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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
A LITERATURA, A FOICE E O MARTELO
DENISE ADÉLIA VIEIRA
DISSERTAÇÃO
DE
MESTRADO
JUIZ DE FORA
2004
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A LITERATURA, A FOICE E O MARTELO
DENISE ADÉLIA VIEIRA
Dissertação de Mestrado apresentada à
Coordenação do Curso de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Federal de Juiz de
Fora, como parte dos requisitos para a
obtenção do grau de Mestre em Letras.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientadora: Profª. Drª. Teresinha Vânia
Zimbrão da Silva.
Juiz de Fora
2004
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FOLHA DE APROVAÇÃO
VIEIRA, Denise Adélia. A literatura, a foice e o martelo.
Dissertação de Mestrado em Letras, área de
concentração: Teoria da Literatura, apresentada ao Curso
de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de
Juiz de Fora, 2º. semestre de 2004.
BANCA EXAMINADORA
PROFª. DRª. TERESINHA VÂNIA ZIMBRÃO DA SILVA.
ORIENTADORA ACADÊMICA
PROFª. DRª. TEREZINHA MARIA SCHER PEREIRA
PROFª. DRª. GEYSA SILVA
Examinada a Dissertação:
Conceito:
Em:
DEDICATÓRIA
À minha mãe, Alice, pela dedicação e amor, durante todos estes anos, pela paciência,
colaboração em todos os momentos em que precisei. Seu apoio, nas horas difíceis,
certamente, foi um grande estímulo para a realização deste trabalho.
A meu pai, Altair, que, mesmo ausente deste plano físico, foi, sem dúvida, um grande
guerreiro, e sua vida foi um espelho para as minhas ações e realizações.
A meu irmão, Altair, meu amigo e colaborador incondicional, nos momentos em que mais
precisei de sua ajuda.
À minha irmã, Márcia, e à sobrinha, Alice, pela preciosa boa vontade em me ajudar a superar
as limitações e por terem acrescentado um colorido especial neste trabalho.
À minha irmã, Izabel, pela mão estendida nos momentos difíceis e às minhas sobrinhas,
Laura, Fabiana e Lívea, pelo carinhoso afeto.
À Orientadora, Professora. Drª. Teresinha Vânia Zimbrão da Silva, pelo interesse desde o
primeiro momento em que falamos sobre o assunto do trabalho, mas, sobretudo, pela
paciência e dedicação no decorrer desta pesquisa.
À Professora, Cândida Leite Georgopoulus, pela dedicação em revisar o texto deste trabalho,
com uma boa vontade ilimitada. Saiba que jamais esquecerei sua rica colaboração.
À amiga, Lena, pelas palavras ternas nas horas de angústia. Seus conselhos fizeram-me
esquecer as decepções.
A meu namorado, Rogério, pelas palavras carinhosas, regadas de muita compreensão, fazendo
com que minhas ansiedades desvanecessem ao ouvi-las. Seu apoio transformou-se em jóia de
luz no meu coração.
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu amigo, por ter-me concedido a oportunidade desta reencarnação para meu
aperfeiçoamento e evolução, por ter-me presenteado com uma família unida e colaboradora,
responsável direta desta conquista, por ter colocado, em meu caminho, pessoas solidárias, sem
as quais minha vida seria vazia.
À minha Orientadora, Profª. Drª. Teresinha V. Zimbrão da Silva, pelos ensinamentos
adquiridos, pelas lições de humildade e perseverança imprescindíveis na execução deste
trabalho.
Aos Professores, Gilvan Procópio Ribeiro, Marisa Timponi Pereira Rodrigues e Leila Maria
Fonseca Barbosa, pela orientação dada para o enriquecimento da bibliografia deste trabalho.
À amiga Maria Aparecida Meyer Esch, pela boa vontade demonstrada em conseguir o
empréstimo do livro O Gororoba na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Aos funcionários do Mestrado, Francisco de Paula Moreira e Nilcimara Bertolino e Araújo,
pelos lembretes pontuais que jamais me deixaram esquecer dos compromissos assumidos.
Às funcionárias da Biblioteca do Instituto de Ciências Humanas e Letras (ICHL), Maria Lúcia
Vieira da Cruz e da Biblioteca Central, Vânia Pinheiro de Sousa, pela inesquecível ajuda nos
empréstimos e renovações dos livros e pela paciência em me ouvir.
Aos colegas do Mestrado de Teoria Literária e Lingüística da Universidade Federal de Juiz de
Fora, pelos dois anos de colaboração vividos nesta Instituição.
Aos professores do Mestrado em Letras, pela capacidade e confiança em nos direcionar para
caminhos acadêmicos profícuos.
Aos colegas de trabalho da Escola Municipal Engenheiro André Rebouças, em especial à
Secretária, Sueli Pereira Miranda, à Profª. Reinalda do Carmo Bispo e ao Prof. Frank
Aparecido Oliva, pela boa vontade de atender a todos os meus pedidos.
À Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa de
Mestrado concedida.
A todas aquelas pessoas que contribuíram de maneira sincera para a realização deste trabalho.
Todas as coisas de que falo são de
carne
Como o verão e o salário.
Mortalmente inseridos no tempo
Estão dispersas como o ar
no mercado, nas oficinas,
nas ruas, nos hotéis de viagem.
São coisas, todas elas,
Cotidianas, como bocas
e mãos, sonhos, greves,
denúncias,
acidentes do trabalho e do amor.
Coisas,
de que falam os jornais
às vezes tão rudes
às vezes tão escuras
que mesmo a poesia as ilumina
com dificuldade.
Mas é nelas que te vejo pulsando,
Mundo novo,
Ainda em estado de soluços e
esperança.
Ferreira Gullar
RESUMO
VIEIRA, Denise Adélia. A literatura, a foice e o martelo. 87 f. Dissertação (Mestrado em
Letras). Universidade Federal de Juiz de Fora, Juiz de Fora, 2004.
Esta dissertação procura analisar a temática proletária nas letras brasileiras, propondo o
seguinte recorte cronológico e temático: do socialismo e anarquismo da Belle Époque, ao
comunismo do entre-guerras. Para tanto, os três capítulos da dissertação exploram desde as
primeiras leituras da doutrina marxista no Brasil, passando pela literatura anarquista, até a
produção dos romances proletários. O trabalho registra as referências de Machado de Assis e
Euclides da Cunha a Marx. Conta também a trajetória anarquista de Lima Barreto e seu apoio
à Revolução Russa de 1917, além de discutir a relação dos intelectuais com o comunismo
desde o ano de 1922 até a década de 30. Finalmente, destaca o romance proletário através de
três obras: O Gororoba (1931), de Lauro Palhano, Cacau (1933), de Jorge Amado, Parque
Industrial (1933), de Patrícia Galvão. Objetivou-se, dessa maneira, resgatar, entre nós, a
temática proletária, esquecida à margem pelo cânone.
Palavras-chave: Socialismo; Anarquismo; Marxismo; Proletariado; Literatura.
ABSTRACT
This dissertation aims to analyse the proletarian theme in the Brazilian literature, suggesting
the following chronological cut: from the socialism and anarchism of the belle époque to the
communism of the period between the First and Second Wars. To do so, the three chapters of
the dissertation explit since the first readings of Marxist doctrine in Brazil, passing through
anarchist literature until the production of proletarian literature. The work registers the
references from Machado de Assis and Euclides da Cunha until Marx. It also tells the
anarchist trajectory of Lima Barreto and his support to the Russian Revolution of 1917.The
work discusses the relationship of the intellectuals with Communism since the year of 1922
until the 30's. Finally, the proletarian novel is emphasised through three works: O Gororoba
(1931) by Lauro Palhano, Cacau (1933) by Jorge Amado, Parque Industrial (1933) by
Patrícia Galvão. It was the goal rescue the proletarian thematic among us, since it was
forgoteen by the canon.
Key words: Socialism; Anarchism; Marxist doctrine; Proletariat; Literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................. 10
1 O SOCIALISMO E O ANARQUISMO NAS LETRAS BRASILEIRAS: A
BELLE ÉPOQUE ................................................................................................... 13
1.1 A chegada das idéias de Marx ao Brasil............................................................... 13
1.2 A referência a Marx em Machado de Assis.......................................................... 15
1.3 A chegada dos socialistas e dos anarquistas ao Brasil......................................... 16
1.4 As referências aos socialistas e anarquistas em Machado de Assis.................... 18
1.5 A referência a Marx em Euclides da Cunha........................................................ 19
1.6 O anarquista Lima Barreto................................................................................... 22
1.7 O impacto da Revolução Russa no Brasil............................................................. 23
1.8 A referência à Revolução Russa em Lima Barreto.............................................. 26
1.9 A Literatura Anarquista........................................................................................ 28
2 O COMUNISMO NAS LETRAS BRASILEIRAS: O ENTRE-
GUERRAS.............................................................................................................. 33
2.1 Do anarquismo ao comunismo.............................................................................. 33
2.2 O Modernismo de 1922 e o Comunismo............................................................... 34
2.3 Os intelectuais e o comunismo na década de 1930............................................... 36
2.3.1 Leituras.................................................................................................................. 36
2.3.2 Filiação ................................................................................................................. 38
2.3.3 Obreirismo............................................................................................................ 38
2.4 A literatura e o "proletariado"............................................................................. 39
2.5 Os filiados............................................................................................................... 40
2.5.1 Raquel de Queiroz e o Comunismo....................................................................... 41
2.5.2 Jorge Amado: um escritor do Partido.................................................................... 45
2.5.3 O Comunismo e o casal Oswald de Andrade e Patrícia Galvão............................ 48
2.6 Desfiliação............................................................................................................... 52
3 O ROMANCE PROLETÁRIO............................................................................. 54
3.1 A chegada do romance proletário ao Brasil......................................................... 54
3.2 A classificação de romance proletário.................................................................. 55
3.3 Publicações.............................................................................................................. 56
3.3.1 A publicação d' O Gororoba em 1931................................................................... 56
3.3.2 A publicação de Cacau em 1933........................................................................... 57
3.3.3 A Publicação de Parque Industrial em 1933......................................................... 59
3.4 A questão do narrador........................................................................................... 60
3.4.1 O Gororoba........................................................................................................... 61
3.4.2 Cacau..................................................................................................................... 63
3.4.3 Parque
Industrial...................................................................................................
65
3.5 Os romances............................................................................................................ 65
3.5.1 O Gororoba........................................................................................................... 65
3.5.2 Cacau..................................................................................................................... 73
3.5.3 Parque
Industrial...................................................................................................
76
3.6 O resgate do romance proletário.......................................................................... 80
CONCLUSÃO............................................................................................................... 82
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................ 83
BIBLIOGRAFIA COMPLEMENTAR...................................................................... 85
INTRODUÇÃO
A idéia inicial era escrever uma dissertação sobre romance proletário. A motivação
surgiu durante a própria leitura da bibliografia para a seleção do mestrado. Em Imagens
Negociadas, livro indicado então, deparei-me com comentários do autor, Sérgio Micelli,
sobre Patrícia Galvão e o seu romance proletário, Parque Industrial, comentários que
aguçaram minha curiosidade sobre a autora e o gênero de romance que praticara.
Iniciei então uma investigação e tive a sorte de encontrar um exemplar de Parque
Industrial, em sua primeira edição (1933), em um sebo de São Paulo; encontrei-o ainda, em
sua segunda edição (1994) na livraria da Universidade Federal de São Carlos. Constatei que,
até esta reedição, o romance era uma raridade.
Cada vez mais interessada no gênero romance
proletário, fui aos poucos descobrindo diversos
outros autores brasileiros, além de Pagu e Jorge
Amado, que o praticaram na década de 30. Consegui
encontrar alguns destes romances, a maioria, em
sebos de São Paulo; outros tive que pedir de
empréstimo em bibliotecas de universidades de São
Paulo e Rio de Janeiro.
Decidi procurar por outras manifestações da temática "proletária" na literatura
brasileira. Interessei-me pela produção anarquista do início do século XX, sobretudo em suas
denúncias sobre a exploração do operariado urbano que se constituía nas cidades. Encontrei
uma antologia de contos anarquistas na biblioteca de nossa universidade. Constatei a reduzida
bibliografia crítica existente tanto sobre romance proletário quanto sobre literatura anarquista.
Trabalhando sob a orientação da profª Dra. Teresinha V. Zimbrão da Silva, concluí
que, a fim de melhor aproveitar o material interessante e pouco conhecido que estava
resgatando, seria pertinente então me propor um recorte cronológico e temático mais amplo:
do socialismo e anarquismo da Belle Époque, ao comunismo do entre-guerras. A preocupação
com o aproveitamento deste extenso material desenvolveu a dimensão historiográfica do
trabalho. Considerando que a temática proletária nas letras brasileiras é, de fato, pouco
explorada, esquecida à margem pelo cânone, a proposta de tentar contar a sua (possível)
história nos pareceu justificada.
O primeiro capítulo intitula-se O Socialismo e O Anarquismo nas Letras Brasileiras: A
Belle Époque. Fala da chegada das idéias marxistas ao Brasil no final do século XIX, registra
as referências ao socialismo de Marx em Machado de Assis e Euclides da Cunha, sublinha o
anarquismo de Lima Barreto, comenta o impacto da Revolução Russa no Brasil. E finaliza
com uma seção sobre literatura anarquista, onde são analisados um poema e um conto
libertários.
Sob o título O Comunismo nas Letras Brasileiras: o Entre-Guerras, o segundo capítulo
trata do (não) relacionamento entre o comunismo e o Modernismo de 1922, a partir de
depoimentos de Oswald de Andrade e Mário de Andrade, registra a relação dos intelectuais
com o comunismo na década de 30, sublinhando sua filiação ao Partido Comunista do Brasil
(PCB), sua adesão ao obreirismo e à literatura proletária; e comenta, em particular, sobre os
escritores filiados ao partido - Raquel de Queiroz, Jorge Amado e o casal Oswald de Andrade
e Pagu - trajetórias, ao nosso ver, representativas do engajamento do intelectual brasileiro do
período.
O terceiro capítulo é que versa propriamente sobre o romance proletário. Inicia-se
registrando o aparecimento do gênero no Brasil, através de traduções, apresenta a polêmica
quanto à sua classificação, e, dentre os diversos romances considerados proletários,
encontrados no decorrer da pesquisa, seleciona três para análise: O Gororoba (1931) de Lauro
Palhano, Cacau (1933) de Jorge Amado e Parque Industrial (1933) de Patrícia Galvão.
A seleção destes três romances tem seus motivos. Primeiro, todos foram publicados no
início da década de 30, ou seja, no auge da polêmica sobre romance proletário. Segundo, à
diferença de outros romances publicados então, estes três explicitam, de fato, um
compromisso com o gênero: Cacau, em nota introdutória interroga: "romance proletário?",
Parque Industrial afirma no subtítulo "romance proletário", e O Gororoba afirma no
subtítulo: "scenas da vida proletária'.
Terceiro, a motivação de confrontar um romance canônico como Cacau, a um, pouco
conhecido, como Parque Industrial, e a um, desconhecido, como O Gororoba. De fato, como
cânone, o exemplar de Cacau foi relativamente fácil de encontrar em bibliotecas. Tal não foi
o caso d' O Gororoba, encontrado, depois de muita procura, na biblioteca da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, na sua edição original. Sabe-se que o romance teve uma segunda
edição em 1943, não encontrada.
O terceiro capítulo finaliza com uma seção sobre o resgate do romance proletário nos
dias de hoje. A partir da tradução e publicação de Parque Industrial nos Estados Unidos, em
1994, mesmo ano da sua reedição no Brasil, confrontam-se os dois contextos que resgataram
estes romances proletários, além de muitos outros que também estão sendo reeditados.
1 O SOCIALISMO E O ANARQUISMO NAS LETRAS BRASILEIRAS: A BELLE
ÉPOQUE
1.1 A chegada das idéias de Marx ao Brasil
No atual estágio da investigação historiográfica é impossível
determinarmos, com precisão quando foi feita a primeira
referência pública a Karl Marx no Brasil.
(Leandro Konder, 1988)
Verifica-se que, embora o discurso inaugural redigido por Marx na primeira
Associação Internacional dos trabalhadores em 28 de setembro de 1864, tenha sido um
impulso para a disseminação de suas idéias, foi somente com a Comuna de Paris de 1871, que
o nome de Marx se difundiu por todo o mundo.
O movimento parisiense, sintetizando inúmeros aspectos políticos e sociais presentes
na Europa daquela época, possibilitou que o nome do teórico socialista fosse conhecido pelos
intelectuais brasileiros, tal a repercussão que teve a sublevação européia. Registram-se, em
1871, no Rio de Janeiro, debates e divergências quanto à doutrina de Marx. Políticos do
Império polemizaram acerca da implantação e dos fundamentos teóricos do comunismo,
considerado, em um pré- juízo, como o "cancro" do mundo moderno.
À margem das divergências ideológicas entre os políticos do Império, o episódio da
Comuna recebeu dos estudantes universitários em São Paulo uma conotação parodística.
Buscando uma maneira de intimidar a "burguesia", os estudantes batizavam suas repúblicas
com o nome de Comuna. Eram designados comunistas os manequins introduzidos nas sacadas
dos prédios estudantis. Na verdade, tratava-se de uma brincadeira estudantil, sem nenhum selo
marxista.
Por essa época, registraram-se também na imprensa brasileira as primeiras idéias
marxistas. Em 1872, o jornal republicano do Recife, Seis de Março, publicou em dois
números um estudo feito na Espanha sob o título As doutrinas do Dr. Carlos Marx. Talvez
tenha sido esta a primeira vez que o nome de Marx apareceu em um jornal brasileiro.
No curso das discussões sobre as idéias marxistas, salienta-se a referência de Joaquim
Serra, poeta e jornalista republicano, em 1879, ao autor de O Capital. Em uma nota publicada
no jornal A Reforma, o parlamentar registrou as discussões na imprensa européia em torno da
Comuna:
O Sr. Karl Marx, chefe da Internacional, cuja sede é em Londres acaba de
escrever ao Times, declarando que a asserção apresentada ao Daily News de que a
Associação recomendou aos rústicos franceses que incendiassem os palácios é de
todo o ponto falsa, afirmando, outrossim, que todas as proclamações contendo
infames sugestões, publicadas em Paris em nome da Internacional, depois de 18 de
março, são apócrifas (SERRA apud KONDER, 1988, p. 69).
O filósofo, jurista, jornalista e poeta Tobias Barreto também referiu-se ao pensador
alemão. Em 1874, ele o cita no ensaio Socialismo em Literatura a Internacional de Karl Marx;
em 1883, no discurso de Colação de Grau de Bacharéis na Faculdade de Direito do Recife, o
poeta pernambucano referiu-se novamente a Marx: "Karl Marx diz uma bela verdade quando
afirma que cada período tem suas próprias leis... Logo que a vida atravessa um dado período
evolutivo, logo que passa de um estádio a outro, ela começa também a ser dirigida por leis
diferentes". (BARRETO apud MORAES, 2003, p. 217). Sempre interessado nas idéias
propagadas na Alemanha, Barreto recebeu de um exemplar do primeiro volume d' O
Capital.
