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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
CENTRO DE ESTUDOS GERAIS
INSTITUTO DE LETRAS
DANIELE RAMOS
NAS BRENHAS DO SERTÃO: OS SERTÕES E VIDAS SECAS
A trajetória da personagem sertaneja na Primeira República
NITERÓI
2009
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DANIELE RAMOS
NAS BRENHAS DO SERTÃO: OS SERTÕES E VIDAS SECAS
A trajetória da personagem sertaneja na Primeira República
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em
Literatura Brasileira e Teorias da Literatura.
Área de concentração: Estudos de literatura
Orientadora: Profª.Dra. Lucia Helena
NITERÓI
2009
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DANIELE RAMOS
NAS BRENHAS DO SERTÃO: OS SERTÕES E VIDAS SECAS
A trajetória da personagem sertaneja na Primeira República
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense, como requisito parcial
para a obtenção do título de mestre em
Literatura Brasileira e Teorias da Literatura.
Área de concentração: Estudos de literatura
Aprovada em ____________________ de 2009.
BANCA EXAMINADORA
Orientadora: Profª. Drª. Lucia Helena
Universidade Federal Fluminense
Profª. Drª. Stefania Techima Chiarelli
Universidade Federal Fluminense
Profª. Drª. Adriana Maria Almeida de Freitas
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Profª. Drª. Denise Brasil Alvarenga Aguiar (suplente)
Universidade Estadual do Rio de Janeiro
Prof. Dr. Pascoal Farinacio (suplente)
Universidade Federal Fluminense
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Agradecimentos
Agradeço, primeiramente, a Deus e a Nossa Senhora Aparecida pela força de
vencer as etapas difíceis que se interpuseram no caminho e poder chegar ao fim desse
curso.
Agradeço enormemente a minha orientadora, a professora doutora Lucia
Helena, por todos os conselhos intelectuais e pessoais, indispensáveis nessa trajetória.
Gostaria de lembrar ainda de outras pessoas, cuja participação nessa
caminhada vitoriosa tenha sido mais discreta, mas ainda assim de muita importância,
por isso agradeço carinhosamente:
A Profª. Drª. Anabelle Loivos Considera, quem me apresentou Euclides da
Cunha e me despertou essa paixão;
A meus pais, Antônio Carlos Pereira Ramos e Nely Martins Ramos, e a minha
irmã querida, Stéphanie Ramos, figuras que concretizam mais perfeitamente para mim o
AMOR;
A meu companheiro, Edmar, por todo afeto e também pelo “apoio logístico”;
A todos os funcionários e amigos da Faculdade Filosofia Santa Dorotéia, Nova
Friburgo, pela torcida “pró-mestrado”;
A meus amigos de curso, Marcela, Lucia Helena, Ilma e Luiz, com quem
dividi angústias e conhecimentos;
Finalmente, a todos os meus alunos, grandes e pequenos, que estão comigo ou
já passaram por mim, e que representam o estímulo maior para meu crescimento
profissional.
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A todos os sertanejos deste país,
a começar pela minha avó, Odete Domingues Martins,
lavradora, mulher do campo, analfabeta, cidadã brasileira.
Ao Ed,
por comprar minhas brigas,
meus sonhos e por me amar.
A Minu e Fiona,
pela companhia inseparável e silenciosa,
nos meus momentos de estudo e reflexão.
6
Epígrafe
O SERTANEJO FALANDO
A fala a nível do sertanejo engana:
as palavras dele vêm, como rebuçadas
(palavra confeito, pílula), na glace
de uma entonação lisa, de adocicada.
Enquanto que sob ela, dura e endurece
o caroço de pedra, a amêndoa pétrea,
dessa árvore pedrenta (o sertanejo)
incapaz de não se expressar em pedra.
2
Daí porque o sertanejo fala pouco:
as palavras de pedra ulceram a boca
e no idioma pedra se fala doloroso;
o natural desse idioma fala à força.
Daí também porque ele fala devagar:
tem de pegar as palavras com cuidado,
confeitá-las na língua, rebuçá-las;
pois toma tempo todo esse trabalho.
(João Cabral de Melo Neto A educação pela Pedra)
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RESUMO
Este trabalho traz um estudo de como se apresenta a personagem sertaneja em
duas obras significativas da literatura brasileira durante a Primeira República, quando o
contraste entre o país agrário e o urbano começou a se intensificar devido ao processo
de desenvolvimento político-econômico crescente. Procuramos estudar as obras Os
sertões, de Euclides da Cunha, e Vidas secas, de Graciliano Ramos, observando a
linguagem empregada pelos autores e a construção narrativa estabelecida, bem como as
suas relações com o contexto histórico e social da época em que foram produzidas,
buscando verificar em que medida a personagem sertaneja foi essencial para se
compreender uma parte da história do nosso país e como se teceu a trama das nossas
referências identitárias pela Literatura.
Palavras-chave: personagem sertaneja, identidade nacional, construção narrativa,
Primeira República Brasileira, tensões sociais.
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RÉSUMÉ
Ce travail présente une étude sur comment le personnage « sertaneja » apparaît
en deux oeuvres considérables de la littérature brésilienne, lors de la Première
République, quand l’opposition entre le pays rural et celui urbain s’est devenu plus
intense dû au processus de développement politique et économique croissant. On a
cherché étudier les livres Os sertões, de Euclides da Cunha, et Vidas secas, de
Graciliano Ramos, en observant le langage employé par les auteurs et la construction
fictive établie, ainsi que les relations avec le contexte historique et social de l’époque
qui ont été produits, en cherchant vérifier comment le personnage « sertaneja » a été
essentiel pour que l’on comprenne une partie importante de l’histoire de notre pays et
comment s’est fait la trame de nos références identitaires par la littérature.
Mots-clés : personnage « sertaneja », identité nationale, construction fictive, Première
République brésilienne, tensions sociales.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO--------------------------------------------------------------------------------------- 10
CAPÍTULO 1 ABRINDO A JORNADA---------------------------------------------------- 17
CAPÍTULO 2 UMA GUERRA, UM HERÓI NÃO CONVENCIONAL E UM
LIVRO VINGADOR-------------------------------------------------------------------------------- 27
2.1. O paraíso e a paisagem atormentada -------------------------------------------------------------------------------36
2.2. O Hércules-Quasímodo do agreste-----------------------------------------------------------------------------------55
2.3. O perfil trágico de Antônio Conselheiro---------------------------------------------------------------------------85
2.4. “A Maldição sobre a Jerusalém de Taipa”------------------------------------------------------------------------94
CAPÍTULO 3: PERCORRENDO VIDAS SECAS----------------------------------------114
CAPÍTULO 4: CONTRASTES E CONFRONTOS---------------------------------------132
ANEXOS ----------------------------------------------------------------------------------------------135
ANEXO 1:---------------------------------------------------------------------------------------------136
ANEXO 2:---------------------------------------------------------------------------------------------137
BIBLIOGRAFIA------------------------------------------------------------------------------------138
10
INTRODUÇÃO
Essa dissertação pretende discutir a composição da personagem sertaneja em
duas obras fundamentais de dois momentos da literatura brasileira nos primeiros tempos
da república em nosso país: trata-se de Os sertões, de Euclides da Cunha, e Vidas secas,
de Graciliano Ramos.
Sempre me chamou a atenção essa personagem, que veio aparecendo aos
poucos na literatura e que ocupou papel central em textos, como os supracitados,
considerados obras de grande valor dentro do cânone nacional. Da mesma forma como
veio surgindo no cenário literário, o sertanejo desapareceu, não sem barulho, não de
repente, visto que posterior a Vidas secas temos obras que o apresentam, inclusive com
destaque, como é caso do Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, texto que junto
a questões típicas da vida sertaneja, traz ainda a problemática questão da jagunçagem e
do coronelismo nos sertões brasileiros, além do que Guimarães Rosa dá ênfase a um
sertão mítico, aquele que “está em toda parte”, atribuindo-lhe um amplo viés
existencial, assim como são existenciais as preocupações de Riobaldo com o amor, a
vida, a morte, Deus e o Diabo. Ao lermos Euclides da Cunha em Os Sertões,
percebemos também que ele constrói o sertão nordestino, bem situado geograficamente,
11
como um campo mítico, onde atuará seu herói, seu “Hércules-Quasímodo”, mas em
Euclides o sertanejo não atinge as proporções existenciais de Rosa, a preocupação do
narrador-andarilho euclidiano é de ordem científica e, sobretudo, social, como se fosse o
condor dos escritores românticos que tanto admirava, desnudando os problemas
brasileiros e vingando aqueles que não podiam falar, que não tinham voz.
No entanto, o fato é que o “sumiço” da personagem sertaneja se deu, e isso
tem a ver com questões pertinentes ao processo de modernização do país, ocorrido aos
poucos e intensificado com o advento da república, na última década do século XIX e
nas primeiras do século XX. Conforme se amplia esse processo de modernização e
urbanização do Brasil, a personagem sertaneja vai saindo de cena, deixando de estar em
sintonia com a realidade nacional. Basta pensarmos que os últimos enfoques de peso
(autores que obtiveram destaque junto à crítica acadêmica e que, portanto, inserem-se
no cânone) dados ao personagem sertanejo situam-se até a década 70 do século XX: o já
mencionado Grande Sertão: Veredas é de 1956, mesmo ano em que Juscelino
Kubitschek ascendeu ao poder com o ideal de fazer o país crescer 50 anos em 5 e levar a
civilização ao interior inabitado, daí a construção da nova capital, Brasília, inaugurada
em 1961; Rosa ainda escreverá suas “estórias”, cheias de causos do interior e onde o
sertanejo também se fará presente até 1967, ano de seu falecimento; Clarice Lispector
constrói sua retirante nordestina, Macabéa, em A hora da estrela, de 1977, mas a tônica
do trabalho da autora é o intimismo e a densidade da experiência existencial. Embora o
narrador Rodrigo S.M. passe páginas e páginas perguntando-se de modo angustiado
como poderia narrar a vida daquela sertaneja, nordestina e pobre, o que ocorre agora
nesta obra da Clarice é a junção do sertanejo à questão do excluído de uma forma geral,
estando o indivíduo no campo ou na cidade, trata-se de uma reflexão a respeito de como
o capitalismo e seus apelos minam o valor da vida, sobretudo, quando ela é pobre,
12
quando ela é uma “vida severina”; João Cabral de Melo Neto escreve Morte e Vida
Severina também em 1956, ano glorioso para a ficção que destacou o sertanejo como
peça chave, mas João Cabral não o colocará como tema preponderante de seu trabalho
poético daí para frente, visto que sua vasta poesia aborda diversos temas tendo como
aspecto comum a preocupação linguageira do poeta em buscar por meio da forma uma
poesia que dissesse muito com muito pouco, daí seu poder de síntese, sua poesia
marcadamente nominal, sem sobras.
O nosso trabalho pretende estudar a personagem sertaneja, pouco enfocada
pela literatura contemporânea, mas extremamente presente durante a primeira república,
quando o Brasil era um país agrário, mas desejava deixar de sê-lo, o que podemos
perceber pela ideologia em voga na época, segundo a qual o urbano é visto como bom e
moderno, e o rural como ruim e atrasado. É nesse momento que começa a destacar-se a
dualidade entre campo e cidade, sendo esta o ideal de desenvolvimento e aquele o
retrato da obsolescência. Vive-se, com a implementação da Primeira República, a partir
de 1889, um período diferente do vivenciado com a Independência do Brasil, quando se
buscava uma matriz nacional como referência inclusive para a literatura, esse nacional
foi logo identificado com os grupos nativos e com os mestiços, habitantes do interior.
Havia por essa ocasião, segundo Antonio Candido (1977, apud SEVCENKO, 1995,
p.36), o desejo de ser brasileiro. Mas, ao contrário, no período em que vamos analisar
(1902 1938), Sevcenko (1995, p.36) observa um desejo de ser estrangeiro, há uma
supervalorização do que vem do exterior, do urbano, do moderno e do progresso em
detrimento do campo. Está criado então um impasse: o país predominantemente rural e
agrícola luta para se modernizar e se transformar em urbano, apagando os vestígios do
passado que o incrimina. A personagem sertaneja é um desses vestígios que ainda ecoou
por bastante tempo na literatura, mas que se apagou quando a própria realidade social já
13
não condizia com a sua presença, pois o ideal de modernização do Brasil, iniciado
durante a Primeira República, concretiza-se ao longo do século XX, fazendo com que, a
partir dos anos 70, sejamos uma nação preponderantemente urbana, e falar do sertanejo
já não tenha tanto sentido.
Sabemos que a literatura é antes de tudo um produto artístico, ligado à vontade
e à competência dos seus produtores, ela não é um espelho da realidade, expressando-a
tal e qual. No entanto, é importante estudar o texto literário para se compreender melhor
aspectos históricos e sociais, porque, embora descompromissado com o mundo real que
o circunda, o artista nunca deixará de ser um homem do seu tempo, que fará deste
também objeto de sua reflexão e engenho. Sevcenko (1995) faz esta remarca em sua
análise das tensões sociais na Primeira República. Recuperando a Poética de
Aristóteles, o estudioso afirma que a História preocupa-se com fatos e com o estado real
das coisas, ao passo que a Literatura, sendo arte, está compromissada com a fantasia e
com o vir a ser. Seguindo sua linha de raciocínio, os discursos só são e só podem ser
combatidos por outros tipos de discurso. Nesse sentido é que, para Sevcenko, os
discursos históricos oficiais, que muitas vezes falam das figuras ilustres e dos grandes
acontecimentos, podem ser provocados pela literatura, pois, por seu descompromisso, é
um excelente meio para perceber os níveis de tensão existentes numa dada estrutura
social. Para ele, “a literatura (...) fala ao historiador sobre a história que não ocorreu,
sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram.
Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos.”
(Id., p. 21). Assim, consideramos que as obras escolhidas para estudo Os Sertões e
Vidas Secas entram perfeitamente nesta categorização de Sevcenko, pois ao
descrever/analisar/narrar o sertanejo, elas acabam por mostrar mais do que isso,
apontam para um mundo rural que foi sustentáculo da sociedade brasileira anterior à
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Republica e para um modo de vida desenvolvido durante três séculos e meio de
colonização brasileira, os quais começam a ruir diante do processo de modernização a
que o país começa a se submeter a partir de meados do século XIX. Para além disso,
vemos um impasse maior na obra de Euclides da Cunha, pois ela está num limite
fronteiriço entre literatura e jornalismo/ literatura e ciência. O autor transformou os
artigos jornalísticos que havia publicado, em O Estado de São Paulo, de agosto a
outubro de 1897, em obra literária cinco anos depois dos fatos acontecidos.
Teoricamente, o livro deveria estar destinado ao fracasso, tanto que foi difícil para
Euclides fazer a primeira publicação do texto, tendo ele mesmo de custeá-la. Tratava-se
de uma obra enorme, sobre um assunto histórico que não estava mais em discussão e
sobre o qual havia mesmo um interesse em calar-se, pois fora uma das maiores
vergonhas atribuídas ao Exército brasileiro. Mesmo assim o livro foi um sucesso, pois
não era exatamente o que se contava sobre o sertão, mas como se contava o sertão e a
trágica história de Canudos que se colocava em debate. Euclides fazia seu livro
vingador, no qual apontava para reflexões mais maduras sobre os fatos acontecidos,
para além dos determinismos da época, mostrava o lado humano do observado e do
observador. Trata-se do relato de um narrador que prescinde da neutralidade científica e
narra o outro lado da guerra, o lado que a história oficial contemporânea não queria
incorporar, o dos vencidos.
Assim também consideramos Vidas Secas, embora essa obra tenha já o tom
assumidamente ficcional. Ela nos mostra uma família sertaneja específica, que poderia
representar na verdade qualquer família sertaneja, pois vivem todas o mesmo drama que
se repete sempre que o fenômeno da seca se avizinha. Fabiano, Sinhá Vitória, o Menino
Maior, o Menino Menor e Baleia buscam sua sobrevida no sertão, passando por
dificuldades, mas lutando a seu modo contra todas elas, vivendo o drama da migração
15
quando não se é possível mais fazer nada. Também aqui a literatura vem nos apontar
para as tensões sociais. É na linguagem que se manifesta a deficiência maior de
Fabiano, a pobreza daquela família invade a obra e exibe-se ao leitor a fim de tocá-lo,
de marcá-lo com aquela ausência, que, no fim das contas, é a ausência de tudo: do
direito de viver, da cidadania, da educação e das ações governamentais.
Dessa forma, pretendemos analisar a personagem sertaneja, buscando perceber
sua relação com a construção narrativa das obras selecionadas, como ela é vista pelo
narrador e como se comporta em relação a ele, procurando apontar também de que
forma a literatura manifesta as tensões que o discurso histórico oficial não traz, segundo
Sevcenko (1995).
Nosso trabalho vai estruturar-se em quatro capítulos. No primeiro,
pretendemos apresentar um panorama histórico da Primeira República, época em que se
situam os textos estudados e com a qual dialogam, procurando justificar sua inserção
nesse cenário e elucidando o contexto em que aparecem. No segundo capítulo,
apresentaremos Os sertões, de Euclides da Cunha, analisando o texto e as partes que
compõem a obra, apontando para os caminhos que queremos mostrar. Será um capítulo
longo devido inclusive ao tamanho do livro original estudado, no qual abordaremos o
que há de peculiar a cada parte de Os Sertões, além de nos dedicarmos à análise do
perfil de Antônio Conselheiro, criado por Euclides da Cunha. O terceiro capítulo trará
uma análise de Vidas Secas, de Graciliano Ramos, enfocando sua estrutura narrativa,
seu diálogo com as personagens sertanejas, a linguagem empregada e os silêncios da
obra, nesse caso tão importantes quanto à própria narração. Já no quarto capítulo
faremos um confronto das duas análises, Os sertões e Vidas Secas, mostrando em que
ponto se tocam e em quais se afastam ao trazer à baila a personagem sertaneja,
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procurando ressaltar os impasses que essas obras apresentam ao literaturizarem o tema
sertão e transformarem o sertanejo em personagem-chave.
Assim, respeitando aquilo que é peculiar ao discurso literário: a construção da
linguagem, as formas escolhidas, as artimanhas discursivas, queremos investigar como
se apresenta a personagem sertaneja nas obras mencionadas e a sua relação com o
contexto histórico, político, econômico e social da Primeira República. Queremos saber
como os “escritores-cidadãos” (SEVCENKO, 1995) abriram espaço e deram voz a essa
personagem desfavorecida por sua época e destinada ao esquecimento posterior neste
país que, gradativamente, se transforma em urbano e industrial, e ignora, e até mesmo
menospreza, o homem do campo. Por meio da análise textual das narrativas, das suas
formas e suas linguagens, da maneira como o narrador construído se relaciona com a
personagem narrada, nos momentos em que fala por ela e naqueles em que a deixa falar,
do estatuto da emissão da voz do sertanejo e dos silêncios criados, muitas vezes mais
significativos do que as palavras ditas, queremos perceber como a literatura concebe
essa personagem e como a coloca em relação ao seu tempo e ao seu contexto social.
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Capítulo 1 Abrindo a jornada
As obras estudadas nessa pesquisa estão compreendidas, considerando-se sua
data de publicação e a estrutura social à que se referem, dentro do que chamamos de
Primeira República ou República Velha. Faz-se necessário, então, que exploremos esse
período histórico a fim de se ampliar a leitura dos textos. O livro Os Sertões, publicado
em 1902, mas com referência histórica precisa a 1897, quando ocorreu a Guerra de
Canudos, mostra claramente sua ligação com a História brasileira. Ele relata o primeiro
grande conflito vivido pelo novo regime político implantado em 1889. A obra é um
misto de trabalho jornalístico, científico e literário, e suscitou numerosas reflexões
quanto ao gênero discursivo a que pertenceria, embora esse não seja o foco de nossa
preocupação no decorrer dessa análise. Importa-nos, no entanto, perceber que esse
texto, mestiço em sua origem, traz o retrato de um período, de uma guerra e de um
povo, quase um marco inaugural da história republicana em nosso país.
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Já o romance Vidas Secas foi publicado em 1938, estando, portanto, fora dos
limites cronológicos da Primeira República (1889-1930), se consideramos a sua
publicação. Mas procuramos, com relação a Vidas Secas, não focalizar o estudo da
narrativa nessa data, e sim no espaço e no tempo que o próprio texto nos evoca: o
interior nordestino, atrasado, agrícola, abandonado, onde se fazia constante a migração
popular em busca de condições melhores de subsistência. Além disso, a temporalidade
de uma obra não obedece exatamente uma linha reta, seguindo o tempo cronológico,
pois os escritores têm a liberdade de trabalhar o tempo à sua maneira em seus textos, até
porque como o sertão acaba virando um espaço mítico, de andanças e guerras, uma
espécie de palco macabro onde atua a personagem sertaneja, fica difícil delimitar o
tempo cronológico com limites exatos. Da mesma forma, a organização da História em
períodos e épocas acontece por uma questão didática e por um esforço de compreensão
do estudioso, o que significa afirmar que, ao término da Primeira República, seus
problemas e tensões não desapareceram como num passe de mágica, inaugurando um
novo tempo, pelo contrário eles ainda perduraram muito, e alimentaram a literatura por
décadas. Sendo assim, o sertão (ou sertões como quis Euclides da Cunha), embora em
situações diferentes, apresenta-se como espaço seco, inóspito e difícil nos dois textos.
Apesar de geograficamente distintos, suas questões são semelhantes.
Em Euclides, vemos o sertanejo como uma espécie de personagem coletiva
que, para enfrentar a aridez do sertão, reúne-se a outros indivíduos como ele, e juntos,
em torno da fé e da necessidade de sobrevivência, criam um enorme assentamento, onde
se vivia de modo solidário e primitivo, o que foi entendido como uma ameaça à
República nascente. O movimento foi então exemplarmente punido. Em Graciliano
Ramos, a personagem, agora individualizada, vive o drama da subsistência, mas já não
19
conta com o apoio de um grupo maior, Fabiano segue pelos caminhos do sertão numa
busca errante, junto à sua família, por condições melhores de vida.
Um autor dá, em especial nas duas primeiras partes, tratamento científico a seu
texto, relata um drama coletivo, transformando um fato histórico dos mais lamentáveis e
dolorosos em obra clássica; o outro trata o assunto de forma mais pessoal, narrando a
história de uma família, como tantas outras houvera, e de um sertanejo em especial,
Fabiano; Euclides faz do sertão e do sertanejo seu objeto de análise; Graciliano cria um
narrador que muitas vezes reparte sua palavra com o personagem narrado, dando-lhe
voz. As obras se apresentam como modalidades literárias diferenciadas que trazem à
tona no cenário de discussão uma realidade desse período histórico do Brasil: o
contraste entre o meio urbano que procurava ascender e europeizar-se e o interior
agrícola e atrasado, do qual procuravam desligar-se todos aqueles que viam no
progresso urbano-industrial o futuro da nação. Estamos, então, diante do impasse
estabelecido durante esse período.
A República teve o 15/11/1889 como data de seu nascimento, mas ela vinha
sendo preparada há algum tempo, pelo menos desde 1870, marco de uma série de
eventos mundiais, como a unificação da Itália e da Alemanha, a guerra Franco-Alemã,
logo após a vitória da Terceira República francesa e o término da Guerra do Paraguai.
Este último acontecimento foi particularmente marcante para o Brasil, porque, apesar de
vencedor, nosso governo monárquico saiu com a imagem bastante desgastada do
conflito, fora as perdas humanas e os recursos financeiros despendidos para suster tal
empreitada. Além disso, as diversas incursões feitas no mundo inteiro contra a
escravidão negra minavam um dos sustentáculos da Monarquia no Brasil, cuja
economia baseava-se na monocultura produzida em latifúndio, utilizando-se do trabalho
escravo. Algumas conquistas foram sendo feitas gradativamente a fim de que se
20
exterminasse a escravidão: a libertação dos recrutas escravos sobreviventes à Guerra do
Paraguai, a Lei dos Sexagenários, a Lei do Ventre Livre e, enfim, a Lei Áurea. A
monarquia e a escravidão ligavam-se de tal modo que não foi por coincidência o regime
monárquico ter sobrevivido pouco mais de um ano à libertação dos escravos, visto essa
atitude representar muito mais do que um ato de humanidade, economicamente
significava o desenvolvimento do trabalho assalariado e, por conseguinte, de um novo
modo de produção, o capitalista, o qual, necessitando de mão-de-obra e mercado
consumidor, ampliaria, em progressão geométrica, o processo de industrialização no
Brasil.
Um novo grupo social sente necessidade de fazer-se representar politicamente.
“O Estado Monárquico representava os interesses dos grandes proprietários de terra,
ligados à exploração de produtos agrícolas, com mão-de-obra escrava e aos grupos
exportadores desses produtos e importadores de manufaturas.” (SILVA, 1975, p.8).
Mas, com as modificações sociais e econômicas, a Monarquia passa a ser indesejada,
porque excluía do acesso ao poder uma nascente burguesia industrial, que viu na
transformação do regime condições de crescimento até então não alcançadas. Juntaram-
se a essa burguesia outras vozes que também queriam se fazer ouvir, como os militares,
camadas médias da população, funcionários públicos e profissionais liberais.
Ideologicamente, esse novo grupo recebe forte influência do pensamento
positivista comtiano, que valorizava a Ciência como “forma exclusiva para se chegar ao
conhecimento pois ela trabalha com métodos experimentais e demonstrativos...”
(CITELLI, 2001, p.137). Tal ideologia é defendida sobretudo pelo Exército, de onde
vem a Proclamação da República e também o escritor Euclides da Cunha, este inclusive
forma-se tendo por base o Positivismo divulgado na Escola Militar por Benjamin
Constant. Essa doutrina filosófica ia ao encontro do pensamento de extração burguesa e
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defendia posições republicanas, daí então sua rápida entrada em nosso país nesse
período de ânsia pelo estabelecimento de um novo regime político.
Além do Positivismo, o Determinismo de Darwin era bastante difundido na
época e influenciava pessoas e idéias. Diversos escritores compartilharam das reflexões
darwinistas, inclusive Euclides da Cunha, como percebemos pela leitura de Os Sertões.
Dessa forma, a partir das crises geradas nas últimas décadas da Monarquia,
dos anseios econômicos de um novo grupo em ascensão e do embasamento em
doutrinas filosóficas favoráveis à mudança do regime político, o Exército dá o golpe de
misericórdia no Estado Monárquico, estabelecendo a República. Tal medida, como se
procurou ressaltar, não foi calcada nas necessidades da maioria da população, a qual
continuou à margem do sistema da mesma forma como antes já estava, não houve um
movimento popular como hoje entendemos essa expressão. Pode-se dizer que o povo
assistiu de fora à Proclamação, efetivada por um pequeno grupo em nome de outro. Daí
o peso que Canudos vai ter para esse nascente regime ainda tão cambaleante: qualquer
ajuntamento de pessoas, sobretudo se entre elas houvesse um líder, já soava como
rebelião anti-republicana, era entendido como revolta monarquista pelo
restabelecimento da situação política anterior.
A República, como se vê, já nasceu recalcada, talvez pela consciência de que a
“coisa pública” (do lat.) não fosse lá tão pública assim. A análise desse período
histórico mostra-nos como as medidas e as escolhas foram feitas sempre de cima para
baixo, e as eleições apresentavam resultados convenientes aos representantes das
oligarquias ligadas ao poder econômico e político. As fraudes eleitoreiras eram comuns,
chamavam-se os pleitos de eleições a bico-de-pena, dada a manipulação sempre
desfavorável à oposição.
22
No decorrer da República Velha, foram doze presidentes em 41 anos. A
princípio, ligados às forças militares, posteriormente também se elegeram civis por
meio de votações diretas, as quais, como já afirmamos, não eram exatamente diretas, já
que nem todos votavam, era necessário ter alguma escolaridade, ser homem, maior de
21 anos, e havia fraudes constantes. Em 1889, ao proclamar-se a república, elegeu-se
um governo provisório, de origem militar, chefiado pelo Marechal Deodoro da Fonseca.
É interessante notar que, mesmo os contemporâneos da proclamação, viram-na como
algo desconexo do movimento popular. Por exemplo, o pintor Benedito Calixto
reproduziu, em óleo sobre tela, em 1893, sua visão acerca desse episódio político
(Anexo 1), na obra percebemos que não há participação popular, mas apenas homens
fardados em cavalgarias saudando o novo sistema político almejado.
A propósito do mesmo assunto, é interessante observar o que disse o jornalista
e político Aristides Lobo a respeito da Proclamação: “O povo assistiu àquilo
bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditaram
seriamente estar vendo uma parada.”
1
Aristides pôde falar do que ele próprio havia
visto, pois encontrava-se presente na ocasião, era articulista de um dos mais conhecidos
jornais da época, além de ser um republicano fervoroso. Aristides Lobo viria a ser
ministro do interior do governo provisório de Marechal Deodoro da Fonseca, mas ele
próprio reconhecia que a República não contava com a participação do povo. Ainda
nesse mesmo artigo, o autor afirma “Como trabalho de saneamento, a obra é edificante.
Por ora, a cor do Governo é puramente militar, e deverá ser assim. O fato foi deles,
deles só, porque a colaboração do elemento civil foi quase nula.
Na contramão dessa interpretação clássica de uma república imposta, a
historiadora Maria Tereza Chaves de Mello, no seu livro A República Consentida
1
Consultamos na íntegra o artigo publicado por Aristides Lobo no Diário Popular de 18/11/1889 no site
<http://www.franklinmartins.com.br/estacao_historia_artigo>, último acesso em 02/09/2008.
23
(2007), afirma não ter sido a Proclamação da República bem da forma como
tradicionalmente se colocou. Para ela, o povo tinha consciência do que estava
acontecendo e mesmo discutia, esperançoso, os acontecimentos políticos. Tomou-se um
verdadeiro desgosto pelo regime monárquico, chegando-se ao ponto de se ridicularizar
sua figura maior que era D. Pedro II; por isso, o novo regime era mesmo visto como um
modelo que viesse destruir as diferenças daquela sociedade tão dividida e trouxesse
mais igualdade de oportunidades para todos. A pesquisa de Maria Tereza traz-nos
dados importantes a respeito do assunto. Primeiramente ela relê a famosa frase de
Aristides Lobo numa outra perspectiva, muito mais próxima da intenção do seu autor se
pensarmos na lógica em que ele está inserido. O “bestializado” não seria visto como
palavra pejorativa, significando “imbecilizado”, mas sim surpreso pelo fato novo que
advinha. Quando a autora utiliza a expressão “República consentida”, não está indo de
encontro a Aristides Lobo, visto que “consentir” não é o mesmo que “participar”, ela
apenas lança uma nova luz sobre a questão para que vejamos que, primeiro, o povo não
estava tão desconectado com a vida da cidade assim; segundo, o regime monárquico,
apesar da manifesta popularidade de D. Pedro II, enfrentava uma grande crise,
sobretudo porque seus dois maiores sustentáculos estavam em vias de desaparecer: a
escravidão, que já vinha sofrendo golpes desde 1826 com tratados que tornavam ilegal a
comercialização dos escravos até o golpe final em 1888 com a Lei Áurea, e as grandes
propriedades rurais monocultoras, com as revoluções industriais ocorridas na Europa e
com a modernização tardia do país, elas pouco a pouco vão deixando de ser a base da
economia brasileira, muito embora o setor agrário ainda manipule o cenário político
durante muito tempo depois de implantada a República.
