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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CEARÁ
CENTRO DE HUMANIDADES
DEPARTAMENTO DE LETRAS VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGÜÍSTICA
Mestrado
ERA UMA VEZ...
UMA CHAPEUZINHO, SEIS SURDOS, SEIS HISTÓRIAS...
JULIANA DE BRITO MARQUES DOS SANTOS
Fortaleza, 2006
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JULIANA DE BRITO MARQUES DOS SANTOS
ERA UMA VEZ...
UMA CHAPEUZINHO, SEIS SURDOS, SEIS HISTÓRIAS...
Dissertação apresentada para a banca examinadora do
Programa de Pós-graduação em Lingüística da
Universidade Federal do Ceará, como exigência parcial
para a obtenção do título de Mestre em Lingüística sob a
orientação da Prof. Dra. Ana Célia Clementino Moura
Fortaleza, 2006
4
Dedico este trabalho a todos os surdos que me
ensinaram a re-significar o mundo através de
suas conversas silenciosas e de sua forma
singular de escrever.
5
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela luz...
Ao Neto, pelo amor...
Aos meus filhos, pela motivação...
Aos meus pais, pela educação...
À D. Janir, pelo apoio...
À Ana Célia, pela orientação...
À Verônica, pelos livros...
À Vanda e Vera, pela força...
Ao Luciano, pelo acolhimento...
À Andréa, pela ajuda...
À Renata, pelas contribuições teóricas...
À Margarida, pela amizade...
À Águeda, pela câmera...
Aos Intérpretes, pelas vozes e mãos...
Aos professores do ICES, pelo incentivo...
À FENEIS, pelas figuras...
Aos surdos, pela inspiração...
6
RESUMO
Este trabalho tem como objetivo a investigação da singularidade da escrita dos
surdos, observando e analisando como a história de vida de cada um influencia no português
escrito. Para a realização da pesquisa, foram analisados os textos escritos e reescritos da
história Chapeuzinho Vermelho, produzidos por seis alunos surdos, da 7ª. série, do Instituto
Cearense de Educação de Surdos, com o intuito de observar as características individuais
presentes nos textos de cada um dos sujeitos. Além da coleta dos textos, que ocorreu,
respectivamente, em maio e novembro de 2005, foram realizadas três entrevistas, todas com o
auxílio de um intérprete. A primeira, direcionada por meio de um questionário, ocorreu em
maio de 2005; e as duas últimas, uma não estruturada e outra semi-estruturada, ocorreram em
novembro de 2005. As entrevistas tiveram como objetivo coletar dados sobre a história de
vida dos sujeitos, suas vivências na escola e na família, suas opiniões sobre a importância e o
uso da língua portuguesa e da LIBRAS etc. As informações, obtidas nas entrevistas, foram
comparadas com a análise das características dos textos dos sujeitos, procurando observar
como a história de cada um pode estar presente em seus discursos, posto que acreditamos ser
o desempenho na escrita um reflexo de sua formação discursiva. Para a realização desta
pesquisa, foi assumida a concepção sócio-interacionista da linguagem, corroborando com
Vygotsky e de Bakhtin. Além de revisitar os preceitos destes lebres autores, também
apresento neste estudo um breve histórico da educação dos surdos e algumas características da
LIBRAS, por compreender serem estes alguns dos fatores que influenciam a escrita dos
surdos.
Palavras-chaves: escrita dos surdos, história de vida, educação especial.
7
ABSTRACT
The objective of this paper is to investigate the singularity of deaf student’s writing,
observing and analyzing on how their life story influences on their written Portuguese. The
research was based on the analysis of the texts that were written an rewritten about the
fairytale of Little Red Riding Hood, written by six deaf students, of the 7
th
grade, that study at
the Instituto Cearense de Educação de Surdos (ICES), with the objective of observing the
individual characteristics present in each texts of written by the six students. Besides the
collection of the texts, in May and November 2005, there were carried out three interviews,
all of them made with the help of an interpreter. The first interview was made through a
questionnaire, in May 2005; the second one was structured, and the other was semi-
structured, both were made in November 2005. The objective of the interviews sere to collect
data on the life story of the six students subjects, and also on their experiences in the school
and with their families, and their opinion on the importance of the use of Portuguese
language and of LIBRAS (Brazilian Sign Language). The data collected in the interviews,
was compared with the analysis of the characteristics of the student’s text, trying to observe
how their life story could be present in their writing, as we believed that the act of writing is a
reflex of our discursive formation. This research, was carried out based on the social-
interactive of the language, agree with the studies of Vygotsky and Bakhtin. Besides the
review of great researchers Vygotsky and Bakhtin, I also present in this study a brief history
deaf education and some characteristics of the LIBRAS (Brazilian Sign Language), as I agree
these are some of the factors that influence the writing of the deaf.
Word-keys: writing of the deaf ones, history of life, special education.
8
LISTA DE ABREVIATURAS
ABREVIATURA SIGNIFICADO
LIBRAS...................................Língua Brasileira de Sinais
LP.............................................Língua portuguesa
ICES........................................Instituto Cearense de Educação de Surdos
INES.......................................Instituto Nacional de Educação de Surdos
FENEIS..................................Federação Nacional de Educação e Integração de
Surdos no Brasil
CAS.......................................Centro de Atendimento ao Surdo
L1..........................................Primeira língua (LIBRAS)
L2.........................................Segunda língua (Português)
9
LISTA DE QUADROS E FIGURAS
QUADROS
Quadro 1: Relação fala/escrita........................................................................................... 15
Quadro 2: Estágio do desenvolvimento lingüístico em L1 e L2........................................ 16
Quadro 3: ponto de articulação dos sons vocálicos tônicos............................................... 51
FIGURAS
Figura 1: NUNCA.............................................................................................................. 49
Figura 2: ALFABETO MANUAL.................................................................................... 50
Figura 3: JÁ ...................................................................................................................... 52
Figura 4: NERVOSO......................................................................................................... 52
Figura 5: HOJE.................................................................................................................. 52
Figura 6: APRENDER....................................................................................................... 53
Figura 7: LARANJA.......................................................................................................... 53
Figura 8: AMAR................................................................................................................ 53
Figura 9: MEDO................................................................................................................ 54
Figura 10: MESTRADO.................................................................................................... 54
Figura 11: MESMA COISA.............................................................................................. 54
Figura 12: INFERIOR........................................................................................................ 55
Figura 13: PEQUENO....................................................................................................... 55
Figura 14: CASAR............................................................................................................ 56
Figura 15: CASADA......................................................................................................... 56
Figura 16: HOMEM........................................................................................................... 56
10
Figura 17: UM................................................................................................................... 57
Figura 18: DOIS................................................................................................................ 57
Figura 19: MUITOS.......................................................................................................... 57
Figura 20: PRESENTE...................................................................................................... 57
Figura 21: PASSADO........................................................................................................ 57
Figura 22: FUTURO.......................................................................................................... 57
Figura 23: GOSTAR.......................................................................................................... 58
Figura 24: GOSTAR-NÃO................................................................................................ 58
Figura 25: ESCOLA.......................................................................................................... 58
Figura 26: BANANA PODRE.......................................................................................... 58
Figura 27: ESTUDAR EL@ GOSTAR- NÃO................................................................. 59
Figura 28: [EU ESQUECER JORNAL] [ESQUECER].................................................. 60
Figura 29: [EU ESQUECER JORNAL] [ESQUECER]................................................... 60
Figura 30: FALAR............................................................................................................ 60
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – “PELA ESTRADA AFORA...” ....................................................... 14
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA – “UM CAMINHO PARA A CASA DA
VOVOZINHA”............................................................................................................ 23
2. O SURDO E A SUA HISTÓRIA................................................................................ 38
3. O SURDO E AS SUAS LÍNGUAS.............................................................................. 43
3.1. LIBRAS e LP - principais características................................................................ 47
3.1.1. Plano fonológico....................................................................................................... 50
3.1.2. Plano morfológico.................................................................................................... 55
3.1.3. Plano sintático.......................................................................................................... 59
4. PERCURSO METODOLÓGICO.............................................................................. 61
4.1. A natureza da pesquisa............................................................................................. 61
4.2. O contexto da pesquisa............................................................................................. 63
4.3. O perfil dos sujeitos.................................................................................................. 64
4.4. Procedimentos............................................................................................................ 67
5. ERA UMA VEZ ... AS HISTÓRIAS INFANTIS NA HISTÓRIA DE
CADA UM........................................................................................................................ 71
5.1. Era uma vez............................................................................................................... 75
5.2. Chapeuzinho vermelha............................................................................................. 81
5.3. Dorme-se melhor no inverno.................................................................................... 87
5.4. Manina pessoa............................................................................................................ 92
5.5. buú buú socorro........................................................................................................ 97
5.6. Minha vovó fui noite de missa.................................................................................. 102
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A HISTÓRIA NA ESCRITA.................................. 108
12
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................... 113
ANEXOS............................................................................................................................ 117
ANEXO I – Entrevista 1: ASO.......................................................................................... 118
ANEXO II – Entrevista 1: ANL......................................................................................... 119
ANEXO IIIEntrevista 1: CAM....................................................................................... 120
ANEXO IV Entrevista 1: IMB......................................................................................... 121
ANEXO V - Entrevista 1: HDS........................................................................................... 122
ANEXO VI – Entrevista 1: LAD........................................................................................ 123
13
INTRODUÇÃO – “PELA ESTRADA AFORA...”
Conviver com surdos é encantador e ao mesmo tempo angustiante. Encantador, porque
eles nos ensinam diariamente uma nova forma de ouvir e de ver o mundo. Angustiante,
porque esta nova forma de ouvir e de ver nos coloca em questionamento tudo o que
compreendemos do mundo. Esta dissertação de Mestrado é fruto do meu trabalho em sala de
aula como professora de português no Instituto Cearense de Educação de Surdos e de meus
estudos como mestranda em Lingüística da Universidade Federal do Ceará.
Encontra-se aqui um reflexo das minhas angústias e dos meus questionamentos diante
da minha prática e da minha vivência em sala de aula. Alguns dos questionamentos que me
levaram a realizar esta pesquisa foram:
1. Por que os surdos escrevem de uma forma tão diferente do português
pado? Seria uma interferência direta da LIBRAS no português?
2. Por que, entre os próprios surdos, há tantas diferenças no desempenho em
língua portuguesa? Seria uma influência direta da escola e da
metodologia de ensino?
Quando comecei minha pesquisa, eu acreditava que o que os surdos escreviam era uma
espécie de PORTULIBRAS”
1
, um português com estrutura e características da LIBRAS. Os
meus sujeitos eram alunos da 5ª. série do ICES e eu ainda havia lido muito pouco sobre
LIBRAS, surdez, ensino de surdos e escrita dos surdos. Tudo era ainda muito novo para mim
e minha imaturidade me fez tomar alguns posicionamentos que depois foram reavaliados.
1
Esta expressão é um neologismo criado por mim, inspirado na expressão “portunhol” (português+espanhol),
porque não há nenhuma palavra, que seja do meu conhecimento, para expressar o sentido que propus, há uma
semelhante que é “português sinalizado”, mas esta se refere a pessoas que têm o português como língua materna
e utiliza a LIBRAS como língua estrangeira, fazendo uso constante de estruturas da língua portuguesa e
datilologia (alfabeto manual). Este é, por exemplo, o meu caso, já que tenho um baixo grau de letramento em
LIBRAS uso português sinalizado, já os intérpretes, possuem um alto grau de letramento em LIBRAS e,
portanto, não usam o português sinalizado, mas a LIBRAS de fato.
14
Por exemplo, ao fazer uma correspondência direta do que eu conhecia sobre a relação da
oralidade com a escrita, levando em consideração o que Kato (1987) escreveu sobre processo
de desenvolvimento da fala e da escrita sob a influência do letramento, em que:
fala1 escrita1 escrita2 fala2
Quadro 1: Relação fala/escrita (KATO, 1987, p.11)
a fala1 seria a fala pré-letramento;
a escrita1 seria aquela que pretende representar a fala de forma mais
natural possível, havendo, portanto um alto grau de dependência da
escrita com a fala;
a escrita2 é a escrita que se torna autônoma da fala, através das
convenções rígidas, mais próxima da escrita padrão;
a fala2 é aquela que resulta do letramento.
E, também, partindo do que compreendi sobre a relação que Vygotsky (1984) faz sobre
linguagem escrita e oral. Em que a linguagem escrita é, inicialmente, um “simbolismo de
segunda ordem”, sendo, neste sentido, secundária à linguagem oral. Com o passar do tempo,
entretanto, a linguagem oral não tem mais tanta inflncia na escrita, cedendo espaço
enquanto elo intermediário entre a escrita e aquilo que representa, e a linguagem escrita passa
a representar diretamente a realidade, tornando-se um “simbolismo de primeira ordem”. Este
processo complexo não pode ser alcançado, segundo o autor, por metodologias mecânicas e
externas à criança, sendo necessário um longo processo de desenvolvimento das funções
psicológicas superiores e do desenvolvimento dos signos da infância.
Eu supunha que a escrita dos meus alunos tinha uma relação direta com a LIBRAS, que
havia um alto grau de dependência da escrita com a LIBRAS, fazendo um paralelo com o que
Kato (op.cit.) descrevera sobre a “escrita 1”, e também com o que Vygotsky (op.cit.) sobre
15
“simbolismo de segunda ordem” elaborei um quadro sobre o estágio do desenvolvimento
lingüístico em L1 (LIBRAS) e L2 (português):
Quadro 2: Estágio do desenvolvimento lingüístico em L1 e L2
Em que:
L1, para um sujeito surdo, é a sua primeira língua: LIBRAS;
L1.1 seria a língua de sinais “pré-letramento”
2
ou pré-escolarizão;
L2 é a sua segunda língua: a língua portuguesa;
L2.1 seria a língua portuguesa na modalidade escrita com um alto
grau interferência da ngua de sinais, ou seja, uma espécie de
“PORTULIBRAS” um português utilizado por pessoas que têm a
LIBRAS como 1ª. língua e possuem um baixo grau de letramento em
português.
L.2.2 seria a língua portuguesa padrão, mais autônoma da L1,
apresentando algumas convenções de escrita; e
L1.2 que seria uma língua de sinais resultante de uma forte influência
do grau de letramento, tanto em L1 como em L2.
2
Este termo é questionável, no sentido de que o letramento é um processo contínuo que se inicia antes mesmo de
se aprender a ler e a escrever, acredito que quando Kato utilizou esta terminologia ela pretendeu usá-la no
sentido de ser anterior ao processo de escolarização, posto que se pressupõe que será na escola, onde a criança
irá se instrumentalizar para o aprendizado da leitura e da escrita.
16
Acreditava, ainda, que este era um processo contínuo escalar, que o sujeito estaria
sempre aprendendo e construindo sua própria linguagem sob influência de inúmeros fatores,
por isso o quadro apresentava-se de forma ascendente.
No entanto, logo na minha primeira entrevista com os alunos da 5ª. série, descobri que a
maioria daqueles alunos não sabia praticamente nada de LIBRAS, que para muitos, naquele
ano estava acontecendo o primeiro contato com a língua de sinais; e, independentemente, de
serem oralizados ou não, nenhum escrevia o português padrão. Então, como a LIBRAS estaria
interferindo na escrita do português, se aqueles alunos não tinham a LIBRAS como primeira
língua?
Um outro problema que encontrei nesse meu projeto inicial foi que, ao ler mais
profundamente Vygotsky, compreendi que o aprendizado não é contínuo, nem ascendente, ele
é, na verdade, um processo de muitas idas e vindas, construções, desconstruções e
reconstruções. E foi a partir daí que desconstruí o que eu acreditava e passei a reconstruir
minha pesquisa.
Primeiro, mudando os sujeitos, passando a realizar a pesquisa com os alunos da 7ª. série
porque todos tinham um contato de no mínimo dois anos com a língua de sinais e segundo,
assumindo uma perspectiva sócio-histórica para avaliar a escrita dos sujeitos.
O objetivo da minha pesquisa passou a ser a investigação da singularidade da escrita dos
surdos, observando e analisando como a história de vida de cada um influencia na escrita.
Neste trabalho foram analisados os textos escritos e reescritos da história Chapeuzinho
Vermelho, produzidos por seis alunos surdos da 7ª. série do Instituto Cearense de Educação de
Surdos em, respectivamente, maio e novembro de 2005. A partir destes textos foi investigado,
por meio de entrevistas com o auxílio de um intérprete, como a história de vida de cada um
influencia em seus desempenhos em relação à escrita, posto que esta é um reflexo de sua
17
formação discursiva
3
. Compreendo que ler e produzir sentidos, equivale a poder deslocar-se
nas contingências sócio-históricas pelas quais o sujeito é afetado. Assim, espera-se que nossos
alunos produzam sentidos diferentes através de suas escolhas ao construir o texto, a partir de
suas identificações.
O critério para a escolha da escola e da turma ocorreu devido à minha necessidade
pessoal de investigar algo que se constituía um problema no meu dia-a-dia, em minha sala de
aula, na escola em que leciono; a escolha da hisria Chapeuzinho Vermelho foi motivada por
ser esta uma narrativa que todos os alunos da turma já conheciam; e o critério para a escolha
dos sujeitos levou em consideração: o texto escrito da hisria Chapeuzinho Vermelho feito
pelos alunos, a ilustração do texto e a escola em que os alunos estudaram no ensino
fundamental I (1ª. à 4ª. série).
Compreender a escrita dos surdos vem sendo a minha meta desde que comecei a
lecionar no Instituto Cearense de Educação de Surdos, mas quanto mais leio e analiso seus
textos, mais intrigada fico.rios pesquisadores realizaram estudos sobre a escrita, a leitura e
a educação dos surdos. Gesueli (1988), ao relatar uma experiência de alfabetização, destaca
algumas características dos textos elaborados por crianças surdas: entre outras peculiaridades,
suas construções apresentam uma seqüência de palavras que tende a desrespeitar a ordem
convencional da língua portuguesa, e os enunciados são compostos com predomínio de nomes
que, por vezes, substituem verbos.
Fernandes (1989), ao focalizar a escrita de surdos adultos que apresentam surdez
congênita, realizou uma avaliação de provas, que abrangia solicitações para completar frases,
inserir preposições em frases, redigir bilhetes, reproduzir textos lidos e responder a pequenos
questionários. Os resultados mostram boa incorporação da ortografia, decorrente do
3
Uma das contribuições importantes de Foucault (1987:43) para a Análise do Discurso é o conceito de formação
discursiva (FD), “é um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que
definiram, em uma época dada, e para uma área social, econômica e geográfica ou lingüística dada, as condições
de exercício da função enunciativa”.
18
refinamento da capacidade visual no surdo, exceto nas questões de acentuação (por esta
depender, em grande parte, do domínio da tonicidade das palavras faladas). Porém, o
desempenho nas provas revela diversas dificuldades, tais como limitação do léxico;
impropriedade no uso de preposições e na inserção de advérbio; uso inadequado de verbos;
domínio pobre das estruturas de coordenação e subordinação; e limitação de recursos para
atender a modalidades de registro do discurso.
Góes (1999), ao analisar textos de alunos surdos de classes de supletivo, entre a faixa
etária de 14 a 26 anos, observou que neles havia diversos desvios das regras de construção do
português, como o uso inadequado ou omissão de preposições; terminação verbal não-
correspondente à pessoa do verbo; inconsistência de tempo e modo verbal (sobretudo
alternância inadequada de presente e passado e terminão incorreta para tempo e pessoa do
verbo); flexão inadequada de gênero em adjetivos e artigos; uso incorreto do pronome pessoal
do caso oblíquo etc. Porém, foram relativamente pouco freqüentes os erros de ortografia,
confirmando pesquisas anteriores (como a de Fernandes, 1989).
Outra pesquisa que traz indicações nessa área é a de Rampelotto (1993), que abordou a
dimensão proposicional na elaboração de paráfrases escritas de narrativas, elaboradas por
adolescentes surdos. Entre os aspectos examinados, ficou evidenciada uma baixa capacidade
para recuperar proposições na atividade de recontar, diante de histórias simples e complexas.
Adicionalmente, os modos de construção do texto escrito sugerem que os sujeitos não
demonstravam haver internalizado plenamente a própria estrutura narrativa.
Problemas são registrados também em relação à leitura e compreensão de textos. Por
exemplo, Souza e Mendes (1987) analisaram os níveis de leitura e de produção escrita
alcançados por um grupo de alunos surdos, com idade entre 13 e 20 anos, de diferentes
instituições educacionais. Constataram que apenas uma pequena porcentagem do grupo
conseguia ler livros infantis ou juvenis; mais da metade interpretava somente textos curtos
19
(parágrafo de cinco ou seis linhas, com frases coordenadas simples); e outros apresentavam
possibilidades ainda mais limitadas de interpretação.
Como podemos observar, a linguagem tem sido tema central de muitos trabalhos e
pesquisas, e grandes têm sido as contribuições de diversos autores para a variedade de
problemas e abordagens por ela abarcadas. Este trabalho também está inserido em uma das
muitas frentes que a linguagem possibilita, ou seja, busca-se analisar a escrita de alunos
surdos. Para tanto, esta pesquisa busca a percepção de uma forma outra de linguagem que
ultrapasse a simples função de uso da língua e de suas regras. Assim, pensamos poder o
enfoque cio-histórico fornecer mais subdios para a compreensão das dimensões que
permeiam a questão da linguagem, percebida esta como forma intensa de interação.
Nesta pesquisa optamos por perceber os sujeitos como pessoas que têm voz, com os
quais o pesquisador o pode estabelecer uma simples relação de contemplação ou descrição,
ao contrário, estes devem ser compreendidos em seu processo social e dialógico. Segundo
Bakhtin (2000, p. 404-5),
O texto vive em contato com outro texto (contexto). Somente em seu
ponto de contato é que surge a luz que aclara para trás e para frente, fazendo
que o texto participe de um diálogo. Salientamos que se trata do contato
dialógico entre os textos (entre os enunciados), e não do contato mecânico
'opositivo' [...] Por trás desse contato, há o contato de pessoas e não de
coisas.
