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ALLINE TORRES DIAS DA CRUZ
SUBURBANIZAÇÃO E RACISMO NO RIO DE JANEIRO:
uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-
emancipação (1901-1920)
Dissertação apresentada ao Curso de Mestrado do
Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano
e Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos necessários à
obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano
e Regional.
Orientadora: Prof
a
Dr
a
. Fania Fridman.
Rio de Janeiro
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Dissertação de Mestrado
Cruz, Alline Torres Dias da.
Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro: uma
leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-
emancipação (1901-1920)/ Alline Torres Dias da Cruz. –
2007.
164f. ; 30 cm
Orientador: Fania Fridman.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano
e Regional, 2007.
Bibliografia: f. 150-157.
1. História. 2. Urbanidade. 3. Suburbanização.
4. Racismo. 5. Categorias Raciais. 6. Territorialização. 7.
Segregação Urbana. 8. Rio de Janeiro. I. Fridman, Fania. II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional. III. Título.
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Alline Torres Dias da Cruz
SUBURBANIZAÇÃO E RACISMO NO RIO DE JANEIRO:
uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-
emancipação (1901-1920)
Dissertação submetida ao corpo docente do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e
Regional da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do grau de Mestre em Planejamento Urbano e Regional.
Aprovado em:
Prof. Dr
a
Fania Fridman – Orientadora
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ
Prof. Dr
a
Luciana Côrrea do Lago
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional – UFRJ
Prof. Dr. Flávio dos Santos Gomes
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais – UFRJ
4
Às minhas melhores e maiores
heranças: Avelina Ramos, minha
eterna Mãe-ina, minha bisavó (in
memoriam), e Rosalino da Silva, meu
vô Rosa (in memoriam).
À querida Dite, Judite Torres da Silva,
minha avó.
5
Agradecimentos
Escrever esta dissertação foi também um ato coletivo. Apesar de na maior
parte dos dias e meses em que me dediquei a este trabalho, me perceber só e
pensativa à frente da imensidão que nestes momentos parece tomar a tela do
computador, é com esta sensação que chego ao final deste período, do qual
sinto saudade. Dele, participaram pessoas muito especiais.
Antes de agradecê-las, contudo, gostaria de registrar que a bolsa concedida
pela FAPERJ no segundo ano do curso foi fundamental para que eu pudesse
viabilizar a pesquisa.
O incentivo, a dedicação e a seriedade com que fui orientada pela professora
Fania Fridmam, e o convívio com Fernanda e Marília nas reuniões que
realizamos desde o ingresso no mestrado, partilhando dúvidas e inseguranças,
mas principalmente o desejo de que os nossos projetos se tornassem
possíveis, foram experiências gratificantes, especialmente agora que vimos
que conseguimos.
Gabriel Strautman, Daniel Soares, Frederico Irias, Ramana Jacques e Luana
Menezes foram os melhores amigos que poderia fazer ao ingressar no
mestrado. Durantes bons meses eles foram a minha turma, e mesmo mais
afastados agora, também penso como o Gabriel ou terá sido o Daniel? Parece
que nos conhecemos há tempo, desde criancinhas.
Janaína Tude Sevá e Aline Torres Camargo, antigas companheiras de
trabalho, mas atuais companheiras de luta, viram o início da minha empolgação
com o tema, a ansiedade com relação à prova, à aprovação... Carolina
Gonçalves e Ana Paula Pinheiro. Como agradecer à Carol e à Ana que me
ouviram e me ouviram e me ouviram, sobre o trabalho e todo o resto; ao
Leonardo Soares que reencontrei em um arquivo da vida, e se tornou meu
parceiro de idas e vindas atrás de documentação, de conversa, de inquietação,
e de risada, quebrando o isolamento que envolve esta atividade; ao Alain Kaly,
por tudo.
À minha família, qualquer agradecimento é insuficiente. Como conviver com
alguém que por quase dois anos parecia conhecer palavras da sua
pesquisa, dos seus textos, dos seus livros.... Tenho certeza que sem o apoio, a
compreensão, o estímulo e a paciência da minha super mãe, muito mais que
mãe, Marlene Torres, dos meus irmãos, Gustavo e Ellaine meus amores –,
do meu pequeno grande sábio primo José Ricardo, e da minha Tia I, seria
muito difícil continuar neste caminho. A vocês sou extremamente grata.
A todos que torceram por mim, o meu muito obrigada.
6
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 12
2URBANIDADES EM DISPUTA: AS TENTATIVAS DE
(DES)AFRICANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO REPUBLICANO
2.1 A RELAÇÃO CIDADE E SUBÚRBIOS ENQUANTO UMA CONSTRUÇÃO
SÓCIO-HISTÓRICA 18
2.2 SOBRESSALTOS ESTÃO POR TODA A PARTE
37
2.3 NEGROS LIVRES E LIBERTOS NA CIDADE E AS RESTRIÇÕES À
LIBERDADE 50
3 SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS EM MADUREIRA
3.1 À PROCURA DE OUTROS CENÁRIOS 64
3.2 EMBATES COTIDIANOS 82
3.3 RIVALIDADES ENTRE OS GRUPOS CARNAVALESCOS EM
MADUREIRA 100
3.4 “DESORDEIRO”, “TRABALHADOR” E “PRETO”: OS VESTÍGIOS DE UMA
HISTÓRIA 108
4 CENÁRIOS DE DISPUTA: GÊNERO, COR E TERRITORIALIDADES EM
DONA CLARA
4.1 MARIA E SEUS TERRITÓRIOS: ENTRE A DIFERENÇA E A
INDIFERENÇA 120
4.2 A CLASSIFICAÇÃO RACIAL COMO ESTRATÉGIA DE LUTA 131
4.3- DAS HISTÓRIAS QUE FAZEM UM BAIRRO 138
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS 147
REFERÊNCIAS 150
ANEXOS 158
7
CRUZ, Alline Torres Dias da. Suburbanização e racismo no Rio de Janeiro:
uma leitura de Madureira e Dona Clara no contexto pós-emancipação (1901-
1920). 164 f. Dissertação (Mestrado em Planejamento Urbano e Regional
Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.
Resumo
Este resumo visa apresentar a discussão que realizo em minha pesquisa de
dissertação de mestrado relativa ao reordenamento sócio-territorial do Distrito
Federal entre fins do século XIX e os primeiros anos do XX, no bojo do
contexto pós-emancipação e republicano. Submetido a uma divisão político-
administrativa que classificava as freguesias (depois distritos) em urbanas e
suburbanas, o Rio de Janeiro desse período, incluindo as suas áreas centrais,
era caracterizado por funções e usos rurais. Tais práticas, no entanto,
tornaram-se um dos alvos tanto dos Códigos de Posturas, que regulavam e
ordenavam o cotidiano, como também da imprensa. Forjados a partir de um
ideário higienista, as normas públicas, os posicionamentos dos jornais e as
reclamações de parte dos moradores da cidade reivindicavam a intervenção do
poder público no controle de atividades vistas como insalubres, tais como o
cultivo de capinzais, de hortas e pastos, a edificação de estábulos e de
cocheiras. Deste modo, ao limitar e autorizar estas práticas sociais em apenas
uma parte do território carioca, o Estado construía politicamente um processo
de suburbanização, buscando concentrar espacialmente usos "sujos" e
indesejados. As ameaças à produção de uma urbanidade para as áreas
centrais da capital do país, no entanto, não viriam apenas daquelas atividades.
O debate político e intelectual que articulou a temática da modernização
econômica, fundada no trabalho livre imigrante e nas tentativas de
industrialização, à necessidade de edificação de uma capital moderna e
burguesa, combateu também os modos de apropriação da cidade inventados
pela população afro-brasileira que, se ao final do século XIX estava espraiada
de maneira mais equilibrada no território, em pouco mais de meio século
concentrou-se, sobretudo, nos bairros nascidos das antigas freguesias
suburbanas. As origens deste processo de segregação urbana são analisadas
a partir dos subúrbios de Madureira e de Dona Clara.
Palavras-chaves
História, Urbanidade, Suburbanização, Racismo, Categorias Raciais,
Territorialização, Segregação Urbana, Rio de Janeiro.
8
Abstract
The present work aims at presenting and discussing the social-territorial
reordering of Distrito Federal at the end of XIXth
Century and the first years of
XXth in the light of the post-emancipation and republican context. Subjected to
a political-administrative division that classified the parishes (districts later on)
into urbans and suburbans, Rio de Janeiro, at that time, including its central
areas, was characterized according to its functions and rural uses. However,
such common practices became one of the goals of both the Postures Code,
which regulated and ordered the quotidian, and the press. Based on hygienist
ideas, public rules, newspapers and city dwellers revindicated public power
intervention in the control of insalubrious activities such as hayfield, vegetable
gardens and pastures and barn and stable buildings. Then, by limiting and
authorizing such social practices in some parts of the carioca territory, the State
politically created a suburbanization process, aiming at spatially concentrating
undesirable and “dirty” uses. The threatens to urban production for central
areas of the country, however, would not come only from those activities. The
political and intellectual debate articulated the issue of the modern economy,
founded on the immigrant free work and the industrialized attempts, to the
necessity of building a modern and burgess capital and combated the
appropriation ways of the city invented by afro-brazilian population.
Nevertheless, if at the end of the XIXth century, the afro-brazilian population
was placed in a balanced way in the territory, by the middle of the following
century, it was concentrated in the districts originated from the old suburban
parish. The origins of this urban segregation process will be analyzed
considering the suburbs of Madureira e de Dona Clara.
Key-Word
History, Urbanity, Suburbanization, Racism, Racial Categories, Territorialisation
Urban Segregation, Rio de Janeiro
9
Lista de Quadros
Quadro I. Cidade e subúrbios do Rio de Janeiro (1799-1890) 22
Quadro II. Cadastro das Habitações do Distrito Federal (1895) 72
10
Lista de Mapas
Mapa I. Planta da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios [190?] 40
Mapa II. Planta da cidade do Rio de Janeiro (1888) 71
Mapa III. Distrito de Irajá (1906) 75
Mapa IV. Carta Cadastral do Distrito Federal (1918) 137
11
Lista de Quadros
Gráfico I. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal (1890). 48
Gráfico II. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal (1950). 49
Gráfico III. Homens livres segundo a cor na freguesia de Irajá (1872). 64
Gráfico IV. Mulheres livres segundo a cor na freguesia de Irajá (1872). 65
Gráfico V. Escravos segundo a cor na freguesia de Irajá (1872). 66
Gráfico VI. Escravas segundo a cor na freguesia de Irajá (1872). 65
Gráfico VII. Negros e brancos na freguesia de Irajá (1872). 67
Gráfico VIII. Profissões na freguesia de Irajá, segundo a condição de livres,
escravos e imigrantes (1872). 68
Gráfico IX. Brancos, pretos, mestiços e caboclos na freguesia de Irajá (1890).
69
Gráfico X. Brancas, pretas, mestiças e caboclas na freguesia de Irajá (1890).
70
Gráfico XI. Brancos (as) e negros (as) na freguesia de Irajá (1890).
71
Gráfico XII. Profissões segundo o gênero masculino e a nacionalidade no
distrito de Irajá. 76
Gráfico XIII. Profissões segundo o gênero feminino e a nacionalidade no distrito
de Irajá. 77
12
1 INTRODUÇÃO
Escrever esta dissertação foi um exercício teórico, analítico e cotidiano que teve
como objetivo mais amplo estabelecer relações entre os processos históricos através dos
quais os territórios são socialmente produzidos e algumas das opções políticas que
alinhavam um modelo de urbanidade. O contexto histórico sobre o qual me debrucei, a
passagem do século XIX e as primeiras décadas do XX, assim como as opções políticas,
conectadas a um modelo de desenvolvimento social e econômico cujos paradigmas
eram as sociedades européias e mesmo a norte-americana, conformaram um Rio de
Janeiro elitista e desigual, do ponto de vista do acesso à rede de infra-estrutura, aos
serviços urbanos, às possibilidades profissionais e habitacionais, mas também racista, ao
se considerarem os modos de apropriação da cidade que parte da população negra
desenvolveu, e que se tornaram um dos motes da barbarização de homens e mulheres
pretos e mestiços no bojo da edificação de uma cidade moderna e burguesa. Deste
modo, ainda que tenha me voltado para mais de um século atrás, objetivando
compreender e estabelecer algumas proposições relativas à condição dos descendentes
de ex-escravos africanos e crioulos no contexto pós-emancipação e republicano, o meu
olhar e sentidos foram aguçados pela realidade contemporânea. Foi justamente porque
estava sensibilizada para um convívio coletivo que articula discriminação e
desigualdade sócio-econômica, que me senti capaz de produzir esta dissertação de
mestrado.
Aliada a estas questões, a literatura de que me apropriei, produzida nos campos
da história social da escravidão e do trabalho, foi fundamental para romper certas pré-
noções – utilizando uma categoria sociológica – que justificavam a escravidão e a
integração subalterna de negros e negras livres no Brasil republicano, a partir de
argumentos como uma menor aptidão para o trabalho ou de uma incapacidade
intelectual, resultado da coisificação do regime. Chalhoub (1990), Gomes (1996, 2003),
Reis (1989) e Soares (1998, 1998/1999) demonstraram que durante a vigência do
sistema escravista, conflitos e negociações perpassaram o dia-a-dia de cativos e cativas,
trabalhadores compulsórios, que entre alianças com negros livres e libertos, brancos
pobres, e mesmo algumas autoridades, e disputas com seus senhores, proprietários de
terra e agentes repressivos, construíram diferentes estratégias de vida e de luta na e
contra a ordem social estabelecida. Paralelo a isto, contribuições como as de Carneiro
da Cunha (1985) e Lima (2003), que analisaram principalmente a primeira metade do
13
século XIX, foram interessantes no sentido da discussão relativa, respectivamente, às
práticas racializadas vigentes durante o Império, que hierarquizavam a população
segundo a sua origem, africana ou crioula, mas também conforme a sua cor, preta ou
mestiça, e à apropriação de uma linguagem racializada como estratégia política dos
chamados homens livres de cor; práticas que se tornam um dos focos de estudo de
Cunha (2002), que se voltou para o período republicano.
Dentre as contribuições destes autores, o deslocamento teórico e metodológico
visando a compreensão da população escrava enquanto sujeito histórico e político
representou um posicionamento importante para que eu pudesse destacar, por exemplo,
uma série de interdições cristalizadas nas legislações e projetos políticos no decorrer do
Império referentes à permanência de negros (as) em ambientes urbanos
Estes debates que tiveram início mais ou menos a partir dos anos de 1830, cujo
desenlace mais radical se deu com a deportação de africanos livres para o seu continente
de origem, incluindo aqueles que participaram do levante dos Malês em Salvador, foi
retomado nos anos de 1870 e 1880, no contexto de discussões sobre o fim do
escravismo enquanto um sistema de produção servil. A retirada da população negra das
áreas urbanas foi expressa a partir da proibição de escravos em ocupações ligadas à
manufatura, aos serviços de transporte terrestre e marítimo, em cidades como Rio de
Janeiro e São Paulo, bem como de propostas de formação de colônias agrícolas,
privilegiando-se assim a força de trabalho do imigrante europeu branco nas relações de
trabalho assalariado nas cidades, afora, por exemplo, toda a discussão de Seyferth
(1996; 2005) sobre a importância que a categoria raça desempenhou nos projetos de
colonização do território brasileiro, excluindo a população nacional, negra e mestiça, do
sistema de compra de lotes coloniais e da pequena produção familiar. Com base nestas
questões, uma das perguntas que transcorreu esta dissertação referiu-se a tentar entender
que dinâmicas socioespaciais e territorialidades se forjaram à medida que o Distrito
Federal se tornava um centro de atração de imigrantes, mas também de migrantes de
outros estados do país.
As divisões político-administrativas do município em freguesias urbanas e
suburbanas foram um caminho interessante para apontar duas questões. Por um lado,
estas noções diziam respeito a uma certa hierarquização entre os dois âmbitos,
atribuindo uma modernidade às áreas que se conformavam como urbanas um certo
tipo de construção chamado de prédios, a proibição de certas atividades comerciais e
14
moradias populares, a expectativa de comportamentos polidos e corteses, e, sobretudo, a
presença do Estado através da cobrança de tarifas e de melhoramentos e serviços,
freqüentemente por meio de concessões a particulares. Por outro, ao se olhar para o Rio
de Janeiro revelou-se o quanto a paisagem e o sítio pareciam apontar para outras
dinâmicas. Desse entendimento surgiu o primeiro capítulo.
Ao identificar que nos Códigos de Posturas, principalmente os de fins do século
XIX, o controle sobre atividades tidas como rurais era uma das preocupações dos
legisladores, que tratavam de impedir através de multas que estas permanecessem nas
freguesias urbanas, depois chamadas de distritos, assim como permitiam-nas nos
arrabaldes e subúrbios, notei um processo de suburbanização que empurrava, visando
concentrar, usos e funções “sujos” e “inadequados” para uma parte do território,
inclusive industriais. O que me foi muito bem-vindo, contudo, é que através da pesquisa
no jornal Correio da Manhã surgiam reclamações de moradores de todos os cantos da
cidade com relação à existência de capinzais, hortas, pastos e cocheiras, e de problemas
como falta de água, limpeza das ruas e de moléstias. Procurando perceber o que se
passava na cidade como um todo nos primeiros anos do século XX, pude indicar que
apesar do adjetivo urbano caracterizar os distritos mais centrais, práticas e atividades
rurais estavam presentes nestas áreas, e muito mais difundidas nos subúrbios. Assim, foi
possível imaginar uma certa homogeneidade a norte e a sul da cidade, à medida que se
afastava do centro comercial e político. Em contrapartida, seria tentando materializar
um modelo de urbanidade, processo cuja intervenção do Estado foi decisiva, que as
distinções de infra-estrutura, edificação, comportamento e representações sociais sobre
os bairros iam sendo produzidas.
Ao lado das reclamações ligadas a questões higienistas, o tema da desordem
social estava na ordem do dia, e novamente os Códigos de Posturas do século XIX
remetiam ao quê e a quem se deveria controlar e reprimir. Os termos que se referiam a
uma população de não-proprietários, incluindo desempregados, subempregados e
mesmo trabalhadores, foram muitos. Em alguns contextos, no entanto, denominações
amplamente veiculadas como vadios, desocupados e desordeiros, foram submetidas a
estratégias de racialização. Através de categorias ligadas à cor das pessoas, a práticas
afro-brasileiras e ao que era visto como a configuração de uma cidade africana,
manifestaram-se mecanismos sociais e políticos que visavam combater urbanidades que
não se enquadravam no modelo tecido e acordado pelas elites políticas e intelectuais,
15
pela imprensa e por alguns segmentos da população do Rio de Janeiro. A questão que
perpassou esta discussão revelou, no entanto, que os sobressaltos estavam por toda a
parte, e eliminá-los, através da reivindicação da atuação da polícia, foi apenas uma das
facetas do processo de segregação urbana. A diminuição da presença de negros e
negras, em pouco mais de meio século segundo o censo de 1950, nos antigos distritos
urbanos, inclusive naqueles mais centrais e nos da Glória, Lagoa e Gávea que
apresentavam uma população mais equilibrada em termos de raça”, segundo o censo
de 1890 –, correspondeu a uma outra configuração daquele processo.
Deste modo, à medida que discuto que a introdução de uma urbanidade, baseada
em um ideário anti-rural e antiafricano em algumas áreas do território do Rio de Janeiro,
forjou o seu oposto, ou seja, a produção de outras isentas de infra-estrutura e serviços e
nas quais a população negra fora se concentrando à medida que a cidade se espraiava,
pretendo chamar a atenção para o fato de que isto não estava posto no início do século
XX. Logo foi necessária a sua invenção. Procurando aproximar o olhar para uma destas
áreas suburbanas, voltei-me para Madureira, e para isso fiz uso dos processos criminais
e da documentação produzida no interior das instâncias policiais, seguindo as datas
limites destas fontes, que iam até mais ou menos os anos de 1920, para delimitar o fim
do período coberto pela dissertação.
No segundo capítulo procurei entender e analisar em que redes e relações
sociais se inseriam os moradores deste subúrbio no contexto pós-emancipação e
republicano. Entre pequenos proprietários, notadamente donos de tavernas e botequins,
trabalhadores nacionais e imigrantes, particularmente braçais e domésticas, e os agentes
da polícia, alguns recrutados entre os moradores, identifiquei um cotidiano organizado a
partir de alianças, mas também cisões. Solidariedades foram afirmadas no meio de
conflitos, e alguns conflitos produziram solidariedades.
Um dos personagens principais deste texto foi Ernani Rosa. Natural do Distrito
Federal, provavelmente nascido nos anos finais do século XIX a cada ida ao 23
o
Distrito Policial ele declarava uma idade –, era também conhecido em Madureira como
filho de Chrisante Maria, moleque Otávio, e vivenciou situações em que foi identificado
como um preto, estratégia que acenava no sentido de demarcar uma certa
impessoalidade da parte daqueles que se referiam a ele mobilizando assim a sua cor.
Neste sentido, racializá-lo se tornou um recurso mais freqüente à medida que Otávio se
envolvia em conflitos, e assim desnudou-se um mecanismo social e político que, em seu
16
caso, articulava cor à violência. Ao ampliar seus vínculos naquele subúrbio,
reafirmando amizades, fazendo inimigos e estabelecendo relações amorosas, Otávio
protagonizou confrontos, foi apontado pelos moradores como um desordeiro e se
apresentou por diversas vezes como um trabalhador.
Contudo, através dos vestígios da história de Otávio foi possível vislumbrar
agenciamentos que eram também coletivos: disputas entre brasileiros e imigrantes,
assim como entre brasileiros que se posicionavam de modo diferenciado em Madureira,
além de uma presença feminina que se em alguns casos remeteu a relações de poder
assimétricas, noutros estas foram contestadas.
O último capítulo se inicia justamente enfocando alguns momentos da trajetória
de mulheres negras e pobres, que se declararam domésticas e às vezes desempregadas,
nos arredores da estação ferroviária de Dona Clara, linha circular da estação de
Madureira, parada da Estrada de Ferro Central do Brasil. Entre algumas que diziam
estar por ali de passagem e outras que lá se estabeleceram, D. Clara foi se configurando.
Através de moradores e moradoras de origem e condições sociais diferentes, o convívio
coletivo incomodou uns e fortaleceu outros. A paragem, que desde o início dos anos de
1910 era criticada pela imprensa local de Madureira como um lugar não-civilizado, foi
descrita nos anos de 1930 e 1940, como a “Favela Suburbana”, referência ao morro da
Favela localizado no centro do Capital Federal. Um dos motivos para isso, segundo as
publicações, seria o número elevado de mulheres desordeiras, que faziam uso da
navalha, dos golpes de capoeira, mas também da condição feminina, para atrair os
imprudentes. Assim como nos percursos de Ovio, a referência à cor das mulheres
sinalizava para a construção de uma identidade racializada. Para se referir a elas
enquanto exemplos de barbarismo e comportamentos inapropriados, na maioria dos
casos, tornou-se necessário revelar a sua cor.
Gostaria, para terminar esta introdução e dar início à apresentação de um
trabalho que, em termos práticos”, começou em janeiro de 2005, quando iniciei a
pesquisa documental junto ao Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro - AGCRJ, à
Biblioteca Nacional - BN, ao Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro - APERJ, ao
Arquivo Nacional - AN, e às bibliotecas do Instituto de Pesquisa e Planejamento
Urbano e Regional - IPPUR, do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais - IFCS, do
Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRJ - PGG, e do Museu Nacional – MN
de explicitar que muitas dissertações poderiam ser escritas sobre Madureira, por muitas
17
pessoas. Esta, contudo, não foi apenas a que fui capaz de produzir. Foi a capaz também
de me mobilizar.
18
2 URBANIDADES EM DISPUTA: AS TENTATIVAS DE
(DES)AFRICANIZAÇÃO DO RIO DE JANEIRO REPUBLICANO.
2.1 A RELAÇÃO CIDADE E SUBÚRBIOS ENQUANTO UMA CONSTRUÇÃO
SÓCIO-HISTÓRICA
Arrabalde (do árabe arrabadh): bairro, povo que fica fora dos muros da
cidade, ou vila; comumente se chamam também arrabaldes, os
subúrbios e circunferências de algum grande povo; proximidades,
vizinhanças.
Suburbano (do latim suburbanus): vizinho, próximo da cidade; dos
arrabaldes da cidade [..].
Urbanizar: tornar urbano, civilizar:
Urbano: da cidade, pertencente à cidade: prédio urbano; dotado de
urbanidade, civilizado; polido; cortês; (...), op. ao rústico, camponês,
agreste, ou vilanesco (...).
Urbanidade: qualidade de quem é urbano; a cortesia, e bom termo; os
estilos da gente civilizada e polida; civilidade, polidez; delicadeza.
(Silva, 1890)
O que poderia diferenciar um subúrbio do Distrito Federal de sua área urbana na
passagem do século XIX ao XX? Ou de outro modo, seguindo ainda uma formulação de
cunho essencialista, o que permitiria chamar Madureira, assim como outros lugares”
do Rio de Janeiro, de subúrbio”? Vocábulo corrente no cotidiano da cidade, utilizado
no século XIX por representantes políticos, administradores municipais, moradores,
imprensa e mesmo viajantes estrangeiros, à noção de subúrbio ligavam-se significados
tais como “vizinho, próximo da cidade; arrabaldes da cidade”. Dentro desta concepção
romana, as áreas assim denominadas estariam separadas das muralhas, marcos físicos e
simbólicos que instituíam as divisões entre os chamados subúrbios e a urbs. Ambos,
contudo, inseriam-se em um território mais amplo, denominado cidade.
Como bem demonstra Soares dos Santos (2006), no caso do Rio imperial a este
entendimento sobrepõe-se um outro, visto que as “freguesias de fóra”, que remetia aos
subúrbios do Rio de Janeiro no século XIX, aludiam também a uma concepção
medieval na qual estes estariam excluídos de fato da idéia de cidade, posto que
submetidos a posturas municipais distintas daquelas que conformavam as áreas urbanas,
circunscritas na representação social e cartográfica como o território citadino, a
“Cidade”. Como salienta o autor,
A cidade do Rio de Janeiro fazia parte, desde a chegada da família real
portuguesa em 1808, do Município da Corte. Este abarcava então a cidade
propriamente dita - dentro da qual se situavam as “freguesias urbanas” - e
19
as “freguesias de fóra”. A primeira era chamada também de zona da
cidade” e a segunda de zona de campo”. Ou seja, o município aqui é
composto por uma área urbana e outra que diríamos rural, como na
Antiguidade; ao mesmo tempo, a noção de cidade empregada para
diferenciar o seu território do restante do Município é a mesmo da Idade
Média a área urbana se localizando no núcleo original da cidade e os
campos que ficando “fóra”, do lado externo das “muralhas”. que ainda
persiste uma pergunta: no caso do Rio de Janeiro, que muralhas eram
essas? Logicamente que se tratava de uma muralha simbólica, mas não
sem conseqüências concretas de extrema relevância: tal muralha foi
“construída” pelo então príncipe regente D. João quando da vinda da
família real ao Brasil quando resolveu instituir por meio do alvará de 27 de
junho daquele ano a cobrança da “Décima urbana” ou “Décima dos
Rendimentos dos Prédios Urbanos”. Por essa determinação, as freguesias
da Candelária, Sacramento, São José e Santa Rita formavam em conjunto
a “zona da cidade” sobre a qual incidia a Décima urbana. Do outro lado,
no “de fóra”, havia o restante do município, cujos limites eram
estabelecidos em função dos limites da área de incidência da “Décima
urbana”. Assim, tínhamos o Engenho Velho, Irajá, Jacarepaguá, Campo
Grande, Inhaúma, Guaratiba, ilha do Governador, ilha de Paquetá e o
curato de Santa Cruz como as freguesias não-urbanas. Isso se expressará
na forma como o município é representado por meio dos mapas até as
primeiras décadas do século XX: neles a zona da cidade e, quando
muito, seus arrabaldes são enfocados. As zonas suburbana e rural, áreas
“de fóra” da cidade, também ficam fora dos mapas. Anos mais tarde
talvez em meados do século XIX esta zona também seria chamada de
“zona da légua e das povoações”. A justaposição desses termos dava bem
o tom da indefinição e mistura entre usos rurais e urbanos nessa região.
Mas não nela, como também “dentro” da própria cidade. (SOARES
DOS SANTOS, 2006, p.2-3)
De acordo com o autor, o mecanismo que legitimou as noções de cidade e
subúrbios emergiu de uma decisão política do regente, quando instituiu a cobrança da
Décima Urbana, fundando, assim, sobre a configuração da cidade colonial as
possibilidades de um outro ordenamento do município neutro. Com a chegada ao Brasil
de d. João VI e da Corte portuguesa, em 1808, e o seu estabelecimento na então capital
do vice-reino, a divisão administrativa das freguesias urbanas e rurais foi modificada.
Se, por um lado, a transferência do poder monárquico para um antigo território colonial
português significou o início de um processo de transformações importantes, entre as
quais, a abertura da economia do país aos mercados internacionais, sobretudo o inglês, e
o desenvolvimento de atividades e serviços que correspondesse ao maior dinamismo
comercial, por outro requalificou em termos políticos e culturais a vida urbana no Rio
de Janeiro. Instituições de memória, pesquisa, artísticas, comerciais e jurídico-
administrativas foram fundadas para o exercício do poder monárquico e para a invenção
de uma sociabilidade de Corte no que fora antes um território colonial.
20
Instalada inicialmente no centro da cidade, a família real, assim como a
aristocracia e funcionários que acompanhavam-na, localizaram-se em seguida nos
arrabaldes, em chácaras e fazendas distanciadas da vida suja e tumultuada daquele
espaço marcado pela presença negra em uma série de ocupações e atividades. Neste
contexto histórico em que se apresentava a necessidade concreta de inserção espacial do
monarca, funcionários e membros da Corte, a área central e os subúrbios mais próximos
experimentaram uma série de intervenções e melhoramentos, o que levou à criação de
novas freguesias ditas urbanas (assim definidas a partir do momento em que o poder
imperial atuou na produção de alguma infra-estrutura como arruamento e dessecamento
de ntanos para a ocupação) ou ainda à incorporação ao perímetro urbano de antigas
freguesias rurais, quando submetidas a algum tipo de intervenção do governo imperial.
As freguesias urbanas da Candelária e de São José, por estarem mais próximas
do Paço Real (hoje, Paço Imperial), viriam a ser ao longo da primeira metade do século
XIX, localidades de moradia dos grupos políticos e econômicos do Império, que
ocupavam os sobrados existentes ou se encaminhavam para as novas ruas abertas
rumo à atual Lapa; enquanto os grupos pobres, como trabalhadores livres (alforriados,
africanos e imigrantes) e escravos de ganho, se estabeleceram nas freguesias de
Sacramento, Santana e Santa Rita nas quais se concentravam, respectivamente, o
comércio, pequenas oficinas e fábricas, afora aqueles que residiam junto aos seus donos
e em seus estabelecimentos.
São Cristóvão, a então um antigo arraial incluído na freguesia rural do
Engenho Velho, tornou-se o local de moradia de d. Jo VI e sua família, e algumas
propriedades foram retalhadas em chácaras no que hoje conhecemos como Glória,
Catete e Laranjeiras, para receber os membros da Corte. O crescimento desse tipo de
moradia, de uso explicitamente nobre, levou à criação da freguesia urbana da Glória, em
1834, desmembrada da de São José. Botafogo, arrabalde que até então pertencia à
freguesia da Lagoa, passou a ter uma ocupação mais constante, e em 1838 esta se tornou
urbana junto com a freguesia do Engenho Velho. (ABREU, 1987).
Em 1821, Sé, Candelária, São José, Santa Rita e Santana eram as freguesias
urbanas da capital do Império, e Engenho Velho e Lagoa, ao lado de Inhaúma, Irajá,
Jacarepaguá, Campo Grande, Guaratiba, Santa Cruz, e Ilhas do Governador e de
Paquetá as suburbanas (rurais). De acordo com Salles e Carvalho (2005), neste ano a
população da cidade do Rio de Janeiro ultrapassou os 70.000 habitantes em 1799, por
21
exemplo, eram 43.000 moradores –, com a população escrava passando de 35% para
46% deste total. Os autores, contudo, ressalvam que nestes percentuais o foi
considerado o número de escravos das freguesias suburbanas, onde constituíam maioria.
Passados mais de vinte anos, em 1849, às vésperas da abolição legal do tráfico
internacional (1850), a população escrava representava 48% do total de moradores do
Rio de Janeiro, que a essa época eram 206.000, alcançando 56% nas freguesias
suburbanas.
A dimensão destas cifras no que concernia à presença negra, particularmente a
escrava no Rio de Janeiro, levaram historiadores como Alencastro (2006) e Soares
(2006) a caracterizarem a capital imperial como a cidade que recebeu a maior população
cativa de todas as Américas neste período. E mesmo com o declínio da escravidão
urbana após o fim do tráfico internacional, conseqüência do direcionamento de escravos
para as fazendas, em 1872 esta população formava 20% do total de habitantes da cidade
do Rio de Janeiro.
Através do Quadro I referente à divisão territorial do Rio de Janeiro nota-se a
incorporação das freguesias suburbanas de Engenho Velho e Lagoa ao perímetro urbano
e, por outro lado, as freguesias de Santana, da Glória, de Santo Antônio, de São
Cristóvão, do Espírito Santo, do Engenho Novo e da Gávea como pertencentes à
“Cidade”. Em contrapartida, Irajá, Inhaúma, Campo Grande, Guaratiba, Jacarepaguá,
Santa Cruz e as ilhas, chegaram ao século XX sob a classificação de suburbanas
(rurais).
22
Quadro I. Cidade e subúrbios do Rio de Janeiro (1799 -1890)
Fonte: Recenseamento do Distrito Federal, 1906.
http://biblioteca.ibge.gov.br
Destaco que a criação de freguesias urbanas e suburbanas, ao veicular uma
percepção social do território mais ou menos dicotômica e hierárquica, posto que
embaçada pela noção de vizinhança, de acordo com Morais (1890), refere-se à
implementação de mecanismos administrativos e estratégias políticas. Neste sentido,
este processo de conformação territorial diz respeito em boa medida a um ato de
invenção. Criação que revela, como chama a atenção Soares dos Santos, o “tom da
indefinição e mistura entre usos rurais e urbanos” no município como um todo. Do
ponto de vista da paisagem, das propriedades e dos usos, haveria distinções extremas
entre as freguesias urbana da Lagoa e a suburbana de Jacarepaguá durante o século
23
XIX? Ou aquelas não emergiriam das tentativas de configuração de uma urbanidade
pelo Estado através de suas agências, de concessões com empresas privadas ou com
iniciativas particulares individuais? Se a “ruralidade”, tomando de empréstimo uma
categoria utilizada por aquele autor, à qual se vinculavam as freguesias suburbanas
tornou-se uma marca de distinção sócio-territorial, esta merece ser pensada enquanto
uma produção. E isto pode ser apontado à medida que se toma um dos instrumentos
administrativos que normatizava e regulava o Município Neutro durante o período
imperial e o início da república: os Códigos de Posturas Municipais.
Nos oitocentos, vários decretos proibiam que se realizassem no perímetro da
área urbana, notadamente no centro político e comercial da cidade, atividades de caráter
agrícola tais como hortas e capinzais para o comércio, criação de suínos, edificação de
albergarias de vacas e currais para gado de corte, assim como se controlava, com o
cadastramento e a aplicação de multas, a circulação de carroças e cocheiras para
carregar água, café e produtos agrícolas. (CÓDIGO DE POSTURAS, 1894)
Ao se considerarem estes exemplos, a ruptura que se desejava alcançar
implicava na assunção por parte das elites políticas do Império, aqui representada pela
Câmara Municipal, de um projeto que preconizava um modelo de urbanidade. Isto
porque, como apontou Soares dos Santos, a idéia de urbs, veiculada, por exemplo, na
Antiguidade, atribuía cidadania plena ao “cidadão lavrador”. Desta perspectiva, a
imposição de uma urbanidade através dos códigos de posturas forjava um outro
processo sócio-territorial, o da suburbanização, no interior do qual usos e práticas
sociais tidos como sujos, impróprios e inadequados eram deslocados ou permitidos
apenas nas áreas que do ponto de vista do próprio instrumento legislativo foram
mantidas como “suburbanas”.
No final do Império, o Código de Posturas (1889) em vigor, ao se voltar para as
fábricas, oficinas, manufaturas e outros estabelecimentos industriais incômodos,
insalubres ou perigosos, reeditava uma norma existente desde 1838 na qual se proibiam
os curtumes na cidade e seus arrabaldes, determinando a sua remoção “para lugares
distantes do centro da população, mediante licença municipal”. Além disso, ficava
proibido no interior da “Cidade” – termo que a reduzia às áreas urbanas – as fábricas de
vela de sebo, de destilar água ardente, de torra de tabaco em forno, de sabão, azeite,
óleos ou outras em que se “empregam ingrediente que viciam a atmosfera, podendo ser
24
estabelecidas, porém, nos subúrbios, e arrabaldes, que a Câmara permitir.” (CÓDIGO
DE POSTURAS, op. cit, p. 26-7).
Soma-se a esta norma a permissão de atividades como a de ferreiro, serralheiro,
caldereiro e tanoeiro apenas em alguns pontos das freguesias urbanas, rua do Teófilo
Otoni, desde a rua da Quitanda à da Conceição, rua do Conselheiro Saraiva, Beco de
Bragança, rua Primeiro de Março, entre a do Visconde de Inhaúma e a ladeira de São
Bento, rua da Saúde, e todas as travessas e os becos, que desta vão ao mar, com
exclusão das Praças da Harmonia e da Imperatriz e rua da Uruguaiana”.(CÓDIGO DE
POSTURAS, op. cit, p. 26-27)
Chamo a atenção, no entanto, para o fato de que a institucionalização destas
normas não significava o seu acatamento imediato, tampouco a sua incorporação
mecânica ao cotidiano. Assim como no caso dos cortiços e estalagens, resistências
poderiam existir no interior do próprio legislativo, não se devendo desprezar o fato de
que parlamentares do Império também eram proprietários ou estavam à frente de
diferentes atividades comerciais. Deste modo, ainda no Código de 1889, contrariando
decretos anteriores, na seção Novas Posturas, permitia-se o estabelecimento de
estábulos, albergarias de vacas, cocheiras em qualquer ponto da cidade, ficando
equiparadas às cocheiras e sujeitas às mesmas posturas com relação à construção.
(CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit, p. 66)
Desta perspectiva, o Rio de Janeiro inicia o século XX ainda caracterizado por
usos e funções rurais. Através da seção “Reclamações” publicada no jornal Correio da
Manhã, verificou-se que as preocupações manifestadas nas legislações do século
anterior objetivando a produção de um modelo de urbanidade fundamentalmente para as
áreas urbanas, compunham as queixas de alguns moradores que nelas viviam, o que
remete à internalização de valores e comportamentos cada vez mais vigilantes em
relação ao que fosse compreendido como anti-urbano.
Está resolvida a reconstrução, naturalmente com licença da Prefeitura,
do estábulo de vacas, situado à ladeira do Monte Alegre e ao qual ficam
contíguos casas da rua do Riachuelo, daquela mesma ladeira e da do
Costa Bastos. Como dependência possui o referido estábulo um
capinzal de cerca de dez metros quadrados, adubado por estrume verde,
que é conservado sempre em grande depósito.
Os mosquitos, esses terríveis portadores de micróbios, vivem ali, em
nuvens densas, que fazem o desespero da circunvizinhança.
Além disso, porque o terreno esteja muito acima do vel da rua do
Riachuelo, o estrume que pouco dele vai descendo, chega a atulhar uma
25
vala que corre pela chácara n. 131. (CORREIO DA MANHÃ, 3/
11/1901, p.3)
Neste sentido, penso que as prescrições que citei referentes às normas,
especialmente aquelas instituídas na passagem do regime monárquico ao republicano, se
não foram prontamente implementadas, enunciaram algumas alternativas e, neste
sentido, abriram um campo de discussão e de invenção relativo a um novo ordenamento
da cidade. Logo, retornando à pergunta com que iniciei esta seção e baseando-me na
discussão levantada, acredito que não se estaria falando sobre essências ao se procurar
entender a relação, histórica e socialmente construída, entre “Cidade e subúrbios”.
Ainda que do ponto de vista do processo histórico estas legislações não tenham sido
implementadas ou bem sucedidas (segundo as expectativas daqueles que os
formularam), através delas torna-se possível ver o quão carregado de práticas e sentidos
vistos como rurais repousava a vida social e a conformação das áreas ditas urbanas do
Rio de Janeiro. De tempos em tempos, novas reclamações eram feitas chamando a
atenção para este fato.
Informam-nos que existe uma grande horta no interior dos prédios ns.
139 e 141 da rua João Cardoso na Praia Formosa, a qual serve de pasto
a porcos e outros animais por parte de seus proprietários.
Convém notar que se tem dado no lugar alguns casos de moléstias, que
se atribuem àquele foco de infecção. (CORREIO DA MANHÃ,
22/11/1901, p.3)
Estas, no entanto, não vinham apenas dos moradores das antigas freguesias
urbanas. Várias reclamações chegavam ao Correio da Manhã também dos subúrbios, o
que levou o jornal a manter durante algum tempo uma outra seção intitulada “Pelos
Subúrbios”, voltada para os moradores daquelas paragens.
As ruas Clara de Barros e Vitor Meireles, no Riachuelo, estão
necessitadas de uma capinação, pois atualmente mais parecem capinzais
que ruas.
[...]
Reclamam os moradores da rua Getúlio, em Todos os Santos, trecho
compreendido entre as ruas Zeferino e Cachamby lado do morro, contra
a falta de capinação, pois o capim já mede mais de um palmo de altura,
o que quer dizer que os empregados da Limpeza Pública por não
aparecem há muito tempo. (CORREIO DA MANHÃ, 3/7/1901, p.3)
Ao acompanhar estas seções abertas pelo Correio da Manhã bem no início do
século, um ano antes do estabelecimento de Pereira Passos na administração municipal,
comecei a perceber que, de um modo geral, tantos aqueles que residiam nos chamados
26
distritos urbanos, nomenclatura que substituiu o termo freguesias pelo decreto de 1893,
quanto nos suburbanos, denunciavam as condições de infra-estrutura, higiene e
saneamento. Com isto pretendo chamar a atenção para o fato de que nos chamados
subúrbios as queixas e reclamações esboçavam sentidos e percepções comuns no que se
referia à atuação dos órgãos municipais.
