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Eleandro de Carvalho Gomes Cavalcante
Decifra-me e devora-me:
a “ciência” consumida pelo jovem
das camadas médias urbanas brasileiras
Dissertação de Mestrado
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Ciências Sociais da PUC-Rio como
requisito parcial para obtenção do título de Mestre em
Ciências Sociais.
Orientadora: Profa Maria Isabel Mendes de Almeida
Rio de Janeiro
Agosto de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610489/CA
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Eleandro de Carvalho Gomes Cavalcante
Decifra-me e devora-me:
a "ciência" consumida pelo jovem
das camadas médias urbanas brasileiras
Dissertação apresentada como requisito parcial
para obtenção do título de Mestre pelo Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais da PUC-
Rio. Aprovada pela Comissão Examinadora abaixo
assinada.
Profa. Maria Isabel Mendes de Almeida
Orientadora
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Profa. Clarice Ehlers Peixoto
UERJ/IFCS
Prof. Valter Sinder
Departamento de Sociologia e Política – PUC-Rio
Prof. Nizar Messari
Coordenador Setorial do Centro
de Ciências Sociais – PUC-Rio
Rio de Janeiro, 14 de agosto de 2008
PUC-Rio - Certificação Digital Nº 0610489/CA
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Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total
ou parcial do trabalho sem autorização da universidade, do
autor e da orientadora.
Eleandro de Carvalho Gomes Cavalcante
Graduou-se em Ciências Sociais pela Universidade
Federal do Rio de Janeiro em 2004.
Ficha Catalográfica
Cavalcante, Eleandro de Carvalho Gomes
Decifra-me e devora-me : a “ciência” consumida
pelo jovem das camadas médias urbanas brasileiras /
Eleandro de Carvalho Gomes Cavalcante ; orientadora:
Maria Isabel Mendes de Almeida. – 2008.
130 f. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado Sociologia e Política)–
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio
de Janeiro, 2008.
Inclui bibliografia
1. Sociologia Teses. 2. Jovens das camadas
médias urbanas. 3. Representação de ciência. 4.
Superinteressante. 5. Consumo e comunicação de
massa. I. Almeida, Maria Isabel Mendes de Almeida. II.
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
Departamento de Sociologia e Política. III. Título.
CDD: 301
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Ao meu irmão, Carlos, meu herói, e à sua identidade, que
nem secreta é, mas é identidade, a Jô.
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Agradecimentos
A Maria Isabel Mendes de Almeida, minha orientadora acadêmica, pela liberdade
e pela igualdade.
Ao pessoal lá da turma do Mestrado da PUC: Amanda, Alessandra, Vera, Leo,
Sandro e Zé, pela fraternidade.
Aos professores que estiveram presentes ao exame de qualificação desta
dissertação, em agosto de 2007, Luiz Antonio Machado da Silva, Roberto
DaMatta e Valter Sinder, pela atenção, críticas, elogios e sugestões.
Aos docentes, discentes e funcionários do Departamento, sem os quais não
haveria Departamento – valha a redundância.
À Ana Roxo, burocracia racional-legal, legal.
À PUC-Rio e à FAPERJ, pelo apoio institucional e pela viabilização material
desta pesquisa.
A Elisa Reis e a Luiz Antonio Machado da Silva, por se mostrarem prestativos
quando demonstrei interesse em participar do processo seletivo para o Mestrado
da PUC-Rio em 2005.
Ao povo da Graduação no IFCS, especialmente a Jeane, a Joana, a Olivia, a
Rachel, o Alessandro, o Antonio Brasil, o Celso, o Fábio Pimentel, o Iam, o Max
e o Ronaldo.
Ao pessoal das aulas de francês, parte fundamental da minha vida social – da
minha vida, enfim – durante a confecção desta dissertação.
Ao Diogo, ao Leonardo e ao Rafael, pela inocência.
À Bia e ao Pedrete, por me aturarem mestrando.
À minha mãe, Ana, minha irmã.
Ao vovô Elvino, in memorian.
À moderna notação musical, por preservar, viva, uma tradição pela qual vale a
pena escrever uma dissertação de mestrado – e tudo mais.
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Resumo
Cavalcante, Eleandro de Carvalho Gomes; Almeida, Maria Isabel Mendes
de (Orientadora). Decifra-me e devora-me: a “ciência” consumida pelo
jovem das camadas médias urbanas brasileiras. Rio de Janeiro, 2008.
130p. Dissertação de Mestrado - Departamento de Sociologia e Política,
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro.
O objetivo deste trabalho consiste em tentar compreender a cultura jovem
das camadas médias urbanas brasileiras a partir da análise antropológica de uma
representação de ciência. Em um primeiro momento, tentamos delinear um perfil
do jovem destas camadas médias através da discussão teórica das idéias de “crise
de autoridade” e “falta de limites”, muitas vezes empregadas pelo senso comum
na classificação social das relações no seio da família e do próprio jovem. Em
seguida, debruçamo-nos sobre um item de consumo deste jovem, uma revista de
divulgação científica: Superinteressante, da Editora Abril. Através da
interpretação etnográfica das reportagens de capa publicadas durante o primeiro
semestre de 2007 em Superinteressante, buscamos compreender qual seria a
noção de ciência ali divulgada e, portanto, consumida por seus jovens leitores.
Palavras-chave
Jovens das camadas médias urbanas, representação de ciência,
Superinteressante, consumo e comunicação de massas.
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Abstract
Cavalcante, Eleandro de Carvalho Gomes; Almeida, Maria Isabel Mendes
de (Advisor). Decipher me and devour me: “science” consumed by
Brazilian urban middle-class youngsters. Rio de Janeiro, 2008. 130p.
MSc. Dissertation - Departamento de Sociologia e Política, Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro.
The aim of this work consists in trying to understand Brazilian urban
middle-class youth culture from an anthropological analysis of a representation of
science. First, we try to delineate a profile of middle-class youngsters through a
theoretical discussion of the ideas of “authority crisis” and “lack of limits”, often
used by common sense in the social classification of relations within the family
and of youngsters themselves. In another moment, we lean over a consummation
item of youngsters, a scientific divulgation magazine: Superinteressante, from
Editora Abril. Through the ethnographical interpretation of the cover stories
published in Superinteressante during the first semester of 2007, we seek to
understand the notion of science divulged within the magazine and, therefore,
consumed by its young readers.
Keywords
Urban middle-class youngsters, representation of science,
Superinteressante, consummation and mass media.
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Sumário
1. Introdução 10
2. Relações entre gerações na família das camadas médias
urbanas do Brasil contemporâneo
17
2.1. A família no Ocidente contemporâneo 17
2.2. O jovem na família das camadas médias urbanas do Brasil
contemporâneo: “crise de autoridade”
23
2.3. O jovem na família das camadas médias urbanas do Brasil
contemporâneo: “falta de limites”
31
2.4. Interpretando as relações entre gerações na família das
camadas médias urbanas do Brasil contemporâneo: uma
tentativa
48
3. Superinteressante: o que “superinteressa” ao jovem? 51
3.1. Superinteressante, uma revista de divulgação científica
voltada para jovens
54
3.2. Análise etnográfica das reportagens de capa 57
3.2.1. Janeiro de 2007 61
3.2.2. Fevereiro de 2007 66
3.2.3. Março de 2007 70
3.2.4. Abril de 2007 78
3.2.5. Maio de 2007 84
3.2.6. Junho de 2007 91
3.3. “Mistério” e “verdade”: uma síntese, uma tendência 96
4. Considerações finais: quem tem medo da verdade? 105
4.1. Percursos e hipóteses investigativas para trabalhos
posteriores
120
5. Referências bibliográficas 126
Apêndice 1: Alguns números sobre Superinteressante 130
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Si se sabe exactamente lo que se va a hacer, ¿para qué
hacerlo?
El camino de la juventud lleva toda una vida.
Si hubiera una sola verdad, no se podrían hacer cien
lienzos sobre un mismo tema.
Pablo Picasso
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1
Introdução
I have not failed, I've just found ten thousand ways that won't work.
(Thomas Edison, supostamente sobre seus experimentos
até chegar à lâmpada incandescente)
Jovens, joguinhos eletrônicos e comportamento desviante. Há dois anos e
meio, quando iniciei as aulas no Mestrado, era este o meu horizonte de
investigação. À época, eu percebia intuitivamente que um vínculo de afinidade
entre estes três elementos seria estabelecido pelo senso comum. Muitas vezes,
lendo jornais e revistas ou assistindo à televisão, notava que este vínculo de
afinidade ganhava ares mais resolutos e começava a soar como uma relação de
causalidade e, dependendo do tom da matéria jornalística, esta causalidade parecia
necessária. Em outras palavras, e esta era uma impressão preliminar que talvez
tenha sido também a primeira hipótese investigativa a orientar o presente trabalho,
parecia-me bastante difundida a idéia de que os jovens, jogando jogos eletrônicos,
encaminhavam-se inescapavelmente para atos de transgressão. Minha intenção
inicial, portanto, consistia em me debruçar sobre esta representação que
aparentemente aliava jovens e comportamento desviante mediados pelos
joguinhos, descobrir se realmente se tratava de um fato social.
Jovens, joguinhos eletrônicos e comportamento desviante
1
. Meu primeiro
passo na investigação desta tríade, acredito, foi o mais lógico: estudar o jovem.
Afinal, é ele quem joga e quem potencialmente desvia. “Assim que tiver
acumulado um corpo teórico mais consolidado sobre o jovem, assunto que não me
chamou muito a atenção durante a Graduação de Ciências Sociais, começo a
pesquisa para valer. Um passo para trás, dois para frente”, pensava. Meu
raciocínio era bem simples: como julgava ter já um mínimo de familiaridade com
trabalhos sociológicos que tratavam de desvio e transgressão, obras de autores
1
Hoje eu nuançaria o emprego da categoria “comportamento desviante” por percebê-la
relativamente datada. Mantive-a aqui porque foi com ela em mente que iniciei meus esforços
investigativos.
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como Émile Durkheim, Robert K. Merton, Howard Becker, Erving Goffman e
Norbert Elias, julgava também que a revisão e a atualização dos meus
conhecimentos bastariam para que eu desse conta da tarefa que me propus. Além
disso, os jogos eletrônicos fazem parte do meu quotidiano pelo menos desde que
tenho três anos de idade. Acreditava que alguns livros a seu respeito seriam o
suficiente para que eu chegasse a um melhor entendimento histórico e teórico
sobre algo que já controlava na prática há quase tanto tempo quanto o próprio
português. Ao que parece, este passo foi também o último daquela primeira
hipótese.
Um dos primeiros textos que tomei em mãos para iniciar aquilo que,
pretendia, seria apenas um breve estudo preliminar sobre os jovens tinha um título
bastante sugestivo: Aproximando-se do conceito de juventude, capítulo de um
livro de autoria de Ana Paula Corti e Raquel Souza
2
. Da leitura que realizei desta
obra, retive uma importante informação para o meu trabalho: nos dias de hoje, o
conceito de juventude passaria pelo que as autoras chamam “descronologização”,
ou seja, “a dissolução das referências cronológicas para a definição desse ciclo de
vida”
3
. Em outras palavras, a juventude não estaria mais vitrificada numa faixa
etária específica como, por exemplo, 15 a 24 anos. Assim, este conceito se tornava
bastante maleável, o que acabava por gerar uma indefinição sobre o que eu teria
que investigar mais à frente, isto é, o jovem.
Desejoso de um pouco mais de nitidez conceitual, comecei a me
aprofundar na literatura sobre o jovem e, mais especificamente, sobre o jovem da
família das camadas médias urbanas. Este era o recorte que julgava mais
producente para compreender os jogos eletrônicos e o comportamento desviante
no Brasil. Através dele, deixava aberta a janela para, eventualmente, realizar uma
comparação com o contexto dos EUA, país onde é vívido o debate sobre um
suposto vínculo entre os videogames e a agressividade e a violência juvenis.
Diz-se que Karl Marx
4
, além de escrever o que é muitas vezes considerado
o seu maior clássico, O capital, pretendia também compor outras obras similares
para compreender a “economia burguesa”, planejando debruçar-se sobre outros
2
CORTI, A. P.; SOUZA, R. Diálogos com o mundo juvenil: subsídios para educadores. São
Paulo: Ação Educativa, 2004.
3
Id., ibid.:19.
4
MARX, K. “Para a crítica da economia política”. In: _____. Marx. Tradução: Edgard Malagodi.
São Paulo: Nova Cultural, 2000, pp.25-54.
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12
cinco (!) elementos deste “sistema”
5
. Ele não conseguiu. Ainda que tivéssemos
intenções mais modestas que as de Marx, os jogos eletrônicos e o comportamento
desviante realmente ficaram para uma “próxima”. Quando me dei conta, já havia
sido sugado – ou me jogado – para dentro do buraco, até aqui sem fundo, da
antropologia e da sociologia da família. Enfim, aquele parêntese que havia aberto
com o intuito de rapidamente fechar, não o fechei até hoje.
Foi assim que empreendi uma discussão teórica orientada por duas
categorias muito difundidas em nossa sociedade para interpretar as relações na
família e o próprio jovem nos dias de hoje: a “crise de autoridade” e a “falta de
limites”. Basta que nos voltemos para as grandes mídias, por exemplo, ou que
pesquisemos pela internet para que com elas deparemos. Visava a uma
compreensão do significado que estas duas noções poderiam adquirir na família
das camadas médias urbanas brasileiras atualmente e, desse modo, desenhar um
perfil teórico amplo do jovem ali inserido. Assim, tem-se inicialmente um plano
geral da noção de família e das suas atualizações tanto no Ocidente quanto no
Brasil contemporâneos; para que se dê conta dos dois planos fechados, o
internacional e o brasileiro, utiliza-se o caso francês como mediação. Debruça-se,
então, sobre a suposta rebeldia dos jovens e sobre os desdobramentos simbólicos
suscitados pelo consumo e pelos grupos de pares.
Embora não nos limitemos a elas, baseamos nossas análises em duas
coletâneas de artigos: Uma nova família?: o moderno e o arcaico na família de
classe média brasileira, organizada por Sérvulo Figueira e lançado em 1987, e
Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação, organizada
por Regina Novaes e Paulo Vannuchi e publicada em 2004. Por um lado, nos
beneficiamos da organicidade interna e da intersdisciplinaridade que pauta estes
volumes, o que atribuiu maiores fluidez e pluralidade entre os artigos utilizados.
Ademais, lançar mão de duas coletâneas com datas de publicação relativamente
distantes uma da outra permitiu-nos a comparação por época entre os diferentes
textos. Este fator se revelou produtivo do ponto de vista analítico, uma vez que as
publicações serviam de “grupo de controle” entre si.
5
Na verdade, o próprio Marx esboça esta vontade ao prefaciar Para a crítica da economia
política: “Considero o sistema da economia burguesa nesta ordem: capital, propriedade fundiária,
trabalho assalariado; Estado, comércio exterior, mercado mundial. Nos três primeiros títulos
examino as condições econômicas de vida das três grandes classes em que se divide a moderna
sociedade burguesa; a conexão dos três seguintes é evidente” (id., ibid.:50).
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13
A partir desta análise teórica do jovem, dediquei-me a um esforço de
interpretação etnográfica. Minha abordagem antropológica em relação ao jovem,
no entanto, não foi “direta”. Muitas vezes, debruçando-se sobre uma determinada
coletividade humana, consegue-se entrar em contato com as suas representações,
com os seus valores, enfim, com a sua cultura, aí incluídos os seus itens de
consumo, sempre embebidos em preferências simbólicas construídas socialmente.
Em relação a esta abordagem antropológica mais tradicional, tomei um caminho
enviesado neste trabalho. O que tentei realizar aqui é um pouco diferente: partindo
de um item de consumo dos jovens, pretendia conhecer-lhes um pouco melhor a
cultura. Pensava numa abordagem metonímica, onde a parte, este item de
consumo, informaria sobre o todo, a visão de mundo mais ampla do jovem.
Que item, portanto, serviu-nos aqui de material empírico? A revista
Superinteressante
6
, da Editora Abril. Por quê? SUPER é comumente representada
como uma publicação de divulgação científica voltada para jovens. Esta não foi
uma informação difícil de conseguir. Tenho quase 26 anos e, não faz tantos anos
assim, prestei vestibular. Volta e meia, eu e outros colegas de turma recorríamos à
revista em busca de dados “científicos”, apresentados de um modo mais informal
que aquele geralmente empregado nos livros de preparação para o exame. Além
disso, como veremos no decorrer deste trabalho, ainda hoje é possível detectar
esta representação através do próprio discurso da publicação. Mas por que se
debruçar justamente sobre uma revista de divulgação científica voltada para
jovens? Aqui será necessário abrir um parêntese contextual para melhor
compreender a nossa própria abordagem.
Aquela primeira percepção intuitiva que me levou à tríade composta por
jovens, jogos eletrônicos e comportamento desviante baseou-se em grande medida
na minha leitura preliminar de notas e matérias de divulgação científica presentes
em jornais e revistas de grande circulação, além daquelas exibidas em programas
de televisão, reportagens que tratavam de recentes descobertas no campo da
neurociência. Nestas parecia-me bastante vívida a afinidade estabelecida entre um
sistema nervoso “imaturo”, geralmente o dos jovens ou daqueles que seriam
afetados por psicopatologias
7
, e o comportamento desviante. Os jogos eletrônicos,
6
Doravante designada por SUPER.
7
Na reportagem “Qual a idade da maioridade?”, publicada em SUPER, em abril de 2007, por
exemplo, deparamos mesmo com uma associação entre as duas classificações, ou seja, ser jovem é
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nestes termos, não seriam o divertimento mais adequado, uma vez que retratariam
atos violentos com precisão e realismo cada vez maiores; um sistema nervoso em
formação aliado àquilo que seriam considerados estímulos de violência, ao fim,
não seria uma boa idéia.
Influenciado à época pela leitura da obra de Norbert Elias, especialmente
de Os estabelecidos e os outsiders
8
, pensava, então, dentro daquela primeira
hipótese investigativa, uma sub-hipótese: as tensões na família das camadas
médias urbanas estariam pautadas, em boa medida, por uma tônica sociobiológica,
onde o estigma social atribuído pelos adultos aos jovens materializava-se na
imaturidade física destes últimos, especialmente do seu sistema nervoso.
Debruçando-me sobre uma apropriação leiga do conhecimento produzido pela
neurociência, buscava ter acesso a uma representação possivelmente
estigmatizante sobre o que é o jovem.
O problema com essa hipótese, percebemos mais tarde, era que, se SUPER
é uma revista de divulgação científica voltada para jovens, passava
automaticamente a soar um tanto fora de lugar supor que este jovem consumisse
uma imagem estigmatizada de si mesmo com freqüência. Como poderemos ver
adiante, atualmente é difícil interpretar o jovem como um romântico melancólico
e sentimental que se apraz em cultivar as dores do mundo e a sua própria ou como
um rebelde que se mobiliza contra os valores retrógrados de seus pais. A
preocupação deste jovem, ao que parece, está cada vez mais na manutenção e no
gerenciamento de seu próprio bem-estar; esta manutenção e este gerenciamento,
por sua vez, se calcariam em boa medida em informação, aí incluída a informação
científica. Daí a nossa opção em analisar SUPER.
A partir deste recorte, indagamos qual a representação de ciência presente
em SUPER, mais precisamente, aquela presente nas seis reportagens de capa do
primeiro semestre de 2007 desta publicação; e, desse modo, perguntamos qual
seria a representação de ciência consumida pelo jovem. Para tanto mobilizamos
ou está muito próximo de ser doente: “Entre os 16 e os 20 anos, o corpo humano passa por
transformações que influenciam nossa maneira de agir. Não é à toa que adolescentes desafiam o
perigo, a autoridade e fazem qualquer coisa para impressionar amigos (e amigas)”; e mais adiante:
“O córtex frontal é responsável pelo controle dos impulsos e pela empatia, a capacidade de se
colocar no lugar de outras pessoas. Enquanto essa região não se desenvolve, o comportamento dos
adolescentes guarda uma certa semelhança com o dos psicopatas – que não conseguem
desenvolver sentimentos afetivos” (SUPERINTERESSANTE, ed. 238:84).
8
ELIAS, N.; SCOTSON, J. L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a
partir de uma pequena comunidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000.
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15
considerações de Claude Lévi-Strauss, Norbert Elias, Clifford Geertz e Roberto
DaMatta sobre o próprio fazer científico e antropológico, de maneira que
pudéssemos contrastá-los com a prática jornalística de SUPER. Cabe salientar,
trata-se de apenas uma representação de ciência, pois há outras revistas de
divulgação científica disponíveis para compra no mercado nacional. Eis aí, aliás, o
porquê das aspas que cercam o termo ciência no título desta dissertação.
Durante a minha interpretação das reportagens, percebi que um maior
controle sobre estes dados empíricos pode engendrar uma dificuldade
aparentemente paradoxal, no caso, uma coerência discursiva absoluta. Em outras
palavras, se já é possível que um pesquisador cometa excessos autorais através de
entrevistas e do trabalho de campo tradicional, num caso como esse, em que o
texto permanece calado a cada leitura, a chance daquela possibilidade ir se
avultando em uma probabilidade é cada vez maior, ou tanto maior quanto mais
fértil a imaginação do investigador. O risco a ser gerenciado, então, era o de uma
bricolagem. Daí tantas notas de rodapé: tentamos preservar o argumento geral de
cada reportagem através do maior número de citações possível, sem que isso
onerasse demais o próprio fluxo da dissertação
9
.
Se tivéssemos selecionado um grupo de jovens ao qual retornássemos à
medida que progredisse a pesquisa, poderíamos testar ajustes investigativos,
reformular questões, confirmar impressões etc. com maior facilidade, afinal,
nestas condições a reflexividade inerente à atividade antropológica é
potencializada pelos encontros face a face. Quando se debruça sobre matérias
jornalísticas, a análise vira uma guerra de trincheiras quase filológica: cada
parágrafo, linha, palavra ganham uma densidade significativa diferente da que
teriam numa leitura ordinária. Além disso, deve-se tomar cuidado para não
atribuir mais desta densidade a parágrafos, linhas e palavras insignificantes.
Dado o volume de informações e as possibilidades de combinação e
manipulação empírica, uma equipe de pesquisadores parece ser a saída mais
producente para esta situação, já que a tarefa vira um exercício reflexivo de vigília
incessante. E neste tipo de empreendimento o tempo é uma questão central.
Efetivamente, não se pode tomar um discurso e analisá-lo imediatamente, e isto
9
Neste ponto, o “Superarquivo” disponibilizado por SUPER na internet também é muito
importante, uma vez que estende os meios de verificabilidade de nossas hipóteses a um número
maior de pessoas. Desde 2007, SUPER começou a disponibilizar todas as matérias publicadas pela
revista a partir de 1987, ano de seu lançamento, para consulta gratuita na internet.
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em dois sentidos. Por um lado, como aprendi assim que iniciei a Graduação em
Ciências Sociais, conceitos e teorias de outros autores devem mediar o
investigador e a realidade que se investiga, o que, de certo modo, contribuiria para
a pluralidade do seu argumento. Por outro, como diz Lévi-Strauss a respeito da
análise dos mitos que empreendeu na confecção das suas Mitológicas,
[é] preciso incubar o mito durante alguns dias, semanas, às vezes meses, até que,
de repente, a centelha brote e que, em determinado detalhe inexplicável de um
mito, se reconheça transformado determinado detalhe de um outro mito, e que se
possa, por esse ângulo, reduzi-lo à unidade. Tomado por si só, cada detalhe não
precisa significar algo, porque é no seu relacionamento diferencial que reside
sua inteligibilidade
10
.
Está longe de nossas intenções aqui querer estabelecer uma comparação ou
uma filiação estrita com as análises de Lévi-Strauss. Queremos apenas chamar a
atenção para a semelhança de atitudes. Também tivemos que “incubar” algumas
reportagens por alguns meses. Como indica o autor, isto não significa ler e esperar
pelo acaso, mas ler e reler em diversos momentos
11
e a partir de diferentes teorias.
Como parece ter sido o caso com Lévi-Strauss, a nossa “centelha” apenas brotou
num terreno regado a disciplina e acaso, aquele “de repente” ao qual ele faz
menção na citação acima.
10
LÉVI-STRAUSS, C.; ERIBON, D. De perto e de longe. Tradução: Léa Mello e Julieta Leite.
São Paulo: Cosac Naify, 2005[1988], p.188.
11
E até reler de trás para frente na expectativa de vislumbrar um sentido antes obtuso e,
principalmente, de problematizar o sentido de leitura ao qual fui acostumado durante a minha
socialização enquanto criança.
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2
Relações entre gerações na família das camadas médias
urbanas do Brasil contemporâneo
Ele tinha tudo, menos limite.
(chamada do filme “Meu nome não é Johnny”)
Ele [refere-se a seu irmão mais velho] não sabia administrar a vida. Agora ele
não usa pó, mas se apóia na religião. Já eu, não encaro dessa forma. A droga
para mim me dá prazer, não é para suprir alguma coisa. Adoro ser consciente,
amo ser consciente. Eu acho que prezo muito mais minha consciência do que a
doideira. (...) sei o meu limite.
(Bernardo, 29 anos)
1
2.1.
A família no Ocidente contemporâneo
Filiando-se a Claude Lévi-Strauss, Luiz Fernando Dias Duarte
2
identifica
a família como um caso particular, atualização de um fenômeno universal, o
parentesco. A conjugação e a dinâmica entre uma condição animal compartilhada
com outras espécies – a reprodução por consangüinidade – e uma condição
exclusivamente humana – a troca social por afinidade – comporiam o núcleo
universal dos sistemas de parentesco. Para compreender a família, um fenômeno
histórico específico e não necessariamente uniforme, o autor propõe que se
concentre em três de suas características universais, ou seja, na maneira como se
manifestariam o sistema de localidade, a corporatividade e o sistema de atitudes
na cultura ocidental moderna
3
.
1
Depoimento extraído de ALMEIDA, M. I. M. de; EUGENIO, F. “Paisagens existenciais e
alquimias pragmáticas: uma reflexão comparativa do recurso às ‘drogas’ no contexto da
contracultura e nas cenas eletrônicas”. In: ALMEIDA, M. I. M. de; NAVES, S. C. (orgs.). “Por
que não?”: rupturas e continuidades da contracultura. Rio de Janeiro: 7Letras, 2007, pp.155-200.
2
DUARTE, L. F. D. “Horizontes do indivíduo e da ética no crepúsculo da família”. In: RIBEIRO,
I.; TORRES, A. C. (orgs). Família em processos contemporâneos: inovações culturais na
sociedade brasileira. São Paulo: Loyola, 1995, pp.27-41.
3
Id., ibid.:27.
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18
Neste sentido, o autor ocupa-se em delimitar um sentido estrito para a
categoria “família”. Ainda que caracterizada por uma continuidade lexical que
remonta ao Direito Romano e à doutrina cristã, esta categoria teria passado por
diversas descontinuidades, até uma ruptura mais radical no século XVIII. É aí,
com a emergência do indivíduo igual e livre como um valor cultural central no
Ocidente, que se detecta a inflexão que ensejará o corte “moderno” para a família.
No “familialismo” ou modelo ocidental moderno de família, esta última passa à
condição de incubadora do indivíduo, tornando-se mais um meio de
individualização que um fim coletivo
4
.
É nesse momento que a família adquirirá um caráter ambíguo, mas não por
isso paradoxal. Por um lado, esta nova família passa a ser vista como a forma
natural, mais básica e indivisível de unidade social e, ao mesmo tempo, de acordo
com Duarte, como possibilitadora da expressão e reprodução da essência do
humano, verdadeira substância sagrada
5
. Por outro lado, é na instituição da
família moderna que se poderá perceber a combinação de dois princípios de
ordenação social, se não totalmente antagônicos, mutuamente implicados em
tensão: a hierarquia e o individualismo.
Com efeito, a Revolução Francesa teria consistido num duro golpe sobre a
legitimidade da hierarquização da sociedade, ou melhor e mais especificamente,
sobre a legitimização sobrenatural, posto fundada em direito divino, das
hierarquias que ordenavam o mundo social pré-moderno. A Igreja Católica,
portanto, vê-se significativamente reduzida em suas atribuições sociais e, além
disso, sofre com a limitação do espaço às relações complementares baseadas em
diferenças pessoais, ou seja, às relações hieráquicas. Inegavelmente, o
familialismo consiste nisso: um último refúgio para o tradicionalismo relacional
católico, articulando de maneira bastante estreita a tríade fundamental da família
burguesa, a saber, pai, mãe e filhos. Além disso, contudo, a nova família teria um
papel eminentemente modernizante, isto é, transmitir a educação necessária à
individualização dos sujeitos
6
.
Combinando “forma hierárquica e espírito individualizante”
7
, o modelo de
“família nuclear” das camadas médias ganha centralidade à medida que se tonifica
4
Id., ibid.:27-8.
5
Id., ibid.:29.
6
Id., ibid.:30.
7
Id., ibid.:36.
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19
a ênfase ideológica individualista no Ocidente. De acordo com Duarte, não se
deve depreender, contudo, uma uniformização nesse sentido. Assim, ainda que a
referência à família consista comumente numa referência à família das camadas
médias urbanas, podem-se encontrar outros modelos de família, não-
individualistas e, portanto, periféricos: de um lado, privilegiando a unidade
doméstica, as camadas populares tenderiam a tomar como inconteste o
compromisso de produção de pessoas relacionais, imersas numa teia de relações
complementares entre papéis hierarquizados e englobados numa unidade de
identidade mínima, a família; por outro, as elites não chegariam a subordinar a
produção de indivíduos à reprodução de sua corporatividade; colocá-las num
mesmo patamar valorativo, contudo, representa uma diferenciação definitiva
quando se leva em consideração o privilégio quase absoluto de que desfruta o
indivíduo no seio das camadas médias
8
. Seria um equívoco, contudo, perceber
estes modelos alternativos de família como resíduos pré-modernos. Efetivamente,
as famílias de camadas populares, tanto quanto as de elite, não têm como se
distanciar, como fugir do raio de influência ideológica do modelo central de
família
9
.
Desde o fim da II Guerra Mundial, entretanto, este modelo hegemônico
estaria passando por uma reformulação radical em que a combinação entre
hierarquia e individualismo viria a se desarticular a partir de uma intensa
individualização no Ocidente. O modelo combinatório – hierarquia mais
individualismo – revelou-se especialmente insuficiente quando as mulheres
passaram a desejar e, de fato, a assumir projetos de individualização. Os
indivíduos produzidos até então eram, em princípio, indivíduos masculinos e,
analogamente, a hierarquia que lhes possibilitava a individualização assentava na
subordinação da mulher ao homem no âmbito da família. Uma vez que Duarte
percebe a família moderna como um contraponto privado, relacional e hierárquico
a um mundo público igualitário e individualizado, é possível compreender a sua
inquietação: com o descrédito desta dimensão hierárquica – e, além disso, com os
sucessivos reveses que sofrem identidades englobadoras como a religião e a nação
8
Dois importantes índices históricos da valorização do indivíduo na emergente família burguesa,
segundo Duarte: em um primeiro momento, ao se lhe destacarem os “sentimentos”, especialmente
na literatura romântica (ibid.:30); mais tarde, com o freudismo, no zelo pelo seu “psiquismo”
(ibid.:32).
9
Id., ibid.:33-5.
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20
–, deflaciona-se uma importante via de aprendizado ético. Tem-se a impressão,
assim, de que é possível viver socialmente sem hierarquias de qualquer tipo o que,
ao fim, redunda numa perspectiva artificial devida à hipertrofia da ideologia
individualista
10
:
(...) a incapacidade de a forma família atender à demanda de uma redobrada
individualização não pode deixar de inquietar mesmo ao observador mais
desapaixonado. (...) a família ainda representava uma reserva ou microcosmos
hierárquico onde a percepção da dimensão relacional, embutida, complementar,
ética portanto, da vida social podia ser incorporada no processo de criação
11
.
Debruçando-se especialmente sobre o caso francês, François de Singly
12
adota uma perspectiva durkheimiana para compreender a família contemporânea
ocidental. Embora se filiando a um marco teórico aparentemente datado –
sobretudo quando se tem em mente a intensa liberalização dos costumes por que
passa o Ocidente desde fins da década de 1960 –, o autor constata que, hoje ainda,
a família se manteria sobre o mesmo eixo “relacional” apresentado por Émile
Durkheim em 1892
13
. Aqui, a família se constitui e se mantém muito mais por
uma valorização da qualificação afetiva dos vínculos entre os seus membros que
pela conservação de um patrimônio econômico no interior do grupo.
De acordo com Singly, o foco nos laços familiares teria engendrado um
duplo movimento durante o século XX: de um lado, a “família conjugal”
14
,
baseada na centralidade instituinte do casal de cônjuges, “privatiza”-se, visando
ao cultivo das relações interpessoais entre consortes e entre pais e filhos; por outro
lado, este apreço por menos e melhores relações não passa sem uma busca
simultânea pela independência em relação à parentela extensa e às relações
vicinais, ensejando-se uma intensa dependência em relação ao Estado. A família,
libertando-se de elos tradicionais, acaba por se “socializar”, submetendo-se a uma
“solidariedade estatal”
15
.
Se a família é, então, permeável e atravessada por uma série de regulações
que lhe são externas, a impessoalidade destas intervenções ampliará, no extremo,
10
Id., ibid.:36-40.
11
Id., ibid.:39, grifos no original.
12
SINGLY, F. de. Sociologia da família contemporânea. Rio de Janeiro: Editora FGV,
2007[1993].
13
Id., ibid.:32.
14
Id., ibid.:30.
15
Id., ibid.:33.
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21
a autonomia individual de seus elementos, uma vez que os elos de dependência
entre os cônjuges, entre as gerações e entre as parentelas teriam sido substituídos,
em grande parte, por elos de dependência entre indivíduos e o Estado. Nesta
conjuntura, ainda que se depare com uma grande individualização, não se pode
apressar em diagnosticar a ruptura do liame intrafamiliar, ao contrário. É através
da dissolução de elos imperativos – laços de dependência, sobretudo material –
entre os indivíduos de um grupo familiar que se poderá focar em elos
espontâneos, negociáveis, o que, ao fim, amplifica aquela valorização das relações
entre os familiares detectada por Durkheim e faz “viver o espírito de família”
16
.
Contudo, conforme Singly, podem-se sublinhar alguns problemas na
perspectiva de Durkheim para a família conjugal. De um ponto de vista
evolucionista, este último autor perceberia na família moderna, “nuclear”, uma
originalidade ocidental. Ora, de acordo com Singly, a restrição
17
do grupo familiar
teria uma dupla explicação no Ocidente moderno: a queda nas taxas de
mortalidade infantil teria contribuído para um maior controle dos nascimentos, já
que, simultaneamente, conforme indica Philippe Ariès, a criança é revalorizada na
família, passando a ocupar aí uma posição central. Isto não impede, contudo, que
Durkheim avance uma hipótese frutífera, aproveitada por Singly: a
correspondência entre o funcionamento interno e a forma da família, por um lado,
e, por outro, a morfologia da sociedade. Historicamente, a interdependência entre
estes fatores enfraqueceria a comunidade familiar e daria tônus ao individualismo
no Ocidente, uma vez que, com a urbanização, a industrialização e a expansão dos
meios de comunicação, os indivíduos passariam a prescindir cada vez mais do seu
grupo de origem
18
.
Ademais, a partir de um viés normativo, Durkheim revela-se ambíguo ante
a família moderna. Ao deflacionar o papel das coisas, ao diminuir a importância
do patrimônio e, mais especificamente, da herança econômica familiar em suas
análises, o autor passa a enfatizar – positivamente até – o mérito pessoal e, em
última instância, o próprio crescendo individualizante que detectava na sociedade
16
Id., ibid.:36.
17
Singly preferirá a expressão “família restrita” a “família nuclear”. Segundo Clarice Ehlers
Peixoto, que traduziu e prefaciou a edição brasileira de Sociologia da família contemporânea,
“[p]ara ele, esta última noção (funcionalista) é bastante problemática, pois apela a uma forte
analogia a nucleus, um elemento ínfimo e fixo de uma célula, enquanto a originalidade da natureza
dos sentimentos no interior da família repousa nas relações entre seus membros” (PEIXOTO,
2007:25).
