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CELIA HELEA DE PELEGRII DELLA MÉA
DELOCUTIVIDADE: UMA VISÃO EUCIATIVA DO
PROCESSO DE REOVAÇÃO DA LÍGUA
PORTO A
LEGRE
2009
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UIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRADE DO SUL
ISTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DA LIGUAGEM
ESPECIALIDADE: TEORIAS DO TEXTO E DO DISCURSO
LIHA DE PESQUISA: AÁLISES TEXTUAIS E DISCURSIVAS
DELOCUTIVIDADE: UMA VISÃO EUCIATIVA DO
PROCESSO DE REOVAÇÃO DA LÍGUA
CÉLIA HELEA DE PELEGRII DELLA MÉA
ORIETADOR: PROF. DR. VALDIR DO ASCIMETO FLORES
Tese de Doutorado em Teorias do Texto e do
Discurso, apresentada como requisito parcial
para a obtenção do título de Doutor pelo
Programa de Pós-Graduação em Letras da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2009
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Ora, todo homem inventa sua língua e a inventa durante toda
sua vida. E todos os homens inventam sua própria língua a cada
instante e cada um de maneira distinta, e a cada vez de uma
maneira nova. Dizer bom dia todos os dias da vida a alguém é
cada vez uma reinvenção.
Émile Benveniste
AGRADECIMETOS
Valdir do Nascimento Flores, pesquisador insaciável, orientador de tantas virtudes,
professor inspirador e ser humano encantador. A todas essas figuras representativas em minha
trajetória acadêmica deixo o meu profundo reconhecimento e o delocutivo – Obrigada!
Faço referência ao Jorge Barcelos pelas demonstrações de amizade, preocupação e
companheirismo nos momentos de incertezas.
Dedico gratidão infinita a minha mãe, dona Nedi, quem me orientou no doutorado da
vida e fez-me entender a natureza do termo mãe.
À minha filha, Ana Júlia, e marido, Dante Lotufo, sou grata pela compreensão nas
ausências e pelo eterno carinho recebido.
À Nilsa Barin e ao Laurindo Dalpian, colegas de todas as horas, agradeço pela mão
amiga sempre estendida em minha direção.
À Daniele Della Méa da Silva, pelo auxílio técnico, registro meu agradecimento.
Faço alusão especial aos dirigentes do Centro Universitário Franciscano (UNIFRA)
pelo apoio e compreensão recebidos.
Minha gratidão a Deus por guiar a todos.
RESUMO
Nesta tese, propomo-nos a examinar a enunciação como atividade do discurso
promotora da renovação da língua. O pressuposto apriorístico na composição de nossa
proposição é o fato de que a Teoria da Enunciação de Émile Benveniste permite que
contemplemos os efeitos da enunciação sobre a língua, para além das marcas enunciativas no
enunciado comumente abordadas em pesquisas na área. Alicerçados em tal fundamento,
elegemos a noção de delocutividade, instituída no e pelo emprego dos signos, já travestidos de
palavras, no intuito de resolver a problemática estabelecida: De que forma a enunciação
permite produzir língua?A aplicação do modelo da delocutividade à língua toda, e não
somente aos verbos conforme a proposição inicial, permite responder nossa indagação.
Baseamo-nos na generalização dessa noção a fim de descrever os efeitos da enunciação sobre
a língua de forma que ela - a noção delocutiva, funcione como uma proposta para o
entendimento e viabilização de como esse processo se opera. Das análises realizadas, emerge
a confirmação de nossa hipótese de que a enunciação cria a língua, ou ainda, a enunciação
renova a língua na medida em que essa passa a ser resultante de uma atividade do discurso.
Como reflexo dessa comprovação, pontuamos a necessidade de um repensar sobre noções
teóricas, entendidas a princípio pelo viés da língua em âmbito saussuriano, um
redimensionamento sobre o ensino de língua em dimensões diversas e colaborações
epistemológicas originárias do próprio fazer científico. Nosso posicionamento sobre o
processo de renovação da língua por intermédio do discurso não impede o modo corrente ou
tradicional de conceber a formação de uma ngua, mas sublinha a necessidade de se
considerar a enunciação nesse processo, pois e nela e por ela que a ngua se constitui e se
transforma e é no e pelo movimento de retorno à língua, por meio da delocutividade, que essa
atividade se operacionaliza e se revela.
RÉSUMÉ
Dans cette thèse, nous nous proposons d’examiner l’énonciation comme une activité
du discours promotrice de la rénovation de la langue. Le présupposé a priori dans la
composition de notre proposition est le fait que la Théorie d’Énonciation d’Émile Benveniste,
permet-elle qui nous contemplons les effets de l’énonciation sur la langue, au-delà des
marques énonciative dans l’énoncé, habituellement abordées dans les recherches dans ce
domaine. Basées dans tel fondement, nous élisons la notion de délocutivité établie dans et par
l’emploi des signes, déjà travestis des mots, en vue de résoudre la problématique: De quelle
façon l’énonciation permet-elle produire la langue? L’application du modèle de la
délocutivité à l’ensemble de la langue et pas seulement pour les verbes, comme la proposition
initiale, permit-elle répondre notre question. Nous nous basons sur la généralisation de cette
notion pour décrire les effets de l’énonciation sur la langue de manière qu’elle la notion
délocutivé, fonctionne comme une proposition pour la compréhension et la viabilité de
comme ce processus s’opère. Des analyses effectuées, émerge la confirmation de notre
hypothèse selon laquelle l’énonciation crée la langue, ou encore, l’énonciation rénove la
langue à mesure qu’elle devient la résultante d’activité du discours. Comme réflexe de cette
preuve, nous soulignons la nécessité de repenser sur les notions théoriques, entendues au
début par le biais de la langue dans le contexte saussurienne, un redimensionnement sur
l’enseignement de la langue dans les différentes dimensions et collaborations épistémologique
originaires du propre faire scientifique. Notre position sur le processus de novation de la
langue à travers du discours, n’empêche pas la manière courante ou traditionnelle de
concevoir la formation d’une langue, mais elle souligne la nécessité de considérer
l’énonciation dans ce processus, car c’est dans et par elle que la langue se constitue et elle se
transforme et c’est dans le et par le mouvement de retour à la langue, à travers de la
délocutivité que cette activité se réalise et elle se révèle.
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 – Inventário dos registros benvenistianos ..................................................
QUADRO 2 – Para uma abordagem enunciativa do léxico ............................................
QUADRO 3 – Síntese esquemática do catulo Problemas semânticos de reconstrução ..
QUADRO 4 – Síntese esquemática do capítulo Eufemismos antigos e modernos .........
QUADRO 5 – Síntese esquemática do capítulo Dom e troca no vocabulário indo-
europeu ....................................................................................................
QUADRO 6 – Síntese esquemática do capítulo A noção de “ritmo” .............................
QUADRO 7 – Síntese esquemática do capítulo Civilização – contribuição à história
da palavra ................................................................................................
QUADRO 8 – Síntese esquemática do capítulo Difusão de um termo de cultura: o
latim orarium ..........................................................................................
QUADRO 9 – Síntese esquemática do capítulo Gênese do termo “scientifique” ..........
QUADRO 10 – Síntese esquemática do capítulo A blasfemia e a eufemia ....................
QUADRO 11 – Síntese esquemática do capítulo
Como se formou uma diferenciação
lexical em francês .................................................................................
QUADRO 12 – Síntese esquemática do capítulo Dois modelos lingüísticos da cidade .
43
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93
94
LISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 – Elementos constitutivos das dimensões de significância da língua ...........
28
LISTA DE AEXOS
ANEXO A – Índice Cronológico das Principais Publicações sobre Delocutividade ......
113
SUMÁRIO
RESUMO ........................................................................................................................
RÉSUMÉ ........................................................................................................................
LISTA DE QUADROS ..................................................................................................
LISTA DE FIGURAS ....................................................................................................
LISTA DE AEXOS .....................................................................................................
ITRODUÇÃO .............................................................................................................
1 OS FUDAMETOS DA TEORIA EUCIATIVA DE ÉMILE BEVEISTE .
1.1 A teoria da Enunciação: o delinear de fronteiras .................................................
1.2 Conceitos norteadores: a palavra e a frase ...........................................................
1.2.1 A palavra na enunciação benvenistiana ..................................................................
1.2.2 A frase pelo modo semântico de ser língua ............................................................
1.3 A sintagmação: por onde iremos ............................................................................
1.3.1 Um aparelho para os desdobramentos da língua em discurso ................................
2 DELOCUTIVIDADE: DA EUCIAÇÃO PARA A LÍGUA ...........................
2.1 A delocutividade proposta por Benveniste ............................................................
2.1.1 Críticas à delocutividade benvenistiana .................................................................
2.2 A noção de delocutividade no contexto brasileiro ................................................
2.3 Articulação entre os fundamentos da teoria enunciativa benvenistiana e a
noção de delocutividade ..........................................................................................
2.3.1 A delocutividade e as dimensões semiótica e semântica da língua ........................
2.3.2 A forma e o sentido na delocutividade ...................................................................
2.3.3 Delocutividade e Enunciação .................................................................................
2.4 Delocutividade: princípios para definição .............................................................
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18
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64
3 PRICÍPIOS PARA O TRATAMETO EUCIATIVO DO LÉXICO AS
OBRAS PLG I e PLG II ............................................................................................
3.1 Para uma abordagem enunciativa do léxico .........................................................
3.1.1 O corpus .................................................................................................................
3.1.2 O léxico em/do discurso .........................................................................................
4 A DELOCUTIVIDADE O TRATAMETO DO LÉXICO EM PLG I e PLG
II ...................................................................................................................................
4.1 Léxico, significação e cultura no PLG I .................................................................
4.1.1 Problemas semânticos da reconstrução ..................................................................
4.1.2 Eufemismos antigos e modernos ............................................................................
4.1.3 Dom e troca no vocabulário indo-europeu .............................................................
4.1.4 A noção de “ritmo” na sua expressão lingüística ...................................................
4.1.5 Civilização – contribuição à história da palavra .....................................................
4.2 Léxico, significação e Cultura no PLG II ..............................................................
4.2.1 Difusão de um termo de cultura: o latim orarium ..................................................
4.2.2 Gênese do termo “scientifique” ..............................................................................
4.2.3 A blasfemia e a eufemia .........................................................................................
4.2.4 Como se formou uma diferenciação lexical em francês .........................................
4.2.5 Dois modelos lingüísticos da cidade ......................................................................
4.3 Léxico, forma e sentido em enunciação benvenistiana .........................................
5 IMPLICAÇÕES LIGUÍSTICAS EM SE COSIDERAR A REOVAÇÃO
DA LÍGUA ATRELADA A ATIVIDADES DO DISCURSO .............................
5.1 Implicações para a análise de fenômenos linguísticos ..........................................
5.2 Implicações aplicadas ..............................................................................................
5.3 Implicações epistemológicas ...................................................................................
5.4 Para concluir ............................................................................................................
REFERÊCIAS ............................................................................................................
AEXOS ........................................................................................................................
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66
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ITRODUÇÃO
É compartilhado pela maioria dos estudiosos da linguagem contemporâneos o fato de
que as reflexões oriundas das aulas de linguística geral ministradas pelo mestre genebrino,
Ferdinand de Saussure, e registradas na obra Curso de lingüística geral, permitiram emergir
uma inovadora forma para o tratamento dispensado à linguagem até então. Sem desconsiderar
os avanços teóricos oriundos de abordagens tradicionais, nem colocá-los num passado
distante ou em segundo plano, entendemos que a base teórica dos atuais conhecimentos sobre
a linguagem está alicerçada no conjunto de informações adquiridas a partir da multiplicidade
de abordagens sobre os problemas da linguagem e que a proposta saussuriana não só abriu um
espaço privilegiado no tratamento da linguagem, como permitiu, com seus preceitos, que se
edificassem novos rumos nessa área de estudo. Com esse intuito, é que nos propomos, nesta
tese, a lidar com a linguagem.
A fim de dar continuidade aos estudos sobre a linguagem, no sentido de especializá-
los, nossa proposição, embora considere os estudos da linguística da língua, na concepção
saussuriana do termo, guia-se pelo estudo dos fenômenos linguísticos a partir do uso que se
faz deles, ou seja, procura examinar a linguagem no e pelo processo de sua realização e, por
isso, em mediação com o homem que enuncia. Investigamos, assim, a enunciação do sujeito
que enuncia e, através de seu ato, insere-se na língua, coloca-a em funcionamento e deixa
marcas em seu ato de enunciar. Faz-se necessário, então, definir a que princípios teóricos nos
agregamos na busca por um saber sobre a língua marcada pela enunciação.
Para isso, elegemos a teoria enunciativa de Émile Benveniste,
1
porque a articulação
1
Flores e Teixeira (2005) propõem a organização de uma Linguística da Enunciação centrada na unicidade
referencial da expressão, salientando que as diversas teorias que compõem essa Linguística comportam estudos
sobre as relações entre linguagem em uso e sujeito. A Teoria da Enunciação benvenistiana, como o poderia
deixar de ser, que o nome de Benveniste é sempre referenciado quando se trata do que se convencionou
chamar de enunciação, recebe tratamento privilegiado nas reflexões registradas pelos autores.
12
língua/discurso, decorrente de sua proposta, contempla a descrição da língua em uso e isso
fornece o referencial teórico necessário para subsidiar nossas indagações. Nossa opção teórica
deve-se ao fato de reconhecermos a legitimidade dos avanços dos estudos benvenistianos para
a construção de uma teoria semântica sobre o fato enunciativo. Consideramos pertinente tratar
da inclusão do sujeito na ngua pelo viés de sua teoria enunciativa, além de entendermos que
sua proposta sobre a linguagem carrega subjacentemente a linguística saussuriana, o que
permite a não ruptura com o pensamento linguístico anterior, que o expande e, ao mesmo
tempo, enraíza uma nova linguística - a da enunciação.
Embora a pesquisa na área da Linguística da Enunciação não seja recente, pois
podemos fazer referência a Charles Bally
2
como um dos primeiros teóricos a se preocupar
com a enunciação, os estudos enunciativos, especificamente os trabalhos desenvolvidos pelo
seu principal representante - Benveniste, permaneceram ofuscados por longa data,
provavelmente devido à euforia causada pela juventude do estruturalismo, que vivia um
apogeu em sua história, ou ainda, pela incompreensão, na época, da inserção, no centro dos
estudos da linguagem, do que, até então, era considerado anterior ou exterior a ela – o sujeito.
Nas pesquisas linguísticas atuais, os avanços oriundos da proposta enunciativa benvenistiana
são evidentes;
3
o lugar de Émile Benveniste foi restabelecido com a devida deferência que lhe
fora negada no passado.
Inserimo-nos no contexto de retomada dos estudos enunciativos benvenistianos, com a
inovação do enfoque teórico-prático a que nos propomos realizar e cremos ser o processo de
formação da língua um tema que carece de uma via própria de leitura pela ótica dos estudos
enunciativos. Dessa intersecção, nasce nossa proposta de analisar e/ou descrever a renovação
da ngua pelo viés da enunciação, ou ainda, de responder à questão: de que forma a
enunciação permite produzir língua?
Pressupomos que essa perspectiva de estudo permite evidenciar processos semânticos
de construção e reconstrução linguística até então negligenciados nos estudos da linguagem e
pertinentes como elementos definidores de significação. Nossas indagações relativas à
2
Discípulo de Saussure e criador da nova estilística, autor, dentre outras obras, do Traité de Stylistque
Française, publicado em 1909, além da participação na célebre obra Curso de Lingüística Geral, em 1916.
3
Em agosto de 2004, ocorreu, na PUCRS, o I Colóquio Leituras de Émile Benveniste (evento que reuniu
pesquisadores de diversas Instituições do Rio Grande do Sul, com o propósito de aprofundar os estudos em
torno da obra de Benveniste); certamente serão muitas as repercussões oriundas daquele momento, mas, como
consequência imediata, pode-se considerar que essa primeira edição do Colóquio registrou a amplitude das
pesquisas realizadas, nos círculos acadêmicos, na área da Linguística da Enunciação.
13
linguagem conferem à noção de significação
4
a condição para a análise linguística, ou seja, é
pelo viés da significação que o processo analítico se desencadeia. Entendemos que o enfoque
enunciativo sobre a construção da língua define novas significações. Valida-se, então, esta
pesquisa por clarear a ofuscada compreensão a respeito da formação de elementos da língua
via atividades do discurso.
Como já referimos, filiamo-nos ao paradigma enunciativo estabelecido por Émile
Benveniste o que nos possibilita considerar o processo de transfiguração do signo (semiótico)
à palavra (semântico), ou da palavra ao signo, realizado sintagmaticamente e manifestado pela
observação da inclusão do sujeito na língua, como o promotor da significação da língua em
discurso. Isso permite, em nossa opinião, ultrapassar significações próprias da língua e
promover a análise da construção de língua a partir do uso.
Objetivamos, portanto, elaborar uma proposta de análise enunciativa para a formação
da língua e, para subsidiar a elaboração de tal proposta, selecionamos a noção de
delocutividade, oriunda do artigo Os verbos delocutivos, proposta por Émile Benveniste, em
1958, como um mecanismo geral e pertinente à elaboração de nossa abordagem.
À guisa de esclarecimento do que queremos formular nesta tese, cabe ainda uma
precisão terminológica. No parágrafo anterior, foi dito que objetivamos desenvolver uma
proposta de análise da formação da ngua, com base nos princípios enunciativos da teoria
benvenistiana. Isso posto, vale indagar: o que se busca realmente circunscrever com a
expressão ainda um tanto vaga “formação da língua”? E ainda: em que medida pode ser aqui
entendida a afirmação apenas subjacente, sabemos segundo a qual o uso da língua é um
elemento que concorre para a construção, no sentido estrutural do termo, dela mesma?
Expliquemo-nos.
Quando o que está em foco, nos debates linguísticos, é a tentativa de compreender
como a língua se renova processo esse que pode receber diferentes nomeações, em distintos
quadros teóricos,
5
certo consenso em torno do fato de que a ngua se atualiza no uso que
dela é feito. Desse princípio, também não nos distanciamos. No entanto, nosso intuito de
4
Apesar do interesse que o homem sempre manifestou pela linguagem, desvendar questões pertinentes a esse
estudo não é tarefa pacífica, pois permeia as diferentes concepções que abordam o tema a noção de significação,
para a qual ora os interesses se voltam, ora mantêm-se num segundo plano ou, até mesmo, tal noção é totalmente
marginalizada nos estudos linguísticos. Para uma abordagem crítica do assunto, consultar La quadrature du sens,
sob a organização de Claudine Normand, em 1990.
5
Apenas para exemplificar: no quadro da teoria lexical de inspiração gerativista, o que estamos chamando de
“renovação da língua” poderia muito bem estar abrigada na noção de produtividade lexical (cf. Aronoff 1976);
no quadro de uma teoria que vise a aspectos da linguagem no contexto social fala-se em variação e mudança
linguística (cf. Labov 1972); no quadro de uma teoria funcionalista, encontramos o aspecto renovador” nos
processos de gramaticalização (cf. Neves, 1997).
14
pesquisa, inspirados em Benveniste, é outro: queremos saber como o uso cria a ngua. E,
ainda mais: como o uso, entendido como o colocar em funcionamento a língua por um ato
individual de utilização (cf. BENVENISTE, 1989, p. 82), cria as condições para que a língua
se renove.
Em termos enunciativos, esse raciocínio poderia ser apresentado da seguinte maneira:
se é lícito considerar que, na perspectiva benvenistiana, a língua é língua porque é
enunciada, antes disso ela é, como diria o próprio autor, apenas possibilidade de língua, então
não seria equivocado crer que a enunciação integra o conceito de língua, proposto por
Benveniste. Nesse caso, interessa-nos fazer o caminho inverso ao que comumente é feito nos
estudos de enunciação: não se trata de estudar as marcas da enunciação no enunciado, como
se costuma dizer na bibliografia da área, mas de ver que o uso singular da língua produz efeito
sobre ela e um deles, sem dúvida, é o de renová-la constantemente.
Ora, Émile Benveniste é, normalmente, visto como o linguista que abriu a linguística
estrutural ao uso. Tal abertura recebeu diferentes formulações no decorrer da teoria do autor: a
oposição pessoa/não-pessoa, a dicotomia discurso/história, a distinção semiótico/semântico e,
principalmente, aquela que viria a ser a síntese de seu projeto: o aparelho formal da
enunciação. No entanto, é menos comum investigar como Benveniste pensou o efeito da
enunciação sobre a própria língua.
Um dos vieses desse efeito está delineado no texto acima referido, Os verbos
delocutivos. Como veremos (cf. Cap. 2, Infra), neste texto, Benveniste propõe um modelo de
entendimento da renovação da língua que a enunciação opera.
Eis, portanto, uma outra face de nossa tese: apresentar o modelo da delocutividade
desenvolvido por Benveniste como um modelo generalizável que permite explicar e descrever
os efeitos da enunciação no processo de renovação da língua.
Assim, por apreço ao esclarecimento das coisas, vale destacar: a tese que aqui inicia
assenta-se, primeiramente, sobre dois princípios:
a) se é verdade que a língua precisa ser enunciada para ser vista como tal, não é menos
verdade que a enunciação é responsável, ao menos em parte, pela organização dessa língua
e, até mesmo, pela sua renovação;
b) o modelo da delocutividade, proposto por Benveniste para o estudo dos verbos, é
potencialmente generalizável de forma a servir de modelo explicativo e descritivo dos
efeitos da enunciação sobre o processo de renovação da língua.
Admitidos os princípios anteriores, um terceiro se impõe:
c) a delocutividade é um processo que se estende à língua - a todos os seus componentes
15
(fonológico, sintático, morfológico, lexical, etc.).
Evidentemente, assim como está posta, a tese carece ainda de maior refinamento, uma
vez que se impõe o recorte. Em outras palavras: como pretendemos mostrar a pertinência dos
três princípios para a análise empreendida, segundo a qual a enunciação cria a língua?
Faremos um recorte inspirados pelo próprio Benveniste, qual seja, abordaremos a renovação
lexical na sua relação com a enunciação.
A partir da noção delocutiva, estabelecemos que a renovação
6
lexical de uma língua,
quando considerada pela dimensão semântico/enunciativa, passa a estar atrelada a uma
atividade do discurso. Da articulação dos elementos implicados na singularidade enunciativa
de um ato com as unidades léxicas que compõem uma língua, surge nosso viés de análise
linguística cuja realização torna-se viável pela noção de delocutividade à qual nos filiamos.
Assim, instituímos teoricamente uma forma para análise descritiva da formação da língua
nossa proposta de renovação da língua pelo viés da enunciação.
Disso resulta a formulação do procedimento de análise:
a) a delocutividade, tomada como um modelo geral de renovação da língua pela enunciação,
será examinada ao nível da organização lexical da língua.
A máxima saussuriana que afirma ser o ponto de vista o criador do objeto,
7
ou seja, a
partir do lugar teórico em que nos inserimos, definimos os fatos linguísticos a serem descritos,
permitiu-nos buscar, na própria obra benvenistiana, um espaço para análise dos fatos
linguísticos, por ocasião do tratamento que o autor dispensou às unidades xicas. O intuito
foi saber como Émile Benveniste concebeu o léxico em suas análises, nas obras Problemas de
Linguística Geral I e II, e, assim, ao examinarmos as considerações benvenistianas sobre o
léxico, evidenciarmos como a enunciação produz língua.
Definem-se, assim, finalmente, os dados para a análise:
b) a hipótese de que a enunciação cria a língua, ou seja, de que os efeitos da enunciação na
estrutura da língua contribuem para renová-la, será examinada nos próprios textos de
Benveniste, escritos com o intuito de estudar o componente lexical das línguas. Em outras
palavras: nossos dados de análise são as análises de Benveniste.
6
Como se pode notar, utilizamos a expressão “renovação”, cientes da precariedade que o termo encerra, para
denominar o que estamos chamando de efeitos da enunciação na língua. Com isso queremos marcar, ao menos,
duas atitudes: a) distanciamento de teorias outras que estudam a criação na língua (seja ela lexical, ou o); b) a
aproximação a um campo teórico, o enunciativo, que considera que o sujeito, ao enunciar, produz efeitos na
própria estrutura da língua, efeitos esses aqui nomeados pela palavra renovação. Na teoria enunciativa, não seria
estranho dizer que o sujeito renova a língua a cada vez que a enuncia.
7
No capítulo III, do Curso de lingüística geral, encontra-se uma proposta de definição de língua como objeto de
estudo da linguística. Na abertura dessa discussão, a noção de que “é o ponto de vista que cria o objeto” é
estabelecida (SAUSSURE, 1974).
16
Não podemos negar que, da forma como encaminhamos este estudo, decorre uma
espécie de hipótese de leitura da obra benvenistiana: suas análises de fatos da ngua contêm,
todas e cada uma, a seu modo, os princípios gerais que o permitem ter uma visão ímpar da
linguagem.
Configura-se, dessa forma, o conjunto de nossa proposta de análise da linguagem pelo
viés da semântica enunciativa, de Émile Benveniste, e, a fim de explicitarmos o percurso para
essa realização, elencamos, a seguir, a macroestrutura gerada com o intuito de dar conta do
que objetivamos.
No primeiro capítulo, evidenciamos o percurso teórico adotado para provar que a
enunciação pode produzir língua. O trânsito entre as fronteiras língua/discurso, definições
para o que se pode chamar de palavra, frase e sintagmação, na proposta enunciativa, de
Émile Benveniste, e a trajetória eleita para o estudo dos desbobramentos da língua em
discurso são noções registradas neste capítulo. Trata-se, pois, de um espaço de delimitação
teórica sobre a investigação em análise linguística enunciativa benvenistiana.
No capítulo dois, registramos a noção delocutiva proposta no texto fundador “Os
verbos delocutivos”, de 1958, de Émile Benveniste, assinalamos críticas dirigidas à noção
delocutiva e proporcionamos uma articulação entre os fundamentos da teoria enunciativa de
Benveniste e a concepção de delocutividade. Ainda, esse capítulo serve como sustentação
empírica para a constatação de que o próprio autor predizia, através da noção delocutiva, que
a produção da ngua pode ocorrer por meio da enunciação. Definimos o percurso
enunciação/língua da seguinte forma (em que significa “produz por delocutividade”).
Enunciação Língua
Os princípios metodológicos para promover a análise de formações léxicas, por meio
de uma abordagem enunciativa que considere o processo da delocutividade no movimento do
discurso para a língua, estão descritos no capítulo três.
O tratamento que o xico recebe nos estudos benvenistianos, registrados nas obras
Problemas de lingüística geral I e II, é apresentado no capítulo quatro. O intuito, na
construção desse tópico, foi definir como Benveniste aborda o léxico em relação à enunciação
e, assim, estabelecer a importância de questões lexicais nos estudos enunciativos, a partir do
movimento enunciação/língua, considerado renovador do sistema linguístico, segundo nossa
concepção.
No capítulo cinco, expomos implicações linguísticas por considerarmos a renovação
17
da língua atrelada a atividades do discurso e, com isso, finalizamos nossas reflexões em torno
desta tese. As discussões partem de implicações teóricas, seguem com possibilidades de
aplicação e questões epistemológicas ligadas ao fato de se considerar a renovação da língua
como um efeito da enunciação sobre ela. Para encerrar, registramos as considerações finais
que emergem do recorte teórico-prático a que nos propusemos.
Para fins de sistematização, resumimos a disposição organizacional desta tese da
seguinte forma: primeiramente, esboçamos os fundamentos da Teoria da Enunciação
benvenistiana e delineamos um percurso teórico pertinente ao estudo da palavra pelo viés da
enunciação; em seguida, no capítulo dois, apresentamos a conceituação de delocutividade,
proposta pelo próprio Émile Benveniste, reveladora do processo criativo da língua via
enunciação e, no capítulo três, descrevemos os princípios metodológicos para a execução de
nossa proposição. Efetuamos o exame das análises que Émile Benveniste promove sobre o
léxico no quarto capítulo. No quinto e último momento, encerramos nossa trajetória, ao
apontarmos as consequências linguísticas oriundas da adoção de nossa proposição.
1 OS FUDAMETOS DA TEORIA EUCIATIVA DE ÉMILE
BEVEISTE
Como nos propomos a realizar um estudo sobre a renovação da língua pelo viés da
enunciação, proposta por Émile Benveniste, cabe estabelecer uma base teórica que suporte
a nossa proposição. Com este capítulo, estruturado em três seções, pretendemos refletir sobre
questões fundamentais para compreensão da enunciação benvenistiana e, com isso,
delimitarmos o viés teórico necessário para a realização desta pesquisa. A fim de realizarmos
nosso recorte teórico, elegemos, na primeira seção (cf. 1.1), noções fundamentais oriundas das
obras Problemas de Lingüística Geral I e II,
8
de Émile Benveniste: fundamentos da teoria
enunciativa benvenistiana, que permitem delinear nossa percepção sobre o signo linguístico
9
e, assim, dar início à base teórica, para discutirmos questões relativas à enunciação e ligadas,
pelo viés do signo saussuriano, à língua; na segunda (cf. 1.2), trazemos uma proposta de
significação para os termos palavra e frase, na perspectiva enunciativa de Benveniste, e, por
fim, encerramos esse capítulo com a noção de sintagmação,
10
que contempla um instrumento
de conversão da língua em discurso (cf. 1.3).
1.1 A teoria da Enunciação: o delinear de fronteiras
A observação da trajetória intelectual de Émile Benveniste revela que seu pensamento
não repousa sobre um único fato. Suas reflexões sobre a necessidade de tratar o homem na
8
Doravante os registros PLG I e PLG II fazem referências às obras Problemas de Lingüística Geral I e
Problemas de Lingüística Geral II, de Émile Benveniste.
9
Recorremos de imediato à noção de signo linguístico saussuriano, por ter sido ela retomada por Benveniste
(1989) para definir a significação no âmbito do estudo da ngua e por ela significar um ponto a ser transposto
para a concretização da análise da língua em uso.
10
O termo sintagmação encontra-se, também, registrado como sintagmatização, portanto, aponta-se a flutuação
terminológica para essa noção.
19
língua conferem-lhe o título de linguista da enunciação, sendo a teoria comumente chamada
de Enunciação a ele creditada; entretanto, a diversidade de seus interesses pode conferir-lhe
também o rótulo de multifacetado,
11
que seus estudos não se resumem ao que se
convencionou denominar Teoria da Enunciação. Normand (1997) aponta três possibilidades
de leitura da obra de Benveniste, considerando a diversidade de interesses encontrada na
interpretação de seus textos. Propõe, em primeiro lugar, uma leitura comparativista, com
espaço privilegiado para os estudos voltados ao indo-europeu, englobando estudos filológicos
e de línguas clássicas; reconhece, ainda, uma interpretação estruturalista que comporta o olhar
benvenistiano sobre noções fundamentais oriundas da linguística moderna, sendo os nomes de
Saussure, Bloomfield e Harris e das noções de signo, estrutura e níveis linguísticos os
representantes desse olhar na obra benvenistiana; e, por fim, a leitura do que se convencionou
chamar de Teoria da Enunciação. Com as reflexões sobre a enunciação, preocupou-se em
desenvolver uma teoria sobre o sentido, fundadora de um novo paradigma no tratamento da
língua/linguagem, de modo que Dessons (2006) atribui a ele, Benveniste, a designação de “o
homem dos fundamentos” - o mesmo dizer que ele, linguista de enunciação, proferiu,
reportando-se a Saussure: “Saussure é em primeiro lugar e sempre o homem dos
fundamentos” (BENVENISTE, 1995, p. 35). A pluralidade do vocábulo “fundamentos”
autoriza definir múltiplas qualidades para o pensamento benvenistiano, ao mesmo tempo em
que permite buscar, em seus estudos, um ponto de convergência de seu pensamento que se
revelou original e culminou com sua proposta sobre as relações entre o homem e a língua. Em
síntese, a percepção de Normand (1997) sobre a obra benvenistiana não permite uma
visualização sintética e objetiva do pensamento linguístico do autor, como fornece subsídios
para a reflexão sobre a recepção de Benveniste na linguística contemporânea, pois se
evidenciam os interesses diversos do autor que transita, com propriedade, pelo
comparativismo pré-saussuriano, pela proposta estruturalista e pela Teoria da Enunciação por
ele edificada.
