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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade
como modo de constituição da subjetividade
Sandra Lourenço Corrêa
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
da USP, como parte das exigências para a
obtenção do título de Mestre em Ciências,
Área: Psicologia.
RIBEIRÃO PRETO SP
2006
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP - DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade
como modo de constituição da subjetividade
Sandra Lourenço Corrêa
Prof. Dr. Reinaldo Furlan
Dissertação apresentada à Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
da USP, como parte das exigências para a
obtenção do título de Mestre em Ciências,
Área: Psicologia.
RIBEIRÃO PRETO - SP
2006
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AUTORIZO A REPRODUÇÃO E DIVULGAÇÃO TOTAL OU PARCIAL DESTE
TRABALHO, POR QUALQUER MEIO CONVENCIONAL OU ELETRÔNICO, PARA
FINS DE ESTUDO E PESQUISA, DESDE QUE CITADA A FONTE.
Catalogação na Publicação
Serviço de Documentação XXXXXXX
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo
Corrêa, Sandra Lourenço
Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção
psicanalítica de sexualidade como modo de constituição
da subjetividade. Ribeirão Preto, 2006.
155 p.: il.; 30 cm
Dissertação, apresentada à Faculdade de Filosofia, Ciências
e Letras de Ribeirão Preto / USP Dep. de Psicologia e
Educação.
Orientador: Dr. Furlan, Reinaldo
1. Psicanálise. 2. Sexualidade. 3. Subjetividade.
4. Esquizoanálise.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Sandra Lourenço Corrêa
Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de sexualidade como modo de
constituição da subjetividade
Dissertação apresentada à Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto da Universidade de
São Paulo para obtenção do título de
Mestre.
Área de Concentração: Psicologia
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. ______________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura:____________________________
Prof. Dr. ______________________________________________________________________
Instituição:_______________________________Assinatura:_____________________________
DEDICATÓRIA
A todos que fazem parte das composições que pude produzir nos momentos de minha
existência e com as quais pude contar neste trabalho.
AGRADECIMENTOS
Aos meus filhos Vitor e Júlia, por serem fonte de inspiração para qualquer situação vivida.
Ao meu companheiro Clau, que sempre me incentiva na busca e realização de novos projetos.
Ao orientador Reinaldo Furlan, por ter possibilitado a continuidade dos meus estudos.
À Annie, pelo jeito manso e carinhoso que demonstrou em todas as vezes que precisei.
Aos professores Regina Benevides e Eduardo Passos, por fazerem do território acadêmico
uma máquina de pensamento e de luta, pela qual fui afetada.
A minha mãe querida, que ficaria “orgulhosa” por este trabalho...
Ao meu irmão Márcio, que encontrou um modo de me apoiar me presenteando com um
notebook.
A minha irmã Simone, pelos incentivos sempre tão bem vindos em qualquer momento.
Ao meu irmão Neuber, que sempre buscou modos de ampliar as possibilidades positivas da
vida.
Ao meu irmão Leonardo, que está sempre comigo em pensamento.
A minha sobrinha Gabriela, que ao nascer neste momento de produção, provcou em mim mais
interesse pelo tema da pesquisa.
Às amigas Mariana Garbim e Ana Luiza, pela amizade nos momentos de produção.
Aos alunos da FEA (Araçatuba) e FEF (Fernandópolis), pelo estímulo à investigação
constante.
A minha amiga Dodô, que me deu muita força para começar este trabalho.
À Renata Maia, pelas inesquecíveis viagens a Ribeirão Preto.
À Julinha Moita, que me faz acreditar na leitura e na possibilidade de usá-las.
À Vilminha, por fazer com que eu me sentisse mais em família.
RESUMO
CORRÊA, S.L. Análise da crítica de Deleuze e Guattari à noção psicanalítica de
sexualidade como modo de constituição da subjetividade . 2006. 155 f. Dissertação
(Mestrado) Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo,
Ribeirão Perto, SP, 2006.
Este trabalho busca investigar os comprometimentos do conceito freudiano de sexualidade
a
partir das críticas de Gilles Deleuze e Félix Guattari. Segundo estes autores, o grande equívoco
de Freud foi ter fechado a sexualidade em uma instância interior
rebatendo todo investimento
libidinal sobre uma determinação familiar típica da sociedade burguesa. Para que não se perca
as múltiplas possibilidades de análise dos processos inconscientes e sua relevância para os
estudos da subjetividade, faz-se necessário investigar o comprometimento desta noção com o
contexto capitalista, onde os processos de subjetivação estão submetidos a determinado
modelo de indivíduo. Estes processos não só estavam presentes nos tempos de Freud, como,
ainda hoje prevalecem em muitas noções de sujeito. Deleuze e Guattari não negam as
produções inconscientes, mas as definem pelo modo de funcionamento maquínico em
oposição a qualquer modelo representacional. O desejo será pensado em sua dimensão social,
e não apenas familiar. Trata-se de investigar as conexões possíveis dos investimentos
libidinais da produção desejante, sem que nenhuma triangulação apareça como
predeterminante. Os autores recusam qualquer lógica binária, dualística, identitária da noção
de subjetividade, compreendendo que esses aspectos correspondem a um domínio histórico-
filosófico específico. Assim, utilizam conceitos que tomam a subjetividade em sua
multiplicidade. Para tanto, serão analisados os conceitos de Corpo sem Órgãos e plano de
imanência, rizoma em oposição ao modelo arborescente, inconsciente maquínico versus
inconsciente figurativo, cartografia em oposição aos recursos interpretativos da psicanálise. A
subjetividade será estudada como processo constituído por múltiplas linhas de possibilidades
de existência típicas do devir, que pela experimentação pode produzir processos de
singularização. A idéia de agenciamento auxiliará nas desmontagens conceituais utilizadas
pela psicanálise. Além das críticas, este projeto busca encontrar em Deleuze e Guattari novas
maneiras de se pensar a sexualidade em sua dimensão clínica. O processo analítico será
afirmado em sua potência revolucionária e criadora, pois a esquizoanálise, ao proceder com a
análise do inconsciente, nada espera encontrar em termos de prefiguração do desejo.
Palavras-chave: Psicanálise. Sexualidade. Subjetividade. Esquizoanálise.
ABSTRACT
CORRÊA, S.L. Analysis of Deleuze and Guattari’s critical reviews concerning to the
psychoanalysis of sexuality as a model of constitution of subjectivity. 2006, 155.
Dissertation (Master) Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São
Paulo, Ribeirão Preto, SP, 2006.
This work aims at investigating the compromise of Freud’s concept of sexuality from Gilles
Deleuze and Felix Guattari’s critical reviews. According to these authors Freud equivocated
the most when he reduced sexuality to an interior instance, refuting all the libidinal investment
in the familiar determination of the society of his time. In order not to lose all the multiple
analysis of the unconscious processes and its relevancies to the study of subjectivity, it is
necessary to investigate the compromise of this notion with the capitalist context when the
processes of subjectivity are under the influence of the individual models. These processes
were present not only in Freud’s time, but also in the present time, in many notions concerning
to subjectivity. Deleuze and Guattari do not deny the influence of the unconscious outcome,
but they define the way in which the machinic function works. Therefore, desire will be
analyzed in a social context. It is a matter of investigating the possible investment of the libido
without any predetermined function. Both authors refuse any binary, dualistic logic of notion
of subjectivity since these aspects correspond to a specific historic and philosophic dominium.
Thus, they make use of concepts that approach subjectivity in its multiple facets. It is a
machinic unconscious opposing to the figurative unconscious of Psychoanalysis. The notion of
body without organs is studied which remits to the idea of experimentation versus the
psychoanalytic concept of interpretation breaking with the identity perspectives. The concept
of rhizome helps to understand the performance of the wishing machines going beyond the
binary logic. Besides the critical reviews this project aims at finding in Deleuze and Guattari
new ways of thinking about sexuality in its clinical dimension. The analytical process will be
reassured in its revolutionary and creative power, since Schizoanalysis does not intent to find
anything in terms of predetermined aims of desire when analyzing the unconscious.
Key words: Psychoanalysis, Sexuality, Subjectivity, Schizoanalysis.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO..................................................................................................................... 09
2 DESENVOLVIMENTO
2.1 A LIBIDO ENQUANTO INVESTIMENTO SOCIAL
2.1.1 LIBIDO E FAMILIALISMO.............................................................................................. 21
2.1.2 LIBIDO, RECALCAMENTO E REPRESSÃO SOCIAL...................................................... 31
2.1.3 IMPLICAÇÕES CAPITALÍSTICAS NA PRODUÇÃO DE ÉDIPO...................................... 42
2.2 O INCONSCIENTE MAQUÍNICO E A PRODUÇÃO DESEJANTE
2.2.1 REPÚDIO À NOÇÃO DE FALTA E AFIRMAÇÃO DA PRODUÇÃO.................................. 54
2.2.2 CORPO SEM ÓRGÃOS E O PRINCÍPIO DE IMANÊNCIA DO DESEJO........................... 64
2.2.3 DA INTERPRETAÇÃO À EXPERIMENTAÇÃO............................................................... 72
2.3 A NOÇÃO DE RIZOMA E AS MÁQUINAS DESEJANTES
2.3.1 AS LINHAS ..................................................................................................................... 83
2.3.2 SUBJETIVIDADE E AGENCIAMENTO ......... ................................................................ 97
2.3.3 OS FLUXOS DE SEXUALIDADE: OS DEVIRES.............................................................105
2.4 NOVAS POSSIBILIDADES DO DESEJO: SUBJETIVIDADE E SINGULARIDADE
2.4.1 ESQUIZOANÁLISE E SUBJETIVIDADE........................................................................118
2.4.2 ESQUIZOANÁLISE E CLÍNICA .....................................................................................126
2.4.3
ESQUIZOANÁLISE E UM SUSPIRO
...............................................................................140
3. CONCLUSÃO.....................................................................................................................148
REFERÊNCIAS...................................................................................................................... 150
9
1 INTRODUÇÃO
Porque se chamavam homens também se
chamavam sonhos e sonhos não envelhecem.
Lô Borges
A sexualidade encontra nos estudos da subjetividade um campo privilegiado
por ser um modo variado de produção da existência humana. Um desses modos é
descrito pela psicanálise a partir da visão edipiana do desenvolvimento sexual. É
justamente, de acordo com as críticas apresentadas por Gilles Deleuze e Félix Guattari,
quanto às condições impostas por Édipo à constituição da subjetividade, que esse
trabalho buscará seu desenvolvimento central. Trata-se de uma investigação das obras
desses autores, onde aparece a problematização do determinismo edipiano. As obras que
serão investigadas são, inicialmente, O Anti-Édipo” (1976) e “Mil Platôs” (1999-
2002), e outras que sustentarão as críticas e o desenvolvimento de novas abordagens
quanto à noção de sexualidade.
O problema maior é quanto à tese freudiana, segundo a qual Édipo é tomado
como referencial que reparte o desenvolvimento da sexualidade em fases pré-edipiana e
edipiana, dicotomia operada por Édipo como o grande divisor de águas. A psicanálise
não nega as variações “anedipianas” ou “para-edipianas” manifestadas, por exemplo, nas
esquizofrenias. Mas o problema que se coloca é que ela faz de Édipo um eixo de
referência tanto para as fases pré-edipianas, como também para as tais variações. As
psicoses são interpretadas pela psicanálise a partir da noção de ‘forclusão’, pensada
como uma lacuna estrutural em relação ao eixo estruturante de Édipo. Isto implica a
10
edipianização até mesmo do esquizofrênico. Em “O Anti-Édipo” e em “Mil Platôs”,
Deleuze e Guattari questionam a tirania de Édipo na constituição da subjetividade. Trata-
se de uma ruptura com a edipianização imposta pela psicanálise, induzindo à idéia de
que toda a produção da sexualidade humana só se faz enquanto estruturada desse modo.
É isso que querem dizer esses autores quando afirmam que Freud não gostava dos
esquizofrênicos por não se deixarem edipianizar.
Que princípio é esse que reduz a sexualidade ao interjogo papai-mamãe
reproduzido pelas relações familiares? Segundo Deleuze e Guattari, esse é um processo
que esmaga as principais características dos investimentos libidinais: sua polivocidade e
sua multiplicidade. Édipo toma o lugar do representante do desejo, em que toda a
produção desejante cai na armadilha que captura seus investimentos com a pretensão de
interpretá-los a partir da óptica edipiana: “Édipo é a imagem falsificada à qual o desejo
se deixa prender (É isso que você queria! os fluxos decodificados! era o incesto!).
Começa então uma longa história, a da edipianização” (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p. 210).
Na leitura das obras aqui propostas, uma nova perspectiva pode ser elaborada,
outras possibilidades, novos territórios pelos quais a sexualidade pode se constituir. A
princípio será analisada a concepção de libido como investimento social, oposta à
concepção psicanalítica que a torna presa ao familialismo. O grande equívoco de Freud
foi ter fechado a sexualidade em uma instância interior, tendo Édipo como princípio
organizador. É “o pequeno segredo sujo, em vez do mar alto entrevisto. O rebatimento
familialista em vez da deriva do desejo” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 344). A
11
libido como investimento social é a própria relação com a exterioridade ao invés de uma
interioridade (fantasma) forjada por Édipo.
Quando Deleuze e Guattari criticam a psicanálise por rebater todo o
investimento libidinal sobre uma determinação familiar, isso não significa que o pai, a
mãe, as experiências infantis vividas na situação familiar não façam parte da cadeia
“significante”, porém essas correlações são furtivas entre os agentes coletivos. A libido
não pode ser nunca separada de um campo social e dos fenômenos de grupo, sendo
sempre maquinada sobre um socius. O desejo está sempre investido num campo social,
de modo que não há operações abstratas autônomas individuais que obedeçam ao destino
que se repete ao longo da evolução humana por meio de articulações simbólicas movidas
pelo incesto e sua proibição. Trata-se de investigar as conexões possíveis dos
investimentos libidinais da produção desejante, em que nenhuma triangulação aparece.
Os investimentos libidinais são antes de tudo conexões, fluxos e intensidades que não
obedecem a uma regra binária entre objeto e sujeito.
Deleuze não nega que haja sexualidade edipiana, mas a distingue em um tipo
de operação da ordem dos objetos globais e egos específicos. Esta operação provoca a
ilusão de que toda a produção desejante está submetida a leis transcendentes e, mesmo
que iniciada por etapas pré-edipianas, se orientará para uma organização futura regida
por Édipo. É uma espécie de antecipação operada pelo eixo edipiano.
Para continuar a análise crítica da noção de sexualidade em Freud,
investigaremos a relação entre capitalismo e operações edipianas. O modelo psicanalítico
depende de um modelo econômico. A formação capitalista produz pessoas privadas que
12
sustentam a noção de sexualidade a partir das imagens formadas por papai-mamãe-ego,
como afirmam Deleuze e Guattari (1976, p. 338):
Então é seu pai, então é sua mãe, então é você: a conjunção familiar resulta das
conjunções capitalistas, enquanto se aplicam a pessoas privatizadas. Papai-mamãe-
ego, tem-se certeza de encontrá-los em toda parte, porque se aplicou a tudo. O reino
das imagens, tal é a nova maneira pela qual o capitalismo utiliza as esquizas e desvia
os fluxos: imagens compósitas, imagens rebatidas sobre imagens, de tal maneira que,
ao fim da operação, o pequeno ego de cada um, referido a seu pai-mãe, seja
realmente o centro do mundo.
As operações próprias da formação capitalista, que correspondem aos
processos de re-territorialização (decodificações do desejo), fazem de Édipo seu modelo
central de funcionamento. As máquinas desejantes, segundo expressão específica de
Deleuze e Guattari, sofrem processos de decodificação voltados para os investimentos do
desejo restritos às imagens familiares. São processos que impõem aos fluxos do desejo
toda uma série de re-territorializações que serão tomadas como expressão da
subjetividade no seu sentido autônomo. É dessa forma que as produções teóricas da
psicanálise não podem ser analisadas separadamente das operações realizadas pela
máquina capitalista. Psicanálise e capitalismo fazem parte de um mesmo processo de
subjetivação. Para Deleuze e Guattari (1976, p. 463), Édipo parece inocente e exclusivo
das interpretações psicanalíticas.
Ora, Édipo tem o ar de uma coisa relativamente inocente, de uma determinação
privada que se trata no consultório do analista. Mas perguntamos justamente que tipo
de investimento social inconsciente Édipo supõe já que não é a psicanálise que
inventa Édipo; ela se contenta em vivê-lo, desenvolvê-lo, confirmá-lo, em dar-lhe
uma forma mercantil. Enquanto o investimento paranóico sujeita a produção
desejante, interessa-lhe muito que o limite dessa produção seja deslocado, que passe
no interior do socius, como um limite entre dois conjuntos molares, o conjunto social
de partida e o subconjunto familiar de chegada que supostamente lhe corresponde, de
tal maneira que o desejo seja preso na armadilha de um recalcamento familiar que
vem duplicar a repressão social.
13
A noção de inconsciente será investigada, complementando a crítica de
Deleuze e Guattari. Na psicanálise, o inconsciente é reduzido a uma espécie de teatro
íntimo, que reproduz a tragédia e o mito grego. É um inconsciente da ordem da
representação e da expressão, sendo a produção desejante capturada na representação. O
desejo fica preso, alienado às representações pré-determinadas que, supostamente, são
tomadas como autônomas. Deleuze e Guattari questionam a noção de inconsciente como
cena, reduzido a um significante despótico (Édipo) e que só sabe expressar conteúdos
relacionados aos temas familiares, papai-mamãe, vagina, pênis, castração... Para tanto,
apresentarão outros modos de se pensar o inconsciente que escapam às unidades molares
de Freud. Em “Mil Platôs” (2000), Deleuze e Guattari referem-se à maior arte do
inconsciente: a arte das multiplicidades moleculares, a-significantes, que se produzem
por rizomas. Ao utilizar noções como rizoma, ou a idéia de que o inconsciente se
autoproduziria, o pensamento freudiano de inconsciente, cristalizado em complexos
codificados, pode ser combatido. Muitas das interpretações psicanalíticas das formações
do inconsciente serão consideradas por Deleuze e Guattari como formações que não
estão dadas a priori, pois as produções do inconsciente funcionam como usina, como
maquinação do desejo. São princípios que fazem a crítica do inconsciente figurativo e
simbólico da psicanálise. O desejo é concebido como produção de real que remete a uma
produção social que é extrínseca e não intrínseca como quer a psicanálise, quando
concebe esse desejo como falta que produz um imaginário que duplica a realidade
(idealismo). Conceber o desejo como falta é afirmar que este se dá como produção de
fantasmas, o que é extensamente proposto pela psicanálise quando se ocupa da dinâmica
inconsciente. O desejo é o que produz fantasmas a partir da falta, sendo que:
14
Essa solda do desejo com a falta é, justamente, o que dá ao desejo fins, metas ou
intenções coletivas e pessoais em lugar do desejo tomado na ordem real de sua
produção que se comporta como fenômeno molecular desprovido de meta e de
intenção. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 435)
Para a esquizoanálise, desenvolvida por Deleuze e Guattari, as produções
desejantes inconscientes não se fazem de modo estrutural, nem pessoal e muito menos
por simbolização ou figuração. O inconsciente é maquinístico, ele só sabe maquinar,
“ele é o Real em si mesmo...” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 73). Ao desejo nada
falta.
O corpo sem órgãos é um outro conceito utilizado por Deleuze e Guattari que,
quando associado a vários outros conceitos, contribui com os estudos da subjetividade.
Trata-se de um conceito limite que nos remete à idéia de experimentação, a um conjunto
de práticas, onde o corpo e o socius travam suas batalhas a partir de operações
totalmente distintas da perspectiva edipiana. No exame da noção de corpo sem órgãos,
persiste a crítica da redução psicanalítica operada pelo uso da interpretação. Deleuze e
Guattari (1999, p. 11) sugerem a substituição da interpretação pela experimentação.
Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: Vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO
1
, não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.
O que é interpretado pela psicanálise é o fantasma, que corresponde a um
conjunto de significâncias e subjetivações, sendo, justamente, o que a esquizoanálise,
proposta por Deleuze e Guattari, pretende refutar. As desterritorializações dos modos de
subjetivação cristalizados em Édipo só podem ocorrer através da construção de um CsO,
1
Abreviatura utilizada pelos autores para corpo sem órgãos.
15
constituído por intensidades que não se reduzem a uma cena ou a um sentido prévio a
ser interpretado. Referir-se ao CsO é recorrer ao princípio de imanência do próprio
desejo, onde só circulam intensidades puras que, em seu entrecruzamento de fluxos,
terrritorializam estratificando índices de ambiente e organização, mas que também
desterritorializam desestratificando ao modificarem seu movimento e ordenação. A idéia
de entrecruzamento de intensidades que ora se territorializam, ora se desterritorializam,
poderá ser mais bem compreendida com a introdução do conceito de rizoma, tratado
posteriormente. O que se propõe é pensar o CsO como:
[...] o campo de imanência do desejo, o plano de consistência própria do desejo (ali
onde o desejo se define como processo de produção, sem referência a qualquer
instância exterior, falta que viria torná-lo oco, prazer que viria preenchê-lo).
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 15)
Considerar a noção de CsO implica uma ruptura com qualquer perspectiva
identitária, causalista, constituída por continuidades. É a possibilidade de ampliação, ao
máximo, da disponibilidade em relação a toda espécie de ruptura de sentidos
aprisionados, é ampliar a fluidez e a liberdade de criação (ROLNIK, 1994, p. 8). O
desejo, quando articulado ao próprio campo de imanência, tomado em sua exterioridade,
onde tudo se dá na superfície, pode ser entendido independente do ideal transcendente,
do princípio da castração (falta) e também da relação com o prazer. Deleuze e Guattari
afirmam que é sempre um “padre” que amaldiçoa o desejo ao prendê-lo a tais princípios.
As idéias apresentadas em “Mil Platôs” partem da noção de rizoma, noção que
auxilia na compreensão do funcionamento das máquinas desejantes complementando o
que se quer dizer com CsO. Deleuze e Guattari (2000, p. 8) têm como projeto apresentar
uma teoria das multiplicidades, que questiona as idéias de unidade, totalidade e sujeito:
16
As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos que se
produzem e aparecem nas multiplicidades. Os princípios característicos das
multiplicidades concernem a seus elementos, que são singularidades; a suas relações,
que são devires; a seus acontecimentos, que são hecceidades (quer dizer,
individuações sem sujeito); a seus espaços-tempos, que são espaços e tempos livres;
a seu modelo de realização, que é o rizoma (por oposição ao modelo da árvore); a
seu plano de composição, que constitui platôs (zonas de intensidade contínua); aos
vetores que atravessam, e que constituem territórios e graus de desterritorialização.
A citação mostra de modo sintético o que se pretende com a noção de rizoma.
Em primeiro lugar, o que se coloca é a multiplicidade como realidade, em seu estado
substantivo, ou seja, as multiplicidades por elas mesmas, e, em segundo lugar, o modo
pelo qual as multiplicidades operam, superando distinções binárias de toda espécie
(Ics/Cs; natureza/história; corpo/alma; objeto/sujeito; manifesto/latente...), como
também desfazendo o conceito de organismo, significância e subjetivações. O conceito
de organismo remete a uma totalidade significante, que funciona de modo arborescente,
a partir de uma unidade superior de centro e segmentos. As multiplicidades não
comportam uma unidade principal ao seguir o modo rizomático de funcionamento. Isso
não significa que territorializações, unificações não ocorram, mas não servem como
regra universal e original para compreender todas as formas de manifestação da
subjetividade. Para Deleuze e Guattari, o sistema rizomático é o próprio modo de
funcionamento do CsO, sempre a se fazer, sempre operante. É a produção de
produção, a experimentação pelo “meio”, sem origem, sem fim prévio, sem hierarquias,
mas que comporta também “linhas de segmentaridade”, de significação e
territorialidades. Um rizoma é constituído pelas “linhas de segmentaridade”
(estratificação) e pelas “linhas de fuga” que desterritorializam. Em resumo, o rizoma é
constituído apenas por linhas que se alteram através de conexões efetuadas a partir de
qualquer ponto do processo, por velocidades que tomam força pelo meio, sem início e
17
nem conclusão. A multiplicidade rizomática se faz por alianças heterogêneas e não por
filiação como a árvore (genealogia). O rizoma é antigenealógico, “ele se encontra
sempre no meio, entre as coisas, inter-ser, intermezzo” (DELEUZE e GUATTARI,
2000, p. 37). O entrecruzamento de todas as linhas, das velocidades e a composição por
platôs (zonas de intensidade contínua), formam os agenciamentos:
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela aumenta suas
conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como se encontra numa
estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente linhas. (DELEUZE e
GUATTARI, 2000, p. 17)
De acordo com a noção de agenciamento, a subjetividade pode ser pensada
como agenciamento coletivo de enunciação que não corresponde a nenhum sistema
centrado, ou a processos de subjetivação e semiotização centrados em agentes
individuais. A subjetividade consistiria, então, a partir de processos descentrados, porém
não no sentido de indiferenciado, pois o sentido rizomático é sempre inovador, produtor
de novas modalidades que fogem às estruturas pré-determinadas ou figuras simbólicas.
Isso é o próprio desejo funcionando como produção, o desejo é sempre produção de
algo.
Enfim, o rizoma pode ser utilizado como operador conceitual que se contrapõe
ao modelo arborescente característico da psicanálise que funciona segundo princípios de
“decalque” que reduzem as produções do inconsciente a um álbum de família.
A sexualidade, segundo Deleuze e Guattari, torna-se perversa ou neurótica em
Freud por meio das operações edipianas em que o esquizo resiste. É por decalques que
as identidades perversas e neuróticas são formadas. E parece que é só isso que resta à
psicanálise: interpretar os sentidos que já estão pré-estabelecidos. A noção de
18
inconsciente na psicanálise fundamenta as reterritorializações tirânicas, ressentidas e
burocráticas de Édipo, sufocando a produção das máquinas desejantes em seu modo
rizomático de funcionamento.
A análise dos delírios de Schreber em “O Anti-Édipo” e o caso clínico do
pequeno Hans no “Mil Platôs” denunciam as capturas das interpretações psicanalíticas,
em que as produções desejantes tomam sentido a partir da triangulação edipiana. Os
delírios de Schreber, como qualquer outro fenômeno esquizo, não se deixam reduzir pela
edipianização, não coincidem somente com os códigos sociais pré-estabelecidos. “O
código delirante, ou desejante, apresenta uma extraordinária fluidez” (1976, p. 31);
mostra-se estranho às figuras familiares, explodindo em intensidades múltiplas que
rompem constantemente com o centro, que criam linhas de fuga onde aparece toda uma
relação com a exterioridade da história, das raças, das religiões... E em Hans, segundo
Deleuze e Guattari, nos deparamos com toda a sorte de bloqueios de sua produção
desejante.
Com o modelo de funcionamento rizomático, a esquizoanálise pretende
alcançar o inconsciente produtivo, em sua microfísica, em seu aspecto molecular a-
significante, que não representa nada. A sujeição da sexualidade à edipianização da
psicanálise corresponde, segundo Deleuze e Guattari, a processos de subjetivação que
limitam e distorcem a produção desejante. A sexualidade como máquina desejante se
distingue de toda representação, não sendo figurativa, nem projetiva. São intensidades
puras, embora possam ser representadas e sofrerem processo de significação como quer
a psicanálise. Trata-se de produção de estados intensivos, de estados afetivos
anedipianos.
19
A esquizoanálise é um conjunto de idéias desenvolvidas por Deleuze e Guattari
que tem por finalidade questionar a concepção de que o desejo e a subjetividade estariam
centrados no indivíduo: “Partimos mais da idéia de uma economia coletiva, de
agenciamentos coletivos de desejo e subjetividade que, em algumas circunstâncias,
alguns contextos sociais, podem se individualizar” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p.
232).
A sexualidade será pensada em termos anedipianos, a partir de relações de
intensidades, de fluxos que operam devires de ordem expressamente distinta do uso
edipiano da sexualidade. A esquizoanálise propõe estudos que buscam novos caminhos
de compreensão dos investimentos libidinais. Para tanto, ela pretende “desfazer o
inconsciente expressivo edipiano, sempre artificial, repressivo e reprimido, mediatizado
pela família, para atingir o inconsciente produtivo imediato” (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 130).
A esquizoanálise também apresenta um problema prático que tenta devolver às
sínteses do inconsciente a seu uso imanente, dezedipianizando, desfazendo crenças, para
se chegar à produção das máquinas desejantes como investimentos econômicos e sociais.
É uma proposta de análise militante, com princípios práticos em direção aos processos
de desterritorialização que engendrem novas possibilidades de territorializações
resistentes a tantas tiranias, ao mesmo tempo em que se descobrem os investimentos
inconscientes do campo social pelo desejo. Guattari (1987) propõe a militância como
ação contra as formas repressivas espalhadas em toda parte da sociedade. A
esquizoanálise visa à ultrapassagem dos grandes conjuntos molares, como a família, para
alcançar os elementos moleculares constitutivos das engrenagens das máquinas
20
desejantes, ocupando-se da investigação do modo de funcionamento dessas máquinas. É
nesse sentido que a sexualidade será estudada:
A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido)... Pois as máquinas desejantes são exatamente
isso: a microfísica do inconsciente... Mas, enquanto tais, elas não existem nunca
independentes dos conjuntos molares históricos... Sob os investimentos conscientes
das formações econômicas, políticas, religiosas, etc., há investimentos sexuais
inconscientes, microinvestimentos que testemunham a maneira pela qual o desejo
está presente num campo social... A sexualidade não é absolutamente uma
determinação molar representável num conjunto familiar, mas a subdeterminação
molecular, funcionando nos conjuntos sociais, e secundariamente familiares, que
traçam o campo de presença e de produção do desejo: todo um inconsciente não
edipiano, que produzirá Édipo apenas como uma de suas formações estatísticas
secundárias (‘complexos’), à saída de uma história que põe em jogo o devir das
máquinas sociais, seu regime comparado ao das máquinas desejantes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 232-233)
A esquizoanálise critica a sexualidade constituída antropomorficamente e
afirma que há em toda parte uma transexualidade microscópica, relações de produção de
desejo que subvertem a ordem molar, ou estatística dos sexos. É a sexualidade como
maquinação de um inconsciente libidinal da economia política, onde não há lugar para
simbolismo sexual e suas pseudo-interpretações.
Para concluir, este projeto pretende evidenciar produções de discursos de
verdade que colocam a sexualidade como algo a ser descoberto nas profundezas da
existência humana, perspectiva que a esquizoanálise procura inverter ao afirmar a sua
produção na superfície e na relação dos corpos no campo social. Ao realizar esta tarefa
está-se também produzindo novas formas de pensar a clínica, o social e a própria
existência humana.
21
2 DESENVOLVIMENTO
2.1
A LIBIDO COMO INVESTIMENTO SOCIAL
2.1.1 LIBIDO E FAMILIALISMO
Uma das propostas mais intrigantes de Deleuze e Guattari é pensar a noção de
libido articulada à idéia de máquina. São as famosas máquinas desejantes que tanto
caracterizaram o pensamento desses dois-múltiplos autores. As máquinas desejantes não
podem ser pensadas de um modo metafórico. Não há metáfora neste campo de
pensamento. Tudo é máquina... E tudo maquina... O sentido não está relacionado à
mecânica, pois “a mecânica é relativamente fechada sobre si mesma: ela só mantém com
o exterior relações perfeitamente codificadas” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 385).
As máquinas estão em uma relação de fluxos e cortes o tempo todo:
Não há mais nem homem nem natureza, mas apenas o processo que produz um no
outro e acopla as máquinas. Em toda parte, máquinas produtoras ou desejantes, as
máquinas esquizofrênicas, toda a vida genérica: eu e não-eu, exterior e interior não
querem dizer mais nada. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 16)
As noções de fluxo e corte fazem parte de um mesmo conceito que não faz
referência a nenhum dualismo como também a nenhuma diferença de natureza “o fluxo
não apenas é interceptado por uma máquina que o corta, sendo ele próprio emitido por
uma máquina” (ZOURABICHVILI, 2004, p.33).
A libido é maquinada sobre um socius, ou seja, sobre uma “superfície onde toda
a produção se registra” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 25) e jamais pode ser
pensada desarticulada dos fenômenos sociais. Mas, no pensamento freudiano, a libido é o
22
tempo todo definida a partir de relações binárias entre sujeito-objeto, específicas de uma
situação familiar. A libido e seus investimentos, segundo a psicanálise lacaniana,
formarão uma cadeia de significantes que estruturará o inconsciente, sobretudo, a partir
dos investimentos libidinais dos pais. Deste modo, toda uma cadeia plural de signos
ficaria reduzida ao significante. Diante de um totalitarismo do significante que submete
os signos à tirania da lei, Deleuze e Guattari reagem fortemente, afirmando a natureza
plural dos sistemas de signos, considerando que o signo do desejo não é a lei, sendo o
desejo signo de potência. Os signos de uma cadeia molecular, segundo Deleuze e
Guattari, não são absolutamente significantes, enquanto estão sob o regime das
“disjunções inclusivas”, onde tudo é possível. Eles são pontos de natureza qualquer,
figuras maquinísticas abstratas e não formam nenhuma configuração estruturada. A
princípio esta visão aparece na psicanálise, mas, posteriormente, ela irá supor uma cadeia
significante de uso molar, onde Édipo ocupará a posição de código do desejo e a
castração, o significante, tendo a estrutura familiar como territorialidade. Essa concepção
posterior da psicanálise acarretou um desconhecimento das possibilidades de sínteses do
inconsciente. A crítica recai, sobretudo, na suposição de um significante despótico
Édipo:
A partir do momento que se faz depender o desejo do significante, recoloca-se o
desejo sob o jugo de um despotismo cujo efeito é a castração, aí onde se reconhece o
traço do próprio significante; mas o signo de desejo não é nunca significante, ele está
nos mil cortes-fluxos produtivos que não se deixam significar no traço unitário da
castração, sempre um ponto-signo com várias dimensões, a polivocidade como base
de uma semiologia pontual. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 146)
Deleuze e Guattari radicalizam o conceito de libido como força desconectiva e
disjuntiva que desmontam o princípio de totalidade-unidade, o que irá provocar um
23
redimensionamento da relação todo-partes
2
. Não haveria nem uma totalidade original,
nem muito menos uma de destinação. É a afirmação das totalidades que se fazem ao
lado, rompendo com a idéia de uma dialética evolutiva do desenvolvimento humano.
Somente pela multiplicidade é possível recolocar o problema trazido pelo estruturalismo
francês que relaciona sempre as partes com o todo. As pulsões parciais não se somariam
para configurar um todo, que, aqui em questão, seria a estrutura edipiana. Trata-se de
produção de produção na qual as máquinas desejantes estão sempre operando fluxos-
cortes, onde uma máquina produz um corte de fluxo em outra máquina que,
supostamente, produz fluxo e que, em outra máquina, produzirá um corte e assim por
diante. Isto significa afirmar que toda máquina é máquina de máquina. Radicalizando,
Deleuze e Guattari afirmam que “a parte não tem nada a ver com o todo, ela representa
sozinha seu papel” (1976, p. 59).
