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parte dos informantes considerados válidos.” As crianças, portanto, sujeitos dos seus
acontecimentos, não eram capazes de contar de si, de narrar a sua trajetória de vida. Na
verdade, enfatiza Boto (2002, p. 58), na época em questão “[...] esquece-se, por vezes, de
ouvir a criança naquilo que ela pensa sobre si própria”.
Estudos históricos sobre a infância, entre os quais se destacam os de Philipe Áries
(1981), vêm mostrando que, a partir do momento em que a criança foi percebida pelas suas
características, tornou-se objeto de muitas concepções. Segundo esse autor, a concepção de
infância resultou em tendências no pensamento adulto diante das particularidades da criança:
ora era vista como fonte de distração, ingenuidade, gentileza, graciosidade, ora como ser
incompleto, a ser moldado à imagem do adulto.
Muitos autores contemporâneos, a exemplo de Priori (1992), Freitas e Kulmann Jr.
(2002), Kramer (1982), com base no clássico Áries (1981), defendem que as mudanças, em
relação ao lugar social e ao tratamento destinado às crianças ocorreram durante o período
medieval e o começo da Idade Moderna. Na Idade Média, a infância não era reconhecida
como uma fase particular da vida, mas alguns autores afirmam que, com esse reconhecimento,
emergiu um novo sentimento de infância, o qual já podia ser visto no discurso médico e
literário na primeira metade do século XVI; enaltecendo uma nova criança nos séculos
seguintes. E, de acordo com o pesquisador Ariès (1981), o século XVIII foi o período em que
se consolidaram as idéias modernas de infância, reconhecendo-se suas peculiaridades.
No que concerne às atitudes adultas com relação à criança – paparicação e
moralização - que demarcaram o sentimento moderno de infância, segundo Kramer (1982),
essas mesmas atitudes são aparentemente contraditórias, mas se complementam na concepção
de infância como essência ou natureza infantil
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. Para a autora, essa “[...] visão de criança
baseada em uma concepção de natureza infantil, e não na análise da condição infantil,
mascara a significação social da infância” (KRAMER, 1982, p.20).
Dentre as influências intelectuais significativas no século XVIII sobre a idéia de
infância e de educação das crianças, segundo Postman (1999), destacaram-se Locke e
Rousseau. O filósofo inglês Locke promoveu a teoria da infância com sua mais famosa idéia a
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Dentro dessa concepção, a criança é vista como um ser fraco, incompleto, imperfeito e desprovido de tudo.
Nesse sentido, é alguém que precisa ser cuidado e preparado para um vir-a-ser, e não como alguém que já existe
efetivamente. A partir desse conceito, considera-se que todas as crianças são iguais, desvinculadas das condições
de existência; isto é, a idéia de criança universal, independentemente de sua classe social e de sua cultura,
preconizada pelas classes dominantes, baseia o modelo de criança. Essa concepção aborda uma educação
centrada no adulto, com objetivo de disciplinar as crianças através de regras e modelos, norteando todo o
pensamento pedagógico do século XIX a meados do século XX. O sentimento moderno de infância é permeado
pela concepção de essência ou natureza.