Entendemos, então, que, nessa perspectiva, passa-se de uma orientação monológica para
uma orientação dialógica, na qual tanto o sujeito pesquisador quanto o sujeito pesquisado
fazem parte do processo de pesquisa, estabelecendo uma efetiva interação. Da mesma forma
como o pesquisador não pode se manter neutro na situação de pesquisa, o pesquisado não
pode ser encarado como indivíduo passivo: ele é um sujeito ativo.
Recorrendo a Freitas (2000), observamos que há uma perfeita coerência entre essa
postura metodológica e a construção social de aprendizagem compartilhada, percebida nos
pressupostos sócio-hisricos de Vygotsky, Bakhtin e Luria, dentre outros. Assim, reafirma-se
20
a necessidade de compatibilidade metodológica com o tipo de homem social que estes autores
nos apresentam.
Considerando que o referencial teórico sócio-hisrico aponta-nos para processos
pedagógicos como processos intencionais, deliberados, dirigidos à construção de seres
psicológicos que são membros de uma cultura específica, cujo perfil, portanto, está balizado
por parâmetros culturalmente definidos, optamos por realizar, dentro dessa perspectiva, uma
"análise microgenética" de nossos dados. Utilizamos, para tal, as orientações de es (2000),
apoiada nos pressupostos de Vygotsky e Wertsch (1995), dentre outros, e constituídas a partir
de pesquisas fundamentadas em tal abordagem de análise. Segundo a autora, a análise
microgenética:
De um modo geral, trata-se de uma forma de construção de dados que requer
a atenção a detalhes e o recorte de episódios interativos, sendo o exame
orientado para o funcionamento de sujeitos focais, as relações intersubjetivas
e as condições sociais da situação, resultando num relato minucioso dos
acontecimentos. Freqüentemente, dadas às demandas de registro implicadas,
essa análise é associada ao uso de videogravação, envolvendo o domínio de
estratégias para a filmagem e a trabalhosa atividade de transcrição (ES,
2000, p. 9).
Reportando à construção metodológica apresentada por es (2000) para a nossa
pesquisa, especificamente, gostaríamos de esclarecer que o aspecto "macro" de nosso trabalho
caracteriza-se pelo tema amplo que o direciona, quer dizer, a linguagem escrita, e o aspecto
micro, que é o que mais nos interessa como direcionamento, são as minúcias e pistas
verificadas.
Desta forma, enfatizamos estes detalhes apresentados pela autora, por "olhares não
percebidos", "gestos perdidos", "sinais não respondidos", "dúvidas não esclarecidas",
"sentimentos de fracasso contidos", "vozes silenciadas", dentre outros, a partir da escrita e
reescrita da história Chapeuzinho Vermelho e de uma entrevista individual videogravada com
cada um dos seis sujeitos surdos envolvidos.
21
O presente trabalho está organizado da seguinte forma: o primeiro capítulo apresenta
uma reflexão sobre a importância da linguagem no processo de construção de conhecimento e
da própria identidade do sujeito, principalmente no que concerne à criança surda. Estarei
tomando como referencial a teoria histórico-cultural de Vygotsky e levando em conta também
alguns aspectos da teoria de Bakhtin, no que se refere à linguagem e à construção da
subjetividade.
O segundo capítulo contém um breve histórico da educação dos surdos e de suas
línguas. O terceiro capítulo apresenta algumas características da LIBRAS e da língua
portuguesa. O capítulo seguinte traz as considerações metodológicas, com a descrição dos
principais aspectos desta pesquisa. No capítulo posterior, é exposta a análise dos dados,
enfocando a singularidade da escrita do texto “Chapeuzinho Vermelho pelos surdos,
procurando observar como uma mesma história consegue se transformar em seis, que a
narrativa de cada sujeito está impregnada de sua própria história, sendo possível observar
marcas discursivas dos diferentes interlocutores no processo dialógico de cada aluno. Finalizo
o trabalho com uma breve síntese das análises e com a discussão de alguns pontos que
permanecem ainda em aberto, isto é, a partir do estudo feito, exponho algumas reflexões a
respeito da atuação educacional com a criança surda.
Meu intuito, com este trabalho, não é ficar meramente analisando erros e falhas na
escrita dos sujeitos, mas compreender a sua escrita como um espaço de interação do que eles
o, foram e serão, ou seja, como suas experiências de vida e como todos os discursos que os
rodeiam elucidam suas práticas, constroem e medeiam a relação dos sujeitos, consigo mesmo
e com os outros, constituindo as condições de produção de seus discursos.
22
1. FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA UM CAMINHO PARA A CASA DA
VOVOZINHA”
Este estudo utiliza o enfoque cio-histórico, visto que essa perspectiva “permite
perceber seus sujeitos como históricos, datados, concretos, marcados por uma cultura, os
quais criam idéias e consciência ao produzir e reproduzir a realidade social, sendo nela ao
mesmo tempo produzidos e reproduzidos” (FREITAS, 2000).
Na busca de contribuições sobre questões referentes à linguagem e de uma definição
mais clara e mais condizente com este trabalho, recorremos aos estudos de Smolka (1993,
1995) que, embora se apoiando na fundamentação teórica de Vygotsky, de linguagem como
instrumento, avança e reorganiza a concepção anterior.
Segundo a autora (1995), os estudos filiados à perspectiva sócio-histórica, que
consideram o papel do signo/palavra na constituição do funcionamento mental, o derivados
das formulações de Vygotsky, que versam sobre a concepção de linguagem como
instrumento.
Smolka (1995) salienta que, como Vygotsky não é claro em suas elaborações teóricas
referentes ao signo, este dá margem ao surgimento de várias interpretações sobre instrumento,
signo, mediação semiótica, dentre outros. Assim, muitas e diversificadas apropriações e
expansões têm sido feitas e diferentes formas de conceber a linguagem têm surgido.
Porém, apesar de tantas controvérsias quanto ao material teórico deixado, Smolka
(1995) afirma que as elaborações de Vygotsky o além da questão instrumental; ressaltam,
sobretudo, o caráter "constitutivo" da linguagem como será comentado mais adiante.
Conceber a linguagem, simplesmente, como instrumento, negligencia o aspecto constitutivo
que transparece nos estudos de Vygotsky. Ainda que a noção de instrumento apareça como
fundamental, ela não é suficiente para dar conta da complexidade da linguagem, não
23
caracteriza a atividade específica do homem. É a produção simbólica e significativa que
distingue e instaura a dimensão histórica e social "É para o homem produtor de signos, de
cultura, que Vygotsky olha. É sobre o homem que fala, que pensa, que significa, que ele se
indaga. É sobre o que o falar faz com o homem" (SMOLKA, 1995, p.13).
Feitas estas colocações, Smolka (1995, p.14) adota uma concepção de linguagem que
vai além da percepção de instrumento como "meio" ou como "modo" de ação, a saber, "neste
trabalho social e simbólico de produção de signos e sentidos, a linguagem não é só meio e
modo de (inter/oper) ação, mas é também produto histórico, objetivado; é
constitutiva/constituidora do homem enquanto sujeito (da e na linguagem)".
Discutir a linguagem à luz dos pressupostos cio-históricos é fundamental para que
possamos compreender bem a perspectiva que assumimos sobre os indivíduos surdos.
Adianto que, no nosso ponto de vista, os surdos são sujeitos com peculiaridades lingüísticas
específicas e que têm, como as demais pessoas, necessidade de uma linguagem viva e ativa
que lhes permita desenvolver e conviver como seres sociais e culturais.
As idéias defendidas por Vygotsky (1995) refutam a teoria de que crianças com alguma
deficiência ou cujo desenvolvimento foi impedido por um "defeito" não possam ter
oportunidades semelhantes às de outros indivíduos. Esta criança não é simplesmente uma
criança menos desenvolvida do que seus pares, mas uma criança que se desenvolve de modo
diferente. Em síntese, a defectologia proposta por Vygotsky (idem) e seus companheiros a
deficiência como uma variação particular ou tipo especial de desenvolvimento, e não uma
variante quantitativa da normalidade.
Vygotsky (1989) percebe que os problemas dos sujeitos com deficiência não são de
cunho biológico, mas social. Assim, também, a natureza dos processos compensatórios para o
desenvolvimento da criança com deficiência deve ser social e o biológica.
24
A tarefa da educação consistiria em garantir o envolvimento da criança com deficiência
com a vida, possibilitando-lhe compensações para a deficiência, ou seja, alterando o enlace
social com a vida por alguma outra via. Este é o olhar prospectivo de Vygotsky que nos leva a
olhar não o "menos" da deficiência, mas o "mais" da compensação, aquilo que pode ser feito.
As interações sociais assumem para Vygotsky (1994) uma relevância ainda mais
acentuada nos processos do desenvolvimento cognitivo. Para ele, os processos de
desenvolvimento e de aprendizado estão intimamente inter-relacionados. A ênfase para
Vygotsky está nas interações sociais, propondo que o aprendizado também resulta em
desenvolvimento cognitivo já que novos processos de desenvolvimento começam a surgir a
partir da interação da criança com outras pessoas.
Vygotsky (1997), ao estudar especificamente os processos de desenvolvimento
cognitivo de crianças com deficiências, percebeu uma nova face nos obstáculos interpostos
pela deficiência: além das dificuldades decorrentes da mesma, ele enxergou nesses obstáculos
também uma fonte de energia, uma mola propulsora para a busca de sua superação,
principalmente através de “rotas alternativas”.
Em seu trabalho Fundamentos da Defectologia (1997)”, Vygotsky conclui que os
princípios fundamentais do desenvolvimento são os mesmos para as crianças com ou sem
deficiência, mas que as limitações interpostas pela deficiência funcionam como um elemento
motivador, como um estímulo, uma supercompensação”, para a busca de caminhos
alternativos na execução de atividades ou no logro de objetivos dificultados pela deficiência.
Todo defecto crea los estímulos para elaborar uma compensación. Por ello
el estudio dinámico del niño deficiente no puede limitarse a determinar el
nivel y gravedad de la insuficiencia, sino que incluye obligatoriamente la
consideración de los procesos compensatorios, es decir, sustitutivos,
sobreestruturados y niveladores, en el desarrollo y la conducta del niño”
(VYGOTSKY, 1997, p. 14)
25
Trazendo essas discussões mais especificamente para a questão da surdez, Lacerda
(1996, p. 49), apoiada em Vygotsky, esclarece que
a surdez não significa outra coisa que a ausência de um dos elementos que
permitem a formação de relações com o ambiente. A função principal do
ouvido é a de receber e analisar os elementos sonoros do ambiente,
decompor a realidade em partes singulares com as quais se ligam nossas
reações, a fim de adaptar o mais possível o comportamento ao ambiente. Em
si mesmo, o comportamento humano, na sua totalidade de reações,
excluindo-se aquelas ligadas aos aspectos sonoros, permanece intacto no
surdo.
Emerge, assim, a necessidade de se buscar outros meios de aquisição de linguagem por
parte dos indivíduos surdos, os quais valorizem o sentido visual, visto que os sonoros não são
efetivos.
A dificuldade dos sujeitos surdos se refere à impossibilidade de aquisição espontânea
das línguas auditivo-orais, majoritárias em nossa sociedade, não é somente por conta de
questões orgânicas ligadas à surdez, mas também por causa de suas repercussões sociais e
culturais. Se não for utilizada a ngua de sinais, todos os outros mecanismos utilizados com
os sujeitos surdos serão artificiais, prejudicando, inclusive, o desenvolvimento natural destas
crianças.
A aprendizagem tardia da língua de sinais por parte dos alunos surdos - muitos a
aprendem somente na adolescência ou na idade adulta - causa-lhes uma série de danos, dentre
eles, a falta de organização do pensamento de forma mais desenvolvida que, por falta da
língua adquirida nas interações sociais, fixa-se apenas nos atributos concretos dos objetos,
comprometendo, sobremaneira, o avanço conceitual dos mesmos. "Se a criança com surdez
não se desvincula do ambiente concreto ela não terá condições favoráveis de desenvolver as
funções organizadora e planejadora da linguagem satisfatoriamente". (GOLDFELD, 1997,
p.60)
Então, se percebemos na linguagem seu caráter primordial de constitutividade, devemos
assumir que a línguagem é constitutiva do conhecimento, assim, precisamos reconhecer a
26
mediação com base na Língua de Sinais como língua efetiva para qualquer prática pedagógica
com fins educacionais para sujeitos surdos.
Vygotsky (1989:119) atribui relevância ao processo de aquisição da linguagem escrita,
afirmando que esta desempenha um papel fundamental no desenvolvimento cultural da
criança. Porém, segundo este autor, a escola trabalha a escrita preocupando-se exclusivamente
com a codificação de letras e a forma mecânica de leitura e escritura: "ensina-se as crianças a
desenhar letras e construir palavras com elas, mas o se ensina a linguagem escrita. Enfatiza-
se de tal forma a mecânica de ler o que está escrito que acaba-se obscurecendo a linguagem
escrita como tal".
Uma crítica feita por Vygotsky (1989) refere-se ao "treinamento" da escrita, imposto aos
alunos, quer dizer, o trabalho de escritura não se fundamenta nas necessidades naturais
desenvolvidas pelas crianças, mas, ao contrário, vem das mãos dos professores e, quando
aqueles "erram", são muitas vezes punidos e/ou rotulados como incapazes. O autor esclarece,
no entanto, que a história do desenvolvimento da linguagem escrita nas crianças é plena de
descontinuidades, ou seja, apresenta metamorfoses inesperadas, representadas pelo
aparecimento de formas novas, por processos de redução, pelo desaparecimento e
desenvolvimento reverso de velhas formas.
A fim de compreender melhor como se este processo de aquisição da linguagem
escrita pela criança, Vygotsky (1989) propôs o estudo da pré-história da linguagem escrita,
salientando pontos importantes, não lineares, pelos quais passa esse desenvolvimento e sua
relação com o aprendizado escolar. O autor aponta manifestações que partem do uso de gestos
como signos visuais, passando pelo desenvolvimento do simbolismo no brinquedo e no
desenho, até chegar ao simbolismo na escrita, propriamente dito.
Em relação ao desenvolvimento Vygotsky (idem) compreende-o como um processo que
se realiza fundamentalmente nos intercâmbios da criança no seu contexto histórico-cultural.
27
Isto é, o desenvolvimento das funções caracteristicamente humanas tem uma origem
sociocultural e que, desde o princípio, está implicada a mediação social, para a qual o papel da
linguagem se faz decisivo, enquanto condição de possibilidade de produção da cultura, da
história e, por conseguinte, do desenvolvimento humano.
A concepção de Bakhtin (1992) sobre apropriação e dialogicidade da linguagem é uma
das vias de possibilidade para o avanço na interpretação do desenvolvimento e da relação eu-
outro, compreendida numa perspectiva dialógica e relacional. Como indicam Wertsch e
Smolka (1995, p.131,132):
Os conceitos bakhtinianos como dialogia, linguagem e neros de fala representam
mecanismos concretos para ampliar afirmações de Vygotsky sobre as origens
sociais e a natureza social do funcionamento mental humano. Especificamente,
esses conceitos tornam possível explicar, por um lado, algumas vinculações entre
funcionamento intermental e intramental, e, por outro lado, os ambientes culturais,
históricos e institucionais. Essa vinculação destaca-se quando as linguagens sociais
e os gêneros de fala são considerados como recursos mediacionais.
Na acepção de Bakhtin (1992), as palavras pertencem a alguém num processo de
apropriação da palavra do outro. Como a constituição do sujeito se faz pela linguagem (tanto
para Bakhtin, como para Vygotsky), a sua existência se efetiva na relação com o outro,
portanto, num processo intersubjetivo – na terminologia de Vygotsky ou de alteridade – nos
termos bakhtininanos. Neste sentido, recorro às palavras do próprio Bakhtin (1992, p.405),
quando afirma, “a palavra do outro’ se transforma, dialogicamente, para tornar-se ‘palavra
pessoal-alheia’ com a ajuda de outras ‘palavras do outro’, e depois, palavra pessoal”
A condição fundamental para o processo de internalização, conforme foi concebido por
Vygotsky (1995), é a mediação simbólica. Vygotsky (idem, p.128) ressalta que o diferencial
da atividade mediada pelo instrumento físico daquela mediada pelo signo é a orientação
interna deste último, que traz transformações no próprio indivíduo.
Enquanto que a ferramenta ou a via colateral real estão orientadas a modificar algo
na situação externa, a função do signo, consiste, antes de tudo, em modificar algo
na reação ou na conduta do próprio homem. O signo não muda nada no próprio
objeto; limita-se a proporcionar-nos uma nova orientação ou a reestruturar a
operão psíquica.
28
Para ele, a ligação existente entre o instrumento e o signo caracteriza a existência das
funções psicológicas superiores, as quais distinguem qualitativamente a espécie humana dos
outros animais. É através da atividade semiótica que o homem ultrapassa a ação instrumental
transformando-a em ação significativa, e, nesse processo, faz história, superando as limitações
das determinações puramente genéticas da espécie.
Essas idéias também encontram eco nas palavras de Bakhtin. Vygotsky se refere ao
papel de transformador interno do signo e Bakhtin salienta essa função internamente
direcionada em relação ao sentido, e diz;
Não se deve esquecer que a coisa e a pessoa são apenas extremos, e não substâncias
absolutas. O sentido não pode (nem quer) modificar os fenômenos físicos,
materiais; o sentido não pode operar como força material. E, aliás, nem precisa: ele
é mais forte do que qualquer foa, modifica o sentido global do acontecimento e da
realidade, sem modificar o mais ínfimo de seus componentes reais (existenciais).
Tudo continua a ser como era, adquirindo um sentido absolutamente diferente
(transfiguração dos sentido na existência). A palavra de um texto se transfigura
num contexto novo (Bakhtin, 1992, p.408).
A partir dessas idéias, entende-se que a relação indivíduo/cultura ou indivíduo/mundo
social é inerente à existência humana e é, fundamentalmente, pela linguagem que essa relação
se estabelece. A criança se insere no mundo bem antes do seu nascimento, posto que, antes
deste acontecimento, ela faz parte do discurso e do desejo dos pais – e o apenas deles – e
neles é constituída, de modo que a sua inserção social antecede a ela própria, ao seu corpo
físico e biológico. Assim, o indivíduo é “desnaturalizado ao nascer e não lugar ou
tempo em que se possa falar do humano sem a implicação das relações sociais.
Portanto, pensar a relação indivíduo/mundo circundante é, necessariamente, introduzir a
mediação das relações sociais. Já que a criança não é apenas colocada em relação direta com o
seu ambiente social, ela é introduzida nela pelas pessoas que fazem parte de seu contexto mais
próximo e que trazem consigo uma história cultural, passada de geração a geração, dentro
deste contexto e destas relações a criança vai se construindo através das interações, pois ela
29
não é apenas uma receptora passiva, mas um sujeito interativo, construído nos processos
mediados pelo outro, pela linguagem, quer dizer, pelo funcionamento dialógico.
Bakhtin aborda os temas da consciência e do sujeito segundo a dialética da relação eu-
outro e novamente é possível identificar a aproximação de suas idéias com o pensamento de
Vygotsky. Para Bakhtin (1992, p.378), a construção do sujeito é possível na interação com
o outro, ou seja, a individuação e a consciência são processos decorrentes dessa interação:
Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha
consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc), e me é
dado com a entonação , com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de
mim, originalmente, através dos outros: deles recebo a palavra, a forma e o tom que
servirão para a formação original da representação que terei de mim mesmo (...)
Assim como o corpo que se forma originalmente dentro do seio (do corpo)
materno, a consciência do homem desperta envolta na consciência do outro. É mais
tarde que o indivíduo começa a reduzir seu eu a palavras e a categorias neutras, a
definir-se enquanto homem, independentemente da relação do eu com o outro.
O signo tem, portanto, uma importância fundamental em ambas as concepções teóricas.
Está subjacente às mesmas a compreensão da linguagem como sistema fundamental de
mediação semiótica. A linguagem é, por conseguinte, a ferramenta de base desse processo de
mediação, visto que é através dela que a experiência adquire sentido e é possível ser
compartilhada com os demais.
A compreensão de linguagem, que estou focalizando, é ampla e não se refere apenas à
expressão verbal, embora seja sobre esta (língua portuguesa escrita) que mais me atenho no
estudo empírico. A linguagem aqui considerada inclui língua portuguesa, língua de sinais,
gestos, sinais, atitudes e posturas envolvidas no processo comunicacional. Conforme indica
Bakhtin, a linguagem é um complexo físico, psíquico, fisiológico e social, cuja “unicidade do
meio social e a do contexto social imediato” (1992, p.70) são condições indispensáveis para
que a fala (oral ou sinalizada) “possa tornar-se um fato de linguagem” (idem, p.71). Neste
sentido, a enunciação
4
é produto da interação entre indivíduos inseridos em determinado
4
A enunciação é compreendida como todo o evento que envolve a produção do enunciado e que lhe dá sentido,
posto que se refere a um acontecimento dialógico único, situado num tempo e lugar, com objetivos e papéis
30
contexto social e a dialogicidade é característica inerente a qualquer enunciado. Portanto, o
dialogismo é a condição do sentido da fala.
Na realidade, toda a palavra comporta duas faces. Ela é determinada tanto pelo fato
de que procede de alguém, como pelo fato de que se dirige para algm. Ela
constitui justamente o produto da interação do locutor e do ouvinte. (...) A palavra
é o território comum do locutor e do interlocutor (BAKHTIN, 1992, p.113).
O caráter dialógico da linguagem se expressa na enunciação, que é um processo
comunicativo ininterrupto, no qual cada enunciado pressupõe enunciados precedentes e vários
outros que lhe sucederão. Assim, afastando-se e criticando as teorias objetivistas e idealistas
dos estudos lingüísticos de sua época, Bakhtin atribui importância decisiva ao papel do
enunciado na linguagem, justamente pelo caráter fundamentalmente dialógico do mesmo, por
ele acentuado. O enunciado é, portanto, em sua concepção, “a unidade real da comunicação
verbal” (1992, p.293), porque ele o enunciado supõe interlocutores (diretos ou indiretos)
que dialogam entre si e sob as condições que o contexto social e ideológico possibilitam. O
que define os limites ou fronteiras dos enunciados é exatamente a alternância dos
interlocutores no processo dialógico. A relação dialógica é uma relão de sentido que
envolve enunciados completos, subjacentes aos quais estão os sujeitos reais ou potenciais,
autores desses enunciados.