Observada a trajetória do pensamento de Émile Benveniste, poderíamos entender uma
filiação intelectual situada em muitos dos seus estudos; entretanto, concordamos com Dessons
(2006) sobre a questão de a significação ser o componente maior da filiação intelectual de
Benveniste e podemos, sem hesitação, encontrar, na teoria saussuriana, uma das bases para a
11
Dentre os estudos realizados por Benveniste, evidencia-se, também, seu interesse por áreas como a Filosofia
(artigo A filosofia analítica e a linguagem, de 1963), a Psicanálise (artigo Observações sobre a função da
linguagem na descoberta freudiana, de 1956), e a Sociologia (artigo Estrutura da língua e estrutura da
sociedade, de 1968), de forma que suas considerações teóricas entrelaçam áreas de conhecimento distintas em
torno de uma proposta de constituição do sujeito. A esse respeito, o próprio Benveniste (1968, p. 38) aponta para
a constituição de “uma grande antropologia (no sentido de “ciência geral do homem”)”.
20
edificação da proposta enunciativa benvenistiana, de modo que, adequadamente, Authier-
Revuz (1998, p. 16) o intitula um neoestruturalista. O próprio Benveniste (1995) não se furta
à declaração de que não há um lingüista hoje que não lhe deva algo” (p. 34), referindo-se
a Saussure. É evidente que, dada à atuação de Benveniste na academia
12
e aos estudos aos
quais se dedicou, como a grandiosa colaboração sobre as línguas indo-europeias, não
podemos creditar, somente a Saussure, a dimensão das reflexões oriundas do pensamento
benvenistiano, mas podemos resgatar, do construto teórico saussuriano, noções que, muitas
vezes subvertidas, não lhe dissociam das considerações do mestre de Genebra. Normand
(1996) aponta para o fato de Benveniste ser um continuador de Saussure para ultrapassá-lo, na
medida em que ele não se desfez de noções saussurianas (significado/significante; signo;
estrutura etc), mantendo-se fiel a ideia de que “na língua existem diferenças”
(SAUSSURE, 1974, p. 139). Entretanto, ao tratar a significação, estabelece a inclusão do
sujeito e do referente, desencadeando uma significância diferenciada no tratamento da língua,
denominada dimensão semântica. A proposta de que Benveniste é um continuador de
Saussure confirma a descendência de seu pensamento, e a de ultrapassagem conduz para a
organização de uma ciência dos sistemas de signos cuja necessidade de formação, conforme
Normand (1996), havia sido esboçada no Curso de lingüística geral. O fato de apontarmos
uma filiação intelectual em nada afeta a originalidade da proposta de Benveniste, apenas
sinaliza o contexto inicial dos estudos e enfatiza a base de onde emergiu um novo e original
horizonte teórico – o da enunciação.
Alguns registros do PLG I e II comprovam a forte referência a Ferdinand de Saussure
e ao estruturalismo, mesmo que, em alguns momentos, de forma crítica. Os artigos da
primeira seção, Transformações da lingüística, do PLG I, 1. Tendências recentes em
lingüística geral (1954), 2. Vista d’olhos sobre o desenvolvimento da lingüística (1963a) e 3.
Saussure após meio culo (1963b) e os artigos, do PLG II, 1. Estruturalismo e lingüística
(1968a) e 2. Esta linguagem que faz a história (1968b), versam sobre a história da linguística
moderna, notadamente no que se refere ao signo e à língua sob a inspiração do Curso de
lingüística geral. Entretanto, a marca saussuriana o se resume a isso, permanecendo, em
noções basilares da Teoria da Enunciação, concepções como estrutura
13
e
12
Conforme Dessons (2006), Benveniste substituiu Antoine Meillet, na École Pratique des Hautes Études, em
1927, onde lecionou gramática comparada das línguas indo-europeias e o iraniano, até 1969.
13
Considerada, por Benveniste (1995, p. 9), “um dos termos essenciais da lingüística moderna”, a noção de
estrutura é mantida na Teoria da Enunciação, na medida em que ocorre a articulação entre o sujeito e a estrutura,
sendo esta entendida como o arranjo de um todo em partes e a solidariedade demonstrada entre as partes do
todo, que se condicionam mutuamente”.
21
sincronia,
14
oriundas das ideias de Saussure. Benveniste o hesita em se mostrar filiado à
teoria de Saussure, ao mesmo tempo em que se revela um homem de ideias próprias sobre a
linguagem, ou seja, revela-se um pesquisador revolucionário e independente, na medida em
que migra, de forma pertinente, concepções estruturalistas da língua para os estudos da língua
em uso; constrói, assim, seu próprio horizonte teórico, assumindo todas as reservas que esse
novo paradigma sobre a linguagem, fundado sobre as bases estruturalistas, possa trazer.
A fim de delinearmos as reflexões que nos conduzem, iniciamos
15
com a observação
da proposta de delimitação do lugar da língua entre os sistemas de signos, feita por
Benveniste, no artigo A semiologia da língua, de 1969, da seção A comunicação, PLG II.
Benveniste parte das teorias de Charles S. Peirce e Ferdinand de Saussure cujos construtos
teóricos permitiram edificar diferentes ciências dos signos. Na teoria peirciana, o encontra
resposta para seu questionamento, pois, segundo Benveniste, a língua, para Peirce, reduz-se às
palavras, igualadas aos signos, e esses são colocados na base do universo inteiro. Para que a
teoria permitisse a construção de uma semiologia da língua como sistema, seria necessário
que todos os signos o pertencessem a um único sistema e que se constituíssem vários
sistemas de signos, com a explicitação de relações de diferenças e analogias entre eles. Para
Benveniste, é necessário, então, que o signo seja compreendido em um sistema de signos e
não em um sistema único, pois é essa a condição da significância. Adverte Benveniste que
Peirce jamais se interessou pelo funcionamento mesmo da língua, nem sequer prestou atenção
a ele e que sua teoria o contribui para a construção de uma semiologia da língua como
sistema, pois não serve como aparato classificatório ou distintivo de signos.
Na posição inversa à de Peirce e ao encontro do pensamento de Benveniste, Saussure
toma a língua como objeto de estudo e assume para a linguística a tripla tarefa de 1) descrever
sincronicamente e diacronicamente todas as línguas conhecidas; 2) depreender as leis gerais
que operam nas línguas; 3) delimitar-se e definir-se a si mesma (p. 45). Conforme
Benveniste, a terceira tarefa anula as duas primeiras, porque as contém e é considerada a
grande novidade do programa saussuriano, que propõe um conhecer-se, descobrindo seu
objeto.
14
Da visão dicotômica - sincronia/diacronia, proposta no Curso de lingüística geral, Benveniste, com os estudos
enunciativos, elege, na análise linguística, o sujeito no presente de sua fala. Segue, então, a sincronia do quadro
estruturalista de análise da língua.
15
Flores (2001), Flores e Teixeira (2005) e Lichtenberg (2006), dentre outros, confirmam que a concepção de
intersubjetividade, em enunciação benvenistiana, perpassa sua obra de modo que, em qualquer texto de sua
autoria, encontra-se subjacente ou não, essa concepção, constituindo-se, portanto, um a priori na leitura de sua
proposta. Isso permite que se possa entrar na teoria benvenistiana por qualquer tema que tenha sido objeto de seu
estudo.
22
Para Saussure,
16
angua é “um sistema de signos onde, de essencial, só existe a união
do sentido e da imagem acústica e onde as duas partes do signo são igualmente psíquicas”
(CLG, p. 34). Os sistemas de signos constituem o cotidiano da sociedade e do indivíduo
(signos da linguagem, reguladores, de cortesia, exteriores, dos cultos, monetários, das artes,
etc.) de forma que nossa vida está presa em redes de signos. A propriedade de significar ou
significância e sua composição em (unidades) signos é comum a todos os sistemas e também
é o critério que une os sistemas de signos à semiologia.
Em meio aos sistemas de signos como o de sinais do tráfego rodoviário, o da música,
ou o sistema das artes plásticas (todos não linguísticos), a língua ocupa um lugar particular,
por ser o interpretante de todos os outros sistemas, visto que toda a semiologia de um sistema
não linguístico vai ser dependente da interpretação da língua; a própria existência do sistema
está na semiologia da língua, sendo, portanto, a língua o interpretante, por excelência, de
todos os sistemas linguísticos e não linguísticos.
O fato de a língua ser o interpretante de todo sistema significante deve-se, segundo
Benveniste, à singularidade da existência de uma dupla significância, ou seja, na língua
combinam-se dois modos distintos de significância: o semiótico e o semântico.
O único sistema em que a significação se articula em duas dimensões é a língua
(significância dos signos e significância da enunciação). A teoria saussuriana de signo
linguístico serve de base para o que Benveniste denomina de semiótico, no entanto, para o
domínio semântico o autor salienta que precisará de um aparelho novo de conceitos e de
definições.
17
É sobre essa nova dimensão de significância, a do discurso,
18
que se edifica a
linguística da enunciação.
Portanto, no âmbito do semiótico, ficam os signos que, como propriedades da língua,
significam, tendo cada um uma denotação conceitual e uma constituição formal do
significante (noção de signo saussuriana). A ordem da semântica resulta de um colocar a
16
Conforme referimos, os capítulos 1, 2 e 3, do Problemas de lingüística geral I, e os capítulos 1 e 2, do
Problemas de lingüística geral II, explicitam a leitura que Benveniste faz da proposição saussuriana. Neles
encontramos, também, a disposição benvenistiana em ultrapassar noções saussurianas.
17
Em 1970, Benveniste propõe o artigo O aparelho formal da enunciação. Nele o autor estabelece um quadro
formal para análise do emprego da ngua. Ao que parece, Benveniste, em 1969, registra a necessidade de um
aparelho novo de conceitos e de definições para o modo semântico de significância da língua e propõe esse
aparelho no ano seguinte, embora sua percepção sobre as dimensões semiótica e semântica da língua estivesse
presente em artigos publicados anteriormente a essa data, vale lembrar os textos Os níveis de análise lingüística,
de 1964 e Os verbos delocutivos, de 1958.
18
Diante da polissemia do termo discurso, seguimos o pensamento de Dessons (2006), para quem o termo
discurso, em Teoria da Enunciação, é considerado o termo maior, ou seja, situa-se na enunciação, assim como a
fala estabelece-se no enunciado, e é um prolongamento do movimento de conceituação iniciado por Saussure,
pois, ao contrário da ideia de que o discurso estaria ausente no Curso, crê-se na real preocupação saussuriana
sobre o fato, por ocasião da proposta dicotômica entre língua e fala.
23
língua em ação (através do locutor), ou seja, são os signos materializados em palavras, com
significações intencionadas, produzidas pela colocação dessas palavras no sintagma. Segundo
Benveniste, nesse processo de sintagmação
19
das palavras, cada uma mantém apenas uma
pequena parte de seu valor enquanto signo.
Evidenciamos, por fim, o fato de ser necessário transpor a noção saussuriana de signo,
delineada no âmbito semiótico, e, por meio da ordem semântica de significância da língua,
na dimensão do discurso, precisar as significações oriundas do ato de enunciar.
É, pois, o
sistema semântico, resultante da língua em discurso, o eleito, por nossa via de leitura, como
base teórica que promoverá respostas as nossas preocupações relativas à significância da
língua.
Ao assumirmos a análise do sistema da ngua pelo viés da teoria da enunciação,
proposta por Benveniste, é interessante observar a articulação entre a dimensão semiótica
língua e a dimensão semântica língua em discurso, o que propomos evidenciar a seguir, via
percepção da noção de níveis de análise linguística, em Teoria da Enunciação.
Por meio do artigo, de 1964, Os níveis de análise lingüística, de Émile Benveniste, é
possível depreender que a análise da língua exige a noção de nível, ou seja, é via
conhecimento dos níveis de análise da língua que será possível (re)conhecer a edificação
própria de cada parte que compõe o todo da língua. Segundo o autor, é preciso delimitar os
elementos linguísticos via relações que os unem, até que, em porções cada vez mais reduzidas
(segmentação), chegamos aos elementos não decomponíveis. Nesse momento, é possível
identificar esses elementos por meio das substituições que eles admitem. Como exemplo, o
signo “lema”
20
pode ser segmentado em [l] - [e] -[m] - [a], podendo sofrer substituições do
tipo [t] em vez de [l] (tema); [i] em vez de [e] (lima); [Ȃ] em vez de [m] (lenha); [e] em vez de
[a] (leme). Essa aplicação permite identificar os substitutos possíveis para cada um dos
elementos, como, por exemplo, o [l] em [lema] pode ser substituído por [t,s,ř, ƚ ] (tema, sema,
rema, gema), sendo, portanto, por meio das relações sintagmáticas (segmentação in
praesentia) e paradigmáticas (substituição in absentia), realizada a análise da língua.
Benveniste propõe, então, a noção de merisma que seria, justamente, o traço distintivo
do fonema. O merisma caracteriza-se por admitir substituição, mas não segmentação, como
em [t] que permite identificar traços distintivos como dental, alveolar, oclusiva e desvozeada,
mas nenhum desses traços pode se realizar fora da articulação fonética em que se encontra.
19
Na seção 1.3 deste capítulo, nossa compreensão de sintagmação será devidamente detalhada.
20
O exemplo citado é de nossa autoria, assim como todos os itens que ilustram os níveis merismático e
fonemático.
24
Esses traços podem ser substituídos por outros traços, entretanto nenhum deles pode ser
segmentado por si mesmo. O nível merismático é, na concepção benvenistiana, o dos traços
distintivos e o fonemático, o das entidades segmentáveis - o fonema.
Chega-se, então, a um nível superior de análise linguística, a saber, o signo, delimitado
pelo sentido, o que é considerado condição fundamental de todas as unidades de todos os
níveis “... é preferível reconhecer francamente que ele (o sentido) é condição indispensável da
análise linguística” (1995, p. 131). Do fonema, passa-se, então, ao signo que “praticamente”
21
coincidirá com a palavra. Essa tem a posição de mediadora entre o nível inferior (unidades
fonemáticas) e o nível superior (frase). Como bem diz Benveniste (1995, p. 132):
A palavra é um constituinte da frase, efetua-lhe a significação; mas não aparece
necessariamente na frase com o sentido que tem como unidade autônoma. A palavra
pode assim definir-se como a menor unidade significante livre susceptível de efetuar
uma frase, e de ser ela mesma efetuada por fonemas.
O fato de a linguagem ser articulada em diferentes níveis - merisma, signo e frase -
coloca o signo numa posição central, de forma que, se associarmos esse processo descendente
e ascendente às noções de forma e sentido, a forma seria a possibilidade de dissociarmos uma
unidade linguística em constituintes de nível inferior e o sentido define-se como “a sua
(unidade linguística) capacidade de integrar uma unidade de nível superior” (1995, p. 136),
sendo a frase considerada esse nível, por não poder ser empregada como função integrante de
outro tipo de unidade. Constituíram-se, então, duas espécies de relação entre as unidades
linguísticas: as distribucionais - resultantes das articulações entre elementos de mesmo nível –
e as integrativas que definem as relações com elementos de níveis diferentes. O signo integra
a frase (relações integrativas), ao mesmo tempo em que é constituído por elementos de
mesmo nível (relações distribucionais). Fato esse que o coloca em posição intermediária na
estrutura dos níveis e delega à frase a condição de maior nível de análise linguística, que
pertencente a um novo âmbito de significância. A frase deixa de pertencer ao domínio da
língua e passa ao domínio do discurso, no qual, como unidade completa, traz consigo sentido
e referência - sentido porque comporta significação e referência, porque engloba as situações
de atividade de linguagem e os interlocutores. A frase está, pois, no âmbito do discurso que se
atualiza à medida que a língua é submetida à enunciação; por fim, sintetizamos - a frase é uma
unidade de discurso.
21
A utilização desse "praticamente" é elucidada, quando Benveniste distingue o modo semântico e o modo
semiótico de ser língua.
25
Consideramos a noção de nível, reconhecida, por Benveniste, como elemento essencial
nos procedimentos de análise linguística, indispensável, quer por definir os componentes
constituidores da língua ou por, a partir de seu estabelecimento, ser possível traçar fronteiras
metodológicas pertinentes a uma análise linguística. Consideramos ainda que, quando
Benveniste elegeu os veis merismático/fonemático, signo e frase, como os elementos
passíveis de articulação da língua, ainda não havia devidamente nominalizado a diferenciação
entre significância do signo e da enunciação, ou seja, não havia estabelecido nomes aos
âmbitos semiótico e semântico de significância da língua; daí sua afirmação de que o signo
linguístico praticamente coincidirá com a palavra. Embora não tivesse evidenciado as
possíveis dimensões de significância da língua, parece-nos que o uso desse praticamente
vislumbrava essas duas formas de significância, elas apenas, ainda, não estavam descritas
tal descrição foi realizada pelo autor, em 1966, no artigo A forma e o sentido na linguagem e,
em 1969, no texto A semiologia da língua, conforme já referido.
Em nossa leitura, é necessário manter os níveis de análise propostos por Benveniste,
pois deles podemos estabelecer as partes que compõem o todo da língua; entretanto, é preciso
que observemos a significância da língua pela dupla dimensão semiótico/semântico, e que,
por esse olhar, é necessário bifurcar o nível do signo – não em um novo nível, mas de maneira
que ele possa ser considerado, em sua forma e sentido, conforme a dimensão de significância
eleita. Conforme referimos, Émile Benveniste, no artigo A forma e o sentido na linguagem, de
1966, resultado de sua conferência na sessão inaugural do XIII Congresso das Sociedades de
Filosofia de Língua Francesa, fornece subsídios para que consideremos signo e palavra como
elementos portadores de forma e sentido e pertencentes a dimensões de significância distintas.
No referido artigo, Benveniste registra que o tema - a forma e o sentido na linguagem
- parece convir mais a um filósofo do que a ele que, evidentemente, aborda o tema como
linguista, entretanto não de um ponto de vista comum à maioria, que esse parece não
existir.
Segundo ele, o estudo do sentido foi considerado, durante muito tempo, como uma
tarefa que escapava à competência do linguista. Hoje, embora essa visão o permaneça,
persistem noções vagas e mesmo inconsistentes relacionadas ao que tradicionalmente se
chama de semântica. ... as manifestações do sentido parecem tão livres, fugidias,
imprevisíveis, quanto são concretos, definidos e descritíveis os aspectos da forma...” (1989 p.
221). Benveniste considera, então, gêmeas as noções de sentido e forma, propõe situá-las e
organizá-las, definindo o sentido comoa noção implicada pelo termo mesmo da língua como
conjunto de procedimentos de comunicação identicamente compreendidos por um conjunto
26
de locutores (1989, p. 222), e a forma como a matéria dos elementos linguísticos quando o
sentido é excluído ou o arranjo formal destes elementos ao nível linguístico relevante(1989,
p. 222).
Opor a forma ao sentido parece convenção banal, mas se reinterpretarmos essa
oposição no funcionamento da língua, ou seja, no processo enunciativo, chegaremos ao centro
do problema da significação (caráter primordial da linguagem). Benveniste considera tão
diversas e numerosas as funções ligadas ao exercício do discurso que as resume em uma
palavra: “...antes de servir para comunicar a linguagem serve para viver (1989, p. 222).
O problema da significação tem sido estudado por várias ciências e, por isso mesmo,
nenhuma delas o toma para si como próprio. Os lógicos descartaram toda tentativa de
definição direta da significação; os linguistas não podem se contentar com um conceito global
como aquele da significação definida em si e de uma vez por todas. A reflexão de Benveniste
aponta para um conceito de significação atrelado à noção de linguagem como atividade
significante por excelência. No pensamento Benvenistiano (1989, p. 223):
Que a linguagem
significa quer dizer que a significação o é qualquer coisa que lhe seja dada por acréscimo
ou, numa medida mais ampla, por uma outra unidade; é de sua própria natureza...”.
A linguagem tem, ainda, o caráter de se realizar por meios vocais que se organizam em
palavras dotadas de sentido. É a noção de signo (saussuriana) que impõe, no estudo da língua,
a noção muito geral de significação; compete, então,
a Benveniste ultrapassar o ponto de
chegada de Saussure na análise da língua como sistema significante.
Tratando o signo linguístico, Saussure abriu o caminho para uma descrição das
unidades semióticas: estas devem ser caracterizadas pelo duplo caminho da forma e do
sentido, que o signo se apresenta, por sua vez, como significante e como significado. O
significante não é uma sequência de sons exigida pela língua, dada a sua natureza vocal; é a
forma sonora que pertence ao signo e que condiciona e determina o significado. Assim, em
cada língua, é possível encontrar a estrutura formal dos significantes e, dessa forma, criar, na
análise do significante, um plano dos componentes formais do significante, distinto daquele
dos fonemas.
Quanto ao significado, o critério é: isto significa ou não? “‘Chapéu’ existe? Sim.
‘Chaméu’ existe? Não”. Significar é ter um sentido, nada mais.
Benveniste (1989) chega, então, a duas maneiras de ser língua no sentido e na forma:
modo semiótico, por um lado, e o modo semântico, por outro. “Tudo o que é do domínio do
semiótico (signo) tem por critério necessário e suficiente que se possa identificá-lo no interior
27
e no uso da língua” (p. 227), ou seja, como elemento intralinguístico por estar no interior do
próprio sistema. A noção de semântica (palavra/frase) insere, no domínio da língua, o
emprego e a ação, sendo a língua um instrumento de adequação do homem ao mundo; é o
modo de significação engendrado pelo discurso. Ainda, podemos mostrar a diferenciação
desses universos conceptuais (semiótico, semântico) através do critério de validade. O
semiótico (signo) deve ser reconhecido; o semântico (discurso) deve ser compreendido.
Os níveis de análise linguística, propostos por Benveniste, têm, então, como elo
integrador, o signo que, transfigurado em palavra, passa do âmbito semiótico para o
semântico e é justamente essa mutação signo/palavra que permite reforçar nossa tese de que o
estudo do signo como palavra, resultante da interface língua/discurso, permite reconhecer
aspectos inerentes à formação da língua, ainda não discutidos de forma adequada e/ou
suficiente nos estudos enunciativos da linguagem. Eis o percurso eleito em nossa análise: a
mutação signo/palavra, ou palavra/signo, como o elemento que promove a significação da
língua, reconhecível pela manifestação do sujeito no processo enunciativo.
22
Elegemos a noção de nível linguístico (Os veis de análise lingüística) atrelada à
dimensão semântica da língua (A forma e o sentido na linguagem) como essencial para
compreensão do recorte teórico a que nos propomos, a fim de descrever a língua em uso. O
signo, em sua versão palavra,
23
é o nível eleito por ocupar uma posição central e integradora
entre as dimensões de significância da língua, sendo a palavra, em nossa análise, uma
mutação do signo e não um novo vel de análise. Assim, eleita a dimensão semântica da
língua, que permite considerar o emprego que se faz dela, entendemos que é, no percurso do
signo à palavra, ou seja, é pelo ato de considerar o emprego do signo, transmutado em
palavra, que o sentido, no âmbito semântico-enunciativo, emergirá. Representamos a
imbricação dos elementos aqui discutidos na figura a seguir:
22
Em atenção à clareza, não custa explicitar: não queremos, com a reflexão acima, equiparar pari passu a noção
de signo à palavra, termo tão comum na teoria linguística. Somos conscientes do que registra Benveniste em A
forma e o sentido. Segundo ele: “Instauramos, então, sob a consideração semiótica, classes particulares que
chamamos de semióticas, ainda que um pouco grosseiramente, para melhor delimitá-las e para as especificar em
sua ordem própria: dos semio-lexemas, que são os signos lexicais livres; dos semio-categoremas que são sub-
signos classificatórios (prefixos, sufixos, etc.) que ligam classes inteiras de significantes, assegurando desta
forma grandes unidades, superiores às unidades individuais, e por fim dos semio-fonemas que não o todos os
fonemas da nomenclatura corrente, mas aqueles que, como se acabou de indicar, caracterizam a estrutura formal
do significante” (1989, p. 226). Evidentemente, Benveniste considera signo uma série de elementos que o
poderiam coincidir mesmo com uma noção ingênua de palavra. Nosso entendimento de palavra na teoria
benvenistiana será melhor explicitado adiante (cf. 1.2.1).
23
Conforme nota anterior.
28
Dimensão Semiótica Dimensão Semântica
S i g n i f i c a ç ã o
Merisma/Signo Palavra/Frase
Língua Discurso
FIGURA 1 – Elementos constitutivos das dimensões de significância da língua.
Percorremos, aqui, as bases teóricas que nos ajudam na compreensão da travessia do
semiótico para o âmbito semântico de significância da língua. Acreditamos que Émile
Benveniste, em seus artigos que tratam do léxico, e não somente neles, já adotava um modelo
de análise linguística marcado pela manifestação do sentido no uso da língua, ou seja, o
âmbito do discurso permeava suas análises. Essa hipótese será considerada no capítulo três
desta tese. Na seção a seguir, discutimos conceitos essenciais para a compreensão da
enunciação como formadora de língua.
1.2 Conceitos norteadores: a palavra e a frase
De posse das considerações sobre o signo linguístico transmutado em palavra, via
enunciação, ou seja, colocar a língua em funcionamento por um ato individual de utilização,
podemos chegar à concepção de palavra na acepção benvenistiana. Mas, para isso, é preciso
diferenciá-la do signo saussuriano, ou mesmo do léxico que preenche as categorias formais da
gramática, ou, ainda, questionar: palavra e signo são noções interdependentes? Esta seção
vem para discutir essas temáticas e promover uma resposta viável para o viés de análise aqui
proposto. A noção de frase é decorrente da noção de palavra em enunciação e também será
detalhada na sequência.
29
1.2.1 A palavra na enunciação benvenistiana
Valemo-nos da conhecida metáfora saussuriana entre uma partida de xadrez e o “jogo
da língua” a fim de evidenciarmos a reflexão que nos conduz na tarefa de diferenciar o signo
(na acepção saussuriana) da palavra (pelo viés benvenistiano).
Comungamos com Ferdinand de Saussure que a partida de xadrez é própria para
designar artificialmente o que a língua nos apresenta de forma natural. Segundo ele, o valor de
cada peça depende de sua posição no tabuleiro, assim como o valor de cada termo, na língua,
é dependente da sua oposição em relação aos outros termos, ou seja, é no âmbito
intralinguístico que o sentido se forma. Define, também, que as regras do jogo existem antes
de a partida começar e permanecem após cada jogada, o que evidencia o sistema linguístico
como constante e convencionalizado. Admite, ainda, que, embora cada jogada movimente
apenas uma peça, o lance incidirá sobre todo o jogo, isto é, o movimento sobre um dos
elementos que compõe a língua afetao sistema como um todo. A analogia saussurianista
propõe-se perfeita até a crítica, levantada pelo próprio autor, sobre o jogador de xadrez que,
segundo ele, tem a intenção de executar o deslocamento e de exercer uma ação sobre o
sistema, enquanto a língua não premedita nada” (CLG, 1974, p. 105), ou seja, as modificações
da língua não estão à mercê da vontade e/ou consciência de seus usuários, pois ela é um
sistema de signos convencionados e responde ao exercício da linguagem em sua dimensão
social. O fator intencional do jogador de xadrez não se encaixa na concepção de língua,
oriunda dos pensamentos saussurianos, no sentido de que a intencionalidade do usuário não
provoca modificações linguísticas. Podemos inferir, por fim, que é a própria partida de xadrez
que constitui o jogo de xadrez; o que permite considerar que a língua também é constituída
em seu próprio “jogo”.
Pensemos, pois, a metáfora do jogo de xadrez pelo viés semântico-enunciativo de
significância da língua, ou seja, não mais na linguística de Saussure, mas no âmbito
enunciativo de Benveniste. Por esse viés, o valor de cada peça da partida é dependente das
jogadas realizadas pelos participantes, sendo o valor resultante de cada jogada dependente da
articulação que fazemos com as outras peças do jogo. Podemos dizer, então, que o sentido
emerge de cada enunciação, marcado pela relação com os termos com os quais se articula e
que essa “jogada” é dependente do ato linguístico daquele que enuncia. Assim, insere-se, no
30
“jogo da língua”, a noção de sujeito
24
- desconsiderada pelos principais representantes do
estruturalismo saussuriano. Podemos afirmar, também, que as regras do jogo podem até pré-
existir, mas será a utilização dessas regras que fará com que o jogo aconteça, ou seja, é via
apropriação da língua por um ato individual de utilização, promovido pelo sujeito, que o
sentido será instaurado, não sendo, portanto, nem constante, nem convencionalizado, porque
suscetível à irrepetibilidade do aqui e agora. Como movimento individualizado, o ato de
enunciar é único, singular, e deve ser considerado em relação ao seu momento de realização,
ou seja, é no âmbito intralinguístico (na própria língua) que o sujeito vai se apropriar da
língua e transformá-la, de forma individual e intencionada, em discurso. Por essa perspectiva,
instala-se, portanto, um lugar para um sujeito que searticulado com o sistema estrutural da
língua.
É justamente essa presença do homem na língua que nos permite diferenciar o signo
da palavra. Conforme já evidenciamos anteriormente (cf. 1.1 e 1.2), o signo é unidade da
língua; a palavra pertence ao discurso. Benveniste (1989) afirma que “as palavras,
instrumentos de expressão semântica, são materialmente os signos do repertório semiótico”
(p. 233), ou seja, quando o signo é alçado pelo sujeito, recebe a roupagem de palavra cujo
sentido é determinado em relação ao contexto de situação e atualizado no/pelo ato de
enunciar. Assim, a palavra pode ser entendida como o termo que se atualiza via apropriação
que um sujeito faz da língua; a palavra é, pois, o signo atualizado em discurso, ocupando, em
nossa opinião, o posto de menor unidade linguística da teoria da enunciação benvenistiana. O
signo e a palavra comportam forma e sentido, porém a palavra carrega apenas uma parte da
sua significação enquanto signo as palavras restringem o sentido a noções particulares,
específicas, circunstanciais, etc. determinadas no discurso. Essa peculiaridade da palavra
manifesta-se no emprego que fazemos dela; é, pois, na sintagmação da língua, que a palavra
receberá a significação especializada que lhe foi atribuída.
24
Normand (1996) reflete sobre noções referenciais ligadas à Teoria da Enunciação benvenistiana; dentre elas a
questão do estatuto do termo sujeito da enunciação, para o qual a autora dirige considerável atenção. O interesse
de Benveniste em continuar Saussure, ultrapassando-o, leva Benveniste a, também, tratar a significação, que
no Curso esse foi um elemento fundamental, entretanto insuficientemente elaborado. Mas, como tratar a
significação? A autora responde: não desfazendo as oposições saussurianas, mas incluindo o que fora excluído –
o referente e o sujeito. A revelação de Normand (1996) de que o termo sujeito da enunciação é um sintagma
ignorado por Benveniste, pois ele não usou a expressão, embora tenha sido creditado a ele o mérito de ter
conferido, ao sujeito, um espaço nos estudos linguísticos, encaminha o leitor para a noção de significação ligada
ao âmbito semântico da língua (cf. 1.1), ou seja, um “sujeito que fala e dá (ou pensa dar) sentido” (p. 145) faz-se
presente no âmbito semântico da língua e ausente na dimensão semiótica; mas essa noção a de sujeito - é
bastante vaga e encapsuladora de elementos conceitualmente correntes em diversos lugares. Assim, a
novidade em teoria da enunciação não estaria na teorização sobre a noção de sujeito, mas na necessidade de
considerar o sujeito que enuncia, a fim de tratar, explicitamente, da significação. Flores e Teixeira (2005)
sintetizam a questão, afirmando que “a lingüística da enunciação estuda a enunciação do sujeito e não o sujeito
em si” (p. 108).