O ano de 1883 também foi marcado por um acontecimento significativo: a morte de
Marx. A Gazeta de Notícias do Rio, publicou na seção Daqui e dacolá, a 16 de abril de 1883
um breve necrológio do ilustre finado. Rui Barbosa citou o autor do Manifesto Comunista em
1884; Sílvio Romero o fez em 1894. Ambos criticaram as idéias de Marx. Para Rui Barbosa,
os socialistas corromperam a noção científica da propriedade e, para Sílvio Romero, Marx era
representante de uma tendência para sacrificar o indivíduo ao social. Teriam estes intelectuais
lido Marx? Tobias Barreto o teria feito, em alemão. Os demais, provavelmente não.
Nos últimos anos do século XIX e na primeira década do século XX ainda era
extremamente difícil conhecer com precisão a obra de Marx no Brasil. Havia um despreparo
doutrinário, pois até então nenhum livro de Marx ou Engels fora traduzido para o português.
O estudo efetivo de Marx, apesar de alguns exemplos isolados, somente tomou fôlego no país
depois de 1930, quando houve divulgação de sua obra, quer em línguas estrangeiras quer em
traduções.
1.2 A referência a Marx em Machado de Assis
Em 13 de janeiro de 1885, Machado publicou, no jornal A Gazeta de Notícias, uma
crônica, na qual menciona o nome de Marx, que confirma o ceticismo do escritor quanto aos
ideais revolucionários do século XIX.
Machado narra uma história fictícia sobre a chegada ao Brasil de um socialista russo
de nome Petroff. O personagem trabalhava para o Centro do Socialismo Universal com sede
em Genebra. Fora incumbido de divulgar aqui os germens dos ideais socialistas e fundar uma
sociedade secreta, conforme ele mesmo conta em seu relatório para o Centro. Toma
conhecimento de que havia um "Clube dos Socialistas" cuja atividade era abertamente
conhecida pelo governo: "Pareceu-me que o melhor era fundar uma sociedade secreta, mas,
com espanto, soube que havia um Clube de Socialistas, e que a tolerância do governo é tal,
que ele trabalha às claras" (ASSIS apud BOSI, 1982, p.101-102). Petroff, equivocadamente,
supõe ser uma organização revolucionária, aquilo que é apenas uma agremiação recreativa.
As distorções entre as convicções de Petroff e os seus supostos "correligionários" se
sucedem, e chegam ao clímax quando, por ser um visitante estrangeiro, ele recebe uma
homenagem do Presidente do Clube:
No fim de 15 a 20 minutos, levantou-se o Presidente, e declarou que saudava, em
nome do Club dos Socialistas, ao ilustre estrangeiro que ali se achava: era eu.
Levantei-me e respondi com o discurso que levava de cor. Não posso dar-lhe idéia
dos aplausos que recebi.
Todas as teorias de Bebel, de Cabet, de Proudhon, e do nosso incomparável Karl
Marx, foram perfeitamente entendidas e aclamadas (ASSIS apud BOSI, 1982, p.
101-102).
Petroff julga ser ovacionado pela platéia por causa
do conteúdo revolucionário do seu discurso. Assim
inclui em seu relatório:
Fizeram-se outros discursos, em que entendi pouco, mas que me pareceram
animados dos bons princípios. Cada um deles era fechado por toda a reunião com o
grito: Ué, ué, Catu! Suponho que é a fórmula nacional do nosso brado
revolucionário: Morte aos tiranos (Ibid.).
A ironia machadiana é implacável com o socialismo de Karl Marx. Machado,
evidentemente, não era socialista, e suas discussões em torno dos ideais marxistas
demonstraram uma inviabilidade da instauração de uma efetiva organização operária no
Brasil.
1.3 A chegada dos socialistas e dos anarquistas ao Brasil
A maciça imigração européia, no final do século
XIX e no início do século XX, deu um impulso
decisivo à divulgação das idéias socialistas e
anarquistas no Brasil. Em geral, o destino dos
imigrantes acabava sendo as fazendas de café, mas
muitos deles deixaram o meio rural e se
estabeleceram nas cidades, onde engrossaram a mão-
de-obra industrial. Alguns já chegavam ao país com
o firme propósito de trabalhar nas fábricas como
operários e técnicos. Sob muitos aspectos a
imigração acabou aumentando o número de
trabalhadores nas indústrias que se expandiam e
provocou profundas mudanças políticas no Brasil.
Os imigrantes, provindos principalmente do sul da Europa, trouxeram a sua
experiência de luta e de organização, de pensamento e de reivindicação. Os baixos salários
oferecidos pelos fazendeiros e pelos incipientes industriais levaram os trabalhadores a se
aproximarem das idéias anarquistas e socialistas, muitas vezes expostas por companheiros de
trabalho que a elas se devotaram em suas pátrias antes de serem deportados, acusados de
participarem de insurreições e atentados terroristas.
Tal como no sul da Europa, o anarquismo tornou-se aqui mais forte que o socialismo.
Em 1872, a partir da ruptura entre Marx e Bakunin por divergências ideológicas, cresceu a
influência de Bakunin na Itália, em Portugal e, sobretudo, na Espanha. Barcelona, a maior
cidade industrial da Espanha, era conhecida como a capital ou "viveiro" do anarquismo. Estes
países deram vários anarquistas ao Brasil, fortalecendo o movimento recém organizado.
Já os socialistas que aportaram no Brasil
encontraram dificuldades para organizar um partido
político para os trabalhadores. A incipiência do
proletariado urbano e a condenação anarquista da
fundação de qualquer partido político constituíam
sérios obstáculos aos seus projetos.
Apesar das muitas diferenças entre os militantes
socialistas e anarquistas, havia entre eles elementos
ideológicos comuns. O ponto de partida de suas
doutrinas era sempre a crítica ao capitalismo e a
defesa de uma sociedade baseada na igualdade
social. Chegaram a se aliar, em uma missionária
tentativa de convencer operários a ingressarem em
associações trabalhistas a fim de enfraquecerem as
fortes instituições existentes – o governo, os partidos
políticos conservadores e a Igreja Católica – e
reivindicar melhores condições de trabalho.
1.4 As referências aos socialistas e anarquistas em Machado de Assis
Por ocasião das inúmeras tentativas socialistas de se organizar um partido para os
trabalhadores no Brasil, Machado de Assis (1959, p. 35)
1
, em crônica publicada n' A Gazeta
de Notícias (15/05/1892) comentava: “Quando o Sr. Deputado Vinhaes, no intuito de
canalizar a torrente socialista, creou e disciplinou o partido operário, estava longe de esperar
que os patrões e negociantes iriam ter com elle um dia, nas suas difficuldades.”
Machado encarava com ceticismo as tentativas socialistas de organização dos
operários. A adesão a uma ação política partidária com a fundação de um partido operário lhe
parecia prematura, uma vez que inexistia um programa contundente de participação dos
operários na política institucionalizada. Da tentativa de Vinhaes de criar um "partido
operário" concluía: "[...] o partido operário pode ser o ovo de um bom partido conservador"
(Ibid.).
Posteriormente, ironizando a propagação do socialismo no Brasil, em crônica
publicada n' A Gazeta de Notícias (15/04/1894), comentava a respeito da notícia de que o
socialismo era conhecido na China desde o século XI:
Não nos aflijamos se o socialismo apareceu na China primeiro que no Brasil. Cá
virá a seu tempo. Creio até que há um esbôço dêle. Houve, pelo menos, um princípio
de questão operária, e uma associação de operários [...]. Cá chegará; os livros já aí
estão há muito; resta só traduzi-los e espalhá-los (ASSIS, 1959, p. 78).
1
Nesta dissertação, nas citações, foi respeitada a ortografia da época.
Machado também era cético em relação aos ideais anarquistas. Em crônica de A
Semana (22/04/1894), Assis (1959, p. 81-82) afirma: “[...] E é aqui que eu pego os
anarquistas. Como estão em S.Paulo, não é preciso levantar muito a voz para ser ouvido
além do Atlântico. Concordo com êles que a sociedade está mal organizada; mas para que
destruí-la? Se a questão é econômica, a reforma deve ser econômica [...].”
Machado observa que, mais do que generosas e idealizadoras, as intenções de
mudanças sociais devem ser prudentes e que a repartição de riquezas faz-se com pouco, isto é,
devem-se aproveitar os recursos concretos de um país, de modo que as transformações no
âmbito social, aos poucos, ganhem fôlego.
1.5 A referência a Marx em Euclides da Cunha
Euclides da Cunha é o primeiro intelectual brasileiro
importante a ter tido uma idéia da perspectiva global de Marx
[...]. O enfoque de Marx por Euclides, no processo da
assimilação das concepções de Marx no Brasil, representa
com certeza um momento novo.
(Leandro Konder,
1988)
Os artigos de Euclides da Cunha colaboraram para a
divulgação dos postulados de Marx no Brasil e
explicitam sua simpatia pelo movimento social a
favor dos trabalhadores.
As primeiras alusões ao socialismo feita por Euclides não são acompanhadas do nome
do pensador alemão, porém constituem uma defesa do regime socialista. Em artigo de 1° de
maio de 1892 publicado pelo O Estado de São Paulo, Euclides expõe seu apreço ao
socialismo, mas os nomes que lhe ocorrem são o de Spencer e o de Comte, que, praticamente,
nunca deixaram de andar embaralhados com o socialismo nos primeiros anos de sua difusão
no Brasil:
Seja qual for este regime por vir, traduza-me ele pela proteção constante do
indivíduo pela sociedade, como pensa Spencer, ou pelas inúmeras repúblicas, em
que se diferenciará o mundo, segundo acredita Augusto Comte - ele será, antes de
tudo, perfeitamente civilizador. Que se passe sem lutas este dia notável. O
socialismo, que tem hoje uma tribuna em todos os parlamentos, não precisa de se
despenhar nas revoltas desmoralizadas da anarquia (CUNHA apud MORAES; REIS
FILHO, 2003, p. 31).
Em “Um velho problema”, artigo publicado em 1° de maio de 1904, também pelo
jornal O Estado de São Paulo, Euclides menciona explicitamente o nome de Marx. Neste
artigo, o autor de Os Sertões preocupa-se com a evolução teórica das grandes construções
doutrinárias características do século XIX:
[...] das estupendas utopias de Saint-Simon e dos seus extraordinários discípulos às
alienações de Proudhon, às tentativas bizarras de Fourier e ao sossobro completo da
politica de Luiz Blanc [...] - até Karl Marx - pois foi, realmente, com este inflexível
adversário de Proudhon que o socialismo scientifico começou a usar uma linguagem
firme, comprehensivel e positiva (CUNHA, 1907, p. 308-309).
Os desdobramentos das reflexões de Cunha revelam
sua sensibilidade à doutrina marxista quanto à
relação trabalho/produção:
A fonte única da produção e do seu corollario immediato, o valor, é o trabalho.
Nem a terra, nem as machinas, nem o capital, ainda colligados, as produzem, sem o
braço do operário. Dahi uma conclusão irreductivel: - a riqueza produzida deve
pertencer toda aos que trabalham. E um conceito deductivo: o capital é uma
espoliação: Não se póde negar a segurança do raciocínio (Ibid., p. 310).
No mesmo artigo faz um ataque à exploração capitalista que colocava o trabalhador
em um nível inferior ao da máquina, denunciando-lhe os efeitos nocivos na vida do operário:
[...] De facto, esta, (a máquina) na permanente passividade da matéria, é conservada
pelo dono; impõe-lhe constantes resguardos no trazel-a integra e brunida,
corrigindo-lhe os desarranjos [...] Ao passo que o operário, adistricto a salários
escassos demais á sua subsistência, é a machina que se conserva por si, e mal; as
suas dôres recalca-as, forçadamente stoico; as suas moléstias que por uma cruel
ironia crescem com o desenvolvimento industrial (Ibid., p. 310-311).
Finaliza, sublinhando as injustiças produzidas pelo
capitalismo fazendo uma apologia à socialização dos
meios de produção e circulação:
Neste confronto se expõe a peccaminosa injustiça que o egoismo capitalista
aggrava, não permittindo, mercê do salario insufficiente, que se conserve tão bem
como os seus apparelhos metallicos, os seus apparelhos de musculos e nervos; e está
em grande parte a justificativa dos socialistas no chegarem todos ao duplo principio
fundamental: Socialisação dos meios de produção e circulação; posse individual
sómente dos objectos de uso (CUNHA, 1907, p. 312).
É possível então perceber, em Cunha, uma notável
compreensão das teorias marxistas, tão rara entre
seus contemporâneos. Parece também ter
compreendido o poder de uma prática reivindicatória
como a greve:
[...] Porque o caracter revolucionario do socialismo está apenas no seu programma
radical. Revolução: transformação. Para a conseguir basta-lhe erguer a consciencia
do proletariado, e - conforme e norma traçada pelo Congresso Socialista de Pariz,
em 1900 - aviventar a arregimentação politica e economica dos trabalhadores.
Porque a revolução não é um meio, é um fim; embora, ás vezes, lhe seja mister um
meio, a revolta. Mas esta sem a fórma dramatica e ruidosa de outr'ora. As festas do
primeiro de maio são, quanto a este ultimo ponto, bem expressivas. Para abalar a
terra inteira, basta que a grande legião em marcha pratique um acto simplissimo:
cruzar os braços...
Porque o seu triumpho é inevitável (Ibid., p. 313-314).
No artigo “A missão na Rússia”, publicado em Contrastes e confrontos (1907),
Euclides arrisca uma previsão acerca do futuro da nação russa: “[...] nenhum outro (país) é
mais apto a garantir a marcha, o rhythmo e a diretriz da propria civilização européa. [...] será
(a Rússia) o guarda titanico invencivel, não de sua civilização, mas também de toda a
civilização europea (Ibid., p. 176).”
O artigo trouxe também um interessante depoimento do escritor sobre o romance
russo, seus personagens e os temas explorados, revelando sua familiaridade com essa
literatura:
[...] Qualquer romance russo é a glorificação de um infortunio. Quem quer que os
deletreie, variando á vontade de auctores e de assumptos, deparará sempre a
dolorosa mesmice da desdita invariavel, trocados apenas os nomes aos
protagonistas: todos os humildes, todos os doentes, todos os fracos: o mujik, o
criminoso impulsivo, o revolucionario, o epileptico incuravel, o neurasthenico
bizarro e o louco. Desenvolvendo este programma singular e inexplicavel, porque,
[...], não ha paiz que possua menor numero relativo de degenerados, o que domina o
escriptor russo não é a these preconcebida, ou o caracter a explanar friamente, senão
um largo e generoso sentimento da piedade, deante do qual se eclipsam, ou se
annulam, o platonico humanitarismo francez e a artistica e secca philantropia
britannica (Ibid., p. 174).
Embora a simpatia pelo socialismo seja explícita em seus escritos, Cunha, ao que
consta, não teve uma ação partidária. Contudo, sabe-se que sua vida e obra sempre se
inclinaram para um profundo sentido de renovação, de espírito de justiça social, de denúncia
contra a miséria e de exploração do homem pelo homem.
1.6 O anarquista Lima Barreto
O maior de todos os brasileiros influenciados pelo
Anarquismo foi Lima Barreto.
(Vamireh Chacon, 1965)
Desde os primeiros anos do século XX, Lima Barreto deixou clara sua posição
libertária, independente de paixões partidárias. Como colaborador da imprensa anarquista,
fundou, em 25 de outubro de 1907, a revista Floreal, para a divulgação dos ideais libertários.
Sua adesão ao anarquismo ocorreu em 1913, em artigo intitulado “Palavras de um Snob
Anarquista”, publicado em 15 de maio no jornal A Voz do Trabalhador. Escrevendo, sob o
pseudônimo de Isaías Caminha, em defesa das reivindicações operárias, Barreto (1961, 216)
afirma:
[...] teimam... também os jornais em encontrar nessa questão da reforma social um
simples questão de salário. É uma teima que lhes fica bem, mas, é preciso que se
lhes diga, não é das mais dignas, nem das mais brilhantes.
em tal questão, mais uma questão de dignidade humana, de direito que têm
todos a encontrar na terra felicidade e satisfação, do que mesmo desejo de um maior
ou menor ganho.
O que não é justo, é que poucos possam encontrar na vida mais que o supérfluo,
e alguns mais, o ùnicamente o necessário.
O autor esclarece ainda:
Os anarquistas falam da humanidade para a humanidade, do gênero humano para
o gênero humano, e não em nome de pequenas competências de personalidades
políticas; e se muitos que o são por ignorância ou "esnobismo" consoante o dizer
do jornalista conservador, mesmo assim merecem simpatias dos desinteressados,
porque não usam daquelas ignorâncias nem daqueles "esnobismos" que dão gordas
sinecuras na política e sucessos sentimentais nos salões burgueses (BARRETO,
1961, 218).
Mas sua posição libertária não parou aí. Manifestou-
se contra a guerra, atacando violentamente o
militarismo, e apoiou, incondicionalmente, o
movimento operário como escritor e jornalista.
Revoltou-se contra a plutocracia paulista que
mandava sua polícia invadir lares humildes de
trabalhadores, altas horas da noite, maltratando
mulheres e crianças.
1.7 O impacto da Revolução Russa no Brasil
A Revolução Russa de novembro de 1917, com a tomada do poder pelo Partido
Bolchevique, dirigido por Lênin, teve uma repercussão decisiva no Brasil: pode-se
dizer que ela deu início a um período novo na difusão da idéias de Marx entre nós.
(Leandro Konder, 1988)
O Brasil tinha acabado de entrar na Primeira
Guerra Mundial quando chegaram as
notícias sobre a Revolução bolchevista. As informações chegavam à imprensa brasileira por
meio de telegramas, contudo não dava para saber direito o que estava acontecendo na Europa.
Termos como comunistas, leninistas, bolchevistas e maximalistas eram usados para designar
os revolucionários.
Em um primeiro momento, até Rui Barbosa recebeu a Revolução Russa com
simpatia, julgando-a liberal por haver derrubado a tirania czarista. Os anarquistas também a
saudaram como se tivessem obtido êxito em suas convicções revolucionárias. Com o passar
do tempo, verificou-se que do anarquismo operário e do positivismo intelectual somente uns
poucos passaram de fato ao comunismo.
O impacto da Revolução Russa no Brasil foi registrado por Otávio Brandão, um
comunista, anteriormente anarquista. Em seu livro de memórias Combates e batalhas (1978)
ele escreve sobre a reação do anarquismo brasileiro às notícias sobre a Rússia: “No Brasil, a
princípio, os anarquistas apoiaram a revolução socialista na Rússia. Imaginaram que ela fosse
de caráter anarquista. Depois, veio o desengano. Passaram a atacar violentamente a revolução
socialista” (BRANDÃO, 1978, p. 211). Relata também suas primeiras impressões sobre os
revolucionários socialistas:
Na Rússia, triunfou a revolução socialista, com Lenin e o partido bolchevista à
frente! Fiquei sério, pensativo, impressionado. Que seria? Como compreender a
revolução socialista? Qual seria a sua significação profunda e complexa?
Na época, não tinha nenhuma condição para compreender a significação profunda da
obra de Lênin (Ibid., p.115).
