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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS SOCIAIS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
FELIPE GONÇALVES PINTO
A PERCEPÇÃO E A EXPRESSÃO DO TEMPO
EM ARISTÓTELES
Rio de Janeiro
2009
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FELIPE GONÇALVES PINTO
A PERCEPÇÃO E A EXPRESSÃO DO TEMPO
EM ARISTÓTELES
Dissertação de Mestrado submetida ao
Programa de Pós-Graduação em Filosofia
da Universidade Federal do Rio de Janeiro
UFRJ, como parte dos requisitos
necessários à obtenção do título de Mestre
em Filosofia.
Orientador: Prof. Doutor Fernando José de
Santoro Moreira
Rio de Janeiro
2009
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Pinto, Felipe Gonçalves.
A percepção e a expressão do tempo em Aristóteles / Felipe Gonçalves
Pinto. Rio de Janeiro: UFRJ / IFCS, 2009.
120 p. an.
Orientador: Fernando José de Santoro Moreira
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio de Janeiro, IFCS.
1. Aristóteles. 2. Tempo. 3. Física. 4. Percepção. 5. Movimento. 6.
Número. 7. Alma. I. Moreira, Fernando José de Santoro (Orient.). II.
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Instituto de Filosofia e Ciências Sociais.
III. Título
A PERCEPÇÃO E A EXPRESSÃO DO TEMPO
EM ARISTÓTELES
FELIPE GONÇALVES PINTO
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Filosofia da Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Mestre em Filosofia.
Aprovada em ____ de ____________ de 2009.
Examinada por:
_______________________________________________________
Prof. Doutor Fernando José de Santoro Moreira – PPGF-UFRJ -
Orientador
_______________________________________________________
Prof. Doutor Fernando Rey Puente – UFMG
_______________________________________________________
Prof. Doutor Luís Felipe Bellintani Ribeiro – UFF
_______________________________________________________
Prof. Doutor Fernando Augusto da Rocha Rodrigues – PPGF-UFRJ
_______________________________________________________
Prof. Doutor Gilvan Fogel – PPGF-UFRJ
Rio de Janeiro
2009
A meus pais, Carlos Alberto e Dayse,
e à minha amada misionera, Julieta Alsina.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais pela paciência e compreensão, pelo afeto e pela educação.
A Julieta Alsina, pelo imenso amor e pelas minuciosas revisões textuais,
bem como à sua argêntea e hospitaleira família.
Ao professor Fernando Santoro, pela atenção, pelas orientações desde a graduação e,
sobretudo, pelas lições dentro e fora da sala de aula.
Aos professores Henrique Cairus e Tatiana Ribeiro, da Faculdade de Letras da UFRJ.
Ao professor Cláudio Gomes Ribeiro, amigo e orientador vital.
Aos caríssimos companheiros Rafael Barbosa, Carlos Lemos, Daniel Rubião,
Luiz Otávio Mantovaneli, Alexander Carvalho e Germano Nogueira, tanto
pelo prazeroso convívio quanto pelas discussões, leituras e traduções.
A todos os colegas e membros do laboratório OUSIA, Guilherme, Mariângela,
Romulo, Carla, Carlos Henrique, Helena, Carol, Bianca, Maíra e Cadu.
Às secretárias do PPGF-UFRJ, Sônia e Dina.
Aos professores e membros do Pólo de Estudos Clássicos do
Rio de Janeiro (PEC) e da Faculdade de Filosofia da UFRJ.
À CAPES, pela bolsa que possibilitou minha plena dedicação à pesquisa.
La línea consta de un número infinito de puntos; el plano, de un
número infinito de líneas; el volumen, de un número infinito de
planos; el hipervolumen, de un número infinito de volúmenes...
No, decididamente no es éste, more geometrico, el mejor modo
de iniciar mi relato. Afirmar que es verídico es ahora una
convención de todo relato fantástico; el mío, sin embargo, es
verídico.
J. L. Borges, El libro de arena
RESUMO
PINTO, Felipe Gonçalves. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia)
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
Nos capítulos 10-14 do livro IV de sua sica, Aristóteles trata do conceito de tempo
(khrónos), definindo-o como “número do movimento segundo o anterior e posterior”. A
investigação, conhecida como Tratado do Tempo, parte, por um lado, dos problemas
concernentes à aceitação da existência do tempo como algo cujas partes passado e
futuro não são e, por outro, do conceito de agora (nŷn) enquanto único elemento do
tempo que efetivamente é, mas que não consiste numa parte do tempo pelo fato de o
tempo não ser divisível em agoras. Após avaliar e rejeitar algumas teses do que seja o
tempo, Aristóteles recorre à copertinência entre a percepção (aísthesis) do tempo e a do
movimento para encetar sua definição. Portanto, a solução aristotélica ao problema do
tempo enraíza-se na relação estética cujos termos fundamentais são a mobilidade dos
entes móveis e a alma capaz de perceber o tempo e o movimento. Essa raiz será
problematizada, ao final do Tratado do Tempo, através da pergunta sobre se pode haver
tempo sem que haja alma capaz de numerar. O tratado aristotélico aponta, com isso, o
fundo sobre o qual o tempo não cessará, até nossos dias, de apresentar-se como questão
ao pensamento ocidental.
ABSTRACT
PINTO, Felipe Gonçalves. Rio de Janeiro, 2009. Dissertação (Mestrado em Filosofia)
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de
Janeiro, 2009.
In Physics IV, 10-14, Aristotle investigates the concept of time (khrónos), defined by
him as “number of motion with respect to the prior and posterior”. This investigation
starts from the problems concerning the acceptance of the existence of time as
something whose parts – past and future – are not, and from the concept of now (nŷn) as
the only element of time that actually is, although the now does not consist in a part of
time, for time is not divisible in nows. After examining and rejecting some theses about
the very essence of time, Aristotle appeals to the connection between perception
(aísthesis) of time and perception of motion. Hence the Aristotelian solution to the
problem of time takes root in the aesthetic relation whose fundamental terms are the
mobility of moving beings and the soul capable to perceive time and motion. This root
will be discussed in chapter 14, where possibility of the existence of time without a soul
capable to number will be investigated. That way the Aristotelian treatise points to the
ground on which time has ever been present as a question to western thought.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................... 10
1. O DISCURSO ARISTOTÉLICO SOBRE O TEMPO............................................. 17
1.1. AS APORIAS EM TORNO DA EXISTÊNCIA DO TEMPO........................... 18
1.1.1. Caminhos que se perdem ........................................................................... 23
1.1.2. O lugar das aporias no Tratado do Tempo.................................................. 24
1.1.3. As aporias do tempo e o movimento .......................................................... 25
1.1.4. As três teses rejeitadas............................................................................... 27
1.2. TEMPO, ALGO DO MOVIMENTO................................................................ 35
1.3. O AGORA: SIMULTANEIDADE E CONTINUIDADE ................................. 40
1.4. NÚMERO DO MOVIMENTO SEGUNDO O ANTERIOR E POSTERIOR.... 53
1.5. O TEMPO COMO MEDIDA DO MOVIMENTO............................................ 57
2. CAPÍTULO II – EM BUSCA DO TEMPO PERCEBIDO....................................... 61
2.1. A FACULDADE SENSITIVA......................................................................... 62
2.2. O DISCURSO DA SENSAÇÃO ...................................................................... 63
2.3. A SENSAÇÃO COMUM................................................................................. 66
2.4. A UNIDADE DA SENSAÇÃO........................................................................ 71
2.5. TEMPO, MEMÓRIA E RECORDAÇÃO ........................................................ 77
3. ENTRE A ALMA E O MUNDO ............................................................................ 82
3.1. HÓ POTE ÓN .................................................................................................. 85
3.1.1. As ocorrências na Física............................................................................ 85
3.1.2. Os outros textos......................................................................................... 96
3.1.3. A última ocorrência de Física IV, 10-14 .................................................. 100
3.2. PRÁTICAS DO PRESENTE-PERFEITO EM METAFÍSICA IX, 6............... 105
CONCLUSÃO.......................................................................................................... 112
REFERÊNCIAS ....................................................................................................... 116
10
INTRODUÇÃO
Para Aristóteles, não é tarefa do cientista refutar aqueles que recusam os
princípios da sua ciência. No caso da física, essa recusa toma as seguintes formas
extremas: colocar o movimento e a multiplicidade ao lado dos o-entes, considerando
o ente exclusivamente imóvel e uno, e, inversamente, abolir a unidade da
multiplicidade, rechaçando assim a possibilidade de se conhecer o que é movimento.
Com efeito, à prática da ciência é necessário que se aceite a existência do investigado e
sua capacidade de ser conhecido. Essas cláusulas, por sua vez, assentam de modo mais
primário na existência e na cognoscibilidade das coisas que o inquiridas em vista do
conhecimento, isto é, daquilo de que as causas e princípios a serem abordados são
efetivamente causas e princípios, tal como, para a física, os entes naturais e seu
movimento com relação à natureza, forma, matéria e privação, princípios do vir-a-ser e
da mudança.
O movimento dos entes naturais é admitido, de início, segundo Aristóteles,
pela própria experiência
1
. Isso significa que os aspectos sensíveis do real o devem
constituir fonte de hesitação e dúvida, mas de ensejo à investigação, visto que a
sensação também é um modo de conhecimento. Modo esse cuja simplicidade implica
uma verdade necessária, anterior ao sentido de verdade determinado frente à falsidade
(pseûdos). É bem verdade que, como veremos no segundo capítulo de nossa dissertação,
o sentido simples de verdade não é estendido pelo Estagirita à totalidade do âmbito
sensível, de modo que, nos casos de uma multiplicidade sensível, intervêm os conceitos
de engano (apáte) e falsidade. Assim, conforme nos distanciamos da simples sensação
torna-se mais patente o risco da falsidade, mas isso ocorre justamente porque se torna a
cada vez mais discursivo o conhecimento, na medida em que entram em cena a
imaginação, a memória e o intelecto. Portanto, ainda que não esteja inserida
explicitamente na Física, a teoria aristotélica da alma e de suas capacidades anda a par
1
Física I, 2, 185a 12-14: “Que esteja estabelecido que, para nós, os entes que são por natureza – todos ou
alguns estão em movimento; isso é evidente por indução [µῖν δ' ὑποκείσθω τὰ φύσει πάντα ἢ ἔνια
κινούµενα εἶναι· δῆλον δ' ἐκ τῆς ἐπαγωγῆς]”. O termo epagogé (“indução”), embora seja um conceito-
chave na epistemologia aristotélica, é utilizado aqui, ao que tudo indica, no sentido amplo de
“experiência”. Aristóteles aponta ao fato de que os prórios entes, tal como se mostram em sua mobilidade,
forçam-nos a admitir a exisência do movimento e a colocar a questão pelo movimento., isto é, a
investigação dos entes móveis deve partir da aceitação de sua mobilidade.
11
com aquela, sendo, em muitos pontos e aspectos, crucial a apreciação dos escritos
psicológicos a fim de esclarecer certos pressupostos e caminhos adotados pelo Filósofo
na Física.
Partindo, portanto, do fato de que entes naturais em movimento, Aristóteles
enceta sua investigação buscando esclarecer, em um intenso diálogo com os seus
contemporâneos e os que o precederam, quantos e quais são os princípios do
movimento. A sua análise da geração (génesis) tanto das essências, quanto dos
atributos – mostra que são três seus princípios: o subjacente (hypokeîmenon), que
subsiste às mudanças, a forma (eîdos), que responde pela configuração e pelo enunciado
atual do ente, e a privação (stéresis), que consiste no contrário da forma e cuja
contrariedade expõe a dimensão da mudança.
É válido ressaltar que esses modos de dizer o princípio do movimento não
convêm meramente ao movimento, mas correspondem à estrutura ontológica do próprio
ente móvel. Ou melhor: trata-se do princípio de movimento na medida em que ele rege
o modo de realização do ente, de maneira que, se o modo de ser de determinado ente é
conduzido por uma força cuja atualidade descansa primordialmente nele mesmo, e não
em um outro, esse ente é chamado natural, e o princípio do mover-se e repousar por si
mesmo é dito natureza (phýsis).
Desse modo, pode-se dizer que a natureza do ente é tanto sua matéria, quanto
sua forma, ou seja, tanto a força de realização, quanto a atualidade manifesta respondem
à questão pelo que é determinado ente. Entretanto, diz Aristóteles, “essa [a forma] é
mais natureza que que a matéria”
2
. Assim, a forma identifica-se com o enunciado capaz
de dizer a essência do ente móvel. A forma e a definição do ente o dizem apenas
aquilo que o ente é em determinado momento, mas, sim, o modo de ser isto é, de
realização, de desenvolvimento de um ente móvel enquanto tal. Dessa maneira, no
privilégio lógico, epistemológico e ontológico da forma encontra-se já, latente, a
concepção de uma mobilidade teleológica e também, de modo bastante ambíguo, tanto,
por um lado, a articulação da consecutividade do movimento, uma dimensão temporal
requerida pela própria natureza do ente móvel, quanto, por outro lado, a conservação de
uma mesma natureza à qual o ente retorna a cada vez que a ela se destina.
2
Física II, 1, 193b 6s.
12
A ambiguidade de uma dimensão temporal que se oculta, como um retorno ao
mesmo, na exata medida em que é, ela própria, demandada pela articulação das causas
do ente móvel, dá os traços gerais do que será a investigação acerca do tempo na Física:
existe, de fato, o tempo? O agora, com respeito ao qual todo movimento é um retorno, é
sempre o mesmo ou sempre diferente?
Desse modo, a necessidade que se impõe a Aristóteles de abordar o tempo
encontra-se além do fato de o tempo ter a ver com o movimento, como se fosse um
aspecto ligado ao movimento por uma necessidade meramente factual, empírica. Antes,
aquela necessidade provém, com uma urgência inédita na história do pensamento, da
estrutura ontológica do ente móvel, dos modos de dizer o ente e, consequentemente, dos
recursos estruturais teóricos poderíamos mesmo dizer que dos artifícios retóricos e
explanatórios em geral – do pensamento aristotélico. Consideramos essa imposição
inédita ao pensar ocidental, pois apesar de o tempo ter sido sempre implicitamente
pensado junto à discursividade do real, à verbalização das compreensões do ente e do
não-ente, e mesmo explicitamente tematizado no Timeu de Platão, jamais fora, de fato,
posta a questão: está o tempo entre as coisas que são ou entre as que não são?
Posta a questão, ela tornou-se um dos tópicos capitais da filosofia. De Alexandre
de Afrodísia a Heidegger, o problema do tempo aberto por Aristóteles ocupou os mais
extremos lugares do discurso filosófico, situando-se, na maior parte dos casos, nos
pontos, senão cegos, ao menos limítrofes do pensamento. Testemunhos dessa situação
são tanto o paradoxo de Agostinho
3
, cuja resposta à realidade do tempo resiste à
expressão, quanto o esquematismo do entendimento, que, segundo o próprio Kant,
consiste em “uma arte oculta nas profundezas da alma humana”
4
. Por outro lado, é
curioso ver como a crítica da matematização do tempo aparece quase que como um
lugar comum na história da filosofia: Heidegger aplica-a a Bergson, que a destinara a
Aristóteles, que, por sua vez, dela lançara mão contra Zenão. Longe, porém, de ser
apenas um lugar comum, essa constante crítica mostra a dificuldade da filosofia em
agarrar e determinar conceitualmente esse fenômeno ou, talvez mesmo, a dificuldade
em pôr-se de acordo sobre isso que chamamos “tempo”, apesar de com ele contarmos,
com seus males sofrermos, com seus bens regozijarmo-nos, e sua falta tanto acusarmos.
3
Confissões XI, 11: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo perguntar, eu sei; se eu o quiser
explicar a quem fizer a pergunta, já não sei”.
4
Crítica da razão pura, A141 B180.
13
Pois bem, Aristóteles, portanto, atendeu à tarefa de colocar explicitamente o
tempo como questão urgente ao pensamento. Mas teria ele dado uma resposta que,
mesmo restringindo-nos à doutrina aristotélica, se mostrasse satisfatória e conclusiva?
Esse é um outro problema, que esbarra no seguinte: seria essa tarefa, a de responder de
maneira satisfatória e conclusiva, uma tarefa própria à filosofia? Apesar de não restar
dúvida de que o Estagirita tenha respondido à pergunta pelo tempo, sua investigação
não é um caminhar a passos largos em terreno plano, suas respostas não carecem de
problemas, não por serem fracas, mas por consistirem elas mesmas na verdadeira
elaboração do problema. Seu texto é uma cuidadosa descrição do abismo chamado
“tempo” desde o mirante chamado “agora”.
O caminho do texto
Nossa investigação inicia-se com uma leitura de Física IV, 10-14, ao longo da
qual nos ocuparemos dos conceitos implicados na definição do tempo. A apresentação
do problema de que deve tratar o texto aristotélico não poderia ser melhor conduzida
senão pela abordagem das aporias dispostas inicialmente pelo próprio Estagirita com
respeito à existência do tempo. Embora não conste de maneira explícita na definição do
tempo, o agora é evocado naquelas aporias como fundamento para a compreensão do
ser do tempo, tanto existencial quanto logicamente. Ora, uma das funções do agora é
justamente a de delimitar o tempo, tornando-o assim cognoscível. Em consequência
disso será necessário, ainda em nosso primeiro capítulo, abordarmos a co-implicação
traçada por Aristóteles entre agora e tempo, mantendo-nos, todavia, firmes na tarefa de
trazer à luz os desdobramentos da definição do tempo. Enquanto tal, essa nossa primeira
tarefa limita-se a uma exposição interpretativa do tratado aristotélico. Nosso fio
condutor no desdobramento da definição será, dessa maneira, o esforço de
desambiguação do objeto em questão, o tempo. Esse esforço pode, entretanto, ser
entendido e estendido em diversos planos: no plano da compreensão aristotélica do
tempo, como tentativa característica de Aristóteles de desfazer ambiguidades
fenomênicas e linguageiras; no plano da nossa interpretação da definição e do texto
aristotélico, como esforço de apresentar os conceitos de maneira clara e inequívoca,
levando em conta a complexidade dos escritos aristotélicos, nos quais não é raro que um
conceito seja aplicado de diferentes modos em diferentes ocasiões; por fim, nesses
14
mesmos planos, mas na direção inversa: compreender e obedecer a ambiguidade do
fenômeno que se oferece à investigação, a saber, o tempo. Apontaremos que a
ambiguidade constitutiva do tempo e, consequentemente, o grande problema com que
deve lidar o Filósofo é o fato de o agora ser sempre o mesmo e a cada vez diferente.
Esse problema não se inscreve plenamente no campo da investigação sica, mas sim
implica a apreciação do modo de abordagem do agora e do tempo, notadamente ele
requer um estudo da alma sensitiva e da sua relação com o mundo sensível. Essa
extensão da questão sobre o caráter do agora não deixa de repercutir na definição do
tempo, cujos conceitos centrais de número e de movimento, entendidos como
numerados, exigem igualmente algumas palavras sobre a situação da percepção do
tempo e do movimento na psicologia aristotélica.
Dada tal exigência, apresentaremos, no segundo capítulo, um estudo da teoria
aristotélica da alma sensitiva, pelo qual buscaremos se de fato há, em Aristóteles, a
possibilidade de uma abordagem prévia de caráter sensível do tempo e do agora, tal
como é indicado, sem delongas nem detalhes, no capítulo 11 de Física IV. Veremos
que, se o Estagirita não demonstra, em seus escritos psicológicos, uma preocupação em
determinar o tempo como um sensível, o tempo e o agora terão um papel capital na sua
teoria da sensibilidade em geral. O tempo virá à tona como algo, se não propriamente
percebido nele mesmo, co-percebido junto a outros sensíveis. Daí que nos será imposta
a necessidade de discursar sobre a relação tecida por Aristóteles entre os diversos
sensíveis, sentidos e sensações, ou seja, de tratar da unidade da sensação em seus
aspectos constitutivos. O último passo do segundo capítulo deve dar conta da memória e
da recordação como modos de lida com o tempo. Veremos, então, que, embora a
presença da memória esteja de fato ligada, para Aristóteles, a uma percepção do tempo,
sendo ambas as funções encontradas em muitos animais, a percepção do tempo aí
requerida deve ser entendida em sentido bastante restrito, de modo que não satisfaz
propriamente a atividade numeradora implicada na definição do tempo na Física. Antes,
essa percepção do tempo, cujo sentido diremos fraco, atém-se apenas à consecutividade
e simultaneidade. A recordação, por seu turno, deverá nos encaminhar a uma lida com o
tempo distintamente humana, porque enraizada na atividade lógico-noética, e por
conseguinte à possibilidade de abordagem do tempo nele mesmo, abstraído, de certo
modo, do movimento.
15
No terceiro capítulo, em consequência da problemática posta no capítulo anterior
acerca da unidade da sensibilidade fundada no agora, estudaremos o antes assinalado
caráter ambíguo do agora: ser sempre o mesmo e a cada vez diferente. Esse estudo se
desdobrará junto a uma análise detalhada da estrutura frasal, utilizada por Aristóteles
com frequência em Física IV, 10-14, pote ón. Investigaremos as ocorrências dessa
expressão no corpus aristotélico – dez ao todo, sete delas em Física IV 10-14 –,
buscando delimitar o sentido diferencial do seu emprego, face a outros conceitos
utilizados em contextos semelhantes, na discussão acerca do tempo e, em especial, do
agora. Nessa análise, começaremos pelas seis primeiras ocorrências da Física e, já nesse
passo inicial, veremos que, embora os comentadores da obra insistam em optar por
leitura que impõe à letra do texto a noção de subjacente ou algo semelhante, fortes
argumentos em favor do fato de Aristóteles não empregar uma tal noção nas ocasiões
em faz uso da expressão pote ón. Esses argumentos, assim como a problemática em
torno desse uso, ganharão clareza ao investigarmos, a seguir, as três ocorrências fora da
Física – duas no De partibus animalium, uma no De generatione et corruptione.
Voltaremos, por fim, à Física IV, capítulo 14, onde se encontra a última ocorrência de
pote ón, no contexto da discussão da relação entre alma, tempo e movimento. A
interpretação da passagem em questão deverá confrontar-se com não poucas polêmicas,
pelo fato de estar em jogo a posição aristotélica face à possibilidade de existência do
tempo independentemente do movimento e da alma dotada de noûs. Nessa questão estão
co-implicados os problemas da realidade do tempo e do modo característico dessa
realidade: trata-se de uma construção do intelecto (tese de Antifonte) ou de um ente
previamente dado à lida humana? Recusando ambas as respostas, buscaremos elucidar a
maneira como, para Aristóteles, a lida da alma humana está previamente determinada
por um caráter temporal que, porém, não se identifica propriamente com o tempo tal
como é tratado e definido em Física IV, 10-14, mas que responde pela possibilidade de
articulação ântero-posterior no horizonte da relação entre a alma capaz de numerar e as
coisas que são no tempo. Assim, esse caráter temporal, que encontra suas raízes na
conjuntura das noções de enérgeia (atividade) e dýnamis (potência), predetermina
igualmente a própria investigação aristotélica acerca do tempo. Para levarmos a cabo
nosso estudo, faremos uma breve incursão pelo livro IX da Metafísica em especial, o
capítulo 6, em que Aristóteles distingue dois diferentes modos de ação (prâxis) da alma
16
humana, denominados enérgeia e kínesis. O primeiro deles caracteriza-se por não
desdobrar-se temporalmente, trata-se de atualizações do mesmo, exemplificadas por
Aristóteles através de ações cuja expressão verbal no perfeito implica sua expressão no
presente e vice-versa; o segundo, por outro lado, guarda necessariamente uma dimensão
temporal, ocorre ao longo do tempo, e sua expressão perfeita exclui sua presença
enquanto tal. Apesar disso, o podemos dizer que as enérgeiai o atemporais, antes,
elas ocorrem no tempo, mas, tal como o agora, são indivisíveis. Desse modo, diremos
que as enérgeiai possuem um caráter temporal, mas não uma dimensão temporal. Sua
temporalidade está fundada e resolvida no agora, no limite do tempo. Assim, a ão
articuladora do movimento deverá aparecer como estreitamente ligada ao âmbito
instantâneo e imediato dessa mesma ação humana. A copertinência entre a alteridade e a
mesmidade dos agoras restará, dessa maneira, como paradoxo pressuposto pelo tratado
aristotélico do tempo, cujos esforços para elucidá-lo – não raro, como o indica o caso
pote ón forçaram o Estagirita a contorcer a sintaxe a fim de tornar visível o lugar de
onde a cada vez o próprio tempo é visado.
17
1. O DISCURSO ARISTOTÉLICO SOBRE O TEMPO
De Aristóteles, o texto mais extenso e mais completo que conhecemos acerca do
tempo é, sem dúvidas, o chamado Tratado do Tempo, constituído pelos capítulos 10 a
14 do livro IV da Física. Tendo sido investigado, nos dois primeiros livros, a natureza
(phýsis), os princípios (arkhai) e as causas (aitiai) do movimento, e, nos livros III e IV
(capítulos 1-9) o movimento, o infinito, o lugar e o vazio, torna-se necessário tratar do
tempo (khrónos). Do mesmo modo como o faz quando aborda o infinito, o lugar e o
vazio, Aristóteles inicia sua aproximação ao conceito de tempo pela consideração da sua
existência.
“Pelo que se verá a seguir, ou ele de todo não existe, ou existe a duras penas e
obscuramente”
5
. Essa advertência por si mesma é capaz de assustar qualquer um que
se lance, numa primeira aventura, ao texto. Por um lado, a possibilidade radical da
impossibilidade do tempo: como pode o tempo não existir? Se tal for o caso, terá de ser
explicado que aquilo que chamamos de tempo e chamavam os gregos de khrónos é,
na verdade, outra coisa, ou que o discurso sobre o tempo o passa de flatus vocis, um
discurso sobre nada.
Outrossim, a possibilidade de que o tempo não exista de todo tampouco pode
significar que ele não exista apenas enquanto um algo (um tóde ti). Ora, o movimento,
por exemplo, é, ou seja, existe, embora não seja um particular, mas no particular
enquanto no subjacente (kath’ hypokeiménou)
6
. Portanto, que Aristóteles levante a
hipótese de o tempo não existir de todo, parece-nos indicar a possibilidade de ele não
existir nem mesmo tal como o movimento existe.
Quanto à outra opção – segundo a qual o tempo existe “a duras penas” e
obscuramente” ela é, podemos dizer, tão assustadora quanto a da não existência do
tempo. De início, ela aponta o caminho tortuoso e obscuro da própria investigação
aristotélica que está sendo introduzida. De modo algum, porém, a consideração dessa
existência escorregadia do tempo exclui a possibilidade da sua não existência. Trata-se,
5
Física IV 10, 217b 32s: ὅτι µὲν οὖν ἢ ὅλως οὐκ ἔστιν ἢ µόλις καὶ ἀµυδρῶς, ἐκ τῶνδέ τις ν
ὑποπτεύσειεν
6
Metafísica III, 1001b30-33: “[...] afecções, movimentos, relações, disposições e definições não parecem
significar nenhuma essência, sendo eles ditos sobre um subjacente, e nenhum deles é um particular (tóde
ti)”
18
antes, de uma perseverança que se sustenta, aos trancos e barrancos, entre o projeto de
elucidação e definição do tempo enquanto uma evidência algo com o quê a cada vez
contamos e a ameaça de se estar tratando de algo que simplesmente não se a ver,
não existe, não é.
1.1. AS APORIAS EM TORNO DA EXISTÊNCIA DO TEMPO
O que, segundo Aristóteles, “se verá a seguir” são as aporias com as quais o
filósofo terá de se haver no trato com o tempo. Abaixo, os cinco momentos aporéticos
7
:
7
Física IV, 10, 217b 32-218a 30: Que não é de todo ou [que é] a duras penas e obscuramente, a partir
destes [que seguem] alguém poderia suspeitar, pois seu passado não é, enquanto o futuro ainda não é. E
por esses é composto tanto o tempo infinito quanto tempo a cada vez percebido. E pareceria ser
impossível a composição a partir de não entes participar da essência. Além disso, de todo divisível, se e,
certamente, quando é, todas ou algumas das partes devem existir; do tempo algumas partes foram,
outras hão de ser, nenhuma é. O agora não é uma parte, pois a parte mede e o todo deve ser composto
pelas partes. E o tempo não parece ser composto pelos agoras. E mais: não é fácil saber se o agora, que
parece delimitar o que foi e o que ainda não é, permanece sempre um e o mesmo ou se é a cada vez
outro. Pois se sempre diferente, e não sendo simultâneas as partes no tempo (ao menos as que não se
abarcam, o ser abarcado como o tempo menor pelo maior), o agora não sendo, antes sendo, é necessário
perecer em algum momento, e os agoras não sejam simultâneos uns aos outros, perece então
necessariamente sempre o anterior. Nele mesmo, realmente, não perece por então ser, perecer em outo
agora o agora anterior é inadmissível. Pois que seja impossível considerar serem contínuas os agoras,
como ponto a ponto. Se é verdade, de fato, que não perece no agora seguinte mas em outro, nos
intermediários haveria infinitos agoras sendo simultâneos, e isto é impossível. Mas tampouco é possível
permanecer o mesmo. Pois nenhum divisível é limitado por um limite, nem se for contínuo por um
[limite] dele nem se por mais: mas o agora é limite e o tempo é tomado limitado. E, ainda, se o ser
simultâneo temporalmente, e nem anterior nem posterior, é ser em um e mesmo agora, se os anteriores e
posteriores o o no agora, o que se passou dez mil anos seria simultâneo ao que se passa hoje, e seria
nada anterior ou posterior a nada. [ὅτι µὲν οὖν ὅλως οὐκ ἔστιν ἢ µόλις καὶ ἀµυδρῶς, ἐκ τῶνδέ τις ἂν
ὑποπτεύσειεν. τὸ µὲν γὰρ αὐτογέγονε καὶ οὐκ ἔστιν, τὸ δὲ µέλλει καὶ οὔπω ἔστιν. ἐκ δτούτων
καὶ πειρος καὶ ἀεὶ λαµβανόµενος χρόνος σύγκειται. τὸ δ' ἐκ µὴ ὄντων συγκείµενον ἀδύνατον
ἂν εἶναι δόξειε µετέχειν οὐσίας. πρὸς δτούτοις παντὸς µεριστοῦ, ἄνπερ ᾖ, ἀνάγκη, ὅτε ἔστιν, τοι
πάντα τὰ µέρη εἶναι ἢ ἔνια· τοῦ δὲ χρόνου τὰ µὲν γέγονε τὰ δὲ µέλλει, ἔστι δ' οὐδέν, ὄντος
µεριστοῦ. τὸ δνῦν οὐ µέρος· µετρεῖ τε γὰρ τµέρος, καὶ συγκεῖσθαι δεῖ τὸ ὅλον ἐκ τῶν µερῶν· ὁ δὲ
χρόνος οὐ δοκεῖ συγκεῖσθαι ἐκ τῶν νῦν. ἔτι δὲ τὸ νῦν, φαίνεται διορίζειν τὸ παρελθὸν καὶ τ
µέλλον, πότερον ἓν καὶ ταὐτὸν ἀεὶ διαµένει ἄλλο καὶ ἄλλο, οὐ ῥᾴδιον ἰδεῖν. εἰ µὲν γὰρ αἰεὶ ἕτερον
καὶ ἕτερον, µηδὲν δ' ἐστὶ τῶν ἐν τῷ χρόνῳ ἄλλο καὶ ἄλλο µέρος ἅµα (ὃ µ περιέχει, τὸ δὲ
περιέχεται, ὥσπερ ἐλάττων χρόνος ὑπὸ τοῦ πλείονος), τὸ δὲ νῦν µὴ ὂν πρότερον δὲ ὂν ἀνάγκη
ἐφθάρθαι ποτέ, καὶ τὰ νῦν ἅµα µὲν ἀλλήλοις οὐκ ἔσται, ἐφθάρθαι δὲ νάγκη ἀεὶ τὸ πρότερον. ἐν
αὑτῷ µὲν οὖν ἐφθάρθαι οὐχ οἷόν τε διὰ τὸ εἶναι τότε, ν ἄλλῳ δνῦν ἐφθάρθαι τὸ πρότερον νῦν
οὐκ ἐνδέχεται. ἔστω γὰρ ἀδύνατον ἐχόµενα εἶναι ἀλλήλων τνῦν, ὥσπερ στιγµὴν στιγµῆς. εἴπερ
οὖν ἐν τῷ φεξῆς οὐκ ἔφθαρται ἀλλ' ἐν ἄλλῳ, ἐν τοῖς µεταξὺ [τοῖς] νῦν ἀπείροις οὖσιν ἅµα ἂν εἴη·
τοῦτο δ ἀδύνατον. ἀλλὰ µὴν οὐδ' αἰεὶ τὸ αὐτὸ διαµένειν δυνατόν· οὐδενὸς γὰρ διαιρετο
πεπερασµένου ἓν πέρας ἔστιν, οὔτε ἂν ἐφ' ἓν ᾖ συνεχὲς οὔτε ἂν ἐπὶ πλείω· τὸ δὲ νῦν πέρας ἐστίν, καὶ
χρόνον ἔστι λαβεῖν πεπερασµένον. ἔτι εἰ τὸ ἅµα εἶναι κατὰ χρόνον καὶ µήτε πρότερον µήτε ὕστερον
τὸ ἐν τῷ αὐτῷ εἶναι καὶ ἑνὶ [τῷ] νῦν ἐστιν, εἰ τά τε πρότερον καὶ τὕστερον ν τνῦν τῳδί ἐστιν,
ἅµα ἂν εἴη τἔτος γενόµενα µυριοστὸν τοῖς γενοµένοις τήµερον, καὶ οὔτε πρότερον οὔτε ὕστερον
οὐδὲν ἄλλο ἄλλου.]
19
a) uma parte do tempo o é, pois foi; outra parte não é, pois ainda não é; o
que é composto por partes que não são, não pode ser;
b) se algo é divisível, necessariamente todas ou algumas de suas partes devem
existir. Mas do tempo seja enquanto infinito, seja enquanto limitado
algumas partes já foram e outras ainda serão. O agora (nŷn) não é uma parte,
pois uma parte é uma medida do todo, que é composto por partes, e o tempo
não parece ser composto por agoras.
c) se o ‘agora’ é sempre outro, e se as partes que são diferentes no tempo não
são simultâneas (a não ser que uma inclua a outra), e se o agora que não é,
mas foi anteriormente, deve deixar de ser em algum momento, os agoras não
podem ser simultâneos, mas o anterior deve sempre deixar de ser. O agora
anterior, porém, não pode deixar de ser nele mesmo, e tampouco pode deixar
de ser no ‘agora’ seguinte, pois que esteja acertado que um ‘agora’ não pode
estar mais próximo de outro que um ponto de outro. Se não deixa de ser no
agora seguinte mas em outro, existiria simultaneamente com diversos agoras
entre dois, o que evidentemente é impossível;
d) tampouco é possível que o agora permaneça sempre o mesmo; pois uma
grandeza finita contínua o pode ser determinada por apenas um término,
no entanto, “o agora é um limite e é possível apreender um determinado
tempo”
8
e) sendo simultâneo tudo o que acontece no mesmo agora, e sendo o agora
sempre o mesmo, todos os acontecimentos, passados e futuros, seriam
simultâneos e nada seria anterior ou posterior a nada – o que é absurdo.
Os dois primeiros passos põem em causa, direta e imediatamente, a existência do
tempo. São, desde já, discernidos dois modos de abordagem do tempo: o tempo infinito
(ho apeíron khrónos) e o tempo a cada vez tomado (ho aeì lambanómenos khrónos),
isto é, enquanto intervalo limitado. Em ambos os casos, não se retém nenhuma parte do
tempo acerca da qual se possa dizer que existe, “do tempo algumas partes foram,
8
Física IV, 10, 218a 24 – 25: τὸ δὲ νῦν πέρας ἐστίν, καὶ χρόνον ἔστι λαβεῖν πεπερασµένον.
20
outras hão de ser, nenhuma é. O agora não é uma parte, pois a parte mede e o todo deve
ser composto pelas partes.”
9
.
Vale notar, com Goldschmidt
10
, que o que está em jogo neste trecho inicial do
tratado, são os atributos e a existência do tempo. A princípio, embora as aporias atinjam
o aspecto divisível do tempo, não se trataria de tomar este aspecto como sendo relativo à
definição – e assim diríamos que ser para o tempo é, por exemplo, ser divisível, mas isto
não corresponderia à sua definição, ao seu lógos. Do mesmo modo, poderíamos citar o
homem, que, sendo divisível, não o é por definição. No entanto, e apesar do trecho
carecer de rigor técnico-científico
11
, mostram-se indícios das dificuldades que esse
aspecto divisível trará a Aristóteles na tentativa de responder a pergunta “o que é o
tempo?”.
O problema, assim indiciado, é, por um lado, a divisibilidade radicalmente
intrínseca ao tempo e, por outro, a predeterminação da pergunta pelo ser, no âmbito
físico, pelo presente, isto é, pelo agora. Consequentemente, a questão da existência do
tempo desdobra-se em “o que é o tempo agora?”. Mas o tempo agora na medida em
que é pressuposto aquele caráter de radical divisibilidade do tempo não é tempo e,
sim, agora.
Deste modo, a dialética aristotélica desloca o foco do tempo para o agora. Se o
único elemento do tempo que existe é o agora, e se o agora não é parte do tempo – logo,
não é ele mesmo tempo –, o que é, então, o agora? Esse deslocamento de foco deve
trazer consigo, mesmo que implicitamente, uma reflexão sobre a própria pergunta pelo
tempo, na medida em que o questionado o é em sua presença, isto é, no âmbito do
agora.