18
SINGLY, ibid.:34-5.
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22
para a qual voltava suas investigações durante a III República, aquilo que,
segundo Singly, se poderia chamar “sociedade conjugal”. A este diagnóstico
sociológico de Durkheim, contudo, contrapunha-se uma posição pessoal que
revelava desaprovação face àquela ênfase. Em outras palavras, se Durkheim via
com bons olhos a vertente meritocrática do individualismo, considerava
problemática a valorização do indivíduo como um fim em si mesmo, a ponto de se
deixarem em segundo plano, ou de lado, quaisquer horizontes intergeracionais
19
.
Compreende-se, desse modo, a oposição de Durkheim a um projeto de lei
sobre o divórcio por consentimento mútuo: o casamento enquanto instituição, não
os cônjuges enquanto indivíduos, deve vir em primeiro lugar, velando-se o bem-
estar das crianças, visando à manutenção de um vínculo entre diferentes gerações
e, por fim, a uma maior integração social. Segundo Singly, a contradição reside
em que, nas suas teorias, buscando compreender as dinâmicas familiares,
Durkheim privilegia o casal, isto é, os indivíduos e, ao fim, o indivíduo. Ora,
diferentemente de Ariès, por exemplo, onde as crianças teriam um valor
interpretativo central, em Durkheim, elas, no plano estritamente teórico, seriam
“percebidas como referência eventual à herança”, não sendo “estimadas por si
mesmas”
20
. Quando chamado a adotar uma posição política, contudo, o autor
destaca a importância institucional do casamento para a posteridade dos mais
jovens, revelando, assim, uma preocupação com a sociedade
21
.
Some-se a isso, prossegue Singly, o exagero de Durkheim em seus
prognósticos para a herança econômica. De fato, ainda que o primado da família
moderna resida nas relações entre os seus membros, o legado de bens entre as
gerações não poderia simplesmente ser ignorado. Por um lado, boa parte da
afeição relacional estaria inscrita nos próprios objetos e, por outro, muitos destes,
especialmente os presentes de casamento e os imóveis, contribuiriam como dotes
para uma vida familiar mais segura e tranqüila, ao menos do ponto de vista
material, alargando, assim, o espaço de manobras do indivíduo
22
.
Não deixa de ser curioso, contudo, notar que a legislação francesa do final
da década de 1980 acabe por atender às inquietações durkheimianas no que tange
19
Id., ibid.:37-9.
20
Id., ibid.:47.
21
Id., ibid.:39-40.
22
Id., ibid.:107-9.
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23
ao divórcio, seja consensual, seja litigioso; ainda que parcialmente, já que o foco
cai, sim, sobre as crianças, mas a partir de uma visada nitidamente individualista:
Garantindo, de alguma maneira, a permanência do casal parental, a lei luta
contra os efeitos da autonomização no seio da família. Ela estima que as forças
centrífugas só devem atingir o núcleo conjugal, sem afetar o campo parental
23
.
Todavia, argumenta Singly, esta ambigüidade da análise de Durkheim é
útil ao analista quando se revela “sintoma das dificuldades de elaborar uma teoria
sociológica da família moderna”
24
, posto haver aí uma tensão primordial entre a
autonomia individual e os deveres impostos pelo grupo. Duarte sintetiza esta
nuance ao chamar a atenção para as transformações por que vem passando hoje
este delicado equilíbrio, naquilo que denominou “crepúsculo da família”:
Sua tarefa [da família moderna] era viabilizar a própria ontogênese dos Sujeitos
individualizados, propiciar que se desenvolvessem na justa medida (e quão difícil
foi sempre obter essa têmpera!) entre “independência” e “respeito”, entre
integração e autonomia, entre o compromisso com a singularidade monádica e o
reconhecimento dos “deveres para com o próximo”
25
.
2.2.
O jovem na família das camadas médias urbanas do Brasil
contemporâneo: “crise de autoridade”
Nos dias de hoje, é bastante comum referir-se a uma “crise de autoridade”
na família das camadas médias urbanas brasileiras. Grosso modo, o argumento
corre da seguinte maneira: houve um antes em que os pais se percebiam e eram
percebidos, inclusive e principalmente por seus filhos, como representantes de
uma autoridade, ou de um poder, que se fundava e legitimava tanto numa tradição
quanto num fim antropológico, a saber: deixar de ser criança para, então, tornar-se
adulto. Toda a assimetria das relações inscritas no ambiente familiar, desse modo,
assentava-se, e quase sempre de maneira cabal, na premissa de que crianças e
adultos, pais e filhos seriam posições intrinsecamente diferentes e, portanto,
23
Id., ibid.:80.
24
Id., ibid.:40.
25
DUARTE, ibid.:39.
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24
valorativamente distintas, caracterizando o que Sérvulo Figueira
26
chamou
“identidades posicionais”:
(...) todos tendem a ser definidos a partir da sua posição, sexo e idade. Há várias
idéias em torno do que é “certo” e “errado”, e há vários mecanismos sutis
dentro e fora dos sujeitos para tentar suprimir ou controlar as várias formas de
desvio de comportamento, pensamento ou desejo
27
.
A articulação complementar e relativamente rígida destas identidades
posicionais num grupo familiar consistiria na realização do que o autor denomina
ideal hierárquico de família
28
. Aqui, ser pai implica uma autoridade que vai de par
com a responsabilidade de formar, preparar, criar etc. um adulto ou, mais
precisamente, um “futuro adulto”. A forma como se atualizavam as disparidades
subjacentes à relação entre pais e filhos teria sido bastante expressiva, a ponto de
ensejar, mais tarde, aquele mantra pedagógico: “não confundir autoridade com
autoritarismo”. Nesta perspectiva, então, pai e filho são essências polares e
inegociáveis no âmbito familiar, sendo colocadas em relevo e em causa sobretudo
por ocasião de ritos de passagem, quer dizer, pela imposição social de relações e
de símbolos exteriores à ordenação interna da família, percebida geralmente como
um núcleo de base biológica formado por pai, mãe e filhos. Esta relação entre
extremos, aliás, engendra uma posição que é muitas vezes vista como transicional,
um sustenido tanto quanto um bemol: o adolescente. Mais que criança, mas ainda
um filho e, complementarmente, menos que adulto, pois estudante e,
principalmente, não-trabalhador, não-cônjuge e não-pai.
É inegável, havia tensões, conflitos e dissidências na família hierárquica:
“A ‘família hierárquica’ é relativamente organizada, ‘mapeada’ – o que não quer
dizer que não contenha vários conflitos reais e potenciais em sua estrutura”
29
.
Esta, no entanto, era a realidade do universo de relações que constituía uma
família, ou seja, o dia-a-dia factual e cambiante ao qual se impunha e, no mais das
vezes, se contrapunha um ideal do que seria ou deveria ser uma família.
26
FIGUEIRA, S. A. “O ‘moderno’ e o ‘arcaico’ na nova família brasileira: notas sobre a dimensão
invisível da mudança social”. In: ____ (org.). Uma nova família?: o moderno e o arcaico na
família de classe média brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, pp.11-30.
27
Id., ibid.:16, grifo no original.
28
Id., ibid.:15.
29
Id., ibid.:15.
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25
Um ideal hierárquico de família, eis aí o antes, aparentemente sem “crise
de autoridade”. O que se passa no agora? No Brasil, principalmente a partir da
década de 1950 do século XX, esta clássica paisagem de linhas claras e mais ou
menos estáveis e previsíveis teria começado a se borrar com o processo de
modernização pelo qual passou não apenas – ou necessariamente em primeiro
lugar – a economia nacional, mas a sociedade como um todo e, é claro, a própria
família
30
. O que teria mudado? E como?
Numa palavra, as relações familiares teriam começado a se pautar por um
outro ideal de família, desta vez “igualitário”
31
. Àquela rígida identidade
posicional presente no ideal hierárquico de família, contrapõe-se uma outra, que
enfatiza diferenças, sim, e talvez mais do que antes, mas não como um dado
inelutável de uma condição objetiva – ser homem e pai, mulher e mãe, criança e
filho etc. –, mas como uma expressão “idiossincrática”
32
e pessoal de uma
subjetividade única. Aqui, onde predominariam a singularidade, o gosto pessoal e,
conseqüentemente, onde aparentemente haveria pouco espaço para o
estabelecimento de relações que constituíssem uma família ou, ao menos, uma
família no que preconizariam os moldes tradicionais do ideal hierárquico, aqui,
enfim, é o respeito ao outro enquanto indivíduo, é a sua autonomia que cimentará,
ou melhor, que dará liga à relação abertamente negociável e constantemente
rediscutida entre os cônjuges, por um lado, e entre pais e filhos, por outro.
Ademais, e este talvez seja o ponto principal de Figueira, o aparecimento e
a tonificação deste modelo igualitário de família não provoca, automaticamente, o
desaparecimento daquele outro ideal, hierárquico, e, mais importante, o
desaparecimento das implicações subjetivas que dele decorriam. É o que o autor
chama “modernização reativa” ou “falsa modernização”
33
. Não se nega que o
Brasil tenha se modernizado, bem ao contrário; percebe-se, sim, um processo de
mudança social acelerada onde ao sujeito se apresentariam inúmeras vias de auto-
representação. Isto teria pelo menos duas importantes conseqüências no âmbito da
subjetividade, naquilo que o autor se refere como a “dimensão invisível da
mudança social”
34
: a objetificação menos ou mais evidente para o sujeito de uma
30
Id., ibid.:12-21.
31
Id., ibid.:15.
32
Id., ibid.:16-7.
33
Id., ibid.:25.
34
Id., ibid.:14.
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26
condição subjetiva vista agora, quase sempre com sinal negativo, como
“tradicional” e “retrógrada” e, como corolário, o convívio de uma pluralidade de
identidades e normas na subjetividade, identidades e normas nem sempre
consistentes entre si e, muitas vezes, contraditórias. Trata-se de um
“desmapeamento”:
(...) ao contrário do que a metáfora parece sugerir de modo mais imediato, não é
perda ou simples ausência de “mapas” para orientação, mas sim a existência de
mapas diferentes e contraditórios inscritos em níveis diferentes e relativamente
dissociados dentro do sujeito
35
.
A nuance a ser apreendida aqui é a seguinte: se as identidades posicionais
tradicionais são relativizadas pela mudança social, isto não significa que elas
tenham sido extintas e prontamente substituídas por identidades idiossincráticas.
Efetivamente, o “pai tradicional”, embora tendo perdido espaço para o “pai
moderno”, continuaria subsistindo, de maneira nada desprezível, na identidade
“pai” de um sujeito. Mais importante: a “modernidade” de cada um não seria
como que medida pelo seu grau de “tradicionalismo” ou, inversamente, pelo seu
grau de “progressismo”. Enfim, como argumenta Figueira:
A modernização reativa se deve, em última instância, ao fato de que a sucessão
de ideais no processo de modernização, ao ser extremamente rápida, não dá ao
sujeito a oportunidade de se modernizar realmente no seu funcionamento,
profundamente, nos seus conteúdos e na sua identidade. Preso no descompasso
entre a grande velocidade da modernização e a grande inércia da subjetividade,
o único modo do sujeito conseguir ser moderno, tentar acompanhar as
transformações, é através da modernização do conteúdo do comportamento,
através da modernização reativa
36
.
Depara-se, então, com uma “modernização verdadeira”
37
justamente
quando os comportamentos individuais – por exemplo, a abstemia ou o consumo
regular de maconha – encontram-se subordinados ao “direito de opção”
38
de cada
sujeito e não a instâncias que lhe são externas, sejam outros sujeitos, sejam
instituições como o Estado, a religião, a escola e, é claro, a família. Desse modo,
não é necessariamente moderno eleger o consumo de maconha como “moral” e,
35
Id., ibid.:22-3.
36
Id., ibid.:29.
37
Id., ibid.:25.
38
Id., ibid.:23-4.
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27
inversamente, a “caretice” como “imoral”. Se não se reconhece o espaço ao
“careta”, atribuir o rótulo “moderno” ao consumidor redunda numa rigidez, numa
essencialização tão implacável e, eis o ponto, tão normativa quanto interpretá-lo
como “anormal” ou “desviante”. Desconsiderar o invisível – o sujeito, sua
subjetividade – frente ao aparente – seu comportamento tomado em si mesmo –,
reagir ao “arcaico” impondo-lhe conteúdos “modernos”, esta talvez seja a
principal característica apontada pelo autor na modernização das relações, dos
elos que constituem a família das camadas médias no Brasil recentemente.
A esta altura, é preciso chamar a atenção para alguns aspectos da análise
de Figueira. De saída, como aliás aponta o próprio autor, deve-se prestar atenção
ao emprego da categoria indivíduo, não se devendo confundi-la com sujeito. A
partir de seu argumento, é possível depreender uma precedência do sujeito sobre o
indivíduo – e sobre o conceito antropológico de pessoa. Em poucas palavras, o
sujeito seria o substrato psíquico sobre o qual se atualiza, através de sua
socialização, o indivíduo, categoria central, mas não única, da ideologia
individualista; esta última seria caracterizada ainda por outros princípios, por
exemplo, o respeito, a igualdade, o direito ao autodesenvolvimento etc.
39
Afora
isso, o “imaginário moral”
40
individualista é apenas uma entre tantas outras
possibilidades de informação subjetiva. No presente caso, o indivíduo funciona
como uma “idéia de ligação”
41
, índice crucial de uma modernização verdadeira,
posto que, através dela, homens, mulheres e crianças se perceberiam como
abstratamente iguais, embora pessoal e idiossincraticamente diferentes
42
.
Além disso, a modernização dita reativa não nutre necessariamente um
ciclo vicioso em que se sabotam quaisquer possibilidades de modernização, isto é,
em que se iniba o predomínio da idiossincrasia sobre a posição; mais
precisamente, ela potencializa tanto a manutenção de um estado de coisas quanto
a sua subversão, podendo ser vista, assim, como “um passo decisivo na direção da
verdadeira modernização e o perigo de nunca se chegar lá”
43
. Assim,
comportamentos “modernos” podem tanto mascarar atitudes “arcaicas” quanto se
apresentar efetivamente como sendas alternativas de atualização de si. Daí o autor
39
Id., ibid.:26.
40
Id., ibid., loc. cit.
41
Id., ibid.:19 e passim.
42
Id., ibid.:16.
43
Id., ibid.:25, grifo no original.
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28
chamar a atenção para casos emblemáticos (Leila Diniz e sua gravidez desnuda,
Fernando Gabeira e seus glúteos desnudos etc.) e, sobretudo, para o papel dos
meios de comunicação de massa na abordagem destes momentos privilegiados de
debate.
Por fim, pode-se dizer, talvez sem grande prejuízo, que a discussão
subjacente à análise de Figueira seja aquela da tensão entre a autonomia do sujeito
e aqueles mapas invisíveis que baseavam o ideal hierárquico de família, ou seja,
heteronomias que lhe tolhiam a subjetividade e, no extremo, a liberdade. Disso
não se deve concluir, contudo, que o autor advogue o império da vontade ou da
libertinagem, pelo contrário. Fosse-nos permitido apontar um viés nos
diagnósticos do autor para a família de classe média brasileira, este se
caracterizaria muito mais por uma crítica a sua modernização conteudística, por
assim dizer, do que à família enquanto tal ou mesmo a normas, impostas e auto-
impostas.
O argumento de Figueira permite sugerir que, no Brasil das últimas
décadas, aqueles conflitos suscitados pelo caráter vertical das posições articuladas
na família hierárquica têm se dissolvido ou minorado rapidamente; por outro lado,
no entanto, o consenso aí não se revela absoluto. A própria horizontalidade das
relações entre indivíduos valorizada neste novo ideal de ordenação familiar
enseja, se não o conflito aberto e radical, um permanente esforço de negociação,
de polêmica, portanto, e de mudança.
Conforme indica Elsa Ramos
44
para o contexto francês, estas negociações
podem ser compreendidas como “micromudanças” ou “microtransformações”
45
.
Debruçando-se sobre a família da classe média francesa e, mais especificamente,
sobre jovens adultos
46
em coabitação com os pais em Paris, Ramos busca
compreender como estes rapazes e moças passam a ser representados e a se
representar enquanto autônomos face a uma efetiva e crescente dependência
44
RAMOS, E. “As negociações no espaço doméstico: construir a ‘boa distância’ entre pais e
jovens adultos “coabitantes”. In: BARROS, M. L. de (org.). Família e gerações. Rio de Janeiro:
Editora FGV, 2006, p.39-65.
45
Id., ibid.:44 e 49.
46
No campo de estudos das Ciências Sociais onde se toma a família como objeto, as expressões
“jovem” e, portanto, “jovem adulto” são polissêmicas. Para fins de clareza, eis o recorte
empregado por Ramos em seu esforço empírico: “Os entrevistados eram estudantes, com idades
que variavam entre os 19 e os 27 anos, residentes na casa dos pais, de onde nunca haviam saído
para residir em outro local. Viviam em Paris ou na área metropolitana de Paris, e pertenciam a uma
classe social relativamente homogênea, sendo a maioria dos entrevistados de classe média”
(ibid.:48).
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29
residencial, financeira e material
47
. A autora sugere, assim, a insuficiência da
adoção de um modelo teórico à la van Gennep para a abordagem do fenômeno, ou
seja, um aparato conceitual baseado na centralidade heurística dos ritos de
passagem – por exemplo, o primeiro salário, a saída de casa, o casamento, a
paternidade etc. É importante ressaltar, contudo, a autora não os descarta, mas os
deflaciona em sua análise; enfatiza as micromudanças e a autonomia que a partir
delas seria construída, mas não chega a desconsiderar as “rupturas
institucionais”
48
e a independência que o indivíduo delas auferiria. Percebe-os
complementares, dessa maneira, ritos de passagem e micromudanças e, no
extremo, independência e autonomia individuais.
Sua crítica, portanto, volta-se à adoção de um quadro analítico que deixe
de lado as pequenas negociações travadas no dia-a-dia familiar como balizadoras
da autonomia do jovem adulto. O sentido das micromudanças, assim, estaria
restrito a um “consenso doméstico”
49
, paulatinamente atualizado pelo processo de
validação da realidade subjetiva do jovem através de uma interação permanente
com seus pais, e não tanto pela sanção de uma instância extrafamiliar. As
modificações dos acordos domésticos tenderiam, enfim, a uma diminuição das
assimetrias entre pais e filhos, isto é, a um maior igualitarismo no âmbito familiar,
fazendo com que as relações constituintes da família pendam para relações entre
pares
50
.
Antes que se encerre esta breve incursão pela conjuntura francesa, faz-se
necessário um parêntese metodológico. Deve-se atentar às especificidades
nacionais brasileira e francesa. A exposição de uma teoria e de uma empiria
realizadas a partir do contexto francês tem como único objetivo contribuir para o
adensamento da reflexão acerca das particularidades da família nas camadas
médias urbanas no Brasil, foco deste trabalho. Não se pretende uma transposição
inadvertida de um modelo analítico elaborado noutra parte. No entanto, ainda que
bastante diferentes entre si, Brasil e França não deixam de compartilhar tradições.
François de Singly, que também se dedica ao caso francês, ao introduzir seu
Sociologia da família contemporânea, chama a atenção para isso: “Sem negar as
47
Id., ibid.:39.
48
Id., ibid.:46.
49
Id., ibid.:61.
50
Id., ibid.:62.
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diferenças nacionais (...), as orientações teóricas desta obra são fecundas para
compreender a evolução das famílias após o final do século XIX, no Ocidente”
51
.
Focalizando o Brasil, percebe-se que houve, realmente, a partir da segunda
metade do século XX e mais expressivamente a partir da década de 1970, uma
série de transformações no seio da família de classe média, transformações que
são sintoma e causa de uma democratização mais ampla da sociedade. Cabe
nuançar, ainda que os primeiros anos da década de 1970 tenham se caracterizado
por um intenso recrudescimento político acompanhado de uma expressiva
subtração das liberdades individuais e políticas, já a partir da metade do decênio
pode-se perceber um retraimento do regime instalado com o Golpe Militar de abril
de 1964. Ocorre que, sob o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), a classe média
intelectualizada e oposicionista deixara de vislumbrar a viabilidade de uma
“revolução” através da luta armada, como informam Maria Hermínia Tavares
Almeida e Luiz Weis
52
. Se, por um lado, a mobilização política havia ficado
reduzida a um fio de clandestinidade, por outro e talvez por isso mesmo, a
democracia tenha passado a ser valorizada em si mesma:
O colapso da idéia insurrecional se faz acompanhar de outra mudança de
pensamento e atitude em amplos setores da oposição de classe média: a
democracia passa a ser valorizada como um objetivo em si e, com ela, a
organização da sociedade e a participação no jogo eleitoral mesmo sob
limitações
53
.
Diante desse contexto político mais amplo, seria interessante pensar no
seguinte: mesmo lenta e gradual, a emergência desse valor tem repercussões nas
próprias relações que constituem o universo familiar. Começa a se perceber, dessa
maneira, no microcosmo familiar, a relativização e a deflação da autoridade. A
autonomia subjetiva e a realização pessoal, hipertrofiando-se como valores
comuns entre as gerações, acabam por amolecer o imperativo da independência,
representada, por um lado, pela maturidade fisiológica do sujeito e, por outro, pelo
acesso a recursos materiais suficientes à própria subsistência através do mercado
de trabalho. Pode-se, assim, compreender melhor o destaque que o “diálogo” entre
51
SINGLY, ibid.:30.
52
ALMEIDA, M. H. T. de; WEIS, L. “Carro-zaro e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de
classe média ao regime militar”. In: SCHWARCZ, L. M. (org.). História da vida privada no
Brasil: contrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp.319-
409.
53
Id., ibid.:336.
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pais e filhos vem ganhando nas últimas décadas por entre as camadas médias
urbanas brasileiras.
Em suma, apesar das transformações democráticas e liberais que vêm
ocorrendo nas interações familiares, a economia interna do sujeito, pode-se dizer,
sua mentalidade não teria mudado tão radicalmente da noite para o dia, ainda que
esta madrugada tenha durado quatro décadas
54
. Mesmo que matizada pelo tempo,
ainda seria possível sugerir, portanto, uma ascendência do modelo hierárquico de
família sobre o sujeito e sobre aquela ordenação supostamente igualitária das
relações que se desenrolariam na e constituiriam a família de classe média no
Brasil urbano dos dias de hoje. É preciso considerar estas nuances antes de se
alarmar uma “crise de autoridade”.
2.3.
O jovem na família das camadas médias urbanas do Brasil
contemporâneo: “falta de limites”
Esta “crise” é muitas vezes interpretada como conseqüência de uma “falta
de limites” dos jovens atualmente. Especialmente quando de um incidente –
episódios de violência envolvendo jovens de classe média como depredação de
patrimônio público e privado, brigas em boates, espancamentos nas ruas de
grandes, médias e até de pequenas cidades, tiroteios em escolas, trotes em
universidades etc. –, é comum que surja o diagnóstico de uma falta de limites dos
jovens. Tais limites, implica este discurso, deveriam ter sido estabelecidos por
aqueles que, espera-se, são os responsáveis pela educação do jovem, doravante
jovem infrator. No mais das vezes, esta responsabilidade – ou irresponsabilidade –
é prontamente atribuída aos seus pais; estes, continua o argumento, deveriam ter
imposto limites ao seu filho, ter-lhe ensinado o que separa o “certo” do
“errado”
55
, preferencialmente durante a sua infância, mas, de um modo geral, até
o preciso momento em que algo dá “errado”. À escola também cabe seu quinhão:
54
Mais até, se temos em consideração que o texto de Figueira foi publicado em 1987.
55
É interessante notar com Figueira que a articulação dicotômica e maniqueísta das noções “certo”
e “errado” caracteriza o discurso normativo presente no ideal hierárquico de família. Neste
ambiente, não é difícil que se dê nitidez e rigidez a quaisquer concepções de “desvio de
comportamento, pensamento ou desejo” (FIGUEIRA, ibid.:16, grifo no original).
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por que não teria agido o corpo docente com mais rigor, preenchendo em tempo
hábil aquela lacuna presumidamente deixada pelos pais?
Por vezes, esta “falta de limites” seria apreendida como uma rebeldia dos
filhos em relação à autoridade supostamente estabelecida de seus pais. Não se
pode permitir confundir esta condição, todavia, com “rebeldia”, interpretada
apressadamente como uma reação à família. Tampouco confundi-la com qualquer
outra categoria que expresse uma mobilização organizada e sistemática contra um
conjunto de valores relativamente uniforme. Talvez seja oportuno não
desqualificar absolutamente o senso comum, mas requalificá-lo criticamente,
dando-lhe densidade teórica a seguir. Ao que parece, a “falta de limites” não seria
um diagnóstico equivocado, mas parcial. Restringir-se a ele, contudo, significa
pautar qualquer tentativa de interpretação por uma meia verdade
56
, por assim
dizer. Desse modo, lança-se mão aqui da expressão “falta de limites” buscando
sublinhar a originalidade da situação que se apresenta atualmente: o esvaziamento
da autoridade na família; não de uma autoridade dos pais, mas da autoridade tout
court.
Não se trata de um esvaziamento pleno, bem entendido. Como insinua
Cynthia Sarti
57
, mesmo hoje, quando há mais eqüidade entre os membros de uma
família, esta ainda se definiria como “um mundo de relações recíprocas,
complementares e assimétricas”
58
, isto é, “um cenário onde o conflito é
intrínseco”
59
. Por outro lado, de acordo com a sugestão de Maria Rita Kehl
60
, “a
vaga de ‘adulto’, na nossa cultura, está desocupada”
61
.
O filho “rebelde”, o iconoclasta arquetípico, o James Dean imitado e
aumentado em alguns pontos pela geração do fim dos anos 60
62
, afrontando,
56
Apóio-me aqui na noção de “meia verdade” elaborada por Ricardo Benzaquen de Araújo em seu
Guerra e Paz: “(...) não se trata de uma falsidade ou de um equívoco, mas de uma afirmação que
atinge apenas parcialmente o seu alvo, necessitando por conseguinte ser um pouco mais debatida e
qualificada” (ARAÚJO, 1994:48).
57
SARTI, C. “O jovem na família: o outro necessário”. In: NOVAES, R; VANNUCHI, P.
Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004, pp.115-29.
58
Id., ibid.:121-2.
59
Id., ibid.:126.
60
KEHL, M. R. “A juventude como sintoma da cultura”. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P.
Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004, pp.89-114.
61
Id., ibid.:96.
62
Pouco antes de decretado o AI-5, estouravam as disputas entre estudantes, sobretudo
universitários, pró e contra o regime autoritário. O conflito entre os alunos da Faculdade de
Filosofia da USP e os da Universidade Mackenzie, com participação do Comando de Caça aos
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enfrentava o “sistema”. Assim, ainda que de maneira obtusa, os críticos
terminavam por destacar e valorizar seus criticados, reconhecendo-os, afinal,
representantes de um poder, ainda que este fosse avaliado negativamente como
repressor, opressor, castrador etc. À época, não se questionava ou muito menos
ignorava a centralidade deste “inimigo” e, precisamente por isso, por não se lhe
duvidar os efeitos, lutava-se contra ele. Hoje parece ser diferente. Como já vimos,
o diálogo entre as gerações é enaltecido e, além disso, poucos seriam os dispostos
a desempenhar um papel que guardasse qualquer semelhança com aquele
interpretado pelos pais da família “tradicional”, nem mesmo e, tudo indica, menos
ainda os próprios pais da família, digamos, “modernizada”.
Este desprestígio por que tem passado o adulto – entendido como
representante de normas e mesmo de uma tradição – e, inversamente, esta intensa
valorização do jovem – representado como um último refúgio de liberdade –, Kehl
chama este fenômeno “teenagização da cultura ocidental”: “Ninguém quer estar
‘do lado de lá’, o lado careta do conflito de gerações, de modo que o tal conflito,
bem ou mal, se dissipou”
63
. Quando se tenta compreender a realidade da família
das camadas médias, portanto, a idéia de um filho e de um jovem absolutamente
insubordinados e sem limites parece não apenas insuficiente como também
inadequada. Ao se problematizar teoricamente a noção de rebeldia, categoria
muitas vezes empregada na classificação social dos jovens, talvez seja possível
tornar mais clara esta inadequação. É o que passamos a fazer agora.
Em busca dos rebeldes num mundo em que parece reinar um conformismo
competente ante uma realidade refratária a conflitos, Fernanda Moura
64
argumenta a favor de uma positividade dos atos de transgressão que
problematizem aquilo que ela percebe como a própria base da vida social: a
suposição e a demanda de sentido através da linguagem. Visando dar nova
inteligibilidade à rebeldia, a autora desloca-lhe o foco interpretativo, tomando-a
como uma relativização espontânea da organização social levada a cabo por
Comunistas, o CCC, na rua Maria Antonia, em São Paulo, constitui caso emblemático das tensões
e intenções em jogo: “(...) aqueles jovens de vinte e poucos anos, dispostos a morrer, também
estavam prontos para matar – até pessoas inocentes” (ALMEIDA & WEIS, ibid.: 368, meu grifo).
63
Id., ibid.:96.
64
MOURA, F. “Onde estão os rebeldes?: transgressão e família hoje”. In: FIGUEIRA, S. A.
(org.). Uma nova família?: o moderno e o arcaico na família de classe média brasileira. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1987, pp.43-54.
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alguns grupos, especialmente os jovens; e questionando-a enquanto reação à
família e ao “sistema” do qual esta última seria um dos principais pilares
65
.
Tomando a rebeldia como um tipo de transgressão presente “em todas as
sociedades”
66
, Moura argumenta que esta, enquanto ruptura, se caracteriza por
uma fuga e uma traição do “familiar” e não por uma afronta, um ataque que mira
exclusivamente a família:
(...) a rebeldia parece constantemente reinventar seu lugar, na tentativa de
dissolução e desorganização da ordem social como tal. Um lugar que é antes da
ordem do “familiar” – entendido enquanto espaço do estabelecido, do
institucionalizado, do ordenado – do que da família com seus costumes e
modos
67
.
Englobando a própria família, este “familiar” nada mais seria que o
imperativo de demandar e produzir sentido, característico e fundante da vida em
sociedade. Rompe-se e rebela-se, então, não quando se criticam valores
considerados retrógrados – estes mesmos limites, pode-se sugerir –, mas quando
se joga luz sobre o próprio sistema de significação no e a partir do qual se
elaboram estas críticas, fintando-se, ainda que brevemente, qualquer “‘obrigação’
de significar”
68
. É deste efêmero atrito simbólico, e do ruído por ele provocado,
que se poderão entrever as bases em que se assenta e se organiza a vida social.
Compreende-se, dessa maneira, a efemeridade da ruptura: a
descontinuidade aí engendrada e a extensão no tempo inerente ao sentido
socialmente construído – ao fim, ela mesma uma continuidade –, ambas seriam
instâncias mutuamente excludentes. Levando este argumento adiante, portanto,
pode-se pensar quão difícil seria vislumbrar uma espécie de “cultura rebelde”
atualmente; tanto é assim que se nega o caráter monolítico dos rebeldes: “Quando
falamos em reverter a ordem, não estamos falando de massas organizadas, com
proposta, discurso ou intenção revolucionária”
69
.
É interessante notar, entretanto, que Moura não chega a identificar ruptura
e não-sentido e, desse modo, não chega a contrapor rebeldia e sociedade. A
rebeldia pode ser vista como um caso-limite cujo único significado seria a
65
Id., ibid.:49-51.
66
Id., ibid.:48.
67
Id., ibid.:49.
68
Id., ibid.:51.
69
Id., ibid.:52.
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35
referência metalingüística e fugaz a um código vigente. Afinal, apesar de
intrinsecamente irregulares e espasmódicos, estes instantes de suspense, estes
parênteses de sentido não deixariam de ser “uma tentativa criativa de interferir na
ordem social como tal”
70
.
Ao se insistir na centralidade das relações que se desenrolam no seio da
família para compreender a rebeldia, argumenta a autora, acaba-se por não lhe
apreender devidamente o significado. Como observamos entre as camadas médias
urbanas, o crescente destaque dado às idiossincrasias enquanto valor termina por
minorar as tensões e os eventuais conflitos, antes mais nítidos, entre pais e filhos.
Nesse caso, confundindo-se a ordem a ser colocada em questão com os seus
representantes, deixa-se de perceber a rebeldia como uma realidade em si mesma,
detentora de uma positividade própria e passa-se a vê-la como um epifenômeno de
moda, “sem a menor força de atuação sobre a ordenação do social”
71
. Esta
redução da transgressão a um efeito cuja causa seriam os excessos normativos de
uma família sufocante não consiste apenas numa imprecisão analítica – científica
–, mas também traria consigo desdobramentos políticos: a ratificação da família
como valor, por um lado, e, mais importante, a inscrição do ímpeto rebelde –
ímpeto de problematização e de inovação de sentido – àquela grade simbólica
instituída e instituinte da própria ordem social:
Dizer que a família é, ela mesma, o objeto primordial, essencial, fundamental da
ação rebelde não será uma refamiliarização? Uma familiarização compulsória
de uma força, um vigor que não teria na família, necessariamente, seu lugar de
nascimento, seu oponente ou seu lugar de atuação?
72
Já de acordo com Renato Janine Ribeiro
73
, a contestação não seria um
imperativo necessariamente inscrito na juventude. A afinidade entre ambas seria
não apenas um fenômeno historicamente datado, mas, por isso mesmo, também
reversível. Assim, a partir da Revolução Francesa, a “invenção e a inovação”
74
subjacentes ao questionamento de um estado de coisas passam a ser cultivadas
como um valor. Antes dela, contudo, e, ao que tudo indica, no presente, é um
70
Id., ibid., loc. cit.
71
Id., ibid.:47.
72
Id., ibid.:49.
73
RIBEIRO, R. J. “Política e juventude: o que fica da energia”. In: NOVAES, R.; VANNUCHI, P.
Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2004, pp.19-33.
74
Id., ibid.:24.
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conformismo ante a realidade que parece vir ganhando espaço enquanto postura
política entre os jovens.
À juventude corresponderia uma posição pendular na sociedade, conforme
Ribeiro: quando não se é mais criança e absolutamente dependente e, ao mesmo
tempo, quando ainda se está isento de uma série de deveres e exigências,
basicamente todas aquelas responsabilidades inerentes ao trabalho, à
conjugalidade e à paternidade. Por um lado, é precisamente por seu caráter
“indeterminado”
75
que este período se apresentará ao jovem como um valioso
momento de livre problematização do que lhe fora oferecido até ali pela
sociedade; por outro, esta condição de dependência – sobretudo material – limita-
lhe as ações. Desde meados do século XX entre a emancipação e a subordinação,
o jovem, então, se vê dividido entre duas vias de mobilização política: a
revolução, que lhe sublinha veios criativos e rebeldes; e o consumo, que lhe
enfatiza ares conformados, conservadores e hedonistas. É interessante notar,
contudo, estes caminhos não seriam absolutamente contraditórios
76
.
Esta situação, especialmente a partir dos anos 1970, teria provocado uma
inflexão na juventude na medida em que se potencializa a abertura de um abismo
entre os ímpetos de inovação dos jovens e a sua atualização política. Numa
realidade em que, desde muito cedo, passa-se a valorizar a precisão e a
competência técnicas, seus desejos e lampejos de transformação acabam por vir
em segundo plano ou simplesmente acabam: “(...) o modo de inserção no mundo
exige um nível de acerto que já não admite a estação juvenil de desvios em
relação à norma que, tempos atrás, era aceita e mesmo valorizada”
77
.
O autor se mostra preocupado com este aproveitamento da energia dos
jovens. Conforme Ribeiro, estando hoje a política “em baixa”
78
, as
transformações sociais viriam, de um lado, com os movimentos sociais e, de
outro, com a indignação ética. É a partir destes celeiros de novidades políticas que
75
Id., ibid., loc. cit.
76
Ateste-o todo o merchandising em torno da imagem – e de uma imagem – de Che Guevara.