O aspecto polifônico do discurso que Bakhtin ressalta está diretamente relacionado a
essa natureza dialógica da linguagem. Diz respeito à multiplicidade de vozes presentes no
enunciado, posto que ele envolve vozes de outros personagens além do enunciador, que
podem, inclusive, ter pensamentos distintos, concordantes ou não; complementares ou
conflitivos. Ancorada nesta concepção bakhtiniana, Koch (1986, p.43) define polifonia
dizendo:
Trata-se da incorporação, ao próprio discurso, das vozes de outros enunciadores ou
personagens discursivos – o(s) interlocutor(es), terceiros, a opiniãoblica em
geral ou o senso comum ou seja, o coro de vozes que se manifesta normalmente
definidos entre os interlocutores e relões sociais pressupostas. O enunciado, por sua vez, é a manifestação
concreta da palavra na situação de interlocução. Nas palavras de Koch (1998, p.14),a enunciação deixa no
enunciado marcas que indicam (‘mostram’) a que título o enunciado é proferido”.
31
em cada discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso, o sendo
possível sepa-los radicalmente.
A polifonia é ilustrada por Bakhtin com o fenômeno da paródia, mas é extensiva, na sua
visão, a qualquer processo de enunciação. Esse tema está vinculado a outros por ele
desenvolvidos, como o fenômeno da “linguagem social” e dos “gêneros do discurso”, os quais
se referem à peculiaridade de discursos relativos a determinadas esferas da sociedade -
terminologias profissionais, gírias de grupos etários, jargões políticos, linguagem de
autoridade, ordens militares e muitas outras que são incorporados nas práticas discursivas
cotidianas, como formas típicas de expressão de certos grupos sociais e das pessoas em geral
e são por elas utilizados fluentemente, mesmo que não tenham clareza de sua definição
conceitual. Como explicam Wertsch e Smolka (1995, p.129),
Na perspectiva de Bakhtin, o falante sempre invoca uma linguagem social ao
produzir uma enunciação, e essa linguagem social configura o que a voz individual
do falante quer dizer. Esse processo de produzir enunciações únicas, falando em
linguagens sociais, envolve um tipo específico de dialogia ou polifonia que Bakhtin
denominou de ventriloquação” (Bakhtin, 1981), ou o processo no qual uma voz
fala por meio de uma outra voz ou tipo de voz encontrado em uma linguagem
social.
No entanto, nem sempre essa polifonia se explicita nos enunciados textuais – falados ou
escritos. Por vezes, ela é abafada em discursos monofônicos que dão a aparência da existência
de uma única voz. Essa noção de polifonia, introduzida por Bakhtin na sua teorização sobre a
linguagem, articula-se com sua concepção do caráter intrinsecamente ideológico do signo.
Para ele, a linguagempode ser compreendida em toda sua complexidade se analisada como
fenômeno socioideológico, se apreendida dialogicamente no fluxo da história. Isso porque,
em sua visão, todo signo é ideológico, já que se constitui nas relações sociais e toda
modificação ideológica que se dá no seio dessas relações acarreta modificações na língua. Da
mesma forma, o ideológico é sempre um signo, porque inevitavelmente possui um
significado.
32
As palavras o tecidas a partir de uma multio de fios ideogicos e servem de
trama a todas a relações sociais em todos os domínios. É portanto claro que a
palavra será sempre o indicador mais sensível de todas as transformações sociais,
mesmo daquelas que apenas despontam, que ainda não tomaram forma, que ainda
o abriram caminho para sistemas ideológicos estruturados e bem formados
(BAKHTIN, 1992, p.41).
Assim, os signos podem surgir nas relações sociais ou, nos termos de Bakhtin, no
“terreno interindividual”. É na interação verbal que a palavra adquire significado e se
concretiza como signo ideológico. A interação verbal é possível à medida que os
indivíduos estão organizados socialmente, que é unicamente no seio de uma organização
social que um sistema de signos pode ser constituído. Como a linguagem não existe fora de
um contexto social e cultural e é forjada nas ações comunicativas e representativas que se
realizam entre as pessoas, os aspectos da dialogicidade e da ideologia são inerentes e
constitutivos da linguagem.
Vygotsky, embora não afirme direta e explicitamente esse caráter ideológico do signo,
aborda o problema da consciência como processo social, vinculando-o à discussão sobre a
relação entre pensamento e linguagem. Para ele, o significado da palavra é a unidade de
análise do pensamento verbal, pois é no significado da palavra que se encontra o elo de
ligação entre pensamento e linguagem. A palavra não existe sem significado, portanto, esse é
um traço constitutivo da palavra e, como tal, é um fenômeno da linguagem. Sendo o
significado da palavra, no seu aspecto psicológico, uma generalização, um conceito, ele é
também um fenômeno do pensamento. Essa relação é processual e consiste no movimento do
pensamento à palavra e desta ao pensamento. Vygotsky (1989, p.296) explica esse movimento
dizendo:
Todo pensamento possui movimento, fluidez, desenvolvimento, em uma palavra, o
pensamento desempenha uma função determinada, um trabalho determinado,
resolve uma tarefa determinada. Esse fluir do pensamento se efetua como um
movimento interno através de toda uma série de planos, como o passo do
pensamento à palavra e da palavra ao pensamento.
33
Assim como para Vygotsky não existe palavra sem significado, para Bakhtin não existe
atividade mental sem expressão semiótica. Portanto, pensamento e linguagem apresentam
uma relação intrínseca, na qual está implicada a interação verbal. Isto significa que, para estes
dois teóricos, o princípio organizador e formador da atividade mental e da consciência o é
inerente ao sujeito, mas se constitui na interação verbal.
Ao enfocarmos, neste trabalho, especificamente, a constituição da escrita por sujeitos
surdos, reconhecemos a grande dificuldade que estes indivíduos têm nessa modalidade, que se
revela um desafio para eles. Sobre o processo de escolarização e alfabetizão do aluno surdo,
Nogueira (1997, p.53) afirma que:
Ser alfabetizado supõe a possibilidade de [...] "decifrar" componentes
ideográficos que rompam com a suposta relação fonética, bem como
conhecer a distância entre o escrito e o falado (e no caso dos surdos, também
entre a língua portuguesa e a Língua Brasileira de Sinais - LIBRAS).
Sabemos que a capacidade visual não é condição suficiente para a aprendizagem da
escrita. Na verdade, este é um processo complexo que requer estratégias que vão além da
decifração de letras e do simples fato de saber "falar" a língua, senão não existiriam pessoas
que, apesar de ouvirem bem, são analfabetas.
A aprendizagem da escrita, contudo, torna-se ainda mais complexa para os sujeitos
surdos pelo fato de as metodologias de ensino, voltadas para essa especificidade, serem
fundamentadas, exclusivamente, no aspecto fônico da língua, e o ensino se dá muitas vezes de
forma descontextualizada e mecânica. O resultado, para os sujeitos surdos, acaba sendo um
desenvolvimento precário e insuficiente da modalidade escrita do Português.
Percebemos, então, que as práticas pedagógicas utilizadas, ao longo dos anos, com fins
de alfabetização, fundamentaram-se na idéia de que o bom desempenho com a linguagem oral
é garantia para o bom aprendizado, sobretudo no processo de escrita.
Historicamente, as línguas orais são percebidas como avanço na constituição da
linguagem, isto é, a partir da evolução da espécie humana e do uso do sistema fonador,
34
constituiu-se a efetivação da comunicação entre as pessoas. "No início do desenvolvimento da
espécie humana, a comunicação era feita através de gestos; com a evolução da espécie
humana, o sistema fonador passou a ser utilizado na comunicação entre as pessoas" (LURIA,
1986, p.94). Como conseqüência disso, as línguas orais, majoritárias na maioria das
comunidades, o consideradas básicas, convencionalmente, para quaisquer práticas
pedagógicas, ficando as línguas visogestuais, como a língua de sinais, em segundo plano, e os
sujeitos que a utilizam, à margem de possibilidades mais significativas de aprendizagem,
sendo "obrigados" a se "ajustarem", num modelo padronizado e idealizado para atender a
sociedade em geral. Assim, na maioria das vezes, cobra-se um ajuste por parte desses sujeitos
e não se efetivam práticas pedagógicas condizentes com as diferenças lingüísticas que lhes
o peculiares.
Segundo Silva (2001, p.43-4),
é necessário enfatizar que as condições de aprendizagem da leitura e da
escrita no processo de escolarização do aluno surdo dependem, por via de
regra, do modo pelo qual são encaradas suas dificuldades e as diferenças
ocorridas no processo educacional pelas instituições, levando-o a adquirir
confiabilidade nas dificuldades encontradas. Nessa mesma ótica é preciso
destacar que o surdo, antes de ter dificuldades na escola, apresenta
dificuldades de aquisição da língua, instalando-se a grande diferença de
escolarização entre o surdo e o ouvinte.
De acordo com Smolka (2000), a alfabetização implica leitura e escritura como
momentos discursivos, porque esse processo de aquisição também vai se dando numa
sucessão de encontros dialógicos, de interlocução, de interação, sempre permeado por um
sentido, por um desejo de escrever, pressupondo sempre o outro.
Assim, referindo-nos à situação dos alunos surdos e partindo do pressuposto de que
estes sujeitos, quase sempre, não dominam a ngua Portuguesa (no caso do Brasil), pelo
menos nos anos iniciais do processo escolar, verificamos que o processo de constituição da
escritura por parte dos mesmos não segue as mesmas características dos ouvintes, os quais se
apóiam na linguagem oral para produzir a escrita. Aponta-se, assim, para a importância da
35
interlocução em sinais para o desenvolvimento de um trabalho educacional mais efetivo com
as crianças surdas.
Estudos atuais como os de Lacerda (1996, 2000), Souza (1998), Silva (2001) e Gesueli
(1998), dentre outros, mostram que, quando o sujeito surdo tem acesso a uma ngua viva e
compreensível, neste caso a Língua de Sinais, é capaz de, a partir dessa língua, aprender
também a língua oficial de seu país na modalidade escrita.
Com relação às práticas pedagógicas utilizadas com alunos surdos, notamos que muitas
situações evidenciam a preocupação com o treino mecânico da fala, como ensaios, escrita do
nome do objeto. As instituições escolares trabalham, sobretudo nos anos iniciais da vida
escolar, com atividades exclusivas de metalinguagem, incluindo exercícios de descrição
gramatical e estudo de regras, otimizando a variedade culta, em detrimento de atividades
epilingüísticas
5
e lingüísticas (atividades inter-subjetivas).
Sabe-se que a escrita exige da criança ouvinte uma dupla abstração, quer dizer, num
primeiro momento, em relação aos possíveis vínculos com a oralidade e, num segundo
momento, em relação aos interlocutores. Daí a complexidade do processo que exige da
criança uma certa reflexão sobre o conhecimento a ser construído. Segundo Gesueli (1998,
p.15):
Transpondo esse argumento para nossa discussão, podemos dizer que, se a
escrita não repete a história da fala e se necessário é que a criança se
desligue do aspecto sensorial dos sons da fala para a construção desse
sistema, o aluno surdo terá na língua de sinais a grande possibilidade para
desempenhar essa tarefa sem contar necessariamente com a intermediação
da fala. Podemos constatar, através dos dados apresentados, uma relação
mútua entre a escrita e os sinais e a importância destes como a língua que
vai interpretar os signos gráficos a partir da interação com o outro, levando a
criança surda a desenvolver a escrita em toda sua plenitude, para que esta se
torne inteligível para outrem.
Assim, percebe-se que a constituição da escrita para a criança surda se dá em momentos
discursivos, na interlocução, na dialogicidade, no encorajamento do aluno para o ato da
5
Como atividades epilingüísticas, entenda-se o trabalho reflexivo e de transformação elaborado com a linguagem
escrita. Citem-se exemplos, tais como: ampliação de sintagmas, transformações de sintagmas nominais em verbais e
vice-versa, alteração de conectivos, sempre observando-se os efeitos provocados.
36
escrita, num espo de liberdade, no entrecruzamento das várias vozes que circulam no
âmbito escolar. Cabe ao professor incentivar o contato com materiais escritos, significativos,
para que o aluno surdo sinta a necessidade do ler e do escrever.
37
2. O SURDO E A SUA HISTÓRIA
Durante a Idade Média, momento que se caracterizou pela cultura teocêntrica,
acreditava-se que os surdos eram ineducáveis (LEITÃO, 2003, p.53) e, somente por meio da
fé, poderia haver a cura da surdez. Neste período, poucas eram as pessoas que tinham acesso
ao estudo, e este jamais poderia oferecer uma ascensão social, pois neste período quem nascia
nobre morria nobre, quem nascia surdo morria mudo, porque esta era a vontade de Deus!
Esta perspectiva foi sendo modificada à medida que a Idade Média decaía e o poder da
burguesia ascendia, trazendo à tona uma nova visão de mundo, em que não mais Deus, mas o
homem era o centro de tudo o antropocentrismo, característica do Renascimento (séc. XVI).
Este período foi marcado pelo incentivo às grandes descobertas; à disseminação do
conhecimento; à educação, que, até então, era destinada apenas para as pessoas do clero. Esta
passou a ser disseminada para as pessoas mais abastadas, inclusive as surdas, que mediante
um preceptor, eram ensinadas a falar, ler bios, ler e escrever. Neste período quem nascia
surdo e rico, morria falando, porque esta era a vontade do Homem!
Começou, então, o reinado do oralismo, que foi sendo divulgado por toda a Europa. De
acordo com esta concepção “só a fala daria a condição humana a surdos” (LEITÃO, 2003,
p.55). Botelho (1998, p.21) comenta que,
o movimento concebido como a Gramática de Port Royal (1660), propondo uma
teoria racionalista da linguagem, as investigações que surgiram no campo da
Fonética e as descobertas no campo da Medicina e da Eletrônica contribuíram para
que houvesse uma distinção valorativa da língua oral e passasse a investir no ensino
da fala para os surdos. Nasce uma pedagogia ortopédica’ (Foucault, 1978, citado
por Sanchez, 1990:49), advinda da situação política e econômica decorrente da
crise do regime feudal, propondo corrigir aqueles que, desengajados do trabalho
produtivo, tinham sido enclausurados por serem considerados uma ameaça à
sociedade. Essa massa incluía os pobres, deficientes, doentes mentais e os
considerados desadaptados, entre os quais os surdos, asilados em instituições
especializadas para seu atendimento
na segunda metade do século XVIII, o abade frans, L´Epée, com o intuito de pregar
a palavra de Deus para mendigos surdos que se comunicavam através de sinais, procurou se
apropriar destes sinais e adaptou-os, criando, então, os sinais metódicos (partículas
38
características da gramática francesa, que não eram representadas nos sinais nativos de seus
alunos). Em 1755, L´Epée fundou a primeira escola para surdos em Paris, na qual os surdos
adultos escolarizados ensinavam às crianças surdas. Os surdos, neste período, conseguiram
assumir as mais variadas funções, como escritores, engenheiros, filósofos (SACKS, 1998,
p.35).
Vale ressaltar, que este foi um período em que as idéias de Liberdade, Igualdade e
Fraternidade, defendidadas pela Revolução Francesa, e também a concepção de Rousseau do
bom selvagem estavam sendo disseminadas; esta ideologia muito influenciou os seus
contemporâneos, inclusive em relação à concepção de surdez e ao uso dos sinais. A
experiência de L`Epée foi publicada em livro e divulgada por vários países da Europa e nos
Estados Unidos.
Entretanto, apesar do considerável sucesso do método frans, a “pedagogia ortopédica
ainda resistia, principalmente na Alemanha, e aos poucos foi se fortalecendo e se
disseminando, por uma certa influência de idéias nacionalistas, positivistas e empiristas. Na
medicina, a surdez era considerada uma patologia, favorecendo, portanto, a concepção
oralista, que de acordo com Lulkin (1998, p.36):
Na França, a medicina otológica nasce com o Tratado das doenças do ouvido do
Dr. Jean Itard (1822). Porém , essa especialidade médica ainda não passava de uma
“bricolagem científica”. As experimentações com seres humanos duraram bom
tempo, e as crianças do Instituto Nacional de Jovens Surdos (INJS) de Paris, que
forneciam material de algum proveito para a ciência, ficavam cobertas de bolhas,
inchaços e cicatrizes em volta das orelhas. O Dr. Blanchet, que assume o posto de
dico da intituição de Paris, investe na reeducação do ouvido através de uma
emissão de sons em crescente intensidade e por excitação dos nervos da
sensibilidade geral”. Ao expor suas pesquisas no Tratado filosófico e médico da
Surdo-mudez, em 1853, provoca violenta polêmica pela extravagância de seus
todos: abertura do crânio e colocação de um perfurador, cortes de bisturi no
ouvido médio, entre outros procedimentos empíricos.
Foi neste período que surgiu a primeira escola para surdos no Brasil, fundada pelo
professor francês Ernest Huet (surdo congênito, ex-aluno do INJS de Paris). Ao chegar no
Brasil em 1855, Huet conseguiu, com o apoio do Reitor do Imperial Colégio Pedro II, uma
sala para o funcionamento do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos no Rio de Janeiro. Dentre
39
as disciplinas tinha-se Língua Portuguesa, Aritmética, Geografia, Hisria do Brasil,
Escrituração Mercantil, Doutrina Cristã, Linguagem Articulada e Leitura sobre os Lábios.
Esta instituição possuía uma concepção na qual o surdo deveria ser “um sujeito social,
conhecedor de uma língua nacional, obediente aos dogmas de uma religião, proprietário de
uma cultura universal, disponibilizada pelas instituições a serviço de um processo
civilizatório” (LULKIN, 1998, p.38-39).
A querela metodológica sobre o ensino para os surdos teve seu ápice em 1880, durante o
Congresso de Milão. Neste Congresso estiveram presente representantes de várias escolas da
Europa e dos Estados Unidos para uma discussão sobre o método mais adequado para o
ensino dos surdos, sua culminância foi a realização de uma eleição para escolha do todo
que deveria prevalecer nas escolas. De acordo com a ata final do Congresso, a eleição resultou
em:
O Congresso, considerando a incontestável superioridade da palavra sobre os
signos para devolver o surdo à sociedade e para dar-lhes um melhor conhecimento
dangua, declara que o método oral deve ser preferido ao da mímica para a
educação e instrução dos surdos-mudos (...) O Congresso, considerando que o uso
simultâneo da palavra e dos signos mímicos m a desvantagem de inibir a leitura
labial e a precisão das idéias, declara que o todo oral puro deve ser preferido.
(...) A terceira resolução é um voto em favor da extensão do ensino dos surdos-
mudos. Considerando que um grande mero de surdos-mudos não recebem os
benefícios da instrução; que essa situação provém dos poucos recursos das famílias
e dos estabelecimentos, emite o voto que os governos tomem as medidas
necessárias para que todos os surdos e mudos possam se instruídos (GRÉMION,
1991, p.195-196 apud LULKIN, 1998, p.37).
Podemos, então, concluir que o oralismo saiu vencedor nesta eleição, mas é preciso
esclarecer que os professores surdos foram excluídos da votação e que um nome de muita
importância para sociedade da época foi um dos grandes incentivadores em prol da
abordagem oralista: Alexander Graham Bell, o célebre inventor do telefone, neste período seu
apoio foi de muita inflncia para que prevalecesse o oralismo.
A partir deste Congresso, as línguas de sinais ficaram proibidas e, sob a influência de
idéias legitimadas pela Antropologia e pela teoria evolucionista, ficaram sendo vistas como
algo primitivo. Os professores surdos deixaram de lecionar, os alunos surdos eram obrigados
40
a sentarem sobre as próprias mãos e, inclusive, “as pequenas janelas das portas das salas de
aula” foram retiradas “para impedir a comunicação sinalizada entre os alunos” (LULKIN,
1998, p.38). Claro que os surdos, apesar dessas medidas, mesmo que escondidos, sempre
encontravam um jeito de interagir em sinais com seus colegas, já que
a proibição das línguas de sinais poderia ser feita no âmbito institucional e, mais
especificamente, no espaço da sala de aula. Pom, evidências de que, mesmo na
marginalidade, elas se desenvolveram, bastava que se formasse uma comunidade de
surdos: as próprias escolas ou institutos voltados à educação dos surdos
representaram um leito rtil e caloroso ao seu desenvolvimento. Afinal de contas,
são os achados empíricos que registram a necessidade e o desenvolvimento das
línguas de sinais nas comunidades de surdos (LEITÃO, 2003, p.73).
No Brasil, a língua de sinais foi proibida em 1911, de acordo com o Regulamento
interno do Instituto Imperial dos Surdos-Mudos do Rio de Janeiro (atual INES
6
) que
determinava que fosse utilizado para o ensino de todas as disciplinas o método oral puro.
Podemos comprovar como este método era empregado no INES e, também, como a língua de
sinais persistia em existir a partir de um relato de um surdo:
Pela manhã a gente tinha visualização [leitura labial], tinha treinamento auditivo
como a fonoaudióloga. Eram em dias alternado. Eu pegava na garganta da
professora, enquanto ela falava a palavra “mamãe”, mas eu não falava bem. Eu
nunca pronunciei as palavras. Eu não conseguia (...) O inspetor era muito mau
com a gente. Quando havia alguma briga [entre os alunos] ele dava castigo,
obrigando a gente a falar: usar o que tinha aprendido com a fonoaudióloga e
proibia a língua de sinais. Às vezes, a gente ficava de mãos atadas para trás,
dentro da sala. A gente tinha que ficar olhando, sem poder fazer nenhum gesto
(Suderlan in LEITÃO, 2003, p. 177-180)
Na década de 60, nos Estados Unidos começaram os primeiros questionamentos sobre a
verdadeira eficácia do método oralista, historiadores, psilogos, pais e professores passaram
a se dar conta que os surdos estavam se tornando analfabetos funcionais. A partir daí surgiram
as primeiras tentativas de mudança, procurando ampliar os recursos comunicativos, como é o
caso da Comunicação Total, abordagem que, teoricamente, “defende o uso de múltiplos meios
de comunicação, buscando trazer para a sala de aula os sinais utilizados pelas comunidades de
pessoas surdas” (GÓES, 1999, p.40).