-Sr. Redator. Peço-vos, por intermédio do vosso jornal, reclameis do
delegado de higiene, providências no sentido de melhorar o estado de
uma infecta vala existente na rua Domingos Lopes [Madureira],
verdadeiro foco de infecção, que tem causado muitas vítimas. Sendo
a dita rua a mais central e próxima à estação, é de lastimar que o sr.
delegado de higiene do distrito não se tenha dado ao trabalho de, por
aquela rua, aparecer, afim de providenciar como o caso requer.
(CORREIO DA MANHÃ, 24/6/1901, p.3).
Ou ainda,
Moradores da rua Goiás, na estação do Méier, pedem-nos chamemos a
atenção da diretoria de higiene para o estado lastimável em que se acha
aquela via pública.
As valas abertas para assentamento dos esgotos são verdadeiros focos
de infecção, pela quantidade de águas estagnadas.
Também nos pedem os moradores reclamar contra o fato de estar sendo
novamente habitada uma casa condenada, como a cocheira Portilho. As
autoridades respectivas precisam dar um passeio àquele tio.
(CORREIO DA MANHÃ, 12/1/1902, p.2)
Deste modo, proponho que as condições de insalubridade o comuns nos
pronunciamentos sobre o Rio de Janeiro do século XIX, e que se mantiveram no
decorrer da República, não escapavam a outras áreas e localidades da cidade e a
população do município como um todo vivenciava esta situação.
Moradores de Cascadura, Campinho e Jacarepaguá, queixa[va]m-se do
péssimo estado sanitário dessas localidades, onde a febre amarela
domina.
Atribuem a culpa disso à absoluta falta de higiene naquelas paragens,
onde lavram moléstias epidêmicas, sem que para isso tenha olhos o
delegado de higiene das referidas zonas.(CORREIO DA MANHÃ,
1/4/1903, p.2)
A varíola, contudo, parecia ser mais comum nos subúrbios. Em agosto de 1901,
o Correio da Manhã publica uma nota, “Varíola nos subúrbios”, referente a três pessoas
que teriam sido “atacadas do mal terrível que asseguradamente vai grassando nos
subúrbios, graças a [sic] e desleixo das autoridades”. Os casos ocorreram segundo o
jornal na rua Cristóvão Colombo, no Méier, onde um menor de idade havia falecido.
Comunicou-se o fato ao inspetor de Higiene, que não teria tomado nenhuma
providência, e assim levou-se o que aconteceu ao próprio secretário do “Desinfectório”.
27
O barão de Pedro Afonso, em seguida, encaminhando uma carta ao periódico,
apresentou as suas justificativas para o que se passava. Segundo ele, “a varíola é
adquirida por quem não esdefendido pela vacina”, e neste ponto existiria um nó, pois
o Instituto Vacínico, do qual era diretor, não economizaria esforços no sentido de
combater a varíola, para isso vacinando todos os dias, sem exceção, as pessoas que
comparecem ao edifício do Catete; fazendo visitas a todas as casas onde se
apresentam casos e óbitos da varíola, e aí vacinando todas as pessoas que o permitem”.
(CORREIO DA MANHÃ, 1/8/1901, p.1. (Grifo do texto)
Deste modo, para além de todas as medidas implementadas pelo Instituto –
difusão da vacina nas estalagens, casas de cômodos, habitações particulares e nos
colégios, propaganda em jornais diários sobre a necessidade da população se defender
da varíola, e a vacinação nas salas das agências das estações ferroviárias suburbanas –,
segundo o barão de Pedro Afonso, “a inércia e a indiferença deste povo têm sido
insuperáveis”. Ainda conforme ele, os vacinadores responsáveis pela aplicação nas
paradas da Estrada de Ferro Central do Brasil
[...] perdem o seu tempo, e ali vão às horas marcadas sem resultado.
Ninguém comparece para ser vacinado!
[...].
Mandando visitar diariamente as casas em que se tem dado casos ou
óbitos de varíola para premunir pela vacinação o resto da família contra
a terrível moléstia tem acontecido muitas vezes que diante do cadáver
da pobre criança vítima da varíola, por não ter sido vacinada, as mães
escondem os outros filhos para não os deixar vacinar.
Em algumas casas, principalmente em estalagens, os chefes de certas
famílias se recusam terminantemente à vacinação dos seus filhos, e
ainda é bom quando o vacinador não é obrigado a retirar-se
precipitadamente, para evitar manifestações hostis, completamente
descabidas.
A diretoria de Higiene, pelo seu lado, tem recomendado a seus
comissionários a vacinação, e lhes tem distribuído a vacina para tal fim.
(CORREIO DA MANHÃ, op. cit.)
A partir destes esclarecimentos o diretor do Instituto Vacínico conclui sua visão
a respeito da varíola nos subúrbios do Rio de Janeiro de forma categórica: “[...] tudo
esbarra contra a ignorância e má vontade do povo”. E baseando-se nessa posição,
propõe ao redator do jornal que frente à tal situação seria necessário tomar medidas
legislativas sérias”, obrigando de fato que todos fossem vacinados e permitissem que
seus filhos o fossem.
28
Se as moléstias, a falta de água, e de limpeza das vias de acesso eram constantes
nas manifestações públicas de diferentes pontos do Distrito Federal, naqueles que foram
classificados como urbanos” e quanto suburbanos”, estava-se diante de um projeto de
urbanidade razoavelmente considerado para pelo menos uma parte da população,
independente da sua inserção territorial. Sugiro, assim, que ao se perceber que o
discurso higienista, baseado na importância de uma série de melhoramentos
urbanísticos, se encontrava espraiado e internalizado ao território da cidade como um
todo, uma questão “urbanaperde o sentido enquanto um problema localizado apenas
na parte central do Rio de Janeiro. Ainda em 1901, por exemplo, o Correio da Manhã
informava que
Tudo quanto a natureza nos deu de bom, a mão do homem tem
convertido em coisa ruim. O inverso, justamente, do que ocorre em toda
a parte do mundo.
Nos limites da cidade temos a Copacabana, que a exploração
estragou; na Copacabana, o Leme, que o relaxamento das nossas
administrações consentiu que se dividisse, subdividisse em becos e
travessas estreitas, emaranhados, também está cheio de brejos, sem água
potável e sem gás.
Entretanto, as habitações que existem pagam impostos, cobrados a
título de receberem calçamento, asseio, água e iluminação.
Em calçamento não se fala, nem é bom falar enquanto não houver um
Prefeito de capacidade para ir apagar o feio, ganancioso e labiríntico
traçado das ruas; água, obtém-se por favor de um proprietário; luz
agora foi pedida pelos respectivos moradores.
Dar-lhe-ão? Haverá quem concorde que ali é preciso um
beneficiamento?
(CORREIO DA MANHÃ, 20/6/1901, p.3)
Deste modo, acredito ser viável imaginar que a idéia segundo a qual o Rio de
Janeiro deveria se “modernizar e civilizar” possa ter sido muito mais do que uma
ideologia de empresários da construção civil ou de companhias estrangeiras visando a
lucratividade de seus negócios, aliados a engenheiros que se passando por
administradores competentes e desinteressados, atuariam em nome do desenvolvimento
e do progresso capitalista, ou mesmo à negligência e corrupção de uma elite política
patrimonialista e clientelista que defendia seus interesses. Uma política de dominação
mais ampla alinhavava anseios, visões e expectativas, ainda que estes fossem
manifestados por classes e grupos distintos. Isto porque no que se refere à renda, ao
status social, ao capital cultural, e mesmo à preciosidade da vida humana, diferenças
foram proclamadas em relação àqueles que moravam em Botafogo, considerado bairro
29
nobre da cidade desde fins do século XIX, e no Jardim Botânico. Mantinha-se, no
entanto, o mesmo discurso higienista.
Quando são tomadas medidas extraordinárias em bem da saúde pública,
não andaria mal a diretoria de higiene lançando as suas vistas para os
bairros habitados por aqueles que, conhecedores da gravidade do mal
que invadiu esta cidade e obedecendo estritamente aos mais rigorosos
preceitos da higiene, estão entretanto, expostos a contrair moléstia, pela
desídia de funcionários que não procuram extinguir conhecidos focos
que ameaçam tragar vidas e vidas preciosas.
Os estábulos, chiqueiros e capinzais abundam nos bairros de Botafogo e
Jardim Botânico, e à discrição dos que têm esse gênero de negócio está
a saúde dos moradores, porque as autoridades sanitárias, longe de
prevenir o mal, agindo com a precisa energia para evitar a sua aparição
e natural recrudescimento, confiam demais em proclamada salubridade,
até que tenhamos de registrar os terríveis resultados dessa negligência.
(CORREIO DA MANHÃ, 24/10/1901, p.3) (Grifo nosso)
A crença de que estábulos, chiqueiros, capinzais e cocheiras seriam focos de
miasmas e de doenças infecciosas percorria as manifestações contra a permanência
destes estabelecimentos e práticas sociais, permitindo que se indique que
posicionamentos anti-rurais marcavam as intervenções públicas cujo intento era a
produção de melhoramentos urbanísticos. Um tio higiênico, saneado e civilizado, em
uma palavra, urbano, deveria ter como fronteira o “rústico, camponês, agreste ou
vilanesco”, como definido em Morais (1890). O que me soa instigante, por outro lado, é
que esse tipo de interpretação – na qual condições materiais tais como o sítio, os
estabelecimentos, as construções, os caminhos e as atividades tinham muita ênfase
pode ser apropriado metodologicamente no sentido de se pensar que o que estaria em
jogo seriam as pessoas, os sujeitos sociais. Através do trecho citado, nota-se que no Rio
do início do século, Botafogo era identificado na imprensa como um bairro habitado por
classes privilegiadas, o que não quer dizer que exclusivamente por tais grupos, questão
que será discutida mais adiante. Logo, o problema remetia aos perigos que aqueles
moradores estavam expostos convivendo com atividades rurais naquela circunscrição. O
que para aquela localidade significava uma permanência passível de ser posta no
passado por meio da ação e controle do Estado generalizava-se para boa parte do
centro da capital e subúrbios. Entretanto apesar das manifestações nos e dos jornais
contra a existência das mesmas condições e práticas, do ponto de vista normativo, os
territórios dos subúrbios tornaram-se os apropriados para os estabelecimentos e usos
30
rurais, e no interior deles, para pessoas provavelmente vistas como não polidas e
incivilizadas.
Ressalvo, contudo, que menos do que uma fronteira rigidamente elaborada
através dos Códigos de Posturas, o que sobressai desta discussão são justamente as
indefinições que permeavam a caracterização dos bairros da capital do país como
“urbanos” e “suburbanos”. Neste sentido, o esforço de delimitar, normatizar e
estabelecer distinções, eliminando certas atividades (e pessoas) e especificando as suas
possibilidades de inserção territorial, revela as tensões e os anseios que perpassam a
produção social do espaço. Além disso, se um ideário anti-rural vinculava-se às
preocupações higienistas da época, nelas reverberavam também significados pejorativos
sobre a herança africana do povo brasileiro e os obstáculos encontrados para alçar o Rio
de Janeiro à condição de metrópole burguesa e capitalista.
Visando dar continuidade a este raciocínio, farei um desdobramento em relação
à matéria sobre o caso de varíola nos subúrbios intentando recuperar a historicidade
deste tema na cidade e, através dele, refletir sobre a seguinte hipótese: se o processo de
suburbanização implicava a concentração de estabelecimentos, usos e funções
incômodas e insalubres, industriais inclusive, as tentativas de desestruturação das redes
e relações dos descendentes de africanos e negros crioulos, objetivando o
estabelecimento da modernidade e civilidade, cumpriram um papel neste projeto de
cidade.
Como apontou Chalhoub (1996), a história do combate à varíola e das
tentativas de inoculação e da vacinação “perdem-se na noite do tempo”. Incorporada ao
cotidiano de povos africanos, de asiáticos e de europeus desde longa data, o que o autor
chama de variolização introdução do pus variólico ao corpo humano como medida
preventiva ou de atenuação da doença fazia parte de várias tradições culturais da
medicina popular. No caso do Brasil, apenas no final do século XVIII haveriam surgido
referências a esta experiência, pois conforme o autor, os portugueses não
compartilhavam, diferentemente de outros países europeus e dos norte-americanos,
deste procedimento com relação à doença. Apesar disto, no século XIX, nos
pronunciamentos dos higienistas e estudiosos o aparecimento e a propagação da
epidemia eram identificados sempre ao tráfico negreiro e à chegada de africanos
escravizados ao país.
31
O que vale iluminar do estudo de Chalhoub, no entanto, são algumas questões
concernentes à relação entre vacinadores nem sempre médicos formados e a
população. Saliento, contudo, que as tentativas de vacinação na Corte, durante o século
XIX, baseava-se no método jenneriano através do qual prescrevia-se a introdução de
matéria extraída dos úberes de vacas em um certo número de pessoas. A partir deste
procedimento, os vacinado receberiam o fluido vacínico não mais do chamado cowpox,
pois aquele seria extraído diretamente do braço dos que haviam passado pela primeira
etapa da vacinação oito ou nove dias antes.
Em Cidade Febril é possível entrever a possibilidade de que a prática de
vacinação promovida pelo governo imperial, de um modo geral, fundava-se na
aplicação do método jenneriano à população escrava, pois as classes mais abastadas
tinham a opção de procurar o auxílio de médicos particulares. Afora uma série de
dificuldades de ordem técnica e política, incluindo várias controvérsias entre os próprios
médicos relativas à sua eficácia e à validade funcional da linfa variólica a partir da sua
transmissão braço a braço, afora a possibilidade de transmissão de doenças como a
sífilis por esse método, o autor identifica, por outro lado, através dos relatórios dos
órgãos higienistas, a constante menção ao “horror” da população à vacina.
Assim, as declarações do barão de Pedro Afonso acerca da “inércia e
indiferença” daqueles que deveriam ser vacinados e se recusavam a se submeterem a tal
prática, ratificam algumas das percepções de higienistas e funcionários ligados à saúde
pública, que afirmavam-nas há pelo menos meio século. Chalhoub cita um caso de 1884
neste sentido. José de Castro Rebello, médico da Junta Central de Higiene, foi
encaminhado às freguesias de Campo Grande e Irajá para tratar dos indigentes atacados
de varíola. Agindo no sentido de desinfectar as casas e os quartos dos doentes,
queimando suas roupas, objetos pessoais e proibindo a comunicação entre eles e os
demais moradores, o segundo passo da equipe teria sido em direção à vacinação, o que
lhe gerou alguns problemas. Rebello disse ter visto frente a concepções locais de que a
vacinação seria capaz de produzir a própria varíola, posicionamentos dos moradores
afirmando que uma ão mais enérgica em relação ao controle da doença não lhes era
bem-vinda.
Ninguém comparecia aos pontos marcados para a vacinação. O médico
se viu obrigado a percorrer as casas à procura de quem se deixasse
vacinar, tentando convencer as pessoas das vantagens do recurso. Os
moradores retorquiam com o argumento de que era “dispensável e até
ilegítima a intervenção do médico no tratamento da varíola”. Eles
32
acreditavam que qualquer intervenção enérgica no curso natural desta
moléstia seria prejudicial ao paciente.(CHALHOUB, op.cit., p.126)
O autor destaca que tais justificativas foram muito comuns em diferentes
províncias do Império. Contudo, isto não seria tudo. Aliada a esta recusa, os relatórios
dos higienistas chamavam a atenção para o fato de que o a vacinação, mas a
variolização, por meio da atuação dos chamados “curiosos”, curandeiros e feiticeiros,
era uma prática comum entre os populares e nem apenas restrita a eles. Anos anteriores
ao fato descrito acima, em 1860, o barão do Lavradio solicitava a ajuda da polícia em
relação a um homem que praticava “a inoculação do pus variólico em várias pessoas, as
quais por esse meio têm contraído a varíola” na mesma freguesia de Irajá. A questão
que perpassa o livro refere-se então a entender porque apesar de toda resistência da
população em ser vacinada a variolização se propagou no Império
1
.
Tomando por base o contexto escravista e imperial, o autor procura compreender
quais poderiam ser as raízes culturais negras do que chama de tradição
vacinophobica”. Partindo primeiro do pressuposto de que a varíola atingia um número
maior de pessoas negras cuja menção ao tráfico de africanos internacional e
interprovincial apontava para a existência e difusão da doença em solo brasileiro.
Salientando, em seguida, que frente à negação da população em se vacinar, as
autoridades higienistas deparavam-se não apenas como o medo desta em contrair a
varíola aliada à idéia de que se doente a cura se daria naturalmente, mas também com o
fato de que muitas pessoas haviam experimentado um processo alternativo ao oficial
e que era bastante generalizado, a variolização, o próximo passo do autor foi identificar
uma recriação de rituais negros africanos fundados no culto a Omulu (ou Xapanã, ou
Obaluaiê), o orixá da varíola, em situações caracterizadas por epidemias ou mesmo em
casos individuais.
Simplificando a análise apresentada, são recuperados os diálogos entre os cultos
ao vodu Sagbatá dos daomeanos (atual Benin) e ao orixá Xapados iorubanos (hoje
Nigéria), ambos da chamada África Ocidental, a partir da idéia comum de “controle
dual”. Desta perspectiva, a existência de moléstias seria provocada por causas
1
Para isso, o autor recupera os relatórios do Instituto Vacínico, demonstrando que a doença incidia muito
mais sobre a população escrava. Ainda segundo Chalhoub, estudos históricos referentes ao século XX
têm demonstrado que a mortalidade causada pela varíola continuava a atingir mais a população negra: em
1904, era 30% maior em comparação com os brancos, e na década de 1920 a diferença alcançou a cifra de
50%. (Chalhoub, op.cit., p.134, apud Adamo)
33
sobrenaturais, sendo a cura alcançada através de um ritual no qual um orixá, no caso em
questão, Xapanã ou Omolu, era o responsável pela criação e extinção da doença, ou
ainda com relação ao vodu daomeano, um grupo de divindades como Sagbatá, “Rei,
Senhor da Terra”, tinha o poder de oferecer aos homens tanto a fertilidade quanto os
castigos, a vida quanto a morte.
Baseando-se neste princípio comum o controle dual aos povos africanos
escravizados oriundos do Daomé e das terras iorubás, ainda que tenham sido minoria no
Rio de Janeiro imperial, e indicando através de pesquisas históricas e antropológicas
que mesmo entre os escravos retirados da África central, Angola e Congo, poderia ter
sido possível uma reapropriação e difusão do culto ao orixá iorubá da Terra e das
bexigas, o autor propõe que a variolização era uma prática coerente com as culturas
religiosas africanas e afro-brasileiras de que “da própria fonte do flagelo surge a
possibilidade da purificação e da cura” (Chalhoub, op.cit., p.149). Neste caso, a
vacinação implementada pelas autoridades médicas interromperia um processo
“natural” no qual as respostas às epidemias deveriam ser forjadas a partir do que podia
ser pensado como a origem da própria peste, o orixá Omulu. Apenas ele teria a
capacidade de pôr fim aos seus efeitos. Se a varíola era o mal, seria através da
inoculação do pus variólico, ou seja, pela prática da variolização, que esta seria curada.
Ao recuperar toda esta discussão, sigo a observação feita por Chalhoub de que
longe de estar circunscrita aos povos africanos de diferentes culturas e às tradições afro-
brasileiras, a concepção de que a intervenção de um médico em relação à varíola
poderia ser dispensável e mesmo ilegítima havia sido pensada em diferentes contextos
culturais e históricos, perpassando os posicionamentos de católicos, portugueses e
médicos higienistas. E agora, munida destes argumentos, retornarei ao Rio de Janeiro do
início do século, e ao tema da varíola nos subúrbios.
O barão de Pedro Afonso transformou-se em uma figura central com relação à
propagação da prevenção na década de 1890, sendo o responsável pelo serviço de
vacinação animal no Distrito Federal a partir de uma concessão com o primeiro governo
republicano. Dentre as medidas implementadas estava a criação das condições técnicas
para a produção de cowpox via a inoculação de vitelos. A visita domiciliar seria o
caminho mais indicado, como enfatizado na carta encaminhada ao Correio da Manhã,
reproduzida anteriormente. A atuação do governo brasileiro em relação à população,
contudo, recrudescera desde os anos de 1870, e após um período de desorganização do
34
serviço com a passagem dos regimes políticos, assistiu-se a uma campanha mais
acirrada contra os cortiços, mas a resistência continuava.
Considerando tudo o que desenvolvi até aqui, penso que os argumentos
explicitados pelo barão de Pedro Afonso relativos à permanência da moléstia nos
subúrbios, nos quais enfatiza que os comissários portavam a vacina, mas só conseguiam
aplicá-la naqueles que permitissem, bem como a recusa das pessoas em conduzirem a si
e a seus filhos às estações ferroviárias, vão de encontro com as visões das higienistas
responsáveis por este serviço desde o século XIX o apenas porque identificam um
mesmo problema”. Antes, o que parece tecer estas narrativas é a concepção de que
existiria um povo que mesmo doente se negaria a ser a curado porque ignorante e
inerte. Neste sentido, a permanência da epidemia, mesmo associada a condições tais
como a fome, a seca e a precariedade de vida de trabalhadores e de meretrizes, era
explicada em função do que socialmente se supunha serem as características da
população brasileira. Estas, no entanto, se ligariam às heranças do passado africano,
quando a presença de curandeiros e feiticeiros desenvolvendo rituais relacionados a
doenças e prescrevendo ervas e líquidos, reafirmava certos valores e comportamentos,
confrontando-se diretamente com os métodos da vacinação.
Além disso, o que se destaca de Cidade Febril é que o paradigma do contágio no
qual se inseriam as visões dos médicos higienistas e os procedimentos a serem aplicados
em relação à varíola, seria mais do que um conhecimento “científico”. Isto porque
inserido em um contexto social e político mais amplo, o modelo dico do contágio
físico é apresentado pelo historiador como uma metáfora política de uma sociedade
estruturada pela ideologia paternalista e pela predominância de relações de dependência
pessoal. Neste sentido, os higienistas acreditavam que a varíola possuía características
constantes independentes de variações ambientais ou de predisposições individuais, e
chamava pela imunização permanente do paciente, portador e produtor da doença. No
limite, a varíola seria uma doença “própria” a como se pensava o funcionamento de uma
sociedade escravista.
E, à medida que fui relendo aquele livro para escrever este texto deparei-me com
uma nota publicada no Correio da Manhã, alguns meses após a discussão sobre a
varíola nos subúrbios, que reproduzo abaixo.
Grassa varíola no pitoresco bairro do Andaraí Grande, e consta-nos ter
sido tratada em uma pequena casa, habitada por pretos, uma criança,
sem as cautelas reclamadas pela boa higiene.
35
A doente milagrosamente escapou a poder de beberagens e mais
remédios caseiros; mas outros casos aparecem no apreciado bairro,
devido ao nenhum apreço aos meios profiláticos, e os moradores [sic]
procuram fugir do foco infeccioso, pois acreditam que estão
abandonados pelas autoridades sanitárias.
A diretoria de higiene não será surda ao apelo que daqui lhe dirigimos
para que se evite ali a propagação do mal. (CORREIO DA MANHÃ,
13/10/1901, p.3) (Grifo nosso)
A questão que me coloco ao citar este trecho é a de procurar entender o porquê
do jornal decidir revelar aqueles que haviam cuidado da criança através de uma
referência à cor das pessoas. É provável que ao fazê-lo reafirmava uma trajetória longa
e sinuosa, como se viu, acerca dos diferentes caminhos e visões que construíram a
história da varíola e das práticas de inoculação, manejadas por curandeiros e feiticeiros,
alternativas às oficiais. A informação da cura em função do poder de beberagens e
mais remédios caseiros” estabelece uma relação entre estas práticas e os “pretos”,
porém, somado a isso, qualifica-se esta relação como alheia aos cuidados da “boa
higiene”. Deste modo, ainda que a criança tenha escapado, “milagrosamente”, isto se
deu pelo uso de procedimentos não-profiláticos, inadequados e atrasados. Para enunciar
esta representação social, o jornal inseriu a categoria pretos ao corpo do texto,
entretanto, em um contexto político no qual a possibilidade de propagação da varíola
confrontava-se com a existência de métodos aprovados pela comunidade médica e pelo
governo republicano, incorporando uma memória histórica das relações, ões e
concepções da doença em uma sociedade escravista.
Assim, o exercício analítico que procurei apresentar aqui marcará o esforço de
interpretação das fontes que se referem à enunciação da cor ou da noção de raça, base
dos dois próximos capítulos, nos quais centrando a análise no subúrbio de Madureira,
procurarei compreender a reconfiguração das relações, redes e concepções sociais no
período pós-emancipação. Por ora, no entanto, explicito que uma das linhas que permite
alinhavar o que chamei de uma política de dominação que, como defendo, não estava na
cabeça de um grupo de capitalistas ou políticos isolados, visto que internalizada e
legitimada entre diferentes classes e grupos sociais, reside na corrente aproximação
entre o que fora entendido como práticas do “mundo africano” e representações sociais
como atraso, barbárie, o-civilizado. Neste sentido, estou chamando a atenção para a
questão que permeará esta dissertação: a racialização de homens e mulheres no período
36
republicano foi uma das estratégias políticas que permitiu a manutenção das
desigualdades, hierarquias e elitização dos espaços públicos.
A apresentação da varíola como uma doença relacionada aos descendentes de
africanos e manejada pelos chamados feiticeiros e curandeiros no sentido da cura, cujos
exemplos, por coincidência ou não, estiveram em freguesias suburbanas, não deve
remeter à idéia de que a população negra estava concentrada territorialmente àquela
época, pois o que será visto através das reclamações e queixas dos moradores de um
ponto a outro do Rio republicano, na próxima seção, será o oposto a isso. Desta
perspectiva, a chamada às autoridades higienistas e à polícia para que interviessem
contra práticas de feitiçarias, batuques e capoeiras aponta para as tentativas de
eliminação de um “passado” e de uma “herança” que do ponto de vista dos sujeitos a
serem controlados provavelmente significava o presente e atualidade de suas vidas – dos
territórios que se configuravam como urbanos”, nos quais os subúrbios não estavam
incluídos, o que não impedia que os anseios pelo progresso partissem daquelas paragens
também. Neste sentido, fez-se uma escolha política.
Tenho muito cuidado, por outro lado, para não assumir a idéia de que aqueles
identificados como desordeiros, vadios, turbulentos, pobres, trabalhadores subalternos,
capoeiras e feiticeiros fossem todos negros e deste modo elaborar um tipo de racismo às
avessas. É bem provável que as combinações fossem tão múltiplas assim como é a vida
no seu dia-a dia, que através do esforço e exercício de interpretação acaba sendo
sintetizada pela inscrição e escrita do autor-pesquisador. Desta perspectiva, se é
provável intuir que imigrantes europeus pudessem ser desordeiros e vadios, portugueses
capoeiras, brasileiros brancos trabalhadores pobres, assim como negros bacharéis
(geralmente identificados como pardos e mulatos), o que pode ser pensado
sociologicamente diz respeito aos processos sócio-históricos através dos quais noções
como desordem, violência, selvageria, foram utilizadas para a construção do outro, o (a)
africano (a) ou aquele (a) que poderia se tornar africanizado (a), como uma das questões
do Brasil no período pós-emancipação. A dimensão que isto recebeu no reordenamento
de uma sociedade e cidade cujo paradigma estava na Europa, ainda que não em
qualquer uma, mas naquela também idealmente imaginada, assim como a África,
formada por tantas etnias e povos, articula-se à emergência e à propagação de um
ideário urbanístico para as cidades brasileiras, notadamente, o Rio de Janeiro.
37
2.2 SOBRESSALTOS ESTÃO POR TODA A PARTE
O espraimento do discurso higienista, imbuído de uma lógica vigilante sobre a
existência de atividades vistas como rurais e insalubres e reivindicando a intervenção
dos órgãos públicos no sentido de prover as localidades da cidade de condições
sanitárias adequadas aos conhecimentos técnicos e científicos da época caracterizou o
início do século XX. Neste sentido, um projeto de urbanidade mais ou menos
consensual ganhou adeptos nos limites da cidade, fosse em Copacabana, em diferentes
subúrbios, passando ainda por áreas mais privilegiadas como Botafogo.
No entanto, aliado aos usos e funções rurais que caracterizavam a cidade como
um todo, um “ordenamento” territorial pouco uniforme herdado do período colonial
cujos símbolos mais veiculados eram os becos e as vielas e do contexto imperial a
profusão de cortiços, estalagens, casas de cômodos e outras habitações populares nas
áreas centrais insistia em enunciar que se vivia em um local que em nada lembrava as
modernas cidades européias. Longe de ser uma novidade, essa imagem foi legitimada
do ponto de vista institucional no último quartel do culo XIX, em 1875 e 1876,
quando a Comissão de Melhoramentos procurou intervir nos arrabaldes e subúrbios,
notadamente naqueles das freguesias do Engenho Velho, promovendo outros tipos de
edificação e arruamento. Conforme os engenheiros responsáveis pelos relatórios
apresentados ao governo imperial,
Os bairros, a que nos referimos, sendo os que melhores condições
oferecem para o desenvolvimento da cidade, são também os que
atualmente mais importantes melhoramentos reclamam e onde tais
obras podem ser realizadas com menos dispêndios e menos
dificuldades, por serem aqueles em que a propriedade tem relativamente
menos valor e as construções não se acham tão unidas umas às outras,
como acontece na parte mais antiga da cidade. Sua grande extensão em
planície, apenas interrompida por poucos e insignificantes acidentes de
terreno, permite dar às ruas que se abrirem toda a expansão
necessária, e proporcionar à população da cidade amplo espaço para
edificação de casas rodeadas de jardins, que tanto convém à salubridade
em nosso país. A circunstância mesma de achar-se aquela localidade
rodeada de montanhas coberta de vegetação, donde descem perenes
mananciais de águas puras, muito concorre para amenizar o rigor da
estação calmosa, e para a purificação do ar por tantas causas viciado em
uma grande cidade.
[...].
Um dos maiores defeitos que se notam na parte antiga da cidade são a
estreiteza e a grande sinuosidade de suas ruas, do que resultam não
somente dificuldades à circulação dos veículos e das pessoas a pé, mas
ainda impedimento sensível à renovação do ar viciado por tantas causas
no interior das habitações.
38
No traçado das ruas dos novos bairros, a Comissão teve muito em vista
evitar este inconveniente, dando às que projetou e que devem servir de
base às subdivisões em quarteirões, larguras muito acima do comum no
Rio de Janeiro
.
(MELHORAMENTOS DA CIDADE DO RIO DE
JANEIRO. PRIMEIRO RELATÓRIO DA COMISSÃO DE
MELHORAMENTOS DA CIDADE DO RIO DE JANEIRO, 1875, p.
2- 4)
Essa tentativa de intervenção do Estado nas condições higiênicas e habitacionais
do Rio imperial o seria realizada em sua parte mais antiga e sim nos subúrbios, fato
que expressa a indefinição entre os usos rurais e urbanos de muitas localidades, posto
que nos anos de 1870, oficialmente, o Engenho Velho era considerado uma freguesia
urbana (Ver Quadro I e também Mapa I). O tipo de habitação preconizado, casas
rodeadas de jardins, pressupunha que ao atuar sobre essa área, o governo imperial que
por sugestão da Comissão de Melhoramentos deveria abrir uma concessão às empresas
privadas – definia as classes e grupos que ali habitariam.
Destaco, no entanto, que a esta época vivia-se em uma cidade escravista. Logo,
as possibilidades de mobilidade, mesmo sem estarem restritas aos que juridicamente se
inseriam na condição de livres, não eram iguais para a população mais ampla, pois
formalmente os escravos deveriam residir junto aos seus senhores. De acordo com o
recenseamento de 1872, no Município Neutro havia 226.733 livres e 48.239 escravos,
ou seja, cerca de 20% da população era cativa. Acrescente-se a isso a valorização
imobiliária que resultaria dos melhoramentos urbanísticos, o que criaria sobre um corte
social e político fundado na oposição entre livres e escravos, um tipo de hierarquização
de natureza econômica: neste contexto, quem teria condições econômicas de pagar por
moradias segundo os moldes propostos? Cabe ressaltar que no ano de 1875 eram
inauguradas as linhas de bonde da Companhia Ferro Carril de Vila Isabel estabelecendo
comunicação entre o Andaraí Grande (Andaraí, Vila Isabel, Grajaú e Maracanã), o
Francisco Xavier e Engenho Novo. No entanto, a primeira linha da Ferro Carril, que
ligava o centro à Vila Isabel, foi inaugurada em 1873, incluindo a produção de
loteamentos urbanos que originariam o bairro. Em 1871, contudo, a Companhia Ferro
Carril do Jardim Botânico havia instalado linhas entre a rua Gonçalves Dias, no
centro, e o Largo do Machado, passando pela Glória – local de moradia dos mais
favorecidos –, Botafogo, igualmente aristocrático, e o ermo Largo das Três Vendas
(atual praça Santos Dumont, na Gávea). Noronha Santos, referindo-se aos subúrbios a
norte do Rio imperial, destacava que
39
Bons prédios de apurado gosto, têm sido, de 1870 para cá, construídos
nas ruas servidas pelos bondes das Companhias de São Cristóvão e Vila
Isabel, dando novo aspecto à freguesia que, antes daquela data,
possuía casas de recreio e de campo, nas terras das fazendas e sítios, em
que foram abertos, os logradouros públicos, que hoje vão ter à Tijuca,
ao Andaraí e Vila Isabel. Tantos são os prédios de belas construções,
espalhados por vários pontos do Engenho Velho, nas chácaras e jardins
de vegetação luxuriante, que difícil, senão impossível, é a tarefa de
quem se propuser a colher dados sobre as melhores edificações que
existem no território desta freguesia.
(ABREU, 1987, p.45, apud
SANTOS, 1968.)
Transcorridos quase trinta anos, quando esta região fora identificada pela
Comissão de Melhoramentos como um caminho para o “desenvolvimento da cidade”,
outros atores e sociabilidades figuravam naquele cenário. Servida por diferentes linhas
de bonde, e por isso tendo acesso a alguma infra-estrutura urbana como arruamento e
alinhamento das construções, as de “apurado gosto”, como frisou Noronha Santos,
devem ter permanecido e no interior delas famílias mais ou menos abastadas conduziam
suas vidas. No entanto, havia aqueles que se sentiam incomodados e demonstravam sua
insatisfação publicamente.
Pedem-nos os moradores do bairro da Fábrica de Chitas uma
providência séria contra o procedimento de indivíduos ébrios,
vagabundos e desordeiros, que se reúnem diariamente em uma venda da
rua de Santo Henrique n 1, esquina da do Desembargador Isidoro,
pondo as famílias residentes no referido arrabalde em constante
sobressalto e provocando as pessoas que por ali têm de passar.
Para esses abusos chamamos a atenção do sr delegado da 10
a
circunscrição urbana, seguros de que medidas serão tomadas para que
se não reproduzam.
(CORREIO DA MANHÃ, 19/10/1901, p.3)
Ébrios, vagabundos e desordeiros reunidos em uma venda levavam o temor às
famílias no Engenho Velho (Ver Mapa I). Imaginando os significados que o jornal
procurava expressar referindo-se aos permanentes sobressaltos, uma das idéias seria a
de que certos movimentos desestabilizavam e eram desestabilizados naquele cotidiano.
40
Mapa I. Planta da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios, início do século XX [190?]
Fonte: Seção de Cartografia, Acervo da Fundação Biblioteca Nacional.
Noutros subúrbios as preocupações com a ordem social pareciam seguir este
mesmo padrão. Em 1901, por exemplo, o Correio da Manhã se dirigia às autoridades
sanitárias e à polícia para comunicar-lhes que um casarão, que em outros tempos fora
utilizado para a instalação da Companhia Vila Isabel no boulevard 28 de Setembro,
possuía uma parte habitada e a outra, abandonada, se tornara um refúgio de indivíduos
suspeitos”. Neste sentido, afora os próprios moradores, o casarão representava uma
ameaça à saúde da vizinhança. (CORREIO DA MANHÃ, 27/10/1901, p.2)
Na rua Visconde Duprat, que segundo o jornal “não é [sic] nenhum subúrbio
longínquo”, razão pela qual deveria ser visitado pela polícia, que ficava próximo ao
41
centro da cidade, nas bandas do Campo de Marte, “perigosos menores vagabundos”
praticavam tropelias à luz do dia, mas também nas estações do Riachuelo, Engenho
Novo e Engenho de Dentro, a “molecagem” campeava livremente. (CORREIO DA
MANHÃ, 19/1/1904, p.3 e 11/11/1901, p.2)
Em um botequim da rua Ana Nery, esquina com a rua Conselheiro Magalhães
Castro, “ponto de reunião de uma corja de desordeiros, ébrios, gatunos”, algazarras à
noite levavam sobressaltos aqueles que tinham a “infelicidade” de por ali passar.
(Correio da Manhã, 17/6/1901, p.2) No Engenho Novo, “lugar de muita vida, com
regular comércio, [...], casas particulares de bonito aspecto[...]”, ao longo de todo o dia
no botequim e bilhares da rua Goiás, em um prédio atrás da estação ferroviária, vadios e
desordeiros ali ficavam sem aparecer guarda policial algum. (Correio da Manhã,
18/6/1901, p.3) Na estação do Engenho de Dentro, desocupados se reuniam a dois
passos da delegacia local. Ainda na rua Goiás, mas agora na estação da Piedade,
desordeiros faziam exercício de capoeiragem na rua Belmira e M. Berquo. Na rua dr.
Manoel Victorino, neste mesmo subúrbio, queixavam-se os moradores de assaltos,
desordens e conflitos. (Correio da Manhã, 8/7/1901, p.2)
Em Todos os Santos, na rua
Amália, canto da rua Cardoso, uma venda seria o ponto predileto de vagabundos, e os
guardas responsáveis pela ronda preferiam fazer lhes camaradagem a incomodá-los,
chegando mesmo a beberem todos juntos. A eles, ajuntavam-se ainda desertores.
(Correio da Manhã, 9/11/1901, p.3) Em Terra Nova, na rua Francisco Ziss, em um
“samba” ocorriam constantemente distúrbios e arruaças. (Correio da Manhã, 1/12/1901,
p.2)
Campo de Marte, Vila Isabel, Engenho Novo, Riachuelo, Rocha, Méier, Boca
do Mato, Engenho de Dentro, Todos os Santos, Sampaio, Terra Nova, Piedade,
Cascadura, Madureira, Campinho, Dr. Frontin, em arrabaldes ou nas paragens da
Central do Brasil, os personagens que produziam as brigas e turbulências, as algazarras
e correrias praticando os “exercícios de capoeiragem” (evoluções empunhando uma
navalha, pulando e demonstrando agilidade com o corpo), os “sambas”, as
“molecagens” (insultando as famílias com atos de maus gestos, vaiando os transeuntes e
impedindo que as pessoas saíssem às ruas), quando não os assaltos e furtos, eram
identificados todos segundo a gramática da desordem pública. E no interior dela,
algumas regras de concordância não deixavam vidas quanto ao quê e a quem se
combatia.
42
Uma feitiçaria – Busca e apreensão – As Marias no “zunga”
O delegado da 20
o
deu ontem à noite, vigoroso cerco à casa n 39 da rua
Paraná, no Encantado, um verdadeiro centro de bruxaria. Prendeu
aquela autoridade as pretas Domingas Conceição, Bernardina Maria da
Conceição, Catarina de Sant’anna e Roberta Maria da Conceição, que
foram recolhidas ao xadrez.
Apreendeu o delegado grande quantidade de ossos, chifres e bugigangas
próprias para feitiçarias. (CORREIO DA MANHÃ, 9/6/1905, p.3)
Em Botafogo, área nobre, reclamava-se que um agrupamento de desocupados e
vagabundos, moradores de uma pequena casa na rua General Polidoro, cantarolava,
atirava chufas aos transeuntes e jogava pedras aos prédios vizinhos, e a polícia nada
fazia porque daquela rua amesmo ela fugia. (Correio da Manhã, 11/10/1901, p.2) Na
rua de São Manoel, no mesmo bairro, quase um mês depois, reclamava-se de um bando
de menores que havia se tornado o senhor do local, os quais vivem a jogar peteca e
atirar pedras, perturbando o trânsito público e causando prejuízos, pois até já têm
quebrado alguns vidros das casa vizinhas. Esse bando é chefiado por um crioulo
desocupado”. (Correio da Manhã, 9/11/1901, p.3)
No beco de São João Batista, uma
“aglomeração de vagabundos” impedia que as famílias ali residentes chegassem às
janelas, e os negociantes que tinham estabelecimentos viviam em contínuos
sobressaltos: casas eram assaltadas e distúrbios aconteciam diariamente. (Correio da
Manhã, 8/2/1902, p.3). Na rua Dois de Dezembro, no Catete, a abertura de uma casa de
máquinas da Companhia Jardim Botânico teria levado uma malta de vadios a se reunir
em tremenda algazarra; os moradores então se queixaram ao jornal, que destacava: “À
polícia compete chamar ao bom caminho esses indivíduos, que tão mal empregam o seu
tempo” (Correio da Manhã, 11/4/1903, p.4) No largo da Glória, mas, sobretudo, na rua
do Catete, os moradores reclamavam [...] justamente contra um zé-pereira, que os
atordoa dia e noite, numa casa do beco do Rio, quando o carnaval ainda está longe”.
Assim, o jornal questionava se a polícia teria autorizado a “inferneira” ou se o
“batuque” era feito sob a proteção de um dos inspetores da circunscrição, o que na
verdade pouco importaria, pois “aquilo é [era] simplesmente horrível”.
(Correio da
Manhã, 31/12/1903, p.3) No mesmo bairro, nas ruas Bento Lisboa, Tavares Bastos e
Pedro Ernesto moradores viviam sempre em sobressaltos porque, alternando-se, eram
encontrados “maltas de desordeiros, de desocupados, de notívagos em exercício de
43
capoeiragem e algazarras nas tavernas e nas ruas” e “cantores de serenatas, fazendo
gemer o pinho” ao longo da noite e madrugada. (Correio da Manhã, 11/3/1904, p.3)
Através destas notas publicadas no Correio da Manhã, o que vai se fixando ao
se procurar imaginar o Rio de Janeiro do início do século é que os sobressaltos estavam
por toda a parte. Na área central mais antiga da cidade, falava-se, por exemplo, em
Quem tem a infelicidade de morar ali pelas proximidades do morro do
Senado, dorme em sobressalto, quando dorme, porque tem
constantemente ameaçadas a vida e a propriedade.
dias chamamos a atenção da polícia para esses lugares perigosos e
dissemos que em Serra da Falperra se transformará aquele outeiro que
tão vizinho está da casa matriz do nosso corpo de segurança pública.
Entretanto os gatunos continuam impávidos e desassombrados a atacar
as casas vizinhas, à noite, quando saem de fuvina e se escondem, nesse
morro, e do qual a polícia tem medo de acercar-se.