Na continuação do exame, que doravante investirá sobre o agora, é ainda a
existência do tempo que está em causa e não a do agora. Que, de fato, existe o agora é
indiscutível, uma vez que, como dissemos, ele é pressuposto na pergunta “o que é?”.
Poderíamos mesmo dizer que sua definição é já, nas aporias, antecipada: ele é o limite
9
Física IV, 10, 218a 5-7: τοδὲ χρόνου τὰ µὲν γέγονε τδὲ µέλλει, ἔστι δ' οὐδέν, ντος µεριστοῦ.
τὸ δὲ νῦν οὐ µέρος· µετρεῖ τε γὰρ τὸ µέρος, καὶ συγκεῖσθαι δεῖ τὸ ὅλον ἐκ τῶν µερῶν·
10
Temps physique et temps tragique dans Aristote (1982), p. 16.
11
Ross (1998, p. 384): quite untechnicallyé como o inglês o ἐξωτερικῶν em 217b 31. Novamente,
vale o comentário de Goldschmidt, p.11, n. 3: “ao menos caso se entenda esta palavra [untechnically]
como oposta à pesquisa física e ‘científica’; mas a dialética também é uma técnica”.
21
do tempo
12
. Mas parece tão evidente que o agora é uno e sempre o mesmo, quanto que
ele é múltiplo e sempre diferente. O problema desdobra-se, então, em duas dimensões: à
hipótese de o agora ser sempre o mesmo, objeta-se que o tempo considerado como
limitado isto é, um intervalo de tempo não pode sê-lo por um único limite e que,
além disso, levando em conta a relação do agora com as coisas que são agora,
absolutamente tudo seria simultâneo, isto é, dar-se-ia tudo no mesmo agora; por outra, à
hipótese do agora múltiplo e sempre outro, levanta-se a questão sobre sua geração e
corrupção.
Ainda que em linhas gerais, vemos, nesse início aporético do tratado, a
emergência dos problemas capitais relativos ao agora, com os quais nos confrontaremos
no prosseguimento do texto. Em primeiro lugar, evidentemente, a dificuldade em
compreender a alteridade e a identidade do agora; além disso, a relação entre o ser do
agora e o ser-agora (ou ser-no-agora, isto é, seu possível caráter de hypokeîmenon); e,
por fim, sua essência (seu, também possível, caráter enquanto ousía). A respeito desse
último, diz Aristóteles no livro III da Metafísica:
Pois parece que a essência, não sendo antes agora era, ou sendo antes
depois não era, sofre geração e corrupção. Os pontos, as linhas e os
planos não suportam, porém, nem geração nem corrupção, ainda que
ora sejam ora não sejam. [...] Do mesmo modo ocorre com o agora no
tempo, pois ele tampouco suporta geração nem corrupção, mas, apesar
disso, parece ser sempre diferente, não sendo essência alguma
13
.
Cabe ressaltar que, no trecho citado, o agora não apenas aparece explicitamente
tematizado, sendo negado que ele seja uma essência, como também possui papel
fundamental no âmbito da geração e da corrupção. Se apenas coubesse dizer que o
agora o é uma essência, do mesmo modo que o ponto, a linha e o plano tampouco o
são, estaria finda a discussão. Mas, em verdade, é apenas então que ela desponta. A
aporia apresentada neste passo notadamente, sobre noções somático-espaciais nasce
da necessidade de haver um processo de geração e corrupção para que estas coisas o
12
“Praticamente”, uma vez que, embora não encontremos esta definição formalmente expressa, temos,
em 218a 8s, “o agora, que parece delimitar o que já foi e o que ainda não é [...]” e, em 218a 24s, “o agora
é limite e o tempo é tomado limitado”.
13
Metafísica ΙΙΙ, 1002a 30-b 8: δοκεῖ µὲν γὰρ οὐσία, ἐὰν µὴ οὖσα πρότερον νῦν ᾖ πρότερον οὖσα
ὕστερον µᾖ, µετὰ τοῦ γίγνεσθαι καὶ φθείρεσθαι ταῦτα πάσχειν· τὰς δὲ στιγµὰς καὶ τὰς γραµµὰς
καὶ τὰς ἐπιφανείας οὐκ ἐνδέχεται οὔτε γίγνεσθαι οὔτε φθείρεσθαι, ὁτὲ µὲν οὔσας ὁτδὲ οὐκ οὔσας.
[...] παραπλησίως δ' ἔχει καὶ περὶ τὸ νῦν τὸ ἐν τῷ χρόνῳ· οὐδὲ γὰρ τοῦτο ἐνδέχεται γίγνεσθαι καὶ
φθείρεσθαι, ἀλλ' ὅµως ἕτερον ἀεὶ δοκεῖ εἶναι, οὐκ οὐσία τις οὖσα.
.
22
ponto, a linha e o plano – em um agora anterior sejam e em um posterior não sejam, ou,
ao contrário, ora não sejam, ora sejam. No entanto, não tais processos em relação a
estas coisas. Vê-se claramente que não é nesses mesmos termos que está posta, ainda no
passo citado, a questão com relação ao agora. Ele é sempre, mas sempre diferente. Essa
ambiguidade, por sua vez, é pressuposta de início e aparece como uma condição aos
processos de geração e de corrupção: “parece que a essência, não sendo antes agora era,
ou sendo antes depois não era, sofre geração e corrupção”. Ora, se o agora fosse uma
essência, teríamos de considerar que tudo o que se passa agora é um atributo dessa
essência. Tal consideração nos leva, por conseguinte, à discussão em torno do agora
enquanto subjacente e ambos os problemas, da essência e da subjacência do agora,
conduzem à necessidade de se compreender a relação entre a identidade e a alteridade
do agora, cuja empresa se desenrola, de fato, em Física IV, 10-14, sendo já prenunciada
sua urgência nas aporias iniciais.
Além disso, devemos considerar, pela confluência dos supracitados trechos da
Física e da Metafísica, os limites da comparação do agora e do tempo, respectivamente,
ao ponto e à linha. Se, em 218a 19, Aristóteles diz que “é impossível considerar serem
contínuos os agoras, como ponto a ponto”, o que nos leva a tomar o problema do agora
como sendo o mesmo problema do ponto (tanto os agoras quanto os pontos o são
contínuos), o texto da Metafísica, em que ambos são abordados, nos conduz a pensar
um limite para essa comparação. De fato, o trato do agora em 1005b 5-8 é introduzido
por um paraplesíos (do mesmo modo), referido explicitamente ao caso do ponto. Por
outro lado, como vimos, o imbróglio acerca do agora é um tanto mais escabroso. A
negação da sua essência o apenas é consequência da inexistência de um processo de
geração ou corrupção do agora, senão que tal negação resulta na liberação para a
compreensão do vir a ser e deixar de ser de todas as essências do mundo sublunar.
Ademais, se do ponto dizemos que ora há ponto, ora não há, não podemos nos aventurar
a tal com respeito ao agora, como se ora agora, ora não há, pois vimos que ele é
sempre, sempre diferente
23
1.1.1. Caminhos que se perdem
Coope, em seu recente comentário ao tratado do tempo
14
, aponta-nos dois
caminhos que poderiam ser tomados para resolver as duas primeiras aporias. Ainda que
ela, de antemão, afirme que Aristóteles rejeitaria ambas as soluções, elas nos ajudarão
“a compreender a força desses problemas caso possamos explicar o porquê [de serem
rejeitadas]”
15
. O primeiro deles seria a introdução de “algum sentido atemporal de
‘existe’”. Para mostrar que tal solução não é aceitável, ela aponta que Aristóteles
mesmo nos propõe um sentido atemporal de “existe”, mas que interpretar o que existe
de maneira atemporal como não existindo agora é um equívoco. Com isso, a autora nos
leva a um ponto importante: o problema não é que a existência do tempo se fundamente
na própria temporalidade, mas que, antes, parece fundar-se, como todo e qualquer juízo
existencial, no agora.
O segundo caminho seria considerar o agora como extenso, o que faria dele
parte do tempo. Coope aponta que Aristóteles, no desenrolar do tratado, levará em conta
um sentido do agora como extenso, embora o tente ele solucionar o problema através
desse novo sentido do agora. Trata-se, como veremos, de um sentido derivado e, antes,
um modo de dizer o que está próximo do agora instantâneo e que, portanto, se tomado
efetivamente em consideração, remete ao agora não extenso tanto quanto o próprio
tempo. Pois, se tomamos um agora extenso, dele uma parte foi e outra será, nenhuma
delas é, senão o agora propriamente dito, não extenso, pontual.
A tentativa, qualquer que seja ela, de solucionar os problemas apresentados por
Aristóteles sobre a existência do tempo parece vã, levando-nos irremediavelmente aos
mesmos problemas dos quais se parte. Prova disso é que o próprio Aristóteles
abandona-as, o mais colocando em questão a existência ou não do tempo. Entretanto,
esse abandono, como aponta Margel
16
, é relativo, pois, por um lado, implicada na
discussão do agora está a questão do ser, mas esta é tarefa de outra ciência (hetéras
epistémes) e não da Física (ou perì phýseos); por outro lado, será, como veremos,
constitutivo do discurso aristotélico sobre o tempo o aspecto ambíguo do tempo e, em
especial, do agora.
14
Time for Aristotle (2005).
15
Idem, p. 19.
16
Le concept de temps (1999), parte I, capítulo 1.
24
1.1.2. O lugar das aporias no Tratado do Tempo
De acordo com Rey Puente, essas aporias iniciais visam
apenas e tão-somente situar o leitor na dimensão constitutivamente
problemática de um tema em estudo, cujo modo de apreensão se
encontra entre o de uma evidência indubitável dos sentidos e o daquilo
que é autocontraditório e, portanto, viola o p.d.n.c., ou seja, o
princípio fundamental da razão
17
.
De fato, Aristóteles, ao expor as aporias, não aprofunda ou esclarece suas raízes
e proveniências. Não há, ao menos nesse momento, um cuidado tão meticuloso quanto é
comum encontrar em outras ocasiões do corpus. No entanto, mais do que “apenas e tão-
somente situar o leitor”, o trecho apresenta-se como a situação fenomenológica –
entendendo o tempo como um fenômeno, embora obscuro do tema a ser tratado,
situando, desse modo, o próprio autor no enredo em que pretende se enveredar. Isto é,
trata-se de um mapeamento, um projeto, que será desdobrado no restante do tratado.
o dúvida de que a dimensão do tema é constitutivamente problemática.
Mais fácil mesmo seria se ela, a dimensão temporal propriamente dita, partisse ao
menos de “uma evidência indubitável dos sentidos”. Quanto ao tempo, porém, o
esta evidência. Ou melhor, é certo que alguma evidência, mas, que provenha dos
sentidos, isto é muito pouco evidente.
A relação entre o tempo e os sentidos por mais abrangente que seja o
significado de “sentido” tornar-se-á mais um problema do que um pilar de apoio no
decorrer do tratado. Problema esse que, por sua vez, nem mesmo será explicitamente
abordado na Física (e poderíamos mesmo dizer que em lugar algum das obras
aristotélicas que estão ao nosso alcance).
Se das lições aristotélicas acerca da natureza podemos dizer que partem de uma
evidência sensível, de uma ausculta, do movimento ou melhor, do particular em que
se realiza o movimento o mesmo não podemos dizer do tempo. Como bem observa
Coope
18
, Aristóteles o estende ao movimento e às coisas móveis as aporias
concernentes ao tempo. E supor que deveria fazê-lo, como se tal fosse uma carência da
investigação aristotélica, seria descuidar e mal interpretar o projeto e o método da obra,
expostos no primeiro capítulo do primeiro livro.
17
Os sentidos do tempo em Aristóteles (2001), p. 123.
18
2005, pp. 24s
25
Apesar de o se tratar de uma evidência sensível, não como negar que
Aristóteles parte de uma evidência, um dado, ainda que não sensível em sentido estrito.
Prova disso é o próprio fato de o estagirita ir adiante no trato do tempo, procurando, a
cada vez, superar e desviar-se da negação do tempo, ainda que, levando em conta
apenas as aporias, haveria muito mais razão em desistir de comprovar sua existência do
que em buscar sua definição.
Perguntar por uma tal evidência significa buscar a orientação da investigação
aristotélica. Essa orientação é posta à luz por Heidegger
19
como proveniente do uso
cotidiano do relógio. “Para Aristóteles, a origem do tempo manifestado desse modo não
constitui problema”
20
: é a contagem do tempo efetuada por meio deste utensílio que
torna visível um fenômeno chamado tempo. A questão, retomada desde a observação
heideggeriana, torna-se a seguinte: o que é contado pelo relógio: o tempo ou o
movimento?
1.1.3. As aporias do tempo e o movimento
Ainda que, conforme dissemos, o seja lícito reclamar a aplicação, por
Aristóteles, das sobreditas aporias ao caso do movimento, é extremamente profícuo que
nós, um tanto quanto ingenuamente, o façamos.
Assim, suponhamos que, do mesmo modo que do tempo uma parte foi e outra
ainda não é, possamos dizer que do movimento, a cada vez, uma parte sua já se realizou
e outra está por se realizar. O que nos restaria seria o ente tal como é em um
determinado instante. Ora, é justamente a partir do ente tal como é em um determinado
instante que Aristóteles se lança à investigação sobre o movimento. E, justamente
porque é a partir do ente que é investigado o movimento, dissemos que seria um
descuido com o método da Física requerer a aplicação das aporias acerca do tempo ao
movimento. Vemos, então, o quanto de ingênuo em nossa suposição: o modo como
tomamos o movimento não é aquele segundo o qual Aristóteles o define em Física III, a
saber, “o movimento é a atualidade do ente que é em potência enquanto tal”
21
. A
potência implicada não consiste na pura disposição material do ente. No caso da
construção de um edifício, por exemplo, a potência implicada na definição repousa, por
19
Sein und Zeit, § 81.
20
Idem, § 81, p. 421: Der Ursprung der so offenbaren Zeit wird für Aristoteles nicht Problem.
21
Física, 201a 10s: ἡ τοῦ δυνάµει ὄντος ἐντελέχεια, ᾗ τοιοῦτον, κίνησίς ἐστιν
26
exemplo, nos tijolos que se encontram no processo de construção, ou seja,
interpretados efetivamente enquanto tijolos, enquanto aquilo que ainda não é um
edifício, mas está a caminho de ser. Os tijolos largados no quintal da casa, por outro
lado, embora possuam também a possibilidade de se tornarem um edifício, guardam
também inúmeras outras possibilidades, como a de se tornarem um assento ou um
castelo para a brincadeira das crianças. Isso significa, porém, justamente que ainda não
são efetivamente tijolos (porquanto se compreenda “tijolo” como aquilo que serve à
edificação). Esses mesmos tijolos abandonados, para que sejam efetivamente tijolos,
carecem da atualidade do fim que orientou sua produção, fim esse que, por ora, resta
latente, esquecido.
Assim, supusemos antes um movimento dividido em partes, o que equivale a
considerar o movimento como uma passagem do que é em potência à atualidade. É
certo que esta é uma das interpretações possíveis da definição do movimento. Nesse
caso, porém, entelékheia teria o sentido de atualização, e a definição seria entendida
como “atualização do que é em potência enquanto tal”. No entanto, tomar a noção de
entelékheia como um processo (que é o que, na verdade, jaz no sufixo “-ção” de
“atualização”) implicaria já, na própria definição, a noção de movimento: o definido
seria, assim, parte da definição
22
. Consequentemente, a frase que se supõe ser uma
definição seria apenas uma espécie de descrição, isto é, ela nada diria sobre o que o
movimento fundamentalmente é, mas apenas relataria como ele se dá
23
.
O que significa que, certamente se tomarmos o movimento como um intervalo
que liga a-partir-do-quê ao em-vista-do-quê, cairemos no mesmo problema relativo ao
tempo: uma parte não mais é, outra ainda não é. A definição aristotélica, porém, traz à
luz o movimento em sua atualidade no ente tal como é a cada momento. E por isso
mesmo, é necessário interpretá-la não como a atualização de uma potência, mas como a
atualidade do que é potência enquanto tal.
Pois bem, o que mostramos foi que as aporias relativas ao tempo não são
aplicáveis ao movimento, uma vez que Aristóteles o define como uma atualidade
22
Tomás de Aquino, In octo libros De physico auditi sive physicorum Aristotelis commentaria, lib. 3, l. 2,
n. 2: “Circa primum sciendum est, quod aliqui definierunt motum dicentes, quod motus est exitus de
potentia in actum non subito. Qui in definiendo errasse inveniuntur, eo quod in definitione motus
posuerunt quaedam quae sunt posteriora motu: exitus enim est quaedam species motus; subitum etiam in
sua definitione recipit tempus: est enim subitum, quod fit in indivisibili temporis; tempus autem definitur
per motum”.
23
L. A. Kosman, “Aristotle’s definition of motion” (1969), p. 41.
27
(entelékheia) do ente, e não como um processo divisível em partes. Aqueles que, como
Ross, opinam que Aristóteles define o movimento como uma passagem da potência à
atualidade terão, necessariamente, de responder à pergunta: como pode o movimento
existir se é um todo composto por partes e nenhuma parte dele é? Aristóteles não se fez
esta pergunta simplesmente porque não tomou movimento como uma passagem.
Mas não sem razão dissemos ser profícua nossa ingênua tentativa de estender ao
movimento as aporias do tempo. Ela mostra que aquilo que do tempo, sem dúvidas,
existe não é igual, em natureza, à existência do movimento. Pois, por um lado, o
movimento, embora possa ser descrito ou representado como um intervalo divisível
entre o ponto de partida e o ponto de chegada, é definido independentemente de sua
divisibilidade; enquanto, por outro lado, parece ser impossível definir o tempo aquém
de sua divisibilidade, uma vez que o que se estaria definindo seria o agora.
Não é, porém, a divisibilidade o único atributo problemático do tempo. Com
efeito, ela se encontra em meio a outras diversas noções que compõem uma constelação
terminológica geometrizante do real, como, por exemplo, a quantidade, a medida, o
número, a divisão, o contínuo, o comprimento, a grandeza, a dimensão e a distância. E,
ainda que Aristóteles critique Zenão por conceber o tempo tal como o espaço, e ainda
também que distinga claramente entre o objeto de estudo da geometria daquele da física,
dizendo “que a geometria estuda a linha física, mas não enquanto física”
24
, é, como diz
Margel, “em um universo exclusivamente tecido por pontos, linhas e superfícies, e
esquematizado por figuras (diagramai) indefinidamente mensuráveis por que
infinitamente divisíveis”, que Aristóteles tratará de buscar “uma força radicalmente
estranha à geometria”
25
.
1.1.4. As três teses rejeitadas
Após a apresentação das aporias, Aristóteles, ainda no capítulo 10, passa em
revista as opiniões mais correntes sobre o que é o tempo. O que é o tempo e sua
natureza é igualmente obscuro a partir do que nos foi transmitido, assim como das
nossas discussões anteriores”. Mesmo que Aristóteles não tenha a aqui esboçado a
definição do tempo, é fato que as aporias parecem dificultar um tal intento. São
24
Física II, 2, 194a 10: ἡ µὲν γὰρ γεωµετρία περὶ γραµµῆς φυσικῆς σκοπεῖ, ἀλλ` οὐχ ἧ̣ φυσική
25
Margel (1999), p. 26.
28
elencadas, então, três teses cujos autores não são citados, mas apenas marcados por um
plural impessoal (hoi, uns, alguns). São elas:
Tese 1 - “uns dizem ser o movimento do todo, outros a esfera mesma.”
26
Segundo afirma Simplício
27
, essa primeira tese é atribuída por Eudemo,
Teofrasto e Alexandre de Afrodísia a Platão
28
. Além disso, ela é criticada por Plotino
29
,
sem que ele a atribuísse a Platão.
São dois os argumentos aristotélicos contra essa tese:
Argumento 1 contra a Tese 1:
mesmo uma parte do movimento circular (periphorá) é algum tempo,
mas não é o movimento circular, pois é tomada uma parte do
movimento circular, mas não o movimento circular [todo].
30
O que caracteriza o movimento circular é a coincidência do seu princípio com
seu fim. Uma parte do movimento circular, ou seja, uma curva, terá necessariamente
dois limites não coincidentes. Os limites desse movimento são também limites de um
tempo, do seu tempo. A curva traçada, assim, por um móvel é um tempo, mas não é um
movimento circular, pois não alcança seu princípio. O argumento expõe ainda o
privilégio da determinação no estudo do tempo. As partes do tempo não são senão o
próprio tempo, e não como se o tempo consistisse na totalidade de suas partes. O
movimento circular pode ser dividido em diversas partes que, embora não seja cada uma
delas um movimento circular, reunidas formam o movimento circular. Com o tempo,
parece ocorrer o contrário, o tempo pode ser dividido em infinitas partes, e não apenas
cada uma delas é igualmente um tempo, como reunidas elas formam um outro tempo.
Não é de se espantar que o tempo abordado por Aristóteles na Física será
primordialmente o tempo determinado, um tempo, algum tempo, pois o ilimitado está
fora do alcance do nosso conhecimento. No entanto, é sempre pressuposto um tempo
maior, potencialmente infinito tal como o movimento circular, do qual todo tempo será
uma parte.
26
Física IV, 10, 218a 33 – b1: οἱ µὲν γὰρ τὴν τοῦ ὅλου κίνησιν εἶναί φασιν, οἱ δὲ τὴν σφαῖραν αὐτήν.
27
In Aristotelis Physicorum, 700.16-22
28
o citados o Timeu (39b-d, 38c) e as Definições (411b: “O tempo é o movimento do sol, a medida de
sua rotação”).
29
III, 7, 7. 23-24 . Cf. Goldschmidt (1982), p. 18.
30
Física IV 10, 218b 1-3: καίτοι τῆς περιφορᾶς καὶ τὸ µέρος χρόνος τίς ἐστι, περιφορὰ δέ γε οὔ·
µέρος γὰρ περιφορᾶς τὸ ληφθέν, ἀλλ' οὐ περιφορά.
29
Argumento 2 contra a Tese 1:
Se muitos fossem os céus, igualmente o tempo seria o movimento de
qualquer deles, bem como [existiriam] muitos tempos
simultaneamente.
31
Nesse segundo argumento, Aristóteles explora uma hipótese que ele mesmo não
aceita, a de existirem muitos céus. No entanto, o fato de haver apenas um céu não
acompanha a necessidade lógica de haver um só tempo, pois se existissem dois tempos
distintos ao mesmo tempo, isso implicaria um terceiro tempo que fundasse a
simultaneidade de ambos. O mesmo o ocorre com a possível existência de múltiplos
céus e a contingente e factual existência de um céu. Há, como observa Aristóteles no
tratado De caelo, uma importante nuance entre o ser-céu e o ser-este-céu:
Se o céu é um particular, é diferente ser este céu e ser céu
simplesmente [haplôs]. O céu este é diferente do céu simplesmente
[haplôs], e se um é como forma e aspecto, o outro é misturado na
matéria. E das coisas que são alguma forma e aspecto, ou de fato
existem ou delas é possível surgirem muitos particulares.
32
Desse modo, que tenha vindo a ser apenas um céu, isso não foi absolutamente
necessário. O tempo, por seu turno, é necessariamente único de outra maneira: se
houvesse mais de um tempo (ou mais de uma série temporal) dois tempos seriam
simultâneos, mas a simultaneidade é justamente o caráter de ser ao mesmo tempo de
duas ou mais coisas ou movimentos. Consequentemente, se dois tempos fossem
simultâneos, seria necessário um terceiro tempo, no qual os dois seriam simultâneos, e
assim ilimitadamente. No decorrer do tratado, Aristóteles em diversos momentos estará
ocupado em mostrar que todo tempo simultâneo é o mesmo, uma vez que o Estagirita se
refere, em grande parte do tratado, a um tempo particular de um movimento particular,
o que poderia implicar a simultaneidade absurda de dois tempos de respectivos
movimentos simultâneos.
31
sica, 218b 3-5: ἔτι δ' εἰ πλείους σαν οἱ οὐρανοί, ὁµοίως ν ν χρόνος ὁτουοῦν αὐτῶν
κίνησις, ὥστε πολλοὶ χρόνοι ἅµα.
32
De caelo, 278a 12-16: Εἰ δτῶν καθ' ἕκαστον, ἕτερον ἂν εἴη τῷδε τοὐρανῷ εἶναι καὶ οὐρανῷ
ἁπλῶς. Ἕτερον ἄρα ὅδε οὐρανὸς καὶ οὐρανὸς ἁπλῶς, καὶ τὸ µὲν ὡς εἶδος καὶ µορφή, τὸ δ' ὡς τ
ὕλῃ µεµιγµένον. Ὧν δ' ἐστὶ µορφή τις καὶ εἶδος, ἤτοι ἔστιν ἐνδέχεται πλείω γενέσθαι τ καθ'
ἕκαστα.
30
Portanto, para Aristóteles, o próprio conceito de tempo, ou seja, o tempo tomado
absolutamente, implica a necessidade de haver um só tempo.
Tese 2 - o tempo é a esfera do todo (he sphaîra toû hólou).
Simplício aponta a paternidade da tese como sendo dos pitagóricos, confiando
no testemunho textual de um Arquitas, que Simplício acreditava ser Arquitas de
Tarento, pitagórico conhecido de Platão, que viveu por volta de 400 a.C. No entanto,
conforme Sorabji, “os escritos genuínos de Arquitas e de outros pitagóricos foram
acrescidos, talvez entre os séculos III e I a.C., por um grande grupo de obras espúrias”
33
.
Ainda segundo Sorabji, uma dessas obras, Περὶ τοῦ καθόλου λόγου, contém uma
discussão do tempo, da qual uma parte se encontra preservada justamente no comentário
de Simplício à Física aristotélica
34
, e é no testemunho do autor dessa obra
neopitagórica, um Pseudo-Arquitas, que Simplício se baseia para atribuir a tese em
questão aos pitagóricos.
Sobre essa caracterização, Aristóteles afirma:
Aos que disseram ser o tempo a esfera do todo pareceu que tudo é no
tempo e [ou “como também”] na esfera do todo. O dito é, porém,
ingênuo demais para que se investigue suas impossibilidades.
35
Tanto Simplício quanto Filopono esboçaram algumas razões pelas quais
Aristóteles seria levado a nem mesmo comentar a concepção do tempo como a esfera.
Primeiramente, ambos os comentadores entendem a tese como proveniente de um
silogismo é inválido, uma vez que ambas as premissas são universais (“tudo é no
tempo” e tudo é na esfera”). No entanto, não é como um silogismo que ela é expressa
por Aristóteles, mas, sim, como uma analogia mediada pelo kaí (“e também”, “como
também”): tudo está para o tempo assim como está para a esfera do todo. Do texto
aristotélico depreende-se que, a partir dessa analogia, o tempo foi incorretamente
identificado à esfera do todo, enquanto, na verdade, o resultado da analogia deveria ser
a explicitação do ser-em que modula ambas as relações: tudo está para o tempo assim
como está para a esfera do todo, a saber, como ser-em, ser-abarcado-por.
33
Time, creation and the continuum (2006), p. 27.
34
In Aristotelis Physicorum, 785.12-787.28
35
Física, 218b 5-9: ἡ δὲ τοῦ ὅλου σφαῖρα ἔδοξε µὲν τοῖς εἰποῦσιν εἶναι ὁ χρόνος, ὅτι ἔν τε τῷ χρόνῳ
πάντα ἐστὶν καὶ ἐν τῇ τοῦ λου σφαίρᾳ· ἔστιν δ' εὐηθικώτερον τὸ εἰρηµένον ὥστε περὶ αὐτοῦ τὰ
ἀδύνατα ἐπισκοπεῖν.
31
Em segundo lugar, segundo os citados comentadores, toma-se univocamente, em
ambas as premissas, o sentido de “ser em”, pois tudo é na esfera como no lugar, mas no
tempo não; além disso, cito Filopono:
[…] o tempo possui passado e futuro, a esfera não possui passado
nem futuro; a parte do tempo é um tempo, da esfera, porém, a parte
não é uma esfera, então a esfera não é tempo; o tempo divide-se pelo
agora, a esfera não se divide pelo agora; o tempo constitui-se da parte,
enquanto a esfera não se constitui da parte.
36
Tese 3 - o tempo é um certo movimento ou mudança (kínesis kaì metabollé
tis).
Argumento 1 contra a Tese 3:
o movimento e a mudança de cada um é apenas naquele que está
mudando ou no qual se encontra o se-movente [tò kinoúmenon] ou
mutante [metabállon]; o tempo, por outro lado, é igualmente por todo
canto [pantakhoû] e junto a tudo [parà pâsin].
37
Se a onipresença homogênea do tempo era salvaguardada nas duas teses
anteriores, ela é justamente o que se perde ao tomá-lo como movimento. Um
movimento é sempre particular ao ente que move e, no caso do deslocamento, ao lugar.
Assim, se o tempo fosse um movimento, seria necessário que ele o tempo existisse em
algo particular. Na realidade, porém, os entes móveis, bem como seus movimentos, é
que o no tempo, como será dito mais a frente no tratado. E justamente pelo fato de o
tempo não ser movimento, mas presente e comum em todos os movimentos e entes
móveis, o tempo revela-se como um fundo, de certo modo, universal aos movimentos,
fundo esse manifesto, como vimos, no dizer que um movimento é ou não simultâneo a
outro.
Argumento 2 contra a Tese 3:
a mudança é mais rápida ou mais lenta, enquanto o tempo não. Pois o
lento e o rápido é determinado pelo tempo, rápido o que se move
muito em pouco [tempo], lento o que se move pouco em muito
36
In Aristotelis Physicorum, 710. 14-20: […] ὁ χρόνος τὸ παρεληλυθὸς ἔχει καὶ τὸ µέλλον, δὲ
σφαῖρα οὐκ ἔχει τὸ παρεληλυθὸς καὶ τὸ µέλλον· τοῦ χρόνου τὸ µέρος χρόνος ἐστί, τῆς δσφαίρας
τὸ µέρος οὐκ ἔστι σφαῖρα, οὐκ ἄρα ἡ σφαῖρα χρόνος ἐστίν· ὁ χρόνος τῷ νῦν διαιρεῖται, δὲ σφαῖρα
τῷ νῦν οὐ διαιρεῖται· χρόνος ἀπὸ µέρους ὑφέστηκεν, δὲ σφαῖρα οὐχ ὑφέστηκεν ἀπὸ µέρους·
οὕτως οὖν οὐδὲ ἡ σφαῖρα χρόνος ἂν εἴη.
37
Física, 218b 10-13: µὲν οὖν ἑκάστου µεταβολὴ καὶ κίνησις ἐν αὐτῷ τῷ µεταβάλλοντι µόνον
ἐστίν, οὗ ἂν τύχῃ ν αὐτὸ τκινούµενον καὶ µεταβάλλον· δὲ χρόνος ὁµοίως καὶ πανταχοῦ καὶ
παρὰ πᾶσιν.
32
[tempo]. Mas o tempo não é determinado pelo tempo, nem por ser uma
quantidade nem por ser uma qualidade.
38
Nesse segundo argumento, Aristóteles reivindica ao tempo o papel de fator
determinante do movimento. Seria possível objetar, como o faz Moreau
39
, que a
velocidade de um movimento se mede apenas por referência a um outro movimento, ou
seja, quando digo que demorei uma hora para vir do Centro até aqui, comparo o meu
deslocamento com o deslocamento do ponteiro das horas o meu relógio. A objeção é
incontestável, mas não tira a validade do argumento aristotélico. O fundo sobre o qual a
comparação entre movimentos diferentes, desconexos e independentes faz-se possível é
o que chamamos tempo, e justamente porque oferece certa conexão aos movimentos
particulares não pode ele mesmo ser um movimento.
1.1.4.4. As ausências – Antifonte e Platão
Tendo já apresentado as teses citadas e refutadas por Aristóteles, gostaríamos
agora de comentar algumas ausências. São pelo menos duas: uma encontra-se no
diálogo Timeu, de Platão, e a outra é atribuída ao sofista Antifonte por Écio.
Segundo a leitura tradicional da tese platônica no Timeu, o tempo é “uma
imagem [εἰκὼ] móvel [κινητόν] da eternidade [αἰῶνος]” (Timeu, 37d 5) ou “imagem
eterna realizando-se segundo o número [κατ` ἀριθµὸν ἰοῦσαν αἰώνιον εἰκόνα]” (37d
6s.). Aristóteles certamente conhecia o texto e, tratando-se, nas palavras de Victor
Goldschmidt
40
, do “mais antigo escrito doxográfico sobre o tempo”, seria de imenso
descuido, por parte de Aristóteles, tê-la esquecido.
No entanto, sua omissão pode ser explicada a partir da reinterpretação do texto
platônico levada a cabo por Rémi Brague
41
, assim como, por outro lado, pode servir
como apoio para essa mesma leitura. Segundo Brague, o que é dito no Timeu é que o
céu, e não o tempo, é a imagem do aión. O tempo, por sua vez, responderia pela
configuração do modo de realização, de desenvolvimento do céu, sendo seu número.
Seguindo essa leitura, é perfeitamente compreensível que Aristóteles não tenha citado a
38
Física, 218b 14-18: µεταβολὴ µέν ἐστι θάττων καὶ βραδυτέρα, χρόνος δ' οὐκ ἔστιν· τὸ γὰρ βραδὺ
καὶ ταχὺ χρόνῳ ὥρισται, ταχὺ µὲν τὸ ἐν λίγῳ πολὺ κινούµενον, βραδὺ δὲ τὸ ἐν πολλῷ ὀλίγον·
δὲ χρόνος οὐχ ὥρισται χρόνῳ, οὔτε τῷ ποσός τις εἶναι οὔτε τῷ ποιός.
39
J. Moreau, L'espace et le temps selon Aristote (1965), p. 97. Cf. Goldschmidt (1982), p. 20.
40
1982, p.17.
41
Rémi Brague, Du temps chez Platon et Aristote (1995), chap. 1.
33
opinião de que o tempo é a imagem móvel da eternidade, uma vez que, em verdade,
segundo Brague, tal tese não se encontra na obra platônica.
A tese de Antifonte nos é legada por Écio: “o tempo é pensamento e medida, não
substância”
42
. Goldschmidt
43
oferece-nos duas razões pelas quais Aristóteles teria
omitido essa tese: “negando toda substancialidade ao tempo”, ela se encaixaria mal
entre as doutrinas citadas pelo Estagirita e, além disso, ela apresenta uma falsa
semelhança com a concepção do tempo do próprio Aristóteles, que também rejeita que o
tempo seja uma substância. Curiosamente, porém, em uma das poucas vezes em que
Antifonte é citado por Aristóteles, em Física II. 1 (193a 12), e ele é citado o para ser
absolutamente refutado, mas como testemunha da veracidade da premissa materialista:
“Sinal disto, diz Antifonte, é o fato de que, se enterrássemos uma cama e a putrefação
fosse capaz de fazer brotar, não surgiria uma cama, mas madeira”. Como se vê, não
qualquer constrangimento por parte de Aristóteles em confundir sua teoria com a de
Antifonte, embora a conclusão materialista, segundo a qual a matéria é o que
primordialmente responde pela natureza das coisas, seja rejeitada por Aristóteles. A
omissão de sua tese no suposto escrito doxográfico sobre o tempo permanece, assim,
sem explicação.
Ao expor e refutar as três definições do tempo, Aristóteles não cita, como
dissemos, os autores das teses, como o faz quando trata do lugar (são explicitamente
citados Platão e Hesíodo), relegando-as ao anonimato. O lugar que a passagem em
questão ocupa no tratado do tempo nos alguma luz sobre o expediente aristotélico de
utilizar teses anônimas: a discussão serve, em primeiro lugar, como saída das aporias
iniciais, que indicavam não haver tempo, e, além disso, como preparação para a
definição e o tratamento que Aristóteles pretende dar ao tempo.
A ausência da tese de Antifonte, assim como da definição de Platão via Timeu
(caso se aceite a leitura tradicional e não a de Brague), tem sua razão no fato de
Aristóteles não ter em vista, neste caso específico, um embate com seus antecessores e,
portanto, menos ainda um levantamento do que já fora dito acerca do tempo, mas
apenas apresentar teses que servem como hipóteses a serem refutadas para passar da
aporia à euporia.
42
Écio, 1, 226: νόηµα ἢ µέτρον τὸν χρόνον, οὐχ ὑπόστασιν.
43
1982, p. 17.
34
Não apenas a escolha das opiniões a serem abordadas, mas também a ordem em
que são tratadas é primordial à marcha do texto. Com efeito, a opinião realmente
abordada sea de que o tempo é o movimento do todo ou do céu. Essa opinião se
desdobrada em duas: a de que o tempo é o todo ou a esfera e a de que o tempo é um
movimento. Refutando a primeira dessas duas, Aristóteles alcança seu primeiro
objetivo, liberar o tempo de qualquer substância e estabelecer a universalidade
internamente necessária ao conceito de tempo. Com a recusa da segunda, Aristóteles
alcança seu primeiro dizer elucidativo sobre o tempo, o primeiro passo adiante da sua
investigação, a saber, que, embora não seja um movimento, o tempo não é sem
movimento e, mais adiante, que o tempo é algo do movimento (kinéseos ti).
Estamos, assim, diante de um caso bastante curioso da recepção de ideias na
obra aristotélica. Ainda que de modo algum, ao nosso ver, se trate de algo como uma
doxografia, o passo que abordamos ensejou nos comentadores antigos da Física
aristotélica um considerável esforço de interpretação do pensamento pitagórico e
platônico a partir do texto aristotélico, desencadeando, assim, um processo de criação de
autores para teses anônimas. Desse modo, se estivermos certos quanto ao artifício
aristotélico, a busca de autores para as teses citadas constitui uma discussão sem fim e,
na verdade, sem fundo, tanto pelo generalismo das respostas à pergunta “o que é o
tempo?”, quanto pela falta de material textual que não apenas elucide como certos
pensadores pré-socráticos responderam essa pergunta, mas também como
fundamentaram suas respostas.