6
Instituto Nacional de Educação de Surdos
41
Entretanto, na prática, essa proposta resultou na criação de métodos e sistemas de
comunicação, como por exemplo, o da comunicação bimodal. Este método propõe o ensino
da língua majoritária nas modalidades falada e sinalizada, ou seja, aqui no Brasil, o ensino do
português falado e codificado em sinais, que o é igual aos sinais utilizados pelos surdos em
suas comunidades, estes sinais possuem estruturas diferentes, até porque eles têm como raiz a
língua de sinais francesa
7
.
A partir docorreram várias discussões sobre essas abordagens, até que, por volta do
final da década de 80 e início de 90, emergiu uma abordagem que se propõe respeitar a língua
de sinais da comunidade surda como a primeira ngua e a língua utilizada pelo grupo social
majoritário como segunda língua: o Bilingüismo. A grande diferença desta abordagem em
relação às outras é que esta possui a concepção de que a língua de uma comunidade não se
aprende na escola, mas se constrói através da interação social e este constructo deve ser
respeitado e garantido. Isto não impede que os sujeitos também tenham o direito de aprender a
língua do grupo social majoritário, mas esta como uma segunda língua, na sua modalidade
escrita (se o surdo quiser ele tem a liberdade de também procurar aprender a modalidade oral,
mas esta já não é mais uma função da escola e sim de uma clínica).
No Ceará, a primeira escola fundada para surdos foi o Instituto Cearense de Educação
de Surdos (ICES) em 1961, pelo professor Hamilton Cavalcante de Andrade
8
, que as ter
conhecido o INES no Rio de Janeiro, procurou o apoio do Governo do Estado do Ceará, para
criar uma instituição do mesmo modo do INES, providenciando, inclusive, a capacitação dos
profissionais locais no INES. A metodologia de ensino daquela época era a oralista e assim
ficou até 2002, ano em que a escola passou a adotar a abordagem bilíngüe, na qual a LIBRAS
é respeitada como a primeira língua dos surdos e dos alunos, além de poderem se comunicar
7
Esclareço que ao afirmar que a LIBRAS tem suas raízes na língua de sinais francesa, não estou dizendo que
estas são iguais, mas assim como a língua portuguesa tem sua origem latina, a LIBRAS durante o seu processo
de construção foi fortemente influenciada pelos sinais que os surdos utilizavam no INJS, trazidos para o INES e
disseminados por todo o Brasil, mas, claro, assim como todas as línguas a LIBRAS sofre variações.
8
Professor da UFC e da UECE, do departamento de lingüística.
42
livremente em sinais, têm aulas de LIBRAS no currículo da escola desde o pré-escolar, que é
lecionada por professor surdo. Já o ensino da língua portuguesa ficou direcionado para a
modalidade escrita e deixou de ser ensinada na modalidade oral.
43
3. O SURDO E AS SUAS LÍNGUAS
O reconhecimento legal da LIBRAS através da lei nº.10.436, de 24 de abril de 2002,
admitindo ser a LIBRAS:
“a forma de comunicação e expressão, em que o sistema lingüístico de natureza
visual-motora, com estrutura gramatical própria, constituem um sistema lingüístico
de transmissão de idéias e fatos, oriundos de comunidades de pessoas surdas do
Brasil” (Art. 1º.)
é considerado como um marco importantíssimo na luta pela legitimação não apenas de uma
língua, mas também de uma cultura e de uma comunidade que é minoritária, dentro de nossa
sociedade.
Uma outra conquista importante, não apenas para a comunidade surda, mas também
para todos os deficientes é o Decreto Presidencial nº 5.296 de 2004, no qual fica estabelecido
que as Instituições de Ensino Superior deverão promover e apoiar programas ou projetos que
garantam o acesso e permanência em igualdade de oportunidades para estudantes com
deficiência, procurando, desta forma, superar situações de discriminação e exclusão.
Mas apesar destas vitórias, há ainda muito a ser conquistado (em relação ao mercado de
trabalho, a concretização do projeto de acesso e permanência nas universidades públicas, ao
direito do passe livre etc) e também a ser compreendido (em relação à LIBRAS, ao seu
processo de ensino-aprendizagem etc).
Foi, então, a partir da lei da LIBRAS, que algumas escolas especiais começaram a
adotar e a se adaptar à proposta bingüe de ensino, na qual a LIBRAS deve ser introduzida
como primeira língua, e o português como segunda, já que, também de acordo com a lei supra
citada, “a LIBRAS não poderá substituir a modalidade escrita da língua portuguesa” (Art.4º.).
Apesar do reconhecimento da LIBRAS sob forma de lei, e da adoção pelas escolas da
proposta bingüe, o vem sendo nada fácil colocar em prática esta proposta, sendo
necessário, constantes buscas de metodologias adequadas. Se, por um lado é notório que o
44
aprendizado e a compreensão dos conteúdos e informações das mais variadas disciplinas
melhorou bastante, por outro, também é notório que o desempenho na escrita em língua
portuguesa ainda não é satisfatório.
Em um relato de uma surda de 40 anos citado em um artigo de Perlin (1998, p.57),
podemos observar o quanto é complicado o aprendizado da língua portuguesa para o surdo:
É tão difícil escrever. Para fazê-lo meu esforço tem de ser num clima de
despender energias o suficiente demasiadas. Escrevo numa língua que não é
minha. Na escola fiz todo esforço para entender o significado das palavras usando
o dicionário. São palavras soltas elas continuam soltas. Quando se trata de pô-las
no papel, de escrever meus pensamentos, eles são marcados por um silêncio
profundo. Eu preciso decodificar o meu pensamento visual com palavras em
português que tem signos falados. Muito que é difícil ser traduzido, pode ser
apenas uma síntese aproximada.
Tudo parece um silêncio quando se trata da escrita em português, uma tarefa
difícil, dificílima. Esse silêncio é mudança? Sim é. Fazer frases em português não é
o mesmo que fazê-las em LIBRAS. Eu penso em LIBRAS, na hora de escrever em
português eu não treinei o suficiente para juntar numa frase todas as palavras
soltas. Agora no momento de escrever, eu escrevo diferente. Quando eu leio o que
escrevo, parece que não tem uma coisa normal como a escrita ouvinte, falta uma
coisa, o sei o quê. Não sei se o que escrevo são palavras minhas, elas são
exteriores, não fazem parte de meu contexto. Parecem não cair bem na frase,
parece que a escrita do pensamento não ditar o que quero dizer. Vezes sem conta
parece-me dizer coisas sem sentido.
Essa dificuldade acontece porque a LIBRAS e a língua portuguesa são línguas diferentes
a serem adquiridas pelos surdos em modalidades diferentes (manual para LIBRAS e escrita
para o português) com funções diferentes (por exemplo, em conversas entre surdos, palestras,
aulas expositivas etc utiliza-se LIBRAS, mas para preenchimento de formulários; para a
leitura de placas, sinalizações, cartazes, revistas, jornal; e para leitura e escrita de mensagens
em celulares, e-mail etc utiliza-se português).
O fato é que, apesar de todos os entraves físicos e sociais, eles aprendem a escrever,
uma escrita que apresenta “diferenças”, mas que não devem ser encaradas como
“deficiências” (PERLIN, 1998, p.56) culturais e lingüísticas, e que, apesar destas diferenças,
também apresenta semelhanças.
Dentre os principais estudiosos da LIBRAS, Quadros (1997, 2001 e 2004) é uma das
figuras mais importantes que lutou pelo reconhecimento da LIBRAS como uma língua, filha
45
de pai e mãe surdos e, portanto, convivendo desde seu nascimento com esta língua, apesar de
ser ouvinte, vem se dedicando em descrever detalhada e formalmente a ngua de sinais
brasileira em suas obras, tornando-se uma grande divulgadora da LIBRAS. ainda, dentre
os estudiosos que realizam pesquisas descrevendo a LIBRAS e lutando pelo seu
reconhecimento e pela sua divulgação, Felipe (1988, 1993, 1997), Ferreira Brito (1993, 1995,
1997) e outros.
Vários estudiosos vêm apontando argumentos para a introdução, o mais cedo possível,
da LIBRAS no programa escolar das escolas que atendem aos surdos, devido à existência de
um “período crucial para a aquisição da linguagem” (RODRIGUES,1993) que, supostamente,
abrangeria os primeiros anos de vida. Já que, para o surdo, o acesso aos sinais não é limitado
por nenhum entrave biológico, tornando possível enfrentar uma tarefa inviável pelo uso de
caminhos novos e diferentes” (VYGOTSKY et LURIA, 1996:221).
Quadros (2004) defende a idéia de que o sujeito surdo, ao ser exposto à LIBRAS desde
o início de sua vida, teria garantido, de fato, o seu direito a uma língua e a partir de então o
ensino do português na modalidade escrita seria mais acessível e fácil, pois o sujeito surdo
traria para a escola todo um conhecimento de mundo simlico-cognitivo, que só lhe é
possível adquirir através da comunicação e da interação social.
Para uma criança ouvinte, parece simples ir adquirindo a língua de seus familiares e até
mesmo outras línguas, se ela tiver a oportunidade de conviver com pessoas que usem essas
línguas; na escola ela irá somente aprender uma outra modalidade (escrita) desta língua que
ela adquiriu. Mas ensinar uma língua, oral ou escrita, para quem não tem língua nenhuma
(como nos casos de crianças sem contato com humanos ou crianças surdas sem contato com
umangua) é uma tarefa complicada.
Adquirir uma língua é muito mais do que aprender palavras e repeti-las num mero
processo de estímulo-resposta; é, antes de tudo, adquirir cultura, interagir socialmente,
46
dialogar com os outros e com o Outro (ideologia). É, portanto, muito mais do que expor a
criança a dados lingüísticos; é um processo de (re)organização constante e dinâmica do “eu” e
do “outro”. Desta forma, a língua é compreendida em seu plano dialógico, social, interacional,
de acordo com os preceitos de Bakhtin (1992), para quem a verdadeira substância da língua
não está nem no sistema abstrato das formas lingüísticas (léxico, fonemas, morfemas, flexões,
etc), nem no psiquismo individual de um sujeito. Sua essência não é nem um ato
psicofisiológico que a produz, nem uma enunciação monológica.
A verdadeira substância da língua é, por excelência, o ato dialógico em seu
acontecimento concreto. No entanto, qualquer diálogo, além de ser ele pprio sócio-
historicamente determinado, evidencia uma outra história: a história da própria linguagem.
Afirmando que a linguagem oculta e explicita uma história pressupõe-se admitir a existência
de regularidades, cristalizações de formas e de certos gêneros discursivos, de significados e de
regras formacionais. Para Bakhtin (1992), a história de qualquer língua tem o mesmo núcleo
gerador de um enunciado particular, isto é, tem seu início nas necessidades de interações
sociais.
A partir destas idéias compreendemos que a língua seja ela qual for, é produto do
trabalho coletivo e ininterrupto de sujeitos socialmente organizados, cujo processo instaura a
construção, também coletiva, de conhecimentos e saberes do mundo. Homem e linguagem
não são, portanto, categorias estranhas uma a outra, o, na verdade, produtos um do outro e
se pertencem. É a linguagem quem guarda a hisria das relações sociais, das oposições de
classes, ela “constitui o meio no qual se produzem lentas acumulações quantitativas de
mudanças”, e por isso “é capaz de registrar as fases transitórias mais íntimas, mais efêmeras
das mudanças sociais” (BAKHTIN, 1992, p. 41). A linguagem é, portanto, marcada pela
história e, se nela sistematicidades, isso não significa dizer que o fenômeno lingüístico se
reduz a elas.
47
De acordo com Bakhtin, o sujeito é ativo e responsivo e todo enunciado é concebido
como uma resposta ou plica ao enunciado do outro. Em Estética da Criação Verbal (1992,
p.290), ele afirma que o interlocutor não recebe passivamente uma mensagem, ele
recebe e compreende a significação (lingüística) de um discurso adotando
simultaneamente, para com este discurso, uma atitude responsiva ativa: ele
concorda ou discorda (total ou parcialmente), completa, adapta, apronta-se para
executar, etc, e esta atitude (...) está em elaboração constante (...) desde o início do
discurso, às vezes, já nas primeiras palavras emitidas pelo locutor .
Por sua vez, o locutor
postula esta compreensão responsiva ativa; o que ele espera, não é uma
compreensão passiva, que por assim dizer apenas duplicaria seu pensamento no
espírito do outro, o que espera é uma resposta, uma concordância, uma adesão, uma
objeção, uma execução, etc. (...) O desejo de tornar seu discurso inteligível é apenas
um elemento abstrato da intenção discursiva em seu todo. O próprio locutor como
tal é, em certo grau, um respondente pois não é o primeiro locutor, que rompe pela
primeira vez o eterno silêncio de um mundo mudo, e pressupõe não a existência
da língua que utiliza, mas também a existência de enunciados anteriores aos quais
seu próprio enunciado está vinculado por algum tipo de relação (fundamenta-se
neles, polemiza com eles), pura e simplesmente ele já os supõe conhecidos do
ouvinte. Cada enunciado é um elo da cadeia muito complexa de outros enunciados
(idem, p.291).
É, portanto, sob esta óptica que pretendo vislumbrar esta pesquisa, compreendendo que
tanto a língua de sinais quanto a língua portuguesa são construtos históricos e que a forma que
os sujeitos constróem os seus discursos é impregnada, pela história do próprio sujeito, sua
classe, sua cultura, suas intenções, seus desejos e, também, a presença do outro e do contexto
situacional.
3.1. LIBRAS e LP: principais características
A primeira diferença notória entre a língua brasileira de sinais e a língua portuguesa é
que a primeira é de natureza espaço-visual, enquanto que a segunda é oral-auditiva em relação
à fala e visual para a escrita. Ambas são complexas e naturais porque
surgiram espontaneamente da interação entre pessoas e porque, devido à estrutura,
permitem a expressão de qualquer conceito descritivo, emotivo, racional, literal,
metafórico, concreto, abstrato enfim, permitem a expreso de qualquer
significado decorrente da necessidade comunicativa e expressiva do ser humano
(FERREIRA BRITO, 1997, p.19) .
48
Elas também não são universais, que não são o retrato fiel da realidade, mas uma
representação da realidade convencionada socialmente. Portanto, o passíveis de variações
dialetais, que são o lugar de interação de seus interlocutores, e portanto sofrem influencia
de seus atores e de seus contextos situacionais e históricos:
Os surdos criaram, desenvolveram e transmitiram, de geração em geração, uma
língua, cuja modalidade de recepção e produção é viso-gestual (...) é um produto
construído histórica e socialmente pelas comunidades surdas (SKLIAR, 1998,
p.23).
A língua portuguesa possui um sistema de escrita que é, principalmente, baseado no
significante (escrita fonográfica), isto é,
depende essencialmente dos elementos sonoros de uma língua para poder ser lido e
decifrado. Esse tipo depende crucialmente da ordem linear da escrita, que vem
assinalada de uma maneira padronizada (CAGLIARI, 2002, p.115).
Mas também, este sistema de escrita, não é totalmente alfabético, usando além de
letras, outros caracteres de natureza ideográfica, como sinais de pontuação e os números”
(op.cit, p.117).
A LIBRAS possui um sistema que é, principalmente, baseado no significado
(ideográfica), ou seja, é, em geral, iconicamente motivado pelo significado que quer
transmitir,“dependendo fortemente dos conhecimentos culturais que operam” (FERREIRA
BRITO, 1997, p.14), procurando utilizar-se de
“formas lingüísticas que tentem copiar o referente real em suas características
visuais (...) entretanto, as formas icônicas das línguas de sinais não são universais
ou o retrato fiel da realidade. Cada língua de sinais representa seus referentes ainda
que de forma icônica, convencionalmente, porque cada um vê os objetos, seres e
eventos representados em seus sinais ou palavras sob uma determinada ótica ou
perspectiva” (idem, p.20).
Mas também, de acordo com Silva (1997), sofre motivações não somente icônicas, mas
de uma forma múltipla e heterogênea como qualquer outra língua, a partir de mecanismos
senticos, morfossintáticos e metalingüísticos, já que:
49
o signo da LIBRAS é um signo linístico que assume um valor ideológico
arbitrário por ser convencional e (i)motivado, que, no interior do sistema, este
signo é regido por mecanismos que independem de sua natureza motivada e, no
exterior deste mesmo sistema, ou seja, no seu uso pela comunidade surda, este
signo é convencionado e, portanto, assume um valor ideológico arbitrário (op.cit,
p.142-143).
Além disso, muitas vezes a LIBRAS toma como empréstimo palavras da língua
portuguesa, como é o caso da palavra “nunca” fazendo o uso da soletração manual ou
datilologia (alfabeto manual).
figura 1: NUNCA
9
A datilologia é geralmente utilizada pelos surdos para a soletração de nomes, como, por
exemplo, ruas, pessoas etc, mas não é considerada como pertencente à LIBRAS, já que ela
serve para sinalizar a língua portuguesa; no entanto, em alguns casos, como citamos acima,
ela é utilizada como um empréstimo lingüístico.
Figura 2: ALFABETO MANUAL
9
As figuras foram cedidas pela FENEIS.
50
Ao comparar a LIBRAS com a língua portuguesa, Ferreira Brito (1997, p.22) acrescenta
que ambas são dotadas de dupla articulação, ou seja, possuem unidades mínimas distintivas e
unidades mínimas de significado. Também fazem uso do critério de produtividade para
estruturar novas formas a partir de outras já existentes.
3.1.1. Plano fonológico ou querológico
A língua portuguesa “caracteriza-se pela organização de sons vocais específicos, ou
fonemas, pelos quais se constroem as formas lingüísticas” (CAGLIARI, 2002, p.115). Este
plano divide-se em segmental (produção sonora) e supra-segmental (entoação). Os sons
vocálicos, de acordo com Cagliari (2002, p.43), podem ser classificados conforme o ponto de
articulação da seguinte forma:
Altas /u/ /i/
Médias /ô/ /ê/
Médias /ò/ /
Baixa /a/
/posteriores/ /central/ /anteriores/
Quadro 3: ponto de articulação dos sons vocálicos tônicos
Já na escrita, o que se tem é a representação destes sons de uma forma alfabética
(CAGLIARI,2002), ou seja, a ortografia da língua portuguesa é predominantemente de
natureza fonêmica (somente é marcado na escrita aquilo que é distintivo, por exemplo: /êxtra/
e xtra/ são escritos da mesma forma); mas também é formada por motivações fonéticas
(quando o ponto de articulação, por exemplo, é um tro distintivo e interfere na ortografia,
como é o caso de canto e campo).
51
ainda na ortografia, as motivações lexicais (em que o radical de uma palavra é
mantido em suas derivações, por exemplo, casa, casebre, casinha etc) e motivações
diacrônicas (quando a representação ortográfica explicasse recorrendo à história da língua,
por exemplo, jerimum se escreve com j porque é uma palavra indígena).
A LIBRAS, no plano fonológico ou querológico (FERNANDES, 2003), é representado
por queremas, através das articulações dos sinais. Apresentaremos a seguir um esquema, que
de acordo com Fernandes (2003), descreve a configuração, a localização, o movimento e a
orientação que compõem a língua de sinais brasileira no vel querológico:
a) Configuração
uma o configurada;
figura 3: JÁ
uma mão configurada sobre outra que lhe serve de apoio; a mão
de apoio tem, também, configuração própria;
figura 4: NERVOSO
52
as duas mãos configuram-se de forma espelhada.
figura 5: HOJE
b) Localização do sinal (ponto de articulação)
Superior:
figura 6: APRENDER
Média:
figura 7: LARANJA
53
Inferior:
figura 8: AMAR
c) Movimento das mãos
uma mão aproxima-se, afasta-se ou move-se em espaço fixo, em
relação ao corpo que lhe serve como ponto de referência;
figura 9: MEDO
uma mão move-se em direção à outra que lhe serve de apoio; a
mão de apoio permanece sem movimento ou acompanha o movimento
“imposto” pela mão dominante;
figura 10: MESTRADO
54
as duas mãos apresentam movimento espelhado, aproximando-
se, afastando-se ou mantendo-se no espo fixo em relação ao corpo.
figura 11: MESMA COISA
d) Orientação da(s) palma(s) da(s) mão(s)
para cima ou para baixo (posições horizontais);
figura 12: INFERIOR
para dentro, para fora, para a direita ou para a esquerda
(posições verticais)
figura 13: PEQUENO
55
Além dos parâmetros acima citados, ainda um traço diferenciador na LIBRAS que é
a expressão facial e/ou corporal, que tanto é marca do plano supra-segmental (interrogativas,
negativas etc) como também podem representar um sinal.
3.1.2. Plano morfológico
A língua portuguesa, segundo a gramática tradicional, apresenta 10 classes de palavras e
se estrutura com morfemas lexicais, flexionais e derivacionais. Os adjetivos (por exemplo:
casado) possuem um morfema lexical (casad-), podem se flexionar (singular/plural,
gênero/número); enquanto que os verbos (por exemplo – casar) possuem um morfema lexical
(cas-) podem se flexionar (tempo, modo, número, pessoa), e também podem sofrer derivação
(descasar).
na LIBRAS, um mesmo sinal pode ser empregado na função de substantivo ou, por
exemplo, verbo ou adjetivo, como é o caso do sinal que tanto serve para casamento como para
casar, como para casado (a):
Figura 14: CASAR
Será o contexto que irá determinar sua função; quanto à flexão, para um sinal pode-se
acrescentar os sinais de mulher ou homem e quanto a flexão acrescenta-se, um, dois ou
muitos:
56
Figura 15: CASADA (CASAR + MULHER) Figura 16: HOMEM
Figura 17: UM Figura 18: DOIS Figura 19: MUITOS
E quando for verbo acrescenta-se os sinais para presente, passado e futuro:
Figura 20: PRESENTE Figura 21: PASSADO Figura 22: FUTURO
Mas muitas vezes isto é opcional, porque, na verdade, também será o contexto que irá
determinar o gênero, o número, o tempo, o modo, ou então um outro sinal com sentido que se
quer expressar será empregado.
