Nelas
encontramos, também, placas em sua homenagem e assinaturas de ilustres visitantes como as
do presidente Juscelino Kubitshek, de Gilberto Freyre, de Dorival Caymmi e de Mário de
Andrade, entre tantos outros nomes. Algumas das fotos retratam, ainda, Cascudo recebendo as
mais “ilustres” personalidades de sua época, revelando a naturalidade com que transitava pelo
casarão e conciliava o universo íntimo familiar com o universo do homem de letras.
204
FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de Câmara Cascudo em Natal.
Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008. Ver anexo A (foto da Casa de
Câmara Cascudo).
205
CASCUDO, Luís da Câmara. Cascudo e sua Biblioteca. In: LYRA, Carlos. Luís da Câmara Cascudo.
Depoimentos. Natal: EDUFRN, 1999. p. 59-65. Entrevista concedida a Carlos Lyra em 06/12/1974. apud
FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de Câmara Cascudo em Natal.
Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
206
Ver anexo A (foto dele com Sylvio na Babilônia).
67
Revelando ter consciência do valor material de sua Babilônia, Cascudo fazia questão
de divulgar os livros, as obras de arte e as relíquias
207
que havia conseguido reunir, em suas
entrevistas e em seus escritos memorialísticos: “e, neste cantinho, esta imagem de São José de
Botas, datado de 1809. Olha só! Tenho-o como uma peça rara, neste acervo, que nem sei
mais se é acervo meu ou seu, ou do povo, ou do estado. Vamos dizer que me sinto dono e
tomo conta
208
. (grifo nosso).
As fotografias tiradas durante suas viagens de estudo também ocupam lugar de
destaque em seu gabinete de trabalho, como a que realizou à África, e cujas fotografias
motivaram a exposição organizada pelo Memorial e pelo Museu Câmara Cascudo, em abril de
2008, intitulada Cascudo: o olhar do etnógrafo. A abundância de registros fotográficos
sobre suas viagens e sobre seu cotidiano nos leva a supor que Cascudo gostasse de ser
fotografado, chegando, inclusive, a determinar como deveria ser fotografado e o que podia ser
exibido de sua intimidade
209
.
Existem, ainda, outras fotografias que retratam momentos da vida de Câmara Cascudo
e que se encontram na Fundação José Augusto, integrando o acervo de Sylvio Pedroza
210
.
Neste último acervo, localizamos muitas fotografias de Sylvio e de Cascudo juntos
revelando a forte amizade que existia entre eles , bem como outras que registram momentos
mais oficiais, como a da condecoração de Câmara Cascudo por Sylvio Pedroza com a
Ordem do Mérito Militar, em 1954
211
. Esta amizade materializada nas fotografias
transparece também nas cartas que trocaram entre si, e nas quais fica evidente que o
intelectual assumiu a função de “assessor para todos os assuntos” do político potiguar,
condição que parece ter sido útil quando Cascudo precisou obter alguns favores
212
não
necessariamente para si de Pedroza
213
.
207
Dentre as relíquias que integram o acervo, destaca-se uma imagem de São José de Botas, de 1809.
208
LEMOS, Afrânio Pires. Na Cultura popular repousa a grandeza. Revista Século atualidade e cultura. Natal,
RN, ano 1, n. 1, p. 10, 1996. Entrevista com Câmara Cascudo.
209
O acervo fotográfico particular de Câmara Cascudo encontra-se no Memorial, sob os cuidados de sua neta
Daliana Cascudo.
210
Ex-prefeito da cidade do Natal (1946-1950) ex-governador do Estado do Rio Grande do Norte (1951-1955).
Em 1948, como prefeito da capital, nomeou Câmara Cascudo historiador oficial da Cidade. Enquanto esteve
à frente da administração da prefeitura de Natal e no Governo do Estado do Rio Grande do Norte mostrou
grande apreço pela cultura e pela arte potiguar, incentivando e patrocinando artistas e intelectuais. Foi
durante a sua administração que Cascudo teve seus livros História da Cidade do Natal e História do Rio
Grande do Norte, publicados pelos órgãos oficiais. A nomeação de Cascudo como historiador oficial da
cidade Natal será abordada no segundo capítulo dessa Dissertação.
211
Ver anexo A (foto de Cascudo com Sylvio recebendo medalha).
212
Ver anexo A (foto da carta de Cascudo a Sylvio em 1954).
213
Aqui chamamos a atenção para mais uma das várias faces de Cascudo, aquela que as cartas nos revelam e que
são apresentadas de forma bastante panorâmica neste primeiro capítulo.
68
Entre livros, obras de arte e fotografias, o Cascudo intelectual acompanhado de
amigos e seguidores que conheceu nos tempos de juventude e de professor não deixava de
se assemelhar, de certa forma, ao Cascudinho de infância solitária, rodeado de brinquedos e
livros. A maturidade, apesar de não ter conseguido diminuir seu gosto por coleções, parece ter
aprimorado em Cascudo o gosto pelo convívio com os amigos a quem reservava o privilégio
de adentrar na Babilônia:
Entremos no tempo de recordar. Aqui está um velho álbum de fotografias.
Quem está nele? Amigos que tenho por aí. Quero um bem enorme a essas
pessoas, que se tornaram amigas, minhas, eu, um camarada que nunca quis
sair daqui, ir morar na Corte. No máximo, dei meus passeios e ganhei
quantidade de amigos que me enternece. Olhe aqui: Graça Aranha, Mário de
Andrade, Oswaldo, Pagu, Mennotti, Gilberto Freire, Agamenon, Monteiro
Lobato. Djanira, José Mariano, Antônio Carlos, Ministro Renato Almeida,
Ruben Braga, Nilo Pereira, Tarsila e Anita, Di e Pio Correia
214
.
Sobre a relação que mantinha com seus amigos dos mais distantes lugares do Brasil
e do mundo , ele costumava dizer em entrevistas que tinha diferentes tipos de amigos, “quase
sempre sinceros”, “amigos, amigos e mais amigos”
215
. Pessoas que conheceu em vários
momentos de sua vida, no Estado ou em viagens de estudo pelo Brasil e pelo mundo, amigos
que foram seus parceiros na boemia ou em vários de seus trabalhos, que seguiram seus
ensinamentos ou que o ouviam com toda a admiração. Também eles foram, a seu modo, com
seus depoimentos e obras, os produtores de uma memória cascudiana.
2.5 O “provinciano” e o “universal”
Para Afrânio Peixoto, Câmara Cascudo era “um provinciano incurável”, denominação
que foi aceita pelo potiguar: “encontrara meu título justo, real e legítimo PROVINCIANO
INCURÁVEL
216
. Cascudo fazia questão de ser chamado e conhecido como “o provinciano”,
como “o filho do Rio Grande do Norte” que ganhou projeção sem sair de sua terra de origem
214
LEMOS, Afrânio Pires. Na Cultura popular repousa a grandeza. Revista Século atualidade e cultura. Natal,
RN, ano 1, n. 1, p. 13, 1996. Entrevista com Câmara Cascudo.
215
Ibid., p. 13.
216
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 06, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
69
e, sobretudo, como o norte-rio-grandense mais fiel a sua terra. Apesar dos inúmeros convites
para deixar o Rio Grande do Norte, para morar e trabalhar nos “grandes” centros do sul e
sudeste na época, Cascudo resistiu, justificando:
Dois homens quiseram fixar-me fora de Natal: - Getúlio Vargas no Rio de
Janeiro e Agamenon Magalhães no Recife. Jamais os esquecerei, porque
nada pedira. Alguém deveria ficar estudando o material economicamente
inútil. Poder informar dos fatos distantes na hora sugestiva da
necessidade. Fiquei com essa missão
217
. (grifo nosso).
O trecho acima nos revela a importância que Cascudo conferiu a sua opção e, ainda, a
função que atribuiu a si mesmo, a de um informante da distante província para o resto do
mundo. Para alcançar este intento, Cascudo montou uma eficiente rede de comunicação,
mantendo correspondência com os mais diversos endereços e intelectuais do mundo, razão
pela qual recebeu da pesquisadora Vânia Gico a denominação muito apropriada de um
Hermes Universal no Nordeste do Brasil
218
, numa alusão ao mensageiro da mitologia
clássica. A sua condição de Hermes, isolado no Nordeste do Brasil região que, na época, se
encontrava marginalizada em relação às regiões Sudeste e Sul fez com que Cascudo
assumisse com muito mais determinação o desafio de informar.
Ele, no entanto, não se limitou a conhecer o mundo através das notícias que lhe
chegavam através das correspondências. Financiado por amigos e órgãos públicos, realizou
viagens de estudo à África e à Europa, onde fez observações sobre cultura popular, todas
documentadas em fotos e relatórios, que resultaram em livros de reconhecimento nacional
como o livro: História da Alimentação no Brasil
219
, que foi fruto de sua viagem à África.
As correspondências trocadas por Cascudo foram, sem dúvida, determinantes na
construção da sua obra e para as suas relações pessoais e acadêmicas
220
. Foi, muitas vezes,
através delas que o homem de letras pôde se fazer presente entre os demais “homens de
217
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 06, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
218
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 419-431.
219
CASCUDO, Luís da Câmara. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1983.
220
Concordamos com a idéia de que “analisar a correspondência e não outro tipo de documento não é uma
escolha qualquer. Apesar de ser um documento fragmentário, pois não resolve por si só problemas e questões
e, muitas vezes, registra somente uma parte de um dialogo que se perdeu no tempo, tem a vantagem de
revelar um discurso bastante subjetivo” apud LIMA, Patrícia Souza. Correspondência de intelectuais: O
Arquivo Gustavo Capanema como lugar de sociabilidade. Revista Primeiros Escritos, Rio de Janeiro, n. 4,
p. 01, jun., 1999. LABHOI (Laboratório de História Oral e Imagem).
70
letras” de sua época. De acordo com Ângela de Castro Gomes: “o ato de escrever para si e
para os outros atenua as angústias da solidão, desempenhando o papel de um companheiro, ao
qual quem escreve se expõe, dando uma “prova” de sinceridade. Há necessidade e prazer na
troca de cartas [...]”
221
. (grifo nosso). Pensamos que as cartas trocadas por Cascudo se
enquadram nas considerações feitas por Castro Gomes e muitas delas evidenciam a
necessidade que ele sentia de comunicar-se e de ser lido, ouvido e de ter suas cartas
respondidas.
Para além deste aspecto mais subjetivo que se impõe de forma muito significativa
na troca de cartas entre amigos ou correspondentes nacionais e estrangeiros, acreditamos que
uma análise das correspondências escritas por Câmara Cascudo deva considerar o pressuposto
de Chartier de que “os usos do escrito, em todas as suas variações, são decisivos para se
compreender como as comunidades ou os indivíduos constroem representações de seu mundo
e investem de significações plurais, contrastadas, suas percepções e suas experiências”
222
. As
“representações de mundo” contidas nas cartas de Cascudo podem nos auxiliar na
compreensão da personalidade de seu autor e nos revelar aspectos ímpares de sua trajetória.
Segundo Vânia Gico, Câmara Cascudo tinha nas cartas que trocava um importante
suporte para suas pesquisas, uma espécie de fontes de dados, “intercâmbio e registro cotidiano
vivido, numa época em que o correio eletrônico ainda não se instalara na vida das pessoas,
substituindo, muitas vezes, a fortuna das cartas dos estudiosos”
223
. A percepção da
importância que as informações obtidas através das cartas tinham para o seu trabalho pode ser
constatada neste depoimento publicado no jornal A República
224
, em julho de 1943:
Um dos nossos hábitos comodistas é não responder cartas ou retardar
indefinidamente a satisfação desse dever. Há, naturalmente, cartas que só
221
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de
Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 20.
222
CHARTIER, Roger. Avant-propos. In: ______. (Dir.). La correspondance: les usages de la letre au XIXe
siècle. [S.I]: Fayard, 1991 apud GONTIJO, Rebeca. “Paulo Amigo”: amizade, mecenato e ofício do
historiador nas cartas de Capistrano de Abreu. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita
da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 166.
223
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 419.
224
Fundado a 1º de julho de 1889, foi o órgão da imprensa oficial do Estado do Rio Grande do Norte até 1933.
Nele eram publicados os cadernos do Diário Oficial. Cascudo começou a escrever crônicas para este jornal
logo após a falência do jornal de seu pai, A imprensa. De acordo com o livro de Zila Mamede, a primeira
referência a Cascudo no jornal A REPÚBLICA é o artigo: O MAIS ANTIGO MARCO COLONIAL DO
BRASIL, de 06 de setembro de 1928, no qual escreve sobre o Marco de Touros, a partir de uma viagem de
"investigação e pesquisa" que havia feito apud MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida
intelectual 1918/1968. Natal: Fundação José Augusto, 1970. v.1, pt. 1. Bibliografia Anotada.
71
merecem silêncio. Outras exigem o cumprimento imediato. São consultas,
por exemplo, que esclarecerão dúvidas. São informações para quem está
estudando um assunto. Raramente, muito raramente, registro uma falta de
resposta. Houve, entretanto, anos passados, um episódio digno de registro.
Estava escrevendo O MARQUEZ DE OLINDA E SEU TEMPO, que a
“Brasiliana” de S. Paulo publicou. Lá juntando documentos, adquirindo
livros, forjando o ambiente, sem bibliotecas e arquivos. Numa manhã
registrei quatro cartas. Uma para o Prefeito de Polícia de Paris, mr. Chiappe.
Outra para o Príncipe Max de Saxe, professor na Universidade de Basiléia.
Outra para o prof. Fezas Vidal, Reitor da Universidade de Coimbra. A
última, para o Rio de Janeiro, era a mais próxima e mais fácil. Tratava-se de
um exemplar de uma publicação oficial, comprada, dada ou emprestada. O
destinatário, grande político, com uma tradição de polidez e de inteligência,
compreenderia tudo. Recebi respostas da Suíça, da França e de Portugal.
Recebi quanto pedira, relatório, notas, cópias autenticadas, com frases
amáveis e cativantes. Do meu patrício brasileiro, o político amabilíssimo,
nunca chegou as mãos um linha siquer [sic]. Não espero mais porque ele
morreu. Está perdoado e creio que Deus fez o mesmo para com su’alma...
225
.
Ao assinar suas cartas como Luís Natal
226
, Cascudo parece reafirmar não apenas sua
condição de “provinciano”, mas também sua forte ligação com a cidade. Uma cidade que
fazia parte do seu nome. O apego consciente ao provincianismo, contudo, não impediu que as
correspondências promovessem a sua universalização, na medida em que punham Cascudo
em contato com o que ocorria no Brasil e no Mundo.
As inúmeras cartas escritas por Câmara Cascudo atestam seu gosto por essa prática
a de escrevente
227
, que consistia num elo que o aproximava dos demais intelectuais e
personalidades políticas nacionais. Dentre os nomes de seus destinatários mais
renomados, encontramos: Mário de Andrade, Monteiro Lobato, Manuel Bandeira, Carlos
Drummond de Andrade, Nilo Pereira, Cassiano Ricardo e Artur Coelho, entre tantos
outros. Vale ressaltar que essas pessoas não apenas recebiam cartas de Cascudo, como
também lhe enviavam cartas. Deve-se, no entanto, fazer uma distinção entre as cartas que
escrevia:
225
Jornal A República apud GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In:
CONGRESO INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de
Henares. La correspondencia en la Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 423.
226
Ver anexo A (carta a João Lyra quando assinou Luís Natal, no livro Jasmins do Sobradinho.).
227
“O termo escrevente é de Roland Barthes e foi criado para diferenciar do termo escritor (a). O (a) escrevente seria
aquele (a) que usa a palavra para se comunicar, testemunhar, explicar sem a preocupação com a língua. Marina
Maluf, Ruídos da Memória, se utiliza deste termo para pensar suas personagens. BARTHES, Roland. Escritores e
escreventes. In: ______. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1982. p. 31-39 apud PAULA, Débora Clasen
de. Da mãe e amiga Amélia: cartas de uma Baronesa para sua filha (Rio de Janeiro Pelotas, na virada do século
XX). 261 f. Dissertação (Mestrado) Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) - RS. 2008.
72
Entre tantas alternativas que elegia como fonte de pesquisa, uma das mais
importantes foi a sua correspondência. Nominava as cartas
228
em que
solicitava informações de pesquisa aos amigos, colegas pesquisadores e
instituições de “inquéritos diretos”, “cartas perguntadeiras” e
correspondência precatória, como por fim consagrou chamá-la s. Enquanto
suas agendas (cadernetas de notas) guardavam anotações pessoais, as cartas
eram textos sempre destinados aos outros. Mesmo sendo uma característica
comum das cartas, para Cascudo constituíam, uma maneira de mostrar-se a
si próprio, como fez em tantas outras passagens da sua obra. A escrita de si
mesmo, chegou inclusive, a particularizar suas memórias nos livros: O
tempo e eu, Ontem, Na ronda do tempo e Manual do doente aprendiz. Desse
modo, sua correspondência precatória tanto fala do seu cotidiano
particular e da família, quanto da produção da sua obra
229
. (grifo da
autora).
Nesse sentido, concordamos com a idéia de Ângela de Castro Gomes quanto ao
convívio entre intelectuais que as cartas favoreciam:
O convívio entre intelectuais, como a leitura, é fundamental para o
desenvolvimento de idéias e sensibilidades. Para escrever, pintar, compor
etc., o intelectual precisa estar envolvido em um circuito de sociabilidade
que, ao mesmo tempo, o situe no mundo cultural e lhe permita interpretar o
mundo político e social de seu tempo. Por isso afirma-se que não é tanto a
condição de intelectual que desencadeia uma estratégia de sociabilidade e,
sim, ao contrário, a participação numa rede de contatos é que demarca a
específica inserção de um intelectual no mundo cultural. Intelectuais são,
portanto, homens cuja produção é sempre influenciada pela participação em
associações, mais ou menos formais, e em uma série de outros grupos, que
se salientam por práticas culturais de oralidade e/ou escrita
230
.
Apesar de ter sido reconhecido como o provinciano incurável, as cartas nos permitem
dimensionar uma outra face de Cascudo, na medida em que nos revelam a “[...] importância
da troca de correspondência, pois ela pode abarcar tanto os intelectuais reconhecidos como
sociáveis, quanto aqueles cuja preferência é a vida mais reclusa dos gabinetes de estudo e
228
“As cartas consultadas nesta pesquisa são as publicadas ou acessadas por amigos pesquisadores. O grande
acervo epistolar está restrito à família Cascudo em Natal/RN, não se encontrando acessível ao público”. GICO,
Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 422.
229
GICO, Vânia. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO INTERNACIONAL
DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de Henares. La correspondencia en la
Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p. 422.
230
GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In: GOMES,
Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 51.
73
pesquisa. As cartas são, pois, uma prática de escrita que integra a produção de textos de
muitos intelectuais [...]”
231
.
Em algumas de suas correspondências, Cascudo revela a capacidade que tinha para
“negociar” propostas de trabalhos e de propor projetos, como se constata numa carta do final
da década de 1930, mais precisamente do ano de 1937, dirigida ao então Ministro da
Educação no período, Gustavo Capanema. Nela, Cascudo sugere ao Ministro o lançamento de
uma coleção intitulada História do Brasil, na qual cada Estado brasileiro teria narrada a sua
história. O que nos leva a crer que Cascudo já projetava seu papel de historiador do Rio
Grande do Norte no final de 1930
232
.
Entusiasmado com o desafio a que se propôs o de construir uma história do Rio
Grande do Norte , Cascudo realizou inúmeras viagens aos sertões de seu Estado, se
proclamando um “desbravador”, um “documentador”, um descobridor, recuperador e
registrador da cultura popular
233
. Esta fidelidade à terra de origem foi enaltecida por seus
biógrafos e ressaltada como traço significativo da personalidade de Cascudo:
Esta fidelidade de homem e do escritor ao seu burgo originário constitui,
aliás, uma das coordenadas para o julgamento de sua personalidade. Através
das oscilações da fortuna, não cedeu às possíveis injunções. Esta é a sua
Pasárgada, onde é amigo do Rei, mas também de vaqueiros, pescadores,
cantadores, macumbeiros, pretas velhas, seresteiros, contadores de estórias
antigas, gente humilde da praia, do brejo ou do sertão. Esta é a sua
barresiana verdade, pois sua obra tanto se fundamenta na sabedoria dos
livros como na sabedoria do povo
234
.
Estudos mais recentes têm destacado esta característica da vida e da obra de Câmara
Cascudo, como o de Durval Muniz:
231
GOMES, Ângela de Castro. Em família: a correspondência entre Oliveira Lima e Gilberto Freyre. In: GOMES,
Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 51.
232
Ver anexo A (foto da carta de Cascudo a Capanema).
233
O termo cultura popular era definido e empregado por Cascudo, a partir da concepção de que: “cultura
popular é a que vivemos. É a cultura tradicional e milenar que nós aprendemos na convivência doméstica. A
outra é a que estudamos nas escolas, na universidade e nas culturas convencionais pragmáticas da vida.
Cultura popular é aquela que até certo ponto nós nascemos sabendo. Qualquer um de nós é um mestre que
sabe contos, mitos, lendas, versos, superstições, que sabe fazer caretas, aperta mão, bate palmas e tudo
quanto caracteriza a cultura anônima e coletiva apud ANGELO, Assis. O Velho que sabe tudo. Entrevista
com Luís da Câmara Cascudo. Folha de São Paulo, São Paulo, 08 jan. 1979. Folhetim. Disponível
em:<http://www.modernos descobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
234
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1969. p. 15.
74
Tendo estudado em Recife, entre 1924 e 1928, pôde acompanhar de perto o
Congresso Regionalista de 1926 e pôde se tornar membro e representante do
Rio Grande do Norte do Centro Regionalista do Recife [...] Cascudo é mais
um intelectual deste período, que nunca sai da sua vida provinciana. A
exemplo de Gilberto Freyre, a obra de Cascudo é condicionada e limitada
pela realidade e pelas relações que mantém numa sociedade provinciana
235
.
O Cascudo viajante das viagens de estudo pelo interior do Nordeste e pela Europa ,
o intelectual potiguar interessado no universal, que tinha data marcada para voltar à província,
que o reverenciava a cada volta de viagem. Num dos documentos da Academia Norte-Rio-
Grandense de Letras que analisamos, encontramos referências a uma solenidade preparada
pelos amigos e confrades do IHGRN e da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras após
retorno de uma viagem a Montevidéu. Cascudo foi recebido com grande estilo e solenidade e
das várias homenagens a ele prestadas resultou uma publicação para “aclamar” o filho
“ilustre”
236
.
Tanto as viagens de estudo que realizou, quanto as correspondências que trocou com
outros intelectuais e com personalidades do mundo da política favoreceram a constituição de
um certo capital simbólico cascudiano. Foi através delas que o “modesto funcionário público”
não apenas cultivou e alargou relações que garantiram seu prestígio e o sustento de sua
família, como rompeu como os limites do provincianismo. As inúmeras cartas enviadas e
recebidas e as fotografias espalhadas pelo Memorial, mais do que atestar os laços afetivos
que construiu ao longo dos anos, revelam a clara consciência que Cascudo tinha do papel
político que um intelectual exercia.
Sobre a missão a Montevidéu, Cascudo chegou a declarar: “em 1946 fiz parte de uma
comissão enviada pelo Ministério das Relações Exteriores ao Uruguai. Éramos três: Aloísio
de Castro, Angione Costa e eu, único sobrevivente”
237
. Segundo uma de suas biografias, foi
“em reconhecimento à sua cultura, [que] Câmara Cascudo foi convidado pelo Ministro das
Relações Exteriores, Embaixador João Neves da Fontoura, para integrar uma Missão Cultural
Brasileira que visitou Montevidéu, capital do Uruguai, na primeira quinzena de outubro de
1946
238
.
235
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascudo em “As batalhas contra o tempo”:
a biografia histórica de um erudito brasileiro (1898-1986). 2004. Não paginado. Projeto de pesquisa CNPq.
236
Evento que resultou na publicação de: LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal, RN: Centro de
Imprensa, 1947. Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
237
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 06, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
238
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 3, 13 jan. 1999. DN-
educação, p. 47. Projeto Ler.
75
As descobertas que fez e os contatos que manteve durante suas viagens ao exterior
foram lembrados por Cascudo em vários de seus trabalhos, o que denota a importância que a
eles atribuiu. Afinal, “Textos de história são lidos e recebidos como portadores de realidade.
Deles se espera, grosso modo, “a verdade do acontecido”. Narrativas de memória, por seu
lado, correspondem a testemunhos: eu estive lá, eu vi”. São portadores de uma autoridade da
fala, bem se sabe, e mesmo se arvoram ao privilégio de ter a tutela do passado”
239
. Um de
seus biógrafos, Américo de Oliveira, ressaltou a contribuição inegável destes estudos para a
produção cascudiana:
Suas viagens ao exterior, sobretudo a África e Portugal, sempre tiveram
objetivos definidos e temporários: ver, observar, anotar, coligir material. A
elaboração vem produzir-se, porém, aqui, na sua colméia provinciana, matriz
de sua obra generosa e fecunda. E nada lhe faltou, aqui, para erguê-la, com a
segurança da sua importância e da sua perenidade
240
.
Margarida Neves, por sua vez, ao justificar a viagem de Cascudo ao continente
africano, destaca que uma,
reiterada busca o conduz a viajar fisicamente à África à procura das águas
que partem desse continente e desembocam no vasto estuário da cultura
brasileira, assim como o leva a outras viagens, simbólicas desta feita, pela
literatura clássica e pelas tradições de todas as paragens, para nelas achar a
fonte comum do particular amálgama que, para ele, é o Brasil [...]
241
.
Sobre essa viagem à África considerada um dos acontecimentos mais marcantes da
década de sessenta na sua trajetória de intelectual Cascudo chegou a declarar:
Essa viagem se impunha e explica pela necessidade de conhecer a
contemporaneidade da alimentação negra nas áreas da antiga exportação de
escravos para o Brasil. A zona sudanesa está suficientemente analisada, mas
239
PESAVENTO, Sandra J. Palavras para crer: imaginários de sentido que falam do passado. Paris: CERMA/
EHESS, 2006. História Cultural do Brasil (Dossier coordenado por Sandra Jatahy Pesavento 28.01.06).
Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org>. Acesso em: 25 jan. 2009.
240
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1969. p. 15.
241
NEVES, Margarida de Souza. Para descobrir “a alma do Brasil”: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. In:
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Ed.
UniverCidade, 2003. p. 386.
76
a banto, a maior, ficara para mim confusa e de rara notícia positiva. Na
África, ocorre o mesmo caso brasileiro. Grande bibliografia sobre nutrição e
pouco registro sistemático no plano histórico. O debate revolve índices de
vitaminas e rendimentos em calorias. Citam os alimentos ao correr da
discussão sobre os valores dietéticos, sugestões de reformas e as surpresas
do metabolismo negro. Não há uma geografia da culinária africana. Esse foi
o motivo da minha viagem. Os resultados obtidos são de extraordinária
importância para o meu trabalho
242
.
Já referimos a satisfação que Câmara Cascudo sentia em ser um homem de letras
singular, que se dedicava a temas sobre os quais ninguém manifestava interesse. Dentre os de
sua preferência, se encontravam as histórias contadas pelas amas e pelos espetáculos
populares: a feira, o mercado, as procissões”
243
. Numa das entrevistas que concedeu, reiterou
que seus trabalhos decorriam em grande medida do cotidiano, do popular. Isto parece nos
apontar para a necessidade que Câmara Cascudo sentia em se “construir” como diferente e
único no que fazia, o que nos faz corroborar a idéia defendida por Marcos Silva, que, ao
apresentar a obra de Câmara Cascudo, a define como um “oceano de significados”:
Comentar Câmara Cascudo é explorar um oceano de significados e o ato de
nele mergulhar se processa a partir do próprio universo em que se penetra. O
olhar sobre o oceano que parte de um estar em sua profundidade, todavia,
não abole a tarefa crítica, antes a identifica como trajeto que jamais
dispensará faces auto-reflexivas, uma vez que argumentos de seu alvo
também foram, de alguma forma, alicerces do discurso que pretende
percorrê-lo
244
.
Esta percepção do historiador Marcos Silva, um dos estudiosos da temática
cascudiana, também destaca a sua condição de “intelectual provinciano”, que se dedica ao
estudo dos temas populares, sem abandonar os grandes fatos da história do Rio Grande do
Norte. A obra cascudiana nos surpreende pela diversidade temática e pela monumentalidade,
uma vez que seus trabalhos envolvem costumes e tradições populares, fatos históricos e a vida
de personalidades ilustres da História do Brasil e do Mundo. De acordo com Américo de
Oliveira, Cascudo teria tido entre suas preferências “a terra comum, os seus homens e fastos,
242
Entrevista concedida à Revista O Cruzeiro, de 03 de agosto de 1963 apud SOUZA, Itamar de. Câmara
Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 5, 27 jan. 1999. DN-educação, p. 85-86. Projeto Ler
243
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
244
SILVA, Marcos A. da. Câmara Cascudo e a Erudição Popular. Revista Projeto História, São Paulo,
n. 17, p. 317-334, nov. 1998. Trabalhos da memória.
77
os seus atos e legendas, episódios literários ou artísticos”
245
. Durval Muniz, por sua vez,
questiona esta afirmação e propõe a ampliação destas preferências, a partir de uma incursão
na sua vida pessoal, nos títulos que compõem a sua biblioteca, nos roteiros dos lugares que
visitou e nos contatos que estabeleceu e que foram “determinantes” para sua obra:
A doença e a morte, eis os dois temas constantes na vida e na obra de
Câmara Cascudo. Estas duas ameaças supremas e constantes para os corpos,
para seu corpo, vão estar presentes em todos os seus escritos, inclusive em
suas autobiografias de doente aprendiz
246
. Sua obra pode ser entendida como
uma luta constante contra morte, contra o tempo, contra a história, que
produzem a ruína dos corpos e das coisas, que produzem o esquecimento,
outra forma de morrer e a grande doença do mundo moderno, mundo
infectado pelo vírus da novidade e da juventude, pela falta de memória e
desprezo pela tradição
247
.
Os temas sobre os quais se debruçava eram, sem dúvida, uma decorrência das suas
vivências pessoais e dos autores com os quais entrava em contato, através de leitura ou
correspondência, reforçando o quanto é impressionante a versatilidade com que Câmara
Cascudo aborda os temas de sua produção, toda ela testemunhando uma vivência quase
excepcional de sua terra e de sua gente
248
. Deve-se, contudo, reconhecer que sua produção
se caracteriza por um inegável ecletismo, que resultava da enorme capacidade que Cascudo
tinha de à semelhança de um camaleão ajustar-se às situações e de conciliar posições,
como constatado por Durval Muniz:
Embora o tema central de seus escritos fosse a cultura, nunca deixaram de
estar presentes, em suas reflexões, enunciados retirados das teorias raciais e
eugenistas, com as quais tomou contato ainda muito jovem. Mesmo sendo
um crítico acerbo do evolucionismo e do cientificismo do dezenove, tanto
por suas convicções no campo da etnografia, como por sua fé católica, não
deixa de dar importância à raça, às características somáticas, étnicas ou
245
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1969. p. 24.
246
Ver CASCUDO, Luís da Câmara. Pequeno Manual do Doente Aprendiz. Natal, RN: Imprensa Universitária,
1969.
247
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Ágeis, irrequietos e buliçosos: o corpo do povo e outros
corpos na obra de Luís da Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/
durval/index2.htm>. Acesso em: 07 ago. 2008.
248
MATOS, Odilon Nogueira de. Luís da Câmara Cascudo, historiador e folclorista no seu centenário. Revista
Notícia Bibliográfica e Histórica, Campinas, SP, ano, 31, n. 172, p. 3-10, jan./mar. 1999.
78
biológicas na análise, tanto do processo histórico de formação do povo
nordestino, quanto no processo de formação da cultura regional
249
.
Os muitos biógrafos de Câmara Cascudo, como pudemos constatar, têm ajudado a
consolidar esta imagem do intelectual, cuja trajetória foi ímpar, versátil, e até excêntrica no
mundo letrado nacional, reforçando sua condição de autor-monumento
250
.
Ao longo deste capítulo, muitas das faces de Cascudo foram apresentadas ao leitor: a
do menino solitário, a do jovem dado à boemia, a do professor, a do intelectual que fundou a
Academia de Letras do Rio Grande do Norte
251
e foi o “eterno noivo” da Academia Brasileira
de Letras
252
, e a do político conservador. O Cascudo que dizia se realizar nas visitas que fazia
às feiras populares através das quais tinha acesso aos costumes da gente potiguar e nas
aulas de cultura popular que dava sentado numa mesa de bar, foi também o historiador oficial
da cidade do Natal, a capital de seu Estado.
É sobre o Cascudo historiador que foi membro do Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB), sócio efetivo e benemérito do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte (IHGRN) e sócio-correspondente de todos os Institutos Históricos do Brasil
que nos ocuparemos a seguir. No capítulo seguinte faremos uma análise de alguns de seus
principais livros históricos sobre o Rio Grande do Norte e sobre Natal. Também abordaremos
249
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Ágeis, irrequietos e buliçosos: o corpo do povo e outros
corpos na obra de Luís da Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/
durval/index2.htm>. Acesso em: 07 ago. 2008.
250
Nos inspiramos no trabalho de Rebeca Gontijo sobre as biografias escritas sobre Capistrano de Abreu. Ver
GONTIJO, Rebeca. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia. Revista Anos
90 Dossiê História e Memória, Porto Alegre, RS, v. 14, n. 26, dez. 2007.
251
Câmara Cascudo foi o principal responsável pela fundação, em 1936, da ANL-RN, instituição que o elevou,
posteriormente, à condição de imortal norte-rio-grandense. Em uma Acta diurna que escreveu em 1949,
Cascudo ressaltou que: “[...] Em nossa casa, ou melhor na sala e alpendre, fizemos as primeiras sessões
preparatórias, acertando dois pontos essenciais e definitivos. Primeiro: - eu jamais seria presidente da
Academia... Segundo: - aceitaria a secretaria Geral na primeira diretoria. Pedi a Waldemar de Almeida a
hospedagem no Instituo de Música, rua Vigário Bartolomeu, 630. Aí fizemos a primeira eleição, 14 de
novembro de 1936 e que se considerou a fundação. [...] Finalmente, na noite dum sábado, 15 de maio de
1937, no Instituto de Música, declarou-se a Academia instalada regularmente e fiz as comunicações,
desafogado da missão. E historiei a vida da entidade. Um ofício primeiro dirigi ao Governador Rafael
Fernandes. Acusou o recebimento o chefe do seu gabinete, Paulo Pinheiro Viveiros, hoje presidente da
Academia. Esse foi o começo. Hoje é o aniversário do primeiro passo. Como se diz no ATO DOS
APOSTOLOS, não posso calar-me, NON POSSUMUS NON LOQUI...”. Ver mais em: CASCUDO, Luís da
Câmara. Há treze anos... A República, Natal, RN, p. 08, 09 ago. 1949.
252
O fato de Cascudo ser tido como o eterno noivo da Academia Brasileira de Letras se deve à recusa em se
candidatar a ser um dos imortais brasileiros. Dizia ele preferir ser imortal apenas do Rio Grande do Norte e
manter uma relação de noivado eterno com a Academia Brasileira. Em visita ao local, teria afirmado que:
“[...] sabe V. Excia., que eu nesta casa e numa distância de 2.500 quilômetros, vivo aquela figura ideal
portuguesa “lá a sempre noiva”, eu sou o sempre noivo da Academia. A Academia não envelhece, não muda,
sua morfologia airosa e simpática. Eu a acompanho com amor em potencial, orgulhoso dela, sem recalque,
com amor, e com elevação” apud HOLANDA, Aurélio B. de. Visita do escritor Câmara Cascudo. Revista da
Academia Brasileira de Letras. Anais de 1967, Rio de Janeiro, v.117, p.124, jan./jun, 1967.
79
a vinculação que Cascudo manteve com temas ligados à cidade do Natal e ao Rio Grande do
Norte, buscando mostrar como o provincianismo do qual ele dizia ser fruto foi fundamental
em suas produções e o transformou no exímio contador de histórias da historiografia do
Estado potiguar.
80
3 CÂMARA CASCUDO UM HISTORIADOR
“Cascudinho
A você, historiador, deve ser mais ou menos incompreensível que eu não seja guardador de datas”
253
.
Este pequeno trecho extraído de uma carta enviada por Mário de Andrade a Câmara
Cascudo
254
permite inferir que Cascudo já era tido como historiador desde a década de 1930.
Bastante reveladora e passível de explicação é a associação que o literato estabelece entre
ser historiador e ser guardador de datas. Através dela, Mário de Andrade parece sugerir qual a
percepção que Cascudo tinha de história, “com um determinado tipo de história [...] aquela
preocupada, sobretudo com o tempo cronológico e as datações um traço marcante de sua
identidade”
255
.
Antes mesmo de fazer parte do grupo de confrades do IHGRN, Câmara Cascudo se
identificava com as propostas dessa Instituição, o que pode explicar sua projeção no meio letrado
norte-rio-grandense
256
e a plena aceitação da sua produção como historiador.
Curiosamente, uma das faces menos exploradas do intelectual potiguar é, justamente, a
de historiador. Como já apontado, com muita propriedade, por Raimundo Arrais
257
,
apresentá-
lo como historiador, implica escrever sobre um Câmara Cascudo:
253
ANDRADE. Mário de. Carta de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. São Paulo: 22/05/1933. In: MELLO,
Veríssimo de. (Introdução e notas). Cartas de Mario de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte/Rio de
Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas, 1991. p. 128.
254
Para Silvia Byington, as cartas trocadas entre esses homens de letras, além de informarem sobre seus projetos pessoais
projetos iniciados, abandonados ou retomados revelam, sobretudo, o quão intenso e produtivo foi o diálogo que se
estabeleceu entre eles, já que “Muitas dessas idéias, cultivadas a quatro mãos, florescem, posteriormente, nas páginas das
obras consagradas de cada um, sendo incorporadas ao seu fazer artístico e intelectual”. BYINGTON, Silvia Ilg. Prezados
modernistas: a correspondência entre Luís da Câmara Cascudo e Mário de Andrade. In: CHALHOUB, Sidney; NEVES,
Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo A. de M.(Org.). História em cousas miúdas: capítulos de história social da
crônica no Brasil. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2005. p. 493.
255
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São Paulo, n.
24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
Cabe lembrar que durante boa parte da primeira metade do século XX, predominou uma História orientada pelos
pressupostos do Positivismo, e que Cascudo foi por eles significativamente influenciado.
256
Esta projeção individual, se identificando e assumindo as funções do Instituto, nos faz concordar com a idéia explorada por
Francisco Neto, de que Câmara Cascudo pode ser percebido “como um Instituto Histórico à parte, à medida que ele produziu
uma história do Rio Grande do Norte que o próprio Instituto não havia conseguido realizar”. Mesmo “individualmente, mas [...]
contando com o apoio dos jornais locais A Imprensa, A República e Diário de Natal na divulgação dos seus escritos, Cascudo
selecionou e pinçou dos arquivos, antigos moradores da cidade, além de fatos que considerava mais importantes no processo
histórico norte-rio-grandense. Ao longo de toda sua vida, Câmara Cascudo publicou inúmeros artigos em jornais locais,
nacionais e até internacionais. Dentre os jornais locais destaco esses três, nos quais Cascudo possuiu colunas fixas: A Imprensa
(coluna Bric-a-brac), A República (coluna Acta diurna) e Diário de Natal (também coluna Acta diurna)”. SALES NETO,
Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara Cascudo: um homem chamado cidade. 2008. 56 f. Qualificação (Mestrado em
História) -- Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2008.
257
Raimundo Arrais é professor do Departamento de História da UFRN e escreveu alguns trabalhos sobre a vida e a obra de Câmara
Cascudo, tais como, o livro: Crônicas de origem: a cidade de Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20. Natal, RN: Editora
da UFRN, 2005. v. 1, 158 p.; e alguns artigos, como: Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife
Pernambuco, p. 06-21, 31 jul. 2006; além de palestras e cursos, como: Cidade do Natal na Obra de Câmara Cascudo (1920-
1960). 2006 - palestra; Câmara Cascudo, Historiador da cidade de Natal (1920-1950). 2007. (Curso de curta duração
ministrado/Outra).
81
[...] menos invocado, menos conhecido fora e mesmo dentro do meio
acadêmico. Aparentemente um Cascudo menor, o Cascudo historiador da
cidade de Natal, título que se sustenta no exercício de uma atividade a que
ele se dedicou durante décadas [...] Um Cascudo que reivindicou a cidade
como sua própria fonte de aprendizagem e como sua grande leitora: origem e
destinação de sua atividade intelectual
258
.
Ao longo de seus mais de 80 anos, Cascudo produziu cerca de cento e cinqüenta livros,
sobre os mais variados temas. Dentre os que podemos denominar de históricos, destacamos dois
livros: a História da Cidade do Natal (1947) e a História do Rio Grande do Norte (1955), por sua
relevância para esta Dissertação. Cascudo também escreveu artigos alguns dos quais se mantêm
inéditos
259
e outros que foram publicados nas revistas dos Institutos Históricos dos quais fazia
parte como membro efetivo ou correspondente, além de plaquetes, artigos de jornal, palestras e
conferências de cunho histórico, que serão considerados na análise que pretendemos fazer.
Segundo um de seus mais importantes biógrafos, Américo de Oliveira Costa, pode-se
dizer que Câmara Cascudo foi historiador desde a década de 1920, produzindo escritos
históricos até a década de 1960:
[...] ai estão, entre ensaios, biografias e tratados, ‘Lopez do Paraguai’(1927);
‘A Intencionalidade no Descobrimento do Brasil’(1933); ‘O Mais Antigo
Marco de Posse’(1940); [...]; ‘Governo do Rio Grande do Norte’(1939);
‘História da Cidade do Natal’(1947); ‘Os Holandeses no Rio Grande do
Norte’(1951); ‘História do Rio Grande do Norte’(1955); ‘História da
República no Rio Grande do Norte’(1965)
260
.
Também de acordo com Arrais, o Câmara Cascudo cronista desde a década de 1930 já
pode ser percebido como um historiador, sobretudo, se considerarmos as Actas Diurnas
261
,
258
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara Cascudo como
historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
259
Passados vinte e dois anos de sua morte, alguns de seus escritos inéditos vêm sendo descobertos, como os que vieram a compor o
livro No Caminho do Avião, cujos originais se encontravam com um amigo de Câmara Cascudo, no exterior. Esse livro foi
escrito por Cascudo em 1933 e entregue a um amigo, italiano de nascimento e natalense de coração, chamado Rocco Rosso. Não
foi publicado na época, tendo ficado inédito durante todos estes anos. Após o falecimento de Rocco Rosso, o seu genro, Dr.
Miranda Gomes, descobriu o original nos pertences do sogro e encaminhou à família Cascudo. Em 2007, o livro foi publicado
pela editora da UFRN.
260
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao Universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto. 1969. p. 27.
261
O próprio Cascudo explicou o uso do termo Actas Diurnas: “ACTA DIURNA era uma espécie de jornal diário, uma folha
onde os acontecimentos do dia eram fixados pelas autoridades de Roma, para conhecimento do povo. Pregavam-na a uma
parede num dos edifícios do FÓRUM. No ano 131, antes de Cristo, já existia a ACTA DIURNA, informando ao cidadão
romano as ‘novidades’ ou diretivas governamentais. Júlio César, cinqüenta e nove anos antes do nascimento de Cristo
tornou a ACTA DIURNA oficial, de aposição obrigatória num determinado logradouro público. Conservo o título em
latim. Por isso aparece o ACTA com a segunda consoante do alfabeto. ACTA significa, no latim, ações, obras, feitos,
façanhas. DIURNA é o que se pratica sob o sol, no espaço de um dia, ou diariamente”. CASCUDO, Luís da Câmara. O
que quer dizer “Acta Diurna”? Diário de Natal, Natal, RN, 03 ago. 1943. Acta Diurna. Disponível em: <
http://www.memoriaviva.com.br/ cascudo/ index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
82
publicadas nos jornais natalenses como A República e o Diário de Natal
262
, e nas quais enfoca
a história da cidade do Natal: “era nos refugos que estava o interesse de Cascudo. Refugos da
modernização: naqueles pontos em que a cidade antiga sobrevivera, o historiador e o
folclorista iriam se encontrar, salvaguardadas, as tradições orais”
263
.
Assim, a trajetória de historiador do mais ilustre potiguar se definiu a partir do contato
com a documentação existente nos arquivos norte-rio-grandenses:
[...] há que se notar a ingratidão da tarefa que Cascudo enfrenta ao se
dedicar ao passado da cidade e da província, especialmente devido ao
estado precário dos arquivos históricos do Estado. Daí o principal veio
de conhecimento de Cascudo ter-se dirigido não para a história, mal
servida de documentos escritos, mas para o abundante banquete da
etnografia, que podia se refestelar com as fontes das tradições
populares [...] podemos ver aquela tendência comum aos livros de
Cascudo, de descrever coletividades [...] o historiador cede facilmente
o lugar ao folclorista
264
.
Como bem observado por Michel de Certeau, além das escolhas e caminhos que um
historiador trilha para desenvolver seus trabalhos, seu discurso é grandemente influenciado
pela relação que estabelece com seus pares, pois
Certamente não existem considerações, por mais gerais que sejam, nem
leituras, tanto quanto se possa estendê-las, capazes de suprimir a
particularidade do lugar de onde eu falo e do domínio por onde conduzo uma
investigação. Essa marca é indelével. No discurso onde faço representar as
questões gerais, essa marca terá a forma do idiotismo: meu dialeto demonstra
minha ligação com um certo lugar
265
.(grifo do autor).
Essas reflexões de Michel de Certeau nos instigam a refletir sobre a importância que
tiveram para Cascudo as passagens pelos colégios religiosos, pelo Atheneu, pela Faculdade de
262
Na coluna Acta diurna, publicada a partir de 1939, a cidade do Natal aparece como a temática preferencial. De tempos em tempos,
no entanto, a coluna passava a denominar-se Respondendo, e através dela, Cascudo esclarecia as dúvidas dos leitores sobre a história
do Rio Grande do Norte. Ver SALES NETO, Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara Cascudo: um homem chamado
cidade. 2008. 56 f. Qualificação (Mestrado em História) -- Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do
Norte, Natal, RN, 2008.
263
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara Cascudo como historiador da
cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
264
ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE, ano 4, n. 48, p. 14, ago. 2006.
265
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Org.). História: novos problemas.
Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 17.
83
Medicina do Rio de Janeiro e pela Faculdade de Direito do Recife
266
. Em relação a essa
última instituição, é possível afirmar que os contatos que Cascudo manteve com outros
acadêmicos, professores e intelectuais foram determinantes para sua carreira
267
. Além dos
laços de amizade com Joaquim Inojosa, seu colega de pensão durante os tempos da Faculdade
de Direito, Cascudo pôde conviver de perto com alguns intelectuais recifenses como Lucilo
Varejão, Mario Melo e Gilberto Freyre. Entre seus professores destacavam-se algumas
importantes personalidades do Recife na época como Netto Campello, Odilon Nestor,
Gervásio Fioravanti. Uma nota de agradecimento, divulgada pelo jornal A Imprensa, em 1922,
refere a boa acolhida dos pernambucanos a Luís da Câmara Cascudo, o Diretor do jornal A
Imprensa na época:
O meio intelectual recifense distinguiu o escritor patrício, pelos seus
representantes mais autorizados com demonstrações honrosas que muito nos
sensibilizam por se refletirem sobre a nossa mentalidade, de que Luís
Cascudo é o expoente entre os da sua geração. Sem propósito de declinar
nomes sempre mencionaremos pelo seu valor sem (sic) duas opiniões os de
Mário Sette e Lucilo Varejão, romancistas ilustres, [...], Mário Mello (sic),
Rodolfo Lima, historiógrafos, [...], todos cercando o nosso confrade das mais
penhorantes demonstrações de estima e admiração, a que nos confessamos
gratos
268
.
De acordo com a professora Vânia Gico
269
, Cascudo foi um intelectual de seu tempo, o
que pode ser evidenciado na sua ligação com o poder estabelecido, apesar de, curiosamente,
se dizer apolítico, postura que era bastante comum entre os intelectuais do período, como
262
Cabe lembrar que na primeira metade do século XX, período em que Câmara Cascudo estava em pleno processo de
aprimoramento intelectual, as profissões liberais como Medicina e Direito eram destinadas aos filhos da elite brasileira.