O público vai trocando o nome do Morro do Senado, pelo de Morro
dos Ladrões. (CORREIO DA MANHÃ, 9/11/1901, p.2)
Vizinha ao morro do Senado, a rua do Riachuelo abrigava um prédio, o de
número 243, que, segundo moradores do logradouro, havia se tornado um monturo, ou
seja, depósito de lixo. Articulado a um mote pautado nas concepções higienistas,
manifestava-se, contudo, um problema de ordem social, pois do local saíam, pela
manhã, muitos vagabundos que se acoitam à noite, e, durante todo o dia e toda a
noite, [...] também uns péssimos odores, oriundos das imundices que se amontoam no
interior daquele prédio” (Correio da Manhã, 28/11/1901, p.3).
Ao lado do morro do Senado, outras áreas do perímetro urbano compunham a
cacofonia da desordem urbana. No morro de Santo Antônio, mais próximo do centro
comercial, o embate do qual o jornal também tomou parte, direcionou-se às edificações
irregulares realizadas por soldados da polícia, que constituíam a maioria dos moradores,
e por subalternos do Exército. Submetido a um recenseamento, o morro de Santo
Antônio fora percorrido por um agente da prefeitura que visitando as “casinhas”
erguidas, executava parte das medidas que visariam a implementação de uma “obra de
saneamento”.(Correio da Manhã, 18/10/1901, p.1) Um mês depois, as “casinhas”
descritas agora pelo jornal como barracões” haviam sido demolidas por ordem do
prefeito, sem atingir a todos os moradores. Dentre estes, alguns teriam “escapado” por
razão de proteção. (Correio da Manhã, 18/11/1901, p.2) Pedia-se, então, a “eqüidade”:
as casinhas que lá permaneceram deveriam ter a mesma sorte daquelas que foram
destruídas. (Correio da Manhã, 22/11/1901, p.3) Fossem casinhas ou barracões, não
44
eram apenas essas habitações populares que estavam na mira das autoridades
municipais e da imprensa. No sopé do morro, uma estalagem “condenada” abrigava
pessoas que se dividiam em cubículos sem ar, luz, e água nas latrinas, e em seu ponto
mais alto, no terreno do mesmo proprietário, “[...] um cubículo construído de tábuas de
caixões e coberto de latas velhas” teria, na opinião do jornal, livrado-se das vistorias
feitas durante aqueles dias. (Correio da Manhã, 26/10/1901, p.2)
Assim como o morro de Santo Antônio, o morro do Pinto também fora indicado
como uma localidade da área urbana da cidade que se encontrava abandonada pela
prefeitura. Moradias precárias construídas anos eram as opções habitacionais para
uma população numerosa que, apesar de não ser apresentada em mais detalhes pelo
jornal, insistia em enunciar a sua origem e condição: abandono, inexistência de conforto
e de infra-estrutura urbana como calçamento e água foram as condições materiais que
possibilitaram a apresentação do morro como uma antítese da cidade moderna, pois se
assemelharia mais a um povoado africano não-civilizado, no qual pobres moradores
contavam apenas com a piedade das agências prefeitura.
Anda longos anos entregue inteiramente ao abandono o morro do
Pinto, onde habita uma população numerosa.
Faltam ali todas as comodidades. Ruas sem calçamento, higiene
nenhuma, um desleixo completo, aquilo mais parece um pedaço da
África Selvagem, do que parte de uma cidade civilizada.
Agora, para agravar ainda mais a situação dos pobres moradores, vem
se juntar a falta de água.
Senhores das obras públicas, tenham piedade dos que residem no morro
do Pinto! Uma providência qualquer pelo amor de Deus, pedem os
desgraçados!
(CORREIO DA MANHÃ, 11/1/1902, p.3)
Ao destacar a ausência de serviços e intervenções urbanísticas como um dos
fatores que explicitaria a existência de um “pedaço da África Selvagem” no interior de
um todo mais amplo que se pretendia “civilizado”, o Correio da Manhã reifica a idéia de
que desejar a modernidade era a face de uma construção social e política articulada
pelas elites políticas e intelectuais, que, entretanto, não se furtava de uma legitimidade
para além delas na qual o atraso e a barbárie viriam da África. Pensado enquanto uma
unidade cultural e política, segundo uma visão reducionista e etnocêntrica, aquele
continente passa a ser o paradigma do qual se queria distanciar. Contudo, à medida que
estas visões se reafirmavam o que se forjava através da mobilização de uma memória
sobre as relações de trabalho servil e as condições precárias de vida dos cativos, era a
posição social que os descendentes dos ex-escravos os chamados crioulos, negros
45
nascidos no Brasil poderiam ocupar no contexto pós-emancipação, posto que àquela
época o sistema escravista baseado no tráfico de negros africanos havia sido
desestruturado e a imigração destes para o Brasil era vista como algo impensável.
De uma relação social passível de pena, sedimentada por práticas paternalistas e
de dependência pessoal, chegava-se, entretanto, a uma crítica referente às sociabilidades
que deveriam estar restritas ao passado. Menos do que assumir uma forma acabada e
definitiva, o racismo, sem necessariamente aludir a noções como raça e cor, era
produzido em função de posicionamentos e valores aparentemente contraditórios. Neste
sentido, nem da “piedade” alheia viviam os “pobres” e “desgraçados” moradores do
morro do Pinto. Estes também eram capazes de incomodar, e, neste caso, à polícia cabia
a intervenção.
Para um batuque carnavalesco infernal existente na rua Saldanha
Marinho n 17, no morro do Pinto, pedem-nos os moradores
circunvizinhos que chamemos a atenção do dr. Alfredo Santiago,
delegado respectivo, afim do mesmo providenciar no sentido de cessar
tão incômoda e prejudicial brincadeira. (CORREIO DA MANHÃ,
10/12/1903, p.2)
Os bairros da Saúde e Gamboa concentrariam no entorno das Escadinhas do
Livramento, “jogadores de vermelhinha, desertores do Exército e Armada, malandrins
de toda a casta, formando ali o seu quartel general”. Chamando a atenção para a
impunidade ali existente, o jornal salientava que as Escadinhas do Livramento
representavam uma “vergonha para uma capital civilizada”, bem como um “perigo
iminente para os que, privados de recursos, se vêem obrigados a residir em tal lugar ou
por ali passar”. Ainda no sentido de oferecer aos seus leitores uma espécie de
radiografia da cidade, a matéria informava que a ausência da polícia naquela área
contribuiria para a ida de malfeitores”, que rechaçados de outros bairros
estabeleciam refúgio. No entanto, apesar da intenção do jornal em mostrar uma
preocupação com aqueles que moravam nas imediações, o problema residia nas
ameaças à ordem social que figuras como jogadores e capoeiras, campeando livremente,
pareciam incutir, “[...] afrontando os pacatos burgueses e apanhando nas suas malhas os
incautos”. Afora estas questões, no morro da Saúde, nos domingos e em dias
santificados, cerca de 100 burros pertencentes a uma cocheira localizada na rua da
Harmonia pastariam livremente com a condescendência do agente da prefeitura,
levando risco à saúde. (Correio da Manhã, 4 e 9/1/1902, p.2-3) Ainda naquela
46
circunscrição, dois anos depois, em meio às reformas urbanísticas, solicitava-se a
atenção das autoridades para
[...]
um quilombo existente na rua dos Andradas, no trecho
compreendido entre a travessa do Oliveira e o morro da Conceição.
As curas maravilhosas, os processos de dar fortuna rápida, etc. são os
meio de que se servem os proprietários dessa locanda, para enganar os
tolos. (CORREIO DA MANHÃ, 9/4/1904, p.3, Grifo do autor)
Outros morros Distrito Federal despertavam a atenção da imprensa. Mais
afastados do centro, localizados nos subúrbios e em bairros ocupados por classes
privilegiadas, estes locais estavam submetidos a um olhar vigilante. Para o morro do
Paim, na estação do Sampaio, reivindicava-se a presença da polícia, mas também na rua
Vinte e Quatro de Maio, esquina com a de Antunes Garcia, no mesmo subúrbio, onde
uma “malta de vagabundos” que se encontrava junto a um quiosque em ruínas, obrigava
as famílias a manterem fechadas as janelas por causa das “cenas de vandalismo” ali
praticadas. Ainda naquela rua, mas na estação do Riachuelo, um ajuntamento de
desocupados teria escolhido aquele ponto para promover alterações à ordem pública.
Solicitava-se, assim, que a companhia de gás instalasse um lampião na rua Conselheiro
Magalhães Couto, “ponto bastante perigoso”. (Correio da Manhã, 3/7/1901, p.3). No
alto da estação da Mangueira, onde se situava a Vila Savana, “[...] lugar outrora
procurado pela sua salubridade [...]”, o “[...] tio mais pitoresco de todos os subúrbios
muito recomendado pela sua salubridade e sossego [...]”, residia um “perigo”. De um
dia para o outro, o local poderia ser invadido por terríveis “epidemias da época”, mas
principalmente pela “peste”, noticiava-se. E, em seguida, o alarde fora esclarecido.
É que nos fundos das casas n 8 e 12, daquela vila, existe um barracão de
madeira onde moram, numa promiscuidade repelente, diversos
trabalhadores da Companhia de Melhoramentos, empregados no
desaterro próximo, e no pequeno espaço do terreno junto ao barracão,
dormem todos os muares que trabalham no desaterro. Trata-se, portanto,
de um nauseabundo foco de todos os miasmas e podridões. O mau
cheiro que daí se evoca e alastra pelas redondezas, é, por si só, uma
coisa insuportável. (CORREIO DA MANHÃ, 3/11/1901 e 25/1/1902,
p.3)
No morro do Salgueiro, o “crioulo” Benedito de Souza fora preso por promover
desordem no lugar denominado Curicico, e reconhecido por um sacerdote quando ia à
delegacia, soube-se que ele seria o autor de duas mortes no estado de Minas Gerais.
(Correio da Manhã, 4/1/1902, p.2). No morro da Viúva, um barracão em frente à casa
47
66 teria se tornado “valhacouto de malandros e ratoneiros”. O pavilhão ocupado, de
propriedade da Diretoria de Obras Públicas, estaria há mais ou menos seis anos servindo
de depósito para a guarda de material, porém, sem ninguém nele residir. Frente a isto, os
“vadios” teriam se aproveitado do abandono e reuniam-se fazendo “algazarras” e más
ações”, gerando incômodo e revolta na vizinhança, que reclamava através do jornal.
(Correio da Manhã, 11/1/1902, p.3)
O que me chama a atenção nestas fontes são as referências à propagação de
ocupações habitacionais de desordeiros” e “vadiospelo território da capital do país,
ainda que seja possível objetar no sentido de que em distritos urbanos como Santana,
Santa Rita, Espírito Santo e Glória, estes personagens assumiriam quantitativos maiores
em função de serem mais densamente povoados que os subúrbios, e, por conseqüência,
mais ocorrências criminais. Parece-me interessante colocar, entretanto, que a
compreensão sociológica da chamada desordem social não pode se reduzir a
quantitativos numéricos. Os temores, os incômodos e os prejuízos tão citados nos
jornais foram interpretados e qualificados em diferentes localidades do Rio republicano
e a menção aos “ajuntamentos”, tão corrente àquela época, fornece uma possibilidade de
análise interessante, pois se todo ato de ajuntar-se significa a reunião de pessoas, o
contrário não caberia nos contextos apresentados. Cabe, assim, recuperar a historicidade
daqueles encontros coletivos.
Porém, antes de enveredar neste caminho, com o intuito de relacionar a temática
acima apresentada às condições habitacionais da cidade no pós-emancipação, saliento
que a partir do que foi discutido nesta seção é possível apontar que moradias precárias
construídas em morros da cidade e prédios abandonados tornavam-se habitações
coletivas de “desocupados” e “vagabundos”, o que não impedia que trabalhadores das
empresas privadas e militares de baixa patente se vissem submetidos a condições
habitacionais semelhantes, como no morro de Santo Antônio e na Vila Savana, na
estação da Mangueira. Aliado a isso, a referência a “batuques”, “sambas”, zé-pereiras,
capoeiras, feitiçarias e “curas maravilhosas” demonstram que negros crioulos ou, quem
sabe, antigos africanos, viviam nas áreas urbanas do Rio de Janeiro do início do século,
tanto naquelas mais centrais quanto em antigos arrabaldes como Glória e Catete, bem
como nos subúrbios. A população se espraiava e um projeto de urbanidade também:
reivindicava-se a presença do Estado através das delegacias de polícia, das diretorias de
higiene e de obras públicas.
48
Assim, ao lado destas considerações, o que se insinua como questão é o fato de
que, no início do século, a população negra estava de um modo geral dispersa na cidade
como um todo. Baseando-me no recenseamento de 1890, e reagrupando em negros (as)
e brancos (as), os dados disponíveis referentes ao número de habitantes segundo a
classificação oficial pretos (as), mestiços(as), brancos(as), caboclos(as)
2
foi possível
estabelecer algumas proposições. A primeira delas é a de que nas freguesias comerciais
da Candelária, São José e Sacramento, a relação entre negros e brancos era bastante
desproporcional, com números mais elevados para o segundo grupo. Nas outras
freguesias urbanas, notadamente nas de Santa Rita, Santana, Espírito Santo, Glória,
Lagoa, Gávea e Engenho Velho, havia um equilíbrio entre brancos e negros, ainda que a
população branca se apresentasse com contingentes maiores. Nas freguesias suburbanas
tendia-se também a números mais proporcionais, exceto em Guaratiba, Campo Grande e
Santa Cruz, que possuíam mais negros que brancos (Gráfico I).
Gráfico I. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal, 1890.
2
No gráfico não utilizei os dados referentes à população cabocla.
0
10000
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Freguesias urbanas e suburbanas
Número de habitantes
Brancos (as)
Negros(as)
49
A título de comparação, em meio século, de acordo com o censo de 1950, a
população de pretos e pardos havia se tornado minoria nos distritos urbanos,
principalmente naqueles que compunham a parte mais antiga do Rio de Janeiro,
rompendo-se também a tendência à proporcionalidade nos distritos que se elitizaram
Glória, Lagoa e Gávea –, transformando-se em bairros dos mais privilegiados. Se o
centro comercial e político da cidade e a chamada zona sul foram submetidos a um
processo de branqueamento, o mesmo se deu em bairros como a Tijuca (que em 1890
fazia parte do distrito do Engenho Velho), cujo desequilíbrio entre brancos e negros se
tornou maior. Simultâneo a isso, bairros suburbanos como Engenho Novo, Madureira,
Pavuna, Anchieta, Realengo, Guaratiba e Santa Cruz apresentavam uma relação mais
equilibrada, entre negros e brancos, e números absolutos mais elevados em comparação
com a zona sul. (Gráfico II)
Gráfico II. Brancos (as) e negros (as) no Distrito Federal, 1950.
0
20000
40000
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Distritos urbanos e suburbanos
Número de habiatantes
Brancoa(as)
Negros(as)
50
2.3 NEGROS LIVRES E LIBERTOS NA CIDADE E AS RESTRIÇÕES À
LIBERDADE
Discutidas em rios trabalhos, Chalhoub (1990), Gomes (1996, 2003), Soares
(1998, 1998/1999), Soares e Gomes (2001), as temáticas dos “ajuntamentos” de
escravos fugidos, libertos e africanos livres na Corte imperial e das medidas políticas
que objetivavam proibir a formação destes encontros em uma sociedade escravista se
apresentam como um caminho interessante no sentido de pensar a condição dos negros
livres ou que se passavam por tais, e os seus desdobramentos no século XX. Pôr nestes
termos a questão significa propor que durante o regime escravista as tentativas de
controle sobre a população negra do Rio de Janeiro esboçavam preocupações em
relação à possibilidade de espraiamento da desordem social, na qual a perspectiva de
africanização do espaço público era entendida pelas autoridades políticas como uma
ameaça à ordem vigente.
Em um artigo sobre as formas de resistência e rebeldia escrava no Rio de
Janeiro, do período colonial às primeiras décadas do século XIX, Gomes (1996) discute
que a formação de quilombos e mocambos localizados não apenas no Recôncavo, mas
também próximos à capital, implicava o estabelecimento de redes de comércio
clandestino, serviços, proteção e aliança entre escravos fugidos, escravos vivendo em
senzalas, vendeiros, taberneiros e fazendeiros. Neste sentido, o autor aponta que
diferentes lógicas sociais informavam o sistema escravista, ao mesmo tempo em que
ameaças poderiam surgir da invenção de novos âmbitos de comércio e sociabilidade.
O autor defende a idéia de que o isolamento e a marginalização atribuídos à
existência de quilombos e mocambos dificultam o entendimento de quão multifacetadas
e complexas poderiam ser as relações e arranjos sociais naquela sociedade, na qual
quilombolas desenvolviam atividades econômicas, estabeleciam relações mercantis com
pequenos comerciantes e fazendeiros, realizavam saques e roubos pondo objetos e
mercadorias em circuitos de comércio clandestinos, recebiam informações acerca da
proximidade de tropas e incitavam inssurreições.
Deste modo, um dos perigos ligados aos “ajuntamentos” de negros cativos,
escravos fugidos e homens pobres livres em tabernas e vendas residia justamente na
constituição destes vínculos e alianças que do ponto de vista das autoridades,
significava desordem social. Desde o século XVII ao XIX, a categoria do desordeiro
aplicava-se, entre outras, a situações em que escravos fugidos, negros livres e forros, e
51
quilombolas friccionavam o sistema social mostrando-se enquanto sujeitos capazes de
criar relações, redes, defender interesses próprios, selecionar opositores e atacá-los.
Negavam, por conseguinte, o estatuto jurídico de mercadoria que lhes fora imputado.
Ainda de acordo com Gomes,
Para um efetivo controle da massa escrava, inclusive dos quilombolas,
tinha que se vigiar tanto o centro da cidade como o interior do
Recôncavo. Quilombolas ou simplesmente escravos fugidos poderiam
ser encontrados tanto nas profundezas das matas, protegidos por serras
de difícil acesso, como no interior das senzalas, nas casas de negros,
cativos ou forros, nas cidades e principalmente nas vendas e tabernas. A
prática de "ajuntamentos de negros" em tabernas parecia já ser comum.
Motivados ou não, tão somente por fins econômicos, taberneiros
consentiam fossem eles brancos portugueses ou pardos brasileiros
que os escravos as freqüentassem. Tal prática, por certo acontecia nos
sábados, domingos, feriados religiosos, ou nos dias de semana durante a
noite. Em cidades com portos próximos, as tabernas eram disputadas
conjuntamente por escravos, soldados, marinheiros estrangeiros e
caixeiros-viajantes. Quilombolas poderiam estar por perto, misturados
com outros escravos. Apesar dos olhares atentos das autoridades, a
vigilância nas cidades, pela própria natureza da escravidão urbana
tendia a ser mais frouxa. Tentava-se contudo controlar o máximo
possível a população das cidades, principalmente negros e mestiços.
Ainda em 1693, repetia-se o bando que determinava a proibição do
porte de armas depois do toque das Ave Marias. Os infratores de
qualquer "qualidade e condição" pagariam multas, além de serem
obrigados a trabalhar nas obras da cidade. Quanto à população de cor
determinava-se que: “todo o mulato, negro ou carijó que de dia ou de
noute for achado com arma de fogo, carregada hávera pena de morte, e
sendo com qualquer outro genero de armas ofensivas ou defensivas, a
saber, espadas, adagas, facõens, faquas, paos de ponta lhes tomarão os
officiaes de Milícia ou Justiça que os haverão como suas, e os
deliquentes serão castigados com penna de cem assoutes ao do
pelourinho hirão ferir por tempo de seis mezes nas obras e limpeza de
hua das fortalezas da Barra sendo achados de dia, e se forem achados de
noute servirão na mesma forma por tempo de hu anno e somente lhes
será permetido levarem espada na ocazião que acompanhão a seus
senhores. (GOMES, op. cit., p.13)
Ao longo do século XIX o controle sobre as tabernas e vendas foi uma constante
nos Códigos de Posturas Municipais, cuja sistematização em decretos e leis remetia a
uma preocupação com um perigo social que, como demonstra a citação acima, vinha de
longa data. No Código de Posturas de 1838, definia-se que “Ninguém poderá ter casa ou
loja de comprar e vender trastes e roupas usadas, vulgarmente chamadas casas de
belchior sem que assine termo nesta Câmara de não comprar coisa alguma a escravo
ou pessoas suspeitas, obrigando-se a ter um livro, que será rubricado gratuitamente pelo
fiscal respectivo, em que faça os assentos do que comprar, os quais serão assinados
52
pelos próprios vendedores ou pessoas que os afiançarem [...]”; “Todo indivíduo que for
encontrado fazendo negócio fraudulento ou ilusório, vendendo a roceiros, a pretos ou a
outra qualquer pessoa objetos falsos por verdadeiros, será multado em 30$000 mil réis e
sofrerá oito dias de cadeia, sendo posto em custódia até decisão do auto, e depois
remetido ao chefe de polícia”. (CÓDIGO DE POSTURAS, op. cit., p.27- 28)
A estas tentativas de bloquear a produção de redes clandestinas de comércio
entre livres e escravos, pretos e roceiros, provavelmente quilombolas, somavam-se as
atenções das autoridades imperiais quanto aos âmbitos de autonomia e liberdade
(relativas é claro) que a população negra havia forjado no Município Neutro. Zungus,
batuques, danças e tocatas eram os termos que demonstravam que havia, naquele
contexto histórico, sujeitos sociais produzindo vida. Deste modo, se proibia as casas de
zungú e batuques, submetendo-se os donos ou chefes à pena de oito dias de prisão e
30$000 mil réis de multa, e, em caso de reincidência, trinta dias de prisão e 60$000 mil
réis de multa. Mas também o ajuntamento de pessoas com tocatas, danças ou vozerias
em casas de bebida, tavernas ou outros lugares públicos, com multa de 30$000 para o
dono da casa e 6$000 para cada infrator, e prisão para os que não pudessem fazer o
pagamento; o “ajuntamento” de mais de quatro escravos em tavernas e outras casas
públicas, incorrendo o proprietário em multa de 30$000. (CÓDIGO DE POSTURAS,
op. cit., p.21).
De acordo com Soares (1998), ao lado de atividades que à primeira vista
poderiam ser identificadas como apenas ligadas às diversões e trocas sociais, nos
zungús também se estabeleciam contatos e vínculos que instabilizavam a ordem
senhorial: rebeliões, levantes, acobertamento de escravos fugidos e sua transferência
para quilombos, venda de artigos roubados, eram as ações que, segundo as autoridades
policiais e judiciais, poderiam ser planejadas nos encontros de cativos, livres e crioulos
para ouvir música, comer, fazer batuques, rever e fazer amigos, assim como encontros
amorosos.
Ainda que a nomenclatura com relação a estas formas de sociabilidade e
resistência negras tenha se transformado ao longo do século XIX – casa de quilombo no
período joanino, casas de angu por volta de 1850, e casas de zungú nas décadas finais da
escravidão –, os sentidos pejorativos e negativos que foram sendo aliados à sua clientela
e às práticas sociais, oferecem uma medida de como o que era socialmente identificado
ao negro no meio urbano poderia significar desordem coletiva.
53
Através do texto de Soares identifica-se que em Beaurepaire-Rohan, o vocábulo
angu era definido como “Angu de quitandeira. No Rio de Janeiro é o nome de uma
comida consistente em angu a que se ajunta qualquer iguaria bem apimentada,
temperada com azeite de dendê [..]”. um zungu foi visto enquanto “Casa dividida em
pequenos compartimentos que se alugam, mediante paga, não só para dormida da gente
mais baixa ralé, como para a prática de imoralidades, e serve de coito a vagabundos,
capoeiras, desordeiros e ébrios de ambos os sexos”. (SOARES, 1999, p. 34-5, apud
BEAUREPAIRE-ROHAN, 1889).
Antonio Joaquim Macedo Soares, também em 1889, relacionava o comércio de
angu aos africanos, sobretudo, às mulheres do grupo mina. Além disso, assim como
Beaurepaire-Rohan, reatualizou um entendimento sobre a presença negra nas áreas
urbanas, territórios que vinham sendo desde pelo menos os anos de 1870, postos em
questionamento por discursos que almejavam o melhoramento das condições higiênicas
e de habitação, ao recuperar através de notícias de jornais de época, as descrições das
casas de zungú. De acordo com ele, um zungú era Barulho, falatório, rixa de negros
(...) Também se usa para desordem, conflito mais barulhento que grave [...]. Casa
dividida por tabiques, habitada por gente réles; cortiço ou ‘muitas habitações pequenas e
juntas à maneira de cortiços’. [...] É o que existe em Pernambuco e Pará chamam
Calogi/ ‘Existe na rua Marquês de Pombal n
o
34 um zungú onde se reúnem vagabundos
que se entregam à prática de atos imorais’, in Jornal do Commércio, ‘Gazetilha’
07/04/1884/ ‘Um zungú composto de pretas e pardas, onde se recebem pretos livres e se
acoitam escravos fugidos, para cometerem atos reprovados, e reúnem-se alta noite
vagabundos que fazem alarido infernalin O Fluminense, 07/12/1883.[...] ‘A policia do
2
o
distrito do Sacramento tem ultimamente dado buscas em diversas casas denominadas
zungús, e nelas encontrados diversos indivíduos sem ocupação.’ Jornal do Commércio,
02/05/1882”. (SOARES, 1999, p.35, apud ANTONIO JOAQUIM MACEDO SOARES,
1889).
Presente em freguesias urbanas e suburbanas, a maior rede de casas de zungú era
encontrada na freguesia do Sacramento, centro comercial da cidade, segundo Soares.
Entretanto, a referência dos jornais à permanência de capoeiras, desordeiros, escravos
fugidos e pobres livres neste tipo de casa popular, que por vezes era utilizado como
moradia, revela uma articulação que se tornará cada vez mais freqüente na dinâmica
urbana do Rio imperial a partir dos anos de 1870.
54
Como chamou a atenção Chalhoub (1990), a luta pela autonomia e liberdade
conduzida por escravos e escravas nas décadas finais da instituição da escravidão, luta
que vinha sendo construída com diferentes sentidos desde pelo menos o século XVII,
como demonstrou Gomes (1996), possibilitou que no meio urbano, notadamente na
Corte, se construísse uma cidade na qual o anonimato e uma certa independência dos
cativos os aproximassem da condição de livres. Subvertendo a ordem e por isso
afirmando distintas visões de liberdade, homens e mulheres conseguiam “viver sobre si”
realizando atividades e ofícios urbanos (e pagando o jornal a seus senhores),
defendendo-se judicialmente para não serem afastados de suas famílias (irmãos, filhos e
companheiros); criando meios para comprar a sua própria alforria e de seus entes,
elaborando planos de fuga e agredindo fisicamente os que insistiam em obrigá-los a se
deslocarem para o interior, que não permitiam que retornassem à cidade natal,
maltratavam-nos, ou ainda pretendiam vendê-los sem considerar suas opiniões, além de
em muitas situações cometerem crimes no sentido de permanecerem na capital do
Império, presos e prestando trabalho forçado ou serviços públicos, a terem de ir para o
trabalho agrícola no interior como mercadoria de novos proprietários.
A politização do cotidiano na Corte se dava por meio destes eventos
corriqueiros que, no entanto, colocavam em suspenso o domínio senhorial e em alguns
casos, a vida de seus donos, funcionários, e autoridades policiais. Assim, a perspectiva
do autor remete aos caminhos utilizados pelos cativos para conquistarem sua liberdade e
neste sentido fazerem política na e através da cidade. À medida que ocupava cortiços,
conseguia proteção em zungús, alugava um quarto em casas de cômodos para viver com
parentes, estabelecia alianças com livres e era acoitada em prédios localizados em ruas
estreitas, becos e vielas, a população negra do Rio de Janeiro apropriava-se de um modo
muito particular da forma e sítio urbanos e incutia-lhes sentidos e experiências que
passavam pela luta para tornar-se livre.
As histórias que Chalhoub apresenta no livro são muitas e através delas nota-se
que a vida urbana facilitou a invenção de formas de ser livre, mesmo em uma sociedade
escravista, não devido a uma característica em si da cidade (como se fosse um atributo
natural seu), mas porque através das disputas, dos desejos e projetos dos cativos e das
cativas foi possível construir uma outra cidade. Não aquela que se procurava edificar e
fazer funcionar através dos Códigos de Posturas Municipais, que no fundo davam conta
de tudo aquilo que pulsava e fugia ao controle das autoridades imperiais.
55
[...] os escravos, libertos, e negros livres pobres da Corte haviam
instituído uma cidade própria, arredia e alternativa, ao longo de décadas
de luta contra a instituição da escravidão no século XIX. Esta cidade
negra se fez através de movimentos e racionalidades cujo sentido
fundamental, independentemente ou não das intenções dos sujeitos
históricos, foi inviabilizar a continuidade da instituição da escravidão na
Corte.
(CHALHOUB op. cit., p. 185)
Recuperar as estratégias de escravos, libertos e livres para reconstruírem suas
vidas, erguendo âmbitos de solidariedade numa sociedade que lhes era hostil e lutando
para manterem-se naCidade” apesar de todo o debate e medidas políticas que visavam
retirá-los daquele território, inclusive através da interdição dos escravos ao mercado de
trabalho e aos ofícios urbanos, são os exemplos que revelam que através do território
era possível produzir lutas, edificar histórias e cristalizar memórias. Logo, esta
discussão é interessante porque enfatiza que as áreas urbanas do Rio de Janeiro,
principalmente as centrais nas quais se concentravam os percentuais populacionais mais
elevados, eram do ponto de vista urbanístico e social, muito mais do que uma cidade
colonial, formada por becos, ruas estreitas, cortiços, estalagens e antigos sobrados
ocupados como habitação popular.
Sendo assim, concordo com Chalhoub quando afirma que
Ao perseguir capoeiras, demolir cortiços, modificar traçados urbanos
em suma, ao procurar mudar o sentido do desenvolvimento da cidade
os republicanos atacavam na verdade a memória histórica da busca da
liberdade. Eles não simplesmente demoliam casas e removiam entulhos,
mas procuravam também desmontar cenários, esvaziar significados,
penosamente construídos na longa luta da cidade negra contra a
escravidão
.
(CHALHOUB, op. cit., p.186)
Acredito, contudo, que a condição de livres assumida por cativos e cativas nas
áreas urbanas, ou mesmo por aqueles que do ponto de vista legal já o eram, carregava
significados políticos capazes de instabilizar o sistema escravista, não simplesmente
porque ruía o regime de produção no qual se fundaram muitas das atividades
econômicas nas cidades e nos campos. Do ponto de vista político o que ganhava a cena
histórica eram manifestações que desestruturavam também o domínio senhorial branco,
no qual práticas racializadas contribuíram para erigir as relações de poder e submissão.
Como demonstrou Lara (2000) em livro que discute o momento histórico em
que se forjou a idéia de pan-africanismo, assim com os sujeitos desta construção durante
a primeira metade do século XIX, nos EUA, no Caribe e no Brasil, a presença de negros
emancipados e africanos livres estes últimos encontrados nos navios negreiros
56
apreendidos pelas comissões antitráfico internacional – se tornou uma ameaça aos
regimes escravistas nacionais, cujo caso emblemático fora a Revolução Haitiana.
Entretanto, de acordo com o autor, em 1787 um grupo de abolicionistas ingleses
estimulava a deportação de negros livres de Londres para Serra Leoa, colônia
britânica, na África. Esta servia de base para a sua marinha após a promulgação da lei
de 25 de março de 1807, que proibia o tráfico negreiro internacional nas colônias
inglesas. Depois destes negros livres transferidos, a Companhia de Serra Leoa favoreceu
o transporte de mais 110 negros livres, que serviram na armada inglesa durante a Guerra
de Independência dos EUA, ou eram prisioneiros jamaicanos durante a Segunda Guerra
dos Marrons, em 1796.
Nos EUA, entre os plantadores escravistas hostis à presença destes sujeitos,
Thomas Jefferson produziu um texto intitulado Notes on Virginia, publicado em Paris
(1785), Londres (1787) e na Filadélfia (1788), no qual propunha para esta população
projetos de colonização, de emigração forçada, ou de deportação com o objetivo de
afastá-la para as áreas distantes, a leste ou sul, para o Caribe ou África.
Com relação à França, a deportação para o Senegal foi uma das medidas
impostas para os negros livres das colônias de Guadalupe, Guiana e Martinica, também
utilizada desde o final do século XVIII. Com a instrução ministerial de 12 de abril de
1823, todos os cativos encontrados em navios negreiros armados no Senegal, em
Guadalupe, na Guiana e na Martinica, seriam liberados e recrutados pelas companhias
militares locais, encaminhados à África e à Caiena. Conforme os acordos franco-
ingleses antitráfico negreiro, os portos em que se podiam receber os navios capturados
eram os de Goré, Martinica, Bourbon e Caiena, para os navios franceses, e os de
Bathurst, na Gâmbia, Porto Real, na Jamaica, Cabo da Boa Esperança e Demerara, para
os navios ingleses. Com a decretação definitiva da emancipação dos escravos nas
colônias francesas, em 27 de abril de 1848, o governo francês elaborou uma política de
deportação, estimulando o retorno dos antigos escravos de Guadalupe, Guiana e
Martinica para a África ou para atuarem como mão de obra nas Índias Ocidentais.
No Brasil, os debates políticos relativos ao retorno à África de negros se iniciam
por volta de 1830-1835, sob a pressão das inssurreições de escravos e dos acordos
antitráfico internacional. Destaca-se, neste período, a Revolta dos Malês, em janeiro de
1835, na cidade de Salvador. Conforme Lara, em função desta revolta negra, as
autoridades baianas demandaram do governo imperial o estabelecimento de uma colônia
57
em qualquer porto da costa da África onde fosse possível deportar os africanos livres,
que significavam uma ameaça à segurança. Assim, africanos foram enviados à costa da
África, entre presos, e outros embarcados em novembro de 1835. Ainda neste ano, os
membros das comissões mistas antitráfico do Rio de Janeiro defenderam a introdução
de cativos que haviam sido liberados porque encontrados nos negreiros, nas antigas
colônias inglesas nas Índias Ocidentais. um representante da Secretaria de Estado de
Assuntos Estrangeiros da Inglaterra, preconizava o envio a Trinindad dos negros
emancipados pelas comissões mistas. Em 1839, a bordo de um navio inglês, estes
saíram do Brasil e foram conduzidos a Trinindad, Demerara, às colônias inglesas no
Caribe, e a Serra Leoa.
Carneiro da Cunha (1985) também assinala que a deportação dos africanos livres
com o levante Malê tomou proporções extremamente violentas, gerando a incorporação
de uma série de restrições legais aos africanos livres em várias províncias do Império.
Conforme a autora, em termos nacionais, a resposta às inssurreições foi consolidada
com a Lei n
o
4 de 10/6/1835, que punia com pena de morte os escravos que ferissem ou
matassem gravemente seus senhores, familiares, feitores e administradores. Na
Assembléia Provincial do Rio de Janeiro solicitava-se o impedimento do desembarque
de escravos da Bahia e de libertos de outros lugares. Na Bahia, a legislação provincial
de 1835 autorizava a expulsão de africanos forros independente do sexo, caso houvesse
alguma suspeita de participação em levantes de escravos. Deste modo, assim como
Lara, destaca que toda embarcação que partisse para a África deveria levar os suspeitos
e desembarcá-los na costa daquele continente. Por outro lado, fechava-se o cerco contra
aqueles que permanecessem a partir da cobrança de um imposto de 10 mil réis aos
africanos forros da província.
Ainda referindo-se à legislação baiana de 1835, Carneiro da Cunha salienta que
aos africanos livres dispensados do imposto acima citado impunha-se comportamento
tais como o de deletar planos contra a ordem social e o de trabalharem em fábricas
grandes da Bahia, de açúcar e algodão, sob a condição de residirem nas propriedades
cujos donos se responsabilizassem pela conduta.
[...] resguardavam-se os libertos nas grandes propriedades rurais, mas
não tinham proteção os que se tivessem estabelecidos de forma
independente; estimulava-se, por outro lado, as delações em nome da
segurança provincial. (CARNEIRO DA CUNHA, op. cit., p. 75)
58
Para além destas medidas, a autora chama a atenção para uma articulação
presente durante toda a primeira metade do século XIX e que passa a ser
institucionalizada em diferentes locais, incluindo o Rio de Janeiro dos anos de 1870: a
interdição dos negros, libertos e escravos, às ocupações profissionais e à própria
permanência nas cidades.
Saliento, contudo, que estas legislações produzidas diretamente em função dos
temores de revoltas negras em todo o território nacional, foram posteriores a outras
tantas medidas de controle sobre os africanos forros. E o que é interessante no texto da
autora para o que estou procurando discutir diz respeito ao estatuto jurídico subalterno e
inferiorizante atribuído aos negros africanos que já haviam conquistado a sua liberdade
jurídica. Considerados como estrangeiros, entretanto, sem gozar das prerrogativas legais
de seus países de origem, os libertos africanos não eram eleitores nem elegíveis, assim
como não podiam fazer parte do Exército, Marinha ou Guarda Nacional e ingressar nas
ordens religiosas. Um decreto de 1830 impedia os forros e forras africanos de
circularem livremente para fora de seus domicílios senão portando um passaporte cuja
duração era limitada, concedido mediante um exame freqüente de suas condutas. No
ano seguinte, proibia-se o desembarque de libertos africanos em qualquer porto do
Brasil, medida que vigorou até pelo menos fins de 1868.
Para Carneiro da Cunha, todo esse aparato legal pretendia excluir os africanos do
país na primeira metade do século XIX e a questão que estava subjacente se referia a
como legitimar e viabilizar a recente nação segundo os ideais liberais e a extrema
hierarquização e estratificação social e política vigentes. No entanto, as restriçõe à
cidadania não haviam sido impostas apenas aos africanos forros ou livres, aos quais se
atribuiu a condição de cativos ilegalmente, segundo as leis de 1830 contra o tráfico
internacional, e cujos planos de deportação ecoaram e em alguns casos foram
implementados.
Os libertos foram incorporados aos projetos políticos que visavam a manutenção
das relações de dependência e do sistema de propriedade privada, impossibilitando-os,
entretanto, ao acesso à terra. Conforme a autora, as leis do Império estabeleciam os
limites aos direitos de cidadania dos libertos, como a autorização ao voto apenas para as
eleições primárias, ainda que o sistema eleitoral permitisse o acesso ao voto na
proporção dos rendimentos; a impossibilidade de serem delegados ou subdelegados de
polícia; de serem escolhidos para jurado, juiz de paz ou ainda de se candidatarem a
59
deputado ou senador; o poderiam assim como os escravos receber as ordens
religiosas, nem serem altos funcionários do Estado ou prelados da Igreja. Poderiam ser
vereadores, ingressarem no Exército, na Marinha ou na Guarda Nacional, porém sem
chances de chegarem ao oficialato. No entanto, as capacidades civis como possuírem
propriedade e dispor dela quando quisessem, herdarem bens, contratarem serviços e
serem tutores ou curadores lhes foram atribuídas.
A fixação dos libertos no campo de forma dependente como agregados ou
moradores, assalariados, diaristas ou ainda parceiros e arrendatários – seria sido a
estratégia que viabilizaria tanto a reprodução da mão de obra de negros antes
escravizados, forçando-os a trabalhar em atividades rurais e de acordo com os
parâmetros dos proprietários, quanto a garantia de ordem nas cidades. Colônias
agrícolas e a interdição dos escravos à realização de ofícios urbanos, proibindo-os de
aprenderem ofícios, de atuarem como artífices em repartições públicas e em obras do
governo, e a cobrança de taxas para que artífices africanos, escravos ou livres pudessem
trabalhar, foram algumas medidas tomadas, por exemplo, na província da Bahia, em
1854.
De acordo com Menezes (1996), um projeto de lei apresentado na mara dos
Deputados, em 1870, intentava regulamentar o trabalho urbano em função da chamada
“crise de braços” na lavoura. Deste modo, proibia-se o escravo de atuar em diferentes
atividades nas cidades, que pouco depois se tornaram ocupações de imigrantes. Assim,
após a promulgação da lei, ficaria proibido na Corte, nas capitais e nas cidades
marítimas, o emprego de cativos nas indústrias de condução de veículos públicos, em
tripulações de navios e embarcações grandes ou pequenas, na venda em quitanda fixa ou
volante, no serviço de ganho para carreto ou outro fim, e nos serviços em lojas de
alfaiate, sapateiro, costureiras, carpinteiro, marceneiro, ferreiro, ourives, caldereiro,
tanoeiro, açougueiro, padeiro e pintor.
Em o Paulo, por exemplo, em 1884, um projeto de um imigrantista, Martinho
Prado Jr., defendia a decretação de um imposto sobre os escravos com a finalidade de
financiar a imigração, desvalorizando assim a mercadoria escravo e estimulando os
proprietários da província a substituí-la pela mão de obra européia, inclusive por
artífices estrangeiros habilitados para as cidades. A chegada destes últimos permitiria,
conforme o deputado, a migração dos negros citadinos para o trabalho em áreas rurais.
Ainda na mesma província e no mesmo ano, um outro deputado, Delfino Cintra,
60
intentava, através da decretação de uma cobrança progressiva sobre os escravos das
cidades, vilas e freguesias, forçar a sua retirada das áreas urbanas, substituindo-os por
trabalhadores europeus. Em 1880, no entanto, o deputado Paulo Machado, já havia
elaborado um projeto propondo a internação de “meninos desvalidos” em núcleos
agrícolas, assim como o fechamento do Instituto de Educandos Artífices, alegando que
o ensino de ofícios urbanos aos nacionais ocasionaria a uma concorrência com os
imigrantes
3
.
Ao recuperar todas estas restrições e interdições a africanos forros e livres, bem
como a negros libertos no decorrer de parte considerável do século XIX, pretendo
apontar a violência do sistema escravista em relação a categorias de homens e mulheres
que mesmo sem serem cativos foram equiparados à condição de subalternidade destes,
e, sobretudo, que os alicerces da sociedade fixavam-se em mecanismos de racialização
da população, através das legislações civis, dos códigos de posturas municipais, e dos
projetos políticos fundados nas perspectivas de desenvolvimento econômico do país.