Interessado em pesquisar quem era Lenin, o que era
o marxismo, Brandão registra as raras fontes de
referência à obra de Marx:
Em Maceió, em 1917-1919, o ambiente era muito atrasado. Procurei livros e
pessoas que me orientassem sobre os problemas sociais, Lênin, o marxismo e a
revolução socialista na Rússia. encontrei o velho livro de 1882, Rússia
subterrânea de Stepniák (Kravtchínski), sobre os chamados niilistas e o Narôdnaia
Volia. Nada mais (Ibid., p. 124).
O autor não encontra respostas para seus
questionamentos sobre a revolução socialista na
Rússia: “__ Quem é Lênin? Que é o marxismo? Que
significa a Revolução Socialista na Rússia? Não
obtive nenhuma resposta concreta até 1922. Tudo
vago, incerto. Ou completamente errôneo. Na época,
ninguém conhecia o marxismo no Brasil. Que
atraso!” (Ibid., p.135).
Brandão (1978, p. 113), ao citar seu próprio artigo intitulado “O Apelo à Revolta” e
publicado em A Semana Social, a 27 de outubro de 1917, mostra sua inclinação para o filão de
leituras sobre a Rússia de Lenin, destacando o romance A Mãe (1907), de Máximo Gorki, o
escritor que se tornou símbolo da Revolução de Outubro: “O romance A Mãe, de Máximo
Gorki, aparece como um grito à Revolta, como um clarim vibrando sonoro no meio da
debandada.”
Na obra Combates e Batalhas, Brandão (1978, p. 113-114) tece os seguintes
comentários sobre esse artigo:
No apelo, comparei o Norte do Brasil à Rússia Tzarista, mergulhada na mais
profunda miséria. Estigmatizei a ganância dos comendadores capitalistas. Denunciei
os abutres da politicalha. Condenei a hipocrisia de uns, a sujeição e a passividade de
outros, a apatia moral e a falta de solidariedade de terceiros. Chamei o povo a
protestar.
O autor, ainda no artigo, faz o seguinte apelo: “Pavel, meu herói sem nome! Que a tua
palavra obscura tremule sobre a terra brasileira, levante-a num ímpeto estupendo e sopre
sobre ela um clarão de revolta!” (Ibid., p. 114).
É interessante notar a presença do escritor russo Gorki no Brasil nas primeiras
décadas do século XX. Do romance A Mãe, sabe-se que existe uma tradução do início do
século, publicada em edição luso-brasileira, cujo prefácio francês é de 1907. Em São Paulo, o
surgimento do Grupo Dramático Máximo Gorki, em 1913, confirma a simpatia que o escritor
russo despertava entre nós, mesmo antes da revolução bolchevique.
Além do desconhecimento do marxismo pelos brasileiros, Otávio Brandão sublinha os
"equívocos" divulgados pela imprensa sobre a revolução socialista na Rússia:
[...] as informações a respeito da revolução na Rússia eram vagas, incertas e muito
insuficientes, quando não torpes. Não se podia adquirir um conhecimento exato e
profundo dos acontecimentos. Ninguém tinha uma base marxista para compreendê-
los a fundo.
A notícia da revolução socialista na Rússia provocou, no Brasil, o ódio bestial, o
pânico e o estupor no seio dos grupos imperialistas, dos latifundiários e da grande
burguesia, com seus jornalistas e intelectuais. Desencadearam campanhas furiosas
de calúnias e falsificações contra a revolução e os bolchevistas, que eles chamavam
maximalistas (BRANDÃO, 1978, p. 165).
Contudo, se a burguesia a odiou, os trabalhadores a
saudaram com entusiasmo. No Rio de Janeiro, em 1°
de maio de 1919, 60 mil trabalhadores desfilaram
pela Avenida Rio Branco dando vivas a Lenin e à
revolução socialista na Rússia.
1.8 A referência à Revolução Russa em Lima Barreto
Nenhum dos outros (escritores) soube como êle penetrar o sentido
profundo dos acontecimentos que se desenrolavam aos olhos de
todos. Nenhum dos outros foi capaz de perceber a importância
histórica da revolução russa de 1917, e nenhum dêles pode
rivalizar com Lima Barreto no que se refere ao instinto seguro da
sua visão relativamente aos problemas políticos e sociais do pós-
guerra.
(Astrojildo Pereira, 1991)
Lima Barreto afinava com a grande euforia dos militantes anarquistas que tomaram a
frente da propaganda da Revolução Russa no Brasil e exortaram o triunfo do bolchevismo,
congregando novos adeptos para o chamado programa maximalista de Lenin. O autor de
Triste fim de Policarpo Quaresma acolhia as mudanças que seriam propiciadas pela fundação
revolucionária do comunismo no Brasil, e se referia ao maximalismo como portador de
reformas possíveis dentro de cada sociedade.
A significação histórica da Revolução Russa de
1917 e suas conseqüências para o mundo foi um
tema que Lima Barreto debateu em muitos de seus
artigos. No ajuste de contas..., (01/05/1918), Barreto
elabora uma espécie de manifesto político e de
programa revolucionário, e expõe suas idéias
inspiradas na Revolução de Outubro, propondo
medidas que, a seu ver, viriam solucionar os
problemas políticos e sociais de seu tempo:
A propriedade é social e o indivíduo só pode e deve conservar, para êle, de terras
e outros bens tão-sòmente aquilo que precisar para manter a sua vida e de sua
família, devendo todos trabalhar da forma que lhes fôr mais agradável e o menos
possível, em benefício comum [...] terminando êste artigo, que vai ficando longo,
confesso que foi a revolução russa que me inspirou tudo isso (BARRETO, 1956, p.
90).
No artigo “Da Minha Cela” (25/11/1918), redigido
na época em que Barreto se encontrava internado
para tratamento de saúde, o escritor manifesta-se
enfaticamente contra o repúdio burguês à Revolução
Russa :
Esse ódio ao maximalismo russo que a covardia burguesa tem, na sombra,
propagado pelo mundo; essa burguesia cruel e sem coragem, que se embosca atrás
de leis feitas sob a sua inspiração e como capitulação diante do poder do seu
dinheiro; essa burguesia vulpina que apela para a violência pelos seus órgãos mais
conspícuos, detestando o maximalismo moscovita, com razão de estado; esse ódio -
dizia - não se deve aninhar no coração dos que têm meditado sobre a marcha das
sociedades humanas. A teimosia dos burgueses fará adiar a convulsão que será
então pior, e êles se lembrem, quando mandam cavilosamente atribuir propósitos
iníquos aos seus inimigos, pelos jornais irresponsáveis; lembrem-se que, se
dominam até hoje a sociedade, é à custa de muito sangue da nobreza que escorreu da
guilhotina, em 93, na Praça da Gréve, em Paris. Atirem a primeira pedra
(BARRETO, 1956, p. 103).
Em outro artigo, “Vera Zassúlitch” (14/07/1918), Barreto (Op. cit., p. 72-74) explicita
o seu desejo de ver uma revolução no Brasil:
Não posso negar a grande simpatia que me merece um tal movimento; não
posso esconder o desejo que tenho de ver um semelhante aqui, de modo a acabar
com essa chusma de tiranos burgueses, acocorados covardemente por detrás da Lei.
[...] Precisamos deixar de panacéias; a época é de
medidas radicais. Não quem, tendo meditado sobre esse estupendo movimento
bolcheviquista (sic), não lobrigue nele uma profunda e original feição social e de
um alcance de universal amplitude sociológica. Não posso negar a grande
simpatia que me merece um tal movimento; não posso esconder o desejo que tenho
de ver um semelhante aqui, de modo a acabar com essa chusma...
Meses depois, no artigo “Sobre o Maximalismo”
(01/03/1919), reconhece que a revolução no Brasil
teria que encontrar suas próprias fórmulas e
medidas:
Lembrei tudo isto, porquanto tendo há quase um ano, como já disse, deitado uma
espécie de manifesto maximalista, estou na obrigação e me julgo sempre obrigado a
seguir o que aqui se disser a respeito dos ideais da revolução russa em que me baseei
naquele meu escrito. Digo ideais e não as fórmulas e medidas especiais, porquanto,
desde o comêço, tinha visto que elas não podiam ser as mesmas em todos os países
(Ibid., p. 161).
Na crônica “Memórias de Guerra” (17/04/1920),
Barreto (1961, p. 186) faz a seguinte referência a
Lenin: "É êste o grande homem do tempo, que
preside, com tôda a audácia, uma grande
transformação social da época..." Escrevia isto, em
um momento em que toda a grande imprensa se
posicionava contra o líder da Revolução de Outubro.
Sob o título “Palavras dum simples” (22/07/1922),
defende sua posição em face das facções políticas
que se digladiavam na arena nacional:
Seria capaz de deixar-me matar, para implantar aqui o regímem maximalista;
mas a favor de Fagundes ou de Brederodes não dou um pingo do meu sangue.
Tenho para mim que se deve experimentar uma 'tábua rasa' no regímem social e
político que nos governa; mas mudar de nomes de governantes nada adianta para
a felicidade de todos nós (BARRETO, 1961, p. 59).
Barreto morreria em 1922, defendendo os ideais da
Revolução de Outubro. Ele foi o primeiro grande
escritor brasileiro a saudar a Revolução Russa. Sabe-
se, com efeito, que defendia a criação de uma
literatura que conjugasse a grandeza estética com um
profundo espírito popular e democrático, com uma
aberta tomada de posição em favor dos desassistidos
moral e materialmente.
1.9 A Literatura Anarquista
De qualquer modo, seja nas profundezas da expressão ainda
não articulada do social, seja na superfície já elaborada e
contraditória das formas textuais, o pensamento e a literatura
libertários inscreviam-se inteiramente na história literária
"nacional": quem os colocava de fora era o discurso
dominante.
(Francisco Foot Hardman, 2003)
Se a presença do anarquismo e do socialismo no cânone brasileiro da Belle Époque foi
marginal, na produção não canônica da época textos anarquistas marcaram presença. Contos,
romances e poesia foram então produzidos e publicados em jornais e revistas que os
acolheram. O teatro também foi outro meio fecundo para difundir os ideais libertários. Vários
grupos amadores, vinculados a agremiações operárias, existiram no período. Apresentavam-se
em sindicatos e espaços improvisados, tinham no seu repertório peças de crítica social e
política, de autores nacionais e estrangeiros. Textos que atacavam frontalmente o sistema
vigente eram encenados em comemorações e reuniões operárias.
A literatura anarquista colocou como protagonista de seus textos a vida do trabalhador
oprimido. Este enfoque dos textos libertários revestiu-se de cunho educativo, e tinha como
principal objetivo o esclarecimento quanto à exploração do trabalho. As produções
abordavam os confrontos na rua, no trabalho, na fábrica, entre o pobre e o rico, o faminto e o
policial, a operária e o patrão, o burguês e o mendigo. Registram-se então os anseios do
trabalhador, que se converte em personagem central da ação, resistindo à exploração.
A literatura anarquista merece ser resgatada, tanto
como sistema autônomo de militância intelectual -
vanguarda política que pretendia a conscientização
da classe operária para a defesa dos ideais libertários
- quanto como contraponto à vanguarda estética, que
a superou, sobretudo a partir da Semana de Arte
Moderna.
A canonização da vanguarda estética contribuiu para
que a questão da linguagem servisse de pretexto para
as várias restrições que a tradição crítica literária
veio impondo às obras anarquistas no Brasil. Critica-
se que a forma parnasiana do soneto seja a preferida
na poesia libertária, que a narrativa tradicional
(narrador linear e onisciente) apareça no romance e
que com freqüência essa literatura enverede pelo
panfletarismo retórico, características consideradas
passadistas se confrontadas com o projeto estético
dos modernistas da Semana.
Pode ser produtivo refletir sobre a temática libertária. Consideremos o poema:
Rebelião
Como um vago murmúrio,
Mansa a princípio, ela ecoa,
Depois é grito bravio
Que pela noite reboa,
Que para a noite se eleva
Num pavoroso transporte,
Como um soluço de treva,
Como um frêmito de morte.
Ah! Nesse grito funesto,
Nesse rugido, palpita
Um rancoroso protesto.
É o povo a plebe maldita
Que, sombria, ameaçadora,
Nas vascas do sofrimento,
Mistura aos uivos do vento
A grande voz vingadora.
E quando comece a luta,
Quando explodir a tormenta,
A sociedade corrupta,
Execrável e violenta,
Iníqua, vil, criminosa,
Há de cair aos pedaços
Há de voar em estilhaços
Numa ruína espantosa (GONÇALVES apud HARDMAN, 2002, p. 129-130).
Note-se o quanto o texto encontra-se premido entre a
respeitabilidade das formas convencionais e o
compromisso social com o universo dos "de baixo",
arranjo que provoca um descompasso, uma
estranheza, um padrão estético distinto dos modelos
então consagrados. Esse "parnasianismo libertário",
combinando insubordinação política com o jargão
do Parnarso, admite ser pensado como um resultado
original.
Também os contos anarquistas merecem ser reconsiderados. Menos conhecidos que os
romances, têm um tom menos retórico. Neles, o tema da miséria urbana ganha a modernidade
do flagrante que registra um período de desmedido crescimento urbano, gerador de uma série
de tensões sociais. No início do século, as grandes cidades brasileiras cresciam de maneira
desordenada e tumultuada. De um lado, havia o clima de euforia motivado pelo progresso
industrial e pela urbanização; de outro, um clima de insatisfação e pessimismo motivado pelo
acirramento dos conflitos sociais. O progresso criava massas de excluídos e fazia crescerem o
movimento operário e as greves. A carestia e a instabilidade dos empregos eram cada vez
maiores.
Os contos libertários produzidos então mostram bem a imagem das cidades tomadas
pela miséria onde, por exemplo, vagabundos eram retirados de circulação se fossem
capturados no centro do Rio de Janeiro. É o caso do conto “Placas Fotográficas 1”, publicado
no jornal anarquista Novo Rumo (20/07/1906), que narra a prisão de um "pretinho
maltrapilho" surpreendido por um policial ao roubar comida:
__Não vou! Me largue, não vou! Ah, berrava um pretinho maltrapilho que, por
inexplicável ironia, vestia uns frangalhos de camisa de meia, com as cores nacionais.
[...]
O soldado que o prendia entre os braços fortes como tenazes praguejou, levando
a mão ao rifle:
__Raios te partam, safado! Anda simão! (PRADO; HARDMAN, 1985, p. 100).
O conto expõe a insensibilidade da "burguesia" em relação à cena:
Um burguês obeso, em colete, sem chapéu, com um enorme brilhante a reluzir
no dedo mínimo e uma medalha também a reluzir, pendente da cadeia de ouro que
descansava sobre o ventre volumoso, acercou-se do grupo, estirou o pescoço e
inquiriu:
__O que é, camarada?
__É que este safado roubou, ali na confeitaria, uma posta de peixe e comeu-a; ia
a fugir e eu prendi-o
[...]
__Leve-o, leve-o, camarada, rugiu o burguês, com uma acentuação enérgica
(Ibid., p. 100-101).
Expõe também a inconsciência política do povo que,
como "matilha" a seguir obedientemente as ordens
do dono, "rosna" para o pretinho:
__Leva! Leva! Gritavam muitas pessoas do povo.
[...]
A multidão seguiu o soldado que cada vez mais encolerizava contra o pretinho,
que cada vez mais também aumentava o berreiro. E assim seguiram, o pretinho
berrando, lutando pela liberdade que lhe queriam roubar depois de o terem criado,
talvez na rua, ao Deus dará, na vadiagem, sem educação e sem guia; os transeuntes,
açulando o soldado, executor de uma lei que é a pura iniqüidade. E toda a matilha
pobre e inconsciente, respeitadora da ordem, da lei e da propriedade, ia rua afora,
rosnando, mostrando os dentes ao pretinho (PRADO; HARDMAN, 1985, p. 100-
101).
Em “Placas Fotográficas1”, tem-se ainda o registro
de uma época de reconstrução do Rio de Janeiro. O
rosto novo e moderno da cidade foi construído com
sacrifício dos pobres expulsos para a periferia.
Esperava-se tornar o Rio uma "Europa possível". A
cidade ganhava em sofisticação, afastando
dramaticamente a miséria de seu centro. Enquanto a
elite carioca passeava nos bondes, a massa explorada
de trabalhadores levantava paredes de grandes casas,
onde jamais habitariam:
Tarde alegre e movimentada. Os elétricos da Light passam céleres, pejados de
burgueses e burguesas elegantes em busca do ménage onde os espera o jantar
fumegante. Operários suarentos labutam nos andaimes das casas em construção,
arriscando a vida a cada momento, vergados uns ao peso de vigas enquanto que
outros, no alto, enfileiram tijolos sobre argamassa, levantando paredes de grandes
casas que eles jamais habitarão. Há por toda rua retintim de bigornas, trilar de apitos
dos cocheiros de bondes, tlim-tlim das campainhas dos elétricos, enfim toda a
música do trabalho que enriquece os parasitas que nada fazem e empobrecem cada
vez mais o trabalhador (PRADO; HARDMAN, 1985, p. 100).
Exaltando o operário, num momento em que o cânone o marginalizava, a literatura
anarquista representa, de fato, a vanguarda política nas Letras Brasileiras da Belle Époque.
Seus textos libertários atraíram autores interessados em apresentar leituras alternativas e
perspectivas outras da história do país, diferentes daquelas oferecidas pelos representantes
oficiais da memória nacional.
2 O COMUNISMO NAS LETRAS BRASILEIRAS: O ENTRE-GUERRAS
2.1 Do anarquismo ao comunismo
Sob a influência da revolução russa e de Lenine (1917-1920),
abandonei o anarquismo, tornando-me marxista.
(Astrojildo Pereira, 1991)
Com a eclosão da Revolução Russa de 1917,
propagou-se o nome de Marx na imprensa brasileira,
agora acompanhado de Lenin e Trostki. O
marxismo foi divulgado no Brasil pelo viés das
lentes bolcheviques.
Ao mesmo tempo, intensificaram-se as discussões sobre a necessidade de o
movimento operário encontrar novas formas de organização para superar o impasse
ideológico entre anarquistas e socialistas. Vários grupos comunistas foram formados, o que
preparou o caminho para a criação do Partido Comunista do Brasil em 1922.
O aparecimento do PCB provocou uma cisão no movimento anarquista, contribuindo
para acelerar o processo de desarticulação interna de suas lideranças. Os novos grupos
declararam abertamente querer fazer política. O PCB foi organizado por 11 ex-anarquistas e
um socialista. Os demais, como Astrojildo Pereira e Otávio Brandão, provinham da militância
anarco-sindicalista. No quadro geral de adesões, poucos foram os intelectuais que firmaram
um compromisso com o PCB nos primeiros anos.