Nas escolas brasileiras de Direito, o darwinismo social e o racismo científico faziam parte do currículo, sendo
considerados fundamentais para o desenvolvimento cultural e econômico brasileiro. Os quadros do governo Vargas foram
compostos por pessoas que, além de integrarem essa elite, haviam sido fortemente influenciadas por essas ideologias
ensinadas nessas escolas, sobretudo na de Direito. Analisando por esse viés, podemos entender a postura racista e a
restrição à imigração judaica que dominaram a mentalidade da intelectualidade brasileira no período.
267
Nos apropriamos da reflexão de Durval Muniz sobre a influência que a Faculdade de Direito e os momentos vividos por
Cascudo em Recife exerceram na obra que ele escreveu. Segundo Durval, Câmara Cascudo “como a maioria de sua
geração cursou a Faculdade de Direito do Recife, tendo oportunidade de aí estar no momento de ebulição do Movimento
Regionalista e Tradicionalista, encabeçado por Gilberto Freyre, que foi fundamental na construção da idéia de Nordeste.
Tendo estudado em Recife, entre 1924 e 1928, pode acompanhar de perto o Congresso Regionalista de 1926 e pôde se
tornar membro e representante no Rio Grande do Norte do Centro Regionalista do Recife, fundado no ano de sua chegada
à cidade. Como nos fala Sérgio Miceli, Cascudo é mais um intelectual deste período, que nunca sai da sua vida
provinciana. A exemplo de Gilberto Freyre, a obra de Cascudo é condicionada e limitada pela realidade e pelas relações
que mantém numa sociedade provinciana”. In: ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascudo
em “As batalhas contra o tempo”: a biografia histórica de um erudito brasileiro (1898-1986). 2004. Não paginado.
Projeto de pesquisa CNPq.
268
LUÍS da Câmara Cascudo. A Imprensa, Natal, RN, p. 01, 13 set. 1922.
269
Ver mais em GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: itinerário de um pensador. 1998. Tese (Doutorado em
Ciências Sociais) - Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC). São Paulo, 1998.
84
Gilberto Freyre e Jorge Amado. Além disso, Câmara Cascudo tratava a história de maneira
descritiva, se restringindo à descrição dos fatos, sem apresentar uma visão crítica, concepção
que caracterizava a historiografia de sua época.
A concepção de história presente em seus trabalhos foi bem apontada por Arrais:
O trabalho de artesão solitário que Cascudo realizou sobre os documentos
serviu a ele mesmo, alimentando os livros que o projetaram como intelectual
para além do estreito círculo da província. De fato, ele se distancia da figura
do erudito solitário, anônimo e desprendido, que consome seus dias no
silêncio de organizador de arquivos para servir aos pesquisadores. Distancia-
se também da figura do historiador que teoriza (que dá aos acontecimentos
históricos um ordenamento e uma lógica, ou, para adotarmos o modo de
dizer de Cascudo, estabelece um ‘julgamento’)
270
.
Acreditamos que esta avaliação feita por Arrais permite a identificação de uma
aproximação entre o modelo cascudiano e o modelo de Heródoto, na medida em que para o
historiador grego:
História quer dizer originalmente ‘busca, investigação, pesquisa’; então o -
historiador, do ponto de vista etimológico, é uma pessoa que se informa por
si mesma da verdade, que viaja, que interroga, em vez de limitar-se a
transcrever dados à sua disposição e repetir genealogias, cronologias e
lendas, ou compilar registros relativos à fundação das cidades, tudo com o
intuito exclusivo de satisfazer a curiosidade ingênua de um público ainda
pouco exigente sem estabelecer a menor distinção entre acontecimentos reais
ou relatos imaginários, entre fatos ou peripécias fantásticas
271
.
Câmara Cascudo seguiu, sem dúvida, a tradição deixada por Heródoto, ao considerar
como ele que uma das tarefas do historiador é a de “salvar os feitos humanos do
esquecimento”
272
. Esta posição viria a ser reafirmada em seu discurso de posse na Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras, em 1943: “a História é uma capitalização de experiências.
Lembra, aconselha, anima, vivifica. Nenhum poder decretará a imortalidade. Só ela conserva
270
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara Cascudo
como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
271
HERÓDOTO. Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 8 apud
FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo, RS: EDIUPF, 1998. p. 22.
272
Cabe lembrar que na obra de Heródoto que: “Os resultados das investigações [...] são apresentados aqui, para que a
memória dos acontecimentos não se apague entre os homens com o passar do tempo, e para que os feitos maravilhosos e
admiráveis dos helenos e dos bárbaros não deixem de ser lembrados, inclusive as razões pelas quais eles se guerrearam”
HERÓDOTO. Histórias. Tradução de Mário da Gama Kury, Brasília, Editora Universidade de Brasília, 1985, p. 19. apud:
FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo, RS: EDIUPF, 1998. p. 23.
85
e torna presente o milênio”
273
. Em inúmeras entrevistas, conferências e discursos proferidos
ao longo de sua vida, Cascudo voltaria a reafirmar a sua concepção de História e sua
percepção sobre qual era a atribuição de um historiador: “Creio na História, na narrativa de
feitos... Constatar o episódio é o essencial”
274
.
Como bem apontado pelo historiador Marcos Silva, Cascudo:
Como historiador e biógrafo, assumiu freqüentemente posturas mais
convencionais, ligadas a vieses da política oficial. Na condição de intérprete
da história do Brasil, em múltiplos campos de escrita, enfatiza dimensões de
tradição e continuidade milenares, num contexto marcado intelectualmente
pela nostalgia diante da perda das tradições (Freyre) e pela busca de novas
alternativas para a sociedade brasileira (Prado Jr. e Buarque de Holanda).
Sem pretender transformar o autor norte-rio-grandense em suposto
“precursor” de ninguém e preservando diferenças teóricas e políticas, é
importante, todavia, identificar suas sintonias e os confrontos com essas
tendências do debate sobre sociabilidades e culturas, que incluem outros
clássicos brasileiros, como os referidos Freyre, Andrade e Buarque de
Holanda
275
.
Neste capítulo, nos propomos a reconstituir a trajetória de historiador de Câmara
Cascudo, destacando, em primeiro lugar, as marcas do provincianismo presentes em sua
produção histórica para, em seguida, reconstituir e analisar a ligação de Cascudo com o
IHGRN
276
e com os demais institutos históricos regionais
277
, vinculando seus livros e artigos
aos objetivos dessas instituições e ao contexto da produção intelectual brasileira em que se
inserem.
273
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso de posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (1943). In:
NAVARRO, Jurandyr. Oradores Rio Grande do Norte (1889-2000): biografia e antologia. 2. ed. Natal,
RN: Departamento Estadual de Imprensa, 2004. p. 266.
274
CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio e fuga do real. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1974. p. 91.
275
SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP;
Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. xv- xvi.
276
“O IHGRN, uma das entidades culturais mais antigas do Estado, foi fundado em Natal, sob a inspiração do IHGB, a 29 de
março de 1902, durante o primeiro Governo de Alberto Frederico de Albuquerque Maranhão. Naquele momento, havia a
preocupação com a preservação do patrimônio histórico-documental, que possibilitaria a escrita da história de acordo com
os parâmetros da ciência positivista, do encontro da história nacional com a memória social e do testemunho
documental”. ARAÚJO, Marta Maria de; SILVA, Ana Verônica O. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte e o seu acervo documental da História Colonial do Rio Grande do Norte e Brasil. HISTEDBR. 2006. Disponível
em: <www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_082.html> Acesso em: 10 abr. 2007.
277
Analisamos a obra cascudiana produzida no âmbito do IHGRN, do IHGB e dos Institutos históricos regionais, a partir da
perspectiva de Michel de Certeau, para quem os discursos são produtos de um lugar social, que é também um lugar
funcional e estrutural. De acordo com Certeau: “[...] Toda pesquisa historiográfica se articula com um lugar de produção
sócio-econômico, político e cultural [...]. É em função deste lugar que se instauram os métodos, que se delineia uma
topografia de interesses, que os documentos e as questões, que lhes serão propostas, se organizam. CERTEAU, Michel
de. A operação historiográfica. In: ______. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002. p.
66-67. É por partilharmos dessa compreensão de Michel de Certeau que nos detemos nos vínculos mantidos por Cascudo
com IHGRN, na medida em que essa instituição foi um dos principais ambientes da produção histórica cascudiana.
86
3.1 O historiador provinciano
Não podemos esquecer que, muitos anos antes de sua entrada no IHGRN, em 1927, e
mesmo antes de sua filiação ao Instituto do Ceará, em 1924, Cascudo já havia iniciado sua
carreira como escritor, mais precisamente em 1918, manifestando desde cedo seu grande
interesse pela história da cidade do Natal
278
. Esse interesse demonstrado na década de vinte
ganharia contornos de responsabilidade ao final da década de quarenta, quando Cascudo
tornou-se historiador oficial da cidade do Natal. Foi com o reconhecimento público e a
autoridade que a condição lhe dava que ele esclareceria, em 1948, qual deveria ser a
denominação correta da cidade:
Há tempos passados, num dos momentos de bom humor, lembrei-me de
restabelecer a verdade sobre a grafia exata e fiel do nome da capital norte-
rio-grandense. É Cidade do Natal e não Cidade de Natal. Para esse fim
expus a documentação desde Fevereiro de 1614, lembrando ter sido
oficialmente, nas folhas e arquivos, em toda legislação da Província, o título
usado e lógico. Somente no século XX, na primeira década, é que o
pouco caso, a indiferença, a displicência ou a ignorância, permitiram o
Cidade de Natal, novidade em aberração à unanimidade da lei do
costume e de tradição histórica
279
. (grifo nosso).
Além de ser um competente “guardador de datas”, Cascudo não descuidava de
esclarecer aspectos da história de sua cidade, Natal:
[...] Escrevi na HISTÓRIA DA CIDADE DO NATAL, 310: ‘O Pelourinho é
a imagem originária da independência municipalista, a liberdade
administrativa dos Conselhos, a soberania democrática expressa na letra dos
forais’.
[...]
A explicação da História é simples e desconcertante. Natal não tinha o
Pelourinho porque não possuía Governo Civil, administração localista, eleita
278
Desde que iniciou sua atividade como escritor, em 1918, Cascudo se dedicou a descrever e enfocar a cidade do Natal. No
entanto, a princípio, dedicou-se a registrar dados sobre os escritores e os literatos de sua época, e só em menor grau
escreveu sobre os fatos e os personagens do passado de sua terra ao gosto da história produzida naquele momento. Isto
pode ser constatado no livro: Alma patrícia. Ver mais em SALES NETO, Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara
Cascudo: um homem chamado cidade. 2008. 56 f. Qualificação (Mestrado em História) -- Departamento de História,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2008.
279
CASCUDO, Luís da Câmara. Errado é que dá certo. Diário de Natal, Natal, RN, 14 jul. 1948. Acta Diurna.
Disponível em: < http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
87
pelos pelouros na vontade dos Homens-bons. Natal não sendo um
Município, com seu governo, não tinha direito ao Pelourinho, que era
justamente a materialização desse governo, desse direito, dessa regalia. É a
lição da História...
280
.
Cabe relembrar que em seu primeiro livro Alma Patrícia
281
, publicado em 1921,
Cascudo já mostrava interesse pela história potiguar. Rocha Pombo
282
, renomado historiador e
autor do livro História do Rio Grande do Norte (1922), ao escrever sobre Alma Patrícia e
sobre Câmara Cascudo, teceu comentários bastante elogiosos: “por que é que só agora
publicou esse livro? Se me tivesse vindo antes tê-lo-ia como certeza aproveitado na íntegra
para o meu trabalho que está no prelo, sobre o nosso Rio Grande do Norte. Como é bom
estrear assim já seguro e lépido!...”
283
. Esta apreciação reforça nossa convicção de que
Cascudo já era reconhecido como um historiador antes mesmo de sua filiação aos Institutos
Históricos. O primeiro livro de Cascudo foi, no entanto, também alvo de duras críticas, como
esta que destacamos e que foi publicada no jornal A Notícia
284
:
Que valor poderá ter um livro onde se estudam, isoladamente, algumas
personalidades que estão abaixo do nível intelectual do neo-critico do Alma
Patrícia?!... Respondam-nos os que têm consciência e um pouco de
imparcialidade nos seus julgamentos. Em artigos posteriores, analysaremos,
280
CASCUDO, Luís da Câmara. Símbolo jurídico do Pelourinho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 45-47, p. 67-69, 1948-1950.
281
Para Manoel Rodrigues de Melo: “Nesse livro, destacam-se duas tendências que tomariam corpo e se
consolidariam, mais tarde, com o tempo e com o estudo continuado: o crítico literário e o historiador. É o
primeiro trabalho de literatura norte-rio-grandense que se preocupa em documentar o fato literário,
biografando os autores e fixando-os no Tempo e no Espaço”. MELO, Manoel Rodrigues. Câmara Cascudo:
historiador. In: LUÍS da Câmara Cascudo: sua vida e sua obra. Homenagem do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Pongetti. 1969. p. 79-80.
282
Francisco da Rocha Pombo, paranaense de nascimento, atuou como poeta, historiador e jornalista em várias
partes do Brasil. Foi membro do IHGB, da Academia Brasileira de Letras, sócio correspondente do IHGRN,
autor da coleção História do Brasil e autor do livro: História do Rio Grande do Norte, de 1922, “escrito
sob encomenda para o Governo do Estado. Foi ele o encarregado pelo governo estadual de escrever sobre a
história potiguar para as comemorações do Centenário da Independência do Brasil”. LIMA, Bruna Rafaela
de. A atuação jesuítica na Capitania do Rio Grande na visão de Augusto Tavares de Lira e Luís da
Câmara Cascudo. 2006. f. 24. Monografia (Graduação em História) -- Departamento de História,
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2006.
283
POMBO, Rocha. apud MELO, Manoel Rodrigues. Câmara Cascudo: historiador. In: LUÍS da Câmara Cascudo:
sua vida e sua obra. Homenagem do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Pongetti.
1969. p. 80-81.
284
O Jornal A Notícia era dirigido por Anfilóquio Câmara e o Kerginaldo Cavalcanti. As duras críticas feitas à
primeira produção de Cascudo foram escritas por Nascimento Fernandes. Consideramos importante informar
que dentre todas as fontes que consultamos para a realização dessa Dissertação, essa foi a única crítica a
Cascudo e a sua produção que encontramos, e que a mesma se refere, exclusivamente, ao lançamento de
Alma Patrícia.
88
(sic) detalhadamente, o conteúdo do livro, que nos deu assumpto (sic) para
essas divagações
285
.
[...]
Se as coisas cômicas e, por veses (sic), ridículas, prendem, de alguma forma,
a attencão (sic) do publico, é bem possível que o Alma Patrícia seja lido e
admirado”
286
.
Contrapondo-se à opinião de Rocha Pombo, o jornalista Nascimento Fernandes não se
limitou a criticar o livro, estendendo seus comentários à conduta de Cascudinho, o jovem
Príncipe do Tirol:
O sr. Luis da Câmara Cascudo, jovem de vinte e poucos annos, (sic)
acadêmico perpetuo (sic) de uma escola superior, jornalista por
temperamento e orador por snobismo, acaba de enfrentar, com aquella (sic)
superioridade que todos lhe reconhecemos, a ferocia terrível dos pseudos
críticos indígenas, dando á estampa um volumoso livro, a que deu o titulo de
Alma Patrícia. Accentuemos, (sic) preliminarmente, que nos não separam
ódios nem antipathias (sic) pessoaes, (sic) para que deste modesto
entendimento literário posa resultar uma polemica irritante e sem
finalidade”
287
.
A este período em que Cascudinho atuou como jornalista e fez suas primeiras
incursões pela história potiguar, se seguiram os tempos de professor e historiador oficial. A
denominação de “provinciano incurável” que lhe havia sido dada por Afrânio Peixoto
seria, segundo o próprio Cascudo, aquela que melhor lhe definiria como historiador. Seu amor
à cidade do Natal e sua dedicação à história do Rio Grande do Norte alimentaram esse
provincianismo
288
:
285
FERNANDES, Nascimento. [Irreverências]. A Notícia, Natal, RN, ano 1, 04 set. 1921.
286
Ibid., 11 set. 1921.
287
FERNANDES, Nascimento. Irreverências. A Notícia, Natal, RN, ano 1, 04 set. 1921.
288
Na opinião de Margarida de Souza Neves, “é, sem dúvida, como estudioso da cultura e das tradições
populares que Cascudo merece ser lido”, no entanto, o que se constata é “a recorrência com que é
identificado, sobretudo no Rio Grande do Norte, como o historiador Luís da Câmara Cascudo”. NEVES,
Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São Paulo, n.
24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www. modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13
ago. 2008.
89
Natal, minha cidade Natal, é o cenário imóvel na minha memória. Natal foi a
impressão primeira, o ambiente emocionador da minha meninice,
adolescência e madureza. O homem é a cidade em que nasce. O povo da
minha cidade foi a minha curiosidade inicial, a pesquisa do repórter, a
análise do estudioso. O povo na convivência termina sendo a grande família
anônima, da qual nós vivemos. Por isso, eu acredito aos oitenta anos, que
quem não tiver debaixo dos pés da alma, a areia de sua terra, não resiste aos
atritos da sua viagem na vida, acaba incolor, inodoro e insípido, parecido
com todos
289
.
A condição de provinciano foi valorizada pelo próprio Cascudo, pois, segundo ele, por
“Ter permanecido na Província, [...] constitui-me uma fonte de informação, na mesma
autoridade das outras, com a vantagem de não poder ser enganado pela imaginação da burla,
podendo confrontar as notícias no processo da equivalência”
290
. Essa percepção, contudo, não
o impediu de refletir sobre as causas desse provincianismo: “A pobreza de meu pai, não me
permitia abandoná-lo e viajar para o sul, vencer no Rio. Filho único, devia retribuir em
assistência quanto tiver em pecúnia e carinho. Fiquei, definitivamente e sem recalques,
provinciano. Ia ser, até a velhice, professor jagunço”
291
.
Pode-se dizer que, em alguns momentos de sua trajetória, o Cascudo historiador se
confundiu com o Cascudo professor que ao lecionar História, despertava em seus alunos o
amor às origens e o culto à memória
292
e às tradições. Ele mesmo declarava ter sido “um
homem que envelheceu ensinando história num ginásio de província, que continua enamorado
dos livros, emoldurando com eles todos os seus sonhos, que nas viagens dedica parte maior de
sua afetuosa curiosidade aos testemunhos imóveis da História”
293
. O professor parece ter sido
muito bem sucedido em seus intentos, como atesta este depoimento de Alvamar Furtado:
O mestre Cascudo nos ensinou a amar nossa terra, sua gente, seus valores
tradicionais. Um arguto professor na arte de ensinar sempre e de estimular
vocações que se entremostravam em estudantes que hoje se espalham por
289
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
290
CASCUDO, Luís da Câmara. Folclore do Brasil: pesquisas e notas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1967.
p. 249.
291
CASCUDO, Luís da Câmara. O tempo e eu: confidências e proposições. Natal, RN: Imprensa Universitária,
1968. p. 48.
292
Como bem apontado por Juliana Pinto “toda memória requer um trabalho de organização, continuidade e
coerência que, ao longo do tempo vai garantindo uma identidade social própria. A memória exerce um papel
fundamental no interior do processo de construção de identidade”. PINTO, Juliana da Silva. “A Nina que
despertou: da disputa de memórias à construção de um mito”. Revista Primeiros Escritos, Rio de Janeiro, n.
4, p. 6, jun. 1999. LABHOI (Laboratório de História Oral e Imagem).
293
CASCUDO, Luís da Câmara. A função dos arquivos. Separata de: Revista do Arquivo Público, Recife, ano 7-
10, n. 9-12, 1952-1956.
90
todo o país, revelando tendências profissionais e despertando, pela sua
bondade, devoções definitivas. Obstinado na procura do documento,
reativador de memórias mortas e valorizando as que ainda sobreviviam
no anonimato de suas existências até então perdidas
294
. (grifo nosso).
As dificuldades e as decepções, às vezes, se sobrepunham ao amor que sentia por sua
terra e ao empenho de “guardar a memória da gente potiguar”: “Antes de fazer, pense na
penitência de quem escreve história atual, de mão estendida, pedindo e as promessas
chovendo, como todas as promessas e como elas mesmas, não vindo jamais”
295
.
Este não foi o caso do livro História da Cidade do Natal, encomendado e financiado
pelo então prefeito Sylvio Pedroza
296
, que, no ano seguinte, conferiria a Cascudo o título de
historiador da cidade do Natal:
História da cidade do Natal, publicado em 1947, não é livro que consagre
nenhum intelectual, pela pressa com que foi escrito, pelas lacunas e falhas
que apresenta. Mas é com ele que Cascudo se legitima como o historiador da
cidade de Natal. [...]. Na História da cidade do Natal, Cascudo procura
recuperar pela escrita as formas tradicionais da cidade, ameaçadas de
desaparecer sob os golpes da modernização [...]
297
.
A referência feita às “formas tradicionais da cidade” presentes nas páginas de sua
obra parece comprovar o quanto foram importantes para Cascudo os tempos em que
“estudava costumes” nos bares da Ribeira, ouvindo os pescadores e cantadores. Aspecto
que fica bem evidenciado na epígrafe que Cascudo escolheu para seu livro Rede de
Dormir, de 1957:
Temos de habituar-nos a considerar como fontes da história os mesmos
fenômenos cotidianos de nossa vida popular, cujo valor testemunhal de
modo algum é inferior às crônicas e documentos antigos. Da ornamentação
de um pórtico e de um instrumento agrícola, da forma de uma casa à botina
294
Depoimento de Alvamar Furtado de Mendonça apud PETROVICH, Enélio Lima. Câmara Cascudo Imortal
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 179, 1985-
1986.
295
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947.
296
Além de patrocinar a publicação, Sylvio Pedroza fez questão de redigir, juntamente com Cascudo, as
dedicatórias feitas em alguns exemplares distribuídos a instituições. Isto pode ser constatado no exemplar que
foi dedicado ao Jornal A Ordem. Ver anexo B (foto da página do exemplar que apresenta a dedicatória feita
por Cascudo e Sylvio ao jornal A Ordem).
297
ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE, ano 4, n.
48, p. 13-14, ago. 2006.
91
de uma mulher, pode-se haurir mais informação de História da Civilização
que de muitos molhos de atas dos nossos arquivos
298
.
O trecho acima nos revela o quanto Cascudo foi um historiador ímpar, que, além de se
interessar por temas do cotidiano, tinha uma percepção bastante inovadora em relação a fontes
e ao seu uso. Produziu, em razão disso, “uma obra toda ela dedicada a revelar as ligações que,
no curso do longo tempo, aproximam o que o povo diz, pensa e faz e o saber da cultura
refinada dos livros”
299
. Ele mesmo, chegou a afirmar que:
Queria saber a História de todas as coisas do campo e da cidade. [...]
Convivência com os humildes, sábios e analfabetos, sabedores dos segredos
do Mar, das Estrelas, dos morros silenciosos. Assombrações. Mistérios.
Jamais abandonei o caminho que leva ao encantamento do passado. [...]
Tudo tem uma história digna de ressurreição e de simpatia
300
.
Era também pouco convencional em seu processo de criação, pois, às vezes,
escrevia deitado na rede, onde se deixava ficar fumando seu charuto. Este hábito recebeu
críticas de Mário de Andrade
301
, que chegou a sugerir, em uma das cartas que trocou com
Cascudo, que ele abandonasse a rede e fosse escrever sobre o mundo que o cercava. Mário
também recomendou que ele procurasse se dedicar aos trabalhos folclóricos e abandonasse
os históricos. Em carta de 1937, expressou sua opinião sobre os trabalhos que Cascudo
vinha realizando, e principalmente, sobre o método que empregava:
[...] Sei que você pode fazer isso e mais. Você tem a riqueza folclorista
passando aí na rua a qualquer hora
302
. Você tem todos os seus conhecidos e
amigos do seu Estado e Nordeste para pedir informações. Você precisa um
bocado mais descer dessa rede em que você passa o dia inteiro lendo até
298
SCHIER, Bruno. Aufbau der Deutschen Volkskultur apud CASCUDO, Luís da Câmara. Rede de dormir:
uma pesquisa etnográfica. 2. ed. Rio de Janeiro: FUNARTE/INF, Achiamé; Natal, RN: EDUFRN, 1983.
299
ARRAIS, op. cit., p. 19.
300
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 05, 1968.
Edição Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara
Cascudo.
301
Para Arrais, Mário de Andrade não chegou a compreender a rede “como parte do método cascudiano de
criação”. ARRAIS, Raimundo. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE,
ano 4, n. 48, p. 16, ago. 2006.
302
Segundo Veríssimo de Melo: “Aqui está a crítica de Mário de Andrade a linha de trabalhos históricos que
Cascudo vinha até então (1937). Aconselhava-o a voltar-se para os estudos folclóricos riqueza ‘aí passando
na rua a qualquer hora’.” In: MELLO, Veríssimo de. (Introdução e notas). Cartas de Mario de Andrade a
Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas, 1991. p. 149.
92
dormir. Não faça escritos ao vai-vem da rede, faça escritor [sic.] caídos das
bocas e dos hábitos que você foi buscar na casa, no mucambo, no antro, na
festança, na plantação, no cais, no boteco do povo. Abandone esse ânimo
aristocrático que você tem e enfim jogue as cartas na mesa, as cartas do seu
valor pessoal que conheço e afianço, em estudos mais necessários e
profundos
303
.
As cartas trocadas entre Mário de Andrade e Câmara Cascudo revelam uma amizade
que se iniciou na década de 1920 e que durou quase vinte anos
304
. A relação entre eles não foi
apenas amistosa como podemos constatar no trecho de uma carta de 1937 que
transcrevemos acima tendo sido marcada, também, por condenações e críticas
305
.
Se considerarmos a afirmação de Eric Hobsbawn, de que “o oficio do historiador é
lembrar o que os outros esquecem
306
, pode-se dizer que Luís da Câmara Cascudo exerceu
com eficiência esse oficio ao longo de sua vida, pois além de ter sido:
O mais conhecido como folclorista e etnógrafo, o autor do monumental
Dicionário do Folclore Brasileiro foi também historiador reconhecido em
seu tempo não apenas por suas obras relativas a história do Rio Grande do
Norte e da cidade de Natal, mas também por seus trabalhos históricos mais
amplos, em particular seus textos sobre a origem do homem americano,
sobre o descobrimento do Brasil, sobre os arquivos e sua função e por suas
excelentes notas e tradução do relato de viagem de Henry Koster
307
. Um de
seus primeiros livros publicados foi prefaciado por Rocha Pombo. Hoje, suas
303
Carta de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. São Paulo: 09/06/1937. In: MELLO, Veríssimo de.
(Introdução e notas). Cartas de Mario de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte/Rio de
Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas, 1991. p. 149-150.
304
A primeira carta de Mário para Cascudo data de 14 de agosto de 1924, sendo uma resposta à primeira carta de
Cascudo. Não se conhece o conteúdo e a data exata desta carta enviada por Cascudo; sabe-se apenas que foi
entre julho e agosto de 1924 e que foi acompanhada de um artigo que Câmara Cascudo escreveu sobre Mário.
Já a última carta de Cascudo para Mário que se conhece data de 12/06/1944 e a de Mário para Cascudo é de
03/01/1943, dois anos antes da morte de Mário de Andrade.
305
Episódios como este que envolviam condenação e crítica não impediram que entre eles se aprofundasse a
relação de amizade e se estabelecesse o compadrio, já que Cascudo convidou Mário para ser padrinho de
crisma de Luís Fernando, seu primeiro filho.
306
HOBSBAWN, Eric. A era dos extremos: o breve século XX (1914-1991). São Paulo: Companhia das Letras, 1995
apud MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3. ed. rev. Natal, RN:
Cooperativa Cultural, 2007.
307
KOSTER, Henry Viagens ao Nordeste do Brasil. Tradução, prefácio e notas de Luís da Câmara Cascudo.
Recife, Secretaria de Educação e Cultura, 1978. Recentemente a Fundação Joaquim Nabuco lançou a 11ª
edição do livro de Koster (Recife, Editora Massangana, 2002) apud NEVES, Margarida de Souza.
Literatura: prelúdio e fuga do real. Disponível em<http:// www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso
em: 13 ago. 2008.
93
obras sobre folclore e cultura popular, para o autor livros de cunho
etnográfico, são fontes preciosas para os historiadores da cultura
308
.
Foi no livro História da cidade do Natal, de 1947, que, segundo Fátima Martins,
Cascudo deixou mais evidente sua concepção de História e do “fazer História”:
Trabalho publicado pela Prefeitura da Cidade de Natal, é uma coletânea de
artigos que o autor foi publicando ao longo de duas décadas sobre a história
de Natal. Abarcando cerca de 300 anos de história da cidade, é pioneiro
neste tipo de produção. Apresenta, no final, uma bibliografia composta
majoritariamente por seus próprios livros utilizados e uma bibliografia para
obras sobre folclore. Para os períodos iniciais da ocupação e para o período
holandês, para os quais não há documentação no Rio Grande do Norte, faz
uma pesquisa bibliográfica, e, no fim de alguns capítulos, principalmente os
quatro primeiros referentes aos períodos iniciais da colonização, traz a
bibliografia que utilizou: cronistas como Gabriel Soares de Souza, Frei
Jaboatão, Robert Southey, Anthony Knivet, e os holandeses (Gaspar Barléus,
Joannes de Laet, George Marcgrave)
309
.
Sylvio Pedroza, para referendar o título de historiador atribuído a Cascudo, se valeu de
Américo de Oliveira para destacar aspectos da sua produção:
Na História do Rio Grande do Norte, assinala Américo de Oliveira Costa,
‘Cascudo estabelece o processo de evolução social e política do território,
afirmando-se, resistindo, avançando dos precários organismos comunitários,
desde as inicias células de fixação, após as rudes manhãs da conquista, da
expulsão dos invasores, da colonização [...] ’. Tive a honra de prefaciar a 2ª
edição, publicada no Rio de Janeiro em 1984. Na verdade, ninguém
conhecerá o Rio Grande do Norte sem ler essa História. Em suas páginas,
palpitam os sonhos, as lutas e as realizações da gente potiguar
310
. (grifo do
autor).
Referindo-se aos méritos do livro História do Rio Grande do Norte (1955), Sylvio
Pedroza afirmou: “[...] E Cascudo inova, ainda, quando divide o livro por assuntos, esgotados
308
NEVES, Margarida de Souza. Literatura: prelúdio e fuga do real. Disponível em <http://www.
modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
309
LOPES, Fátima Martins. Fontes para a História do Rio Grande do Norte no IHGRN. In: ENCONTRO
REGIONAL DA ANPUH/ RN: o ofício do historiador, 1., 2004, Natal, RN. Anais... Natal, RN: EDUFRN, 2006.
310
PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares - Pedro Velho & Luís da Câmara
Cascudo. Rio de Janeiro, 1989. p. 20-21. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
94
em cada capítulo, facilitando a pesquisa pela condensação dos aspectos relevantes de cada
setor característico do Estado
311
.
Deitado em sua rede ou confinado em sua Babilônia, fazendo pesquisa bibliográfica
ou documental junto aos precários arquivos norte-rio-grandenses , o certo é que Cascudo
produziu uma obra monumental, cuja peculiaridade, segundo Margarida Neves “reside, em
primeiro lugar, no método por ele adotado (grifo nosso). A chave desse método parece estar
na noção de convivência
312
do erudito com o popular, do etnógrafo e folclorista com o
historiador:
[...] o marido apaixonado, que já idoso, gostava de contemplar a lua de mãos
dadas com a mulher, e o boêmio bebedor e farrista renomado; o católico a
quem a Santa Sé outorgou a comenda da ordem de São Gregório Magno e o
especialista em magia branca, superstições e amuletos, presença obrigatória
em todos os terreiros de Natal; o coordenador do movimento integralista no
Rio Grande do Norte nos anos 30 e o escritor que na década de 60 era
respeitado e admirado por intelectuais de esquerda tais como Celso Furtado,
Jorge Amado e Moacyr de Góes; o conhecedor erudito da literatura clássica
greco-romana e renascentista e o embevecido interlocutor dos pescadores
Chico Preto ou Pedro Perna Santa e de Bibi, a velha ama da casa de seus pais
a quem considerava uma “Sherazade humilde e analfabeta”; o grande nome
da etnografia e dos estudos de folclore no Brasil e o escritor pouco lido pelas
gerações mais jovens de cientistas sociais brasileiros. No labirinto que se
apresenta sempre aos que se aventuram pela vida e pela obra de Câmara
Cascudo, [...] [são apresentados ao] polifacético conjunto dos escritos de
Luís da Câmara Cascudo: o caráter enciclopédico da obra e o perfil de
descobridor do Brasil de seu autor
313
. (grifo da autora).
Também o historiador Raimundo Arrais destacou a originalidade do método e dos
resultados obtidos por Cascudo:
Diferente da forma como seus mestres transmitiam o conhecimento,
dissipando-o nos ventos da oralidade das ruas, sem cuidarem de fixar esse
311
PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares - Pedro Velho & Luís da Câmara
Cascudo. Rio de Janeiro, 1989. p. 20-21. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
312
NEVES, Margarida de Souza. Para descobrir “a alma do Brasil”: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. In:
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Ed.
UniverCidade, 2003. p. 383.
313
NEVES, Margarida de Souza. Para descobrir “a alma do Brasil”: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. In: ROCHA, João
Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de Janeiro: Ed. UniverCidade, 2003. p. 378.
95
conhecimento no papel, Cascudo transpõe para a página escrita tudo o que
descobre, aprende, presencia. Com ele, a oralidade se converte em escrita
314
.
O reconhecimento dessa originalidade pode explicar as razões para, em 25 de
dezembro de 1948, Cascudo ter recebido por decisão do então prefeito, Sylvio Piza Pedroza
, o diploma de pergaminho de Historiador da cidade do Natal e a miniatura em ouro da chave
da cidade. A partir de então, Cascudo seria encarregado oficialmente de guardar a
memória da cidade do Natal
315
, como ressaltado por Sylvio Pedroza na cerimônia de
nomeação:
Se tornava fácil para mim a execução da recomendação, porquanto a cidade
do Natal já tinha o seu grande e incansável Historiador, e só nos competia
consagrar, de direito, aquilo que já existia de fato, reconhecido e proclamado
por todos os natalenses. Estes viam na figura de Luís da Câmara Cascudo o
‘Hércules amarrado às ameias da Fortaleza dos Reis Magos’, - no dizer do
poeta Otoniel Menezes, o guardião zeloso de nosso passado histórico, seu
maior e mais autorizado intérprete - captando e irradiando, da Província para
todo o País, tudo o que fomos na constante de uma história repleta de feitos
heróicos e imorredouros...
316
.
O Cascudo apresentado como “enciclopédia brasileira” denominação que lhe foi dada por
Margarida de Souza Neves e reconhecido nacionalmente como o maior folclorista brasileiro, parece,
no entanto, continuar sendo lembrado como o historiador do Rio Grande do Norte e da cidade do Natal:
O que hoje se faz, como trabalho de equipe, em institutos e departamentos,
em centros de estudos e em cursos de extensão, ele, o pioneiro, fez sozinho.
O que temos em ciências sociais, folclore, em etnografia, em antropologia,
história, de modo todo especial, a ele devemos. Nada se pode aditar a isso
senão, em cada caso, a admiração que todos devotamos ao mestre, ao rio-
grandense-do-norte de maior, mais vasta e mais erudita bibliografia, em
todos os tempos. O historiador do Estado e da cidade do Natal, o historiador
de tantos municípios, o biógrafo de tantas figuras ilustres que construíram o
progresso de nossa terra, na dimensão econômica, social, política e
314
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara Cascudo como
historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
315
Credita-se a nomeação de Cascudo como historiador oficial de Natal à participação do prefeito Sylvio Pedrosa em um
Congresso de História em San Juan, capital de Porto Rico. Ao final do Congresso teria sido feita a recomendação de que:
“fosse cultivada a memória das cidades capitais do Continente Latino Americano, e nelas se nomeasse um historiador
oficial”. O depoimento dado por Pedroza deixa isto evidente: “Em meu regresso, assinei Decreto que criava o cargo de
Historiador da Cidade do Natal, e nomeava Luís da Câmara Cascudo para exercê-lo, em função honorifica e gratuita”.
(grifo do autor) apud PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares Pedro Velho & Luís da
Câmara Cascudo. Rio de Janeiro, 1989. p. 20. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
316
PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares Pedro Velho & Luís da Câmara Cascudo. Rio de
Janeiro, 1989. p. 20. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
96
intelectual em que viveram. Mestre Cascudo traçou, desde cedo, o seu
itinerário. A História abriu-lhe as portas à capacidade extraordinária da
pesquisa e da narração, os fatos simples, que nem sempre estão na
história oficial, estabelecida, um tanto gorda e enfática
317
. (grifo nosso).
Diante do papel de “redentor da história potiguar” que assumiu, os intelectuais
letrados da “Província de Cascudo”, os seus confrades do Instituto Histórico e seus parceiros
imortais da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras
318
, seriam levados a reconhecer que:
“Não foi a Guerra que projetou Natal no mundo. Foi Cascudo”
319
.
Tal qual um descobridor, o Cascudo historiador oficial empenhou-se na execução da
tarefa, empreendendo uma série de viagens. Emblemática é a que realizou ao Marco de
Touros, acompanhado de alguns de seus amigos letrados:
Ávido em aprofundar-se cada vez mais nos estudos e na história de nossa
colonização, suas raízes e primórdios, conheceu, em 27 de agosto de 1928,
ao lado de Nestor Lima, distante de Natal cerca de 100 quilômetros, o
célebre Marco de Touros, símbolo português primeiro, chantado em
território pátrio, a 7 de agosto de 1501. Um ano após o descobrimento do
Brasil
320
.
[...]
Sentado ao lado do ex-governador do Estado [Sylvio Pedroza], num ‘jeep’,
subindo e descendo dunas para localizar o primeiro marco português em
terras brasileiras, chantado na primeira expedição de reconhecimento da
terra recém-descoberta, lá para os lados de Touros, no Rio Grande do Norte.
Estudo histórico ainda hoje válido quanto ao primeiro marco português em
chão do Brasil
321
.
317
PEREIRA Nilo apud PETROVICH, Enélio Lima. Em três tempos: Antônio Soares de Araújo Filho, Luís da Câmara
Cascudo, Peregrino Júnior. Natal, RN: Nordeste Gráfica, 1999. p. 40.
318
A Academia Norte-Rio-Grandense de Letras foi fundada por Câmara Cascudo em 1936. A primeira reunião foi realizada na
casa de Cascudo, que “atendendo a um apelo da Federação das Academias de Letras, com um grupo de amigos e
intelectuais, fundou a Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, em 14/11/1936, na sede do Instituto de Música, sendo
eleito Henrique Castriciano, presidente. Entre os fundadores da Academia, podem ser citados os seguintes intelectuais:
Adauto Câmara, Otto de Brito Guerra, H. Castriciano, Edgar Barbosa, Antonio Soares de Araújo, Nestor dos Santos Lima,
Januário Cicco, Floriano Cavalcanti, Luís Gonzaga do Monte” A TRADIÇÃO e a Renovação: poetas, escritores e
intelectuais. Tribuna do Norte, Natal, RN, 1998. Cadernos especiais. Educação e Cultura. (Coleção História do Rio Grande
do Norte, 14). Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.br>. Acesso em: 09 out. 2008. Ver anexo B (placa de
identificação da ANL-RN, com dados referentes à fundação).
319
PETROVICH, op. cit., p. 31.
320
Ibid., p. 41.
321
Ibid., p. 180.
97
Desta viagem de estudo resultaram alguns artigos, com destaque para o intitulado O
mais antigo marco colonial do Brasil
322
, no qual Câmara Cascudo apresenta sua posição
sobre o controvertido tema, fundamentando-a também em documentos históricos:
O Marco é tipicamente um marco de domínio, um atestado de posse. Difere
imenso do que está plantado no Rio Guajú, limite com o Estado da Paraíba, e
que é um marco divisório, com inscrições e datas. O da praia de Touros é
autenticamente um documento colonial, um sinal da política colonizadora de
D. Manuel, o herdeiro da campanha marítima de D. João II. O Marco afirma
a soberania portuguesa nas regiões onde é encontrado. A cruz de Cristo
significava que as terras conquistadas pertenceriam ao Rei para a difusão da
323
.
Em sua preocupação de definir os limites do território potiguar, Câmara Cascudo
também lançará mão de artigos da Revista do IHGRN, da Revista do IHGB e de outros livros
sobre a História do Estado, como os livros de Rocha Pombo e Tavares de Lyra, que serão
referidos ao longo desse artigo que mencionamos.
Também Américo de Oliveira ressaltou a importância destas viagens de estudo e do
esforço que fazia para completar as informações que cronistas viajantes haviam recolhido em
séculos anteriores:
As anotações, às centenas, que acompanham a tradução cascudiana,
comprovam a autentic idade do viajante, - e vale destacar os elementos de
interesse histórico ou de permanência e atualidade com que elas enriquecem
o volume, tornando em língua nacional ‘Viagens ao Nordeste do Brasil’. ‘...
deve-se levar em conta... a segurança desta tradução, ao lado das notas com
que o Sr. Câmara Cascudo completa e ainda mais valoriza o texto de Koster’
(afirma o crítico Álvaro Lins) ‘Ele quase que realiza uma nova obra
empregando nela as suas conhecidas qualidades de historiador, sobretudo a
erudição, o espírito crítico, o bom gosto, o conhecimento do passado, nas
suas fontes originais’
324
.
Mesmo antes de ser nomeado “historiador oficial da cidade do Natal”, Cascudo já se
sentia incumbido de uma missão a de “guardar a memória do povo potiguar”. Isto parece
322
CASCUDO, Luís da Câmara. O mais antigo marco colonial do Brasil. (Edição do “Centro de Imprensa - C.
M. M.”- Natal-1934). In: RIO Grande do Norte: 500 anos. Natal, RN: IHGRN, 2001. Plaquete encontrada no
IHGRN.
323
Ibid., p. 15.
324
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao Universo de Câmara Cascudo. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1969. p. 177.
98
ficar evidente na proposta que encaminhou ao Ministro Capanema, no final da década de
1930 da criação de uma coleção de História do Brasil, composta pelas histórias de cada
Estado. Há nesta proposta um evidente desejo de Cascudo ser mais do que o historiador de
seu lugar e de sua gente, na medida em que este livro lhe traria o reconhecimento nacional
como o historiador do Rio Grande do Norte.
Em seu livro História do Rio Grande do Norte, Cascudo deixa evidente a percepção
que tinha de sua missão e o enfoque que daria:
Esta História do Rio Grande do Norte é um trabalho sistemático de
informação menos de fontes impressas do que dos arquivos. Pareceu-nos
essencial divulgar o conhecimento do Passado tendo pouco interesse na
fixação dos comentários pessoais, sempre discutíveis. Procura-se, na fórmula
interpretativa, explicar a razão de acontecimentos e desenhar a psicologia
dos homens que estiveram à frente dos sucessos antigos
325
.
Ao escrever sobre a história do Rio Grande do Norte e de Natal, Câmara Cascudo
entendia que cabia a ele, como historiador, trazer à superfície aquela espécie de “vida na
escuridão e no esquecimento”, resgatando aquilo de que “ninguém mais se lembra”
326
, pois,
segundo ele, “A História evidencia que os movimentos decorrem dentro de uma área limitada.
A tendência inevitável da História é mostrar o que foi escondido pelo documento”
327
.
Para Margarida Neves, Câmara Cascudo atuou “como um historiador clássico, [pois]
ao descrever as guerras com os holandeses, parece fazer ecoar as palavras de Heródoto”,
exercendo com isso o papel de olho e de memória escrita
328
,
uma vez que seus trabalhos “são
resultados de suas longas investigações o que apresenta em seus livros, e é para que não se
apague a memória dos acontecimentos que escreve sobre os feitos maravilhosos e admiráveis
de potiguares e de batavos”
329
.
325
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984. [Introdução].
326
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara
Cascudo como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
327
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947. p. 10-11.
328
Cfe. HARTOG, François. O espelho de Heródoto. Ensaio sobre a representação do outro. Belo Horizonte: Ed.
da UFMG, 1999. p. 38 apud NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”.
Revista Projeto História, São Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
329
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São
Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso
em: 13 ago. 2008.
99
Cascudo acreditava que era de fundamental importância para o futuro do Rio Grande
do Norte a preservação de sua história, mesmo porque:
O precioso da História contemporânea é a documentação para o futuro e não
o juízo decisivo e peremptório. Todos os contemporâneos, para o bem ou
para o mal, são testimunhas [sic] de vistas, indispensáveis e ricas de notícia.
Testimunhas [sic] e não juízes ou advogados. Todos testimunhas [sic]. O
futuro estudará, confrontará e dará sentença. Muita gente pensa que a
História é uma velhinha amável e covarde que aceita, por preguiça e
senectude, as decisões dos contemporâneos. Todos nós julgamos escrever a
História quando apenas escrevemos para a História
330
. (grifo nosso).
No prefácio do livro História da Cidade do Natal, Câmara Cascudo deixa muito
evidente que tipo de história iria priorizar:
Uma HISTÓRIA DA CIDADE DO NATAL registará [sic.] o essencial, o
característico e a “constante” sociológica teimosamente sobrevivente. Cada
autor esbarrará no mesmo caminho com a mesma pedra. Não é possível um
critério geral, dogmático, para dizer-se o que é essencial, característico e
constante na História de qualquer cousa [sic.] neste Mundo. Um facto [sic.]
julgado precioso pode ser julgado dispensável. A puerilidade para uns é
ciência para outros. Tentei evitar omissões maiores fixando no último
capítulo, De rebus pluribus, as efemérides da Cidade. Mesmo assim muitos
dias estão brancos e possivelmente muita curiosidade ocorreu neles. Não li.
Não vi. Não encontrei
331
.
Segundo Durval Muniz Albuquerque, a maioria dos intelectuais nordestinos, e dentre
eles, Cascudo, praticava a escrita como uma forma terapêutica de encarar as mudanças:
Escrever para não deixar morrer as coisas da cultura popular, ameaçadas
pelo progresso, pela modernização. Mas, ao mesmo tempo, escrever o
popular para se inscrever como sujeitos deste conhecimento, destes saberes,
ganharem nome vivendo destes restos moribundos, fazendo a vida através
desta agonia lenta do que tomam como objeto da escrita. Escrita expiatória, a
literatura, a memória, o ensaio, a história buscam conter essa sensação de
morte de um tempo, de uma sociedade, de um espaço, de vidas masculinas
que parecem se abater, se deixar tragar pela inexorável voragem do tempo.
Escrever para salvar da morte personagens, acontecimentos, costumes, textos
330
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947.
[Apresentação].
331
Ibid., p. 09.
100
do passado é, ao mesmo tempo, distanciá-los, matá-los, ao agenciá-los em
textos que se pautam por novas regras, ao atribuir-lhes novos lugares, novas
inscrições, novas identidades, novos lugares de sujeito e objeto
332
.
Seu envolvimento afetivo e sua admiração pela cidade podem ser constatados neste
trecho do prefácio do livro que o alçou à condição de historiador oficial de Natal:
A cidade do Natal é uma perspectiva indefinida. Sentimos que, tendo vida,
está na fase de um desenvolvimento violento, diário, incessante, ganhando os
taboleiros, subindo os morros. [...] Natal é uma cidade sem problemas. O que
chamamos, com suficiência e pedantismo, problemas, são apenas soluções
sabidas e retardadas pela falta de finanças ou de vontades positivas
333
.
De acordo com Arrais, Cascudo manifestava-se com alguma ambigüidade em
relação à remodelação urbana orientada pelos ideais de civilização e progresso que a
cidade do Natal vinha sofrendo,
Fazendo da escrita um instrumento de intervenção, Cascudo manifesta,
naquelas primeiras crônicas publicadas nos jornais A Imprensa e A
República, um grande desejo de intervir nos rumos da cidade: nessas
crônicas ele comenta as conseqüências da introdução de um novo ritmo de
vida nas ruas, aponta o lado negativo de novas formas de ordenamento
social, recorda o passado de uma Natal que se distinguira nitidamente da
Natal dos anos vinte, invoca o papel do Estado na proteção de uma cultura
popular que ele vê sob o risco do desaparecimento, exalta a modernização da
cidade e a regeneração da política e partilha com as elites locais as
inquietações trazidas pela emergência do proletariado. [...] É nesse ponto de
intercessão entre o entusiasmo do futuro e a nostalgia do passado que se
encontra o Cascudo que assina crônicas nos anos vinte. Aos poucos, já nos
anos trinta, podemos sentir uma lenta alteração do equilíbrio entre esses dois
sentimentos, pois ele parece ir realizando uma mudança de rumo cada vez
mais decidida em direção ao passado da cidade de Natal, esfriando aquele
entusiasmo adolescente da Belle Époque natalense, da qual saíram Alma
patrícia, Histórias que o tempo leva e Joio
334
.