Outra característica da relação entre as máquinas desejantes é a capacidade de
conexão heterogênea, ou seja, um órgão pode se associar a múltiplos fluxos a partir de
conexões diferentes que se transformam em cadeias polívocas, em total oposição a uma
concepção bi-univocizante e linearizada: “Não há uma evolução das pulsões que as faria
progredir, com seus objetos, para um todo de integração, assim como não há totalidade
primitiva da qual derivariam” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 63).
É neste sentido que surge uma crítica a Melanie Klein quanto à suposição de os
objetos parciais estarem relacionados a fantasmas (concepção idealista) e à idéia de
estarem remetidos a um todo. Mesmo considerada por Deleuze e Guattari a menos
edipianizante dos psicanalistas, Melanie Klein não concebe os objetos parciais em seu
2
BIRMAN, J. Os signos e seus excessos. A clínica em Deleuze. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. São Paulo: 34, 2000, p. 463-478.
24
processo de produção, no funcionamento das máquinas desejantes; eles são extraídos de
pessoas globais.
Deleuze e Guattari (1976, p. 62) buscam em Proust uma inspiração para o
problema entre as partes e o todo da seguinte forma:
Portanto, Proust dizia que o todo é produzido, que ele é ele próprio produzido como
uma parte ao lado das partes, que ele não unifica nem totaliza, mas que se aplica a
elas, instaurando somente comunicações aberrantes entre vasos não comunicantes,
unidades transversais entre elementos que guardam toda a sua diferença nas suas
dimensões próprias.
O problema é que, se se estabelece uma relação onde as partes estão em função
do todo, então se terá uma relação de hierarquia com um princípio de unidade, e esta é
uma das concepções combatidas pelos autores aqui estudados (esta discussão será mais
bem elaborada quando se tratar do conceito de rizoma).
O conceito de inconsciente será visto com mais detalhes posteriormente, mas
também já se pode adiantar que para os autores o inconsciente ignora pessoas e que os
objetos parciais não são representantes de pessoas, nem muito menos das parentais. Os
objetos parciais seriam peças na máquina desejante e são produzidos por extração sobre
um fluxo impessoal. A libido é sempre uma energia de máquina que não se deixa reduzir
por uma identidade imaginária nem por uma unidade estrutural. Na psicanálise ocorre
um esmagamento das máquinas desejantes por remetê-las às imagens dos pais. Deleuze e
Guattari indagam: “O que são as máquinas desejantes?” Eles respondem que para a
psicanálise é papai-mamãe. Isto significa reduzir toda a produção desejante do
inconsciente. Mas eles fazem outra aposta: a produção desejante é pura multiplicidade
irredutível à unidade. O que está em questão não é negar que haja uma sexualidade
edipiana, mas limitar a sexualidade em um campo dos objetos globais e egos específicos,
25
provocando a ilusão de que as máquinas desejantes estejam submetidas a leis
transcendentais. O que é questionável é conceber que os objetos parciais se direcionem,
mesmo em fases pré-edipianas, para uma organização futura determinada por Édipo. O
modelo edipiano é determinado secundariamente a partir de um campo social, e por esta
razão não pode ser concebido como fenômeno primário, causal e individual. Parece que,
segundo os autores, Melanie Klein percebeu a grande riqueza dos objetos parciais, mas
logo os capturou no eixo edipiano.
Como contraponto a esse modelo de pensamento, tem-se a idéia de um
inconsciente produzindo relações impessoais. Isto implica em acreditar que o
inconsciente não conhece pessoas, e que os objetos parciais investidos pela libido não
são os representantes dos pais, nem muito menos o que irá fundamentar as relações
familiares. Segundo os autores, está-se diante de um inconsciente órfão. Os objetos
parciais não “representam” nada. O que não quer dizer que para as crianças os pais não
tenham significado, mas o que está em discussão é:
[...] saber se tudo que ela toca é vivido como representando os pais. Desde o
nascimento, o berço, o seio, a chupeta e os excrementos são máquinas desejantes em
conexão com as partes de seu corpo. Achamos contraditório dizer, ao mesmo tempo,
que a criança vive no meio dos objetos parciais, e o que ela capta nos objetos parciais
são as pessoas parentais, mesmo que em pedaços. Que o seio seja extraído do corpo
da mãe, isso não é rigorosamente verdade, pois ele existe como peça de uma
máquina desejante, em conexão com a boca, e extraído de um fluxo de leite não
pessoal, ralo ou denso. Uma máquina desejante, um objeto parcial não representam
nada: não são representativos. São realmente suportes de relações de distribuidores
de agentes; mas estes agentes não são pessoas, e nem muito menos essas relações são
inter-subjetivas. São relações de produção como tais, agentes de produção e de
antiprodução. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 66)
A psicanálise deixou escapar experiências que não são da ordem familiar e
rebateu tudo em uma só ordem perdendo com isso o entendimento de outras ordens que
26
incluem conjuntos pré-pessoais ordem das percepções, afetos; e extrapessoais ordem
das máquinas econômicas, tecnológicas, ecológicas...
O grande perigo em se rebater todo o entendimento de algo tão complexo como
a dinâmica da sexualidade em uma suposta origem familiar consiste em uma idéia
limitada da origem dos fenômenos. Ainda se busca platonicamente a essência das coisas
e nesse empenho se cai em armadilhas naturalizantes e reducionistas. A psicanálise caiu
nessa armadilha, enquanto também foi uma armadilha, sobretudo pelo seu anseio em
buscar uma identidade primeira no seio da relação familiar. Foucault (1982, p. 18),
baseado em Nietzsche, afirma que “... o que se encontra no começo histórico das coisas
não é a identidade ainda preservada da origem é a discórdia entre as coisas, é o
disparate”.
O problema do “freudismo” foi ter permanecido indiferente à luta de classes e a
todo um processo social determinante em suas produções, ou seja, não se deu conta
desses determinismos sociais em sua produção teórico-prática e, mesmo que tenha se
deparado com a produção desejante do inconsciente, não a relacionou a um certo tipo de
sociedade, conseguindo, deste modo, arrastá-la para um domínio das normas familiais e
sociais dominantes.
Portanto, o que é buscado neste trabalho são as linhas de fuga que
intensifiquem inquietações no campo aqui proposto forçando novas passagens. É uma
tentativa de compreensão do funcionamento de determinados modelos de pensamento, o
que o faz funcionar, como funcionam e que efeitos produzem.
Em Deleuze e Parnet (1998), existem muitas críticas quanto à redução operada
pela psicanálise em sua noção de desejo, principalmente por achar que os verdadeiros
27
conteúdos do desejo, que povoam o inconsciente, são as pulsões parciais (objetos
parciais), que só expressam Édipo e a castração (organizador psíquico). Para Deleuze, a
libido é a energia que move as máquinas desejantes de modo atual, sempre em um
sentido produtivo e não representativo. Os fluxos seriam a objetividade do desejo, não
existindo, portanto, um sujeito do desejo ou de objeto (DELEUZE e PARNET, 1998). A
libido operaria segundo um sistema a-significante produzindo fluxos inconscientes em
uma ordem social, onde os objetos parciais, ao invés de serem extraídos de pessoas
globais, se produziriam por fluxos não pessoais que se transferem de uns para outros.
Outra crítica contundente está direcionada para a interpretação tal como é
apresentada no campo psicanalítico. Esta é uma outra questão que também será tratada
mais adiante quanto ao conceito de inconsciente e sua relação com o desejo. O que é
importante adiantar, porém, é o determinismo familialista encontrado em tais
interpretações. Quando a psicanálise rebate todo o desejo sobre uma estrutura familiar,
ela desconecta deste processo todo um campo social que é investido pela própria libido.
A interpretação é o principal artifício redutor dos fluxos, sobretudo ao inferir: “então era
isso que isso queria dizer?” É sempre por formas representativas que, na psicanálise, o
desejo se expressa, ou seja, algo que significa outra coisa, que está em outro lugar.
Deleuze e Guattari não negam a existência de sexualidades edipianas, ou
mesmo uma castração edipiana correspondentes a imagens globais e egos específicos,
porém estas não são produções do inconsciente. Trata-se de disjunções não exclusivas,
de relações de intensidades que extrapolam o âmbito familiar percorrendo todo um
conteúdo político-cultural-histórico-mundial-racial...
28
É que se persiste em tratar a família como uma matriz, ou melhor, como um
microcosmo, um meio expressivo valendo por si mesmo, e que, tão capaz quanto
seja de exprimir a ação das forças alienantes, mediatiza essas forças precisamente ao
suprimir as verdadeiras categorias de produção nas máquinas do desejo. (DELEUZE
e GUATTARI, 1976, p. 126)
Para Foucault (1972), toda essa parafernália familialista da psicanálise foi
produzida e reproduzida em concordância com o movimento psiquiátrico do século XIX,
comprometido com os propósitos burgueses, científicos, correspondente de toda uma
nova organização social capitalista em expansão que, ao mesmo tempo em que rompia
com os procedimentos asilares, ampliava os poderes do médico e fortalecia os elos entre
família e loucura.
Deleuze e Guattari se referem ao caso Schreber para questionarem as
interpretações que colocam como derivados de Édipo suas produções delirantes. O
equívoco consistiria na determinação familiar desses conteúdos delirantes. Em todos os
delírios estão presentes conteúdos raciais, políticos e históricos que extrapolam o campo
individual. De acordo com esta visão, alguns exemplos de experiências esquizofrênicas,
relatadas pela psicanálise e pela literatura, são utilizados pelos autores para revelar a
insuficiência das interpretações familialistas. A psicanálise constantemente tenta
compreender essas experiências a partir de conjuntos de identificações imaginárias
dependentes de Édipo. O esquizofrênico “sofreria” de uma falta de Édipo ou de uma
edipianização insuportável?
Não há dúvida de que as determinações familiares exerçam um papel, mas, para
os autores aqui estudados, esse papel é de indução e não de organização. As figuras
familiares são como estímulos quaisquer que disparam processos sociais de raças,
29
continentes, que transbordam as determinações de uma unidade familiar. O problema
maior foi o de a psicanálise ter soldado a sexualidade ao complexo familiar:
A família se tornou o lugar de retenção e de ressonância de todas as determinações
sociais. Pertence ao investimento reacionário do campo social aplicar todas as
imagens sociais aos simulacros de uma família restrita, de tal maneira que, para onde
quer que se vire, não se encontra mais do que pai-mãe: essa podridão edipiana que
cola à nossa pele. Sim, eu desejei minha mãe e quis matar meu pai; um único sujeito
de enunciação, Édipo, para todos os enunciados capitalistas, e entre os dois, o corte
de rebatimento, a castração. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 343)
Donzelot (1980) concebe a estrutura familiar como uma formação social
complexa e composta por várias linhas de composição, que sofreu mutações importantes
a partir dos séculos XVIII e XIX. Deleuze comenta a obra deste autor enfatizando a
importância dos efeitos da ascensão da burguesia e a instauração de uma nova
organização o Estado. Novas relações surgiram, não de modo homogêneo, entre
população e Estado. O modo pelo qual o corpo foi gerenciado, as relações institucionais,
os novos dispositivos de controle social fizeram da criança e da família o foco de
interesse que se estenderam desde as camadas burguesas até as classes sociais mais
pobres. É o surgimento do “social” e de suas dicotomias entre o privado e o público que
instauraram novas práticas e modos-indivíduo de subjetivação com intensa força de
proliferação, sempre de forma heterogênea. Com a formação do Estado representativo
moderno foram lançadas as sementes férteis para o desenvolvimento do que é chamado
aqui de processos de individualização e totalização que vingou e se frutificam até os dias
atuais. Esses processos foram intensificados pelo romantismo que valorizava, sobretudo,
as emoções pessoais. A leitura de Donzelot, em concordância com Deleuze, mostra que
tanto o indivíduo como a sociedade são atravessados simultaneamente por duas ordens: a
molar e a molecular. Isto significa dizer que tudo é, ao mesmo tempo, micro e macro
30
políticas. Na ordem molar, encontram-se pequenos fluxos de desejo, como na ordem
molecular se podem encontrar combinações de ordem molar.
Pode-se assim, concluir que economia política e economia libidinal fazem parte
de uma mesma economia, são economias de fluxos e suas conexões. Trata-se de
questionar as definições de desejo, colocando-o em uma nova dimensão, ou seja, em
uma dimensão de montagem, é o desejo na produção e a produção no desejo, para que se
possam pensar os modelos de subjetivação produzidos no e pelo socius. De acordo com
Guattari, o campo social não é formado por relações anteriores ao indivíduo, e a
concepção, segundo a qual se acredita que o individuo é constituído por relações
bipolares, faz parte de uma apropriação capitalista do desejo, que tem no familialismo
um dos seus princípios mais convincentes ao colocar a família como anterior à produção
social. Analisando alguns textos educativos para adolescentes, pode-se constatar a
dicotomia que ainda é feita de modo explícito entre família e Estado. A família é
colocada numa posição anterior ao Estado e é definida como célula-mãe da sociedade no
decorrer da história da humanidade. O conceito de família passa pela idéia de grupo
primário que antecede a criação do Estado. São idéias que afirmam a autonomia da
estrutura familiar tornando-a auto-suficiente e responsável pelo futuro da sociedade civil
e do próprio Estado. São concedidos à família poderes sem a menor visão crítica,
fazendo dela “a base” de estruturação do social, lugar de verdade e origem de desejos.
Para se estudar melhor a questão do desejo tal qual proposta pelos autores aqui
analisados, seguir-se-á para um próximo tópico, mas não sem antes citar Guattari (1987,
p. 77-78):
31
A propriedade privada dos meios de produção está intrinsecamente ligada à
apropriação do desejo pelo ego, pela família e pela ordem social. Começa-se
neutralizando no trabalhador todo e qualquer acesso ao desejo, pela castração
familialista, pelas ciladas do consumo, etc., para apoderar-se em seguida, sem
dificuldades, de sua força de trabalho. Cortar o desejo do trabalho, eis o imperativo
primeiro do capital. Separar a economia política da economia desejante: eis a missão
dos teóricos que se colocam a seu serviço.
2.1.2 LIBIDO, RECALCAMENTO E REPRESSÃO SOCIAL
Édipo supõe uma fantástica repressão das máquinas desejantes. E por quê, com que
fim? É realmente necessário ou desejável dobrar-se frente a ele? E com quê? O que
colocar no triângulo edipiano, com que formá-lo? (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p.17)
Para a psicanálise o sujeito só ingressaria no registro da cultura a partir de sua
sujeição à proibição do incesto e de sua identificação com os modelos impostos
socialmente. Esta sujeição sofreria recalcamento, sendo esta operação indispensável para
a estruturação normal da subjetividade. Édipo, então, seria o objeto do recalcamento que
determinaria a organização psíquica. O sujeito psicanalítico surgiria de uma interdição,
de uma lei. Esta hipótese supõe uma antinomia entre sexualidade e civilização, e grandes
esforços de Freud para explicá-la.
Ao longo do pensamento freudiano ocorrem algumas mudanças referentes à
compreensão do antagonismo entre sexualidade e sociedade. A princípio, Freud declara
ser a sociedade de sua época a principal responsável pelos malefícios causados pela
repressão sexual
3
. Seria então a moral sexual civilizada a causadora dos transtornos
psíquicos. Esta hipótese inicial de Freud o aproxima de certa compreensão mais social e
histórica do comportamento sexual humano. Inclusive essa fase do pensamento
freudiano foi considerada como fase otimista quanto à possibilidade de conciliação entre
3
FREUD, S. (1908). Moral sexual civilizada e doença nervosa moderna. Rio de Janeiro: Imago, vol. IX, 1996.
32
a sexualidade e sociedade através de transformações das instituições sociais. Porém, ao
se deparar com a sua grande descoberta, a sexualidade infantil, começa a questionar se
não existiria na própria natureza da pulsão sexual um caráter ameaçador e perturbador
das relações sociais
4
. Freud, então, postula a irredutibilidade da natureza perversa do
desenvolvimento psicossexual o pequeno perverso polimorfo. A sexualidade humana,
de modo paradoxal, seria o grande perigo da organização social e por isso a sociedade
produziria mecanismos para se defender desse perigo constante. Os principais perigos
seriam o impulso incestuoso e o agressivo. Enfim, a própria estrutura edipiana. Indo
mais adiante no pensamento freudiano, chega-se à hipótese filogenética que estabelece
de vez o determinismo estrutural de Édipo, que atravessa toda a história humana
5
. O
parricídio original seria a explicação para o antagonismo entre sexualidade e civilização.
-se um distanciamento cada vez maior da compreensão social desses fenômenos e um
estabelecimento radical da estrutura universal de Édipo. É a ontogênese repetindo a
filogênese:
A humanidade, através de suas instituições, perpetuaria dessa maneira aquilo que
está em seu fundamento. A sociedade seria, de certo modo, a memória viva do crime
cuja lembrança foi recalcada. Cada ser humano teria que lidar com aquela dívida
original e aceitar, por sua vez, as renúncias que os irmãos da horda se auto-
impuseram. É através de sua passagem pelo complexo de Édipo que cada um é
levado a isso, sofrendo uma dupla determinação. Por um lado, a de uma herança
filogenética que faria parte de seu patrimônio genético a “memória” desses
acontecimentos originais que o obrigaria a repeti-los; por outro lado, as condições de
atualização desse programa “inato” seriam dadas pela estrutura familiar na qual a
criança estaria inserida, estrutura esta que faria parte do retorno do recalcado, sendo
ela mesma a comemoração daqueles acontecimentos primitivos: [...] A estrutura
familiar, transmitida de geração em geração pelo complexo de Édipo, perpetuaria o
cenário original. (MILLOT, 1987, p. 82)
4
________ . (1905). Três ensaios sobre a sexualidade. In op. cit., vol. VII.
5
________ . (1913). Totem e tabu. In op. cit., vol. XII.
33
E, por fim, Freud ainda irá recorrer à formulação da teoria da pulsão de morte
como força primitiva transcendente, que se adere às pulsões de vida causando os piores
transtornos nas relações sociais
6
. É quando a psicanálise se torna, segundo Deleuze e
Guattari, um novo conjunto de padres, “animadores da má consciência”. É toda uma
concepção dualística que está em jogo, eliminando as multiplicidades funcionais das
máquinas desejantes.
Como proceder diante de um pensamento tão desarticulado das configurações
históricas do desejo e que toma a sexualidade de um modo tão reacionário? Foi com esta
finalidade que Deleuze e Guattari escreveram “O Anti-Édipo” e “Mil Platôs”. Nestas
obras, encontram-se densas críticas ao princípio estrutural filo-ontogenético de Édipo.
Quanto ao percurso freudiano descrito, Deleuze e Guattari (1976, p. 152)
concluem:
Que se considere o artigo de 1908 sobre ‘a moral sexual civilizada’: Édipo ainda não
está nomeado, o recalcamento é aí considerado em função da repressão, que suscita
um deslocamento, e que se exerce sobre as pulsões parciais enquanto elas
representam à sua maneira uma espécie de produção desejante, antes de exercer-se
contra as pulsões incestuosas ou outras que ameaçam o casamento legítimo. Mas, em
seguida, é evidente que, quanto mais o problema de Édipo e do incesto ocuparão o
primeiro plano, mais o recalcamento e seus correlatos, a supressão e a sublimação
serão fundados em exigências supostas transcendentes da civilização, ao mesmo
tempo em que a psicanálise se embrenhará cada vez mais em sua visão familialista e
ideológica.
Ainda que, em Reich, ou em Marcuse, se encontre, segundo Deleuze-Guattari,
a insistência em enfatizar a repressão social como principal campo de pesquisa e também
uma resistência aos modelos biologizantes e naturalizantes de Freud, mesmo assim, o
que se encontra em discussão é a natureza do que é recalcado e que continua sem uma
elaboração mais consistente.
6
FREUD, S. (1920). Além do princípio de prazer. In op. cit., vol. XVIII.
34
Édipo é uma imagem falsificada e não é sobre ele que o recalcamento incide,
nem muito menos existiria um retorno do recalcado. A relação entre os desejos edipianos
e o recalcamento está em uma outra ordem. Os desejos sofrem recalcamento, mas porque
são revolucionários e sempre “agitam” a ordem estabelecida. Para Freud, existiria um
recalcamento primordial e a repressão seria secundária, o que significa afirmar uma
autonomia do recalcamento em relação à repressão social. Para Deleuze e Guattari,
Édipo é um representado forjado, é uma idéia inspirada pela teoria do recalcamento e
que, ao mesmo tempo, está a seu serviço.
Neste sentido, Reich é reconhecido por Deleuze e Guattari como o primeiro a
considerar uma relação de dependência entre recalcamento e repressão, o primeiro a
tentar fazer funcionar a máquina analítica e a revolucionária apesar de não ter concebido
a noção de produção desejante, onde o desejo está inserido na infra-estrutura econômica.
Reich, diante do determinismo resignado, característica cada vez mais forte de um
freudismo, foge para suas próprias máquinas desejantes (Orgono).
No “O Anti-édipo”, encontra-se a seguinte afirmação:
O recalcamento é tal que a repressão se torna desejada, deixando de ser consciente; e
ele induz um desejo de conseqüência, uma imagem falsificada daquilo sobre o que
ele incide, que lhe dá uma aparência de independência. O recalcamento propriamente
dito é um meio a serviço da repressão. Aquilo sobre o que ele incide é também o
objeto da repressão: a produção desejante. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 155)
Para Deleuze e Guattari, a psicanálise coloca a família no lugar de agente
delegado do recalcamento operando como substituto de um movimento social repressivo,
onde o recalcado é representado pelas pulsões familiares incestuosas. Esta dupla
operação atende as necessidades de uma produção social interessada em confiscar o
desejo, conjurando sua potência revolucionária. A família será a estratégia perfeita para
35
lançar o desejo na prisão papai-mamãe, e a psicanálise, dessa maneira, pôde avançar
rapidamente como produtora e reprodutora de uma formação social maior. Édipo só pôde
alcançar tamanha repercussão por causa de um contexto sócio-político comprometido na
produção de estratégias de dominação.
A operação que colocou a família no lugar da lei suprema conseguiu agir no
socius de modo sem precedente. Uma enorme teia repressora que, não só inibe
comportamentos anti-sociais, como produz o que é considerado anti-social, se proliferou.
A concepção de poder apresentada por Foucault é muito útil para o entendimento das
relações sociais, por ser, justamente, a definição pela positividade que ganha relevo. Para
Foucault, o poder é muito mais positivo do que negativo. Em contraposição com as
idéias dominantes de repressão social, Foucault irá analisar a produção e os efeitos dos
dispositivos de sexualidade como conjunto de estratégias sociais que possibilitam
relações de poder, desmontando, assim, qualquer possibilidade de naturalização da
sexualidade, sobretudo, dos processos de edipianização. Foucault, do mesmo modo
como os autores aqui investigados, faz relevantes críticas à psicanálise. Foucault (1977)
afirma que, a partir principalmente do século XVIII, o sexo passou a ser incitado
provocando uma espécie de “erotismo discursivo generalizado”. No século XIX, a
difusão do discurso sobre o sexo alcançou seu ápice, e esta intensificação não foi só de
ordem quantitativa, mas também qualitativa, tratando-se de uma multiplicidade
discursiva heterogênea. Extrapolando a ordem dos dispositivos de aliança baseados nos
contratos matrimoniais e de regulações de parentescos, surge o dispositivo de
sexualidade altamente complexo e polimorfo que “fez falar” o sexo da criança, da
mulher, do perverso e da população. Foram constituídos segredos, a repressão sexual,
36
onde o sexo, ao mesmo tempo em que obrigado a se esconder, também é solicitado a se
revelar perseguição e confissão na medida em que se obriga a calar. Para Foucault,
essa dupla operação faz parte de uma mesma estratégia de poder-saber que teve início
com as práticas de confissão da pastoral cristã e colocou muito mais o sexo em discurso
do que o restringiu. O poder em seu aspecto positivo é capaz de produções inesgotáveis,
o que implica reconhecer nele não só um caráter coercitivo, tal qual as teorias a respeito
da sexualidade afirmaram, mas reconhecer seu aspecto primordialmente produtivo e
muito mais amplo a partir de relações de forças para além da dimensão individualizante
que todas essas teorias fizeram crer: “[...] o poder não é uma instituição e nem uma
estrutura, não é uma certa potência de que alguns sejam, dotados: é o nome dado a uma
situação estratégica complexa numa sociedade determinada” (FOUCAULT, 1977, p. 89).
Em Foucault (1982), encontra-se uma definição resumida da noção de
dispositivo na qual está evidente o caráter histórico da sexualidade, mas não como a
história tradicional a descreve nos moldes da hipótese repressiva. A sexualidade é um
dispositivo impessoal, sem origem ou instância determinante, fabricada por uma rede
heterogênea de elementos discursivos, teorias científicas, organizações administrativas,
sistemas filosóficos, morais, religiosos, estruturas arquitetônicas, conjunto de leis,
instituições etc. Todos esses elementos possuem flexibilidade e podem mudar de
posições e funções. Outro aspecto importante de um dispositivo é quanto à sua função
referente a um conjunto de estratégias dominantes, que busca o controle-dominação e, no
caso da sexualidade, esta é uma das áreas da vida humana que mais atende em termos de
controle e produção desta natureza. De um modo geral, as produções foucaultianas
servem aqui para pensar em como as grandes estratégias de poder se estabelecem e como
37
encontram condições de exercício em micro-relações de poder (FOUCAULT, 1982, p.
249). Está-se no campo das estratégias sem sujeito, o que não significa afirmar que não
exista representação, mas afirmar uma operação que ocorre de fora para dentro, ou
melhor:
Não se deveria dizer que a alma é uma ilusão, ou um efeito ideológico, mas afirmar
que ela existe, que tem uma realidade, que é produzida permanentemente, em torno,
na superfície, no interior do corpo pelo funcionamento de um poder que se exerce
sobre os que são punidos de uma maneira mais geral sobre os que são vigiados,
treinados e corrigidos, sobre os loucos, as crianças, os escolares, os colonizados,
sobre os que são fixados a um aparelho de produção e controlados durante toda a
existência. (FOUCAULT, 1995, p. 31)
A psicanálise, na visão de Foucault, conseguiu juntar os dispositivos de aliança
e de sexualidade através da valorização da célula familiar como o lugar obrigatório dos
afetos, de intensificação dos sentimentos, de origem dos impulsos incestuosos, enfim, é
na família e pela família que os procedimentos de incitação ao sexo terão maior alcance.
É importante ressaltar novamente que este quadro social (solidificação da família no
Ocidente) estava em expansão e a psicanálise aparece como um dos episódios de suma
importância na instauração e difusão desse movimento. Muito mais que uma célula
monogâmica e conjugal, a família se constituiu por meio de práticas, regulações móveis
que extrapolam a função de inibição de comportamentos e controle social. É por esta
razão que Foucault rejeita a tese de que o sexo foi silenciado e censurado, principalmente
no século XIX, o que não significa afirmar que não tenha ocorrido censura, repressões,
mas esta tese não pode servir de ponto de apoio para uma análise do que aconteceu com
a sexualidade neste período histórico. Ao contrário, nunca se falou tanto em sexo e a
junção psicanálise-família foi uma das estratégias que mais intensificou a colo cação do
sexo em discurso configurando-se em dispositivo de intensa saturação sexual. Afirmar
38
também que o sexo foi reprimido é supor uma natureza instintiva, rebelde e obscura da
sexualidade humana. É supor um princípio de latência e de causalidade inerente ao sexo
que, para Foucault, nada mais é que uma suposição característica de uma rede de poder
que opera também através dessas suposições.
É neste sentido que se podem correlacionar as idéias de Foucault com as de
Deleuze/Guattari, por se constatar uma operação social que age por deslocamentos
falseando a produção desejante. E, sem dúvida, a psicanálise foi produtora e, ao mesmo
tempo, determinada por essa formação social que desencadeou toda uma relação com o
desejo por deslocamentos da produção desejante por operações de recalcamento. A
psicanálise não foi a autora exclusiva desse processo, ele já podia ser visto na literatura,
nas produções científicas, na organização econômica, na pedagogização e
disciplinarização dos corpos, nas políticas de saúde etc. Foram procedimentos
produzidos não de forma unificada e homogênea, que obtiveram na psicanálise respaldo,
como também a psicanálise encontrou neste plano social um campo fértil para suas
produções e efeitos, sobretudo nas práticas institucionais extrapolando o terreno privado
dos consultórios.
A edipianização extrapola o domínio da família. Ela já havia ocupado o
domínio social aprisionando os investimentos libidinais em uma triangulação que
favoreceu as produções psicanalíticas. Toda essa produção vai muito mais longe:
Os usos edipianos de síntese, a edipianização, a triangulação, a castração, tudo isso
remete a forças um pouco mais potentes, um pouco mais subterrâneas que a
psicanálise, que a família, que a ideologia, mesmo reunidas. Estão aí todas as forças
da produção, da reprodução e das repressões sociais. É que é preciso forças muito
potentes, na verdade, para vencer as do desejo, levá-las à resignação, e substituir em
toda parte reações do tipo papai-mamãe ao que era essencialmente ativo, agressivo,
artista, produtivo e conquistador no próprio inconsciente. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p.158)
39
Para Deleuze e Guattari, é a partir de um movimento simultâneo que a
formação social repressiva consegue se fazer substituir pela família recalcante e, ao
mesmo tempo, impor à produção desejante uma imagem deslocada do recalcado
fazendo-o passar como pulsões familiares incestuosas. A produção desejante sofreria o
recalcamento originário e a produção social está no lugar da repressão. O que está em
jogo nesta perspectiva é uma operação de interesse da produção social, na qual está
incluída a psicanálise, que deforma o desejo ao reconhecê-lo como incestuoso, que o
coloca sob suspeita e ao mesmo tempo como lugar de mais profunda verdade. São
manobras de domesticação da libido que estão em toda parte, e as condições dessa
domesticação, evidentemente, não são dadas. Édipo é um limite deslocado no interior do
socius, é a imagem falsificada à qual o desejo se prende (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 210). Na psicanálise, Édipo é a representação que sofreria o recalcamento, em
que a proibição do incesto seria a representação edipiana do recalcamento. Aquilo que é
proibido também é aquilo que é mais desejado. No entanto, para Deleuze e Guattari
(1976, p. 219), o recalcado não coincide com a representação edipiana e, sim, com a
produção desejante.
O que passa, ao contrário, da produção desejante à produção social forma um
investimento sexual direto dessa produção social, sem nenhum recalcamento do
caráter sexual do simbolismo e dos afetos correspondentes e, sobretudo, sem
referência a uma representação edipiana que se suporia originalmente recalcada ou
estruturalmente forcluida.
O incesto não remete a Édipo, mas aos fluxos intensivos do desejo. Édipo é
uma tentativa de codificação do desejo, uma tentativa de nomear aquilo que é da ordem
do impessoal. No eixo repressão-recalcamento há um direcionamento dos investimentos
libidinais para valores determinados por uma ordem social dominante, mas que, por
40
princípio, segundo Deleuze/Guattari, não correspondem em nada aos sistemas binários e
figurativos desta ordem. Considerando que a libido que investe a triangulação edipiana
não é um fenômeno em si, conclui-se que este arranjo corresponde a um modo de
colocar a questão do desejo em certo plano social. Existe uma manobra social que faz
com que o recalcado apareça travestido em desejo edipiano e o recalcante seja a família
em suas relações binárias, constituindo a sexualidade infantil. Para que ocorra Édipo é
necessário que ele ocupe o lugar do representante do desejo e que ocorra uma separação
entre social e família estabelecendo uma relação bi-unívoca entre esses dois campos, o
que é uma característica específica do sistema capitalista. Isso já não ocorre nos sistemas
primitivos de sociedade, porque a família é coextensiva ao campo social. Édipo não é
nunca uma causa, mas depende de investimentos produzidos em uma determinada
conjuntura social, que se deixa rebater sobre os determinantes familialistas. A relação
mais específica entre Édipo e sistema capitalista será vista mais adiante. Resta, aqui,
ressaltar o caráter primordial dos investimentos sociais, anteriores aos familiares, pois os
investimentos do desejo são em primeiro lugar, investimentos de um campo social e não
o contrário como a psicanálise fez parecer. A família nunca é determinante e, sim,
determinada, sendo uma aplicação dos investimentos inconscientes do social. Neste
sentido, Deleuze e Guattari (1976, p. 233) afirmam que a sexualidade não pode ser nunca
uma determinação molar correspondente a um sistema familiar, mas:
[...] a subdeterminação molecular, funcionando nos conjuntos sociais, e
secundariamente familiares, que traçam o campo de presença e de produção do
desejo: todo um inconsciente não-edipiano, que produzirá Édipo apenas como uma
de suas formações estatísticas secundárias (‘complexos’), à saída de história que põe
em jogo o devir das máquinas sociais, seu regime comparado ao das máquinas
desejantes.
41
O que dá o direito à psicanálise de cristalizar o desejo numa ordem da
representação, da lei e da proibição? Quem pode afirmar que esta seja realmente a forma
como o desejo constitui a subjetividade?
Tais perguntas têm a intenção de reforçar a idéia de redução artificial do desejo.
A repressão tem destino certo:
O campo social não é constituído por objetos que lhe preexistem. O indivíduo
tomado em sistemas bipolares do tipo homem/mulher, adulto/criança, genital/pré-
genital, vida/morte, etc., já é resultado de uma redução edipianizante do desejo sobre
a representação. A enunciação individuada do desejo já é uma condenação do desejo
à castração. Totalmente outra é a idéia de um agenciamento coletivo da libido em
partes do corpo, em grupos de indivíduos, em constelações de objetos e de
intensidades, em máquinas de toda espécie que fariam o desejo sair desta oscilação
entre o triângulo edipiano e seu desmoronamento na pulsão de morte, para conectá-lo
a multiplicidades cada vez mais abertas ao campo social. (GUATTARI, 1987, p. 31)
De acordo com Deleuze e Guattari, inicialmente, as “descobertas” freudianas
apontavam para as múltiplas possibilidades do desejo, provocando, inclusive, escândalos
nos meios científicos e sociais de um modo geral. Porém, em seu percurso, Freud
deixou-se capturar pelas armadilhas de um sistema social que aliena o desejo, que o
prende ao segredo sujo familiar. Esta é uma concepção altamente repressiva do desejo,
apoiada nas representações normalizadoras, que torna a criança e o indivíduo
responsáveis pelos seus impulsos incestuosos. É uma “tacada de mestre” afirmar neste
grande jogo das repressões sociais que o desejo é isso: Édipo. A esquizoanálise de
Deleuze e Guattari (1976, p. 130) pretende romper com este jogo propondo desmontar a
idéia de inconsciente expressivo e edipiano, “[...] sempre artificial repressivo e reprimido
mediatizado pela família, para atingir o inconsciente produtivo imediato”.
42
2.1.3 IMPLICAÇÕES CAPITALÍSTICAS NA PRODUÇÃO DE ÉDIPO
Deleuze e Guattari percorrem toda uma análise social que ofereceu as
condições necessárias para o nascimento de Édipo. Será feita uma delimitação desta
análise, complementando o que já foi visto até aqui, buscando uma maior compreensão
das produções psicanalíticas em seu processo de desfiguração dos investimentos
libidinais. Trata-se, na verdade, de uma mistificação do inconsciente datada e
comprometida com um sistema capitalístico em ascensão. A utilização da palavra
capitalístico, inventada por Guattari, serve para englobar os países que já são capitalistas
e setores do Terceiro Mundo, e também, de alguma forma, para evitar a idéia de um
capitalismo universal em si, pois ele existe apenas no atravessamento das forças sociais,
constituindo-se sempre numa espécie de neocapitalismo constante.
A intenção dos autores é fazer a análise a partir de Édipo não para considerá-lo
uma verdade a ser revelada, mas para mostrar como sua construção foi bem sucedida,
sobretudo a partir das peças de uma engrenagem social capitalística na qual tomou força
e corpo. É neste sistema social que a análise crítica se mostra mais forte. Édipo só existe
como desfiguração pela mistificação do inconsciente. Ao se referir às diversas
concepções psicanalíticas, tais como as que consideram Édipo em seu aspecto
imaginário ou estrutural, os autores afirmam que, na verdade, não existe diferença
alguma entre elas, pois todas são colonizações opressoras que operam com a suposição
de um inconsciente figurativo.
43
É na produção de subjetividade
7
que o capitalismo encontra sua maior
possibilidade de expansão. Sua maior estratégia foi a apropriação dos modos de
subjetivação, constituindo um inconsciente maquinado de modo capitalístico. Parece que
as forças capitalísticas entenderam que a produção de subjetividade é muito mais
importante que a produção em outros setores, como no energético, informático etc.
A produção de subjetividade pelo CMI (capitalismo mundial integral), é serializada,
normalizada, centralizada em torno de uma imagem, de um consenso subjetivo
referido e sobrecodificado por uma lei transcendental. Esse esquadrinhamento da
subjetividade é o que permite que ela se propague, a nível da produção e do consumo
das relações sociais, em todos os meios (intelectual, agrário, fabril, etc.) e em todos
os pontos do planeta. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 40)
A subjetividade no sistema capitalístico é produzida de modo industrial, em
escala mundial que não depende apenas de superestruturas. Ela é fabricada nas mais
diversas redes de consumo, de percepção de mundo, de relações de trabalho, de relações
de gênero, da moda, enfim, numa rede micropolítica. A produção de subjetividade não
ocorre separada da produção econômica. Não basta que a produção ocorra apenas na
esfera profissional, semiótica ou financeira, mas é uma confecção que começa desde a
infância, na escola, na família, que engloba todo um campo maquínico. Como afirma
Guattari (1986, p. 27), o sistema capitalista manipula as relações de produção e faz uso
da economia desejante no âmbito subjetivo: “Trata-se de sistemas de conexão direta
entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de controle social e as
instâncias psíquicas que definem a maneira de perceber o mundo”.
Para Guattari, a produção de subjetividade é a matéria prima de qualquer
produção, que não se difunde pela ideologia, mas pela modelização. A ideologia está na
7
As distinções entre as noções de produção de subjetividade e modos de subjetivação serão feitas nos dois
últimos capítulos.
44
ordem da representação e, portanto, não é suficiente para explicar os processos de
subjetivação, pois a modelização implica uma práxis social nas condições que a
determinam, e que estão para além de uma questão de idéia ou de identificações com
figuras familiares. Guattari chama de “função geral de equipamentos coletivos”, para se
referir à amplitude dos processos de modelização.
Segundo alguns autores da área de ciências políticas, podemos afirmar que:
A moderna ordem econômica capitalista penetra todas as esferas da vida social e
estende-se a outras instituições; a lógica do mercado torna-se a regra predominante
para a organização da vida política e social, e os comportamentos individuais
também são embutidos na lógica da produção econômica. (NUNES, 2003, p. 15)
É a partir de toda esta capacidade flexível e móvel do capitalismo, que se pode
afirmar sua natureza esquizofrênica, mas que, ao mesmo tempo, com alto rigor, repele
esta mesma tendência.
Dizemos do capitalismo, ao mesmo tempo, que ele não tem limite exterior, e que ele
tem um: tem um que é a esquizofrenia, isto é, a decodificação absoluta dos fluxos,
mas ele só funciona repelindo e conjurando esse limite. E também tem limites
interiores e não os tem: tem nas condições específicas da produção e da circulação
capitalistas, isto é, no próprio capital, mas só funciona, reproduzindo e alargando
esses limites a uma escala sempre mais vasta. E é realmente a potência do
capitalismo, que sua axiomática não seja nunca saturada, que ele seja sempre capaz
de acrescentar um novo axioma aos axiomas precedentes. (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 318)
É por decodificação e axiomatização dos fluxos que o capitalismo se expande
criando novas imagens flutuantes nas máquinas técnicas, científicas, sociais etc. São
movimentos de contínua desterritorialização por um lado e de reterritorialização por
outro. É assim que antigos códigos são decodificados e se tornam novas territorialidades.
No “O Anti-Édipo”, são analisadas as sociedades primitivas, as despóticas e a
capitalista. Esta análise não é feita num nível evolutivo, mas mostra como as relações
eram estabelecidas de modo diferente das relações edipianas do sistema capitalista. Para
45
os autores, na sociedade primitiva e despótica não existe Édipo tal como o proposto pela
psicanálise. Mesmo que de um modo totalmente diferente, os elementos da sociedade
primitiva e da despótica podem ser vistos na apropriação capitalística do desejo. Santos
(2000) mostra como Deleuze e Guattari perceberam os processos de desterritorialização
e reterritorialização que o capitalismo pode produzir através de pontos de articulação
entre as codificações primitivas e sobrecodificações despóticas. Trata-se de uma nova
inteligência política que opera com antigas categorias desfiguradas pelos movimentos de
desterritorialização e reterritorialização.
A finalidade do capitalismo não difere de outros sistemas no que diz respeito à
necessidade de controle social, mas seu modo de operação é inovador quanto à
capacidade de misturas, de re-apropriações de antigas fórmulas, de criação de
pseudocódigos, de esquadrinhamento do socius.
Se é verdade que a função do Estado moderno é a regulação dos fluxos
decodificados, desterritorializados, um dos principais aspectos dessa função consiste
em re-territorializar, para impedir os fluxos decodificados de escaparem por todas as
extremidades da axiomática social. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 328)
O capitalismo apresenta um modo de produção esquizofrênico, que possibilita
infinitas manobras de decodificação dos fluxos, mas, ao mesmo tempo, recodifica, de um
modo ou de outro, a partir de quantidades abstratas (axiomatização). Esses são os três
elementos de manobra do desejo nas sociedades modernas: desterritorialização,
axiomática e reterritorialização. Nos sistemas primitivo e despótico não existe dicotomia
entre produção social e produção humana deste social. A família, por exemplo, é co-
extensiva ao social, sendo as relações de parentesco determinantes nas relações sociais.
Já no capitalismo, a família será privatizada, sendo desinvestida pelo Estado, tornando-se
46
autônoma. Não são mais as relações de aliança que constituem as relações sociais, mas o
capital e a própria atividade produtora.
Essa colocação fora do campo social da família é também sua maior chance social.
Porque é a condição sob a qual todo o campo social vai poder aplicar-se à família.
As pessoas individuais são primeiramente pessoas sociais, quer dizer, funções
derivadas das quantidades abstratas; tornam-se concretas elas mesmas na colocação
em relação ou na axiomática dessas quantidades, na sua conjunção. [...] O
capitalismo preenche assim com imagens seu campo de imanência... (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 336)
O capital torna-se o corpo pleno do social e é a partir dele que as imagens serão
construídas. Ele está em primeiro plano, e a família será o lugar de rebatimento dessas
imagens. A família como microcosmo torna-se a aplicação da axiomática social. É
quando surge Édipo a partir de operações de rebatimento das imagens sociais de primeira
ordem. Édipo, com todas as suas imagens privadas, é o ponto de chegada das forças
sociais primeiras. A triangulação edipiana é uma formação secundária só possível em um
sistema que cria a separação entre privado-público. A força dessa dicotomia está
presente na própria noção esfacelada de sujeito sujeito de enunciação (pessoa privada),
e sujeito do enunciado (pessoa social). Édipo nasceria no sistema capitalista onde ocorre
a aplicação das imagens sociais de primeira ordem às imagens familiares privadas de
segunda ordem.
Ele é nossa formação colonial íntima que responde à forma de soberania social.
Somos todos pequenas colônias e é Édipo que nos coloniza. Quando a família deixa
de ser uma unidade de produção e de reprodução, quando a conjunção encontra nela
o sentido de uma simples unidade de consumo, é pai-mãe que consumimos.
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 337)
A proposta desta pesquisa não é aprofundar a análise de todas estas mudanças,
mas não há como deixar de mencioná-las se se quer propor um Édipo produzido a partir
de condições sociais determinadas que sujeita a produção desejante. Uma série de
47
migrações do desejo ocorreu até se chegar ao Édipo psicanalítico. No capitalismo uma
nova relação com o desejo surgirá ligando-o a uma interioridade. Nietzsche chama de
“má-consciência” esta introdução da latência no desejo. Daí surge a produção modo-
indivíduo. Espaços foram produzidos e marcados, e toda uma relação entre um fora e um
dentro foi instaurada. Autores como Foucault, Lapassade, Althusser não se cansaram de
mostrar como uma nova subjetividade surge a partir de estratificações das instituições. A
instituição familiar, ao se privatizar, torna-se lugar de retenção e de rebatimento de todas
as determinações sociais “papai-mamãe se aplica a tudo”. É neste cenário que a
psicanálise aparece, não se retirando do processo, mas engendrando e deixando-se
engendrar pelas decodificações e axiomatizações dos fluxos operadas pelo capitalismo.
Deleuze e Guattari afirmam que a psicanálise só funciona nas axiomáticas produzidas
por esta formação social, sobretudo a partir das novas configurações familiares. Freud
conseguiu reduzir Édipo à família exatamente por encontrar terreno fértil para isso. Se a
família não tivesse passado por todas essas mudanças, não seria possível rebater o desejo
na triangulação edipiana, torná-lo o centro da verdade humana. Freud cria o grande
teatro íntimo e, com isso, a ilusão de separação entre desejo-indivíduo e desejo-social. O
desejo como produção é, ao mesmo tempo, desejante e social e, de acordo, com Deleuze
e Guattari, não pode nunca se prender ao teatro intimista da representação.
Na psicanálise, a criança vem primeiro, enquanto que para Deleuze e Guattari
(1976, p. 347) Édipo nasce na cabeça do pai: “Édipo é primeiro uma idéia de paranóico
adulto, antes de ser um sentimento infantil de neurótico”.
Isto significa afirmar que os investimentos sociais são anteriores aos
investimentos familiares. O desejo é em primeiro lugar investimento de um campo
48
social: “Nunca o adulto é um por-depois da criança, mas ambos, na família, visam às
determinações do campo no qual ela e eles se banham simultaneamente” (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 349).
Não há dúvida de que o pai interfira no inconsciente da criança, mas não por
uma transmissão familiar expressiva que se faça de geração em geração. O pai funciona
como um agente de máquina e não como uma reprodução mítico-trágica, filogenética,
encarnada na triangulação familiar. “Por que ter concedido à representação mítica e
trágica esse privilégio insensato? Por que ter instalado formas expressivas, e todo um
teatro onde havia campos, oficinas, fábricas, unidades de produção?” (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 377).
De um lado, temos a representação familiar mítica e trágica, remetida à
natureza subjetiva e universal do desejo (libido) e, de um outro, a produção desejante e
as determinações sociais objetivas. Esta essência subjetiva que aparece na psicanálise na
forma de libido é característica e efeito do sistema capitalista que, ao mesmo tempo em
que “descobre” a essência abstrata e subjetiva do desejo e do trabalho, separa os dois,
através de uma máquina repressiva, alienando o desejo do trabalho. Para Deleuze e
Guattari é neste sentido que podemos afirmar a proximidade da psicanálise com o
sistema capitalista, pois os dois supõem os movimentos esquizofrênicos do desejo, suas
desterritorializações, seus fluxos-esquizas, seus cortes-fluxos, mas o aprisiona pelas re-
territorializações subjetivas e privadas, pelas figuras serializadas e expressivas. O
capitalismo faz da interioridade uma axiomática e a aplica à família privatizada, sendo
esta a mesma operação da psicanálise quando liga o desejo às representações subjetivas.
49
Imagens, nada mais que imagens. O que fica no final é um teatro íntimo e familiar, o
teatro do homem privado, que não é mais nem produção desejante nem representação
objetiva. O inconsciente como cena. Todo um teatro posto no lugar da produção, e
que a desfigura ainda mais do que podiam fazê-lo a tragédia e o mito reduzidos aos
seus únicos recursos antigos. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 386)
Édipo é uma reterritorialização feita por uma operação antropomórfica do
desejo que distribui figuras na unidade familiar. Édipo é uma máquina gregária que se
constituiu como último território do homem europeu. Com a edipianização o
inconsciente pode ser colonizado, pois ele é por natureza uma máquina subversiva que
está sempre escapando por todos os lados. Está-se diante de uma reprodução social
primeira que se “apavora” com a capacidade de produção de sínteses disjuntivas
8
do
inconsciente, que tenta capturá-la. Édipo também seria o grande significante despótico
que age como um arcaísmo preservado.
Deleuze e Guattari retornam a Reich afirmando que sua percepção da relação
entre psicanálise e repressão social é correta, porém, limitada por estabelecer esta relação
em termos ideológicos e por fazer distinção entre economia política e libidinal: Não
menos do que o aparelho burocrático ou militar, a psicanálise é um mecanismo de
absorção da mais-valia; e ela não o é do exterior, extrinsecamente, mas sua própria
forma e sua própria finalidade estão marcadas por essa função social” (DELEUZE e
GUATTARI, 1976, p. 396).
São os movimentos de desterritorialização e reterritorialização que permitem
um deslocamento fazendo com que Édipo apareça como uma representação montada
pelas próprias máquinas repressivas do sistema capitalista. São movimentos artificiais
8
“A não-relação torna-se uma relação, a disjunção, uma relação” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 104).
50
dos fluxos de desejo. A psicanálise e outros artifícios nos fazem crer quando não há mais
nada para crer, depois do repúdio às crenças em uma territorialidade privada.
Deleuze e Guattari deixam claro que não há desterritorialização da máquina
desejante sem uma reterritorialização, uma é o avesso da outra. Estes são movimentos
que ocorrem juntos e que desembocam sempre em uma representação. Não existe
desterritorialização em si, portanto, só pode ser constatada pelos seus indícios de
representação territorial. O que é mais intrigante de se detectar nessas idéias é a
afirmação de Édipo; sim, ele existe, mas como uma ficção coletiva. Ele não é nem uma
invenção da psicanálise nem, muito menos, uma ilusão de Freud. Ele está na máquina
social, sendo capaz de operações nos níveis conscientes, pré-conscientes, inconscientes.
Mas isto não significa uma operação do inconsciente legítima.
A grande diferença entre a proposta esquizoanalítica de Deleuze-Guattari
(1976, p. 401) e a psicanálise é a seguinte: “A psicanálise se fixa sobre os representantes
imaginários e estruturais de re-territorialização, enquanto a esquizoanálise segue os
índices maquinísticos de desterritorialização”.
O capitalismo conseguiu se tornar uma grande máquina repressiva, sobretudo,
ao instaurar a distância não só entre os regimes das produções subjetivas e sociais, como
também entre as identidades de natureza entre o molar e o molecular. Deleuze e Guattari
não negam as diferenças de regime entre as máquinas desejantes e as sociais, mas
afirmam uma identidade de natureza entre os conjuntos molares e os moleculares. Não
faz o menor sentido para esses autores fazer a distinção entre o molar e molecular pela
natureza dos investimentos desejantes, pois eles aparecem tanto no molar quanto no
molecular a tal ponto que:
51
Uma seqüência de desejo se acha prolongada por uma série social, ou, então, uma
máquina social tem nas suas engrenagens peças de máquinas desejantes. As
micromultiplicidades desejantes não são menos coletivas que os grandes conjuntos
sociais, propriamente inseparáveis e constituindo uma única e mesma produção.
Desse ponto de vista, a dualidade dos pólos passa menos entre o molar e o molecular
do que no interior dos investimentos sociais molares, porque de qualquer maneira as
formações moleculares são investimentos como estes. (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 431-432)
Entre o molar e o molecular existe uma relação disjuntiva inclusiva, sendo que
onde está um, está o outro. A natureza dos dois conjuntos em termos de investimento de
um campo social é a mesma. Mas os regimes são diferentes. O conjunto molar forma
unidades, totalizações dos conjuntos moleculares de acordo com as leis dos grandes
números (espécies, estruturas sociais, organismos...). O segundo conjunto, o molecular, é
definido, a partir de sua tendência revolucionária, a-significante e nomádica. Nos
conjuntos molares são os corpos plenos que determinam os diferentes modos do socius:
terra (primitivo); déspota (bárbaro); capital (capitalismo). As metas e as intenções são
fixadas por estas formações sociais. Estas determinam o modo pelo qual homem-
natureza serão constituídos, a partir de pressupostos que estabelecem a agregação das
formações moleculares em condições socialmente determinadas. Assim, a questão é
menos uma oposição objetivo-subjetivo, do que investimentos libidinais inconscientes de
desejo em oposição aos investimentos pré-conscientes de interesse, de classes...
A distinção não está aí; a distinção a fazer passa na própria infra-estrutura econômica
e em seus investimentos. A economia libidinal não é menos objetiva que a economia
política, e a política não é menos subjetiva que a libidinal, embora as duas
correspondam a dois modos de investimento diferentes da mesma realidade social.
Há um investimento libidinal inconsciente de desejo que não coincide
necessariamente com os investimentos pré-conscientes de interesse, e que explica
como estes podem ser perturbados, pervertidos na ‘mais sombria organização’, sob
qualquer ideologia. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 438)
Voltamos novamente à definição de investimentos libidinais para tentar
compreender melhor suas características. Deleuze e Guattari fazem a distinção entre
52
investimentos libidinais de ordem inconsciente e os pré-conscientes de interesse. Os
investimentos libidinais não incidem sobre as metas ou fins sociais, porque eles são
anteriores e só podem incidir sobre os fluxos que passam pelo corpo pleno de cada
socius. Estes, os fluxos, são os verdadeiros objetos do desejo. O desejo como
investimento libidinal é parte da infra-estrutura social e não de sua ideologia. Ele está
sempre na produção como produção social e esta nele como produção desejante. O
desejo aparece em dois tipos de grupos: grupo sujeitado e grupo-sujeito. Tanto em um
quanto no outro não se trata de pessoas e, sim, de investimentos que coexistem. Trata-se
de uma questão de uso dos investimentos libidinais e, neste sentido, faz pouca diferença
entre um reformista, fascista ou revolucionário. No grupo sujeitado (máquina social),
existem investimentos de interesse pré-consciente que, mesmo conseguindo o poder
(aspecto revolucionário), continuam esmagando a produção desejante. No grupo-sujeito
(máquina desejante) existem investimentos libidinais revolucionários que fazem o desejo
entrar na máquina social provocando rupturas, onde não há hierarquias ou superego de
grupo. É importante frisar a coexistência dos dois tipos de grupo, ou seja, um grupo
sujeitado em algum momento pode se tornar grupo-sujeito e vice-versa. A psicanálise se
situou no primeiro tipo de grupo, embora, em seus primeiros passos, tenha funcionado
como um legítimo grupo-sujeito. Para a esquizoanálise de Deleuze e Guattari (1976, p.
444), o importante é: “[...] atingir os investimentos de desejo inconsciente do campo
social, enquanto eles se distinguem dos investimentos pré-conscientes de interesse, e
podem não apenas contrariá-los, mas coexistir com eles em modos opostos”.
Isto não é tarefa fácil, pois a situação sempre se mostra de modo muito
embaralhada. No campo da sexualidade, que é o campo privilegiado neste trabalho, a
53
situação não é menos complexa, e há urgência em denunciar os princípios repressivos
que se mostram na forma edipiana e que estrangulam a possibilidade de manifestação
dos fluxos de sexualidade. São fluxos que não se deixam edipianizar e que, ao investirem
o campo social, “delira a própria História”. A libido está no entrecruzamento dos fluxos
que atravessam os continentes, as raças, que não figuram nada, designando apenas zonas
de intensidade libidinal sobre o corpo sem órgãos.
9
É deste modo que Deleuze e Guattari percorrem alguns dos estudos clínicos de
Freud mostrando o quanto as diferenças sociais foram negligenciadas, o quanto os
investimentos sexual-sociais da libido se tornaram dependentes de uma relação edipiana
familiar e, com isso, toda uma possibilidade de análise das relações com o exterior foram
impedidas. O fechamento produzido pela psicanálise fez com que a visão da libido em
seu aspecto não familiar ficasse perdida. A libido como índice do não humano no sexo
pode ser inserida no campo social e ultrapassar a visão familialista. O que está em jogo é
a afirmação de uma libido órfã que investe e contra-investe primordialmente um campo
social como índice das relações deste mesmo campo: “Um amor não é reacionário ou
revolucionário, mas é o índice do caráter reacionário ou revolucionário dos
investimentos sociais da libido” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 448).
Isto significa afirmar, ainda, a inexistência de papéis sociais autônomos e a
primazia dos investimentos libidinais do campo social sobre o familiar. A libido não
precisa de mediadores, pois ela investe diretamente o social. O pensamento oposto da
psicanálise serve para neurotizar o indivíduo pela edipianização, cujo resultado é a
repressão social aplicada à família, sem a qual o sistema capitalista teria muita
9
Este conceito será analisado nos capítulos seguintes.
54
dificuldade em se expandir, sobretudo em sua árdua tarefa de fechar as aberturas para as
linhas de fuga dos fluxos. O capitalismo conseguiu formar um conjunto gregário sob
forte sujeição por meio de um campo de imanência que está sempre se alargando,
multiplicando seus axiomas e produzindo imagens que fazem seus elementos desejarem
sua própria repressão (imperialismo). E sobre isto o próprio Guattari (1987, p. 26) alerta:
“os modelos repressivos são tão virulentos nos psicanalistas quanto nos militares”.
A mais-valia é o primeiro aspecto do campo de imanência do capitalismo
aumentando constantemente seus limites. Trata-se de uma máquina louca, que está
sempre alimentando-se dos fluxos decodificados e desterritorializados, mas que os faz
passar por uma axiomatização permanente produzindo as reterritorializações necessárias
à sua sobrevivência. A arte maior desse sistema é implantar a falta no desejo e, assim,
exacerbar a produção.
A tarefa da esquizoanálise é justamente descobrir a natureza dos investimentos
libidinais. Ela não busca valer-se pela revolução, mas, investigar:
[...] quais são os índices maquinísticos, sociais e técnicos, sobre um socius, que se
abrem sobre as máquinas desejantes, que entram nas peças, engrenagens e motores
destas, tanto quanto elas fazem com que estas entrem nas suas próprias peças,
engrenagens e motores. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 483)
2.2
O INCONSCIENTE MAQUÍNICO E A PRODUÇÃO DESEJANTE
2.2.1 REPÚDIO À NOÇÃO DE FALTA E AFIRMAÇÃO DA PRODUÇÃO
Serão analisadas duas definições de inconsciente, contrapostas de modo
enfático no pensamento deleuzo-guattariano. A primeira é a da psicanálise que, segundo
os autores, interpreta o inconsciente de modo neurótico-edipiano, estrutural, imaginário,
55
molar, ideológico, simbólico e expressivo. A outra é a da esquizoanálise que pensa o
inconsciente a partir de movimentos esquizofrênicos, não-figurativos, concreto,
maquinístico, molecular, material e produtivo.
Desde Platão que a noção de desejo é concebida de modo idealista, ao ser
suposto como aquisição. Daí surge a relação entre desejo e falta. Kant, segundo os
autores em estudo, concebeu o desejo como produção quando o definiu como “a
faculdade de ser por suas representações causa da realidade dos objetos destas
representações” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 42). Mas, na verdade, não há
mudança essencial entre as duas formas de conceber o desejo, pois, para se conceber o
desejo como produção, ainda se apóia na concepção clássica de falta ao se afirmar sua
realidade psíquica. Isto significa que, para Kant, o desejo era capaz de produzir seu
objeto, mas de modo irreal, fantasmado. Deleuze e Guattari concluem que para Kant “a
realidade do objeto enquanto produzido pelo desejo é, pois, a realidade psíquica” (1976,
p. 42). O desejo seria produção de fantasma em virtude da ausência do objeto. Este
princípio idealista está em total concordância com o proposto pela psicanálise. O desejo
como falta do objeto real produz um imaginário que duplica a realidade. É o desejo
concebido como encenação, e, nesta lacuna entre o que é encenado e o objeto, surge a
necessidade como base do desejo. Deleuze e Guattari fazem duras críticas a esta noção
de desejo como falta produzida por uma realidade psíquica. Eles afirmam: ao desejo
nada falta! Não existiria uma relação de falta entre sujeito e objeto, até porque, para eles,
não existiria realidade psíquica. O desejo só pode produzir real.
O desejo é esse conjunto de sínteses passivas que maquinam os objetos parciais, os
fluxos e os corpos, e que funcionam como unidades de produção. O real decorre
dele, é o resultado das sínteses passivas do desejo como autoprodução do
inconsciente. Ao desejo não falta nada, a ele não falta seu objeto. É antes o sujeito
56
que falta ao desejo, ou ao desejo que falta um sujeito fixo; só há sujeito fixo pela
repressão. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 43-44)
Enquanto a psicanálise não se cansou de atribuir uma falta ao centro do sujeito,
Deleuze e Guattari apostaram na possibilidade do ser objetivo. O desejo e o objeto se
dão numa relação de máquina de máquina. O desejo é potência produtora e nunca uma
falta. A noção de inconsciente como produção repele a negatividade, a falta como
constitutiva do desejo: “O desejo é sempre o modo de produção de algo, o desejo é
sempre o modo de construção de algo” (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 216).
É um certo tipo de formação social que instaura a falta como fenômeno
subjetivo
10
. Portanto, a falta não existe antes do social, nem muito menos é o que
instaura o sujeito. Como já foi mostrado, no pensamento de Deleuze e Guattari (1976, p.
46) não há separação entre produção social e produção de fantasma, pois: “Na verdade, a
produção social é unicamente a própria produção desejante em condições determinadas”.
Não haveria operação psíquica responsável pela produção do desejo, no sentido descrito
na psicanálise, e mesmo as forças mais repressivas são produzidas pelo desejo. É
notável, mas o desejo pode ser também desejo de repressão, já que isso implica uma
produção que é real. Ainda que a repressão aja sobre a produção desejante, isto não
significa uma separação entre desejo e social, pois: “O desejo produz real, ou a produção
desejante não é outra coisa senão a produção social” (1976, p. 47). O desejo, mesmo
sendo revolucionário, pode se ligar às operações molares e constituir um estado real de
investimento de uma determinada ordem social. Os fantasmas são sempre secundários e
de grupo. Neste sentido, pode-se afirmar que o desejo tanto opera em regimes
10
Sabe-se que certos tipos de povos nômades da Mongólia não reconhecem o conceito de falta por considerarem
apenas o que possuem e o que fazem. A forma de concepção produtiva destes povos parece se aproximar do que
Deleuze e Guattari querem passar com a noção de desejo como produção.
57
moleculares como nos molares. Molar e molecular estão numa relação intrínseca e o
desejo percorre os dois campos. O que há na relação dessas máquinas não é uma
diferença de natureza do desejo, mas uma diferença de regimes que dizem respeito a
relações de grandeza. O regime molar (as máquinas técnicas/sociais) funciona por meio
de organizações não desarranjadas, enquanto o regime molecular (as máquinas
desejantes) funciona a partir de um processo de desarranjo constante. Parece mesmo a
relação descrita por Lapassade (1977), entre o instituído e instituinte. As máquinas
desejantes colocam sempre em perigo os sistemas molares pelas rupturas, pelas quebras
que produz. Essa relação está presente em todos os campos sociais: na literatura, na
música, na pintura, nos sistemas econômicos, filosóficos, religiosos, políticos... É um
movimento universal e contingente.
Para Deleuze e Guattari (1976, p. 140-143), importa pensar como funcionam as
máquinas desejantes.
O inconsciente não coloca nenhum problema de sentido, mas unicamente problemas
de uso. A questão do desejo não é ‘ o que isto quer dizer?’ Mas como isto funciona.
Como funcionam as máquinas desejantes, as suas, as minhas, com que falhas
fazendo parte de seu uso, como é que elas passam de um corpo a outro, como se
aferram sobre o corpo sem órgãos, como confrontam seu regime com as máquinas
sociais.
A psicanálise, ao invés de colocar o desejo na ordem da produção, colocou-o na
ordem da representação, reduzido a crenças de mitos e tragédias vividos na estrutura
familiar. A psicanálise estudou muito o inconsciente, tanto que Deleuze e Guattari (1976,
p. 40-41) chegam a afirmar que ela até mesmo o descobriu, mas esses estudos levaram a
um esmagamento das produções do desejo.
A grande descoberta da psicanálise foi a produção desejante, as produções do
inconsciente. Mas, com Édipo, essa descoberta foi logo ocultada por um novo
idealismo: no lugar de inconsciente como usina colocou-se um teatro antigo; no
58
lugar das unidades de produção colocou-se a representação; no lugar do inconsciente
produtivo colocou-se um inconsciente que só podia exprimir-se (o mito, a tragédia, o
sonho...).
Não há dúvida de que a psicanálise tenha funcionado no início como uma
verdadeira “máquina infernal” abalando todo um suposto conhecimento da mente ao
revelar as unidades de produção do inconsciente, mas não tardou em personificar essas
unidades: “[...] uma encenação teatral que substitui as verdadeiras forças produtivas do
inconsciente por simples valores representativos” (GUATTARI, 1992, p. 26).
Na verdade, Freud admitiu a positividade do inconsciente quando o definiu
como uma dimensão psíquica que não reconhece a negação nem a contradição, e que só
sabe desejar. Mas o próprio Freud perverteu as propriedades do inconsciente ao torná-lo
antropomórfico, representativo e reduzido aos fantasmas da castração. O inconsciente
sofre uma verdadeira domesticação quando reduzido aos efeitos edipianos em sua forma
individuada. Porém, não satisfeito, Freud afirma que Édipo institui não só o ser humano
no plano individual como também institui a própria civilização: “É sobre uma ausência
no âmago do gozo humano que a civilização se edificou” (MILLOT, 1987, p. 35).
Freud, em suas últimas obras, como em “O mal-estar na civilização” (1930)
apela cada vez mais para uma apologia do desejo ligado à falta e, conseqüentemente, à
culpa, para além de todo determinismo social. Édipo é suposto como um legado genético
constitutivo tanto do indivíduo quanto do social. Em “Totem e tabu” (1913), Freud tenta
explicar a origem da antinomia entre desejo e civilização e descobre que o
malthusianismo não seria suficiente para impor este antagonismo, recorrendo assim à
hipótese filogenética como determinante da renúncia que todo indivíduo tem de fazer
diante do desejo e que a própria civilização também teve que fazer durante sua evolução.
59
Em “História de uma neurose infantil” (1918), no caso clínico conhecido como o
homem dos lobos, Freud conclui que os sintomas de seu paciente são oriundos de
experiências da primeira infância acompanhadas de fantasias típicas, as quais estão
presentes em qualquer ser humano, pois são esquemas filogenéticos determinantes de
seu comportamento. Lacan recorrerá à ordem simbólica, que já existe antes mesmo de a
criança nascer, para explicar o fenômeno edipiano como um fenômeno que irá constituir
o sujeito pela linguagem, sem ter que recorrer à fixidez de um comportamento instintivo:
“É através do complexo de Édipo que a criança atinge um mundo especificamente
humano, ou seja, em termos lacanianos, a ordem simbólica” (MILLOT, 1987, p. 77).
Rolnik (2000) examina a relação desejo/falta feita pela psicanálise,
evidenciando a afirmativa de Deleuze e Guattari, quando estes, com muita dose de
humor, alegam que tudo isto não passa de coisa de “padre”. É a partir de um Ideal
transcendente que a concepção do desejo ligado à falta pode ser feita, que consiste,
justamente, numa operação onde o desejo é retirado de seu campo de imanência. O
campo de imanência do desejo está relacionado à noção de corpo sem órgãos, que será
estudada mais adiante, a qual permite que o desejo seja definido como processo de
produção.
Para Deleuze e Guattari, o desejo não carece de nada, não porque possa atingir a
plenitude de uma satisfação, mas porque a falta só pode ser pensada do ponto de
vista de um sujeito, que se orienta pela cartografia de um Ideal transcendente. É esse
sujeito que, ao ver sua figura desestabilizar-se pelos movimentos do desejo, o
interpretará como sinal de uma carência de completude. No entanto, se tiramos de
cena o Ideal transcendente e examinamos esses mesmos movimentos com a escuta
sintonizada no corpo sem órgãos, aquilo que para o sujeito é falta revela-se como
excesso de singularidades que transbordam e desmancham sua figura, levando-a a
tornar-se outra, se o processo seguir seu curso. (ROLNIK, 2000, p. 458)
60
As considerações feitas aqui por Rolnik serão revistas ao final deste trabalho
quando for abordado o tema esquizoanálise e clínica, sobretudo como novas
possibilidades da prática clínica. No entanto, o que é importante deixar claro na obra de
Deleuze e Guattari, e isso é feito muito bem por Rolnik, é a maldição que foi lançada
sobre o desejo quando capturado numa armadilha identitária da castração, culposa e
concebida como altamente perigosa para a sanidade mental. Trata-se da colocação do
desejo na esfera do impossível gozo. Enfim, para que o indivíduo entre na cultura, ou
para que a sociedade se instaure, é necessária a renúncia ao gozo.
O que está em jogo também nesta forma de concepção do desejo é a sua
associação ao prazer que, para Deleuze e Guattari, faz parte do sacrifício ao qual foi
submetido. Para Lacan, a entrada no simbólico supõe a falta, ou seja, não há desejo antes
da lei. A maldição é que o desejo é definido como falta. O gozo é impossível porque
pretende suprir a falta, o que seria desfazer a própria condição humana estamos
condenados para sempre. O prazer, por sua vez, é algo exterior porque é almejado pelo
desejo como supressão da falta, não é algo imanente ao próprio desejar, definido como
falta. Mas, para Deleuze e Guattari, isso continua sendo “coisa de padre”, pois o desejo
definido como busca de prazer é submetido a uma exterioridade alienante da ordem de
uma realidade natural e espontânea.
A figura mais recente do padre é o psicanalista com seus três princípios: Prazer,
Morte e Realidade. Sem dúvida, a psicanálise mostrou que o desejo não se submetia
à procriação nem mesmo à genitalidade. Foi este o seu modernismo. Mas ela
conservava o essencial, encontrando inclusive novos meios para inscrever no desejo
a lei negativa da falta, a regra exterior do prazer, o ideal transcendente do fantasma.
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 16)
É preciso, de acordo com a leitura de “O Anti-Édipo” e de “Mil Platôs”,
desconfiar dos conceitos encontrados na psicanálise e articulá-los com toda uma
61
construção moral, política, econômica, histórica, filosófica, sobretudo do conceito de
desejo aqui examinado. O desejo sempre foi uma questão política que a psicanálise, com
seus aliados, fez questão de desarticular pelas operações de subjugação. Trata-se, para
Deleuze e Guattari, de lançar o desejo em sua processualidade sempre construtivista, o
que é muito diferente de um espontaneísmo.
Machado (1990, p. 7), examinando as obras de Deleuze, faz menção à definição
psicanalítica de desejo, criticada em “O Anti-Édipo”, reforçando o que vem sendo
apresentado até agora:
L’anti-Oedipe é uma crítica à psicanálise, por ela reduzir e até mesmo abolir ou
destruir o desejo ao ligá-lo intrinsecamente à representação, à lei, à falta, à privação.
Para Deleuze, ao contrário, o desejo nem se liga à lei nem se define por uma falta
essencial, isto é, em vez de representação, é máquina, processo de produção
processo de autoprodução do inconsciente que não só não é interior a um sujeito,
como também não tende para um objeto.
Machado alerta para o descuido de uma conclusão precipitada que acha que o
“O Anti-Édipo” é uma recusa total da psicanálise. Isto não é verdade, pois, em vários
momentos, não só dessa obra, mas em muitas outras, a genialidade dos primórdios da
psicanálise é ressaltada, como também o seu valor como máquina analítica. Mas a
psicanálise, como qualquer outra abordagem, deve ser levada a uma autocrítica, pois,
quando isto não é feito, corre-se o risco de cair em armadilhas que naturalizam,
cristalizam e alienam os conceitos e a visão de mundo. É neste sentido que a filosofia se
torna uma grande aliada no estudo da fabricação dos conceitos e na criação de outros.
Trata-se de uma concepção de filosofia como criação de conceitos em oposição à
filosofia reflexiva que sempre esteve em busca de uma causalidade e sua finalidade.
Deleuze e Guattari (1997) acreditavam que entre a filosofia, a arte e a ciência poderia
haver uma relação de ressonância altamente produtiva para o conhecimento, até porque,
62
para eles, não há como separar em instâncias as experiências e o conhecimento dessas
experiências, formulando daí verdades transcendentes destituídas de qualquer análise
crítica de suas condições de surgimento. Deleuze e Guattari lutaram para devolver ao
pensamento seu aspecto imanente, contrapondo o transcendental ao transcendente e,
como escreveu Alliez (2000, p. 13), opondo-se:
[...] a toda forma dada no campo da consciência, à transcendência do sujeito, assim
como à do objeto. Uma imanência absoluta, ontológica, e não fenomenológica ou
crítica, que impede de conceber o campo transcendental à imagem e semelhança do
que se supõe que ele funda, e que, exprimindo sua determinabilidade como uma vida
singular em que a indeterminação da pessoa supõe a determinação pré-individual do
singular, exclui também toda transcendência do ser ainda que imanente a uma
subjetividade transcendental.
O que se recusa é uma visão de desejo relacionada a qualquer transcendência
ou interioridade como essência da subjetividade. Deleuze e Guattari questionam os
artifícios e conseqüentes efeitos da filosofia reflexiva sobre o pensamento ocidental
reduzindo a subjetividade aos imperativos de uma idealidade, presentes também no
pensamento de René Descartes, um dos maiores filósofos da representação.
É com Nietzsche, Espinosa, Bergson, Foucault e tantos outros de outras áreas
do conhecimento, que esses dois autores irão criar uma nova concepção de desejo em seu
uso imanente e impessoal. Trata-se de colocar o desejo como constitutivo de um
diagrama formado por linhas irredutíveis a qualquer desígnio de uma transcendência do
sujeito ou do objeto de ordem teológica, estrutural, genética, política, evolucionista etc.
O desejo é máquina e, como tal, só pode ser pensado a partir de um plano de imanência
de um corpo sem órgãos, onde são distribuídas as intensidades pré-individuais e
impessoais que animam a vida. Mas esses conceitos serão vistos no próximo capítulo.
63
Não se trata, portanto, de nenhum sentido pré-determinado ou de algum
elemento que comporta a negatividade em sua definição pela necessidade ou imagem de
uma falta. É necessário desprender-se de uma imagem do pensamento que construiu um
plano fechado de lógicas dadas para a noção de desejo e construir uma outra que tem por
princípio a lógica das multiplicidades e das intensidades. Parafraseando Espinosa, cabe
se perguntar, ao invés do que pode um corpo, o que pode um desejo? E teríamos como
resposta: tudo é afecção, tudo diz respeito ao poder e à potência de ser afetado. Mas isto
não significa que o desejo seja uma energia indiferenciada ou bestial que precisa ser
domada para que uma lei possa ser instaurada estabelecendo, assim, o seu controle. Para
Guattari, esta concepção de desejo é amplamente compartilhada por várias teorias, mas
não tanto pelos etólogos em seus estudos sobre o comportamento animal.
Até as sofisticadas teorias estruturalistas desenvolvem a premissa de que se deve
aceitar a castração simbólica, para que não só a sociedade seja possível, mas também
a própria fala, o próprio sujeito. Penso que essa concepção do desejo corresponde, e
muito bem, a uma determinada realidade: é o desejo tal como é construído,
produzido pelo CMI
*
. É o CMI em sua desterritorialização, que produz essa figura
bestial do desejo. Aliás, essa imagem nem é apropriada, pois a economia animal do
desejo não corresponde tampouco a esse modelo. Basta ler um pouco o testemunho
dos etólogos para ver que o instinto, a pulsão, o desejo pouco importa o nome que
se use no reino animal não tem absolutamente nada a ver com uma pulsão bruta.
Ele corresponde, ao contrário, a modos de semiotização altamente elaborados,
espécies de micropolíticas do espaço e de inter-relações entre os animais, as quais
implicam toda uma estratégia e até, segundo os etólogos, uma certa economia
estética. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 217)
Para combater estas teorias reacionárias do desejo, Deleuze e Guattari
recorrerão à noção de corpo sem órgãos para explicar o funcionamento das máquinas
desejantes e para afirmar sua positividade.
*
Sigla utilizada por Guattari para se referir ao Capitalismo Mundial Integrado.
64
2.2.2 CORPO SEM ÓRGÃOS E O PRINCÍPIO DE IMANÊNCIA DO DESEJO
O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é justamente o
fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise faz o contrário:
ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas, preserva o fantasma e
perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO. (DELEUZE e GUATTARI,
1999, p. 12)
Para que se possa fugir das analíticas naturalizantes e repressivas do desejo é
necessário pensar a noção de inconsciente, proposta por Deleuze e Guattari, a partir da
idéia de usina. Esta forma de pensar o inconsciente possibilita refutar o modelo
reacionário da psicanálise. Isso não significa jogar fora os textos freudianos, mas
questionar o que foi feito deles, denunciar seus equívocos, suas armadilhas. Trata-se de
analisar o que foi feito da sexualidade no campo psicanalítico e como ela pode ser
considerada a partir de outras formas de pensamento. Segundo Guattari e Rolnik (2005),
não se deve fazer uma teoria geral das elaborações teóricas da psicanálise, aplicando
suas idéias a tudo que vemos, escutamos ou sentimos, considerando que isto implicaria
perderem-se de vista novas cartografias diante de situações inéditas, sobretudo no campo
da clínica. Ás vezes é necessário “engavetar” certas teorias para que encontremos outras
possibilidades de cartografar. Será que não foi exatamente isto que Freud fez em muitos
momentos de criação, indaga Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005)?
Freud, sem dúvida, vislumbrou as intensidades do desejo em suas
multiplicidades e metamorfoses. Freud viu o fora do desejo. Mas tal vislumbre não durou
muito para logo cair em um fechamento mortificante, intimista, binário, representativo
de complexos codificados na lógica edipiana como modo de constituição da
subjetividade. É com a noção de corpo sem órgãos (CsO) que a idéia de sujeito será
revista, colocando-o na posição de resíduo, de borda: “Ele não está no centro, ocupado
65
pela máquina, mas na borda, sem identidade fixa, sempre descentrado, concluído a partir
dos estados pelos quais passa” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 36).
A tentativa de sempre querer ligar Édipo a tudo é totalmente incompatível com
as forças que operam pelas máquinas desejantes. Estas não reconhecem figuras
familiares “são estranhas ao tecido edipiano”. Trata-se de pensar uma nova forma de
produção do inconsciente:
Mas, precisamente, nenhuma operação binária se produz aqui, que rebata a produção
sobre representantes; nenhuma triangulação aparece nesse nível, que refira os objetos
do desejo a pessoas globais, nem o desejo a um sujeito específico. O único sujeito é
o próprio desejo sobre o corpo sem órgãos, enquanto ele maquina objetos parciais e
fluxo, extraindo e cortando uns pelos outros, passando de um corpo a outro, segundo
conexões e apropriações que destroem cada vez a unidade factícia de um ego
possuidor ou proprietário (sexualidade anedipiana). (DELEUZE e GUATTARI,
1976, p. 97-98)
O sujeito seria um apêndice da máquina, o que desfaz de vez a idéia de unidade
da máquina, de pessoa, pois haveria ligação direta entre máquina e desejo: “Não é o
desejo que está no sujeito, mas a máquina no desejo” (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p. 362). Daí surge a idéia de um inconsciente em contínua atividade de inovação,
produzindo e não reproduzindo, não expressivo, sem uma origem, como um campo de
batalha a partir de um CsO. Neste caso, nenhuma questão de sentido é colocada, mas, o
que está em jogo são, especificamente, questões de uso. É a partir de um
desmoronamento total das figuras e das representações que a noção de CsO faz sua
entrada no pensamento de Deleuze e Guattari para se colocar como plano imanente do
inconsciente, povoado por relações de intensidades “através das quais o sujeito passa
sobre o corpo sem órgãos, e opera devires, quedas e altas, migrações e deslocamentos”
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.112).
66
Para definir inconsciente é necessário compreender melhor a noção de CsO,
não como um plano constituído por fluxos indiferenciados, porque é a própria teoria
edipiana que supõe um indiferenciado que ameaça o indivíduo caso este não entre na
ordem das diferenciações papai-mamãe-ego, caso não interiorize as funções diferenciais
que garantem a sanidade psíquica -Édipo bem resolvido!”. Indiferenciações ou
diferenciações, não importa, tudo vem de Édipo.
Dizem-nos que Édipo é indispensável, fonte de toda diferenciação possível, e nos
salva da mãe terrível indiferenciada. Mas essa mãe terrível, a esfinge, faz parte, ela
própria, do Édipo; sua indiferenciação é apenas o avesso das diferenciações
exclusivas que Édipo cria, ela própria é criada por Édipo: Édipo funciona
necessariamente na forma desse duplo impasse. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.
395)
Se o inconsciente é usina, então o desejo que o constitui não pode ser
apreendido fora de um agenciamento determinado. O inconsciente como máquina
desejante constrói e é construído a partir de um plano de imanência: “O plano de
imanência não tem nada a ver com uma interioridade; ele é como o De fora de onde vem
todo o desejo” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 112-113).
É a partir de um agenciamento que o desejo pode ser descrito e não a partir de
invariantes estruturais referidas a organizações libidinais. Isto não implica a aceitação de
um campo indiferenciado. Até mesmo na criança o que está em jogo é a relação do
desejo com o fora como possibilidade dos agenciamentos. Deleuze (DELEUZE e
PARNET, 1998, p. 113), referindo-se ao pequeno Hans, afirma que:
Há velocidades e lentidões, afetos e hecceidades: um cavalo um dia a rua. Não há
senão políticas de agenciamentos, até mesmo na criança: nesse sentido tudo é
política. Não há senão programas, ou, antes, diagramas ou planos, nada de
lembranças e tampouco fantasias. Não há senão devires e blocos, blocos de infância,
blocos de feminilidade, de animalidade, blocos de devires atuais, e nada de
memorial, de imaginário ou de simbólico.
67
Guattari afirma que não há nenhum tipo de relação natural entre as pessoas,
nem muito menos entre bebê e mãe ou pai... Portanto, a criança vive “programações”
com outros “equipamentos coletivos”, onde:
[...] não existe um processo de formação genética na criança que desemboque numa
maturação da economia desejante. Uma criança, por menor que seja, vive sua relação
com o mundo e sua relação com os outros de um modo exatamente produtor e
criativo. É a modelização de suas semióticas, através da escola, que a conduz a uma
espécie de processo de indiferenciação. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 216)
Mais adiante neste trabalho, a noção de agenciamento será mais bem elaborada.
Por enquanto, é a noção de CsO que será enfatizada. Repetindo, esta noção não está
relacionada a uma idéia de indiferenciado, pois é sempre produção de algo, sendo esta a
própria definição de inconsciente maquínico. Então, o desejo só pode ser pensado a
partir dos agenciamentos produzidos em um plano de consistência, ou seja, o plano de
imanência definido como um CsO. O CsO é constituído por linhas, por gradientes de
intensidades, por devires, por conjugações de partículas que formarão um tipo de
agenciamento. Deleuze e Guattari (1999, p, 13) descrevem o CsO da seguinte maneira:
Um CsO é feito de tal maneira que ele só pode ser ocupado, povoado por
intensidades. Somente as intensidades passam e circulam. Mas o CsO não é uma
cena, um lugar, nem mesmo um suporte onde aconteceria algo. Nada a ver com um
fantasma, nada a interpretar. O CsO faz passar intensidades, ele as produz e as
distribui num ‘spatium’ ele mesmo intensivo, não extenso. Ele não é espaço e nem
está no espaço, é matéria que ocupará o espaço em tal ou qual grau grau que
corresponde às intensidades produzidas. Ele é a matéria intensa e não formada, não
estratificada, a matriz intensiva, a intensidade = 0, mas nada há de negativo neste
zero, não existem intensidades negativas nem contrárias.
O CsO é matéria e produz o real, mas como grandeza intensiva sem nenhuma
forma de real preexistente ou referência a qualquer sentido termodinâmico, tal como o
conceito de pulsão de morte é definido por Freud.
68
Esta é uma noção difícil de ser apreendida, primeiro, por se tratar de um
conhecimento que implica um saber filosófico, como leituras de Espinosa que inspiraram
a construção dessa noção e, segundo, pelos próprios paradoxos da noção por se referir a
algo que está sempre em construção
11
, mesmo que preexista de um certo modo, mas não
pode existir se não houver experimentação, ou seja, se não houver um empreendimento
iniciado por cada agenciamento. Os paradoxos estão espalhados por todos os lados: “Ele
é não-desejo, mas também desejo”. Ele não é um conceito, mas um conjunto de práticas
das quais a completude passa longe, pois “ao Corpo sem Órgãos não se chega, não se
pode chegar, nunca se acaba de chegar a ele, é um limite” (DELEUZE e GUATTARI,
1999, p. 9-10):
Diz-se: que é isso o CsO mas já se está sobre ele arrastando-se como um
verme, tateando como um cego ou correndo como um louco, viajante do deserto e
nômade da estepe. É sobre ele que dormimos, velamos, que lutamos, lutamos e
somos vencidos, que procuramos nosso lugar, que descobrimos nossas felicidades
inauditas e nossas quedas fabulosas, que penetramos e somos penetrados, que
amamos.
O termo CsO aparece em Antonin Artaud como um corpo sem imagem, onde o
organismo é inimigo do corpo, ou seja, determinada estratificação do corpo. Trata-se de
uma experiência onde o CsO é a superfície de toda maquinaria do desejo. Rompe-se com
toda idéia de organismo, de prefiguração do desejo ou de imagens humanizadas. Este
conceito se opõe muito mais à idéia de organismo do que à de órgãos, por estar o
primeiro relacionado a um “funcionamento organizado dos órgãos em que cada um está
em seu lugar, destinado a um papel que o identifica” (ZOURABICHVILI, 2004, p. 32).
Inevitavelmente, toda triangulação perde seu sentido com esta noção, o que possibilita
11
Consultar a esse respeito: PRADO Jr. A idéia de ‘plano de imanência’. In: E. ALLIEZ (Org.). Gilles Deleuze:
uma vida filosófica. São Paulo: 34, 2000.
69
uma enorme proliferação de multiplicidades que formam os agenciamentos. Para Artaud,
do mesmo modo como o mundo possui suas geografias, assim também o homem possui
suas geografias internas. É justamente isto que Deleuze e Guattari (1999, p. 11)
propõem:
Onde a psicanálise diz: Pare, reencontre o seu eu, seria preciso dizer: vamos mais
longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos ainda suficientemente
nosso eu. Substituir a anamnese pelo esquecimento, a interpretação pela
experimentação. Encontre seu corpo sem órgãos, saiba fazê-lo, é uma questão de
vida ou de morte, de juventude e de velhice, de tristeza e de alegria. É aí que tudo se
decide.
O CsO é a experimentação de um programa que, de modo algum tem a ver com
análises psicanalíticas que só sabem interpretar fantasmas. As interpretações
psicanalíticas do masoquismo, por exemplo, estão sempre se referindo a representações
arcaicas do desejo, enquanto que a esquizoanálise, ao invés de traduzir tudo em
fantasmas, irá partir da concepção de programas que se montam em decorrência do CsO.
Cada grupo ou cada indivíduo constrói um tipo de CsO e, por isso, o que interessa é
saber como cada um foi produzido, quais são suas sínteses para além de qualquer tipo de
regime identitário. Assim, o CsO é o próprio plano de imanência do desejo e, sobre isso,
Deleuze e Guattari (1999, p. 15) afirmam:
Os drogados, os masoquistas, os esquizofrênicos, os amantes, todos os CsO prestam
homenagem a Espinosa. O CsO é o campo de imanência do desejo, o plano de
consistência própria do desejo (ali onde o desejo se define como processo de
produção, sem referência a qualquer instância exterior, falta que viria torná-lo oco,
prazer que viria preenchê-lo).
Para Deleuze e Guattari, está-se diante de programas e não de fantasmas e
muito distante do Cogito cartesiano, onde a imanência não está remetida a um objeto
nem a um sujeito. Em outras palavras, a imanência para Deleuze e Guattari refere-se a
um campo transcendental em total oposição à idéia de transcendente, pois não considera
70
a noção de consciência, mas um campo que ultrapassa qualquer transcendência de sujeito
e de objeto. Trata-se de um plano pré-individual e impessoal que se contrapõe a toda
idéia de consciência desenvolvida pela filosofia moderna, a qual Deleuze descreve em
“Lógica do Sentido” (1974). Nesta obra, Deleuze define transcendental como uma
experiência sem consciência e sem sujeito, concebida como um empirismo
transcendental que, paradoxalmente, não inclui nem um objeto intencional, nem muito
menos um mundo das idéias puras. O princípio de imanência foi desenvolvido na teoria
deleuziana a partir das contribuições filosóficas de Espinoza, para quem os dualismos
são combatidos e todo um campo de afecção é afirmado a partir de planos de
intensidade. Portanto, não haveria dicotomia entre sujeito-objeto ou indivíduo-sociedade,
pois não haveria hierarquia de um sobre o outro ou uma relação de intersubjetividade
que supõe uma independência entre estes. Na imanência, sujeito e objeto não se
polarizam, isto é, ambos são constituídos ao mesmo tempo numa constante
processualidade sem fronteiras. A noção de transversalidade
12
cabe muito bem aqui para
desmontar as relações horizontais e verticais características de tantas teorias psicológicas
e filosóficas que explicam a relação sujeito-objeto.
A imanência só é em si mesma, portanto não é derivada de nenhuma causa
exterior a si mesma, nem se direciona para nenhum fim transcendente. Ela é o próprio
movimento da vida, onde é impossível qualquer tentativa de adequação: “A verdade, sob
todos os aspectos, tem a ver com a produção, não com adequação” (DELEUZE, 1988, p.
200). Contudo, não pode ser pensada nela mesma a não ser a partir de um mapeamento
12
Esta noção reaparecerá no último capítulo como uma das importantes noções para se pensar o plano clínico.
71
gerado pelos fluxos, isto é, o campo de imanência é o impensado e, ao mesmo tempo, o
que permite o pensável.
O plano de imanência é ao mesmo tempo o que deve ser pensado, e o que não pode
ser pensado. Ele seria o não-pensado no pensamento. É a base de todos os planos,
imanente a cada plano pensável que não chega a pensá-lo. É o mais íntimo do
pensamento e, todavia, o fora absoluto. (DELEUZE, 1993, p. 78)
As noções de CsO e imanência se conjugam pelas condições que oferecem ao
desejo como o próprio limite do corpo vivido “limite imanente”. Não se trata de um
corpo próprio, pois, como já vimos, não estamos diante de uma interioridade de um eu,
mas, sim, diante de um campo impessoal que não impossibilita a experiência do nome
próprio. Isto significa que o estado vivido é primeiro em relação ao sujeito que o vive
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 37), mas isto não implica um estado constante de
catatonia tal como a experiência esquizofrênica mencionada por Deleuze e Guattari.
Prado Jr. (2000, p. 314-315), comentando a obra “O que é a filosofia?”, distingue plano
de imanência de caos, além de afirmar sua pluralidade”:
[...] o plano de imanência não pode cobrir ou superpor-se ao caos (mesmo se se
afirma que seu horizonte é infinito). Deleuze diz que o plano de imanência é um
“corte” no caos (como um plano que corta um cone). “Cortar” só pode significar
captar (definir) uma “fatia”, por assim dizer, de um caos que permanece livre (e
infinitamente livre) em todas as outras direções ou dimensões. Mas, além de “corte”
no caos, o plano é também um “crivo” cortar é selecionar e fixar numa palavra,
determinar, conter o rio de Heráclito ou o Oceano mundo.
As noções de corpo sem órgãos e de plano de imanência do desejo serão úteis
para se investigar o plano clínico em sua dimensão construtivista e transdisciplinar, ao
mesmo tempo em que se afirma sua potência criadora. Isto significa que nesse plano não
se busca uma essência oculta que pela interpretação será revelada. O que interessa é
abordar as possibilidades de:
72
[...] incisões a serem feitas nos estratos, para que o invisível, já-presente, se torne
visível. Blocos de invisíveis buscam passagem e, ao fazê-lo, produzem rachaduras. O
que há para ser feito é investir nas rachaduras mais do que nas configurações
homogêneas com que uma realidade se apresenta. (BARROS, 1994, p. 258)
Trata-se de uma perspectiva em que o desejo, a partir do plano de imanência, se
define como produção, rompendo com quaisquer instâncias exteriores que se articulem
com a idéia de falta. Tal perspectiva faz do CsO o próprio anti-édipo. Ele é a própria
abertura para novas conexões e distribuições de intensidades.
2.2.3 DA INTERPRETAÇÃO À EXPERIMENTAÇÃO
[...] não há material inconsciente nem interpretação psicanalítica, mas somente usos,
usos analíticos das sínteses do inconsciente, que se deixam definir tão pouco pela
indicação de um significante quanto pela determinação de significados. (DELEUZE
e GUATTARI, 1976, p. 228)
A esquizoanálise de Deleuze e Guattari propõe uma nova abordagem do
inconsciente sem fazer uso da interpretação. Isso porque, se algo precisa ser interpretado,
é porque ele já tem um sentido a priori que só precisaria passar pelo trabalho
interpretativo. A esquizoanálise renuncia a qualquer idéia de representação inconsciente
e, conseqüentemente, não busca encontrar nenhum conteúdo que esteja latente e
determinando o comportamento, sobretudo se este conteúdo é concebido como desejo
edipiano e seus derivados. O que se propõe é um inconsciente como espaço de guerra e
não um teatro de cenas burguesas. A esquizoanálise busca descobrir o uso e o
funcionamento do inconsciente como máquina desejante. No inconsciente só existem
populações, grupos e máquinas, sempre as máquinas...
Ao rejeitar a hipótese de um inconsciente expressivo, Deleuze e Guattari (1976,
p. 35) afirmam que o inconsciente nada quer dizer: “Aqui nada é representativo, mas
tudo é vida e vivido [...]”.
73
Trata-se de fazer um outro uso das sínteses do inconsciente, pensá-lo de modo
afirmativo, ilimitado, operando pelas sínteses disjuntivas e não exclusivas como é feito
na psicanálise.
O próprio do registro edipiano é introduzir um uso exclusivo, limitativo, negativo, da
síntese disjuntiva. Somos tão formados por Édipo que não conseguimos imaginar um
outro uso; e até mesmo as três neuroses familiares não saem disso, embora sofram
por não poder mais aplicá-lo. Vimos exercer-se em toda a psicanálise, em Freud, esse
gosto pelas disjunções exclusivas. Parece, entretanto, que a esquizofrenia nos dá uma
singular lição extra-edipiana e nos revela uma força desconhecida da síntese
disjuntiva, um uso imanente que não seria mais exclusivo nem limitativo, mas
plenamente afirmativo, ilimitativo, inclusivo. Uma disjunção que permanece
disjuntiva e que, entretanto, afirma os termos disjungidos, afirma-os através de toda a
sua distância, sem limitar um pelo outro, nem excluir o outro de um, é talvez o maior
paradoxo. ‘Ou... ou’, em vez de ‘ou então’. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p.
102)
São disjunções livres, que não operam por meio de ligações ‘e’, mas, por ‘ou’,
sem que haja exclusão de um dos termos. Poderia se dizer então que o esquizo, no caso
de Schreber, por exemplo, não seria um homem e mulher, um bissexual, mas um
transexual. Está-se, então, numa ordem extra-edipiana. Para Deleuze e Guattari, o
presidente Schreber estava em todas as séries, usando todos os lugares de um modo
singular, sobrevoando distâncias que são indivisíveis ao mesmo tempo. As sínteses
disjuntivas podem ter dois usos: transcendente e imanente. O uso transcendente é o
proposto pela psicanálise freudiana, através das operações edipianas, e o uso imanente é
o proposto pela esquizoanálise deleuzo-guattariana, através das operações de
intensidades sem sujeito. O uso transcendente de Édipo fecha todas as saídas e entradas
do desejo ao rejeitar as possibilidades das disjunções inclusivas e ilimitativas. Deste
modo, estamos diante do uso edipiano das disjunções exclusivas e do uso anediapiano
das disjunções inclusivo-ilimitativas, onde tudo se mistura a partir do CsO, sem que,
com isso, os devires se confundam, muito pelo contrário, é daí que eles se instauram e
74
criam uma nova ordem - a ordem intensiva. As raças e as culturas se movem sobre o
CsO, no qual podem ocorrer fenômenos de individuação, ou de sexualização. Nos
delírios estão presentes esses devires que se movem por intensidades, e isto é muito
diferente de pensar por identificações.
Trata-se de algo totalmente diferente: identificar as raças, as culturas e os deuses a
campos de intensidade sobre o corpo sem órgãos, identificar os personagens a
estados que preenchem esses campos, a efeitos que fulguram e atravessam esses
campos. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 115)
A noção de um eu no centro, comandando a organização social e individual, é
amplamente refutada. São séries de singularidades que se formam em uma rede
disjuntiva. É a partir de variações de intensidades que tudo deve ser analisado
(esquizoanálise). Ao referir-se aos movimentos históricos/sociais, os autores afirmam
que se está diante de uma deriva histórica coletiva, nos entrecruzamentos de raças,
alianças, clãs, relações de poder, campos de força, toda uma complexa rede de relações
de cortes-fluxos, de aberturas que não são produzidas a partir dos fundamentos redutores
das figuras edipianas, servindo para a psicanálise, de eixo explicativo das relações
humanas ao longo da história. A libido investe o campo social de modo objetivo, sem
intermediários representados por papai-mamãe.
A clínica psicanalítica opera por intermédio de interpretações redutoras que,
arbitrariamente, subjugam as mais singulares ações humanas. São interpretações
(intervenções) que se apresentam com poderes mágicos de cura ao apelarem para a
reprodução do pequeno teatro individual e familiar. Os analistas retratam a cena clínica
de modo reprodutivo utilizando, por exemplo, no caso de análise infantil, brinquedos,
objetos que representam os pais, ou órgãos do corpo, que simbolizam as fantasias típicas
do inconsciente. São interpretações de falas e atitudes dos pacientes submetidas à
75
hegemonia do significante. Trata-se de uma verdadeira máquina de sujeição semióticas
que operam pelo princípio da decalcomania, operação que será investigada no próximo
capítulo. A espada representa o falo, a casinha a vagina, bichos que podem representar
figuras parentais, armários ou caixas que representam o útero materno, e por aí vai...
Todas essas interpretações são axiomas de domesticação do inconsciente que
anulam todas as saídas e entradas do desejo. Reduções que “tranqüilizam” a ignorância
dos analistas. São desconfortos travestidos em arrogâncias, provocados pelas
multiplicidades rizomáticas do inconsciente. As máquinas desejantes ficam
desacreditadas em sua capacidade inventiva, fazendo apenas reproduções de fantasmas,
ou reproduzindo um imaginário que duplica a realidade, “[...] como se houvesse ‘um
objeto sonhado atrás de cada objeto real’ ou uma produção mental atrás das produções
reais” (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 43). “Ah, a miséria do imaginário e do
simbólico, o real sempre adiado para amanhã” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 64).
Para que se opere esta mudança de eixo da interpretação à experimentação, é
necessário que a imanência seja colocada em tudo, conectando-a ao campo social
sempre. Só assim é possível evitar a “interpretose do sacerdote” (DELEUZE e
GUATTARI, 2002a, p. 68). Para compreender melhor esta questão há que se recorrer à
diferenciação entre conteúdo e expressão. Estes dois conjuntos não são de mesma
natureza, não se articulam de modo representativo, nem muito menos hierárquico.
É precisamente porque o conteúdo tem sua forma assim como a expressão, que não
se pode jamais atribuir à forma de expressão a simples função de representar, de
descrever ou de atestar um conteúdo correspondente: não há correspondência nem
conformidade. As duas formalizações não são de mesma natureza, e são
independentes, heterogêneas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002a, p. 26)
76
Trata-se de uma outra dimensão de linguagem que concebe os signos a partir
das desterritorializações inerentes aos dois conjuntos. Isto implica afirmar que o sistema
semiótico não pode ser reduzido a simples arte de representar, pois, em cada operação,
existe todo um processo de experimentação que interfere um no outro, ora
desterritorializando, ora reterritorializando, o que permite as infinitas variáveis de
conjugação entre os dois conjuntos.
Em resumo, não é ao descobrir ou representar um conteúdo que uma expressão entra
em relação com ele. É por conjugação de seus quanta de desterritorialização relativa
que as formas de expressão e de conteúdo se comunicam, umas intervindo nas
outras, estas interferindo naquelas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002a, p. 29)
Está-se novamente diante da relação entre significante e significado que, do
ponto de vista dos autores em estudo, é abordada a partir da natureza dos agenciamentos
que comportam dois conjuntos: agenciamento maquínico (de conteúdo) e agenciamento
coletivo de enunciação (de expressão). Estes fazem parte de um eixo horizontal dos
agenciamentos, enquanto que, no eixo vertical, têm-se as reterritorializações que
estabilizam os agenciamentos e os “picos de desterritorializações” que os modificam. As
características dos agenciamentos serão definidas mais adiante. O que importa destacar
no momento é a não determinação da expressão pelo conteúdo, nem o inverso. Neste
sentido, não se pode afirmar que os enunciados representam, ou que submetam as
máquinas, já que não haveria uma relação de causalidade entre os mesmos, nem de
superioridade. Deleuze e Guattari (2002a, p. 33) afirmam que “o conteúdo não é um
significado nem a expressão um significante, mas ambos são as variáveis do
agenciamento”. Trata-se de um novo território de pensamento a respeito da
subjetividade.
77
Nas noções filosóficas tradicionais de subjetividade aparecem dois tipos de
sujeito: sujeito de enunciação e sujeito de enunciado. Esta dicotomia, presente sobretudo
na filosofia cartesiana, define o primeiro como o sujeito que conhece o mundo pela sua
capacidade de pensá-lo, é o sujeito da representação, aí estaria a verdade do sujeito no
cogito. O segundo seria o sujeito da ação, que experimenta o mundo. No primeiro estaria
a verdade do sujeito, pois o segundo sujeito, o de enunciado, está ligado ao corpo que
experimenta e, para Descartes, esse conhecimento não garante a verdade por ser do
domínio das paixões, passível de enganos. Para Descartes seria duvidosa a afirmação,
por exemplo, “eu caminho”. Isto porque todo enunciado tem que se submeter ao crivo de
um eu que pensa. A verdade se resume na máxima: “Penso, logo existo”. Então, o
correto para Descartes seria afirmar: “penso que caminho”. A filosofia cartesiana
instaura de vez a idéia de um sujeito individualizado que pensa. A verdade estaria, deste
modo, no interior de um indivíduo, em seu cogito e não na experiência em si.
Para Deleuze e Guattari existem ressonâncias entre a teoria edipiana e as
filosofias reflexivas, sobretudo quando se separa mundo interno e mundo externo, sendo
esta uma das principais tarefas do funcionamento psíquico. Os mecanismos de defesa do
ego traduzem bem esta distinção entre os dois mundos. Na dinâmica inconsciente do
psiquismo estariam as representações das pulsões, que buscam expressão de todas as
formas, passando por procedimentos de deformação causados pelas censuras internas.
No complexo de Édipo, descrito por Freud, o inconsciente fica refém dos impulsos
incestuosos e hostis (impulsos constituintes do complexo). Deste modo, as relações entre
inúmeras formações do inconsciente, tais como sintomas, sonhos, atos falhos,
esquecimentos, lapsos, nas ações ou nas falas, serão interpretadas como resultado dos
78
impulsos edipianos reprimidos. A verdade do indivíduo estaria escondida nesses
conteúdos inconscientes, latentes (sujeito de enunciação), que estão presentes, de forma
disfarçada, nas diferentes expressões deste mesmo indivíduo (sujeito de enunciado). O
processo que dá condições de conhecimento dos conteúdos latentes é a interpretação que,
em última análise, não pode nem ser pensada como processo, pois sua mecânica é
determinada por procedimentos de decodificação, de tradução, por atividades de
recognição.
O modo pelo qual Deleuze e Guattari pensam a constituição da subjetividade é
muito diferente. Eles refutam qualquer enunciação centrada na noção de sujeito. Para
eles o que existe são processos de subjetivação que ocorrem nos agenciamentos,
viabilizando processos de criação enquanto experimentação. A enunciação é sempre uma
experimentação.
É sempre um agenciamento que produz os enunciados. Os enunciados não têm por
causa um sujeito que agiria como sujeito da enunciação, tampouco não se referem a
sujeitos como sujeitos de enunciado. O enunciado é o produto de um agenciamento,
sempre coletivo, que põe em jogo, em nós e fora de nós, populações, multiplicidades,
territórios, devires, afetos, acontecimentos. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 65)
A subjetividade é constituída por processos de subjetivação (semiotização) que
funcionam de duas formas: pelos sistemas extrapessoais, que comportam todos os tipos
de máquinas tecnológicas, sociais, econômicas, ecológicas... e pelos sistemas pré-
pessoais, ou infrapessoal, que comportam percepções, sensibilidades, afetos, desejos,
memorizações, aspectos fisiológicos... Em resumo, toda a questão está em elucidar como
os agenciamentos de enunciação reais produzem conexões em diferentes instâncias.
De modo análogo, pode-se pensar a dicotomia entre superfície e profundidade,
sendo a primeira da ordem do manifesto (aparente) e a segunda, do latente (oculto).
79
Neste sentido, a interpretação busca, a partir do manifesto, compreender o latente. O
entendimento desta dicotomia está presente nas formas filosóficas desde a antigüidade,
que se atualizam no grande mercado das ciências humanas modernas. De um modo
sintético, pode-se afirmar que, para os autores aqui estudados, a superfície não pode ser
entendida como um plano pouco investigado, insuficiente, ou ilusório, em oposição aos
aspectos profundos da subjetividade, onde estariam escondidos os mais secretos e
verdadeiros desejos. A relação entre essas duas ordens é de outra natureza. A
profundidade não está referida a uma interioridade localizada no psiquismo de um
indivíduo, nem muito menos a superfície relacionada a um uma exterioridade, onde estão
presentes atos e falas indicativas de um conteúdo encoberto, pronto para ser revelado
pela interpretação. Em Barros (1994, p. 396-397), encontra-se com clareza a explicação
desta dicotomia e seus efeitos nos estudos da subjetividade:
A profundidade não é a da interioridade do indivíduo, aquela inacessível numa
primeira olhada ou reservada aos espaços privados de contato. Na profundidade o
que há são corpos que querem exercer suas potências [...] É na superfície que se
desenham as relações. A superfície é montada, portanto, pelas relações que os corpos
criam entre si. De um corpo, o que se pode saber, é aquilo que se expressa no
encontro. O que se produz na superfície é da ordem do incorporal, da ordem do
acontecimento, extra-ser que não é ser, mas uma maneira de ser.
Deleuze (2004b, p. 109) gostava da fórmula: “O mais profundo é a pele”.
Citando as idéias de Foucault, Deleuze define a superfície como plano de inscrição e a
contrapõe, não à profundidade, mas à interpretação. Ao invés de interpretar,
experimente! Este era o lema desses dois pensadores. A esquizoanálise faz uso da
experimentação na construção da subjetividade, tanto no aspecto histórico de sua
produção, como nos múltiplos agenciamentos possíveis na vida, sobretudo no plano
clínico, sendo este de maior interesse neste trabalho. Portanto, segundo Guattari,
80
trabalhar em uma perspectiva experimental é mudar completamente o sentido das
práticas voltadas para o estudo dos processos de subjetividade. É romper com as
estruturas personificadas do aparelho psíquico, apoiadas nas interpretações, que utilizam
os formatos identificatórios e serializados de subjetividade. Assim, o processo analítico
“não é mais interpretação transferencial de sintomas em função de um conteúdo latente
preexistente, mas invenção de novos focos catalíticos suscetíveis de fazer bifurcar a
existência” (GUATTARI, 1992, p. 30).
A noção de interpretação está vinculada à concepção linear de história presa à
dimensão psíquica organizada a partir das etapas do desenvolvimento psicossexual. Já a
noção de experimentação está vinculada à noção de cartografia, a qual busca percorrer as
múltiplas linhas, analisando suas possibilidades de engendramentos. Deleuze e Guattari
(2002b, p. 43) buscam compreender, a partir de Espinosa, os processos de subjetividade
do pequeno Hans, seus agenciamentos maquínicos, em oposição às interpretações
freudianas. As experiências de Hans são vistas por um outro ângulo, onde a interpretação
é substituída pelo ponto de vista da experimentação operada pelos afetos, devires e
fluxos. Hans faz parte de um campo de afecção produzido por intensidades ativas e
passivas, constitutivas de seu corpo sem órgãos.
O cavalo do pequeno Hans não é representativo, mas afectivo [...] Esses afetos
circulam e transformam-se no seio do agenciamento: o que ‘pode’ um cavalo. Eles
têm efetivamente um limite ótimo no topo da potência-cavalo, mas também um
limiar péssimo: um cavalo cai na rua! E não pode se reerguer sob a carga
demasiadamente pesada e as chicotadas demasiadamente duras; um cavalo vai
morrer! espetáculo outrora ordinário (Nietzsche, Dostoievski, Nijinski o
lamentam). Então, o que é o devir-cavalo do pequeno Hans? Também Hans está
tomado num agenciamento, a cama de mamãe, o elemento paterno, a casa, o bar em
frente, o entreposto vizinho, a rua, o direito à rua, a conquista desse direito, o
orgulho, mas também os riscos dessa conquista, a queda, a vergonha [...] Não são
fantasmas ou devaneios subjetivos: não se trata de imitar o cavalo, de se ‘fazer’ de
cavalo, de identificar-se com ele, nem mesmo de experimentar sentimentos de
piedade ou simpatia.
81
Nesta citação é possível fazer algumas distinções entre as características dos
procedimentos de interpretação psicanalíticos e as propostas cartográficas da
esquizoanálise. Constata-se a distinção entre representação e afecção. Ao invés das
dualidades - os devires, a hecceidade
13
. Onde havia representante das pulsões ou dos
pais, agora são agenciamentos produzidos pela experimentação, que ocorre no corpo sem
órgãos. Os autores apontam para a diagramatização individuada dos agenciamentos
coletivos, sem implicação com algo da ordem do indeterminado. Nas composições que
Hans faz com o cavalo, com a rua, quarto dos pais, com outras crianças, nada se
subjetiva pela ótica de um ego em formação ou pela determinação de um significante
despótico Édipo. O que está em jogo são hecceidades que se formam nas relações de
movimento e repouso, onde nada se desenvolve ou se forma pela lógica personalista ou
subjetivista. Esta é a lógica do plano de imanência, descrita anteriormente, oposta ao
plano de organização e de desenvolvimento. Isto significa afirmar a potência dos
enunciados sem sujeitos e é por esta razão, que Deleuze e Guatari (2002b, p. 52) se
espantam com a psicanálise:
[...] que quer a todo preço, que, atrás dos indefinidos, haja um definido escondido,
um possessivo, um pessoal: quando a criança diz ‘um ventre’, ‘um cavalo’, ‘como as
pessoas crescem?’, ‘o pai’, ‘ficarei grande como meu papai?’. O psicanalista
pergunta: quem está sendo batido, e por quem?
Deleuze e Guattari (2002b, p. 46) criticam a psicanálise por sua negligência,
talvez proposital, dos devires-animais do homem e da criança, afinal, ela sempre
constatou a presença dos devires-animais. O animal cavalo como uma representação do
13
“Há um modo de individuação muito diferente daquele de uma pessoa, um sujeito, uma coisa ou uma
substância. Nós lhe reservamos o nome de hecceidade” (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 47). “Uma
hecceidade não tem nem começo nem fim, nem origem nem destinação; está sempre no meio. Não é feita de
pontos, mas apenas de linhas. Ela é rizoma”. (p. 50).
82
pai de Hans, ao invés do afeto em si mesmo, pois “não há outras pulsões que não os
próprios agenciamentos”. Trata-se de composições e não de representações. Estamos no
plano constituído por velocidades e lentidões, e não no fantasma. “A psicanálise não tem
o sentimento das participações anti-natureza, nem dos agenciamentos que uma criança
pode montar para resolver um problema cujas saídas lhe estão sendo barradas: um plano,
não um fantasma”.
É importante ressaltar a ligação entre experimentação e o CsO, pois sem um
não existe o outro. Na experimentação estão em jogo a produção de novos signos com o
campo enunciativo, diferindo radicalmente do ponto de vista interpretativo, no qual se
buscam as verdades semióticas instituídas. Na perspectiva psicanalítica, o dualismo
cartesiano é mantido quando se acredita na binarização entre um eu-sujeito pré-
determinado e um outro-objeto pré-existente. A esquizoanálise aposta numa enunciação
carente de sujeito sem, no entanto, afirmar uma desarticulação sem sentido. “Não o
desmanchamento abrupto e total, mas a abertura às conexões, aos agenciamentos, que
possibilitem novas formas de distribuição das intensidades...” (BARROS, 1994, p. 411).
83
2.3
A NOÇÃO DE RIZOMA E AS MÁQUINAS DESEJANTES
2.3.1 AS LINHAS
“Pois somos feitos de linhas” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 66).
Para que se proponha um novo modo de produção do inconsciente é necessário
definir a noção de rizoma
14
. Até aqui procurou-se mostrar como a psicanálise está
comprometida com o capitalismo e como suas idéias, sobretudo a teoria edipiana que
restringe os processos da subjetividade esmagando as inúmeras possibilidades de
constituição do sujeito.
Tão logo descobria a maior arte do inconsciente, a arte das multiplicidades
moleculares, Freud já retornava às unidades molares e reencontrava seus temas
familiares, o pai, o pênis, a vagina, a castração... etc. (Na iminência de descobrir um
rizoma, Freud retorna sempre às simples raízes.) (DELEUZE e GUATTARI, 2000,
p. 40)
A noção de rizoma é muito útil para que as lógicas binárias da psicanálise
sejam ultrapassadas em suas determinações dualísticas, compostas por unidades e
sistemas hierárquicos. A noção de rizoma é totalmente diferente do modelo clássico da
árvore, cuja tradição é de pensar os modos de subjetividade por meio de sistemas
centrados, hierárquicos e binários, sendo utilizado para explicar o funcionamento de
inúmeras produções, não só no domínio das ciências humanas, como também biológicas,
exatas etc. A psicanálise adotou este modelo em suas interpretações clínicas e, de um
modo geral, o adotou para compreender o próprio funcionamento do inconsciente
constituindo a subjetividade. O modelo arborescente é um circuito fechado, que
14
A noção de Rizoma é definida em Mil Platôs (2000, p. 32-33). A noção surgiu da botânica, onde é definido
como um caule subterrâneo responsável pela produção de ramos aéreos com características de raízes. Deleuze e
Guattari ampliam a noção articulando-a a uma rede conectiva de vários sentidos.
84
estabelece suas conexões a partir de centros hierarquicamente construídos. É um modelo
linear constituído por uma correspondência de relações que sustentam uma dimensão
totalizante de sujeito. Como contraponto a este modelo, surge a noção de rizoma como
possibilidade de não só pensar a constituição da subjetividade, como também
possibilidade de se pensarem as relações existentes em outros domínios. A idéia
principal para se compreender a noção de rizoma é a de multiplicidade, e é através dela
que Deleuze e Guattari se afastam cada vez mais da psicanálise.
Em Mil platôs, o comentário sobre o homem dos lobos (“Um só ou vários lobos”)
constitui nosso adeus à psicanálise, e tenta mostrar como as multiplicidades
ultrapassam a distinção entre a consciência e o inconsciente, entre a natureza e a
história, o corpo e a alma. As multiplicidades são a própria realidade, e não supõem
nenhuma unidade, não entram em nenhuma totalidade e tampouco remetem a um
sujeito. As subjetivações, as totalizações, as unificações são, ao contrário, processos
que se produzem e aparecem nas multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000,
p. 8)
Pensar as multiplicidades implica um rompimento definitivo com os modelos
que estabelecem a lógica binária entre sujeito e objeto, bem como com todas as reduções
realizadas no campo psicanalítico, literário, científico, artístico etc. Deleuze e Guattari
iniciam o primeiro volume de “Mil Platôs” explicando os princípios gerais das
multiplicidades, usando como exemplo a produção de um livro em oposição ao livro
clássico romântico. Eles afirmam que jamais um livro é feito por um sujeito, mas por
vários. Um livro não é constituído por um objeto nem por um sujeito e, sim, por relações
de exterioridade, por velocidades e lentidões, por momentos históricos, por
singularidades. Afirmar que um livro seja uma multiplicidade não significa afirmar que
linhas de articulações não existam em sua configuração ou que não ocorram
estratificações e unificações. Deleuze e Guattari (2000, p. 12) aplicam o modelo
rizomático a todas as formas de produção, e esse modelo também comporta as
85
territorialidades, as segmentaridades que podem surgir em seu processo, sendo esta
noção muito próxima, ou mesmo característica, dos agenciamentos maquínicos.
Um agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele, sem
dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade significante, ou bem uma
determinação atribuível a um sujeito, mas ele não é menos direcionado para um
corpo sem órgãos, que não pára de desfazer o organismo, de fazer passar e circular
partículas a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os sujeitos aos
quais não deixa senão um nome como rastro de uma intensidade.
O processo de produção rizomático envolve agenciamentos maquínicos de
ordens muito diversas que se espalham em todos os sentidos, sem que haja um centro
organizador ou de significância. Esta ausência de uma unidade com um centro superior e
seus segmentos não significa a afirmação de uma dimensão indiferenciada. Isto não tem
sentido, pois o rizoma está sempre produzindo algo, ele se realiza pelas inovações
constantes que operam diferentemente das estruturas pré-determinadas. Trata-se de
produções que se dão pelo meio, sem um começo ou fim determinados. São conexões
que se fazem pelas vizinhanças e que obedecem a alguns princípios fundamentais. O
primeiro refere-se ao processamento das conexões que ocorrem de modo heterogêneo e
em qualquer ponto da produção. Este tipo de lógica vem é elaborada em diversos campos
do conhecimento como na informática, na compreensão dos processos de ensino-
aprendizagem, nos modos de produção literária, nas formas artísticas, na biologia, no
campo da linguagem etc. Será que já se está vivendo uma era deleuziana, como
profetizou Foucault? Por que não pensar em um devir deleuziano que se mistura a tantos
outros devires que se espalham, e estes outros devires contagiando Deleuze e Guattari?
Sem começo e sem fim. Até porque nunca se pode afirmar total autenticidade de uma
idéia, pois, segundo os próprios autores, não se está sozinho nem se é o único autor de
alguma coisa; há sempre muitos e é por esta razão que Guattari (GUATTARI e
86
ROLNIK, 1986, p. 31) prefere, ao invés de sujeito, falar em “agenciamento coletivo de
enunciação”: “O agenciamento coletivo não corresponde nem a uma entidade
individuada, nem a uma entidade social predeterminada”.
Quando aplicada a noção de rizoma ao processo de constituição da
subjetividade, depara-se com uma nova aposta capaz de pensar o indivíduo como uma
das formas possíveis de manifestação da subjetividade que não implica, de modo algum,
um modelo definitivo e único. A produção de subjetividade requer o funcionamento das
multiplicidades que não estão pré-estabelecidas nem muito menos compõem um campo
individual. Trata-se de conexões pré-individuais e extrapessoais que não comportam
conexões serializadas ou identitárias. Embora o formato indivíduo se tenha tornado um
modo “fácil”, corrente de pensamento, isto não pode resumir, ou definir, um saber sobre
a subjetividade. Guattari afirma que:
A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no indivíduo. Uma
coisa é a individuação do corpo. Outra é a multiplicidade dos agenciamentos da
subjetivação: a subjetividade é essencialmente fabricada e modelada no registro do
social. (GUATTARI e ROLNIK, 1986, p. 31)
Esta é uma referência também citada por Barros (1994), para dar conta dos
fenômenos grupais a partir da noção de subjetividade elaborada pelos autores aqui
estudados. O texto de Barros é claro quando, a respeito dos processos grupais, tenta
compreender o modo pelo qual o grupo acontece, não o “grupo-representação”, mas o
grupo constituído pelo meio, que funciona de modo rizomático e não como totalidade.
Deleuze e Guattari (2000, p. 18) afirmam que é sempre um plano de consistência social
que está em jogo e nele operam forças do tipo rizomático que podem tanto se individuar,
sem que com isso se pense em indivíduo, como podem formar organizações do tipo
molar ou arborescente:
87
Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se sempre o risco de
reencontrar nela organizações que reestratificam o conjunto, formações que dão
novamente o poder a um significante, atribuições que reconstituem um sujeito tudo
o que se quiser, desde as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. Os
grupos e os indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. Sim,
a grama é também rizoma. O bom e o mau são somente o produto de uma seleção
ativa e temporária a ser recomeçada.
Os autores em estudo citam a gramaticalidade dicotômica de Chomsky para
criticarem o modelo-árvore adotado em sua lingüística. Adotar o rizoma para
compreender as cadeias semióticas é afirmar a coexistência de diversas conexões
funcionando diretamente entre os agenciamentos coletivos de enunciação e os
agenciamentos maquínicos. No método rizomático não existe dicotomia entre os regimes
de signos e seus objetos:
Um rizoma não cessaria de conectar cadeias semióticas, organizações de poder,
ocorrências que remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica
é como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos, mas também
perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua em si, nem
universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de patoás, de gírias, de
línguas especiais. Não existe locutor-auditor ideal, como também não existe
comunidade lingüística homogênea. A língua é, segundo uma fórmula de Weinreich,
“uma realidade essencialmente heterogênea”. (Deleuze e Guattari, 2000, p. 16)
Para esses autores, na língua há inúmeras variedades de conexões heterogêneas,
o que impossibilita um fechamento da língua ou a ilusão da existência de uma estrutura
dominante com leis transcendentais. Esta visão se opõe às principais teorias lingüísticas
da enunciação que, mesmo considerando a essência social da língua, ainda fixam a
produção lingüística no sujeito individuado. O princípio das conexões heterogêneas está
correlacionado com o princípio de multiplicidade do rizoma que pode ser aplicado a
qualquer forma de relações, inclusive às relações lingüísticas. As conexões no rizoma se
fazem pelas multiplicidades, com ausência de unidade e de divisão entre sujeito e objeto.
“Uma multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente determinações,
88
grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude de natureza (as leis de
combinação crescem então com a multiplicidade)” (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p.
16).
É importante distinguir as idéias de múltiplo e de multiplicidade, isto porque a
idéia de múltiplo está associada, por oposição, à idéia de unidade. Existiria entre o
múltiplo e o Uno não só uma relação de derivação como também de dualidade. E não é
disto que Deleuze e Guattari tratam quando se referem à idéia de multiplicidade, tendo
em vista que esta é de outra ordem, da ordem do informe, do pré-individual, “onde
nenhuma exterioridade totalizante dá qualquer significado”(BARROS, 1994, p. 385). A
noção de multiplicidade aparece também em um texto de Deleuze (1998), onde ele faz
um estudo sobre as obras de Foucault afirmando que, em seu livro “A Arqueologia do
Saber” (1972), Foucault realiza um passo decisivo com relação à teoria prática das
multiplicidades. Foucault rompe com as visões estruturalistas e lineares da história e
propõe uma nova maneira de estudá-la como multiplicidades que escapam aos modelos
identitários de sujeito e ao determinismo da estrutura. Para tanto, Deleuze distingue
claramente multiplicidade da idéia de múltiplo, para melhor entender esta teoria das
multiplicidades, também adotada por Foucault quando analisa os discursos ao longo da
história:
O essencial do conceito é, entretanto, a constituição de um substantivo tal que o
‘múltiplo’ deixe de ser um predicado que se pode opor ao Um, ou que se pode
atribuir a um sujeito referido como um. A multiplicidade permanece totalmente
indiferente aos problemas tradicionais do múltiplo e do um e, sobretudo, ao
problema de um sujeito que a condicionaria, pensaria, derivaria de uma origem, etc.
Não há nem um nem múltiplo, o que seria remeter-nos, em qualquer caso, a uma
consciência que seria retomada num e se desenvolveria no outro. Há apenas
multiplicidades raras, com pontos singulares, lugares vagos para aqueles que vêm,
por um instante, ocupar a função de sujeitos, regularidades acumuláveis, repetíveis e
que se conservam em si. A multiplicidade não é axiomática nem tipológica, é
topológica. (DELEUZE, 1998, p. 25)
89
As combinações rizomáticas não comportam um centro superior de comando,
isto porque o que está em funcionamento são relações entre linhas que formam uma
trama e que mudam de natureza à medida que aumentam suas combinações. Este modo
de relações é o que os autores chamam de agenciamento, onde não existem pontos de
comunicação pré-estabelecidos, como na estrutura arborescente, mas conexões
contingentes. Essas conexões se dão pelo meio, não existiria um ponto de início ou de
término, mas proliferação. Para tanto, faz-se necessário um plano sobre o qual as
conexões sejam possíveis. Esse plano é o plano de consistência das multiplicidades, sua
própria dimensão, ou melhor:
Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas preenchem, ocupam todas as
suas dimensões: falar-se-á então de um plano de consistência das multiplicidades, se
bem que este ‘plano’ seja de dimensões crescentes segundo o número de conexões
que se estabelecem nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata,
linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de natureza ao se
conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é o fora de todas as
multiplicidades. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 17)
Trata-se de um plano de exterioridade, e é por essa razão que não se pode supor
qualquer série pontual, estrutural nesse plano. Nele só haveria velocidades variáveis,
precipitações, que estão em contato com um fora. São “anéis abertos”.
Uma boa maneira de entender o tipo de relações que Deleuze e Guattari
querem estabelecer com a noção de rizoma é quando ambos fazem a distinção entre os
jogos de Xadrez e o Go, no último volume de “Mil Platôs”. As regras desses jogos são
bem diferentes quanto à posição, relações e espaços das peças do jogo. No xadrez tudo
está pré-determinado, enquanto que no go tudo é relativo, dependendo da situação, sendo
que as peças podem mudar suas características e funções de acordo com um espaço
aberto com movimentos que surgem de qualquer ponto.
90
Os peões do go são os elementos de um agenciamento maquínico não subjetivado,
sem propriedades intrínsecas, porém apenas de situação. Por isso as relações são
muito diferentes nos dois casos. No seu meio de interioridade, as peças de xadrez
entretêm relações biunívocas entre si e com as do adversário: suas funções são
estruturais. Um peão do go, ao contrário, tem apenas um meio de exterioridade, ou
relações extrínsecas com nebulosas, constelações, segundo as quais desempenha
funções de inserção ou de situação, como margear, cercar, arrebatar. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002c, p. 13)
Existe uma situação de guerra nos dois jogos, mas no xadrez essa guerra é
institucionalizada e semiótica, enquanto que no go trata-se de pura estratégia. O xadrez
seria o Estado composto por uma interioridade que serve de padrão para todos, e o Go a
máquina de guerra que, na verdade, é pura exterioridade, lugar dos afetos em oposição
aos sentimentos característicos de um sujeito. As articulações do go são do tipo
rizomático, sem sujeito, apenas linhas que se fazem por velocidades e lentidões,
formando um modo dessubjetivado de relações.
Um outro exemplo utilizado pelos autores para melhor definir o modelo
rizomático, que aparece também nesse último volume, é o da formação de bandos.
Deleuze e Guattari (2002, p. 21) refutam a visão evolucionista que definem os bandos
como formações primitivas anteriores ao Estado, menos organizadas e desenvolvidas.
Para esses autores não se trata de formações inferiores, mas diferentes, que adotam
mecanismos complexos de formação social. Os bandos seriam grupos do tipo rizoma que
“procedem por difusão de prestígio, mais do que por referência a centros de poder”. Nos
bandos, a hierarquia está em constante ameaça exatamente por não comportar nenhum
centro de poder fixo, sendo o poder mantido por persuasão e pelo prestígio. É uma
dominação semelhante à do líder ou à da vedete, que corre sempre o risco de ser perdida.
No Estado, o importante é conservar a ordem e a dominação social pelas instituições de
poder, pelos chefes de Estado, ocorrendo assim uma cristalização de aparelhos separados
91
do campo social. O mecanismo da chefia nos bandos está sempre acoplado a
movimentos do próprio corpo social. Esses exemplos servem para mostrar uma outra
maneira de se pensar a comunicação, as relações sociais e a própria produção de
subjetividade.
Mas existem ainda outros princípios importantes para que se avance na
compreensão da noção de rizoma. Trata-se do princípio de ruptura a-significante, onde
os dualismos não servem mais para explicar os cortes que aparecem nas cadeias dos
fluxos. O rizoma é cortado pelas linhas de fuga que podem formar uma organização, ou
um território, em qualquer lugar do processo. A maior característica dessas formações é
a contingência. Nunca se sabe por quanto tempo pode durar uma organização, ou um
conjunto molar, enfim, quando novas linhas de fuga podem surgir e, com elas, novos
conjuntos molares. Este é o próprio movimento da história universal, que para Deleuze e
Guattari é sempre uma história universal das contingências produzida por movimentos,
por devires que se entrecruzam fazendo circular intensidades e provocando processos de
desterritorializações e reterritorializações cada vez mais heterogêneos. O princípio a-
significante supõe um tipo de relação que não comporta atribuições ou séries evolutivas
arborescentes. Ao citarem exemplos da biologia e da própria genética, como o modo de
funcionamento viral, Deleuze e Guattari (2000, p. 20) afirmam a possibilidade de cadeias
rizomáticas que produzem comunicações transversais entre linhas diferenciadas, o que
faz desmontar as árvores genealógicas: “Evoluímos e morremos devido a nossas gripes
polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de descendência ou que
têm elas mesmas sua descendência. O rizoma é uma antigenealogia”.
92
Trata-se de evolução a-paralela, que cresce conjugando fluxos
desterritorializados, que aumenta seus limites pelas linhas de fuga capazes de
estabelecerem contatos com novos pontos sempre além de seus próprios territórios e em
outras direções. Os princípios descritos por Deleuze e Guattari para explicar o modo de
funcionamento do rizoma estão interligados a tal ponto que não podemos supor um sem
o outro.
Deleuze e Guattari contrapõem os princípios de cartografia e de decalcomania
quando criticam a noção psicanalítica de sexualidade, ou melhor, a noção edipiana
aplicada ao desenvolvimento da sexualidade humana. Está-se novamente diante da
oposição entre rizoma e modelo estrutural ou gerativo. Este último funciona a partir de
estados organizados que podem ser decompostos em unidades que estão em relação com
suas dimensões mais imediatas. Para Deleuze e Guattari (2000, p. 21), trata-se sempre de
um modelo representativo que funciona segundo uma lógica binária:
Do eixo genético ou da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo
princípios de decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica
do decalque e da reprodução. Tanto na Lingüística quanto na Psicanálise, ela tem
como objeto um inconsciente ele mesmo representante, cristalizado em complexos
codificados, repartido sobre um eixo genético ou distribuído numa estrutura
sintagmática. Ela tem como finalidade a descrição de um estado de fato, o
reequilíbrio de correlações inter-subjetivas, ou a exploração de um inconsciente já
dado camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela consiste em
decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura que sobrecodifica ou de um
eixo que suporta. A árvore articula e hierarquiza os decalques, os decalques são
como folhas da árvore.
Como já foi visto, o inconsciente, para Deleuze e Guattari, é sempre uma
máquina não redutível a uma representação. Por esta razão, ao invés de decalque, o
termo mais apropriado para as produções do inconsciente será mapa. A idéia de mapa
traz em si a idéia de construção, o que, aplicado ao inconsciente, o torna muito mais um
modo rizomático do que uma representação por decalques, repetições que fecham as
93
múltiplas entradas do rizoma. Este foi o grande erro de Freud e de seus cúmplices,
segundo os autores interpretar, por exemplo, as performances do pequeno Hans
relacionando toda sua produção desejante a uma foto de família:
Vejam o que acontece já ao pequeno Hans em pura Psicanálise de criança: não se
parou nunca de lhe QUEBRAR SEU RIZOMA, de lhe MANCHAR SEU MAPA, de
colocá-lo no bom lugar, de lhe bloquear qualquer saída, até que ele deseje sua
própria vergonha e sua culpa, FOBIA (impede-se-lhe o rizoma do prédio, depois, o
da rua, enraizando-o na cama dos pais, radiculando-o sobre seu próprio corpo e,
finalmente, bloqueando-o sobre o professor Freud. Freud considera explicitamente a
cartografia do pequeno Hans, mas sempre somente para rebatê-la sobre uma foto de
família. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 23)
Deleuze e Guattari (2000, p. 22) preferem acreditar que Hans produzia mapas
por meio de suas experimentações do e no real, como afirmam a seguir:
O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele o constrói. Ele
contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio dos corpos sem órgãos,
para sua abertura máxima sobre um plano de consistência. Ele faz parte do rizoma.
O mapa segue os princípios do rizoma, ou melhor, ele é um dos princípios do
rizoma, pois sua produção é aberta e suas conexões são feitas em qualquer ponto, o que
lhe permite ser reversível e modificado a qualquer momento. O mapa possui várias
entradas e por isso é rizomático, por se fazer pelo meio, podendo ser construído por um
indivíduo, ou grupo qualquer, nas máquinas sociais. A idéia de mapa se opõe à de
decalque, pois este sempre se faz pela redundância, negligenciando as multiplicidades. O
decalque estigmatiza o inconsciente ao bloquear suas múltiplas entradas e saídas.
Decalcar é tirar fotos. Foi isso que a psicanálise, segundo os autores, não parou de fazer
com os mapas que encontrou e com os rizomas que a impregnavam por todas as
direções. Melanie Klein também conseguiu desfazer o mapa de seu paciente, o pequeno
Richard, e, ignorando sua cartografia, desenvolveu todo um modelo estereotipado de
interpretações das figuras parentais como bons ou maus objetos. Para Deleuze e Guattari
94
(2000, p. 22), não é por interpretações das pulsões parciais que se podem descrever ou
explicar os processos inconscientes:
As pulsões e os objetos parciais não são nem estágios sobre o eixo genético, nem
posições numa estrutura profunda, são opções políticas para problemas, entradas e
saídas, impasses que a criança vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu
desejo.
Deixar de pensar o inconsciente como produção cartográfica é perder a
dimensão de diversidade do desejo, aliás, é convertê-lo numa espécie de vergonha e
culpa, operações que são da própria máquina social repressiva. Arborizar o desejo
implica a morte do mesmo, pois sua condição de expansão se faz pelo rizoma. É isto que
a esquizoanálise reivindica: a esquize revolucionária produtiva do inconsciente. Por
esquize entende-se: “Sistema de cortes que não são apenas interrupções de um processo,
mas encruzilhada de processos. A esquize traz em si um novo capital de potencialidade”
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 383).
No caso do pequeno Hans, a esquizoanálise propõe uma visão rizomática, onde
o que importa é analisar não só como Hans faz rizomas com a rua, a família, com o
prédio, mas também analisar como seu rizoma foi impedido com as interpretações
familialistas, ou mesmo pela influência do pai e do professor Freud. Em Hans é possível
ver como de um rizoma podem surgir estratificações do desejo, enfim, como a produção
desejante pode ser estrangulada na estrutura familiar e nas interpretações psicanalíticas.
Mas, mesmo assim, o rizoma é um fenômeno implacável e continua se
ramificando, mesmo quando processos de massificação se instauram. É um movimento
contínuo de desterritorializações e reterritorializações.
Há, então, agenciamentos muito diferentes de mapas-decalques, rizomas-raízes, com
coeficientes variáveis de desterritorialização. Existem estruturas de árvore ou de
95
raízes nos rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz
podem recomeçar a brotar em rizoma. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 24)
É interessante observar, nestes novos conceitos, a importância que os dois
autores dão à pragmática, destituindo a prioridade da análise puramente teórica desses
processos. Trata-se de uma sucessão de processos intensivos, um condicionando o outro,
ou pela desterritorialização (rizomas), ou pela reterritorialização (árvores), que estão em
uma relação de vizinhança constante. Existiria um estado de tensão constante entre os
modos rizomático e arborescente, o que torna possível que do decalque surja um rizoma
e vice-versa. Não se deve pensar em um novo dualismo entre dois modelos e, sim, em
um processo constante de alongamentos, rupturas e retomadas, até porque, como
indagam Deleuze e Guattari (2000, p. 48), na análise que fazem do Homem dos lobos,
“como é que linhas de desterritorialização seriam assinaláveis fora de circuitos de
territorialidade?”
A finalidade da esquizoanálise é mostrar, seguir, ou mesmo inventar linhas de
fuga de um rizoma e fazer delas um caminho novo, atual e afirmativo da existência, o
que estaria em oposição ao modelo fechado da árvore psicanalítica, que faz das
produções desejantes um ritual do mesmo, regressivo e negativo da existência.
Como já foi afirmado antes, Deleuze e Guattari aplicam o modelo rizomático a
vários modos de funcionamento da biologia à filosofia. Para eles, o cérebro, o
pensamento, a memória são rizomáticos, não funcionam de modo linear, mas a partir de
constantes rupturas e descontinuidades. Inclusive, ressaltam ser este um dos principais
problemas da informática ao se apoiar em sistemas centrados e hierárquicos de
comandos. Atualmente, busca-se uma nova forma de ligação entre informações,
estudadas em vários campos do conhecimento, onde a comunicação pode ocorrer de um
96
vizinho a outro, sem necessariamente passar por conjunções hierárquicas que obedecem
a uma ordem central unificadora.
Para Deleuze e Guattari (2000, p. 29), no Ocidente, o sistema arborescente é
dominante em todos os sentidos, inclusive, no próprio domínio sexual, que foi
freqüentemente submetido ao modelo da reprodução, enquanto que:
[...] o rizoma, ao contrário, é uma liberação da sexualidade, não somente em relação
à reprodução, mas também em relação à genitalidade. No Ocidente a árvore plantou-
se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós perdemos o rizoma ou a
erva.
Por fim, a noção de rizoma serve para se pensar a subjetividade constituída por
linhas: linhas de segmentaridade e linhas de fuga, as quais abordaremos com mais
detalhes no próximo capítulo. O rizoma como diagrama é uma circulação de intensidades
que formam os agenciamentos. O rizoma é formado por dimensões, isto é, por platôs que
formam, pelo meio, regiões de intensidades, sem um começo ou finalidade organizadora
e culminante.
O que está em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também
com o animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as
coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da relação arborescente:
todo tipo de ‘devires’. (DELEUZE e GUATTARI, 2000, p. 33)
Para investigar de modo mais cuidadoso o processo de subjetividade fora do
alcance psicanalítico, é necessário avançar na análise de alguns conceitos que ainda
precisam de maior elaboração, como é o caso das noções de agenciamento, linha de fuga,
subjetividade, devir e outros, tendo em vista que todos estes conceitos, de um modo ou
de outro, estão estreitamente interligados, não sendo possível uma análise nos moldes
lineares.
97
2.3.2 SUBJETIVIDADE E AGENCIAMENTO
Ao invés de sujeito, de sujeito de enunciação ou das instâncias psíquicas de Freud,
prefiro falar em ‘agenciamento coletivo de enunciação’. O agenciamento coletivo
não corresponde nem a uma entidade individuada, nem a uma entidade social
predeterminada. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 39)
Até agora a relação entre subjetividade e agenciamento já foi várias vezes
sugerida. Contudo, não o suficiente para que se entendam, de modo mais claro, as
construções de uma nova imagem do pensamento sobre a subjetividade, tal qual proposta
por Deleuze e Guattari. Deleuze investigou, de modo muito próprio, as grandes imagens
do pensamento e encontrou, sobretudo no pensamento de Espinosa e de Nietzsche,
contribuições indispensáveis em suas elaborações sobre os conceitos de devir, de CsO,
de intensidades, de acontecimento... Deste modo, Deleuze junto com Guattari são
pensadores que procuram escapar das dualidades, dos planos de organização
(estratificados) e dos modelos individualizantes da subjetividade. Para eles, não há
enunciados individuais, sendo o indivíduo apenas uma das formas de subjetividade:
[...] a subjetividade, segundo os dois autores, não é dada; ela é objeto de uma
incansável produção que transborda o indivíduo por todos os lados. O que temos são
processos de individuação ou de subjetivação, que se fazem nas conexões entre
fluxos heterogêneos, dos quais o indivíduo e seu contorno seriam apenas uma
resultante. Assim, as figuras da subjetividade são por princípio efêmeras, e sua
formação pressupõe necessariamente agenciamentos coletivos e impessoais.
(ROLNIK, 2000, p. 453)
Quando Deleuze e Guattari propõem uma concepção dos agentes coletivos de
enunciação, eles pretendem ultrapassar a dicotomia entre sujeito de enunciação e sujeito
do enunciado. É importante frisar que este modo de definição da subjetividade está
fundamentado no pensamento ocidental, sobretudo cartesiano, que reduz o pensamento a
um encadeamento reflexivo. Este modo impede de tomar o pensamento como processo,
efeito da configuração de múltiplas linhas que compõem os agenciamentos. Portanto, o
98
que importa na concepção esquizoanalítica é saber como as produções da subjetividade
funcionam “qual é a máquina”, quais agenciamentos a produziram de um determinado
modo e quais possibilidades de novos agenciamentos elas permitem. É neste sentido que
os autores se autodenominam funcionalistas, sempre interessados no modo de
funcionamento dos agenciamentos. Está-se muito longe dos recorrentes significantes
despóticos determinados pelo inconsciente psicanalítico e suas representações edipianas.
Segundo um primeiro eixo, horizontal, um agenciamento comporta dois segmentos,
um de conteúdo, outro de expressão. De um lado ele é agenciamento maquínico de
corpos, de ações e de paixões, mistura de corpos reagindo uns sobre os outros; de
outro, agenciamento coletivo de enunciação, de atos e de enunciados, transformações
incorpóreas atribuindo-se aos corpos. Mas, segundo um eixo vertical orientado, o
agenciamento tem ao mesmo tempo lados territoriais ou reterritorializados, que o
estabilizam, e pontas de desterritorialização que o impelem. (DELEUZE e
GUATTARI, 1977, p. 112)
Nesta citação, os autores voltam a explodir com a centralização da
subjetividade no indivíduo, sobretudo com a que foi produzida pela psicanálise, segundo
modos capitalísticos de subjetivação. Eles colocam toda a temática da subjetividade
como resultado dos agenciamentos molares e/ou moleculares. Guattari, em sua passagem
pelo Brasil, não cansou de questionar as noções de indivíduo como referencial geral dos
processos de subjetivação.
Parece oportuno partir de uma definição ampla da subjetividade, como a que estou
propondo, para, em seguida, considerar como casos particulares os modos de
individuação da subjetividade: momentos em que a subjetividade diz eu, ou super-eu
(ego ou superego), momentos em que a subjetividade se reconhece num corpo ou
numa parte de um corpo, ou num sistema de pertinência corporal coletiva. Mas aí
também estaremos diante de um pluralismo de abordagens do ego e, portanto, a
noção de indivíduo vai continuar a explodir. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 40-
41)
Como os agenciamentos são feitos de linhas, é necessário, então ,que se retorne
à elas. As noções de agenciamento, linhas, rizomas, corpo sem órgãos são muito
próximas, pois uma compõe a outra. Os agenciamentos se produzem por linhas
99
rizomáticas inscritas em um corpo sem órgãos. Tais linhas são de diferentes naturezas
que, segundo Deleuze e Guattari, se dividem em três conjuntos, sendo cada conjunto
constituído por múltiplas espécies de linhas. Em “Mi Platôs” (1999), os autores afirmam
que algumas linhas nos são determinadas de fora, outras surgem por acaso e outras
devem ser inventadas. Estas últimas são as mais interessantes do ponto de vista
esquizoanalítico, pois implicam a capacidade de o ser humano compor suas próprias
linhas, cada vez mais heterogêneas e singulares. Este modo de conceber a subjetividade
rompe com os sistemas centrados, significantes, binários e identitários. Trata-se de
perceber e de perseguir os traços de cada conjunto de linhas que, por princípio, nada
querem dizer ou significar.
É uma questão de cartografia. Elas nos compõem, assim como compõem nosso
mapa. Elas se transformam e podem mesmo penetrar uma na outra. Rizoma.
Certamente não tem nada a ver com a linguagem, é ao contrário a linguagem que
deve segui-las, é a escrita que deve se alimentar delas entre suas próprias linhas.
Certamente não têm nada a ver com um significante, com uma determinação de um
sujeito pelo significante; é, antes, o significante que surge no nível mais endurecido
de uma dessas linhas, o sujeito que nasce no nível mais baixo. Certamente não têm
nada a ver com uma estrutura, que sempre se ocupou apenas de pontos e de posições,
de arborescências, e que sempre fechou um sistema, exatamente para impedi-lo de
fugir. (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)
Novamente a distinção entre a proposta psicanalítica e a esquizoanalítica
aparece. Na primeira, há um impedimento das linhas de fuga pelas determinações
edipianas (linhas endurecidas e de configuração molar). Na segunda, há uma busca das
linhas de fuga que se traçam num CsO, não submetidas à ordem imaginária ou
simbólica. Este é o caráter prático da esquizoanálise, que se ocupa em saber como um
CsO é constituído. Neste sentido, nenhuma linha tem primazia sobre a outra, diferente da
psicanálise que faz de Édipo sua “linha dura”, sua “linha costumeira”.
100
A esquizoanálise não tem outro objeto prático: qual é o seu corpo sem órgãos? Quais
são suas próprias linhas, qual mapa você está fazendo e remanejando, qual linha
abstrata você traçará, e a que preço, para você e para os outros? Sua própria linha de
fuga? Seu CsO que se confunde com ela? Você racha? Você rachará? Você se
desterritorializa? Qual linha você interrompe, qual você prolonga ou retoma, sem
figuras nem símbolos? (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 77)
As linhas que compõem cada agenciamento podem ser de segmentaridade
(dura, molar, de territorializações...) ou de fuga (flexível, molecular, de
desterritorializações...). É importante ressaltar que, para Deleuze e Guattari, as linhas de
segmentaridade não podem ser definidas a partir das determinações sociais e as linhas de
fuga a partir dos processos de um mundo interno, particular, onde cada indivíduo busca
subverter as primeiras. Estas classificações estariam equivocadas, pois poderiam supor
uma ordem subjetiva interior, identificada com o imaginário, capaz de “perverter” a
ordem social. Seria a própria relação entre superestrutura e infra-estrutura que, para os
autores, tem como pólo de atração as categorias do pensamento moderno sobre a
subjetividade. Inclusive, estas categorias estão presentes nos modos de referência
utilizados por Freud, quando este trata dos dualismos pulsionais. Os processos de
semiotização, propostos por Deleuze e Guattari, não consideram a noção de conflito
como principal elemento constituinte da produção de subjetividade, sobretudo pelo
desconhecimento que esta noção apresenta em relação aos processos de singularizarão.
Assim também foi o modo como Foucault (1977) investigou o dispositivo de
sexualidade contrapondo-o à tese repressiva. O trabalho de Foucault consistiu,
exatamente, em colocar os discursos da repressão e seus contra-discursos da liberação
numa mesma economia geral produtora e reprodutora de um socius.
101
Com a noção de agenciamento é possível substituir as instâncias psíquicas
freudianas, como também as predeterminações sociais pela perspectiva processual-
produtiva, em oposição à perspectiva estruturalista. Portanto:
Deleuze e Guattari propõem pensar o desejo como parte da infra-estrutura, já que ele
produz real. A revolução social seria, dessa forma, inseparável da revolução do
desejo, freqüentemente aprisionado em modos de subjetivação serializados. Tratar-
se-ia de fazer atravessar (e não articular) o molar e o molecular: lutas de classe e de
grupos (constituídos com produção de novas formas de subjetivação). A questão
primordial estaria em pensar/conectar/fazer funcionar as máquinas do desejo, e as
máquinas sociais em regime de imanência [...]. (BARROS, 1994, p. 374-375)
Está-se no plano dos agenciamentos sem sujeito, dos agenciamentos coletivos
de enunciação, onde não estão presentes dicotomias entre: superestrutura/infra-estrutura;
singular/coletivo; sujeito/objeto... Portanto, nenhum agenciamento é mais verdadeiro que
o outro, ou hierarquicamente mais importante. Os agenciamentos não são de mesma
natureza, enfim, não fazem parte de um mesmo sistema de semiotização. Guattari
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 267) menciona as rupturas existentes nas passagens
de um agenciamento para um outro, recusando pensar em uma continuidade significativa
entre eles. O que existe para este pensador são fenômenos de ruptura que não se
relacionam dialeticamente, ou por dualismos, mas coexistem. “O que acontece são
blocos de possível que se substituem enquanto tais: cada nova constelação de universo
cria um novo bloco de possível, sem qualquer caráter de continuidade”. Aqui também é
refutada a noção de sublimação. Cada estado vivido implica um campo específico de
possibilidades que não são regidas por um princípio de constância. Qualquer situação
vivida, como caminhar, falar, sonhar, alucinar, pensar em algo tem a ver com tipos de
agenciamentos diferentes. Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 269) usa como
exemplo a produção onírica para mostrar como a prática interpretativa da psicanálise não
102
funciona, a não ser pela lógica de um sistema capitalista e por um tipo de princípio
filosófico.
Os lapsos, os atos falhos, os sintomas, são como pássaros que vêm bater seus bicos
no vidro da janela. Não se trata de ‘interpretá-los’. Trata-se, isto sim, de situar sua
trajetória para ver se eles têm condições de servir de indicadores de novos universos
de referência, os quais poderiam adquirir uma consistência suficiente para provocar
uma virada na situação.
É por esta razão que a esquizoanálise não trabalha com a noção de cura ou de
recuperação. Muitas práticas clínicas e institucionais são caracterizadas por certos tipos
de pensamento dominante que tomam o fenômeno-objeto como passível de intervenções
miraculosas, à espera de um saber, ou técnica sofisticada, capaz de revelar os ocultos e
modificar as inadequações, sejam elas quais forem. No âmbito acadêmico, as lutas ainda
são muito intensas, pois não só os discentes (futuros psicólogos), como docentes
trabalham incessantemente a partir desses dualismos e imagens do pensamento
dominante. As demandas sociais quanto ao “papel” do psicólogo também se expressam
neste sentido. Pode ser muito assustadora a sentença deleuzo-guattariana, que afirma não
existirem enunciados individuais e verdades a serem reveladas. Afirmar a inexistência de
leis universalizantes, ou de um princípio transcendente, ou ainda, a inexistência do
sujeito, pode trazer muito desconforto. A noção de agenciamento rompe com os
princípios do cogito cartesiano, vigente nas elaborações teóricas
(filosóficas/psicológicas) ocidentais, promovendo, dessa forma, o descentramento do
sujeito nas produções de subjetividade, onde inexiste a idéia de evolução do
desenvolvimento. Pensa-se muito freqüentemente que as etapas do desenvolvimento
ocorrem de modo evolutivo, ou seja, uma etapa localizada na fase oral, digamos, por
exemplo, seis meses de vida, é concebida como uma fase imatura quanto às etapas
103
seguintes. Por que não pensar de acordo com a noção de agenciamento, que se refere a
diferentes blocos de possíveis, sem referência à corrente concepção de maturidade e
adaptação?
A produção de subjetividade, para os autores aqui estudados, é pensada como
processo de subjetivação sem sujeito, sendo, então, puro processo de experimentação.
Trata-se de máquinas que operam a partir das diferentes linhas de produção, acionadas
na própria dimensão do real, sem intermediários da ordem da representação. O processo
de subjetivação ocorre no entrecruzamento das linhas molares e moleculares, num
incessante movimento de dobras. As dobras são definidas como um movimento regido
por um modo de conexão engendrado pela necessidade de solucionar problemas que o
mundo coloca. Para ilustrar tais movimentos, pode-se pensar no curso de um rio, que
pode dobrar-se formando seus remansos. Segundo Cardoso Jr. (2005, p. 189), esses
remansos podem ser entendidos como os processos de subjetivação e o rio como seu
plano de imanência. Um não pode existir sem o outro:
Deleuze denominou esses processos de subjetivação de “ser-se”. Neles, torna-se
possível a relação de si consigo mesmo, de mim comigo mesmo. A subjetivação é
como uma “dobra do lado de fora”, diz Deleuze. Se os remansos constituem um lado
de dentro e o rio é o lado de fora, então a subjetivação são dobras do rio. O ser-si,
portanto, é um lado de fora que se dobra.
É por esta razão que a noção de linha é útil, pois mostra que não há um
dualismo entre mundo interno e mundo externo e, sim, dobras que se fazem do fora, a
linha que se dobra (fita de Moébius): “[...] nada além do lado de fora, mas exatamente o
lado de dentro do lado de fora” (DELEUZE, 1998, p.104).
A subjetivação é um modo de existência, onde, inclusive os, processos
de individuação também podem ocorrer.
104
A noção de subjetividade implica, desse modo, o funcionamento de máquinas que
produzem tanto individuações do tipo ‘sujeito’, quanto do tipo ‘acontecimentos sem
sujeito’ (“um vento, uma atmosfera, uma hora do dia, uma batalha”, como nos diz
Deleuze em sua leitura de Foucault). (BARROS, 1994, p. 381)
Pelbart (2004) aborda a complicada temática da gênese dos processos de
subjetivação, referindo-se à noção de cisão e de dobra (operação de dobramento). Ainda
que não seja possível abordar com mais cuidado esta temática, é importante mostrar sua
relevância nos estudos da subjetividade que não estejam comprometidos com a filosofia
reflexiva. Neste sentido, Deleuze, que foi leitor de Foucault, contribui com a questão do
fora e do dentro como modo de constituição do sujeito em seu processo de individuação.
O dentro é uma dobra do fora. Trata-se de uma operação de duplicação muito
particular...
[...] um dobrar-se do ser pré-individual (fora) numa interioridade, ou seja, numa
memória, não memória dos fatos, como já o dissemos, mas duplicação do fora, do
pré-individual que ali permanece ativo, insistente, Memória absoluta. [...] a
subjetividade pode ser pensada ao mesmo tempo como cisão e como dobra. São
como que as duas faces da mesma moeda, uma moeda que só se constitui tendo essas
duas faces, duas fases, nelas se fazendo e se defasando, modulando-se. (PELBART,
2004, p. 57)
Do que se trata então? Modos de subjetivação que criam campos de visibilidade
e de dizibilidades, constituindo o que os autores denominaram de agenciamento coletivo
de enunciação. Não há nenhuma causa transcendente, absoluta responsável pelos
agenciamentos. Na origem de um agenciamento está sempre uma desterritorialização.
Sem dúvida, um agenciamento jamais comporta uma infra-estrutura causal. Ele
comporta, no entanto, e no mais alto ponto, uma linha abstrata de causalidade
específica ou criadora, sua linha de fuga, de desterritorialização, que só pode efetuar-
se em relação com causalidades gerais ou de uma outra natureza, mas que não se
explica absolutamente por elas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 78)
Deste modo, podemos afirmar que, se existe primado, este é o da relação, sem
qualquer posição de hierarquia, onde sujeito e objeto se formam num mesmo tempo de
105
coexistência no real. Aqui também voltamos à noção de desejo, pois este só existe se
agenciado, ou maquinado. Como já foi definido anteriormente: agenciamentos são
máquinas desejantes. Um agenciamento nunca é da ordem do espontaneísmo. Isto
significa dizer que a principal característica dos agenciamentos é sua construtividade.
Trata-se de dois tipos distintos de agenciamentos: os construídos pela reprodução
estratificada, segundo a visão edipiana, e os construídos por linhas de fuga, segundo a
esquizoanálise. O primeiro tipo funciona por meio de repetições do mesmo, enquanto o
segundo segue a ordem dos fluxos e do devir. Assim, de acordo com a esquizoanálise, os
processos de singularização, os quais serão discutidos com mais detalhes posteriormente,
estão relacionados à esfera da ruptura, àquilo que escapa, àquilo que se desterritorializa e
se territorializa em outro lugar, dos nomadismos...
Quanto aos agenciamentos produzidos pela psicanálise, estes prenderam a
sexualidade na idéia reducionista de infra-estrutura:
Não acreditamos, em geral, que a sexualidade tenha o papel de uma infra-estrutura
nos agenciamentos de desejo, nem que ela forme uma energia capaz de
transformação, ou então de neutralização e sublimação. A sexualidade não pode ser
pensada senão como um fluxo entre outros, entrando em conjunção com outros
fluxos, emitindo partículas que entram elas próprias sob esta ou aquela relação de
velocidade e lentidão na vizinhança de outras partículas. Agenciamento algum pode
ser qualificado segundo um fluxo exclusivo. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 117)
2.3.3 OS FLUXOS DE SEXUALIDADE: OS DEVIRES
Um fluxo é algo intensivo, instantâneo e mu tante, entre uma criação e uma
destruição. Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua
conjugação com outros fluxos, que o desterritorializam por sua vez e vice-versa. Em
um devir-animal, conjugam-se um homem e um animal, sendo que nenhum deles se
assemelha ao outro, nenhum imita o outro, cada um desterritorializando o outro e
levando para mais longe a linha. Sistema de substituição e de mutações pelo meio. A
linha de fuga é criadora desses devires. As linhas de fuga não têm território.
(DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63)
106
Orlandi (2000) afirma que Deleuze elaborou uma filosofia da diferença em
oposição a uma filosofia do idêntico. Esta sempre foi uma característica do pensamento
deleuziano, mas que, em parceria com Guattari, se torna extremamente produtiva na
elaboração de uma verdadeira teoria das multiplicidades. Podemos afirmar que esses
dois pensadores montaram máquinas de fazer pensar, utilizando, para isto, linhas de ação
da diferença.
Como pensar a sexualidade a partir de outros domínios diferentes dos domínios
identitários da psicanálise? No “O Anti-Édipo”, Deleuze e Guattari (1976, p. 232) fazem
um grande esforço analítico das forças molares determinantes de um conjunto familiar
que limitam os investimentos libidinais a uma relação binária e da ordem da
representação. Os autores buscam compreender o que está em jogo neste primeiro
quadro de relações. Um outro esforço consiste na ultrapassagem desse sistema molar em
busca de um outro campo de relações: o campo das engrenagens moleculares que
formam as máquinas desejantes. É neste campo que a sexualidade será pensada onde
ela não “representa” mais nada.
A sexualidade não é mais considerada como uma energia específica que une pessoas
derivadas dos grandes conjuntos, mas como a energia molecular que põe em conexão
moléculas-objetos parciais (libido), que organiza disjunções inclusivas sobre a
molécula gigante do corpo sem órgãos (numen), e distribui estados, segundo
domínios de presença ou zonas de intensidade (voluptas). Pois as máquinas
desejantes são exatamente isso: a microfísica do inconsciente, os elementos do
micro-inconsciente.
Mas, como já foi visto, todo este campo molecular não pode ser pensado
separado do molar como modos de constituição do desejo no social. Os micro-
investimentos sexuais investem o macro-social, e vice-versa, manifestando toda ordem
de comportamentos, inclusive a produção edipiana.
107
Mas é em “Mil Platôs” (1999-2002) que os contornos desta investigação se
mostram mais visíveis, sobretudo quando a noção de devir é conectada à noção de
desejo, distinguindo-se de qualquer idéia de imitação ou de generalidade. Vejamos estas
características respectivamente:
Devir é um rizoma, não é uma árvore classificatória nem genealógica. Devir não é
certamente imitar, nem identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder,
instaurar relações correspondentes; nem produzir, produzir uma filiação, produzir
por filiação. Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não
nos conduz a “parecer”, nem “equivaler”, nem “produzir”. (2002b, p. 19)
Deleuze (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 10) apresenta uma definição de devir
ainda mais completa:
Devir é jamais imitar, nem fazer como, nem ajustar-se a um modelo, seja ele de
justiça ou de verdade, não há um termo de onde se parte, nem um ao qual se chega
ou se deve chegar. Tampouco dois termos que se trocam. A questão “o que você está
se tornando?” é particularmente estúpida. Pois à medida que alguém se torna, o que
ele se torna muda tanto quanto ele próprio. Os devires não são fenômenos de
imitação, nem de assimilação, mas de dupla captura, de evolução não paralela,
núpcias entre dois reinos. As núpcias são sempre contra natureza. As núpcias são o
contrário de um casal. Já não há máquinas binárias: questão-resposta, masculino-
feminino, homem-animal etc.
Nestas citações estão descritas algumas das características que o devir não
possui. Devir não é imitação. Devir não tem uma origem. Devir não é relação binária de
troca, nem evolução por filiação. Isto não quer dizer que imitações não possam ocorrer,
só que estas não são da ordem do devir, nem o podem explicar. Alguns exemplos são
utilizados para explicar a noção de devir. Um desses exemplos é o da orquídea e da
vespa. A princípio “a orquídea parece formar uma imagem de vespa, mas, na verdade, há
um devir-vespa da orquídea, um devir-orquídea da vespa, uma dupla captura, pois ‘o
que’ cada um se torna não muda menos do que ‘aquele’ que se torna” (DELEUZE e
PARNET, 1998 p. 10). Não se trata de metáforas, de analogias, nem de estados
108
significados, ou de relações significantes. Têm-se com a noção de devir movimentos da
ordem das vizinhanças entre moléculas compostas, emissões corpusculares... Outro
exemplo diz respeito ao devir-animal no humano. Não se trata de imitar um animal,
como aparece em vários momentos literários, no Hans, em filmes, mas de compor com o
animal. Composição que se dá pelas velocidades e lentidões em zonas de vizinhanças
específicas.
Ninguém se torna animal senão molecular. Ninguém se torna cachorro molar latindo,
mas, ao latir, se isso é feito com bastante coração, necessidade e composição, emite-
se um cachorro molecular. O homem não se torna lobo, nem vampiro, como se
mudasse de espécie molar; mas o vampiro, o lobisomem são devires do homem, isto
é vizinhança entre moléculas compostas, relações de movimento e repouso, de
velocidade e lentidão, entre partículas emitidas. (DELEUZE e GUATTARI, 2002b,
p. 67)
Neste caso, Deleuze e Guattari estão falando do devir animal em ato, de uma
produção do animal molecular, ainda que o animal real seja tomado em sua forma molar.
Em outro exemplo, devir-planta, onde os autores comentam a Albertine de Proust, o que
está em jogo são conjugações moleculares distintas das formas molares que são
caracterizadas pelas relações duais e pela ordem estratificada socialmente. Não se trata
de figuras rígidas do plano das identidades.
Sim, todos os devires são moleculares; o animal, a flor ou a pedra que nos tornamos
são coletividades moleculares, hecceidades, e não formas, objetos ou sujeitos
molares que conhecemos fora de nós, e que reconhecemos à força de experiência, de
ciência ou de hábito. Ora, se isso é verdade, é preciso dizê-lo das coisas humanas
também: há um devir-mulher, um devir-criança, que não se parecem com a mulher
ou com a criança como entidades molares bem distintas (ainda que a mulher ou a
criança possam ter posições privilegiadas possíveis, mas somente possíveis, em
função de tais devires). (DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 67)
Quando se fala em devir, está-se referindo a todos os devires-minoritários do
mundo, com todas as suas conexões de intensidades, de fluxos instantâneos e mutantes
constitutivos tanto dos processos de criação como de destruição. Esses processos estão
109
estreitamente ligados, pois só há construção onde há uma desconstrução, e vice-versa.
São os processos de desterritorializações e reterritorializações, já comentados neste
trabalho, que correspondem, de modo muito particular, ao vocabulário deleuzo-
guattariano, inaugurados no “Anti-Édipo”. Tais processos caracterizam os movimentos
dos devires que estão em constante engendramento. A desterritorialização ocorre quando
um determinado território é desmanchado pela composição de seus fluxos com outros
fluxos heterogêneos. Segundo Barros (1994, p. 274), nesta composição ocorre “um
aumento de massa ocasionado pelo deslocamento de partículas dos fluxos numa
determinada unidade de tempo”. Produzem-se, então, mudanças de um estado intensivo
para um outro
15
.
Somente quando um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação
com outros fluxos, que o desterritorializam por sua vez e vice-versa. Em um devir-
animal, conjugam-se um homem e um animal, sendo que nenhum deles se assemelha
ao outro e levando para mais longe a linha. Sistema de substituição e de mutações
pelo meio. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63)
O que caracteriza as desterritorializações são as linhas de fuga, pois estas não
têm território, que produzem um constante movimento de destruição de antigos
territórios. Os territórios são passíveis de desmanchamentos. É importante que se
esclareça que a noção de território é muito ampla para os autores, mas freqüentemente se
refere ao sentido existencial, onde operações de circunscrição recortam a existência. Os
mecanismos de territorializações são apropriações que tornam o mundo
“compreensível”, a partir de definições cristalizadas, de relações de propriedade sem
sujeito, mas que operam por agenciamentos do tipo molar, sistemas de identificações
subjetivas. “O território é, portanto a dimensão subjetivante do agenciamento na
15
A autora refere-se à noção de quanta para denominar a passagem de um estado intensivo para outro (BARROS,
1994, p. 274).
110
medida em que não há intimidade senão do lado de fora, vinculada a um exterior,
oriunda de uma contemplação prévia a qualquer divisão de um sujeito e de um objeto”
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 47).
Mas as desterritorializações, os abandonos de territórios não podem ocorrer
sem os processos de reterritorialização. Estes processos são definidos como uma espécie
de reconfiguração de novos territórios, onde ocorrem empréstimos de códigos de um
território para outro sobrecodificações. Tais processos caracterizam os sistemas
capitalistas pelas constantes tentativas de reapropriações que fazem dos processos de
desterritorializações.
O capitalismo é um bom exemplo de sistema permanente de reterritorialização: as
classes capitalistas estão constantemente tentando “recapturar” os processos de
desterritorialização na ordem da produção e das relações sociais. Ele tenta, com isso,
controlar todas as pulsões processuais (ou phylum maquínico) que trabalham a
sociedade. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 388)
As linhas de fuga são responsáveis, como já foi mencionado, pelas
desterritorializações, destruições de territórios pelas novas seqüências de fatos,
desestabilizando sistemas estabelecidos. A história da humanidade é feita por constantes
movimentos de desterritorializações e reterritorializações. São lutas intermináveis, toda
uma maquinaria de apropriações e resistências, construção de hegemonias e quedas de
impérios, máquinas despóticas e revolucionárias, verdadeiras batalhas, engenhocas de
guerra... Deleuze (2004b, p. 43) afirma que, na história, é mais importante observar os
devires, onde as linhas de fuga produzem as desterritorializações. Certamente que a
história é importante, porém, existem processos a-históricos ou trans-históricos.
Em Mille Plateaux, os ‘devires’ têm muito mais importância que a história. Não é
absolutamente a mesma coisa. Tentamos, por exemplo, construir um conceito de
máquina de guerra; ele implica antes de mais nada um certo tipo de espaço, uma
composição muito particular dos homens, dos elementos tecnológicos e afetivos
111
(armas e jóias...). Um agenciamento só é histórico secundariamente, quando entra em
relações muito variáveis com os aparelhos de Estado.
Deleuze afirma que as linhas são produzidas nas rupturas: “Partir, se evadir, é
traçar uma linha”. E, ainda, descreve os diferentes tipos de cultura e suas formas de
desterritorialização e reterritorialização, seus modos de relação com os territórios, suas
cartografias. “Fugir é traçar uma linha, linhas, toda uma cartografia. Só se descobrem
mundos através de uma longa fuga quebrada” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 49).
Levando os conceitos até aqui analisados para o campo psicanalítico, podemos
deduzir que a teoria edipiana de sexualidade consiste em reterritorializações do desejo e,
conseqüentemente, em modos de bloqueio do devir. Não há dúvida de que Édipo seja
uma dobra, mas uma dobra indevida. Ele é uma linha, mas uma linha de segmentaridade
dura, de ordem molar. “Mas a psicanálise corta e achata todas as conexões, todos os
agenciamentos, ela odeia o desejo, odeia a política” (DELEUZE e PARNTET, 1998, p.
95). Deleuze critica a psicanálise por sua ignorância quanto aos procedimentos lógicos
da lingüística, sobretudo da lógica do artigo indefinido.
A psicanálise quer a qualquer preço que, atrás dos indefinidos haja um definido
oculto, um possessivo, um pessoal. Quando as crianças de Melanie Klein dizem “um
ventre”, “como as pessoas crescem”, Melanie Klein ouve “o ventre de minha
mamãe”, “será que serei grande como meu papai?”. Quando dizem “um Hitler”, “um
Churchill”, Melanie Klein vê nisso o da mãe ruim ou do bom pai. Os militares e os
meteorologistas, mais do que os psicanalistas, têm, ao menos, o sentido do nome
próprio quando dele se servem para designar uma operação estratégica ou um
processo geográfico: operação Tufão. (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 96)
Com a noção de sexualidade percebem-se melhor as críticas que Deleuze e
Guattari fazem aos procedimentos psicanalíticos que obstruem o desejo em seu processo
maquínico. Em Hans, as interpretações freudianas produzem, pelos mecanismos de
deslocamento e condensação, toda uma deformação e captação dos agenciamentos
112
maquínicos. No lugar do devir, sobrecodificações. Freud consegue, no caso clínico de
Hans, chegar ao ápice das interpretações dos fluxos de desejo, operando decodificações
de toda sorte, tornando o desejo impotente. No lugar de um devir-animal, um pai
deslocado. No lugar dos agenciamentos coletivos de enunciação, relações de
significância determinadas pela Lei as repetições infinitas. De acordo com a
psicanálise, todos serão eternamente perseguidos pela ameaça de castração e,
conseqüentemente, pelos seus efeitos de culpabilização inconscientes.
Bem outra é a concepção esquizoanalítica quando tenta descolar o desejo das
soldas edipianas. O desejo só pode ser apreendido a partir de agenciamentos
determinados por condições sociais; afinal, todo agenciamento é coletivo. A
esquizoanálise se pergunta o que foi feito do desejo de Hans e responde afirmando que
ele foi colocado na ordem das exigências capitalistas familialistas, transformado em
retrato de família. Perde-se, desse modo, a fluidez de sua produção desejante quando
todo seu comportamento é interpretado segundo cadeias figurativas. Para Deleuze
(DELEUZE e PARNET, 1998, p. 113), os agenciamentos não podem ser reduzidos a
meras repetições de conteúdo identificatórios, em que as pulsões se submetem a
invariantes estruturais.
Mas jamais invocaremos pulsões que remetessem a invariantes estruturais, ou a
variáveis gerais. Bucal, anal, genital etc., perguntamos, a cada vez, em que
agenciamentos esses componentes entram: não a que pulsões eles correspondem,
nem a que lembranças ou fixações eles devem sua prevalência, nem a que incidentes
elas remetem, mas com que elementos extrínsecos eles compõem para fazer um
desejo, para fazer desejo. Já é assim na criança, que maquina seu desejo como o de
fora, com a conquista do de fora, não em seus estágios interiores, nem sob estruturas
transcendentes.
O devir em Hans passa por uma série de procedimentos de confinamento, até
que todas as suas experiências são sugadas para uma espécie de buraco negro do
113
Complexo de Édipo. Com ele o professor Freud explicou como o desejo pode ser
domesticado, organizado pela ótica familialista, arborificado e organizado segundo
mecanismos de imitação identificatórios. A noção edipiana tornou o pensamento
freudiano empobrecido ao reforçar o que em Nietzsche foi chamado de forças reativas do
humano. Pelbart (2004, p. 110) foi buscar na obra “Mil Platôs” (2002b), no capítulo que
os autores tratam do devir, a seguinte definição:
O devir é aí pensado como um entre dois: entre dois significa entre dois termos, entre
dois pontos (por exemplo, a abelha e a orquídea, o homem e o lobo, Albertina e a
planta, eu e minha infância). O devir não é a operação pela qual um termo se
transforma num outro, por imitação ou analogia. Conforme o princípio emprestado a
Hume, toda relação é concebida como exterior aos seus termos. Assim, entre um
termo e outro cria-se uma zona de indiscernibilidade, de vizinhança, um no man’s
land para onde são arrastados os dois termos; ou melhor, para onde são emitidas as
partículas que por sua vez entram numa relação determinada de movimento e
repouso.
Deleuze e Guattari (2000, p. 24) tomam outro rumo na leitura que fazem não só
do pequeno Hans, mas também dos delírios do presidente Shcreber, do caso clínico
Homem dos lobos, e concluem que:
Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans, seria mostrar como ele tenta
constituir um rizoma, com a casa da família, mas também com a linha de fuga do
prédio, da rua, etc.; como estas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na
família, fotografado sob o pai, decalcado sobre a cama materna; depois, como a
intervenção do professor Freud assegura uma tomada de poder do significante como
subjetivação dos afetos; como o menino não pode mais fugir senão sob a forma de
um devir-animal apreendido como vergonhoso e culpado (o devir-cavalo do pequeno
Hans, verdadeira opção política).
Os rizomas de Hans mostram-se estranhos às figuras familiares e suas linhas de
fuga explodem em intensidades múltiplas que rompem constantemente com o centro,
desterritorializando-se insistentemente sobre o plano do devir. As linhas de fuga são
linhas de desterritorializações produzidas em uma multiplicidade de devir: devir-animal,
devir-humano, devir-criança, devir-mulher, devir-bicha, devir-negro, devir-vegetal... E
114
todo devir só tem condições de sê-lo a partir das condições existenciais, ou seja, o devir
não pode ser confundido com o caos, mas compreendido em sua relação com ele. O
devir existe como experiência molecular, em uma relação de multiplicidade, rizomática,
características dos agenciamentos maquínicos.
Surpreendente é o que fizeram do devir-criança quando o transformaram em
um universo infantil preso ao mundo adulto. Ariès (1978) mostra bem essa captura da
criança por uma engrenagem sócio-histórico-econômico-política. A sexualidade infantil,
de características perversas, teorizadas pelo pensamento freudiano, fomentou ainda mais
a necessidade de esquadrinhar e expandir os poderes da família nuclear, tornando a
sexualidade, desde muito cedo, um alvo da atenção das práticas médicas e pedagógicas.
A sexualidade, como considerou Foucault (1977), fornece elementos altamente eficientes
para o exercício dos processos de desterritorializações e reterritorializações. A
sexualidade torna-se um importante dispositivo de captura das possibilidades
revolucionárias do desejo. Ainda mais por ser concebida por Deleuze e Guattari (2002b,
p. 72), como multiplicidades libidinais rizomáticas, inconscientes, moleculares,
constituída de partículas intensivas: “A sexualidade é uma produção de mil sexos que
são igualmente devires incontroláveis. A sexualidade passa pelo devir-mulher do homem
e pelo devir-animal do humano: emissão de partículas”.
A noção de devir produz uma ruptura com as noções psicanalíticas de
sexualidade, sobretudo quando desqualifica as categorias, ou personagens familialistas,
utilizados para entender a constituição da subjetividade. Certamente que Deleuze e
Guattari não se referem a essas categorias quando utilizam a noção de devir. Guattari
115
(1987, p. 36) usa como exemplos vários tipos de devir e, quanto ao devir-mulher, afirma
categoricamente:
Se insisto neste ponto é porque o devir corpo feminino não deve ser assimilado à
categoria “mulher” tal como ela é considerada no casal, na família, etc. Tal categoria,
aliás, só existe num campo social particular que a define! Não há mulher em si! Não
há pólo materno, nem eterno feminino[...]
A psicanálise “substancializou” essas figuras parentais, identificou o devir-
mulher com a mulher, ou com a mãe propriamente ditas, como também o devir-criança
com a criança edipiana, e assim por diante, toda vez que se deparou com um devir.
Como insistiu Guattari, precisa-se de um devir outro, para que se torne diferente do que
o corpo social repressivo obriga a ser constantemente. E é neste sentido que a
micropolítica dos devires acontece, por se tratar, necessariamente, de lutas de minoria,
resistentes ao modo molar de pensar. Assim, poder-se-ia resumir que o devir é a própria
passagem, é o que faz passar, a desterritorialização em ato, a transmutação pelas linhas
de fuga. É por isso que a idéia de continuidade não pode ser aplicada ao devir, pois só
existem blocos de devir. O termo bloco está intimamente ligado à noção de
agenciamento e totalmente distante das idéias de fixação, complexos infantis, onde se
buscam origens ou estruturas determinantes. É uma outra relação com espaços e com o
tempo que se estabelece. Em resumo, reforçam-se os principais contrapontos entre o
pensamento psicanalítico e o esquizoanalítico: ao invés de fixação em fases blocos de
intensidades; no lugar de um organismo o corpo sem órgãos; ao invés de relação entre
dois termos um entre-dois; ao invés de origens a afirmação da potência de um meio;
no lugar de imaginário/fantasma agenciamentos; ao invés de estruturas linhas de
fuga; no lugar do mito um devir real.
116
A relação entre devir e tempo encontra-se muito bem elaborada no texto de
Pelbart (2004, p. 112), no capítulo sobre história e devir.
É um tempo sem antes nem depois, flutuante, não pulsado, Aion. E se há algum
relógio cabível para uma tal multiplicidade, é um “relógio que daria toda uma
variedade de velocidades”, que as afirmasse todas. Mesmo Proust é valorizado nesse
sentido: mais do que reencontrar o tempo ou recobrar a memória, busca apreender as
múltiplas velocidades coexistentes.
Pelbart baseia-se em “Mil Platôs”, quando trata a questão do tempo do devir
em sua relação com a teoria das multiplicidades (Aion versus Cronos). Por motivo de
delimitação desta pesquisa, essa relação não poderá ser detalhada. Porém, é muito
relevante a investigação das possibilidades de conexão entre alguns aspectos desta
questão e o plano clínico.
A principal tarefa da esquizoanálise consiste em desfazer as infantilizações dos
fluxos esquizo, romper com as análises de um sujeito da representação, possessivo,
individuado, que estaria em constante busca de um objeto perdido.
Já a esquizoanálise, é precisamente para estes “fluxos esquizo” que ela busca abrir
caminhos. Atualidade dos “fluxos esquizo” como construção de novos
“agenciamentos coletivos de enunciação”. Coleta dos traços de singularidade de um
processo de produção de agenciamentos de desejo no interior dos quais se analisa o
que emperra e o que possibilita sua potencialidade transformadora. Análise de uma
individuação dinâmica sem sujeito, de uma constelação funcional de fluxos sociais,
materiais e de signos que são a objetividade do desejo. Análise de um devir.
(GUATTARI, 1987, p. 8)
No próximo capítulo serão discutidas as possibilidades de uso dessas idéias, até
aqui apresentadas, em sua interface com o plano clínico, considerando, também, os seus
riscos e perigos, ainda mais por não se ter nenhum caminho que possa ser
preestabelecido. Diante de uma linha de fuga, jamais se pode afirmar por onde ela irá,
quais cartografias fará, sendo possível, inclusive, que ela recaia nas figuras edipianas e
em seus conflitos.
117
A economia da castração, a economia edipiana não funciona da mesma maneira, não
veicula os mesmos universos de possibilidade, em todo tipo de situação. Assim
sendo, o importante não é instaurar uma espécie de pequeno sistema de chave
universal de significante, mas ao contrário preservar sempre esses capitais de
possível de que cada um desses diferentes universos considerados são portadores.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 284)
118
2.4
NOVAS POSSIBILIDADES DO DESEJO: SUBJETIVIDADE E
SINGULARIDADE
2.4.1 ESQUIZOANÁLISE E SUBJETIVIDADE
O homem sublime ou superior vence os monstros, expõe os enigmas, porém ignora o
enigma e o monstro que ele próprio é. Ignora que afirmar não é carregar, atrelar-se,
assumir o que é, mas, ao contrário, desatrelar-se, livrar, descarregar o que vive. Não
carregar a vida com o peso dos valores superiores, mesmo heróicos, porém criar
valores novos que façam a vida leve ou afirmativa. (DELEUZE, 1997, p. 115)
Se foi possível modular a subjetividade pelos princípios edipianos do desejo em
um determinado momento histórico, é possível também deduzir que novas modulações
não só estão ocorrendo na sociedade contemporânea, como também são inevitáveis. É
necessária, segundo a esquizoanálise, a investigação desses processos de subjetivação,
para que se conheçam os processos pelos quais se é modelizado e para que se invista em
movimentos de singularidade que possam liberar as cristalizações impostas.
A subjetividade, como foi mostrado anteriormente, não pode ser reduzida à
noção de indivíduo. O modo-indivíduo é um procedimento de serialização da
subjetividade, sendo apenas mais um dos modos pelos quais a subjetividade é concebida.
A subjetividade abarca todas as possibilidades de produção social e material. A noção de
produção de subjetividade coloca em jogo:
[...] as relações de luta na pluralidade de forças que constituem cada acontecimento,
a cada momento. Coloca-se como contrária à constância, às totalidades bem
fechadas, à continuidade dos fatos. Essa subjetividade, múltipla, circulando nos
conjuntos sociais, poderá ser apropriada de forma criativa, produzindo
singularizações. (BARROS, 1994, p. 381)
Produção de subjetividade diz respeito às multiplicidades existentes nos
agenciamentos maquínicos que, de modo algum, podem ser associados a povos ou
sociedades, pois não se trata de somatório de pessoas ou de uma noção de massa
119
homogênica determinada previamente. Se assim fosse, ter-se-ia que supor uma tensão
entre coletivo e singular em uma relação de polaridade. Esta idéia estaria em contradição
com a noção de agenciamento, proposta pelos autores, pois esta apresenta uma
concepção plástica da subjetividade constituída por linhas de fuga incansáveis em seu
processo de mutação.
A subjetividade é pensada como um sistema aberto:
Há hoje, nas ciências ou em lógica, todo o princípio de uma teoria dos sistemas ditos
abertos, fundados sobre as interações, e que repudiam somente as causalidades
lineares e transformam a noção de tempo. Admiro Maurice Blanchot: sua obra não
são pequenos pedaços ou aforismos, é um sistema aberto, que construía,
antecipadamente, um ‘espaço literário’ capaz de se opor ao que nos acontece hoje. O
que Guattari e eu chamamos de rizoma é precisamente um caso de sistema aberto.
(DELEUZE, 2004b, p. 45)
Portanto, a esquizoanálise tem como finalidade a análise desses sistemas
abertos, compostos por linhas, por devires. O que se quer analisar são as diferentes
cartografias, mesmo que em alguns momentos se tornem endurecidas, verdadeiros
decalques, ao invés de mapa. O que importa é seguir seus vetores, pois nada garante
que, em um processo de singularização, não possa ocorrer processo de individuação e
vice-versa. Quanto ao processo de singularização, este nunca pode ser entendido como
um movimento totalmente novo singularidade pura. Trata-se de um constante
entrecruzamento desses tais processos. Nada vem do nada, ou do totalmente original. O
que é original é a possibilidade das conexões, que se tornam criativas em alguns
cruzamentos de linhas. De igual modo, os processos de individuação não podem ser
confundidos com a noção de indivíduo, pois; “atrás da aparência da subjetividade
individuada, convém procurar situar o que são os reais processos de subjetivação”
120
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 387). Mas, de um modo ou de outro, constata-se
que em nenhum momento a noção de indivíduo é utilizada:
Quando falo em ‘processo de subjetivação’, de ‘ singularização’, isso não tem nada a
ver com o indivíduo. A meu ver, não existe unidade evidente da pessoa: o indivíduo,
o ego ou a política do ego, a política da individuação da subjetividade, são
correlativos de sistemas de identificação os quais são modelizantes. (GUATTARI e
ROLNIK, 2005, p. 47)
O indivíduo é uma invenção do modelo capitalista, esta é sua principal máquina
de subjetivação, é a ferramenta que faz girar suas engrenagens, sobretudo pela colocação
que faz do desejo no domínio do indivíduo. Mas, para a esquizoanálise, a subjetividade é
definida de uma outra maneira: “A subjetividade não é passível de totalização ou de
centralização no indivíduo. Uma coisa é a individuação do corpo. Outra é a
multiplicidade dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente
fabricada e modelada no registro social” (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 40).
Contudo, os processos de singularização estão no centro de interesse da
esquizoanálise, afinal, singularizar é afirmar a potência, o sentido positivo da ruptura, a
criação de outros modos de existência pela experimentação. Esses processos são os
únicos capazes de romper com os modos de subjetivação capitalísticos. Trata-se de uma
verdadeira lógica dos devires lógica das multiplicidades que estão sempre colocando
em xeque qualquer tentativa de eternidade pelas universalizações. No entanto, no plano
da organização, são empreendidas constantes buscas de figuras eternas que dêem um
certo alívio às angústias provocadas pelas desterritorializações. É muito dolorosa a perda
de um território. Em cada mudança surgem novas possibilidades, novos ritmos... Somos
máquinas desejantes constituídas por múltiplas linhas. Não existe um fluxo único. E esta
é a maior arte do inconsciente sua multiplicidade. Quanto a isso, a psicanálise tentou
121
resolver por meio de suas interpretações domesticadoras do desejo em sua potência
criadora. Tal tarefa obteve êxito, sobretudo pelo modo como articulou desejo a um
impulso bestial, perigoso.
As sucessivas formulações de Freud nunca se afastaram desta posição. A energia
libidinal deve converter-se no sistema maniqueísta dos valores dominantes, ela deve
investir as representações formais, nada de ter prazer fazendo cocô na cama sem
desencadear um investimento culposo. (GUATTARI, 1987, p. 30)
A noção de transversalidade aparece como uma das possíveis saídas para os
impasses produzidos e reproduzidos pelas relações sociais dominantes. Com ela,
Guattari trabalhou anos a fio, conseguindo superar as relações de verticalidade e
horizontalidade que se tornaram modos de elucidação dos fenômenos institucionais em
diversos domínios teóricos. Na verticalidade se localizariam as relações hierarquizadas,
tais como expressas em um organograma institucional (relações de chefias,
departamentos etc.). Na horizontalidade estariam as relações extras institucionalizadas,
não mediatizadas pela instituição (relações informais, imediatas etc.). São perspectivas
que interpretam as relações sociais a partir de noções dicotômicas e representativas.
Com a transversalidade é possível se pensar a subjetividade em seu sentido
processual escapando ao “clássico dilema entre o Cilas da verticalidade burocrática e o
Caribde da horizontalidade atomizante” (VIDAL, 1994, p. 49). Guattari em sua
perspectiva grupalista, trabalhou com esta noção fazendo dela o próprio objeto de
investigação das relações grupais (grupos sujeitados/grupos sujeitos) que coloca em
evidência as determinações sociais implícitas no processo grupal, como também mostra
as possibilidades de subversão dessas determinações (processo de singularização).
A subjetividade está em circulação nos conjuntos sociais de diferentes tamanhos: ela
é essencialmente social, e assumida e vivida por indivíduos em suas existências
particulares. O modo pelo qual os indivíduos vivem essa subjetividade oscila entre
122
dois extremos: uma relação de alienação e opressão, na qual o indivíduo se submete
à subjetividade tal como a recebe, ou uma relação de expressão e de criação, na qual
o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade, produzindo um
processo que eu chamaria de singularização. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 42)
A noção de transversalidade está em sintonia com a noção de máquina, ou
melhor, com a noção de produção de subjetividade, já que não haveria distinção entre os
domínios do social e do indivíduo. Ambos estariam em um mesmo plano de conexões
heterogêneas, engendrados numa co-produção, distintos apenas pelos modos de relação
dos termos submissão/singularização. Barros (1994, p. 267) resume claramente os
processos que, pelos coeficientes de transversalidades
16
podem ser evidenciados.
Há processos, conexões incessantes e permanentes, pedaços de sujeitos-objetos que
criam outros, pedaços que se cortam e não mais se conectam. Há redes de relações
que se montam não mais por horizontalidades e verticalidades, mas por
transversalidades. Atravessamentos que não param de desmontar as linearidades e
causalidades explicativas dos atos-sujeitos-objetos. Atos de expansão, atos de
implosão, atos-corte-de-fluxos. Estamos no ‘meio’ o tempo inteiro. No ‘meio’,
‘entre’, onde não há mais identidades que se sustentem, a não ser na sua evidente
provisoriedade. Estamos numa onda, que vem sabe-se lá de que movimento de água,
faz outro movimento, desemboca ainda em um outro e já flui para outras paragens.
Trata-se de processualidade, onde não há dualismo entre sujeito-objeto, mas
devires com todas as suas possibilidades de conexões. Assim ocorrem os modos de
subjetivação que, em sua processualidade, constituem a subjetividade. Mais exatamente,
a produção de subjetividade se constitui como matéria-prima para qualquer produção
social sem qualquer transcendência. Em resumo, por modos de subjetivação entende-se:
[...] processos que tanto construirão certos objetos de interesse, quanto conformarão
modos de existir. Quando nos referimos, portanto, a modos de subjetivação, os
estamos tomando em seu sentido intensivo, isto é, enquanto maneira pela qual, a
cada momento da história, prevalecem certas relações de poder-saber que produzem
objetos-sujeitos, necessidades e desejos. (BARROS, 1994, p. 28)
16
A esse respeito Barros (1994, p. 342), seguindo a definição dada por Guattari, explica que o coeficiente de
transversalidade pode ser entendido como “grau de abertura à alteridade do próprio grupo e, portanto, à
emergência da diferença”. Seu aumento é proporcional ao aumento de comunicação, ou de abertura para outros
tipos de grupo.
123
A dimensão social está presente em todas as instâncias tais como família,
grupos formais e informais, no indivíduo, nas teorias psicológicas, filosóficas etc.
Portanto, com o aumento do grau de transversalidade, é possível aumentar a percepção
desses entrecruzamentos. Se para Guattari a transversalidade tende a aumentar com a
maximização da comunicação nos diferentes níveis e sentidos de uma instituição, pode-
se pensar que, também no plano clínico, o aumento do coeficiente de transversalidade
pode ser uma importante ferramenta na produção de novas dimensões singulares. A
prática clínica se beneficiaria com este procedimento, sendo ela mesma um modo de
exercício das transversalidades, na qual pudessem ser combatidos os territórios alienados
da subjetividade (pontos de subjetivação fixados), como também os programas limitados
a territórios mortos (pontos de subjetivação destrutivos).
Quando a transversalidade aumenta, todo um diagrama é reconfigurado,
abrem-se novas saídas, flexibilizam-se os agenciamentos, constroem-se pelo meio novas
singularidades... “Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da
esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda” (DELEUZE e
GUATTARI, 2000, p. 35).
No próximo capítulo o conceito de transversalidade será associado ao de
transdisciplinaridade, quando serão discutidas as possibilidades que o plano clínico
oferece de produzir novos agenciamentos destituídos de qualquer idéia de organização
psíquica-identitária, ou alusão aos procedimentos de interpretação ocorridos na
transferência. Neste sentido, a clínica será pensada como sistema aberto, lugar dos
rizomas, e não mais das essências, mas pura variação de intensidades.
124
Em resumo, a subjetividade para a esquizoanálise não pode ser encarada como
uma coisa em si, ou preestabelecida, pois ela depende sempre de um agenciamento de
enunciação que a produz ou não. Além disso, não existe um nível indiferenciado de
subjetividade.
A subjetividade está sempre tomada em rizomas, em fluxos, em máquinas, etc.; ela é
sempre altamente diferenciada, sempre processual. Portanto, um empreendimento,
digamos, esquizoanalítico, um agenciamento criador, produtor de sentido, produtor
de atos, produtor de novas realidades, é algo que conjuga, associa, neutraliza, monta
outros processos. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 332)
Ainda para finalizar, a maior crítica da esquizoanálise à psicanálise é quanto
aos recursos interpretativos que esta utilizou para elucidar o que seriam os aspectos
“mais verdadeiros” da subjetividade as vicissitudes das pulsões parciais, Édipo, a
castração, a morte... Para a psicanálise, as principais verdades de uma subjetividade
estão escondidas, reprimidas em seus desejos inconscientes. Foi toda uma montagem
feita a partir das relações familiares, da conjugalidade, que serviu de base para explicar o
funcionamento psíquico (sistema de representações) e seu principal centro de comando
do comportamento humano o inconsciente. No final de tudo é sempre papai-mamãe
que se encontra.
Assim, a crítica esquizoanalítica da produção de sexualidade em Freud consiste
em rebater os vícios provocados pelos modos identitários de interpretação. É a lógica
binária e a edipianização do sujeito que dominam a psicanálise. Os afetos, os
sentimentos, todos estão englobados numa interiorização compondo o grande segredo da
alma humana. A esquizoanálise, ao proceder com a análise do inconsciente, nada espera
encontrar em termos de prefiguração do desejo.
A análise do inconsciente deveria seguir com seus riscos e perigos todas as linhas
do rizoma que constituem um agenciamento, sejam quais forem as matérias de
125
expressão de seus componentes e os efeitos de buraco negro que eles desencadeiem,
sejam quais forem as rupturas ou as reações em cadeia que um tal processo pode
implicar[...] (GUATTARI, 1987, p. 152)
A subjetividade é produzida a partir das forças de uma exterioridade e não de
uma interioridade como afirma a psicanálise. Deleuze e Guattari (2002c, p. 18) não
acreditam em sentimentos internos de um sujeito: “amor ou ódio já não são em absoluto
sentimentos, mas afectos. E esses afectos são outros tantos devir-mulher, devir-animal
do guerreiro (o urso, as cadelas). Os afectos atravessam o corpo como flechas, são armas
de guerra”. Assim, os fenômenos de sublimação, projeção, introjeção etc. não são
utilizados na esquizoanálise como modos autênticos de funcionamento egóico.
Portanto, a clínica, ao colocar em funcionamento processos analíticos, deve
proceder pela lógica dos agenciamentos, tanto para compreender os que são
determinados previamente pelas condições sociais, como também para favorecer os que
serão gerados a partir de tais processos analíticos. Para Guattari (GUATTARI e
ROLNIK, 2005), a clínica não serve de nada se não for capaz de compreender as
dificuldades pessoais, ou grupais, à luz de seus investimentos sociais, afinal são estes
que constituem a subjetividade de um modo ou de outro. Na mesma direção, está uma
síntese que ROLNIK (2000, p. 454-455) faz sobre a finalidade da esquizoanálise como
possibilidade de saída dos modelos psicanalíticos e capitalísticos de subjetividade.
A esquizoanálise pode nos ajudar a sair desse círculo vicioso. A incorporação do
plano intensivo que é o corpo sem órgãos, na cartografia da subjetividade, indica
uma pista: é o próprio tabuleiro do regime identitário o que está para ser posto em
questão. Não em nome de um fascínio niilista do caos, mas para viabilizar a
produção de uma subjetividade heterogenética. No lugar de imagens a priori em
torno das quais se reconfiguram as subjetividades desterritorializadas, o que se pode
vislumbrar são modos de existência singulares e heterogêneos. Tais modos se criam
em função do mapa de intensidades que vai se traçando nesse denso processo de
hibridações a que assistimos em nossos dias. Isto requer, no entanto, que se escute o
corpo sem órgãos, o que implica desenvolver um ouvido atento à emergência das
126
formas de expressão, um ouvido que consiga não ficar sintonizado exclusivamente
seja com os significados, seja com os significantes, seja com ambos.
2.4.2 ESQUIZOANÁLISE E CLÍNICA
A esquizoanálise não se propõe resolver Édipo, ela não pretende resolvê-lo melhor
do que é feito na psicanálise edipiana. Ela se propõe desedipianizar o inconsciente,
para atingir essas regiões do inconsciente órfão, precisamente ‘além de toda lei’,
onde o problema não pode mais nem mesmo ser colocado. Ao mesmo tempo, nós
também não partilhamos o pessimismo que consiste em crer que essa mudança, essa
liberação só pode ser realizada fora da psicanálise. Acreditamos, ao contrário, na
possibilidade de uma reversão interna, que faz da máquina analítica uma peça
indispensável do aparelho revolucionário. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 109)
A esquizoanálise propõe pensar a clínica a partir de suas possibilidades de
agenciamentos, pois acredita em sua capacidade de operar transformações para além das
formas instituídas. Isto não significa ignorá-las, pelo contrário, a esquizoanálise trabalha
conhecendo esses modos de subjetivação instituídos. Para Guattari, a clínica deve operar
na ordem das micropolíticas, sabendo que os aspectos da macropolítica sempre estarão
presentes e passíveis de transformação. No âmbito clínico, estaríamos muito mais na
ordem estética do que na ordem interpretativa. Neste sentido, são fundamentais os
seguintes questionamentos que envolvem a prática clínica: Que tipo de agenciamentos
podem ser construídos? E que visão de sujeito permeia esta prática?
As respostas para estas questões têm início com a aposta que se faz na
contribuição da esquizoanálise para o plano clínico, que já se configura com uma certa
noção de sujeito que se pretende desconstruir, produzido a partir de perspectivas
identitárias, causalistas, em que a natureza de sua essência está dada, faltando apenas um
modo de investigação mais precisa que rompa com os enigmas e desvende seus mistérios
mais profundos. É desta forma que a noção de sexualidade se torna uma importante
ferramenta para que se dê início aos processos de desconstrução, inaugurando, assim,
127
outros sentidos ainda por serem cartografados pelo desejo em sua conjunção com as
ordens macro e micromoleculares. Para tanto, busca-se romper com as interpretações
fundamentadas em princípios psicológicos e demasiadamente “humanos”. Deleuze
(2004a, p. 114), comentando Nietzsche, afirma que não se está diante de pessoas, mas de
forças e quereres: “Sabe-se que, em Nietzsche, a teoria do homem superior é uma crítica
que se propõe denunciar a mistificação mais profunda ou perigosa do humanismo”.
Do mesmo modo, este trabalho investiga as obras de Deleuze e Guattari para
desmistificar a noção edipiana como princípio fundamental da constituição da
subjetividade. Relacionar as críticas desses autores com o exercício clínico se faz
necessário a partir do momento em que se acredita em um fazer clínico fundamentado na
diferença e não em princípios do idêntico. Nesta nova proposta clínica não se busca um
eu, um indivíduo e seus conflitos edipianos. Trata-se de uma noção de clínica não
comprometida com as figuras familialistas da psicanálise. Não se buscam encontrar os
elos perdidos de um tempo passado estruturado miticamente. A clínica, então, passa a ser
lugar da diferença, do novo, do intempestivo
17
. Não haveria história para se remontar,
nem um conflito para se superar, nem muito menos uma memória para se resgatar.
A tarefa da esquizoanálise é desfazer incansavelmente os egos e seus pressupostos,
libertar as singularidades pré-pessoais que eles encerram e recalcam, fazer escorrer
os fluxos que eles seriam capazes de emitir, de receber ou de interceptar, estabelecer
sempre mais finamente as esquizas e os cortes, bem acima das condições de
identidade, mo ntar as máquinas desejantes que recortam cada um e o agrupam com
outros. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 460)
É possível que, no exercício clínico, movimentos de desterritorialização,
juntamente com o surgimento de novos territórios, sejam produzidos em sua absoluta
17
Sobre esta noção, Deleuze e Guattari (2002b, p. 95), apoiados em Nietzsche, definiram: “[...] o intempestivo,
outro nome para a hecceidade, o devir, a inocência do devir (isto é, o esquecimento contra a memória, a geografia
contra a história, o mapa contra o decalque, o rizoma contra a arborescência)”.
128
imanência, sem que se perca de vista a força e a especificidade deste exercício. O que a
psicanálise iniciou deve ser perseguido em sua forma estratégica, ampliando seus
espectros de transformação social. Inclusive, o próprio Guattari (1987, p. 166) acreditava
no processo analítico pela natureza desse processo, ou seja, ele pode se constituir como
lugar de passagem, de visitar outras paragens, sendo o próprio movimento nômade tão
necessário à tarefa do viver.
Após longos anos de formação e de prática, fui chegando à conclusão de que a
psicanálise devia reformar radicalmente seus métodos e suas referências teóricas,
caso contrário estaria condenada a vegetar na esclerose e no conformismo que a
caracterizam atualmente, ou até mesmo a perder toda credibilidade e a desaparecer.
O que, eu insisto, me pareceria prejudicial por muitas razões. Pouco importa, creio
eu, que as sociedades, as escolas psicanalíticas e a própria profissão de psicanalistas
desapareçam, contanto que a análise do inconsciente subsista enquanto prática,
segundo novas modalidades.
Não há como investigar a subjetividade na clínica sem que esta não se coloque
na interface com outros domínios do conhecimento, domínios compostos por diversas
linhas que:
[...] vêm ora da arte, ora da política, ora da filosofia, ora de outro domínio qualquer
que esteja em processo de nomadização, transmutando-se em devir, sendo
minoritário, rompendo-se enquanto totalidade, abandonando seus sujeitos-objetos
disciplinados em prol da criação. (PASSOS e BARROS, 2000, p. 78)
Passos e Barros (2000) referem-se ao projeto transdisciplinar de clínica, onde o
analista, além de criar “intercessores”, ou seja, novos elementos para as eventuais
desterritorializações, provocando passagens de um território a outro, ele mesmo, o
analista, se faz um intercessor. Por clínica transdisciplinar os autores entendem um certo
tipo de plano, onde ocorrem constantes ressonâncias entre sistemas de toda ordem.
Não se trata de abandonar o movimento criador de cada disciplina, mas de fabricar
intercessores, fazer série, agenciar, interferir. Frente às ficções preestabelecidas, opor
o discurso que se faz com os intercessores. Não uma verdade a ser preservada e/ou
descoberta, mas que deverá ser criada a cada novo domínio. Os intercessores se
fazem, então, em torno dos movimentos, esta é a aliança possível de ser construída
129
quando falamos de transdisciplinaridade, quando falamos de clínica. (PASSOS e
BARROS, 2000, p. 77)
Trata-se de produzir e manter uma tensão constante entre os processos de
subjetivação molares e moleculares, até porque é impossível qualquer prática sem tais
comprometimentos, ainda que não explícitos. Portanto, este plano clínico não é o plano
das universalidades, nem muito menos das constâncias, mas um plano sempre instável
o plano do devir, o que torna possível os processos de criação, ou de singularização.
Quanto aos componentes sexuais da vida psíquica, que, segundo a psicanálise,
compõem o inconsciente, são vistos pela esquizoanálise como modos de subjetivação
operados por um tipo de máquina social. Assim, sua finalidade é romper com o modelo
psíquico em sua autonomia e com os conceitos que visam explicar como os aspectos
sexuais, sobretudo os edípicos, são responsáveis pela sanidade ou insanidade psíquicas.
Pensar a clínica sob a perspectiva de Deleuze e Guattari é, sem dúvida alguma,
permitir-se a novos modos de semiotização que requerem movimentos de fluxos de toda
natureza, sem, no entanto, cair em um campo clínico indiferenciado, apesar de todas as
perturbações que a perspectiva desses dois pensadores provoca em certas familiaridades
do pensamento.
De acordo com Rolnik (2000), a esquizoanálise vem ocupando um espaço
significativo de interesse nos âmbitos da clínica psicanalítica, institucional e nos
acadêmicos, sobretudo por aqueles que procuram desenvolver uma dimensão crítica da
clínica. Considerando que para a esquizoanálise a subjetividade sofre modulações ao
longo da história e que uma das últimas invenções do homem moderno foi a
subjetividade centrada no indivíduo, pode-se supor, então, a possibilidade de criar
formas heterogêneas e singulares totalmente diferentes dos regimes identitários desses
130
últimos tempos. Rolnik (2000, p. 458) afirma que para Deleuze e Guattari só o CsO nos
possibilita esta façanha.
Mas se escutarmos o corpo sem órgãos, descobriremos que o tempo como realização
do possível é apenas uma de suas figuras; vislumbraremos que o tempo é também
invenção. A partir daí, a questão do desejo não mais se coloca em termos de uma
escolha entre o possível e o impossível, e sim de uma viabilização do trânsito em
mão dupla entre o plano virtual das intensidades e o plano atual das formas. Trata-se
de estar atento às rachaduras das formas vigentes no atual, para escutar o burburinho
das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtual corpo
sem órgãos; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos que favoreçam a
atualização de tais singularidades como matérias de expressão. E, assim,
infinitamente.
É neste sentido que a esquizoanálise pode ser pensada como resistência aos
modelos individualizantes da subjetividade que a normalizaram através de técnicas de
conhecimento, controle e poder. A resistência traz o novo e provoca efeitos de toda
sorte. Mas, como operacionalizar, ou melhor, como fazer uso de uma máquina
(esquizoanálise) que não possui “manual de instrução”? Como se permitir, no exercício
clínico, a experiência do devir, sem cair no rótulo da “loucura ultrapassada” da década
de 60? Ou de ainda viver “sem lenço e sem documento?” Ou ser identificado como
bicho-grilo”? Ou talvez, ainda pior, como parte da categoria de profissionais que não
fazem a menor diferença por não apresentar um caminho útil, metodologicamente
científico, que dê conta dos transtornos psíquicos?
Estes questionamentos retratam algumas das idéias que aparecem com
freqüência diante da proposta esquizoanalítica de clínica, manifestadas nas faculdades de
psicologia, ou no próprio campo de trabalho “interdisciplinar”. Como respondê-los sem,
necessariamente, usar recursos dos tempos da ditadura, ou da “geração do desbunde”?
Tal como Cazuza se autodenominou afirmando que, “pra mudar alguma coisa a gente
teve que gritar, se drogar, ir pra rua enfrentar a nossa própria fraqueza”.
131
Não há dúvida de que Deleuze e Guattari são ícones de um tempo de
beligerância dos anos 60, marcados pelos movimentos dos anos contraculturais, quando
a forma de luta se manifestava, sobretudo, por uma posição anti. Vive-se um outro
momento que requer modulações coerentes com este novo plano de consistência.
Pelbart (2004, p. 19), investigando as transformações do tempo
17
, afirma:
Há aqui uma topologia que lembra a Deleuze o que os matemáticos chamam de ‘a
transformação do padeiro’. Dois pontos, por mais próximos que estejam num
quadrado, resultarão distantes ao cabo de algumas transformações em que o
quadrado é estirado em retângulo, dividido em duas metades, formando novamente
um quadrado etc. É assim que um acontecimento é constantemente remanejado na
‘massa do tempo’, como um ponto aí assinalado que se divide em dois,
fragmentando-se, distendendo-se, conforme o lençol de passado em que é jogado, ou
no qual nos colocamos, abrindo-se a uma variação infinita.
Ainda que a questão do tempo não possa ser discutida mais amplamente neste
trabalho, ela perpassa, de um modo ou de outro, todos os questionamentos apresentados
até aqui. Isto porque, mesmo com as modulações operadas, não é de um tempo
cronológico a que se está reportando neste trabalho, mas de um tempo do devir em
oposição ao tempo arborescente, hierarquizado e genealógico.
Contrariamente à história, o devir não se pensa em termos de passado e futuro. Um
devir-revolucionário permanece indiferente às questões de um futuro e de um
passado da revolução; ele passa entre dois. Todo devir é um bloco de coexistência.
(DELEUZE e GUATTARI, 2002b, p. 89)
A resistência aparece onde os imperialismos reinam, e ela tem sempre a mesma
natureza: desestabilizar a hegemonia. Portanto, mesmo que os tempos sejam outros, é
importante ressaltar que não se pode nos situar-se num tempo linear da história. Trata-se
de combater as perspectivas dominantes de subjetividade, que não só ignoram os
processos de singularização, como os rechaça, e isto em qualquer momento da história.
17
Pelbart (2004, p. 19) investiga uma outra dinâmica do tempo, o tempo como massa modulável, onde “uma
perpétua mistura vai tornar próximo o que estava afastado e longínquo o que era próximo, num tempo não-
cronológico”.
132
Como Pelbart (2004) afirma, os remanejamentos são feitos, e o que parece
longínquo se torna próximo e vice-versa. E é sempre de um certo lugar que se reporta ao
passado. Nem Deleuze nem Guattari negligenciaram estas “críticas temporais”,
inclusive, distinguiram o momento do “O Anti-Édipo” do trabalho realizado em “Mil
Platôs”.
Do mesmo modo, pode-se pensar a questão do tempo na clínica que, de acordo
com as idéias esquizoanalíticas, não se prende ao princípio cronológico de passado,
presente e futuro. Tal como a arte, na visão deleuziana, a clínica não obedece ao tempo
organizado, estratificado, pois não haveria “um passado a descobrir, mas a inventar
segundo o dobramento a que estará submetido e que o irá situar num feixe de relações
insuspeitado” (PELBART, 2004, p.19).
Se está diante de novos tempos, como se fazer uso das idéias de Deleuze e
Guattari no plano clínico? É evidente que os aspectos históricos e os agenciamentos são
diferentes, mas só o fato de se ter esta compreensão já justifica as contribuições desses
dois pensadores. É sempre de uma lógica dos fluxos que um acontecimento é produzido.
E quando se trata de máquina e de devir, também a questão temporal linear é colocada de
lado.
Trata-se então de propor uma escuta apoiada no pensamento da diferença, no
qual a noção de subjetividade é pensada desde o início deste trabalho. Está-se diante de
um novo olhar sobre a subjetividade que produz novos desafios e possibilidades na
clínica. O trabalho analítico, então, consistiria, em linhas gerais, em escapar dos
reducionismos psicanalíticos, criar linhas de fuga capazes de produzirem novas
cartografias, resistir aos confinamentos teóricos que cegam os olhos de quem procura
133
compreender as construções dos universais e suas conseqüências no comportamento
humano. Barros (1994, p. 379) esclarece:
Aí estaria o trabalho que chamamos de analítico, aquele que não nega a molaridade
dos modos de funcionamento, mas põe a funcionar outros modos, inventa fugas,
penetra no plano molecular de constituição de outras formas. O singular emergiria,
assim, do coletivo-multiplicidade, as identidades seriam convidadas ao mergulho na
agitação das diferenças.
A clínica esquizoanalítica visa favorecer a vida (subjetividade), que não cabe
nos estratos (organismo, significância, subjetivação), sem que se perca um plano que, ao
mesmo tempo em que existe, também precisa ser construído. Esta é a própria noção de
plano de imanência do corpo sem órgãos, já analisada anteriormente. Isto não significa
que o processo analítico na esquizoanálise não tenha nenhuma direção e, por isso, seja
classificado como um trabalho inconsistente e ilógico, como é caracterizado ainda por
algumas pessoas. Trata-se de uma outra perspectiva uma outra lógica uma lógica
máxima, mas que não reconduz à razão, ou ao exercício de uma pura recognição.
O pensador é antes de tudo clínico, decifrador sensível e paciente dos regimes de
signos produzidos pela existência, e segundo os quais ela se produz. Seu ofício é
construir os objetos lógicos capazes de dar conta dessa produção e levar assim a
questão crítica a seu mais alto ponto de paradoxo [...] (ZOURABICHVILI, 2004, p.
107)
A máquina analítica é louca sim, mas por refutar qualquer fundamento
transcendente, por buscar o inesperado de um encontro e por afirmar a lógica das
contradições e dos paradoxos. Está-se diante de um outro domínio que comporta as
sínteses disjuntivas, ou seja, a positividade da coexistência de elementos que,
aparentemente (na ordem molar das identidades), seriam classificados como
excludentes. Aqui se afirma a diferença e não a negação.
Consideremos os pares vida-morte, pai-filho, homem-mulher: os termos aí só têm
relação diferencial, a relação é primordial, é ela que distribui os termos entre os quais
134
se estabelece. Por conseguinte, a experiência do sentido está no duplo percurso da
distância que os liga: não se é homem sem devir-mulher etc.; e ali onde a psicanálise
vê uma doença, trata-se, ao contrário, da aventura viva do sentido ou do desejo sobre
o ‘corpo sem órgãos’, da saúde superior da criança, da histérica, do esquizofrênico.
(ZOURABICHVILI, 2004, p. 104)
A noção de multiplicidade acompanha todo o raciocínio desta nova lógica,
onde as dualidades não são negadas, mas recolocadas em uma outra ordem ordem
molar. O processo analítico, então, é produzido no plano molecular, no qual as linhas de
fuga são inventadas e novas cartografias percorridas. Assim, não se buscam curas nem
recuperação de algum estado por não se considerarem estruturas preestabelecidas. É por
esta razão que não se podem definir neuroses, perversões e esquizofrenias pelo destino
das pulsões, mas pelo modo e espaço que elas ocupam num determinado campo social.
Seria inexato guardar para as neuroses uma interpretação edipiana, e reservar às
psicoses uma explicação extra-edipiana. Não há dois grupos, não há diferença de
natureza entre neuroses e psicoses. Porque de qualquer maneira é a produção
desejante que é causa, causa última, seja das subversões psicóticas que quebram
Édipo ou o submergem, seja das ressonâncias neuróticas que o constituem.
(DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 164)
Tudo depende do modo pelo qual cada um se posiciona diante dos códigos.
Especificamente, quanto à esquizofrenia e à neurose, parece que o esquizofrênico não
suporta a edipianização enquanto o neurótico se deixa edipianizar.
A esquizoanálise é ao mesmo tempo uma análise transcendental e materialista. Ela é
crítica, no sentido em que efetua a crítica de Édipo, ou leva Édipo até o ponto de sua
própria autocrítica. Ela se propõe a explorar um inconsciente transcendental, em vez
de metafísico; material, em vez de ideológico; esquizofrênico, em vez de edipiano;
não figurativo, em vez de imaginário; real, em vez de simbólico; maquinístico, em
vez de estrutural; molecular, microfísico e micrológico, em vez de molar ou gregário;
produtivo, em vez de expressivo. Trata-se aqui de princípios práticos como direções
da ‘cura’. (DELEUZE e GUATTARI, 1976, p. 143)
Há, pois, uma esquizofrenia que diz respeito ao fracasso da construção de um
CsO, isto é, alguém que não suportou o regime existente, mas não encontrou saída,
malogrou, assim como o drogado pode se precipitar à morte ou a uma repetição
135
improdutiva por querer desfazer os estratos apenas com a droga, por desestratificar muito
rápido. Daí a prudência, a arte de viver, de manter doses de estratificação que permitam
a experiência e a passagem para outros estados ou territórios. Perguntou-se a Guattari,
quando ele esteve no Brasil, sobre a idéia de prudência referida em “Mil Platôs”. Esta
pergunta diz respeito aos riscos do trabalho esquizoanalítico, pois poderia levar a
viagens
18
perigosas que desembocassem em territórios improdutivos ou indiferenciados.
Um trabalho que, mesmo muito criativo, não levaria ninguém a lugar algum. A resposta
dada por Guattari é muita clara e simples:
Então, ao invés de viagem, eu falaria, de um modo mais prosaico, de processo. Não
existe, a meu ver, nível indiferenciado da subjetividade. A subjetividade está sempre
tomada em rizomas, em fluxos, em máquinas, etc.; ela é sempre altamente
diferenciada, sempre processual. Portanto, um empreendimento, digamos,
esquizoanalítico, um agenciamento criador, produtor de sentido, produtor de atos,
produtor de novas realidades, é algo que conjuga, associa, neutraliza, monta outros
processos. Mas os efeitos não são necessariamente cumulativos. Processos podem se
apoiar uns aos outros para chegar em territórios mortos. É infelizmente o que
costuma acontecer muito, o que acontece freqüentemente, na economia conjugal, na
economia doméstica. Duas pessoas estão envolvidas num processo amoroso e esse
processo acaba desembocando num fechamento territorial, que neutraliza toda e
qualquer possibilidade de riqueza (inclusive o desejo sexual), todas as aberturas. O
mesmo pode acontecer com todos os outros modos de processo de expressão.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 332)
É neste sentido que a clínica esquizoanalítica não pode ser pensada como uma
prática espontaneísta, ou o oposto, uma nova abordagem em clínica com
procedimentos metodológicos fechados, uma nova identidade de procedimentos. Trata-
se de um exercício clínico rizomático. Ele é perigoso? Sim, mas não por ser a
improvisação de qualquer coisa, um “libere-se”. Se assim fosse, poder-se-iam temer os
procedimentos estratificados, pois os regimes despóticos também trazem seus perigos
de manipulação, de exploração, de mais-valia. O problema é lidar com as rupturas, e
18
A noção de viagem referida é aquela típica dos movimentos anticulturais trip americana, “com todo o pano
de fundo quase místico que essa noção de viagem tomou, digamos, em toda a Nova cultura” (GUATTARI e
ROLNIK, 2005, p. 332).
136
estas são inevitáveis. Elas são sempre produzidas por processos moleculares,
maleáveis, destituídos de implicações meramente pessoais, psicológicos, mas que
também não ocorrem em um profundo abismo da indiferenciação. Quando um novo
agenciamento é produzido tudo muda, é da natureza dos processos rizomáticos: em
cada rizoma ocorrem agenciamentos de naturezas, ou regimes distintos. As rupturas
são irreversíveis e não estão restritas a cadeias semióticas, ou seja, está-se falando de
planos, de diferentes platôs
19
. O problema é se sempre o que se encontra em cada platô
é o Édipo despótico da psicanálise. Deleuze e Guattari esclarecem em “Mil Platôs”
(1999, p. 72) que não estão falando de cadeias de significantes. Referindo-se à noção
de ruptura para Fitzgerald, afirmam:
Fitzgerald opõe aqui a ruptura aos pseudo-cortes estruturais nas cadeias ditas
significantes. Mas ele igualmente a distingue das ligações ou dos talos mais
maleáveis, mais subterrâneos, do tipo ‘viagem’ ou mesmo transportes moleculares
[...] será possível que as viagens sejam sempre um retorno à segmentaridade dura? É
sempre papai e mamãe que se reencontram na viagem e, como Melville, até mesmo
nos mares do Sul? Músculos endurecidos? Será preciso acreditar que a própria
segmentaridade flexível torna a formar no microscópio, e miniaturizadas, as grandes
figuras das quais pretendiam escapar? Sobre todas as viagens, pesa a frase
inesquecível de Beckett: “Que eu saiba, não viajamos pelo prazer de viajar; somos
idiotas, mas não a esse ponto”.
Trata-se de pensar na capacidade que se tem de produzir novos territórios, não
em qualquer lugar ou com qualquer idéia ou ação, mas agenciamentos maquínicos, que
estão sempre em conexões com novas possibilidades de sentido. Então, a prudência diz
respeito a uma certa distinção entre o que pode ser construtivo e liberador de
cristalizações do que pode neutralizar as potências. O problema maior consiste em
diferenciar os desejos fascistas daqueles que levam aos processos de lutas singulares.
19
“Um platô é um pedaço de imanência. Cada CsO é feito de platôs. Cada CsO é ele mesmo um platô, que
comunica com os outros platôs sobre o plano de consistência. É um componente de passagem” (DELEUZE e
GUATTARI, 1999, p. 20).
137
Quando a esquizoanálise pretende banir as interpretações edipianizantes do
desejo, ela o faz não para desmentir essas produções, mas para recolocá-las num modo
típico de agenciamento (modo de subjetivação capitalístico) e para empreender novos
agenciamentos.
Se há uma interpretação a ser feita a partir de uma análise do inconsciente, ela
consistiria em detectar o que são os esboços, os índices, os cristais de produtividade
molecular. Se há uma micropolítica a ser praticada, ela consistiria em fazer com que
esses níveis moleculares não caíssem sempre em sistemas de recuperação, em
sistemas de neutralização, em processos de implosão ou de autodestruição.
(GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 278)
As idéias dos autores aqui mencionados servem para se pensar o plano clínico
como máquina de operar novas possibilidades. Este é o desafio da esquizoanálise:
[...] desnaturalizar a caminho de novas produções de subjetividade, de
singularizações, de produções de diferença. Caminho em que possamos romper com
o modo hegemônico de pensar a realidade, para que, mergulhando no devir-
acontecimento-clínica, possam ser produzidas diferenças-em-nós.(BRASIL, 1995, p.
27)
Para Deleuze e Guattari, toda vez que se depara com modos endurecidos,
mesmo que divergentes do ideal de normalidade das grandes estruturas determinadas
por um tipo de sociedade, está-se diante de programas (processos de individuação do
desejo). A questão é se este programa traça uma armadilha para o sujeito, da qual não
consegue escapar as linhas ficam presas nesta forma de programa impedindo a
implosão das paixões de morte. Os programas são postos em ação a partir de um corpo
sem órgãos. Poder-se-ia perguntar: o que passa nos corpos esquizos, masoquistas,
drogados, paranóicos etc.? O CsO não seria pleno de alegria ou de êxtase? A princípio,
Deleuze e Guattari (1999, p. 12) fazem a oposição programa-fantasma quanto às
produções desses tipos de corpos.
138
Isto não é um fantasma, é um programa: há diferença essencial entre a interpretação
psicanalítica do fantasma e a experimentação antipsicanalítica do programa; entre o
fantasma, interpretação a ser ela própria interpretada, e o programa, motor de
experimentação. O CsO é o que resta quando tudo foi retirado. E o que se retira é
justamente o fantasma, o conjunto de significâncias e subjetivações. A psicanálise
faz o contrário: ela traduz tudo em fantasmas, comercializa tudo em fantasmas,
preserva o fantasma e perde o real no mais alto grau, porque perde o CsO.
O que passa nos corpos são fluxos de toda ordem que podem resultar em
grandes alegrias, mas também em grandes tristezas, sofrimento, dor... O programa
masoquista, por exemplo, consiste na repetição de um modo intensivo, em que
circulem ondas de dor: “o masoquista fez para si um CsO em tais condições que este,
desde então, só pode ser povoado por intensidades de dor, ondas doloríferas
(DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 12). Existiriam fracassos na produção de um CsO,
mas que, segundo esses autores, não podem ser vistos como referentes a essências, ou
estruturas psíquicas. Tratar-se-ia de modos muito particulares de existência que
requerem, de igual modo, análises específicas e infinitas. A questão é: “o que povoa, o
que passa e o que bloqueia?” (DELEUZE e GUATTARI, 1999, p. 13). Tudo está em
torno da forma como um CsO é produzido.
Outro exemplo que Deleuze e Guattari (2002b, p. 80-81) apresentam é o do
corpo drogado. O que acontece porquanto o que se procura?
Os drogados não param de recair naquilo de que eles queriam fugir: uma
segmentaridade mais dura à força de ser marginal, uma territorialização mais
artificial ainda porque ela se faz sobre substâncias químicas, formas alucinatórias e
subjetivações fantasmáticas. Os drogados podem ser considerados como precursores
ou experimentadores que retraçam incansavelmente um novo caminho de vida; mas
mesmo sua prudência não tem as condições de prudência. Então, ou eles recaem na
coorte de falsos heróis que seguem o caminho conformista de uma pequena morte e
um longo cansaço. Ou então, pior ainda, eles só terão servido para lançar uma
tentativa que só pode ser retomada e aproveitada por aqueles que não se drogam ou
que não se drogam mais, que retificam secundariamente o plano sempre abortado da
droga, e descobrem pela droga o que falta à droga para construir um plano de
consistência [...] Não é a droga que assegura a imanência, é a imanência da droga
que permite ficar sem ela [...] Os drogados não escolheram a boa molécula ou a boa
linha.
139
Como pensar nas formas conhecidas como esquizofrenias, histerias,
masoquismos, drogados, paranóias sem utilizar as interpretações psicanalíticas? Como
pensá-las sem o referencial do EU? O que nelas existem de singularidade e o que pode
ser vivido como destruição e territorializações sem saídas?
Estas investigações necessitariam de uma maior elaboração, o que não foi
possível neste trabalho. Finalizá-lo com a questão da clínica em sua interface com as
idéias deleuzo-guattarianas mostra a necessidade de continuidade desta investigação
específica, com todos os seus contornos e efeitos possíveis, em que noções como as de
programas, transversalidade, transdisciplinaridade são algumas das que, em seus
contrastes com a clínica psicanalítica, merecem espaço distinto.
Por enquanto, o que compete a este trabalho já foi de algum modo traçado,
mesmo que com todas as suas limitações, restando, então, uma breve finalização sobre
os nomadismos e seus efeitos de inovação, provocando, assim, toda uma frescura do
tempo, mas que não ignora suas fortes batalhas.
140
2.4.3 ESQUIZOANÁLISE E UM SUSPIRO
A esquizoanálise não esconde, portanto, que é uma psicanálise política e social, uma
análise militante: não porque generalize Édipo na cultura, sob as condições ridículas
que tiveram curso até agora. Mas, ao contrário, porque se propõe mostrar a existência
de um investimento libidinal inconsciente da produção social histórica, distinto dos
investimentos conscientes que coexistem com ele. (DELEUZE e GUATTARI, 1976,
p. 130)
As idéias propostas até aqui não se resumem a uma questão de modismo
intelectual. É uma questão de “ar do tempo”, que se faz sentir em vários domínios do
conhecimento. Não se trata, tampouco, de afirmação da esquizofrenia como entidade
clínica, mas afirmação da esquizofrenia como desterritorialização de códigos redutores,
afirmação das máquinas revolucionárias do desejo. Procurou-se mostrar a estreita relação
entre psicanálise e capitalismo e suas implicações na teoria edipiana do desejo. Com o
intuito de romper com as prisões provocadas por Édipo é que se pode fazer da
esquizoanálise uma possibilidade de respirar ar novo. Trata-se de uma verdadeira
desintoxicação de Édipo e isso só pode ser feito buscando linhas de fuga que desfaçam
os pressupostos repressivos da psicanálise. Isto não implica renunciar à máquina
analítica, mas voltá-la para os fluxos que escapam à leitura edipiana do desejo, buscando
novas alianças com outras máquinas. Montar uma verdadeira máquina de guerra
20
que
liberte as singularidades, fazendo escorrer os fluxos que não se reduzem às condições de
identidade. Esquizofrenizar ao invés de neurotizar como a psicanálise fez e ainda faz.
Pode-se considerar pelo menos um dos aspectos, dentre os muitos, em torno da
noção de máquina de guerra: sua produção pelos agenciamentos sociais que estão em
20
Este conceito não está relacionado à guerra propriamente dita, nem a uma metáfora, como já foi definido no
conceito de máquina descrito no primeiro capítulo. É do desejo que os autores se referem, em sua constituição
pelas linhas de fuga que levam as desterritorializações ao seu ponto máximo. Por máquina de guerra consultar
Mil Platôs, 2002c (Tratado de nomadologia: a máquina de guerra).
141
total oposição à idéia de conflitos sob a forma de interioridade. Assim, trata-se de uma
característica nômade do desejo, não reduzida à noção de guerra em seu sentido
institucionalizado, nem muito menos ao aparelho de Estado. A máquina de guerra vem
de fora, “seria antes como a multiplicidade pura e sem medida, a malta, irrupção do
efêmero e potência da metamorfose” (DELEUZE e GUATTARI, 2002c, p. 12-13).
Portanto, a máquina de guerra traz um outro plano de batalha muito diferente das
batalhas binárias do plano molar. Aqui, os elementos, como no jogo do go, são
elementos não subjetivados, desprovidos de características intrínsecas, nos quais o que
está em jogo são as posições dos agenciamentos numa determinada situação. Assim,
tudo irá depender da situação e não das propriedades intrínsecas dos elementos. São
novos ares, novos planos para além do campo de guerra viciado e sufocado das
interpretações psicanalíticas dos conflitos (dualismos pulsionais). A máquina de guerra
para Deleuze e Guattari (2002c, p. 13):
Dá provas, sobretudo, de outras relações com as mulheres, com os animais, pois vive
cada coisa em relações de devir, em vez de operar repartições binárias entre
“estados”: todo um devir-animal do guerreiro, todo um devir-mulher, que ultrapassa
tanto as dualidades de termos como as correspondências de relações. Sob todos os
aspectos, a máquina de guerra é de uma outra espécie, de uma outra natureza, de uma
outra origem que o aparelho do Estado.
É com a máquina de guerra que os procedimentos biunivocizantes do desejo
podem ser desafiados e vencidos. Há que se perguntar se não se está vivendo um período
de refinamentos das formas de captura da subjetividade pelas modelizações impostas
pela mídia, pela obrigatoriedade de ser bem sucedido em todos os sentidos da vida, ou
pelos procedimentos de incentivo à liberdade e à diversidade globalizada, que só fazem
disfarçar táticas de dominação.
142
Para que a clínica não respire e inspire esse tipo de ar contaminado da
exploração pela dominação da subjetividade, é necessário que ela, com sua principal
arma o processo analítico, se transforme em máquina de guerra. Para tanto, as idéias
dos autores aqui investigadas servem como ferramentas de forte potência, se propagadas
enquanto tais, antes mesmo de serem capturadas na máquina alienante das estratégias
capitalistas. A esquizoanálise corre esse perigo se for compreendida como um novo
modelo estruturante dos procedimentos clínicos, como um novo idealismo a ser seguido.
Neste sentido, pode-se afirmar que a esquizoanálise não tem um território definido, já
que sua proposta é exatamente levar as linhas para mais longe, pois “somente quando
um fluxo é desterritorializado ele consegue fazer sua conjugação com outros fluxos, que
desterritorializam por sua vez e vice e versa” (DELEUZE e PARNET, 1998, p. 63). Na
esquizoanálise não se representa nada, engendra-se e percorre.
Seria preciso opor dois tipos de ciências, ou de procedimentos científicos: um que
consiste em ‘reproduzir’, o outro que consiste em ‘seguir’. Um seria de reprodução,
de iteração e reiteração; o outro, de itineração, seria o conjunto das ciências
itinerantes, ambulantes. Reduz-se com demasiada facilidade a itineraçao a uma
condição da técnica, ou da aplicação e da verificação da ciência. Mas isto não é
assim: seguir não é o mesmo que reproduzir, e nunca se segue a fim de reproduzir.
(DELEUZE e GUATTARI, 2002c, p. 39)
Nas obras que foram mais investigadas neste trabalho, “O Anti-Édipo” e “Mil
Platôs”, constata-se um dualismo
21
no pensamento deleuzo-guattariano, onde são
dispostos dois modos antagônicos de pensamento. Um comprometido com a tradição
filosófica da representação, transcendente, com características de binarização, sobretudo
entre sujeito/objeto, arborescente, da ordem do Estado, segmentarizado, do nível da
reprodução, regime identitário-causalista. Outro comprometido com a lógica das
21
Sobre o dualismo em Deleuze, consultar Machado (1990, p. 9-10). Ressalta-se que este dualismo não
compromete a crítica deleuziana do pensamento dualista.
143
multiplicidades, dos fluxos, do devir, do nível da produção, constitutivo das máquinas de
guerra. No entanto, tais formas de pensamento estão sempre se entrecruzando, por isso
não se pode afirmar, segundo Guattari (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 284), que haja
total garantia de estabilidade ou permanência de um ou de outro.
Não há receita alguma que garanta o desenvolvimento de um processo autêntico de
autonomia, de desejo, pouco importa como o chamemos. Se é verdade que o desejo
pode se reorientar para a construção de outros territórios, de outras maneiras de sentir
as coisas, é igualmente verdade que ele pode, ao contrário, se orientar em cada um de
nós numa direção microfascista.
A vida se dá nesses entrecruzamentos, não há planos moleculares se não houver
os molares. O que está em jogo, então? Segundo os autores, é procurar sempre traçar
novas linhas, pois, mesmo que a ordem molar queira se eternizar por inúmeros recursos
de dominação, não adianta: o molecular, o que é do devir e das forças das linhas de fuga
explode, intempestivamente, virando toda uma ordem. Este é o movimento contínuo das
desterritorializações e reterritorializações. O ser humano é ser de fuga.
Está-se diante de produção de cartografias que, segundo Deleuze (2004, p. 75),
não está presa às memórias nem muito menos há intenção de buscá-las ou recuperá-las:
Uma concepção cartográfica é muito distinta da concepção arqueológica da
psicanálise. Esta última vincula profundamente o inconsciente à memória; é uma
concepção memorial, comemorativa ou monumental, que incide sobre as pessoas e
objetos, sendo os meios apenas terrenos capazes de conservá-los, identificá-los,
autentificá-los.
Muito diferente é o modo de funcionamento dos mapas que, ao invés de
procurar as origens nas experiências anteriores, ao contrário, busca avaliar os
remanejamentos, deslocamentos que cada mapa produz. Em cada mapa, ou cartografia,
há uma nova redistribuição de vetores e de condições, o que faz com que novas
aberturas apareçam. Neste caso, “o inconsciente já não lida com pessoas e objetos, mas
144
com trajetos e devires; já não é um inconsciente de comemoração, porém de
mobilização, cujos objetos, mais do que permanecerem afundados na terra, levantam
vôo” (DELEUZE, 2004a, p. 75).
O projeto esquizoanalítico não procura interpretar por meio de identificações os
diferentes tipos de comportamento. Para Deleuze, interpretar o cavalo de Hans como
uma identificação com o pai traduz o desconhecimento que Freud tinha do devir-animal
no humano e de suas implicações com o inconsciente. Neste projeto não se pensa em
derivações pulsionais ou extensões que ocorram devido às identificações, ou outro
mecanismo de deslocamento por sublimação. A libido não precisa de intermediários,
pois está investida diretamente na economia social: “A libido não tem metamorfoses,
mas trajetórias histórico-mundiais” (DELEUZE, 2004a, p. 74).
Deleuze e Guattari abolem os artigos definidos em prol dos artigos indefinidos
por serem da ordem do devir e por indicarem trajetos que podem afetar ou ser afetados
na medida de suas experimentações. Pessoas podem facilitar os trajetos como também
bloqueá-los, sem que com isso ocorra uma relação de pessoalidade, são afetações.
As crianças se exprimem assim, um pai, um corpo, um cavalo. Esses indefinidos
freqüentemente parecem resultar de uma falta de determinação devida às defesas da
consciência. Para a psicanálise, trata-se sempre de meu pai, de mim, de meu corpo. É
um furor possessivo e pessoal, e a interpretação consiste em reencontrar pessoas e
posses. “Bate-se numa criança” deve significar “meu pai bate em mim”, mesmo se
essa transformação permanece abstrata; e “um cavalo cai e mexe as patas” significa
que meu pai faz amor com minha mãe. Contudo, o indefinido não carece de nada,
sobretudo de determinação. Ele é a determinação do devir, sua potência própria, a
potência de um impessoal que não é uma generalidade, mas uma singularidade no
mais alto grau: por exemplo, ninguém imita o cavalo, assim como não se imita tal
cavalo, mas tornamo-nos um cavalo, atingindo uma zona de vizinhança em que já
não podemos distinguir-nos daquilo que nos tornamos. (DELEUZE, 2004a, p. 77-78)
A propósito, Deleuze e Guattari fazem do processo analítico o lugar do devir-
minoritário em oposição às figuras estratificadas da ordem molar social, pois se está no
145
terreno das micropolíticas, onde as mudanças só podem ocorrer por meio dos processos
de singularização e estes sempre são minoritários, diferentes dos regimes identitários. É
sempre das multiplicidades que novos agenciamentos são produzidos. A diferença com a
psicanálise consiste no modo pelo qual o devir é tratado ou ignorado no processo
analítico.
[...] ela encontrou freqüentemente, e desde o começo, a questão dos devires-animais
do homem. Na criança, que não pára de atravessar tais devires. No fetichismo e
sobretudo no masoquismo, que não param de enfrentar este problema. O que se pode
dizer, no mínimo, é que os psicanalistas não entenderam, Jung inclusive, ou que
quiseram não compreender. Eles massacraram o devir-animal, no homem e na
criança. Não viram nada. No animal, vêem um representante das pulsões ou uma
representação dos pais. Não vêem a realidade de um devir-animal, como ele é o
afecto em si mesmo, a pulsão em pessoa, e não representa nada. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002b, p. 45)
Tudo depende dos agenciamentos e não das vicissitudes pulsionais. É neste
sentido que o devir-minoritário diz respeito às mulheres, às crianças, aos animais, aos
vegetais, constituídos por relações moleculares em oposição aos padrões de identidades.
O processo analítico, então, não faz interpretações das identidades molares, nem muito
menos compreende os comportamentos numa ordem evolutiva, ou a partir de uma cadeia
de significantes. O devir existe nos blocos de existência, nos agenciamentos, diferente da
idéia de complexos, de fixações, regressões. Ele é o próprio movimento desses blocos.
Não se trata de complexos infantis, mas de cristalizações de sistemas de intensidades
que atravessam as fases psicogenéticas e que são suscetíveis de operar através dos mais
variados sistemas perceptivos, cognitivos, afetivos (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p.
381).
Mas, ao buscar novas possibilidades no plano clínico, correm-se alguns riscos
em decorrência dos deslocamentos de sentidos provocados pelos rizomas e suas linhas
146
de fuga. Seria como um “ato-perigoso”, tal qual alertou Foucault em “As palavras e as
coisas” (1999, p. 453):
Antes mesmo de prescrever, de esforçar um futuro, de dizer o que é preciso fazer,
antes mesmo de exortar ou somente alertar, o pensamento, ao nível de sua existência,
desde sua forma mais matinal, é, em si mesmo, uma ação-um ato perigoso. Sade,
Nietzsche, Artaud e Bataille o souberam, por todos aqueles que o quiseram ignorar;
mas é certo também que Hegel, Marx e Freud o sabiam.
Guattari e Rolnik (2005) afirmaram ter encontrado no pensamento freudiano
momentos surpreendentes, “golfadas de oxigênio”. O problema consiste na
institucionalização de fórmulas redutoras reproduzidas pelos psicanalistas em geral.
Portanto, a esquizoanálise não propõe a destruição dos movimentos analíticos do desejo,
mas propõe a crítica de alguns conceitos, como foi apresentada nesse trabalho, por se
fundamentarem em aspectos universais, por ignorarem as determinações sociais, por
utilizarem sistemas binários de pensamento, por fazerem uso de referenciais a-históricos,
e por limitarem a capacidade criativa dos agenciamentos. Birman (2000, p. 472) cita as
duas distinções que Deleuze faz de clínica:
No que se refere à concepção do sujeito e à realidade da experiência clínica, chega-se
assim a uma distinção forte entre uma clínica centrada na pessoalidade e uma outra
fundada na singularidade [...] Nessa perspectiva, a singularidade implicaria
necessariamente a ruptura dos limites e das fronteiras do Eu, com o rompimento do
território restrito da individualidade e a inserção do sujeito em outras
territorialidades. O sujeito se inscreveria assim enquanto singularidade impessoal
por sua inevitável dispersão nas máquinas desejantes do tecido social.
Emfim, o que se pretende é supor a subjetividade em sua relação com o Fora,
encontrar novos ares na exterioridade, e não na interioridade, onde o ar, por não circular,
está envenenado e condenado, assim, à morte.
A esquizoanálise ou a pragmática não tem outro sentido: faça rizoma, mas você não
sabe com o que você pode fazer rizoma, que haste subterrânea irá fazer efetivamente
rizoma, ou fazer devir, fazer população no teu deserto. Experimente. (DELEUZE e
GUATTARI, 2002b, p. 35)
147
Guattari, quando esteve em visita ao Brasil, falou de uma nova suavidade que
deveria compor o plano analítico. Para ele, o psicanalista não tem que romper com sua
prática, mas com a neutralidade, com os corporativismos, com o distanciamento que faz
entre sua prática e os agenciamentos políticos, históricos e plenamente finitos. Trata-se
de inventar para o plano clínico novas modalidades:
[...] que é o da invenção de uma outra relação com o corpo, por exemplo , relação
esta presente nos devires-animais. Sair de todos esses modos de subjetivação do
corpo nu, do território conjugal, da vontade de poder sobre o corpo do outro, da
posse de uma faixa etária por outra, etc. Portanto, para mim, a nova suavidade é o
fato de que, efetivamente, um devir-mulher, um devir-planta, um devir-animal, um
devir-cosmos podem inserir-se nos rizomas de modos de semiotização, sem por isso
comprometer o desenvolvimento de uma sociedade, o desenvolvimento das forças
produtivas e coisas assim. (GUATTARI e ROLNIK, 2005, p. 341).
Portanto, a clínica, para os autores, pode e deve se constituir em plano de
desterritorialização e produção de novos territórios, onde novas subjetividades podem
emergir longe dos apelos falocráticos, das interpretações redutoras, das semióticas
endurecidas. Isto seria absolutamente possível quando se aumentam os coeficientes de
transversalidade, quando o pensamento é liberado dos grilhões da representação: “É
preciso pensar o pensamento como irregularidade intensiva. Dissolução do eu”
(FOUCAULT, 2005, p. 100). Para tanto, é necessária alta dose de coragem, não para
uma aventura qualquer, mas para romper com as simbioses, com os familialismos, com
a clausura sufocante dos códigos fascistas.
A subjetividade, através de chaves transversais, se instaura ao mesmo tempo no
mundo do meio ambiente, dos grandes Agenciamentos sociais e institucionais e,
simetricamente, no seio das paisagens e dos fantasmas que habitam as mais íntimas
esferas do indivíduo. A reconquista de um grau de autonomia criativa num campo
particular invoca outras reconquistas em outros campos. Assim, toda uma catálise da
retomada de confiança da humanidade em si mesma está para ser forjada passo a
passo e, às vezes, a partir dos meios os mais minúsculos. (GUATTARI, 1990, p. 56)
148
3 CONCLUSÃO
[...] e mais imp ortante do que o pensamento é “aquilo que faz pensar”. (DELEUZE,
1987, p. 30)
As idéias de Deleuze e Guattari se transformam em verdadeiras máquinas de
guerra não só no sentido conceitual como prático; na verdade, esta é uma dicotomia com
a qual os autores não trabalham. Todo conceito tem seu sentido prático, ele afeta, ele é
capaz de traçar novos rumos. Portanto este trabalho não se ocupou de apresentar tão
somente os conceitos deleuzo-guattarianos, mas pensá-los em seus aspectos práticos.
Desde o início, quando se afirmou a característica maquínica da libido e sua total
conexão com o social, até o repúdio das interpretações psicanalíticas, sobretudo as
edipianas, em total oposição à lógica das multiplicidades, dos rizomas, como também a
afirmação de um corpo sem órgãos como o plano das intensidades puras, é de vida que
os autores falam. Da vida que explode em múltiplas direções: biológica, material, social
[...] cósmica [...]. Não se trata de ideologias, ou idéias puras, mas de problemas que a
vida coloca em seus diferentes planos. Assim, pensar com Deleuze e Guattari é procurar
compreender a força do pensamento naquilo que ele pode diferir, como também naquilo
que o faz repetir. Todo pensamento está agenciado a um certo plano histórico, filosófico,
político etc. A relevância desse trabalho de análise da crítica de Deleuze e Guattari à
noção edipiana é que, com ele, se abrem infinitas linhas de pensamento; percebem-se
planos de consistência de diferentes tipos, suas transformações quando passam de um a
outro. Criticar as interpretações psicanalíticas de sexualidade é mostrar como estas se
baseiam em uma determinada concepção de subjetividade, construída em um dado
momento histórico com todos os seus elementos correspondentes. Ao distinguir o porvir
da psicanálise do devir da esquizoanálise, está-se afirmando a diferença entre dois modos
149
de concepção da subjetividade. A primeira, da ordem da representação, centrada no
indivíduo, e a outra da ordem do devir, sem nenhum centro de comando rizomática.
Portanto, ao tomar contato com as idéias esquizoanalíticas, inevitavelmente
surge a seguinte questão: quer-se manter a ordem molar nos procedimentos clínicos
quando se permanece nos estratos organizados pelas imposições sociais, ou queremos
experimentar, inventar linhas de fuga, fazer circular os fluxos que compõem os
processos de singularização? Dessa decisão não se pode escapar.
Assim, o que se tentou mostrar nessa dissertação foi a possibilidade de abertura
que um movimento do pensamento pode produzir na vida prática, sobretudo na prática
clínica. Sobre o binômio teoria e prática, é importante evidenciar que tanto uma quanto a
outra se produzem em suas interfaces. Pensar a clínica, forçar passagens pelo processo
analítico são forças que coexistem o tempo todo. Este é o desafio da esquizoanálise:
manter a prudência e a suavidade mesmo que enfrentando as batalhas e as resistências
dos modos cristalizados de subjetivação.
Parece que Deleuze e Guattari concordam plenamente com Fernando Pessoa
quando afirma: “navegar é preciso, viver não é preciso!”
150
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