No entanto, permanece até aqui latente o problema: quando se mede o tempo, é
medido o tempo ou o movimento? Aristóteles está cercando a questão, interditando
caminhos impossíveis, tais como identificar o tempo a algum movimento. O que, por
outro lado, resulta positivamente dos caminhos e descaminhos tomados no cap. 10 é
que, se o tempo não é movimento
44
, “tampouco é sem mudança”
45
, proposição que abre
o capítulo 11. Trata-se de uma mudança de horizonte na investigação aristotélica. Cabe-
lhe doravante pôr em obra o seu discurso sobre o tempo.
44
Física IV, 10, 218b 18.
45
Física IV, 11, 218b 21: Ἀλλὰ µὴν οὐδ' ἄνευ γε µεταβολῆς.
35
1.2. TEMPO, ALGO DO MOVIMENTO
Podemos dizer que a definição aristotélica do tempo começa a ser elaborada com
o início do capítulo 11 do livro IV. Ao contemplar, ao final do capítulo anterior, as três
teses correntes acerca do tempo, Aristóteles, ainda que as refute sem exceção, dá
especial atenção àquela que diz ser o tempo idêntico ao movimento. Ao que nos parece,
o caminho da doxografia exposta conduz a liberar o tempo de qualquer ente e,
principalmente, do todo (hólon) e da esfera (sphaîra). Que o movimento não é tempo,
fica evidente pelas considerações feitas acima. O interessante é, porém, fixar o tempo no
âmbito do movimento de todo e qualquer ente, tomando ainda o movimento em seu
sentido mais amplo, pois em nada deve diferir para nós, por enquanto, movimento e
mudança”
46
.
Tendo isso em vista, Aristóteles precisa dar dois passos que, embora sejam
geralmente lidos como mera transição, são de capital importância para compreender a
fixação da investigação do tempo junto ao movimento.
O primeiro deles é a fundamentação de que o tempo o é sem movimento
(218b 21 219a 1) e o segundo é a tomada do tempo como algo do movimento
(kinéseos ti, 219a 1 – 219a 10).
Vejamos o primeiro:
Mas nem [é o tempo] sem mudança. Pois quado nós mesmos em nada
mudamos o pensamento (tèn diánoian) ou não nos damos conta
(láthomen) de estarmos mudando (metabállontes), não nos parece (ou
dokeî) ter ocorrido (gegonénai) tempo. Do mesmo modo tampouco
[parece ter ocorrido tempo] aos que, reza a lenda, acordaram, em
Sardenha, após estarem no sono junto aos heróis
47
. Pois ligam
(synáptousi) ao agora anterior o agora posterior e formam um [agora],
excluindo, pela ausência de sensação (dià tèn anaisthesían), o
intervalo. Tal como, se não fosse diferente o agora, mas um e o
mesmo, não haveria tempo, assim também, dado que não se conta
de que é diferente, não parece haver o tempo intermediário (metaxy
khónos). Se não pensa ( oíesthai) haver tempo sempre que nos
acontece não separarmos (horísomen) nenhuma mudança, mas a alma
parece permanecer no uno e indivisível, a cada vez (hótan) que
46
Física IV, 10, 218b 19s: µηδὲν δὲ διαφερέτω λέγειν ἡµῖν ἐν τῷ παρόντι κίνησιν ἢ µεταβολήν.
47
Sobre a lenda aqui citada, J. Barthélemy Saint-Hilaire, Physique d'Aristote (1862), p. 232: Sardos, ilha
do mar Egeu, na qual se dizia terem sido sepultados nove filhos de Hércules. Seus corpos haviam sido
embalsamados de uma maneira fantástica. Seguia-se em peregrinação às suas tumbas, seja na esperança
de se curar de alguma doença, seja à espera de qualquer revelação útil. As pessoas que adormeciam
nesses locais não tinham, ao acordarem, qualquer sentimento do tempo transcorrido”.
36
sentimos e separamos dizemos ter ocorrido (phamèn gegonénai)
tempo, é evidente que o tempo não é sem movimento e mudança
48
.
O passo parece simples e banal: tratar-se-ia apenas de mostrar que, sempre que
há movimento, há tempo e, sempre que não movimento, não há tempo. Certo?
Errado. Justamente por parecer simples, ou por poder ser simples, ele não o é. O foco da
pergunta pelo tempo o se desloca apenas em direção ao movimento, senão,
claramente, a algo assim como um sentir (aisthánesthai) ou dar-se conta (oíesthai) do
movimento, portanto, a alguma faculdade, ainda obscura, da alma. Por conta desse
duplo deslocamento, é surpreendente que Aristóteles conclua que o tempo sem
movimento e não apenas que o é possível dar-se conta do tempo se não se der conta
do movimento.
Pretendemos não ser apressados como Bostock, que de pronto afirma: “O
argumento é inadequado e a premissa é falsa”
49
. Segundo o comentador, a premissa
“notamos que o tempo passou quando, e somente quando, notamos que algum
movimento ocorreu” é falsa porque notamos ter passado tempo mesmo quando as
coisas não mudam. Ora, não é bem isso que diz o texto aristotélico, pois também
quando mudamos o pensamento (µεταβάλλωµεν τὴν διάνοιαν) damo-nos conta do
tempo. O exemplo com o qual ele pretende evidenciar a falsidade da premissa nem
mesmo consegue justificar sua posição: deitado na cama à noite, pode-se estar ouvindo
o tique-taque de um relógio, não notando nenhuma outra mudança; então, perceberá que
algum tempo passa entre o tique e o taque. Ora, ora, é evidente que ouvindo o tique-
taque do relógio, assim como ouvindo qualquer som, nota-se o passar do tempo em uma
mudança.
No entanto, mesmo sendo inadequado o exemplo de Bostock, talvez haja aí algo
a ser pensado mais adiante, em especial sobre a sensação do movimento. De todo modo
o exemplo é fraco.
48
sica IV, 11, 218b 21 219a 1: Ἀλλὰ µὴν οὐδ' ἄνευ γε µεταβολῆς· ταν γὰρ µηδὲν αὐτο
µεταβάλλωµεν τὴν διάνοιαν λάθωµεν µεταβάλλοντες, οὐ δοκεῖ ἡµῖν γεγονέναι χρόνος, καθάπερ
οὐδὲ τοῖς ἐν Σαρδοῖ µυθολογουµένοις καθεύδειν παρὰ τοῖς ἥρωσιν, ταν ἐγερθῶσι· συνάπτουσι
γὰρ τπρότερον νῦν τὸ ὕστερον νῦν καὶ ἓν ποιοῦσιν, ἐξαιροῦντες διὰ τὴν ἀναισθησίαν τὸ µεταξύ.
ὥσπερ οὖν εἰ µὴ ἦν ἕτερον τὸ νῦν ἀλλὰ ταὐτὸ καὶ ν, οὐκ ἂν ν χρόνος, οὕτως καὶ ἐπεὶ λανθάνει
ἕτερον ν, οδοκεῖ εἶναι τὸ µεταξὺ χρόνος. εἰ δὴ τὸ µὴ οἴεσθαι εἶναι χρόνον τότε συµβαίνει µῖν,
ὅταν µρίσωµεν µηδεµίαν µεταβολήν, ἀλλ' ν ἑνὶ καὶ ἀδιαιρέτῳ φαίνηται ψυχὴ µένειν, ὅταν δ'
αἰσθώµεθα καὶ ὁρίσωµεν, τότε φαµὲν γεγονέναι χρόνον, φανερὸν ὅτι οὐκ ἔστιν ἄνευ κινήσεως καὶ
µεταβολῆς χρόνος.
49
“Aristotle’s account of time” (2006), p.135.
37
Quanto ao argumento aristotélico, trata-se antes de um problema que de uma
inadequação. Por que Aristóteles fundamenta a relação do tempo ao movimento no
âmbito da sensação? Sigamos o argumento, o que ainda não fizemos.
Ele começa negando: quando nós mesmos não mudamos o pensamento ou não
nos damos conta de estarmos mudando, não nos parece ter ocorrido tempo. Lanthánein
“não se dar conta” aparece em contraposição ao oiesthai crer, pensar em sentido
fraco que virá à baila mais adiante. O µηδὲν µεταβάλλειν τὴν διάνοιαν “em nada
mudar o pensamento” – será dito, também adiante, como µένειν ἐν ἑνὶ καὶ ἀδιαιρέτῳ
“permanecer no uno e indivisível”. Aristóteles conclui que, se nós não notamos a
mudança do pensamento, ainda que ele tenha mudado, algo não aparece, a saber: o
tempo ocorrido. Vale notar que não se trata do agora nem de algo assim como o tempo
presente, mas do tempo passado, ocorrido.
O exemplo citado, o caso dos dormentes de Sardenha, mostra tanto que quando
não se atenta ao movimento, o tempo passa despercebido, quanto que essa desatenção
ao movimento e ao tempo está intimamente ligada à manutenção do e no agora. um
certo caráter do agora que permite que dois agoras sejam tomados como um e,
igualmente, como veremos mais à frente, um agora seja tomado como dois. Manter-se
no agora, assim como manter o agora, resulta em desconsiderar ou, ao menos, fechar as
portas à apresentação do tempo, e isso na mesma medida em que o próprio tempo se
esquiva à pergunta pelo que ele é agora.
Para Goldschmidt, “é a diferença dos instantes [...] que, por oposição ao
‘instante idêntico e único’ (218b 27) e ‘indivisível’ (b 31), acarreta a ideia de
movimento, a título de passagem de um instante a outro”
50
. Essa diferença dos agoras
dá-se, porém, no seio mesmo do “agora idêntico e uno”, “indivisível”. Não há dois tipos
de agora distintos, um sempre idêntico e indivisível, e outro sempre diferente, mas há no
próprio agora esta ambivalência em que o dizê-lo ser sempre idêntico acarreta dizê-lo
múltiplo isto é, não sempre idêntico a si mesmo, mas sempre idêntico ao outro. Uma
tal duplicidade está de tal maneira entranhada no agora que consiste em um caráter seu,
sua ambiguidade. O movimento, portanto, não acarreta apenas a diferença dos agoras,
em oposição à sua identidade, ele implica, antes, a relação de tensão entre dois agoras
que, sendo o mesmo, são diferentes.
50
1982, p. 26.
38
A oposição à qual alude Goldschmidt ganha seu sentido, segundo o texto
aristotélico, no modo como nós consideramos a cada vez o agora. É, justamente, a
possibilidade de ligar os agoras, compondo um único agora, que permite que não se
perceba um tempo assim como um movimento de fato ocorrido. Longe, porém, de
criar um hiato entre o que de fato é e o que é percebido, essa possibilidade traz consigo
a superação da suposta inadequação supracitada do argumento. “Tal como, se não fosse
diferente o agora, mas um e o mesmo, não haveria tempo, assim também, dado que não
se dá conta de que é diferente, não parece haver o tempo intermédio (metaxy khrónos)”.
Segundo Aristóteles, o não se dar conta do tempo só é possível porque repete, na
alma, as condições da não ocorrência do tempo, a saber, a manutenção do agora como
sempre o mesmo. Essa manutenção aparece, no entanto, apenas como uma possibilidade
da alma e não do mundo móvel, uma vez que neste, na medida em que está em
movimento, está implicada aquela ambiguidade do agora, a tensão entre sua identidade
e sua diferença. É porque o movimento implica a diferenciação do agora junto à sua
identidade a diferenciação manifesta do anterior e do posterior –, e também porque
o tempo é, com efeito, o intervalo entre o agora anterior e o posterior, que Aristóteles
poderá concluir, e nós consigo, que não há tempo sem movimento.
O hiato entre o tempo efetivamente ocorrido e o tempo ocorrido percebido é
suplantado pelo caso dos dormentes de Sardenha. É possível que o tempo mantenha-se
encoberto, justamente quando não há sensação. Mas sentir algum movimento e, por fim,
dizer que ocorreu tempo implica que, necessariamente, tempo tenha ocorrido. Dizer é,
portanto, sair do estado uno e indivisível.
Que o tempo nem é movimento nem sem movimento é evidente.
Aceito isso, se buscamos o que é o tempo, iniciemos então pelo que
[o tempo] é do movimento, pois é de um só golpe [háma] que
sentimos o movimento e o tempo. Uma vez que, de fato, se no escuro
não somos afetados por nenhum corpo, algum movimento se na
alma, imediatamente [háma] parece também algum tempo ter
ocorrido. Mas quando algum tempo, então, parece ter ocorrido,
imediatamente também algum movimento parece ter ocorrido. Como,
com efeito, o tempo é movimento ou algo do movimento, e se não é
movimento, necessariamente ele é algo do movimento.
51
51
sica IV, 11, 219a 2-10: τι µὲν οὖν οὔτε κίνησις οὔτ' ἄνευ κινήσεως χρόνος ἐστί, φανερόν·
ληπτέον δέ, ἐπεὶ ζητοῦµεν τί ἐστιν χρόνος, ἐντεῦθεν ἀρχοµένοις, τί τῆς κινήσεώς στιν. ἅµα γὰρ
κινήσεως αἰσθανόµεθα καὶ χρόνου· καὶ γὰρ ὰν σκότος καὶ µηδὲν διὰ τοῦ σώµατος πάσχωµεν,
κίνησις δέ τις ἐν τῇ ψυχῇ ἐνῇ, εὐθὺς ἅµα δοκεῖ τις γεγονέναι καὶ χρόνος. ἀλλὰ µὴν καὶ ὅταν γε
χρόνος δοκῇ γεγονέναι τις, ἅµα καὶ κίνησίς τις δοκεῖ γεγονέναι. ὥστε ἤτοι κίνησις τῆς κινήσεώς τί
ἐστιν ὁ χρόνος. ἐπεὶ οὖν οὐ κίνησις, ἀνάγκη τῆς κινήσεώς τι εἶναι αὐτόν.
39
A relação de dependência do tempo com respeito ao movimento é, finalmente,
expressa pelo uso do genitivo: o tempo é algo do movimento (tês kinéseós ti). No
entanto, ainda não é dada nenhuma anterioridade ao movimento. Ao invés disso, o
passo é marcado pela abundância de referências à simultaneidade de tempo e
movimento e pela coimplicação da percepção de ambos. A compreensão de que o tempo
é uma condição do movimento resulta de uma possível interpretação do genitivo. O
trecho 218b 21 - 219a 10 pretende mostrar que é no seio do movimento, portanto no
domínio da física, que o tempo deve ser interrogado, ainda que nessa inserção a
psicologia enquanto estética do tempo encontre papel fundamental.
A relação expressa pelo genitivo traz à tona uma especificidade da abordagem
aristotélica do movimento no tratado do tempo. Um tempo é comum a todos os
movimentos simultâneos, não sendo próprio a nenhum deles tomado isoladamente.
Assim, embora seja perfeitamente lícito dizer que um movimento se realiza em um
determinado tempo, este tempo é o mesmo em todos os movimentos simultâneos
àquele. Portanto, quando Aristóteles diz que o tempo é algo do movimento, o
movimento que é posto em relação com o tempo não é nenhum movimento específico,
senão todos os simultâneos, pois o tempo é igualmente em todo lugar [pantakhoû] e
em tudo [pâsin]”
52
.
A crítica segundo a qual, tomado o tempo como movimento do céu, “se muitos
fossem os céus, igualmente o tempo seria o movimento de qualquer deles, bem como
[existiriam] muitos tempos simultaneamente”
53
, interdita igualmente a possibilidade de
se tomar o tempo como um aspecto de um movimento qualquer. Deve-se passar,
portanto, a uma abordagem que contemple a concomitância e a coordenação dos
movimentos, fazendo, de certa maneira, com que os movimentos concomitantes sejam
apreendidos apenas como movimento em geral, isto é, apartados de suas respectivas
determinações próprias e reduzidos a um passar de algo (ék tinos) a algo (s ti), de um
anterior a um posterior.
Por outro lado, torna-se manifesto, no passo 219a 2-10 mas não apenas ,
que a relação entre a alteridade e a identidade do agora constitui o ponto de desenlace
52
Física IV, 10, 218b 13: ὁ δὲ χρόνος ὁµοίως καὶ πανταχοῦ καὶ παρὰ πᾶσιν.
53
Física IV, 10, 218b 3-5: ἔτι δ' εἰ πλείους ἦσαν οἱ οὐρανοί, ὁµοίως ἂν ἦν ὁ χρόνος ἡ ὁτουοῦν αὐτῶν
κίνησις, ὥστε πολλοὶ χρόνοι ἅµα.
40
(lýsis) a partir do qual a aporia acerca do tempo pode transmutar-se em uma euporia. O
agora será, propriamente, a encruzilhada entre a simultaneidade e a consecutividade de
todos os movimentos ou, na economia da linguagem aristotélica, do movimento.
A constituição ambígua do agora enseja e funda o discurso aristotélico que
resultará na definição do tempo, ainda que essa constituição ainda não seja tematizada,
mas escamoteada pelo uso do advérbio atemporal háma.
1.3. O AGORA: SIMULTANEIDADE E CONTINUIDADE
O advérbio háma é correntemente traduzido por “ao mesmo tempo”. Assim, na
formulação aristotélica do princípio de não-contradição, lê-se “é impossível o mesmo
subsistir e não subsistir ao mesmo tempo no mesmo e na mesma relação”
54
. É bem
verdade que ele não consta, nos principais léxicos e dicionários, como advérbio
exclusivamente temporal, mas a maioria das entradas são referidas ao âmbito temporal,
sendo indicadas aquelas sem referência direta ao tempo (como no sentido de “junto”,
“conjuntamente”). É certo que, quando dizemos que algo ocorre ao mesmo tempo que
algo, não estamos levando em conta a compreensão do tempo como um intervalo, uma
extensão. A referência ao tempo assim entendido é, na maioria dos casos, indireta.
Trata-se, antes, de uma relação de algum modo direcionada ao âmbito temporal. O que
parece uma banalidade é, porém, na investigação acerca do tempo, fundamental.
A descrição temporal do ponto de partida e do ponto de chegada de um
movimento é o agora anterior e o agora posterior. O que é limitado por ambos os pontos
é o próprio movimento, e, no caso dos agoras, o tempo. O movimento implica que o
mesmo ora subsista e ora não subsista num mesmo subjacente. O que significa que é no
tempo, ou em um mesmo tempo, que o mesmo predicado deve poder ser e não ser
atribuído a um subjacente. É isso que nos permite delimitar um movimento e,
consequentemente, um tempo.
O háma do PDNC carece, então, ser entendido em um sentido não temporal ou
pré-temporal, justamente à medida que a possibilidade do movimento e do tempo se
abre com a impossibilidade, primordialmente instantânea da subsistência e da não-
subsistência conforme descrita pelo PDNC.
54
Metafísica IV, 3, 1005b 19s: τὸ γὰρ αὐτὸ ἅµα ὑπάρχειν τε καὶ µὑπάρχειν ἀδύνατον τῶ̣ αὐτῶ̣
καὶ κατὰ τὸ αὐτό.
41
A afirmação de Aristóteles, em 219b 10, de que “todo tempo simultâneo é o
mesmo” traz à tona essa complicada relação entre o tempo, a simultaneidade e o agora.
Ele acabara de dizer que o tempo, assim como o movimento é sempre diferente
55
, mas
junto a essa afirmação faz-se necessário advertir justamente que “todo tempo
simultâneo é o mesmo”. Essa característica do tempo que o distingue do movimento,
pois os movimentos simultâneos não são o mesmo é explicitada pelo fato de os
agoras, em certo sentido, serem o mesmo e, em outro, serem a cada vez distintos. O
tempo é o numerado no movimento quando a “alma diz serem dois os agoras, um
anterior e outro posterior”
56
.
O dar-se conta de dois agoras pode referir-se a um determinado movimento, no
entanto, implica um corte em todos os movimentos concomitantes. Portanto, do mesmo
modo como todos os entes presentes fundamentam-se, enquanto simultâneos, no agora,
assim também os movimentos que são limitados pelos mesmos agoras compartilham o
mesmo tempo. O tempo é o mesmo para todos os movimentos simultâneos. Em outras
palavras, o tempo não é senão a condição de simultaneidade dos movimentos, ele é o
aspecto de cada um dos movimentos simultâneos que permite que sejam
experimentados numa totalidade como mundo móvel. O agora, por sua vez, é o aspecto
de cada um dos entes que permite que sejam apreendidos em um todo.
Podemos dizer, previamente, que o advérbio háma remete não a um tempo mas a
um agora, isto é, à instantaneidade. Trata-se, por sua vez, do cerne da problemática em
torno do agora no início de Física IV, 10:
Nele mesmo [o agora], realmente não perece, por então ser, perecer
em outro agora é inadmissível […] Se é verdade, de fato, que não
perece no agora seguinte mas em outro, nos intermediários haveria
infinitos agoras sendo simultâneos, e isto é impossível.
57
A impossibilidade da coexistência de dois agoras dirige-nos a pensar que os
agoras devem ser sempre os mesmos. No entanto, esse caminho nos faz cair na mesma
aporia, pois tudo seria no mesmo agora, tanto o que se passou dez mil anos quanto o
que se passa hoje.
55
Física IV, 11, 219b 9s: “E tal como o movimento é sempre diferente, também o tempo [καὶ ὥσπερ
κίνησις αἰεὶ ἄλλη καὶ ἄλλη, καὶ ὁ χρόνος]”.
56
Física IV, 11, 219a 27s: δύο εἴπῃ ἡ ψυχὴ τὰ νῦν, τὸ µὲν πρότερον τὸ δ' ὕστερον.
57
Física IV, 10, 218a 16-21: ν αὑτῷ µὲν οὖν ἐφθάρθαι οὐχ οἷόν τε διὰ τὸ εἶναι τότε, ἐν ἄλλῳ δὲ νῦν
ἐφθάρθαι τὸ πρότερον νῦν οὐκ ἐνδέχεται. [...] εἴπερ οὖν ἐν τῷ ἐφεξῆς οὐκ ἔφθαρται ἀλλ' ἐν ἄλλῳ, ἐν
τοῖς µεταξὺ [τοῖς] νῦν ἀπείροις οὖσιν ἅµα ἂν εἴη· τοῦτο δὲ ἀδύνατον.
42
A impossibilidade de simultaneidade dos agoras revela o próprio agora como o
lugar da simultaneidade. Deste modo, o uso de háma como cláusula no PDNC aponta o
agora como fundo de toda relação possível entre o mesmo e o outro. O problema
seguinte é especificar essa relação para além da mera simultaneidade, pois, se nos
satisfizéssemos apenas com ela, resultaria daí uma compreensão indiferenciada dos
termos simultâneos. É, então, que se torna necessário distinguir o que é enquanto
acidente daquilo de que ele é acidente. Ser acidente de algo ou, ao inverso, suportar
um acidente – tem como condição que ambos sejam no mesmo agora, sejam háma.
O advérbio háma determina, portanto, um dos aspectos do agora implicados no
movimento. Por outro lado, o movimento não é apenas a atualidade do ente
entendendo-se por isso, à guisa de exemplo, Sócrates na ágora mas sim “a atualidade
do ente em potência”, por exemplo, Sócrates, na ágora, dirigindo-se ao mercado. É
apenas na medida em que Sócrates está em potência no mercado que dizemos realizar-
se determinado movimento, a saber, o deslocamento de Sócrates. Assim, “o mover-se
acontece quando a atividade é enquanto tal, nem antes nem depois”, pois nem o mero
fato de Sócrates estar na ágora implica deslocamento, tampouco Sócrates no mercado é
deslocamento.
Para que possamos dizer que movimento é necessário não apenas que
Sócrates e o lugar que lhe é atualmente predicado ocupem o mesmo agora, mas também
que Sócrates, permanecendo no agora, mude de lugar, gerando uma nova configuração
acidental ou predicativa de Sócrates. O agora, por um lado, mantém-se o mesmo junto
ao subjacente da mudança, por outro lado, altera-se junto aos lugares que são predicados
do subjacente. Da mesma forma como conhecemos um movimento ao apreendermos o
mesmo duplamente (Sócrates na ágora e Sócrates no mercado), também delimitamos
um tempo ao apreendermos o agora como duplo, como anterior e posterior
58
. A cisão
operada no ente pelo deslocamento e como que costurada pela predicação do deslocado,
que, sendo um isto e permanecendo o mesmo, doa cognoscibilidade ao deslocamento, é
um tanto mais profunda quando se trata do agora, pelo simples fato de aqui não se tratar
58
Física IV, 11, 220a 3-7: “Pois o tempo é o número do deslocamento, e o agora é como o deslocado, tal
como a unidade do número; e o tempo e contínuo pelo agora, e se divide segundo o agora. Pois ele
acompanha o deslocamento e o deslocado; e já que o movimento e o deslocamento são unos pelo
deslocado, que é uno [χρόνος µὲν γὰρ τῆς φορᾶς ἀριθµός, τὸ νῦν δὡς τὸ φερόµενον, οἷον µονὰς
ἀριθµοῦ. καὶ συνεχής τε δὴ ὁ χρόνος τῷ νῦν, καὶ διῄρηται κατὰ τὸ νῦν· ἀκολουθεῖ γὰρ καὶ τοῦτο τῇ
φορᾷ καὶ τῷ φεροµένῳ. καὶ γὰρ ἡ κίνησις καὶ ἡ φορὰ µία τῷ φεροµένῳ, ὅτι ἕν]”.
43
de um subjacente. A ambiguidade do deslocado não apenas acompanha o deslocamento
como permite explicá-lo a partir da cisão operada no ente pelo deslocamento e
compreendê-lo como um mesmo deslocamento. Isto significa que o deslocamento é uno
e contínuo pelo deslocado, tal como o tempo pelo agora.
Portanto, temos que, para Aristóteles, “o agora é sempre diferente em função de
mover-se o deslocado”
59
e “o tempo é contínuo pelo agora e se divide pelo agora”
60
,
mas a força móvel do deslocado não pode ser estendida ao agora, pois, se o agora não é
um deslocado, nem se trata de alteração nem de geração e corrupção. A analogia entre o
deslocado e o agora “pois o tempo é o número do movimento, e o agora é como o
deslocado” constitui um salto sobre o abismo ontológico que os separa e faz com que
se identifiquem em uma nova analogia, desta vez com o ponto.
A analogia entre o agora e o deslocado, por um lado, e o ponto, por outro,
permite tornar mais claro papel do agora como o que sustenta o tempo em sua
continuidade. A linha também se divide pelo ponto, mas suas partes, suas divisões, não
existem senão em potência. O ponto consiste, assim, no corte feito na linha, tal como o
agora no tempo. No entanto, assim como os pontos não são contínuos uns aos outros, e
a linha não é composta por pontos, também os agoras não são contínuos, e tampouco o
tempo é composto pelos agoras.
Apesar dessa analogia constituir um elemento esclarecedor do tema, ela se
enraíza em uma outra relação, textualmente anterior e extremamente polêmica, entre o
tempo, o movimento e a grandeza, relação esta centrada e estabelecida pelo verbo
“acompanhar” (akoloutheîn).
Aristóteles muitas vezes, no Tratado do tempo, lança mão dessa relação. A
primeira delas é no seguinte trecho:
Se aquilo que se move [kinoúmenon] move-se [kineîtai] de algo a
algo [ék tinos eís ti] e toda grandeza é contínua, o movimento
acompanha a grandeza [ megéthei]; pois é pelo fato [dià] de a
grandeza ser contínua que o movimento também é contínuo, e porque
[dià] o movimento, também o tempo; pois sempre parece ter ocorrido
tanto tempo quanto movimento. O anterior e posterior é primeiro no
lugar [en tópoi]. E é nele pela posição [têi thései]; se o anterior e
posterior é na grandeza, necessariamente é também no movimento,
59
Física IV, 11, 220a 14: τὸ δὲ νῦν διὰ τὸ κινεῖσθαι τὸ φερόµενον αἰεὶ ἕτερον.
60
Física IV, 11, 220a 5: συνεχής τε δὴ ὁ χρόνος τῷ νῦν, καὶ διῄρηται κατὰ τὸ νῦν.
44
sendo análogo àqueles. Mas o anterior e posterior também é no tempo,
pelo fato de se acompanharem reciprocamente sempre.
61
É inevitável, de início, identificar a relação de acompanhamento em 10-14 com a
hierarquia do anterior e posterior em 15-19: a continuidade do tempo seria explicada
pela do movimento, e a do movimento pela do lugar. Dois problemas surgem daí: (1) no
segundo texto está claro que Aristóteles se refere à grandeza como lugar, mas, se assim
tomarmos também o primeiro texto, a relação de acompanhamento referir-se-ia apenas
ao deslocamento (phorá) deixando de fora os outros tipos de movimento; além disso,
(2) permanece oculto o fundamento da relação de acompanhamento e da hierarquia
entre os três termos grandeza, movimento e tempo de modo que tampouco é claro
que o primeiro texto estabelece, de fato, uma hierarquia tal como o texto seguinte.
A relação entre o tempo e o movimento é claramente fundada pelo contexto: o
tempo é algo do movimento (kinéseos ti). Mas qual a ligação entre o movimento e a
grandeza? Podemos supor diversos aspectos nos quais se estabeleceria: o movimento se
sempre em um ente composto de matéria e forma, portanto em corpos notadamente
dotados de grandeza; o lugar em que se desdobra um deslocamento é, igualmente, uma
grandeza; o intervalo que separa o ék tinos do eís ti pode também ser pensado como
uma grandeza. Portanto, embora seja evidente que o movimento sempre acompanhe a
grandeza, nem tão claro é o fundamento desse acompanhar e, por isso, tampouco é claro
o sentido de grandeza do qual o movimento isto é, todo tipo de movimento é
necessariamente dependente. Assim, realmente, Aristóteles parece tirar um coelho da
cartola.
Mas deixemos, por enquanto, o coelho de lado para primeiro abordarmos o papel
das citadas analogias no tratado do tempo. O intento de Aristóteles é esclarecer a
continuidade do movimento e, por conseguinte, a do tempo. Para isso, ele terá de tratar
da estrutura ântero-posterior no tempo, da diferenciação dos agoras.
Com efeito, também conhecemos o tempo quando delimitamos o
movimento, pelo anterior e posterior limitantes; e, assim, dizemos ter
ocorrido tempo quando nos damos conta da sensação do anterior e
61
Física IV, 11, 219a 10-19: πεὶ δτὸ κινούµενον κινεῖται ἔκ τινος εἴς τι καὶ πᾶν µέγεθος συνεχές,
ἀκολουθεῖ τῷ µεγέθει ἡ κίνησις· διὰ γὰρ τὸ τὸ µέγεθος εἶναι συνεχὲς καὶ κίνησίς ἐστιν συνεχής, διὰ
δὲ τὴν κίνησιν χρόνος· ση γὰρ κίνησις, τοσοῦτος καὶ χρόνος αἰεὶ δοκεῖ γεγονέναι. τὸ δὴ
πρότερον καὶ ὕστερον ἐν τόπῳ πρῶτόν ἐστιν. ἐνταῦθα µὲν δὴ τθέσει· ἐπεὶ δ' ἐν τῷ µεγέθει ἔστι τὸ
πρότερον καὶ ὕστερον, νάγκη καὶ ἐν κινήσει εἶναι τπρότερον καὶ ὕστερον, ἀνάλογον τοῖς ἐκεῖ.
ἀλλὰ µὴν καὶ ν χρόνῳ ἔστιν τὸ πρότερον καὶ ὕστερον διὰ τὸ ἀκολουθεῖν ἀεὶ θατέρῳ θάτερον
αὐτῶν..
45
posterior no movimento. Limitamos [o tempo] ao tomá-los como um e
outro, e um intervalo diferente deles; pois quando pensamos os
extremos diferentes do meio, e a alma diz [serem] dois os agoras, um
anterior e outro posterior, então dizemos que isso é tempo; pois parece
ser o tempo limitado pelo agora; que se assuma isso. Por outro lado,
quando percebemos o agora como um, e não como anterior e posterior
no movimento, ou como o mesmo de algo anterior e posterior, não
parece ter ocorrido tempo, porque nenhum movimento. Quando [há] o
anterior e posterior, então dizemos [haver] tempo; pois o tempo é isto,
número do movimento segundo o anterior e posterior.
62
Aristóteles enfatiza que o agora é limite do tempo como anterior e posterior,
como as extremidades de uma linha temporal que, por sua vez, corresponde à linha do
movimento, de modo que a cada marcação feita no movimento corresponde
necessariamente um agora, e a cada parte tomada do movimento corresponde uma parte
do tempo ou um tempo. Isto mostra que, como bem o aponta Ursula Coope
63
, em 219a
10-14 a relação de acompanhamento não consiste apenas em uma mera analogia entre
termos isolados, mas de relações estruturalmente análogas” entre partes
correspondentes de termos distintos – neste caso, movimento e tempo.
O dar-se conta do movimento não advém da mera constatação de que algo é,
assim como não é pelo simples fato de dar-se o agora que tempo. É necessário que o
que é venha a ser outro, e que se perceba o mesmo ente como outro em algum aspecto,
para afirmarmos que houve algum movimento; é necessário, outrossim, que o agora se
diversifique nele mesmo para dizermos ter ocorrido tempo. O agora, portanto, enquanto
limite do tempo, é radicalmente duplo.
Quando percebemos o agora como um, e não como anterior e posterior no
movimento, ou como o mesmo de algo anterior e posterior, não parece ter ocorrido
tempo”
64
. Ora, assim como um ponto em uma linha é anterior ao segmento posterior e
posterior ao segmento anterior, também um agora poderia ser anterior e posterior sem
62
Física IV, 11, 219a 22-b1: ἀλλµὴν καὶ τὸν χρόνον γε γνωρίζοµεν ὅταν ρίσωµεν τὴν κίνησιν,
τῷ πρότερον καὶ ὕστερον ρίζοντες· καὶ τότε φαµὲν γεγονέναι χρόνον, ὅταν τοῦ προτέρου καὶ
ὑστέρου ἐν τῇ κινήσει αἴσθησιν λάβωµεν. ὁρίζοµεν δὲ τῷ ἄλλο καὶ ἄλλο ὑπολαβεῖν αὐτά, καὶ
µεταξύ τι αὐτῶν ἕτερον· ὅταν γὰρ ἕτερα τὰ ἄκρα τοῦ µέσου νοήσωµεν, καὶ δύο εἴπῃ ψυχὴ τὰ
νῦν, τὸ µὲν πρότερον τὸ δ' ὕστερον, τότε καὶ τοῦτό φα-µεν εἶναι χρόνον· τὸ γὰρ ὁριζόµενον τῷ νῦν
χρόνος εἶναι δοκεῖ· καὶ ὑποκείσθω. ὅταν µὲν οὖν ὡς ἓν τὸ νῦν αἰσθανώµεθα, καὶ µ ἤτοι ὡς
πρότερον καὶ ὕστερον ἐν τ κινήσει ὡς τὸ αὐτὸ µὲν προτέρου δὲ καὶ ὑστέρου τινός, οὐ δοκεῖ
χρόνος γεγονέναι οὐδείς, τι οὐδὲ κίνησις. ὅταν δὲ τὸ πρότερον καὶ ὕστερον, τότε λέγοµεν χρόνον·
τοῦτο γάρ ἐστιν ὁ χρόνος, ἀριθµὸς κινήσεως κατὰ τὸ πρότερον καὶ ὕστερον.
63
2005, pp. 48s.
64
Física IV, 11, 219a 30-33.: ταν µὲν οὖν ὡς ἓν τὸ νῦν αἰσθανώµεθα, καὶ µὴ ἤτοι ὡς πρότερον καὶ
ὕστερον ἐν τῇ κινήσει ὡς τὸ αὐτὸ µὲν προτέρου δὲ καὶ ὑστέρου τινός, οὐ δοκεῖ χρόνος γεγονέναι
οὐδείς.
46
deixar de ser o mesmo, sem diferenciar-se de maneira alguma, a saber, como limite de
passado e futuro, posterior a um e anterior a outro. Mas justamente isso seria considerar
o agora como dois, começo do futuro e fim do passado, e não como o mesmo de algo
anterior e posterior”. O dar-se conta do agora meramente em sua mesmidade não
implica, porém, aos olhos de Aristóteles, que um tempo tenha ocorrido.
Porque se trata, em 219a 22-b 2, de esclarecer e detalhar a definição do tempo,
cujo horizonte de ântero-posterioridade é aberto e demarcado pelos agoras, a ênfase
recai sobre a pluralidade dos agoras. No entanto, essa pluralidade dos agoras é
explicitamente fundada no agora como plural em si mesmo, o que permite que
percebamos o agora não como um, mas como anterior e posterior.
O caráter plural do agora, como uno-duplo, se faz necessário e se deixa ver tanto
no que diz respeito à sensação quanto na fundamentação da continuidade do tempo.
Primeiramente, ele condiciona o dizer e perceber o tempo ocorrido. Apesar de este ser
um tema que averiguaremos mais adiante, citemos um passo do De anima III, 2:
Tampouco é possível discernir por meios separados que o doce é
diferente do branco, mas ambos devem ser evidentes para algo único
do contrário, se eu percebesse um e tu, outro, ficaria evidente que
um é diferente do outro. Contudo, é preciso um único afirmar que são
diferentes; pois o doce é diferente do branco. Ora, é um mesmo que o
afirma. E, tal como afirma, assim também pensa e percebe. É
evidente, portanto, que não é possível discernir coisas separadas por
meios separados. Que tampouco é possível fazê-lo em tempos
separados, fica evidente a partir do que se segue. Pois, tal como é o
mesmo que afirma que o bom é diferente do mau, assim também,
quando afirma de um dos dois que é diferente, o afirma do outro; e o
quando não é acidental (quer dizer, agora afirma que são diferentes, e
não que são diferentes agora, por exemplo), mas deste modo: tanto
afirma ambos agora, como afirma que são diferentes agora, e os dois
ao mesmo tempo. Assim, é algo não separado que o afirma num
tempo não separado.
65
Poder-se-ia objetar que aqui se trata de duas qualidades o doce e o branco
apresentando-se simultaneamente à alma e que, justamente por essa razão, o
discernimento e a afirmação devem se dar num tempo único. A resposta a essa objeção
65
De anima III, 2, 426b 17-29: οὔτε δ κεχωρισµένοις ἐνδέχεται κρίνειν ὅτι ἕτερον τὸ γλυκὺ τοῦ
λευκοῦ, ἀλλὰ δεῖ ἑνί τινι ἄµφω δῆλα εἶναι οὕτω µὲν γὰρ κἂν εἰ τοµὲν ἐγὼ τοῦ δσὺ αἴσθοιο,
δῆλον ἂν εἴη ὅτι ἕτερα ἀλλήλων, δεῖ δτὸ ἓν λέγειν τι ἕτερον· ἕτερον γὰρ τὸ γλυκὺ τολευκοῦ·
λέγει ἄρα τὸ αὐτό· ὥστε ὡς λέγει, οὕτω καὶ νοεῖ καὶ αἰσθάνεται – ὅτι µὲν οὖν οὐχ οἷόν τε
κεχωρισµένοις κρίνειν τκεχωρισµένα, δῆλον· ὅτι δ' οὐδ' ἐν κεχωρισµένῳ χρόνῳ, ντεῦθεν. ὥσπερ
γὰρ τὸ αὐτὸ λέγει τι ἕτερον τὸ ἀγαθὸν καὶ τὸ κακόν, οὕτω καὶ ὅτε θάτερον λέγει ὅτι ἕτερον καὶ
θάτερον (οὐ κατὰ συµβεβηκὸς τὸ ὅτε, λέγω δ', οἷον νῦν λέγω ὅτι ἕτερον, οµέντοι ὅτι νῦν τερον,
ἀλλ' οὕτω λέγει, καὶ νῦν καὶ ὅτι νῦν)· ἅµα ἄρα. ὥστε ἀχώριστον καὶ ἐν ἀχωρίστῳ χρόνῳ.
47
encontra-se, porém, no próprio texto: “agora afirma que são diferentes e o que são
diferentes agora”, ou seja, o agora determina o discernimento e a afirmação, mas não a
diferença bom e mau, bem como branco e doce, não são ora diferentes ora não isso
que diz Aristóteles em “e o quando não é acidental”). Da mesma maneira, “quando a
alma diz serem dois os agoras, um anterior e um posterior”, ela o faz em um tempo não
separado. Isto só é possível, por sua vez, porque a alma mantém-se junto ao agora, ainda
que, ao operar a delimitação de um movimento e de seu respectivo tempo, ela descuide
do agora mesmo que habita. Mas é este seu agora que lhe permite discernir, ordenar e
afirmar o anterior e posterior.
Outro importante papel do agora é manter a continuidade do tempo: “o tempo é
contínuo pelo agora e se divide segundo o agora”
66
, ele figura como o laço de
continuidade do tempo, ligando e limitando o tempo passado ao futuro.. Trata-se aqui
não dos extremos de um intervalo, mas do princípio do tempo futuro potencialmente
infinito e do fim do tempo passado também potencialmente infinito. Nesse sentido, o
agora é como um orifício por onde passasse a linha do tempo, é ele mesmo uma
passagem do tempo, ainda que seja sempre diferente, “em função de mover-se o
deslocado”
67
.
Portanto, de certo modo, também o agora é móvel, acompanhando o deslocado.
Não é tal como, numa linha, um ponto parado (menoúse stigmé). Pois este divide em
atualidade a linha, sendo necessário, ao considerá-lo deste modo, um repouso. “Mas
quando alguém considera [o ponto] assim tomado, servindo-se de um como dois, é
necessário parar [hístasthai], se o mesmo ponto é começo e fim”
68
. Esta paragem não
convém ao deslocado, pois um momento, um corte, do movimento não deve implicar o
repouso do deslocado, o que significaria a aniquilação do movimento e do tempo. Isto
ocorreria caso o deslocado dividisse em atualidade o deslocamento, porém ele o faz
apenas em potência. Do mesmo modo, o agora divide em potência o tempo
69
. Mas, se
potencialmente, ele divide, sua função fundamental é ligar o passado e o futuro,
tornando, a cada vez (pote), uno o tempo.
66
Física IV, 11, 220a 5: καὶ συνεχής τε δὴ ὁ χρόνος τῷ νῦν, καὶ διῄρηται κατὰ τὸ νῦν.
67
Física IV, 11, 220a 14: τὸ δὲ νῦν διὰ τὸ κινεῖσθαι τὸ φερόµενον αἰεὶ ἕτερον.
68
sica IV, 11, 220a 12s.: ἀλλ' ὅταν µὲν οὕτω λαµβάνῃ τις ὡς δυσὶ χρώµενος τῇ µιᾷ, ἀνάγκη
ἵστασθαι, εἰ ἔσται ἀρχὴ καὶ τελευτὴ ἡ αὐτὴ στιγµή.
69
Física IV, 13, 222a 18.
48
A divisão que o agora potencialmente opera no tempo tem seu fundamento no
caráter reunidor do agora presente. “Aqui, não se trata do tempo no seu devir
indiferenciado, mas de um tempo estruturado, e estruturado a partir do instante presente.
O qual determina não apenas o antes e depois, mas, mais precisamente, o passado e o
futuro”
70
. Intrínseca ao agora presente encontra-se, assim, a ordem (táxis) do tempo. O
agora, desdobrando-se em anterior e posterior, abre o horizonte temporal. E isso não
ocorre por acidente, mas é próprio do agora esse salto afora (ékstasis): tal como não
haveria agora se não houvesse tempo, tampouco haveria tempo sem o agora
71
. É dessa
maneira que o discurso sobre o anterior e posterior como extremos de um tempo deve
remeter-se, necessariamente, ao agora presente como duplo, como fundante daquela
estrutura ântero-posterior, isto é, como ordem.
Essa ordem, que diz respeito tanto ao tempo quanto ao movimento, é, porém,
como já apontamos, aparentemente fundada por Aristóteles no lugar e, para sermos mais
exatos, na posição (en thései). A não ser que se apele à doutrina aristotélica da
teleologia tópica que, além de ser muito estranha a nós, modernos, não é evocada em
momento algum do Tratado do Tempo não é de fácil compreensão a hierarquia do
anterior e posterior proposta pelo Estagirita. Basta pensarmos que um móvel pode
deslocar-se tanto de A a B quanto de B até A para mostrarmos que as posições,
tomadas nelas mesmas isto é, deixando-se de lado o movimento tópico não
implicariam uma estrutura ântero-posterior. É apenas com o movimento e, junto ao
movimento, com o tempo – que se instaura uma tal ordem.
Segundo Victor Goldschmidt, no entanto, o uso aristotélico da relação de
acompanhamento entre grandeza, movimento e tempo o teria a função de
fundamentar os dois últimos no primeiro, tampouco reduzir o tempo à grandeza
espacial, mas apenas evidenciar “como um conceito refrata através de diferentes
categorias ou ainda, como aqui [219a 11ss], através de fenômenos que dizem respeito a
uma mesma categoria (da quantidade)”
72
. Goldschmidt pensa que, pelo fato de o
deslocamento ser o movimento fundamental – como Aristóteles diversas vezes afirma –,
nada mais natural que tomar a grandeza espacial como paradigma da quantificação do
70
Goldschmidt (1982), p.98.
71
Física IV, 11, 219b 33.
72
1982, p. 33.
49
movimento e, por consequência, o próprio deslocamento como base para a investigação
do tempo.
Tal é também a leitura de Torstrik, afirmando que
Aristóteles trouxe não somente o tempo de volta ao movimento, mas
também este de volta a um outro, no qual ele será medido, a saber, o
espaço percorrido. Pois, como resulta posteriormente manifesto,
Aristóteles entende por movimento, aqui, o movimento local, phorá,
isto é, seu movimento circular; mas ele pensa, com isso, a revolução
diária do céu e seu eixo
73
.
Ursula Coope
74
, por sua vez, aponta duas razões para duvidarmos de que
Aristóteles esteja se referindo imediatamente ao deslocamento: a primeira é que o
argumento em questão segue imediatamente àquele acerca da co-dependência da
percepção do tempo e do movimento, em que kínesis é usado em sentido amplo; a
segunda consiste em uma passagem sobre o infinito, em que grandeza, movimento e
tempo são relacionados, onde kínesis abarca explicitamente a alteração (alloíosis) e o
crescimento (áuxesis)
75
.
Entretanto, se Aristóteles não estiver, de fato, privilegiando o deslocamento e,
em especial, o deslocamento circular –, mas referindo-se ao movimento em geral, e se
por grandeza (mégethos) devemos entender o espaço percorrido pelo movimento, é
necessário esclarecer a relação entre essa grandeza espacial e movimentos tais como a
alteração e o crescimento, que a acompanhariam.
Uma possível solução levantada por Coope é a explicação, em Física VI
76
, da
infinita divisibilidade qualitativa do movimento a partir da infinita divisibilidade do ente
móvel (kinoûmenon). O exemplo dado pela autora é o da mudança da cor do mar: por
ser o espelho d'água infinitamente divisível, a mudança da cor do mar se espraia de
modo infinitamente divisível ao longo de sua superfície
77
. “Se isso está certo, então essa
mudança de cor depende da estrutura da grandeza espacial em um modo indireto”
78
. No
entanto, não apenas a mudança de cor dependeria de modo indireto da grandeza
espacial, senão que a grandeza em questão é o próprio ente móvel, não sendo o mesmo
73
“Über die Abhandlung des Aristoteles von der Zeit, Phys. Delta 10 ff.” (1867), p. 446.
74
2005, pp. 51s.
75
Física IV, 7, 207b 21-25.
76
Física VI, 4, 235a 17s.
77
2005, p. 52.
78
Idem, pp. 52s.
50
caso do deslocamento, cuja grandeza infinitamente divisível é a do trajeto e não a do
deslocado.
Por outro lado, podemos pensar que o emprego de mégethos, em 219 a10-14,
refere-se à grandeza em geral, seja o trajeto percorrido pelo deslocado (pherómenon)
seja como um quase sinônimo de kinoûmenon. Contaria desse último sentido o uso que
Aristóteles de gethos no primeiro capítulo de De anima III, que versa sobre a
sensação comum.
Em 425a 14, temos: “Pois tudo isso [os sensíveis comuns] percebemos por meio
do movimento; por exemplo, a grandeza por meio do movimento (e assim também a
figura, pois a figura [skhêma] é uma grandeza)”. Embora seja extremamente polêmica a
afirmação de que “a figura é uma grandeza”, ao nosso propósito convém deixar, por
enquanto, de lado a discussão sobre essa redução e compreender como “toda figura
possui uma grandeza e toda grandeza possui uma figura”, o que significa que ambas se
acompanham mútua e necessariamente. Trata-se da descrição dos caracteres dos entes
sensíveis tais como se apresentam à faculdade sensitiva em sua unidade.
Mais a frente, em 425b 6: “pois se houvesse somente a visão, e sendo esta a do
branco, menos facilmente perceberíamos o sensível comum e pareceria que todos o o
mesmo, por se acompanharem mútua e simultaneamente a cor e a grandeza”. Aristóteles
aqui se refere à grandeza como aquilo que é colorido e o colorido como o que possui
uma grandeza. Tal como no trecho anterior, Aristóteles mantém-se na relação dos
atributos sensíveis dos entes compostos, sendo que o contexto é bastante semelhante
àquele que precede, na Física, a explicação da continuidade do movimento pela da
grandeza: a percepção do movimento e do tempo.
Assim, Aristóteles poderia muito bem afirmar que o movimento acompanha a
grandeza de muitas maneiras, seja considerando-se o trajeto linear do movimento, seja
considerando-se o ente móvel mesmo. De fato, essas duas vias serão exploradas pelo
Estagirita no Tratado do Tempo
79
.
No entanto, em 219a 10, mégethos não parece referir-se ao ente móvel pela
própria construção do argumento:
79
Física IV, 11, 219b 33 – 220a 18.
51
Se aquilo que se move [ kinoúmenon] move-se [kineîtai] de algo a
algo [ék tinos eís ti] e toda grandeza é contínua, o movimento
acompanha a grandeza [tôi megéthei]
80
.
É certo que o que se move serve como base para o argumento, mas ali a
grandeza o se refere a ele, senão à dimensão limitada pelo ék tinos eís ti. Apenas
quando existe, de fato, uma extensão (220 a11: mêkos) contínua e contínua porque
infinitamente divisível –, podemos dizer que a atualidade do ente é movimento, pois
impõem-se um “já não mais” e um “ainda não”. Quando não há tal intervalo e a
atividade encontra-se já, a cada vez, acabada não movimento, como no caso do ver
(horân), do compreender (phroneîn) e do inteligir (noeîn)
81
.
É a extensão entre o “já não mais” e o “ainda não”, passível de ser pensada como
uma linha o que Aristóteles, de fato fará – que fundamenta a continuidade do
movimento. No entanto, essa extensão será uma grandeza apenas nos casos em que o
movimento e a mudança forem em uma grandeza e “a grandeza na qual muda aquilo
que muda é continua”
82
. Trata-se de mudanças entre contínuos, a saber, deslocamento,
crescimento e definhamento
83
.
No caso do movimento entre contrários (alloíosis) e contraditórios (génesis e
phtorá) o intervalo ék tinos s ti não constitui propriamente uma grandeza, ainda que
envolva uma grandeza na medida em que todo ente particular (tóde ti) é dotado de
grandeza. Assim mesmo, a passagem de algo a algo, nesses casos, será infinitamente
divisível e, portanto, contínua, não pela grandeza, mas pelo tempo:
E o que foi dito é ainda mais claro no que diz respeito à grandeza, por
ser a grandeza em que muda aquilo que muda contínua. Pois
[imaginemos] que algo tenha mudado de C para D. Logo, se CD é
indivisível, o que é sem partes será contíguo a algo sem partes; isso é,
porém, impossível. É necessário o intervalo ser uma grandeza e
infinitamente divisível. De modo que muda antes de cada grandeza;
necessariamente, então, tudo aquilo que mudou muda antes de ter
mudado. Pois a mesma demonstração se aplica às mudanças que se
dão no que é não-contínuo. Como nas que têm lugar nos contrários e
nos contraditórios: pois tomaremos o tempo em que mudou. E
novamente diremos que é infinitamente divisível e que muda antes de
ter mudado.
84
80
sica IV, 11, 219a 10s: ἐπεὶ δ τὸ κινούµενον κινεῖται ἔκ τινος εἴς τι καὶ πᾶν µέγεθος συνεχές,
ἀκολουθεῖ τῷ µεγέθει.
81
Metafísica IX, 6, 1048b 22.
82
Física VI, 6, 237a 29: τὸ µέγεθος ἐν ᾧ µεταβάλλει τὸ µεταβάλλον. Cf. Margel (1999), p. 106.
83
Física VI, 5, 236b 8-17.
84
Física VI. 6, 237a 28-b3: ἔτι δ' ἐπὶ τοῦ µεγέθους φανερώτερον τλεχθὲν διὰ τὸ συνεχὲς εἶναι τὸ
µέγεθος ἐν µεταβάλλει τὸ µεταβάλλον. ἔστω γάρ τι µεταβεβληκὸς ἐκ τοῦ Γ εἰς τΔ. οὐκοῦν εἰ
52
Pelo fato de, ao final do trecho acima, estender o exemplo aos demais tipos de
movimento, fica evidente que, de início, se está tratando do deslocamento. A grandeza a
que se refere Aristóteles é, portanto, o espaço percorrido, enquanto C e D o posições.
Entre C e D há infinitas posições que poderiam ser ocupadas pelo deslocado. No
entanto, o deslocado o as ocupa propriamente, mas apenas passa por elas, pois se as
ocupasse tal como ora ocupa C ora D, resultaria em uma parada. C e D marcam
justamente as posições de parada do deslocado: o primeiro é o que antecede o
deslocamento, enquanto D é onde o deslocamento finda. Neles não movimento, mas
sim no intervalo CD. Deste modo, nem o deslocamento é um salto de posição a posição,
nem a grandeza é composta por pontos ou posições. Consequentemente, não
tampouco uma parte de CD em que tenha havido um primeiro movimento, pois, sendo a
grandeza infinitamente divisível, entre C e qualquer outra posição um intervalo. Não
há, assim, um começo do movimento, e tampouco do tempo. Como aponta Aristóteles,
as mesmas considerações que se aplicam à continuidade do deslocamento em relação à
grandeza percorrida devem ser aplicadas aos outros tipos de movimento, onde CD deve
significar contrários ou contraditórios; e isso significa que CD é um exemplo do
intervalo ék ti eís tinos necessariamente implicado em todo movimento. Os limites desse
intervalo são o anterior e posterior no movimento.
Apesar da clareza no trato da continuidade do movimento em Física VI,
devemos questionar a possível aplicação dessas considerações ao tempo. De início,
podemos pensar, com Aristóteles, que, tal como CD é um movimento cujos limites são
as posições C e D, um tempo CD cujos limites são os agoras C e D. Um movimento
admite limites justamente porque neles o ente não mais se encontra em movimento. Por
isso, dissemos que entre C e D infinitas posições em potência, pois se o móvel
ocupasse alguma dessas posições possíveis isso implicaria uma parada no movimento e,
portanto, não se trataria do movimento CD, mas do movimento, por exemplo, C
1
C
2.
.
Aristóteles tem em vista, portanto, não o movimento em geral, mas um movimento.
Uma investigação sobre o tempo não pode, porém, abordá-lo apenas na relação com um
µὲν ἀδιαίρετόν ἐστι τ ΓΔ, ἀµερὲς ἀµεροῦς ἔσται ἐχόµενον· ἐπεὶ δὲ τοῦτο ἀδύνατον, ἀνάγκη
µέγεθος εἶναι τὸ µεταξὺ καὶ εἰς ἄπειρα διαιρετόν· ὥστ' εἰς ἐκεῖνα µεταβάλλει πρότερον. ἀνάγκη ἄρα
πᾶν τὸ µεταβεβληκὸς µεταβάλλειν πρότερον. γὰρ αὐτὴ ἀπόδειξις καὶ ἐν τοῖς µὴ συνεχέσιν, οἷον
ἔν τε τοῖς ἐναντίοις καὶ ἐν ἀντιφάσει· ληψόµεθα γὰρ τὸν χρόνον ἐν µεταβέβληκεν, καὶ πάλιν
ταὐτὰ ἐροῦµεν.
53
movimento a cada vez, pois “o tempo é o mesmo em tudo e em todo canto” e “todo
tempo simultâneo é o mesmo”.
O fato de todo tempo simultâneo ser o mesmo implica, por um lado, que todos
movimentos simultâneos compartilham o mesmo tempo, mas implica também que,
demarcado um tempo, muitos movimentos ocupam esse tempo ainda que não se trate de
movimentos unos e completos. Consequentemente, a diferença que para o
movimento entre seus pontos limítrofes o ponto de partida e o de chegada, o ék ti e o
eís tinos e a os infinitos pontos pelos quais um movimento pode se dividir, pode ser
aplicada ao tempo com respeito aos agoras apenas quando nos detemos em um
movimento. Isso fica claro se deslocarmos o pensamento de um movimento específico
para um tempo específico: os agoras limítrofes desse tempo não podem implicar uma
parada, visto que ao menos algum movimento ainda pode não ter findado no agora
posterior, assim como o tempo mesmo o finda no agora posterior. Os agoras
limítrofes de um tempo são, portanto, como os agoras que podem ser marcados ao longo
do intervalo que constitui esse tempo.
1.4. NÚMERO DO MOVIMENTO SEGUNDO O ANTERIOR E
POSTERIOR
O tempo o é movimento, mas algo do movimento. Se um tempo é o mesmo
para movimentos simultâneos e independentes, é necessário que um tempo o seja
próprio a apenas um movimento. A determinação do que vem a ser esse algo que o
tempo é do movimento aporta ao tratado de um modo um tanto quanto súbito. Ela
aparece logo após a discussão acerca da percepção do movimento, do tempo e dos
agoras. O tempo é número do movimento segundo o anterior e posterior. Aquele algo é,
portanto, número, e é por ele que o tempo deve se deixar pensar para além de um
movimento.
Imediatamente depois da definição do tempo, ela é esclarecida pela primeira
vez:
Assim, o tempo não é movimento senão na medida em que o
movimento possui número; sinal disso é que discernimos o maior e o
menor pelo número, enquanto, com respeito ao movimento,
discernimos o maior e o menor pelo tempo: assim, o tempo é um
número. Se o número é ambíguo (pois se diz número tanto o
54
numerado quanto o numerável, mas também aquilo com o quê
numeramos), o tempo é o numerado e não aquilo com o quê
numeramos. Aquilo com o que numeramos é diferente do numerado.
85
Diz-se número tanto do que usamos para numerar (hô arithmoûmen, tratando-se,
portanto, de um sentido instrumental do número) quanto do que é numerado (
arithmoúmenon) e do que pode ser numerado ( arithmetón). Comecemos, portanto,
pela ambiguidade do número para podermos compreender em que sentido o tempo é o
numerado do movimento.
O número numerante é algo independente da pluralidade de entes que ele
numera. Assim, sendo um instrumento, é um terceiro, separado tanto daquele que
numera quanto daquilo que se deixa numerar. Além disso, em Categorias 6, 4 b25s,
Aristóteles diz “as partes de um número não possuem limite comum em que se
reúnam”, o que significa que na enumeração as unidades numerantes são postas em em
correspondência com o que deve ser numerado enquanto discreto. Mesmo que a
pluralidade seja de contínuos, por exemplo, uma pluralidade de linhas, ela pode ser
numerada de modo discreto. O que se supõe assim é que a pluralidade não seja
contínua, independentemente de cada item ser ou não contínuo. Então, o número assim
entendido numera do mesmo modo linhas, pontos, homens, cavalos e o que quer seja,
mantendo-se ele próprio o mesmo: “dois homens” é diferente de dois pontos”, mas o
dois é o mesmo. Por isso, alguns comentadores
86
costumam referir-se ao número
segundo esse sentido como número abstrato, contrapondo-o ao número numerado, dito
concreto.
Esse último é entendido como concreto por estar intimamente ligado ao que está
sendo numerado. “O número é um e o mesmo de cem cavalos e de cem homens, embora
aquilo de que é número seja diferente, os cavalos e os homens”
87
. O número que é dito
ser um e o mesmo é o número abstrato, enquanto cem cavalos” e “cem homens” são
números concretos cuja unidade é, em um caso, um cavalo e, no outro, um homem.
85
Física IV, 11, 219b 2-9: οὐκ ἄρα κίνησις χρόνος ἀλλ' ἀριθµὸν ἔχει κίνησις. σηµεῖον δέ· τὸ µὲν
γὰρ πλεῖον καὶ ἔλαττον κρίνοµεν ἀριθµῷ, κίνησιν δπλείω καὶ ἐλάττω χρόνῳ· ἀριθµὸς ἄρα τις
χρόνος. ἐπεὶ δ' ἀριθµός ἐστι διχῶς (καὶ γὰρ τὸ ἀριθµούµενον καὶ τὸ ἀριθµητὸν ἀριθµὸν λέγοµεν, καὶ
ἀριθµοῦµεν), δὴ χρόνος ἐστὶν τὸ ἀριθµούµενον καὶ οὐχ ἀριθµοῦµεν. ἔστι δ' ἕτερον
ἀριθµοῦµεν καὶ τὸ ἀριθµούµενον.
86
Por exemplo, E. Hussey, Aristotle’s Physics Books III and IV, Translated with an introduction and
notes. Oxford: 1993, p. 151 apud Coope (2005), p.92, e Rey Puente (2001), p.164.
87
Física IV, 12, 220b 10-12: τὰ γὰρ νῦν ἕτερα. ἔστι δὲ ἀριθµὸς εἷς µὲν καὶ αὐτὸς τῶν ἑκατὸν
ἵππων καὶ ὁ τῶν ἑκατὸν ἀνθρώπων, ὧν δ' ἀριθµός, ἕτερα, οἱ ἵπποι τῶν ἀνθρώπων..
55
No entanto, feita a distinção entre número numerante e número numerado, é
preciso compreender que o número numerado é algo que se encontra de tal forma junto
àquilo que se numera que numerando um, numera-se, em verdade, o outro. No caso do
tempo isso é ainda mais claro que no exemplo dos “cem cavalos” e dos “cem homens”,
pois, ao numerar o tempo, o que se está numerando é o movimento. Bem podemos
afirmar que esse é um dos motivos pelos quais, na doxografia exposta por Aristóteles
em Física IV, 10, vê-se claramente a confusão entre tempo e movimento por parte de
seus antecessores. A tese de que o tempo é um movimento será, o à toa, utilizada por
Aristóteles para avançar em sua investigação. Começando pelas vias da percepção,
Aristóteles chegará à definição do tempo e, apenas então, acreditará ter desfeito o
equívoco: “o tempo não é movimento senão na medida em que o movimento possui
número”
88
. A sombra que se move conforme o sol é tal como o agora que se altera nele
mesmo, apontando tanto o movimento quanto o tempo indistintamente. Por isso, não
apenas medimos o movimento pelo tempo, mas também o tempo pelo movimento, em
razão de se delimitarem reciprocamente”
89
.
Entretanto, não basta discernir o número numerante do número numerado para
se esclarecer a definição do tempo. O tempo é o que é numerado do movimento segundo
o anterior e posterior. Portanto, é preciso discernir o que significa ser numerado
segundo o anterior e posterior. É neste passo que o agora, como estrutura anterior-
posterior, passa a ser propriamente incorporado pela definição do tempo.
A distinção prévia entre número numerante e número numerado não parece ser
tal como argumenta Coope
90
ao dizer que entre “aqueles que são apenas contábeis e
aqueles que são contábeis e com os quais contamos”. As expressões utilizadas por
Aristóteles nessa divisão arithmoúmenon, arithmetón, arithmoûmen são
implicam diretamente o verbo arithmeîn, sendo aspectos ou elementos da atividade de
numerar. Nesse sentido, todo ato de numerar comporta um numerável (arithmetón) que
é numerado (arithmoúmenon) pelo numerante (hô arithmoûmen).
Assim, pensando o tempo no horizonte do ato de numerar, torna-se mais clara a
relação entre a irrupção de sua definição em 219 b1 e o trecho que a antecede
88
Física IV, 11, 219b 2s: οὐκ ἄρα κίνησις ὁ χρόνος ἀλλ' ᾗ ἀριθµὸν ἔχει ἡ κίνησις.
89
Física IV, 12, 220b 14s: οὐ µόνον δτὴν κίνησιν τῷ χρόνῳ µετροῦµεν, ἀλλὰ καὶ τῇ κινήσει τὸν
χρόνον διὰ τὸ ὁρίζεσθαι ὑπ' ἀλλήλων·.
90
2005, p. 89.
56
imediatamente. Tratava-se, recordemos, da atividade perceptiva da alma com respeito
ao tempo e ao movimento, que passa pelo perceber e tomar (lambánein) o agora como
dois e não como um e assim dizemos ter ocorrido tempo quando nos damos conta da
percepção do anterior e posterior no movimento”. Investigaremos em um capítulo
posterior em que medida a percepção do tempo e do agora se confunde com sua
numeração. Por enquanto, trataremos de nos concentrar na definição do tempo.
Embora não concordemos com a interpretação que faz Coope da distinção entre
numerante e numerado, sua leitura da definição do tempo é deveras interessante. Ao
discordar que o número possua o sentido de medida (métron), ela propõe que o que
está em jogo na definição não é a quantificação do tempo nem do movimento – e menos
ainda dos agoras mas a marcação dos agoras em uma ordem segundo a estrutura
anterior-posterior. A posição da autora é, explicitamente, conforme à de Sorabji,
segundo o qual “o tempo é o aspecto contável da mudança, porque nós contamos
períodos, e nós o fazemos quando contamos as etapas instantâneas que limitam os
períodos”
91
.
No entanto, Sorabji aponta dois importantes problemas que acompanham sua
leitura. O primeiro é que o tempo não é o único aspecto numerável da mudança ou do
movimento. Além dele, são numerados os agoras, as etapas do movimento e, no caso do
deslocamento, as posições. Outro problema seria a circularidade da definição que diz o
que é o tempo a partir da noção de anterior e posterior, ela mesma estritamente
vinculada ao tempo. Ainda que se recorresse à prioridade da ântero-posterioridade no
lugar, como relação posições, essa relação só poderia ser pensada a partir do movimento
assim, A é anterior a B porque o movimento é de A a B, caso contrário, B seria
posterior a A – e, consequentemente, a partir do tempo desse movimento.
Quanto ao primeiro problema, Sorabji afirma que “Aristóteles deveria adicionar
uma cláusula para excluir os candidatos rivais”. A possível cláusula não é, porém,
esboçada pelo comentador e é deveras difícil, senão impossível, extrair do texto
aristotélico uma tal restrição, pois a única vez em que o discurso sobre o que é o tempo
assume um caráter positivo é na sua definição, o que, por sua vez, nos leva à sua
suposta circularidade e, novamente, à reciprocidade entre tempo e movimento.
Se nosso propósito é saber quantas coisas de certo tipo há, a ordem em
que a contamos é insignificante. […] Contando agoras, porém, a
91
2006, p. 86.
57
ordem é de toda importância. Não importa quantos agoras nós
contamos; o que importa é que contamos uma série de agoras numa
ordem definida
92
.
Coope é extremamente clara e somos obrigados a concordar com ela. No
entanto, mesmo segundo sua leitura, não há nada que diferencie o tempo do movimento.
O que não é uma falha de sua interpretação, mas um ponto crucial ou um silêncio
crucial do texto aristotélico. O único fator que parece diferenciá-los é que o
movimento é rápido (takhýs) ou lento (bradýs), o tempo não (218b13): o tempo é muito
(polýs) ou pouco (olígos), grande (makrós) ou pequeno (brakhýs). Daí que o tempo seja
número do movimento ele é um muito ou pouco relativo ao movimento e também
sua medida como grande ou pequeno. Mas rápido e lento são determinações que
incidem apenas sobre o movimento, porque dizem respeito ao tempo em que ele se
“rápido é o que se move muito em pouco, lento é o que em muito se move pouco”
93
.
O fator pido-lento é usado, em 218b 13-21, como sinal de que o tempo não é
movimento, voltando a aparecer em 220a 32-b5, onde Aristóteles afirma que é uma
determinação do tempo por não ser tampouco uma determinação do número, “na
medida em que não numeramos nada rápido ou lento”. Em ambos os casos, porém,
temos somente asserções que negam algo do tempo.
1.5. O TEMPO COMO MEDIDA DO MOVIMENTO
Além de tratar e definir o tempo como número, Aristóteles afirma que o tempo é
também medida do movimento, e que o movimento é, do mesmo modo, medida do
tempo. Uma primeira questão é a pertinência ou não do tempo como medida do
movimento à sua definição, isto é, se Aristóteles usa, na definição do tempo, o termo
arithmós com o sentido de métron.
Adotamos, acima, a posição de Sorabji e Coope, que afirmam que, embora ser
número do movimento implique medi-lo, Aristóteles está deveras engajado, ao definir
de tal modo o tempo, com a ordem e a estrutura ântero-posterior. Contra essa posição
podemos citar o comentário de Julia Annas, segundo a qual
a análise aristotélica do tempo como um tipo de número pode ser
melhor entendida como uma tentativa de produzir uma teoria do
tempo que seja anti-platonista, aproximando o sentido do conceito [de
92
Coope, 2005, p. 91.
93
Física IV, 11, 219b 15-17: ταχὺ µὲν τὸ ἐν ὀλίγῳ πολὺ κινούµενον, βραδὺ δὲ τὸ ἐν πολλῷ ὀλίγον.
58
tempo] às atividades humanas de marcar o tempo [timing] das
coisas
94
.
A comentadora explora as relações entre Física IV 10-14 e os livros X, XIII e
XIV da Metafísica, tomando como pano de fundo do Tratado do Tempo, a resposta
aristotélica à tese platônica da existência separada dos objetos matemáticos. A tese
aristotélica de que o tempo, tal como o número, não é um ente separado e independente
das coisas funda-se não apenas na sua definição como número, mas especialmente no
fato, apontado por Aristóteles antes da própria definição, dele ser algo dependente do
movimento. O que diferencia, em verdade, o tratamento de Annas é tomar a medição do
movimento como um aspecto definitório do tempo, visto ser inegável que o tempo é
capaz disso Aristóteles o afirma explicitamente em 220b 32 e nenhum comentador
nega essa possibilidade.
No entanto, a medida é a mesma da linha AB e da linha BA, e o tempo é o
mesmo do movimento de A a B e de B a A. Se, portanto, ser “número do movimento
segundo o anterior e posterior” não apenas implica mas equivale a ser medida do
movimento, resulta que a estrutura ântero-posterior aparece como um adendo quase
desnecessário. Isso simplesmente não é verificado no Tratado do Tempo, onde
Aristóteles enorme papel ao agora e à supracitada estrutura, embora, de fato, Annas
pouco se atenha a essa parte da definição.
Quando numeramos o tempo, numeramos o movimento segundo o anterior e
posterior. Esse numerar mostra-se como um simples dar-se conta de que algo é anterior
a algo. Diferenciando dois agoras, delimitamos o tempo intermédio e o movimento – ou
os movimentos que se nesse intervalo. O que assim é delimitado é também uma
medida. Se os limites são tanto do tempo os agoras quanto do movimento suas
etapas instantâneas então tanto o tempo quanto o movimento são medidas que se
acompanham. Portanto, “não apenas medimos o movimento pelo tempo, mas também o
tempo pelo movimento”
95
.
Em Física IV 14, essa reciprocidade será retomada:
se […] cada coisa é numerada por algo uno e do mesmo gênero, as
unidades pela unidade, os cavalos pelo cavalo, assim também o tempo
por algum tempo delimitado, então, o tempo, como dissemos,
94
“Aristotle, number and time” (1975), p. 107.
95
Física IV, 12, 220b 14s: οὐ µόνον δτὴν κίνησιν τῷ χρόνῳ µετροῦµεν, ἀλλὰ καὶ τῇ κινήσει τὸν
χρόνον.
59
numerado] pelo movimento e o movimento pelo tempo assim
porque a partir de um movimento delimitado pelo tempo que é medida
tanto a quantidade do movimento quanto a do tempo)
96.
O contexto é ambíguo por duas razões: primeiro porque Aristóteles usa
indistintamente o “medir” e o numerar”; além disso, o Estagirita conclui, partindo da
premissa de que a unidade numerante deve pertencer ao mesmo gênero do numerado,
que o tempo é numerado por algo de outro gênero a saber, pelo movimento. Apesar
dessa ambiguidade, mantém-se a lição da reciprocidade de tempo e movimento com
respeito à medida.
No entanto, essa reciprocidade possui certa hierarquia que, paradoxalmente,
submete a medida do tempo a um tipo específico de movimento, a saber, ao movimento
circular uniforme dos entes supra-lunares. A periphorá representa um salto para além
do âmbito sub-lunar, em que o tempo e o movimento se equivalem recíproca e
indiferentemente como medida. Se, porém, o movimento circular perfeito a medida
do tempo e, consequentemente, a cognoscibilidade de um tempo, bem como dos
movimentos sub-lunares, não é recorrendo à periphorá que se deve explicar a existência
e a realidade do tempo. Portanto, apesar de dar a conhecer a medida do tempo e dos
outros movimentos, o movimento circular não a conhecer o próprio tempo. Porque é
número do movimento segundo o anterior e posterior, o tempo possui medida e pode ser
medido, mas seu ser não se reduz a uma medida. E, justamente quando o nos damos
conta dessa diferença, o tempo parece ser o movimento da esfera.
Que a medida fundamental do tempo dada pela periphorá não fundamenta a
própria existência do tempo resulta do fato de o tempo carecer da atividade numeradora.
Se o medir é uma espécie de comparação entre contínuos pré-existentes, o tempo,
segundo sua definição, não está previamente dado tal como o movimento. A existência
do tempo depende da capacidade numeradora de algum ente, capacidade essa que
proporciona o horizonte no qual o tempo pode se apresentar como movimento
96
Física IV, 14, 223b 13-18: ἐπεὶ […] ἀριθµεῖται δ' ἕκαστον ἑνί τινι συγγενεῖ, µονάδες µονάδι, ἵπποι
δ' ἵππῳ, οὕτω <δὲ> καὶ χρόνος χρόνῳ τινὶ ὡρισµένῳ, µετρεῖται δ', ὥσπερ εἴποµεν, τε χρόνος
κινήσει καὶ ἡ κινήσις χρόνῳ (τοῦτο δ' ἐστίν, ὅτι ὑπὸ τῆς ὡριςµένης κινήσεως χρόνῳ µετρεῖται τῆς τε
κινήσεως τὸ ποσὸν καὶ τοῦ χρόνου).
60
numerado. Fundamentalmente, portanto, o tempo é numerável e, apenas por isso,
mensurável
97
. É isso o que veremos no prosseguimento do nosso estudo.
O porquê de Aristóteles afirmar com tamanha naturalidade, em um contexto em
que diz que uma coisa é medida e numerada por outra do mesmo gênero, que o tempo é
medido pelo movimento e vice-versa deve ser haurido, por um lado, do modo de
percepção e de conhecimento do tempo e do movimento pois a medida é aquilo pelo
que a coisa é conhecida – e da relação entre o agora e o deslocado, visto ser por eles que
o tempo e o movimento são contínuos e delimitados. O primeiro ponto será investigado
adiante, junto à atividade sensitiva da alma. O aprofundamento do segundo ponto
consistirá em um dos temas da parte final de nossa investigação.
97
O modo como Aristóteles coloca o problema do conceito de tempo com relação à alma abre o horizonte
de grande parte das soluções formuladas ao longo da história da filosofia. Agostinho e Kant, por exemplo,
embora tracem conclusões bastante distintas tanto entre si, quanto frente à problematização aristotélica
–, jamais deixam de buscar fundamentar o tempo para nesse horizonte. Desse modo, o fundo sobre o qual
o tempo é interrogado não é, ele mesmo, questionado.
61
2. EM BUSCA DO TEMPO PERCEBIDO
Vimos, anteriormente, que o são poucos os sinais apresentados no Tratado do
Tempo que apontam um papel do tempo na faculdade perceptiva. Alguns deles
explícitos, embora não desdobrados na Física, como é o caso do argumento que leva
Aristóteles a afirmar que não tempo sem movimento
98
, outros que não se referem
diretamente à percepção, mas apontam a importância do tempo na relação entre alma e
movimento pelo viés do ato de numerar, é o caso de Física IV, 14.
É verdade que quando Aristóteles faz uso do verbo aisthánesthai e do
substantivo aísthesis para referir-se a uma relação entre a alma e o tempo, uma espécie
de legitimação do tempo enquanto fenômeno, ambos os termos podem ser entendidos de
modo fraco, isto é, não seria como dizemos perceber a cor ou mesmo o movimento, mas
um certo dar-se conta, algo como “ter em mente”. No entanto, o fato mesmo desse
discurso constituir, no tratado aristotélico, em uma saída das aporias, que indicavam
estar o tempo entre os não entes ou ser de um modo obscuro, oferece-nos um grande
motivo para que nos demoremos no aspecto fenomênico do tempo e em seu modo de
apreensão.
Por isso, mais do que julgar a legitimidade da transmutação que faz Aristóteles
da aporia em euporia, interessa-nos compreender o modo pelo qual o discurso acerca do
tempo reclama um discurso acerca da capacidade perceptiva e numerante portanto,
intelectiva – da alma.
Como veremos a seguir, o tempo não é citado no De anima como um sensível,
embora o movimento e o número sejam assim tratados. Não obstante, em poucas porém
importantes passagens do livro III, o caráter temporal das atividades anímicas é
ressaltado e abordado por Aristóteles. Dissemos “caráter temporal” e não “tempo”
porque o que, ao menos a princípio, parece estar em jogo é a simultaneidade e a
consecutividade da sensação ou melhor: das sensações o que implica que tanto o
ente capaz de perceber quanto o perceptível encontram-se no horizonte da articulação
ântero-posterior do agora, segundo a qual o tempo é dito número do movimento. O
problema dessa articulação – qual seja: compreender em que sentido o agora permanece
98
Física IV, 11, 218 b21-219 a7.
62
o mesmo e em que medida é sempre diferente ressoa gravemente na exposição da
coordenação das sensações, feita com agudeza por Aristóteles, que lança o, como no
Tratado do Tempo, de uma analogia com o ponto (stigmé).
2.1. A FACULDADE SENSITIVA
A investigação acerca da faculdade sensitiva (dýnamis aisthetiké) inicia-se no
quinto capítulo de DA II. No primeiro livro, Aristóteles concentrara-se no exame das
opiniões anteriores e correntes sobre a alma, cujos autores “parecem ter em vista
somente a alma humana”
99
. Essa crítica, que será desdobrada ao longo do livro I, enseja
uma definição mais comum (lógos koinótatos) da alma, exposta em DA II 1, de modo a
aplicar-se a toda e qualquer alma, a saber: “atualidade primeira do corpo natural
orgânico”
100
. No entanto, Aristóteles não pretende deter-se na definição comum, senão
investigar se e quais são as diferenças entre as espécies de alma, a ponto de afirmar
ser “ridículo procurar uma definição comum pois não será uma definição própria a
nenhum dos entes, nem será segundo a forma apropriada e indivisível deixando-se de
lado tal enunciado”
101
.
o nos encarregaremos aqui de buscar a razão pela qual Aristóteles tenha dado
uma definição comum, mesmo dizendo ser sua procura ridícula. Alexandre de Afrodísia
bem como, os modernos Tricot e Rodier lêem a definição aristotélica dita mais
comum como um enunciado geral, um ponto de partida que, como afirma Aristóteles
em 414b 25-27, deve ser deixado de lado. Pierre Rodrigo, seguindo Marcel de Corte
102
,
percebe a legitimidade da busca de uma definição própria ao físico
103
– forma na
matéria (lógos en hýlei) em DA II 1-2 e, portanto, da possibilidade de uma psicologia
geral; enquanto, em 414 b25-27, Marcel de Corte e Rodrigo percebem uma crítica ao
trato platônico da alma, tal como a expressão koinòs lógos sugere as ideias platônicas
separadas em Metafísica I, 6 (987b 4-14) e XIII, 4 (1079b 4-11).
99
De anima I, 1, 402b 3-5: γὰρ οἱ λέγοντες καὶ ζητοῦντες περὶ ψυχῆς περτῆς νθρωπίνης µόνης
ἐοίκασιν ἐπισκοπεῖν·.
100
De anima II, 1, 412b 5: ἐντελέχεια ἡ πρώτη σώµατος φυσικοῦ ὀργανικοῦ.
101
De anima II, 3, 414b 25-28: γελοῖον ζητεῖν τὸν κοινὸν λόγον καὶ ἐπὶ τούτων καὶ ἐφ' ἑτέρων, ς
οὐδενὸς ἔσται τῶν ὄντων ἴδιος λόγος, οὐδὲ κατὰ τ οἰκεῖον καὶ ἄτοµον εἶδος, ἀφέντας τὸν
τοιοῦτον.
102
M. de Corte, La définition aristotélicienne de l'âme”, Revue thomiste XLV, (1939-3) 460-508, apud
Rodrigo, Aristote, l'eidétique et la phénoménologie (1995), p.58.
103
Sobre a distinção dos métodos do físico e do dialético, ver De anima I, 1.
63
O que nos interessa, porém, é apontar que a tarefa de compreender as diferenças
próprias aos diversos tipos de alma repercutirá no estudo da faculdade sensitiva, visto
que, embora alguns animais sejam dotados de intelecto e, portanto, das atividades
acessíveis apenas ao intelecto, a sensação é comum a todos. Como ainda veremos
melhor, a alma dotada de intelecto não possui apenas um algo mais, um adendo, senão
que esse dote implica uma estrutura anímica radicalmente distinta daqueles animais que
não o possuem, implicação essa que será manifesta na faculdade sensitiva e, em
especial, nas possibilidades da imaginação (phantasía)
104
.
Aristóteles ocupa-se da faculdade sensitiva da alma a partir de DA II. 5 até III. 2.
É neles, portanto, que deveríamos esperar alguma palavra sobre a percepção do tempo.
Adentremos, enfim, pelo discurso acerca da sensação.
2.2. O DISCURSO DA SENSAÇÃO
O estudo da faculdade sensitiva, como o das outras faculdades, norteia-se pela
atividade da qual ela é capaz, isso porque se trata de responder à pergunta esti, e
melhor respondida é caso se indique a atividade própria à coisa. Assim, a sensação
(aísthesis) é um certo ser afetado (páskhein) por algo externo. O elemento externo
sensível é, portanto, o agente da sensação, desencadeando a atividade do órgão sensitivo
(aisthetérion). No ato da sensação, a faculdade sensitiva torna-se semelhante ao agente
da sensação, o sensível (aisthetón). A sensibilidade é, desse modo, em potência todos os
sensíveis, mas dessemelhante a qualquer um, tornando-se semelhante (apenas quanto à
forma, pois sem a matéria) ao sensível apenas no ato da respectiva sensação. O tornar-se
semelhante da sensibilidade com relação ao sensível dá-se pela atualização, na alma
sensitiva, do resultado da sensação, o sthema. A ação (prâxis) da alma e do sensível,
assim como seu resultado, compõe uma atividade, a aísthesis, o que significa que
ocorrem ao mesmo tempo, de uma só vez, no mesmo agora.
Se a sensação é um ser afetado do sentido pelo sensível em ato, e não o
contrário, ou seja, se a atividade do sensível funda a relação posta pela sensação,
104
Essa leitura não é, porém, desprovida de polêmica. Hamlyn (1993) , por exemplo, na nota relativa a
414b 25, afirma: “Aristóteles enfatiza a inutilidade de tentar prover uma definição geral da alma ao invés
de se concentrar nas faculdades particulares, das quais cada possível combinação [combination] constitui
uma 'espécie individual', i.e. um tipo básico de alma”. Ao nos aprofundarmos na faculdade sensitiva,
veremos que a diferença entre os tipos de alma não consiste e fundamentalmente numa diferente
combinação.
64
devemos, como o faz Aristóteles, investigar as possibilidades sensitivas a partir dos
sensíveis e não dos sentidos.
O sensível é dito de três modos, em dois dos quais dizemos ser percebido por si
mesmo, e em um por acidente”
105
. Notemos, primeiramente, que, embora comece a
partir do sensível, a investigação do sensível não o toma isoladamente, senão junto à
atividade sensitiva. A discriminação não incide, ao menos não primeiramente, sobre os
sensíveis, mas sobre os modos em que o sensível se à percepção. Ou seja, o que está
em jogo não é a cor tomada isoladamente à percepção da cor, mas a cor tal como se
apresenta à visão. Tampouco devemos esquecer que estas linhas referem-se ao que é
dito sensível, e é sobre o dizer que recaem as três modalidades: de dois modos dizemos
de algo que é sensível por ser imediatamente percebido, e em um outro modo dizemos
de algo que este algo é sensível, o por ser imediatamente percebido, mas porque sua
percepção passa por outro.
O fato de Aristóteles apontar que não se trata simplesmente de uma distinção
entre diversos modos de sensação, senão entre modos do dizer que algo é uma sensação
isto é, modos de se compreender certa ação como uma sensação –, reclama certa
cautela na consideração dos sensíveis, indicando previamente possíveis problemas no
enquadramento de algum dos três modos como uma sensação notadamente, é o caso
do sensível por acidente. Senão, vejamos: “Dos dois [modos nos quais dizemos ser
percebido por si mesmo], enquanto um é próprio a cada sentido, o outro é comum a
todos”
106
. Trata-se agora de uma nova divisão portanto, com outro critério sobre o
dizer de algo que este algo é sensível, e isto segundo ou seja, tendo como critério
sua conveniência a um sentido particular ou a todos e, consequentemente, a nenhum em
particular.
São sensíveis capazes de serem percebidos propriamente por um sentido: a cor
para a visão, o som para a audição, o odor para o olfato, o sabor para a gustação e o
tangível para o tato
107
.
Sensíveis imediatos comuns a quaisquer sentidos: o movimento (kínesis), o
repouso (eremía), o número (arithmós), a figura (skhêma) e a magnitude (mégethos).
105
De anima II, 6, 418a 8ss: λέγεται δὲ τὸ αἰθητὸν τριχῶς, ὧν δύο µὲν καθ` αὐτά φαµεν
αἰσθάνεσθαι, τὸ δὲ ἓν κατὰ συµβεβηκός.
106
De anima II, 6, 418a 9ss: τῶν δὲ δυοῖν τὸ µὲν ἴδιόν ἑκάστης αἰσθήσεως, τὸ δὲ κοινόν πασῶν.
107
De anima II, 6, 418a 11-14. Sobre o tato e o tangível, De anima II, 11.
65
Esta é a lista apresentada em 418a 17, sendo que em 425a 16 Aristóteles acrescenta à
lista a unidade (hén).
Quanto ao sensível que assim é dito por acidente, Aristóteles afirma: “por
acidente é dito o sensível como no caso em que o branco é filho de Diares”
108
. Nos
moldes da tripartição feita pelo Filósofo, vê-se claramente que esse último modo em
que se diz haver sensação é o menos claro e mais problemático. Não bastasse isso, ele
será, dentre os três, o que menos receberá atenção explícita em De anima.
A primeira questão é saber se a locução adverbial “por acidente” refere-se à
sensação, ao dizer ou a ambos. De início, notemos que o propriamente percebido, numa
tal ação, é o branco. Ser filho de Diares consiste, assim, em um acidente do branco, o
que implica uma visada inversa da relação categorial, em que o tóde ti assume o lugar
de predicado do branco: “o branco é filho de Diares”, e isso acidentalmente: portanto, o
branco tem como acidente ser filho de Diares. Se o branco é propriamente percebido, a
percepção do filho de Diares é acidental. Se é acidental, é também por acidente, e o
por si mesmo, que se diz ser ele um sensível.
Outra questão é como se passa da sensação própria do branco à sensação
acidental do filho de Diares, e, consequentemente, como é possível reverter a relação
subjacente-acidente em favor da lógica categorial, o que implicaria tomar o ente
individual como foco da sensação, em que se reuniriam os diversos acidentes sensíveis
predicáveis a ele. Desse modo, está em jogo passar de um turbilhão de sensações
desconexas a uma unidade da sensação e, possivelmente, da diversidade de operações
de uma faculdade sensitiva fragmentada à unidade da sua ão e, assim, à unidade da
faculdade sensitiva da alma.
Se, por um lado, não encontramos o tempo em nenhuma lista de sensíveis
próprios, comuns e por acidente vimos que dois dos termos que compõem sua
definição são considerados, por Aristóteles, sensíveis comuns, a saber: o movimento e o
número. A razão porque ambos sejam assim tratados, porém não o tempo, só podevir
à tona a partir da compreensão daquilo em que consiste uma sensação comum. Esse
ponto, nevrálgico no seio da teoria aristotélica da sensibilidade e, por seus hiatos,
propício a inúmeras contendas, será abordado a seguir.
108
De anima II, 6, 418a 20s: κατσυµβεβηκὸς δὲ λέγεται αἰσθητόν, οἷον ετὸ λευκὸν εἴη Διάρους
υἱός·
66
2.3. A SENSAÇÃO COMUM
O trato da sensação comum concentra-se nos dois primeiros capítulos do De
anima. No entanto, não podemos dizer que a sensação comum constitua o tema central
desses capítulos, senão que intervém precisamente na discussão sobre a unidade da
sensibilidade e da faculdade sensitiva, sendo esse o motivo de DA III, 1-2.
O livro começa ratificando a existência de apenas cinco sentidos dos quais
tratara Aristóteles em DA II. Haveria duas possibilidades de existirem mais de cinco
sentidos, a saber, no caso de existir algum sentido que nos falta ou no caso de existir um
sexto sentido responsável pela percepção dos comuns. A primeira hipótese é rejeitada
através da redução dos órgãos sensoriais aos elementos ou corpos (sómata) dos quais
são compostos, especialmente água e ar
109
. Para refutar a segunda hipótese carece
mostrar que os sensíveis comuns o são apreendidos por um único sentido. A prova,
que ocupa o trecho 425a 14-b4, recebeu inúmeras leituras distintas e conflitantes, as
quais, por sua vez, foram alvo de outras inúmeras tentativas de apaziguamento e
concordância.
O pomo da discórdia encontra-se já nas primeiras linhas:
Mas é impossível haver um órgão sensitivo próprio aos [sensíveis]
comuns, os quais percebemos [aisthanómetha] por acidente [katà
symbebekós ] através de cada sentido.
110
Dizer que os sensíveis comuns são percebidos por acidente está em claro
conflito com a classificação apresentada no livro II, em que o sensível comum é dito ser
percebido por si mesmo (kath’ hautá). Ross – assim como Hicks (1907), Modrak (1981)
e Rey Puente (2001) – interpreta este katà symbebekós de modo distinto daquele
empregado em 418 a8. Enquanto no livro II Aristóteles estaria se ocupando da relação
do sensível com a sensibilidade em geral, neste passo do livro III ele estaria se referindo
apenas à relação entre os sensíveis comuns e os órgãos sensitivos. De fato, é por
acidente que ora apreendemos um sensível comum pela visão, ora pelo tato, ora por
ambos conjuntamente. Rodier, por outro lado, opta por ler katà symbebekós segundo o
sentido de 418a 8, compreendendo aisthanómetha como “perceberíamos” e fazendo da
linha 425a 15 uma hipótese a ser rejeitada.
109
Para uma exposição clara e esquemática do raciocínio aristotélico, Hamlyn (1993), pp. 115s.
110
De anima III, 1, 425a 14s: ἀλλ µὴν οὐδὲ τῶν κοινῶν οἷον τ`εἶναι αἰσθητήριόν τι ἴδιον, ὧν
ἑκάστη̣ αἰσθήσει αἰσθανόµεθα κατὰ συµβεβηκός
67
Contudo, apesar dessa divergência, pode-se ver com clareza que a compreensão
que ambas as leituras trazem acerca dos sensíveis comuns não é incompatível. E é isso
que tentam mostrar autores mais recentes, como Gauthier-Muzellec (1996) e Lories
(1991). Trata-se, como dissemos, de negar à sensação comum um órgão específico, de
modo que a percepção dos comuns deva ser tarefa da sensibilidade em sua unidade.
Mas, daí a dizer que o sentido comum é responsável pela unidade da sensibilidade vai
um grande passo, que consiste em deslocar o norte da investigação dos sensíveis
(aístheta) aos sentidos (aisthéseis).
Tal deslocamento é apontado e criticado por Brunschwig, quando afirma que
ao menos de um certo modo, o demonstrandum do capítulo [III, 1] é
que não sentido comum. os sensíveis comuns; eles são
percebidos em comum pelos sentidos próprios; não são percebidos
propriamente por um sentido comum, e nem poderiam ser
111
.
o bastasse isso, Brunschwig
112
e, posteriormente, Cassin
113
advertem-nos para
o fato de Aristóteles utilizar a expressão aísthesis koiné apenas para referir-se à
percepção dos sensíveis comuns
114
,
e não a algo como um sentido comum, isto é, a uma
atividade e não àquilo que é capaz de operá-la
115
.
A tentação em se falar de um sentido comum nasce, em verdade, do forte
imbricamento entre a discussão da sensação comum e a exposição de algumas funções
da faculdade sensitiva em DA II, 1-2, como a discriminação dos sensíveis próprios e a
percepção de que se está percebendo, sendo ambas, assim como a percepção dos
comuns, relativas à sensibilidade em geral e o a um sentido específico. Modrak, por
exemplo, afirma, com naturalidade, que “o principal problema com o qual se deve
defrontar o intérprete da noção aristotélica de koinè aísthesis é a diversidade de suas
funções”
116
.
Vimos pouco que, em 425a 14, Aristóteles considera acidental a relação dos
sensíveis comuns com cada um dos cinco sentidos. Isso nada mais é que o
111
1996, p. 208.
112
1996, pp. 189ss.
113
1997, p. 124, nota 2.
114
De anima 425a 27: “dos comuns temos uma sensação comum, não por acidente” [τῶν δὲ κοινῶν ἤδη
ἔχοµεν αἴσθησιν κοινήν, οὐ κατὰ συµβεβηκός].
115
O problema surge já na ambiguidade do termo aísthesis, que pode ser entendido tanto como a sensação
quanto como o sentido da alma.
116
D. Modrak, Aristotle. The power of perception. Chicago: University of Chicago Press, 1987, p. 62.
Apud Brunschwig, “En quel sens le sens commun est-il commun?” (1996), p. 189.
68
desdobramento da distinção entre sensíveis próprios e comuns de DA II, 6. No caso dos
sensíveis próprios, Aristóteles é bastante enfático ao fundamentar neles a faculdade
sensitiva quando afirma que “dentre os sensíveis, os próprios são primordialmente
[kyríos] sensíveis, e a essência de cada sentido é, por natureza, relativa a [cada um de]
eles”
117
. Por outro lado, resulta desta ênfase, como bem observa Everson
118
, o problema
da legitimidade dos sensíveis comuns enquanto sensíveis por si mesmos.
Com efeito, se Aristóteles afirma que apenas os sensíveis próprios são
primordialmente (kyríos) sensíveis, como compreender, neste enredo, a distinção entre
ser primordialmente sensível e ser por si mesmo (kath’ hautá) sensível, de modo que os
comuns caiam sobre esta determinação e não sobre aquela?
Pois bem, à afirmação do privilégio dos sensíveis próprios, segue-se uma nota,
introduzida por k: “e a essência de cada sentido é, por natureza, relativa a cada um
deles [a saber, o sensíveis próprios]”. Essa nota deve esclarecer não o fato de serem eles
kath’ hautá – conquanto isto convenha também aos comuns –, mas sim o kyríos da linha
anterior. O que é dito, então, é que o privilégio dos sensíveis próprios decorre de ser a
finalidade de cada sentido a apreensão do seu respectivo sensível próprio, ou seja, cada
sentido realiza sua finalidade na percepção do seu sensível próprio e se determina,
enquanto tal ou tal sentido, exclusivamente por ele.
No passo que se inicia em 425a 14, Aristóteles apresenta, pela segunda vez em
DA
119
, uma lista dos sensíveis comuns.
Mas é impossível haver um órgão sensitivo próprio aos [sensíveis]
comuns, os quais percebemos [aisthanómetha] por acidente [katà
symbebekós] através de cada sentido, tais como movimento, repouso,
figura, grandeza, número e unidade, pois percebemos tudo isso através
do movimento, como a grandeza pelo movimento (assim como a
figura, pois a figura é de certa grandeza), o que repousa pelo fato de
não se mover, o número pela negação do contínuo pelos próprios (pois
cada sentido percebe um).
Ora, o era nem um pouco esperado o privilégio de um sensível comum sobre
os outros, principalmente se considerarmos que o movimento aparece aqui como meio,
instrumento, e que, consequentemente, a percepção dos outros sensíveis comuns o
117
De anima II, 6, 418a 24s: τῶν δὲ καθ` αὑτὰ αἰσθητῶν τὰ ἴδια κυρίως ἐστὶν αἰσθητά, καὶ πρὸς ἃ ἡ
οὐσία πέφυκεν ἑκάστης αἰσθήσεως.
118
Aristotle on perception (1997), pp. 153s.
119
A primeira encontra-se em De anima II, 6.
69
seria, em sentido algum, imediata, mas acidental à percepção do movimento. Por outro
lado, podemos pensar que este emprego do dativo kinései não instrumentaliza a
percepção, mas apenas expõe o privilégio do movimento seja na alma, visto que a
percepção é um tipo de movimento, seja externamente à alma, pois tudo o que
percebemos é referente aos entes em movimento. Além disso, ambos os planos,
psíquico e físico, estão, como bem nos lembra Rey Puente
120
, fundamentalmente
entrelaçados no pensamento aristotélico.
Ainda assim, porém, o emprego de kinései é incômodo, e uma outra
possibilidade de leitura da passagem nos é apresentada por Zingano
121
. Segundo ele,
Aristóteles estaria de fato remetendo a percepção dos demais sensíveis comuns ao
movimento, apresentando uma hipótese a ser descartada, segundo a qual o movimento
seria um sensível próprio a um dos cinco sentidos o qual teria como função perceber
seu respectivo sensível próprio e, também propriamente, o movimento. Se, por um lado,
esta leitura traz uma interessante interpretação do polêmico uso de kinései, a suposta
hipótese a ser refutada é de uma complexidade alheia ao texto. Mais conveniente seria
supor que o que deve ser rejeitado é a hipótese de um sexto sentido próprio aos comuns,
ainda que esta hipótese tenha sido descartada pelo argumento anterior (424b 22-a 13)
no que diz respeito aos sensíveis próprios, restando agora referi-la aos comuns.
No entanto, mesmo que esteja claro, por qualquer que seja o viés interpretativo,
que Aristóteles está empenhado em garantir aos sensíveis comuns uma percepção
comum e não própria a um determinado sentido, a inesperada ocorrência de kinései
parece impossibilitar qualquer tomada de posição que se pretenda evidente a partir do
texto. Por outro lado, possibilita e reclama uma reflexão mais cuidadosa sobre o tema.
Por alguns bons motivos, o movimento parece ter um estatuto privilegiado na
discussão sobre a percepção. Todos os elementos envolvidos na percepção são ou
movimento ou móveis ou acidentes de móveis. São movimentos a percepção, a
imaginação e o próprio movimento como sensível comum; são móveis os sensíveis
acidentais; por fim, são acidentes de móveis todos os demais sensíveis comuns e
próprios.
120
2001, p.266.
121
Razão e sensação em Aristóteles (1998), pp. 103-114.
70
No entanto, resta ainda em silêncio a relação que efetivamente existe entre os
diversos sensíveis – próprios, comuns e acidentais. Apenas compreendendo essa relação
poderemos nos perguntar sobre o privilégio dado ao movimento.
Tradicionalmente, interpreta-se que os sensíveis tais como o movimento, o
repouso e a grandeza são considerados por Aristóteles comuns pelo fato de serem
percebidos simultaneamente por ao menos dois dos cinco sentidos, portanto, em
contraposição aos sensíveis próprios a cada sentido. O caráter de comunidade dos
comuns fundar-se-ia, nessa leitura, na relação entre o sensível e o sentido. Ou seja,
enquanto essa relação é unívoca para os sensíveis próprios, ela é multívoca para os
comuns, e justamente por essa razão eles seriam nomeados por Aristóteles “comuns”.
Jacques Brunschwig (1996) propõe uma nova visada. Segundo ele, a
comunidade dos comuns seria, fundamentalmente, uma relação desses sensíveis com os
sensíveis próprios na sensação. Tal tese nomeada por Brunschwig “disjuntiva”, em
oposição à tese conjuntiva, segundo a qual seria necessário mais de um sentido para
perceber os sensíveis comuns entende que os sensíveis comuns podem ser percebidos
por apenas um sentido. Assim, a grandeza é um sensível comum porque é impossível
percebê-la sem que juntamente se perceba, por exemplo, uma cor ou som.
Independentemente de ser ou não por essa razão que Aristóteles denomina tais
sensíveis como comuns, o apontamento de Brunschwig acerca dessa espécie de
comunidade entre os comuns e os próprios é correta e muito relevante ao nosso estudo.
Ela encontra inquestionável apoio no texto, em especial no passo 425b 4-12:
Alguém poderia questionar por que temos vários sentidos e não um
apenas, seria para não passarem despercebidos os acompanhantes e
comuns, como movimento, grandeza e número? Pois se a visão fosse
o único [sentido], e fosse ela do branco, tanto mais passaria
despercebido e todas as coisas pareceriam o mesmo por
acompanharem umas as outras, como simultaneamente a cor e a
grandeza. Agora, se os comuns subsistem em um sensível diferente,
fica evidente que cada um deles [dos sensíveis] é outro.
122
O que nos interessa nesse trecho não é tanto o que está em causa, mas o modo
como Aristóteles se refere à relação entre os próprios e os comuns. O passo conclui uma
122
De anima III, 1, 425b 4-12: ζητήσειε δ' ἄν τις τίνος ἕνεκα πλείους ἔχοµεν αἰσθήσεις, ἀλλ' οὐ µίαν
µόνην. ὅπως ἧττον λανθάνῃ τὰ ἀκολουθοῦντα καὶ κοινά, οἷον κίνησις καὶ µέγεθος καὶ ἀριθµός; εἰ
γὰρ ἦν ψις µόνη, καὶ αὕτη λευκοῦ, ἐλάνθανεν ἂν µᾶλλον κἂν δόκει ταὐτὸν εἶναι πάντα διὰ τ
ἀκολουθεῖν ἀλλήλοις ἅµα χρῶµα καὶ µέγεθος. νῦν δ' ἐπεὶ καὶ ἐν ἑτέρῳ αἰσθητῷ τὰ κοινὰ πάρχει,
δῆλον ποιεῖ ὅτι ἄλλο τι ἕκαστον αὐτῶν.
71
discussão acerca da unidade da sensação e da possibilidade de um sentido perceber
acidentalmente um sensível próprio a outro sentido. A forma como Brunschwig
considera a comunidade dos comuns encontra-se, nesse passo, explicitamente nomeada:
trata-se de uma relação de acompanhamento (akolouthía). Os sensíveis próprios
possuem certo privilégio eles, em particular, são primordialmente sensíveis (418a 24:
kyríos estín aisthetá) por serem responsáveis por desencadear a atividade sensitiva,
mas junto a eles, necessariamente, são percebidos os sensíveis comuns. Que os sensíveis
comuns acompanhem, na sensação, os sensíveis próprios não significa que eles são
percebidos depois dos próprios, senão que sua percepção depende do pôr-se em
atualidade da faculdade sensitiva promovido pela apresentação dos sensíveis próprios.
Trata-se, portanto, de uma fundamentação da sensação dos sensíveis comuns na
sensação dos próprios, muito embora essa fundamentação deva ser atenuada pelo fato
de que tanto os sensíveis comuns quanto os próprios são percebidos por si mesmos.
Além disso, de certo modo aquela relação se inverte ao considerarmos não mais a
sensação relativa a cada sensível, mas a unidade da sensação de vários sensíveis
simultâneos isto é, a composição da sensação: em razão de subsistirem em rios
sensíveis próprios diferentes, os sensíveis comuns desempenham um papel fundamental
na constituição de uma unidade focal da percepção.
Essa função da sensação comum na analítica aristotélica permite-nos sair da
idiotia dos sensíveis próprios, apreendidos cada um por seu respectivo sentido
isoladamente, em direção a algo assim como a coisa mesma que se mostra e que ocupa
o lugar de sujeito no enunciado lógico. Certamente, ainda não podemos falar de uma
percepção do filho de Diares enquanto filho de Diares, ou mesmo enquanto homem,
embora encontremo-nos no campo da percepção do branco, alto, de tal figura, que se
move de tal modo, isto é, no âmbito do colorido (khrómaton) e o mais apenas no da
cor.
2.4. A UNIDADE DA SENSAÇÃO
No cenário traçado por Aristóteles, em que os sensíveis comuns são aqueles que
acompanham diversos sensíveis próprios, e não esquecendo que se tratam de predicados
de uma essência inalcançável pela aísthesis kath' autá, nada mais esperado que o
movimento ocupar o norte do processo sensitivo pleno. Pois, como afirma Aubenque,
72
na verdade, o movimento afeta o ser em movimento de cabo a rabo, se
não é sua essência, ele é ao menos uma afecção essencial, o que o
impede radicalmente de coincidir com sua essência; ele não é um
acidente entre outros, mas o que faz com que o ser em geral comporte
os acidentes.
123
Em DA III, 2, Aristóteles volta aos sensíveis próprios, agora no horizonte não
mais dos sentidos isolados, mas da correlação entre sentidos e sensíveis. A pergunta que
se coloca é
se também discernimos o branco e o doce, assim como os demais
sensíveis entre si [e não apenas, pela visão, o branco e o preto e, pela
gustação, o doce e o amargo], através do que percebemos que eles
diferem? Necessariamente pela sensação.
124
Ora, os diversos sensíveis podem ser diferenciados apenas por aquilo que os
reúne, ou seja, pela faculdade sensitiva. Com isso, Aristóteles mostra que já na sensação
encontra-se um poder de discernimento capaz de julgar (krínein) sensíveis
heterogêneos, bem como o poder de reuni-los. Ambos os poderes, como dois lados da
mesma moeda, conduzem-nos à radicalização do aspecto lógico da faculdade sensitiva.
Tampouco é possível discernir por meios separados que o doce é
diferente do branco, mas ambos devem ser evidentes para algo uno
[hení tini] do contrário, se eu percebesse um e tu, outro, ficaria
evidente que um é diferente do outro. Contudo, é preciso um único
afirmar [légein] que são diferentes; pois o doce é diferente do branco.
Ora, é um mesmo que afirma [légei]. E, tal como afirma, assim
também pensa [noeî] e percebe [aisthánetai]. É evidente, portanto,
que não é possível discernir coisas separadas por meios separados
125
.
O algo uno” a que se refere Aristóteles é justamente a faculdade sensitiva em
sua unidade, cuja atividade abarca ou mesmo se confunde com a sensação comum. Se
não houvesse uma tal sensação, capaz de reunir e coordenar diversos sensíveis
heterogêneos, seria como se uma pessoa visse o branco e outra degustasse o doce e,
assim como o haveria uma unidade do percipiente, tampouco poderia haver unidade
123
Le problème de l'être chez Aristote (2002), pp. 421s.
124
De anima III, 2, 426b 12-15: ἐπεὶ δὲ καὶ τὸ λευκὸν καὶ τὸ γλυκὺ καὶ ἕκαστον τῶν αἰσθητῶν πρὸς
ἕκαστον κρίνοµεν, τινὶ καὶ αἰσθανόµεθα ὅτι διαφέρει. ἀνάγκη δὴ αἰσθήσει.
125
De anima III, 2, 426b 17-23: οὔτε δὴ κεχωρισµένοις ἐνδέχεται κρίνειν ὅτι τερον τγλυκὺ τοῦ
λευκοῦ, ἀλλὰ δεῖ ἑνί τινι ἄµφω δῆλα εἶναι οὕτω µὲν γὰρ κἂν εἰ τοµὲν ἐγὼ τοῦ δσὺ αἴσθοιο,
δῆλον ἂν εἴη ὅτι ἕτερα ἀλλήλων, δεῖ δτὸ ἓν λέγειν τι ἕτερον· ἕτερον γὰρ τὸ γλυκὺ τολευκοῦ·
λέγει ἄρα τὸ αὐτό· ὥστε ὡς λέγει, οὕτω καὶ νοεῖ καὶ αἰσθάνεται – ὅτι µὲν οὖν οὐχ οἷόν τε
κεχωρισµένοις κρίνειν τὰ κεχωρισµένα, δῆλον.
73
do percebido. A pergunta à qual Aristóteles pretende responder nesse passo é se a cada
sensível corresponde necessária e exclusivamente uma sensação ou se dois ou mais
sensíveis podem ser percebidos numa mesma sensação.
O que está em questão, portanto, não é apenas a capacidade do mesmo apreender
e discernir sensíveis heterogêneos, mas também a de apreendê-los e discerni-los
simultaneamente. O risco de se rejeitar essa possibilidade conduz a um cenário em que
ora percebêssemos o branco, ora o doce, resultando, do mesmo modo que no exemplo
das duas pessoas que os percebessem separadamente, no isolamento e na
incomunicabilidade das sensações, isto é, na impossibilidade de se aceder ao discurso
predicativo.
Que tampouco é possível [discernir o doce e o branco] em tempos
separados fica evidente a partir do que segue. Pois, tal como é o
mesmo que afirma que o bom é diferente do mau, assim também,
quando afirma [légei] de um dos dois que é diferente, o afirma do
outro, e o “quando” [ hóte] não é acidental (quer dizer, por
exemplo, afirmo agora que são diferentes, mas não que são diferentes
agora, por exemplo), mas deste modo: tanto afirma ambos agora,
como afirma que são diferentes agora, e os dois ao mesmo tempo.
Assim, é algo não separado que o afirma num tempo não separado.
126
Tricot, ao comentar essa passagem, além do escrito e afirma que “é num
tempo indivisível que o sentido comum pronuncia que o branco é o doce e que o doce é
branco”
127
. Entretanto, discernimento em questão não se resume ao enunciado “o doce é
branco”, bem porque o discernimento do bom e do mau não pode provir de nem resultar
no enunciado “o bom é mau”. Por outro lado, façamos justiça a Tricot, pois o que, de
fato, está em jogo é a articulação de dois sensíveis em uma sensação, que
corresponderia, assim, àquilo branco que é doce ou áquilo doce que é branco. Daí que
a radicalização das consequências da capacidade de discernir sensíveis heterogêneos
enseje a possibilidade de um discurso predicativo, mesmo que o subjacente reste ainda
sem denominação própria, assinalado apenas por um atributo: em “o branco é doce”, “o
branco” não é a brancura, mas o que possui tal qualidade. A insistência no verbo légein
126
De anima III, 2, 426b 23-29: ὅτι δ' οὐδ' ἐν κεχωρισµένῳ χρόνῳ, ἐντεῦθεν. ὥσπερ γὰρ τὸ αὐτὸ
λέγει τι ἕτερον τὸ ἀγαθὸν καὶ τὸ κακόν, οὕτω καὶ ὅτε θάτερον λέγει ὅτι ἕτερον καὶ θάτερον (ο
κατὰ συµβεβηκὸς τὸ τε, λέγω δ', οἷον νῦν λέγω τι ἕτερον, οὐ µέντοι τι νῦν ἕτερον, ἀλλ' οὕτω
λέγει, καὶ νῦν καὶ ὅτι νῦν)· ἅµα ἄρα. ὥστε ἀχώριστον καὶ ἐν ἀχωρίστῳ χρόνῳ..
127
2003, p.160, nota 2.
74
não nos deixa escapar esse aspecto da discussão sobre o krínein. Ele prepara, já no nível
da sensação, a cisão e a composição que fundam o discurso predicativo
128
.
Dessa maneira, o tempo vem à tona, em De anima, como o cerne do problema
relativo à constituição da coisa percebida e da passagem, apenas insinuada, do que
Barbara Cassin (1997) chama de enunciado estético em que a ordem predicativa se
inverte, o atributo tomando o lugar de subjacente, cujo caso mais grave é o dos sensíveis
por acidente ao enunciado lógico em que a essência primeira ocupa o lugar de
sujeito. A pergunta pela percepção do tempo converte-se, com isso, na pergunta pela
temporalidade da percepção.
Uma investigação séria a respeito de como o tempo tanto por seu papel na
constituição de uma faculdade sensitiva una, quanto por sua compreensão como número
do movimento segundo o anterior e posterior – articula, de modo quase que sub-
reptício, o catálogo categorial e o sentido ontológico dos termos e da unidade do
enunciado predicativo é trabalho de maior monta que não nos convém ainda
129
.
De todo modo, voltemos à letra do trecho citado para esclarecermos alguns
aspectos de suma importância. Aristóteles afirma que é em um tempo não separado (en
akhorístoi khrónoi) que se o discernimento dos sensíveis em questão. Levando em
conta o discurso aristotélico acerca do tempo, a ideia de um tempo akhóristos causa
grande estranheza, especialmente se tomada de modo descontextualizado. O tempo tem
por limite o agora, sendo o tempo mesmo infinitamente divisível pelo agora. Portanto,
se akhóristos é usado como sinônimo de adiaíretos, como é o caso, a rigor não pode
existir um akhóristos khrónos.
Diante desse problema, Pavel Gregoric (2007) atenua a indivisibilidade atribuída
ao tempo nessa passagem fazendo uso de uma outra, em De sensu 448b 19, que ele
traduz do seguinte modo: “no tempo que é um e indivisível relativo às coisas
percebidas
130
(grifo do autor). Desse modo, Gregoric recusa expressamente que
akhóristos khrónos assim como átomos khrónos diga respeito ao agora (nŷn), e
pensa o tempo indivisível como um mesmo tempo, completo, em que se dariam duas
percepções.
128
Sobre a diferença entre o lugar do krínein na psicologia platônica e na aristotélica, ver M. Narcy,
Κρίσις et αἴσθησις” (1996).
129
Vale lembrar o papel fundamental que essa articulação ocupa no pensamento kantiano.
130
Aristotle on the common sense (2007), p.130. De sensu, 7, 448b 19: τὸ δ` ἅµα λέγω ἐν ἑνὶ καὶ ἀτόµω̣
χρόνω̣ πρὸς ἄλληλα.
75
A via explorada por Gregoric encobre, porém, o ponto crucial da passagem em
questão. Aristóteles não quer apenas mostrar que é possível perceber dois sensíveis
simultaneamente tal como se fossem duas sensações simultâneas –, mas
principalmente apontar que os sensíveis assim percebidos o são em uma sensação, como
veremos mais adiante. Quanto à sua leitura do akhóristos khrónos, ela é equivocada
porque para Aristóteles o ver é uma atividade (enérgeia) em que simultaneamente
vemos e vimos, diferindo, por exemplo, do tornar-se saudável, pois o é
simultaneamente que nos tornamos saudáveis e somos saudáveis
131
. O que significa essa
diferença? Significa que o ver não possui um limite (péras), sendo ele mesmo seu
próprio fim (télos), enquanto o tornar-se saudável é uma enérgeia justamente na medida
em que ainda não se é saudável, assim como, na construção do edifício, o edifício
pronto é o limite e enérgeia que será, nesse caso, kínesis apenas enquanto o
edifício está em obra, sendo o fim um limite em que já não há mais movimento.
Talvez provenha da distinção acima apresentada o pudor de Aristóteles em
afirmar que a sensação é uma alteração (alloíosis), pois o se trata de uma alteração
entre contrários isto é, não propriamente uma extensão ék tinos eís ti mas do
“avanço em direção ao mesmo e à atualidade
132
. A sensação será, assim, um ser
afetado (páskhein) e uma alteração nesse último sentido, claramente heterodoxo. Em
função disso, a sensação é uma ação (prâxis) estritamente instantânea, pontual e,
embora possa se estender temporalmente, como ocorre na maioria das vezes, essa
extensão é um manter-se presente que deve possuir o mesmo caráter de presença do
agora.
Reforça ainda nosso argumento a analogia que Aristóteles fa mais adiante
entre a unidade da coisa percebida, do percipiente e do tempo com o ponto.
Após afirmar que aquilo que discerne dois sensíveis heterogêneos o faz em sua
unidade e em um tempo indivisível, Aristóteles examina essa sua tese em vista de
detalhar a relação entre a multiplicidade e a unidade na sensação. Primeiro, ela é
rejeitada segundo a impossibilidade do mesmo ser movido simultaneamente por
contrários (426b 29 427a 1). A seguir, ele propõe uma saída: a faculdade em questão
seria numericamente uma, porém múltipla quanto ao ser (427a 2-5: arithmô adiaíreton
131
Metafisica IX, 1048b 19-28.
132
De anima II, 5, 417b 6s: εἰς αὑτὸ γὰρ ἡ ἐπίδοσις καὶ εἰς ἐντελέχειαν.
76
eînai diairetón). Isso significa que uma mesma faculdade seria múltipla na medida
apenas em que apreende uma multiplicidade de sensíveis. No entanto, essa solução é
equívoca, pois “pela potência o mesmo indivisível pode ser os contrários, não pelo ser,
senão divisível pelo atualizar-se”
133
, mas é preciso conceber a faculdade sensitiva como
unidade em atividade, e não meramente realizando operações isoladas e simultâneas.
Em razão disso, Aristóteles propõe uma outra solução:
[Aquilo que discerne] é tal como alguns consideram o ponto, na
medida em que ele é um e dois, divisível <e indivisível>. Enquanto
indivisível, aquilo que discerne é um e simultâneo, embora subsista
divisível enquanto se serve do mesmo sinal dupla e simultaneamente.
Enquanto se serve do limite duplamente, discerne dois separados e é,
de certo modo, cindida; enquanto [se serve] uma vez, discerne de
modo uno e simultâneo.
134
Aristóteles não nos oferece maiores detalhes sobre o que significa servir-se
duplamente do ponto. No entanto, tudo parece indicar que se trata de servir-se dele
como início de um segmento e fim de outro. O que interessa aqui é notar que ao servir-
se duplamente do ponto o se cria uma extensão entre os dois pontos assinalados,
sendo eles um único e mesmo ponto. Do mesmo modo, a percepção de dois sensíveis e
o discerni-los consistem numa atividade, pontual, instantânea. Com isso, Aristóteles
funda a unidade da sensação – no que diz respeito tanto ao percipiente quanto ao
percebido – na unidade relativa ao tempo, o agora.
Desse modo, a percepção do agora não é senão a própria atividade da faculdade
sensitiva e é por estar enraizada no agora que lhe é possível realizar uma percepção una
de diversos sensíveis simultâneos, compondo assim uma espécie de cenário sensível.
Entretanto, permanece obscura a relação do tempo tal como é definido em Física IV, 11
com a faculdade sensitiva.
Rey Puente, atentando às discussões acerca de aspectos temporais em DA III,
afirma que “o tempo não é meramente algo percebido, mas constitui de certa forma o
próprio modus operandi da percepção”
135
. Ele se refere às relações de simultaneidade e
consecutividade pelas quais Aristóteles encaminha a investigação da unidade da
133
De anima III, 2, 427a 6s: δυνάµει µὲν γὰρ ταὐτὸ καὶ ἀδιαίρετον τἀναντία, τῷ δ' εἶναι οὔ, ἀλλὰ
τῷ ἐνεργεῖσθαι διαιρετόν.
134
De anima III, 2, 427a 9-14: ὥσπερ ἣν καλοῦσί τινες στιγµήν, ᾗ µία καὶ δύο, ταύτῃ <καὶ
ἀδιαίρετος> καὶ διαιρετή. µὲν οὖν ἀδιαίρετον, ἓν τὸ κρῖνόν ἐστι καὶ ἅµα, δδιαιρετὸν ὑπάρχει,
δὶς τῷ αὐτῷ χρῆται σηµείῳ ἅµα· ᾗ µὲν οὖν δὶς χρῆται τῷ πέρατι, δύο κρίνει καὶ κεχωρισµένα, ἔστιν
ὡς κεχωρισµένως· ᾗ δὲ ἑνί, ἓν καὶ ἅµα.
135
2001, p. 276.
77
faculdade sensitiva. De fato, do estabelecimento do agora como dimensão própria da
sensação podemos desdobrar uma série de relações temporais orientadoras não apenas
da sensação, mas também da composição e representação de imagens (phantásmata) e
até mesmo do discurso. Aquilo que é capaz de se manter presente mantendo-se no
agora pode receber o estatuto de hypokeîmenon; da duplicação do agora em si mesmo
pode-se retirar a estrutura ântero-posterior do movimento percebido; da simultaneidade,
a relação de acompanhamento dos atributos do subjacente.
2.5. TEMPO, MEMÓRIA E RECORDAÇÃO
Se de certo modo fracassamos na busca de um discurso sobre o tempo enquanto
sensível em De anima, alcançamos clareza para compreender que essa não é uma mera
falta de Aristóteles, mas sim que o próprio tempo o se deixa apreender como um
sensível qualquer. Por outro lado, encontramos a atenção do Filósofo voltada
explicitamente à correlação entre tempo e alma no tratado Sobre a memória e a
recordação. O tempo será fator central na caracterização da memória, na sua
localização funcional com respeito às atividades da alma (tais como a sensação, a
imaginação e o pensamento) e na diferenciação entre memória e recordação.
Se ao que se apresenta corresponde a sensação, ao porvir correspondem a
conjetura e a expectativa, também a memória tem seu próprio lote: ela é sempre do
passado
136
. O tempo passado é bem mais que o lugar em que a memória encontra seu
objeto, ele é aquilo pelo que a memória vem a se constituir como uma héxis (419b 24s,
451a 14ss). Isto é, o passado é o que a memória guarda e dispõe: “a memória por si
mesma não existe antes de ter-se dado tempo” (451a 29s). Toda memória conta com o
tempo, mas não com a presença das coisas
137
.
O tempo passado confunde-se, porém, para a memória, com o resquício das
coisas passadas, as sensações (aisthémata) e as imagens (eíkona e phantásmata)
curtidas pelo tempo. Assim, embora se diferencie tanto da sensação (aísthesis) quanto
da imaginação (phantasía), a memória de algum modo depende dessas atividades. Se
136
Sobre a memória e a recordação, 449b 15: δὲ µνήµη τοῦ γενοµένου.
137
Sobre a memória e a recordação, 449b 18-20: Quando se tem ciência e sensação sem as coisas,
então faz-se uso do que dispõe a memória” (ὅταν δ' ἄνευ τῶν ἔργων σχῇ τὴν ἐπιστήµην καὶ τὴν
αἴσθησιν, οὕτω µέµνηται); e 449 b28: “toda memória leva tempo” (µετὰ χρόνου πᾶσα µνήµη).
78
isso é claro quanto à sensação, pois se trata da permanência do que fora atualmente
percebido, no que toca à imaginação a relação torna-se mais complicada:
As memórias por si mesmas estão entre as coisas das quais
imaginação, as memórias por acidente estão entre aquelas que não são
sem imaginação.
138
A relação entre os objetos da memória (mnemoneutá) e os da imaginação é, para
Aristóteles, o estreita que até mesmo o estatuto daqueles depende do estatuto desses.
O que não se sem imaginação é o inteligido (nóema), que depende de uma
apresentação imagética para ser pensado, mas não consiste ele mesmo em imagem. Os
objetos por si mesmos da memória, por um lado, são as próprias imagens retidas na
alma; por outro lado, a representação disso que é guardado e está disponível na memória
consiste em uma atividade da imaginação. Por essa imbricação, Aristóteles coloca a
memória na mesma partição anímica da imaginação. Dessa maneira, a memória por si
mesma está ligada à faculdade sensitiva (450a 13s e 451a 17: prôton aistetikón, o
núcleo sensitivo da alma), muito mais que à faculdade intelectiva, da qual a imaginação
é uma espécie de servidora de imagem. A consequência dessa divisão hierarquizante (ou
talvez sua causa, inferida da observação do comportamento dos animais) é a tese de que
muitos animais, e não apenas o homem, são dotados de memória.
No entanto, ser dotado de memória não é o mesmo, ao menos o a princípio,
que ser dotado de uma percepção do tempo. E, além disso, ainda o recordar
(anamimnéskesthai):
O lembrar [mnemoneúein] difere do recordar [anamimnéskesthai]
não [apenas] com respeito ao tempo, mas porque muitos outros
animais partilham do lembrar, enquanto nenhum dos animais
conhecidos partilham do recordar, senão o homem. A causa é que o
recordar é como um raciocínio, pois aquele que recorda raciocina que
antes viu ou ouviu ou padeceu algo do tipo, e isso é como uma
busca.
139
Dependendo da ausência ou não do mónon da primeira linha, a frase ganha um
sentido ou outro, inverso: ou a diferença entre o lembrar e recordar não diz respeito ao
138
Sobre a memória e a recordação, 420a 24s: καί ἐστι µνηµονευτὰ καθ' αὑτὰ µὲν ὧν ἐστι φαντασία,
κατὰ συµβεβηκὸς δὲ ὅσα µὴ ἄνευ φαντασίας..
139
Sobre a memória e a recordação, 453a 6-12: διαφέρει δτοῦ µνηµονεύειν τὸ ἀναµιµνήσκεσθαι οὐ
[µόνον] κατὰ τὸν χρόνον, ἀλλ' ὅτι τοῦ µὲν µνηµονεύειν καὶ τῶν ἄλλων ζῴων µετέχει πολλά, τοῦ
δ' ἀναµιµνήσκεσθαι οὐδὲν ὡς εἰπεῖν τῶν γνωριζοµένων ζῴων, πλὴν ἄνθρωπος. αἴτιον δ' ὅτι τὸ
ἀναµιµνήσκεσθαί ἐστιν οἷον συλλογισµός τις· ὅτι γὰρ πρότερον εἶδεν ἤκουσεν ἤ τι τοιοῦτον
ἔπαθε, συλλογίζεται ὁ ἀναµιµνησκόµενος, καὶ ἔστιν οἷον ζήτησίς τις.
79
tempo, ou ela diz respeito ao tempo, embora não apenas a ele, mas aos fatos relatados
na sequência do texto. A relação dessa diferença com o tempo deve, porém, ser
contemporizada, pois tanto a recordação quanto a memória referem-se ao passado, mas
o fazem de maneiras distintas. Assim, para Daniela P. Taormina
140
: “o continuum, dado
pela percepção do tempo, é cortado pela reminiscência que aprofunda uma diferença
radical entre os homens, que possuem a faculdade de deliberar, e os animais, que não a
possuem”. O recordar produz, assim, o ocultamento do próprio tempo que passou, e
esse saltar distingue o homem dos animais. Com efeito, Taormina lê, na linha 453a 6, “a
operação [prâxis] da memória difere da operação da reminiscência no que concerne ao
tempo”
141
. Se a memória constitui-se junto ao tempo, guardando o tempo passado, o
recordar é um saltar o tempo passado.
Rémi Brague (1988), por outro lado, entende a recordação, tal como é tratada
por Aristóteles, como o verdadeiro contato do homem com o passado e como abertura
do horizonte temporal que lhe é próprio, distinguindo-o dos animais também dotados de
memória: “a primeira [a memória] é a relação aos traços presentes deixados pelo
passado; a segunda [a recordação], a relação ao passado enquanto tal”
142
. O que, nesse
âmbito, difere o homem do animal é o esquecimento enquanto tal, isto é, não como
mero desfazer-se do passado, mas ter em mente que algo es oculto e merece ser
buscado, pois o é possível recordar o que nunca se soube nem o que está vivo na
memória, mas apenas aquilo que se sabe ter esquecido.
Se concordarmos com Taormina, temos de admitir que a percepção do tempo
não é uma exclusividade do homem, sendo partilhada também pelos animais dotados de
memória. Por outra, seguindo Brague chegamos à posição contrária: apenas o homem é
capaz de perceber o tempo. A divergência parece residir, basicamente, no que ambos
entendem por percepção do tempo”, pois, com a exceção do capítulo 11 de Física IV,
em que é identificada de modo bem pouco rigoroso com a marcação de agoras
diferentes e com o dar-se conta do intervalo entre eles, não temos nenhuma descrição do
que seria tal operação.
No entanto, o que Taormina entende como “o continuum, dado pela percepção
do tempo” é, na verdade, o manter-se presente daquilo que passou como resquício de
140
“Perception du temps et mémoire chez Aristote” (2002), p. 37.
141
Ibidem.
142
Aristote et la question du monde (1988), pp. 246s.
80
uma atividade. Esse permanecer presente, subsistir no agora, manter-se atual, não
parece ser, de fato, o que Aristóteles entende por tempo. Nesse ponto, Brague é mais
perspicaz ao mostrar que, no dar-se conta de que algo passou e foi esquecido, abre-se a
dimensão temporal com a qual apenas o homem pode lidar. Nos termos do Tratado do
Tempo, a recordação implica a marcação de um agora que não está presente, que é
diferente, e, com isso, traz à luz o intervalo entre os agoras como tempo. Trata-se
justamente de um caso oposto àquele dos dormentes de Sardenha, que identificam
absolutamente dois agoras distintos e não se dão conta do tempo. Ao recordar, porém, o
homem não salta o tempo, ele não é “cortado”, mas vem à tona porque se vai ao
encontro de outro agora, do outro limite. Perceber o tempo, ao menos para o homem, é
então diferente de perceber o agora, ou seja, perceber a presença de alguma afecção ou
o que dela restou na alma, ainda que a percepção do tempo dependa da percepção do
agora.
Além disso, a interpretação de Brague é mais condizente com o capítulo 14 de
Física IV, em que Aristóteles diz recair sobre o intelecto da alma a capacidade de
numerar o tempo e o movimento. Parece claro que a capacidade de perceber o tempo
propriamente dita, seja ela o que for, deve levar em conta a definição disso que é
percebido, seu caráter numérico, e partilhar, assim, da capacidade de numerar.
Encontramos no comentário de Filopono ao De anima uma distinção
esclarecedora do que poderíamos chamar de percepção do tempo em sentido forte e em
sentido fraco. A passagem comentada encontra-se em DA III, 10:
Se apetites contrários uns aos outros vêm a ser, isso se quando o
pensamento e os desejos são contrários, e isso ocorre nos que possuem
percepção do tempo.
143
A contrariedade que o intelecto impõe ao desejo funda-se na capacidade de
visualizar previamente o fim da ação e de deliberar sobre o bem e o sentido da ação, de
modo que o ente dotado de pensamento (lógos) é capaz de renunciar a algo capaz de
proporcionar um bem imediato mas que pode vir a constituir um obstáculo a um bem
superior e futuro. Esse visualizar prévio do pensamento Aristóteles diz ser próprio
aqueles entes capazes de perceber o tempo.
143
De anima III, 10, 433b 5-7: πεὶ δ' ὀρέξεις γίνονται ἐναντίαι ἀλλήλαις, τοῦτο δὲ συµβαίνει ὅταν
λόγος καὶ αἱ ἐπιθυµίαι ἐναντίαι ὦσι, γίνεται δ' ἐν τοῖς χρόνου αἴσθησιν ἔχουσιν.
81
Segundo Filopono, os entes desprovidos de pensamento são capazes apenas de
perceber as coisas que são no tempo, mas não contam com o tempo
144
. Em um sentido
fraco, portanto, os animais percebem o tempo na medida em que percebem o
movimento ordenado segundo o anterior e posterior, isto é, a consecutividade e a
simultaneidade das coisas que os rodeiam. Como mostra Taormina
145
, alguns animais
são dotados da percepção do tempo pelo viés da retenção da imagem proveniente de
uma sensação passada. E disso, de fato, depende a memória: dentre os animais, são
capazes de reter na memória apenas aqueles que percebem tempo”. Esse sentido que
dissemos fraco da percepção do tempo, no entanto, confunde-se com a simples retenção
do movimento passado percebido e não percebe o tempo naquilo que o diferencia do
movimento, a saber, como seu número.
Se, em Física IV, 14, é posta em questão a possibilidade de haver tempo sem
que haja um ente capaz de numerar, está fora de questão que, para Aristóteles, a ordem
do movimento natural o eís ti ék tinos é previamente dada pela natureza de cada
coisa da qual ela é princípio. A percepção do tempo, pela qual o homem se distingue do
animal, consiste na capacidade de compreender a ordenação do movimento a partir do
seu fim, o que implica ser capaz de delimitar o movimento, e também orientar as ações
segundo um fim, planejar o futuro, interpretar o passado a partir de um fim. “Nós,
providos da vida do pensamento, guardamos a compreensão do próprio tempo (autoû
toû khrónou synaísthesin), contamos os dias e as épocas”
146
. Se perceber o movimento
não implica perceber, em sentido forte, o tempo, o contrário é verdadeiro, o que
significa que a percepção do tempo (aísthesis toû khrónou) é sempre uma compreensão
(synaísthesis).
144
Filopono, In Aristotelis libros de anima commentaria, 580. 22: τ ἄλογα οὐκ ἀντιλαµβάνονται
χρόνου, ἀλλὰ τῶν ἐν χρόνῳ.
145
2002, pp. 57-59. A autora mostra, com clareza, o que parece ter mente Aristóteles quando relaciona a
memória à percepção do tempo, mas não ousa problematizar como é possível e em que sentido o animal
pode ter uma percepção do “número do movimento segundo o anterior e posterior”. E, por não colocar
esse problema, não reflete sobre a relação que a alma humana, cuja estrutura tem como ápice o intelecto,
tem com o tempo, nem confronta-a à relação da alma dos outros animais com o tempo.
146
Filopono, In Aristotelis libros de anima commentaria, 580. 25: ἡµεῖς γὰρ αὐτὴν τὴν λογικὴν ψυχὴν
ἔχοντες αὐτοῦ τοῦ χρόνου συναίσθησιν ἔχοµεν, ἀριθµοῦντες καὶ ὥρας καὶ ἡµέρας.
82
3. ENTRE A ALMA E O MUNDO
Recapitulemos agora o que conquistamos com o capítulo anterior para, só então,
podermos recolocar com a devida propriedade as questões surgidas no primeiro
capítulo, que constituía, por assim dizer, uma primeira abordagem do Tratado do
Tempo.
Vimos que Aristóteles não considera o tempo como um sensível qualquer. Na
maioria das vezes, ele nem mesmo é abordado como um sensível. Não se trata, porém,
de um mero esquecimento ou desatenção por parte do Filósofo, dado que, nas suas
abordagens da sensibilidade, o tempo é levado em conta, assumindo realmente um papel
crucial na textura de suas investigações. Esse papel localiza-se mais nitidamente no
modo de abordagem e tratamento de determinado tema como no caso da unidade da
sensação em DA III, 2 – do que como tema propriamente; em termos modernos,
significa: ele aparece no modo de objetivação e escrutínio de um objeto, mas não como
objeto de investigação. O que cabe ressaltar é que o tempo não é um fenômeno
qualquer, nem como um algo, nem como um caráter sensível de algo, tampouco como
uma representação (phantasía). Por outro lado, ele se mostra, ou deve se mostrar, junto
ao movimento em geral (e não apenas como deslocamento). Com isso, mesmo não
sendo tomado como um fenômeno, dizemos que ele se mostra.
Como bem observa Dubois,
Aristóteles considera numa mesma relação o movimento das coisas e
o ato do espírito que o numera, sem buscar absorver um dos termos no
outro, sem conceder a um uma primazia que viria a encobrir o outro.
A constatação do movimento e a capacidade que possui propriamente
o espírito de transcender o fluxo das coisas são, para ele, dois dados
que têm o papel de certezas originais e de praecognita na elaboração
da definição do tempo. Adesão espontânea à realidade do movimento,
intuição da dimensão supra-temporal da inteligência, tais são os dois
polos da percepção do tempo que revelam os componentes de sua
realidade.
147
O mostrar-se do tempo é, na verdade, um mostrar algo que não ele mesmo e, por
isso, ele é constitutivo do aparecer do ente móvel em sua mobilidade. Por isso também,
o tempo é tão difícil de ser apreendido, embora já sempre estejamos junto a ele.
147
1963, pp. 389s.
83
Delimitamos um tempo quando delimitamos um movimento; fazendo uso daquilo que
se move, apontamos os diversos agoras quando apontamos as diversas etapas do móvel,
e o intervalo entre eles, num caso chamamos tempo, no outro movimento. Mas mesmo
quando nos encontramos imersos nas trevas, quando nada nos aparece, damo-nos conta
do tempo, basta que não nos encontremos anestesiados como os de Sardenha.
No caso dos dormentes de Sardenha, não apenas não sensação, como
tampouco poderia haver, isto é, eles estão, segundo a lenda, completamente ausentes do
mundo móvel, junto aos heróis que morreram. Por outro lado, quando estamos numa
situação em que não atualização da faculdade sensitiva, ainda assim encontramo-nos
alertas e abertos ao mundo a nossa volta, mesmo que não o sintamos de modo algum. O
dar-se conta do tempo anda a par, portanto, não só com a sensação do movimento
propriamente dita, mas com a possibilidade do sentir em geral, ou seja, com a atenção a
alma no que diz respeito à possibilidade de apresentação de qualquer coisa. É como esse
estar atento em geral que devemos compreender o movimento da alma a partir do qual o
tempo também torna-se acessível. Com efeito, o ainda não” e o “já não mais” são
determinações temporais da lida com o mundo sem que o movimento precise estar ali
presente. Estabelecidas desde o agora, essas determinações linguageiras não apenas
apontam um tempo que passou ou que virá junto ao respectivo movimento, mas ainda
apontam o tempo desde o agora até o fim passado ou o início vindouro.
Indicamos, no capítulo anterior, que a relevância do tempo na faculdade
sensitiva e compositora de imagens não se resume à percepção do tempo, a qual,
ademais, é bem pouco explorada por Aristóteles fora do Tratado do Tempo. Antes, para
se falar propriamente da relação do tempo com as operações da alma, torna-se
necessário reter a estrutura ântero-posterior doadora de tempo, fundada no agora e à
qual chamamos de temporalidade. Essa necessidade provém justamente da leitura mais
aguçada da sensação em De anima frente ao que é dito no Tratado do Tempo –, que
mostra que a sensação é uma alteração no sentido de uma atualização em direção ao
mesmo. Portanto, não se trata de um movimento em sentido estrito, temporalmente
extenso, mas de uma operação situada no agora, instantânea. As consequências disso
são expostas por Aristóteles ao tratar da unidade da sensação múltipla com respeito ao
tempo: é na multiplicidade do agora que reside, de certo modo, tanto a composição de
84
uma sensação múltipla, isto é, a percepção simultânea de diversos sensíveis, quanto a
continuidade da sensação e, assim, a apreensão do movimento e daquilo que se move.
Com isso não queremos dizer que a sensação depende do agora tal como se
pudesse não depender, mas sim que o agora vem à tona no discurso aristotélico como
horizonte de acesso e de apreensão de todo e qualquer fenômeno e, inclusive, como
horizonte de interpretação da constituição ontológica do ente que assim se mostra. Em
outras palavra, é no âmbito do agora que o ente pode ser interpelado e vir à fala segundo
o modo como é tomado, a saber, como subjacente e acidente, conforme ás categorias,
segundo a potência e a atualidade e segundo o verdadeiro e o falso.
No entanto, se bem considerarmos nosso caminho até aqui, veremos que ainda
não tomamos o agora desde ele mesmo. No primeiro capítulo, tentamos seguir o
discurso aristotélico sobre o tempo, trazendo à tona os momentos e aspectos em que, em
função da própria dificuldade de acesso ao tema em questão, esse discurso se mostrasse
ambíguo e, nele mesmo, problemático ao ponto de, não poucas vezes, os
comentadores tentarem apontar falhas ou remediá-las, supondo claro que elas
existissem. Nesse contexto, abordamos o agora a partir do tempo, vimos como é
constitutivo do caráter obscuro do tempo o caráter também obscuro do agora. No
segundo capítulo tornou-se necessária a liberação do tempo como intervalo em favor de
que colocássemos devidamente a questão sobre o âmbito temporal da percepção. Esse
âmbito não é, ele mesmo, tempo, caso se entenda por tempo o intervalo entre agoras.
Seu caráter temporal reside, antes, na estrutura fundamental do agora, à qual chamamos
temporalidade e que é doadora de tempo.
Talvez seja esta a hora de abordamos o agora desde si mesmo. Abordá-lo desde
si mesmo requer, sem dúvida, que se o investigue na sua relação com o tempo, pois nem
agora sem tempo, tampouco, tempo sem agora. No entanto, conforme nos
aproximamos do âmbito temporal da sensação, tornou-se cada vez mais necessário
investigar o agora não como limite do tempo, mas como lugar da sensação enquanto
uma ação que tem em si mesma seu fim e que, por conta disso, não é propriamente um
movimento, nem, consequentemente, é temporalmente extensa.
Assim, primeiramente, investigaremos novamente a natureza do agora, desta vez
a partir da análise de uma expressão utilizada com frequência no Tratado do Tempo e
quase que ausente no restante da obra de Aristóteles. Trata-se da expressão pote ón,
85
que geralmente se encontra onde o leitor tradicional esperaria hypokeîmenon. Os
resultados dessa análise dirão respeito, evidentemente, à totalidade da teoria aristotélica
sobre o tempo exposta na Física, mas, em especial, devem nos conduzir à leitura
apropriada de Física IV, 14, onde é posta a questão sobre a relação entre alma
numerante e tempo ou movimento numerado.
Para finalizar nosso estudo, ensaiaremos uma interpretação do livro IX da
Metafísica, em especial do capítulo 6, em que Aristóteles distingue entre modos de lida
com o mundo (práxis, ação) perfeitos (enérgeiai) e imperfeitos (kinéseis).
3.1. HÓ POTE ÓN
3.1.1. As ocorrências na Física
Tentamos, no primeiro capítulo, uma primeira abordagem ao discurso
aristotélico sobre o tempo, ressaltando aqueles pontos cruciais a uma leitura capaz de
situar o horizonte e a amplitude do texto. Tendo isso em vista, passamos ao largo de
diversos momentos e aspectos do texto que agora devem vir à tona. Um desses aspectos
é a reincidência da expressão hó pote ón
148
.
Dez é o número de ocorrências dessa expressão em todo o corpus aristotélico
149
.
Sete delas encontram-se no Tratado do Tempo, as outras: duas em De partibus
animalium II e uma em De generatione et corruptione. Esse quadro é curioso o
bastante para que mereça atenção dos intérpretes. Mais alarmante, no entanto, é que as
ocorrências na sica apontam sempre um aspecto de identidade, contraposto a um
aspecto de alteridade. Essa contraposição ora se manifesta junto ao ser (eînai, 219a 19-
21, 219b 10s, 219b 12-15, 219b 26-28), ora junto ao enunciado (lógos, 219b 16-21,
220a 6-8). A exceção fica por conta da última ocorrência, no passo 223a 25-29, em
meio à discussão da possibilidade de existir tempo sem que haja um ente capaz de
numerar. Tanto pela dificuldade em se compreender a própria tese em questão ou
hipótese, visto que tampouco é claro se Aristóteles está defendendo um argumento seu
ou apenas levantando uma hipótese quanto pela redobrada estranheza do emprego da
expressão OPO, talvez seja essa última ocorrência a mais enigmática.
148
Doravante, anotaremos a expressão “hó pote ón” com a sigla “OPO”.
149
Bonitz, Index aristotelicus, p. 627.
86
A necessidade de investigarmos essa expressão provém não apenas de sua
estranheza e da concentração de suas ocorrências no tratado que estamos estudamos,
mas do fato de ela ser repetidamente três vezes usada para dizer em que o agora é a
cada vez o mesmo. Não é, porém, o caso da sua primeira aparição, em que estão em
jogo o anterior e posterior e o movimento. Vejamos, então, essa primeira passagem:
ἀλλὰ µὴν καὶ ἐν χρόν ἔστιν τὸ πρότερον καὶ ὕστερον διὰ τὸ
ἀκολουθεῖν ἀεὶ θατέρῳ θάτερον αὐτῶν. ἔστι δὲ τὸ πρότερον καὶ
ὕστερον ἐν τῇ κινήσει µέν ποτε ὂν κίνησις [ἐστιν]· τµέντοι εἶναι
αὐτῷ ἕτερον καὶ οὐ κίνησις.
Mas o anterior e posterior também é no tempo, pelo fato deles se
acompanharem reciprocamente sempre. O anterior e posterior é, no
movimento, aquilo que [o movimento] sendo a cada vez é movimento.
Seu ser, porém, é distinto e não é movimento.
150
Situemos: Aristóteles se encaminha à definição do tempo, tendo constatado
que o tempo ou é movimento ou é algo do movimento (ὥστε ἤτοι κίνησις ἢ τῆς
κινήσεώς τί ἐστιν χρόνος). Não sendo o movimento, resta a segunda opção. Após
transpor a continuidade do movimento ao tempo, Aristóteles afirma a presença do
anterior e posterior no lugar, no movimento e no tempo. O trecho citado acima é, assim,
peça chave para compreender a comparação entre o tempo e o movimento no que diz
respeito ao anterior e posterior.
Embora, como se pode perceber com uma simples mirada no texto, não apareça
o termo hypokeîmenon, seu uso é abundante pelos comentadores. Um deles, Torstrik,
chega a substituir no texto a frase OPO por tò hypokeîmenon
151
. Para Ross, “o anterior e
posterior na mudança são idênticos em substratum à mudança, mas diferentes em
essência [the before and after in change are identical in substratum with change, but
different in essence]”. Dois pontos são notáveis em Ross: primeiramente, embora
mantenha apenas um artigo para a totalidade da expressão “anterior e posterior”, tal
decisão não se enraíza ao flexionar o verbo ser no plural; e ainda, OPO é entendido
como uma fórmula significante do substratum (ou seja, hypokeîmenon). A frase é
entendida da seguinte forma: S (τὸ πρότερον καὶ ὕστερον ἐν τῆ̣ κινήσει) é P (µέν
ποτε ὂν κίνησις
152
). Mas, de onde provém a opinião de que aí se trata do subjacente?
150
Física IV, 11, 219a 18-21, seguimos a tradução francesa de Brague (1995).
151
Torstrik (1867), pp. 464s.
152
Ross segue Simplício e deixa em suspenso o ἐστιν de 219a 21.
87
A frase OPO é composta pelo pronome relativo , pelo advérbio ποτε e pelo
verbo εἰµί no particípio presente neutro, ὄν. Podemos traduzi-la, inicialmente, por o
que sendo em certo momento”. Mas ainda não encontramos vestígio do subjacente. A
expressão em questão remete, especialmente por ser anunciada por um pronome
relativo, aos outros elementos do contexto e sua compreensão requer, por isso mesmo,
uma atenção maior à síntese do discurso.
Ross compreende o pronome relativo como sujeito do particípio presente de
OPO, sendo κίνησις seu predicado. Desta feita, compreende implicitamente uma cópula,
tornando-se desnecessário o ἐστιν da linha 21. A tradução que Ross não fez, mas
pressupôs, seria: “o anterior e posterior no movimento é aquilo que, sendo em um
momento, é movimento”. Percebe-se, assim, que a tradução de Ross ou melhor, a
inserção feita ganha sentido na frase que vem a seguir: τὸ µέντοι εἶναι αὐτῶ̣ ἕτερον
καὶ οὐ κίνησις (seu ser, porém, é distinto e não é movimento). O texto é, portanto,
entendido da mesma forma que: “se, em determinado momento, um músico,
homem”. Ou seja, se (é) um acidente próprio a um determinado subjacente, (é),
consequentemente, este subjacente. Ambos são o mesmo quanto ao subjacente – homem
–, mas ser-homem o se esgota em ser-músico, por isso o ser é distinto. O trecho τὸ
πρότερον καὶ ὕστερον ἐν τῆ̣ κινήσει é tomado, sem que se questione a incomum
colocação do artigo antes de κινήσει, como sujeito, no qual está posto o movimento
como subjacente do anterior e posterior. Chegamos, assim, a visualizar o razão pela qual
se substratum onde, textualmente, não se encontra nenhum termo como
hypokeîmenon.
A interpretação parece orientar-se pelo comentário de Tomás de Aquino: “ele
[Aristóteles] mostra como o anterior e posterior são relacionados ao movimento. Ele diz
que o anterior e posterior do tempo e do movimento, com respeito àquilo que é, é
movimento. Mas, com respeito à razão [ratio], eles são outros que o movimento e não
são movimento... Portanto, o anterior e posterior são o mesmo que o movimento quanto
ao subjacente [subiecto], mas diferentes quanto à razão [ratio]”
153
. Não bastasse
identificar OPO com o subiecto, Tomás de Aquino o eînai que lhe é contraposto
153
In octo libros De physico auditi sive physicorum Aristotelis commentaria, lib 4 l. 17 n.8: “Et dicit quod
prius et posterius ipsorum, scilicet temporis et motus, quantum ad id quod est, motus est: tamen
secundum rationem est alterum a motu, et non est motus. De ratione enim motus est, quod sit actus
existentis in potentia: sed quod in motu sit prius et posterius, hoc contingit motui ex ordine partium
magnitudinis. Sic igitur prius et posterius sunt idem subiecto cum motu, sed differunt ratione”.
88
como ratio, ainda que não poucas vezes encontremos em Aristóteles a relação entre a
identidade e a alteridade expressa com uma contraposição lógos x eînai. Essa, porém,
não é uma novidade na leitura do passo em questão, e Tomás de Aquino não essenão
passando adiante uma exegese já bastante antiga.
A origem da interpretação, que se tornou quase banal entre os comentadores até
meados do século XX, de OPO como referindo-se a um ὑποκεῖµενον elíptico provém,
como assume explicitamente Torstrik, da leitura de Simplício: “e isso é o que diz 'µέν
ποτε ὂν κίνησις', a saber, que o movimento é a realidade (ἡ ὑπάρξις) e o subjacente (τὸ
ὑποκεῖµενον), 'τὸ µέντοι εἶναι αὐτῶ̣', que o enunciado é 'ἕτερον καὶ οὐ κίνησις'
154
.
Vemos aqui não apenas a gênese da compreensão corrente de OPO, como também do
eînai como lógos. Torstrik, apoiando-se ainda em Simplício, afirma: “Aristóteles quer
diferenciar explicitamente a matéria do anterior e posterior do seu conceito”. Ora, se é
essa a intenção aristotélica, ela não é assim o explícita. Se Aristóteles quer
“diferenciar explicitamente” a matéria e o conceito, o subjacente e o enunciado do
anterior e posterior, por que então ele não o faz lançando desses mesmos conceitos?
Mas o que ocorre com OPO segundo essas leituras? Em primeiro lugar, é
interpretado como uma fórmula cunhada e cristalizada por Aristóteles, o que não
corresponde ao fato de aparecer apenas dez vezes em todo o corpus aristotélico. Assim
tomada, é deixada de lado a tarefa de ao menos tentar trazer a luz a sintaxe do passo em
que se encontra a expressão e, principalmente, de questionar o porquê de Aristóteles não
recorrer ao hypokeîmenon, caso fosse realmente ao subjacente, ao substrato, que ele
estivesse se referindo. Sem esse questionamento, o que se faz é descobrir no texto o que
já previamente se espera que esteja ali, mas que, de fato, não está.
Apenas com Rémi Brague (1982), encontramos uma tentativa de leitura que
confronte a intervenção tardia da noção de subjacente. O trabalho de Brague consiste
em mostrar que não apenas é desnecessária essa intervenção, como é sobretudo
imprópria a aplicação daquela noção ao agora e, consequentemente, ao anterior e
posterior. Tal impropriedade será vista com mais clareza nas ocorrências seguintes de
OPO, nas quais se trata explicitamente da identidade e da alteridade dos agoras, mas ela
se deixa entrever pela simples observação de que, em Física IV, 10-14, o termo
154
1867, p. 464.
89
hypokeîmenon não aparece em momento algum referido ao âmbito temporal – na
verdade, ele aparece apenas uma vez, em 223a 1, e referido ao ente móvel.
Segundo Brague, ἐν τῆ̣ κινήσει não restringe τὸ πρότερον καὶ ὕστερον, mas o
primeiro ἔστι. O artigo no dativo τῆ̣, cujo uso é inesperado, indica estar na locução ἐν
τῆ̣ κινήσει o sujeito do verbo no particípio, sendo o predicado deste o pronome relativo
neutro . κίνησις, justamente por o vir acompanhado de artigo, é predicado à OPO
pelo último e polêmico ἐστιν. O fato de o sujeito de OPO ser feminino e o particípio
estar no neutro explicar-se-ia, segundo Brague, pelo predicado em , “atraindo em
gênero a cópula”
155
. Nossa tradução, seguindo a de Brague, seria: “o anterior e posterior
é, no movimento, aquilo que [o movimento] sendo a cada vez é movimento. Seu ser,
porém, é distinto e não é movimento”. Ou seja: sendo o movimento a cada vez o
anterior e posterior, o anterior e posterior, no movimento é movimento, mas o ser do
anterior e posterior é distinto do ser do movimento.
A segunda passagem em que ocorre OPO é 219b 10s. Será a partir dela que
poderemos ver as consequências mais contundentes sobre as posições dos comentadores
quanto à interpretação de OPO. O trecho é:
ὁ δ' ἅµα πᾶς χρόνος ὁ αὐτός· τὸ γὰρ νῦν τὸ αὐτὸ ὅ ποτ' ἦν – τὸ δ'
εἶναι αὐτῷ ἕτερον τὸ δὲ νῦν τὸν χρόνον ὁρίζει, πρότερον καὶ
ὕστερον.
todo tempo simultâneo seja o mesmo; pois o agora [é] o mesmo que
era outrora, seu ser, porém, é diferente
156
.
A expressão aparece aqui com o verbo no imperfeito, ἦν, ao invés do particípio
presente, ὄν. Segundo Torstrik, essas palavras não admitem nenhuma explicação”
157
.
Brague aceita o desafio de Torstrik, mas não encontra outra solução senão a de tomar a
155
1995, p. 103. “Esse fenômeno de atração, aliás, é justamente o que permite corroborar a análise do
relativo como predicado. Essa análise o se produziria caso ele fosse sujeito. É isso que mostra, por
exemplo, a contrario o exame da passagem do Mênon de Platão: Sócrates observa que todas as virtudes
devem ter um mesmo ar de família (eidos) que faz delas virtudes, e rumo ao qual aquele que é interrogado
a seu respeito volta o olhar, colocando com isso em posição de ἐκεῖνο δηλῶσαι, ὅ τυγχάνει οὖσα ἀρετή
(72 c 8). Deve-se traduzir: ‘Colocar sob a luz o que (S) se encontra ser (C) (a) virtude (P)”, trad. de
Nicolás Nyimi Campanário.
156
Física IV, 11 219b 10s.
157
1867, p.470. Brague (1995), p. 114: “Em seu artigo de 1857 sobre OPO, Torstrik o encontra nada
mais para dizer sobre a expressão (pp. 161 e 168). Mas dez anos mais tarde, ele substitui o imperfeito
pelo particípio presente, explicando o seguinte: Essas palavras não admitem nenhuma explicação; fiz
tantas tentativas que considero ter o direito de afirmar isso. Felizmente, não precisamos procurar uma
correção muito longe. Basta aplicar aqui também a fórmula que aparece sempre sob a mesma forma’. (p.
470). Torstrik lança aqui um desafio. Parece que ninguém o aceitou, pois os comentadores permanecem
estranhamente evasivos sobre essa passagem”, trad. de Nicolás Nyimi Campanário.
90
passagem como uma nota de lector eruditus, que anteciparia uma conclusão posterior
“em uma fórmula tão resumida que ela se torna obscura”
158
.
Brague aponta, de início, dois problemas dos quais qualquer interpretação e
tradução da frase deve tratar. O primeiro deles, de ordem sintática, é saber a que se
refere ποτ`ἦν. Sendo introduzida por um relativo, esta expressão não poderia ligar-se
ao τὸ αὐτό, pois então seria necessário um ὅπερ ou σπερ. A outra opção é que o
relativo retome τὸ νῦν, mas a ordem da frase não parece indicar isto, visto que ambas as
partes encontram-se separadas por τὸ αὐτό. Além disso, há o problema de compreender
a posição da frase no contexto. Se, por um lado, ποτ`ἦν confunde e obscurece o
sentido, por outro lado, sua supressão deixaria a frase bem acabada em seu sentido:
“todo o tempo simultâneo é o mesmo, pois o agora é o mesmo ainda que distinto
quanto ao seu ser – e é justamente o agora, enquanto anterior e posterior, que delimita o
tempo”. Este é o argumento de Brague para considerar a fórmula em questão como um
adendo posterior e, ainda que implicitamente, descartá-lo. Com isso, Rémi Brague não
faz senão reforçar o desafio lançado por Torstrik.
Recentemente, Serge Margel (1999), leitor de Brague, tentou dar nova vida à
passagem. Ainda que cite frequentemente seu conterrâneo, omite-se de comentar as
dificuldades sintáticas observadas por Brague em seu estudo. Margel considera
ποτ`ἦν como essencial ao desenrolar da reflexão aristotélica sobre o aspecto paradoxal
do agora, traduzindo o trecho por: “o agora, que era a cada vez, é o mesmo”
159
. Como se
vê, ele deixa de lado a lição de Brague sobre a distância de τὸ νῦν e ὅ ποτ`ἦν.
Pois bem, considerando que este é o texto a que temos acesso – este mesmo com
ὅ ποτ`ἦν e que o termo em litígio não é algo corriqueiro, mas, ao que parece,
fundamental na compreensão aristotélica do tempo, não nos cabe deixá-lo de lado.
Certamente, omitindo-o, a passagem ganha clareza de sentido, mas talvez seja esse um
outro sentido, por mais sutil que seja a diferença, em relação ao passo lido com ποτ`
ἦν. O argumento de Brague para a desconsideração de ποτ`ἦν, portanto, não
convence.
É perfeitamente possível e conveniente, assim, traduzir τὸ γὰρ νῦν τὸ αὐτὸ
ποτ' ἦν por “pois o agora [é] o mesmo que era outrora”. O ἐστιν elíptico teria aqui o
158
Brague (1995), p. 116, trad. de Nicolás Nyimi Campanário.
159
Margel (1999), p. 154: “le maintenant, qui était chaque fois jadis, est le même”.
91
sentido de permanecer. Teria, não fosse o caso de se tratar do agora. Pois é justamente o
agora que funda a noção de permanência. Permanecer é insistir no agora. E por isso, fica
vedado a Aristóteles falar do agora como subjacente (ὑποκεῖµενον). O que é dito neste
passo é que a identidade do agora se funda em sua repetição diferenciada, em seu ser-
outro (τὸ δ' εἶναι αὐτῷ ἕτερον). Esta é a solução encontrada pelo Estagirita para duas
aporias: (a) “o agora não sendo, mas sendo anteriormente, carece findar-se em algum
momento (ποτέ), e os agoras não são simultâneos uns aos outros”
160
; e (b) “o agora não
é capaz de permanecer o mesmo”
161
. Solução: o agora não cessa nem permanece, mas se
repete diferentemente, ou “o agora é o mesmo que era outrora, seu ser, porém, é
diferente”.
Esta interpretação nos permite lançar alguma luz sobre um assunto no qual ainda
não tocamos: qual o sentido de ποτε em OPO? Traduzimos, mais acima, evasivamente,
no caso de ποτ`ἦν, por “outrora”. uma tradicional discussão sobre a determinação
ou indeterminação do ποτε enquanto momento. No entanto, não se coloca em suspeita a
noção de ποτε como momento na referência ao agora (τνῦν), como é o caso em 219
b11. Causa certo mal-estar pensar que o agora é “em determinado (ou indeterminado)
momento”. A frase, assim, beira o absurdo. A noção de ποτε, ao menos na expressão
que investigamos, deve ser haurida do caráter repetitivo do agora. Resolvemos o
constrangimento, portanto, pensando o ποτε como cada dar-se do agora ou,
simplesmente, como “a cada vez”.
A terceira ocorrência de OPO ocupa lugar central no estudo do agora. O trecho,
219 b12-16, segue imediatamente aquele onde se encontra ποτ`ἦν, explicitando o
modo como o agora é a cada vez o mesmo, embora seu ser seja distinto. Vejamos o
passo:
τὸ δὲ νῦν ἔστι µὲν ὡς τὸ αὐτό, ἔστι δ' ὡς οὐ τὸ αὐτό· µὲν γὰρ ἐν
ἄλλῳ καὶ ἄλλῳ, ἕτερον (τοῦτο δ' ἦν αὐτῷ τὸ νῦν <εἶναι>), δέ
ποτε ὄν ἐστι τὸ νῦν, τὸ αὐτό.
O agora é, por um lado, enquanto o mesmo e, por outro, não é
enquanto o mesmo. Pois, na medida em que é outro, é distinto (e isto
era ser para o agora). Mas, o agora sendo a cada vez o que é, é o
mesmo.
162
160
Física IV, 10, 218 a14 s.: τὸ δὲ νῦν µὴ ὂν πρότερον δν ἀνάγκη ἐφθάρθαι ποτέ, κατὰ νῦν ἅµα
µὲν ἀλλήλοις οὐκ ἔσται
161
Física IV, 10, 218 a21 s.: ἀλλὰ µὴν οὐδ' αἰεὶ τὸ αὐτὸ διαµένειν δυνατόν·
162
Física IV, 11, 219b 12-16.
92
O sentido: na medida em que agora é isto ou aquilo, o agora é sempre outro (este
outro consome o agora e é seu ser), mas na medida em que, a cada vez em que isto ou
aquilo é, dá-se o agora, o agora é o mesmo.
É certo que o predicado da frase δέ ποτε ὄν ἐστι τὸ νῦν, τὸ αὐτό é τὸ αὐτό,
mas qual seja o sujeito é o que devemos investigar. Não pode ser o relativo, pois assim
estaria dito que o que o agora é, sendo a cada vez, é o mesmo, isto é, o ser do agora é o
mesmo. Mas é justamente o contrário disso o que é dito na frase anterior. Tampouco
temos o direito de entender a frase como “o subjacente do agora é o mesmo”, visto que
Aristóteles não faz uso do termo hypokeîmenon, cunhado como conceito por ele mesmo.
Portanto, o sujeito deve ser τὸ νῦν, como se espera desde a leitura da frase anterior
(resumindo: o ser do agora é outro, mas o agora é o mesmo). O relativo é predicado
do particípio ὄν e sujeito de ἐστι. Quanto à cópula que há entre τὸ νῦν e τὸ αὐτό, trata-
se de um ἐστι elíptico, o que explica a posição da vírgula entre ambos.
O problema tratado nesse passo impõe-se, claramente, a partir da tarefa de dizer
o agora. Dizemos “agora é noite”, isto é, o ser do agora é noite. Dizemos “agora é dia”,
isto é, o ser do agora é dia. O ser do agora é, a cada vez, distinto. Porém, sempre que
algo é, seja dia seja noite, o agora é, e nesta medida ele é o mesmo. No entanto, o plano
lógico apenas insinua um problema maior. Em primeiro lugar, em qualquer enunciação
do agora como “agora é dia”, o que dele é enunciado é um acidente, mas uma espécie de
acidente essencial ou, caso se prefira, uma essência acidental.
Em segundo lugar, a substantivação do agora torna-se problemática, pois ele se
consome todo pela atualidade do ente que lhe é predicado. O uso de OPO serve à
tentativa aristotélica de dizer algo de um sujeito que, ontologicamente, não é sujeito,
não é subjacente a nada, mas que coincide com todo móvel que atualmente é.
Em seguida a esse passo, Aristóteles retoma a relação entre o tempo ao
movimento e à magnitude. É neste contexto que encontramos a quarta ocorrência de
OPO. O trecho diz:
καὶ ὁµοίως δὴ τῇ στιγµῇ τὸ φερόµενον, τὴν κίνησιν γνωρίζοµεν
καὶ τὸ πρότερον ἐν αὐτῇ καὶ τὸ ὕστερον. τοῦτο δὲ µέν ποτε ὂν
τὸ αὐτό (ἢ στιγµὴ γὰρ ἢ λίθος ἤ τι ἄλλο τοιοῦτόν ἐστι), τῷ λόγῳ
δὲ ἄλλο, σπερ οἱ σοφισταὶ λαµβάνουσιν ἕτερον τὸ Κορίσκον ἐν
Λυκείῳ εἶναι καὶ τὸ Κορίσκον ἐν ἀγορᾷ.
93
E, igualmente, ao ponto [acompanha] o deslocado, pelo qual
conhecemos o movimento e o anterior e o posterior no movimento. O
deslocado é o mesmo sendo a cada vez (seja um ponto, uma pedra ou
qualquer coisa do tipo), mas o modo de dizê-lo é distinto, do mesmo
modo como os sofistas concebiam serem distintos o Corisco no Liceu
e o Corisco na Ágora.
163
Nessa passagem temos OPO relacionado, não ao agora, mas ao deslocado (τὸ
φερόµενον). Impõe-se, logo, a pergunta: por que Aristóteles não usa aqui o termo
ὑποκεῖµενον, que seria conveniente, segundo nossa reflexão, ao ente móvel, mas não ao
agora? Primeiramente, devemos elucidar o passo e, depois, repetir a pergunta.
O Estagirita, a essa altura, estende a relação de acompanhamento entre o
movimento e a grandeza ao deslocado e ao ponto. Constitui-se, assim, a analogia:
ponto-extensão/deslocado-deslocamento. Essa analogia será, a seguir, novamente
estendida, incluindo, desta vez, a relação agora-tempo e, logo depois, a frase OPO se
repetida para dizer a identidade do agora, e não mais do deslocado.
O sentido de 219b 16-21 parece claro: o ente que está em deslocamento
permanece o mesmo a cada passo do deslocamento, uma vez que o deslocamento é o
deslocar-se desse mesmo ente. O ente móvel é, assim, aquilo em que se o
movimento. Rejeitar isso é rejeitar a realidade do movimento, pois significa supor que o
ente vem a ser do não ente absoluto, e assumir a posição em que Aristóteles enquadra
Heráclito. Em outro sentido, porém, o ente tomado na sua composição atributiva (esse
parece ser, a princípio, o sentido de τῷ λόγῳ δὲ ἄλλο) é a cada vez diferente.
Tomemos o exemplo corrente em Física I, o homem inculto que vem a ser culto:
“homem inculto” é diferente de “homem culto”, mas o tornar-se culto apenas é possível
porque o homem permanece homem nessa alteração.
Surpreende, no entanto, que Aristóteles faça uso consciente e irrestrito de um
sofisma para dizer a alteridade existente entre “Corisco no Liceu” e “Corisco na Ágora”.
Além disso, no âmbito sofístico não faz sentido diferenciar entre lógos como definição e
lógos como predicação acidental, distinção essa aristotélica. Portanto, se “Corisco no
Liceu” e “Corisco na Ágora” são distintos pelo lógos do modo como dizem os sofistas,
temos de tomar lógos como enunciado em geral, num sentido amais próximo do que
Aristóteles entende por definição (hórismos).
163
Física IV, 11, 219b 16-21.
94
Mas, qual a razão de Aristóteles propor uma tese tão contrária à sua teoria?
conseguimos compreender sua razão se lermos o passo o como uma tese sobre o
deslocado, mas como uma explicitação do caráter do agora por meio de uma
comparação com uma hipótese. Ou seja, o agora comporta-se como o deslocado sob a
ótica sofística
164
. Trata-se, então, de um artifício retórico usado pelo Estagirita para falar
de um sujeito que não é sujeito algum.
O que vem a seguir é a conclusão do passo, repetindo, desta vez com mais
propriedade, a estrutura já utilizada para dizer a ambiguidade do agora:
τῷ δὲ φεροµένῳ ἀκολουθεῖ τὸ νῦν, ὥσπερ ὁ χρόνος τῇ κινήσει (τῷ
γὰρ φεροµένῳ γνωρίζοµεν τὸ πρότερον καὶ ὕστερον ἐν κινήσει,
δ' ἀριθµητὸν τὸ πρότερον καὶ ὕστερον, τὸ νῦν ἔστιν)· ὥστε καὶ ἐν
τούτοις µέν ποτε ὂν νῦν ἐστι, τὸ αὐτό (τὸ πρότερον γὰρ καὶ
ὕστερόν ἐστι τὸ ἐν κινήσει), τὸ δ' εἶναι ἕτερον (ᾗ ἀριθµητὸν γὰρ τὸ
πρότερον καὶ ὕστερον, τὸ νῦν ἔστιν).
O agora acompanha o deslocado, como o tempo [acompanha] o
movimento (pois pelo deslocado conhecemos o anterior e posterior no
movimento, na medida em que o agora é o anterior e posterior
numerado); de modo que também neles o agora sendo a cada vez é o
mesmo (pois o anterior e posterior é no movimento), mas seu ser
diferente (pois o agora enquanto numerável é anterior e posterior).
165
A locução ἐν τούτοις refere-se a πρότερον e ὕστερόν tomados
individualmente, e não como uma estrutura, o que explica o plural ao invés do singular
τὸ usado na linha anterior. Este passo é importante porque, por um lado, mostra que (a),
embora os limites de um tempo sejam o mesmo (o agora), seu ser é distinto e que (b) o
agora funda-se na tensão do anterior-posterior.
Sobre (a): o agora anterior e o agora posterior não podem ser idênticos, pois o
é possível que coisa alguma que seja finita e divisível tenha um só limite
166
, mas
164
Ross (1998), p.600: The premiss being Coriscus in the Lyceum is different from being Coriscus in
the market-place’ was used by the sophists to support the conclusion that Coriscus is different from
himself. The argument, according to S. 723, 11-20 was ‘Coriscus, being the same, is now in the market
place and now in the Lyceum; he who comes to be now in the market-place and now in the Lyceum
comes to be different from himself”. De fato, esta é a estrutura do argumento de Aristóteles, mas a
questão é saber a respeito do que o argumento argumenta. Aristóteles está longe de concordar com os
sofistas quanto a Corisco ser diferente de si mesmo. O argumento convém, sim, a mostrar como o ser do
agora é, a cada vez, diferente de si mesmo. Brague (1995), p. 129: o agora é o único caso no qual a
sofística tem razão”. Certo, mas com a ressalva de que a sofística, neste caso, escreve certo por linhas
tortas: o que é distinto de si mesmo, diria Aristóteles, não é Corisco, mas o agora e, por desconsiderarem
que no seio da alteridade do agora algo capaz de perdurar junto à repetição do agora (e este algo é,
justamente, o ὑποκεῖµενον), confundem-se os sofistas.
165
Física IV, 11, 219b 22-27.
166
Física IV, 10, 218a 22-24.
95
tampouco podem ser completamente distintos, pois então o agora anterior teria de
deixar de ser em algum agora e o faria em algum agora posterior e, consequentemente,
os agoras anterior e posterior seriam simultâneos. Resta que no agora anterior e no
agora posterior, “o agora, sendo a cada vez o que é, é o mesmo”, o ser (do agora anterior
e do agora posterior) é distinto.
E, então, sobre (b): “pois o agora é o anterior e posterior enquanto numerável” (
ἀριθµητὸν γὰρ τὸ πρότερον καὶ ὕστερον, τὸ νῦν ἔστιν). O ἀριθµητὸν não pode ser
entendido aqui apenas como quantificável. A noção de árithmos diz o resultado da
atividade de articular, organizar, conjuntar. E é este resultado que permite a contagem, o
quantificar
167
. Por isso, Aristóteles faz de πρότερον καὶ ὕστερόν uma expressão, ou
seja, trata-se de uma articulação. E o número é, propriamente, isto: uma articulação.
Devemos, portanto, forçar uma nova tradução que deixe evidente nossa
interpretação: “o agora é a possibilidade da articulação anterior-posterior”. Com isto,
dizemos que a identidade do agora é sua possibilidade de vir a ser outro a cada vez, sem
que, com isso, deixe de ser (isto é, sem que deixe de ser agora). Somente podemos
perguntar pelo agora, quando percebemos o que é na tensão do que foi e do que de
vir. Por isso, Aristóteles diz que quando percebemos o agora como um, não percebemos
o tempo, pois não percebemos o movimento
168
. Na verdade, quando percebemos o
agora como um, nem mesmo vemos o agora mas apenas o que ele é. Percebemos,
stricto sensu, o agora, quando confrontamos agoras distintos e nos damos conta de que
seu caráter é ser sempre outro. E é a possibilidade de ser sempre e sempre outro (isto é,
a possibilidade da articulação anterior-posterior) que é o agora.
Sua determinação como possibilidade de articulação de um anterior e um
posterior provém do fato de ele mesmo já ser “o anterior e posterior no movimento” (τὸ
πρότερον γὰρ καὶ ὕστερόν ἐστι τὸ ἐν κινήσει). Ou seja, seu estatuto, enquanto o
mesmo, é ser sempre anterior a algo e posterior a algo. Em razão disto, é a partir do
agora que se mostram um instante qualquer anterior – do qual o agora é posterior – e um
instante qualquer posterior do qual o agora é anterior. Na medida em que se mostram
167
Seguimos as reflexões de Brague sobre o αo privativo de ἄριθµος. Cf. Brague (1995), pp. 134-144.
168
Física IV, 11, 219a 30-33: ὅταν µὲν οὖν ὡς ν τὸ νῦν αἰσθανώµεθα, καὶ µἤτοι ὡς πρότερον καὶ
ὕστερον ἐν τῇ κινήσει ὡς τὸ αὐτὸ µὲν προτέρου δκαὶ ὑστέρου τινός, οὐ δοκεῖ χρόνος γεγονέναι
οὐδείς, ὅτι οὐδὲ κίνησις.
96
o agora anterior e o agora posterior, torna-se claro que o conteúdo (o ser) de ambos é
distinto, porém articulado pelo agora que atualmente é, e é o mesmo.
Passemos, assim, à próxima ocorrência de OPO:
καὶ γὰρ κίνησις καὶ φορὰ µία τῷ φεροµένῳ, ὅτι ἕν (καὶ οὐχ
ποτε ὄν – καὶ γὰρ ἂν διαλίποι – ἀλλὰ τῷ λόγῳ)·
Pois também o movimento e o deslocamento são um em função do
ente deslocado, que é um (mas não porque está a cada vez sendo
deslocado – pois podem haver interrupções –, mas pela definição).
169
A expressão aparece novamente referida ao deslocado (τὸ φερόµενον), mas,
desta vez, de modo negativo. Devemos, de imediato, retomar 219b 16-21. Desta
passagem dissemos tratar-se de uma hipótese, um artifício usado por Aristóteles para
elaborar um discurso sobre um não-sujeito.
Nossa tese é ratificada agora em 220a 6-8: o deslocado não possui o mesmo
caráter do agora. O que doa unidade ao deslocamento é que o ente deslocado é, por
definição, o mesmo do início ao fim, mas não porque a cada vez – e aqui já podemos ler
“a cada agora” ele está efetivamente em deslocamento (e não em repouso). a
unidade do tempo é dada pelo agora que, sendo a cada vez o que é (seja dia, seja noite),
é o mesmo, mas seu ser é sempre outro.
3.1.2. Os outros textos
De partibus animalium
Iniciando-se em 648 b11, o passo investiga se o quente ( thermón) é dito
absolutamente (haplôs) ou de muitos modos (pleonakhôs). Aristóteles propõe elucidar o
efeito ( érgon) do quente e, se forem muitos, quantos. A seguir, são apontados os
seguintes modos pelos quais se diz que algo é mais quente (thermóteron):
- um corpo é mais quente que outro se aquece mais um corpo em contato consigo;
- ou se causa uma sensação mais forte (mâllon aísthesin) e, sobretudo, dor;
- ou se funde ou inflama algo mais rápido;
169
Física IV, 11, 220a 6-8.
97
- se temos um corpo maior e um menor de igual constituição, o maior é mais quente
(isto é, possui mais calor);
- ou o que demora mais tempo para esfriar, bem como o que menos tarda a esquentar
(embora possa esquentar mais rápido enquanto é homogêneo ou próximo, e mais lento
enquanto é contrário ou distante);
Após a enumeração, Aristóteles afirma:
Λέγεται µὲν οὖν εἰ µὴ πλεοναχῶς, ἀλλὰ τοσαυταχῶς ἕτερον
ἑτέρου θερµότερον· τούτους δὲ τοὺς τρόπους ἀδύνατον ὑπάρχειν
τῷ αὐτῷ πάντας.
Se não é de diversos modos que se diz o quente, mas de tantos modos
[citados acima, diz-se] que uma coisa é mais quente que outra, é
impossível que todos esses tipos convenham à mesma coisa.
170
O que se quer mostrar é que não uma substância que seja mais quente de
modo absoluto, mas que algo é mais quente que algo em algum ou alguns desses
sentidos. A água fervente comparada ao ferro é um dos exemplos usados pelo Estagirita:
segundo ele, a água aquece mais pido, mas o ferro, quando aquecido, é capaz de
queimar outras substâncias com maior intensidade que a água fervente.
Aristóteles passa, então, a outra distinção: entre os corpos, alguns possuem o
calor proveniente de outros, e alguns possuem o calor neles mesmos (mèn allotrían
ékhei tèn thermóteta tà d' oikeían), distinção essa que, algumas linhas depois (649 a6), é
tomada como possuir o calor por si mesmo (kath' autó) ou por acidente (katà
symbebekós). O fogo, por exemplo, possui por si mesmo calor, enquanto a água fervente
possui calor por acidente, isto é, se do fogo é retirado o calor, ele se extingue, mas se
água perde calor, ela deixa de ferver, mas segue sendo água.
, porém, segundo Aristóteles, um caso em que não é simples dizer que algo é
ou o é quente (oud' éstin haplôs eipeîn hóti thermòn è thermón), isto é, um caso
que não se enquadra nem no que é quente por si mesmo, nem no que o é por acidente. É
na explicação desse estranho modo de possuir calor aqui que encontramos OPO:
µὲν γάρ ποτε τυγχάνει ὂν τὸ ὑποκείµενον, οὐ θερµόν,
συνδυαζόµενον δὲ θερµόν, οἷον εἴ τις θεῖτο ὄνοµα δατι σιδήρῳ
θερµῷ.
O que o subjacente a cada vez é, não é quente, sendo adicionado calor
[resulta quente] como se alguém desse nome à água quente ou ao ferro
quente.
171
170
De partibus animalium II, 2, 648b 23-25.
98
Como ressalta Brague
172
, novamente como nos casos da Física o relativo
é predicado, e não sujeito, de tò hypokeîmenon na cópula tynkhánei òn. A diferença
encontra-se entre tomar como “o que o subjacente a cada vez é” ou como “o que a cada
vez é o subjacente”. Trata-se claramente do primeiro caso, pois não se está a dizer que a
cada vez uma ou outra serve de de subjacente, mas que aquilo que é subjacente é
diferente da coisa tomada com a adição de calor – adição essa que, vale dizer, é
constitutiva da própria coisa assim tomada. Aristóteles tem em mente, como o mostra a
frase seguinte, o sangue, cujo subjacente não é quente (e, por isso, ele não seria um
quente por si mesmo), mas que aquilo que se diz com o termo “sangue” implica
necessariamente a presença do calor (e, então, não seria um mero quente por acidente).
Essa discussão será retomada em 649b 21:
Τούτων δὲ διωρισµένων φανερὸν ὅτι τὸ αἷµα ὡδὶ µὲν ἔστι θερµόν,
οἷόν τι ἦν αὐτῷ τὸ αἵµατι εἶναι (καθαπερεὶ ὀνόµατί τινι
σηµαίνοιµεν τὸ ζέον ὕδωρ, οὕτω λέγεται), τὸ δ' ὑποκείµενον καὶ ὅ
ποτε ὂν αἷµά ἐστιν, οὐ θερµόν· καὶ καθ' αὑτό ἐστι µὲν ς θερµόν
ἐστιν, ἔστι δ' ς οὔ. Ἐν µὲν γὰρ τῷ λόγῳ ὑπάρξει αὐτοῦ
θερµότης, ὥσπερ ἐν τῷ τοῦ λευκοῦνθρώπου τὸ λευκόν· δὲ
κατὰ πάθος τὸ αἷµα, οὐ καθ' αὑτὸ θερµόν.
Tendo discernido sobre esses assuntos, é evidente que o sangue é
quente na medida em que o sangue tomado como] o que era ser
para ele (de modo que se significássemos a água fervente através de
um nome, isso seria dito), o subjacente e o que sendo a cada vez ele é
sangue não é quente; e então em certo sentido [o sangue] é quente por
si mesmo, em outro sentido, não. Pois o calor está no seu enunciado,
como no do homem branco está o branco; por outro lado, na medida
em que é por afecção, não é quente por si mesmo.
173
Em pote òn haîma estin, o sujeito é novamente o relativo, sendo-lhe
predicado pela cópula ón o hypokeîmenon que aparece antes, enquanto o aîma é
predicado pelo estin à expressão pote òn [hypokeîmenon]”. Assim, deve-se ler:
“o subjacente e o que sendo a cada vez ele [a saber, o subjacente] é sangue não é
quente”. Mas por que Aristóteles distingue entre o subjacente e “o que sendo a cada vez
ele é sangue”, afirmando que nenhum dos dois é quente.
O sangue não tem em seu subjacente calor, pois ele é composto, segundo
Aristóteles, por água (cujas propriedades são o frio e o úmido) e terra (frio e seco). Por
171
De partibus animalium II, 2, 649a 15-17.
172
1995, pp.107s.
173
De partibus animalium II, 3, 649b 21-27.
99
outro lado, o calor que é próprio do sangue não é um mero acidente como no caso da
água fervente. Seria dado um nome à água fervente caso a ebulição causasse uma
transformação na essência da água, gerando uma nova coisa. Não é, porém, esse o caso
da água, mas sim do sangue. Aristóteles toma como problemático o ser-quente do
sangue porque o sangue vem a ser a partir de terra e água junto a um processo de
aquecimento (como bem observa Brague, trata-se de um cozimento). O resultado, isto é,
o próprio sangue, não é quente, o que significa que ele pode ser resfriado sem deixar de
ser sangue. Não fosse assim, não haveria qualquer equívoco em dizer simplesmente que
o sangue é quente por acidente. Trata-se de uma posse do calor bem diferente do caso
do fogo (que se extingue quando perde calor, e por isso é quente por si mesmo) e da á
água (que tanto pode receber calor quanto pode não recebê-lo, permanecendo, em
ambos casos, água).
Portanto, Aristóteles utiliza a expressão OPO para dizer o sangue tal como ele se
mostra a cada vez, que é como o resultado do cozimento do subjacente (a mistura de
terra e água). Esse resultado, que não é quente, é contraposto à definição do sangue, que
inclui o calor pelo qual ele é gerado.
De generatione et corruptione
Ἀλλὰ τοῦτο τὸ µὴ ὂν ἁπλῶς ἀπορήσειεν ἄν τις πότερον τὸ
ἕτερον τῶν ἐναντίων ἐστίν, οἷον γῆ καὶ τὸ βαρὺ µὴ ὄν, πῦρ δὲ καὶ
τὸ κοῦφον τὸ ν, οὔ, ἀλλ' ἐστὶ καὶ γῆ τὸ ὄν, τὸ δὲ µὴ ὂν ὕλη
τῆς γῆς, καὶ πυρὸς ὡσαύτως. Καὶ ἆρά γε ἑτέρα ἑκατέρου ἡ ὕλη,
οὐκ ἂν γίνοιτο ἐξ ἀλλήλων οὐδ' ἐξ ἐναντίων; τούτοις γὰρ
ὑπάρχει τἀναντία, πυρί, γῇ, ὕδατι, ἀέρι. ἔστι µὲν ὡς αὐτή,
ἔστι δ' ὡς ἑτέρα· µὲν γάρ ποτε ὂν ὑπόκειται τὸ αὐτό, τὸ δ'
εἶναι οὐ τὸ αὐτό.
Mas caberia ser questionado isso: o simples não ente [ òn
haplôs] seria um dos contrários, de modo que a terra e o pesado são
não ente, enquanto o fogo e a luz são ente? Ou não, mas sim o ente é
terra, enquanto o não ente é a matéria da terra, e do mesmo modo com
o fogo? Seria diferente a matéria de cada um? Ou não viria a ser
reciprocamente nem dos contrários, pois pelos contrários existem os
opostos –fogo, terra, água e ar. Ou é em certo sentido a mesma, e, em
outro, diferente, pois o que [a matéria] sendo a cada vez subjaz é o
mesmo, mas seu ser não é o mesmo.
174
Aristóteles aborda, no início da passagem, o simples não ente (òn haplôs),
isto é, a matéria primeira, desprovida de qualquer forma. Isso implica questionar o vir a
174
De generatione et corruptione I, 3, 319a 29-b4.
100
ser dos elementos primordiais, discernindo se o não ente absoluto é algum deles ou se é
a matéria de cada um. Após decidir a favor dessa última formulação, impõe-se o
problema: a matéria primeira é a mesma em todos os elementos ou diferente em cada
um?
O discurso aristotélico passa, então, a operar o mais no âmbito da dicotomia
matéria-forma, em que os quatro elementos (fogo, terra, água e ar) com suas respectivas
propriedades (quente e seco, seco e frio, frio e úmido, úmido e quente) respondem pela
matéria última de todas as coisas, mas no seio da matéria apenas. A solução é
encontrada no cruzamento entre os elementos opostos e as propriedades contrárias: na
ordem dos elementos citada por Aristóteles em 319b 2, a passagem de um a outro se
pela permanência de uma propriedade e pela mudança da outra. A frase “pois o que [a
matéria] sendo a cada vez subjaz é o mesmo” deve ter como exemplo aplicativo o
seguinte: seco é a determinação subjacente da relação entre a matéria-terra e a matéria-
fogo, isso que subjaz permanece o mesmo (note-se que é a propriedade material, que
ordinariamente consiste no predicado, é tomada como subjacente da matéria mesma),
mas ora é predicado da terra, ora do fogo, seu ser, portanto, é diferente.
Vemos, assim, que a expressão OPO é usada para operar uma certa inversão no
discurso predicativo comum, inversão essa requerida por uma situação limítrofe em que
o recurso a um subjacente stricto sensu se mostra absurdo (pois haveria sempre uma
matéria anterior à matéria, e assim ao infinito) e se faz necessário certo contorcionismo
da linguagem para explicar o fundamentação do fundamento. Daí a ambiguidade: em
certo sentido a matéria primeira dos quatro elementos é a mesma, em outro sentido o
é.
3.1.3. A última ocorrência de Física IV, 10-14
Após um salto no texto de Aristóteles, encontramos a última ocorrência de OPO
em 223a 25-29. Trata-se das considerações finais acerca do tempo, e o tema em questão
é, especificamente, a existência do tempo sem a alma (εἶναι χρόνον ψυχῆς µὴ οὔσης).
εἰ δὲ µηδὲν ἄλλο πέφυκεν ἀριθµεῖν ψυχὴ καὶ ψυχῆς νοῦς,
ἀδύνατον εἶναι χρόνον ψυχῆς µὴ οὔσης, ἀλλ' τοῦτο ποτε ὂν
ἔστιν χρόνος, οἷον εἰ νδέχεται κίνησιν εἶναι ἄνευ ψυχῆς. τὸ δὲ
πρότερον καὶ ὕστερον ἐν κινήσει ἐστίν· χρόνος δὲ ταῦτ' ἐστὶν
ἀριθµητά ἐστιν.
101
Se nada que não a alma ou o intelecto da alma por natureza numera,
impossível haver tempo não existindo a alma, a não ser o tempo sendo
aquilo que a cada vez é, da mesma forma como se acredita haver
movimento sem alma, e o anterior-posterior é no movimento; e o
tempo é o anterior e posterior enquanto numeráveis.
175
A ocorrência de OPO é desprezada por quase todos os comentadores, que se
satisfazem por ler ποτε ὂν ἔστιν χρόνος como “o substrato do tempo”
176
. De fato,
essa passagem é tão polêmica e tão pouco clara, mesmo tomando OPO como substrato,
que o foco da interpretação recai plenamente na compreensão da relação entre alma,
tempo e movimento. Tentaremos entender o argumento de Aristóteles para depois,
então, tratarmos de OPO.
O problema que é aqui abordado nasce na definição aristotélica do tempo como
“número [numerado] do movimento segundo o anterior e posterior”. Para Aristóteles, a
realidade do número como abstração intelectiva é estritamente dependente da realidade
do ente capaz de realizar tal abstração. Na definição do tempo, porém, essa realidade é
atrelada a algo cuja realidade não depende da capacidade de numerar, o movimento.
O caso guarda certa semelhança com o dos sensíveis, cuja realidade supõe a
existência de entes capazes de sentir. Ainda que algo não seja percebido agora, é
resguardada sua capacidade de ser percebido por haver também algo capaz de percebê-
lo, mesmo que não o perceba agora
177
. E esse é justamente o sentido do aístheton, caso
contrário teríamos de sustentar que sensível é apenas o que se encontra agora em
atividade ou que, por outro lado, inúmeros e desconhecidos outros sensíveis que
carecem de um ente capaz de percebê-los.
Enquanto no De anima Aristóteles fala explicitamente da subsistência do
hypokeîmenon que possui formas sensíveis, ainda que não haja ente algum capaz de
perceber essas formas, em Física III, 1, ele afirma que “a cor (khrôma) e o visível
(horatón) não são o mesmo”
178
, embora seja justamente a cor aquilo que é
primordialmente (kŷrios) visível. Isto é, numericamente são o mesmo, mas quanto ao
ser são distintos, de modo que na ausência da possibilidade (dýnamis) de sensação, a
cor não perde sua realidade enquanto cor, mas apenas enquanto visível.
175
Física IV, 14, 223a 25-29.
176
É o caso, por exemplo, de Sorabji (2006), p. 93, e de Goldschmidt (1982), p. 111.
177
De anima III, 2, 426 a15-26.
178
Física III, 1, 201 b4.
102
A semelhança entre os casos parece parar por . Se a cor é um atributo real do
colorido, o tempo o pode ser atribuído a nenhum hypokeîmenon. Ou pode? Caso se
tome OPO como “substrato”, Aristóteles estaria dizendo que, embora o tempo não
exista sem o intelecto da alma, seu substrato, o movimento, existiria sem ele, o
intelecto. Mesmo nesse caso o problema permanece de pé, a o ser que se tome como
análoga a relação entre, por um lado, o tempo e o tempo enquanto numerável e, por
outro, a cor e o visível. Vimos, porém, que isso é completamente inadequado à própria
definição do tempo, pois ele é essencialmente numerável.
No entanto, mantendo ainda a lição da cor e do visível, podemos tomar a
analogia entre eles e o par movimento/tempo, de modo que o movimento independa da
existência de um ente capaz de numerar na mesma medida em que a cor tem autonomia
frente ao ente capaz de perceber, enquanto o tempo depende daquele ente na mesma
medida em que o visível depende do percipiente. Consequentemente, se a cor é visível,
o movimento – e, de modo mais direto, o anterior e posterior no movimento – é
numerável e é tempo. Insólita conclusão se nos fixarmos na recusa aristotélica, em
Física IV, 10, de uma tal definição, mas bastante convincente e, inclusive, exigida pela
própria investigação. Vale lembrar que, no capítulo 11, Aristóteles já afirmara que “o
tempo não é movimento senão na medida em que o movimento possui número”
179
, o
que significa que, ao menos em certo sentido, o tempo é movimento. Assim, como
afirma Rey Puente,
no âmbito dessa relação especial [a saber, entre os termos que
compõem a definição do tempo] a ênfase atribuída a cada um dos
termos que integram a definição do tempo é intercambiável. […] dizer
que o tempo é 'número do movimento segundo o anterior-posterior' é
o mesmo que dizer que ele é 'movimento numerado segundo o
anterior-posterior'
180
.
Aristóteles precisa, então, dizer que o tempo é movimento numerado segundo o
anterior e posterior, sem identificá-lo simplesmente ao movimento. O tempo aparece, a
quem ele pode aparecer, como a estrutura anterior-posterior do movimento, seu ser,
porém, é o ser-numerado do movimento segundo essa estrutura. Do mesmo modo como
o sangue é quente porque sua existência depende de um cozimento, embora ele mesmo
179
Física IV, 11, 219b 2: οὐκ ἄρα κίνησις ὁ χρόνος ἀλλ' ᾗ ἀριθµὸν ἔχει ἡ κίνησις..
180
2001, p. 156.
103
não se apresente a cada vez como quente
181
, o tempo não existe sem ser o movimento
numerado segundo o anterior e posterior, mas o anterior e posterior do movimento não
carece de intelecto. Àquele ente capaz de numerar, o tempo se apresenta como anterior e
posterior no movimento, embora o tempo mesmo o seja apenas o anterior e posterior
no movimento, mas, sim, “o anterior e posterior enquanto numeráveis”. Aristóteles
lança mão de OPO para dizer o modo como o tempo se apresenta ao ente ao qual ele é
capaz de se apresentar, discernindo entre, por um lado, seu modo de apresentação e, por
outro, seu ser e sua definição, que implicam o ser-numerado.
Com isso, voltamos à discussão do capítulo anterior sobre a percepção do tempo
nos animais e no homem. Que alguns outros animais que não o homem sejam dotados
de uma percepção do tempo significa que são capazes de apreender o anterior e
posterior no movimento, isto é, perceber a sucessividade e a simultaneidade do sensível.
Apenas ao homem, porém, o tempo se mostra enquanto tal, ou seja, como algo distinto
do movimento e das coisas, de modo que somente aquele ente pode contar com o
tempo. Sem dúvida, essa percepção em sentido forte ultrapassa o âmbito estritamente
sensível do real, desdobrando-se propriamente nas atividades que implicam o discurso e
o silogismo, como a recordação e, em especial, o artifício (tékhne). Com efeito, a
possibilidade de recordar o que se esqueceu e de projetar, prever, está ao alcance do
ente capaz de contar com o tempo.
Tendo em vista tudo o que dissemos sobre 223a 25-29, não parece haver razão
para pensar que Aristóteles, no citado trecho, evita responder a questão sobre a
existência do tempo, como cVictor Goldschmidt
182
, ainda que a resposta aristotélica
não seja nem um pouco simples e definitiva, como pensa Ursula Coope
183
. A virada
euporética nesse caso é tão oblíqua, como vimos, quanto a solução da aporia sobre o
ser-quente do sangue. De todo modo, a análise de Goldschmidt aponta com firmeza o
interesse de Aristóteles: Está aí o ponto decisivo. Não se trata de saber se a alma é
necessária para perceber o tempo, mas se o tempo não é inteiramente uma construção do
intelecto, carecendo, nele mesmo, de toda realidade substancial”
184
. Goldschmidt dirá,
contra a tese de Antifonte de que o tempo é “pensamento (nóema) e medida (métron), e
181
De partibus animalium III, 2, 648b 23-25; 3, 649b 21-27. Cf. seção anterior.
182
1982, pp. 111-122.
183
2005, pp. 159-172.
184
1982, p. 117.
104
não substância (hypóstasis)”
185
, que o tempo possui uma realidade substancial, a saber,
o anterior e posterior no movimento. Mas atribuir ao anterior e posterior o sentido de
substrato do tempo, além de resultar de uma intervenção no texto aristotélico, lendo
hypokeîmenon onde não há, não resulta em nenhum ganho de clareza, afinal como o
anterior e posterior poderia ser o substrato de algo?
Torstrik opta por ler kínesis como “substrato” do tempo, afirmando que “o
tempo enquanto tal não é concebível sem uma alma para apreendê-lo; apenas seu
substrato, o movimento, é concebível também sem alma”
186
. No entanto, o tempo não é,
para Aristóteles, uma construção do intelecto, mas é quase isso: algo como o horizonte
da lida do ente dotado de intelecto com o mundo móvel ou, como afirma Rey Puente,
modus operandi da percepção
187
.
Com essa caracterização apontamos o lugar de encontro de dois entes cujos
modos de ser diferem radicalmente, a alma dotada de intelecto e o mundo móvel. Pois
se a alma é capaz de perceber o tempo e as coisas que são no tempo, ela o o faz por
um movimento no sentido estrito que o termo kínesis possui para Aristóteles
188
. Por
isso, mesmo quando concordamos com Rey Puente sobre o tempo ser a modalidade da
percepção, devemos estar alertas ao fato de que, como veremos na próxima seção, a
alma não é temporal no mesmo sentido em que os movimentos e móveis são temporais.
Não é por acaso que, em Metafísica IX, 6, Aristóteles fundamenta em tempos verbais a
distinção entre a atividade pura (enérgeia) e o movimento (kínesis), como tampouco é
desprezível, que todos os exemplos relativos à enérgeia digam respeito explicitamente a
ações (práxeis) da vida anímica do ente dotado de intelecto e discurso.
Indagaremos, a seguir, a distinção entre as ações anímicas e o movimento
segundo o critério da temporalidade, utilizado por Aristóteles no livro IX, especialmente
em seu sexto capítulo.
185
Écio, 1, 226: νόηµα ἢ µέτρον τὸν χρόνον, οὐχ ὑπόστασιν. Ver, acima, seção 1.1.4. de nossa
dissertação.
186
Torstrik (1867), p.515: Die Zeit ist als solche nicht denkbar ohne eine Seele sie aufzufassen; nur ihr
substrat, die Bewegung, ist auch ohne Seele denkbar.
187
2001, p. 276.
188
Cf. capítulo anterior.
105
3.2. PRÁTICAS DO PRESENTE-PERFEITO EM METAFÍSICA
IX, 6
Antes de adentrarmos a discussão que realmente nos interessa, cabem algumas
breves palavras sobre o livro IX. Primeiramente, seu tema é o ser enquanto dýnamis e
enérgeia. Ele é nitidamente dividido em duas partes: uma que compreende os capítulos
1-5, e outra composta pelos capítulos 6-9, de modo que o décimo e último capítulo,
versando sobre a verdade e a falsidade, encontra-se isolado dos restantes. Na primeira
etapa, Aristóteles trata da dýnamis envolvida no movimento e concebida como o poder
de um ente atuar sobre outro e de resistir à atuação do outro; na segunda etapa, a
dýnamis é inquerida desde sua copertinência com a enérgeia que não implica
movimento, isto é, como uma potencialidade relativa a uma atividade. Deixaremos de
lado a discussão sobre a relação entre ambas as etapas, seja ela de continuidade como
defende Michael Frede – ou de ruptura – como defende Ross
189
.
O sexto capítulo começa com o anúncio de que a namis será abordada em um
sentido que não se restringe ao âmbito do movimento. O primeiro espanto ocorre aos
lermos que essa extensão do sentido da dýnamis para além do movimento coincide com
a necessidade de uma investigação da enérgeia, pois também a enérgeia deveria estar
em jogo na abordagem da dýnamis katà kínesin. Consequentemente, tratar-se-ia também
de uma distinção entre um sentido de enérgeia implicado no movimento e outro que
independe do movimento? Não necessariamente, pois se o movimento consiste em
entelékheia e enérgeia, enquanto atualidade e atividade, o que o caracteriza é o sentido
da dýnamis da qual atividade e acabamento, sendo o movimento uma atividade
inacabada (Física III, 2, 201b 31s: enérgeia atelés), pois ali onde ele é pleno não
movimento. Quando, então, Aristóteles traça uma distinção entre kínesis e enérgeia, em
IX, 6, o que se separa, em verdade, é a duplicidade do conceito de dýnamis. Onde
movimento, há necessariamente um “ainda não” e esse é o poder do móvel.
A passagem que sobremaneira nos interessa, 1048b 18-35, é motivo de grande
polêmica pelo fato de ser omitida nos manuscritos E e J, encontrando-se apenas em A
b
.
Não bastasse isso, seu papel no andamento de IX, 6 parece ser, no mínimo, superficial,
189
Para uma introdução a essa polêmica indicamos os comentários de Stephen Makin, Aristotle
Metaphysics book Θ (2006), e de Gauthier-Muzellec, L'âme dans la Métaphysique d'Aristote (1996).
106
de modo que tanto pode se tratar de um acréscimo de copista, quanto de um adendo
aristotélico a título de comentário, tal como as nossas notas de rodapé
190
. De qualquer
maneira, a lição não é estranha a Aristóteles e, como não estamos comprometidos com a
discussão acerca da composição do livro IX, mas com um problema que diz respeito ao
tratamento aristotélico da relação entre tempo, alma e movimento, não impedimento
a que nos sirvamos do texto em questão. Vejamos, sem mais demora, o passo 1048b 18-
35:
Ἐπεὶ δὲ τῶν πράξεων ὧν ἔστι πέρας οὐδεµία τέλος ἀλλὰ τῶν
περὶ τὸ τέλος, οἷον τὸ ἰσχναίνειν ἢ ἰσχνασία [αὐτό], αὐτὰ δὲ ὅταν
ἰσχναίνῃ οὕτως ἐστὶν ἐν κινήσει, µὴ ὑπάρχοντα ὧν ἕνεκα ἡ κίνησις,
οὐκ ἔστι ταῦτα πρᾶξις οὐ τελεία γε (οὐ γὰρ τέλος)· ἀλλ' ἐκείνη
<ᾗ> ἐνυπάρχει τὸ τέλος καὶ [ἡ] πρᾶξις. οἷον ὁρᾷ ἅµα <καὶ
ἑώρακε,> καὶ φρονεῖ <καὶ πεφρόνηκε,> καὶ νοεῖ καὶ νενόηκεν, ἀλλ'
οὐ µανθάνει καὶ µεµάθηκεν οὐδ' ὑγιάζεται καὶ ὑγίασται· εὖ ζῇ καὶ
εὖ ἔζηκεν ἅµα, καὶ εὐδαιµονεῖ καὶ εὐδαιµόνηκεν. εἰ δὲ µή, ἔδει ν
ποτε παύεσθαι ὥσπερ ταν ἰσχναίνῃ, νῦν δ' οὔ, ἀλλὰ ζῇ κα
ἔζηκεν. τούτων δὴ <δεῖ> τὰς µὲν κινήσεις λέγειν, τὰς δ' ἐνεργείας.
πᾶσα γὰρ κίνησις ἀτελής, ἰσχνασία µάθησις βάδισις οἰκοδόµησις·
αὗται δὴ κινήσεις, καὶ ἀτελεῖς γε. οὐ γὰρ ἅµα βαδίζει καὶ
βεβάδικεν, οὐδ' οἰκοδοµεῖ καὶ ᾠκοδόµηκεν, οὐδὲ γίγνεται καὶ
γέγονεν κινεῖται καὶ κεκίνηται, ἀλλ' ἕτερον, καὶ κινεῖ καὶ
κεκίνηκεν· ἑώρακε δὲ καὶ ὁρᾷ ἅµα τὸ αὐτό, καὶ νοεῖ καὶ νενόηκεν.
τὴν µὲν οὖν τοιαύτην ἐνέργειαν λέγω, ἐκείνην δὲ κίνησιν.
Se dentre as ações que possuem limite nenhuma é um fim, mas são em
vias do fim, como o emagrecer para a cura pelo emagrecimento,
quando se emagrece se [as ações em vista do fim] estão em
movimento desse modo, não possuindo aquilo em direção ao que é o
movimento, essas coisas não são ações ou, ao menos, não são [ações]
acabadas. Mas aquela em que está implicado o acabamento é também
uma ação, como “vê” <implica simultaneamente ter visto”>;
“compreende” <implica simultaneamente “ter compreendido”>;
“pensa”, ter pensado”; mas “aprende” não implica que aprendeu,
nem “se cura” que se curou; “vive bem” implica ter vivido bem,
“alcança a felicidade” implica já tê-la alcançado, se não, teria cessar
em algum momento como quando se emagrece, mas vive e viveu.
Alguns desses devem ser ditos movimentos, outros atividades, pois
todo movimento é inacabado, como o emagrecimento, o aprendizado,
a caminhada e a construção: são movimentos e, portanto, inacabados.
Pois não caminha e caminhou simultaneamente, nem constrói e
construiu, nem vem a ser e veio a ser, mas são diferentes, e assim
também move-se e moveu-se; enquanto “já ter visto” e “vê” são
simultaneamente o mesmo, bem como “pensa” e “pensou”. Digo, pois,
esse caso atividade, e aquele digo movimento.
191
190
Hipótese aventada por Burnyeat, “Kinesis vs. Energeia” (2008).
191
Metafísica IX, 6, 1048b 18-35.
107
O problema concernente ao uso do termo prâxis (ação) como se fosse um gênero
que englobasse a atividade (enérgeia) e o movimento (kínesis) pode ser explicado tanto
pelo fato de Aristóteles ater-se às atividades humanas, isto é, modos de lida com o
mundo, como pode ser visto pelos exemplos citados (ver, viver, compreender, pensar,
sublimar, emagrecer, curar-se, construir, caminhar), quanto por se tratar essa passagem
de uma nota do próprio Estagirita ou da Escola, razão pela qual o seria necessário
maior rigor terminológico, o que explicaria também o fato de ser feita uma distinção
entre enérgeia e kínesis, apesar da própria kínesis implicar uma enérgeia (Física III,1),
ainda que ligada à dýnamis katà kínesin. De toda maneira, porém, os indícios de certos
problemas terminológicos não ocultam o ponto central da discussão: os dois modos
diferentes da lida com respeito ao fim e ao acabamento.
Esse tema aparece algumas vezes no corpus aristotélico: na hierarquização das
ações (Ethica Nicomachea I, 1), nas discussões sobre o prazer (Ethica Nicomachea X,
3-5) e sobre a sensação (De sensu, 6; De anima II, 5). O trecho que citamos de Met. IX
constitui, assim, a formulação de uma diferença abordada em outros tratados, embora
nesses outros tratados ela seja tratada como meio de resolver uma outra questão, seja
relativa a sensação, seja à ação ou ao prazer.
o interessam à nossa investigação os diversos aspectos problemáticos da
construção sintática dessa passagem
192
. O que convém ao nosso propósito é a distinção
temporal entre kínesis e enérgeia, traçada por Aristóteles através da copertinência ou
não entre o perfeito e o presente. A princípio, o argumento aristotélico parece ser o
seguinte: a possibilidade de se expressar uma ação simultaneamente tanto no perfeito
quanto no presente provém do fato de que justamente quando essa ação ocorre ela
alcançou seu fim, enquanto que a interdição desse modo de expressão provém do fato
de a ação ocorrer apenas quando ainda não alcançou seu fim, tendo alcançado seu fim, a
ação cessa. Àquele tipo de ação, Aristóteles chamaria atividade (enérgeia); enquanto a
esse último, movimento (kínesis).
192
Para uma exposição das dificuldades sintáticas do texto, cf. Brague (1988), cap. IX.
108
No entanto, não podemos afirmar que Aristóteles está abordando, aqui, a
enérgeia e a kínesis a partir das suas possibilidades de expressão e, menos ainda, a partir
dos usos correntes do grego de sua época. Com efeito,
Em primeiro lugar, os perfeitos empregados por Aristóteles na
passagem citada da Metafísica para ilustrar as enérgeiai são todos,
com exceção de heórake, excepcionalmente raras em grego; é até
mesmo provável que eudaimóneke e ézeke tenham sido criados por ele
para a ocasião (sendo bebíoke o perfeito normal de zêi). Quanto a
heôrake, o único perfeito encontrado regularmente nos textos, ele
jamais exprime simplesmente a completude da ação de ver, como é o
caso em Aristóteles: sua particularidade é, antes, de ter uma referência
que embala continuamente presente e passado. É o caso, por exemplo,
em oudè toûton heóraka”, extraído de Platão, Íon, 533b 4, que se
traduz por “este que jamais se viu” e que significa precisamente “este
que eu não tenho condições de ter visto em nenhuma ocasião (passada
ou presente)”.
193
Desse modo, por um lado, se os perfeitos citados nos exemplos de movimento
são comumente empregados no grego, por outro lado, Aristóteles precisa contorcer o
idioma para expressar o que não se comporta como um movimento. Para isso, ele lança
mão de uma relação de copertinência e co-implicação entre tempos verbais, na qual o
tempo mesmo se anula e pela qual se manifestam ações pré-temporais. Essas ações que
não possuem um desdobramento temporal são, porém, no tempo tal como o agora é no
tempo. Elas podem, inclusive, perdurar, mas seu perdurar, sua duração, é distinta da
duração de um movimento. Tomemos o exemplo da visão: o “ter visto” acompanha
necessariamente o “vê”, mas não exclui o “ainda vê”. Na perspectiva da atividade, o
“ainda vê” é um manter-se no mesmo, por outro lado, quando levamos em conta aquilo
que é visto, pode ser a cada vez diferente, acompanhando, por exemplo, o movimento
do visível, ou movimentando-se o espectador. Esse caráter de alteridade do ver não
pode, porém, ser estendido aos outros casos de enérgeia, mas se aplica igualmente às
outras sensações. Quanto aos outros exemplos de enérgeia empregados por Aristóteles,
dois são intransitivos (zeîn, eudaimoneîn), enquanto phroneîn é transitivo; com
respeito ao noeîn, pode-se dizer que o pensar pensa sempre algo, ainda que esse algo
seja justamente o pensado, compondo assim uma transitividade fundamentalmente
reflexiva, da qual o pensar não pode escapar.
193
Sarah de Voguë et al. “Aspect” in B. Cassin (2004), pp. 142s.
109
Comum a todos os casos citados de enérgeia é a circunscrição no âmbito
anímico humano (embora a aísthesis não seja exclusivamente humana). É verdade que,
na medida em que Aristóteles está tratando de modos da prâxis, também os exemplos de
movimento convêm ao homem, mas não são casos de ações da alma e podem ser
aplicados – não enquanto prâxis, mas enquanto kínesis – ao ente móvel em geral. Talvez
a restrição ao domínio da prâxis seja apenas a delimitação de um campo em que se
encontram casos tanto do que Aristóteles chama aqui de enérgeia quanto de kínesis.
Com efeito, se a kínesis não está restrita a esse domínio, o que ele então toma por
enérgeia está.
A divisão operada por Aristóteles entre enérgeia e kínesis não é, ao que tudo
indica, uma separação e comparação entre casos aleatórios, mas demarca, ainda que
implicitamente, dois âmbitos distintos com respeito ao tempo. Um que diz respeito à
alma humana mais precisamente, à alma dotada de noûs e lógos e cujo modo de ser
se encontra estreitamente ligado ao modo de ser do agora; e outro que diz respeito ao
mundo móvel e cuja realização é, stricto sensu, temporal passageira. As ações que o
enérgeiai m sua consumação no mesmo agora em que ocorrem, enquanto as kinéseis
consumam-se sempre em outro agora, o que significa dizer que ocorrem não
propriamente no agora, mas na passagem do tempo. Aquelas são realizações do mesmo,
enquanto as últimas são realizações do outro, “do que é em potência enquanto tal”.
conflito, porém, ali onde esses âmbitos de algum modo se confrontam, ou
seja, onde a atualização da alma se depara com o movimento. Ora, o movimento não é
tempo, senão na medida em que é numerado, e o ser numerado do movimento consiste
na imposição do limite (o agora que pode se desdobrar em dois, constituindo, assim, um
intervalo chamado tempo), que, se, em certo sentido, é o limite de cada movimento, por
outro lado, é o limite imposto a todo e qualquer movimento simultâneo, o que explica
que o tempo seja o mesmo para todos os movimentos simultâneos.
É justamente nesse confronto entre, por um lado, a demarcação do agora pela
ação da alma capaz de numerar, que o faz naturalmente isto é, segundo seu próprio
modo de realização instantâneo e, por outro lado, a dimensão do “ainda não” do
movimento, que se dá tempo. Por isso, Aristóteles precisa fazer uma concessão à
existência do tempo sem alma: aquilo que é numerado no encontro entre a atividade da
alma numerante e o mundo móvel – a saber, o movimento – independe dessa espécie de
110
alma, mas a unidade do tempo ou seja, seu ser e do movimento enquanto algo
temporal funda-se numa prâxis que reúne alma e mundo.
Essa reunião tem como unidade o agora. Com efeito, é por ele que é determinada
a unidade do tempo, seja na perspectiva da continuidade, seja da totalidade, bem como
da universalidade e da unidade numérica
194
. Com respeito à continuidade, o tempo é
contínuo pelo agora; com respeito à totalidade, o tempo é limitado pelo agora enquanto
dois; com respeito à universalidade, o fato de o tempo ser o mesmo para múltiplos
movimentos independentes funda-se na coexistência no agora expressa pelo háma; com
respeito à unidade numérica, o tempo é um porque, apesar de aquilo que é agora ser a
cada vez diferente, o agora é o mesmo. Além disso, a unidade da síntese de número e
movimento expressa pela definição do tempo funda-se também no agora, e isso em dois
aspectos: primeiramente, porque é a estrutura anterior-posterior relativa à ambiguidade
entre a alteridade e a identidade dos agoras que articula a conjunção de número e
movimento; em segundo lugar, porque é também o agora que responde pelo fundo da
relação entre a ão numeradora do ente cuja alma é dotada de intelecto e os entes cuja
mobilidade se apresenta àquele ente como numerável.
No entanto, o papel relegado ao agora na investigação aristotélica sobre o tempo
não é um passo isolado nos escritos do Estagirita. Pelo contrário, o lugar central que
ocupa o agora no estudo do tempo acompanha o tratamento dado por Aristóteles aos
conceitos de enérgeia, entelékheia e dýnamis. Vimos que as ações da alma humana são
para Aristóteles enérgeiai que requerem um sentido de dýnamis distinto daquele
implicado no movimento. Brague, referindo-se àquelas enérgeiai, afirma “são atos as
situações tais que nós estamos dentro delas [dans celles-ci]”, ou seja, trata-se de ações
às quais não há um acesso gradativo, uma introdução, e das quais o desvio é interditado.
Assim, se Aristóteles elabora seu discurso sobre o tempo a partir dos problemas
concernentes ao agora que, como vimos, repercutem ao longo de todo o Tratado do
Tempo – não é por outra razão senão pelo fato de não abandonar o âmbito em que opera
a alma. Mas será possível inverter essa predeterminação do tempo pelo agora, e do
agora pela enérgeia pura, e dizer que é, antes, a própria caracterização das operações
anímicas humanas que é previamente orientada pelo privilégio do agora na
compreensão aristotélica do tempo? Ao que nos parece, essa pergunta apenas pode ser
194
Para uma discussão aprofundada dos aspectos henológicos da física e da metafísica aristotélicas, ver L.
Couloubaritsis, “Le statut de l'un et du multiple dans la 'Métaphysique'” (2005).
111
respondida através de uma repetição de nossa investigação que parta não mais do
discurso sobre o tempo, mas da constituição onto-heno-lógica da essência (ousía),
buscando apropriar-se do horizonte em que, para Aristóteles, a essência reúne as
possibilidades de compreensão e interpelação do real.
Essa tarefa deveria comportar, em primeiro lugar, um estudo dos fundamentos
da física aristotélica notadamente, a relação entre a ousía e os contrários e, além
disso, uma investigação, mais aguçada do que a feita por nós no capítulo 2, acerca do
discurso aristotélico da alma e de suas faculdades, em especial no que toca à aplicação
dos conceitos de entelékheia, dýnamis e enérgeia nesse âmbito.
Para esse propósito, seria interessante seguir a proposta e os resultados obtidos
por Margel (1999), segundo o qual a determinação do ente como ente presente conduz a
um ocultamento do tempo na medida em que seu movimento implicaria sempre um
retorno a si da essência (ousía). Seu estudo, porém, deixa de lado o problema da
percepção e numeração do tempo e do movimento, isto é, o viés psico-epistemológico
que apresentamos em nossa investigação e que, como esperamos ter mostrado, não é de
pouca importância.
112
CONCLUSÃO
A lição aristotélica sobre o conceito de tempo, apresentada em Física IV, 10-14,
conduz-nos a aporias que vão além do domínio da própria física. Verificamos esse
extravasamento pelos problemas relativos tanto à psicologia quanto à predeterminação
temporal do ente como presente, aos quais nos enviou o texto da Física. Nesta
dissertação, partimos da Física e abordamos especialmente o laço entre a questão do
tempo e horizonte de lida da alma com o mundo móvel. Uma certa peculiaridade pôde
ser percebida quanto ao método do Tratado do Tempo: Aristóteles sobrepõe a
investigação sobre o que é o tempo à aporia sobre a sua existência. Em momento algum
fica decidido que o tempo “encontra-se entre as coisas que são”. Não obstante a
pressuposição de que ele de fato seja, a possibilidade de se decidir pelo seu não-ser
permanece como constante risco e a fundamentação da sua existência como tarefa
urgente. A própria passagem da colocação explícita do problema da existência do tempo
à investigação de sua natureza ocorre através de um argumento que apela à percepção
do tempo e do movimento, seguido já da definição do conceito de tempo. O argumento,
excêntrico frente à abordagem comum à Física, desloca o foco da investigação, dos
entes móveis e do movimento dados, em direção à receptividade da alma, para então,
com a definição do conceito de tempo, tomar o caminho em direção à sua natureza.
Nesse horizonte, a definição, que aparece no segundo capítulo do tratado, figura mais
como uma aproximação ao fenômeno a ser investigado do que como conclusão da
discussão. É a partir dela que Aristóteles questiona e elucida a natureza do tempo.
Na própria definição do conceito de tempo, encontramos o problema posto de
início por Aristóteles com respeito ao agora. Lá, o agora aparece como a estrutura
ântero-posterior articuladora do movimento cujo número é tempo. Essa estrutura é a
reposta implícita de Aristóteles à questão: o agora é sempre o mesmo ou sempre
diferente? Para que haja tempo, é necessária tanto a identidade quanto a alteridade dos
agoras, pois, fosse apenas a permanência do mesmo, tudo seria simultâneo, e, por outra,
se houvesse sempre um agora completamente o outro, o tempo não seria contínuo.
“Que se divida, pois, o agora!”, diz Aristóteles nas entrelinhas – e quiçá mesmo
explicitamente, pois que outra coisa poderia significar o dizer que apenas percebemos o
tempo quando pensamos o agora como duplo? E, reparemos bem, não se trata de tomar
113
um mesmo agora como anterior e posterior, tal como o ponto é posterior a uma semi-
reta e anterior a outra, mas de cindir efetivamente o agora: justamente a dimensão dessa
cisão é tempo. Para Aristóteles, o agora são os agoras.
Por outro viés, vimos também a função unificadora que possui o agora tanto no
âmbito da alma quanto no dos entes móveis. Evidentemente, esse caráter do agora está
implicado na sua multiplicidade, pois nem é apenas uno, nem apenas múltiplo, mas
reúne, em seu ser, sua própria multiplicidade. Com respeito ao ente móvel, a unidade
múltipla do agora fundamenta a possibilidade de movimento e de mudança do mesmo
ente, sua própria presença consiste no mudar permanecendo o mesmo, requisito prévio
do princípio ontológico de não-contradição. Quanto à alma, funda-se naquele caráter do
agora a possibilidade de discernimento e de síntese da sensação em geral. O manter-se
no agora enquanto tal mostra-se, assim, como articulação prévia do real. De modo
algum, portanto, implica ser atemporal, mas, pelo contrário, significa ser-no-tempo, ser
no limite do tempo e, por conseguinte, determiná-lo.
O estudo que fizemos no primeiro capítulo, onde nos limitamos à Física, tornou
necessário o aprofundamento da questão do tempo a partir dos escritos aristotélicos
acerca da alma. Começando pelo problema da sensação no De anima, investigamos, de
modo mais acurado, a função articuladora do agora e do tempo na estética aristotélica.
Embora nesse campo raramente Aristóteles tematize o tempo de maneira explícita,
tentamos trazer às claras o horizonte temporal em que o discurso acerca da sensação
trava suas principais batalhas: trata-se da relação entre os diversos modos do sentir e
perceber, da unidade, portanto, da sensibilidade. Encontramos o o conceito de
tempo, tal como definido e explorado na Física, mas aquela estrutura ântero-posterior
do agora múltiplo em si mesmo. Em certo sentido, podemos dizer que essa estrutura é
pré-temporal, a saber, na medida em que nela se funda o conceito de tempo e na medida
também em que a própria atividade sensitiva opera em um “tempo indivisível”, que,
esperamos ter mostrado, não corresponde ao conceito de tempo, mas, sim, ao agora.
Posteriormente, em nosso terceiro capítulo, voltamos a essa questão para elucidar a
fundamentação dessa instantaneidade da sensação na distinção, traçada em Metafísica
IX, entre enérgeia (atividade) e kínesis (movimento).
Antes disso, porém, coube-nos voltar à Física para levar a cabo duas tarefas:
primeiro, analisar a maneira como Aristóteles estabelece o conceito de tempo a partir do
114
agora e como ele trata, ao longo do texto, da problemática identidade/alteridade dos
agoras; em segundo lugar, interpretar a questão da relação entre alma, tempo e
movimento que volta a aparecer explicitamente em sica IV, 14. Para ambas as tarefas,
tomamos como fio condutor o emprego, tão pouco comum no corpus aristotélico e tão
concentrado no Tratado do Tempo, da expressão pote ón. Com o estudo dessa
expressão, cuja leitura tradicional costumava inserir a noção de sujeito com respeito ao
tempo e ao agora, tentamos mostrar que nem o tempo tampouco o agora podem ser
compreendidos como um subjacente (hypokeîmenon) e que Aristóteles provavelmente
tinha em mente essa dificuldade, justamente pelo fato de que, ali onde era esperado que
ele fizesse uso dessa noção cunhada filosoficamente por ele mesmo, ele opta por um
contorcionismo sintático com o emprego de hó pote ón. Para tornar mais clara a
diferença entre a concepção do hypokeîmenon e a textura de pote ón, analisamos as
três ocorrências dessa expressão fora da Física, nas quais tanto ela quanto a noção de
subjacente aparecem confrontadas.
A outra tarefa, dela tratamos ao chegarmos à última ocorrência de pote ón na
Física. Como ela se encontra, textualmente, bastante isolada das outras e, além disso,
pelo fato de sua interpretação implicar, de maneira explícita, a elaboração da questão
acerca da dependência entre tempo e alma, nós a analisamos após aventurarmo-nos
pelas passagens alheias à sica. A dependência do tempo com respeito à alma
aparecera, como vimos, em Física IV, 11, onde ela figura como pedra de toque para a
virada euporética do tratado. No entanto, ali Aristóteles não a propunha como problema,
mas como caminho de solução: levando a investigação para o campo da lida – enquanto
perceber, dar-se conta com o tempo e com o movimento, interrompeu-se a tentação
de, por silogismos muito bem encadeados, relegar o tempo ao não-ser. O problema da
existência do tempo enquanto tal, mesmo orientando o restante do tratado, foi ofuscado
pela definição do seu conceito, e a razão pela qual o campo da lida da alma com o
tempo tornara-se o horizonte da própria investigação permaneceu intocável até o
capítulo 14.
Vimos, com isso, que não é pequeno nem supérfluo o embaraço do Estagirita
quando, nesse capítulo, indaga se haveria tempo se não houvesse alma, ou seja, se
haveria algo numerável se não houvesse algo capaz de numerar. Os termos em que é
posta a questão são aqueles conquistados anteriormente pela definição número
115
numerado, movimento, anterior e posterior. Em outras palavras, o conceito de tempo é
posto, uma primeira vez, a partir da sua relação com a alma, ele é fundado na lida da
alma com o muno móvel, mas essa fundação resta, ainda, fora de questão. A pergunta
“pode haver tempo sem que haja alma?” coloca, agora, explicitamente como problema
aquela relação da qual partiu o discurso aristotélico, mas não o faz senão circularmente,
recorrendo ao assim fundado para indagar sobre o modo de fundação. Ora, o conceito de
tempo constituído desse modo deve, justamente por isso, remeter à alma numerante.
Mas e quanto às atividades anímicas tais como perceber/sentir, pensar, numerar? Faz
sentido remetê-las, por sua vez, ao conceito de tempo? Estaria o tempo presente na
alma, e quiçá na alma apenas? Não. Como vimos em nosso capítulo segundo acerca da
percepção/sensação, o que há de temporal nessas atividades não corresponde de maneira
homogênea ao conceito de tempo tal como exposto na sica. Antes, essas atividades
implicam uma temporalidade a saber, a unidade múltipla dos agoras como articulação
ântero-posterior – cuja estrutura orienta, ao ser confrontada com o movimento e a
mudança, a determinação prévia do conceito de tempo.
Por outro lado, porém, o que chamamos de temporalidade da alma parece
enraizar-se no sentido que dýnamis e enérgeia possuem no âmbito anímico. Por conta
disso, nosso último passo foi, como dito acima, averiguar a distinção de kínesis e
enérgeia operada em Metafísica IX, 6, onde buscamos mostrar, através da análise das
formulações verbais empregadas por Aristóteles nessa distinção, o fundo do problema
da relação entre tempo e alma.
Nossa conclusão é que, para Aristóteles, o tempo o se encontra propriamente
nem no mundo móvel, nem na alma. Não obstante, é no encontro dessas duas instâncias
que se manifesta o tempo, e é esse encontro, segundo nosso estudo, que constitui o foco
da investigação sobre o tempo na Física. Ele está aí, nesse confronto, não como algo
produzido, mas como determinação prévia da lida da alma com o mundo.
Algumas questões tomaram-nos de assalto ao fim de nosso estudo, em especial
acerca da predeterminação temporal da essência e das demais categorias, mas,
satisfeitos com nossos resultados e, antes de tudo, sabendo-os provisórios damos,
com isso, termo ao nosso discurso.
116
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