332
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A escrita como remédio: erudição, doença e masculinidade no
Nordeste do começo do século XX. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/
index2.htm> . Acesso em: 31 jul. 2008.
333
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947. p. 10-11.
334
CASCUDO, Luís da Câmara. Crônicas de origem: a cidade do Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20.
Organização e estudo introdutório de Raimundo Arrais. Natal: EDUFRN, 2005. p. 04. Versão digitada.
101
Para Cascudo, um dos marcos das mudanças vividas pela cidade do Natal
335
foi a
Segunda Guerra Mundial, que teria oferecido uma grande oportunidade para que ela se
desenvolvesse e se projetasse, inclusive, internacionalmente, razão pela qual chegou a
apresentá-la como uma “força motriz” do progresso de Natal:
A indústria da guerra salvou o Rio Grande do Norte. A riqueza incalculável
dos minérios teve sua ocasião da presença financeira e econômica, em
formidável incremento, trazendo milhões e milhões de cruzeiros para a
fortuna privada e reforçando, consideravelmente, as finanças estaduais. Por
outra parte a guarnição militar, com milhares de homens, a presença dos
norte-americanos no aeroporto de Parnamirim, elevaram em alto nível o
desenvolvimento das vendas mercantis pelas despesas naturais das unidades
sediadas em Natal e compras pessoais. Se por um lado, esse escoamento
prodigioso agravava o problema do abastecimento, por outro garantia a
perfeita estabilidade financeira do Estado e mesmo o aparecimento de várias
fortunas privadas
336
.
Na opinião de Arrais, estudioso das mudanças ocorridas em Natal nas primeiras
décadas do século XX, “parece assentado para esses intelectuais que, dentro da cidade, não
haveria mais como conceber um retorno ao seio da natureza. Não restava dúvida que passaria
por Natal o movimento daquele progresso que conduzia a História”
337
. Para Pedro Lima, este
processo de reordenação urbana foi magistralmente descrito por Cascudo, a quem devemos a
sua reconstituição histórica:
[...] Enquanto Cascudo evocava a Cidade Nova como um lugar bucólico e
heróico, cujas residências eram batizadas de forma lúdica, uma parte da
imprensa a chamava de cidade das lágrimas, denunciando o processo de
retirada dos posseiros que habitavam ali. Neste caso, a marcha do processo
de modernização se traduzia na forma de exclusão e segregação social e
espacial. [...] Outros espaços habitados pela população pobre, como os
bairros Rocas e Alecrim, são bem descritos por Cascudo. Junto com o Baldo,
eles formaram os primeiros espaços periféricos da Cidade do Natal. Assim a
335
Concordamos com a afirmação de Arrais de que: “No centro da tensão entre essas duas forças, a natureza e a
técnica, se encontra a cidade de Natal. É isso que percebemos nos escritores do início do século XX. Para
eles, a Natal antiga estava mais próxima da natureza; a nova Natal, ao contrário, e em boa medida, era um
artifício, o resultado da operosidade humana, a filha daquele progresso que ia cumulando nela edificações,
vias, veículos, ao mesmo tempo em que seus moradores com os meios de transporte acelerados e a energia
elétrica iam se libertando das limitações impostas pela ordem da natureza”. Ibid., p. 04.
336
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984 apud LIMA, Pedro de. Luís da Câmara Cascudo e a questão urbana em Natal. Natal, RN:
EDUFRN, 2006. p. 124.
337
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara
Cascudo como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
102
partir dos textos do historiador, pode-se acompanhar os processos através
dos quais foi se delineando a terceira margem do rio no mapa social e
espacial de Natal, indicando com quase um século de antecedência os rumos
de sua configuração atual
338
. (grifo do autor).
Por outro lado, parece importante ressaltar que Cascudo apresentava uma verdadeira
preocupação com relação aos efeitos sociais desse progresso:
Câmara Cascudo deu uma conotação dramática ao seu discurso a favor de
um desenvolvimento harmônico para a Cidade do Natal. Essa dramaticidade
ao mesmo tempo em que destacava possíveis conflitos entre a população e
os proprietários da terra urbana, também chamava a atenção para a
responsabilidade do poder público, como intermediador daquela relação
conflituosa. Dos administradores, Cascudo esperava o milagre da previsão e
não a displicência administrativa, vale dizer o planejamento e a fiscalização
em lugar da conivência e omissão
339
.
Ao mesmo tempo, pode-se dizer que a cidade do Natal que Cascudo pretendia
preservar guardar na memória era justamente aquela que vinha se descaracterizando com
os efeitos da modernização, com as demolições e novas edificações, o alargamento e a
abertura de novas ruas, a introdução dos automóveis, além da chegada de novos moradores
340
.
É esta proposição que faz com que ele tenha procurado recordar os lugares que desapareceram
e evocar os nomes cuja procedência ninguém mais conhecia, pois para ele “a tarefa do
historiador da cidade é retirar o véu do tempo, é dar significado a fatos, nomes, datas e
origens, dissolvendo os mistérios envoltos em lendas correntes e versões incorretas”
341
.
Temendo o apagamento de suas origens e a proximidade de sua morte e com ela, o
provável esquecimento do que eles haviam representado na sociedade em que viveram
intelectuais como Cascudo revestem sua produção de um outro significado:
O trabalho literário, a erudição histórica, a pesquisa etnográfica e folclórica,
o texto memorialístico, o ensaio sociológico passam a ser não somente uma
338
LIMA, Pedro de. Luís da Câmara Cascudo e a questão urbana em Natal. Natal, RN: EDUFRN, 2006. p.
151-152.
339
Ibid., p. 155.
340
SOUZA, Itamar de. Migrações para Natal: análise sociológica do processo migratório. Natal, RN: Editora
Universitária, 1976, p. 18 apud ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a
procissão dos mortos: Câmara Cascudo como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
341
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos: Câmara
Cascudo como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
103
estratégia de compreensão do mundo, das mudanças que estão ocorrendo a
sua volta, como um remédio para curar às feridas subjetivas e físicas
deixadas pelo desabar do ‘mundo de suas infâncias, despreocupadas e livres.
Tornam-se assim vozes dos que estão perdendo a fala, mas também falas que
emudecem estas outras possíveis vozes. Se o cantador emudece diante da
radiola, da vitrola, do cinema, da revista ilustrada, porque não escrever seus
versos em livros que os imortalizem, e no mesmo movimento imortalizem
quem evitou sua morte, um Leonardo Mota, um Gustavo Barroso, um
Juvenal Galeno, um Luís da Câmara Cascudo
342
.
O modelo ímpar de escrita e seu inovador método de pesquisa, somados à sua
versatilidade, garantiram a ele um lugar de destaque no mundo letrado norte-rio-grandense.
Cultuado em vida como um homem símbolo da cultura letrada no Rio Grande do Norte
Cascudo seria, após sua morte, alvo de um culto, como atestam os inúmeros lugares de
memória e de homenagem que encontramos na cidade do Natal.
Um dos maiores incentivadores do culto a Cascudo foi Sylvio Pedroza, político
potiguar que assumiu a postura de “mecenas” da cultura, durante seus mandatos à frente da
cidade do Natal e do estado do Rio Grande do Norte, e que acreditava firmemente que: “No
crepúsculo glorioso de sua rica e fascinante existência, Luís da Câmara Cascudo já era um
homem símbolo. Ele reviveu a nossa história, deu vida aos nossos grandes mortos, estimulou
os jovens, projetou nossa terra dentro e fora das fronteiras do País, sonhou nossos sonhos e
cantou nossas canções”
343
.
3.2 O historiador membro de Institutos Históricos
Ao tratar da relação que Cascudo manteve com os Institutos Históricos, Margarida de
Souza Neves constatou que
[...] não contente em pertencer ao Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro,
do qual foi sócio correspondente desde 1934, e ser sócio benemérito do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, a mais antiga
instituição cultural do Estado, fundada em 1902, e que divide com o Palácio
do Governo e a Catedral Velha a face mais nobre da praça principal do
342
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A escrita como remédio: erudição, doença e masculinidade
no Nordeste do começo do século XX. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/
durval/index 2.htm>. Acesso em: 31 jul. 2008.
343
PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares - Pedro Velho & Luís da Câmara
Cascudo. Rio de Janeiro, 1989. p. 25. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
104
Centro Histórico de Natal, Cascudo associou-se a todos os Institutos
Históricos existentes nos estados da federação
344
.
É sobre este historiador que, escrevendo a partir de seu local de origem e, muitas
vezes, escrevendo sobre suas origens , sobre os processos de ocupação e povoamento do
Estado potiguar, divulgou seus trabalhos nacional e internacionalmente, através de artigos
publicados e conferências proferidas em Institutos históricos brasileiros que nos ocuparemos
neste item. Concentraremos nossa atenção na visão que esta produção vinculada aos IHGBs
traz sobre a atuação da Companhia de Jesus no Rio Grande do Norte e nas referências que
faz ao papel desempenhado pela Igreja na história desse Estado.
A produção de Luís da Câmara Cascudo se insere na historiografia clássica norte-rio-
grandense, caracterizada por produções de grandes sínteses históricas regionais, em
consonância com o modelo de História difundido pelo Instituto Histórico. De acordo com a
historiadora Denise Monteiro, a primeira fase da historiografia clássica norte-rio-grandense
345
correspondeu aos primeiros setenta anos do século XX e, para ela, “foi caracterizada,
especialmente, pelo peso mítico de Câmara Cascudo. Foi constituída pela produção de
historiadores ligados ao Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte,
pertencentes a uma geração anterior à formação universitária em História”
346
. Para a
historiadora, a esta fase “correspondem às obras seminais; [...] sua matriz de pensamento é
profundamente conservadora e [...] nela pode ser identificado um esforço de construção de
uma certa identidade norte-rio-grandense”
347
.
Ao ser criado em 1838, o Instituto Histórico Brasileiro (IHGB)
348
tinha como
principais objetivos os de “coligir, metodizar, publicar ou arquivar os documentos necessários
344
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São Paulo, n.
24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
345
A primeira fase da historiografia norte-rio-grandense teve como características principais: “uma visão de sociedade esvaziada de
conflitos sociais; uma visão de política como atividade exclusiva das elites; a recorrência, como tema dos estudos, de
determinados fatos históricos enobrecedores, nos quais celebravam-se certos personagens históricos que deles participaram; a
predominância da descrição sobre a interpretação, originando uma história crônica ou factual; e a ausência do que nós
chamamos hoje de rigor metodológico, especialmente no que diz respeito à ausência de informações sobre a base documental
desses estudos”. MONTEIRO, Denise Mattos. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In: ENCONTRO REGIONAL
DA ANPUH/ RN: o ofício do historiador, 1., 2004, Natal. Anais... Natal, RN: EDUFRN, 2006.
346
Ibid., 2006.
347
MONTEIRO, Denise Mattos. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In: ENCONTRO REGIONAL DA ANPUH/
RN: o ofício do historiador, 1., 2004, Natal. Anais... Natal, RN: EDUFRN, 2006.
348
Concordamos com a afirmação de que “Os Institutos Históricos e Geográficos são instituições responsáveis pelos acervos
documentais que guardam grande parte das fontes da história colonial, imperial e republicana brasileira. Sua importância em
levantar, metodizar e sistematizar um conhecimento histórico foi tamanha a ponto de o historiador José Honório Rodrigues (1978)
afirmar que a pesquisa histórica nasceu com a fundação do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB), em 1838, no Rio de
Janeiro. Do ponto de vista dessa missão, o IHGB auxiliou o governo imperial na definição de um projeto de nação e de uma
identidade nacional”. ARAÚJO, Marta Maria de; SILVA, Ana Verônica O. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte e o seu acervo documental da História Colonial do Rio Grande do Norte e Brasil. HISTEDBR. 2006. Disponível em:
<www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/artigo_ 082.html> Acesso em: 10 abr. 2007.
105
para a história e geografia do Império do Brasil”
349
, impondo aos seus membros “a mais
perfeita e atual regra de metodologia histórica”
350
.
Já ressaltamos a ligação que Luís da Câmara Cascudo mantinha com todos os
institutos históricos do Brasil e também com o IHGB, como sócio correspondente. A
produção cascudiana, inegavelmente, sofreu influências de sua filiação aos Institutos
Históricos e Geográficos, instituições que estimulavam e difundiam a construção de “histórias
locais”, perpassadas por valores como os de defesa da unidade da nação, do catolicismo e da
cultura ocidental, sobretudo européia e ibérica
351
. Nesse sentido, pode-se dizer que sua
produção foi fortemente influenciada pelas teorias deterministas e evolucionistas oriundas do
Oitocentos, ainda vigentes nas primeiras décadas do século XX, e cujos pressupostos
concentravam-se na raça como elemento definidor das identidades sociais
352
.
O primeiro Instituto a que Câmara Cascudo se filiou foi o Instituto Histórico e
Geográfico do Ceará (IHGCE), em 1924. A filiação foi noticiada pelo jornal A Imprensa, de
propriedade de seu pai, e do qual Cascudo era o diretor à época. A matéria recebeu como
título “Uma honrosa distinção”, seguido da frase “LUIS DA CÂMARA CASCUDO FOI
ELEITO SÓCIO CORRESPONDENTE DO INSTITUTO DO CEARÁ”
353
. Nela era
destacada a gratidão do povo potiguar e o reconhecimento ao trabalho do jovem iniciante
historiador: “o gesto de alta significação honrosa, não somente enobrece sobremodo o nome
do jovem historiador patrício estimulando-o a novos trabalhos, como [premeia] o seu esforço
sincero pelo inteiro conhecimento de nosso passado”
354
.
O convite para integrar como “confrade” do IHGCE partiu de seu presidente à
época, o Dr. Thomaz de Pompeu de Souza Brasil, e de duas figuras ilustres do meio político e
intelectual cearense, o deputado federal, Dr. José da Justa, e o historiador Sr. Barão de
Studart, o que revela as importantes relações de amizade que Cascudo mantinha fora do
Estado e que o ajudaram em sua projeção como historiador.
O segundo Instituto ao qual Cascudo se filiou foi o do Estado de Pernambuco, o
Instituto Arqueológico Histórico Geográfico Pernambucano (IAHGPE), em 1925. Sobre esse
acontecimento, temos a Ata da posse de Câmara Cascudo no IAHGPE, e alguns informes do
349
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Rio de Janeiro, v. 1, 1839. p. 22 apud
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982. p. 37.
350
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982. p. 37.
351
DIEHL, Astor Antônio. A Cultura Historiográfica Brasileira: do IHGB aos anos 1930. Passo Fundo, RS: EDIUPF, 1998.
p. 23-90.
352
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985. p. 13-44.
353
Informações extraídas da nota publicada no Jornal. UMA HONROSA distinção. A Imprensa. Natal, RN, ano 11, n. 2345,
p. 01, 21 dez. 1924. Ver anexo B (a nota completa no Jornal A Imprensa).
354
UMA HONROSA distinção. A Imprensa. Natal, RN, ano 11, n. 2345, p. 01, 21 dez. 1924. Ver anexo B (a nota completa
no Jornal A Imprensa).
106
Instituto que trazem informações sobre sua participação como orador em várias sessões,
mesmo na função de sócio correspondente
355
ou, então, sobre a doação que fez de um de seus
trabalhos, o livro Histórias que o tempo leva
356
.
Em nota sobre o livro Histórias que o Tempo Leva, publicada no jornal A Imprensa, o
historiador Barão de Studart escreveria que: “Bem jovem é ainda o meu confrade, mas já se
condecora com justos títulos ao bom conceito e ao apreço dos estudiosos do nosso passado;
com os meus, pelo menos, pode contar com segurança. No seu belo livro, há me perdoe, um
grave erro: o título; as páginas traçadas por sua penna não os gastará o tempo”
357
. Cascudo
recebia, através deste comentário, o aval de um dos mais renomados historiadores à época. Na
verdade, isto abria caminho para o reconhecimento dos demais confrades.
Os artigos que Cascudo escrevia nas Revistas dos Institutos também evidenciam o
bom relacionamento que mantinha com seus confrades, com homens ilustres como, por
exemplo, o cearense Gustavo Barroso. O contato estreito com o renomado historiador e a
admiração mútua ficam atestados em sua Biblioteca, a Babilônia, pois nela encontramos
quarenta e seis livros de Gustavo Barroso o autor com o maior número de livros sendo que
boa parte deles contam com dedicatórias de estima e amizade fraterna feitas pelo autor. Esta
reverência à obra de Barroso fica evidente em um dos artigos de Cascudo publicados na
Revista do Instituto do Ceará. Nele, ao escrever sobre um vocábulo indígena e sobre a
Capitania do Rio Grande, Cascudo enaltece a produção de Barroso, mencionando: “O Sr.
Gustavo Barroso, num livro esplêndido, em que divulgou no idioma francês as mais
expressivas lendas indígenas do Brasil, sintetiza Anhangá da seguinte forma [...]”
358
.
Estas filiações, no entanto, nos provocam algumas indagações: o que teria levado
Cascudo a se filiar primeiramente ao Instituto cearense? Por que razão não teria integrado de
imediato o IHGRN? Sabe-se que somente após ter sido sócio correspondente de Institutos dos
estados vizinhos, que Cascudo passou a ser sócio da instituição responsável pela guarda da
355
A imprensa pernambucana noticiou: “Realiza-se hoje, as 19 e 1/2 horas, a homenagem do Instituto Arqueológico a
memória do saudoso monarca Dom Pedro de Alcântara. Constará de uma sessão pública, no seu salão de honra, da qual
será orador o jovem historiógrafo Luís da Câmara Cascudo, que dissertará sobre a tradição e a moral de Dom Pedro II. O
Instituto Arqueológico convida todos os seus associados para sessão de hoje e bem assim aqueles que desejem associar-se
a essa homenagem ao grande brasileiro”. [ATAS]. Diário de Pernambuco, Recife, PE, p. 1, 03 dez. 1925. Instituto
Arqueológico. Material pesquisado na Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), em Recife. Material digitado porque foi
através do microfilme, os originais não estavam disponíveis para pesquisa.
356
CASCUDO, Luís da Câmara. Histórias que o tempo leva... da história do Rio Grande do Norte. Mossoró: Esam, 1991.
(Mossoroense, 757). Edição fac-símile. Este livro se constitui num pequeno livro de contos que tem como eixo central a
narrativa de aspectos da História do Rio Grande do Norte, publicado em 1924. Foi o primeiro livro do autor a ser lançado
nacionalmente.
357
STUDART, Barão de. Histórias que o tempo leva. A Imprensa, Natal, RN, ano 11, n. 2345, p. 01, 21 dez. 1924.
358
CASCUDO, Luís da Câmara. Anhangá, o mito de confusão verbal. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico Pernambucano, Recife, PE, v. 32, n. 151-154, p. 76, jan./dez, 1932.
107
memória sagrada do Rio Grande do Norte, local que depois foi denominado por ele, de “casa
da memória potiguar”.
Câmara Cascudo tomou posse como sócio efetivo no Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte, em sessão solene ocorrida no dia vinte e nove de março de 1927,
data de aniversário da criação do IGHRN. A Ata da 27ª sessão solene de posse da Diretoria e
das comissões permanentes do IHGRN registrou o momento em que Cascudo ingressou na
“Casa da Memória” do Rio Grande do Norte
359
:
Aos vinte e nove dias do mez [sic.] de Março do anno de mil novecentos e
vinte e sete, às vinte horas, no salão nobre do Palácio da Presidência do
Estado, nesta cidade Natal, presentes os Senhores Doutores Hemeterio
Fernandes Raposo de Mello, Nestor dos Santos Lima, [...], Dom José Pereira
Alves, bispo diocesano, Dr. Augusto Leopoldo, vice-presidente do Estado;
[...], os novos associados: Desembargadores Francisco de Albuquerque
Mello, e Silvino Bezerra Netto, [...], e o Acadêmico Luís da Câmara
Cascudo. [...]
360
.
Em consulta às Atas do IHGRN, constatamos que, desde logo, Câmara Cascudo
assumiu várias funções importantes no Instituto, tais como a de presidente de comissão de
comemorações solenes da casa, Diretor da Biblioteca do IHGRN, coordenador de projetos de
livros de homenagens, orador oficial, secretário da casa e redator da Revista do IHGRN
361
.
Elas também nos revelam que já a partir de abril
362
, ou seja, do mês seguinte a sua integração
ao Instituto, Cascudo passou a secretariar as reuniões, uma vez que passou a assinar as Atas
como responsável:
[...] O Snr.(sic) Presidente declarou que tendo o Instituto deliberado festejar
o 1° centenário de nascimento do Marechal Deodoro da Fonseca, nomeava
uma comissão dos Snrs.(sic) Drs. Luiz Antonio, Julio Rezende e Luís da
Câmara Cascudo para organizar a solenidade. [...]. O sócio Luis da Câmara
Cascudo apresentou e justificou um projecto (sic) para que o Instituto
publique em volume algumas produções do poeta Lourival Açucena, nascido
a 17 de Outubro de 1827, como homenagem ao seu primeiro centenário.
359
ATA da Sessão Solene de posse da Diretoria e Comissões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte,
do dia 29 de março de 1927. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 23-
24, p. 342-343, 1926-1927.
360
Ibid., p. 342-343. A Ata foi assinada pelos sócios: Hemeterio Fernandes Raposo de Mello, Nestor dos Santos Lima e Julio
de Mello Rezende.
361
Cfe. ATAS de Sessões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, do dia 17 de julho de 1927. Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 23-24, p. 348-349, 1926-1927.
362
Ver anexo B (foto de uma página da Ata de abril de 1927, na qual Câmara Cascudo aparece como um dos
sócios assinantes responsáveis por ela).
108
Posto a votos, foi o projecto (sic) aprovado e designado Luís da Câmara
Cascudo para escrever o prefácio e dirigir a publicação
363
.
Cascudo foi por muitos anos o orador oficial do IHGRN e participou ativamente de
suas sessões até o início da década de 1980, quando já atuava como sócio benemérito. As suas
últimas participações em sessões do Instituto foram marcadas por um misto de saudade e
compromisso com a Instituição. Em 1982, na página de abertura da Revista do IHGRN,
Cascudo expressaria estes sentimentos:
Entre os Sócios Beneméritos, vivos, sou o mais antigo do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte. E assim, com os olhos da saudade,
vejo o salão nobre, suas sessões solenes, sua valiosa biblioteca o maior
acervo bibliográfico do Estado, as comemorações festivas, homenagens,
evocações, vida histórica de nossa terra, na dimensão do tempo e do espaço.
Quantas vezes falei de sua tribuna, convivi com os moços e veteranos
confrades, participei das intenções beneméritas do Instituto, agora
octogenário. Saúdo, pois, esse passado eminente, augurando o futuro não
menos ilustre. O destino do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte é avivar, em todos nós, a consciência histórica da nossa vida
vivida. Sua Revista é um documentário revelador do esforço tenaz e
meritório. Os Institutos Históricos e Geográficos têm uma missão, alta e
nobre, de investigar e comunicar o Passado no plano divino do
Entendimento, da União Fraternal [...]
364
. (grifo do autor).
Afastado das sessões por se encontrar adoentado , Câmara Cascudo se fazia
presente nas sessões do IHGRN, pois seus textos eram enviados e lidos por sua filha Ana
Maria ou pelo presidente da casa. Ele próprio se referia a essa presença não física da seguinte
maneira:
Saúdo os 82 anos do venerando Instituto Histórico. E numa festa de
congraçamento e júbilo, posse de velhos amigos e figuras da elite cultural do
País, com saudação do querido Nilo Pereira, sinto-me presente à romaria
363
ATA de Sessão do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, do dia 29 de março de 1927.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 23-24, p. 344-359,
1926-1927.
364
CASCUDO, Luís da Câmara. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal,
RN, v. 73-74, 1981-1982. [Apresentação].
109
lírica e histórica de hoje, vivendo o timbre sentimental do lá menor dos
meus 85 anos
365
. (grifo nosso).
Após seu falecimento, uma série de sessões e publicações do Instituto foram feitas em
sua homenagem, não sendo raros os artigos publicados na Revista do IHGRN que não
referissem e celebrassem o “mestre”. O artigo O Cascudo Polimorfo, do sócio correspondente
do IHGRN, Silvio Meira, publicado na Revista do Instituto em 1993, é um exemplo dessa
reverência ao mais célebre potiguar, como fica evidenciado nesta passagem:
Para dar-lhes um retrato completo de Luís da Câmara Cascudo e de sua obra
teria de falar muitas horas. Só a sua bibliografia encheria o espaço
regulamentar de uma oração acadêmica. Preciso dizer a tão culto auditório, em
poucas palavras o que foi a sua vida e a extensão de sua obra. É um universo,
como bem o classificou Américo de Oliveira Costa, seu biografo, em ‘Viagens
ao Universo de Câmara Cascudo’. Como todo universo seus horizontes
escondem continentes, mares, rios, oceanos e céus lindíssimos. Um pouco de
tudo se encontra na produção extensa variada daquele homem”
366
.
Cascudo foi alvo de inúmeras homenagens por parte do Instituto. Uma das mais
significativas se estendeu de 24 a 30 de dezembro de 1964, por iniciativa de seu presidente
Enélio Lima Petrovich, e da qual resultou um livro publicado pelo IHGRN, em 1969. A
importância dessa homenagem foi destacada na Apresentação do livro que o presidente do
IHGRN elaborou:
Realmente, a iniciativa da ‘Casa da Memória’ a mais antiga instituição
cultural do Rio Grande do Norte significou a primeira manifestação pública
da província, e que obteve acolhida e repercussão nacionais e fora do país,
em louvor da obra e da vida de Luís da Câmara Cascudo. E neste fim de
1968, quando transcorrem os seus 50 anos de labor intelectual ininterrupto e
70 anos de idade (hoje), o Instituto Histórico e Geográfico reuniu tudo o que
se disse na ‘Semana Câmara Cascudo’, e faz publicar este valioso, ao qual
365
CASCUDO, Luís da Câmara. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal,
RN, v. 75-76, 1983-1984. [Apresentação].
366
MEIRA, Silvio. Louvação Cultural de Câmara Cascudo e Homero Homem. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 84 -85, p. 99, 1992-1993.
110
achamos por bem denominar: ‘Luís da Câmara Cascudo sua vida e sua
obra’
367
.
A trajetória de Cascudo no IHGRN, iniciada em 1927, foi marcada pela obstinação em
cumprir a missão que ele próprio se impôs, a de ser um fiel guardador da história do Rio
Grande do Norte. Na maioria das vezes, por ser o orador oficial, era o encarregado de fazer as
conferências e proferir os discursos solenes de homenagem. O trecho que transcrevemos do
discurso que proferiu em homenagem a Felipe Camarão é bastante ilustrativo do prestígio que
Cascudo desfrutava entre seus pares:
Sob a presidência do sr. dr. Nestor Lima, o Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte, em sessão magna comemorativa da passagem do 3°
aniversário da investidura de Felipe Camarão nos posto de Capitão-General
dos índios do Brasil, foi aberta a sessão e o presidente convidou para presidi-
la o exmo. sr. General Cordeiro de Farias[...]. Usou da palavra, em seguida,
o dr. Luís da Câmara Cascudo, orador oficial do Instituto, pronunciando uma
palestra elucidativa sobre a discutida naturalidade de Felipe Camarão,
explicando os fortes argumentos que o levaram, como a outros, a proclamá-
lo, segundo a sua própria e feliz expressão, como, ‘um legitimo papa-
gerimú’[sic.], baseando suas afirmações em fatos e documentos
incontestáveis. Ambos os oradores foram muito aplaudidos
368
.
Em vinte e sete de abril de 1934, Cascudo teve seu nome aprovado como sócio
correspondente do IHGB. Por ocasião de sua posse, foram ressaltados alguns de seus feitos
como historiador, justificando sua participação como membro do mais prestigioso dos
Institutos históricos brasileiros:
Professor de História do Brasil do Atheneu Norte-Rio-Grandense e jovem de
formosa inteligência, que sempre cuidou de aprimorar pela cultura
desinteressada, o Sr. Dr. Luís da Câmara Cascudo foi proposto para sócio
correspondente do nosso velho e benemérito Instituto. Não são poucos, nem
precários, os títulos que lhes justificam a pretensão. [...] A diversos grêmios
367
PETROVICH, Enélio Lima. Luís da Câmara Cascudo: sua vida e sua obra. Homenagem do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Pongetti, 1969. p. 11. Nota explicativa.
368
ATA da sessão magna comemorativa do 3° Centenário de Felipe Camarão, a 14 de maio de 1943. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 38-40, p. 190-191, 1941-1943.
111
históricos e literários, do país e do estrangeiro, pertence o Dr. Luís da Câmara
Cascudo. Fazendo-o agora nosso Instituto seu sócio correspondente
369
.
Foi na condição de confrade do IHGB, que Cascudo conseguiu atingir seu maior
propósito, o de “fazer reviver o passado em função do futuro”
370
, mesmo porque para ele “a
posteridade fará sua casa com o material que juntamos no presente”
371
, assemelhando-se, por
isso, ao modelo difundido por Ranke, no qual “a história não será feita senão a partir dos
testemunhos diretos e das fontes as mais autênticas”
372
:
Talvez mais ainda do que suas facetas de historiador clássico ou de cronista
hagiógrafo, é como historiador positivista que muitas de suas obras
explicitamente históricas o caracterizam. Com efeito, Cascudo empreende
sua escrita da História na esteira da afirmação de Leopold Von Ranke, para
quem o historiador deveria desvendar, no embate com os documentos, aquilo
que realmente aconteceu. Essa é a marca distintiva de sua tese de ingresso
no magistério público sobre A intencionalidade no descobrimento do
Brasil
373
. Essa é também a característica essencial de seus livros sobre
história regional e local. E sem dúvida é o desejo de desvendar a verdade
última dos fatos que está na origem de sua obsessão pela busca das origens,
revelada pela procura da localização exata da Casa do Cunhaú
374
, onde
sacerdotes portugueses, colonos e índios fiéis a Portugal foram mortos pelos
holandeses e seus aliados indígenas; pela descrição minuciosa da Primeira
Igreja do Seridó
375
, da qual a pregação católica se estenderá pelo solo
sertanejo para fazer da fé elemento fundante da identidade do homem do
sertão
376
; pela busca daquele que considerava O mais antigo marco colonial
do Brasil
377
, o padrão que assinalava a posse da terra que hoje corresponde
ao Rio Grande do Norte para a coroa portuguesa e que - materialmente por
ele localizado - é hoje uma das atrações oferecidas aos visitantes do Forte
369
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Rio de Janeiro, v. 169, p. 226-
257, p. 255-256. 1934.
370
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São
Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso
em: 13 ago. 2008.
371
CASCUDO, Luís da Câmara. A função dos arquivos. Separata de: Revista do Arquivo Público, Recife, ano 7-
10, n. 9-12, p. 08, 1952-1956.
372
RANKE, Leopold Von apud GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio
em tempos de memória. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política
e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. p. 29.
373
CASCUDO, Luís da Câmara. A intencionalidade no descobrimento do Brasil. Natal, RN: Imprensa
Oficial, 1933.
374
CASCUDO, Luís da Câmara. A casa de Cunhaú: história e genealogia. Natal, RN: [s.n.], 1933. Trata-se de
um original inédito de livro, recentemente localizado no Memorial Câmara Cascudo, em Natal.
375
CASCUDO, Luís da Câmara. A mais antiga igreja do Seridó. Natal: [s.n.], 1952.
376
Cfe. CASCUDO, Luís da Câmara. Viajando o sertão. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1975.
377
CASCUDO, Luís da Câmara. O mais antigo marco colonial do Brasil. Natal, RN: [s.n.], 1934.
112
dos Reis Magos, sentinela colonial construída sobre arrecifes no encontro do
rio Potengi com o Atlântico
378
. (grifo da autora).
Apesar de longa, esta citação consegue reconstituir a atuação de Câmara Cascudo
enquanto historiador, bem como identificar sobre quais temas da história potiguar ele se
debruçou. Ela, também, evidencia que muitos dos trabalhos de Cascudo se filiaram às
orientações emanadas dos Institutos históricos regionais
379
e do nacional, uma vez que
demonstravam “a obrigação de colher os documentos históricos”
380
.
A ênfase dada por Cascudo aos temas da história da cidade do Natal e ao Estado do
Rio Grande do Norte está vinculada a esta enorme disposição em controlar e preservar as
informações acessadas através dos documentos sobre a história norte-rio-grandense. Por
várias vezes e em diversas situações, os historiadores do IHGRN destacaram a posição
assumida por Cascudo, como confirmado nesse discurso proferido pelo seu confrade, o
historiador Manoel Rodrigues de Melo, em sessão do Instituto potiguar, em 1964:
A História da Capitania do Rio Grande nasce como planta débil em terra
longínqua e distante. [...] Nasce com a Carta de Doação e com o Foral da
Capitania de João de Barros. Nasce com a esquadra discutida de Aires da
Cunha, que Luís da Câmara Cascudo, divergindo dos demais
historiadores, afirma não ter vindo ao Rio Grande do Norte. Nasce entre
sonhos, lutas, fracassos, ambições, vitórias
381
. (grifo nosso).
O IHGRN embora não tenha sido o primeiro Instituto que Cascudo passou a integrar,
foi a instituição na qual sua imagem se perpetuou até os dias de hoje. Ele sempre reconheceu
a importância da Casa da Memória:
378
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista Projeto História, São
Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso
em: 13 ago. 2008.
379
Um exemplo desse modelo defendido pelos Institutos fica evidente no estatuto do Instituto de Pernambuco,
ao qual Câmara Cascudo se filiou ainda em 1925. “O Instituto Arqueológico e Geográfico Pernambucano
tem por fim coligir, verificar e publicar documentos, monumentos e tradições históricas que lhe for possível
obter ou de que tiver notícia, pertencentes à história das províncias que formaram as antigas capitanias de
Pernambuco e Itamaracá, desde a época do seu descobrimento até nossos dias”. RIAGP, v. 1, p. 22. “Todos
os demais Institutos estabeleceram o mesmo princípio em seus estatutos” apud RODRIGUES, José Honório.
A pesquisa histórica no Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1982. p. 40.
380
Ibid., p. 40.
381
MELO, Manoel Rodrigues. Câmara Cascudo: historiador. In: LUÍS da Câmara Cascudo: sua vida e sua obra.
Homenagem do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Pongetti. 1969. p. 69.
113
Esta Casa é uma sentinela. Esta Casa está sempre em permanente serviço. As
figuras augustas, que se vão da lei da morte libertando, sentem-se presentes
na juventude operosa, digníssima de Enélio Lima Petrovich. Nada
desapareceu. É preciso pensar o que é contingente e passageiro, e quais são
as permanentes de nossa própria dignidade. O Exército, a Marinha, o Ensino,
as Casas da Memória, a Cultura, essas darão as gerações futuras as
coordenadas, o caminho para a própria dignidade humana
382
.
Ao adentramos as instalações do IHGRN, sentimos o quanto a presença cascudiana é
marcante. Vale destacar o comentário feito por Almino Affonso que, ao escrever sobre o
intelectual potiguar, chama a atenção para a forte marca cascudiana no ambiente do IHGRN.
Em 1988, atendendo a um convite do referido Instituto, Affonso proferiu conferência, na qual
referiu-se a um “terceiro encontro com Câmara Cascudo, desta vez estranhamente definitivo”:
Havia dois anos, Câmara Cascudo “encantara-se”, como costuma dizer o
presidente Enélio Lima Petrovich. Ao entrar nas dependências daquela
instituição centenária, de imediato dei-me conta pelas fotografias, em cada
parede, evocando o Grande Mestre, pelas revistas cujos ensaios o fazem
reviver, pelas suas obras às dezenas nas estantes da biblioteca, tudo ali
estava a dizer-me que o Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte é a casa de Luís da Câmara Cascudo
383
.
Em inúmeras ocasiões, e valendo-se da função de orador oficial do IHGRN, Cascudo
manifestou sua percepção sobre o papel que os institutos históricos deveriam desempenhar.
Na conferência que proferiu por ocasião do 65° aniversário de fundação do Instituto, Cascudo
fez questão de destacar:
[...] Apelo para vós! A emoção foi sonho, e choque a presença do tempo
rápido do rei da Índia, e o grande poeta vivendo o poema imortal. Esta é a
função dos Institutos. É dizer aos Câmaras Cascudos analfabetos e
efêmeros que passam pela vida: aqui houve determinado fato. Esta é a
pedra, esta é a casa, esta é a ruína, este é o nome, este é o episódio que
honram e dignificam nossa terra e nossa gente. A vida tumultuosa que nos
cerca, a necessidade de andarmos hoje com os motores a jato, determina a
especialização. O órgão tem que ficar para documentar e valorizar o
momento que passa. A História, o passado. Porque tudo é passado, e tudo é
382
CASCUDO, Luís da Câmara. O Instituto Histórico: estímulo e valorização da cultura. Natal, RN: IHGRN,
1967. p. 22. Plaquete em Homenagem ao 65° da Fundação do IHGRN. Edição comemorativa: Natal (1902-
1967). Mensagem Cultural do Instituto Histórico: sua presença e seu testemunho.
383
AFFONSO, Almino. Câmara Cascudo: alma do povo. In: _____. Testemunhos e perfis. Brasília, [s.n.],
1998. p. 64.
114
futuro. [...] Esta, pois, é a Casa da Memória, a casa evocadora, imemorial e
intemporial. Não pertence a ninguém, porque pertence a todos. Guarda os
patrimônios mais vivos, as recordações mais caras
384
. (grifo do autor).
Nesta mesma conferência, o confrade Câmara Cascudo fez também questão de
ressaltar o valor das publicações do IHGRN, como a Revista: “E assim, nasceu o Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. ‘A Casa da Memória’, que hoje, sessenta e
cinco anos depois, tem na sua revista um dos mais altos patrimônios do Nordeste, em
documentação”
385
.
A compreensão de que o Instituto era um dos mais importantes e privilegiados espaços
para o cultivo da memória do povo potiguar e para a produção de sua história fez com que ele
enfatizasse: “Agora mesmo se nós pensarmos psicologicamente na rapidez do presente e na
força do passado, vemos que ao pronunciar estas palavras já elas pertencem ao passado. Já são
patrimônio, já desapareceram, já são uma presença, uma lembrança, uma saudade”
386
.
Foi através de artigos publicados nas Revistas dos Institutos Históricos dos quais fazia
parte que Cascudo alcançou projeção nacional. Nas edições das revistas dos Institutos de
Sergipe e de Alagoas, da década de 1930 e início da década de 1940, encontramos artigos
produzidos por Câmara Cascudo e que versam sobre o período da Dominação Holandesa,
revelando seu interesse na história colonial brasileira.
A partir da década de 1930, Cascudo passa a colaborar em vários números da Revista
do IHGRN
387
. Cabe ressaltar que, à época, as temáticas dos artigos eram escolhidas pelos
próprios confrades, e que Câmara Cascudo era um dos responsáveis pela Comissão Editorial
da Revista, favorecendo a divulgação de seus trabalhos.
384
CASCUDO, Luís da Câmara. O Instituto Histórico: estímulo e valorização da cultura. Natal, RN: IHGRN,
1967. p. 20-21. Plaquete em Homenagem ao 65° da Fundação do IHGRN. Edição comemorativa: Natal
(1902-1967). Mensagem Cultural do Instituto Histórico: sua presença e seu testemunho. Ressaltamos que,
segundo informações obtidas na Plaquete, esta conferência foi proferida de improviso, no salão nobre do
IHGRN, em 29 de março de 1967.
385
Ibid., p. 19.
386
Ibid., p. 21.
387
Sobre a Revista do IHGRN, sabe-se que “foi criada conjuntamente com a fundação da entidade (1902). O seu
primeiro número data de 1903 e o último, de [2001], sendo essa edição comemorativa do [Quinto] Centenário
do Rio Grande do Norte. No decorrer desses anos de 1903 a 1996, a historiografia colonial norte-rio-
grandense nela presente geralmente se reporta às incursões dos franceses em terras potiguares, à concessão de
sesmaria, aos jesuítas na colonização da Capitania, aos missionários franciscanos nas aldeias e aldeamentos,
aos principais [chefes] indígenas, aos povos indígenas e seus conflitos, ao domínio Holandês, ao cultivo do
algodão pelos gentios, às crônicas de viajantes, às consultas do Senado da Câmara ao Conselho Ultramarino,
ao surgimento dos municípios, ao regimento de ofícios de sapateiro, alfaiate e ferreiro, dentre outras tantas
matérias”. ARAÚJO, Marta Maria de; SILVA, Ana Verônica O. O Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte e o seu acervo documental da História Colonial do Rio Grande do Norte e Brasil.
HISTEDBR. 2006. Disponível em: <www.histedbr.fae.unicamp.br/navegando/artigos_frames/ artigo_
082.html>. Acesso em: 10 abr. 2007.
115
Sua consagração, no entanto, se daria com a nomeação para o cargo de historiador
oficial da cidade do Natal, em 1948, e com a publicação dos dois livros históricos, a História
da Cidade do Natal (1947) e a História do Rio Grande do Norte (1955), patrocinados,
respectivamente, pela prefeitura de Natal e pelo Governo do Estado do Rio Grande do Norte.
3.3 O historiador contador de histórias
A capa do jornal Tribuna do Norte, da cidade do Natal, que circulou no dia da morte
de Cascudo estampava a seguinte manchete: “Natal perde o seu contador de histórias
388
.
Para Margarida de Souza Neves, isto se devia ao fato de:
Além de inúmeras crônicas e escritos breves dedicados a biografar
personagens célebres e gente do povo, Cascudo escreve livros biográficos,
em especial livros dedicados à personagens ligadas à monarquia no Brasil,
quer por sua relação com a família imperial, como é o caso do conde d’Eu;
quer por pertencerem aos quadros da burocracia de estado da monarquia,
como o Marques de Olinda, para ele uma entidade isolada, única,
definitiva”, discreto e eficiente a ponto de ser muitas vezes esquecido pelos
cultores de pirotecnias na fixação da memória do Império; quer ainda por
serem figuras de interesse para o conhecimento do século XIX brasileiro,
fossem eles intelectuais, coronéis empreendedores, viajantes, médicos,
jornalistas, religiosos ou mesmo um inimigo figadal do Brasil
389
.
388
NATAL perde o seu contador de histórias Tribuna do Norte, Natal, RN, 31 jul. 1986. Texto da primeira
página. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/blog.htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
389
Este aspecto pode ser constatado nos seguintes livros por ele publicados: CASCUDO, Luis da Câmara. Conde
D’Eu. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1933; O Marquez de Olinda e seu Tempo (1793-1870). São
Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938. (Prefácio do Conde Affonso Celso), p. 32; Vida breve de Auta de
Souza, 1876-1901. Recife: Imprensa Oficial, 1961; Jerônimo Rosado (1861- 1930): Uma ação brasileira na
província. Rio de Janeiro: Pongetti, 1967; O príncipe Maximiliano de Wied-Neuwied no Brasil (1815-1917).
Rio de Janeiro: Kosmos, 1977. (Ilustrado com reproduções de originais da expedição.); Em Memória de
Stradelli. Manaus: Livros Clássicos, 1936; O doutor Barata. Político Democrático e Jornalista. Bahia, 1762.
Natal, 1838. Bahia: Imprensa Oficial do Estado, 1938; CASCUDO, Luís da Câmara, et al. O homem de
espanto. Natal: Tipografia Galhardo, 1947. Trata-se de um livro sobre D. Vital, um dos dois bispos
envolvidos na chamada Questão Religiosa do final do Império, e sua publicação permite inferir a relação de
Cascudo ex-maçon que abandona a maçonaria para casar-se com D. Dhália com os círculos católicos
ligados ao Centro D. Vital. Ainda que a quase totalidade do livro seja do autor potiguar, encontramos
também no livro trechos transcritos de outros autores como Alceu Amoroso Lima, Jackson de Figueiredo e
D. Jaime de Barros Câmara apud NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano
Incurável”. Revista Projeto História, São Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
116
Assim, boa parte de seus escritos, alguns deles publicados nas revistas dos Institutos
Históricos, enfocaram a história do século XIX a partir das trajetórias pessoais de políticos
ilustres e barões, contemplando o cenário de riqueza e de prestígio pessoal no qual
circulavam. Isto sugere que Cascudo dedicou-se também a temas não ligados exclusivamente
à história do Rio Grande do Norte, como se constata em um exemplar da Revista do IHGRN,
de 1938-1940, para o qual colaborou com um artigo que tratava, entre outros episódios, do
episódio dos Muckers, que ocorreu no Rio Grande do Sul:
Os Muckers (sic), em S. Leopoldo, no Rio Grande do Sul, têm sua guerra de
1873 a 1874. o chefe é João Jorge Maurer, cantando orações, curando pelo
toque, influenciando por forças invisíveis e divinas. É preciso tropa, armas
seguras, comando de um coronel, Genuíno Olimpio de Sampaio, e três
meses de embate e descargas, para que os Muckers se apaguem diluídos,
depois das refregas doidas junto às tendas de couro, derradeiro abrigo dos
chefes, que morrem combatendo. João Jorge Maurer desaparece sem
vestígios. Mas o coronel, morre, furado de balas
390
.
Dos livros de Cascudo que tratam sobre a história do Estado potiguar, se destacam
duas sínteses históricas, uma sobre Natal e a outra sobre o Rio Grande do Norte,
respectivamente, História da Cidade do Natal e História do Rio Grande do Norte, e livros
como Governo do Rio Grande do Norte; Nomes da Terra; Os holandeses no Rio Grande do
Norte; Breve História do Palácio Potengi e A Casa de Cunhaú
391.
.
Esses livros não apenas evidenciam sua concepção de História, como refletem o seu
apego às tradições e sua formação conservadora, adquirida junto à família e nos bancos
escolares, tanto no Atheneu Norte-Rio-Grandense, quanto na Faculdade de Direito do Recife.
Em seu discurso de posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, Cascudo assim se
manifestou:
390
CASCUDO, Luís da Câmara. Fanáticos da Serra de João do Vale. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, 1938-1940. Natal, RN, v. 35-37, p. 47, 1941.
391
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal: Fundação José Augusto,
1984;_____. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947; _____. Governo do Rio
Grande do Norte: cronologia dos capitães-mores, presidentes provinciais, governadores republicanos,
interventores federais, de 1597 a 1939. Mossoró: Esam, 1989. (Mossoroense, 531) Edição fac-símile;
______. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1968; _____
Os Holandeses no Rio Grande do Norte. Mossoró: Esam, 1992. (Mossoroense, 792) Edição fac-símile;
_____. Breve história do Palácio Potengi. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1978; ______. A Casa
de Cunhaú: história e genealogia. Natal, RN: [s.n.], 1933.
117
História é a memória do tempo. Estabelece a continuidade do esforço
humano, articulando-nos aos trabalhos que justificam nossa presença. Sem
ela, seríamos uma horda bravia. Ai de nós! Nenhuma horda, por menor e
mais bárbara que seja, ontem, hoje e amanhã, deixou e deixa de possuir a sua
história, a sua recordação e o seu orgulho. Na solidão do deserto, imóveis,
hirtos, as duras fisionomias enroladas na brancura do albonorz, as lanças
faiscando, o lume subindo, acocorados, estão esses homens, ouvindo a voz
de um velho, de um poeta, a voz do Passado, lembrando as guerras, as
valentias, as glórias que são o invisível patrimônio explicador do
devotamento
392
.
Nesse mesmo discurso, Cascudo deixou clara a sua admiração por aqueles a quem
denominou santos padroeiros da História do Rio Grande do Norte, e pelos quais expressaria
publicamente sua filiação e respeito, declarando:
Vicente de Lemos, Tavares de Lira e Luís Fernandes são os santos
padroeiros da nossa História provinciana. Não há maior no exemplo.
Iniciaram entre nós os métodos diretos da pesquisa, a exumação dos
arquivos, a divulgação dos velhos códices que o Tempo amarelou. O sr.
Tavares de Lira, deputado, Governador, Ministro de Estado, fixou-se no Rio
de Janeiro, perto de tudo quanto facilitaria uma extensão intelectual. Os dois
ficaram no Natal, desembargadores, tendo os horizontes da incompreensão,
da indiferença e dos raros estímulos. O sr. Tavares de Lira, entretanto, com
mais de trinta anos de Rio de Janeiro, continuou fiel aos trabalhos que
começara, moço, na pequenina Cidade. Continua escrevendo e pesquisando
tudo que se refira ao Rio Grande do Norte. É um nome que todo o Brasil
conhece. Vicente de Lemos está citado nos livros definitivos, seu Capitães-
mores e Governadores do Rio Grande do Norte é, na frase justa do Sr.