Segundo a sugestão de Luiz Eduardo Soares: “(...) as modas – refiro-me àquelas que se realizaram
como movimentos culturais –, mesmo quando são cooptadas e assimiladas pelo sistema econômico
e viram grife domesticada, inteiramente confortável nos grandes salões das elites, nem por isso
merecem nosso desdém. Alguma coisa fica. Há sempre um resto não digerido que se acrescenta à
química dos cosmos cultural e altera o DNA das sociedades em benefício da liberdade” (SOARES,
2004:150, nota 11).
77
RIBEIRO, ibid.:26.
78
Id., ibid.:19.
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se infiltrariam valores originais na esfera pública
79
. A juventude ou, mais
precisamente, os grupos de pares formados por jovens seriam um destes altos-
fornos dos quais a sociedade se serviria para se problematizar e renovar. O próprio
caráter experimental das relações aí travadas são potencialmente inovadores. Ora,
ao se canalizar toda a disposição política do jovem para a satisfação de um desejo
aquisitivo, a sociedade termina por desperdiçar este potencial transformador,
estimulando a sua privatização. A política e a vida pública, assim, vão se
esvaziando. No entanto, argumenta Ribeiro, assim como não se deve focar apenas
no consumo, tampouco se pode enquistar no grupo de pares. Propõe-se um
equilíbrio difícil: “Como fazer que de tanta energia provenha algo que seja bom
para a pessoa e para a sociedade?”
80
. Para compreender melhor este contexto,
talvez seja interessante, então, debruçar-se com mais profundidade sobre o
consumo.
Através de uma abordagem psicossocial, Jurandir Freire Costa
81
busca
compreender e problematizar o consumismo. O emprego de termos como
“consumismo”, “consumo” etc. seria um índice de transformações culturais e
subjetivas que ocorrem desde a emergência e consolidação do capitalismo
moderno. “Consumir”, segundo o autor, deve ser conjugado quando se referindo a
substâncias metabolizáveis pelo corpo humano, não remetendo a objetos
adquiridos através de negociações em um mercado; estes seriam comprados. A
imprecisão aí não seria meramente semântica, ou melhor, esta imprecisão
semântica acaba por revelar uma percepção equivocada: ao se compreender
objetos não-metabolizáveis – não-consumíveis, portanto – como se compreendem
alimentos e drogas, acaba-se por entender – ou aceitar – que não haveria
diferenças significativas entre aqueles que os compram, sendo “todos
razoavelmente iguais, dado que [suas] necessidades biológicas são razoavelmente
idênticas”
82
.
Ora, embora não completamente desprovida de uma razão lógico-
matemática onde se consideram fatores como a escassez e a necessidade, a
compra é eminentemente motivada e significada em sociedade, argumenta Costa,
79
Id., ibid.:27-8.
80
Id., ibid.:32, meu grifo.
81
COSTA, J. F. “Perspectivas da juventude na sociedade de mercado”. In: NOVAES, R.;
VANNUCHI, P. (orgs.). Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São
Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, pp.75-88.
82
Id., ibid.:76-7.
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tendo igualmente repercussões sociais e, pode-se precisar, simbólicas. Neste
sentido, não se pode estender o universalismo subjacente a uma abordagem
analítica que tome a natureza biológica da espécie humana como ponto de partida
a uma instância onde predominam a singularidade e a particularidade –
especialmente as subjetivas, mas também as econômicas –, ou seja, às barganhas
levadas a termo num mercado
83
.
Conforme Costa, então, o consumo consistiria numa metáfora que remete
ao ritmo com o qual se adquirem objetos industrializados, fruídos rapidamente em
obsolescência como se fossem um soro exclusivamente fisiológico. Uma vez que
o sujeito percebe na posse destes bens um meio de realização pessoal, ele tenderia
a experimentar o preenchimento de demandas psicossociais, oriundas da espiral
formada pela dinâmica entre sua subjetividade e a cultura na qual está imerso,
como experimenta a satisfação de seus imperativos naturais. Esta relação com os
objetos não seria uma novidade, contudo. A inflexão que caracteriza o presente
estaria justamente no vulto cada vez maior que as compras vêm ganhando na
constituição das identidades pessoais. De acordo com o autor, pode-se encontrar,
na base deste ímpeto aquisitivo, uma nova moral do trabalho e uma outra, do
prazer
84
.
No âmbito do trabalho, além de permanecerem índices de êxito
profissional e pessoal, os objetos passam a facilitar a satisfação de uma dupla
necessidade subjetiva, inerente ao novo paradigma de administração empresarial e
ao sujeito aí informado: viabilizar uma estabilidade psicológica sem negligenciar
uma elasticidade pessoal. Desse modo, representam-se as mercadorias
simultaneamente como estáveis – é fácil transportá-las consigo – e mutáveis – é
igualmente fácil livrar-se delas.
Já na busca subjetiva pela realização dos prazeres sensoriais, o sujeito irá
se apropriar dos objetos como um estímulo ao seu gozo físico, estímulo atual a ser
permanentemente renovado. Consumindo objetos, portanto, acaba-se por estampar
um prazo de validade, geralmente muito breve, sobre o próprio bem-estar que dele
se aufere. Daí, argumenta o autor, fecha-se um circuito em que estímulo e compra
se confudem, somando-se, ademais, a uma dupla demanda subjetiva: se o acesso
83
Id., ibid., loc. cit.
84
Id., ibid.:79-80.
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aos objetos deve ser o mesmo – constante –, os objetos em si mesmos devem ser
sempre outros
85
.
Embora procure um diagnóstico imparcial, pode-se perceber o tom crítico
das análises de Costa. Não se trata, contudo, de uma crítica ruborizada ante uma
imoralidade hedonista, por exemplo, ou desesperada ante a precarização das
condições de trabalho; pelo menos, não se trata de uma crítica isolada a estes
aspectos da cultura ocidental contemporânea. As preocupações do autor se
revelam quando percebe que estes fatores potencializam a erosão de
compromissos em torno do que chama “Bem comum”
86
, ou seja, “algo que
transcenda nossas vidas passageiras e o fugaz prazer de nossos corpos”
87
. É
possível dizer que a esta inquietação de cunho republicano, complementa-se uma
outra, liberal, uma vez que Costa vê nessa negligência ante uma tradição o abalo
na “confiança que temos na história e em nosso valor como agentes de
transformação social”
88
.
Neste sentido, o consumo de substâncias entre os jovens das camadas
médias urbanas do município do Rio de Janeiro atualmente, por seu turno, pode
ser um caso revelador daquilo que Maria Isabel Almeida e Fernanda Eugenio
89
identificaram como valores que constituiriam o espírito de época contemporâneo:
(...) a competência, o primado do cálculo, o bem-estar como ponto de partida, o
pragmatismo, a instrumentalização do consumo, a simultaneidade dos
investimentos em muitas e diversas frentes de contato com o mundo, a produção
tanto quanto possível de uma vida extensamente intensa
90
.
Buscando compreender um mundo social que se pauta cada vez mais pelo
cálculo e pela competência, as autoras se debruçam sobre os desdobramentos
subjetivos e as novas sensibilidades que emergem da interação entre o consumo
de substâncias
91
e as cenas eletrônicas contemporâneas. Tomando os jovens das
85
Id., ibid.:83.
86
Id., ibid.:82.
87
Id., ibid.:85.
88
Id., ibid.:87.
89
ALMEIDA & EUGENIO, 2007.
90
Id., ibid.:158.
91
É importante salientar que a noção de “substância” é empregada pelas autoras como uma
relativização da categoria “droga”. Em outro momento (ALMEIDA & EUGENIO, 2006), elas
explicam que “sob o registro mais abrangente da noção de substâncias, estão compreendidos não
somente os itens que seriam classificados como drogas ilegais, mas igualmente os anabolizantes,
os emagrecedores, as smart drugs, e até mesmo as barras de cereais, as vitaminas e as bebidas
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40
camadas médias urbanas do município do Rio de Janeiro como foco empírico, as
autoras percebem o recurso ao ecstasy como emblema de uma época em que se
valoriza o bem-estar situacional dos usuários. Com efeito, mesmo juridicamente
vedado, o consumo de ecstasy seria apenas um meio – entre vários, lícitos e
ilícitos – ao qual se recorre na tentativa de produzir o que as autoras chamam
“intensidade extensa”
92
, ou seja, a conciliação virtualmente vitalícia entre uma
ascese dos estudos e do trabalho e uma outra, do lazer e do prazer. A dissolução
de quaisquer antagonismos entre estas duas frentes de investimento individual
caracterizaria o gerenciamento de si acionado por estes jovens.
Ainda que se mantenham referências à contracultura de trinta ou quarenta
anos atrás, o hedonismo da “geração MTV”, diferentemente daquele destacado
entre o círculo intelectual, artístico e boêmio da Zonal Sul do Rio de Janeiro dos
anos 1960 e 1970, não seria permeado por um projeto de mudança e introspecção
individuais ou por uma postura lúdica e pueril ante a realidade, pelo contrário; são
um desejo de enquadramento e de uma incrementação de si, por um lado, e o
balizamento rigoroso dos momentos de diversão no emprego do tempo, por outro,
que irão marcar a especificidade destes jovens
93
.
É a continuidade, não a mudança ou a ruptura, que emergirá como valor
atualmente. Assim, moças e rapazes, ao consumirem substâncias, não se referem
criticamente a um estado de coisas a ser reordenado através da rebeldia, mas, ao
contrário, valorizam o aqui e o agora; um projeto de crítica social subentende um
coletivismo que não entraria nas perspectivas destes jovens, senão subordinado às
suas antecipações individuais. Neste sentido, o ecstasy é sintomático: toda a
assepsia que o cerca – desde a obtenção dos comprimidos até a sua ingestão –,
toda a aura de limpeza que o envolve deflaciona-lhe – ou dissolve-lhe por
completo – qualquer significado contestatório, diminuindo assim qualquer ruído
que o seu consumo possa provocar. A este ruído contrapõe-se um bem-estar
constante e previsível que, ao invés de problematizar a realidade, ratifica-a ao
intensificá-la e estendê-la.
Todavia, assepsia, previsibilidade e bem-estar não prescindiriam de
empenho e desempenho individuais. O cálculo permearia toda a interação do
alcoólicas em geral. Em uma palavra, o amplo universo de substâncias disponíveis para a
sensibilização e a incrementação dos corpos” (id., ibid.:40, grifo no original).
92
Id., 2007:155.
93
Id., ibid.:156-9.
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41
jovem com a substância, não bastando, portanto, o consumo para a fruição de uma
experiência prazerosa. O contato com um par que consiga o ecstasy, substância
muitas vezes produzida em países europeus como a Inglaterra e a Holanda; a
escolha criteriosa de vestimentas que combinem, componham e potencializem a
vibe do ambiente de consumo; a presença de amigos no ato da ingestão;
sobretudo, a minúcia na auto-dosagem, saber inalienável; estas são variáveis a
considerar pelo jovem que visa à produção de um bem-estar hermeticamente
controlado e, por isso mesmo, potencialmente mais intenso.
A aparência, além disso, impõe-se como um importante filtro
classificatório. Ao não investir o necessário na lapidação de um corpo saudável
ou, ainda mais grave na perspectiva desses jovens, ao degradar o próprio corpo, o
sujeito denuncia sua temeridade, sua ingerência sobre si mesmo, o que permite
vislumbrar a falta de um rigor necessário à produção e à manutenção daquela
intensidade extensa. Neste sentido, cabe ao próprio jovem impor-se os limites que
orientarão seu consumo de substâncias. No caso de uma bad trip, por exemplo, o
consumidor, e apenas ele, é imputável por este acidente de um percurso
supostamente longo e prazeroso. O termo “acidente”, aliás, não seria o mais
adequado, uma vez que a bad trip é muito mais um índice de incompetência do
sujeito, o ecstasy sendo muitas vezes representado como infalível.
A assepsia e a aparência, então, aparecem como os limites que
determinarão o êxito ou a bancarrota da empresa do bem-estar de cada um desses
jovens. A dependência química é interpretada aqui como uma falha, um erro no
qual incorre o loser, isto é, aquele que não preencheu os requisitos necessários à
consecução de seu próprio projeto de vida ou, ainda mais drástico, aquele que
sequer se havia proposto um. Quando o jovem “perde a noção”, ele ignora seus
próprios limites; no extremo, viola-se e, talvez o maior de todos os seus
equívocos, ignora-se. Aqui, ignorar-se, não se conhecer desde muito cedo, não se
ater aos seus próprios planos, abrir mão de bom grado da própria autonomia para
atender aos caprichos do vício, verdadeiro senhor heterônomo, tudo isso revela
uma inaptidão estigmatizante. Passando por cima dos limites que devia respeitar
acima de todas as coisas, pois, afinal, trata-se dos seus limites – auto-impostos – o
sujeito subordina-se, tornando-se indigno desta espécie de protagonismo
protagórico ao qual aspira e que parece constituir o mais caro valor construído por
esses jovens:
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42
O “projeto pessoal” de vida torna-se assim direito e dever de cada um: não se o
submete ao arbítrio nem dos pais nem do coletivo, do grupo de pares. (...) O que
dá a medida dos limites de engajamento no coletivo e na diversão é o projeto
pessoal de cada sujeito, que nunca pode correr o risco de sucumbir ou sequer de
sair do primeiro plano. O cálculo e o planejamento, o monitoramento
permanente de si, estes não são dados por agentes externos a si, por uma
autoridade heterônoma; competem, ao contrário, ao sujeito tornado “medida de
todas as coisas”
94
.
Vimos acima com Figueira, o processo de mudança social acelerada, a
modernização – reativa ou efetiva – por que vem passando o país nos últimos
decênios, tem, de fato, resultado no relaxamento, na suavização de uma hierarquia
familiar antes tida como inconteste. Não apenas a família, mas a sociedade como
um todo se transformou, pendendo-se sempre e cada vez mais para uma
relativização de fronteiras, identitárias e institucionais. O Estado, a Igreja
Católica, a escola e o trabalho, enquanto referências clássicas, e que iam de mãos
dadas com a família, não mais incidiriam com a mesma intensidade sobre a
subjetividade; em outras palavras, o sujeito – seu imaginário, suas emoções, sua
fantasia
95
– disporia agora de uma pletora de nortes morais e comportamentais.
Não se pode inferir deste desmapeamento, contudo, a repentina
insignificância dos parâmetros antes disponibilizados e, menos ainda, a absoluta
ausência de balizas subjetivas, numa palavra, de “limites”. Se o peso das antigas
instituições não é mais o mesmo, não se pode apressar em decretar o seu colpaso,
tampouco em presumir que, onde houve recuo, não houve também o avanço de
outras – muitas e novas – possibilidades. Ao se pensar numa “falta de limites”,
portanto, deve-se ter este quadro mais amplo em mente.
Sem que se desprezem os parâmetros negociados e estabelecidos entre pais
e filhos, hoje, no caso dos jovens, os grupos de pares, as galeras, as turmas
parecem ganhar destaque tanto como uma alternativa aos ajustes familiares quanto
como um espaço e um tempo privilegiados de reconhecimento intersubjetivo e de
inovação lingüística e, no extremo, política. Ademais, é importante notar que, no
presente, muito mais que uma “causa” ou uma “bandeira”, são o mercado e o
consumo que ensejam e informam estas coletividades. Como informa Singly:
94
Id., ibid.:177-8.
95
FIGUEIRA, ibid.:14.
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Estes [os adolescentes] emancipam-se dos pais construindo seu mundo pessoal –
uma das suas vontades assim se expressa: “se a minha família se ocupasse um
pouco mais das suas coisas e um pouco menos das minhas, seria ótimo”. Mas
eles elaboram esse mundo a partir de que materiais? Com a música proposta
pelas rádios especializadas, pelas roupas de marca que lhes são endereçadas,
enfim pelos elementos postos à disposição pelo capitalismo e pela lógica
dominante no mercado. Eles não estão, assim, nem um pouco (des)socializados.
Seu mundo é menos o mundo de seus pais – nesse caso, ele é “pessoal” – e muito
mais o mundo dos seus pares, da sua geração e do mercado correspondente
96
.
Esta classificação cada vez mais baseada na esfera econômica gera uma
significativa segmentação destes novos parâmetros de sociabilidade. Dependendo
da intensidade e da duração dos vínculos e das relações aí formadas e, igualmente,
dos desenlaces advindos da ação destas coletividades sobre a sociedade, esta
gênese pode passar a ser vista com ressalvas, como parece ser o caso das análises
elaboradas por Ribeiro e Costa.
Maria Rita Kehl, por sua vez, vê como positivas as “ligações horizontais”
estabelecidas entre os jovens no interior de uma turma. Estes vínculos entre
semelhantes, alternativa à ascendência das “ligações verticais” hegemônicas
durante a infância, servem como substrato para novas vias identificatórias e
lingüísticas e, ao fim, novas alternativas para a vida em sociedade como um
todo
97
.
O pertencimento experimentado pelo jovem ao ingressar numa turma
catalisa a ultrapassagem dos referenciais familiares elaborados e impostos até ali.
Sob um prisma psicanalítico, a autora percebe nestas “formações fraternas”
98
um
caminho essencial para a transformação da relação do jovem com seus pais
durante a adolescência. Legitimando e incentivando ensaios de transgressão, a
turma acaba por facilitar a seus integrantes a problematização de tabus que há
muito lhes foram colocados. Ao adotar outros parâmetros – criados no seio deste
grupo –, o jovem passa a testar aqueles estabelecidos por seus pais e, de um modo
geral, pela sociedade, amparado na colaboração e na corroboração de seus pares.
No limite, trata-se de um processo de maturação da forma como o jovem
representa e se relaciona com normas impessoais, passando não só a distingui-las
com maior precisão ante os interditos familiares, mas também, e precisamente por
isso, alargando seu próprio perímetro de liberdade. Esta, por sua vez, seria
96
SINGLY, ibid.:180-1.
97
KEHL, ibid.:111-2.
98
Id., ibid.:111.
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44
estendida muito mais por inovações simbólicas que através do vandalismo.
Efetivamente, a adolescência enquanto moratória
99
acaba por situar os jovens,
especialmente os jovens de classe média, numa órbita intermediária entre a
marginalidade e a cultura oficial. As turmas, inovando em linguajar e linguagem,
acabam por expandir o horizonte de significação da própria sociedade da qual faz
parte
100
.
Otimista de um modo geral, Kehl se mostra preocupada com o degringolar
da turma em gangue. Estanque em si mesmo, passando ao largo de quaisquer
referências mais amplas, o grupo formado por jovens corre o risco de subscrever
não apenas a transgressão simbólica, mas a própria criminalidade. Neste sentido,
aqueles pequenos atos desviantes potencializados pelo grupo de pares dariam
lugar à afronta direta a um sistema de normas social e juridicamente estabelecido.
Já segundo Cynthia Sarti, caberia ao jovem introduzir a alteridade na
família, desempenhando aí o papel de “outro necessário”
101
. Um universo de
relações em permanente especularidade com a sociedade, a família mediaria o
biológico e o social. Assim, muito mais que os cônjuges e seus filhos, a “família”
seria uma categoria nativa cujos limites estariam inscritos no próprio discurso
daqueles que se auto-representam coletivamente como seus integrantes
102
. Com
efeito, este conjunto de interações mostra-se simultaneamente lugar de aquisição
da linguagem e, justamente por isso, contraponto privilegiado, mas não exclusivo,
de inovações simbólicas
103
.
Ao embeber os pequenos na linguagem, a família lhes fornece lentes por
meio das quais é possível classificar a realidade. Estas, mais tarde, continuarão
servindo de referencial a cada um dos membros da família, mas agora um
referencial a problematizar – ou defender – e, tal como vimos com Kehl,
ultrapassar. É preciso deixar claro, este processo de questionamento não se
encontraria em latência, como que “aguardando” a passagem das crianças à
adolescência para deslanchar. Trata-se, em realidade, de um work in progress, por
assim dizer, sem um instante zero definido, que vem se desenrolando antes e se
99
A autora interpreta a adolescência como um fenômeno histórico circunscrito à modernidade e à
industrialização. Nela, o adolescente se encontraria num hiato biográfico, cada vez mais extenso,
aguardando sua incorporação à vida adulta (KEHL, ibid.:91).
100
Id., ibid.:113.
101
SARTI, ibid.:123.
102
Id., ibid.:117.
103
Id., ibid.:120.
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45
estende para além de quaisquer marcos biográficos individuais. Assim, se as
rupturas com o discurso difundido pela e na família se evidenciam com maior
nitidez através dos jovens e de seu comportamento, estas transformações não
ocorreriam sem os pais e seriam levadas a termo também pelos mais velhos.
Sarti, contudo, vê os grupos de pares formados por jovens como peças-
chave na compreensão das inflexões lingüísticas e da apresentação de caminhos
originais para a vida em sociedade. Com efeito, a construção da identidade do
jovem passa, em grande medida, pela procura e experimentação de referenciais,
senão explicitamente divergentes, diferentes, sim, daqueles de que dispunha
104
vale dizer, referenciais relativamente estáveis até a passagem da infância à
adolescência, isto é, até uma significativa ampliação de sua autonomia individual,
negociada e delegada num ritmo que varia como varia o caráter das premissas
pedagógicas de seus responsáveis, menos ou mais liberais.
No extremo, este percurso de individuação é também um percurso de
coletivização onde se estabelecem limites essenciais – e novos, é certo – para a
subsistência simbólica do grupo. Neste sentido, a família desempenha um papel
fundamental e, pode-se dizer, duplo: por um lado, manter-se eixo e contraponto de
sentido para o jovem e para as coletividades das quais faz parte; por outro, o que é
apenas aparentemente paradoxal, mostrar-se permeável a estes parâmetros
inéditos, construídos em seu exterior. No mundo moderno, argumenta a autora, é
esta dinâmica entre os mitos familiares e as problematizações aí infiltradas pela
sociedade via jovem que evitará a cristalização, potencialmente normativa, de
uma e outra:
A família, então, constitui-se dialeticamente. Ela não é apenas o “nós” que a
afirma como uma família singular, mas é também o “outro”, condição de
possibilidade da existência do “nós”. Sem deixar entrar o mundo externo, sem
espaço para a alteridade, a família confina-se em si mesma e se condena à
negação do que a constitui, a troca entre diferentes
105
.
Para tornar esta análise dos grupos de jovens enquanto uma instância
fornecedora de limites mais nuançada, é interessante chamar a atenção para como
estas coletividades seriam representadas por entre os jovens das camadas
104
Id., ibid.:123.
105
Id., ibid.:122.
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populares urbanas. Neste sentido, Luiz Eduardo Soares
106
volta suas análises para
aqueles jovens acometidos pelo que chamou “invisibilidade social”
107
, tratando
principalmente de rapazes negros, 15 a 24 anos, provenientes das camadas
populares urbanas. Estes “jovens invisíveis” estariam num constante e intenso
flerte com organizações criminosas – especialmente as do narcotráfico – não
apenas em busca de melhores condições e oportunidades materiais, mas
igualmente, e talvez mais importante, à procura de reconhecimento, de um canal
de intersubjetividade e, ao fim, de sua própria identidade, através de um
delineamento mais nítido para sua subjetividade. Sua condição invisível se
configuraria a partir da conjunção de duas posturas adotadas seja ante a sua
presença, numa relação face a face, seja num plano menos explicitamente
concreto: a estigmatização ou o preconceito, por um lado, e, por outro, a
indiferença ou a negligência
108
.
A projeção de um estigma sobre alguém seria uma atitude dotada de
positividade; noutras palavras, ainda que disso pouco se dê conta aquele que o faz,
impõe-se ao outro um estereótipo que reduz todas as suas idiossincrasias pessoais
à imagem que dele se constrói, imagem esta geralmente difamatória. A este
preconceito corresponde não apenas uma previsão moral superficial, mas, a partir
daí, uma prevenção moralista que, no mais das vezes, redunda em hostilidade e
violência
109
. A indiferença, por seu turno, consiste num posicionamento negativo
onde se deixa de perceber alguém seletivamente. Nem sempre permeado de
intolerância, este tipo de ignorância auto-imposta funcionaria como um fiel
mental, sempre visando a um “mínimo indispensável de equilíbrio psíquico”
110
ante uma realidade social considerada cada vez mais insuportável.
Incomunicáveis, zerados enquanto sujeitos, estes jovens perceberiam o
ingresso numa organização criminosa como seu único – e provavelmente último –
meio de travarem relações que lhe outorgarão um reconhecimento até ali negado
pela sociedade mais ampla. Apesar de ilegal, a facção não deixa de ser um grupo
dotado de legitimidades e ilegitimidades internas, normas e símbolos construídos
106
SOARES, L. E. “Juventude e violência no Brasil contemporâneo”. In: NOVAES, R.;
VANNUCHI, P. Juventude e sociedade: trabalho, educação, cultura e participação. São Paulo:
Editora Fundação Perseu Abramo, 2004, pp.130-159.
107
Id., ibid.:133.
108
Id., ibid.:132-3.
109
Id., ibid.:133.
110
Id., ibid.:135.
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47
coletivamente. No âmbito subjetivo, então, o pertencimento ali vivenciado
contribui consideravelmente para a formação da identidade de seus integrantes.
Mesmo que de modo precário e quase sempre efêmero, é através destes vínculos
que se facilitará a expressão de singularidades pessoais e, especularmente, o
reconhecimento destas pelos pares. De acordo com Soares, há, de fato, um apelo
material a seduzir estes jovens rumo às fileiras do tráfico. Esta atração, contudo,
não poderia ser reduzida à mera supressão utilitária de uma necessidade palpável
como a fome, por exemplo; a carência aqui é igualmente simbólica e afetiva
111
.
As armas e a moda são um importante índice deste duplo significado que a
facção teria não apenas para aqueles que dela já fazem parte, mas para prováveis
membros e, além destes, para as jovens
112
, talvez ainda mais invisíveis. Ora, o
caráter utilitário dos armamentos e das roupas é inegável; contudo, a posse de
ambos ressignifica aquele que os controla, uma vez que denota uma “linguagem
simbólica inseparável de valores” através da qual o jovem empreende um esforço
para ser “diferente-igual-aos outros”
113
, um esforço, portanto, de reconhecimento
e de identificação e, ao mesmo tempo, de distinção.
Assim, as pistolas, rifles e metralhadoras não valeriam apenas o quanto
pesam ou aniquilam, mas, além disso, tanto quanto produzem de distinção e, ao
mesmo tempo, de pertencimento. O mesmo se dá com as vestimentas. Estas, aliás,
não seriam roupas quaisquer, mas camisas e tênis de grifes valorizadas enquanto
índices de uma moda, de uma estética por conseguinte, e, no limite, de uma ética.
Através destes itens, o jovem, belo e bélico, garante suas inserção e participação
num grupo de semelhantes, ganhando em “densidade antropológica”
114
:
Participar de um grupo é gratificante porque fortalece o sentimento de que temos
valor e a sensação de que aquilo que pensamos e sentimos é compartilhado por
outros, o que lhe revigora o valor de verdade e de correção moral
115
.
111
Id., ibid.:148.
112
Conforme Soares, são as opiniões e juízos femininos que, em boa medida, estimularão os
rapazes a fazer parte de uma organização criminosa (ibid.:152).
113
Id., ibid.:137.
114
Id., ibid.:142.
115
Id., ibid.:150.
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48
2.4.
Interpretando as relações entre gerações na família das camadas
médias urbanas do Brasil contemporâneo: uma tentativa
Como, então, interpretar esta aparente “falta de limites” do jovem de
classe média? A partir das análises acima expostas, pode-se argumentar que o
jovem – e não apenas ele – se encontraria não em um vácuo de parâmetros
nitidamente delimitados, mas num contexto onde se lhe apresentam e onde
coexistem inúmeras vias de individualização. A percepção generalizada de uma
lacuna moral implica uma pressuposição complementar e aparentemente lógica:
ora, onde se supõe um espaço em branco, supõem-se-lhe igualmente fronteiras
bem definidas. Assim, a situação parece reduzida àquela anedota na qual dois
sujeitos passam a brigar, ao depararem com um recipiente à metade de sua
capacidade, declarando tratar-se, por exemplo, de um copo meio cheio e,
alternativamente, de um copo meio vazio. É possível – e mesmo provável – que
jovens e adultos não atentem para aquilo que ignoraram estes dois personagens:
de fato, diferentes entre si, suas perspectivas – pessoais e coletivas – não seriam a
medida de todas as coisas; a despeito disso, contudo, não seriam necessariamente
divergentes.
O diagnóstico de uma falta de limites parece especialmente atraente num
contexto onde a diferença ainda chega a ser apreendida como divergência, apesar
de significativos avanços rumo ao que Figueira chamou “modernização efetiva”
dos mecanismos subjetivos dos indivíduos membros de uma família e também da
sociedade como um todo. Em outras palavras, tende-se a tomar a dificuldade de
compreensão inerente à comunicação – intersubjetiva e intergeracional – como
uma absoluta e incômoda impossibilidade. Haveria, realmente, um descompasso
entre as perspectivas em jogo; este, no entanto, não seria cabal, havendo pontos de
interseção e brechas de negociação. Do contrário, isto é, fossem ambas as
posições inescapavelmente incompatíveis, é lícito insinuar que sequer haveria
espaço para a polêmica.
A situação se revelaria particularmente tensa ao não se perceber que a
conciliação é antes um processo permanente de construção e reconstrução
identitária – dos sujeitos nele envolvidos – e institucional – da família, por
exemplo –, atualizado coletivamente; não se trata, portanto, de um estágio final,
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um consenso derradeiro. Vislumbrando a possibilidade de um idílio relacional,
acaba-se por cristalizar discursos e, portanto, a própria realidade. Nesses termos,
as disputas ganhariam ares cataclísmicos, gerando umnico – especialmente da
parte dos pais – e uma reação – particularmente da parte dos filhos – diretamente
proporcionais à reificação que se faz da família. Desse modo, de um ideal
consensual, potencializam-se e, cedo ou tarde, realizam-se conflitos.
Ironicamente, embora muitas vezes percebidas como indesejadas, estas disputas
seriam, como vimos, parte instituinte e constituinte de um determinado universo
de relações.
Dessa maneira, ao que “deve ser”, imposto pelos mais velhos, o jovem
proporia e mesmo oporia o que “deveria ser”, não como rebeldes organizados em
monolito, como sugeriu Moura, mas simplesmente cultivando suas próprias
individualidades, tanto sozinhos quanto com seus grupos de pares. Neste debate,
ainda que haja uma dualidade entre as gerações, ambos discursos seriam, então,
moralizantes, insinuações e sugestões de limites. Desse modo, as tensões entre
pais e filhos não viria tanto de uma falta de limites quanto de uma falta de
compreensão e de um esforço de compreensão mútua do que sejam e de quais
sejam estes limites, o que, ao fim, não deixaria de ser uma postura etnocêntrica.
Como indica Sarti:
A negação do diferente, a base etnocêntrica de todo preconceito, funda-se
precisamente na dificuldade de aceitar que o suposto diferente se parece muito
conosco e pode nomear o que para nós é inominável. Na verdade, ele revela
muito de nós mesmos e põe em questão o caráter absoluto de nossas próprias
referências culturais. Se o outro pode estar certo, então isso significa que nós
podemos estar errados?
116
É preciso, contudo, matizar esse etnocentrismo. De fato, precipitando-se
inadvertidamente numa interpretação destas disputas, chega-se rapidamente à
conclusão de que a intransigência seria exclusividade dos pais, que oprimiriam,
não tolerando as novidades encarnadas e representadas por seus filhos; estes,
oprimidos, resistiriam romanticamente a um contra-ataque moralista e, pode-se
dizer, covarde, dadas as assimetrias em jogo: de um lado, a autoridade que, apesar
de problematizada, ainda revestiria a palavra do adulto de uma aura de
legitimidade, desqualificando complementarmente a do jovem; do outro, a
116
SARTI, ibid.:125.
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50
dependência econômica oxigenando um vínculo clientelístico entre pais e filhos.
Esta, entretanto, parece ser uma leitura parcial da realidade.
Como vimos, o jovem é um valor, seu discurso também. Ademais,
inflacionando-se o prisma da dependência, ignora-se o da autonomia subjetiva.
Sim, o jovem é dependente materialmente, o que lhe coloca em desvantagem nos
conflitos com seus responsáveis. Este handicap, entretanto, não o impede de
adotar uma postura individualista. As tensões, pelo menos nesse caso, parecem se
configurar devido a uma postura etnocêntrica de parte a parte. É necessário
lembrar, além disso, a família não seria constituída por um universo de relações
pautadas unicamente por uma guerra de posições entre as gerações. Esta seria uma
imprecisão analítica tão significativa quanto o seu inverso, ou seja, percebê-la
como um invólucro de ordem e paz incrustado num caos mais amplo, a sociedade.
É justamente esta tensão entre os símbolos valorizados pelas diferentes gerações
das camadas médias urbanas que levará à experimentação e à inovação
necessárias à atualização dos horizontes simbólicos da sua própria cultura. É
Claude Lévi-Strauss
117
quem finalmente argumenta:
O que concluir de tudo isso
118
, a não ser que é desejável que as culturas se
mantenham diversas, ou que se renovem na diversidade? Apenas (...) é preciso
concordar em pagar o preço: a saber, que culturas zelem por suas
peculiaridades; e que essa disposição é saudável, e não – como gostariam de
fazer-nos crer – patológica. Cada cultura desenvolve-se graças a seus
intercâmbios com outras culturas. Mas é necessário que cada uma oponha certa
resistência a isso, caso contrário, logo não terá mais nada que seja de sua
propriedade particular para trocar. A ausência e o excesso de comunicação têm,
um e outro, seus riscos
119
.
117
LÉVIS-STRAUSS, C.; ERIBON, D. De perto e de longe. Tradução: Léa Mello e Julieta Leite.
São Paulo: Cosac Naify, 2005[1988].
118
O autor refere-se aqui às convergências e divergências entre dois textos seus onde se debruça
sobre o etnocentrismo, Raça e história, de 1952, e Raça e cultura, de 1971.
119
LÉVI-STRAUSS & ERIBON, 2005[1988]:211.
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3
Superinteressante: o que “superinteressa” ao jovem?
(...) o vago tem lugar tão pequeno no reino do mito.
(Claude Lévi-Strauss, A eficácia simbólica)
A invenção suprema é a de um problema, a abertura de um vazio no meio do
real.
(Pierre Lévy, O que é o virtual?)
Apesar de termos nos debruçado sobre noções que trafegam pelo
quotidiano das relações familiares para orientar as investigações até aqui, idéias
como as de “crise de autoridade” e de “falta de limites”; e mesmo tendo nos
baseado em trabalhos empíricos desenvolvidos por outros autores, constatamos
apenas num nível mais teórico que o jovem das camadas médias urbanas pode
encarnar papéis bastante diferentes daqueles que lhe reserva o senso comum.
Assim, pudemos perceber um jovem competente e responsável
contrastando com aquela caricatura do romântico rebelde, um inconseqüente
iconoclasta. Não que os mais moços tenham passado a desprezar o carpe diem
protagonizado por seus pais. Ou melhor, não exatamente. O amor livre, o lisérgico
e o letárgico, tal como vivenciados há três ou quatro décadas, perdem espaço,
anacrônicos. O prazer dos jovens passa a ser planejado, gerenciado, estendido e
maximizado por cada um deles: o bem-estar não deve estar espremido dentro dos
“vinte e poucos”
1
primeiros anos de uma biografia individual, mas estendido tanto
quanto possível. Ironicamente, quando comparado ao dos jovens de hoje, o
hedonismo das décadas de 1960 e 1970 passa a ser visto como “coisa de criança”.
Como coloca um dos informantes da pesquisa de Almeida e Eugenio: “A
diferença disso aqui [as raves] pra Woodstock é que segunda-feira eu tô lá
1
Refiro-me aqui à categoria dos “twenties something”, tal como empregada por Almeida e
Eugenio em seu trabalho empírico: “(...) uma escala etária inscrita em um certo padrão de
autodefinição que trafega pelas imprecisões estatísticas traçadas entre a faixa que vai dos 20 aos 30
anos” (ALMEIDA & EUGENIO, 2006:36).