24
A historiadora procura mostrar que nas ruas do Rio de Janeiro, entre os
intelectuais coevos, havia sim uma comoção pelo que estava acontecendo, e havia
esperança de que, com a mudança do regime, outras pudessem sobrevir.
A respeito do conhecimento da sociedade civil do que acontecia no nível
político, duas observações parecem-nos necessárias. A primeira é que os intelectuais de
fato escreviam de forma empolgada sobre o novo regime. Sevcenko (1995) já nos
apresenta diversas citações da época, nas quais se pode perceber o entusiasmo que a
República causa e sobretudo a perspectiva de progresso que ela suscita, sendo o
progresso entendido como uma tentativa de europeização do Brasil. Olavo Bilac, por
muitas vezes, deixa-nos entrever isso, como, por exemplo, nessa citação em que ele fala
animado do projeto de remodelação da capital, empreendido pelo quadriênio de Campos
Salles (1898-1902):
O Brasil entrou e já era sem tempo em fase de
restauração do trabalho. A higiene, a beleza, a arte, o ‘conforto’
já encontraram quem lhe abrisse as portas desta terra, de onde
andavam banidos por um decreto da Indiferença e da Ignomínia
coligadas. O Rio de Janeiro, principalmente, vai passar e já está
passando por uma transformação radical. A velha cidade, feia e
suja, tem seus dias contados. (BILAC, apud SEVCENKO,
1995, p. 30)
Essa declaração deve-se ao fato de que a revitalização da cidade pressupunha a
demolição de velhos casarões coloniais, invadidos, sobretudo no centro do Rio, por
pobres, mendigos, vagabundos e prostitutas, para a abertura de ruas largas e prédios
modernos. No entanto, as medidas adotadas pelos governos republicanos visando ao
progresso eram vistas às vezes sob óticas diferenciadas, e pode-se notar certo ir e vir no
apoio a elas. Ao mesmo tempo em que se as exaltava por um lado; por outro, a
população as via com desconfiança, como podemos perceber com a Revolta da Vacina,
acontecida durante o governo seguinte, encabeçado pelo presidente Rodrigues Alves,
25
tendo como prefeito do Rio Pereira Passos. Temerosa com a imposição da vacina
obrigatória e achando um descalabro que funcionários da Saúde Pública entrassem nas
casas à revelia ou na ausência dos seus proprietários, tocassem em suas mulheres e
filhas sem dar qualquer informação ou explicação sobre o procedimento, a população se
revoltou com o apoio do exército, que, nesse momento, fazia oposição ao governo
eleito. Além disso, a política do “bota abaixo” desalojava pessoas carentes que, não
podendo permanecer nos bairros revitalizados, eram cada vez mais empurradas para a
periferia e encostas cariocas.
Em síntese, fica claro que a República nascente provocava muitas
desconfianças quanto à sua capacidade de revolucionar aquela sociedade tão dividida.
Com o passar do tempo, então, foi-se percebendo que se mudara o príncipe, mas não o
princípio, embora se houvesse estabelecido um novo regime de governo, ele não estava
interessado em atender os anseios dos mais pobres.
A outra observação que julgamos pertinente é o fato de o Brasil ser muito
maior que a capital, muito maior que o Sudeste/Sul em amplo desenvolvimento, e que,
no interior, o que vigorava ainda era um sistema agrário de um país rural, que não
enxergava claramente a mudança republicana. É desse país interiorano que tratam Os
sertões e Vidas Secas.
Como se vê, estamos sempre voltando ao impasse inicial que ressaltamos
nesse período: o conflito entre a realidade predominantemente agrária e o desejo
republicano e também social, dado o desenvolvimento acelerado da burguesia industrial
no Brasil, de progresso, de europeização, de modernização. Para Nelson Werneck
Sodré, na obra Formação histórica do Brasil (2004), a Primeira República pode ser
pensada como dividida em três fases: a da implantação, em que haveria um predomínio
do poder da classe média e a presença marcante do seu desejo de ascensão, através da
26
ação dos militares; a da consolidação, em que o controle exclusivo estaria nas mãos das
oligarquias latifundiárias, é a época da República do Café com Leite, quando havia um
jogo de cartas marcadas para beneficiar determinados grupos no poder; e a do declínio,
marcada pela expansão da burguesia industrial e da classe média, e pela disputa desses
setores pelo acesso ao poder. Para o estudioso, a Revolução de 30 representou um
conflito entre o setor agrário e industrial, uma luta entre a burguesia e o latifúndio.
Deste modo, mesmo que Vidas secas seja uma obra publicada em 1938, ela
trata de um assunto pertinente à Primeira República, que ainda terá eco nas décadas
seguintes.
Levando em conta, então, que as obras escolhidas inserem-se nesse contexto
histórico e que, portanto, trazem marcas das tensões vividas nesse momento,
procuramos analisá-las, percebendo como a personagem sertaneja é vista por esse
discurso alternativo e não-oficial que é a literatura.
27
Capítulo 2 Uma guerra, um herói não convencional e
um livro vingador
Os sertões é uma obra que instiga os pesquisadores e o círculo intelectual
desde o seu surgimento. Trata-se de um trabalho de reflexão extemporâneo a respeito de
um fato histórico que causava desconforto para o novo regime republicano instaurado,
uma espécie de mácula na nossa História, visto que uma guerra civil é sempre uma
guerra entre irmãos. Muito embora o evento de Canudos não tenha sido considerado
uma guerra civil, constitui-se, sim, como uma matança desordenada, desnecessária e
arbitrária de cidadãos brasileiros, a quem deveriam ter sido oferecidas educação e
melhores condições de vida, ao invés de bala.
Euclides da Cunha pertencia ao Exército brasileiro e era engenheiro, tendo sua
formação baseada nos pressupostos dessa instituição nacional. Ele não participou, no
entanto, da campanha de Canudos como soldado, e sim como correspondente do jornal
em que trabalhava. O conflito de Canudos durou cerca de um ano, entre outubro de
1896 e 05 de outubro de 1897, data oficial para a rendição e ocupação do povoado pelas
forças governamentais. Foram necessárias quatro expedições militares a fim de que se
atingisse esse objetivo.
28
Euclides, talvez devido à sua formação republicana e de base militar,
interessava-se pela campanha no sertão baiano e sobre ela escrevia no jornal O Estado
de São Paulo. A princípio, seus artigos seguiam certo senso comum instaurado por aqui
na região Sudeste/Sul a respeito do conflito no Nordeste, uma visão determinista, que
denunciava o atraso das populações do interior como determinado pelo local onde
moravam, distante do litoral desenvolvido. Além disso, longe da cena do conflito e sem
conhecer-lhe os antecedentes, via-se nele uma espécie de luta armada em nome da
restauração do governo monárquico, que traria de volta D. Pedro II para governar o
país. Os artigos mais conhecidos do Euclides nessa época recebem o nome de Nossa
Vendéia, neles se evidenciam o fanatismo e a ignorância daquela população.
Em março de 1897, Euclides da Cunha foi enviado para Bahia para ser
correspondente de guerra do jornal. Por três meses, ele acompanhou as notícias de
Salvador, onde se instalou e de onde enviava seus textos para São Paulo. Em junho, o
escritor vai para o interior, trabalhar in loco, buscando fontes mais seguras para embasar
suas reflexões. É nesse momento que a perspectiva do autor começa a mudar, quando
ele vê de perto a “crueldade e a violência praticadas contra Belo Monte” (CITELLI,
2001, p. 35), percebe a “falta de sentido em se fuzilar e degolar prisioneiros” e espanta-
se “com a carnificina, o genocídio, a insensibilidade do governo para reconhecer as
particularidades de um mundo marcado pela fome e pela miséria” (Idem, ibidem). Seus
artigos mudam de tom e tornam-se mais humanos, mesmo que essa humanidade fosse
de encontro às idéias deterministas e cientificistas em que o autor acreditava.
Foi a partir dessa mudança de perspectiva e da maturação das novas idéias
descobertas com a observação pessoal dos insucessos na campanha de Canudos que
surgiu o livro Os sertões.
29
É interessante notar que a obra aparece apenas cinco anos depois do
acontecimento trágico no interior da Bahia, fruto mesmo de um processo de reflexão e
reelaboração do material que ele havia produzido antes. E foi no interior de São Paulo,
na cidade de São José do Rio Pardo, enquanto fiscalizava a reconstrução da ponte sobre
o rio que corta o lugar, que Euclides da Cunha encontrou o sossego necessário para
fazer o “seu livro vingador”, aquele que iria denunciar o crime cometido pelo Exército
contra os nossos concidadãos. Ainda em relação ao objetivo da obra, é importante
observarmos a introdução do livro, na qual Euclides deixa clara a sua conclusão a
respeito da empreitada que foi a Guerra de Canudos:
Aquela campanha lembra um refluxo para o
passado.
E foi, na significação integral da palavra, um crime.
Denunciemo-lo.
E tanto quanto o permitir a firmeza do nosso
espírito, façamos jus ao admirável conceito de Taine sobre o
narrador sincero que encara a história como ela merece:
... « Il se irrite contre les demi-verités qui sont des
demi-faussetés, contre les auteurs qui n’altèrent ni une date, ni
une généalogie, mais dénaturent les sentiments et les moeurs, qui
gardent le dessin des événements et en changent la couleur, qui
copient les faits et défigurent l’âme; il veut sentir en barbare,
parmi les barbares, et les anciens, en ancien. » (CUNHA, p.6)
Os sertões é considerado um dos livros mais importantes do Brasil por
diversos intelectuais, como procurou mostrar uma matéria publicada pela revista Veja,
de 23 de novembro de 1994, sobre o seguinte tema: “as vinte obras mais representativas
da cultura brasileira em todos os setores e em todas as épocas” (ABREU, 1998, p. 19), a
enquete era dirigida a quinze intelectuais de porte no país, o resultado foi o apontamento
de Os Sertões como a obra que mais representaria a cultura brasileira, possuindo
características que o fazem ser concebido como um clássico. Intrigada por tal
consideração, a pesquisadora Regina Abreu desenvolveu um trabalho (O enigma de Os
sertões, 1998) no sentido de averiguar o que havia na história de produção e publicação
30
da obra que o fazia ocupar essa posição de destaque no seio da cultura brasileira. Sua
inquietação surgiu ao ler a matéria mencionada e a partir daí a autora começou a
pesquisar para saber o que no livro atrairia esse público fiel por, na época, quase cem
anos, recebendo tanto destaque por parte da intelectualidade brasileira.
A resposta, segundo Regina Abreu, encontra-se no fato de a obra ser, sim,
grandiosa literariamente, dotada de uma linguagem inovadora e de um processo de
feitura diferenciado do que se vira até então, buscando-se uma escrita associada à
ciência, porém sem perder o veio do olhar subjetivo do narrador sobre a realidade
circundante, mas a pesquisadora ainda elenca outros fatores para que Os Sertões se
destacasse como representante da cultura brasileira. Em primeiro lugar, por falar
diretamente sobre a História do Brasil, mais especificamente sobre um episódio que
deveria ser rememorado apenas para que nunca mais fosse repetido, porque, no mais,
representa uma das empreitadas mais mal-sucedidas que se pôde realizar em nosso país.
Para ela:
“O culto a indivíduos singulares e suas invenções
sui generis expressa valores caros ao grupo que o
professa. Os ‘grandes momentos’ tornam-se
lendários numa cultura. Uma vez consagrados, são
inseridos num tempo mítico, diverso do tempo
histórico. No tempo mítico, um fato é repetido
milhares e milhares de vezes, porque ele não
interessa como causador de outros, como mera
informação, mas interessa o fato nele mesmo, como
experiência no sentido atribuído por Walter
Benjamin. Fala-se muitas vezes sobre o
acontecimento, como se a cada relato fosse possível
viver o ato inaugural, não apenas pertinente ao
indivíduo criador, mas a todo o grupo social. O
momento de criação de Os Sertões faz parte do rol
dos ‘grandes momentos’ da história do Brasil.”
(Id.,p.368)
Além disso, para a pesquisadora, há um terceiro motivo que levou a obra à
consagração: o processo contemporâneo de recepção e crítica, que prosseguiu nas
31
sucessivas leituras pelas gerações posteriores. Na época, o sucesso do livro foi
impulsionado pelo bom acolhimento que recebeu por parte dos três críticos literários
mais importantes do país: José Veríssimo, Araripe Júnior e Sílvio Romero. Nicolau
Sevcenko anteriormente já havia apontado para esse caminho ao afirmar que a
consagração de Os Sertões poderia ser vista como expressão da vitória do mérito e do
esforço pessoal em detrimento da lógica de funcionamento da sociedade patriarcal e de
corte de então, segundo a qual o privilégio se sobrepunha ao talento. O discurso de
recepção de Sílvio Romero a Euclides da Cunha na Academia Brasileira de Letras
sinaliza a forma como o crítico percebia o autor.
Regina Abreu mostra ainda que a consagração da obra vem acompanhada de
um processo de enaltecimento da figura do autor parecido com o de santificação, o que
poderia ser percebido pelas biografias, estudos, antologias escolares, reedições de obras
esgotadas, citações recorrentes ao livro, e também pelo ritual celebrativo que ocorre de
forma ininterrupta desde 1912 em São José do Rio Pardo, onde Euclides teria
transformado suas anotações e artigos no que conhecemos hoje como o livro Os sertões.
Esses seriam sinais evidentes desse culto ao escritor. Também sua morte romântica e
trágica, assassinado pelo amante da sua esposa num duelo, tendo sido posteriormente
seu filho Quidinho (Euclides da Cunha Filho) também assassinado pelo mesmo homem
ao defender a honra de seu pai, e outras histórias contadas a seu respeito por biógrafos,
amigos e admiradores sempre no sentido de mostrar a originalidade, a firmeza de caráter
e a honestidade do autor, colaboram para que se estabeleça a visão do autor-mártir,
figura de referência da cultura e do pensamento nacionais, muito embora haja
considerações errôneas em sua obra, como o próprio conceito de raça já superado pelos
estudos sociológicos, e que da forma como é trazida no livro, carregada nas tintas do
determinismo biológico, soa como preconceito já há algum tempo para nós.
32
O que queremos dizer com isso é que Os Sertões instiga leituras e pesquisas
desde o seu surgimento até hoje, sendo, por isso, uma obra amplamente estudada,
divulgada e considerada, embora não seja do gosto do público-leitor comum dada a sua
dificuldade de leitura, provocada não só pelo estilo difícil e inovador de Euclides, da sua
escrita encachoeirada, no falar de Araripe Júnior, como também pela distância temporal
que provoca certo desconforto diante mesmo do vocabulário mais prosaico da época,
mas em desuso hoje. Nosso trabalho é apresentar uma chave de leitura da obra que parte
da sua organização discursiva e do seu trabalho linguageiro, analisando-os em relação à
personagem sertaneja. Da mesma forma, procederemos posteriormente com a análise de
Vidas Secas, levando em consideração o trabalho literário e procurando destacar o
sertanejo em sua relação com a narração.
Em Os sertões, há um narrador, se é que podemos chamá-lo assim, dada a
discussão que decorre do fato de a obra ter ou não um caráter narrativo. Muito se
pondera sobre o hibridismo de gênero que nela há, pois é possível perceber a
coexistência dos três grandes gêneros discursivos no texto (A Terra uma descrição do
local; O Homem uma análise dissertativa sobre o indivíduo que habita aquelas plagas;
A Luta a narração propriamente dita da Guerra de Canudos), havendo em cada parte a
predominância de um deles. No entanto, há em todo caso uma voz que busca analisar o
habitante dessa região inóspita do país e contar sua trajetória no sertão até o momento
da guerra com um olhar um científico, bem de acordo com as teorias da época, embora,
por mais que se busque a imparcialidade científica, Euclides da Cunha não consiga
deixar de tomar posições. E essa é uma das qualidades do livro e também um dos mais
importantes fatores de ele resistir ao tempo e, cem anos depois, continuar sendo uma
análise/narração lúcida daquele momento histórico. Não só o sertanejo é
minuciosamente analisado, como também o lugar em que mora, o qual, segundo os
33
preceitos deterministas, influencia diretamente na maneira como esse indivíduo se porta
frente ao mundo.
Retomemos a Nota Preliminar do livro, da qual já mencionamos um trecho
anteriormente ao falarmos dos objetivos que Euclides da Cunha vislumbrava para seu
trabalho, o de ser uma denúncia, o “livro vingador” que resgataria do esquecimento o
episódio trágico da guerra. Ela é de suma importância na obra, pois além de trazer,
como já dissemos, o objetivo do autor segundo sua própria visão, traz também a
maneira como ele enxerga o sertanejo nesse momento. Para Euclides da Cunha,
positivista, formado nas esteiras do exército e tendo como professor Benjamim
Constant, o progresso era o futuro inevitável de toda nação, que adviria sob olhar
cauteloso da Ciência em desenvolvimento. Sendo assim, a situação de miséria e atraso
das populações sertanejas seria também provisória, estaria destinada a desaparecer, a
partir do momento que o progresso trazido pelas mãos do governo republicano
adentrasse o país. Euclides faz parte de uma geração de escritores que, posteriormente,
se desencantará com a República, tal qual ela foi feita em nosso país, assim como Lima
Barreto também se desencantou. Vejamos como o autor concebe, de antemão, o seu
objeto de análise:
“Tentamos esboçar, palidamente embora, ante o
olhar de futuros historiadores, os traços mais
expressivos das sub-raças sertanejas do Brasil. E
fazemo-lo porque sua instabilidade de complexos de
fatores múltiplos e diversamente combinados, aliada
às vicissitudes históricas e deplorável situação
mental em que jazem, as tornam talvez efêmeras,
destinadas a próximo desaparecimento ante as
exigências crescentes da civilização e a concorrência
material intensiva das correntes migratórias que
começam a invadir profundamente a nossa terra.
O jagunço destemeroso, o tabaréu ingênuo e o
caipira simplório serão em breve tipos relegados às
tradições evanescentes, ou extintas.” [grifo nosso]
(CUNHA, 2000, p.5)
34
Anteriormente a esse fragmento, Euclides afirma que não irá resumir ou relatar
a Campanha de Canudos, pois não faria sentido fazê-lo depois de 5 anos, sua obra não
seria atual. Por isso, com sua visão positivista e, a meu ver, também otimista, prefere
discorrer sobre as “sub-raças sertanejas”, visto que elas estão destinadas ao
desaparecimento, absorvidas que serão pela civilização e pelo progresso, destino
inevitável do mundo. O termo “sub-raças”, acompanhado pelo prefixo “sub-“,
considerado pejorativo em muitos casos atualmente, por querer evidenciar uma posição
de inferioridade, soa-nos como extremamente preconceituoso, embora tenhamos que
fazer uma análise desligada do conceito que hoje se tem de raça e etnologia. Na época,
eram termos comuns às ciências sociais, as quais partiam, sim, de um conceito
determinista, revisto no decorrer dos anos.
Acima destacamos em itálico o último parágrafo do fragmento em que nos
parece evidente a visão positiva do autor em relação à personagem coletivizada do seu
livro, pois, apesar de nele encontrarmos alguns personagens indivíduos, como as
diversas figuras históricas participantes da guerra e o próprio Antonio Conselheiro, o
sertanejo aparece como personagem coletiva, representante de um tipo, bem ao gosto da
corrente naturalista da época, que está destinado ao sumiço, porque ao encalço dele
chegará o progresso, que, trazendo-lhe benefícios, iria inserindo-o na civilização. É por
isso que o autor precisa marcar com a escrita de Os Sertões a experiência da Guerra de
Canudos, pois o Exército, força de defesa nacional e núcleo da inteligentsia republicana
brasileira, em vez de oferecer a essas populações isoladas do interior os meios de fazê-
las sair da miséria e do atraso, levando-as ao alcance das possibilidades trazidas pelo
Progresso e pela Ciência, estabeleceu com esses grupos uma das guerras mais
sangrentas e desnecessárias da nossa História, realizada para defender os interesses de
donos de terras e “coronéis” do sertão, que viam na proposta da comunidade de
35
Canudos não uma ameaça monarquista, mas uma ameaça econômica, já que muitos dos
braços trabalhadores estavam dirigindo-se ao povoado para viver segundo os preceitos
de Antônio Conselheiro.
O livro é dividido, como já mencionamos anteriormente, em três partes. A
primeira, A Terra, é a descrição detalhada da geografia e da geologia da localidade onde
se dá o evento. Para muitos, esse é o momento mais truncado do texto, pelo uso de
termos técnicos e científicos, caros a um engenheiro, amante das ciências exatas, mas
incomuns em textos literários. No entanto, a descrição que se pressupunha científica,
transforma-se num texto descritivo pleno de recursos de linguagem, figuras de retórica,
retratos apaixonados e comentários deliciosos desse pintor de cenas rústicas. O fato é
que, se o texto, pelo seu tratamento científico (ou pelo menos a tentativa, principalmente
nas duas primeiras partes, de fazê-lo assim parecer), não se enquadrasse naquilo que,
tradicionalmente, se convencionou chamar literatura, tampouco, pela beleza do trabalho
escrito, poderia ser considerado um tratado de Geografia ou Geologia, já que a
linguagem técnica desse tipo de texto não permite a liberdade poética dos literatos.
Em O Homem, segunda parte da obra, encontramos uma análise sociológica e
psicológica dos habitantes do sertão, incluindo aí o perfil do célebre Antônio
Conselheiro, figura central na formação do povoado de Canudos e líder espiritual das
vinte e cinco mil almas aproximadamente que se agruparam no lugar. Nesta parte,
podemos perceber a mesma tendência de inserir a obra no caminho das ciências, agora
ciências sociais e biológicas, mas também há a presença exuberante do texto, do ofício
de ourives, como diria Olavo Bilac, da preocupação linguageira, do discurso literário.
Na terceira parte, A Luta, onde nos sentimos mais à vontade para designar a
voz presente de narrador, temos o relato da história da Campanha de Canudos, com suas
dores e seus causos, os quais acabam por dar à narração do conflito um toque mítico,
36
de luta entre titãs, embora a instância narradora, que conduz nossa viagem, nunca nos
deixe esquecer da realidade do que está falando e da mácula provocada pelo sangue
inocente derramado.
Sem nos atermos demasiadamente à diversidade de gêneros discursivos trazida
na obra, visto esse não ser o tema do nosso trabalho, lembramos que chamaremos a voz
presente no texto de narrador, em quaisquer das partes a que fizermos referência.
2.1. O paraíso e a paisagem atormentada
Na primeira parte da obra, o narrador coloca-se como um observador, postura
cara ao narrador naturalista, portador de uma lupa, que, aos poucos, se aproxima do seu
objeto de análise, a saber, o sertanejo. Antes, porém, de se achegar a ele, faz-se
necessário passar pelo meio em que está inserido, já que, na visão determinista, aplicada
por Euclides da Cunha a esse acontecimento histórico preciso, o homem e suas ações
são determinados pelo lugar, pela raça e pelo momento em que vive, desaparecendo os
atos de vontade, considerando-se apenas como importante a cadeia lógica de
acontecimentos que circundam o sujeito. Dessa forma, para traçar o perfil da
personagem sertaneja e como daí se chegou à guerra, o narrador observa
minuciosamente sua região de origem.
Inicia-se o capítulo com uma descrição topográfica
2
do planalto central, em
que o observador nos parece em movimento, ao passo que o objeto observado encontra-
se imóvel. É instigante o processo de aproximação do narrador-observador, ele não
apenas não vai direto à personagem, como também não se lança diretamente ao sertão,
começa sua viagem, guiando-nos, ao modo de um passeio aéreo, como se
2
Marleide Paula Marcondes e Ferreira de Toledo faz um estudo interessante sobre os grandes gêneros
discursivos no livro O ato de redigir, no qual dedica um capítulo especial à descrição e aos modos como
ela se estabelece em relação ao sujeito que descreve, utilizando como corpus fragmentos de Os Sertões.
37
sobrevoássemos a região que vai do Rio Grande do Sul à Bahia. O planalto está
obviamente estático, mas é como se o narrador o contornasse para descrevê-lo.
“O planalto central do Brasil desce, nos litorais do
Sul, em escarpas inteiriças, altas e abruptas. Assoberba
os mares; e desata-se em chapadões nivelados pelos
visos das cordilheiras marítimas, distendidas do Rio
Grande a Minas. Mas ao derivar para as terras
setentrionais diminui gradualmente de altitude, ao
mesmo tempo que descamba para a costa oriental em
andares, ou repetidos socalcos, que o despem da
primitiva grandeza afastando-o consideravelmente para
o interior.
De sorte que quem o contorna seguindo para o
norte, observa notáveis mudanças de relevos...” [grifo
nosso] (CUNHA, 2000, p. 9)
Evidentemente o planalto central a que ele se refere não é o que hoje
conhecemos e costumamos grafar com iniciais maiúsculas por se tratar do centro
administrativo do poder (Brasília), trata-se do acidente geográfico. Sua descrição é
inteiramente sobre a geografia brasileira, e nem é necessário que façamos extenso
levantamento semântico para constatar o enfoque científico dado ao texto (“planalto
central”, “litorais”, “escarpas”, “chapadões”, “cordilheiras”, etc.). Chama-nos atenção,
contudo, o início do segundo parágrafo em que o narrador-observador dá-se a conhecer,
deixando-nos clara a sua posição de guia nessa viagem sertaneja. No fragmento acima,
podemos perceber que somos levados a contornar o planalto para vislumbrarmos sua
magnitude e suas características físicas.
Embora a linguagem utilizada aproxime-se da Ciência, como apontamos,
Euclides escreve um texto científico “literaturizado”, pois não abre mão da liberdade
poética disponibilizada à Literatura, sendo essa uma das tensões do texto euclidiano, o
estar entre Ciência e Arte, o mesclar texto técnico à linguagem trabalhada
estilisticamente, assim como entremear à análise do fato histórico, das suas causas e
conseqüências e da sua personagem sertaneja, os diversos gêneros discursivos
38
disponíveis. Na seqüência do fragmento destacado acima, ainda escrevendo sobre o
planalto central e seu desdobramento geográfico até chegar ao litoral, Euclides constrói
uma bonita descrição plena de recursos expressivos:
“...um aparelho litoral revolto, feito da envergadura
das serras, riçado de cumeadas e corroído de angras,
e escancelando-se em baías, e repartindo-se em
ilhas, e desagregando-se em recifes desnudos, à
maneira de escombros do conflito secular que ali se
trava entre os mares e a terra;” [grifo nosso] (Idem,
ibidem)
No trecho, podemos perceber o polissíndeto da conjunção aditiva “e”
reforçando a idéia de acréscimo de elementos naturais à paisagem, dando-nos a nítida
sensação de amplitude da terra descrita, visto parecer não findar e haver sempre mais
pedaço de chão a ser ultrapassado. A figura de linguagem empregada também acelera o
ritmo do texto, sugerindo movimentação rápida sobre essa mesma paisagem,
enfatizando a idéia de descrição topográfica e visão aérea da região, como abordamos
anteriormente. Além disso, a comparação singular feita entre a organização espacial dos
acidentes geográficos e os escombros de um conflito (nunca é demais lembrar que
Euclides foi testemunha ocular dos escombros do massacre de Canudos, talvez, por isso
a paisagem lhe suscite essa outra, inesquecível em sua lembrança), e a personificação
dos elementos naturais “terras” e “mares”, dão-nos a exata noção da força da natureza
que esse narrador-pintor quer nos mostrar. Em Euclides da Cunha, ela tem
personalidade própria, um misto de beleza, força, amplidão, dureza, crueldade e
generosidade. Trata-se mesmo de uma terra antagônica, concomitantemente paraíso e
paisagem atormentada. Não é à toa que ele nos pinta esse quadro, onde colocará depois
o sertanejo. Como acredita na influência decisiva e inescapável do meio, essa
personagem também terá o teor agreste impingido à terra, possuirá ele também
características semelhantes, segundo o narrador “O sertanejo é antes de tudo um forte”
39
(Id., p. 114), ele é inconstante como essa natureza: “Ela o talhou à sua imagem: bárbaro,
impetuoso, abrupto...” (Id., p. 120) . Mas nos acalmemos um pouco, não nos afastemos
muito, parafraseando o poeta Drummond. Ainda não chegou o momento de falarmos
dele, do sertanejo.
O trabalho apaixonado em defesa de suas crenças e de seu propósito de fazer
vingança, transformando em experiência o episódio de Canudos, fez de Euclides da
Cunha, muitas vezes, um indivíduo romântico, no sentido literário do escritor que
acredita na força da palavra para despertar consciências. É nesse sentido que podemos
perceber que, embora inserido em sua época e sem desafiar as doutrinas em voga, fontes
de onde inclusive bebia, traz o seu quê de romântico, sobretudo quando enaltece e
idealiza a natureza e quando esta interage com o homem, de forma que parecem ambos
espelho um do outro. Esse não é o tom da obra, mas o narrador não se furta à
idealização da natureza e da personagem, composta como um verdadeiro herói, muitas
vezes meio às avessas, mas um herói.
Vejamos se o fragmento que destacamos agora fica a dever algo a uma
descrição romântica: “A terra sobranceia o oceano dominante, do fastígio das escarpas;
e quem alcança, como quem vinga a rampa de um majestoso palco, justifica os exageros
descritivos (...) que fazem deste país região privilegiada, onde a natureza armou a sua
mais portentosa oficina.” (Id., p.10). Nele percebemos o destaque dado à terra em
detrimento do mar, é ela o sujeito da oração, dona da ação de “sobrancear”, que
significa estar por cima, em lugar superior ao mar dominante; a metáfora “majestoso
palco” faz da terra o espaço do teatro, no sentido de lugar onde os atores/personagens
atuarão. O fim do período parece-nos particularmente interessante, por ser um discurso
enaltecedor, do qual destacamos dois adjetivos importantes “privilegiada” e
“portentosa”, como denunciadores de uma visão idealizada e ufanista. Tais orações, fora
40
de contexto, poderiam servir até mesmo a discursos acríticos, idealizadores de uma
pátria sem problemas. Há de se lembrar, no entanto, que ainda não estamos no sertão,
mas a caminho dele, e o autor fará, a seguir, o contraste entre o litoral rico (privilegiado)
e portentoso e o sertão ressequido e agreste.
Eis que o viajante flerta com ambiente diferenciado e choca-se, pois a
diferença é gritante, fica para trás toda a fartura natural vislumbrada. É quando o
narrador-observador “estaca surpreendido” (Id., p.16) e vê o sertão. Nesse instante,
teremos delimitado o local da ação da personagem sertaneja, “terra ignota” (Id.,p.17),
evitada pelos grupos humanos que vinham do litoral da Bahia para o interior:
A entrada do sertão
Está sobre um socalco do maciço continental, ao
norte.
Demarca-o de uma banda, abrangendo dous
quadrantes, em semicírculo, o Rio de S. Francisco; e
de outra, encurvando também para o sudeste, numa
normal à direção primitiva, o curvo flexuoso do
Itapicuruaçu.
(...)