Tavares de Lira, o livro clássico do Instituto. O menos conhecido é o meu
patrono. Mas, fatalmente, será, encontrado quando uma atividade maior
acelerar os ritmos de nossa produção intelectual. Quando a História atrair,
com a magia de sua tranqüila beleza envolvedora, as inteligências e as
dedicações, Luís Fernandes reaparecerá, com seu boné de seda, seus olhos
parados, seu sorriso triste, contemporâneo a quem o for encontrado, através
do Tempo
393
. (grifo do autor).
Tendo-os sempre como mentores e inspiradores, Cascudo lançaria seu primeiro livro
histórico de destaque História da Cidade do Natal
394
em 1947, sob o patrocínio da
392
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso de posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (1943). In: NAVARRO, Jurandyr.
Oradores Rio Grande do Norte (1889-2000): biografia e antologia. 2. ed. Natal, RN: Departamento Estadual de Imprensa, 2004. p. 266.
393
Ibid., p. 314.
394
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947. Livro que foi um dos pilares de
projeção da “consagração” de Cascudo, enquanto historiador oficial de Natal. “Constitui-se a obra pioneira na bibliografia natalense
e do Rio Grande do Norte. Reúne artigos publicados na imprensa local, a partir da pesquisa bibliográfica, documental, coleta de
dados e informações do temário histórico-social e cultural, durante as décadas de 1930 e 1940. Compreende-se, então, porque não
existe nos capítulos uma ordem metodológica, como também cronológica do seu temário no tempo e no espaço” apud
GUIMARÃES, Leda. História da Cidade do Natal. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo:
Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 105.
118
Prefeitura Municipal de Natal. A segunda edição data de 1998 e resultou de uma parceria
entre a Editora Civilização Brasileira, o Ministério da Educação (MEC) e a Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). A terceira e última edição data de 1999,
resultou da iniciativa do IHGRN, em parceria com a Prefeitura Municipal de Natal.
Nesse livro História da Cidade do Natal, Cascudo tratou a história de Natal sob os
mais variados ângulos. Se preocupou com aspectos referentes à sua fundação sustentando
que ela foi fundada por Manuel Mascarenhas Homem, que à época era Capitão-Mor de
Pernambuco , e em explicar questões referentes ao nome da cidade e aos nomes de ruas e
bairros. Enfoca passagens desde a conquista e colonização, versando pelo período da
Dominação Holandesa, até chegar à situação em que se encontravam os bairros à época da
escrita. Não descuidou de destacar a projeção que a cidade adquiriu durante a Segunda Guerra
Mundial e as transformações que sofreu por conta disto. O livro conta com fotos de vários
pontos de Natal, tais como a Igreja Matriz e a Igreja Santo Antônio dos Militares, e também
do momento de entrega da chave da cidade a antiga chave do Forte dos Reis Magos , pelo
Prefeito Sylvio Pedroza, a Cascudo, em 1946. Enfim, constitui-se, até os dias de hoje, em
livro de referência para os pesquisadores e estudantes interessados em conhecer melhor as
origens da cidade do Natal.
O livro História do Rio Grande do Norte
395
, lançado pela primeira vez em 1955,
resultou de uma iniciativa de Sylvio Pedroza, tendo sido publicado pelo MEC. Contou com
uma segunda edição, datada de 1984, publicada pela Fundação José Augusto, com o apoio do
Governador, à época, Sr. José Agripino.
O livro História do Rio Grande do Norte de Cascudo é tido como o terceiro livro-
síntese produzido sobre a história do Estado, já que os dois livros anteriores a esse, além de
carregarem o mesmo título, atendiam, praticamente, aos mesmos interesses
396
. O livro escrito
por Cascudo é um manual, uma espécie de história síntese, total, do Estado, que busca de
forma panorâmica, englobar os aspectos históricos da terra norte-rio-grandense, desde a
395
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1984. Para
Marcos Silva, “a História do Rio Grande do Norte, apesar de seu inevitável caráter datado (seleção de temas e fontes,
periodizações, nexos explicativos), preserva uma importância derivada do trabalho com vasta massa documental,
bibliográfica e informativa. O silêncio sobre os saberes populares medicina, justiça, religião, poesia, cotidiano etc., alguns
deles bem estudados noutras de suas obras demonstra que a atividade de Câmara Cascudo como polígrafo não se confunde
necessariamente com uma preocupação multidisciplinar, em que cada campo de conhecimento criticasse outros” apud
SILVA, Marcos Antonio da. História do Rio Grande do Norte. In: ______. (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo.
São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 119.
396
Estamos nos referindo à História do Rio Grande do Norte, de Augusto Tavares de Lyra, 1921, e à História do Rio
Grande do Norte, de Rocha Pombo, 1922. Vale ressaltar que, ao afirmarmos que a História do Rio Grande do Norte,
de Câmara Cascudo, se constitui na terceira síntese produzida sobre a História do Estado potiguar, não desconhecemos a
publicação, em 1877, por Manoel Ferreira Nobre, do livro Breve Notícia sobre a Província do Rio Grande do Norte,
que é reconhecida como a primeira a enfocar a história norte-rio-grandense. Ao apresentá-la como a terceira síntese
produzida sobre a história do Estado potiguar, estamos considerando como suas antecessoras aquelas que difundiam o
pensamento do IHGRN e que são consideradas clássicas pela historiografia norte-rio-grandense.
119
colonização até o início da década de 1950. Ao referir-se ao livro, Cascudo o descreveu da
seguinte forma: “Esta História do Rio Grande do Norte é um trabalho sistemático menos das
fontes impressas do que dos arquivos”
397
, tendo-a justificado a partir da seguinte percepção:
“Pareceu-nos essencial divulgar o conhecimento do passado tendo pouco interesse na fixação
dos comentários pessoais, sempre discutíveis. Procura-se, na fórmula interpretativa, explicar a
razão de acontecimentos e desenhar a psicologia dos homens que estiveram à frente dos
sucessos antigos”
398
.
O livro apresenta um volume de informações e dados que contemplam alguns dos
principais fatos políticos e econômicos do Rio Grande do Norte, Nele, Cascudo privilegia,
claramente, o papel desempenhado por homens raras são as mulheres referidas tidos como
os mais corretos e mais ilustres da sociedade potiguar, membros de uma elite
predominantemente católica, e que ocupam um capítulo inteiro do livro:
O capítulo final do livro biografa personalidades norte-rio-grandenses, com
predomínio da elite masculina: em 131 nomes, três são mulheres (Auta de
Souza, Isabel Gondim e Nísia Floresta) e um é ex-escravo (Félix José do
Nascimento), viés coerente com a proposta de ‘explicar a razão de
acontecimentos e desenhar a psicologia dos homens que estiveram à frente
dos sucessos antigos
399
.
Cascudo inicia o livro, descrevendo as ações dos colonizadores da Capitania do
Rio Grande, e apresentando os índios apenas como figurantes, que desapareceriam no século
XIX. Ao assumir o olhar do colonizador, do senhor que percebia os índios como uma ameaça
para suas terras, Cascudo imprime uma versão oficial a sua História do Rio Grande do Norte.
É, em razão disso, que desde o seu lançamento, o livro vem sendo fonte de consulta
obrigatória para instituições estatais, como a Fundação José Augusto, que em seu site oficial,
se vale das informações divulgadas no livro. Isto é perfeitamente compreensível, pois através
dele:
397
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984. [Introdução].
398
Ibid., 1984. [Introdução].
399
SILVA, Marcos Antonio da. História do Rio Grande do Norte. In: ______. (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José
Augusto, 2003. p. 119.
120
O autor tenta fazer “nascer” a História do Rio Grande do Norte e mostrou
uma história que tinha como um de seus principais objetivos a busca pelas
origens e seu progresso, idéia que o mesmo corroborou quando escreveu no
início do livro que: ‘[...] tenta-se evocar como nasceu a Capitania do Rio
Grande, viveu a Província que é o Estado dos nossos dias’
400
. (grifo da
autora).
Para a elaboração do livro, Cascudo recorreu a vários de seus artigos e pesquisas,
mas também podem ser identificadas algumas passagens recolhidas dos livros de Tavares de
Lyra e de Rocha Pombo. Ao analisarmos a História do Estado escrita por Cascudo,
observamos que esta foi elaborada basicamente com as mesmas fontes utilizadas por Tavares
de Lyra e Rocha Pombo, em suas Histórias do Rio Grande do Norte. O livro de Cascudo, no
entanto, contempla outros tipos de fontes como as orais, por exemplo , uma vez que ele
pretendia, a partir de uma abordagem mais antropológica, dar conta dos costumes do povo
norte-rio-grandense. Isto fica evidente na “estratégia argumentativa utilizada por Cascudo”
que se vale de “anexos documentais ou metodológicos em cada capítulo, abordando tópicos
específicos dos temas tratados antes”
401
.
Governo do Rio Grande do Norte data de 1939 e é um livro mais biográfico do que
propriamente político. Podemos classificá-lo como uma biografia dos nomes mais importantes
da política norte-rio-grandense. Nele, Cascudo traz as biografias de personagens das elites
políticas locais, não deixando de contemplar os aspectos políticos, na medida em que estes
interferem diretamente na trajetória de vida dos biografados. É um livro considerado
importante por fornecer dados importantes para a elaboração de biografias coletivas e,
também, por reconstituir a história política do Estado do Rio Grande do Norte. De acordo com
Marc Hoffnagel, o livro Governo do Rio Grande do Norte:
Apesar de muitas ressalvas, trata-se de uma obra que não deve ser
desprezada. Os dados pesquisados pelo autor sobre o nascimento, a
procedência, a formação acadêmica, a profissão e os laços familiares dos
biografados fornecem elementos básicos para biografias coletivas da elite
política potiguar e brasileira. Assim, o Governo do Rio Grande do Norte se
constitui em valioso instrumento de pesquisa para aqueles que se interessam
400
Cfe. LIMA, Bruna Rafaela de. A atuação jesuítica na Capitania do Rio Grande na visão de Augusto
Tavares de Lira e Luís da Câmara Cascudo. 2006. f. 32. Monografia (Graduação em História) --
Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2006.
401
SILVA, Marcos Antonio da. História do Rio Grande do Norte. In: ______. (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José
Augusto, 2003. p. 114-115.
121
pela história política do Brasil, representando um importante legado para o
pesquisador contemporâneo
402
.
Em Nomes da Terra, encontramos um estudo sobre o povoamento do Estado e sobre a
toponímia norte-rio-grandense. Pode-se dizer que neste livro prevalecem o geógrafo e o
lingüísta sobre o historiador, na medida em que Cascudo se preocupou com a distribuição da
população e com as formas de ocupação do território potiguar. Nele, mais uma vez, ele
desconsideraria a importância dos indígenas:
O grande ausente em seu livro, no entanto, é aquele que mais contribuiu para
a designação dos topônimos norte-rio-grandenses: o índio. Mesmo dando
crédito aos indígenas pelos inúmeros nomes da terra que criaram, Cascudo
faz com que eles apareçam minimizados na História do Rio Grande do
Norte: nem mesmo a guerra de resistência de quase cinqüenta anos, citada
aqui e acolá, desfaz a impressão de uma ocupação pacifica da terra pelos
portugueses, enquanto os índios eram ‘vilados’
403
.
Para a historiadora Fátima Martins, em Nomes da Terra: “além da ‘toponímia’,
Cascudo também apresentou uma pequena análise sobre a formação histórica do Rio Grande
do Norte e penetração colonial portuguesa nas suas terras”
404
, atribuindo importante papel
aos colonos, negros e índios, pois “Para Cascudo, é desta gente colonos empobrecidos, mas
persistentes, índios conquistados, mas renitentes [sic.], negros escravizados, mas presentes
que se formou a população do Rio Grande do Norte. [...]”
405
.
Em Os Holandeses no Rio Grande do Norte, Cascudo se valeu das fontes impressas,
da literatura e do folclore para reconstituir o período de ocupação holandesa na Capitania,
enfocando as disputas pela posse do território e os embates culturais e religiosos. O livro
reuniu os artigos em que Cascudo tratou deste tema e que haviam sido publicados na Revista
do IHGRN. O olhar de antropólogo, muitas vezes, se impôs de forma preponderante sobre o
do historiador, como bem observado por Raquel Mizrahi:
402
HOFFNAGEL, Marc. Governo do Rio Grande do Norte. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José
Augusto, 2003. p. 96-97.
403
LOPES, Fátima Martins. Nomes da terra. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo.
São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 212.
404
Ibid., p. 210.
405
Ibid., p. 210.
122
O antropólogo, informalmente, e algumas vezes irônico, relatou inclusive
sobre cenas dramáticas ocorridas na luta contra o jugo holandês. Depois de
análise minuciosa conseguiu identificar diversos acidentes geográficos,
renomeados pelos cientistas holandeses. O domínio do folclore regional, da
tradição oral, utilizando ‘provas dignas de respeito e merecedoras de citação’
e estudos comparativos transformam-se em fontes estimulantes a novas
pesquisas sobre o domínio holandês no Rio Grande do Norte
406
.
Breve História do Palácio Potengi, é uma plaquete que trata de um dos capítulos do
livro História da Cidade do Natal, que originalmente tinha o título “Onde morava o
Governo”. O capítulo foi revisto, ampliado e republicado em 1961, oferecendo valiosa
colaboração para a reconstituição da cronologia dos governantes do Rio Grande do Norte,
desde a colonização até o início da década de 1960, e pelo estudo minucioso sobre os espaços
oficiais do Estado que realiza:
[...] o texto de Câmara Cascudo pode suscitar uma discussão sobre a
construção e desconstrução dos territórios e lugares na cidade. As sedes do
governo, dentro de seu caráter simbólico, ora consolidam territórios, ora
promovem o aparecimento de outros, valorizando ou incentivando a
ocupação de novas áreas, muitas vezes seguindo as mesmas leis e regras de
mercado que dominam a distribuição dos usos e ocupações na cidade
capitalista
407
.
A Casa de Cunhaú trata especificamente de um episódio ocorrido em julho de 1645.
Trata-se, na verdade, do martírio de dois padres e alguns leigos que se encontravam rezando
numa capela , pelos índios comandados por Jacob Rabi, um alemão encarregado de
disseminar o medo para consolidar o regime na Capitania. Os religiosos envolvidos no
episódio se tornariam Protomártires do Brasil
408
, no ano de 2000. O livro descreve a região
406
MIZRAHI, Raquel. Os Holandeses no Rio Grande do Norte. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José
Augusto, 2003. p. 126.
407
FERREIRA, Angela Lúcia de Araújo. Breve história do Palácio Potengi. In: SILVA, Marcos (Org.).
Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN,
Fundação José Augusto, 2003. p. 20.
408
Segundo informações obtidas do Monsenhor Francisco de Assis Pereira, Postulador da Causa dos Mártires:
“No ano de 1645, quando a colonização do Rio Grande do Norte ainda estava recente, os padres André de
Soveral e Ambrósio Francisco Ferro, mais o leigo católico Mateus Moreira e 28 companheiros, foram
assassinados por calvinistas holandeses. Durante o martírio, eles afirmaram a fé na Eucaristia. Mateus
Moreira, no momento em que lhe arrancavam o coração pelas costas, exclamava: “Louvado seja o Santíssimo
Sacramento”. PROTOMÁRTIRES. Arquidiocese de Natal. Disponível em: <http//:www.arquidiocesede
natal.org>. Acesso em: 13 out. 2007. O massacre desses religiosos ocorreu nas terras de Cunhaú e foi
registrado por Cascudo quando escreveu sobre as terras de Cunhaú.
123
onde aconteceu o martírio, oferecendo, ainda, informações valiosas para a História da Igreja
no Brasil. Em sua análise sobre A Casa de Cunhaú, Mário Ruldolf observou que:
A leitura descuidada desse texto traz, imediatamente, uma confusão de
nomes, datas e informações minuciosas, num espaço curto de palavras, mas
extenso e na formação do Brasil. [...] O centro da pesquisa e da narrativa é
Cunhaú, pequeno canto do Nordeste brasileiro, onde vivem homens e
mulheres e acontecem fatos que não podem ser ignorados por quem quer
entender um pouco melhor o Brasil
409
.
Diante do exposto, consideramos a possibilidade de analisar a trajetória do Cascudo
historiador a partir da definição de três momentos. Esclarecemos, contudo, que esta
periodização tão linear e compartimentada não implica negar e desconhecer a dinâmica
que envolveu a vasta produção histórica de Cascudo.
O primeiro momento compreenderia o período entre o final da década de 1920 e a
década de 1930, momento em que ele escreveu inúmeros artigos que viriam a ser publicados
pela Revista do IHGRN. Neles, se pode constatar que Cascudo se dedicou a biografar os
“grandes” homens e os principais representantes dos Governos, enaltecendo a Monarquia.
Para exemplificar, transcrevemos um trecho de um artigo publicado em 1928, na Revista do
IHGRN, e que se trata, na verdade, da conferência que proferiu, em 1925, no Instituto de
Pernambuco, por ocasião do primeiro centenário de nascimento de Dom Pedro II:
[...] Mesmo assim o Imperador não permitia a eternidade dos gabinetes.
Queria o equilíbrio. Ia chamando uns e outros. Era a intervenção pessoal tão
negada mais absolutamente existente. [...] Estas virtudes sem vícios
cacterisantes (sic.) e brasileiros, elevou-o acima dos caricaturistas,
desenhistas, jornalistas, oradores trovejantes e tribunos do Povo, no tempo
em que havia Povo
410
.
Durante a década de 1930, os artigos encaminhados para publicação pela Revista do
IHGRN também passaram a tratar de temas ligados aos costumes e às tradições populares e
409
RULDOLF, Mário. A Casa de Cunhaú. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São
Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 29.
410
CASCUDO, Luís da Câmara. Sobre o Sr. Dom Pedro II. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 15-16, p. 210-211, 1928.
124
com as origens de alguns topônimos, como por exemplo, do termo potiguar
411
,
preocupação que ganharia mais espaço no livro Nomes da Terra:
O meu velho amigo e companheiro Mário Melo informava ao nosso patrício
que potiguar, traduzido por ele, era coisa diversa e seria muitíssimo curioso
alguém orgulhar-se de ser coprófago. Como eu havia escrito que o Sr.
Godofredo Freire não tinha errado empregando potiguar, e que potiguar não
era nome injurioso, e ainda podia perfeitamente ser o comedor de camarão,
fiquei tranqüilo por ter acertado. [...] Logo podemos escrever tranqüilamente
potiguar sem a menor ofensa às regras do nheêgatú e a tradição. Neste
ponto, a questão está finda. Potiguar é comedor de camarão. Eu o desejaria
apenas<<procedente de camarão>>. O particípio nominal guar de (decoar),
está confundido com guar, úar, particípio do verbo ú, comér, o-que-come, o
comedor. Os verbos acabados em u tem por sufixo guar em vez de uhar. Daí
potiguar ser procedente do camarão ou comedor de camarão, se tomarmos o
particípio como sendo nominal no primeiro caso, ou tempo do verbo comer,
no segundo
412
.
No final da década de 1920, depois da falência do jornal A Imprensa, Cascudo passou
a colaborar com o jornal A República, escrevendo artigos bastante variados, passando a
assinar a coluna intitulada Actas Diurnas
413
, a partir de 1939. Nestes artigos jornalísticos, se
dedicaria a temas mais populares mais banais até e voltados para o grande público
natalense e norte-rio-grandense
414
. Estes artigos vêm sendo organizados, pelo IHGRN desde a
década de 1970, tendo resultado em vários volumes da coleção O Livro das Velhas Figuras,
no qual encontramos “eventos importantes para a história local, bem como o fato simples,
elemento do costume, componente da cultura popular; tudo examinado na perspectiva humana
dos personagens que o produziram”
415
.
Em uma das Actas Diurnas intitulada Discurso de Doutor e conversa de pobre se
propôs a narrar a história do índio Antonio Felipe Camarão. Em razão da linguagem popular
411
CASCUDO, Luís da Câmara. O nome “Potiguar”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte: 1935-1937, Natal, RN, v. 32-34, p. 37-46, 1940.
412
Ibid., p. 38-39.
413
Segundo Margarida Neves: “Suas ‘Actas diurnas’, registros breves do que ‘vira e ouvira’ pessoalmente ou
descobrira nos arquivos cujo destino’, segundo suas próprias palavras, ‘é preparar os elementos da
Posteridade’, foram leituras diárias de gerações do Rio Grande do Norte”. NEVES, Margarida de Souza.
Viajando o Sertão: Luís da Câmara Cascudo e solo da tradição. In: CHALLHOUB, Sidney; NEVES,
Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo A. de M.(Org.). História em cousas miúdas: capítulos de história
social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Ed. da UNICAMP, 2005. p. 239.
414
A partir da década de 1970, os artigos da Acta Diurna passaram a ser publicados sob a forma de livros pelo
IHGRN, compondo a Coleção intitulada O Livro das Velhas Figuras, título escolhido pelo próprio Cascudo.
415
GALVÃO, Cláudio A. Pinto. O Livro das Velhas Figuras. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José
Augusto, 2003. p. 159.
125
e de uma espécie de diálogo mantido com o leitor , bem como da polêmica que estimulou, o
artigo viria alcançar um grande número de leitores
Pernambucanos e norteriograndenses [sic.] disputam a honra da naturalidade
do índio potiguar dom Antonio Felipe Camarão. Confesso não ter
entusiasmo por esses prélios [sic.] infindáveis. Todos os documentos
permitem os luxos da dialética e as agilidades intelectuais da controvérsia.
Até que apareça uma razão irrespondível, corram as falações inutilmente.
Creio, entretanto, sem meter-me na liça, que o chefe indígena era nosso
conterrâneo
416
.
Na etapa seguinte o terceiro momento que definimos , temos um Cascudo mais
preocupado em consolidar e assegurar a posição de historiador oficial, o que o levou a se
dedicar à produção de livros com perfil de sínteses históricas , como os publicados a partir
da segunda metade da década de 1940, com destaque para a História da Cidade do Natal, de
1947, e a História do Rio Grande do Norte, de 1955, trabalhos que foram encomendados
pelos poderes públicos.
Um exemplo dessa intenção em se projetar como um historiador oficial pode ser constatado
no texto da dedicatória que Cascudo escreveu no exemplar de História da Cidade do Natal, que deu
a Sylvio Pedroza, prefeito de Natal à época: “A Sylvio Piza Pedroza, cuja alegria em amar e servir a
cidade do Natal é herança espiritual de três gerações fieis ao mesmo sentimento, ofereço, dedico,
consagro esta viagem no Tempo, olhando a terra comum... L. da C.C.”
417
.
Por mais de seis décadas, o Cascudo historiador privilegiou temáticas que tinham estreita
relação com sua vida, com a sua formação familiar e acadêmica, com os livros que leu e criticou
cuidadosamente armazenados na sua Babilônia e com a sua insaciável vontade de ver, ouvir,
sentir, registrar e guardar o que os homens de seu Estado já haviam vivido ou viviam. O jornalista
Assis Angelo, em artigo divulgado no Folhetim da Folha de São Paulo, de 08 de janeiro de 1979,
ressaltou esta característica da produção cascudiana, valendo-se de uma entrevista que Cascudo
lhe concedeu, para afirmar que: “O bom humor é marca registrada neste homem que nas horas de
416
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso de Doutor e conversa de pobre. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte: 1941-1943, Natal, RN, v. 38-40, p.162-163, 1946. Publicado
originalmente em A República, 17 maio 1943. Acta Diurna.
417
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947.
[Apresentação].
126
leitura, que são muitas, delicia-se com Heródoto, Plínio, Tácito, Petrônio, Terêncio, Montaigne,
Cícero, Aristóteles, Platão, Plauto, Homero, Ovídio, Sêneca, Anatole France etc.”
418
.
Na seqüência, este Cascudo historiador, cuja concepção de História e produção
histórica apresentamos e analisamos neste capítulo, será enfocado enquanto um historiador
católico. Um historiador que, em vários momentos de sua vida, não deixou de vivenciar e
expressar sua fé e devoção católica.
Ao reconstituirmos sua história de vida, pudemos constatar que já na mocidade
Cascudo manteve estreitas ligações com a Igreja Católica e com seus representantes (padres,
bispos e leigos engajados), com associações eclesiásticas e com a imprensa católica,
manifestando grande interesse em livros que tratavam da História da Igreja no Brasil, como
revela o acervo de sua biblioteca, a Babilônia.
Com o objetivo de identificar as marcas da fé e do catolicismo em sua produção,
analisaremos alguns de seus livros, artigos e depoimentos, destacando a visão que trazem, em
especial, sobre a atuação da Igreja Católica durante alguns episódios da história política
brasileira e potiguar e sobre o papel desempenhado pelos religiosos jesuítas durante a fase
da conquista e da colonização do Rio Grande do Norte.
418
ANGELO, Assis. O Velho que sabe tudo. Entrevista com Luís da Câmara Cascudo. Folha de São Paulo, São
Paulo, 08 jan. 1979. Folhetim. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13
ago. 2008.
127
4 O HOMEM DE FÉ E O HISTORIADOR CATÓLICO
“A primeira das virtudes sociais é a Fé. O resto é
conseqüência funcional. Para acreditar é preciso
compreender e amarmos com os sentidos do coração”
419
.
Neste capítulo, além de enfocarmos a religiosidade do historiador potiguar,
procuramos identificar e analisar as repercussões dos vínculos que manteve com a Igreja
Católica em sua produção intelectual.
A epígrafe extraída do artigo divulgado no jornal A República, de 26 de maio de
1959 revela a percepção que Cascudo tinha nessa fase de sua vida sobre fé. Para o
ilustre potiguar, a fé deveria ser vivida e sentida pela via dos sentidos, consistindo numa
experiência individual, como um ato de amar e de compreender o outro e a si mesmo. Nela,
Cascudo deixava claro que atribuía à fé também uma função de responsabilidade social,
classificando-a como uma das mais importantes virtudes humanas e sociais.
Em outros momentos de sua vida, Cascudo voltaria a reafirmar sua fé. Em uma
entrevista concedida em 1977, afirmou: Sou católico, fumo e bebo tanto quanto deixam”
420
,
e, em outra, em 1979, declarou que se percebia como “um homem mais de fé do que de
culto”, capaz de “recusar a extrema-unção”, mas empenhado em buscar se “entender
pessoalmente com Deus”
421
. Essa última afirmação, que nos sugere um Cascudo avesso à
ritualística católica romana, nos instiga a desvendar a constância ou não dessa sua postura
percorrendo as várias etapas de sua vida e trajetória como intelectual e reconstituindo os
vínculos que manteve com alguns setores e níveis da hierarquia da Igreja Católica em âmbito
regional e nacional.
Em muitos de seus escritos, Cascudo explicitou sua fé em Deus e sua devoção aos
santos, bem como sua percepção sobre o papel desempenhado pela Igreja e por seus
representantes em vários períodos da História do Brasil e, especificamente, do Rio Grande do
Norte. Neste capítulo, nos valemos de artigos publicados em revistas e em periódicos
eclesiásticos ou não , plaquetes e passagens de suas principais produções históricas, nos
419
CASCUDO, Luís da Câmara. Dom Helder Câmara, o padre Helder. In: ______. O Livro das velhas figuras:
(pesquisas e lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2005. v. 9, p. 121. (publicado
originalmente no jornal A República, 26 maio 1959).
420
ANGELO, Assis. O Velho que sabe tudo. Entrevista com Luís da Câmara Cascudo. Folha de São Paulo, São
Paulo, 08 jan. 1979. Folhetim. Disponível em:<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13
ago. 2008.
421
CASCUDO, Luís da Câmara. Luiz da Câmara Cascudo, 79 anos, surdo e quase cego. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 29 nov. 1977. Caderno B, p. 4.
128
quais Cascudo aborda aspectos da História da Igreja no Rio Grande do Norte, destaca
manifestações de religiosidade popular e expõe sua percepção sobre a atuação de autoridades
religiosas de sua época, tais como o Arcebispo Dom Helder Câmara, e, ainda, sobre a
formação de paróquias no Rio Grande do Norte
422
.
Serão, também, alvo de nossa atenção as relações, sobretudo as de amizade, que
Cascudo manteve com membros do alto clero, como Dom Marcolino Dantas
423
, personagem
emblemático da Igreja Católica norte-rio-grandense, cujo período de atuação é tido como
marco divisório na história da Arquidiocese, e com intelectuais estreitamente vinculados ao
mundo católico potiguar, como Otto Guerra
424
, professor da faculdade de Direito da UFRN,
jornalista, sócio do IHGRN e imortal da Academia de Letras do Rio Grande do Norte, uma
das personalidades mais influentes no Estado.
422
Referimo-nos ao texto de Cascudo intitulado Paróquias do Rio Grande do Norte. CASCUDO, Luís da Câmara
Paróquias do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Departamento de Imprensa, 1955. Plaquete. Esta revela a
incursão que Cascudo fez na historiografia religiosa do Rio Grande do Norte, ao se debruçar sobre o processo
de criação das paróquias do estado. Há, também, outra plaquete escrita por ele, e que trata da criação e da
história da Paróquia de Nova Cruz no Rio Grande do Norte, tendo sido encomendada a Cascudo por ocasião
do aniversário de fundação da Paróquia. Trata-se de Notas para a História da Paróquia de Nova Cruz.
CASCUDO, Luís da Câmara. Notas para a História da Paróquia de Nova Cruz. Natal, RN: Arquidiocese
de Natal, 1955. Plaquete.
423
Dom Marcolino Esmeraldo de Souza Dantas foi o 4º Bispo e 1º Arcebispo da Arquidiocese de Natal, esteve a
frente do comando do bispado norte-rio-grandense entre 1929 a 1967. Sobre a atuação de Dom Marcolino na
Arquidiocese, temos as informações do Pe. Normando Pignataro Delgado (Coordenador da cúria metropolitana de
Natal e também membro do IHGRN): “A Arquidiocese de Natal pode ser analisada como uma Igreja particular
que teve em dom Marcolino Dantas, o seu 4º Bispo, (1929-1967), o marco divisório entre antes e depois do seu
longo governo de 38 anos. A esmerada formação do clero deu a Dom Marcolino o galardão de Grande Bispo de
Natal. Construiu o prédio do Seminário de São Pedro, o Dispensário Sinfrônio Barreto, o Santuário de Santa
Teresinha, lançou a pedra fundamental da nova Catedral, restaurou o jornal diocesano e criou onze paróquias. Em
1945 comemorou solenemente o Tricentenário do Morticínio de Cunhaú e Uruaçu e, em 1953, Bi-centenário da
aparição da imagem de Nossa Senhora do Rosário, no Rio Potengi. Incentivou a realização de Congressos
Eucarísticos Paroquiais, como o de Canguaretama, de Currais Novos e de São José de Mipibu. No decorrer deste
último, ele ordenou um filho da terra, o mipibuense Manuel Tavares de Araújo, que, depois, foi sagrado bispo. No
seu governo foram criadas as dioceses de Mossoró e de Caicó. Em 1952 foi criada a Arquidiocese de Natal, que
como sede metropolitana, teve por sufragâneas as duas dioceses do Estado”. Disponível no site:
<www.arquidiocesedenatal.org.br/arquidiocese/ dommarcolinoesmeraldo>. Acessado em julho de 2008. Dom
Marcolino mantinha estreitos laços de amizade com Câmara Cascudo, razão pela qual foi um dos autores imortais
da Academia que deixou depoimento sobre Cascudo na Plaquete de homenagem originada de evento na Academia
Norte-Rio-Grandense de Letras. LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947.
Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
424
Otto de Brito Guerra foi advogado e jornalista, tendo sido, também, um dos imortais da Academia que
escreveu depoimento homenageando Cascudo na Plaquete de homenagem que foi proposta em evento na
Academia Norte-Rio-Grandense de Letras. LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal, RN: Centro de
Imprensa, 1947. Plaquete de Homenagem dos seus amigos, abril de 1947. Aliado a Cascudo foi um dos
fundadores da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, sendo o 1º vice-reitor da Instituição. Como
jornalista foi um dos primeiros diretores do Jornal A Ordem, jornal que foi o primeiro veículo de informação da
Igreja Católica do Rio Grande do Norte: “Nos primeiros anos de funcionamento, o Jornal era dirigido por um
grupo de intelectuais católicos, entre eles: Otto de Brito Guerra, Manuel Rodrigues de Melo e o professor
Ulisses de Góis. Sua sede, onde funcionava a redação e a oficina, ficava situada na Rua Dr. Barata, no Bairro da
Ribeira, em Natal”. (grifo nosso). Informações obtidas através do Link. HISTÓRIA do Jornal. A Ordem.
Disponível em: <http://www.arquidiocesedenatal.org.br>. Acesso em: 09 set. 2007.
129
Dentre os aspectos que destacaremos da produção histórica de Cascudo está a visão
que o historiador tinha sobre a atuação da Companhia de Jesus e, conseqüentemente, dos
missionários, tanto no processo de conquista e colonização da Capitania do Rio Grande,
quanto na fundação da cidade do Natal , procurando vinculá-la a sua formação familiar e
acadêmica e as suas relações de amizade ou não com membros da hierarquia católica
nacional e regional.
As mais variadas manifestações de catolicismo presentes na produção cascudiana e
que justificam a denominação de homem de fé
425
que Cascudo recebeu, especialmente, de
representantes do clero potiguar
426
e a importância que o intelectual atribuiu à fé e às
expressões de devoção religiosa na representação que construiu sobre si, sobretudo, em seus
escritos memórias e entrevistas
427
serão enfocadas a seguir. Para o que nos propomos nos
próximos subcapítulos, consideraremos, ainda, o arquivamento de papéis, os marcadores de
textos e as fotografias, as cartas escritas, as anotações feitas em diários e as coleções que
Cascudo acumulou ao longo de sua vida
428
, pois entendemos que essas ações constituíram
uma “escrita de si”, responsável por uma “memória de si” que o apresentava como um homem
de fé e de moral católica.
425
Ao apresentarmos Cascudo como um homem de fé, não desconhecemos, contudo, a importante advertência
feita por Margarida Neves sobre as dificuldades inerentes ao enquadramento de Cascudo nesta ou naquela
categoria: “[...] Não é trivial a tarefa de apresentar uma síntese da obra de Cascudo. Personalidade vulcânica e
galvanizadora, o filho do coronel nordestino que assumiu como sobrenome familiar a identidade
conservadora de seus ancestrais, foi simultaneamente o pesquisador respeitado internacionalmente
e o
freqüentador assíduo da zona da Ribeira; o tradutor dos poemas de Walt Whitman e o entusiasta dos versos
de cordel do sertão brasileiro [...]” NEVES, Margarida de Souza. Roteiros para descobrir a alma do Brasil:
uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. 2000. Disponível em: <http//:www.modernosdescobridores.com.br>.
Acesso em 13 ago. 2008. Relatório parcial de pesquisa CNPq.
426
Não desconhecemos os interesses envolvidos em depoimentos, discursos e elogios fúnebres feitos por
membros da cúpula católica norte-rio-grandense, nem os de Cascudo, ao vincular-se à Igreja Católica do
Estado.
427
Estamos cientes dos cuidados que devemos ter ao considerar e analisar esse tipo de fonte, já que “a escrita de
si assume a subjetividade de seu autor como dimensão integrante de sua linguagem, construindo sobre ela a
‘sua verdade’. [...] O que passa a importar para o historiador é exatamente a ótica assumida pelo registro e
como seu autor a expressa. Isto é, o documento não trata de “dizer o que houve”, mas de dizer o que o autor
diz que viu, sentiu e experimentou, retrospectivamente, em relação a um acontecimento [...]”. GOMES,
Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.).
Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 14.
428
Como bem observado por Gomes: “Essas práticas de produção de si podem ser entendidas como englobando
um diversificado conjunto de ações, desde àquelas mais diretamente ligadas à escrita de si propriamente dita
como é o caso das autobiografias e dos diários até a constituição de uma memória de si, realizada pelo
recolhimento de objetos materiais, com ou sem a intenção de resultar em coleções”. Ibid., p. 11.
130
4.1 Um homem de fé
Câmara Cascudo nasceu e cresceu em uma família católica. Seu batizado feito pelo
padre João Maria, tornado santo pelo povo potiguar , ocorreu em maio de 1899, quando ele
contava com menos de um ano de idade, atestando o respeito que a família tinha pelo ritual
católico
429
. Os anos que se seguiram, marcados como não poderia deixar de ser pela
religiosidade familiar, exerceram influência não apenas sobre o menino Cascudinho, mas
também sobre o intelectual que se manifestaria, anos mais tarde, em artigos
430
e memórias
431
,
sobre temas que diretamente ou indiretamente tinham relação com a História da Igreja e com
as manifestações de devoção religiosa popular
432
.
Em artigo escrito em 1920, Cascudo destacaria não apenas as virtudes do padre que o
havia batizado e que considerava santo, como revelaria conhecimento sobre a vida de alguns
santos da Igreja Católica:
A Bondade é uma só na essencia (sic). Moldalidade (sic) do poder de Deus,
a Bondade, como a Graça, vem doada ao coração do predestinado como o
primeiro signete (sic) de redempção (sic). São Martinho dando metade de
sua capa à um mendigo, São Juan de Dios, despindo-se para agazalhar
creanças (sic), Santo Antonio vendendo-se para resgatar escravos, são
reflexos naturaes (sic) da mesma bondade e da mesma fé, do mesmo desejo
d’amor ao próximo e d’esperança na salvação, o mesmo sentimento que
impellia (sic) São Raymundo Nonato à falar de paz e de luz nos lôbregos
ergástulos d’Argelia ou São Francisco d’Assis abraçar, em transportes, as
árvores e as pedras. João Maria tinha o coração cheio d’esse amor infinito e
incomprehensivel (sic) dos Santos. Era fundamentalmente bom. A sua
virtude resplandecia sobre todos. Adversários ou amigos, todos, se curvavam
ante a sua vida, longa serie (sic) de lutas, como a de São Servulo foi cheia
de sofrimentos. <<O humilde vigário de Natal, diz Antonio de Souza o fino
espírito de crença e de coração, << que nunca foi arcebispo, mas que bem
merecia um frei de Luiz de Souza que lhe escrevesse a vida>> Durante sua
passagem pela terra, o parocho (sic) natalense seguiu a risca os preceitos
áureos do Sermão da Montanha. Foi um puro, um sincero, senhr d’um’alma
429
Os pais de Cascudo integravam a elite norte-rio-grandense, marcadamente católica, e viveram num período que
antecedeu o fim do Padroado, em decorrência da Proclamação da República. Já Cascudo, apesar de ter sido criado
nesse mundo, viveu os efeitos da cisão entre Igreja e Estado e do movimento da Restauração Católica, um “projeto
bem concreto de restauração da influência do catolicismo dentro da sociedade brasileira, contando, para isso, com
o apoio expressivo do próprio poder político”. AZZI, Riolando. A neocristandade: um projeto restaurador. São
Paulo: Paulus, 1994. p. 9. (História do pensamento católico no Brasil, v. 5).
430
Referimo-nos ao artigo de abertura da Revista Província II, a qual traz uma homenagem da Fundação José
Augusto a Cascudo pelos seus setenta anos de vida e cinqüenta de trajetória intelectual. O artigo de Cascudo a
que nos referimos intitula-se Provinciano Incurável.
431
Como exemplos, podemos citar o artigo Provinciano Incurável e o livro O Tempo & Eu.
432
Seus trabalhos enfocavam tanto as manifestações devocionais populares católicas, quanto o candomblé e o catimbó.
131
forte, sadia e poderosamente votada para o Bem. Logo após sua morte, o
Povo canonizou-o. Esta consagração veio depressa e bem merecidamente
433
.
Cabe lembrar que Cascudo nasceu na última década do século XIX, em um período
em que a Igreja Católica no Brasil passava por profundas mudanças em decorrência da
implantação da República e do fim do Padroado no Brasil. Sua família de tradição
monarquista e formação religiosa conservadora associou-se ao movimento de religiosos e
leigos: “Não era apenas no mundo dos pensadores católicos que a defesa da monarquia como
única forma de governo legítima e oportuna para o Brasil era mantida e estimulada com
esperanças de restauração. Entre o povo simples do sertão, muitos vigários e rezadores leigos
trilham o mesmo caminho, nem sempre com muita clareza”
434
.
Acreditamos que a produção de Cascudo foi grandemente influenciada por esta
religiosidade cultivada no ambiente familiar e escolar
435
, e por uma vertente mais
conservadora do pensamento católico que se expressaria de forma mais intensa e explícita em
alguns momentos de sua trajetória acadêmica e pessoal
436
.
As marcas do catolicismo de Cascudo estão muito evidentes em seus escritos, como se
pode constatar nesta passagem, de uma Acta Diurna de 1939, em que ele ressalta o
simbolismo de que se revestem os sinos para os fiéis católicos: “Sinos da Matriz...
testemunhas das vidas, pranto das mortes, saúdo vossa história, sino, signum, sinal, arauto da
solidariedade, guarda da Fé, soldado perpétuo em posto inarredável, gritando com voz de
bronze, no meio das ventanias de todos os orgulhos, no turbilhão da poeira doirada e efêmera
dos homens, a hora de Deus, no dia de César...”
437
. (grifo do autor). No mesmo artigo,
Cascudo reafirma o papel que os sinos tinham de congregar as multidões que, através deles, se
reconheciam em sua devoção comum:
433
CASCUDO, Luís da Câmara. Padre João Maria. Revista do Centro Polymathico. Natal, RN, ano 2, n. 4,
p. 25-26, mar. 1921. (Datado pelo autor de novembro de 1920).
434
LUSTOSA, Oscar F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 23.
435
Vale lembrar que o primeiro colégio em que Cascudo estudou foi um colégio religioso o Externato Coração
de Jesus no qual permaneceu por pouco tempo. Em seguida, foi transferido para um colégio dirigido por
padres, o colégio Diocesano Santo Antônio.
436
Fundamentamos esta nossa percepção na afirmação de Margarida de Souza Neves, para quem se pode
encontrar num texto “em sua tessitura e em sua recepção, uma expressão do autor como sujeito histórico e de
sua versão sobre o tempo vivido”. NEVES, Margarida de Souza. Literatura: prelúdio e fuga do real. Revista
Tempo, Niterói, RJ, v. 9, n. 17, p. 81, 2004.
437
CASCUDO, Luís da Câmara. Os sinos da matriz. In: ______. O Livro das velhas figuras: (pesquisas e
lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2002. v. 7, p. 23. (publicado originalmente no jornal
A República, 31 dez 1939).
132
Quando nossos sinos vibravam era uma mensagem a todos os espíritos
esparsos nos limites da Cidade melancólica. Reunia-os mentalmente,
fundindo-os ao acento vibrante daquele universal falando pela boca metálica
e entendido pelos corações. Há uma linguagem, um código, um estranho
abecedário que atravessava os ares, indo, pelo som, como a palavra dos
Profetas, do ouvido às almas. Congregava a voz difusa da multidão...
438
.
Elas podem ser também encontradas em um outro artigo que Cascudo escreveu em
1939, e que foi publicado no jornal A Verdade, sob o título “Câmara Cascudo escritor
católico. Nossa Senhora da Apresentação”. É oportuno relembrar que Cascudo era devoto
dessa santa Nossa Senhora da Apresentação que é a Padroeira de Natal, o que pode
explicar a descrição sensível que faz da atmosfera que envolvia as homenagens prestadas
pelos devotos:
Do alto do seu altar, a Santa do Rosário, apresentada a 21 de novembro,
vê passar os anos e as vidas confiadas à sua misericórdia. Guerras,
campanhas, sofrimentos, loucuras, ódios, voam como turbilhões de poeira,
sem rastro para a eternidade. Cada ano, no aniversário, acende-se o Céu
escuro de novembro com as alegrias luminosas dos fogos, queimados em sua
honra. Uma multidão se adensa, numa oferenda que os tempos mudam de
forma, mas conservam a intenção pura. Pequenina e serena, vinda do Mar
numa hora de Sol, a Padroeira olha a Cidade que ela própria escolheu para
residência perpétua, há cento e oitenta e seis anos. E a Cidade se larga e
multiplica, descendo e subindo os morros, abraçando os taboleiros nos vinte
braços do casario ininterrupto. E o olhar da padroeira maior se terna (sic),
acompanhando a vida social do rebanho que Ela apascenta, para entregar
depois, alma por alma, às mãos divinas do Filho
439
. (grifo nosso).
Por sua devoção à Padroeira, pelo grande prestígio que desfrutava junto às autoridades
clericais e governamentais, e por sua condição de historiador oficial de Natal, Cascudo foi o
orador oficial da festa de entronização da Padroeira de Natal em um nicho no prédio da
Prefeitura Municipal, em 1946. A cerimônia cívico-religiosa consistiu no traslado da imagem
da Santa Padroeira de Natal da Catedral Metropolitana para a Prefeitura de Natal, onde a
imagem se encontra até os dias de hoje. O evento contou com a participação das autoridades
civis e militares, de associações religiosas, estabelecimentos de ensino, corporações militares
438
CASCUDO, Luís da Câmara. Os sinos da matriz. In: ______. O Livro das velhas figuras: (pesquisas e
lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2002. v. 7, p. 22-23. (Publicado originalmente no
jornal A República, 31 dez 1939).
439
CASCUDO, Luís da Câmara. Câmara Cascudo escritor católico: Nossa Senhora da Apresentação. A
Verdade, Natal, RN, 21 nov. 1939. Geral, p. 06.
133
e do povo natalense e de outras cidades, tendo sido promovido pelo prefeito Sylvio Pedroza e
pelo Arcebispo Dom Marcolino Dantas. A cerimônia teve grande repercussão em Natal e em
todo Estado, mobilizando uma multidão de fiéis numa procissão grandiosa pelas principais
ruas de Natal. Por solicitação do então prefeito, “Em nome do povo da Capital usará da
palavra, em discurso que será irradiado pela Radio Poty e Serviço de Alto-Falantes da cidade,
o escritor Luiz da Câmara Cascudo, convidado especialmente pelo Prefeito da Capital para
este fim. Também S. Excia. Revma. Dom Marcolino Dantas pronunciará algumas palavras”
440
. Após ter acompanhado a procissão, Cascudo pronunciou seu discurso, que mereceu
grande destaque ao ser divulgado pela imprensa local: “Antes da imagem atingir o limiar do
edifício, o historiador Luiz da Câmara Cascudo da sacada principal proferiu uma das suas
entusiásticas orações que foi ouvida pela grande massa que se comprimia nas imediações”
441
.
O Cônego José Adelino Dantas, em discurso proferido na Academia Norte-Rio-
Grandense de Letras, em 1947, valorizaria a postura de homem de fé assumida por Cascudo,
revelando não apenas o apoio que recebia do alto clero potiguar, mas também o perfil ideal de
intelectual para a Igreja Católica no período:
[...] Cascudo, como renomado intelectual que é, desconhece a vaidade da
descrença. Afastou-se em tempo da massa amorfa dos letrados que se
gloriam de seu nihilismo [sic.] espiritual. Cascudo nunca se sentiu menos
homem e menos ilustre por ter procurado e encontrado na balança de sua
vocação luminosa, a admirável equação entre o valor do Pensar e o valor do
Crer. Crê pensando, em plena pujança, em pleno meio dia de suas glórias
intelectuais. Livrou-se, assim, da agonia mental e torturante dos que
perderam ou repeliram o contato entre a Fé e a Cultura. Na sua brilhante
excursão pelos campos dessa mesma cultura, ele ainda não encontrou, como
tantos dizem ter encontrado, aquela linha divisória, a separar como
incompatíveis os domínios do Dogma e da Ciência
442
.
440
IMPORTANTES inaugurações da Prefeitura Municipal do Natal. A República, Natal, RN, p. 01, 14 ago.
1946. Ver anexo C (foto da procissão da santa no dia do evento citado).
441
ENTRONIZADA a imagem da Padroeira de Natal na sede da Prefeitura. A República, Natal, RN, p. 01, 17
ago. 1946.
442
DANTAS, José Adelino. Luiz da Câmara Cascudo Homem de Fé. In: LUIZ da Câmara Cascudo
(Depoimentos). Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 12. Plaquete de Homenagem dos seus amigos,
abril de 1947.
134
Cascudo, por sua vez, também explicitaria sua admiração por homens de fé de sua
época, como fica atestado nesta referência que faz a Dom Hélder Câmara
443
:
Uma das minhas alegrias reais é ser contemporâneo de D. Hélder Câmara. A
coincidência de minha vida com a presença vibrante do grande Prelado
valoriza-a. Porque quem valoriza a vida é o homem e para que este não
perecesse desceu do céu e o Filho de Deus para sofrer e reensinar-lhe o
roteiro da eternidade. D. Hélder Câmara é a glória silenciosa, conquistada na
cotidianidade da Fé intrépida. Onde ele passa fica queimando um vestígio
luminoso de sua dedicação incomparável. [...] ‘Profissionalmente D. Helder
Câmara é um professor de fé’
444
.