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52
engomadinho no trabalho”
2
. Assim, se os jovens chegam a ter os seus próprios
limites – especialmente aqueles que adquirem através do consumo e de seus
grupos de pares –, eles bem podem servir de parâmetro ético e estético e, indo um
pouco mais adiante, transformar-se num ideal antropológico. Esta foi uma outra
perspectiva que tentamos desenvolver. A seguir a sugestão de Maria Rita Kehl,
esta representação do jovem como um asceta do gozo parece estar ganhando tônus
simbólico por toda a sociedade, atraindo inclusive os mais velhos.
Ao adotar as pautas da disciplina e da responsabilidade com crescente
desenvoltura, o jovem parece se orientar cada vez mais por uma série de
conhecimentos que lhe garantiria ou, pelo menos, potencializaria o bem-estar e o
êxito. Seja ao ingerir um comprimido de ecstasy numa rave, seja ao planejar a sua
aposentadoria, ou melhor, ao ingerir a droga enquanto planeja seu descanso para
dali a quarenta anos, o jovem se vê alicerçado num conjunto de dados, estudos,
informações etc. que o faz fruir sem ruídos esta síntese entre um presente
sensualmente prazeroso e um devir absolutamente esquadrinhado.
Nestes termos, a ciência não seria a única fonte de coordenadas para estes
jovens, mas parece ser hoje uma das mais importantes. Desse modo, investigar a
forma como ela lhes seria apresentada é um caminho aparentemente frutífero para
compreender o modo como poderia ser por eles representada. Foi levando isso em
consideração que decidimos nos debruçar etnograficamente sobre uma revista de
divulgação científica voltada para jovens, como SUPER.
A relação especular que se mantém entre SUPER e aquele que a lê abre
uma via de acesso até símbolos com os quais se identificaria o jovem leitor. Ainda
que indiretamente, uma vez que não etnografamos as interpretações de primeira
mão
3
dos próprios jovens, isto nos permite tentar detectar significados através dos
quais aquele que acompanha a publicação classifica e dá sentido ao mundo.
Adotando o texto de SUPER como um discurso nativo, discurso que constitui um
item de consumo do jovem, seria possível compreender melhor as próprias
perspectivas do consumidor. Neste sentido, qual o símbolo a ser interpretado aqui,
para que possamos compreendê-las? Numa palavra, a ciência. Mais
especificamente, a noção de ciência presente em SUPER.
2
ALMEIDA & EUGENIO, ibid.:156.
3
Em seu Thick description: toward an interpretive theory of culture, Clifford Geertz escreve: “In
short, anthropological writings are themselves interpretations, and second and third order ones to
boot. (By definition, only a “native” makes first order ones: it’s his culture.)” (GEERTZ, 1973:15).
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53
Como proceder, então, visando ao significado que a ciência adquire nesta
publicação? Voltaremos nosso foco para as seis primeiras edições do ano de 2007
da revista SUPER. Mais precisamente, para as seis reportagens de capa publicadas
naquele semestre. Por se tratar de uma revista de divulgação científica, assuntos
tão diversos quanto o I Ching e a disputa por alimento entre o Homo sapiens e o
Homo neanderthalensis podem ser abrigados numa mesma edição. Se
multiplicarmos esta variedade pelas seis edições eleitas como fonte primária de
material empírico, deparamos com uma série bastante irregular de temas, o que
dificulta uma abordagem uniforme. O recorte pelas reportagens de capa é, desse
modo, tanto quantitativo como qualitativo. Elas são as maiores matérias da
revista, contando em média 10 páginas cada uma
4
. De janeiro a junho de 2007,
SUPER teve uma média de pouco mais de 100 páginas totais, quase 30 das quais
sendo de publicidade de página inteira. Estamos diante, portanto, de quase 15% do
conteúdo total da publicação no referido período.
Ademais, o primeiro semestre de 2007 chamou mais a atenção dos leitores
da revista. É possível medir esta popularidade através do número de mensagens
recebidas pela redação durante um mês, cifra divulgada mensalmente na seção
“Desabafa”
5
. Assim, mesmo contando uma tiragem
6
total maior e uma edição a
mais que o primeiro semestre, o segundo teve um total menor de mensagens,
quase 830 a menos. A média de mensagens do período que vai de julho a
dezembro também foi menor: de janeiro a junho, a redação recebeu
aproximadamente 1000 mensagens por mês, contra 740 do período subseqüente.
Afora estes dados numéricos, é preciso levar em consideração que as
matérias de capa têm um outro peso no conjunto de reportagens e notas
divulgadas na revista, devido, em boa parte, a uma outra medida. O maior número
de páginas possibilita um discurso mais pormenorizado e uma argumentação mais
demorada. O tamanho destas reportagens, contudo, parece conseqüência – e não
causa – do significado que elas possuem para o próprio leitor. Num mercado
concorrencial, a propósito, pode-se sugerir que a reportagem de capa tenha papéis
estratégicos para o sucesso comercial de uma publicação periódica. Através dela,
a edição poderá tentar estabelecer uma espécie de empatia, conquistando aquele
4
Este e outros dados estatísticos podem ser conferidos no Apêndice 1. Cf. p.130.
5
Espaço em que o leitor se expressa, geralmente a propósito das matérias do mês anterior.
6
A tiragem é divulgada pela própria SUPER, na página dedicada a seu índice.
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leitor casual ou mantendo o comprador regular.
É importante notar, não nos referimos aqui a cada um dos jornalistas
responsáveis pela confecção das matérias de capa de SUPER. O que se etnografa
aqui é o discurso do corpo de funcionários que se ocupa da realização da revista,
mais precisamente, da representação sobre ciência elaborada coletivamente por
este grupo de profissionais, publicada na revista e consumida pelo jovem. Se,
como sugere Roberto DaMatta
7
, as etnografias são “descrições de sociedades”
8
, a
sociedade que buscamos descrever, então, é uma coletividade indexada por
“SUPER”; coletividade que, de fato, é composta por indivíduos-jornalistas, mas
que, como nos ensina Émile Durkheim, não pode ser reduzida a nenhum deles.
Cabe enfatizar, desse modo, SUPER serve-nos muito mais como um espelho que
reflete uma representação sobre a ciência, representação que, acreditamos,
integraria a visão de mundo mais ampla, a cultura do jovem das camadas médias
urbanas brasileiras. Busca-se compreender, portanto, o que é o “superinteressante”
para o qual muitos jovens voltam os seus olhares. Finalmente, ainda que
indiretamente, não deixa de ser uma tentativa de compreensão destes próprios
olhares.
3.1.
Superinteressante, uma revista de divulgação científica voltada para
jovens
Antes de passarmos à análise das reportagens propriamente ditas, parece
lícito esclarecer se poderíamos lançar mão desta publicação como um instrumento
de análise da cultura jovem hoje. Para tanto, debruçamo-nos sobre o próprio
discurso de SUPER e nos perguntamos se esta é, realmente, uma revista de
divulgação científica voltada para jovens. É necessário voltar no tempo para
começar a responder esta questão.
Na edição de outubro de 1987, mês em que SUPER foi lançada, publicou-
se uma “Carta ao leitor”, escrita por Victor Civita, então presidente da Editora
7
DAMATTA, R. “A obra literária como etnografia: notas sobre as relações entre literatura e
antropologia”. In: ____. Conta de mentiroso: sete ensaios de antropologia brasileira. Rio de
Janeiro: Rocco, 1993, pp.35-58.
8
Id., ibid.:35.
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Abril. Nela o autor apresenta a nova publicação ao leitor:
Por acreditarmos tanto no valor da descoberta e da acumulação do
conhecimento científico e tecnológico quanto na importância de sua divulgação
ao maior número de pessoas, estamos apresentando ao público brasileiro uma
nova revista mensal
9
.
Não são estas palavras em si, mas a sua retomada em um passado bem
mais recente que confirmaria e ratificaria a proposta inicial daquela carta de duas
décadas atrás. Na edição de dezembro de 2006 este texto foi incluído na seleção
das “20 melhores matérias da história da SUPER”
10
, o que estabeleceria uma
espécie de continuidade entre o passado remoto da publicação e o seu presente.
Poderíamos mesmo sugerir que esta carta acaba fazendo as vezes de um mito
fundador de SUPER.
Há outro aspecto, desta vez gráfico, que permite estender um vínculo entre
a SUPER de hoje e a de 1987 e, portanto, estendê-lo até a noção de divulgação
científica. Desde a primeira edição, a capa da revista apresenta uma imagem, que
ilustra a reportagem de capa, sempre emoldurada por tinta vermelha. Ou melhor,
quase sempre. Há apenas uma exceção: a de uma das duas edições de dezembro
de 2007
11
. É necessário que se esclareça, não acompanho a revista, tampouco a
coleciono; portanto, não havia como eu atentar para este pormenor. Quem chama
a atenção para o caráter extraordinário da tinta verde empregada para contornar a
imagem da capa daquele mês e quem, além disso, parece cultivar a continuidade
histórica da moldura vermelha é a própria publicação:
(...) a maior contribuição à ecologia que um veículo jornalístico pode dar é
estimular o debate, fazer circular idéias, ajudar na conscientização. É nesse
campo que temos bola para realmente fazer a diferença. E é por isso que
decidimos fazer desta uma edição histórica, em que pela primeira vez SUPER
trocou sua tradicional moldura vermelha pelo verde que você viu na capa
12
.
Outro índice desta continuidade pode ser achado na seção de mensagens
do leitor, “Desabafa”, durante o ano de 2007. Ali, no âmbito das comemorações
9
CIVITA, V. “Carta ao leitor”. Disponível em:
http://super.abril.com.br/superarquivo/2006/sumario-edicao-234.shtml#capas (acessado em
29/04/2008).
10
SUPERINTERESSANTE, ed. 234: Capa.
11
Desde 2004, SUPER fecha duas edições no mês de dezembro.
12
Id., ed. 247:16.
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dos vinte anos completados por SUPER, publicaram-se relatos de leitores que
teriam acompanhado parte significativa do percurso da revista. Na edição de
fevereiro, a publicação convoca seus leitores: “Se você lê a SUPER desde
pequeno, escreva sua história para gente! A cada edição de 2007, publicaremos
cartas de leitores que viveram os 20 anos da revista”
13
.
Também podemos perceber este contínuo simbólico no lançamento do
“Superarquivo”. Em 2007, ainda em celebração aos seus vinte anos, SUPER
começou a disponibilizar todas as reportagens da história da publicação para
consulta gratuita em seu site na internet. Na seção do site dedicada ao
“Superarquivo” é possível depararmos uma vez mais com uma representação de
continuidade:
20 anos de Super[:] A Superinteressante oferece todo o seu acervo de textos
gratuitamente! São mais de 12 mil páginas com as matérias de capa e algumas
das seções que construíram a história da revista. (...) Só mesmo uma revista tão
Super poderia fazer isso!
14
E a própria interface de navegação do “Superarquivo” também é
reveladora desta extensão no tempo. Pode-se iniciar uma pesquisa por ano e mês,
por exemplo, e dali partir para qualquer outra edição linearmente, para trás ou
para frente no tempo, clicando sobre duas setas horizontais, uma voltada para a
esquerda e a outra, para direita. Não há quebras, nem rupturas.
A esses indicadores de que SUPER consistiria numa revista de
“divulgação científica” podemos acrescentar outros que nos permitem descobri-la
como uma revista de divulgação científica “voltada para jovens”. De início, de
acordo com a própria Editora Abril, SUPER estaria enquadrada sob a rubrica
“Jovem” dentro do seu universo de publicações
15
. Finalmente, na edição de
setembro de 2007, por exemplo, numa matéria que tematiza as transformações
ocorridas no mercado editorial com a massificação da internet, a própria
publicação traça um breve perfil de seu leitor ao tentar responder se a revista
13
Id., ed. 236:10.
14
Disponível em: http://super.abril.com.br/superarquivo/index_superarquivo.shtml (acessado em:
29/06/2008).
15
A classificação interna da editora é a seguinte: “Veja”, “Negócios e Tecnologia”, “Núcleo
Consumo”, “Núcleo Contemporâneo”, “Núcleo Bem-Estar”, “Núcleo Jovem”, “Núcleo Infantil”,
“Núcleo Cultura”, “Núcleo Homem”, “Núcelo Casa e Construção”, “Núcleo Celebridades”,
“Núcleo Motor Esportes”, “Núcleo Turismo” e “Fundação Vitor Civita”. Esta informação pode ser
obtida numa coluna com dados sobre a editora e a revista, presente, ao que parece, em qualquer
exemplar de SUPER. No caso, utilizamos aquela da edição de fevereiro de 2007, edição 243, p.11.
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atingirá trinta anos de existência, já que ali completava vinte:
A SUPER vai fazer 30 anos porque tem os elementos que estão levando as
revistas para a frente. Tem leitores jovens (29 anos, em média) que realmente se
interessam pelo que está dentro da revista
16
.
3.2.
Análise etnográfica das reportagens de capa
Como já foi dito anteriormente, as reportagens de capa sob exame ocupam,
em média, 10 páginas em SUPER. Este espaço, contudo, não está preenchido
exclusivamente com texto corrido. Há gráficos e boxes informativos
complementando o conteúdo principal da matéria, além de algumas indicações
bibliográficas. Para que se tenha uma idéia mais precisa, se se adapta o texto
17
de
uma dessas reportagens às mesmas normas que regem a formatação da presente
dissertação, obtém-se pouco menos de 10 laudas como esta. Além da referência
óbvia ao texto ali presente, dois elementos pré-textuais são levados em
consideração na análise aqui desenvolvida, a saber, as descrições das reportagens
que constam na capa e no índice da publicação.
Embora sejam apenas seis as peças investigadas, seus temas são bastante
diversos, o que inibe uma classificação em tipos. Para contornar esta dificuldade,
tenta-se reproduzir aqui o caminho mais linear que teria percorrido um possível
leitor de SUPER até chegar ao texto principal das reportagens de capa. Como
introdução ao material empírico, portanto, talvez valha a pena apresentá-las uma a
uma, tal como o são pela própria publicação nas capas, nos índices e nos lides das
matérias. Desse modo, em janeiro de 2007, temos os seguintes textos:
I Ching[:] A fascinante história do livro mais antigo do mundo.
I Ching[:] O livro mais antigo do mundo já foi usado como guia espiritual e até
como manual de governo. Saiba por que algo escrito na China de 3 mil anos
atrás continua tão atual.
I Ching[,] o livro mais antigo do mundo[:] Nos últimos 3 mil anos, os 64
16
SUPERINTERESSANTE, ed. 243:36.
17
Excetuando-se os textos dos gráficos e dos boxes. Estes dados, no entanto, serão levados em
consideração em nossas análises.
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58
hexagramas chineses foram guia espiritual, manual de governo e fonte para a
ciência moderna. Conheça essa misteriosa história
18
.
Em fevereiro:
Lost e o fim da TV[:] A TV que você conhece vai acabar. O fenômeno Lost ajuda
a entender por que e aponta o que surgirá no lugar.
Deciframos 7 segredos da série![:] O significado dos números. O que a Dharma
faz na ilha. Quem são os Outros. E mais...
Lost[:] Boa parte da trama mais comentada da TV não está na TV. Existe só na
internet e depende do trabalho dos fãs. Isso porque a televisão que você conhece
está morrendo. Ser espectador não basta. Agora todos são autores.
Lost e o fim da TV[:] Um dos maiores sucessos da televisão vai destruir a
própria TV. Entenda como, saiba o que vai mudar e veja por que você será um
dos protagonistas desta história
19
.
Em março:
Espíritos[:] Para a ciência, eles não existem e pronto. Mas, então, por que tanta
gente afirma receber visitas dos mortos? Será que a resposta está apenas no
cérebro?
Espíritos[:] A crença no sobrenatural está marcada na história da maioria das
civilizações. Agora a ciência tenta achar uma explicação razoável para as
aparições de mortos.
Eles vêem espíritos[:] Para a ciência, ver e ouvir fantasmas não tem nada de
sobrenatural: tudo é criado pelo cérebro. Agora os cientistas tentam explicar por
que tanta gente, em diferentes épocas e civilizações, afirma ver espíritos
20
.
Em abril:
Esparta[:] Uma cidade tirânica, militarizada, intolerante? Ou o verdadeiro
berço da democracia e do Ocidente, injustiçado pela Históra? Saiba a verdade
sobre a cidade mais polêmica da Antiguidade.
A verdade sobre Esparta[:] O povo podia eleger seus políticos e as mulheres
tinham direitos. A cidade de lendas sanguinárias era muito mais do que você
imagina.
A outra Esparta[:] Ela era mais democrática do que se imagina e tão heróica
quanto as lendas contam. Conheça a verdade da cidade mais controversa da
18
SUPERINTERESSANTE, ed. 235: Capa, índice e p.41.
19
Id., ed. 236: Capa, índice e p.44.
20
Id., ed. 237: Capa, índice e p.53.
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59
Grécia antiga
21
.
Em maio:
A história secreta da Igreja[:] Os assassinos, santos, devassos e heróis que
fizeram a história da organização mais antiga do mundo: o Vaticano.
Lado B da igreja[:] Guerreiros, corruptos e santos. A Igreja tem um pouco de
tudo que aconteceu nos últimos 2000 anos de história. Ou você acha que o
Vaticano só se ocupou representando Cristo?
Vaticano[,] uma biografia não autorizada[:] Nenhuma história diz tanto sobre os
últimos 2000 anos deste planeta quanto a da Igreja. Pelos corredores do
Vaticano passaram reis, guerras, o melhor da arte e até alguns santos
22
.
E, finalmente, em junho:
Darwin[:] O homem que matou Deus[:] Há 150 anos, Darwin descobriu como a
vida pode existir sem a intervenção divina. Agora a Teoria da Evolução está
sendo usada para explicar mistérios ainda maiores – e as revelações são
assustadoras.
O homem que matou Deus[:] Darwin teve a idéia mais poderosa de todos os
tempos: a evolução é o mais próximo que chegamos de entender a vida sem a
intervenção divina. E essa idéia está cada dia mais forte.
Evolução da evolução[:] Uma idéia simples resolveu o mais complexo dos
mistérios: o sentido da vida. Agora cientistas usam Darwin para desvendar
mistérios maiores: da mente à origem do Universo. E o que eles encontraram é
assustador
23
.
É possível observar, portanto, os temas variam muito entre si. Este fato
editorial impõe uma aparente dificuldade. Por um lado, “ciência”, “científico” ou
“cientista” nem sempre são citados nominalmente. Por outro, algumas destas
reportagens dedicam-se explicitamente à divulgação de conceitos científicos. Este
contraste fica patente, por exemplo, quando comparamos os conteúdos das
edições de fevereiro e de junho, a primeira reportagem debruçando-se sobre os
meios de comunicação e o seriado televisivo Lost
24
, a última, sobre a teoria da
evolução em Charles Darwin e em neodarwinistas como Richard Dawkins.
21
Id., ed. 238: Capa, índice e p.64.
22
SUPERINTERESSANTE, ed. 239: Capa, índice e p.59.
23
Id., ed. 240: Capa, índice e p.60.
24
Lost é um seriado televisivo exibido nos EUA pela rede americana American Broadcasting
Company (ABC Inc.) desde 2004; no Brasil, são a Rede Globo de Televisão e o canal por
assinatura AXN que a transmitem.
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Se se adota um recorte rigorosamente lexical, ou seja, se se considera de
divulgação “científica” apenas uma matéria que apresente paradigmas e teorias
elaborados por indivíduos reputados “cientistas” ou, ainda, trabalhos produzidos
por instituições de pesquisa comumente representadas “científicas”, corre-se o
risco de reproduzir um preconceito sobre o que seja “ciência”, distorcendo-se o
discurso nativo. Ignorar uma reportagem que se dedique à compreensão da
televisão e do entretenimento contemporâneos seria limitar a ciência a uma série
arbitrária de temas logo de saída. Desse modo, ainda que seja senão mais fácil,
mas mais cômodo mobilizar exclusivamente uma matéria como a de junho para
acessar a representação de ciência presente em SUPER, corre-se o risco de uma
interpretação enviesada. Como, então, apreender o significado adquirido pela
ciência nesse discurso que, à primeira vista, se apresenta multifacetado?
Inicialmente, realizaremos uma etnografia para cada uma dessas
reportagens. Respeitando a temática e o ritmo interno dos textos, buscaremos,
conforme a proposta de Geertz, “[sort] out the structures of signification”
25
ali
presentes. Desse modo, será possível observar os matizes característicos das
matérias, evitando-se, além disso, uma interpretação monolítica e possivelmente
reducionista do discurso de SUPER. A partir destas análises, então, tenta-se uma
síntese em busca de uma “structure of signification” mais ampla, mas não por isso
desprovida dos detalhes que eventualmente emergirão nas interpretações
individuais.
25
De acordo com Geertz, a análise etnográfica consiste em “sorting out the structures of
signification (...) and determining their social ground and import” (GEERTZ, ibid.:9). Optamos
pelo texto em inglês nesta passagem, uma vez que a tradução para o português parece atribuir uma
margem de manobra analítica muito ampla ao investigador: “A análise é, portanto, escolher entre
as estruturas de significação (...) e determinar sua base social e sua importância” (id., 1989:19,
meu grifo).
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61
3.2.1.
Janeiro de 2007:
Como o sugere a capa da edição de janeiro de 2007, SUPER propõe-se
fornecer um relato sobre a história do I Ching: “A fascinante história do livro mais
antigo do mundo”
26
. O lide da matéria resume e sugere: “Nos últimos 3 mil anos,
os 64 hexagramas chineses foram guia espiritual, manual de governo e fonte para
a ciência moderna. Conheça essa misteriosa história”
27
. Partindo, então, da lenda
que teria dado origem ao livro no século 30 a.C., na China, a matéria segue o
percurso da obra durante todo esse tempo até o presente.
Pode-se dizer, o argumento da reportagem se desenvolve sobre dois eixos.
Por um lado, preocupa-se em introduzir o leitor ao texto do I Ching, não de
maneira exaustiva, mas fornecendo chaves de leitura para um eventual
aprofundamento. SUPER procura dissipar uma névoa de ignorância que paira
sobre o livro, admitindo existir ali uma “sabedoria oculta”
28
, que os hexagramas
são “enigmáticos”
29
e que algumas das interpretações presentes no próprio I
Ching para estes símbolos acabam por lhes aprofundar o “mistério”
30
. Ao ler a
reportagem, então, o leitor fica sabendo como “funciona”
31
o I Ching, e a revista
chega mesmo a disponibilizar um tutorial de consulta aos hexagramas
32
. Por outro
lado, a reportagem dá conta também da própria história da China até os dias de
hoje, uma vez que o aparecimento do I Ching estaria estreitamente vinculado ao
surgimento da “civilização chinesa”
33
:
O livro caminhou junto com a história da China. Ajudou a criar religiões
orientais, como o taoísmo, foi a principal fonte de inspiração do pensador chinês
Confúcio e serviu como elemento unificador do país durante o século 3 a.C.
34
26
SUPERINTERESSANTE, ed. 235: Capa.
27
Id., ibid.:41.
28
Id., ibid.:42. Para fins de clareza, segue uma citação mais extensa: “Em diversos impérios que
ocupavam o território da atual China, ninguém questionava o poder dos hexagramas – mas a
maneira de interpretar sua sabedoria oculta variou imensamente”.
29
Id., ibid., loc. cit. “O significado dos trigramas era relativamente simples (...). Dois símbolos
combinados, por outro lado, eram enigmáticos”.
30
Id., ibid., loc. cit. “O problema é que as tais explicações, na maior parte das vezes, são tão
confusas que só aprofundam o mistério”.
31
Id., ibid.:43, boxe.
32
Cf. o boxe “Os hexagramas em 6 passos” (p.43).
33
Id., ibid.:44, boxe.
34
Id., ibid.:42. Cf., além disso, o boxe “I Ching, o subversivo” (p.47), onde se discorre sobre o
livro após o Partido Comunista Chinês ter assumido o poder naquele país.
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62
Mais que o mero relato factual, contudo, é possível sugerir que a matéria
tenta atar estas duas histórias – a do I Ching e a da China – e esta cultura – a
“cultura oriental”
35
–, a princípio “misteriosas”, à história e à cultura ocidentais:
“Saiba por que algo escrito na China de 3 mil anos atrás continua tão atual”
36
, “[O
I Ching] Também deixou herança não apenas na matemática ocidental”
37
ou,
como já vimos no lide, “os 64 hexagramas chineses foram (...) fonte para a ciência
moderna”. É através da ciência, a propósito, que SUPER parece estender este
vínculo.
De acordo com SUPER, a relação complementar entre o yin e o yang – as
forças cósmicas que ensejariam a transformação contínua do universo –
fundamentaria a construção dos hexagramas do I Ching, o yin sendo representado
por linhas quebradas (- -) e o yang, por linhas inteiras (–). O livro, então, é
apresentado como uma “primitiva tabela binária
38
ou um “rudimento neolítico de
ciência da computação”
39
, isto é, como um precursor do código binário. Este
último, aliás, teria uma origem precisa e bem delineada, diferentemente do I
Ching, que, reza uma lenda, surgiu há 30 séculos:
Esse sistema [o código binário] foi cunhado no século 18 pelo matemático
alemão Gottfried Wilhelm Leibniz, mas sua origem, segundo o próprio Leibniz, é
muito mais antiga. Está em um livro chinês de adivinhação e consulta espiritual
(...): o I Ching, o Livro das Mutações
40
.
Leibniz, por sua vez, além de matemático, é apresentado como “o primeiro
grande cientista europeu a se interessar pela civilização da China”
41
. Aos poucos,
então, o I Ching perde o seu estatuto “misterioso” e é acomodado dentro de uma
baliza que, se não é conhecida com grande detalhe pelo leitor, soa-lhe ao menos
familiar. Migra-se, assim, “da filosofia antiga para os braços da ciência
moderna”
42
. Neste sentido, é significativo que, em nenhum momento, Leibniz
seja reputado filósofo, noção bastante comum a seu respeito, mas matemático,
35
Id., ibid.:46. “Traços da cultura oriental, como o budismo, o yoga e o I Ching, entram nessa
onda, assim como o Santo Daime e seitas neopentecostais”.
36
Id., ibid.: Índice.
37
Id., ibid.:42.
38
Id., ibid.:49.
39
Id., ibid.:49.
40
Id., ibid.:42, grifo no original.
41
Id., ibid., loc. cit.
42
Id., ibid.:46.
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63
cientista ou, ainda, “cortesão, diplomata e acadêmico”
43
.
A partir daí, SUPER elenca uma série de associações entre o I Ching e a
cultura e a ciência ocidentais contemporâneas, seja na genética: “Pode ser só
coincidência matemática – assim como as complicadíssimas semelhanças entre os
64 hexagramas e as 64 possíveis combinações de proteínas do código genético”
44
;
seja na psicanálise: “‘O I Ching está mais ligado ao inconsciente que à atitude
racional da consciência’, escreveu em 1949 o psicanalista Carl Jung, que usava o
livro em sessões de análise”
45
; ou, principalmente, na física quântica: “Para o
físico Niels Bohr, a obra está na raiz da física quântica, um dos principais pilares
da ciência atual”
46
ou “No início do século 20, com os estudos de cientistas como
Albert Einstein, James Maxwell e Niels Bohr, a coisa ficou ainda mais parecida
com o I Ching
47
.
O estilo com que SUPER aponta algumas destas conexões também é
simbólico de uma transição entre uma realidade desconhecida e uma outra,
reconhecível. Cria-se uma espécie de suspense, de anticlímax, seguido de uma
abrupta revelação. Assim, por exemplo, quando SUPER informa ao seu leitor que
Carl Jung consultava o I Ching, não o faz de uma vez, mas através de uma
digressão, contando um breve episódio, aparentemente redundante: “Sentado no
chão do pátio, à sombra de uma pereira centenária, o sábio lança varetas e
consulta os oráculos do I Ching
48
. De início anônimo, o personagem tem sua
identidade revelada pouco depois:
A cena descrita acima não se passa na China antiga, mas em um pequeno castelo
na cidadezinha de Bollingen, na Suíça, durante o verão de 1920. O sábio sentado
no chão é o psiquiatra suíço Carl Gustav Jung, um pioneiro no estudo do
inconsciente humano no século 20
49
.
Algo semelhante ocorre quando se detalha a relação de Niels Bohr, e da
física quântica, com os hexagramas contidos no livro: “Niels Bohr (1885-1962),
um dos pais da física quântica, sabia das semelhanças entre sua ciência e certo
livro antigo da China”. Curiosamente, trata-se do último parágrafo da reportagem
43
Id., ibid.:46.
44
Id., ibid.:49.
45
Id., ibid.:42.
46
Id., ibid.:49.
47
Id., ibid., loc. cit., grifo no original.
48
Id., ibid.:48, boxe.
49
Id., ibid., loc. cit.
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e, ainda que retórica, há ali uma lacuna a preencher. Afinal, que “certo livro
antigo” é esse? A peripécia e a resposta vêm logo adiante, encerrando a matéria:
Bohr ajudou a derrubar a noção de que as leis que regem o Cosmos são
independentes da matéria - em vez disso, hoje se acredita que essas leis emanam
da própria energia em mutação que forma o mundo. Idéia que pode ser resumida
no seguinte lema: “As leis naturais não são forças externas às coisas, mas
representam a harmonia e o movimento inerente às próprias coisas”. Note bem:
essa frase não saiu de um livro de física. É um trecho do I Ching
50
.
Se, conforme sugerimos acima, a reportagem examinada assenta sobre
dois eixos, pode-se dizer também que ambos estariam subordinados a uma
tentativa de explicação sobre o que seja o I Ching. Desse modo, ao contrário do
que poderia insinuar uma leitura casual da capa da revista, por exemplo, a matéria
não consistiria apenas numa relação de fatos históricos. Pode-se perceber uma
postura investigativa permeando o fio do argumento. Tomado num primeiro
momento como uma realidade enigmática, o livro vai aos poucos sendo
esquadrinhado e, enquanto enigma, resolvido. A solução encontrada por SUPER
parece ser uma aproximação entre realidades tomadas comumente como distantes,
algo como uma solução de continuidade histórica.
Aquela história “misteriosa” é, afinal, um segmento da história do próprio
leitor, uma vez que o I Ching estaria nas origens do código binário e “sem esses
dois números [zero e um] em combinações intermináveis, o mundo de hoje seria
chatíssimo”
51
ou “a civilização digital de hoje em dia não existiria”
52
. Ademais,
as correspondências apontadas entre o que é representado como uma “sabedoria
oculta” e a “ciência atual” – a genética, a psicanálise ou a física quântica, por
exemplo – parecem desmitificar retroativamente o I Ching e legitimá-lo, ao menos
parcialmente, como uma teoria explicativa da realidade: “As novas teorias [de
Einstein, Maxwell e Bohr] pintaram um Universo parecido com o proposto pelos
místicos chineses”
53
. Ainda que dedique mais espaço a esta solução de
continuidade, deve-se atentar para o fato de que SUPER chega a ensaiar uma
explicação de descontinuidade, onde o I Ching estaria inserido num contexto de
relativização e ressignificação das tradições:
50
Id., ibid.:49, grifo no original.
51
Id., ibid.:42.
52
Id., ibid.:49.
53
Id., ibid.:49.
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Hoje, o interesse dos ocidentais pelo I Ching pode ser explicado pelo fenômeno
conhecido como pós-modernismo. Em vez de seguir religiões tradicionais que
fornecem verdades únicas, cada vez mais se opta por crenças exóticas, sem
normas rígidas e que não exigem engajamento. Traços da cultura oriental, como
o budismo, o yoga e o I Ching, entram nessa onda, assim como o Santo Daime e
seitas neopentecostais
54
.
A publicação, entretanto, não desenvolve esta perspectiva, privilegiando a
recapitulação histórica que liga, mas sem os igualar, presente e passado,
resolvendo o último, misterioso, em função do primeiro, uma realidade que, pelo
menos no espaço desta reportagem, não parece ser problematizada. Ou melhor, o I
Ching não é apresentado tal como é apropriado nos dias de hoje, mas como uma
prática ou símbolo pretérito bem demarcado, um “traço” “exótico” que pode ser
mobilizado no âmbito de um “pós-modernismo”, de um presente. Talvez seja
possível insinuar, então, que se trate de uma explicação evolucionista, onde, na
tentativa de se compreender um I Ching de “hoje” – o I Ching que entraria na
onda do “pós-modernismo” –, não se o insere num sistema simbólico de “hoje”.
Busca-se, ao contrário, interpretar o I Ching de “ontem” a partir de um sistema
simbólico de “hoje”, mais precisamente, a partir daquilo que é representado como
“ciência moderna”
55
ou como “ciência atual”
56
. Nesses termos, conforme Roberto
DaMatta
57
,
(...) a sociedade que não conheço, que percebo como estranha a mim e aos meus
que, no entanto, é minha contemporânea, fica reduzida nesta forma de
pensamento a uma etapa pela qual minha sociedade já passou
58
.
Disso não se deve depreender que a reportagem de SUPER seja um
manifesto evolucionista, uma vez que existem nuances compreensivas no texto,
por exemplo, os depoimentos do monge budista brasileiro Gustavo Alberto Corrêa
Pinto. Ainda que suas falas limitem-se a aspectos doutrinários – “‘linhas inteiras
representavam o céu, enquanto linhas interrompidas indicavam a terra’”
59
– ou
históricos – “‘atacado, proibido e perseguido, o I Ching só não desapareceu na
54
Id., ibid.:46, grifos no original.
55
Id., ibid.:41; 46.
56
Id., ibid.:49.
57
DAMATTA, Roberto. Relativizando: uma introdução à antropologia social. Rio de Janeiro:
Rocco, 1987.
58
Id., ibid.:98
59
SUPERINTERESSANTE, ibid.:43.
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66
China por ter sido preservado na clandestinidade, pelo uso popular’”
60
–, ainda
assim, por si só, a presença no texto de um brasileiro que é monge, além de
budista, já dá testemunho do que a própria SUPER entende por “pós-
modernismo”.
Por seu turno, as participações do lingüista Richard Rutt e do sinólogo
Steve Marshall, se sugerem uma preocupação da revista com os possíveis
significados do livro para os chineses sob a dinastia Chou, esta parece estar
subordinada à aura de mistério ao redor do I Ching, o que, pode-se dizer, acabaria
por alimentar aquela tônica evolucionista: “‘os textos eram tão ambíguos que
praticamente qualquer interpretação podia ser dada a eles’”
61
ou “‘ele [o I Ching]
tem uma narrativa oculta por trás de muitas de suas sentenças enigmáticas’”
62
.
3.2.2.
Fevereiro de 2007:
O tema da reportagem do mês de fevereiro de 2007 são as transformações
por que viriam passando as mídias, especialmente a televisão, desde o advento da
popularização da internet nos anos 1990 ou, numa perspectiva mais ampla, as
mudanças ocorridas no modus operandi da indústria da comunicação e do
entretenimento desde a democratização das tecnologias da informação, que, pelo
menos nos países mais ricos, começaria a se acentuar a partir de fins dos anos
1980. Neste sentido, segundo Henry Jenkins
63
, as relações de produção e de
consumo nessa área se caracterizam atualmente por uma maior horizontalidade
entre as grandes empresas produtoras e o seu consumidor final, condição que ele
denomina “the horizontal integration of the entertainment industry”
64
. Assim,
ainda conforme o autor, a intervenção do consumidor sobre o produto, sobre o
conteúdo que consome só fez crescer, tornando-se bastante fluida, portanto, a
fronteira entre produtor, anunciante, vendedor e comprador, este último cada vez
60
Id., ibid.:47.
61
Id., ibid.:45.
62
Id., ibid.:46.
63
JENKINS, H. Fans, bloggers and gamers: exploring participatory culture. Nova Iorque: New
York University Press, 2006. A propósito de Henry Jenkins, ele ocupa a cátedra Deflorz Professor
of Humanities no Massachussets Institute of Technology (MIT), e é o fundador e diretor do
Comparative Media Studies Program nesta mesma instituição (id., ibid.: Quarta capa).
64
Id., ibid.:147.
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67
mais atuante:
New technologies are enabling average consumers to archive, annotate,
appropriate, and recirculate media content. Powerful institutions and practices
(law, religion, education, advertising, and politics, among them) are being
redefined by a growing recognition of what is to be gained through fostering – or
at least tolerating – participatory cultures
65
.
Parece ser neste contexto, então, que SUPER afirma já na capa da edição:
“Lost e o fim da TV[:] A TV que você conhece vai acabar. O fenômeno Lost
ajuda a entender por que e aponta o que surgirá no lugar”
66
; mas também no
índice:
Lost[:] Boa parte da trama mais comentada da TV não está na TV. Existe só na
internet e depende do trabalho dos fãs. Isso porque a televisão que você conhece
está morrendo. Ser espectador não basta. Agora todos são autores
67
.
E no lide da matéria: “Lost e o fim da TV[:] Um dos maiores sucessos da
televisão vai destruir a própria TV. Entenda como, saiba o que vai mudar e veja
por que você será um dos protagonistas desta história”
68
.
Desse modo, é possível sugerir que a reportagem se assemelhe a um
estudo de caso, onde a série Lost adquiriria um valor paradigmático na
compreensão das alterações sofridas pela televisão nos últimos anos. É através da
análise das características da produção, distribuição e recepção deste programa
que SUPER tentará apresentar as inflexões responsáveis pelo que seria o fim da
televisão como esta é atualmente conhecida; seu lugar seria ocupado pela “‘TV
2.0’”
69
, por uma “nova TV”
70
. Trata-se, portanto, de uma narrativa
revolucionária: há uma tradição, no caso, uma maneira de representar a televisão
enquanto um meio de comunicação, que, atacada por uma outra, nova, irá
desvanecer, sendo substituída. Quando introduz seu argumento, a própria SUPER
sugere: “Para entender melhor essa revolução, voltemos ao dia 9 de novembro de
2006, logo após a exibição do 6º episódio da 3ª temporada de Lost
71
.
65
Id., ibid.:1.
66
SUPERINTERESSANTE, ed. 236: Capa, grifo no original.
67
Id., ibid.: Índice.
68
Id., ibid.:44.
69
Id., ibid., loc. cit.
70
Id., ibid.:44.
71
Id., ibid.:46, meu grifo; grifo no original.
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68
Além disso, o próprio estilo de SUPER, por vezes, acaba por dar cores
mais vívidas a esta perspectiva de ruptura. Depois de discorrer durante um
parágrafo com bastante minúcia sobre alguns aspectos da trama de Lost, por
exemplo, o texto inicia um novo parágrafo e anuncia: “Detalhe: quem apenas
assiste à série na TV nunca ouviu falar nesse tal Jacob Vanderfield”
72
. Mais
adiante, numa fórmula bastante parecida, inicia-se novo parágrafo “E surpresa: as
inscrições [em um mapa] respondiam mistérios cruciais da ilha”
73
. Noutro
momento, quando se discute sobre a pirataria e, mais precisamente, sobre os
mecanismos de defesa utilizados pelas empresas produtoras de séries como Lost,
SUPER conclui: “Ah, claro: não adianta nada”
74
, uma vez que o sinal emitido
pela ABC Inc. poderia ser sintonizado ao vivo através de um computador, “Isso
mesmo: ao vivo”
75
. Há outras passagens similares
76
, mas talvez nenhuma tão
significativa quanto esta, que prenuncia uma explosão literalmente: “Quando isso
virar realidade, poderemos estar perto da próxima bomba: o fim dos canais de
TV”
77
.
Assim como o seriado Lost é apontado por SUPER como uma via
explicativa para o “fim da TV”, o site YouTube
78
, por seu turno, é indicado pela
publicação como um modelo alternativo de televisão: “Se a interatividade de Lost
prepara o fim da ‘TV 1.0’, o YouTube é o grande protótipo da ‘TV 2.0’”
79
. Então,
mesmo adotando uma tônica iconoclasta – “o fim da TV”, “um dos maiores
sucessos da televisão vai destruir a TV” etc. –, a reportagem não deixa de
assinalar um caminho possível, senão provável, para os modos de transmitir
informação – e entretenimento – que surgirão a partir da falência daquela forma
antiga.
Não se poderia dizer, entretanto, que SUPER chegue a fornecer respostas
para todas as perguntas que levanta. Isto parece ficar evidente na última subseção
72
Id., ibid., loc. cit.
73
Id., ibid.:47.
74
Id., ibid.:48.
75
Id., ibid., loc. cit.
76
Cf., por exemplo, “Mas nada deu tanta voz a tanta gente quanto o maior fenômeno de mídia do
século 21. Ele mesmo: o YouTube” (p.49, grifo no original).
77
Id., ibid.:50.
78
O YouTube é um site na internet que disponibiliza o download e o upload gratuito de vídeos por
seus usuários. Desde 2005, de acordo com a própria SUPER, “a ferramenta ganhou tanta
notoriedade que, em pouco mais de um ano, se transformou numa marca conhecida em
praticamente todos os cantos do mundo” (p.49).
79
Id., ibid.:49, grifo no original.
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69
da matéria, chamada “E a grana?”. Nela, a publicação faz referência às
dificuldades de financiamento suscitadas pela “quebra de barreiras”
80
decorrente
da “invasão da internet aos domínios da TV”
81
. Com a diversificação da oferta de
emissões televisivas e mesmo com o advento de serviços como o YouTube, onde
cada espectador é um potencial produtor de conteúdo, os anunciantes estariam
investindo cada vez menos recursos no entretenimento audiovisual realizado para
televisão, já que vai se tornando mais e mais simples contornar o tempo de
publicidade inserido no decorrer de uma atração, não se evitando apenas os
reclames, mas também ao se assistir a programas concorrentes:
Como o espectador já tem dezenas de opções, não hesita em mudar de canal
quando entram os comerciais. E os anunciantes fogem. O buraco da internet é
ainda mais embaixo, porque ninguém imaginou até agora um jeito eficiente de
fazer dinheiro com os sites de compartilhamento de vídeo, e muito menos com a
troca de arquivos
82
.
É este “buraco”, aliás, que SUPER deixa em aberto ao fim da matéria.
Apesar de tomar em consideração o importante papel que passam a desempenhar
os “nichos de mercado”
83
, ou seja, aquele público menos numeroso que
acompanha mais de perto e seletivamente determinados produtos e atrações, a
publicação não apresenta uma saída para o impasse da evasão dos anunciantes. E
ainda que se vislumbre a regulação ulterior de uma situação atualmente incerta,
pode-se dizer que colocar uma questão, mais precisamente um “mistério”, sem
solução no encerramento da reportagem é significativo desta abordagem
problematizadora de SUPER:
O futuro da publicidade e o do entretenimento andam de mãos dadas. Se um
parar, o outro empaca. E, por enquanto, a solução para problemas como o do
YouTube
84
está longe. A TV está mudando, mas o que será dela é um mistério
ainda mais difícil do que responder o que, afinal de contas, está acontecendo na
ilha. Alguma teoria?
85
Aqui cabe inserir uma nuance na análise da matéria. Se o argumento de
SUPER parece realmente tender para a problematização, este último parágrafo se
80
Id., ibid.:48.
81
Id., ibid., loc. cit.
82
Id., ibid.:51.
83
Id., ibid., loc. cit.
84
Segundo a própria SUPER, o YouTube “dá prejuízo de US$ 500 mil todo mês” (p.51).
85
Id., ibid.:51.
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70
refere por analogia a um outro mistério, isto é, a condição de ignorância que
atingiria a maioria das pessoas que assistem a Lost, que não saberiam
precisamente o que se passa na ilha onde se desenrola a ação do seriado
86
. Neste
sentido, o último parágrafo da reportagem serviria como uma “deixa” para uma
espécie de anexo que segue a reportagem: “7 segredos de Lost[:] Informações
extras dos produtores e teorias de fãs ajudam a desvendar alguns mistérios”
87
.
Esta extensão consistiria numa tentativa da publicação de encaixar, ela mesma,
algumas peças “no quebra-cabeça da série”
88
, como também está anunciado na
capa da revista: “Deciframos 7 segredos da série!”.
Desse modo, se a ênfase que havia predominado até ali era a da dúvida,
nesta parte abre-se espaço para o esclarecimento, para as certezas. No entanto,
como se salientou, trata-se muito mais de um matiz da matéria como um todo.
Apesar deste “anexo” ocupar um espaço considerável da reportagem de capa
(quatro páginas), os únicos argumentos desenvolvidos aqui seriam os necessários
para que se decifrassem aqueles sete segredos do enredo
89
, não havendo, portanto,
uma continuidade discursiva entre esta parte do texto e aquela primeira, que versa
sobre o “fim” da televisão.
3.2.3.
Março de 2007:
A reportagem do mês de março de 2007 toma os “espíritos”
90
, o
“sobrenatural”
91
, enfim, os “chamados fenômenos paranormais”
92
como temática.
A princípio, o fio condutor da matéria parece consistir numa tensão – ou até numa
incompatibilidade – que se estabeleceria entre dois tipos de discurso: por um lado,
um discurso representado como científico, apoiado especialmente na psiquiatria e
na neurologia, e, por outro, um discurso supostamente mítico-religioso, mais
86
Aliás, esta fórmula “o que, afinal de contas, está acontecendo na ilha” já havia aparecido duas
vezes antes da conclusão da reportagem. Cf. p.44, §3 e p.46, §6.
87
Id., ibid.:52. Este segmento se estende por quatro páginas.
88
Id., ibid.:47.
89
Para fins de clareza, são eles: “O significado dos números”, “As origens da Dharma”, “As
experiências na ilha”, “Quem são os Outros”, Uma civilização perdida”, “O chefe supremo dos
Outros” e “As infiltradas”. Cf. pp.52-5.
90
SUPERINTERESSANTE, ed. 237: Capa e passim.
91
Id., ibid.: Índice.
92
Id., ibid.:56.
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71
notadamente o espiritismo. Talvez seja possível expandir este antagonismo, uma
vez que SUPER contraporia, em verdade, um discurso que seria epistemológico a
um outro, dogmático.
Isto fica sugerido logo no reclame da capa: “Espíritos[:] Para a ciência,
eles não existem e pronto. Mas, então, por que tanta gente afirma receber visitas
dos mortos? Será que a resposta está apenas no cérebro?”
93
. A chamada do índice
também expressa esta condição: “A crença no sobrenatural está marcada na
história da maioria das civilizações. Agora a ciência tenta achar uma explicação
razoável para as aparições de mortos”
94
. O lide, contudo, apresenta uma inflexão,
onde já se encontraria uma resolução definitiva para esta oposição ou, pelo menos,
onde se anteciparia uma primazia de um dos dois registros sobre o outro:
Para a ciência, ver e ouvir fantasmas não tem nada de sobrenatural: tudo é
criado pelo cérebro. Agora os cientistas tentam explicar por que tanta gente, em
diferentes épocas e civilizações, afirma ver espíritos
95
.
Ora, se a capa e o índice de SUPER insinuavam uma espécie de
equivalência heurística entre aquilo que a “ciência” propõe e aquilo que “tanta
gente afirma”, já não se poderia dizer o mesmo aqui. Quando se admite
categoricamente que “tudo é criado pelo cérebro”, ou seja, quando a publicação
assume essa premissa, é provável que se enquadrem outras possíveis explicações a
ela. E, à primeira vista, é o que acontece. A dúvida que pairava na compreensão
dos “fenômenos tidos como paranormais”
96
– dúvida que servia de fiel entre duas
interpretações distintas para uma mesma realidade –, isto é, o “mistério”
97
que se
havia colocado de início, ao que tudo indica, seria rapidamente resolvido. Esta
posição é retomada a seguir, logo nos primeiros momentos da reportagem, dessa
vez com mais pormenor:
Para a ciência, espíritos não existem. Nossa personalidade, nossa inteligência,
nosso caráter, tudo é determinado pelas conexões cerebrais. Quando morremos,
as células têm o mesmo fim, sem deixar possibilidade para alma ou fantasmas
aflorarem
98
.
93
Id., ibid.: Capa.
94
Id., ibid.: Índice.
95
Id., ibid.:53.
96
Id., ibid.:57.
97
Id., ibid.: 56; 58.
98
Id., ibid.:54.
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72
A princípio, então, a proposta de SUPER seria eminentemente
problematizadora: “Ainda não existe uma explicação definitiva do fenômeno da
mediunidade, mas há conclusões suficientes para destruir vários mitos sobre o
tema”
99
. Trata-se, portanto, de apresentar explicações que desfaçam mitos
100
acerca da “paranormalidade”
101
. Entretanto, é importante notar que, embora
desconhecida, presume-se uma “explicação definitiva” a partir de uma perspectiva
científica; aliás, é significativo que se retorne a este ponto adiante na reportagem,
no último parágrafo do texto: “Enquanto uma explicação definitiva não aparece,
quem acredita ver espíritos prefere tentar levar a vida normalmente (...)”
102
.
Aqui, esta preocupação com um esclarecimento definitivo parece informar
sobre a própria maneira de SUPER apreender a postura intelectual característica
do fazer científico. Subentendendo uma “explicação definitiva” para uma
realidade, acaba-se por subentender também que as outras elucubrações e
perspectivas sejam parciais, não tanto no sentido de que sejam falíveis ou
refutáveis, mas de que consistam em etapas, em parcelas que, eventual ou
idealmente, levariam a um ponto de vista que englobaria um fenômeno em sua
totalidade. Parece ser com essa orientação, a propósito, que a matéria busca
apresentar a destruição de preconceitos que cercam a paranormalidade. O primeiro
deles, por exemplo, é “o de que pessoas que afirmam ver espíritos são
malucas”
103
. Através da divulgação dos resultados obtidos numa pesquisa
realizada por um psiquiatra, Alexander Moreira de Almeida, da Universidade
Federal de Juiz de Fora, descobre-se
104
que
os médiuns que relatavam incorporar espíritos com uma freqüência maior eram
os mais ajustados socialmente e também aqueles que menos tinham sintomas de
transtornos psiquiátricos
105
.
99
Id., ibid., loc. cit.
100
A expressão “desfaçam mitos” aqui empregada é derivada da seguinte passagem: “Foi um
engenheiro do próprio escritório (...) que desfez o mito: as aparições eram, na verdade, uma reação
do globo ocular, que vibrava influenciado pela freqüência de infra-som de um ventilador (...)”
(p.58, meu grifo).
101
Id., ibid.:58.
102
Id., ibid.:61.
103
Id., ibid.:54.
104
O verbo “descobrir” aqui empregado foi derivado da seguinte passagem: “Almeida descobriu
que pessoas bem instruídas e ocupadas formavam sua amostra” (p.54, meu grifo).
105
Id., ibid., loc. cit.
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73
Assim, segundo SUPER, as experiências mediúnicas nada teriam que ver
com um “limite entre a loucura e a sanidade”
106
. E aqui talvez seja interessante
chamar a atenção para o seguinte: a própria SUPER parece adotar estes dados
como uma explicação, não se limitando a divulgá-los. Isto fica mais evidente
quando se atenta para algumas citações que permeiam a reportagem como se
fossem boxes. Nestes depoimentos de indivíduos que teriam vivenciado episódios
de paranormalidade, ilustra-se a autonomia do sobrenatural ante o contexto social
e psíquico dos depoentes: “Regina Braga, de 52 anos, secretária-executiva.
Católica, começou a seguir o espiritismo aos 17 anos”
107
, “Edson Ogata, 31 anos,
cabeleireiro, procurou ajuda na doutrina espírita”
108
, “Margareth Pummer, 48
anos, advogada e gerente de departamento de qualidade e meio ambiente. Segue a
doutrina espírita há 17 anos e hoje é médium”
109
; e mesmo ante a própria fé de um
deles: “Maurício Casagrande, de 31 anos, administrador e engenheiro eletricista
especializado na área de telecomunicações. Ateu”
110
.
Desse modo, a partir de uma descoberta negativa, a reportagem
empreenderia um esforço explicativo positivo: ora, se o discurso psiquiátrico
sugere que não há necessariamente uma condição desajustada
111
– social e
psíquica – por detrás destes fenômenos, como explicá-los, uma vez que eles
continuariam sendo relatados? É possível dizer que a resposta para esta indagação
viria em dois momentos distintos dentro da matéria: no boxe “O que diz o
espiritismo”
112
e na subseção “O que diz a ciência”
113
.
O tom do boxe é basicamente compreensivo, isto é, busca-se informar o
leitor acerca das representações dos espíritas a respeito de sua própria religião,
como exemplificam os trechos “Seguidores acreditam que espíritos vivem em
simbiose com os vivos”
114
, “Para a doutrina, a comunicação só acontece por causa
106
Id., ibid., loc. cit. Segue uma citação mais extensa: “A notícia é um alívio para quem sofre a
pressão de viver experiências mediúnicas e se pergunta o tempo todo onde está o limite entre a
loucura e a sanidade”.
107
Id., ibid.:56.
108
Id., ibid.:58.
109
Id., ibid.:60.
110
Id., ibid.:55. Cabe notar que, na errata do mês seguinte, SUPER esclarece: “Maurício
Casagrande não é ateu, mas católico não praticante” (id., ed. 238:12).
111
O adjetivo “desajustada” aqui empregado foi derivado da seguinte passagem: “Esses dados
mostram que não são pessoas desajustadas socialmente” (p.54, meu grifo).
112
Id., ibid.:57, boxe.
113
Id., ibid.:58.
114
Id., ibid.:57, boxe.
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74
de uma troca do que Allan Kardec (...) chamou de ‘fluido’”
115
e “Segundo a
religião, existem vários mundos em diferentes estágios de evolução”
116
, este
último sendo acompanhado mais adiante pela citação de um depoimento da
presidente da Federação Espírita de São Paulo, Silvia Cristina Puglia.
Desse modo, o boxe mostraria como a visão de mundo dos espíritas
preencheria aquela lacuna na compreensão dos fenômenos paranormais: “É por
causa de perguntas sem respostas satisfatórias que doutrinas como o espiritismo
fazem adeptos”
117
ou “Para o espiritismo, não há dúvida: espíritos existem e
vivem em simbiose com pessoas de carne e osso”
118
. Mesmo assim, há ali, nos
dois últimos parágrafos do boxe mais precisamente, a sugestão de que uma das
noções presentes no dogma espírita, o “fluido”, poderia ser compreendida através
de uma perspectiva alternativa, como a da física:
“Os espíritos revelaram a Kardec que a natureza material é uma coisa fluida,
que tem o mesmo princípio da matéria densa, mas é mais sutil”, afirma o físico
espírita Alexandre Fontes da Fonseca, da USP. “Há hipóteses tratando os
fluidos como ondas eletromagnéticas.”
Os fluidos seriam a base da explicação para a materialização das assombrações
e fenômenos como as portas que abrem sozinhas, os copos que mexem e os
ruídos inexplicáveis
119
.
Não deixa de ser simbólico que, logo na página seguinte, inicie-se a
subseção “O que diz a ciência”. Como poderemos ver adiante, apesar de serem
dois momentos tão diferentes que esta diferença chega a ser graficamente
destacada, talvez seja lícito sugerir que exista um “gancho” entre eles. Esta
subseção consistiria na exposição de um elenco de experimentos que teriam
levado à tonificação de uma interpretação neurológica para os fenômenos
paranormais, representando o que, logo no início da matéria, SUPER chama
“estudos científicos sérios”
120
. Conforme a publicação, “no mundo das hipóteses
médicas, os relatos de retorno dos mortos à Terra não passam de ficção criada pela
máquina chamada cérebro”
121
. Desse modo, são relacionadas algumas “possíveis
115
Id., ibid., loc. cit.
116
Id., ibid., loc. cit.
117
Id., ibid., loc. cit.
118
Id., ibid., loc. cit.
119
Id., ibid., loc. cit.
120
Id., ibid.:54. “(...) só nos últimos 20 anos é que o assunto saiu dos filmes de terror e voltou a
ocupar as páginas de estudos científicos sérios”.
121
Id., ibid.:58.
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75
soluções do mistério”
122
. A primeira delas seria a epilepsia: “desde os primeiros
estudos, a epilepsia virou explicação para manifestações de mediunidade, idéia
que é seguida até hoje”
123
. Além disso, há as freqüências sonoras: “as aparições
eram, na verdade, uma reação do globo ocular, que vibrava influenciado pela
freqüência de infra-som de um ventilador”
124
. Também se desfazem mitos através
do estudo de “estados graves”
125
de fome e de sono; de acordo com a neurologista
consultada por SUPER, Kátia Lin, da Unifesp: “Nessas situações, os neurônios
funcionam de forma anormal, criando uma realidade paralela”
126
; ou ainda, da
pesquisa com campos magnéticos:
Desde a década de 1980, o neurologista canadense Michael Persinger faz testes
com ondas eletromagnéticas em pessoas normais. (...) À medida que o
pesquisador estimula o lobo temporal, os voluntários têm sensações de fazer
inveja a qualquer usuário de alucinógenos (...)
127
.
Desse modo, tende-se a reduzir os episódios de paranormalidade a
alucinações com uma origem pontualmente delineada, o cérebro: “se o cérebro é a
chave para as alucinações, os cientistas se dedicam agora a saber quais circuitos
movem essa engrenagem”
128
. Neste sentido, aquela “explicação definitiva” é
apenas retardada por dificuldades técnicas:
“Quando o bebê está sendo formado, bilhões de células embrionárias migram
para formar 6 camadas do córtex”, afirma a neurologista Elza [Yacubian, da
Unifesp]. “Nem a melhor ressonância magnética consegue detectar falhas nesse
nível”
129
.
E, ainda assim, já seria possível balizá-la antecipadamente: “Ou seja, para
a neurologia, ver espíritos é resultado de uma disfunção cerebral ainda não
diagnosticada”
130
.
SUPER, então, parece adotar uma postura tendencialmente positivista na
compreensão dos fenômenos paranormais. “Tendencialmente positivista” não no
122
Id., ibid., loc. cit.
123
Id., ibid., loc. cit.
124
Id., ibid., loc. cit.
125
Id., ibid., loc. cit.
126
Id., ibid., loc. cit.
127
Id., ibid.:61.
128
Id., ibid.:58-60.
129
Id., ibid.:58.
130
Id., ibid.:61.
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76
sentido de que a publicação tenha aspirações normativas para a realidade com esta
reportagem
131
; mas no sentido mais estrito de que ali se valorizem as ciências
como uma fonte de explicações para a realidade que substituiria as explicações de
cunho religioso ou teológico. Estas últimas, contudo, não seriam
desdenhosamente afastadas, ao menos não explicitamente, mas progressivamente
preteridas:
A possessão por deuses e demônios aparece desde 2000 a.C. O Tratado do
Diagnóstico Médico e do Prognóstico, um conjunto de 40 pedras babilônicas
dedicadas à medicina, descreve as alucinações auditivas e as ausências súbitas
com um caráter sobrenatural. (...) Com o advento do cristianismo, os inúmeros
deuses deixaram de ser a causa para esses fenômenos. Surgiram as explicações
naturais, como a de que a Lua provocava o aquecimento da Terra e isso faria o
cérebro derreter, gerando as crises. Na Idade Média, quem tinha alucinações era
considerado herege. (...). Hoje, os espíritos inspiram todo um gênero de cinema –
os filmes de terror –, sem falar em contos da literatura universal, novelas e
conversas em família. Com tantas histórias distantes, porém parecidas, é muito
fácil acreditar que há algo além ao nosso redor.
Apesar de tantos relatos semelhantes, só nos últimos 20 anos é que o assunto
saiu dos filmes de terror e voltou a ocupar as páginas de estudos científicos
sérios
132
.
Assim, como se desloca da apresentação de uma visada religiosa para o
que seriam perspectivas científicas, o argumento de SUPER parece ser refratário
ao que poderíamos chamar uma “não-explicação”, isto é, não haveria um vácuo de
significado entre os dois tipos de discurso. Isto talvez torne razoável sugerir que,
além de “tendencialmente positivista”, o texto da matéria seria também
tendencialmente evolucionista. Pôde-se ver, num primeiro momento, o
sobrenatural é compreendido através de um ponto de vista dogmático – o
espiritismo ou “doutrinas como o espiritismo” –, e, adiante, a partir de “hipóteses
científicas”. Dessa maneira, a reportagem não se pautaria tanto por uma relação
conflituosa entre religião e ciência, mas por uma dinâmica processual de
aperfeiçoamento interpretativo e conceitual que levaria da primeira à segunda e,
daí, possivelmente, até uma “explicação definitiva”. Esta é uma posição que
guarda semelhança com as considerações que Émile Durkheim, por exemplo, um
cientista cuja obra seria dotada tanto de um positivismo quanto de um
evolucionismo, tece acerca de um suposto conflito entre a religião e a ciência, na
131
Foge ao escopo da presente discussão, ademais, tentar detectar quaisquer motivações ou
interesses particulares a orientar a realização das reportagens de SUPER.
132
Id., ibid.:54, grifo no original.
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77
conclusão de sua obra As formas elementares da vida religiosa
133
:
De uma maneira geral ela [a ciência] apresenta, em todos os seus passos, um
espírito crítico que a religião ignora (...). Mas estes aperfeiçoamentos
metodológicos não bastam para diferenciá-la da religião. Uma e outra, sob este
aspecto, perseguem o mesmo fim; o pensamento científico não é senão uma
forma mais perfeita do pensamento religioso. Portanto, parece natural que o
segundo se apague progressivamente diante do primeiro, na medida em que este
se torna mais apto a dar conta da tarefa
134
.
Deve-se atentar, no entanto, o argumento da matéria não seria
absolutamente linear, mas também tendencialmente linear. Efetivamente, há
nuances a partir das quais SUPER reintroduz problemáticas no desenvolvimento
do texto. Assim, por um lado, se “para a ciência”, como já vimos, “espíritos não
existem”, por outro, “os próprios cientistas reconhecem que relatos de
experiências sobrenaturais e de contato com os mortos (...) estão presentes em
diversas civilizações”
135
. Igualmente, se o sobrenatural deriva de disfunções
cerebrais desconhecidas, como “erros de sinapse do cérebro”
136
, admite-se, junto
com a neurologista Kátia Lin, que “se há áreas do cérebro capazes de fazer
contatos por telepatia, a ciência simplesmente não tem como refutar ou
comprovar”
137
ou, a seguir, que “talvez nem mesmo o cérebro abrigue todas as
explicações”
138
.
Não se pode deixar de levar em consideração, estes matizes constituiriam
dois momentos significativos da reportagem, uma vez que, ocupando-lhe os
primeiros e últimos parágrafos, acabam por se revestir, respectivamente, de um
caráter introdutório e de um outro, conclusivo. Levantando-se estas questões,
reabre-se espaço para aquela dúvida inicial, aparentemente suplantada pelas
explicações religiosa e científica divulgadas durante o curso do texto. Ainda
assim, o argumento como um todo parece presumir um esclarecimento derradeiro
ou a busca por esse esclarecimento. O último parágrafo da reportagem como que
sintetiza este seu pendor mais geral assim como aquelas brechas para a incerteza:
133
DURKHEIM, E. “As formas elementares da vida religiosa”. In: GIANNOTTI, J. A. (org.).
Émile Durkheim. Tradução de Carlos Alberto Ribeiro de Moura. São Paulo: Abril Cultural,
1983[1912].
134
Id., ibid.:231-2.
135
SUPERINTERESSANTE, ibid.:54.
136
Id., ibid.:61.
137
Id., ibid., loc. cit.
138
Id., ibid., loc. cit.
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78
Mais longe ainda está a explicação para fenômenos como previsões do futuro, o
meio como os médiuns costumam saber da morte de parentes. Como alguém
pode ser capaz de atravessar o tempo? Será só uma coincidência? Também há o
problema dos relatos de luzes que acendem sozinhas à noite, gavetas, portas que
aparecem inexplicavelmente abertas. Enquanto uma explicação definitiva não
aparece, quem acredita ver espíritos prefere tentar levar a vida normalmente
(...)
139
.
Embora não se possam compreender atualmente as previsões do futuro, as
luzes que se acendem sozinhas etc., o conhecimento destas realidades parece ser
apenas uma questão de tempo, como indicam as expressões “mais longe ainda está
a explicação” ou “enquanto uma explicação definitiva não aparece”. Contudo, ao
se avultar, mesmo que rapidamente, a possibilidade de uma coincidência, sugere-
se também que todos estes fenômenos poderiam permanecer, para lançar mão de
uma categoria nativa, inexplicáveis.
3.2.4.
Abril de 2007:
Na edição de abril de 2007, ao se voltar para Esparta, SUPER parece se
debruçar sobre duas narrativas a propósito daquela sociedade para desenvolver o
seu argumento. Uma, mais evidente, consistiria, em realidade, num conjunto de
narrativas que confere à cidade-estado grega da Antiguidade características que
serão problematizadas durante a matéria. A capa, assim, questiona: “Esparta[:]
Uma cidade tirânica, militarizada, intolerante? Ou o verdadeiro berço da
democracia e do Ocidente, injustiçado pela História?”
140
. A outra, se não é tão
destacadamente anunciada, também está explícita no discurso da publicação:
trata-se do filme 300
141
, que tematiza a Batalha das Termópilas, supostamente
ocorrida em 480 a.C.; logo nos primeiros parágrafos da reportagem, SUPER faz
139
Id., ibid.:61. Para fins de clareza, segue o trecho omitido na citação: “(...) como a advogada
Margareth Pummer. ‘O assunto é tão sério que não faço propaganda. Evito conversar sobre isso e
assim vou vivendo’, diz”.
140
SUPERINTERESSANTE, ed. 238: Capa.
141
300 (Warner Bros. Pictures, 2006), do diretor Zack Snyder, foi lançado no Brasil em 30 de
março de 2007. Cabe notar que o filme deriva de uma história em quadrinhos homônima, criada
pelo roteirista e desenhista Frank Miller e lançada em mini-série pelo selo americano Dark Horse
Comics, em 1998. Uma vez que SUPER não menciona este fato em sua reportagem, tampouco o
levaremos em consideração nas nossas análises.
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79
referência a esta obra: “Embora também esteja repleto de erros históricos (...), o
filme 300, que acaba de chegar aos cinemas, acerta em cheio ao mostrar que
(...)”
142
. A partir destas diferentes versões para o que teriam sido os fatos, SUPER
como que empreende uma revisão histórica:
Na escola, aprendemos que (...) os espartanos viviam sob um regime totalitário,
cuja única preocupação era a guerra, e submetiam os jovens ao treinamento
militar mais desumano do planeta. (...)
Acontece que, assim como a visão dourada de Atenas, essa imagem dos
espartanos não passa de caricatura. (...) vale a pena tentar enxergar através das
distorções que cercam a cidade mais controversa da Grécia
143
.
A proposta da publicação para a matéria, aliás, já se encontraria sugerida
naquelas interrogativas estampadas na capa do volume e que, ali mesmo,
encontram uma réplica, ainda que apenas insinuada: “Saiba a verdade sobre a
cidade mais polêmica da Antiguidade”
144
. O tom, tão instigante quanto revelador,
volta a aparecer no índice: “A verdade sobre Esparta[:] O povo podia eleger seus
políticos e as mulheres tinham direitos. A cidade de lendas sanguinárias era muito
mais do que você imagina
145
; e no lide da reportagem: “A outra Esparta[:] Ela
era mais democrática do que se imagina e tão heróica quanto as lendas contam.
Conheça a verdade da cidade mais controversa da Grécia antiga”
146
.
É possível perceber, então, que, na tentativa de um esclarecimento sobre o
que efetivamente teriam sido Esparta ou a Batalha das Termópilas, SUPER
pretende se deslocar do que seria uma perspectiva ordinária – distorcida e
caricatural –, assumindo um posto “a cavaleiro”, isto é, um ponto de vista
privilegiado, uma visada sobranceira que lhe permitiria avaliar relatos existentes
sobre lendas e mitos e, sendo o caso, também avalizá-los: “Mito e arqueologia
concordam num ponto: Esparta é um produto do primeiro grande desastre da
história grega”
147
, “Xerxes, ao contrário do que se diz em 300, não era a versão
metrossexual do capeta. Em parte, o governo do Irã tem razão em ficar fulo da
vida com o filme”
148
ou, como já vimos, “Embora também esteja repleto de erros
142
Id., ibid.:66, grifo no original.
143
Id., ibid.:65-6.
144
Id., ibid.: Capa, meu grifo.
145
Id., ibid.: Índice, meus grifos.
146
Id., ibid.:64, meus grifos.
147
Id., ibid.:66.
148
Id., ibid.:72, grifo no original.
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80
históricos (...), o filme 300 (...) acerta em cheio ao mostrar que (...)”. Desse modo,
a “outra Esparta” vai emergindo de uma série de corroborações, refutações,
correções e, principalmente, ao se destrincharem omissões
149
: “enquanto o
Oriente Médio e Atenas viviam ditaduras, o povo de Esparta podia eleger os
líderes”
150
, “os soldados lutavam com flores no cabelo, adoravam penteá-lo e
faziam sexo entre si”
151
, “a mulher de Esparta podia ter terras e ficar ao ar livre.
Ao contrário das atenienses”
152
, “Esparta liderou Atenas e outras cidades gregas
na luta contra os persas”
153
etc.
Pode-se dizer que, de um modo geral, esta “verdade sobre Esparta” seria
revelada a partir de um prisma cujo foco principal residiria nas esferas econômica
e política do período abordado, as ações dos personagens englobados pela
reportagem de SUPER sendo motivadas, em boa medida, por tensões e disputas
comerciais e fundiárias, ou seja, disputas materiais entre diferentes grupos sociais
– seja dentro da própria sociedade espartana, entre os gregos ou, ainda, entre
gregos e persas. Assim, por exemplo, estabelece-se um vínculo causal entre a
concentração das benesses colhidas por Esparta, a partir de sua expansão até o
século VII a.C., e os atritos internos que ali tiveram lugar: “Há indícios de que só
alguns espartanos se beneficiaram de verdade com as vitórias, virando senhores
do grosso das novas terras, enquanto outros empobreciam. Em outras palavras:
tensão social”
154
. A própria reforma política que se seguiu, e que caracterizaria
Esparta como “o verdadeiro berço da democracia e do Ocidente”, estaria
subordinada a essas disputas, uma vez que é apresentada como “a solução para
esses problemas”
155
. É interessante notar que os aspectos simbólicos destas
transformações não são deixados de lado pela matéria, mas parecem ser
sombreados pelos seus desdobramentos práticos mais evidentes:
Os reis continuaram a ter uma série de privilégios simbólicos (o mais bizarro era
o direito de ficar com a pele e o lombo de todos os animais sacrificados aos
deuses), mas, na prática, viraram simples generais hereditários. O poder de
149
O verbo “omitir” aqui empregado é derivado da seguinte passagem: “Outro ponto que se omite
sobre Esparta é a condição das mulheres” (p.70, meu grifo). Ora, se este é um “outro” ponto, é
lícito presumir que, pelo menos até aquele momento da reportagem, há mais deles.
150
Id., ibid.:66, boxe.
151
Id., ibid.:68, boxe.
152
Id., ibid.:70, boxe.
153
Id., ibid.:72, boxe.
154
Id., ibid.:66.
155
Id., ibid., loc. cit.
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81
decisão final ficava nas mãos do damos – o povo (...)
156
.
A primazia do político-econômico sobre o que poderíamos, então, chamar
de simbólico-ritual pode ser encontrada em diversos momentos. O fato de que o
próprio mito fundador da cidade-estado é apresentado através desse quadro é
significativo:
Na mitologia grega, a chegada dos dórios ficou conhecida como “o retorno dos
filhos de Héracles”. Os descendentes desse herói (...) seriam os legítimos
herdeiros dos reinos do Peloponeso, expulsos injustamente de lá. Mas os filhos
de Héracles reuniram um exército (...) e recuperaram no braço o que era seu. A
parte da herança é claramente invenção para legitimar a invasão, mas os dórios
realmente tinham uma origem étnica comum e falavam um dialeto nortista
157
.
De acordo com SUPER, naquele mesmo século VII a.C., as mudanças
políticas, a prosperidade econômica e o aumento populacional teriam implicado
em transformações na própria maneira de guerrear dos espartanos. SUPER destaca
as decorrências, também políticas e econômicas, dessas modificações:
(...) se a massa dos cidadãos passa a ser importante na guerra, a cidade não tem
como se defender sem eles. (...) o povo ganha força para exigir direito de voto ou
uma fazenda nos arredores
158
.
Além disso, o ríspido treinamento dispensado aos jovens espartanos é
compreendido sob esta perspectiva, como uma espécie de conseqüência advinda
da estabilidade
159
alcançada por Esparta nessa época: “Para manter as conquistas
e o sistema político, todo cidadão de Esparta passou a ser preparado desde
pequeno para ser um supersoldado”
160
. Assim, toda a formação dos guerreiros da
cidade-estado parece estar atrelada à mesma motivação inicial de manutenção de
um estado de coisas material, o que acaba por conferir um teor instrumental a
alguns dos pormenores da liturgia da agogué
161
:
156
Id., ibid., loc. cit., meu grifo; grifo no original.
157
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
158
Id., ibid.:68.
159
Id., ibid., loc. cit. Para fins de clareza, segue uma citação mais extensa: “O sucesso das
reformas foi indiscutível. Enquanto a Grécia inteira passou do século 7 a.C. ao 5 a.C. sofrendo
com ditadores e revoluções, Esparta virou um oásis de estabilidade”.
160
Id., ibid., loc. cit.
161
De acordo com a própria SUPER, agogué significa “criação” em grego (p.68).
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82
[a partir dos 6 anos de idade, os meninos] passavam a ser criados em pequenos
grupos por um supervisor, (...) aprendendo a cantar, dançar (exercícios
adequados para se acostumar ao ritmo militar), ler e escrever
162
.
Há, ainda, outros exemplos deste tipo de interpretação: “os jovens
praticavam a dança e o canto, em cerimônias elaboradas que simulavam os
movimentos da guerra”
163
, “Esse sistema tornava os espartanos resistentes e
corajosos, mas sua principal função era criar espírito de equipe”
164
, “Abandonar
os companheiros é que era considerado intolerável, porque um escudo a menos na
formação significava expor todo mundo ao risco de morte”
165
e “Não havia glória
maior do que tombar na linha de frente, morrendo ao lado dos companheiros (...).
(...) Mas eles só agiam como camicases quando não havia outra escolha
166
.
De modo semelhante, a expansão de Esparta teria sido interrompida
devido aos cálculos de um grupo de interesse; segundo um dos especialistas
consultados por SUPER, Robin Osborne, da Universidade de Cambridge:
“Esparta temia que as cidades vizinhas apoiassem as revoltas dos servos e
procurou alguma forma de convivência pacífica com elas”
167
. Por seu turno, os
conflitos entre Grécia e Pérsia também teriam sido animados por esta lógica, que
permeou motivações de parte a parte, desde um âmbito econômico mais amplo até
um nível psicológico preciso:
Por volta de 540 a.C., as cidades gregas da Ásia caíram nas mãos dos persas. O
novo império trouxe paz e estabilidade à região, mas também sufocou os desejos
gregos de uma política mais democrática (...). O bolso grego também foi afetado,
porque a Pérsia cobrava impostos ferozes e mutilava o comércio. Os gregos da
Ásia se revoltaram, com o apoio de Atenas, mas levaram uma sova. A ajuda
ateniense era a desculpa perfeita para a Grécia européia ser incluída no alvo
das invasões. Assim pensou o rei persa Dario, cujo exército desembarcou perto
de Atenas no ano 490 a.C.
168
Cabe salientar que, se as intenções e as ações de Esparta seriam
interpretadas por SUPER num registro mais pragmático, mais realista, o mesmo
não se daria com as da Pérsia, onde se vislumbrariam mais nuances simbólicas:
162
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
163
Id., ibid., loc. cit.
164
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
165
Id., ibid.:68.
166
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
167
Id., ibid.:70.
168
Id., ibid.:70, meus grifos.
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83
“O Oriente Médio ainda era dominado por monarcas absolutos, considerados
semideuses”
169
ou “todas as regiões do império [persa] tinham de contribuir com
sua cota de homens, e a palavra de Xerxes era lei sagrada”
170
. Já quando os persas
não são considerados em si mesmos, mas como personagens que intervêm naquela
realidade que a revista apresenta como Esparta, a ênfase prática volta a dominar:
“O domínio persa poderia até ter posto um fim nas eternas briguinhas fúteis entre
cidades, que eram a praga da vida grega (pelo menos em termos de progresso
econômico)”
171
, “A guerra [com Atenas] terminou com a vitória de Esparta,
financiada por ouro persa”
172
.
Por outro lado, o discurso da publicação sobre os espartanos não seria
monolítico, havendo espaço também para considerações de cunho simbólico:
“Esparta parece ter inventado a idéia de que mesmo um plebeu pobre tinha o
direito de eleger seus representantes e ser eleito, e de que ninguém, nem mesmo
os reis, estava acima da lei”
173
, “A lenda de que os soldados de Esparta nunca se
rendiam ou recuavam é balela: não havia vergonha nenhuma em baixar as armas
se essa fosse a ordem do rei ou do general”
174
, “O novo império [persa] trouxe paz
e estabilidade à região, mas também sufocou os desejos gregos de uma política
mais democrática”
175
, “Democrática ou não, Esparta jamais aceitaria o domínio de
um só homem que estivesse acima da lei”
176
, “já que derramar sangue era como
um passatempo para os gregos (...)”
177
e, fazendo menção a um relato de
Heródoto a respeito do que poderíamos sintetizar como isonomia, a publicação
conclui que “Poucas idéias foram tão capazes de mudar o mundo”
178
.
Deve-se recordar, entretanto, a narrativa desenvolvida na reportagem
estenderia um contínuo causal entre as tensões materialmente motivadas da
Esparta do século VII a.C., a democracia – ou “sociedade quase democrática”
179
que ali emergiu e o ethos guerreiro dos espartanos. Os matizes citados, portanto,
169
Id., ibid.:68.
170
Id., ibid.:70.
171
Id., ibid.:72.
172
Id., ibid., loc. cit.
173
Id., ibid.:68.
174
Id., ibid., loc. cit.
175
Id., ibid.:70.
176
Id., ibid.:72.
177
Id., ibid., loc. cit.
178
Id., ibid., loc. cit. No sentido dessa abordagem mais compreensiva de SUPER, cf. também o
boxe “Nós e os gregos[:] Como a filosofia explica os heróis” (p.70).
179
Id., ibid.:68.
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84
apesar de tornarem evidente o caráter plural do argumento de SUPER, ainda
estariam englobados por uma grade interpretativa que pende para uma
monocausalidade explicativa, por assim dizer; este pendor, porém, é necessário
enfatizar, parece jamais se realizar completamente no âmbito da reportagem. É
como se o texto estivesse pautado, no geral, por uma espécie de “marxismo
vulgar”
180
, onde a infra-estrutura material de uma sociedade lhe determinaria, pari
passu, os valores e (auto-) representações, a sua superestrutura portanto; e o
mesmo texto, por outro lado – um lado talvez mais discreto, mas, ainda assim,
significativo –, estivesse pontilhado de dissonâncias que relativizariam a própria
tônica dominante da reportagem, sem abafá-la de todo e, por isso mesmo,
colocando-a em relevo.
3.2.5.
Maio de 2007:
Voltando-se para a história da Igreja Católica, a reportagem do mês de
maio de 2007 parece ser nítida e rigorosamente iconoclasta. Logo de início, a
julgar pela maneira como a matéria é apresentada na capa, no índice e no lide, é
possível perceber uma tônica explicitamente problematizadora e, dada a
especificidade da pauta, profana: “A história secreta da Igreja[:] Os assassinos,
santos, devassos e heróis que fizeram a história da organização mais antiga do
mundo: o Vaticano”
181
, “Lado B da igreja[:] Guerreiros, corruptos e santos. A
Igreja tem um pouco de tudo que aconteceu nos últimos 2000 anos de história. Ou
você acha que o Vaticano só se ocupou representando Cristo?”
182
, e “Vaticano[:]
uma biografia não autorizada (...). Pelos corredores do Vaticano passaram reis,
guerras, o melhor da arte e até alguns santos
183
. Por um lado, expressões como
“história secreta”, “lado B” e “biografia não autorizada” parecem reconhecer, ao
subentendê-la, uma realidade aparentemente óbvia, isto é, uma história pública,
180
Tomo a expressão emprestada a Roberto DaMatta: “(...) modernamente assistimos ao
surgimento do marxismo vulgar como a moldura pela qual se pode orientar muito da vida social,
política e cultural do país [refere-se ao Brasil]. Estamos, pois, novamente às voltas com um outro
determinismo, agora fundado numa definição abrangente do ‘econômico’ e das ‘forças produtivas’
(...)” (DAMATTA, 1987:58).
181
SUPERINTERESSANTE, ed. 239: Capa.
182
Id., ibid.: Índice.
183
Id., ibid.:59.
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um lado A, por exemplo, ou uma biografia oficial ou sagrada da Igreja; por outro,
elas implicam uma realidade obtusa e desconhecida. O esforço, por assim dizer,
profanador de SUPER se concentra em “desvendar essa história”
184
,
estabelecendo um contínuo histórico, que “se enraíza 2000 anos no passado”
185
,
chegando até o Tratado de Latrão
186
e os dias de hoje.
Desse modo, através de uma recapitulação que se estende por estes
“últimos 2000 anos de história”, a publicação busca se debruçar sobre episódios
que seriam, hoje, pouco conhecidos do público em geral, e dos próprios católicos
em particular. Complementarmente, versões e narrativas alternativas àquelas que
desfrutam de maior notoriedade são oferecidas na reportagem. Se o objetivo
explícito da matéria é o de revelar um trajeto oculto que teria levado àquilo que se
representa comumente por Igreja Católica no presente, a lógica subjacente a este
empreendimento parece ser a de uma espécie de ressecamento simbólico. Em
outras palavras, a Igreja, o Vaticano e o papado são como que rebaixados àquilo
que teriam de mundano e, a seguir, analisados com forte ênfase sob essa ótica.
Ao narrarem as circunstâncias em que se assinou o Tratado de Latrão, por
exemplo, os parágrafos iniciais da matéria sintetizam e antecipam a abordagem
que será desenvolvida por SUPER no restante da reportagem:
Dentro do palácio [de Latrão] – o quartel-general da Cúria Romana, rosto
administrativo da Igreja Católica – o papa Pio 11 e seus funcionários mais
gabaritados receberam o ditador [Benito Mussolini] com apertos de mão”
187
e “A rigor, foi nesse dia de inverno, na soturna companhia de um dos mais
violentos tiranos do século 20, que nasceu o Estado do Vaticano como ele é hoje
(...)”
188
. Do ponto de vista da ética católica, grosso modo uma ética de virtudes, é
possível sugerir que a Igreja tenha incorrido aqui em pelo menos duas faltas
morais, uma mais formal – o negociar – e outra mais substantiva – com quem se
negociou, ou seja, uma “soturna companhia”, um “ditador” e “tirano”. As próprias
descrições do Palácio de Latrão e da Cúria Romana também chamam a atenção
184
Id., ibid., loc. cit. Para fins de clareza, segue uma citação mais extensa: “Para desvendar essa
história é preciso retornar às origens do cristianismo (...)”.
185
Id., ibid., loc. cit.
186
De acordo com a própria SUPER, o tratado, assinado em 11 de fevereiro de 1929, “conferia ao
papa um território independente dentro de Roma. Em troca, a Igreja reconhecia como legítimo o
governo controlado pelo duce [Benito Mussolini]” (p.59).
187
Id., ibid.:59.
188
Id., ibid., loc. cit.
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para um aspecto mais secular e até burocrático da Igreja, uma vez que se trata,
respectivamente, de um “quartel-general” e do “rosto administrativo da Igreja
Católica”, formado por “funcionários”.
SUPER tenderá, então, a enfatizar uma postura utilitária da Igreja, em
contraposição a um “lado” seu mais conhecido – ou suposto –, o de uma
intervenção solidária no mundo. Este pragmatismo remontaria aos primeiros
momentos do cristianismo, definindo ali, por exemplo, o caráter proselitista da
religião:
No início, o cristianismo era uma seita de judeus para judeus. (...) A idéia de que
Jesus era o tão aguardado Messias, porém, não pegou entre os judeus. (...) Foi
assim que o Messias passou a ser descrito como redentor de todos os homens e
de todas as raças. O discurso colou
189
.
Ou, ainda, o celibato:
Foi a partir daí [da conversão do imperador romano Constantino ao
cristianismo] que a Igreja se tornou hierárquica. Doações feitas pelos
imperadores a enriqueceram – a instituição do celibato foi feita nessa época,
para impedir que a fortuna evaporasse entre herdeiros
190
.
Além disso, e como corolário deste escopo mais geral da reportagem,
acaba-se por colocar em causa a própria exemplaridade ética de uma instituição
que se representa e é também representada como eticamente exemplar. Assim, se,
conforme a sugestão de Sérgio Paulo Rouanet
191
,
depois de [Max] Weber, não há como ignorar a diferença entre uma razão
substantiva, capaz de pensar fins e valores, e uma razão instrumental, cuja
competência se esgota no ajustamento de meios a fins
192
,
a revista parece esvaziar as ações da Igreja Católica de uma razão substantiva –
“ou você acha que o Vaticano só se ocupou representando Cristo?” –, embebendo-
as, então, de uma razão vividamente instrumental, orientada basicamente por um
ímpeto cumulativo e amoral de poder político e de bens materiais, como imóveis
189
Id., ibid.:60.
190
Id., ibid.:60.
191
ROUANET, S. P. “Introdução”. In: ____. As razões do iluminismo. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987, pp.11-36.
192
Id., ibid.:12.
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e, principalmente, dinheiro. Assim, a reportagem parece inflacionar o que seria
uma razão de Estado maquiavélica do Vaticano e, pode-se sugerir, acaba por lhe
atribuir retrospectivamente características do que hoje se convencionou chamar
Realpolitik
193
no campo das relações internacionais e diplomáticas. A origem do
termo “papa”, a propósito, é interpretada sob essa perspectiva:
A proximidade do poder logo subiu à cabeça do bispo romano (...). No final do
século 4, os bispos de Roma adotaram o título de papa, “pai” em grego, sinal de
que se consideravam chefes dos outros. Uma espécie de réplica espiritual do
imperador
194
.
Neste sentido, elenca-se uma série de relatos que dão conta do “lado B”
daquilo que teria redundado no Vaticano hoje. Assim, durante a Idade Média, uma
Igreja trapaceira
195
teria sido responsável pela “fraude mais bem-sucedida da
história”
196
, “alterando e inventando documentos para fortalecer a posição dos
bispos romanos”
197
. Além disso, os papas dos primeiros séculos do segundo
milênio cristão são apresentados como virtuais “donos do mundo”
198
; se antes,
“na prática, o líder da cristandade era um pau-mandado”
199
, agora eles seriam
“soberanos políticos com sonhos de hegemonia, dispostos a conquistar o mundo
pela cruz e pela espada”
200
, e o papado, “uma potência militar, capaz de contratar
os próprios exércitos, e também uma instituição milionária”
201
. Mesmo em
“decadência”
202
, durante a Renascença, quando “os delírios absolutistas do
Vaticano revoltaram até o clero”
203
, a Igreja teria somado mais algumas falhas à
sua “biografia”, já que o “celibato passou a ser um detalhe esquecível e Roma
mergulhou numa luxuriosa dolce vita
204
. Depois da Revolução Francesa, “o
papado virou inimigo do progresso, entrando numa fase de pânico apocalíptico em
193
Segundo o Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa, “política internacional que se baseia em
fatores pragmáticos e materiais, [especialmente] nas relações entre as forças vigentes e em
cenários concretos, em detrimento de influências ideológicas ou considerações sobre doutrina e
princípios”.
194
SUPERINTERESSANTE, ibid.:60.
195
Id., ibid., loc. cit. A expressão “trapaceira” aqui empregada é derivada do seguinte subtítulo:
“Trapaça na Idade Média” (p.60).
196
Id., ibid.:63.
197
Id., ibid.:63.
198
Id., ibid., loc. cit.
199
Id., ibid., loc. cit.
200
Id., ibid., loc. cit.
201
Id., ibid.:64.
202
Id., ibid., loc. cit.
203
Id., ibid., loc. cit.
204
Id., ibid., loc. cit.
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relação a tudo o que cheirasse a modernidade”
205
. Finalmente, no século XX, Pio
XI, teria assinado o Tratado de Latrão na já citada “soturna companhia” de Benito
Mussolini, que “deu US$ 90 milhões e salvou a Igreja da falência. Hoje as contas
estão mais tranqüilas: o lucro anual do Vaticano chega a US$ 200 milhões”
206
.
Seu sucessor, Pio XII, o “papa de Hitler”
207
, “via no regime nazista um incômodo
necessário na luta contra a maior das ameaças, o comunismo”
208
.
Há outras passagens que salientariam este caráter mais realista da história
da Igreja. A eleição do papa em 366, por exemplo, “se resolveu no tapa”, quando
um dos contendentes “enviou mercenários para trucidar o rival em uma Igreja”
209
.
Quando da criação do Estado Pontifício em 754, “todos os habitantes dessas
regiões [Roma e a área vizinha] viraram súditos dos papas, passaram a lhes pagar
impostos, a ser julgados e governados por eles”
210
. As Cruzadas, “maior prova de
poder e ambição”
211
da Igreja, são descritas como “uma das páginas mais brutais
da história”
212
, quando, durante a invasão de Jerusalém em 1099, “quase todos os
judeus e muçulmanos da cidade foram massacrados”
213
. Mesmo aquele “legado
cultural exuberante”
214
, formado pela Igreja durante a Renascença, é enquadrado
num contexto mais mundano. Alexandre VI, um dos papas que teriam fomentado
as artes naquele período, foi “eleito papa em 1492 graças à pesada propina
distribuída aos eleitores”
215
, tendo tido “duas amantes oficiais”
216
e gerado “7
filhos conhecidos, alguns presenteados com rentáveis cargos eclesiásticos
217
;
Júlio II, o “maioral dos papas da arte”
218
, era “pai de 3 filhas, [e] em vez de rezar
missas de batina[,] ele preferia comandar exércitos, vestido em sua armadura de
prata”
219
. O catarismo, uma seita herética, teria sido sufocado no século XIII –
“aldeias foram queimadas, multidões chacinadas”
220
– e, como uma espécie de
205
Id., ibid.:67
206
Id., ibid.:67, boxe.
207
Id., ibid.:67.
208
Id., ibid., loc. cit.
209
Id., ibid.:60, boxe “Como escolher um papa”.
210
Id., ibid.:63.
211
Id., ibid., loc. cit.
212
Id., ibid.:63.
213
Id., ibid.:64.
214
Id., ibid.:64.
215
Id., ibid., loc. cit.
216
Id., ibid., loc. cit.
217
Id., ibid., loc. cit.
218
Id., ibid., loc. cit.
219
Id., ibid., loc. cit.
220
Id., ibid., loc. cit.
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efeito colateral, surge o Santo Ofício: as sociedades cristãs alcançaram
estabilidade “na marra”
221
, tornando-se “perseguidoras e teocráticas”
222
. No
âmbito da reportagem, a Inquisição, por seu turno, talvez possa ser interpretada
como o ponto de apoio que liga este histórico de dubiedades ao próprio presente
da Igreja. A peripécia começa a ser preparada no parágrafo final da matéria:
A luta pela alma da Igreja Católica continua. João Paulo 2º, que sempre foi um
carismático e popular conservador, não mexeu em doutrinas controversas, como
a condenação dos anticoncepcionais. As perspectivas para uma futura reforma
do papado são nebulosas. Por volta de 2001, Hans Kung e outros teólogos
liberais fizeram lobby por um Concílio Vaticano 3º – mas a idéia foi barrada
pela Congregação para a Doutrina da Fé, novo nome para um velho órgão: a
Inquisição
223
.
E arrebata o leitor nos últimos momentos do texto:
Na época em que o novo concílio foi recusado o cabeça do Santo Ofício era um
certo cardeal alemão, conhecido como intelectual brilhante. Amigo de Kung nos
anos 60, ele simpatizava com a ala progressista. Mas mudou de idéia. Afastou-se
do antigo companheiro e se tornou porta-estandarte da facção conservadora.
Hoje, anda ao lado de cardeais como Giacomo Biffi, que durante o sermão da
Quaresma deste ano na Santa Sé afirmou que a vinda do anticristo se aproxima –
e que o enviado do Diabo estará disfarçado de “ecologista, pacifista ou
ecumenista”. O nome desse cardeal alemão, você já deve ter adivinhado. É
Joseph Ratzinger
224
.
De um modo geral, aquela metáfora nativa “lado B” parece simbolizar a
dinâmica dicotômica da reportagem, isto é, só se teria acesso a cada uma das faces
de um mesmo disco alternativamente, uma de cada vez. Ainda assim, cabe notar,
trata-se do mesmo disco. Dessa maneira, apesar de iconoclasta, o discurso de
SUPER é tão, digamos, “iconoplasta” quanto o das narrativas tradicionais que
comporiam a trajetória mais conhecida da Igreja Católica. Isto, aliás, é transmitido
em caráter literal, ou melhor, pictórico através de alguns dos gráficos que ilustram
a reportagem. São cinco imagens de página inteira que, ao estilo dos ícones
cristãos, simbolizam episódios secretos apontados pela publicação. À exceção da
primeira delas – retratando Pedro como pescador
225
–, as outras têm um teor
221
Id., ibid., loc. cit.
222
Id., ibid., loc. cit.
223
Id., ibid.:67.
224
Id., ibid.:67.
225
Cf. a ilustração à página 58.
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crítico explícito, como se fossem “contra-ícones”. Assim, do alto de um trono
adornado de gárgulas, Gregório VII
226
, o “Santo Satanás”
227
, estende sua mão
para que seja beijada em benção; Júlio II
228
, trajando sua “armadura de prata”,
tem uma espada numa das mãos e, na outra, sangue a lhe escorrer por entre os
dedos; Leão Magno
229
aparece como um titereiro de bárbaros; finalmente, Pio
XII
230
, o “papa de Hitler”, é apresentado de lábios suturados, encobrindo seus
olhos com as próprias mãos.
Ao oferecer, então, um retrato em negativo – um “lado B” – para este
percurso geralmente inconteste – um lado A –, a publicação não deixa de adotar
um registro que, ao fim, se revelaria igualmente dogmático. É como se SUPER
assumisse uma perspectiva semelhante àquela desenvolvida por Émile Durkheim
em As formas elementares da vida religiosa, quando este estabelece uma
clivagem entre o “sagrado” e o “profano” para caracterizar o fenômeno religioso,
uma perspectiva que, segundo Steven Lukes
231
, seria “mutuamente excludente e
conjuntamente exaustiva”
232
. Assim, apesar de contrárias, as biografias da Igreja,
a supostamente autorizada e aquela “não autorizada”, são interdependentes e,
embora substancialmente diversas, são também formalmente convergentes. Vira-
se o disco, mudam-se as faixas, mas a agulha e a vitrola continuam as mesmas.
Em outras palavras, não se sugere uma interpretação plural – no caso, dual –, onde
conviveriam, para retomar a distinção sublinhada por Rouanet, uma razão
substantiva e uma razão instrumental: ora a Igreja reza a Bíblia Sagrada, ora
parece aplicar O Príncipe de Maquiavel como cartilha política. Finalmente,
quando ambas as leituras se excluem, exclui-se igualmente a possibilidade de uma
compreensão mais realista do significado que pode adquirir a história do Vaticano
hoje.
226
Cf. a ilustração à página 61.
227
Id., ibid.:63.
228
Cf. a ilustração à página 62.
229
Cf. a ilustração à página 65.
230
Cf. a ilustração à página 66.
231
LUKES, S. “Bases para a interpretação de Durkheim” In: COHN, G. (org.). Sociologia: para
ler os clássicos. Tradução de José Augusto Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro: Livros Técnicos
e Científicos, 1977, pp. 15-46.
232
Id., ibid.:35.
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3.2.6.
Junho de 2007:
Na reportagem do mês de junho de 2007, SUPER se debruça sobre a
“Teoria da Evolução”
233
. Pode-se dizer que a matéria está dividida em três
momentos distintos: de início, apresenta-se uma narrativa das pesquisas que
teriam levado o biólogo inglês Charles Darwin a elaborar a referida teoria ou a
“descobri-la”
234
no século XIX. Ainda aqui, discorre-se sobre a própria teoria,
introduzindo-se o leitor às possibilidades de interpretação da realidade suscitadas
pelas conclusões de Darwin, ou seja, busca-se iniciá-lo à “lógica de Darwin”
235
.
Adiante, detém-se nos desdobramentos investigativos viabilizados por esta
perspectiva durante o século XX: o “neodarwinismo”
236
, representado pela
“Teoria do Gene Egoísta”
237
e, mais especificamente, pela “psicologia
evolucionista”
238
. Pela sua extensão, aliás, é possível sugerir que este segmento
constitua o foco da reportagem, ocupando-lhe aproximadamente duas páginas e
meia das cinco de texto corrido
239
. Finalmente, SUPER expõe uma leitura recente
da “Teoria da Evolução”, “uma teoria que aplica a seleção natural ao Universo
inteiro”
240
. Este roteiro está sintetizado no próprio lide da reportagem:
Evolução da evolução[:] Uma idéia simples resolveu o mais complexo dos
mistérios: o sentido da vida. Agora cientistas usam Darwin para desvendar
mistérios maiores: da mente à origem do Universo. E o que eles encontraram é
assustador
241
.
Pode-se perceber, então, a matéria se dedica a apresentar três “mistérios”
ao leitor; mais precisamente, o modo como um deles já teria sido resolvido – o
sentido da vida e, poderíamos acrescentar, a origem das espécies – e a maneira
como dois deles ainda poderiam ser solucionados – a mente e a origem do
233
SUPERINTERESSANTE, ed. 240: Capa.
234
Id., ibid., loc. cit. A expressão “descobri-la” aqui empregada é derivada da seguinte passagem:
“Há 150 anos, Darwin descobriu como a vida pode existir sem a intervenção divina” (meu grifo).
235
Id., ibid.:62. Para fins de clareza, segue uma citação mais extensa: “Imagine as asas dos
pássaros, por exemplo. Pela lógica de Darwin, elas não nasceram prontas”.
236
Id., ibid., loc. cit.
237
Id., ibid., loc. cit.
238
Id., ibid.:64.
239
As outras cinco páginas da reportagem são ocupadas por gráficos informativos de página
inteira. Cf. as páginas 61, 63, 65, 67 e 69.
240
Id., ibid.:68.
241
Id., ibid.:60.
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Universo. Esta proposta já estava delineada antes mesmo da reportagem
propriamente dita, seja na capa da revista, num tom mais assertivo e, digamos,
sensacional:
Darwin[:] O homem que matou Deus[:] Há 150 anos, Darwin descobriu como a
vida pode existir sem a intervenção divina. Agora a “Teoria da Evolução” está
sendo usada para explicar mistérios ainda maiores – e as revelações são
assustadoras
242
.
Ou no índice, de forma mais modesta:
O homem que matou Deus[:] Darwin teve a idéia mais poderosa de todos os
tempos: a evolução é o mais próximo que chegamos de entender a vida sem a
intervenção divina. E essa idéia está cada dia mais forte
243
.
A idéia de que há uma contradição e uma descontinuidade absolutas entre
a cosmogonia cristã e a “Teoria da Evolução”, a propósito, recorre no texto, tanto
em passagens mais evidentes: “E Charles Darwin criou o homem. Ou, pelo
menos, inventou o que hoje nós conhecemos como homem”
244
, “mostrando como
a vida evolui, Darwin dispensou Deus do cargo de criador”
245
ou “O capitão do
navio [Beagle] queria encontrar provas de que a Bíblia estava certa a respeito da
criação. Mal sabia que o assassino de Deus estava a bordo”
246
; quanto insinuada
em expressões sem o mesmo apelo ou, ainda, em trechos mais literários: “Então
vamos embarcar no velho Beagle. Primeira escala: o inferno”
247
, “O inferno de
Darwin”
248
, “Desta vez para uma época bem anterior à do Beagle. Mas com um
destino igualmente infernal”
249
.
Esta dicotomia aparentemente inconciliável parece ser o mistério maior
que orienta o argumento da matéria, englobando e subordinando a exposição dos
outros três mistérios já mencionados: se Deus está morto, como se atribuiu sentido
à vida a partir de uma perspectiva secular? Cabe notar que a publicação parece
não considerar a possibilidade de que a realidade seja desprovida de qualquer
242
Id., ibid.: Capa, meu grifo.
243
Id., ibid.: Índice, meu grifo.
244
Id., ibid.:60.
245
Id., ibid., loc. cit.
246
Id., ibid.:62, grifo no original.
247
Id., ibid.:60.
248
Id., ibid., loc. cit..
249
Id., ibid.:62.
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sentido. Isto, aliás, acaba por abrir uma via de convergência entre o dogma
religioso e a “Teoria da Evolução” tal como ali apresentada. Nesses termos,
Darwin não é representado apenas como o “homem que matou Deus”, mas como
uma espécie de substituto. Assim, se “Darwin dispensou Deus do cargo de
criador”, ele mesmo “criou o homem”. A seleção natural, desse modo, parece ser
entendida tanto como a problematização de um mito como um mito em si: ao
explicar um por um daqueles mistérios, a “lógica de Darwin” vai preenchendo as
lacunas de significado que ela mesma teria aberto na realidade. Daí, talvez, a
noção de “evolução da evolução”, contida no título da reportagem. É como se
SUPER fechasse um circuito, mobilizando a “lógica” que apresenta ao leitor para
estruturar o seu relato sobre a própria “Teoria da Evolução”, explicando-a e, por
tabela, explicando a própria realidade.
A julgar pelas expressões e fórmulas utilizadas na apresentação das
considerações de Darwin e de “seus seguidores”
250
realizada por SUPER, esta
parece ser uma lógica de aperfeiçoamento e complexificação cumulativos: “Essa
característica [uma membrana] deu-lhe alguma vantagem na luta pela
sobrevivência”
251
, “Com o tempo, novos mutantes (...) foram nascendo com asas
cada vez melhores
252
, “Só que alguns [erros, mutações] não davam em
aberrações. Muito pelo contrário”
253
, “Assim elas [as moléculas] conseguiam
eficiência total
254
, “E eles [os primeiros seres multicelulares] ficaram cada vez
mais complexos
255
, “E o progresso nunca parou”
256
. Desse modo, se a própria
seleção natural evoluiu, ela passa a poder dar conta de aspectos da realidade que
antes não lhe eram acessíveis, tornando-se cada vez mais abrangente.
Isto se evidencia quando a “Teoria da Evolução” passa a explicar os
mistérios da mente humana, que, desde a perspectiva neodarwinista, derivariam de
um único “objetivo irracional”
257
: “lutar para que os genes façam cópias deles
mesmos do melhor jeito possível”
258
. Dessa maneira, esse “egoísmo dos genes é a
250
Id., ibid.:60. “E agora seus seguidores do século 21 querem fazer algo ainda mais chocante:
mostrar que não passamos de escravos a serviço dos verdadeiros donos deste planeta. Ah, tem
mais: a teoria de Darwin pode ter desvendado o segredo dos buracos negros”.
251
Id., ibid.:62.
252
Id., ibid., loc. cit.
253
Id., ibid.:64.
254
Id., ibid., loc. cit.
255
Id., ibid., loc. cit.
256
Id., ibid., loc. cit.
257
Id., ibid.:64.
258
Id., ibid., loc. cit.
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chave para descobrir como a nossa mente funciona”
259
. A psicologia
evolucionista, “uma nova ciência da mente [que] ganhou terreno no final do
século 20”, parte desse pressuposto e afirma que “não faz sentido dizer que a
cultura molda o nosso comportamento”, admitindo que a “mente foi forjada ao
longo de toda a evolução”
260
.
A partir deste postulado, então, seria possível compreender – e mesmo
justificar – uma série de comportamentos humanos; por exemplo, as supostas
seletividade sexual feminina e a sua contraparte, a promiscuidade sexual
masculina, ambas subsumidas numa única fórmula, “coisa também conhecida
como vida afetiva e sexual”
261
. Daí, explicam-se também o Carnaval
262
, a
violência
263
, o altruísmo – nitidamente utilitário
264
ou “puro”
265
–, a família e a
hierarquia familiar
266
e, por fim, a paixão e o amor
267
. Adotando esta perspectiva
analítica, torna-se possível a formulação de verdadeiros “fatos”
268
comportamentais, reduzindo-se a esfera simbólica da espécie humana a um
epifenômeno biológico, lógica que Marshall Sahlins
269
criticou como
sociobiológica:
In place of a social constitution of meanings, it [a sociobiologia] offers a
biological determination of human interactions with a source primarily in the
general evolutionary propensity of individual genotypes to maximize their
reproductive success
270
.
259
Id., ibid., loc. cit.
260
Id., ibid.:64.
261
Id., ibid.:66.
262
Id., ibid., loc. cit. “Nenhum adolescente pensa em engravidar 10 meninas quando vai viajar para
o Carnaval. Mas os genes dele não fazem idéia de que existem camisinhas e tudo o mais, então
deixam o rapaz com vontade de transar com 10 garotas e pronto”.
263
Id., ibid., loc. cit. “Então não há mistério para a psicologia evolucionista: como a violência
funcionou ao longo da história, está impregnada nos nossos genes”.
264
Id., ibid.:68. “(...) nada melhor que um pouco de altruísmo com alguns para ficar bonito na
foto”.
265
Id., ibid., loc. cit. “Mas em alguns casos somos altruístas sem querer nada em troca, nem
inconscientemente. Isso acontece quando se trata das nossas famílias”.
266
Id., ibid., loc. cit. “Outra coisa que determina a hierarquia entre parentes é a expectativa de que
eles se reproduzam. Daí os pais se sacrificarem mais pelos filhos do que os filhos pelos pais”.
267
Id., ibid., loc. cit. “O mesmo vale para quando nos apaixonamos. Se você ama alguém, quer ter
filhos com essa pessoa, quer colocar seus replicadores ali e se esfolar para cuidar dos rebentos”.
268
Cf. o boxe “Três fatos sexuais da evolução que nunca ensinam na escola”: “Os homens de todas
as culturas preferem as mulheres com ‘corpo de violão’, também conhecidas como gostosas. É que
quadris largos, cintura fina e seios generosos são sinais de que a moça é bem fértil” (id., ibid.:64,
meu grifo).
269
SAHLINS, M. The use and abuse of biology: an anthropological critique of sociobiology.
Michigan: The University of Michigan Press, 1976.
270
Id., ibid.: x.
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A reportagem de SUPER, dessa maneira, parece estar inserida no processo
que o autor chamou “folk dialectics of nature and culture”
271
, isto é, “we seem
unable to escape from this perpetual movement, back and forth between the
culturalization of nature and the naturalization of culture”
272
. Segundo o autor, a
perspectiva sociobiológica, então, estaria inserida num contexto ideológico mais
amplo, embora bem localizado – a sociedade Ocidental –, onde, desde o século
XVII, se estabelece um ciclo vicioso entre as representações de natureza e de
sociedade ali presentes, “alternately applying the model of capitalist society to the
animal kingdom, then reapplying this bourgeoisfied animal kingdom to the
interpretation of human society”
273
. Ainda de acordo com Sahlins, esta é uma
classificação do mundo semelhante às das sociedades tradicionais:
For if totemism is, as Lévi-Strauss says, the explication of differences between
human groups by reference to the distinctions between natural species, such that
clan A is related to and distinct from clan B as the eagle hawk is to the crow, then
sociobiology merits classification as the highest form of the totemic philosophy.
(...) Give it its due: sociobiology is a Scientific Totemism
274
.
A partir da exposição dos últimos desdobramentos da seleção natural, ou
seja, da aplicação da “Teoria da Evolução” em estudos de física cósmica, essa
dinâmica se aprofunda em SUPER, esboçando-se até uma surpreendente
aproximação entre Darwin e Deus, ressuscitado e devidamente ressignificado nas
últimas linhas da reportagem:
Baruch Spinoza, um filósofo holandês do século 17, defendia que Deus e
Universo são apenas dois nomes para uma coisa só; que o Criador não é
exatamente um criador, mas a grande regra que move o Cosmos. Se você gosta
desse ponto de vista (Albert Einstein gostava) pode dizer tranqüilamente:
Charles Darwin não matou Deus. Só descobriu onde ele estava
275
.
Se a seleção natural, tal como apresentada pela publicação, parece dar
sentido a tudo, dando conta de todos os mistérios que há entre a origem das
espécies e Deus – passando, como já vimos, pela mente, pelo “Multiverso”
276
e
até pelo Carnaval –, pode-se sugerir que, muito mais que uma teoria ou um
271
Id., ibid.:93.
272
Id., ibid.:105.
273
Id., ibid.:101.
274
Id., ibid.:106, grifos no original.
275
Id., ibid.:68.
276
SUPERINTERESSANTE, ibid.:68.
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paradigma científicos, a “lógica de Darwin” ali divulgada seja uma lógica mítica,
onde, a seguir a sugestão de Sahlins, seria possível perceber, ainda que
“entrincheirada” (entrenched), a própria ideologia da sociedade Ocidental: “the
assurance of its naturalness, and the claim of its inevitability
277
. Em síntese,
conforme Lévi-Strauss,
é característica do mito, diante de um problema, pensá-lo como homólogo a
outros problemas que surgem em outros planos: cosmológico, físico, moral,
jurídico, social, etc. E analisar tudo em conjunto
278
.
3.3.
“Mistério” e “verdade”: uma síntese, uma tendência
Investigando as reportagens separadamente, ou seja, tomando-as como
textos estanques e limitados a uma dezena de páginas impressas, arriscava-se uma
série de estudos coerentes internamente, mas pouco integrados entre si. Isto
dificultaria o acesso à representação de ciência presente nestes segmentos da
revista. Assim, se SUPER é uma publicação de divulgação científica, isto é, se se
trata de uma publicação sobre ciência, é lícito esperar encontrar ali, igualmente,
uma narrativa sobre ciência. Ainda que não se disponha de passagens cujo
simbolismo é evidente (por exemplo, “a atividade científica contemporânea
consiste em...”)
279
, pode-se interpretar esta narrativa através de outros índices,
significativos de como SUPER apreende a ciência e a comunica aos seus leitores.
Este recorte emergiu depois de repetidas leituras do material empírico,
como se tivéssemos retornado diversas vezes a campo. Efetivamente, é o próprio
discurso nativo quem fornece um eixo que parece atravessar as seis reportagens
analisadas. Referimo-nos aqui à noção de “mistério”, que aparece
recorrentemente, seja, por exemplo, no interior de uma reportagem isolada, seja na
série como um todo. Se “mistério” não é empregado literalmente, lança-se mão de
277
SAHLINS, ibid., loc. cit.
278
LÉVI-STRAUSS & ERIBON, 2005:196.
279
Deve-se reconhecer, o editorial da edição de março discorre praticamente nestes termos: “Fazer
ciência é usar a suspeita, o ceticismo, a racionalidade, a coragem, o método para mirar o
desconhecido” (SUPER, ed. 237:12). Cogitou-se mesmo adotar os 13 editoriais como recorte. Um
inconveniente, contudo, fez-nos deixá-los de lado: se este editorial discorre explicitamente sobre o
fazer científico, os outros consistem muito mais numa apresentação às matérias contidas na revista
e nem sempre as reportagens de capa eram mencionadas.
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uma palavra ou fórmula equivalente, como ocorre com as matérias das edições de
abril e maio: “A outra Esparta” ou “A história secreta da igreja” e “O lado B da
Igreja”. Ainda assim, a idéia de uma realidade desconhecida parece comum a
todas essas expressões. Esta categoria já vinha se insinuando nas leituras
preliminares das reportagens, mas foi ganhando contornos mais nítidos à medida
que as interpretávamos etnograficamente.
Cabe nuançar dois tipos de “mistério”, contudo, o que acaba impondo uma
distinção entre dois níveis de discurso contidos nestas reportagens. Como vimos,
se SUPER, por um lado, apresenta ao seu leitor a maneira como a teoria da
evolução de Charles Darwin “resolveu o mais complexo dos mistérios”, por outro,
a própria publicação chega a devassar uma realidade aparentemente desconhecida,
por exemplo, uma suposta história secreta da Igreja Católica. A diferença, porém,
não altera o sentido mais amplo que o “mistério” adquire em SUPER, pelo
contrário, reforça-o. Parece haver um paralelismo entre estes seus dois
significados: em alguns momentos, a própria publicação chega a mobilizar o
instrumental que, em outros, limita-se a apresentar. Noutras palavras, talvez seja
possível dizer, pelo menos em caráter preliminar, que SUPER divulgue ciência
tanto ao apresentar e explicar paradigmas científicos ao seu leitor quanto ao
colocá-los em prática.
Se concordamos com Norbert Elias, por exemplo, e encaramos o cientista
como um destruidor de mitos
280
, pode-se dizer que a postura de SUPER seja
científica, uma vez que se tenta problematizar ali uma série de preconceitos
cristalizados, como a suposta tirania de Esparta ou a alegada filantropia da Igreja
Católica. O “mistério”, então, pode ser lido de duas maneiras diversas, mas que
não se opõem: de um lado, retrospectivamente, como o princípio da narrativa
acerca de uma realidade que, se antes era desconhecida, agora já não o é mais,
graças ao advento de uma teoria que a explica; de outro, metodologicamente,
como um problema, uma questão levantada pela publicação e através da qual ela
mesma se debruça sobre uma realidade a investigar. Contudo, a prospectiva e a
expectativa – muitas vezes realizada – parecem ser as mesmas, isto é, a passagem
do desconhecer ao conhecido. E aqui talvez possamos estabelecer uma fronteira
280
De acordo com Tatiana Landini, em seu artigo A sociologia de Norbert Elias: “O cientista é,
para Elias, um destruidor de mitos – observando os fatos, luta por substituir mitos, idéias religiosas
etc., por teorias testáveis, verificáveis e susceptíveis de correção por meio da observação”
(LANDINI, 2006:103).
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mais clara entre o discurso científico e o jornalístico, entre a ciência e a
divulgação científica, matizando a sugestão levantada acima, isto é, a de que a
própria SUPER faria ciência lançando mão das teorias e conceitos que apresenta:
àquela primeira postura negativa e problematizadora, a revista tende a oferecer um
complemento positivo.
Nas reportagens, o “mistério” anda em companhia de uma contrapartida
que o anula, ou que tenta anulá-lo. A publicação não apresenta um “mistério”
intransitivamente, mas complementarmente em relação a uma “verdade”.
Expressões como “TV 2.0”, “a outra Esparta” ou “lado B da Igreja”, aliás, já
sugerem essa dinâmica. Ora, se há um “lado B” da Igreja, implica-se um “lado
A”, ou “C” até, mas outro, como uma “outra” Esparta, possivelmente mais
democrática do que se imagina. Embora empregado apenas na matéria de capa do
mês de abril, em passagens como “a verdade sobre Esparta” ou “saiba a verdade
sobre a cidade mais polêmica da Antiguidade”, o termo parece sintetizar a
maneira como a própria SUPER encara a abordagem a um “mistério”.
No mês de janeiro, por exemplo, ao se debruçar sobre a história do I
Ching, a publicação sugere ao leitor: “Conheça essa misteriosa história”
281
. Na
edição de fevereiro, conclui-se a respeito das transformações da televisão: “A TV
está mudando, mas o que será dela é um mistério ainda mais difícil do que
responder o que, afinal de contas, está acontecendo na ilha”
282
. Em março,
tematizando o espiritismo e a paranormalidade, SUPER afirma, a propósito da
epilepsia: “(...) é só uma das possíveis soluções do mistério”
283
; e sobre o cérebro:
“Se o cérebro é a chave para as alucinações (...)”
284
. Já em maio, “[p]ara
desvendar essa história [a história secreta da Igreja] é preciso retornar às origens
do cristianismo (...)”
285
. Em junho, por fim, destacam-se os desdobramentos do
trabalho de Darwin: “Há 150 anos, Darwin descobriu como a vida pode existir
sem a intervenção divina”
286
, “Agora a Teoria da Evolução está sendo usada para
explicar mistérios ainda maiores – e as revelações são assustadoras”
287
ou “Uma
281
SUPERINTERESSANTE, ed. 235:41, meu grifo.
282
Id., ed. 236:51, meu grifo.
283
Id., ed. 237:58, meu grifo.
284
Id., ed. 237, loc. cit., meu grifo.
285
Id., ed. 239:59, meu grifo.
286
Id., ed. 240: Capa, meu grifo
287
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
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idéia simples resolveu o mais complexo dos mistérios: o sentido da vida”
288
.
O “mistério”, então, é um problema que caberia resolver e solucionar, uma
realidade que provoca e à qual responderia e, pode-se acrescentar, corresponderia
uma “verdade” descoberta durante a reportagem, ali mesmo decifrada,
desencadeada, desvendada, explicada e revelada. Imbricados, “mistério” e
“verdade” seriam as partes complementares da relação que anima a noção de
ciência presente no discurso de SUPER, o primeiro tendendo a se dissolver na
última. Este é um processo que parece não ficar em aberto, tendo um começo e
um fim bem definidos, um problema e sua solução. É um percurso que, à primeira
vista, guarda bastante semelhança com o de uma narrativa científica. Esta
proximidade aparente pode ser ilustrada e questionada, por exemplo, com uma
comparação entre o discurso adotado por SUPER em suas matérias e o discurso
antropológico – e, portanto, científico.
Ao estabelecer uma distinção entre o relato antropológico e o literário
289
,
Roberto DaMatta afirma que “cada monografia etnográfica busca resolver ou
enfrentar um problema”
290
. Até aqui, portanto, seria lícito dizer que as matérias de
SUPER seriam narrativas científicas, ainda que não o fossem de maneira rigorosa.
Mais adiante, contudo, o autor chama a atenção para uma “diferença
importante”
291
:
É que nos relatos antropológicos busca-se dialogar com certa problemática,
enquanto na viagem [no relato literário] encontra-se uma série de aventuras
(episódios inesperados que permeiam o texto e provocam a imaginação do leitor)
(...)
292
.
Se na antropologia existe uma tentativa de “diálogo” com problemas, ou
seja, questões que “raramente são resolvidas pelo pesquisador [o antropólogo],
que apenas formula o que sua sociedade lhe permite formular naquele
momento”
293
, a tendência em SUPER parece ser muito mais a de superá-los, de
resolvê-los. Ainda, se a narrativa antropológica é “sempre motivada e realizada a
288
Id., ibid.:60, meu grifo.
289
Neste caso específico, entre o “texto etnográfico” e as “narrativas de viagem” (DAMATTA,
1993:38).
290
Id., ibid.:38.
291
Id., ibid.:39.
292
Id., ibid., loc. cit., grifos no original.
293
Id., ibid.:40, nota 6.
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100
partir de uma problemática anterior (e posterior) ao seu narrador”
294
, é possível
dizer que as reportagens analisadas não levariam instâncias posteriores em
consideração, os “mistérios” geralmente encerrando-se naquele espaço dedicado
ao texto da matéria. É como se cada uma delas fosse uma “aventura” que narra os
capítulos da destruição de um “mistério” que aprisionava uma “verdade”. No caso
destas reportagens, contudo, ao mesmo tempo em que se desfaz um mito – o
“mistério” –, pende-se para a criação de um outro – a “verdade”.
À exceção da reportagem de fevereiro, sobre o seriado Lost e a televisão,
predomina uma tendência cujo sentido seria orientado rumo a uma “explicação
definitiva”
295
. Como pudemos ver, no geral, a “verdade” apresentada – o I Ching
como um primórdio de código binário, os fenômenos paranormais como resultado
de falhas nas conexões cerebrais, a outra Esparta, o lado B da Igreja, Deus
enquanto um Multiverso de egoísmos – não é objeto de suspeita, de dúvida, tal
como uma cura xamanística – um mito –, conforme sugere Lévi-Strauss
296
, não o
é para o enfermo:
Os espíritos protetores e os espíritos malfazejos, os monstros sobrenaturais e os
animais mágicos, fazem parte de um sistema coerente que fundamenta a
concepção indígena do universo. A doente os aceita, ou, mais exatamente, ela
não os pôs jamais em dúvida
297
.
Esta postura, por sua vez, se aproximaria bastante daquela para a qual o
próprio Norbert Elias
298
chama a atenção:
(...) a tarefa que a ciência tem de perseguir os mitos até a morte e de demonstrar
que certas crenças generalizadas não são baseadas nos factos nunca será
totalmente realizada, pois que, tanto dentro como fora dos grupos de cientistas
especializados, há sempre quem converta as teorias científicas em sistemas de
crenças. Extrapolam-se as teorias e usam-se de um modo perfeitamente
divorciado de uma investigação dos factos teoricamente orientada
299
.
E embora se reconheçam eventuais lacunas na realidade nas reportagens de
SUPER, permanece a intenção de preenchê-las: “A TV está mudando, mas o que
294
Id., ibid.:43.
295
SUPERINTERESSANTE, ed. 237:54.
296
LÉVI-STRAUSS, C. “A eficácia simbólica”. In: ____. Antropologia estrutural. Tradução:
Chaim Samuel Katz e Eginardo Pires. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1973a, pp.215-36.
297
Id., ibid.:228.
298
ELIAS, N. Introdução à sociologia. Lisboa: Edições 70, 1970.
299
Id., ibid.:55-56 apud LANDINI, ibid.:103-4.
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101
será dela é um mistério ainda mais difícil do que responder o que, afinal de
contas, está acontecendo na ilha. Alguma teoria?
300
; “Talvez nem mesmo o
cérebro abrigue todas as explicações
301
ou “Enquanto uma explicação definitiva
não aparece, quem acredita ver espíritos prefere tentar levar a vida normalmente
(...)”
302
. A publicação, então, parece pender para a elaboração de um texto que
varia desde um ponto de vista cético até uma perspectiva mítica da realidade, num
espaço de aproximadamente dez páginas; ou, como já dissemos a respeito da
reportagem de maio, um texto que é tão iconoclasta quanto “iconoplasta”. Num
outro momento, mas a este mesmo propósito, o próprio Lévi-Strauss, por
exemplo, antropólogo ao qual nos referimos com alguma freqüência durante esta
dissertação, já se deparou com paradoxo semelhante, à única e fundamental
diferença que ele discorre sobre esta condição reflexivamente, isto é, ainda que
isto não o exima de críticas
303
, ele está atento às suas próprias contradições e,
importante, se expressa sobre elas:
Ao querer imitar o movimento espontâneo do pensamento mítico, meu trabalho –
que é breve demais e longo demais – foi obrigado a ceder às suas exigências e a
respeitar seu ritmo. Assim, este livro [refere-se a Le cru et le cuit], tratando de
mitos é, à sua própria maneira, um mito
304
.
Como afirma DaMatta: “Claude Lévi-Strauss, como se observa, não se
poupa como investigador. Ele é o primeiro a relativizar o seu próprio esquema de
análise dos mitos, colocando-se, corajosamente, nela”
305
. É esse tipo de atitude
que tende a ficar de fora das reportagens de SUPER, ou seja, a problematização
reflexiva das próprias perspectivas ali elaboradas – desde as premissas adotadas
até as conclusões a que se chegou. Isto, aliás, não deveria ser percebido como uma
deficiência dos textos da publicação, uma vez que, ao que tudo indica, SUPER
300
SUPERINTERESSANTE, ed. 236:51, meus grifos.
301
Id., ed. 237:61, meu grifo.
302
Id., ibid., loc. cit., meu grifo.
303
Jacques Derrida, de quem emprestamos a citação, coloca a seguinte problemática: “(...) mesmo
que nos curvemos à necessidade do que Lévi-Strauss fez, não podemos ignorar os riscos. Se o
mitológico é mitomórfico, serão equivalentes todos os discursos sobre mitos? Deveremos
abandonar qualquer exigência metodológica, que nos permita distinguir entre várias qualidades do
discurso sobre o mito?” (DERRIDA, 1976:271).
304
LÉVI-STRAUSS, s/d apud DERRIDA, 1976:270. O texto “direto” de Lévi-Strauss, tal como
presente na “Abertura” da edição brasileira de O cru e o cozido, é como segue: “E, querendo imitar
o movimento espontâneo do pensamento mítico, nosso empreendimento, ele também curto demais
e longo demais, teve de se curvar às suas exigências e respeitar seu ritmo. Assim, este livro sobre
mitos é, a seu modo, um mito” (id, 1991:15).
305
DAMATTA, 1987:106.
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não se pretende uma revista científica. Além disso, como tentamos deixar claro
durante a análise de cada uma das reportagens, há passagens que realmente
nuançam o discurso ali elaborado, permitindo-nos apenas sugerir que haveria uma
ênfase, uma tendência de SUPER em se debruçar sobre um “mistério” e a sua
“verdade”, e não um fato editorial que consistiria em estabelecer uma lógica rígida
e incontornável entre ambos.
O que parece diferenciar o relato jornalístico da publicação frente a um
relato antropológico, uma vez que ambos consistem em interpretações da
realidade, seria, no dizer de Clifford Geertz, a “densidade” de cada interpretação.
É possível sugerir que a interpretação jornalística da realidade não estaria cercada
do mesmo zelo – teórico e metodológico – que baliza a narrativa antropológica. E
é necessário deixar claro: o jornalista, por não tomar os mesmos cuidados que o
antropólogo, não seria necessariamente um descuidado, seu zelo sendo outro; sua
interpretação, apenas por isso, não seria “menos” interpretação. A emissão de
juízo como esse redundaria, ao fim, num etnocentrismo explicitamente normativo,
no caso, um “cientificocentrismo” ou, mais precisamente, um
“antopologicocentrismo”. Além disso, é possível que esta tendência de partir de
um “mistério” para se chegar a uma “verdade” seja dotada de algum valor prático
para a exposição jornalística de SUPER. Esta possibilidade, contudo, permanece
uma hipótese a ser investigada, uma vez que oneraria consideravelmente os
esforços aqui empreendidos.
Ainda assim, o jornalismo de SUPER é passível de crítica – ainda que
crítica literária, como preferiria Geertz –, sendo inegáveis as distintas qualidades
de uma e outra atitudes intelectuais. Como informa DaMatta, “as etnografias têm
se concentrado na descrição daquilo que todos fazem ou pensam que fazem; dos
valores que orientam ou balizam as condutas coletivas e que todos mantêm e
acreditam”
306
. Desse modo, diferentemente de SUPER, onde haveria ou onde
predominaria, como insinuamos acima, uma preocupação em decifrar uma
“verdade” a partir de um “mistério”, de dar conta de um problema através de sua
“explicação definitiva”, na narrativa antropológica a tônica se concentraria não
tanto em decifrar códigos, mas em lhes compreender as bases sociais e a
importância para determinada coletividade humana. Conforme Geertz:
306
DAMATTA, 1993:42.
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103
Analysis [a análise antropológica], then, is sorting out the structures of
signification – what Ryle called established codes, a somewhat misleading
expression, for it makes the enterprise sound too much like that of the cipher
clerk when it is much more like that of the literary critic – and determining their
social ground and import
307
.
Em suma, então, o discurso de SUPER sobre a ciência, um discurso que
interessa, ou melhor, “superinteressa” ao seu jovem leitor, parece consistir num
relato sobre a conversão de um “mistério” numa “verdade”, o percurso de um
problema até a sua solução definitiva. Nesta narrativa, tende-se a substituir as
interrogações por pontos finais, trocando, dessa forma, o duvidoso pelo certo.
Desse modo, classificamos o discurso da publicação como tendencialmente
mítico.
Há pelo menos dois motivos para empregarmos o advérbio
“tendencialmente” ao classificarmos as reportagens da revista. Por um lado, o
discurso de SUPER não é categoricamente mítico porque abriria, de fato, margem
para lacunas e dúvidas. É possível detectar no texto interno de cada uma das
reportagens passagens que nuançariam o argumento da publicação. Contudo,
como tentamos mostrar, a ênfase parece ser a de solucionar problemas. Tanto é
assim que a reportagem de fevereiro de 2007 – sobre um seriado televisivo e as
transformações nos meios de comunicação de massas – sobressai justamente
como uma espécie de exceção à tendência detectada na série como um todo. Já a
matéria do mês de junho, sobre Teoria da Evolução, encontra-se em contraponto
em relação à reportagem de fevereiro, mobilizando o próprio paradigma que
divulga para apresentar “verdades” que chegariam ao plano do divino. Por outro
lado, consideramos imprudente inferir que o discurso de SUPER seja
categoricamente mítico a partir da análise de apenas seis reportagens de capa. Um
diagnóstico mais preciso talvez venha a partir de um estudo mais amplo, tanto de
um exemplar da revista em si, como de uma série que contenha mais exemplares.
De qualquer modo, não deixa de ser significativo chamar a atenção para o
fato de que, enquanto finalizamos estas páginas, no começo de junho de 2008, isto
é, um ano depois de publicada a última reportagem de SUPER considerada neste
trabalho, deparemos com os seguintes dizeres na capa, no índice e no lide da
307
GEERTZ, ibid.:9.
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reportagem de capa da edição 253:
Os novos mistérios de Indiana Jones[:] O que é a Caveira de Cristal?[;]
Alienígenas, Roswell e a Área 51[;] Quem desenhou as linhas de Nazca?[;] O
que há de verdade e de ficção nos últimos enigmas da série.
Indiana Jones[:] Caveira de cristal, Roswell, El Dorado: a verdade sobre os
mistérios da nova aventura do nosso arqueólogo favorito.
Indiana Jones e suas histórias não resolvidas[:] Ele derrotou soviéticos e
nazistas, explorou lugares incríveis e achou tesouros desconcertantes. Mas, ao
fazer tudo isso, mais confundiu do que explicou: como misturam pitadas de
realidade com muita ficção, as aventuras do arqueólogo mais famoso do cinema
não solucionam os mistérios que levantam. Saiba o que a ciência tem a dizer e
desvende conosco os 7 maiores enigmas da série
308
.
308
SUPERINTERESSANTE, ed. 253: Capa, Índice e p.42.
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4
Considerações finais: quem tem medo da verdade?
(...) e conhecereis a verdade, e a verdade vos livrará.
(João 8:32)
Nestas considerações finais, empreendemos muito menos um esforço de
revisão e recapitulação do que de síntese. Procura-se, neste sentido, esboçar um
panorama amplo que permitiria contextualizar sociologicamente as considerações
desenvolvidas nos capítulos precedentes. Para tanto, mobilizamos principalmente
dois autores, a saber, Zygmunt Bauman com Medo líquido (2008)
1
e Gilles
Lipovetsky com A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de
hiperconsumo (2007)
2
. Tentamos argumentar através destas duas obras que, num
mundo onde crescem os sentimentos de medo e incerteza, o discurso de SUPER
poderia ser compreendido como uma espécie de “torre de marfim” de segurança
oferecida a um consumidor que, na expressão não necessariamente crítica de
Lipovetsky, sofreria de uma “febre do conforto”
3
. Finalmente, sugerimos algumas
hipóteses investigativas que poderiam ser derivadas desta dissertação.
No decorrer deste trabalho, tentamos argumentar que os jovens das
camadas médias urbanas brasileiras não seriam apenas e necessariamente
indivíduos desprovidos de limites. Ao contrário, estes jovens parecem cultivar e
zelar cada vez mais pelos seus próprios limites; é o que nos leva a crer, pelo
menos, a análise dos trabalhos de outros pesquisadores aqui realizada. Além disso,
e talvez possamos ver aí mais uma problematização da idéia de uma juventude
sem parâmetros éticos bem delineados, a vida destas moças e destes rapazes vai se
firmando como um valor para a sociedade mais ampla; ou seja, no caso extremo, a
juventude acaba virando um referencial para todos. Analisando o consumo de
1
BAUMAN, Z. Medo líquido. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2008.
2
LIPOVETSKY, G. A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.
Tradução: Maria Lucia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
3
Id., ibid.:11.
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itens supostamente infantis
4
por pessoas adultas, Lipovetsky afirma que
[s]e os velhos querem parecer jovens, os jovens adultos “recusam-se” a crescer:
enquanto o mercado do “consumo regressivo” se desenvolve, a recusa de
crescer começa cada vez mais cedo, os jovens adultos parecem querer viver no
eterno prolongamento de sua infância ou de sua adolescência
5
.
No entanto, ainda conforme Lipovetsky, não se deveria depreender daí
uma “regressão psicológica”
6
ou uma “transformação ontológica completa”
7
.
Tentamos desenvolver este ponto ao chamar a atenção para uma postura
etnocêntrica teoricamente adotada tanto pelos jovens quanto pelos adultos.
Argumentamos que a percepção de uma tensão entre as gerações talvez não seja
devida apenas à intolerância dos adultos em relação às práticas inovadoras dos
jovens, mas também destes em relação àqueles. Ainda que se diminuam
simbolicamente as posições de poder na família e mesmo que cada um dos seus
membros tenha uma autonomia individual cada vez mais ampliada, ainda assim
haveria diferenças simbólicas inconciliáveis entre jovens e adultos, entre pais e
filhos.
Desse modo, insinuamos que aquilo que o senso comum apreende como
um incômodo e muitas vezes incompreensível atrito entre as gerações poderia ser
interpretado teoricamente como etnocentrismo de parte a parte. Aí estariam os
limites que “faltam” ao jovem. Ademais, buscamos mostrar que uma postura
etnocêntrica das diferentes gerações não seria necessariamente nociva para as
relações familiares, mas parte constituinte do universo de relações em que
consiste uma família. Mesmo que o estilo de vida e as opções de consumo dos
primeiros estejam sendo alçados a uma posição privilegiada dentro dos sistemas
de representações das sociedades capitalistas contemporâneas – e especialmente
das sociedades ocidentais –, continuaria havendo diferenças simbólicas entre as
diversas faixas etárias que constituem estas coletividades, uma vez que “[p]or
meio do consumo, jogamos com as diferenciações: não as abolimos”
8
. Enfim,
4
Alguns produtos citados por Gilles Lipovetsky: ursinhos, camisetas Barbie, patins, patinetes etc.
(ibid.:71)
5
LIPOVETSKY, 2007:71.
6
Id., ibid.:73.
7
Id., ibid., loc. cit.
8
Id., ibid.:72.
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[n]ão há mutação da espécie humana: postos de lado os casos extremos da
síndrome de Peter Pan, trata-se apenas de redescobrir, em tempo parcial,
sensações felizes experimentadas na infância, de recriar um universo de
satisfação e de prazer, de não renunciar a nada, justapondo consumos tanto
adultos quanto infantis
9
.
Em seguida, debruçamo-nos sobre um item de consumo que
“superinteressa” a este jovem. Voltamo-nos assim para a análise das seis
reportagens de capa do primeiro semestre de 2007 de SUPER. Num primeiro
momento, dedicamo-nos à realização de uma etnografia individual para cada uma
das reportagens, respeitando-lhes o assunto, o ritmo interno e, por isso,
mobilizando teorias distintas para compreender antropologicamente o seu
conteúdo. Tentamos, então, uma síntese através das categorias nativas “mistério”
e “verdade”, que emergiram no decorrer dos primeiros esforços de interpretação
individual. Esta síntese de caráter antropológico baseou-se numa comparação
entre o discurso de “divulgação científica” e o discurso científico propriamente
dito, ou melhor, um discurso científico específico, o da própria antropologia.
Ao tentar interpretar a maneira como SUPER divulga a ciência, buscamos
ter acesso, ainda que de maneira indireta, a uma parte das representações que
compõem a visão de mundo mais ampla destes jovens. Realizou-se, desse modo,
uma espécie de análise metonímica, onde se tenta aprofundar a compreensão de
um todo – a cultura jovem das camadas médias urbanas brasileiras – através da
interpretação mais esmiuçada de uma de suas incontáveis partes – uma
representação de ciência aí consumida.
Deparamos com um discurso que muitas vezes enveredaria por uma tônica
mítica na qual se tende a apresentar um “mistério” sendo resolvido numa
“verdade”, a narrativa da equação de um problema até a sua solução. Seria
possível detectar um pendor de SUPER em adotar uma narrativa tendencialmente
reducionista ao divulgar ciência: evolucionismo cultural, positivismo,
materialismo, determinismo biológico, por exemplo, estariam presentes na
narrativa destas reportagens. Este reducionismo orienta-se, ou melhor, tende-se a
orientar no sentido de um “mistério” rumo a uma “verdade”, na apresentação de
soluções para problemas. Como tentamos sugerir, esta dinâmica entre as
categorias “mistério” e “verdade” fundamentaria a própria noção de ciência
9
Id., ibid.:73, grifo no original.
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exposta nas reportagens da publicação. A ciência divulgada por SUPER não
consistiria apenas num o quê, mas também num como, forma e conteúdo estando
imbricados. É assim que classificamos o discurso de SUPER como
tendencialmente mítico, uma vez que a exposição do argumento das reportagens
tende à supressão de um mito – um “mistério” – através da criação de um outro –
uma “verdade”.
A esta altura, então, teríamos um jovem teoricamente etnocêntrico
consumindo um discurso tendencialmente mítico. Como compreender esta
conjugação?
Talvez seja proveitoso recordar o que nos diz Renato Janine Ribeiro, já
que, à primeira vista, a combinação entre juventude, etnocentrismo e mito pode
soar um tanto deslocada para um tempo onde se valorizaria o jovem, entre outras
coisas, pela liberdade de que desfruta e pelo que tem a oferecer de novo à
sociedade. Como vimos com Ribeiro, a associação entre invenção e inovação, por
um lado, e juventude, por outro, é um fenômeno com contornos históricos
relativamente precisos, que teria se originado, ou pelos menos tonificado, com a
Revolução Francesa. A partir daí até bem recentemente, a contestação teria
consistido numa “das grandes vocações dos jovens”
10
. Contudo, ainda segundo o
autor, desde a metade do século XX, o jovem se encontraria na mira de dois
fogos, poderíamos dizer, dois modos de inserção e intervenção no mundo: a
revolução, de uma parte, e, de outra, a integração. Ao que parece, esta última
estaria acertando mais o seu alvo:
(...) a energia [do jovem] não está necessariamente na dissidência, na
divergência em face do que existe (como prega a vertente revolucionária,
subversiva da juventude, hoje enfraquecida ante a outra vertente), mas numa
integração ao modo como as coisas são
11
.
Dessa maneira, levando-se em conta o contexto contemporâneo mais geral,
o possível interesse de jovens numa narrativa mítica não chegaria a ser de todo
inverossímil. Cada vez mais um símbolo das liberdades possibilitadas pelas
sociedades de consumo – ou hiperconsumo, como indica Lipovetsky
12
–, ele bem
poderia optar pelo consumo de um tipo de literatura que pende para uma
10
RIBEIRO, ibid.:24.
11
Id., ibid.:26.
12
Discutiremos a noção de “hiperconsumo” mais adiante.
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interpretação totalizante da realidade. Ademais, basta recordar a noção de
“desmapeamento” sugerida por Sérvulo Figueira para que se compreenda melhor
esta realidade: “a existência de mapas diferentes e contraditórios inscritos em
níveis diferentes e relativamente dissociados dentro do sujeito”
13
.
Assim, parece haver uma afinidade entre esta postura mais sóbria do
jovem de hoje e o contexto mais abrangente no qual ele está imerso, onde, a partir
do raciocínio de Ribeiro, seria possível detectar o predomínio de uma
perplexidade e de um imobilismo frente ao que poderíamos chamar uma “sinuca
de bico”. O impasse decorreria justamente da forma como esta situação é
interpretada, ou seja, de maneira tanto trágica quanto irônica, o estado de coisas
atual é muitas vezes apreendido como incontornável e incontrolável justamente
por aqueles que teriam um papel fundamental na sua própria composição. Neste
sentido, Ribeiro argumenta que
[n]ão basta culpar a conjuntura ou o predomínio mundial de políticas
neoliberais ou, ainda, a hipoteca que a economia lançou sobre o mundo,
reduzindo muito a liberdade dos atores políticos, isto é, tanto dos eleitos quanto
de seus eleitores
14
. Pois o desafio atual para a política é justamente o de
construir a liberdade contra a necessidade, e o discurso dominante, econômico,
chamado geralmente de neoliberal por seus detratores, é em larga medida o da
necessidade
15
.
Em seu Medo líquido, Zygmunt Bauman detecta neste tipo de leitura da
realidade uma das principais características do medo nos dias de hoje, isto é,
quando a própria ação humana no mundo passaria a ser tomada como um mal
“inadministrável”
16
. Para compreender melhor tal argumento, entretanto, faz-se
necessário esclarecer como este autor entende tanto o mal quanto o medo no
presente. Em verdade, Bauman percebe-os como “irmãos siameses”
17
, “dois
nomes de uma só experiência – um deles se referindo ao que se vê e ouve, o outro
ao que se sente”
18
; uma experiência que atualmente despertaria o horror pela falta
13
FIGUEIRA, ibid.:22-3.
14
Nesta passagem, Ribeiro dá destaque aos “eleitos” e “eleitores” como atores políticos. Contudo,
isto não significa que o autor reduza a política ao processo eleitoral. Pelo contrário, chama-nos a
atenção justamente para o papel central que desempenham outros atores na renovação das práticas
políticas, sejam os “movimentos sociais” (RIBEIRO, ibid.:28), sejam manifestações individuais de
“indignação ética” (ibid., loc. cit.).
15
Id., ibid.:30-1.
16
BAUMAN, 2008:96.
17
Id., ibid.:74.
18
Id., ibid., loc. cit.
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de um quadro intelectual que consiga dar conta de uma realidade específica que
“se esquiva à investigação e resiste à articulação discursiva”
19
. Assim,
[a] pergunta “o que é o mal?” é irrespondível porque tendemos a chamar de
“mal” precisamente o tipo de iniqüidade que não podemos entender nem
articular claramente, muito menos explicar sua presença de modo totalmente
satisfatório. Chamamos esse tipo de iniqüidade de “mal” pelo próprio fato de ser
ininteligível, inefável e inexplicável. O “mal” é aquilo que desafia e explode essa
inteligibilidade que torna o mundo suportável...
20
Antes da modernidade, segundo Bauman, o mal seria tido como um
problema moral e, portanto, moralmente combatido através da virtude religiosa e
expiado através do castigo. Havia até ali, desse modo, uma inteligibilidade
subjacente à compreensão do mal como um derivado do pecado, uma vez que
“[s]abemos o que é ‘pecado’ porque temos uma lista de mandamentos cuja
violação torna os praticantes pecadores”
21
. Aqui, então, o mal imputado à
humanidade é dotado de um significado e, daí, conforme o autor, de uma
intenção
22
, seja a de uma vontade divina, seja a de uma “natureza disfarçada de
Deus”
23
.
Durante esse período pré-moderno, contudo, tonificou-se a contradição
entre a suposta intervenção de um “Sujeito Divino benévolo e onipotente”
24
e
uma realidade mundana que era representada mais e mais miserável por aqueles
que a experimentavam. Filiando-se a estudos de Susan Neiman
25
e Jean-Pierre
Dupuy
26
, Bauman aponta o terremoto de Lisboa, em 1755, como um ponto de
ruptura com a perspectiva até então predominante. Dali em diante, desencanta-se a
natureza. O autor sugere que, em um ímpeto arrogante de busca por autonomia, os
homens privaram o mundo externo de qualquer subjetividade, “numa espécie de
punição pela ineficácia da obediência, da oração e da prática da virtude”
27
:
No limiar da Era Moderna, o armistício milenar e a incômoda coabitação entre
19
Id., ibid.:75.
20
Id., ibid:74, grifo no original.
21
Id., ibid., loc. cit.
22
Id., ibid.:79.
23
Id., ibid:111.
24
Id., ibid:112.
25
Susan Neiman, Evil in Modern Thought: An Alternative History of Philosophy, Princeton
University Press, 2002.
26
Jean-Pierre Dupuy, Petite métaphysique des tsunamis, Seuil, 2005.
27
Id., ibid., loc. cit.
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a natureza disfarçada de Deus e suas criaturas humanas foram rompidos,
estabelecendo uma linha de frente entre natureza e humanidade. As duas
modalidades eram vistas como quase incompatíveis. Para a humanidade, cada
vez mais eloqüente e ambiciosa, guiada pela determinação e resolvida a forçar o
mundo a servir a suas ambições, a natureza agora se opunha, tal como um objeto
cartesiano se coloca diante de um sujeito pensante: inerte, desprovida de
propósito, rebelde, insensível e indiferente às aspirações humanas.
É com a modernidade, então, que se deixa de perceber o mal globalmente
como uma resultante do pecado, resultante a ser negociada com um Sujeito
Divino, para que se passe a percebê-lo de maneira compartimentada. De um lado,
haveria os males sociais ou morais, em princípio retificáveis, já que apreendidos
como de criação exclusivamente humana e, portanto, dotados de motivações
menos ou mais compreensíveis. De outro, os males naturais que, agora
desprovidos de qualquer propósito ou intenção, são incompreensíveis ou, como
precisa Bauman através de Kant, “não apenas desconhecido[s], mas
incognoscíve[is]”
28
.
Ora, com uma natureza objetificada, toda a responsabilidade pela
transformação do mundo em um lugar isento do mal passava a ser assumida pela
humanidade, afinal, “[t]entar debater e barganhar com a natureza ‘desencantada’
na esperança de incorrer em suas graças evidentemente não fazia sentido”
29
.
Desse modo, os desastres naturais vivenciados pelos homens são esvaziados do
simbolismo dogmático de outrora e passam a ser vistos como dados imprevisíveis
e aleatórios, elementos incompreensíveis e sem qualquer significado invadindo o
quotidiano das pessoas. Cabia regulá-los e dominá-los através de uma ciência e de
uma técnica apenas temporariamente insuficientes para lidar com este mundo
indócil, porém, não se duvidava, docilizável:
As ameaças evidentemente não desapareceram e, privada de seu disfarce divino,
a natureza desencantada não pareceu menos terrível, ameaçadora e
aterrorizante do que antes; mas o que as preces não tinham conseguido
alcançar, a techne (...), apoiada pela ciência, certamente conseguiria logo que
acumulasse as habilidades de fazer coisas e a usasse para que as coisas fossem
feitas
30
.
A originalidade do mal nos tempos “líquido-modernos”, segundo Bauman,
28
Id., ibid.:75.
29
Id., ibid:112.
30
Id., ibid.:113.
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seria uma conseqüência da acentuação do pendor original da modernidade à
burocratização racional inerente ao empreendimento humano de controle da
natureza. Potencializou-se, assim, por um lado, uma tendência à diminuição da
relevância dos critérios morais que permeiam a avaliação das possibilidades da
ação humana – o que Bauman chama “adiaforia”
31
– e, complementarmente,
produziu-se agentes humanos individuais “expropriados da responsabilidade
moral pelas conseqüências de seus feitos”
32
. A burocracia, assim, “exigia
conformidade à norma, não a avaliação moral
33
, consistindo num “dispositivo a
serviço da tarefa da mecanização da ética
34
. O que decorre daí, arremata
Bauman, é uma “defasagem moral”
35
, quer dizer, os motivos e os objetivos da
ação humana só adquirem sentido “ex post facto
36
:
Os motivos da ação só tendem a ser claramente visualizados como reflexões
posteriores, freqüentemente na forma de uma desculpa retrospectiva ou de um
argumento em favor de circunstâncias atenuantes, enquanto as ações que
empreendemos, embora às vezes inspiradas por insights e impulsos morais, são
mais comumente estimuladas pelos recursos de que dispomos. Como o spiritus
movens de nossas ações, a causa substituiu a intenção
37
.
Desse modo, a aleatoriedade e a imprevisibilidade, que durante toda a
modernidade caracterizaram apenas os males naturais, passariam agora a ser uma
propriedade também dos males sociais. Hoje, então, sugere Bauman, os males
naturais e sociais se reencontrariam e se refundiriam. Não é o caso, contudo, de
percebê-los novamente como teriam sido apreendidos até começar a Era Moderna,
ou seja, ambos embebidos numa visada dogmática, onde tudo teria o seu lugar e
nada ficaria sem explicação, mas, ao contrário, como uma lacuna cada vez maior
de significados e intenções, um alargamento, enfim, do campo do incognoscível.
Alinhando-se a Dupuy, Bauman conclui que
[t]udo isso (...) acontece como se a tecnologia feita pelo homem, adquirindo
ainda mais independência e impulso de autopropulsão a cada passo que dá,
estivesse se transformando numa força inumana destinada a tirar dos inventores
31
Id., ibid.:114.
32
Id., ibid.:115.
33
Id., ibid., loc. cit., grifos no original.
34
Id., ibid., loc. cit., grifo no original.
35
Id., ibid.:120.
36
Id., ibid.:121.
37
Id., ibid.:120, grifos no original.
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humanos o fardo da liberdade e da autonomia...
38
O autor continua argumentando que esta dinâmica se expandiria até as
próprias relações pessoais, precarizadas pelo que chama “crise de confiança”
39
.
Uma vez que se passa a compreender o mal como ubíquo e que qualquer um
poderia estar “a seu serviço”
40
, os vínculos humanos seriam transformados “em
territórios de fronteira em que é preciso travar, dia após dia, intermináveis
conflitos de reconhecimento”
41
. O resultado disso, diz Bauman, é um aumento
generalizado da ansiedade:
Com a diluição das normas reguladoras dos deveres e obrigações mútuos, sem
que estas ostentem uma expectativa de vida confortavelmente prolongada, há
poucas constantes, se é que há alguma, nas equações que se tenta diariamente
resolver. Fazer cálculos se parece mais com solucionar um quebra-cabeça com
poucas pistas, todas elas dispersas, ambíguas e inconfiáveis. De modo geral, as
relações humanas não são mais espaços de certeza, tranqüilidade e conforto
espiritual. Em vez disso, transformaram-se numa fonte prolífica de ansiedade
42
.
Levando-se em consideração este quadro abrangente esboçado através da
obra de Bauman, talvez seja possível argumentar que as “verdades” apresentadas
por SUPER ao seu leitor potencializariam a atenuação deste contexto mais amplo
de insegurança e ansiedade, o que, no dizer do autor, tornaria o mundo um lugar
mais “suportável”. Se, conforme sugere Bauman, a tendência moderna à liberdade
e à autonomia chega a ser interpretada como um “fardo”
43
atualmente, um pouco
de “verdade”, de necessidade portanto, poderia ser encarado como um contrapeso
até bem-vindo.
O conteúdo analisado de SUPER, neste sentido, parece se enquadrar no
fenômeno que Lipovetsky chama “consumo ansioso” ou “desconfiado”. Para
melhor entendê-lo, contudo, é preciso compreender a perspectiva deste autor para
o consumo ou, mais precisamente, o hiperconsumo.
38
Id., ibid.:118, grifos no original.
39
Id., ibid.:91.
40
Id., ibid., loc. cit.
41
Id., ibid.:93.
42
Id., ibid., loc. cit.
43
Apesar do tom, digamos, catastrofista de Bauman, a sua leitura da liberdade como um fardo não
chega a ser absolutamente inconsistente. Para o caso específico dos jovens em estudo, por
exemplo, Maria Rita Kehl nos diz que “[o]s filhos das gerações rebeldes dos anos 1970 herdaram
os direitos e as liberdades conquistados por seus pais. Mais ainda: herdaram de seus pais o
imperativo de desfrutar a vida, o dever da felicidade e a obrigação da liberdade” (KEHL,
ibid.:107).
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Segundo Lipovetsky, o capitalismo de consumo poderia ser dividido em
três ciclos ou fases. A primeira delas se iniciaria por volta dos anos 1880,
terminando com a Segunda Guerra Mundial. Durante este período, com a
progressiva substituição dos pequenos mercados locais pelos grandes mercados
nacionais através das modernas infra-estruturas de comunicação e de transporte,
além da “construção cultural e social que requereu a ‘educação’ dos consumidores
ao mesmo tempo que o espírito visionário de empreendedores criativos”
44
, inicia-
se uma tendência que se acentuaria até os dias de hoje, a “democratização do
acesso aos bens mercantis”
45
– especialmente aos bens duráveis –, isto é, uma
tendência que consistia em “pôr os produtos ao alcance das massas”
46
.
Se esta democratização é limitada no que Lipovetsky chama “fase I” do
capitalismo de consumo, na “fase II”, a partir dos anos 1950, intensifica-se este
processo, “pondo[-se] à disposição de todos, ou de quase todos, os produtos
emblemáticos da sociedade de afluência: automóvel, televisão, aparelhos
eletrodomésticos”
47
. No entanto, os desdobramentos simbólicos desta nova fase
talvez tenham sido mais importantes que a oferta material ampliada tomada em si
mesma
48
:
Pela primeira vez, as massas têm acesso a uma demanda material mais
psicologizada e mais individualizada, a um modo de vida (bens duráveis, lazeres,
férias, moda) antigamente associado às elites sociais
49
.
São a hipertrofia desta psicologização e desta individualização do
consumo que, a partir do final dos anos 1970, caracterizam a “fase III” do
capitalismo de consumo, o hiperconsumo. Conforme Lipovetsky, o “gosto pela
mudança incessante no consumo já não tem limite social, difundiu-se em todas as
camadas e em todas as categorias de idade”
50
. Se na “fase II” esta significação
44
LIPOVETSKY, ibid.:28.
45
Id., ibid., loc. cit.
46
Id., ibid., loc. cit.
47
Id., ibid.:32.
48
Seria preciso relativizar o alcance das considerações de Lipovetsky para o caso brasileiro. Se, de
fato, presenciamos aqui, durante a década de 1950, uma ampliação do horizonte de consumo das
camadas médias, especialmente a partir do governo de Juscelino Kubitschek, seria imprudente
estender estas transformações a “todos, ou quase todos”. Parece lícito insinuar, contudo, que o
apelo simbólico destas modificações teria um alcance mais amplo que os próprios bens e serviços
introduzidos no mercado nacional à época.
49
Id., ibid.:33.
50
Id., ibid.:43-4.
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mais idiossincrática das compras era devida, em boa parte, à conformação do
indivíduo a uma identidade grupal, ou seja, à manutenção de sua “posição social”,
o hiperconsumo vai além, sem negar completamente este último aspecto,
caracterizando-se justamente por privilegiar uma lógica aquisitiva
“desinstitucionalizada, subjetiva, emocional”
51
:
Queremos objetos “para viver”, mais que objetos para exibir, compramos menos
isto ou aquilo para nos pavonear, alardear uma posição social, que com vista a
satisfações emocionais e corporais, sensoriais e estéticas, relacionais e
sanitárias, lúdicas e distrativas. Os bens mercantis funcionavam tendencialmente
como símbolos de status, agora eles aparecem cada vez mais como serviços à
pessoa
52
.
É dentro desta relação emocional com as mercadorias, em que o “essencial
se dá de si para si”
53
, em que o indivíduo se beneficiará de uma “imagem positiva
de si para si”
54
– e não tanto de si para o outro –, é aí que Lipovetsky identifica
duas lógicas antagônicas a orientar o consumo nos dias de hoje:
(...) a fase III funciona segundo duas lógicas contrárias, desenvolvendo-se o
consumo lúdico paralelamente ao consumo ansioso ou desconfiado (qualidade
do produto, perigo das mercadorias, dos organismos geneticamente
modificados)
55
.
O consumo lúdico é uma vertente do hiperconsumo que sublinha tanto o
“ideal social hedonista quanto [as] aspirações subjetivas de prazer”
56
nas
sociedades capitalistas contemporâneas. No entanto, diz Lipovetsky, seria
impreciso inferir que o consumo aí consista num mero efeito indireto da satisfação
das necessidades e dos desejos individuais. Neste sentido, o consumo seria dotado
de uma positividade própria, já que “se ele é uma forma de consolo, funciona
também como um agente de experiências emocionais que valem por si
mesmas”
57
.
Assim, não se trata tanto de consumir, de hiperconsumir levando-se
adiante o que poderíamos chamar “desbunde”; pelo contrário, trata-se de buscar a
51
Id., ibid.:41.
52
Id., ibid.:41-2.
53
Id., ibid.:45.
54
Id., ibid.:47.
55
Id., ibid.:374, nota 14.
56
Id., ibid.:61.
57
Id., ibid., loc. cit.
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“felicidade das ‘pequenas aventuras’ previamente estipuladas, sem risco nem
inconveniente”
58
. Buscam-se atividades que possibilitem ao hiperconsumidor
reapropriar-se de “seus próprios prazeres”
59
, fruindo experiências de cunho mais
pessoal, que respeitem o seu próprio tempo, poderíamos acrescentar, atividades
que “tenham mais a sua cara”. Não ocorreria, desse modo,
[n]enhuma perda das referências e confusão do real e da ilusão: simplesmente o
encantamento que (...) integralmente “estruturado” pelo imaginário, elimina as
coerções do real tão-somente no tempo do consumo
60
.
Se a noção de consumo lúdico pode ser interpretada como representante da
face divertida, do lado “fun
61
da individualização das relações com as
mercadorias, a de consumo ansioso ou desconfiado pode ser lida como símbolo
das incertezas que surgiriam, precisamente, da libertação dos atos de compra
daquelas conformidades grupais por detrás do comprometimento com uma
posição social. É assim que Lipovetsky compreende, por exemplo, o que chama
“fetichismo das marcas”
62
. Por um lado, reconhece o autor, o recurso aos produtos
que ostentam marcas tidas como superiores está relacionado a um “prazer
narcísico de [se] sentir uma distância em relação à maioria”
63
. Por outro, uma vez
que cada consumidor acabaria por se considerar e ser considerado um farol de
gosto, deixa-se de saber com a nitidez de outrora onde exatamente está o “bom
gosto”. E, como se pode notar a partir do argumento de Lipovetsky, não se trata
apenas de uma questão de moda:
(...) quando as normas de “bom gosto” se confundem, a marca permite
tranqüilizar o comprador; quando se multiplicam os medos alimentares, são
privilegiados os produtos com o selo “biodinâmico”, as marcas cuja imagem é
associada ao natural e ao “autêntico”. É sobre um fundo de desorientação e de
ansiedade crescente do hiperconsumidor que se destaca o sucesso das marcas
64
.
Entre uma e outra leitura para o hiperconsumo, Lipovetsky não abre mão
de nenhuma, mas tende a dar destaque analítico à ansiedade frente ao hedonismo,
58
Id., ibid.:63.
59
Id., ibid.:65.
60
Id., ibid.:64.
61
Id., ibid., loc. cit.
62
Id., ibid.:47.
63
Id., ibid., loc. cit.
64
Id., ibid.:50.
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ainda que os dois pareçam andar sempre de mãos juntas. O autor chega mesmo a
criticar os analistas que interpretam a aquisição de bens e serviços hoje através de
um prisma exclusivamente lúdico:
(...) o que é que, em nossos dias, não está cercado de ameaças, de incertezas e de
riscos? (...) quase tudo é suscetível de alimentar os sentimentos de inquietação.
Enquanto não se crê mais em um futuro necessariamente melhor que o presente,
elevam-se novos medos ligados ao presente e ao futuro. Quanto mais a felicidade
hedonista é exibida, mais é acompanhada por “temores e tremores”: o que se
propaga é menos o carpe diem do que o sentimento de insegurança. Na verdade,
o culto do instante não está à nossa frente: ele regride
65
.
Nestes termos, SUPER, além de uma fonte de “verdades”, pode ser
interpretada como um selo de qualidade, uma marca indexando a qualidade e a
confiabilidade das informações ali divulgadas, o que permitiria ao leitor da
revista, nas palavras de Lipovetsky, ser tomado de um “sentimento íntimo de ser
uma ‘pessoa de qualidade’”
66
.
De modo semelhante, mas de forma alguma idêntico ao de Bauman,
Lipovetsky, filiando-se a Eugen Fink
67
, admite que a liberdade individual
conquistada durante a modernidade poderia ser encarada também como um
encargo por sujeitos cada vez mais autônomos:
Como quer que seja, é quando os homens se tornam de ponta a ponta
responsáveis por seu mundo que eles têm cada vez mais prazer, paradoxalmente,
em “bancar a criança”. (...) Se o cosmo da racionalidade instrumental é
testemunha de um impulso de “busca de sentido”, ele o é mais ainda da
necessidade crescente de esquecer o sentido, de evadir-se da vida corrente em
atividades insignificantes e gratuitas que “nos liberam da obra da liberdade, nos
devolvem uma irresponsabilidade que vivemos com prazer”
68
.
Dessa maneira, a representação de ciência contida nas reportagens de capa
de SUPER pode ser interpretada a partir deste contexto de liberdade e autonomia
individuais extremos, por um lado, e medo, insegurança e ansiedade
65
Id., ibid.:237-8.
66
Id., ibid.:48. No editorial do mês de março de 2007, por exemplo, esta distinção, caracterizada
pelo conhecimento prévio de uma realidade geralmente interpretada como desconhecida, fica
clara: “Ciência da boa (...) é a que foi feita nas últimas décadas para construir o consenso que deu
origem ao relatório recém-divulgado sobre o aquecimento global. Finalmente o mundo começou a
se preparar para resolver o problema. O relatório deixou a imprensa toda histérica. Se você lê a
SUPER, já sabia de tudo antes, e talvez tenha estranhado o barulho repentino”
(SUPERINTERESSANTE, ed. 237:12).
67
Eugen Fink, Le jeu comme symbole Du monde, Paris, Minuit, 1966.
68
Id., ibid.:74.
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generalizados, por outro. Bauman e Lipovetsky, cada um a seu modo, estabelecem
uma espécie de relação de afinidade entre a incerteza e o hedonismo, o que
acentuaria, ao menos teoricamente, aquela coloração mais “conservadora” dos
jovens de hoje. Bauman, da sua parte, interpreta a vida, a “vida inteira”
69
mais
precisamente, a partir desta perspectiva onde predominaria o temor ante perigos
reais ou supostos, o que potencializaria algo como uma conformação assustada e
um tanto inconseqüente ao aqui e ao agora:
Pode-se percebê-la melhor [a vida inteira] como uma busca contínua e uma
perpétua checagem de estratagemas e expedientes que nos permitem afastar,
mesmo que temporariamente, a iminência dos perigos – ou, melhor ainda,
deslocar a preocupação com eles para o incinerador lateral onde possam, ao que
se espera, fenecer ou permanecer esquecidos durante a nossa duração. A
inventividade humana não conhece fronteiras. Há uma plenitude de
estratagemas. Quanto mais exuberantes são, mais ineficazes e conclusivos os
seus resultados. Embora, apesar de todas as diferenças que os separam, eles
tenham um preceito comum: burlar o tempo e derrotá-lo no seu próprio campo.
Retardar a frustração, não a satisfação
70
.
E, diferentemente de Lipovetsky, retoma o argumento do carpe diem:
O futuro é nebuloso? Mais uma razão para não deixar que ele o assombre.
Perigos imprevisíveis? Mais uma razão para deixá-los de lado. Até agora, tudo
bem; poderia ser pior. Deixe ficar desse jeito. (...) por que se preocupar agora?!
Melhor seguir aquela receita muito antiga: carpe diem
71
.
Se Bauman parece desenhar um quadro que poderíamos classificar como
paranóico, Lipovetsky o faz originalmente hipocondríaco e saudável. Constatando
um mundo onde “todas as esferas da vida cotidiana nos confrontam com o
imperativo do desempenho”
72
, o autor se indaga qual seria a preocupação central
a orientar as escolhas aquisitivas do hiperconsumidor, se “superar-se ou sentir-se
bem”
73
, o que traduziria, talvez sem grande imprecisão, aquela bifurcação que se
apresenta ao jovem hoje conforme Ribeiro, se a revolução ou a integração.
Lipovetsky, mais uma vez, não pretere nenhuma das duas orientações à outra, mas
enfatiza a valorização da manutenção do bem-estar: “daqui em diante o
sentimento do perigo e do risco é onipresente, tudo, no limite, podendo ser
69
BAUMAN, ibid.:15.
70
Id., ibid.:15-6, grifos no original.
71
Id., ibid.:16.
72
LIPOVETSKY, ibid.:279.
73
Id., ibid., loc. cit.
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percebido como ameaçador e exigindo vigilância”
74
. Isto ficaria mais evidente ao
se observar a crescente medicalização da existência, que, de fato, estaria vinculada
a uma potencialização de si, à lapidação de um “eu de alto desempenho”
75
, mas
que, de acordo com o autor, decorreria muito mais de uma vigilância preventiva
para a manutenção de si:
A sociedade de hiperconsumo é circunstancialmente dopante, mas
estruturalmente obcecada pelos cuidados de prevenção e de “manutenção
sanitária”. (...) Na realidade, trata-se de uma paixão diferente [diferente do
ideal de superação de si] que invade os espíritos e insinua-se progressivamente
em todos os setores da vida cotidiana: não é senão a manutenção de si, a
preservação da saúde. Mais do que o Super-Homem, Higéia, a deusa da saúde, é
que é venerada pelo indivíduo dos tempos hipermodernos em via de se
transformar em hipocondríaco saudável
76
.
E, ainda segundo Lipovetsky, quando a prevenção subjacente a esta
hipocondria se revela insuficiente para esquivar-se do sofrimento – do mal,
poderíamos arriscar –, também se recorre a intervenções químicas para combatê-
lo, uma vez que não se dispõe mais de um quadro intelectual como o que Bauman,
por exemplo, aponta para a pré-modernidade. Privilegia-se, portanto, o bem-estar
frente à autonomia individual, mesmo que “tão-somente no tempo do consumo”,
como já vimos acima. Delineia-se um paradoxo: o recurso às terapias
psicofarmacológicas revela uma soberania individual hipertrofiada justamente por
se fundar num desejo de suspensão, ainda que momentânea, das preocupações e
angústias derivadas da crescente liberação do eu dos requisitos necessários para
preencher devidamente uma “posição social”. Aqui, diz Lipovetsky, o sujeito,
buscando controle pormenorizado sobre o seu corpo e seus sentimentos, escolhe
renunciar a todo esforço pessoal entregando-se “à onipotência dos produtos
químicos que agem sobre ele, sem ele”
77
. Seria tanta a liberdade, é possível
argumentar, que se opta por consumir necessidade:
Na fase III, o hiperconsumidor tem cada vez menos meios simbólicos para dar
um sentido às dificuldades que encontra na vida: num tempo em que o sofrimento
74
Id., ibid.:55.
75
Id., ibid.:280.
76
Id., ibid.:287-8, grifos no original.
77
Id., ibid.:56. Kehl desenvolve argumento semelhante ao se debruçar sobre a relação entre o
jovem e as drogas: “A droga encarna o objeto do gozo, um objeto real, do qual se pode tomar
posse, que se pode introduzir no corpo abolindo momentaneamente toda a falta e instaurando em
pouco tempo o imperativo da necessidade em lugar das moções do desejo” (KEHL, ibid.:100).
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não tem mais o sentido de uma provação a ser superada, generaliza-se a
exigência de apagar o mais depressa possível, quimicamente, os transtornos que
nos afligem e que aparecem como uma simples disfunção, uma anomalia tanto
mais insuportável quanto se impõe o bem-estar como ideal de vida
preeminente
78
.
É nesta paisagem mais ampla de medo e valorização do bem-estar que
compreendemos um discurso como o das reportagens de capa analisadas à
SUPER, um discurso que, tentamos argumentar, seria dotado de algumas
características que nos possibilitariam classificá-lo como tendencialmente mítico;
referimo-nos especialmente àquele pendor da publicação em fundamentar a sua
narrativa num “mistério” sendo resolvido numa “verdade”. No âmbito limitado
deste trabalho, contudo, seria leviano pronunciarmo-nos sobre como os próprios
jovens representam este discurso. Não realizamos entrevistas com eles, não
buscamos o seu discurso de “primeira mão”.
Diferentemente do primeiro capítulo, em que categorias presentes no
quotidiano familiar orientaram a análise ali empreendida – categorias como “crise
de autoridade” e “falta de limites” –, não dispúnhamos agora de nenhum dado
empírico coletado junto a estes jovens. Se tentássemos deduzi-los, muito
provavelmente incorreríamos num equívoco semelhante ao que Roberto DaMatta
detecta na antropologia evolucionista, a saber, “imaginar o mundo ‘como se eu
fosse um cavalo’”
79
, ou seja, “reduzir todo o jogo dos fatos sociais a uma lógica
psicologizante”
80
. Durante esta dissertação, então, limitamo-nos apenas a “cercar”
o jovem das camadas médias urbanas brasileiras, seja através de uma análise mais
teórica das relações entre as gerações no seio da família, seja através da
interpretação etnográfica de uma representação de ciência presente em um de seus
itens de consumo.
4.1.
Percursos e hipóteses investigativas para trabalhos posteriores
A partir do trabalho realizado, entretanto, podemos sugerir alguns
percursos e levantar algumas hipóteses investigativas a respeito deste jovem e,
78
Id., ibid.:289.
79
DAMATTA, 1987:94.
80
Id., ibid., loc. cit.
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121
mais especificamente, da relação dele com uma revista de divulgação científica
como SUPER, ou seja, questões que podem ser retomadas em outro momento ou,
ainda, por outros pesquisadores a quem interesse o tema.
Retomando a distinção sugerida por Jurandir Freire Costa
81
, talvez fosse
possível sugerir que, se o jovem leitor compra SUPER, ele lhe consome o
conteúdo. As reportagens, neste sentido, poderiam vir a ser interpretadas como
“pílulas de sabedoria”, como “cápsulas de conhecimento”. Comprimido numa
dezena de páginas, o “mistério” efervesceria em “verdade” durante a leitura,
ilustrando, iluminando e, por fim, imunizando. Diminuiriam, assim, a incerteza e a
insegurança de uma realidade apreendida, cada vez mais cedo, como imprevisível,
como um risco a ser controlado.
Desse modo, a informação introjetada poderia ser percebida como útil,
servindo a quem passa a dominá-la. A partir daí, o jovem talvez pudesse
esquadrinhar e calibrar a própria vida, ajustando-se a ela, ajustando-se e
potencializando, assim, seu próprio bem-estar no mundo. Teria SUPER um papel
tão significativo no dia-a-dia de seus leitores? Não chega a ser uma
improbabilidade. É difícil, afinal, precisar as contra-indicações da informação
numa sociedade considerada informacional. Parece não haver overdose e talvez
seja esse precisamente o caso, uma vez que hoje, aparentemente, não se sabe
demais. Como diz Lipovetsky ao considerar a medicalização da existência:
(...) não se consomem mais apenas medicamentos, mas também transmissões,
artigos de imprensa para o grande público, páginas da Web, obras de
divulgação, guias e enciclopédias médicas
82
.
Seria necessário um maior cuidado em traçar uma analogia com o discurso
biomédico, mas, pelo menos em caráter preliminar, pode-se tentá-lo e argumentar
que, numa espécie de terapêutica preventiva e, portanto, defensiva, o jovem se
receitaria algo como um coquetel de conhecimento que lhe amplificaria a
capacidade de estimar, de prever acidentes. Desse modo, as tragédias e os golpes
do destino seriam cercados. Nesta hipótese, o jovem, em nome da própria
liberdade, tenderia a inibir o trágico, sufocar as virtualidades do acaso,
construindo para si uma redoma protetora de necessidade.
81
Cf. supra pp.37-39.
82
LIPOVETSKY, ibid.:53.
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122
Para ir adiante nesta análise, seria possível lançar mão da noção dialética
de informação tal como apresentada por Pierre Lévy em O que é o virtual?
(1996):
Segundo a teoria matemática da comunicação, uma informação é um
acontecimento que provoca uma redução de incerteza acerca de um ambiente
dado. (...) Intuitivamente, sentimos claramente que a informação está ligada a
uma probabilidade subjetiva de ocorrência ou de aparecimento: um fato
inteiramente previsível nada nos ensina, enquanto um acontecimento
surpreendente nos traz realmente uma informação
83
.
Curiosamente, a perspectiva de Lévy permite especular que o imprevisível
interessa – ou “superinteressa” – na medida em que ele próprio reduz a
imprevisibilidade de uma realidade. Aqui talvez resida uma premissa teórica
producente para se debruçar sobre o próprio estilo de exposição de SUPER.
Segundo Lévy, a informação não é material nem imaterial, não é nem uma maçã
nem uma alma imortal. Desse modo, ela acontece, não sendo um dado
mensurável, uma “coisa”, mas um fato incomensurável. O acontecimento, ou seja,
a informação é virtual, atualizando-se distintamente em contextos distintos. Mais
precisamente, conforme Lévy, aquilo que acontece assenta numa dinâmica entre
atualização e virtualização. Se uma informação é a solução específica de um
determinado aqui e de um determinado agora – uma atualização –, ela também
suscita uma nova problemática imediatamente – uma virtualização. Assim,
“acontecimentos e informações sobre os acontecimentos trocam suas identidades e
suas funções a cada etapa da dialética dos processos significantes”
84
.
A informação em Lévy seria um processo sempre em aberto, sem marcos
definidos, inicial ou final. Ainda de acordo com o autor, o consumo da informação
não a destrói e, além disso, não se poderia possuí-la com exclusividade, uma vez
que ela é virtual, desatrelada da experiência imediata. A atualização de uma
informação, portanto, não a desgasta, tratando-se, em verdade, de uma produção
criativa que, se soluciona, se dá sentido, carrega em si mesma um problema, a
virtualização de uma realidade:
Quando utilizo a informação, ou seja, quando a interpreto, ligo-a a outras
informações para fazer sentido ou, quando me sirvo dela para tomar uma
83
LÉVY, 1996:57.
84
Id., ibid.:58.
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123
decisão, atualizo-a. Efetuo portanto um ato criativo, produtivo. (...) Toda
aplicação efetiva de um saber é uma resolução inventiva de um problema, uma
pequena criação
85
.
A partir dessas considerações, poderíamos perguntar se o leitor susta
subjetivamente esta dialética entre o virtual e o atual, entre problema e solução, ao
ler uma narrativa como a de SUPER; se, solucionado o “mistério”, vira-se a
página em busca da próxima “verdade”, numa lógica de acumulação de certezas.
É como se SUPER fornecesse “verdades”, suprindo a demanda do comprador por
um conhecimento seguro. A analogia com as substâncias pode ter também algum
valor heurístico aqui. Como vimos com Almeida e Eugenio, o jovem as consome
com pormenor médico. Assim, se o ecstasy, por exemplo, é disponibilizado em
comprimidos mais ou menos iguais para o seu universo anônimo de
consumidores, cada um destes teria a sua dose pessoal.
Nestes termos, as reportagens de SUPER poderiam ser vistas como
vacinas através das quais o jovem se inocularia um vírus abrandado de
imprevisível. Ao atualizar as reportagens na medida em que as lê, ele mesmo
produziria o anticorpo do aprendizado, criando o sentido que quisesse a partir
daquela “verdade” massificada. O leitor, assim, se atualizaria, ficando up-to-date
frente ao mundo através de um upgrade de si mesmo. Aqui, a categoria de
“consumo criativo” proposta por Lipovetsky aponta um caminho investigativo
aparentemente frutífero:
(...) todas as vezes estes [os produtos padronizados] são reinterpretados,
dispostos em novas composições que exprimem uma identidade individual (...).
Revelo, ao menos parcialmente, quem eu sou, como indivíduo singular, pelo que
compro, pelos objetos que povoam meu universo pessoal e familiar, pelos signos
que combino “à minha maneira”
86
.
A “verdade”, assim, poderia ser vista como uma invariante a entrar numa
equação infestada de variáveis. Neste contexto específico, poderíamos propor que
a informação se “digitalizaria”, o digital adquirindo aí dois significados. Por um
lado, a informação se tornaria pessoal e intransferível, ou seja, a “verdade”
adquiriria um caráter idiossincrático, vinculando-se a uma subjetividade. Por
outro, ela se fundaria numa espécie de código binário linear e sem retorno, onde
85
Id., ibid.:58-9.
86
LIPOVETSKY, ibid.:44.
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124
os “zeros”, os “mistérios”, as lacunas de inteligibilidade são substituídas por
tantos “uns”, tantas “verdades” quanto possível. A informação se individualizaria
e o indivíduo se individualizaria ainda mais, anabolizando-se de “verdade”. Seria
interessante indagar se, para este jovem, a partir da leitura de reportagens de
divulgação científica, a realidade se tornaria cada vez mais lógica e dócil e a vida,
assim, mais doce.
Em termos menos metafóricos, pode-se sugerir que o leitor experimentaria
discretas surpresas, numa atmosfera segura e controlada, ainda segundo Almeida e
Eugenio, uma atmosfera asséptica – a cama de seu quarto, a poltrona da sala, o
sanitário etc. Interrogativas ou exclamativas, as pequenas interjeições mudas da
leitura seriam compensadas, justamente porque possibilitariam um exame mais
preciso e mais vantajoso do mundo.
Seria necessário procurar saber junto ao leitor se SUPER, de fato, lhe
ofereceria uma série de símbolos que lhe possibilitariam ordenar, ele mesmo, uma
existência mais coerente; se, ao ler a revista, ele próprio diminuiria o grau de
entropia da sua realidade, como que “xamanizando-se”, “bricologizando-se”.
Assim, consumir SUPER também seria uma questão de formação ou
autoformação identitária, visto que “na corrida às coisas e aos lazeres”, argumenta
Lipovetsky, “esforça-se mais ou menos conscientemente em dar uma resposta
tangível, ainda que superficial, à eterna pergunta: quem sou eu?”
87
.
Finalmente, retomando aquelas expressões de que lançamos mão no
primeiro capítulo (“crise de autoridade” e “falta de limites”), poderíamos nos fiar
em Lévi-Strauss mais uma vez e sugerir que, para um jovem como esse, um
mundo em crise, um mundo sem limites seria “sede de sensações inefáveis e
dolorosas”
88
. Não tanto porque se trata de uma realidade permeada de
intolerância, preconceito e violência, que, de fato, poderiam atingi-lo diretamente,
mas porque, como vimos, a própria realidade não lhe ofereceria mais os mitos que
oferecia outrora. Desse modo, parece-nos producente indagar se, ao ler SUPER,
ao se informar portanto, o leitor “supersignificaria”, dando forma e sentido ou
mais forma e mais sentido a uma realidade que, ao que tudo indica, apresenta-se-
lhe mais e mais fragmentária. No dizer de Lévi-Strauss:
87
LIPOVETSKY, ibid.:45.
88
LÉVI-STRAUSS, 1973a:225.
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125
Diversamente da explicação científica, não se trata, pois, de ligar estados
confusos e inorganizados, emoções ou representações a uma causa objetiva, mas
de articulá-los sob forma de totalidade ou sistema; o sistema valendo
precisamente na medida em que permite a precipitação, ou a coalescência,
desses estados difusos (penosos também, em razão de sua descontinuidade)
(...)
89
.
89
Id., ibid.:211.
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5
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SUPERINTERESSANTE. São Paulo: Editora Abril, 2007-2008.
VERSIGNASSI, A.; REZENDE, R. Evolução. In: Superinteressante. São Paulo:
2007, edição 240, junho, pp.60-9.
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130
Apêndice 1: Alguns números sobre Superinteressante
Tiragem*
Total de
Páginas**
Total de
páginas de
publicidade
(página
inteira)**
Total de
mensagens dos
leitores*
Número de
páginas das
reportagens de
capa**
JAN07
381190 92 18 751 10
FEV07
413430 92 19 967 14
MAR07
413760 100 27 1122 10
ABR07
410064 116 40 906 10
MAI07
416880 108 31 1055 10
JUN07
408360 108 35 1230 10
JUL07
415240 108 33 814 10
AGO07
428230 100 27 563 10
SET07
463395 116 42 1227 11
OUT07
435638 116 43 733 10
NOV07
443490 124 53 936 9
DEZ07
435190 132 47 565 9
DEZ07
392595 100 30 369 9
Total
5457462 1412 445 11238 132
Média
419804,8 108,6154 34,23077 864,4615 10,15385
* Dados divulgados por Superinteressante
** Contagem manual
Distribuição do conteúdo por páginas*
Publicidade 420
Reportagens** 484
Outros (editorial, mensagens, notas, pequenas matérias
etc.)
510
Total 1414
* Contagem manual
** O termo “reportagem” é utilizado pela própria Superinteressante para se referir não apenas às reportagens de capa, mas
também àquelas que se enquadram numa das seguintes categorias: “Ambiente”, “Especial”, “História”, “Ciência”,
“Cultura”, “Idéias”, “Tecnologia”, “Economia”, “Astronomia”, “Comportamento”, “Religião”, “Gente”, “Educação”,
“Mundo Animal”, “Aniversário”, “Sociedade”, “Vida Digital”, “Perfil” e “Zoom”.
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