É que transpondo o Itapicuru, pelo lado Sul, as
mais avançadas turmas de povoadores estacaram em
vilarejos minúsculos Maçacará, Cumbe ou Bom
Conselho entre os quais o decaído Monte Santo
tem visos de cidade: transmontada a Itiúba, a
sudoeste, disseminaram-se pelos povoados que a
abeiram acompanhando insignificantes cursos de
água, ou pelas raras fazendas de gado, estremados
todos por uma tapera obscura Uauá; ao norte e a
leste pararam às margens do S. Francisco, entre
Capim Grosso e Santo Antônio da Glória.
Apenas naquele último rumo se avantajou uma
vila secular, Jeremoabo, balizando o máximo
esforço de penetração em tais lugares, evitados
sempre pelas vagas humanas, que vinham do litoral
baiano procurando o interior.
Uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem
deixar traços.
Nenhuma lá se fixou. (CUNHA, 1998, p.16-17)
41
Encontramos aí a delimitação do espaço em que futuramente observaremos a
ação junto ao narrador, trata-se de uma região acima do rio Itapicuru, acercado por
alguns povoados esquecidos: Maçacará, Cumbe, Bom Conselho, Monte Santo e Uauá.
A última cidade que mereceria ser assim chamada, por “ter visos de cidade” (Id., ibid.) é
Jeremoabo. Os pequenos povoados, perto dos quais surgirá Canudos, são abastecidos
pelo rio Vaza-Barris, um curso de água temporário que nasce em Uauá, percorre 450
quilômetros até desaguar no Oceano Atlântico, em Sergipe. Por ser um rio intermitente,
ele desaparece em alguns pontos durante os longos períodos de seca, tornando a
presença humana nessa localidade ainda mais difícil. Nesse trecho, além de situar as
cercanias onde ocorreu a Guerra de Canudos, pode-se perceber também o uso de
vocabulário que denuncia o quanto a região é inabitável, sugerindo-nos de certa forma
quanta dureza enfrentariam aqueles que se predispusessem a viver em Canudos e
adjacências:turmas de povoadores estacaram em vilarejos minúsculos”,
insignificantes cursos de água, ou pelas raras fazendas de gado”, “uma tapera obscura
Uauá”, balizando o máximo esforço de penetração em tais lugares, evitados sempre
pelas vagas humanas”, uma ou outra o cortou, rápida, fugindo, sem deixar traços./
Nenhuma lá se fixou.”
Se, segundo a teoria da seleção natural de Darwin, sobrevive apenas o mais
adaptado ao meio, para Euclides um dos motivos do fracasso do Exército brasileiro,
além de não oferecer o progresso conforme queria o lema defendido nas escolas
militares, foi o de subestimar a resistência do sertanejo e a sua adaptação àquele mundo
inóspito, mas tão conhecido dele. Para retirá-lo de Canudos, somente com uso da força
das armas de fogo, “da matadeira” (nome atribuído pelos canudenses ao canhão inglês
Withworth 32, usado durante a campanha anexo 2), pois, de outro modo, os soldados
42
saíam em desvantagem. A natureza dura e agreste era amiga do sertanejo moldado à sua
imagem e semelhança.
Como procuramos analisar até aqui, na trilha de outros estudiosos que o
fizeram antes de nós, Os Sertões não é apenas a descrição de uma terra de agruras, não é
apenas a análise sociológica de um tipo brasileiro, e também não é apenas a história
desventurada da Guerra de Canudos. Ele é tudo isso, e o sendo, vai além, é muito mais,
porque, como acontece na literatura de uma forma geral, o que se diz é menos
importante do que o como se diz. Nas tramas do texto de Euclides da Cunha, podemos
perceber o trabalho caprichoso do autor, sua criação, sua interferência, fazendo com que
sua obra ultrapassasse os limites do estilo de época em voga (o Naturalismo),
recuperasse características de escolas anteriores (idealização, composição do herói
idealizado - Romantismo) e antecipasse outras (nacionalismo crítico Modernismo).
No sertão baiano, tudo chama a atenção do nosso narrador-observador, o qual,
nessa primeira parte da obra, talvez pudesse ser chamado com mais propriedade de
observador-narrador. Aspectos que denunciam a dureza e a aridez do solo, a secura do
ar, o clima quente e seco e a escassez da vegetação são sempre postos em destaque para
que possamos compor com riqueza de detalhes o quadro que nos apresenta.
O clima, para ele, é excessivo, contando com apenas duas estações anuais: o
“verão queimoso” e o “inverno torrencial.” A região não é favorecida pelos índices
pluviométricos, fato cujas causas, desde o início do texto, quando descrevia ainda o
planalto central, até chegar às portas do sertão baiano, ele vem tentando elencar. Tais
causas estão ligadas principalmente ao relevo que lhe é anterior, composto por grandes
chapadas e serras, sendo a última a de Itaúba. As nuvens portadoras de chuvas esbarram
nessas serras e precipitam-se antes chegar ao sertão. Somente durante o inverno
conseguem ultrapassá-las. Mesmo assim parece ao narrador que essas primeiras
43
precipitações são ineficazes, dada a secura extrema da terra. Euclides, durante sua
estada na Bahia, muito anotou a respeito das peculiaridades que entendia como
relevantes, no entanto nem tudo ele testemunhou pessoalmente, muito do que traz na
sua obra é proveniente do que colhia em conversas com pessoas do lugar. Em relação às
chuvas, as quais ele não deve ter visto enquanto passou por Canudos e redondezas, a
seguinte remarca é interessante:
Segundo numerosas testemunhas as
primeiras bátegas despenhadas da altura não
atingem a terra. A meio do caminho se evaporam
entre as camadas referventes que sobem, e volvem,
repelidas, às nuvens, para outra vez condensando-se,
precipitarem-se de novo e novamente refluírem; até
tocarem o solo que a princípio não umedecem,
tornando ainda aos espaços com rapidez maior,
numa vaporização quase como se houvessem caído
sobre chapas incandescentes; para mais uma vez
descerem, numa permuta rápida e contínua, até que
se formem, afinal, os primeiros fios de água
derivando pelas pedras(...)” (Idem, p. 42) [grifo
nosso]
Trata-se de uma descrição diferenciada entre as outras, agora a voz do
observador não se manifesta como a de um guia que nos caminhos nos conduz, mas
como a de alguém que recebeu de outros a pintura dessa cena tão singular. Por se tratar
de uma imagem inconcebível, o observador precisa compará-la a algo do seu mundo
conhecido para entendê-la “como se houvessem caído sobre chapas incandescentes”.
Não raro é fazer-se a leitura do lugar como uma sucursal do inferno, tamanho é o calor,
o qual é evidenciado por palavras desse campo semântico, como “evaporam”,
“referventes”, “condensando-se”, “vaporização” e “incandescentes”.
Aliás, o calor no sertão é proverbial, uma sensação fortemente enfatizada pelo
narrador, e faz-se presente de modo constante nessa primeira parte do livro. O calor
abrasante do dia contrapõe-se à queda de temperatura repentina à noite, como num
44
clima desértico. Nesse sentido, encontramos diversas passagens que ressaltam essa
particularidade climática do sertão:
Os que o antecederam e sucederam, palmilharam,
ferretoados da canícula...” (Id., p. 33), “Desce a
noite, sem crepúsculo, de chofre um salto da treva
por cima de uma franja vermelha do poente e todo
este calor se perde numa irradiação intensíssima,
caindo a temperatura de súbito, numa queda única,
assombrosa...” (Id., p. 34), “O barômetro cai, como
nas proximidades das tormentas; e mal se respira no
bochorno inaturável em que toda a adustão golfada
pela soalheira se concentra numa hora única da
noite.” (Id., p. 35), “Por um contraste explicável,
este fato jamais sucede nos paroxismos estivais das
secas, em que prevalece a intercadência de dias
esbraseados e noites frigidíssimas, agravando todas
as angústias dos martirizados sertanejos.” (Id. Ibid.)
Todos os vocábulos sublinhados relacionam-se ao calor insuportável da região,
elemento fundamental, associado à escassez da água, para que o ser humano não se fixe
aí. Os adjetivos empregados, provavelmente escolhidos a dedo, dão-nos a medida da
impossibilidade de sobrevida no meio do deserto que o sertão representa, trata-se de
qualificações plenas de conteúdo semântico hiperbólico (“ferretoados”, “assombrosa”
adjetivo seguido de reticências que deixam a cargo do leitor imaginar o quão difícil é
viver ali , “inaturável”, “esbraseados”) ou utilizados no superlativo absoluto sintético
“intensíssima” em relação ao calor diurno e “frigidíssima” a respeito das noites, ambos
interessantes, porque embora não sejam adjetivos antônimos, acabam por opor-se pelo
sentido contextual, ao caracterizarem dia/noite, sensação térmica frio/calor. Ainda nesse
trecho acima destacado, há uma menção ao sertanejo, qualificado como “martirizado”,
lembrando sua condição rude e angustiada de vida, deixando-nos entrever a opinião do
narrador-observador sobre esse tipo humano.
A secura do lugar, causada pela escassez de chuvas, pelo calor e ausência de
ventos, sendo esta última um prelúdio de secas prolongadas, dão a sensação de “dias
45
causticantes” (Id., p.35), levando a umidade do ar a índices insuportáveis. Com relação
a isso, Euclides traz, no interior dessa primeira parte da obra, de teor
predominantemente descritivo, a narração de um caso ocorrido durante a Guerra de
Canudos, e, pelo que parece, testemunhado pelo narrador:
“Percorrendo certa vez, nos fins de setembro, as
cercanias de Canudos, fugindo à monotonia de um
canhoneiro frouxo de tiros espaçados e soturnos,
encontramos (...) anfiteatro irregular (...). O sol
poente desatava, longa, a sua sombra pelo chão e
protegido por ela braços largamente abertos, face
volvida para os céus um soldado descansava.” (Id.,
p. 35-36)
Histórias paralelas e curiosas contadas pelo narrador fazem parte da obra e
aparecem sempre ao longo dela, são casos testemunhados pelo observador, ou frutos de
conversas que viraram notas no caderninho de Euclides da Cunha. É possível perceber o
caráter narrativo do fragmento, pois temos aí as ações marcadas numa perspectiva de
passagem de tempo, não só por existir uma referência a um período específico do ano
(“fins de setembro”), mas também pela conjugação desta com os verbos no pretérito
perfeito (“encontramos”) e imperfeito tempo narrativo por excelência (“desatava”,
descansava”). Ao final do trecho destacado, o eufemismo “um soldado descansava”,
informando sutilmente que ele estava morto, quebra a situação narrativa inicial,
introduzindo o conflito dessa pequena história, a qual está, nesse momento, a serviço da
descrição, gênero discursivo predominante em A Terra.
Todo esse episódio é deliciosamente bem escrito e vale a pena que o
acompanhemos. Vejamos a seqüência do caso:
“Descansava... havia três meses.
Morrera no assalto de 18 de julho. A coronha
do Mannlicher estrondada, o cinturão e o boné
jogados a uma banda, e a farda em tiras, diziam que
sucumbira em luta corpo a corpo com adversário
possante. Caíra, certo, derreando-se à violenta
pancada que lhe sulcara a fronte, manchada de uma
46
escara preta. E ao enterrar-se, dias depois, os
mortos, não fora percebido. Não compartira, por
isto, a vala comum de menos de um côvado de
fundo em que eram jogados, formando pela última
vez juntos, os companheiros abatidos na batalha. O
destino que o removera do lar desprotegido fizera-
lhe afinal uma concessão: livrara-o da
promiscuidade lúgubre de um fosso repugnante; e
deixara-o ali, há três meses braços largamente
abertos, rosto voltado para os céus, para os sóis
ardentes, para os luares claros, para as estrelas
fulgurantes...
E estava intacto. Murchara apenas.
Mumificara conservando os traços fisionômicos, de
modo a incutir a ilusão exata de um lutador cansado,
retemperando-se em tranqüilo sono, à sombra
daquela árvore benfazeja. Nem um verme o mais
vulgar dos trágicos analistas da matéria lhe
maculara os tecidos. Volvia ao turbilhão da vida
sem decomposição repugnante, numa exaustão
imperceptível. Era um aparelho revelando de modo
absoluto, mas sugestivo, a secura extrema dos ares.”
(Id., p.36)
O eufemismo anunciado anteriormente concretiza-se agora, pela repetição do
termo “descansava” seguido de reticências sugestivas, provocando o choque na
seqüência, pois o soldado descansava “há três meses.” O fragmento, misto de narração e
descrição, pinta-nos uma cena que, a nosso ver, mescla também um estilo expressionista
e impressionista de colorir o mundo. Dizemos expressionista, porque o texto procura
construir a cena de forma lógica, acionando dados perceptíveis pelos sentidos para que o
leitor compreenda ( a visão “a coronha... estrondada, o cinturão e o boné” e o olfato, já
que era de se esperar que o cadáver exalasse mau cheiro, mas não é o que ocorre “nem
um verme lhe maculara os tecidos”), estabelecendo uma conexão lógica de causa e
efeito, pois o soldado morto, mas intacto, - e por isso dissemos que, nesse caso, a
narrativa curta está a serviço da descrição - é um efeito produzido pela baixa umidade
do ar no sertão baiano, tão baixa que impede até mesmo a decomposição dos seres
mortos. O subtítulo dessa parte é sinalizador dessa relação causa e efeito, chama-se
47
“Higrômetros singulares”, sendo higrômetro um instrumento utilizado para medir a
umidade atmosférica, o soldado morto acabava funcionando como um, pois denunciava
a secura da região, era ele o efeito de uma causa maior, que não decompunha os mortos,
mas perseguia os vivos. Concomitantemente, a descrição impressionista advém pelo uso
de orações curtas, coordenadas, pelo registro da impressão do narrador-observador a
respeito da situação apresentada, pelo emprego da linguagem bastante poética
entremeada ao discurso que deveria ser lógico e objetivo (“braços largamente abertos,
rosto voltado para os céus, para os sóis ardentes, para os luares claros, para as estrelas
fulgurantes...”), bem como pela presença de metáfora singular (“o verme o mais
vulgar dos trágicos analistas da matéria”).
Interessante notar também que, para quem não conhece a obra de Euclides, a
designação de livro vingador, denunciador de um crime, pode vir a pensar que o livro é
uma defesa incondicional da população sertaneja naquele momento de guerra, mas, para
além de se escolher um lado ao qual aliar-se, numa postura maniqueísta, como se tudo
fosse uma questão de disputa entre o povo (bom, lado Ariel) e o exército (mal,
impiedoso, lado Caliban), a obra é de um humanismo tocante. A humanidade e o
próximo importam ao narrador. É flagrante sua compaixão em relação ao soldado
esquecido no interior da Bahia, abandonado inclusive pelos vermes, seres não adaptados
à secura sertaneja. A postura do narrador-observador alia-se com aquela apresentada
pelos poetas condoreiros do Romantismo, ele se coloca como alguém que vê mais
longe, sendo, portanto, aquele capaz de revelar com pertinência os problemas sociais. O
pássaro chamado condor, símbolo dessa geração de poetas, voa alto e enxerga longe.
Então, talvez não seja à toa que a descrição empreendida por Euclides da Cunha parta
de uma perspectiva que nos pareça aérea, como viemos ressaltando até agora.
Evidentemente, essa postura recuperada na obra vem embasada numa nova conduta
48
literária, que procura alinhamento com as filosofias que lhe são contemporâneas e com a
idéia de Ciência e Progresso.
Ainda falando sobre a ausência de umidade atmosférica, apresenta-se um outro
caso similar ao do soldado mumificado, o do cavalo morto em batalha junto ao seu
dono, o alferes Wanderley. O “animal fantástico” teria morrido engastalhado à
vegetação, de forma que ficou de pé. Tal cena, vista meses depois, por causa da
mumificação do quadrúpede parece um quadro surrealista, pintado avant la lettre:
[o cavalo] “Ao resvalar, porém, estrebuchando
malferido, pela rampa íngreme, quedou, adiante, a
meia encosta, entalado entre fraguedos. Ficou quase
em pé, com as patas dianteiras firmes num ressalto
de pedra... E ali estacou feito um animal fantástico,
aprumado sobre a ladeira, num quase curvetear, no
último arremesso da carga paralisada, com todas as
aparências de vida, sobretudo quando, ao passarem
as rajadas ríspidas do nordeste, se lhe agitavam as
longas crinas ondulantes...” (Id., p.36-37)
Em continuidade à descrição da paragem sertaneja, o narrador propõe-se a
discutir um problema crônico que atinge a região: a seca. Além de todas as agruras por
ele apontadas, as quais afetam sobremaneira a vida no sertão, há ainda este, quando a
chuva tão esperada não vem e aí se dá o fenômeno. Ele se coloca a analisar
positivamente a situação, baseando-se numa perspectiva histórica da seca a partir do
século XVIII, isso significa que lançará mão da doutrina de Augusto Comte (o
Positivismo) para analisar os fatos. Para o Positivismo, só os fatos observados podem
gerar conhecimento real. Como vimos antes, o narrador coloca-se nessa posição de
observador, como num laboratório a descobrir as relações de causa e efeito entre os
objetos em estudo.
Ao se propor analisar o fenômeno da seca, o narrador-observador percebe que
ela acontece com uma regularidade histórica surpreendente no decorrer dos dois séculos
(XVIII e XIX). O que, sob a ótica de um cientista, abriria espaço para se buscar uma
49
solução, visto que o problema é passível de ser previsto, mas nenhuma atitude parece
ser tomada. Pode-se entender aí uma crítica que posteriormente vai ser estendida ao
incidente de Canudos: a Ciência permite a análise concreta dos fatos, possibilitando a
previsão de suas conseqüências nefastas, então por que nada é feito? Desde A Terra,
quando descreve esse ambiente, o observador objetiva mostrar que um lugar tão
inóspito, onde sequer os vermes fazem morada, só poderia gerar um tipo de indivíduo
que resistiria até o fim àquela empreitada mortífera. O governo, pela observação dos
“dados positivos”, atitude proveniente da doutrina que dava base à formação do seu
Exército, poderia ter presumido que a Campanha de Canudos, da maneira como foi
encarada e posta em prática, não daria bons frutos; no entanto, em vez de levar o
progresso ao sertão, considera o arraial de Canudos como um núcleo de frontal oposição
à República, sendo uma questão de honra a punição exemplar daqueles “revoltosos”.
Essa é a época em que, inclusive, acontece a hiper-valorização do conhecimento
científico, como se ele pudesse resolver todos os problemas. Mas, para Euclides, em
relação à seca algo poderia ter sido feito, pois:
“Observa-se, então, uma cadência rara
perturbada na marcha do flagelo, intercortado de
intervalos pouco díspares entre 9 e 12 anos, e
sucedendo-se de maneira a permitirem previsões
seguras sobre a sua irrupção.
Entretanto, apesar desta simplicidade extrema
nos resultados imediatos, o problema, que se pode
traduzir na fórmula aritmética mais simples,
permanece insolúvel.” (Id., p. 37)
Em efeito, esse tipo de análise, uma interferência opinativa do narrador
enquanto ele ainda deveria estar na posição de quem só observa, traduz a atualidade da
obra, que, embora apresentando conceitos superados e carregados de um preconceito
inerente às teorias filosóficas e científicas do século XIX, apresenta-se como uma
análise rigorosa de uma época. O problema da seca nordestina ainda permanece nos dias
50
de hoje. Ainda se discutem possíveis soluções, fala-se em desvio do São Francisco e
obras monumentais, mas ainda os sertanejos, que persistem em sua terra e não migraram
para construir Brasília ou São Paulo, continuam sobrevivendo nas asperezas do sertão.
O que nos leva a questionar sobre continuar sendo válida a atualidade de uma obra
literária produzida 106 anos atrás. Ela não é destaque apenas por seu trabalho
linguageiro, entrando para o cânone como um ícone da literatura brasileira por esse
motivo. Os sertões continua atual, inclusive, como trouxe em reportagem o periódico
mencionado na introdução deste trabalho, porque possui ligação profunda com a cultura
brasileira, denunciando problemas do nosso país que continuam pendentes e sem
solução. Sinal de que o episódio de Canudos ainda não se transformou em experiência
no sentido comum do termo, como sendo um erro com o qual se aprende, malgrado o
esforço de Euclides da Cunha de transformá-lo em experiência literária.
A seca, como uma tragédia anunciada, é prevista pelo próprio habitante
acostumado a viver aquela situação historicamente. E nesse sentido a Ciência é
fortemente ajudada pelo conhecimento popular, o qual o narrador valoriza, como
podemos perceber na seguinte citação, imediatamente na seqüência do levantamento
histórico do fenômeno: “Assim é que as secas aparecem sempre entre duas datas fixadas
há muito pela prática dos sertanejos, de 12 de dezembro a 19 de março.” [grifo nosso]
(Id., ibid.). No entanto, esse conhecimento, o narrador procura explicá-lo, com auxílio
das teorias científicas.
Ainda no quesito valorização do saber popular, é interessante o fato de
Euclides ter recolhido muitas informações pelos lugares por onde andou e com as
pessoas com quem conversou. A ponto de estudiosos da obra se questionarem a respeito
de diversos dados e histórias contidos no texto, pois Euclides não os presenciou, mas a
redação minuciosa dos detalhes denuncia grande conhecimento de causa, trabalho de
51
pesquisa, análise e imaginação do seu autor, daí a discussão que não levaremos adiante
a respeito do seu caráter ficcional e de documento histórico.
A vegetação, por ser fundamental para a manutenção da vida, também é
observada detalhadamente pelo narrador. Ela está ligada diretamente à composição da
paisagem que impressiona o viajante e à sobrevivência dos seres aí presentes, pois é a
fonte de alimentação e água de todos. A caatinga “exaustiva”, no dizer euclidiano, dá o
tom do sertão; pela falta de cor, de recursos, mas também pela sua predominância, ela
afoga, impedindo que se veja o “horizonte largo” e a “perspectiva das planuras francas”
(Id., p. 43), ela é um fator a mais na difícil adaptação do homem a esse meio, mas ela
também representa uma sobrevivente do sertão, é o tipo de planta que consegue ali
adaptar-se, possuindo “maior capacidade de resistência” (Id., ibid.). Nesse espaço
diferenciado, o mundo parece às avessas, e inclusive a vegetação tem seu ritmo de
desenvolvimento díspar do que comumente se vê:
“A luta pela vida, que nas florestas se traduz
como uma tendência irreprimível para a luz,
desatando-se os arbustos em cipós, elásticos,
distensos, fugindo ao afogado das sombras (...) ali, de
todo oposta, é mais obscura, é mais original, é mais
comovedora. O sol é o inimigo que é forçoso evitar,
iludir ou combater. (...) as plantas mais robustas
trazem no aspecto anormalíssimo, impressos, todos os
estigmas desta batalha surda.” ( Id., p. 44)
Três aspectos lingüísticos destacam-se também nesse fragmento e colaboram
para que a descrição estabelecida a princípio seja eficiente no conjunto dessa obra: a
personificação dos elementos naturais as plantas e o sol; como já dissemos, a natureza
sertaneja, na composição euclideana, tem personalidade própria, é altaneira, rude,
exatamente como o homem que aí adaptou; a adjetivação singular, de conteúdo
semântico posto em tensão: a luta pela vida sendo “oposta”, “obscura”, “original” e
“comovedora”, não nos dá uma idéia precisa e objetiva do assunto, mais uma vez as
52
impressões do narrador-observador predominam, e os adjetivos podem ser lidos como
uma marca da pobreza natural do sertão, ou no sentido contrário, como marca da sua
força, pois num universo às avessas, tudo pode ser lido de forma invertida, e o sertão
agreste, temido e desértico vai ser a força dos homens que nele sobrevivem; e o terceiro
aspecto lingüístico a ser ressaltado é o contínuo uso do superlativo absoluto, elevando à
máxima potência, ao exagero, o choque causado pela paisagem.
Nesse contexto, são apresentadas plantas como os canudos-de-pito, vegetal
que emprestou seu nome ao povoado, já que no entorno, para quem via a distância, eles
chamavam atenção. É interessante notar que o reduto de Antonio Conselheiro e seus
seguidores era chamado por seus habitantes de Belo Monte, Canudos era a denominação
dada pelo elemento exterior, pela soldadesca, mas foi esse nome que passou para a
História. A destituição do nome original do lugarejo retira-lhe também a conotação
utópica, fraternal e idealizada atribuída por seus moradores.
Também o juazeiro, uma espécie de símbolo de resistência à situação
climática, chama a atenção do observador, merecendo registro imediato, porque leva a
beleza ao entorno tão marcado pelo “depauperamento geral da vida” (Id., p. 47): [os
juazeiros] “agitam as ramagens virentes, alheios às estações, floridos sempre,
salpintando o deserto com as flores cor de ouro, álacres, esbatidas no pardo dos
restolhos à maneira de oásis verdejantes e festivos.” (Id., ibid.). A vegetação que se
sobressai por trazer benefício ao corpo e à alma do sertanejo é descrita, sempre com
detalhes. Por isso, ainda o observador fala dos mandacurus, citando amiúde os nomes
populares e os científicos, dos xiquexiques, dos quipás, das palmatórias-do-inferno...
No entanto, esse sertão, que, até agora, vem se mostrando como uma paisagem
atormentada aos olhos do viajante, ressurge como um paraíso, basta que chegue a
estação das chuvas. Assim planta, bicho e homem revivem, florescem e se mostram
53
naquilo que têm de melhor. O viajante, pasmo, não vê mais o deserto.” (Id., p. 51) O
sertão é paradoxal. E, em sua descrição científica, o narrador-observador não vê nada
que se lhe compare. Chegando mesmo a rever as categorias geográficas que Hegel
estabeleceu, pois para ele, nem o “pensador germânico” jamais havia visto nada como
aquele lugar, tão impressionante que justificaria os recursos lingüísticos que viemos
ressaltando (hipérboles, metáforas, prosopopéia, adjetivos singulares, superlativos), ao
mesmo tempo em que contribui para a construção do lugar mítico, do qual falamos a
princípio. Os sertões do Norte, como chama o narrador, são:
“Barbaramente estéreis; maravilhosamente
exuberantes...
Na plenitude das secas são positivamente o
deserto. Mas quando estas não se prolongam ao
ponto de originarem penosíssimos êxodos, o homem
luta como as árvores, com as reservas armazenadas
nos dias de abastança e, neste combate feroz,
anônimo, terrivelmente obscuro, afogado na solidão
das chapadas, a natureza não o abandona de todo.
Ampara-o muito além das horas de desesperança,
que acompanharam o esgotamento das últimas
cacimbas.
(...)
A natureza compraz-se em um jogo de
antíteses.” (Id., p. 56)
Novamente homem e natureza se equiparam e se influenciam mutuamente.
Mas, para além da questão do determinismo, segundo o qual o meio determina de forma
substancial o comportamento do indivíduo, o narrador-observador não coloca o
sertanejo como um títere a se mover manipulado pelas forças naturais. Ele também a
influencia. Nesse sentido, o texto traz uma discussão ecológica que ainda nos é
contemporânea e, na verdade, cada vez mais presente, por causa do visível esgotamento
dos recursos naturais que as sociedades hodiernas estão presenciando: o homem como
um agente responsável pela natureza que o cerca. Na obra, o antigo hábito, herdado dos
indígenas e adotado pelos colonizadores de se fazer queimadas antes do plantio é
54
questionado pelo narrador, sendo ele apresentado como um dos fatores para o
estabelecimento da secura climática e pela paisagem desértica. “Esquecemo-nos,
todavia, de um agente geológico notável o homem. Este, de fato, não raro reage
brutalmente sobre a terra e entre nós, nomeadamente, assumiu, em todo decorrer da
História, o papel de um terrível fazedor de desertos.” (Id., p. 59). Especialmente as
palavras “agente” e “fazedor” permitem-nos perceber a postura do narrador-observador
a respeito da personagem sertaneja, visto como atuante, para o mal ou para o bem.
Desde o Romantismo, a Literatura busca uma identificação maior com o
Brasil, no sentido de trazer para os textos realidades, elementos e linguagem que nos
identifiquem, primeiro como nação soberana, livre do jugo português, depois como
República constituída. A célebre noção de “identidade nacional” foi pensada por vários
escritores, mas talvez nunca plenamente alcançada porque não existe. Dentre essas
tentativas, o índio figurou por um tempo um elemento identificador de um sentimento
nativo, mas em pleno século XIX, já não se podia dizer que ele representasse uma
identidade brasileira. Também o sertanejo, fruto mestiço da terra, mistura das raças,
com seu quê de negro, português e índio, fez várias aparições no decorrer da história da
literatura brasileira, inclusive figurando como personagem de destaque em obras que
são referências no cânone nacional, sobretudo nesse período que estamos estudando, a
Primeira República, quando a tensão entre o meio urbano e o meio rural aguçaram-se.
No entanto, a nosso ver, faz-se necessário confrontar a maneira como essa personagem
é recriada pelos escritores, como ela se comporta quando se transforma no chamado ser
de papel, de Roland Barthes, pois, conforme vem estudando Nicolau Sevcenko, a
literatura, por seu descompromisso com a natureza real dos fatos e com a História, tem
grande possibilidade de nos falar mais sobre eles, sobre os indivíduos que construíram o
nosso passado.
55
Por isso percebemos como relevante a relação entre a construção da obra Os
Sertões, nas entrelinhas do seu trabalho discursivo, e a personagem que ele nos
apresenta: o sertanejo. Nessa obra, ele representa um tipo, ele é plural e coletivo, mas
sua construção permite-nos ver um sujeito atuante num dos maiores conflitos internos
vividos no Brasil. O rude, rústico, grosseiro sertanejo abalou a República, fez com que
sua presença fosse notada, não mais como o matuto preguiçoso a quem de repente se
pudesse culpar pelo Brasil não ser a Europa, mas como alguém que literalmente luta
com as armas que tem, que é “antes de tudo um forte”.