Como salienta Carneiro da Cunha, o vocábulo negro era empregado sempre como
sinônimo de escravo, fosse este sujeito um cabra, um mulato ou um pardo. Escravo, por
outro lado, significava negro, e os africanos eram preferidos aos crioulos. Neste sentido,
“[...] um preto, a menos de prova em contrário, era um escravo”. (Carneiro da Cunha,
op. cit., p.69)
Dentro deste sistema classificatório, à medida que se tinha a pele mais escura,
um homem ou uma mulher se aproximava mais da condição de escravo, e neste sentido
negro (africano). Em contraposição, uma pele mais clara significava branqueamento e
poderia conferir um outro estatuto ao sujeito, posto que era possível ser identificado
como um livre. Deste modo, as estratégias das autoridades de racialização da população,
cujos extremos seriam os escravos (negros) e os senhores (brancos) intercalavam uma
série de gradações – pardos, mulatos, cabras, morenos, normalmente todos crioulos, isto
é, nacionais que ao invés de significar democracia racial e exaltação à mestiçagem,
construíam o ser branco como o modelo social ideal que para ser alcançado implicava
no afastamento das características que denotavam o ser negro africano. Até porque
como a autora ressalva, àquela época a idéia de mestiçagem não estava posta como um
problema, não havia sido incluída dentro de projetos e visões relacionadas à construção
de uma nação liberal e capitalista, logo, a propalada homogeneidade do território e povo
3
Azevedo, 2004, p.140-1.
61
brasileiros tinham como antítese a eliminação da origem africana. Fora neste contexto,
inclusive, que os projetos de deportação de que tratam Lara e Carneiro da Cunha foram
elaborados.
Lima (2003) também salienta que a intensa polissemia da mestiçagem, entre as
décadas de 1830 e 1860, levou-a a se distanciar de uma construção que se popularizou
na passagem do século XIX ao XX, que articulava ao termo mestiço idéias como
democracia e intercâmbio entre os povos ou ainda degeneração e criminalidade. Neste
sentido, chama a atenção que a intensa polissemia com a qual se deparou nos jornais
publicados no Rio de Janeiro, entre os anos de 1831 e 1833, não permitia reduzir todos
os termos empregados pelos editores crioulos, cabras, fuscos, fulos, pardos, mulatos,
homens de cor a uma questão racial” enquanto um fenômeno que percorreria a
história, preservando uma essência e assumindo expressões variadas em contextos
específicos. Desta perspectiva, as formulações das elites políticas e intelectuais para a
modernização econômica e social do país cuja população negra e mestiça fora
condenada por inúmeras teses e artigos acadêmicos, internacionais e nacionais, se
inserem em um contexto particular, notadamente, a partir das décadas finais do século
XIX. A partir deste raciocínio é possível indicar que os vocábulos mobilizados
referentes à racialização da população atribuíam também outros sentidos e
provavelmente novas identidades àqueles e àquelas a quem demarcavam. E quando faço
esta consideração, penso especialmente no emprego conferido à palavra “crioulo” no
pós-emancipação.
O exercício da autora volta-se, então, à compreensão de como aqueles vocábulos
acima citados foram apropriados de modo a que permitissem a invenção de identidades
políticas, delineando uma “linguagem racial da política” no pós-independência, quando
estava em jogo a edificação de um território e povo nacionais, ou seja, o que era o Brasil
e quem eram os brasileiros. O que me parece interessante do trabalho de Lima é
perceber que a mobilização de termos como mulato, homem de cor e pardo pelos jornais
da Corte, que em muitos casos intitulavam os periódicos com estas expressões (O
Crioulinho, O Brasileiro Pardo, O Mulato ou Homem de Cor) questionava, por
exemplo, as tentativas que buscavam designar nos censos a cor dos cidadãos. Isto
porque os mulatos ou os chamados homens de cor eram livres e, sob esta condição,
passíveis dos mesmo direitos que os brancos. Logo, distinguí-los na categoria de livres
por critérios fundados na cor iria contra à Constituição e aos direitos liberais. A
62
perspectiva de ampliação dos direitos de participação política e de melhores inserções
profissionais, dos quais estavam excluídos, alinhavam as reivindicações de pardos,
mulatos e crioulos, o que como aponta Lima, o impedia que alianças se
estabelecessem entre este grupo, conhecido como os liberais exaltados e os brancos não-
moderados.
Deste modo, esta discussão me leva a refletir que as categorias raciais ou que se
referem à cor das pessoas devem ser pensadas não apenas como palavras que designam
atributos físicos, visto que, durante a primeira metade do século XIX, o seu uso
consolidava e também criava, a partir de textos diversos – jurídicos, da imprensa e peças
teatrais –, as hierarquias sociais e as relações de poder que conformavam o cotidiano no
Império. José Bonifácio em um projeto recomendando a alforria dos escravos
estratificava-os de modo que os primeiros beneficiados fossem os mulatos, depois os
crioulos, e em seguida os africanos
4
. Com base neste exemplo, a reivindicação de
mulatos e homens de cor para que não fossem distinguidos por critérios que aludiam à
cor, ainda que para serem ouvidos tenham se apropriado justamente das classificações
raciais da época, preenchendo-as de outros sentidos políticos, aponta para uma
convergência que perpassa os trabalhos de Lima e Carneiro da Cunha.
A fórmula escravo=negro=africano, apesar de todas as gradações e nuances que
se fundaram a partir dela, visto que o Brasil não era constituído apenas por cativos e
senhores, localizava social e politicamente os não-cidadãos. E a questão que este tipo de
hierarquização e estratificação traz refere-se a como passariam a ser posicionados, do
ponto de vista social e político, aqueles que negros não eram africanos, posto que o
tráfico internacional fora cessado em 1850, tampouco escravos, com a emancipação
definitiva em 1888. Não me parece à toa que neste último contexto, os discursos sobre
a desordem urbana ganhassem adeptos em diferentes áreas do Distrito Federal – a
presença de capoeiras, feiticeiros, batuques, sambas –, e também as adscrições raciais
tenham se tornado um mecanismo social através do qual era possível referir-se às
desigualdades e diferenças de origem e de condição em uma sociedade juridicamente de
livres.
Note-se o seguinte caso, no qual a alusão à categoria crioulo”, atribuída pelo
Correio da Manhã ao carregador Apolinário, permite que se identifique através de uma
característica pretensamente física, a posição social subalterna e clandestina do jovem, o
4
Carneiro da Cunha, op. cit., p.87.
63
que lhe rendeu uma detenção na delegacia. Em contrapartida, ao mencionar os patrões
de Apolinário, o que permite situá-los socialmente não passou pela racialização
explícita, pois eram negociantes”. <<Os negociantes, brancos, Francisco dos Santos
Mesquita e Comp. ...>>, soava como uma construção redundante, que não precisava ser
enunciada, pois continuava não cabendo naquele contexto.
Ontem, às 3 horas da tarde, foi apresentado, preso, a 11
a
delegacia
urbana Apolinário Albino, crioulo, com 16 anos de idade, residente à
rua das Mangueiras, na Boca do Mato.
Este indivíduo foi mandado apresentar-se pela 12
a
delegacia urbana por
ter sido preso na rua Lins de Vasconcelos, por um praça da Brigada
Policial, quando conduzia um quarto de porco.
Na delegacia foi inquirido e disse que vindo da casa do escrivão Lima
Tavares, com o quarto de carne de porco ali rejeitado, no trajeto se
encontrou com a praça que o prendeu, fazendo apreensão da carne;
foram os negociantes Francisco dos Santos Mesquita & Comp.,
estabelecidos em armazém de secos e molhados, na rua Lins de
Vasconcelos n 85 que fizeram a remessa de carne para o escrivão.
Em poder de Albino, foi encontrada a nota, que é de 5 kilos de carne, à
razão de 1$5000 o kilo. Essa nota acha-se na delegacia.
Os negociantes serão intimados hoje a comparecer à audiência afim de
prestarem esclarecimentos. (CORREIO DA MANHÃ, 2/12/1901, p.2)
Neste sentido, através do debate que procurei apresentar acerca dos libertos e
livres, ou seja, no bojo do processo da emancipação lenta e gradual defendido pelo
governo imperial, acredito que algumas proposições possam ser vislumbradas. Para isso
procurei uma paragem do Rio republicano conhecida como Madureira.
64
3 CAPÍTULO: SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS EM MADUREIRA
3.1 À PROCURA DE OUTROS CENÁRIOS
Ao direcionar o olhar para a freguesia de Irajá, arranjo no qual Madureira se
incluía, utilizando-me do Censo de 1872, é possível caracterizar as relações e práticas
sociais sobre as quais a ruralidade daquele território se fundava. Com uma população
geral de 5.910
5
“almas”, entre os livres existiam 2.494 homens, dos quais 1.811 eram
brancos, 816 pardos, 314 pretos e 8 caboclos.
Fonte: Recenseamento de 1872.
Das 2.022 mulheres que viviam sob aquela condição, 981 eram brancas, 620 pardas,
408 pretas e 3 caboclas.
5
Chamo atenção para um erro de cálculo presente no censo, em relação à soma de homens e mulheres
livres; mesmo assim tomo estes dados como uma referência e não como informações exatas.
Gráfico III. Homens livres segundo a cor na
freguesia de Irajá.
Brancos
61%
Pardos
28%
Pretos
11%
Caboclos
0%
65
Fonte: Recenseamento de 1872.
No que concernia à população escrava, homens e mulheres chegavam a um total
de 1.439 moradores, dos quais 174 eram pardos, 619 pretos, 167 pardas e 479 pretas, o
que implica um número maior de pessoas de cor preta e bem menor de pardas, de ambos
os sexos, submetida à condição de trabalho compulsório.
Gráfico IV. Mulheres livres segundo a cor na freguesia de Irajá
.
Brancas
49%
Pardas
31%
Pretas
20%
Caboclas
0%
66
Fonte: Recenseamento de 1872.
Fonte: Recenseamento de 1872.
Somando-se todos esses números, segundo um critério que este recenseamento
não contempla, ou seja, classificando como negros todos aqueles enquadrados nas
categorias pretos e pardos, àquela época, nesta freguesia viviam 3597 negros (pretos e
pardos) e 3454 brancos, incluindo os imigrantes, 533 homens e 129 mulheres
estrangeiros.
Gráfico V. Escravos segundo a cor na
freguesia de Irajá.
Pardos
22%
Pretos
78%
Gráfico VI. Escravas segundo a cor na freguesia de
Irajá.
Pardas
26%
Pretas
74%
67
Fonte: Recenseamento de 1872.
Com relação às profissões, a de lavrador destacava-se entre brasileiros e
imigrantes, agrupando 1.555 homens e mulheres neste tipo de atividade:
respectivamente 471 e 299 escravos; 376 e 166 livres; 207 e 30 estrangeiros. Ocupações
como criado e jornaleiro reuniam mais homens livres (280) e imigrantes (162) que
escravos (81), e a participação feminina era reduzida neste tipo de função. Em
contrapartida, na categoria serviço doméstico, achavam-se tanto mulheres livres (337)
como escravas (178), e estas predominavam frente aos homens, independente da
condição. Nota-se, com base nestas informações, que na lavoura predominava o
trabalho agrícola de homens e mulheres que em sua maioria eram escravos pretos, em
comparação com o maior número de livres categoria na qual os chamados pardos
eram privilegiados de ambos os sexos, desenvolvendo atividades de serviços
vinculadas ao interior da propriedade ou em tarefas subalternas ligadas ao
funcionamento cotidiano daquela vida rural. Ressalto, contudo, o elevado contingente
de pessoas inseridas no critério sem profissão, 2.425, que, se separadas por condição,
livres e escravas, eram respectivamente, 761 homens e 1272 mulheres, e 172 homens e
154 mulheres. Entre os imigrantes, 28 homens não possuíam profissão, e 38 mulheres
estavam nesta mesma situação. Profissões liberais e atividades ligadas a manufaturas e
indústrias eram pouco comuns, destacando-se algumas atividades como as de
comerciante e caixeiro, bem como a de operários que trabalhavam em madeira, o que
Gráfico VII. Negros e brancos na freguesia
de Irajá.
Negros
(as)
51%
Brancos
(as)
49%
68
me leva a acentuar a importância do trabalho agrícola ligado à força de trabalho
escravo, conforme as informações do documento apontaram.
Fonte: Recenseamento de 1872.
0
500
1000
1500
2000
2500
Números
absolutos
Profissões e condição
Gráfico VIII. Profissões na freguesia de Irajá, segundo a condição de livres,
escravos e imigrantes.
Homens e mulheres livres
542 285 359 2033
Homens e mulheres escravos
770 94 208 326
Homens e mulheres
estrangeiros
237 162 73 66
Lavradores
Criados e
jornaleiros
Serviço
doméstico
Sem profissão
69
De acordo com o censo de 1890
6
, dezoito anos depois, nesta freguesia passaram
a residir 13.126
7
habitantes, dos quais 6.902 eram homens e 6.224 mulheres. Do total da
população masculina, 3693 eram brancos, 868 pretos, 1.753 mestiços e 588 caboclos.
Fonte: Recenseamento de 1890.
Com relação à população feminina, havia 6.224 mulheres, das quais 2.760
brancas, 976 pretas, 2.004 mestiças e 484 caboclas. Destaca-se, neste contexto um
contingente maior de mulheres pretas e mestiças se comparado ao de homens pretos e
mestiços, assim como o de mulheres brancas.
6
A população total do município era a de 522.651 habitantes.
7
No recenseamento de 1906, a freguesia de Irajá aparece com 13.130 habitantes, o que denota um
pequeno acréscimo se comparado ao censo de 1890.
Gráfico IX. Brancos, pretos, mestiços e caboclos na freguesia de
Irajá.
Brancos
53%
Mestiços
25%
Caboclos
9%
Pretos
13%
70
Fonte: Recenseamento de 1890
E, se como no exemplo referente ao recenseamento de 1872, reúne-se a
população preta e mestiça na categoria negros, tem-se o seguinte gráfico, nos quais na
categoria brancos (as) incluem-se 1.398 homens e 386 mulheres estrangeiros.
Fonte: Recenseamento de 1890.
Gráfivo X. Brancas, pretas, mestiças e caboclas na
freguesia de Irajá.
Brancas
44%
Mestiças
32%
Caboclas
8%
Pretas
16%
Fonte: Recen
seamento de 1890.
Gráfico XI. Brancos (as) e negros (as) na freguesia de
Irajá.
Negros(as)
46%
Brancos (as)
54%
71
Através do Mapa II identifica-se que a freguesia de Irajá mas também a maior parte
das freguesias suburbanas ainda apresentava em fins do século XIX uma estrutura
fundiária constituída principalmente por fazendas e engenhos, e no que diz respeito ao
que venho a se configurar como Madureira, vê-se ainda as fazendas do Portela e do
Campinho integrando a representação cartográfica deste período histórico.
Mapa II. Planta da cidade do Rio de Janeiro, 1888.
Fonte: Recenseamento de 1920. http://biblioteca.ibge.gov.br
No Cadastro das Habitações do Distri
Limite da Décima Urbana
Fazenda do Portela e do Campinho
72
No Cadastro das Habitações do Distrito to Federal, integrante do Anuário de
Estatística Demográfico-Sanitário, de 1895, o quadro é também o de uma freguesia na
qual as atividades comerciais são incipientes. Através da tabela nota-se que o número de
estabelecimentos relacionados a habitações populares tais como avenidas e estalagens,
casas de aluguel, de cômodos, de pensão, hospedarias e hotéis a referência do
documento provavelmente estava nas áreas urbanas da cidade é extremamente
reduzido, o que remete a algumas considerações. A primeira delas vai no sentido de
indicar que, em 1895, as relações de trabalho servil havia se extinguindo não fazia dez
anos. Mesmo objetando-se o alcance que em fins do culo XIX o sistema escravista
tinha nestas áreas do município, em função da compra, concessão de alforrias ou ainda
fugas – visto que de acordo com o censo de 1872, dos 5.910 moradores cerca de 24% do
total, 1.439, permaneciam escravos é possível pensar qual teria sido o impacto da
emancipação oficial em relação à moradia em um cotidiano fundado em relações sociais
informadas pela lógica senhores e escravos.
Logo, a freguesia de Irajá não se torna imediatamente uma área de atração
populacional neste período, nem mesmo possuía uma rede de serviços e comércio,
assim como atividades industriais bem estruturadas. Armazéns, tavernas e botequins
provavelmente eram os estabelecimentos mais comuns e freqüentados, não sendo por
acaso que parte das histórias de que tratarei no segundo e terceiro capítulos, desenvolva-
se neste tipo de cenário. Continuando neste caminho, chamo a atenção para o número de
residências particulares cadastradas no Anuário de 1895, 1.403 fogos. Levando-se em
consideração os dados que foram registrados no recenseamento de 1890, existiriam na
freguesia 1.753 prédios e 1.704 domicílios (acréscimo considerável se comparado com
o documento que lhe é posterior) cujas densidades da população seriam,
respectivamente, 7,49 e 7,70, o que abre espaço para se imaginar uma continuidade com
um modo de organização da vida doméstica no qual uma família extensa e trabalhadores
domésticos co-habitavam uma mesma propriedade, em fins do século XIX.
Quadro II. Cadastro das Habitações do Distrito Federal.
Estabelecimentos Freguesia de
Irajá
Freguesia de Inhaúma
Armazéns e tavernas 73 157
73
Armazéns diversos - 7
Armarinhos 3 14
Alfaiatarias 1 5
Açougues 4 16
Arsenais e quartéis 1 -
Avenidas e estalagens 5 20
Botequins e bilhares 17 25
Barbeiros 6 16
Casas de aluguel e cômodos - -
Casa de pasto 3 12
Casas de pensão - -
Casa de quitanda 3 25
Carvoarias - -
Charutarias 1 5
Confeitarias e refinação de
açúcar
- 5
Cemitérios 2 1
Drogarias e farmácias 5 8
Depósitos diversos 7 2
Estabelecimentos de educação
17 17
Estabelecimentos diversos 3 5
Estações diversas 7 14
Escritórios diversos - -
Estábulos e cocheiras 2 22
Edifícios públicos 1 2
Fábricas diversas 11 32
Hospedarias,hotéis,restaurantes
2 3
Hospícios,hospitais,asilos 1 1
Igrejas, conventos, etc 2 4
Jardins e praças - -
Lojas diversas 1 27
Oficinas diversas 7 23
74
Pequenos negócios 5 1
Prédios fechados e em ruínas - -
Prédios em construção e obras
- -
Padarias 3 11
Residências particulares 1403 4414
Repartições públicas 5 3
Teatros - 1
Soma 1601 4897
Fonte: Anuário de Estatística Demográfico-Sanitário, 1895.
Uma outra leitura, ainda que com algumas continuidades, advém dos dados do
recenseamento do Distrito Federal de 1906. Conforme este documento, a essa época
moravam na freguesia 27.406 pessoas. Em termos comparativos entre 1890 e 1906 o
crescimento populacional absoluto foi de 14.280 habitantes, ou 108,76%. O número de
prédios e domicílios em relação ao censo anterior também sofreu um incremento, tendo
sido registrados, respectivamente, 4.243 e 4.201, com densidades médias de 6,4 pessoas
por prédio e 6,5 moradores por domicílio, apontando uma reduzida queda na
concentração habitacional, de uso doméstico ou ocupacional.
Acredito, contudo, que quando se confrontam estes dados com as narrativas e
informações extraídos dos processos crimes daqueles que viviam nesta freguesia,
especialmente em Madureira, é possível perceber que a essa época já prevalecia a
consolidação de algumas ruas (ainda que muitos dos endereços se referiam a números
de casas não existentes), e principalmente, a partilha de usos em um mesmo endereço,
encontrando-se funções mistas, residenciais e de trabalho, assim como uma divisão
entre diferentes famílias e pessoas de um mesmo terreno. Neste sentido, ainda que a
densidade populacional tenha sofrido uma pequena diminuição entre os anos de 1890 e
1906, isto não impediria que nos primeiros anos do século XX, uma outra estrutura
fundiária, não mais baseada na propriedade rural, estivesse ganhando relevo.
Acrescenta-se a isso que no mapa da freguesia de Irajá (Mapa III) publicado no
Recenseamento de 1906, Madureira já figura como o nome da localidade onde há
menos de 18 anos, as fazendas do Portela e do Campinho haviam sido representadas na
cartografia da cidade.
75
Mapa III. Distrito de Irajá.
Fonte: Recenseamento de 1906. http://biblioteca.ibge.gov.br
Do ponto de vista da nacionalidade, foram encontrados, em 1906, 22.485
brasileiros (11.697 homens e 10.738 mulheres), 3.067 portugueses (2.283 homens e 784
mulheres), 757 espanhóis, (466 homens e 291 mulheres), entre os 27.406 residentes,
apontando que a grande parte daqueles que lá moravam eram os chamados nacionais.
Do ponto de vista profissional, no entanto, nos primeiros anos deste século
reafirma-se a permanência da maioria da população de Irajá em atividades agrícolas,
assim como o predomínio de funções com baixa qualificação e vinculadas a serviços
domésticos e esporádicos. Agricultura, horticultura e atividades afins reuniam 1.194
brasileiros e 935 estrangeiros, do sexo masculino. Jornaleiros e trabalhadores braçais
também se apresentavam como ocupações basicamente masculinas, com destaque dos
brasileiros (957) frente aos estrangeiros (430). No serviço doméstico, por outro lado,
Estrada Marechal
Rangel
Madureira
Estação
Campinho
76
notadamente de caráter feminino, segundo este censo, empregavam-se mais brasileiras
(3.890) que mulheres de outras nacionalidades (635).
A partir destes dados chamo a atenção para o fato de que a predominância de
atividades ligadas à lavoura, tais como a agricultura e a horticultura, foi concomitante
ao afastamento das trabalhadoras nacionais deste tipo de ocupação, pois apenas 162
brasileiras apareceram empregadas neste critério, conforme o censo de 1906.
Considerando-se o quartel final do século XIX, por exemplo, através do censo de 1872
o de 1890 não traz informações sobre as profissões –, vê-se que um contingente
considerável de mulheres, notadamente escravas, se inseria socialmente via este tipo de
trabalho, mais da metade dos homens, fossem livres ou escravos.O deslocamento para
funções domésticas, no interior do cotidiano do próprio subúrbio, parece ter sido o
espaço criado para as descendentes de pretas e mestiças que pouco mais de três
décadas formavam-se e viviam sob o regime servil. Além disso, sob a categoria
profissões desconhecidas emergiu um número elevado de brasileiras (1.920) frente às
estrangeiras (340), quantitativos bem mais elevados quando se olha para o outro gênero:
462 brasileiros e 126 estrangeiros. (Ver Gráficos XII e XIII)
Saliento que ao lado desta estrutura sócio-ocupacional, ganhou mais expressão,
em relação às informações de 1872, profissões ligadas à força e à segurança pública
(Exército e Armada), ao funcionalismo público, ao setor de marítimos, à construção de
aparelhos de transporte, mobiliário e cerâmica.
0
200
400
600
800
1000
1200
Números
absolutos
Profissões e nacionalidades
Gráfico XII. Profissões segundo o gênero masculino e a nacionalidade
no distrito de Irajá.
Brasileiros
1194 957 462
Estrangeiros
935 430 126
Agricultura,
horticultura e
Jornaleiros e
trabalhadores
Profissões
desconhecidas
77
Fonte: Recenseamento de 1906.Fonte: Recenseamento de 1906.
♦♦♦
Como dever que tenho, não devo deixar escapar da crítica que merece,
estes que envoltos em largas bombachas
8
vagueiam molemente pelo
bairro de Madureira, ora sentados nas redondas mesas do botequim do
Viratripa, sócio do Zé-Lambão, esperando que eles deixem alguma
esmola de Paraty ou alguma ponta de cigarro para saciar o vicio que
lhes devora. (O CONDOR, Madureira, 1908, p.2)
Este comentário, presente em um jornal de Madureira organizado por um grupo
de jovens que se declarava interessado na divulgação da literatura, chamou a minha
atenção, primeiramente, por causa da descrição de um sujeito social bastante comum
nos periódicos, nos documentos da polícia e nos relatórios dos órgãos responsáveis pelo
8
Bombachas: Bras. Calças muito largas em toda a perna, salvo no tornozelo.(Mini dicionário da língua
portuguesa Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 4
a
edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira,
2001)
0
500
1000
1500
2000
2500
3000
3500
4000
Números
absolutos
Profissões e nacionalidades
Gráfico XIII. Profissões segundo o gênero feminino e a nacionalidade
no distrito de Irajá.
Brasileiras
162 3890 1920
Estrangeiras
51 635 340
Agricultura,
horticultura e
afins
Serviço
Doméstico
Profissões
desconhecidas
78
higienização e saneamento das áreas urbanas do Rio de Janeiro desde o fim do século
XIX: aquele que vagueia à procura da satisfação dos seus “vícios”, diriam as
autoridades responsáveis pela ordem social, mas não apenas estas, como demonstra o
trecho do jornal suburbano.
No entanto, longe do perímetro urbano da capital republicana e em uma das
paragens da Estrada de Ferro Central do Brasil, encontrei uma alusão através do olhar
da imprensa local, a um tipo social que se enquadraria no perfil do chamado “vadio”,
aquele que portaria as práticas e valores do anti-trabalho. Contudo, relendo o pequeno
trecho, através de um indício percebi que a esta imagem somava-se aquela do capoeira,
por meio do símbolo das “bombachas”, o que me permite chamar a atenção para a
presença de conflitos sociais, neste capítulo e no seguinte, forjados através de
estratégias de racialização no cotidiano de Madureira.
Estratégias que iam recebendo mais ênfase, ou de outro modo, passaram a ser
enunciadas de modo mais recorrente à medida que se pretendia denotar homens e
mulheres inseridos em diferentes contextos de disputas, individuais e coletivas. Entre
estas surgiram as travadas entre Ernani Rosa, conhecido como Otávio, e Joaquim
Peixoto Guimarães, chamado de Silvestre ou Silvério, que com certa freqüência
andavam “em disputa” por Madureira, situando-se em lados opostos nos grupos
carnavalescos locais, mas também do primeiro com outros moradores; aquela entre um
grupo de portugueses e “crioulos” no mercado de Cascadura, até então o centro de
abastecimento dos subúrbios, em 1915, sendo os imigrantes em sua maioria moradores
dos arredores da estação de Dona Clara, parada ferroviária da Central do Brasil situada
em parte do que fora a fazenda do Campinho e cujas propriedades ao serem loteadas se
incorporaram aos limites de Madureira; e por fim como as que levaram D. Clara a ser
comparada por Orestes Barbosa, no livro Bambambã, ao morro da Favela, localizado no
centro do Rio de Janeiro, e a ser chamada de “Favela Suburbana”, em publicações como
a revista Rio Ilustrado, de 1937, e o Almanaque Suburbano, de 1941.
Em torno da estação de Dona Clara, o estabelecimento de alguns moradores e
moradoras gerou uma rie de manifestações públicas da imprensa local e de
jornalistas reconhecidos do Rio de Janeiro relativas aos perigos daquela paragem.
Nestes discursos, a origem social, as condições de vida e a cor continuavam a se
combinar no sentido de configurar identidades sociais. No entanto, simultaneamente a
79
este processo, uma identidade territorial passa a localizar esta paragem em relação à
cidade como um todo.
Quanto à metodologia, estas questões foram sendo conformadas a partir de
algumas fontes documentais. Utilizei-me dos inquéritos policiais produzidos no 23
o
Distrito Policial (14
a
e 7
a
Pretorias Criminais) incluído na 6
a
Circunscrição Suburbana,
freguesia de Irajá, da qual Madureira fazia parte. Ao me debruçar sobre essa
documentação identifiquei um caminho precioso para recuperar os agentes sociais que
ali viviam nas duas primeiras cadas do século XX, mas não apenas isto. Ao me
familiarizar com os nomes, os apelidos, bem como com as ruas e as referências locais,
pude perceber que entre fragmentos, trajetórias interrompidas, algumas continuidades, e
a partir de um olhar e uma questão específicos, poderia reconstruir uma rede de relações
sociais na qual posicionamentos, práticas e valores possibilitariam iluminar um
cotidiano fabricado através da mobilização de categorias raciais.
Atenta a uma colocação de Crapanzano (2001) que enfatiza a importância da
dimensão pragmática dos sistemas classificatórios, o que implica, conforme o autor, a
atenção analítica voltada aos modos como as categorias de classificação “suscitam,
proclamam e até criam seu contexto de relevância, incluindo o próprio sistema de
classificação”, fui, à medida que lia as declarações das testemunhas, dos acusados e as
conclusões das autoridades policiais e judiciais, buscando compreender em que
contextos emergiam uma referência mais precisa a classificações raciais e quais –
tomando de empréstimo uma construção deste autor falam menos do racismo do que
‘o mostram’”.(p. 444-446)
Essas considerações me pareceram interessantes porque dão margem a uma
análise que procura recuperar as relações de poder que perpassavam a ativação de
categorias como pretos (as), crioulos (as), mulatos: em que situações sociais essas
classificações tornavam-se recursos utilizados pelos sujeitos e o que estaria em jogo
quando estes assim procediam? Nesse sentido, Crapanzano sugere metodologicamente
que,
Talvez seja mais proveitoso começar de modo mais impessoal, com
compromissos e confrontações interpretativas no intuito de determinar
as condições pragmáticas por meio das quais essas próprias categorias
são definidas e aplicadas. Ou seja: descobrir a maneira como “raça”,
“classe”, “gênero” e “etnicidade” emergem dessas confrontações
interpretativas e como funcionam retórica e politicamente”.
(CRAPANZANO, op.cit., p.447) (Grifo do autor)
80
Ao recuperar esta passagem do autor dei-me conta, como sugere Cunha (2002)
quando dialoga com trabalhos relativos às práticas discricionárias racializadas difusas
em contextos coloniais, particularmente no Sudeste Asiático no século XVIII, de que se
o racismo pode assumir a “forma de outras coisas”, o exercício analítico seria
justamente o de procurar compreender as relações antagônicas de classe, gênero e poder
que sustentam e contextualizam as categorias raciais. Saliento, no entanto, que algumas
considerações devem ser feitas sobre esta fonte documental, os inquéritos criminais. A
primeira delas vai no sentido da análise desenvolvida pela autora acima, que se centra
nos discursos acerca da cientifização dos mecanismos de identificação criminal a partir
da ligação destes enunciados com certas concepções que os atores envolvidos tinham a
respeito da sociedade e dos indivíduos.
Como demonstrou Cunha, que reservou parte de sua pesquisa aos discursos e às
práticas de identificação criminal referentes à prevenção da vadiagem e à repressão aos
vadios na década de 1930, estas atividades significavam uma espécie de conversão, tal
qual aquelas relativas aos ritos religiosos. A “realidade” a ser descrita pelos
funcionários responsáveis por esta tarefa demandava a criação de modos de se referir e
falar sobre os acusados, transformando-os em contraventores (as), o que não excluía a
possibilidade de negociação entre diferentes retóricas sujeitas a outras manipulações e
interpretações que não aquelas elaboradas pelos funcionários e autoridades da polícia.
As políticas e práticas de identificação não se restringiram à
perseguição de vadios. Nem mesmo a penalização da vadiagem visou
responder, necessariamente, a demandas do campo da identificação.
Houve diferenciados mecanismos de identificação, de caráter civil e
criminal, bem como diversas políticas institucionais [...]. Se existiu
comunicação entre as rotinas identificatórias e os modos de corrigir e
reprimir a vadiagem, ela pode ser localizada na atenção dada às figuras
da reincidência e do reincidente. Foi a preocupação em registrar a
marcar socialmente atitudes e comportamentos considerados perigosos,
moralmente condenáveis e antisociais, que conferiu legitimidade às
atividades de identificação. Foi pensando a política de erradicação do
‘ócio sem rendas’ que percebi a existência de rituais administrativos e
burocráticos destinados a tornar possível a conversão: transformar o
suspeito em vadio. Esses artifícios deram vida a um espectro disforme
de situações, cuja descrição foi possível através de uma linguagem
jurídica. (CUNHA, op.cit., p.3)
(Grifo da autora.)
Baseando-me nestas considerações, acredito ser relevante deixar explícito ao
leitor que os inquéritos criminais devem ser vistos enquanto textos posicionados social e
politicamente. Sendo assim, ao se fundamentarem em regras de descrição, critérios,
81
procedimentos e visões de mundo formatam, como bem salientou a autora, situações e
vivências díspares, atribuindo-lhes um caráter pretensamente objetivo assim como
significados sociais e simbólicos comuns. Assim, sinalizo que é preciso estar atento
para o fato de que os processos crimes em si mesmos são passíveis de serem
problematizados enquanto objeto de estudo, na medida em que se inserem em um
quadro mais amplo de institucionalização de práticas repressivas e de prevenção
historicamente situadas, ligadas à legitimidade e ao funcionamento dos órgãos policias e
judiciais.
Contudo, para além desta apropriação, a que faço com relação a esse tipo de
fonte documental, com as ressalvas que assinalei, refere-se a tentar alargar o olhar
para além do enquadramento oferecido pelo texto inquérito, extraindo informações de
segunda o posto que selecionadas, condensadas, descritas e interpretadas por
outros. Tento, assim, compreender através dos vários enunciados em questão,
posicionamentos, valores e concepções que produzem e revelam outras conformações
sociais e de poder sobre os atores envolvidos ou arrolados em um inquérito, dando conta
de dimensões da vida coletiva tais como aquelas relacionadas aos âmbitos de trabalho e
lazer.
Por outro lado, saliento que a metodologia que proponho não pode se furtar da
formatação e classificação institucionais que permitem a reconstrução deste cenário
sócio-territorial, o subúrbio de Madureira. Isto porque as “histórias criminais” às quais
se refere Cunha, fabricadas a partir da conexão de pessoas e eventos classificados como
“suspeitos” ao longo dos processos burocráticos ligados à edificação dos arquivos
policiais, implicam também a produção de identidades sociais. Neste sentido, é
fundamental a atenção para o fato de que a identificação de homens e mulheres se insere
em um contexto de prodão no qual a alusão a categorias raciais foi utilizada como
importante recurso de criminalização. Deste modo, ainda que as classificações
racializadas enunciadas pelas autoridades policiais não sejam o foco principal da
análise, tornam-se, no entanto, parte integrante das relações de poder que forjam e
ratificam certas identidades sociais, atuando de modo fundamental no cotidiano local.
Como aponta a autora ao questionar as considerações que priorizam a existência
de uma confusão classificatória no campo das categorias raciais no Brasil, assim como
enfatizam a sua difusão estigmatizante como tendo sido manipulada apenas junto ao
82
senso comum, o que implicaria na isenção de atuações do Estado e dos discursos
oficiais nesta construção,
A noção de ‘fenótipo’ [...] não se opõe, mas é constitutiva das várias
estratégias de ‘racializar’ o cotidiano das relações sociais e as diferenças
de classe e gênero que são visíveis, reconhecíveis e identificáveis nos
corpos.
[...].
E se o discurso da nação [a partir dos anos de 1930] reafirma a mistura
e a igualdade como valores, no cotidiano das ruas, prisões, dos hospitais
e das escolas é a distinção e a singularização que conferem existência às
pessoas e aos indivíduos. É justamente nesse plano, entrecortado por
suas especificidades históricas, sociais e culturais, que um singular
discurso sobre raça’ é não reinterpretado, mas produzido. É nesse
contexto que a cor’ emerge como sinal distintivo que deve ser
perpetuado nos registros oficiais sobre a pessoa, graças ao seu valor
simbólico, seu poder de aludir à herança, à origem social, às distinções
públicas e às diferenças sociais. Ao contrário de dissimular a força das
idéias racialistas, os discursos em torno da ‘cor’ das pessoas apropriam-
se daquilo que essas idéias oferecem de mais palpável: produzem
conexões entre indexações localizadas e sinalizadas no corpo e
representações sociais – cujo domínio e compreensão do seu significado
semântico é extensivo a um número maior de pessoas. (CUNHA, op.
cit., p.53) (Grifo da autora)
3.2 NOS CIRCUITOS DE TRABALHO E LAZER
Fevereiro de 1902. Em Madureira
9
, “logar” no qual estavam localizadas uma
estação de ferro da Central do Brasil, uma linha circular da mesma empresa (Dona
Clara) e uma outra da Linha Auxiliar (estação de Magno), um desentendimento entre
um proprietário de uma venda e uma freguesa trazem à cena sócio-histórica alguns dos
agentes que comporão esta trama. Eulália de Almeida Magalhães Pinto foi à delegacia,
quatro dias depois deste fato, acompanhada de Oscar Barros, Joaquim Peixoto e José
Peixoto, e prestou queixa contra João Otaviano da Cunha
10
. Natural de Minas Gerais,
com 25 anos, era solteira e disse saber ler e escrever. Trabalhava como doméstica e
morava na rua São José, em Madureira. De acordo com Eulália,
[...] no dia vinte e quatro deste mês seriam seis horas mais ou menos da
tarde, quando pegou em uma garrafa e foi a venda de sic, conhecido por
“Velho”, a fim de comprar sic e chegando na dita venda encontrou ali
diversas pessoas como tinha pressa pediu ao mesmo “Velho”, dono da
dita venda que lhe despachasse logo, ele em lugar de [sic] pelo
contrário, fez foi pegar no braço [...] e empurrá-la para o lado de fora da
venda e declarando-lhe que a declarante não levava mais nada, a
declarante ficando [sic] com este procedimento, perguntou o “Velho”
9
Ver Lourenço Madureira.
10
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G 250.
83
qual o motivo de assim proceder, pois que ontem [sic] era freguesa da
tua casa, o mesmo “Velho” deu-lhe duas bofetadas em seu rosto, de
modo que lhe veio gosto de sangue na sua boca, a declarante falou
alguma coisa e retirou-se para a sua casa e sendo isto uma desfeita
entendeu a vir a esta delegacia dar a sua queixa, acompanhada das
testemunhas [...].
Entre as testemunhas de Eulália nenhuma afirmou ter visto João Otaviano, ou o
“Velho”, como era conhecido, agredi-la fisicamente. Segundo Oscar de Barros, natural
da capital federal, solteiro, servente de pedreiro, morador na estrada Marechal Rangel,
principal via de Madureira, eram mais ou menos seis horas da tarde quando ouviu, de
sua casa, um falatório” na venda de Velho”. Ao se dirigir até lá, encontrou o dono do
estabelecimento discutindo com Eulália. Este teria então segurado no braço da mulher,
colocando-a fora da venda “[...] dizendo que não lhe vendia mais parati; que se o velho
deu bofetadas em Eulália o declarante não viu”
.
Joaquim Peixoto, também testemunha,
assim como Oscar, havia nascido no Distrito Federal, tinha vinte anos, era solteiro,
sabia ler e escrever. Trabalhava em uma padaria e morava na rua Domingos Lopes 12,
Madureira. Declarou que passava pela venda quando viu Eulália do lado de fora,
tratando de descompor a Velho”, não sabendo o motivo de tal atitude. José Peixoto,
provavelmente, irmão de Joaquim, pois ofereceu o mesmo endereço, tinha 22 anos e
também trabalhava em padaria. A venda fazia parte do trajeto que tomava para ir
trabalhar, e por passando viu Eulália do lado de fora do estabelecimento, “falando
muito”, contudo não teria visto o dono da venda agredi-la. Jo Manoel Alves, um
carpinteiro português que morava na rua Marechal Rangel 112, próximo à venda, de 39
anos, dizendo-se saber ler e escrever, também foi testemunha. De sua casa, quando
jantava
[...] ouviu nessa hora falatório na mesma venda e chegando a porta para
ver o que havia, viu Eulália do lado de fora com uma garrafa na mão e
batendo com os pés, dizendo que dali não se retirava, não sabendo [...] o
motivo de ela assim dizer, que não viu Velho pegar em seu braço e nem
dar-lhe bofetadas.
Nascido no município do Rio de Janeiro, João Otaviano da Cunha disse ser
casado, negociante e saber ler e escrever. Com 31 anos, morava no mesmo endereço que
José Manoel Alves, rua Marechal Rangel 112. De acordo com ele
[...] pela manhã retirou-se para a cidade e voltando na tarde do mesmo
dia, chegando em sua casa, foi informado por sua mulher de que Eulália
tinha ido à sua casa e praticou muitos insultos, com palavras
obscenas, com esta noticia o declarante disse que não consentiria mais
Eulália em sua casa; que à tarde Eulália de novo dirigiu-se à sua casa
84
com uma garrafa para comprar parati, o declarante não quis vender lhe
parati e pediu-lhe com bons modos para que se retirasse e que em sua
casa não tornasse mais, isto bastou para que Eulália ficasse raivada e
[...] de muitas palavras indecentes, pelo que o declarante apenas botou
de leve a sua o no ombro de Eulália, pedindo-lhe de favor que se
retirasse, no que foi atendido quando ela bem entendeu. Que com
isso quanto a dar lhe bofetadas é falso, pois tal não se deu.
Em torno da venda de Otaviano, um estabelecimento de secos e molhados
conforme anúncio no jornal Echo Suburbano de Madureira de 1911, ocorreram alguns
dos conflitos encontrados na documentação do 23
o
Distrito Policial, e que serão
apresentados neste capítulo. Excetuando-se a doméstica Eulália, natural de Minas
Gerais e o carpinteiro português José Manoel Alves, as declarações das testemunhas e
do acusado foram de moradores que tinham origem na capital da República: dois
trabalhadores em padaria, um servente de pedreiro, além do comerciante. Encaminhar-
se à delegacia, junto com as testemunhas, teria sido uma decisão de Eulália cuja
justificativa estava no considerou como uma “desfeita” de Otaviano em relação a ela
uma freguesa apressada que queria comprar em um estabelecimento, e, não atendida
pelo dono, foi impedida de comprar e agredida. Na fala da doméstica Eulália no
contexto da delegacia, uma relação impessoal de troca comercial entre um proprietário e
uma freguesa havia sido posta em suspenso.
A versão de Otaviano, no entanto, pessoaliza a figura de Eulália à medida que a
caracterizou não apenas como uma compradora, mas como uma mulher que se utilizava
de palavras “obscenas” e praticava insultos, e que por esta razão não deveria mais
freqüentar o seu negócio nem ali comprar. Neste sentido, ao mau comportamento de
Eulália Otaviano opõe suas maneiras civilizadas, pedindo com bons modos” para esta
se retirar do local, o que sem resultado, procurou fazer pondo “de leve” a mão nos
ombros da doméstica.
Nas duas narrativas, contudo, estabelece-se um princípio consensual quando
Eulália e Octaviano expressam, ainda que em termos dos valores e normas ideais não
podemos saber se os insultos verbais e a agressão física de fato foram realizados –, o
caráter negativo ao qual se ligavam atitudes violentas, fossem sob a forma de bofetadas,
como afirmou Eulália, ou no incisivo repúdio a um tratamento grosseiro, como
procurou demonstrar Octaviano em suas declarações.
Ao chamar a atenção para a mobilização de um valor como o da impessoalidade
de uma relação comercial entre um comerciante e uma freguesa e das expectativas em
85
torno disso tal como o fez Eulália procuro recuperar a presença de um imaginário
social naquele contexto histórico pós-emancipação: um subúrbio do Distrito Federal no
qual residiam lavradores, pequenos comerciantes, trabalhadores braçais, domésticas,
alguns operários e profissionais liberais, como apontou o censo de 1906, que poucos
anos atrás, encontrava-se organizado sob o regime servil.