Em Combates e batalhas (1978), Brandão (1978, p. 237) relembra a fundação do PCB,
sublinhando as dificuldades e os obstáculos por que passou o Partido nos primeiros anos:
[...] foram inúmeros os obstáculos e as dificuldades que se opuseram ao Partido
Comunista do Brasil desde o primeiro momento e, especialmente, nos primeiros
anos. [...]. O PCB era, então, uma pequena seita, fechada, formada sobretudo por
artesãos e pequenos-burgueses urbanos, vindos do anarquismo e anarco-
sindicalismo. Muitos operários eram analfabetos. Os sindicatos estavam reduzidos a
esqueletos. [...] como forjar um Partido Comunista? Dificílimo. [...] no Brasil não
existia nenhuma tradição marxista. A classe operária nunca teve o seu partido
político de classe independente. [...] Antes de 1922, nunca houve, em nosso país,
verdadeiros partidários de Marx. Não se pode dar o título de marxista a uma pessoa
que Marx nas horas vagas e divaga a respeito entre as quatro paredes de um
gabinete.
Um ano depois, em 1923, Brandão (1978, p. 242-243) traduziu O Manifesto
Comunista - primeiro livro de Marx editado no Brasil, 75 anos após ter sido lançado na
Europa:
[...] Os agentes de polícia política vigiavam sempre a pequena farmácia da rua
General Câmara 307.
À vista dos agentes, sentei-me num tamborete junto à escrivaninha e, em maio de
1923, comecei a traduzir o imortal Manisfesto Comunista de Marx e Engels, da
edição francesa de Laura Lafargue (filha de Marx), revista pelo próprio Engels.
Traduzi-o como um protesto contra as perseguições da polícia aos trabalhadores.
Terminei a tradução a 25 de julho de 1923. Publiquei-a integralmente no jornal
sindical Voz Cosmopolita, a partir de 1923. Fiz, pois, mais uma obra de pioneiro.
O PCB nasceu como expressão de um movimento mundial e suas bases teóricas e de
organização seguiam orientação vinda da III Internacional Comunista (1919). O Partido devia
adaptar as diretrizes à sua realidade, problema que dependia das condições particulares da
sociedade brasileira.
2.2 O Modernismo de 1922 e o Comunismo
A proximidade entre o PC e o modernismo parece ocorrer
somente pela coincidência temporal da fundação do partido
com a explosão do modernismo em 1922. Fora isto e alguns
itinerários algo contubardos, os desencontros ou um
significante silêncio parece habitar o (não) relacionamento.
(Antônio Albino,
1995)
Observa-se que os participantes mais atuantes da
Semana Modernista de 22 não privilegiaram a
vinculação do movimento a um ideário político. O
interesse pelo comunismo ou pelo marxismo foi
preterido pela "orgia intelectual". Em 1942, Mário
de Andrade (1974, p. 237-238) fez um balanço do
movimento, sublinhando o seu caráter
"desinteressado":
Durante essa meia-dúzia de anos fomos realmente puros e livres, desinteressados
[...] Isolados do mundo ambiente, cercados de repulsa quotidiana, a saúde mental de
quase todos nós, nos impedia qualquer cultivo da dor [...] Ninguém pensava em
sacrifício, ninguém bancava o incompreendido, nenhum se imaginava precursor nem
mártir.
Escrevendo em plena Segunda Guerra Mundial, em
tempos de engajamento do intelectual, Mário revê
com lentes críticas o seu abstencionismo e o dos
modernistas de 22:
[...] nós, os participantes do período milhormente chamado "modernista", fomos,
com algumas excepções nada convincentes, vítimas do nosso prazer da vida e da
festança em que nos desvirilizamos. Si tudo mudávamos em nós, uma coisa nos
esquecemos de mudar: a atitude interessada diante da vida contemporânea [...]
Deveríamos ter inundado a caducidade utilitária do nosso discurso, de maior
angústia do tempo, de maior revolta contra a vida como está. Em vez: fomos quebrar
vidros de janelas, discutir modas de passeio, ou cutucar os valores eternos, ou saciar
nossa curiosidade na cultura.[...] Eu creio que nós, os modernistas da Semana de
Arte Moderna, não devemos servir de exemplo a ninguém. Mas podemos servir de
lição. O homem atravessa uma fase totalmente política da humanidade. [...] Os
abstencionismos e os valores eternos podem ficar pra depois. E, apesar da nossa
atualidade, da nossa nacionalidade, da nossa universalidade, uma coisa não
ajudâmos verdadeiramente, duma coisa não participâmos: o amilhoramento político-
social do homem. E esta é a essência mesma da nossa idade (Ibid., p. 253-255).
Oswald de Andrade (1992, p. 37) foi outro modernista de 22 que deixou registrada sua
crítica ao desengajamento tanto o próprio como o do movimento. Em 1933, filiado ao
PCB, escreve no prefácio de Serafim Ponte Grande:
A situação "revolucionária" desta bosta mental sul-americana, apresentava-se
assim; o contrário do burguês não era o proletário - era o boêmio! As massas,
ignoradas no território e, como hoje, sob a completa devassidão econômica dos
políticos e dos ricos. Os intelectuais brincando de roda. De vez em quando davam
tiros entre rimas. [...] Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do
mundo, ignorando o Manifesto Comunista e não querendo ser burguês, passei
naturalmente a ser boêmio.
Sua boemia intelectual e a dos outros modernistas é exemplarmente descrita por
Andrade (1974, p. 237-238), em “O Movimento Modernista”:
[...] E eram aquelas fugas desabaladas dentro da noite, na cadillac verde de Oswaldo
de Andrade, a meu ver a figura mais característica e dinâmica do movimento, para ir
ler as nossas obras-primas em Santos, no Alto da Serra, na Ilha das Palmas... E os
encontros à tardinha, em que ficávamos em exposição diante de algum raríssimo
admirador, na redação de "Papel e Tinta"... E vivemos uns oito anos, até perto de
1930, na maior orgia intelectual que a história artística do país registra.
Oswald de Andrade (1992, p. 38). também lamentou o fato de que em viagem pela
Europa em 1912, "tinha passado por Londres, de barba, sem perceber Karl Marx." Termina o
seu mea culpa, criticando o persistente desengajamento de Mário de Andrade, com quem
havia rompido, e confirmando a sua "profissão de fé" ao Partido Comunista:
Enquanto os padres, de parceria sacrílega, em São Paulo com o professor Mário
de Andrade [...] cantam e entoam, nas últimas novenas repletas do Brasil:
No céu, no céu
Com "sua" mãe estarei!
eu prefiro simplesmente me declarar enojado de tudo. E possuído de uma única
vontade. Ser pelo menos, casaca de ferro na Revolução Proletária (Ibid., p. 39).
Mário morreria em 1945 sem jamais ter se filiado ao PCB. Somente mais tarde, em
1933, respondendo a um questionário que lhe foi encaminhado pela editora Macauley and
Company, manifestou robustas esperanças no socialismo como idéia. Oswald abandonaria
o PCB no mesmo ano após uma militância apaixonada em prol dos ideais comunistas.
2.3 Os intelectuais e o comunismo na década de 1930
2.3.1 Leituras
Procurei aqui em São Paulo, alguns livros de Marx, como O
Capital e não pude encontrar. Ninguém nas livrarias sabia o que
era isso. O Brasil nesse sentido estava longe do resto do mundo.
Importei os livros da Europa e comecei a ler (Caio Prado Junior,
1991)
No final da década de 20, no Brasil, ocorre a tomada de consciência ideológica de
intelectuais e artistas então seduzidos para a política e para o PCB. O crescimento da
imprensa comunista atuante desde 1922, contribui para essa conversão.
Publicações fazem-se notar, tal como a da revista Movimento Comunista, que surge
como um eficiente meio de propaganda e difusão do comunismo. A edição de livros no Brasil
é noticiada pela revista e sinaliza o esforço de alterar o quadro de quase inexistência de
literatura comunista entre nós. Mesmo após a Revolução de 30, a situação não muda muito no
que se refere aos livros de Marx. Mas sabe-se que Os princípios do comunismo, de Engels, e
ABC do comunismo, de Bukharin, são dois livros que têm grande influência nesses anos.
A década de 30, portanto, apesar de se iniciar sob o signo de forte repressão ao PCB,
vai aos poucos desenvolvendo um clima cultural propício à divulgação de livros comunistas e
de textos sobre a União Soviética. Nessa altura, começam a ser discutidas as noções de "luta
de classes", "espoliação", "mais-valia", "moral burguesa", "proletariado".
O comunismo se faz notar nos textos de vários ensaístas, sociólogos e, especialmente,
de ficcionistas que se deixam contagiar pelas idéias revolucionárias. Forma-se então um
relativo público leitor e um mercado de livros e periódicos no país. Na revista, Boletim de
Ariel, a partir de 1930, registram-se importantes debates político-culturais, como aquele
centrado no socialismo soviético e o que se volta para a literatura proletária.
O comunismo veio a ser finalmente divulgado entre os intelectuais brasileiros, ainda
que Marx permanecesse quase um desconhecido, tal como confessa Jorge Amado, em
entrevista a Raillard (1990, p. 74): "Eu nunca lera Marx, não sei se muitos dentre nós o leram
[...] mas a maioria dos líderes do PC sem dúvida jamais o leu."
2.3.2 Filiação
Das leituras, alguns intelectuais passaram de fato à
filiação ao PCB. Se no resto do Ocidente este
engajamento já estava se dando desde a Revolução
Russa de 1917, no Brasil foi sobretudo a partir da
Revolução de 1930 que ocorreram efetivas adesões
ao partido. A Revolução de 17 certamente
sensibilizou os intelectuais brasileiros; contudo, o
ano de 30 foi notoriamente o marco para que o
comunismo ascendesse nos debates nacionais.
2.3.3 Obreirismo
As adesões de intelectuais ao PCB acontecem no
momento em que o Partido se "bolcheviza",
submetendo-se mais rigidamente às ordens e regras
da III Internacional Comunista.
Desde fins de 1929 até meados de 1934, o PCB empreendeu o programa de
proletarização do Partido que desembocou no obreirismo, uma versão que incitou "desprezo"
pelos aliados de classe. Seguiu-se o afastamento dos militantes intelectuais que ocupavam
postos de direção, os quais passaram a ser ocupados por militantes de origem proletária.
Esta política se caracterizou pela valorização do modo de vida proletário, em
detrimento do intelectualismo burguês, apontado então como responsável pelo imobilismo do
Partido. Aqueles militantes de origem intelectual que pretendessem continuar nas fileiras do
Partido deveriam experimentar o modus vivendi do trabalhador e exaltar as virtudes
proletárias. O programa testaria assim as escolhas partidárias dos intelectuais.
Ao centrar as suas propostas em torno da proletarização, o PCB pretendia uma revisão
das funções assumidas pelos intelectuais até então representantes da burguesia. O intelectual
que desejasse ingressar no PCB tinha de passar por vários testes para mostrar que poderia
fazer parte do proletariado, provando assim afinidades com esta classe.
Além disso, "travestido" de operário, o intelectual poderia transmitir nos seus escritos,
de modo mais "verdadeiro", as experiências adquiridas com o mundo do trabalho.Defendendo
o obreirismo, Amado (1946, p. 11) afirma:
Indomável partido do proletariado! E dos sábios e dos escritores! Onde iríamos
nós caber, pôr acaso, senão dentro deste partido que é do povo? nas fileiras
poderemos fortalecer, ao contato com o proletariado e o povo, a nossa capacidade de
criação artística e científica.
Contudo, dado o peso excessivo de obrigações
impostas aos militantes, foram muitos os que não
acolheram o obreirismo, em sua prática, com o
entusiasmo de Amado, ainda que acolhessem o
"proletariado" como tema em seus escritos.
2.4 A literatura e o "proletariado"
Grande parte da literatura que se desenvolveu na década de 30 no Brasil preocupou-se
em trazer para as letras brasileiras o tema pouco explorado do cotidiano do trabalhador
oprimido, incluindo o proletário, que emergia então no cenário nacional como fruto da
miséria urbano-industrial.
Nesta nova interpretação da realidade do trabalho no
Brasil, os escritores tentaram assumir, em seus
textos, o discurso da classe trabalhadora,
problematizando a idéia de que o intelectual não
seria capaz de interpretar, de fato, os interesses dos
oprimidos. Esta problemática comparece, explícita,
no seguinte pronunciamento de Jorge Amado (apud
TÁTI, 1961, p. 59): “[...] Continuar apesar de saber
que nunca serei um escritor operário. Pequeno
burguês, com os vícios de origem, não possuo a
grande poesia, a grande pureza, a fôrça, que hoje, no
mundo, só tem o proletariado revolucionário.”
O mesmo Amado, ao se desculpar por ser um
"pequeno burguês", não deixa, por outro lado, de
acreditar na "verdade" da sua literatura: "É evidente
[...] que os nossos livros, volumes de pequenos
burgueses que aderiram ao proletariado, podem ser
ingênuos e falhos. Apesar de tudo êles falam uma
linguagem nova e verdadeira (Ibid.).
Essa linguagem "nova e verdadeira" teria sido adquirida no contato com o mundo
proletário. Submetendo-se ao obreirismo por exigência do PCB, o escritor militante teria, para
os seus livros, a contribuição de dados, que observaria in loco. Discutiria, com a "força de
documento", a exploração a que o trabalhador era submetido: parcos salários, condições
precárias, carência de moradias, moléstias - em suma, extrema miséria.
2.5 Os filiados
O verdadeiro intelectual é aquele que, além de se engajar
politicamente opta pelo comunismo.
(Jorge Amado,1995)
Dentre os escritores que se filiaram ao PCB na
década de 30, selecionamos alguns para comentar
em seguida. Suas posições em relação ao obreirismo
e à literatura proletária constituem, ao nosso ver,
uma síntese de aspectos importantes do engajamento
do intelectual brasileiro do período. Engajamento
que teve seu ponto máximo na Intentona Comunista
de 1935, cujo fracasso reforçou o autoritarismo do
presidente Getúlio Vargas e intensificou a
perseguição aos comunistas.
2.5.1 Raquel de Queiroz e o Comunismo
[...] lia principalmente os russos, Dostoievski, Gorki, Tolstoi, e todos aqueles dos
quais mamãe me passou a sua paixão. E por isso, socialismo, revolução russa,
comunismo, e até mesmo marxismo propriamente dito, já me eram então assuntos
familiares
(Raquel de Queiroz, 1998)
Raquel de Queiroz exerceu uma militância política precoce, já publicara O Quinze, seu
1° romance, quando se filiou ao Partido Comunista, em 1931, aos 20 anos.
No livro de memórias, Tantos Anos (1998), de Raquel e Maria Luíza de Queiroz,
Raquel recorda sua militância política no PCB. Seu ingresso se deu em um momento de
grande seletividade partidária e de repressão governista:
Quando nele entrei, o Partido mal completara dez anos de vida no Brasil. E
havia uma rede de comunistas pelo país inteiro: onde a gente chegava, encontrava
amigos. Os mais ruidosos eram os simpatizantes, os que tinham compromisso
ideológico firmado. Aliás, nessa época, entrar para o Partido não era fácil. Os
simpatizantes ficavam muito tempo em período de provação. Era mister dar provas
durante anos, principalmente no que se referia à submissão ideológica ao stalinismo.
Pois essa foi a fase mais temível do stalinismo, logo depois da morte de Lenine.
Quando me tornei trotskista, Trotski já fora, havia três anos, expulso da Rússia.
E o PC brasileiro de então estava bem organizado. Talvez a rede não fosse
imensa, mas era estendida, ocupava todo o país. E uma vez que no sistema de 1930,
tempo de ilegalidade, ninguém podia ir abertamente se manifestar na rua,
aproveitavam-se, então, os movimentos liberais, como, por exemplo, a revolução de
São Paulo em 1932. A primeira vez em que o comunismo mostrou a cara na rua foi
em 1935; mas, antes disso, descoberto qualquer movimento ilegal, a repressão era
implacável. [...] (QUEIROZ; QUEIROZ, 1998, p. 73-74).
Imbuídos de um ideal, dispunham-se os militantes a
aceitar todas as submissões exigidas pelo Partido,
até mesmo a possibilidade de morrer, de matar, a fim
de conquistar a simpatia da cúpula dirigente. A
mocidade mais intelectualizada era dominada por
uma vontade, quase uma obrigação, de pertencer a
algum movimento político. O ídolo dos militantes
era Luís Carlos Prestes, o principal elemento de
contato com a União Soviética: "Tudo o que se
recebia de lá vinha através do Uruguai e era então
passado para o pessoal do Rio, que distribuía o
material para nós, nos estados. E tudo mal traduzido
do espanhol" (QUEIROZ; QUEIROZ, 1998, p. 37).
Em 1931, Raquel estava, como muitos, "politizada" e "comunizada". A inserção no
PCB se dava na mais absoluta clandestinidade, por conta da repressão:
[...] Não me lembro de fazerem inscrições em livro ou mesmo em papel apropriado;
nem boletins, nem ordens de serviço, nada. Ao contrário, era preciso ter mais
cuidado com papéis, documentos e até livros, porque a polícia era brutal e levava
logo tudo para a cadeia. Papéis e pessoas (QUEIROZ; QUEIROZ, 1998, p. 37).
Nesse ano, regressou ao Ceará e levou consigo
credenciais do Partido e a missão de promover a
reorganização do Bloco Operário e Camponês,
esmagado pela polícia presidencial. Devido às
dificuldades encontradas para organizar um grupo
coeso - pois, em Fortaleza, havia um reduzido
número de militantes instruídos -, Raquel tornou-se
uma espécie de consultora, logo, promovida ao
cargo de secretária do PCB no Ceará - não por
mérito, diz ela, mas por ser capaz de escrever e
datilografar. Recebia as correspondências e o
material de propaganda e participava assiduamente
das reuniões clandestinas, sendo que várias delas
foram realizadas no Pici (sítio da família da
escritora), que era um ponto até então fora de
qualquer suspeita. Em 1932, em visita ao Rio, foi
encarregada de estabelecer contatos, receber
palavras de ordem e material de propaganda:
A célula a que me dirigiram costumava reunir-se no coreto da praça da estação
do Méier. Ia-se de trem até lá. Três a quatro pessoas, homens e mulheres, às vezes
fingindo-se de namorados. [...] eu andava metida em cheio não com o Partido,
mas com uma porção de gente que estava na ilegalidade. Esse curto período de 1932
foi a minha mais prolongada fase de militante.
Pouco depois rebentou a revolução de 1932 em São Paulo e nós resolvemos
apoiá-la, embora fosse uma revolução de caráter burguês. Era, porém, um levante
contra a ditadura de Getúlio, então nosso inimigo (QUEIROZ; QUEIROZ, 1998,
p. 38).
O rompimento de Raquel com o PCB coincidiu com a política de proletarização e com
a desconfiança em relação aos intelectuais militantes. Ao chegar ao Rio, em 1932, trouxe
consigo os originais de seu segundo romance João Miguel. O romance tem como espaço o
Ceará e revela, com intensidade, a problemática social do Nordeste: a miséria, a seca, a
desigualdade, a indiferença dos poderosos diante de tão grave situação. Assim que souberam
do romance, os dirigentes do Partido exigiram que ela entregasse os originais para uma
avaliação: então, após a leitura, feita por uma comissão, designada pelo Partido,
permitiriam - ou não - a publicação. Mesmo contrariada, foi condescendente:
Obedeci, de vontade. Mas na província, de onde eu vinha, fazia-se, entre os
comunistas, muita questão da disciplina, no caso especial dos “intelectuais”. Os
operários, que compunham a aristocracia dos grupos marxistas, exigiam de nós
obediência cega. Os intelectuais eram por eles considerados uma espécie de
subclasse, pouco merecedora de confiança (QUEIROZ; QUEIROZ; 1998, p. 39).