31
Ao finalizarmos esta subseção, cabe-nos, ainda, considerar sobre o termo léxico que,
por tradição, tem sido associado ao conjunto de palavras pertencentes a uma determinada
língua. Essa concepção primeira é reducionista, se vista do prisma adotado nesta tese, pois
não comporta a multiplicidade de fatores que o termo abarca. Na linguística contemporânea,
ainda no início do culo XX, Ferdinand de Saussure instala sua teoria sobre o valor
linguístico que alicerçou o que hoje se conhece como princípio de dupla articulação da
linguagem, somada a sua ideia de língua como sistema de signos. Tendo por base suas
reflexões, surgem inúmeras teorias formais estruturalistas relacionadas ao léxico. Para o autor,
o valor linguístico
25
esatrelado às diferenças na ngua e sem os signos não seria possível
distinguir duas ideias. A substância fônica, a matéria sonora fornece os significantes (imagem
acústica) que o pensamento precisa. Na verdade, o pensamento puro e simples o passa de
caos, assim como a forma sonora pura e simples é caos. A anexação desses dois elementos
elimina o caos tanto de um lado quanto de outro, compondo o signo como uma unidade, por
natureza, bilateral. Ocorre, na língua, então, a articulação entre o conceito (significado) e a
imagem acústica (significante). Essas noções saussurianas foram bastante fecundas na geração
de significativas investigações voltadas ao campo lexical. Dentre as possibilidades de
definição, léxico pode significar dicionário em seus múltiplos empregos; repertório total de
palavras existentes em uma determinada língua; conjunto de lexemas (no sentido
saussuriano), etc. É nosso propósito não adotar, em nosso estudo, uma definição de léxico a
priori, mas, sim, evidenciarmos a necessária abordagem enunciativa para a construção de uma
definição de léxico inserida nessa perspectiva.
Registramos que não adotaríamos uma concepção de léxico a priori. Nossa opção
deveu-se ao fato de acreditarmos que a diferença entre os modos semântico e semiótico de
significância da língua permitiria a organização de uma definição baseada no caráter
diferencial entre o signo e a palavra. Entendemos, assim, pertencentes ao nível semiótico as
definições conhecidas sobre o léxico, seja em termos de senso comum, ou noções
pertinentes a determinadas teorias do léxico, e elegemos, para o nível semântico, a concepção
de léxico como a palavra, resultante da sintagmação da língua transmutada em discurso,
26
dotada de significações promovidas pelo ato enunciativo, realizado pelo sujeito. Léxico, nessa
acepção, pode até contemplar a noção de dicionário, mas, para tal fim, será necessário
considerar um dicionário de empregos ou usos que fazemos em determinada língua. Léxico
25
Conforme Curso de Lingüística Geral, 1974, Capítulo IV, p. 130.
26
Inspiramo-nos, para tal suposição, nas conjecturas de Normand (1990), em Les mots en emploi, lexico et
discours.
32
pode ser, então, sinônimo de palavra ou, ainda, o conjunto de palavras em processo de
atualização pelo ato enunciativo. Dessa forma, delineamos alguns dos significados para o que
podemos chamar de léxico do discurso.
Assumimos, para este estudo, as noções de léxico e palavra pertinentes ao âmbito
semântico-enunciativo de significância da língua. Ao buscarmos uma via teórico-
metodológica para a análise da palavra, no sentido aqui assumido, encontramos, na noção de
delocutividade, que, para Benveniste, é um processo de formação léxica por meio da
realização de uma locução do discurso, uma proposta viável. No próximo capítulo, propomo-
nos a trilhar o caminho iniciado por Émile Benveniste para o que se tem denominado de
delocutividade. Por essa noção, pensamos encontrar uma via de análise da palavra e investigá-
la nos estudos do léxico apresentados nas obras PLG I e II.
Como a palavra é um termo que se realiza na frase que a integra, podendo ela mesma
constituir sozinha uma frase, urge, ainda, refletir sobre a noção de frase em enunciação
benvenistiana. Esse aspecto será considerado a seguir.
1.2.2 A frase pelo modo semântico de ser língua
Benveniste (1989) afirma: “O sentido de uma frase é sua idéia, o sentido de uma
palavra é seu emprego (sempre na acepção semântica)” (p. 231). Pensemos, pois, nas noções
imbricadas em tais palavras. Inicialmente, é preciso pensar a frase inserida na mudança de
perspectiva, proposta pelo autor, ao dividir os domínios semântico e semiótico de
significância da língua. Benveniste elege o modo semântico como o domínio da língua em
emprego e define a frase como instrumento de expressão semântica por excelência, assim, a
função comunicativa da língua, o que o locutor intenciona, a mediação do homem com o
homem e do homem com o mundo são realizadas na frase. Nas palavras de Benveniste (1989,
p. 228), “é assim que nos comunicamos: por frases, mesmo que truncadas, embrionárias,
incompletas, mas sempre por frases”, sendo, então, a frase a unidade de comunicação por
excelência, onde se estabelece a produção do discurso. Com isso, o sentido da frase é
dependente da atitude do locutor e implica que se faça referência à situação de discurso ou
seja, “o sentido da frase é a idéia que ela exprime, a referência
27
da frase é o estado de coisas
que a provoca” (p. 230).
27
Cabe observar que a referência, em enunciação benvenistiana, é ao sujeito e não ao mundo, pois, a referência
ao mundo esausente em qualquer teoria de cunho estruturalista. Conforme Flores e Teixeira (2005, p. 36), “A
concepção sistêmica de Saussure, incorporada integralmente por Benveniste, exclui qualquer relação com algo
que não seja a própria estrutura”, assim, “não há o “extra” em teorias que pressuponham o quadro estruturalista”.
33
Com relação à estrutura formal da frase, podemos dizer que é o agenciamento das
palavras e a organização sintática dessas, realizada por certo locutor, com a manifestação
circunstancial do aqui e agora, que realizam formalmente a frase. É na frase que o sentido das
palavras, ou seja, o sentido resultante do emprego dos signos, portanto das palavras no plano
das associações coletivas e o dos signos, no aspecto individual, vai ser expresso. Pelo fato
de a frase ser, a cada enunciar, um acontecimento diferente, a situação do discurso o pode
ser jamais previamente estabelecida e fixada. Ela se realiza no instante em que é proferida e
pelo agenciamento de palavras que recebem especializações e/ou restrições de significação
oriundas desse agenciamento e dispõe de uma grande variedade de maneiras de enunciar uma
mesma ideia, não importando sua extensão, mas, sim, sua expressão. O sentido na frase
emerge, então, das diferentes possibilidades de combinações. As palavras, enquanto signos,
podem jamais ter comportado determinado sentido que, na frase, assumem, ou seja, na frase
as palavras contraem valores que, enquanto signo, podem, a mesmo, serem opostos.
Benveniste (1989) ilustra esse fato com os termos “ter e perder”, “ir e vir” e “dever e receber”
que parecem logicamente opostos, no entanto, quando se coligam, incorporam valores e os
reforçam como em eu tenho perdido”, “ele vai vir” e “ele deve receber”. Dessa perspectiva,
evidencia-se o sentido da frase ligado à totalidade da idéia expressa, sendo a forma obtida
pela associação de palavras, como unidades semânticas, formadoras de enunciados, não
decorrentes de uma sequência de palavras, mas da inter-relação entre elas, promovida pelo
emprego da língua.
Pelo viés do sentido, Benveniste (1995) estabelece os níveis de análise linguística:
fonema, signo (palavra) e frase e coloca a frase como a unidade mais alta, ou seja, a unidade
superior no procedimento de análise linguística. Sua argumentação baseia-se no fato de a
frase o poder fazer parte de um outro tipo de unidade uma unidade mais alta. A
articulação dos elementos que constituem cada nível pode ocorrer no mesmo nível
(denominada distribucionais) ou entre níveis diferentes (denominada integrativas), como, por
exemplo, quando passamos do signo/palavra à frase. Daí ser a frase o limite superior, pois não
se integra em um nível mais alto e o traço distintivo do fonema (merisma) o limite inferior da
análise linguística, por não ser decomponível. O signo se mantém intermediário por
comportar constituintes e, ao mesmo tempo, funcionar como integrante.
Com isso, Benveniste (1995) coloca a frase como unidade do discurso, ou seja,
pertencente ao domínio semântico da língua e conclui com suas insubstituíveis palavras “a
frase, criação indefinida, variedade sem limite, é a própria vida da linguagem em ação” (p.
139); assim, o discurso se atualiza em frases e é o lugar onde se forma e configura a língua.
34
Cabe, aqui, registrar dois sentidos decorrentes do uso que Benveniste faz do termo
frase em seu Os níveis da análise lingüística.
Benveniste utiliza o termo frase, neste texto, em dois sentidos:
a) o primeiro, mais próximo de sua natureza sintática.
Vejamos:
A frase realiza-se em palavras mas as palavras não são simplesmente os seus
segmentos (p. 132).
Uma frase constitui um todo, que não se reduz à soma das suas partes; o sentido
inerente a esse todo é repartido entre o conjunto dos constituintes (p. 132).
O limite superior é traçado pela frase, que comporta constituintes mas que, como
adiante se mostra, não pode integrar nenhuma unidade mais alta (p. 134).
A frase só se define, portanto, pelos seus constituintes (p. 134).
b) o segundo, mais próximo de sua natureza de discurso.
Vejamos:
... a linguagem refere-se ao mundo dos objetos, ao mesmo tempo globalmente, nos
seus enunciados completos, sob forma de frases, que se relacionam com situações
concretas e específicas, e sob forma de unidades inferiores que se relacionam com
“objetos” gerais ou particulares, tomados na experiência ou forjados pela convenção
lingüística (p. 137) [grifo nosso].
Esse é o último nível que a nossa análise atinge, o da frase, de que dissemos acima
que não representava simplesmente um degrau a mais na extensão do segmento
considerado. Com a frase transpomos um limite, entramos num novo domínio (p.
137).
A isso Benveniste acrescenta:
A frase é uma unidade, na medida em que é um
segmento de discurso, e não na medida em que poderia ser distintiva com relação a outras
unidades do mesmo nível...” (p. 139).
E diz ainda: “É, porém, uma unidade completa, que traz ao mesmo tempo sentido e
referência: sentido porque é enformada de significação, e referência porque se refere a uma
determinada situação” (p. 140).
Concluindo:
Vemos nessa dupla propriedade da frase a condição que a toma analisável para o
próprio locutor, a começar pela aprendizagem que ele faz do discurso quando
aprende a falar e pelo exercício incessante da sua atividade de linguagem em todas
as situações. (p. 141) [grifo nosso]
Em outras palavras: na frase uma dupla propriedade: é um segmento (forma) com
35
sentido e referência (sentido).
Cabe, ainda, considerar o processo que promove o agenciamento dos signos,
palavras, para a composição da frase. Fato a ser discutido na subseção seguinte.
1.3 A sintagmação: por onde iremos
Do ponto de vista das relações que se estabelecem na língua, as noções de sintagma e
paradigma (relações sintagmáticas e paradigmáticas), oriundas do pensamento saussuriano,
foram bastante fecundas para definir a sintagmação benvenistiana. Por relações sintagmáticas,
entendem-se as combinações baseadas no caráter linear da língua, compreendendo desde
palavras até unidades complexas, como foi exemplificado no Curso de lingüística geral (1974,
p. 144), abrangem palavras compostas, derivadas, membros de frase e frases inteiras; já as
paradigmáticas correspondem à possibilidade de associações distintivas que os termos da
língua permitem. As séries associativas podem ocorrer tanto pela forma como pelo sentido e
não obedecem a uma ordem determinada, podendo, ainda, ser em número indefinido, embora
a característica de indefinição não se verifique sempre.
Benveniste (1989, p. 230), a fim de explicitar como as noções de forma e sentido
aparecem na perspectiva semântica da língua, profere que “o ‘sentido’ (na acepção semântica
que acabamos de caracterizar) se realiza na e por uma forma específica, aquela do sintagma,
diferentemente do semiótico que se define por uma relação de paradigma”. Ao eleger o
sintagma como o lugar onde o sentido se realiza, no modo semântico de ser língua,
Benveniste une as noções de forma e sentido, pois, para ele, “forma e sentido devem definir-
se um pelo outro e devem articular-se juntos em toda a extensão da língua” (1995, p. 135). A
noção de sintagmação insere-se nessa reflexão benvenistiana e confere ao sintagma o lugar
para que a semantização do discurso ocorra.
Na frase, as relações sintagmáticas, promovidas por um locutor, evidenciam-se, em
certa circunstância de discurso, marcada pelo tempo sempre presente. Ao Benveniste (1989,
p. 75) afirmar que a linguagem não dispõe senão de uma única expressão temporal, o
presente”, refere-se ao presente da enunciação, marcado pela coincidência entre o
acontecimento e o discurso, sempre atualizado via sintagmação. Não concebemos, pois, em
enunciação, algum tempo exterior à linguagem ou eventualmente realizado em termos de
temporalidade, que o tempo do discurso funciona como um fator de intersubjetividade,
remetendo à questão comunicacional da língua. Nas palavras de Benveniste, “depois da
enunciação, a língua é efetuada em uma instância do discurso, que emana de um locutor,
36
forma sonora que atinge um ouvinte e que suscita uma outra enunciação de retorno” (p. 83-
84), o que evidencia a universalidade da condição comunicacional e remete ao tempo presente
de funcionamento da linguagem, que será sempre atualizado no discurso via sintagmação.
Cabe, por fim, observar que “a idéia encontra forma num agenciamento
sintagmático, esta é uma condição primeira, inerente à linguagem” (BENVENISTE, 1989, p.
230). Portanto, as palavras assumem valores que em si o possuíam e que, no processo de
sintagmação, são promovidos; em termos benvenistianos, “tudo é dominado pela condição do
sintagma” (1989, p. 230), sendo, então, na sintagmação que ocorre a própria conversão da
língua em discurso. A seguir, registramos o mecanismo que formaliza o processo de
sintagmação.
1.3.1 Um aparelho para os desdobramentos da língua em discurso
A fim de abordar os fenômenos da ngua em uso (no discurso), Benveniste propõe,
em 1970, O aparelho formal da enunciação, definindo a enunciação como “este colocar em
funcionamento a língua por um ato individual de utilização” (p. 82). A enunciação é, pois, o
próprio ato de produzir o enunciado, sendo este o enunciado o produto da enunciação. A
proposta de 1970 vem para estabelecer um dispositivo passível de ser aplicado a todas as
línguas e capaz de dar conta do sentido no âmbito semântico da língua. Restaura a proposta
benvenistiana de ultrapassar a linguística da língua; de ir além do estudo da língua como
sistema combinatório, para instaurar, na análise do emprego da língua, significações oriundas
dessa nova dimensão de significância da língua trata-se do estabelecimento da enunciação
como objeto de estudo: fenômeno tão banal que parece se confundir com a própria língua,
tão necessário que nos passa desapercebido” (BENVENISTE, 1989, p. 82).
Estabelecem-se, assim, passos para a abordagem da enunciação: o próprio ato
(individual) de enunciação, as situações em que o ato se realiza e os instrumentos de sua
realização.
Ao enunciar, um locutor apropria-se da língua e a converte em discurso. É pela
enunciação, então, que a língua é convertida em discurso, sendo o locutor condição necessária
para a realização do ato, pois, sem ele, a língua continua sendo apenas possibilidade. Com o
ato de enunciar, o locutor transfigura a língua em discurso e postula um alocutário, criando,
assim, uma rede de relações na qual uma enunciação suscita outra de retorno. Sendo um
processo de apropriação da língua, via ato individual de um locutor, a enunciação explícita ou
implicitamente é uma alocução, na medida em que implanta, sempre, um alocutário no ato de
37
sua realização. Na enunciação, acrescenta Benveniste (1989), a “língua se acha empregada
para a expressão de uma certa relação com o mundo” (p. 84). Referência essa que passa a ser
entendida como uma forma de o locutor referir e de o alocutário correferir pelo discurso. A
referência, encerra o autor, é parte integrante da enunciação, o que permite entender que ela se
cria e se estabelece pela enunciação, portanto, não referência ao mundo na teoria
benvenistiana a referência é à enunciação que inclui as categorias de pessoa (eu/tu), tempo
(agora) e espaço (aqui).
A enunciação comporta, portanto, no próprio ato de enunciar, locutor e alocutário;
somadas à categoria de pessoa, encontram-se, sempre, as categorias de tempo e espaço, pois a
situação em que o ato se realiza e o tempo de sua realização refletem sentidos promovidos
pelo locutor que, ao se apropriar da língua, produz sempre um uso novo e irrepetível. Dessa
forma, Benveniste esboçou um quadro formal para análise do emprego da língua,
estabelecendo, como centro da enunciação, o “EU” sujeito que mobiliza o sistema e o
converte em discurso. Nesses termos, entendemos por sintagmação o processo de
agenciamento de palavras, promovido pelo sujeito, quando este se apropria da língua e a
converte em discurso, sendo, então, a sintagmação um processo pertencente à instância do
discurso.
Ao encerrar as reflexões dessa seção, retomemos, ainda, a palavra e pensemos nela
como sendo o signo em sua maioridade, pelo fato de a palavra pertencer a uma outra
dimensão de significância da língua a do discurso. Por essa perspectiva, a palavra, como
unidade do discurso, mantém sua existência dependente do signo e especializa-se no uso que
se faz dela. Esse processo de flutuação signo/palavra é vital para a língua - a mantém viva, e
estabelece possibilidades de usos dos fenômenos linguísticos que passam a fazer parte do
sistema. A relação entre o signo e a palavra se realiza na frase, formalizada pelo processo de
agenciamento de palavras, denominado sintagmação. Podemos, ainda, estabelecer uma via de
mão dupla ao pensar na flutuação palavra/signo, ou seja, a palavra como sendo criadora de
signo. Questionemo-nos, então, é possível que a palavra, como unidade mínima da teoria da
enunciação benvenistiana, permita produzir língua? Esse percurso palavra/signo
enunciação/língua - inserido no modo semântico de ser da língua na concepção enunciativa
de Émile Benveniste será discutido no capítulo dois desta tese.
2 DELOCUTIVIDADE: DA EUCIAÇÃO PARA A LÍGUA
Registramos, no capítulo anterior, que a noção de delocutividade, proposta por Émile
Benveniste, possibilita, a nosso ver, meios para a análise da palavra no âmbito semântico-
enunciativo ao qual nos filiamos. No capítulo que ora iniciamos, estruturado em quatro
seções, consideramos a acepção benvenistiana sobre a noção de delocutividade e, a partir
disso, definimos uma abordagem teórico-metodológica para a análise linguística promotora de
língua via enunciação. Na seleção deste referencial, partimos, naturalmente, do artigo
benvenistiano, de 1958, fundador da noção (cf. 2.1) e apresentamos as principais críticas
dirigidas a essa proposição de Émile Benveniste (cf. 2.1.1). Na aplicação ao português
brasileiro (cf. 2.2), Rodolfo Ilari (1986, 2002) e Flores e Silva (2006) propõem estudos
referenciais pontuados na sequência deste estudo. Na seção três deste capítulo (cf. 2.3),
explicitamos a articulação entre os fundamentos da teoria da enunciação e a delocutividade
benvenistiana o que comporta uma discussão sobre as dimensões semiótica e semântica da
língua (cf. 2.3.1) retomamos as noções de forma e sentido pelo mecanismo da
delocutividade (cf. 2.3.2) e reconhecemos a abrangência da noção delocutiva na Teoria da
Enunciação benvenistiana (cf. 2.3.3). Por fim, na seção que finaliza este capítulo (cf. 2.4),
explicamos como e por que a delocutividade é um mecanismo do discurso de renovação da
língua.
A título de lembrança, vale destacar que este capítulo atende ao propósito geral que
temos de, por um lado, apresentar o modelo benvenistiano da delocutividade como sendo
generalizável de forma a explicar e descrever os efeitos da enunciação no processo de
renovação da língua e, por outro lado, de reunir elementos que permitam avaliar as
potencialidades da noção de delocutividade para o campo dos estudos enunciativo, o que pode
ser melhor traduzido nos três princípios apresentados na Introdução.
39
2.1 A delocutividade proposta por Benveniste
A noção de delocutividade foi registrada, em 1958, por Émile Benveniste, no texto
intitulado Os verbos delocutivos. A propriedade com que o autor propôs sua conceituação
deu-lhe não o crédito de fundador da noção de derivação delocutiva,
28
mas também a
inserção de sua proposta em análises críticas e aprofundamentos de sua iniciativa.
No texto fundador, Benveniste propõe um processo de formação lexical por meio de
uma locução, ou seja, o autor define um tipo de verbo - os delocutivos - que se caracterizam
por derivarem de uma locução (enunciação), ao contrário dos denominativos que derivam de
um nome e dos deverbativos originários de verbos. Para a ilustração de sua proposta, utiliza
verbos de línguas clássicas e modernas, o que, segundo ele, não foi feito para delimitar
famílias de língua, mas para revelar similaridades nas criações morfológicas.
Sua discussão inicia com o termo latino salutare (saudar) em relação à salus
(nominativo), salutis (genitivo) - (saúde). O termo derivado salutare é oriundo da saudação
salus! e não do vocábulo salus, afirma Benveniste. Sua justificativa está baseada no fato de o
salus – base de salutare estar marcado pela relação dizer e não pelo fato de fazer a
saudação. Temos, assim, salutare não originário de um signo nominal, mas de uma locução
do discurso. Tal constatação leva Benveniste a evidenciar, através de outros verbos, que o
valor do signo linguístico pode não transparecer todos os elementos formadores na língua,
sendo necessário o resgate da atualização da língua, a fim de que, no discurso, se revele o
processo que deu origem aos termos – em Benveniste, os verbos denominados delocutivos.
O autor analisa, então, saluere (salvar) da mesma família etimológica de salutare.
Ao se considerar apenas as relações morfológicas, do adjetivo saluus (salvo), derivaram-se
saluare (tornar salvo, salvar) e saluere (salvar); entretanto, Benveniste confere à saluare a
derivação denominativa (de saluus) e à saluere a origem delocutiva da saudação salue!
(salve!). Segundo Benveniste, o emprego de saluere limita-se a sua forma infinitiva, como,
por exemplo, em iubeo te saluere (desejo-te um bom dia). Considera, por isso, saluere a
conversão de salue! a forma sintática indireta, tornando-se saluere um delocutivo em seu
aspecto funcional.
Numa outra modalidade, o autor propõe o verbo ualere (ter força, ser eficaz). Um
emprego desse verbo define que os termos podem ter parte de suas formas delocutivas, não
28
Fruyt (1997), assim como a maioria dos linguistas, credita a Émile Benveniste a noção de delocutividade;
entretanto, assinala que esse fenômeno já tinha sido reconhecido, em 1917, por A. Debrunner. Segundo a autora,
o mérito de Benveniste estaria no fato de sua abordagem ter estabelecido o mecanismo de realização desse
fenômeno na língua. Em nossa leitura, o mérito se traduz como: o uso cria estruturas da língua.
40
sendo necessariamente a derivação o elemento definidor da delocutividade e, sim, o sentido e
a construção. O emprego de ualere que evoca uale! (passe bem!), em te iubeo valere (te
ordeno passar bem), confere a ualere, nessa expressão, uma função delocutiva, por ser uale!
(Passe bem!) derivado sintaticamente de ualere. Benveniste reforça sua teoria com o infinitivo
grego Khaírein, em seu uso Khaírein tini légein (enviar a saudação a alguém). Esse emprego
apresenta a forma delocutiva do verbo, que transparece o imperativo Khaîre! (salve!). Para
o autor, a criação de um delocutivo origina-se da necessidade de uso em determinadas
culturas.
Ainda, como exemplos de delocutividade na língua latina, os termos negare (negar),
autumare (afirmar), quiritare (gritar por socorro) e parentare (celebrar funerais) são citados.
Os dois primeiros oriundos de nec (nem) e autem (mas, porém etc.), respectivamente, em suas
funções discursivas, pois como partículas, em suas funções normais (lógicas), não permitiriam
a derivação de verbos. Casos como o inglês to hail (“gritar hail!”), to encore (“gritar
encore!”), to okey, to yes, em francês bisser (“gritar bis!”), no antigo alto alemão o verbo
aberen (repetir) - tirado de aber, no francês tutoyer e vouvoyer (dizer tu, vós) também
ilustram o fato de se ter como condição para a construção de um delocutivo que tenha por
base uma partícula, o emprego dessa partícula em função discursiva. Quanto à quiritare, o
autor o define como delocutivo por ser o apelo de socorro a base de sua formação e parentare,
por significar a própria pronúncia da fórmula parens, salue! (Eu te saúdo, pai!), que, reduzida
a parens, originou o verbo parentare, típico delocutivo.
Da língua francesa, salut/saluer (saudação/saudar) e merci/remercier
(obrigado/agradecer) são vocábulos, usados por Benveniste, para reforçar o percurso de
locução a delocutivo. Análogos à situação do francês, encontram-se, no inglês, o verbo to
thanks, do substantivo thank(s)!, e no alemão, o verbo danken, do substantivo dank!. O autor
salienta a não obrigatoriedade da criação do verbo agradecer a partir da locução obrigada!,
pois poderia haver expressões distintas, como ocorre em russo com o termo blagodarit para
agradecer e spasibo! para obrigado.
Benveniste registra, com a diversidade de seus exemplos, que a delocutividade é um
processo de formação frequente, atrelado à cultura das diversas sociedades, podendo resultar
de criações independentes ou de ões de uma língua sobre outra (diacronia). Afirma, ainda,
que a relação locução/delocutivo deve ser proposta sincronicamente, sem necessidade de
alusão ao processo histórico percorrido para formação das línguas. No entanto, na busca pela
história da língua, por vezes se encontra a explicação para determinados processos de
formação delocutiva. Esse é o caso do adjetivo gótico hails (são) que, em um de seus
41
empregos, permite a saudação Salve!; porém, o verbo derivado hailjan é empregado apenas
como curar, o sendo empregado como o delocutivo saudar, do que o registro de
existência. No germânico mais recente, aparece o verbo delocutivo “to hail” (saudar) que é
delocutivo. A relação entre os termos eslavo celu (adj)/celovati (verbo) é explicada como uma
reprodução do modelo dos termos latinos saluus/salutare, pois não há, em eslavo, uma
expressão para identificar a locução salue! que é determinante para a definição de um
delocutivo. Tem-se, assim, no primeiro caso citado, um delocutivo cujo emprego formular
saudação - é identificado na trajetória histórica da formação da língua germânica. No
segundo, a delocutividade não se estabelece, pois a forma de base não é passível de ser uma
locução em eslavo. Ainda, o armênio druaten (saudar, louvar) é citado como exemplo de uma
derivação autônoma que se criou no próprio armênio, pois a possibilidade de o termo ser
originário do irânico não se comprova.
Cremos que o caso do adjetivo gótico hail, a análise dos termos eslavos celu/celovati e
do armênio druatem examinam a reprodução de modelos de uma língua em outra, mas não
conferem à delocutividade a possibilidade de análise diacrônica de sua existência. O modelo
explicativo da formação de um uso delocutivo pode ser diacrônico, mas é, na sincronia, que se
estabelece o emprego delocutivo na língua.
O autor parte, então, para a situação de dar as boas-vindas, o que implica modelos
lexicais comuns. Para explicitar as diferenças de comportamento na trajetória do termo
bem-vindo –, esboça-o em três línguas: no alemão (wilkommen), no inglês (welcome) e no
francês (bienvenu). No alemão, o termo assumiu o sentido de hospitalidade e criou-se a
locução wilkommen (dar as boas vindas); no inglês, criou-se um delocutivo no verbo to
welcome e, no francês, não se criou o delocutivo bienvenir (que equivaleria a to welcome),
entretanto criou-se o infinitivo bienvenir.
29
Com essa alusão, evidencia-se que cada sistema
linguístico elege o emprego de seus termos e, como consequência, tem-se a variada trajetória
de cada língua.
O vocábulo latino benedicere (abençoar), por incluir dicere em sua base, leva o autor a
suspeitar sobre a possibilidade de formação delocutiva do termo. No entanto, os apontamentos
sobre os empregos do termo não encaminham para uma evidência delocutiva em sua
formação. Na descrição dos pontos mais evidentes sobre a trajetória do termo, Benveniste
registra, inicialmente, que o emprego de bene dice, em “quid si sors aliter quam uoles
euenerit? Bene dice! “e se a sorte sair diferente do que queres? - (lit) Dize palavras de bom
29
É uma exceção, limitada a essa construção.
42
agouro!””, não comprova a criação do verbo benedicere. Em segundo lugar, registra que bene
dicere não significa desejar o bem – conforme acredita o senso comum. Em terceiro, na língua
clássica, por concepção literária, tem-se o sentido de louvar, fazer o elogio de alguém. Por
fim, benedicere, como signo único, assume o valor judeu-cristão de abençoar.
Para finalizar a demonstração desse novo tipo de derivação verbal, Benveniste alerta
para possíveis dificuldades na identificação de um verbo delocutivo, a saber, os verbos
derivados de interjeições e os chamados verbos de desejos, pela gramática tradicional, não
podem ser confundidos com os de formação delocutiva.
Para a primeira dificuldade, elege o significante como o elemento identificador de um
delocutivo, pois, nas palavras de Benveniste, “um delocutivo tem sempre como radical um
significante” (p. 314). Os verbos que se constroem sobre simples onomatopeias, como, por
exemplo, claquer, em francês (estalar o chicote), ficam excluídos dessa possibilidade.
Entretanto, nada impede que uma interjeição, no discurso, motive uma formação delocutiva,
desde que tenha como radical um significante. Quanto à possível confusão entre os
delocutivos e os verbos de desejo, para Benveniste, é preciso considerar o delocutivo não pelo
conteúdo intencional, mas “pela relação formal entre uma locução e um verbo que denota o
enunciado dessa locução” (p. 315). Souhaiter (desejar), verbo tipicamente de desejo, é
comparado ao verbo saluer (saudar), tipicamente delocutivo. Souhait (desejo) não é uma
fórmula de desejo, é simplesmente um substantivo, enquanto salut (saúde), sob a forma de
locução, vai além de um substantivo e assume características que permitem identificar a
origem do verbo saluer do emprego de salut como locução remissiva ao ato enunciativo.
43
QUADRO 1 – Inventário dos registros benvenistianos.
Verbos
Salutare
(saudar)
Saluere
(salvar)
Ualere
(ter força, ser
eficaz)
Khaírein
(salvar)
egare
(negar)
Automare
(afirmar)
Quiritare
(gritar por
socorro)
Formação
Delocutiva
Derivação da
locução
Salus!
Forma sintática
indireta: salue!
Aspecto
funcional.
Uma parte de
suas formas
determinada
pelo sentido e a
construção.
Nec (nem) e autem
(mas, porém) não
como partículas,
mas como
elementos formais
do discurso.