Ainda que neste processo crime não se tenha acesso à classificação racial dos
envolvidos, duas assimetrias sociais manifestaram-se, em termos de classe e de gênero,
pois vimos neste caso uma desavença entre um proprietário e uma não-proprietária.
Como tentei demonstrar através das versões dos dois personagens desta contenda, um
ato violento, verbal ou físico, seria condenável. Uma doméstica como Eulália não o
aceitaria, e o proprietário da venda, em seu depoimento, esforçou-se para convencer que
não havia agido assim. Aliás, um comportamento deste tipo transformaria o então
acusado em culpado, e as testemunhas negaram ter visto a agressão física à qual aludiu a
suposta vítima.
A partir destas colocações seria possível fazer referência a um passado
escravista, instituído pela coerção física e simbólica, para explicar as relações,
sociabilidades e comportamentos então vigentes em uma sociedade emancipada e
liberal-republicana? Proponho esta pergunta no sentido de apontar uma inquietação
relativa ao tratamento teórico-metodológico a ser conferido a uma análise embasada
neste momento histórico. Explicar a presença de agressões físicas e verbais, que
marcam a maioria dos inquéritos pesquisados, em função da persistência de uma
herança escravista no imaginário coletivo soa-me como um caminho simplista e pouco
frutífero do ponto de vista sociológico. Afinal, apesar de todos os limites e dificuldades,
a população negra já não era mais escrava e todos sabiam disso, e, como demonstrou
Eulália ao reivindicar um tratamento impessoal entre um proprietário e uma não
proprietária, não seria em termos de um atraso cultural – primitivismo, barbárie ou falta
de educação – que as relações e concepções sociais poderiam ser explicadas.
Joaquim Peixoto, o trabalhador em padaria natural do Distrito Federal, nascido
em Madureira, que serviu de testemunha de Eulália, em 1902, após sua primeira
aparição naquele inquérito, tornou-se um personagem recorrente na delegacia do 23
o
Distrito Policial, sendo em alguns processos identificado como um “desordeiro” e
“vagabundo”. Apesar de algumas discrepâncias com relação à sua idade, no decorrer
86
dos processos pesquisados outros elementos concorrem para eu acreditar que se trata da
mesma pessoa.
Em agosto de 1903, pela manhã, no botequim de José Alves Rodrigues,
localizado na rua Firmino Fragoso 33, o caixeiro francês Edmundo Robert foi ferido na
mão. De acordo com aqueles que se achavam no estabelecimento, o responsável pela
agressão fora “Silvestre de tal”. Teodoro da Silva, carroceiro que trabalhava no mesmo
botequim e residente nesta mesma rua, em uma casa sem número, natural do estado de
São Paulo, com vinte oito anos e analfabeto, apresentou a seguinte versão na delegacia:
[...] estando [...] nos fundos do botequim acima referido viu ali entrar
Silvestre de tal armado de um canivete, o qual se dirigiu para Edmundo
Robert, caixeiro do botequim pedindo a este um tostão que tinha ali
deixado e, não querendo Edmundo atendê-lo, Silvestre entrou para
dentro do balcão e feriu Edmundo na mão com o canivete de que vinha
armado, quando o declarante agarrou-o e tomou-lhe o canivete; que
Silvestre vendo-se desarmado, pondo escapolir-se de suas mãos e
agarrado em uma faca que estava junto de um queijo, novamente
investiu para Edmundo, dizendo que queria acabar-lhe com a raça, em
vista do que o declarante agarrou-o novamente e tomou-lhe a faca e
Silvestre pondo outra vez a escapolir-se e indo para a rua pegou em uma
pedra e quando vinha com ela para atirá-la em Edmundo, apareceu
Jacinto de tal, pai de Silvestre, o qual, vendo seu pai, fugiu.
Edmundo tinha trinta e oito anos, era solteiro e morava no mesmo endereço onde
se localizava o botequim, cerca de vinte dias. Conforme suas declarações, porque
estava pouco tempo na freguesia de Irajá o tinha nenhuma desavença com
Silvestre, tampouco o conhecia. Alguns dias se passaram até que Silvestre fosse ao
distrito policial prestar suas declarações. disse se chamar Joaquim Peixoto
Guimarães, ter dezessete anos idade menor do que a que declarou quando foi
testemunha da doméstica Eulália –, ser solteiro e trabalhador. Residente na rua Antônio
de Abreu número um, havia nascido naquela freguesia e sabia ler e escrever. Nas
narrativas de ambos, o conflito teria se iniciado por causa de um troco de cem réis, que
Silvestre alegava ter de receber porque tomou café no botequim no dia anterior, e em
relação ao qual Edmundo, após conferir a féria com o dono do estabelecimento, afirmou
não existir no caixa.
À medida que o inquérito seguia os trâmites burocráticos, Silvestre apresentou-
se como pedreiro no seu auto de qualificação, Edmundo se mudou para local
desconhecido e por isso o foi comunicado sobre as sessões judiciais e Teodoro, junto
à outra testemunha, Alacrino Ferreira da Silva, em uma das audiências criminais,
87
mudaram as versões apresentadas na delegacia a favor de Silvestre, afirmando que
conheciam-no, sendo o mesmo “morigerado” e “trabalhador”. Mesmo assim, o juiz
decidiu procedente a denúncia e condenou Joaquim Peixoto Guimarães a três meses de
prisão celular, ainda que este não tenha recebido o mandado de intimação, pois o
morava mais no endereço apresentado à época da confusão. Quase dois anos tinham se
passado.
Uma briga entre um brasileiro e um imigrante francês, entrecortada por uma
alusão à noção de raça, segundo as declarações do carroceiro Teodoro. Estas são
algumas pistas presentes neste caso. Por ter sido endereçada a um imigrante europeu, a
ameaça de Silvestre que nos inquéritos pesquisados nunca foi classificado sob uma
categoria de cor sugere a possibilidade de pelo menos duas interpretações: ele poderia
estar fazendo referência a Edmundo enquanto alguém cuja nacionalidade era diferente
da sua, através da idéia de “raça”, o que era comum àquela época, ou ainda enquanto
um indivíduo que não apenas era de outro país, mas que fosse identificado como de uma
cor que não a sua. A pergunta que tenho em mente, deste modo, vai no sentido de
imaginar por que o pedreiro brasileiro, que já havia trabalhado em padaria e que
declarou ser pedreiro na época do confronto com o caixeiro francês Edmundo,
formulou, conforme uma das testemunhas, a sua insatisfação da maneira como o fez.
Teria sido apenas a discussão em torno dos cem réis que segundo o caixeiro não
poderia ser entregue ao brasileiro simplesmente porque este havia feito o pagamento da
quantia exata pela refeição que fez no botequim no dia anterior o que levou Silvério a
agredi-lo? Por hora, deixo esta questão em aberto, e tentarei reinseri-la na discussão de
um outro caso ocorrido já nos anos de 1910 envolvendo brasileiros e imigrantes.
Ainda em 1903, que alguns meses após o caso acima, em dezembro, Paulino
Guedes e Manoel de Souza
11
, portugueses com 37 e 35 anos respectivamente,
queixaram-se de terem sofrido agressões de três indivíduos residentes naquela
“circunscrição”. De acordo com Paulino, que morava na rua Quinze de Novembro 4, em
Madureira, por volta das onze horas da manhã, ao entrar em um botequim de
propriedade de Manoel José Ribeiro, na rua Portela, foi agredido por indivíduos cujos
nomes sabia que eram Silvério, José e Otávio, os quais teriam fugido em seguida ao
“crime” para local ignorado. Ainda segundo Paulino,
11
ARQUIVO NACIONAL, Série Processos Criminais, Notação 7G403.
88
[...] ele ofendido não deu motivo algum para ser ofendido pelos seus
agressores pois que ele [...] é operário e de comportamento exemplar.
Conforme Manoel de Souza, quando chegou ao botequim, encontrou seu “compatriota”
Paulino e
[...] nessa ocasião este tem [teve] com três indivíduos que ali se
achavam uma pequena alteração de palavras, resultando desse fato ser
agredido ele declarante e o referido Paulino Guedes [...].
No dia seguinte, Manoel José Ribeiro, o dono do botequim, foi à delegacia
prestar depoimento. Também português, com vinte e quatro anos, morava no mesmo
endereço em que mantinha o seu negócio, rua Portela 29, e estava em seu
estabelecimento quando viu chegarem Paulino e Manoel:
[...]
ambos portugueses e em termos pouco delicados exigiram [...] cem
réis de água ardente; que havendo troca de palavras entre o declarante e
os referidos indivíduos e como se achavam ali perto Silvério, Jo e
Octavio estes interviram havendo luta corporal entre eles resultando
desse conflito ficarem feridos Paulino Guedes e Manuel de Souza; que
viu os três indivíduos [...] armados de pau darem cassetadas com a
mesma arma nos dois ofendidos [...].
Após esta versão, JoLuiz Gomes, um dos acusados, declarou que tinha ido à
casa (o botequim) de Manoel Ribeiro, e viu os portugueses exigirem deste, fiado,
sessenta réis de cachaça. O comerciante então havia se recusado, gerando-se deste fato
uma pequena alteração entre os ofendidos e os demais fregueses que ali se achavam.
José, no entanto, não saberia dizer os nomes dos que se encontravam no botequim
tampouco conheceria os dos queixosos. Brasileiro, com quarenta anos, apresentou-se
como operário e, além disso, residia na mesma rua em que o português Paulino, Quinze
de Novembro, mas em outro número, 24. Silvério e Octávio não compareceram àquele
distrito policial, e foram identificados por um inspetor secional, Alfredo da Silva.
Assim, teve-se o conhecimento de que:
[...] Silvério chama-se Joaquim Peixoto Guimarães e Octavio chama-se
Octavio Chrisante por ser filho de Chrisante Maria da Silva e José é o
mesmo José Luiz Gomes qualificado [...].
Após a expedição de alguns mandados de intimação e da solicitação de um
oficial de justiça – que procurou os envolvidos nos endereços indicados para que
comparecessem às sessões judiciais –, em agosto de 1904, três guardas da polícia o
intimados como testemunhas para uma audiência. Suas declarações foram no sentido de
89
afirmar que Silvério, Otávio e José seriam desordeiros e vagabundos conhecidos”.
Segundo Conrado Corrêa Barbosa, um dos guardas:
Que sabe por ouvir dizer que no dia sete de dezembro findo, ao meio-
dia mais ou menos, os acusados Joaquim Peixoto Guimarães, Octavio
Chrisante e José Luiz Gomes agrediram e ofenderam fisicamente a
Paulino Guedes e Manoel de Souza. Que ignora qual o motivo da
agressão dos ofendidos. Que conhece os acusados e sabe e pode afirmar
que os mesmos são desordeiros e vagabundos conhecidos [...] (Grifo
nosso)
Em setembro de 1905, depois de uma outra audiência realizada à revelia dos
réus e das testemunhas em abril, Silvério, Otávio e José são condenados a sete meses e
quinze dias de prisão celular, grau dio do artigo 303 do Código Penal. Segundo o
juiz, a pena foi estipulada em conformidade com as provas dos autos e por não haver
circunstância agravante ou atenuante.
Algumas leituras vislumbrando a formação de redes e relações sociais em
Madureira no início do culo podem ser produzidas a partir deste caso. Um conflito
entre brasileiros e portugueses, que partilhavam os mesmos espaços de lazer, o
botequim do também português Manoel Ribeiro, e de moradia, pois o agredido Paulino
morava na mesma rua Quinze de Novembro em que José, um dos acusados, parece
ter sido o mote que conduziu à delegacia alguns dos envolvidos. Se pensarmos no caso
anterior entre Silvestre ou Silvério e o caixeiro francês Edmundo, confrontos entre
brasileiros e imigrantes não seriam uma novidade no cotidiano deste subúrbio.
Contudo, atentando para os depoimentos, uma desavença que a princípio
reuniria sujeitos de nacionalidades distintas, apresenta-se mais complexa quando se leva
em consideração, como sugere as declarações em seu conjunto, que a contenda inicial
deu-se entre os portugueses: o dono do botequim, o operário Paulino, e seu amigo e
compatriota Manoel.
Na narrativa de Paulino a agressão que sofreu foi interpretada como sendo sem
“motivo algum”, visto que se apresentou como “operário e de comportamento
exemplar”, o que explicita um movimento de aproximação de um padrão socialmente
aceitável, e por outro lado, a manifestação da idéia de que ofensas físicas fariam parte
do universo do anti-trabalho e do mau comportamento. Na narrativa do proprietário do
botequim, no entanto, teria sido a postura “em termos poucos delicados” dos dois
portugueses, exigindo água ardente, o motivo da troca de palavras” que precedeu as
agressões, o que acabou contestando a articulação ser operário e ter um comportamento
90
exemplar produzida pela versão de Paulino, assim como a possibilidade de uma relação
mais estreita entre ambos fundada apenas em um critério como o da nacionalidade
comum.
Além destas considerações, as intervenções de Joaquim Peixoto Guimarães ou
Silvério, aquele que serviu de testemunha no caso da doméstica Eulália (e que neste
contexto foi identificado como um “desordeiro”), de Otávio, e de José (o único que foi à
delegacia prestar depoimento) produziram, através deste inquérito, a imagem de que os
três estariam juntos ou mesmo seriam amigos, o que com o acesso aos outros processos
no decorrer dos anos é posto em questão pelo menos no que se refere aos dois
primeiros.
Destaco, contudo, que ao se envolverem na discussão entre os portugueses
inseridos socialmente, em Madureira, de modo diferenciado como venho procurando
demonstrar –, Silvério, Otávio e José, provavelmente também distintos entre si,
poderiam estar reconstruindo, por meio de outros significados e concepções no contexto
histórico do pós-emancipação, uma rede de relações forjada durante o sistema escravista
entre pequenos proprietários de estabelecimentos comerciais e sujeitos pobres livres,
cuja presença acentuada de ajuntamentos” e desordeiros” seria uma constante,
conforme discutido em Gomes (1996) no capítulo anterior.
Quem seriam os desordeiros do século XX e em quais contextos esta
classificação social poderia ser enunciada e por quem? Como apontei no
desenvolvimento do primeiro caso, que envolvia a doméstica Eulália e o proprietário de
secos e molhados Octaviano, do ponto de vista do convívio coletivo, agressões físicas e
verbais eram concebidas como atos inadequados, e no exemplo acima apresentado,
algumas expressões do dono do botequim em termos pouco delicados exigiram do
declarante cem réis de água ardente” ratificam esta percepção. Logo, não me parece
coerente recorrer a uma “herança” violenta da escravidão para justificar insultos, brigas
e confrontos corporais, como se homens e mulheres agissem segundo um princípio
irracional. Se a redução do escravo à coisa” se apresenta como um equívoco
metodológico e teórico, também o é a de homens pobres livres à “não-consciência”. A
pergunta que me coloco então é a de tentar imaginar se o dono do botequim ou mesmo
os fregueses que ali estavam chamariam Silvério, Octávio e José de “desordeiros”, ou se
assim procedessem, o mesmo não valeria para os portugueses que insistiam em comprar
91
água ardente fiada, sem o consentimento de Manoel, criando um certo alvoroço no
estabelecimento.
Uma das considerações que pode ser retirada da discussão de Gomes é que do
ponto de vista dos taberneiros e vendeiros a presença de quilombolas, cativos, forros e
homens pobres livres, bebendo, fazendo batuques e comerciando o significaria
necessariamente desordem, pois era por meio destas redes e relações que seus
estabelecimentos funcionavam. Do ponto de vista das autoridades coloniais e imperiais,
entretanto, era tentando controlar estas práticas e vínculos entre diferentes setores da
sociedade escravista que se instituiu categorias como as de “ajuntamentos” e
“desordeiros”. O que representava ameaça particularmente para um segmento daquele
universo social tornou-se, então, um problema público sistematizado em leis e decretos.
Reis (1989) também assinala nesta direção ao estudar a posição das autoridades
públicas, particularmente de um juiz de paz da freguesia de Nossa Senhora de Brotas, na
Bahia, que insistia em considerar ilegal as manifestações religiosas africanas, na
primeira metade do século XIX. O autor narra a “indignada surpresa” que aquela
autoridade demonstrou ao encontrar em um candomblé que fora então invadido,
crioulos e africanos, mas também mestiços e brancos.
O ajuntamento de “gente de várias cores” em festa significava
desordem social, da mesma que o sincretismo religioso operava uma
subversão de símbolos. Para o juiz, a ordem estava na segregação, na
separação vigiada. Separação entre pessoas de cores diferentes, mas
também entre as que, iguais na cor, houvessem nascido em lados
diferentes do Atlântico. Daí a sua indignada surpresa em encontrar
crioulos e africanos em comunhão ritual no candomblé invadido. (REIS,
1989, p.44)
A partir destas colocações me parece importante chamar a atenção para o fato de
que é praticamente impossível tentar produzir um entendimento sobre a chamada
desordem social sem relacioná-la às tentativas espraiadas de controle e disciplinarização
sobre a população negra da cidade no século XIX, e que, ao se pensar no capítulo que
abre esta dissertação, continuavam vigorando nos primeiros anos do século XX.
Correria o risco de ser incoerente com os argumentos que apresentei, no entanto, se
fizesse uso, agora para entender o que se passava neste momento, de uma simples
reprodução de preconceitos e estigmas. Como tenho assinalado, o contexto histórico é
outro e acredito que isto não deva ser menosprezado.
92
Desta perspectiva, concordo com Cunha (p.47) ao indicar que o país da virada
do século, interpretado dentro de uma visão liberal e republicana de universalização dos
direitos, reinventou, através da cientifização de práticas e rotinas burocráticas, bem
como das políticas públicas, o domínio sobre as populações urbanas marginalizadas.
Deste modo, a “lógica do confinamento” que perpassava a relação do Estado com os
indivíduos ao limitar e demarcar comportamentos, relações e valores como impróprios e
perturbadores, geria e regulava a construção da “desordem” nos espaços públicos
enquanto um problema. Logo, o seria à toa que a identificação de Silvério, Otávio e
José como “desordeiros” e “vagabundos” tenha sido enunciada por um guarda policial
da delegacia.
Uma das questões que busquei apresentar no primeiro capítulo referia-se a
salientar que através das queixas e reclamações de diversos moradores do Rio de
Janeiro, incluindo as de proprietários de vendas, botequins e casas de negócios, o
Estado republicano representado por delegados e guardas policiais fora chamado a
vigiar e controlar o que textualmente era citado nos jornais como “indivíduos
suspeitos”, “desocupados” e “vadios”, estivessem estes estabelecidos nas áreas centrais,
nos bairros mais privilegiados ou nos subúrbios. A força social deste imaginário estava
propagada pelo território do Rio de Janeiro do início do século. Neste sentido, os
rótulos, amplamente utilizados e banalizados, para dar conta de uma população de não-
proprietários trabalhadores formalmente empregados, subempregados ou de
desempregados – funcionaram como identidades sociais, o que não significava que estas
fossem absolutas, por um lado, ou não passíveis a negociações, como se encerrassem os
sujeitos em uma camisa de força, de outro. Silvério ou Silvestre, por exemplo, havia
trabalhado em uma padaria, foi identificado como “filho de Jacinto de tal” e atuava
como pedreiro; José se declarou operário; Otávio foi reconhecido pela sua filiação
materna, “filho de Chrisante Maria da Silva”. Isto, no entanto, não atenuou as
intervenções do Estado, através de seus agentes e práticas que iam muito além de
técnicas e métodos científicos, como sugere Cunha –, na confecção da vida cotidiana.
Ainda neste sentido, chamo a atenção que a estes personagens, neste momento, não se
atribuiu nenhuma classificação racial, pois foram as suas inserções familiares e de
trabalho que sustentaram os enunciados dos moradores e guardas policiais, situação que
será modificada, por exemplo, à medida que Otávio estabelecia algumas trajetórias no
subúrbio de Madureira.
93
Com base nestas considerações, gostaria de chamar a atenção para uma outra
questão. Ao intervirem no desentendimento entre os portugueses, os três brasileiros
participaram de um conflito no qual poderiam existir desavenças de nacionalidade.
Entretanto, sugiro que outras razões embasariam as agressões. Àquela época, por volta
de 1903, Silvério ou Silvestre, havia dito ao francês Edmundo que queria “acabar-lhe
com a raça”, e neste sentido, acho importante relembrar que ele fora anteriormente um
“trabalhador em padaria” note-se que ele não se apresentou como padeiro –, o que
pode significar que em algum momento exercera uma ocupação similar à do caixeiro.
José, por outro lado, assim como um dos portugueses ofendidos fisicamente, disse na
delegacia ser operário. Por outro lado, com relação a Manoel, o português proprietário
do botequim, nenhum tipo de agressão foi mencionado. Imagino, assim, que mais do
que uma diferença de nacionalidade fosse interessante enfatizar que aqueles homens não
eram apenas brasileiros e portugueses, eles também tinham chances de ocupar funções
comuns no mercado de trabalho.
O desenrolar deste caso seguia seus percursos burocráticos como apontado
anteriormente a sentença foi definida em 1905 –, e novos encontros se deram entre
Silvério e Otávio em Madureira. Alianças entre alguns dos personagens desta história
emergiram e provavelmente se mantiveram no decorrer de um certo espaço de tempo.
Em contrapartida, divergências e conflitos persistiram naquela vida social.
Onze de maio de 1904 é a data em que nos documentos da polícia local aparece
reunido José de Almeida
12
ou Juca Bombacha ao lado dos apresentados Joaquim
Peixoto Guimarães, chamado de Silvério ou Silvestre, e Ernani Rosa, conhecido como
filho de Chrisante Maria ou ainda moleque Otavio. Juca Bombacha era brasileiro,
natural do Distrito Federal e trabalhava como cigarreiro. Analfabeto, solteiro, à época
com 20 anos, residente na rua Praça Quinze 6, viu-se envolvido em um processo crime
que o apontava ao lado de Otávio e Silvério, como um dos autores de uma agressão
sofrida por Antonio Simplicio, também nacional, pardo, 30 anos, lavrador, natural de
São Paulo, residente em Camboatá
13
. De acordo com Simplicio:
[...] às oito horas da noite [...] foi à taberna de Candido Daval, na rua
Firmino Fragoso, ocasião em que fazia compras, tendo sido agredido
por três indivíduos que conhece pelos nomes de Juca Bombacha, Otávio
de tal e um desordeiro por alcunha Silvério; nessa mesma ocasião a
mulher do taberneiro Daval e o caixeiro da mesma taberna empurraram
12
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G385.
13
A travessa Camboatá, atualmente, faz parte do subúrbio Barros Filho.
94
o declarante para a rua; além da mulher de Daval e o caixeiro, estavam
ali outras pessoas que testemunharam o fato; afirmou que os ferimentos
que apresentava lhe foram feitos pelos indivíduos citados, que se
achavam armados de paus.
Novamente em uma taberna na rua Firmino Fragoso, Silvério e Otávio se
envolvem em uma briga. O que escapa, no entanto, da fala de Simplício, é a
caracterização do primeiro como um “desordeiro”. Silvério, a essa época, 1904,
respondia a pelo menos dois inquéritos policiais, um por ter agredido com um canivete
Edmundo, o caixeiro francês, e outro por ter batido nos portugueses Paulino e Manoel.
Neste último caso, os dois agredidos além de o acusarem, fizeram o mesmo em relação
a Otávio.
A esposa do dono da taberna, Victoriana Martinez Daval, também deixou
entrever que Silvério já era conhecido naquele subúrbio.
[...] se achando nos fundos da casa de negócio onde reside com seu
marido, ouviu no estabelecimento uma alteração de palavras entre o
caixeiro da mesma casa Antonio Manoel Pinheiro e Antonio Simplicio;
que vendo este entrar para o lado de dentro do balcão, ela depoente e o
referido caixeiro fizeram retirar-se para fora da casa de negócio o
ofendido Antonio; que imediatamente mandou fechar as portas da casa
de negócio, sabendo que ali se achava Joaquim Peixoto Guimarães,
vulgo Silvério, que esbordoou o mesmo Simplicio.
Silvério não prestou declarações na 23
o
Distrito Policial, assim como no
decorrer do processo os oficiais de justiça alegaram não ter informações sobre o seu
endereço residencial. No entanto, em alguns depoimentos recolhidos, afirmou-se que ele
era guarda policial, o que venho a ser confirmado quando da expedição de um dos
mandados de intimação. Segundo o oficial de justiça responsável por comunicar os
acusados e as testemunhas:
Certifico que [...] dirigi-me ao lugar Madureira e sendo intimei os
réus constantes [...], deixando de intimar o réu Joaquim Peixoto
Guimarães, por constar-me ser este praça da Brigada Policial, e as
testemunhas por terem se mudado para lugar não sabido [...].
A qualificação de “desordeiro”, da qual o agredido Antonio Simplicio fez uso
para se referir a Silvério, surgiu, novamente, nos depoimentos de dois policiais que
foram convocados posteriormente, em 1906, em função do não comparecimento às
sessões judiciais, por várias vezes, das testemunhas e acusados. Aqueles eram Belmiro
95
Julio Viana, brasileiro, casado, empregado público, 38 anos, morador na rua João
Vicente 21, paralela à linha da Central do Brasil, em Madureira:
[...] estava de dia na delegacia quando teve conhecimento de que os
acusados promoviam conflito na venda de Candido Daval. Dirigindo-se
para o local, encontrou o ofendido ferido, tendo os acusados se evadido.
Ignora a causa do conflito. Somente conhece o acusado Joaquim
Peixoto Guimarães e pode afirmar ser o mesmo desordeiro e
vagabundo.
E, o já apresentado, Conrado Corrêa Barbosa, brasileiro, casado, empregado público, 48
anos, morador no lugar “Colégio”, freguesia de Irajá,
[...] disse saber do fato de que trata a denúncia por ter assistido na
delegacia ao depoimento de testemunhas, que ignora a causa do conflito
e somente conhece o acusado Joaquim Peixoto e sabe ser um tanto
desordeiro.
Tomando por base estas narrativas, a imagem de “desordeiro” parece se acoplar
de modo inconteste a Silvério. Como salientou Cunha em relação à discussão que se deu
no país, nos primeiros anos do século XX, em torno da utilização de técnicas visando à
descrição de propriedades físico-anatômicas aliada à identificação civil como
procedimento de distinguir os “cidadãos” dos “criminosos”, a produção de arquivos
criminais revelava a possibilidade de “a memória de uma experiência, vista como
constrangedora, manter-se preservada em um determinado lugar para um futuro uso”.
(op. cit., p.22) A partir destas considerações da autora, é possível apontar, como
quando iniciei este capítulo, que as identidades sociais formuladas através destas
práticas e rotinas burocráticas que inventaram o texto processo-crime são parte
fundamental da vida social analisada sob a ótica deste tipo de fonte documental. À
medida que homens e mulheres se viam às voltas com a instituição policial, algumas
marcas lhes eram imputadas no contexto desta relação.
Se, como argumentei anteriormente, a identificação de Silvério como um
“desordeiro” na contenda com os portugueses passou pelo conhecimento que os guardas
do distrito policial afirmaram ter sobre ele, quase um ano após este evento, através das
declarações do lavrador agredido Simplício e da espanhola Victoriana, esta classificação
se difundiu em Madureira. Afinal, Silvério, por um motivo ou outro, havia se tornado
alguém cuja inscrição social naquele subúrbio passava pelos arquivos da delegacia.
Entretanto, acredito ser importante ressaltar que Silvério poderia “ser” mais que
isso. Outras inscrições sociais surgem dos depoimentos, com a referência de uma das
96
testemunhas no sentido de que ele trabalhava como guarda policial. Teria sido por isso
que apesar de todos os envolvidos demonstrarem conhecê-lo, seu depoimento não fora
recolhido, assim como seu endereço revelado neste inquérito? Afora a ligação que
poderia ter com a própria polícia enquanto um membro da instituição, o que tensionava
os limites do que se configurava na legislação e na prática social, como “ordem” e
“desordem”, a partir da versão apresentada pelo caixeiro da taberna, reaparece uma rede
formada entre pequenos comerciantes e homens pobres livres. Manoel Pinheiro,
brasileiro, solteiro, 21 anos, residente no “lugar” denominado Rio das Pedras narrou que
[...] ao anoitecer, achando-se na venda de Candido Daval onde é empregado,
chegou Antonio Simplicio que pediu quarenta réis de cachaça, mais tarde pediu
cem réis do mesmo líquido; que ele, declarante, não quis vender a cachaça por
achar-se Simplicio um tanto embriagado; nesta ocasião, ele, testemunha, pediu
socorro a diversas pessoas que se achavam na rua; sabe que estas pessoas
chamam-se Ernani Rosas, conhecido por Otavio, Joaquim Peixoto Guimarães,
conhecido por Silvério e José Bombacha, todos residentes nas imediações da
rua Portela; ele, depoente, com sua patroa, conseguiram apaziguar o barulho
promovido por Simplício empurrando-o para a rua, ignorando o que se passou
depois.
O que me pareceu interessante na fala do caixeiro Manoel foi o fato dele recorrer
a Otavio, José Bombacha e Silvério para ajudá-lo. Qual o papel que estes sujeitos eram
chamados a cumprir, e por que o realizavam? Assim como no caso ocorrido no
botequim cujo proprietário português se desentendeu com dois conterrâneos, homens
pobres e livres teriam se envolvido em uma desavença que, ao que parece, não os dizia
respeito diretamente. Um desentendimento entre um lavrador e um caixeiro, ambos
brasileiros, deslizou para um confronto entre outros nacionais.
Neste caminho, sugiro que a configuração político-administrativa da desordem
social – através dos códigos de posturas municipais, dos decretos legislativos e da
burocratização de práticas e rotinas no interior dos órgãos policiais e judiciais
dialogava de modo incessante com as diferentes dimensões da ordem cotidiana: se
Silvério fora chamado a interferir junto a Simplício porque era um guarda policial, as
agressões realizadas partiram justamente de um representante do Estado. Por outro lado,
se Otavio e Bombacha também foram requisitados, demonstra-se que naquele contexto
social a eles conferia-se alguma espécie de poder. Acrescento, também, que neste
universo a presença de homens pobres e livres não os fazia obrigatoriamente iguais. Se
disputas entre brasileiros e imigrantes se faziam presentes, entre os chamados nacionais
distinções perpassavam o convívio coletivo.
97
Otavio morava com sua mãe, Chrisanta Maria da Conceição na rua Firmino
Fragoso sem número, onde ocorreu o “barulho”. Ela era brasileira, viúva e tinha 40
anos; o filho se ocupava como carroceiro, era analfabeto, solteiro, e disse ter 18 anos.
Segundo as suas declarações, a agressão de Silvério se dera por causa de “rixas antigas”
com Simplício.
No dia do corrente achava-se na venda de Candido Daval; que chegou
na referida venda Antonio Simplicio dizendo que foi ali matar o bicho
para o que pediu dois vinténs de cachaça, pedindo logo em seguida mais
cem réis do mesmo líquido; nessa ocasião, também ali estava Joaquim
Peixoto Guimarães, vulgo Silvério, que devido a rixas antigas, este
principiou a provocar Simplicio, que nesta ocasião a mulher do dono da
taverna assim como o caixeiro da mesma venda fez Simplicio sair para
a rua e nesta ocasião Joaquim Peixoto Guimarães deu uma cacetada em
Simplicio produzindo-lhe um ferimento na cabeça.
Juca Bombacha afirmou em seu auto de declarações, que Antonio Simplicio
não fora agredido na rua, mas no interior da taberna.
[...] ao anoitecer [...] achava-se em casa de Chrisante, e de Ernani
Rosas; [...] ouvindo grande barulho na venda de Candido Daval, dirigiu-
se à mesma venda e viu que Joaquim Peixoto de Guimarães, vulgo
Silvério, espancava Antonio Simplicio; que o fato se dera dentro da
venda de Candido Daval, sendo que quando o depoente chegou à
referida taberna a mulher de Candido Daval e o caixeiro da mesma
venda Antonio Manoel Pinheiro pediram ao depoente para ajudar a
botar fora da porta o ofendido Antonio Simplicio que se achava caído e
ferido junto ao balcão da mesma venda; que não sabe se Ernani Rosas,
vulgo Octavio, também ajudou a esbordoar Simplicio, visto que [...] ao
chegar ao lugar do barulho encontrou a mãe de Ernani conduzindo o
filho para casa.
Ao chamar a atenção para e existência de “rixas antigas” entre Silvério e
Simplício, Otávio apontara um elemento que viria a ser uma constante nos seus
próximos encontros com Joaquim Peixoto Guimarães em Madureira. Por outro lado,
quando utilizei a noção de distinção para caracterizar os confrontos entre brasileiros,
não o fiz à toa. Silvério havia se tornado um praça da Brigada Policial, e para quem
havia trabalhado em padaria e como pedreiro, provavelmente este fato significaria
ascensão social ou pelo menos implicaria um status diferenciado naquele subúrbio. E,
ao que parece, ele apropriava-se desta condição também no sentido de conformar ou
quem sabe rearranjar uma identidade, que era anterior à sua nova ocupação. Era
chamado ou se mostrava disposto a intervir nas dificuldades que os taberneiros e
proprietários de botequim tinham com os fregueses, mas também se manifestava como
98
um sujeito que detinha algum poder no bairro. Parece-me importante enfatizar, no
entanto, que isto também era objeto de disputas pessoais, e um caminho para a
afirmação de outras identidades.
Decorridos três anos da acusação do lavrador Simplício julgada improcedente
em 1906 –, em fevereiro de 1909, inicia-se mais um inquérito contra Silvério. Neste,
ele é acusado de agredir e ferir Otávio. Era um bado, e desde o início da manhã,
Joaquim Peixoto Guimarães e Ernani Rosa andavam “em disputa”. Ao se encontrarem,
à tarde, na rua Portela, em frente a uma venda, ambos agrediram-se e, ainda conforme
uma das testemunhas, João Salgado Júnior, brasileiro, empregado no comércio e
morador na rua Quinze de Novembro 30,
[...] estando Peixoto Guimarães armado de um pau e Ernani armado de
uma faca; o primeiro arremeteu contra o segundo dando-lhe umas
cacetadas e atirando-o ao chão e com essa mesma arma o feriu na perna
esquerda.
Irineu Gomes da Silva – guarda policial daquele dia no distrito –, brasileiro com
vinte e dois anos, solteiro e analfabeto, narrou assim o que teria ocorrido:
[...] estando no serviço de prontidão [...] e chegando ali a comunicação
de um conflito na Estrada do Portela [...] saiu em companhia de um
outro praça e encontrou na rua Portela um indivíduo moço de cor preta
gemendo muito e dizendo-se espancado e ferido na perna esquerda [...]
por um outro de nome Peixoto Guimarães que fora soldado de polícia;
[...] que com efeito em pouco encontrou o indivíduo cujos sinais lhe
haviam sido dados e o chamou a falar.
Quais seriam os “sinais” que caracterizariam a individualidade de Silvério?
Otavio, que pela primeira vez fora identificado como um “moço de cor preta”, seria, a
partir deste momento, alguém cuja referência a uma classificação racial se tornara
constante, e como explicitei no início deste capítulo, racializá-lo o que não lhe estava
restrito, como será visto na próxima seção sobre os as rivalidades entre os grupos
carnavalescos de Madureira se transformou em um mecanismo cada vez mais comum
em sua trajetória de conflitos, tema da parte final deste capítulo. Neste sentido, à medida
que as “histórias criminais” de Otávio desdobravam-se, referir-se a ele como “de cor
preta” cristalizava-se como um atributo indispensável nas narrativas dos moradores.
Ao ser levado à delegacia, Silvério se apresentou novamente como pedreiro,
com vinte e quatro anos, solteiro, e residente na rua Antonio de Abreu, onde havia
morado na época da briga como o francês Edmundo. Defendeu-se da acusação dizendo
que fora provocado por Otávio, quando se encontrava, fazia pouco tempo, em uma
99
venda na rua Portela. Do lado de fora do estabelecimento, Otávio teria o agredido com
uma faca e ele, em resposta, o bateu com um pau. Neste momento, teria tropeçado em
uma vala e caído, possibilitando, então, que fosse desarmado pelo próprio Silvério, que
negou ter o ferido à faca.
Após os depoimentos, a faca encontrada com Silvério, e que conforme o guarda
que a apreendeu estava ainda suja de sangue, foi encaminhada para exame. Na filial do
Gabinete de Identificação e de Estatística daquela mesma delegacia foi aberta uma ficha
de identificação de Joaquim Peixoto Guimarães, na qual foram anotadas as seguintes
informações, bem como as marcas dos polegares do acusado: Joaquim Peixoto
Guimarães filho de Jacinto Peixoto Guimarães e de Maria Francisca da Glória de 24
anos, natural de Irajá, Capital Federal, instrução rudimentar, profissão pedreiro, estado
civil solteiro”. Diferentemente de Otávio, que no exame de corpo de delito teve
novamente a sua cor revelada, a Silvério não se confere este tipo de adscrição.
Alguns dias depois, o diretor do Gabinete de Identificação e Estatística
encaminhou um ofício ao delegado do 23
o
distrito policial, comunicando que nada havia
naquele órgão sobre Joaquim Peixoto Guimarães, e uma nova testemunha foi
convocada. Luiz Antônio da Costa, português com vinte e quatro anos, solteiro, sabendo
ler e escrever, que morava na rua Quinze de Novembro 16, disse que na tarde do dia 22
de fevereiro, passava pela rua Portela quando se deparou com um praça da polícia
subjugando um indivíduo, que depois soube chama-se Joaquim Peixoto Guimarães,
[...] o soldado tinha em seu poder uma faca e disse havê-la tomado
daquele indivíduo; que contou mais a ele depoente que o referido
Guimarães dera uma facada em outro indivíduo de cor preta ao qual não
viu.
Em junho de 1911 a denúncia contra Silvério havia sido definida como
improcedente. Segundo o juiz, as testemunhas ouvidas o guarda Irineu e o português
Luiz Antônio não esclareceram convenientemente o delito argumentado na denúncia,
pois segundo ele, a primeira somente fez repetir o que lhe contaram Otavio e Silvério, e
a segunda o que ouviu do praça policial. Contudo, antes desta decisão, um novo
confronto posicionara Ernani Rosa e Joaquim Peixoto Guimarães em campos opostos
em Madureira.
100
3.3 SOLIDARIEDADES E DIFERENÇAS: AS RIVALIDADES ENTRE OS GRUPOS
CARNAVALESCOS EM MADUREIRA
Nos primeiros anos do século XX, vários grupos localizados nas chamadas áreas
urbanas da cidade e nos subúrbios, solicitavam licença
14
ao chefe de polícia do Distrito
Federal para sair às ruas no Carnaval, bem como para funcionar durante o ano. Em
Madureira, havia os Caprichosos de Madureira, o Sereno de Prata, as Cornetas de
Madureira, os Democráticos de Madureira, a Sociedade Dançante Carnavalesca União
da Floresta e o Grêmio Dançante e Carnavalesco Paz de Madureira, entre outros.
Estas organizações de lazer podem ser vistas como uma forma dos moradores
daquele subúrbio estabelecerem relações mais estreitas, que não necessariamente se
estruturavam através do convívio no trabalho ou da vizinhança simplesmente física.
Também através delas abre-se uma fresta e digo isso porque as informações sobre a
composição social dos grupos são escassas – para se entrever sobre que bases se
estabeleciam solidariedades e confrontos entre os participantes e membros de um
mesmo grupo carnavalesco e deste com outros. De acordo com um jornal local, apesar
de suburbanos, aqueles que residiam em Madureira e procuravam partilhar a mesma
forma de diversão, neste caso aquelas relacionadas às sociedades carnavalescas, não
eram vistos como iguais.
Algumas verdades
É com imenso pesar que vamos tratar do melindroso assunto sem
contudo fazermos referências diretas, esperançosos que os que
reúnem em si os meios de obviar o mal a que nos propomos apontar
isso o farão em benefício próprio ao menos.
[...]
Ultimamente está acontecendo isso nas sociedades localizadas nos
subúrbios onde os indivíduos são admitidos somente com a
recomendação da respectiva importância à mensalidade que
pagam sem o devido escrúpulo, e onde levam muitas vezes,
mulheres de vida alegre [...].
É sabido e notório, que onde se reúnem indivíduos diferentes e
desconhecidos, a liberdade deve ser limitada a bem da ordem, e
nunca ampla porque ela abusarão. (JORNAL SUBURBANO,
Madureira, 1910, p.1)
14
ARQUIVO NACIONAL, Série Justiça, IJ
6
563 (1915) cx 528; IJ
6
564 (1915), cx 528; IJ
6
595 (1916),
cx 553; IJ
6
596 (1916), cx 554; IJ
6
597 (1916) cx 554; IJ
6
648 (1918) cx 598; IJ
6
649 (1918) cx 598; IJ
6
655 (1918) cx 602; IJ
6
693 (1919).
101
Era sábado, 16 de abril de 1911, quando os grupos carnavalescos Sereno de
Prata, Caprichosos de Madureira
15
e Cornetas de Madureira decidiram sair, à noite,
pelas ruas da 6
a
Circunscrição Suburbana para realizar uma “passeiata”. Ao se
encontrarem no largo do Otaviano cujo nome faz referência ao dono daquela venda
que proibiu a doméstica Eulália de fazer compras –, ocorreu uma briga entre os
membros dos grupos, da qual saíram feridos dois integrantes do Sereno de Prata: Juca
Bombacha, que não trabalhava mais como cigarreiro e sim como cozinheiro do navio
Pestroe, cuja residência a esta época não era em Madureira, mas no centro da cidade, na
rua Marquês de Pombal 61, e Leonel Rosa, brasileiro, criado doméstico, morador na
estrada Marechal Rangel número ignorado, ambos identificados como pardos no exame
de corpo de delito, com 27 anos e analfabetos. Mas também Beraldo Afonso da Costa,
membro dos Caprichosos de Madureira, brasileiro, sabendo ler e escrever, também
pardo, operário, 30 anos, cujo endereço era travessa Julio Fragoso 7
A
. Sendo o primeiro
a prestar declarações junto à polícia, Beraldo disse que:
[...] autorizado pela Polícia deste Distrito, esse grupo [Caprichosos de
Madureira] saiu em passeata, com destino ao Rio das Pedras a fim de
encontrar-se com o grupo Corneta de Madureira”, e incorporados
regressaram para a estação de Madureira, que ao chegarem próximo à
respectiva sede que é nas proximidades do largo do Otaviano, surgiu o
Grupo Sereno de Prata, do qual fazem parte José de Almeida, vulgo
Juca Bombacha, Leonel Rosa, conhecido por Otavio, e José Rosa da
Silva, digo Leonel Rosa, Ernani Rosa, conhecido por Otavio, e sem uma
razão justa foi o Grupo Caprichosos de Madureira agredido por esses
indivíduos que se achavam armados de navalha, revólver e cacete,
resultando sair o depoente ferido, sendo o autor do seu ferimento Juca
Bombacha, e originando o conflito para outros também feridos, sabendo
depois que o dito Bombacha também recebeu um ferimento, assim
como Leonel Rosa; que esse conflito foi originado pelos principais
autores: Juca Bombacha, Leonel Rosa, Ernani Rosa e um preto que o
depoente não conhece, e apenas de vista.
José Rosa da Silva, membro do Sereno de Prata, brasileiro, 21 anos, solteiro,
trabalhador, residente na estrada de Inharajá, analfabeto, alegou que:
[...] sabe que o mesmo grupo tem rixa antiga com o Grupo Caprichosos
de Madureira, e depois de uma passeiata, este grupo, ao se aproximar da
sua sede, o grupo Sereno de Prata que também regressava à sua sede, no
largo do Octaviano, encontraram-se na rua Marechal Rangel, e aí surgiu
discussões e estabeleceu-se o conflito, resultando sair feridos: Beraldo
Afonso da Costa, Leonel Rosa, e Jo de Almeida, vulgo Juca
Bombacha; que o depoente soube que o autor do ferimento de Juca
15
ARQUIVO NACIONAL, Série Processos Criminais, Notação 7G1630.
102
Bombacha foi Antonio Beraldo do Nascimento, praça da cavalaria da
Força Policial, sendo o mesmo policial o autor do ferimento de Leonel
Rosa, ignorando, porém, quem feriu a Beraldo Affonso da Costa.
Ernani não disse
.
Na sucessão dos depoimentos, uma das testemunhas que compareceu à delegacia para
prestar declarações sobre o caso foi Joaquim Peixoto Guimarães, o conhecido Silvério. Sócio
e integrante da diretoria do “clube Caprichosos de Madureira, apresentou-se também como
empregado da estrada de ferro Central do Brasil, morador da estrada do Areal 40, com vinte e
cinco anos e casado. Segundo ele, não havia participado da passeata porque no dia do conflito
estava no interior, entretanto, ouvira comentários que Juca Bombacha e Leonel de tal teriam
sido os que “tomaram parte mais saliente”, tendo o primeiro ferido Beraldo com uma
“navalhada” nas costas quando este “procurava defender o seu estandarte”.
Leonel Rosa, que se feriu no conflito assim como Bombacha e Beraldo da Costa,
apresentou-se como o primeiro fundador do Sereno de Prata, e em suas declarações,
produziu a seguinte narrativa:
[...] no bado, quinze do corrente, pelas quatro horas da tarde mais ou
menos, veio a esta delegacia obter a licença para que a sociedade desse
um passeio em zona deste distrito; que ao sair desta delegacia, foi
informado pelo praça Manoel Porfírio da Silva, mero quinhentos e
setenta e cinco da Força Policial de que a Polícia naquela noite ia ter
muito que fazer, pois assim lhe dissera Antonio Beraldo do Nascimento,
também praça da polícia do regimento de cavalaria; que o depoente
sendo sabedor disso, fez ciente ao Comissário que estava de dia e
retirou-se deixando nesta delegacia o referido Antonio Beraldo; às dez
horas da noite desse mesmo dia, saiu então o grupo Sereno de Prata
com destino à estrada de Cascadura de onde regressaram e ao chegar,
depois do largo de Madureira, encontraram-se os grupos: Sereno de
Prata com os Caprichosos de Madureira e como o depoente que
conduzia a Bandeira de sua Sociedade não cumprimentou o grupo
Caprichosos de Madureira, o presidente deste grupo a quem o depoente
só conhece de vista, agarrou o depoente pelo braço em atitude agressiva
e nesse ínterim o depoente recebeu uma cacetada na cabeça, vibrada por
Antonio Beraldo do Nascimento, que faz parte do grupo Caprichosos de
Madureira; [...] não sabia quem havia ferido Beraldo Affonso da Costa e
José de Almeida, vulgo Juca Bombacha, porque recebendo a pancada
perdeu os sentidos.
Juca Bombacha, em suas declarações, confirmou que o encontro entre o Sereno
de Prata, os Caprichosos de Madureira e a sociedade carnavalesca Cornetas de
Madureira se deu no largo do Otaviano. Contudo, ressaltou que o conflito já era
esperado.
103
[...] de regresso à respectiva sede [...] apareceram os grupos
Caprichosos de Madureira e Cornetas de Madureira, os quais estavam
de comum acordo e premeditados para agredirem o grupo Sereno de
Prata, que essa agressão ainda não tinha se realizado porque não havia
se oferecido ocasião, e no sábado então, havendo esse encontro, foi o
pessoal do grupo Sereno de Prata, agredido pelos referidos grupos[...],
que o depoente não pode dar explicação a este respeito, porque recebeu
uma cacetada vibrada por Beraldo Afonso de Costa, que faz parte do
grupo Caprichosos de Madureira, recebendo logo após uma navalhada,
não sabendo por quem, pois a confusão era enorme; que o pessoal do
grupo Cornetas de Madureira, também tomou parte ativa no conflito,
pois tempos que estava de pleno acordo com o pessoal do grupo
Caprichosos de Madureira para [promoverem] contra o grupo Sereno de
Prata, uma agressão logo que se oferecesse oportunidade; que quanto
aos demais feridos nada poder referir, porque perdeu os sentidos quando
recebeu a primeira cacetada.
No decorrer das declarações que foram sendo recolhidas em dias distintos, o
delegado solicita o comparecimento de Antonio Beraldo, o praça policial cujo
envolvimento no conflito era sempre citado. Dando continuidade aos depoimentos, José
Figueiredo Cardoso português, com cinqüenta e nove anos, casado, empregado na
Imprensa Nacional e morador na rua Carolina Machado 118, sabendo ler e escrever –,
membro dos Caprichosos de Madureira foi ouvido.
[...] foi em companhia de outras pessoas que fazem parte do grupo
carnavalesco Caprichosos de Madureira, cumprimentar o grupo dos
Cornetas com sede a travessa Portela, que cerca de onze horas da noite
quando passavam pela estrada de Irajá, surgiu pela frente o grupo
Sereno de Prata que se achava emboscado no centro de um matagal,
tendo as suas lanternas apagadas, que nessa ocasião, ele depoente viu
reluzir no espaço as lâminas de duas navalhas, não podendo reconhecer
os indivíduos que empenhavam as ditas navalhas, que a [sic] de um seu
filho menor que também fazia parte dos Caprichosos, avançou com
outros em companhia para a frente, ouvindo nessa ocasião as seguintes
palavras, proferidas pelo pessoal do grupo Sereno de Prata: “Já estão
com medo” que nesse momento travou-se então um conflito entre os
dois grupos, não sabendo porém o depoente o que se passou por se
achar a certa distância, pois retirava-se, para não ser cortado, que no
dia seguinte é que soube haver gente ferida no conflito por ter lido nos
jornais.
No dia seguinte a este depoimento, Antonio Beraldo apresentou a sua narrativa.
Natural do Ceae com vinte e três anos, era solteiro, disse saber ler e escrever, ser
praça da Cavalaria da Força Policial e morar na travessa Julio Fragoso 7
A
, o mesmo
endereço declarado pelo operário Beraldo Afonso. Além disso,
104
[...] já fez parte do grupo Caprichosos de Madureira, tendo deste pedido
exoneração na qualidade de primeiro secretário, por ter assentado praça
na Força Policial, que no sábado [...] tendo ciência que o grupo
Caprichosos de Madureira ia sair em passeiata, o depoente resolveu
acompanhá-la, tendo esta sociedade saído da respectiva sede até a sede
da Sociedade Cornetas de Madureira, de onde sendo incorporados
seguiram até digo saíram com destino à venda do “Velho”, de
propriedade de João Octaviano da Cunha, situada à estrada Marechal
Rangel; que nesse ponto as duas sociedades encontraram o grupo
Sereno de Prata, que se acha nas proximidades desta venda, com os
focos apagados; que vista a atitude daquele grupo, os dois [Caprichosos
e Cornetas de Madureira] recuaram um pouco e nisto foram agredidos a
navalha, pau e revólver pelo grupo Sereno de Prata; que resultou dessa
agressão sair ferido Beraldo Afonso da Costa, que recebeu uma
navalhada nas costas; que quanto aos demais feridos não sabe de nada;
que esse conflito foi originado exclusivamente por Juca Bombacha,
Leonel Rosa e outro do mesmo grupo; que Beraldo Afonso foi ferido
pelo desordeiro Juca Bombacha; que no dia seguinte, domingo, Ernani
Rosa, vulgo moleque Otávio, dissera a diversos indivíduos que no
conflito não matou dois ou três, porque se esquecera de comprar balas
para seu revólver, o que tencionou fazer antes de sair a passeata.
Um dos últimos a se encaminhar à delegacia, Ernani Rosa, o moleque Otávio,
revelou em seu depoimento que o operário ferido Beraldo Afonso era irmão de Antonio
Beraldo, o praça da polícia acusado de agredir com uma navalha Juca Bombacha. Neste
momento, Otávio apresentou-se como estivador e morador na travessa Portela número
ignorado, bem como sócio do Sereno de Prata, desde que foi fundado com o nome de
“Pombeiros de Ouro”. Companheiro de Juca Bombacha pelo menos sete anos, ao se
considerar a contenda na venda de Candido Daval, em 1904, Otávio disse ter vinte e três
anos e, diferentemente daquele, continuava morando em Madureira, no entanto, não
mais trabalhava. Decorrido este tempo, deixou de se ocupar como carroceiro, pois se
apresentou como estivador, provavelmente partilhando um âmbito de trabalho comum
com Bombacha, que era cozinheiro de um navio.
Este, contudo, não foi o único embate entre grupos carnavalescos locais. Era
março de 1916, acabara de transcorrer o carnaval e chovia muito. Várias ruas foram
inundadas nos subúrbios, particularmente nas localidades correspondentes ao 23
o
distrito policial
16
. Dentro das casas móveis foram arrastados pela força das águas e
muitos morados se viram em apuros. Ao mesmo tempo em que na delegacia chegavam
pedidos de socorro, iam sendo encaminhadas igualmente reclamações de que
“desordens” e “roubos” eram realizados. De acordo com o delegado,
16
Arquivo Nacional, IJ
6
595 (1916), cx 553, Autoridades Militares. Comunicado do delegado do 23
o
distrito policial ao 3
o
delegado auxiliar, 8 de março de 1916.
105
[...] grupos de desordeiros e ladrões, que, aboletados nos botequins e
armazéns provocaram desordens e assaltaram transeuntes. Quanto ao
socorro às vítimas da inundação apenas se pôde enviar patrulhas de
cavalaria para auxílio no que fosse possível, visto não dispormos de
outros recursos.
Quanto à vagabundagem, saiu o comissário Falcão com uma força de
seis praças e, atravessando as ruas com água pela cintura dispersou os
vagabundos. Como alguns proprietários de botequins estivessem
mancomunados com os vagabundos, aguardando-lhes as armas,
determinei que fechassem as portas. Foi uma providência salutar porque
os desordeiros cessaram e o resto da noite correu calmamente.
Um dos “grupos de desordeiros” a que faz menção o texto era constituído pelos
membros do Sereno de Prata. Continuando a informar um dos responsáveis pela chefia
da Polícia da cidade, o 3
o
delegado auxiliar, Abelardo Wenceslau da Silva narra que por
volta das seis horas da noite aquele grupo havia assaltado, portando revólver e atirando,
o botequim de Aristides Galvão, no largo do Otaviano. estariam presentes sócios da
sociedade carnavalesca Paz de Madureira. Ainda segundo o delegado, o motivo do
confronto teriam sido rivalidades”, e neste feriram-se Ernani Rosa da Silva e Albino
Rodrigues Teixeira.
Após a confusão no botequim, aqueles que pertenciam ao grupo Paz de
Madureira teriam se encaminhado à sede do Sereno de Prata, e ali chegando,
“arrombaram as portas, invadiram a casa e espatifaram os móveis e utensílios”. Um
sócio que se encontrava no interior da casa, Antônio Tomás, teria sido agredido,
recebendo tiros e cacetadas dos “assaltantes”. Quando o comissário Falcão
acompanhado de seis praças da polícia chegou ao local, trataram de remover os feridos
para assistência médica. Ao final deste relato referente aos acontecimentos do dia
anterior, o delegado Wenceslau estava convicto:
Um dos principais autores do conflito, foi o indivíduo de nome Eusébio
Rosa. Foram recolhidos ao xadrez alguns membros do Sereno de Prata
que deram os seguintes nomes: João de Seda, residente na travessa
Portela n
o
523 (presidente do Sereno de Prata), Joaquim Pacheco,
residente na estrada Marechal Rangel n
o
693, Francisco de Souza,
residente na travessa Portela n
o
523. O desordeiro Eusébio Rosa e sua
amante que também tomou parte importante no conflito numa rua nova,
à estrada do Portela.
Depois do encaminhamento deste comunicado a uma instância superior da
Polícia, às dez horas da manhã, através de um telegrama, o citado comissário Falcão é
106
suspenso de seu cargo por tempo indeterminado pelo 2
o
delegado auxiliar. O delegado
do 23
o
distrito tece então um comentário sobre a notícia que acabara de receber:
Este telegrama não me surpreendeu, pois ao amanhecer, vários
proprietários de botequins, prejudicados contra a ação do comissário
Falcão contra os ladrões e vagabundos, haviam espalhado que o mesmo
seria suspenso, em vista de suas reclamações ao senhor 2
o
Delegado
Auxiliar.
Por causa da confusão entre as sociedades carnavalescas no largo do Otaviano,
alguns membros do Sereno de Prata foram procurados pela polícia e levados à
delegacia. O primeiro a depor, no dia seguinte à confusão, foi João Seda
17
, presidente do
“cordão carnavalesco” Sereno de Prata. Italiano, analfabeto, com trinta e seis anos e
casado, trabalhava como cocheiro dos bondes de Irajá e disse morar no endereço acima
número 523. Segundo Seda, a sede do cordão era em sua própria casa, e ali os ensaios
para o carnaval ganhavam lugar. Nos dias do festejo, em função das chuvas, o Sereno de
Prata não teria saído às ruas para realizar seus desfiles, e as festas foram feitas em sua
residência mesmo. Ainda segundo Seda,
[...] às quatro horas da tarde [...] foi para o trabalho e quando estava
tirando areia dos trilhos perto da Estação de Magno ouviu que no Largo
do Otaviano havia um barulho, tendo havido um tiroteio; que cerca das
oito para nove horas da noite, ao chegar à sua casa, foi preso por um
comissário de polícia que o prendeu e trouxe para a delegacia; que
ouviu dizer que do tal barulho, que se deu no botequim do Aristides,
foram baleados dois indivíduos dos quais [...] não conhece, não sabendo
também qual o motivo do conflito.
Joaquim Pacheco, primeiro secretário do Sereno de Prata, era brasileiro e tinha
vinte e um anos. Morador da estrada do Marechal Rangel n
o
693, sabia ler e escrever e
disse trabalhar em café. Assim como o cocheiro italiano, afirmou que o cordão o
havia saído às ruas nos dias de carnaval por causa das chuvas. Segundo ele, havia sido
preso à noite no largo do Otaviano, e apenas na delegacia soube que a razão de tal ão
estava fundada no conflito entre sócios do clube Paz de Madureira e do cordão Sereno
de Prata no botequim de Aristides, “[...] mas entre Ernani Rosa, Eusébio Rosa, sócios
do Sereno de Prata com outros que [...] não conhece”. Francisco de Souza, também
membro do cordão, provavelmente era cunhado do italiano Seda, posto que narrou o
seguinte: ao chegar em casa, na travessa Portela 523 endereço que o delegado
Abelardo anotou ao referir-se a Seda no comunicado ao delegado auxiliar por volta
17
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721742.
107
das nove horas da noite, sua irmã, Carola de Seda lhe contou sobre o conflito entre os
sócios dos cordões Sereno de Prata e Paz de Madureira, e nesta ocasião foi preso e
conduzido ao distrito policial. Com vinte e cinco anos, era brasileiro, solteiro e
trabalhava como bombeiro hidráulico.
Uma semana após este caso, Abílio Rodrigues Teixeira, um dos feridos, prestou
depoimento. Encaminhado ao exame de corpo de delito, foi identificado como “pardo”,
e nesta ocasião declarou que fora atingido “no dia sete, à tarde, casualmente [...] por um
tiro disparado por um conhecido contra terceiro”. Brasileiro, com vinte anos, sabendo
ler e escrever, casado, operário, Abílio morava na estrada Marechal Rangel 664.
Conforme sua versão, no último dia de Carnaval, entre seis e sete horas da tarde, estava
no botequim cujo proprietário era Aristides de tal, no largo do Otaviano, e ali teria visto
“[...] muitos indivíduos aos quais não conhece a todos, mas sabe serem sócios do cordão
carnavalesco Sereno de Prata e Paz de Madureira, em animada conversa dois que dentre
esses indivíduos estava o de nome Eusébio, preto que entrou a discutir com [sic] Gomes
Figueiredo; que ele sendo [sic] o declarante viu Eusébio sacar de uma arma de fogo e
desfechar um tiro contra [sic], indo o projétil atingir o declarante na coxa; que sentido-
se ferido [...] fugiu ouvindo tiros, mas não sabe quem os disparou”.
Em 1917, Aristides Medeiros Galvão é chamado a prestar declarações. Um ano
havia transcorrido, e o inquérito parece não ter ido adiante. Em fevereiro de 1918, foi
arquivado porque, segundo o juiz, não haveria base para qualquer procedimento contra
quem quer que fosse. Otávio, que foi submetido ao corpo de delito poucos dias após o
confronto tendo se apresentado como estivador, solteiro, com vinte anos e morador
em Rio das Pedras – foi novamente identificado como “preto”. Ferido por um projétil na
face lateral direita do pescoço, conforme o parecer do dico, estaria “em boas
condições”, contudo, não foi encontrado pelo oficial de justiça quando da audiência.
Outro nome mencionado pelo funcionário do judiciário foi de um certo “Sebastião de
tal”, que fora empregado do negociante Aristides e poderia dar informações sobre a
briga entre os grupos carnavalescos. Segundo a narrativa do dono do botequim, que
morava na rua Marechal Rangel 8, era brasileiro, casado, sabia ler e escrever,
[...] quando se deu um conflito no botequim que [...] tinha, no Largo do
Otaviano, não se achava ali nada sabendo por isso de fato; que no dia
seguinte de manhã é que soube do conflito, mas o seu empregado, de
nome Sebastião e que atualmente está em lugar ignorado lhe [sic] que
um grupo de mascarados é que havia provocado o conflito, mão
sabendo ele o nome dos turbulentos.
108
3.4 “DESORDEIRO, TRABALHADOR E PRETO”: OS VESTÍGIOS DE UMA
HISTÓRIA
Em fevereiro de 1913, o inquérito relativo ao confronto entre os grupos Sereno
de Prata, Caprichosos de Madureira e Cornetas de Madureira ainda não tinha chegado
ao fim a sentença final arquivando a denúncia contra Juca Bombacha e Antônio
Beraldo, os únicos indiciados, fora decidida em 1919 –, quando Otávio
18
se viu
novamente às voltas com a polícia. Ainda residindo na travessa Portela em uma casa
sem número, dizendo-se trabalhador do Lloyd, Otávio disparara tiros contra João
Venâncio de Barros, ferindo-o na perna, devido a um desentendimento com sua ex-
amásia, Carlinda Maria de Oliveira. João Venâncio, ao ser encaminhado para o exame
de corpo de delito, foi identificado como pardo”. Com vinte e seis anos de idade, era
solteiro, disse trabalhar como fundidor e morar na travessa Portela 25, além de saber ler
e escrever. Carlinda nascera no interior do estado do Rio de Janeiro, tinha vinte e quatro
anos, afirmou ser casada e morar, naquele momento, de favor na casa de uma amiga.
Conforme ela, ao anoitecer dois dias anteriores ao do seu depoimento havia se
dirigido a uma venda que ficava próxima à casa em que estava morando para fazer uma
compra. teria encontrado Otávio, seu ex-amásio, que queria então acompanhá-la.
Carlinda havia recusado
[...]
alegando estar morando por obséquio em casa de uma sua
companheira; que mesmo assim Otávio lhe acompanhou e ao chegar na
casa, disse que lhe atirava e mostrou um revólver disparando um tiro
que não a ofendeu; que findo isso Otávio pediu desculpas as pessoas ali
presentes e se retirou, indo para a venda; que ainda estava naquela casa,
Otávio empunhando a arma diria que atirava em qualquer um, pelo que
sua vizinha Zulmira gritou por socorro, aparecendo João Venâncio de
Barros, a quem ela pediu que acudisse Carlinda; que depois de haver se
retirado Otávio, levado por João, voltou este chamando Carlinda para ir
à venda; que diria João que a chamava a mando do mesmo Otávio, e
acompanhando-o a declarante, ao chegar a venda foi recebida a
bofetadas pelo mesmo Otávio, isso depois de haver dito João que a
havia trazido, apesar de duvidar disso o mencionado Otávio; que tendo
caído a declarante e quando se retirava do local, de gatinhos, Otávio
mandou que João corresse e fosse embora, senão lhe atirava, e como
este não saísse do lugar, Otávio desfechou um tiro, que feriu a João.
João Venâncio disse que se encontrava na sua casa, quando viu Otávio “de
revólver em punho para matar sua amásia Carlinda”. Não fez referência, por outro lado,
ao fato de que após ter retirado Otávio e se encaminhado com ele à venda na mesma
18
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 720707.
109
rua, retornou à avenida solicitando que ela o acompanhasse a pedido deste, em relação a
quem, conforme suas declarações, não tinha inimizade nem nunca havia discutido, pois
o conhecia há apenas dois meses.
Carlinda residia em uma avenida na qual moravam outras mulheres, que foram
chamados a depor como testemunhas. Estas eram Maria Francisca da Conceição, que
permitiu que aquela ficasse em sua casa, e Zulmira Maria Reis. A primeira, como
Carlinda, era natural do estado do Rio de Janeiro, tinha vinte sete anos e disse ser
casada. Afirmou que estava em casa amamentando sua filha quando surgiu Carlinda,
com o açúcar que fora comprar, a comunicando que Otávio também estava na avenida.
Maria Francisca
[...] sabendo que este mesmo indivíduo havia sido amásio da mesma,
respondeu não o querer ali, porque havia dado agasalho a ela, mas não
ao amásio; que Carlinda ficou do lado de fora conversando com Otávio
e pediu a este para se retirar quando o mesmo zangando desfechou um
tiro, saindo em seguida, para momentos depois voltar, pedindo
desculpas às moradoras daquela avenida; que na ocasião em que foi
desfechado o tiro, outra vizinha de nome Zulmira, gritou por socorro,
apareceu João Venâncio de Barros, que conseguiu retirar Otávio; que
algum tempo depois, tornou aparecer João pedindo para que fosse a
referida Carlinda até a venda, onde se achava Otávio e quando lá
chegou foi Carlinda recebida com uma bofetada, caindo no chão; que
Otávio dera uma bofetada por ter se aborrecido com o fato de haver sua
ex-amásia acompanhado João, tendo aquele dito que duvidava que este
conseguisse levar aquela; que em seguida à bofetada o mesmo Otávio
sacou do revólver e desfechou-o contra João, com quem estava
aborrecido, ferindo-o; que o fato passado na casa [de negócio] não foi
assistido pela declarante, que dele sabe por ouvir dizer da mencionada
Carlinda.
Zulmira também tinha vinte e sete anos, era solteira e havia nascido na Bahia.
Teria visto Carlinda e Otávio conversando no terreiro, e após o disparo chamou por
João Venâncio no sentido de ajudar a primeira.
[...] após haver se retirado Otávio em seguida ao tiro dado em Carlinda,
voltou e pediu desculpas e depois sacando novamente o revólver, o
girava no ar, ameaçando dar tiro em qualquer pessoa que se
aproximasse.
Passaram-se três dias até que Otávio manifestasse sua versão. Na delegacia
procurou se desvencilhar da acusação de ter atirado em João Venâncio, assim como da
ida à casa em que Carlinda estava residindo. Segundo ele, estava em próximo a uma
árvore na estrada, nos arredores da venda do “Neco”, quando ouviu muitos tiros, sem
saber quem os havia disparado. Em seguida, um rapaz que sabia chamar-se João
110
Venâncio de Barros, dizendo-se ferido e imputando-lhe a autoria do crime, o convidou
para ir à delegacia. Sob a alegação de Otávio de que era inocente, João Venâncio teria
concordado em confirmar isto. Otávio então o acompanhou e
[...]
aqui chegando, João o acusou novamente; tem a declarar que não
foi quem disparou os tiros, não sendo também certo que houvesse
chegado na casa onde mora Carlinda, sua ex-amásia.
Daniel Antônio Viana Junior, após alguns dias do depoimento de Otávio, foi
chamado a realizar um auto de declarações como testemunha. Nele afirmou ter visto o
acusado atirar contra João Venâncio, ferindo-o na perna, além de ter sido uma das
pessoas que intervieram no sentido de pôr fim à agressão. Ao final das declarações disse
ainda poder afirmar que Otávio era “desordeiro”.
Ao longo de 1913 vários mandados de intimação foram sendo expedidos, e de
modo alternado, Otávio e as testemunhas não eram encontrados pelo oficial de justiça
para comparecerem às sessões judiciais. Em setembro de 1914
19
, outras testemunhas
foram convocadas. Estas eram Nilo Eduardo Moreira Maia, Porfírio José dos Santos e
João Ribeiro Maltez, no entanto, apenas o último compareceu à primeira sessão,
realizada em fevereiro de 1915. Maltez era brasileiro, casado e tinha quarenta e quatro
anos. Construtor, morava na rua Maria Freitas, em Madureira. Afirmou que não havia
presenciado o “fato criminoso imputado ao acusado Otávio Rosa apenas assistiu este
confessar na delegacia [...] de que havia de fato agredido e ferido ao indivíduo na
denúncia, [...]”, e ainda segundo este, “[...] esse preto nada mais disse”. Frente a isto, o
juiz responsável pelo caso expede outro mandado no qual intima que Nilo Eduardo e
Porfírio José apresentem-se nem que fosse sob a “condução debaixo de vara”. Em
março de 1915, Nilo comparece à audiência e declara não se recordar do fato narrado na
denúncia e imputado a Otávio. Brasileiro, tinha vinte e seis anos, trabalhava no
comércio e morava na rua João Vicente 13.
A denúncia então é julgada improcedente, sob a justificativa de que os elementos
da prova eram os depoimentos das testemunhas do sumário (audiências) e estas não
teriam dito nada em relação ao “fato criminoso”. Vale ressaltar, contudo, que ainda que
a formação de culpa produzida pelo delegado destacasse os disparos e o ferimento que
Otávio realizou contra João Venâncio como motivo da denúncia, o juiz, em sua
sentença, salienta que a acusação estaria fundada nos disparos contra Carlinda, e em
19
Arquivo Nacional, Processos Criminais, Notação 721191.
111
seus supostos ferimentos o que não foi mencionado no desenvolvimento do processo
criminal.
O fato de Daniel Antônio ter ratificado a denúncia que fora feita contra Otávio
acabou gerando-lhe alguns problemas em relação a este. Pouco menos de duas semanas
do desentendimento com Carlinda e da agressão em João Venâncio, Daniel – que havia
nascido no estado do Rio de Janeiro, trabalhava como carroceiro e também morava na
travessa Portela sem número afirmou na delegacia que Otávio teria se tornado seu
“inimigo”
[...] por julgar ter sido ele quem ficara com uma navalha com que
aquele tentava assassinar poucos dias antes, [...] a João Venâncio de
Barros, quando o declarante interveio para livrar o agredido; que hoje
pelas oito horas da noite, chegando à casa de negócio de Manoel
Ferreira da Silva, na referida travessa número doze, viu ali seu desafeto
e como soubesse que se achava pediu a Sebastião de tal, companheiro
de Otávio, que o desarmasse, enquanto ele dormia ou fingia fazê-lo; que
Sebastião tirou a arma, entregando-a ao declarante, que atirou fora as
cápsulas, restituindo a arma a Sebastião; que Otávio, levantando-se do
lugar onde se achava, tomou a arma do poder de Sebastião, saiu e
voltou pouco depois com o revólver carregado de novo, provocando o
declarante e fazendo-lhe fogo; que da agressão ficou ficar ferido no
rosto por um projétil [...]
O proprietário da venda, conhecido como Neco” que se chamava Manoel
Ferreira da Silva –, foi também chamado a prestar declarações sobre o que havia se
passado em seu estabelecimento na noite do dia vinte de fevereiro. Manoel, natural do
Distrito Federal, apresentou-se como negociante, solteiro, com trinta e um anos, e assim
como os outros, residia na travessa Portela 14. Segundo ele,
[...] apareceu em sua casa de negócio, no número doze da referida
travessa um rapaz de cor preta, conhecido por Otávio Rosa, cujo
verdadeiro nome ouviu dizer chama-se Ernani, armado de revólver e
provocando a Daniel Antonio Viana Júnior; que sabendo ser Otávio
capaz de fazer fogo contra o provocado, por ser Otávio desordeiro e
ter agredido a revólver outras pessoas, pelo que esteve preso nesta
delegacia, mandou retirarem-se as pessoas que estavam em seu
estabelecimento e fechou as portas, vindo para fora, espiando do quintal
e observando que Otávio sacando um revólver fez fogo contra Daniel
ferindo-o no rosto do lado esquerdo; que algumas pessoas ali presentes
intervieram não consentindo a continuação da agressão, retirando-se o
agressor; que depois ouviu dizer que do lado de fora, antes do fato [...],
havia sido tirado o revólver do poder do acusado, e, que sendo-lhe
novamente entregue sem as cápsulas, ele fora em casa e carregara-o de
novo indo [sic] agredir Daniel.
112
Sebastião Pedro de Sousa, que foi apontado por Daniel Viana como
companheiro de Otávio, havia nascido no Distrito Federal, tinha vinte e um anos, não
sabia ler nem escrever e também residia na travessa Portela. No distrito policial
confirmou a versão do ferido, fez referência ao fato de que “[...] o mesmo acusado
poucos dias antes ter tentado assassinar, armado de revólver, a outro indivíduo de nome
João Venâncio de Barros, desfechando-lhe tiros”, e informou ainda que não sabia para
onde Otávio havia ido.
Em maio do mesmo ano, 1913, três testemunhas depuseram sobre o caso, todas
residentes na travessa Portela. Franklin Antônio Pereira vinte e cinco anos, casado,
pedreiro, nascido no Distrito Federal – disse que ao chegar na venda do Neco ouviu dois
tiros ao mesmo tempo em que viu Otávio sair do estabelecimento, em direção à rua,
questionando acerca da valentia de alguém que estava na varanda da casa de negócio;
em seguida, encontrou Daniel Viana ferido no rosto. José Pedro de Souza, que tinha
dezesseis anos de idade, era solteiro, também nascido na capital do país, apresentou-se
como trabalhador braçal. Conforme sua narrativa, também estava na venda e ouviu uma
discussão entre Otávio e Daniel “[...] quando este disse uma coisa que o declarante não
percebeu o que fosse, o referido Otávio sacou de um revólver, dando dois tiros em
Daniel, sendo o segundo quando este corria; que aparecendo o dono da venda, do lado
de fora, o agressor fugiu, sendo que Daniel ficou ferido no rosto”. O último a falar,
Getulino Alves dos Santos, assim como José Pedro, realizava trabalhos braçais, tinha
vinte e nove anos de idade, era casado, e havia nascido no estado do Ceará. Segundo
ele, “[...] ao receber os tiros o ofendido declarou estar ferido e aparecendo o dono da
casa, o acusado foi se retirando, dizendo ainda: ‘Tu não és valente?’”.Getulino disse
ainda que então se aproximou de Daniel e viu que o ferimento era “superficial”, um
pouco abaixo da orelha.
Oito meses após o encaminhamento da denúncia de Daniel e dos depoimentos
que se seguiram, Otávio foi preso no 23
o
distrito policial. Apresentou-se como Ernani
Rosa da Silva, com vinte e cinco anos, solteiro, natural do Distrito Federal, empregado
da Companhia Lloyd e com endereço de moradia na rua Carolina Machado número 306
antigo. Em sua versão confirmou que esteve na venda do Neco, na travessa Portela,
quando lá chegou “[...] o indivíduo a quem conhece por Antônio Daniel, mas que agora
sabe chamar-se Daniel Antônio de Almeida Júnior, começando a discutir com o
declarante, e dizendo que o declarante estava armado, que informou estar com um
113
revólver, porque no caminho havia cachorros bravios; que Daniel sacou de uma faca e
investiu para o declarante pelo que o declarante desfechou-lhe um tiro e correu; que no
dia seguinte foi para Ribeirão da Lage, onde trabalhava, ali se demorou cerca de um
mês, não sabendo se feriu Daniel”.
Como Daniel Viana não foi conduzido pelas autoridades da polícia para a
realização do corpo de delito, uma prática burocrática rotineira em situações de ofensas
físicas e que neste caso não foi realizada, em maio de 1915, Otávio acabou sendo
absolvido pelo juiz cuja alegação fora justamente a inexistência do exame que
comprovasse a agressão que aquele havia sofrido.
Neste espaço de tempo, contudo, um outro evento criminal” reunira Otávio,
Daniel Viana e José Pedro de Souza
20
, novamente em torno da venda do “Neco”. Agora,
no entanto, de testemunha o último tornou-se acusado e acabou sendo indiciado, ao lado
de Manoel Antonio de Oliveira, por furto. De acordo com o representante do Ministério
Público,
[...] os nacionais Manoel Antônio de Oliveira, com vinte e um anos de
idade, solteiro, sem ocupação, residente à travessa Portela n
o
14 e José
Pedro de Souza, com vinte anos de idade, solteiro, sem profissão
conhecida, residente no local situado, por terem, a 10 de junho [de
1914], pelas dezessete horas e meia, mais ou menos, na casa 12 da
travessa referida, furtado da caixa sic do turco João José Boeira, várias
fazendas [..], os vulgos, “Repugnado” e “José Congo”.
José João Boeira era mascate e também vivia na travessa Portela, no número 31
Nascido na Turquia, tinha trinta e um anos, era casado e analfabeto. Segundo suas
declarações, estava vendendo fazendas no número doze da mesma rua, à esposa de
Neco Manoel Ferreira da Silva, o proprietário da citada casa de negócio –, e ao
entrar na venda para entregar-lhe botões que comprara, foi furtado. As mercadorias
eram morim e chita. Quando saiu do estabelecimento, Boeira percebeu que faltavam
alguns metros de fazendas da sua caixa, e então perguntou a Ernani Rosa (Otávio) e
Daniel Viana, que estavam na rua em frente ao local, se sabiam o que havia se passado,
e estes informaram-no que José Pedro de Souza e Manoel Antônio de Oliveira eram os
autores do furto. Boeira resolveu procurá-los, até que, cinco dias depois, os encontrou
com o auxílio de um soldado.
20
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721266.
114
Diferentemente dos outros processos pesquisados, neste, a adscrição de cor
manifestou-se como uma constante, sendo atribuída a cada um dos envolvidos direta ou
indiretamente no caso. Além disto, uma outra singularidade, em termos dos
procedimentos administrativos que fundam a fonte documental com a qual estou
dialogando, marca a captura da vida social segundo os documentos da polícia: mesmo
não tendo sofrido nenhuma agressão corporal (o que daria margem para a realização do
exame de corpo de delito no qual atributos físicos seriam descritos juntamente com
informações civis), Boeira ao ser identificado, foi classificado pelas autoridades
policiais como “branco”, o que aparentemente não se justificaria.
No dia seguinte ao do depoimento do mascate Boeira, Otávio iria à delegacia,
sob a condição de testemunha, e mesmo assim sua cor passa a ser novamente revelada.
Seguindo o auto de declarações de Otávio produzido em função das perguntas do
delegado do 23
o
distrito, manifestou-se uma versão um pouco diferente da de Boeira,
porém manteve-se a afirmação sobre a responsabilidade do furto.
[...]
compareceu Ernani Rosa, de cor preta, com vinte e seis anos,
solteiro, analfabeto, trabalhador braçal, natural do Distrito Federal e
morador na travessa Portela casa sem mero e disse que no dia da
semana passada, não se recordando o dia certo, mas que uns seis
dias, mais ou menos, achava-se na venda de Manoel Ferreira da Silva,
na travessa Portela, fazendo umas compras, quando ali entraram José
Pedro de Souza e Manoel Antônio de Oliveira e puseram a conversar os
dois; que este último disse o seguinte a Pedro: << Pedro, vamos fazer o
trabalho?>> e Pedro respondeu: << não vou porque depois você me põe
na enrascada, e por isso não vou>>; que também nessa ocasião estavam
na venda o turco João, não sabendo o sobrenome, e Daniel Antônio
Viana, estes dois caçoavam abraçados um ao outro e conversavam
também; que após a conversa de Pedro e Antônio de Oliveira, estes dois
saíram para fora da venda, desaparecendo logo depois; que o turco João,
saindo para o lado de fora, e verificando ter sido roubado em alguns
metros de fazenda e dirigindo-se ao declarante, perguntou se havia visto
quem roubou a sua mercadoria, respondendo o declarante que não pois
se houvesse visto teria lhe dito imediatamente; que o turco então
perguntou ao declarante onde estava Viana Júnior que havia saído
também naquela ocasião, respondendo ainda, o declarante que Viana
tinha saído mas que morava pouco adiante e apontou a direção da casa.
´
Ainda conforme Otávio, à noite, depois de algumas horas, teria saído de sua casa
e retornado à venda do Neco, quando, na esquina da rua Domingos Fernandes com a
travessa Portela, viu José Pedro e Manoel Antônio “[...] aos fundos da venda, [...]
discuti[rem]am, tendo nas mãos um pouco de morim e outro tanto de chita, e cada qual
queria escolher para si a melhor”. Frente a isso, Otávio teria lhes perguntado “<<Vocês
115
roubaram a fazenda do turco? Eu vou contar a ele>>, ao que eles responderam que não,
que aquela fazenda eles haviam comprado para fazer camisa e ceroulas”.
Ao encontrar no dia seguinte Daniel Viana, Otávio falou o que havia acontecido
na noite anterior, o que resultou na decisão do primeiro ir contar o que soube ao
mascate. Daniel, em seu auto de declarações, foi identificado como “de cor preta”.
Assim como Otávio, mesmo tendo comparecido como testemunha, conferiram-lhe, na
delegacia, uma classificação racial, procedimento pouco usual quando o se tratava de
acusados e/ou ofendidos fisicamente. Contudo, destaco ainda que foi em relação ao
mesmo Daniel na contenda com Otávio surgida do desdobramento daquele
desentendimento com Carlinda que o se realizou o exame de corpo de delito cuja
inexistência naquele processo foi utilizada pelo juiz como justificativa para absolver
Otávio. Com vinte e quatro anos e trabalhando agora como pedreiro e não mais como
carroceiro, mantendo o endereço de moradia, travessa Portela sem número, Daniel
destacara em sua versão que estava distraído, brincando com Boeira na venda, só
sabendo do furto no dia seguinte, em conversa com Otávio, que lhe falara da
desconfiança do mascaste.
[...] estava na venda de [...] “Neco”, [...], quando ali entrou o turco João,
mascate ambulante de fazenda; que este turco é conhecido e tem por
costume brincar com o declarante; que nesta ocasião estavam também
na venda os indivíduos Pedro de Souza e Antônio de Oliveira e Ernani
Rosa, este último fazendo compras, e aqueles dois encostados em um
canto, conversando, não ouvindo o declarante o que conversavam,
porque estava um pouco retirado e distraído com a brincadeira do turco
João; que algum tempo depois, saiu o declarante para sua casa; que no
dia seguinte encontrando-se com Ernani Rosa, este lhe disse que fosse
procurar o turco e conversasse com ele, pois o turco estava desconfiado
que era o declarante que tinha roubado a sua fazenda; que o declarante
ignorando esse fato, perguntou a Ernani que história era essa, contando
Ernani então o fato; [...] que o declarante procurou o turco e cientificou-
lhe do ocorrido; que assim fez e [...] com o auxílio de um praça
prenderam Pedro de Souza e Antônio de Oliveira, em um botequim da
travessa Portela, conduzindo-os a esta delegacia onde o turco João
apresentou queixa ao comissário.
Ao serem conduzidos à delegacia, Manoel Antônio de Oliveira e José Pedro de
Souza, conhecido também como “José Congo”, confessaram que eram os responsáveis
pelo furto. Manoel, em seu auto de confissão, disse que já havia sido empregado da casa
de negócio de Neco”, mas que naquele momento se achava desempregado, “[...] não
tendo meio algum em que ganhe [ganhasse] a vida”.
116
[...] que na sexta-feira última [...], estava dentro da referida casa de
negócio em brincadeira com outros companheiros, quando pelas
dezessete e meia horas ali aparece um turco vendendo fazendas sendo
seu conhecido pelo que sabe chamar-se João José Boeiro, o qual
deixando a caixa na rua foi beber parati; que alguns menores
começaram a falar sobre furtar fazenda daquela caixa; que ficando com
desejos de praticar pequeno furto de fazendas, falou com José Pedro de
Souza por alcunha “José Congo” mandando que este fosse tirar fazenda
e respondendo José que fosse o declarante; enquanto este, entrando na
venda entretinha o referido turco já tendo desaparecido o referido “José
Congo”, que mais tarde o declarante se encontrou com “José Congo”,
perto da mesma venda; que ali pediu sua parte recebendo dois e metros
de morim, ficando aquele seu companheiro com porção maior, pois
além de morim ficou também com alguns metros de chita; [...] que as
fazendas a que se refere se acham na casa de Manoel Marques na
mesma travessa onde o declarante e “José Congo” deixaram para serem
desmanchadas em camisas e ceroulas; que o declarante já por duas
vezes tem sido preso nesta delegacia por desordem.
José Congo em sua versão confirmou o que Manoel Antônio havia narrado,
dizendo também que estava na travessa Portela, em companhia de alguns “garotos” e do
segundo, quando este o “convidou” para juntos furtarem fazendas de Boeiro, que estaria
no interior da venda bebendo parati. Ainda segundo ele,
[...] influído pela garotagem e, enquanto Antônio Oliveira entretinha o
turco, foi à caixa que se achava na rua e dela furtou alguns metros de
morim e outros de chita e dando estas a um dos garotos, este correu e
escondeu num mato próximo; que logo depois o turco saiu e mais tarde
o declarante juntamente com Antônio de Oliveira e o garoto em
questão, foram ao local onde haviam escondido as fazendas; [...] que o
menor a que se refere pode contar apenas sete anos de idade; que
repartidas as fazendas levaram-nas para casa de Manoel Marques para
destas serem feitas camisas e ceroulas e ali ainda se acharem.