Deixaram-na sem resposta durante um mês; depois
disso, foi procurada pelo Partido a fim de receber a
"decisão" sobre o romance:
[...] O presidente, declarando que acabara de chegar da União Soviética (eles jamais
diziam Rússia), trazia ordens expressas de conter as infrações dos intelectuais.
Afirmava ter lido atentamente o meu romance. E concluíra que eu não poderia
receber permissão para o publicar sem fazer importantes modificações na trama,
carregada de preconceitos contra a classe operária (Ibid., p. 40-41).
Raquel nos conta os "preconceitos" que o presidente
então sublinhou no seu romance:
[...] uma das heroínas, moça rica, loura, filha de coronel, era uma donzela intocada.
a outra, de classe inferior, era prostituta. Eu deveria, então, fazer da loura a
prostituta e da outra a moça honesta. João Miguel, 'campesino', bêbedo, matava
outro 'campesino'. O morto deveria ser João Miguel, e o assassino passaria de
'campesino' a patrão. Indicou mais outras modificações menores, terminando por
sentenciar: "Se não fizer essas modificações básicas, não podemos permitir que a
companheira publique o seu romance" (Ibid.).
Raquel conclui o episódio:
Ele tinha nas mãos, num rolo de papel pardo, a única cópia do livro que eu
possuía, mal datilografada por mim mesma, na minha velha Corona. Levantei-me,
devagar, do meu banco. Cheguei à mesa, estendi a mão e pedi os originais para que
pudesse operar as modificações exigidas. O homem, severo, me entregou o rolo. Eu
olhei para trás e vi que estava aberta a porta do galpão, a sua única saída. E, em vez
de voltar para o banco, cheguei até o meio da sala, virei-me para a mesa e disse em
voz alta e calma: "Eu não reconheço nos companheiros condições literárias para
opinarem sobre a minha obra. Não vou fazer correção nenhuma. E passar bem!"
Voltei-me para a porta e meti o na carreira (QUEIROZ; QUEIROZ, 1998, p. 40-
41).
Após este acontecimento, Raquel não teve mais contato com os dirigentes do Partido.
No primeiro número d' A Classe Operária (órgão oficial do Partido Comunista), publicado
logo após o incidente, registrou-se em letras garrafais que Raquel havia sido "irradiada"
(expulsa) do Partido por ideologia fascista, trotskista e por ser inimiga do Proletariado.
Em 1936, Queiroz empreenderia, com Caminho de Pedras, uma crítica severa à
política de "proletarização" do Partido. O romance retrata as lutas internas entre os
comunistas de Fortaleza dos anos 30. A autora procura mostrar a falta de coesão do grupo que
se dividia entre os "de gravata", representado pelos intelectuais e os "de tamancos", formados
pelos operários. Ela insiste, no romance, em afirmar que a proletarização dos intelectuais não
foi marcada por uma real conversão. Estes conheciam somente uma pequena parte dos
problemas vividos pelos trabalhadores, dificilmente poderiam vivenciar de forma legítima a
vida proletária. O obreirismo gerou rixas entre os operários e intelectuais, fato registrado em
Caminho de Pedras:
[...] os intelectuais surgiam em bando, eram ruidosos e alegres como estudantes. [...]
Repetiam a toda hora "camaradas", afetavam uma simplicidade excessiva, que
chocava os outros, os "de tamanco", cheios de preconceito e convenções. Pois a
simplicidade, longe de ser um atributo dos humildes, é um artifício de requintados
que a plebe desconhece. Depressa essa diferença cavou divergências. Os "tamancos"
entraram a hostilizar os "gravatas", a "desmascará-los", a exigir que se
"proletarizassem" (QUEIROZ, 1976, p. 37).
Caminho de Pedras ilustra ainda as rivalidades pela disputa da direção da organização,
idênticas àquelas travadas internamente no PCB:
E a luta pelas posições dentro da organização armou-se aberta. Declaravam os
operários que os intelectuais eram incapazes de exercer um cargo de confiança
porque lhes faltava "consciência proletária".
E os outros, certos da sua superioridade de intelectuais, disputavam abertamente
as posições, faziam ressaltar perversamente as falhas e erros dos "eleitos"
(QUEIROZ, 1976, p. 37).
Com a chegada do Estado Novo, em 1937, a
escritora acabou sendo presa, no Ceará, por força de
suas convicções trotskistas. Exemplares de seus
livros, junto aos de Jorge Amado e Graciliano
Ramos, foram queimados em praça pública; e ela
passou três meses detida no quartel do Corpo de
bombeiros de Fortaleza.
2.5.2 Jorge Amado: um escritor do Partido
Desapareceu o homem sem partido. Hoje ele é tão raro como
um animal pré-histórico. Desapareceu, por conseqüência, a
literatura desinteressada. Os intelectuais que não estão de um
lado estão de outro. Impossível existir o indiferente. Como
impossível é existir o livro sem finalidade. Mesmo porque
quem não está com o proletariado está necessariamente
contra ele.
(Jorge Amado,
1946)
Na década de 30, Jorge Amado mudou-se para o Rio e participou ativamente do
debate intelectual que levaria os escritores de então ao fascismo, ao catolicismo ou - como foi
o caso de Amado - ao comunismo. Conheceu Raquel de Queiroz e por influência desta
chegou à militância política como afirma em entrevista a Raillard (1990, p. 49), realizada em
1985: "Raquel chegou ao Rio, passamos o tempo todo juntos. Foi em grande parte sob sua
influência que eu efetivamente me engajei no movimento comunista." Dedicou-se então à
leitura de livros como:
[...] A Bagaceira, de Américo, Menino de Engenho, de Lins, Judeus sem
Dinheiro, de Mike Gold, Passageiros de Terceira, de Kurt Klaber, A torrente de
Ferro, de Serafimovitch, A Derrota, de Fadeev, A Cavalaria Vermelha, de Babel
[...]. Lendo A Bagaceira virei escritor brasileiro, lendo os russos, o alemão e o judeu
norte-americano desejei ser romancista proletário (AMADO, 1993, p. 183).
Jorge Amado também leu o russo Máximo Gorki. Em suas memórias Navegação de
Cabotagem confessa: "o russo é autor de minha devoção, com ele aprendi a amar os
vagabundos, devorei-lhe os contos, os romances, o teatro" (AMADO, 1993, p. 248-249).
O primeiro romance de Amado, O país do carnaval, foi publicado em 1931- antes de o
escritor ingressar na política e se tornar um militante comunista; Cacau, seu segundo
romance, escrito em fins de 32 e publicado em 33, sofreu a influência do Partido. Amado
tentou escrever um romance comprometido com a transformação da sociedade, numa
perspectiva que atendia à política do Partido: o intelectual deveria produzir ficção com força
de "documento", denunciando a existência de segmentos sofredores da população.
Sobre essa força de "documento", declararia Amado em entrevista à imprensa em
1933: "Cacau é resultado da minha infância, passada na cidade de Ilhéus e seus povoados, e
nas fazendas de cacau. muito que eu imaginava escrevê-lo. Tinha para isso uma grande
documentação" (AMADO apud TÁTI, 1961, p. 47). E concluiria: "Escrevi Cacau com
evidentes intenções de propaganda partidária. Conservei-me, porém, rigorosamente honesto,
citando apenas fatos que observei." A escrita do romance teria tomado impulso quando, em
uma viagem de 1932 para o município de Pirangi, no interior da Bahia, o escritor
impressionou-se com a vida dos trabalhadores daquela região.
Suor, o terceiro livro do escritor, publicado em 1934, é um romance ambientado em
Salvador e tematiza o "proletariado" urbano. Segundo Jorge Amado, Suor é também um
documento, pois retrata "verdadeiramente" o que ele viveu em meados da década de 20
quando morou numa rua próxima ao Largo do Pelourinho:
___Vivi em vários lugares. Durante algum tempo morei numa ruela vizinha ao
Largo do Pelourinho, no coração da velha Bahia, um lugar admirável por sua
arquitetura e terrível pelo que significa o pelourinho era o lugar em que eram
castigados publicamente os escravos. A casa em que eu morava era uma construção
colonial alta e sombria, onde se amontoava uma multidão de pessoas exóticas. Eu
morava bem em cima, numa água-furtada. Hoje transformaram-na num hotel,
juntando dois sobrados, e até colocaram uma placa indicando que é casa descrita em
Suor: é exatamente o que eu mostro neste romance. Suor é verdadeiramente a
minha vida no Pelourinho (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 33).
Após Cacau e Suor, Jorge Amado empreendeu a produção de um romance em que
um herói, oriundo das massas, se rebela contra o processo histórico que o oprime. Em
Jubiabá (1935), o negro Antônio Balduíno, ao adquirir consciência de classe, incita a greve
do trabalhador contra o patrão. O escritor revelou que para a produção do livro percorreu,
durante um mês, a cidade de Salvador, documentando a realidade local:
[...] Cheguei de 15 dias [...] eu nasci na Bahia e quase todos os anos volto à
minha cidade. É admirável! As ruas, os pretos, os saveiros, as feiras [...], as ladeiras
[...]. Acho que botei um pouco disso tudo no meu novo romance - Jubiabá - que
acaba de aparecer. É a vida pobre dos negros da Bahia [...]. Ambientes negros de
cais, de casario velho, de macumbas, saveiros, botequins e ainda todo o recôncavo
com as suas cidades típicas, as plantações de fumo e as fábricas de charutos. O meu
novo romance procura refletir a vida dos pretos da Bahia [...] que vivem em meio à
miséria maior, sofrendo todos os preconceitos de raça, que ainda dominam o Brasil
(AMADO apud TÁTI, 1961, p. 77).
Notemos que, influenciado pelo obreirismo do partido - tendência que vigorou até a
publicação de Jubiabá - Amado sentiu a necessidade de sublinhar nos seus comentários o
contato próximo com a realidade proletária que "documenta" em seus romances.
A vida política intensa de Jorge Amado o levaria a ser detido em 1936, por causa da
Intentona Comunista do ano anterior. Mas os problemas para Amado começaram mais cedo:
Cacau havia experimentado em seu lançamento a mão pesada da censura. Liberado graças
à intervenção de amigos, o romance vendeu, em 1933, 2000 exemplares em 40 dias. Estava
aberto para o escritor o caminho da empatia popular, em paralelo à contínua vigilância do
aparelho repressivo. Autor de uma ficção tida como subversiva, Amado foi então preso,
perseguido e exilado. É na cadeia que assiste a publicação de Mar Morto em 1936. Perdeu o
emprego e passou várias privações por falta de dinheiro. Teve seus livros recolhidos das
livrarias e sua venda proibida no Brasil. Essa sua prisão foi a primeira de várias outras, que
viriam por conta do engajamento.
Em 1937, participou da campanha para eleger José Américo de Almeida a presidente
da República. Contudo, ocorreu o golpe de Getúlio; e implantou-se a ditadura do Estado
Novo. Novamente, o escritor foi detido. Na prisão, soube da queima pública de seus livros
pelo exército, dentre os quais o recém-lançado Capitães da areia. Depois de proibidos de
circular e de serem recolhidos de escolas, bibliotecas e livrarias, quase dois mil exemplares de
livros viraram fogueira do fascismo tropical numa praça em Salvador.
Liberto, em 1938, passou a trabalhar nos mais diversos jornais de São Paulo e do Rio.
Ocupou-se plenamente com a atividade política, combatendo a ditadura, denunciando o
fascismo, defendendo a anistia dos que ainda estavam presos. Empenhou-se para reorganizar
o Partido Comunista, um tanto esfacelado pela polícia de Vargas.
2.5.3 O Comunismo e o casal Oswald de Andrade e Patrícia Galvão
Em 30, numa estreita solidariedade com meu estado de
arruinado, tornei-me marxista militante e passei a conhecer
cortiços, vielas, prisões, lençóis rasgados e fome física.
(Oswald de Andrade, 1995)
A adesão de Oswald de Andrade ao comunismo foi
incentivada por sua mulher Patrícia Galvão, a Pagu.
Quando foi a Buenos Aires, em 1930, para participar
de um festival de poesias, Pagu conheceu Luís
Carlos Prestes e voltou desse encontro entusiasmada
com o Comunismo. A adesão do casal foi rápida e
objetiva, conforme ele mesmo expõe em uma
entrevista de 19 de setembro de 1954:
__Conte como foi que você aderiu ao comunismo?
__Por culpa de Patrícia Galvão. Ela fizera uma viagem a Bueno Aires, onde
realizou um recital de poesia. Voltou com panfletos, livros e uma grande novidade:
__Oswald, tem o comunismo... Conheci um camarada chamado Prestes. Ele é
comunista e nós vamos ficar. Você fica?
__"Fico" (ANDRADE, 1990, p. 234).
Oswald e Pagu associaram-se ao Partido Comunista
em 1931, no calor da orientação obreirista. A
direção do PCB atribuía tarefas difíceis aos novos
militantes, a fim de testar-lhes a adesão. Uma dessas
tarefas, segundo relatou Nonê, filho de Oswald, foi a
de pedir dinheiro ao ex-amigo modernista Paulo
Prado.
A crise de 1929 deixou o escritor endividado e
estimulou sua militância política. O tempo de festas
e viagens havia-se encerrado, dando lugar à
incerteza e à clandestinidade. Incorporando o
espírito obreirista exigido pelo Partido, Oswald
deixou de lado as gravatas e camisas de seda
francesas para aderir à indumentária de um operário.
Mudou-se com Pagu e Nonê para a modesta casa na
rua dos Ingleses, n° 56. Levando a cabo a esperança
de uma revolução iminente que viesse socializar
tudo, Oswald impôs um novo ritmo de vida para o
filho: após cinco anos de estudo pago na Suíça,
dominando fluentemente francês, alemão e inglês,
Nonê foi matriculado pelo pai no Liceu público de
Artes e Ofícios para ser transformado em um
operário qualificado.
A proletarização de Oswald é vivida ficcionalmente
pelo personagem Alfredo Rocha em Parque
Industrial
2
, de Galvão (1994, p. 70). Na descrição do
personagem, esboça-se um perfil do próprio Oswald.
Ele é mostrado como um "burguês hesitante" que se
inclina em direção à transformação socialista
enquanto lê Marx no conforto do Hotel Esplanada.
Após o término do casamento com Eleonora, ele
abdica da burguesia: "Abomino esta gente. Estes
parasitas... E sou um deles." Sua riqueza o
incomoda e tenta ajustar-se à classe operária através
do seu recém-descoberto marxismo: “[...] Alfredo
procura gostar da comida pobre e mal feita. Sente-se
feliz. Não acha mais abominável, como antes, o
Brasil. Não deseja mais afundar sua neurastenia
individualista em nenhum pitoresco. Sem saudades
dos hotéis do Cairo nem dos vinhos de França” (PI,
p. 88).
Seguindo a política do obreirismo, o casal deixou de lado qualquer situação
aparentemente capitalista. Oswald, junto de Pagu, celebrava, então, um novo estilo de vida,
bem traçado no "Poema à Patrícia”:
Sairás pelo meu braço grávida, de bonde
Teremos seis filhos
E três filhas
E nosso bonde social
2
A partir daqui, faremos referência à obra Parque Industrial, de Patrícia Galvão, publicada pela editora
EDUFSCAR, de São Paulo, em 1994, utilizando a sigla PI, sempre por esta edição, seguida da numeração.
Terá a compensação dos cinemas
E dos aniversários dos bebês
Seremos felizes como os tico-ticos
E os motorneiros
E teremos o cinismo
De ser banais
Como os demais
Mortais
Locais (ANDRADE, 1967, p. 31-32).
É interessante notar a distância entre as perspectivas de Raquel e de Pagu com relação
à política de proletarização do PCB. Se Raquel condena e critica o obreirismo no seu romance
Caminho de Pedras, Pagu o defende com otimismo em Parque Industrial.
Em 1931, começava a fase ativista de Pagu e Oswald. Juntos editaram o jornal O
Homem do Povo. O programa do jornal avisava que, embora não estivesse filiado a nenhum
partido, apoiaria a esquerda revolucionária em prol da realização das reformas necessárias.
Contudo teve uma projeção bastante efêmera e tumultuada: de 27 de março a 13 de abril de
1931.
Com o mesmo ânimo e paixão com que defendera o Modernismo, Oswald entregou-se
à política. Foi fichado como subversivo e preso várias vezes. Do engajamento político
surgiram trabalhos didáticos destinados a operários, textos que também funcionaram como
programa do Partido, orientando a discussão interna entre os companheiros. Oswald
participou, em 1931, de uma conferência no Sindicato dos Pedreiros, Confeitarias e Anexos,
em São Paulo, onde reconstituiu a história dos sindicatos através dos séculos. Essa palestra
confirmou o espírito vanguardista do escritor, pois o tema sobre sindicatos era assunto novo: a
lei que havia regulamentado a existência das organizações operárias e patronais era do mesmo
ano, 1931.
Em 1932, Pagu separou-se de Oswald. Foi morar no
Rio de Janeiro numa vila operária e trabalhar num
cinema da Cinelândia como indicadora de lugares.
Esta mudança fazia parte do projeto obreirista do
Comunismo, forçando os intelectuais a
experimentarem também a vida e o trabalho como
operários.
A atividade literária, em prosa, de Patrícia Galvão iniciou-se nesse mesmo ano de
1932, quando começou a escrever Parque Industrial. Pagu adotou o pseudônimo de Mara
Lobo por exigência do Partido Comunista. Em 1931, instalou-se no bairro operário do Brás
em São Paulo e acompanhou de perto o cotidiano dos trabalhadores, envolvido por nebulosa
exploração. Resignou-se a abandonar a vida burguesa e viu de perto muita miséria nos
subúrbios e nas fábricas. Misturou-se com pessoas discriminadas pela falta de instrução.
Ouviu gritos, pragas, palavrões, e documentou tudo em Parque Industrial.
A produção literária de Oswald também foi fecunda na década de 30. Em 1933, ele
lançou Serafim Ponte Grande, obra que marca a opção do escritor pela literatura política:
"Publico-o [...] no seu texto integral terminado em 1928. Necrológio da burguesia. Epitáfio do
que eu fui" (ANDRADE, 1992, p. 39). Renega então os seus livros anteriores. Ousou sugerir
que Serafim Ponte Grande era o novo manifesto da Revolução Proletária.
Publicado Parque Industrial em 1933, Pagu deixou o país e empreendeu uma viagem
pelo mundo percorrendo os EUA, Japão, China ,URSS, Alemanha e França. Retornou ao
Brasil, em 1935, e defrontou-se com um país mergulhado em crises políticas: Congresso
Nacional fechado, sindicato e associações sob intervenção. Prisões políticas, tortura e
imprensa sob censura prévia - essas foram algumas das armas do governo para conter e
silenciar a oposição depois da Intentona Comunista. Pagu foi presa novamente, dessa vez por
cinco anos (1935-1940).
Oswald foi apoio para os colegas presos, inclusive para Pagu. Apesar das sátiras
políticas registradas no jornal A Platéia, desviou-se da ortodoxia política. Com isso evitou sua
prisão.
2.6 Desfiliação
Expulsara finalmente de minha vida o Partido Comunista.
De degrau em degrau desci a escada das degradações,
porque o Partido precisava de quem não tivesse um escrúpulo,
de quem não tivesse personalidade, de quem não discutisse.
De quem ACEITASSE.
(Patrícia Galvão, 1982)
A ditadura do Estado Novo, pela sua violência contra o PCB e contra os indivíduos
que dele se aproximavam, contribuiu para a cisão entre o Partido e a Intelectualidade.
Também a linha política partidária pautada na rígida ditadura stalinista teve influência no
afastamento dos intelectuais.
A fase de proletarização afastou muitos deles, que viram, nessa medida, uma total falta
de critérios. O Partido designava tarefas abusivas, totalmente distanciadas de habilitações;
negava o direito de voto e nomeava para a sua direção somente lideranças oriundas do
proletariado. Devido sobretudo à política arbitrária do PCB, a presença dos intelectuais no
Partido foi encarada então com sectarismo. Acreditava-se que o intelectual que se filiasse ao
Partido deveria abdicar antes de tudo à sua condição de intelectual. Na verdade o que se
pretendia era restringir a atuação do intelectual a um praticista, a um simples cumpridor de
tarefas; não se compreendia então que o intelectual poderia ser um combatente pela causa do
socialismo precisamente desempenhando seu papel como intelectual comunista.
Em 1932, Raquel de Queiroz abandonou o Partido
Comunista (PC) devido à política de proletarização e
à tentativa de censura de seu trabalho literário. Após
cinco anos de prisão (1935-1940), em plena ditadura
do Estado Novo, Pagu, ao sair do presídio político,
rompeu definitivamente com o PCB por causa das
tarefas abusivas a que fora submetida. Oswald iria
romper com o Partido em 1945; e Jorge Amado, em
1955.
3 O ROMANCE PROLETÁRIO
3.1 A chegada do romance proletário ao Brasil
Traduziram-se os novos evangelhos e muitos [...] por olhá-los nas
vitrines das livrarias ou nas mãos dos outros converteram-se [...] .
Falou-se na miséria dos proletários, na opressão da burguesia, e
muitos [...] aceitaram [...] E se fizeram 'socialistas e comunistas'.
(Otávio de Faria, 1978)
Alguns países ocidentais já haviam produzido
romance proletário na década de 20; contudo, é na
década de 30 que o gênero prolifera e chega ao
Brasil. São então publicados livros de procedência
em geral russa, alemã e americana Sobre esse fato,
Jorge Amado dá o seu testemunho, em entrevista de
1985:
A expressão "romance proletário" estava ligada a toda uma literatura que apenas
se começava a conhecer no Brasil. Havia entre outros um romance alemão,
Passageiros de Terceira classe, de um certo Kurt Klaber [...] Era um romance
estranho, um romance proletário todo em diálogos, inteiramente em diálogos, que
contava a viagem de barco de imigrantes alemães voltando dos Estados Unidos para
a Alemanha, e o drama destes imigrantes. Este livro, prefaciado por Thomas Mann,
devia datar dos anos 20 e poucos; eu o lera em 1930, numa tradução publicada pela
Pax, uma editora de São Paulo que começava a publicar romances russos, da
primeira fase da literatura soviética, A Derrota, de Fedaiev, A Torrente de Ferro, de
Serafimovitch, A Cavalaria Vermelha, de Babel, uma literatura extremamente rica.
Mais ou menos ao mesmo tempo, a Cultura Brasileira, uma outra editora de
esquerda, publicou Judeus sem Dinheiro, de Michel Gold, que teve enorme
influência, um sucesso tremendo; [...] (AMADO apud RAILLARD, 1990, p. 55-56).
Sabe-se que a Pax também traduziu, no período, os seguintes romances proletários:
Beco sem saída de V. Vieressaief e A semana de E. Lebedinski. Na verdade, o próprio Amado
se tornaria, na década de 1930, um tradutor e divulgador, no Brasil, da literatura proletária.
Literatura que definitivamente, como ainda acrescenta, influenciou não a ele mas também
toda a sua geração. O autor afirma:
___Eu falei das influências estrangeiras exercidas sobre mim e minha geração - a
literatura soviética, a literatura norte-americana e a de outros países; quando se
falava do romance proletário, toda uma literatura de esquerda que vinha dos anos 20,
Upton Sinclair, os socialistas nos Estados Unidos - tudo isto não é ?, pesa sobre o
"romance de 30". [...] os romancistas soviéticos [...] os grandes romances
documentários [...] os livros pró-soviéticos, os socialistas mais críticos - uma crítica
que em seguida foi totalmente censurada e proibida. Aquilo nos influenciou muito a
todos (AMADO, RAILLARD 1990, p. 99).
Das influências, alguns escritores, como Amado,
passaram à produção, de fato, do romance proletário
no Brasil. O escritor baiano foi um fecundo gerador
de romances que colocavam o trabalhador explorado
como ponto central da narrativa, a fim de abrir
caminho para a busca de mudanças profundas na
sociedade brasileira.
3.2 A classificação de romance proletário
Deve-se ressaltar que nem toda a produção literária que versava
sobre o "proletariado" recebia a classificação de romance proletário.
(Wagner Berno, 1979)
Em obras classificatórias, como histórias de literatura brasileira e antologias, é rara a
menção ao romance proletário. Mesmo romances classificados por seus autores como
"proletário", segundo confirmaremos ser o caso de Cacau e Parque Industrial, recebem
denominações diversas, tais como romance social ou romance documentário. É uma grave
lacuna, pois está-se ignorando uma interessante polêmica que caracterizou a produção
literária no Brasil da primeira metade da década de 30.
Quais, dentre os romances que estavam sendo publicados, poderiam ser classificados
como proletários? Nem todos que versavam sobre o proletariado continham a postura política
de esquerda identificada ao novo gênero, sobretudo porque tematizavam, em vez de luta de
classes, a cooperação de classes.
Numa classificação restrita, pode-se considerar como romance proletário aquele cujo
autor, filiado ao PC, manifestasse pontos de vista do seu Partido. se incluem, então, os
romances Cacau de Jorge Amado e Parque Industrial de Pagu.
Numa classificação ampla, o romance proletário incluiria produções de autores não
filiados ao PC, mas simpáticos à causa proletária. É o caso d' O Gororoba de Lauro Palhano.
Como mencionamos na introdução, a seleção destes três romances tem suas
justificativas. Primeiro, todos foram publicados no início da década de 30, ou seja, no auge da
polêmica sobre o romance proletário. Segundo, os três explicitam, de fato, um compromisso
com o gênero. Terceiro, é do nosso interesse confrontar cânone e margem.
3.3 Publicações
3.3.1 A publicação d' O Gororoba em 1931
Desde 1931,... aparecia, com O Gororoba, de Lauro Palhano,
o protótipo perfeito de toda uma série de "romances
proletários".
(Wilson Martins,
1978)
Dois anos antes de Cacau e Parque Industrial, foi publicado O Gororoba: Scenas da
vida proletária no Brasil. É um romance, hoje, completamente esquecido: à exceção de
Wilson Martins, que o comenta de passagem em História da Inteligência Brasileira (1978),
não encontramos dele outras referências. Seu caráter de "protótipo", sugerido por Martins, e o
fato de se auto-intitular: "scenas da vida proletária no Brasil", despertou-nos o interesse.
Lauro Palhano, o autor deste livro, é o pseudônimo do engenheiro mecânico Juvêncio
Campos, que nasceu na Bahia em 1881. Escreveu O Gororoba depois de sua experiência na
Amazônia, quando serviu como técnico na construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré,
inaugurada em seu trecho inicial em 1910, no interior da floresta. Campos sensibilizou-se
com a realidade da região e relatou-a nesta estória, que se passa no final do século XIX e
início do século XX, quando do apogeu e crise da borracha. No início de 1931, a Amazônia
tornou-se cenário importante na literatura brasileira, com a publicação de livros que a
tematizavam, como este.
O romance contém ao final um glossário de vocábulos regionais, à semelhança de A
Bagaceira e outros do período.
3.3.2 A publicação de Cacau em 1933
Quando escrevi Cacau declarei que queria fazer um
'romance proletário'.
(Jorge Amado,
1934)
Amado (1934, p. 101), ao escrever Cacau
3
,
evidencia sua intenção de filiá-lo ao gênero romance
proletário ao declarar em nota introdutória: “Tentei
contar neste livro, com um mínimo de literatura para
3
A partir daqui, faremos referência à obra Cacau, de Jorge Amado, publicada pela editora Martins, de São
Paulo, 1934, utilizando a sigla CAC, sempre por esta edição, seguida da numeração.
um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores
das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um
romance proletário?”
Em 1985, numa entrevista a Raillard (1990, p. 74),
Jorge Amado reafirma a consciência da atitude que
tomou ao elaborar o romance: "Será que vai ser um
romance proletário?” Tudo estava nisso. Todas as
coisas que estão lá eram corretas para a época [...],
eram, todas essas influências das quais falei, assim
como a onda da época, de um determinado tipo de
literatura. Ainda, nessa entrevista, Amado (apud
RAILLARD, 1990, p. 55) admite:
___Fazer um romance proletário era, evidentemente, pura pretensão da minha
parte. A consciência proletária ainda estava em formação num país que apenas
começava a se industrializar e onde não existia, propriamente, uma classe operária; o
que havia era o trabalhador manual - e, neste ponto, a descrição da vida dos
trabalhadores rurais é o que torna Cacau muito real.
A seu favor, Amado confirma o realismo da obra, sua força de documento honesto,
coerente com a época e com as influências que recebeu. Cacau, em sua honestidade, exalaria
um bom ar de revolta para estar junto da literatura proletária.
O poeta Jorge de Lima (1961, p. 67), no texto “Nota sobre Cacau”, da obra Jorge
Amado: 30 anos de Literatura, faz ouvir sua voz em defesa do escritor baiano: "Fez romance
chamado proletário, sim. Foi quem primeiro fez, e com honestidade...".
Na entrevista de 1985, Amado (apud RAILLARD, 1990, p. 56) afirma que Cacau, e
também Suor (1934), representam o seu encontro com a literatura proletária:
Cacau e Suor, que se seguem de muito perto - 1933, 1934 -, significam meu
encontro com a esquerda - é o momento em que me torno um militante da esquerda,
e meu encontro com a literatura, com o romance proletário dos anos 20, com a
literatura soviética da primeira fase e com os escritores americanos que surgiam.
O prólogo de Cacau motivou discussões e polêmicas. Murilo Mendes (1961, p. 71-
72), na obra Jorge Amado: 30 anos de Literatura, apresenta o texto “Cacau”, publicado em
Boletim de Ariel, Rio de Janeiro, em 1933:
Antes de mais nada precisávamos saber o que é que o autor entende como
romance proletário. Acho que a mentalidade proletária está ainda em formação;
agora é que o proletário está tomando consciência do seu papel histórico; portanto,
sobretudo em países de desenvolvimento capitalista muito atrasado como o nosso,
ainda não existe uma mentalidade proletária. Naturalmente o escritor que não
encontrar motivos de inspiração na vida em decomposição, da sociedade
burguesa, terá que observar a vida dos proletários, e, se quiser ser um escritor
revolucionário, terá que se integrar no espírito proletário, do contrário fará simples
reportagem.
Amado tenta, com Cacau, integrar-se ao "espírito proletário", tal como este se
manifesta, em sua incipiência, no Brasil, por isso, o romance possui qualidades que revelam o
orgulho do escritor de ter vivenciado, efetivamente, no feudo cacaueiro da Bahia, o martírio
dos trabalhadores, a fim de dar credibilidade a todas as situações de miséria e exploração
sofridas pelos empregados das fazendas.
3.3.3 A Publicação de Parque Industrial em 1933
Parque Industrial surge em edição limitada e quase clandestina em 1933 com o
subtítulo: "romance proletário". Tal como em Cacau, a intenção de filiação ao gênero é
explícita. Murilo Mendes (1961, p. 72), no artigo citado, compara a pretensão de ambos os
autores, com prejuízo para Pagu:
[...] Naturalmente o escritor que não encontrar motivos de inspiração na vida em
decomposição, da sociedade burguesa, terá que observar a vida dos proletários, e, se
quiser ser um escritor revolucionário, terá que se integrar no espírito proletário, do
contrário fará simples reportagem. O caso recente de Pagu é típico. "Romance
proletário", anuncia a autora no frontispício do Parque Industrial. Houve engano. É
uma reportagem impressionista, pequeno-burguesa, feita por uma pessoa que está
com vontade de dar o salto mas não deu. Assiste-se à entrada de fábrica, à saída de
fábrica, a encontros do filho do grande capitalista com a filha do operário, etc.
Parece que para a autora o fim da revolução é resolver a questão sexual.
Sobre o Parque Industrial pròpriamente pouca coisa se fica sabendo.
A questão sexual, tal como tratada no livro, representou, de fato, um escândalo para os
padrões morais da época. Não se furtando a sugestivas cenas de sexo, Pagu mostrou o quanto
havia de exploração sexual na relação entre classe opressora e oprimida.
Mas nem todos os críticos concordaram com a opinião depreciativa de Murilo
Mendes. João Ribeiro (apud CAMPOS, 1982, p. 282) ressalta, em 1933, o caráter
revolucionário do romance:
O romance de Mara Lobo é um panfleto admirável de observações e de
probabilidades. [...] É um livro de grande modernidade pelo assunto e pela filosofia,
que podemos depreender dos seus veementes conceitos. Trata-se da vida proletária,
que vive ou vegeta sob a pressão das classes dominadoras. É, pois, um libelo, sob a
forma de romance, que é sempre mais adaptável à leitura e à compreensão popular.
Também Ari Pavão (apud CAMPOS, 1982, p. 102), em 1933, demonstra uma opinião
favorável ao romance. Para o crítico, longe de ser somente reportagem, Parque Industrial
seria:
Romance veloz, cores fortes, personalidade. Mesmo para os que, como eu, não
estejam integrados na corrente de idéias que o inspirou, 'Parque Industrial' de Pagu,
é um livro que se com prazer. [...] como todo livro que tem idéias - interessa
porque retrata com uma simplicidade notável os aspectos mais desoladores dessa
luta tremenda que as desigualdades humanas criaram nas diferentes camadas sociais.
O livro de Pagu seria considerado por Campos como uma “pérola modernista” que
contribuiria para a construção do romance social de 1930. Certamente, a jovem escritora abriu
veredas até então não exploradas, manifestando sua sensibilidade aos problemas vividos pelos
proletários nas ruas, nas fábricas e em suas próprias casas. Galvão consegue, pela perspectiva
marxista, norteadora de seu romance, despertar a conscientização política e estimular o
engajamento social-realista dos anos 30.
3.4 A questão do narrador
O romance começa, pois, a não ser mais romance para classe.
É ainda de classe, porque os seus autores não podem se
desprender da sua, burguesa. Mas porfiam em atenuar esta
circunstância... A seleção dos temas e a intenção que animava
a sua escolha falam bem claramente deste espírito. Uns
escritores se colocavam do ponto de vista do burguês
decadente para chegar ao povo. Outros procediam à análise
impiedosa da própria classe...
(Antonio Candido, 1961)
O autor de romance proletário pretende negar sua
classe social de origem e se apropriar da identidade e
do discurso da classe proletária. Não é suficiente
para ele falar do proletariado oprimido e explorado;
assumindo o ponto de vista distanciado de um
burguês, demonstrando somente compaixão e
solidariedade diante do sofrimento do trabalhador.
Inconcebível para este autor colocar-se do lado
oposto, do lado da classe opressora. Isto, sim, é que
seria uma grande traição, uma mentira muito maior
do que a que resultaria de um discurso proletário
vindo de sua própria voz.
Mas, literariamente, até onde esta apropriação de
perspectiva seria viável? Não nos propomos, nesta
dissertação, a aprofundar a complexa discussão da
viabilidade ou não desta apropriação. Pretendemos,
sim, fazer uma reflexão sobre as respectivas
soluções encontradas por Palhano, Amado e Pagu
para a questão do narrador em seus romances.
3.4.1 O Gororoba
No prólogo da obra O Gororoba
4
, Lauro Palhano (1931, p. 7-8) apresenta-se ao leitor:
Muito tempo pensei em entregar a presente obra a um douto que m'a corrigisse,
limando e polindo as asperezas da forma e da expressão. Resolvi não fazel- o . Seria
eu o único illudido: - um individuo que tem manejado martellos não pode, com
acerto, manejar a penna. Resaltaria á compreensão de todos.
Quiz, na novella que segue, fixar impressões. Relatei, como pude, o que senti, o
que vi e ouvi entre collegas de vida, por parecer-me interessante e não tentado ainda,
em lingua nossa, por operário.
Alem de questões propriamente gramaticaes, falhas, bem as percebo; -
assumptos repisados por mais de um personagem; materia fastidiosa para as classes
alheias; déphasage resultante da incultura do montador.
As duas primeiras não sei como as podesse evitar; as cousas, com maior ou
menor dóse de phantasia, correram assim mesmo. Se podesse corrigir a outra, não
seria ferreiro.
Pretendi mostrar, ligeiramente embora, aos marechaes de Fortuna, aos que
governam, que legislam que defendem as leis, o que é ser particula d'essa grande
massa, em constante fluxo para o trabalho e refluxo para um lar de incertezas e de
apreensões; gotta d'essa eterna maré, a encher e a vasar, sem esperança de outra
finalidade.
Eis porque escrevi.
Entrariam ahi intenções outras?... (nem eu sei!). Se entraram, a principal foi a
exposta; perdoem-me as segundas.
Rio, 1930.
L. Palhano.
Podemos notar então que a vontade de dar voz ao
operário encontra solução em Palhano no ato de
4
A partir daqui, faremos referência à obra O Gororoba, de Lauro Palhano, publicada pela editora Terra de
Sol, do Rio de Janeiro, 1931, utilizando a sigla OGO, sempre por esta edição, seguida da numeração.
"travestir-se" a si mesmo de operário. Dentro desta
moldura, o seu romance constituiria um documento
inovador e dos mais verdadeiros: é o testemunho do
que viu e ouviu entre "colegas de vida", projeto "não
tentado ainda, em língua nossa, por operário".
Apesar de os autores passarem a viver entre operários, observando e estudando seu
ambiente e sua alma (na verdade, proletarizando-se), pensava-se então que a literatura
proletária não tinha ainda a força revolucionária que adquiriria um dia, quando os próprios
operários chegassem a um grau de cultura suficiente para que eles mesmos pudessem
descrever suas vidas. A idéia de Palhano, de construir sua identidade autoral como um
operário, dialoga com este pensamento da época.
Palhano traveste-se como alguém, que só tem
manejado martelos, e não a pena, afirmando assim a
condição inculta do seu texto. Inclusive adverte o
leitor de que o seu romance apresenta "falhas",
porque não o deu a um "douto" para correção. Além
de falhas gramaticais, reconhece falhas literárias:
assuntos são repisados por mais de um personagem,
ao longo de extensos diálogos, e acrescentemos
desde já, em tom por demais didático.