A Terra, primeira parte da obra, cansativa, instigante, descritiva, vem dar
suporte científico à tese de Euclides da Cunha de que a Guerra de Canudos foi uma
tragédia anunciada, bastava que se observassem os fatos e os antecedentes da questão. A
relação do homem com o sertão é ambígua, pois este é, ao mesmo tempo, paraíso e
paisagem atormentada, seu filho não poderia ser menos antitético, já que ambos se
influenciam e se ajudam, na mesma tentativa de sobrevivência. No dizer do nosso
narrador-observador-viajante, com todas as maiúsculas a que tem direito: “O martírio do
homem, ali, é o reflexo da tortura maior, mais ampla, abrangendo a economia geral da
Vida. / Nasce do martírio secular da Terra...” (Id., p. 66)
2.2. O Hércules-Quasímodo do agreste
Após descrever a terra, o narrador-observador, que agora talvez possa ser
chamado de narrador-analista, procura os antecedentes do sertanejo, do ponto de vista
etnográfico. O mesmo processo utilizado na parte anterior, quando ele começou do
maior (planalto central) para chegar ao menor e que o interessava (sertão nordestino
Canudos), ele repete em O Homem. Aqui, sem abrir mão do constante processo
descritivo e também do processo narrativo em diversos momentos, o narrador usa
56
ambos em função da análise do perfil humano que ocupa a terra. Nesta parte, seu
objetivo é falar do sertanejo, mas antes ele faz referência ao homo americanus e às
teorias que procuram esclarecer sua origem, principalmente porque ele deseja analisar o
indígena, uma das três raças formadoras do tipo brasileiro. A essa análise, juntam-se os
outros dois elementos, o negro e o português. Desde esse momento, os dados levantados
pelo narrador vão representar índices futuros de leitura, traços que ajudarão a compor o
perfil do mestiço. É interessante perceber que a respeito do indígena e do português, ele
não se detém muito, alegando inclusive “Sobre faltar-nos competência, nos
desviaríamos muito de um objetivo prefixado”; no entanto, a respeito do negro, mesmo
não se alongando demais, o narrador tece considerações que, a nosso ver, vão além do
caráter científico pretendido, ele afirma que “qualquer, porém, que tenha sido o ramo
africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo
afer, filho das paragens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em
quaisquer outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.” (CUNHA,
2000, p.70). Desde aí, o enfoque dado ao negro caminha no sentido de constatar que ele
também é um “forte”, capaz de resistir a meios naturais difíceis, referindo-se às
paisagens africanas secas, desérticas e sujeitas a variações climáticas intensas. Os
substantivos ferocidade e força aliam o negro ao sertanejo, tipo brasileiro sobre o qual
se deseja discutir, muito embora seja o narrador mais complacente com a mestiçagem
entre brancos e índios, do que quando a esses se junta o elemento negro.
Ao perceber o campo complexo ao qual se lança, o narrador chega à lúcida
conclusão de que “o brasileiro, tipo abstrato que se procura, mesmo no caso favorável
acima afirmado, só pode surgir de um entrelaçamento consideravelmente complexo”
(Id., p.72), pois além do fator meio físico, ao qual ele recorre para explicar os indivíduos
e suas reações, há multiplicidade de “cruzamentos” (palavra do próprio Euclides), tanto
57
porque as três raças primeiras geraram frutos, e estes, por sua vez, continuam a se
misturar; assim como outros tipos humanos também vieram para o Brasil, sobretudo
naquele momento em que o autor vivia, pois, terminada a escravidão, a necessidade de
mão-de-obra fez eclodir no Brasil uma vaga de imigração de diversos cantos do mundo,
dificultando a possibilidade de examinar o tipo brasileiro. O narrador mesmo afirma que
“não temos unidade de raça. Não a teremos, talvez, nunca.” (id., p.73).
Inclusive, a respeito desse assunto, ele põe-se a criticar posturas que defendem
maior ou menor influência de um determinado tipo humano, não admitindo com isso a
existência de um grupo, como quis o Romantismo, representante da pretendida unidade
nacional. Nesse sentido, seus questionamentos atingem também a literatura:
“Outros dão maiores largas aos devaneios. Ampliam
a influência do último [o aborígine]. E arquitetam
fantasias que caem no mais breve choque da crítica;
devaneios a que nem faltam a metrificação e as
rimas, porque invadem a ciência na vibração rítmica
dos versos de Gonçalves Dias.” (Id., ibid.)
Provavelmente referia-se aos diversos poemas do autor, nos quais a bravura,
altivez e superioridade do índio se destacam. É importante perceber aqui que o narrador
parece julgar a literatura em função da ciência, não a reconhecendo como meio
autônomo, descompromissada com qualquer realidade, dotada da diferença ficcional,
trata-se de “devaneios” e “fantasia”. Como cada momento histórico faz sua leitura de
mundo, nesse exato momento por que o narrador euclidiano passava, a Ciência
intrometia-se inclusive na literatura, vide sua própria obra. No entanto, não faltam a Os
sertões as vibrações rítmicas. Embora não estejamos no campo da poesia e não
tenhamos métrica e rima, pudemos constatar ao longo do nosso trabalho que o autor usa
recursos de linguagem impróprios a textos científicos. Um dos famosos momentos em
que isso acontece é o “estouro da boiada”, quando o narrador descreve essa cena da vida
58
sertaneja, empregando recursos sonoros que lembram o galope dos animais. Mais uma
vez, podemos perceber a tensão em que se situa o narrador, entre ciência e literatura.
Dentre os diversos conhecimentos científicos empregados pelo autor na busca
pela análise do povo brasileiro, o conhecimento histórico também está incluso. Nesse
sentido, é interessante perceber que o autor não considera o homem fruto exclusivo do
meio onde vive, mas também da sua História. É por isso que o narrador recorre a ela
para analisar a diferença entre o Norte e o Sul. Neste último, há a questão de o meio e o
clima serem mais propícios à vida, devido ao regime regular de chuvas, à abundância da
água e, em conseqüência, à natureza mais soberba, mas também o processo de ocupação
dessa região foi diferenciado. Segundo o narrador:
“Ao passo que no Sul se debuxavam novas
tendências, uma subdivisão maior na atividade,
maior vigor no povo mais heterogêneo, mais vivaz,
mais prático e aventureiro, um largo movimento
progressista em suma tudo isto contrastava com as
agitações, às vezes mais brilhantes mas sempre
menos fecundas, do Norte capitanias esparsas e
incoerentes, jungidas à mesma rotina, amorfas e
imóveis, em função estreita dos alvarás da corte
remota.” (Id., p.84)
Ou seja, enquanto no Sul, o homem atuava mais livre do jugo da corte,
empreendendo atividades diversas, o Norte jazia à espera de alvarás, ocupada por um
homem, segundo o narrador, com menos poder de atuação. Deste modo, o narrador fará
a distinção entre o jagunço o sertanejo e o gaúcho, tentando levar-nos ao
conhecimento do caráter do seu personagem-tipo por oposição ao outro, desde o
fragmento acima considerado “mais vivaz, mais prático e aventureiro.”
Para Euclides, seguidor das teorias raciais do sociólogo austríaco Ludwig
Gumplowicz (A luta das raças, 1883), de acordo com as quais a história é guiada pelo
conflito racial, do qual resulta o esmagamento inevitável dos fracos pelos fortes, a
miscigenação é algo intolerável, por criar descendentes mais fracos do que os seus
59
progenitores puros. É como se, na verdade, fosse aplicada aos homens a mesma lógica
dos cruzamentos entre os animais, esquecendo-se de que o “animal homem” não é uma
criatura apenas biológica, mas que possui história, cultura, vive em grupo, modifica a
natureza em benefício próprio, é um ser de inteligência e de linguagem, o que, mais à
frente, Euclides consegue enxergar, mas, como não podia deixar de ser pela influência
da sua própria época, seu livro mistura (também ele é mestiço) as teorias científicas em
voga, o registro histórico e a linguagem literária.
Nesse sentido, é que encontramos passagens de Os sertões de cunho racista
para nossos conceitos hodiernos, como a que se segue:
“A mistura de raças mui diversas é, na maioria
dos casos, prejudicial. (...) A mestiçagem extremada
é um retrocesso. O indo-europeu, o negro e o
brasílio-guarani ou o tapuia exprimem estádios
evolutivos que se fronteiam, e o cruzamento, sobre
obliterar as qualidades preeminentes do primeiro, é
um estimulante à revivescência dos atributos
primitivos dos últimos. De sorte que o mestiço
traço de união entre as raças, breve existência
individual em que se comprimem esforços seculares
é, quase sempre, um desequilibrado.” (Id., p. 109)
[grifo nosso]
O narrador-analista segue em seu objetivo de perscrutar a formação étnica da
sua personagem, lançando mão de vocabulário técnico ligado às ciências biológicas, o
qual julgaríamos mais apropriado se atribuído a bois, cavalos ou cães, não a seres
humanos, mas essa é uma visão nossa contemporânea, que já percebe com olhos críticos
o quão preconceituosas eram as teorias raciais do século XIX. Destacamos uma série de
palavras ou expressões no fragmento, procurando mostrar a visão negativa do narrador
em relação à mistura de tipos humanos. Como o sertanejo é, invariavelmente, um
mestiço, sua visão se estende a ele. De antemão, antes de narrar os fatos da guerra, o
herói euclidiano nos é mostrado como um “desequilibrado”, tomando-se sempre em
comparação a matriz branca, européia, tida como superior, dotada de “qualidades
60
preeminentes”, ao passo que os outros elementos formadores possuem “atributos
primitivos.” Não satisfeito com o que já foi dito o narrador prossegue sua análise,
afirmando:
“E o mestiço mulato, mameluco ou cafuz
menos que um intermediário, é um decaído, sem a
energia física dos ascendentes selvagens, sem a
altitude intelectual dos ancestrais superiores. (...)
... o mestiço é um intruso. Não lutou; não é uma
integração de esforços; é alguma cousa de dispersivo
e dissolvente; surge, de repente, sem caracteres
próprios, oscilando entre influxos opostos de
legados discordes. (...)
...As leis naturais pelo próprio jogo parecem
extinguir, a pouco e pouco, o produto anômalo que
as viola, afogando-o nas próprias fontes geradoras.
O mulato despreza então, irresistivelmente, o negro
e procura com uma tenacidade ansiosíssima
cruzamentos que apaguem na sua prole o estigma da
fronte escurecida; o mameluco faz-se o bandeirante
inexorável, precipitando-se, ferozmente, sobre as
cabildas aterradas...
Esta tendência é expressiva. Reata, de algum
modo, a série contínua da evolução, que a
mestiçagem partira. (...) É que são invioláveis as leis
do desenvolvimento das espécies (...)” (Id., p. 110-
111)
Com isso, o narrador parece acumular argumentos que procurem levar o leitor
a concordar com ele no quesito miscigenação como sinônimo de degeneração. Se
observarmos bem, apesar do progresso das mentalidades hoje, ainda é possível perceber
alguns dos argumentos apresentados no texto na boca de pessoas ignorantes,
preconceituosas e desprovidas de reflexão em pleno século XXI, tais como a idéia de
que negros preferem se casar com brancos para clarear a família, ou de que mulatos são
preguiçosos. A venda da figura da mulata brasileira, dançante, rebolativa e carnavalesca
ao exterior, e o interesse que ela desperta nos estrangeiros não deixam de ser indícios de
que há sim um preconceito historicamente arraigado em nossa sociedade, o qual acaba
por delimitar campos restritos para o desenvolvimento do negro, do mulato e de outros
61
grupos étnicos provenientes de um processo de miscigenação, como o esporte, futebol
principalmente, a música, de preferência a que envolva batuques, a dança,
preferencialmente as sensuais. Tal tipo de comportamento funciona como uma espécie
de anestesia moral nos espíritos nacionais, sobretudo daqueles que têm gerido a nação,
pois já que essas pessoas se contentam com isso, não é necessário oferecer-lhes mais.
Hoje, grupos como a CUFA (Central Única das Favelas) e o Afroreggae vêm lutar
contra esse tipo de ideologia, fazendo perceber que o negro, o mulato, o pobre e outros
grupos estigmatizados são intelectualmente capazes e merecem cursar universidade, ser
cidadãos de fato e de direito, acessar bens historicamente considerados de alta cultura,
como música erudita e arte abstrata.
Mas deixemos de lado a digressão à contemporaneidade a que o texto nos
lançou e voltemos às palavras de Euclides. O narrador repete exaustivamente na
tentativa de convencer o leitor de que a miscigenação é ruim e que, portanto, entrará em
colapso, pois a lei de sobrevivência das espécies garante que apenas os mais fortes
sobrevivem, e mestiços são indivíduos fracos. É, mas na contracorrente das ideologias
de sua época, o narrador euclidiano chama a parte que acabamos de apresentar de “Um
parêntese irritante”, como se, apesar de o conhecimento científico que o embasa lançar
mão de todos esses argumentos sobre a mistura dos povos e de o narrador saber de tudo
isso, houvesse mais a ser considerado a respeito do sertanejo. A escrita euclidiana, já
havia nos avisado Araripe Jr., é encachoeirada, sinuosa, cheia de idas e vinda,
progressos e retrocessos, uma espécie de barroco extemporâneo, um barroco com ar
científico, por isso tudo aquilo que o narrador levou linhas a construir é desconstruído
com um passe de mágica de uma conjunção adversativa. É assim que segue o narrador.
Após o parêntese irritante”, temos “Uma raça forte”, que começa com um
“entretanto”...
62
O leitor iniciante de Euclides confunde-se um pouco com sua técnica
discursivo-literária, mas após deslindá-la, começa a perceber que esse processo
construtivo acaba por elevar o texto e a personagem, que vai se mostrando aos poucos
no entremeio da dificuldade imposta pelo texto. Não dizemos com isso que o narrador
euclidiano despiu-se de suas crenças e transmudou-se numa figura moderna, desprovida
de preconceitos, mas sua análise consegue ir mais longe do que permitiria o
Determinismo. Para o narrador-analista, o mestiço sertanejo não é um desequilibrado,
histérico ou degenerado, como fazem supor as teorias raciais de Gumplowicz e Foville,
pois o isolamento no sertão, longe das evoluções da civilização ocidental, preservou-os
dos vícios e aberrações a que estariam destinados. Seja como for, para o narrador-
analista, o sertanejo “é um retrógrado; não é um degenerado. Por isto mesmo que as
vicissitudes históricas o libertaram, na fase delicadíssima da sua formação, das
exigências desproporcionadas de uma cultura de empréstimo, prepararam-no para a
conquistar um dia.” (Id., p.113). Em sua visão, a civilização e o progresso, embora
sendo um direito civil e um dever do nascente Estado Republicano (pelo menos do
Estado Republicano com o qual sonhava o romântico Euclides da Cunha, que, num ato
heróico muito citado nas diversas construções de seu perfil biográfico, protesta contra o
sistema de benefícios promovido pela Monarquia)
3
, são elementos que
contraditoriamente preservaram o sertanejo num estado primitivo, atrasado, retardatário,
mas íntegro. É nesse sentido que o narrador-analista firma mais um pacto de leitura com
o seu receptor, garantindo que reproduzirá “intactas, todas as impressões, verdadeiras ou
ilusórias, que tivemos quando, de repente, acompanhamos a celeridade de uma marcha
militar, demos de frente, numa volta do sertão, com aqueles desconhecidos singulares,
3
Em 1888, Euclides da Cunha tinha 22 anos e estudava engenharia na Escola Militar do Rio de Janeiro.
Durante revista das tropas pelo ministro da Guerra, Euclides sai de forma e protesta contra a política de
promoções do Exército. Sob pretexto de incapacidade física, é desligado da Escola Militar. (VENTURA,
2002, p. 83)
63
que ali estãoabandonados há três séculos.” (Id., p. 114) [grifo nosso]. Esse
fragmento é, para nós, bastante esclarecedor das intenções narrativas do texto.
Primeiramente, destacamos a palavra “impressões”, que nos remonta à questão já
apresentada a respeito do texto literário e do texto histórico. Talvez este último esteja
bastante voltado para o fato, o real, mesmo que saibamos que a realidade às vezes é uma
questão de perspectiva, do modo como se encara uma questão. O narrador euclidiano
não se atrela ao fato real Guerra de Canudos, mas às impressões que dela teve, além
disso as impressões vêm caracterizadas por dois adjetivos que se excluem: “verdadeiras
ou ilusórias”, mostrando-nos que muitos dos acontecimentos reproduzidos em Os
sertões podem estar de fato carregados pela tinta do trabalho ficcional do autor.
Analisemos a seguinte informação obtida por meio dos estudos detalhados de Roberto
Ventura, nas suas obras publicadas em 2002 e 2003, julgamo-la relevante, o pesquisador
mapeou bem as atividades de Euclides nos sertões baianos: o Conflito de Canudos
iniciou-se em outubro de 1896 e durou um ano, tendo sido necessárias quatro
expedições militares para exterminar o povoado. Euclides participou como repórter
apenas da 4ª expedição, acompanhando cerca de 6500 militares que seguiam para a
cidadela. Ele chegou a Salvador em 3 de agosto de 1897, onde ficou ainda por um mês,
as notícias vinham de Canudos por meio de linhas telegráficas instaladas entre Monte
Santo e a capital da Bahia. Em Salvador, Euclides
“comparecia todos os dias ao palácio do governo,
onde estava hospedado o marechal Bittencourt, e se
encontrou com o governador, Luís Viana. Assistiu
ao embarque das tropas e ao desembarque dos
feridos na Estação da Calçada, visitou as redações
de jornais e fez pesquisas sobre Canudos e o
Conselheiro. Em 19 de agosto, participou do
interrogatório de Agostinho, menino ‘jagunço’ de 14
anos, que lhe revelou a dimensão mística e religiosa
do conflito, ao afirmar que o objetivo dos
combatentes era ‘salvar a alma’.” (VENTURA,
2002, p. 35)
64
No dia 30 de agosto, Euclides deixa Salvador com destino a Canudos, chega a
6 de setembro em Monte Santo, onde ainda ficou por alguns dias, chegando à cidadela
apenas em 13 de setembro, a tempo de ver a derrocada do povoado. Antonio
Conselheiro faleceu no dia 22 de setembro por conta de disenteria, mas ele também
havia sido atingido por estilhaços do bombardeio na perna. Euclides da Cunha
“passeou pelo povoado no dia 29 de setembro e se
decepcionou com o aspecto primitivo das casas, que
se acumulavam num caótico labirinto de becos.
Numa caderneta, registrou expressões populares e
regionais, anotou as variações de pressão e
temperatura, fez desenhos de Canudos e das serras
da região e copiou diários dos combatentes, poemas
populares e profecias apocalípticas, depois citados
em Os sertões.” (Id., p. 36).
O nosso repórter retirou-se de Canudos a 3 de outubro por motivos de saúde,
não assistindo à trágica cena do assassinato dos últimos resistentes conselheiristas, nem
à tomada e ao incêndio de todo o povoado pelo militares.
Consideramos essa informação sobre a trajetória de Euclides da Cunha
relevante porque nos ajuda a entender um pouco melhor a obra. Antes de estar em
Canudos, Euclides já escrevia sobre a guerra em O Estado de São Paulo, jornal em que
trabalhava. Na época, ele publicou dois artigos intitulados “A nossa Vendéia”, bastante
carregados das noções que os “centros civilizados” tinham daquele acontecimento
passado no interior da Bahia, no Brasil profundo, ou seja, tratava-se de um grupo de
fanáticos religiosos guiados por um louco conhecido como Antônio Conselheiro,
colocando-se em frontal oposição ao sistema republicano recém estabelecido. Ao
intitular os artigos de “A nossa Vendéia”, percebemos a intenção do Euclides repórter
de comparar o povoado do Conselheiro à rebelião dos camponeses monarquistas
católicos ocorrida na região francesa da Vendéia entre 1793 e 1795, durante a
65
Revolução Francesa, estes camponeses eram contrários aos jacobinos e à maneira
radical como conduziam a República Francesa também recém implantada na época.
Quando acabou a guerra e o autor voltou da Bahia, ainda escreveu alguns
artigos sobre o acontecimento, mas silenciou acerca das atrocidades presenciadas ou a
respeito das quais foi informado
4
. Cinco anos mais tarde, vem à tona Os sertões, o livro
vingador, fruto de um processo de reflexão maior e também de uma indignação que o
obrigou a falar, a denunciar, como Euclides mesmo coloca na sua Nota Preliminar. Ora,
voltando para o trecho da obra em que o narrador afirma reproduzir suas impressões
sobre o incidente em Canudos, sejam elas verdadeiras ou ilusórias, podemos dizer que
os adjetivos usados no texto não são tão excludentes assim, pois a obra acaba incluindo
todas as impressões do narrador, mesmo que muitas delas sejam fantasiosas. Não houve
tempo para que o repórter conhecesse a fundo todos os detalhes que traz em Os sertões,
muito do que ali está é fruto da pesquisa e das anotações que Euclides fazia sobre tudo,
desde curiosidades lingüísticas como podemos remarcar na fala de Roberto Ventura a
noções de clima e geografia, histórias ouvidas e poesias populares; é possível mesmo
que muitos incidentes narrados tenham mais de ficcional do que de histórico, a começar
pelo perfil de Antonio Conselheiro apresentado por Euclides da Cunha; por meio de
suas pesquisas e sem conhecer o beato, o narrador apresenta-lhe, como é vezeiro em
fazer, desde sua árvore genealógica, mostrando o histórico da família Maciel no
nordeste, como homens trabalhadores e honestos, construindo-lhe a trajetória até a
Guerra de Canudos, quando se encontrava como mentor espiritual daquele aglomerado
de sertanejos que confiava em sua palavra. É o próprio Roberto Ventura quem começa a
resgatar a figura de Antonio Conselheiro num estudo, infelizmente incompleto devido
ao seu falecimento precoce em 2002, em que compara a personalidade do beato a do
4
As reportagens de Euclides da Cunha sobre a Guerra de Canudos encontram-se na obra Diários de uma
expedição, organizada por Walnice Nogueira Galvão.
66
próprio Euclides da Cunha. Para Roberto Ventura (2003), há diversas semelhanças
biográficas entre Euclides e Antonio Conselheiro: ambos eram órfãos, Euclides perdeu
sua mãe por causa da tuberculose aos três anos de idade; os dois viveram experiências
traumáticas com o adultério de suas esposas, sendo este o motivo da morte do escritor
em 1909, num duelo com o amante da sua mulher; eram construtores, Euclides,
engenheiro do Exército, construía pontes, Antonio Conselheiro construía igrejas pelos
caminhos por onde passava; os dois tiveram suas trajetórias marcadas pela República.
Segundo Mario César Carvalho, que escreve a introdução do livro de Ventura e é um
dos responsáveis pela organização dessa obra póstuma,
“a grande invenção de Roberto (...) é a idéia do
Conselheiro como uma projeção psicanalítica e uma
criação literária de Euclides (...) uma projeção dos
seus piores fantasmas. Conselheiro era alfabetizado,
uma raridade para os padrões do Nordeste brasileiro
do século XIX, e defensor de um cristianismo
primitivo. O personagem que aparece em Os sertões
como um fanático religioso desafiando a nova
ordem da República seria uma projeção de Euclides
ao ver os descaminhos do novo regime que apoiara
como um jacobino. O desmonte que Roberto
promove na imagem do Conselheiro implica, ao
mesmo tempo, o desmonte da imagem de Euclides.
O fanático que acabou se transformando em
personagem histórico é uma construção literária do
escritor. Sem a descrição fascinada de Euclides,
talvez o Conselheiro não passasse de mais um pálido
mártir.” (CARVALHO, Mario César, “Diálogo com
a memória de um computador”, p. 14, IN:
VENTURA, 2003)
Mas não vamos antecipar um assunto que daqui a pouco será analisado, pois a
figura de Antonio Conselheiro, pelo destaque que recebe no texto euclidiano, merecerá
um tratamento mais apurado, partindo da caracterização e análise que o narrador-
analista faz sobre ele. Por enquanto, voltemos à última citação de Euclides da Cunha,
pois ainda falta nos determos à frase final do fragmento, importante, pois corrobora a
chave de leitura ofertada por Euclides desde a Nota Preliminar: estamos diante do livro
67
vingador, que quer se redimir dos silêncios e omissões anteriores e denunciar não a
guerra, mas tudo aquilo que a engendrou, a começar pelo abandono do interior, pelo
esquecimento de uma parcela de brasileiros que viveram à margem de todo e qualquer
progresso até então conquistados: “demos de frente (...) com aqueles desconhecidos
singulares” (CUNHA, 2000, p. 114), como ressaltamos em análises precedentes, um
traço marcante da escrita euclidiana é a combinação de elementos lingüísticos incomuns
quando postos em conjunto, formando um mesmo sintagma, principalmente em se
tratando de substantivo e adjetivo(s), no caso acima a imagem “desconhecidos
singulares” (como saber se um desconhecido é singular, se não o conheço para saber
onde está sua individualidade, seu traço único que o torna singular?) só reforça a
distância existente entre a civilização, conceito constantemente relembrado pelo
narrador, e o sertão. Para completar, o adjetivo “abandonados”, posto em destaque,
mostra como a população sertaneja está sendo percebida pela narração. O fragmento é
fechado com a fina ironia euclidiana “há três séculos”, ou seja, durante toda a história
daquele povo que ali estava, nunca nada foi feito por eles, nem durante a Monarquia,
nem no momento coevo à obra, já República. A diferença é que Euclides era um
republicano e a esse ideal havia se consagrado, acreditou nele, e o via concretizar-se de
uma maneira diversa do que havia sonhado. Como já dissemos anteriormente, o autor
era dotado de um espírito romântico no que tange aos ideais sociais e políticos, e sua
reação diante do fiasco do seu sonho de igualdade é a mesma daqueles poetas e
escritores: denunciar para transformar, no caso denunciar a Guerra de Canudos,
transformando-a em experiência constantemente revivida e, assim, marcar a cultura
brasileira.
Na seqüência do fragmento analisado, há o célebre trecho em que o narrador
afirma ser o sertanejo, antes de tudo, um forte, freqüentemente lembrado pela
68
plasticidade e beleza da linguagem, pelo conteúdo de certa forma elogioso da
personagem sertaneja e também pelas imagens trazidas. O narrador, no seu modo de
tecer a trama textual a partir da construção/desconstrução/reconstrução das idéias e da
narração, opõe o sertanejo forte, sua personagem principal, coletiva, que representará o
sertanejo-tipo habitante de Canudos, ao mestiço degenerado do parêntese irritante.
Lembramos aqui que, sem discordar das teorias raciais trazidas, o narrador afirma ser o
sertanejo um mestiço diferenciado. Como está fazendo uma análise do Homem e do seu
entorno físico, histórico e social, faz-se necessário argumentar para defender o seu
ponto de vista aparentemente contrário até mesmo às teorias em voga, com as quais
comungava. Analisemos, então, o trecho mencionado, dando-nos a liberdade de citá-lo
na íntegra:
“O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem
o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos
do litoral.
A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de
vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica
impecável, o desempeno, a estrutura corretíssima
das organizações atléticas
É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-
Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos
fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase
gigante e sinuoso, aparenta a translação de membros
desarticulados. Agrava-o a postura normalmente
abatida, num manifestar de displicência que lhe dá
um caráter de humildade deprimente. A pé, quando
parado, recosta-se invariavelmente ao primeiro
umbral ou parede que encontra; a cavalo, se sofreia
o animal para trocar duas palavras com um
conhecido, cai logo sobre um dos estribos,
descansando sobre a espenda da sela. Caminhando,
mesmo a passo rápido, não traça trajetória retilínea e
firme. Avança celeremente, num bambolear
característico, de que parecem ser o traço
geométrico os meandros das trilhas sertanejas. E se
na marcha estaca pelo motivo mais vulgar, para
enrolar um cigarro, bater o isqueiro, ou travar
ligeiramente conversa com um amigo, cai logo cai
é o termo de cócoras, atravessando largo tempo
numa posição de equilíbrio instável, em que todo
69
seu corpo fica suspenso pelos dedos grandes dos
pés, sentado sobre os calcanhares, com uma
simplicidade a um tempo ridícula e adorável.
É o homem permanentemente fatigado.
Reflete a preguiça invencível, a atonia muscular
perene, em tudo: na palavra remorada, no gesto
contrafeito, no andar desaprumado, na cadência
langorosa das modinhas, na tendência constante à
imobilidade e à quietude.
Entretanto, toda esta aparência de cansaço ilude.
Nada é mais surpreendedor do que vê-lo
desaparecer de improviso. Naquela organização
combalida operam-se, em segundos, transmutações
completas. Basta o aparecimento de qualquer
incidente exigindo-lhe o desencadear das energias
adormecidas. O homem transfigura-se. Empertiga-
se, estadeando novos relevos, novas linhas na
estatura e no gesto; e a cabeça firma-se-lhe, alta,
sobre os ombros possantes, aclarada pelo olhar
desassombrado e forte; e corrigem-se-lhe, prestes,
numa descarga nervosa instantânea, todos os efeitos
do relaxamento habitual dos órgãos; e da figura
vulgar do tabaréu canhestro, reponta,
inesperadamente, o aspecto dominador de um titã
acobreado e potente, num desdobramento
surpreendente de força e agilidade extraordinárias.”
(Id., p. 114-115)
O mesmo processo textual anteriormente remarcado por ocasião do “parêntese
irritante” reaparece nesse fragmento, mas numa proporção menor, novamente o autor
traça a descrição do sertanejo para depois reconstruí-la, pois a princípio dir-se-ia que ele
é um preguiçoso, apático, aparentemente cansado, mas, ao entrar em ação, ele se
transforma no “titã acobreado e potente”. A oposição vem marcada pela conjunção
coordenativa adversativa “entretanto”, antecedendo a segunda parte do fragmento, a
qual destacará a força e agilidade do sertanejo. Interessante trabalho discursivo, pois o
trecho encabeçado pela conjunção adversativa fica mais vivo na cabeça do leitor,
porque ele é a oposição ao que se havia dito antes. Ao construir esse trecho dividindo-o
em duas partes coordenadas, o narrador nos apresenta dois lados da figura sertaneja a
preguiça e a ação em pé de igualdade, como se fossem dois lados da mesma moeda, a
70
coordenação das partes diz-nos não haver hierarquia entre elas, como aconteceria caso
houvesse em seu lugar uma subordinação. No entanto, a conjunção adversativa, por seu
peso semântico, marca de forma indelével, a segunda parte, fazendo-a ficar mais viva e
mais presente para o leitor. Ainda há que se observar nessa parte que o ritmo torna-se
mais leve, embelezando a escrita, sendo talvez por isso uma dos trechos mais atraentes
da obra. Temos agora parágrafos mais curtos que voltam a se estender aos poucos, com
orações, por serem coordenadas, mais leves e rápidas, como se torna o sertanejo após
sua transmutação. Tal postura discursiva é diferente se pensarmos nos parágrafos mais
longos encontrados anterior e posteriormente, dotados de uma escrita mais dura, mais
rústica devido a uma seleção vocabular que destaca a secura e aridez da Terra e do
Homem e à combinação de sons, sobretudo consonantais, que também ratificam isso,
não raro encontramos aliterações de consoantes oclusivas [p], [b], [t], [d], [k] e [g], em
que a corrente respiratória encontra, no momento de articulação do fonema, um
obstáculo total, interrompendo o som, dando a impressão de corte, sequidão e às vezes
mesmo de estampidos, como em “Tróia de taipa”, por exemplo; ou ainda de consoantes
constritivas, cujo obstáculo da corrente de ar é apenas parcial, não interceptando o som
totalmente, e fricativas, que produzem ruído comparável à fricção [f], [v], [s], [?], [ ].
Como sabemos, o que está molhado provoca o deslize e o escorregão, ao contrário o que
está seco facilita o atrito e a fricção, por exemplo, no seguinte trecho que fala um pouco
sobre o negro africano trazido para o Brasil: “Qualquer, porém, que tenha sido o ramo
africano para aqui transplantado trouxe, certo, os atributos preponderantes do homo afer,
filho das paisagens adustas e bárbaras, onde a seleção natural, mais que em quaisquer
outras, se faz pelo exercício intensivo da ferocidade e da força.” (Id., p.70). Destacamos
aqui o acúmulo de consoantes dos tipos que mencionamos, formando a aliteração que
procuramos explicar.