O termo base é
o apelo
(socorro!) e
não o nome
(socorro).
Verbos
Saluer (saudar)
e remercier
(agradecer)
To tanks e
Danken
(agradecer)
Druatem
(saudar, louvar,
aclamar)
To hail
(saudar)
Parentare
(celebrar
funerais)
Formação
Delocutiva
Derivação das
locuções
salut! e merci!,
respectivamente.
Derivado das
locuções
thank(s)!
e Dank!,
respectivamente.
Derivado da
locução druat!
Derivado de
locução
hail!
O termo deriva
da pronúncia
da forma
reduzida
parens!
A fim de explicitar sua proposta, Benveniste utilizou verbos do francês oriundos do
latim, do alemão, do inglês, do eslavo e do armênio, o que possibilita dizer que sua base
explicativa está marcada pela generalidade (universalidade) do fenômeno linguístico
delocutivo, já que expande para algumas línguas a exemplificação proposta. Ao mesmo
tempo, Benveniste não contempla formações delocutivas além da classe dos verbos, criando-
se, assim, a possibilidade investigativa das formas delocutivas inerentes das demais entidades
lexicais que compõem uma língua.
Fica evidente que, para o autor, a delocutividade define-se com uma base nominal na
relação “dizer”, e não na relação “fazer” própria do denominativo; deriva não de um signo
da língua e, sim, de uma locução do discurso, sendo, portanto, o colocar a língua em
funcionamento um fator definidor da formação lexical de uma língua. É preciso, então,
considerar a enunciação como formadora de elementos da língua. A partir dessa proposta
benvenistiana, a produtividade lexical passa a estar atrelada a uma atividade do discurso.
30
30
Na seção 2.4, deste capítulo, explicitamos esta afirmativa.
44
2.1.1 Críticas à delocutividade benvenistiana
Após a proposta benvenistiana de formação de verbos por meio de uma locução os
verbos delocutivos, surgiram interpretações
31
que objetivaram questionar e/ou reformular a
proposta fundadora. Neste espaço, propomo-nos examinar aspectos que, em nossa percepção,
receberam maior preocupação na literatura sobre o assunto e são passíveis de discussão mais
detalhada:
a) a suposta confusão entre sincronia e diacronia;
b) a facilidade em diferenciar verbos oriundos de interjeições de verbos delocutivos;
c) a limitação do termo delocutividade a verbos e, ainda;
d) a ambígua interpretação sobre o ato de dizer.
a) Sincronia versus diacronia
Não pensamos em nada mais apropriado do que referir, inicialmente, as palavras de
Benveniste (1995), sobre o fato de a delocutividade ser uma atividade marcada pela sincronia;
a delocutividade, para o autor trata-se de “...uma relação que se deve propor
sincronicamente, sem consideração da descendência histórica...” (p. 310), isto é, a relação
entre a locução (palavra) e o delocutivo (signo) é um acontecimento marcado pela sincronia
dos componentes envolvidos no processo de transitividade. Vejamos, entretanto, propostas
que alçaram a diacronia no intuito de descrever uma formação delocutiva.
Ilari (2002)
32
cita uma busca pelo “sentido original” do vocábulo, a fim de situar o
delocutivo como um elemento da língua, oriundo de uma locução do discurso. Promove,
então, uma garimpagem pela formação diacrônica dos termos, a fim de elucidar a trajetória
formativa do sentido desses termos, marcada pela relação dizer típica de um delocutivo.
Entendemos ser viável a proposta do autor, na medida em que o “dizer”, na constituição do
delocutivo, é resgatado por meio dessa volta às origens. Entretanto, seguimos por outra
perspectiva. Por nosso viés de análise, não motivos para transitar nesse percurso
diacrônico, pois é da natureza de um delocutivo ser marcado pelo dizer, portanto, não
necessidade de alusão ao historicismo na formação das unidades da língua - essa (a relação
“dizer”) seria a condição básica para realização delocutiva da língua. A diacronia pode servir,
31
Em anexo A, apresentamos um índice cronológico das principais publicações sobre a noção de delocutividade.
Das publicações encontradas, em sua maioria artigos, registramos os textos que traziam discussões mais
detalhadas sobre a noção delocutiva, ou seja, que se afastavam de simples aplicações da teoria.
32
Na seção 2.2, promovemos uma discussão sobre a aplicação da noção delocutiva à ngua portuguesa. Nela
insere-se a proposta de Ilari (2002) e evidencia-se o recorte do autor.
45
então, como suporte explicativo para o que denominamos de delocutividade em sentido
stricto
33
- o que não anula a proposta do autor, apenas revela uma das possibilidades de
entendimento da noção delocutiva.
Por um outro viés de entendimento, segue Fruyt (1997). A autora concebe a questão da
diacronia e sincronia, considerando a existência dos dois processos na análise do fenômeno da
delocutividade. Propõe entendermos a diacronia como um fenômeno ligado à origem
morfológica dos termos, assim, bisser (francês) é construído sobre bis! e negare (latim) sobre
neg. A sincronia estaria no estabelecimento da associação de um verbo a uma sequência do
discurso, como o francês salut! cujo verbo saudar seria originário de ... dizer salut!.
Entendemos que o processo diacrônico pode, sim, ser desencadeador de explicações sobre a
trajetória dos termos, que evidencia a trajetória histórica percorrida para constituição do
sentido, mas não confere estatuto de delocutivo a um determinado uso. Consideramos
evidente a necessidade de processo sincrônico, marcado pela relação “dizer”, para a definição
e o estabelecimento do fenômeno delocutivo na acepção a que nos propomos.
Embora esse ponto na descrição da análise de um delocutivo seja reavaliado por
estudiosos como Fruyt (1997) e Ilari (2002), mantivemo-nos fiéis à proposta original sobre a
delocutividade ser uma atividade do discurso formadora de elementos da língua, cuja
descrição deve ser considerada na sincronia dos elementos envolvidos no processo de
transitividade discurso/língua. Nossa decisão firma-se no fato de entendermos a descrição
diacrônica, no processo delocutivo, como viável para explicações de constituição de sentidos,
por isso de natureza explicativo-evolutiva, entretanto essa descrição não é condição para
definição e/ou estabelecimento de um delocutivo na acepção benvenistiana à qual nos
filiamos.
b) Interjeições, onomatopeias e delocutivos
Ao propor a noção delocutiva, Benveniste (1995) considera ser o significante o radical
do elemento delocutivo e, com isso, afasta construções onomatopaicas e interjeições que o
comportem uma base significante. Essa exclusão de onomatopeias e de interjeições, como
bases desencadeadoras de delocutividade, é questionada por Fruyt (1997). A autora considera
que não há uma fronteira bem definida entre essas categorias e os lexemas prototípicos
centrais no léxico e que todos esses casos (incluindo os lexemas atípicos) podem servir de
base para derivados delocutivos, assim como serviram de base para formações de
33
Na seção 2.3.2, relatamos essa acepção.
46
substantivos, adjetivos e verbos, perfeitamente integrados em determinadas línguas. Cremos
na possibilidade levantada pela autora, mas com lembrança e ressalva de que, conforme
Benveniste, é preciso um significante que sirva de base para um delocutivo, mesmo que esse
significante seja de uma onomatopéia ou interjeição.
Sobre as onomatopeias, Rey-Debove (1975), ao considerá-las, explica a possível
confusão que poderia se originar entre “tutoyer” e os casos de “claquer”, “huer”,
“chuchoter”
34
construídos sobre onomatopeias o radical de tutoyer” é um signo
linguístico (tu) que comporta um significante, enquanto que “claquer” é construído sobre uma
onomatopeia cujo significante é um ruído. A semelhança entre tu (autônomo) e “clac” não se
pelo tipo de significante, mas pelo tipo de significado em que se manifesta a reflexividade.
A onomatopeia manifesta reflexividade na face presente do signo de fato clac” significa o
barulho “clac” e a palavra autônoma manifesta reflexividade nas duas faces do signo: na
presente e na ausente. Rey-Debove (1975) afirma que, por isso, a onomatopeia permite a
compreensão ainda que desconhecida do interlocutor, sendo que a palavra autônoma será
compreendida somente se o interlocutor conhecer o signo. Quando houver um signo
desconhecido ou ainda um neologismo, a compreensão se limita ao significado do
significante, ou seja, ignora-se o significado, apenas retém-se o significante como o
representante do sentido.
Segundo a autora, isso não acontece com as onomatopeias, que essas eliminam
completamente o conteúdo linguístico como face ausente do signo. Assim, tanto a
onomatopeia quanto a palavra autônoma se assemelham pela presença do significante, do
significado e, por conseguinte, enquadram-se na proposta de delocutividade benvenistiana por
possuírem um significante como base, embora, para a autora, não se sustente a oposição
terminológica delocutivo/denominativo, pois considera os delocutivos “denominativos
autonímicos”,
35
ou seja, enquadra-os como denominativos, uma vez que a base de todos seria
um nome; isso por entender ser a autonímia de base o único critério que define, efetivamente,
um delocutivo benvenistiano.
Consideramos o viés de análise de Rey-Debove (1975) e cremos na viabilidade da
proposta na medida em que estabelece um único critério a autonímia de base para dar
conta do fenômeno da delocutividade. Entretanto, não nos associamos a essa proposta por
entendermos ser possível a derivação delocutiva como elemento oriundo de locução. A
34
Não achamos pertinente traduzir esses termos quer por haver alteração do significado, quer por não haver uma
tradução adequada. O mesmo procedimento foi adotado para com os demais exemplos onomatopaicos citados
nesta seção.
35
Tradução de nossa autoria.
47
proposta da autora elimina essa possibilidade, porém.
Sobre a facilidade, citada por Benveniste (1995), em diferenciar um delocutivo de
construções sobre simples onomatopeias, também Anscombre (1985) faz sua crítica. Para ele,
essa facilidade de distinção é apenas aparente e repousa sobre o fato de Benveniste confundir
forma e função.
O autor adverte que uma forma onomatopaica pode ter uma função
onomatopaica, mas pode ir além dela e também comportar função significante, conforme
ilustra com os termos “tic-tac”, “toc”, ric-rac e “Ouf!”
36
e, assim, em termos
benvenistianos, “ser uma interjeição no discurso, mas sem cessar de ser
significante” (p. 314).
Diante disso, a palavra morfologicamente derivada de uma forma onomatopaica, pode ser
alçada sobre a função onomatopaica do radical, mas também pode estar alicerçada sobre um
significante. Dessa dupla possibilidade provém uma ambiguidade semântica a ser
considerada.
A fim de clarear um pouco a questão expressiva ligada às onomatopeias e dar conta
dessa ambiguidade, Anscombre (1985) propõe a existência de ciclos de funções cuja trajetória
pode ser de “lexème-onomatopée-lexème”.
37
Inicialmente, o lexema serviria para representar
um barulho ou acontecimento, sem forma necessariamente onomatopaica; sofre
transformações morfológicas de modo que a forma acentue o seu caráter expressivo. Afasta-
se, então, da forma original para adaptar-se aos esquemas expressivos em vigor ou sentidos
próprios da língua e da época em questão. Em sincronia, a origem lexical da expressão
passa para opacidade, de forma que, seja por deslizamento semântico ou por uso linguístico, a
relação entre aspecto lexical e expressivo atenua-se e pode chegar ao ponto de desaparecer,
tornando-se, então, opaco o lado onomatopaico
da expressão.
Anscombre (1985) discute a função onomatopaica do exemplo to boo (ingl. vaiar),
que, citado por Benveniste (1995), seria um verbo não delocutivo por ser constituído sobre
simples onomatopeia. Esse verbo, originalmente, parece ser construído sobre um radical
onomatopaico – boo!, embora a função onomatopaica tenha, na atualidade, praticamente
desaparecido; assim, na descrição sincrônica, o verbo não se justifica como derivado de
onomatopeia e, pela descrição diacrônica, não se explica por não comportar o significado de
fazer certo barulho representado pela onomatopeia Boo!.
Por uma segunda possibilidade explicativa, to boo é semanticamente mais próximo de
Boo! em função significante que em função onomatopaica, porque a função onomatopaica de
36
Em alguns usos, pode ocorrer que a forma onomatopaica perca totalmente sua função onomatopaica e
comporte apenas função significante.
37
O ciclo de funções pode comportar, ainda, a trajetória “onomatopée-lexème-onomatopée”.
48
Boo! foi, aos poucos, substituída pela função significante, cujo significado é fazer um ato
específico que pode ser realizado com a interjeição Boo! Dessa forma, tanto to boo (verbo)
quanto A boo (substantivo) são delocutivos sincrônicos de Boo!, assim como bisser e um bis
são de Bis!, pois o construídos sobre base significante, conforme a determinação
benvenistiana. Anscombre (1985) aponta, ainda, que a interjeição aparece anterior ao verbo e
ao substantivo (questão diacrônica) e que Boo!, como representação inicial do grito de uma
vaca, teria por formação o seguinte processo: a) o grito da vaca; b) imitação do grito da vaca
para assustar; c) assustar para fazer partir; d) vontade de fazer partir como índice de
reprovação; e) expressão de desaprovação.
Com esses exemplos e explicações, registra a conveniência em haver um
questionamento sobre o lugar sincrônico e o processo diacrônico originário de cada verbo cuja
raiz seja onomatopaica. Esses procedimentos serviriam para definir se um simples deslize
semântico de um verbo com origem onomatopaica, ou se uma autêntica delocutividade a
partir de uma locução significante, embora de origem onomatopaica.
Segundo o autor,
38
é um delocutivo de M¹ se M² for morfologicamente derivado de
e se o sentido de M² for compreendido ao resgatar o ato de linguagem realizado em certas
enunciações de M¹. Com base nessa definição e considerando a noção de ciclo inicialmente
proposta, o autor justifica o caráter delocutivo de algumas onomatopeias e interjeições.
Consideramos viável observar a forma e a(s) função(ões) de onomatopeias e
interjeições, a fim de definirmos se há, ou não, função significante a ser resgatada pela
observação dos ciclos pertinentes. Entretanto, não abdicamos da proposição benvenistiana
sobre a necessidade de o significante estar presente na face do signo e servir-lhe de radical
para que o delocutivo se estabeleça e que, embora interpretações, como a de Anscombre,
possam ser viáveis, elas não anulam a proposta inicial, ou seja, a manutenção do pensamento
benvenistiano mantém-se Um delocutivo tem sempre como radical um significante
(BENVENISTE, 1995, p. 314).
c) Delocutivos, verbos e classes de palavras
Emile Benveniste, em seu artigo-base sobre delocutividade, havia tratado apenas da
categoria verbos, porém, segundo alguns estudiosos, a noção delocutiva é passível de ser
estendida para as outras categorias gramaticais, ou mesmo, à língua toda, conforme nos
propusemos.
38
M representa um lexema simples ou complexo; F, uma forma linguística e S o sentido. Anscombre (1985)
utiliza essas representações para facilitar a compreensão de fenômenos linguísticos (sincrônicos e diacrônicos).
49
Acompanhamos o pensamento de Fruyt (1997), segundo o qual, a proposta de
Benveniste (1958) não restringe a noção delocutiva à classe dos verbos. Embora o autor tenha
exposto a categoria verbal ao explicitar a noção original, é possível situar o conceito de
delocutividade como uma concepção linguística maior, o reduzida à aplicação aos verbos.
Conforme a autora, é preciso considerar a possibilidade de existência delocutiva como um
fenômeno geral
39
e o apenas como um fenômeno restrito à categoria dos verbos. Fruyt
(1997) confere tanto a substantivos
40
quanto a adjetivos (em número menor) a possibilidade
de comportarem natureza delocutiva.
Acrescenta que, ao considerar a delocutividade em sentido amplo, não é fácil
encontrar o delocutivo perfeito, ou seja, aquele que responde a todos os critérios do núcleo
prototípico.
41
Crê ser útil a descrição desse fenômeno para o linguista, porém lamenta que
Benveniste tenha escolhido termos latinos para ilustrar a proposta, por considerá-los pouco
produtivos naquela língua. Ainda, salienta que, na prática, pode ser possível observar, como
ponto comum a todos os delocutivos, o fato de o delocutivo ser construído morfologicamente
sobre a sequência de discurso.
Entendemos que Benveniste considerava as possibilidades de uso dos termos (verbos)
39
Outros teóricos fizeram essa mesma proposição e evidenciaram, por meio de aplicações da noção, a
possibilidade de a noção delocutiva ser extensiva a outras categorias gramaticais. Ducrot (1988) exemplifica a
derivação delocutiva com verbos (esp. pordiosear), substantivos (fr. matuvu), adjetivos (port. puto da vida),
advérbios (fr. diablement) e interjeições (fr. Diable!). Em todos os casos, o recurso à delocutividade pode
explicar e justificar a possibilidade de criar significados novos aos termos. Isso porque a entidade linguística,
inserida na enunciação, tem um valor semântico diferenciado e a delocutividade permite que o valor enunciativo
seja agregado à entidade linguística e construa um novo significado. A noção delocutiva, para o autor, revela
como fabricamos, para as palavras, valores semânticos ligados ao ato enunciativo; com a delocutividade é
possível explicar a possibilidade de criar significados novos advindos da enunciação, isto é, a noção delocutiva
explicita a criatividade semântica da língua. Rey-Debove (1975) registra que o fenômeno delocutivo pode ser,
também, extensivo à formação de nomes e adjetivos; entretanto, a delocutividade, para ela, é apenas um caso
particular de derivação geral sobre base autônoma o que entendemos ser uma interpretação que dissolve a
possibilidade proposta por Émile Benveniste de a locução ser a origem de formações léxicas. Na ngua
portuguesa, Ilari (2002) comprova a existência de formações de nomes delocutivos na língua portuguesa; fato
apontado na seção 2.2 deste capítulo. Darms (1980), ao discutir problemas sobre a formação delocutiva das
palavras, defende que nomes também podem derivar de locuções. Comprova sua tese com exemplos como
nastica (sânscrito, incrédulo), nome oriundo da junção de na e asti (não é, não existe), cujo significado parte do
dizer “aquilo não existe”. O autor salienta que os exemplos citados por ele, embora pouco numerosos, provam
que também os nomes podem derivar de locuções do discurso, sendo ainda possível encontrar outros exemplos
ao se dedicar maior atenção a este tipo especial de formação nominal fato que, segundo Darms, carece de
maior atenção.
40
Para ilustrar o delocutivo substantivo, Fruyt (1997, p. 67) cita o enunciado Ce “Bonjour!” m’a paru bien
cavalier” e le “oui” de la mariée était timide”, pronunciados por uma terceira pessoa. A autora traz, ainda, os
termos “un adieu”, “un au revoir”, evidenciando, ao lado de enunciados completos, termos que comportam a
mesma propriedade delocutiva. A fim de caracterizar uma pessoa por meio de um enunciado proferido, propõe
“ un m’as-tu-vu”.
41
Para Fruyt (1997), os termos prototípicos dos delocutivos são os verbos, marcados pela relação dizer”;
preferencialmente monossemânticos, morfologicamente são radicais ou sufixados e têm como ponto de partida o
enunciado completo. Considera importante registrar que o verbo delocutivo é construído morfologicamente em
diacronia sobre a sequência de discurso que deixa transparecer sua base. Fato que não consideramos, por
seguirmos por outro viés de análise.
50
e atrelado a isso está a noção polissêmica desses termos. Mesmo que o autor tenha utilizado
somente verbos para sua exposição, é preciso que não se reduza a noção delocutiva aos casos
de derivação morfológica de verbos. É necessário que vislumbremos, também, as
possibilidades de usos relacionados com a evolução semântica dos termos, para que possamos
alcançar a profundidade da proposta benvenistiana.
Nossa acepção sobre a noção delocutiva segue por uma perspectiva ampliada, ou seja,
não confere o caráter delocutivo apenas aos verbos, como também não propõe outras classes a
serem analisadas pelo viés da delocutividade. Entendemos a delocutividade como um
fenômeno geral extensivo à língua como um todo. Nossa forma de apreensão permite estender
a todos os termos da língua a propriedade de serem delocutivos, pois a locução do discurso
será a formadora das unidades léxicas da língua o que propicia a inclusão de todas as
propostas sobre as classes gramaticais, mas retira delas a importância em sua especificação
para fins de identificação e/ou definição de delocutivos. Nesse sentido, as classes não definem
e/ou caracterizam os delocutivos e, sim, os usos delocutivos é que definem as possibilidades
taxonônicas que a língua comporta.
d) Sobre o ato de dizer
Quanto à definição dos delocutivos como verbos do “dizer”, feita por Émile
Benveniste, diferentemente dos verbos do “fazer”, reconhecidamente denominativos, Fruyt
(1997), para fazer sua crítica, registra que os delocutivos, que deveriam significar dizer X, são
raramente monossemânticos. Acrescenta que alguns dos verbos delocutivos, citados por
Benveniste (1995), permitem o emprego performativo onde o “fazer” e o “dizer” são
indissociáveis (lat. parentare) e que alguns de seus exemplos delocutivos denotam um
processo desencadeador de sentimento (grego, χαιρε).
Com essas constatações, Fruyt (1997) desconsidera a questão do “dizer” como
elemento definidor de um delocutivo o que parece retirar da noção original a característica
que mais a define, pois, nas considerações de Benveniste (1995, p. 315), um delocutivo tem
por “traço essencial e signalético” o fato de “estar com a sua base nominal na relação
“dizer...”, e não na relação “fazer...” que é própria do denominativo”.
Consideremos, então, o que propõe Josette Rey-Debove, em 1975, no artigo
Benveniste et l’autonymie: les verbes délocutifs. A autora chama atenção para a proposta
benvenistiana de delocutividade, como um processo derivacional que, ainda, não havia
recebido o devido reconhecimento dos linguistas. Segundo a autora, Benveniste trata do
51
fenômeno da autonímia
42
sem, no entanto, esclarecê-lo, que mantém, em seu artigo, uma
frouxidão terminológica da qual deriva, para o leitor, apenas um sentimento intuitivo sobre o
fenômeno.
A autonímia, pela concepção da autora, permite diferenciar o estatuto entre “fazer” e
“dizer”: o dizer” relacionado ao universo metalinguístico dos signos (a palavra) e o “fazer”,
ao universo das coisas (o gesto). Assim, “Toutes les séquences rapportées en style direct qui
suivent le verbe dire sont métalinguistiques autonymes, et homonymes des mes séquences
en usage ordinaire”
43
(p. 246), sendo o próprio verbo dizer metalinguístico não autônomo
e não reflexivo, que retoma um ato metalinguístico, mas o significa seu próprio signo e,
sim, outro(s).
Rey-Debove (1975) considera que o discurso metalinguístico organiza-se num duplo
sistema intercomplementar: o primeiro trata do universo da linguagem em oposição ao do
mundo e o segundo, dos signos dos quais se fala. Como possuem elementos intercambiáveis,
a autora considera pouco relevante a oposição vocábulo/locução do discurso, que os signos
autônomos podem, por natureza, significar uma unidade da língua ou uma sequência de
discurso. Em discurso, o vocábulo é uma unidade de discurso como a “locução” e não é
apenas ao nível do conteúdo que a unidade autônoma do discurso representa uma unidade da
língua ou do discurso.
Registra, então, que não é possível descrever fatos de significação, ou, ainda,
diferenciar dois signos homônimos (o gesto (salut) e a palavra (salut)), caracterizando o
exterior do que é um signo; entretanto, salienta que Benveniste, ao preferir o “ser” a
“significar”, deixa evidente que não considera o “gesto” e a “palavra” como homônimos, mas
como uma mesma palavra com estatuto linguístico diferente, que não é possível localizar
essa diferença de estatuto, com seus traços semânticos pertinentes, baseando-se no ser” das
sequências de palavras.
Segundo Rey-Debove (1975), Benveniste se torna autor do fenômeno da autonímia
sem nunca tê-lo descrito, pois caracteriza a palavra autonímica com termos
44
que designam o
delocutivo e que, ao serem reunidos, evidenciam três aspectos da palavra autonímica:
42
Sendo um fenômeno especialmente do discurso, a autonímia consiste em usar uma palavra, frase ou sentença
não em sua denotação comum, mas a fim de destacar algum elemento linguístico ou o próprio enunciado. Para
Rey-Debove (1975), a palavra autonímica designa, mas também significa, da mesma forma que as outras
palavras e constitui-se um fenômeno de natureza estritamente semântica.
43
o metalinguísticas autonímicas todas as sequências em discurso direto que seguem o verbo dizer e
homônimas da mesma sequência em uso comum.
44
Foram citados pela autora “locution de discours” (p. 277), “terme à prononcer, locution formulaire, formule de
salutation” (p. 278), “formule épistolaire, éléments formels de discours” (p. 279),
“appel(p. 280) “nom de la
notion” (p. 281), “terme d’ allocution” (p. 282).
52
1) o fato de receber o estatuto autonímico somente no discurso (locução de discursos);
2) o fato de que significa seu próprio significante (elementos formais de discursos) e não
comportar substituição por sinônimos;
3) o fato de todas as palavras ou sequências autonímicas serem nomes (nome da noção).
A metalinguagem benvenistiana relativa aos delocutivos é criticada por Rey-Debove
que a considera reflexo das incertezas de Benveniste, ao mesmo tempo em que a autora define
o delocutivo como um derivado cuja base é uma palavra autônoma do sintagma que ele forma
com um verbo metalinguístico e com a junção de sufixos verbais. Rey-Debove (1975)
conclui, então, que o verbo delocutivo é apenas um caso particular do fenômeno geral de
derivação sobre base autônoma.
Ao fazer uma interpretação autonímica do delocutivo, a questão da categoria
gramatical da base diverge da proposta por Benveniste. Todas as palavras autônomas,
independente da categoria gramatical de seu homônimo, são nomes; assim, a interpretação
autonímica dos delocutivos torna-os denominativos, uma vez que a base de todos será um
nome. A diferença entre os denominativos e os delocutivos, para Rey-debove, é representada
pela manifestação da homonímia de base, sendo que o estatuto semiótico de cada nome é que
se diferencia.
Determinada a categoria gramatical dos nomes para esse tipo de derivação, vemos que,
para a autora, a oposição terminológica delocutivo/denominativo não se sustenta, assim como
a distinção entre o “dizer” e o “fazer”, pois considera que as suas fronteiras se entrelaçam não
permitindo uma evidência de um ou outro estatuto semântico. Como forma mais adequada de
nomear os delocutivos, propostos por Benveniste, Rey-Debove (1975) sugere a expressão
“denominativos autonímicos”, por considerar a autonímia da base o único critério que define,
efetivamente, um delocutivo benvenistiano.
Consideremos, ainda, a proposta de Recanati (1978), registrada no artigo
“Performatifs e delocutifs: a propos du verbe s’excuser.”, por meio do qual o autor faz um
estudo sobre as diferentes possibilidades de sentido do verbo “excuser”.
45
Dentre os usos e
sentidos decorrentes, analisa um emprego que se caracteriza por ser originário de uma
locução, ou seja, um delocutivo, segundo a noção benvenistiana. Para o autor, esse verbo, em
seu uso delocutivo, é também um performativo.
46
Seu argumento esbaseado no fato de que,
45
Sua análise é direcionada à língua francesa.
46
O enunciado performativo, em conformidade com Austin (1990), caracteriza-se pelo fato de o locutor não
estar simplesmente descrevendo a realidade, mas estar agindo sobre ela, ou seja, ao enunciar o locutor realiza
uma ação por meio de seu proferimento. Nas palavras do autor, “indica que ao se emitir o proferimento está-se
realizando uma ação, não sendo, conseqüentemente, considerado um mero equivalente a dizer algo” (p. 25).
53
ao enunciar, o locutor realiza o ato que está enunciando, ou seja, realiza-se o ato pela própria
enunciação efetivada, emergindo, assim, a necessidade de buscar as relações entre delocutivos
e performativos. Trata, então, da performatividade dos delocutivos e da delocutividade dos
performativos.
No primeiro caso, parece haver certa tendência para a performativização dos
delocutivos, pois esse fenômeno não se aplica somente ao verbo desculpar”. De modo geral,
um verbo, ou locução verbal, que signifique o ato realizado pela enunciação de uma fórmula,
pode ser utilizado, em primeira pessoa do presente do indicativo, tanto para realizar este ato
como para realizar a fórmula em questão. Quanto a essa tendência à performatividade dos
delocutivos, não motivos para vidas; Recanati (1978) avalia, então, o fato de serem os
performativos delocutivos é a hipótese da derivação delocutiva dos performativos. Em sua
tese, propõe que se observem as possibilidades de usos delocutivos, que, em um
determinado emprego, pode se configurar a derivação delocutiva. Assim, “non seulement un
verbe, mais un sens d’un verbe peut être dérivé délocutivement...” (p. 75), o que comporta o
alargamento da derivação delocutiva (já previsto por Benveniste, por ocasião de sua análise
do verbo ualere), no sentido de resgatar significações possíveis e retidas em base única, ou
seja, uma base significante pode comportar significações evidenciadas em usos que dela são
promovidos. Esse viés de análise permite valorizar a questão das significações decorrentes
dos usos das unidades linguísticas e de ser a delocutividade dos performativos uma
possibilidade a ser averiguada no e pelo resgate do emprego das formas.
Define-se, então, que um delocutivo comporta a performatividade, entretanto a
performatividade não garante uma realização delocutiva (em seu sentido stricto), pois um
verbo (em nossa concepção, qualquer unidade linguística), ou determinado uso desse verbo,
que embora denote a própria ação pelo ato de dizer, deverá ser oriundo de uma locução do
discurso para que a delocutividade do performativo se estabeleça.
Não nos associamos à proposta de Rey-Debove (1975) e Fruyt (1997) por
entendermos como possível a interpretabilidade diferencial entre o dizer e o fazer, quando
considerados na língua em emprego, ou seja, associamo-nos à Recanati (1978) ao
entendermos que os usos fornecem o diferencial entre esses estatutos semânticos e, decorrente
dessa acepção, entendemos que uma locução do discurso pode promover a produtividade em
uma língua, conforme os indicativos benvenistianos. Portanto, um delocutivo deve estar
marcado pela relação “dizer”, pois é nessa relação que a delocutividade se estabelece e se
identifica como renovadora da língua.
54
2.2 A noção de delocutividade no contexto brasileiro
A pesquisa sobre a noção delocutiva aplicada ao português do Brasil está em estado
embrionário. O pouco que se tem registrado é oriundo das reflexões de Rodolfo Ilari (1986 e
2002) e Flores e Silva (2006) que propuseram aplicações dessa noção, explicitadas a seguir.
Ilari (1986), através do artigo Delocutivos nós também temos, falô?, insere, mesmo
que de forma breve, a noção de delocutividade na ngua portuguesa do Brasil. O registro do
uso do verbo falou, no diálogo:
A – A bebida fica por sua conta, falou?
B – Falou!,
Levou o autor a propor uma explicação, baseada numa interpretação habitual do uso
desse verbo. O uso de falou na pergunta (A) é decorrente do emprego convencional desse
verbo na resposta (B); é, então, um pedido antecipado de consentimento do interlocutor sobre
o fato. Para Ilari, o uso desse verbo, na pergunta (A), antecipa a resposta falou! (B) e induz o
interlocutor a ela. Antecipa, porque na troca de turno é o que o locutor espera como resposta
do interlocutor e induz, já que serve como uma pista do que o locutor deseja como resposta.