Na verdade, estava no horizonte do autor de romances proletários despertar também o
interesse de um público proletário; daí o tom pouco literário e didático das obras, e as
definições, com um vocabulário acessível, próximo da língua falada, de conceitos dirigidos à
conscientização política do leitor.
Palhano insiste em construir sua identidade com a classe operária quando afirma que:
o romance trata de "matéria fastidiosa para as classes alheias", mostra aos governantes o que
é ser, de fato, "partícula da grande massa trabalhadora".
O tom pessimista, não-edificante, que vai dominar
todo o romance, já é entrevisto no prólogo a partir da
metáfora do trabalhador como gota de eterna maré,
sem esperança de finalidade melhor além de só
encher e vazar.
A narração, em terceira pessoa, da vida de Cazuza, o gororoba, vai surpreender o leitor
disposto a acreditar nas afirmações do prólogo: Victor Hugo, Othelo, Sancho Panza, Calliope,
Fortuna, Platão, Thomas More, A Utopia, D. Quixote, Anatole France, Dostoievsky, são todos
nomes da tradição literária ocidental, citados com coerência, ao longo das páginas do
romance.
Como conciliar esta cultura do autor com a sua suposta condição de operário,
montador inculto de um romance? Percebemos então, que a construção da identidade autoral
operária está sendo posta em questão pelo próprio romance: "Entrariam ahi intenções outras?"
(OGO, p. 8).
3.4.2 Cacau
Em Cacau, Amado tenta solucionar o problema da apropriação da fala do proletário na
escrita a partir da construção de um narrador em primeira pessoa, proletarizado quando rapaz
pela falência e morte paterna. Sua condição anteriormente burguesa justificaria os traços de
cultura na escrita do romance.
Mas a identificação, só àquela altura, com a classe
trabalhadora não parece suficiente a Amado que
acrescenta: o contato próximo com os trabalhadores
veio de muito antes, desde quando o narrador
brincava, na infância, com os filhos dos operários da
fábrica do seu pai.
A construção desta identidade proletária também passa, à semelhança de Palhano, pela
afirmação da condição pouco literária do romance e do seu caráter de documento e
testemunho da própria vida do narrador. Nas páginas finais, este revela:
Esse discurso me deu a idéia de reunir algumas cartas de trabalhadores e
rameiras para publicar um dia. Depois no Rio de Janeiro, relendo estas cartas,
pensei em escrever um livro. Assim nasceu Cacau. Não é um livro bonito, de
fraseado, sem repetição de palavras. É verdade que hoje sou operário, tipógrafo, leio
muito, aprendi alguma coisa. Mas, assim mesmo, o meu vocabulário continua
reduzido [...]
Demais não tive preocupação literária ao compor estas páginas. Procurei contar a
vida dos trabalhadores das fazendas de cacau (CAC, p. 163).
Se Amado constrói um narrador que fala em nome do trabalhador rural, a preocupação
de Palhano é falar pelo operariado urbano, ainda muito incipiente, sobretudo no contexto em
que situa a sua estória, a Belle Époque., duas últimas décadas do século XIX e início do
século XX , aproximadamente até 1914.
Note-se que Amado constrói uma identidade proletária não para si, mas para o seu
pseudo-autor e narrador (o proletarizado Sergipano conta, em primeira pessoa, a própria
estória), mas é Amado o nome que comparece na capa como autor de fato do romance.
Palhano constrói uma identidade proletária para si: ele, autor cujo nome comparece na capa
do romance, é que é o proletário (a contar, em terceira pessoa, a vida do proletário Cazuza). A
solução de Palhano nos parece mais radical, ainda que, como vimos, o próprio romance a
questione.
Palhano não é filiado ao PCB, pretende falar pelo proletariado e não pelo Partido. É
adepto do romance proletário e não do romance "comunista". Ele, inclusive, questionará,
como veremos, a validade da apropriação do comunismo para o contexto brasileiro.
Amado, ao contrário, pretende dar voz aos ideais comunistas na literatura. Descreve a
progressiva "conscientização de classe" de trabalhadores inicialmente desprovidos de espírito
político - estória edificante a servir como exemplo para ser seguido por seus possíveis leitores
proletários. Tal como pregava a cartilha do Partido.
3.4.3 Parque Industrial
Pagu adota um narrador em terceira pessoa que
pretende falar pelo proletariado urbano constituindo-
se como classe. Importa notar um detalhe importante
que a diferencia de Palhano e Amado: Pagu fala pela
mulher trabalhadora. Suas principais personagens
são operárias do Parque Industrial de São Paulo no
início da década de 1930.
Diferentemente de Palhano e Amado, Pagu não constrói uma identidade proletária
explícita para o seu narrador. É a adesão radical à causa proletária e a análise impiedosa da
classe burguesa que denuncia sua identidade.
Pagu pretende justificar a veracidade do seu relato sobre a vida proletária feminina
pelo fato de ter vivido e trabalhado como operária. Aderiu à política de proletarização do
partido e assim coletou material para o seu romance. Contudo, à semelhança de Amado, quase
caiu na utopia, que, então, o proletariado brasileiro era ainda uma classe desorganizada.
Neste sentido, o romance de Palhano é mais realista, pois questionará, como veremos, a
pertinência de se falar em consciência de classe no Brasil nas primeiras décadas do século
XX.
Mas, à diferença de Amado, e à semelhança de Palhano, o romance de Pagu termina
por não ser edificante. Veremos que seu final é mais trágico que utópico.
3.5 Os romances
3.5.1 O Gororoba
O romance inicia-se em Caicó, Nordeste, em plena
seca, entre 1877-1878, quando nasceu Cazuza, o
protagonista da estória. Cazuza começa sua vida de
trabalhador nas oficinas do ferreiro Mestre Antônio.
Fugindo dos desmandos do mestre, refugia-se no
Amazonas em 1895; mais precisamente, vai morar
em Belém. Lá conhece Garnier, médico formado na
Inglaterra, que lhe dá conselhos em tom didático.
Garnier mantém opiniões conservadoras acerca das
transformações sociais, sobretudo no tocante à vida
dos operários.
Na cidade, Cazuza vive, o clima da Belle Époque. Belém experimenta, então, grandes
conquistas modernas, como o barco a vapor, a eletricidade e, sobretudo, a ousada construção
de uma estrada de ferro. Essas conquistas povoarão o mundo de Cazuza:
Belém despertava, por esse tempo, numa grande ânsia de progresso. Com razão
os paraenses, orgulhosos de sua capital, chamavam-na a "Liverpool Brasileira", pois
a borracha attraia numerosas embarcações ao seu magnifico porto, dando trabalho ás
officinas em grande azáfama (OGO, p. 33).
Cazuza retoma seu destino de trabalhador empregando-se em oficinas mecânicas como
ferreiro, onde lhe dão o apelido de Gororoba: "ser molle - chamam no Pará Gororoba" (OGO,
p. 40). Interessante observar o diálogo do romance de Palhano com Macunaíma de Mário de
Andrade. Em ambos os textos, destaca-se a indolência dos personagens, seus limites para
modificar o próprio destino.
As promessas de riqueza da cidade de Belém atraíam as pessoas do nordeste e da
Europa:
Do Nordeste vinham flagellados e invalidos; da Europa, invalidos e expertos.
Dos nacionaes, os fortes iam para a seringa; os europeus atiravam-se ao commercio
e outras profissões activas. Os invalidos de ambas as procedencias invadiam a
cidade esmolando e furtando [...] Desta invasão nasceram e cresceram os bairros
miseraveis circumdando a cidade em enorme curva (OGO, p. 104).
Essa chegada de imigrantes trouxe portanto,
problemas para Belém. Por outro lado, gerou
também ostentação: “Dos extrangeiros o elemento
preponderante era o luxo [...] embellezava-se a
Capital para o extrangeiro ver. Parques
sumptuosamente caros, praças e jardins' (OGO, p.
106-107).
O romance descreve os problemas sociais gerados pelo aumento da população com o
surto da borracha. A distância entre ricos e pobres aumenta: "As classes sociaes eram
perfeitamente distinctas. Tão distinctas como azeite e vinagre. Viviam entretanto sem
choques, sem separações odiosas, independentes" (OGO, p. 109). Notamos que Palhano
questiona a pertinência do conceito de luta de classe. As classes são distintas, mas sem
choques. Ainda que a miséria seja crescente, haverá sempre a alegria da "festa" a diluir
diferenças de classe:
A miseria ia crescendo, estreitando o cerco á cidade. Levantavam-se cortiços,
verdadeiros giraus, nas zonas baixas e alagadas ou ranchos de ubi e taipa, chão de
terra batida, nas zonas enxutas. Viviam ahi indigentes e vagabundos, pobres,
promiscuindo e pobreza e a peste. Estas classes, porém, tinham um traço de união a
ligal-as todas: - a alegria facilmente excitável; alegria communicativa que passava ás
ruas a pretexto de qualquer festa (OGO, p. 109 -110).
Neste contexto, viveu Cazuza, operário, totalmente
submisso aos donos do poder:
__Diga-me, o senhor tem opinião política?
Gororoba não tinha, nem desta nem de outra espécie, diante de pessoas
extranhas. Tinha o pavor da offensa.
__Não senhor.
__E com quem vota?
__Não sou eleitor e se o fosse, votaria em quem o senhor mandasse.
O régulo gostou da submissão de rapaz (OGO , p. 133).
Cazuza não tem consciência política e nem consciência de classe; quer "trair" a sua e
ascender socialmente: "[...] sua vida enrascava-se, dia-a-dia, com as despesas crescentes para
frequentar uma sociedade melhor... [...] esta vida de apparencias consumia muito dinheiro"
(OGO, p. 135-136). Dedica-se ao curso de maquinista de barco a vapor, as "gaiolas". Ao tirar
o diploma, ruma, em 1902, para Manaus que também vive a efervescência da Belle Époque,
com seus luxos trazidos pelo surto da borracha:
Da capital do Amazonas um detalhe impressionou a Cazuza. Naquelle recanto de
mundo não havia miséria. Dinheiro não fazia falta a ninguém porque todos o
ganhavam facilmente. Era de facto a Terra da Promissão; a fome não a descobrira
ainda. [...] Pelos hotéis, theatros e cafés, os seringueiros ridiculamente vestidos,
fartamente endinheirados, gastavam com mulheres detestavelmente velhas, feias e
pintadas; mulheres detestavelmente bonitas e immoraes, atirando-se a todo mundo
para sugar dinheiro, como se todo mundo fosse seringueiro... (OGO, p. 176).
Vítima de um sistema desumano, o personagem vai
sofrer também um amargo preconceito social: será
rejeitado pela família da moça que ama por ser pobre
e negro (é interessante notar que este é o único
momento do romance em que Cazuza é definido
como negro). Em carta, Garnier aconselha Cazuza a
não se revoltar e a ficar na sua classe operária,
conformado:
[...] Fique onde está. Instrúa os que chegarem ao alcance de sua palavra; castigue
pela palavra os que errarem. Aconselha-os á prática do bem e da fraternidade social,
sem revoltas, intimas ou expressas; sem violencias, culminando pela perseverança,
pelo respeito á conquista alheia; sem as visões de esplendores, tão ambicionados, e
que no entanto não valem uma hora de paz.
A sociedade operária deve tender para a creação da familia operaria, satisfeita no
seu ambito, ao nivel do seu espirito, sem confrontos humilhantes, sem luctas pelas
posições, que, galgadas de chofre, podem causar vertigens (OGO, 1931, p. 188-189).
Manaus entra em colapso econômico com a crise da borracha e leva uma expressiva
parte da população a emigrar, a fim de conquistar um espaço mais promissor. Cazuza, agora
maquinista, depara-se com a nova realidade e tira suas conclusões: “O Amazonas parecia-lhe
agora um pasto de ambições vulgares. Toda a lenda de soffrimento attribuido ao seringueiro,
lhe pareceu pueril. A ganancia entre os homens era a mesma , quer dum, quer de outro lado”
(OGO, p. 199).
A ganância, para Cazuza, é uma característica humana e não de classe: pobres e ricos
são ganaciosos. Percorrendo a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, percebe-a em várias raças:
“Na Madeira-Mamoré, onde o levou a curiosidade, viu representadas quasi todas as raças da
terra, em operarios de todos os officios. Não poude distinguir qual dos dois ouros - o ouro-
dollar e o ouro-borracha - exigia maiores sacrifícios” (OGO, p. 199). Compara, então, o
operário brasileiro com o estrangeiro:
A techinica americana, as machinas-ferramentas, eram novidade para elle. Na
operação o operário brazileiro confundia-se com o outro, manejando as mesmas
operatrises, executando a mesma obra; na instrucção porem, era de notavel
inferioridade. Ignorante e analphabeto, suppria por golpes de vivacidade a falta de
cultura profissional e litteraria (OGO, p. 200).
Na comparação, Palhano identifica o que se conheceria depois por "jeitinho
brasileiro".
Greves e atuações de grêmios comparecem no
romance. Com a crise, os maquinistas querem a
greve. Cazuza conversa com o colega André e
manifestam-se ambos contra. André explica a
Cazuza que a classe operária está subdividida em
pequenas classes, que não há união e sim
fragmentação:
[...] Como você sabe nos estaleiros classes reputadas nobres e classes tidas como
plebéas. Convivem na melhor harmonia aparente; intimamente guerreiam-se. Os
torneiros julgam-se melhor gente que os limadores - são a elite; os modeladores,
geralmente mentores de grupos, gosam de certa ascendencia sobre toda a officina, e
seus mestres substituem, ás vezes, os mestres geraes porque ... sabem ler. São chefes
políticos, orientadores da "arraia meuda"; fundidores não misturam. Ferreiros e
caldereiros são a ralé - dizem os outros - constituem a plébe; carpinteiros e calafates,
julgando-se a chave do edificio da Construção Naval, olham por sobre os hombros o
"pessoal da ferrugem". São classes-tampões. Por entre ellas fervilham as correlatas
ou annexas; - os ajudantes, serventes, aprendizes, participando da sorte e das
opiniões dos seus chefes, mestres e officiaes (OGO , p. 202).
O socialismo é então mencionado por André: "clamam por um regimen de igualdade -
é o socialismo d'elles. Qual será, porém o padrão de igualdade desta gente?..." (OGO, p. 208).
Se a classe está fragmentada, como poderia reivindicar em uníssono? Cada grupo gritaria em
tom diferente. Para André, a solução possível não é política e sim religiosa: “É que ninguem
cuida da alma. A igreja Romana, instituindo o culto dos Santos, creou o exercicio do espirito
pela meditação, pela pratica do bem, para tentar o nivelamento moral da humanidade, único
possível” (OGO, p. 210).
Os outros operários são a favor da greve: "Houve até quem propuzesse uma bandeira
vermelha, com um martelo suspenso, cabo para cima, como signal de protesto" (OGO, p.
215). A bandeira é uma referência ao movimento proletário. Contudo, a greve sai e fracassa:
não dinheiro. A Primeira Guerra Mundial ecoa no Amazonas. O preço da borracha não
sobe e a crise se agrava. Vendem-se as "gaiolas" para os portos do sul e outras partes do
mundo. O desemprego é crescente. Nas considerações finais da primeira parte do romance,
Palhano faz um elogio ao Amazonas:
"Capítulo Extra"
(A' guisa de panegyrico)
O Amazonas [...] Terra de minha terra, repositorio das energias vitaes da minha
patria, desbaratada pelas ambições dos homens, pelo saque, pelo embuste, pelo
impatriotismo desnacionalizador de teus violadores, tu resurgirás um dia! (OGO, p.
225).
O tom crítico em relação à exploração da região, por locais e estrangeiros, domina o
romance. Elogia-se a terra e critica-se severamente a ambição humana. Nota-se, mais uma
vez, que a crítica é feita ao homem em geral, e não a uma classe em particular. Observa-se
ainda que Palhano reconhece a exploração do país pelos estrangeiros e a dependência de
nossa economia:
Da immensa fortuna que entrou para o paiz, em troca de borracha exportada,
quasi nada aproveitou aos obreiros. Sahiu novamente, ou pelos cabarets, ou pela
compra de embarcações, de balas e de rifles; de tudo que se consumia alli, desde o
leite condensado ao feijão, do tamanco á camisa (OGO , p. 237).
Do Amazonas, as agruras de Cazuza vão
materializar-se no Rio de Janeiro, onde se passa a
segunda parte do romance. Emprega-se em um
estaleiro. Conhece a realidade proletária carioca e
compara-a com a do Amazonas:
A Cazuza, entretanto, o operário carioca pareceu menos feliz que seu collega
nortista. Achou-o mais triste, menos livre, mais apertado entre as tenazes do meio.
Lucta maior, mais intensa. Grandes distâncias a vencer, grandes ladeiras a subir e
descer, em busca de habitação barata (OGO, p. 250).
Percebeu também um grande contraste entre os bairros da cidade. Os ricos,
beneficiados pelo conforto trazido pela Belle Époque, ocupavam os vales, enquanto os morros
eram ocupados pelos pobres:
Um contraste pareceu-lhe flagrantemente brusco; - a opulência nos valles, a
pobreza nos morros, salvo nos morros chics, onde a miséria escorregava-se para as
encostas.
Noutros, dentro da mesma pobreza, os mais "folgados" occupando as ruas, os
mais pobres nas escarpas, por veredas como de pacas, de ascesso difficil, em
contorsões de funambulos, nas noites escuras, nos dias chuvosos, em pleno coração
da cidade!
A serie de cerros, leste-oeste, da Conceição, Saude, Favella e Pinto, pareceu-lhe
o mais flagrante cartel de desafio aos direitos do operário, quanto ao conforto da
vida moderna. Em baixo, bondes, luz em profusão, asphalto, arborisações cuidadas,
automóveis velozes, palacios e vivendas, o trafego intenso dos bondes. Em cima
capim, barro, pedra lascada, numa extensão de quasi quatro kilometros, onde
poderiam ser abrigados cerca de cem mil proletarios, perto do centro de suas
actividades, ao centro do Rio industrial, em melhores condições de hygiene (OGO,
p. 252).
No Rio, Cazuza conhece Terto, também operário e
com quem dialoga sobre as condições de vida do
trabalhador. À semelhança de André, Terto expõe
idéias próprias, não vinculadas a um partido político.
Para Terto, não adianta importar soluções européias
para os problemas brasileiros:
___Outro erro, A Europa, com uma civilisação muito mais antiga, muito
complicada, cheia de erros, de vícios e rancores, não nos póde servir de padrão; nem
parte alguma do mundo civilizado. Nestes logares o trabalho é organizado. Tudo é,
mais ou menos, estável: - o paiz é industrial ou agrícola. Nós não somos uma coisa
nem outra (OGO, p. 282).
O Gororoba discorda da importação de soluções européias, como as comunistas, a fim
de se resolver os problemas brasileiros.
Presença oportuna no romance é a questão da
substituição do homem pela máquina. Já é sinalizado
então o inevitável destino dos trabalhadores – o
desemprego:
A Sciencia, substituindo a mão humana pela machina, automato de rendimento
formidavel, mudou vertiginosamente as condições da vida moderna. E o proletario,
ignorante e descuidado, surpreendido pelos progressos da Civilisação, peiorou da
situação precaria em que se achava (OGO, p. 284).
O tom pessimista domina o romance:
Gororoba, sosinho, devaneiava, embalando-se na cadeira.
A mesma historia, a mesma queixa, as mesmas palavras, quasi, ouvira desde os
confins do Amazonas á Capital da Republica. Dalli, ás escaldantes dunas do
Nordeste, ás verdoengas collinas Cariocas, vira sempre o mesmo homem, espectro
do mesmo povo, lamentando-se... (OGO, p. 285).
A vida operária de Cazuza, um casamento
fracassado e sem amor, e o inevitável desemprego,
após a armistício da Primeira Guerra Mundial,
quando as indústrias brasileiras, sobretudo o setor
naval, vão à falência, aceleram a decadência do
personagem. Cazuza emprega-se em outro estaleiro,
mas é logo afastado em virtude de um acidente de
trabalho.
Ao final do romance, Cazuza revê Garnier, agora transformado em frei: "Garnier era a
mesma alma, talvez melhor, requintada pela idade e pela meditação" (OGO, p. 357). Encenam
então um longo diálogo. Garnier arrisca o diagnóstico para a questão social, criticando a
postura dos pensadores socialistas:
[...] O socialismo não será jamais uma realidade pratica, porque escolas demais.
De Platão aos nossos dias, tem-se procurado agitar as massas proletarias, sem
nenhum proveito para ellas. [...]
O operario entretanto nada disse ainda. Pensadores e juristas, philosophos, mais
ou menos inflammados, incutem-lhe as theorias: "- Zé, tu precisas de governar o
mundo! E's o boi inconsciente, poderoso e submisso!" Vem outro: - "Vira essa
dróga de pernas para o ar, não vês que te exploram?"
[...]
Vem então Karl Marx e pontifica: A minha philosophia, creando a socialismo
scientifico, é a pedra angular da felicidade dos povos.
Se, porém, você chamar o operário á parte, após a magro jantar na fugidia paz do
seu tugurio e perguntar-lhe; - "O' Zé, o que é que te falta, realmente?" Elle
responder-lhe-á,, simplesmente: - "PÃO"
A Questão Social, Cazuza, esse borborinho de idéas e de escolas, não ameaçaria
a tranquillidade do mundo, se não fosse a falta de pão (OGO, p. 357-358).
A solução que Garnier oferece a Cazuza para ele sair da crise em que se encontrava
por causa de uma vida fracassada, tanto no amor quanto na profissão, é a em Deus: “É
inutil buscar remedio para seus males, intimos ou sociaes, para o egoismo que avassala o
mundo, nas philosophias sem Deus, nas falhas do humano cerebro. Christo deu a formula
única, concisa e curta para curar estas lepras: “___Amae-vos uns aos outros" (OGO, p. 362).
Ao contrário de outros romances proletários, que conclamam os operários para a luta,
incitando-os a conseguir suas reivindicações, O Gororoba termina propondo uma solução
religiosa pela boca do frei Garnier.
3.5.2 Cacau
Em Cacau, um sergipano nos conta a estória da sua juventude, quando saiu de São
Cristóvão, ex-capital do Sergipe, para o sul da Bahia, terra do cacau. Seu pai era dono de uma
fábrica. Com a morte paterna, a família perdeu tudo e o rapaz foi trabalhar como operário na
fábrica onde antes era dono.
Amado descreve, nesta primeira parte do romance,
que se passa em Sergipe, a proletarização do jovem,
retratando-o como simpático aos proletários, mesmo
antes de se tornar de fato um. Ao ser despedido,
resolveu migrar para a Bahia, chegando à fazenda de
cacau em Pirangi onde se desenrola a maior parte do
romance.
No capítulo intitulado Cacau, Amado, pela voz do
narrador, que passa a ser chamado de Sergipano,
descreve a exploração do trabalho na fazenda. Os
empregados das roças eram responsáveis por todos
os processos pelos quais o cacau passava e, se algo
errado acontecia, tinham de pagar pela "falha". Era
considerado "crime" imperdoável para os coronéis
deixar mofar os sacos de cacau. Um dos
trabalhadores da fazenda foi acusado do crime e
despedido, sem direito de indenização, e ainda
obrigado a pagar o prejuízo para o coronel: deveria
trabalhar nas roças até quitar o valor. O empregado
resolveu fugir. Dois colegas, a mando do patrão,
foram no encalço e o surraram. Amado nos mostra
então a falta de consciência de classe entre estes
empregados das roças.
Os questionamentos para saírem daquela situação
aos poucos começam a fazer parte das conversas dos
trabalhadores. Sergipano questiona:
__Isso continuará sempre assim, Colodino?
Ele, de todos nós, parecia o único a ter uma certa intuição
de que alguma coisa, um dia...
É impossível. Tem que mudar.
__Como?
__É o que não sei... (CAC, p. 145).
Mas se alguns trabalhadores traíam a sua classe, tal não é o caso de Sergipano.
Obrigado por Mária, filha do patrão, a entregar o trabalhador que a desacatou, Sergipano se
recusou. Fiel `a sua classe, não se deixou seduzir nem mesmo quando ela narrou-lhe um
romance cujo personagem, um roceiro, se casava com uma condessa. Sergipano encerra a
conversa afirmando:
__Mas o roceiro é um traidor.
__A quem ele traiu?
Embatuquei com a pergunta. Mária sorria
Vitoriosa.
__Traiu os outros trabalhadores (CAC , p. 152).
A traição de classe é ainda tematizada, no romance,
na "sedução" consentida da roceira Magnólia, noiva
de Colodino, por Osório, filho do coronel. Colodino
descobre a traição, espanca Osório e foge da
fazenda.
O capítulo intitulado sugestivamente, Consciência
de Classe, descreve o momento em que Honório,
colega de trabalho de Colodino, é chamado pelo
patrão para "dar cabo" do colega. Honório sai para
cumprir sua tarefa, mas erra a pontaria de propósito.
Sergipano pergunta:
Por que você não matou Colodino? Por que
queria bem a ele?
__Eu gostava de Colodino... Mas eu não
queimei o bruto porque ele era alugado como
a gente. Matá coroné é bom, mas trabaiadô
não mato. Não sou traidô... (CAC, p. 162).
O episódio dá margem à seguinte reflexão do
narrador Sergipano: "Só muito tempo depois soube
que o gesto de Honório não se chamava
generosidade. Tinha um nome muito mais bonito:
Consciência de Classe" (Ibid.).
Algum tempo depois, Sergipano recebe uma carta de
seu amigo Colodino, já instalado no Rio de Janeiro:
Venha embora para cá, Sergipano. Aqui se aprende muito. Tem resposta para o
que a gente perguntava ahi. Eu não sei explicar direito. Você já ouviu fallar em lucta
de classe? Pois lucta de classe. As classes são os coronéis e os trabalhadores.
Venha que fica sabendo tudo. E um dia a gente pode voltar e ensinar para os outros
(CAC, p. 164).
Mas antes de seguir os conselhos de Colodino e ir
para o Rio de Janeiro, Sergipano lidera uma greve
fracassada dos trabalhadores da fazenda, que voltam
ao trabalho no dia seguinte do início movimento,
com redução de salário.
Sergipano sofrerá ainda mais uma provação no seu
processo de conscientização de classe: Mária, por
quem ele estava apaixonado, lhe confessa a própria
paixão e sugere que se casem; ela convenceria o pai
a aceitá-lo. Mas Sergipano se recusa, não trairia a
sua classe casando com a filha do patrão.
Quando recebe mais uma carta de Colodino, referindo-se de novo à luta de classes,
Sergipano resolve atender aos conselhos do amigo e parte para o Rio de Janeiro. Em nome da
consciência de classe abandona a fazenda e abdica do amor por Mária: “Olhei sem saudades
para a casa-grande. O amor pela minha classe, pelos trabalhadores e operários, amor humano
e grande mataria o amor mesquinho pela filha do patrão. Eu pensava assim e com razão
(CAC, p. 169).
O romance mostra um processo de conscientização
de classe, tanto de Sergipano quanto de Colodino,
processo que se realizará de fato através da
experiência como operário na cidade, experiência
externa ao processo de trabalho na fazenda e apenas
entrevista no romance. O que parece indicar que, se
ambos continuassem na fazenda, talvez nada
aprendessem.
No último capítulo, Jorge Amado registra os locais visitados por ele, ao escrever
Cacau: Pirangi, Aracaju e Rio de Janeiro e as respectivas datas da visita. Amado parece
querer comprovar o trabalho de campo ao elaborar o seu romance proletário.
3.5.3 Parque Industrial
Parque Industrial conta a história do proletariado urbano representado no romance por
operários do bairro paulista do Brás. nas primeiras linhas do romance a temática urbana é
anunciada: "São Paulo é o maior parque industrial da América do Sul" (PI, p. 17).
Há no texto de Patrícia Galvão uma sintonia
explícita com a ideologia do PCB, a começar pelo
vocabulário comunista: companheiro, luta de
classes, mais-valia, camaradas, proletariado,
burguesia. Os próprios nomes dos personagens são
sugestivos como, por exemplo, Carlos Marx e
Frederico Engels; e também os títulos dos capítulos:
Em que se fala de Rosa de Luxemburgo,
Proletarização, onde se gasta a mais-valia, em um
setor da luta de classes.
A menção ao Partido Comunista é explícita:
Mas, felizmente, existe um partido, o partido dos trabalhadores que é quem
dirige a luta para fazer a revolução social. Os tenentes?
__Não! Os tenentes são fascistas.
__Então o quê?
__O Partido Comunista... (PI, p. 21).
Também é explícita a referência a Luís Carlos Prestes: "- Esta merda nunca foi
revolução! Enquanto não vier Luiz Carlos Prestes..." (PI, p. 87).
O livro se organiza como um panfleto político do PCB. No capítulo Em um setor da
luta de classes, Pagu faz referência à rotina dos sindicatos: "Sessão de um sindicato regional.
Mulheres, homens, operários de todas as idades. Todas as cores. Todas as mentalidades.
Conscientes. Inconscientes. Vendidos” (PI, p. 29).
Filmes que veiculam a propaganda do Partido são
citados. Gorki é admirado por trabalhadores em uma
fita de cinema:
Entram no cinema para ver um filme russo tirado de Gorki. [...]
Um grupo de garotas sai lastimando alto os dez tostões numa fita sem amor. As
inconscientes que o proletariado carrega. Aturdidas pelo reflexo do regime burguês,
pelo deslumbramento de toilettes que não podem ter mas desejam. Dos automóveis
de todas as cores, das raquetes e das praias. Alimentadas pelo ópio imperialista das
fitas americanas. Escravas à ilusão capitalista.
Mas na fila da frente, dois moços trabalhadores se entusiasmam, se absorvem no
drama proletário que passa (PI, p. 93).
Parque Industrial descreve o interior da fábrica e a exploração do operariado
brasileiro, concentrando-se em um determinado grupo: a mulher operária. Adota, portanto,
uma perspectiva não comunista como também feminista. O romance é ilustrador dos
sofrimentos vividos pelas mulheres operárias, vítimas do assédio sexual dos patrões
burgueses. Pagu trouxe à luz a exploração sexual feminina vista sob duas perspectivas: dentro
da fábrica e fora dela. A operária Matilde escreve à Otávia, sua amiga: "tenho que te dar uma
noticiazinha má. [...] Acabam de me despedir, sem uma explicação nem motivo. Porque me
recusei a ir ao quarto do chefe" (PI, p. 91).
Corina é outra operária que, despedida por estar
grávida, entregou-se à vida promíscua e vazia das
ruas. Na maternidade, ou melhor, nas "Casas de
Parir" (pois a palavra maternidade era empregada
somente para designar o local onde as burguesas
ricas ganhavam seus filhos) dá à luz uma criança
deformada e sem esperança de vida.
Em Parque Industrial o sofrimento das mulheres também passa pela falta de tempo
em criar seus filhos. Necessitavam trabalhar para sua prole não morrer à mingua:
__Gente pobre não pode nem ser mãe. Me fizeram este filho num sei como!
Tenho que dar ele para alguém, pro coitado não morrer de fome. Se eu ficar tratando
dele, como é que arranjo emprego? Tenho que largar dele pra tomar conta dos filhos
dos outros! Vou nanar os filhos dos ricos e o meu fica ali num sei como.
Ninguém diz nada. Estão quase todas nas mesmas condições (PI, p. 72).
Operárias militantes como Otávia e Rosinha Lituana
procuram promover a consciência de classe nas
mulheres dos operários, de modo que estas, mesmo
apavoradas pela repressão policial, não tentem
impedir a participação dos maridos nas reuniões
sindicais.
Ao dar voz às operárias que reagem contra os abusos praticados pelos patrões
burgueses, Pagu demonstra um posicionamento questionador dos valores internalizados pelas
mulheres submissas que lhe eram contemporâneas. Valores que só mais tarde começarão a ser
superados e substituídos. Diferentemente de Cacau e O Gororoba, onde a mulher comparece
somente como "companheira" de cama, em Parque Industrial a mulher também comparece
como companheira de lutas, consciente da sua classe. O discurso de Rosinha Lituana aos
operários ilustra bem isto:
__Camaradas! Não podemos ficar quietas no meio desta luta! Devemos estar ao
lado dos nossos companheiros na rua, como estamos quando trabalhamos na fábrica.
Temos que lutar juntos contra a burguesia que tira a nossa saúde e nos transforma
em trapos humanos! Tiram do nosso seio a última gota de leite que pertence a
nossos filhinhos para viver no champanhe e no parasitismo! (PI, p. 77).
A consciência de classe faz com que Otávia concorde com a expulsão de Alfredo
(burguês proletarizado, acusado de trotskismo) tanto do partido, quanto da sua vida.
Semelhantemente a Cacau, Parque Industrial sugere que o amor deve ser sacrificado se
significar uma traição de classe.
Como militante do PCB, Pagu acredita na "importação" do comunismo para o
contexto brasileiro. A luta de classes seria a mesma em qualquer lugar dos quatro cantos do
planeta: "[...] a burguesia é a mesma em toda parte. Em toda parte, manda a polícia matar os
operários" (PI, p. 89). Diferentemente d' O Gororoba, que questiona "importação" de
soluções comunistas, Parque Industrial e também Cacau procuram promover a consciência
de classe entre os trabalhadores, explicitando a burguesia como o inimigo contra o qual lutar.
À semelhança de Cacau, Parque Industrial sugere que a conscientização do
proletariado é promovida sobretudo pela própria opressão que este sofre. A narração inclusive
procura manter viva a crença de que a revolução proletária está sendo organizada dentro da
própria fábrica, como reivindicação à exploração sofrida: "O proletariado marxista, através de
todos os perigos, achou o seu caminho e nele se fortifica para o assalto final" (PI, p. 92).
Mas o proletariado brasileiro na década de 30 não
tinha ainda se organizado em termos de construção
de uma consciência de classe. Muito menos estava
fortalecido para o assalto final. Veja-se o malogro da
Intentona Comunista de 1935. Neste sentido, Pagu e
também Amado, distanciam-se da realidade e
aproximam-se da utopia.
Ou quase utopia, pois ainda que os 16 capítulos de Parque Industrial sejam
organizados como experiências que levam em direção à conscientização, narrando os diversos
sofrimentos da classe operária - conscientização que culmina em uma manifestação pública de
descontentamento no Largo da Concórdia - o fato é que o final é mais trágico que utópico:
apesar do sugestivo nome "concórdia", é que os operários são ironicamente assassinados
pelas forças da ordem burguesa. A parte proletária organizada não consegue conscientizar a
parte proletária desorganizada que luta ao lado dos burgueses. O apelo do proletário,
"Soldados! Não atirem sobre os seus irmãos! Voltem as armas contra os oficiais...", mas não é
atendido. Então, os soldados "irmãos" detonam as armas, e a carnificina é geral (PI, p. 99).
O romance de Patrícia Galvão apresenta um tom pessimista em relação à Cacau. Jorge
Amado investe em Sergipano para credibilizar as promessas da ideologia comunista e levar
esperanças para os trabalhadores; Pagu não constrói um destino positivo para os seus
personagens proletários em Parque Industrial. Se o texto de Amado é explicitamente
edificante, o de Pagu (e também o de Palhano) não é.
3.6 O resgate do romance proletário
For many years treated as at best na arcane curiosity, literary
proletarianism is now being drawn back into the mainstream of
literary study.
(Barbara Foley, 1995).
Por muitos anos tratada, na melhor das hipóteses, como uma
curiosidade arcana, a literatura proletária está agora retornando
para o centro dos estudos literários (Tradução nossa).
Em 1994, Parque Industrial foi reeditado no Brasil e traduzido e publicado nos
Estados Unidos. A trajetória do romance parece corresponder ao interesse da academia em
estudar produções até então à margem do cânone. Desde então, Parque Industrial tem
inspirado, tanto lá como cá, interessantes trabalhos acadêmicos.
Na verdade, pode-se dizer que os norte-americanos estão redescobrindo o gênero
romance proletário. A Universidade de Illinois, por exemplo, vem reeditando diversos títulos
de romances proletários da década de 1930, com introduções críticas de estudiosos
contemporâneos. Parque Industrial foi traduzido e publicado seguindo esta tendência.
Registra-se também a crescente publicação de trabalhos acadêmicos sobre o gênero, que está
sendo, de fato, resgatado.
No Brasil, também foram reeditados pelo menos dois outros romances considerados
proletários: em 1996, Navios Iluminados (1937), de Ranulpho Prata, e, em 2003, Os
Corumbas (1933), de Amando Fontes.
Esperamos que o nosso trabalho possa contribuir
para despertar o interesse da crítica no Brasil pelo
estudo do gênero. Pois, certamente, há muito ainda
para ser dito a respeito do romance proletário.
CONCLUSÃO
Esta dissertação se propôs tentar contar a (possível) história da temática proletária nas
letras brasileiras, dentro do recorte selecionado: do socialismo e anarquismo da Belle Époque,
ao comunismo do entre-guerras.
Constatamos que a literatura anarquista, ao exaltar o operário num momento em que o
cânone o marginalizava, representa, de fato, a vanguarda política das nossas letras do início
do século XX, papel que ainda não lhe foi propriamente reconhecido pela história literária.
Percebemos, ainda, que o romance proletário, ao trazer a exaltação do operário,
mesmo que brevemente, para dentro do próprio cânone, constitui um aspecto importante,
muito pouco estudado, da conscientização política do intelectual brasileiro na década de 30.
O resgate, hoje da literatura anarquista e do romance proletário, tanto por estas ou
outras razões, tais como o interesse atual da academia em estudar produções não canônicas -
revela-se, portanto, justificável.
Não temos, em absoluto, a pretensão de que seja a nossa, a única versão da história da
temática proletária nas letras brasileiras. Tanto outros recortes são possíveis, quanto, dentro
do mesmo recorte, outras possibilidades de contar se apresentam.
De qualquer modo, constatamos que há muito ainda que ser pesquisado sobre o tema.
Precisamos admitir, por fim, que contamos somente uma pequena parte da sua (possível)
história. A literatura anarquista e o romance proletário constituem campos de estudos férteis
ainda a espera de estudiosos para serem propriamente cultivados.
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