57
Como não desinências para gêneros (masculino/feminino), costuma-se colocar em
transcrições de LIBRAS para português o símbolo @, por exemplo, AMIG@ que tanto pode
ser amigo(a) ou amigo(s). Alguns surdos costumam empregar este símbolo ao escreverem.
Assim como no português, há derivação em LIBRAS, na qual se acrescenta um afixo ao
morfema lexical, assim como no português em feliz/infeliz, na LIBRAS acontece em
GOSTAR/GOSTAR-NÃO.
Figura 23: GOSTAR Figura 24: GOSTAR-NÃO
Também há casos de derivação por composição. Assim como na língua portuguesa
temos, por exemplo, “guarda-chuva”, “passatempo”, em que uma junção de duas ou mais
palavras para a criação de uma nova palavra, na LIBRAS também há. Por exemplo, para
designar o sinal ESCOLA, são utilizados dois sinais juntos: CASA+ESTUDAR
Figura 25: ESCOLA
58
ainda outras singularidades na LIBRAS, como o fato de não possuir artigo, por
exemplo, para frase : “a banana está podre” utiliza-se apenas “BANANA PODRE".
Figura 26: “BANANA PODRE”
3.1.3. Plano sintático
Segundo Ferreira Brito (1997, p.55) entre o português e a LIBRAS, “no que diz respeito
à ordem das palavras ou constituintes, há diferenças porque o português é uma língua de base
sujeito-predicado enquanto que a LIBRAS é uma língua do tipo tópico-comentário.” Na
língua portuguesa, a estrutura predominante é : sujeito-verbo-objeto (SVO) , na qual o sujeito
concorda com o verbo:
“Ele não gosta de estudar
(S) (V) (O)
na LIBRAS, a estrutura predominante é a topicalização e o verbo no final da
sentença:
Figura 27: “ESTUDAR EL@ GOSTAR-NÃO”
(tópico) (comentário)
59
Segundo Quadros (2004, p.148), “o tópico é o tema do discurso que apresenta uma
ênfase especial posicionado no início da frase e seguido de comentários a respeito desse tema.
Esse recurso gramatical é muito comum nangua brasileira de sinais.”
A LIBRAS pode apresentar construções de frases com foco, nestas construções uma
duplicão de um elemento, ou seja, “foco envolve construções duplas em que o elemento
duplicado ocupa a posição final” (QUADROS & KARNOPP, 2004, p.170)
Figura 28: [EU ESQUECER JORNAL] [ESQUECER]
Segundo Quadros & Karnopp (2004, p.180), “a presença do foco permite o apagamento
do primeiro elemento da construção dupla”.
Figura 29: [EU ESQUECER JORNAL] [ESQUECER]
Ferreira Brito (1997, p.58) acrescenta que na LIBRAS verbos que em seu pprio
sinal ficam marcados o sujeito e o objeto, são os chamados verbos direcionais ou com flexão,
ou seja, verbos com concordância número-pessoal. Nestes verbos, “o sujeito e objeto são
60
sempre marcados e a ordem é fixa, ficando apenas o objeto direto, em alguns casos, livre para
vir antes ou depois do verbo flexionado”. (Ibid: idem)
Figura 30: FALAR
61
4. PERCURSO TEÓRICO-METODOLÓGICO
Este capítulo, dedico à descrição da pesquisa, o qual é organizado em quatro tópicos. O
primeiro, intitulado a natureza da pesquisa, é destinado à apresentação da abordagem teórica-
metodológica e das técnicas que vêm sendo empregadas na pesquisa. O tópico subseqüente é
uma descrição do contexto cio-histórico e situacional da pesquisa, fazendo, portanto, uma
descrição da escola e de sua atual proposta pedagógica, das salas que, utilizadas para a
pesquisa e das pessoas que contribuíram para a sua realização.
O terceiropico é um relato dos procedimentos e de alguns fatos que ocorreram antes e
durante a coleta dos dados. Já o quarto e último traz o perfil dos sujeitos, no qual faço um
levantamento sobre idade, sexo, escolas em que estudou e um pouco sobre suas características
pessoais.
4.1. A natureza da pesquisa
A presente pesquisa caracteriza-se por sua abordagem qualitativa, como iremos
demonstrar a partir de algumas definições apresentadas por Bogdan (1991, p.16). Segundo o
autor, na investigação qualitativa:
As questões a investigar não se estabelecem mediante a operacionalização de
variáveis, sendo, outrossim, formuladas com o objectivo de investigar os
fenômenos em toda a sua complexidade e em contexto natural. Ainda que os
indivíduos que fazem investigação qualitativa possam vir a seleccionar questões
específicas à medida que recolhem os dados, a abordagem à investigação não é
feita com o objectivo de responder questões prévias ou testar hipóteses.
Privilegiam, essencialmente, a compreensão dos comportamentos a partir da
perspectiva dos sujeitos da investigação.
O nosso objetivo com este estudo não é apresentar gráficos quantitativos, nem fazer
generalizações a partir de um corpus, já que esta pesquisa se caracteriza como uma
investigação qualitativa, de acordo com o que afirma Bogdan (op.cit, p.48-49):
Os dados recolhidos são em forma de palavras ou imagens e não de números. Os
resultados escritos da investigação contêm citações feitas com base nos dados para
ilustrar e substanciar a apresentação. Os dados incluem transcrições de entrevistas,
notas de campo, fotografias, vídeos, documentos pessoais, memorando e outros
62
registros oficiais. Na sua busca de conhecimento, os investigadores não reduzem as
muitas páginas contendo narrativas e a outros dados a mbolos numéricos. Tentam
analisar os dados em toda a riqueza, respeitando, tanto quanto o possível, a forma
em estes foram registrados ou transcritos (...) a palavra escrita assume particular
importância na abordagem qualitativa, tanto para o registro dos dados como para a
disseminação dos resultados.
Por isso, quando estabelecemos que os parâmetros da pesquisa qualitativa se adequam
melhor à nossa investigação, definimos, também, que as narrativas passam a ser a principal
matéria prima da presente pesquisa. A princípio, neste trabalho, parece haver duas grandes
vertentes: a pesquisa que usa a narrativa escrita da história Chapeuzinho Vermelho para
análise e a investigação da narrativa sinalizada dos sujeitos sobre suas próprias histórias de
vida. Portanto, as narrativas podem ser tanto um fenômeno que se investiga como um método
de investigação.
Segundo Connelly & Clandinin (1995, p.11), “a razão principal do uso das narrativas na
pesquisa em educação é que os seres humanos são organismos contadores de histórias,
organismos, que individual e socialmente vivem vidas contadas (...) por isso, o estudo das
narrativas é o estudo da forma como os sujeitos experimentam o mundo”. Se é verdade que o
homem é um ser contador de hisrias, como foi dito anteriormente, a investigação de caráter
qualitativo tem tido o mérito de explorar e organizar este potencial humano, produzindo
conhecimento sistematizado através dele.
É certo que o importante, na investigação, é ouvir a história do interpelado, para quem
o dirigidas as questões investigatórias. Mas também é fundamental lembrar que numa
provocadora entrevista não diretiva disposta a re-construir histórias, fatalmente haverá a
interferência de quem ouve, especialmente na re-interpretação de significados, o que mostra
que uma narrativa acaba sempre sendo um processo cultural, pois tanto depende de quem a
produz como depende de para quem ela se destina. De alguma forma a investigão que usa
63
narrativas pressue um processo coletivo de tua explicação em que a vincia do
investigador se imbrica na do investigado.
Essa relação do investigador com o investigado é natural, que não acreditamos existir
um discurso imparcial. Larrosa (1994, p.48) afirma que “o sentido do que somos depende das
histórias que contamos e das que contamos a nós mesmos (...), em particular das construções
narrativas nas quais cada um de nós é, ao mesmo tempo, o autor, o narrador e o personagem
principal. Parece ser este o mesmo sentido dado por Santos (1987, p.52) à sua afirmação de
que “todo o conhecimento é autobiográfico”.
Retomando as palavras de Larrosa, é importante ressaltar sua afirmação de que “o
sujeito pedagógico ou, se quisermos, a produção pedagógica do sujeito, não é analisada
apenas do ponto de vista da objetivação mas, também, da subjetivação(...) isto é, do ponto de
vista de como as práticas pedagógicas medeiam certas relações determinadas da pessoa
consigo mesma. Aqui os sujeitos não são posicionados como objetos silenciosos, mas como
sujeitos confessantes; não em relação a uma verdade sobre si mesmo que lhes é imposta de
fora, mas em relação a uma verdade sobre si mesmos que eles mesmos devem contribuir
ativamente para produzir” (1994:54).
São essas premissas que dão suporte à nossa pesquisa, ao usarmos narrativas, já que
compreendemos que nelas oportunidades ímpares de integrar teoria e prática, sujeito e
discurso, realidade e intenção, escrita e história.
4.2. O contexto da pesquisa
O nosso estudo, que foi realizado por meio de entrevistas e análise da escrita da
narrativa Chapeuzinho Vermelho, iniciou em maio de 2005 e terminou em julho de 2006. O
64
ambiente no qual a pesquisa de campo se desenvolveu foi o Instituto Cearense de Educação
dos Surdos (ICES).
O ICES é uma escola especial da rede estadual de ensino infantil e fundamental,
fundado em 25 de março de 1961, e privilegiava a utilização da abordagem oralista, na qual a
fala é priorizada. A escola permaneceu com o foco no oralismo até 2001 (ano anterior ao da
legalização da LIBRAS), quando passou a adotar o bilingüismo. O ICES atende atualmente
507 alunos distribuídos em três turnos. O currículo e a carga horária são os mesmos da escola
de ensino regular, adaptados às condições específicas do surdo, como, por exemplo, a
inclusão em 2002 da disciplina LIBRAS, ministrada por professores surdos.
A proposta atual da escola é o ensino bilíngüe, em que a LIBRAS é respeitada como a
língua do surdo. Seus profissionais, quer os professores ouvintes quer os surdos, vêm sendo
capacitados em língua de sinais para uma adequada interação com os alunos, possibilitando
uma melhor aprendizagem. Como se pode notar, este processo de mudança de metodologia de
ensino é ainda muito recente, e todos, tanto o corpo docente como discente, estão ainda se
adaptando, aprendendo e procurando encontrar os melhores caminhos para um ensino-
aprendizagem de qualidade.
A primeira entrevista e a escrita da hisria Chapeuzinho Vermelho foram realizadas em
uma das salas de aula do ICES com o auxílio do intérprete. A segunda entrevista foi realizada
na sala de vídeo do ICES e a terceira entrevista, em uma sala do CAS (Centro de Apoio ao
Surdo). Tanto a segunda quanto a terceira entrevista foram acompanhadas por intérpretes e
filmadas em vídeo.
4.3. PROCEDIMENTOS
Foram realizadas três entrevistas, a escrita da história Chapeuzinho Vermelho e depois
de seis meses sua reescrita. A primeira entrevista foi realizada em maio de 2005, em grupo,
65
em sala de aula, durante uma aula de português (que era ministrada por mim), esta entrevista
cujo planejamento resultou em um questionário
10
, com perguntas objetivas e subjetivas,
abordando questões sobre o uso e a importância da LIBRAS e da Língua Portuguesa.
Nas questões objetivas, o intérprete traduzia as perguntas e as opções de resposta,
enquanto que os alunos marcavam suas respostas; nas questões subjetivas, o intérprete
traduzia as perguntas do português para a LIBRAS e as respostas individuais de cada aluno da
LIBRAS para o português, enquanto eu as escrevia. A presença do intérprete foi
importantíssima durante as entrevistas, pois me assegurava que não iria haver nenhum mal-
entendido entre entrevistador/entrevistado e entrevistado/entrevistador.
Em maio de 2005, os sujeitos escreveram a história Chapeuzinho Vermelho. Para a
coleta dos textos, primeiro, foi feita uma sondagem se os alunos conheciam a história; depois,
solicitado que um aluno contasse a história em sinais; e, logo em seguida, que os alunos da
turma (14 alunos) escrevessem e ilustrassem a história do jeito que sabiam, sem o auxílio de
ninguém.
Após a coleta, foi consultado o histórico dos alunos na secretaria da escola, com o
intuito de averiguar a formação escolar de 1ª. à 7ª.série dos alunos. Em seguida, os textos
foram selecionados a partir do seguinte critério: dois textos de alunos que estudaram no ICES
(escola especial blica para surdos) no ensino fundamental I, dois textos de alunos que
estudaram em uma outra escola especial para surdos (escola particular filantrópica conveniada
com o Estado e a Prefeitura) no ensino fundamental I, um texto de aluno que estudou em
escola regular particular no ensino fundamental I e um texto de aluno que estudou em escola
regular pública no ensino fundamental I. As oposições: especial x regular e particular x
pública não têm o intuito de demonstrar melhor x pior, mas de caracterizar a diversidade das
histórias de vida escolar de cada um.
10
Estes questionários encontram-se no anexo.
66
O fato de terem sido escolhidos quatro textos de alunos provenientes de escolas
especiais ocorreu com o intuito de averiguar as diferenças nos desempenhos de alunos que
estudaram nas mesmas escolas, no mesmo período de tempo, para procurarmos observar o
grau de influência da escola na formação do aluno e também investigarmos que outros fatores
o relevantes para a proficiência da escrita.
Infelizmente, não foi possível realizar a mesma comparação entre alunos provenientes
de escolas regulares por não haver nesta turma alunos que estudaram nas mesmas escolas
regulares, no mesmo período de tempo. No entanto, acredito, que a amostra caracteriza
ricamente a singularidade da escrita dos surdos, deixando claro que não é nossa intenção
generalizar os resultados obtidos, ao contrário, nossa intenção é demonstrar que cada sujeito
possui uma forma única de escrever e compreender o mundo e que esta perspectiva é
influenciada por inúmeros fatos que lhe são expostos durante toda a sua vida.
Após a escolha dos sujeitos, foi solicitada uma autorização dos seus responsáveis para a
realizão da análise e das entrevistas. Em novembro de 2005, foi realizada a segunda
entrevista esta foi individual, com o auxílio do intérprete e gravada em vídeo –, na qual foi
pedido para que o sujeito contasse a história Chapeuzinho Vermelho em LIBRAS, depois
lesse sinalizando a história que havia escrito. Na maioria dos casos, as duas narrativas (em
LIBRAS e em português escrito) ficaram muito diferentes, não apenas devido à diferença dos
canais de produção, mas, principalmente pela riqueza dos detalhes da história. Foi sugerido,
então, que os sujeitos fizessem uma comparação de sua narrativa em LIBRAS e em
português. E, a partir da comparação, foi solicitada a reescrita da mesma história de uma
forma melhor.
Depois disto, numa entrevista livre, procuramos fazer com que os sujeitos falassem um
pouco de si, sobre sua vida, seus estudos, seus sonhos etc, no entanto, percebi que alguns não
se sentiam completamente a vontade, fiz alguns questionamentos, mas suas respostas eram
67
vagas, o correspondendo aos meus propósitos de conhecer um pouco sobre a história de
cada um sobre sua própria perspectiva e sua visão sobre a sua escrita e a dos surdos em geral.
Resolvi, então, fazer outra entrevista.
No dia seguinte, foi realizada uma outra entrevista, desta vez semi-estruturada, pois
foram elaboradas algumas queses com o intuito de direcionar as entrevistas. A segunda
entrevista também foi individual, com o auxílio de um intérprete e gravada em vídeo, nela, os
sujeitos foram questionados sobre suas práticas discursivas, seus hábitos e gostos, a sua
concepção sobre a sua própria escrita e a escrita dos surdos em geral etc. Realizadas as
entrevistas, foram feitas as transcrições das gravações e analisados os textos, para, a partir de
então, procurarmos evidências da história de cada em suas narrativas da hisria da
Chapeuzinho Vermelho.
4.4. O PERFIL DOS SUJEITOS
O levantamento do perfil dos sujeitos foi iniciado com a investigação de alguns dados
pessoais na secretaria nas pastas dos alunos, como, o nome completo, idade, histórico escolar
e, nos que possuíam, o teste audiométrico e o diagnóstico do tipo de surdez.
A partir dos dados, constatamos que da 1ª. à 4ª. série dos 14 alunos da turma: sete
estudaram em escola particular de ensino especial para surdos; dois, em escola pública de
ensino especial para surdos; dois, em escola pública de ensino regular; um, em escola
particular de ensino regular; um, em escola supletiva de educação de jovens e adultos e
somente de um aluno não foi possível fazer o levantamento porque o constava em sua pasta
o seu histórico escolar. Já em relação ao período da . à 7ª. série praticamente todos vêm
estudando no ICES, com exceção de um aluno novato. A faixa etária da turma fica entre os 14
e os 19 anos. Considerando o fato de eles serem alunos com necessidades especiais, não estão
fora de faixa para a série que estudam.
68
Para a seleção dos sujeitos foi levado em consideração, as escolas que estudaram e o
desempenho na escrita em ngua portuguesa. Os sujeitos selecionados serão identificados
pelas iniciais de seus nomes, faremos agora, uma breve descrição de cada um:
1. ASO tem 14 anos, freqüentou escola de educação especial particular com abordagem
oralista da 1ª. à 4ª. série (1999/2002), estuda no ICES desde a 5ª. série (2003/2005).
Apresenta um interesse particular na leitura, está sempre folheando revistas, jornais e
livros, tem celular e costuma enviar e receber mensagens. Participa bastante das aulas,
é líder da turma, procurando manter a ordem e a concentração dos alunos. É oralizado,
mas demonstra se sentir mais realizado com o uso da LIBRAS.
2. ANL tem 14 anos, freqüentou escola pública regular da 1ª. à 4ª. série, estuda no ICES
desde a 5ª. série. Apresenta grande dificuldade com a língua portuguesa, em sala de
aula se dispersa com facilidade, tem se esforçado para aprender, mas sente que há uma
lacuna, em relação ao aprendizado da língua portuguesa, muito grande em seu
passado. Não é oralizada. Não possui o hábito de ler e escrever.
3. CAM tem 17 anos, estuda no ICES, escola pública de educação especial, desde a 1ª.
rie (1999). Sabe muito pouco português e costuma, quando solicitada a escrever
algo, copiar o que estiver por perto ou escrever palavras que decorou. Durante as aulas
não costuma perguntar nada e, quando questionada se compreendeu, responde
afirmativamente.
4. HDS tem 16 anos, estuda no ICES, escola de educação especial pública com
abordagem bilíngüe, desde a 1ª. série (1999). Sabe muito pouco português, adora
desenhar e costuma chegar sempre atrasado na escola ou faltar.
5. IMB tem 17 anos, freqüentou escola regular particular da 1ª. à 4ª. série e estuda no
ICES desde a 5ª. série (2003/2005). Tem o hábito da leitura e da escrita, em sala de
69
aula é muito aplicada e concentrada, costuma enviar e receber mensagens no celular e
costuma escrever na agenda.
6. LAD tem 16 anos, freqüentou escola de educação especial particular com abordagem
oralista da 1ª. à 4ª. rie (1999/2002), começou a cursar a 5ª. série em escola regular
particular, mas não se adaptou e, a partir do segundo semestre, começou a estudar no
ICES (2003/2005). Tem dificuldades com a língua portuguesa, apesar de compreender
sua importância; é muito dispersa, não tem o hábito de ler livros, mas gosta de
histórias em quadrinhos e comunica-se constantemente através de mensagens de texto
pelo celular.
Todos os sujeitos o adolescentes natissurdos (nascidos surdos), de famílias com pais
ouvintes e que vieram a ter contato com um ensino de abordagem bilíngüe tardiamente, entre
a 4ª. rie (CAM e HDS) e a 5ª.série (ASO, ANL, IMB e LAD). É importante ressaltar
também que nenhum deles vivenciou o auge da ditadura” do oralismo, em que era proibido
sinalizar, pois para CAM e HDS, que sempre estudaram no ICES, apesar de somente ter
acesso ao ensino bilíngüe a partir da 4ª. série, o contato com a LIBRAS já existia, por
conviverem numa comunidade surda em que alguns haviam se apropriado desta língua;
ASO, ANL e LAD conviviam com outros surdos na escola e se comunicavam por meio de
mímica; e IMB, apesar de não conviver com surdos, também não era reprimida ao se
comunicar por mímica.
Claro que para algumas famílias houve um pouco de resistência em colocar seus filhos
em uma escola que utiliza LIBRAS, como foi o caso de LAD. Primeiro, sua mãe a matriculou
em uma escola regular para cursar a 5ª. série, e depois reavaliou sua decisão por ver que sua
filha se sentia melhor dentro de sua comunidade surda e matriculou-a no ICES. Através dos
depoimentos coletados, ficou claro que nenhum dos sujeitos sofreu forte censura e
70
preconceito por usar LIBRAS, como até pouco tempo atrás os surdos costumavam sofrer. No
entanto, apesar de as famílias não censurarem o uso da LIBRAS, poucos são os familiares que
sabem LIBRAS.
71
5. ERA UMA VEZ ... AS HISTÓRIAS INFANTIS NA HISTÓRIA DE CADA UM
Contar histórias é um dos muitos usos da língua em nossa cultura. Atividade presente
em muitos lares e escolas, a contação de histórias é uma brincadeira, uma forma de brincar de
ser/imitar as personagens, brincar de contar, brincar de adivinhar ou de antecipar o que vai
acontecer etc e não é simplesmente uma atividade prazerosa, mas também com propósitos.
Segundo Vygotsky (1933, p.113-114; apud ROJO, 1989), “é incorreto conceber o brinquedo
como uma atividade sem propósito”, porque através do brinquedo e das brincadeiras, a
criança vai aprendendo a seguir os caminhos mais difíceis, a subordinar-se a regras e, por
conseguinte, a renunciar ao que ela quer através de negociações com os colegas. Brincando a
criança aprende a desejar, relacionando seus desejos a um ‘eu’ fictício, ao seu papel no jogo e
em suas regras. Portanto, o autor caracteriza o “jogo dramático” como uma forma de
elaboração “ativa” dos processos inconscientes da criança, assim como o “jogo de contar”
seria uma forma que depende unicamente da linguagem, sem a “ação” que caracteriza o
brinquedo e o jogo dramático (ROJO, 1989).
Fernandes (1995) define o (re)contar história como um gênero discursivo secundário em
que o adulto conta a história monologicamente, fato que coloca a criança no lugar de
observador/espectador dos planos enunciativos, isto é, o discurso do adulto se apresenta
através de múltiplas vozes: da sua ppria, do narrador e dos personagens.
Vemos o contar histórias como a tarefa através da qual as crianças podem vivenciar algo
mais próximo de sua realidade, pois o contar histórias é uma situação real. No ato de se contar
há um envolvimento, uma interação muito grande entre os que participam desse momento
mágico.
Na escola, a interação entre a professora e as crianças é uma parte essencial do processo
de aprendizagem da construção de uma história (re)contada para uma audiência. A história
72
contada não é uma versão da escrita, mas as crianças vêem os elementos de expressão
disponíveis isto é, formas gficas, elementos visuais (ilustrações do livro), personagem e
elementos do enredo, estilo sintático, e expressões idiomáticas como todas contribuindo ao
desenvolvimento das histórias. O peso dado a esses elementos nas experiências das crianças
dependerá da tradição do discurso em seu próprio contexto familiar/escolar.
O papel da sala de aula se faz importante como espo que dá lugar à dimica
interativa entre a professora, as crianças e o objeto de letramento, esse movimento interativo.
De acordo com Smolka e es (1995), não está circunscrito apenas a uma relação direta
sujeito-objeto, mas implica, necessariamente, uma relação sujeito-sujeito-objeto. Isto significa
dizer que é através de outros que o sujeito estabelece relações com objetos de conhecimento,
ou seja, que a elaboração cognitiva se funda na relação com o outro. Assim, a constituição do
sujeito, com seus conhecimentos e formas de ão, deve ser entendida na sua relação com
outros, no espaço da intersubjetividade.
Por outro lado, dentro de uma proposta interacionista, a interação é a atividade conjunta
adulto/criança, afirmando-a como condição necessária para a construção da linguagem pela
criança, sublinhado o papel fundamental do outro como mediador entre a criança e a ordem
simlica. Através da interação, a criança constrói, por exemplo, o seu discurso narrativo,
num processo que começa por uma “dependência dialógica inicial”, momento em que a
criança é falada pelo outro”, em que está “imersa na linguagem”, caminhando para uma
“dependência discursiva”, mas instrumentada com e pela linguagem” e, que
posteriormente, a criança irá se constituir como um narrador autônomo (LEMOS, 1991).
Destaca-se na perspectiva sócio-histórica, o conceito de mediação que, segundo o que
alguns autores colocam, o desenvolvimento e a interiorização dos processos mentais
superiores implicam uma forma de mediação que é profundamente influenciada pelo contexto
sociocultural. Esse processo de desenvolvimento é um processo ativo/interativo de
73
apropriação no interior das relações sóciais. A mediação social das atividades da criança
permite a construção partilhada de instrumentos e de processo de significação que irão, por
sua vez, mediar as operões abstratas do pensamento.
É, justamente, o contexto sociocultural que irá diferenciar a forma de mediação em uma
platéia de crianças ouvintes, para uma de crianças surdas, pois, assim como as crianças
ouvintes, as crianças surdas também gostam e entendem os contos de fadas, o que vai
diferenciar estas duas platéias é como elas terão acesso a estas histórias. É muito comum
dentro da comunidade surda a representação teatral dos contos de fadas, inclusive, um
projeto muito interessante que vem sendo realizado desde 2002 pela ULBRA (Programa de
Assessoria Comunitária da Universidade Luterana do Brasil), no qual são registrados em
vídeo e em material impresso, histórias contadas para e por surdos em ngua de sinais, neste
projeto também são investigadas as práticas e os processos de leitura e produção de textos por
surdos quando no contar histórias, procurando desviar um pouco dos estudos que têm como
foco a gramática desta língua. Este grupo selecionou alguns contos de fadas e os adaptaram de
acordo com algumas características do contextos cultural dos surdos, por exemplo, na história
da Cinderela os autores substituíram os sapatinho de cristal por uma luva branca, também é
interessante ressaltar que nesta adaptação o texto aparece escrito não apenas em português,
como também em signwritting
11
, a modalidade escrita da LIBRAS. A história da
Chapeuzinho Vermelho também foi adaptada para a língua de sinais, assim como Os três
porquinhos, Pichio, Aladim, Rapunzel etc.
Esses materiais desenvolvidos têm um grande mérito para o processo de letramento de
crianças surdas, posto que disponibilizam de uma forma mais acessível o contato destas
crianças com os contos de fadas, tanto por serem realizados em LIBRAS, como também por
11
Sign Writing (escrita em sinais) é um sistema que serve para escrever sinais com base nas configurações de
mãos, movimentos, orientações de mãos, pontos de articulação e expressões faciais que caracterizam as línguas
de sinais. Este sistema foi desenvolvido por Valerie Sutton e está sendo utilizado por algumas escolas no
processo de alfabetização de crianças surdas. Para maiores informações a respeito ver a página do Diretório de
Ação do SW – DAC – www.signwriting.org
74
serem desenvolvidos por intermédio de recursos visuais. No entanto, de se ressaltar que
estes recursos são ainda muito recentes e poucos surdos tiveram a oportunidade de ter contato
com este material. No caso dos sujeitos desta pesquisa, nenhum conhecia a história da
Chapeuzinho Surda, o contato que eles tiveram com essa história foi a através de livros e da
contação da professora na escola.
75
5.1. Era uma vez.
Assim que propus aos alunos para escreverem a história de Chapeuzinho Vermelho,
ASO estava lendo uma revista, mas de imediato parou e foi o primeiro a começar e também o
primeiro a terminar de escrever. Quando me entregou, dei uma olhada superficial e perguntei
se ele gostaria de fazer algum desenho e ele respondeu que não precisava, voltando a ler sua
revista.
76
O seu texto me chamou a atenção porque ele utiliza muitos recursos próprios da
narrativa em português, como: a presença do título da história (Chapeuzinho Vermelho); a
expressão era uma vezno início da narrativa; o discurso direto na fala dos personagens,
utilizando dois pontos e aspas; os verbos, predominantemente, no passado etc. Além disso,
também é interessante o fato de ele ter nomeado as personagens (“a e Luciana” e “a
menina Gracinha”) e, dentre outras coisas, a expressão bjus” (utilizando um recurso pprio
de textos escritos informais, como, por exemplo, e-mails e bilhetes).
Durante a entrevista, perguntei por que ele havia colocado aqueles nomes para as
personagens e ele respondeu que foi porque quis. Pedi que lesse o seu texto, ele fez uma
leitura silenciosa; solicitei que fizesse uma leitura sinalizada e ele a fez, demonstrando que
realmente sabia o que havia escrito. Em seguida, pedi que fizesse a reescrita do seu texto,
procurando melhorá-lo.O seu segundo texto ficou assim:
77
Terminada a reescrita, perguntei qual texto tinha ficado melhor, e ele respondeu que o
segundo, porque havia algumas coisas erradas no primeiro texto. Por exemplo, em Era uma
vez dia ele retirou a palavra dia”, ele também corrigiu a palavra meninhapor meninae
trocou “Homem” por “guarda.
Além disso, acrescentou trechos da história que antes não estavam presentes. Por
exemplo: no primeiro texto, ao ouvir a menina cantando, o lobo tem a idéia de ir para a casa
da vovó; já no segundo texto, o lobo, ao ouvir a menina cantando, vai ao seu encontro,
conversa com ela e somente depois segue para a casa da vovó.
o acréscimo também da célebre passagem da história em que Chapeuzinho observa
na vovó, de acordo com ASO, boca é grande, nariz é grande, pelos muitos, o pé grande,
você é parece o bicho Lobo. Lobo disse: ah, ah, eu sou o Loooobo”, trecho este que ele havia
citado superficialmente no primeiro texto. Deve-se sobressaltar o uso do recurso estilístico de
repetir várias vezes a letra “opara demonstrar que o lobo está assustando a menina. Um
outro acréscimo na narrativa são ações do lobo fugindo pela janela e o guarda encontrando a
vono baú.
No entanto, ao fazer a reecrita ASO deixou de repassar alguns trechos: uns, por
esquecimento, como emGracinha leva a cesta das frutas para a vovó, a menina leva
sozinho que fica “Gracinha leva a sozinha” (ele aparentemente pulou uma linha ao
reescrever) e outros, propositadamente, ao retirar a palavra bjus” por não condizer com o
gênero textual proposto para a atividade, de acordo com o que ele explicou na entrevista.
Em relação à estrutura da narrativa, ASO apresenta todas as suas partes: título,
introdução, desenvolvimento e concluo. Suas narrativas apresentam uma grande riqueza de
detalhes que são transmitidos com coerência. Entretanto, é notório que há algo de diferente
na construção de seus textos. Vejamos:
78
1) Quanto à coesão: ASO, por vezes, utiliza uma ordenação das palavras o muito
convencional (“o que fazendo você está) e outras vezes ficam faltando elos coesivos (o lobo
pegar a menina está gritando”).
2) Quanto à flexão verbal: ASO tanto usa adequadamente os verbos (“Luciana
mandou”, ele disse posso entrar”, ele estava procurando etc) como, por vezes,
inadequadamente (“ela está caminhado”, “lobo ouvir” etc)
3) Quanto ao uso dos artigos: quando ASO usa os artigos, ele os coloca concordando
em gênero e número (“a menina”, “o lobo, “a casa”), no entanto algumas vezes ele deixa
de empregá-los no texto (“menina disse”, “lobo fugir”)
4) Quanto à regência verbal: alguns verbos não vêm acompanhados com as preposições
adequadas (“entrar a casa, “chegou a casa”).
Apesar de algumas falhas na escrita, ASO demonstra ter um bom vocabulário, conhecer
as regras gramaticais e as convenções da língua. Acredito que seu desempenho na escrita tem
muita relação com os seus hábitos, seus gostos e sua própria história. De acordo com as
minhas observações, ASO é um aluno muito responvel e participativo nas aulas, gosta de ler
e de escrever, é líder da turma e fica sempre muito atento à disciplina dos colegas. Um fato
interessante que venho observando nestes dois anos em que leciono no ICES é que,
geralmente, os líderes das turmas são aqueles que têm o maior grau de letramento em
português e em LIBRAS. Estas pessoas se sobressaem diante das outras por dominarem o
português, que é uma língua de prestígio, alcançando o respeito de seus colegas que estão
sempre pedindo sua ajuda para a leitura e compreensão dos textos e dos professores que,
geralmente, os colocam como modelos para os colegas. E por dominarem a LIBRAS, também
o referências para os colegas e professores, assumindo uma postura de monitores, tanto em
relação ao conteúdo, quanto à disciplina.
79
ASO estudou de . à 4ª. série em uma escola particular especial para surdos com
abordagem oralista e na 5ª. série começou a estudar no ICES. Sobre esta mudança de escola
ele comenta que na outra escola a professora não sabia LIBRAS e não dava para entender
completamente as coisas, porque era oralização e mímica, foi somente no ICES que
aprendeu LIBRAS e compreendeu que era diferente da mímica.
Seus familiares não sabem LIBRAS e a comunicação é por meio da oralização, segundo
ele:
A minha família não gosta que eu use LIBRAS, preferem a oralização, porque
LIBRAS é difícil para eles, então utilizamos mímica e leitura labial. A LIBRAS eu
uso mais é na escola, com os professores, os colegas e os intérpretes
12
.
Em casa, diz que costuma ler, ver televisão com closed caption (adora novela
mexicana), descansar, estudar e fazer as tarefas. Gosta muito de ler, está sempre procurando
textos para suas leituras (jornais, revistas, histórias em quadrinho). Diz que conhece várias
histórias infantis (em datilologia, soletra: João e Maria, Cinderela), pois na escola onde
estudava a professora contava as histórias, e, acrescenta, que lá tem uma biblioteca na qual ele
costumava pegar livros emprestados para ler em casa. Ao perguntar se ele entendia os livros,
responde que quando não entende, pergunta.
Sobre os estudos, diz que suas matérias preferidas são geografia, português, LIBRAS e
inglês, que adora ir para o laboratório de informática e que no futuro pretende fazer faculdade
de administração. Para ele, o ensino ideal para os surdos é quando o professor escreve na
lousa, os alunos copiam, e depois o professor explica em LIBRAS o conteúdo.
Em relação à sua compreensão sobre a importância e os usos de português e LIBRAS,
ele afirma:
Português é importante aprender palavras e LIBRAS os sinais... acho que os
surdos e os ouvintes escrevem igual, a diferença é que o ouvinte escuta e escreve e
o surdo sinaliza e escreve.
12
Os depoimentos neste capítulo foram todos transmitidos em LIBRAS, interpretados pelo intérprete,
videogravados e transcritos.
80
Pergunto se ele escreve do mesmo jeito que sinaliza e ele responde: acho que sim.”.
Questiono se não tem nada de diferente entre o português e a LIBRAS e ele diz: Você está
querendo dizer sobre o “a”, “do”, “como”? É, é diferente.”
Na opinião de ASO, o que mais influencia o aprendizado de uma pessoa é o seu próprio
interesse. Para ele, os surdos escrevem parecido, uns melhor, outros pior, mas é a vontade de
aprender de cada um que determina isto.
Apesar de ASO demonstrar ter um bom grau de letramento, ele não tem muita
consciência da metalinguagem, ou seja, de como se realiza a sua linguagem. O seu
desempenho em língua portuguesa, em relação aos seus colegas, é muito bom, mas ele não
tem muita consciência das diferenças das línguas.
81
5.2. CHAPEUZINHO VERMELHA
Quando solicitada para escrever a história, ANL demorou um pouco para começar e,
logo depois de escrever o título Chapeuzinho Vermelha”, fez uma bonita ilustração, na qual
consta um balão de pensamento, recurso utilizado em histórias em quadrinhos. No balão, o
lobo demonstra o desejo de comer o que está dentro da cesta de Chapeuzinho. Seu desenho é
muito expressivo e representa bem a história. Ao terminar o desenho, ela escreveu a palavra
fim” bem grande, como se tivesse terminado a história e fez menção de entregar o papel, mas
82
eu insisti para que ela escrevesse alguma coisa. Ela, então, redigiu: a menina é bonitinha
vocé lobo é feio”.
Apesar de o texto escrito ser bastante curto e não apresentar a narrativa da história, ele já
nos trás algumas informações importantes, já que a aluna demonstra conhecer os nomes de
dois personagens da história (chapeuzinho e lobo), não fuga do tema e em seu texto
aparecem, pelo menos, três itens da estrutura da narrativa escrita: título, texto e, ao usar a
palavra fim”, um indício de desfecho.
Fazendo uma breve análise da estrutura do texto de ANL, podemos notar que ela utiliza
o artigo a” concordando com o substantivo menina”, que se refere a Chapeuzinho,
personagem este mencionado no título; as frases são formadas pelo sujeito, o verbo de
ligação e o predicativo; os predicativos concordam com os sujeitos em gênero e número; a
acentuação e a conjugão do verbo “ser” estão adequadas e não há problemas ortogficos.
De diferente em seu texto há, apenas, o uso do morfema feminino –a em vermelha”,
provavelmente com o intuito de deixar marcado o gênero da personagem. Neste caso,
poderíamos considerar esta ocorrência como uma hipercorreção ao tentar aplicar uma regra do
português na escrita; e o uso do vocé” com acento agudo, demonstrando que ela sabia que
esta palavra é acentuada, mas não tinha certeza de qual acento usar. Nos dois casos, vemos
que ANL tem consciência das regras gramaticais do português e das diferenças nas
construções em LIBRAS e em LP, no entanto, ao escrever pouco, ela parece não querer
arriscar, já que ao escrever para mim, sua professora de português, ela, de certa forma,
imaginava estar sendo avaliada pelo seu português.
Seis meses depois da escrita do texto, no momento da entrevista individual, pedi que
sinalizasse o seu texto. Ela conseguiu traduzi-lo perfeitamente do português para LIBRAS,
demonstrando conhecer as palavras ali escritas. Solicitei, então, que contasse a história em
83
sinais. A princípio, ficou relutante, afirmando ser difícil, que havia esquecido, mas depois
contou a história com todos os detalhes, numa excelente interpretação.
Em seguida, pedi para ela reescrever a história, ANL sorri e mais uma vez fica relutante
dizendo que é difícil, muito difícil, mas começa. Enquanto ela escreve, observo que ela não
es sinalizando (alguns surdos sinalizam, assim como alguns ouvintes, ao escreverem,
vocalizam). Neste momento a intérprete entra na sala, e ANL pára de escrever em vovó
dormie o quer mais continuar. Peço para ela sinalizar o seu texto escrito e pergunto se a
história está completa. Ela diz que não e resolve continuar. Sua reescrita ficou assim:
Ao terminar, pergunto qual texto ficou melhor, ela diz que foi o segundo, porque está
fazendo um curso de português no CAS, à tarde, e, por isso, está aprendendo mais e, aos
poucos, está conseguindo escrever melhor várias coisas.
Fazendo uma breve análise da sua segunda produção, podemos notar que é bem mais
longa, apresentando a narração da hisria, que na anterior ficou expressa, apenas, pelo
desenho. ANL faz uma autocorreção ao escrever chapeuzinho vermelho e acrescenta na
84
história mais dois personagens (“vovó” e homens”), no entanto, ela não coloca mais nem o
título, nem a palavra “fim”, mas o seu texto apresenta um desfecho no abraço da vovó com a
chapeuzinho. Vejamos alguns pontos interessantes presentes neste segundo texto:
1) O uso da palavra sitio para designar a moradia de chapeuzinho, em “Chapeuzinho
Vermelho moro em sitio arvore muito. Não conheço nenhuma versão da história que utilize
este termo para expressar o local onde chapeuzinho mora, certamente esta escolha lexical se
dá devido ao conhecimento de mundo de ANL, de que locais rodeados por muitas árvores são
chamados de sítios. Ainda nesta oração, é interessante notar o uso da preposição “em”, classe
gramatical que o existe em LIBRAS, mas que ela sabe que existe em português e usa
adequadamente.
2) A repetição das palavras: Chapeuzinho Vermelho, lobo” e “vovó”. Durante a
análise dos textos, solicitei que uma intérprete, a partir do seu conhecimento da LIBRAS,
procurasse observar se havia alguma característica da LIBRAS nos textos, e a intérprete me
chamou a atenção para essa repetição. É comum no discurso em LIBRAS de alguns surdos, ao
retomarem uma pessoa no seu discurso, utilizam várias vezes a repetição do sinal da pessoa.
Este tipo de atitude também é comum em escritores imaturos, ao fazerem a retomada com
uma repetição lexical. Ao contar a história, em LIBRAS, ANL repete várias vezes os sinais
dos personagens (de acordo com a observação da imagem gravada em deo), fazendo a
retomada com uma repetição do sinal.
3) A flexão dos verbos. Apesar de ANL utilizar adequadamente os verbos em relação ao
sentido; no que diz respeito à flexão, ela faz várias tentativas por saber da sua existência em
português, mas como não há uma correspondência direta em sua primeira ngua, a LIBRAS,
ela não consegue fazer esta flexão com adequação.
4) O uso de artigos. No seu segundo texto, ANL não há nenhum artigo em seu texto.
Diferentemente do primeiro, no qual os artigos são empregados adequadamente, é como se no
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primeiro texto ela estivesse utilizando uma forma cristalizada, uma fórmula de frase que
aprendeu. Já no segundo, parece que seu objetivo era transmitir a história, e, para isto, não
utiliza fórmulas.
Noto que do primeiro para o segundo texto produzido por ANL, uma tensão entre
escrever pouco, mas corretamente, e escrever a história do jeito que sabe, livremente.
Acredito que isto é proveniente de uma mudança de metodologia de ensino, porque há
implícito na atitude da aluna duas abordagens de ensino, uma que prima pela escrita
gramaticalmente correta e outra que prima pela escrita espontânea (pelo menos, em um
primeiro momento, ou seja, é, primeiramente, incentivada a geração de idéias, para depois se
trabalhar aspectos mais formais e textuais).
Comparando as duas situações de escrita dos textos de ANL, em nenhuma das duas ela
se sentiu à vontade, sua relação com a língua portuguesa não é nada confortável. Em um
depoimento ANL diz: Eu sinto muita dificuldade na leitura, mas com a LIBRAS eu consigo
entender o conteúdo. O português eu uso só na escola, fora eu uso muito pouco, eu só sei meu
endereço (tenta através da datilologia dizer o endereço de casa, mas não consegue. Depois de
algumas tentativas, soletra manualmente o bairro: P-A-N-T-A-N-A-L)”.
Compreende-se melhor esta dificuldade em português a partir de um de seus relatos:
Estudei de 1ª.à 4ª. série numa escola regular, mas em uma sala especial para
surdos, eram poucos os surdos nesta escola. eu tinha uma professora que
ensinava português e matemática, a LIBRAS não era usada, a professora
escrevia. Foi somente aqui no ICES na 5ª. série que tive, realmente um contato com
a LIBRAS. Na outra escola não tinha intérprete. O ICES é bom porque tem
intérprete, mas lá não... Eu gostava mais de matemática, era mais fácil aprender,
eu fazia os exercícios em casa, levava para a escola acertava e tirava dez. Com a
leitura, eu lia mas depois esquecia. A maior parte do tempo a gente estudava
matemática, lanchava e estudava matemática de novo. Aqui no ICES é difícil
porque troca as matérias e os professores, lá era fácil, era só uma sempre.
Apesar de afirmar que na outra escola era fácil e que no ICES é difícil, ela diz que não
gostava da outra escola:
“Amo vir para o ICES, na outra escola eu não gostava, abandonei várias vezes até
vir para o ICES, porque lá tinha muita confusão, muita fofoca, tinha alunos
86
envolvidos com drogas, eu não gostava... No ICES é diferente, pois é muito
bom encontrar com os surdos todos os dias, na outra escola tinha poucos surdos,
eu não gostava... Quero aprender cada vez mais LIBRAS.”
Durante a entrevista, ANL comenta que tanto é importante aprender LIBRAS como
aprender português e que português é importante para aprender palavras, saber escrever e
ter um nível igual ao dos ouvintes, mas é difícil porque é diferente da LIBRAS, são muitas
palavras e escrever texto é difícil”. ANL demonstra ter consciência das diferenças entre as
línguas:
LIBRAS e língua portuguesa são diferentes porque os ouvintes escrevem e eu não
entendo nada do que eles escrevem, mas quando os surdos escrevem eu entendo,
quando tem uma palavra que não conheço pergunto, tenho vontade de aprender...
O português tem os verbos flexionados, os pronomes... estou fazendo o curso de
português, tenho vontade de aprender... as vezes pego um livro na biblioteca olho e
devolvo, não consigo entender porque tem palavras difíceis, prefiro hisrias em
quadrinho porque entendo, as vezes tem piadas... adoro histórias em quadrinho!
O seu hábito de ler hisrias em quadrinho fica expresso no seu desenho, ao fazer um
balão de pensamento, demonstrando intimidade com este gênero textual. Ela também relata
que conhece várias histórias infantis como Patinho Feio, Aladim, Três Porquinhos; e quem lhe
contou estas histórias foi a professora na escola, pois em casa nunca houve um momento
reservado para leituras, já que a comunicação em casa é e sempre foi muito complicada:
Em casa não tem comunicação, não há conversa, quando necessário usamos
mímica, mas é confusa a comunicação, ninguém sabe LIBRAS, às vezes, eu e minha
e nos comunicamos por bilhetinhos, mas dificilmente isto acontece.
A dificuldade na comunicação pela auncia do conhecimento de LIBRAS, tanto por ela
própria como por seus familiares e colegas, em sua vida, é muito marcante e o contato com
esta ngua e com pessoas que a dominam é uma espécie de superação de anos de
incompreensão, e uma vontade enorme de se comunicar sem parar:
Quando criança brincava e de vez em quando brigava porque o entendia as
coisas... eu adorava as brincadeiras de criança. A princípio, eu tinha amigos
ouvintes, mas depois mudei de escola, de casa e fiquei tendo amigos surdos.
Tenho alguns amigos surdos que moram perto de mim, eles vão em casa e a
gente conversa horas e horas, às vezes saem lá de casa dez horas da noite!
87
5.3. DORME-SE MELHOR NO INVERNO
Provavelmente CAM copiou este texto de algum lugar, pois ele não tem a menor relação
com a atividade proposta. Esta aluna, de acordo com o que venho observando nos dois anos
em que leciono em sua turma, tem muita dificuldade em escrever; portanto, a estrutura e o
vocabulário empregados no texto não condizem com o seu perfil em sala de aula.
É muito comum entre os surdos fazer cópias aleatórias, sem a menor compreensão. Eles
mesmos nos relatam que muitas vezes vêm para a escola e apenas copiam, copiam, copiam,
mas não entendem nada do que escreveram, daí o fato de a maioria ter uma caligrafia perfeita,
pois toda sua concentração está no traçado das letras, enquanto que a compreensão é
praticamente nula.
Nesta atividade da história Chapeuzinho Vermelho, assim que foi consultado, em
LIBRAS, se eles conheciam a história, todos responderam que sim, e prestaram muita atenção
na encenação da história, realizada por um colega. Mas, ao serem solicitados para escrever,
muitos demonstraram um desânimo e uma insatisfação enorme. Ficou expresso por suas
feições quão lhes é difícil escrever.
88
Lembro-me que CAM, em especial, ficava muito desconsertada quando me aproximava
dela no momento em que estava tentando escrever e procurava esconder o seu papel. Resolvi,
então, deixá-la à vontade, mas, somente quando li seu texto, compreendi a sua atitude diante
de mim, ela não estava conseguindo e, provavelmente, ficou envergonhada para pedir ajuda.
Durante a entrevista, pedi que ela sinalizasse o que havia escrito, ela disse que fazia
muito tempo e não lembrava mais.Talvez, por eu ter insistido muito na leitura do seu texto,
ela começou a soletrar as palavras, utilizando o alfabeto manual. Interferi, pedindo para parar,
e solicitei, apontando para as palavras, que ela fizesse os seus sinais. Mais uma vez, ela
afirmou ter esquecido. Eu, mesma, fiz os sinais das palavras e questionei se o que havia ali
escrito era a história da Chapeuzinho Vermelho. Ela, envergonhada, respondeu não. Perguntei
se ela havia copiado aquele texto de algum material; mas, sem jeito, ela disse não lembrar.
Resolvi não insistir para não dei-la, ainda mais, constrangida.
Peço para ela contar a história em sinais e ela conta. Depois peço para escrever.
89
CAM começa escrevendoque a estava com a casa medo lobo”. Pára, lê o que escreveu
e pede outra folha. Digo para ela escrever na mesma folha, recomeçando logo abaixo. Ela
dobra a folha e recomeça: “que a estava com a casa vo menia medo lobo.
Neste segundo texto iremos ressaltar alguns pontos relevantes para a nossa análise:
1) A escrita da palavra menina, que, durante o processo da escrita, ela procura se
lembrar qual a escrita correta desta palavra e faz três tentativas diferentes: “menia”, “memia
e menina”, como se quisesse resgatar em sua memória a imagem da palavra que a princípio
estava nublada. Fato semelhante ocorre com a palavra “feliz”, ao inverter a ordem das letras e
escrever: “feilz”.
2) Ao inserir termos que ela sabe que são do português (“que”, “a”, com”), mas não
tem certeza de como empregá-los, por não haver uma correspondência em LIBRAS, ela
parece querer demonstrar que conhece as peculiaridades da língua portuguesa. Durante a
entrevista CAM comenta que LIBRAS e português são diferentes, porque a língua
portuguesa tem verbos diferentes, conjugados, tem adjetivos e na LIBRAS não tem, além
disso há alguns sinais na LIBRAS que não tem tradução para o português
3) O emprego correto dos artigos, fazendo devidamente a concordância em “a casa”, “o
lobo”, “a menina”. No entanto, em “a estava com” é como se ela tivesse esquecido de
colocar a palavra “menina”, ou, ao usar o artigo “a”, ela compreendesse que havia deixado
uma marca da pessoa no feminino.
Comparando o primeiro texto com o segundo, CAM consegue, apesar de sua notória
dificuldade na escrita, fazer com suas próprias palavras uma breve narrativa da história.
Apresenta três personagens (vovó, menina e lobo), um dos ambientes em que a hisria se
passa (casa da vovó) e um desfecho para a história com um final feliz (a menina ver feilz”).
Entretanto, o seu texto é confuso e cheio de limitações, sobre estas limitações na sua escrita e
na dos surdos em geral, ela explica durante a entrevista:
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o surdo escreve diferente dos ouvintes porque o surdo não entende muito bem o
português e escreve as palavras diferente, o surdo tenta ler, mas não entende...
Alguns surdos escrevem melhor do que os outros, mas a maioria escreve parecido,
tem surdo que escreve mais e melhor, mas a maioria o conhece as palavras e
tem dificuldade de escrever em português, talvez esta diferença exista porque um
tem mais facilidade de aprender e de entender o português e outro não...
Para CAM, há algo inerente em cada pessoa, que leva a ter maior facilidade ou
dificuldade em aprender e entender o português, mas para ler e escrever bem é importante que
a pessoa estude e tente escrever frases. Em seu depoimento, ela demonstra possuir uma
concepção de que, português é formar frases, daí a sua tentativa de formar frases em seu texto
com uma espécie de fórmula: artigo + nome + complemento. Provavelmente, isto é
proveniente de um ensino centrado em análise e produção de frases, em que os alunos copiam
e tentam seguir o modelo. Sobre o ensino, CAM comenta uma prática comum na escola:
geralmente, na escola, a gente faz primeiro o desenho e depois escreve, porque é melhor
desenhar e depois escrever alguma coisa relacionada ao desenho”
Esta prática está presente na construção do texto tanto de CAM, como no da maioria dos
sujeitos da pesquisa. uma grande valorização da ilustração, como uma forma de suprir as
informações que não ficam claras na escrita. Acredito, também, que isto ocorre porque nos
gêneros textuais com que eles mais têm contato na escola, um grande predomínio das
figuras, como nas histórias em quadrinhos e nos livros de hisrias infantis. É comum,
também, eles afirmarem que o maior contato com os livros ocorre até a 4ª. série, da 5ª. série
em diante este contato diminui significativamente.
CAM explica que, para ela, a LIBRAS é mais fácil do que o português, por ela ter
começado a aprender LIBRAS aos 9 anos, na 1ª. série no ICES. A partir daí, considera que
seu desenvolvimento foi bem melhor, mas confessa: eu não sei ler, ou melhor, sei muito
pouco, somente nomes e um pouco de jornal”. Porém, quando peço que ela faça uma auto-
avaliação (de zero a dez) sobre o seu desempenho em língua portuguesa e em LIBRAS, ela
afirma que sua nota em português seria nove e em LIBRAS, como o seu desempenho é
91
regular por não saber algumas coisas, seria oito. Questiono, então, se o seu desempenho é
melhor em português do que em LIBRAS, ela re-avalia e diz que mereceria um sete em
português.
Sobre sua relação com a escola, ela diz gostar do ICES, mas às vezes acorda tarde e não
vai para a escola, às vezes se atrasa e não pode mais entrar na escola, entretanto, afirma gostar
de ir todos os dias, pois fica feliz ao encontrar os amigos e aprender o que os professores
ensinam em sala de aula. Segundo ela, estar em sala de aula é importante porque o
aprendizado só é possível na escola, pois a família não consegue ajudar:
A família não sabe como ensinar porque não sabe língua de sinais... quando o
aluno vem pro ICES alguns professores sabem ensinar, outros não. Chega em casa,
a mãe não sabe ajudar a fazer a lição, o aprendizado fica só na escola.
CAM foi minha aluna por um ano e meio, ela sempre foi muito calma, mas não
participava muito das aulas, nem costumava perguntar quando não entendia. Muitas vezes
parecia não estar entendendo nada, mas, quando questionada se estava entendendo afirmava
balançando a cabeça com um sorriso nos lábios. CAM comentou na entrevista que alguns
professores sabem ensinar e outros não. Esse, realmente, é um depoimento verdadeiro, pois eu
mesma, quando comecei a lecionar no ICES, não sabia como fazer, apesar de ter
experiência em sala de aula, dominar o conteúdo e ter um intérprete comigo em sala. Porém,
lecionar para os surdos é muito diferente, parece que o aprendizado não acontece do mesmo
jeito que com os ouvintes.
92
5.4. MANINA PESSOA
HDS gosta muito de desenhar e assim que a atividade foi proposta, ele foi logo fazendo
um caprichado desenho, no entanto, ficou muito resistente para escrever. Solicitei, então, que
escrevesse qualquer coisa, do jeito que soubesse e ele descreveu (ou nomeou) o que estava
presente em seu desenho. Mesmo assim, em sua produção aparecem dois personagens da
história (“manina” e vovó”) e a expressão fim”.Um outro aspecto que chama a atenção no
texto é a ausência de verbos. O texto é formado apenas por nomes que descrevem a ilustração.
Na verdade, é a ilustração quem narra a história, que, com suas cores fortes, parece querer
saltar do papel.
93
Na entrevista, peço para HDS ler o seu texto em sinais e ele lê sem dificuldade,
reconhecendo as palavras que escreveu. Depois, solicito que ele conte a história em sinais, o
que ele faz eximiamente, com todos os detalhes da história. Em seguida, pergunto se sabe
como é o nome da menina da história, e ele afirma não saber, somente conhece o sinal. Peço
que reescreva a história, e ele confessa que é difícil, porque conhece poucas palavras. Tenta,
pára, lê sinalizando e depois continua a escrever. Isto se repete várias vezes, até que afirma ter
terminado e me entrega o texto:
Pergunto, em seguida, se o segundo texto é melhor que o primeiro, ele responde que
mais ou menos. Inquiro se ele gosta de ler e ele diz que sim, que gosta de ler jornal e revistas.
Afirma, ainda, que ama português, apesar de ser mais ou menos difícil, pois sempre esquece
as palavras. Mesmo que olhe e tente gravar, acaba esquecendo; com as frases é ainda mais
difícil, porque, ele explica que não consegue juntar direito as palavras para formar um texto.
Quando procuro saber qual o seu maior desejo, ele diz que é ler e escrever bem em
português”.
Esta sua resposta me deixou impressionada, porque, com os outros alunos, quando fiz a
mesma pergunta, responderam sobre trabalho, faculdade e casamento, e estas eram mais ou
menos as respostas que imaginava receber. Mas, quando HDS confidenciou que queria ler e
escrever bem, quebrou minhas expectativas e me levou a me questionar: será que um dia ele
vai conseguir realizar este sonho? O que leva um aluno como HDS chegar na sétima série sem
saber ler e escrever com proficiência?
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Acredito ser vários os fatores que levam a isto: a surdez, que não é um fator
impossibilitador do aprendizado do português, mas dificulta bastante; a escola, que por falta
de uma metodologia adequada não conseguiu proporcionar meios ao aluno para desenvolver
sua proficiência em português; suas próprias práticas discursivas, que por não ter o hábito da
leitura e da escrita dos mais variados neros textuais, causou um distanciamento cada vez
maior da língua portuguesa; o grau de letramento de seus familiares, que são pessoas
humildes e não têm o hábito da leitura e da escrita dentro de casa.
HDS sempre estudou no ICES e, segundo ele, LIBRAS é fácil, mas português é muito
difícil, falta o aprendizado. HDS, assim como CAM, vivenciou um momento de transição no
ICES, em que o oralismo não era mais visto como uma abordagem satisfatória para alguns
(o seu fracasso já era comprovado) e o bilingüismo começou a ser implantado na escola (HDS
fazia a 4ª. série). Embora alguns professores se mostrassem resistentes a este mudança, o CAS
(Centro de Atendimento ao Surdo) começou a ser implantado anexo à escola, proporcionando
cursos de LIBRAS para os professores, familiares e comunidade em geral e cursos de
português para os surdos. No entanto, essa mudança vem sendo gradativa, e os professores
ainda estão procurando, aprendendo e testando uma metodologia adequada para uma
abordagem bilíngüe de ensino.
Em relação aos seus textos produzidos, observamos:
1) Na escrita da palavra menina, nota-se que, no primeiro texto ele escreveu manina”
para designar “menina” e no ato da reescrita, quando ele olhou para a palavra, demonstrou por
sua expressão que não estava correta e tentou consertá-la escrevendo minam”. Este tipo de
erro ortográfico é comum com os surdos, que, por falta de certeza de como escrever uma
palavra, ficam tentado lembrar a ordem das letras nas palavras; é como se, ao aprender, eles
fotografassem as palavras, mas às vezes sua imagem fica embaçada e ao reproduzirem-nas
escrevem algo mais ou menos parecido com a palavra que pretendiam escrever (“manina”),
95
ou invertem a ordem das letras (CAM escreveufeilz”), ou invertem a ppria letra (como em
lodo” com a inversão do “b” para “d”).
2) Em homem lodo morte vovó minan feliz”, supomos haver um período composto por
duas orações. Na primeira homem lodo morte, há uma estrutura parecida com a da LIBRAS
(<HOMEM MORTE LOBO><MORTE>), em que um apagamento do primeiro elemento
da construção dupla. Esta mesma frase em português padrão ficaria: “o homem matou o
lobo”, observe que em LIBRAS tanto morte” como matar” possuem o mesmo sinal. Na
segunda oração “vovó minan feliz”, o verbo de ligação não aparece, assim como na língua de
sinais.
3) Quanto à pontuação, HDS somente utiliza o ponto final no fim do texto. Em minan
casa vovó é doença lodo ver minan”, compreendo que há três orações: minan casa vovó
(a menina foi para a casa da vovó), vovó é doença” (a vovó está doente) e lodo ver minan (o
lobo vê a menina), nesta orações ele também não utiliza nenhum conectivo. Demonstrando
não possuir intimidade com as formalidades e convenções da língua portuguesa,
provavelmente por se manter distante de práticas discursivas escritas em português padrão.
No entanto, na entrevista HDA afirmou, com orgulho, ter o hábito ler jornal e revistas
diariamente e que gosta de livros grossos, mas depois confessou que não entendia direito o
que estava escrito.
Durante a entrevista pergunto para HDS sobre a importância da língua portuguesa e da
LIBRAS, ele responde:
Português é importante aprender palavras... LIBRAS é importante para
compreender melhor as coisas... Um surdo que não sabe português, ao encontrar
com que alguém que vá soletrar uma palavra manualmente não vai entender... já o
surdo que não sabe LIBRAS, fica o tempo no meio de ouvintes, é obrigado a
oralizar, a ler os lábios, mas ele não vai entender as palavras, enquanto que o
surdo que sabe LIBRAS tem facilidade no aprendizado e se desenvolve mais.
HDS compreende a importância de aprender as duas línguas, mas a importância da
língua portuguesa se resume em conhecer o seu vocabulário, isto, provavelmente, evidencia o
96
ensino que valoriza o aprendizado de palavras, se distanciando dos textos e das práticas
discursivas escritas que circundam Aos alunos. Segundo ele, ao folhear um livro, ou um
jornal, ou uma revista, tanto olha para as figuras como para as palavras, ou seja, o seu foco
o as palavras e não o texto.
Quando questionado sobre a existência de diferenças entre português e LIBRAS, diz que
não há, são iguais. Pergunto, então, se a frase em português é formada da mesma forma que
na LIBRAS e ele responde não saber, que acha que tudo o que tem no português, tem na
LIBRAS. No entanto, ao comparar a escrita dos surdos com a dos ouvintes diz:
O ouvinte escreve mais, escreve diferente e o surdo escreve pouco... os surdos,
geralmente, escrevem de uma forma parecida, isto faz parte da cultura surda, às
vezes a gente esquece uma palavra e, então, escreve algo parecido.
Em relação às hisrias infantis, HDS diz conhecer além de Chapeuzinho Vermelho,
Branca de Neve, Rapunzel (fazendo em datilologia) e “Mulher Peixe” (talvez se referindo à
Pequena Sereia ou a Iara), quem lhe contou estas histórias foi a professora, pois em casa diz
somente ter livro de religião. Na infância, costumava fazer o AEIOU, o ABC, e adorava
desenhar. Em relação às amizades, diz que sempre teve amigos surdos e ouvintes. O momento
mais feliz de sua vida, segundo ele, foi quando na 1ª. série, comou a estudar no ICES: “Amo
vir para a escola... no começo, achei meio estranho, mas eu fui me acostumando, conheci
outros surdos e gostei... não gosto de ficar em casa sozinho.”
Para HDS é a família e o próprio surdo quem mais tem influencia no aprendizado:
A família é quem mais influencia no aprendizado, porque quando esquo uma
palavra é a família quem me ajuda,... além disso, para ler bem a pessoa tem que se
esforçar sozinha, buscar o sentido das palavras... estudar é importante.
97
5.5. BUÚ BUÚ SOCORRO...
Ao ser solicitada para escrever a história, IMB demorou um pouco pensando e depois
começou a escrever o texto, enquanto escrevia com um jeito envergonhado escondia com a
mão para ninguém ver. Ao terminar, perguntou se poderia desenhar e fez a ilustração da
história.
Seis meses depois na entrevista, IMB entra na sala nervosa, diz que está com vergonha,
que não sabe LIBRAS, que começou a estudar no ICES em 2003 na 5ª. série e, como somente
98
a partir daí começou a aprender LIBRAS, sabe pouco. Acrescenta que antes de vir para o
ICES estudava em escola de ouvintes e por isso não conhece LIBRAS e tem muita vergonha
por não saber direito. Peço para ela se acalmar, e explico que nós iremos conversar um pouco
sobre a história que escrevera, lhe entrego o seu próprio texto. Ela, então, começa a lê-lo
sinalizando. Parabenizo-a por contar bem a história, pergunto onde foi que ela aprendeu esta
história. Ela diz que foi na escola de ouvintes em que estudou da 1ª. à 4ª. série, lá ela tinha
que ler muitos livros. Conhece a hisria da Branca de Neve, Cinderela, Pequena Sereia, 101
Dalmatas e acrescenta que adora ler. Comenta que, quando pequena, apesar da timidez, fez
teatrinho na escola da hisria Chapeuzinho Vermelho e também dos “Sete Anões”.
Em seu texto, IMB apresenta: a narrativa da história (começo, meio e fim), os
personagens (“menina”, vovó”, “loboe policia”), dois ambientes (“caminhoe casa”) e
o seu texto é relativamente longo. Mas nele algumas peculiaridades bem diferentes dos
seus colegas:
1) O uso de onomatopéias (representação de sons na escrita). IMB escreve buú
buúe pau, pau, pau, isto me deixou bastante intrigada. Durante a entrevista, questionei se
ela conseguia escutar alguma coisa, ela disse que não, pois, mesmo usando o aparelho
auditivo, somente conseguia ouvir ruídos. Mostrei para ela no texto as onomatopéias e
perguntei o que era aquilo e ela, através de mímica, levantou as mãos como se quisesse me
assustar e pronunciou buú be depois fazendo de conta que sua mão era uma arma ela
atirou, também pronunciando “pau, pau, pau”. Provavelmente, por ser oralizada e ter o
costume de ler tanto livros infantis, como histórias em quadrinho, ela foi capaz de colocar em
seu texto onomatopéias.
2) O uso de palavras desconhecidas. Em seu primeiro texto IMB escreveu seuva
e cemor, na entrevista perguntei para ela o que era aquilo e ela disse que não sabia que
havia esquecido. Procurando um sentido para estas palavras dentro do contexto, para seuva
99
encontrei duas possibilidades: a primeira seria seu vai”, neste caso ela não teria feito a
segmentação, unindo duas palavras, e a segunda seria selva”, neste caso ela teria trocado o
“l” por u”, mas não acredito que um surdo cometeria este tipo de erro ortográfico, por este
caracterizar um apoio na oralidade. A segunda palavra: cemor”, IMB usou tanto na escrita,
como na reescrita do texto. Acredito que talvez signifique “chamou”, mas isto também não
fica muito claro no texto.
3) O uso da palavra polícia” para designar o caçador”, já que ambos pertencem a um
campo semântico comum. O uso desse recurso é muito interessante e, dentre os sujeitos da
pesquisa, somente ANL fez algo parecido ao designar a casa de Chapeuzinho como um sítio.
Ao ser solicitada para fazer a reescrita do texto, ela o faz sem objeções, escrevendo sem
sinalizar, mas, quando está na terceira linha, toca o sinal para o intervalo, ela fica com
vontade de sair, porém eu peço para ela continuar. Ela atende, mas faz o resto do texto
apressadamente.
Comparando o primeiro com o segundo texto observamos:
100
1) Nos dois textos ela demonstra não saber o nome da menina, designando-a no primeiro
texto como: A menina é vermelho e no segundo, ela faz uma autocorreção: A menina é
vermelha concordando o predicativo em gênero e número com o sujeito.
2) Na reescrita, apesar de ser um texto mais curto do que o primeiro, ela acrescenta a
figura da mãe da menina e do “pai policia”e suprime alguns eventos que ela havia citado no
seu primeiro texto.
3) Nos dois textos ela utiliza a palavra o olho” no sentido de “olhar”, “ver”, em
LIBRAS para estas palavras utiliza-se o mesmo sinal.
Os dois textos, apesar de serem ricos em detalhes, são muito confusos. Como ela mesma
disse em depoimento, é como se as palavras não se encaixassem. Ela conhece a história,
tem um vocaburio razoável, mas o consegue manter a coesão do texto. No entanto, ela
acredita que escreve bem:
Tem surdo que sabe escrever e outros que não sabem... eu sei escrever... o sei
porque acontece esta diferença, por exemplo, o HDS escreve pouco, a ANL
escreve melhor do que eu... acho que a pessoa tem que estudar muito, a escola tem
uma grande influencia, mas cada um tem um jeito de compreender diferente, às
vezes, um consegue e outro não.
A entrevista com IMB é muito confusa porque ela não domina bem a LIBRAS e por
isso, muitas vezes não compreende a intérprete. Por exemplo, ao perguntar qual a imporncia
do português, ela afirma que é importante para ter um desenvolvimento na leitura”, em
seguida, pergunto qual a importância da LIBRAS e ela fica confusa, sem entender direito a
pergunta. A intérprete compara a primeira pergunta com a segunda, explica que é
praticamente a mesma coisa muda o foco, uma é sobre o português e a outra é sobre a
LIBRAS. Mas somente depois de muita explicação ela responde: é importante aprender os
sinais, porque é melhor para o aprendizado
Tanto o texto escrito de IMB, em português, como o seu discurso em LIBRAS, são
confusos. Ela não se sente fluente em nenhuma das duas línguas, nem tem consciência de
101
quais são as diferenças entre as línguas: “acho que português e LIBRAS são a mesma coisa...
não sei... às vezes... não sei... eu não sei muito LIBRAS...
Apesar de suas dificuldades com a língua de sinais, ela diz que sua compreensão
melhorou depois que comou a estudar utilizando LIBRAS:
Gosto de vir para o ICES, gosto de vir para estudar e conversar sobre os estudos.
Quando eu era pequena, eu não gostava de ir para a escola... Antes da 5ª. série eu
não queria ir para a aula de jeito nenhum, era obrigada... tinha preguiça não
gostava. Depois da 5ª. série, quero vir todos os dias. Eu gosto de vir aprender,
tenho saudade quando não venho... Quando eu era pequena eu chorava muito,
porque tinha que ir para a escola... Lá, a professora explicava, falava, falava e eu
não entendia quase nada, ficava quieta, sentada, eu era a única surda e ficava
olhando tudo em minha volta... Eu prestava muita atenção e estudava muito em
casa, uma vez consegui atirar um oito numa prova!... Acho que com o surdo o
professor tem que usar LIBRAS, porque se falar eu não entendo nada!
IMB é de uma família que possui uma boa condição financeira, em sua casa tem muitos
livros, TV com closed caption e jornal todos os dias, ela diz que gosta de ler, mas o que mais
gosta são as histórias em quadrinhos, fica horas trancada no quarto, lendo. Na sua família
somente uma prima sabe LIBRAS, a comunicação com o resto da família é através de
mímica, de bilhetinhos e de leitura labial, pois ela é um pouco oralizada.
102
5.6. MINHA VOVÓ FUI NOITE DE MISSA
Enquanto a maioria dos colegas de sala estava escrevendo, ou tentando escrever, LAD
ficou conversando sem dar muita importância para a atividade (escrever a história
Chapeuzinho Vermelho). Pedi várias vezes para ela fazer a atividade. Ela, primeiro, desenhou;
depois, continuou a conversar; quando faltavam poucos minutos para a aula terminar, ela
escreveu seu texto às pressas.
Seu texto possui três frases curtas que não têm a menor relação com a história. Na
entrevista, ela contou que o desenho é sobre Chapeuzinho Vermelho, mas o texto, não;
103
escreveu somente por escrever. Pergunto se ela se lembra da história, ela nega, diz que faz
tempo, esqueceu. Peço para ler o seu texto e, mais uma vez, responde: “não, faz tempo,
esqueci”. Questiono se sabe o nome da personagem principal da história e, de novo diz: “não,
faz tempo, esqueci”. Solicito que conte a história em LIBRAS, sem entender, pergunta se é
para dizer o nome da personagem, digo que não, que é para contar a história, e, mais uma vez,
responde: “faz tempo, esqueci.”
LAD parecia que realmente não queria colaborar, apesar de ter aceitado participar da
pesquisa; de ter entregue a autorização de sua mãe para participar; de, antes mesmo da
entrevista, sua mãe ter telefonado pedindo mais detalhes e eu ter explicado, portanto, ela
estava consciente de que iria passar por uma entrevista, que seria filmada etc.
Resolvi insistir mais um pouco e comecei a contar a história: “A Chapeuzinho Vermelho
vai entregar... o quê?... para quem?...Ela responde: à vovó na casa”. Indago o que ela vai
fazer na casa da vo? LAD diz que Chapeuzinho vai entregar uma cesta de maças, neste
instante, lembra-se do lobo e faz o seu sinal. Questiono o que o lobo faz? “Ele quer roubar a
cesta de maças!? Não sei... o lobo rouba e come a maça”. Indago sobre a vovó, ela
responde:“não sei, faz tempo, esqueci”. Pergunto sobre o final da história, ela diz que no seu
texto es escrito. Solicito que leia seu próprio texto, ela afirma que é algo sobre a Igreja.
Questiono se a Chapeuzinho foi para a missa, ela retruca: “não foi para a casa da vovó”.
Dentre os sujeitos da pesquisa, LAD foi a única que parecia não ter vontade de contar a
história em sinais, os outros demonstraram por suas atitudes uma certa satisfação em contar e,
somente quando solicitados para escrever, foi que alguns fizeram objeções. Com LAD
também não foi fácil. Quando pedi que escrevesse, ela foi logo afirmando estar com preguiça
e preferir fazer em casa, esclareci que o e mostrei um canto reservado na sala em que
estávamos para ela ficar a vontade e escrever do jeito que sabia. Ela concordou e começou a
escrever:
104
Quando LAD estava escrevendo, parou e me perguntou qual o nome da menina da
história.Expliquei que não poderia dizer, ela escreveu Alice”, acredito que influenciada pelas
aulas de português, pois nós tínhamos lido em sala aula a história Alice no País das
Maravilhas. Lembrei-lhe que esta era outra história, ela riscou; depois escreveu vermelho,
riscou de novo; escreveu Aline, riscou mais uma vez e me entregou o papel pedindo
desculpas. Na folha da reescrita ela colocou: Eu fazer frases mais ou menos.”
Até então travamos uma batalha, pensei que ela não iria querer continuar, no entanto, ela
afirmou que estava tudo bem, que poderíamos continuar com a entrevista. Mas, antes de
apresentar a entrevista, pretendo fazer uma breve análise de algumas características dos textos
de LAD:
1) O uso de artigos. Nos dois textos, LAD utiliza vários artigos, alguns adequadamente,
concordando em gênero e número (a vovó” e o lobo”), e outros inadequadamente, em
relação ao gênero (“o casa”) e ao número (as menina”), além disso, ela utilizou o artigo
acompanhando verbos (“a estava”, “o brincar” e “no passear”). LAD demonstra conhecer
esta classe gramatical, que apesar de não existir em LIBRAS, existe em português, e por não
ter um pleno do domínio de seu uso faz várias suposições de como aplicá-la.
2) Construções com frases curtas. Tanto no primeiro texto quanto no segundo, LAD
escreveu três frases, com, em média, seis elementos. A maioria começa com artigo e tem uma
estrutura sujeito-verbo-complemento. Dois fatores podem influenciar este tipo de construções:
primeiro, um ensino centrado em análise e construções de frases e/ou o seu grau de letramento
105
que ainda é baixo, que pessoas com um baixo grau de letramento, sejam elas ouvintes ou
surdas, costumam fazer construções com períodos simples e curtos (Kato, 1987).
3) Os verbos, na maioria, estão no passado (tempo verbal apropriado para narrativas),
mas também aparecem no infinitivo (“brincar”, pulare “passear) e no futuro (“vai”). Em
seus textos, LAD demonstra não ter o pleno domínio das flexões verbais, mas se aproxima
bastante da forma correta, por exemplo: em “a vovó fui(..).”, o tempo e o modo estão corretos,
mas a pessoa não; em o lobo vai roubo”, ela usa com coerência uma locução verbal,
somente não está adequada a flexão do verbo “roubar”.
4) No segundo texto, LAD se refere a Chapeuzinho Vermelho como “ela vermelho” e
menino”. LAD afirmou não se lembrar do nome da personagem, recordava-se apenas de
seu sinal (o sinal de Chapeuzinho Vermelho é a soma de dois sinais: no primeiro, a pessoa
simula estar colocando com as duas mãos um capuz na cabeça e, no segundo, faz-se o sinal de
vermelho, em que a pessoa passa o dedo indicador nos lábios). LAD, então, trocou o nome
que não lembrava (Chapeuzinho) por um pronome pessoal no feminino (“ela”) e acrescentou
a outra parte que lembrava (“vermelho”). Já em “menino”, ela utilizou um sinônimo, mas não
lembrou de flexioná-lo, acredito que isto foi um esquecimento, já que no primeiro texto ela
utilizou a palavra “menina”, apesar de não estar se referindo à Chapeuzinho Vermelho, como
ela afirmou na entrevista, este texto não se trata da história Chapeuzinho Vermelho, ela
demonstrou conhecer tanto a palavra, quanto sua flexão em gênero.
Considero dois fatores importantíssimos para explicar a batalha inicial travada na
entrevista e no texto de LAD: primeiro, ela sabia que estava sendo avaliada pelo seu
português, e isto não lhe deixava nada a vontade, já que ela tinha consciência de suas
dificuldades; e, segundo, ela o gostava de histórias infantis, não dando valor a este gênero
de textual.
106
LAD tem consciência da importância do aprendizado da língua portuguesa, mas explica
que o surdo aprende pouco as palavras e considera o ouvinte mais inteligente porque o surdo
não consegue encaixar as palavras, e exemplifica:
eu estudo, mas quando vou escrever coloco palavras; o ouvinte escreve
diferente, escreve frases, que eu não compreendo, não entendo (...) tem surdo que é
inteligente, escreve bem; já aquele que não é, não consegue, falta estudo (...) acho
que é o professor quem mais influencia no desempenho do aprendizado.
Segundo LAD, a inteligência do pprio surdo e os professores são os maiores
influenciadores do desempenho em língua portuguesa. Além disso, ela acrescenta a
importância da leitura, apesar de confessar não ter o hábito da leitura, nem de ir à biblioteca
(“tenho preguiça”) e a importância de se utilizar a LIBRAS para ensinar. No entanto, ela
comenta que estudava em uma escola particular que utilizava a abordagem oralista e diz que
amava esta escola, que adorava ir para as aulas, gostava das explicações das professoras, das
brincadeiras, dos passeios, comenta que lá os amigos costumavam se encontrar aos sábados
para brincar e conversar. no ICES diz que gosta mais ou menos, pois sua mãe não gosta das
fofocas. A mãe de LAD o gosta do bilingüismo, prefere e incentiva a oralização de sua
filha. Quando LAD terminou a 4ª. série, sua mãe o quis colocá-la no ICES e preferiu
matriculá-la em uma escola regular. Sobre esta experiência LAD diz:
Em 2003, eu fiquei muito triste porque todos os meus amigos vieram para o ICES e
eu fui para uma escola regular, eu não gostei desta escola, lá não tinha intérprete,
a professora falava e era muito difícil.
Estranhei quando LAD comentou que na escola regular não tinha intérprete, pois eu
sabia que na escola em que estudara também não tinha intérprete. Questionei sobre este fato e
ela disse que na escola em que estudou de 1ª. à 4ª. série não tinha intérprete porque não
precisava, pois as professoras sabiam LIBRAS e sabiam leitura labial. LAD demonstra não ter
muita consciência das diferenças entre LIBRAS e mímica, que no período em que ela
estudou nesta escola a LIBRAS não era utilizada.
107
LAD também demonstra não ter consciência das diferenças entre LIBRAS e português.
Ela afirma que as duas línguas são iguais, mas depois as diferencia dizendo que na LIBRAS
tem sinais e no português tem palavras. Ao questionar sobre as construções, sobre as classes
de palavras, ela não compreendeu o questionamento e continuou afirmando que era a mesma
coisa. No entanto, não é o que ela demonstra na sua escrita, pelo contrário. Na escrita, LAD
mostra-se atenta ao uso das flexões verbais e nominais, ao uso de artigos, preposições etc,
apesar de não ter pleno domínio destas regras, portanto, ela sabe, mas não tem a consciência
de que detém este conhecimento.
Quanto à sua comunicação com a família, diz que somente uma prima sabe LIBRAS;
com o resto da família se comunica através de oralização. O seu pai às vezes pergunta sobre
alguns sinais, porém ainda não aprendeu e sua mãe não gosta. A LIBRAS, utiliza mais na
escola ou em casa quando recebe colegas surdos para estudar e conversar, e com o seu
namorado que também é surdo. Durante a entrevista, seu celular toca, era a sua mãe que
estava mandando uma mensagem para lembrá-la de tomar um remédio, ela pede licença para
ir beber água. LAD comunica-se constantemente através do celular, tanto com colegas surdos
quanto com pessoas ouvintes.
108
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS: A HISTÓRIA NA ESCRITA
Apesar de todos os sujeitos terem contado a clássica história Chapeuzinho Vermelho,
nenhum dos textos ficou igual ao outro, porque dentro da história que eles contaram estava
um pouco da história de cada um deles. A experiência de vida dos nossos sujeitos elucida as
práticas que constroem e medeiam a relação desse sujeito, consigo mesmo e com os outros,
constituindo as condições de produção de seus discursos. Portanto, o contexto histórico-
social, os interlocutores, o lugar de onde falam, a imagem que fazem de si, do outro e do
referente constituem a insncia verbal de produção de discurso, ou seja, constituem as
condições de produção de seus discursos.
Nesta pesquisa procuramos, através dos textos dos sujeitos, observar as singularidades
de sua escrita e verificamos que cada texto reflete e refrata o sujeito do discurso, pois perpassa
no texto o apenas o enredo da história, mas a história do próprio sujeito, que através de suas
escolhas deixa transparecer um pouco de si em seu texto. Mesmo não sendo o texto proposto
para a análise um texto subjetivo, são estes indícios de subjetividade na narrativa que
interessam para a nossa alise.
Procuramos também, através de entrevistas, resgatar da memória discursiva desses
sujeitos, informações que retratam seus hisricos de vida: idade, descrição do percurso
escolar, o momento da aquisão da LIBRAS, com a intenção de conhecermos melhor os
nossos sujeitos, como pertencentes a uma dada sociedade ideologicamente construída.
Dentre os nossos questionamentos iniciais estavam: por que os surdos escrevem de uma
forma tão diferente do português padrão? Seria uma interferência direta da LIBRAS no
português? Compreendemos hoje, após muitas leituras e análise dos textos dos nossos
sujeitos, que a interferência direta da LIBRAS na língua portuguesa não é o principal fator de
influência na escrita dos surdos. É inegável a sua existência, como vimos no texto HDS, na
109
estruturação da frase e na ausência dos conectivos. No entanto, os sujeitos surdos
compreendem que LIBRAS e português são diferentes. Apesar de nem todos afirmarem isto
de uma forma consciente em suas entrevistas, em seus textos fica bastante claro que ao
escrever em português, os sujeitos procuram empregá-lo, fazendo inúmeras tentativas ao
utilizar artigos, flexões verbais e outros aspectos que não existem na LIBRAS.
O fato é que a surdez, inegavelmente, os distancia do português falado, e para se
apropriar do português escrito são utilizadas outras vias, muitas vezes tortuosas, frutos de uma
metodologia de ensino inadequada para o aprendizado do português como segunda língua.
Como eles próprios afirmam, um ensino que prioriza a cópia, não lhes possibilita a
compreensão, nem o aprendizado. Os seus textos denunciam as práticas pedagógicas, pelas
quais passaram, como quando CAM copiou aleatoriamente algo; ou quando ANL construiu
frases com uma estrutura fixa; ou, através da valorização da ilustração ante ao texto; ou,
ainda, pela concepção de que português é palavra, de acordo com o depoimento de HDS e,
também, de acordo com o seu pprio texto.
Corroboramos com Rojo (1989) quando diz que o desenvolvimento da linguagem
escrita ou do processo de letramento da criança depende do grau de letramento da instituição
familiar em que esta está inserida, isto é, da maior ou menor presença de práticas de leitura e
de escrita em seu cotidiano e, por outro lado, como ressalta Lemos (1988, p.11), dos
“diferentes modos de participação da criança nas práticas discursivas (...) em que estas
atividades ganham sentido”.
Notamos que os sujeitos que mais contato tiveram com a leitura do texto escrito, como é
o caso de ASO, ANL e IMB, demonstram ter se apropriado de um vocabulário mais amplo e
conseguiram desenvolver a narrativa com mais detalhes. Aqueles que lembram da história,
principalmente, por ela ter sido encenada, como é o caso de CAM e HDS, sabiam muito bem
o seu enredo, mas não conheciam as palavras que designavam o nome dos personagens, nem
110
conseguiram estruturar uma narrativa. CAM e HDS demonstraram que em seu ambiente
familiar não são proporcionadas práticas de leituras, enquanto que ASO, ANL e IMB
comentam que adoram histórias em quadrinho, revistas e livros infantis e costumam lê-los em
casa.
Um outro questionamento levando em nossa pesquisa foi: por que, entre os próprios
surdos, há tantas difereas no desempenho em língua portuguesa? Seria uma influência
direta da escola e da metodologia de ensino? Se pensarmos bem o desempenho em língua
portuguesa é diferente não apenas entre os surdos, isto também acontece entre os ouvintes, e
ocorre devido a inúmeros fatores, dentre eles, a aptidão pessoal. Observamos na pesquisa que
ASO e LAD, estudaram juntos nas mesmas escolas, com os mesmos professores, no mesmo
período de tempo, no entanto, apresentam desempenhos diferentes. Na entrevista, fica
bastante claro, que enquanto ASO gosta, e sempre gostou, de ler histórias infantis e de vários
outros gêneros textuais, LAD afirma não gostar destas coisas de criança e ao dizer que
esqueceu das histórias que lhe foram contadas, demonstra que para ela aquilo não era
importante ou significativo.
Em relação à influência da escola e do ensino, é preciso deixar claro que estes alunos
estão vivenciando um momento de transição. Os sujeitos desta pesquisa, tanto tiveram
experiências de um ensino com abordagem oralista ou em escolas regulares, nas quais tinham
que fazer leitura labial, como também vêm experimentando o ensino com abordagem
bilíngüe, e todos sem exceção dão preferência ao uso da LIBRAS como espaço de interação
professor-aluno. No entanto, este ensino bilíngüe que lhes vêm sendo ofertado ainda está
longe de ser o ideal, nem os professores, nem as escolas ainda não estão preparados para um
ensino bilíngüe ideal, mas de qualquer forma estão procurando se informar e se adaptar.
Por exemplo, neste ano de 2006, a escola especial para surdos de abordagem oralista,
em que ASO e LAD estudaram, já está começando a se adaptar para o bilingüismo. Também,
111
terá início, a partir deste ano, a Licenciatura Letras-LIBRAS na Universidade Federal do
Ceará, em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina, em que muitas das vagas
serão destinadas para os surdos. Muito se vêm discutindo sobre inclusão dos surdos na
sociedade, nas escolas e nas universidades. Os surdos cada vez mais estão conquistando na
sociedade espaço e respeito.
Compreendo que o desempenho em língua portuguesa dos sujeitos desta pesquisa é além
de um reflexo de suas histórias individuais, é, também, um reflexo deste momento de
transição. Acredito, que em um futuro bem próximo, tudo isto estará bem diferente, todos os
surdos terão acesso ao ensino bilíngüe, irão conviver com a LIBRAS desde tenra idade e
aprenderão a língua portuguesa por meio de métodos bem mais adequados às suas
necessidades.
Findo esta pesquisa declarando o meu amor e respeito aos surdos que tanto me ensinam
diariamente.
112
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p. 11-21.
_____. A criança na fase inicial da escrita: a alfabetização como processo discursivo. São
Paulo: UNICAMP, 2000.
SOUZA, R.M. e MENDES, I.R.S. Língua de sinais e sua influência na educação. Estudos
de Psicologia, Campinas, v. 4, n. 1, p. 35-51, 1987.
SOUZA, R. M. Que palavra te falta, lingüística, educação e surdez. São Paulo: Martins
Fontes, 1998.
VYGOTSKY, L.S.; A Formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984;
________________. Pensamento e Linguagem. São Paulo/SP, 2ª edição,1989.
________________. Fundamentos de defectologia. Havana: Pueblo y Educación, 1995.
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WERTSCH, J. V. & SMOLKA, A. L. B.. Continuando o diálogo: Vygotsky, Bakhtin e
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150). Campinas: Papirus, 1995.
116
ANEXOS
117
ANEXO I – Entrevista 1: ASO (Questionário sobre os usos da LIBRAS e da LP)
118
ANEXO II – Entrevista 1: ANL
119
ANEXO III Entrevista 1: CAM
120
ANEXO IV – Entrevista 1: IMB
121
ANEXO V – Entrevista 1: HDS
122
ANEXO VI – Entrevista 1: LAD
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