Para encerrar sua pida abordagem, Ilari sugere que o uso em (A) não seja
enquadrado em anomalias morfológicas, mas em criações de “fórmulas ligadas ao
desenvolvimento do diálogo”, ou em criação de novos segmentos do léxico, por derivação,
imprópria, via citação” (p. 84). O verbo salutare, oriundo de salus! (saudação), célebre
exemplo de Benveniste ao propor a noção de delocução, é citado por Ilari, a fim de registrar o
fato de o ser raro haver criações de fórmulas por meio de citações, ao que, segundo ele,
Benveniste denomina de verbos delocutivos, ou seja, “verbos originados de nomes, via uso e
interpretação formulaica destes” (p. 84).
Ilari (1986), assim como Benveniste, elegeu os verbos como a classe a ser analisada,
entretanto, anuncia que a delocutividade não se limita a ela. O autor não aborda, nesse texto,
outras possibilidades de formações léxicas delocutivas; deixa para o leitor essa tarefa,
induzindo-o a essa busca, com as seguintes palavras “Se é representativo de uma classe ampla
de fenômenos, ou não, diga-o quem quiser” (p. 85). A valoração desse texto se dá mais por ser
uma proposta que viabiliza a fundação dos estudos da delocutividade no contexto brasileiro
do que pelas brevíssimas explicações realizadas. Esse texto é mais um resumo abreviadíssimo
do assunto, conforme o próprio Ilari revela, a título de introdução de sua proposta: “Esta
comunicação será brevíssima” (p. 81).
Em 2002, o autor volta a propor o estudo da delocutividade e vai além da formação
55
verbal a partir de substantivos. Em seu artigo Encore quelques délocutifs, considera que
uma série de formações, no português, em que a noção delocutiva pode ser aplicada e que
essa noção traz dificuldades para a semântica, que focaliza somente o sentido e a referência
das expressões. Registra, ainda, que o recurso à situação de emprego das palavras, na busca
pela evolução do seu sentido, não é recente e que levar em consideração as situações de
emprego permitiu elucidar diversos “mistérios” na história das línguas. Adverte, entretanto,
que a derivação delocutiva de Benveniste é de natureza bastante diferente da ideia inicial.
Trata-se, segundo Ilari, de ações linguísticas retidas no processo derivacional, sendo o nome o
elemento representante dessas ações e base para esse tipo de derivação.
Para Ilari, esse processo derivativo não se restringe aos verbos delocutivos propostos
por Benveniste; o alcance dessa noção é bem maior. Prefere, então, derivação delocutiva para
denominar esse fenômeno linguístico, fato que reiteramos nesta pesquisa.
Um estudo dos pares esmola/esmolar e parabéns/parabenizar ilustra o que Ilari (2002)
chama de “um rodeio por uma situação de enunciação”.
47
Para ele, é esse rodeio pela
enunciação que permite o resgate da relação entre os termos e os identifica como delocutivos.
Compartilhamos com o autor a ideia de resgatar, via situação enunciativa, o processo
formativo de um delocutivo; contudo, não definimos, para esse estudo, uma busca, como fez
Ilari, dos elementos históricos de formação do le sens original”
48
(p. 4) dos termos, para
explicar a delocutividade, pois consideramos a ideia de “usos delocutivos”, conforme
entendemos na proposta de Benveniste, reforçada em Flores e Silva (2005). Assim, não
cremos que a retomada etimológica do sentido vá conferir estatuto de delocutividade às
formações léxicas. O ritual enunciativo da linguagem, de fato, deve ser resgatado em sua
sincronia, como o fez Ilari; entretanto a relação locução/delocutividade, em nossa análise, não
requer uma garimpagem histórica do sentido, pois se elucida via ato enunciativo, baseado na
relação “dizer”, compartilhada entre os interlocutores. Isso independe de como historicamente
chega-se a tal ato.
49
O rodeio pela enunciação também pode servir para a formação de palavras que não
47
No texto original, ‘detour par une situation d’énonciation’ (p. 4), com tradução de nossa autoria.
48
Ao que parece, o autor considera a existência de um sentido primeiro (original) que, ao ser identificado, no
rodeio pela situação enunciativa, permite definir o caráter delocutivo dos termos.
49
Na proposta de Ilari (2002), o rodeio pela situação de enunciação, tanto da descrição dos pares esmola/esmolar
quanto de parabéns/parabenizar, ocorreu via resgate do sentido original dos vocábulos-base, para satisfazer o
traço essencial do delocutivo, que consiste em estar com a base na relação “dizer”, conforme a proposta de
Benveniste. Consideramos que a proposta de Ilari (2002) evidencia a complexidade desse fenômeno linguístico,
mas seguimos por um outro viés de análise, por não entendermos que o alçamento do sentido “original” dos
vocábulos-base seja elemento definidor da delocutividade. Assim, em nossa percepção, a base “esmola” não
origina um delocutivo –“esmolar”, conforme a acepção original, pois não está marcada pela relação “dizer”, mas,
sim, “fazer” um pedido, no português contemporâneo.
56
pertençam à classe dos verbos, justificando-se, assim, a preferência do autor por derivação
delocutiva e não verbos. A interjeição olé! transformada em substantivo comum, em “O
cachorro deu um olé no professor” (p. 5), ao que os gramáticos chamam de derivação
imprópria, assim como o uso do termo “cheguei” em umas roupas (bem) cheguei” ou “uma
dona muito cheguei” (p. 6) são alguns dos exemplos utilizados para evidenciar que o tipo de
derivação imprópria conduz à derivação delocutiva em registros do português brasileiro
coloquial.
50
No novo item lexical fica armazenada alguma coisa da situação de emprego que
desencadeou a derivação, ou seja, para Ilari (2002), parte-se de uma enunciação da qual se
mantém, na nova criação léxica, essencialmente, a função por ela desempenhada.
Para encerrar a parte descritiva de sua proposta, o autor cita o termo “damedos”, usado
para designar os turistas argentinos no sul do Brasil, originário de “Dá-me em dois”, locução
amplamente empregada pelos argentinos em função das diferenças de mbio das moedas
argentina e brasileira, assim como outros termos, que denominam imigrantes, cuja origem é
merecedora de análise à luz da noção delocutiva. Ainda, um segundo termo para designar o
automóvel fusca “pois é” - como uma derivação pejorativa de fusca, e o emprego
interrogativo do verbo “falou?”, discutido no artigo anteriormente citado, foram citados
para mostrar que recorrer à noção delocutiva da língua parece ser fundamental na reflexão
sobre a derivação de termos, ou seja, a recorrência apenas à sistematização dos fenômenos
linguísticos derivativos pode não elucidá-los.
Neste texto, fica evidente que à noção tradicional de sentido e referência deve ser
agregado o uso das expressões, sendo o sentido resultante do emprego das expressões e não
do somatório das partes que as constituem. Ainda, a noção de derivação delocutiva foge das
formas habituais de tratamento dos fenômenos linguísticos, mas o recurso a ela é fundamental
para elucidar questões ainda subjacentes sobre a natureza da linguagem.
O artigo de Flores e Silva (2006), a saber, Enunciação e produtividade lexical: um
estudo dos processos de delocutividade verbal no português, estabelece uma forma de
identificação da delocutividade em verbos da língua portuguesa. Os autores elegem a
perspectiva de Benveniste para a análise dos verbos, mas não se detém a ela. Utilizam a
distinção proposta por Anscombre (1985ª) para tipos de delocutivos e a noção aproximativa
entre performatividade e delocutividade de Récanati (1981), ao definir que, na base dos
delocutivos, há sempre um performativo implícito.
Como princípios de análise, Flores e Silva (2006) propõem: a) observar ocorrências do
50
Ilari (2002) registra “brésilien familier”(p. 6) ao que entendemos ser a língua portuguesa padrão do Brasil,
empregada em uma de suas variedades.
57
verbo em uso delocutivo e b) se nessas ocorrências ou não a retomada de uma locução; A
fim de averiguar a hipótese de delocutividade, c) deve-se colocar o enunciado em que o verbo
aparece em estrutura de discurso direto (DI). O essencial é ser possível, na paráfrase em
ordem direta dos enunciados envolvidos no processo, produzir um enunciado com sentido
aceitável. Isso dará estatuto de uso delocutivo ao verbo. Após a confirmação de uso
delocutivo, d) é necessário que se verifiquem as regularidades desse uso no plano morfo-
sintático-semântico da ngua. A partir dessa proposta analítica, os autores registram e
analisam os verbos desculpar e parabenizar (com usos delocutivos) e encorajar (usos não
delocutivos).
Compartilhamos com os autores a ideia de usos delocutivos atrelados ao caráter
sincrônico desse tipo de derivação, ambos subjacentes na obra de Benveniste e restaurados
nos princípios já referidos para análise.
Se por um lado o texto de Flores e Silva (2006) é inovador, quer por oferecer uma
proposta viável, que permite (re)conhecer usos delocutivos de verbos da língua portuguesa, ou
por definir um quadro favorável para o estudo da delocutividade na língua portuguesa, por
outro, não contempla princípios de análise viáveis para o reconhecimento de unidades léxicas
de origem delocutiva para além da classe dos verbos. Daí a presente proposta de buscar
caminhos que permitam identificar a delocutividade como um processo de formação léxica
frequente, amplo e carente de estudos no âmbito da enunciação.
2.3 Articulação entre os fundamentos da teoria enunciativa benvenistiana e a noção de
delocutividade
A fim de delinearmos nossa proposição sobre a noção de delocutividade, sentimo-nos
em tempo para regressar a concepções benvenistianas que foram basilares na construção de
sua Teoria da Enunciação e articular a base teórica benvenistiana, apontada no primeiro
capítulo, à noção delocutiva aqui focalizada. A pertinência do estabelecimento das dimensões
semiótica e semântica para a compreensão da noção de delocutividade está proposta em 2.3.1.
As noções de forma e sentido implicadas na constituição da significação, na dimensão
semântica, e associadas ao mecanismo da delocutividade encontram-se especificadas em
2.3.2. Apontamos, por fim, em 2.3.3, o espaço da delocutividade na Teoria da Enunciação
benvenistiana.
58
2.3.1 A delocutividade e as dimensões semiótica e semântica da língua
Registramos, no primeiro capítulo desta tese, que Émile Benveniste é considerado um
continuador das ideias de Ferdinand de Saussure na medida em que mantém, em seus estudos
que tratam de enunciação, noções básicas do estruturalismo oriundo das lucubrações
saussurianas; entretanto, sua forma de considerar a significância da língua transborda a
estrutura inerente ao signo saussuriano, indo ao encontro de uma nova maneira de significar
na língua – a dimensão semântica de significância. Dessons (2006) ratifica essa perspectiva ao
considerar a distinção entre o âmbito semiótico saussuriano e o semântico pelo caráter
histórico da constituição do sujeito no presente de sua fala. Confere à dicotomia saussuriana
língua e fala (ou discurso) o lugar teórico de intersecção entre Saussure e Benveniste, pois,
para Benveniste, era preciso “ir além do ponto a que Saussure chegou na análise da língua
como sistema significante” (1966, p. 224) e, assim, nesse ir além, estabelecem-se as duas
dimensões de significância da língua semiótica e semântica, instaurando-se, no âmbito da
semântica, a dimensão antropológica da linguagem de onde emerge a linguística de
Benveniste. No pensamento do próprio Benveniste (1989, p. 229),
a noção de semântica nos introduz no domínio da língua em emprego e em ação;
vemos desta vez na língua sua função mediadora entre o homem e o homem, entre o
homem e o mundo, entre o espírito e as coisas, transmitindo a informação,
comunicando a experiência, impondo a adesão, suscitando a resposta, implorando,
constrangendo; em resumo, organizando toda a vida dos homens.
É fato, em enunciação benvenistiana, que a possibilidade da sociedade e da própria
humanidade decorre do ato de significar caráter primordial da linguagem, que a ngua
difere de outros sistemas produtores de sentido por ser o único sistema cuja significância se dá
por dupla dimensão: semiótica (signos) e semântica (enunciação). Conforme refere Dessons
(2006), entre as dimensões semiótica e semântica um hiato, que essas representam dois
pontos de vista diferentes sobre a linguagem. No âmbito da semântica está, pois, o
funcionamento da língua, ou seja, a dimensão semântica é a do emprego; trata da significação
intencionada promovida por um locutor que se apropria da língua e a atualiza em seu uso, ou
ainda, cuida da inserção do homem na língua ao considerar as realizações ligadas ao exercício
do discurso.
Situadas as dimensões semiótica e semântica de significação da língua, cabe examinar
a correlação entre essas dimensões e a noção de delocutividade benvenistiana, a fim de
apreender a noção delocutiva na constituição da significação da língua.
59
Ao Benveniste (1989, p. 83) considerar que “antes da enunciação, a língua não é senão
possibilidade da língua” manifesta a trajetória da língua que se atualiza a cada ato
enunciativo; entretanto, ao trajeto língua/enunciação evidenciado, pode ser acrescido um
movimento inverso da enunciação para a língua, e, por esse ângulo, é possível contemplar
formações da língua via discurso, o que Benveniste (1995) denominou delocutividade.
Conforme Benveniste (1995), a delocutividade é um processo de formação léxica
derivado de uma locução do discurso, sendo, então, devido à própria natureza de sua
formação, um mecanismo pertencente ao âmbito do discurso. Embora esse processo insira-se
na dimensão semântica de significância da língua, evidencia-se que seu estabelecimento
permite o retorno à língua (semiótica), ou seja, a delocutividade é um processo que manifesta
a transitividade do discurso em direção à renovação da língua, realizando-se, portanto, no
percurso da enunciação para a ngua (signo). Em suma, ao mesmo tempo em que a língua se
atualiza no âmbito do discurso, esse o discurso é ato formador da língua. Estabelece-se,
assim, uma via de mão dupla passível de flutuação, cuja observação depende do intento
existente ou, ainda, da disposição do linguista.
Entendemos que Émile Benveniste situa a abrangência de cada dimensão de
significância da língua e que, com a noção de delocutividade, institui um ponto de passagem
da dimensão semântica para a semiótica. Com esse retorno à língua, ou ainda, pelo fato de
dizer X (locução do discurso) um elemento lexical da língua (signo) se estabelece, sendo
possível, em nossa leitura, a expansão desse fenômeno para além de unidades léxicas da
língua e, assim, ao considerá-lo em sua generalidade, a língua toda é constituída via discurso.
Pensemos, então, a possibilidade da noção de delocutividade em sentido lato e em
sentido stricto (explícita ou identificável). A primeira, em sentido lato, a concebemos como
um processo que comporta a formação de todos os elementos da língua via ato de enunciar, ou
seja, a própria enunciação é responsável pela renovação da língua como um todo; não ocorre
por determinação de categoria gramatical ou fórmula que a estabeleça; é um fenômeno geral
de formação da língua, cuja única evidência é a existência da própria língua fundada pelo ato
de enunciar. Nesse caso, a língua toda é delocutiva porque resulta do ato de colocá-la em
funcionamento, ou seja, a enunciação cria a língua e o nome desse processo de formação é
delocutividade - um processo de formação geral inerente ao âmbito do discurso.
Quanto à delocutividade em sentido stricto, julgamos necessário referir o artigo
fundador da noção de delocutividade Os verbos delocutivos (BENVENISTE, 1995), que
evidencia determinadas características passíveis de explicitação e
identificáveis em elementos
formais do discurso. Por esse viés da proposição benvenistiana, um delocutivo terá a base
60
nominal marcada pelo ato de dizer X, ou seja, é pela locução do discurso que uma unidade da
língua se forma o que entendemos ser generalizável à língua como um todo. Entretanto, em
sentido stricto, conforme a proposta inicial, a categoria verbal comportaria certa predisposição
para formação derivacional oriunda de uma locução. Isso, conforme evidenciamos em 2.1.1
(c), pode ser considerado e extensivo à língua toda, mesmo que as características que
identificam essa predisposição não respondam, da mesma forma, a todos os itens que
compõem a língua.
Consideremos, então, a delocutividade, em sentido stricto, com a finalidade de
evidenciar predicados que a definem e permitem um processo descritivo dessa identificação.
Na e para realização de um delocutivo, em sentido stricto, as seguintes características
sinalizam para sua identificação:
a) a base desencadeadora de um delocutivo deve ter sempre um significante;
b) um delocutivo necessita de uma base semântica à priori, marcada pelo dizer X;
c) a evolução morfológica formal
51
é possibilidade e não condição para o estabelecimento de
um delocutivo;
d) pode haver evidência derivacional sincrônica no estabelecimento de um delocutivo.
Consideramos essa proposta de identificação delocutiva como um subitem da
formação geral, ou seja, em nossa concepção, a língua toda é delocutiva, formada pelo ato
enunciativo, mas é possível determinar alguns elementos, como o fez Benveniste no célebre
artigo fundador da noção, que caracterizam determinadas formações. O capítulo três tratará de
demonstrar empiricamente o fenômeno delocutivo como renovador de língua.
Permanecemos na dimensão semântica de significância e passamos a observar, no
próximo item, de que maneira a delocutividade se relaciona com as noções de forma e
sentido, manifestadas nas palavras agenciadas para constituição da significação em discurso.
2.3.2 A forma e o sentido na delocutividade
No intuito de discutir as noções de forma e sentido, Benveniste (1989) propõe o
retorno à questão do que é significação, pois considera que o caráter antitético dos termos
(forma/sentido) permite remeter ao fato de que a linguagem significa e isso é de sua própria
natureza. Ela, a linguagem, é “a imagem mesma do que pode ser significação” (p. 223).
51
Darms (1980) sinaliza para a possibilidade, em determinadas línguas, de elementos sufixais identificadores de
delocutividade. Entretanto, Fruyt (1997) afirma que não sufixo específico que corresponda aos verbos
delocutivos. Segundo a autora, os delocutivos são formados pelos processos usuais e produtivos das línguas em
que aparecem.
61
Entretanto, como registramos, a significação pode ser desencadeada por dupla dimensão: a
semiótica (signo) e a semântica (palavra/frase), o que condiciona a significação em cada
dimensão, sendo determinante o recurso à forma e ao sentido das unidades que compõem cada
dimensão, a fim de que a significação seja instituída.
Ao considerar as noções de forma e sentido correlacionados à dimensão semiótica,
temos o signo, unidade semiótica distintiva de significação genérica, ou coletiva, marcada
pela organização paradigmática, por conseguinte, não circunstancial e bifurcada em
significado e significante, sendo o significante o aspecto formal do signo (distinto do plano
dos fonemas) e o elemento que condiciona e determina o significado generalizante.
Pelo viés da dimensão semântica de significância, é preciso atentar para as noções de
forma e sentido vinculadas a palavra/frase, pois, como afirma Benveniste (1989, p. 229) “(d)o
semiótico ao semântico uma mudança radical de perspectiva: todas as noções que
passamos em revista retornam, mas outras e para entrar em relações novas”. Assim,
retornamos as noções de sentido e forma, mas para estabelecer relações com a palavra e a
frase, ou seja, as noções de forma e sentido reaparecem, porém inseridas na dimensão
semântica de significância e correlacionadas com as unidades que a compõem.
A frase é unidade semântica particularizada resultante da apropriação da língua por um
locutor, cuja significação não pode ser reduzida à soma de suas partes, por ser resultante da
sintagmação da língua. Assim, o sintagma é a forma da frase, pois nele tanto a palavra quanto
a frase são definidas em termos das estruturas formais e nelas o sentido se realiza. Para
determinar o sentido da frase, é necessária a referência à situação do discurso e à atitude do
locutor, porque a totalidade da ideia que a frase exprime é que expressa o seu sentido e este se
realiza formalmente via o agenciamento sintagmático. o sentido da palavra é o emprego
que se faz dela, sempre particular, e desencadeado por um locutor, ou seja, as palavras não
têm senão empregos. É fato que a palavra, ao mesmo tempo em que influencia os outros
elementos formadores da frase, sofre influência desses mesmos componentes da frase, sendo a
ideia, a ser expressa e materializada na frase, fruto dessa inter-relação. Isso confere sentido
único e especializado a cada palavra, pois é das inter-relações das palavras, na frase, que
depende a configuração do sentido. Portanto, o sentido, no discurso, é estabelecido por meio
das inter-relações do signo que, em agenciamento, transmutado em palavra, emite e recebe
irradiações constituidoras de significações oriundas do eu-tu-aqui-agora. Para encerrar, o
pensamento de Benveniste (1989, p. 232) resume adequadamente a ideia: “O sentido de uma
palavra consisti na sua capacidade de ser integrante de um sintagma particular e de
preencher uma função proposicional” e, em relação à frase, “... o sentido” da frase está na
62
totalidade da ideia percebida por uma compreensão global; a “forma se obtém pela
dissociação analítica do enunciado processada até as unidades semânticas, as palavras”.
Como podemos observar, as noções de forma e sentido acompanham a dimensão de
significância adotada. É preciso, então, considerar a dimensão semântica de significância da
língua e examinar o mecanismo da delocutividade em correlação com a forma e sentido nessa
acepção.
Acompanhamos o pensamento de Benveniste (1995) sobre o fato de a delocutividade
ser um processo formativo oriundo da locução, portanto pertencente ao âmbito semântico; no
entanto, não conferimos redutibilidade da noção a determinados elementos da língua.
Acreditamos na possibilidade de expansão da noção para a língua toda, conforme referimos
anteriormente (em 2.3.1). Em nosso entendimento, a delocutividade é uma atividade do
discurso que permite, via ato de enunciar, a renovação da língua em sua totalidade. Nessa
atividade, instaura-se a significação do particularizado (palavra/individual) ao generalizante
(signo/coletivo), ou seja, é necessário observar que o sentido, por esse ângulo, também
percorre o trajeto da palavra ao signo e nele (âmbito semiótico) é que (o sentido) vai se
expandir. Essa mutação palavra/signo faz com que as possibilidades de significância se
estabeleçam no âmbito semiótico,
ou seja, faz com que a língua se renove e se (re)crie a cada
enunciação.
Considerar a propriedade de renovação, ou ainda, da própria criação da língua como
um efeito da enunciação sobre ela (a língua), implica reconhecer como gêmea, na palavra e no
signo, a noção de forma, pois a mutação, nesse caso, ocorre no sentido e não na forma. A
forma identifica-se nos âmbitos de significância da língua; o sentido, por meio desse
movimento ascendente (especializado)/descendente (expansivo), renova a língua, pois, a
partir do ato de enunciar e após a enunciação, o sentido pode se cristalizar e fazer parte da
língua enquanto signo coletivo e compartilhado entre os interlocutores. Na palavra, o sentido
vai ser sempre individualizado e não necessariamente pertencente a uma parte daquele que se
apresenta no signo. Daí decorre a renovação da língua.
Para encerrar essa reflexão, pensemos na potencialidade do estudo da significação,
pelo viés da palavra, pois é ela que renova o signo, ou o coloca em estado de espera – sem ela
o sentido do signo é mera possibilidade.
Observamos, no próximo item desta seção, qual o espaço da noção de delocutividade
na Teoria da Enunciação benvenistiana, a fim de firmarmos nossa proposição sobre o fato de
a renovação da língua ser uma atividade do discurso.
63
2.3.3 Delocutividade e Enunciação
“A enunciação supõe a conversão individual da língua em discurso” (BENVENISTE,
1989, p. 83). Essa proposição ilustra e fundamenta as ideias benvenistianas sobre a noção de
enunciação; mostra a enunciação pela condução da teoria do signo de Saussure à noção de
discurso do pensamento de Benveniste. Por esse viés, a língua é efetuada em uma instância do
discurso, o que supõe um locutor que, ao apropriar-se da língua para enunciar, instaura o
outro e estabelece a intersubjetividade como condição da subjetividade; por meio da
enunciação, o locutor atualiza a língua e deixa marcas de sua apropriação no enunciado. As
questões aqui referidas, todas postas no interior das discussões sobre enunciação
benvenistiana, devem ser agregadas à proposta de renovação da língua por meio do discurso –
ou seja o fato de que a enunciação renova a ngua e o nome desse mecanismo é
delocutividade. Vejamos como esse processo se revela.
Para isso, é preciso percorrer o caminho inverso, ou seja, se a enunciação supõe a
conversão da língua em discurso, é possível fazer o trajeto do discurso à língua o que, em
nossa acepção, pode ser feito por meio da noção de delocutividade. A noção delocutiva é
bastante fecunda por evidenciar que, no processo inverso, ou seja, do discurso à língua, via
ato de enunciar, encontram-se manifestações de significância, até então, pouco observadas
nos estudos enunciativos. Cremos que
o processo de delocutividade evidencia que, além do
percurso língua/discurso comumente traçado nos estudos enunciativos, podemos fazer o
inverso - do discurso à língua, e resgatar significações provenientes desse percurso.
O artigo de Benveniste (1995), Os verbos delocutivos, apresenta esse trajeto e serve
como abertura para investigação desse novo percurso. Esse artigo benvenistiano propõe,
conforme referimos em 2.1, a formação de verbos (signos), via locução do discurso
(palavras). A palavra é, então, o ponto de passagem entre as dimensões de significância da
língua, pois, em sua versão no discurso, promove significações particularizadas, resultantes do
agenciamento sintagmático e, em sua versão signo, comporta sentidos que, originários da
palavra, podem, através dela, serem dilatados, subvertidos ou mesmo, simplesmente,
renovados a cada enunciação - isso promove a renovação da língua por meio da enunciação.
Através da noção delocutiva, entendemos como Benveniste propõe a renovação da
língua pelo âmbito da enunciação; está em sua proposição sobre os verbos delocutivos,
embora ainda pouco examinada nos estudos enunciativos, a possibilidade de renovação da
língua operada pelo e no ato de enunciar. Ao abordar o processo de renovação da língua, por
esse viés, presumimos atenuar, pelo menos em parte, o campo arenoso do tratamento do
64
sentido – seja em qual for o âmbito de significância.
2.4 Delocutividade: princípios para definição
A título de encerramento deste capítulo, pensamos ser oportuno retornar, em caráter
sintético, porém explicativo, a significação aqui assumida sobre a noção de delocutividade.
Para isso, é preciso regressar aos três princípios apresentados na Introdução desta tese, a fim
de esclarecê-los, por meio do estabelecimento de como e por que a delocutividade responde
aos princípios propostos. Voltemos, então, a eles:
a) se é verdade que a língua precisa ser enunciada para ser vista como tal, não é menos
verdade que a enunciação é responsável, ao menos em parte, pela organização dessa língua
e, até mesmo, pela sua renovação;
b) o modelo da delocutividade proposto por Benveniste para o estudo dos verbos é
potencialmente generalizável de forma a servir de modelo explicativo e descritivo dos
efeitos da enunciação sobre o processo de renovação da língua;
c) a delocutividade é um processo que se estende à língua - a todos os seus componentes
(fonológico, sintático, morfológico, lexical, etc.).
É fato que a língua se atualiza a cada enunciação; é no ato de enunciar, ou ainda, a
partir da enunciação, que a língua se configura como tal. Também é fato que a enunciação,
conforme evidenciamos ao longo da seção 2.3, promove efeitos sobre a língua, o que a
organiza e renova a cada manifestação enunciativa - eis nosso primeiro princípio.
A proposta benvenistiana para os verbos delocutivos não somente é viável, como serve
para evidenciar que Benveniste presumia em sua proposta enunciativa, a transitividade do
discurso para a língua. A delocutividade serve, assim, de modelo explicativo e descritivo dos
efeitos da enunciação sobre a renovação da língua - consideramos a delocutividade como o
mecanismo que manifesta essa renovação – princípio que operacionaliza o primeiro.
A noção delocutiva é um processo que manifesta a transitividade do discurso em
direção à língua e isso fornece a renovação constante da língua, que ocorre através das
possibilidades de sentido que o signo acolhe e encapsula, por meio dos usos que se faz dele. A
noção delocutiva é, portanto, extensiva à língua terceiro e último princípio estabelecido por
se admitir os dois primeiros.
Ao considerarmos a viabilidade da renovação da ngua por meio do processo de
65
delocutividade, cumpre examinar, na estrutura da língua, em nosso recorte o componente
lexical – como os efeitos da enunciação contribuem para renová-la. Questão a ser evidenciada
no capítulo quatro desta tese, após a apresentação dos aportes metodológicos necessários para
tal abordagem (cf. cap. 3).
3 PRICÍPIOS PARA O TRATAMETO EUCIATIVO DO LÉXICO
AS OBRAS PLG I e PLG II
Registramos, nesta tese, que a Teoria da Enunciação benvenistiana nos serve de
suporte teórico para a realização de nosso intento: a) construímos um aparato teórico,
baseados nessa teoria enunciativa (cf. cap. 1), b), versamos sobre os princípios que regem a
noção delocutiva a ela inerente (cf. cap. 2) e cabe, agora, c) promover uma discussão
metodológica para a análise das formações léxicas por meio do mecanismo da delocutividade
- processo que permite a transitividade do discurso para a língua. Esse fato sedesenvolvido
ao longo deste capítulo.
3.1 Para uma abordagem enunciativa do léxico
Em nosso recorte, elegemos a palavra,
52
inserida no âmbito semântico-enunciativo de
significância da língua, cujo sentido é marcado pela irrepetibilidade do ato, como o elemento
a ser desvendado no exercício do discurso. Torna-se oportuno responder, então, por que
elegemos o léxico
53
e por que especificamente o analisado por Émile Benveniste no PLG I e
II, para firmarmos nossa proposição sobre os efeitos da enunciação sobre a língua.
Três motivos levaram-nos a essa seleção: em primeiro lugar e o por ordem
hierárquica, por entendermos o signo/palavra como elo comum e integrador entre a língua e o
52
Conforme nossa definição (cap. 1), termo que se atualiza via ato enunciativo e que ocupa o posto de menor
unidade linguística da enunciação benvenistiana. Cabe-nos salientar que, mesmo sendo a palavra nosso viés
seletivo, não nos é pertinente examiná-la excluída do fato enunciativo no qual está inserida, pois somente nele é
que a palavra assumirá o sentido aqui referido. Fora do fato enunciativo, ela é signo, conforme nosso recorte
anteriormente explicitado.
53
Léxico na acepção de palavra, resultante da sintagmação da língua transmutada em discurso, dotada de
significações promovidas pelo ato enunciativo realizado pelo sujeito. Léxico pode ser, então, sinônimo de
palavra ou, ainda, o conjunto de palavras em processo de atualização pelo ato enunciativo, conforme registramos
no capítulo 1.
67
discurso, conforme evidenciado nos capítulos 1 e 2 desta tese, ou seja, o léxico é de interesse
imediato quer por ocupar uma posição nuclear entre os âmbitos de significância da língua,
quer por ser o elo integrador das significações da/na língua-discurso. Em segundo, por
acreditarmos que o caminho discurso/língua ou, em um foco minimizado, palavra/signo deva
ser trilhado, a fim de que possamos resgatar possibilidades de sentidos, por meio do
mecanismo da delocutividade. Com isso, promovemos uma leitura incomum sobre as
descrições do léxico, promovidas pelo próprio Benveniste, ou seja, nossas análises terão por
base as análises benvenistianas sobre o componente lexical, servindo, então, as descrições
apresentadas nos artigos que tratam do léxico, da seção Léxico e cultura, do PLG I e II, como
fatos a serem analisados. Por fim, como terceiro motivo, cremos que o fato de Benveniste
(1995) ter desenvolvido sua proposta delocutiva, tendo por base o léxico, não pode ser
desconsiderado. Afinal, a discussão sobre a delocutividade, empreendida não somente pelo
autor, mas por outros estudiosos que, também, trataram da noção delocutiva, foi conduzida
por intermédio do estudo do léxico: no caso do artigo fundador os verbos nos demais
autores, além dos verbos, outros componentes lexicais foram alçados, mas todas as discussões
foram dirigidas pelo e ao estudo do léxico.
54
Nada mais natural que sigamos essa trajetória.
Daí a necessidade de revisitar o léxico pela descrição de Benveniste, não por uma
leitura convencional de sua obra, mas por uma interpretação que busque evidenciar como a
língua se renova por meio da enunciação, ou ainda, como a enunciação, através do mecanismo
da delocutividade, promove a renovação da língua para isso a análise da unidade léxica é
indispensável, pois é nela que a significação do signo se transmuta em significação do/no
discurso e o inverso se manifesta.
Como nossa preocupação é (re)examinar as descrições léxicas promovidas por Émile
Benveniste, selecionamos, conforme referido, a seção Léxico e cultura do PLG I e II, cujas
análises dos fenômenos linguísticos circundam em torno de formações léxicas variadas que
pressupomos serem passíveis de generalizações constituidoras de princípios acerca dos efeitos
da enunciação sobre a língua. O intento é centrarmos nossa atenção nos registros
benvenistianos que tenham o léxico como elemento nuclear das discussões, a fim de que
possamos delinear como esse se apresenta nas análises de Benveniste e, assim, definirmos,
por meio de outro olhar sobre essas descrições, de que forma a renovação da língua ocorre no
uso que dela é feito, ou seja, no quadro da enunciação benvenistiana.
Necessitamos, portanto, de dois movimentos para a abordagem do léxico a que nos
54
Conforme estudos de Fruyt (1997), Rey-Debove (1975), Ilari (2002), Darms (1980) dentre outros citados no
capítulo dois desta tese.
68
propomos. Em linguagem benvenistiana, é preciso compreender, e não somente reconhecer, a
atualização da língua, via sintagmação, e a renovação da língua, por meio da delocutividade.
No quadro abaixo, organizamos uma síntese para nossa proposta de compreensão dos
movimentos
55
a serem descritos a fim de que façamos uma abordagem enunciativa do léxico.
QUADRO 2 – Para uma abordagem enunciativa do léxico.
DA LÍGUA PARA EUCIAÇÃO DA EUCIAÇÃO PARA A LÍGUA
Processo: sintagmação Processo: delocução
Resultado: atualização da língua Resultado: renovação da língua
Fórmula: (L E) Ͻ (S P) U stg = A Fórmula: (E L) Ͻ (P S) U dlc = R
Nossa fórmula obedece à seguinte terminologia:
L = língua,
E = enunciação,
S = signo,
P = palavra,
stg = sintagmação,
dlc = delocução,
A = atualização e
R = renovação.
Realizemos, então, uma leitura de nossa fórmula, já que os itens processo e resultado
foram, em capítulos anteriores, objeto de discussão. No movimento da língua (L) para a
enunciação (E) ou, ajustando o foco, do signo (S) para a palavra (P), e por considerar as
relações que se estabelecem na língua, em discurso, (stg), obtemos, por resultado, a
atualização da língua (A). Num outro movimento, da enunciação (E) para a língua (L) ou, no
percurso da palavra (P) para o signo (S), obtemos, por resultado ou efeito (dlc), a renovação
da língua (R). A aplicabilidade dessa nossa proposição será evidenciada no capítulo seguinte.
À guisa de explicação, cabe dizer que a análise dos artigos constantes em Léxico e
cultura do PLG I e II terá a seguinte ordem. Primeiramente, apresentamos uma resenha do
capítulo em estudo. Quanto a isso, vale ressaltar que nossa proposição não é interpretar ou
explicar os artigos selecionados, mas, sim, analisar o elemento que nos serve de objeto de
55
Os movimentos aqui citados têm caráter metodológico-explicativo.
69
estudo o léxico. Na sequência, examinamos o componente lexical, proposto por Benveniste
em cada capítulo, à luz dos processos de sintagmação e delocução, por meio da aplicação da
fórmula demonstrada anteriormente.
Em síntese, cada capítulo comportará a) uma resenha, b) a análise do léxico pelo viés
da sintagmação, c) a aplicação da fórmula de delocução e, por fim, d) os resultados
individuais e oriundos desse conjunto de procedimentos.
3.1.1 O corpus
A constituição de nosso corpus de pesquisa está atrelada ao ponto de vista teórico a
que nos associamos e isso nos impõe o desafio de trabalhar com a singularidade, ou seja, com
uma metodologia que permita dar conta do elemento unitário - o fato enunciativo, para o qual
a repetibilidade é impossível, pois o enunciado é produto de um ato enunciativo que é único;
portanto, não passível de repetições, embora passível de generalizações sobre a unicidade do
ato. Isso confere ao estudo um caráter singular, na medida em que elege o fato enunciativo,
único e não passível de generalizações por sua própria natureza, mas que, ao mesmo tempo,
encaminha-se como uma perspectiva universalizante em termos de aplicabilidade. As
generalizações, passíveis de universalidade, são procedentes de uma transversalidade na
compreensão da singularidade do ato enunciativo, pois a verticalidade não abarcaria a
amplitude da noção delocutiva no ato enunciativo. Portanto, entendemos que o fato de
trabalharmos com a singularidade não nos impossibilita de buscarmos questões
generalizantes.
“... a dissociação leva-nos à constituição formal; a integração leva-nos às unidades
significantes” (Benveniste, 1995 p. 135). Ao proferir isso, Benveniste transporta-nos ao
emprego da língua como o ponto-chave para a definição de um corpus de análise em
enunciação. Entendemos que, das combinações sintagmáticas da ngua em uso, ou seja, das
associações de unidades linguísticas distintas, emergem as significações estabelecidas na frase
como unidade do discurso e que o processo inverso também seja possível e necessário.
Retomemos, então, as palavras de Flores e Teixeira (2005): “O que caracteriza a lingüística da
enunciação é a abordagem do fenômeno enunciativo na linguagem desde um ponto de vista
que considere o sujeito que enuncia” (p. 99), ou seja, a enunciação é da ordem do não-
repetível, porque comporta o sujeito (eu/tu) que realiza o ato, em determinadas condições (o
tempo é sempre o presente – agora), em um espaço considerado o aqui. A partir desse
“Aparelho formal” (simultaneamente da ordem do universal e da ordem do repetível),
70
estabelecem-se as marcas enunciativas deixadas pelo sujeito em cada ato (singular e da ordem
do não repetível). Tratar da enunciação é, portanto, reconhecer que a abordagem do fenômeno
linguístico se no ato de sua realização processo enunciativo e que essa abordagem não
abre mão de uma estrutura que formalize a realização enunciativa do ato.
Flores (2008, p. 41) chama de fato enunciativo “todo o fenômeno que servir para
explicitar a maneira pela qual o sujeito se marca naquilo que diz”. Consideramos a
constituição de nosso corpus de fatos
56
como a reunião de elementos marcados por um ponto
de vista que determina o objeto a ser descrito. O corpus aqui analisado é constituído, então,
por fatos enunciativos cujo produto o enunciado - será resultante do ato individual de
utilização da língua e que, via análise enunciativa, é contemplado pelo viés do sujeito que o
enunciou; pela ótica saussuriana, à qual nos associamos, é o ponto de vista adotado sobre os
fenômenos linguísticos que determina os fatos relevantes para uma descrição linguística.
Configura-se, desse modo, o ambiente linguístico-enunciativo a ser examinado, revelador de
significações em emprego.
Antes de encerrar esta parte, cabe uma pequena divagação sobre a natureza do corpus
aqui estudado e das consequências decorrentes dessa escolha que fizemos.
A linguística, como sabemos, é uma área do conhecimento que se constituiu sobre
alguns pilares do fazer científico os quais, poucas vezes, são questionados. Um desses pilares
é a exigência de comprovação empírica.
Isso é de tal forma difundido que chega a tomar ares de uma certa “caracterização
geral” da linguística, inconteste em sua gênese. Daremos apenas um exemplo: o manual de
linguística, de John Lyons, talvez um dos mais conhecidos no mundo, em seção dedicada a
responder se a linguística é uma ciência (cf. seção 2.2 do livro), diz que, embora haja muitas
discordâncias sobre o que pode, ou não, ser considerado ciência, há certos “pontos unânimes”
(Lyons, 1982, p. 46). Segundo o autor, “o primeiro e mais importante deles é que a lingüística
é empírica” (Idem). Com isso, Lyons quer dar a entender que a linguística “... opera com
dados publicamente verificáveis por meio de observações e experiências” (Idem).
A discussão feita por Lyons é bem mais complexa do que deixamos transparecer no
parágrafo anterior uma vez que o autor acaba confrontando diferentes pontos de vista sobre
a ciência em relação, principalmente, ao recurso à intuição linguística, utilizado na linguística
gerativista, por exemplo, no entanto, é suficiente para ilustrar o que estamos chamando de
“pilar” do fazer científico. Em outras palavras: a linguística dedica-se a analisar dados
56
Um corpus de fatos é definido como “reunião de mecanismos que coloca em relevo as maneiras de o sujeito se
marcar naquilo que diz” (FLORES, 2008, p. 41).
71
linguísticos, ocorrências efetivamente realizadas.
Nosso corpus, de um lado, mantém esse princípio, uma vez que é constituído pelas
análises linguísticas feitas por Benveniste em dez de seus artigos presentes em PLG I e II. De
outro lado, distancia-se desse imperativo científico e filia-se a uma perspectiva que poderia
ser nomeada, sem que houvesse incoerência, de epistemológica, uma vez que constitui objeto
de nossa análise a própria teoria de Benveniste.
Assim, simultaneamente, fazemos análise dos fatos de língua e teorizamos sobre a
teoria que serviu de base para analisá-los. Enfim, o recorte teórico-metodológico a que nos
propusemos orienta a análise do corpus desta pesquisa a ser legitimada no próximo capítulo
desta tese.
3.1.2 O léxico em/do discurso
O xico recebeu tratamento diferenciado nas obras PLG I e II e isso o é difícil de
constatar;
57
basta observarmos a macroestrutura que organiza os livros. Das seis partes
58
que
compõem o PLG I, uma, sob o título de Léxico e cultura, é dedicada especificamente ao
léxico. Essa seção comporta, sequencialmente, os capítulos (24) Problemas semânticos da
reconstrução; (25) Eufemismos antigos e modernos; (26) Dom e troca no vocabulário indo-
europeu; (27) A noção de ritmo na sua expressão lingüística; e (28) Civilização: contribuição
à história da palavra. No PLG II, as mesmas seis partes são registradas, sendo que estão
compilados, na seção Léxico e cultura, os capítulos (16) Difusão de um termo de cultura: o
latim orarium; (17) nese do termo “scientifique”; (18) A blasfêmia e a eufemia; (19) Como
se formou uma diferenciação lexical em francês; (20) Dois modelos lingüísticos da cidade. É
oportuno observar que, por meio da seleção desses dez artigos, Benveniste objetiva, segundo
prefácio de sua própria autoria (PLG I), destacar “o papel da significação e da cultura”. Fato a
ser observado nas seções que seguem.
Para examinarmos os dez capítulos aqui eleitos, elaboramos o capítulo seguinte (cf.
57
Embora nesta seção tratemos de léxico, cremos ser apropriado referir os estudos de Silva (2005) e Lichtenberg
(2006) pelo fato de evidenciarem que perpassa, nos escritos (teóricos e práticos sobre enunciação) de Benveniste,
uma sintaxe a sintaxe da enunciação, como exigência para promoção de sentidos no âmbito da Linguística da
Enunciação. Em nosso recorte, não contestamos as proposições das autoras, nem nos distanciamos delas;
sinalizamos, porém, que um exame atento sobre o léxico, pelo viés da enunciação benvenistiana, pode fornecer
respostas para o que entendemos por renovação da língua operada pela enunciação.
58
A obra benvenistiana Problemas de lingüística geral I é subdividida, pelo próprio autor, em seis partes, a
saber, I. Transformações da lingüística; II. A comunicação; III. Estruturas e análises; IV. Funções sintáticas; V.
O homem na língua e VI. Léxico e cultura. Os capítulos que compõem cada parte, conforme prefácio, são artigos
reunidos por proximidade das temáticas tratadas na obra e publicados entre 1939 e 1964. O PLG II segue essa
mesma macroestrutura organizacional, sendo constituído por artigos lançados de 1965 a 1972.
72
cap. 4) divido em três seções. Na primeira (cf. 4.1), registramos os artigos, da seção Léxico e
cultura, encontrados no PLG I e expomos o modelo proposto por Benveniste para o que ele
denomina de “Problemas semânticos de reconstrução”, encontrado já no primeiro capítulo. Os
artigos da seção Léxico e cultura, pertencentes ao PLG II, são historiados na segunda seção
(cf. 4.2) deste capítulo. Optamos por mantê-los separados por crermos que a focalização em
cada obra, individualmente, facilita a apreensão e discussão dos fatos enunciativos. Na
terceira seção deste capítulo (cf. 4.3), apresentamos os resultados das análises das seções
anteriores e sumarizamos a proposta generalizante de renovação da língua pelo viés da
enunciação.
4 A DELOCUTIVIDADE O TRATAMETO DO LÉXICO EM PLG I e
PLG II
Neste capítulo, buscamos desenvolver as análises tendo em vista o proposto até o
momento acerca da delocutividade Assim, vemos como o uso, entendido como o colocar em
funcionamento a língua por um ato individual de utilização (cf. BENVENISTE, 1989, p. 82)
cria as condições para que a ngua se renove. Fazemos isso a partir de uma interpretação do
modelo benvenistiano da delocutividade.
Como esclarecemos na Introdução (cf. supra), a enunciação tem papel significativo no
processo de organização da língua e mesmo de renovação. O modelo da delocutividade,
proposto por Benveniste para o estudo dos verbos, foi avaliado de forma a servir de parâmetro
explicativo e descritivo dos efeitos da enunciação sobre o processo de renovação da língua. É
sobre isso que passamos a discorrer nas análises a seguir.
4.1 Léxico, significação e cultura no PLG I
Nesta seção, estruturada em cinco subseções, apresentamos as análises do componente
lexical benvenistiano, registradas na seção Léxico e cultura, do PLG I. Temos por intuito
legitimar uma abordagem para o léxico no âmbito enunciativo, ou seja – no âmbito de
significância do discurso. As subseções que seguem obedecem à mesma organização adotada
na obra benvenistiana.
74
4.1.1 Problemas semânticos da reconstrução
59
No artigo que abre a seção Léxico e cultura do PLG I, temos uma discussão sobre a
reconstrução linguística, o por um viés de reconstrução formal, para o qual o aparato da
fonética ou da morfologia forneceria as regras, mas do ponto de vista do sentido. De imediato,
Benveniste (1995, p. 320) elege os empregos das formas linguísticas como determinantes do
“sentido”, ou seja, é pelo uso e ligações resultantes desse uso que o sentido emergirá. Eis o
modelo proposto pelo autor: “o ‘sentido’ de uma forma linguística se define (1º)
60
pela
totalidade dos seus empregos, (2º) pela sua distribuição e (3º) pelos tipos de ligações
resultantes”.
Para ilustrar, propõe diversos exemplos e os inventaria sempre evidenciando que as
relações morfológicas e o “bom senso” do linguista não são suficientes para a determinação
do sentido dos termos. Entre os exemplos, cita, em primeiro lugar, os homófonos ingleses
story (narrative) e story (set de rooms) que, embora formalmente idênticos, em seus
empregos, o sentido mantém-se sempre como distinto e o francês voler (fly)
61
e voler (steal)
62
que, aparentemente, no sentido, em nada se assemelham, entretanto, um emprego não
presumível permite significar, ao mesmo tempo, voler flying e stealing, o que suscita buscar o
emprego que provocou a ruptura da unidade de sentido e fez com que hoje dois domínios
semânticos distintos coexistam. Soma-se, aos casos citados, uma descrição de termos em
indo-europeu, grego, latim e francês, o que totaliza nove exemplos de formas idênticas,
assemelhadas ou aparentadas, mas com diferenças de sentido, discutidos pelo autor.
Ao utilizar nossa fórmula representativa do movimento da língua (L) para enunciação
(E), obtivemos, com relação aos termos (S) ingleses story (narrative) e story (set de rooms),
que o emprego (P), via sintagmação (stg), nunca permite um termo comutável com o outro, ou
seja, a forma, embora semelhante, requer sentidos distintos que nunca se aproximam, quando
considerados na sintagmação da língua no discurso. Mesmo uma busca etimológica que,
segundo Benveniste, pode ser utilizada somente a título de confirmação, pois não garantiria a
independência atual dos termos, mantém a impossibilidade de emprego com sentido
comutável entre os termos. Assim, os distintos significados desses termos (S) da língua (L) só
59
Dentre artigos benvenistianos selecionados para uma pesquisa, Silva (2005) analisa o presente artigo com o
intuito de verificar como se apresenta a sintaxe na proposta enunciativa benvenistiana. A autora registra a
existência da relação entre léxico e relações sintagmáticas na seção onde, segundo ela, não se esperaria um
estudo sintático.
60
A marcação numérica é de nossa autoria.
61
Voler como “voar”.
62
Voler como “roubar”.
75
existem porque enunciados e a atualização da língua é o resultado desse ato, pois os sentidos
são especializados no e decorrentes do emprego das formas. Como signo, o termo story não
passa de mera possibilidade.
É explícito o processo de sintagmação como definidor da significação desses termos
examinados por Benveniste; logo, é por esse viés que as análises da ngua para o discurso
foram efetivadas por Benveniste e é esse processo de atualização da língua que servirá como
ponto de partida para nossa proposta de análise descritiva da delocutividade na língua.
Vejamos o movimento inverso, conforme o propusemos: da enunciação para a língua.
Se é lícito que a língua se atualiza a cada enunciação, também o é que, pelo ato de enunciar, a
língua se configura enquanto tal e se renova. Por nossa fórmula (E
L) Ͻ (P S) U dlc = R, os
termos story (P), com sentidos especializados na enunciação, quando considerados em
processo delocutivo (dlc), ou seja, a partir da enunciação, com movimento de retorno à língua,
a renovam à medida que os sentidos de cada termo são configurados na sintagmação e,
portanto, quando retornam à língua são sentidos novos, embora com formas (estruturas
léxicas) idênticas que, ainda, permitem novas formações léxicas oriundas e pertinentes a cada
um. Assim, o movimento de retorno (E
L) firma que não são dois sentidos possíveis,
configurados em uma mesma forma linguística, mas, sim, a utilização de uma forma idêntica
para evidenciar sentidos configurados na e pela enunciação. É bem verdade que sentidos, no
uso recorrente, tornam-se cristalizados, entretanto a renovação e a própria criação das
estruturas léxicas passa por esse retorno à língua por intermédio da enunciação, ou seja, pelo
processo de delocução, para que se estabeleça e passe a fazer parte da língua (já no âmbito
semiótico).
Dos sentidos de story (narrative e set de rooms), enquanto palavras, podem ser
derivados outros sentidos, cujo estabelecimento da forma pode estar associado à forma inicial
do termo, ou ainda, uma forma totalmente nova pode surgir para designar sentidos oriundos e
decorrentes das acepções internalizadas ao termo (story), quando considerados em movimento
de delocução.
Dessa maneira, o retorno à língua, por meio do processo de delocução, dá-se ao se
considerar o sentido do particular ao generalizante - como o formador da língua, cuja
representatividade pode ser oriunda de formas linguísticas já cristalizadas ou de formas
totalmente novas. Isso confirma o pensamento de Benveniste (1989, p. 232) de que as
palavras “não têm senão empregos”, pois o sentido resulta, precisamente, das relações da
palavra na frase, lembrando, sempre, que trabalhamos com as noções de forma e sentido no
âmbito semântico de significância da língua.
76
Passamos, agora, a analisar o segundo exemplo benvenistiano; termos franceses (S)
voler (fly), intransitivo, e voler (steal), transitivo, propostos, por Benveniste, como o caso
inverso, por haver um emprego cujo sentido pode ser associado com o outro e por ele
comutável. O processo de sintagmação (stg) desses verbos (P) evidencia que um determinado
emprego é responsável pela inserção de novo sentido que faz com que esses verbos sejam,
hoje, palavras distintas. A expressão le faucon vole
63
la perdrix” é a construção na qual o
emprego de voler” se presta para produzir a cisão da unidade de sentido inicial e a
consequente criação de uma nova unidade semântica. A atualização da língua se concretiza,
então, nos três ambientes determinados pelo e no processo de sintagmação o que resumimos
como: (S = voler (forma)
fly (sentido)); (S = voler (forma) flying e stealing (sentido)); (S
= voler (forma)
steal (sentido)).
Da enunciação para a língua (E
L), encontra-se Voler (P), com um sentido
particularizado que, ao retornar à língua, ocupa uma mesma forma, para evidenciar sentidos
cristalizados pelo uso. Isso faz com que essa forma única passe, de certa maneira, a
representar diferentes formas, pois, mesmo sendo única, em sintagmação, devolve para a
língua um novo termo, marcado e definido pelas relações com as outras formas com as quais
se realiza.
Um terceiro tópico sobre a reconstrução semântica é lançado por Benveniste, a saber,
a questão da tradução de termos e as divergências a ela relacionadas pelo fato de o linguista,
inconscientemente, guiar-se pelas categorias de sua própria língua. A correspondência, ou a
falta dela, entre o sentido do termo grego títhēmi (estabelecer) com o latino facere (fazer) é
utilizada para abordar tal questão. Para Benveniste, a forma dhē-, em indo-europeu, admite,
ao mesmo tempo, os dois sentidos (estabelecer e fazer), entretanto, a ligação entre os dois
sentidos não se manifesta sem justificação. Os fundamentados para essa relação de sentido
encontram-se em se considerar precisos empregos da noção na língua em exame. Assim,
chegamos às seguintes e importantes comprovações benvenistianas:
... a distinção entre “estabelecer e “fazer” não corresponde à realidade indo-
européia sob a forma nítida que tem para nós; 2º a construção de *dhē- é um
componente essencial do emprego e do sentido; 3º a noção de “fazer”, na medida em
que é expressa por*dhē-, se determina por ligações particulares que são as únicas
que permitem defini-la, pois a definição é possível nos termos da própria língua
(BENVENISTE, 1995, p. 322).
Dessa forma, a transposição dos valores de um sistema para o outro se vale dos
63
Vole como “alcança e agarra voando.
77
empregos (stg), a fim de que os sentidos se particularizem em realizações conforme cada
sistema linguístico. Os sistemas comportarão, a partir da sintagmação, as formas, com os
sentidos que lhes foram atribuídos em cada língua.
Por esse mesmo viés, outra situação é apontada, pelo autor, por meio dos verbos
grego tréphō (nutrir) e tréphō (coagular - o leite), idênticos em forma, mas declarados como
sentidos dissociados. A relação entre os dois sentidos define-se em se considerar o sentido
unitário do termo: “favorecer (por meio de cuidados apropriados) o desenvolvimento daquilo
que é submetido ao crescimento” (p. 323) que, ao ser utilizado, em cada emprego, assume a
especialidade necessária que o define. Assim, os sentidos de “nutrir” e “coagular” passam a
ser estabelecidos nos empregos possíveis do termo cujo sentido mais amplo confere
significações mais usuais, particulares, técnicas, etc. sempre associadas por ligações
semânticas ao sentido amplo.
Com esse exemplo, Benveniste estima não haver dois sentidos para o verbo tréphō e,
sim, um sentido cujos empregos definem as especificidades de sentido e declara que alguns
problemas nas reconstruções semânticas devem-se às definições insuficientes dos termos, ou a
transposições não legítimas dos valores de um sistema para outro. A sintagmação do verbo
tréphō evidencia essas constatações, pois é nela que o termo se define de forma
suficientemente particularizada ao ponto de legitimar os sentidos possíveis decorrentes dos
empregos em cada sistema. O movimento de delocução devolve para o sistema uma forma
cujo emprego constitui as significações a ela atreladas.
Ao considerar uma reconstrução formal, Benveniste (1995) atesta, em seu quinto
tópico, por meio da raiz Dwei-, a existência de uma única forma (dwei-) para dois sentidos
(temer e dois) aparentemente sem ligações semânticas. Sobre essa identidade formal
demonstrada, questiona: será um acaso? Não. O autor, por intermédio de um estudo dos
empregos de dwei- coloca em evidência a relação entre os sentidos dessa raiz. Na expressão
d(w)oyêi, que significa “‘a coisa está em duplo, em dúvida, in dúbio’, isto é ‘é para temer’”
(p. 325), encontra-se a ligação entre os dois sentidos (verbo e numeral) e o consequente
emprego de uma única forma para os dois sentidos e seus derivados.
Essa ligação na origem do sentido revela-se pela sintagmação do termo dwei-; esse
movimento (stg) também estabelece a existência e permanência de dois sentidos
particularizados em uma única forma devolvida para a língua (dlc).
“...quando se reduz o sentido às modalidades de emprego, torna-se imperativo
assegurarmo-nos de que os empregos permitem não somente aproximar sentidos que parecem
diferentes, mas justificar a sua diferença” (p. 326). Tomado por essa idéia inicial, Benveniste,
78
em seu sexto exemplo, averigua elementos que podem interferir na criação “de uma nova
“espécie” de sentido” (p. 326). Determina, para apreciação, a passagem do sentido de testa
64
(latim) ao de tête
65
(francês), que, inicial e erroneamente, foi considerada como decorrente de
uma denominação brincalhona. Benveniste atesta, via empregos, que testa (latim) designava
“toda casca dura e que se aplicou em primeiro lugar ao que chamamos ainda a “caixa
craniana”” (p. 326). As supostas considerações humorísticas ligadas à passagem de um
sentido ao outro não se sustentam, que o nessa trajetória (de testa (latim) a tête
(francês)) fato singular que justifique as considerações ao humor como promotoras da
passagem do sentido de testa (cântaro) a tête (cabeça).
As constatações de Benveniste encontram suporte na sintagmação do termo. É esse
movimento que elucida a passagem do termo testa (latim) a tête (francês), sem
particularidades que chamem a atenção. Do movimento (E
L), tem-se um termo, em
sentido e forma evidenciados no emprego de cada sistema linguístico.
A veia comparativista de Benveniste manifesta-se fortemente no sétimo pico
discutido, quando o autor propõe um estudo sobre formas aparentadas e apreciadas numa
comparação que considere várias línguas. Para o fato de que frequentemente particularidades
de sentido distinguem as formas aparentadas que constituem uma família, elege o exame do
termo, em sânscrito, pánthāh (caminho) cujos sentidos não se equivalem, quando
considerados em relação ao indo-irânico, ao eslavo, e ao báltico (sentido de “caminho”); ao
grego (sentido de mar”); ao latim (sentido de “ponte”); ao armênio (sentido de “vau”). A
falta de equivalência dos sentidos não provém da configuração do termo conforme cada
língua ou cada cultura, mas, sim, do fato de pánthāh ser também uma das variantes de uma
significação geral que engloba todas as variantes (caminho, mar, ponte e vau). Dessa maneira,
pánthāh é antes uma “transposição” do que um “caminho”, e a comprovação desse sentido do
termo explica as variantes atestadas em várias línguas.
As constatações benvenistianas foram todas oriundas da análise dos termos em
sintagmação (stg), ou seja, esse movimento permitiu a compreensão do sentido do termo com
suas variantes, conforme a língua em que se manifestam e, ainda, permitiu que se
evidenciasse uma base semântica unitária (transposição) para a origem desses vários sentidos
aparentados. Por intermédio da sintagmação, as línguas, em questão, recebem (dlc) sentidos e
formas aparentados, por pertencerem a uma mesma família.
Ao tratar da reconstrução semântica de um grupo unitário, Benveniste insere o oitavo
64
Com significação de “cabeça ou vaso de barro”, conforme Benveniste (1995, p. 327).
65
Sentido amplo de “cabeça”, no francês moderno (Idem).
79
exemplo de sua proposta. Como frequentemente é feito numa reconstrução dessa modalidade,
o objetivo é indicar o rumo em que variou o sentido do termo e qual sentido deu origem ao
outro. Um dos princípios geralmente considerados é a evolução do sentido do “concreto” ao
“abstrato”, mas esse critério é rechaçado pelo autor, que o considera pautado em termos que
são ambíguos. Mesmo assim, propõe a análise do termo trust (fidelidade), a fim de justificar
se esse critério pode ser válido em reconstruções semânticas.
Considera equivocadas as considerações de estudos etimológicos que propõem ter a
noção de “fidelidade” evoluído da noção concreta “árvore” e justifica suas inquietações com o
fato de que a palavra “carvalho”, representada pelo termo grego drûs, que traria a relação de
sentido entre árvore e fidelidade, na medida em que “o carvalho teria sido o símbolo da
solidez e da confiança, e a imagem do carvalho inspiraria o conjunto das representações de
‘fidelidade’” (p. 330), não comporta todo o desenvolvimento morfológico e semântico do
termo, já que em grego drû- significa “carvalho” fora do grego a significação de drû é
árvore em geral.
A reconstrução semântica adequada, segundo Benveniste, teria a base formal “1. der-
w-, 2. dr-eu-, com o sentido de ‘estar firme, sólido, são’” (p. 332), atestada por um conjunto
de formas, e dessa significação é que “*derwo-, *drwo-, *dreu- no sentido de “árvore”,
manifesta-se como “um emprego particular do sentido geral de o sólido, o firme”” (p. 332).
Dessa forma, foi pela expressão de solidez que se designou a árvore e particularmente o
carvalho, passando a ser o termo “árvore” (concreto) decorrente de fidelidade” (abstrato),
nas línguas germânicas. Isso evidencia o necessário alçamento dos empregos para a definição
das estruturas semânticas o recurso a critérios universais como o “concreto” e o “abstrato”
não se mostra satisfatório.
As relações sintagmáticas (stg) são determinantes para o estabelecimento das
estruturas semânticas de maneira que “carvalho” pôde ser associado ao termo fidelidade”
pelo recurso a um conjunto de formas atestadas pelo emprego que se fez delas. Retorna à
língua (dlc), então, trust como termo-base cujo sentido permitiu a criação de novas unidades
semânticas.
A nona e última exposição benvenistiana deste capítulo é apresentada com o
questionamento: “Poder-se-ão aproximar, na mesma família semântica, formas das quais
umas são partículas, e outras, formas verbais ou nominais, sem comum emprego sintático?”
(p. 333). A partir da análise de formas que se agrupam em torno do termo indo-europeu
*pot(i)- (chefe), Benveniste responde à questão.
A homofonia entre *pet-/*pot(i)- (chefe) e a partícula *pet-/pot(i)- (mesmo), registrada
80
na maioria das línguas, serve como ponto inicial para discutir sobre qual das duas classes se
tomará como ponto de partida na reconstrução de uma relação semântica. Tanto uma quanto a
outra direção já foram cogitadas, entretanto, ambas mostraram-se passíveis de falhas e não foi
possível discernir a ligação entre as duas formas *pot(i). Benveniste considera, então,
relevante observar como essas formas se distribuem e chega a uma partícula de um lado e a
uma forma nominal de outro, ou seja, trata-se de termos nominais.
Pela análise do emprego de cada termo, chega à definição da partícula de identidade
*pot(i)- como o ipse, o ser em pessoa” (p. 335), (*pet/pot- nominal, sufixado e
nominalizado) sempre acompanhado por uma determinação nas expressões mais antigas. O
termo*pet-/*pot(i)- (chefe) indica o valor de “a personagem representativa, um ipse investido
de autoridade na fração social, aquele a quem chamamos o ‘senhor’” (p. 336). Sendo assim, a
nominalização da partícula pet/pot- em -pot(i) e o emprego dessa partícula com um pronome
são fatores decisivos para reconstituir a história semântica do termo. O sentido de *pot(i)
(senhor) desenvolve-se nos sintagmas e nos termos compostos dos quais faz parte, como
segundo termo, e está ligado ao valor institucionalizado das designações criadas na sociedade
indo-europeia. Identifica-se, assim, a trajetória que determina a criação de um grupo nominal
a partir de uma partícula de identidade.
A ligação semântica dos termos, além da evidência formal, é resgatada no movimento
de sintagmação (stg), que confirma a fundação de um grupo nominal via empregos de uma
partícula. Para a língua, retorna (dlc) um termo cuja forma é capaz de originar inúmeras
possibilidades de sentido.
No quadro a seguir, uma síntese das análises aqui realizadas.
81
QUADRO 3 – Síntese esquemática do capítulo Problemas semânticos de reconstrução.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Story (inglês)
(narrativa e pavimento)
Evidencia:
dois sentidos possíveis e o
intercambiáveis.
qual o sentido assumido pelo
termo.
Fornece:
uma única forma para sentidos
em nenhum momento
intercambiáveis.
Voler (francês)
(voar e roubar)
dois sentidos. Um deles é
originário de um emprego do
outro.
qual o sentido assumido pelo
termo.
uma única forma para dois
sentidos, sendo um deles
originado por uma cisão da
unidade de sentido inicial.
Dhē- (indo-europeu), títhēmi
(grego) e facere (latim)
(estabelecer e fazer)
as possibilidades de sentido,
determinadas por ligações
particulares, decorrentes do
emprego das formas em cada
sistema linguístico.
formas e sentidos de acordo
com cada sistema linguístico
envolvido na tradução.
Tréphō (grego)
(nutrir)
uma forma para possibilidades
de sentidos que, originalmente,
pertencem a um campo
semântico unitário.
uma única forma com empregos
decorrentes de um campo
semântico unitário.
Dwei- (indo-europeu)
(temer e dois)
uma forma com dois sentidos
atestados como originalmente
idênticos.
uma única forma onde co-
existem dois sentidos.
Testa (latim) e tête (francês)
(cabeça)
sentido e forma do termo (tête)
originários de um outro sistema
linguístico.
um termo com sentido e forma
(essa com adaptações)
transpostos de um sistema
linguístico a outro.
Pánthāh (sâncrito)
(caminho)
uma forma com sentido
especializado de uma base
semântica geral.
Uma das significações
aparentadas em sistemas
linguísticos distintos.
Trust (línguas germânicas)
(fidelidade)
Um termo abstrato, com sentido
e forma passíveis de formações
concretas.
um termo-base abstrato cujo
sentido permitiu a criação de
novas unidades semânticas.
Pot(i)(indo-europeu)
(chefe)
a fundação de um grupo
nominal a partir de uma
partícula.
um termo cuja forma é capaz de
originar inúmeras possibilidades
de sentido.
82
Para Benveniste (1995), a consideração sobre o emprego, evidenciada no conjunto de
exemplos que ilustram sua proposição, permite não apenas aproximar sentidos distintos, mas
também justificar as diferenças ou as eliminar. Todos os casos apresentados nesse artigo,
publicado originalmente em 1954, surgem da observação de alguma semelhança formal e
atentam para o emprego dos termos como definidores de sentidos, fato com que comungamos,
visto que as noções semânticas, por serem substância e o forma (no sentido saussuriano),
requerem a descrição dos usos, a fim de que o sentido se particularize no âmbito do discurso.
Esse texto benvenistiano trata, então, da flutuação semântica dos termos, flutuação
essa que receberá pouso no emprego, cuja tarefa descritiva fica para o linguista realizar, por
meio da noção delocutiva da língua em emprego. Portanto, em sintagmação, a semantização
dos termos se estabelece, renovando o sistema por meio do processo delocutivo.
4.1.2 Eufemismos antigos e modernos
Sob o título de “eufemismos antigos e modernos”,
66
capítulo 25, Benveniste (1995)
discute dois sentidos opostos empregados para definir o termo grego εύφηµεῖν (eufemismo):
“dizer palavras de bom augúrio” e “evitar as palavras de mau augúrio” (p. 340) “guardar
silêncio”.
Afirmando que “emitir palavras de bom augúrio” é a significação própria de
eufemismo no vocabulário cultual e em todos os vocabulários especiais, o autor explica que o
registro do sentido negativo é resultante da ação do contexto sobre o sentido. Assim, define
que os empregos, ou seja, as situações de uso agem sobre o termo e permitem modificar o
eufemismo, segundo as normas de cada língua. Daí a definição aparentemente antitética do
termo. Nas claras palavras de Benveniste (1995), “só a situação determina o eufemismo” (p.
342), sendo, então, o alçamento da situação de emprego a condição para sua reconstrução
semântica.
Por uma análise do movimento sintagmático, por meio da aplicação de nossa fórmula
(L
E) Ͻ (S P) U stg = A, entendemos que o eufemismo constitui-se em seu emprego e fora
dele pode até deixar de sê-lo, pois a situação, permanente ou ocasional, determina a
expressividade da noção enunciada. Esse fenômeno é uma notável maneira de expressar o fato
de que são os usos que determinam o sentido. Devemos admitir, pois, que o eufemismo é o
fenômeno linguístico que comporta, em sua própria natureza, a capacidade inventiva de
66
Artigo originalmente publicado em 1949.
83
sentidos evidenciados somente em sintagmação.
É pelo retorno à língua que os sentidos são generalizados conforme as necessidades
socioculturais. No movimento em direção ao sistema, as formas eufemísticas perdem parte do
seu valor, que a força do eufemismo está atrelada ao emprego das formas em situações
variadas, segundo as normas de cada sistema linguístico.
QUADRO 4 – Síntese esquemática do capítulo Eufemismos antigos e modernos.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
εύφηµεῖν (grego)
eufemismo
67
Evidencia:
sentidos em formas
cristalizadas na língua
Fornece:
sentidos decorrentes de
necessidades socioculturais e
atreladas a formas
cristalizadas na língua.
4.1.3 Dom e troca no vocabulário indo-europeu
O texto “dom e troca no vocabulário indo-europeu”,
68
capítulo 26, apresenta um
estudo dos termos dom e troca, considerando a pré-história dos usos, ou seja, os fatos
apresentados pelo emprego desses termos nas línguas indo-europeias. Ao abordar os fatos,
Benveniste (1995) delimita os usos, determinantes do sentido, e os relaciona aos domínios da
economia e do direito e aos ritos religiosos, conforme o estudo de Marcel Mauss, e a outras
regras em áreas de toda ordem.
Parte da raiz dō- (dar) e a compara com o hitita - (tomar), chegando à significação
de , segundo o emprego, como o termo que abarca ou um ou o outro sentido “dar” e
“tomar”.
69
Daí a significação do verbo hitita. Mas, essas significações não são consideradas
opostas? Como, então, podem se manifestar numa mesma forma? A resposta está no emprego,
com a ressalva de que algumas línguas constituíram expressões antitéticas e diferentes para
“tomar” e “dar”, enquanto, em outras, a sintaxe do enunciado diferencia essas acepções. A
noção de troca sempre está atrelada ao valor de retribuição pertencente a diversos meios
(religioso, econômico, social, jurídico, etc.), sendo que muitos traços dos princípios de
67
Ocorre uma particularidade na análise desse termo, pois o exame, realizado pelo autor, não é do sentido do
próprio vocábulo eufemismo em emprego, mas de expressões que ilustram o emprego dessa noção.
68
Artigo originalmente publicado em 1951.
69
Exemplifica sua proposição com o “inglês take que admite dois sentidos opostos: to take something from s.o.,
“tomar”, mas to take something from s.o., “entregar (algo a alguém)” ” (p. 349).
84
reciprocidade ainda podem ser encontrados no nosso vocabulário – como em “dar uma
recepção, oferecer um banquete...; despesas” de alimentação, “sacrifícios” de bens,
assumidos como obrigações sociais, e dever de hospitalidade” (p. 359).
Fica evidente o entrelaçamento entre as expressões, as instituições e as representações
socioculturais dessas instituições através do vocabulário em emprego. As noções de dom e
troca, ao mesmo tempo em que definem as diversas transações estabelecidas, constroem a
própria história das instituições, já que, ao serem empregados os termos (stg), o sistema
recebe (dlc) formas com sentidos que traduzem suas trajetórias.
QUADRO 5 – Síntese esquemática do capítulo Dom e troca no vocabulário indo-europeu.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Dō- (raiz - indo-europeu)
(dom)
Evidencia:
possibilidade de sentidos em
situações diversas.
Fornece:
sentido atrelado a aspectos
socioculturais.
Mei- (raiz -indo-europeu)
(troca)
Possibilidade de sentidos em
situações diversas.
sentido atrelado a aspectos
socioculturais.
4.1.4 A noção de “ritmo” na sua expressão lingüística
No capítulo 27, “a noção de “ritmo” na sua expressão lingüística”,
70
Benveniste (1995)
apresenta um estudo sobre o sentido do termo “ritmo” com suas representações condicionadas
ao próprio emprego da palavra. Segundo o autor, a “vasta unificação do homem e da natureza
sob uma consideração do tempo”, de intervalos e de repetições semelhantes, teve como
condição o próprio emprego da palavra, a generalização, no vocabulário do pensamento
ocidental moderno, do termo ritmo” (p. 361). A noção, que vem do grego, através do latim, de
que o sentido da palavra ritmo (ῥυθµός) surgiu dos movimentos regulares das ondas do mar, é
questionada. O autor considera que repousa sobre dados não confiáveis. Descreve, então, o
emprego do termo na alta antiguidade e desfaz a confusão. Através das evidências no
emprego do termo, revela que ῥυθµός (forma) nunca significou ritmo até o período ático; que
nunca se aplicou ao movimento das ondas e que o sentido constante é “forma distintiva, figura
70
Artigo originalmente publicado em 1951.
85
proporcionada, disposição” (p. 366), conforme atestado em variados empregos.
Parte, assim, para a análise do sentido original forma” ligada à noção de ritmo e
chega ao sentido moderno do termo, como resultante de uma especialização do sentido
original ῥυθµός - único registrado a o século V. A descrição da trajetória do termo,
segundo seus empregos (stg), revela a ligação do sentido atual com o tradicional e o processo
percorrido na modificação da concepção primeira até o sentido hoje corrente. Isso modifica o
conhecimento que se tinha sobre o termo e elimina propostas simplistas sobre reconstruções
semânticas.
Por sintagmação, a língua recebe o termo (E
L) com sentidos especializados e
evidenciados na trajetória dos empregos.
QUADRO 6 – Síntese esquemática do capítulo A noção de “ritmo”.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Rythme (francês)
(ritmo)
Evidencia:
a especialização de um
sentido por intermédio da
análise evolutiva dos
empregos.
Fornece:
um sentido especializado e
associado a aspectos
evolutivo-temporais.
4.1.5 Civilização – contribuição à história da palavra
Encerra a seção Léxico e cultura, do PLG I, um estudo sobre a palavra civilisation que,
segundo Benveniste (1995), é um dos termos mais importantes do léxico moderno, por
apresentar uma nova visão do mundo e comportar noções fecundas ligadas a ela. Esse artigo –
“civilização – contribuição à história da palavra”,
71
limita-se aos primeiros empregos do
termo em francês, oferecendo um inventário do processo originário dos usos. O ano de 1757 é
assinalado como a data do surgimento da palavra civilisation, na obra l’Ami des hommes ou
Traité de la population, do marquês de Mirabeau, conforme o seguinte fragmento: “Com
justiça, os Ministros da Religião têm o primeiro lugar numa sociedade bem ordenada. A
Religião é seguramente o primeiro e mais útil freio da humanidade: é a primeira moda da
civilização; prega-nos e lembra-nos sem cessar a confraternidade, suaviza-nos o coração, etc”
(p. 373), seguido por outros empregos do termo na sequência do trabalho desse precursor.
Dos empregos de civilisation, emerge o sentido do termo como “um processo do que
71
Artigo originalmente publicado em 1954.
86
se denominava a então police, ato que visava tornar o homem e a sociedade mais
‘policiados’” (p. 375), assim entendido, usado e multiplicado por escritores a partir de 1765.
Quanto à tardia inserção do termo à língua francesa, enquanto civiliser e civilisé estavam
estabelecidos no sistema, Benveniste indica duas razões: uma é a raridade de palavras com a
terminação –isation; a outra é a novidade do sentido diante da concepção tradicional do
homem e da sociedade. Na Inglaterra, a história do termo se repete em condições semelhantes
e em contemporaneidade com o aparecimento do termo em francês. Fica a dúvida com relação
à difusão do termo ter sido oriunda da criação em francês ou de o termo ter sido “inventado”,
concomitantemente, duas vezes, na França e na Inglaterra e se expandido pela Europa. Para
responder a tal questão, Benveniste sugere novas pesquisas.
A sintagmação do termo molda o sentido inicial, estabelece as bases formais para a
sua expansão e registra o seu aparecimento concomitante em francês e inglês, entretanto não
esclarece se um sistema teve influência sobre o outro na criação, ou se o neologismo apareceu
em cada língua separadamente.
Da trajetória inversa (E
L), comprovamos a aceitação de um sentido do termo em
sistemas linguísticos distintos e em circunstâncias de uso diversas. Na delocução ocorre,
portanto, a renovação das línguas francesa e inglesa, com formas aparentadas, mas adaptadas
a cada sistema linguístico.
QUADRO 7 –ntese esquemática do capítulo Civilização contribuição à história da palavra.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Civilisation (francês)
(civilização)
Evidencia:
aparecimento do termo em
sistemas linguísticos
distintos.
Fornece:
sentido idêntico num e noutro
sistema linguístico, com
forma adaptada a cada
sistema.
4.2 Léxico, significação e Cultura no PLG II
Nesta seção, contemplamos os cinco artigos da seção Léxico e Cultura, do PLG II,
que, conforme registramos, tratam do componente lexical e, por nosso viés de análise,
permitem evidenciar uma possibilidade de tratamento do léxico no âmbito do discurso, por
meio da noção de delocutividade. As cinco seções apresentadas a seguir seguem a mesma
ordem de exposição dos artigos no PLGII.
87
4.2.1 Difusão de um termo de cultura: o latim orarium
No capítulo 16 - “difusão de um termo de cultura: o latim orarium”,
72
encontra-se
descrito o percurso histórico-evolutivo do termo orarium
73
(do latim a outras línguas). O
registro, no Novo Testamento, da palavra σουδάριον, “toalha, lenço” é definido como o início
da trajetória do termo em questão. A Vulgata traduz a palavra para sudarium “lenço para
enxugar o suor”. Entretanto, duas passagens do Novo Testamento, a saber, João, 11, 14
74
e
João, 20, 7
75
, segundo Benveniste, fizeram com que sudarium passasse a significar “pano que
envolve a cabeça dos mortos”, sendo que o termo permanece como orarium em uma tradução
latina mais antiga (Itala) constituindo-se, então, uma particularidade interessante: orarium e
sudarium permaneceram para a mesma noção.
A história dos termos sudarium e orarium, no latim, explica-se em termos estilísticos e
por intermédio do uso. Para Benveniste (1989), sudarium, pertencente à língua clássica, se
impôs e orarium, uso mais comum, encerrou sua existência como praticamente sinônimo de
sudarium. No século VI, o termo orarium passou a significar a peça de fazenda que o
diácono trazia sobre o ombro esquerdo” (p. 249) e que, entre os séculos XI e XII, foi
substituída por “stola” termo eclesiástico, não mais de uso comum, ou seja, constitui-se um
termo novo, definido fora do latim e amplamente difundido a partir do grego. Em síntese, o
sentido inicial de orarium foi substituído por sudarium e a nova designação do termo foi
substituída por “stola”.
Em sua trajetória, orarium foi sempre considerado em suas relações sintagmáticas, ou
seja, a compreensão da constituição do sentido se tornou viável via observação do
fenômeno (os empréstimos, sua permanência, em detrimento de outros termos, e sua
substituição) em suas possibilidades de uso. Orarium e sudarium são termos quase sinônimos
e as alterações ocorridas em suas trajetórias a as significações hoje existentes foram
considerados na situação de uso dos termos. Dessa forma, perpassa, nesse texto, também, a
concepção de que os usos (stg) delimitam os sentidos assumidos pelo termo.
A evidente trajetória do movimento da língua para o discurso (L
E) se estabelece e
fornece o aparato teórico para a construção de uma análise descritivo-enunciativa do sentido
da palavra; entretanto, mais uma vez, observemos o termo latino orarium e busquemos o
processo E
L e suas possibilidades. Na análise do movimento de retorno à língua,
72
Artigo originalmente publicado em 1969.
73
O termo latino orarium designa um pequeno lenço para limpar a boca, o rosto, conforme Faria (1962).
74
Vulgata “facies illius sudario erat ligata (seu rosto estava coberto por um pano branco)”.
75
Vulgata “sudarium quod fuerat super caput eius (o pano que estava sobre Sua cabeça (de Jesus))”.
88
evidenciam-se as palavras de Benveniste “O destino de orarium se teria, sem dúvida,
encerrado aí e a palavra não teria conhecido outra notoriedade se uma circunstância
imprevista o lhe houvesse aberto uma nova carreira” (p. 249), ou seja, “a nova carreira”,
definida pelo autor, é justamente a comprovação de que um termo assume sentidos em
circunstâncias de uso e esses (sentidos) passam a fazer parte do sistema e o renovam. O autor
comprova, por meio do emprego (stg), a renovação da ngua (dlc), quando, em seu estudo
diacrônico do termo, atrela as modificações de forma e sentido a situações de uso – decorrente
desses usos, a língua se configura e se renova.
QUADRO 8 –ntese esquemática do capítulo Difusão de um termo de cultura: o latim orarium.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Orarium (latim)
(estola)
Evidencia:
- a existência de duas
formas e um sentido;
- a absorção de uma forma
pela outra;
- que a forma absorvida
admite novo sentido;
- que o novo sentido
acolhe nova forma.
Fornece:
sentidos e formas mutantes e
atrelados à análise do aspecto
evolutivo-temporal.
4.2.2 Gênese do termo “scientifique”
No estudo de scientifique (científico), no capítulo 17 - “gênese do termo
‘scientifique’”,
76
Benveniste (1989) busca a história lexical desse adjetivo e, para isso, retoma
sua articulação derivacional com o termo science (ciência), evidenciando uma situação
singular relativa a essa relação. Para o autor, a óbvia relação derivacional que esses termos
impõem é apenas aparente, pois teria sido mais natural a utilização das terminações em –ico
ou –al (ciêntico-ciencial), comumente usadas para criação de termos relativos à ciência
(átomo/atômico; espaço/espacial), entretanto o adjetivo scientifique, com o sufixo –fique (-
fico), estabeleceu-se e reina em francês, como um derivado em –fique a partir de um
substantivo abstrato – o que o coloca em situação singular.
É preciso registrar que scientifique significa “que faz ciência”, que produz, que
76
Artigo originalmente publicado em 1969.
89
promove ciência e não apenas “de ciência” e o caráter originário do termo evidencia essa
concepção, já que, ao contrário do que se acreditava, scientifique vem do latim scientificus,
77
e
não de uma formação na língua francesa. Ainda, o registro da evolução do termo science
permite encontrar scientialis (ciential) como derivado que não sobreviveu nas línguas
modernas.
Para Benveniste, o inventário histórico do termo science fornece a compreensão do
atual sentido e da consequente forma desviante da derivação normal oferecida pela ngua
francesa. Da sintagmação do termo scientifique, obtemos a própria definição que lhe foi
atribuída em língua latina e, assim, passada diretamente para o francês. Expliquemo-nos: tal
definição resulta do reconhecimento dos empregos nos quais foi produzido tal adjetivo o
que faz com que, na sintagmação, defina-se a origem (do sentido e da forma), transposta de
um sistema linguístico a outro, e revele-se a manutenção do sentido do termo na língua
francesa.
Quanto ao movimento de retorno à língua (dlc), consideramos que a generalidade dos
empregos do termo e sua expansão às nguas modernas do Ocidente não implica
modificações de sentido, mas manutenção da existência de scientifique atrelado à noção de
ciência e dela indissociável.
QUADRO 9 – Síntese esquemática do capítulo Gênese do termo “scientifique”.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Scientifique (francês)
(científico)
Evidencia:
a eleição de um sentido e de
uma forma (-ficus para -
fique), embora essa com
adaptações, originários de um
outro sistema linguístico.
Fornece:
um termo com sentido e
forma transpostos de um
sistema linguístico a outro.
4.2.3 A blasfemia e a eufemia
No artigo 18 – “a blasfemia e a eufemia”,
78
Benveniste (1989) desliza entre os
referidos conceitos, evidenciando similaridades e diferenças entre ambos. Para o autor, essas
77
Em conformidade com bene-ficus “que faz bem”, honori-ficus “que faz honra”, classe de compostos produtiva
até o baixo Império.
78
Artigo originalmente publicado em 1969.
90
noções são opostas, porém, de suas ações conjuntas, surge a imprecação.
79
Essa (a
imprecação) é a blasfemia por excelência; manifesta-se como a exclamação (“nome de
Deus!”; “sagrado nome de Deus!”; “Madona, Virgem!”, Diabo!” (p. 261 e 262) e inúmeras
variações), tem a sintaxe das interjeições e utiliza apenas formas significantes; sua origem e
unidade surgem da necessidade de violar a interdição bíblica de profanar o nome de Deus,
consistindo, então, em “substituir o nome de Deus por sua injúria” (p. 260) o que profana o
próprio nome de Deus. Nas línguas ocidentais, para invocar o nome de Deus fora do culto é
socialmente exigido uma situação solene que é o juramento compromisso mais grave que o
homem pode absorver assim como a falta mais grave em caso de perjúrio. Dessa forma, a
imprecação é também um juramento só que de ultraje e se manifesta em determinadas
circunstâncias. Daí o pensamento benvenistiano de que a imprecação é a palavra que se
“deixa escapar” em situações fervorosas diversas, constituindo-se em uma resposta expressiva
ao acontecimento, sem suscitar sequer um interlocutor presente.
A eufemia, mesmo mantendo o quadro locucional da blasfemia, introduz três
modificações:
a) substituição do nome de “Deus” por outro termo (inocente). Exemplo: “nome de Deus!”
por “nome de um cachimbo!” (p. 262);
b) mutilação do nome de “Deus” por aférese da final. Exemplo: par Dieu! > “pardi!”
80
(p.
262);
c) criação de uma forma de non-sense no lugar da expressão blasfêmica. Exemplo: par de
sang de Dieu!” converte-se em “palsambleu!” (p. 262).
Assim, segundo o autor, a blasfemia suscita uma eufemia que a mascara, atenuando ou
disfarçando a profanação, que passa a ser mais da linguagem, por desviar da alusão ao nome
de “Deus”. É, nesse movimento, que os conceitos se ligam e constroem a imprecação.
A imprecação manifesta-se a partir da sintagmação dos termos, ou seja, é na
sintagmação que a blasfemia e a eufemia se associam e significam. Dessa maneira, do
movimento da língua para a enunciação (L
E) estabelece-se a imprecação, com variadas
possibilidades de forma, conforme menção acima. Do retorno à língua (E
L), salientamos
as novas formas oriundas do ato de enunciar e associadas à situação do acontecimento que,
embora, segundo Benveniste, não exija o interlocutor presente, ao serem proferidas, as novas
79
Para Benveniste (1989), a imprecação pertence à linguagem, mas sua singularidade normalmente deixa o
linguista sem saber o que fazer, remetendo suas expressões típicas ao léxico ou à fraseologia, sem prender-se às
formas específicas da expressão.
80
Não achamos pertinente a tradução desse exemplo, assim como o do item c, por não haver, em português, uma
forma similar que mantenha a idéia assumida nas expressões francesas.
91
formas funcionam como se Deus fosse o interlocutor acionado, a fim de que a descarga
emotiva do locutor encontre pouso.
QUADRO 10 – Síntese esquemática do capítulo A blasfemia e a eufemia.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Dieu (francês)
(Deus)
Evidencia:
a utilização de uma forma
neutra qualquer já existente
na língua para o
estabelecimento eufemístico
do sentido do termo,
conforme (a);
uma nova forma léxica a
partir da aglutinação de
formas já existentes com a
manutenção do sentido (b);
uma nova forma léxica
para o sentido cristalizado
(C).
Fornece:
novas formas, decorrentes de
necessidades socioculturais e
atreladas a significações
cristalizadas na língua.
4.2.4 Como se formou uma diferenciação lexical em francês
81
A relação entre a forma e o sentido também é discutida no artigo 19 “como se
formou uma diferenciação lexical em francês”,
82
no entanto por um novo viés. Duas formas
léxicas similares, do francês moderno, o verbo amenuiser (tornar mais diminuto) e o
substantivo menuisier (obreiro que trabalha a madeira), o consideradas em relação aos seus
significados distintos.
81
Lichtenberg (2006), ao desenvolver o estudo “Sintaxe da Enunciação: noção mediadora para o reconhecimento
de uma linguística da enunciação”, embora assim o tenha denominado, inscreve seu estudo na esfera da
semântica, por entender a sintaxe da enunciação como o mecanismo linguístico exigido pelo sentido expresso e
desencadeado pelo “trabalho exercido pelo locutor na e com a língua”. Em seu estudo, elege, além de textos que
notadamente tratam de sintaxe da seção Funções sintáticas títulos gerais, tendo o artigo Como se formou
uma diferenciação lexical em francês”, aqui estudado, contribuído para ampliar a noção de sintaxe proposta pela
autora. É perceptível que a noção de sintaxe da autora é semântica, ou seja, a inter-relação entre esses dois
campos é indissociável e, com isso, e, por isso, a sintaxe da enunciação vai além das percepções sobre os textos
apresentados nas funções sintáticas. É do próprio Benveniste esse não reducionismo do tratamento da sintaxe no
discurso, ao que tradicionalmente se conhece por sintaxe, pois, ao longo de sua obra (PLG I e II) e não somente
em capítulos onde se esperaria encontrar tal estudo, encontra-se uma sintaxe da enunciação, conforme
demonstra Lichtenberg. Da seção Léxico e cultura, foi analisado, além do artigo supracitado, o texto Dois
modelos lingüísticos da cidade”, a ser referido na próxima subseção.
82
Publicado originalmente em 1966.
92
Na tentativa de verificar se tais signos pertenceram à mesma família, devido à
proximidade formal, e, ao haver origem comum, quais fatores os dissociaram, Benveniste
busca, na língua latina, a descrição do adjetivo minutus (diminuído, enfraquecido, diminuto,
pequeno) e seus derivados, visto que podemos presumir certa aproximação entre o verbo
amenuiser e o adjetivo menu. A mudança de estatuto do termo minutus, de particípio para
adjetivo, é que o aproxima do sentido de menu”, sendo que o substantivo menuisier jamais,
em língua latina, teve proximidade designativa, quer por termos compostos ou derivados, com
o adjetivo minutus; menuisier o tem ancestral latino, quer de forma ou de sentido, conclui
Benveniste (1989). O francês refez o caminho traçado no grego antigo, sem passar pelo latim:
especializou menuisier para “artesão de madeira”, havendo seu distanciamento de menu e de
seu derivado amenuisier.
83
Ao evidenciar a relação formal, ou a falta dessa, entre signos com proximidades
associativas em uma língua moderna (francês), podemos dizer que Benveniste, em mais esse
artigo, remete à trajetória dos signos, a fim de que, no emprego desses signos (já palavras), ou
seja, na história dos usos em sincronia, se evidencie se ou não proximidade semântica
original. No exame dos termos em questão, a proximidade formal o corresponde a uma
proximidade semântica dos termos enquanto signos ou palavras estudados em suas trajetórias
evolutivo-temporais, mas sempre em análise sincrônica. A busca pelo sentido em sintagmação
acentua-se mais uma vez e é evidenciada em um exemplo como “faire mettre ladite maison et
ses appartenances em bon et souffisant point et estat de m(i)enuierie, charpenterie et autres
repartions”
84
(p. 274) que ilustra o aparecimento do sentido técnico do termo marcenaria e o
exemplo “Cada ofício tinha seus menuisiers, os “huchiers tanto quanto os ourives, os
louceiros de estanho, os serralheiros, etc ...(p. 275) que sinaliza a instituição simultânea do
nome do artesão (marceneiro) em uma das várias possibilidades de emprego.
Do movimento de retorno ao sistema (E
L), sobressai-se o sentido especializado no
emprego dos termos cuja evolução histórica é detalhada no recorte diacrônico apresentado
pelo autor.
83
Lichtenberg (2006) confere ao sentido o fato de a língua eleger, dentre as formas possíveis, uma que assuma,
em determinado momento, um novo lugar e dele passe a atender funcionalmente.
84
Tradução conforme a edição brasileira do PLG II: “Fazer colocar a dita casa e seus pertences em estado bom e
suficiente de marcenaria [m(i)enuierie] carpintaria e outras especialidades” (p. 274)
93
QUADRO 11Síntese esquemática do capítulo Como se formou uma diferenciação lexical
em francês.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Amenuisier (francês)
(diminuir)
Evidencia:
a existência de formas
assemelhadas que o
indicam sentidos próximos
ou originalmente ligados.
Fornece:
a especialização do sentido
em sincronia, mas atrelado à
análise do aspecto evolutivo-
temporal.
Menuisier (francês)
(marceneiro)
a existência de formas
assemelhadas que o
indicam sentidos próximos
ou originalmente ligados.
a especialização do sentido
em sincronia, mas atrelado à
análise do aspecto evolutivo-
temporal.
4.2.5 Dois modelos lingüísticos da cidade
O capítulo que encerra a seção Léxico e cultura, do PLG II– “dois modelos
lingüísticos da cidade”,
85
trata do termo cité (cidade), com o intuito de precisar sua correlação
com derivados, na perspectiva de inventariar, via elementos formais e conceituais, aspectos
ligados à cultura, a partir da relação entre língua e sociedade. A conclusão de Benveniste
(1989) aponta duas formas distintas de considerar a relação do termo base e seu derivado: na
língua latina, a base é civis (cidadão – é o cidadão da civitas) e o derivado civitas (cidade – é a
sede da civilização); no modelo grego, a base é polis (cidade) e o derivado polítés (cidadão),
exemplo seguido pelo francês ci: citoyen, e revelador de uma inversão no processo
derivacional.
86
Civitas (derivado) e polis (base) tão semelhantes e intercambiáveis, em termos
de sentido, constroem-se, entretanto, por caminhos opostos.
Quando o autor identifica a relação intralinguística entre o termo base e um derivado,
configura a possibilidade de uma situação paralela no campo das realidades sociais.
Benveniste define, com esse texto, que a relação entre a cultura e a língua de um povo pode
estar atrelada à própria formação lexical do termo e que o resgate histórico de seus processos
formativos pode não evidenciar somente a língua, mas a própria constituição política desse
85
Originalmente publicado em 1970.
86
Para Lichtenberg (2006, p. 130) a “inversão que Benveniste comprova só pôde ser percebida porque é
mobilizada a noção de sentido. Pela noção de forma e sentido, se recupera todo o trabalho com a língua, relativo
à derivação: o derivado nada mais é do que a “forma sintagmatizada” ”. Em conformidade com a autora, é das
relações entre as formas que o sentido emergirá.
94
povo.
A não simetria no percurso de civis e polis, evidenciada na análise benvenistiana, pode
ser entendida, no processo de sintagmação (stg) dos termos, por meio da consideração do
sentido da forma derivada. Assim, a relação civis
civitas o se pelo simples acréscimo
de –tas, mas pelo que esse acréscimo significa. A diferenciação na constituição derivacional
dos termos somente pode ser evidenciada a partir da contemplação do sentido no emprego
desses termos, ou seja, é pelo sentido que o aspecto formativo invertido de polis e civis será
revelado. Por uma análise que não contemplasse o sentido em uso, como decorrente da
relação entre as formas sintagmatizadas, não seria possível compreender as implicações
linguísticas e extralinguísticas de tal constituição.