A profunda admiração que Cascudo tinha pelo trabalho de Dom Hélder levou-o a
apresentá-lo como exemplo de homem de fé: “O homem é o denominador, [...], pregoeiro da
Onipotência, criado à semelhança da Perfeição. D. Helder vive esse destino. Ascendem a
classe das missões admiráveis todas as iniciativas do seu gesto”
445
. É oportuno lembrar que a
amizade entre Cascudo e Dom Hélder e a sintonia na oposição ao “comunismo ateu” se
estenderiam às posições políticas que ambos assumiriam durante a década de 1930, quando
vestiram a camisa verde do Integralismo
446
.
Além dos evidentes e estreitos laços que manteve com representantes e setores
institucionais da Igreja e o respeito que tinha por alguns religiosos tema que será abordado
mais detidamente no próximo subcapítulo , foram inúmeras as situações em que Cascudo
443
Hélder Pessoa Câmara nasceu em Fortaleza no Ceará, em 1909. Era filho de um guardador de livros e de uma
professora. Aos quatorze anos entrou no Seminário da Prainha de São José, em Fortaleza, onde cursou
filosofia e teologia. Seguiu uma vida religiosa bastante polêmica, se colocou em favor dos pobres, e foi tido
por muitos contemporâneos como o “santo rebelde” da Igreja Católica de seu tempo. Dentre suas passagens
polêmicas, podemos citar a participação na Câmara dos quatrocentos do Integralismo. Em 1931, aderiu ao
Integralismo (versão brasileira do Fascismo) que viria a abandonar cinco anos depois. Exerceu, em Fortaleza,
suas atividades sacerdotais entre intelectuais e operários, nunca tendo sido vigário. Trabalhou ativamente na
Liga Eleitoral Católica do Ceará e, em 1934, foi nomeado pelo governador Francisco Menezes Pimentel
diretor do Departamento de Educação do Estado, cargo equivalente hoje a secretário estadual de educação.
Em 1952 foi nomeado bispo no Rio de Janeiro. A partir de 1964, tornou-se bispo de Olinda e Recife, e foi um
dos idealizadores da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Pelo seu trabalho em defesa dos
direitos humanos, Dom Hélder recebeu vários prêmios internacionais, entre os quais se destacam o Prêmio
Martin Luther King, Estados Unidos, 1970, e o Prêmio Popular da Paz, Oslo, Noruega, 1974. Entre as
honrarias, recebeu títulos de Doutor Honoris Causa em universidades de vários países. Autor de 22 livros, a
maioria ensaios e reflexões sobre o Terceiro Mundo e a Igreja. Morreu em Recife em 1999.
444
CASCUDO, Luís da Câmara. Dom Helder Câmara, o padre Helder. In: ______. O Livro das velhas figuras:
(pesquisas e lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2005. v. 9, p. 120. (Publicado
originalmente no jornal A República, 26 maio 1959).
445
Ibid., p. 121.
446
Apesar da adesão de primeira hora por alguns de seus membros ao Integralismo, a Igreja Católica não se
deixou enredar no movimento, que viria a ser esmagado por Vargas durante o Estado Novo. Ver mais em
BRUNEAU, Thomas. O Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola, 1974. p. 80.
135
manifestou uma fé de menino do sertão, uma fé que remete à religiosidade doméstica da
gente mais simples do Nordeste. Em um artigo escrito em julho de 1946, Cascudo apresenta
“Madrinha Filó” como “Santa do meu oratório familiar”:
Ninguém, entretanto, maior que essa senhora tímida e doce, recatada e
humilde, feita de coração e de sorridente melancolia de crepúsculo
sentimental. Era uma ovelha do rebanho divino, uma das mais próximas ao
invisível Pastor, fiel ao seu olhar que jamais deixou de ver, obedecer e
seguir. [...] E o seu sorriso era como um clarão de lâmpada sagrada
clareando as almas. Recordo-a, desde menino, por ela abençoado. Santa do
meu oratório familiar, minha Madrinha do São João, a primeira que escolhi e
amei sempre, viva no espírito de criança. Recordo-a em nossa casa,
respondendo a quem procurava identificar a pessoa que se anunciava,
batendo as palmas: o é ninguém... sou eu, Filó...
447
. (grifo do autor).
Para justificar a curiosa condição, Cascudo enumera as muitas virtudes de sua
madrinha: a timidez, a doçura, o recato, a humildade e a profunda obediência da “ovelha do
rebanho divino” ao “invisível Pastor”. Para ele, a vida de sua “Madrinha Filó” havia sido
pautada por uma conduta perfeita aquela que era capaz de santificar alguém aspecto que
voltaria a ser destacado na referência que faz a sua morte:
Deus lhe recebeu a alma luminosa, intacta e branca como lha entregará no
momento em que lhe dera a vida. Filó a restituiu ainda mais pura, mais doce,
mais luminosa pelo sofrimento, pela sua grande vida silenciosa e modesta.
Dom Marcolino deu-me a noticia de sua morte na manhã linda que me
pareceu escurecer e turvar-se. Fechei os olhos, comprimindo as lágrimas,
viajando para a infância, revendo-a. Na onda amarga do primeiro soluço, só
uma frase me veio aos lábios, pronunciada com o coração: Minha
Madrinha, lembra-te de mim quando estiveres no paraíso...
448
(grifo do
autor).
Dessas passagens, depreende-se que uma conduta cristã perfeita aquela que a Igreja
Católica pregava aos seus fiéis e que Cascudo destacou elogiosamente em sua madrinha era
aquela pautada pelo recato, pela humildade e pela profunda obediência ao “invisível Pastor”.
À exaltação dessas virtudes e à manifestação de concordância com as orientações do clero
potiguar, se somaria a recomendação de que os sacramentos e os rituais católicos romanos
447
CASCUDO, Luís da Câmara. Minha Madrinha Filó. A República. Natal, RN, 21. jul. 1946. Acta Diurna, p. 03.
448
Ibid., p. 03.
136
fossem observados, como revela o artigo “Guardarás o Domingo”, publicado em junho de
1948, no Diário de Natal. Neste artigo, Cascudo faz em um tom conservador a defesa da
moral católica e da própria Igreja Católica, criticando o desvirtuamento da função do “Dia do
Senhor”:
Guardarás o sábado, disse o Senhor a Moisés. Os judeus, religiosamente, o
guardaram enquanto não tiveram domínio comercial. Depois ninguém aceita,
sendo dono de casa, a semana inglesa, o meio sábado. Os cristãos passaram
para o domingo, dando-lhes nome de Dia do Senhor, Dies Dominica, Dies
Solis, Sonnntag, Sunday, Diamanche, Dia do Sol. Nos candomblés e
macumbas, fiéis aos deuses sudaneses, o Domingo é dedicado a todos os
Orixás de Xangô até Orixalá. O domingo é dia de alto respeito silencioso na
Europa, especialmente nos países luteranos, anglicanos, calvinistas, etc. O
católico vai ao teatro, às corridas, às farras no domingo. O protestante
tem uma veneração real ao Dia do Senhor. Muito mais bem comportado
aos olhos do Eterno que o católico romano, displicente e engraçadinho
por natureza
449
. (grifo nosso).
Em outra Acta Diurna, desse mesmo período, essa crítica se traduziria num alerta:
Até Deus precisa dos sinos!”, na qual deixou evidente sua preocupação em relação ao futuro
da Igreja Católica no Brasil: “Traduz-se que a Igreja de Deus não dispensará os instrumentos
de aviso, chamando, reunindo, alertando seus fiéis. Não há Exército sem clarins. Nem cidade
sem comunicações de telefone e rádio. Com a organização da defesa civil vimos o papel
salientíssimo das sirenes fazendo a cobertura sonora da população, afastando-a do perigo,
disciplinando-a”
450
. Nessa passagem, Cascudo chamava a atenção para a importante função a
ser exercida pela Igreja a do ordenamento moral dos fiéis , e apontava para as estratégias
que ela adotaria para conseguir congregar novamente os fiéis.
Em uma Acta Diurna, de 1948, Cascudo homenageia a memória do Comandante
Gurmencindo Portugal Loretti
451
, exaltando não apenas a sua conduta, mas também criticando
o fato deste ter perdido a fé, destacando a importância que a fé tinha para a continuidade da
vida:
449
CASCUDO, Luís da Câmara. Guardarás o Domingo. Diário de Natal, Natal, RN, 14 jun. 1948. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
450
CASCUDO, Luís da Câmara. Até Deus precisa dos sinos! Diário de Natal, Natal, RN, 12 set. 1947. Acta
Diurna. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
451
Gurmencindo Portugal Loretti “Era um dos grandes orientadores da campanha pela nacionalização da pesca.
Moço, elegante, orador, irradiando simpatia, teve seu nome tão espalhado pelo Brasil como nenhum
almirante conseguira”. CASCUDO, Luís da Câmara. Epitáfio de uma cultura. Diário de Natal, Natal, RN, 19
jul. 1948. Acta Diurna. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25
jan. 2009.
137
Todos os elementos de vitória estavam ao alcance daquele oficial de
Marinha, mocidade, prestígio, notoriedade. Era inteligente, incisivo,
disciplinador, querido. A máquina possuía todas as peças. Faltava, para
continuar a ação, o comburente indispensável, energia essencial, motor
primário, a Fé, crer, acreditar, confiar. Não mais a possuía. [...] A força da
gravidade, de coesão, é a Fé, ligação, cimento, fixação eterna. Se a Fé
desaparece tudo se esfacela, dissipado como poeira, instituições, estados,
consciências, doutrinas, organizações. O comandante Portugal Loretti
perdera a Fé e com ela o poder de criar, reunir, viver. Toda cultura que
perder a Fé terá o epitáfio com os mesmos dizeres: ‘Morro porque perdi a
Fé…
452
. (grifo do autor).
Acreditamos que o apoio que Cascudo recebeu do alto clero potiguar deve, sem
dúvida, ser atribuído às posições conservadoras que assumiu como atestam alguns artigos
que escreveu nas décadas de quarenta e cinqüenta do século XX , e que revelavam a plena
identificação com as preocupações que a Igreja Católica tinha no período. A fé de Cascudo
como procuramos mostrar nesse subcapítulo não esteve, no entanto, circunscrita
temporalmente ou condicionada aos vínculos mais estreitos que manteve com a Igreja
Católica durante um determinado período de sua vida
453
.
Em muitos de seus escritos produzidos após a década de sessenta, sobretudo naqueles
que enfocaram o folclore brasileiro, encontramos referências a manifestações de devoção
popular, como neste artigo, de 1971, intitulado Calendário das festas:
As festas religiosas, oragos paroquiais, novenas de promessas, mantém o
hinário velho pelo interior do Brasil, a doçaria secular, espécimes ainda de
sabor árabe, as aproximações amorosas, com bailes, “assustados”, rifas,
leiloes, com os instrumentos musicais de outrora, violões, sanfonas, violas,
rabecas e as danças de par enlaçado, valsas, polcas, schottischs e as
quadrilhas marcadas aos berros entusiastas. Certamente tudo se nivela ao
irresistível impulso da comunicação fácil, levando aos mercados mais
longínquos os produtos distantes e sedutores, fácil vitória sobre os velhos
454
.
452
CASCUDO, Luís da Câmara. Epitáfio de uma cultura. Diário de Natal, Natal, RN, 19 jul. 1948. Acta Diurna. Disponível
em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
453
Apesar dessa forte ligação de Cascudo com a Igreja Católica, não encontramos, estranha e curiosamente, qualquer indício
de que Cascudo tenha participado de alguma irmandade religiosa. Segundo pudemos apurar junto a estudiosos das
irmandades religiosas no Rio Grande do Norte, um forte indício de que Cascudo não foi membro de qualquer confraria,
irmandade ou ordem terceira está no fato de não ter sido enterrado trajando roupa de alguma irmandade específica. Na
consulta que fizemos às fontes não localizamos qualquer comentário sobre a presença dos irmãos de irmandade no
enterro, tanto em livros de memória dele, quanto em artigos que trataram de seu falecimento.
454
CASCUDO, Luís da Câmara. Calendário das festas. In:______. Informação do Folclore Brasileiro: calendário das
festas. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1971. p. 1.
(Coleção Cadernos de Folclore, 5).
138
Nesse mesmo artigo, Cascudo se deteve na devoção popular a alguns santos e nas
festividades religiosas em que o sagrado e o profano conviviam harmoniosamente. O primeiro
deles foi São Gonçalo do Amarante, que era festejado no dia 10 de janeiro, com danças e
promessas de comida. Segundo Cascudo, durante o século XIX, a Dança de São Gonçalo era
uma festividade bastante prestigiada do sul ao norte do Brasil e que “Ainda resiste em São
Paulo e mesmo seus devotos cumprem a tradição numa e noutra localidade do centro e do
norte, apesar da guerra dos vigários. Em São Paulo há imagens de São Gonçalo Violeiro.
Prometem um jantar, servir de criado, juntando dinheiro para os violeiros que louvam o santo
dirigindo as duas filas de fiéis em passo rítmico”
455
. Apesar do interesse em registrar as
expressões de fé popular
456
Cascudo não deixou de manifestar seu respeito pelos preceitos e
rituais católicos, adquiridos em sua formação cristã na infância:
Entre FEVEREIRO e ABRIL ocorre a Semana Santa com o impressionante
cerimonial. [...] Quarenta dias depois do Domingo da Ressurreição era a
Quinta-Feira da Ascensão, Dia da Hora, cheio de superstições e cautelas.
Dez dias depois cai o Domingo do Espírito Santo (Pentecostes), quando
tínhamos as festas do Divino, a eleição do Imperador do Divino, trazidas de
Portugal e ilhas. No domingo imediato é a Santíssima Trindade, dia
poderoso para orações fortes e promessas desesperadas, e a primeira quinta-
feira é o Corpus Christi, Dia do Corpo de Deus, com a procissão famosa
onde saía São Jorge, fardado de general, acompanhado pelos lacaios e
recebendo as continências da tropa enfileirada no percurso do desfile
457
.
Cascudo escreveu, também, sobre uma outra festividade bastante tradicional no Nordeste,
a Festa dos Reis ou Folia de Reis que, segundo ele, tinha origem em Portugal, pois:
Na península Ibérica, os reis continuam vivos e comemorados, sendo a época
de dar e receber presentes, “os reis”, de forma espontânea ou por meio de
grupos, com indumentária própria ou não, que visitam os amigos ou pessoas
conhecidas, na tarde ou noite de 05 de janeiro (véspera de reis) cantando e
dançando ou apenas cantando versos alusivos a data e solicitando alimentos
455
CASCUDO, Luís da Câmara. Calendário das festas. In:______. Informação do Folclore Brasileiro: calendário das
festas. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Campanha de Defesa do Folclore Brasileiro, 1971. p. 2-3.
(Coleção Cadernos de Folclore, 5).
456
Cascudo exaltou, ainda, que: “OUTUBRO é o Mês do Rosário e NOVEMBRO, Mês das Almas por causa do
dia 2 de novembro, comemoração dos Fiéis Defuntos. As Encomendações das Almas, desfiles de penitentes
brancos, flagelando-se e encantando [cantando] orações, indo rezar à meia-noite nos cruzeiros solitários,
assombravam a todos. A devoção das Almas, Missa das Almas pela madrugada ou dita por elas mesmas, é
uma fonte poderosa do sobrenatural nas lendas e estórias populares brasileiras. Não há localidade sem seus
espectros fixos ou mutáveis”. Ibid., p. 6.
457
Ibid., p. 3.
139
ou dinheiro. Os colonizadores portugueses mantiveram a tradição no Brasil e
de todo ainda não desapareceu o uso nalgumas regiões
458
.
Em 1974, Cascudo publicou Religião no Povo, livro no qual procurou, segundo ele
mesmo definiu na Introdução, mostrar como o povo vivia o Espírito Divino no seu cotidiano:
“interessava o Espírito Divino nas entidades grupais dentro da Igreja ou fora dela. O
comportamento exprimindo a convicção íntima de uma ortodoxia hereditária.” [...] Lógico
que registrasse unicamente os atos populares influídos pelo credo católico. Não havendo a
intenção religiosa, excluía-se da colheita”
459
. Ao invés de falar de religião do povo, preferiu
falar da religião no povo, a partir da observação dos modos de ser religioso e católico do povo
brasileiro, principalmente, do povo nordestino.
Em sua maturidade, sobretudo a partir da década de setenta, Cascudo passou a
evidenciar, cada vez mais, uma vivência muito pessoal de sua fé católica, como se pode
constatar no Regimento Interno que elaborou e que pode ser percebido como uma releitura
que fez dos Dez mandamentos. Dentre as dez leis que instituiu para si, destacamos a sétima
lei “Não ajudar o Diabo” e a décima, e última “Não ser o Quinto Evangelista”
460
– pela
inevitável associação à religião católica. É desse mesmo período a afirmação de que “o povo
faz seu santo...”
461
e o registro que fez da tradição dos ex-votos e da percepção popular dos
milagres:
a representação do órgão ou parte do corpo humano curado pela intervenção
divina e oferecido ao santuário em testemunho material de gratidão. Os
milagres são quadros registrando o episódio ou objeto de cera, ouro, prata ou
marfim, materializando a parte doente que sarou. Há milagres feitos
toscamente em gesso, madeira, osso. Nas grandes igrejas, nos lugares de
romaria, há sempre a casa dos milagres, destinada a recolher essas ofertas
462
.
458
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1984. p. 668.
459
CASCUDO, Luís da Câmara. Religião no povo. João Pessoa: Imprensa da UFPB, 1974. [Introdução].
460
Vejamos as dez leis do Regimento Interno de Cascudo: “E são estas as leis, as dez leis do Regimento Interno de
Cascudo: 1) Não mentir; 2) Não transmitir notícia desagradável; 3) Não cultivar pensamentos humilhantes e
vingativos; 4) Não invejar felicidade; 5) Não pensar naquele que antipatizo; 6) não colaborar na mediocridade; 7) Não
ajudar ao Diabo; 8) Evitar a tristeza dispensável; 9)Trabalhar menos e melhor e 10) Não ser o Quinto Evangelista”.
SEREJO, Vicente. As leis de Cascudo. Jornal de Hoje, Natal, RN, [s.d.]. Coluna Diversão & Arte. Disponível
em:<http://www.jornaldehoje.com.br/novo/navegacao/editorias.php?id_editoria=7>. Acesso em 12 abr. 2008.
461
CASCUDO, op. cit., 1974. [Introdução].
462
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Brasília, DF: Instituto Nacional do
Livro, 1972. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/docs/text/ciclo.html>. Acesso em: 30 jan. 2009.
140
Em duas situações, Cascudo contando já com quase 80 anos reafirmaria a sua fé. A
primeira, durante uma entrevista concedida ao Jornal do Brasil, em novembro de 1977, na
qual afirmou:
Quanto à certeza de Deus a minha fé diz: ele existe. Nas horas de depressão,
de mágoa, de tristeza, penso: Deus é uma ilusão. Mas nas horas de
beatitude e de fé eu creio que vou ver, na eternidade, o criador de todas
as coisas e me reunir àqueles quem amo. Se eu tenho certeza? Eu que
pergunto: de que é que nós temos certeza nesse mundo?
463
. (grifo nosso).
A outra, em 1981, por ocasião da assinatura de um contrato com a Editora Itatiaia, que
previa a reedição de alguns de seus livros, Cascudo deixaria evidentes as marcas da formação
religiosa familiar, ao afirmar: “Sou católico, apostólico e romano”
464
. As vivências muito
particulares de religiosidade, no entanto, fizeram com que ele acrescentasse: “Mas tenho fé de
carvoeiro”
465
. Com isso, Cascudo deixava claro que sua fé era simples e rústica como a fé de
um carvoeiro
466
e que se assentava na devoção que sentia e não numa fé ritualizada e com
formação teológica mais profunda
467
.
Eu não tenho problema religioso. Tenho fé . Que me perdoe a Igreja Católica,
mas tenho meu próprio caminho para Deus, a minha maneira de convivência
divina. O meu breviário, as minhas orações, são feitas por mim. É mais um
entendimento que uma prostração. Não menti, não roubei, não fiz mal a
ninguém conscientemente, não tenho do que me arrepender. Eu não preciso de
recomendação, vou me entender pessoalmente com Deus, a minha vida é a
minha credencial. O que eu fui Ele sabe. Tenho formação católica de meu pai
e de minha mãe e vez por outra eu rezo, como minha mãe me ensinou, o
Padre Nosso, Ave Maria, Santa Maria, o Credo. Só não rezo o Eu Pecador,
porque seria sobrecarregar Nosso Senhor com uma tarefa muito grande, a de
contar os meus pecados. Quando o papa Pio XII me fez Comendador da Ordem
de São Gregório, eu pensei logo no trabalho que vou dar a São Pedro. Eu,
463
CASCUDO, Luís da Câmara. Luiz da Câmara Cascudo, 79 anos, surdo e quase cego. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 29 nov. 1977. Caderno B, p. 4.
464
CASCUDO, Luís da Câmara. Discurso de agradecimento em 1981. Belo Horizonte apud SOUZA, Itamar de.
Câmara Cascudo, um escritor católico. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN, ano 2, n. 3, p. 39,
1998.
465
Ibid., p. 39.
466
A expressão fé de carvoeiro é empregada para caracterizar uma fé que não é dotada de refinamento teológico; uma
fé simples, ingênua, mas de experiência sensível, palpável e evidente. Ao refletirmos sobre as razões do emprego
dessa expressão por Cascudo foi inevitável a associação aos homens e meninos como os retratados nas
fotografias de Sebastião Salgado que trabalham de sol a sol nas carvoarias espalhadas em fazendas do sertão
nordestino; homens e meninos de origem rústica, vida sofrida e corpos cobertos da fuligem da queima da lenha, e
que tem na fé um alento para suportar as condições em que vivem.
467
Ibid., p. 39.
141
pecador profissional, e ele sem poder me botar para fora do Céu porque sou da
Ordem de São Gregório. Vai ser engraçado
468
. (grifo nosso).
Esse trecho que transcrevemos evidencia não apenas a irreverência e a
particularidade da vivência religiosa de Câmara Cascudo, que dizia ter seu “próprio
caminho para Deus”, mas também a influência moral e o prestígio que desfrutou,
sobretudo nas décadas de quarenta e cinqüenta, junto à alta hierarquia da Igreja
Católica
469
, e que podem ser constatados na comenda
470
que recebeu do Papa Pio XII
471
,
em 1950. De acordo com Itamar de Souza
472
, a Comenda da Ordem de São Gregório
Magno
473
foi concedida a Cascudo por intermédio do Arcebispo de Natal: “em
reconhecimento aos seus sentimentos católicos, Dom Marcolino solicitou para ele, ao
Papa Pio XII, a Comenda da Ordem de São Gregório [...]”
474
. Vale salientar que, em 1950,
um dos mais destacados leigos católicos do Rio Grande do Norte, Otto Guerra também
recebeu do Papa Pio XII, devido aos muitos serviços prestados à Igreja do Rio Grande do
468
Entrevista concedida por Luís da Câmara Cascudo ao DIÁRIO DE PERNAMBUCO, Recife, Domingo, 3 de dezembro de
1978, com o título: CÂMARA CASCUDO: AOS 80 ANOS, UM HOMEM QUE NÃO DIZ "AMÉM", NEM VAI
"ATRÁS DO ANDOR".
469
A maioria dos católicos no Brasil, durante a primeira metade do século XX, maioria da qual Cascudo fazia parte,
vinculava o regime republicano à “modernização”, “secularização”, perigo de indiferença religiosa, de ateísmo social, de
ruína da Igreja Católica. Toda essa relação de ameaças, vícios e defeitos sociais transparece, clara e repetidamente, no
discurso e na prática política de muitos republicanos, nos primeiros tempos do novo regime. Saná-los ou, melhor ainda,
erradicá-los seria o objetivo ideal das campanhas da Igreja Católica, no terreno político. Ver mais em LUSTOSA, Oscar
F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991. p. 41-42.
470
A Comenda que Cascudo recebeu é uma das classes da Pontifícia Ordem de São Gregório Magno que foi criada em 1
de setembro de 1831, pelo Papa Gregório XVI, sete meses após sua eleição.A ordem tem quatro classes: Cavaleiro grã-
cruz de primeira classe; Cavaleiro grã-cruz de segunda classe; Comendador e Cavaleiro. O principal lema da Ordem é:
Pro Deo et príncipe”,, que significa: Por Deus e pelo Rei, o que esclarece bem o ponto comum dos membros da Ordem,
pessoas dispostas a seguir a Deus e ao Rei. Ver mais em ORDEM de São Gregório Magno. Disponível em:
<http://www.wikipedia.org /ordemdesaogregoriomagno/index>. Acesso em: 30 nov. 2008.
471
Papa Pio XII nasceu em 02/031876 e faleceu em 9/10/1958, tendo sido o primeiro Papa romano desde 1724. Foi eleito
Papa no dia 2 de março de 1939. Foi o único Papa do século XX a exercer o Magistério Extraordinário da infalibilidade
papal invocado por Pio IX quando definiu o dogma da Assunção em 1950 na sua Encíclica Munificentissimus Deus.
A sua ação durante a Segunda Guerra Mundial tem sido alvo de debate e polêmica. Foi o 3º Papa a nascer no dia 2 de
Março, os outros 2 foram os Papas: Papa Adriano VI e Papa Leão XIII. Ao todo criou 57 Cardeais em dois Consistórios.
472
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo, um escritor católico. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN, ano 2, n. 3,
p. 39-41, 1998.
473
São Gregório, o Grande, nasceu em Roma em 540. Em 590, S. Gregório foi eleito papa em votação unânime. Escreveu ao
Imperador de Constantinopla que interviesse, não confirmando sua eleição. O Imperador, que bem o conhecia, deixou de
atendê-lo. Ele então fugiu para não ser coroado Papa, mas uma luz milagrosa apontava seu esconderijo. Ele governou a
Igreja como Papa até 604. Papa, Confessor e Doutor da Igreja, É considerado o último dos Papas do antigo Império
Romano e o primeiro dos Papas medievais. Teve que enfrentar a peste e a fome em Roma, bem como a devastação
produzida pelos invasores Lombardos, que chegaram a assediar a cidade e só foram contidos graças à diplomacia do
Pontífice. São Gregório, como Papa, foi um exemplo de humildade. Quando recebia louvores pelo que fazia, respondia
com palavras que indicavam como era grande sua humildade. Escreveu uma obra -- A Regra Pastoral, ou simplesmente
Pastoral -- tratando dos deveres de um Bispo. O livro se tornou um clássico, sendo requerido que todos os Bispos do
mundo nele pautem sua conduta. Em certo ponto desse livro, dizia São Gregório: ‘Os bispos são os olhos do povo. Se os
que governam o povo não têm luz, os que lhes estão submetidos só podem cair em confusão e erro’”. FEDELI, Orlando.
Resposta sobre São Gregório Magno. Disponível em: < http://www.montfort.org.br>. Acesso em: 30 nov. 2008.
474
SOUZA, op. cit., p. 39.
142
Norte, a comenda da referida Ordem
475
. Como já mencionado no subcapítulo anterior,
Otto Guerra e Cascudo faziam parte do mesmo núcleo de leigos que atuavam junto à
Arquidiocese de Natal, em prol da Igreja Católica no Estado. De acordo com Souza, embora Otto
Guerra e Cascudo fossem amigos e parceiros em algumas atividades ligadas à Arquidiocese, o
primeiro se mostrou sempre um católico bem mais conservador e fervoroso, enquanto Cascudo
“Sabemos, com pleno conhecimento, [...] não foi um católico praticante do tipo de outros
intelectuais como Otto Guerra, Hélio Galvão, Alceu Amoroso Lima, Jackson de Figueredo,
Jacques Maritain, Jean Guiton e tantos outros espalhados pelo mundo inteiro. No entanto, [...]
encontramos na sua obra e na sua vida sinais evidentes de respeito e amor à Igreja Católica”
476
.
Passados vinte e oito anos da concessão da comenda, Cascudo faria referência a ela em
entrevista concedida ao Diário de Pernambuco, em dezembro de 1978 da qual extraímos o
trecho acima, e que foi sugestivamente intitulada, pelo jornalista, de “Câmara Cascudo: Aos 80
anos, um homem que não diz ‘Amém’, nem ‘vai atrás do andor’”, na qual reafirmaria ser um
homem de fé, independentemente da sua ligação com a Igreja Católica.
Essa irreverência e a convivência harmoniosa e concomitante que mantinha com o
mundo das letras e com o mundo da fé foram exploradas em uma charge divulgada por ocasião
do seu centenário. Da frase que acompanha a charge “A festa aqui já começou, mas lá embaixo,
até agora, só no Instituto Histórico!”
477
infere-se que o chargista Emanoel Amaral, além de se
referir aos dois “espaços” nos quais, com certeza, Cascudo teria seu centenário lembrado o céu,
por ter sido um homem de fé, e o IHGRN, por ter sido um homem de letras , expressava uma
sutil crítica ao fato de o ilustre potiguar não estar sendo alvo de mais homenagens.
Já ressaltamos, em capítulo anterior, que a biblioteca particular de Cascudo a
Babilônia era um espaço que ele considerava sagrado. Além dos livros, das fotografias e
das coleções de arte indígena, africana e popular, nela ocupavam lugar de destaque a sua
coleção de arte sacra e, em especial, os santos de sua devoção
478
. Dentre as muitas
475
Em relação à concessão da Comenda de São Gregório Magno, sabe-se que: “Prêmios da Ordem são geralmente feitos
sobre a recomendação de Bispos diocesanos ou Núncios para serviços específicos. Ao contrário da filiação nas Ordens
Militares (Malta, o Santo Sepulcro), a pertença da Ordem de São Gregório, não impõe quaisquer obrigações especiais.
Assim, é preferível a atribuição de acusar a um indivíduo benemérito particular do serviço à Igreja”. AS ORDENS papais.
Disponível em: <http://www.chivalricorders.org:80/vatican/ gregory.htm>. Acesso em: 02 dez. 2008.
476
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo, um escritor católico. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN, ano 2, n. 3, p. 39.
477
AMARAL, Emanoel. Cem anos de Cascudo. 1997. Charge. Setor iconográfico do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte. Ver anexo C (foto da Charge referente ao centenário de Cascudo).
478
A fotografia que anexamos retrata Cascudo fumando seu charuto na varanda da Babilônia, tendo ao fundo, uma imagem de São
José de Botas e um terço sobre a porta da varanda. O santo, o terço e os livros se impõem na foto, enquanto Cascudo aparece
pequeno, assumindo a sua condição de mortal e de “pecador profissional”, como se intitulava. Ver anexo C (foto de
Cascudo na varanda da Babilônia).
143
imagens
479
algumas delas, valiosas e raras, já que somente ele as possuía em Natal que
podem ser encontradas na Babilônia estão a imagem do São José de Botas, imagem que
Cascudo dizia ser a mais rara, e a de São Vicente de Paula que, segundo o próprio
Cascudo, “por duzentos anos teve altar na catedral”
480
e que “Um belo dia socializei-o
para cá, com autorização do bispo”
481
. Em sua Babilônia, Cascudo guardava, ainda, uma
réplica da cruz da primeira missa oficiada no Brasil em 1500. Além das imagens de vários
santos, o acervo particular de Cascudo contava com a patena e o cálice que pertenceram à
primeira Igreja instalada no Brasil, em Igarassu. Essas duas peças, pelo que consta, foram
produto de suas viagens ou presente de amigos ilustres.
Nesse mesmo Acervo, encontramos dois marcadores de texto utilizados por Cascudo, e
que também denotam sua fé e devoção pessoal. Um dos marcadores traz um pedido de proteção a
Santo Antonio
482
: “Santo Antônio, meu querido Protetor, rogai por nós”, e o outro remete ao
poder exorcístico do Santo
483
. Infere-se daí que Cascudo também era devoto de um dos santos
mais populares da Igreja, principalmente no Nordeste, aspecto que ele ressaltaria no Dicionário
do Folclore Brasileiro: “De todos os santos venerados pela Igreja Católica, Santo Antônio é o
popular, não somente em Portugal como também no Brasil. Rara é a cidade, vila ou povoado que
não tenha uma rua ou uma praça com o nome do Santo, ou uma de Igreja de Santo Antônio em
todas as terras do mundo português”
484
.
Livros e santos parecem ter ocupado não apenas o espírito de Cascudo, mas também o
tempo do intelectual potiguar, como se deduz do apego de devoto e de colecionador que tinha
por ambos. Em um mesmo espaço a Babilônia , conviveram, perfeitamente, o homem de letras
e o homem de fé, o que nos remete à possibilidade de que “por vezes, [...] um autor e uma obra
podem não ser alguma coisa, sendo duas coisas opostas simultaneamente, porque as obras vivas
constituem uma tensão incessante entre os contrastes do espírito e da sensibilidade”
485
.
479
No Memorial Câmara Cascudo, o visitante encontrará, sobre a escrivaninha que era utilizada por Cascudo, uma imagem
de São Sebastião – de barro com flechas encravadas ao corpo e amarrado a um xique-xique caatingueiro. Ver anexo C
(foto das imagens dos santos expostos na mesa de trabalho de Cascudo em sua biblioteca particular).
480
CASCUDO, Luís da Câmara Cascudo e sua Biblioteca. In: LYRA, Carlos. Luís da Câmara Cascudo. Depoimentos.
Natal: EDUFRN, 1999. p. 62. Entrevista concedida a Carlos Lyra em 06/12/1974.
481
Ibid., p.62. Não obtivemos informações sobre o nome do bispo que autorizou a doação da imagem e nem sobre a data em
que ela se deu.
482
Ver anexo C (foto do marcador de texto de Santo Antonio).
483
O marcador traz o seguinte texto: “EXORCISMO de Santo Antônio. Eis ai a cruz do senhor! [símbolo da cruz]
Afastai-vos para longe de mim, vós, ó inimigos da salvação; venceu o leão da tribo de Judá, descendente de Davi.
Aleluia”. Ver anexo C (foto de marcador do Exorcismo de Santo Antônio).
484
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro, 1972.
Disponível em: http://www.fundaj.gov.br /docs/text/ ciclo.html. Acesso em: 30 jan. 2009.
485
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1959. v.1, p. 23-24.
144
4.2 O historiador e a Igreja Católica
Cascudo é tido como um escritor excêntrico, não apenas por sua personalidade plural e,
tantas vezes, desconcertante [...] mas por ter-se mantido voluntariamente afastado dos grandes
centros urbanos onde concentravam-se instituições e homens de letras”
486
. O pronunciamento do
Cônego José Adelino Dantas referido no subcapítulo anterior parece confirmar a originalidade
de Cascudo em relação aos demais intelectuais da década de quarenta do século XX, tanto em
função do seu provincianismo, quanto pela explicitação de sua condição de homem de fé.
Acreditamos que um aspecto que viria, justamente, a reforçar essa excentricidade seria a
convivência pacífica para muitos, incompreensível do homem de letras com o homem de fé em
Cascudo.
É preciso lembrar que a primeira etapa da produção intelectual de Cascudo se insere
claramente no período da Restauração católica, movimento da Igreja Católica que contou com a
adesão de clérigos e intelectuais que se empenharam na construção de um Estado forte baseado na
moral e nos valores do catolicismo: “Liderada no Brasil pelo Cardeal Dom Sebastião Leme, as
atividades de recatolização apresentaram especificidades regionais na construção dos seus discursos.
O apoio dos homens das letras comprometidos com os dogmas católicos foi fundamental para a
expansão do projeto restaurador, entre tais destacamos Jackson de Figueiredo
487
e Alceu Amoroso
Lima
488
(Tristão de Athayde)
489
.
486
NEVES, Margarida de Souza. Roteiros para descobrir a alma do Brasil: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. 2000.
Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008. Relatório parcial de pesquisa CNPq.
487
Jackson de Figueiredo foi figura importante e atuante entre os intelectuais do início do século XX, empenhando-se na
concretização da Restauração Católica. Entre suas muitas atuações, destacamos a organização e direção da Revista A Ordem e
do Centro Dom Vital, que iniciaram suas funções em 1921 e 1922 respectivamente. Para Riolando Azzi, os nomes adotados
para as instituições refletem o sentido sócio-político da Igreja naquele momento, isto é, a utilização da palavra “Ordem” como
denominação de uma revista, refletia o combate que a Igreja pretendia travar contra as doutrinas que seus integrantes
acreditavam promover a desordem social, como o comunismo e a laicização do Estado. Com o Centro Dom Vital, os clérigos
prestaram uma homenagem ao Bispo pernambucano Dom Vital Maria, por ter combatido a maçonaria e o regalismo imperial,
além da constante defesa do poder eclesiástico na política nacional. Ver mais em: AZZI, Riolando. A Neocristandade: um
projeto restaurado. São Paulo: Paulus, 1994. p. 105. (História do pensamento católico no Brasil, v. 5).
488
Pensador católico e intelectual com uma das mais longas carreiras jornalísticas na imprensa brasileira (cerca de 4.000 artigos
publicados). Formado em Direito pela Faculdade de Ciências Jurídicas e Sociais do Rio de Janeiro. Em 1919, quando iniciou a
sua colaboração em "O Jornal", começou a assinar com o pseudônimo que o tornaria famoso, Tristão de Athayde, nome de um
pirata português que atuou na Índia. Anos mais tarde, Alceu Amoroso Lima disse que optou pelo pseudônimo para não
confundir a atividade literária com a de industrial, já que três anos antes, com a morte do pai, havia assumido a presidência da
fábrica de Tecidos Cometa. A empresa somente deixou de pertencer à família pouco antes do começo da 2ª Guerra Mundial, em
1939. Nesta época, passou a demonstrar interesse por assuntos religiosos, o que o fez trocar uma intensa correspondência com o
pensador católico Jackson de Figueiredo. Lançou o seu primeiro livro, "Afonso Arinos", em 1922, mesmo ano em que se engaja
no movimento modernista. Como líder da renovação católica no Brasil, fundou o Instituto Católico de Estudos Superiores, em
1932, três anos antes de ser eleito para a Academia Brasileira de Letras. Disponível em: <http://www.academia.org.br/
abl/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?sid=359>. Acesso em: 20 jan. 2009.
489
A atuação desses dois intelectuais foi significativa para a consolidação da proposta de Restauração da Igreja, no contexto do
início do século XX, orientada para a recuperação dos valores católicos. MOURA, Carlos André Silva de. A Revista A Ordem e
o discurso recatolizador em Pernambuco (1930 1937). In: SEMINÁRIO NACIONAL PODERES E SOCIABILIDADE NA
HISTÓRIA, 1., 2008, Recife. Anais... Recife, PE: Editora da UFPE, 2008. v. 1, p. 2. 1 CD-ROM.
145
Em consulta ao acervo da biblioteca de Câmara Cascudo, localizamos vários
livros a maioria deles com dedicatórias de intelectuais católicos na década de trinta,
com destaque para os de Alceu de Amoroso Lima (Tristão de Athayde), Nilo Pereira
490
e
de Jackson de Figueiredo, autores que devem ter, sem dúvida, influenciado o
pensamento de Cascudo e estimulado a sua adesão ao conservadorismo católico do
período
491
. Cabe relembrar que foi também durante este período que Cascudo aderiu ao
movimento integralista no Rio Grande do Norte, o que o aproximou ainda mais de uma
postura católica e conservadora. Essa adesão fica também evidente na sua forte ligação
com Dom Helder Câmara e na admiração que declarava ter por Gustavo Barroso
492
.
Admiração que se confirma na liderança absoluta de Barroso entre os dezessete autores
mais presentes no acervo e nos quarenta e seis livros de sua autoria alguns deles com
dedicatória do próprio autor a Cascudo que encontramos na Babilônia
493
.
Ao analisarmos a produção cascudiana, encontramos elementos que revelam a grande
familiaridade e conhecimento que ele tinha sobre as origens do catolicismo no Brasil e sobre a
História da Igreja no estado do Rio Grande do Norte, como em seu livro Religião no Povo
494
,
no qual afirmou que “O português quinhentista foi base e cúpula dos fundamentos religiosos
no Brasil”
495
. Na plaquete Paróquias do Rio Grande do Norte na qual ele reconstitui a
história das paróquias do Rio Grande do Norte isto fica bastante evidente:
490
Nos tempos da Faculdade de Direito, em Recife, Cascudo tomou contato com as idéias do estudante Nilo Pereira que defendia o
ensino religioso como alternativa para a crise educacional nos anos de 1930. Ver mais em: MOURA, Carlos André Silva de. A
Revista A Ordem e o discurso recatolizador em Pernambuco (1930 1937). In: SEMINÁRIO NACIONAL PODERES E
SOCIABILIDADE NA HISTÓRIA, 1., 2008, Recife. Anais... Recife, PE: Editora da UFPE, 2008. v. 1, p. 7. 1 CD-ROM.
Segundo depoimento de Nilo Pereira, durante a década de 1930, a “Faculdade de Direito do Recife era considerada o berço da
intelectualidade nordestina. De suas salas e corredores, ebuliam idéias que conduziam os discursos da sociedade, reproduzidos
em diversos ambientes sócio-políticos da região” Cfe. PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife (19271977). Recife,
PE: Editora Universitária, 1977. v. 1, p. 23-38.
491
Embora Cascudo não tenha se colocado como herdeiro de Jackson Figueiredo e de Alceu Amoroso Lima, acreditamos que
ele tenha se identificado com o conservadorismo católico desses autores.
492
Gustavo Barroso foi advogado, professor, político, contista, folclorista, cronista, ensaísta e romancista, tendo produzido128 livros e até
um dicionário. Nasceu em Fortaleza, em 29 de dezembro de 1888, e faleceu no Rio de Janeiro, em 03 de dezembro de 1959. Eleito em
08 de março de 1923 para a Cadeira nº 19. Em 1933, após ouvir a conferência de Plínio Salgado, Gustavo Barroso aderiu ao
Integralismo, tornando-se seu mais importante doutrinador. No mesmo ano publicou o livro “O Integralismo em Marcha”, e, no ano
seguinte, produziu a obra que daria ao Movimento Integralista seus mais sólidos fundamentos teóricos: “Brasil, Colônia de Banqueiros”.
Embora não concordasse com o rumo dos acontecimentos, a partir de 1937, manteve-se fiel à doutrina filosófica do integralismo.
Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/biografias/ev_bio_gustavobarroso.htm>. Acesso em: 20 jan. 2009.
493
Dentre os quarenta e seis livros de Gustavo Barroso que encontramos na Babilônia, alguns versam sobre a temática
religiosa e sobre o Integralismo e cuja leitura podem ter influenciado Cascudo, sobretudo, em sua postura de militante
católico conservador. São eles: O Integralismo em marcha (1933); O Integralismo e o Mundo (1933); O Integralismo
de Norte a Sul (1934); Espirito do Século XX (1936); Integralismo e Catolicismo (1937); Comunismo, Cristianismo
e Corporativismo (1938). As dedicatórias que constam nos livros de Gustavo Barroso que integram o acervo da
biblioteca remetem à amizade entre os dois ou trazem saudações próprias do movimento do Integralismo. Do último que
mencionamos o livro de 1938 , transcrevemos a dedicatória feita pelo autor no exemplar: “Ao Cascudo, com um
grande e apertado abraço do Gustavo”.
494
CASCUDO, Luís da Câmara. Religião no povo. João Pessoa, PB: Imprensa Universitária, UFPB, 1974.
495
CASCUDO, Luís da Câmara. Religião no povo, p. 310 apud CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. Belo
Horizonte, MG: Itatiaia, 1985. O livro “Superstição no Brasil” foi publicado pela primeira vez em 1985 a partir da
reunião de três livros já publicados anteriormente: Anúbis e Outros Ensaios, publicado em 1951, Superstição no Brasil,
publicado em 1958 e Religião do Povo, publicado em 1974.
146
Paróquia e freguesia são sinônimos perfeitos. Pelo exposto são amovíveis ou
inamovíveis na pessoa de seus párocos ou vigários. O pároco é demissível ad
nutum ou colado, vitalício. ‘Freguesia’ e ‘vigário’ são funcionalmente
sobrevivências de nomenclatura outrora oficial e, no presente, apenas
sobrevivências. Nada mais. Os títulos populares, consagrados pelo tempo,
são realmente ‘freguesia’ e ‘vigário’ que em nada dessemelham de
‘paróquia’ e ‘pároco’
496
.
Dada a sua ligação com o clero potiguar já referida no subcapítulo anterior , coube
a Câmara Cascudo
497
a reconstituição e divulgação de aspectos da História da Igreja no
Rio Grande do Norte
498
, em especial, o resgate da história de algumas de suas paróquias mais
antigas, fundadas mesmo antes da fundação da Arquidiocese de Natal, em dezembro de
1909
499
. Na plaquete escrita por Cascudo, em 1955, para a comemoração do centenário da
Paróquia de Nova Cruz, encontramos elementos que atestam a confiança que era depositada
em Cascudo e a atribuição de guardião que lhe foi designada pelos membros da hierarquia
católica potiguar:
A Paróquia de Nova Cruz não podia comemorar um Centenário sem ouvir a
palavra autorizada do ilustre historiador riograndense, Luís da Câmara
Cascudo. De um lado o testemunho eloqüente dos livros paroquiais,
marcando desde o ano de 1855 até hoje a presença de Vigários, como
também dando á antiga capelinha de Anta Esfolada o título de Matriz de
Nova Cruz; e do outro, documentos autênticos do tempo do Império,
mostrando que só em 1868 é que surgiu a Paróquia de direito, deram lugar
ao nosso historiador a um acurado estudo do passado desta Paróquia, para
496
CASCUDO, Luís da Câmara Paróquias do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Departamento de Imprensa,
1955. p. 05. Plaquete.
497
Além de Cascudo, também Nestor dos Santos Lima (1887-1959) produziu obras que enfocaram a História da Igreja
Católica no Rio Grande do Norte, tais como A Matriz de Natal, de 1909, e O clero na história do Rio Grande do
Norte, 1954, obra que serviu, muitas vezes, de fonte para o próprio Cascudo em seus escritos. Nestor Lima foi
professor de Direito Penitenciário da Faculdade de Direito da Universidade do Estado e lecionou também a
Cadeira de Direito Internacional Público. Foi sócio benemérito do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte, instituição que presidiu durante trinta anos. Foi também sócio-correspondente de diversas instituições
culturais do país, deixando uma obra extensa que abrangeu as áreas de educação, história e cultura popular.
498
Cabe, no entanto, ressaltar que apesar dos trabalhos de Nestor dos Santos Lima e de Câmara Cascudo, ainda
está por ser feito um estudo abrangente e com perfil de síntese histórica e que se estenda até os dias atuais
sobre a História da Igreja no Rio Grande do Norte.
499
“A Diocese de Natal foi criada a 29 de dezembro de 1909, pela Bula “Apostolicam in Singulis” do Papa Pio
X, após desmembramento da então Diocese da Paraíba. Foi sufragânea, sucessivamente, das Arquidioceses
de São Salvador da Bahia (até 1910), de Olinda (até 1914) e da Paraíba (até 1952). A 16/02/1952, pela Bula
Arduum Onus” do Papa Pio XII, foi elevada à Arquidiocese e Sede Metropolitana, com duas Dioceses
sufragâneas: Mossoró e Caicó”. CRIAÇÃO. Arquidiocese de Natal. Disponível em: <http://www.
arquidiocese denatal.org.br/ arquidiocese/historiaarq.htm.>. Acesso em: 23 nov. 2008. Desde 2007, a
Arquidiocese vive um momento de festa, em função da celebração do Centenário de sua criação. Até final de
2009, serão realizadas visitas pastorais, “encontrões” com os agentes pastorais, peregrinação da imagem de
Nossa Senhora da Apresentação, Padroeira da Arquidiocese, entre várias outras atividades.
147
nos dizer depois, conforme determinou o Exm. Sr. Arcebispo Metropolitano,
se devíamos ou não comemorar um centenário
500
.
Alguns membros da Igreja chegaram a referir a liberdade e a familiaridade com
que Cascudo tratava de temas tão importantes para a religião católica, muitas vezes
esquecidos ou abordados de forma errônea, e a importância de suas produções para a
informação dos fiéis católicos. O Monsenhor Primo Vieira, colaborador do IHGRN, ao
expressar sua admiração pelo interesse demonstrado por Câmara Cascudo pelos temas
religiosos e, principalmente, católicos, afirmou:
O seu livro ‘Religião no povo’ merece leitura atenta pela sua atualidade,
especialmente agora, depois de Puebla, que a religiosidade popular é objeto
de altos ensaios pelos teólogos da Igreja. [...] É com essa convicção que
Câmara Cascudo desce à análise de certos hábitos e crenças religiosas, de
certas rezas ingênuas, tocadas de um halo supersticioso, indo às fontes orais,
com perguntas sábias que não condicionam jamais as respostas. Estas vêm
na sua pureza original, espontânea e fidedignas. Tem ele a preocupação de
salientar, na sua pesquisa, que essa fé simples ‘exprime a convicção de uma
ortodoxia hereditária. E acrescenta: ‘Em verdade vos digo que a imaginação
não participa da minha narrativa
501
.