José Congo e Manoel Antônio moravam no número 14 da travessa Portela,
mesmo endereço que Neco, o dono da venda onde o mascate estava quando suas
mercadorias foram furtadas. Com vinte e vinte e um anos, respectivamente, ambos se
disseram solteiros e analfabetos. O segundo, conforme o trecho acima, se apresentou
como “desempregado”, enquanto que, em relação ao primeiro, nenhuma menção foi
feita à ocupação ou meios de subsistência. Além disso, Manoel havia nascido na Bahia
e José Congo era natural da capital federal. Também submetidos a adscrições raciais,
foram classificados como “de cor preta”. Como testemunha, depôs também Maria
Balbina, amásia de Neco. Natural do Distrito Federal residia com seu companheiro na
mesma travessa Portela 14, apresentou-se como solteira e com trinta e dois anos.
Identificada como “parda”, narrou que
117
[...] estava [...] nos fundos de sua casa, fazendo doces, ouvindo apenas o
rumor da discussão e conversa que se travava, fora na venda de seu
amásio, [...], e que não saiu de onde estava para verificar do que se
tratava; que mais tarde soube por ouvir dizer que o turco João, a quem
[...] conhece como mascate e a quem costuma comprar fazendas havia
sido roubado em alguns metros de morim e de chitas, quando se achava
tomando parati na venda de seu amásio; [...] que ouviu também dizer
que os autores desse furto haviam sido “José Congo” e Manoel Antônio
de Oliveira; que conhece esses indivíduos que costumam freqüentar a
venda de seu amásio, sendo que este último, Manoel Antônio de
Oliveira, foi seu empregado e como tal, carregava água, rachava lenha e
fazia outros serviços, deixando-o de ser porque era malandro e vivia
brincando na rua quando tinha serviço em casa para fazer
.
Outra testemunha foi Sofia Maria da Conceição, para quem José Congo e
Manoel Antônio endereçaram o morim e a chita a serem transformados em roupas.
Residindo em uma casa sem número na travessa Portela, casada e analfabeta, havia
nascido em Minas Gerais, tinha trinta e um anos, e mesmo como testemunha, em sua
apresentação na delegacia, foi anotada a sua cor, “preta”. Conforme ela,
[...]
sua filha entrou em casa, com um embrulho de fazenda, sendo
alguns metros de morim e outros de chita, [lhe] dizendo [...] que estas
fazendas lhe foram entregues por “José Congo” e Manoel Antônio, os
quais pediram a ela sua filha para fazer umas camisas e umas ceroulas;
que à vista disso [...] tomou a seu encargo de fazer esse trabalho, visto
que sua filha não sabe coser; que de fato começou a fazer essas roupas
[...] e já havia feito duas camisas e uma ceroula, quando apareceram em
sua casa o referido “José Congo” acompanhado de duas praças.
No decorrer dos meses, o promotor responsável solicitou que aqueles que
estivessem presentes no 23
o
distrito policial, no dia em que “José Congo” e Manoel
Antônio confessaram o furto, fossem chamados a prestar declarações como
testemunhas. Três homens, entre eles um jornalista que estava de plantão na delegacia,
ofereceram suas versões, confirmando que ouviram os dois assumirem a
responsabilidade pelo desaparecimento das fazendas do mascate Boeira. Em dezembro
de 1914, foi expedido o primeiro mandado de intimação dos réus e testemunhas, e ao
oficial de justiça responsável pela comunicação da sessão judicial, foi informado que
“José Congo” e Manoel Antônio estariam detidos na Colônia Correcional de Dois Rios.
O promotor do caso então solicita que o juiz procure saber se de fato os dois estavam
presos. Em 4 janeiro de 1915, o chefe da Polícia, 1
o
Delegado Auxiliar da 2
a
seção,
comunica ao juiz da 7
a
Pretoria Criminal que
De acordo com a solicitação constante do vosso ofício de 25 de
dezembro próximo passado, faço-vos apresentar e passo à disposição
118
desse Juízo, os indivíduos Manoel Antônio de Oliveira, v
o
Repugnado,
e José Pedro de Souza v
o
Jo Congo, que se achavam recolhidos à
Colônia Correcional de Dois Rios por motivo de ordem pública e que
foram presos pela Delegacia do 23
o
DP, por serem gatunos conhecidos,
os quais estão processados por essa Pretoria Criminal [...].
Algumas semanas após o encaminhamento deste ofício, José Congo e Manoel
Antônio já haviam sido liberados da Colônia de Dois Rios, pois um novo mandado de
intimação é expedido, e o oficial de justiça destaca que intimou o segundo, mas não o
primeiro, posto que não fora encontrado. Na sucessão de outros mandados para a
realização da audiência, Boeira deixa de residir na travessa Portela, os dois réus não são
encontrados em seus antigos endereços, e apenas Ernani Rosa, Daniel Viana e o major
Bernardino Fernandes Viana – um dos que assistiram à confissão – se apresentam como
testemunhas. Em junho de 1915, a denúncia é prescrita por ter se passado mais de um
ano.
De testemunha a acusado, identificado como “desordeiro e vagabundo”,
identificando-se como alguém que se ocupava – carroceiro, estivador, trabalhador braçal
–, Otávio apareceu, em Madureira, através deste texto é claro, envolvido em alguns
conflitos e processos criminais. Contudo, concomitante a esta trajetória, este
personagem que inicialmente era conhecido como “filho de Chrisante Maria”, passou a
ser o “moleque Otávio” a tornar-se “um preto”. Se nos primeiros inquéritos a
enunciação da cor de Otávio não figurava nas narrativas dos moradores e mesmo dos
guardas policiais, e o que era enfatizado dizia respeito justamente à rede na qual estava
inserindo, sua filiação, sua localização espacial, este tipo de conhecimento foi cedendo
lugar a outros modos de referir-se e posicionar Otávio naquele subúrbio. Mesmo
tecendo vínculos com outros moradores afinal foi possível ver através de alguns
processos que ele estabeleceu relações amorosas, dividiu a moradia com outros
companheiros, fez inimizades o que me chamou a atenção nas falas dos personagens
aqui citados, o italiano Seda, que mesmo se apresentando como presidente do Sereno de
Prata afirmou o conhecer Otávio, baleado no confronto com o Paz de Madureira, mas
principalmente do construtor Maltez e do dono do botequim Aristides, moradores de
Madureira, bem como durante os procedimentos de identificação no distrito policial,
inclusive nos caso do mascate Boeira, foi a mobilização da categoria preto para
explicitar situações marcadas por turbulências, agressões e furtos. Foram justamente
119
nestes momentos que, como ressalvou Crapanzano, as categorias suscitaram seu
contexto de relevância.
120
4 CENÁRIOS DE DISPUTA: GÊNERO, COR E TERRITORIALIDADES EM
DONA CLARA
4.1 MARIA E SEUS TERRITÓRIOS: ENTRE A DIFERENÇA E A INDIFERENÇA
Parecerá à primeira vista que o título deste artigo seja subversivo. Não o
é: É antes a expressão perfeita, cabal, completa do estado anômalo a que
chegamos na zona suburbana.
Na zona de Irajá especialmente, o policiamento é imperfeito, falho,
nulo, perambulando livremente a cafagestada réles que por cá dá aquela
palha, agridem à faca, à navalha e a tiro, o pacato transeunte que tem a
infelicidade de passar por estes lados.
O jogo campeia, o meretrício infame existe a todos os cantos a
moralidade de localidades como D. Clara e Anchieta, parece ter sido
banida, para deixar somente avolumar-se o que é mau, o que ajuda a
perder a humanidade, o que representa o atraso da nossa civilização.
(ECHO SUBURBANO, Madureira, 1911, p.1)
Eram cerca de 8:00 horas da manhã, fevereiro de 1907, quando Maria Benedicta
dos Santos
21
foi detida pelo inspetor secional de polícia Belmiro Julio Viana, morador
da rua João Vicente, próxima à estação circular citada, e encaminhada ao distrito
policial da 6
a
Circunscrição Suburbana, freguesia de Irajá. Lá, junto ao delegado, ambos
deram versões do que havia se passado. Segundo o condutor,
[...] prendeu em flagrante na Estação de D. Clara a acusada [...] por ser
vadia e não ter ocupação.
Em seguida, Maria respondeu às perguntas do delegado. Disse ter vinte e dois
anos, saber quem eram seus pais, ser brasileira, analfabeta e solteira. Trabalhava como
cozinheira e morava na rua Joaquim Silva 3, nove meses. Como testemunhas, foram
ouvidos Albino de Sant’anna Rosa e Julio Gomes dos Santos, também inspetores
secionais. O primeiro alegou que naquele dia
[...] às oito horas viu ser presa em flagrante na Estacão de Dona Clara a
acusada [...], por ser vadia; que [...] não exercita profissão, ofício ou
qualquer mister em que ganhe a vida e não tem meios de subsistência.
e o segundo,
[...] viu a acusada presente [...] ser presa em flagrante na Estação de
Mad. digo Estação de Dona Clara por ser vadia e não ter ocupação; que
[...] não exercita profissão, ofício, ou qualquer mister em que ganhe
vida e não tem domicílio certo ou que habite.
21
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 7G724.
121
No prosseguimento do inquérito, Maria afirma, frente ao que foi declarado pelas
testemunhas, que “não é vadia e que em tempo provará pois é empregada em Botafogo”.
Processada no artigo 399 do Código Penal, contravenção por vadiagem, foi
encaminhada à Casa de Detenção. No entanto, declarou, após novo interrogatório, no
dia seguinte ao flagrante”, “[...] não ser vadia pois se ocupa como cozinheira e tem
domicílio certo (...), que espera na Justiça do Meretíssimo Juiz a sua liberdade.” Sem ter
apresentado defesa, provavelmente por não ter condição econômica para tal ação, Maria
foi presa e se viu detida por quase uma semana, quando um oficial de justiça a intimou
na Casa de Detenção, para se apresentar em juízo.
Vistos e examinados estes autos de contravenção, em que são partes
A., a Justiça, e R. Maria Benedicta dos Santos, processada como [sic]
no art.399, parte primeira do Código Penal:
Considerando que não ficou devidamente constatado pelos depoimentos
tomados o concurso simultâneo dos três elementos formadores da
referida contravenção, pois a primeira testemunha [...] afirma apenas
que a acusada ‘não exercita profissão, oficio ou qualquer mister em que
ganhe a vida e não tem meios de subsistência’; afirmando por sua vez a
segunda que a acusada ‘não exercita profissão, oficio, ou qualquer
mister em que ganhe vida e não tem domicílio certo ou que habite’:
Julgo improcedente o presente processo e absolvo-a a acusada
[...] da
acusação que lhe foi intentada, mandando que em seu favor se passe
alvará de soltura.
A liberdade de Maria Benedicta viria depois de alguns dias de detenção.
Impossibilitada de exercer um dos chamados direitos naturais do indivíduo segundo a
ordem social liberal o de ir e vir –, este caso exemplifica algumas das interdições a
que foi submetida a população livre do Rio de Janeiro no contexto pós-emancipação e
republicano. Interdições que não eram novidades. Como apontei no primeiro capítulo, o
controle sobre a população pobre do Império, negra africana, crioula ou mestiça,
independente da sua condição (livre ou liberta) esboçava o quanto um status social
inferiorizante estruturava, social e politicamente, o cotidiano daqueles que o viviam
sob a marca do cativeiro durante o Império. E ainda que nenhum tipo de adscrição
racial tenha sido assinalado, a pergunta que pode ser feita vai no sentido de tentar
imaginar por que Maria Benedicta fora acusada pelos inspetores secionais de ser
“vadia”. O que nela Benedicta foi interpretado como passível de suspeição, atribuindo-
lhe marcas de alguém que poderia ser uma contraventora? Teriam sido apenas a sua
condição social e de gênero, acrescidas do fato de ter sido vista circulando em uma
parada ferroviária os motivos da sua retirada das ruas, a impedindo-a de permanecer em
122
um espaço público da cidade? Apesar de não ter informações suficientes para responder
a esta pergunta, a acusada demonstrou, através de seu depoimento, firmeza perante às
autoridades policiais. Sua profissão, e o seu endereço residencial, foram os argumentos
de que se utilizou para contestar as acusações que recebera, e que, de certo modo,
funcionaram como atenuantes pois, de acordo com o juiz, os depoimentos das
testemunhas que prenderam-na não convenceram-no que a então ré praticava vadiagem.
Se Maria Benedicta parecia estar de passagem por D. Clara, não foi esta a
situação inicial de outras mulheres que darão vida a este capítulo. Conhecida como Flor
da Gente
22
, Maria Antonia de Oliveira residia próxima àquela estação. Filha de pais
desconhecidos, havia nascido no estado do Rio de Janeiro. Preta, declarou ter 19 anos e
não possuir nenhuma instrução, profissão ou ocupação quando interrogada no distrito
policial de Madureira, por ter agredido à navalha Francisco Candido, também preto, 22
anos, analfabeto, solteiro, natural do estado de Minas Gerais, e residente no subúrbio de
Deodoro.
Era junho de 1914, por volta das 18:30 da tarde, e Flor da Gente, que morava na
rua Carlos Xavier 82,
estava de palestra, na esquina da rua da Estação com Doutor Frontin,
com uma outra rapariga de nome Maria Christina, quando se aproximou
um indivíduo que a declarante não conhece mas que [sic] diz ser o de
nome Francisco Candido; que este meteu-se na conversa das duas e deu
uma bofetada na declarante; que vendo-se agredida, sacou de uma
navalha e investindo para Francisco Candido vibrou-lhe diversas
navalhadas; que após a agressão a declarante evadiu-se para dentro da
Estação de Dona Clara onde foi presa por um cabo de Policia que se
achava na referida Estação.
Sua confissão, no entanto, não impediu que Francisco Candido narrasse de outro
modo o que teria se dado em frente ao botequim da rua Capitão Macieira, local em que
disse ter sido agredido por Flor da Gente. De acordo com ele,
[
...] estava às seis horas e meia da tarde mais ou menos em Dona Clara
na rua da Estação em frente ao botequim que faz esquina a rua Capitão
Macieira, conversando com seus companheiros Luiz Germano e
Américo de tal e Maria Antonia de Oliveira quando esta sem motivo
algum, empunha uma navalha e desfere [...] vários golpes de navalha;
que seus companheiros tomaram a navalha de Maria e conduziram esta
em direção à Madureira para a Delegacia afim de apresentar sua queixa
e medicar-se visto achar-se bastante ferido; que chegando à Delegacia
não encontrou os seus companheiros mas soube que Maria se achava
presa, [...] pessoa que ora lhe é apresentada.
22
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 722202.
123
Três anos se passaram e o juiz da 7
a
Pretoria Criminal, em novembro de 1917,
julgou improcedente a denúncia, absolvendo Flor da Gente, à revelia da e do
ofendido, pois nenhum dos dois foi encontrado nos endereços citados à época da
intimação, embora o representante do Ministério Público tenha assumido a posição no
inquérito de que Maria Antonia ofendeu fisicamente Francisco Candido “sem o menor
motivo”. Alegou ainda que as testemunhas que depuseram no sumário não tinham
certeza sobre a autoria das lesões, e, além disso, a confissão da acusada teria sido dada
sob condição extrajudicial, o que lhe retiraria o valor.
A absolvição, entretanto, não impediu que Flor da Gente tivesse mais um evento
arrolado à sua “história criminal”, pois ao ser identificada no
distrito policial, aos
agentes da polícia foi revelado que uma mulher chamada Maria Antonia havia sido
registrada no Gabinete de Identificação e Estatística, com passagem pela Casa de
Detenção do Distrito Federal, em julho de 1913, acusada de vadiagem no 8
o
Distrito
Policial, ou seja, na área urbana da cidade; também não impossibilitou que ao referir-se
à acusada, a sua racialização fosse tomada como a principal estratégia para conectá-la
aos eventos em questão: a agressão à navalha e o ferimento produzido em Francisco
Candido. Em dezembro de 1914, quando foram ouvidos três praças da polícia que
estavam na delegacia no dia da prisão de Flor da Gente, um deles afirmou que
[...] em data que não pode [sic] do mês de Junho, assistiu ser
interrogada a crioula Maria Antonia de Oliveira mais conhecida pelo
vulgo Flor da Gente” que era acusada de haver, em Dona Clara
agredido e ferido a navalha um indivíduo, ouvindo a mesma confessar o
delito, sem coação alguma, livre e espontaneamente.
No decorrer do inquérito contra Flor da Gente, uma outra mulher, chamada
Maria Benedicta
23
(assim como aquela do primeiro caso desta seção), fora presa na rua
Carlos Xavier, por Alfredo Corrêa dos Santos, praça do 3
o
Batalhão da Brigada Policial,
natural do estado de Minas Gerais, “de cor branca”, com 27 anos, solteiro, sabendo ler e
escrever, que residia no quartel em que trabalhava. Segundo ele, às 11:00 horas da
manhã do dia 9 de setembro de 1914, Maria Benedicta, que não teria domicílio e vivia
pelas ruas daquela localidade, ofendendo a moral embriagando-se e praticando
desatinos”, vagava por aquela rua, e foi então conduzida ao distrito policial. Interrogada
pelo delegado, que construía o auto de qualificação através de uma série de perguntas,
23
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721247.
124
Maria teria dito, assim como o praça, que havia nascido em Minas Gerais. Preta, dissera
ter 25 anos, ser analfabeta, solteira, o saber quem eram seus pais, não ter domicílio
nem residência. Uma das testemunhas da sua prisão foi o empregado em comércio,
natural do estado do Rio e morador na travessa Olinda, de vinte anos, que sabia ler e
escrever, Mario de Almeida Guimarães. Em seu depoimento, afirmou que antes das
12:00 horas passava pela rua Carlos Xavier
[...] quando viu ser presa em flagrante, uma mulher que agora sabe
chamar-se Maria Benedicta, quando essa vagava na ociosidade, na rua
acima, e que conhece como vagabunda e ébria e que vive perturbando o
sossego dos moradores de Madureira, atentando contra o pudor dos
moradores assim como sabe que a mesma não tem domicílio certo,
profissão nem emprego [...].
João Joaquim de Almeida, a outra testemunha, havia nascido no Rio Grande do
Sul, era empregado público, sabia ler e escrever, e tinha trinta e nove anos. Em sua
versão narrou que achava-se na rua Carlos Xavier, quando viu ser presa a acusada
presente [...] por andar vagando e ser vagabunda”. Assim como o empregado em
comércio, enfatizou que Maria não tinha arte, ofício, ocupação nem residência, vivendo
ao relento e embriagada, e afora isso, praticaria desatinos que ofenderiam a moral e os
bons costumes.
Maria, em seguida, contestou o depoimento de ambos, dizendo o ser a
expressão da verdade, e por isso sustentava o que havia dito. Com a palavra para que
pudesse produzir sua defesa, ela declarou que não tinha ocupação atualmente, no
entanto havia sido empregada, realizando serviços domésticos e dormindo na casa de
“várias conhecidas”. Mesmo assim, foi incursa no art. 399 do Código Penal, combinado
com os artigos 52, parágrafo 1
o
e 53 do decreto 6994 de 16/6/1908, e no prazo de 24
horas deveria apresentar sua defesa formal. Abriu-se então uma ficha individual
datiloscópica naquela delegacia, e procurou-se saber se havia antecedentes criminais
contra Maria, contudo nada foi encontrado no Gabinete de Identificação Criminal, e
após ficar mais de uma semana detida compareceu à audiência em que o juiz decidiu
improcedente a acusação e a absolveu.
[...] Considerando que não está provado ser a acusada vadia na
verdadeira acepção da palavra e o [sic] a fls. fornecido pelo Gabinete de
Identificação e de Estatística lhe é favorável.
125
Alguns anos antes destas detenções realizadas nos arredores da estação de D.
Clara, em 1912, na rua Domingos Lopes, Maria da Conceição
24
fora detida pelo
comissário Vellozo, às 17:00 horas da tarde, pois segundo este, ela era “vadia”. Diante
do delegado, Maria apresentou-se como filha de André [Torres] e de Inácia da
Conceição, com 22 anos, Casada e cozinheira, era natural de Minas Gerais, e residia na
casa de seus patrões, porém naquele momento o possuía domicílio porque estava
desempregada e, além disso, era analfabeta. Assim como no caso anterior, duas
testemunhas depuseram sobre o “flagrante” do comissário, e declararam conhecer Maria
muito tempo, e saberem que ela vivia em completa ociosidade, entregando-se ao
vício da embriaguez. Uma das testemunhas, o carpinteiro Paulino Cândido Pereira,
solteiro, com 27 anos, sabendo ler e escrever, morador em um barracão na rua Tavares
Guerra, disse que Maria havia sido sua vizinha e “nunca se dedicou a trabalho honesto
para sua manutenção”.
Maria, no entanto, contestou os dois depoimentos, e disse que os ignorava por
serem inverdades”. Tanto o carpinteiro Paulino como o operário Tomas Barrozo
Guimarães, também sabendo ler e escrever, com 45 anos, casado e residente na rua
Iguassú, em Madureira, assumiram o que haviam dito como expressão da verdade.
Assim, entre contestações e afirmações de ambos os lados, Maria se colocara,
declarando que em juízo provaria sua inocência. Quando de sua nota de culpa, alguns
dias depois de sua prisão, a acusada ainda disse que passava pela rua Domingos Lopes
quando fora detida; que não conhecias as pessoas que depuseram contra ela no
inquérito; que não sabia a que atribuir sua acusação; e que possuía documentos os quais
apresentaria em juízo. Pouco antes de completar um s deste caso, ocorreu o
julgamento, e a denúncia foi decidida improcedente. De acordo com o juiz responsável
por este inquérito, nos autos do processo não constava nenhuma informação que
comprovasse que Maria fosse uma ociosa, pois de acordo com as declarações da ela
se ocupava com o ofício de cozinheira e atualmente estava desempregada.
Maria Madalena da Silva
25
, chamada também de Maria Bexiguinha, teve uma
trajetória um pouco diferente das Marias que foram apresentadas a aqui,
considerando-se o seu processo crime. Detida por agredir Leonardo Galdino operário
do Lloyd Brasileiro e natural de Minas Gerais, com vinte dois anos –, com quem dividia
24
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 72188.
25
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação: 721225.
126
um “prédio” na rua Carlos Xavier 82 havia cerca de quatro meses, mesmo endereço
indicado por Flor da Gente à policia um pouco antes, foi encaminhada à Casa de
Detenção e condenada a sete meses e quinze dias de prisão, em novembro de 1914. No
entanto, em maio de 1915, o diretor daquela instituição penal comunicou à 7
a
Pretoria
Criminal o falecimento da presa por tuberculose. Maria Bexiguinha era de cor preta,
natural do Maranhão e analfabeta. Solteira, com 26 anos, ignorava quem eram seus pais,
e explicara na delegacia que
[...] pelas cinco horas da tarde, estava na parte de sua casa, quando ali
chegou Leonardo Galdino, também morador do mesmo prédio; que
Leonardo pouco depois, voltou de dentro do quarto e dirigindo-se à
declarante, disse que ela havia lhe tirado um lenço do bolso, ao que a
declarante protesta, dizendo que não se sujava com um lenço; que
Leonardo então a chamou de preta relaxada e ordinária e deu-lhe uma
porção de sopapos na cara; que a declarante, vendo-se agredida, passou
a mão em um cabo de enxada e com ele pretendeu agredir-se ou
defender-se de Leonardo; que Leonardo tomou esse pau de sua mão e
com ele bateu na declarante; que na ocasião chegava outro morador do
prédio, de nome Antonio da Silva que tomou o pau das mãos de
Leonardo Galdino; que Leonardo correu dentro do quarto e passou a
mão em uma tranca de madeira e com ela deu ainda três pancadas na
declarante, que correu para dentro da casa e a foi encontrar Leonardo
que ainda a espancava muito, pisando-a a s, sendo então nessa
ocasião, que a declarante, desesperada, lançou mão de uma barra curta,
de ferro, que servia de tampa de fogão, e com ela deu uma pancada na
cabeça de Leonardo, [...] e confessa ter sido a autora desse ferimento,
mas que o fez em legítima defesa.
Leonardo Galdino havia afirmado que fora ferido com uma barra de ferro que
servia de tampa de fogão e também mencionou que o conflito teria se originado no
momento em que Bexiguinha retirara um lenço de seu bolso. Nas duas versões,
contudo, revelou-se uma identificação racializada a partir da qual Bexiguinha e Galdino
se ofendem reciprocamente: a enunciação da categoria preto. De acordo com o operário,
Madaglena sic numa formidável descompostura, injuriando-o com
palavras obscenas tais como: << seu preto, [...]>>
Alguns anos mais tarde, em fevereiro de 1919, na rua D. Clara, um novo conflito
trouxe à cena sócio-histórica naquela paragem a presença de mulheres Rosalina da
Conceição, Manoela Thereza de Jesus, Maria Paulina dos Anjos, Zulmira Maria
Gonçalves e Maria Benedicta da Silva residiam, com a exceção da primeira, em casas
da avenida número 55 e, em sua maioria, não tinham origem no Distrito Federal.
127
Eram cerca de 22:00 horas da noite e Rosalina, que trabalhava como doméstica e
morava naquela mesma rua, na casa 54, saíra em direção a um botequim próximo para
fazer compras e ao retornar, um soldado do Exército, “de cor preta, convidou [...] a
dormir com ele, sendo repelido”. Vendo o que se passava, o amásio de Rosalina, o
estivador Santilho de Souza
26
, com quem vivia há dois meses, dirigiu-se ao soldado, e o
perguntou se a conhecia. Conforme Rosalina, “[...] o soldado sem trocar palavra com
Santilho, sacou de uma faca ou punhal e embebeu-o no estômago do amásio [...],
pondo-se em seguida em fuga”. Santilho, que prestou depoimento dois dias após a
agressão, fora encaminhado à enfermaria da Santa Casa de Misericórdia. Com 35 anos,
era analfabeto, pardo e natural do Distrito Federal.
No entanto, além de Rosalina, as outras moradoras da avenida da rua D. Clara
compareceram ao distrito policial e ofereceram suas versões, que iam no sentido de
responsabilizar o soldado pelo ferimento em Santillho. Manoela Thereza de Jesus disse
ser doméstica, casada, analfabeta e ter 21 e um anos. Narrou que estava no portão da
avenida em que residia, “[...] quando um soldado do Exército de cor preta, se dirigiu à
Rosalina da Conceição”. Reafirmando a versão de Rosalina, de que o soldado agredira
Santilho sem ao menos trocar palavra”, Manoela concluiu dizendo que o militar seria
“magro, estatura regular, usa cara raspada, tem boa dentadura e diz-se natural do estado
do Sergipe” e havia fugido em direção ao Rio das Pedras. Maria Paulina dos Anjos,
também afirmou ser casada e se ocupar como doméstica. Dizendo ter 21 anos, assim
como Manoela, declarou que estava no portão quando viu “[...] um soldado de cor preta,
que segundo consta pertence à Quinta Companhia de Metralhadoras, dirigir-se à
Rosalina da Conceição e fazer-lhes propostas amorosas que ela repeliu, dizendo ser
amasiada”. Falara ainda que, quando Santilho perguntou-lhe se conhecia Rosalina, “[...]
sem que houvesse a mais leve disputa [...]”, recebeu uma facada na altura do estômago.
Ao final destas declarações Maria Paulina disse ainda que seria capaz de reconhecer o
soldado.
Zulmira Maria Gonçalves, a outra doméstica moradora da avenida, estava junto
com Manoela e Maria Paulina no portão e, neste momento, o tal soldado “de cor preta,
magro, e de estatura regular” se direcionou a ela, fazendo-lhe propostas amorosas.
Zulmira, então, o teria repelido e, em seguida, se recolhido à sua residência. Algum
tempo se passou, e ouvindo “alarido”, saiu de casa para ver o que ocorria, e assim soube
26
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 722728.
128
que aquele mesmo soldado havia ferido Santilho à faca. Zulmira declarou que tinha 29
anos, era casada e analfabeta. Maria Benedicta da Silva, a última a narrar o que havia
acontecido naquela noite de fevereiro de 1919, disse ser viúva, ter a mesma idade que
Zulmira e trabalhar também como doméstica. Analfabeta e moradora da casa 4 da
avenida, disse que ao ouvir um barulho chegou ao portão e foi informada que Santilho
havia sido ferido por um soldado que, segundo ela, havia visto rondando as
proximidades do local.
Um dia após este confronto, um ofício do capitão do Quartel de Deodoro
comunicou ao delegado do 23
o
distrito que o soldado Clarindo José da Silva, número 73
da 5
a
Companhia de Metralhadoras, encontrava-se preso naquele órgão pois havia se
envolvido na noite anterior em um conflito em D. Clara. Ainda conforme o capitão Luiz
Gonzaga dos Santos,
em poder do delinqüente foi encontrado um punhal tendo numa
das faces da lâmina a marca High Life, conforme declara foi-lhe entregue ontem por um
senhor. Alves com charutaria à rua da Estação em D. Clara.
Convocado a se apresentar à delegacia, Clarindo afirmara que pelas 22:00 horas,
conversava em uma rua cujo nome não sabia, na estação de D. Clara, com duas
mulheres
[...] que conhece de vista, isto é, que vira pela primeira vez. Meia-hora
havia transcorrido, e um indivíduo surgiu e [...] sem dizer palavra,
entrou a dar pancada em uma das mulheres, levando-a para uma avenida
próxima; que isto feito, o indivíduo voltou para o local em que o
depoente deixara-se ficar com a outra mulher, e sem dirigir palavra,
começou a esbofetear o depoente que, reagindo, também esbofeteou,
pondo-se em seguida em fuga
.
Ao chegar ao quartel Clarindo dissera que comunicara a um sargento de nome
Vieira, para quem teria entregado a faca que portava, que, entretanto, não havia usado
no conflito com Santilho, pois “[...] limitou-se a repelir o agressor a bofetadas”. Na
delegacia, foi identificado como “preto, filho de Isidoro José da Silva e de Margarida
Maria da Silva, natural do estado da Bahia, com 21 anos, solteiro, praça n
o
73 da 5
a
Companhia de Metralhadoras, residente no respectivo quartel, em Deodoro, sabendo ler
e escrever”.
Neste mesmo dia, Rosalina e Manoela reconheceram o soldado como o agressor
de Santilho, no entanto, no exame microquímico não existiam marcas de sangue na
arma, lâminas e no cabo. Ainda assim, o delegado Cândido Mendes de Almeida Jr.
tinha certeza que Clarindo fora o autor dos ferimentos em Santilho que passou por
129
uma cirurgia no mesmo dia em que chegou à Santa Casa e, neste sentido ordenou que
os autos fossem remetidos ao juiz da 5
a
Vara Criminal. Os trâmites burocráticos foram
realizados e encaminhou-se um comunicado ao juiz de direito no qual se explicava que
Clarindo havia completado o tempo de serviço na unidade do Exército. O promotor do
caso decidiu então solicitar um exame de sanidade em Santilho que continuaria não
habilitado ao serviço ativo por mais trinta dias –, para melhor orientar a ação da Justiça,
pois face à situação em que se encontrava o ex-soldado, presumiu-se que seria difícil
saber sobre seu paradeiro. Era março de 1919, e o delegado encaminhou ao juiz da 5
a
Vara Criminal a ficha datiloscópica de Clarindo. Em seguida convocou as testemunhas
para prestarem depoimentos no sumário que visava a formação de culpa do ex-soldado,
que foi excluído do Exército por tempo de serviço no mesmo dia em que se apresentou
à delegacia, no dia seguinte dia à confusão.
Manoela Thereza, Zulmira Maria e Maria Benedicta continuavam residindo na
rua D. Clara 55 em julho daquele ano, mas Maria Paulina viveria na rua das
Mangueiras, sem número, no subúrbio de Deodoro. Quanto a Clarindo, nada se sabia
sobre seu destino. Uma nova intimação, em outubro, revelaria que Maria Paulina,
também conhecida como Caxangá” morava naquele momento na Vila Sócrates n
o
10,
também em Deodoro, enquanto Zulmira e Maria Benedicta permaneciam em D. Clara.
Manoela Thereza, o encontrada, estaria morando no morro de São Carlos, na área
central da cidade. O promotor ainda solicitou a presença de Rosalina, que havia apenas
acompanhado Zulmira na primeira audiência.
Zulmira, Rosalina e Maria Paulina compareceram à audiência pública e, através
das perguntas que lhes foram dirigidas descobriu-se que Zulmira era natural do Sergipe,
Rosalina era mineira, e Maria Paulina, que apresentou a seguinte versão frente ao juiz
de direito, tinha origem no Distrito Federal.
[...] no dia referido da denúncia às nove e meia horas da noite [...] foi a
um botequim comprar pão e voltando às dez e meia mais ou menos e
recolhendo-se à sua casa; que quando se achava recolhida ouviu
Zulmira gritar: ‘Acudam que mataram Santilho’; [...] chegando ao
portão da casa em que residia Santilho encontrou-o ferido [sic] ouvindo
Santilho dizer: ‘Ai meu Deus, eu morro’. Nessa ocasião também se
achava no local um comissário, um praça de polícia que levaram a
testemunha e as pessoas que se achavam para a Delegacia; que a
testemunha não viu na Delegacia nenhum soldado do Exército; que o
ofendido era amasiado com Rosalina da Conceição; que a testemunha
não viu nenhum soldado do Exército conversando com Rosalina nem
viu no botequim a mesma Rosalina”.
130
Manoela não foi encontrada para depor. Porém o juiz da 5
a
Vara Criminal
parecia estar determinado a encontrá-la. Havia se passado pouco mais de uma semana
quando um inspetor do Corpo de Investigação e Segurança Pública enviou à autoridade
judicial um ofício comunicando que Manoela residia no Morro do Salgueiro, “[...] em
um dos barracões que ficam à esquerda de quem sobe, sendo ali mais conhecida por
irmã de José Alves Ferreira e Altino Francisco de Azevedo, que com ela moram”. Em
novembro, ao se apresentar em juízo, Manoela, nascida em Minas Gerais, disse então
ter trinta e quatro anos, trabalhar como doméstica e residir de fato no morro do
Salgueiro, em uma casa sem número. Segundo ela, em dia e s que não se lembrava,
estava no portão de sua antiga casa, na rua D. Clara 55, quando viu sair Rosalina para
comprar uma caixa de fósforos e um maço de cigarros para seu amásio Santilho. Na
calçada da rua, o soldado Clarindo passeava e conversava com algumas mulheres, o que
teria interrompido ao ver Rosalina. Dirigindo-se a ela, disse-lhe algo, que Manoela
afirmou não ter ouvido, e Rosalina seguira então ao botequim, com Clarindo a
esperando no portão de sua casa, número 54. Ao retornar Rosalina encontrou o soldado
à sua espera, mas também Santilho que, conforme Manoela, teria dado uma bofetada na
amásia, “botando-a para dentro de casa”.
[...] em seguida, Santilho dirigiu-se ao acusado e perguntou-lhe se
conhecia aquela mulher, respondendo o acusado que não conhecia e o
que é que você quer; [...] Santilho deu então uma bofetada no acusado,
que sacando de um punhal vibrou um golpe em Santilho; [...] isto feito o
acusado deu mais [sic] pela rua,e, em seguida deitou a correr tendo um
capote no braço; [...]; que o ofendido na ocasião de fato estava bem
embriagado.
Maria Benedicta, que compareceu a uma sessão judicial posterior a esta, também
não morava mais na rua D. Clara em novembro de 1919. Ainda em Madureira, havia se
mudado para a rua Maria José 108 e, em seu novo depoimento, disse também ter
nascido em Minas Gerais, ter vinte sete anos dois anos a menos do que na sua
primeira declaração e continuar se ocupando como doméstica. Estava sentada à porta
de sua casa quando ouviu uns gemidos, e indo à rua ver o que havia acontecido viu
Santilho ferido e um indivíduo correndo na rua. As pessoas que estavam no local teriam
lhe dito que Santilho não havia realizado agressão nenhuma no soldado, que ela
declarou não conhecer.
Chegando ao fim os depoimentos, a denúncia foi julgada procedente, e ainda em
novembro foi expedido o mandado de prisão contra Clarindo, detido na Casa de
131
Detenção. Cinco anos se passaram, e em 1924, um promotor solicitou a intimação do
réu para apresentar defesa legal assim como a suspensão dos mandados de prisão
autorizados pelo juiz da 5
a
Vara Criminal, em função de uma nova lei de organização
judiciária, o decreto 1627 de 20 de dezembro de 1923. Assim, os autos do inquérito
chegam à alçada da 7
a
Pretoria Criminal e, em agosto do mesmo ano a denúncia havia
sido prescrita.
4.2 A CLASSIFICAÇÃO RACIAL COMO ESTRATÉGIA DE LUTA
A presença de mulheres negras e pobres, com uma expressão considerável de
migrantes nos processos crimes de que me utilizei visando reconstruir alguns das redes
e relações que conformavam Madureira nas primeiras décadas do século XX, não
excluía a possibilidade de que nas ruas próximas à estação de D. Clara houvessem se
fixado mais moradores. Atentando para este fato, é que discutirei na seção final deste
capítulo como diferentes atores sociais participaram da construção de uma identidade
territorial que, a partir dos anos de 1930 e 1940, foi reapropriada enquanto uma
memória histórica que compunha o passado daquele subúrbio. Em 1915, contudo, em
um conflito que ocorreu no mercado de Cascadura ente um grupo de portugueses e de
“crioulos”, os imigrantes envolvidos na confusão expuseram na delegacia seus
endereços de moradia, à rua Marechal Floriano, em D. Clara. Deste modo, ao lado da
localização espacial, que me permite apontar que na segunda década do século XX
uma população de origem e condição diversas ali se estabelecia mulheres negras,
subempregadas ou desempregadas e migrantes, bem como trabalhadores imigrantes
portugueses –, também através deste inquérito evidenciou-se um embate racializado.
Através deste confronto procurou-se demarcar as possibilidades de inserção e
manutenção em um âmbito de trabalho partilhado por brancos imigrantes e negros
brasileiros.
Ex
o
Snr. Dr. Juiz da 7
a
Pretoria Criminal,
O Representante do Ministério Público [...], vem perante V
a
Ex. dar
denúncia contra o nacional Joaquim Marques Filho
27
, com 20 anos,
solteiro, emp
o
no comércio, residente à Rua Marechal Rangel
[Cascadura] oitenta e dois, e os portugueses Antonio Ribeiro, com vinte
e cinco anos, solteiro, negociante de verduras, José de Almeida, com
trinta anos, solteiro, negociante de verduras, residente à Rua Marechal
Floriano [D.Clara] vinte e nove, Manoel Joaquim com vinte e três anos,
solteiro, negociante de quitanda, residente à mesma rua vinte e oito,
João de Aguiar com vinte e quatro anos, casado, carroceiro, residente à
27
Arquivo Nacional, Série Processos Criminais, Notação 721517.
132
Carolina Machado sem mero, e Anibal Joaquim, com dezenove anos,
solteiro, negociante de verdura, residente à rua Marechal Floriano vinte
e dois, pelo fato criminoso seguinte: A onze de maio p. findo, pelas oito
horas, mais ou menos, no Mercado de Cascadura, à Estrada Real de
Santa Cruz, o primeiro denunciado, após uma discussão com Jorge
Manoel de Lima, no mesmo deu uma bofetada, resultando disso um
conflito no qual tomaram parte o mesmo denunciado e os demais e
saíram feridos, além do dito Jorge Manoel de Lima, Alberto Machado
Coelho, Amâncio Irineu da Silva e Samuel Ferrreira como fazem certo
os autos de exame de corpo de delito.
Distrito Federal, 30 de junho de 1915.
Por volta das 8:00 da manhã, vários homens dividiam o espaço do mercado de
Cascadura (Ver Mapa IV), e alguns acabavam de chegar ao que era tido como o maior
centro de abastecimento dos subúrbios, até aquele período. Para se dirigiram quem
estava à procura de verduras para serem revendidas ou de materiais para o trabalho.
Encontravam-se ainda no local outros trabalhadores como carregadores, além de
comerciantes e proprietários de pequenos negócios ligados à lavoura. O pedreiro
Samuel Ferreira, por exemplo, morava em um dos subúrbios formados a partir da Linha
Auxiliar, e havia ido ao mercado em busca de verduras, que objetivava revender,
quando viu
[...] um grupo de seis ou mais portugueses, armados de grossos cacetes
esbordoando a diversos outros indivíduos que fugiam; que como nada
tivesse com aquele fato não se afastou de onde se achava, quando os
referidos portugueses o atacaram também, tendo o de nome Jo de
Almeida lhe vibrado forte pancada no braço esquerdo, com um grosso
cacete, fraturando o seu braço; que ignora por completo [sic] dessa
estúpida agressão.
A incompreensão que Samuel demonstrou na delegacia diante do que ocorrera
naquela manhã, provavelmente por o ter nenhum vínculo mais estreito com aqueles
que trabalhavam no mercado de Cascadura, perpassou a narrativa do também pedreiro
Alberto Machado Coelho, que procurava comprar sarrafos no madereiro, ocasião em
que conforme ele,
[...] um grupo de portugueses, todos armados de grossos cacetes,
começaram a agredir a todos que ali se achavam, obrigando a todos a
fugirem; que aquela agressão estúpida, provocou indignação da parte
dos populares, que começaram a protestar contra aquele bárbaro
procedimento; que depois de agredirem a diversas pessoas esse grupo
refugiou-se dentro de uma serraria e para dentro dela alguns populares
atiraram pedras sobre o grupo agressor; que ele [...] que se achava na
porta da serraria a pedido do dono da mesma procurava acalmar os
populares, quando José de Almeida, que fazia parte do grupo agressor e
133
que estava refugiado na serraria, apanhou as pedras que caíram ali e as
arremessa sobre os populares e como o declarante o repreendesse José
de Almeida atirou-lhe duas pedras ferindo-o no braço e mão direitas;
que depois o declarante soube que esses portugueses que trabalham
no referido mercado assim procederam combinados, dizendo
quererem agredir aos pretos, mulatos e brasileiros.
As agressões a que se referiram Samuel, brasileiro, preto, 29 anos, analfabeto,
casado e morador na rua Amália 288, mas também Alberto, brasileiro, branco, pedreiro,
com 27 anos, sabendo ler e escrever, casado e residindo na rua Itaquaty 45, tiveram
como alvo o jovem Jorge Manoel de Lima, vendedor de quitanda, preto, com 19 anos e
residente no subúrbio da Piedade, rua Regina Reis 22, o primeiro a receber as ofensas
físicas que desencadearam o conflito.