Quanto ao retorno à língua (dlc), a relação civis
civitas, assim como polis polítés,
sinaliza que nessa trajetória (E
L) o termo decorrente tem como ponto de partida o sentido
e a forma do termo base. A renovação da língua dá-se, justamente, pelo e no fato de o
movimento de delocução devolver para a língua um termo (em sentido e forma) contaminado
pelo emprego (stg) que dele foi feito e revelador de realidades sociais.
QUADRO 12 – Síntese esquemática do capítulo Dois modelos lingüísticos da cidade.
TERMO SITAGMAÇÃO DELOCUÇÃO
Civis (latim)
(cidadão)
Evidencia:
o sentido do termo base e a
possibilidade derivacional
(de sentido e de forma) de um
termo abstrato (civitas).
Fornece:
forma e sentido da palavra-
base e do derivado atrelados
a aspectos socioculturais.
Polis (grego)
(cidade)
o sentido do termo base e a
possibilidade derivacional
(de sentido e de forma) de um
termo adjetivo (polítés).
forma e sentido da palavra-
base e do derivado atrelados
a aspectos socioculturais.
4.3 Léxico, forma e sentido em enunciação benvenistiana
Os capítulos pertencentes à seção Léxico e cultura do PLG I e II tratam, notadamente,
de estudos sobre formações léxicas em processo de constituição de sentido. Vale lembrar que
diferentes abordagens temáticas foram utilizadas (reconstrução semântica; origem, troca e
permanência de significados no xico; proximidades semânticas e formais...), o que não
95
rompeu com a unidade da seção, visto que, em todos os capítulos, os processos de formação
do léxico estão agregados à noção de constituição de sentido(s) em emprego, noção que
sobressai no ato de delinear os objetivos dos artigos propostos. Conforme registro no prefácio
do PLG I, é o destaque do papel da significação e da cultura que se objetiva com essa seção e
o entrelaçamento de ambas se pela consideração dos usos como processo de reconstrução
semântica dos termos.
Dos dez capítulos revisitados, temos como elemento comum e integrador as noções de
forma e sentido. Interessante observar o viés proposto pelo autor: é, no mínimo, instigante
procurar, na articulação das formas léxicas, um movimento que promova um sentido e
Benveniste o fez. Já, na abertura da referida seção, do PLG I, o autor informa, com
propriedade, sua proposta de reconstrução semântica: “o ‘sentido’ de uma forma linguística se
define pela totalidade de seus empregos, pela sua distribuição e pelos tipos de ligações
resultantes” (PLG I, p. 320) e, assim, considerando os empregos e suas ligações, promove
todas as análises linguísticas que compõem essa seção.
Mesmo que os artigos formadores da seção do PLG I sejam datados entre 1949 e 1954,
parece estar subjacente o modo semântico
87
de ser língua como articulador das noções de
forma e sentido. Fato que também se manifesta nos artigos do PLG II, porém não surpreende,
visto que os artigos selecionados para essa seção foram produzidos entre 1966 e 1970 e estão,
pois, inseridos no seio da proposta de descrição linguística marcada pelo emprego da língua,
atualizada em discurso.
Embora se salientem, no PLG I e II, as duas seções apresentadas anteriormente como
as que tratam especificamente do léxico, o interesse de Émile Benveniste pelos fenômenos
lexicais não se resume a elas. Optamos em considerá-las por encontrarmos de forma explícita
a proposta de discussão do léxico, ou por acreditarmos encontrar no conjunto de exemplos
dessas seções o estudo do xico em emprego, ou seja, marcado pela enunciação - donde o
movimento de sintagmação emerge e atualiza a língua e a volta ao sistema, por meio do
movimento de delocução, promove sua renovação. Fato comprovado, porém reforçado e
complementado, no artigo Os verbos delocutivos,
88
da seção O homem na língua, do PLG I,
quando Benveniste lança uma proposta de estudo do léxico, marcada pela passagem da
palavra ao signo, ou seja, do discurso à língua, via uma amostragem de verbos cuja formação
87
Data de 1969 e 1966, respectivamente, os artigos Semiologia da língua e A forma e o sentido na linguagem, de
Benveniste, que, conforme citado na seção 1.1, delinearam o modo semiótico e semântico de significação na
língua.
88
Vale lembrar que uma discussão ampliada sobre as questões teóricas inerentes à noção de verbos
“delocutivos” foi registrada no capítulo dois deste estudo.
96
é oriunda do ato de enunciar – fato que entendemos não se resumir aos verbos. Cabe observar
que esse artigo pode servir como um princípio metodológico de definição de elementos do
discurso, na língua, evidenciados pelo fato de o emprego da língua permitir a construção
léxica oriunda do próprio fato de colocar a língua em funcionamento o que configura a
delocutividade como uma atividade do discurso, renovadora da língua. Cremos que a análise
linguística realizada nesse artigo, que também trata do léxico, mas por um outro viés, permite
instituir nossa proposta de análise, marcada pelo reconhecimento da manifestação do sujeito
em processo de criação léxica. Implicações linguísticas oriundas dessa nossa proposição serão
observadas no capítulo cinco desta tese.
5 IMPLICAÇÕES LIGUÍSTICAS EM SE COSIDERAR A
REOVAÇÃO DA LÍGUA ATRELADA A ATIVIDADES DO
DISCURSO
Ao assumirmos a língua como resultante de atividades do discurso, determinadas
repercussões, atreladas a essa tomada de posição, são passíveis de avaliação. Elencamos, a
seguir, quatro seções com o intuito de examinar algumas implicações. Como ponto inicial de
nossa abordagem (cf. 5.1), discutimos a pertinência de noções linguísticas (da língua) quando
consideradas, em âmbito do discurso, a partir do reconhecimento do movimento de delocução
como renovador da língua. Na sequência (cf. 5.2), contemplamos as implicações relativas à
aplicação de nossa proposição em dimensões do ensino de línguas. Na terceira seção (cf. 5.3),
tratamos de questões epistemológicas provenientes de nossa proposição e, por fim (cf. 5.4),
encerramos nossa proposta de analisar e/ou descrever a renovação da língua pelo viés da
enunciação com um registro conclusivo oriundo de nossa reflexão em torno da realização
desta tese.
5.1 Implicações para a análise de fenômenos linguísticos
Delimitamos, para essa seção, a abordagem de certas questões ligadas a diferentes e/ou
novas possibilidades de acepções que alguns fenômenos linguísticos podem comportar
quando considerados no âmbito do discurso e a partir da noção delocutiva. Vale lembrar que,
no capítulo dois desta tese, conceituamos a noção de delocutividade como um mecanismo que
se estende à língua toda e a todos os seus componentes; é um processo que revela a
manifestação do discurso em direção à língua, por meio da percepção de como ocorre esse
movimento de retorno à língua a partir da enunciação. O processo delocutivo desvenda,
98
portanto, como ocorre a renovação da ngua como sistema; serve-se dos indícios fornecidos
na e pela sintagmação da língua e fornece as significações que brotam e se estabelecem,
constituindo a língua como sistema de signos. Diante dessa perspectiva, cabe reparar
fenômenos descritivos de formação da língua, voltando-se atenção especial para a
delocutividade no sentido aqui expresso.
Não é nosso intuito esgotar possibilidades de releitura de acepções linguísticas, a partir
do acolhimento da delocutividade como processo renovador de língua. Nosso intento é
problematizar a questão, evidenciando a necessidade de que sejam consideradas, numa
revisão conceitual amplificada, as particularidades que emergem em se considerar a noção
delocutiva pelo viés a que nos propusemos.
Ressaltamos que poderíamos considerar qualquer fenômeno linguístico no intuito de
averiguar as implicações decorrentes da noção de delocução aqui estabelecida. Entretanto, não
pretendendo percorrer por pormenores, assinalamos questões gerais que precisam ser
reanalisadas pelo fato de, em nossa opinião, comportarem discussões e reajustes ao serem
observados a partir da delocução. Nesse enquadramento, fenômenos como:
categorias lexicais;
processos de formação de palavras;
funções da formação de palavras;
lexicalização;
figuras de linguagem;
relações léxicas,
unem-se num quadro de investigações cujas interpretações futuras, ao adotarem a delocução
como parâmetro interno ao campo do discurso, constituem um vasto espaço para
problematização sobre as descrições léxicas. Não nos esqueçamos de que, habitualmente, a
formação de novas unidades da língua coloca em evidência as noções de forma e sentido, só
que tais noções inseridas no domínio semiótico de significância da língua, ou seja, é a
formação do sistema linguístico que está sendo vista no próprio viés do sistema. A questão é
saber como se comportariam tais noções e os fenômenos (supracitados) que as descrevem e
aplicam no e pelo modo semântico de significância da língua? Ou ainda, os fenômenos
linguísticos descritos podem ser adotados num e noutro âmbito de significância da língua,
sem que a eles seja delegada nenhuma modificação? Cremos que não – o que constitui apenas
uma possibilidade e não uma certeza já evidenciada. Por esse viés, os fenômenos listados
transformam-se em hipóteses de trabalho com o léxico e, como hipóteses, servem, então, de
99
indícios para o estabelecimento de novas pesquisas, a partir do entendimento da
delocutividade como renovadora da língua.
5.2 Implicações aplicadas
Ao se considerar a noção delocutiva conforme aqui descrita, tornamo-nos natural e
incondicionalmente neólogos, pois, ao concebermos a presença do homem na língua para
atribuição de significações, projetamos uma fonte de novos sentidos, evidenciados nas
relações construídas em cada enunciação. Dessa ação contínua e oriunda dos atos
enunciativos promovidos pelos locutores, manifesta-se certa desestabilização dos sentidos
convencionalmente institucionalizados, que significações inusitadas podem vir a compor o
sistema porque receberam contornos delineados pelo uso da palavra em circulação no
discurso. Dessa forma, ao acolhermos a noção delocutiva, certamente, teremos de admitir os
efeitos desencadeados por essa tomada de posição.
Uma das consequências dessa apreensão deve manifestar-se nas práticas do ensino de
línguas. Entendemos que a mediação entre a pesquisa sobre a língua/linguagem e o ensino
deva ser atendida, pois essa inter-relação, embora imperativa, ainda mantém-se com fronteiras
delineadas e de transposição pouco conciliadora. Se, de um lado, temos inúmeros estudos que
abordam a linguagem como tema central de discussões na busca pelo conhecimento, de outro,
temos o contexto escolar, no ensino médio e fundamental, com visíveis dificuldades no que
concerne ao desenvolvimento das habilidades ligadas ao ensino de nguas (compreender a
linguagem oral, ler, falar e escrever) (Widdowson, 1991). Compreendemos tal disparidade a
partir do conhecimento não socializado entre aqueles que produzem o conhecimento e os que
se dedicam ao ensino de línguas. Gera-se, então, um ambiente de inquietação que se configura
como altamente positivo, por apontar a mediação entre a pesquisa linguística e ensino de
línguas como condição sine qua non para o estabelecimento profícuo da aprendizagem.
Nessa perspectiva, registramos nossa contribuição para questões práticas de ensino de
línguas. Como uma possibilidade a ser explorada, aventamos o trabalho com os âmbitos de
significância, conforme o ponto de vista benvenistiano, pois esse procedimento forneceria
valorosos subsídios para a aprendizagem de línguas. Dessa forma, o ensino estaria alçado
também sobre o emprego dos elementos da língua, de maneira que as significações possam
ser entendidas por uma dupla dimensão significações da língua e significações do discurso
que a renova por meio do processo de delocutividade. Ao se considerar a delocução,
reconhece-se a presença do homem na língua e isso implica a conscientização de que, sendo a
100
língua resultante do emprego que dela se faz, é indispensável a percepção dos empregos para
o desenvolvimento das habilidades linguísticas que envolvem uma prática de ensino de
línguas. Caso contrário, como dar conta de enunciações como:
a) um cumprimento realizado através do enunciado Oh meu!
89
, ou
b) uma solicitação feita por meio de Deu?, ou de Chega!, ou ainda,
c) a formulação de compostos, como pega-ricardão que denomina a construção de uma casa
com apenas uma porta e, por isso, popularmente, foi assim nominalizada?
E mesmo, de que vale promover a aprendizagem de simples expressões sem se
apreciar os fenômenos que as desencadeiam e as estabelecem no sistema ou as excluem dele?
Ao que parece, pôr em prática a noção de delocução, como atividade do discurso renovadora
da língua, evidenciaria muitas significações que se mantêm submersas quando não se faz
alusão aos fatores que intervêm na construção de significações em emprego. Talvez, as
lacunas na aprendizagem de línguas possam estar justamente na falta de uma abordagem que
manifeste a delocutividade na língua. Talvez falte a percepção do movimento de retorno à
língua, a partir do uso, para que a aprendizagem se consolide. Embora sejam apenas
conjecturas, cremos nessa possibilidade.
5.3 Implicações epistemológicas
Cabe relembrar que a proposta enunciativa de Émile Benveniste jamais se dissociou
dos fundamentos da linguística saussuriana. Conforme registramos no primeiro capítulo desta
tese, muitas e seguras pistas da filiação benvenistiana ao quadro teórico saussuriano,
90
tornando-se incontestável a herança, no pensamento linguístico de Benveniste, daquilo que o
mestre de Genebra lucubrava em seu Curso. Por outro lado, a citação do que Flores (2008)
chamou de “intuição enunciativa de Saussure” confessa a pretensa alusão aos estudos
enunciativos no pensamento de Saussure. A passagem que desencadeou tal certificação
introduz o capítulo “Identidade, realidade, valores”, do Curso de Linguística Geral (1974, p.
125-6):
89
Expressão típica da gíria adolescente.
90
Flores (2008, p. 15) afirma que a Linguística da Enunciação não só é tributária do sistema saussuriano
mesmo que não se encerre nele – como somente pode ser definida em sua relação com ele”.
101
Quando, numa conferência, ouvimos repetir diversas vezes a palavra Senhores!,
temos o sentimento de que se trata, toda vez, da mesma expressão, e, no entanto, as
variações de volume de sopro e da entonação a apresentam, nas diversas passagens,
com diferenças fônicas assaz apreciáveis quanto as que servem, aliás, para distinguir
palavras diferentes (cf. fr. pomme, ‘maça’, e paume, palma’, goutte, gota e je
goute, ‘eu gosto’, fuir, ‘fugir’, e fouir, ‘cavar’ etc); ademais, esse sentimento de
identidade persiste, se bem que do ponto de vista semântico o haja tampouco
identidade absoluta entre um Senhores! e outro [...].
Não esqueçamos, pois, do que tal passagem ilustra. Encontramos em Saussure um
pouco do que se pode identificar como pertencente às reflexões sobre enunciação, por outro
lado, a obra de Émile Benveniste tem por base os fundamentos que edificaram a doutrina
saussuriana.
91
Guiamos, então, nosso pensamento pela evidência desse duplo movimento.
92
É, nesse sentido, de movimento articulado, que lemos a obra de Benveniste. Vejamos,
em particular a seguinte proposição benvenistiana “A enunciação supõe a conversão
individual da língua em discurso” (PLG, II, p. 83). Entendermos ser o movimento da ngua
(de Saussure) para o discurso (de Benveniste) uma deslocação entre os domínios de
significância e que, nos construtos teóricos desses autores, esse movimento sempre esteve
presente, ora de maneira sutil, ora explicitamente.
Ao afirmarmos que o pensamento saussuriano teve continuidade nos e pelos estudos
que se configuram como enunciativos na acepção de Benveniste, julgamos ser necessário
observar de que forma a enunciação benvenistiana afeta a língua na proposição de Saussure.
Percorremos o caminho inverso, seguimos da enunciação para a língua, do uso para a língua e
não da língua para o uso, conforme tradicionalmente considerado, e, por meio da noção de
delocutividade, evidenciamos que, para além da ultrapassagem do sistema, por Benveniste
proposta, está a volta ao sistema e ao sistema de Saussure, na medida em que é a enunciação
que renova a língua por meio da delocução.
Por fim, entendemos que nossa compreensão acerca dos efeitos da enunciação sobre a
língua revigora a inter-relação entre os âmbitos de significância, ao mesmo tempo em que nos
permite entender a enunciação como a genitora das línguas.
5.4 Para concluir
Ao iniciar este estudo, explicitamos que nosso principal objetivo era desenvolver uma
91
Para uma discussão aprofundada sobre o nculo do campo de enunciação com Saussure, consultar Flores
(2008).
92
Segundo Flores (2008), espaço tanto para a identificação da continuidade quanto da ruptura com Saussure.
Optamos pela proposta de continuidade de Saussure, sem desconsiderar a existência de uma via de mão dupla.
102
proposta da formação da língua, com base nos princípios da teoria enunciativa de Émile
Benveniste. Nosso intuito era investigar como a língua pode ser renovada e mesmo inventada
por meio da enunciação. Por intermédio da articulação entre os domínios de significância da
língua, conforme a frutuosa definição benvenistiana sobre os âmbitos semiótico (língua) e
semântico (discurso), encontramos uma maneira para efetivação de nossa suposição e
chegamos ao que entendemos ser um modelo enunciativo de renovação da língua.
Ainda na Introdução desta tese, propusemo-nos a buscar resposta para a questão: De
que forma a enunciação permite produzir língua? Pensamos -la respondido e do percurso
trilhado durante essa busca, algumas contribuições podem ser assinaladas. Partamos do que
entendemos ser uma contribuição teórica proveniente da realização desta tese.
Na seção 5.1, expomos possibilidades, ou até mesmo, necessidades de serem
contemplados conceitos tradicionalmente incorporados nos estudos linguísticos da ngua
de forma que, no ou pelo viés do discurso, tais acepções sejam revistas e mesmo repensadas.
Dessa forma, pressupomos que possíveis avanços teóricos, ligados ao entendimento dos
fenômenos linguísticos pelo âmbito semântico de significância, podem ser decorrentes de
nossa proposição.
Para além das possíveis teorizações renovadas, cremos que a noção de delocutividade
aqui proposta traz consigo contribuições que complementam a própria matriz dos estudos
enunciativos benvenistianos. Não estamos, com essa reflexão, pondo em dúvida o
conhecimento estabelecido sobre enunciação. Nosso entendimento significa, apenas, que
cremos ser a teoria enunciativa, de Émile Benveniste, passível de leituras ainda não realizadas
e que delas, quando realizadas, decorrem formações de sentido mais complexificadas, no
sentido de completude, que são incorporadas ao que se entende por Enunciação.
Vejamos novamente o próprio conceito, apresentado por Benveniste (1989), sobre o
termo enunciação: “A enunciação é este colocar em funcionamento a língua por um ato
individual de utilização” (p. 82). Ao se considerar a delocução como o processo formador da
língua e oriundo do ato de enunciar, o entendimento da noção de enunciação passa pela
aceitação de que esse ato individual de utilização renova a língua, reinventa-a a cada
funcionamento, e essa concepção, embora seja apenas mais uma parte na compreensão dos
fatos subjacentes e incorporados ao sentido de enunciação, modifica e abre o termo para
apreensão de significações que ainda não haviam sido elucidadas na observação do sentido do
termo.
É preciso, ainda, considerar a ideia concebida por Flores e Teixeira (2005) sobre o
método de análise em linguística da enunciação, pois, segundo os autores, “propor uma
103
metodologia de análise da língua a partir das indicações deixadas pelo pai da teoria da
enunciação” é em si mesmo uma teoria” (p. 104). Ao se levar em conta tal proposição, temos
como mais um contributo teórico a própria organização e aplicação da metodologia de análise
que propusemos, pois nossa abordagem sobre o léxico, ao mesmo tempo em que analisa os
fatos enunciativos, aponta para a complementação de um arcabouço teórico da enunciação, ou
seja – seguimos os passos do próprio “pai”, conforme evidenciamos a seguir – no que
entendemos ser uma contribuição metodológica procedente da realização desta tese.
Para a execução desta pesquisa, traçamos, no ambiente da Teoria da Enunciação
benvenistiana, uma proposta metodológica para abordagem do léxico.
93
Entendemos, em
conformidade com Flores e Teixeira (2005), que Benveniste (1995) não desenvolveu um
modelo metodológico de análise enunciativa, pois não era sua proposição fazê-lo. Questões
discutidas pelo autor e ligadas à “presença do homem na língua” forneceram ferramentas para
a formulação de métodos de análise, cabendo, então, a quem pretende analisar os fenômenos
linguísticos pelo âmbito da semântica benvenistiana, a tarefa de construir recursos
metodológicos viáveis para a descrição dos fatos enunciativos observados.
Conforme reflexão empreendida no capítulo 3, estabelecemos que o “homem na
língua”, manifestado, evidentemente, na singuralidade do uso, promove a renovação da
língua. Servimo-nos de pistas deixadas pelo próprio Benveniste (1995) e procuramos
reconhecer como a renovação da língua ocorre por meio da enunciação.
A fim de evidenciarmos como isso ocorre, desencadeamos dois movimentos capazes
de articular língua e enunciação em movimentos ascendentes e descendentes. Partimos, então,
do movimento denominado de sintagmação, responsável pela atualização da língua em
enunciação, e percorremos o trajeto da língua para o discurso. Propusemos, em seguida, o
percurso da trajetória inversa, fazendo o caminho da enunciação para a língua, por meio do
processo de delocução. Demonstramos essa dinâmica por nossa fórmula, (L
E) Ͻ (S P) U
stg = A, para explicar o primeiro movimento do qual resulta a atualização da língua e (E
L)
Ͻ (P
S) U dlc = R, para revelar a renovação da língua pelo uso que fazemos dela.
Comprovamos, com essa proposta metodológica, como se estabelece a renovação da
língua pelo viés do discurso e cremos que sua aplicabilidade autoriza outras leituras que
desvendem outras significações no exercício do uso da língua. Daí entendermos ser uma
maneira consistente e potencialmente adaptável em possibilidades de aplicação a outros fatos
93
Não esqueçamos que nosso corpus de análise se constituiu dos artigos benvenistianos que tratam do léxico,
sendo, então, as próprias descrições léxicas promovidas por Émile Benveniste (PLG I e PLG II) objeto de nossa
descrição enunciativa sobre o que denominamos palavra no domínio semântico de significância da língua.
104
enunciativos, pois permite explorar caminhos de construção de sentidos a partir do ato de
enunciar e em direção à renovação do sistema.
Como contribuições práticas desta tese, podemos citar a possibilidade de formulação
de um conjunto de subsídios para o ensino de línguas, pautado na compreensão do sentido de
delocução como o processo do discurso, renovador da língua. Conforme evidenciamos em
5.2, a partir da apreensão de que a língua é oriunda das atividades do discurso, as habilidades
de leitura, interpretação e a própria análise descritiva da língua necessitam ser repensadas pela
dimensão do uso. Foi necessário, então, propor um diálogo entre a enunciação benvenistiana e
o ensino de línguas, negociação estabelecida pelas inter-relações teórico-práticas entre esses
campos de conhecimento.
É de nosso entendimento que a colaboração da pesquisa em teorias linguísticas deve se
alastrar para dimensões do ensino de línguas em termos de aplicações que propiciem
melhorias da qualidade no trabalho com a língua. Entretanto, mantém-se, no atual contexto
escolar brasileiro, a constatação de que a principal deficiência no ensino de nguas, em
especial a portuguesa aqui enfocada, é a manutenção dada ao ensino da forma e da
metalinguagem, em detrimento do tratamento do sentido em situações concretas de uso.
Diante dessa tendência, reconhecemos que o trabalho com os âmbitos benvenistianos de
significância da língua aplicados ao ensino, ou seja, o tratamento da forma e do sentido, no
âmbito de significância semiótico (língua) e semântico (discurso), com simetria na abordagem
sobre o sentido, proporcionaria a superação da perspectiva que ora configuramos.
Cremos, assim, que a leitura, análise, interpretação e também descrição formal dos
elementos da língua devem estar pautadas nos usos, considerados únicos em cada cena
enunciativa, e, portanto, reveladores de significações fundadas sobre o reverso do signo, ou
seja, sobre a palavra na acepção aqui assumida.
Passamos, por ora, à finalização de nossas reflexões em torno da realização desta
investigação. Os resultados das análises aqui realizadas indicam que a modificação da língua
ao que denominamos de renovação decorre do uso que dela é feito, ou seja, a palavra
devolve para o sistema uma língua modificada pelo emprego. Retornemos, agora, à proposta
do jogo de xadrez saussuriana revista no início de nossa reflexão seção 1.2.1, e voltemos à
metáfora adaptada ao âmbito semântico de significância. A “jogada” é a enunciação e o
“jogo” é o discurso... Expliquemo-nos! De cada “jogada”, promovida pelo sujeito que
enuncia, constitui-se o discurso e a consequente renovação da língua. Portanto, essa - a
renovação da língua, dá-se por este colocar em funcionamento a língua por um ato individual
105
de utilização (cf. Benveniste, 1989, p. 82).
É fato que elegemos a palavra
94
como a menor unidade linguística da Teoria da
Enunciação benvenistiana e consideramos que ela, sempre em emprego, contrai, também, o
papel de menor unidade promotora da renovação da língua; assume, portanto, a função de
canal entre os âmbitos de significância, que a necessária passagem entre eles, no estudo
exploratório de significações, dá-se por intermédio dela a palavra. Da mutação
signo/palavra, ou melhor delineado, palavra/signo, surge a renovação, como permanente
reinvenção da língua. O signo, embora armazenador de significações convencionais, é
constituído e renovado na e pela trajetória do âmbito semântico ao semiótico, sendo a palavra
consequência do signo em sintagmação, a responsável pela devolução ao sistema de um
signo renovado.
Cabe, ainda, referir sobre as noções de forma e de sentido na instauração de
significações no âmbito semântico. Em 2.3.2, afirmamos ser a renovação da língua decorrente
do sentido da palavra (não esqueçamos, sempre em emprego), sendo a forma gêmea a do
signo, ou seja, identificamos formas idênticas para o signo e a palavra, mas com sentido
individualizado na e pela palavra e convencionalmente generalizado no signo. Assim, ao
mesmo tempo em que o sentido é particularizado na palavra, é (d)nela que as possibilidades
de sentido brotam e tornam-se ilimitadas, porque procedentes do ato de enunciação,
assinalado pelo eu-tu-aqui-agora. No signo, os sentidos decorrem dessas possibilidades de
significação e nelas se estabelecem.
Por fim, seria possível dizer, ainda, que a língua é derivada do discurso, constituindo-
se um processo de formação da ngua também situado nas palavras, mas na decorrência dos
usos que delas são feitos. Organiza-se, assim, o que podemos denominar de derivação
delocutiva a renovação da língua pelo discurso, ou ainda, um processo de formação
instituído entre os âmbitos de significância, entre o discurso e a língua, instituído no e pelo ato
de transcender os domínios de significação. Quanto aos desdobramentos dessa derivação, fica
a instigação de que podem ser tantos quantos os que a língua, como sistema semiótico,
apresenta.
Das reflexões a que nos propusemos, acentuamos, por fim, o fato de o discurso ser o
94
O trabalho linguístico com o componente semântico da palavra, a partir da intersecção entre a forma e o
sentido, de um lado, e da necessária desvinculação dessas noções, de outro, para que o exercício da constituição
e renovação da língua se esclareça, não corresponde a uma análise completa em termos de cobrir todo o campo
de análise do sentido. Como nos propusemos a lidar com o sentido no âmbito de significância semântico,
portanto, particularizado, não o fizemos no domínio semiótico (ampliado e/ou geral) – o que poderia se
configurar como uma limitação, mas não chega a se constituir por o ter sido um objetivo traçado, embora
passível de realização, constituindo-se, dessa forma, num desafio para futuras pesquisas.
106
possibilitador e, portanto, o renovador de sentidos e a língua ser o recipiente armazenador
dessas possibilidades, sendo a forma e o sentido, na língua e no discurso, os agentes que
materializam as significações em cada âmbito de significância.
Consideramos, por fim, que as reflexões aqui esboçadas são necessárias por
legitimarem o tratamento da língua em emprego, mas, em nenhum momento, podem ser
entendidas como absolutas.
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______. Escritos de Lingüística Geral. Organizados e editados por Simon Bouquet e Rudolf
Engler com a colaboração de Antoinette Weil. São Paulo: Cultrix, 2004.
SUENAGA, Akatane. Benveniste et Saussure: L’instance de discours et la théorie du signe.
In: NORMAND, Claudine; ARRIVÉ, Michel (dir.). Emile Benveniste vingt ans après.
111
Paris: CRL-Université Paris X, 1997.
SILVA, Silvana. Enunciação e sintaxe: uma abordagem das preposições do português. Porto
Alegre: UFRGS, 2004. Dissertação (Mestrado em Teorias do Texto e do Discurso), Instituto
de Letras, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2004.
AEXOS
113
ANEXO A – Índice Cronológico das Principais Publicações sobre Delocutividade.
Ano Referência/Obra
Autores
Modalidade de
Publicação
Título
1958 Mélanges L.
Spitzer
Problemas de
Lingüística
Geral I (1966)
Émile
Benveniste
Émile
Benveniste
Artigo
Capítulo 23
Les verbes
délocutifs
Os verbos
delocutivos
1975 Travaux de
Linguistique et de
Littérature XIII
Josette
Rey
Debove
Artigo
Benveniste et
l’autonymie : les
verbes délocutifs
1976 Revue de
Linguistique
Romane 40
Benoît de
Cornulier
Artigo
La Notion de la
Dérivation
Délocutive
1978 Semantikos 2
François
Récanati
Artigo
Performatifs et
délocutifs : à
propos du verbe
s’excuser
1979a Langue Française
42
Jean-
Claude
Anscombre
Artigo
Délocutivité
benvenistienne,
délocutivité
généralisée et
performativité
1979b
Recherches
linguistiques 8
Jean-
Claude
Anscombre
Artigo
Délocutivité
généralisée at
rapports syntaxe/
sémantique
1980 Museum
Helueticum 37
Georges
Darms
Artigo
Problemas de la
formation
délocutive des
mots
1980 Língua 52 Françoise
Letoublon
Artigo
Le vocabulaire de
la suplication en
grec : performatif
et dérivation
délocutive
114
Ano Referência/Obra
Autores
Modalidade de
Publicação
Título
1981 BSL 76 Xavier
Mignot
Artigo
Salutare en
latin, saluer en
français soint-ils
bien des verbes
délocutifs
?
1985 Langage 80 Pierre
Larcher
Artigo
Vouz avez dit
«délocutif » ?
1985a Langage 80
Jean-
Claude
Anscombre
Artigo
De L’enonciation
au lexique:
mention,
citativité,
délocutivité
1985b Revue Romaine
Jean-
Claude
Anscombre
Artigo
Onomatopées,
délocutivité et
autres blablas
1986 Caderno de
Estudos
Lingüísticos 10
Rodolfo
Ilari
Artigo
Delocutivos nós
também temos,
falo?
1988 Polifonia y
Argumentacion
Oswald
Ducrot
Capítulo de livro
La delocutividad
1988 Mélanges Jean
Taillardat
Françoise
Letoublon
Artigo
Derives
d’onomatopées
et délocutivité
2002 Delta 18 Rodolfo
Ilari
Artigo
Delocutives
again
2003 Historiographia
lingüística XXX
Pierre
Larcher
Artigo
La dérivation
Délocutive: histoire
d’une notion
méconnue
2006 Revista Analecta
Valdir do
Nascimento
Flores e
Silvana
Silva
Artigo
Enunciação e
léxico: sobre
processos de
delocutividade
verbal no
português
1997 Emile Benveniste:
vingt ans après
Michele
Fruyt
Artigo
Les verbes
délocutifs selon E.
Benveniste
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