71
As referências clássicas são constantes, como destacamos em “titã acobreado e
potente”. A construção é bastante característica da escrita euclidiana, capaz de associar
uma imagem clássica “titã” a uma cor (“acobreado”), que seria no caso o moreno, muito
associada ao clima tropical, ao Nordeste do Brasil, de sol o ano todo, sobretudo no
sertão. Ou seja, na composição da figura sertaneja une a mitologia grega à cor morena
da pele e, cria, finalmente, o perfil literário do sertanejo, a um só tempo indolente,
“jeca-tatu” e herói. Metaforicamente, atribui a esse homem-tipo que nos apresenta os
mesmos traços de ousadia, coragem e força dos gigantes mitológicos que quiseram
escalar os céus para destronar Júpiter.
Outra metáfora de base clássica, anterior ao fragmento destacado, mas que
deixamos para analisar agora para podermos juntá-las, posto que ambas apresentem
similitudes, é a maneira como o narrador denomina o arraial de Canudos por algumas
vezes no texto: trata-se da “Tróia de taipa dos jagunços” (Id., p. 103). Outra vez a idéia
de força, resistência e audácia faz-se presente. Também a lendária Tróia foi conquistada
e passou por guerras marcantes em sua história. Novamente a junção de uma referência
clássica a uma abrasileirada (“taipa”) constrói uma imagem diferenciada, superior,
literária do agrupamento de Canudos.
Já que estamos nos elementos gregos que se misturam aos mais modernos, não
poderíamos deixar passar a construção “Hércules-Quasímodo”, mais do que uma
metáfora, criou-se uma representação de base antitética
5
, unindo-se duas personagens
incompatíveis para designar o mesmo ser: o sertanejo. Ele possui os traços de Hércules,
bravura, audácia, coragem, na “fealdade” do corcunda Quasímodo, criado por Victor
Hugo em Notre-Dame de Paris. Para além de uma interessante figura de linguagem
artisticamente elaborada pelo autor, o seu “Hércules-Quasímodo” dá-nos uma pista
5
A rigor, o professor Roberto Ventura (2002) chama essa criação de oxímoro, que seria um paradoxo
desmedido na junção de duas imagens de todo opostas e que não se combinariam.
72
sobre a própria formação de leitura de Euclides da Cunha. Já apontamos anteriormente
que percebemos na obra, por diversos momentos, características da estética romântica,
tais como a relação intrínseca entre a natureza agreste e o caráter do sertanejo; a ligação
do autor com a expressão literária do Brasil, buscando, inclusive, trazer para o texto as
curiosidades do falar brasileiro encontradas nas suas andanças pelo interior; a
idealização da personagem-tipo ainda que o autor lance mão das teorias raciais, as
quais, segundo ele próprio, não dão conta de classificar o mestiço do sertão; o desejo
condoreiro, se assim podemos chamá-lo, de fazer justiça pela palavra ao denunciar o
crime cometido contra aquela população pobre e “abandonada”, a quem jamais se
ofereceram os recursos da civilização. Além dos românticos franceses, como Victor
Hugo, Euclides era um leitor assumido de Castro Alves, por influência até mesmo de
seu próprio pai, que um dia chegou até a escrever uma poesia em homenagem ao poeta
baiano por ocasião de seu falecimento. Coincidentemente, ao ingressar na Academia
Brasileira de Letras, Euclides ocupou a cadeira cujo patrono era Castro Alves. Também
os clássicos gregos eram leituras preferenciais do autor, as quais o inspiravam a redigir.
Segundo Roberto Ventura (2003), Euclides usou modelos gregos para escrever Os
sertões:
“(...) nas degolas há um paralelo com a cena de As
bacantes, de Eurípides, em que as mênades
dilaceram o rei Penteu, e a idéia da cidade sitiada
que resiste ao cerco, ‘a Tróia de taipa dos jagunços’,
remete claramente a As troianas. Num texto de
1902, mesmo ano em que foi publicado Os sertões,
Euclides relaciona Canudos ao Tucídides de A
guerra do Peloponeso.” (CARVALHO, “Diálogo
com a memória de um computador”, p.14, In:
VENTURA, 2003)
Por toda essa influência clássica, não é à toa que percebemos a concepção da
história de Canudos como um drama trágico, fato que Ventura (2002) também analisou
brilhantemente:
73
[Euclides] “Recriou, em Os sertões, a guerra de
Canudos como tragédia, em que o não-herói, o
sertanejo, se transformou em herói numa
transfiguração quase milagrosa de apoteose. As
imagens teatrais convertem as batalhas em
espetáculo, em que o narrador retoma o papel do
coro da tragédia clássica, comentando os
acontecimentos, lamentando as vítimas e acusando
os vencedores. A linguagem dramática, freqüente no
livro, se articula ao discurso militar, em que são
correntes termos como ‘teatro de operações’ e
‘teatro da luta’.
As inúmeras expressões ligadas ao drama
anfiteatro, cenário, palco, tragédia, atores, platéia,
espectadores permitem a Euclides desenvolver
uma idéia central em sua escrita: a inversão de
papéis.” (VENTURA, 2002, p. 65)
A inversão de papéis à que faz referência o estudioso é a troca de lugar entre o
bárbaro e o civilizado. O sertanejo, de quem se poderia esperar teoricamente as piores
atrocidades, já que, segundo as teorias científicas em voga, sua mestiçagem o colocaria
numa posição de degenerado, é quem age com superioridade muitas vezes, já o Exército
que, opostamente, deveria levar a civilização ao anterior e defender todos os
concidadãos brasileiros igualmente, assassina com requintes de crueldade até mesmo
aqueles que haviam se entregado, ateando fogo a tudo o que sobrou do arraial.
Se pudermos estender um pouco mais a associação com a tragédia, diríamos
que o homem Euclides da Cunha também se transformou numa personagem (ou
personalidade) trágica. Sua morte, carregada de simbologia e silêncios insolúveis, num
acontecimento conhecido como “A tragédia da Piedade”, trouxe-lhe, também a ele, a
aura de herói ou mártir trágico.
No fragmento trazido para análise, os adjetivos, em cuja seleção o autor é um
verdadeiro mestre, não são suficientes para sustentar a argumentação, por isso, a fim de
provar a especificidade do homem sertanejo que lhe serve como personagem, o
narrador, conjuntamente ao já conhecido processo de adjetivação constante, fino e
74
rebuscado, lança mão de ações marcadas por verbos que o caracterizam tanto quanto as
qualidades que lhe são atribuídas. Elas estão presentes nas duas partes do fragmento,
numa construção paralela, contrapondo sua aparência fatigada à sua capacidade de agir
quando instado a isso. Por um lado, o sertanejo recosta-se sempre ao primeiro lugar que
vê acessível, umbral ou parede, cai sobre o cavalo, descansando, caminha não traçando
trajetória reta e firme (as trilhas do sertão são adequadas ao seu caminhar, cheias de
meandros novamente a natureza e o seu herói se equiparam), por qualquer motivo que
necessite parar sempre cai de cócoras, mostrando-se perenemente exausto. Por outro
lado, o sertanejo transforma-se diante das necessidades da vida e elas não são poucas
na terra agreste que habita , tal mudança é tão substancial que ele vai da indolência à
agilidade mitológica num átimo: desaparece de improviso, desencadeia energias
adormecidas, transfigura-se, empertiga-se. É a oposição entre a figura do tabaréu
canhestro e a do titã acobreado e potente. A seqüência desse fragmento é o narrar das
ações cotidianas no sertão, as quais nos mostram quão elevado seria o caráter do homem
que nele habita, mais do que se poderia supor a princípio.
Fiel à idéia de que o conhecimento do leitor advirá pelas oposições tecidas na
trama narrativa, o narrador, para burilar nossa percepção, compara o vaqueiro do Norte
ao gaúcho. Este é belo, portentoso, veste trajes que lembram festa, com suas cores
contrastantes, exibindo, no seu entender, que é “filho dos plainos sem fins, afeito às
correrias fáceis nos pampas e adaptado a uma natureza carinhosa que o encanta, tem,
certo, feição mais cavalheirosa e atraente.” (CUNHA, 2000, p. 117). Já o sertanejo,
também talhado pela natureza que está ao seu entorno, não possui nem aparência, nem
disposição semelhantes, tão favorecedoras. O gaúcho não empreende uma luta pela vida
à maneira do que se passa no sertão, ele “não conhece os horrores da seca e os combates
cruentos com a terra árida e exsicada. Não o entristecem as cenas periódicas da
75
devastação e da miséria, o quadro assombrador da absoluta pobreza do solo calcinado,
exaurido pela adustão dos sóis bravios do equador.” (Id., ibid.). O objetivo final da
comparação, sempre que ela acontece, é montar um panorama no qual terminem por
ressaltadas as qualidades do sertanejo que lhe transformaram naquele indivíduo bravio,
corajoso, resistente até a última gota de sangue ao ataque de milhares de homens do
Exército no cerco a Canudos. Como disse o narrador euclidiano, numa das passagens
mais tocantes da obra,
“Canudos não se rendeu. Exemplo único em
toda a História, resistiu até ao esgotamento
completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão
integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer,
quando caíram seus últimos defensores, que todos
morreram. Eram quatro apenas: um velho, dous
homens feitos e uma criança, na frente dos quais
rugiam raivosamente cinco mil soldados.” (Id., p.
575)
A animalização dos soldados do Exército em “rugiam raivosamente” não é à
toa, pois, como vimos anteriormente pautados nos estudos de Roberto Ventura, o
narrador estabelece um jogo de inversão dos papéis, no qual as Forças Armadas, ao
invés de se colocarem ao lado da “Ordem e do Progresso”, para utilizar a expressão tão
cara ao Positivismo da época, espalha a barbárie no sertão.
Portanto, no decorrer de toda a obra, a construção do perfil da personagem
sertaneja dá-se no sentido de provar a tese principal do autor expressada desde o início
do seu trabalho, segundo a qual a Guerra de Canudos, da maneira como foi encarada
pelo governo brasileiro, não poderia terminar de outro modo; no entanto, se os fatos e os
índices fossem observados e analisados pelo viés científico, positivo, talvez algo
pudesse ter sido feito em benefícios daqueles compatriotas “retrógrados”.
O sertanejo em Euclides da Cunha é chamado também de vaqueiro ou
jagunço, ele não faz diferença entre esses termos. Hoje, o dicionário Aurélio estabelece-
76
as, definindo “jagunço” como sinônimo de capanga, pistoleiro ou guarda-costas de
“coronéis” do sertão nordestino. Em seu sentido histórico é que “jagunço” seria o nome
dado aos seguidores de Antonio Conselheiro na Guerra de Canudos. Nessa época,
embora o fenômeno do banditismo já existisse e Euclides afirme que muitos dos fiéis
arrebatados por Conselheiro fossem provenientes desses círculos, ele não era tão
freqüente e organizado como posteriormente acontecerá, fazendo da jagunçagem uma
espécie de profissão, sina ou caminho a seguir. Sobre esse tipo de banditismo, a obra de
Guimarães Rosa tem mais a falar do que a de Euclides da Cunha, muito embora os
sertões geográficos sejam outros.
Mas o autor também reconhece o caráter violento atribuído ao jagunço que, a
seu ver, não se apresenta como diferente do sertanejo comum. Nesse sentido, o autor
procura analisar o comportamento desse homem quando posto em situação de disputa,
tendo de fazer uso da violência para alcançar seus fins ou fazer sua justiça. Para melhor
entendermos, o narrador lança mão do já conhecido recurso discursivo do conhecimento
por oposição comparativa. Como, na sua visão, a antítese perfeita do “vaqueiro do
Norte” é o gaúcho, novamente ele recorre a essa personagem para efeito de comparação,
mostrando como ambos comportam-se em momentos de violência extrema. O gaúcho é
visto sempre como o “peleador valente”, “inimitável numa carga guerreira” (Id., p.
120), sua imagem é sempre colocada como a de alguém nobre, superior, puro, o que
justifica o emprego vocabular para caracterizá-lo: o barulho que produz em cima do
cavalo pelos pampas é de “clarins vibrantes”, seu grito é “triunfal”, sua “espada” produz
“cintilações” e ele luta com uma “despreocupação soberana pela vida”. Já o sertanejo,
seu oposto, traz a marca doo herói, daquele que precisa lidar com as perdas e os
saldos negativos da vida, transformando-os em sua arma. Para ele não há espadas, mas
facas, lazarinas ou trabucos, e sua vida, por lhe ser uma conquista árdua, é preciosa,
77
merecendo, portanto, que ele lute por ela até o fim. Vejamos como o narrador define o
guerreiro do sertão em comparação ao gaúcho:
“O jagunço é menos teatralmente heróico; é
mais tenaz; é mais resistente; é mais perigoso; é
mais forte; é mais duro.
Raro assume essa feição romanesca e gloriosa.
Procura o adversário com o firme propósito de o
destruir, seja como for.
Está afeiçoado aos prélios obscuros e longos,
sem expansões entusiásticas. A sua vida é uma
conquista arduamente feita, em faina diuturna.
Guarda-a como capital precioso. Não esperdiça a
mais ligeira contração muscular, a mais leve
vibração nervosa sem a certeza do resultado. Calcula
friamente o pugilato. Ao riscar da faca não dá golpe
em falso. Ao apontar a lazarina longa ou o trabuco
pesado, dorme na pontaria...
Se ineficaz o arremesso fulminante, o contrário
enterreirado não baqueia, o gaúcho, vencido ou
pulseado, é fragílimo nas aperturas de uma situação
inferior ou indecisa.
O jagunço, não. Recua. Mas no recuar é mais
temeroso ainda. É um negacear demoníaco. O
adversário tem, daquela hora em diante, visando-o
pelo cano da espingarda, um ódio inextinguível,
oculto no sombreado das tocaias...” (Id., p.120-121)
[grifo nosso]
A expressão destacada na primeira oração do fragmento, uma construção
comparativa de inferioridade mostra, em consonância com Roberto Ventura, que a
imagem dramática é uma recorrência em Os sertões, confirmando a visão teatral que o
narrador tem da guerra e das personagens apresentadas. No entanto, se o sertanejo é o
não-herói, ou é o menos-herói, se assim podemos dizer, apresenta outras superioridades
provenientes da sua própria condição, como tenacidade, resistência, periculosidade,
força e dureza. Além disso, ele possui o jogo de cintura insuportável aos altivos, o qual
consiste na capacidade de recuar e recomeçar, espreitando e tocaiando se necessário. A
todas essas características, poderíamos chamar de adaptação, ela é a sua superioridade,
78
que consiste na sua competência de tirar vantagens das dificuldades, da fraqueza,
mobilizando a seu favor o que seria perda.
Como construção de linguagem, nesse fragmento, gostaríamos de chamar
atenção, finalmente, para a personificação do substantivo “ódio”, o qual deixa de
designar o sentimento, passando a referir-se ao próprio homem. Ele, ao recuar numa
batalha, não nutre essa paixão, mas passa a ser o ódio personificado. A imagem é forte,
mas talvez explique muitas das atitudes advindas posteriormente durante a guerra.
Quanto ao termo “vaqueiro”, ele parece também pertinente a Euclides, posto
que, em sua visão, “todo sertanejo é vaqueiro”. (Id, p. 121). Segundo o narrador
euclidiano, “à parte a agricultura rudimentar das plantações da vazante pela beira dos
rios, para a aquisição de cereais de primeira necessidade, a criação de gado é, ali, a sorte
de trabalho menos impropriada ao homem e à terra” (Id., ibid). Trazer a personagem
designada pela sua lida ou profissão é de suma importância nessa altura do texto, pois,
como seu trabalho é analisar o homem, saber como este lida cotidianamente com a sua
subsistência evidencia muito do seu caráter. O primeiro traço que desperta a atenção do
narrador, sendo, portanto, digno de nota, é a retidão de princípios e a honestidade do
sertanejo, que, sem precisar de patrão presente ou fiscal, cumpre sua obrigação, “dando
a César o que é de César”, como ensina o preceito bíblico, sem tirar para si o que não é
seu, mesmo vivendo com dificuldades. O narrador euclidiano explica-nos essa “servidão
inconsciente” da seguinte forma:
“A primeira cousa que fazem é aprender o abc e,
afinal, toda a exigência da arte em que são eméritos:
conhecer os ferros das suas fazendas e os das
circunvizinhas. (...) Ferrado o boi, está garantido.
Pode romper tranqueiras e tresmalhar-se. Leva,
indelével, a indicação que o reporá na solta
primitiva. Porque o vaqueiro, não se contentando
com ter de cor os ferros de sua fazenda, aprende os
das demais. Chega, às vezes, por extraordinário
esforço da memória a conhecer, uma por uma, não
79
só as reses de que cuida, como as dos vizinhos,
incluindo-lhes a genealogia e hábitos característicos,
e os nomes, e as idades, etc. Deste modo, quando
surge no seu logrador um animal alheio, cuja marca
conhece, o restitui de pronto. No caso contrário,
conserva o intruso, tratando-o como aos demais.
Mas não o leva à feira anual, nem o aplica em
trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não lhe
pertence.
Se é vaca e dá cria, ferra a esta com o mesmo
sinal desconhecido, que reproduz com perfeição
admirável; e assim pratica com toda a descendência
daquela. De quatro em quatro bezerros, porém,
separa um para si. É a sua paga. Estabelece com o
patrão desconhecido o mesmo convênio que tem
com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e
sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém
escreveu ou sugeriu.
(...)
Parece fantasia este fato, vulgar, entretanto, nos
sertões.
Indicamo-lo como traço encantador da probidade
dos matutos.” (Id., p. 122-123)
Tal passagem é especialmente importante, pois dá mais um passo no sentido
de construir o perfil literário da personagem sertaneja, sua retidão de conduta é digna de
um herói idealizado, por isso o autor lança mão de um diálogo com o leitor, para não
permitir-lhe pensar na impossibilidade desse acontecimento (“Parece fantasia este
fato”), ao que ele confirma como algo comum nos sertões.
Além de honesto, o narrador, ainda no intuito de montar o perfil completo da
personagem-tipo, acrescenta outra característica moral relevante na seqüência do
fragmento apresentado: o sertanejo é solidário, ajudando-se mutuamente na luta diária
na busca pela sobrevivência, principalmente no que tange à lida do vaqueiro, pois o
trabalho é dificultoso devido ao hábito da criação extensiva do gado na região.
Parafraseando Guimarães Rosa, o sertão é lugar que carece de cerca. Assim, na
vaquejada, empreitada consistindo na reunião de todas as cabeças de bois encontradas
para discriminá-las, enviando-as para suas respectivas fazendas, os sertanejos são
80
“solidários todos, auxiliam-se incondicionalmente em todas as conjunturas.” (Id., p.
124). O narrador, no trabalho árduo a que se entrega de montar o perfil da personagem,
constrói o texto não deixando brechas para dúvidas ou titubeações quanto ao caráter
descrito, são significativas as palavras que emprega na última frase destacada (“todos”,
incondicionalmente”, “todas”), dois pronomes indefinidos de valor semântico de
inclusão e um advérbio de certeza, os quais ajudam a criar a imagem da personagem
coletiva, ou seja, aquela que, sozinha, mostra quem são todos os outros de sua mesma
classe, um verdadeiro tipo.
Ainda relacionada à sua profissão de vaqueiro, está um outro evento vulgar
que exige a solidariedade dos sertanejos: é o estouro da boiada. Trata-se do disparar
conjunto de grande bando de reses, fazendo enorme barulho, levantando muita poeira e
sendo até mesmo perigoso, pois os animais arrastam o que encontram pelo caminho.
Esse estouro dá-se sempre que um boi se assusta e acaba contagiando os demais,
disparando todos conjuntamente. Para tranqüilizá-los, faz-se necessária a união das
forças dos vaqueiros. Essa passagem também é bastante conhecida, porque Euclides
transforma um fato corriqueiro na vida sertaneja num relato de bastante beleza textual,
rico em figuras de som e imagens metafóricas. Vejamos:
“De súbito, porém, ondula um frêmito sulcando,
num estremeção repentino, aqueles centenares de
dorsos luzidios. Há uma parada instantânea.
Entrebatem-se, enredam-se, traçam-se e alteiam-se
fisgando vivamente o espaço, e inclinam-se, e
embaralham-se milhares de chifres. Vibra uma
trepidação no solo; e a boiada estoura...
(...)
E lá se vão: não há mais contê-los ou alcançá-
los. Acamam-se as caatingas, árvores dobradas,
partidas, estalando em lascas e gravetos; desbordam
de repente as baixadas num marulho de chifres;
estrepitam, britando e esfarelando as pedras,
torrentes de cascos pelos tombadores; rola
surdamente pelos tabuleiros ruído soturno e longo
de trovão longínquo...” (Id., p. 128)
81
O fragmento é todo descritivo e, para construí-lo, faz-se uso das aliterações
secas num processo semelhante ao que já apontamos anteriormente, há muitas
consoantes oclusivas, associadas ao emprego do /R/, aparecendo este também em
encontros consonantais “tr”, “br”, “dr”, “fr”, “gr”, fazendo alusão ao som das patas dos
animais no solo. A essa cena, a personagem sertaneja é introduzida de forma soberba:
“E sobre este tumulto, arrodeando-o, ou
arremessando-se impetuoso na esteira de destroços,
que deixa após si aquela avalanche viva, largado
numa disparada estupenda sobre barrancas, e valos,
e cerros, e galhadas enristado o ferrão, rédeas
soltas, soltos os estribos, estirado sobre o lombilho,
preso às crinas do cavalo o vaqueiro!” (Id., p.128)
[grifo nosso]
A descrição sugere movimento pelo uso seqüencial de verbos em suas formas
nominais (gerúndio, sobretudo, e particípio), antes mesmo de apresentar o sujeito dessas
ações, teatralmente colocado ao final do parágrafo, cercado por sinais de pontuação que
o destacam e valorizam. O movimento mostra, na prática, o sertanejo ágil no seu lidar
cotidiano quando uma necessidade o tira da apatia. Destacamos também no fragmento a
imagem usada para representar a boiada (“avalanche viva”), a qual, além de nos dar
uma proporção gigantesca do evento, relaciona-o a algo humanamente impossível de
controlar por ser uma força natural em manifestação, trabalho de titã. E o sertanejo, por
ser, no dizer do narrador, um titã acobreado, atira-se a essa tarefa, embora não consiga
aplacar os animais, na seqüência a narração nos mostra que estes estancam mais pelo
cansaço do que pela força dos homens que, obstinadamente, lançam-se ao seu encalço.
O intuito dessa segunda parte de Os sertões, a qual estamos analisando, é,
como, já mostramos, montar o perfil da personagem sertaneja em todas as suas
minúcias, a fim de que, quando estivermos no palco da luta, conheçamos bem o
principal ator daquela tragédia e possamos entender as razões de tudo ter acontecido da
forma como aconteceu. Procuramos analisar a maneira como o narrador apresenta o
82
sertanejo, sua aparência, seu caráter, seus traços morais, seu modo de encarar as pelejas
nas quais se mete e sua profissão. O narrador não pára aí, seu desejo é revelá-lo por
inteiro, assim ele segue analisando, ainda que rapidamente, as tradições do sertão, as
danças, os desafios poéticos dos cantadores em dia de festa e a preparação para o
advento da seca, que pressente e adivinha. Um aspecto particularmente relevante no que
concerne à montagem do perfil sertanejo é a religião, devido ao teor dos acontecimentos
que advirão em A Luta. Para Euclides da Cunha, como o jagunço, sua religião é mestiça,
é assim que intitula a sub-parte em que se propõe analisá-la, recorrendo à força da
história da formação étnica do povo brasileiro e ao isolamento da população do interior,
responsável, a seu ver, pela manutenção de uma religiosidade primitiva herdada dos
índios e negros como argumentos para justificar a existência do messianismo de
Canudos. Sua preocupação é explicar esse fato histórico de forma positiva, utilizando
dados científicos para tanto.
No entender do narrador, as manifestações mais atávicas da religiosidade dos
três povos formadores uniram-se para compor o que vê no sertão: “Ali estão francos, o
antropismo do selvagem, o animismo do africano e, o que é mais, o próprio aspecto
emocional da raça superior, na época do descobrimento e da colonização.” (Id., p. 138).
Como vê o interior e sua gente como abandonados pela força civilizatória, o sentimento
religioso que vê despontar remonta a um Cristianismo numa fase anterior, no qual a
espera por messias iluminados e salvadores era uma tônica. O aparecimento de diversos
evangelizadores sertanejos comprovaria essa hipótese euclidiana. Inclusive, em sua
visão, que já podemos perceber no fragmento destacado neste parágrafo, o interior do
Brasil mantém a mentalidade moral e religiosa dos colonizadores vindos no século XVI,
herdeiros de uma espiritualidade medieval aterrorizada, esperançosos de que um
messias viesse salvá-los, no caso a figura que representou esses anseios foi a da
83
mitificação do rei perdido em Alcácer-Quibir, D. Sebastião. O narrador vê traços do
sebastianismo nos grupos fanatizados surgidos nos sertões, o que, mais uma vez, daria
suporte à sua argumentação a respeito do caráter retrógrado e conservador das
populações habitantes dessas paragens. Observemos, então, mais uma passagem do
texto euclidiano selecionada por nós a fim de ilustrar as relações que procuramos fazer
até agora:
“Considerando as agitações religiosas do sertão
e os evangelizadores e messias singulares, que,
intermitentemente, o atravessam, ascetas
mortificados de flagícios, encalçados sempre pelos
sequazes numerosos, que fanatizam, que arrastam,
que dominam, que endoudecem espontaneamente
recordamos a fase mais crítica da alma portuguesa, a
partir do século XVI, quando, depois de haver por
momentos centralizado a História, o mais
interessante dos povos caiu, de súbito, em
decomposição rápida, mal disfarçada pela corte
oriental de D. Manuel.
O povoamento do Brasil fez-se, intenso, com D.
João III, precisamente no fastígio de completo
desequilíbrio moral, quando ‘todos os terrores da
Idade Média tinham cristalizado no catolicismo
peninsular’.
Uma grande herança de abusões extravagantes,
extinta da orla marítima pelo influxo modificador de
outras crenças e de outras raças, no sertão ficou
intacta. Trouxeram-na as gentes impressionáveis,
que afluíram para a nossa terra, depois de desfeito
no Oriente o sonho miraculoso da Índia. (...) da
mesma gente que após Alcácer-Quibir, (...)
procurava, ante a ruína iminente, como salvação
única, a fórmula das esperanças messiânicas.
Esta justaposição histórica calca-se sobre três
séculos. Mas é exata, completa, sem sobras. Imóvel
o tempo sobre a rústica sociedade sertaneja,
despeada do movimento geral da evolução humana,
ela respira ainda na mesma atmosfera moral dos
iluminados que encalçavam, doudos, o Miguelinho
ou o Bandarra. Nem lhe falta, para completar o
símile, o misticismo político do sebastianismo.
Extinto em Portugal, ele persiste todo, hoje, de
modo singularmente impressionador, nos sertões do
Norte.” (Id., p. 140)
84
A montagem do quadro em que se insere sua personagem é de suma
importância no contexto da obra, pois, ao escrever com o objetivo principal de
denunciar o crime cometido durante a Guerra de Canudos, o narrador coloca-se, de
forma bastante humanista, ao lado dos sertanejos, sua intenção é redimi-los de qualquer
culpa, que porventura lhe possa ser atribuída. Por isso, toda a análise do Homem
caminha no sentido de comprovar a retidão de princípios, a agilidade quando necessária,
a força, a coragem, mas também a ingenuidade e a credulidade retrógrada do povo.
Exatamente desse último traço de caráter é que o narrador busca o fio condutor para
chegar a como e por que surgiu uma comunidade semelhante ao arraial de Canudos e
quais razões levaram-na a se transformar num dos maiores anátemas da História do
Brasil.
Conforme vimos, o narrador compõe uma personagem-tipo, representante de
todo o grupo no qual se insere. Sua composição, feita de forma literária e bastante
amorosa, privilegia aspectos que justificarão comportamentos depois durante a guerra.
Como esse homem, no fundo um bom sujeito, transformou-se no combatente feroz da
cidadela defendida até o fim? A fim de buscar essa explicação, entra em cena uma
personagem individual que, segundo o narrador, por seu caráter destemperado, faz toda
a diferença em meio à massa sertaneja dos lugares por onde passa. Trata-se de Antonio
Conselheiro, a quem o narrador dará destaque daí para frente. Em sua visão, a
personalidade perturbada do beato endoidecido unida à credulidade mística do povo do
sertão, cujo perfil já nos é conhecido, gerou aquele agrupamento de fiéis no interior da
Bahia.
Assim é que a segunda parte da obra, O Homem, pode ser subdividida em duas
para efeito de análise. Na primeira, que temos estudado até agora, encontramos o perfil
detalhado da personagem sertaneja, vista como um tipo, coletivizada, representante de
85
todos os que lhe são semelhantes. Já a segunda, analisa Antonio Conselheiro como uma
personagem trágica, uma mentalidade conturbada, o líder espiritual daquele grupo cuja
religiosidade manipulou, mesmo sem ter consciência disso. À descoberta desse homem
lançar-nos-emos a partir deste momento, procurando mostrar, à maneira do que fizemos
com a personagem sertaneja, como a narração constrói o seu perfil, cujo trabalho de
feitura é tão bem urdido que gerou a dúvida de um estudioso do porte de Roberto
Ventura, fazendo-o dedicar dez anos de seu trabalho
6
em busca da solução de um
problema encontrado por ele na recepção do livro: até onde vai a realidade histórica de
Antonio Conselheiro e até que ponto ele não é uma criação literária de Euclides da
Cunha?
2.3. O perfil trágico de Antônio Conselheiro
Apesar de até agora o autor ter construído o sertanejo como um tipo, como
uma personagem coletiva, ele estabelece, a partir da construção do perfil de Antônio
Conselheiro, um contraste com havia feito antes, bem a seu modo de ir e vir nas veredas
do texto, passando a trabalhar individualmente este homem, mostrando aspectos
específicos de sua personalidade que fizeram dele um líder religioso. Para Euclides,
“É difícil traçar no fenômeno a linha divisória
entre as tendências pessoais e as tendências
coletivas: a vida resumida do homem é um capítulo
instantâneo da vida de sua sociedade...
Acompanhar a primeira é seguir paralelamente e
com mais rapidez a segunda; acompanhá-las juntas é
6
Infelizmente, Roberto Ventura faleceu em agosto de 2002, por conta de um acidente de automóvel na
Via Dutra, ao sair da 90ª Semana Euclidiana em São José do Rio Pardo, cidade considerada a Meca do
Euclidianismo e que reúne todos os anos vários estudiosos da obra do autor. O professor Roberto não teve
tempo de ver publicado o fruto dos seus estudos, os quais apresentavam as hipóteses mais audaciosas de
leitura dos últimos tempos a respeito de Os sertões. Com a sua morte precoce, dois amigos, Mario César
Carvalho e José Carlos Barreto de Santana, por considerarem o trabalho de Roberto Ventura importante
como fortuna crítica para a futura recepção da obra, fizeram publicar o que já estava pronto no
computador do estudioso, no livro Retrato interrompido da vida de Euclides da Cunha, onde
encontramos as linhas de leitura em que estava trabalhando.
86
observar a mais completa mutualidade de influxos.”
(Id., p. 148)
Sob essa justificativa de ler-se nos traços individuais de um homem os de sua
época e sociedade, Euclides da Cunha inaugura a construção do perfil do beato, este
possui muitas das características atribuídas à personagem sertaneja, mas, para além do
atraso e retrocesso visto anteriormente nos cidadãos do interior, nele são apontados
traços de degeneração e loucura, que de certa forma justificariam as sandices apontadas
também nas atitudes dos jagunços canudenses. Para o narrador, o Conselheiro era um
“doente grave, só lhe pode ser aplicado o conceito da paranóia, de Tanzi e Riva. Em seu
desvio ideativo vibrou sempre, a bem dizer exclusiva, a nota étnica. Foi um documento
raro de atavismo.” (Id., ibid.). E é esta linha da loucura que será a tônica do seu perfil.
Como é de seu costume, associa a descrição do homem aos estudos científicos,
especialmente nesse caso aos de psicologia como já demonstra a referência aos
psiquiatras italianos Tanzi e Riva, defensores da idéia de que a paranóia tem a ver com
heranças étnicas negativas, e a que faremos a seguir, na qual traz Maudsley, médico
inglês, estudioso dos limites que separam a loucura da sanidade. É importante perceber
como, desde o início, a hybris de Antônio Conselheiro é marcada pela insensatez, e a
concepção de sua personalidade privilegia o lado obscuro e insano de alguém que seria
capaz de gerar uma neurose coletiva, como era visto o movimento religioso de Canudos
pelas teorias científicas deterministas da época.
Assim o narrador chegará à conclusão de que poderia definir o beato como um
“gnóstico bronco” ou “um grande homem pelo avesso”. Em sua explicação mais precisa
e concreta, Conselheiro era
“(...) um caso notável de degenerescência
intelectual, mas não o isolou incompreendido,
desequilibrado, retrógrado, rebelde no meio em
que agiu.
87
Ao contrário, este fortaleceu-o. Era o profeta, o
emissário das alturas, transfigurado por ilapso
estupendo, mas adstrito a todas as contingências
humanas, passível do sofrimento e da morte, e tendo
uma função exclusiva: apontar aos pecadores o
caminho da salvação.
(...)
A sua frágil consciência oscilava em torno dessa
posição média, expressa pela linha ideal que
Maudsley lamenta não poder traçar entre o bom
senso e a insânia.
Parou aí indefinidamente, nas fronteiras
oscilantes da loucura, nessa zona mental onde se
confundem facínoras e heróis, reformadores
brilhantes e aleijões tacanhos, e se acotovelam
gênios e degenerados.” (Id., p. 150)
Sem nunca esquecer o Determinismo e a inescapável influência do meio, o
narrador configura a personagem como um louco, degenerado, que, diferentemente dos
demais sertanejos, não conseguiu livrar-se desta condição, mas, pelo contrário, o
próprio meio foi agente indispensável para atribuir à sua insanidade traços de
messianismo místico, transformando-o numa figura ambígua e tensa, para os
“retrógrados” homens do interior, um profeta, uma espécie de santo; para o narrador,
apoiado em sua crença científica, um alucinado, um neurótico.
É exatamente aí, nesse caráter ambíguo criado como um impasse pela
narração, que o professor Roberto Ventura considera necessário uma revisão, pois, para
além do fato e do homem historicamente situáveis, há uma personagem criada de forma
trágica e que entrou para a memória coletiva da Guerra de Canudos. Para Ventura, é
Euclides da Cunha em sua obra mais célebre quem eterniza o beato quando o retira do
perfil-padrão criado para as populações dos sertões brasileiro e o transforma num dos
elementos mais fortes para a constituição dos acontecimentos posteriores.
Nesse sentido, como analisaremos agora, a construção da personagem Antonio
Conselheiro far-se-á no sentido de dar embasamento, por meio do seu histórico familiar
88
e de vida e também pelas influências étnicas e do meio, à definição desse homem como
um degenerado. Esse processo assemelhou-se ao da concepção dos mitos, mártires,
ídolos e santos. E foi numa espécie de mito que se transformou o Conselheiro com o
surgimento de Os sertões, sobretudo pela influência da obra na cultura brasileira, como
mostrou a reportagem da revista Veja
7
, contendo a opinião de intelectuais considerados
no país.
O narrador principia o perfil do Conselheiro a partir de sua genealogia
familiar, destacando o prosaísmo de seus antecedentes em meio aos outros sertanejos já
apresentados na obra como uma personagem-tipo: “a sua biografia compendia e resume
a existência da sociedade sertaneja” (Id., p. 151). Euclides da Cunha pesquisou,
enquanto esteve na Bahia à espera por aproximar-se do arraial de Canudos, sobre a vida
do beato, citando outras pessoas que poderiam ser referência para sua análise. Três
pessoas embasaram seu conhecimento a respeito de Antônio Vicente Mendes Maciel (o
Conselheiro): primeiramente o coronel e advogado João Brígido dos Santos, um amigo
de infância e juventude do beato, tendo também nascido e vivido por longa data em
Quixeramobim, foi seu colega de escola; Manuel Ximenes, jesuíta cearense, autor de
suas Memórias,; e coronel Manoel Benício Fontanelle, um correspondente do Jornal do
Commércio, do Rio de Janeiro, que cobriu também a Guerra de Canudos como
testemunha.
8
Com base em João Brígido, a quem chama na obra de “o narrador
consciencioso”, mostrando ter tido acesso ao livro em que o coronel conta a história das
famílias rivais Araújo e Maciel (donde descende Conselheiro) no Ceará, o nosso
7
É possível acessar a reportagem no site da revista www.veja.com.br, no acervo. Infelizmente não
conseguimos uma cópia para anexo, pois todas as edições anteriores ao ano de 1994 estão fotocopiadas e
dispostas num arquivo diferenciado, que permite a consulta, mas não a cópia.
8
João Brígido dos Santos é autor das obras Ceará: homens e fatos, Araújos e Maciéis, e Antônio
Conselheiro. Já Manoel Benício Fontanelle escreveu O rei dos jagunços: crônica histórica e de costumes
sertanejos sobre os acontecimentos de Canudos.
89
narrador-analista procura mostrar a normalidade, para os padrões sertanejos, em que
nasce e vive a personagem então em foco: “ ‘uma família numerosa de homens válidos,
ágeis, inteligentes e bravos, vivendo de vaqueirice e pequena criação’” (Id., ibid.). O
narrador, ao fazer as afirmações sobre os fatos reais da vida do Conselheiro, sempre o
faz apoiado nas palavras de uma das referências apontadas acima, garantindo, assim,
mais fidedignidade ao seu narrar e à sua tese. Entretanto, como é comum em se tratando
do nosso autor, tudo tem seu outro lado, e a narração sobre os feitos da família Maciel
ganha os contornos típicos da imagética de Os sertões, não faltando nem mesmo a
apologia aos clássicos.
A disputa entre as duas famílias começou por conta de um roubo não
comprovado atribuído aos Maciéis, tidos por Antônio Brígido como homens honestos e
de “‘reputação invejável’”, na propriedade dos Araújos, família abastada no Ceará. Daí
começa um embate, do qual resulta a morte de filhos de ambas as partes. Nessa
confusão, destaca-se a figura heróica de Miguel Carlos, tio-avô de Antonio Conselheiro,
a quem coube, por algum tempo, defender a honra da família Maciel, não lhe faltando
atos de bravura e ousadia no relato de sua curta história:
“Manietado e além disto com as pernas
amarradas por baixo da barriga do cavalo que
montava, a sua fuga é inexplicável. (...) Ora, os
Araújos tinham deixado fugir o seu pior adversário.
Perseguiram-no. (...) O foragido, porém, emérito
batedor de matas, seguido na fuga por uma irmã,
iludiu por algum tempo a escolta perseguidora (...),
ocultou-se, exausto, numa choupana abandonada,
coberta de ramos de oiticica.
Ali chegaram, em breve, rastreando-o, os
perseguidores. (...) Houve então uma refrega
desigual e tremenda. O temerário sertanejo, embora
estropiado e doente de um pé que luxara, afrontou-se
com a horda assaltante, estendendo logo em terra a
um certo Teotônio, desordeiro façanhudo, que se
avantajava aos demais. Este caiu transversalmente à
soleira da porta, impedindo-a que se fechasse. A
irmã de Miguel Carlos, quando procurava arrastá-lo
90
dali, caiu atravessada por uma bala. Alvejara-a o
próprio Pedro Veras [representante da família da
família Araújo], que pagou logo a façanha, levando
a queima-roupa uma carga de chumbo. (...)
Os bandidos não ousaram investi-lo; mas foram
de cobardia feroz. Atearam fogo à cobertura de
folhas.
(...)
Mal podendo respirar no abrigo em chamas,
Miguel Carlos resolve abandoná-lo. Derrama toda
a água de um pote na direção do fundo da
choupana, apagando momentaneamente as brasas
e, saltando por sobre o cadáver da irmã, arroja-se,
de clavina sobraçada e parnaíba em punho, contra
o círculo assaltante. Rompe-o e afunda na
caatinga...” (Id., p. 154) [grifo nosso]
A descrição do acontecido com o tio-avô de Conselheiro é digna de
filme, e a linguagem cinematográfica, cheia de ação, pode ser depreendida pelo uso
constante de verbos de movimento. Ação fica ainda mais próxima do leitor e plena de
“realidade” no último parágrafo grifado por nós, nele o narrador troca o pretérito
perfeito, até então utilizado, pelo presente do indicativo, com valor de presente
histórico, o que, semanticamente, aproxima-nos da temporalidade textual. Fizemos
questão de trazer o fragmento em que mostrava o ascendente da personagem em foco,
porque sua atividade na disputa entre as famílias fala mais dele do que se simplesmente
o caracterizássemos. Relacionando isso à montagem da persona trágica do Conselheiro,
podemos dizer que todo herói deve possuir uma origem nobre, que o dignifique, daí a
importância da narrativa genealógica da família Maciel.
Findos os acontecimentos que trouxemos anteriormente, Miguel Carlos
une-se a uma outra irmã sua de nome Helena, considerada a “Nêmesis da família”. A
designação não é originalmente de Euclides da Cunha, fazendo este questão de atribuí-
la (“conforme o dizer do cronista referido” id., ibid.), citando Manuel Ximenes. No
entanto, o autor gostou do que leu, pois usou o mesmo epíteto outra vez no texto, ao
falar também do lado heróico desta tia-avó de Euclides.
91
Miguel Carlos ainda assassinou um membro da família Araújo, perto da
igreja no dia em que este se casava. Logo após, tendo seu itinerário descoberto devido a
denúncias, o grande defensor dos Maciéis foi morto numa emboscada, mas não sem
antes dar o troco heroicamente, embora também esteja presente na narração de Euclides
o lado tragicômico do herói do avesso:
Em ceroulas somente, e com a faca em punho, ele
correu também na direção dos fundos de uma casa,
que quase enfrentava com a embocadura do riacho
da Palha (...) chegou a abrir o portão do quintal, de
varas, da casa indicada; mas, quando quis fechá-lo,
foi prostrado por um tiro, partido do séqüito, que o
perseguia. (...) Agonizava, caído, com a sua faca na
mão, quando Manuel de Araújo, chefe do bando,
irmão do noivo outrora assassinado, pegando-o por
uma perna, lhe cravou uma faca. Moribundo, Miguel
Carlos lhe respondeu no mesmo instante com outra
facada na carótida, morrendo ambos
instantaneamente, este por baixo daquele!” (Id., p.
155) [grifo nosso]
Percebemos na expressão “em ceroulas somente” um traço
tragicomicidade que perpassa determinadas descrições euclidianas, pois não haveria
necessidade de o autor descrever a personagem tão intimamente, já que este seria um
aspecto menor, da aparência física, destoante um pouco do momento sublime desse
herói, que quase morto ainda reúne forças para acabar com o seu algoz. A cena final da
morte do herói é fenomenal, digna das grandes cenas, sendo que, na escrita, o ponto-de-
exclamação, marca a grandiosidade desse momento final. A partir daí, quem assume a
função de Miguel Carlos é sua irmã, a “Nêmesis da família”, a quem cabe a tarefa de
vingar o irmão morto. Numa alusão bíblica à imagem da mulher como elemento
vingador, que pisa na cabeça da serpente que havia perpetrado a desobediência do
primeiro casal, Helena “pisa a pés a cara do matador de seu irmão, dizendo-se satisfeita
da perda dele pelo fim que dera ao seu inimigo!” (Id., p. 156). À maneira de Nêmesis,
deusa grega da justiça, da ética e vingança, trama silenciosamente a punição do homem
92
que responsabilizou pelo triste destino de seu irmão, confessando, anos depois, ser a
culpada por mandar “espancar barbaramente” (id., ibid.) aquele que havia denunciado o
esconderijo do seu irmão. Deste modo, na Nêmesis Helena termina a trajetória
grandiosa da família de Antônio Conselheiro, sem faltar as alusões sublimes e as
referências clássicas para dourar-lhe os antepassados, além das já mostradas, o emprego
de vocábulos como “desgraça”, “imolou” e “manes” contribui para a aura de
superioridade que provém desta família.
No entanto, Conselheiro é visto como o grande homem pelo avesso,
construído como herói trágico, que, embora precise desse vínculo familiar nobre e
valente para constituir-se como herói, não dará continuidade à grandeza dos seus bravos
ascendentes. O nicho familiar do qual descende o beato é mostrado como totalmente
dentro dos padrões da época e do lugar. Segundo ele, “Não se sabe ao certo o papel que
coube a Vicente Mendes Maciel, pai de Antônio Mendes Maciel (o Conselheiro), nesta
luta deplorável” (Id., p. 157), o que significa dizer não haver nada de memorável no
progenitor da personagem em foco. Antes ele é descrito como homem “irascível mas de
excelente caráter” (Id., ibid.), negociante astuto, mesmo sendo analfabeto. O filho segue
seus caminhos, trabalhando nos negócios familiares, é tímido e tranqüilo, avesso aos
extremos de bravura de seus parentes.
Com a morte do pai, sua vida segue o mesmo ritmo, sendo ele o
responsável por suas três irmãs solteiras, de quem cuidou até que estivessem
encaminhadas na vida, estando todas as três casadas. Antônio Conselheiro tinha tudo
para seguir o caminho heróico dos antepassados, mas sua índole não pendeu para esse
lado. Assim como ele também tinha tudo para ser um homem absolutamente normal
para os padrões do sertão, com a diferença de, por ser filho de negociante e ter herdado
os negócios da família, poder gozar do privilégio de uma situação financeira melhor do
93
que para a maioria dos seus compatriotas cearenses. Mas isso também não aconteceu.
Do heroísmo à normalidade, o beato não fixou em nenhuma das duas posturas. Para o
narrador, Conselheiro ultrapassa os limites humanos por meio de uma hybris marcada
pelo desvario e essa será a sua desmesura; ele é então o “grande homem do avesso”,
estando nessa linha tênue que separa o “gênio do degenerado”, optando o nosso
narrador-analista por mostrar-nos o lado demente do homem, cujos fiéis tinham como
santo.
O estopim da sua loucura, fazendo com que a partir daí sua “existência”
fosse “dramática” (Id., ibid.) foi um fator prosaico, mas que, segundo a narração,
adicionou sobrecarga “à tremenda tara hereditária, que desequilibraria uma vida iniciada
sob os melhores auspícios” (id., ibid.), trata-se do adultério da única mulher a quem se
uniu matrimonialmente. A partir daí seu caráter transmudou-se, deu para “atividades
menos trabalhosas”, “ia-se-lhe ao mesmo tempo na desarmonia do lar, a antiga
serenidade” (id., p. 158). Foram vinte anos de peregrinação por todo Nordeste
brasileiro, conhecendo cada palmo do sertão. Suas idas e vindas estão repletas de
histórias e lendas. Segundo o narrador, “a imaginação popular (...) começava a
romancear-lhe a vida, com um traço vigoroso de originalidade trágica.” (Id., p. 163)
[grifo nosso]. Se foi a credulidade e a imaginação do povo quem inventou um
Conselheiro acima do que ele era, foi a pena de Euclides da Cunha quem eternizou a
desmedida do espírito do beato.
Quando o narrador afirma que “Aquele dominador [Antônio Conselheiro]
foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo
de três raças. E cresceu tanto que se projetou na História...” (Id., p. 161), não fazia idéia
de que muito dessa projeção estaria no futuro relacionada ao seu livro vingador que,
além de mostrar o lado humano do perdedor, constrói indelevelmente uma das figuras
94
mais marcantes associadas à nossa trajetória histórica, sobretudo se a vislumbrarmos
numa perspectiva contemporânea, segundo a qual se procura dar voz ao vencido.
2.4. “A Maldição sobre a Jerusalém de Taipa”
Para dar cabo da cidadela de Canudos, foram necessárias quatro
expedições militares e desperdícios de muitas vidas, numa empreitada que, conforme
Euclides da Cunha tenta demonstrar em seu livro vingador, sempre esteve destinada ao
fracasso, pois o verdadeiro foco ao qual deveriam ater-se as forças governamentais foi
preterido em função de uma disputa insana para provar que a República, recém
instaurada, era suficientemente forte para calar aquele núcleo de resistência
monarquista, colocando-se demasiada força num aspecto político que não correspondia
às verdadeiras razões da existência de Canudos.
Euclides da Cunha não via lógica naquele confronto, pois considerou as
necessidades reais daquelas pessoas, vivendo “três séculos de abandono” no sertão.
Embora não tenha denunciado o crime no momento em que ocorreu, ele o fez cinco
anos depois, munido de maior reflexão sobre o fato. Por isso, seu objetivo na terceira
parte da obra é mostrar a ignomínia cometida pelas Forças Armadas em dois sentidos:
primeiro de atacar cidadãos que deveriam receber o aclamado progresso positivista, ou
seja, escolas, médicos, recursos técnicos já disponíveis para minimizar os problemas
advindos com a seca; segundo, de não possuir preparo adequado para lidar com as
situações apresentadas à sua responsabilidade, cometendo erros primários para um
Exército, cuja função é defender a pátria.
Procuraremos não nos alongar muito, embora esta seja a parte do livro em
que podemos perceber uma predominância do gênero narrativo, contendo, por isso, a
ação, o que geralmente prende mais o leitor. Mas já traçamos detalhadamente a maneira
95
como o narrador constrói a personagem sertaneja em seu habitat, pretendemos mostrar
como ele, usando tudo o que já foi feito até agora, monta discursivamente a sua
denúncia mencionada desde a Nota Preliminar, focando nos recursos lingüísticos
empregados. Para tanto, não nos ateremos a todos os detalhes da guerra passo a passo,
linearmente, tal qual faz Euclides da Cunha em sua obra, mas destacaremos fragmentos
julgados importantes do ponto de vista da construção narrativa e linguageira.
O estopim para o confronto entre as forças oficiais e os jagunços do
Conselheiro foi de pouca monta (“Determinou-a incidente desvalioso.” Id., p. 219
grifo nosso), principalmente se considerarmos as proporções da guerra posteriormente,
o que acontece sempre que interesses políticos e econômicos sobrepõem-se a quaisquer
outros. O beato havia encomendado certa quantidade de madeira em Juazeiro para o
término da construção da igreja nova no arraial, mas no ato da entrega o acordo foi
desfeito. Segundo a narração, “tudo denuncia que o distrato foi adrede feito, visando o
rompimento anelado” (Id., ibid.), o motivo a princípio mostrava-se como sendo de foro
individual, íntimo, pois “o principal representante da justiça tinha velha dívida a saldar
com o agitador sertanejo, desde a época em que sendo juiz do Bom Conselho fora
coagido a abandonar precipitadamente a comarca, assaltada pelos adeptos daquele.”
(Id., p. 219-220). Sabe-se, no entanto, que um motivo de puro amor-próprio não
motivaria tamanha dispersão de energia pública, havia grande descontentamento por
parte dos proprietários de terras com a congregação de Canudos, pois multidões de
braços trabalhadores estavam seguindo para o arraial, para viver de acordo com os
preceitos de Antônio Conselheiro, deixando, portanto, a secular “submissão voluntária”
do sertão, de forma que já faltavam homens para o trabalho com o gado.
Pelo caráter do sertanejo cuidadosamente exposto pela narração, pela sua
honestidade e retidão de princípios, há de se imaginar que um acordo probo desfeito
96
geraria a indignação dos jagunços, sobretudo quando se envolvia a construção da nova
igreja, projeto querido do Conselheiro e da população canudense. Tomariam a madeira
nem que fosse à força.
A primeira expedição militar, comandada pelo Tenente Pires Ferreira, era
inteiramente baiana e era composta por cerca de 100 soldados. O primeiro erro,
apontado pelo narrador, foi a pretensão de poder das Forças Armadas, mostrando
desconhecimento das proporções do arraial e da destreza do sertanejo para as situações
difíceis. Se não foi desconhecimento, foi desconsideração. O despreparo das forças
oficiais pode ser percebido por meio do seguinte fragmento, no qual se destaca a pouca
quantidade de praças que compunham o destacamento enviado ao interior:
“Aquele punhado de soldados foi recebido com
surpresa em Juazeiro, onde chegou a 7 de novembro,
pela manhã.
Não obstou a fuga de grande parte da população,
subtraindo-se ao assalto iminente. Aumentou-a.
Conhecendo a situação, os habitantes viram, de
pronto, que um contingente tão diminuto tinha o
valor negativo de exercer maior atração sobre a
horda invasora.
Previram a derrota inevitável. (Id., p. 222)
A própria população, por conhecer a situação de Canudos, previu a “derrota
inevitável”. Não é à toa que, desde o início, o narrador refere-se ao abandono dos
grupos humanos do interior. A seu ver, o governo não os conhece, e, por isso, não tem
condições de lidar com os problemas que se apresentam. Tal falta de jeito soma-se aos
outros fatores já vislumbrados para que a Guerra de Canudos acabasse no desastre que
foi, do ponto de vista humano e de estratégia militar.
Na seqüência dos acontecimentos, uma nota de rodapé feita por Euclides da
Cunha chama a atenção pela força da sua ironia. O destacamento comandado pelo
Tenente Pires Ferreira, em Juazeiro desde o dia 07 de novembro como dissemos,
resolve partir no dia 12, mesmo “sem recursos indispensáveis a uma travessia de 200
97
quilômetros, em terreno agro e despovoado” (Id., p. 223). Segundo a nota mencionada,
tratava-se de um “pormenor curioso: a força seguiu a 12, ao anoitecer, para não seguir a
13, dia aziago. E ia combater o fanatismo...” (id., ibid.) Ela é extremamente
significativa, pois a ironia, figura que consiste em se dizer o contrário do que se deseja
com intenção crítica, advém da frase destacada seguida pelas reticências, permitindo ao
leitor completar o silêncio que ela traz: como combater o fanatismo dos conselheiristas
se as próprias tropas carregavam consigo tais idéias supersticiosas? Como se vê, há de
fato uma inversão de papéis evidenciada pela narração, segundo a qual as forças oficiais
representam um espelho de todos os atributos que pretendiam combater e que ainda
ficavam mais fortes e visíveis por não se esperarem delas semelhantes comportamentos.
Ao chegarem a Uauá, circunvizinhança de Canudos, no dia 19, após
“travessia penosíssima” (Id., p. 224), os soldados resolveram deter-se ainda mais um dia
indagando a população e descansando para o assalto no dia seguinte. A narração procura
destacar as deficiências do Exército, além daquelas já mencionadas (poucas praças e
desconhecimento da população interiorana e da situação do arraial), em mais duas
frentes: o desconhecimento da terra como demonstra o fato de não se ter preparado para
atravessar o sertão, despendendo energias essenciais numa luta com a natureza à qual
não estão adaptados, e a incapacidade de ler nas entrelinhas das atitudes das pessoas os
sinais de que estavam agindo de forma inadequada. Como podemos perceber no
seguinte trecho:
“E ao cair da noite operou-se um incidente só
explicado na manhã seguinte: a população, quase na
totalidade, fugira. Deixara as vivendas sem ser
percebida, em pequenos grupos deslizando, furtivos,
entre os claros das guardas avançadas. No repentino
êxodo lá se foram os próprios doentes, famílias
inteiras, ao acaso, pela noite dentro, dispartindo
espavoridos, descampados em fora.
Ora, este fato era um aviso. Uauá, como os
demais lugares convizinhos, estava sob o domínio
98
de Canudos. Habitavam-no dedicados adeptos de
Antônio Conselheiro; de sorte que mal a força fizera
alto no largo, haviam-se aqueles precipitado para o
arraial ameaçado, onde chegaram no amanhecer de
20, levando o alarma...
Os expedicionários não ligaram, porém, grande
importância ao caso. Aprestaram-se para continuar a
marcha na manhã seguinte; e inscientes da
gravidade das cousas repousaram tranqüilamente,
acantonados.” (Id., p. 226) [grifo nosso]
As construções que grifamos no texto acima comprovam a imobilidade do
destacamento diante do ataque iminente. Se conhecessem as personagens que
compunham aquela história ou se lessem a situação tal qual ela se apresentava, na visão
do narrador, teriam percebido o ataque iminente, aquele contido na máxima popular de
que “a melhor defesa é o ataque”. Foi o que se deu. Mas os soldados da primeira
expedição persistiram no erro, ou nos erros, como nos mostra o narrador. Embora em
menor número, o destacamento detinha a força das poderosas armas de fogo modernas
como a Comblain, superioridade que também não souberam usar diante dos jagunços
“armados de velhas espingardas, de chuços de vaqueiros, de foices e varapaus” (Id., p.
227). Apavorados diante da braveza do sertanejo, os soldados retiram-se, malgrado o
“número desconforme” (Id., p. 229) das baixas dos dois lados da disputa: 150 sertanejos
(contagem dos oficiais) contra 26 entre mortos e feridos da força oficial:
“apesar disto, o comandante, com setenta homens
válidos, renunciou prosseguir na empresa.
Assombrara-o o assalto. Vira de perto o arrojo dos
matutos. Apavorara-o a própria vitória, se tal nome
cabe ao sucedido, pois as suas conseqüências o
desanimavam. O médico enlouquecera... Desvairara-
o o aspecto da peleja. Quedava-se, inútil, ante os
feridos, alguns graves...
(...)
Foi como uma fuga.
A travessia para Juazeiro fez-se a marchas forçadas,
em quatro dias. E quando lá chegou o bando dos
expedicionários, fardas em trapos, feridos,
99
estropiados, combalidos, davam a imagem da
derrota.” (Id., p. 229-230)
E, assim, termina a primeira expedição com uma vitória de valor
invertido, na qual quem mais perdeu em vidas humanas saiu mais forte, por usar, como
sempre foi destacado no texto, as perdas a seu favor. Já quem deveria vangloriar-se de
vencer, saiu, na visão do narrador, com saldo negativo, cujas causas são os numerosos
erros cometidos, dos mais primários aos de formação do próprio Exército nacional:
destacamento pouco numeroso para a proporção do confronto, demonstrando pouca
noção de tática de guerra, desconhecimento da população, do terreno, não investimento
na logística de transporte adequada para levar munição e pessoal ao palco dos
acontecimentos, fazendo com que muita energia fosse desperdiçada num confronto
anterior com a natureza, inabilidade para sentir as estratégias adversárias e, por fim,
uma estrutura psicológica deficiente, responsável pelo enfraquecimento diante dos
jagunços mesmo numa situação que era vantajosa para as forças oficiais quando se
compara os números das baixas. Esse apavoramento do Exército diante dos jagunços de
Canudos ainda teve uma conseqüência anterior: a mitificação dos combatentes
conselheristas, a qual serviu para amedrontar os destacamentos posteriores que
seguiram para a guerra.
Ao invés de aprender com as falhas da primeira expedição, no entanto, as
que vieram depois repetiram-nas, como mostra o narrador. Fato que prolongou aquele
episódio histórico infeliz.
A segunda expedição procurou a princípio marcar uma trajetória
diferenciada, traçando ao menos um plano de ataque. O comando desta estava sob a
tutela do Major Febrônio de Brito, que seguia com 243 soldados, os quais dividiu em
duas colunas, sendo a outra comandada pelo Coronel Pedro Nunes Tamarindo. A
100
intenção era fazer um cerco a Canudos. No entanto, mais uma vez, apesar da
experiência passada, o destacamento sofreu com o enfrentamento da natureza
desconhecida, que para o sertanejo era um colo materno. Este soube aproveitar os
recursos que ela lhe oferecia, transformando sempre o menos em mais, pois se se perdia
na modernidade das armas, ganhava-se na esperteza das tocaias. Assim, os soldados
“Volvem exaustos. Vibram clarins. A tropa
renova a marcha com algumas praças de menos. E
quando as últimas armas desaparecem, ao longe, na
última ondulação do solo, desenterra-se de montões
de blocos feito uma cariátide sinistra em ruínas
ciclópicas um rosto bronzeado e duro; depois um
torso de atleta, encourado e rude; e transpondo
velozmente as ladeiras vivas desaparece, em
momentos o trágico caçador de brigadas...
Estas seguem desinfluídas de todo. Daí por
diante velhos lutadores têm pavores de criança. Há
estremecimentos em cada volta do caminho, a cada
estalido seco nas macegas. O exército sente na
própria força a própria fraqueza.
Sem plasticidade segue numa exaustão contínua
pelos ermos, atormentado no golpear das ciladas,
lentamente sangrado pelo inimigo, que o assombra e
foge.
A luta é desigual. A força militar decai a um
plano inferior. Batem-na o homem e a terra. E
quando o sertão estua nos bochornos dos estios
longos não é difícil prever a quem cabe a vitória.
Enquanto o minotauro, impotente e possante, inerme
com sua envergadura de aço e grifos de baionetas,
sente a garganta exsicar-se-lhe de sede e, aos
primeiros sintomas da fome, reflui à retaguarda,
fugindo ante o deserto ameaçador e estéril, aquela
flora agressiva abre ao sertanejo um seio carinhoso e
amigo.
(...)
Cercam-lhe relações antigas. Todas aquelas
árvores são para ele velhas companheiras. Conhece-
as todas. Nasceram juntos; cresceram irmãmente;
cresceram através das mesmas dificuldades, lutando
com as mesmas agruras, sócio dos mesmos dias
remansados.
(...)
A natureza toda protege o sertanejo. Talha-o
como Anteu, indomável. É um titã bronzeado
101
fazendo vacilar a marcha dos exércitos.” (Id., p.
237-238)
A longa e bela citação nos dá uma mostra do que foi, mais uma vez, a
segunda expedição militar a Canudos: ante o bravo sertanejo e à dura natureza, o
Exército prostrou-se. A chamar atenção no texto euclidiano, temos alguns elementos
lingüísticos que contribuem de forma decisiva para a composição da imagem,
muitíssimo bem escrita. Para iniciar, a manutenção do presente histórico nos verbos,
num processo símile ao que já mostramos anteriormente, muito comum nas descrições
das batalhas em Os sertões. O efeito provocado é a presentificação da luta, como se ela
estivesse ali, diante dos nossos narizes, incomodando-nos, o que é excelente estratégia
para um autor que deseja fazer do seu livro uma maneira de construir a memória
histórica do nosso país, revisitando o evento traumático e fazendo também com que seu
leitor o revisite sempre, não permitindo que ele seja esquecido, transformando-o em
experiência.
Também persistem as metáforas de base clássica para a constituição do
heróico combatente sertanejo. A primeira delas é a comparação entre o jagunço e uma
cariátide em meio a ruínas ciclópicas. Trata-se de uma imagem bastante plástica e
visual. Em meio à ruína desconsoladora que representa um destacamento militar
vagando em meio à natureza selvagem e agreste, estabelece-se a presença do sertanejo
como se fosse uma viga que passa incólume e resiste a tudo aquilo já que o termo
cariátide, ligado à arquitetura grega, significa a coluna com formato humano que
sustentava alguns templos. Ao fazer essa comparação, alude-se à resistência do
combatente conselheirista que se mantinha firme e de pé em meio a tudo aquilo.
Há ainda a metáfora do minotauro, que seria a imagem atribuída às forças
oficiais. Segundo a mitologia, o minotauro é a figura à qual se arroga grande força, mas
102
ao mesmo tempo inabilidade para usá-la, posto que este vive preso a um labirinto.
Quem encontraria imagética mais adequada? Sua força, representada pelas modernas
armas utilizadas, não o tirava do labirinto representado pela natureza impiedosa. O
paradoxo que se segue à metáfora é ainda mais ilustrativo, este minoutauro é “impotente
e possante”, que, embora sendo a união de pólos contrários, se faz compreender
perfeitamente: impotente diante da realidade natural que enfrentava, mas possante pelas
armas que portava, mas não conseguia usar esta vantagem a seu favor.
A última imagem clássica retoma a idéia da força e da grandeza do “titã
acobreado”, agora retomada uma variação “titã bronzeado”, numa junção, como
dissemos anteriormente, do elemento grego ao brasileiro. Terminando com uma
comparação que é realmente um achado literário: o sertanejo é o Anteu indomável. Com
essa imagem, o narrador busca na figura da personagem mitológica, filho de Poseidon e
Gaia, a medida exata para a sua personagem sertaneja mitificada. Ambos possuem
estreita relação com a sua mãe, a Terra, sendo invencíveis ao lado desta. É importante, a
fim de finalizarmos essa idéia, frisar como é recorrente a imagem da Terra como mãe e
companheira do sertanejo. Apenas nesse fragmento temos diversas referências: ela
oferece-lhe um seio carinhoso e amigo, nutrem relações antigas, as árvores são suas
velhas companheiras, nasceram juntos, lutando com as mesmas agruras, enfim a
natureza protege o sertanejo.
Há ainda nesse fragmento uma construção ambígua, que nos sugere a
tensão do texto. Ao falar dos soldados enfrentando amedrontadamente as tocaias dos
jagunços, deparamo-nos com a frase “Daí por diante velhos lutadores tem pavores de
criança”, na qual é mencionada a prática dos soldados (velhos lutadores), mas que pode
sugerir tanto que eles se transformam crianças por conta do medo que sentem de serem
atocaiados por um inimigo que não vê, porque este se esconde e disfarça-se na natureza,
103
quanto afirmar que esses lutadores experientes, ou de quem se espera experiência,
temem combatentes infantis, menores que se lançaram na luta, pois vários são os relatos
de que jagunços-meninos, adolescentes na flor da idade, pegaram em armas para
defender Canudos e Antônio Conselheiro.
Quanto à segunda expedição, apesar da obtenção de reforços consideráveis
e também da conquista de alguns sucessos, terminou como a primeira, com o recuo das
forças para capital sem conseguir dissipar o agrupamento de fiéis de Canudos, só que
dessa vez não levava mais os homens válidos, tendo-se desperdiçado muitas vidas e
uma sobrecarga de energia na tarefa a que se lançaram. Na descrição euclidiana do
retorno das tropas, percebemos novamente a inversão de papéis, com as forças
governamentais sendo colocadas na posição de miseráveis, de “fraqueza do governo”,
conforme expressão dos próprios jagunços, anotada e celebrizada por Euclides da
Cunha:
“A expedição, no outro dia, cedo, prosseguiu
para Monte Santo.
Não havia um homem válido. Aqueles mesmos
que carregavam os companheiros sucumbidos
claudicavam, a cada passo, com os pés sangrando,
varados de espinhos e cortados pelas pedras.
Cobertos de chapéus de palha grosseiros, fardas em
trapos, alguns tragicamente ridículos mal velando a
nudez com os capotes em pedaços, mal alinhando-se
em simulacro de formatura, entraram pelo arraial
lembrando uma turma de retirantes, batidos dos sóis
bravios, fugindo à desolação e à miséria.
A população recebeu-os em silêncio.” (Id., p.
272-273)
Mais uma vez percebemos a alusão à guerra como um drama trágico,
atualizada na descrição brutal do estado a que chegaram os soldados após debaterem-se
contra os defensores canudenses. Aqui, neste trecho, faz-se presente uma estratégia
discursiva inaugurada nessa terceira parte da obra, trata-se do silêncio narrativo. Sempre
quando se encontra numa situação que ultrapassa os limites do seu narrar, quando
104
parece não encontrar palavras para nomear o inominável, o narrador se cala, fazendo
uma suspensão da história. Aqui o silêncio, atribuído à população, une-se ao seu, e
ambos já não podem falar mais nada a respeito da nova derrota das forças oficiais, que
serviram novamente para afamar o “titã bronzeado”.
O envio da terceira expedição foi cuidadosamente pensado pelo governo
da época. Forças de diversas partes começaram a ser acionadas, e via-se nessa nova
investida a aura de uma expedição vingadora, que calaria de vez o ecoar das rezas na
“Jerusalém de Taipa” do Conselheiro. Para capitanear a empreitada, escolheu-se nome
de peso e fama no meio militar, Coronel Antônio Moreira César, “quem parecia haver
herdado a tenacidade rara do grande debalador de revoltas. O fetichismo político exigia
manipansos de farda. Escolheram-no para novo ídolo.” (Id., p. 280)
Embora sem atribuir-lhe o mesmo valor e espaço literário que o dado à
figura de Antônio Conselheiro, o narrador gasta algumas linhas para dar-nos uma visão
sobre o militar, senão o desmistifica por completo, por meio de sua pena, ao menos,
diminui-lhe a fama de grande herói embutida pelo Exército e ratificada pelos jornais da
época. Sua análise do perfil de Moreira César constrói, de certa forma e dentro dos
limites de sua importância para o fato histórico, um paralelo com a figura de Antônio
Conselheiro. Ambos são marcados por traços de degenerescência, o que justificaria a
visão do narrador como estando diante de um grandioso espetáculo de loucura. Se
Conselheiro é visto como um desequilibrado, encontra na pena euclidiana a construção
de um perfil que lhe é símile, mas um semelhante reduzido, sem as glórias familiares e
as lendas messiânicas atribuídas ao primeiro.
O narrador faz uma interessante e irônica reflexão à fixação histórica de se
criar heróis, uma necessidade tão premente que fez algumas figuras discutíveis serem
alçadas a esse posto, sem evidentemente o merecerem:
105
“Os heróis de quarto de hora, destinados à suprema
consagração de uma placa à esquina das ruas,
entravam surpreendidos e de repente, pela história
dentro, aos encontrões, como intrusos desapontados,
sem que se pudesse saber se eram bandidos ou
santos, envoltos de panegíricos e convícios,
surgindo entre ditirambos ferventes, ironias
diabólicas e invectivas despiedadas (...)” (Id., p.
281)
Para o narrador, Moreira César é um caso assim. Tudo nele desde o seu
físico, bastante diferente da visão grega do herói e do homem atléticos mentia sua
fama grandiosa. Descreve-o, física e moralmente, como sendo
(...) figura diminuta um tórax desfibrado sobre
pernas arcadas em parênteses era organicamente
inapto para a carreira que abraçara.
Faltava-lhe esse aprumo e compleição inteiriça
que no soldado são a base física da coragem.
Apertado na farda, que raro deixava, o dólmã
feito para ombros de adolescente frágil agravava-lhe
a postura.
A fisionomia inexpressiva e mórbida
completava-lhe o porte desgracioso e exíguo. (...)
Os que pela primeira vez o viam custava-lhes a
admitir que estivesse naquele homem de gesto lento
e frio, maneiras corteses e algo tímidas, o
campeador brilhante, ou o demônio crudelíssimo
que idealizavam. (...)
Naquela individualidade singular
entrechocavam-se, antinômicas, tendências
monstruosas e qualidades superiores, umas e outras
no máximo grau de intensidade. Era tenaz, paciente,
dedicado, leal, impávido, cruel, vingativo,
ambicioso. Uma alma proteiforme constrangida em
organização fragílima. (...)
Alguma cousa de grande e incompleto, como se
a evolução prodigiosa do predestinado parasse, antes
da seleção final dos requisitos raros com que o
aparelhara, precisamente na fase crítica em que ele
fosse definir-se como herói ou como facínora.
Assim, era um desequilibrado. Em sua alma a
extrema dedicação esvaía-se no extremo ódio, a
calma soberana em desabrimentos repentinos e a
bravura cavalheiresca na barbaridade revoltante.
Tinha o temperamento desigual e bizarro de um
epilético provado, encobrindo a instabilidade
106
nervosa de doente grave em placidez enganadora.”
(Id., p. 281-282) [grifo nosso]
Assim como pudemos perceber na composição do perfil de Antônio
Conselheiro, novamente a narração apresenta-nos um “grande homem pelo avesso”,
menos espiritualizado do que beato e mais próximo da civilização. Grande parte dos
atributos despendidos para caracterizar o Coronel Moreira César serviria ao messias
sertanejo, tirante o fato real de ser o militar epilético, doença que, na visão do narrador,
serve-lhe para aumentar os traços de degenerescência. Também ele se encontra no
limítrofe entre ser um herói ou um facínora, dependendo das forças históricas e das
opiniões que circundam o sujeito. Moreira César também está naquele mesmo ponto de
Maudsley, de impossível definição, entre ser são ou louco. Grifamos no fragmento duas
expressões que contribuem para a construção definitiva do seu perfil negativo, por um
lado a forma verbal “idealizavam”, apontando para como a sociedade via Moreira César
de acordo com a análise do narrador; por outro, “era um desequilibrado”, evidenciando
a conclusão particular de Euclides a respeito do militar.
Para terminar suas reflexões acerca do coronel, tece ainda mais um
comentário de cunho geral, antes de mais uma vez calar-se ante o indizível, ante ao fato
que deve pertencer também às reflexões do leitor: “Se um grande homem pode impor-se
a um povo pela influência deslumbradora do gênio, os degenerados perigosos fascinam
com igual vigor as multidões tacanhas. (...) Cerremos esta página perigosa... (Id., p.
287).
A terceira expedição segue cometendo erros grosseiros, apesar de estar
ferozmente armada e contar com grande número de praças vindos de todo o país.
Algumas das maluquices cometidas durante este período o narrador as atribui ao próprio
espírito degenerado do comandante, como veremos; outras falhas, no entanto,
107
continuam sendo provenientes da persistência no erro de se enfrentar ainda mais um
adversário: a natureza. Tal postura fica evidente quando o narrador critica o fato de se
levar uma bomba artesiana a fim de se evitar o transporte pesado da água: “como se
fossem conhecidas as camadas profundas da terra, pelo que lhe ignoravam a própria
superfície; e houvesse, entre as fileiras, argutos rabdomantes capazes de marcar, com a
varinha misteriosa, o ponto exato em que existisse o lençol líquido a aproveitar-se” (Id.,
p. 290). Como se vê ironicamente estampado no texto euclidiano, o grande erro estava
no desconhecimento dos indivíduos com os quais se ousava combater e da terra que se
pretendiam atravessar.
Os primeiros passos mal dados remontam à dispersão das tropas, com a
vanguarda seguindo até o Cumbe, mas o restante dos soldados se atrasando, segundo o
narrador por conta de outro ataque epilético do comandante. Uma segunda dificuldade
logo surgiu também, como não se havia feito provisão de água para evitar o peso, assim
que se encontraram em situação de necessidade,
“procurou-se cravar o tubo da bomba artesiana. A
operação, porém, resultou inútil. Era inexeqüível.
Ao invés de um bate-estacas que facilitasse a
penetração da sonda, haviam conduzido aparelho de
função inteiramente oposta, um macaco de levantar
pesos.
Ante o singularíssimo contratempo, só havia
alvitrar-se a partida imediata, malgrado a distância
percorrida, para o sítio do Rosário, seis léguas mais
longe.” (Id., p. 300)
Seria “cômico se não fosse trágico”, como se diz por aí. Mas a situação era
mesmo desastrosa, a falta de preparo das forças oficiais chegava a questões primárias,
como decidir adequadamente quais provimentos levar para o campo de batalha e, além
disso, separá-los com competência, sem confundir instrumentos cujas funções se
mostram tão diferenciadas. Todas essas falhas são destacadas pelo narrador para que
108
percebamos a seqüência de insucessos do Exército que ia além da competência do
adversário. Como desde o início foi frisado na composição da personagem sertaneja,
esta era forte antes de tudo, sabia usar as perdas a seu favor, mas não tinha acesso aos
progressos da civilização, ao passo que esta era a grande qualidade das forças oficiais,
que foi desperdiçada, ajudando a mostrar que a inversão de papéis entre o que seria
barbárie e civilização dá-se mesmo de forma completa.
Para além desses dois erros, duas outras posturas são consideradas pela
narração como decisivas para a derrota da terceira expedição: a subestimação do
adversário, considerando-o menos valioso e valente do que de fato ele era e menos
armado que estava; e a ansiedade perniciosa das forças em comando, mais
especificamente do Coronel Moreira César, que, precitadamente, ao passar por uma
rápida refrega com alguns jagunços, afirmou que aquela “gente estava desarmada”, que
naquele mesmo dia iria “almoçar em Canudos”, e que ele em pessoa “iria dar brio
àquela gente”.
Segundo o narrador a campanha superou-se no quesito desastre, não só não
atingiu os seus objetivos, como propiciou uma enorme baixa humana nos pelotões,
incluindo aí os dois comandantes Coronel Moreira César e Coronel Tamarindo, cujos
corpos foram abandonados no sertão pela pressa dos sobreviventes em fuga, e entregou
nas mãos dos defensores de Canudos uma quantidade enorme de artilharia que ficou
para trás no recuo desesperado das tropas, inclusive armamentos pesados como canhões
Krupps.
Observemos a narração euclidiana dos saldos deixados, na qual se destaca
as conseqüências dos erros sempre apontados, que foram, na verdade, a conseqüência
do erro maior de se levar bala a quem precisava da civilização, nela podemos perceber o
fim trágico daquela empreitada:
109
“E foi uma debandada.
Oitocentos homens desapareciam em fuga,
abandonando as espingardas; arriando as padiolas,
em que se estorciam feridos; jogando fora as peças
de equipamento; desarmando-se; despertando os
cinturões, para a carreira desafogada; e correndo,
correndo ao acaso, correndo em grupos, em bandos
erradios, correndo pelas estradas e pelas trilhas que a
recortam, correndo para o recesso das caatingas,
tontos, apavorados, sem chefes...
Entre os fardos atirados à beira do caminho
ficara, logo ao desencadear-se o pânico tristíssimo
pormenor! o cadáver do comandante. Não o
defenderam. (...)
A terceira expedição anulada, dispersa,
desaparecera. E como na maioria os fugitivos
evitassem a estrada, desgarraram sem rumo, errando
à toa no deserto, onde muitos, e entre estes os
feridos, se perderam para sempre, agonizando e
morrendo no absoluto abandono. (...)
Enquanto isto sucedia, os sertanejos recolhiam
os despojos. Pela estrada e pelos lugares próximos
jaziam esparsas armas e munições, de envolta com
as próprias peças do fardamento, dólmãs e calças de
listra carmesim, cujos vivos denunciadores demais
no pardo da caatinga os tornavam incompatíveis
com a fuga. De sorte que a maior parte da tropa não
se desarmara apenas diante do adversário. Despira-
se...” (Id., p. 331-334)
Euclides da Cunha, que a essa época ainda não estava presente na Bahia,
pois acompanhou a quarta expedição, mostra-nos, de forma detalhada, a narração do
que se passou naquele lugar. Ela serve como argumento do que havia antes apontado,
pois representam as conseqüências trágicas dos erros cometidos. Ao seu contar, não
faltam elementos que nos dão a proporção de drama, como podemos observar pele
emprego da anáfora do verbo correr no segundo parágrafo do fragmento destacado,
reforçando a idéia da pressa dos soldados e também da sua dispersão aleatória, posto
que somente corriam sem rumo traçado.
Há a introdução do elemento lúgubre na figura do cadáver do coronel
abandonado. O espanto ou horror à ignomínia do ato, da falta de brios, como diria
110
Moreira César, está representada lingüisticamente pelo emprego do grau superlativo
absoluto e do uso do ponto de exclamação conjugados. Novamente, fica nas entrelinhas
a inversão de papéis, pois quem deveria defender a nação, não defendia nem o próprio
comandante das forças.
A imagem do abandono das armas é também magistral, porque os
soldados temendo ser reconhecidos de longe pelas cores das roupas, não se importavam
nem em seguir sem elas. Sua preocupação com as armas era ainda menor. O emprego
do verbo despir-se é irônico, porque eleva à categoria de metáfora o que pode ser
entendido como literal, despiram-se das roupas, das armas, dos companheiros e até do
comandante.
Para completar, a narração do desfecho da terceira expedição contribui
para a criação da aura trágica atribuída à empreitada. Citamo-la abaixo destacando os
vocábulos que ajudam a compor a imagética da cena dramática:
“(...) os jagunços recolheram os cadáveres que
jaziam esparsos em vários pontos. Decapitaram-nos.
Queimaram os corpos. Alinharam depois, nas duas
bordas da estrada, as cabeças, regularmente
espaçadas, fronteando-se, faces volvidas para o
caminho. (...)
Um pormenor doloroso completou esta
encenação cruel: a uma banda avultava, empalado,
erguido num galho seco, de angico, o corpo do
coronel Tamarindo.
Era assombroso... Como um manequim
terrivelmente lúgubre, o cadáver desaprumado,
braços e pernas pendidos, oscilando à feição no
galho flexível e vergado, aparecia nos ermos feito
uma visão demoníaca.
(...)
Quando, três meses mais tarde, novos
expedicionários seguiam para Canudos, depararam
ainda o mesmo cenário: renques de caveiras
branqueando nas orlas do caminho (...) e mudo
protagonista de um drama formidável o espectro
do velho comandante...” (Id., p. 336)
111
Como se percebe, a quarta expedição não começou sob os melhores
auspícios, mas foi vitoriosa ao cabo de três meses de combate. Segundo o narrador, tal
feito não se deu por conta da destreza das forças armadas, as tropas continuavam
cometendo muitas falhas que agora apareciam de forma ampliada pelo tamanho do
grupamento e pela comoção nacional que se gerou em torno do caso sertanejo, além
disso como vimos os jagunços estavam mais prontos para a luta do que nunca, pois
estavam armados até os dentes com a artilharia deixada pela expedição Moreira César,
mas por alguns fatores que foram relevantes para decidir a guerra ao cabo dessa última
longa campanha: o número elevado das tropas e dos soldados (cerca de 6500), o uso de
armamento ainda mais pesado do que até então se usou, incluindo o canhão inglês
Whitworth 32, chamado de matadeira pelos canudenses, a morte de alguns líderes
combatentes importantes para a defesa do arraial e a morte de Antônio Conselheiro, que
abalou moral e espiritualmente todo o povo sertanejo ali reunido, ela se deu a 22 de
setembro e o abatimento total da “cidadela mundéu” aconteceu no dia 05 de outubro.
Embora os eventos narrados na última expedição sejam interessantíssimos
e de enorme força trágica, não nos ateremos a eles, voltaremos os olhos para os
comentários finais sobre a empreitada de Canudos e o balanço que dela faz o narrador
euclidiano, cujos passos viemos seguindo até aqui.
A fim de analisarmos alguns últimos fragmentos do texto euclidiano que
julgamos importantes, gostaríamos de rememorar duas idéias centrais na obra e que não
podem ser esquecidas agora: a primeira é a inutilidade da guerra, a República, na visão
utópica do autor, não havia sido implantada para isso, ela devia levar aos concidadãos
sertanejos o progresso tão associado na época aos ideais democráticos e republicanos; a
segunda a de que fanatismo não se combate com fanatismo, daí a construção narrativa
mostrar a inversão dos papéis entre barbárie e civilização, para Euclides da Cunha o
112
vigor patriótico de vingança impingido pelo Exército, à revelia de todos os seus erros
estratégicos, dava tamanha mostra da insânia coletiva quanto o messianismo de
Canudos.
É nesse sentido que a narração antecipa, no decorrer do contar os feitos da
quarta expedição e da guerra em sua fase final, após tantos lances cruéis de ambas as
partes, mas sobretudo do Exército, a sua conclusão:
“Decididamente era indispensável que a
campanha de Canudos tivesse um objetivo superior
à função estúpida e bem pouco gloriosa de destruir
um povoado dos sertões. Havia um inimigo mais
sério a combater, em guerra mais demorada e digna.
Toda aquela campanha seria um crime inútil e
bárbaro, se não se aproveitassem os caminhos
abertos à artilharia para uma propaganda tenaz,
contínua e persistente, visando trazer para o nosso
tempo e incorporar à nossa existência aqueles rudes
compatriotas retardatários.
Mas sob a pressão de dificuldades exigindo
solução imediata e segura, não havia lugar para
essas visões longínquas do futuro.” (Id., p. 495)
O narrador coloca-se numa posição inocentemente condoreira,
romanticamente egocêntrica, porque, ao julgar a situação vendo os compatriotas como
retardatários, ele se coloca como alguém que vê mais longe e foi alcançado por essa
civilização que deseja levar ao próximo, mas, ainda assim, trata-se de um olhar humano
voltado para aquele povo e lugar esquecidos, uma visão moderna, até mesmo a frente do
seu tempo. Esse olhar, cem anos depois, nós ainda não alcançamos em todo o planeta, o
que justifica a existência das guerras e conflitos em toda parte do Globo, conduzidos por
interesses políticos e econômicos que prescindem do ser humano como peça-chave da
engrenagem que move o mundo. O narrador cumpre o objetivo proposto no início da
obra, ao compor a Nota Preliminar, denuncia, pois, as atrocidades cometidas e o sangue
derramado inutilmente. É nesse sentido que seguem as linhas finais que destacamos:
113
”Os soldados impunham invariavelmente à vítima
um viva à República, que era poucas vezes
satisfeito. Era o prólogo invariável de uma cena
cruel. Agarravam-na pelos cabelos, dobrando-lhe a
cabeça, esgargalando-lhe o pescoço; e, francamente
exposta a garganta, degolavam-na. Não raro a
sofreguidão do assassino repulsava esses
preparativos lúgubres. O processo era, então, mais
expedito: varavam-na, prestes, a facão.
Um golpe único, entrando pelo baixo ventre. Um
destripamento rápido...
Tínhamos valentes que ansiavam por essas
cobardias repugnantes, tácita e explicitamente
sancionadas pelos chefes militares. Apesar de três
séculos de atraso os sertanejos não lhes levavam a
palma do estadear idênticas barbaridades.
(...)
Era uma inversão de papéis. Uma antinomia
vergonhosa...
(...)
Fizera-se uma concessão ao gênero humano: não
se trucidavam mulheres e crianças. Fazia-se mister,
porém, que se não revelassem perigosas.
(...)
Aquilo não era uma campanha, era uma
charqueada. Não era a ação severa das leis, era
vingança.” (Id., p. 531-536)
Apesar de ter escolhido a palavra como arma para lutar sozinho na
empreitada de deixar na memória das gerações seguintes a experiência da guerra de
Canudos, ao cabo da narração, o narrador já não vê possibilidades de fazê-lo por não
conseguir transformar o indizível em dito, pela incapacidade de representar aquilo que
supera a própria linguagem. Numa atitude única do decorrer de quase 600 páginas de
texto, o autor não intitula as duas últimas sub-partes, destinadas a fechar a narração,
suspendendo-a. A pedido do narrador: “Fechemos este livro. (...)” (Id., p. 576) E
conclui, não podendo ir adiante, que “Ali estavam, no relevo de circunvoluções
expressivas, as linhas essenciais do crime e da loucura... É que ainda não existe um
Maudsley para as loucuras e os crimes das nacionalidades...” (Id., ibid.)
114
Capítulo 3: Percorrendo Vidas secas
De caráter inteiramente ficcional, a obra Vidas secas, de Graciliano Ramos,
apresenta um narrador heterodiegético que conta a história de uma família de migrantes
sertanejos. Nesta obra, embora uma voz externa à diegese guie o leitor, pode-se
perceber que o sertanejo Fabiano, assim como sua família, assumem discursos que se
diferenciam do narrador, por meio do uso intenso do discurso indireto livre, mesmo que
seja para reconhecer sua fraqueza diante de uma sociedade que não lhes dá voz nem
vez.
A linguagem empregada é bastante simples, sem floreios e rebuscamento,
assim como é simples a personagem sertaneja aí retratada. Agora não mais coletiva,
como em Euclides da Cunha, mais representada na figura de Fabiano e cada integrante
da sua família, que, embora singulares, acabam simbolizando a luta dramática de todas
as famílias de parcos recursos que sobrevivem nos sertões nordestinos, migrando de um
lado para o outro. Deste modo, a linguagem é simples, apesar de apresentar correção
gramatical, apenas incluindo aspectos da oralidade sertaneja quando as personagens
assumem a palavra por meio do discurso direto, numa tentativa de representação
verossímil da linguagem do interior, e seca, à maneira do lugar que nos serve de
115
cenário. Não há ênfase numa estrutura frástica que priorize a subordinação, por ser esse
mecanismo lingüístico mais sofisticado; ao contrário, há predomínio de frases curtas, às
vezes até mesmo nominais, orações coordenadas, numa economia de recursos
linguageiros que, num plano simbólico, representa a economia da vida e a precariedade
do homem em circunstâncias semelhantes. Para Rolando Morel Pinto (In:
GARBUGLIO, 1987, p. 257), “Ninguém desconhece o rigor com que Graciliano
trabalhou a matéria expressiva de sua última obra de ficção. Em Vidas secas as palavras
estão matematicamente contadas, para que nada pareça supérfluo ou luxuoso dentro da
moldura agreste em que se encaixam aqueles infelizes.”
O tempo no romance não é situado, como na obra de Euclides da Cunha, ou
seja, não há menção a datas específicas sobre quando efetivamente se passa a história.
Ao contrário segue-se o ritmo da natureza e das estações que se sucedem, como de resto
é o próprio ritmo da vida sertaneja, dedicada a lidar com o gado e com o plantio,
importando por isso fixar os olhos no céu e sentir nele a presença da seca. Como os
capítulos possuem certa autonomia dentro do todo, cada um representando um todo,
como no poema de Gregório de Mattos
9
, não há uma seqüência temporal, nem uma
linearidade que o encadeie.
O lugar, diferentemente dos sertões bem definidos e mapeados que
circundavam Canudos, é uma terra sem identificação concreta, mas onde também se
vivencia o drama da seca. A paisagem e o clima aí presente surgem à medida que se
relacionam e intervêm no cotidiano das personagens, havendo destaque para as cores
que colorem a vida nos sertões, com o predomínio das cores quentes, como o vermelho
e o alaranjado, cores do sol e relacionadas ao calor. Há uma pequena passagem do texto,
que tomamos como ilustrativa da relação entre o homem e a natureza no romance. Esta
9
“Mas se a parte o faz todo, sendo parte, / Não se diga, que é parte, sendo todo” Ao braço do Menino
Jesus quando aparecido In: Clássicos da Poesia Brasileira
116
o fustiga, mas é em função daquele que ela vem sendo mostrada. Logo no primeiro
capítulo, que fala da mudança da família, na verdade mais uma migração em busca de
um canto para se garantir a sobrevivência, o narrador comenta, criando a seguinte
prosopopéia, “Os juazeiros aproximaram-se, recuaram, sumiram-se.” (RAMOS, 1998,
p. 9). Aqui podemos perceber o movimento das árvores, que estão presas ao chão, quem
se movimenta de fato é a família, na lentidão própria de quem caminha sob o sol, mas é
a natureza que se move na descrição.
Há certa simplicidade na construção do romance que não pode apagar na
cabeça do leitor no ato da recepção da obra a densidade social das situações e
personagens em questão. Procuramos perceber como a construção de Fabiano e de sua
família representa literariamente o sertanejo e de que modo a narração se relaciona com
eles, e é isso que enfocaremos a partir daqui.
Vidas secas é o primeiro romance que traz o migrante nordestino no centro
da narrativa como protagonista. Não se trata apenas do sertanejo, que já havia ocupado
posição central anteriormente, como é o caso de Os sertões, que o abordará numa
posição privilegiada. Na obra agora em análise, o sertanejo é visto como o migrante,
empurrado para uma peregrinação recorrente no meio em que vive, como uma espécie
de judeu errante, em busca de uma vida melhor. A narração, como já dissemos
anteriormente, é feita em terceira pessoa, e o narrador apresenta momentos de
aproximação e outros de afastamento da matéria narrada.
Para Alfredo Bosi (1988), investigador cuidadoso da distância e da
aproximação que narrador exerce com as personagens, em particular com Fabiano, há,
na narrativa, cortes nítidos entre o ponto de vista da personagem, que é a do vaqueiro
pobre, ao mesmo tempo admirador da palavra, tentando imitar seus sons,
principalmente das mais difíceis, ainda que não lhes compreenda o sentido, e
117
desconfiadíssimo dela, sobretudo no que concerne a palavra escrita, e a visão do
narrador, que olha de cima o destino daquela família, enunciando a realidade opressiva
da vida cotidiana daqueles migrantes.
Mas com relação à palavra há uma semelhança de postura entre o narrador e
a personagem, pois ele também desconfia do discurso “civilizado”, estando de um lado
Fabiano, sertanejo iletrado, com sua voz fragmentada e lacônica, e do outro o narrador
que considera o discurso letrado como perigoso, optando por narrar sua história com
economia dos recursos lingüísticos.
A construção dessas vozes é feita com maestria no livro, não poderíamos
descrever esses discursos nem como totalmente indireto livre, nem como um monólogo
interior, há uma espécie de mistura entre eles, o que provoca uma tensão discursiva,
pois por muitas vezes as reflexões podem ser tanto do narrador quanto da personagem.
O sertanejo Fabiano é construído como sendo um indivíduo duro, áspero,
castigado pela aspereza da própria vida, não apresenta grande densidade psicológica,
sendo, portanto, um indivíduo simples, como tudo que o circunda. Há, porém, uma
profundidade na reflexão das questões sociais e da opressão que entremeia sua
condição, transmitida na obra pelo cruzamento dos pontos de vista do narrador e da
personagem.
Fabiano manifesta falta de trato no lidar com o outro, demonstrando a secura
até mesmo dos seus relacionamentos afetivos. Com os filhos, com quem comumente se
deveria manter uma postura de amor incondicional, ele se mostra homem impaciente e
grosseiro. Como no momento em que, cansado de tanto caminhar, o menino mais velho
joga-se ao chão em lágrimas, e o seu pai diretamente e por pensamento dirige-se a ele
assim: “Anda, condenado do diabo”, “Anda, excomungado”, “Fabiano desejou matá-
118
lo”, “a obstinação da criança irritava-o”, “passou a idéia de abandonar o filho naquele
descampado.” (RAMOS, 1998, p. 9-10)
Fabiano é, no entanto, como os sertanejos descritos por Euclides, um homem
bom, cumpridor dos seus deveres com honestidade, mas tem arroubos de cólera por
conta do seu “espírito atribulado” (Id., p. 10), devido às dificuldades que encontra. A
aspereza de Fabiano com sua família, sobretudo com seus filhos, porque sua mulher é
vista quase como uma igual, às vezes até mesmo como superior, por ser esperta e saber
contar, é uma reprodução em escala reduzida das relações econômico-sociais que
estabelece. Assim como ele é pequenino diante do patrão-algoz, com quem mantinha
relação de subserviência e servidão, os seus filhos eram os pequeninos diante do pai, de
quem dependiam diretamente para sobreviver. A família representa a mesma relação
opressiva da sociedade. Há ainda uma preocupação de Fabiano, ao tratar os filhos de
maneira firme e dura: educá-los. A vida que os esperava nos sertões não iria lhes
oferecer facilidades, sendo assim o pai pretendia discipliná-los para enfrentá-la.
Fabiano tem sentimentos, não é um homem ruim e sem caráter, é apenas
alguém embrutecido pelas circunstâncias, mas que consegue ainda mostrar a
sensibilidade quando, por exemplo, instigado pela mulher ou pela cachorrinha Baleia. É
assim que, ao olhar para mulher e pensar nas conseqüências do abandono do menino, “a
cólera desapareceu e Fabiano teve pena. Impossível abandonar aquele anjinho aos
bichos do mato.” (Id., p. 10). Ele vai da raiva à pena, mostrando a confusão de
sentimentos por que passa, fazendo jus à designação de espírito atribulado que recebe.
Sua sensibilidade é também remarcável quando lida com os animais, de quem, muitas
vezes se sente mais próximo, como fica visível no trato com a cachorrinha: “A cachorra
Baleia, aos saltos, veio lamber-lhe as mãos grossas e cabeludas. Fabiano recebeu a
carícia, enterneceu-se.” (Id., p. 19); ou quando percebe o desapontamento da cadelinha
119
diante do sumiço da novilha raposa que não conseguia encontrar: “Depois de alguns
minutos voltou desanimada, triste, o rabo murcho. Fabiano consolou-a, afagou-a.” (Id.,
p. 20), ou quando após a família ter transformado o papagaio em comida, ele olhava
para as tralhas que carregavam e “estranhava não ver sobre o baú de folha a gaiola
pequena onde a ave se equilibrava mal. Fabiano também às vezes sentia falta dela.”
[grifos nossos].
É importante fazer esse apontamento de que o sertanejo Fabiano é visto
como alguém duro, mas que possui sentimentos, porque tal fato preenche de
humanidade a composição da personagem sertaneja, que não é considerada um títere
simplesmente, ele é, não deixando de considerar sua condição de ser de papel, de
representação simbólica, alguém que sente, possui reflexão sobre as situações que o
cercam, embora não consiga expressá-la pela palavra, reconhecendo-se como não
proprietário da forma culta de ver o mundo. Apesar de que Fabiano mesmo percebe que
dominar certo nível de cultura não significa garantia de salvação diante do
imponderável da seca e das estruturas sociais mais determinantes do que o regime
natural que se impõe, como percebemos nessa reflexão de Fabiano, via narração, sobre
seu Tomás da bolandeira: “‘Para que tanto papel? Quando a desgraça chegar, seu Tomás
se estrepa, igualzinho aos outros.’ Pois viera a seca, e o pobre do velho, tão bom e tão
lido, perdera tudo, andava por aí, mole.” (Id., p. 22) ou ainda Coitado. Para que lhe
servira tanto livro, tanto jornal? Morrera por causa do estômago doente e das pernas
fracas” (Id., p. 24). Isto quer dizer que, nos sertões, o conhecimento letrado é de menor
valia diante vida rude imposta ao homem, por isso mesmo que, para Fabiano, a
preocupação com a formação educacional de seus filhos estava no âmbito da
aprendizagem da lida sertaneja com o gado, com os regimes pluviométricos escassos
que se adivinha pelas indicações da natureza, com o plantio, pois a educação formal e a
120
delicadeza de espírito é encarada com estranhamento, quase como um sinal de não
pertença àquele mundo, como neste outro fragmento também sobre seu Tomás: “Seu
Tomás da bolandeira falava bem, estragava os olhos em cima de jornais e livros, mas
não sabia mandar: pedia. Esquisitice um homem remediado ser cortês. Até o povo
censurava aquelas maneiras. Mas todos obedeciam ele. Ah! Quem disse que não
obedeciam?” (Id., p. 22)
A nosso ver, há uma colocação antitética na maneira como Fabiano vê seu
Tomás, posto que ele não sabia mandar, como todos obedeciam? Porque a um pedido
não se obedece, atende-se. Mas o povo censurava seu Tomás, pois a aspereza da vida
sertaneja não concebia pessoas gentis como aquele senhor, fazendo com que ele fosse
visto como deslocado no meio em vivia. Fabiano, no entanto, apesar de comentar sobre
a “esquisitice” do seu jeito cortês, não deixa de mostrar por ele admiração, como se
pode perceber pelas diversas referências feitas a seu Tomás e também pelo comentário
final do fragmento, em que percebemos um valor semântico positivo, como se fizesse
subentender que se dispensava mandar para ser compreendido.
Tal admiração demonstra que também Fabiano possui fineza de espírito,
muito castigada, porém, pelos anos a fio na lida com a matéria bruta da vida.
A relação da família com a cachorrinha Baleia é fundamental. Como uma
integrante daquele núcleo, ela atua determinantemente ali, inclusive como provedora do
grupo, quando, por exemplo, caça um preá, que acaba servindo de jantar para todos. Sua
importância é tanta que é possível considerá-la num patamar superior ao do menino
mais velho e do menino mais novo, porque ela possui nome, eles não; ela provém a si e,
às vezes, até todo o grupo, mas os meninos são dependentes e precisam ser educados
para a autonomia na vida sertaneja. O próprio nome da cadelinha representa uma utopia,
o desejo de abastança, não vivenciados por aqueles seres. Baleia, nome do gigantesco
121
animal marinho que serve como alcunha negativa para pessoas gordas, é visto de forma
positiva, pois a gordura corporal representaria fartura alimentar e tempo de felicidade no
sertão.
A humanização da cachorrinha é uma criação ambígua da obra, pois pode
gerar a pergunta: Baleia é humanizada ou a Fabiano e sua família são animalizados? A
animalização dos indivíduos advém como conseqüência da estrutura social que condena
ao nada todos aqueles sertanejos que vivem na “servidão voluntária”, da qual fala
Euclides da Cunha em Os sertões. A terra oferece pouco por sua condição natural
sertaneja, pelo fraco regime de chuvas que a torna estéril, mas o que existe ainda não é
dividido de forma adequada, a fim de tornar a existência menos penosa.
Fabiano não considera ser um bicho característica ruim nos sertões e vê isso
com orgulho: “Você é um bicho, Fabiano. Isto para ele era motivo de orgulho. Sim
senhor, um bicho, capaz de vencer dificuldades. Chegara naquela situação medonha e
ali estava, forte, até gordo, fumando o seu cigarro de palha.” (Id., p. 18) Por ter em
conta que saber sobreviver na dificuldade é qualidade imprescindível a um sertanejo,
Fabiano não indignidade na designação, e também a aplica à Baleia : “Você é um
bicho, Baleia.” (Id., p. 19) colocando-os na mesma condição, igualando-os por assim
dizer. Mas, no ponto de vista do narrador, ser bicho não é situação adequada a nenhum
indivíduo, daí as descrições que deveriam chocar leitor, como esta que mostra Fabiano
tentando saciar sua sede: “Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, encaminhou-se ao rio
seco, achou no bebedouro dos animais um pouco de lama. Cavou a areia com as unhas,
esperou que a água marejasse e, debruçando-se no chão, bebeu muito. Saciado, caiu de
papo para cima (...)” (Id., p. 14). Provocar a reflexão sobre a condição do homem
sertanejo é uma das grandes propostas dessa obra de cunho social.
1
22
Embora não visse aspecto negativo em ser bicho no sertão, Fabiano gostaria
de ser homem, e isso fica claro também nos momentos em que se sente feliz, quando a
vida parece seguir um bom fluxo e ele pode dar asas a essas pretensões: “Fabiano, você
é um homem, exclamou em voz alta.” (Id., p. 18), ou então quando percebia que, apesar
do jeito inabitual do seu Tomás da bolandeira, ele era ouvido e obedecido, e que o
“patrão atual berrava sem precisão” (Id., p. 22), pois ele não era um animal com quem
se devesse berrar.
Ainda com relação à humanidade da cachorrinha Baleia, o capítulo a ela
dedicado é um dos mais tristes da obra, pois a composição dessa personagem foi tão
delicadamente feita, ela é tão simpática, que o sofrimento pela sua morte toca
sobremaneira o leitor, sendo mais um sinal evidente de sua humanização. Ela é um feixe
de esperança no seio daquela família e sua maneira deleitosa e simples de encarar a
vida, com confiança no que deseja, é um alívio no meio da tensão narrativa. Como nesse
fragmento bastante engraçado:
“A cachorra Baleia (...) repousava junto à
trempe, cochilando no calor à espera de um osso.
Provavelmente não o receberia, mas acreditava nos
ossos, e o torpor que a embalava era doce. Mexia-se
de longe em longe, punha na dona as pupilas negras
onde a confiança brilhava. Admitia a existência de
um osso graúdo na panela, e ninguém lhe tirava esta
certeza, nenhuma inquietação lhe perturbava os
desejos moderados. Às vezes recebia pontapés sem
motivo. Os pontapés estavam previstos e não
dissipavam a imagem do osso.” (Id., p. 55).
A esperança da cadelinha contrapõe-se à sua falta nos seres humanos e à
falta de perspectiva de vida no sertão. Para Fabiano, ela é tão sensível e passageira, que,
quando a sente, deve-se ter muito cuidado, pois a sua presença pode ser muito rápida e
ela pode esvair-se como as primeiras chuvas no solo sertanejo: “O coração de Fabiano
bateu junto do coração de sinhá Vitória, um abraço cansado aproximou os farrapos que
123
os cobriam. Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados, sem ânimo de afrontar
de novo a luz dura, receosos de perder a esperança que os alentava.” (Id., p. 13) [grifo
nosso]
Muitas vezes Baleia é mostrada como superior aos humanos que a
circundam, como no caso acima, quando apresenta uma confiança inabalável na
realização dos seus desejos; ou quando consegue se comunicar melhor do que eles,
como nesse fragmento em que se contrapõe a sua figura à do menino mais velho:
“O pequeno sentou-se, acomodou nas pernas a
cabeça da cachorra, pôs-se a contar-lhe baixinho
uma história. Tinha um vocabulário quase tão
minguado como o do papagaio que morrera no
tempo da seca. Valia-se, pois, de exclamações e de
gestos, e Baleia respondia com o rabo, com a língua,
com movimentos fáceis de entender.” (id., p. 56)
[grifo nosso]
Ou ainda quando mostra ser mais razoável e sensata do que as crianças, não
tolerando que elas gritassem muito, como no fragmento em que o menino mais velho
cismou com a palavra “inferno” (interessante escolha do autor em colocar numa criança
a cisma exatamente com essa palavra, numa outra realidade ela poderia obstinar-se com
brinquedo, candura, cócegas, mas esse não é o caso do filho de um migrante
nordestino). Neste dia o menino ficou muito extasiado com a descoberta e pôs-se a
buscar-lhe explicações gritando e gesticulando. Mas
“Baleia detestava expansões violentas: estirou as
pernas, fechou os olhos e bocejou. Para ela os
pontapés eram fatos desagradáveis e necessários. Só
tinha um meio de evitá-los, a fuga. Mas às vezes
apanhavam-na de surpresa, uma extremidade de
alpercata batia-lhe no traseiro saía latindo, ia
esconder-se no mato, com desejo de morder canelas.
Incapaz de realizar o desejo, aquietava-se.
Efetivamente a exaltação do amigo era
desarrazoada. Tornou a estirar as pernas e bocejou
de novo. Seria bom dormir.” (Id., p. 60)
124
Nesse fragmento, por meio da liberdade concedida pela narração, podemos
perceber as ponderações da cadelinha, exemplo de comportamento, que sabe controlar
os seus desejos, quando estes, ao se concretizarem, prejudicam o próximo. Ao contrário,
o menino, por estar feliz e desejar manifestá-lo, incomodava o seu sono, fazendo-a
chegar à conclusão de que “seria bom dormir”.
Há uma empatia muito particular que nos aproxima dela e nos faz nos
apiedarmos pelo seu sofrimento. Na própria narração, afirma-se essa condição de
igualdade entre Baleia e os seres humanos com quem convive, como no seguinte
fragmento em que o narrador deixa-nos perceber o fluxo de consciência de um dos
meninos: “Ela era como uma pessoa da família: brincavam juntos os três, para bem
dizer não se diferençavam, rebolavam na areia do rio e no estrume fofo que ia subindo,
ameaçava cobrir o chiqueiro das cabras.” (Id., p. 85); ou ainda quando Fabiano, numa
arrelia por estar preso e deixando preocupada sua família, segue pensando nos seus
entes queridos, inclusive a cachorra: “E Fabiano se aperreava por causa dela, dos filhos
e da cachorra Baleia, que era como uma pessoa da família, sabida como gente.” (Id., p.
34). Mas há na excessiva humanização da cachorrinha e na empatia sentida por ela um
jogo narrativo que nos remete a um impasse: mas e os seres humanos? Não há quem os
poupe da doença, nem quem lhes abrande o sofrimento. E eles já nem podem sonhar
com preás gordos.
Outro aspecto importante da composição de Fabiano, que é a personagem
que representa o sertanejo na obra, é a sua relação com a palavra, que é sempre colocada
de forma tensa. Sua família não fala muito, não há uma comunicação consistente por
meio de palavras entre os membros daquele clã, e eles se vêem como não muito
habilidosos com ela. Um fato prosaico que comprova o predomínio do silêncio entre
eles é o papagaio morto no início da narrativa ser quase mudo, o que lhe justificou a ida
125
para a panela, estabelecendo-se uma relação simbólica entre o não falar e o morrer.
Observemos este trecho:
“Resolvera de supetão aproveitá-lo como alimento e
justificara-se declarando a si mesma que ele era
mudo e inútil. Não podia deixar de ser mudo.
Ordinariamente a família falava pouco. E depois
daquele desastre viviam todos calados, raramente
soltavam palavras curtas. O louro aboiava, tangendo
um gado inexistente, e latia arremedando a
cachorra.” (Id., p. 11) [grifo nosso]
A descrição dos ruídos produzidos pela ave é melancólica, os dois tipos de
sons que imitava não eram sequer sons humanos, por um lado o “ecô, ecô” para
chamar os bois inexistentes, tal som não possuía nem utilidade porque gado não havia;
por outro, o som típico de Baleia, sua forma de comunicação, destacando mais uma vez
a cachorrinha como pivô das relações estabelecidas entre os “viventes” daquele grupo.
O fato de não se articular bem com a linguagem humana não impede que
haja nas personagens certa agudeza de percepção e questionamento, sobretudo acerca da
condição em que vivem. Essa percepção, no entanto, apresenta-se nas confluências dos
discursos postos em tensão do narrador e das personagens construídas, promovendo a
ambigüidade no delinear dessas vozes, porque parece que, nesse sentido, os pontos de
vista, tanto de um quanto dos outros, encontram-se em concordância.
Para além da falta de jeito no uso da palavra, as personagens, especialmente
Fabiano, que é quem mais se questiona sobre isso, temem-nas, seja por sua inutilidade,
ou, o que ainda mais grave, por sua periculosidade. Nesse sentido, o trecho abaixo, uma
espécie de discurso indireto livre que mistura as vozes do narrador e de Fabiano, nos dá
uma pequena mostra dessa relação conflituosa com a linguagem:
“Às vezes utilizava nas relações com as pessoas a
mesma língua com que se dirigia aos brutos
exclamações, onomatopéias. Na verdade falava
pouco. Admirava as palavras compridas e difíceis da
126
gente da cidade, tentava reproduzir algumas, em
vão, mas sabia que elas eram inúteis e talvez
perigosas.” (Id., p. 20)
Ainda podemos perceber no texto acima, além do conflito mencionado,
uma oposição cidade/campo no que tange à linguagem, estabelecendo analogia entre
prolixidade e dificuldade de compreensão e ambiente urbano, e, por contraposição, entre
o sertão e a simplicidade do falar.
Atitude similar Fabiano manifesta com o conhecimento, vendo-se como
desprovido dele de fato e de direito, porque no sertão ele é artigo de pouca necessidade.
Daí uma crítica bastante contundente, pois de fato não se precisa daquilo que não se
tem, e não se tem aquilo não se é oferecido. Desde muito antes da aparição de Vidas
secas, apenas para rememorar a análise de Os sertões, Euclides já dizia qual era a
verdadeira luta que se devia empreender com o sertanejo: levar-lhe o progresso,
entendido de forma mais abrangente, não apenas como progresso técnico.
O conhecimento é tido como maluquice, tolice, insensatez ou como algo
de pouca praticidade naquele meio, além de ser um símbolo de eterna insatisfação,
porque à medida que se aprende, mais se necessita do aprendizado. Talvez a
personagem não precisasse de mais um vazio a ser preenchido, mais uma ausência a ser
computada. Vejamos:
“Fabiano dava-se bem com a ignorância. Tinha o
direito de saber? Tinha? Não tinha.
_ Está aí.
Se aprendesse qualquer coisa, necessitaria
aprender mais, e nunca ficaria satisfeito.
Lembrou-se de seu Tomás da bolandeira. Dos
homens do sertão o mais arrasado era seu Tomás da
bolandeira. Por quê? Só se era porque lia demais.”
(Id., p. 21-22)
Mesmo assim Fabiano, por diversas vezes, pega-se falando como o seu
Tomás da bolandeira, fingindo ser outro que não é, colocando-se de certa forma no
127
lugar daquele que domina a palavra a fim de representar-se sem aquela precariedade,
mas apenas nos momentos de insanidade, como uma criança a brincar de “agora eu era
o herói”, como na canção de Chico Buarque, para então chegar à conclusão ainda mais
dura de ter sido talhado sob a égide da desgraça da seca e da pobreza, como percebemos
no fragmento a seguir: “Em horas de maluqueira Fabiano desejava imitá-lo: dizia
palavras difíceis, truncando tudo e convencia-se de que melhorava. Tolice. Via-se
perfeitamente que um sujeito como ele não tinha nascido para falar certo.” (Id., p. 22)
Apesar disso, a personagem admite que a falta do conhecimento e do saber
lidar com a palavra fazia dele mais escravo dos outros ainda, porque não sabia se
defender, e usá-las seria um modo de auto-proteção, pois conseguiria, ao menos
explicar-se, dizer não, pôr limites na folga dos outros. Quando se encontra preso devido
ao abuso de autoridade do soldado amarelo, chega a pensar que isso se deve à sua
ignorância, e no fundo há razão nesse seu ponderar, pois a nossa sociedade atual nos
mostra que quem detém o poder da palavra e o poder econômico manipula, rouba,
abusa, sobe na vida, mesmo que não tenha tantos méritos, pode-se dizer ainda que
atualmente apenas um outro tipo detenção de poder se acrescentaria a esses dois: o da
beleza em consonância com padrão da moda vigente, visto que na sociedade
contemporânea predomina a exposição e o espetáculo. Nas reflexões da personagem
misturadas às do narrador, percebemos sua angústia:
“Era bruto, sim senhor, nunca havia aprendido,
não sabia explicar-se. Estava preso por isso? Como
era? Então mete-se um homem na cadeia porque ele
não sabe falar direito? Que mal fazia a sua
brutalidade? (...) Tinha culpa de ser bruto? Quem
tinha culpa?
(...)
Fabiano também não sabia falar. Às vezes
largava nomes arrevesados, por embromação. Via-se
perfeitamente que era tudo embromação. Via-se
perfeitamente que era tudo besteira. Não podia
arrumar o que tinha no interior. Se pudesse... Ah, se
128
pudesse, atacaria os soldados amarelos que
espancam as criaturas inofensivas.” (Id., p. 36)
Nesse trecho percebe-se ainda a palavra como força de organização do
interior humano, pelo seu poder de nomear, dizer o que se sente, fazer pensar, expor. Se
não há palavra, o vazio é ainda maior, pois não como se definir o que vai por dentro
deste homem.
Como conseqüência de não poder se defender por não conhecer mais e não
dominar a linguagem, surge o problema da relação com o poder, que no caso de
Fabiano, é muito difícil, colocando-o sempre numa situação de maior opressão. Tal
dificuldade já começa aparecer no fragmento destacado acima, no emprego do pretérito
imperfeito do subjuntivo (“se pudesse...”), lançando para o plano da impossibilidade o
desejo de fazer justiça com as próprias mãos, pois há aí, de entremeio, a questão da
autoridade do soldado, com quem não se deve bulir porque é “gente do governo”. Havia
mesmo entre os sertanejos que, como Fabiano, acostumaram-se a todas as violências e a
todas as injustiças, a idéia de que “apanhar do governo não é desfeita” (Id., p. 33), que
pretendia servir como consolo nos momentos de auge de desespero diante da sua
impotência.
A relação com o governo oficial também é vista com desconfiança, pois se
trata de uma terra onde ele parece de fato não existir, não se vê concretamente a sua
ação ali, devia ser algo bom demais, daí a cisão entre o soldado amarelo, que com o
pouco poder que tem ainda abusa dele, e o Governo, abstração absoluta na cabeça da
personagem, e uma ironia na fala do narrador. Como se percebe nesse fragmento:
“E por mais que forcejasse, não se convencia de que
o soldado amarelo fosse governo. Governo, coisa
distante e perfeita, não podia errar. O soldado
amarelo estava ali perto, além da grade, era fraco e
ruim, jogava na esteira com os matutos e provocava-
os depois. O governo não devia consentir tão grande
safadeza.” (Id., p. 33-34)
129
Também a relação de Fabiano com o patrão demonstra a dificuldade de
lidar com o poder, que aqui se apresenta pelo eixo econômico. O sertanejo, embora não
tendo estudado, confia nas contas da sua mulher, porque ela “tinha miolo” (Id., p. 93).
Só que no sertão, e essa é outra contundente crítica da obra, os homens trabalhadores e
honestos estão entregues a patrões que se apossam da terra, utilizam a miséria da
população a seu favor e ainda tomam daquelas pessoas o pouco que conseguem
amealhar com o suor de muito sacrifício na luta diária na terra agreste com parcos
recursos. Aplica-se a Fabiano e à sua família a dura lei de mercado que sequer sabe que
existe, mas a farta mão-de-obra miserável existente e o temor do enfrentamento da
autoridade com quem não se sabe discutir levam as famílias sertanejas a caírem nas
mãos daquelas pessoas que lhes sugam tudo. É o que vemos na relação patrão-
empregado que se estabelece no fragmento abaixo, no qual mais uma vez a culpa de não
poder se impor diante dessa hierarquia deve-se, por um lado à falta de estudo e do trato
com a palavra, e, por outro, à diferença social que crava enorme fosso entre o patrão,
gente rica, e Fabiano, o bruto sertanejo:
“O patrão zangou-se, repeliu a insolência, achou
bom que o vaqueiro fosse procurar serviço noutra
fazenda.
Aí Fabiano baixou a pancada e amunhecou.
Bem, bem. Não era preciso barulho não. Se havia
dito palavra à-toa, pedia desculpa. Era bruto, não
fora ensinado. Atrevimento não tinha, conhecia seu
lugar. Um cabra. Ia lá puxar questão com gente rica?
Bruto, sim senhor, mas sabia respeitar os homens.
Devia ser ignorância da mulher, provavelmente
devia ser ignorância da mulher. Até estranhara as
contas dela. Enfim, como não sabia ler (um bruto,
sim senhor), acreditava na sua velha. Mas pedia
desculpa e jurava não cair noutra.” (Id., p. 93)
Vemos aí que as relações sociais existentes, acrescidas da precariedade do
homem sertanejo, levam-no a se submeter ao trato desigual com o fazendeiro, que não
130
cogita uma falha sua, nem aceita a “insolência” do empregado, porque, no Capitalismo,
é simples lidar com a insatisfação daquele pode menos, basta mandá-lo procurar serviço
em outro lugar, gerando desemprego e necessidade, que são molas-mestras do sistema
econômico.
Consideramos interessante o fato de a obra apresentar o mundo sertanejo
também pelo viés feminino, identificado em Sinhá Vitória. Isso é significativo. Nas
relações sociais em que a desigualdade e a opressão estão na base de tudo, a mulher
sertaneja, subserviente ao homem, vive num estado opressivo ainda maior, posto que a
família acaba reproduzindo, em escala diminuta, a sociedade que a entorna: o homem
oprimido pelo patrão e pelas relações econômicas oprime a mulher, esta, submetida ao
homem, oprime aqueles que são pequenos e dependentes dela, no caso de Sinhá Vitória
isso se dá com a cachorra e com os filhos, e acaba sobrando também para a raposa que
rouba a galinha mais gorda. No entanto, há certa consideração por parte do narrador na
construção da personagem sertaneja feminina, pois é ela quem detém o conhecimento
que ainda é capaz de garantir à família o lidar com as contas da casa, é ainda nela que se
encontra o desejo que vai além das necessidades cotidianas de sobrevivência, como o de
ter a cama de couro, que lhes garantiria conforto e lhes atribuiria o caráter de
humanidade, diferenciando-os do restante da criação: “(...) eram quase felizes. Só
faltava uma cama. Era o que aperreava Sinhá Vitória. Como já não se estazanava em
serviços pesados, gastava um pedaço da noite parafusando. E o costume de encafuar-se
ao escurecer não estava certo, que ninguém é galinha.” (Id., p. 45).
Por fim, a obra se fecha no ciclo da seca, que de retorno leva a família a
enfiar-se na estrada e, para além de migrar, fugir, pois a natureza dura os perseguia
assim como as relações econômicas mantidas com o patrão ausente, que lhes
transformava em eternos devedores. Apesar de tudo, a esperança continua empurrando
131
os passos desses seres que estão em busca da utopia, como o não lugar, na certeza de
que existirá, não se sabendo nem como, nem onde chegar nele. A cidade aparece de
certa forma como a expectativa de socorro, para onde o sertão continuaria mandando
homens “fortes, brutos, como Fabiano, Sinhá Vitória e os dois meninos.” (Id., p. 126).,
mas nela, se é possível escapar da seca sertaneja, não se foge das relações opressoras
que despem o homem de si mesmo e os iguala, seja na zona rural ou na urbana, seja
branco ou negro, numa mesma situação: a pobreza.
132
Capítulo 4: Contrastes e confrontos
10
Numa perspectiva de comparação, percebemos que as obras analisadas
são bastante diferentes no que concerne ao seu projeto literário de elaboração.
Para Euclides da Cunha, o objetivo era construir o livro vingador, que
denunciaria o crime cometido pelas forças oficiais do governo contra concidadãos
brasileiros que tinham contra si três séculos de abandono e atraso, a quem deveriam ser
levados os recursos técnicos e escola, ou em suas palavras, o progresso. Com intuito de
concretizar seu objetivo maior, lança mão de estratégias particulares para compor a
obra, que acaba se tornando um gênero híbrido, misto de história, ciências naturais,
jornalismo e também ficção, tomada em conjunto como texto literário. Se Os sertões
fosse apenas aquele arcabouço científico, de base positivista e determinista, que há
muito já tiveram seus conceitos superados, não contaria com a consideração que hoje
conta, nem seria tido como o livro número 1, no dizer de Regina Abreu (1998), para a
compreensão da cultura brasileira. Seu valor está no olhar humano lançado sobre aquele
acontecimento histórico, transformado em experiência que não pode ser esquecida, e na
construção de personagens que entraram para a galeria de grandes tipos da nossa
10
Tomamos de empréstimo o título de uma obra de Euclides da Cunha, que fala sobre os conflitos do
Peru com a Bolívia e o Brasil.
133
história literária por meio da pena de Euclides, como a personagem sertaneja, Antônio
Conselheiro e Moreira César.
Já Graciliano Ramos opta pela construção assumidamente ficcional da
obra, investindo numa relação intrínseca entre linguagem e discurso que ela veicula,
fazendo da primeira o espelho da secura do tema que lhe serve de material narrado, ao
mesmo tempo em que questiona o poder dessa mesma linguagem, para o mal ou para o
bem, na confluência das vozes inseparáveis do narrador e das personagens. A obra
apresenta uma visão pessimista das relações sócio-econômicas que circundam o
sertanejo, mantendo-o numa posição atávica de opressão e miséria. Há de certa forma
também um determinismo que perpassa a obra, mas diferentemente do apresentado em
Euclides da Cunha, o determinismo e até certo atavismo não estão ligados à ciência,
fazendo do meio, da raça e do momento histórico limites inescapáveis do destino do
homem, determinismo presente na obra de Graciliano reforça a idéia de que a situação
social do pobre no sertão é irrevogável, porque o sistema econômico que move as
relações humanas o prende na miséria, pois é necessária uma enorme massa de
despossuídos para que haja o pequeno grupo de privilegiados.
O lugar, os sertões, melhor dito no plural porque lhe mantém o caráter de
multiplicidade, e que serve de palco para as duas obras, não é o mesmo, no sentido de
que em Euclides da Cunha ele pode ser perfeitamente situável, mas ganha contornos
míticos devido à narração da história (ou da História?) como drama trágico e da
composição da personagem sertaneja como o herói do avesso, e em Graciliano Ramos o
lugar é uma abstração não situável, como se ele estivesse “em toda parte”, como viria a
afirmar depois Guimarães Rosa, sendo o cenário da peregrinação regular e interminável
daqueles retirantes nordestinos. Em comum, ambas as obras apresentam o fenômeno da
seca como a desgraça que fustiga o homem e que piora sua história de pobreza, embora
134
haja ainda em Euclides a questão de adaptação ao meio que, apesar de inóspito,
contribui para que o sertanejo seja mais forte e mais resistente.
O traço que une as duas trajetórias literárias, a nosso ver, é o olhar humano
e humanista lançado sobre a personagem sertaneja, vista como importante e merecedora
da consideração de dois intelectuais do porte de Euclides e Graciliano. É como se
dissessem que ela, em meio a turbulenta história republicana recém implantada, fosse a
chave de leitura para o Brasil cheio de contrastes, e que a sua observação atenta
permitiria a mudança de rumo no caminho de gritantes desigualdades sociais por que
sempre seguiu o nosso país. Ler essas obras hoje e procurar entende-las é ainda retomar
o desejo dos autores de construir um futuro de inclusão e democracia.
135
ANEXOS
136
Anexo 1:
Proclamação da República, Benedito Calixto, 1893. Óleo sobre tela, 123,5 x 198,5 cm.
Acervo da Pinacoteca Municipal de São Paulo.
137
Anexo 2:
A matadeira O canhão inglês Withworth 32
Imagem obtida na Google Imagens
138
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