[...]
hoje pela manhã [...] estava no Mercado de Cascadura [...] onde
fora comprar verduras, quando Joaquim Marques, que é filho do senhor
[Fernão ?] Marques ali estabelecido, começou a provocar o declarante
sem motivo e como protestasse Joaquim Marques lhe deu uma bofetada,
tendo o declarante se atracado com o mesmo e nessa ocasião o
português Antonio Ribeiro armou-se de um grosso pau e deu-lhe uma
cacetada nas costas e como acudissem dois pretos para apaziguar o
barulho diversos portugueses reuniram-se armados de cacete e
começaram a agredir a todos e diziam que queriam dar nos pretos,
mulatos e brasileiros; que viu quando o português de nome Jo de
Almeida deu um uma forte cacetada no braço esquerdo do preto Samuel
Ferreira, sem que nada este fizesse; que também viu quando José de
Almeida apanhando pedras e arremessando-as sobre todos, tendo uma
das pedras atingido a um indivíduo que caiu ferido; ignorando o
declarante quem seja este indivíduo e seu paradeiro; que o grupo de
portugueses armados de grossos cacetes começaram a agredir a torto e a
direito, obrigando todos a fugirem.
Outros vendedores de verduras e moradores dos subúrbios que estavam no
mercado no momento do conflito foram ao 23
o
Distrito Policial, e lá narraram através de
uma linguagem racializada as divergências que levaram trabalhadores portugueses e
negros brasileiros a se posicionarem em campos opostos. Além disso, estas versões
reafirmaram uma certa hierarquia racial expressa por alguns dos que foram feridos
que ordenava os sujeitos segundo o critério da cor da pele. Os primeiros a serem
agredidos seriam os pretos, depois os mulatos e por fim os brasileiros. Um deles foi
Amâncio Irineu da Silva com 27 anos, casado, residente na rua Maria Jo 132,
Madureira, que declarou ter visto
[...] Joaquim Marques agredi[r]u a um crioulo a quem provocara e em
virtude disso diversos portugueses armados de cacetes vieram em
auxílio de Joaquim Marques e começaram a agredir a diversas pessoas
134
procurando sempre ofender aos pretos, mulatos e brasileiros, pois eles
diziam que essa raça de gente não havia de ficar ali; que em dado
momento Joaquim Marques armado de cacete investiu para o declarante
e vibrou-lhe diversas cacetadas que não o atingiram por ter delas se
desviado, porém foi alcançado por duas cacetadas nas costas vibradas
pelo português Manoel Joaquim que correra em auxílio de Marques;
que viu quando o português José de Almeida vibrou a cacetada em
Samuel Ferreira quebrando-lhe o braço e bem assim quando o de nome
Antonio Ribeiro vibrara duas cacetadas em Jorge Manoel de Lima; que
diversos desses portugueses além dos paus que conduziam ainda
arremessaram pedras sobre todos que ali se achavam; que assim em
grupo afugentaram a todos e entraram em uma serraria de onde jogaram
pedras; que nessa ocasião, viu o português de nome José de Almeida
atirar duas pedras sobre Alberto Machado Coelho ferindo-o no braço e
na mão direita.
Ramiro Bento do Nascimento e Olegário Ramos de Oliveira, analfabetos e
solteiros, moradores no subúrbio da Piedade, respectivamente com 21 e 28 anos,
produziram versões para o caso no mesmo sentido das que já foram citadas acima. A
fala de Ramiro, no entanto, ao narrar que Joaquim Marques “vibrou” uma bofetada em
Jorge, e nesta ocasião, teria recebido o “auxílio” do português Antonio Ribeiro, que
“deu uma ou mais cacetada em Jorge”, aproximando-se então “dois pretos” que não
consentiram que “continuasse[m] a esbordoar Jorge que também é preto”, construiu de
modo interessante uma visão acerca da população negra naquele momento histórico. Em
suas declarações Ramiro colocara que
diversos portugueses começaram a armarrem-se de grossos cacetes e
reunidos gritaram que precisavam acabar ali com os pretos, mulatos e
brasileiros e assim dizendo foram agredindo a todos homens de cor que
avistavam e brasileiros; que Joaquim Marques e Antonio Ribeiro que
faziam parte do grupo agressor vibraram diversas cacetadas no
declarante que por se livrar delas não foi atingido por nenhuma [...]
(Grifo nosso)
Se o vendedor de verduras Olegário também chamou a atenção, como estou
procurando enfatizar, que uma linguagem racializada foi utilizada como instrumento de
luta para demarcar as posições entre os dois grupos naquele âmbito de trabalho, pois
segundo ele “[...] diversos portugueses armarram-se de grossos cacetes e disseram que
ali não havia de ficar um preto, mulato ou brasileiro e assim começaram a distribuir
cacetadas a torto e direito [...]”, no trecho apresentado por Ramiro, de modo mais
explícito, os “homens de cor” foram separados dos “brasileiros”.
135
Ao destacar este ponto pretendo sugerir que no contexto pós-emancipação é
possível entrever que a incorporação da população negra, preta ou mestiça, à categoria
de brasileiros, ou seja, enquanto integrante de uma nacionalidade, não se deu de forma
mecânica e direta com a abolição da escravidão. A partir deste conflito ocorrido nos
anos de 1910, sobressaem-se identidades marcadas por um pertencimento racial e étnico
que não se confundiam com uma concepção de nação mais ampla. Todos os “pretos”
agredidos eram brasileiros, entretanto, isto não foi considerado como o elemento
principal nas falas das testemunhas, que ao procurarem reproduzir as enunciações dos
imigrantes, construindo assim as suas interpretações para o que se passou, evidenciaram
uma classificação na qual ser brasileiro apareceu como o último nível de uma percepção
identitária. Aliada a estas proposições, proponho que o manejo da categoria crioulo
parece cumprir um papel peculiar, pois no período republicando indicaria uma condição
social inferiorizante dos negros cuja origem estava no país. Se durante o sistema
escravista esta noção foi utilizada como própria àqueles escravos que tinham a pele
preta assim como os africanos, porém nascidos no Brasil, seguindo à risca este
entendimento, à medida que o tráfico internacional de africanos foi rompido e o regime
escravista solapado, todos incluídos nesta hierarquização pela cor seriam crioulos, isto
é, pretos nascidos no país. O que parece ocorrer, no entanto, é que apesar da origem em
território brasileiro, aos que foram assim identificados atribuiu-se um status social e
político ao invés de se enfatizar uma característica partilhada pelos pretos brasileiros, ou
seja, parte dos cidadãos. Uma inversão deslocou o foco político que perpassava a
categoria: de um mecanismo racializado que durante o escravismo servia para traçar
distinções entre aqueles que pretos pudessem ser escravos, africanos (estrangeiros) ou
brasileiros (nacionais), passou a uma divisão no interior da população negra, através da
qual se aproximavam alguns e se afastavam outros de uma identidade nacional, na
recente república.
Ouvidos os portugueses no mesmo dia em que se deu o confronto, apareceram
versões que afirmavam sobre a agressão de Joaquim Marques ao “crioulo” Jorge
Manoel da Silva, porém que negavam a participação dos depoentes no grupo de
portugueses. Manoel Joaquim, analfabeto e morador na rua Marechal Floriano 28,
Madureira, falou que:
[...] não é verdade que tivesse tomado parte do grupo de seus patrícios
que hoje reunidos andaram armados de cacetes agredindo diversas
pessoas no Mercado de Cascadura, que viu Joaquim Marques dar
136
uma bofetada em um crioulo de nome Jorge e Antonio Ribeiro dar
também neste uma cacetada; que do grupo pode afirmar que faziam
parte estes dois e mais o de nome José de Almeida que estavam
armados de cacete; que é verdade que ele refugiou-se também na
serraria, receioso de sofrer qualquer agressão, não fazendo, porém, parte
do grupo agressor [...]
José de Almeida, sabendo ler e escrever, vizinho de Manoel Joaquim, pois
residiam na mesma rua, em seu depoimento disse que:
[...] não é verdade que fizesse parte do grupo de patrícios seus que hoje
pela manhã armados de cacete, agredissem a diversas pessoas no
Mercado de Cascadura, sendo falso que o declarante estivesse armado
de cacete ou que agredisse a quem quer que fosse; que viu Joaquim
Marques agredir ao crioulo Jorge em quem deu uma bofetada [...]
Antonio Ribeiro, que possuía o mesmo endereço de José de Almeida, rua
Marechal Floriano 29, analfabeto, narrou assim o caso:
[...] negocia em verduras no Mercado de Cascadura [...], e ali se achava
hoje pela manhã, por volta das oito horas, quando viu Joaquim Marques
dar uma bofetada em um crioulo; que os vendo atracarem-se deles se
aproximou para separá-los, sem no entretanto, ofender fisicamente a
quem quer que fosse; que é falso que o declarante estivesse armado de
cacete ou tomado parte do grupo que ali procurava desordem; que não
sabe quais os seus patrícios que tomaram parte desse grupo [...]
João de Aguiar, Agostinho de Almeida, Anibal Joaquim e Antonio Teixeira,
acusados de fazerem parte do grupo de portugueses, negaram uma participação ativa no
conflito apesar de assumirem em seus depoimentos que ele se deu entre seus “patrícios”
e um grupo de “crioulos”, quando Joaquim Marques deu uma bofetada em um destes.
Assim como os outros portugueses acusados de desencadearem a confusão, estes
sujeitos trabalhavam em torno de atividades comerciais, como negociantes de verduras
no mercado. Majoritariamente solteiros com idades entre 19 e 32 anos, analfabetos,
moravam todos na mesma rua, Marechal Floriano, na estação de D. Clara, quando não
no mesmo número, 29, à exceção do primeiro que era carroceiro, sabia ler e escrever,
casado e residia na rua Carolina Machado sem número. Diferentemente dos sujeitos que
foram agredidos, quase todos negros, bem como dos portugueses acusados de tais ações,
o “nacional” Joaquim Marques não depôs na delegacia quando da ocorrência da briga.
Suas declarações foram ouvidas quase quinze dias após o fato, e neste momento,
ofereceu esta versão à polícia:
[...] que na manhã do dia onze deste mês [maio] estava no Mercado de
Cascadura, onde trabalha, quando, para se desviar de um crioulo, que
caíra por cima do declarante, o empurrou, tendo por isso o crioulo se
137
atracado com o declarante, que procurou defender-se dando-lhe com a
mão no rosto, que outros crioulos em auxílio deste, quiseram agredi-lo,
o que não conseguiram por ter o declarante fugido para dentro da casa;
que depois soube que por esse fato diversos portugueses armados de
pau agrediram aos crioulos, não tendo presenciado o fato e ignorando
quem tivesse tomado parte do conflito
Mapa IV. Carta Cadastral do Distrito Federal, 1918.
Ba
Fonte: Seção de Cartografia. Acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro.
Arroz
Frutas e
verduras
Laranjas,
fruta do
conde,
abacates,
abóboras
Galinhas
e ovos
Arroz,
batatas,
milho,mandi
oca, legumes
Legumes
e bananas
Legumes, bananas e verduras
Frutas,
hortaliças,batatas
aipins,
Uvas, maças,
peixes, bananas,
laranjas, batatas,
aipins, verduras,
legumes
Bananas,
legumes,
milho
,
Verduras,
hortaliça,
bananas
Mercado
Grande
Mercados
Mercado de
Madureira
Mercado de
Cascadura
138
4.3 DAS HISTÓRIAS QUE FAZEM UM BAIRRO
Apesar de ser atribuída à D. Clara imagens negativas pela imprensa local como
foi visto no Echo Suburbano, estas não restringiam àqueles que se apresentavam como
os “suburbanos” que moravam na freguesia da Irajá. No entanto, do ponto de vista
histórico, estas representações sociais foram forjadas a partir de um determinado
momento, relacionadas a alguns dos que residiam e a certas práticas sociais.
Corroborando este pressuposto faço menção a uma nota publicada na seção “Pelos
Subúrbios”, do Correio da Manhã.
É esta a localidade a menos movimentada de toda a zona suburbana e
em sua maior parte não está edificada.
As estradas, os caminhos, não obedecem a um alinhamento regular e
quando chove se transforma em lagoas.
A estação da estrada de ferro é uma pequena gaiola de madeira.
Policiamento não há nesta localidade, que também não é das mais
procuradas pelos desordeiros.
Por ali há muito capim pelas ruas e não é de admirar, quando em outros
lugares dos subúrbios ruas em idênticas condições ou mesmo muito
piores.(CORREIO DA MANHÃ, 13/1/1904.)
Fonte:
A partir de que momento e como a esta estação ferroviária e às ruas que foram
sendo ocupadas se construíram aquelas imagens? (Ver Anexo I) É interessante que no
início do século XX, mais precisamente em 1904, quando os projetos de reformas
urbanísticas na área central do Rio de Janeiro estavam sendo implementados, o jornal
fez menção a estradas e caminhos, apontando para uma paisagem de caráter rural, pouco
edificada, assim como para a ausência de uma infra-estrutura urbana, além do pouco
interesse de “desordeiros” por D. Clara. Acrescento a isso que através da pesquisa junto
Estação de D. Clara, 1908.
Fonte:
www.estacoesferroviarias.com.br/efcb_rj_lin
ha_centro/donaclara.htm
139
à documentação organizada sob a rubrica “Licenças para sociedades carnavalescas”
28
,
foi possível identificar, pelo menos nos anos de 1910, grupos e organizações sociais
distintos daqueles caracterizados como “cafagestada réles e meretrizes”, segundo o
Echo Suburbano.
Entre 1915 e 1920 período em que consegui encontrar referências sobre
Madureira e D. Clara na documentação citada –, existiam estabelecidas em torno desta
última estação sociedades recreativas, carnavalescas e uma entidade política
republicana, e imagino que também moradores de classes e status sociais distintos.
Em 1
o
de janeiro de 1915, por exemplo, Tibúrcio [sic] Gonçalves de Souza,
presidente do Lyrio Club
29
, sociedade dançante fundada em 25 de dezembro de 1914,
solicitou ao chefe de Polícia do Distrito Federal a aprovação dos estatutos, bem como
licença para o “livre funcionamento em D. Clara”. A sede do Lyrio Club, que se chamou
anteriormente Lyrio dos Amores, ficava na rua Maria José n
o
113 e, de acordo com os
seus Estatutos a sociedade seria composta de ilimitado número de sócios de qualquer
nacionalidade; estaria presente no enterro de seus associados, bem como nos de
membros de suas famílias. Além disso, no item Da admissão dos sócios” definia-se
que “O club admite em seu seio cidadãos de qualquer cor ou religião, que a ele queiram
pertencer desde de que satisfaça[m] as exigências destes estatutos”, quais sejam:
Parágrafo 1
o
: Dentro das condições estabelecidas para admissão dos
sócios, serão observadas as seguintes: Não ser menor de 18 anos, não
ter sua reputação manchada pela prática de qualquer ato reprovável ter
ocupações honestas e não se achar envolvido em processo crime.
Parágrafo 2
o
: As propostas para sócios serão feitas por escrito e
assinadas por sócios quites, que declararão o nome, idade, estado,
naturalidade, residência e lugar onde trabalham seus propostos, sendo as
mesmas propostas remetidas à secretaria para o processo legal.
Parágrafo 3
o
: Depois de ouvida a Comissão de Sindicância, que dará
parecer a respeito, será a proposta submetida à aprovação da Diretoria,
que observando o disposto do parágrafo 1
o
do presente artigo, poderá
aceita-lo ou não, embora o parecer daquela Comissão seja favorável.
(ESTATUTOS DO LYRIO CLUB, 1/6/1915, p.1-8)
Somados a estes condicionantes relativos à aceitação de cidadãos de “qualquer
cor e religião”, que implicam no estado de suspeição a que estavam sendo relacionados
justamente os que fossem de certas cores e religiões, o Lyrio Club cobrava um
pagamento de 5$000 milis de contribuição, sendo 3$000 em jóias e 2$000 de
mensalidade, por ocasião da admissão; impedia a formação de um par constante para as
28
Arquivo Nacional, Série Justiça.
29
Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ
6
563 (1915), caixa 528; IJ
6
564 (1915).
140
diversas danças e entre estas proibia o “‘Maxixe’, Passinho, Balancinho, Para-Queda ou
danças com os braços cruzados ou unidos à dama”, mas também conversas entre
homens e mulheres nas janelas, no recinto e na parte externa da entidade. Segundo o
documento, a sociedade dançante ficaria responsável em arrendar ou alugar um
botequim, cuja propriedade seria da entidade.
Ainda no mês de janeiro daquele ano, o presidente do Club Carnavalesco
Caprichosos da Vitória cuja sede era na rua Alaíde n
o
16, João dos Santos, pediu licença
para o funcionamento, pois os estatutos já teriam sido aprovados. Em fevereiro, também
o Suspiro de Amor, sociedade carnavalesca situada na rua Dr. Frontin n
o
93, em D.
Clara, solicitou ao chefe da Polícia da cidade através de seu presidente, Raul Olimpio de
Oliveira Campos, uma licença para sair às ruas durante os três dias de Carnaval. A
autorização, que dentro da rotina burocrática da instituição passava por diversos órgãos
até chegar ao distrito policial no qual as sociedades estavam circunscritas, não sofreu
nenhuma oposição do comissário local, que informava “[...] A Sociedade Suspiro de
Amor [...] é composta de operários ordeiros e em 1914, saíram, licenciados, à rua, onde
bem se portaram seus associados”. próximo ao final daquele ano, em novembro, o
Prazer da Mociedade, um grupo infantil de pastorinhas organizado por Fausta Maria da
Conceição, que morava na rua Carlos Xavier n
o
64, pedia licença “[...] para sair às ruas
desta cidade, incorporadas com cantos musicais durante os festejos de Janeiro,
garantindo tratar-se de pessoas idôneas”.
No ano seguinte, a Concentração Republicana de D
a
Clara
30
demandava a
aprovação de seus estatutos. Fundada em 16 de abril de 1916, seus objetivos eram
“pugnar pelo interesse material de D
a
Clara e Madureira; trazer a sua propaganda na
praça pública, pela imprensa e na sede social; promover o alistamento como eleitores
todos os sócios brasileiros; proteger os seus sócios a juízo da diretoria; e criar uma
biblioteca e arquivo aonde se encontrem livros, jornais, revistas e documentos oficiais
que facilitem o estudo do Distrito Federal”. Todo cidadão nacional ou estrangeiro que
estivesse no gozo de seus direitos civis e residisse no segundo distrito eleitoral poderia
participar da sociedade – desde que maior de 18 anos, de reputação conhecida, e
proposto por sócio quite –, o qual deveria ainda pagar 1$000 mil réis mensais, até que a
matrícula atingisse o número de 300 réis, quando então se passaria a pagar 500 réis por
trimestre.
30
Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ
6
597 (1916), caixa 554.
141
Ao final do documento os membros da diretoria apresentam-se e fornecem seus
endereços, o que permite indicar que a entidade é formada por um número considerável
de militares, moradores da localidade. A comissão que produziu os estatutos era
formada pelos tenentes Manoel Vieira da Silva, presidente, que morava na rua Capitão
Macieira 2, e Francisco Peraphan [?] Fernandes, primeiro secretário, residente na rua
Luiz Fernandes 17; por Serafim Branco, vice-presidente, rua Portela 29; Eduardo
Manoel Sacramento, segundo secretário, rua Alaíde 2; major Floriano Pereira, primeiro
tesoureiro, rua Estação 1; capitão Bento Guedes de Magalhães, segundo tesoureiro, rua
Frontin 7; João Antônio sic, primeiro procurador, rua Maria José 106 e Albano José de
Souza, segundo procurador, rua Estação 8. A sede da entidade, no entanto, mudou de
endereço, e em junho estava estabelecida na rua Domingos Lopes 213, e novamente
requereria licença, que foi concedida, e a aprovação dos estatutos. João Pessoa,
comissário da polícia do 23
o
Distrito Policial informou assim que a [...] Concentração
Republicana de D
a
Clara [...] é composta de pessoas idôneas. Quanto a Serafim Branco,
foi o mesmo processado por esta delegacia, por se intitular autoridade estando os
respectivos autos na 7
a
Pretoria Criminal”.
Alguns anos depois, em 1920,
o Club Recreio Familiar
31
, localizado na rua
Maria José 113, por meio de requerimento do primeiro secretário Mário Lopes de
Oliveira, também solicitava licença para funcionar em 1921, e Félix Moreira de Jesus,
presidente do Grêmio Dramático Recreativo 22 de Março, fundado na data a que faz
referência o nome da entidade, ao final de dezembro daquele ano, requer também
licença, além da aprovação de seus estatutos. Aceitando sócios de qualquer
nacionalidade, Para serem admitidos, [...] deveriam estar em perfeita saúde e não ter
defeito físico que no futuro o[s] impossibilite[m] de trabalhar”.
Se o território da parada ferroviária de D. Clara fora conformado de modo
heterogêneo no que se referia às origens e condições sociais daqueles e daquelas que
viviam, como a imagem da desordem lhe foi sendo acoplada? No início dos anos 1920,
Orestes Barbosa, jornalista e cronista atuante em vários periódicos de destaque do Rio
de Janeiro, publicou um livro intitulado Bambambã após cumprir pena na Casa de
Detenção por calúnia e difamação. Dentre os textos apresentados aos leitores, no A
Favela” estabelece uma correlação entre o chamado morro da Favela, localizado no
centro da cidade, e as paragens suburbanas de Madureira e D. Clara. O autor enfatiza a
31
Arquivo Nacional, Série Justiça, IJ
6
728 (1920).
142
presença de um “ajuntamento” de sujeitos sociais diversos marinheiros, soldados,
fuzileiros navais, entre outros –, desenvolvendo práticas sociais que estariam
caracterizadas pela ilegalidade e violência, embora uma inserção feminina, comum nas
manifestações públicas sobre estes subúrbios, não tenha recebido relevo.
Como Madureira e D. Clara, a Favela reúne o que há de eminente no
nosso mundo criminal.
Mas, também em Madureira e D. Clara, se o leitor saltar alta noite, há
de dizer comigo que tudo isso é mentira de cronistas dos jornais.
O leitor principiará vendo tudo direito e em silêncio. Mas se o leitor sair
da estação, talvez não volte mais para desmentir o escritor. Se entrar
pela travessa Carlos Xavier ou pelas bananeiras verá o monte
fervendo.Em mesas toscas com os punhais cruzados num sinal
apavorante de união e morte. Marinheiros, soldados, fuzileiros navais,
ladrões do mar e rebombeiros das docas Floriano arriscam,
sofregamente, as moedas escassas, num jogo que é comumente o
prólogo do último dia, como foi para o Vicente Vigorito, negociante de
bois, apunhalado e saqueado por João Agé que era o seu amigo do
coração. (BARBOSA, 1923, p.114)
Esses pronunciamentos relativos à D. Clara extrapolaram as décadas de 1910 e
1920 e mais de vinte anos depois, no Almanaque Suburbano, uma publicação voltada
aos moradores dos subúrbios, recuperou-se uma identidade territorial que vinha sendo
forjada algum tempo para aquela estação. Isto, no entanto, não era tudo. Nos anos de
1940, de acordo com esta revista, homens e mulheres que fizeram história e que haviam
se tornado personagens daquela paragem foram localizados como participantes de um
tempo passado. O “Arquivo Vermelho” que fora aquela “Favela Suburbana” eivado
de estatísticas criminais que faziam D. Clara figurar nas crônicas policiais de modo mais
constante do que o morro da Favelaseria então “reminiscências”. A parada ferroviária
havia se transformado em um subúrbio pacato” graças às ações enérgicas do chefe da
Polícia do Rio de Janeiro, Alfredo Pinto, que tentara exterminar a alfúrgia suburbana.
Mandara para a delegacia de Madureira um delegado ativo e enérgico, o ex-vereador
Corrêa Dutra. Conseguiu fazer alguma coisa”. Alguns personagens locais, no entanto,
mereceriam ser lembrados.
Não podemos deixar de falar nessas reminiscências de uma figura que
todos os cronistas policiais conheceram. “Maria Sapeca”. Na zona do
barulho era a rainha da navalha, como fora dos malandros. Bonita
cabrocha
32
. Fazia correr homem quando brandia a “sardinha”. Em roda
de “ases” da malandragem, dos valentes, davam-lhe, de bom grado o
melhor “jogo”. Revidava, porém toda a “sujeira”. “Topava a parada”. A
32
Cabrocha Bras. 1. Qualquer mestiço escuro. 2. Mulata jovem. In: Minidicionário da língua portuguesa
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira. 4
a
edição. Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2001.
143
própria polícia inúmeras vezes nos casos sangrentos, em que a
autoridade corria perigo, ajudou “Maria Sapeca” a vencer os “bambas”.
O destino de “Maria Sapeca” era acabar no próprio ambiente em que se
criara. Era mulher. Tinha um coração. Sentiu uma paixão forte por um
rapaz, filho de velho comerciante de Madureira. A cabrocha desviara-o
do bom caminho. Fê-lo também para orgulho seu “bamba” respeitado.
Por mais de vez, cortou o corpo do amante com a sua inseparável
“sardinha”, presa, era ele quem se empenhava para soltá-la. Uma tarde,
para os lados de Irajá, o rapaz cheio de ciúmes, matou “Maria Sapeca” a
navalhadas. A navalha era o símbolo o imã daquelas duas vidas a da
messalina cor de chocolate e o filho da família que o mau fado impelira
para o abismo (Almanaque Suburbano, 1941, p.85-86)
A trajetória de Maria Sapeca se tornou pública com a chegada do delegado
Candido Mendes de Almeida ao 23
o
Distrito Policial em 31 de outubro de 1918. A saída
daquela instituição, entretanto, não significou o seu afastamento do cotidiano da polícia.
Em 1928, como presidente do Conselho Penitenciário do Distrito Policial, Candido
Mendes apresentou a Augusto Vianna, Ministro da Justiça, o estudo intitulado As
mulheres criminosas no centro mais populoso do Brasil, um ensaio do Cadastro
Penitenciário que se pretendia realizar em todo o país, no qual eram identificadas e
analisadas as condições das mulheres sentenciadas no Distrito Federal e nos estados do
Rio de Janeiro, Minas Gerais, São Paulo e Espírito Santo.
Uma das conclusões do documento era que face ao número reduzido de
mulheres condenadas na capital do país e nos estados acima citados, se construísse em
Jacarepaguá, na cidade do Rio de Janeiro, uma penitenciária agrícola e uma colônia de
trabalho livre onde as presas seriam recolhidas e educadas na prática de trabalhos rurais
e agrícolas, e aquelas sob liberdade condicional mantidas em parcelas de lotes para a
produção. Segundo ele,
O problema da regeneração das criminosas exige cuidados meticulosos
e é ocupando-se intensamente dessa regeneração que melhor e mais
positivamente consegue a sociedade defender-se, evitando as
reincidências das criminosas que se acostumaram à vida despreocupada
das cadeias. (CANDIDO MENDES, op. cit., p.13)
Inquiridas a partir de perguntas relacionadas à nacionalidade, à naturalidade, à
idade, à cor, à alfabetização e ao estado civil, destacou-se no texto a recusa em relação à
declaração da cor pelas mulheres condenadas por vadiagem, considerada uma
contravenção: entre as 16 detidas, todas brasileiras, 14 não responderam à pergunta que
as identificava pela cor, e das duas que declararam, uma era preta e a outra branca.
Ainda segundo Candido Mendes, o estudo deveria ser publicado no Diário Oficial, mas
144
alguns comentários apareceram no Jornal do Comércio, no Imparcial, no O País, e na
seção Feminismo, dirigida pelas representantes da Federação Brasileira pelo Progresso
Feminino.
Presente em Madureira no caso narrado na primeira parte deste capítulo relativo
à briga entre o estivador Santilho e o ex-soldado Clarindo em frente a uma avenida da
rua D. Clara, ndido Mendes, que também era jornalista, publicou após sair do cargo
de delegado, algumas crônicas policiais no Correio da Manhã, e em uma delas,
destacou o que havia vivenciado naquela paragem.
Dona Clara incontestavelmente teve sempre a primazia dos noticiários
policiais. O número de mulheres daquela estação era de tal forma
impressionante que o dr. Aurelino Leal mandou fazer um
recenseamento e resolveu que a polícia impedisse pelo menos o
aumento, porque a tirar dali, viriam a se espalhar pela cidade
dificultando ainda mais o policiamento. Dada a ínfima classe a que
pertenciam, não raro se verificavam os crimes mais bárbaros movidos
por ciúme e mesmo provocados por espírito de maldade e perversão.
(apud RIO ILUSTRADO, 1936, p.169)
Através de um outro formato textual, a crônica policial, e alguns anos depois – o
conflito aconteceu em 1919 –, ele reconstrói uma narrativa para o que havia acontecido
naquela noite. De modo mais informal que a versão produzida através do processo
crime, formatado por regras, princípios e vocabulário apropriados à linguagem jurídica,
o jornalista, através do seu relato, atuava ainda de modo fundamental na construção de
uma identidade territorial para aquele subúrbio. Não eram somente de mulheres negras e
mestiças pobres que D. Clara vivia. Conforme o jornalista e ex-delegado,
[...] Tarde da noite um homem varou com uma faca, cruelmente, a
outro, deixando-o agonizante.
Reuniam-se na casa número 55 da Rua Dona Clara, as nacionais
Manoela Francisca de Jesus, vulgo “Chininha”, Maria Paulina dos
Santos, conhecida como “Maria perna de pau” e Maria Benedicta da
Silva, a célebre “Maria Sapeca”, que andava armada de navalha, dando
sempre muito que fazer às autoridades do antigo 23
o
distrito policial.
Santilho de Souza, pardo, estivador, visitante, proporcionava
verdadeiras cenas de selvageria contra os incautos que, atraídos pelos
agrados das moradoras entravam, bebiam e apanhavam...
Um soldado da 5
a
companhia de metralhadoras, desconhecido da zona,
tendo sido provocado por uma das mulheres que queria ver se ele era
homem de fato, não teve dúvida e responde prontamente ao desafio:
- Se sou homem!... dou em vocês três e em qualquer um que aqui
apareça.
- Fechado disse a “Sapeca”. T’ou contigo, batuta, mas se tu apanha
quem te risca sou eu ....
145
Palestravam assim as mulheres com o soldado quando entra o Santilho
que morava na casa em frente do número 54 e que já passara pelo
botequim vendo tudo “roxo” diante dele. Ao defrontar o soldado, o
estivador foi insultado e agredindo-o inesperadamente a bofetadas, o
que provocou a reação silenciosa do ofendido que num gesto rápido
saca de um punhal [...]
A vítima é recolhida à Santa Casa, agonizante, e o acusado fugiu sem
saber ao menos o nome. O mulheriu inquerido na delegacia, não podia
esquecer a cena e choroso lamentava o valente que tombara e enaltecia
o vencedor, tão bom na ponta do ferro. op. cit.] (Grifo do autor)
Ao confrontar o inquérito produzido a este relato, uma visão mais pessoalizada
perpassa a narrativa do jornalista, e as mulheres que anteriormente foram identificadas a
partir de seus nomes, são localizadas por apelidos. Assim, revelou-se que as domésticas
mineiras Manoela Francisca de Jesus ou Manoela Thereza de Jesus, e Maria Benedicta
da Silva que em 1919 se apresentou como viúva seriam conhecidas como,
respectivamente, Chininha e Maria Sapeca; a carioca Maria Paulina chamada àquela
época de Caxangá
33
, era chamada de Maria perna de pau. A partir dos apelidos destas
moradoras de D. Clara, que não permaneceram muito tempo na localidade depois da
briga Manoela, por exemplo, fora residir no morro do Salgueiro, e Maria Paulina no
subúrbio de Deodoro –, manifestou-se uma alusão a características físicas ligadas aos
membros inferiores, e provavelmente, ao exercício de capoeiragem que, no que se
referia à Maria Sapeca, era apresentado como marca constante de seu comportamento
pela imprensa.
Com base nas crônicas de Candido Mendes e do Almanaque Suburbano, que
deve ter se inspirado no relato do primeiro, pois foi publicada no início dos anos 1940,
sinalizo para uma alteração semântica que perpassa a descrição daquelas moradoras de
D. Clara, procurando indicar que isto poderia se relacionar com o contexto político da
época, pós-30. Ao iniciar o seu texto, o jornalista se apropriou da noção de nacionais
para se referir à Maria Sapeca, Chininha e Maria perna de pau (ou Caxangá), apesar de
destacar que ao lado do Santilho, o estivador pardo, cenas de selvageria contra os
incautos que, atraídos pelos agrados das moradoras entravam, bebiam e apanhavam”
eram comuns na casa em que elas moravam. Apesar da menção à cor de Santilho, em
nenhum momento Candido Mendes menciona a das mulheres, e no início da crônica os
resume a uma “ínfima classe”, que agiriam por “ciúme” e “espírito de maldade e
perversão”, realizando os “crimes mais rbaros”. O modo de falar das mulheres, que é
33
Caxangá é um crustáceo cujo corpo tem cinco patas. (op.cit)
146
reconstruído no corpo da crônica, o porte da navalha e a chamada para uma disputa a
partir de um questionamento sobre a masculinidade do soldado Clarindo, foram os
símbolos utilizados para caracterizá-las.
Por outro lado, no Almanaque Suburbano, uma linguagem racializada foi
fundamental para descrever Maria Sapeca, mas o que se destacou remete a uma espécie
de tangenciamento das categorias raciais ao se comparar àquelas manifestadas em
relação à Flor da Gente e Maria Bexiguinha, identificadas como “crioula” e “preta”,
contemporâneas de Maria Sapeca. “Bonita cabrocha” e “messalina cor de chocolate”,
possivelmente, eram as definições que sustentavam uma das formas de entendimento
social a respeito da inserção de mulheres negras quase vinte depois, em um contexto
cuja ideologia da democracia racial e de país mestiço ainda apontava o branqueamento
da nação como um caminho para o desenvolvimento social e econômico. Neste sentido,
o processo de incorporação da população negra, preta ou mestiça, a uma identidade
brasileira, poderia ser pensado, tomando-se os exemplos citados, através também de
estratégias sociais, políticas e discursivas que visavam a atenuação da sua origem
africana.
147
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao aguçar o olhar para a desnaturalização das categorias raciais procurei, neste
trabalho, apontar que através de noções ligadas à cor das pessoas é possível referir-se a
relações de poder, hierarquias e condições sociais. Sugerir que estas práticas
racializadas se materializam no espaço, em um processo que denota os sujeitos mas
também os territórios, foi uma das propostas deste texto. “Povoado selvagem da
África”, “quilombo” e “locanda”, por exemplo, eram as expressões que no início do
século XX explicitavam que uma cidade africana era pensada como antítese da
modernidade e do progresso pautados pelas classes dominantes. Se o então Distrito
Federal deveria romper com este “passado” para se tornar civilizado, urbanizá-lo não foi
uma prática nem um processo neutro, tampouco uniforme à cidade. Também não
ocorreu de modo mecânico e imediato, como um ato mágico. Os confrontos marcaram
presença, delimitaram territórios, e acredito que esta é uma das leituras possíveis do
primeiro capítulo.
O que me parece importante enfatizar, no entanto, é que este entendimento
social não se restringia a uma interpretação cujo objeto seria apenas o espaço. Logo,
aqueles que ocupavam-no, produzindo outras territorialidades, também eram vistos
como incivilizados. Sugiro, inclusive, que ao desenvolver esta dissertação deparei-me
com um contexto social e histórico duplamente violento no período pós-emancipação.
Em primeiro lugar porque nele aliou-se desigualdade sócio-econômica à cor, de modo
que os homens negros moradores de Madureira estavam inseridos no mercado de
trabalho como trabalhadores subalternos ou subempregados criados, trabalhadores
braçais, pedreiros, carroceiros, estivadores –, e no caso feminino alcançavam-se
situações mais extremas, pois a maioria das mulheres se apresentou como doméstica,
além da suspeita constante de se utilizarem desta condição para a prostituição. Contudo,
além de pobres, eram passíveis de serem identificados como menos humanos em função
da cor, deslizando-se assim para uma construção social e política que os posicionava
como os portadores dos barbarismos da não menos violenta sociedade escravocrata.
Através do segundo e terceiro capítulos, no entanto, o passado fez-se presente, e
não como reprodução de batuques, zungus, capoeiragens ou feitiçarias. Talvez o que me
tenha permitido reunir Otávio, Juca Bombacha, Daniel Viana às contemporâneas Flor
da Gente, Maria Bexiguinha e demais Marias em Madureira e D. Clara, não se reduza
apenas às suas formas de sociabilidade, seus conflitos com imigrantes, mas também
148
com brasileiros, pois sugiro que mesmo afirmando alianças e disputas, portavam modos
particulares de conduta, de negociação ou de ativação de divergências. Não sabemos se
Juca Bombacha, Caxangá ou Maria perna de pau, apesar de seus apelidos, eram de fato
capoeiras, assim como Otávio por ter sido diversas vezes acusado de desordeiro, ou se
Daniel Viana participava de batuques porque era negro. Neste sentido, chamo a atenção
para o fato de que as tentativas institucionais de transformá-los em objetos
identificáveis, possam ter forjado maneiras de se referir a eles nas quais a cor seria a
principal marca. Este poderia ser um dos vínculos que ligava o passado ao presente.
Além disso, destaco que entre os anos de 1902 e 1920, Madureira e D. Clara se
espraiaram. Migrantes e imigrantes se estabeleceram naquelas paragens, ainda que
houvesse aqueles e aquelas que estivessem lá de passagem. Alguns contaram com quem
pudesse lhes oferecer abrigo, outros dividiam uma mesma morada, uns perambulavam
pelas ruas. Muitos dos fragmentos das histórias mostram que a instabilidade
habitacional esteve presente nas duas primeiras décadas do século XX; a mudança de
endereços no interior do próprio subúrbio e a permanência em curtos espaços de tempo
também corroboram esta afirmação, assim como a ausência da numeração de casas em
muitas situações revela que os órgãos da prefeitura por não haviam passado
implementando alguns serviços e cobrando taxas. De qualquer forma, novos moradores
e moradoras chegavam. Destaco, no entanto, que estes não devem ser vistos em bloco.
Havia diferenças de origem, condição social, cor, gênero que tinham um peso efetivo no
convívio social. Ao longo daqueles anos Madureira e D. Clara vivenciaram disputas
individuais, mas nem por isso menos coletivas, pelo mercado de trabalho, por posições
de poder e status locais, e pelo território.
Com base neste debate, espero que tenha conseguido colaborar com a temática
dos estudos urbanos no sentido de propor um enfoque no qual um ideário racista possa
ser considerado como um instrumento político que compõe os projetos e medidas que
objetivam a intervenção do Estado e de concessionárias privadas na conformação das
cidades que devem ser vistas e pensadas enquanto totalidade. Além disso, explicitar
que modelos de urbanidades podem ser partilhados e acordados por outros segmentos
da sociedade que não exclusivamente agentes públicos e empresas particulares. O Rio
de Janeiro do início do século reverberou seus incômodos e reivindicações contra uma
população de não-proprietários, negra e mestiça. Neste sentido, a configuração que
149
assumiu ao longo dos anos, muito nos diz sobre as interdições impostas a estes sujeitos
no convívio coletivo.
150
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ARQUIVO NACIONAL
Série Processos Criminais
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G250
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G341
156
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G403
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G385
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G1630
14
a
Pretoria Criminal Notação 7G 1296
7
a
Pretoria Criminal Notação 721742
7
a
Pretoria Criminal Notação 720707
7
a
Pretoria Criminal Notação 721266
7
a
Pretoria Criminal Notação 721191
7
a
Pretoria Criminal, Notação 722202
7
a
Pretoria Criminal, Notação 721517
7
a
Pretoria Criminal, Notação 721247
14
a
Pretoria Criminal, Notação 7G724
7
a
Pretoria Criminal, Notação 721225
7
a
Pretoria Criminal, Notação 72188
7
a
Pretoria Criminal, Notação 722728
Série Justiça, Polícia, Escravos, Moedas Falsas e Africanos
IJ
6
563 (1915) cx 528
IJ
6
564 (1915), cx 528
IJ
6
595 (1916) cx 553
IJ
6
596 (1916) cx 554
IJ
6
597 (1916) cx 554
IJ
6
648 (1918) cx 598
IJ
6
649 (1918) cx 598
IJ
6
655 (1918) cx 602
IJ
6
693 (1919)
IJ
6
728 (1920)
BIBLIOTECA NACIONAL
Periódicos Consultados:
Correio da Manhã
Edições de: 17/6/1901, 18/6/1901, 20/6/1901, 24/6/1901, 3/7/1901, 8/7/1901, 1/8/1901,
11/10/1901, 13/10/1901, 18/10/1901, 19/10/1901, 24/10/1901, 26/10/1901, 27/10/1901,
157
3/11/1901, 9/11/1901, 1/12/1901, 2/12/1901, 4/1/1902, 9/1/1902, 11/1/1902, 12/1/1902,
25/1/1902, 8/2/1902, 1/4/1903, 11/4/1903, 10/12/1903, 31/12/1903, 19/1/1904,
11/3/1904, 9/4/1904, 11/4/1904, 9/6/1905.
Tribuna Suburbana (Madureira)
Edições de: 17, 18, 22, 25, 26 e 28 de janeiro de 1910.
Echo Suburbano (Madureira)
Edições de abril a dezembro de 1911.
Jornal Suburbano (Madureira)
Edições de: 28/6 e 8/11 de 1911.
Seção de Cartografia:
PLANTA da cidade do Rio de Janeiro e subúrbios. Organizada e desenhada pelo
Engenheiro Ulrik Greiner. Rio de Janeiro: Laemmert, [190?].
Acervo Geral
ALMEIDA, Candido Mendes de. As mulheres criminosas no centro mais populoso do
Brasil (Distrito Federal): estados do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Espírito
158
ANEXOS
Anexo I. Planta dos terrenos desmembrados da Fazenda do Campinho na estação de D.
Clara, 1919.
Fonte: Seção de Cartografia. Acervo do Arquivo Geral da Cidade do Rio de
Janeiro.
159
Anexo II. Estação de Madureira, 1909.
Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.
160
Anexo III. Madureira, 1926. Provavelmente próximo ao largo do Octaviano.
Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.
161
Anexo IV. Estrada Marechal Rangel, atual Av. Edgard Romero, 1923.
Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.
162
Anexo V. Bonde puxado a burro. Madureira, 1926.
Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.
163
Anexo VI. Rua Conselheiro Galvão, estação de Magno. Madureira, 1930.
Fonte: Acervo da Fundação Museu Imagem e do Som.
164
Anexo VII. Rua Carvalho de Souza. Madureira, [1928].
Fonte: Fundação Museu da Imagem e do Som.
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