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Esta citação evidencia a sacralização da leitura. A descrição da vestimenta dos
alunos mostra-os como muito pobres e o uso da conjunção “mas” torna evidente que o fato de
estarem próximos aos livros é argumento que anula a conclusão deduzível do primeiro
enunciado de que esses alunos são desprivilegiados. No discurso da revista, então, o
argumento que tem privilégio nesse movimento dos sentidos na argumentação, introduzido
pela conjunção “mas”, é que os alunos têm acesso aos livros. E isso dá ao livro um status de
algo superior, que liberta o indivíduo da miséria e das más condições de vida; é sagrado,
portanto. Com isso, temos um diálogo parafrástico com Britto (1999), para quem:
O debate sobre as questões de leitura, pelo menos nos últimos vinte anos, tem se
pautado numa espécie de a priori tacitamente estabelecido, ainda que não
explicitamente enunciado, de que a prática de leitura é fundamental para o
desenvolvimento intelectual dos sujeitos, contribuindo de forma inequívoca para a
construção de uma sociedade mais equilibrada, em que haja mais justiça,
produtividade e criatividade. Em outras palavras, o mesmo equívoco que se
constatou acima na compreensão do que seja a informação se manifesta em relação
ao valor da leitura, que deixa de ser uma prática social para tornar-se um ato
redentor, capaz de salvar o indivíduo da miséria e da ignorância. Nesta visão, o
livro, compreendido como objeto sagrado, objeto que encerraria saberes
extraordinários e ensinamentos maravilhosos, ganha contorno de panacéia
(BRITTO, 1999, p.6
).
O último parágrafo da reportagem traz um discurso, além de preconceituoso,
contraditório:
Tão improvável como ver filhos de agricultores lutando para manter livros por perto
é o fato deste projeto ter nascido por iniciativa do proprietário da Fazenda Lambari,
onde se localiza a escola. Investindo nela, ele alimenta a esperança de reter sua mão-
de-obra, sempre tão fugaz. É costume entre as fazendas de café uma itinerância
intensa, que prejudica a produção. Fazendo a ponte entre livros e crianças pouco
afeitas a eles, um grupo de mediadores de leitura trabalha com os professores, há
três anos, a mesma idéia: quem forma leitores, cria cidadãos. Se sairão muitos deste
projeto, ainda é cedo para saber. Mas se não fazê-lo, como sabê-lo? (PRADO, 2002,
p. 53).
O enunciado tenta valorizar a iniciativa do fazendeiro e isso se faz em
detrimento da imagem dos filhos dos agricultores. Neste caso, o preconceito contra os mais
humildes fica claro, pois a maneira como a revista enuncia mostra que o interesse pela leitura
não é comum ocorrer entre as classes menos privilegiadas economicamente. No entanto, de
acordo com a revista, a intenção do fazendeiro ao patrocinar o projeto seria de “reter sua mão-
de-obra, sempre tão fugaz”. Isso contraria o enunciado “quem forma leitores, cria cidadãos”,
uma vez que, se o intuito do idealizador do projeto é manter seus empregados, a leitura não irá
cumprir seu objetivo de formar cidadãos, pelo contrário, servirá para mantê-los presos a uma
situação, sem questioná-la.