Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
MARIANA PIMENTA BERTOLLA
A INFLUÊNCIA DA REFORMA LUTERANA
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO
ALEMÃO
São Paulo
2008
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
B546i Bertolla, Mariana Pimenta
A influência da Reforma Luterana no processo de formação do
Estado-nação alemão / Mariana Pimenta Bertolla - 2008.
109 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2008.
Bibliografia: f. 106-109.
1. Reforma protestante 2. Luteranismo 3. Estado-nação alemão
4. Política I. Título
LC BR325
CDD 270.6
ads:
MARIANA PIMENTA BERTOLLA
A INFLUÊNCIA DA REFORMA LUTERANA
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO
ALEMÃO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Ciências da Religião.
Orientadora: Profª. Drª. Márcia Mello
Costa De Liberal
São Paulo
2008
MARIANA PIMENTA BERTOLLA
A INFLUÊNCIA DA REFORMA LUTERANA
NO PROCESSO DE FORMAÇÃO DO ESTADO-NAÇÃO
ALEMÃO
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da Religião
da Universidade Presbiteriana Mackenzie,
como requisito parcial para obtenção do
título de Mestre em Ciências da Religião
.
Aprovada em 200_:
BANCA EXAMINADORA
____________________________________________________________
Profª. Drª. Márcia Mello Costa De Liberal
Orientadora
____________________________________________________________
Prof. Dr. João Baptista Borges Pereira
Universidade Presbiteriana Mackenzie
____________________________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Martha Mercado
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
v
AGRADECIMENTOS
A Deus, em primeiro lugar,
pela graça, disciplina, condução e ousadia.
Sem Ele, nada do que foi feito seria possível;
Aos meus pais,
por acreditarem e investirem em mim,
deixando-me aberto um leque de opções a
explorar;
Aos meus irmãos,
pelo amor, carinho e orações;
À Débora,
por todos os conselhos e tão grande
amizade;
vi
AGRADECIMENTOS
À minha orientadora,
Profª Drª Márcia De Liberal,
pelo seu exemplo como pesquisadora
incessante, sempre atenta a potenciais temas e
projetos, e como mulher, exercendo a sua
multifuncionalidade a todo o momento;
Aos professores do PPGCR da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, pelos conhecimentos
compartilhados;
A todos ao meu redor, que investiram seu
tempo, amor, dedicação, confiança e orações,
acreditando ser eu digna de tal investimento.
vii
RESUMO
A dissertação analisa a influência política da Igreja no Estado, tema polêmico com
raízes de grande profundidade na história, principalmente no período de formação
dos Estados, quando a Igreja possuía muitas riquezas e poder e dominava a
instrução, influenciando a base política e infiltrando as autoridades seculares. A
partir dessa realidade, o objetivo desse estudo é fornecer uma visão, de uma forma
geral, de como a Reforma Protestante influenciou a política, especificamente na
Alemanha e em seu processo “tardio” de unificação. Procura-se compreender como
a cisão da Igreja, a partir da Reforma Protestante, gerou conseqüências no mundo
político. Para analisar o papel do protestantismo na formação do Estado-nação
alemão, analisa-se um histórico da Igreja Católica, mostrando a sua evolução e
como, no período medieval, se tornou uma instituição independente e autônoma,
possuidora de diversas terras, riquezas e do monopólio do conhecimento. Uma
instituição capaz de exercer grande influência política e social, tanto no povo como
nas autoridades seculares. A pesquisa se organiza a partir do seguinte problema
central: há, de fato, uma real influência do protestantismo na formação do Estado-
nação alemão? Com base em argumentos históricos e teológicos, a hipótese
sugerida é que o protestantismo exerceu influência na formação do pensamento
político moderno, mais especificamente na própria formação do conceito de Estado-
nação alemão, a partir de constatações como: o real poder exercido pela Igreja
Católica no governo dos territórios europeus, influência esta que se estendeu ao
luteranismo na cisão do cristianismo, principalmente quando este foi utilizado por
príncipes que buscavam autonomia regional, o que levou ao fortalecimento da
segregação interna dos territórios que viriam a constituir a Alemanha.
Palavras-Chave: Reforma protestante. Luteranismo. Estado-nação alemão. Política.
.
ABSTRACT
This dissertation analyses the Church’s political influence on the State, a
controversial topic with roots of great depth in history, especially in the period when
the States were being formed, when the Church had many riches and power and
dominion over education, affecting the political basis and infiltrating the civil
authorities. Therefore, this study’s goal is to provide a general look of how the
Protestant Reformation influenced the politics, specifically in Germany and in its “late”
unification process; and to understand how the Church’s division, starting with the
Protestant Reformation, generated consequences in the political world. In order to
analyze the role of Protestantism in the formation of the German nation, the Catholic
Church’s history was analyzed, showing its evolution and how in the medieval period,
it became an independent and autonomous institution, that possessed many lands,
riches and the monopoly of knowledge. An institution capable of exercising great
political and social influence in the people and in the civil authorities. This research is
organized around the question: is there in fact a real influence of Protestantism in the
formation of the German nation? Based on historical and theological arguments, the
suggested hypothesis is that the Protestantism influenced the formation of the
modern political thought, more specifically in the formation of the concept of German
nation, given the verifications as: the real power the Catholic Church had over the
government of the European territories, influence that was extended to Lutheranism
in Christianity’s division, especially when it was used by princes who sought regional
autonomy, which led to the strengthening of the internal segregation of the territories
that would come to constitute Germany.
Keywords: Protestant Reformation. Lutheranism. German nation. Politics.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
11
1 DISCUSSÃO TEÓRICO-POLÍTICA DA RELAÇÃO
ESTADO E IGREJA
19
1.1. A IGREJA COMO INSTITUIÇÃO DE PODER 20
1.2. ALGUNS ASPECTOS DA ANÁLISE HOBBESIANA DO ESTADO
28
2 EVOLUÇÃO POLÍTICA NO TERRITÓRIO ALEMÃO
35
2.1. AS INVASÕES GERMÂNICAS E O FEUDALISMO 35
2.2. RELAÇÕES ENTRE IGREJA E ESTADO 43
2.3. O INÍCIO DO SÉCULO XVI 48
3 A REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA
52
3.1. RAÍZES DO PENSAMENTO REFORMISTA 52
3.2. EVOLUÇÃO POLÍTICA DO PENSAMENTO LUTERANO 55
3.2.1. Martinho Lutero 56
3.2.2. O pensamento político nas obras de Lutero 58
3.2.3. Influências políticas 73
4 DA CONTRA-REFORMA À UNIFICAÇÃO ALEMÃ
79
4.1. CONTRA REFORMA
80
4.2. GUERRA DOS TRINTA ANOS 81
4.3. A PAZ DE WESTFALIA 83
4.4. A IDADE DO ABSOLUTISMO 84
4.5. O NASCIMENTO DA NAÇÃO ALEMÃ - “PRÉ-MARÇO” 90
4.6. A REVOLUÇÃO DE 1848 92
4.7. A UNIFICAÇÃO ALEMÃ 94
CONCLUSÃO
99
REFERÊNCIAS
106
LISTA DE GRAVURAS
1
A paz de Westfalia
83
2
O crescimento de Brandenburgo-Prússia
85
INTRODUÇÃO
A presente dissertação, apresentada ao programa de Mestrado em Ciências da
Religião, tem a finalidade de contribuir para a produção científica e atingir o grau de
aprofundamento acadêmico que se espera para um curso com tal nível de
excelência. Dadas a experiência da pesquisadora e sua vivência eclesiástica, bem
como a pesquisa prévia que se fez para a sua elaboração, a dissertação inspira-se
numa tentativa de avaliar e propor um olhar acadêmico sobre a área em que atua a
pesquisadora.
A influência política da Igreja no Estado é um tema muito polêmico nos dias atuais.
Porém, tem raízes de grande profundidade na história, principalmente no período de
formação dos Estados, quando a Igreja possuía muitas riquezas e poder e dominava
a instrução, influenciando a base política e infiltrando as autoridades seculares.
OBJETIVO
A partir dessa realidade, o objetivo desse estudo é fornecer uma visão, de uma
forma geral, de como a Reforma Protestante influenciou a política, especificamente
na Alemanha e em seu processo tardio de unificação. Em um período em que a
Igreja Católica exercia grande influência no Estado, o rei e o papa, ambos
representavam fortemente o poder e por vezes tiveram seus papéis misturados.
Quando os territórios europeus caminhavam para a constituição de um Estado
único, procura-se compreender como a cisão da Igreja, a partir da Reforma
Protestante, gerou conseqüências no mundo político. Para tanto, é necessário
buscar na história as raízes que levaram à formação desse cenário e possibilitaram
tais acontecimentos.
12
DELIMITAÇÃO DO TEMA
Para analisar o papel do protestantismo na formação do Estado-nação alemão, mais
especificamente circunscrevendo-se à área de Ciências da Religião, a presente
pesquisa se organizou em torno de quatro partes: no primeiro capítulo analisa-se um
histórico da Igreja Católica, mostrando a sua evolução e como, no período medieval,
se tornou uma instituição independente e autônoma, possuidora de diversas terras,
riquezas e do monopólio do conhecimento. Uma instituição capaz de exercer grande
influência política e social, tanto no povo como nas autoridades seculares.
O debate gerado com esse tema se acerca da autoridade cabida à Igreja, a qual
muitos defendiam ser apenas espiritual, mas constata-se que a Igreja almejou, na
maior parte do tempo, constituir-se tanto da autoridade espiritual como da temporal.
Nesse período pode-se perceber uma acentuada mistura e até a confusão entre o
imperador e o papa quanto à autoridade e jurisdição de ambos. Tornava-se difícil ao
povo, em especial aos cristãos, saberem a quem era devida a obediência. É neste
capítulo inicial que ainda será feita uma exposição das idéias de Thomas Hobbes
acerca da autoridade do rei e da formação de um Estado nacional e soberano.
O segundo capítulo explora a evolução histórica do território alemão, a partir dos
conflitos e invasões das tribos germânicas, que desencadearam um feudalismo
atrasado e primitivo. Esses fatores geraram uma distribuição de terras e poder
diferenciada do resto da Europa. Também geram um sistema político
descentralizado, ou seja, concentrado nas mãos dos príncipes, donos de grandes
agrupamentos de terras, os chamados principados. Devido a isso, o imperador
detinha um poder limitado e dependente das vontades particulares dos príncipes.
Será demonstrada também a contínua relação de influência exercida por Roma
sobre a Alemanha, ou seja, do próprio papa sobre o imperador e sobre muitos
príncipes, principalmente aqueles que, além de príncipes, eram autoridades
eclesiásticas.
13
Por fim, esse capítulo analisa como essa instabilidade política, a ausência de uma
autoridade central e a insatisfação do povo e das autoridades perante os abusos de
poder de Roma. Com isso, será abordado o desejo por uma separação radical com
a mesma que proporcionou as brechas necessárias para que surgisse um
movimento reformista, no caso, a Reforma Protestante.
O terceiro capítulo enfoca a Reforma Protestante em si, a partir do estudo dos
pensamentos do principal reformador, Martinho Lutero. No início, serão
apresentados os movimentos e pensamentos anteriores a Lutero e que, por não
terem conseguido alcançar uma reforma por si só, o apoiaram. A partir desse
levantamento, será resumida a história de Lutero e os fatores que o levaram a
criticar os abusos da Igreja e a pregar a liberdade de um relacionamento direto com
Deus, sem intermediação da Igreja, e a separação da Alemanha do jugo de Roma.
Para entender o pensamento político do reformador, serão estudadas algumas de
suas obras de maior relevância, quais sejam: Noventa e cinco teses, Apelo à
Nobreza Cristã da Nação Germânica e Sobre a Autoridade Secular. Por fim, se
demonstrado como a Reforma Protestante não teve apenas um aspecto religioso,
mas também político, exercendo grande influência na Alemanha e na contínua
segregação política interna, fortalecendo a posição independente dos príncipes que
se converteram ao luteranismo.
O quarto capítulo descreve brevemente a evolução histórica do território alemão, no
período entre a Reforma Protestante e a unificação alemã. Nesse período, a
Alemanha passou por grandes conflitos que foram aos poucos transformando a
política e o governo do território. A religião continuou sendo um aspecto importante
dessa sociedade, porém não mais com o poder que exercia na Idade Média.
Para a elaboração desses quatro capítulos, os dados foram levantados a partir de
pesquisas desde o início do curso até o período atual.
JUSTIFICATIVAS
PARA A PESQUISA
14
Além do interesse pessoal da pesquisadora, o tema se mostra relevante para a área
em que se insere. O assunto é instigante para os círculos acadêmico e religioso, e
persiste atual mesmo nessa primeira década do século 21. É boa a contribuição que
uma pesquisa desta natureza pode emprestar à compreensão do real papel do
protestantismo na formação do conceito de estado-nação, marcadamente composto
de pessoas em busca de compreensão e entendimento da política, da formação do
pensamento político moderno, além de uma crescente busca por valores profundos
e existenciais que tais conceitos abrangem.
total relevância científica nessa pesquisa uma vez que os temas políticos, no
Brasil, têm ainda uma recorrência muito grande, num país onde não existe a
correspondente ética por parte de muitos que ocupam cargos blicos e em
situações de tomadas de decisão que afetam diretamente o povo. Tanto o é
suprida a demanda, como não é oferecida, de forma suficiente, uma competente
formação política para a ocupação de cargos eletivos ou de confiança oferecidos
nesse contexto. Embora isso atinja grande parte da população brasileira, os temas
políticos continuam muitas vezes à margem das preocupações daqueles que
poderiam lutar em prol de melhorias. A pesquisa pode, então, contribuir, entre outras
coisas, para a devida avaliação da necessidade e da qualidade do profissional
político e ainda para despertar a consciência cristã a esse respeito. Contribui
também para uma compreensão da realidade deste país em desenvolvimento, a
partir de uma realidade européia e em outro contexto, até mesmo como referencial e
grande instrumento de cidadania; portanto, fornece elementos para um
entendimento do que o protestantismo contribuiu e contribui para a formação da
consciência política.
Por outro lado, a relevância social da pesquisa se mostra pelo fato de que o estudo
permitirá ajudar na resposta a uma pergunta básica: qual a real influência
protestante na formação do Estado-nação alemão? Ao mesmo tempo, a pesquisa
poderá ajudar a compreender o papel e a relevância do protestantismo, pois, crendo
na sua real importância, a pesquisa visa analisar histórica, teológica e praticamente
a sua realidade para, de alguma forma, ajudar a compreender o seu papel, a partir
do que foi pesquisado e analisado durante o curso.
O interesse pessoal da pesquisadora advém de sua postura em prol de se envolver
15
mais efetivamente com o objeto de sua investigação e de sua atuação profissional. A
despeito do pioneirismo, pela quase inexistência de estudos na área, especialmente
no Brasil, o tema se mostra de execução viável, primeiro, pela existência de fontes a
serem consultadas; segundo, pelo apoio recebido do programa de pós-graduação
que forneceu subsídios para os estudos teóricos desenvolvidos nesta área.
PROBLEMA DE PESQUISA E HIPÓTESE ENUNCIADA
A pesquisa se organiza a partir do seguinte problema central: há, de fato, uma real
influência do protestantismo na formação do Estado-nação alemão? Com base em
argumentos históricos e teológicos, a hipótese sugerida é que o protestantismo
exerceu influência na formação do pensamento político moderno, mais
especificamente na própria formação do conceito de Estado-nação alemão a partir
de constatações como: o real poder exercido pela Igreja Católica no governo dos
territórios europeus, influência esta que se estendeu ao luteranismo na cisão do
cristianismo, principalmente quando este foi “utilizado” por príncipes que buscavam
autonomia regional, o que levou ao fortalecimento da segregação interna dos
territórios que viriam a constituir a Alemanha.
PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
A pesquisa segue etapas próprias, a partir da sua hipótese norteadora e adota o
procedimento de observação participativa, bem como a leitura de textos de
orientação teórico-metodológica e a análise geral dos resultados.
Quanto à sua natureza, trata-se de uma pesquisa básica e não aplicada, pois
objetiva gerar conhecimentos novos úteis para o avanço da ciência sem aplicação
prática prevista. Desta forma, tal pesquisa básica envolve verdades e interesses
universais.
16
Quanto à forma de abordagem do problema: a dissertação é classificada como
qualitativa, uma vez que considera a relação dinâmica entre o mundo real e o
sujeito. Cria, portanto, um nculo indissociável entre o mundo objetivo e a
subjetividade do sujeito que não pode ser traduzido em meros números. Ainda a
interpretação dos fenômenos e a atribuição de significados são básicas neste
processo, porque não requer o uso de métodos e técnicas estatísticas, mas torna o
referencial bibliográfico em fonte direta para a coleta de dados e o pesquisador se
torna em instrumento-chave (SILVESTRE, 2008, p. 36).
Quanto aos seus objetivos, a pesquisa aqui desenvolvida é do tipo pesquisa
exploratória. Razões: visa proporcionar maior familiaridade com o problema com
vistas a torná-lo explícito ou a construir hipóteses; envolve levantamento
bibliográfico; envolve análise de exemplos que estimulem a compreensão. Tais
pesquisas exploratórias assumem, em geral, as formas de pesquisas bibliográficas e
estudos de caso (SILVESTRE, 2008, p. 38).
Quanto aos procedimentos técnicos, a presente pesquisa bibliográfica foi elaborada
a partir de material publicado: livros, artigos de periódicos e material
disponibilizados na Internet. Este, portanto, foi o levantamento de fontes realizado.
REFERENCIAL TEÓRICO
Não apenas são aqui apontados os textos existentes até o momento, mas são
analisados os progressos, resultados, conclusões e limitações que ora se
apresentam. Segue, portanto, uma relação do que se pesquisou com vistas à
elaboração da dissertação, tanto no aspecto da apresentação do estado atual da
questão, como propriamente o referencial teórico empregado na pesquisa ou o seu
equivalente marco teórico.
O século 16, tempo em que viveram os reformadores Lutero, Calvino e tantos
outros, colocou as questões políticas em foco, tais como a da resistência à
autoridade, as disputas entre o império e o papado, em plena Idade Média, o que
17
continuou a fazer parte das disputas políticas da Idade Moderna, quando o termo
Estado já estava cunhado.
Para efeito de melhor aprofundamento, o “recorte” feito refere-se ao contexto
imediato do nascedouro do protestantismo no século 16. Vem desde Lutero, quando
a velha ordem política medieval, fundada no feudalismo, entrava em colapso. À
época se deparava com autores como Dante Alighieri, Guilherme de Ockam,
Marcílio de Pádua, Tomás de Aquino, Maquiavel, Erasmo de Roterdã, Guillaume
Budé entre outros (SILVESTRE, 2003, p. 14). Eles estavam repensando a estrutura
política e as suas relações com a organização religiosa do mundo. Entre eles
encontram-se os textos políticos de Martinho Lutero, também os de Calvino acerca
da teoria da resistência ao tirano. O que atribui ao protestantismo a sua importância
devida. Os reformadores têm o seu lugar destacado entre os pensadores fundantes
do pensamento político moderno.
Quando o termo Estado ainda estava sendo definido no século 16, a pessoa do
soberano era muitas vezes confundida com a do próprio Estado. No entanto, o termo
Estado pode ser aqui bem empregado, desde que corretamente entendido que a
referência feita é à autoridade maior que o representa (SILVESTRE, 2003, p. 16).
Mais um ponto, portanto, a despertar o interesse para o seu estudo. Por tantas
razões, percebe-se a necessidade de contribuir para esse conhecimento de forma
produtiva e que permita um conhecimento sólido, bem embasado.
Para o embasamento histórico, foram empregadas fontes de pesquisa como Perry
Anderson (1991), Marc Bloch (1979) e Henri Pirenne (1942), que foram de grande
valia para que a pesquisa se tornasse sólida, a fim de ser também utilizada como
referência.
Para o embasamento político, principalmente conceitual, foram utilizadas obras
consideradas referência no mundo acadêmico. Dentre elas estão Fundações do
pensamento político, de Quentin Skinner (1996), destacando entre vários
pensadores políticos fundamentais a Lutero, Calvino e outros célebres reformadores
que os sucederam. Também a obra Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia
política medieval, de Ernst Kantorowicz (1998) e Do cidadão (2004) e Leviatã ou
Matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil (2002), de Thomas Hobbes,
18
que trouxeram uma riqueza inigualável para a pesquisa. Além dessas, as obras de
Martinho Lutero contribuíram grandemente para a compreensão do pensamento
religioso e político do século XVI e da transformação dessa maneira de enxergar a
vida religiosa e o governo civil.
Portanto, recorreu-se aqui a tais fontes para dar profundidade e valor ao tema
pesquisado. Por fim, cabe uma breve explanação sobre a real contribuição
protestante para a elaboração do conceito moderno de Estado a fim de responder à
problemática levantada: mereceriam de fato, Lutero e os demais reformadores,
serem considerados participantes das fundações do pensamento político moderno?
Para compreender a importância da contribuição política do protestantismo foi
necessária uma longa e exaustiva pesquisa e o método de trabalho consistiu em ler
inúmeras obras de referência encontradas em diversas bibliotecas. Além disso, o
uso da Internet permitiu o acesso interessante que facilita em muito a tarefa. Com as
leituras, foram rastreados aqueles textos que trazem subsídios para uma
compreensão correta do seu contexto histórico. Esse método permitiu descrever o
conteúdo do pensamento político protestante e especificar a sua efetiva colaboração
para a teoria moderna de Estado. E tal participação foi analisada à luz do contexto
em que se inseria, à luz das matrizes em que os protestantes beberam as suas
visões e à luz das interpretações do seu mundo. Portanto, modestamente se
pretende aqui dar uma pequena contribuição para o conhecimento que queira
desvendar assuntos apaixonantes com referência ao papel do protestantismo.
1. DISCUSSÃO TEÓRICO-POLÍTICA
DA RELAÇÃO ESTADO E IGREJA
A Igreja Católica sempre desempenhou um papel de grande relevância e
influência no continente europeu e, com maior intensidade, no período
correspondente à Idade Média, por haver estabelecido, nos séculos anteriores, o
conceito do trabalho servil, já que
[...] nas ordens monásticas do Ocidente o trabalho manual e o
intelectual estavam unidos providencialmente a serviço de Deus.
O pesado trabalho agrícola adquiria a dignidade do culto divino, e
era desempenhado por monges letrados (ANDERSON, 1991, p.
129).
Além disso, a Igreja ocupava a posição mais importante da estrutura feudal por
possuir ascendência econômica e moral ao mesmo tempo. Os seus domínios
eram inumeráveis e superiores aos da nobreza em extensão, à medida que é,
também, superior à nobreza por sua instrução, uma vez que detinha o domínio da
leitura e da escrita. Com esse poder absoluto sobre o conhecimento, o clero
levou muitos de seus membros a ocupar cargos públicos, atuando como
secretários, chanceleres ou notários. Assim, “no Ocidente, a Igreja conserva
ainda no século XI o monopólio da instrução, e o progresso da cultura e das
atividades intelectuais depende, portanto, do estado dos órgãos eclesiásticos”
(PERROY, 1965: 44).
20
1.1. A IGREJA COMO INSTITUIÇÃO DE PODER
A Igreja desse período era marcada por duas fortes características: a primeira é o
nicolaísmo
1
, ou seja, a desordem e o relaxamento dos costumes, uma vez que os
clérigos muitas vezes desrespeitavam as regras da ordem eclesiástica, como o
celibato e o porte de armas. A segunda é a simonia
2
, isto é, a compra e venda de
bens sagrados e o leilão das funções religiosas. Essas duas características
possuíam a mesma causa: o papel desempenhado pelos leigos na distribuição
dos cargos eclesiásticos. O que acontecia nesse período é que as igrejas
estavam em poder dos leigos, uma vez que pertenciam às famílias herdeiras dos
fundadores do santuário, e estas se achavam no direito de explorá-las como
outro patrimônio qualquer. Além disso, os titulares de bispados e abadias eram
nomeados pelos reis e por alguns príncipes que se apoderaram dos privilégios
eclesiásticos. Por isso,
[...] a função religiosa, os poderes e proveitos a ela inerentes [...]
formam aos olhos dos contemporâneos como que uma tenência,
cujo senhor é o patrono laico, que a entrega ao eclesiástico por
um gesto simbólico de investidura e que, como um feudo após a
morte do vassalo, lhe é devolvida quando a cadeira vaga
(PERROY, 1965, p. 44).
As duas conseqüências geradas por essa situação eram: de um lado, a
aproximação entre os cargos eclesiásticos e os domínios feudais podia confundir
a devoção do vassalo com a relação que se dava entre a Igreja e seu patrono;
essa era uma situação perigosa, pois subordinava as autoridades espirituais às
potências temporais. De outro lado, ao escolherem os candidatos a cargos
eclesiásticos, os senhores laicos não consideravam as suas qualidades morais e
espirituais, mas os serviços que o escolhido poderia lhes prestar e os presentes
que poderia lhes oferecer. Assim, propagou-se a nomeação de “corruptos” a
1
Ramo libertino da Igreja Católica no seu início e que, na Idade Média, definiu a prática de
casamentos de membros do clero (THE CATHOLIC, 1967).
2
O termo surge da tentativa de Simon Magus, na passagem bíblica de Atos 8.5-24, de comprar
de Pedro o poder de mediar o recebimento do Espírito Santo, através da imposição de mãos.
Assim, acabou significando a aquisição de coisas espirituais (HARRISON ET al., 1960, p. 486).
21
cargos eclesiásticos, como filhos de famílias nobres, que não se esforçam para
adaptar seus costumes às demandas da missão pastoral.
No culo XI, Roma coordenou os seus esforços para desprender a Igreja das
influências temporais, através de uma reorganização geral que durou mais de
meio século e ficou conhecida como a Reforma Gregoriana, devido à sua
personagem principal, o Papa Gregório VII (1073-1085), que estabeleceu direitos
e obrigações ao clero e estimulou a , buscando a conversão dos germânicos
(PERROY, 1965). Com essa separação da Igreja e do Estado almejada por este
movimento, buscou-se também a desmistificação da idéia do rei como uma
autoridade sobrenatural e divinamente instituída. Assim:
“[...] os escritores deste grupo, essencialmente religioso, que
primeiro exprimiram, com uma força não-igualada durante muito
tempo, a noção dum contrato que ligava o soberano ao seu povo”
(BLOCH, 1979, p. 491).
Em 1054, a Igreja Ocidental se separou da bizantina
3
e, ao mesmo tempo,
começou a “assumir o aspecto de um corpo estreitamente centralizado sob a
direção do papado, magistratura suprema, elevada acima de todas as potências
deste mundo” (Ibid., p. 491). O princípio da livre eleição foi aplicado em Roma a
partir de 1058, sendo o papa escolhido, daí em diante, por membros do alto clero
romano, os cardeais. Assim, a superioridade do papa se tornou absoluta e as
suas sentenças indiscutíveis, e todos que ocupassem qualquer cargo na Igreja
deviam total submissão a ele, segundo os decretos realizados por ordem de
3
No Império Romano, acreditava-se que não havia uma separação entre o poder temporal e o
poder espiritual, pois, para o imperador, a Igreja era um prolongamento do Estado e vice-versa,
conceito que ficou conhecido como césaro-papismo. No século VIII a Igreja do Oriente (bizantina)
foi atingida por um golpe, o iconoclasmo, ou seja, a luta para não mais haver a adoração às
imagens. O Império Bizantino proibiu a adoração de imagens, o que acabou se tornando uma
nova forma de heresia, já que se negava representar a humanidade de Cristo. Essa luta abalou os
fundamentos do Império, pois o povo via no iconoclasmo uma manifestação de despotismo
político, porém chegou ao fim em 842, quando foi restaurada a veneração de imagens. Poder-se-
ia concluir que a Igreja conseguira derrubar o césaro-papismo, porém essa vitória da ortodoxia
fortaleceu o inimigo, pois quase todo o clero secular se colocou do lado dos imperadores contra
os monges. O césaro-papismo foi então fortalecido. O fortalecimento da relação entre Igreja e
Estado e outros acontecimentos políticos, como a coroação de Carlos Magno pelo Papa Leão III
em 800, provocaram explosões de raiva e desentendimento em Constantinopla. Esses fatores,
acrescidos de conflitos anteriores e da divergência e independência das partes ocidental e oriental
da cristandade, levaram ao grande cisma, que ocorreu oficialmente em 1054. Assim, o cisma
rompeu o diálogo mantido durante séculos e o substituiu pela desconfiança e inimizade, o que
levou a perdas de ambos os lados (CRISTIANO; BRANDÃO, 198-).
22
Gregório VII. Esses decretos acabaram por levar a progressos constantes de
centralização:
Desde os inícios do século XII, a Igreja latina é uma monarquia,
muito mais firme do que todos os poderes temporais que se
repartem então pelo Ocidente e, por uma ousada transferência do
mito imperial, é em favor do papa, agora revestido da tiara e do
manto de púrpura, que os intelectuais da Igreja romana projetam
renovar a dignidade suprema, diretora da comunidade cristã tanto
no Temporal quanto no Espiritual (
PERROY
, 1965, p. 46).
Em 1075, o então nomeado Papa Gregório VII especificou o cumprimento do
decreto de 1059 que prescrevia que um leigo não podia nomear clérigos da
Igreja. Porém, ele se chocou com grande resistência por dois lados: de um lado,
havia os beneficiários da simonia, que haviam comprado o seu cargo na Igreja e,
de outro, havia os príncipes, que não queriam renunciar ao seu poder de escolha,
uma vez que isto lhes proporcionava lucros e, sobretudo, vantagens políticas.
Esse conflito ficou conhecido como a Questão das Investiduras, após o qual
“surgiu, por diversas razões, o ‘risco de se atribuir demasiada ênfase ao lado
institucional, corporativo da Igreja’ como corpo político” (KANTOROWICZ, 1998,
p. 127).
Em 1122, na Concordata de Worms, chegou-se a um acordo, que estabelecia
com exclusividade o encargo espiritual à Igreja. Porém, as funções temporais
caberiam ao senhor laico. Assim, a Igreja conseguiu conquistar a livre eleição do
prelado. No entanto, mesmo não devendo uma homenagem, o prelado deveria
jurar fidelidade ao príncipe e apresentar-se perante o soberano de sua Igreja, a
fim de receber de suas mãos as regalia
4
, isto é, os atributos de poder. No que diz
respeito às dignidades inferiores, os leigos conservaram o seu poder de nomear,
ou ao menos propor o titular, das paróquias rurais e dos bispos. Assim, o baixo
clero continuou sendo caracterizado, por um longo período, por sua grande
mediocridade e sua falta de cumprimento às regras da Igreja.
Por último, a Reforma Gregoriana gerou um sensível progresso, nos séculos XI e
XII, do comportamento religioso dos leigos, através do convencimento dos
4
Direito inerente à realeza; prerrogativa; vantagem; privilégio; imunidade. Disponível em:
www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em: 23 Out. 2008.
23
mesmos de que valia a pena aplicar os preceitos evangélicos durante a vida; eles
deixam de ver Deus como um ser terrível. Assim:
[...] a profunda penetração das atitudes e dos sentimentos
cristãos nos menores gestos da vida secular, que não cessara de
afirmar-se durante todo o século XII, é o efeito direto da reforma
das instituições eclesiásticas, da instalação progressiva de um
clero mais liberto das influências temporais e, portanto, mais
exigente consigo mesmo e com os outros (
PERROY
, 1965, p.
48).
Por volta de 1150, surgiram três movimentos contra as normas moral, intelectual
e espiritual impostas pela Igreja romana, devido à sua autoridade, e que se
consagraram como ameaças à unidade da Igreja. O primeiro, mencionado, diz
respeito à busca, cada vez maior, pelos prazeres do mundo, conseqüência direta
da melhoria das condições de vida e do desenvolvimento das relações entre as
pessoas. Isso implicava numa conversão dos valores morais, uma vez que a
evolução material levava tanto os clérigos como os leigos a se tornarem infiéis
aos preceitos cristãos. Os gregorianos mais radicais buscariam o apenas a
reforma dos órgãos, mas da própria essência da Igreja, uma vez que a vida
monástica deveria ser mais do que o afastamento da influência laica e a rígida
observância das regras, mas a renúncia total às coisas mundanas, ou seja, aos
confortos e formas do mundo secular.
O segundo movimento faz relação com o progresso da especulação racional,
uma vez que “a razão constituía a liberdade do homem frente às ‘autoridades’ e
um germe de independência em relação a qualquer sujeição intelectual”. Assim,
surgiram diversos debates teóricos sobre variados temas, entre eles os
problemas teológicos. O terceiro movimento diz respeito à transformação da
atitude religiosa e de sua prática, ou seja, uma busca maior e direta dos
indivíduos por Deus e a sua redução na busca por uma intermediação, que até
então era realizada pela Igreja Católica. Porém:
Este movimento de orientação mística, procurando todas as
ressonâncias sentimentais capazes de introduzir mais calor no
mecanismo ritual prescrito pela Igreja, assim como tudo o que
permitisse, pela ação direta sobre a sensibilidade, uma
comunicação dos seres simples, sem desvios intelectuais, com
um Deus misericordioso e consolador, tendia, por conseguinte, a
24
reduzir o papel da Igreja estabelecida (
PERROY
, 1965, p. 153-
154).
Esse fator, de aspiração a um relacionamento direto com Cristo, evitando a
mediação de um clero corrompido pelo materialismo e pela vida temporal e de um
corpo eclesiástico com caráter administrativo,
[...] visava uma reforma fundamental das estruturas da sociedade
religiosa. Nas suas modalidades extremas, levava à formação de
uma pequena elite de ‘perfeitos’ provenientes diretamente do
laicado, mas verdadeiramente ‘puros’, isto é, pobres e castos,
encarregados de transmitir o Espírito Santo, mediante ritos muito
simples, à massa do povo e de conduzi-lo à salvação, lendo-lhe o
Novo Testamento na sua língua (
PERROY
, 1965, p. 154).
Com isso, a Igreja se sentiu ameaçada de perder o controle sobre a direção dos
costumes e dos pensamentos e a sua função de intercessora e intermediadora
entre os homens e Deus. Assim, sua primeira reação foi violenta e repressiva; em
1208, foi lançada a primeira cruzada contra cristãos acusados de heresia e, em
1231, os papas criaram a Inquisição e tomaram a direção dos inquéritos, a fim de
punir os acusados de heresia. Estas medidas, porém, chegaram a um fim no
século XIII
[...] pelo esforço consciente da Igreja por iniciativa de Inocêncio
III, cujo pontificado marca indubitavelmente o apogeu da força
apostólica no sentido de se adaptar às novas correntes e
aproveitar o que elas tinham de melhor (
PERROY
, 1965, p. 154).
No período medieval como um todo, e com mais intensidade na sua segunda
metade, as relações entre a Igreja e o Estado – que apenas após alguns culos
pôde ser reconhecido como tal – intensificaram-se e, em determinados momentos
e aspectos, como os símbolos e o próprio poder, levaram à mistura dessas
instituições e à dificuldade de defini-las separadamente. Segundo Ernst H.
Kantorowicz:
Infinitas inter-relações entre a Igreja e o Estado, ativas em todos
os séculos da Idade Média, produziram híbridos em ambos os
campos. Empréstimos e trocas mútuas de insígnias, símbolos
políticos, prerrogativas e honrarias sempre se realizaram entre os
líderes espirituais e seculares da sociedade cristã (1998, p. 125).
25
Percebeu-se também uma intensificação dessas relações, que se refletiu na
mistura de seus papéis frente à sociedade. A transição da Igreja, de uma
entidade religiosa para uma entidade política, caracterizava-se como uma
secularização da mesma, uma vez que esta passava a exercer influência na
política e no processo decisório do próprio governo. Ao mesmo tempo, o Estado
passava a assumir características e princípios religiosos. Desse modo:
[...] o aparelho hierárquico da Igreja Romana tendia a tornar-se o
protótipo perfeito de uma monarquia absoluta e racional sobre
uma base mística, enquanto, ao mesmo tempo, o Estado
apresentava cada vez mais uma tendência a tornar-se uma quase
Igreja ou uma corporação mística em uma base racional
(KANTOROWICZ, 1998, p. 125).
Com isso, a Igreja se assemelhava ao Estado, tornando-se cada vez mais
parecida com um “governo cristão”. A esse respeito, o civilista “Lucas de Penna,
ao citar Tomás de Aquino, podia dizer: Portanto, a Igreja é comparável a uma
congregação política de homens e o papa é como um rei em seu reino por conta
da plenitude de seu poder” (KANTOROWICZ, 1998, p. 131). Porém, nem todos
acreditavam ser boa essa fusão entre a Igreja e o Estado, como por exemplo, o
cardeal inglês Pole que respondeu, em panfleto, dirigindo-se ao rei inglês
Henrique VIII:
Vosso raciocínio inteiro chega à conclusão que considerais a
Igreja um corpus politicum [...]. Tão grande é a distância entre o
céu e a terra quanto à distância, também, entre o poder civil e o
eclesiástico, e tão grande a diferença entre esse corpo da Igreja,
que é o corpo de Cristo, e aquele, que é um corpo político e
meramente humano (KANTOROWICZ, 1998, p. 145-146).
Outro aspecto interessante e relevante é a semelhança entre as relações entre o
rei e o Estado e o papa e a Igreja. Muitos pensadores consideravam o rei a partir
de dois corpos; o corpo físico, individual (corpus verum) e o corpo coletivo
(corpus fictum), que se dava pelo corpo do reino, como por exemplo, o
parlamento para os ingleses. É interessante notar que, apesar de ser um
indivíduo como outro qualquer, o rei possuía uma identidade que sobressaía ao
seu corpo físico, tendo muitas vezes que negar a sua vontade particular e optar
pela vontade que melhor conduziria o povo e o seu reino. A partir desse conceito,
podem-se discutir as verdadeiras intenções que levaram reis a tomarem
26
importantes decisões, que afetariam grandemente o seu reinado, questionando a
legitimidade da sua autoridade como representante do povo, uma vez que,
“sendo um homem, pode estar enganado e, além do mais, pode estar mentindo”
(HOBBES, 2002, p. 243).
Da mesma maneira, o papa representava o próprio Deus na condução da Igreja e
dos fiéis. Segundo o Papa Bonifácio, a Igreja possuía duas cabeças, por assim
dizer, uma que era Cristo, e a cabeça visível, que era “[...] o vigário de Cristo, o
pontífice romano” (apud KANTOROWICZ, 1998, p. 132). Além disso, tomando-se
a máxima “Roma é onde está o imperador” (Ibid.), o canonista franciscano Álvaro
Pelágio afirmou que “a Igreja, que é o corpo místico de Cristo [...] e a comunidade
dos católicos [...], não é delimitada pelos muros (de Roma). O corpo místico de
Cristo é onde está a cabeça, isto é, o papa” (Ibid.).
A discussão acerca da legitimidade de sua autoridade e da revelação divina
diretamente ao homem ponto exaustivamente discutido pela Reforma
Protestante no século XVI, quanto à proibição da tradução da Bíblia para o povo,
considerado leigo e tendencioso a interpretações “erradas” são válidas para o
papa tanto quanto para o rei (SKINNER, 2000). A respeito da interpretação das
Escrituras Sagradas, ou seja, a própria revelação divina, Hobbes escreveu, mais
pra frente, que:
[...] essa autoridade compete a cada uma das igrejas, e depende
da autoridade daquele, ou daqueles, que têm o poder supremo,
contanto que sejam cristãos. Pois, se não depende da autoridade
civil, dependerá ou do arbítrio de cada cidadão, ou de uma
autoridade externa. Que dependa do arbítrio individual, não o
permitem, entre outras razões, os inconvenientes e absurdos que
disso iriam derivar. O principal é que não desapareceria toda
obediência civil, contrariando-se o preceito de Cristo, como seria
destruída toda a sociedade e a paz humana, contrariando-se as
leis naturais. Cada qual interpretando para si a Sagrada Escritura,
isto é, fazendo-se juiz do que agrada ou desagrada a Deus,
não poderá obedecer aos governantes sem antes julgar, ele
próprio, se suas ordens são conformes ou não às Escrituras. E
assim, desobedecem, ou obedecem em vista do próprio
julgamento, isto é, obedecem a si, não à Cidade. Desaparece,
portanto, a obediência civil (HOBBES, 2004, p. 265-266).
27
No que diz respeito à revelação divina, Hobbes acreditava que esta cabia à
autoridade civil, uma vez que se cada indivíduo pudesse interpretar a Bíblia como
bem quisesse, o caos seria instaurado, que o indivíduo não obedeceria ao rei,
mas, antes, buscaria primeiramente de Deus aquilo que tinha que fazer. A
obediência se daria, portanto, à revelação pessoal e, segundo aquilo que cada
um entenderia, ao próprio Deus, antes que ao rei, contradizendo a idéia do rei
como representante de Deus na terra, controlador do povo e instaurador das leis
e da paz. Ainda sobre isso, Christopher Hill, em sua obra sobre Oliver Cromwell e
a Revolução Inglesa (1988), escreveu que Deus se revelava a diferentes pessoas
e de diferentes maneiras e que isso continuamente trazia problemas de
interpretação, uma vez que “já que o espírito soprava onde bem lhe aprazia, era
perigoso para qualquer simples mortal reprimir aqueles que reivindicassem falar
em nome de Deus, pois de tal modo poder-se-ia suprimir uma verdade” (HILL,
1998, p. 189-190). Assim, Hill vai além de questionar somente para quem Deus
está falando ou o porquê disso, e levanta a questão de que se alguém falar algo
verdadeiramente inspirado por Deus e não lhe derem ouvido, a verdade de Deus
se perderia.
Pode-se entender, com isso, que o problema maior da interpretação pessoal da
palavra de Deus não é necessariamente, como destacou Hobbes, que isso
levaria a concepções erradas e interpretações consideradas convenientes a
quem as interpreta. Pelo contrário, Hill traz uma nova problemática, que
consistiria na ignorância da revelação, ou seja, no caso de alguém falar
realmente inspirado por Deus a sua palavra e não lhe darem ouvidos pelo fato da
pessoa não ser uma autoridade eclesiástica. Na realidade, isso viria a criticar o
próprio papel mediador da Igreja, como a única responsável e capacitada a
interpretar a Bíblia, crítica confirmada por Lutero, alguns séculos depois, ao
pregar sobre a liberdade do relacionamento pessoal e direto com Deus, o que
reduziria o poder da Igreja como mediador desse relacionamento e,
conseqüentemente, a exploração sobre os fiéis a partir dessa função.
28
1.2. ALGUNS ASPECTOS DA ANÁLISE
HOBBESIANA DO ESTADO
A respeito do sistema feudal, ou por assim dizer, da ausência de um Estado,
Thomas Hobbes escreveu que o período em que os homens não estão unidos
por um poder comum que os limite e conduza, eles se encontram numa condição
de guerra, de todo homem contra todo homem. Ou seja, os homens têm a
necessidade de ser governados para que a paz possa se manter entre eles, uma
vez que a ambição, a busca por poder e o desejo egoísta, sem consideração do
próximo, fazem do homem um animal que, sem as leis e um poder comum, vive
uma condição de conflito constante. Assim:
[...] razão mais freqüente para que os homens desejem ferir uns
aos outros, provém do fato de que muitos tenham um apetite pela
mesma coisa ao mesmo tempo, e que freqüentemente eles não
podem desfrutar em comum e nem dividir. Segue-se a isto, que o
mais forte de tê-la, e o mais forte necessariamente se decide
pela espada (HOBBES, 2004, p. 34).
Pode-se entender, portanto, que para Hobbes, o sistema medieval era
considerado uma anarquia, pois não era constituído de um “poder comum”, o que
o caracterizava como um “estado de natureza”, ou seja, um caos, uma vez que
“[...] se os homens fossem capazes de governarem-se, cada um ordenando a si
mesmo (ou seja, se vivessem conforme as leis de natureza), não seria necessária
nenhuma cidade, nem um poder coercitivo comum” (HOBBES, 2004, p. 98).
Para que se chegasse a ordem, era necessário que cada indivíduo renunciasse a
seu próprio poder, transferindo-o a um poder comum, por livre e espontânea
vontade, tornando-se proibido resistir a esse poder no que antes era lícito. Essa
transferência levaria ao surgimento do Estado, a fim de que este constituísse um
poder comum que, por sua vez, garantiria a segurança de cada indivíduo e o bem
comum de todos. Portanto, pode-se dizer que o Estado é, para Hobbes, uma das
“máquinas produzidas pelo homem para suprir as deficiências da natureza – para
substituir, com um produto do engenho humano, com um artificium, o produto
defeituoso da natureza” (BOBBIO, 1991, p. 31).
29
Portanto, o Estado não é fruto de um processo natural, mas de um processo
humano, sendo chamado de “homem artificial”, uma vez que surge através de um
pacto e, por isso, artificialmente. Em conclusão a esse pensamento, Perroy
escreveu que “a nação simbolizada pelo acordo entre o príncipe e os
representantes das comunidades, tendia a tornar-se a própria base da soberania”
(PERROY, 1965, p. 190). O conceito de poder comum, para Hobbes, referia-se à
concentração do poder numa figura, que poderia ser representada por uma
pessoa, o rei, ou por um grupo de pessoas, a assembléia. Ou seja:
[...] uma pessoa cuja vontade, através do pacto da maioria dos
homens, será recebida como se fosse a vontade de todos, de
maneira que possa fazer uso do poder e das faculdades de cada
homem particular, para preservar a paz e a defesa de todos
(HOBBES, 2004, p. 88).
Assim, o representante dessa pessoa seria o soberano, possuidor de poder
absoluto, a “alma do Estado”. Para que o poder fosse verdadeiramente soberano,
Hobbes acreditava que este teria que possuir três características básicas. A
primeira seria a sua irrevogabilidade, ou seja, a incapacidade do povo de destituir
do poder aquele que foi instituído pelo pacto feito pelo próprio povo, sem o
consentimento dele, uma vez que o que o possui força suficiente não pode
castigá-lo de forma natural, e o que não possui direito, não pode puni-lo de forma
legítima. A segunda seria o absolutismo, já que não há limites ao poder do
soberano, pois este poder é
[...] o maior que os homens podem conferir através do direito,
tanto que nenhum mortal tem um maior sobre si mesmo.
Chamamos a este poder de absoluto, o maior que pode ser
conferido pelos homens a outro homem (HOBBES, 2004, p. 107).
Isso se torna óbvio quando se entende que se o poder do soberano fosse
limitado, isso obrigatoriamente implicaria na existência de um poder superior a
ele, capaz de o julgar e punir os seus erros. A última característica necessária ao
soberano seria a indivisibilidade, pois
[...] os cidadãos transferiram seu direito de guerra e paz
plenamente, a um homem ou conselho, e [...] tal direito que
chamamos espada de guerra pertence ao mesmo homem ou
conselho a quem pertence à espada da justiça [...] pois, se
30
estivesse em um o direito de julgar e em outro o de executar,
nada se faria. Desta forma, quem não pudesse executar suas
ordens julgaria em vão, ou se a executasse pelo poder de outro
diria-se que não é ele próprio detentor do poder da Espada, mas
aquele outro de quem ele é apenas um ministro (HOBBES, 2004,
p. 94).
Além disso, Hobbes afirma que a vontade de alguns de dividir o poder supremo a
fim de reduzir o poder do rei e compartilhá-lo entre pessoas que governem de
maneira mais justa é, na realidade, uma tentativa de trazer esse poder para si,
assim este poder
[...] é sempre exercido e sempre existente, com exceção dos
tempos em que guerra e sedição civil, quando o comando
antes único, está divido em dois. Porém, os sediciosos que
contestam a autoridade plena não querem, na verdade suprimi-la,
mas sim tranferi-la a outros (pois, se tal poder fosse abolido, seria
abolida conjuntamente a sociedade civil, e a confusão sobre
todas as coisas retornaria) (HOBBES, 2004, p. 99).
É de extrema importância entender cada uma dessas características referentes
ao poder do soberano, uma vez que estão interligadas e, pela sua análise, é
possível compreender porque Hobbes acreditava que o poder deveria pertencer a
uma pessoa, rei ou assembléia, a fim das três caractesticas se manifestarem
de forma plena, sem haver a redução do poder ou a limitação à sua aplicação.
Hobbes entendia que para que o Estado fosse soberano e houvesse paz e
segurança para todos, o seu poder (Estado) não poderia estar ou ser dividido.
Assim, ele examina as duas causas que ele acredita serem as principais
responsáveis pela dissolução da unidade do Estado, quais sejam: a divisão do
poder soberano dentro do Estado e a separação entre o poder espiritual e o
poder temporal (HOBBES, 2004).
Com isso, entra-se novamente na discussão acerca do poder temporal e do
poder espiritual e a influência dos mesmos no Estado, como instituição política
pública, e no povo, como membros do Estado, ou seja, cidadãos. A respeito
disso, Hobbes escreveu que
[...] aqueles que já instituíram um Estado, dado que são obrigados
pelo pacto a reconhecer como seus os atos e decisões de
alguém, não podem legitimamente celebrar entre si um novo
31
pacto no sentido de obedecer a outrem, seja no que for, sem sua
licença (HOBBES, 2002, p. 132).
Assim, se um indivíduo decidiu, por vontade própria, entregar ao soberano o
poder que tinha para alcançar os seus interesses e objetivos, a fim de que o rei,
como poder coercitivo, pudesse concretizá-los; ele não pode, num segundo
momento, decidir firmar um novo acordo que o impeça de cumprir o primeiro, sem
que o soberano o consinta. Hobbes acreditava que “não pacto com Deus a
não ser pela mediação de alguém que represente a pessoa de Deus [...] ninguém
faz pacto com Deus a não ser o lugar-tenente de Deus, o detentor da soberania
abaixo de Deus” (HOBBES, 2002, p. 133). Portanto, a submissão do indivíduo
deveria ser, em primeiro lugar, ao soberano, uma vez que
[...] é função do chefe em comando estabelecer algumas regras
comuns a todos, e declará-las ao público, de maneira que todo
indivíduo saiba o que pode ser chamado de seu, ou o que é de
outro, o que é justo e o que é injusto, honesto, desonesto, bom,
mau, ou seja, o que deve ser feito e evitado durante nossa vida
comum. Tais regras e medidas são normalmente chamadas de
leis da cidade, ou leis civis, pois consistem nas ordens daquele
que detém o poder supremo na cidade (HOBBES, 2004, p. 95).
Na função de regulador, o soberano é o detentor do poder de estabelecer as leis
e normas de conduta para povo, as quais devem se tornar o único critério do
certo e errado ou justo e injusto que os súditos possuem. Portanto, o indivíduo
não pode estabelecer um contrato com outro centro de poder além do Estado,
como a Igreja, sem a permissão do soberano, pois é de grande dificuldade
garantir obediência a Deus e ao soberano sem, em momento algum,
desobedecer a um dos dois. A respeito disso, Hobbes escreveu em sua obra,
Leviatã:
Posto, pois, que o poder espiritual assume o direito de declarar o
que é pecado, assume por decorrência o direito de declarar o que
é lei nada mais sendo o pecado do que a transgressão da lei
e, posto que o poder civil assume, por sua vez, o direito de
declarar o que é lei, todo súdito tem de obedecer a dois senhores,
ambos os quais querem ver suas ordens cumpridas como leis, o
que não é possível. Se houver, pois, apenas um reino, o civil, que
é o poder do Estado, tem de estar subordinado ao espiritual, e
então não nenhuma soberania exceto a espiritual. Ou então o
espiritual tem de estar subordinado ao temporal e não existe outra
supremacia senão a temporal. Portanto, quando estes dois
32
poderes se opõem um ao outro, o Estado só pode estar em
grande perigo de guerra civil e de dissolução (HOBBES, 2002, p.
240).
Assim, para Hobbes, um dos grandes causadores da divisão do Estado e o seu
conseqüente enfraquecimento era a dificuldade de se obedecer a Deus e ao
homem (soberano) ao mesmo tempo, quando as suas ordens eram divergentes.
Por se tratarem de instituições com objetivos diferentes e, muitas vezes, opostos
entre si, seria muito difícil para um indivíduo, na condição de cidadão, obedecer a
todos os preceitos religiosos, à mesma medida que, como cristão, o obedecer a
determinadas ordens do Estado, como a obrigação de ir à guerra e matar, traria
sobre o indivíduo jugo e, possivelmente, punição. Portanto, para Hobbes,
[...] ninguém pode servir a dois senhores; e aquele a quem
devemos obediência por medo da condenação da alma, não é
menos poderoso (e até mais) do que aquele a quem obedecemos
temerários da morte temporal. Disso conclui-se que a pessoa, ou
homem ou assembléia, a quem a cidade atribuiu o supremo
poder, também detém o direito de julgar quais opiniões e
doutrinas são inimigas da paz, e o de proibir seu ensinamento
(HOBBES, 2004, p. 96).
Inicia-se, então, uma discussão a respeito de a quem compete à autoridade do
Estado, se ao soberano ou à Igreja. A respeito disso, Hobbes afirmou que a
própria Bíblia declara que o reino de Deus não é desse mundo e, portanto, que
Cristo não veio ao mundo para governar, mas para conviver entre os homens
para ensiná-los e para pregar, e deixou à autoridade civil o poder de governar e
de criar leis às quais todos devem obediência; a autoridade sobre as coisas
espirituais cabe somente ao Estado, uma vez que “definir o que é espiritual e o
que é temporal resulta em uma tarefa racional de estudo, e cabe ao direito
temporal” (HOBBES, 2004, p. 251).
A solução formulada por Hobbes para resolver esse conflito e estabelecer a
autoridade vigente e dominante do Estado seria a institucionalização da Igreja,
tornando-a parte integrante do corpo do Estado e, portanto, submissa a ele; e a
imposição, por parte do soberano, de uma religião oficial estatal, no que
constituiria o Estado cristão em si. Assim,
33
[...] a teoria da indivisibilidade do poder soberano, fundada na
convicção de que o poder soberano ou é único ou não é
soberano, desemboca numa total conversão da Igreja em
instituição do Estado, bem como na afirmação sem atenuantes
– da religião de Estado (BOBBIO, 1991, p.: 56).
A partir da unificação e demarcação de fronteiras e da centralização do poder no
rei; para que se houvesse, em qualquer igreja, uma autoridade que pudesse
obrigar, o Estado teria, primeiro, que abraçar a fé cristã. Os reis,
[...] para poderem ser feitos cristãos, submetem seus cetros a
Cristo, e prometem guardar e defender a fé cristã. É verdade isso,
porque os reis cristãos o são mais do que súditos de Cristo. No
entanto, apesar de tudo isso, podem ser equivalentes aos papas,
pois são os supremos pastores de seus próprios súditos, e o papa
não é mais do que rei e pastor, mesmo na própria Roma
(HOBBES, 2002, p. 418).
O Estado cristão se daria, portanto, na instituição de um rei cristão que, antes de
ser cabeça e autoridade sobre o povo, tem como o cabeça o próprio Cristo, que o
ensina nos desígnios que deve andar e como conduzir o povo. Enquanto local
para a comunhão de fiéis, a Igreja deve ser subordinada e submissa ao poder
civil, ao passo que este tem a autoridade para convocar a sua assembléia e
nomear os seus ministros. O papa fica subordinado, por direito civil e não divino,
ao soberano, e a sua autoridade provêem do Estado.
Posto esta consolidação do direito político e eclesiástico nos
soberanos cristãos, fica claro que eles têm sobre seus súditos
toda espécie de poder que pode ser conferido a um homem, para
o governo das ações externas dos homens, tanto em política
como em religião. Podem, portanto, fazer as leis que se lhes
afigurarem melhores para o governo de seus súditos, tanto na
medida em que eles são o Estado como na medida em que eles
são a Igreja, pois o Estado e a Igreja são as mesmas pessoas
(HOBBES, 2002, p. 394).
Desse modo, o estabelecimento de um Estado cristão consiste em si na união do
Estado e da Igreja, à medida que o soberano está acima do poder espiritual e tem
autoridade para controlar e dirigir a vida cristã. Nesse caso, não poderia haver
discórdia quanto à desobediência ao Estado ou à Igreja, ou seja, a obediência a
dois senhores criticada por Hobbes, uma vez que o rei cristão é a representação
e a revelação do próprio Deus na terra e obedece a Ele. Portanto, as suas
34
decisões estão sempre alinhadas à vontade de Deus e por isso pode-se dizer que
ele é tanto o Estado como a Igreja.
Hobbes enxergava a formação do Estado moderno como um processo longo e
difícil, uma vez que lutava contra duas estruturas sociais de grande força na
Idade Média, quais sejam, a sociedade feudal, isto é, a fragmentação do território
e ausência de um poder comum e central, e a Igreja, instituição que durante
séculos e em diversos aspectos explorados, teve o domínio da sociedade e
buscou submeter o poder temporal ao espiritual.
A luta do Estado moderno é uma longa e sangrenta luta pela
unidade do poder. Esta unidade é o resultado de um processo
simultâneo de libertação e de unificação: de libertação em face de
uma autoridade tendencialmente universal, que, por ser de ordem
espiritual, proclamava-se superior a todo poder civil; e de
unificação em face das instituições menores, associações,
corporações, cidades, que constituíam, na sociedade medieval,
um perigo permanente de anarquia (BOBBIO, 1991, p. 65).
2. EVOLUÇÃO POLÍTICA NO TERRITÓRIO ALEMÃO
O feudalismo surgiu da grande fusão final do Império Romano com as tribos
germânicas nas regiões de fronteira, através do estreitamento da brecha entre
ambas. Isso tem origem, principalmente, nas invasões germânicas, que se deram
em duas fases sucessivas, e, através delas, a unidade do Império Ocidental, nos
aspectos econômico, político e militar, foi fragmentada de modo irreparável.
2.1. AS INVASÕES GERMÂNICAS E O FEUDALISMO
O que se pode observar nessas invasões é o fato de que, ao passo que as tribos
germânicas conquistavam diversos territórios, não conseguiam provê-los de um
sistema político organizado, capaz de substituir o antes vigente, uma vez que a
casualidade da conquista de territórios fragmentados das províncias romanas os
deixava com problemas de apropriação e administração imediatos, os quais não
conseguiam solucionar. A desorganização das tribos germânicas de conquistar e
administrar os territórios, resultava a uma limitação no número de colonos
germânicos, uma vez que as terras ocupadas eram, na sua grande maioria,
localizadas em áreas longe da região original de domicílio dos colonos e, além
disso, não havia o envio de reforços através da migração de germanos ou de
incentivos para a ocupação desses territórios conquistados. Com isso, as tribos
germânicas acabavam se apoiando no próprio império, criando uma espécie de
parceria com este, no que era de interesse das mesmas. Assim:
As estruturas improvisadas dos primeiros estados bárbaros
refletiam esta situação básica de fraqueza e isolamento relativos.
Por isso, eles se apoiavam firmemente nas estruturas imperiais,
que paradoxalmente preservavam, combinando-as sempre que
36
possível com as germânicas, formando um dualismo institucional
sistemático (ANDERSON, 1991, p. 109-110).
Uma vez conquistadas, cabia às comunidades invasoras definir como se daria a
distribuição econômica das terras. Tal disposição se deu de uma forma que
rompeu com a tradão tribal, em direção a algo mais estável e fixo, através da
divisão das terras em três partes, cabendo um ou dois terços dependendo do
lugar aos invasores germânicos, e o restante aos nativos do território, que
passavam a pagar uma taxa especial aos invasores. Porém, os territórios o
eram compartilhados com todos os germânicos; pelo contrário, alguns destes
tornaram-se proprietários, enquanto os outros se tornaram servos e dependentes
destes. Isso levou à formação de uma aristocracia germânica dentro dos
territórios conquistados:
[...] era evidente a lógica do sistema: dentro de mais ou menos
uma geração, uma aristocracia germânica estava consolidada
sobre a terra, com um campesinato dependente abaixo dela [...] A
estratificação de classe cristalizou-se rapidamente, uma vez que
as federações tribais nômades ficavam fixadas territorialmente
dentro dos limites das fronteiras imperiais antigas (ANDERSON,
1991, p. 111).
Após o período de conquistas, o desenvolvimento político desses territórios
acompanhou as mudanças econômicas, tornando-se inevitável a criação de uma
autoridade central, com poder coercitivo sobre a comunidade germânica livre, ou
seja, de um Estado não como este seria reconhecido séculos depois, com o
Tratado de Westfalia. Essa evolução ou transição política o ocorreu
pacificamente, senão por meio de diversos conflitos internos, em algumas das
regiões. Além disso, do mesmo modo que no aspecto econômico,
[...] a forma política e jurídica dos novos Estados germânicos
fundamentava-se num dualismo oficial, separando o reino
administrativa e legalmente em duas ordens distintas a maior
evidência da inabilidade dos invasores em dirigir a velha
sociedade e organizar uma nova forma de governo de igual
durabilidade (ANDERSON, 1991, p.: 112).
Desta forma, todo esse processo de invasões e o período posterior a estas, foram
caracterizados por uma desorganização econômica e política, gerada
principalmente pela falta de estabilidade das tribos germânicas no período que
37
antecedeu as invasões, levando à criação, no que diz respeito aos reinos
germânicos, de:
[...] monarquias rudimentares, com regras de sucessão incertas,
apoiadas sobre os corpos das guardas reais ou de cortes
domésticas, a meio caminho entre os seguidores pessoais do
passado tribal e os nobres proprietários do futuro feudal. Abaixo
destes, estavam os soldados rasos e os camponeses, e onde
possível, especialmente nas cidades, os residencialmente
segregados do resto da população (ANDERSON, 1991, p. 112-
113).
Outro aspecto relevante para se entender a formação dessas monarquias e o seu
funcionamento social é a religião. Ela era tida como inseparável da organização
social das tribos e, portanto, acompanhou a transição política, através da
inevitável conversão dos Estados territoriais ao cristianismo, uma vez que “[...]
uma ordem divina mais extensa era o complemento espiritual de uma autoridade
terrestre mais firme” (ANDERSON, 1991, p.: 114). Os invasores germânicos não
quiseram aceitar a Igreja Romana como sua, legitimando-a, o que levou à criação
da Igreja Germânica; estas igrejas, embora divididas, coexistiram pacificamente
na maioria dos casos.
Porém, os Estados bárbaros gerados pelas primeiras grandes invasões não
duraram muito tempo devido, essencialmente, a três fatores: a expansão franca
na Gália, as incursões bizantinas na África e as invasões islâmicas na Espanha.
Houve, alguns anos depois, uma segunda onda de invasões, que, por sua vez,
determinou o último mapa do feudalismo, o qual permaneceu. Essa onda de
invasões teve destaque através de três acontecimentos principais: a conquista
franca da Gália, a ocupação anglo-saxônica da Inglaterra e o assalto lombardo à
Itália. Essas invasões diferiram em muito das primeiras, como o aumento da
migração para os territórios conquistados; a lentidão do processo tornado mais
denso, porém gradual, e a solidificação da influência cultural.
Desta maneira, iniciava-se um novo processo de fusão, mais lento, porém mais
sólido e estável, entre os elementos germânicos e os elementos romanos, para
então chegar a uma nova organização social. O principal efeito dessa integração
ocorreu no sistema agrário; a distribuição das terras não mais se deu segundo
38
um modelo romano, mas a partir de um modelo duplo de colonização. Isso
significaria que, de um lado, os governantes simplesmente confiscariam os
latifúndios locais e os anexariam ao tesouro real e, de outro, distribuiriam tais
terras às cortes nobres. Essa distribuição, porém, foi realizada de forma
desorganizada, comprometendo a autoridade dos condes como senhores locais.
Desta maneira, “[...] os condes que governavam em nome do imperador tinham
jurisdições incertas sobre regiões nebulosamente definidas, sem muito poder real
sobre as cortes populares locais ou sem apoio firme em grandes domínios reais”
(ANDERSON, 1991, p. 157), fator que demonstra a falta de centralização do
poder no imperador e a complexa distribuição de poder e posse de jurisdição.
Além disso, a hierarquização e o componente camponês na nova ordem
marcariam mais fortemente o novo sistema e os senhores e os camponeses
conviviam em diferentes maneiras após as migrações, com uma tendência de
aumento da dependência rural, ao mesmo tempo em que surgiam unidades
políticas mais estáveis.
Por último, a segunda onda de invasões germânicas levou ao fim o dualismo das
leis e da administração do território, inclusive no aspecto religioso, apesar de
mais lentamente, com a conversão ao catolicismo, dos francos no século V e dos
anglo-saxões no século VII, devido às missões romanas. A partir desses fatores,
pode-se concluir, que “[...] a catastrófica colisão dos dois modos anteriores de
produção em dissolução – o primitivo e o antigo – produziu a ordem feudal que se
disseminou por toda a Europa medieval” (ANDERSON, 1991, p. 123).
No que diz respeito ao sistema feudal, à sua organização e ao seu
funcionamento, sabe-se que cada território teve as suas particularidades, mas a
Alemanha diferiu em muitos aspectos dos outros territórios europeus,
principalmente pelas características feudais terem se evidenciado muito mais
tarde nesse território, como a base de separação das classes, qual seja, o
contraste entre o serviço de armas e o cultivo da terra. Houve dois elementos,
dentre outros, que afirmaram o feudalismo menos avançado ocorrido no território
39
alemão. O primeiro foi a grande quantidade e extensão dos alódios
5
,
principalmente os dos chefes. Assim:
Quando [...] Henrique, o Leão, duque da Baviera e de Saxe, em
1180, foi privado, por julgamento, dos feudos que tinha do
Império, as suas terras alodiais, conservadas nas mãos dos seus
descendentes, eram tão consideráveis que constituíam um
verdadeiro principado, o qual, transformado, por sua vez, em
feudo imperial, setenta e cinco anos depois, formaria a base dos
Estados de Brunswick e de Hanôver, na futura confederação
germânica, sob a designação de ducado de Brunswick e
Luneburgo (BLOCH, 1979, p. 206-207).
O segundo elemento refere-se ao fato de que, na Alemanha, os direitos e
deveres do feudo e da vassalagem não eram misturados a toda a rede judica,
mas foram estabelecidos desde o princípio como um sistema à parte e as suas
regras e normas de conduta eram aplicáveis a determinadas terras e pessoas e
dependiam de tribunais especiais. Desta maneira, os manuais do século XIII
foram construídos sobre este dualismo e faziam sentido porque, até mesmo nas
classes sociais altas, muitos dos vínculos jurídicos ainda não haviam entrado na
rubrica feudal.
Um fato a ser destacado é que, na Alemanha, as classes superiores não
aceitaram tão rápida e completamente, como na França, a vassalagem como
sendo a relação social essencial e adequada ao sistema. Assim, é provável que,
no início, os membros das maiores linhagens de chefes experimentaram certo
receio em fazer parte de vínculos considerados semi-servis. Com isso, deu-se um
grande vácuo político na Alemanha no século X, uma vez que a herança
carolíngia de governo político não serviu como substituto de grande duração para
uma sociedade hierarquizada pelo senhorio, já que os senhores locais tinham um
poder reduzido e limitado e, ao mesmo tempo, não havia uma autoridade central
com poder coercitivo para organizar a sociedade, como Anderson notou:
[...] a nobreza germânica era tradicionalmente um ‘meio
homogêneo’ em que as gradações de nível tinham pouca sanção
formal; a monarquia em si não estava investida de nenhum valor
supra-ordenado especial (ANDERSON, 1991, p. 158).
5
Bens ou propriedade livre de encargos senhoriais. Disponível em:
HTTP//:www.priberam.com.pt/dlpo. Acesso em 13 Out. 2008.
40
A sociedade não podia permanecer sem algum tipo de autoridade válida e,
portanto, esse vácuo levou ao rápido surgimento de “[...] ducados usurpados por
linhagens, de caráter tribal, que estabeleceram controle sobre as cinco principais
regiões do país Baviera, Turíngia, Suábia, Francônia e Saxônia” (ANDERSON,
1991, p. 160)
.
Porém, como esses ducados temiam invasões, acabaram por
eleger um suserano. A partir de então, a monarquia alemã ficou marcada por
tentativas frustradas de se estabelecer uma hierarquia de submissões feudais
sobre essas bases incapazes. O ducado mais poderoso da época era o da
Saxônia, que se tornou a primeira dinastia a tentar unificar o país, através da
mobilização da ajuda da Igreja e o estabelecimento de uma autoridade real,
acima dos rivais eclesiásticos.
Para proteger o território, Oto I assumiu a herança imperial, provinda dos
carolíngios, do reino da Lotaríngia, que incluía a Borgonha e a Itália do Norte;
além disso, expandiu as fronteiras para o território eslavo e determinou a sua
soberania sobre a Boêmia e a Polônia. Porém, esses avanços de Oto I geraram
novos problemas e ameaças para a criação de um Estado germânico único. A
sujeição dos ducados aos governantes otonianos apenas levou à criação de uma
nova camada de nobres abaixo deles, deslocando o problema de anarquia
regional para baixo na estrutura social.
Depois da dinastia saxônica, houve, no século XI, a dinastia sálica que, para lidar
com a resistência aristocrática, criou uma nova classe social, a dos ministeriales
não-livres, ou seja, um corpo de fiéis castelões e administradores espalhados
pelo país. Esse grupo consistia de funcionários servis, aos quais eram
concedidos cargos políticos de grande poder, mas que não possuíam uma
posição social que equivalesse a tais cargos e que, portanto, eram excluídos da
hierarquia nobre, o que em si marcava a contínua “fragilidade da função
monárquica, numa formação social que ainda não tinha um sistema amplo de
relacionamentos sociais ao nível de aldeia” (ANDERSON, 1991, p. 158).
Os
governantes sálicos chegaram a crer que o progresso alcançado poderia levar à
criação de um governo imperial, porém, nesse período, a Questão das
Investiduras impossibilitou uma consolidação maior do poder real. Assim, travou-
41
se uma verdadeira guerra civil na Germânia, devido à disputa entre o Papa
Gregório VII e o rei Henrique IV pela autoridade sobre as nomeações episcopais
e, enquanto isso, a nobreza local levantou-se contra o imperador, com o apoio
papal.
Depois disso, a Germânia sofreu cinqüenta anos de lutas contínuas e, nesse
período, a classe aristocrática destruiu as bases alodiais das pessoas livres e não
pobres; o campesinato foi reduzido à completa servidão, com o declínio da justiça
pública e o aumento dos tributos feudais e foram intensificadas as obrigações
militares dos membros da nobreza, à qual foram acrescentados os ministeriales.
Enfim, com um atraso de dois séculos, foi estabelecido um feudalismo completo
na Germânia, no século XII. Este foi instalado em oposição à integração
monárquica do campo, diferentemente do que se deu na Inglaterra e na França,
onde o feudalismo cresceu em parceria à monarquia.
Após estabelecida essa nova estrutura social, surgiu a dinastia Hohenstaufen,
que buscava edificar um poder imperial renovado, com a ajuda das ramificações
de vassalagem que nesse período se desenvolviam na Alemanha. O próprio
Frederico I decidiu liderar o estabelecimento de uma nova hierarquia feudal, mais
complexa e rígida do que as existentes – a Heerschildordnung através da
criação de uma nova classe de feudatários grandes, que ocupariam as suas
terras e ficariam acima do resto da nobreza.
A lógica desta política era converter a monarquia em uma
suserania feudal propriamente dita, abandonando toda a tradição
de administração com prerrogativas reais carolíngias. Entretanto,
seu complemento necessário era recortar um domínio real
adequadamente grande que proporcionasse ao imperador uma
base financeira autônoma, a qual tornasse efetiva sua suserania
(ANDERSON, 1991, p. 160).
Buscava-se criar com isso um novo tipo de governo, através da suserania
aplicada pelo rei e, para isso, era necessário que este possuísse um território
vasto, que destacasse a sua posição de suserano e o seu poder como tal. Porém,
como as propriedades da família Hohenstaufen não eram suficientes, Frederico
tentou fazer da Itália do Norte, que até então não passava de um feudo sem
importância, uma fonte do poder real. Essa tentativa de união das soberanias
42
germânica e italiana ameaçou o poder papal na península e trouxe à tona,
novamente, o conflito entre o Império e o Papado, o que impossibilitou de vez a
criação de uma monarquia imperial estável no território germânico. Quando
Frederico II assumiu o poder, a dinastia tomou um rumo italianizado e a
Alemanha foi entregue a seus barões. Após mais de cem anos de guerra,
[...] o resultado final foi a neutralização de qualquer monarquia
hereditária no século XIII, quando o Império se tornou
definitivamente eletivo, e houve a transformação da Germânia em
um confuso arquipélago de principados (ANDERSON, 1991, p.
160).
Portanto, a tardia implantação do feudalismo na Alemanha acabava por romper
com o antigo sentido de imperialismo e o sistema político antes vigente, dividindo
o seu território em feudos e trazendo um novo conceito dos membros da realeza,
agora representados pelos donos de terra, os senhores feudais.
Decerto que, no século XII, Frederico Barba Ruiva faz ainda
figura de monarca muito poderoso. Jamais a idéia imperial,
alimentada por uma cultura rica e mais consciente, se exprimirá
mais fortemente do que no seu reinado e no seu ambiente. Mas o
edifício, mal escorado, mal adaptado às forças do presente,
estava já à mercê de qualquer choque um pouco mais forte
(BLOCH, 1979, p. 470).
O que viria a substituir a monarquia e os ducados agora destruídos, no final do
século XII, seriam os Estados caracterizados por suas funções, policiados,
pagadores de impostos e acrescidos de assembléias representativas. Esses
agrupamentos governados por príncipes, os principados, deixavam de lado a
organização da vassalagem e até mesmo a Igreja devia obediência a eles. No
aspecto político, pode-se dizer que não havia mais uma Alemanha, mas o que se
convencionou chamar as Alemanhas. Portanto:
[...] Dum lado, o atraso, especificamente alemão, da evolução
social; por outro, o aparecimento, comum a quase toda a Europa,
de condições próprias a uma concentração do poder público: o
encontro destas duas cadeias causais fez com que o
reagrupamento, na Alemanha, se operasse somente à custa
duma longa fragmentação do antigo Estado (BLOCH, 1979, p.
470).
43
Isso significa dizer que, em relação às outras nações européias, a Alemanha
possuía até este período uma evolução política tardia e complexa e que seria
necessário dividir o que até então era conhecido como o território alemão, a fim
de que houvesse uma unidade política, ainda que distribuída em territórios.
2.2. AS RELAÇÕES ENTRE IGREJA E ESTADO
Outro exemplo da diferenciação do feudalismo no território alemão foi a
concessão, por parte do rei, de terras aos bispos. Nesse aspecto, os soberanos
alemães demoraram mais tempo que os de outras nações a modificarem a
organização condal dos tempos antigos. No fim do século X, a concessão de
condados inteiros e grupos de condados a bispos foi se multiplicando
rapidamente e de maneira tão próspera que a junção dessas terras com as
doações e outros privilégios levou à formação de domínios territoriais da Igreja de
grande importância. O fortalecimento dos territórios eclesiásticos era desfavorável
aos reis que concediam tais poderes; porém, a concessão consistia na única
solução contra a rebelião dos poderes locais, principalmente dos duques. Com
isso:
[...] os reis estavam, ainda que contra vontade, apegados à idéia
de que, para lutar contra a perda dos poderes locais, em favor
dos magnates rebeldes, e especialmente, dos duques, não havia
arma melhor do que o poder temporal dos prelados (BLOCH,
1979, p. 441).
Essa elevação da concessão de terras aos bispos aumentou o poder não da
Igreja, mas dos próprios bispos, que passavam a não mais se ver como
submissos ou vassalos do rei, o que, de certa forma, contribuiu para o
fortalecimento da fragmentação interna do território alemão.
A longa questão dos papas e dos imperadores e o triunfo, pelo
menos parcial, da reforma eclesiástica, fizeram com que os
bispos alemães, desde o século XII, se consideraram cada vez
menos como funcionários da monarquia e, quando muito, como
seus vassalos. Aqui, o principado eclesiástico acabou por tomar
44
lugar, muito simplesmente, entre os elementos de desunião do
Estado nacional (BLOCH, 1979, p. 442).
A fim de controlar o funcionamento da Igreja e de seus territórios, sentiu-se a
necessidade, desde o período carolíngio, de nomear um representante laico em
cada igreja, o avoué, que funcionava como “delegado da monarquia”, a fim de:
[...] evitar desviar, por meio de obrigações profanas, os clérigos, e
especialmente os monges, dos deveres do seu estado; como
preço do reconhecimento oficial concedido às jurisdições
senhoriais, inseri-las num sistema, regular e controlado, de
justiças bem definidas (BLOCH, 1979, p. 443).
No século X, com o desmoronamento da estrutura administrativa construída por
Carlos Magno, o poder do avoué aumentou, deixando de ser fundamentalmente
de condutor dos criminosos à audiência condal, para ser de próprio juiz dos
mesmos e de guerreiro defensor. Além disso, o seu feudo e, conseqüentemente,
o seu cargo, se tornou hereditário.
Na Alemanha, mais do que em qualquer outro território, o avoué representava,
além de um protetor, um juiz, em outras palavras, “argumentando segundo o
velho princípio que interditava aos clérigos o derramamento de sangue, muitos
Vogt alemães conseguiram monopolizar quase inteiramente o exercício da alta
justiça sobre os senhorios monásticos” (BLOCH, 1979, p. 444). Pode-se
compreender o porquê de uma maior rigidez, por parte da autoridade temporal,
no território alemão, ou seja, pela apreensão sentida pelos poderes temporais em
relação ao crescente poder concedido à Igreja devido ao aumento de sua posse
de terras e de sua autoridade sobre as mesmas.
O século X e a primeira metade do século XI consistiram no período de
prosperidade das avoueries. A partir da Reforma Gregoriana, porém, a Igreja
passou à ofensiva e
[...] mediante acordos, por decisões de justiça, por resgates,
graças também às concessões obtidas gratuitamente do
arrependimento ou da piedade, ela conseguiu pouco a pouco
limitar os avoués ao exercício de direitos estritamente definidos e
progressivamente reduzidos (BLOCH, 1979, p. 445).
45
No final da segunda idade feudal, apesar de perdurarem as avoueries, os avoués
haviam sido reduzidos à posição de inofensivos. A monarquia alemã, ainda presa
ao passado, demorou para estabelecer os novos rumos, o seu renascimento
urbano tardou um ou dois séculos em relação a outros, como Itália e França, e
havia a necessidade de uma concordância entre a sua estrutura social e a sua
estrutura política. Devido a esses fatores, “na Alemanha, muito menos profunda e
uniformemente feudalizada e senhorializada do que a França, a monarquia
permaneceu fiel ao tipo carolíngio durante muito mais tempo” (BLOCH, 1979, p.
468).
O rei alemão continuou governando com o auxílio de condes, os quais, mesmo
não sendo seus vassalos, continuavam a ser nomeados e atribuídos do poder de
mando e de castigo pelo rei como seus titulares, porém mais de uma função do
que de um feudo. Assim, a monarquia se chocou diretamente e de forma intensa
com a rivalidade dos principados das terras, principalmente os ducados. Para
suprimir estes, considerados poderosos e rebeldes, o rei, como já citado, utilizou-
se da Igreja e dos bispos, concedendo a eles poder. Ao mesmo tempo, era de
grande interesse aos bispos manter tal relação com o rei, de modo que
colocavam à disposição do soberano os seus serviços, como empréstimos,
alojamento e, principalmente, dever militar.
Assim, é este grupo formado por clérigos, muito instruídos e ambiciosos, que, a
curto prazo, mantém o conceito de monarquia. Deve-se lembrar que, em questão
de serviço militar, o exército real consistia em grande parte, e a mais estável, dos
contingentes de igrejas, embora não fossem os únicos, uma vez que o rei
reivindica o serviço de todos os seus súditos, condes e duques, os quais
efetuavam tal função com grande sucesso. Porém, esse sistema tradicional
nunca funcionou perfeitamente devido a uma estrutura interna incapaz de
suportá-lo, por isso:
Este governo que não tinha outro imposto além dos <serviços>
financeiros das igrejas, sem funcionários assalariados, sem
exército permanente, este governo nómada, que não dispunha de
meios de comunicação e que os homens sentiam física e
moralmente muito distante, como poderia obter uma obediência
46
constante? Não houve reinado sem revoltas (BLOCH, 1979, p.
469).
Devido a essa dificuldade de manter um sistema com um poder central e
soberano, e apesar do constante atraso e das muitas diferenças, prevaleceu na
Alemanha a distribuição dos poderes públicos em grupos pequenos, cada um
submetido a uma autoridade pessoal. Na Alemanha, os reis alemães eram mais
do que príncipes territoriais, numa organização bastante diferente do domínio
restrito e bem centralizado dos reis da França. Com isso, a Alemanha chegou ao
fim do feudalismo com uma estrutura social e política muito diferenciada da
França e da Inglaterra, o que Pirenne (1942) chamou de uma:
[...] aglomeração de principados eclesiásticos e de principados
laicos, incapazes de uma ação comum e mais incapazes, porém
de suportar o governo de uma autoridade central
6
(PIRENNE,
1942, p. 235).
Assim, houve uma divisão de poderes e a distribuição de terras, como escrito,
das quais muitas foram concedidas à Igreja e, apesar dos grandes conflitos entre
reis e papas, devido à Concordata de Worms, pelas próprias mãos dos
imperadores, o papado reconquistou o seu prestígio moral e o despertar religioso
o tornou o mais alto representante valores espirituais.
Essa concessão de terras destruiu o princípio hereditário do território na
Alemanha, o que não quer dizer que os reis deixaram de exercer uma grande
influência sobre as nomeações eclesiásticas. Mas, significava o aumento de
poder da Igreja, traduzido pela posse de terras, uma vez “[...] investidos
doravante pelo cetro, símbolo do feudo, os prelados deixando de passar por
detentores duma função pública aparecerão, no futuro, como simples feudatários”
(BLOCH, 1979, p. 470). Pode-se dizer que as autoridades eclesiásticas
começavam a ‘tomar as rédeas’ do seu próprio funcionamento, resistindo mais
fortemente a qualquer domínio do rei, ou seja,
[...]
a evolução da consciência religiosa, sacudindo a idéia do
valor sagrado até aí ligado à dignidade real, tornava o clero
6
“[...] aglomeración de principados eclesiásticos y de principados laicos, incapaces de una acción
común y más incapaces todavía de soportar el gobierno de una autoridad central” (PIRENNE, op.
cit., p. 235).
47
incontestavelmente menos dócil em relação às tentativas de
dominação que nele esbarravam com um sentido mais apurado
da preeminência do sobrenatural (BLOCH, 1979, p. 470).
Em resumo, a Igreja ganhava um poder que era concedido pelo próprio
imperador na tentativa de reduzir o poder dos ducados e centralizar a autoridade
nele mesmo, mas que acabava por trazer ao território uma maior divisão interna.
Assim, esta Igreja imperial que desde Oto I foi enchida pelos
soberanos alemães de direitos e de territórios, é alheia a eles, e,
se podemos dizê-lo, se feudaliza. Os grandes vassalos, cujo
poder havia equilibrado até então, não têm mais nada o que
temê-la, e os principados eclesiásticos, não estando mais à
disposição do imperador, são tão somente elementos de
desagregação política. No momento em que o rei começa na
França a fazer retroceder ante si o feudalismo, este se impõe à
coroa na Alemanha
7
(PIRENNE, 1942, p. 201).
Por mais que os imperadores tentassem, e estes tentaram por diversas vezes e
séculos, centralizar o poder e criar uma autoridade central, o que aconteceu foi o
oposto. Cada vez os principados tornavam-se mais poderosos e autônomos,
independentes de certa forma do poder imperial, e a Igreja crescia em poder,
sendo proprietária de numerosas terras. Portanto:
Mesmo se segurando à idéia de uma soberania universal, os
imperadores fracassaram na tentativa de desenvolver as
instituições reais necessárias à criação de um estado territorial
forte. O país permanecia dividido em mais de trezentas unidades
políticas virtualmente autônomas. Grande parte da terra era
governada por arcebispos, bispos e abades
8
(GRIMM, 1973, p.
22).
Devido aos conflitos internos no território que viria a ser reconhecido como
Alemanha, era de interesse aos pncipes regionais que estes se convertessem
ao protestantismo, uma vez que isso consistia em uma crítica à Igreja Católica e
ao seu poder político. Assim, a divisão interna reduziria o poder tanto do
7
“Así, esta Iglesia imperial que desde Otón I fué colmada por los soberanos alemanes de
derechos y de territórios, les es ajena, y, si podemos decirlo así, se feudaliza. Los grandes
vasallos, cuyo poder había equilibrado hasta entonces, no tienen ya nada que temer de ella, y los
principados eclesiásticos, no estando ya a disposición del emperador, son tan sólo elementos de
disgregación política. En el momento en que el rey comienza em Francia a hacer retroceder ante
si el feudalismo, este se impone a la corona em Alemania” (PIRENNE, op. cit., 201).
8
No original: “Although the emperors clung to the idea of a universal sovereignty, they failed to
develop those royal institutions necessary for the creation of a strong territorial state. The country
thus remained divided into more than three hundred virtually autonomous political units. Much of
the land was ruled by archbishops, bishops, and abbots” (GRIMM, op. cit., 22).
48
imperador como da Igreja, garantindo maior autonomia aos príncipes nos seus
principados.
Essa objeção [aos ‘privilégios e jurisdições a que o estamento
clerical aspirava tradicionalmente’] muitas vezes se acompanhava
de uma tentação, cada vez maior, a deitar olhos de cobiça sobre
as vastas extensões de terra que, por aquele tempo, eram
propriedade de bom número de comunidades religiosas. Tais
atitudes se constatavam, em particular, naqueles países que mais
tarde viriam a ser os mais receptivos à Reforma luterana
(SKINNER, 2000, p. 339).
2.3. O INÍCIO DO SÉCULO XVI
No início do século XVI, a Alemanha não passava de um território dividido e
anárquico, no qual subsistia a herança imperial, porém enfraquecida. Em 1493,
quando Maximiliano I sucedeu o seu pai, Frederico III, o Sacro Império, formado
em 962 pela união de Alemanha, Itália e Borgonha, havia perdido a precisão de
sua extensão, devido à independência de terririos que faziam parte do mesmo,
e já não representava uma legítima realidade política (LAPEYRE, 1969).
A Constituição desse império havia sido determinada em 1356 e estabelecia as
condições para a eleição do imperador, através da votação de sete eleitores, que,
além da votação, possuíam direitos soberanos: três eclesiásticos (arcebispos) e
quatro seculares (o rei de Boêmia, o duque de Saxônia-Wittenberg, o margrave
de Brandeburgo e o conde palatino do Reno). As instituições imperiais estavam
integradas, a princípio, pela Dieta, uma espécie de parlamento, que era
convocada pelo imperador e constituída por três grupos: os eleitores, os príncipes
e as cidades, porém este último grupo não tinha direito de voto e, por isso, estava
em uma posição de inferioridade. Além disso, havia uma chancelaria presidida
por um arcebispo e um tribunal imperial que acompanhava o imperador nas suas
viagens; porém, o império o possuía um exército permanente, impostos fixos,
uma organização judicial eficiente e nem um corpo de funcionários para fazer
49
com que as ordens do imperador fossem aplicadas. Assim, pode-se entender
porque o poder não residia no império, mas nos principados.
Entre os principados, o mais importante era o de Habsburgo, que possuía a coroa
imperial desde 1438 e formava um aglomerado territorial heterogêneo. A
soberania dos principados laicos pode ser dividida da seguinte maneira:
Brandenburgo, submetido aos Hohenzollern; Saxônia, submetida aos Wettin e o
Palatinado, submetido aos Wittelsbach. Os grandes principados eclesiásticos se
encontravam no noroeste da Alemanha ou em Francônia. Esses principados,
fortalecidos por uma pequena nobreza e pelas cidades, possuíam uma
administração rudimentar, integrada por um Conselho aonde os nobres eram
desprezados por juristas que conheciam o direito romano e eram a favor do
aumento de autoridade que se deveria conceder aos príncipes, os quais
possuíam fontes de renda, porém insuficientes. Assim, necessitavam fixar
impostos, mas dependiam da pequena nobreza e das cidades para fazê-lo,
que os camponeses não tinham voz nas assembléias parlamentaristas.
Abaixo dessas autoridades, encontravam-se as comunidades, que envolviam
todas as classes sociais que dependiam diretamente do imperador, ou seja, os
cavaleiros, que não possuíam o mesmo poder político que nos séculos
anteriores, as cidades e alguns camponeses. Por último, abaixo destes,
encontravam-se as cidades livres, que eram muito numerosas. Estas, em sua
maioria, consistiam em burgos cercados por muralhas, cujos habitantes viviam da
atividade agrícola e do artesanato local. Desta forma, desenvolveu-se na
Alemanha um complexo sistema político (LAPEYRE, 1969).
Necessitava-se de reformas. O imperador Maximiliano I queria recursos e
precisava do apoio financeiro e militar do império para se defender contra os
turcos e, por outro lado, os deputados da Dieta queriam reformas que
garantissem a ordem e a paz interna. Uma das mais importantes Dietas que
houve foi a de Augsburgo, em 1500, na qual o imperador, enfraquecido pela
derrota para os suíços em 1499, viu-se obrigado a aceitar a criação de um
Conselho de Estado formado por vinte pncipes ou conselheiros, do qual ele
tinha apenas a posição de presidência. O Conselho era responsável pelas
50
decisões supremas e, em troca de apoio militar e financeiro, manipulava o
imperador, limitando o seu poder aos interesses do Conselho. O território imperial
se dividiu em: Suabia, Alto Reno, Baixo Reno, Francônia, Baviera e Saxônia. Em
resposta a essas novas condições, um conselheiro de Maximiliano I disse a ele:
Vossa Majestade terá, todavia que sofrer amargas experiências.
Esperar algo dos príncipes alemães para a prosperidade do
Império é como desejar recolher uvas de cardos
9
(LAPEYRE,
1969, p. 43).
Em 1519, subiu ao poder o neto e sucessor de Maximiliano I, Carlos V, através
de uma eleição fraudulenta, devido a suborno, com a compra de eleitores. Isso
levou, desde o início, a uma limitação do poder imperial e Carlos V teve que
assinar uma capitulação, na qual se comprometia a não tomar nenhuma decisão
importante, no aspecto de política exterior ou judicial, sem antes consultar os
eleitores ou a Dieta. Porém, Carlos conseguiu, na Dieta de Worms de 1521, criar
um Conselho de Regência (Reichsregiment) que acabou por fortalecer a
autoridade imperial, em relação ao que havia sido imposto a Maximiliano I na
Dieta de Augsburgo (LAPEYRE, 1969).
Todos esses assuntos a respeito da política e da formação constitucional são de
grande relevância para se entender o território alemão. Porém, um fator de
grande importância foi a questão da religião e como esta influenciou na divisão do
território, na hierarquização das autoridades e na política do país. Assim:
É muito significativo para a história religiosa da Alemanha que o
fracasso das reformas imperiais tenha sido acompanhado pelo
crescimento dos principados, os quais lutaram para desenvolver
soberanias compactas semelhantes aos reinos do oeste europeu.
Porque os príncipes dessas terras começaram a obter controle
sobre as questões religiosas dentro de seus principados muito
antes da Reforma (Protestante), foi possível se ter uma maior
diversidade de doutrinas religiosas na Alemanha do que nos
Estados centralizados do oeste da Europa
10
(GRIMM, 1973, p.
25).
9
No original: “Vuestra Majestad tendrá todavía que sufrir amargas experiencias. Esperar algo de
los príncipes alemanes para la prosperidad del Imperio es como desear recojer uvas de unos
cardos” (LAPEYRE, op. cit., p. 43).
10
No original: “It is highly significant for the religious history of Germany that the failure of the
imperial reforms was accompanied by the growth of the territorial principalities, each of which
51
Isso demonstra claramente a abertura política e social da Alemanha para que a
Reforma ocorresse e insere a religião na determinação política do território, como
fator essencial ao poder e autonomia dos principados e a conseqüente
desagregação dos mesmos com o Império.
Assim, o culo XVI é marcado fortemente, na Alemanha, pela revolução
religiosa, ocasionada a partir dos pensamentos de Martinho Lutero, que “[...]
preocupado antes de tudo com a sua salvação pessoal, havia sacudido a
sociedade inteira”
11
(LAPEYRE, 1969, p. 45).
Em conclusão, podemos dizer que a Alemanha que recebeu a Reforma foi uma
Alemanha dividida, descentralizada, num sistema feudal de governo e política,
uma vez que o possuía um autoridade soberana e central, capaz de
representar todo o território e toda a população alemães. Assim:
[...] não existia rei da Alemanha, como longo tempo existia um
rei de França, um rei de Inglaterra [...] Existia um imperador que
nada mais era do que um nome, e um Império que nada mais era
do que um quadro (FEBVRE, 1976, p. 92).
Isso significava que o imperador não tinha poder para agir, pois era limitado pela
Dieta de eleitores e dependia diretamente dos príncipes e das cidades, e
principalmente da renda proveniente destes. O poder estava na mão destes
príncipes, que eram homens de uma terra, e que não deviam submissão a
uma política mundial e nem a uma política cristã. As cidades, por sua vez,
contavam com um grande poder econômico. A Alemanha possuía, portanto, uma
fraqueza política que se escondia sob uma máscara de prosperidade econômica.
No final do século XV, houve diversos projetos de reforma política; a nação
ansiava por uma reforma; porém, “desiludida com o malogro de todos os planos
sucessivos de organização política, a opinião pública parecia interessar-se pela
reforma religiosa” (FEBVRE, 1976, p. 98).
strove to develop compact sovereignties similar to the kingdoms of Western Europe. Because the
princes of these lands began to obtain control over the religious affairs within their principalities
long before the Reformation, a greater diversity of religious doctrines and organizations was
possible in Germany than in the centralized national states of western Europe” (GRIMM, op. cit., p.
25).
11
No original: “[...] preocupado ante todo de su salvación personal, había sacudido a la sociedad
entera” (LAPEYRE, op. cit., p. 45).
3. A REFORMA PROTESTANTE NA ALEMANHA
Após entender o período medieval e seus fatores intrínsecos – como a sua
estrutura social baseada numa imobilidade hierárquica e extrínsecos como o
poder da Igreja e a aliança entre a burguesia e o rei que levaram à ruptura de
suas estruturas e, conseqüentemente, ao seu fim, pode-se compreender o
desencadeamento da Reforma Protestante e suas conseqüências que não se
limitaram ao aspecto religioso, mas também ao político e ao social. Para se
entender todas as facetas da Reforma, é preciso entender Lutero e a:
[...] gestação de sua nova teologia, que lhe proporcionou o quadro
para atacar não o tráfico que o papado efetuava das
indulgências, mas todo um conjunto de atitudes sociais, políticas,
assim como religiosas, que tinham ficado associadas aos
ensinamentos da Igreja católica (SKINNER, 2000, p. 285).
3.1. AS RAÍZES DO PENSAMENTO REFORMISTA
Apesar de ter sido o grande pensador e realizador da Reforma, os argumentos de
Lutero contra a autoridade temporal da Igreja haviam sido proclamados no fim
da Idade Média por teólogos que também criticavam a monarquia pontifícia e
pelos aliados e representantes das autoridades seculares. Assim, ele não foi o
primeiro a criticar os abusos de poder da Igreja e o modo como esta explorava
seus fiéis, uma vez que seu “[...] ataque teológico tinha algo de herético,
derivando de uma longa linhagem de oposição evangélica à riqueza e às
jurisdições da Igreja” (SKINNER, 2000, p. 316).
53
Essa linhagem provinha, em grande parte, de dois movimentos, o dos lolardos
12
e
o dos hussitas
13
, que surgiram no final do século XIV e que exigiam, ambos, a
simplificação do cristianismo, clamando a Igreja a conferir maior poder à
autoridade pastoral do que à jurisdicional. O povo aceitou a Reforma como algo
recente e novo, mas os ideais e críticas que continha cresceram muito durante os
duzentos anos que separam os movimentos lolardos e hussitas da Reforma.
Portanto, o início da divulgação do pensamento luterano levou grande parte dos
remanescentes de ambos os movimentos a criar vínculos com a Reforma,
ampliando a base de apoio e o poder de influência da mesma.
Um exemplo disso ocorreu na Alemanha, onde os hussitas começaram a se unir
aos luteranos a partir de 1519, quando a Irmandade boêmia, cujo líder era Lucas
de Praga, estabeleceu o primeiro contato com alguns dos discípulos de Lutero.
Não foi apenas em meio aos teólogos que as idéias de Lutero foram aceitas, mas
também entre os leigos e os governantes, uma vez que nesse período, as
relações entre o papa e as autoridades temporais estavam em crise. O grande
ponto de concordância entre Lutero e essas autoridades estava baseado no:
[...] conceito luterano da Igreja como não passando de um
congregatio fidelium implicava forte aversão ao papel do pontífice
romano como senhor de terras e de impostos, igual repulsa a sua
pretensão a governar a Igreja com um poder absoluto, e ainda
uma recusa de seu direito a agir como uma autoridade legal
independente, aplicando seu próprio código de direito (canônico)
e interferindo na jurisdição das autoridades seculares mediante
um sistema próprio de tribunais eclesiásticos (SKINNER, 2000, p.
316).
12
Termo que se aplicou aos pobres pregadores de Wycliff que, na década após a morte deste,
espalharam-se pela Inglaterra, desafiando os abusos da Igreja. Eles foram severamente
perseguidos por Henrique IV, começando em 1401. Os que sobreviveram ficaram escondidos, até
que o movimento se abriu novamente com a Reforma (REESE, 1980).
13
Termo que designa os seguidores, e o movimento em si, de John Huss, um líder religioso da
Boêmia, que estudou e lecionou em Praga, onde teve contato com os trabalhos de Wycliff. Em
1403, as doutrinas de Wycliff foram condenadas pela universidade de Praga e os cleros
germânico e romano buscavam saber qual a posição de Huss frente a essas doutrinas. Mesmo
recusando o pedido do papa de comparecer a Roma, ele concordou em participar do Concílio de
Constança, em 1414. Apesar da garantia que haviam dado de que não o machucariam, acabaram
queimando-o em 1415. A sua definição da igreja como o corpo do predestinado foi muito criticada
por reduzir a autoridade do papa. Assim, essa luta sobre esse assunto religioso e político
continuou no século XVI, quando a causa hussita emergiu com o movimento protestante (REESE,
1980, p. 237).
54
As críticas e o descontentamento com a Igreja Católica e com suas ações
abusivas crescia grandemente entre o povo e as autoridades seculares, o que
facilitou a atração de pessoas para a causa luterana, ou seja,
[...] dado esse pano de fundo de crescente hostilidade aos
poderes da Igreja, não surpreenderá que, tão logo a Reforma
começou a ganhar forças, a maior parte desses críticos leigos se
sentisse mais e mais atraída pela causa luterana. Isso se pode
observar, em primeiro lugar, no meio dos críticos legais e
humanistas (SKINNER, 2000, p. 343).
A respeito do apoio à causa luterana, é importante ressaltar que os lolardos e
hussitas, como precursores do pensamento protestante, e o povo, aderiram à
causa, mas
[...] o ponto que veio a ter maior importância histórica é,
naturalmente, que a maioria dos governantes seculares da
Europa do Norte começasse a sentir idêntica atração pela causa
luterana. Não tendo conseguido firmar concordatas satisfatórias
com o papado, passaram a flertar com as idéias luteranas, e foi
assim que a pressão de suas campanhas contra a Igreja se foi
elevando até um grau de ruptura (SKINNER, 2000, p. 343-344).
Segundo Skinner, além das idéias de Lutero haverem sido propagadas na
Idade Média, a sua linha de ataque encontrava suas raízes nos pensadores
anticlericais anteriores à Reforma. A literatura crítica e polêmica que provinha
desse período se deve aos humanistas da época. Quando Lutero criticou a venda
das indulgências em 1517, os humanistas
14
foram atraídos por sua posição e lhe
deram grande apoio.
Mais para frente, quando Lutero rompeu definitivamente com a Igreja Católica,
muitos humanistas notáveis decidiram segui-lo, o que fortaleceu as bases
intelectuais da Reforma. O principal exemplo de um humanista que se converteu
ao protestantismo foi Philipp Melanchton, o intelectual de maior destaque entre os
discípulos de Lutero e o seu melhor representante (SKINNER, 2000).
A Reforma Protestante começou a ganhar força e apoio em meio às mais
diversas camadas da sociedade devido ao grande descontentamento com a
14
No Renascimento, esse termo significou o retorno às raízes gregas e à interpretação individual,
em contraste à tradição escolástica e à autoridade religiosa (REESE, 1980, p. 235).
55
Igreja, principalmente junto aos príncipes cuja intenção original não era
necessariamente criticar a Igreja e criar uma nova religião, mas utilizar a
conversão como um meio político de garantir demandas, como a autonomia de
seus territórios.
A Reforma surgiu, assim, num momento de grande instabilidade política, em que
o poder da Igreja, tão presente e forte no período medieval, começava a ser
reduzido e desacreditado pela própria sociedade alemã. Essa realidade gerou as
brechas necessárias para que ocorresse a Reforma.
3.2. A EVOLUÇÃO DO PENSAMENTO LUTERANO
A falta de unidade política na Alemanha favorecia uma maior influência do
papado do que em outros países, como por exemplo, a imposição das
indulgências. Além disso, a busca por preenchimento espiritual era maior nesse
território, ao mesmo tempo em que a Igreja e as autoridades eclesiásticas se
mostravam incapazes de satisfazer tal desejo.
Por último, havia aqueles que aderiram ao laicismo e que se conscientizaram
da influência das instituições herdadas, principalmente as da Igreja, sobre a
sociedade. Assim, essa insatisfação chegou a tal ponto que levou a uma revolta
contra o papado, ou seja, a Reforma Protestante (GRIMM, 1973).
Martinho Lutero foi o grande pensador da Reforma, que teve início no século XVI,
e que estabeleceu um marco na história da Europa e, especificamente, na
história da cristandade, gerando uma grande ruptura da mesma, que ficou
dividida, posteriormente, em Igreja Católica e Igreja Protestante, da qual surgiram
muitas denominações.
56
3.2.1. Martinho Lutero
Martinho Lutero nasceu em 1483 em Eisleben, na Alemanha, filho de uma família
de camponeses. Teve uma infância triste, com um pai severo e professores
rudes. Em 1505, tornou-se mestre na Faculdade das Artes, para a qual foi
enviado pelo seu pai, que desejava que se tornasse um advogado. Somado a
esses fatores, uma vez passou em meio a uma trovoada, que quase o matou.
Assim:
Todo esse cortejo de acidentes violentos, agindo sobre um
espírito inquieto e uma sensibilidade fremente, predispunham o
futuro herético para o caminho que um homem do seu
temperamento, depois destas experiências, devia seguir
naturalmente. Renunciando a continuar seus estudos profanos,
quebrando as esperanças de ascensão social que seus pais
pressentiam, foi bater à porta dos agostinhos de Erfurt (FEBVRE,
1976, p. 23).
Em julho de 1505, prestes a completar 22 anos, Lutero entrou para o Mosteiro
dos Agostinianos em Erfurt como noviço. No mosteiro, ele se tornou um monge
muito obediente e submisso aos seus superiores, porém tudo neste lugar o
levava a um Deus terrível e punidor, que conhecia todos os seus pecados e o
acusaria de cada um deles. Tendo entrado no mosteiro para buscar a paz e
alcançar a salvação, encontrou neste lugar apenas mais dor e mais dúvidas. Ou
seja: as perguntas, e a conseqüente confusão na sua mente, apenas cresciam
com o tempo, em vez de serem sanadas. Para tentar apagar tais sentimentos,
principalmente o de pecador, Lutero aumentava a cada dia o número de suas
penitências, jejuns e vigílias; mas sempre acabava se encontrando numa posição
de desespero e desolação.
Essa situação começou a mudar quando Lutero foi enviado numa missão como
professor da universidade de Wittenberg. Esta havia sido fundada pelo eleitor
Frederico, o Sábio, em 1502, que viria a ser um grande aliado de Lutero. Desde
1503, o Dr. Staupitz havia se tornado vigário-geral dos agostinianos para todo o
território alemão e lhe chamava muito a atenção o jovem Lutero. Assim,
57
ministrava a ele sobre um Deus amoroso e misericordioso e, para mantê-lo
ocupado e longe das suas angústias, decidiu enviá-lo para a universidade em
1508, a fim de que lecionasse e concluísse o seu bacharelado em Teologia. De
fato, as suas crises de desespero foram reduzidas drasticamente (FEBVRE,
1976).
Em 1510, foi enviado pela Igreja a Roma, viagem pela qual ansiava Lutero, por
essa ser o grande centro da cristandade. Porém, ficou desiludido ao encontrar
o oposto do que esperava: uma cidade prostituída, vendida aos valores
mundanos e imersa na desonra à cristandade. Assim,
“[...] em Roma, em 1510, era a aflitiva miséria moral da Igreja que
lhe tinha surgido na sua nudez. Virtualmente, a Reforma estava
feita. O claustro e Roma haviam tornado, a partir de 1511, Lutero
luterano [...]” (FEBVRE, 1976, p. 25).
Ainda assim, Lutero permaneceu calado e obediente à Igreja, cumprindo as suas
tarefas de servo. Em 1512, terminou a sua licenciatura em Teologia e assumiu a
cadeira de Staupitz na universidade, como superior dos agostinianos de
Wittenberg. Apenas em 1517 Lutero começou a falar o que realmente pensava,
criticando aquilo que acreditava não estar de acordo com a Palavra de Deus, e a
criar a sua teologia.
Pelo estudo cuidadoso de suas motivações, podemos ver que o que levou Lutero
a realizar a Reforma não foi de fato uma busca pela reforma em si, senão a sua
busca pessoal pela salvação. Isso gerou um dos temas mais importantes de sua
doutrina, qual seja, a pessoalidade do relacionamento com Deus, sem a
necessidade de mediações. Esse ponto conduziu Lutero a negar a própria Igreja,
da qual era parte, como um intermediário, e a defender que as pessoas deviam,
antes de buscar a Igreja, ter um encontro face a face com o seu Deus. Assim:
[...] a verdadeira Igreja não passará de uma invisível congregatio
fidelium, de uma congregação dos fiéis unidos em nome de Deus,
uma vez que “todo indivíduo que for um cristão fiel pode
relacionar-se com Deus, sem necessidade de qualquer
intermediário” (SKINNER, 2000, p. 292-293).
58
3.2.2. O pensamento político nas obras de Lutero
O pensamento político de Lutero expresso em suas obras Noventa e cinco teses,
Apelo à nobreza cristã da nação germânica e Sobre a Autoridade Secular torna-
se o foco da atenção nesta seção da dissertação. A primeira obra de grande
relevância para a formulação do pensamento político luterano marcou a história
como a data da Reforma Protestante celebrada até os dias de hoje, devido ao
seu conteúdo revolucionário e à atitude ousada e corajosa de seu formulador,
Lutero. Esta obra consiste nas Noventa e cinco teses, pregadas por Lutero na
porta da Igreja do castelo de Wittenberg, no dia 31 de outubro de 1517.
15
Para
Lutero, estas se tratavam de uma descoberta, e por isso ele organizou o debate
sobre as mesmas para trazer à luz algumas questões sobre a Igreja, pois
“confiava receber o apoio do papa pelo fato de revelar os males do tráfico das
indulgências” (BETTENSON, 1998, p. 281).
Estas teses traziam diversas críticas aos princípios fundamentais da teologia,
como por exemplo: o sacramento da penitência realizado pelo sacerdócio, se não
fosse acompanhado por um verdadeiro arrependimento interior, e vice-versa; a
pregação de penas canônicas para o purgatório, uma vez que os mortos estão
livres da jurisdição das leis canônicas, etc. Mas o assunto que toma maior
destaque e acusação é o da venda de indulgências
16
a fim de que os pecados de
quem as comprasse, ou de suas famílias, fossem perdoados. A respeito das
indulgências, Lutero escreveu, na tese quarenta e sete, que “os que afirmam que
uma alma voa diretamente para fora (do purgatório) quando uma moeda soa na
caixa das coletas estão pregando uma invenção de homens (hominem
praedincant)” (BETTENSON, 1998, p. 286).
Lutero fez um ataque direto às autoridades eclesiásticas, acusando-as de realizar
uma atividade não condizente com as ordens de Deus, uma vez que, se o papa
15
“Era esse o modo usual de se anunciar uma disputa, instituição regular da vida universitária e
não havia nada de dramático no ato” (BETTENSON, 1998, p. 98).
16
“[...] pedaços das fraldas do menino Jesus; bocados de palha da manjedoura, cabelos da
Virgem, gotas do seu leite, fragmentos de pregos ou de verdascas da Paixão” (FEBVRE, 1976, p.
35).
59
tem o poder de remir os pecados, ele deveria fazê-lo por amor e intercessão e
não tirando o dinheiro dos fiéis para construir a Basílica de São Pedro - tese
oitenta e dois (BETTENSON, 1998). Portanto, por meio dessa obra, Lutero
criticou de forma severa, principalmente, os pregadores das indulgências e
questionou o poder que o papa teria, ou não, de aliviar os pecados do povo; com
isso, ele esperava que pudesse haver um debate teológico que desvendaria um
novo e mais verdadeiro modo de viver as Sagradas Escrituras. Nesse mesmo
ano, 1517, haviam sido outorgadas pelo Papa Leão X ao jovem de vinte e três
anos, Albert de Brandenburgo, as indulgências
17
, que:
[...] eram pregadas e vendidas com um cinismo de tal forma
blasfemo que perante este tráfico odioso, perante a afirmação
repetida sem fim por mercadores com hábito religioso, de que,
com dinheiro, os mais graves pecados podiam ser perdoados
(FEBVRE, 1976, p. 27).
Albert era o irmão mais novo do eleitor de Brandenburgo, Joachin, e pertencia à
casa dos Hohenzollern, que almejavam a hegemonia da Alemanha. Ele
possuía duas sedes episcopais e queria obter também o arcebispado de Mainz, o
mais importante do território alemão. Para isso, procurou o Papa Leão X,
considerado um dos mais corrompidos de sua época, que se dispôs a conceder a
ele o arcebispado em troca de dez mil ducados. Como este era um valor muito
alto, o Papa autorizou Alberto a vender indulgências em todos os seus territórios,
desde que metade do valor das vendas fosse entregue a ele próprio, o Papa,
principalmente para a construção da Basílica de São Pedro (GONZALEZ, 2003).
O outro motivo para a concessão desses territórios a Alberto, o que o tornou um
eleitor, é que esse período era próximo das eleições imperiais e essa concessão
17
A teoria na qual se baseia o conceito da venda de indulgências está contida na bula Unigenitas
de Clemente VI (1343), da qual se pode extrair o seguinte trecho: “[...] o Pai Santo constituiu com
ele (Verbo) um grande tesouro para a Igreja Militante [...] Ora, tal tesouro não es escondido
numa toalha, nem enterrado num campo, mas confiou-o aos fiéis para ser administrado fielmente
por meio do bem-aventurado Pedro, portador das chaves do céu, e de seus sucessores como
vigários na terra [os papas], para causas convenientes e razoáveis, quer para remissão total quer
para remissão parcial do castigo devido a pecados temporais [...], quer em geral quer em
particular como eles entenderem que seja útil diante de Deus e para ser aplicado
misericordiosamente àqueles que são verdadeiros penitentes e confessantes” (BETTENSON,
1998, p. 210).
60
garantiria dois (Albert e Joachin, seu irmão) dos sete eleitores a favor da cúria
(FEBVRE, 1976).
18
Um dos grandes homens encarregados da venda das indulgências na parte
central da Alemanha foi o dominicano John Tetzel que fazia apelos absurdos a
fim de vender sua mercadoria, como por exemplo, alegar que quem comprasse a
indulgência ficaria mais limpo que Adão antes da queda ou que quem tivesse um
parente no purgatório poderia acelerar a sua ida para o céu. Contudo, os mais
informados, dentre estes essencialmente os humanistas, com os quais Lutero em
certos aspectos se identificou, indignavam-se com a ignorância e a superstição
que tomavam o povo, pois sabiam que esse comércio não era condizente com a
doutrina da Igreja. Além disso, a venda das indulgências afetava o espírito
nacionalista alemão, uma vez que os nacionalistas viam nelas
[...] uma maneira pela qual Roma explorava mais uma vez o povo
alemão, aproveitando de sua credulidade, para logo esbanjar em
luxos e festins os escassos recursos que os pobres alemães
tinham conseguido produzir com o suor de seus rostos
(GONZALEZ, 2003, p. 54).
Havia, assim, um grande descontentamento do povo alemão em relação a Roma,
representada pela Igreja e pelo papa. Isso passou a gerar, no território alemão,
um sentimento nacionalista e o desejo por uma separação radical e definitiva com
Roma e sua influência política na Alemanha.
Foi em meio a todos esses acontecimentos e fatores que Lutero publicou as suas
Noventa e cinco teses. Ao fazer isso, Lutero não buscava uma revolução, senão
uma discussão teológica dos temas propostos, entre os círculos acadêmicos.
Porém, essas teses atacavam, essencialmente, a exploração dos estrangeiros,
em especial Roma, e a venda das indulgências, ou seja, atacavam diretamente
os projetos dos mais poderosos (GONZALEZ, 2003).
Ao mesmo tempo em que as teses de Lutero foram repetidamente impressas,
devido ao grande desenvolvimento da imprensa nesse período, Lutero enviou
uma cópia para Albert de Brandenburgo, juntamente com uma carta; “[...] não era,
18
Corte do papa. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em 2 Nov. 2008.
61
no entanto, uma declaração de guerra. Uma advertência, sim. Um chamamento à
ordem, severo, em nome de Deus” (FEBVRE, 1976, p. 88).
Albert reenviou o que havia recebido para o Papa, pedindo que este interviesse;
ao mesmo tempo, o imperador Maximiliano, irritado com as atitudes e os
ensinamentos de Lutero, também pediu a intervenção do Papa. A primeira
sugestão do Papa foi o julgamento de Lutero por parte dos agostinianos, na
reunião que haveria em Heidelberg. Porém, para surpresa de todos, muitos deles
concordavam com as idéias de Lutero e este pôde regressar a Wittenberg
fortalecido por haver recebido apoio de sua ordem e contente pela conversão de
vários para a sua causa. Assim, sabendo que a Dieta do Império se reuniria em
breve em Augsburgo, sob a presidência de Maximiliano, o Papa sugeriu que
Lutero fosse levado até e entrevistado pelo cardeal Cajetano, legado papal da
Dieta, que teria de fazer Lutero se retratar.
A principal missão desse cardeal era convencer os príncipes alemães de que
havia a necessidade de se travar uma cruzada contra os turcos, uma vez que
estes ameaçavam a Europa, e que, para realizar tal empreendimento, seria
preciso promulgar um novo imposto. Na realidade, Roma estava sendo muito
pressionada e precisava da ajuda da Alemanha, numa aliança que recorda a
realizada entre o imperador Pepino e Roma, no Império Carolíngio
19
. Assim, as
críticas de Lutero, fortalecendo o espírito nacionalista, poderiam atrapalhar os
planos do cardeal e, num quadro mais amplo, os de Roma.
Por ser um professor da universidade implantada pelo eleitor da Saxônia,
Frederico, o Sábio, Lutero estava sob sua jurisdição e Frederico tornou-se seu
protetor, a princípio não por concordar com as suas doutrinas, mas porque
acreditava que ele merecia ter um julgamento justo e também por pretender
governar sabiamente. Quando soube da assembléia da qual Lutero participaria,
obteve do imperador um salvo-conduto imperial (mesmo sabendo que John Huss
19
Esse império foi estabelecido em 751 pelo rei franco Pepino, o Breve, que havia sido ungido rei
pelo Papa Zacarias através de uma cerimônia de consagração, realizada pela primeira vez, e que
deu ao soberano a personificação de um sacerdote. Surge, a partir de então, a idéia da figura
divina do rei como representante de Deus na terra, que governa segundo princípios religiosos, e a
religião passa a ser um assunto do Estado. Em troca, Roma receberia do império proteção militar
contra a ameaça dos lombardos.
62
havia sido assassinado, um século antes, em violação a um salvo-conduto).
Como a entrevista com Cajetano não ocorreu como o esperado, uma vez que
Lutero recusou a retratar-se do que havia dito e escrito, a menos que alguém
provasse por meio das Escrituras que ele estava errado, e por medo do salvo-
conduto não garantir a sua vida, fugiu da cidade à noite e voltou a Wittenberg,
onde apelou a um concílio geral (GONZALEZ, 2003).
É importante ressaltar que, aos poucos, os príncipes foram se convertendo ao
luteranismo, o que tornava seus principados luteranos também, segundo o
princípio de que a religião da região é determinada pelo príncipe (cuius regio eius
religio), ou seja, as pessoas não podiam escolher a sua religião; se não
concordassem, podiam se mudar para outro principado. Isso demonstra como a
Reforma Protestante não foi apenas uma revolução religiosa, mas também
fortemente política. Em 1525, quando João, o eleitor da Saxônia, sucedeu o seu
pai Frederico, este principado se tornou luterano. No mesmo ano, os ducados da
Prússia e de Homberg também se tornaram luteranos.
Em 1528, a relação dos príncipes germânicos que haviam
deixado a Igreja católica incluía os duques de Brunswick e
Schleswig, o conde de Mansfeld e o margrave de Brandenburgo –
Ansbach; em 1534, a eles já se tinham somado os senhores de
Nassau, Pomerânia e Württenberg. Várias cidades imperiais
também se haviam convertido. Em 1525, os luteranos
controlavam Altenburgo, Bremen, Erfurt, Gotha, Magdeburgo e
Nuremberg; em 1534, eram igualmente suas Augsburgo,
Frankfurt, Hanover, Estrasburgo e Ulm (SKINNER, 2000, p. 302).
Isso mostra claramente como se deu o processo de ‘luteranização’ no território
alemão, à medida que os príncipes, e conseqüentemente seus principados, foram
se convertendo às doutrinas de Lutero, fortalecendo com isso a Reforma e a
segregação interna da Alemanha. Essa conversão tirava os príncipes da
submissão a Roma, fortalecendo a autonomia dos mesmos sobre seus territórios,
e ajudava-os a atingir a posição independente e autônoma que almejavam,
inclusive em relação ao imperador, que permanecia sob o jugo do papa.
Em meio a esses conflitos internos, o imperador Maximiliano morreu e era
necessário eleger um novo imperador. Os dois candidatos mais destacados para
o cargo eram Carlos I, da Espanha, e Francisco I, da França, porém, ambos
63
desagradavam ao Papa Leão X, pelo fato de serem muito poderosos e
desequilibrarem a base da política papal na Europa. O papa tentou encontrar um
novo candidato, mas falhou. Desse modo, os eleitores tiveram que escolher entre
o rei da Espanha e o rei da França, mas nenhum dos príncipes eleitores estava
realmente preocupado com a Alemanha como um todo, senão em manter a
autonomia de seus territórios. Portanto, eles tiraram proveito dos subornos
oferecidos por ambos os candidatos e, em 1519, elegeram Carlos I como
imperador, impondo a ele certas condições, como a restauração do
funcionamento da suprema corte imperial e o conselho da regência imperial.
A eleição de Carlos I enfraqueceu a influência do papa na Alemanha e fortaleceu
a posição de Lutero. Com isso, o Papa Lo X escreveu a bula Exsurge domine,
na qual ameaçou excomungar Lutero o que mais tarde aconteceu caso ele
não se retratasse de suas doutrinas em sessenta dias, ordenando que seus livros
fossem queimados e que ele se submetesse à autoridade romana. Quando esta
bula chegou às mãos de Lutero, ele a queimou, atitude que marcou o seu
rompimento definitivo com Roma. Com isso, Lutero conquistou mais seguidores,
como os nacionalistas e os humanistas, que cada vez mais simpatizavam com a
reforma proposta por ele, pois acreditavam que um movimento de proporções
nacionais como este poderia enfraquecer a autonomia dos principados e
fortalecer o Império. Esperava-se saber quais seriam as atitudes dos pncipes
alemães e do imperador. Para surpresa de alguns, apesar de ser católico, Carlos
I inicialmente utilizou as idéias de Lutero para permanecer independente do papa,
mas depois mudou de idéia.
Mesmo não sendo contra a reforma, ou à redução do poder
papal, Carlos (I) deixou claro que ele seria fiel ao seu voto de
coroação de manter a ortodoxa e defender a Igreja. Era
impensável para ele que a um simples monge era permitido
questionar a autoridade da Igreja. Além disso, rebelião contra a
Igreja poderia levar a rebelião contra o estado; e a unidade da
Igreja aparentava a ele como um auxílio indispensável para
manter unidas as terras fragmentadas do seu império dinástico.
Pareceria absurdo se ele casasse a causa de uma igreja nacional
64
alemã à luz de seus principais interesses (GRIMM, 1973, p. 112).
20
Os dois bispos eleitores queriam que um édito fosse promulgado contra Lutero,
mas Frederico e seus aliados insistiam que Lutero deveria ser ouvido, antes de
julgarem-no. Enfim, após debates acerca de que atitude o imperador tomaria em
relação a Lutero, Carlos I decidiu que Lutero teria que comparecer perante a
Dieta do Império, que seria realizada em Worms, em 1521, com direito a um
salvo-conduto. Diante do interrogador, Lutero confessou que havia escrito todos
os livros ali expostos e tantos outros. Ao ser questionado se se retratava do que
havia escrito, Lutero temeu se atrever a ir contra a Igreja e o Imperador, que
haviam sido ordenados por Deus. Porém, respondeu que não se retrataria, pois
isso iria contra a sua consciência, e assim, ao haver rompido com a Igreja,
rompeu também com o Império (GRIMM, 1973).
Um tema de grande relevância para se entender a doutrina de Lutero e a
influência política de seus pensamentos, tratado em diversas de suas obras, foi a
questão do poder temporal e o espiritual, a autoridade que cabia a cada um
destes e a obediência devida aos mesmos pelo povo. Uma obra de grande
importância, escrita em 1520 e, portanto, antes da Dieta de Worms, foi o Apelo à
Nobreza Cristã da Nação Germânica. Na Idade Média, as autoridades
eclesiásticas haviam tornado a Igreja um reino universal, tanto espiritual quanto
temporal e Lutero, ao menos no início, esperava que as mesmas realizassem a
reforma, mas acabou se convencendo que isso não aconteceria. Por isso, apelou
às autoridades temporais, o imperador e os príncipes alemães, não para que
fizessem a Igreja se submeter ao Estado, mas para que exercessem seus
deveres como cristãos, pertencentes ao corpo da Igreja.
20
No original: Although Charles was not averse to reform as such, or even to the curtailment of
papal power, he soon made it clear that he would live up to his coronation oath to maintain the
orthodox faith and defend the Church. It was inconceivable to him that a simple monk should be
permitted to question the authority of the Church. Rebellion against the Church, moreover, might
lead to rebellion against the state; and the unity of the Church appeared to him an indispensable
aid in holding together the scattered lands of his dynastic empire. It would have appeared absurd
for him to espouse the cause of a German national church in the light of his main interests”
(GRIMM, op. cit., p. 112).
65
Nesta obra, Lutero busca alertar as autoridades temporais para os abusos
eclesiásticos. Ele começa explicando que todos os cristãos são considerados por
Deus como sacerdotes, segundo a Bíblia (II Pedro 2:9) e, portanto, não é a unção
do papa ou do bispo que produz um homem espiritual. Entende-se com isso que
todos os cristãos possuem um poder igual e estão aptos para pregar, batizar,
discernir as Escrituras, entre outros, mas alguns são escolhidos para governar e
outros para se submeter, escolha essa que não está vinculada à pessoa, mas ao
ofício e à função.
Por isso, Lutero condena a lei canônica que afirma que o papa não pode ser
deposto, nem se conduzir multidões ao inferno, uma vez que é juiz sobre todos e
por ninguém pode ser julgado. Além disso, Lutero condena o fato de apenas o
papa possuir autoridade para convocar um concílio, uma vez que se o papa
cometesse abusos, deveria ser julgado, perdendo sua posição e voltando a ser
um cidadão comum e que a autoridade para convocar concílios deveria caber às
autoridades temporais. Na segunda parte da obra, Lutero condena os abusos de
Roma, declarando que esta se constitui na maior usurpadora de toda a história e
que ousa fazê-lo em nome da Igreja e de São Pedro. Além disso, Lutero clama às
autoridades alemãs como parte da Igreja e a fim de ajudá-la que se levantem
contra esses abusos eclesiásticos e cumpram seus deveres, principalmente o
imperador:
Pobres alemães que somos temos sido enganados! Nascemos
para sermos senhores e temos sido obrigados a inclinar a cabeça
sob o jugo de nossos tiranos e a tornar-nos escravos [...] É
chegado o tempo de o glorioso povo teutônico
21
deixar de ser o
boneco do pontífice romano. Pelo fato de o papa coroar o
imperador não se segue que o papa é superior ao imperador [...]
Que o imperador seja um verdadeiro imperador e não mais
permita ser despojado de sua espada e de seu cetro!.
(BETTENSON, 1998, p. 297-298).
Com essa obra, fica clara a posição de Lutero em relação à autoridade temporal
que, segundo ele, não caberia à Igreja, mas ao imperador, como representante
do Estado. Além do poder temporal, porém, o imperador, como cristão, possuiria
também o poder sobre a Igreja, para auxiliá-la, estabelecer seus limites e, se
21
Relativo aos Germanos. Disponível em: http://www.priberam.pt/dlpo/. Acesso em: 2 Nov. 2008.
66
necessário, julgá-la. Fica explícito também, com essa obra, que Lutero era a favor
do rompimento da Alemanha com Roma, ou em outras palavras, com a influência
corrompida do papa sobre o terririo e a política alemães.
A relação entre Lutero e as autoridades seculares seria, porém, danificada com o
Édito de Worms, estabelecido pela Dieta em 1521, segundo o qual Lutero seria
dali em diante tido como um herege e seus livros e doutrinas proibidos de serem
publicados e divulgados. Os acontecimentos que se seguiram à Dieta agravaram
a situação. Durante o percurso de retorno da cidade de Worms, um grupo de
homens seqüestrou Lutero, sob ordens de Frederico, e o levaram para o castelo
de Wartburgo, onde permaneceu escondido por um ano.
Durante esse período, ele iniciou o trabalho que mais impactou a Igreja e a vida
cristã aos dias de hoje, qual seja, a tradução da Bíblia para o alemão, a qual
pôde, a partir desta versão, ser traduzida para muitas outras línguas. Esse
trabalho estabeleceu um grande marco naquilo que se conhecia como missa e
relacionamento pessoal com Deus, uma vez que a partir da tradução, qualquer
pessoa que soubesse ler teria a capacidade de conhecer a palavra de Deus e
entendê-la. Isso foi muito criticado, até mesmo antes da tradução, pela Igreja,
pois esta acreditava que permitir ao povo ler a Bíblia significaria abrir espaço para
interpretações errôneas e convenientes ou parciais. Além disso, significaria
reduzir o poder da Igreja, uma vez que esta não mais monopolizaria o
conhecimento e a revelação, tendo a sua importância como mediadora reduzida.
No que diz respeito às implicações políticas disso, Lutero repudiou duas coisas,
quais sejam:
[...] a idéia segundo a qual a Igreja possui poderes de jurisdição, e
por isso detém autoridade para dirigir e regular a vida cristã (...) a
doutrina de que está em mãos da Igreja capacitar um pecador a
alcançar a salvação, por meio de sua autoridade e sacramentos
(SKINNER, 2000, p. 294).
Com isso, Lutero deixou claro que a Igreja, como congregação dos fiéis, não
pode funcionar como um intermediador entre o indivíduo e Deus, que este
relacionamento é algo pessoal. Além disso, Lutero criticou aquilo que havia
sido grandemente criticado por diversos pensadores, como Thomas Hobbes, qual
67
seja, a tentativa da Igreja de exercer uma jurisdição sobre o povo, conclamando-
se possuidora não da autoridade espiritual, mas também da temporal. Em sua
obra Defensor da Paz, Marsílio de Pádua escreve sobre o assunto:
[...] todo poder coercitivo é, por definição, secular, e, portanto a
idéia do papa como detentor de ‘qualquer poder ou juízo ou
jurisdição coercitiva’ sobre ‘qualquer sacerdote ou não-sacerdote’,
ou ainda ‘qualquer indivíduo de qualquer condição que seja’, não
passa de uma ‘afronta desavergonhada’, que ameaça da pior
forma a paz do mundo’ (Pádua apud SKINNER, 2000, p. 319).
A respeito dessa questão, que envolve as autoridades seculares e eclesiásticas e
as suas jurisdições em relação à sociedade, Lutero escreveu, em 1523, uma de
suas obras de maior relevância e influência política, Sobre a Autoridade Secular.
Essa obra foi escrita em resposta à ordem dada por alguns pncipes de que
fossem recolhidas as pias da tradução do Novo Testamento, publicadas em
1522. Na obra dirigida à nobreza alemã, Lutero havia descrito as tarefas dos
nobres como cristãos, porém, nessa obra, ele advertiu sobre aquilo que eles não
deveriam fazer. Ele inicia o livro criticando os governantes por ordenarem aos
seus súditos que lhes obedecessem em todas as coisas, inclusive em acreditar e
pensar no que eles próprios pensavam. Os governantes colocavam-se no lugar
de Deus, pretendendo dar ordem ao Espírito Santo; elaboravam éditos, fazendo-
os passar por decisões do imperador e fingindo serem príncipes cristãos e
obedientes ao imperador (SKINNER, 2000).
O primeiro objetivo de sua obra é provar como a lei secular e a Espada procedem
da vontade de Deus (LUTERO, 1995). Para comprovar tal afirmação, Lutero
utiliza-se de duas passagens bíblicas, a de Romanos 13:1-5 e a de I Pedro 2:13-
14, respectivamente:
Todo homem esteja sujeito às autoridades superiores;
porque não autoridade que não proceda de Deus; e as
autoridades que existem foram por ele instituídas. De modo
que aquele que se opõe à autoridade resiste à ordenação
de Deus; e os que resistem trarão sobre si mesmos
condenação. Porque os magistrados não são para temor,
quando se faz o bem, e sim quando se faz o mal. Queres tu
não temer a autoridade? Faze o bem e terás louvor dela,
visto que a autoridade é ministro de Deus para teu bem.
68
Entretanto, se fizeres o mal, teme; porque não é sem motivo
que ela traz a espada; pois é ministro de Deus, vingador,
para castigar o que pratica o mal. É necessário que lhe
estejais sujeitos, não somente por causa do temor da
punição, mas também por dever de consciência.
Sujeitai-vos a toda instituição humana por causa do Senhor,
quer seja ao rei, como soberano, quer às autoridades, como
enviadas por ele, tanto para castigo dos malfeitores como
para louvor dos que praticam o bem (A BÍBLIA, 1993: NT
133, 191).
Essas passagens mostram claramente a posição de Lutero de que todos devem
obediência às autoridades, indiferente desta autoridade ser cristã ou não. A partir
disso, Lutero fala sobre a existência de dois reinos, o secular e o espiritual, tendo
o cristão que dever obediência a ambos; mas, por sua vez, o verdadeiro cristão
não precisa temer, uma vez que, conduzido pelo Espírito Santo, o terá sobre si
o peso da Espada.
[...] os cristãos vivem a um só tempo em dois reinos, o de Cristo e
o do mundo. Disso, procede identificar o primeiro com a Igreja e o
segundo com o domínio da autoridade temporal. A Igreja assim
se diz inteiramente regida por Cristo, cujos poderes são apenas
espirituais, já que – por definição – os cristãos não necessitam de
qualquer coerção. Do reino da autoridade temporal também se
entende que é ordenado por Deus, mas constitui um domínio
plenamente distinto, dado que a espada se concede aos
governantes seculares a fim de assegurar que a paz civil se
mantenha entre os pecadores (SKINNER, 2000, p. 296).
Com isso, fica claro como, para Lutero, os únicos necessitados de uma
autoridade coercitiva são os que não são cristãos, apesar dos cristãos deverem
também obediência e submissão às ambas autoridades, temporal e espiritual.
Lutero completa essa idéia dizendo que esses dois reinos ou governos são
complementares e dependentes um do outro, ou seja, o é possível tornar-se
justo aos olhos de Deus apenas por meio do governo secular, do mesmo modo
que o governo espiritual o se estende a todos, apenas aos cristãos,
necessitando do governo secular para auxiliá-lo (LUTERO, 1995).
Analisando a evolução do pensamento de Lutero, pode-se entender que as suas
críticas aos poderes da Igreja o levaram a desprezar também a tentativa desta de
exercer jurisdição sobre os assuntos temporais. Ao discutir o poder que cabe à
69
Igreja, Lutero define uma forma de governo interna, o “governo da alma”, o qual
não possui relação com assuntos temporais, uma vez que se dedica tão somente
a auxiliar os fiéis no caminho da salvação. Portanto, Lutero conclui que a
pretensão, quer seja do papa ou da Igreja, de exercer autoridade temporal devido
à sua posição ou cargo, representa um abuso dos direitos das autoridades
seculares. Em outras palavras, poder-se-ia dizer que:
Se a Igreja se reduz a uma congregatio fidelium, segue-se que as
autoridades seculares devem ter o direito exclusivo a exercer
todos os poderes coercitivos, inclusive sobre a própria Igreja. Isso
naturalmente não causa danos à Igreja genuína, porque ela
consiste num puro reino espiritual, mas com toda a clareza coloca
a Igreja visível sob o controle do príncipe devotado à religião. Isso
tampouco significa [...] que a ele se atribua qualquer autoridade a
emitir juízos sobre o conteúdo da religião. Seu dever consiste
simplesmente em favorecer a pregação do Evangelho e em
defender a verdadeira fé. Mas isso significa, sem nenhuma
dúvida, que Lutero está disposto a admitir um sistema de Igrejas
nacionais independentes, nas quais o príncipe detém o direito de
nomear e demitir sacerdotes e bispos, bem como de controlar e
dispor da propriedade eclesial (SKINNER, 2000, p. 297).
Lutero estabelece assim uma separação nítida entre a autoridade espiritual e a
autoridade temporal. À primeira, caberia a direção dos assuntos religiosos e
referentes à Igreja e a condução dos fiéis na sua salvação e vida cristã. À
segunda, caberia o poder civil sobre todo o povo, cristãos e não-cristãos,
inclusive em encorajá-lo a uma verdadeira vida cristã, e sobre as instituições, das
quais destacamos a Igreja, no que diz respeito à nomeação de autoridades
eclesiásticas, contanto que não interferisse nas doutrinas cristãs em si.
Esta demonstração acerca dos dois reinos leva a um outro ponto de grande
relevância destacado por Lutero em Sobre a Autoridade Secular, qual seja, a
legitimidade ou não da resistência dos cristãos à autoridade secular, no caso de
esta ser corrupta e injusta. Ele sustenta que se deve obediência ao príncipe até o
ponto em que as suas ordens forem contrárias à consciência, sendo então
legítimo desobedecer-lhe. Porém, mesmo que o príncipe seja um ímpio, não se
pode resistir-lhe porque, independentemente serem justas ou injustas, as
autoridades permanecem no poder por vontade e providência divina. Para Lutero,
os príncipes
70
[...] não passam das ‘máscaras’, ou larvae, de Deus. Se um
governante arranca a máscara que o identifica como lugar-
tenente de Deus, e manda seus súditos agirem de forma ou
ímpia, não deve jamais ser obedecido. O súdito deve seguir sua
consciência, ainda que isso implique desobedecer ao príncipe
(SKINNER, 2000, p. 298-299).
Lutero sustenta essa desobediência no fato de que todo cristão deve, em primeiro
lugar, obediência a Deus, o que implica numa limitação à obediência política.
Porém, por temer, juntamente com outros reformadores, que a reforma religiosa
que propagavam fosse desacreditada por estar associada a um radicalismo
político, Lutero enfatizou que não deve haver uma resistência ativa, ou seja,
violenta, ao príncipe, que toda autoridade é instituída por Deus e a resistência
a um príncipe, ainda que tirano, significaria uma oposição à própria vontade
divina. Portanto, Lutero
[...] sustenta que a posição política prescrita no Novo Testamento
consiste na plena submissão do cristão às autoridades seculares
ao mesmo tempo em que confere à gama desses poderes uma
extensão crucial, fundando-os de modo tal que em nenhuma
circunstância será legítimo opor-lhes qualquer resistência
(SKINNER, 2000, p. 301).
Ao mesmo tempo em que defende a idéia de o-resistência, Lutero afirma que
não é errado ou considerado um pecado ao cristão empunhar a Espada, uma vez
que Jesus, mesmo nunca tendo a utilizado, não condenou o seu uso, do mesmo
modo que não se casou e não condenou o casamento. Além disso, a própria
Bíblia fornece exemplos claros de que isto é legítimo. Um desses exemplos,
descrito no livro de Lucas, capítulo três, mostra um dos momentos em que João
Batista batizou milhares de pessoas e, em chegando um soldado para ser
batizado, João o batizou e lhe ordenou que se contentasse com seu pagamento.
Se esse ofício fosse considerado pecado, João não poderia ter batizado o
soldado. Além disso, Lutero considera a empunhadura da Espada como um ato
de serviço ao próximo, retomando a idéia do cristão não necessitar de punição e,
enfatizando o maior preceito bíblico, o de serviço aos outros. Portanto, o cristão
deve empunhar a Espada se o seu próximo necessitar e, além disso, em auxílio à
própria autoridade, para que esta não se torne desacreditada. Desse modo, disse
71
Lutero, o cristão satisfaria tanto o mundo como o reino de Deus, à medida que
não resiste ao homem mau, mas o enfrenta. Por isso, ele diz aos cristãos:
[...] vocês devem à Espada seu serviço e seu apoio por todos os
meios que estejam a seu alcance, seja com seu corpo, seus
bens, sua honra e sua alma. Pois essa é uma tarefa da qual
vocês mesmos não têm necessidade, mas seu próximo e o
mundo inteiro a têm com toda a certeza. E portanto, se vocês
perceberem que falta de carrascos, oficiais de justiça, juízes,
senhores ou príncipes, e julgarem ter vocês as qualificações
necessárias, devem oferecer seus serviços e buscar um cargo, de
tal modo que a autoridade, tão necessitada, jamais venha a ser
vista com desprezo, torne-se impotente ou pereça. O mundo não
pode sobreviver sem ela (LUTERO, 1995, p. 23-24).
Na segunda parte de sua obra, Lutero passa a estabelecer e comprovar os limites
da autoridade secular, principalmente sobre os cristãos. Retomando a sua clara
divisão entre autoridade espiritual e temporal, ele diz que esta última é
responsável apenas pelas coisas exteriores, mas não pelos desígnios da alma,
ou seja, os pensamentos e a fé, uma vez que o único capaz de conhecer os
pensamentos é Deus; tudo que se ensine deve ser baseado na Palavra de Deus.
Por isso, Lutero considera um absurdo que os príncipes ordenem ao povo que
acreditem na Igreja, nos padres e nos concílios, sem que exista algo na Bíblia
que o ordene a acreditar neles. Ao explicar como cada reino tem suas próprias
leis, sem as quais não pode sobreviver, Lutero diz que é absurdo que as
autoridades de uma cidade estabeleçam as leis de conduta para outra cidade,
mas que:
[...] é exatamente isso o que estão fazendo nosso imperador e
nossos judiciosos príncipes; eles deixam que o Papa, os bispos e
os sofistas os liderem, o cego conduzindo o cego, ordenando que
seus súditos tenham a crença que os príncipes consideram
adequada, sem a Palavra de Deus. E então eles insistem em
conservar o título de ‘Príncipes Cristãos’ (LUTERO, 1995, p. 41-
42).
De um lado, Lutero critica as autoridades eclesiásticas por governarem de modo
tão mundano, abrindo mão de sua principal função, a de conduzir os fiéis à
salvação, e preocupando-se com assuntos seculares e terrenos, como os bens e
a vida na terra. De outro lado, ele critica os governantes seculares por tentarem
estender sua jurisdição e autoridade sobre algo que não pertence a eles; Lutero
72
diz que se até mesmo a Igreja não se perturba com assuntos secretos, senão os
públicos e abertos, quanto mais a autoridade secular deve tentar controlar algo
tão pessoal como a fé. Ao obrigar os fiéis a crerem em algo, na verdade apenas o
obrigam a fingir tal coisa, uma vez que os atos e palavras podem não condizer
com a verdade e a crença do coração. Ao expor tais idéias, Lutero finalmente
desabafa:
Pois meus desgraciosos senhores, o papa e os bispos, deveriam
ser bispos [efetivos] e pregar a Palavra de Deus. Eles, porém,
cessaram de fazê-lo e tornaram-se príncipes seculares,
governando por meio de leis que dizem respeito apenas à vida e
às possessões materiais [...] deviam governar as almas com a
Palavra de Deus, interiormente, e em vez disso governam
castelos, burgos, regiões e povos, exteriormente [...] E os
senhores temporais, que deveriam governar exteriormente
regiões e povos, tampouco o fazem; em vez disso, a única coisa
que sabem fazer é tosar e tosquiar, empilhar uma taxa sobre
outra [...] o governo secular atolou-se tão profundamente quanto o
governo dos tiranos espirituais (LUTERO, 1995, p. 44-45).
Ao ordenar que o povo creia em algo, o príncipe rejeita o princípio de autoridade
dado por Deus ao homem no Gênesis, quando deu a Adão o domínio sobre a
terra e os animais, ou seja, sobre as coisas exteriores. Com isso, o príncipe
torna-se tirano, o que Lutero sustenta que muitas vezes é permitido ou até
mesmo estabelecido por Deus devido aos pecados do povo, como forma de
punição. Nesse caso, Lutero insta os cristãos a desobedecerem à autoridade,
não resistindo, mas suportando-lhe (LUTERO, 1995).
É interessante ressaltar que neste ponto os pensamentos de Lutero divergem dos
pensamentos de Hobbes, expostos no segundo capítulo. Ambos defendem o
poder absoluto da autoridade secular e a separação nítida entre esta e a
autoridade espiritual; porém, Lutero encoraja a desobediência, ainda que sem
resistência, naquilo que contradiz a Palavra de Deus, ao passo que Hobbes
sustenta que o povo deve se submeter em tudo ao soberano, mesmo que isto
implique em mentir, que o pecado não cairá sobre o súdito, por ter obedecido,
mas sobre o soberano.
No que diz respeito à teoria luterana da não-resistência, pode-se dizer que na
década de 1520, Lutero tinha razões que a sustentavam, como o medo de que
73
seus pensamentos e a reforma religiosa fossem associados às políticas
radicalistas. Além disso, em 1524 estourou a Revolução Camponesa na
Alemanha, fato que agravou esse medo de Lutero, fazendo-o reagir com
brutalidade. Para tal, foi à Turíngia, onde publicou sua obra Advertência pela paz,
a fim de convencer os príncipes a buscarem a conciliação e os camponeses a
não causarem a desordem e a revolta, porque isso era contra a vontade de Deus.
Como os camponeses não o escutavam, em 1525 ele publicou a obra Contra as
hordas camponesas, que pilham e assassinam, baseada na passagem de
Romanos 13 da Bíblia. Assim,
[...] a posição por ele assumida decorria necessariamente de uma
convicção teológica central sua, segundo a qual todo o quadro
existente da ordem social e política constitui reflexo direto da
vontade e providência divinas (SKINNER, 2000, p. 300).
Contudo, no começo da década de 1530, a Igreja luterana sofria grande ameaça
de ser totalmente destruída pelos exércitos do Império. Devido a isso, Lutero
mudou definitivamente o seu modo de pensar sobre a questão da o-
resistência. A partir de então, ele e seus discípulos passaram a sustentar que
seria legítimo resistir pela força ao governante que se tornasse tirano. A
reformulação da teoria da o-resistência, gerando uma nova teoria, viria a
exercer grande influência na criação das ideologias políticas revolucionárias que
surgiriam na segunda metade do século XVI.
3.2.3. Influências políticas
Dentre todos os fatores que possibilitaram a Reforma, pode-se dizer que o que
mais contribuiu para o êxito da mesma foi a atração que os governantes
seculares da Europa do Norte sentiram pelas idéias luteranas, principalmente as
de combate à Igreja e aos seus abusos. Acredita-se que pouco interesse tinham
de fato numa reforma religiosa e nas suas doutrinas, senão para as utilizarem
como armas ideológicas para obter o controle das riquezas e do poder da Igreja.
Desta maneira:
74
Alguns príncipes [...] jamais mostraram qualquer propensão a se
tornar luteranos, enquanto outros que se converteram a essa fé
[...] parecem tê-lo feito apenas com o intuito de alcançar seus
próprios fins e interesses. A questão dos motivos, porém, não é
fundamental. O principal problema, para as autoridades
seculares, estava em legitimar suas campanhas contra os
poderes eclesiásticos. Quando se decidiram a repudiar as
pretensões jurisdicionais do papado, isso os obrigou a procurar
pelos argumentos quaisquer que fossem capazes de
demonstrar que a Igreja, como um todo, não tinha o direito de
deter tais jurisdições. Isso, por sua vez, levou-os a fazer causa
comum com os luteranos. Pouco importando os seus motivos, o
resultado foi, em cada caso, o mesmo: a difusão da heresia
luterana provou ser o preço a se pagar pela ruptura com Roma
(SKINNER, 2000, p. 345-346).
Essa aproximação influenciou grandemente a legitimação das monarquias
absolutistas que começavam a surgir, uma vez que as teorias políticas
luteranas defendiam a Igreja apenas como uma congregação de fiéis, o que
retirava uma das maiores limitações ao poder do governante secular, qual seja, a
alegação da Igreja de que ela podia depor os tiranos por possuir tal autoridade.
Com a redução do poder atribuído à Igreja, os limites da autoridade coercitiva dos
reis expandiram. Além disso, os pensamentos de Lutero sustentavam uma
obediência passiva aos superiores, já que não era permitido lhes resistir ou
utilizar a lei natural para condená-los. Isso levou Tyndale, um teólogo reformador
da Inglaterra, a afirmar que nenhum governante precisa prestar contas ao povo
porque “[...] um rei é responsável somente perante Deus por suas ‘faltas’ e ‘não
tem igual na terra, sendo maior do que todos os homens, e inferior somente a
Deus” (Tyndale apud SKINNER, 2000, p. 355).
A formação da teoria política luterana tomou um rumo mais intenso quando as
autoridades seculares de diversas cidades alemãs decidiram aceitar e impor a
concepção luterana de Igreja, a qual se tornou a base de uma nova relação entre
o poder civil e o eclesiástico. Isso, porém, não se deu de forma tranqüila,
incorrendo em iniciativas oficiais, ou seja, realizadas pelas próprias autoridades
seculares. Em algumas cidades alemãs, por outro lado, as iniciativas foram
concretizadas pelo povo, que adotou as doutrinas reformistas e as impôs aos
governantes; como por exemplo, nas cidades bálticas do porte de Rostock e
Straslund e em cidades imperiais do sul, como Estrasburgo.
75
Na cidade de Estrasburgo, a Reforma começou em 1521, com a pregação de
Matthäus Zell sobre os Evangelhos e as doutrinas de Lutero, atraindo outros
reformadores para a cidade. Em face disso, o Conselho municipal tentou conter o
movimento, destituindo alguns reformadores de seus cargos, porém, em 1524,
pode-se dizer que a Reforma era uma realidade e as paróquias pediam ao
Conselho que nomeasse pregadores luteranos. Preocupados em perder o seu
controle e a estabilidade política, os membros do Conselho resolveram apoiar a
Reforma, tomando as sua rédeas, através da nomeação dos pregadores
evangélicos, e transformando a Reforma num movimento oficial, conseguindo
que toda a cidade se convertesse rapidamente.
Muitas cidades imperiais, por outro lado, não chegaram sequer a permitir que
houvesse um movimento reformador ou até mesmo congregações evangélicas
em seus territórios. Em outros casos, é nítido o fato de que a implantação da
nova religião foi grandemente influenciada por políticas oficiais, como por
exemplo, em Magdeburgo e Nuremberg. Pode-se notar que na maioria dos dois
mil principados, ou seja, cidades controladas por um príncipe local, poucos
indícios de que o movimento tenha se realizado de modo popular. Nestes, a
Reforma teve espaço para acontecer à medida que os príncipes o permitiram,
o que significa que as iniciativas partiam, nesses territórios, dos próprios
governantes seculares (SKINNER, 2000).
Para que a Reforma fosse aceita como tal, houve, de uma forma geral, três
passos tomados pelos governos locais alemães. O primeiro foi a concessão de
uma proteção governamental a líderes luteranos, que antes eram perseguidos, e
o incentivo a que estes difundissem as doutrinas de Lutero. Um exemplo disso foi
em Nuremberg, onde Osiander foi nomeado o pregador oficial, sendo colocado
até mesmo acima da Igreja antes estabelecida. O segundo passo foi a
convocação de uma Assembléia nacional, onde os governos locais puderam
declarar sua indignação definitiva contra os abusos dos poderes da Igreja e do
papado em seus territórios. Isso gerou, em todos os casos, a legitimação da
mudança através do estabelecimento da Igreja luterana como uma congregação
espiritual, sem aspiração política ou a quaisquer poderes, senão em pregar a
76
Palavra de Deus. O último passo realizado pelos governos locais foi aproveitar as
conseqüências dessa indignação contra a Igreja, transferindo as jurisdições da
Igreja à Coroa e estabelecendo o rei como chefe da Igreja, em lugar do papa.
Assim:
[...] a idéia do papa e do imperador com poderes paralelos e
universais desaparece, e as jurisdições independentes do
sacerdotium são confiadas às autoridades seculares (SKINNER,
2000, p. 297).
Esse último fator consistiu na etapa final e decisiva do estabelecimento da
ideologia política do pensamento luterano, ou seja, quando as autoridades
seculares começaram a exigir que o povo aceitasse as novas ordenações em
relação à Igreja. Na Alemanha, isso foi alcançado sem esforço, que na maioria
dos casos a Reforma teve origem num movimento popular, não havendo a
necessidade de se impor a nova fé.
Mesmo tendo sido na maioria dos casos realizada por movimentos populares, no
que diz respeito ao território alemão, a Reforma também pôde ter bom êxito
devido ao papel decisivo dos príncipes locais, principalmente através das dietas
do Império. Após a Dieta de Worms, Carlos I, que, além de imperador da
Alemanha, era também o rei da Espanha, ausentou-se e, durante esse período,
os eleitores tomaram as decisões em nome dele. Foram realizadas algumas
dietas nesse período de ausência, como a Dieta de Nuremberg, em 1523, em que
foi adotada uma política de tolerância em relação ao luteranismo; a Dieta de
Spira, em 1526, na qual o Edito de Worms foi tornado inválido, o que deu
liberdade a cada estado de definir a religião de seu território e a segunda Dieta
de Spira, em que o Edito de Worms foi reafirmado e, conseqüentemente, os
príncipes luteranos protestaram, sendo pela primeira vez chamados de
protestantes (GONZALEZ, 2003).
Finalmente, em 1530 o imperador Carlos I retornou à Alemanha para participar da
Dieta de Augsburgo e tentar pôr um fim aos conflitos religiosos internos, uma vez
que, mais preocupado com os problemas políticos externos, o imperador havia
perdido o poder de impedir que os principados, tanto católicos quanto
protestantes, ganhassem o controle sobre as questões religiosas. Os
77
protestantes eram acusados de heresia e muitos católicos defendiam que o Edito
de Worms deveria voltar a ser imposto; mas apesar disso, o eleitor João da
Saxônia conseguiu obter o apoio de muitos estados protestantes. Ao contrário da
Dieta de Worms, na qual o imperador não quis dar ouvidos aos debates em
questão, na Dieta de 1530, o imperador pediu que lhe fossem apresentados
todos os pontos a serem discutidos. Esse documento, elaborado por Melanchton,
ficou conhecido como a Confissão de Augsburgo, na qual estavam descritos os
principais pontos da e os pensamentos luteranos a respeito dos assuntos que
causavam divergência entre os católicos e os protestantes. Nesse documento, os
luteranos mostravam-se flexíveis nos pontos de discussão, fazendo concessões
de assuntos polêmicos, como o purgatório e a veneração de santos. Porém,
mesmo assim, os católicos não aceitaram a Confissão.
Seguindo as sugestões dos estados católicos, o imperador reforçou a afirmação
de que ele era um instrumento de Deus para a preservação da verdadeira ,
declarou que era impossível sustentar e manter a posição luterana e ameaçou
usar a força como o protetor e guardião da Igreja. Porém, devido às ameaças
externas dos turcos, o imperador necessitava do apoio de todos os territórios
alemães a fim de ter força para se defender, fato que levou à extensão das
negociações e colocou o imperador numa situação polêmica.
Mesmo parecendo vacilar por um tempo entre uma posição de
conciliação e uma posição inflexível, Carlos (I) finalmente
expressou sua determinação em reforçar o Edito de Worms,
reconstituir a suprema corte imperial para que fosse menos
favorável para os protestantes em casos envolvendo a
secularização de propriedade eclesiástica, prometeu formar um
conselho geral da Igreja para resolver as questões religiosas, e
demandou que os luteranos retornassem à Igreja Católica até 15
de abril de 1531 (GRIMM, 1973, p. 168).
22
Essa ameaça do imperador serviu apenas para fortalecer os ideais luteranos,
gerando solidariedade entre os crentes e levando diversas cidades do sul da
22
No original: Although Charles seemed for a while to vacillate between a conciliatory and an
adamant position, he finally expressed his determination to enforce the Edict of Worms,
reconstituted the imperial supreme court so that it would be less favorable to the Protestants in
cases involving the secularization of ecclesiastical property, promised to call a general council of
the Church to settle the religious questions, and demanded that the Lutherans return to the
Catholic Church by April 15, 1531 (GRIMM, op. cit., p. 168).
78
Alemanha, irritadas com as táticas políticas de Carlos I, a se aproximarem dos
príncipes protestantes. Apesar dos principados católicos possuírem mais poder,
apenas o eleitor Joachin de Brandenburgo e o Duque Jorge da Saxônia estavam
dispostos a entrar em uma guerra civil para destruir o luteranismo (GRIMM,
1973). Com isso, a fim de se fortalecerem diante das constantes ameaças, seis
príncipes e dez cidades protestantes se uniram e formaram, em 1531, a Liga de
Schmalkalden
23
, uma força de defesa militar, sendo mais tarde acrescidos da
maioria dos principados protestantes (FULBROOK, 2004).
Diante da instabilidade política interna do território alemão, da indignação geral
contra os abusos da Igreja, da falta de poder do imperador como uma autoridade
central, capaz de unificar a Alemanha, e de sua constante preocupação com os
outros territórios debaixo de sua jurisdição e com as possíveis ameaças externas
ao seu império, fica claro como foi possível que a Reforma Protestante se
encaixasse nesse cenário e tomasse forma. Porém, além de uma reforma
religiosa, e pode-se dizer que muito mais intensamente, o protestantismo tratou-
se de uma reforma política por ter sido utilizado como um instrumento de poder
nas mãos dos governantes seculares. Essa afirmação é confirmada
definitivamente com a Dieta e a Confissão de Augsburgo em 1530, em que os
príncipes protestantes se posicionaram firmemente a favor da Reforma e da
tolerância religiosa em seus territórios, não se submetendo à ordem do imperador
de banir as doutrinas luteranas e, conseqüentemente, fortalecendo seu poder
regional.
23
Alguns autores utilizam a palavra Smalcald, ao invés de Schmalkalden.
4. DA CONTRA-REFORMA À UNIFICAÇÃO ALEMÃ
Após a criação da Liga de Schmalkalden, houve diversas tentativas de se chegar
a um acordo entre católicos e protestantes, mas como isso não foi possível, o
imperador declarou guerra contra os “heréticos” da Alemanha, que ficou
conhecida como a Guerra de Schmalkalden
24
, com o apoio das tropas e do
dinheiro da Igreja Católica em Roma. Porém, enfraquecido por conflitos com o
papado e no contexto de uma possível divisão futura do império
25
e do
envolvimento da França com príncipes que se opunham ao imperador, em 1548,
Carlos V emitiu o moderado Interim de Augsburgo, que se tornou mais uma
tentativa frustrada de fazer um acordo entre católicos e protestantes. Foi apenas
em 1555, quando se chegou à conclusão de que havia um empate político entre
os mesmos e de que nenhum dos dois iria desaparecer, que se redigiu a Paz de
Augsburgo, considerada “um acordo para se discordar” (FULBROOK, 2004, p.
46).
A Paz de Augsburgo congelou as posições existentes de católicos e luteranos,
desconsiderou qualquer forma de protestantismo que não fosse o luteranismo e
deu aos príncipes o poder de determinar a religião de seus territórios
26
(do latim,
cuius regio, eius religio), contanto que não tentassem “converter” outros territórios
nem proteger os da mesma religião. O pncipe se tornou a autoridade máxima de
seu território, dominando política e espiritualmente sobre todos, inclusive sobre a
igreja, passando a ser chamado de “supremo bispo” (summus episcopus). A
liberdade de escolha da religião era determinada territorialmente e não
individualmente, portanto as pessoas tinham que migrar para outro território ou
cidade apenas as cidades, que não eram reinadas por príncipes, podiam
24
Schmalkaldic War (FULBROOK, 2004, p. 46).
25
O plano imperial era uma sucessão dividida entre as ramificações espanhola e austríaca da
família Habsburgo, o filho e o irmão do imperador, respectivamente (GRITSCH, 2002).
26
Essa regra valia para os estados imperiais, mas não para os cavaleiros e as cidades
(GRITSCH, 2002).
80
incorporar as minorias religiosas caso não concordassem com seu príncipe. O
que se comemorava como vitória para os protestantes, porém, era contraditório à
idéia inicial de Lutero, de que as pessoas deveriam ter um relacionamento
pessoal e individual com Deus.
Igrejas territoriais autoritárias não confirmaram as bases bíblicas
da religião, mas valorizaram o papel do determinismo político da
doutrina. E ao quebrar a unidade cultural da politicamente
fragmentada Alemanha do final da Idade Média, selou o padrão
de territorialização da política alemã (FULBROOK, 2004, p. 47).
27
4.1. A CONTRA-REFORMA
O luteranismo se expandiu pelas regiões norte e oeste da Alemanha, enquanto o
catolicismo se expandiu pelas regiões sul e oeste. A religião, independentemente
de qual, tornou-se um instrumento de demarcação cultural dos territórios e
aumentou o poder do governo de controlar o comportamento individual, através
do cuidado com os necessitados, do encorajamento à disciplina social e,
principalmente, da educação. Isso se deu com a criação de escolas e
universidades, incitada muitas vezes pela competição entre católicos e
protestantes. A economia também teve grande importância na reestruturação dos
territórios alemães, uma vez que com o seu avanço, devido essencialmente à
expansão marítima e às novas relações econômicas que se deram a partir disso,
muitos territórios foram perdendo importância, tendo seus servos e vilas
comprados por nobres que se tornaram senhores de grandes pedaços de terra.
Assim:
Após um período de grande importância internacional do ponto de
vista econômico, político, cultural e intelectual durante o final da
Idade Média, muitas cidades alemãs entraram em um período de
27
No original: Authoritarian territorial churches, far from confirming the scriptural basis of religion,
rather enshrined the role of political determination of doctrine. And in breaking the cultural unity of
politically fragmented late mediaeval Germany, it sealed the pattern of territorialisation of German
politics (FULBROOK, 2004, p. 47).
81
provincianismo no final do século XVI (FULBROOK, 2004, p. 51).
28
Os territórios luteranos se organizavam segundo um sistema territorial criado por
John Brenz, o líder eclesiástico de Wittenberg, que unificava os poderes civil e
espiritual. O príncipe era a autoridade máxima, mas era assistido por uma
assembléia de teólogos e leigos, que juntos definiam a vida da igreja, os
pastores, as doutrinas, a adoração e as finanças. Os superintendentes, que eram
bispos, tomavam conta do clero e das igrejas locais e se reportavam para a
assembléia; esses relatórios se tornaram a base para o trabalho legislativo da
mesma. Esse sistema de unificação do estado e da igreja prevaleceu na
Alemanha até 1918-1919, quando se iniciou a prática dos princípios
democráticos.
4.2. A GUERRA DOS TRINTA ANOS
O século XVII é conhecido como o século em que a Europa, de uma forma geral,
passou por uma crise, iniciada através de diversas rebeliões. Estas, em sua
maioria, estavam relacionadas a processos de formação de Estados, devido ao
aumento de impostos, à necessidade de se formarem exércitos e à intervenção
dos governos centrais nos governos locais. Além disso, tensões entre Estados e
dentro do Império Romano geraram conflitos no período entre 1618 e 1648, que
ficaram conhecidos como a Guerra dos Trinta Anos. Na Alemanha, esses
conflitos incluíam separações confessionais dentro do império, revoltas do povo
contra seus governantes territoriais, resistência dos príncipes contra o poder
28
No original: “After the international economic, political, cultural and intellectual significance they
had enjoyed in the late middle ages, many German towns entered a period of provincialism in the
later sixteenth century” (FULBROOK, 2004, p. 51).
82
imperial e conflitos de outros Estados que foram disputados em território
alemão.
29
A guerra aconteceu em partes devido aos problemas mal resolvidos na Paz de
Augsburgo e as conseqüências disso. Mesmo havendo sido estabelecido que
não poderia haver a tentativa de conversão de outros territórios, isso continuou e
causou conflitos, principalmente em territórios com grande poder político e direito
a voto eleitoral. Um exemplo disso foi a guerra de Cologne, na qual os católicos
conseguiram impedir a conversão do território e, conseqüentemente, do voto
eleitoral para o protestantismo, o que poderia ter aberto a possibilidade da eleição
de um imperador protestante.
Após diversas vitórias por parte dos católicos, em 1620 os habsburgos austríacos
controlavam grande parte do território alemão, ameaçando estabelecer um
estado unitário. Aliado a eles estava o imperador Ferdinando, que de forma
agressiva tentou apagar a Reforma Protestante e tudo que havia sido
conquistado através da mesma. Porém, devido à sua ambição e agressividade,
até mesmo os príncipes católicos passaram a discordar dele e o conflito que
antes ocorria entre católicos e protestantes passou a ocorrer entre os príncipes
territoriais e o imperador.
A partir de 1630, o conflito adquiriu um caráter internacional, com a intervenção
da Suécia, da França e da Espanha nos conflitos internos da Alemanha. A guerra
enfraqueceu todos os lados e após diversos conflitos, alguns príncipes fizeram
acordos com o imperador e outros fizeram acordos com a Suécia ou com a
França e em 1648, chegou-se a um acordo geral na Europa, conhecido como a
Paz de Westfalia (FULBROOK, 2004).
29
Conflitos entre Espanha e Holanda, entre Suécia e Polônia e entre França e a família Habsburgo.
83
4.3. A PAZ DE WESTFALIA
A Paz de Wesfalia tinha o objetivo de resolver os dois conflitos dentro do império:
o primeiro entre os católicos e protestantes e o segundo entre o imperador e os
príncipes territoriais. A mesma se tornou a base da lei pública e da vida política
do império, até a abolição deste em 1806. O território alemão continuava sendo
dividido e disputado por outras nações, como mostra a figura abaixo:
Gravura 1. A paz de Westfalia.
30
30
Disponível em: http://iris.cnice.mec.es/kairos/mediateca/cartoteca/img/mapas/westfalia.gif, link
dentro do http://images.google.com.br/. Acesso em: 9 Jul. 2008.
84
No que diz respeito à religião, a Paz de Westfalia criou barreiras à tolerância
religiosa e levou a uma secularização do governo, em relação à separação da
religião e da política. Em meados do século XVII, a preocupação maior dos
príncipes era resistir ao poder imperial e a uma possível centralização e não
seguir um alinhamento doutrinário. Nesse período, eles conseguiram aumentar
seus poderes individuais dentro de seus territórios e coletivos perante as dietas,
sem a intervenção do imperador.
Sendo assim, após passar por um período de grande instabilidade e insegurança
devido à guerra, a Alemanha entrou na idade do absolutismo com um território
fragmentado em pequenos principados, controlados pelos governantes
territoriais, os quais saíram da guerra fortalecidos e com mais poder político
contra o império.
4.4. A IDADE DO ABSOLUTISMO
Entre meados do século XVII e início do século XIX, o Império Romano foi
deixando aos poucos de ser um veículo político para o desenvolvimento de
Estados centralizados, o que permitiu a sobrevivência de pequenos principados e
províncias. Estes acabaram se tornando os verdadeiros atores políticos,
fortalecendo-se com a criação de exércitos, o estabelecimento de burocracias e a
imposição de impostos. Sendo assim:
Concomitante ao padrão generalizado de descentralização
imperial havia, entretanto, uma centralização do poder
relativamente alta em nível territorial. (...) Governantes buscavam
reger sem consultar os parlamentos ou os estados, os
representantes do povo (FULBROOK, 2004, p. 69).
31
31
No original: Concomitant with this overall pattern of Imperial decentralization was however a
relatively high degree of centralization of power at the territorial level. [...] Rulers sought to rule
without reference to parliaments or estates, the representatives of the people (FULBROOK, 2004,
p. 69).
85
Muitos territórios eram agrupados em estados, os quais variavam em tamanho e
aspecto. Havia a Áustria de Habsburgo, que possuía muitos territórios e interesse
no Império, a Saxônia Protestante, com capital em Dresden, a Bavária Católica,
com capital em Munique, as uniões de príncipes e bispados em Mainz e
Würzburgo. Mas o estado onde mais se desenvolveu o absolutismo como forma
de governo foi a Prússia-Brandenburgo, governada pela dinastia Hohenzollern,
que reunia em seu território diferentes culturas, religiões, estruturas
socioeconômicas e instituições políticas. Esse conglomerado era formado pelos
territórios Brandenburgo, Cleve, Mark, Ravensburgo e pela Prússia, localizada
dentro do limite das áreas de língua alemã, mas fora das fronteiras do Império
Romano.
Gravura 2. O crescimento de Brandenburgo-Prússia.
32
O início do governo absolutista se deu no reinado do eleitor Frederico William,
com a criação de impostos e de uma assembléia de oficiais militares, aos quais
32
Disponível em: http://www.knowledgerush.com/wiki_image/thumb/3/3c/400px-
Ac.prussiamap2.gif, link de: http://images.google.com.br/. Acesso em: 23 Jul. 2008.
86
as cidades deveriam se submeter. O seu sucessor, eleitor Frederico III aumentou
o aspecto simbólico do seu poder coroando a si mesmo Rei na Prússia
33
.
Nesse período, a maioria dos estados que tinha uma formação muito
diversificada, criada por conquistas em guerras e herança dinástica, havia
entrado em colapso em poucas décadas. Além desse problema, a Prússia
possuía outro muito maior: a sua localização no centro da Europa. Isso era um
problema, pois significava que seu território fazia fronteira com vários territórios
dos quais ela tinha que se proteger. Sendo assim, o filho de Frederico, Frederico
William I, ao invés de permitir a influência política dos outros territórios, decidiu se
fortalecer com a criação de exércitos e treinamento dos trabalhadores rurais, o
que pôde fazer graças a doações de governantes locais de Brandenburgo, aos
quais deu em troca maior autonomia nos seus territórios. Portanto:
Dessa linhagem desacreditada, governantes da família
Hohenzollern forjaram, ao longo dos séculos XVII e XVIII, um
poderoso estado centralizado, que dominaria os assuntos
alemães até sua abolição, ao final da Segunda Guerra Mundial
(FULBROOK, 2004, p. 76).
34
Em 1740, o imperador austríaco Carlos VI morreu sem deixar herdeiros para seu
trono apenas uma filha que não poderia sucedê-lo. Mesmo antes de sua morte,
autoridades da França, Espanha, Bavária e Saxônia já haviam começado a
planejar como repartiriam os bens da monarquia dos Habsburgos. Com o apoio
dessas nações em troca de uma parte dos territórios austríacos e um exército
bem treinado herdado de seu pai, o sucessor da Prússia, Frederico II, invadiu e
conquistou o território da Silesia. A partir desse momento, a Alemanha
protestante tinha um defensor dentro do Império, o rei Hohenzollern. Mais tarde,
de 1756 a 1763, Frederico II teve que lutar novamente por este território contra a
coalizão entre Áustria, França e ssia, na Guerra dos Sete Anos, da qual saiu
vitorioso novamente (SCHULZE, 1998).
33
Isso significava ter um reinado fora dos limites do Império Romano, o que somente foi permitido
pelo imperador em troca de apoio na Guerra de Sucessão Espanhola (FULBROOK, 2004).
34
No original: “From out of this relatively unpromising heritage, Hohenzollern rulers in the
seventeenth and eighteenth centuries managed to forge a powerful centralized state, which was to
dominate German affairs until its abolition in the aftermath of the Second World War”
(FULBROOK, 2004, p. 76).
87
Com isso, o cenário que surgiu foi o de duas Alemanhas, a Prússia e a Áustria,
disputando o domínio das questões alemãs. As condições políticas, econômicas
e sociais de seus territórios variavam muito, de pobreza a riqueza, de lugares
extremamente rurais a cidades completamente urbanizadas, de importante
nobres a pobres cavaleiros, que por pouco se diferenciavam dos trabalhadores
servis, entre outros. Alguns territórios, como Wittemberg, conquistaram
independência financeira, militar e política.
Tudo isso dificultava a unificação dos territórios e a submissão dos mesmos ao
Império. Nesse período, o Império começara a perder sua influência e poder
sobre seus territórios, passando a se tornar uma instituição existente apenas no
papel. Os territórios alemães, porém, que não podiam se defender como um todo
das grandes potências, dependiam da proteção e do apoio imperiais.
Nesse período, a Alemanha continuava sendo um território fragmentado e
repartido entre outras nações. O termo “alemão” podia ser designado apenas à
língua; mesmo assim, houve esforços para que se mantivesse uma língua pura,
esforços esses realizados em sua maioria nos territórios protestantes devido em
grande parte à tradução da bíblia para o alemão feita por Lutero. Com o
desenvolvimento dos territórios e o surgimento de uma elite alemã, uma língua
alemã padronizada começou a tomar forma.
Era na esfera de uma ngua distinta da hegemonia da cultura
francesa por toda a Europa durante esse período que a elite
intelectual alemã experimentou um sentimento de identidade
nacional (SCHULZE, 1998, p. 89).
35
O movimento iluminista que se desenvolveu na Europa no século XVII alcançou a
Alemanha apenas em meados do século XVIII. A nobreza militar se converteu em
uma aristocracia orientada para a corte e grande parte da classe média passou a
buscar uma educação e a conquistar cargos baixos na corte. A cultura alemã se
desenvolveu rapidamente, principalmente a literatura e a música. Com a
centralização na razão e no humanismo, a teologia deixou de ser um fator
35
No original: “It was in the sphere of a language distinct from the hegemony of French culture
throughout Europe at this period that the educated German elite experienced a sense of national
identity” (SCHULZE, 1998, p. 89).
88
polêmico que pudesse ocasionar conflitos e guerras; pelo contrário, passou-se
até mesmo a questionar a autoridade das Escrituras. Com isso, a sociedade
alemã se ausentou das questões políticas do seu território e da Europa como um
todo.
Porém, isso não durou muito. Em 1972 foi instalado um estado de guerra na
Europa, entre a França e as outras potências do continente. Com esses conflitos,
toda a geografia européia foi alterada através da conquista e divisão de territórios
entre as grandes potências, França, Rússia, Prússia, Inglaterra, entre outros.
Em 1795, a Prússia decidiu sair da aliança contra a França, ceder o território de
Rhineland aos franceses e abandonar seu voto de lealdade imperador alemão.
Com isso, a Prússia garantiu a paz no território alemão por dez anos, mas
também permitiu a reconfiguração do mapa da Alemanha, a concentração de
terra e poder na França e o fim do Império Romano.
Com essa reconfiguração, pequenos territórios como Bavária, Hesse-Kassel,
Wittenberg e Baden, perderam espaço, mas conseguiram mudar essa situação
conquistando as terras daqueles que não possuíam um exército para se
defenderem: os pequenos governantes eclesiásticos, as cidades livres e os
cavaleiros imperiais. Além disso, os territórios começaram a abrir mão da sua
lealdade ao Império e a se aliarem à França e ao seu ditador, Napoleão
Bonaparte.
Muitos territórios desapareceram e os que continuaram a existir passaram a se
submeter a um governo invisível, perdendo a sua autonomia local. Em 1806, os
representantes de 16 estados no sul e sudoeste da Alemanha assinaram um
acordo que abolia sua ligação com o Império e estabelecia um protetorado
submisso a Napoleão, conhecido como Rheinbund (Confederação do Rhine),
constituído de todos os estados alemães, exceto a Áustria e a Prússia.
Foi o colapso de uma tradição política e legal de quase mil anos,
e o triunfo revolucionário dos estados centralizados modernos,
89
que agora apagavam tudo em seu caminho (SCHULZE, 1998, p.
97).
36
No final de 1806, a Prússia enfrentou a França, e em 1809 foi a vez da Áustria,
mas ambas foram derrotadas pelo poderoso exército francês. Em 1807, a
servidão foi abolida, o que não gerou benefícios imediatos aos servos, mas os
tornou uma classe social, o que criou uma mobilidade de trabalho, condição
essencial para o desenvolvimento do capitalismo econômico.
Finalmente, em 1812 a França foi derrotada pela Rússia, que apoiou a Áustria e a
Prússia e em 1813 a Confederação do Rhine e os estados napoleônicos ao norte
da Alemanha foram dissolvidos e os estados ao sul fizeram acordos com a
Áustria. Em 1814 e 1815, houve o Congresso de Viena, cuja finalidade era
solucionar a questão da necessidade de se criar uma Alemanha estável e capaz
de se proteger, uma vez que não havia a possibilidade de restaurá-la como um
conjunto de pequenos principados com um governo inoperante.
Sendo assim, criou-se a Confederação Alemã (Deutscher Bund) no lugar do
Império Romano. A Confederação era formada por 38 estados, dos quais 34
eram monarquias e quatro eram cidades livres, a qual podia ser considerada uma
federação de estados, mas não um estado federal. Os seus limites territoriais
eram basicamente os mesmos do Império Romano e não possuía governo
central, órgãos administrativos e executivos, sistema legislativo e cidadania
comuns.
Os estados alemães se tornaram fortes unidades políticas com a garantia da
soberania e poder dos governantes e com o aumento do seu tamanho, devido à
incorporação de pequenos territórios. Um exemplo disso foi a Prússia, que teve
sua população dobrada e aumentou seu poder econômico com a absorção de
territórios ricos em mineral, comércio e indústria; o que a tornou mais apta a
36
No original: “It was the collapse of a political and legal tradition almost a thousand years old, and
the revolutionary triumph of the modern centralizes state, which now swept away everything in its
path”
(SCHULZE, 1998, p. 97).
90
defender os interesses alemães, alterando o equilíbrio de poder entre Prússia e
Áustria (FULBROOK, 2004).
4.5. O NASCIMENTO DA NAÇÃO ALEMÃ
– “PRÉ-MARÇO”
37
Houve nesse período o surgimento de um movimento nacionalista, organizado
em sociedades secretas, cujo objetivo principal era o afastamento de líderes
hesitantes a fim de se criar uma nação. Porém, com a nova divisão dos territórios
alemães, não apenas os líderes locais continuavam no poder, como também
líderes de outras nações participavam das decisões que envolviam a Alemanha.
Dessa maneira a ordem política alemã foi vinculada à da Europa
na rejeição ao princípio de nacionalidade; isso representava uma
última tentativa de evitar que a Alemanha se tornasse um poder
compacto no centro e de mantê-la como o campo de jogo onde as
demais potências pudessem balancear seus interesses
(SCHULZE, 1998, p. 110).
38
Mesmo assim, os cidadãos continuaram reivindicando uma Alemanha livre e
unificada; até que em 1819 o estudante Carl Sand esfaqueou o escritor August
von Kotzebue por este ter ironizado a idéia de um movimento nacionalista. Isso
foi utilizado pelo chanceler austríaco, o príncipe Metternich, como uma desculpa
para suprimir os movimentos revolucionários e liberais, passando a persegui-los e
forçando-os a se tornarem clandestinos novamente. O movimento somente
ressurgiu em 1832, consistindo de estudantes, membros liberais da burguesia,
artesãos e, desta vez, os agricultores. A inclusão destes ocorreu devido a um
crescimento alto da população em relação ao fornecimento de comida, o que os
37
Esse período ficou conhecido como Pré-março, uma vez que culminou com a Revolução de
1848, que aconteceu no mês de março.
38
No original: “In this manner the political order in Germany was linked with that of Europe in a
determined rejection of the principal of nationhood; it represented a last attempt to prevent
Germany from becoming a compact power at the center and to maintain it as the playing field on
which the other major powers could balance their interests” (SCHULZE, 1998, p. 110).
91
levou a migrar para as cidades, gerando muito desemprego, além de má-nutrição
e mortes. Esse período ficou conhecido como pauperismo (SCHULZE, 1998).
Além do aspecto social, o desenvolvimento econômico levou a profundas
transformações na Alemanha. A transição de uma sociedade feudal e
estratificada para uma sociedade de classes e com mobilidade de trabalho
proporcionou as bases para o desenvolvimento de uma sociedade industrial a
partir da década de 1830. Alguns processos que ocorreram durante o século XIX,
mas mais intensamente no final do mesmo, foram: o melhoramento do sistema de
comunicações, a construção de rodovias e ferrovias, o estabelecimento de
fábricas e as mudanças nos métodos de produção.
Outro aspecto de grande importância que contribuiu para a transformação da
Alemanha foi a mudança no quadro político alemão. Em 1818 a Prússia criou a lei
tarifária que abolia as diferenças entre cidade e país e a transformava em uma
unidade econômica sem tarifas internas. O único entrave para a concretização
dessa lei era a dificuldade de transportar cargas entre as províncias ocidentais e
orientais da Prússia, uma vez que estas estavam separadas por estados
alemães. Em 1828, Bavária e Wittenberg formaram uma custom union e Saxônia,
Hanover e Brunswick formaram a mid-German Commercial Union. Em 1834, a
Prússia criou o German Customs Union, consistindo de dezoito estados e uma
população de 23 milhões de pessoas. A Áustria decidiu não entrar para essa
organização e criou a sua própria customs union com territórios dos Habsburgos.
Assim, enquanto a Áustria permanecia predominante politicamente, a Prússia a
ultrapassava economicamente, principalmente quando o Thaler prussiano se
tornou a moeda comum dentro do Customs Union (FULBROOK, 2004).
A idéia de uma unificação dos estados se intensificou na década de 1840,
quando pela primeira vez desde 1815 a França demonstrou uma vontade de
expandir sua fronteiras em direção ao Rhine, e os líderes não reagiram como a
população esperava. Os dois movimentos mais conhecidos dessa década foram:
o movimento de ginástica (Turnbewegung), que estabelecia uma relação entre a
forma física e o patriotismo e a defesa nacional, e a sociedade do coral
(Gesangverein), que promoviam festivais de corais que estimulavam o sentimento
92
nacionalista, com músicas e discursos patriotas. Além desses, houve nesse
período os primeiros congressos acadêmicos alemães, cujos participantes
destacavam a ligação entre a academia e a idéia de nação (SCHULZE, 1998).
4.6. A REVOLUÇÃO DE 1848
De 1846 a 1848 houve uma crise de falta de alimentos nos territórios alemães
devido a más colheitas, levando à miséria da população e à migração para as
cidades. Além disso, os liberais buscavam cada vez mais as reformas
necessárias para que a Alemanha se unificasse. Mas a revolução popular
aconteceu de fato com a queda do rei francês, quando todos os nacionalistas e
liberais se uniram contra a ordem política anti-nacionalista e anti-liberal
estabelecida pelo Congresso de Viena. Algumas das demandas dos democratas
liberais e radicais eram a liberdade de imprensa e de se unir em assembléia, o
direito de se formar partidos políticos e de portar armas, para combater os
exércitos da ordem antiga. Além disso, exigia-se um parlamento nacional alemão
(SCHULZE, 1998).
Com muitos protestos acontecendo nas terras da Áustria, em março de 1848
Metternich fugiu para a Inglaterra e, dois dias depois, o imperador austríaco
prometeu uma constituição e convocou uma assembléia. Em muitos estados
alemães, os governantes substituíram administradores conservadores por liberais
e prometeram reformas, com medo de terem piores complicações. Na Prússia,
Frederico William IV decidiu que seria melhor se juntar aos revolucionários do
que lutar contra eles e tentou convocar um parlamento nacional e logo um regime
liberal foi instalado em Berlim.
Em maio de 1848 um pré-parlamento formado em sua maioria por liberais
moderados poetas, deres militares, padres católicos, membros da burguesia,
entre outros se reuniu em uma igreja de Frankfurt para discutir questões como
93
que tipo de constituição uma Alemanha unificada deveria ter, que modelo
econômico seria adotado e quais seriam os direito fundamentais dos indivíduos.
Em dezembro do mesmo ano, decidiu-se que uma Alemanha unificada deveria
ser um estado federal com um imperador e um parlamento eleito, com políticas
econômicas individualistas e liberdade de comércio (FULBROOK, 2004).
A partir disso, surgiu o maior problema de todos: como definir os limites do
território alemão para então se obter uma Alemanha unificada. A primeira solução
encontrada era a de estabelecer a “Grande Alemanha” (Groβdeutschland), que
consistiria de todos os territórios alemães, incluindo a Áustria, governada por um
imperador Habsburgo. A segunda opção seria estabelecer a “Pequena
Alemanha” (Kleindeutschland), que excluiria as regiões austríacas e seria
governada por um imperador Hohenzollern. Enquanto essas alternativas eram
debatidas, radicais do sudoeste alemão tentaram lutar por uma terceira opção, a
democracia, mas foram derrotados pelas tropas da confederação. Finalmente,
conseguiu-se estabelecer um governo central provisórios, porém o mesmo não
tinha poder e sua constituição não foi reconhecida (SCHULZE, 1998).
Após muito debate, optou-se pela “Pequena Alemanha”. Essa decisão acarretou
com a questão da inclusão ou não, em uma Alemanha nacional, do povo polonês
que vivia na província prussiana de Posen e dos ducados de Schleswig e
Holstein, que haviam proclamado a independência da Dinamarca e estabelecido
um governo provisório. Essa discussão se prolongou até meados de 1849,
quando foi oferecida a coroa ao rei da Prússia, Frederico William IV. Porém, este
a recusou que não teria que se submeter aos liberais, uma vez que no período
de debate diversos protestos haviam surgido, enquanto os conservadores se
reagrupavam e se fortaleciam, tornando-se fortes o suficiente para lançar uma
contra-revolução. Como os liberais não tinham poder militar real e foram
perdendo o apoio popular, os conservadores venceram e os governantes locais
foram recuperando sua confiança e seu controle territorial. Além desses motivos,
a revolução teve dificuldade de se concretizar porque os grande poderes da
Europa acreditavam que a unificação dos territórios no centro do continente
abalaria o equilíbrio europeu de poder.
94
A revolução havia terminado, mas deixou as suas marcas: as relações sociais
feudais da terra, que haviam sido abolidas, não retornaram; a organização da
vida econômica permaneceu de uma maneira liberal, permitindo um
desenvolvimento econômico rápido na década seguinte; a repressão política
representada por Metternich chegou ao fim e diversos grupos políticos nacionais
começaram a surgir, os quais se tornaram a base de partidos políticos que se
desenvolveriam nas décadas seguintes (FULBROOK, 2004).
4.7. A UNIFICAÇÃO ALEMÃ
Apesar do conservadorismo ter prevalecido no aspecto político, economicamente
o território alemão se desenvolvia rapidamente, baseado em políticas econômicas
liberais, principalmente na Prússia, que veio a estabelecer nas décadas seguintes
a sua hegemonia em relação à Áustria. Isso porque esta possuía grandes
territórios agrícolas e o industriais e tinha que despender grande parte de seu
orçamento para gastos militares, uma vez que passava por situações
complicadas com a Itália e os Bálcãs (FULBROOK, 2004). A União Alemã de
Customs, criada em 1834 sob domínio prussiano para estimular o
desenvolvimento econômico, envolvia 28 dos 39 estados alemães. Para que esse
bloco se tornasse realmente unificado, iniciou-se a criação de um sistema de
transporte ferroviário, o qual expandiu rapidamente. Com isso surgiu uma
economia unificada, com oferta, demanda e preços sujeitos às mesmas pressões
competitivas. O aumento das ferrovias levou ao crescimento da indústria de ferro,
devido à grande demanda por este produto para a construção de locomotivas,
máquinas, vagões e trilhos. Devido à necessidade de capital para essas
construções, novos bancos foram criados em todos os territórios, aumentando
também a circulação de dinheiro. O outro fator que contribuiu para o boom
econômico foi o fato de que a mão de obra era barata. Apesar dos salários baixos
e das más condições de trabalho, a industrialização reduziu o desemprego e o
subemprego. Além disso, levou à migração em massa da população rural para os
95
centros urbanos, devido às melhores condições de trabalho nas indústrias em
relação à agricultura.
Assim, a sociedade agrária e hierarquicamente organizada dos séculos anteriores
era substituída por uma sociedade urbana, moderna e industrial, dividida em
proletariado e burguesia. Com isso, os elos sociais tradicionais começaram a ser
rompidos ou enfraquecidos, como os laços familiares, os servis e os religiosos.
Devido a esse rompimento com os modelos antigos, a sociedade tornou-se
desorientada e passaram a surgir diversos mitos e filosofias modernas para
preencher as lacunas sociais. Contudo, ainda existia uma liderança tradicional
que passou a desenvolver filosofias conservadoras, a fim de se defender da
emergência do capitalismo liberal. Com isso, surgiu o movimento político católico
na Silesia, no Rhineland e no sul da Alemanha onde os laços tradicionais não
haviam sido rompidos completamente como uma reação ao movimento liberal
prussiano e protestante e sua demanda agressiva por poder (SCHULZE, 1998).
Além dos católicos, outros partidos políticos começaram a se formar no final da
década de 1850, como os partidos formados por operários, que se tornaram a
base do Partido Social-Democrata existente hoje na Alemanha. Também foram
criados partidos conservadores e o Partido Alemão Progressista, formado pelos
liberais de esquerda (FULBROOK, 2004).
Na Prússia, o rei William I reduziu a censura e nominou um gabinete liberal, e
acabou tendo seus plenos vetados pelo mesmo, como o de aumentar o exército
prussiano e reduzir a força da milícia dos cidadãos (Landwehr), controlada pela
classe dia. Isso gerou um conflito entre os parlamentares liberais e o rei, a
aristocracia detentora de terras e o exército. Outro fator que agitava a situação
política era a tentativa de Napoleão III, aliado ao reinado de Piedmont-Sardinia,
de desafiar a supremacia austríaca no norte da Itália. Isso levou a uma onda de
nacionalismo na Alemanha pela primeira vez desde a Revolução de 1848,
aumentando a demanda pela criação de uma Nação-Estado alemã soberana,
possuidora de um poder militar suficiente para intervir nas relações exteriores.
96
Com isso, ficou claro que o movimento nacionalista ainda existia e passou-se a
criar organizações formais para defender as opiniões da população. Estas foram
divididas em “Pequena Alemanha”, que consistia dos territórios prussianos e ficou
conhecida como Associação Nacional Alemã; e “Grande Alemanha”, dominada
pela Áustria e que consistia dos pequenos estados e dos estados
predominantemente católicos e ficou conhecida como Associação da Reforma
Alemã. Mais uma vez a Prússia demonstrou a sua hegemonia, construindo uma
associação mais organizada, divulgada e com mais dinheiro.
Contudo, a Prússia possuía um grande obstáculo para a unificação: o
conservador Otto von Bismarck. Este foi nomeado primeiro-ministro pelo rei
William I, ao qual garantiu que conseguiria estabilizar a monarquia e eliminar o
domínio liberal do parlamento.
O povo Alemão enxergava Bismarck como a personificação, não
apenas de toda a luta antiliberal, mas também – como liberalismo
e nacionalismo representavam dois lados de uma mesma moeda
– de todas as forças antinacionais (SCHULZE, 1998: 138).
39
Porém, a intenção real de Bismarck era consolidar e expandir o poder da Prússia
na Europa, estabelecendo definitivamente sua hegemonia na Alemanha sobre a
Áustria. Quando em 1863 a Dinamarca anexou os ducados de Scheleswig, a
opinião pública mais uma vez se demandou uma resposta nacional, o que levou a
debates diplomáticos e alguns conflitos, culminando na vitória alemã, oficializada
em um tratado que dava à Áustria e à Prússia uma administração conjunta dos
ducados. Os conflitos que surgiram a partir disso geraram a desculpa que
Bismarck precisava para entrar em guerra com os austríacos, na que ficou
conhecida como a Guerra Austro-Prussiana, de 1866 (FULBROOK, 2004). Assim:
Nada atrapalharia mais seus (de Bismarck) planos que uma
aliança com o movimento nacional, cujo principal propósito de
destruir o sistema vigente era claro como o dia. Bismarck
precisava da oposição deles (dos nacionalistas liberais), como
uma tela por trás da qual poderia operar, ocultando sua força e
39
No original: “The German public perceived Bismarck as the embodiment not only of all antiliberal
strivings but also – since liberalism and nationalism represented two sides of the same coin – of all
the antinational forces” (SCHULZE, 1998, p. 138).
97
reais intenções, até o momento em que ele poderia agir e pegar
todos desprevenidos (SCHULZE, 1998, p. 139).
40
Além da superioridade militar e econômica da Prússia, ela havia se aliado à
recentemente unificada Itália, a qual pressionou a Áustria, forçando a mesma a
mobilizar suas tropas em março de 1866 e iniciar a guerra. Em julho do mesmo
ano, a Prússia garantiu uma vitória decisiva sobre a Áustria em Königgrätz,
excluindo esta definitivamente de qualquer envolvimento em assuntos alemães.
Muitos vêem essa vitória como um passo em direção à unificação alemã.
41
Assim, a Confederação Alemã foi dissolvida e foi criado um estado federal
chamado Confederação Alemã do Norte, constituído de 22 territórios pequenos e
médios ao norte do Main River, dominados pela Prússia militar e
economicamente, sendo alguns deles Schleswig-Holstein, Hanover, Hesse-
Kassel, Frankfurt e Nassau. Além da Áustria, os estados do sul também foram
excluídos, como Bavária, Baden, Wittenberg e Hesse-Darmstadt, porém
continuavam ligados à Prússia por um acordo militar e através do Customs Union
ainda existente. De acordo com a nova constituição, escrita por Bismarck, os
governantes territoriais continuariam tendo autonomia interna, enquanto o líder da
Confederação, o rei da Prússia, cuidaria de assuntos exteriores e militares. Am
disso, o parlamento continuaria existindo, porém enfraquecido, e surgiria o
Conselho Federal, controlado pela Prússia.
Em 1870 a sucessão do trono da Espanha foi oferecida a um membro dos
Hohenzollern, o causando revolta na França, que tentou impor à Alemanha que
não aceitasse. Isso acabou gerando um conflitou que levou à Guerra Franco-
Prussiana, ou Franco-Germânica, uma vez que o sentimento de nacionalismo e o
acordo militar levaram os estados do sul da Alemanha a entrarem na guerra.
Como a República havia sido proclamada em Paris no mesmo ano, as potências
40
No original: “Nothing would have hindered his (Bismarck’s) plans more than an alliance with the
national movement, whose ultimate aims to bring down the existing system were as clear as day.
Bismarck needed their (liberal nationalists) opposition as a screen to operate behind, concealing
his strength and real intentions until the moment when he could take action and catch everyone off
guard” (SCHULZE, 1998, p. 139).
41
Como antes da guerra a Prússia havia rompido com a Confederação Alemã e a antiga ordem
(Congresso de Viena), enquanto a Áustria permaneceu como a líder da Confederação, era como
se a guerra fosse entre Prússia e Alemanha e não Prússia e Áustria (SCHULZE, 2004).
98
internacionais se recusaram a intervir para apoiar um governo revolucionário.
Assim, a guerra teve fim em 1871 com a vitória ale e a anexação das
províncias francesas de Alsácia e Lorraine.
Com o fim da guerra, os estados do sul perceberam que não tinham outra opção
a não ser se vincularem permanentemente à Prússia. Sendo assim, em 18 de
janeiro de 1871, em uma cerimônia em Versailles, o Império Alemão foi
proclamado e a coroa hereditária de uma Alemanha unificada foi oferecida ao rei
William I da Prússia.
O que vinha sendo arquitetado, sob a orientação de Bismarck, foi
efetivamente a extensão do poder prussiano, e não a expressão
do entusiasmo nacionalista por uma Alemanha unida
42
(FULBROOK, 2004, p. 128).
A nova constituição estabelecia esse segundo Império como um império federal,
no qual os estados tinham autonomia regional, enquanto políticas externas e
guerras eram domínio nacional. A estrutura política que se estabeleceu era a de
uma pirâmide dividida em três camadas. A camada de baixo era o parlamento
(Reichstag), eleito pelo voto popular, mas com pouco poder político. A camada do
meio era o Conselho Federal (Bundesrat), constituída de delegações de
diferentes estados. Como maior estado, a Prússia possuía poder de veto no
Conselho. A camada de cima era constituída pelo imperador, o chanceler, os
ministros, os oficiais seniores e figuras importantes do exército.
42
No original: “What had been engineered, under Bismarck’s guidance, was effectively the
extension of Prussian power rather than the expression of nationalist enthusiasm for a united
Germany” (FULBROOK, 2004, p. 128).
CONCLUSÃO
As relações entre a Igreja e o Estado e a influência mútua exercida ao longo da
história definiram, em alguns períodos mais intensamente, a sociedade, a
hierarquia social, o desenvolvimento econômico, a vida cristã e até mesmo o
sistema político implantado. Nesse trabalho, buscou-se dar uma maior ênfase ao
domínio religioso-político dessas relações e suas principais conseqüências na
Alemanha, ocorridas em um ambiente que proporcionou a Reforma Protestante
no início do século XVI e que influenciou o “atraso” da formação de um Estado
Moderno nessa região. Para tanto, foi necessário analisar os fundamentos em
que a sociedade dessa época estava baseada, explorando alguns
acontecimentos do feudalismo e focando no cenário em que a Reforma ocorreu,
enfatizando os principais pontos defendidos por Lutero na busca de mudanças de
um sistema rígido que acabara refletindo na má condução daqueles que
verdadeiramente buscavam seguir a religião cristã.
No primeiro capítulo, apresentou-se a evolução histórica da Igreja Católica,
mostrando como esta se tornou, mais intensamente a partir do período feudal,
uma instituição de poder, capaz de exercer grande influência na política. Essa
relação entre Igreja e Estado era representada pela relação entre o papa, como
autoridade religiosa central que muitas vezes almejava o poder civil, e o
imperador, como autoridade temporal, por vezes funcionando como um marionete
nas mãos da Igreja, ou, por assim dizer, de Roma.
No segundo capítulo, mostrou-se como a evolução histórica da Alemanha rumo à
unificação do território ocorreu de modo “atrasado”, se comparado aos outros
territórios, que, na segunda metade da Idade Média, passaram por um processo
de centralização do poder, com um crescente sentimento nacionalista, o que
levou à criação dos Estados Modernos. A Alemanha foi por muito tempo
constituída por uma confusão de terras e povos, devido à grande movimentação
das tribos germânicas e, por isso, ingressou no sistema feudal dois séculos após
100
as outras nações. No sistema feudal implantado, o poder representado pelas
terras foi distribuído entre os duques, os príncipes e as autoridades
eclesiásticas, representantes diretos da Igreja. Além desses, o imperador também
possuía certo poder, porém tinha sua autoridade limitada, que se dava pela
existência de uma espécie de parlamento, a Dieta, formada por sete eleitores,
dentre eles quatro príncipes seculares e três bispos, os príncipes e as cidades, e
era responsável por todas as decisões a serem tomadas em relação à Alemanha.
A disputa pelo poder, na Alemanha, entre as autoridades espiritual, representada
pela Igreja, e temporal, representada pelos príncipes e pelo imperador, teve início
com o conflito entre o Papa Gregório VII e o Imperador Henrique IV, acerca da
nomeação por parte de um leigo das autoridades eclesiásticas. Mais tarde, na
dinastia Hohenstaufen, por não ter recursos ou poder, Frederico I tentou explorar
o feudo que representava a Itália do Norte, buscando a união das soberanias
alemã e italiana, tentativa que ameaçou o poder papal, agravou o conflito
histórico entre o imperador e o papa e impossibilitou a criação de uma monarquia
estável na Alemanha. Após cem anos de guerra, no século XIII a Alemanha foi
definitivamente dividida em uma confusão de principados, as Alemanhas. Esses
pequenos territórios eram, em sua maioria, regidos por príncipes seculares;
porém, alguns séculos antes, na tentativa de reprimir a rebelião dos poderes
locais, os imperadores haviam concedido terras aos bispos, por acreditarem que
estes seriam mais submissos. Isso contribuiu para o fortalecimento da
fragmentação interna do território alemão, uma vez que concedeu grande poder à
Igreja e que, após certo tempo, os bispos deixaram de se enxergar como
vassalos do rei.
Esses fatores acabaram gerando um grande conflito entre os interesses da
monarquia e os dos principados, que não almejavam uma autoridade central da
qual teriam que ser submissos, mas a autonomia de seus próprios territórios.
Uma vez que eles detinham poder para influenciar as decisões políticas, seria
muito difícil criar uma monarquia. Assim, a Alemanha chega ao fim do culo XV
como uma sociedade dividida, politicamente instável e, devido à constante
influência de Roma e do papa, exausta dos abusos de poder da Igreja. Essas
101
críticas à Igreja muitas vezes consistiam em tentativas por parte dos príncipes de
romper com Roma e acrescentar a seus principados os vastos territórios sob
domínio das autoridades eclesiásticas. Além disso, em 1519 foi eleito o novo
imperador alemão, Carlos V; porém, tal eleição se deu de modo fraudulento,
através de suborno dos príncipes que, em troca de elegê-lo, estabeleceram
condições que aumentavam o poder dos mesmos e limitavam ainda mais o poder
do imperador. Devido a todos esses fatores, principalmente a soberania dos
príncipes sobre seus territórios, encontrou-se na Alemanha o espaço necessário
para que acontecesse a Reforma Protestante.
No terceiro capítulo, foram apresentadas as raízes dos pensamentos reformistas,
surgidas a partir de movimentos no período medieval, mas que não haviam obtido
sucesso; as críticas de Lutero, porém, coincidiram com o momento mais propício
para ocorrer uma verdadeira transformação. Em outubro de 1517, Lutero pregou
as suas Noventa e cinco teses na porta da Igreja do castelo de Wittenberg,
conclamando um debate sobre os abusos daqueles que se diziam servos de
Deus, mas que utilizavam o nome do papa e de Deus para pregar mentiras e
explorar os fiéis. Ele não sabia, até então, que o próprio Papa Leão X havia
autorizado a venda das indulgências a Albert de Brandenburgo, a fim de que este
levantasse os recursos necessários para pagar o papa pela compra do
arcebispado de Mainz. Isso mostrou claramente o domínio político exercido pela
Igreja e que foi muito criticado por Lutero o qual recebeu apoio dos
nacionalistas – não somente quanto às mentiras vendidas, mas também quanto à
exploração realizada por Roma sobre o povo alemão. A indignação de Lutero
originou na pregação da separação completa da Alemanha das influências da
Igreja.
Lutero havia esperado que as autoridades eclesiásticas enfrentassem os abusos
criticados por ele e realizassem uma reforma, mas, ao descobrir que não o
fariam, resolveu encorajar as autoridades seculares que tomassem posse de
seus cargos e coragem para proibir que tais abusos continuassem a acontecer.
Porém, estes também não lhe deram ouvido; pelo contrário, se levantaram contra
suas teses, pois o consideravam um traidor da Igreja. Por sugestão do papa,
102
Lutero foi convocado à Dieta do Império, em Augsburgo, na qual foi requisitado
que se retratasse do que havia escrito e ao não fazê-lo, rompeu os seus laços
com o Império. A essa altura, Lutero havia quebrado suas relações com a
Igreja por ter criticado os seus abusos e a sua constante tentativa de exercer
jurisdição sobre assuntos temporais. Além disso, ele criticou a idéia de que
apenas através da Igreja se poderia chegar a Deus; para ele, a Igreja não
passava de uma congregação de fiéis e cada fiel deveria poder ter acesso à
Palavra de Deus, motivo pelo qual fez a primeira tradução da Bíblia para uma
língua secular, o alemão. Lutero esclareceu que a função que cabia à autoridade
espiritual consistia na condução dos fiéis à salvão.
Aos poucos, os príncipes e, conseqüentemente, os seus principados, foram se
convertendo ao luteranismo, o que lhes separava, juntamente com Lutero, do
Império, e lhes dava maior autonomia regional. Alguns se converteram por
verdadeiramente acreditarem nas doutrinas de Lutero, mas acredita-se que a
grande maioria o fez por motivações políticas. Antes da Reforma, os príncipes
almejavam um poder soberano sobre seus próprios territórios e isso era
alcançado na medida em que controlavam e manipulavam o imperador. Porém,
restava a influência da Igreja, que ainda possuía muitos territórios e
representantes na Alemanha e em meio às autoridades do governo e permanecia
sendo uma das instituições mais fortes e independentes da Europa. Esse domínio
não poderia ser facilmente quebrado.
No quarto capítulo, foi descrito o período entre a Reforma Protestante e a
Unificação alemã, iniciando pela Contra-Reforma, momento no qual houve
conflitos entre católicos e protestantes, até que em 1555 foi redigida a Paz de
Augsburgo, documento que oficializava a posição existente do catolicismo e do
protestantismo. Nesse período, a religião continuou sendo utilizada como um
instrumento de poder nas mãos dos governantes, através da cultura e da
educação.
Porém, devido a problemas mal resolvidos da Paz de Augsburgo, iniciaram novos
conflitos entre católicos e protestantes e entre príncipes territoriais e o imperador.
A partir de 1630, esses conflitos adquiriram um caráter internacional, o que levou
103
a um acordo geral da Europa, a Paz de Westfalia, a qual se tornou a base da lei
pública e da vida política do império. Esta criou barreiras à tolerância religiosa e
levou a uma secularização do governo.
Em meados do século XVII, a Alemanha entrou na idade do Absolutismo com um
território fragmentado em principados, fortalecidos com a criação de exércitos, um
sistema mais burocrático e a imposição de impostos. Após diversos conflitos por
terra, a Alemanha tendo quase todo seu território divido em duas alemanhas, a
Áustria e a Prússia. Essa divisão interna acabava por dificultar a unificação dos
territórios e a submissão dos mesmos ao Império.
O movimento iluminista alcançou a Alemanha no século XVIII e com a
centralização na razão e no humanismo, a teologia deixou de ser um fator
polêmico que pudesse ocasionar conflitos e guerras. Em 1792, instalou-se um
estado de guerra entre a França e as outras potências continente, o que resultou
na alteração de toda a geografia européia e o fim do Império Romano.
Com isso, alguns territórios alemães trocaram sua lealdade ao Império por uma
aliança com a França e, conseqüentemente, com Napoleão Bonaparte, a qual foi
dissolvida com a derrota do mesmo para a Rússia. Com o Congresso de Viena
(1814-1815), criou-se a Confederação Alemã. Porém, devido ao agrupamento de
ricos territórios, a Prússia se tornou muito mais poderosa do que a Áustria,
alterando o equilíbrio de poder entre as mesmas.
Nesse período, começaram a surgir diversos movimentos nacionalistas, os quais
foram fortalecidos com a criação de áreas de livre comércio dentro do território
alemão. Finalmente em meados do culo XIX, com a queda do rei francês,
ocorreu uma revolução popular no território alemão, um pré-parlamento foi
formado e foi estabelecida a “Pequena Alemanha”, que excluía os territórios
austríacos.
Com a expansão do capitalismo e o desenvolvimento do setor de transportes, a
sociedade deixou de ser agrária e se tornou urbana e industrial. Como reação ao
104
capitalismo liberal, surgiu o partido político católico e, além desse, outros partidos
foram se formando, como o partido dos operários.
Com a constante ameaça de invasão dos franceses, ressurgiu o movimento
nacionalista, levado adiante pela “Pequena Alemanha”, que era
predominantemente protestante e ficou conhecida como Associação Nacional
Alemã e pela “Grande Alemanha”, que era predominantemente católica e ficou
conhecida como Associação da Reforma Alemã.
Utilizando-se dos conflitos entre a Prússia e a Áustria por terras, o primeiro-
ministro Otto von Bismark entrou em guerra contra a Áustria e venceu, excluindo
a mesma de qualquer envolvimento em questões alemãs. Com isso, a
Confederação Alemã foi dissolvida e foi criado um estado federal chamado
Confederação Alemã do Norte.
Em 1870, diversos conflitos levaram à Guerra Franco-Prussiana, a qual teve fim
em 1871, com a vitória alemã. Assim, em janeiro do mesmo ano, o Império
Alemão foi proclamado.
Assim, pode-se concluir que os príncipes viram na Reforma a oportunidade que
precisavam para romperem com Roma e seu jugo, tomando o controle pleno de
seus próprios territórios e tornando-se independentes do Império, não lhe
devendo submissão, uma vez que o próprio Império obedecia, em certo grau, a
Roma. Na realidade, com a análise do processo histórico ocorrido no território
alemão, pode-se entender o seu “atraso” político em relação às outras nações; a
instabilidade política, os abusos da Igreja e a divisão da Alemanha em
principados são fatores que vinham se arrastando no período medieval e que
impediram, por si sós, a criação de uma monarquia estável. Mesmo não sendo o
fator de maior relevância, a Reforma Protestante influenciou fortemente no
“atraso” da unificação alemã, pois serviu como o sustento da argumentação dos
príncipes e trouxe uma segregação interna mais profunda do que a a então
conhecida.
105
O mesmo não foi observado de maneira tão explícita na unificação em si, uma
vez que ao longo dos séculos pós-Reforma Protestante, o território alemão foi,
aos poucos, se estruturando política e economicamente, com a inserção de
burocracias e impostos e a criação de partidos políticos, o que dificultava cada
vez mais a intervenção da religião, ou da igreja como instituição, no governo do
território. Porém, ainda que não explicitamente, houve a influência da mesma na
aceitação política de realidades modernas, como o capitalismo, visto pela Igreja
Católica como algo liberal e, portanto, não aceitável. Essa postura conservadora
acabou sendo um dos motivos da dificuldade da Áustria de se erguer e se tornar
uma nação poderosa como a Prússia.
Portanto, pode-se concluir que houve uma influência do catolicismo e do
protestantismo no processo e, por fim, na unificação alemã, ainda que não tenha
sido de maneira tão aberta e visível como o foi no período da Reforma
Protestante, até mesmo porque a sociedade ainda vivia, no século XVI, a
realidade do teocentrismo, onde tudo que ocorria era por vontade de Deus. No
século XIX, a sociedade havia sido transformada e estava bem mais
instruída, devido ao investimento em educação e à tradução da Bíblia para a
língua alemã; sendo assim, se vivia o período da razão, onde cada indivíduo
estava livre para pensar e interpretar da maneira como quisesse.
Foram esses fatores de fato que levaram ao triunfo da Prússia e ao
estabelecimento de uma nação alemã unificada, livre do jugo das outras
potências européias e da Igreja Católica, forte o suficiente para se proteger de
qualquer ameaça externa ou interna.
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA Sagrada. Trad. em português por João Ferreira de Almeida. São Paulo:
Sociedade Bíblica Brasileira, 1993.
ANDERSON, Perry. Passagens da antigüidade ao feudalismo. Trad. Beatriz
Sidou. São Paulo: Brasiliense, 1991.
BETTENSON, H. Documentos da igreja cristã. Trad. Helmuth Alfred Simon.
São Paulo: ASTE Simpósio, 1998.
BLOCH, Marc. A sociedade feudal. Trad. Emanuel Lourenço Godinho. Lisboa,
Portugal: Edições 70, 1979.
BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Trad. Carlos Nélson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1991.
COMBY, Jean. Para ler a história da igreja I: das origens ao século XV. Trad.
Maria Stela Gonçalves. São Paulo: Loyola, 1996.
CRISTIANO, Henrique e BRANDÃO, Jacyntho José Lins. Introdução à história
da igreja. Minas Gerais: Editora O Lutador, 198-.
FEBVRE, Lucien. Martinho Lutero: um destino. Trad. Maria Elizabeth Cabral.
Lisboa, Portugal: Livraria Bertrand, 1976.
FEBVRE, Lucien. A Europa: gênese de uma civilização. Trad. Ilka Stern Cohen.
São Paulo: Editora da Universidade do Sagrado Coração, 2004.
107
FISHER-WOLLPERT, Rudolf. Os papas: de Pedro a João Paulo II. Trad. Antônio
Estevão Allgayer. Petrópolis: Vozes, 1999.
FLAVIAN, Eugenia e FERNÁNDEZ, Gretel E. Minidicionário
Espanhol/Português e Português/Espanhol. São Paulo: Ática, 1996.
FULBROOK, Mary. A concise history of Germany. Reino Unido: Cambridge
University, 2004.
GONZALEZ, Justo L. Uma história ilustrada do cristianismo: a era dos
reformadores. Trad. Itamir N. de Sousa. São Paulo: Vida Nova, 2003, v. 6.
GRIMM, Harold J. The reformation era 1500-1650. 2. ed. New York: Macmillan
Publishing Co., 1973.
GRITSCH, Eric W. History of lutheranism. Minneapolis: Fortress Press, 2002.
GUÉNON, René. Spiritual authority & temporal power. New York: Sophia
Perennis, 2001.
HARRISON, Everett F. et al. Wycliffe dictionary of theology. Estados Unidos:
Hendrickson Publishers Inc., 1960.
HILL, Christopher. O eleito de deus: Oliver Cromwell e a Revolução Inglesa.
Trad. Carlos Eugênio Marcondes de Moura. São Paulo: Companhia das Letras,
1988.
HOFMEISTER, Wilhelm; CARNEIRO, José Mário B. Federalismo na Alemanha
e no Brasil. São Paulo: Fundação Konrad Adenauer, 2001.
108
HOBBES, Thomas. Do cidadão. Trad. Fransmar Costa Lima. São Paulo: Martin
Claret, 2004.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado
eclesiástico e civil. Trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2002.
KANTOROWICZ, Ernst Hartwig. Os dois corpos do rei: um estudo sobre
teologia política medieval. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo: Companhia das
Letras, 1998.
KIMBALL, Charles. When religion becomes evil. New York: HarperCollins
Publishers, 2002.
LAPEYRE, Henri. Las monarquías europeas del siglo XVI: las relaciones
internacionales. Barcelona, Espanha: Labor Barcelona, 1969.
LUTERO, Martinho e CALVINO, João. Sobre a autoridade secular. Trad. Hélio
de Marco Leite de Barros e Carlos Eduardo Silveira Matos. São Paulo: Editora
Martins Fontes, 1995.
MACCULLOCH, Diarmaid. The reformation: a history. Estados Unidos: Penguin
Books, 2004.
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
PERROY, Édouard et al. A Idade Média. In: CROUZET, Maurice (Org.). História
geral das civilizações. Trad. Guinsburg e Vítor Ramos. São Paulo: Difusão
Européia do Livro, 1965, Tomo 3, v. 2.
109
PIRENNE, Henri. Historia de Europa: Desde las invasiones al siglo XVI. Trad.
Juan José Domenchina. México: Fondo de Cultura Econômica, 1942.
PIRENNE, Henri. História econômica e social da Idade Média. Trad. Lycurgo
Gomes da Motta. São Paulo: Mestre Jou, 1968.
REESE, William L. Dictionary of Philosophy and Religion. Estados Unidos:
Humanities Press Inc., 1980.
SCHULZE, Hagen. Germany: a new history. Massachusetts: Harvard University
Press, 1998.
SILVESTRE, Armando Araújo. Calvino e a resistência ao Estado. São Paulo:
Mackenzie, 2003.
______. Manual de produção acadêmica. São Paulo: ITA, 2008.
SKINNER, Quentin. As fundações do pensamento político moderno. Trad.
Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
THE CATHOLIC University of America. New Catholic Encyclopedia, v. X.
Estados Unidos: Philippines Copyright, 1967.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo