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A impossível linguagem:
Uma leitura sobre as vozes dissidentes na escritura de Hilda Hilst.
Tatiana Franca Rodrigues
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Tatiana Franca Rodrigues
A impossível linguagem:
Uma leitura sobre as vozes dissidentes na escritura de Hilda Hilst.
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora da Universidade Federal
de Juiz de Fora MG, como exigência
parcial para a obtenção do título de
Mestre em Teoria da Literatura, do
Curso de Mestrado em Letras,
Faculdade de Letras, UFJF, sob a
orientação do Prof. Dr. Alexandre Graça
Faria.
Juiz de Fora, 2007.
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Aos rouxinóis
AGRADECIMENTOS
Poder agradecer é uma imensa alegria. Quer dizer que o impossível,
afinal, cedeu a nossa vontade.
E as palavras que eu gostaria de ter agora são encontradas na doce
música de Milton Nascimento, Rouxinol:
Rouxinol tomou conta do meu viver
Chegou quando procurei
Razão para poder seguir
Quando a música ia e quase eu fiquei
Quando a vida chorava
Mais eu gritei
Pássaro deu a volta ao mundo
E brincava
Rouxinol me ensinou que é só não temer
Cantou se hospedou em mim
Todos os pássaros, anjos
Dentro de nós,
Uma harmonia
Trazida dos rouxinóis.
Todos aqueles que estiveram constantemente presentes “quando a
música ia” são os “pássaros, anjos”, que me ensinaram que “é não temer”.
também aqueles que vieram me presentear com sua existência em minha vida,
exatamente “quando procurei razão para poder seguir”: os duros momentos de
dúvida foram superados pela certeza vinda de sentimentos de amor. “Quando a
vida chorava”, “quando mais eu gritei”, esses pássaros, anjos, porque “brincavam”,
puderam trazer à tona a harmonia que agora ofereço a eles com terna alegria:
Professor Alexandre, Mãe, Nara, Vovó, Caio, Dora, Francine, Paula, Fernanda
Gláucia, Wellington, Dani e toda a minha família. Aos Professores: Edimilson,
Fernando, Gilvan, Maria Clara, Cândida e Neiva, e a cada um que ajudou a
formar o coro angélico que sustenta minha vida, Muito Obrigada!
RESUMO
Este trabalho pretende, a partir da leitura de três livros de Hilda Hilst,
compreender de que maneira o tema do erotismo se inter-relaciona com questões
ligadas à metalinguagem e ao próprio trabalho de escrita. Nesta direção, o estudo
procura entender a pornografia como um discurso a partir do qual se dão reflexões
sobre a contemporaneidade.
Assim, procura-se desconstruir as nomenclaturas “obscena, erótica e
pornográfica”, comumente vinculadas à autora e demonstrar como tais elementos
são apenas um ponto de partida para propor hipóteses sobre como o discurso
sobre a sexualidade, sobre o corpo, não está calcado na exterioridade que
representam, mas pode abranger questões profundas, como a da possibilidade de
representar a essência das coisas através de palavras, ou, no caso do sexo, a
essência da subjetividade a partir daquilo que aponta para a exterioridade.
ABSTRACT
The aim of this work is, by reading three books of Hilda Hilst, to
understand how the theme of eroticism is connected to questions related to
metalanguage and to the issue of the process of writing itself. Under these
circumstances, the study intends to apprehend pornography as a speech through
which critical thoughts regarding contemporaneity are taken into consideration.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................1
CAPÍTULO 1
“MALDITA ORTODOXIA” OU RIDENDO CASTIGAT MORES: O PAPEL DO
NARRADOR EM HILDA HILST
1.1- O (não) valor da lógica....................................................................................6
1.2- Um narrador nada ortodoxo............................................................................12
1.3- Castigar, com palavras, os valores.................................................................17
1.4- Há ainda uma moral?......................................................................................36
CAPÍTULO 2
O META-DISCURSO EM LORI LAMBY: POR QUE NÃO SE DEVE OLHAR PARA
AS ESTRELAS
2.1- Umas coisas porcas: “À memória da língua”...................................................39
2.2- O caderno negro X O caderno rosa: quando Lalau quase encontrou o que
procurava................................................................................................................44
2.3- “Uns nascem para ser lambidos” (há uma moral predestinada)......................54
CAPÍTULO 3
NÃO HÁ RESPOSTA ALÉM DA PALAVRA
3.1 - Um narrador todo fissurado..............................................................................62
3.2 - Uma Idéia de Deus............................................................................................71
3.3 - Livrai-me, Senhor, dos abestados e atoleimados.............................................80
CONCLUSÃO...........................................................................................................86
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................89
Mas a nós [...] resta, por assim dizer, trapacear
com a língua, trapacear a língua. Essa trapaça
salutar, essa esquiva, esse logro magnífico que
permite ouvir a língua fora do poder, no esplendor
de uma revolução permanente da linguagem, eu
chamo, quanto a mim: literatura.
Roland Barthes
INTRODUÇÃO
A vasta obra de Hilda Hilst compõe um cenário desafiante a todos
aqueles que pretendem estudá-la. Primeiramente, porque, embora seja ainda
escasso o número de estudos publicados, uma quantidade bastante grande de
leitores que classificam-na a partir de um viés aqui entendido como redutor. Vista
como escritora “obscena”, “pornográfica” ou “erótica” por alguns, ou mesmo
“louca”, por outros, a autora acabou por ser rotulada de acordo com sua biografia,
ou “características de estilo”, tornando de diminuta importância o trabalho de
linguagem que nos seus textos. Como se pode constatar através das
colocações de Vera Queiroz no texto Hilda Hilst e a arquitetura de escombros,
As mesmas razões [...] para escrever “bandalheiras”,
ao invés de dedicar-se à alta arte, são aquelas
apontadas por Hilst para a escrita de suas peças
eróticas dar ao público supostamente o que ele quer:
diversão na leitura de livros que exploram o sexo fácil
(QUEIROZ, 2004, p. 70).
Ou seja, a expectativa do público medíocre é aparentemente
responsável pela produção literária que ele mesmo considerou menor, segundo
suas apreciações. O desafio inicial de estudar a obra de Hilda Hilst é, portanto, o
perceber as sutilezas de seu jogo de composição e, por conseqüência, o de
questionar a validade do conceito generalizante de autora “pornográfica”, tão
comumente aplicado a ela.
A segunda dificuldade encontrada na realização da pesquisa foi a escolha
bibliográfica que a escritora cultivou os três gêneros textuais na sua escrita:
prosa, poesia e teatro pois, embora não haja a pretensão de dar conta de tão
extensa obra neste trabalho, é importante cuidar para não torná-la menor, nem em
relação à teoria abordada, nem devido aos recortes escolhidos para a presente
análise.
Desse jeito, três obras foram elencadas para ilustrar discussões
entendidas como principais na escritura hilstiana.
Em primeiro lugar, o livro de poemas, Bufólicas (1992), em seguida,
O caderno rosa de Lori Lamby (1990) e, por último, A obscena senhora D (1982).
Como é possível constatar, uma diferença de dez anos entre o primeiro e o
último livro escolhido para esta análise. A despeito da ordem cronológica em que
foram editadas, as obras serão estudadas na seqüência apresentada. Tal fato se
justifica na escolha do tema, pois se pretende perceber como a temática dita
“pornográfica” de Hilda Hilst abre, na verdade, caminhos para uma reflexão aguda
sobre a metalinguagem como veio questionador da contemporaneidade.
Em Bufólicas, o largo uso do palavrão na paródia aos textos de
contos de fadas tradicionais associa o questionamento sobre os valores de moral
que sustentam as relações humanas na sociedade ocidental, e os valores
estéticos que, via de regra, são critérios influenciados por padrões morais, como
“feio” e “belo”. O suporte teórico foi encontrado em Nietzsche, na Genealogia da
Moral, e nas suas reflexões sobre o quanto o estabelecimento de padrões morais
a serem cumpridos pode cercear as possibilidades inventivas do homem. Desse
modo, conceitos como “feio” e “belo” reduzem significativamente o objeto a que se
destinam. Além disso, o aspecto satírico proposto pela releitura mal-comportada
parece-nos intencional, pois ao fazerem rir, as poesias levam-nos a criticar nossas
concepções de moral.
Sob outro ângulo, a opção pelos vocábulos ditos de baixo calão
torna-se necessária para evidenciar a questão tratada por Michel Foucault na
História da sexualidade. Deve-se reparar que, nos contos reescritos por Hilst, a
questão relacionada à sexualidade constitui também uma crítica aos valores
estabelecidos como corretos, pois, de acordo com o pensador francês, ela
desfruta de um discurso pseudopermitido pela sociedade, que um enorme
catálogo de normas, censuras e tabus para se falar de sexo.
Há, ainda, uma terceira questão merecedora de uma leitura mais
atenta, o fato de o eu-lírico, nome dado à voz usada na linguagem emotiva, ser
substituído, em Bufólicas, por um narrador, que é uma voz, afinal, mas sem
nenhuma ligação com a função emotiva da linguagem; ao contrário, preocupa-se
em satirizar o comportamento de seus leitores. Desse modo, voltado para a crítica
aos padrões de comportamento, o narrador faz com que o leitor ria de seus
próprios defeitos, o que é, de certo modo, uma maneira de levá-lo a fazer uma
crítica de si mesmo.
Ainda sob o aspecto do registro vocabular e da catalogação dos
textos de Hilda Hilst ao lado dos que são considerados obscenos pela crítica, é
que se procura ler O caderno rosa de Lori Lamby. A história de uma menininha de
oito anos prostituída pelos pais e, ainda pior, que gosta de praticar o sexo é
chocante para a maioria dos leitores. É exatamente a fim de pensar sobre a visão
do senso-comum que a narrativa se disfarça nesse perverso enredo: como se o
narrador quisesse seduzir seus leitores para o que é periférico na composição da
obra, a fim de provar que não somos capazes de perceber o que realmente
importa.
É que por detrás da história “imoral” de pedofilia, uma outra
narrativa: a de uma menininha que precisa ajudar o pai, escritor, a ganhar
dinheiro, pois seu editor o avisa de que sua obra é demasiadamente complexa,
por isso ordena que escreva umas “bandalheiras”, porque o público leitor não é
capaz de entender reflexões densas.
Assim, uma dedicatória bastante congruente com a rápida
resenha acima, À memória da ngua, como num gesto de adeus à literatura em
favor da mercadoria. O que parece reverberar o dito de que o “cliente tem sempre
razão”, pois, ao assumir que a literatura precisa ser vendida e, para tanto, tem de
ser aceita, o editor concretiza a crítica que vem gradualmente se formando até
agora: trancados em percepções redutoras das realizações estéticas (como o
julgamento sobre a primeira história de O caderno rosa, como imoral) colaboramos
para que a escritura se automatize, convertendo-se em produto de consumo.
No final da história,a proibição dos pais e sua subseqüente crise.
Ao lerem o caderno de Lori, pai e mãe o tomam da filha e, em seguida, vão parar
numa instituição psiquiátrica. A censura imposta a Lori é também parte do adeus à
língua e mostra como a produção literária tem se voltado a interesses econômicos,
o que a distancia de seu verdadeiro papel, revolucionar permanentemente a
linguagem, de modo a mantê-la viva.
O último capítulo do trabalho destina-se à leitura de A obscena
senhora D. A esta altura, vimos como a reflexão sobre a metalinguagem em
Hilda Hilst é sustentada a partir de artifícios de cena do narrador, que sempre está
em busca de burlar o leitor. Neste último livro, a questão é elevada a um
exponencial máximo. A personagem principal, Hillé, uma senhora de sessenta
anos, recentemente viúva, abre mão de seu nome próprio em benefício da dúvida
proporcionada pela letra D.
Ao mesmo tempo, a morte de Ehud, o marido, desencadeia uma
série de conflitos existenciais que levam Hillé a habitar o vão da escada. O que
está em jogo são os limites de representação da linguagem. Se antes, num
movimento de despedida, Lori declara a morte da língua, a Senhora D aponta para
o seu silêncio. Viver no vão da escada é uma ilustração disso, pois é somente no
entre-lugar que ela se sente capaz de viver.
Hillé é a personificação dessa crise da representação. Na medida em
que ela deixa o nome próprio, que designa identidades exclusivas, para assumir
um nome comum, parece apontar para a falência da linguagem como
representante das coisas que designa.
Constatada a morte da língua, o erotismo que envolve a Senhora D
volta às questões trabalhadas anteriormente com as análises de Bufólicas e O
caderno rosa de Lori Lamby. Ao seu rótulo de escritora pornográfica, Hilda Hilst
responde com a sátira e também com a metafísica: o que de mais obsceno em
sua obra é a necessidade de buscar respostas para a existência, ainda que seja
num elemento tão transcendente como o erotismo.
“Maldita ortodoxia!” ou Ridendo Castigat Mores:
o Papel do Narrador em Hilda Hilst.
1.1 - O (não) valor da lógica
O neologismo que nomeia o conjunto dos sete poemas de Hilda
Hilst, Bufólicas, é composto pela aglutinação das palavras “bufão” e “Bucólicas”. A
breve observação morfológica acerca da junção dos radicais em questão deixa
evidente, em primeiro lugar, o caráter satírico desse conjunto de poesias dispostas
à provocação de seus leitores, que desconstroem como fazem os bufões,
através de recursos de ironia os usos e costumes de uma sociedade em franca
decadência de seus valores. No segundo radical, temos uma referência ao poeta
latino Virgílio que, nas suas Bucólicas, versa sobre o epicurismo, questionando-o
acerca do uso que faz da razão. Quer dizer, o poeta latino via com reservas a
teoria filosófica que orientava a todos nesse momento da Época Clássica.
O par “riso” / “razão”, extraído das relações semânticas e
morfológicas no jogo de palavra que origem ao título do livro, denota o que se
desdobrará nos poemas como sistema de pensamento crítico e remete-nos à
epígrafe colocada na página de rosto de Bufólicas, o provérbio latino Ridendo
castigat mores
1
, que deixa entrever o diálogo da peculiar lógica dos bufões,
através da sátira, com a racional doutrina de Lucrécio. Curiosamente, o lema
latino, relacionado ao título da obra, leva a intuir o que se concretizará a partir da
leitura dos poemas e como se constatará no exercício da sua análise: a prudência
1
Rindo castigam-se os costumes.
está sob o jugo da zombaria. A fim de questionar o primado da razão na
impossibilidade de poder continuar conceituando o homem como ser que, ao
contrário dos demais, possui a faculdade de ponderar e de pensar a
pseudoliberdade discursiva numa sociedade que se diz democrática, Hilda Hilst
abre mão do registro lingüístico padrão da língua portuguesa em benefício da
presença da oralidade nos textos escritos. Ou melhor, em benefício de um tipo de
vocabulário que melhor expressa a liberdade ou a vontade de liberdade de
expressão, a palavra mais inculta e desclassificada: palavrão.
Eliane Robert Moraes, em texto publicado nos Cadernos de
Literatura Brasileira, considera que, sob o disfarce de pornografia, Hilda Hilst
promove “uma fina reflexão sobre o ato de escrever como possibilidade de jogar
com os limites da linguagem” (MORAES, 1999, p. 114). Tal jogo de palavras
2
encontra-se no limiar de nossas percepções, uma vez que a escolha lexical da
autora é pelas palavras que avaliamos como de “baixo calão”. Ora, se vimos, a
partir mesmo do título, que nada é fortuito, seria ingênuo usar de uma percepção
binária de valores para classificar toda uma poética como “obscena” ou
“pornográfica” apenas. Em vez disso, a transgressão que nos propõe Hilda Hilst é
que sejamos todos in-decentes, no sentido de não corroborarmos mais uma falsa
moral, ou seja, o sentido canônico de “decência”, mas indagarmos pressupostos e
valores que permaneceram até então praticamente inquestionados. Talvez, por
esse motivo, seja possível ainda recorrer à observação de Eliane Robert Moraes
no sentido de que, ao extravasar os limites da linguagem, uma outra medida
2
Vale lembrar a polissemia da própria palavra “jogo”: brincar ou pensar estrategicamente, para
citar apenas os significados imprescindíveis para esta leitura.
extrapolada, a de nossas convicções. Daí a verdadeira transgressão de Hilda: o
palavrão, o vocábulo chulo, retirados de seu contexto precário, o senso-comum, e
ressemantizados na literatura descentram o valor logocêntrico, fazendo com que
questionemos nossas próprias noções de valor.
ainda mais um elemento a ser considerado para que haja uma
leitura proveitosa desta obra, a sua “ambiência”, o universo de bulas, se assim
se puder entender o seu enredo. É possível ler os poemas de Bufólicas como
pequenas narrativas que se assemelham aos contos de fadas; e isto se não
pela dicção oral reforçada pela estrutura formal dos textos (redondilhas de rimas
ocasionais, cujo ritmo se pela repetição de vocábulos e pelo tom que
corresponderia a uma voz melodiosa que conta as histórias fantásticas), mas
também pelas personagens que movimentam e dão vida às breves narrativas:
fadas, rainhas, anões, bruxas e toda sorte de seres que povoam, sobretudo, o
universo infantil. A ligação entre a critica à moral cristã, cerceadora das liberdades
individuais, e o universo fantástico infantil faz com que a reflexão da autora passe,
necessariamente, pela questão da sexualidade na comunidade ocidental
contemporânea, incentivada, pelas instâncias midiáticas, a acontecer de maneira
precoce e, ao mesmo tempo, banalizada pela “sociedade do espetáculo”. Ao ser
questionada, numa entrevista concedida aos Cadernos de Literatura Brasileira,
sobre a pornografia na TV brasileira e a necessidade de censurar o que as
crianças assistem, Hilda Hilst respondeu:
[...] O que eu sei é que a criança está erotizada demais.
Você meninas de dois anos fazendo a dança da
garrafa. Será que as mães querem que elas virem
prostitutas loucas? Eu não entendo isso. E não sei o
que fazer. A minha solução, a vida inteira, foi, sempre,
escrever (HILST, 1999, p. 32).
Nesse sentido, a apropriação paródica das antigas histórias de fadas
e das fábulas de cunho moralizante significa a sua reinserção no contexto
moderno. Quer dizer: a imitação burla a referencialidade, interferindo na produção
de valores, mas a partir daqueles valores estabelecidos socialmente,
apropriando-se, assim, do texto antigo as histórias tradicionais e seu fim
moralizante e remetendo-o ao que ainda será escrito: a transgressão da antiga
moral.
A re-leitura proposta por Hilda Hilst desconstruiu o estatuto edificante
dos contos antigos, pois, ao salientar o papel dos costumes, bem como dos
parâmetros de ética e moral, didaticamente enraizados nos conteúdos daquelas
histórias, ocorreu, em contrapartida, a contribuição para problematizar a relação
do humano com seus potenciais valorativos, da sua relação com o
estabelecimento da moral dos usos e costumes e de que maneira essas
avaliações determinam o convívio do homem em sociedade.
Tais questões em torno das Bufólicas remetem à problemática
nietzscheana sobre por que o homem valora. No Prólogo 3 de Genealogia da
Moral encontramos perguntas as quais Nietzsche procurou responder:
[...] sob que condições o homem inventou para si os
juízos de valor “bom” e “mau”? e que valor têm eles?
Obstruíram ou promoveram até agora o crescimento do
homem? São indício de miséria, empobrecimento,
degeneração da vida? Ou, ao contrário, revela-se neles
a plenitude, a força, a vontade da vida, sua coragem,
sua certeza, seu futuro? (NIETZSCHE, 2005, p. 09)
Sabe-se que nas conclusões sobre a reflexão acerca dos parâmetros
que determinam a valoração moral, Nietzsche enxerga que o homem, ao vincular-
se à tradição judaico-cristã e experimentar a decadência da cultura grega,
suprimiu seus potenciais criativos e a própria capacidade de superação do
niilismo. Na mesma medida, Hilda Hilst pondera sobre a relação de opressão do
homem com a sua sexualidade e a maneira como, através o sexo, ou o
comportamento sexual, acabam servindo como parâmetro para atribuir valores
ascendentes ou descendentes ao homem. Nas palavras da poeta, em resposta ao
entrevistador Jorge Coli, para os Cadernos de Literatura Brasileira, sobre a
relação da poética com as “partes baixas do corpo”, nota-se o que poderia ser um
esboço de resposta às questões acima, propostas pelo filósofo alemão:
Nós nos desprezamos, temos desprezo por nós
mesmos. Quando eu penso “nas partes baixas do
corpo”, como você diz, eu penso: como sou miserável,
como eu sou ninguém, como eu não sou nada. (HILST,
1999, 31).
Embora Nietzsche jamais tenha considerado a questão do valor da
moral sob o viés do sexo ou sexualidade, convergências entre a obra do
filósofo e as questões que podem ser pensadas a partir da interpretação dos
poemas de Bufólicas, sobretudo, na moral imposta pelas relações do homem com
sua própria sexualidade, pois aquilo que é designado “baixo”, para Nietzsche,
advém de um direito de nomeação cunhado pelos “altos homens”, no sentido de
serem os aristocratas, que se auto-intitularam altos e “nobres de espírito”:
[...] que significam exatamente, do ponto de vista
etimológico, as designações para “bom” cunhadas
pelas diversas línguas? Descobri então que todas elas
remetem à mesma transformação conceitual que, em
toda parte, “nobre”, “aristocrático”, no sentido social, é
o conceito básico a partir do qual necessariamente se
desenvolveu “bom” no sentido de “espiritualmente
nobre”, “aristocrático”, de “espiritualmente bem nascido,
“espiritualmente privilegiado”: um desenvolvimento que
sempre corre paralelo àquele outro que faz “plebeu”,
“comum”, “baixo” transmutar-se finalmente em “ruim”
(NIETZSCHE, 2005, p. 21).
Ou seja, se entendemos o sexo como “as partes baixas do corpo”,
não estamos fazendo apenas uma referência a sua localização anatômica, mas
suscitando um feixe de signos relacionados a conceitos de moralidade,
determinando, de comum acordo, que o sexo é um valor inferior na nossa
sociedade. As implicações deste tipo de percepção em torno da sexualidade estão
diretamente ligadas aos preceitos morais questionados em Hilda Hilst e em
Nietzsche e, para além deles, à imposição cultural, por ter restringido tanto os
discursos, que desencadeou um conflito profundo entre a sexualidade e a cultura.
Daí entendendo-se que tais pressupostos tenham sido cunhados a partir do
direito de nomeação que caberia a instâncias legitimadoras do poder político,
os nobres aristocráticos –, a tentativa em Hilst de relativizar o estatuto do valor
usando também da possibilidade de cunhar a palavra. Mas, ao contrário do que
fizeram os “altos homens” citados por Nietzsche, a poeta brasileira não buscou
cristalizar conceitos, ela os transgrediu.
Isso explica o fato de os títulos das poesias de BufólicasO
reizinho gay; A rainha careca; Drida, a maga perversa e fria; A Chapéu; O anão
triste; A cantora gritante e Filó, a fadinha lésbica serem, exatamente como nos
contos tradicionais e fábulas antigas, a representação da personagem principal; o
que é muito didático, que os percursos delas na narrativa devem servir como
exemplo de trajetória de vida para o leitor.
1.2 - Um narrador nada ortodoxo
De um modo geral, ao fim das histórias tradicionais, para reforçar
seu caráter disciplinatório, havia as “morais da história”, que concluíam os textos
imputando-lhes uma verossimilhança capaz de gerir uma identificação entre
personagem/leitor, narrativa/vida real e que garantia que o objetivo do texto fosse
alcançado, tornando-se mecanismo de controle social, uma vez que os
parâmetros de comportamento são dados nas histórias. O teórico Alberto Marcos
Onate, em seu livro Entre o eu e o si ou a questão do humano na filosofia de
Nietzsche, bem a dimensão do quanto esses conceitos de moral foram
destrutivos para o homem:
No limite, a consideração científica do mundo deve ser
encarada como apenas um ramo da consideração
moral, pois onde radica a confiança na verdade e no
conhecimento, senão na esperança de que o mundo e
a vida funcionem na estrita observância de cânones
morais? Se no caso das apreciações científicas a vida
ainda dispunha de meios para defender-se e até obter
a vitória, diante das valorações morais sempre o
risco iminente de a vida sucumbir em seu cerne. O
encadeamento da existência por parte do binômio
verdade/falsidade ainda é frouxo se cotejado à força do
agrilhoamento do binômio bem/mal. Enredada nos fios
da teia moral a vida empobrece, pois cai na contradição
de provar sua legitimidade perante um tribunal
incompetente para o desempenho da tarefa. Os
códigos morais, quaisquer que sejam os seus
conteúdos, os seus valores, sempre funcionam como
fatores de retração do fluxo vital, pois lhe impõem
barreiras extrínsecas à sua dinâmica (ONATE, 2003, p.
224).
O deleite gerado pela apreciação estética acaba por também ser
subjugado a valorações unilaterais, pois,
No limite, os atos cognitivos e estéticos reduzem-se
a eventos valorativos: belo e verdadeiro adquirem
tais estatutos porque veiculam valores ascendentes;
feio e falso expressam o contrário, ou seja, valores
decadentes (ONATE, 2003, p. 227).
Por isso, a sexualidade verbalizada, superexplicitada nos poemas, é
elemento discursivo, de proposta crítica, pois, a partir das apreciações valorativas
(no sentido que Onate trata) em torno da obra de Hilda e das suas classificações
(erótica, obscena, pornográfica) precárias, deve-se acrescentar, tem-se a
dimensão de o quanto o discurso sobre o sexo ainda é polpudo de eufemismos e
melindres, a não ser no caso da superexposição que a mídia provoca em torno do
assunto, o que leva a banalização e mercantilização do sexo, tornando a
discussão estéril. Na visão de Michel Foucault, no livro História da sexualidade,
que também trata do comportamento moral, uma intenção por trás dessa
aparente liberação em torno do discurso sexual. De acordo com o pensador,
uma relação bem íntima entre sexo e poder e, ao falar daquele, o sujeito acaba se
sentindo como se fizesse bom uso deste:
Se o sexo é reprimido, isto é, fadado à proibição, à
inexistência e ao mutismo, o simples fato de falar dele
e de sua repressão possui como que um ar de
transgressão deliberada. Quem emprega essa
linguagem coloca-se, até certo ponto, fora do alcance
do poder; desordena a lei; antecipa, por menos que
seja, a liberdade futura (FOUCAULT, 2005, p. 12).
A intensificação do discurso sexual não levou, como deveria, a uma
pesquisa e reflexão em torno da questão dos valores e da sua aplicação nos usos
e costumes, mas ao desgaste de seu potencial argumentativo devido, sobretudo, a
incitação cada vez mais precoce como no caso da sexualidade infantil,
estimulada nas danças supersensuais de que falou Hilda e, em conseqüência
mais imatura, a esse mesmo discurso:
[...] a sexualidade, longe de ter sido reprimida nas
sociedades capitalistas e burguesas, se beneficiou, ao
contrário, de um regime de liberdade constante; não se
trata de dizer: o poder, em sociedades como as nossas
é mais tolerante do que repressivo e a crítica que se
faz da repressão pode, muito bem, assumir ares de
ruptura, mas faz parte de um processo muito mais
antigo do que ela e, segundo o sentido em que se leia
esse processo, aparecerá como um novo episódio na
atenuação das interdições ou como forma mais ardilosa
ou mais discreta de poder (FOUCAULT, 2005, p.16).
Ou seja, é possível propor a hipótese de que as instâncias
midiáticas desempenhem nas sociedades modernas a função antes relegada aos
narradores das fábulas e histórias de fadas: a de prescrição de comportamentos,
pois ao elevar a presença da sexualidade – de maneira aparentemente
democrática, que se tem a liberdade de escolher o canal a ser assistido, ou a
revista a ser lida a uma potência extraordinária nos cotidianos, todavia sua
superimportância resulta, ao mesmo tempo, na sua mercantilização, levando à
banalização. O que se traduz, em termos práticos, em controle social.
Tal desfaçatez repousa numa falsa cordialidade em que, como num
trato de comum acordo, o discurso sobre sexo aparece com os traços libertários
da democracia enquanto, na verdade, continua sendo um veículo para solidificar
as noções tradicionais de valor. Por isso, “o essencial não são todos esses
escrúpulos, o ‘moralismo’ que revelam, ou a hipocrisia que neles podemos
vislumbrar, mas sim a necessidade reconhecida de que é preciso superá-los”
(FOUCAULT, 2005, p. 27).
Para buscar a superação e transtornar os valores antes canonizados
como ascendentes, o narrador de Bufólicas não compactua com o objetivo do
narrador tradicional, de tornar o texto estável para o leitor. Ao contrário, desordena
as conexões entre narração e experiência, ou melhor, entre a história contada e a
imposição de uma visão de mundo.
Daí a impossibilidade de classificá-lo segundo a regra normativa
(personagem, observador ou onisciente), que não comprometimento com a
vigência de quaisquer tipos de padrão, o que por si encerra uma reflexão
acerca da produção textual paródica: não há compromisso com o texto referencial,
mas com a crítica que se quer a partir dele, o que, somado ao tom sarcástico-
satírico da história cujo final se pode entrever maldosamente no título, leva a
crer que a composição de Hilda Hilst inaugura um outro tipo de narrador o que
ela mesma talvez tenha calculado, dada a consciência que tinha de sua obra , o
narrador-bufão.
A personalidade multifacética do jokerman é bem conveniente ao
caráter refratário da narração em Hilda Hilst em que uma supressão da figura
do narrador enquanto elemento textual responsável pela fluência com que o texto
é contado. Em Hilst, a história não tem uma organização interna rígida do ponto de
vista da estruturação frasal; ao contrário, a precariedade das relações estruturais
desestabiliza o horizonte de leitura, que normalmente prescinde da linearidade e
do acabamento escrupuloso que ao leitor a segurança de ter compreendido o
texto; não há, por exemplo, uma pontuação considerada gramaticalmente
adequada, além da opção por um registro lingüístico inusual em textos literários, o
que complexifica a relação entre texto e narrador.
Tal ruptura tem seu ápice na chegada da conclusão da história,
quando deveria haver, após os dissabores e peripécias por que passou a
personagem, a retomada do equilíbrio com a advertência do narrador. Em
Bufólicas não o amparo vindo do aconselhamento da moral da história, a
conclusão bem acabada, mas o desalento de uma “moral da estória” (essa é a
grafia usada por Hilda) que não conclui nem tranqüiliza. a pilhéria do bufão,
que se ri da sociedade que imita, de maneira que o texto é concluído com a a-
moral da história.
1.3 - Castigar, com palavras, os valores.
É possível perceber, a despeito do esgarçamento da unidade, uma
comunicação temática entre as histórias, a imprescindível relação entre palavra e
resistência. No discurso do narrador joker há, na (nada) conclusiva “moral da
estória” de O reizinho gay, versos que serviriam bem como epígrafe para a leitura
de todos os outros, inclusive para ele mesmo. Por exemplo: “a palavra é
necessária/ diante do absurdo” (HILST, 2002, p. 14), o que equivale a dizer que
num universo vazio de sentidos o grande absurdo é que todas as personagens
busquem um fim para si mesmas a palavra paródica, por ser caótica, joga seu
jogo burlesco, sendo, de forma antitética, a alternativa viável para compreender a
representação e as máscaras dentro do texto.
No O reizinho gay é contada a história de um reino antigo e
perdido, e a história de um reizinho que nunca falava, e de uma nação que ficou
toda muda.
Seus quatro primeiros versos caracterizam a personagem central:
“Mudo, pintudão/ O reizinho gay/ Reinava soberano/ Sobre toda nação” (HILST,
2002, p. 11). Ao lado da brevidade dos versos, a complexidade do excesso de
adjetivações leva a entender que a soberania inconteste do rei se na presença
do seu superlativo anatômico, metáfora do poder falocêntrico, tirano, e que, justo
por isso, pode dispensar a dialética; basta ver que o primeiro verso associa a
grandiloqüência do falo à soberania real, apresentada no terceiro verso. Houve
um momento na história em que essa relação de poder teria sido contestada;
segundo o narrador, “os doutos do reino” questionaram, em primeiro lugar, a
ausência de proferimentos do rei que, em troca, lhes respondeu com o poder que
possuía e os calou, “mostrou-lhes a bronha/ sem cerimônia” (HILST, 2002, p. 12).
Ao desbancar os sábios, o reizinho teve sua permanência no trono justificada, é o
que se comprova nos cinco versos seguintes aos iniciais: “Mas reinava... /
APENAS... / Pela linda peroba/ Que se lhe adivinhava/ Entre as coxas grossas”
(HILST, 2002, p. 11). Ora, o advérbio de intensidade em caixa alta ressalta a
importância de se considerar a origem exclusiva do poder real, e a crítica de que
não outra ordem no reino além da que é mantida na explicitação da tirania, na
falta de cerimônias para fazer valer a lei do (supostamente) mais forte.
A reação pública, de impotência diante do “régio falo”, é de sucumbir
à violenta imposição da ordem: “Foi um Oh!!! geral/ E desmaios e ais/ E doutos e
senhoras/ Despencaram nos braços/ de seus aios. / E de muitos maridos/
Sabichões e bispos/ Escapou-se um grito” (HILST, 2002, p. 11). O grito masculino
(dos maridos, sabichões e bispos) denuncia a rudeza dos métodos políticos de
estabelecimento de regras, pois seria bem mais ameno o impacto dos versos caso
a reação viesse das mulheres, porque delas é sempre esperado que, fragilmente,
percam o controle.
Aconteceu que, daí por diante, para deixar claro quem manda, o
reizinho passou a exercer o controle social com a demonstração apoteótico-
apocalíptica do brusco sexo, ele “aparecia indômito/ Na rampa ou na sacada/ Com
a bronha na mão” (HILST, 2002, p. 11), passando a emudecer, assim, todo o
reino: “E eram ós agudos/ Dissidentes mudos/ Que se ajoelhavam/ Diante do
mistério/ Desse régio falo/ Que de tão gigante/ Parecia etéreo. / E foi assim que o
reino/ Embasbacado, mudo/ Aquietou-se sonhando/ Com seu rei pintudo” (HILST,
2002, p. 11). Houve, assim, uma inversão, que o poder passou de repressor a
uma imagem idólatra por parte dos reprimidos.
A essa altura, com todo o potencial disciplinatório do seu falo em
prática bem sucedida, o reizinho decide se pronunciar, sendo este o clímax da
história: “O reizinho gritou/ Na rampa e na sacada/ Ao meio-dia: / Ando cansado/
De exibir meu mastruço/ Pra quem nem é russo” (HILST, 2002, p. 12). O reizinho,
imagem metonímica de nossas instâncias de poder, é reduzido ao seu poderio
fálico, deixando ele mesmo de ser sujeito agente, subordinando-se à
estupidificante iconolatria que o coroou. A homogeneização das individualidades,
entretanto, teve um desfecho excepcional no caso do chefe da nação: “E quero
sem demora/ Um buraco negro/ Pra raspar meu ganso./ Quero um cu cabeludo!”
(HILST, 2002, p.14).
A reação histérica do reizinho (como a dos maridos, sabichões e
bispos) ridicularizou a instituição real: “o reizinho gritou”. Isto é, despossuído de
bom senso, o reizinho tornou o símbolo da dominação masculina, o potente falo,
frágil e diminuto. Quanto ao restante do reino: “sucumbiu de susto” (HILST, 2002,
p.14).
Aliás, o capitalismo neoliberal atua nesse mesmo sentido, de impor
valores que geram status social, identificando o indivíduo a partir do que ele tem
em comum com o que é oferecido pelo mercado, e com o que os outros indivíduos
têm. Assim como o rei elegeu um ícone que garantiu sua permanência no trono,
outros suportes, eleitos por outras instituições (da tecnologia, da medicina
estética, do universo que dita a moda e mesmo da religião), que legitimam a
inserção do sujeito em determinado meio social e garantem seu bem-estar, mas
somente a partir do momento em que ele sente sua identificação num outro, que
deve se assemelhar a ele o máximo possível.
Desse modo, por não se adequar às exigências do seu universo, a
rainha, segunda personagem no cenário de Bufólicas, se sente careca: “De
cabeleira farta/ De rígidas ombreiras/ de elegante beca/ Ula era casta/ Porque de
passarinha/ Era careca” (HILST, 2002, p. 15).
A preocupação desimportante vai atravessar o texto de ponta a
ponta e, apesar de se tratar de uma rainha, em nenhum momento referências
sobre quaisquer atividades suas como chefe de Estado, o que sugere que total
irresponsabilidade para com o bem público e o comprometimento exclusivo com o
conforto pessoal. Além disso, a rainha deposita na frustração estética todo o seu
potencial de feminilidade e, por esse motivo, permanece casta: “Ó céus!
Exclamava./ Por que me fizeram/ Tão farta de cabelos/ Tão careca nos meios?/ E
chorava” (HILST, 2002, p. 15).
A angústia de Ula, para além do fator estético, reflete o niilismo do
sujeito que nada quer, além do confortável sentimento de pertença (ou de
aceitação) por um determinado grupo na sociedade. A banalização do discurso
sexual, além de enfraquecê-lo, parece também vulgarizar a necessidade
constante de transformar toda mulher numa sexy simbol, independente de suas
ocupações e mesmo aptidões; com isso, o que se cria é a dependência da
imagem e, conseqüentemente, uma sociedade cujo espírito crítico parece sofrer
de anorexia. Vale ainda considerar, mais uma vez em referência a Nietzsche, que
o fato de a personagem desta história ser uma rainha desestabiliza o conceito de
“nobre” como valor ascendente, pois A rainha careca poderia muito bem ser
entendido como um texto sobre a carência humana: “Um dia .../ Passou pelo reino/
um biscate peludo/ Vendendo venenos./ (Uma gota aguda/ Pode ser remédio/ Pra
uma passarinha/ De rainha)” (HILST, 2002, p. 17).
A ausência de perspectivas e de crenças resulta, em contrapartida,
num movimento desesperado de se acreditar, tolamente, em ofertas de remédios
instantâneos que curem antigas frustrações. Tanta carência é suprida na solução
provisória das próteses que oferecem a felicidade completa e um sentido para a
existência:
Ó senhora! O biscate exclamou.
É pra agora!
E arrancou do próprio peito
Os pêlos
E com a saliva de ósculos
Colou-os
Concomitantemente penetrando-lhe os meios.
UI!UI!UI! gemeu Ula
De felicidade
Cabeluda ou não
Rainha ou prostituta
hei de ficar contigo
A vida toda! (HILST, 2002, p. 17).
A representação da mulher no texto é quase um retorno àquela do
Romantismo, quando sua imagem era laboriosamente talhada para ser exemplo
de passividade. A rainha Ula, como a heroína romântica, resolve todos os seus
conflitos na concretização da relação amorosa. O biscate, no lugar do herói que
salva ou redime a mocinha, é a personagem que tem maior densidade porque tem
postura ativa: Ula chorava, ele trazia antídotos. Com isso, pergunta-se qual é o
lugar efetivo das reivindicações feministas na contemporaneidade, uma vez que a
irônica “Moral da estória” derruba qualquer complexidade: “Se o problema é
relevante, / apela pro primeiro passante” (HILST, 2002, p. 18).
A capacidade política da mulher parece ter sofrido um retrocesso e a
sensibilidade crítica, embrutecida. Ver os reflexos da homogeneização das
individualidades na figura da rainha aprofunda ainda mais a percepção de que a
sexualidade feminina, a priori símbolo de liberdade, passou a ser uma prisão
ideológica calcada numa exterioridade corporal irrelevante, na verdade, e, por isso
mesmo, um problema solucionável por qualquer um.
Num contexto em que todas as relações estão banalizadas chega a
ser compreensível que também as representações de violências sejam
explicitadas até que venham a ser naturais no cotidiano. Os recursos midiáticos
têm ostentado com cada vez mais rigor todo tipo de imagem agressiva e a
encarnação do mal absoluto nos tradicionais vilões de histórias folhetinescas tem
atingido níveis recordes de audiência.
Este tipo de posicionamento se deve, em primeiro lugar, à estratégia
de representar a realidade cruel da sociedade contemporânea, depois, ao
entendimento de que um discurso na brutalidade, como é possível perceber no
terceiro poema do conjunto de Bufólicas que no título, Drida, a maga perversa e
fria, inclui os dois elementos supracitados. A perversão de Drida é o seu requinte
de crueldade, enquanto sua frieza diz respeito à espantosa naturalidade com que
executa suas vítimas:
Pairava sobre as casas
Defecando ratas
Andava pelas vias
Espalhando baratas
Assim era Drida
A maga perversa e fria
Rabiscava a cada dia o seu diário.
Eis o que na primeira página se lia:
Enforquei com a minha trança
O velho Jeremias.
E enforcado e de mastruço duro
Fiz com que a velha Inácia
Sentasse o cuzaço ralo
no dele dito cujo.
Sabem por quê?
Comeram-me a coruja. (HILST, 2002, p. 19).
Mais que em todos os outros poemas, aqui é preciso considerar a
função do narrador que conta a história da maga Drida como faria um diretor de
cinema com sua câmera, escolhendo o ponto de vista adequado para valorizar o
sensacionalismo da cena. A justificativa para o assassinato, irrelevante, é narrada
com pacto de veracidade, pois é retirada do diário, logo, de fonte documental
espantando a espontaneidade do relato de Drida, é como se, para ela, o crime é
que fosse irrelevante.
O uso que os produtos midiáticos fazem da superexplorada relação
entre a violência e a perversidade, elementos que fazem parte do imaginário
urbano, deseja potencializar sua inclinação para o comércio, o que quer dizer que,
embora a temam, os indivíduos consomem a violência. No texto Outras Flores do
mal: desmesura da violência e ordem da representação do espaço urbano, o
professor Renato Cordeiro Gomes abordou muito sensatamente a questão:
Esse tipo de posicionamento ‘naturalista’, que hoje é
lugar comum nos produtos da cultura midiática, levou
Antonin Artaud, quando formulava suas teorias do
Teatro da Crueldade a perguntar ironicamente: ‘será
preciso um pouco de sangue verdadeiro para
manifestar a crueldade?’(Le théâtre et la cruauté, de
maio de 1933). Ao constatar a decadência do teatro
que perde sua eficácia, desprezado pela elite e
abandonado pela multidão, que prefere o cinema, o
music-hall ou o circo, Artaud propõe um teatro de ação
extrema, que assedie a sensibilidade do expectador,
para renovar o ‘espetáculo total’, um espaço
bombardeado por imagens e sons (GOMES, 2005, p.
176).
Mas o “espetáculo total” inibe a reflexão sensível, pois na medida em
que os requintes de violência na encenação se tornam referências trazidas da
realidade o expectador acomoda seus olhos para o que vê, tanto no palco, quanto
na vida e, com isso, segue-se o seu embrutecimento, até sua completa
imbecilização.
Lembrando da advertência contida na primeira “moral” em Bufólicas,
“a palavra é necessária/ diante do absurdo” (HILST, 2002, p. 14), vê-se que em
Drida, a maga perversa e fria, o registro de violência, desnecessariamente
abundante, é a perversão da palavra, no sentido de, através da mesma
banalização espetacular, promover a retirada do escudo bruto, constrangedor das
percepções e leituras finas, a fim de que o expectador se conta do quanto seu
aplauso oco, ao fim, é a perpetração da brutalidade:
Incendiei o buraco da Neguinha.
Uma crioula estúpida
Que limpava ramelas
De porcas criancinhas.
Pergunta-me por que
Incendiei-lhe a rodela?
Pois um buraco fundo
De régia função
Mas que só tem valia
Se usado na contramão
Era por neguinha ignorado.
Maldita ortodoxia! (HILST, 2002, p. 20).
É interessante reparar que o último verso, “Maldita ortodoxia”, é a
declaração final de Drida, mas poderia também ser um comentário do narrador
intruso, amaldiçoando a ortodoxia dos critérios de valor que se dividem
rigidamente entre aquilo que é identificado como “bom” ou “mau”. Logo em
seguida, como que para desorganizar tal conceituação normativa, a perversa
maga vai espalhar suas maldições no caminho dos (bons) magos de Santiago de
Compostela: “E agora vou encher de traques/ O caminho dos magos./ Com minha
espada de palha e bosta seca/ Me voy a Santiago” (HILST, 2002, p. 20). A “Moral
da estória” fecha a encenação deixando a compaixão em dívida para com a
sociedade: “Se encontrares uma maga (antes/ que ela o faça), enraba-a” (HILST,
2002, p. 20).
As relações de exploração dos potenciais dos indivíduos uns pelos
outros característica da lógica do lucro fazem com que a moral passe, de
rigorosa, a permissiva, sendo relativizada de acordo com uma necessidade
hierárquica, de modo que aqueles que determinam os padrões de comportamento
e as regras de convívio em sociedade possam burlá-los, caso lhes convenha, o
que é, de certa forma, um tipo de corrupção.
Em A Chapéu, é a perversão o vínculo entre as personagens, o que
fica claro no título do poema, que o substantivo “chapéu” sofreu uma
derivação imprópria, pois o substantivo comum tornou-se próprio, dando nome à
personagem principal do texto. Além disso, é possível propor que “A Chapéu” seja
também uma forma de adjetivação da personagem, que, no registro coloquial, o
termo “dar um chapéu” significa usar de esperteza a fim de lesar alguém, moral ou
financeiramente. O que faz sentido, que Chapéu e sua avó Leocádia vivem de
explorar Lobão sexualmente, fazendo dele prostituto. Mas a Chapéu parece ainda
guardar qualquer coisa de ingenuidade (ou seria apenas tolice?), pois: “Leocádia
era sábia/ Sua neta “Chapéu”/ De vermelho tinha a gruta/ E um certo mel na
língua suja”(HILST, 2002, p. 23).
Os quatro primeiros versos do poema deixam entender que a avó
era realmente esperta, enquanto a neta apenas parece sê-lo. A princípio, os
desdobramentos dos diálogos entre avó e neta levam a crer que a terceira
geração se sobrepõe à primeira:
Sai bruaca
Da tua toca imunda! (dizia-lhe a neta)
Aí vem Lobão! [...]
A velha Leocádia estremunhada
Respondia à neta:
Ando cansada de ser explorada
Pois da última vez
Lobão deu pra três
E eu não recebi o meu quinhão!(HILST, 2002, p. 23).
Mas, voltando à introdução do texto, a Chapéu “de vermelho só tinha
a gruta/ E um certo mel na língua suja” (HILST, 2002, p. 23), o que serve como um
aviso de que poderá ser ela quem “levará um chapéu” no fim da história. A
suspeita logo se concretiza na declaração que a avó Leocádia faz ao Lobão: “Às
vezes te miro/ E sinto que tens um nabo/ Perfeito pro meu buraco” (HILST, 2002,
p. 24) e é a partir disso que a Chapéu ganha compreensão do que sucede às
suas expensas:
AAAIII! Grita Chapéu.
Num átimo percebo tudo!
Enganaram-me! Vó Leocádia
E Lobão
Fornicam desde sempre
Atrás do meu fogão!(HILST, 2002, p. 24).
O relacionamento entre Chapéu, Lobão e a Avó é uma alegoria do
convívio numa sociedade desenvolvida com base na troca de favores, no
tradicionalismo e na ortodoxia, de forma que o contato entre os indivíduos é
intermediado pelo uso de máscaras sociais que servem para camuflar as
verdadeiras intenções de quem as usa. É o que quer dizer a moral hilstiana: “um id
oculto mascara o seu produto” (HILST, 2002, p. 24)
1
. A ligação entre e
necessidade numa sociedade nada altruísta passa necessariamente pela mesma
dissimulação dos que buscam nas suas amizades a troca ou lucro nos favores,
caracterizando uma relação de exploração. Nesse novo caso, o que se explora é a
chamada “boa fé”, o que não quer dizer, porém, que o lado explorado seja, de
fato, ingênuo.
O poema seguinte ao da “Chapéu” explora bem essa questão. O
anão triste é a história de um sujeito marginalizado devido a sua compleição,
mas que sofre ainda mais com a obrigação de manter a castidade por causa do
monstruoso sexo que possui. Duas vezes excluído, ele se curva em preces à
espera de um milagre: “Se me livrasses, Senhor, / Dessa estrovenga/ Prometo
grana em penca/ Pras vossas igreja” (HILST, 2002, p. 26).
O comércio da é reconhecido como uma das mais perversas
formas de exploração do outro. Primeiro, porque o tipo de argumento em que essa
relação se pauta é inquestionável, considerando o Brasil, por exemplo, que é um
Estado laico. Em segundo lugar, destina-se aos despossuídos, que
comumentemente se atrelam a práticas religiosas na esperança de darem um
sentido para suas vidas, tornando-as, assim, mais confortáveis para eles mesmos.
1
O termo “id”, aqui, é tomado apenas no sentido de alteridade, portanto, a leitura psicanalítica
sobre “id” e “super-id” não se faz absolutamente necessária.
Além de confiar inteiramente na realização de seu desejo, o anão
Cidão é capaz de justificar qualquer coisa que lhe falhe:
Foi atendido.
No mesmo instante
Evaporou-se-lhe
O mastruço gigante.
Nenhum tico de pau
Nem bimba nem berimbau
Pra contá o ocorrido [...]
Um douto bradou: ó céus!
Por que no pedido que fizeste
Não especificaste pras Alturas
Que te deixaste um resto
Porque pra Deus
O anão respondeu
Qualquer dica
É compreensão segura (HILST, 2002, p. 26).
A boa vontade do anão é paga com a sacrossanta traição, por isso é
preciso saber previamente: “Ao pedir, especifique tamanho/ grossura quantia”
(HILST, 2002, p. 28). O que equivale a dizer mais uma vez que “a palavra é
necessária”, sobretudo quando o acordo é etéreo.
Aliás, acordos tácitos em sociedade e que nunca devem ser
rompidos, a custo de se ter tolhida qualquer forma de liberdade. A exemplo disso
pode-se citar o conto fantástico de H.G. Wells, Terra de cegos, em que um homem
com visão perfeita, por acidente, cai numa tribo cujos habitantes são todos cegos
e crê, inutilmente, que poderia, por isso, reinar. Como se sabe, os olhos do
estrangeiro foram retirados por serem percebidos como anomalia maléfica pela
tribo (WELLS, 1999).
O poder da maioria não necessariamente significa democracia,
porque, muitas vezes exercido de maneira brutal é, na verdade, um disfarce do
poder tirano para que, através do sacrifício do pária, o povo se sinta, de alguma
forma, recompensado. O que é uma estratégia interessante, pois, com isso, é
desenvolvida uma sociedade inteira de espiões na qual os indivíduos se vigiam
mutuamente e todos são potenciais delatores uns dos “crimes” dos outros.
É essa a metáfora que vai em A cantora gritante: “Cantava tão bem/
Subiam-lhe oitavas/ Tantas tão claras/ Na garganta alva/ Que toda vizinhança/
Passou a invejá-la” (HILST, 2002, p. 29).
Os sete versos seguintes são um parêntese escrito na primeira
pessoa do singular pelo narrador para esclarecer e, ao mesmo tempo, emitir
opinião – sobre o porquê da inveja e a quem tal sentimento, tão baixo, afetou: “(As
mulheres, eu digo,/ porque os homens maridos/ às pampas excitados/ de lhe ouvir
os trinados,/ a cada noite/ em suas gordas consortes/ enfiavam os bagos)” (HILST,
2002, p. 29).
É possível perceber a convergência entre a referida história de
Wells e o poema de Hilda. A visão do estrangeiro e o canto sensualíssimo da
garganta alva são ameaçadores para aqueles que ignoram o que seja um ou
outro. Por isso, “De xerecas inchadas/ Maldizendo a sorte/ Resolveram calar/ A
cantora gritante” (HILST, 2002, p. 29). Os finais dos dois textos também são
coincidentes, ambas as personagens têm extirpado de si aquilo que não é tolerado
pelo contrato social:
Certa noite... de muita escuridão
De lua negra e chuvas
Amarraram o jumento Fodão a um toco negro.
E pelos gorgomilos
Arrastaram também
A Garganta Alva
Pros baixios do bicho.
Petrificado
O jumento Fodão
Eternizou o nabo
Na garganta-tesão...aquela
Que cantava tão bem
Oitavas tão claras na garganta alva (HILST, 2002, p.
30).
Os detalhes da narração deixam entender que, mesmo agindo em
acordo, o uso da força bruta pelas mulheres da vizinhança não deixa de ser
arbitrário.
Os momentos de terror vividos pela cantora, contados por último e
com certo suspense, realçam a atmosfera ameaçadora da “moral da estória”, na
qual é possível concluir que o estímulo ao medo é a melhor forma de coerção
social, segundo os derradeiros versos: “Se o teu canto é bonito, / cuida que não
seja um grito” (HILST, 2002, p. 30).
Na seqüência de Bufólicas, e de forma muito coerente, como se
verá, encontra-se Filó, a fadinha lésbica. E, como nesse universo nada pode ser
identificado com os padrões e parâmetros da sociedade pseudo-organizada em
que vivemos, a personagem central agora é uma fada com aspecto de bruxa e
apetite sexual incongruente com o ser fantástico que é:
Ela era gorda e miúda.
Tinha pezinhos redondos.
A cona era peluda
Igual à mão de um mono.
Alegrinha e vivaz
Feito andorinha
Às tardes vestia-se
Como um rapaz
Para enganar mocinhas (HILST, 2002, p. 31).
Ora, não é costumeiro que se retrate uma fada, ser reconhecido pela
beleza física, com os adjetivos acima, menos ainda, se espera que seja mentirosa.
Outra coisa: a fadinha se metamorfoseia à noite, revelando-se novamente
descompromissada com a rigidez imposta pelo ideal:
Mas à noite... quando dormia...
Peidava, rugia... e...
Nascia-lhe um bastão grosso
De inicio igual a um caroço
Depois...
Ia estufando, crescendo
e virava um troço
Lilás
Fúcsia
Bordô
Ninguém sabia a cô do troço
da Fadinha Filó (HILST, 2002 , p.35).
Mais surpreendente ainda é o fato de Filó ser objeto turístico-sexual:
Faziam fila na Vila.
Falada “Vila do Troço”.
Famosa nas Oropa
Oiapoc ao Chuí
Todo mundo tomava
Um bastão no oiti.
Era um gozo gozozo
trevoso, gostoso
Um arrepião nos meio!
Mocinhas, marmanjões
Ressecadas velhinhas
Todo mundo gemia e chorava
De pura alegria
Na Vila do Troço (HILST, 2002, p. 33).
Mas Filó contraria normas e padrões a fim de satisfazer os seus
próprios e os desejos dos outros, de maneira que a escolha sexual, antes tabu,
não importa. Por isso, talvez, não tenha resistido ao rapto que sofreu:
Um cara troncudão
Com focinho de tira
De beiço bordô, fúcsia ou maravilha
(ninguém sabia o nome daquela cô)
Seqüestrou Fadinha
E foi morar na Ilha [...]
De pernas abertas
Nas costas do gigante
Pela primeira vez
Na sua vidinha
Filó estrebuchava os oínho
Enquanto veloz veloz
O troncudão nadava (HILST, 2002, p. 33).
O prazer edênico que todas as outras personagens de Bufólicas
procuram chega, enfim, na combinação entre o troço de Filó e o beiço do
Troncudão, ambos os sexos de cor indeterminada (“bordô, fúcsia ou maravilha”,
ninguém sabia o nome), como que metaforizando o caos sobrepondo-se à ordem,
à lei. Vale lembrar: o cara troncudão, que é a imagem-ícone da afirmação absoluta
da masculinidade, também abre mão do padrão que representa.
Assim, duas “morais da estória”, uma para os desordenadores:
“quando menos se espera, tudo reverbera” (HILST, 2002, p. 33); outra para os que
acreditam ainda que poder haver um sentido em tudo isso: “Não acredite em
fadinhas/ Muito menos com cacete./ Ou somem feito andorinhas/ Ou te deixam
cacoetes” (HILST, 2002, p. 33).
1.4- Há ainda uma moral?
Se algum sentido, é possível no absurdo. Ou melhor, na
insubordinação do narrador a qualquer tipo de verdade pré-estabelecida. Ou,
melhor ainda, nas infinitas possibilidades de sentido que acontecem quando o
narrador não está interessado em “aconselhar” (ROSENFELD, 1969, p. 73-95) seu
ouvinte.
O narrador-bufão propõe uma história a-moral na medida em que
desestabiliza o leitor, não respeitando uma ordem cronológica entre os fatos
narrados, transgredindo o tempo da narrativa ao usar dos verbos, enquanto
marcadores textuais, aleatoriamente (o mesmo texto contém diversas marcas de
temporalidade e modos verbais, como o pretérito perfeito, o imperfeito, o presente
do indicativo e até o imperativo afirmativo) e, dessa forma, distanciando-se do
leitor e também da história contada, desfazendo o pacto de verossimilhança
presente nos textos tradicionais.
Uma vez que a história não tem a pretensão de convencer como
verdade, também não compactua com o antigo objetivo de prescrever parâmetros
de comportamento; busca, ao contrário, chocar-se com eles. As histórias
burlescas de Hilda Hilst, ao irem de encontro aos contos de fadas convencionais,
procuram questionar o papel da moralidade na sociedade ocidental, refletindo
sobre o quanto as regras de convívio cercearam a liberdade e inclusive os
potenciais de criação, com a promoção dos eventos valorativos sempre calcados
nos binômios que se afirmam por negarem um ao outro, como “falso” e
“verdadeiro” ou “feio” e “belo”.
Tal procedimento é inseparável, como vimos, do exercício do poder.
As instâncias legitimadoras da moral e dos conceitos de nobreza se fazem
obedecer pela coerção, seja através da tirania dos ditadores, da violência
irrefreável a que vamos nos acostumando, das relações corrosivas, fraudulentas
ou disfarçada nos sonhos mesquinhos aos quais atribuímos o sentido por que
vivemos.
As personagens de Hilda são a alegoria de uma sociedade composta
por indivíduos cujas máscaras caíram e o aspecto monstruoso que lhes fica talvez
justifique, ainda, a opção ortográfica da autora, que substituiu a desgastada “moral
da história” pela inquietante “moral da estória” (HILST, 2002).
O meta-discurso em Lori Lamby: por que não se deve olhar para as estrelas.
2.1- Umas coisas porcas: “À memória da língua”
Para escapar à alienação da sociedade presente,
existe este meio: fuga para frente: toda linguagem antiga
é imediatamente comprometida, e toda linguagem se
torna antiga desde que é repetida (BARTHES, 2002, p.
50).
O caderno rosa de Lori Lamby (2005) é um livro obsceno. A história,
escrita em forma de diário, é o relato de uma criança de oito anos aliciada
sexualmente pelos pais. Mas o que pode chocar de fato o leitor é o tom pueril
dado ao testemunho porque Lori admite gozar o sexo e não absolutamente
nenhum mal nisso. Além do mais, a garotinha justifica sua prostituição afirmando
ser esse o meio possibilitador de suas realizações mais imediatas, como o desejo
de possuir um quarto todo decorado de cor-de-rosa ou ter dinheiro, simplesmente.
E ela admite gostar do dinheiro.
Para além do ato sexual em si, a obscenidade do livro é o tom
natural dado por Lori ao seu relato. Contudo, se reconhecemos no livro seu
potencial pornográfico, devemos ser cautelosos para não nos iludirmos com um
engodo. O caderno rosa é obsceno somente na medida em que cria um jogo de
cena: entre cena e (obs) cena, pois aquilo que está “por detrás da cena” é o que,
de fato, merece nossa atenção. Vale a pena transcrever alguns trechos da sua
apresentação e primeiras anotações:
Eu tenho oito anos. Eu vou contar tudo do jeito que eu
sei porque mamãe e papai me falaram para eu contar
do jeito que eu sei. E depois eu falo do começo da
história. Agora eu quero falar do moço que veio aqui e
que mami disse agora que não é tão moço, e então eu
me deitei na minha caminha que é muito bonita, toda
cor-de-rosa. E mami pôde comprar essa caminha
depois que eu comecei a fazer isso que eu vou contar
(HILST, 2005, p.13).
Há, nesse início, um pacto acordado tacitamente com o leitor de que
tudo o que será contado é verificável, e o que credibilidade às palavras de Lori
é o fato de ela atribuir à mãe o mérito de ter lhe ensinado a dizer sempre a
verdade, como, aliás, convém ao bom educador. Ainda é necessário reparar que a
mãe parece interferir durante a escrita do diário, pois é o que se percebe no
trecho: mami disse agora que não é tão moço (HILST, 2005, p.13.grifos nossos).
Mas tudo isso é apenas uma espécie de prelúdio da história que se
seguirá, quando começa o relato obsceno. O livro começa antes, porém, pois
uma dedicatória e duas epígrafes, uma das quais escrita pela própria Lori Lamby,
e que são medulares para a sua leitura. A dedicatória, À memória da língua
(HILST, 2005), revela a proposta metalingüística e se abre numa inquietante
ambigüidade: sugere que uma linguagem esquecida no/pelo tempo, abrindo
uma discussão sobre o valor estético que poderia ser entendida como dado
autobiográfico, que a autora fora tida durante muitos anos como escritora de
uma “literatura difícil” e a polêmica em torno da questão sexual (inaugurada na
leitura de Bufólicas) contida no próprio nome da personagem Lamby, cujo
recurso gráfico da letra y remete à imagem da língua enquanto órgão ou mesmo
do corpo humano, num movimento de pernas abertas para o ato do sexo oral, ou
ainda, como considera a professora Eliane Robert Moraes:
[...] Hilda Hilst se aventura pelas mais diversas
camadas da língua, a começar pelo fato de atribuir à
personagem um nome que evoca a terceira pessoa do
singular do verbo lamber. Vale lembrar que as lambidas
constituem o plano privilegiado das experiências
narradas pela menina, que explora toda sorte de
prazeres da boca, circunscrevendo um campo erótico
centrado na oralidade (MORAES, 1999, p. 124).
Além disso, o potencial revolucionário da linguagem parece querer
ser destacado pela mesma afirmativa. Se uma dedicatória à memória de algo,
é como se já não existisse mais, o que sugere a retomada da epígrafe barthesiana
acima transcrita: para falar do presente, é preciso “fugir para frente”, num ato de
fruição, que desperta a percepção e olhares para o novo, rechaçando o
estereótipo e a alienação.
Seja como for, em Hilda Hilst, a reflexão sobre a contemporaneidade
passa necessariamente pela opção estética como mesmo se viu na leitura de
Bufólicas não raro, via metalinguagem; então o grotesco enredo dessa narrativa
é, por isso, o delator do processo decadente que vem sofrendo a moral nas
sociedades ocidentais.
Dessa maneira, percebe-se que há uma convergência temática entre
as poesias de Bufólicas e a narrativa d’O caderno rosa, a crítica aos valores
desgastados da sociedade, ao comportamento patológico (segundo Foucault) e
hipócrita do homem ocidental com o sexo e a sua sexualidade e, finalmente, os
julgamentos de valor, que o castram desde o cerceamento que sofre nas suas
possibilidades inventivas e criativas até os juízos estéticos entre bom/mau e
belo/verdadeiro ou feio/falso que limitam seu discernimento. Conforme nos
admoesta Michel Foucault no seu História da Sexualidade - a vontade de saber:
Em vez da preocupação em esconder o sexo, em lugar
do recato geral da linguagem, a característica de
nossos três últimos séculos é a variedade, a larga
dispersão dos aparelhos inventados para dele falar,
para fazê-lo falar, para obter que fale de si mesmo,
para escutar, registrar, transcrever e redistribuir o que
dele se diz. Em torno do sexo toda uma trama de
variadas transformações em discurso, específicas e
coercitivas? Uma censura maciça a partir das
decências verbais impostas pela época clássica? Ao
contrário, uma incitação ao discurso, regulada e
polimorfa (FOUCAULT, 2005, p. 35).
A decadência dos valores e da moral no ocidente é percebida bem
nitidamente nessa diversidade e na grande incidência de discursos sobre a
sexualidade que, disfarçados numa cordialidade tolerante, não revelam senão o
embrutecimento das percepções sensíveis e críticas do nosso contexto. Como
mesmo foi observado por Hilda Hilst na sua entrevista dada aos Cadernos de
Literatura Brasileira, e transcrita no capítulo anterior deste estudo, a
mercantilização dos corpos embutiu a própria sexualidade numa atmosfera de
normalidade capaz de torná-la banal, como, por exemplo, crianças que dançam,
em trajes sumários, movimentos que as erotizam sem que isso, paradoxalmente,
ofenda a noção do que é permitido pela moralidade.
É possível que tenha sido por conta dessas questões que a primeira
epígrafe, de Oscar Wilde, tenha sofrido uma correção de Lori Lamby, segundo ele:
“Todos nós estamos na sarjeta, mas alguns de nós olham para as estrelas”,
que, de acordo com ela: “E quem olha se fode”(HILST, 2005). Ou seja,
privilegiados num sistema que condena todos a estarem abaixo de suas
dignidades, mas mesmo eles, que desfrutam da possibilidade de olhar para o céu,
sofrem a condenação de tentarem ir além do que é permitido, o que faz ressoar,
por fim, a dedicatória da autora: “À memória da língua”(HILST, 2005), que os
desdobramentos do texto em torno de si mesmo, num movimento de
metalinguagem, comprometem-se com os questionamentos próprios dela que,
considerada difícil pela crítica literária e pelos leitores(despossuídos de
sensibilidade) sentiu-se, enfim, esquecida na literatura.
Talvez, então, a réplica de Lori Lamby, “quem olha se fode, seja
como um discurso da autora sobre ela mesma que, convivendo numa sociedade
carente de potenciais reflexivos, teve pago com o esquecimento a ousadia de
tentar ver ou de refletir sobre o que via. Ou, pelo menos, é o que se pode inferir
da sua resposta à entrevista aos Cadernos de Literatura Brasileira quando foi
questionada a respeito de sua incursão na literatura pornográfica. Ela disse:
Eles nunca me liam, nunca. Então eu decidi fazer o
livro.
(...)
Pensei: “Vou fazer umas coisas porcas”. Mas não
consegui.
(...)
Diziam que eu era dificílima na literatura pornográfica.
(HILST, 1999, p. 30).
Hilda Hilst assume que a sua intenção com a literatura pornográfica é
seduzir o mercado leitor para uma abordagem mais simples de seu trabalho
literário uma vez que todos a consideravam “difícil”. O fracasso de sua ambição,
portanto, remete à conclusão de Lori, de que não solução, então ficamos todos
irmanados na mediocridade. O que reforça a tese é essa coincidência
autobiográfica no Caderno rosa, pois Lori escreve o diário (“umas bandalheiras”, na
visão da pseudoautora) na esperança de dá-lo ao pai, escritor que era
incompetente na arte de escrever aquilo que as pessoas preferem ler, segundo seu
editor, o Lalau para ajudá-lo a vender seus próprios livros, como o fez a autora
quando enveredou pela literatura pornográfica. Mas o pai descobre o relato
absurdo, para uma criança de oito anos, e cai numa casa de repouso.
Mais uma vez, o narrador recompensa a nossa busca pela lógica com
a pilhéria. E se ri das nossas intenções patéticas de organizar a realidade a partir
de convicções desgastadas, pois o leitor é seduzido pelas confissões de Lori, mas
para, ao final, descobrir que ela aponta para nós mesmos o dedo com que a
julgamos.
3.2O caderno negro X O caderno rosa: quando Lalau quase encontrou o que
procurava.
Disfarçado de pornografia, O CADERNO ROSA DE LORI
LAMBY é uma fina reflexão sobre o ato de escrever como
possibilidade de jogar com os limites da linguagem
(MORAES, 1999, p. 125).
Talvez o escasso número de leitores que a autora
paulista encontrou em seu País e em sua própria língua
se deva à mediocridade da maioria acachapante da
humanidade, que sempre opta pelo fácil, senão pelo
kitsch, em vez do que lhe pareça críptico e enfadonho
porque de difícil decodificação (RIBEIRO, 1999, p. 81).
A “reflexão sobre o ato de escrever” está presente, de ponta a ponta,
no enredo de O caderno rosa. A história da menina cujo pai é escritor ignorado
pelo mercado editorial por não agradar ao público leitor é a questão decisiva do
livro. Lori, influenciada pelas sugestões do editor Lalau ao seu pai, resolve
escrever um livro de “bandalheiras”, de leitura descomplexificada, conforme
gostariam os leitores que podem comprar, ou melhor, consumir, livros.
Interessante considerar a descrição que a menina faz de seu pai:
Eu quero falar um pouco do papi. Ele também é um
escritor, coitado. Ele é muito inteligente, os amigos
dele que vêm aqui e conversam muito e eu sempre fico
em cima perto da escada encolhida escutando,
dizem que ele é um gênio.[...] Eu já vi papi triste porque
ninguém compra o que ele escreve.[...] O Lalau falou
pro papi: por que você não começa a escrever umas
bananeiras pra variar? Acho que não é bananeira, é
bandalheira, agora eu sei. o papi disse pro Lalau:
então é isso que você tem pra me dizer? (HILST,
2005, p.19).
Inconteste, a referência autobiográfica vale lembrar o aspecto
abordado na epígrafe de Leo Gilson Ribeiro, a segunda desta parte do texto – traz
consigo, através da contraposição entre o escritor, o mercado editorial e o
público leitor, o questionamento a uma sociedade que declara não compreender o
sutil e que está demasiadamente mercantilizada, embrutecida, o que fica ainda
mais claro nas palavras da própria Lori, sem dinheiro a gente fica triste porque
não pode comprar coisas lindas que a gente na televisão (HILST, 2005, p. 17),
todo mundo só pensa em comprar tudo (HILST, 2005, p. 22).
O ressentimento para com esse tipo de incapacidade de percepção
fica flagrante nas palavras da autora:
A consideração maior sempre foi uma coisa além.
Escrevi isso em quase todos os meus livros. Não
para explicar assim. Eu expliquei nos livros. Não
entenderam. Então, não adianta falar mais (HILST,
1999, p. 33).
O elemento obsceno viria, por isso, ao encontro do público leitor,
para agradá-lo. Lori Lamby narra suas histórias considerando o efeito que deseja
provocar no mercado: o prazer causado pelo entretenimento. Roland Barthes, no
seu livro O prazer do texto, diferencia “texto de prazer” de “texto de fruição”. De
acordo com o pensador francês:
Texto de prazer: aquele que contenta, enche,
euforia; aquele que vem da cultura, não rompe com ela,
está ligado a uma prática confortável da leitura. Texto
de fruição: aquele que põe em estado de perda, aquele
que desconforta (talvez até um certo enfado), faz
vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas do
leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e
de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação
com a linguagem (BARTHES, 2002, p. 20).
Desse jeito, o texto de Lori pode ser identificado como o texto de
prazer, que se preocupa em estar em concordância com o leitor, em deixá-lo
confortável. Todavia, é preciso considerar que, embora O caderno rosa seja uma
narrativa confessional o diário de uma menininha que encara a própria
exploração sexual de maneira “rosa” – há algo de incomum no texto: o fato de Lori
Lamby ser uma pseudonarradora. Portanto, os melindres de autoria, bem como a
capacidade de gerar fruição (no sentido que Barthes dá ao termo), são reservados
a outra categoria autoral, a mesma do narrador-bufão, das Bufólicas. Isso porque,
nos enganando ao ensinar uma “moral da estória” (HILST, 2002) quer, no fundo,
que as risadas geradas pelo prazer na leitura de um texto aparentemente
despretensioso apontem para a nossa falta de valores reais. Assim, o que
supostamente seria um “texto de prazer” se torna um “texto de fruição”.
Por isso, o diário de Lori é escrito com uma dicção infantil, como se
espera mesmo da autora. É importante transcrever as considerações de Eliane
Robert Moraes feitas em seu ensaio aos Cadernos de Literatura Brasileira:
Como toda criança, Lori escreve como fala: seu relato é
repleto de construções como “e aí o tio disse que”, “e aí
a mami falou que”, “e o papi pegou e disse que”,
numa narração que se organiza segundo a fala,
reiterando o imperativo oral que governa o mundo
infantil (MORAES, 1999, p. 125).
Essa fusão entre narrador e autor é que mantém a sedução da
narrativa, pois embora seja desnecessário qualificar o absurdo imoral da história
uma garotinha prostituída pelos pais uma curiosidade sádica de conhecer,
linha a linha, o desenlace do texto. Neste ponto, valem as colocações dos
professores Fernando Fábio Fiorese Furtado e Laura Ribeiro da Silveira:
[...] ao rasurar ou sujar com a pornografia a imagem de
uma obra desde sempre incluída no regime da alta
literatura, Hilst transtorna a ordem tranqüilizadora que
está sempre pronta a enredar o escritor e a própria
escritura quando esses se deixam seduzir pelas
benesses do mercado. Ao apor o seu nome a um
gênero textual considerado, em geral, destituído de
status literário, Hilst investe contra a canonização da
sua obra, contra a mística da assinatura, contra o
eterno retorno dos valores da arte imitativa – seja sob o
disfarce de uma literatura realista, seja como
subserviência aos ditames do mercado. Porque a
pornografia de Hilst é “falsa”, mas verdadeira a sua
assinatura, constitui um atentado ao próprio sistema
literário (FURTADO & SILVEIRA, 2006, p. 6).
Copiada para o caderno rosa, a história do caderno negro, ou o
episódio Corina: a moça e o jumento (HILST, 2005, p. 39), pretende agradar ao
editor Lalau visando a sua publicação e posterior venda; o que parece se
concretizar, pois, mais uma vez, o texto é precedido de três epígrafes: a primeira,
de D. H. Lawrence, numa referência a um dos expoentes máximos da literatura
obscena “Seu pênis fremia como um pássaro”( HILST, 2005, p. 41) , em
seguida, Lori Lamby marca suas risadas críticas, de um narrador-bufão “Hi, hi!”
(HILST, 2005, p.41) e, por último, e a que justifica a hipótese anterior, de que
Lalau teria gostado da história, suas risadas satisfeitas – “Ha, ha!”(HILST, 2005, p.
41).
O conto grotesco narra uma história super-erotizada, cujo enredo
estritamente linear não deixa dúvidas de que foi escrito para o mero
entretenimento. Todavia, o final sádico da história nos propõe refletir: Edernir
compõe, junto a Corina, o jumento Logaritmo e Dedé-O falado, o quarteto de
paixões eróticas realizadas no limite da imoralidade, que Edernir se ofende ao
perceber a traição de Corina e o convite homossexual de Dedé, terminando a
ligação entre eles com a mais crua violência:
Dedé chegou bem perto de mim e falou: “Você é lindo,
Edernir, eu gosto mesmo é de você”. Dei-lhe uma
tapona na boca [...] dei-lhe uma vastíssima surra de
cinta e quando ele estava desmaiando a Corina
tentando fugir, agarrei-a [...] meti-lhe um murro,
quebrando os magníficos dentes (HILST, 2005, p. 62).
O papel da violência, longe de chocar, parece sublimado pelo resto
do contexto, ou pelo menos pela necessidade de a ignorarmos, que ao inseri-la
e torná-la comum no cotidiano, acaba por dispensar o trabalho de refletir sobre
sua interferência nas nossas vidas. E é o que faz a, agora leitora, Lori Lamby, que,
admitindo ter se assustado com o fim do conto, também cria estratégias para
tornar sua vida “rosa” mais uma vez: agora eu vou colar figurinhas do He-Man e
da Xoxa na beirada do caderno e tudo vai ficar mais bonito (HILST, 2005, p. 65).
Ou seja, o “texto de fruição”, escamoteado no “texto de prazer”,
voltando à diferenciação proposta por Barthes, busca a reflexão que faça
transgredir os saberes acabados identificados, por exemplo, nesta última atitude
de Lori que são os estereótipos de mercado. Ao revestir seu discurso de
obscenidade e erotismo, fazendo-o, paradoxalmente (para além da doxa, segundo
o sentido etimológico), soar como “dificílimo”, Hilda Hilst coloca-se aquém das
nomenclaturas e catalogações de gênero, pois desestabiliza a ordem prevista, não
cabendo em nenhuma classificação normativa (ou do senso-comum) de estilo:
nem erótica, nem pornográfica, nem obscena, mas revolucionária. No entender de
Roland Barthes, no texto Aula, literatura é essa capacidade permanente de
revolução de linguagem, de revolução para fora das concepções canônicas,
promovendo, segundo ele, uma trapaça salutar com a língua, que coloca o texto
fora dos parâmetros de poder, fazendo “girar os saberes”:
Porque ela encena a linguagem, em vez de,
simplesmente, utilizá-la, a literatura engrena o saber no
rolamento da reflexividade infinita: através da escritura,
o saber reflete incessantemente sobre o saber,
segundo um discurso que não é mais epistemológico
mas dramático (BARTHES, 1978, p. 19).
Então, o disfarce do narrador em Hilst não é senão essa trapaça: o
engodo faz entreter, mas, para além de tudo, há um toque sutil que propõe aguda
reflexão.
Por isso, a figura do escritor centraliza a principal questão do livro,
porque o ato de escrever implica um uso da linguagem que não é o previsto, que
prescinde de decodificações, pois trabalha nas “reentrâncias” da língua. As
compreensões superficiais desse tipo de linguagem ignoram o processo de
“reflexividade infinita” de que trata Barthes, ocasionando percepções do texto que
o tornam apenas “feio”, “bonito” ou “difícil” (conforme faz Lori Lamby ao resumir
sua impressão sobre o conto do “caderno negro”). De acordo com Eliane Robert
Moraes, a conclusão é a de que escrever significa correr o risco de explorar uma
língua misteriosa que, com cavidades e reentrâncias secretas, impõe uma cadeia
sem fim de ciladas para o autor (MORAES, 1999, p. 125).
Na busca pela “encenação da linguagem” (BARTHES, 1978, p. 19),
O caderno rosa de Lori Lamby se torna o “palco da escritura” (PERRONE-
MOISÉS, 1982, p. 18). Hilda Hilst propõe o enigma: quem seria o escritor em Lori
Lamby? O pai, cultíssimo, um gênio, como foi reconhecido, mas que não
consegue corresponder às expectativas e necessidades de seu editor? A própria
Lori, que rouba sorrateiramente as anotações do pai e compõe seu caderno, na
clara intenção de que sirva ao editor? A resposta, longe de ser alentadora, é mais
uma proposta de reflexão, Eliane Robert Moraes assim a resume: Se Lori obtém
êxito “trabalhando com a língua”, o pai fracassa (MORAES, 1999, 125).
Vale à pena transcrever da carta que Lori envia aos pais,
instalados na casa de repouso, as justificativas por ter roubado as anotações do
pai, para compor o livro dele de “bandalheiras”, conforme o havia aconselhado
Lalau:
Eu queria muito te ajudar a ganhar dinheirinho,
porque dinheirinho é bom, né, papi? Eu via muito papi
brigando com tio Lalau, e tio Lalau dava aqueles
conselhos das bananeiras, quero dizer, bandalheiras, e
tio Laíto também dizia para o senhor deixar de ser
idiota, que escrever um pouco de bananeiras não ia
manchar a alma do senhor. Lembra? E porque papi
escreve de dia e sempre cansado de noite, eu ia
bem de noite no teu escritório quando vocês
dormiam, pra aprender a escrever como o tio Lalau
queria. Eu também ouvia o senhor dizer que tinha que
ser bosta pra dar certo porque a gente aqui é tudo
anarfa, né, papi?(HILST, 2005, p. 92).
A máscara autoral que con-funde pai e filha é a encenação de
linguagem do exercício crítico da própria Hilda Hilst, por isso, a exclamação que a
história de Lori extrai de Lalau: Isto sim é que é uma doce e terna e perversa
bandalheira!(HILST, 2005, p. 95), vai de encontro à declaração de que o livro
devia ser “bosta” porque “aqui é tudo anarfa”. O autor que se curva diante das
exigências do mercado de consumo é o mesmo que o burla, pois, ao mesmo
tempo em que Lori é autora, seu pai também o é, pois o trabalho da menina é, em
boa parte, o de amalgamar à escrita já pronta a sua:
[...] eu copiei só de lembrança as tuas cartinhas, eu ia
inventar outras cartinhas do tio Abel quando eu
aprendesse palavras bonitas. E as folhas da moça e do
jumento eu devolvi no mesmo lugar, essa história eu
também copiei como lembrança [...] (HILST, 2005, p.
95).
Ou seja, uma unidade no discurso de ambos, o que faz com que
as críticas do pai em relação ao mercado editorial e ao público leitor sejam retidas
na escrita da filha, como fica claro em: porque a gente aqui é tudo anarfa, né,
papi?(HILST, 2005, p. 92).
A pergunta retórica deixa claro que mesmo uma coerência de
opiniões entre eles, o que significa dizer que se, de um lado, Lalau parece ter
encontrado o que precisava, o seu livro de “bandalheiras”, por outro, a admissão
de Lori de que teria escrito o livro para o “tio Lalau” para “conseguir dinheiro” e o
trabalho de co-autoria com o pai são rasteira e drible do narrador: ao encarnar na
personagem de Lori a figura do autor que obtém êxito por optar permanecer sob a
tutela do mercado, Hilda Hilst estende sua crítica à figura do próprio escritor. Nas
palavras dos professores Fernando Fiorese e Laura Silveira o ataque desfechado
contra os escritores é antes a recusa da representação social, da imagem pública
engendrada pelo marketing aplicado aos autores de paraliteratura (FURTADO &
SILVEIRA, 2006, p. 6).
A literatura não é inócua, ao contrário, ela interfere na visão de
mundo, nas hipóteses e conceitos pré-formulados antes do texto, em suma, (usu)
fruindo mais uma vez de Barthes, “põe em crise a relação do leitor com a
linguagem”. Isso talvez fique mais notório na reação dos pais de Lori enquanto
leitores de seu caderno:
Não tenho mais o meu caderno rosa. Mami e papi
foram pra uma casa grande, chamada casa pra
repouso. Eles leram o meu caderno rosa (HILST, 2005,
p. 91).
O transtorno gerado pela leitura é a prova cabal de que a literatura
não pode se associar a fenômenos de mercado, sobretudo quando se deseja que
seu uso seja voltado absolutamente a gerar prazer. A grande obscenidade do
livro, no entender de Alcir Pécora, reside exatamente nisso, nessa visão
mercadológica sobre a arte:
[...] o “livro” não pertence ao talento do seu autor, ou ao
ato de invenção investido nele, mas ao negociante, o
editor, que vale ou fala pela maioria dos leitores que
estão dispostos a comprá-lo e, portanto, dão-lhe uma
medida de valor em dinheiro (PÉCORA, 2005, p. 8).
A rejeição ao caderno se dá, principalmente, pelo fato de incomodar,
por fazer refletir, por desestabilizar bases conceituaismuito sedimentadas, pois
obriga a travar discussões sobre a composição da personagem, por exemplo,
explorada para a prática da pedofilia, mas que se dispõe a isso com espantosa
naturalidade. As palavras da menina sobre a própria obra são definitivas:
Ó papi e mami, todo mundo na escola, e vocês
também, falam da tal cratividade mas quando a gente
tem essa coisa todo mundo fica bravo com a gente
(HILST, 2005, p. 96).
Impedida de continuar seu “trabalho com a língua” ao ter seu
caderno roubado de si, Lori trapaceia a ordem dos pais, mantendo em segredo
uma outra produção: o segredo é que estou escrevendo agora histórias pra
crianças como eu [...] Eu acho que elas são lindas![...] O nome desse meu outro
caderno seria: O cu do Sapo Liu-Liu e outras histórias (HILST, 2005, p.97).
O curioso é que não sabemos se tal declaração se trata de um pacto
secreto para possibilitar a continuidade da escrita ou uma advertência ao próprio
Lalau; afinal, o que se pode esperar de leitores que sejam como Lori Lamby?
Se a escrita transforma-se num segredo, é porque a leitura também
o é. Na medida em que Lori constrói seu texto a partir do rascunho de outrem,
pode-se supor que o texto se dê no segredo, segredo da referencialidade roubada,
ou do pai, ou de si mesma, investigando os arquivos de outrem ou os próprios
quiçá, para ela mesma, insondáveis.
2.3- “Uns nascem para ser lambidos” (há uma moral predestinada).
Mas, estando o próprio crítico no mundo, a linguagem
que usa é “uma das linguagens que sua época lhe
propõe”. É por isso que a crítica representa um diálogo
entre duas histórias e duas subjetividades. Como este
diálogo é “deportado para o presente”, o que aparece
não é a verdade do passado, mas a construção do
inteligível do nosso tempo (PERRONE-MOISÉS, 1979, p.
215).
Considerar Lori Lamby como leitora torna-se um dos elementos mais
interessantes da obra na medida em que recupera a noção desenvolvida por
Barthes da literatura como “reflexividade infinita”: o discurso literário, ao voltar-se
sobre si mesmo, como num jogo de espelhos face a face, multiplica-se, levando
ao infinito as possibilidades e maneiras de enxergá-lo. O caderno rosa, por isso, é
tecido de citações literárias que reúne as experiências da menina-leitora com sua
língua (ou “trabalho com a língua”, como ela mesma diz). No entender de Alcir
Pécora, na nota do editor, o exercício crítico embutido na história de Lori é, de
fato, uma forte característica de estilo em Hilda Hilst. Nas palavras do professor:
A anarquia de gêneros. Como outros livros de Hilda
Hilst, O caderno rosa de Lori Lamby se preocupa com a
imitação de gêneros da tradição, combinando-os todos
de maneira improvável ou inusitada na mesma
narrativa. Assim, n’O caderno, cuja base seria um
diário de menina, juntam-se um conjunto de cartas,
contos e relatos interpostos (há, além do “Caderno
rosa”, um “Caderno negro”, além das fábulas do
“Caderno do cu do sapo Liu-Liu”), alguma discussão de
livros (na qual os modelos de Lawrence, Miller etc. são
debatidos e recusados), poesia clássica, debate de
questões estilísticas e lexicológicas etc (PÉCORA,
2005, p. 10).
É possível perceber, pelo sortimento de citações e pela introdução
do diálogo com variados gêneros textuais, que a escrita d’O caderno se na
leitura. A inserção dessas referências não acontece, porém, através da mimese,
mas através de uma estilização que causa um desvio entre a obra original e a
reescritura. Tal movimento intertextual proporciona um outro novo texto original e
único, a essa associação criativa de novas combinações que T.S. Eliot chamou
“talento individual”:
A mente do poeta é de fato um receptáculo destinado a
capturar e armazenar um sem-número de sentimentos,
frases, imagens, que ali permaneceram até que todas
as partículas capazes de se unir para formar um novo
composto estejam presentes juntas (ELIOT, 1989, p.
44).
Na carta em que explica aos pais o processo de produção da sua
obra, Lori conta que copiou do pai-escritor a maior parte de suas histórias, ela diz
ter encontrado no escritório dele filmes, revistas e livros que a fizeram aprender a
escrever:
[...] eu também aprendi a entender, e fazer, lendo os
outros que estão na segunda tábua: o Henry, e aquele
da moça e do jardineiro da floresta, e o Batalha que eu
li o Olho e A Mãe.
Eu também ouvia tudo o que você e mami e tio Dalton,
e tio Inácio e tio Rubem e tio Millôr falavam nos
domingos de tarde (HILST, 2005, p. 95).
Além disso, é sabido que boa parte do que a menina produziu é
residual em relação ao que o pai havia feito. Nesse caso, é preciso considerar
então as referências da escrita dele e que foram incorporadas pela de Lori.
diálogos entre o escritor e a mãe de Lori, Cora, em que são travadas discussões
estilísticas sobre o que seria “a grande literatura”. Nelas, são citados os escritores
reconhecidos pela “tradição” (no sentido de que T.S. Eliot trata) em contraposição
ao trabalho realizado pelo pai:
Você quer saber, Cora, eu acho o Henry Miller uma
pústula [...], isso mesmo, uma pústula, uma bela
cagada”.
[...] e quer saber? sua Judas, eu trabalhei a minha
língua como um burro de carga, eu sim tenho uma
obra, sua cretina (HILST, 2005, p. 69).
Mami Por que você não escreve a tua madame
Bovary?[...]
Papi Porque teve essa madame Bovary que deu
certo, e se você gosta tanto do Gustavo, lembre-se do
que ele disse: um livro não se faz como se fazem
crianças, é tudo uma construção, pirâmides etc., e a
custa de suor de dor etc (HILST, 2005, p. 70).
Leila Perrone-Moisés, em A intertextualidade crítica, considera que
“O crítico é alguém que entra em propriedade alheia, que a usufrui durante algum
tempo” (PERRONE-MOISÉS, 1979, p. 210), assim, tanto as leituras do pai como
as de Lori transformam-se em discurso crítico elaborado a partir do trabalho
metalingüístico.
As experiências de ambos enquanto leitores se tornam elementos de
criação para suas escritas. Dessa forma, os diversos tipos de gêneros dentro de O
caderno rosa de Lori Lamby surgem a partir da intertextualidade, como o entende
Michel Butor, citado no texto de Leila Perrone:
Não obra individual. A obra dum indivíuo é uma
espécie de que se produz no interior dum interior
dum tecido cultural, no seio do qual o indivíduo não se
encontra mergulhado, mas aparecido. O indivíduo é,
desde a origem, um momento desse tecido cultural.
Também a obra é sempre uma obra coletiva
(PERRONE-MOISÉS, 1979, p. 226).
Mesmo os personagens criados por Lori para o seu relato vêm de
referências intertextuais, como o amante “Abel”, nome que ela aprendeu na leitura
da Bíblia, no catecismo, ou o fato de que o namoradinho esperto, mas que não
sabia usar (no sentido sexual?) sua “língua quente”, o “José de Alencar da Silva”,
curiosamente, seja morador da rua “Machado de Assis”.
Interessantes as considerações que ela tece em relação ao conto “O
caderno negro” e sua relação com o “Juca”:
Sabe que eu estou fazendo uma confusão com as
línguas? Não sei mais se a língua do Juca foi antes ou
depois da língua daquele jumento do sonho. Mas será
que essa é a língua trabalhada que o papi fala quando
ele fala que trabalhou tanto a língua?(HILST, 2005, p.
83).
A “confusão com as línguas”, de que fala Lori, é, no fundo, a “con-
fusão” das línguas, a de todos os escritores citados cujos “rastros” são
perceptíveis no texto hilstiano. As linguagens utilizadas pelo escritor estabelecem
o diálogo babélico ou coletivo que, na reescritura, formam o “inteligível do
nosso tempo”, para nos reportarmos às palavras usadas por Leila Perrone na
epígrafe que abre esta terceira parte.
Desse jeito, ao final da narrativa, Lori Lamby nos revela uma outra
produção literária, um caderno de fábulas, com inspiração em La Fontaine,
intitulado “O cu do sapo Liu-Liu e outras histórias”. Acontece que, como nos
célebres contos, a narrativa possui fim moralizante e conteúdo didático, mas, na
adaptação dos discursos para a “linguagem da nossa época”, a ironia sutil surge
como o recurso de escrita para fazer dessas histórias alegorias da nossa
sociedade. Assim, o olhar do leitor adquire ainda maior relevância, pois além do
diálogo estabelecido com uma outra tradição ou cultura, a crítica específica do
“vedor”, do voyeur que procura nunca se acostumar com o cenário captado por
suas retinas.
Nelson Brissac Peixoto trata da questão no seu texto O olhar do
estrangeiro, que, segundo ele é “aquele que não é do lugar, que acabou de
chegar, é capaz de ver aquilo que os que estão não podem mais perceber”
(PEIXOTO, 1989, p. 363), assim como a criança que, por ser “recém-chegada”
ainda não teve tempo de se acostumar com o que vê, acabando por olhar para
tudo como novidade:
Um mundo onde tudo é produzido para ser visto, onde
tudo se mostra ao olhar, coloca necessariamente o ver
como um problema. Aqui não existem mais véus nem
mistérios. Vivemos no universo da sobreexposição e da
obscenidade, saturado de clichês, onde a banalização
e a descartabilidade das coisas e imagens foi levada ao
extremo. Como olhar quando tudo ficou indistinguível,
quando tudo parece a mesma coisa?(PEIXOTO, 1989,
p. 361).
Em Lori Lamby, percebemos que a escolha da personagem infantil
também se deve ao tipo de olhar crítico presente como um todo em Hilda Hilst, o
de defrontar-se com o absurdo, nunca se deixando acostumar com ele.
Por isso, a narração de Lori nos apresenta uma história grotesca sob
um sob de vista tão natural, porque, como disse Nelson Brissac, vivemos num
mundo onde tudo foi feito para ser visto, o que desgasta a nossa percepção,
fazendo com que nosso olhar se torne incapaz de estranhar o absurdo.
Então, as três historinhas que finalizam a diversa gama de gêneros
em O caderno rosa de Lori Lamby, contadas na mesma dicção infantil, possuem
uma moral comum, colocada a propósito, na terceira delas: “A perfeição é a
morte”. Interessante notar a convergência entre ela e as palavras colocadas a
propósito na fala de “Tio Abel”, pois, ao explicar para Lori o que significa ser
“predestinado” (a menina desconhecia o vocábulo), o amante assim traduz a idéia:
“Uns nascem para ser lambidos e outros para lamberem e pagarem” (HILST,
2005, p. 35). Ou seja, a crítica se dirige a todos aqueles que perderam a
capacidade de distinguir o que vêem devido à presença maciça das imagens-
clichê, passam a crer que, mundo perfeito, o das idéias acabadas, as relações se
estreitam desde que haja mobilidade financeira. De resto, acreditam mesmo que
são felizes ao que podem olhar para as estrelas. Aos desatentos que se permitem
tão romântica ilusão, a última rasteira do narrador:
Papi, to te devolvendo a poesia que o senhor escreveu,
que eu também roubei (desculpe) daquelas prateleiras
escrito Bosta.
(Tó Lalau, isto é pra você)
Araras versáteis. Pratos de anêmonas.
O efebo passou entre as meninas trêfegas.
O rombudo bastão luzia na mornura das calças e do
dia.
E vergastou a cona com minúsculo açoite.
O moço ajoelhou-se esfuçando-lhe os meios
E uma língua de agulha, de fogo, de molusco
Empapou-se de mel nos refolhos robustos.
Ela gritava um êxtase de gosmas e de lírios
Quando no instante alguém
Numa manobra ágil de jovem marinheiro
Arrancou do efebo as luzidias calças
Suspendeu-lhe o traseiro e aaaaaiiiiii...
E gozaram os três entre os pios dos pássaros
Das araras versáteis e das meninas trêfegas
(HILST, 2005, p.102).
A “cena” e a “obscena”. Furto e originalidade. Como pares mínimos,
os quatro elementos retomam o jogo (no sentido lúdico mesmo) do narrador. Entre
a evidente pornografia e a cópia interesseira dos rascunhos do pai, a narrativa é
encenada para que o texto crítico seja observado apenas por aqueles que
conseguem ver o que não é gratuito aos olhos.
Não há resposta além da palavra.
3.1- Um narrador todo fissurado
[...] E apascento os olhos/ Para novas vidas (HILST, 2001).
Talvez seja possível afirmar que uma das questões principais entre
todas as levantadas neste estudo seja a do narrador nas obras de Hilda
Hilst. Multifacetado, parece estar num contínuo movimento de auto-mimetismo,
como se ele fosse uma persona de si mesmo: do bufão, das Bufólicas, ao
pérfido, de O caderno Rosa de Lori Lamby, transluciferando-se ora numa
personagem, ora numa indagação aos nossos próprios defeitos. A “moral da
estória” (HILST, 2002), com que ele finda as narrativas, se propõe a castigar
nossos valores.
Tratada como tema da alteridade, a relação autor/narrador foi
desenvolvida por Evando Nascimento no texto Literatura e Filosofia: Ensaio de
Reflexão. De acordo com o professor, é através da marca do outro em mim
que me constituo como alteridade (NASCIMENTO, 2004, p. 52). Assim, o autor
e o narrador são e não são eus um do outro. Para que fique mais clara essa
leitura:
O texto se sustenta na fissura entre o autor e o
narrador, como diz Foucault, “Seria tão falso procurar o
autor no escritor real como no locutor fictício; a função
autor efetua-se na própria cisão nessa divisão e
nessa distância” (2000, p. 55). Aí começa toda ficção. É
porque o autor não fala em seu próprio nome como
prescrevia Sócrates na República de Platão que a
ficção existe. Escrever em nome de outro é praticar a
mimesis diferencial. Se não ocorresse essa cisão
fundamental entre dois eus que falam (autor/narrador,
por exemplo), haveria documento e não literatura. São
biografias que se cruzam em mais de um momento
sem haver jamais pura simetria: a do autor com o
narrador, a deste com o personagem.[...] Um repete o
outro na diferença. A cisão de um a outro é também a
marca da relação: o que separa também liga, conecta,
articula maquinalmente ou não.[...] Assim, toda ficção
guarda a marca de uma fissão original, como cicatriz
inscrita diretamente na pele do texto (NASCIMENTO,
2004, p. 52).
O largo aproveitamento que se fez de declarações da própria Hilda
Hilst a sua entrevista ao Cadernos de Literatura Brasileira para a formulação das
hipóteses interpretativas de sua obra e que constituem esse trabalho é uma
demonstração do quanto de contaminação da autora na sua poética. Pode-se
perceber, ao contrário do que possa parecer numa primeira leitura, que a obra de
Hilst não é prolixa nem verborrágica, ela é o resultado de um exaustivo trabalho de
linguagem no qual há controle de escrita: nele, nada é fortuito.
Contudo, tal “intenção autoral”, de controle sobre a escrita, é, ao
mesmo tempo, desarticulada da trama textual em favor de um outro, que será
então o locutor do texto, que falará em nome deste autor. Tal é o jogo mimético
que transforma o autor em sua própria persona ficcional: A voz do autor é uma
voz partida, ao mesmo tempo em despedida e fissurada, de si para com o texto
que supostamente cria (NASCIMENTO, 2004, p. 52).
A saga do autor que luta com as palavras - metáfora usada por
Drummond no texto O lutador - a fim de dominá-las e subjugá-las nunca encontra
seu termo, pois a palavra reivindica sentido, multiplicando-se em polissemia. Essa
imagem drummondiana coincide com a tensão entre o controle que no trabalho
de escrita do autor e a insubordinação do narrador, que irá cindir o texto, fazendo
com que as palavras fujam à mão daquele que escreve. Mais uma vez recorrendo
às reflexões de Evando Nascimento:
Escreve-se para atuar no mundo, não para representá-
lo belamente de maneira passiva. Não se crê mais num
artista “representando” um mundo ideal, pintando uma
tela que tenha a perfeição ausente da vida. Pintar,
escrever, imaginar é desferir uma incisão no real,
congregar leitores para uma reescrita ativa, se possível
coletiva, de entorno. De outro modo, o escritor se isola
seja no beletrismo, seja na tentação mercadológica, a
função de produzir novas mercadorias que
acrescentam mais lucros ao empresário e justificam a
mais-valia sobre o trabalho do autor (NASCIMENTO,
2004, p. 53).
O trabalho do autor se a partir da coletividade, pois, antes de
tudo, será seu trabalho de leitor que irá reformatar os arquivos da literatura, que
o leitor também interfere na produção de sentidos em uma obra. E faz parte do
“entorno”, a figura própria do narrador que, enquanto alteridade, colabora dando
outros sentidos à representação – quem sabe não será exagero dizer que é nesse
instante que as palavras mostram sua face maquiavélica e fogem ao controle do
escritor? Vale lembrar uns versos de Drummond: Sem me ouvir
deslizam,/perpassam levíssimas/e viram-me o rosto (ANDRADE, 2000, p. 183).
Esse revezamento de alteridades, ou ainda, essa consonância de
vozes, faz com que o narrador leve consigo traços do escritor, e é dessa forma,
nessa fissão (NASCIMENTO, 2004, p. 52) entre os discursos, que surge a
narrativa.
Tal fato fica ainda mais evidente na narrativa de A obscena senhora
D, terceiro livro de Hilda Hilst a que nos propomos analisar. Nele, a narradora-
personagem Hillé ecoa traços da autora Hilst, seja pela sonoridade sugerida em
ambos os nomes, seja pelo fato de a autora mesma admitir essa “fissura de
alteridades”.
Mais uma vez, vale recorrer às palavras da autora, à sua entrevista
ao Cadernos de Literatura Brasileira, quando ela mesma admite se confundir com
sua narradora: A senhora D, aliás, foi a única mulher com quem eu tentei conviver
– quer dizer, tentei conviver comigo mesma, não é?(HILST, 1999, p. 30).
O fato de narrar em primeira pessoa aproxima ainda mais essas
duas alteridades, entretanto, Hillé é e não é Hilst, assim como é e não é Ehud, o
marido com quem foi casada até se tornar sua viúva. Interessante notar, ainda,
que Hillé, na introdução da narrativa, se definiu por negação. Assim:
VI-ME AFASTADA DO CENTRO de alguma coisa que
não dar nome, nem porisso irei à sacristia, teófaga
incestuosa, isso não, eu Hillé também chamada por
Ehud A Senhora D, eu Nada, eu Nome de Ninguém, eu
à procura da luz numa cegueira silenciosa, sessenta
anos à procura do sentido das coisas. (...) Agora que
Ehud morreu vai ser mais difícil viver no vão da escada,
um ano atrás quando ele ainda vivia, quando tomei
este lugar da casa, algumas palavras ainda, ele
subindo as escadas
Senhora D, é definitivo isso de morar no vão da
escada?(HILST, 1999, p.19).
Representando-se através daquilo que afirma não ser, Hillé
reescreve Hilda, são biografias que se cruzam em mais de um momento sem
haver jamais pura simetria, nas palavras do professor Evando. Ao se ver como
algo que não pode ser nomeado, portanto “nada”, “nome de ninguém”, a narradora
se distancia de uma relação identitária com a realidade, estranhamente, ao
mesmo tempo, se anuncia em busca de algo: à procura da luz numa cegueira
silenciosa, sessenta anos à procura do sentido das coisas quiçá uma identidade
somente possível em heteronímia, ou no improvável vão da escada, entrelugar
curiosamente capaz de comportá-la, compreendê-la.
Outro elemento estranho às narrativas em geral, mas predominante
nesse texto, é a abolição do tempo e do espaço e, em seu lugar, fluxo de
consciência e uma linguagem babélica:
Casa da Porca, assim chamam agora a minha casa,
fiquei mulher desse Porco-Menino Construtor do
Mundo, abro a janela nuns urros compassados,
espalho roucos palavrões, giro as órbitas atrás da
máscara, não lhes falei que recorto uns ovais feitos de
estopa, ajusto-os na cara e desenho sobrancelhas
negras, olhos, bocas brancas abertas?(...) Lixo as
unhas no escuro, escuto-me a mim mesma, uns
vivos lá dentro além da palavra, expressam-se mas não
compreendo, pulsam, respiram, há um código no
centro, um grande umbigo, dilata-se, tenta falar comigo,
espio-me curvada, winds flowers astonished birds, my
name is Hillé, mein name madame D, Ehud is my
husband, mio marito, mi hombre, o que é um homem?
(HILST, 1999, p. 20 – 22).
Não se pode precisar de quando se trata esse “agora” a que a
senhora D se refere, talvez seja possível a hipótese de que, para ela, o tempo está
dividido entre a vida e a morte do marido. Interessante, também, notar que ela se
dirige a um ouvinte coletivo (não lhes falei que recorto uns ovais feitos de estopa),
o que sugere uma consciência dela de que uma história sendo narrada, ainda
que seja para si mesma, num gesto rosiano, como o monólogo feito para dentro
da imensidão de si mesmo.
O diálogo entre a narradora e seus interlocutores é a reordenação de
uma série de referências que aparecem no discurso de Hillé e que são, na
verdade, a congregação de uma série de vozes a partir das quais se o novo
texto.
Por último, chama atenção o aspecto formal da escrita, a gramática
normativa aparentemente violada mostra, na verdade, a procura pelo controle da
escrita: pretende ser poesia, mesmo sob a aparência de prosa, por isso tem
licença para transgredir. Embora não haja rimas, é notório que cada linha do texto
forma um verso em que ritmo, isso se revela na ausência de uma pontuação
adequada à construção sintática de períodos e parágrafos e também na escrita de
algumas palavras como no primeiro excerto, a conjunção “porisso”, que sofreu
alteração gráfica lembra a intenção métrica em algumas poesias. Mas, para
além de tudo isso, segundo Alcir Pécora é preciso considerar o registro de um
outro gênero presente, em concomitância, no texto, o teatro. Nas palavras do
professor:
Em relação ao teatro, a despeito da complexidade da
mistura a que aludi acima, os fluxos ditos de
consciência não negam a potência dramática dos
diálogos. Ao contrário, encenam disputas que não são
apenas pessoais ou subjetivas, funduras recalcadas ou
esquizofrênicas, mas igualmente caracteres,
temperamentos agônicos em confronto, desconcerto de
extremos (PÉCORA, IN: Hilst, 1999).
Tais exercícios de estilo (a “atuação ativa” do escritor no mundo,
segundo Evando Nascimento), sobretudo a fissão entre autor e narrador, mostram
que um desejo de que a perspectiva da narração tradicional aquela que
procurava tornar o texto mais claro possível para o leitor, sendo fiel à realidade
se perca, fazendo com que a realidade não seja mais representada na obra de
arte, mas apreendida pelos nossos sentidos. E que a obra se manifeste como
discurso.
Numa analogia com a pintura, Anatol Rosenfeld, em Reflexões sobre
o romance moderno, nos lembra de que a partir dos movimentos de vanguarda, a
pintura sofreu um processo de “desrealização”, o surrealismo, por exemplo, ao
“deformar a aparência” deixou de representar mimeticamente uma realidade
empírica para privilegiar a “realidade sensível”. Ainda de acordo com o ensaio de
Rosenfeld, o teatro é excelente expressão do ilusionismo, pois,
Este, ao abandonar a partir dos inícios do nosso século
as convenções tradicionais, o palco à italiana, a
imitação minuciosa da vida empírica, tal como visada
pelos naturalistas, começa a se confessar teatro,
máscara, disfarce, jogo cênico, da mesma forma como
a pintura moderna se confessa plano de tela
descoberta de cores, em vez de simular o espaço
tridimensional, volumes e figuras[...]assim o
desenvolvimento do teatro conduz à reconstituição dos
seus fenômenos específicos: do ludus(jogo) que
precisamente não é a realidade, da peça, que não é a
vida, da cena, que não é o mundo(ROSENFELD, 1969,
p. 77).
Então a eliminação do espaço, da ordem cronológica do tempo e de
outros elementos da narrativa naturalista, é uma negação da representação
corriqueira e a busca por uma visão não totalitária e mais profunda da
subjetividade. Assim, a narrativa de A obscena senhora D, quase todo o tempo no
presente, garante que não conheçamos o narrador seja pela onisciência, seja
pela observação – e que ele esteja em constante transformação:
Sessenta anos. Ela Hillé, revisita, repasseia suas
perguntas, seu corpo. O corpo dos outros.[...] Por que
me chamo Hillé e estou na Terra? E aprendi o nome
das coisas, das gentes, deve haver muita coisa sem
nome, milhares de coisas sem nome, e nem porisso
elas deixam de ser o que são, eu se não fosse Hillé
seria quem? Alguém olhando e sentindo o mundo
(HILST, 1999, p. 44).
É bom lembrar que ela mesma se declara em busca do sentido das
coisas, e, ao mesmo tempo, afastada do centro de algo não nomeável. Isso talvez
possa indicar uma constante na obra toda de Hilda Hilst, a busca pela
compreensão, quer seja a compreensão poética do mundo, daí as representações
filosóficas
2
na sua obra, quer seja a compreensão de um público por quem ela se
sentia ignorada devido à sua “escrita difícil”.
Ainda no dizer de Anatol Rosenfeld:
A dificuldade que boa parte do público encontra em
adaptar-se a este tipo de pintura ou romance decorre
da circunstância de a arte moderna negar o
compromisso com este mundo empírico das
“aparências”, isto é, com o mundo temporal e espacial
posto como real e absoluto pelo realismo tradicional e
pelo senso comum. Trata-se, antes de tudo, de um
processo de desmascaramento do mundo epidérmico
do senso comum. Revelando espaço e tempo e com
isso o mundo empírico dos sentidos como relativos
ou mesmo como aparentes, a arte moderna nada fez
senão reconhecer o que é corriqueiro na ciência e na
filosofia. Duvidando da posição absoluta da
“consciência central”, ela repete o que faz a sociologia
do conhecimento, com sua reflexão crítica sobre as
posições ocupadas pelo sujeito cognoscente
(ROSENFELD, 1969, p. 79).
O descompromisso com uma representação fiel da realidade em
favor da dúvida sobre realidades possíveis começa a se delinear mesmo no nome
2
Entendemos por “representações filosóficas” na obra de Hilda Hilst o seu diálogo com inúmeros
pensadores, como é possível perceber na leitura do primeiro capítulo deste trabalho, e também
pelas questões que norteiam sua produção poética, como a questão ora analisada, sobre o que
é possível de ser representado em arte.
da personagem senhora D “d” de “derrelição”, “abandono” –, senhora
“abandono”. O que faz ainda mais sentido se pensarmos no poema que serve de
introdução ao livro:
Para poder morrer
Guardo insultos e agulhas
Entre as sedas do luto.
Para poder morrer
Desarmo as armadilhas
Me estendo entre as parede
Derruídas.
Para poder morrer
Visto as cambraias
E apascento os olhos
Para novas vidas.
Para morrer apetecida
Me cubro de promessas
Da memória
Porque assim é preciso
Para que tu vivas (HILST, 2001).
O tema da morte, aberto em polissemia, pode referir-se, além das
mortes físicas que são narradas, à morte da representação, e mesmo, como se
pôde observar na dedicatória de O caderno rosa de Lori Lamby À memória da
língua (um gesto de adeus, quiçá) à morte da própria linguagem enquanto
mecanismo de representação. Como se através da morte da realidade empírica,
fosse possível reformular hipóteses na tentativa de responder a uma pergunta de
Hillé:o que é um homem?(HILST, 2001, p. 22).
Daí a necessidade de “apascentar os olhos para novas vidas”, ou
seja, de se permitir perceber a realidade sob outra perspectiva, a partir de uma
outra alteridade: para que tu vivas é a finalidade da morte no poema introdutório
ao livro, como se disse. Seja a partir das referências que colaboram na
composição de um novo discurso, seja na irrefutável conclusão de que não
possibilidade de haver um signo completo em representação, sempre uma
busca por outras vidas.
3.2- Uma Idéia de Deus
E o homem deu nomes a todos os animais domésticos, às aves do
céu e a todos os animais do campo. Para o homem, todavia, ele não achou um
auxiliar que lhe conviesse (Gn. 2:20).
La esencia lingüística de las cosas es su lengua; esta proposición
aplicada al hombre, dice: la esencia lingüística del hombre es su lengua. Es decir
que el hombre comunica su propia esencia espiritual en su lengua. Pero la lengua
de los hombres habla en palabras(BENJAMÍN, 1987, p. 141)
1
.
De todas as inquietações que tematizam A obscena senhora D, das
“metafísicas” às “dúvidas teológicas” , como propõe Alcir Pécora (IN:Hilst, 2001),
há uma que se traduz em busca incessante:
Como foi possível ter sido Hillé, vasta, afundando os
dedos na matéria do mundo, e tendo sido, perder essa
que era, e ser hoje quem é?
Quem a mim me nomeia o mundo? Estar aqui no existir
da Terra, nascer, decifrar-se, aprender a deles
adequada linguagem, estar bem (HILST, 2001, p. 24).
Ou seja, exercício de procura pelo auto-conhecimento se via
representação verbal. É através da significação dada pela palavra, pela
capacidade de nomear, é que se chega a uma identidade, mas, para tanto, “é
preciso aprender a linguagem”, como diz Hillé.
1
A essência das coisas é sua língua, esta proposição aplicada ao homem diz: a essência
lingüística do homem é sua língua. Quer dizer que o homem comunica sua própria essência
espiritual na sua língua. Mas a língua dos homens fala em palavras.
Walter Benjamin, no texto Sobre el lenguaje en general y sobre el
lenguaje de los hombres, compreende a linguagem como toda forma de
comunicação de conteúdos espirituais, nesse sentido, ela está relacionada à
essência daquilo que nomeia. A linguagem, contudo, fala através dos nomes e
depende, portanto, da representação das palavras. De acordo com Benjamin,
El nombre tiene en el campo de la lengua sólo este
significado y esta función incomparablemente alta: la
de ser la esencia más íntima de la lengua misma. El
nombre es aquello a través lo cual no se comunica ya
nada y en lo cual la lengua misma se comunica
absolutamente [...] El hombre es aquel que nombra, y
por ello vemos que habla la pura lengua (BENJAMÍN,
1987, p.142)
2
.
Em A obscena senhora D, a preocupação de Hillé em poder nomear
a si e ao que sente está ligada à capacidade de poder criar ou gerir o universo.
Portanto, da mesma forma com que se preocupa em encontrar o seu próprio nome
como possibilidade de inserir sentido à própria existência, procura nomear Deus
como forma de torná-lo possível à fé:
Não pactuo com as gentes, com o mundo, não um
sol de ouro no fora, procuro a caminhada sem fim, te
procuro, vômito, Menino-Porco, ando galopando desde
sempre búfalo zebu girafa, derepente despenco sobre
as quatro patas e me afundo nos capins resfolegando,
sou um grande animal, úmido, lúcido, te procuro ainda,
agora não articulo, também não sou mudo, uns urros,
uns finos fortes escapam da garganta, agora eu búfalo
mergulho, uns escuros (HILST, 2001, p. 25).
2
O nome tem no campo da língua somente este significado e esta função incomparavelmente
alta: a de ser a essência mais íntima da língua mesma. O nome é aquilo através do que não se
comunica nada e pelo qual a língua mesma se comunica absolutamente (...) O homem é
aquele que nomeia, e por ele vemos que fala a pura língua.
Tal busca também está associada ao “fazer poético”, ao trabalho do
escritor que irá usar da palavra para representar seu próprio universo. O desejo de
controle sobre a escrita, discutido anteriormente, volta a se manifestar através
das indagações de Hillé. Criar a si mesma através da palavra cria a possibilidade
de reorganizar o mundo no princípio era o verbo, declara o apóstolo João e a
organização a partir do verbo gera a possibilidade de chegar à compreensão, a
“procura da luz”, a que Hillé se dedica, chegaria, então, ao seu termo.
Desse jeito, ela se ausenta do nome próprio, Hillé, em benefício do
que pode ser sugestionado em senhora D, ou búfalo, zebu, girafa. Da mesma
forma, ela o faz com o nome de Deus: Este, O Luminoso, O Vívido, O Nome,
Porco-Menino Construtor do Mundo, entre tantos outros nomes com que ela busca
nomear a si e a Deus. A busca pela representação esbarra, porém, numa aporia: a
linguagem se comunica ao infinito e a palavra, como cada língua, se revela
insuficiente, pois o signo constrói sentido em relação diacrítica, isolado, porém,
nos leva ao implacável silêncio. Por isso o “nome” é capaz de comunicar a língua,
mas esta comunicação acaba por se traduzir em nada. Segundo Benjamin,
O más exactamente: cada lengua se comunica a si
misma, cada lengua es en el sentido más puro el
“medio” de la comunicación. Lo “medial”, es decir lo
inmediato de cada comunicación espiritual, es el
problema fundamental de la teoría lingüística, y si se
quiere llamar mágica a esta inmediatez, el problema
originario de la lengua es su magia. La fórmula bien
conocida de la magia del lenguaje envía a otro: a su
infinidad. La infinidad está condicionada por la
inmediatez. Justamente debido a que nada se
comunica a través de la lengua, lo que se comunica en
la lengua no puede ser delimitado o medido desde el
exterior, y por elle es característica de cada lengua una
inconmensurable y específica infinidad. Su esencia
lingüística, y sus contenidos verbales, define sus
confines(BENJAMÍN, 1987, 141)
3
.
A “comunicação”, de que trata Walter Benjamin, pode ser entendida
como aquilo que cada nome, ou palavra, pode representar. O que acontece é que
a representação se na ausência, e esta é a magia, a linguagem que cria um
movimento especular entre significante e significado que se estende ao infinito.
Sobretudo no caso da narrativa moderna, como foi visto através do texto de Anatol
Rosenfeld, quando a representação fiel do que se entende como realidade não é
mais capaz de suprir a necessidade de uma outra representação, a psicológica.
Desse jeito, a “comunicação” também se na ausência. Na
impossibilidade de compreender (lembrando que duas classes de palavra
possíveis e que devem ser percebidas aqui: “compreender” como “abarcar” e
“compreender” como “entender”) a totalidade do que se quer representar, o
significado é passado adiante, aos confins da linguagem. Parece que uma das
últimas tentativas de autodefinição de Hillé leva em conta justamente essa
impossibilidade da língua:
[...] estou cega e no fundo do rio, encolho-me, todos os
buracos cheios d’água, vejo passar agigantados
sentimentos, excesso ciúme impotência, miséria de ser,
quem foi Hillé se nunca foi um nome? Hillé doença,
obsessão, tocar as unhas desse que nunca se nomeia,
colocar a língua e a palavra no coração, toma meu
coração, meu nojo extremado também, vomita-me
3
Ou mais exatamente: cada língua se comunica a si mesma cada língua é no sentido mais
puro o “meio” da comunicação. O “meio”, quer dizer o imediato de cada comunicação
espiritual, é o problema fundamental da teoria lingüística, e se se quer chamar “mágica” a esta
imediatez, o problema originário da língua é sua magia. A fórmula bem conhecida da magia da
linguagem a envia a outro: a sua infinitude. A infinitude está condicionada pela “imediatez”.
Justamente devido a que nada se comunica através da língua, o que se comunica na língua
não pode ser delimitado ou medido desde o exterior, e por ele é característica de cada língua
uma incomensurável e específica infinitude. Sua essência lingüística, e seus conteúdos verbais,
definem seus confins.
anseios, estupores, labiosidades vaidosas, toma meus
sessenta, sessenta anos vulgares e um único aspirar,
suspenso, aspirei vilas, cidades, nomes, conheci um
rosto sem face, um homem sem umbigo, um animal
que falava e os olhos mordiam, uma criança que deu
dois passos e contornou o mundo, um velho que
esquadrinhou o mundo mas quando voltou à casa viu
que não havia saído do primeiro degrau de sua escada,
vi alguém privado de sentimentos, nulo sozinho como
Tu mesmo Menino-Porco, era esticado e leve, era
rosado, e não sentia absolutamente nada[...](HILST,
2001, p.57).
O jogo de palavra com o verbo “aspirar”, tomado ambiguamente nas
duas regências o desejo dela de conhecer, compreender, as vilas, cidades, os
homens, e ao mesmo tempo a imagem surreal de inalá-los, como se pudesse
levar outras subjetividades para dentro de si é como se pudesse chegar a ser
um esboço de resposta para a pergunta: quem foi Hillé se nunca foi um nome?
Afinal, lembrando Benjamin, lo que se comunica en la lengua no puede ser
delimitado o medido desde el exterior. Por isso ela resume tudo o que viu durante
seus sessenta anos de vida, como se os olhos tragassem para dentro o nome que
ela deu às coisas. Entretanto, o Menino-Porco, nulo, sozinho é a inexorável
resposta daquele (ou daquilo) que nunca se nomeia e que, portanto, não tem
representação.
A linguagem, ou ainda o nome, como meio de representação
espiritual do homem tem seu fim último na possibilidade de nomear. Dar nome às
coisas significa realizá-las em completude, então, o nome senhora D, torna-se um
enigma, ao substituir o nome próprio Hillé, pois a inicial “D”, de “derrelição”,
também é a inicial de “dúvida” e, não por acaso, de “Deus”. E faz sentido pensar
em um “abandonar-se na dúvida” como sendo um “abandonar-se na fé”. Ou, pelo
menos, é via abandono que existe a possibilidade de encontrar o sentido da vida,
tão meticulosamente pesquisado:
Olha Hillé a face de Deus
Onde onde?
Olha o abismo e vê
Eu vejo nada
Debruça-te mais agora
Só névoa e fundura
É isso. adora-O. Condensa névoa e fundura e
constrói uma cara(HILST, 2001, p. 47)
Abismar-se e não ver nada: isso é Deus. Também é o abandono e a
incapacidade de poder construir sentido das coisas através do signo, da
representação. Mais uma vez, as palavras de Benjamin vêm em nosso auxílio:
Toda naturaleza, en cuanto se comunica, se comunica
en la lengua, y por lo tanto, en última instancia, en el
hombre. Por elle el hombre es señor de la naturaleza y
puede nombrar las cosas. Sólo a través de la esencia
lingüística de las cosas llega el hombre desde
mismo al conocimiento de éstas: en el nombre. La
creación de Dios se completa cuando las cosas reciben
su nombre del hombre, de quien en el nombre habla
sólo la lengua. Se puede definir el nombre como la
lengua de la lengua (con tal de que el genitivo no
signifique la relación del medio sino de lo central), y
en este sentido ciertamente, puesto que habla en el
nombre, el hombre es el sujeto de la lengua y por ello
mismo el único. En la designación del hombre como
parlante(que es evidentemente, por ejemplo, según la
Biblia, el dador de nombres: “toda denominación que el
hombre pusiera a los seres vivientes, tal fuese su
nombre”) muchas lenguas encierran en este
conocimiento metafísico(BENJAMÍN, 1987, p. 143)
4
.
4
Toda natureza, enquanto se comunica se comunica na língua, e, portanto, em última instância,
no homem. Por ele o homem é senhor da natureza e pode nomear as coisas. Somente através
da essência lingüística das coisas chega ao homem desde si mesmo ao conhecimento destas:
ao nome. A criação de Deus se completa quando as coisas recebem seu nome do homem, de
quem o nome fala a língua. Se pode definir o nome como a língua da língua(de jeito que o
genitivo não signifique relação de meio, mas de centro), e, neste sentido certamente, posto que
fala no nome, o homem é o sujeito da língua e por isso mesmo o único. Na designação do
homem como falante (que é evidente, por exemplo, segundo a Bíblia, o doador de nomes: “toda
denominação que o homem colocou aos seres vivos, tal fosse seu nome”) muitas línguas
encerram em si este conhecimento metafísico.
O potencial criador do verbo permite que haja uma união entre a
língua e as coisas. O homem nomeia a si a aos seus semelhantes, determinando-
lhes a essência. Não por acaso, a etimologia da palavra “substantivo” tem a
mesma raiz que “substância”, por isso é a classe de palavras que nomeia os
seres, uma vez que o nome aponta para a essência daquilo que designa.
Mas a língua também é o incomunicável e essa opacidade, esse
nunca deixar-se ver por completo, são a névoa e a fundura capazes de condensar
o rosto de Deus.
O Gênese conta que a mulher foi criada a partir do momento que o
homem, tendo nomeado todos os outros seres, não conseguiu dar nome a si
mesmo. Para tanto, ele é posto em sono profundo para que fosse retirada dela a
costela que daria origem ao seu duplo. Os dois últimos versos do poema que
serve de epígrafe ao livro dizem: Porque assim é preciso/ para que tu vivas e, da
mesma forma como acontece no poema, o livro termina com a morte. E através da
morte como do profundo sono do homem que mais tarde denominou-se Adão
chega-se uma definição do que seria Hillé.
Antes de morrer, porém, a senhora D é surpreendida por uma visita
bastante improvável, uma grande porca que invade sua casa fugida do quintal de
alguém. E, ao precisar alimentar um outro ser vivo, vem-lhe de novo a
irremediável necessidade de nomear, e como houvesse uma identificação entre
elas, designou-a senhora P:
Tento sair da minha pulverescência, e olho longamente
a senhora P. Me olha. É parda, soturna, medrosa, no
lombo uma lastimadura, um rombo sanguinolento. Hoje
pude me aproximar muito lenta, e como diria o sóbrio:
pensei-lhe os ferimentos. Roxo-encarnado sem vivez
este rombo me lembra minha própria ferida, espessa
funda ferida da vida (HILST, 2001, p. 88).
Irmanadas na mesma ferida como se provenientes da mesma
essência, da mesma “costela” - porca e louca se entendem (HILST, 2001, p. 88),
compartilham o mesmo nome como no Gênese, “homem” e “mulher” , vindos de
“humano” e “humana”. A criação do mundo via verbo se abre, finalmente, numa
possibilidade para Hillé. Mesmo que o nome por ela designado seja mais um
enigma de si mesma, senhora P, opaco, turvo, como mesmo ela era.
O homem, como “ser doador de nomes” , é responsável pela
dicotomia entre “nome próprio” e “nome comum”. Hillé, ao nomear a si mesma e a
sua semelhante, deixa o “nome próprio”, marca de uma identidade única, em favor
de apenas uma inicial que, na composição final, mais se assemelharia ao
“comum”. À porca, então senhora P, é dada uma identidade “própria”, pois a
semelhança a aproxima da humanidade.
De acordo com a professora Eliane Robert Moraes, a proximidade
entre o homem e o animal dá a medida exata de sua efemeridade na Terra:
O animal é, antes de mais nada, um semelhante. Na
medida em que sua existência coincide por completo
com a vida orgânica, ele enuncia um plano impessoal,
puramente biológico, diante do qual as identidades
ficam reduzidas tão-somente às particularidades da
matéria. [...] Assim, se a protagonista de A obscena
senhora D afirma que o ‘olho do bicho é uma pergunta
sem resposta’, a pergunta que ele encerra desdobre-se
em diversas outras, colocadas pela própria autora de
maneira vertiginosa‘O que é ser feito de carne, hein?
E boca? E fome?[...] que se conclui, enfim, na
indagação: ‘o que é estar vivo? E você sabe que morto
fervilha?’ (MORAES, 1999, p. 122).
O grande susto, de se ver, ao final, transmutada em senhora P faz
com que sua derradeira busca tenha fim, e o Porco-Menino (menino P?)
consegue, enfim, decifrá-la: Hillé era turva, não?/um susto que adquiriu
compreensão (HILST, 2001, p. 89).
Traçar “Uma Idéia de Deus” , como Hilst se propõe nos seus
Exercícios para uma idéia, é o que se pretende, de fato, ao sondar a
transcendente essência dos seres e das palavras:
E se a mão fizer
De ouro e aço,
Desenharei o círculo,
E dentro dele
O eqüilátero.
E se a mão não puder,
Hei de pensar o Todo
Sem o traço.
E se olhar a um tempo se fizer
Sol e compasso
Medita:
Retículo de prata
Esfera e asa
Tríplice
Una
E infinita (HILST, 2002, p. 34).
Mas a experiência com o inteligível não é suficiente para submeter o
abstrato plano das sensibilidades ao da representação, nem mesmo a partir do
auxílio das mãos e da geometria. Daí a conclusão: E se a mão não puder/Hei de
pensar o Todo/ Sem o traço (HILST, 2002, p. 34)
3.3 - Livrai-me, Senhor, dos abestados e atoleimados (HILST, 2001, p. 90).
É na prosa de Hilda Hilst, portanto, que a exploração do desconhecido
ganha inusitada violência poética, sem paralelos na literatura brasileira.
Trabalhando nas bordas do sentido, ela vai colocar a linguagem à prova de um
confronto com o vazio no qual o eterno confunde-se irremediavelmente com o
provisório e a essência resvala por completo no acidental (MORAES, 1999, p.
118).
Mas o ser aberto – à morte, ao suplício, à alegria – sem reserva, o ser
aberto e moribundo, dolorido e feliz, já aparece em sua luz velada: esta luz é
divina. E o grito – que com boca desfigurada, este ser quer (inutilmente?), que
seja ouvido – é uma imensa aleluia, perdida no silêncio sem fim (BATAILLE,
2004, p. 426).
Alcir Pécora, em nota do editor ao A obscena senhora D, percorre,
panoramicamente, os temas principais que compõem o livro. Além dos que foram
já tratados acima, há uns últimos em que devemos nos concentrar, de acordo com
o professor:
Estão aí, também, a ironia obscena e visceralmente
política, que reduz à evidência chocante a
mediocridade do bom-mocismo, a mesquinhez
travestida de prudência, a vigilância da vizinhança
burra, disposta a barbarizar até a morte para garantir a
homogeneidade do senso comum, senhor do mundo
(PÉCORA, 2001, p. 12-13).
Vale ressaltar que o tema da obscenidade está ligado ao da ironia e
à crítica política, desse jeito, é possível descartar qualquer motivo que ligue
pornografia à obra de Hilda Hilst. Mais uma vez, o elemento erótico está
necessariamente ligado à inteligência sensível, que deve percebê-lo como
exercício estético e, neste caso, sobretudo, como meio de transcendência
espiritual.
Georges Bataille defende que tudo está presente no encontro com o
erotismo (BATAILLE, 2004, p. 162). Desse modo, o filósofo une a transgressão
sexual à santidade, por se tratarem ambas de experiências de intensidade
extrema, e a elas, a poesia:
A poesia leva ao mesmo ponto que cada forma de
erotismo, à indistinção, à confusão dos objetos
distintos. Ela nos leva à eternidade, ela nos leva à
morte, à continuidade: a poesia é a eternidade. É o mar
que estrada junto com o sol, unidade (BATAILLE, 2004,
p. 40)
Em A obscena senhora D, Hillé narra sua experiência com a
comunhão ato teófago, nas palavras dela mesma de maneira extremamente
erotizada:
Engolia o corpo de Deus a cada mês, não como quem
engole ervilhas ou roscas ou sabres, engolia o corpo de
Deus como quem sabe que engole o Mais, O Todo, O
Incomensurável, por não acreditar na finitude me perdia
no absoluto infinito(HILST, 2001, p. 19).
“Engolir o corpo de Deus” é fundir-se a ele, tornando-se parte dessa
alteridade inominável, Hillé se torna, ela mesma, a representação tão buscada
através das palavras. Além disso, Hillé afirma ser também incestuosa a prática da
“teofagia”, atribuindo a Deus um parentesco humano. O que significa dizer que,
além de torná-lo uma representação animalesca (o Porco-Menino), aproximá-lo da
categoria do humano é ter ainda maior o sentimento de desamparo:
Rebaixado ao nível dos atos mais abjetos, o Deus-
porco de Hilda Hilst não é mais a medida inatingível
que repousava no horizonte da humanidade. O
confronto entre o alto e o baixo, além de subverter a
hierarquia entre os dois planos, tem, portanto, como
conseqüência última, a destituição da figura divina
como modelo ideal do homem. Disso decorre uma
desalentada consciência do desamparo humano, na
qual é possível reconhecer os princípios de um
pensamento trágico, fundado na interrogação de Deus
diante de suas alteridades [...] (MORAES, 1999, p.
119).
Daí, então, se a reflexão em torno da vizinhança e da insistência
do marido Ehud para que Hillé “aquietasse o coração”, desistindo de sua busca.
Ligados à visão do senso comum, a vizinhança burra e o marido, não são capazes
da introspecção que leva Hillé ao vão da escada, portanto, à recusa do convívio
social, e a negar-se ao ato sexual.
É do marido a frase: Senhora D, a viva compreensão da vida é
segurar o coração. me faz um café(HILST, 2001, p. 25). O pedido corriqueiro pelo
café ao lado de uma definição metafórica sobre a compreensão da vida mostra
como as inquietações de Hillé são irrelevantes para Ehud. Assim, tirar a roupa
diante dos vizinhos é desnudar a alma, mais que o corpo. A ironia do ato,
entretanto, torna-se mera especulação:
Antônia, ó Tunico, quis dar o pão pra ela e olha
como ficou, pelada, ai gente, embirutou, credo nossa
senhora, é caso de polícia essa mulher [...] porca,
exibida cadela, ainda bem que é no pardieiro dela
que mostra as vergonhas [...] E para Ehud, Hillé, foi
apenas uma letra D, primeira letra de Derrelição, doce
curva comprimindo uma haste, verticalidade sempre
reprimida, cancela trinco, tosco cadeado (HILST, 2001,
p. 28).
Para a vizinhança, Hillé é a “exibida”, e para Ehud, a esposa é signo
do que está fechado, como cancela, cadeados.
Fechada na representação redutora daqueles que percebem a
exterioridade das palavras, Hillé se volta para a obscenidade latente na morte e no
gozo divino:
O olho dos bichos é uma pergunta morta.
E depois vi os olhos dos homens, fúria e pompa, e mil
perguntas mortas e pombas rodeando um oco e vi um
túnel extenso forrado de penugem, asas e olhos,
caminhei dentro do olho dos homens, um mugido de
medos garras sangrentas segurando ouro, geografias
do nada, frias, álgidas, vórtice de gentes, os beiços
secos, as costelas à mostra, e rodeando o córtice
homens engalanados fraque e cartola, de seus peitos
duros saíam palavras Mentira, Engodo, Morte,
Hipocrisia, vi o Porco-Menino estremecendo de gozo
vendo o Todo, suas mãozinhas moles reverberavam no
cinza oleoso, ele estendia os dedos miúdos para o alto,
procurava quem? Seu irmão gêmeo, estático, os olhos
cegos em direção ao próprio peito, a cabeça pendiam o
corpo perolado, excrescência e nácar (HILST, 2001, p.
31).
A imagem do menino criança na manjedoura e do homem
crucificado. O Porco-menino e seu gêmeo, ambos gozando a visão apocalíptica da
humanidade esbatendo-se contra si mesma, tentando em vão salvar-se da
inexorável morte é congruente a de Hillé, morrendo em gozo absoluto:
¿Se muere alguien?
Agora vamos, tira a roupa, pega, me beija, abre a boca,
mais não geme assim, não é para mim esse gemido,
eu sei, é pra esse Porco-Menino que tu gemes, pro
invisível, pra luz pro nojo, fornicas com aquele Outro,
não fodes comigo, maldita, tu não fodes comigo
(HILST, 2001, p. 63).
De acordo com Georges Bataille, a morte imprime uma relação de
descontinuidade que acaba por favorecer uma experiência interior, o ato erótico,
que, paradoxalmente, como uma “pequena morte” (petite mort é como os
franceses denominam o momento do orgasmo) propicia essa introspecção que
propõe, de certa forma, uma continuidade da vida:
O que, de meu ponto de vista, imprime o caráter das
passagens da descontinuidade para a continuidade no
erotismo diz respeito ao conhecimento da morte que,
desde o início, liga no espírito do homem a ruptura da
descontinuidade e o deslocamento que se segue em
direção a uma continuidade possível – à morte.
Discernimos esses elementos de fora, mas se deles
não tivéssemos antes a experiência de dentro, sua
significação nos escaparia. Existe, aliás, um salto de
um dado objetivo que representa a morte ligada à
superabundância para essa perturbação vertiginosa
que imprime no homem o conhecimento interior da
morte. Essa perturbação, ligada à pletora da atividade
sexual, determina um enfraquecimento profundo.
Como, se eu não percebesse de fora uma identidade,
eu teria reconhecido, na experiência paradoxal da
pletora e do enfraquecimento ligados, o jogo do ser
superando, na morte, a descontinuidade individual
sempre provisória – da vida?(BATAILLE, 2004, p. 163).
O abalo propiciado pelo erotismo põe em cheque o sentido e o vazio,
que, no movimento de descoberta e morte, provisórios do auge do gozo, se
um encontro com uma totalidade que pode levar à compreensão. Provisoriamente,
chega-se à transgressão e, dela, à compreensão.
O momento de morte da senhora D é o êxtase absoluto, por isso,
somente descritível em pedaços de frases:
Incrível sol morrendo
Noite dor daqui a pouco
Luz palidez amanhã
estranho cães sabem (HILST, 2001, p. 89).
As relações semânticas que se podem extrair do pensamento
fragmentário apontam para a agonia da morte. Também provisória, mesmo de fim
instantâneo, a sensação de perder-se para a morte, se relaciona com a de perder-
se no êxtase orgasmático. Curiosamente, o que seria ruptura torna-se a
“passagem da descontinuidade para a continuidade”, como entendeu Bataille, pois
ambas as sensações se traduzem em movimentos eróticos, ou seja, de pulsão
vital. Através do enfraquecimento absoluto, um sentimento de perdência de
uma queda vertiginosa para dentro de si mesmo que, finalmente, significa
compreensão.
A frase final do texto, a ser inscrita na lápide de Hillé, aponta para o
quanto a banalização das sensações afasta os homens da reflexão introspectiva:
Livrai-me, Senhor, dos abestados e atoleimados, o que é congruente com a
percepção de Lori Lamby de que “aqui é tudo anarfa”, ou seja, a percepção
sensível parece ter participação reduzida na formação das identidades
contemporâneas.
Para terminar,mais uma vez usando das colocações de Bataille,
[...] a convulsão da carne, além do consentimento,
pede o silêncio, pede a ausência do espírito. O
movimento carnal é singularmente estranho à vida
humana: ele se desencadeia fora dela, com a condição
de que ela se cale, com a condição de que ela se
ausente. Aquele que se abandona a esse movimento
não é mais humano, é uma violência cega, à maneira
dos animais, que se reduz ao ímpeto, que goza por ser
cega, e por ter esquecido (BATAILLE, 2004, p. 165).
Hillé, senhora D, a obscena. Todas as hipóteses se resumem numa
última possibilidade: o tempo de toda a narrativa de A obscena senhora D não
durou mais que alguns segundos de um profundo êxtase, de uma “pequena
morte”.
CONCLUSÃO
Não se pretendia, mesmo devido aos limites deste trabalho, fazer
uma análise exaustiva das obras escolhidas. Procurou-se fazer um recorte de
questões que se acredita serem essenciais para uma leitura que deseja ser um
início para um longo estudo.
Os capítulos procuram manter uma coesão entre os temas
abordados, sejam eles, a metalinguagem e a classificação da obra hilstiana como
“pornográfica”. Buscou-se perceber a paródia como um exercício crítico, ao
mesmo tempo em que a sátira também o é, como se fossem uma resposta: a
todos aqueles que consideram Hilda Hilst uma escritora difícil, ela ofereceu duas
versões possíveis à sua leitura, uma “bandalheira” (as histórias indecentes) e
outra reflexiva, a crítica que se extrai dos textos aparentemente medíocres, devido
a sua forma, mas extremamente maliciosos.
O jogo de cena proposto pelos narradores em cada texto busca
confundir o leitor, não dando a ele a chance de ler um texto “confortável”, com
localização espaço-temporal, por exemplo. A arquitetura da narrativa é muito mais
babélica, leva o leitor a respostas erradas, como em O caderno rosa de Lori
Lamby, em que o estímulo para se acreditar que realmente um caso de
pedofilia, quando, na verdade, trata-se de um questionamento acerca do
fenômeno mercadológico em que se tem transformado a literatura. Desse jeito, a
trama textual apresenta-se cada vez mais sofisticada, ao contrário do que possa
parecer numa primeira leitura.
Acima disso, interessou-nos o tema que perpassa toda a obra, a
reflexão metalingüística. Da mesma maneira que o palavrão não representa
totalmente a violência com que se gostaria de indagar séculos de repressão
ideológica calcadas numa moral decadente, como é possível perceber na leitura
das Bufólicas, a capacidade de nomear também não satisfaz a necessidade
humana de compreender aquilo a que mesmo nomeia, como constata A obscena
senhora D.
A pesquisa dessas questões pode levar a concluir que, considerando
a ordem de publicação das obras sendo, primeiro A obscena senhora D e, por
último, O caderno rosa de Lori Lamby, um abandono de Hilst das questões
metafísicas, mais evidentes no primeiro caso, em favor de um discurso centrado
na superficialidade do corpo, como se vê nos dois outros textos, mais recentes.
Contudo, tal hipótese mostra-se, na verdade, distante da realização
poética da escritora, uma vez que os limites corporais e sua efemeridade tornam-
se também motivadores de uma reflexão sobre as possibilidades de
representação da língua. A elaboração da escritura e, antiteticamente, a
constatação da impossibilidade de haver controle da palavra (ou o extravasamento
disso, culminando no registro chulo dos vocábulos) são os motivadores para as
incursões metafísicas, como se o uso dos palavrões e a saliência da imagem
corporal apontassem para a falência de um mecanismo de representação que
conta fielmente daquilo que designa.
Assim, pode-se perceber que as vozes dentro da obra de Hilst,
sejam elas do narrador ou das personagens, são, de resto, vozes de dentro da
própria autora, pois àqueles que rotularam sua obra, ou procuraram lê-la por um
viés redutor, ela respondeu com a dissidência, distanciando-se dos valores
sociais, estéticos, enfim, dela mesma. Na procura do impossível – uma
representação satisfatória –, uma medida foi estilhaçada, a da própria literatura
enquanto realização estética, o que resulta na dissidência, curiosamente, tão bem
representada, nas inúmeras facetas de todas as personagens.
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ROSENFELD, Anatol. Reflexões sobre o romance moderno. IN: Texto/contexto.
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