Cascudo dedicou-se também a escrever sobre as igrejas do Seridó, numa série de
Actas Diurnas que viriam a ser publicadas pelo IHGRN. Em um dos artigos, ele destacou que
“Os dois pontos mais antigos de povoamento na região do Seridó são o Acari e Caicó. As
Igrejas, nascidas das primitivas Capelas locais, devem ser as veteranas no bom-combate da
Fé”
502
, advertindo que “Não tenho documentação para acompanhar a marcha da construção
da atual Matriz da cidade de Serra Negra. O que se deduz é ter Manoel Pereira Monteiro
iniciado as obras, senhor como era de fartos recursos e administrador do patrimônio da Santa”
503
,
para, então, concluir que “Na região do Seridó, a mais antiga Igreja é a matriz de Nossa
Senhora do Ó, em Serra Negra, nascida e presente na Fé desde 1735...”
504
.
500
MOURA, Pedro (Monsenhor). Apresentação. CASCUDO, Luís da Câmara. Notas para a História da
Paróquia de Nova Cruz. Natal, RN: Arquidiocese de Natal, 1955. Plaquete.
501
VIEIRA, Primo. (Monsenhor). Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 71-72, p. 65-66, 1979-1980.
502
CASCUDO, Luís da Câmara. A mais antiga Igreja do Seridó. Revista do Instituto Histórico e Geográfico
do Rio Grande do Norte: 1951-1952, Natal, RN, v. 48-49, p. 187, 1952.
503
Ibid., p. 191.
504
Ibid., p. 193.
148
Além de escrever sobre as origens das paróquias, Cascudo também manifestou sua
preocupação em relação ao estado de abandono que se encontravam algumas igrejas
históricas, como neste artigo em que fala da Capela de Cunhaú e faz um alerta às autoridades
potiguares:
Fiquei com Edgar Barbosa, perdão, com o Juiz de Direito Edgar Barbosa
trocando mágoas pelo abandono das ruínas. E acalorados fizemos pacto de
uma campanha obstinada pela defesa das ruínas, duplamente sagradas pelo
heroísmo da Fé e do Martírio, até que se estabeleça a capelinha modesta e
para ela volte, em lenta procissão romântica, a doce Nossa Senhora das
Candeias, que testemunhou o massacre de 16 de julho de 1645. Juro à fé do
meu grau que há muitos anos me bato por esse ideal como Dom Quixote por
Dulcinéia del Toboso. Já escrevi, falei e pedi a meio mundo. [...] A Capela
de Cunhaú é o santuário do Rio Grande do Norte. Lugar de morte pelo ódio
e em louvor da fidelidade à tríade antiga consagradora, a Deus, ao Rei e à
Família. A Pátria, terra dos pais, era a soma desses elementos. [...] Será
possível a continuação desse abandono injustificado? Tanta verba espalhada
e nessa chuva benéfica de ouro não caberão algumas moedas na mãozinha
branca de Nossa Senhora das Candeias? Cunhaú se reergueria com pouco
dinheiro. [...] Ninguém vai esperar, num colapso de burrice herética, a recusa
a um apoio à Capela histórica, sagrada, tradicional e evocadora. Creio
firmemente que os senhores Bispos de Caicó e de Mossoró emprestariam
todo o apoio. De cada paróquia do Rio Grande do Norte havia de vir uma
pedra, com o nome da Paróquia, solidárias para a reconstrução da velha e
gloriosa Capelinha mutilada
505
.
Cascudo fazia questão de mencionar e valorizar as amizades que mantinha com
autoridades eclesiásticas
506
, enfatizando a admiração e a afeição que sentia por alguns dos
representantes do clero potiguar, como por Dom Marcolino Dantas:
Considerei Dom Marcolino, o primeiro bispo de Natal, amigo sempre
presente. A morte existe, os mortos não. Já levei ao altar, como padrinho,
mais de uma centena de crianças. Tenho um voto na minha vida: o de nunca
levar aos outros as más notícias. Bastam os meios de comunicação para
505
CASCUDO, Luís da Câmara. Pela Capela de Cunhaú. Diário de Natal, Natal, RN, 03 dez. 1949. Acta Diurna.
Disponível em: < http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan. 2009.
506
Ressaltamos que os contatos que Cascudo mantinha com as autoridades eclesiásticas iam além do Rio Grande
do Norte, como atesta essa fotografia tirada durante uma viagem que fez a Sergipe (não conseguimos obter a
data da referida viagem). Cascudo aparece na foto, entre leigos e autoridades católicas e locais. Ver anexo C
(Foto de Cascudo no Convento São Francisco de Sergipe).
149
transmitir a tristeza. Sou Comendador da Ordem de São Gregório Magno
(Santa Sé) e da Ordem Militar de Cristo, de Portugal
507
.
De um artigo de Monsenhor Primo Vieira, publicado na Revista do IHGRN,
depreende-se que Cascudo e Dom Marcolino um dos mais representativos membros do alto
clero norte-rio-grandense eram amigos, e que o intelectual potiguar era presença constante
em eventos e homenagens promovidos pela hierarquia católica do Rio Grande do Norte
508
:
Falou-me naquela tarde, com grande simpatia de Dom Marcolino Dantas,
primeiro Arcebispo de Natal que considerava um verdadeiro santo e um
amigo sempre presente. E para confirmar o que dizia apelava para aquela
passagem do Evangelho em que Jesus fala do Deus do Jacob, de Isaac e de
Abrahão. ‘Se é também o Deus de Dom Marcolino e Deus é sempre o Deus
dos vivos, Dom Marcolino continua vivo e bem vivo... os mortos são aqueles
que não são lembrados’. Sorrindo, confessava-se, ao contrário de um
Marcolino, como um pecador profissional. Os outros são amadores
509
.
Reconhecido por seu catolicismo pelo clero católico do Rio Grande do Norte , e
prestigiado em vida com as Comendas da Ordem de São Gregório Magno e da Ordem
Militar de Cristo, Cascudo teria sua fé celebrada em elogios fúnebres após sua morte, como se
pode constatar no discurso de Dom Nivaldo Monte
510
, proferido durante a missa de corpo
presente celebrada na Academia de Letras potiguar:
O Brasil, o Rio Grande do Norte e o mundo perderam um dos seus grandes
filhos, a maior cultura folclórica do país, autor de trabalhos originais,
pioneiros, de modo que vão frutificar no nosso meio, porque ele fez escola
no Estado. [...] Se por um lado, a morte dele foi uma perda, por outro,
sabemos que o seu exemplo permanece vivo, com ressonâncias eternas e
universais. [...] Esse homem na sua vida, procurou ser, no meio que viveu e
trabalhou, epifania de Deus, ou seja, espelho e revelação da eternidade. [...]
507
CASCUDO, Luís da Câmara. In: PETROVICH, Enélio Lima. Câmara Cascudo Imortal. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal-RN, v. 77-78, p. 176, 1985-1986.
508
Ver anexo C (foto da cúpula do Episcopado potiguar, por ocasião da homenagem feita a Dom Marcolino, e na
qual Cascudo se fez presente).
509
VIEIRA, Primo. (Monsenhor). Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 71-72, p. 65-66, 1979-1980.
510
Era o Arcebispo de Natal por ocasião da morte de Cascudo. Foi o segundo Arcebispo da Arquidiocese de
Natal, com bispado entre os anos de 1967 a 1988. Foi o mesmo Dom Nivaldo quem celebrou também a missa
em homenagem ao centenário de Cascudo, em 30 de dezembro de 1998, na Matriz de Nossa Senhora da
Apresentação. Ver anexo C (foto do convite da Missa em homenagem ao centenário de Cascudo).
150
Cascudo não tinha medo de ser tenro, terno, criança. O humanismo foi uma
de suas características principais
511
.
A fé de Cascudo voltaria a ser referida pelo Cônego Jorge O’Grady de Paiva, que era
potiguar e membro do IHGRN e da ANL-RN, durante a missa celebrada no Rio de Janeiro,
pela passagem do trigésimo dia do seu falecimento: “Quem não vê, na fé cristã de Câmara
Cascudo a influência de seu lado humano, universalizado por todos os povos e raças que
jamais existiam sem crença? ”
512
.
Em julho de 2006, por ocasião da semana em homenagem aos vinte anos de
“encantamento” de Câmara Cascudo, Monsenhor Francisco de Assis Pereira personalidade
de destaque na Arquidiocese de Natal, por ser um respeitado pesquisador da História da Igreja
local e por ter sido o postulador da beatificação dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu
513
ao
discursar na sessão solene do IHGRN, destacou a inestimável contribuição prestada por
Cascudo para a história do Estado. Nesse discurso, intitulado A contribuição de Câmara
Cascudo para a História da Igreja no Rio Grande do Norte” e publicado sob a forma de
artigo no livro que resultou das homenagens prestadas ao longo daquela semana, o
Monsenhor Assis Pereira assim se referiu a Cascudo: “Todo ramo da ciência tem os seus
clássicos: Platão e Aristóteles na filosofia, Homero na literatura grega, Machado de Assis para
a Literatura Brasileira. Na historiografia do Rio Grande do Norte, o grande clássico, o
verdadeiro “ícone”, é sem dúvida, Luís da Câmara Cascudo”
514
.
Referindo-se, especificamente, à contribuição para a Igreja Católica norte-rio-
grandense, o Monsenhor destacou o interesse que Cascudo demonstrou pela temática em
seus dois principais livros de história, História da Cidade do Natal e História do Rio
Grande do Norte, nas plaquetes e nas Actas Diurnas que já foram mencionadas nessa
511
Dom Nivaldo Monte destaca a fé inabalável do mestre da cultura. CASCUDO sepultado com honras de
Estado. Tribuna do Norte, Natal, RN, 01 ago. 1986. Cidade, p. 05.
512
PAIVA, Jorge O’Grady. (Cônego) apud PETROVICH, Enélio Lima. Câmara Cascudo Imortal. In: Revista
do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal-RN, v. 77-78, p. 177, 1985-1986.
513
“Uma das maiores conquistas da Arquidiocese foi a beatificação dos Mártires de Cunhaú e Uruaçu,
reconhecidos pelo Papa João Paulo II como os Protomártires do Brasil. No ano de 1645, quando a
colonização do Rio G. do Norte ainda estava recente, os padres André de Soveral e Ambrósio Francisco
Ferro, mais o leigo católico Mateus Moreira e 28 companheiros, foram assassinados por calvinistas
holandeses. Durante o martírio, eles afirmaram a fé na Eucaristia. Mateus Moreira, no momento em que lhe
arrancavam o coração pelas costas, exclamava: “Louvado seja o Santíssimo Sacramento”. No dia 5 de março
de 2000, após vários anos de trabalho do Postulador da Causa dos Mártires, Mons. Francisco de Assis
Pereira, o Vaticano elevou os mártires potiguares aos altares. A beatificação aconteceu no Vaticano, com a
presença de vários cristãos da Arquidiocese”. PROTOMÁRTIRES. Arquidiocese de Natal. Disponível em:
<http//: www.arquidiocesede natal.org>. Acesso em: 13 out. 2007.
514
PEREIRA, Francisco de Assis. (Monsenhor). A contribuição de Câmara Cascudo para a História da Igreja no
Rio Grande do Norte. In: CASCUDO, Daliana (Org.). Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal,
RN: Ed. da UFRN, 2007. p. 82.
151
Dissertação: “do conjunto de crônicas publicadas, oitenta trataram de assuntos
relacionados com a Igreja; das oitenta, 40 são sobre figuras de sacerdotes ilustres de nosso
Clero, desde os padres com fama de santidade, como o Padre João Maria e o Padre Monte,
aos que se envolveram com a política e com a Revolução, como Padre Miguelinho, [...]
passando por padres seus contemporâneos e grandes amigos, como o Monsenhor Alfredo
Pegado Cortez, o Cônego Jorge O’Grady e Dom Marcolino Dantas”
515
. Ele continuou,
esclarecendo que, apesar de a criação da Arquidiocese, em dezembro de 1909, e o
Movimento de Natal
516
não terem sido abordados por Cascudo em seus escritos, isto não
diminuía a sua contribuição, uma vez que foi um dos mais atuantes colaboradores do
Jornal A Ordem, veículo de comunicação da Arquidiocese de Natal e porque “Sabemos,
porém, que ele acompanhava e admirava todo este esforço de renovação da Igreja, [...]
prova disto é a grande admiração que ele nutria por um dos mais notáveis artífices desta
renovação, Dom Hélder Câmara”
517
.
Se a Cascudo coube, por sua estreita e até afetiva ligação com representantes
do alto clero potiguar, reconstituir episódios da História da Igreja no Rio Grande do
Norte, por sua condição de historiador oficial da cidade do Natal e por extensão, do Rio
Grande do Norte dedicou-se também à reconstituição histórica dos períodos da
conquista e da colonização, atribuindo à Companhia de Jesus um papel bastante destacado
515
PEREIRA, Francisco de Assis. (Monsenhor). A contribuição de Câmara Cascudo para a História da Igreja no
Rio Grande do Norte. In: CASCUDO, Daliana (Org.). Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal,
RN: Ed. da UFRN, 2007. p. 85.
516
“A Igreja Católica do Rio Grande do Norte é considerada pioneira em ações sociais, sendo que muitas delas
surgiram nas décadas de 1950 a 1960, na época do Movimento de Natal, e se expandiram em nível nacional e
até internacional. No início da década de 1940, em plena 2ª Guerra Mundial, Natal era uma cidade com 60
mil habitantes. No final de 1941, 20 mil soldados americanos desembarcaram nas praias de Parnamirim, o
que significou um aumento bastante expressivo da população local, trazendo suas conseqüências em termos
sociais, econômicos e culturais. Procópio Camargo, autor do livro “O Movimento de Natal”, usa o termo
desorganização social para explicar o que viria acontecer: “a instalação das bases militares, a chegada de
técnicos e tropas americanas propiciaria o desequilíbrio da organização social da área, ocasionando elevação
do custo de vida, proliferação das casas de tolerância, crise habitacional, mudança de comportamento com a
introdução de novos costumes que abalam a estrutura tradicional. A grande procura de mão-de-obra para a
construção e instalação do campo de Parnamirim e da Base Naval termina por ocasionar uma imigração rural
em larga escala. Diante da situação, os jovens sacerdotes Eugênio Sales e Nivaldo Monte começam a pensar
um jeito de “reorganizar” a sociedade em Natal. O conjunto de ações sociais realizadas pela Arquidiocese, na
época recebeu o nome de Movimento de Natal. Criação do Patronato de Ponta Negra, idealização de reuniões
e de cursos de formação permanente do clero, frentes de trabalho, incentivo à organização de Sindicatos de
Trabalhadores Rurais, criação da Campanha da Fraternidade, formação de lideranças, missões rurais, escolas
radiofônicas, cooperativismo, educação de base mobilizavam pessoas e grupos, em busca de transformações
sociais e da promoção humana”. PIONEIRISMO. Arquidiocese de Natal. Disponível em:
<http//:www.arquidiocesedenatal. org>. Acesso em: 13 out. 2007.
517
Essa observação feita pelo Monsenhor Assis Pereira já foi por nós explorada, quando mencionamos a ligação de
Cascudo com D. Hélder na década de 1930 e o seu envolvimento com o Integralismo. PEREIRA, op. cit., p. 92.
152
nesse processo
518
. Na próxima seção, iremos nos deter na análise de alguns capítulos de
livros e artigos em que Cascudo abordou a atuação dos missionários jesuítas, procurando
relacioná-los ao contexto histórico e político específico em que foram produzidos. Interessa-
nos, especialmente, analisar as informações que esses escritos divulgam, as representações
dos missionários que veiculam e as avaliações que estes capítulos e artigos trazem do trabalho
desenvolvido pela Companhia de Jesus na Capitania.
4.3 O historiador e a Companhia de Jesus
Os escritos de Câmara Cascudo sobre a atuação dos jesuítas em terras potiguares, é
preciso ressaltar, obedeceram aos interesses da elite intelectualizada que integrava o Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, e foi justamente desse lugar institucional que
provieram alguns de seus mais representativos escritos sobre a temática. A elite potiguar a que
nos referimos formou-se, em sua maioria, dentro da tradição e do modelo conservador da
Igreja católica, razão pela qual a fé e a moral difundida pelos jesuítas inspiravam homens
como Cascudo a escreverem sobre as ações desses religiosos.
Estas razões, com certeza, determinaram as representações
519
cascudianas dos jesuítas
e levaram o homem de fé e historiador católico a enfatizar a ação “heróica” dos padres da
Companhia de Jesus:
A conquista pela espada seria consolidada pela catequese dos espíritos.
Mosquetes, canhões, lanças, espadas e pelouros nada fariam. Vencido
recuava o indígena como uma onda e voltaria mais forte, quebrando-se nas
muralhas da pedra do ‘Reis Magos’. O processo era embainhar a espada e
dar a palavra ao padre. É a vez dos jesuítas no futuro do Rio Grande do
518
Esses trabalhos, cuja realização foi confiada a Cascudo pelos representantes da Igreja Católica potiguar e
pelas autoridades políticas do Estado, nos remeteram às reflexões propostas por Pierre Bourdieu. Segundo o
sociólogo francês, quem dispõe de autoridade legítima, ou seja, de autoridade conferida pelo poder, detém os
mecanismos para impor suas próprias definições de si e do outro. Ver mais em BOURDIEU, Pierre. O poder
simbólico. F. Tomaz (Org.). Rio de Janeiro: DIFEL, Bertrand Brasil, 1989. Em Economia das trocas
lingüísticas, Bourdieu reforçaria este aspecto, ao afirmar: “O porta-voz autorizado consegue agir com
palavras em relação a outros agentes e, por meio de seu trabalho, agir sobre as próprias coisas, na medida em
que sua fala concentra o capital simbólico acumulado pelo grupo que lhe conferiu o mandato e do qual ele é,
por assim dizer, o procurador”. BOURDIEU, Pierre. Economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP,
1996, p. 89.
519
Ressaltamos que empregamos o conceito de representação na acepção de Roger Chartier: “As representações do
mundo social assim construídas, [...] são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para
cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza”. CHARTIER,
Roger. A História cultural: entre praticas e representações. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990. p. 17.
153
Norte. Padre Francisco Pinto conquista o tuixáua dos Potiguares, o Camarão-
Grande, Potiguassú. O padre Gaspar de Samperes percorre, num largo
círculo, o próximo distrito, arrebanhando os chefes para as pazes. Tudo se
apazigua
520
.
Em alguns de seus escritos, também encontramos passagens bastante reveladoras da
visão de Cascudo sobre os indígenas. Referindo-se à primeira solenidade celebrada com ar
de festividade e certa organização e que teria ocorrido em Salvador, durante a procissão do
corpo de Deus , Cascudo informa que para atrair os índios e instruir os colonos, os jesuítas
teriam adotado e propagado esse ato devocional conferindo-lhe caráter penitencial
521
:
Não conheciam Deus. Era o depoimento unânime dos cronistas. Nem uma fé
têm, nem a adoram a Deus algum (frei Vicente do Salvador). Esta
gentilidade nenhuma coisa adora, nem conhecem Deus (Padre Manuel da
Nóbrega). Além de não revelarem conhecimento nenhum do verdadeiro
Deus, não adoram nem confessam deuses falsos, celestiais ou terrestres (Jean
de Léry). Nenhuma criatura adoram por Deus (Padre Anchieta). Este gentio
não tem conhecimento algum de seu Criador, nem de coisa do céu (Padre
Fernão Cardim). Não adoram coisa alguma (Pero de Magalhães Gandavo).
Não tinham espécie alguma de religião (Cláudio [sic] d’Abbeville). Sem fé,
sem lei, sem religião (André Thevet)
522
.
Perseguindo o objetivo de desvendar a visão de Cascudo sobre a atuação dos jesuítas
na conquista da Capitania do Rio Grande e os resultados que os missionários deixaram em
terras potiguares quando foram responsáveis pela pacificação dos índios e,
posteriormente, durante a colonização quando atuaram no apaziguamento das relações entre
índios e colonos , selecionamos alguns artigos publicados em jornais e revistas e capítulos de
livros da vasta produção histórica cascudiana
523
, para identificação e análise das
representações dos jesuítas e da Companhia de Jesus neles presentes.
O primeiro artigo que analisamos, As lendas de Extremôz (sic), foi redigido entre os
anos de 1935-1937 e publicado na Revista do IHGRN em 1940. Nele, Cascudo trata da Vila
de Estremoz, primeira vila da Capitania do Rio Grande e antigo aldeamento de São Miguel de
520
CASCUDO, Luís da Câmara. Fundação e nomes da cidade. In: ______. História da Cidade do Natal. Natal,
RN: Prefeitura Municipal, 1947. p. 21.
521
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Brasília, DF: Instituto Nacional do
Livro, 1972. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br /docs/text/ ciclo.html>. Acesso em: 30 jan. 2009.
522
CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Brasília: José Olympio, 1976, p. 54.
523
Para proceder a análise, definimos algumas categorias-chave , nas quais enquadramos as representações dos
jesuítas e da Companhia de Jesus presentes na produção cascudiana. São elas: pacificação, conquista,
salvação e catequese.
154
Guagirú, contemplando o período que se estende de fins do século XVII, quando se criou o
aldeamento, até o final do século XVIII.
Cabe ressaltar que à época da escrita e da publicação do artigo referido acima, Câmara
Cascudo era sócio efetivo do IHGRN, além de redator da Revista na qual o artigo foi
publicado. Esta informação é relevante para a análise que propomos, uma vez que reafirma a
importância do lugar ocupado pelo autor, como bem observado por Michel de Certeau ao
apontar para o condicionamento da pesquisa histórica ao lugar institucional
524
. Mais uma vez,
Cascudo enfatiza a importância dos missionários jesuítas para a conquista e a colonização da
Capitania do Rio Grande, ressaltando a sua missão evangelizadora: “[...] Guagirú era um
aldeamento. Quer dizer que se compunha de algumas famílias, entregues à agricultura,
presididas por um sacerdote. Em Guagirú, no aldeamento de São Miguel, era um jesuíta o
pastor dos homens. [...]”
525
. (grifo nosso).
Ao apresentar os jesuítas como “pastor [es] de homens”, Cascudo evidencia não
apenas a sua visão sobre o trabalho evangelizador desenvolvido pelos missionários durante o
período colonial, como expressa a sua percepção sobre a função primordial de um religioso, a
de guiar os homens nos princípios e na moral católica.
Nesse artigo, Câmara Cascudo, além de apresentar as muitas lendas ligadas à história
da Vila de Estremoz, atribui aos jesuítas a manutenção e a criação de algumas delas. O
historiador potiguar inicia o artigo informando que coube aos padres da Companhia, que
dirigiam o aldeamento Guagirú, posteriormente transformado em Vila de Estremoz, a
construção das igrejas do lugar. Reproduzindo as lendas que se criaram em torno dessas
igrejas, Cascudo informou que todas elas possuíam subterrâneos que levavam a um lugar
secreto, no qual eram guardados os “tesouros dos jesuítas”: “Era destino do jesuíta esconder
dinheiro, alfaias, armas e jóias. Onde ele andou semeando a sabedoria da moral, do
trabalho, as lendas do trabalho foram também semeadas
526
. (grifo nosso).
Em outro momento do artigo, Cascudo volta a destacar o papel de civilizador
desempenhado pelo missionário jesuíta, responsável pelo treinamento dos indígenas para o
trabalho e pelas construções das igrejas nos aldeamentos:
524
CERTEAU, Michel de. A escrita da história. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002.
525
CASCUDO, Luís da Câmara. As lendas de Extremôz. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte: 1935-1937, Natal, RN, v. 32-34, p. 87, 1940. Percebe-se nessa passagem a importância
que Cascudo dá à ação missional e civilizadora desempenhada pelos jesuítas, visão que nos parece decorrer
tanto de sua identificação e adesão ao modelo historiográfico em vigor no período, quanto de sua fé - seu
catolicismo - e de sua identificação com a atuação da Igreja católica no Rio Grande do Norte.
526
Ibid., p. 86, 1940.
155
Depois da guerra dos índios é que se deu o aldeamento Guagirú. [...] Depois
a redução cresceu... A cidade do Natal estava perto. Os terrenos eram férteis.
A indiada ajudava também. O jesuíta a tudo olhava e chegava a tempo
para ensinar trabalho doméstico às cunhãs desocupadas. A Igreja deve
ser dos fins de XVIII, ou princípios, como é mais provável, do século XVIII.
Era um barroco jesuítico. [...] As três portas e três janelas, com ornatos
escuros e típicos, lembram o punho inegualável [sic] e fino do jesuíta
construtor, em toda plenitude do seu estilo despido e impressionante. Ele
conservava a aridês e austeridade de Loiola
527
.
(grifo nosso).
Revelando uma visão extremamente positiva dos tempos em que os jesuítas
administravam os aldeamentos, Cascudo contrapõe a pobreza de Estremoz, no século XX, à
riqueza que os jesuítas teriam acumulado no período colonial. Embora demonstre uma certa
perplexidade diante das informações que dão conta do “grande tesouro” acumulado pelos
jesuítas apesar das terras pobres, da “vida primitiva” e do inexpressivo número de padres ,
Cascudo não deixa de expressar sua verdadeira admiração diante da “projeção dos inacianos”
junto à população e das demonstrações heróicas de fé e caridade dos missionários, parecendo
considerá-las como o maior tesouro que teriam conseguido efetivamente reunir:
[...] Extremôz (sic) continua sem história, silenciosa, pequenina, ignorada,
sem lances heróicos que não fossem os da fé e sem maiores trabalhos afora
os da caridade e do rythmo (sic) moral que o jesuíta imprimia como uma
projecção (sic) de sua presença. Nesse ambiente, terra pobre, meia dúzia de
padres (não há informes sobre o número) famílias indígenas, trabalhadores
ruraes (sic), raro homem branco, vida primitiva e serena, pautada pela oração
e pelo hábito das madrugadas e dos somnos (sic) ao cahir (sic) da noite, o
jesuíta juntou um thesouro (sic). Um grande thesouro (sic) que inda (sic)
faísca e deslumbra toda diversidade de gente. Como teria o jesuíta arranjado
tanto ouro? E para que, Santo Deus?
528
.
Ao escrever sobre o período da conquista e colonização do Rio Grande do Norte,
como demonstrado nesse capítulo, Câmara Cascudo enfatizou o papel civilizador dos
missionários jesuítas, inspirando-se e valendo-se, sobretudo, da produção
529
do Pe. jesuíta
Serafim Leite
530
. As consultas a essa produção ficam evidentes dentre as muitas que
527
CASCUDO, Luís da Câmara. As lendas de Extremôz. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do
Norte: 1935-1937, Natal, RN, v. 32-34, p. 88, 1940.
528
Ibid., p. 89.
529
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3,
tomo 5.
530
Serafim Leite nasceu em Portugal, em 1890. Veio ao Brasil, ainda rapaz, aos 15 anos, quando entrou para a Companhia.
Por indicação do Provincial, foi incumbido de escrever a "História da Companhia de Jesus no Brasil”, produzida entre
1938 e 1950. Morreu em 1969.
156
podemos referir numa passagem do primeiro capítulo de seu livro História da Cidade do
Natal, aquele que o consagrou como historiador, no qual Cascudo refere explicitamente a
Serafim Leite, a propósito da controvérsia em torno da data da chegada dos portugueses à
região: “A esquadra entrou a barra do rio Potengi em dia discutido ainda. O Pe. Serafim Leite,
S. J., divulgou o 25 de dezembro de 1597”
531
.
Esta reverência a Serafim Leite não impediu que Cascudo atualizasse algumas
informações sobre a Capitania do Rio Grande, outrora divulgadas pelo historiador jesuíta. Em
um exemplar original da obra de Serafim Leite que encontramos na biblioteca do Memorial
Câmara Cascudo , deparamo-nos com um pequeno texto escrito à mão por Cascudo ao
final do capítulo III do livro III, que trata das antigas aldeias jesuíticas de Guajuru e
Guaraíras
532
.
Na conclusão do capítulo, Serafim Leite informa: “O exílio dos Padres destas duas
Aldeias não se fêz (sic) sem protestos e lágrimas de Índios e Brancos, que de Guajuru os
vieram acompanhar por espaço de duas milhas até a Cidade. [...] Episódio apenas
significativo, conclui Francisco da Silveira, do amor e reverência dos nacionais do Brasil para
com os seus benfeitores de quem assim os privavam”
533
. A este último parágrafo, Cascudo
valendo-se, com certeza, da sua condição de historiador oficial de Natal e das informações de
que dispunha através de pesquisas realizadas acrescentou à mão: “O último diretor era o
Pe. Alexandre de Carvalho, com o escolástico José Ferreira deixou a aldeia em junho de
1759. O Padre [M.] do Colégio de Recife. Embarcou em Bahia a 1-5-1760 com 52
companheiros para Lisboa”
534
.
Alguns outros capítulos da obra de Serafim Leite também foram alvo da leitura atenta
e criteriosa de Cascudo, como se pode perceber nas correções e anotações que fez à margem
de algumas páginas. Uma das que nos chamou a atenção é a anotação que fez ao lado da
seguinte passagem: “E, ao mesmo tempo, se cuidaria dos Potiguares, tanto dos do Rio
Grande, <<como dos que se desceram para Paraíba e Gueena, que é Aldeia que está entre a
531
CASCUDO, Luís da Câmara. O “Santos Reis”. In: ______. História da Cidade do Natal. Natal, RN:
Prefeitura Municipal, 1947. p. 18.
532
Trata-se, efetivamente, do capítulo II, Fundação do Rio Grande do Norte, e capítulo III, Aldeias de Guaraíras
e Guajuru da obra de LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, cap. 2-3, p. 504-535.
533
LEITE, Serafim. Aldeias de Guaraíras e Guajuru. In: ______. História da Companhia de Jesus no Brasil.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3,tomo 5, p. 535.
534
Ver anexo C (a página 535 do capítulo 3, do livro 3 da obra História da Companhia de Jesus no Brasil, de
Serafim Leite, que integrava o acervo pessoal do historiador. Passagem escrita à mão por Cascudo).
157
Paraíba e Pernambuco, que nós, por missão, conservamos>>”
535
. (grifo de Cascudo). Além
de sublinhar a palavra que considerou estar incorreta, Cascudo a corrigiu, substituindo-a por
Goiana. Em outro capítulo, Cascudo preocupado com a precisão de nomes, lugares, datas e
personagens complementaria a informação dada por Serafim Leite sobre o padre Bourel: “A
vida da Aldeia continuou neste ambiente de apostolado em meio versátil e difícil, durante
alguns anos, até que em 15 de maio de 1709 faleceu nela o P. Filipe Bourel”
536
. (grifo de
Cascudo). Ao lado do nome do missionário, Cascudo acrescentou: 1659-1709.
Esses indícios de uma leitura crítica e atenta que não se limitou à obra de Serafim
Leite e nem às anotações que fazia à margem dos livros que lia e consultava nos
comprovam o espírito inquieto e investigador de Cascudo, aspecto que viria a ser destacado
por ele mesmo: “Sempre fui curioso, indagador, grande memória e sem atração pelo que
seduzia os contemporâneos, Pecúnia, Poder, Luxúria [e] Ostentação. Nunca me saciara do
conhecer”
537
.
Cascudo também publicou artigos que enfocavam a atuação dos missionários jesuítas
durante o período colonial em um importante veículo de divulgação da Igreja Católica no
estado do Rio Grande do Norte, o jornal A Ordem, da Arquidiocese de Natal
538
. Fundado em
1935, o jornal circulou diariamente até 1953, e após sete anos sem ter sido impresso, voltou a
circular semanalmente em 1960. A partir de 1967, tornou-se mensal, sendo divulgado a partir
das paróquias. Para dar continuidade à análise que pretendemos fazer neste subcapítulo,
selecionamos dois artigos publicados no ano de 1938: Aldeias dos jesuítas no Rio Grande do
Norte e As grandes festas de hoje em Estremoz: uma povoação que é uma relíquia histórica.
Vale destacar que o jornal A Ordem foi lançado em uma época em que a Igreja
Católica do Rio Grande do Norte se mostrava preocupada com os problemas sociais
decorrentes da Primeira Guerra Mundial, com o fortalecimento do catolicismo e com a moral.
A primeira fase do jornal, de 1935 a 1953, segundo Alceu Ferrari
539
, se caracterizou por uma
linha editorial que seguia idéias integralistas. Seus dirigentes, na primeira fase, foram jovens
intelectuais católicos. De acordo com relatos de leitores e de funcionários do jornal, em sua
535
LEITE, Serafim. Fundação do Rio Grande do Norte. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, p.506. Ver anexo C (foto da
página 506 de Serafim Leite do capítulo 2, do livro 3).
536
LEITE, Serafim. Nas Fronteiras do Rio Grande e Ceará. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, p.548. Ver anexo C (foto da
página 548 de Serafim Leite do capítulo 4, do livro 3).
537
CASCUDO, Luís da Câmara. Prelúdio e fuga do real. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1974. p. 137-138.
538
Os dois artigos foram publicados no mesmo dia. O artigo sobre as festas de Estremoz é matéria de capa e o
artigo sobre as aldeias se encontra na pág. 6 da edição do dia 14 de agosto de 1938.
539
Ver mais em FERRARI, Alceu. Igreja e desenvolvimento: o movimento de Natal. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1968.
158
primeira fase, A Ordem tinha grande importância na sociedade natalense, sendo não só
instrumento da ação católica, mas fonte de informação e opinião sobre assuntos locais,
nacionais e internacionais
540
. Corroborando esses relatos, em 1967, Dom Nivaldo Monte,
então Arcebispo da Arquidiocese de Natal, chegou a afirmar: “se saía em A Ordem todo
mundo acreditava”
541
.
Ao analisarmos os artigos divulgados n’A Ordem, constatamos que eles reafirmam o
discurso apologético em relação à Companhia de Jesus, tão evidente no artigo Os jesuítas no
Rio Grande do Norte, publicado na Revista Estudos Brasileiros, e no capítulo do livro
História do Rio Grande do Norte que já mereceram a nossa atenção. Neles, Cascudo enfoca a
situação das populações indígenas do Rio Grande do Norte após a “Guerra dos Bárbaros”
542
,
ressaltando a importante contribuição dos missionários jesuítas para a pacificação e para o
aldeamento dos índios: “As Missões apasiguadoras [sic] estavam ao redor dos antigos centros
de resistência selvagem. O missionário empregou a tática infalível da bondade, da alegria
e da tolerância. O cariri taciturno e agressivo virou cordeiro. [...]”
543
. (grifo nosso).
Cascudo não descuidou de ressaltar as habilidades dos missionários e da sua atuação
em áreas muito distintas: “O jesuíta nestas duas reduções
544
multiplicou-se [sic]. [...]. O padre,
mestre escola, feitor, arquitecto [sic], era ainda um animador de festas tradicionais. [...]”
545
.
Isto, no entanto, não o impediu de, curiosamente e discordando da visão apologética tão
difundida em outros de seus trabalhos, afirmar que: “Os jesuítas viviam explorando os
pobres índios
546
. (grifo nosso).
Em outra passagem, Cascudo refere-se aos efeitos negativos da colonização, sobretudo
da exploração da mão-de-obra indígena, contrapondo-os ao bom tratamento que os jesuítas
haviam lhes dado nos aldeamentos: “Os índios desapareceram. Resta, no meio das duas praças
540
Informação contida em: JORNAL A Ordem: origem. A Ordem online. Disponível em: <http://www.
arquidiocesedenatal.org.br/aordem/ao historia.htm>. Acesso em: 19 set. 2007.
541
Ibid., 2007.
542
As guerras movidas contra os indígenas que resistiam à ocupação de suas terras foram chamadas pelos
colonizadores de “guerras justas”. Segundo a legislação portuguesa, os “índios bárbaros” que eram nelas
aprisionados poderiam ser escravizados ou vendidos como escravos assim como seus descendentes , ao
contrário dos “índios mansos”, ou seja, os já batizados e, portanto, já supostamente submetidos à
colonização. A “Guerra dos Bárbaros”, por sua vez, consistiu numa série de conflitos que ocorreram entre
1651 e 1704, nas capitanias do Norte, sendo a Capitania do Rio Grande uma das mais atingidas por tais
conflitos. MONTEIRO, Denise Mattos. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3 ed. rev. Natal,
RN: Cooperativa Cultural, 2007. p. 46-49.
543
CASCUDO, Luís da Câmara. Aldeias dos jesuítas no Rio Grande do Norte. A Ordem, Natal, RN, p. 06, 14
ago. 1938. Constatamos que essa caracterização da atuação dos missionários será feita por Cascudo em outro
artigo, de 1940, no qual voltará a reforçar sua percepção elogiosa sobre a conduta dos padres na Capitania.
544
Referência às duas missões no Rio Grande do Norte que ficaram sob o comando dos jesuítas, a de Guagirú e
de Guaraíras.
545
Ibid., p. 06.
546
Ibid., p. 06.
159
silenciosas e devastadas, espectral, abrindo os dois grandes braços de rija madeira, os dois
Cruzeiros, derradeiras testemunhas [...] dos homens que por ali passaram, ensinando e
sofrendo por eles, os padres da Companhia de Jesus...”
547
. (grifo nosso).
Em um artigo divulgado no Jornal A Ordem, intitulado As grandes festas de hoje em
Estremoz: Uma povoação que é uma relíquia histórica, também identificamos representações
cascudianas sobre os jesuítas e o papel que desempenharam em terras potiguares:
As raízes do Brasil, aquelas que o sustentam, estão na tradição. Quem quiser
conhece-las (sic) precisa mergulhar em nosso passado histórico. A poucas
léguas de Natal, em Estremoz, o Brasil pode ser visto no que ele possue (sic)
de eterno e superior a todos os atrativos do progresso atual. Aquelas ruínas
tem uma eloquencia (sic) singular, porque nos revelam o verdadeiro Brasil
sem articular palavra ou desferir um gesto. O Rio Grande do Norte é feliz
porque, além de Estremoz, conserva outros tesouros históricos como Arez,
Uruassú (sic), Cunhaú, Papari, Vila-Flor, Assú, Port’Alegre (sic), Apodi,
São José de Mipibu e tantos mais. Quanta espiritualidade se respira numa
visita a esses velhos monumentos do passado! Precisamos, vez por outra,
empreender visitas coletivas a esses logares (sic) sagrados, para
conhecer, sentir e amar as nossas tradições positivas. A romaria de hoje
a Estremoz tem este sentido
548
. (grifo nosso).
Nesse trecho que transcrevemos, Cascudo, além de caracterizar a antiga aldeia
jesuítica de Guagirú como uma das “belas e louváveis” raízes do Brasil, incentiva os
potiguares a manterem a romaria a Estremoz e a manterem as tradições religiosas populares.
Nesse mesmo artigo, Cascudo procura convencer os leitores do Jornal A Ordem, de
que o legado jesuítico foi de suma importância para o patrimônio espiritual e material do Rio
Grande do Norte, pois, segundo ele:
Ali, há três séculos, os jesuítas estabeleceram a aldeia de Guagirú; dali a ira
do marquês de Pombal expulsou, em 1760, os beneméritos filhos de Santo
Inácio de Loiola; ali foi edificada, nesse ano, a Nova Vila de Estremoz sobre
as ruínas da antiga aldeia. Na primitiva capela construída pelos jesuítas
existiam, em 1760, tantas imagens que fariam hoje uma santa inveja a muitas
de nossas matrizes. [...] Tudo isto é muito significativo. É uma <<raiz>> que
547
CASCUDO, Luís da Câmara. Aldeias dos jesuítas no Rio Grande do Norte. A Ordem, Natal, RN, p.
06, 14 ago. 1938.
548
CASCUDO, Luís da Câmara. As grandes festas de hoje em Estremoz: Uma povoação que é uma relíquia
histórica. A Ordem, Natal, RN, p. 01, 14 ago. 1938.
160
contém muita substância. No solo da pátria estão enterradas muitas dessas
raízes!
549
Na continuidade, passamos a analisar um outro artigo de Câmara Cascudo, intitulado
Os jesuítas no Rio Grande do Norte, escrito em fins da década de 1930 e publicado em
1940
550
na revista Estudos Brasileiros
551
, do Rio de Janeiro. É importante lembrar que
Cascudo era, à época, um dos mais destacados intelectuais norte-rio-grandenses e integrava o
IHGRN, instituição cujo maior interesse era o de construir uma história e uma memória sobre
o Rio Grande do Norte, e que este artigo, apesar de não ter sido publicado pela Revista do
IHGRN, se enquadrava perfeitamente no tipo de produção que o Instituto estimulava e
divulgava
552
. Vale ressaltar, ainda, que a produção histórica dessas duas décadas foi marcada
pelas tentativas de interpretação e pela publicação de sínteses do passado brasileiro
553
, que se
caracterizaram, especialmente, pela amplitude temática, de difícil classificação teórico-
metodológica, apesar de profundamente marcadas pelos estudos comparativos
554
.
549
CASCUDO, Luís da Câmara. As grandes festas de hoje em Estremoz: Uma povoação que é uma relíquia
histórica. A Ordem, Natal, RN, p. 01, 14 ago. 1938.
550
Vale ressaltar que foi durante a década de quarenta que Cascudo se consagrou como historiador, integrando-se,
efetivamente, ao esforço de construção de uma memória do estado do Rio Grande do Norte.
551
A Revista Estudos Brasileiros, publicada no Rio de Janeiro, teve como fundador João Augusto de Mattos
Pimenta, idealizador do Instituto de Estudos Brasileiros.
552
Como já observado em outro momento, o Rio Grande do Norte havia passado pela Revolução de 1930, sem
muitas mudanças em sua estrutura política. Dessa forma, o IHGRN continuava congregando a elite pensante
que se responsabilizava pela história do Estado, sendo que uma grande parte dessa elite era composta por
políticos importantes que detinham o poder local. Cascudo fazia parte desse universo, escrevendo seus livros
sobre diversas áreas, tais como etnografia, história e folclore.
553
Como exemplo dessas sínteses, podemos citar a renomada tríade da historiografia brasileira, formada por
Sérgio Buarque de Hollanda, Gilberto Freyre e Caio Prado Júnior. Sérgio Buarque que publicou em 1936 o
seu renomado livro: Raízes do Brasil. Hollanda escreveu sobre a formação do Brasil, diagnosticando o
português como elemento predominante, o que difere da perspectiva de Gilberto Freyre, que responsabilizou
a mestiçagem entre as raças e que em 1933 lançou sua obra prima: Casa Grande & Senzala. De acordo com
as idéias defendidas no livro por Freyre, a própria estrutura arquitetônica da Casa-Grande expressaria o modo
de organização social e política que se instaurou no Brasil, qual seja o do patriarcalismo. E, posteriormente,
consolidando esse modelo de grandes construções sobre o Brasil que dessem conta de aspectos cruciais da
sociedade e do espaço brasileiro. No livro Formação do Brasil Contemporâneo, Caio Prado Júnior faz uma
síntese dos três primeiros séculos da colonização, até inícios do século XIX, momento caracterizado por ele
como uma etapa decisiva na evolução do país, visto que se constitui num período de transição para uma nova
fase. Através de uma abordagem inovadora, Caio Prado descartou a tendência predominante na época de
enquadrar o sistema colonial em um modelo de economia feudal, afirmando que o processo colonial não
passou de uma das manifestações de um fenômeno de maior amplitude, a expansão comercial iniciada no
século XIV, ou seja, criando uma visão do colonialismo como parte integrante do capitalismo mundial. esses
três grandes livros publicados alimentaram, no dizer de Antônio Cândido, a imaginação dos jovens
brasileiros e os estimularam a refletir sobre seu país: Casa-Grande & Senzala (1933), de Gilberto Freyre;
Raízes do Brasil (1936) de Sérgio Buarque de Holanda e Formação do Brasil Contemporâneo (1942) de
Caio Prado Júnior.Vale ressaltar que cada um desses autores apresenta particularidades que os diferenciam
entre si, possuindo como semelhança na maioria das vezes apenas o fato de tratar do processo de formação
histórico e cultural do Brasil e terem marcado a historiografia brasileira do século XX.
554
Ver mais em. DIEHL, Astor Antônio. A cultura historiográfica brasileira nos anos 1980: experiências e
horizontes. 2. ed. rev. e ampl. Passo Fundo, RS: UPF, 2004. p. 17-18.
161
No artigo em questão, Cascudo atribuiu grande importância aos jesuítas, tanto por
sua formação e condição de pregadores para a salvação das almas dos indígenas
555
,
quanto para a instalação dos primeiros núcleos populacionais, em função das suas
habilidades. Este último aspecto, aliás, fica bem evidenciado na passagem que faz
referência à construção do Forte dos Reis Magos, um dos principais marcos da conquista
do Estado: “O padre Gaspar de Samperes fôra (sic) soldado, batalhando em Espanha,
sabendo dirigir uma construção militar. Ergueu-se a fortaleza dos Reis Magos debaixo
do desenho e naturalmente da fiscalização do Jesuíta Engenheiro
556
. (grifo nosso).
Constata-se que os jesuítas são apresentados como os grandes responsáveis pela fundação
da Cidade do Natal, dada a sua persistência e habilidade para negociar e estabelecer alianças:
De 1597 a 1599 as missões jesuíticas desdobraram-se para possibilitarem a
fundação da Cidade do Natal. Alianças com ‘tuixáuas’potiguares, “pazes”
solenemente proclamadas, trocas de presentes, moradia avisinhada (sic),
todos os processos foram praticados, com aquela paciência irresistível [sic]
e continua (sic) do Jesuíta [...]
557
. (grifo nosso).
Reforçando esta representação positiva dos jesuítas, Câmara Cascudo afirmou: “Os
dois jesuítas
558
são a velocidade inicial da conquista católica. Procuram os Potiguares
559
ariscos, conversam, discutem, convencem
560
. (grifo nosso).
555
Constata-se que, ao escrever esse artigo, Cascudo estava claramente influenciado pelo evolucionismo próprio
do século XIX, pois entendia os índios a “indiada” como “selvagens”, “ariscos”, “suspicazes” a quem os
jesuítas, com muita paciência conseguiram “civilizar”. Ele não deixa de enfatizar a importância do trabalho
catequético e de destacar os benefícios que as Missões haviam trazido para os índios: nelas eles tinham sua
casa, faziam seu roçado, cultivavam a mandioca e a vendiam, as moças aprendiam a tecer, a fiar e a coser,
enquanto os rapazes iam à escola e aprendiam um ofício. Isto fica bem evidente quando ele se refere à
expulsão dos jesuítas do Brasil e ao processo da transformação de cada Missão em Vila. Nele, Cascudo não
deixa de esboçar uma crítica em tom de ironia: “Os índios, restituidos (sic) a sua liberdade e comercio (sic),
ficaram otimamente servidos. El-Rei nomeou um bando de tecnicos desinteressados para inicia-los (sic) nas
contentisas (sic) da administração civil. Começaram, naturalmente, dividindo o expolio (sic) do Jesuíta.” E
concluiu o texto afirmando que, após a expulsão dos jesuítas, os índios ficaram desorientados e se entregaram
à preguiça e a uma vida errática, o que fez com que eles se destruíssem a si próprios, pois perderam
completamente a sua identidade. CASCUDO, Luís da Câmara. Os jesuítas no Rio Grande do Norte. Estudos
Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 3, v. 5, n. 13-14, p. 206-207, jul./out. 1940.
556
Ibid., p. 199.
557
Ibid., p. 201.
558
Referência aos padres Gaspar de Samperes e Francisco Pinto. Ibid., p. 200.
559
Os Potiguares falavam o Tupi e habitavam o litoral da Capitania do Rio Grande. Nesta passagem que
transcrevemos fica evidente que Cascudo incorporou a percepção dos jesuítas e reproduz a dos cronistas
clássicos, fazendo a distinção entre os Potiguares e os Cariri. Estes índios, para Cascudo, eram os habitantes
do sertão muito mais arredios que os Potiguares , tendo sido pela persistência dos jesuítas
transformados em dóceis “ovelhas” pela catequese.
560
Ibid., p. 200.
162
Em outro momento do artigo, Cascudo vincula a “pacificação”, a conseqüente
civilização dos índios pelos jesuítas, ao estabelecimento de colonos na região: “Deve o Rio
Grande do Norte aos Jesuítas o plano da fortaleza, a escolha provável do local e denominação
da Cidade, a pacificação do indígena indispensável para o estabelecimento regular dum
(sic) núcleo europeu
561
. (grifo nosso). A passagem expressa o posicionamento de Cascudo
sobre a forma como se deu a conquista e a colonização no Rio Grande do Norte. Uma visão
que exalta a atuação dos missionários da Companhia de Jesus representantes da Igreja
Católica e de conformidade com o processo de sujeição a que foram submetidos os
indígenas, tido como fundamental para o estabelecimento da cultura européia na região.
Ao exaltar a ação do Estado português no período inicial da conquista e colonização e
ao valorizar a conduta e as estratégias de atração e de aldeamento empregadas pelos
missionários, Cascudo acaba por apresentar os efeitos negativos que o posterior afastamento
dos jesuítas trouxe para os indígenas do Rio Grande do Norte:
As Missões apaziguadoras estavam ao redor dos antigos centros de
resistência. [...] Aldeiados (sic), El-Rei entregou-os ao Missionário. O Padre
empregou a tativa (sic) infalível da bondade, da alegria e da tolerância. O
Cariri, taciturno e agressivo, virou ovelha de quadro de Watteau. Quando lhe
tiraram o Padre, o Cariri foi desaparecendo, roído de sífilis, inchado pelo
álcool, expoliado (sic) das terras, expulso das roças, sem estímulo para
trabalhar. Quando lhe deram a Liberdade o índio morreu
562
.
A passagem acima evidencia um discurso de enaltecimento da “empresa
colonizadora” bem de acordo com a postura historiográfica do IHGB , na qual os jesuítas
se engajaram como “funcionários” a serviço do Estado português
563
, bem como dos
procedimentos de conquista
564
e, sobretudo, dos benefícios decorrentes da instalação de
561
CASCUDO, Luís da Câmara. Os jesuítas no Rio Grande do Norte. Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano
3, v. 5, n. 13-14, p. 201, jul./out. 1940.
562
Ibid., p. 203.
563
Para esclarecer essa questão, recorremos a Thomas Bruneau, que afirma: “A base legal para o controle do
Estado sobre a Igreja foi a série de bulas papais que concediam padroado aos Reis de Portugal. (...) Padroado
é a outorga, pela Igreja de Roma, de certo grau de controle sobre uma Igreja local, ou nacional, a um
administrador civil, em apreço de seu zelo, dedicação e esforços para difundir a religião, e como estímulo
para futuras “boas obras”. De certo modo o espírito do padroado pode ser assim resumido: aquilo que é
construído pelo administrador, pode ser controlado por ele.” BRUNEAU, Thomas. O Catolicismo brasileiro
em época de transição. São Paulo: Loyola, 1974. p. 31.
564
Entendemos esses procedimentos de conquista como as estratégias utilizadas para garantir a conquista, dentre as
quais se destacaram: “a aprendizagem das línguas indígenas pelos agentes de colonização, a criação da língua geral
que homogeneizava as línguas nativas e o ensino da língua portuguesa. [...]”. Ver mais em: LOPES, Fátima
Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório Pombalino no século
XVIII. 2005. Tese (Doutorado em História do Brasil) - Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2005.
163
missões jesuíticas. A “infalível e inteligente” ação dos jesuítas mereceria destaque em outra
passagem do artigo: “O padre Miguel de Carvalho foi o aquietador dessa multidão
turbulentíssima (referência à resistência dos indígenas). E só podia ser Jesuíta (grifo nosso).
Os padres seculares não eram aproveitados no serviço das missões”
565
. O historiador, ao
ressaltar a formação qualificada e a habilidade dos jesuítas para a atividade missionária junto
aos indígenas, não apenas revalida a importância da Companhia no processo da conquista do
Rio Grande do Norte já apontada por outros historiadores, como reforça o discurso
laudatório da atuação missionária jesuítica durante o período colonial.
Cascudo também se referiu aos jesuítas em ocasiões solenes, como na sessão
organizada pelo IHGRN, em 1940, por ocasião das comemorações do quarto centenário da
fundação da Companhia de Jesus. De acordo com a Ata da sessão, publicada na Revista do
IHGRN, o orador oficial do Instituto:
[...] produsiu (sic) uma brilhante oração, pela qual historiou toda a obra
patriótica e christã (sic) dos discípulos de Inácio de Loiola. O orador
demonstrou o heroísmo de Anchieta e continuando, disse que tivemos
paginas maravilhosas nas epopéias da Catequese dos indígenas e que os
nomes gloriosos de Nóbrega, José de Anchieta, Aspicuelta Navarro e
centenas de outros fazem parte integrante da própria civilisação (sic)
brasileira, como os mais decididos fatores de progresso, ao lado das
forças colonisadoras (sic). Disse que o Rio Grande do Norte deve muito aos
padres jesuítas. De um jesuíta é a planta da fortaleza dos Reis Magos e as
vilas de Estremoz e Ares (sic), hoje cidades, foram aldeias entregues ao seu
cuidadoso pastoreio espiritual. [...]
566
. (grifo nosso).
O trecho que destacamos da Ata “fazem parte integrante da própria civilisação
[sic] brasileira, como os mais decididos fatores de progresso, ao lado das forças colonisadoras
[sic]” expõe de forma muito evidente a visão que Cascudo representando o IHGRN
tinha da Companhia de Jesus e do papel que havia desempenhado na Capitania do Rio Grande
durante o período colonial. Os missionários jesuítas são apresentados como “decididos fatores
de progresso” e responsáveis pela “própria civilização brasileira”, em consonância com a
565
CASCUDO, Luís da Câmara. Os jesuítas no Rio Grande do Norte. Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano
3, v. 5, n. 13-14, p. 204, jul./out. 1940.
566
ATA da sessão solene comemorativa do quarto centenário da Fundação da Companhia de Jesus, do dia 27 de
setembro de 1940. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, v. 32-37, p.
178-179, 1935-1940.
164
postura historiográfica da primeira metade do século XX
567
, que tinha nos Institutos
Históricos um espaço privilegiado para sua consagração e difusão.
Outros confrades, além de Cascudo, publicaram artigos enfocando a atuação da
Companhia de Jesus na Revista do IHGRN, como Monsenhor Paulo Herôncio, que, em 1953,
definiu os jesuítas como personagens essenciais para a conquista do território potiguar:
[...] É nesta alvorada de conquista da nossa terra que aparecem os primeiros
jesuítas integrando-se na história da Capitania [...]. Ninguém melhor do que
elês (sic) estava credenciado para os entendimentos de paz com os indígenas.
[...] Foram os jesuítas que descortinaram o futuro da nossa terra, numa
antevisão que o presente está a confirmar, insistindo no estabelecimento de
Missões na Capitania, alegando ser o Rio Grande do Norte a “Chave do
Brasil”. [...] Recolhendo com carinho os feitos do passado, o Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte presta, no jubileu áureo de
sua fundação, comovida homenagem aos jesuítas que ajudaram a construir
os alicerces da nossa nacionalidade
568
.
Analisamos também uma Acta Diurna escrita por Cascudo em 1940, na qual ele se
referiu especificamente a passagens da atuação jesuítica na Capitania do Rio Grande, a Acta
foi intitulada: PADRE GASPAR DE SAMPERES E OUTROS TEMAS JESUÍTICOS. Nesse
texto, Cascudo ressaltou mais uma vez a “essencial” participação dos padres jesuítas nos
processos de conquista e colonização das terras potiguares e dos ensinamentos e práticas
cristãs que difundiram:
A ‘Semana Santa’ de 1598 foi realizada durante as tarefas da Fortaleza. Os
índios assaltavam sempre. Não havia segurança. Os dois Jesuítas temiam
uma batalha e nela conspurcar-se a sagrada partícula. Mascarenhas Homem
teimou em assistir uma ‘Semana Santa’ nessa solidão selvagem. Enquanto o
Santíssimo Sacramento esteve encerrado, duzentos arcabuzeiros vigiavam,
os capitães compareceram, arrastando as bandeiras, rojando ao chão os
estandartes, em homenagem. Fez-se o ‘Ofício das Trevas’ e houve
‘Procissão’. A Cidade do Natal nasceria um ano depois... Regressando
Mascarenhas Homem à Paraíba teriam os dois Jesuítas o acompanhado, sem
que ficasse um deles no apascento do rebanho que surgia? Não é crível. O
Padre Francisco de Lemos seguiu, mas Gaspar de Samperes ficou e parece
567
LIMA, Bruna Rafaela de. A atuação jesuítica na Capitania do Rio Grande na visão de Augusto Tavares
de Lira e Luís da Câmara Cascudo. 2006. f. 45-46. Monografia (Graduação em História) -- Departamento
de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2006.
568
MELO, Paulo Herôncio de. Os jesuítas nas primeiras horas da colonização da Capitania. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 50, p. 47-48, 1953.
165
ter sido a nossa primeira autoridade eclesiástica no Natal que ainda não se
fundara
569
.
Nessa Acta, Cascudo, novamente, reproduz a versão do historiador jesuíta Serafim
Leite, como se pode constatar nesta passagem que deixa explícita a consulta às informações
por ele divulgadas:
Ao lado de Manuel Mascarenhas Homem, Capitão-Mor de Pernambuco,
comandante da expedição colonizadora do Rio Grande do Norte, vinham
dois Jesuítas, os padres Francisco de Lemos, por superior, e Gaspar de
Samperes ou São Peres. Quando aportaram as naus no estuário do rio
Potengi, logo chamado Rio Grande? Uma ‘Relação’ inédita que o Padre
Serafim Leite S. J. divulgou, informa: - ‘O Rio Grande está em cinco graus e
meio de altura à parte do sul da linha equinocial. Entraram os Portugueses
neste rio e terra para conquistar o ano de 97, a 25 de dezembro’. Sabemos
agora ter sido os dois Jesuítas, Pinto e Samperes, os artífices das pazes entre
Potiguares e Portugueses. O Padre Pinto, Francisco Pinto, o “Pai Pinto”
dos indígenas, foi à serra da Cupaóba apaziguar a indiada submissa.
Samperes conquistou Potiguassú, o Camarão Grande, Pai de Dom
Antônio Felipe Camarão. Não lhe custou pouco, andando o Padre pelo
sertão, subindo e descendo serras, comendo o que lhe davam, na
esperança de serenar o ambiente. Em documento público, atestava
Mascarenhas Homem que os Jesuítas haviam palmilhado cinqüenta léguas
pelo interior, entrando em vinte e cinco aldeias bárbaras. [...] O sonho do
Padre Francisco Pinto, sacrificado pelos Tocarijús em Ibiapaba, era uma
“residência” jesuítica no Rio Grande do Norte. Mas o Padre Pero de Toledo,
Reitor do Colégio de Pernambuco, contrariava, opinando que a casa se
abriria se El-Rei a sustentasse. [...] E o Padre Gaspar de Samperes,
construtor da Fortaleza e possivelmente quem escolheu o lugar para a
fundação da Cidade do Natal? Sei apenas que a 24 de setembro de 1616
estava em Natal, dizendo aqui ‘residir’. Depois, infelizmente, perdi-o de
vista e notícia...
570
. (grifo nosso).
Da Acta em questão, depreende-se que as cartas escritas pelos jesuítas que atuaram na
Capitania do Rio Grande foram a fonte primordialmente utilizada por Serafim Leite e que as
informações por elas trazidas são utilizadas [e reproduzidas] sem qualquer questionamento
por Cascudo: “O Provincial dos Jesuítas Padre Pero Rodrigues, em carta de 19 de dezembro
de 1599, aclara uma passagem escura, escrevendo que ‘E vindo-se o dito capitão para a Vila
de Pernambuco, pediu aos ditos Padres quizessem ficar, como ficaram, assistindo na
569
CASCUDO, Luís da Câmara. Padre Gaspar de Samperes e outros temas jesuíticos. A República, Natal, RN,
20 jul.1940. Acta Diurna, p. 01.
570
Ibid., p. 01.
166
Fortaleza do Rio Grande’. Da Fortaleza seguiram para Cupaóba e vararam o desertão, em
catequese”
571
.
Na seqüência, e perseguindo o mesmo objetivo, dedicamo-nos à análise do capítulo
primeiro de seu livro História do Rio Grande do Norte
572
, concentrando nossa atenção como
vimos fazendo até o momento nas referências feitas pelo historiador potiguar aos
missionários jesuítas. Em várias passagens do livro, encontramos o jesuíta associado à
catequese, pacificação, salvação, conversão, colonização e conquista, e a algumas
características, tais como a de ter sido um pregador paciente e tenaz. Já os índios, aparecem
descritos como insubmissos, indomáveis e selvagens.
No item IV, intitulado A Expedição Colonizadora de Mascarenhas Homem.
Construção do Forte dos Reis Magos, o jesuíta é, mais uma vez, apresentado como alguém
dotado de formação qualificada, o que teria sido fundamental para o êxito da conquista do
território: “a planta (do Forte) é do Pe. Gaspar de Samperes que fora mestre nas traças de
engenharia na Espanha e Flandres antes de entrar para a Companhia de Jesus”
573
. (grifo
nosso).
Em Pazes com os indígenas, no item V, Cascudo enfatiza a habilidade dos
missionários no trato com os índios, e a importância de sua “pacificação” a quebra da
resistência para a execução do projeto colonial na região:
Era indispensável a pacificação da massa indígena, insubmissa, reatacando
sempre, transformando a vida dos brancos num estado permanente de
inquietação bravia e áspera. É missão dos jesuítas, dos missionários. Gaspar
de Samperes, Francisco Pinto, Francisco de Lemos fazem milagres de
persuasão, com as forças irresistíveis da paciência e da tenacidade em
Serviço da Fé
574
. (grifo nosso).
Em uma das passagens de História do Rio Grande do Norte, Cascudo, não apenas nos
revela quais foram os autores que consultou para a elaboração do livro, como identifica uma
divergência de informações, sem, no entanto, posicionar-se sobre as duas visões:
[...] Não somente a indiada que residia às margens do Rio Potengi, chefiada
pelo tuixaua Potiguaçu, o Camarão Grande, mas as aldeias distantes na serra
571
CASCUDO, Luís da Câmara. Padre Gaspar de Samperes e outros temas jesuíticos. A República, Natal, RN,
20 jul.1940. Acta Diurna, p. 01.
572
Para tanto, nos valeremos da segunda edição da obra, datada de 1984.
573
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984, p. 24.
574
Ibid., p. 26.
167
paraibana da Capaoba (Serra da Raiz), com os chefes Mar Grande, o
valoroso Pau Seco (Ibiratinin), o mais atacado mentor indígena, foram
visitadas e o padre Francisco Pinto (segundo a <<carta>> de Pero Rodrigues,
divulgada pelo Pe. Serafim Leite, S.J.) ou Gaspar de Samperes (segundo
Frei Vicente do Salvador) conseguiu perfeita harmonização
575
. (grifo
nosso).
A menção explícita a Frei Vicente do Salvador
576
e a Serafim Leite é confirmada pela
presença dos dois historiadores nas referências bibliográficas, tanto do livro, quanto do artigo
já analisado, e que incluem, também, o livro de Henry Koster
577
, de significativa importância
para a trajetória do intelectual potiguar
578
.
Pudemos constatar que, ao tratar da atuação dos missionários no Rio Grande do Norte,
Cascudo se aproxima, efetivamente, da posição do historiador jesuíta Serafim Leite, para
quem os padres, além de atuarem como “redentores” dos “sem alma, foram os responsáveis
pela consolidação da conquista e pela colonização: “[...] os resultados da catequese jesuítica
em Serra do Copaoba foram definitivos para a colonização. Copaoba vale Iperoig para o Rio
Grande do Norte”
579
.
No livro História do Rio Grande do Norte, o capítulo IX foi inteiramente dedicado à
História da Igreja no Rio Grande do Norte, tema que foi desenvolvido a partir dos seguintes
tópicos: (I) Início histórico. As três Dioceses. (II) Aldeias e Missionários. (III) As Paróquias
vivas. (IV) Religiões acatólicas. Nele encontramos mais evidências da visão que tem o autor
sobre a atuação dos missionários jesuítas, apresentando-os como os “responsáveis” mais
diretos pelo sucesso da conquista:
575
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984, p. 26.
576
Frei Vicente, ou Vicente Rodrigues Palha, nasceu em Matuim, Bahia, em 1564. A sua obra História do Brasil
é de 1627, tendo permanecido inédita até 1888.
577
Henry Koster era filho de ingleses; nasceu em Portugal e viveu em Pernambuco durante 16 anos. Sua obra Viagens
ao Nordeste do Brasil foi publicada em Londres, no ano de 1816, tendo alcançado grande sucesso, o que pode ser
constatado nas sucessivas reedições e publicações em outros países. No Brasil foi publicado em 1898. Em razão
disso, tornou-se, fonte de consulta e citação obrigatória para todos que escreveram sobre o Brasil, a partir de então.
No século XX, a obra ganhou uma especial tradução, feita por Luís da Câmara Cascudo. Além de traduzir,
Cascudo prefaciou e acrescentou notas e comentários à edição.
578
Cascudo deve ter se utilizado dessas fontes para conferir maior credibilidade às informações que seus livros
traziam. Vale relembrar que a operação historiográfica, como afirma Certeau, “é animada por um desejo de
verdade, produzindo resultados de verossimilhança e credibilidade através de um discurso que se legitima
pela autoridade da fala, pela lógica da argumentação e da retórica e pelas evidências de pesquisa, com as
citações, as notas de rodapé, a bibliografia e o arrolamento de fontes, a desafiar o leitor ainda incrédulo a
refazer o mesmo caminho percorrido pelo historiador”. PESAVENTO, Sandra J. Palavras para crer:
imaginários de sentido que falam do passado. Paris: CERMA/EHESS, 2006. História Cultural do Brasil
(Dossier coordenado por Sandra Jatahy Pesavento 28.01.06). Disponível em: <http://nuevomundo.
revues.org>>. Acesso em: 25 jan. 2009.
579
CASCUDO, op. cit., p. 26.
168
Na conquista do Rio Grande do Norte os serviços da assistência religiosa
estavam confiados aos jesuítas Gaspar de Samperes e Francisco de Lemos
[...] e ficaram os jesuítas Samperes e Lemos na luta da catequese, reunindo-
se-lhes o Pe. Francisco Pinto, jesuíta que se popularizou entre a indiada que
o chamava de Pai Pinto e o apelidaram “Amanaiara”, senhor da chuva,
porque o supunham dispor dos elementos naturais
580
.
Para confirmar a presença inequívoca desses missionários na Capitania do Rio Grande,
Cascudo dedicou-se a desvendar a origem da expressão Curral dos padres
581
: “Há no
município de Angicos um topônimo que possivelmente identifique o local. Dizem Curral dos
Padres. Curral é sinônimo do que dizemos hoje fazenda, criação de gado. Padres é quase o
mesmo que jesuíta porque os demais missionários eram frades”
582
.
Para legitimar as informações e conferir credibilidade a seu trabalho, Cascudo, mais
uma vez, recorre à obra do padre e historiador Serafim Leite
583
, como se constata nesta
passagem: “Serafim Leite S. J. mostrou que os Jesuítas pastoreavam o rebanho antes e depois
da criação da freguesia, em data ignorada até hoje. Padre Gaspar de Samperes estêve (sic)
quase sempre em Natal e temos sua presença nos anos de 1606 e 1616. É o autor da planta do
Forte dos Reis Magos”
584
.
As inúmeras referências que Cascudo faz à Companhia de Jesus não apenas reforçam
a visão elogiosa que a historiografia clássica brasileira já havia se encarregado de difundir,
como inserem a Ordem e seus missionários na História oficial do Rio Grande do Norte,
atribuindo-lhes o papel de “fundadores da civilização nas terras potiguares”: “Os jesuítas
tinham S. Miguel de Guagiru (a futura Estremoz) e S. João Batista de Goaraíras que depois
seria a Vila de Arez. [...] Os missionários empregados eram dedicados e tenazes”
585
.
Ao escrever sobre os missionários jesuítas, as primeiras igrejas do Estado, a
importante função moralizadora desempenhada pela Igreja Católica, as manifestações de
religiosidade popular ou sobre as expressões tão particulares de sua fé, Luís da Câmara
580
CASCUDO, Luís da Câmara. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto,
1984, p. 237.
581
Na Acta Diurna, publicada no jornal A República em 12 de outubro de 1945, sob o título Curral dos Padres,
Cascudo revela ter se dedicado a descobrir a origem do local e a quem pertencia. Ao fim da breve Acta, Cascudo
assinalou que: “Curral dos Padres, até prova em contrario, é um vestígio de aldeia jesuítica, ainda não registrada
pelos nossos historiadores, vivendo, normal e prolífera, nos princípios do século XVIII”. CASCUDO, Luís da
Câmara. Curral dos Padres (identificação de um topônimo). In: ______. O Livro das velhas figuras: (pesquisas e
lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2002. v. 8, p. 119.
582
CASCUDO, op. cit., p. 241.
583
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945.
Livro 3, tomo 5.
584
CASCUDO, op. cit., p. 237.
585
Ibid., p. 238.
169
Cascudo conseguiu como demonstramos nesse último capítulo conciliar o homem de
letras, prestigiado pelo poder público, pelos seus pares intelectuais e confrades de Instituto
Histórico e, ainda, pela Igreja Católica, com o homem de fé, que não deixou de expressar sua
religiosidade ao longo de sua vida.
Após sua morte, esse homem de letras seria conduzido simbolicamente da rede, na
qual, muitas vezes, podia ser encontrado escrevendo ou lendo, ao altar, tanto pelos contadores
de histórias que o transformaram em seu santo padroeiro São Cascudo , quanto pelos
adeptos da cascudolatria, que reverenciam o Cascudo historiador, tomando-o como referência
obrigatória da e para a História potiguar até os dias de hoje.
170
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Ouvi estórias de trancoso, de cangaceiros, de gente rica, guerras de família, heroísmos ignorados,
ferocidades imprevistas e completas. Também recordavam vida de missionários, de santos canonizados
pelo povo, superstições, adivinhanças de chuva e bom tempo, rezas fortes para ser feliz em tudo, para não
cair do cavalo, para ficar- se insensível. [...] Vivi nesse meio. E deliciosamente”
586
.
Nosso maior empenho nessa Dissertação foi o de apresentar duas das facetas menos
exploradas de Luís da Câmara Cascudo, a de historiador e a de homem de fé. E foi sobre esse
homem de letras e sobre esse homem de fé que nos ocupamos nos três capítulos que a
compõem. O texto em epígrafe pareceu-nos bastante pertinente para iniciar as nossas
reflexões finais, na medida em que remete tanto às lembranças de sua infância de menino de
província, quanto às expressões da religiosidade do homem de fé que Cascudo foi.
Luís da Câmara Cascudo foi e continua sendo cultuado como um dos historiadores
mais importantes para a história do estado do Rio Grande do Norte. Ele mesmo empenhou-se
em definir como queria ser lembrado, legando para o Rio Grande do Norte uma imagem que
segue sendo cultuada até os dias de hoje na mais antiga instituição cultural do Estado, a “Casa
da Memória”, termo por ele empregado ao se referir ao IHGRN. Ao ser perguntado sobre se
temia a morte, Cascudo teria afirmado: “eu não tenho tempo para olhar a morte, a miséria, o
desespero, a angústia [...]”
587
. Esta forma de pensar que traduz como Cascudo encarava a
vida fez com que muitos de seus “discípulos” passassem não apenas a cultuá-lo, mas
defendessem o seu “encantamento”.
Para o historiador Marcos Silva, há, inegavelmente, uma cascudologia” e uma
“cascudolatria”, decorrentes do culto à pessoa e à obra de Câmara Cascudo. Isto fica evidente
na postura assumida pelos letrados que integram e integraram o IHGRN, para quem a
identidade potiguar de Cascudo é a jóia mais preciosa que Natal possuiu e possui”. Segundo
este mesmo autor, Câmara Cascudo “experimentou, ainda em vida, processo de
monumentalização em Natal, de nome de rua, prêmio cultural, Biblioteca e Museu de
586
CASCUDO, Luís da Câmara. Vaqueiros e cantadores: folclore poético do Sertão de Pernambuco, Paraíba,
Rio Grande do Norte e Ceará. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia; São Paulo: Editora da Universidade de São
Paulo, 1984. p. 16.
587
Última entrevista concedida por Cascudo ao jornalista Osair Vasconcelos e publicada no jornal Diário de
Natal em 11 de junho de 1986 apud SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal,
Natal, RN, n. 6, 03 fev. 1999. DN-educação, p. 114. Projeto Ler.
171
Antropologia, a transformação de sua casa em referência turístico-cultural da cidade e a
construção de Memorial após seu falecimento”
588
.
Também a imprensa de Natal o aclamou como o “padroeiro literário” da Cidade, como
se pode constatar nessa homenagem que lhe foi prestada pelo jornal A República, por ocasião
do seu aniversário de oitenta e seis anos:
Escolhida por Nossa Senhora da Apresentação para protegê-la com seu
manto, a Cidade do Natal terminou ganhando também um padroeiro. Um
santo padroeiro que nasceu na Rua das Virgens e, graças a Deus, ainda vive
lúcido e saudável, mostrando às novas gerações, com seu exemplo, que o
bem querer à cidade pode se transformar numa obra universal. Ao completar
86 anos Luís da Câmara Cascudo vê a sua festa de aniversário se transformar
na festa do padroeiro literário da Cidade do Natal. Festa que esperamos
continuar comemorando ainda por muitos e muitos anos. Ao lado do
homenageado
589
.
Movido por razões de fé ou pelo sentimento, Cascudo agiu da forma mais espontânea
possível, quando se tratava de expressar suas opiniões e, de uma forma mais intencional, ao
controlar o processo de construção de uma memória sobre si mesmo. Num trecho extraído de
uma entrevista que ele concedeu, encontramos muito presentes os elementos da construção do
“São Cascudo”, do padrinho dos contadores de história e patrono da cultura popular:
Eu não sei porque fui para isto, só posso afirmar agora, sessenta anos depois,
que não estou arrependido e continuarei, porque a cultura popular vive em mim,
e agora que não posso ser mais, surdo, vendo o povo, andando com relativa
dificuldade, já não posso ser o etnógrafo de campo, de ruas, de praças, de
viagens, sou o memorialista, o homem que trabalha nas suas reminiscências,
comparando-as com a reminiscência erudita, da etnografia latina, grega,
bizantina, francesa, européia ou asiática, indo até o paleolítico
590
.
A paixão que sentia pelas tradições populares assoma de seus trabalhos e entrevistas.
Foi, inegavelmente, um sentimento que o acompanhou já nos primeiros artigos como
jornalista até suas memórias produzidas na velhice:
588
SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva; FFLCH/USP, FAPESP;
Natal, RN: EDUFRN; Fundação José Augusto, 2003. p. xvi.
589
FESTA do Padroeiro. A República, Natal, RN, 30 dez. 1984.
590
LYRA, Carlos. Cascudo as razões de minha preferência. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN,
ano 2, n. 3, p. 59, 1998. Entrevista concedida ao autor em: 19/08/1976.
172
A cultura popular é justamente anterior a toda as formas clássicas e
sistemáticas do espírito. Pertence a “life university” a universidade da vida.
Nós aprendemos superstições, mitos, cantigas, maneira de andar, saudar,
cumprimentos, mímica, tudo isso antes de ir à escola. A criança brinca
primeiro, depois é que aprende a ler, e essa parte oral instintiva, permanente,
nos acompanha a vida inteira. Por isso eu fiquei obstinadamente na cultura
popular. Não quer dizer que não estudasse história. Eu sou autor da
História do Rio Grande do Norte, História da Cidade do Natal, de
Mossoró, Santana do Mattos, de Cerro Corá. A etnografia em caráter de
informação científica e estilização de costumes, Biografia do Conde D’Eu,
Marquês de Olinda e seu tempo, isso tudo foi publicado no Sul, São Paulo,
mas quando me soltam, eu vou para cultura popular, e é ela a característica
do meu labor, a enamorada, mesmo antes de conhecer aquela que me deu a
felicidade doméstica, a graça de eu poder mobilizar e realizar sozinho O
Dicionário do Folclore Brasileiro, agora em quarta edição, a Antologia do
Folclore, História dos Nossos Gestos, Superstições e Costumes, Tradição,
Ciência do Povo, superstições, tantas coisas que eu não posso lembrar da
minha bibliografia
591
.(grifo nosso).
Nesse trecho, evidenciamos um Cascudo preocupado também em se firmar como
historiador e como detentor do saber da cultura popular. Um homem empenhado na
construção de uma representação de si, como fica bem evidenciado em uma das muitas
entrevistas que concedeu: “Quando o século nasceu, eu já tinha dois anos. Vi o século
menino, adolescente, maduro e agora, já meio trôpego, com [78] anos. Analisei, comparei
tudo o que vi e ouvi. Quando os homens do século XXI quiserem saber como vivia, como
vestia, o que comia
592
, como dançava, como amava, o que era brasileiro do século XX, terão
de ler Luís da Câmara Cascudo”
593
. Uma representação de si que não apenas justifica o título
de São Cascudo que ele receberia anos mais tarde, como parece reforçar e alimentar a
cascudologia ou a cascudolatria apontada por estudiosos do intelectual potiguar e de sua
produção.
Pudemos constatar que, muito recentemente, ocorreram atualizações desse culto a
Cascudo referido pelo historiador Marcos Silva. A primeira celebrou o intelectual como “São
591
LYRA, Carlos. Cascudo as razões de minha preferência. Revista Século atualidade e cultura. Natal, RN,
ano 2, n. 3, p. 58-59, 1998. Entrevista concedida ao autor em: 19/08/1976.
592
É interessante destacar que esse homem que se preocupava em resgatar informações sobre hábitos alimentares
e sobre a culinária de várias regiões brasileiras tinha um gosto bem identificado com a sua “província”, pois
sua comida predileta era peixe (arabaiana, principalmente), cozido com pirão. Gostava demais de pimentão
recheado com carne moída. Isto sem falar da tradicional carne de sol de Natal, com feijão verde e macaxeira.
Adorava todos os doces e era fã de chá. Sua sobremesa favorita era cartola. Informações obtidas através de:
CASCUDO, Daliana. Cascudo vicia... [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <bruna_21_pa@
yahoo.com.br> em 10 fev. 2009.
593
CASCUDO, Luís da Câmara. Luiz da Câmara Cascudo, 79 anos, surdo e quase cego. Jornal do Brasil, Rio
de Janeiro, 29 nov. 1977. Caderno B, p. 4.
173
Cascudo
594
como santo padroeiro da tradição oral brasileira através de eleição realizada
em agosto de 2007, durante o Simpósio Internacional dos Contadores de História
595
. E a
segunda, a que transformou Cascudo em enredo de escola de samba de São Paulo
596
, por
ocasião do carnaval de 2008. Estas duas “novas funções” por ele exercidas reforçam a
percepção de que Cascudo tornou-se uma “marca”, um “símbolo” do que ele próprio
denominou cultura popular. Neste sentido, merece destaque, também, o lançamento de um
vinho em homenagem a Cascudo o Grande Reserva 2001 Câmara Cascudo que
ocorreu em Natal, em 30 de dezembro de 2008
597
, e que parece atestar o uso de novas
estratégias para a perpetuação de uma memória sobre Cascudo no Estado potiguar.
Já a produção cascudiana vem sendo divulgada através de diversos veículos, que
incluem desde os mais consagrados e conhecidos no meio acadêmico livros e artigos , até
sites como Os Modernos Descobridores e o Memória Viva e, ainda, o Blog do Cascudo, que
disponibilizam as Actas Diurnas para consulta dos pesquisadores. Os dois últimos foram
idealizados pelo jornalista Sandro Fortunato e contam com apoio e a colaboração direta de
Daliana Cascudo, que é também a revisora oficial das Actas Diurnas publicadas no Blog do
Cascudo, através do site Memória Viva.
594
Apropriamo-nos da expressão “São Cascudo” que foi criada e difundida pelo Instituto Cultural Aletria. A
expressão nos remete ao “culto” a Cascudo existente até os dias de hoje e a uma possível semelhança com o
culto a “São Nabuco” que decorre de uma espécie de canonização de Joaquim Nabuco pela historiografia
nacional. Para conhecer mais sobre esta interessante abordagem sobre Joaquim Nabuco, ver AZEVEDO,
Célia Maria Marinho de. Quem Precisa de São Nabuco? Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n.
1, p. 85-97, 2001.
595
“Os contadores de histórias precisavam de um padroeiro. Eis que o Instituto Cultural Aletria elegeu o
historiador e folclorista Luís da Câmara Cascudo como protetor da tradição. A oração de "São Cascudo" faz
referências ao mundo das histórias que ele, em vida, tão bem valorizou. Escreveu mais de 150 livros sobre a
cultura brasileira, entre eles o clássico Dicionário do Folclore Brasileiro. Durante mais de cinqüenta anos,
Câmara Cascudo foi professor na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Era
o único estudioso de sua especialidade que tinha uma visão verdadeiramente nacional do folclore brasileiro.
O lançamento de "São Cascudo" ocorreu no Simpósio Internacional de Contadores de Histórias, realizado no
Rio de Janeiro, de 23 a 26 de agosto de 2007”. CASCUDO, Daliana. Instituto Câmara Cascudo [mensagem
pessoal]. Mensagem recebida por <bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 9 set. 2007. Ver anexo D (Santinho da
Oração de São Cascudo).
596
“Não satisfeito de ser SANTO, Câmara Cascudo foi enredo de escola da Escola de Samba NENÊ DE VILA
MATILDE, no carnaval de São Paulo, em 2008. O tema foi UM VÔO DA ÁGUIA COMO NUNCA SE VIU
TAMBÉM SOMOS FOLCLORE DO NOSSO BRASIL 110 ANOS APRENDENDO COM CÂMARA
CASCUDO”. CASCUDO, Daliana. Instituto Câmara Cascudo [mensagem pessoal]. Mensagem recebida
por <bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 4 out. 2007. Ver anexo D (Letra da composição do samba enredo).
597
O lançamento resultou de uma parceria entre a Garrafeira Lusa, o Instituto Câmara Cascudo e a Quinta do
Portal (Porto, Portugal). A edição foi limitada a duas mil garrafas, tendo sido acompanhada de um livreto
numerado com textos de Cascudo organizados por sua filha Anna Maria e com uma pequena biografia do
homenageado. O rótulo traz uma caricatura de Cascudo feita pelo angolano Albano Neves de Souza.
Informação Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/novoblog/page/2/>. Acesso em: 31 jan. 2009.
Ver anexo D (foto do convite do lançamento do vinho).
174
Em nossa busca por outros veículos de divulgação midiática que trouxessem
informações e/ou celebrassem a memória de Cascudo, localizamos o blog Alma do beco
598
,
que chegou a veicular entrevista realizada com a neta de Cascudo, Daliana, na qual ela traz
valiosas informações sobre sua vida e obra. O blog não tem qualquer relação direta com o
Memorial ou com a família Cascudo, mesmo assim, em 2006, promoveu uma campanha para
que Cascudo fosse eleito o maior brasileiro da história, tomando como referência uma
campanha feita pela Revista Época no mesmo ano
599
. Vale ressaltar que esse blog alcança
internautas de diferentes faixas etárias, formação e interesses, incluindo desde pessoas que
freqüentam o beco ou já o freqüentaram como um dia fez Cascudo até aquelas interessadas
nos movimentos culturais do Rio Grande do Norte e na difusão da memória de Cascudo.
A opção pela divulgação em sites e blogs aponta não apenas para uma ampliação, mas
também para uma significativa transformação dos lugares da memória cascudiana que
exploramos nessa Dissertação, uma vez que Cascudo passou a se fazer presente em ambientes
virtuais, facilitando o acesso e a difusão de sua produção intelectual entre pesquisadores e
interessados.
O empenho e a diversificação de meios e estratégias para a construção de uma
memória cascudiana não tem impedido releituras da produção intelectual de Cascudo pelos
pesquisadores. Muitos deles têm apontado para lacunas e silêncios em relação a algumas
temáticas da História norte-rio-grandense, como por exemplo, em relação à história indígena
no Rio Grande do Norte. Outros pesquisadores têm investido em análises do processo de
monumentalização de Cascudo, como o historiador Durval Muniz que se propõe a “realizar
598
Este blog remete ao “famoso beco da lama” em Natal (localizado no centro de Natal) e se destaca por
divulgar as produções culturais do Estado, principalmente dos freqüentadores do local. Alma do Beco é a
junção dos recortes literários produzidos através dos sonetos de Antoniel Campos, das glosas fesceninas de
Laélio Ferreira, dos pés-quebrados de Chagas Lourenço, das imagens translúcidas de Hugo Macedo, das
performances poéticas de Jakson Garrido, dos poemas de Eduardo Alexandre, Luiz Carlos Guimarães,
Márcia Maia (poeta pernambucana), Nei Leandro de Castro, Yasmine Lemos, Barbinha dos Santos, Ferreira
Itajubá, Newton Navarro, Cristina Tinoco, Élder Heronildes e tantos outros que passam pelo Beco. Neste
mundo virtual, também há espaço para as crônicas, ensaios, pesquisas, história do Estado, fotos de quase
todos os confrades e confreiras dessa “Garçonière” potiguar. Uma das mais interessantes descrições sobre o
Beco da Lama é a epígrafe do blog na internet: “Beco da Lama, o maior do mundo, tão grande que parece
mais uma rua... Tal qual muçulmano que visite Meca uma vez na vida, todo natalense deve ir ao Beco
libertário, Beco pai das ruas do mundo todo”. Cascudo era freqüentador costumeiro do Beco da Lama. Era
sempre visto entre amigos pelas ruelas adjacentes ao Beco ao cair da tarde, buscando inspiração para mais
uma “Acta Diurna” que seria veiculada nas páginas d'A República no dia seguinte. Ver mais em:
<http://almadobeco2.blogspot.com>.
599
Neste mesmo blog, encontramos uma postagem de autoria de Daliana Cascudo, de 19 de agosto de 2006, na
qual identificamos mais uma ação para perpetuar a memória Cascudiana. “A Revista Época, Edição 430, de
14/08/2006, está realizando uma pesquisa para saber quem foi o maior brasileiro da história. Na sua lista, está
o nome de "Câmara Cascudo" na secção "Ciências" (cientistas, pensadores, inventores). Vamos votar no
CASCUDO no site: www.edglobo.globo.com/pesquisas/pesquisa_epoca_190706.htm. Um grande abraço,
Daliana Cascudo”. Conferir em: <http://almadobeco2.blogspot.com>.
175
um diálogo com as várias versões que foram produzidas para a vida, para a biografia de Luís
da Câmara Cascudo, seja por ele próprio, seja por aqueles que o tomaram como objeto de
memória”
600
.
Em relação às lacunas que referimos, destacamos a constatação feita pela historiadora
Fátima Martins, que ressaltou que “Quanto aos aspectos históricos relacionados à população
do século XVIII, a historiografia torna-se ainda mais silenciosa, visto que admite,
genericamente, que ‘toda essa gente desapareceu’”
601
e que “Câmara Cascudo, [...] em seu
livro História do Rio Grande do Norte, relata sucintamente um procedimento burocrático de
elevação das Missões à categoria de Vilas no século XVIII e aponta o processo posterior de
tomada das terras indígenas”
602
.
A historiadora acrescenta que Cascudo não se aprofundou ao abordar a temática, não
explicando quais foram as comunidades que sofreram este tipo de ação e o que dela resultou
concretamente, optando pela tese da extinção das populações indígenas em terras potiguares.
Para Martins, Cascudo não explicou “para onde foi afinal esta ‘indiada’, já que suas terras,
pelo que comenta, foram todas tomadas inexoravelmente. Por outro lado, as populações
indígenas, descritas como ‘manadas’ sem vontade ou expressão de resistência à tomada de
suas terras e à dominação, são inferiorizadas, desumanizadas, silenciadas”
603
.
Esses silêncios e lacunas detectáveis na produção cascudiana foram também apontados
por antropólogos, como se pode constatar nessa afirmação bastante pertinente de Julie
Cavignac:
[...] a figura de Luís da Câmara Cascudo, ainda muito presente hoje, parece
ter impedido o aparecimento de outras pesquisas, pois o escritor incansável
abordou todos os temas sem, portanto, dedicar-se ao estudo com o rigor
esperado na academia , imprimindo duravelmente sua marca, sem realizar,
sistematicamente, investigações empíricas. Como principal conseqüência
dessa herança, deparamo-nos até hoje! com um assunto ‘tabu’ em nível
local: a questão étnica. O silêncio de Luís da Câmara Cascudo sobre o
assunto é revelador nem tanto da ausência das populações indígenas e afro-
600
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascudo em “As batalhas contra o
tempo”: a biografia histórica de um erudito brasileiro (1898-1986). 2004. Não paginado. Projeto de pesquisa
CNPq.
601
LOPES, Fátima Martins. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório
Pombalino no século XVIII. 2005. f. 25. Tese (Doutorado em História do Brasil) - Universidade Federal de
Pernambuco, Recife, 2005.
602
Ibid., f. 25.
603
Ibid., f. 25.
176
descendentes no estado, mas, sobretudo do projeto intelectual do erudito e da
sua posição social e política na sociedade potiguar da época
604
.
Ao longo dessa Dissertação procuramos, justamente, analisar a produção de Câmara
Cascudo enquanto historiador , a partir dessa perspectiva, considerando essa vinculação
entre o “projeto intelectual do erudito” e a “posição social e política [ocupada por Cascudo]
na sociedade potiguar da época”, para melhor entender as opções que fez e as posturas que
adotou ao longo de sua trajetória como homem de letras. Essas, aliás, ficam bem evidentes na
afirmação que transcrevemos:
“História é o registro cronológico dos fatos memoráveis... Dos fatos
memoráveis apenas. Um fato memorável como pode ser fixado?
Naturalmente pelo consenso dos homens que o motivaram. Mesmo negando
a imortalidade divina amaríamos emprestar os halos da perpetuidade aos
nossos atos. Decretamos a vitaliciedade da admiração futura aos mesmos
assuntos que admiramos agora. Escolhemos um homem, uma doutrina, um
livro, um poema, uma estátua, um vício, uma idiossincrasia e declaramos sua
inarredável eternidade no tempo. Falemos como outrora nas páginas da
História...”
605
.
Ao nos debruçarmos sobre o homem de fé, também não descuidamos de relacionar a
posição social e política ocupada por Cascudo em especial, a sua formação católica, as
estreitas relações que manteve com autoridades eclesiásticas num determinado período e as
inúmeras demonstrações públicas de fé de carvoeiro com as marcas desse catolicismo e
dessa fé na sua produção intelectual. Ao analisarmos as suas memórias e as entrevistas que
concedeu, constatamos que Cascudo fazia questão de deixar claro o quão firmes e sinceros
eram os seus sentimentos religiosos, como se constata nessa passagem: “ [...] Foram os
motivos de minha vida expostos em todos os livros. Em outubro de 1968 terei meio século
nessa obstinação sentimental. Devoção aos mesmos santos tradicionais”
606
. Cabe destacar
que ao optarmos por analisá-lo nessa perspectiva, tomamos contato com uma temática que
vem sendo pouco explorada pelos pesquisadores potiguares e que se revelou para mim,
604
CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta: ‘Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte. Mneme: revista
de humanidades, Caicó, RN, v. 4, n. 8, p. 5, abr./set. 2003. Disponível em: <http://www.cerescaico.ufrn.br/
mneme/anteriores/sumario08.htm >. Acesso em: 15 dez. 2008.
605
CASCUDO, Luís da Câmara. “A função dos arquivos”. Separata da Revista do Arquivo Público. Recife:
Arquivo Público, 1952-1956, ano 7 a 10, n° 9-12. p. 431.
606
CASCUDO, Luís da Câmara. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 5, 1968. Edição
Comemorativa em homenagem aos 70 anos de vida e 50 anos de atividade literária de Luís da Câmara Cascudo.
177
absolutamente desafiadora e apaixonante , que é a que contempla aspectos da História da
Igreja no Rio Grande do Norte.
Em vários momentos durante a escrita da Dissertação, especialmente, quando nos
detivemos na análise das memórias escritas por Cascudo ou nos artigos que escreveu sobre
religiosidade popular e sobre a História da Igreja no Rio Grande do Norte, sentimos uma
grande identificação com Cascudo, sobretudo, em relação a sua formação católica e a vivência
de sua fé. Identificação que nos remeteu a uma poesia do Padre Zezinho
607
:
“De Lá do Interior”
Eu vim de lá do interior.
Aonde a religião ainda é importante.
Lá se alguém passa em frente [da] matriz,
Se benze e pensa em Deus, e
Não sente vergonha de ter fé.
Eu vim de lá do interior.
E sei que a religião já não influi mais tanto nas pessoas
Sei que a televisão,
O rádio e o jornal
Convencem mais cabeças
Do que o padre lá no altar.
Mas deixa eu lhe dizer,
Que eu ainda creio e quero crer,
Que sem religião não sei viver!
Estamos cientes de que por mais que um pesquisador se debruce sobre a vida e a obra
desse multifacetado intelectual como foi Luís da Câmara Cascudo , sempre haverá
aspectos que deveriam (ou poderiam) ter sido melhor explorados ou, então, que poderão ser
contemplados em futuros projetos. O período de dois anos fixado para a realização dos
créditos e para a escrita da Dissertação tornou inviável a procura por novas fontes, ou
mesmo, a análise de forma mais aprofundada e demorada de algumas delas em grande
medida, inéditas que levantamos durante os sete meses em que estivemos pesquisando junto
aos diversos arquivos e acervos documentais da cidade do Natal.
Naquela ocasião, constatamos que o IHGRN dispõe de muitos documentos que ainda
não foram explorados e disponibilizados aos pesquisadores, e que fontes que trazem
informações de caráter mais privado sobre Luís da Câmara Cascudo e que se encontram no
Memorial , também não foram totalmente catalogadas, posto que se encontram em processo
de organização. Dentre elas, está uma parte substancial das correspondências que Câmara
607
Disponível em: <http://letras.terra.com.br/padre-zezinho/801288/>. Acesso em: 05 jan. 2009.
178
Cascudo trocou com várias personalidades brasileiras e mesmo estrangeiras, e que, com
certeza, permitirão o desenvolvimento de muitos outros projetos de pesquisa. Lembramos que
o próprio Cascudo, consciente da importância da constituição e da preservação de acervos
documentais, chegou a afirmar que “O destino do Arquivo é preparar os elementos da
Posteridade”
608
.
Ao final dessa Dissertação, nos sentimos gratificados com a possibilidade que tivemos
de, mesmo distantes do Rio Grande do Norte e da cidade do Natal onde viveu Câmara
Cascudo conhecer melhor um de seus mais renomados intelectuais, cuja vida, ofício e fé
podem se traduzir nessa bela mensagem que, com seus mais de oitenta anos, nos deixou: “Sou
homem que não desanimou de viver e acho a vida cheia de encantos e para quem a vida é
sempre uma experiência nova e uma revelação. [...] Sou uma saudade da vida agarrado ao
sonho de continuar a viver”
609
.
608
CASCUDO, Luís da Câmara. A função dos arquivos. Separata de: Revista do Arquivo Público, Recife, ano 7-
10, n. 9-12, p. 438, 1952-1956.
609
CASCUDO, Luís da Câmara. Frases ditas por Cascudo em dezembro de 1985. Disponível em: <http://www.
memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso: em 13 dez. 2008.
179
REFERÊNCIAS
ABREU, Regina. Saindo da vida para entrar na História. In: ______. A fabricação do
imortal: memória, história e estratégias de consagração no Brasil. Rio de Janeiro: Rocco:
Lapa, 1996. p. 21-30.
AFFONSO, Almino. Câmara Cascudo: alma do povo. In: _____. Testemunhos e perfis.
Brasília, [s.n.], 1998.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. Luís da Câmara Cascudo em “As batalhas
contra o tempo”: a biografia histórica de um erudito brasileiro (1898-1986). 2004. Não
paginado. Projeto de pesquisa CNPq.
______. Ágeis, irrequietos e buliçosos: o corpo do povo e outros corpos na obra de Luís da
Câmara Cascudo. Digitado. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/
ppgh/docentes/durval/index2.htm>. Acesso em: 07 ago. 2008.
______. A escrita como remédio: erudição, doença e masculinidade no Nordeste do começo
do século XX. Disponível em: <http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docentes/durval/index2.htm>.
Acesso em: 31 jul. 2008.
______. O Historiador Naif ou a análise historiográfica como prática de excomunhão.
Digitado. Disponível em:<http://www.cchla.ufrn.br/ppgh/docent es/durval/index2.htm>. Acesso
em: 13 jul. 2008.
ALEGRE, Maria Sylvia. Rompendo o silêncio: por uma revisão do “desaparecimento” dos
povos indígenas. Disponível em: http://br.geocities.com/esp_cultural_indigena/texto3. Acesso
em: 25 jan.2009.
ALMEIDA, Maria Regina Celestino de. Identidades étnicas e culturais: novas perspectivas
para a história indígena. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel (Org.). Ensino de história:
conceitos, temáticas e metodologia. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2003. p. 27-37.
AMARAL, Emanoel. Cem anos de Cascudo. 1997. Charge. Setor iconográfico do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
180
ANDRADE. Mário de. Carta de Mário de Andrade a Luís da Câmara Cascudo. São Paulo:
22/05/1933. In: MELLO, Veríssimo de. (Introdução e notas). Cartas de Mario de Andrade a
Luís da Câmara Cascudo. Belo Horizonte/Rio de Janeiro: Villa Rica Editoras Reunidas,
1991. p. 128-129.
ANGELO, Assis. O Velho que sabe tudo. Entrevista com Luís da Câmara Cascudo. Folha de
São Paulo, São Paulo, 08 jan. 1979. Folhetim. Disponível em:<http://www.modernosdesco
bridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
ARAÚJO, Marta Maria de; SILVA, Ana Verônica O. O Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte e o seu acervo documental da História Colonial do Rio Grande do Norte
e Brasil. HISTEDBR. 2006. Disponível em: <www.histedbr.fae .unicamp.br/ navegando/
artigos_frames/artigo_082.html> Acesso em: 10 abr. 2007.
ARRAIS, Raimundo. Do alto da torre da matriz, acompanhando a procissão dos mortos:
Câmara Cascudo como historiador da cidade do Natal. 2005. Trabalho inédito.
______. Câmara Cascudo: a vida dentro da obra. Continente Documento, Recife, PE, ano 4,
n. 48, p. 06-21, ago. 2006.
ATA da Sessão Solene de posse da Diretoria e Comissões do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, do dia 29 de março de 1927. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 23-24, p. 342-343, 1926-
1927.
ATA da sessão solene comemorativa do quarto centenário da Fundação da Companhia de
Jesus, do dia 27 de setembro de 1940. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, v. 32-37,. p. 178-179, 1935-1940.
ATA da sessão magna comemorativa do 3° Centenário de Felipe Camarão, a 14 de maio
de 1943. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal,
RN, v. 38-40, p. 190-191, 1941-1943.
[ATAS]. Diário de Pernambuco, Recife, PE, p. 1, 03 dez. 1925.
ATAS de Sessões do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, do dia 17 de
julho de 1927. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal,
RN, v. 23-24, p. 348-349, 1926-1927.
181
AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Quem Precisa de São Nabuco? Estudos Afro-
Asiáticos, Rio de Janeiro, ano 23, n. 1, p. 85-97, 2001.
AZZI, Riolando. A neocristandade: um projeto restaurador. São Paulo: Paulus, 1994.
(História do pensamento católico no Brasil, v. 5).
BOBBIO, Norberto. Os intelectuais e o poder. São Paulo: Universidade Estadual Paulista,
1997.
BELLOTTI, Karina Kosicki. Mídia, Religião e História Cultural. Revista de Estudos da
Religião - PUC, São Paulo. Disponível em: <http://www.pucsp.br/ rever/rv4_2004>. Acesso
em: 25 Jan. 2009.
BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1985. v. 1.
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. F. Tomaz (Org.). Rio de Janeiro: DIFEL, Bertrand
Brasil, 1989.
______. Economia das trocas lingüísticas. São Paulo: EDUSP, 1996.
______. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta de Moraes; AMADO, Janaina. (Org.).
Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: FGV, 2002. p. 183-191.
______. A produção da crença: contribuição para uma economia dos bens simbólicos. São
Paulo: Zouk, 2002.
______. A distinção: crítica do social do julgamento. São Paulo: EDUSP, 2007.
BRESSANE, Zita (Prod.) Depoimento. TV Cultura. Cascudo. São Paulo. Secretaria de
Cultura, Ciência e Tecnologia: TV Cultura, 1978. 1 videocassete, VHS. NTSC, son., color.
BRUNEAU, Thomas. O Catolicismo brasileiro em época de transição. São Paulo: Loyola,
1974.
BYINGTON, Silvia Ilg. Prezados modernistas: a correspondência entre Luís da Câmara
Cascudo e Mário de Andrade. In: CHALLHOUB, Sidney; NEVES, Margarida de Souza;
PEREIRA, Leonardo A. de M.(Org.). História em cousas miúdas: capítulos de história
social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Ed. UNICAMP, 2005. p. 491-517.
182
CANDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira. São Paulo: Martins Fontes, 1959.
v. 1.
CASCUDO sepultado com honras de Estado. Tribuna do Norte, Natal, RN, 01 ago. 1986.
Cidade, p.05.
CASCUDO, Daliana (Org.). Câmara Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal: Ed. da
UFRN, 2007.
CASCUDO, Daliana. São Cascudo [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 9 set. 2007.
______. Cascudo - samba enredo [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <bruna_21
_pa@ yahoo.com.br> em 4 out. 2007.
______. Instituto Câmara Cascudo [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 4 ago. 2008.
______. Cascudo vicia... [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por <bruna_21_pa@
yahoo.com.br> em 10 fev. 2009.
CASCUDO, Luís da Câmara. A Imprensa, Natal, 18 out. 1918. Bric-à-Brac.
______. Padre João Maria. Revista do Centro Polymathico. Natal, RN, ano 2, n. 4, p. 25-37,
mar. 1921. (Datado pelo autor de novembro de 1920).
______. Sobre o Sr. Dom Pedro II. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 15-16, p. 210-211, 1928.
______. Anhangá, o mito de confusão verbal. Revista do Instituto Arqueológico Histórico e
Geográfico Pernambucano, Recife, PE, v. 32, n. 151-154, p. 75-80, jan./dez, 1932.
______. A Casa de Cunhaú: história e genealogia. Natal, RN: [s.n.], 1933.
______. A intencionalidade no descobrimento do Brasil. Natal, RN: Imprensa Oficial,
1933.
183
CASCUDO, Luís da Câmara. Aldeias dos jesuítas no Rio Grande do Norte. A Ordem, Natal,
RN, p. 06, 14 ago. 1938.
______. As grandes festas de hoje em Estremoz: Uma povoação que é uma relíquia histórica.
A Ordem, Natal, RN, p. 01, 14 ago. 1938.
______. Câmara Cascudo escritor católico: Nossa Senhora da Apresentação. A Verdade,
Natal, RN, 21 nov. 1939. Geral, p. 06.
______. Os sinos da matriz. In: ______. O Livro das velhas figuras: (pesquisas e lembranças
do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2002. v. 7, p. 21-23. (publicado originalmente
no jornal A República, 31 dez. 1939).
______. Os jesuítas no Rio Grande do Norte. Estudos Brasileiros, Rio de Janeiro, ano 3, v. 5,
n. 13-14, p. 199-208, jul./out. 1940.
______. As lendas de Extremôz. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte: 1935-1937, Natal, RN, v. 32-34, p. 85-96, 1940.
______. O nome “Potiguar”. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande
do Norte: 1935-1937, Natal, RN, v. 32-34, p. 37-46, 1940.
______. Padre Gaspar de Samperes e outros temas jesuíticos. A República, Natal, RN, 20
jul.1940. Acta Diurna, p. 01.
______. Fanáticos da Serra de João do Vale. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do
Rio Grande do Norte, 1938-1940. Natal, RN, v. 35-37, p. 45-63, 1941.
______. Discurso de Doutor e conversa de pobre. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte: 1941-1943, Natal, RN, v. 38-40, p.162-163, 1946.
Publicado originalmente em A República, 17 maio 1943. Acta Diurna.
______. O que quer dizer “Acta Diurna”? Diário de Natal, Natal, RN, 03 ago. 1943. Acta
Diurna. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em:
25 jan. 2009.
______. Minha Madrinha Filó. A República. Natal, RN, 21. jul. 1946. Acta Diurna, p. 03.
184
CASCUDO, Luís da Câmara. Fundação e nomes da cidade. In: ______. História da Cidade
do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947. p. 21-27.
______. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura Municipal, 1947.
______. O “Santos Reis”. In: ______. História da Cidade do Natal. Natal, RN: Prefeitura
Municipal, 1947. p. 13-20.
______. Até Deus precisa dos sinos! Diário de Natal, Natal, RN, 12 set. 1947. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan.
2009.
______. Guardarás o Domingo. Diário de Natal, Natal, RN, 14 jun. 1948. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan.
2009.
______. Errado é que dá certo. Diário de Natal, Natal, RN, 14 jul. 1948. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan.
2009.
______. Epitáfio de uma cultura. Diário de Natal, Natal, RN, 19 jul. 1948. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan.
2009.
______. Símbolo jurídico do Pelourinho. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 45-47, p. 67-85, 1948-1950.
______. Há treze anos... A República, Natal, RN, p. 08, 09 ago. 1949.
______. Pela Capela de Cunhaú. Diário de Natal, Natal, RN, 03 dez. 1949. Acta Diurna.
Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/index2.htm>. Acesso em: 25 jan.
2009.
______. A mais antiga Igreja do Seridó. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte: 1951-1952, Natal, RN, v. 48-49, p. 187-193, 1952.
______. Notas para a História da Paróquia de Nova Cruz. Natal, RN: Arquidiocese de
Natal, 1955. Plaquete.
185
CASCUDO, Luís da Câmara. Paróquias do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Departamento
de Imprensa, 1955. Plaquete.
______. A função dos arquivos. Separata de: Revista do Arquivo Público, Recife, ano 7-10,
n. 9-12, 1952-1956.
______. Canto de Muro: romance de costumes. Rio de Janeiro: José Olympio, 1959. p. 239.
______. Dom Helder Câmara, o padre Helder. In: ______. O Livro das velhas figuras:
(pesquisas e lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2005. v. 9, p. 120-
122. (publicado originalmente no jornal A República, 26 maio 1959).
______. Entrevista. Manchete, Rio de Janeiro, 29 fev. 1964.
______. Folclore do Brasil: pesquisas e notas. Rio de Janeiro: Fundo de Cultura, 1967.
______. O Instituto Histórico: estímulo e valorização da cultura. Natal, RN: IHGRN, 1967.
p. 15-22. Plaquete em Homenagem ao 65° da Fundação do IHGRN. Edição comemorativa:
Natal (1902-1967). Mensagem Cultural do Instituto Histórico: sua presença e seu testemunho.
______. Nomes da Terra: história, geografia e toponímia. Natal, RN: Fundação José
Augusto, 1968.
______. Um Provinciano Incurável. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 05-06, 1968.
______. O Tempo e Eu: confidências e proposições. Natal, RN: Imprensa Universitária,
1968. Fichamento feito por Silvia Ilg Byington, p. 17 e p. 15. Disponível em: <http://www.
modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
______. Calendário das festas. In:______. Informação do folclore brasileiro: calendário das
festas. 2 ed. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura. Campanha de Defesa do
Folclore Brasileiro, 1971. p. 1-8. (Coleção Cadernos de Folclore, 5).
______. Dicionário do folclore brasileiro. 3. ed. Brasília, DF: Instituto Nacional do Livro,
1972. Disponível em: <http://www.fundaj.gov.br/docs/text/ciclo.html>. Acesso em: 30 jan.
2009.
186
CASCUDO, Luís da Câmara. Cascudo e sua Biblioteca. In: LYRA, Carlos. Luís da Câmara
Cascudo. Depoimentos. Natal: EDUFRN, 1999. p. 59-65. Entrevista concedida a Carlos Lyra
em 06/12/1974.
______. Prelúdio e fuga do real. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1974.
______. Religião no povo. João Pessoa, PB: Imprensa Universitária, UFPB, 1974.
______. Geografia dos mitos brasileiros. Brasília: José Olympio, 1976.
______. História dos nossos gestos: uma pesquisa mímica do Brasil. São Paulo: Melhoramentos,
1976.
______. Luiz da Câmara Cascudo, 79 anos, surdo e quase cego. Jornal do Brasil, Rio de
Janeiro, 29 nov. 1977. Caderno B, p. 4.
______. Breve história do Palácio Potengi. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1978.
______. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN,
v. 73-74, 1981-1982. [Apresentação].
______. História da alimentação no Brasil. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/USP, 1983.
______. Rede de dormir: uma pesquisa etnográfica. 2. ed. Rio de Janeiro: FUNARTE/INF,
Achiamé; Natal, RN: EDUFRN, 1983.
______. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v.
75-76, 1983-1984. [Apresentação].
______. Dicionário do folclore brasileiro. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1984.
______. História do Rio Grande do Norte. 2. ed. Natal, RN: Fundação José Augusto, 1984.
______. Vaqueiros e cantadores: folclore poético do Sertão de Pernambuco, Paraíba, Rio
Grande do Norte e Ceará. 2. ed. Belo Horizonte, MG: Itatiaia; São Paulo: Editora da
Universidade de São Paulo, 1984.
187
CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1985.
______. Governo do Rio Grande do Norte: cronologia dos capitães-mores, presidentes
provinciais, governadores republicanos, interventores federais, de 1597 a 1939. Mossoró:
Esam, 1989. (Mossoroense, 531) Edição fac-símile.
______. Histórias que o tempo leva... da história do Rio Grande do Norte. Mossoró: Esam,
1991. (Mossoroense, 757).
______. Os Holandeses no Rio Grande do Norte. Mossoró: Esam, 1992. (Mossoroense,
792) Edição fac-símile.
______. Antologia do Folclore Brasileiro. 2. ed. São Paulo: Global, 2001.
______. O mais antigo marco colonial do Brasil. (Edição do “Centro de Imprensa - C. M.
M.”- Natal-1934). In: RIO Grande do Norte: 500 anos. Natal, RN: IHGRN, 2001. p. 05-55.
Plaquete encontrada no IHGRN.
______. Curral dos Padres (identificação de um topônimo). In: ______. O Livro das velhas
figuras: (pesquisas e lembranças do Rio Grande do Norte). Natal, RN: EDUFRN, 2002. v. 8,
p.118 -119.
______. Discurso de posse na Academia Norte-Rio-Grandense de Letras (1943). In:
NAVARRO, Jurandyr. Oradores Rio Grande do Norte (1889-2000): biografia e
antologia. 2. ed. Natal, RN: Departamento Estadual de Imprensa, 2004. p. 262-267.
______. Discurso no Ato da inauguração da Universidade Federal do Rio Grande do Norte.
In: NAVARRO, Jurandyr. Rio Grande do Norte: os notáveis dos 500 anos. Natal, RN: Ed.
do autor, 2004. p. 421-427.
______. Crônicas de origem: a cidade do Natal nas crônicas cascudianas dos anos 20.
Organização e estudo introdutório de Raimundo Arrais. Natal: EDUFRN, 2005. Versão
digitada.
CAVALCANTI, Francisco Ivo. Luís da Câmara Cascudo. Aluno Primário. Revista
Província, Natal, RN, n. 2, p. 50-52, 1968.
188
CAVIGNAC, Julie A. A etnicidade encoberta:Índios’ e ‘Negros’ no Rio Grande do Norte.
Mneme: revista de humanidades, Caicó, RN, v.4, n.8, p. 1-69, abr./set. 2003. Disponível em:
<http://www.cerescaico.ufrn.br/mneme/anteriores/sumario08.htm >. Acesso em: 15 dez. 2008.
CERTEAU, Michel de. A operação histórica. In: LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (Org.).
História: novos problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976. p. 17-48.
______. A operação historiográfica. In:______. A escrita da História. 2. ed. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 2002. p. 65-130.
CESAR, Temístocles. Durval Muniz de Albuquerque Júnior. História. A arte de inventar o
passado: ensaios de teoria da história. Resenha. Revista Brasileira de História, São
Paulo, v. 28, n. 55, p. 267-271, jan./jun. 2008.
COSTA, Américo de Oliveira. Viagem ao universo de Câmara Cascudo. Natal, RN:
Fundação José Augusto, 1969.
______. Mestre Cascudo em Quatro Tempos. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense
de Letras, Natal, RN, v. 33, n. 21, p. 69-76, maio 1990.
CHARTIER, Roger. A História cultural: entre praticas e representações. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990.
______. O homem de letras. In: VOVELLE, Michel (Dir.). O homem do iluminismo. Trad.
Maria Georgina Segurado. Lisboa: Presença. 1997. p.143-144.
COSTA SOBRINHO, Pedro Vicente. À mesa com Cascudo: da água, do pasto, da horta e do
pomar à cozinha como fábrica dos sonhos. Revista da Academia Norte-Rio-Grandense de
Letras, Natal, RN, v. 46, n. 34, p. 11-20, jan./jun. 2005.
CRIAÇÃO. Arquidiocese de Natal. Disponível em: <http://www. arquidiocesedenatal.
org.br/ arquidiocese/historiaarq.htm.>. Acesso em: 23 nov. 2008.
CYPRIANO, Doris Cristina C. de Araújo. Margens dos Rios Madeira e Tapajós: situação de
contato e dinâmica social séculos XVII e XVIII. 2005. Tese. (Doutorado em História).
UNISINOS, São Leopoldo- RS, 2005.
189
DANTAS, José Adelino. Luiz da Câmara Cascudo Homem de Fé. In: LUIZ da Câmara
Cascudo (Depoimentos). Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 12. Plaquete de
Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
DEPOIMENTO de Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.
com.br/cascudo/blog.htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
DEPOIMENTO de Dáhlia Freire Cascudo. Disponível em: <http://www.memoriaviva.
com.br/cascudo/blog. htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
DEPOIMENTO de Domingos Gomes de Lima. Disponível em: <http://www.
memoriaviva.com.br/ cascudo/blog.htm>. Acesso em: 13 ago. 2008.
DIEHL, Astor Antônio. A Cultura Historiográfica Brasileira: do IHGB aos anos 1930.
Passo Fundo, RS: EDIUPF, 1998.
______. A cultura historiográfica brasileira nos anos 1980: experiências e horizontes. 2.
ed. rev. e ampl. Passo Fundo, RS: UPF, 2004.
DINIZ, Ilma Melo. Apresentação. Revista Província, Natal, RN, n. 2, 1968.
DOM Hélder Câmara: o santo rebelde. Direção: Erika Bauer. Produção: Andréa Glória.
Brasília, DF: Cor Filmes, 2004. 1 DVD (74 min), son., color. Gênero: Documentário.
ELMIR, Cláudio Pereira. As armadilhas do jornal: algumas considerações metodológicas de
seu uso para a pesquisa histórica. Cadernos PPG em História da UFRGS, Porto Alegre, RS,
n.13, p. 21-26, dez. 1995.
EMOÇÃO na Missa. Diário de Natal, Natal, RN, p. 06, 01 ago. 1986.
ENTRONIZADA a imagem da Padroeira de Natal na sede da Prefeitura. A República, Natal,
RN, p.01, 17 ago. 1946.
FEDELI, Orlando. Resposta sobre São Gregório Magno. Disponível em: <http://
www.montfort.org.br>. Acesso em: 30 nov. 2008.
FÉLIX, Loiva Otero. História e Memória: a problemática da pesquisa. Passo Fundo, RS:
EDIUPF, 1998.
190
FERNANDES, Nascimento. Irreverências. A Notícia, Natal, RN, ano 1, 04 set. 1921.
______. Irreverências. A Notícia, Natal, RN, ano 1, 11 set. 1921.
FERRARI, Alceu. Igreja e desenvolvimento: o movimento de Natal. Natal, RN: Fundação
José Augusto, 1968.
FERREIRA, Angela Lúcia de Araújo. Breve história do Palácio Potengi. In: SILVA, Marcos
(Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP;
Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 17-20.
FERREIRA, Sônia Maria Fernandes. De como Câmara Cascudo se tornou um autor
consagrado. Natal, RN: Climas-Arte, 1986. (Coleção Edições Clima, v. 51).
FESTA do Padroeiro. A República, Natal, RN, 30 dez. 1984.
FORTUNATO, Sandro. A cada dia mais leve Disponível em: <http://www.
memoriaviva.com.br>. Acesso em: 07 ago. 2008. Editor do site Memória Viva.
FURTADO, Cristiane Silva. A Cidade e o Letrado: a monumentalização de Câmara
Cascudo em Natal. Relatório de bolsa de iniciação cientifica FAPERJ. PUC-RJ. jun. 2004.
Não paginado. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13
ago. 2008.
GALVÃO, Cláudio A. Pinto. O Livro das Velhas Figuras. In: SILVA, Marcos (Org.).
Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP;
Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 156-160.
GICO, Vânia. Luís da Câmara Cascudo: bibliografia comentada 1968/1995. Natal, RN:
EDUFRN, 1996.
______. Luís da Câmara Cascudo: itinerário de um pensador. 1998. f. 40. Tese (Doutorado
em Ciências Sociais, mimeo.) -- PUC-SP, São Paulo, 1998.
______. Câmara Cascudo: um Hermes universal no nordeste brasileiro. In: CONGRESO
INTERNACIONAL DE HISTORIA DE LA CULTURA ESCRITA, 6., 2002, Alcalá de
Henares. La correspondencia en la Historia. Alcalá de Henares: Calambur, 2002. v. 1, p.
419-431.
191
GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: ______. Mitos, emblemas,
sinais: morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.
GOMES, Ângela de Castro. Essa gente do Rio… os intelectuais cariocas e o modernismo.
Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 6, n.11, p. 62-77, 1993.
______. A guardiã da memória. Acervo-Revista do Arquivo Nacional, Rio de Janeiro, v. 9, n. 1-
2, p. 17-30, jan./dez. 1996.
GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV,
2004.
GOMES, Ângela de Castro. Escrita de si, escrita da História: a título de prólogo. In: GOMES,
Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 07-24.
GONTIJO, Rebeca. “Paulo Amigo”: amizade, mecenato e ofício do historiador nas cartas de
Capistrano de Abreu. In: GOMES, Ângela de Castro (Org.). Escrita de Si, Escrita da
História. Rio de Janeiro: FGV, 2004. p. 163- 193.
______. O “cruzado da inteligência”: Capistrano de Abreu, memória e biografia. Revista
Anos 90 - Dossiê História e Memória, Porto Alegre, RS, v. 14, n. 26, p. 41-76, dez. 2007.
GUERRA, Otto. Luiz da Câmara Cascudo Professor. In: LUIZ da Câmara Cascudo
(Depoimentos). Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947. p. 10. Plaquete de Homenagem dos
seus amigos, abril de 1947.
GUIMARÃES, Manoel Luiz Salgado. O presente do passado: as artes de Clio em tempos de
memória. In: ABREU, Martha; SOIHET, Rachel; GONTIJO, Rebeca (Org.). Cultura política
e leituras do passado: historiografia e ensino de história. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007. p. 23-41.
HISTÓRIA do Jornal. A Ordem. Disponível em: <http://www.arquidiocesedenatal.org.br>.
Acesso em: 09 set. 2007.
HOFFNAGEL, Marc. Governo do Rio Grande do Norte. In: SILVA, Marcos (Org.).
Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal,
RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 96-97.
HOLANDA, Aurélio B. de. Visita do escritor Câmara Cascudo. Revista da Academia
Brasileira de Letras. Anais de 1967, Rio de Janeiro, v.117, p. 122-124, jan./jun, 1967.
192
UMA HONROSA distinção. A Imprensa. Natal, RN, ano 11, n. 2345, p. 01, 21 dez. 1924.
IMPORTANTES inaugurações da Prefeitura Municipal do Natal. A República, Natal, RN,
p.01, 14 ago. 1946.
JORNAL A Ordem: origem. A Ordem online. Disponível em: <http://www.
arquidiocesedenatal.org.br/aordem/ao historia.htm>. Acesso em: 19 set. 2007.
LE GOFF, Jacques. Documento/Monumento. In: ______. História e memória. Campinas:
Ed. da UNICAMP, 1992. p. 535-553.
LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto
Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5.
______. Aldeias de Guaraíras e Guajuru. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, p. 525-535.
______. Fundação do Rio Grande do Norte. In: ______. História da Companhia de Jesus
no Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, p. 504-524.
______. Nas Fronteiras do Rio Grande e Ceará. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, p. 536-549.
LEMOS, Afrânio Pires. Na Cultura popular repousa a grandeza. Revista Século atualidade
e cultura. Natal, RN, ano 1, n. 1, p. 07-17, 1996. Entrevista com Câmara Cascudo.
LIMA, Bruna Rafaela de. A atuação jesuítica na Capitania do Rio Grande na visão de
Augusto Tavares de Lira e Luís da Câmara Cascudo. 2006. 69 f. Monografia (Graduação
em História) -- Departamento de História, Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
Natal, 2006.
LIMA, Diógenes da Cunha. Câmara Cascudo: um brasileiro feliz. 3. ed. Rio de Janeiro:
Lidador, 1998.
______. Natal na íntegra. Arte e Cultura. Disponível em: <http://www.tafalado.com.br
/natalnaintegra/ cultura/diogenes.htm>. Acesso em: 03 set. 2008.
193
LIMA, Patrícia Souza. Correspondência de intelectuais: O Arquivo Gustavo Capanema como
lugar de sociabilidade. Revista Primeiros Escritos, Rio de Janeiro, n. 4, p. 01-11, jun., 1999.
LABHOI (Laboratório de História Oral e Imagem).
LIMA, Pedro de. Luís da Câmara Cascudo e a questão urbana em Natal. Natal, RN:
EDUFRN, 2006.
LOPES, Fátima Martins. Índios, colonos e missionários na colonização da Capitania do
Rio Grande do Norte. Mossoró, RN: Fundação Vingt-un Rosado, Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande, 2003.
______. Nomes da terra. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo.
São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN, Fundação José Augusto,
2003. p. 209-212.
______. Em nome da liberdade: as vilas de índios do Rio Grande do Norte sob o Diretório
Pombalino no século XVIII. 2005. 701 f. Tese (Doutorado em História do Brasil) - Universidade
Federal de Pernambuco, Recife, 2005.
______. Fontes para a História do Rio Grande do Norte no IHGRN. In: ENCONTRO
REGIONAL DA ANPUH/ RN: o ofício do historiador, 1., 2004, Natal. Anais... Natal, RN:
EDUFRN, 2006.
LUIZ da Câmara Cascudo (Depoimentos). Natal, RN: Centro de Imprensa, 1947. Plaquete de
Homenagem dos seus amigos, abril de 1947.
LUÍS da Câmara Cascudo. A Imprensa, Natal, RN, p. 01, 13 set. 1922.
LUSTOSA, Oscar F. A Igreja Católica no Brasil República. São Paulo: Paulinas, 1991.
LYRA, Carlos. Cascudo as razões de minha preferência. Revista Século atualidade e
cultura. Natal, RN, ano 2, n. 3, p. 57-59, 1998. Entrevista concedida ao autor em: 19/08/1976.
MAMEDE, Zila. Luís da Câmara Cascudo: 50 anos de vida intelectual 1918/1968. Natal:
Fundação José Augusto, 1970. 3 v. Bibliografia Anotada.
MÁSCARA Mortuária de Cascudo é doada ao Instituto Histórico. Revista do Instituto Histórico
e Geográfico do Rio Grande do Norte: 1994-95-96, Natal, RN, v. 87, p. 77-78, 2001. (Edição
comemorativa do V Centenário do Rio Grande do Norte).
194
MATOS, Odilon Nogueira de. Luís da Câmara Cascudo, historiador e folclorista no seu
centenário. Revista Notícia Bibliográfica e Histórica, Campinas, SP, ano, 31, n. 172, p. 3-
10, jan./mar. 1999.
MEIRA, Silvio. Louvação Cultural de Câmara Cascudo e Homero Homem. Revista do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 84 -85, p. 97-112,
1992-1993.
MELO, Luiz Gonzaga Cortez G. de. Câmara Cascudo: o jornalista integralista. Natal, RN:
CCHLA-UFRN, 1995.
MELO, Manoel Rodrigues. Câmara Cascudo: historiador. In: LUÍS da Câmara Cascudo:
sua vida e sua obra. Homenagem do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte.
Natal, RN: Pongetti, 1969. p. 68-89.
MELO, Paulo Herôncio de. Os jesuítas nas primeiras horas da colonização da Capitania.
Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 50,
p. 41-52, 1953.
MEMORIAL Câmara Cascudo. Disponível em: <http://www.fja.rn.gov.br/fja_
site/navegacao/ver_memorial.asp?idmemorial=6>.Acesso em: 03 ago.2008.
MIZRAHI, Raquel. Os Holandeses no Rio Grande do Norte. In: SILVA, Marcos (Org.).
Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal,
RN: EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 124.-127.
MONTEIRO, Denise Mattos. Balanço da historiografia norte-rio-grandense. In: ENCONTRO
REGIONAL DA ANPUH/ RN: o ofício do historiador, 1., 2004, Natal. Anais... Natal, RN:
EDUFRN, 2006.
______. Introdução à História do Rio Grande do Norte. 3. ed. rev. Natal, RN: Cooperativa
Cultural, 2007.
MOURA, Carlos André Silva de. A Revista A Ordem e o discurso recatolizador em
Pernambuco (1930 1937). In: SEMINÁRIO NACIONAL PODERES E SOCIABILIDADE
NA HISTÓRIA, 1., 2008, Recife. Anais... Recife, PE: Editora da UFPE, 2008. v. 1, p. 1-9.
1 CD-ROM.
195
NATAL perde o seu contador de histórias Tribuna do Norte, Natal, RN, 31 jul. 1986. Texto
da primeira página. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br /cascudo /blog.htm>.
Acesso em: 13 ago. 2008.
NEVES, Margarida de Souza. Artes e Ofícios de um “Provinciano Incurável”. Revista
Projeto História, São Paulo, n. 24, jun. 2002. Não paginado. Disponível em:
<http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
______. Roteiros para descobrir a alma do Brasil: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo.
2000. Disponível em: <http//:www.modernosdescobridores com.br >. Acesso em 13 ago. 2008.
Relatório parcial de pesquisa CNPq.
______. Literatura: prelúdio e fuga do real. Revista Tempo, Niterói, RJ, v. 9, n. 17, p. 79-
104, 2004.
______. Para descobrir “a alma do Brasil”: uma leitura de Luís da Câmara Cascudo. In:
ROCHA, João Cezar de Castro (Org.). Nenhum Brasil existe: pequena enciclopédia. Rio de
Janeiro: Ed. UniverCidade, 2003. p. 377-388.
______. Viajando o Sertão: Luís da Câmara Cascudo e solo da tradição. In: CHALLHOUB,
Sidney; NEVES, Margarida de Souza; PEREIRA, Leonardo A. de M.(Org.). História em
cousas miúdas: capítulos de história social da crônica no Brasil. Campinas, SP: Ed. da
UNICAMP, 2005. p. 237-262.
______. Literatura: prelúdio e fuga do real. Disponível em <http://www.modernos
descobridores.com.br>. Acesso em: 13 ago. 2008.
NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Projeto História, São
Paulo, n. 10, p. 7-28, dez., 1993.
OLIVEIRA, Gildson. Câmara Cascudo: um homem chamado Brasil. Brasília: Brasília
Jurídica, 1999.
ORDEM de São Gregório Magno. Disponível em: <http://www.wikipedia.org
/ordemdesaogregoriomagno/index>. Acesso em: 30 nov. 2008.
AS ORDENS papais. Disponível em: <http://www.chivalricorders.org:80/vatican/ gregory.htm>.
Acesso em: 02 dez. 2008.
196
ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Brasiliense, 1985.
PARÓQUIA de Santo Afonso. Disponível em: <http://www.paroquiadesanto
afonsomariadeligorio.org.br>. Acesso em: 24 ago. 2008.
PAULA, Débora Clasen de. Da mãe e amiga Amélia: cartas de uma Baronesa para sua filha (Rio
de Janeiro - Pelotas, na virada do século XX). 261 f. Dissertação (Mestrado) Universidade do
Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) - RS. 2008.
PEDROZA, Sylvio Piza. Política e cultura: dois vultos potiguares - Pedro Velho & Luís da
Câmara Cascudo. Rio de Janeiro, 1989. p. 03-26. Plaquete encontrada no acervo do IHGRN.
PERDA Lamentável. Diário de Natal, Natal, RN, p. 6, 01 ago. 1986.
PEREGRINO, Umberto. Lembrando Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 166-169, 1985-1986.
PESAVENTO, Sandra J. Palavras para crer: imaginários de sentido que falam do passado.
Paris: CERMA/EHESS, 2006. História Cultural do Brasil (Dossier coordenado por Sandra
Jatahy Pesavento 28.01.06). Disponível em: <http://nuevomundo.revues.org>. Acesso em: 25
jan. 2009.
PERSONALIDADES da História do RN - Câmara Cascudo. 2. ed. Diário de Natal, Natal,
RN, n. 1, p. 3-14, 16 jan. 2008.
PEREIRA, Francisco de Assis. (Monsenhor). A contribuição de Câmara Cascudo para a
História da Igreja no Rio Grande do Norte. In: CASCUDO, Daliana (Org.). Câmara
Cascudo: 20 anos de encantamento. Natal, RN: Ed. da UFRN, 2007. p. 82-93.
PEREIRA, Nilo. A Faculdade de Direito do Recife (19271977). Recife, PE: Editora
Universitária, 1977. v. 1.
PETROVICH, Enélio Lima. Luís da Câmara Cascudo: sua vida e sua obra. Homenagem do
Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Pongetti, 1969.
______. Câmara Cascudo Imortal. Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio
Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 172-181, 1985-1986.
197
PETROVICH, Enélio Lima. Necrológio de Luís Câmara Cascudo. Revista do Instituto
Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 77-78, p. 159-163, 1985-1986.
______. Em três tempos: Antônio Soares de Araújo Filho, Luís da Câmara Cascudo,
Peregrino Júnior. Natal, RN: Nordeste Gráfica, 1999.
PINTO, Juliana da Silva. “A Nina que despertou: da disputa de memórias à construção de um
mito”. Revista Primeiros Escritos, Rio de Janeiro, n. 4, p. 01-10, jun. 1999. LABHOI
(Laboratório de História Oral e Imagem).
PIONEIRISMO. Arquidiocese de Natal. Disponível em: <http//:www.arquidiocese
denatal.org >. Acesso em: 13 out. 2007.
POLLACK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5,
n. 10, p. 200-212, 1992.
PORTO, Maria Emília Monteiro. Jesuítas na Capitania do Rio Grande séculos XVI-
XVIII: arcaicos e modernos. 2000. Tese (Doutorado em História) - Universidade de
Salamanca, Espanha, 2000.
PROTOMÁRTIRES. Arquidiocese de Natal. Disponível em: <http//: www.arquidio
cesedenatal.org>. Acesso em: 13 out. 2007.
PROVÍNCIA do Rio G. do Norte. A Offensiva, Rio de Janeiro, p. 01, 11 out. 1934.
REVISTA DO INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRAPHICO BRASILEIRO. Rio de
Janeiro, v. 169, 1934.
RIBEIRO, Renilson Rosa. Nos jardins do tempo: memória e história na perspectiva de Pierre
Nora. Revista Virtual História e História. Disponível em: <http://www.historia
ehistoria.com.br.cfm?tb=historiadores&id=11>. Acesso em: 11 ago. 2008.
RODRIGUES, José Honório. A pesquisa histórica no Brasil. 4. ed. São Paulo: Companhia
Editora Nacional, 1982.
ROUSSO, Henry. A memória não é mais o que era. In: FERREIRA, Marieta de Moraes;
AMADO, Janaina. (Org.). Usos e abusos da história oral. 5. ed. Rio de Janeiro: Fundação
Getúlio Vargas, 2002. p. 93-101.
198
RULDOLF, Mário. A Casa de Cunhaú. In: SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico
Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN,
Fundação José Augusto, 2003. p. 29-31.
SALES NETO, Francisco Firmino. Luís Natal ou Câmara Cascudo: um homem chamado
cidade. 56 f. Qualificação (Mestrado em História) -- Departamento de História, Universidade
Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 2008.
______. Sobre a Pedra do Rosário [mensagem pessoal]. Mensagem recebida por
<bruna_21_pa@ yahoo.com.br> em 20 jan. 2009.
SEREJO, Vicente. As leis de Cascudo. Jornal de Hoje, Natal, RN, [1998?]. Coluna Diversão &
Arte. Disponível em:<http://www.jornaldehoje.com.br /novo/navegacao/editorias.php?id_editoria
=7>. Acesso: em 12 abr. 2008.
______. Cascudo na mira de Serejo. O POVO, Fortaleza, CE, 19 ago. 2006. Caderno Vida &
Arte. Disponível em: <http://www.memoriaviva.com.br/cascudo/ blog.htm>. Acesso em: 13
ago. 2008.
______. Depoimento. Disponível em: <http:// www.memoriaviva.com.br>. Acesso em: 13 ago.
2008.
SILVA, Marcos A. da. Câmara Cascudo e a Erudição Popular. Revista Projeto História, São
Paulo, n. 17, p. 317-334, nov. 1998. Trabalhos da memória.
SILVA, Marcos (Org.). Dicionário Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva;
FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN: EDUFRN; Fundação José Augusto, 2003.
SILVA, Marcos Antonio da. História do Rio Grande do Norte. In: ______. (Org.). Dicionário
Crítico Câmara Cascudo. São Paulo: Perspectiva, FFLCH/USP, FAPESP; Natal, RN:
EDUFRN, Fundação José Augusto, 2003. p. 314-319.
SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org.). Por uma história
política. Tradução Dora Rocha. 2 ed. Rio de Janeiro: FGV, 2003. p. 231-269.
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo, um escritor católico. Revista Século atualidade e
cultura. Natal, RN, ano 2, n. 3, p. 39-41, 1998.
199
SOUZA, Itamar de. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 2, 06 jan.
1999. DN-educação, p. 23-42. Projeto Ler.
______. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 3, 13 jan. 1999. DN-
educação, p. 43-62. Projeto Ler.
______. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 5, 27 jan. 1999. DN-
educação, p. 83-102. Projeto Ler.
______. Câmara Cascudo: vida & obra. Diário de Natal, Natal, RN, n. 6, 03 fev. 1999. DN-
educação, p. 103-122. Projeto Ler.
STUDART, Barão de. Histórias que o tempo leva. A Imprensa, Natal, RN, ano 11, n. 2345,
p. 01, 21 dez. 1924.
TAKEYA, Denise Monteiro. História do Rio Grande do Norte: questões metodológicas-
historiografia e história regional. Caderno de História, Natal, v. 1, n. 1, p. 8-11, jul./dez.
1994.
TORQUATO, Arthur Luís de Oliveira. Silenciando peças e criando lacunas: uma análise da
trajetória integralista na biografia de Luís da Câmara Cascudo (1932-1945). Monografia
(Graduação em História) -- Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal. 2008.
A TRADIÇÃO e a Renovação: poetas, escritores e intelectuais. Tribuna do Norte, Natal,
RN, 1998. Cadernos especiais. Educação e Cultura. (Coleção História do Rio Grande do
Norte, 14). Disponível em: <http://www.tribunadonorte.com.br>. Acesso em: 09 out. 2008.
VIEIRA, Primo. (Monsenhor). Câmara Cascudo. Revista do Instituto Histórico e
Geográfico do Rio Grande do Norte, Natal, RN, v. 71-72, p. 65-67, 1979-1980.
WANDERLEY, Jaime. O Príncipe do Tirol. Revista Província, Natal, RN, n. 2, p. 27-32, 1968.
200
ANEXO A - FOTOS REFERENTES AO PRIMEIRO CAPÍTULO
Placa em homenagem a Luís da Câmara Cascudo afixada na ANL-RN.
Crédito da foto: Ana Verônica de Oliveira
(Acervo pessoal)
201
Cartão comemorativo da afixação do nome de Cascudo na rua onde ele nasceu, que reproduz a lei que
instituiu essa toponímia.
Crédito da foto: Francisco Firmino Neto
(Acervo do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro. Fundo Hélio Vianna. Pasta DL 1352.002. Rio de
Janeiro /RJ)
202
Placa com mensagem de Cascudo afixada na Entrada do IHGRN
Crédito da foto: José Maria Fernandes de Lima
(Acervo pessoal)
203
Máscara mortuária de Luís da Câmara Cascudo
Crédito da foto: José Maria Fernandes de Lima
(Acervo pessoal)
204
Molde da mão de Luís da Câmara Cascudo
Crédito da foto: José Maria Fernandes de Lima
(Acervo pessoal)
205
Placas de homenagens afixadas na entrada da Casa de Cascudo
Crédito da foto: Daliana Cascudo
(Acervo do Memorial Câmara Cascudo)
206
Placa da homenagem da Prefeitura de Natal a Cascudo, também afixada na entrada da Casa.
Crédito da foto: Daliana Cascudo
(Acervo do Memorial Câmara Cascudo)
207
Casa de Luís da Câmara Cascudo
Crédito da foto: Daliana Cascudo
(Acervo do Memorial Câmara Cascudo)
208
Cascudo e Sylvio Pedroza na Babilônia.
Acervo do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza, da Fundação José Augusto. Fundo Sylvio
Pedroza. Natal / RN.
209
Governador Sylvio Pedroza condecorando o escritor Luís da Câmara Cascudo, com a Ordem do Mérito
Militar. Natal 1954.
Acervo do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza, da Fundação José Augusto. Fundo Sylvio
Pedroza. Natal / RN.
210
Carta escrita por Cascudo para Sylvio Pedroza
Crédito da foto: Francisco Firmino Sales Neto
Acervo do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza, da Fundação José Augusto. Fundo Sylvio
Pedroza. Natal / RN.
211
Carta a João Lyra, assinada como Luís Natal.
SILVA, Roberto (Org.). Jasmins do Sobradinho: cartas de Luís da Câmara Cascudo a João Lyra Filho.
Natal: Sebo Vermelho Edições, 2000.
Crédito da foto: Arthur Luís Torquato
(Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte)
2
12
Carta de Luís da Câmara Cascudo ao Ministro Gustavo Capanema
Crédito da foto: Arthur Luís Torquato
(CPDOC/FGV. GC b Cascudo, L. b 0818.30.12.1937)
213
ANEXO B - FOTOS REFERENTES AO SEGUNDO CAPÍTULO
Foto da folha de rosto do livro História da Cidade do Natal.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Cidade do Natal. 1. ed. Edição da Prefeitura do
Município do Natal, 1947.
Créditos da foto: Francisco Firmino Neto
(Acervo da biblioteca particular do Prof. Raimundo Arrais)
214
Placa da Academia Norte-Rio-Grandense de Letras, destacando Câmara Cascudo como seu
fundador.
Crédito da foto: Ana Verônica de Oliveira
(Acervo pessoal)
215
Jornal a Imprensa, 21 de dezembro 1924.
Crédito da foto: Bruna Rafaela de Lima
(Acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte)
216
Ata da sessão ordinária em abril de 1927, na qual Cascudo já aparece como um dos assinantes da
Ata publicada na Revista do Instituto Histórico e Geográfico do RN vols. XXIII e XXIV, 1926/1927.
Natal-RN.
Crédito da foto: Bruna Rafaela de Lima
(Acervo da biblioteca particular do Prof. Cláudio Galvão)
217
ANEXO C - FOTOS REFERENTES AO TERCEIRO CAPÍTULO
Aspecto da Procissão que conduzia a imagem de Nossa Senhora da Apresentação para a Prefeitura de
Natal, em 15 de Agosto de 1946, por ocasião de sua entronização na Prefeitura de Natal
Acervo do Centro de Documentação Cultural Eloy de Souza, da Fundação José Augusto. Fundo Sylvio
Pedroza. Natal / RN.
218
Foto da charge de Emanoel Amaral referente à comemoração ao centenário de Cascudo
Acervo do setor iconográfico do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Norte
Crédito da foto: Francisco Firmino Sales Neto.
219
Foto de Cascudo na varanda da Babilônia
Acervo do site Memória Viva
Disponível em: <http://memoriaviva.com.br>. Acesso em: 13 dez. 2008.
220
Na biblioteca: a direita: São Sebastião (com o mandacaru), ao centro: São Vicente de Paula e a esquerda:
São José de Botas sobre a mesa de trabalho de Câmara Cascudo.
Foto importada do Relatório de Cristiane Furtado - A cidade e o letrado: a monumentalização de Câmara
Cascudo em Natal. Disponível em: <http://www.modernosdescobridores.com.br>. Acesso em: 29 jan.
2009.
221
Foto do marcador de texto do Santo Antônio
Acervo do Memorial Câmara Cascudo
Crédito da foto: Francisco Firmino Sales Neto.
222
Foto do marcador de texto do Exorcismo de Santo Antônio
Acervo do Memorial Câmara Cascudo
Crédito da foto: Francisco Firmino Sales Neto.
223
Convento de São Francisco, em Sergipe
Crédito da Foto: Valmir (Aracaju - SE)
Acervo do site Memória Viva. Disponível em:<http://memoriaviva.com.br>. Acesso em 25 jan.2009.
224
Foto da cúpula do Episcopado potiguar, por ocasião da homenagem feita a Dom Marcolino.
CASCUDO, Luís da Câmara Paróquias do Rio Grande do Norte. Natal, RN: Departamento de Imprensa,
1955. Plaquete.
Acervo: Memorial Câmara Cascudo
Crédito da Foto: Francisco Firmino Sales Neto.
225
Foto do convite da Missa do Centenário de Cascudo, em 1998
Acervo do Instituto Histórico do Rio Grande do Norte
Credito da foto: Francisco Firmino Sales Neto.
226
LEITE, Serafim. Aldeias de Guaraíras e Guajuru. In: _____. História da Companhia de Jesus no Brasil.
Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3, tomo 5, cap. III, p. 535.
Acervo: Memorial Câmara Cascudo
Crédito da Foto: Bruna Rafaela de Lima.
227
LEITE, Serafim. Fundação do Rio Grande do Norte. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3,tomo 5, p.506.
Acervo: Memorial Câmara Cascudo
Crédito da Foto: Bruna Rafaela de Lima.
228
LEITE, Serafim. Nas Fronteiras do Rio Grande e Ceará. In: ______. História da Companhia de Jesus no
Brasil. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945. Livro 3,tomo 5, p.548.
Acervo: Memorial Câmara Cascudo
Crédito da Foto: Bruna Rafaela de Lima.
229
ANEXO D - FOTOS REFERENTES AS CONSIDERAÇÕES FINAIS
Santinho com a oração de São Cascudo.
(Acervo Memorial Câmara Cascudo)
230
“PRA ENCANTAR A AVENIDA
A ÁGUIA VEM MISTIFICAR
DE BOCA EM BOCA, PAI PRA FILHO
O MODO DE AGIR, SENTIR E PENSAR (Ô POTIGUAR)
CÂMARA CASCUDO MOSTROU PARA O MUNDO
O FOLCLORE POPULAR
BRASIL DA MISCIGENAÇÃO, NOSSO POVO ESTENDE AS MÃOS
VAMOS MESTIÇAR
COSTUMES DO NORDESTE... ÓXENTE, CABRA DA PESTE
VEM PRO FORRÓ DANÇAR, POEIRA LEVANTAR
MARACATU, FESTA JUNINA
BOI-BUMBÁ NO NORTE, PARINTINS, O PONTO NOBRE
PRO MAL OLHADO TEM REZA FORTE
O PAJÉ PODE SALVAR
FERRADURAS E CARRANCAS... PATUÁS
QUEM FOI QUE DEIXOU O ESPELHO SE QUEBRAR?
NO CENTRO-OESTE NÃO PESQUE SEM ORAÇÃO (PORQUE)
ASSOMBRAÇÃO VAI TE PEGAR
NO SUL BRINQUEI
DE COBRA CEGA E AMARELINHA
E REPAREI NUM LINDO CANTO QUE OUVIA
ATÉ O SACI SE ENCANTOU
NÃO É CHULA, NEM FANDANGO
E PERGUNTOU: - QUE SOM É ESSE?
QUE CADÊNCIA DIFERENTE
PROTEGIDA PELOS DEUSES
ME RESPONDA QUEM VEM LÁ
EU SOU NENÊ! DA CULINÁRIA, BATUCADA E CARNAVAL
NO SUDESTE A FESTA É PRA VALER
FOLCLORE VIVO NESSE AMANHECER
MINHA ESCOLA DE SAMBA É EVOLUÇÃO
BATERIA DE BAMBA, TOCA ATÉ JONGO E BAIÃO
A NOSSA BANDEIRA, MANTO SAGRADO
GUETO AZUL E BRANCO, MITO RESPEITADO”.
Letra do samba-enredo da escola de samba paulista Nenê de Vila Matilde (2008)
(Acervo Memorial Câmara Cascudo)
231
Convite de Lançamento do vinho Grande Reserva 2001 Câmara Cascudo
(Acervo Memorial Câmara Cascudo)
Créditos: Francisco Firmino Neto
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo