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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
Táscia Oliveira Souza
RELÓGIOS PARADOS, ÁRVORES PARTIDAS
Jorge Andrade em rastos de identidade e memória
Juiz de Fora
2008
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RELÓGIOS PARADOS, ÁRVORES PARTIDAS
Jorge Andrade em rastos de identidade e memória
por
Táscia Oliveira Souza
(aluna do Programa de Pós-graduação em Letras – PPG-Letras)
Dissertação apresentada à banca
examinadora para obtenção do título de
Mestre em Letras pela Universidade
Federal de Juiz de Fora.
Área de concentração: Estudos Literários.
Orientadora acadêmica: Prof. Dra. Maria
Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro.
UFJF FALE 1.sem.2008
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FOLHA DE APROVAÇÃO
SOUZA, Táscia Oliveira. Relógios
parados, árvores partidas: Jorge
Andrade em rastos de identidade e
memória. (Dissertação apresentada ao
Programa de Pós-graduação em Letras,
Estudos Literários, da Universidade
Federal de Juiz de Fora): Juiz de Fora:
FALE/UFJF, mar.2008. 100 fls. (digit.)
BANCA EXAMINADORA:
____________________________________________________________________
Prof. Dra. Maria Lúcia Campanha da Rocha Ribeiro – UFJF – Orientadora
CPF:
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Antonio Mencarelli – UFMG Convidado externo
CPF:
____________________________________________________________________
Prof. Dr. Fernando Fábio Fiorese Furtado – UFJF – Convidado interno
CPF:
____________________________________________________________________
Prof. Dra. Geysa Silva – UninCor – Suplente externo
CPF:
____________________________________________________________________
Prof. Dr. José Luiz Ribeiro – UFJF – Suplente interno
CPF:
Examinado em: 07-04-2008
Conceito:
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RESUMO
Este trabalho busca analisar, a partir das dez peças de Jorge Andrade
que compõem a coletânea Marta, a árvore e o relógio, como o drama é capaz de
sustentar o diálogo entre identidade autoral e identidade cultural como pólos de um
mesmo processo de construção da representação cultural brasileira. As
representações da memória, feitas pelo dramaturgo através de recursos textuais e
cênicos como saltos e recuos espaço-temporais –, evidenciam como a presente
marca identitária de uma nação é possível mediante a compreensão de seu
passado histórico. Além disso, pretende-se mostrar de que forma Jorge Andrade,
utilizando-se da metalinguagem, lança luz sobre o papel da dramaturgia e do teatro
na reelaboração da realidade e das memórias individuais e coletivas, bem como
sobre sua função de conscientizar os homens acerca da própria identidade.
Palavras-chave: drama; memória; identidade.
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RÉSUMÉ
Ce travail veut analyser, en partent des dix pièces de Jorge Andrade qui
intégrent l’antologie Marta, a árvore e o relógio, comme le drame peut montrer le
dialogue entre l’identité autorel et l’identité culturel comme deux faces d’un même
procès de construction de la représentation culturel brèsiliene. Les représentations de
la mémoire, faites par le dramaturge en utilisant les ressources textueles et
scéniques comme avances et reculs espace-temporels –, mettent en évidence
comme la présente marque identitaire d’une nation est possible seulement sous une
compréhension de son passé historique. Il veut aussi montrer de quel manière Jorge
Andrade, en utilisant la métalangage, discute la fonction de la dramaturgie et du
théâtre dans la reélaboration de la réalité e des mémoires individuels e colectives, et
aussi sa fonction de conscientiser les hommes sur sa propre identité.
Mots-clé: drame; mémoire; identité
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Ao Grupo Divulgação, que plantou em
mim a memória de Jorge Andrade e
continuou regando até que o tempo
fizesse a árvore ser capaz de florir.
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À GUISA DE AGRADECIMENTO...
A primeira memória de Jorge Andrade que me vem à mente é apenas a
de um nome impresso em um cartaz. Ou melhor, em quatro cartazes diferentes.
Enquanto eu me perdia na tentativa de organizar os arquivos do Divulgação,
pensava no que haveria de especial naquele nome, que se destacava em meio a
outros tantos autores como um dos dramaturgos mais encenados pelo Grupo ao
longo de sua história.
O quinto cartaz veio no semestre seguinte, bem depois de Jorge
Andrade ter enchido minha memória com suas palavras e imagens. Senhora na
Boca do Lixo foi a quinta e últimapeça do dramaturgo levada aos palcos pelo
Divulgação, mas foi, sobretudo, o primeiro e único texto do autor no qual pude
me envolver de corpo e espírito, entre pregos, madeiras e grampos; entre paredes,
escada e lustre; entre palavras e sonhos. Entre amigos e paixão.
o me importa que digam o contrário; sei, por experiência ppria,
que Jorge Andrade tem o poder de juntar as pessoas. E é atras dele que
quero, aqui, assumindo todos os riscos de essas palavras parecerem demasiado
sentimentais e piegas, unir-me a todos aqueles que, de alguma forma,
semearam com suas pprias mãos aquilo que sou hoje. À minha mãe Sandra,
árvore generosa, agradeço pelas rzes e pela sabedoria silenciosa de quem
sabe que, mais do que leme guiando pelos caminhos do mundo, a falia deve
ser nosso lastro afetivo, aquele que nos dá equilíbrio e não nos deixa afundar.
Com ela, e também com (o outro) Jorge e com meus irmãos, Gabriel (na minha
família também tem um, Vicente!) e Matheus, cujos nomes blicos representam o
elo sagrado do sangue e do amor, aprendi que nenhuma árvore cresce se não
tiver sua semente plantada em terra boa. Obrigada por serem meu chão.
Aos meus grandes amigos Carol, La, Ju, Ina e Rafa agradeço
pela companhia, pelo afeto e pela torcida, mesmo invivel. Todos nós sabemos
que, independentemente da distância ou dos ponteiros do relógio que seguem
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em seu ciclo, inexoravelmente, estaremos sempre com o abraço pronto, porque
os rastos que deixamos uns nos outros o inapagáveis.
O poder andradiano de unir os outros é tão intenso que a ele
tamm devo a honra de ter podido pisar, pela primeira vez, no mesmo palco
com o Zeluiz, mestre tão querido, e ter encontrado a Malu, guia e amiga, sem a
qual eu não teria conseguido caminhar a aqui. Essa força ainda é capaz de
reunir, na mesma grata lembrança, cada um dos companheiros que cruzou as
trilhas do Divulgação. A todos, em especial ao Tiago e ao Zedu, que
acompanharam todo esse solitário processo tão de perto, todo o meu carinho.
E, acima de tudo, obrigada ao Gustavo, pelos rastos que continuam
levando aos (re)encontros...
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S U M Á R I O
INTRODUÇÃO............................................................................................................12
1 O RELÓGIO PARADO............................................................................................20
1.1 A fratura do real..................................................................................................23
1.2 Tempos e memórias...........................................................................................32
1.3 Histórias (re)construídas....................................................................................41
2 A ÁRVORE PARTIDA.............................................................................................50
2.1 Os dramas da identidade...................................................................................53
2.2 As vozes do texto................................................................................................67
2.3 Memórias e identidades da cena.......................................................................79
CONCLUSÃO.............................................................................................................93
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.........................................................................98
10
Árvore (ver arquivo em anexo)
11
Quando nos perdemos em nossa procura,
não enxergamos mais nada, nem os erros
que começamos a cometer em nome dela.
Vicente, em O sumidouro
12
INTRODUÇÃO
Marta, a árvore e o relógio. O nome dado por Jorge Andrade à
publicação que reúne a maior parte de suas peças traz consigo mais do que mera
referência aos três elementos que se repetem juntos ou não ao longo do ciclo
histórico-ficcional traçado desde As confrarias até O sumidouro. Na verdade, ainda
que não apareçam, concretamente, em todos os textos, os três estão presentes em
todas as histórias, sem exceção: a árvore como símbolo das raízes familiares e
culturais, da tradição e do templo; o relógio como o tempo, às vezes remetendo ao
progresso, ou outras, quando parado ou atrasado, evidenciando a dificuldade de se
avançar em direção ao futuro e deixar o peso do passado para trás; e Marta, a
guardiã do lar da memória, aquela que recebe o sagrado e se dispõe ao trabalho de
tecer os trapos deixados pelos caminhos textuais.
Marta é, sobretudo, a personagem que, mesmo com outro nome
qualquer (nem todas as Martas do livro chamavam-se assim antes da revisão
das peças para a publicação na colenea), representa o olho estranho, ao
mesmo tempo enigtico e transformador, lançado sobre a realidade. Esse
estranhamento diante das circunsncias presentes, responsável pelo fato de os
personagens andradianos terem quase sempre o olhar voltado para o passado,
é o que faz com que a obra do dramaturgo paulista se aproxime,
paulatinamente, da concepção estética de Bertolt Brecht. A interseão entre os
dois permite que, aos poucos, a dramaturgia andradiana passe do realismo
expresso em suas mais variadas formas até a absorção de recursos simbólicos
ou a mesmo expressionistas , num processo de abertura do texto cênico ao
teatro épico e anti-ilusionista.
Na medida em que se percorre o ciclo, pode-se perceber como a
estética naturalista vai sendo substituída por uma outra estrutura teatral, na qual
palavras e artefatos cênicos, mais do que a representação do e então do passado
dramático, adquirem, brechtianamente, a significação do aqui e agora dos homens
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do presente. É através do jogo dialético proposto pelo teatrólogo alemão que o
ontem representado no texto e na cena se insere, pleno de significados, no hoje da
vida concreta. A obra andradiana se realiza como uma caçada à fera do passado que
devora o ser humano, para transformá-la em seiva que alimenta.
Para Jorge Andrade, todos os conflitos do hoje têm sua origem no
ontem. Construir a identidade de uma nação no presente é possível quando se
compreende o que, no passado, é responsável por aquilo que os homens comuns
foram e aquilo que são agora. A presença de Brecht no teatro escrito por Jorge
Andrade, portanto, vai muito além de estéticas de anti-ilusonismo e distanciamento;
ela está, na verdade, na própria essência discursiva do ciclo andradiano, quando
este se propõe a desnudar episódios da história brasileira sob o ponto de vista
anônimo de quem perdeu a voz, ou mesmo de quem nunca soube que a tinha.
No tempo-espo entre a exploração aufera e a cultura cafeeira,
entre a terra (vida rural) e o asfalto (vida urbana), entre Minas e São Paulo, entre
o sagrado e o profano, os personagens-frutos da imensa árvore desenhada no
livro transitam como ponteiros indecisos e oscilantes entre o que o mundo é e
aquilo que gostariam que o mundo fosse. Personagens pincelados com cores
tão estarrecedoramente humanas que se torna praticamente impossível travar
discuses ou elucubrões acerca da dramaturgia cinzelada por Jorge Andrade
sem atentar para aspectos que tornam seu teatro político; não panflerio ou
programático, como ocorria com boa parte das peças escritas na época, mas
intrinsecamente social.
Do ponto de vista dramargico, o conceito de representação, a
partir de uma reelaboração da mesis platônico-aristolica, é o ponto de
partida para se chegar à estrutura textual e à tradução nica, estabelecendo
suas relões com os jogos engendrados pela memória e com as diferentes
identidades que se sobrepõem e se entrelaçam desde o texto até o espetáculo.
Atras de Jorge Andrade, o teatro brasileiro, muitas vezes desvalorizado pela
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sociedade, firma-se em tentativa de constrão identitária, tanto autoral como
hisrico-cultural, perdida num país que mal conhece sua história.
Não é possível, pois, desvendar a importância da arte dramática e da
representação cênica como contingente de diferentes identidades e memórias sem
mencionar como a mímesis passou, no transcorrer da história da arte, do confronto
exigido por um conceito normativo de imitação do realser diante do mundo até a
liberdade de percepção de um ser que se reconhece em coexistência com o mundo
e, por isso, tem o poder de inventar outras realidades. Através da mímesis, Jorge
Andrade se apropria de memórias reais sem importar, aqui, se foram vividas, ouvidas
ou simplesmente imaginadas, para (re)criá-las sob o signo da arte dramática.
As representações da memória são feitas, algumas vezes, pelo
rompimento da linearidade cronológica e pelo foco simultâneo lançado sobre
diferentes paisagens. Inspirada em Brecht e valendo-se de recursos próprios do
teatro épico, a quebra da regra clássica das unidades de ação, tempo e espaço é
acentuada pela gigantesca árvore genealógica que transforma todos os personagens
do ciclo em narradores de uma única história, que se desenrola desde as bandeiras
que desbravaram o interior do Brasil até a queda da produção de café e a mudança
da economia do país do meio rural para o urbano.
A construção da identidade brasileira pelo dramaturgo se elabora a
partir de rotas de memórias que se cruzam no mesmo instante da escrita. Por
diversas vezes, como foi dito, o tempo cronológico é esfacelado para dar origem a
uma outra temporalidade, onírica, na qual passado e futuro coexistem numa espécie
de presente eterno. O relógio parado, que marca apenas o tempo indecidível, é o
símbolo tanto de um passado que volta repetida e constantemente à tona, pelas
mãos das peças pregadas pela lembrança, quanto da espera interminável pelo
cumprimento da promessa de um país do futuro.
O incômodo provocado por esse passado que insiste em repisar seus
rastos de areia movediça foi a principal razão que levou Jorge Andrade a escrever as
dez peças reunidas em Marta, a árvore e o relógio. Através da escrita, o autor se
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aventura a desbravar episódios longínquos da história brasileira, ao mesmo tempo
em que revive acontecimentos de sua pórpria vida transmutados em ficção. A
memória individual se agrega à memória coletiva, num exercício referenciador de
identidades locais e universais. Na obra do escritor paulista, a memória á a matéria-
prima primordial da qual os sonhos são feitos e, muitas vezes, também desfeitos.
Enquanto o passado é a causa do incômodo que acomete seu
criador, grande parte dos personagens andradianos compartilha, ao contrio, a
sensação de inadaptação e desconforto com relação ao presente. Toda a obra
de Jorge Andrade se consti sobre a experiência da perda: perda da terra,
perda do nome, perda do sangue, perda dos sonhos, perda da identidade. Os
conflitos identitários presentes nas peças eso centrados, justamente, entre a
liberdade e a renúncia. Os personagens andradianos, em sua grande maioria,
aprisionam-se pelo medo de renunciar ao rasto de volta ao passado, a um tempo
e a um espaço nos quais se reconhecem verdadeiramente vivos. Para eles, o
presente simboliza a perda e, por isso mesmo, rejeitam-no, sem perceberem que
o passado, da forma como o cultuam, representa a prisão e a paralisia. O
homem andradiano titubeia o tempo inteiro entre o passado e o presente
simplesmente porque, mesmo quando raras vezes duvida da tradão, não
consegue vislumbrar o que o novo tempo pode trazer. Para evitar que a vida
como a conhecem se perca no presente, o lembrar se transforma, para eles,
numa tábua de salvação.
Para Jorge Andrade, ao contrário, ambos passado e presente
são intimamente ligados e dependentes, uma vez que o teatro, como já foi
mencionado, nada mais é do que o ontem (lá e então) visto pelos olhos do hoje
(aqui e agora). Contrariamente ao que acontece com esses personagens, o
passado dramático não aprisiona, porque atua justamente para evitar,
brechtianamente, que os homens se percam no presente, para garantir que
usem suas emões e reflees como armas no mundo actual/real.
16
Embora enfoque personagens aprisionados no passado, o ciclo,
portanto, não se encarcera no ontem. O monstro da memória que persegue os
homens permite, no drama, o reencontro do indiduo com seu próprio tempo e
espo. Misturando memórias pessoais a ruína do avô com a crise do café
provocada pelo crash da bolsa de valores de Nova Iorque em 1929; a infância vivida
na fazenda da família em Barretos; o contato com os colonos que viviam para o
trabalho naquelas terras às memórias históricas que se prendem ao imaginário
popular, o dramaturgo faz sua própria catarse, cheia de melancolia e autoflagelação,
na tentativa de exorcizar uma elite que perdeu suas raízes e, com elas, as
referências que permitem a vida num triste mundo novo. Mas sobretudo, ao
rememorar os acontecimentos deixados para ts na linha cronogica da vida,
elegendo momentos de vivência individual que tenham sentido para a
coletividade, por se tratarem de sensações e sentimentos compartilhados
universalmente, Jorge Andrade torna-os presentes, atras do teatro, para
qualquer plaia, de qualquer época ou lugar.
Assim, ao se propor a representar, através da dramaturgia, sua própria
memória e a memória de seu tempo, Jorge Andrade, na pele de Vicente o mais
autobiográfico de seus personagens –, posta-se como o senhor de todos os destinos.
Seus fantasmas correspondem às horas que não viveu, mas que mesmo assim
carrega como um fardo sobre os ombros; às que custam a passar e pesam da
mesma forma, porque ainda não cumpriram seu papel de fruto para alimentarem o
porvir; e as que avançam inexoráveis e deixam um rasto inapagável, sem sequer
perguntar se já estão todos prontos para seguir em frente.
Como o drama jamais é escrito para se fixar apenas através das
palavras, sendo imprescindível a completude oferecida pela cena, cabe ainda ressaltar
que outras memórias e identidades se somam para a concretização da obra. Essa
concretização, porém, nunca é final, uma vez que o teatro é uma arte efêmera. A cada
ator que represente um determinado papel, a cada espetáculo encenado, a cada
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público que partilha, ao menos por alguns instantes, daquela realidade mágica, novas
identidades e memórias alimentam as raízes da árvore dramática.
Embora o se pretenda, aqui, aprofundar comparações entre Jorge
Andrade e os dramaturgos que o influenciaram ao longo da trajetória de sua
escrita, não é possível estabelecer uma discuso acerca da obra concebida
pelo escritor brasileiro deixando de mencionar, mesmo rapidamente, que, além
de Brecht, outros passos se uniram a ele nessa viagem atrás dos rastos da
memória e da história. Apesar de o aparecerem em nenhum texto, a o ser
para terem suas fotografias como parte do cenário proposto para O sumidouro,
Anton Tchekhov, Eugene ONeill e Arthur Miller revelam mais sobre a obra de
Jorge Andrade do que talvez se possa imaginar.
Do russo, o brasileiro herdou os personagens que vivem sob o signo
da renúncia ao presente, cuja exisncia se faz apenas no silêncio das
lembraas e no desconforto diante da utopia desejada do progresso; dos
americanos, por sua vez, vêm a tendência a dlogos que, por vezes, mais
parecem reflees interiores, as reminisncias em forma de flashback e, em
muitos aspectos, a ppria tetica de sua obra.
Tchekhov o conhecedor da gaivota, o homem entregue plenamente
ao ofício dramático, o dramaturgo do silêncio deu a Jorge Andrade a sabedoria de
enxergar o futuro, ter consciência de seus perigos, mas não se deixar, como seus
personagens, ser arrastado pelo passado. Como Tchekhov, o escritor paulista tenta
jogar com a ridícula humanidade de suas criaturas, apontando para o contraste
entre a altivez e a utopia dos seus ideais e a mesquinhez e tolice de seus atos.
Com O’Neill, por sua vez, Jorge Andrade compartilha a mistura
entre os planos da fião e da realidade e o mergulho no universo psicogico de
seus personagens. Além disso, traz do americano, vencedor do Prêmio Nobel de
Literatura, a necessidade de traduzir sua ppria exisncia em palavras e
aprisioná-la no papel. Assim como Longa jornada noite adentro é um drama
autobiográfico, a obra andradiana é toda ela uma longa jornada adentro da noite
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do passado como derradeiro passo ao encontro de si mesmo. De heraa fica a
certeza de que não há perdão possível, porque a vida segue seus próprios
rastos, independentemente de quem a aceite ou o.
Sobre Arthur Miller, por fim, pode-se dizer que seu conselho sobre qual
deve ser a função primordial da arte mostrar por que os homens são o que são e
não o que gostariam de ser é a epígrafe de todas as palavras escritas por Jorge
Andrade. Ao ser a voz que manda pôr os pés no chão quando se quer voar, Miller
traça, sutilmente, a linha da diferença sobre a qual Andrade percorrerá, com seus
próprios passos, todo o espectro político-social arraigado à história cultural brasileira.
É a partir de Arthur Miller que a dramaturgia andradiana se
transforma na própria figueira que, com sue leite de genitora, une os
personagens pela seiva que restou do que ficou para trás, mostrando que tanto
o estar no presente quanto o laar-se ao futuro carregam consigo todo o
passado. É essa comunhão que permite que, a cada floração, novos frutos
surjam para continuar a alimentar o sonho humano.
19
Quando os homens se desesperam,
só as recordações não bastam...
Padre Gonçalo, em Pedreira das Almas
20
1 O RELÓGIO PARADO
De certa forma, representar implica numa ausência. A despeito das
significações que se costuma dar a esse termo, seja apresentar novamente, seja
tornar mais uma vez presente, uma representação é um rasto de algo que não está
mais ali. Como a caça que volta atrás sobre as próprias pegadas para confundir o
caçador, a representação confunde-se entre realidade e imaginação. Nas insondáveis
brechas da representação, uma parte é sombra, mas outra é, sem dúvida, criação. E,
mesmo assim, trata-se de uma sombra mágica, como a da história de Peter Pan, que,
descosturada do que lhe deu origem, deixa de ser a marca pessoal e intransferível de
um corpo presente. Ou então, como num reflexo difuso, a imagem é destorcida
dependendo dos olhos de quem a vê. Representar a vida é, simultaneamente, refleti-la
e criá-la, escancarar o que é e sonhar o que poderia ser.
Numa obra como a de Jorge Andrade não se pode nunca perder de
vista que se está diante de um relógio parado, nos qual os ponteiros oscilam entre o
tempo do que foi e o tempo do que, para o artista em confronto com o mundo,
deveria ter sido. Trata-se justamente de acatar o conselho dado ao dramaturgo
brasileiro por Arthur Miller, quando Andrade foi aos Estados Unidos estudar
dramaturgia com o mestre que o inspiraria pela vida afora. Intencionalmente ou não,
Miller acabou estabelecendo o sentido que a representação andradiana teria: “Volte
para o seu país e procure descobrir por que os homens são o que são e não o que
gostariam de ser, e escreva sobre a diferença” (ANDRADE, 1986, p.11).
O conceito de representação está, a priori, ligado à idéia da mímesis
platônico-aristotélica. Ora traduzido por “imitação”, o que confere um cater mais
normativo e realista, ora por representação”, o que acaba permitindo uma maior liberdade
criadora, o termo mímesis é, de certa maneira, um dos assuntos mais pomicos da
história da arte e da filosofia. Independentemente de sua interpretão, porém, é inevel
sua imporncia na concepção arstica, uma vez que, segundo Aristeles (s/d, p.244), “a
tenncia para a imitão é instintiva no homem, desde a infância”.
21
Segundo Antoine Compagnon (2003, p.97), mesis é o nome mais
comum sob o qual se alicerçaram as relações entre a literatura e a realidade. No entanto,
ao longo da hisria, esse alicerce foi diversas vezes questionado por aqueles que
proclamavam a independência do discurso em relão ao mundo, defendendo a primazia
da forma sobre o fundo, da expressão sobre o conteúdo, do significante sobre o
significado, da significão sobre a representão, ou ainda da miosis sobre a mìmesis
(Ibidem, p.97).
Barthes (1997, p.17-8) considera que há três forças de liberdade agindo
sobre a literatura. A primeira seria a mathesis, o saber, o conhecimento. Para o
semiólogo francês, “todas as ciências estão presentes no monumento literário”
(Ibidem, p.18). Em Jorge Andrade, por exemplo, encontram-se história, antropologia,
sociologia... além, é claro, da própria reflexão sobre o fazer literário e o teatral, num
recorrente processo de metalinguagem.
A ciência é grosseira, a vida é sutil, e é para corrigir essa distância
que a literatura nos importa. Por outro lado, o saber que ela mobiliza
nunca é inteiro nem derradeiro; a literatura não diz que sabe alguma
coisa, mas que sabe de alguma coisa; ou melhor: que ela sabe algo
das coisas – que sabe muito sobre os homens (Ibid., p.19).
Os textos de Jorge Andrade, nesse sentido, não são história, nem
antropologia ou sociologia. Contudo, eles abarcam todos esses saberes e conjugam-
nos com a memória subjetiva e com o imaginário por trás do real para se
construírem. Há neles, além da mathesis, a segunda força descrita por Barthes, que
nada mais é que a tão rechaçada e recorrente mímesis. Se a primeira se refere ao
conhecimento, a próxima poderia significar o reconhecimento. “A segunda força
da literatura é sua força de representação” (Ibid., p.22).
Para Barthes (Ibid., p.23), no entanto, se a mathesis torna a escrita
realista, na medida em que, como detentora de saberes, sempre tem o real por
objeto de desejo, a mímesis ao contrário do que poderiam sugerir as interpretações
normativas do termo caracteriza-se pela irrealidade, que acredita ter o poder de
representar o que não é representável, ou seja, o real.
22
O real não é representável, e é porque os homens querem
constantemente representá-lo por palavras que uma história da
literatura. (...) não se pode fazer coincidir uma ordem pluridimensional
(o real) e uma ordem unidimensional (a linguagem). Ora, é
justamente a essa impossibilidade topológica que a literatura não
quer render-se. Que não haja paralelismo entre o real e a linguagem,
com isso os homens não se conformam, e é essa recusa, talvez tão
velha quanto a própria linguagem, que produz, numa faina
incessante, a literatura (BARTHES, 1997, p 22).
Barthes acaba por admitir, ainda que sob outro ângulo, algo que Aristóteles
já havia dito centenas de anos antes: que a tendência à criação ptica é uma
manifestão natural ao homem, um instinto fundamental cuja esncia reside na
representão e no prazer que dela deriva, no escoamento de emões que proporciona.
Se a representão é possível ou meramente ilusória,o vem tanto ao caso agora. O
que importa é que vida e arte estão sempre intimamente entreladas, dependentes,
alimentando-se de forma mútua, numa simbiose impossível de ser desfeita. Muito mais do
que a mathesis, à qual o próprio Aristóteles tanto se dedicou em outras obras além da
Ptica, é a mímesis a força que propulsiona o ser humano à crião.
A terceira força da literatura, de acordo com a concepção barthesiana, é
justamente o método de jogo que permite o deslocamento da linguagem e a
suspensão, ainda que ilusória, do interdito à representação. Se a mímesis é a
satisfação do instinto, a semiósis é o que abre aos olhos o universo inesgotável de
significações. Para Barthes (1992, p.12), tudo pode significar objetos, imagens,
comportamentos –, desde que repassado de linguagem.
(...) nós somos, muito mais do que outrora e a despeito das invasões
das imagens, uma civilização da escrita. Enfim, de um modo muito
mais geral, parece cada vez mais difícil conceber um sistema de
imagens ou objetos cujos significados possam existir fora da
linguagem: (...) sentido só existe quando denominado, e o mundo dos
significados não é outro senão o da linguagem (Idem).
Da mesma forma, foi nas palavras que Jorge Andrade buscou o esteio
e o significado de sua representação. É em Rasto atrás, pela voz do alterego
Vicente, que ele conta como percebeu “como devia ser maravilhoso compreender,
interpretar e transmitir. Partir da minha casa, minha gente, de mim mesmo... e
23
chegar ao significado de tudo, tendo como instrumentos de trabalho apenas as
palavras e a vontade” (ANDRADE, 1986, p.486).
24
1.1 A fratura do real
A fratura da realidade, expressa por Jorge Andrade no momento em
que declara que, para existir, sua verdade precisa ser nomeada, representada, foi,
desde sempre, tema de opiniões conflitantes. A Arte poética aristotélica destinou-se
a categorizar os tipos de imitação do real oriundos da palavra, que recontavam,
através de tragédias e epopéias, os mitos que constituíram o cerne da civilização
grega. Contudo, se o logos/palavra foi, nesse princípio, um aliado da representação
mimética, o logos/razão, ao contrário, postou-se como um forte inimigo. Enquanto
Aristóteles tornou-se o grande sistematizador da mímesis, seu mestre, Platão,
poderia ser considerado seu maior adversário.
A explicação está na própria Teoria das Idéias, base da metafísica
platônica. Para o filósofo, o mundo como se conhece através dos sentidos não passa
de uma cópia mal feita de uma outra realidade, não-sensível, mas nem por isso
menos real. É ele o criador das tais “verdades absolutas”, de um mundo inteligível
onde habitam as Idéias, os Seres-em-si. Cada ser material participa desse ser
verdadeiro, em essência. Uma coisa é bela porque guarda semelhanças com
aquele belo-em-si-e-por-si originário, o mesmo ocorrendo com o bom, com o justo e
com toda a sorte de virtudes – ética e estética como constitutivas primeiras do real.
A civilização da Grécia Antiga caracterizava-se pela visão, na qual ver-
forma-ser, o que explica a enorme quantidade de esculturas representativas dos
deuses e o grande desenvolvimento do teatro
1
nessa cultura. Mesmo após o advento
do racionalismo, que rechaçava as explicações mítico-religiosas, podem-se notar
vestígios da importância desse sentido para os gregos: o que faz a Alegoria da
Caverna, contada por Platão na República (s/d, p.264-5), senão identificar a visão
como fonte de conhecimento, através da contemplação da luz?
SÓCRATES – (...) O antro subterrâneo é o mundo visível. O fogo que
o ilumina é a luz do sol. O cativo que sobe à região superior e a
1
Espaço de representação da Grécia Antiga, theatron, de tradução complexa, refere-se ao lugar de
onde se vê e se é visto (fontes múltiplas).
25
contempla é a alma que se eleva ao mundo inteligível. Ou, antes,
que o queres saber, é este, pelo menos, meu modo de pensar, que
Deus sabe se é verdadeiro. Quanto a mim, a cousa [sic] é como
passo a dizer-te. Nos extremos limites do mundo inteligível está a
idéia do bem, a qual com muito esforço se pode conhecer, mas
que, conhecida, se nos impõe à razão como a causa universal de
tudo o que é belo e bom, criadora da luz e do sol no mundo visível,
autora da inteligência e da verdade no mundo invisível (...).
Numa civilização que tinha justamente a contemplação como base da
mathesis e o teatro como arte essencial, aceitar que os sentidos eram um engodo
imposto pelo corpo, e que o único conhecimento verdadeiro era aquele que se
adquiria fechando o olhar para a realidade física, de modo a abrir os olhos da mente,
devia ser, no mínimo, um pouco complicado. Entretanto, diferentemente dos gregos,
era justamente essa a opinião de Platão (2004, p.28), que, em Fédon, ao narrar os
últimos momentos da vida de Sócrates, disserta sobre o destino da alma:
Quando é, pois, continuou Sócrates, que a alma atinge a verdade?
Portanto, quando é com o aulio do corpo que ela tenta resolver
uma queso qualquer, a coisa, neste caso, é clara: o corpo a
engana completamente. (...) E, sem vida, ela raciocina melhor
quando, precisamente, livre de qualquer perturbação, parta esta
dos ouvidos, dos olhos, de uma dor ou, pior ainda, de um prazer,
quando es isolada o mais possível em si mesma, afastando o
corpo; e quando, interrompendo, na medida do possível, todo o
contato com ele, aspira ao real.
Assim, o destino da alma, segundo Sócrates/Platão, é o de libertar-se do
corpo para voltar a habitar entre as Idéias, onde pairava no princípio. De acordo com o
platonismo, a união entre corpo e alma é extremamente precária; não substancial, mas
acidental. Antes de entrar no corpo para purgar seu “delito original” pecado que, ao
contrário do que acontece no Gênesis bíblico, não fica claro qual seja a alma
contemplou e conheceu o “mundo das Idéias”. E quando os olhos se vêem diante das
coisas sensíveis, fazem com que ela se lembre do que foi contemplado: é a
anamnésis, a reminiscência, a recordação como base do conhecimento. Trata-se de
uma memória metafísica, adquirida através dessa visão primordial.
Se o mundo sensível é, por si só, uma cópia da realidade suprema
das Idéias eternas, a imitação poética a que se refere Aristóteles está, para Platão,
26
afastada três degraus do real. Toda obra de arte é uma cópia da cópia; toda poesia,
aparência de um mundo de aparências. O trabalho do artista não tem qualquer
utilidade, uma vez que, ao fazer simulacros com simulacros, coloca-se a milhas de
distância da verdade. Suas obras constituem as sombras ilusórias projetadas na
parede na gruta (cf. PLATÃO, s/d, p.261), onde se faz necessário que a luz da
sabedoria intervenha. A alegoria da caverna mostra que a razão está para as
realidades inteligíveis assim como o sol está para as realidades sensíveis.
Se dizemos do simulacro que é uma cópia da cópia, um ícone
infinitamente degradado, uma semelhança infinitamente afrouxada,
passamos à margem do essencial: a diferença de natureza entre o
simulacro e a cópia, o aspecto pelo qual formam as duas metades de
uma mesma divisão. A cópia é a imagem dotada de semelhança, o
simulacro, uma imagem sem semelhança. O catecismo, tão inspirado
no platonismo, familiarizou-nos com esta noção: Deus fez o homem à
sua imagem e semelhança, mas, pelo pecado, o homem perdeu a
semelhança embora conservasse a imagem. Tornamo-nos
simulacros, perdemos a existência moral para entrarmos na
existência estética. (DELEUZE, 2006, p.263)
Ao relembrar os ensinamentos catequéticos, Gilles Deleuze enfatiza o
porquê do caráter demoníaco do simulacro, recorrente desde o platonismo. Ainda
que o simulacro produza um efeito de semelhança, ele o faz externamente, “por
meios completamente diferentes daqueles que se encontram em ação do modelo”
(Idem). Todavia, a constituição do simulacro é, na verdade, a diferença, a
disparidade. Enquanto exteriormente traz consigo aquele efeito de semelhança,
internamente o que há, para a metafísica platônica, é a dissimilitude.
A cópia poderia ser chamada de imitação na medida em que
reproduz o modelo; contudo, como esta imitação é noética, espiritual
e interior, ela é uma verdadeira produção que se regula em função
das relações e proporções constitutivas da essência. Há sempre uma
operação produtiva na boa cópia e, para corresponder a esta
operação, uma opinião justa ou até mesmo um saber. (...) O
simulacro inclui em si o ponto de vista diferencial; o observador faz
parte do próprio simulacro, que se transforma e se deforma com seu
ponto de vista. (Ibidem, p.263-4)
27
É no Livro X da República (s/d, p.400) que Platão, pela boca de
Sócrates, lança seu mais violento ataque à poesia, assegurando ser ela complacente
com toda espécie de insensatez que elimina a capacidade de raciocinar. Para ele,
a poesia imitativa produz em nós também o amor, a ira e todas as
paixões da alma que têm por objeto o prazer e a dor, e influem em
todas as nossas ações. Porque as nutre e orvalha em vez de
dessecá-las; faz-nos mais viciosos e infelizes pelo domínio que a
estas paixões sobre nossa alma, em vez de mantê-las em inteira
dependência, o que nos tornaria melhores e mais felizes
Aristóteles, porém, o compartilha desse ascetismo místico e utópico de
Plao. Ao contrário, põe de lado a concepção metafísica da Academia, considera que,
em vez de transcendentes, as idéias são imanentes às coisas, e rejeita o conceito de
uma arte moralizadora, embora a utilize de forma normativa. Seus escrúpulos na
observação do realo lhe permitiam condenar, em nome da filosofia, as necessidades,
gostos e bitos que, desde os primórdios, são verificados na sociedade humana.
Ironicamente, quem mais condenou a dupla via da mímesis Platão
foi quem melhor soube aplicá-la. Em primeiro lugar porque, embora rejeitasse a
escrita, argumentando ser ela um veneno para a memória e o livro, um mestre que
fala, mas não registra a resposta, ele foi o filósofo da antigüidade que mais deixou
documentado seu pensamento; ou, pelo menos, foi o mais preservado. Em segundo,
pela recorrência freqüente aos mitos e alegorias em suas explicações recurso que
aproxima o pensamento de uma realidade material –, não desmentindo que o
conhecimento possa mesmo advir de lembranças de existência anterior à própria
matéria, mas possibilitando que nelas se inclua o reconhecimento tão visado pela
arte e proveniente da observação do mundo feita ao longo da vida. Por fim, como
mostra Deleuze (2006, p.2), o próprio Platão reconhece, na matéria do condenado
simulacro, o “devir-louco” imprescindível à arte e à linguagem.
Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do
inteligível e a do sensível, da Idéia e da matéria, da Idéia e dos
corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta nos
próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o
que recebe a ação e o que se subtrai a esta ação. Não é a distinção
do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. O puro
devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se
28
furta à ação da Idéia, na medida em que contesta ao mesmo tempo
tanto o modelo como a cópia. As coisas medidas acham-se sob as
Idéias; mas debaixo das próprias coisas não haveria ainda este
elemento louco que subsiste, que “sub-vem”, aquém da ordem
imposta pelas Idéias e pelas coisas? Ocorre até mesmo a Platão
perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito
particular com a linguagem (...). Não seria talvez esta relação
essencial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um discurso
enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete
sem jamais se deter?
que se considerar ainda a própria natureza da obra platônica, os
famosos diálogos,nese do debate, profundamente literários e com um caráter
dramático digno dos poetas que o autor atacava um “puro devir” em relação plena
com a linguagem. Além disso, é preciso destacar a representação de crates dentro
da obra platônica, na qual, mais do que mestre, atua como protagonista. Não se sabe
muito a respeito da filosofia socrática, a não ser através do que foi exposto pelo
próprio Platão, em episódios de cujo testemunho nada se pode comprovar. Contudo, é
pela fala de Sócrates que toda a teoria das Idéias, da imortalidade da alma e da
República ideal vem à tona, tornando praticamente impossível separar o que é
socrático do que é platônico. Pela mímesis, Sócrates, o grande pensador que
inaugurou uma nova fase na história da filosofia, transformou-se num personagem de
Platão.
Sem entrar em historicismo, cabe mencionar que, com o passar dos
séculos e com a alternância entre razão e emoção, tanto as apropriações quanto as
negações da metafísica platônico-aristotélica acabaram culminando em uma
reconsideração da mímesis, que passou a dizer respeito não a representações
fidedignas ao real, mas também a percepções subjetivas da(s) realidade(s). Mais do
que uma tentativa frustrada de cópia feita por alguém que se coloca diante do mundo
o que acabaria, para Platão, desaguando num simulacro a arte torna-se um
alternar de impressões, expressões e devaneios de um sujeito que se inserido no
mundo e cujo olhar subsiste aquém da ordem imposta por ele.
Isso acaba por permitir, na literatura, que em algum instante da criação
a existência do criador transpareça no texto. Quem escreve coloca suas impressões
29
no papel; e ainda que escreva sobre coisas que não conhece, sobre mundos
imaginários, sobre eventos passados muitos anos antes ou depois do momento em
que o texto é concebido, o escritor sempre deixa na história parte de suas próprias
experiências, emoções, enfim, sua marca marca que, platonicamente, é sempre
falha, porque sempre subjetiva. Na busca por aquela mímesis platônica,
representação perfeita de uma natureza ideal, a literatura transforma-se, como
expressa Barthes (1977, p.209), num “compromisso falhado, como um olhar de
Moisés sobre a Terra Prometida do real”. Um lugar que, mesmo depois de séculos e
séculos no deserto da criação, não é possível atingir.
Essa reconsideração da mímesis consiste em mostrar seu ponto de
partida na identidade do sujeito face à realidade que o cerca. Como acredita Georg
Lukács (2000, p.124), a “vida faz-se criação literária, mas com isso o homem torna-
se ao mesmo tempo o escritor de sua própria vida e observador dessa vida como
uma obra de arte criada”. O reconhecimento permanece: reconhece-se a
representação do mundo, mas também a existência de um espírito pulsante de vida
por trás dela. Não um ser-diante-de, como se poderia supor de um leitor solitário,
mas um ser-com, que manipula a realidade representada.
Chega-se, então, a um sentido diverso de representação, que extrapola
ou se aproveita da interdição topológica barthesiana: uma representação
desencadeada menos pela cena referencial em si do que pelos sentimentos e
sensações que provoca em quem a irá representar. Uma transformação conceitual
que pode ser detectada ao longo da obra de Jorge Andrade. No princípio uma
preocupação detalhista com o mimetismo cenográfico, com descrições de cenário
que beiram o naturalismo, como em Pedreira das Almas (ANDRADE, 1986, p.75)
peça que, paradoxalmente, é a releitura de um modelo trágico grego (Antígona, de
Sófocles) aliada à saga de Moisés em busca da Terra Prometida.
(...) A fachada da igreja, com suas torres, ocupa quase todo o fundo
da cena. À esquerda e à direita, pontas de rochedo, voltadas na
direção da igreja e do céu, formam, praticamente, uma muralha em
volta do largo. Tem-se a impressão de que a igreja, o adro que a
cerca, as escadarias, o parapeito de pedras com suas estátuas e
30
anjos estão incrustados na rocha. O adro, o patamar da escadaria
são calçados com lajes grandes, onde se vêem inscrições de
túmulos. (...) À direita, na entrada de uma grutaescondida por uma
das pontas de rochedo –, uma árvore retorcida, enfezada, descreve
uma curva como se procurasse, inutilmente, a direção do céu: é a
única coisa de colorido verde que no cenário. Tudo é branco, cor
de ouro e cinza (...). Pressupõe-se que o largo, em todo o primeiro
plano, termine à beira de um despenhadeiro.
Outro texto em que o dramaturgo propõe uma estética cenográfica naturalista é
Senhora na Boca do Lixo (ANDRADE, 1986, p.301), embora se trate de uma peça
acentuadamente impressionista:
Hall em forma pentagonal de um velho palacete art-nouveau. Ao
fundo, escadaria larga de balaústres, subindo em curva. No primeiro
degrau, estátua de bronze segurando uma lâmpada. À direita da
escada, porta larga de entrada, vendo-se o corredor que leva à rua. À
esquerda, porta aberta para outro corredor onde está escrito
“Carcereiro”. À direita, primeiro plano, sala de Hélio com janela
grande, escrivaninha entulhada de papéis, arquivos e banco
comprido de madeira. À esquerda, primeiro plano, sala-plantão com
mesa sobre um tablado, rodeado por grades de madeira; mesa do
guarda, teletipo e banco comprido. Perto da porta de entrada, mesa
do Guarda 1. Ao centro, banco estofado redondo. Outros bancos
estão encostados nas paredes; um deles foi colocado em frete a uma
das portas. Do forro pentagonal, desce um belíssimo lustre galé.
a cenografia ou ausência de e as projeções de slides propostas
para Rasto atrás e O sumidouro têm caráter fortemente expressionista, refletindo
muito mais o interior perturbado do protagonista Vicente diante do mundo idealizado
por seus antepassados que o mundo externo propriamente.
Um lugar impreciso sugerindo árvores, ruas, palácios, colunas,
rios, como se fossem imagens de uma mente confusa. À esquerda,
em primeiro plano, mesa grande de trabalho atulhada de pais e
livros. Há papéis pelo chão e livros amontoados debaixo da mesa
e pelo assoalho. Na parede, acima da mesa, diversas estampas de
bandeirantes, baseadas em quadros de pintores e em escultores
lebres. Mais acima, duas fotografias grandes: Tchekov e Eugene
O’Neill. Ao lado, fotografias menores de Arthur Miller e Bertolt
Brecht. À direita, em primeiro plano, estante a o teto, cheia de
livros desordenados. Em frente à estante, no chão, pilhas de
pastas, manuscritos e discos. À extrema esquerda, porta que leva
a outras depenncias da casa. (Ibidem, p.531-3)
31
........................................................................................................
.
(...) Ilumina-se o fundo da cena, transformando o palco em imensa
clareira de uma mata. (ANDRADE, 1986, p.33)
Não se trata, em vista disso, apenas de mímesis. Na cenografia
andradiana, as forças da literatura concebidas por Barthes se conjugam e atuam lado-a-
lado, emprestando um sentido ainda mais profundo à representação. Se os rochedos
cenogficos de Pedreira das Almas, por um lado, representam mimeticamente a
cidade de São To das Letras, no sul de Minas Gerais, por outro, significam o
aprisionamento do povo à grande lápide em que se transformou a terra em que vive.
MARIANA: Já estou com as mãos amarradas. Faça cumprir suas leis!
Martiniano também estava, como está o povo da província desde os
dias da Bela Cruz. Desde que nossa montanha passou de sesmaria
de ouro a pedra para os mortos. Onde está Gabriel? Onde os mortos
estão expostos, e os vivos, presos nas rochas, sonham com uma
terra mais justa. Gabriel é a única saída deste túmulo imenso que seu
Governo fez de Pedreira das Almas (Ibid., p.109).
Assim também o regio de Rasto ats, resquício de realidade em
meio às projeções quase expressionistas no palco vazio, pode ser compreendido
o só como representação de uma sala de fazenda antiga, mas como signo da
marginalidade daquelas personagens comuns na obra de Jorge Andrade, sempre
presas ao que passou e inertes ao presente. Englobadas na mefora recorrente
do regio parado ou na do trem, mbolo do progresso no início do século XX,
ultrapassadas pelo tempo e incapazes de se adaptar à realidade, elas sonham
com um passado irrecupevel, como as tchekhovianas tias de Vicente:
JESUÍNA: (Ouvindo o apito do trem) Não está atrasado o trem,
senhor Pacheco?
PACHECO: (Guarda o relógio) Como sempre.
JESUÍNA: Igualzinho ao nosso relógio. tem tamanho. Pensei que
o serviço houvesse melhorado.
PACHECO: O que nasce torto não tem conserto.
JESUÍNA: De primeiro andávamos de trole e havia tempo pr’a tudo.
tanta velocidade perigosa por aí, e ninguém acha tempo nem pra
visitar os outros (Ibid., p.464).
32
Ao contrário desse grupo, o autor e artista tem o papel de ultrapassar o
tempo. Prova disso é a imagem de Vicente, quando ainda menino, refletida no vidro
do velho relógio, a representar o ciclo de vida de uma árvore.
Vicente (5 anos) entra e faz jogo de cena como se estivesse olhando
alguma coisa na parede. Mexe com os braços imitando o crescimento
de uma planta; desloca o corpo seguindo o movimento do pêndulo do
relógio, até ficar parado, observando, perdido (...).
VICENTE: Em nossa casa, na fazenda, havia um relógio em frente à
janela da sala (...). Gostava de ver no vidro dele, refletidos, galhos de
árvores do pomar, cachorros e galinhas que passavam, gente. Era
como se fosse uma bola de cristal onde eu pudesse ver tudo. Um
espelho que era só meu, que refletia o que eu desejasse.
(ANDRADE, 1986, p.508)
O reflexo no espelho turvo formado pelo vidro do relógio evidencia a
necessidade da representação, da existência de um duplo, para tomar consciência
de si. São como as sombras projetadas na parede da caverna, a proclamar a
existência de uma outra realidade do lado de fora. Assim como, no mito platônico,
enxergar as sombras é tomar consciência da própria prisão, da própria ignorância,
Vicente olha o relógio, símbolo do tempo, e num repente se aprisionado nele,
observando o avesso do mundo em que vive. As imagens da bola de cristal e do
espelho mágico que reflete apenas o que se deseja ver são metáforas de uma obra
que busca, incansavelmente, o reflexo do passado de modo a transformar a
realidade presente. Simultaneamente, entretanto, é preciso superar esse passado,
libertar-se de seu domínio, fluir pelo tempo como a imagem que atravessa o vidro.
Ou como a lua que, do céu, consegue fazer-se flutuar nas águas do rio.
MARIANA: (...) Lua é lua, flor é flor, rio é rio. No fundo só tem lodo!
VICENTE: (15 anos. Caminha transfigurado) Não diga isto, vovó! A
lua mora nas nuvens, as flores são lindas!... e os rios estão sempre
caminhando, cobertos de flores e de luas! (Ibidem, p.484-5).
Ao realismo exacerbado da avó, Vicente contrapõe sua tendência à
recriação do universo, tornando fluidas as relações entre espaços e tempos. Jorge
Andrade foi capaz de reconciliar Platão e Aristóteles, representação e significação,
mathesis, mímesis e semiósis, unindo a observação da realidade que o cercou e
33
incomodou – desde a infância com a expressão do “mundo das idéias” que pairavam
sobre esse real e com sua própria maneira de perceber e recriar esse universo.
34
1.2 Tempos e memórias
Assim como a representação, a memória talvez seja um dos temas
mais complexos para a compreensão da vida humana. O passado transforma o
presente ou o presente muda o olhar sobre o passado? Na verdade, trata-se de uma
relação sempre em via dupla: numa direção, tem-se a possibilidade de justificar os
acontecimentos e sentimentos atuais por circunstâncias de outrora; no outro sentido,
constrói-se e modifica-se a própria lembrança a partir da reelaboração do
entendimento de fatos acontecidos anteriormente pela consciência do hoje. Voltar ao
arquivo da memória é também confundi-la, reelaborá-la enquanto ficção capaz de se
ajustar sobre os resíduos deixados no presente. Como explicita Henri Bergson (1990,
p.113), “seria inútil, com efeito, tentarmos caracterizar a lembrança de um estado
passado se não começássemos por definir a marca concreta, aceita pela
consciência, da realidade presente”. Para ele,
o que chamo de meu presente é minha atitude em face do futuro
imediato, é minha ação iminente. Meu presente é portanto
efetivamente sensório-motor. De meu passado, apenas torna-se
imagem, e portanto sensação ao menos nascente, o que é capaz de
colaborar com essa ação, de inserir-se nessa atitude, em uma
palavra, de tornar-se útil; mas, tão logo se transforma em imagem,o
passado deixa o estado de lembrança pura e se confunde com uma
certa parte do meu presente. (Ibidem, p.115)
Da mesma forma com que a mímesis foi considerada, pelo platonismo,
como um engodo dos sentidos, o esquecimento, muitas vezes, também não passa
de uma peça pregada pela lembrança. Superar um acontecimento não é
simplesmente esquecê-lo, mas conviver com ele, pois o inconsciente jamais renuncia
a apropriá-lo, detê-lo, retê-lo, reinterpretá-lo (cf. DERRIDA, 2001, p.7). E se a
representação já é, por si só, um conceito envolto em grande carga de
complexidade, as representações da memória ultrapassam o limite do complexo e
caminham sobre o frágil equilíbrio entre realidade e invenção.
No universo dramático de Jorge Andrade, a memória ocupa, em diversos
momentos, o lugar de protagonista. Todo o ciclo desenhado em Marta, a árvore e o
35
relógio configura-se pelo entrelaçamento de instantes realmente vividos com aqueles
que, mesmo não tendo sido vivenciados, incorporaram-se à memória afetiva do autor
por força de ouvi-los e recontá-los. Como o dramaturgo mesmo diz, pela voz de Marta,
em As confrarias, “há momentos que ficam incrustados na gente, como pedras”
(ANDRADE, 1986, p.33). E é como quem dilapida pedras, como quem dilacera, uma a
uma, as rochas da lembrança em busca do passado escondido no seio da terra, que
Jorge Andrade reconstrói toda sua herança genealógica, ainda que envolta por uma
roupagem de ficção. É fazendo das palavras ferramentas de escavação que ele traça,
ao mesmo tempo, de Fernão Dias a Vicente, parte do espectro memorial brasileiro.
A princípio, a estrutura do ciclo é preenchida por flashes de
acontecimentos, instantes afetivos incorporados à memória do autor e
reinventados por ele na forma de outras hisrias. Esses flashes o encadeados,
na maior parte das vezes, como uma cronologia onírica, como se, em lugar de
uma reunião de dez peças, Marta, a árvore e o relógio fosse um longo drama em
dez atos em que a trama se desenrola nos moldes de conjunções temporais
menipéicas, cuja tensão converge para um tempo unitário, sem passado, presente
ou futuro. Por isso, em alguns momentos desse longo enredo, o tempo
cronológico do drama é quebrado para dar lugar a uma outra espécie de
temporalidade, mais próxima das elaborações da memória.
MARTA: (...) Não nada escondido em nosso passado. É um
emaranhado de trilhos que se perde na memória, mas que todos
podem percorrer. Em um deles, meu filho nasceu, fazendo-me sofrer,
partindo meu corpo em torrões de dor (...). Nesses trilhos ele cresceu,
viveu e morreu... como um homem deve ser.
MINISTRO: (Meio fascinado) Conte-nos.
(...)
MARTA: Meu filho nasceu em vila distante daqui, onde, a princípio,
não havia ouro, mas a terra dourava-se em mantimentos.
(José, entre dezesseis e dezessete anos, vai sendo iluminado,
tentando imitar o crescimento e a morte de uma planta. À medida que
é iluminado, os Irmãos desaparecem.) (Ibidem, p.30)
Rompendo com a regra das três unidades do drama clássico – unidades
de tempo, de espaço e de ação –, As confrarias, bem como outras peças de Jorge
36
Andrade, transportam a memória para a fisicalidade do palco. Além disso, tal qual
Vicente imita o ciclo de vida de uma planta diante do relógio, José também o faz diante
de sua própria sombra, evidenciando a importância da árvore como símbolo do tempo
cíclico tudo nasce, cresce, envelhece e morre, para depois tornar a nascer e do
enraizamento da memória, arraigadamente presente na obra andradiana.
Gilles Deleuze e Félix Guattari (1995, p.25-6) analisam que
a memória curta é do tipo rizoma, diagramada, enquanto que a longa
é arborescente e centralizada (...). A memória curta compreende o
esquecimento como processo; ela não se confunde com o instante,
mas com o rizoma coletivo, temporal e nervoso. A memória longa
(família, raça, sociedade ou civilização) decalca e traduz, mas o que
ele traduz continua a agir nela, à distância, a contratempo,
“intempestivamente”, não instantaneamente.
A árvore cultivada por Jorge Andrade em sua escrita é uma memória de
raiz longa, na qual família, raça, sociedade e civilização ressurgem intempestivamente,
sempre voltando à tona em jorros temporais que quebram a cronologia dos
acontecimentos. A árvore andradiana é, mais do que tudo, um templo, uma vez que
símbolo de um tempo mítico que insiste em atuar sobre o presente do autor.
Deleuze (2006, p.170), ao retomar os conceitos estóicos de tempo,
considera que dois tipos de relação temporal: a primeira é a cronológica, que
pressupõe a existência de um presente concreto incrustado no meio do caminho
entre passado e futuro; a segunda é a simultânea, onde passado e futuro coexistem
na forma do instante. Aquela é, evidentemente, Cronos; esta é chamada de Aion.
(...) Aion é o lugar dos acontecimentos incorporais e dos atributos
distintos das qualidades. Enquanto Cronos é inseparável dos corpos
que o preenchem com causas e matérias, Aion é povoado de efeitos
que o habitam sem nunca preenchê-lo. Enquanto Cronos é limitado e
infinito, Aion é ilimitado como futuro e passado, mas finito como
instante. Enquanto Cronos é inseparável da circularidade e dos
acidentes desta circularidade como bloqueios ou precipitações,
explosões, desencaixes, endurecimentos, Aion se estende em linha
reta ilimitada nos dois sentidos.
Assim, embora o drama andradiano, a princípio, pareça se inserir em
Cronos, pois exprime a ação de diversos personagens que se interligam no decorrer
37
da história, através de uma única árvore genealógica, sua essência, na verdade, está
inscrita em Aion, que nada mais é do que a expressão de acontecimentos que
ficaram cravados na memória do autor como instantes afetivos sem cronologia.
Conforme Deleuze (2006, p.170), ao contrário do tempo cronológico, no
qual o presente existe de fato, Aion é aquele em que presente, passado e futuro
acontecem ao mesmo tempo. Se uma pessoa está amando, ela ama, amou e vai
amar, tudo ao mesmo tempo. Todo acontecimento tem a forma do passado e do
futuro no momento em que acontece, como se ambos passado e futuro se
encontrassem no instante para dar origem a uma espécie de presente eterno. São
como linhas paralelas que parecem se encontrar no infinito.
Da mesma maneira, o ciclo de Marta, a árvore e o relógio não é
apenas a representação ordenada de acontecimentos dispostos cronologicamente.
É, na verdade, a insistência do passado sobre o presente do autor (e de seus
personagens) e, conseqüentemente, também sobre o futuro. É a coexistência de
uma memória individual e uma memória coletiva que se cruzam no instante.
De todas as peças, Rasto atrás talvez seja a que melhor representa,
mimética e semioticamente, essa fusão de instantes. Toda a obra de Jorge Andrade
é marcada pelo trauma do relacionamento mal resolvido entre filhos e pais. E nesse
texto específico, de nuances acentuadamente autobiográficas nos moldes de
Eugene O’Neill , o conflito aparece de maneira ainda mais forte: Vicente, o
protagonista, incompreendido por seu pai, João José, abandona a casa paterna na
juventude para seguir em busca da vocação de escritor. No entanto, embora tente
romper os laços, as lembranças o atormentam de tal modo que se torna
imprescindível voltar – rasto atrás – para compreender o sentido da própria vida.
A confirmação dessa necessidade urgente o se encontra somente em
Rasto atrás. Em outra de suas peças, Pedreira das Almas, o dramaturgo confessa,
na fala da personagem Urbana: “Não se pode cortar o passado, ele nos acompanha
para onde vamos (ANDRADE, 1986, p.86). Por isso, pode-se dizer que o retorno ao
interior, a viagem de São Paulo à casa da família em Jaborandi, empreendida por
38
Vicente, é, de fato, uma viagem ao “interior”, aos recônditos da própria memória. O
personagem segue os próprios passos como à caça de um rasto perdido, de uma
vivência conflituosa na qual espera encontrar respostas para a inquietação presente.
A representação dramática da memória é feita pelo esfacelamento do
tempo, que transforma o palco em espaço interno da mente dos personagens. Rasto
atrás desconstrói para reconstruir. O cruzamento de diferentes tempos que se
alternam traçam o rasto que Vicente precisa percorrer à procura da origem do
conflito. O encontro do protagonista aos 43 anos com seus outros eus aos 5, 15 e
23 remete à idéia do palimpsesto, ou mesmo à do sítio arqueológico em que as
diferentes idades são como camadas que precisam ser escavadas em busca das
ruínas de si mesmo. No entanto, “quanto mais tento recordar uma dor passada, tanto
mais tendo a experimentá-la realmente” (BERGSON, 1990, p.111-12).
A estrutura entrecortada da peça, cheia de digressões e progressões,
ilustra o funcionamento da memória, o-linear por natureza. Segundo Eneida
Maria de Souza (2002, p.22), deve-se acreditar
na força do passado como referência para as transformações do
presente, pelo rastreio não da idéia de origem, mas das “cicatrizes
deixadas pelo passado no presente”. O conceito de memória,
entendido como registro lento e profundo do vivido, contrapõe-se à
estética do zapping, tempo em saltos, pela veloz aparição e
desaparição das imagens.
Essa é justamente a estética utilizada em Rasto atrás, através de uma
complexa estrutura de anulação da seqüencialidade do tempo e de simultaneidade
do espaço, na qual as mudanças de ambiente são determinadas por projeções de
slides e pela sonoplastia:
Ouvem-se, distantes, dezenas de latidos de cães, entrecortados pelo
som de uma buzina. O som da buzina funde-se com o apito do trem.
(...) O apito do trem se transforma, lentamente, em som de buzina de
caça. Voltam os latidos dos cães. Vicente e Lavínia desaparecem. À
medida que aumentam os latidos dos cães e se acentua o som da
buzina, corta-se o filme [da estação]. A projeção de “slides” coloridos
sugerindo uma floresta ambienta abstratamente a cena (...).
(ANDRADE, 1986, p.461)
39
o se trata, em nenhum momento, de uma representação linear e
cronológica. O drama de Vicente insere-se no tempo de Aion, fazendo-o
defrontar-se com instantes de sua vida que permanecem insistindo em afetá-lo no
presente. Paralelamente, o pprio ciclo andradiano é a prova de que, às vezes, é
impossível desvencilhar-se dos jogos engendrados pela meria. Para
representá-la, mais uma vez cabe à mímesis e à semiósis transformar em
fisicalidade e transportar para as palavras e posteriormente para o palco o que
existe nas idéias e nas lembranças.
Com o fracionamento do tempo cronológico, o espaço ganha força na
representação da memória. Gaston Bachelard (1989, p.28) propõe a existência de
uma topoanálise para desvendar os mistérios da recordação. Para ele,
a topoanálise seria então o estudo psicológico dos locais de nossa
vida íntima. Nesse teatro do passado que é a memória, o cenário
mantém os personagens em seu papel dominante. Por vezes
acreditamos conhecer-nos no tempo, ao passo que se conhece
apenas uma série de fixações nos espaços de estabilidade do ser, de
um ser que não quer passar no tempo; que no próprio passado,
quando sai em busca do tempo perdido, quer “suspender” o vôo do
tempo. Em seus mil alvéolos, o espaço retém o tempo comprimido. É
essa a função do espaço.
Em vista disso, assim como em Rasto atrás o retorno não é ao
passado, mas ao espaço onde o passado foi vivido a casa da família no interior –,
em A moratória, o jogo espacial é fundamental para se compreender a persistência
do que ficou para trás no presente:
Dois planos dividem o palco mais ou menos em diagonal. Primeiro
plano ou plano da direita: Sala modestamente mobiliada. (...) À
esquerda, mesa comprida de refeições e de costura; junto a ela, em
primeiro plano, máquina de costura. Encostado à parede lateral
direita, (...) banco comprido, sem pintura. Na mesma parede, bem
em cima do banco, dois quadros: Coração de Jesus e Coração de
Maria. Acima dos quadros, relógio grande de parede. No corte da
parede imaginária que divide os dois planos, preso à parede como
se fosse um enfeite, um galho seco de jabuticabeira.
Segundo plano ou plano da esquerda: (...) Sala espaçosa de uma
antiga fazenda de café. (...) Bem no centro da parede do fundo, o
mesmo relógio do primeiro plano. (...) No segundo plano (...), a
ão se passa em uma fazenda de café em 1929; no primeiro
40
plano (...), mais ou menos uns ts anos depois, numa pequena
cidade nas proximidades da mesma fazenda. [grifo nosso]
(ANDRADE, 1986, p.121-2)
Todo o drama de A moratória também retoma a dificuldade de se
desvencilhar do tempo que passou, representado pela sede da fazenda, pelo relógio
de parede e pelo galho ressecado de jabuticaneira. Durante o enredo, Joaquim
espera recuperar as terras e, conseqüentemente, o status que a família perdeu
com a crise na cafeicultura brasileira, desencadeada pelo crash da bolsa de valores
de Nova Iorque em 1929. Para mostrar a força da insistência do passado imponente
sobre a atual vida modesta da família, a cena se desenvolve alternadamente e por
vezes simultaneamente – nos dois planos. Em meio aos devaneios do pai, Lucília é a
única que parece ter consciência da realidade espaço-temporal presente:
JOAQUIM: (Impaciente) O mal de vocês é não ter esperança. Essa é
que é a verdade.
LUCÍLIA: E o mal do senhor é ter demais.
JOAQUIM: Esperança nunca é demais.
LUCÍLIA: Não gosto de me iludir. E depois, se recuperarmos a
fazenda, vamos ter que trabalhar muito para pagá-la.
JOAQUIM: Pois trabalha-se.
LUCÍLIA: depois disto poderemos pensar em recompensa... e
outras coisas. Até lá, preciso costurar e com calma.
JOAQUIM: É exatamente o que não suporto.
LUCÍLIA: O quê?
JOAQUIM: Ver você costurando para essa gente. Gente que não
merecia nem limpar nossos sapatos!
LUCÍLIA: Não reparo neles. Não sei quem são, nem me interessa
(...).
JOAQUIM: Gentinha! Só têm dinheiro...
LUCÍLIA: (Seca) É o que não temos mais.
JOAQUIM: (Pausa) Quando meus antepassados vieram de Pedreira
das Almas para aqui, ainda não existia nada. Nem gente desta
espécie. (...) A única maneira de se ganhar dinheiro era fazer queijos.
Imagine, Lucília, enchiam de queijos um carro de bois e iam vender
na cidade mais próxima, a quase duzentos quilômetros! Na volta
traziam sal, ferramentas, tudo que era preciso na fazenda. Foram
eles que, mais tarde, cederam as terras para se fundar esta cidade.
(...) Quando penso que agora...
LUCÍLIA: (Corta, áspera) Papai! pedi ao senhor para não falar
mais nisto. O que não tem remédio, remediado está. (Ibidem, p.124)
41
Em Rasto atrás, o relógio sempre atrasado e o reflexo do menino
Vicente imitando o crescimento de uma árvore são signos do tempo que passa, mas
que não quer ser deixado passar. Em A moratória, por sua vez, o relógio e o galho
seco de jabuticabeira representam a tentativa de manter o passado intacto, a casa
antiga intocada, ainda que seja impossível.
Nessa região longínqua, memória e imaginação não se deixam
dissociar. Ambas trabalham para seu aprofundamento mútuo.
Ambas constituem, na ordem dos valores, uma união da lembrança
com a imagem. Assim, a casa não vive somente no dia-a-dia, no
curso de uma história, na narrativa de nossa história. Pelos sonhos,
as diversas moradas de nossa vida se interpenetram e guardam os
tesouros dos dias antigos. Quando, na nova casa, retornam as
lembranças das antigas moradas, transportamo-nos ao país da
Infância Imóvel, imóvel como o Imemorial. Vivemos fixações,
fixações de felicidade. Reconfortamo-nos ao reviver lembranças de
proteção. Algo fechado deve guardar as lembranças, conservando-
lhes seus valores de imagens. As lembranças do mundo exterior
nunca hão de ter a mesma tonalidade das lembranças da casa.
(BACHELARD, 1989, p.25-6)
A imagem da casa, usada por Bachelard, também é representativa da
memória em outras peças de Jorge Andrade, como Senhora na Boca do Lixo.
Nessa trama, a protagonista Noêmia entra numa espécie de transe ao ser presa e
levada para a delegacia, que funciona no antigo palacete do Senador Jaguaribe,
freqüentado por ela quando jovem e rica. Noêmia olha o casarão com os olhos do
passado, sem ver as transformações causadas pelo tempo no espaço, sem enxergar
o estado em que se encontra no presente.
Como explicita Bachelard (Ibidem, p.26), “a casa abriga o devaneio, a
casa protege o sonhador, a casa permite sonhar em paz”. A partir do momento em
que retorna àquele espaço onde foi feliz, Noêmia salta no tempo, em direção a um
instante de sua vida tão diferente do que está vivendo no presente que é, inclusive,
capaz de fazê-la esquecer a marginalidade do agora.
NOÊMIA: (Perdendo-se) Foi aqui. Foi justo aqui... que vi seu pai pela
primeira vez. (Olha a escada) Eu estava dançando e ele sempre
parado no mesmo lugar. Ali, perto da estátua. Olhava-me com
serenidade tão protetora. Quando vi... dançávamos juntos. Tinha
42
acabado de chegar da Europa. Era o homem mais atraente na
inauguração deste palacete. (ANDRADE, 1986, p.337)
De acordo com Bachelard (1989, p.26),
ao devaneio pertencem valores que marcam o homem em sua
profundidade. O devaneio tem mesmo um privilégio de
autovalorização. Ele usufrui diretamente de seu ser. Então, os lugares
onde se viveu o devaneio reconstituem-se por si mesmos num novo
devaneio. É exatamente porque as lembranças das antigas moradas
são revividas como devaneios que as moradas do passado são
imperecíveis para nós.
Assim, a espacialidade onírica na qual Noêmia penetra no instante em
que entra no palacete causa uma fratura temporal que transforma Cronos em Aion. A
memória não registra mais a duração concreta dos fatos; é pelo espaço que as
lembranças são revividas, sem tempo ou duração (cf. Ibidem, p. 28-9). Dessa forma,
Noêmia só fica ciente do tempo quando toma consciência do espaço presente, como
ele é, e não como um dia foi.
Não suportando mais, Camila acende o lustre galé. (...) Diversas
lâmpadas estão queimadas e as poucas acesas formam sombras
estranhas nas paredes. Teias de aranha ligam os braços do lustre e o
embaça o cristal das mangas. A pátina do tempo e da luz
transforma o cenário. Noêmia recua assustada, percebendo,
horrorizada, o estado do palacete. (ANDRADE, 1986, p.337)
Toda a memória andradiana representa-se por meio da ligação dos
personagens com o espaço e com a fiscalidade dos objetos. O casarão, a escada e o
lustre de Senhora na Boca do Lixo, a fazenda, o relógio e o galho de jabuticabeira
em A moratória, a casa, o relógio e o trem de Rasto atrás. Cada um desses lugares
e objetos é substituído por outros ao longo das peças que fecham o ciclo de Marta, a
árvore e o relógio: o cemitério e as lápides de Pedreira das Almas, a sede da
fazenda e o brilho das estrelas que não existem mais em O telescópio, o jazigo,
os quadros do barão e da baronesa e as peneiras de café de Os ossos do barão.
Todos eles mostram a ligação atemporal do homem andradiano com a terra, ainda
que tente sempre romper com ela, numa obra que, através da memória de um,
ajudará a compor o cenário da memória de um todo.
43
1.3 Histórias (re)construídas
Ao mesmo tempo em que transita pelo espaço destinado à memória
subjetiva, a obra de Jorge Andrade debruça-se sobre a (re)construção de aspectos e
episódios da história do Brasil que ajudaram a fundar a cultura de seu povo. Envoltos
pela máscara da ficção, fatos e períodos históricos marcantes para o país são
relembrados no imenso painel descortinado pela cíclica estrutura de Marta, a árvore
e o relógio. Começando com As confrarias, que tem como pano de fundo o auge
da exploração do ouro, no século XVIII, e os primeiros movimentos da Inconfidência
Mineira, a obra se completa com O sumidouro, que mistura presente escritor no
momento em que concebe sua obra a um tempo ainda mais remoto que o
enfocado na primeira peça – bandeirantes desbravando o interior do Brasil em busca
das tais áureas e preciosas riquezas.
O ciclo se fecha, mas não se encerra, que os questionamentos
acerca da realidade representada permanecem. Como bem coloca Anatol Rosenfeld
(in ANDRADE, 1986, p.601), o olhar sobre o passado é sempre uma atitude crítica,
por vezes distanciada, ainda que passionalmente envolta em reminiscências.
Embora as peças revolvam de preferência o passado, seria erro
dizer que sejam devotadas ao passado ou que o exaltem ou
manifestem saudade dele. Foi dito de Jorge Andrade que é “o nosso
grande poeta do ontem”. Isso certamente o significa que seja
poeta de ontem. O poeta do ontem pode ser perfeitamente poeta de
hoje. A atitude do saudosismo sem dúvida está presente em muitas
personagens. Na medida em que essas o focalizadas com
profunda simpatia humana mormente nas peças biograficamente
mais antigas não se pode negar a presença de uma visão afetiva
e afetuosa de um mundo ido a que o autor, apesar de tudo, se sente
ligado. Entretanto, o que prevalece são a indagação e o
questionamento dolorosos, por vezes aguçados numa atitude quase
se diria de autoflagelação. É a mente crítica, atual, que devassa a
história – mente inflexível, severa, honesta até a crueldade.
De certa forma, o ciclo andradiano es inscrito no que Walter
Benjamin (1994, p.223) entende por história. Segundo ele, “o cronista que narra
os acontecimentos, sem distinguir entre os grandes e pequenos, leva em conta a
44
verdade de que nada do que um dia aconteceu pode ser considerado perdido
para a história”. Assim, os dramas escritos por Jorge Andrade, combinão de
memória, hisria e ficção, entrelaçam grandes acontecimentos históricos
brasileiros ao anônimo cotidiano de seus personagens; o dramaturgo reconstrói
a cultura brasileira, ao mesmo tempo em que confere aos seres humanos
criados por sua escrita um cater universal.
Em Sobre o conceito da história, Benjamin tenta escrever e
interpretar uma hisria diversa daquela à qual o homem está acostumado, uma
espécie de anti-história. Para isso, reelabora a tetica da oposão entre um
tempo novo, que vive com seus próprios direitos, e as épocas passadas, com as
quais a era moderna rompeu ao tentar encontrar uma solução para o problema
paradoxal de como obter critérios pprios para o presente, valendo-se da
contingência de uma modernidade que se tornou eminentemente transiria.
A história benjaminiana rne o que é desprezado e esquecido pela
ordenação da tradicional história progressiva. Seu conceito se funda nos
sofrimentos acumulados da humanidade, enquanto desenha uma nova face para
suas esperanças frustradas. Benjamin desafia-se a construir um conceito de
hisria que corresponda à verdade daqueles que foram impedidos de falar tanto
pela tradição da dominão quanto pelo ritmo contínuo dos acontecimentos.
Para ele, o futuro não é a projão grandiosa do tempo na linha evolutiva da
hisria, mas o seu desvio em direção ao passado, para que um ato de justa
possa libertá-lo de sua eterna repetição como sofrimento e opressão.
Embora não possua o caráter marxista tão evidente na tese de
Benjamin, o ciclo traçado por Jorge Andrade também descortina o passado e
suas ruínas. Sobre elas o dramaturgo ergue sucessivos instantes presentes que
formam um único e gigantesco arquivo. Por vezes suas peças realmente
conferem voz às classes oprimidas, como ocorre, por exemplo, em As
confrarias ou em Vereda da salvação. Por outras, o direito à palavra é dado
simplesmente aos indiduos que moldam e são moldados pela história. Sob
45
esse aspecto, o teatro proposto pela dramaturgia andradiana evoca episódios
marcados pela historiografia tradicional e os mescla a outros, vividos pela gente
anônima que, como no poema de Brecht, Perguntas de um operário que lê,
construiu com as pprias mãos a história das grandezas pelas quais ficaram
conhecidos os homens de poder.
Em As confrarias, mais do que transportar para o palco a memória
que Marta guarda do filho José e do marido Sebastião, mortos em nome da
ganância pelo ouro das Minas Gerais, Jorge Andrade transporta para a cena a
ppria hisria brasileira, am das marcas deixadas por ela na vida de pessoas
simples. Jo, como ator, é a representação simbólica do teatro como foa
capaz de manter viva a memória coletiva de um povo.
MARTA: Que sentido teria a arte de meu filho, se não levasse aos
outros a compreensão da angústia que sentem? Se não mostrasse
aos que lutam, em nome do que estão lutando? (...) Meu filho sabia
que é difícil lutar pelos outros; que tudo que é injusto, é injusto para
todos! Com a personagem que escolheu ser... atirou-se contra a
ameaça do mundo e tentou se defender, defendendo vocês.
(ANDRADE, 1986, p.62)
No texto, José, o ator, acaba por utilizar o teatro como instrumento
para alertar o povo da Vila Rica do século XVIII sobre os abusos de poder
impetrados pela cobrança do quinto e da derrama pela Corte Portuguesa. O
personagem é morto como mortos foram diversos intelectuais mineiros envolvidos
no projeto de inconfincia e seu Libertas quae sera tamen do poeta Cudio
Manoel da Costa ao alferes Joaquim Jo da Silva Xavier, Tiradentes. As quatro
confrarias que emprestam nome à peça irmandades dos brancos, dos negros,
dos mulatos e dos pardos denunciam como a segregação de uma sociedade
pode se tornar responsável por seu pprio aprisionamento.
Apesar de inspirar-se em acontecimentos historiograficamente
documentados, Jorge Andrade reorganiza-os, envolvendo-os numa roupagem de
fião. A imagem de Tiradentes, enforcado e esquartejado, é reelaborada em As
confrarias a partir da tetica do corpo insepulto, também marcante em Pedreira
das Almas. Contudo, ao contrio do inconfidente, que foi usado como bode
46
expiatório por ter incitado o povo a rebelar-se contra a derrama, as mortes de
Jo e Sebasto, assim como a de Martiniano, em Pedreira, são expostas para
servirem de exemplo contra a tirania e a perversidade.
JOSÉ: Marta! Não vá me ver. Deixe-me... até que a chuva
apodreça a corda.
MARTA: (Hirta de dor) Deixarei.
SEBASTIÃO: Quero que meus ossos fiquem espalhados em minha
terra.
MINEIRO 1: E é onde vai ficar. Pensa que alguma igreja receberia
seu corpo?
SEBASTIÃO: (Olha o co) uma que vai receber.
(...)
MINISTRO: E você deixou o corpo insepulto?
PROVEDOR: Largou os ossos como se fossem de animal?!
MARTA: Quando parti, olhando de longe, pareciam espigas de
milho espalhadas. Na paisagem... a única coisa verde era a árvore.
(...)
Ministro: Não sepultou o marido, nem rezou por ele... e vem pedir
para enterrar o filho em nossa igreja?! Que está querendo?
(...)
Marta: Meus mortos não seo mais inúteis. Devem ajudar os
vivos. Para que serve um corpo esquecido como galho de árvore...
ou como laje! (ANDRADE, 1986, p.42-3)
A imagem de Tiradentes enforcado também se faz intensa em O
sumidouro, peça cujo enredo se desenvolve pelo menos um século antes de o
“mártir da inconfidência” ter seu corpo esquartejado e exposto para amedrontar
aqueles que sonhavam em libertar o Brasil de Portugal. Nesse texto, o mameluco
José Dias, filho do famoso bandeirante Fernão Dias Pais com uma índia de nome
Marta, por sinal também é condenado à forca, acusado de conspirar contra o pai,
que buscava riquezas preciosas pelo interior do país, e tramar seu assassinato.
No romance autobiográfico Labirinto (1978, 175), Jorge Andrade pinta,
numa delirante conversa com Fernão Dias
2
, a imagem do José Dias histórico que
procurou destruir e reconstruir em O sumidouro:
Alguns chamam de Brutus indígena, que tamm foi bastardo. Veja
como se contradizem! Se traiu por medo, como pode ser Brutus?
2
Durante a fictícia conversa Jorge Andrade diz a Fernão Dias que a verdade sobre o bandeirante e
seu filho lhe foi contada por “um dos poucos historiadores brasileiros que tem uma verdadeira visão de
nossa história”. O historiador a quem o dramaturgo se refere é Sérgio Buarque de Holanda.
47
Foi aqui que quase encontraram a verdade. Mas o podiam
encontrar: a história tem sido escrita pelos ganhadores. Nela, seu
filho Jo Dias existiu no crime. Isso também é matar, como
vo tentou. Mas para mim ele continua vivo. É o primeiro
brasileiro que pensou, sofreu e se deixou matar por sua gente. (...)
Quero que compreenda que tem importância, o pelo heroísmo
de sua bandeira. Ela, em si, é apenas mais uma aventura. A
história es cheia de aventuras, e mais importantes do que a sua.
Quem vai manter você vivo, o será o filho que foi cópia [Garcia
Pais, filho do bandeirante com Maria Betim], que mergulhou num
rio para buscar seus ossos, mas o que cometeu traição por
acreditar. Jo Dias representava os colonos, o povo da colônia
que não queria que as minas fossem descobertas.
Por considerar que, ao contar “verdades pela ótica dos vencedores
e dos poderosos, a vero histórica oficial se torna assassina das vozes e os
anônimas que realmente fizeram a hisria, Jorge Andrade propõe-se a fazer
uma revolução na interpretação do passado, de modo a tor-lo um instrumento
de transformão do presente.
Mergulhando a as rzes da aventura colonial – mas sempre com
perspectiva dialética – dei , em sangue e em raciocínio, as misérias e
grandezas do Brasil épico, que principia a separar-se de Portugal.
Fernão Dias em permanente diálogo comigo é o obstinado herói
antigo, testemunhando perante um tribunal imaginário, que tudo sabe
de seus erros, sonhos grandiosos e espoliados. Se filho bastardo e
mestiço, José Dias, antecipa os rebeldes da Inconfidência: entre duas
raças e duas fés, personifica o espírito da independência, o
antiescravagismo, o sentimento libertário. Espécie de Brutus
sertanejo, debate-se entre o amor filial e o imperativo de uma justiça
nova, que os usos da época ainda não cometem. E é nesta angústia
que a sua identidade brasileira se afirma. A mata é o Dédalo, o
campo escuro da peregrinação e da descoberta. Certas personagens
morrem enforcadas na árvore da história já feita, petrificada, que deve
servir de exemplo esclarecedor, ou de aviso, ao presente. (...)
Lembro-me do que Sérgio me dissera (...):
– (...) Escrever história é ter visão dialética do passado e,
eventualmente, de suas conseqüências no presente. É iluminar o
passado com o presente e vice-versa. É o presente que importa e é
através dele que compreendemos a evolução humana. (ANDRADE,
1978, p191-2)
De acordo com Peter Burke (2005, p.88),
à medida que os acontecimentos retrocedem no tempo, perdem
algo de sua especificidade. Eles são elaborados, normalmente de
48
forma inconsciente, e assim passam a se enquadrar nos
esquemas gerais correntes na cultura. Esses esquemas ajudam a
perpetuar as merias (...).
Assim, tanto em As confrarias quanto em O sumidouro, bem como
em todas as outras oito peças que se ligam ao longo de Marta, a árvore e o
relógio, Jorge Andrade se apropria da hisria oficial e a desconsti e reelabora
de forma a intensificar caractesticas identitárias universais e atemporais. As
noções de arquivo e arqueologia transformam a tríade meria-hisria-
identidade numa espécie de palimpsesto. Os saltos e elipses temporais entre os
textos que compõem Marta, a árvore e o regio cumprem, na verdade, três
funções: a de reiterar a preocupação com o passado pauta constante no
presente, inclusive com a crescente musealizão do mundo; a de metaforizar,
pela estrutura fragmentária, o funcionamento mnemônico; e a de apontar os
caminhos do intelectual quanto ao seu ocio dentro de uma sociedade na
superação (recordação/esquecimento) da história.
O conceito de musealização, cunhado por Lübbe, é retomado por
Andreas Huyssen (2000, p.28) para enfocar a visão de mundo voltada para o
passado. Segundo ele,
o que Lübbe descreveu como musealização pode agora ser
facilmente mapeado com o crescimento fenomenal do discurso da
memória dentro da própria historiografia. A pesquisa sobre memória
histórica alcançou escopo internacional. A minha hipótese é que,
também nesta proeminência da mnemo-história, precisa-se da
memória e da musealização, juntas, para construir uma proteção
contra a obsolescência e o desaparecimento, para combater a nossa
profunda ansiedade com a velocidade de mudança e o contínuo
encolhimento dos horizontes de tempo e de espaço.
Assim, a dramaturgia de Jorge Andrade, de gestão sofrida como
a de qualquer obra que possua esse intuito de revisão de valores esvaziados,
longe de celebrar o passado, musealiza-o para criti-lo e, de certa forma,
tamm preser-lo; para se libertar o do sofrimento que ele causou, mas dos
efeitos que sua repetão ainda pode vir a provocar (cf. Ibidem, p.36). Como
explicita Walter Benjamin (1994, p.224), “articular historicamente o passado não
49
significa conhecê-lo como ele de fato foi’. Significa apropriar-se de uma
reminisncia, tal como ela relampeja no momento de um perigo”.
Ao passo que Benjamin questiona, na modernidade, o advento de
uma cultura desvinculada da tradição e do sentido da totalidade, Andrade tenta
retomar, no presente momento de sua escrita, as tradições culturais que
permeiam o imaginário dos homens mineiro e paulista já que o ciclo se desloca
nas imbricações dos dois estados , e a necessidade universal de possuir um
lastro, presente em qualquer ser humano, dentro ou fora dos limites geográficos
e culturais de Minas/São Paulo. Na visão de ambos Benjamin e Andrade ,
duas tarefas são fundamentais: em primeiro lugar, constatar o esvaziamento e a
pobreza do presente; em seguida, entregar-se à heróica tarefa da constrão do
novo, à urgência de se inventar um mundo possível no “aqui e agora” da vida
imediata. Para tanto, defrontar-se com o passado histórico torna-se
imprescinvel, uma vez que, conforme Gaston Bachelard (1988, p.60), só se
define completamente aquilo que se compreende”. Entender o que passou é o
primeiro passo para construir o que virá.
É preciso inicialmente pesar as recordações contraditórias e realizar o
equilíbrio entre os impulsos inversos. Essas operações discursivas
acidentam o tempo, rompem a continuidade de uma evolução natural.
Sem a consciência dos erros eliminados, não verdadeira certeza
quanto ao sucesso de uma ação de destreza. O tempo pensado
ganha, então, prioridade sobre o tempo vivido e a dialética das razões
de hesitação se transforma numa dialética temporal. (Ibidem, p.70)
Usando as palavras de Bachelard para explicar a dramaturgia
andradiana, pode-se dizer que os textos que completam Marta, a árvore e o
relógio mostram a supremacia do tempo desejado sobre o tempo vivido. A
obra de Jorge Andrade passeia pelo tempo livremente, sendo sempre uma
evocação ctica do passado pelos olhos do presente. Os símbolos da árvore e
do regio revelam uma cultura intrinsecamente histórica, para a qual o passado
e as raízes o elementos primordiais.
Para a construção completa do presente aquele que Jorge Andrade
acabará abraçando sob diferentes formas, como estética cenográfica ousada e
50
rupturas espaços-temporais típicas do drama contemporâneo é fundamental que
se aglutinem valores essenciais do passado, exatamente aqueles dos quais não se
abre mão e que se chocam com os equívocos descartáveis do hoje. Um teatro assim
talvez pudesse ser considerado como uma ficcio-biografia. Ficcio porque a introjeção
dos feitos remarcáveis nunca é registrada oficialmente; biografia porque conta
histórias de vidas, ainda que não se saiba bem de quem.
A literatura de meria, ainda que se trate de uma memória ouvida
ou inventada, tenta rever esses lapsos humanos que os registros oficiais não
oferecem. É dela que se consegue retirar o sangue do qual o homem é feito,
qual é a verdadeira hisria dessa terra globalizada e tão rica em miscigenões
de todos os níveis. A obra de Jorge Andrade é, ao mesmo tempo, local e
universal, na medida em que se posta à margem do entre-lugar por onde todos
os homens vagueiam, em suas vidas anônimas, a construir o mais denso do
futuro aquele que deixarão de herança.
51
Até nas raízes, fora da
terra, abriram flores...
Joaquim, em A moratória
52
2 A ÁRVORE PARTIDA
O drama talvez seja a obra de maior concretude e, ao mesmo
tempo, de maior desamparo enquanto literatura. O texto dramático já nasce
órfão de encenação; as palavras são carentes da cena para alcaarem sua
plenitude. E a partir de uma dramaturgia como a de Jorge Andrade, em que a
persisncia do passado no presente, por si só, recebe status de protagonista, a
representão cênica traz consigo, numa imensa árvore cuja raiz se parte em
múltiplas identidades, a conjuão de diversas outras memórias am-texto que
irão se conjugar na constrão da obra final: o especulo.
Um drama pode ser encarado como uma obra literia, mas não se
esgota . Drama é, antes de mais nada, ação. Como bem coloca Martin Esslin
(1978, p.16), o “que faz com que o drama seja drama é precisamente o elemento
que reside fora e além das palavras, e que tem que ser visto como ão” [grifo
nosso]. É claro que, paradoxalmente, ele o atinge a ação sem a semente
verbal, seja ela a palavra pronunciada ou não. Contudo, é justamente por essa
compleão que o texto dramático e, mais precisamente, o teatro podem ser
considerados uma das formas de arte mais eficazes como instrumento de
expreso do homem, de ferramenta de conceituação e de pensamento: porque
mostram o ser humano enquanto agente da ppria vontade.
Renata Pallotini (1983, p.16-17), retomando o conceito de vontade
consciente de Hegel, diz que
a vontade humana que interessa, no caso, é a que tem consciência
de seus objetivos. A ação dramática é a ação de quem, no drama, vai
em busca dos seus objetivos consciente do que quer. É a ação de
quem quer e faz. Da pessoa moral, consciente, com caráter (não se
tomando caráter no sentido ético moderno). Do ser humano livre.
Como conseqüência, (...) o personagem deve responder por todos os
atos que pratica, os quais, uma vez praticados, tornam-se
irreversíveis. É mais uma forma de nos colocar a liberdade, a
consciência e a responsabilidade da pessoa moral.
53
Segundo Pallottini, (1983, p.19), ainda se remetendo à filosofia hegeliana, as
ões desencadeadas por uma vontade, tendo em vista um objetivo determinado,
colidem com aquelas desencadeadas por vontades opostas. Dessa colisão nasce
o conflito, essencial ao drama. É preciso levar em conta, é claro, que a origem e o
cerne do conflito o diferentes em se tratando de heróis trágicos e personagens
dramáticos modernos. Para a pesquisadora,
os personagens da tragédia antiga, verdadeiras estátuas vivas, são
isentos de conflitos íntimos. Estão eles informados pela consciência
de sua vontade e por suas altas paixões, direitos, razões ou
interesses pessoais. Eles fazem sempre a reivindicação moral de um
direito relativo a um fato determinado. Ao contrário, a tragédia
moderna apropria-se, desde seu começo, do próprio da
personalidade ou da subjetividade. Faz do caro caráter pessoal em si,
e não da individualização das forças morais, seu objeto próprio e
fundo de suas representações. (Ibidem, p.22)
Assim, os personagens modernos, como os de Jorge Andrade, diferentemente dos
heróis trágicos, enfrentam conflitos que dependem, acima de qualquer outra coisa,
de seu próprio caráter, e não de uma força moral superior.
Em qualquer dessas circunstâncias, porém, como mostra o ser humano
como agente do conflito, o drama não se contenta em mediar seus feitos por outros
procedimentos representativos por si mesmos distanciadores. A arte dramática
recorrerá ao distanciamento narrativo-descritivo quando essa for sua intenção para
melhor apresentar (ou seria representar?).
Nas artes, como na filosofia, o princípio da navalha de Occam
continua a ter validade permanente a expressão do pensamento
mais econômica, a que consumir menos tempo, a mais elegante,
será a mais próxima da verdade. Para expressar climas
imponderáveis, tensões e simpatias ocultas, as sutilezas dos
relacionamentos e da interação humanos, o drama é
incomparavelmente o método de expressão mais econômico.
(ESSLIN, 1978, p.18)
Dessa forma, ainda com base em Esslin (Ibidem, p.21), o drama é a
maneira mais concreta pela qual a arte pode recriar situações, relações e
sentimentos humanos. Além disso, em se tratando de representões da
memória, a encenão teatral vem complementar a atualização do passado,
54
típica do processo mnenico, trazendo-o para o presente em construção. A
cena dramática não está e então, mas aqui e agora. Conforme Peter Szondi
(2001, p.31-2), o drama é primário. Ele não é a representão (secunria) de
algo (pririo), mas se representa a si mesmo, é ele mesmo. Sua ação, bem
como cada uma de suas falas, éoriginária, ela se no presente”.
que se considerar, ainda, a natureza social do drama, seu
processo de criação e fruição coletivas. Mais do que de um dramaturgo, o teatro
depende de ator, diretor, cenógrafo, figurinista, iluminador, sonoplasta, contra-
regra e, sobretudo, do público.
A parte literária do drama, o texto, é fixa, uma entidade permanente,
porém cada representação de cada produção daquele mesmo texto é
uma coisa diferente, porque os atores reagem de forma diferente a
públicos que diferem entre si, bem como, é claro, a seus próprios
estados interiores. (ESSLIN, 1978, p.37)
Essa fluidez é a força capaz de fazer com que o drama, mesmo passado tanto tempo
desde sua escrita, seja sempre atual, independentemente da qualidade simbólica
que represente, historicamente, no momento de sua última representação.
Faz-se imprescindível, neste momento, tecer uma análise cuidadosa sobre a
palavra “atual”. Em inglês, actual significa real, e não apenas contemporâneo ou
momentâneo como em português. Esta atualidade/realidade de um texto fixo e
atemporal na página impressa parece bem significativa para a compreensão da
memória: ela também se inscreve como atual (instantânea) na mente de quem
lembra/recorda e, por isso, é real/presente e viva nesse mesmo momento. O
transporte ao real vivido feito por um cheiro, uma palavra, um som, ao mesmo tempo
em que tem a carga do vivido, é também actual/real. É a evidência de que não se
vive aleatoriamente, mas se carrega em si todo o vivido, o qual pede para participar
dessa falsa certeza do presente que será sempre um construto em ação. Talvez
esteja aí a força do teatro como lição de construção sisífica da(s) identidade(s).
55
2.1 Os dramas da identidade
Apesar da pretensa separação entre passado e presente, a obra
andradiana é capaz de conciliar as duas temporalidades para cumprir a missão de
(re)construtora da identidade histórica do país. Assim como Bertolt Brecht, em suas
peças, recorria a parábolas ( e então) para mover os homens de sua época (aqui e
agora), rompendo-lhes a inércia, Jorge Andrade busca no passado e no sentimento
de ancestralidade de suas próprias personagens a possível explicação para suas
ações – ou paralisias – atuais. Procura, através delas, sua identidade como pessoa e
como brasileiro (lembre-se aqui o sábio conselho recebido de Arthur Miller).
MARCELO: (...) Papai! dias fui à Casa Confiança comprar um par
de sapatos. Pedi para pagar no fim do mês e o dono me perguntou:
“Quem é o senhor?”. “Sou filho do seu Quim”, respondi. Sabe o que
ele me perguntou ainda? “E quem é seu Quim?”
JOAQUIM: (Empertiga-se) Ele se atreveu?!
MARCELO: Vivemos num mundo diferente, onde o nome não conta
mais... E nós só temos nome. (ANDRADE, 1986, p.159)
O primeiro movimento e/ou imobilidade dos personagens andradianos é
à procura da identidade. Há, na maioria das vezes, uma forte ligação com o passado,
com o que foi, mas não é mais. Por esse aspecto, o nome e a descendência são
encarados como um valor de barganha, um cartão de visitas para a sociedade. No
entanto, como Marcelo constata e alerta Joaquim, em A moratória, o nome torna-se
nada sem o principal moldador da identidade contemporânea: o dinheiro. Sem
recursos financeiros, o nome e a descendência deixam de ser sequer reconhecidos.
Em uma cena do segundo ato de Romeu e Julieta
(SHAKESPEARE, 1994, p.960), a jovem reclama com seu amado da grande
valorização dada ao nome, o que, em seu caso, contribui para sepa-los, uma
vez que descendem de falias inimigas:
[Um nome] Não é mão, nem pé, nem braço, nem rosto, nem qualquer
outra parte pertencente a um homem. Oh, seja algum outro nome! O
56
que há em um nome? A isso que chamamos rosa, por qualquer outro
nome continuaria com a mesma doce fragrância.
3
Para os personagens andradianos, contudo, a rosa perderia, sim, sua
beleza e perfume se não se chamasse rosa. Seus dramas, muitas vezes, caminham
na direção oposta à de Julieta e Romeu: o nome não é algo para ser simplesmente
ignorado ou renegado; é, pelo contrário, conflito e perda, é aquilo que lutam para
(re)conquistar. Juntamente com ele, todavia, não se pode esquecer que a
importância está no lastro monetário, ou, mundanamente, no status social que se
perdeu ou que se tornou o único bem a ser vendido.
VERÔNICA: (...) Em quarenta anos ele conseguiu o que levamos
quatrocentos. Que adianta descender dos bandeirantes e precisar
fazer feira toda semana! Preferia ter menos tradição e um pouco mais
de segurança. Afinal, o que temos? Uma fazenda deficitária e um
nome que sozinho não paga conta. (ANDRADE, 1986, p.426)
Em Os ossos do barão, única comédia entre as dez peças de Marta, a
árvore e o relógio, o conflito e, ao mesmo tempo, o entrelaçamento entre nome e
dinheiro é evidente. De um lado estão Egisto, Bianca e Martino, colonos italianos que
construíram sua fortuna através do próprio suor, mas cujo nome identidade
primeira (ou primeva) não tem valor na sociedade, pelo menos não o valor que
anseiam por adquirir. De outro lado estão Miguel, Verônica e Izabel, descendentes
de uma tradicional família paulistana, mas falidos e incapazes de manter o luxo a que
foram acostumados, tendo apenas um nome que não lhes serve de nada, sequer de
sustento. O encontro entre os dois clãs, através do casamento de Martino e Izabel,
realiza o desejo de ambas as partes: Egisto torna-se membro da família do barão
(valor) para quem começou trabalhando e de quem comprou tudo até os mortos
e Verônica volta a ter o dinheiro capaz de manter sua tradição intacta, ainda que
engolindo o preconceito e miscigenando-se. Engana-se, porém, quem pensa que o
pragmatismo da esposa de Miguel faz com que ela deixe de dar importância ao
sobrenome de família perante a sociedade:
3
(...) It is nor hand, nor foot,/ Nor arm, nor face, nor any other part/ Belonging to a man. O, be some
other name!/ What´s in a name? That which we call a rose/ By any other name would smell as sweet.
(T.A.)
57
VERÔNICA: (...) Você conhece alguma nobiliarquia italiana?
MIGUEL: (Com enfado) Você tem cada uma!
VERÔNICA: Vou procurar. Deve ser muito interessante. Afinal,
dominaram o mundo antes e depois de Cristo.
MIGUEL: E o crucificaram!
VERÔNICA: Lavaram as mãos apenas.
IZABEL: Afinal, o que resolveram?
VERÔNICA: A respeito?
IZABEL: Vou ou não me casar com esse Martino?
VERÔNICA: Isto é problema seu, minha filha. Lembre-se apenas de
que brasão, hoje em dia, não serve nem em crediário. É bem verdade
que Ghirotto é sobrenome um tanto extravagante! Sempre achei que
se devia nacionalizar os nomes estrangeiros. Nacionalismo está tão
na moda! O que significa famílias inteiras, porque são famílias
brasileiras, assinando nomes estrangeiros? Ghirotto podia virar
perfeitamente... Guimarães!
MIGUEL: Guimarães é sobrenome mineiro!
VERÔNICA: Mas seria brasileiro, pelo menos.
MIGUEL: (Categórico) Para mim seria a mesma coisa. Não se
esqueça de que fomos traídos por Minas diversa vezes. De lá,
fomos expulsos na guerra dos emboabas. Não sei por que uma
genealogia da qual tenho tanto orgulho de ser interrompida
justamente por minha filha! [grifo nosso] (ANDRADE, 1986, p.427-8)
A guerra pela identidade familiar perpassa, nesse caso, também a
identidade hisrica: a rivalidade existente entre Minas e São Paulo desde a
disputa armada pelo controle da exploração do ouro, conhecida como Guerra
dos Emboabas. A princípio, o excerto extraído de Os ossos do barão, com a
discuso acerca de mudar ou não o sobrenome Ghirotto para Guimaes, lança
luz sobre a supremacia da raiz portuguesa diante dos demais povos que
formaram a nação brasileira. Numa terra povoada de índios, negros e,
posteriormente, imigrantes europeus e asiáticos, o nome português é, para a
elite paulistana à qual pertencem Miguel e Verônica, o único aceivel como
marca da constrão de uma identidade nacional.
Por outro lado, o trecho também elucida a fundação confusa e
equivocada dessa identidade, marcada por cicatrizes regionais separatistas. Ao se
queixar de que Guimarães é um sobrenome mineiro, o paulista Miguel realça a
rivalidade entre os dois estados ao passo que renega a origem comum: Minas foi
povoada a partir das bandeiras vindas de São Paulo e a cafeicultura paulista
58
desenvolveu-se, em boa parte, pelas mãos de migrantes mineiros depois da
escassez da produção aurífera. Na imensa árvore genealógica que une os
personagens das dez peças de Marta, a árvore e o relógio, a raiz una é evidente. O
Barão de Jaraguá, grande cafeicultor paulista do qual descende Miguel, tem a
mesma ascendência de Urbana, que viveu toda a vida em Pedreira das Almas, no
sul de Minas Gerais: no caso, o bandeirante Fernão Dias e sua mulher, Maria Betim
(personagens presentes em O sumidouro).
No fim, contudo, o que acaba prevalecendo em Os ossos do barão é
mesmo a necessidade de segurança financeira para validar uma genealogia que, por
si só, não serve mais para nada:
MIGUEL: (...) Eu vim aqui comprar esta capela e não farei isto
deixando minha filha.
VERÔNICA: É você quem quer resolver por ela. Você pensa em
seu nome.
MIGUEL: E você? Em que está pensando?
VERÔNICA: Na segurança de Izabel.
MIGUEL: No dinheiro desse italiano sem eira nem beira! (ANDRADE,
1986, p.428)
A batalha entre nome e poder financeiro, assim como entre São Paulo e
Minas, também está presente em O telescópio. No texto, enquanto o personagem
Luís primo da Izabel de Os ossos do barão tem sua identidade alicerçada na
genealogia, sua mulher Leila, filha de um fazendeiro mineiro, vale-se das terras da
família para tentar garantir seu valor na sociedade.
LEILA: Lembro-me muito bem: “Luís! Você também pertence à família
de quatrocentos anos, não é? Descendente de quem, mesmo? Ah! A
marquesa! A baronesa! Sua árvore genealógica é bem definida, Luís,
uma das mais tradicionais! Nela estão contidas as dezesseis famílias
da caravela de Martim Afonso de Souza! E você, Leila, a que família
pertence? Do Sul de Minas? Ah! Não conheço. Engraçado! Nunca
ouvi falar!”
LUÍS: Isto não é nada, perto da humilhação que pode sofrer aqui,
creia.
LEILA: Quebrados! Querendo ser nobreza à força. Nunca percebeu,
não é? Não é de bom gosto perceber-se grosserias, mesmo quando
são dirigidas à sua mulher! “Fala francês, Leila? Não?! Joga bridge,
Leila? Não?!” Hipócritas! Se quiser, pode ir. Eu fico tomando conta do
que é meu.
59
LUÍS: Não me obrigue a fazer o que eu não quero, Leila!
LEILA: (Retesada) Quatrocentos anos! Essa é boa. Isso está fora
de moda, meu caro. Você pode ter quatrocentos anos, mas sou eu
quem tem isto! Isto...! (Faz o gesto do dinheiro, com os dedos) Era o
meu dinheiro que sustentava as mesas de “buraco”, “king”, “canastra”
e toda aquela farolagem. (ANDRADE, 1986, p.211)
O contrário também pode acontecer, quando um personagem renega
sua origem para poder fugir de um passado de miséria. Em Vereda da salvação, os
beatos mudam seus nomes de batismo e apoderam-se de nomes bíblicos na medida
em que acreditam se purificar para entrar no céu.
GERALDO: Daniel! Meu nome é Daniel!
DURVALINA: O meu é Marta!
GERMANA: Jeremias!
PEDRO: Marcos!
2º HOMEM: Sem! Eu sou o Sem!
1ª MULHER: Raquel! Meu nome é Raquel!
AGREGADAOS: Simão! Mateus! Sara! Tiago! Judite! João Batista!
Pauto! Rute! Saul! Míriam! Samuel! Azael! Ester! Oséas, etc. (Ibidem,
p.266)
Antes de aceitar entrar no jogo místico do destino, o qual Joaquim e os
colonos que mudam de identidade acreditam estar traçado para eles, Dolor assume-
se enquanto mulher do mundo:
DOLOR: (Pausa longa) Com quinze anos... comecei pôr filho no
mundo. Joaquim foi o derradeiro. (Pausa) Ele veio dos confim do
norte!
ARTULIANA: Quem?
DOLOR: Avelino! Apareceu da noite p’ro dia, caçando serviço,
onde eu morava. Ninguém podia com ele numa derrubada. Logo que
chegou... todas as moça botou os olho em cima dele... e ele em cima
de mim. Eu era mais sacudida. (De repente) Nós queria casar,
Artuliana! Acredita em mim! Mas, cadê jeito? Avelino não tinha os
papel. Nem sabia onde tinha nascido. Nunca recebemo água benta...
Com tanto filho que veio... a gente acabou pensando que era casado.
ARTULIANA: Isso nunca foi pecado, Dolor. Todo mundo junta quando
não tem os papel.
DOLOR: Deve de ser pecado. Porque começou minhas andança.
Mais tarde, o Avelino morreu numa derrubada pr’a plantar café e
nunca mais tive parada. (Armargurada) Tive oito filho... sete morreu
miúdo, nem sei do quê! Fui deixando um por um, em cada lugar que
plantava! (ANDRADE, 1986, p.256)
60
Depois, no entanto, ela própria muda seu nome e, conseqüentemente, sua história:
DOLOR: [ajoelhada diante de Joaquim] São chegados os três rei!
Vem da parte do oriente, acordar os que dorme com o som da
madrugada. No céu, Cristo no presépio dando assunção, e no
mundo, a mulher cavuca a terra com a mão. Seu nome... é Maria!
Maria das pureza!
ARTULIANA: Dolor! Seu nome é Dolor!
DOLOR: Dolor nos papel do mundo, Maria nas agonia das roça, no
frio da tapera, na carência de tudo. Nenhum homem tocou no seu
corpo. Nunca matinou com essas coisa. Sempre desejou uma casa
cheia de gente, com mesa farta. Sofreu e suou... até que um dia, uma
mulher que era uma brancura só, entregou você na roça e me disse:
ele vai ser companheiro, marido filho, pai irmã, filha... sua família. Ele
vai ajudar você a esquecer as injustiça, a agüentar tudo. Vai ser
perseguido... você defende ele... porque é suas riqueza. Por isso não
paramos em nenhuma fazenda. Eles queriam matar o meu filho... e
eu precisava fugir. Vivi debandada pelas estrada. Cada vez que
mudava, era como se morresse um filho.
ARTULIANA: Você morou com Avelino! Não casou porque não tinha
os papel!
DOLOR: Não sou mulher do mundo. Mulher do mundo tem tudo...
casa, máquina, lata de flor. Sou limpa. Menti... p’ra esconder meu
filho do demônio. (...) Aqui está o filho de Deus! (...) Não brotou do
meu corpo... granou e cresceu num ano que foi uma fatura só. (...) É
verdade, meu filho. Por isso não casou... não tem pecado. Nunca
tocou roça grande. Gente do céu tem querer diferente dos homem.
Suas força não está nos braço... mas na palavra certa de Deus!
(Ibidem, 1986, p.269)
Vereda da salvação mergulha num outro nível identitário: o da cultura
do sagrado, que alimenta povos desprovidos de identidade real. O mundo do
sagrado é um cruzamento umbilical tempo(templo)/espaço. Nele nada é irreversível.
Segundo Mircea Eliade (1992, p.25),
o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta,
se mostra como qualquer coisa de absolutamente diferente do
profano. (...) A partir da mais elementar hierofania por exemplo, a
manifestação do sagrado num objeto qualquer, uma pedra ou uma
árvore e até à hierofania suprema que é, para um cristão, a
encarnação de Deus em Jesus Cristo, não existe solução de
continuidade. Encontramo-nos diante do mesmo acto [sic] misterioso:
a manifestação de algo de “ordem diferente” de uma realidade que
não pertence ao nosso mundo em objectos [sic] que fazem parte
integrante do nosso mundo “natural”, profano”.
61
A manifestação hierofânica de Vereda da salvação, ao menos aos
olhos dos personagens, manifesta-se supostamente em Joaquim. Podem-se
destacar dois níveis identirios na história, passíveis de existência no âmbito
do sagrado: o primeiro es na hisria inventada/revelada por Dolor. Segundo ela,
o filho lhe foi entregue por uma mulher que “era uma brancura”, como o anjo ou
a pomba do divino Espírito Santo. Ao mudar a versão do próprio passado para
salvar o filho, a mãe de Joaquim se transforma, quase hierofanicamente. Renega
seu próprio nome Dolor –, pois o mais pariu seus filhos em dor ou sentiu a
dolorosa agonia de plan-los na terra; ao contrio, como num passe de gica,
a camponesa se proclama Maria, limpa e pura (virgem?), vivendo apenas para o
filho que concretamente tenta alçar todo o povo sofrido até o céu. Ao chamar a
si própria de Maria das pureza, Dolor torna a ppria vida num modelo exemplar,
uma espécie de existência mítica.
Como explica Mircea Eliade (1992, p.107-8),
o mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento
primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. (...) Uma
vez “dito”, quer dizer revelado, o mito torna-se verdade apodíctica:
funda a verdade absoluta.
Dolor, como Maria das pureza a Imaculada Conceição –, faz de sua “invenção”
uma revelação, mudando-a em realidade para os beatos que acreditam estar diante
da própria manifestação da divindade.
No segundo nível identitário está o próprio nome Joaquim, que em
hebraico significa “aquele que se eleva a Deus”. Ao mesmo tempo em que se coloca
humildemente como homem, Joaquim também se acredita um ungido pela divindade.
JOAQUIM: Sou um homem como vocês e ando cumprindo uma
sentença: caminhar pelo mundo, desde o mar até os confim,
arrebanhando os esquecido. Meus irmão! Muitos crente de outras
fazenda ouviram falar dos prodígio dessa noite. Estão aqui pr’as
proteção. É que o Espírito Santo falou que quem atirar em nós atira
nas hóstia de Deus, porque é no nosso corpo que o Cristo fez
morada. Deus e Maria mandou que meu corpo não seja atado, nem
atentado do demônio, pr’a proteger o Cristo das roça que vai guiar
vocês tudo. Sou guardado por quarenta e sete anjo, sete quebra-
pedra e sete quebra-ferro. As ameaça ainda não acabou. É preciso
62
rezar muito, o resto da noite, pr’a ser revelado esse endemoniado a
quem o Senhor Jesus Cristo matará com o sopro de sua boca, e o
destruirá... pela manifestação da sua vinda. assim, quando o dia
clarear, todo mundo junto, puro, sem pecado, sobe comigo. Louvado
é o Deus! (ANDRADE, 1986, p. 258)
Para o povo da vereda, Joaquim pode até não chegar ao ponto de ser
um Cristo, mas traz consigo a marca popular de não roçar – como Jesus deixa de ser
carpinteiro ao cuidar da palavra do Pai e desloca a identidade do trabalho do
mundo para o da palavra mágica do divino. Ele ora e fala. “Suas força não está nos
braço... mas na palavra certa de Deus” (Ibidem, p.269). Ao transferir sua identidade
para a palavra sagrada, Joaquim deixa de lado o único universo identitário conhecido
– e permitido – ao povo da roça: o trabalho com a terra.
Em O telescópio, peça que conta a história dos donos da fazenda no
sul de Minas onde Joaquim, Dolor, Manoel e Artuliana são agregados, a visão que se
tem do “messias” Joaquim é de alguém que foge do serviço braçal para andar
“vagabundeando” pelo mundo:
LEILA: (...) Por falar em filharada, como vai a Dolor? Ainda mora na
fazenda?
ADA: Mora. Mas, se fosse o pai, eu mandava embora.
LEILA: Por quê? Dolor foi minha pajem!
ADA: O filho não quer fazer nada. Virou crente; agora é pregador.
LEILA: Joaquim?! Pregador?!
ADA: Com Bíblia e tudo. Anda por aí, dizendo que vai voar pro céu.
Basta bater os braços.
LEILA: (Rindo) Mas... Ficou louco?!
GENI: (...) Louco de atirar pedra!
ADA: Se fosse papai, eu mandava ele voar mais adiante.
LEILA: Coitada da Dolor! (Ibid., p.201-2)
Nas diferenças entre as famílias de Miguel e Egisto em Os ossos
do bao e de Leila e Luís em O telescópio, bem como na história de Dolor e
do Joaquim de Vereda da salvação, encontram-se considerações sobre o
trabalho e sua ligação com a terra como formadores de identidade. Para o outro
Joaquim, o de A moraria, a ociosidade do filho, frente à perda do valor de seu
nome, o é consagração, é culpa.
63
MARCELO: Não podia continuar no frigorífico. Não podia. Às vezes,
sentia que ia enlouquecer. Por que havia de continuar? Por quê? Não
se vive para isto.
JOAQUIM: Para quê, então? Para ser um inútil?
MARCELO: O senhor finge não compreender o que digo. Não me
adapto a esta ordem de coisas.
JOAQUIM: Servia para ajudar sua irmã até voltarmos para a fazenda.
Mas, é melhor ficar na cama do que enfrentar a vida.
MARCELO: O senhor me ensinou?
JOAQUIM: Mostrei o caminho. Fiz minha obrigação.
MARCELO: O caminho! É exatamente o que estou querendo provar:
que o senhor mostrou o caminho errado O caminho que para nós,
principalmente para nós, não tem mais sentido. O senhor não me
educou para ser operário.
JOAQUIM: Então, por que não estudou? Não foi por falta de falar.
(ANDRADE, 1986, p.159)
Como explica o próprio Jorge Andrade,
o Joaquim de Vereda pertence à mesma família, à mesma memória
do Joaquim de A moratória, pois são dois expoentes opostos do
nosso mundo agrário, dois produtos da mesma mentira, duas vítimas
da mesma injustiça, são duas presa do mesmo sofrimento, legítimos
representantes de um mundo que se completa e se opõe. Um liame
os une e os divide ao mesmo tempo; um oprime por amor à terra, o
outro aceita a opressão pelo mesmo amor. (Ibidem, p.13)
Ao contrário do pai Joaquim, que plantou sua identidade na terra,
Marcelo, em vez de construir sua própria marca a partir de seu suor e esforço,
mantém-se preso às facilidades que tinha quando ainda estava na fazenda e podia
contar com o fato de ser “filho do seu Quim”. Porém, seu sentimento familiar outro
universo identitário limita-se ao sobrenome, tornando-o incapaz sequer de pensar
em ajudar a irmã a sustentar a casa e tentar recuperar o que a família perdeu.
MARCELO: O que importa é aceitar ou não o presente; esquecer,
saber esquecer. (Pausa) Papai! O senhor não compreende que
depois de ter vivido solto, no meio do campo; depois de ter conhecido
uma outra segurança, não é possível ficar preso o dia inteiro dentro
de um salão com o chão sujo de sangue e receber ordens de gente
que... que... Não agüentava aquilo. Estava farto. Era que a
saudade, a consciência do que fomos, mais me oprimia.
JOAQUIM: Eu afirmo a você: (Num grito) ainda somos o que fomos!
[grifo nosso] (ANDRADE, 1986, p.159)
64
Para Marcelo, é impossível aceitar ordens de gente sem nome tão
desprovida de seus padrões identitários que se torna mesmo inominável. Da mesma
maneira, submeter-se a pisar no chão sujo de sangue do frigorífico é pisar no próprio
sangue, na própria genealogia. Da mesma forma, em A escada, enquanto os demais
filhos de Antenor e Amélia defendem a internação dos pais num asilo, Francisco
discursa a favor da lealdade através do sangue:
VICENTE: Eles precisam ir, Francisco.
FRANCISCO: Não vêem que isto é uma vergonha?
HELENA: Vergonha por quê?
FRANCISCO: Porque são nossos pais, sua egoísta. (...) Então não
prestamos para tomar conta de dois velhos, justamente quando mais
precisam de nós? Não vêem que... enquanto papai lutar por seus
direitos, pensar que vai ganhar a demanda... sentirá que vive? Será
alguém preso a um passado que foi grande! E nós não seremos
gentinha que não sabe de onde veio, que nunca teve nada. [grifo
nosso] (Ibidem, p.388)
Enquanto Francisco é incapaz de renunciar ao nome (simbolizado pelos pais e pelo
processo que Antenor move na Justiça para recuperar a chácara da família), por não
conceber a idéia de ver a própria genealogia aniquilada, Vicente
4
, seu irmão, sente-
se aprisionado por esse mesmo elo de descendência:
VICENTE: [a Francisco] (Exaltado) Quero vencer com o meu esforço.
Ter um nome feito e não herdado. estou farto de ouvir falar em
grandezas passadas, de carregar este nome como se fosse uma
canga! Uma canga, está ouvindo? Arranque esse peso das costas e
seja você mesmo! (Ibid., p.376)
As peças compiladas em Marta, a árvore e o relógio denunciam o
principal conflito abordado pela dramaturgia de Jorge Andrade: a existência de
personagens inertes, aprisionados a um passado irrecuperável, mas ao qual é preciso
metaforicamente retornar e manter vivo para compreender os impasses presentes.
MARIANA: Mais forte do que as promessas é a morte que nos liga à
terra. Sinto tudo dentro do meu corpo, como se fizesse parte do meu
sangue. As rochas... a igreja... o adro!
4
Embora não seja o mesmo personagem, o Vicente de A escada guarda muitas semelhanças com o
Vicente de Rasto atrás e O sumidouro, como os fatos de ser escritor, de estar escrevendo uma peça
sobre Fernão Dias e, fundamentalmente, de sentir-se sufocado pelo peso do passado da família.
65
GABRIEL: Mariana! Não podemos passar a vida venerando os
mortos. Foi para escapar a isso que sonhamos partir. É preciso saber
escolher, Mariana.
MARIANA: Isto não depende de escolha. coisas que não
podemos evitar.
GABRIEL: Mudaste muito. Mal te reconheço!
MARIANA: Gabriel! Duas pessoas perderam a vida. Não
compreendes? Duas pessoas que eram a minha família. Como
queres que seja a mesma?
GABRIEL: Também perdi a minha.
MARIANA: Há muito tempo. Viveste sem ela.
GABRIEL: Prometeste uma para mim. Não te lembras?
MARIANA: Não a este preço.
GABRIEL: Mas que preço? Foi o próprio mundo de Pedreira que
matou Martiniano, como matou minha família.
MARIANA: Nossos mortos não podem ser abandonados.
GABRIEL: Não sabes mais pensar a não ser em mortos?!
MARIANA: Vivo conforme meus princípios.
GABRIEL: Não eram princípios teus, há poucos dias atrás.
MARIANA: São agora. Quando menos esperamos, ficamos presos a
compromissos superiores a nossos sentimentos.
GABRIEL: Que compromissos?
MARIANA: Tu, com o povo que agora tem o direito de partir. Eu...
com os mortos de Pedreira. Eles precisam de mim! Sei que Pedreira
não morrerá enquanto eu estiver aqui. (ANDRADE, 1986, p.112-3)
Em Pedreira das Almas, enquanto Gabriel tem os olhos voltados para
o futuro e para as terras distantes e férteis aonde pretende guiar o povo, Mariana, tal
qual uma Antígona emparedada à rocha, mantém-se presa aos corpos de sua mãe e
seu irmão, em Pedreira. O drama de Mariana e Gabriel é uma reflexão sobre a
relação do ser humano com seu passado, seu sangue, sua terra, sua cidade
(Urbana/mãe) – compromissos superiores até mesmo aos sentimentos. É um embate
entre o precisar recordar e a necessidade de seguir em frente.
Mais uma vez tem-se o conflito da identidade. Para Mariana, seu
destino é manter-se fiel à família e a cidade onde nasceu e cresceu; é inconcebível
abandonar os corpos de sua mãe e seu irmão; é preciso guardar seus mortos, sua
tradição. Para Gabriel, por sua vez, a identidade está no papel de guiar o povo para
a “terra prometida” e construir, com seus braços, uma nova vida. Para ela, a
identidade é o sangue; para ele, o trabalho. Enquanto Mariana, como Antígona, é
66
uma guardiã da velha ordem, das leis do sangue
5
que não precisam ser escritas,
Gabriel, como o anjo bíblico, é o anunciador da nova era.
Conforme Martin Esslin (1978, p.24),
o drama não é apenas a mais concreta isto é, a menos abstrata
imitação artística do comportamento humano real, mas também a
forma mais concreta na qual podemos pensar a respeito de situações
humanas.
Assim, a relação de uma obra dratica com a memória é, de certa
maneira, o rito do homem diante de sua própria hisria, a forma como enfrenta a vida e
lê o mundo. Através do texto e de sua representão cênica, o homem revive o drama
de sua própria existência e pode encontrar respostas para seus medos e vidas.
O teatro sempre foi uma arte total, e isso em dois sentidos. Primeiro
porque implicava, em grau maior ou menor, uma experiência de
integração das artes; de uma ou outra maneira, todas as artes
estavam presentes na atividade cênica. Em segundo lugar, porque
através do jogo cênico o teatro expressava a verdade dos valores
fundamentais de determinada comunidade; o teatro apresentava o
caráter de celebração coletiva que punha à mostra aqueles valores
que religavam entre si os membros da sociedade. Tratava-se, por
isso, de uma atividade essencialmente pública, social, política.
(BORNHEIM, 1983, p.77-8)
A cena andradiana, fortemente marcada pela meria histórica
mineira e paulista, é pública, social e potica no sentido em que ajuda a desvelar
valores de sua gente. O aspecto historiogfico aparente dos textos, ao fixarem
momentos específicos da trajetória histórica brasileira sobretudo no que tange
os ciclos do ouro e da cafeicultura ultrapassa-os a ao presente e, assim,
problematiza a relão do homem com seu passado. Em qualquer época em que
forem encenados, evidenciao o conflito eterno do ser humano diante do que foi,
do que é e do que deveria ter sido.
No ritual como no teatro, uma comunidade humana experimenta e
reafirma sua identidade. Isso torna o teatro uma forma política,
porque preeminentemente social. E é da própria essência do ritual
que ele não ofereça a sua congregação (ou, em termos teatrais,
sua platéia) uma experiência coletiva de alto nível espiritual, como
5
Antígona traz em seu nome o antagonismo ao novo, enquanto Mariana o faz reunindo o nome de
Maria e o de Ana (Sant’Ana, mãe da Mãe de Deus) – destinos selados.
67
também, em termos muito práticos, lhes ensine ou relembre seus
códigos de conduta, suas regras de convívio social. Todo drama,
portanto, é um acontecimento político: ele ou reafirma ou solapa o
código de conduta de uma sociedade dada. (ESSLIN, 1978, p.32)
Senhora na Boca do Lixo, por exemplo, aborda esse confronto de
valores e condutas: de um lado está Noêmia, que, em sua obsessão por manter o
pertencimento à elite, recorre ao contrabando em nome da manutenção de um
mundo de aparências que acredita ser real; em posição diametralmente oposta está
Camila, sua filha, cujos pés fincados na realidade evidenciam os devaneios e delírios
da mãe e de sua coleção de valores caducos.
CAMILA: Mamãe!
NOÊMIA: (Irrita-se ao ver Camila) Como soube que eu estava aqui?
CAMILA: Laurita acabou de telefonar.
NOÊMIA: Só podia ser ela!
CAMILA: (Humilhada) Como aconteceu, mamãe?
NOÊMIA: Denúncia. Não é simplesmente ridículo?
CAMILA: Abriram inquérito?
NOÊMIA: (...) Como vou saber? Que tenho com tudo isto?
CAMILA: Como Laurita soube?
NOÊMIA: É história que ainda precisa ser esclarecida. Penteado
apareceu aqui com dedicação verdadeiramente comovente, mas
suspeita. Foi preso também.
CAMILA: Mas, por quê?
NOÊMIA: Não sei. Nem quero falar sobre isto. (Olha à sua volta,
dominando-se) Diga, minha filha, não é lindo? Art nouveau do mais
requintado. Veja o lustre! Galé legítimo. Reparou na escada? Mais
graciosa não poderia ser. O forro é maravilhoso!
CAMILA: (Atônita) Estamos na cadeia, mamãe!
NOÊMIA: (Transfigurando-se) É o palacete do senador Jaguaribe,
Camila. Quando entrei aqui, cheguei a ver os movimentos graciosos
de Catarina no dia de...
CAMILA: (Corta, áspera) A senhora não percebe em que situação
está?
NOÊMIA: Foi um feliz encontro. Pensei que não existisse mais!
CAMILA: Mamãe! [grifo nosso] (ANDRADE, 1986, p.322-3)
A prática do contrabando por uma elite que quer se manter nesse
patamar a todo o custo também é denunciada em Os ossos do barão:
VERÔNICA: (...) Enquanto vivemos agarrados a ele [o nome], sua
irmã, Miguel, entra em todas as listas “das dez mais”. E sabemos
muito bem à custa de quê, não é? Viagens que rendem milhões! É só
aparecer um delegado crente... e vejo as manchetes nos jornais:
68
“Contrabandista Quatrocentona”. Isto, sim, será a vergonha da
família. (ANDRADE, 1986, p.426)
Há em Noêmia, entretanto, uma certa inoncia, que a impede de perceber que o que
faz trazer roupas e perfumes da Europa para vender para as amigas configura-se,
legalmente, em contrabando; para ela, o somente mimos pelos quais as amigas
anseiam, atos naturais de um viajante, encomendas. Os valores que aprendeu desde
sempre, os luxos aos quais foi acostumada, estão em seu sangue; assim tamm
acontece com a casa do Senador Jaguaribe, o familiar que a impede de ver sua
transformação em uma delegacia de polícia universo dos animos para sua classe.
Pertencer a esse mundo que agora existe em sua imaginação, para
ela, é um direito adquirido. Conseqüentemente, no nível da personagem, a lei é outra,
não a da igualdade de conduta. Em seu encastelamento, o que traz da Europa e
vende para financiar suas viagens são trocas simbólicas dentro do tempo escorrido
(não passado). É a via natural que se distribui como satisfação das necessidades
construídas pelo capitalismo – em seu caso, da sobrevivência e manutenção da única
identidade conhecida: aquela em que a lei não toca, porque o foi escrita; e de
manutenção de status para suas “clientes”. Seus atos são de alçada natural,
genealógica, sangüínea; um vampirismo identitário fixado em objetos das “metrópoles”
que o constituem. Como acontecia com os personagens de Tchekhov, é difícil até para
o leitor/espectador condenar ou libertar Noêmia... simplesmente porque ela é o
fantasma que ronda – o fantasma da origem.
Tomando para Jorge Andrade as palavras de Peter Szondi (2001, p.172)
sobre Arthur Miller, pode-se perceber que “o passado chega à representão tal como se
manifesta na vida: por sua ppria vontade, na ‘mémoire involontaire”. Dessa maneira, as
vivências subjetivas dos personagens, suas reminiscências, afetam e são afetadas de
forma diferente por cada um dos envolvidos na composição da cena desde o
dramaturgo, até o diretor, os atores e a platéia , dependendo do modo como cada um
traduz da e para a representão suas pprias vivências subjetivas e reminiscências.
69
2.2 As vozes do texto
A primeira memória a insistir sobre o presente momento da encenação
é a memória autoral de uma representação pretendida. As didascálias
6
trazem à tona
a imagem vista pelo dramaturgo no instante de sua escrita; são elas que transmitem
ao leitor/encenador a idéia primordial de como as palavras que se desenham no
texto podem ganhar vida e ser traduzidas para o palco.
A memória do autor Jorge Andrade está fortemente marcada em suas
rubricas. Ao descrever os cenários grandiosos, requintados e, por vezes,
decadentes, de Os ossos do barão e/ou Senhora na Boca do Lixo, por exemplo,
ele usa a memória cultural como suma de casarões pertencentes às tradicionais
famílias paulistanas para representar e significar o mundo no qual se enclausuram
seus personagens. Além disso, mesmo histórias que não foram vividas de fato por
ele, mas sim ouvidas, lidas e incorporadas à sua memória, trazem consigo
lembranças de uma realidade palpável, vivenciada e/ou observada pelo dramaturgo.
Pode-se mencionar, nesse contexto, Vereda da salvação, cujo argumento foi
extraído de um fato acontecido em 1955, na Fazenda São João da Mata, pertencente
ao pequeno município de Malacacheta, no norte de Minas Gerais. Mesmo inspirada
num episódio distante, a peça está impregnada de lembranças do próprio Jorge
Andrade, como ele mesmo confessa:
Durante dez anos trabalhei na fazenda do meu pai como fiscal. E,
como fiscal, ia para o cafezal às sete da manhã e voltava à noite.
Almoçava, tomava café, trabalhava, conversava com os colonos, vivia
com eles o dia todo. Freqüentava suas casas, bailes, casamentos,
enterros e batizados. Sentado sob um de café, andando pelos
carregadores, em torno dos montes de milho, perto dos batedores de
arroz ou no eito das capinas, ouvia suas queixas e sonhos e, pouco a
pouco, aprendi a estabelecer a horrível equação: o que tinham direito
a receber da vida e o que realmente recebiam. A diferença formava
uma muralha que emparedava, na mesma injustiça, fazendeiros e
colonos. (...) A história é a de Malacacheta, mas, no fundo de suas
personagens, são outros seres humanos que aparecem, uma galeria
infindável de rostos atrás do rosto de cada personagem. Não são
6
Denomina-se como didascália ou rubrica (jargão teatral) a todas as indicações textuais fora dos
diálogos que sugerem cenários, figurinos, luzes e até formas de atuação.
70
palavras ouvidas em Malacacheta, mas gritos de um vasto mundo,
expressões de um longo sofrimento, símbolos de uma humanidade
privada e esmagada. Foi isso que procurei dizer em Vereda da
Salvação. (ANDRADE, 1986, p.12-3)
A identidade autoral andradiana também se faz fortemente clara em
peças como Rasto atrás e O sumidouro. Ambas são, antes de tudo, exercícios de
metalinguagem: “metatexto” e “metateatro” que se fundem em torno do protagonista,
Vicente, o dramaturgo que segue atrás de seus próprios rastos em busca da gênese
de sua escrita seja de volta à casa paterna, seja à procura de um passado ainda
mais remoto, através da (re)construção da história de Fernão Dias e de seu filho
José. A imagem da perseguição está presente na totalidade dos dois enredos. Em
Rasto, ela se desvela desde a cena de caça em um filme, proposta para ser
projetada na abertura do espetáculo, até o próprio título, metáfora da criação literária
como caçada interminável de si mesmo.
VICENTE: (Alheia-se um pouco) Papai dizia que certas caças correm
rasto atrás, confundindo suas pegadas, mudando de direção várias
vezes, confundindo suas pegadas, até que o caçador fique
completamente perdido, sem saber o rumo que elas tomaram. E
muitas vezes, são tão espertas que ficam escondidas bem perto da
gente, em lugares tão evidentes que não nos lembramos de procurar.
(Ibidem, p.461)
em O sumidouro, descortina-se a trajetória de Fernão Dias, o
bandeirante que entrou para a história sob a alcunha de “o caçador de esmeraldas”,
mesmo sem jamais ter encontrado pedras preciosas. A trama segue seus passos
embrenhando-se nas matas do interior do Brasil. Mais do que isso, porém, a peça é
o mergulho de Vicente a partir dentro de sua própria obra, o dramaturgo no instante
de sua criação.
VICENTE: (...) Fico por conta... vendo meu filho ser educado em
conceitos que ninguém, com um pouco de inteligência, aceita.
reparou naquelas estampas? Dos bandeirantes? Veja se não é
vontade de distorcer, de criar heróis. Não são as figuras que certos
documentos revelam. (Liga a vitrola, excitado) Não viu as lições de
história e de religião que Martiniano trouxe do colégio?
LAVÍNIA: (Compreendendo que ele está perdido no trabalho) Todo
mundo aprende as mesmas coisas.
(...)
71
VICENTE: Claro! Bandeirantes heróicos que alargaram nossas
fronteiras! Quase podemos vê-los discutindo em volta de mapas: por
esta rota, vamos diminuir o Paraguai; por aquela, tomaremos o
Pantanal da Bolívia – menos o petróleo, é claro; por esta,
empurramos a Venezuela em direção às Caraíbas – sempre deixando
o petróleo de fora; e por esta aqui, esprememos o Uruguai contra o
Prata. Assim, obrigamos o meridiano de Tordesilhas a um recuo de
quase vinte graus. Conscientes da história que iam fazer. Únicos
descobridores da ciência do futuro!
LAVÍNIA: (Ri)
VICENTE: E já ouvem bilaquianamente:
(Gozando) “Nesse louco vagar, nessa marcha perdida,
Tu foste, como o sol, uma fonte de vida:
Cada passada tua era um caminho aberto! Cada pouso mudado, uma
nova conquista! E enquanto ias, sonhando o teu sonho egoísta,
Teu pé, como o de um deus, fecundava o deserto!”
Este ainda emprega um adjetivo pejorativo: egoísta. (Aponta) Isto
parece gente de carne e osso? (ANDRADE, 1986, p.533-4)
Sumidouro, conforme Kougan & Houaiss, tem como um de seus
significados “curso subterrâneo de um rio, atras de rochas”. Nesse sumidouro
andradiano, subterneo e claustrobico, surpreende-se Martiniano mesmo
nome do mártir de Pedreira das Almas, do andarilho de As confrarias e de
outros tantos que aparecem ao longo das peças, explicitamente ou apenas em
referências como filho de Vicente e Lavínia. Eis uma imagem da latência cultural
identitária, das fontes que sobem espada e confusamente à tona, ao leito de
rochas que constitui a obra de Jorge Andrade. Basta lembrar que Vicente, em sua
longa jornada passado adentro, ressuscitando rostos e imagens, é o nome do
personagem mais autobiográfico constrdo pelo dramaturgo, aventurando-se,
também, numa longa jornada pela noite da escrita.
O tom jocoso e irônico com que Vicente se refere à fama heróica dos
bandeirantes, acentuando debochadamente, inclusive, a não-conquista, pela
expansão territorial brasileira, da maior riqueza do mundo contemporâneo o
petróleo –, revela seu desprezo pela ostentação de um passado que, para ele, nada
tem de glorioso. Nas palavras de Vladimir Jankélévitch (1964, p.36),
a ironia nos apresenta o espelho no qual nossa consciência se
refletirá a seu bel-prazer: ou, se preferirem, ela reenvia ao ouvido do
homem o eco que repercute o som de sua própria voz. E esse
72
espelho não é ‘o sinistro espelho no qual a megera se olha’, mas o
lúcido, o sábio espelho da introspecção e do autoconhecimento
7
.
Assim, ao se propor a desvendar, ironicamente, as “verdades” da
história brasileira, Vicente e, conseqüentemente, Jorge Andrade pretendem
elucidar (olhar lucidamente) elementos que marcaram sua própria trajetória e
também a história brasileira.
LAVÍNIA: Diga a verdade a Martiniano. Não foi para isto que resolveu
escrever esta peça? Aliás, você sempre tem uma desculpa para cada
uma.
(...)
VICENTE: Ter a verdadeira visão. É o que importa.
(...)
VICENTE: Este trabalho será diferente.
LAVÍNIA: É sempre assim: a última peça é que contém todas as
verdades.
VICENTE: Depois de acabar com os demônios familiares, é preciso
exterminar os culturais. Aprendi que estão, todos, mexendo o mesmo
caldeirão. E lá dentro, quem é cozido, são pessoas como eu. (Vira-se
e olha Fernão Dias)
LAVÍNIA: Que está olhando?
VICENTE: Nada. Um pensamento. Não acha que será peso demais
para Martiniano? Principalmente no mundo de hoje?
LAVÍNIA: Peso?!
VICENTE: Foi em Martiniano, meu bem, que Gabriel
8
e Fernão Dias
se encontraram.
LAVÍNIA: (Preocupada) Fernão Dias?
VICENTE: Sua família não vive blasonando descender de Fernão
Dias? Não vou permitir que Martiniano carregue essa canga.
LAVÍNIA: Você tem cada uma!
VICENTE: Quero que meus filhos vivam no mundo de hoje, que
sejam eles mesmos. [grifo nosso] (ANDRADE, 1986, p.534)
Na mesma medida em que, em O Sumidouro, Vicente procura
exorcizar seus demônios culturais, em Rasto atrás, o personagem parte em busca
da expurgação dos demônios familiares. Apesar das diferenças, no entanto, ambas
as peças guardam também a tentativa de enfrentar os fantasmas da própria escrita,
criadores de obstáculos à consolidação da identidade autoral.
7
L’ironie nous presente la glacê ou notre conscience se mirera tout à son aise: ou, si l’on prefere, elle
renvoie à l’oreille de l’homme l’écho qui repercute le son de sa propre voix. Et ce miroir n’est pas ‘le
sinistre miroir où la mégère se regarde’, mais le lucide, le sage miroir de l’introspection et de la self-
connaissance. (T.A.)
8
Gabriel, de Pedreira das Almas, filho de Martiniano, de As confrarias, é bisavô de Vicente.
73
Ao longo da história da literatura, a construção da identidade do autor
através de uma obra trespassada por sua memória caiu por terra quando, num artigo
bombástico, Roland Barthes (1988, p.65) declarou que
a escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é
esse neutro, esse composto, esse oblíquo aonde foge o nosso
sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade, a
começar pelo corpo que escreve.
Com A morte do autor, Barthes ajudou a sepultar também a velha
ctica, histórica e biogfica, que buscava explicar uma obra fora do texto, como
resultado da vida de quem a produziu, inserindo o desafio de fazê-lo, se assim
se pretender, pelo avesso, pelo percurso inverso. A partir de Barthes, porém,
tornou-se mais apropriado construir a identidade da obra simplesmente atras
da leitura/interpretação, sem a pretensão de querer encontrar nela um sentido
único, certo, acabado.
É claro que a literatura o deixou de ser, com isso, fruto da relação
entre as experncias sejam elas vividas, vistas ou simplesmente ouvidas e
arquivadas na memória e a imaginação. Contudo, a partir desse momento, a
equação deixou de ser compreendida como resultado da genialidade de um ser
empírico, dotado de rao, que premedita cada palavra, cada frase, cada
sentido. Ao contrio, o autor perdeu seu lugar como passado de sua escrita
para se transformar em algo que nasce junto com o pprio texto (cf. Ibidem,
p.68). Segundo Barthes, outro tempo não há senão o da enunciação, e todo
texto é escrito eternamente aqui e agora (Idem). Pode-se dizer que, para ele, a
obra literária equivale ao espetáculo teatral, o qual, a cada apresentação, é um
texto completamente novo, constrdo no instante.
O assassinato barthesiano do autor pela escrita, tirando-o do umbigo da
literatura, é confirmado por Michel Foucault (1992, p.36). Para ele,
nossa cultura metamorfoseou este tema da narrativa ou da escrita
destinada a conjurar a morte; a escrita está agora ligada ao sacrifício,
ao sacrifício da própria vida; apagamento voluntário que não tem de
ser representado nos livros, que se cumpre na própria existência
74
do escritor. A obra que tinha o dever de conferir a imortalidade
passou a ter o direito de matar, de ser a assassina do seu autor.
Rasto atrás e O sumidouro, porém, são, sim, histórias de um escritor
que persegue a origem de sua obra para encontrá-la no próprio passado, na própria
vida se é que se pode afirmar que outros não percorram a mesma trilha; ele
apenas o faz, no mais das vezes, ostensivamente. Aliás, o próprio Jorge Andrade
ressaltava, em depoimentos e entrevistas, a impossibilidade de se criar do nada e a
ligação tênue entre fato e ficção.
Ninguém inventa do nada. Tudo se encontra à nossa volta, vivendo e
se impondo nas formas mais variadas. O mundo que trazemos em
nós é o que conseguimos ver. Quanto maior a capacidade de
sentir, maior e mais válida a memória, maior e mais justa a visão,
mais humanos e mais eternos os símbolos e mais universal a
mensagem. a capacidade de ver e sentir é que é pessoal e
intransferível. O resto é um bem ou um mal comum. A transposição, a
interpretação, os símbolos criados é que irão determinar o valor da
temática e a visão do autor. Os fatos reais podem ser imediatos ou
remotos ou, até mesmo, pertencer á memória anterior ao escritor.
Podem ser individuais, grupais ou coletivos. Podem ser cômicos,
dramáticos ou trágicos. (ANDRADE, 1986, p.12)
O drama criador de Vicente – o do menino que gostava de livros e de luas e, por isso
mesmo, era incompreendido pelo pai – guarda muitas semelhanças com o do próprio
Jorge Andrade, hesitando o tempo inteiro entre a ficção e a memória, a imaginação e
o real, embora eternamente em dúvida sobre a própria realidade.
Apesar da aparente discordância, entretanto, uma análise mais
profunda permite perceber que a concepção barthesiana permanece, ao menos em
parte, em Rasto atrás. A criação literária, “autoral”, pode ser entendida como
suplemento derridiano, que enfoca um aspecto da vida e altera sua estrutura,
desconstruindo-a, deslocando-a para um segundo centro, transformando-a em texto.
Apesar dos itálicos que parecem querer desafiar a ficção (...)
“Ouça, saiba-o, isto aconteceu na realidade’” resta impossível
decidir se este na realidade é ainda imanente à ficção, tal um tremor
da sobrecarga ficcional, um efeito suplementar da invenção, seja da
ficção autobiográfica, seja ainda do sonho ou da imaginação (...).
(DERRIDA, 2005, p.19)
75
Se por um lado o escritor é compreendido como um caçador de si,
fazendo do gênero literário a armadilha para prender gêneses e genealogias de
sua vida e obra, por outro ele é também uma caça, que confunde os próprios
rastos, que desconfia de si mesmo. Dessa forma, como não tem domínio
absoluto sobre o pprio pensamento nem, por conseqüência, sobre o que
escreve, não pode mais ser interpretado como alegoria do autor, em seu sentido
romântico de deus supremo da obra.
Numa passagem, logo no início da primeira parte de Rasto atrás,
Vicente conversa com a mulher, Lavínia, sobre o fracasso de crítica de uma de suas
peças, o que o faz recordar o passado e querer buscar nele as origens do problema:
LAVÍNIA: Sua peça não fracassou. porque meia dúzia de idiotas
não compreendeu você, não justifica que julgue seu trabalho um
fracasso.
VICENTE: Você está invertendo os dados, Lavínia. Foi meia dúzia
que me compreendeu. E minha peça contava verdades de nossa
gente. Verdades que presenciei quando morava na fazenda. Cada
pessoa que saía do teatro fazia-me sentir como se meu trabalho
fosse gratuito, inútil. Parecia que havia destruído um mundo em mim,
e que não conseguiria substituí-lo. Eu sei que o fracasso também é
positivo, mas quando se tem coragem de voltar-se para dentro de si
mesmo e avaliar os erros que cometemos. Devo aproveitá-lo para
entender-me... e criar alguma coisa. Para isso preciso compreender
esse passado e me libertar. (ANDRADE, 1986, p.460)
O diálogo apresenta um elemento crucial para se entender o
parricídio da escritura: enquanto escritor, Vicente cujo nome, do latim Vicentius,
significa aquele que vence não consegue superar a falta de controle sobre o
que podem fazer ou compreender de suas palavras. Só autor no instante em
que o texto acontece, podendo encarnar-se, inclusive, no leitor da peça ou no
espectador da cena, uma vez que, como já dito, todos os envolvidos no fazer
teatral compartilham da elaborão de um novo texto ou de novos textos. Em
vista disso, Vicente, o dramaturgo que declara escrever verdades de nossa
gente”, não é dono de verdade nenhuma. De caçador, o escritor passa a ca
acuada da linguagem, duvidando de si e do que procura dizer.
76
Ao dar-se conta de que não é dono da própria voz, pois pode ser
(in)compreendido à revelia, Vicente deixa de ser o doador generoso de verdades
únicas que abarcam todas as pessoas. “A pior coisa que pode acontecer a um autor,
Lavínia, é perceber que mente e não saber como sair da mentira” (ANDRADE, 1986,
p.460), diz ele. No entanto, para sair da mentira é necessário deixar de lado o lugar
de imponência do autor e partir, rasto atrás, à procura e ao mesmo tempo em fuga
– dos segredos que se escondem por trás do texto.
Na escritura múltipla, com efeito, tudo es para ser deslindado,
mas nada para ser decifrado; a estrutura pode ser seguida,
desfiada” (como se diz de uma malha de meia que escapa) em
todas as suas retomadas e em todos os seus esgios, mas não
há fundo; a escritura propõe sentido sem parar, mas é para
evaporá-lo: ela procede a uma isenção sistetica do sentido.
(BARTHES, 1988, p.69)
A suplantação do escritor pelas palavras é ainda mais fortemente
encontrada no drama, no qual a escrita se torna viva na medida em que escoa pelas
vozes das próprias personagens. Peter Szondi (2001, p.30) defende, assim como
Barthes o faz com relação ao texto, que o drama é absoluto. De uma maneira bem
radical, por vezes até inconcebível para o drama moderno, a relação dramática, para
Szondi, é uma relação pura, desligada de tudo o que lhe é externo, que não conhece
nada além de si mesma.
O dramaturgo está ausente do drama. Ele não fala; ele institui a
conversação. O drama não é escrito, mas posto. As palavras
pronunciadas no drama são todas elas de-cisões [Ent-schlüsse]; são
pronunciadas a partir da situação e persistem nela; de forma alguma
devem ser concebidas como provenientes do autor. O drama
pertence ao autor como um todo, e essa relação não é parte
essencial de seu caráter de obra. (Idem)
Contudo, apesar de toda a teorização sobre a superação do autor pela
escrita, a obra de Jorge Andrade se apresenta como uma reflexão sobre o próprio
fazer dramatúrgico-literário e sobre o instante da criação, num diálogo entre criador e
criatura. Em O sumidouro, através de recursos próprios à sátira menipéia
9
, o
9
Gênero cômico de teatro popular comum na Idade Média que mistura personagens históricos
rompendo totalmente a cronologia de suas ações fabulosas. (Ver BAKHTIN, 1993)
77
dramaturgo apropria-se de um personagem “real” Fernão Dias, o bandeirante
caçador de esmeraldas que condenou o próprio filho bastardo à forca e o coloca
em confronto com o autor a peça no caso, Vicente para desconstruir o ideal
histórico e heróico brasileiro.
FERO DIAS: (...) Você não viveu em meu tempo. o pode
julgar o que era certo ou errado.
VICENTE: o condeno o homem que foi.
FERO DIAS: Eno, para que diminuir o que fiz?
VICENTE: o é o que me proponho. Pelo contrário. Nem estou
contra sua palavra. Mas, contra o que se cometeu em nome dela.
FERO DIAS: Eu encontrei as minhas soluções.
VICENTE: Erradas.
FERO DIAS: Erradas ou certas, eram as minhas.
VICENTE: Está com medo de encará-las novamente?
FERO DIAS: (Pára, contraindo-se)
VICENTE: (Em grande expectativa) Tem receio de ver até onde o
levaram? O que destruíram? De minha parte quero apresen-lo
como realmente foi, não um alienado sem sentido, o herói das
pedras verdes! Aceita o meu desafio? Do que tem medo?
FERO DIAS: Não conheci o medo em minha vida.
VICENTE: Conheceu, sim. E é bom que tenha conhecido. Não se
aceitam mais homens sem medo. [grifo nosso] (ANDRADE, 1986,
p.542-3)
Mesmo utilizando-se de recursos meniicos, pprios à sátira,
Vicente não tem inteão de mostrar Fero Dias pior do que foi, mas, em suas
palavras, como realmente foi: investigar o cador de esmeraldas que encontrou
somente turmalinas e as raes que o levaram a condenar o filho mameluco à
morte por traição.
FERNÃO DIAS: (...) Não cometi nenhum crime. O de meu filho eu
conheço muito bem.
VICENTE: Não conhece nada. Você continua cego.
FERNÃO DIAS: Eu estava certo.
VICENTE: (Grita) Estava errado, num mundo errado.
FERNÃO DIAS: (Exaltado) Vivi de acordo com ele.
VICENTE: É isto que estou querendo que veja: devia ter descoberto
minas para outros. Você é personagem porque foi usado para coisas
falsas.
FERNÃO DIAS: Ninguém me usou. Fui dono de minhas decisões.
(ANDRADE, 1986, p.567)
78
Embora não se trate de uma sátira, é pela acronologia menipéica que,
em O sumidouro, o herói construído pelo imaginário coletivo, nos moldes do ideal
filosófico platônico de edificação moral, começa a ruir. Pela voz de Vicente, o
escritor que entra em sua própria obra – Jorge Andrade tenta, a despeito de todas as
teorias que colocam o autor para fora de suas palavras, mostrar a função do
dramaturgo e do texto dramático enquanto guardador e desconstrutor de
memórias, enquanto guia por esses intrincados caminhos. Como mostrar, entretanto,
quem de fato foi Fernão Dias, se Vicente não conhece sequer a si mesmo? No
fundo, os dois se mostram como o mesmo reflexo esgazeado de Jorge Andrade em
busca das verdades de sua escrita.
FERNÃO DIAS: (Caminha, observando Vicente)
VICENTE: (Incomodado) Que foi?
FERNÃO DIAS: Você disse que dependemos um do outro; que nossa
verdade é uma só, não é assim?
VICENTE: É.
FERNÃO DIAS: Voltando pelos seus caminhos, o que encontrou que
tinha deixado de procurar?
VICENTE: Não sei.
FERNÃO DIAS: Por que não me olha? Quem está usando você? É
por isto que não me deixa em paz? Que está com medo de ver?
VICENTE: Não tenho medo.
FERNÃO DIAS: Não se aceitam mais homens sem medo. Foi você
que disse!
VICENTE: Posso fazer você desaparecer quando quiser.
FERNÃO DIAS: (Malicioso) Agora que começamos a descida?
VICENTE: Mas posso fazer. Você é apenas uma personagem.
FERNÃO DIAS: Procurou-me para quê? Para provar que não tem
coragem de tomar as decisões que tomei? Tomei porque acreditava.
E você? Vamos! Tente me fazer desaparecer.
VICENTE: (Passa, aflito, a mão pela testa. Subitamente, volta-se,
ouvindo o som do relógio-carrilhão)
FERNÃO DIAS: (Não ouvindo) Que foi?
VICENTE: Pensei ter ouvido a voz dos mortos.
FERNÃO DIAS: Os mortos não falam.
VICENTE: Você não está falando?
FERNÃO DIAS: É você quem fala.
VICENTE: Pela voz dos mortos... porque acredito nos vivos.
FERNÃO DIAS: Não saio da minha árvore como você não sai deste
lugar. Para que apontar minhas falhas, se não tem coragem de
assumir as suas. Vamos! Tente! Com os outros pode fazer isto, não
comigo. Sei agora que lembro a você alguma coisa. É por isto que
não consegue se livrar de mim. (ANDRADE, 1986, p.568)
79
Fernão Dias procura esmeraldas, mas se perde ao se deparar com o
brilho semiprecioso das turmalinas; mas é justamente quando seus olhos turvos e
cansados da busca em as pedras verdes como esmeraldas é que ele pode
entregar-se ao descanso final. Da mesma forma, Vicente se prende aos
sentimentos profundos de que sua verdade consiste em cortar os laços com o
passado que o amarra, quando, na realidade, consegue se livrar de seus
“fantasmas” exteriores, nunca do verdadeiro nó; este está dentro de si mesmo e
quando o desprender se possível – e preciso – reinventar-se. Muito pior do
Fernão Dias, contudo, Vicente, por temer o mergulho mais profundo, o tem
sequer “turmalinas”, apenas vidros coloridos.
VICENTE: O mundo não está centrado em nós, Fernão Dias.
outras coisas acontecendo, independentes de nossa vontade. É por
isto que é perigoso voltar pelos caminhos que percorremos... e
encontrar o que deixamos de procurar. (Ibidem, p.567-8.)
......................................................................................................
VICENTE: (Angustiado) A gente desce dentro dos outros e quando
chegamos embaixo, encontramos nosso próprio rosto, tudo o que
somos. A mesma responsabilidade diante dos fatos, a mesma
indiferença. Cipós enrolados nos pescoços como colares.
Impotentes, sem movimentos, paralisados pelo curare... que não
sabemos de onde vem.
FERNÃO DIAS: Agora podemos caminhar juntos: estamos ligados ao
mesmo erro. Não é por isto que sou sua personagem? Quer descobrir
meu erro para compreender o seu! (Bondoso) Eu ajudo você, se não
tem coragem de enfrentar sua árvore e suas piranhas.
VICENTE: Piranhas?
(...)
FERNÃO DIAS: Não está escrito que meu corpo rolou no fundo de
um rio? Nisto não mentira: as piranhas me comeram mesmo, mas foi
na bandeira. Foram tirando pedaços do meu corpo e do meu sonho,
um a um. (...) O problema é não se ferir enquanto atravessa o rio.
Mas quem não vive ferido?
VICENTE: Quem? Morte mil vezes vivida. São poucas, mas invisíveis
de tão rápidas. Vorazes, insaciáveis, devorando ao mesmo tempo,
corpos diferentes em todos os rios. (Perdido) Também do meu sonho
pouco resta.
FERNÃO DIAS: (Com amargura) Você disse que meu filho é um
homem sem rosto. Eu sou sem corpo e sem restos.
VICENTE: Eu tenho corpo e rosto... e nenhuma esperança.
80
FERNÃO DIAS: Disto eu não gosto, companheiro. Se quer caminhar
comigo, precisa acreditar que vai chegar. É mais fácil o dia deixar de
voltar, do que a esperança. (...) Procure, e você encontra! [grifo
nosso] (ANDRADE, 1986, p.568-9)
Enquanto Fernão Dias embrenha-se pelas matas e se dispõe a
sacrificar o próprio filho, mesmo sem nunca encontrar o que procura, Vicente – Jorge
Andrade circula à volta do mundo sobre o qual se dispõe a contar, mas jamais
atinge seu centro. Como o bandeirante, o autor é um solitário, um estranho em seu
próprio mundo, tentando romper as amarras que o seguram a ele. Entretanto, assim
como não consegue se libertar, também não consegue fazer parte, não é capaz de
se inserir. Seu papel é o de exilado tanto em seu próprio meio como também fora
dele; é o de estranho num mundo que lhe é estranho, obrigado a confrontar-se
criticamente com o passado de modo a apontar caminhos para o futuro. É preciso,
então, sacrificar-se a voltar eternamente, repetidas e repetidas vezes, ao conselho
dado por Arthur Miller e tentar entender, por meio da escrita, a diferença entre o que
os seres humanos são e o que deveriam ou gostariam de ser. É o que o próprio
Jorge Andrade entende depois, ao refletir que
para se escrever sobre um meio, é necessário senti-lo a no
sangue, e o poder viver nele. Assim como para escrever sobre
um ser humano é necessário compreendê-lo, a ponto de a-lo...
e o poder fazer nada por ele às vezes nem mesmo suportá-lo.
(Ibidem, p.14)
Este é, para Jorge Andrade, o papel do dramaturgo como observador
da vida e de sua aldeia, possibilitando o escoamento da memória – contra a qual não
se pode fazer nada, às vezes nem ao menos suportar – e sua reflexão presente para
transformação do futuro. Embora a recordação não possa ser uma substituta da
justiça e a justiça também seja passível de envolver-se na falta de credibilidade da
memória –, a sociedade a quem se destina o discurso dramático necessita desse
amparo para converter a experiência dolorosa a seu favor. No teatro, o autor se
afoga para que, por outras vozes, as palavras adquiram seu caráter universal.
2.3 Memórias e identidades da cena
81
Além da memória textual e da memória “pré-texto” aquela da qual o
autor se vale, através de suas vivências e observações, para compor suas histórias –
a representação dramática é repleta de outras memórias que se cruzam na
construção do espetáculo. Cada componente do trabalho dramaturgo, produtor,
diretor, ator, cenógrafo, figurinista, iluminador, sonoplasta traz consigo um rol
particular de experiências e percepções que influenciarão a criação da obra
completa, da conjunção harmônica entre texto e cena.
Independentemente da rivalidade que, ao longo da história, possa ter
existido entre os defensores da palavra sobre a imagem ou, ao contrário, da imagem
sobre a palavra, texto e cena se complementam. Embora em algumas ocasiões
tenha havido experiências envolvendo teatro sem texto e sem autor, a palavra que se
levanta do papel ou da mente para dar origem a um espetáculo cênico traduz uma
relação extremamente dialética, na qual, necessária e simultaneamente, existe
alteridade e interdependência.
Não coincidência total, e nem poderia haver, uma vez que, apesar
das rubricas, é impensável que exista apenas uma única forma de representar,
inteiramente inscrita no texto e equivalente em todos os sentidos à coreografia
cênica pensada pelo diretor do espetáculo, às ambientações imaginadas por
cenógrafos, figurinistas, iluminadores, sonoplastas, e às intuições de cada ator. Se
assim fosse, o texto seria concebido como causa primeira e última do espetáculo,
transformando o ato de representar em nada mais do que uma conseqüência lógica
da palavra escrita, apenas uma espécie de conclusão e consagração do verbo.
Entendida dessa maneira, a representação seria relegada ao papel de mera tradução
especular do texto e não se usariam termos como intérprete e interpretação teatral.
Há, no drama escrito, uma perenidade e uma unicidade relativas, que
se contrapõem à característica efêmera e múltipla da encenação. Todavia, embora
não sejam coincidentes, palavra e ato também não são independentes um do outro.
Se texto e cena fossem entidades autônomas, haveria, de um lado, um gênero
literário caracterizado por uma seqüência dialógica entremeada pela metalinguagem
82
das rubricas e, de outro, as artes cênicas em si, o espetáculo propriamente dito,
possibilitando que os atores passeassem livremente pelo prazer da improvisação e
da invenção. O teatro, porém, é uma combinação mágica entre esses dois aspectos.
O teatro existe porque combina todos esses elementos [palavra, tom,
mímica, gesto, movimento, maquiagem, penteado, vestuário,
acessório, cenário, iluminação, música, ruído, etc.] (e não esses),
fazendo um empilhamento de signos, o que poderia gerar
redundância, mas não como Teoria da Informação, em que dois
signos buscam demonstrar a mesma a coisa, mas reforçando a
mensagem. No teatro, tão importante quanto o que é dito é o que
pode ser dito, no sentido de que todo um contexto leva determinados
signos a uma significação e não a outra, o que não faz com que
deixem de ter outros significados também. (BURLA, 2004, p.116)
Como mencionado, o drama é, sim, uma obra literária, mas não se
resume à arte da literatura. O componente cênico arte dramática coexiste com o
texto desde a primeira palavra, ainda que de uma forma latente, não-dita, por vezes
até mesmo indizível, como que recalcada pelo código da linguagem escrita. É o
transporte para o palco o estar diante das “luzes da ribalta” que lhe devolve a
forma de um discurso explícito.
O drama é a mais social de todas as formas de arte. Ele é, por sua
própria natureza, uma criação coletiva: o dramaturgo, os atores, o
cenógrafo, o figurinista, o encarregado dos acessórios de cena, o
iluminador, o eletricista e assim por diante, todos fazem sua
contribuição, do mesmo modo que também o faz a platéia, por sua
simples presença. (ESSLIN, 1978, p.37)
O teatro nasceu como uma arte múltipla, que agrega em si elementos
de todas as outras. Musicalidade, movimento, cor, forma, palavra... tudo se sobrepõe
e se entrelaça para compor o caleidoscópio da cena. Sua origem está nos rituais
dionisíacos, que, como celebração da divindade, aguçavam a sensorialidade,
levando à exploração de todos os sentidos. É a origem do espetáculo teatral. Como
explicita Janet Murray (2003, p.113), o “espetáculo é usado para criar exultação,
conduzir-nos a um novo estado de percepção e fixar-nos naquele momento”.
Entretanto, ao longo da história, transformado em espetáculo e,
algumas vezes, alijado de seu caráter mítico, o teatro abandonou os outros sentidos
83
para centrar-se na audição e na visão. Além disso, aos poucos, mesmo a oralidade
dos bardos foi absorvida pelo papel e o drama também se rendeu ao texto. Ao
contrário do que acontecia com o teatro grego, desenvolvido dentro de uma
sociedade visual por tradição, ou com o medieval, que se utilizava da representação
cênica como catequese, ou mesmo com a cena renascentista, através dos
comediantes dell’arte e da ênfase nas ações físicas, a modernidade
10
mudou o foco
dos palcos, ruas e arenas para a palavra; mais do que isso, para a palavra escrita e
para os dramaturgos dela criadores.
Apesar disso, como se tem feito questão de ressaltar, o texto dramático
jamais foi escrito para ser simplesmente lido. Ele se completa na montagem,
onde, a cada espetáculo, é um texto diverso, em constante transformação.
Sobre essa dinâmica da textualidade, Walter Ong (1998, p.117-8) considera
que
a situação das palavras em um texto é muito diferente da sua
situação na linguagem falada. (...) as palavras escritas estão isoladas
do contexto pleno no qual as palavras faladas nascem. As palavras,
em seu hábitat natural, oral, são parte de um presente real,
existencial. A enunciação oral é dirigida por um indivíduo real, vivo, a
outro indivíduo real, vivo, ou indivíduos reais, vivos, em um tempo
específico em um cenário real que inclui sempre muito mais do que
meras palavras. As palavras faladas constituem sempre modificações
de uma situação que é mais do que verbal. Elas nunca ocorrem
sozinhas, em um contexto simplesmente de palavras.
Enquanto arte do instante real criado, o teatro consegue traduzir perfeitamente a
colocação de Ong. Se o contexto da representação não coincide com o da escrita, a
palavra do texto dramático transposta para a encenação readquire a vivacidade de
estar situada num tempo e num espaço que extrapolam o papel. Antes de qualquer
coisa, deve-se lembrar, mais uma vez, que drama é sinônimo de ação.
Assim, como um drama é escrito para ser representado, além da
memória autoral o teatro traz consigo vozes ressoantes de diferentes memórias de
vida. Ao produtor e ao diretor cabe a função de, diante da proposta de encenar um
texto dramático, identificar nele fragmentos mnemônicos da época em que foi escrito
10
Não incluímos aqui a modernidade tardia ou pós-modernidade, mais complexa em considerações.
84
mas que tenham a capacidade de afetar a consciência do momento presente. Mais
do que as possibilidades oferecidas pelo elenco, uma pergunta é fundamental na
hora de se escolher um texto: o que ele diz a respeito do hoje? Como o prazer da
arte está no reconhecimento e no despertar de emoções e reflexõesque se rompa
de vez essa falsa dicotomia – é importante que as histórias de ontem sejam capazes
de (in)quietar os homens de agora.
As confrarias, por exemplo, escrita no final da década de 1960, em
pleno endurecimento da ditadura militar, usa o recurso do mis-en-abyme o teatro
dentro do teatro para falar em prol da liberdade. A trama entrelaça o tema da
Inconfidência Mineira e do abuso de impostos cobrado pela Corte Portuguesa,
através do quinto e da derrama, no fim do século XVIII, com a queda de Júlio César
e a ascensão do Império Romano, no século I a.C. César, seu filho Marco-Bruto e
Catão, o líder do Senado, entram em cena através da representação que o ator
inconfidente José faz da tragédia Catão, de Almeida Garret.
Jorge Andrade faz, no enredo de As confrarias, uma
desconstrão cronológica ppria do teatro épico, atras da mistura entre
presente, memória e encenação. O dramaturgo ainda vai além ao romper com a
linearidade temporal, uma vez que leva ao palco um ator interpretando, em pleno
século XVIII, um texto que só seria escrito no início do século XIX (Garret
escreveu Catão em 1821). O cruzamento dos diversos tempos e discursos, no
entanto, demonstra o papel do drama como instrumento de conscientização
universal: ao falar do desejo de liberdade de um povo, o teatro carrega consigo o
desejo de liberdade de todos os povos.
O subterfúgio de recorrer ao passado como alegoria do presente foi
bastante usado, durante o regime militar, para driblar a censura e alertar, por
meio de meforas, sobre as mazelas daquele momento. Atras de um recurso
profunda e intrinsecamente brechtiano, Jorge Andrade fez seu libelo contra a
hipocrisia e pela liberdade num momento histórico ferido pelo aprisionamento e
pela tirania. Em nenhum instante seu discurso é panfletário ou transforma o
85
palco em palanque partidário das esquerdas “vanguardistas e revolucionárias.
Todavia, trata-se de um teatro potico na aceão mais pura do termo, no
sentido de que retrata o homem em sua relação direta com a sociedade, em
meio aos jogos de dominação e de poder.
Em As confrarias, Marta alerta o filho José justamente sobre a
necessidade inesgotável de o espetáculo falar aos homens de seu tempo:
JOSÉ: Nós nos dividimos porque muitos não acreditavam em
liberdade. querem estar em evidência. Mas vejam quantos
ministros reais, oficiais de justiça, de fazenda, de guerra, foram
mandados para cá, para extração, segurança e remessa de ouro!
Não aprenderam ainda que o serviço real, quando estendido aqui ao
longe, se torna violento e insuportável? (...) Quantos ofícios não
foram criados para confundir vocês e sepultá-los em suas minas.
(Misturando, inconscientemente, suas idéias com falas de Marco-
Bruto e Catão). “Sobre nossas cabeças cada instante vemos troar da
titânia os raios.”
MARTA: Esta linguagem eles não entendem, filho!
JOSÉ: Temos sido feitores e não senhores do que é nosso. “A
Natureza, que nos deu a vida... deu-nos co’a vida essenciais direitos.”
MARTA: Fale da derrama, não em direitos, José!
JOSÉ: Não é nosso o nosso escravo, nem nosso o nosso boi. (...) “A
resistência do povo a seus tiranos e opressores nunca é vã, não se
perde.” (...)
MARTA: (Desesperada) Fale em Barbacena, não em César!
JOSÉ: (Perdendo-se na personagem)
“Júlio é outro!
Sobeja-lhe arte para ser tirano
De sua pátria decrépita.
César é traidor algoz: não mata a ferro,
E só vai propinando lentamente
Venenos encobertos, disfarçados,
Que sem travar nos lábios, levam morte
Ao coração – e o derradeiro afogam
Desejo, idéia, imagem da proscrita
Liberdade...” [grifo nosso] (ANDRADE, 1986, 65-6)
Por trás dos métodos de interpretação, do realismo de Stanislavski à
estética épica de Bertolt Brecht, sempre uma espécie de pantaleão comunitário,
histórico e cultural responsável pelo jogo dialético entre o tempo mítico mostrado no
espetáculo ( e então) e o instante actual/real vivido pelos espectadores (aqui e
agora). Independentemente do tempo remoto no qual o enredo da peça aconteça, a
86
identificação com o presente é sempre marcante no passado dramático, seja por
meio de estéticas, gestos, emoções, conflitos, soluções, diálogos, monólogos... A
cena traz consigo a(s) releitura(s) do passado às exigências e inquietações atuais.
Ao encenar uma peça que traz ao mesmo tempo, como As confrarias,
personagens que viveram dois séculos ou dois milênios antes de o texto ser
escrito, o teatro mostra que os dramas humanos são universais e atemporais. Por
essa perpectiva, os personagens seres míticos que, como tais, continuarão
retornando à vida, com outras estéticas, até mais de dois mil anos depois da criação
da peça – não morrerão nunca. O ato dramático, embora sempre efêmero, é também
sempre um presente progressivo, uma identidade em construção.
O texto dramático mapa que é, cartografando os caminhos da
encenação –, tem, sim, o poder de desenhar nas mentes a imagem cênica. Às
vezes, a rubrica dá a tônica do que deve ser “visto”; noutras, a imaginação da cena é
deixada correr solta, sem interferência do dramaturgo. De qualquer forma, com ou
sem rubrica, a imagem da história e a da representação da história se combinam no
universo imagético mental do leitor do texto. Cada um dos leitores incluindo os
próprios atores, diretor, cenógrafo, enfim criará sua própria imagem, singular e
individual, inspirada pelas indicações textuais propostas. Atores, diretores,
cenógrafos, iluminadores, antes de serem co-autores de uma nova obra, são leitores
/intérpretes daquela que a motivou, independentemente de convergências ou
divergências que possa haver entre as duas. Nas palavras de Anne Ubersfeld (1996,
p.113), “é no nível do espaço (...) que se faz a articulação texto-representação”
11
.
Há peças que trazem fortes indicações das imagens que seu autor tinha
em mente a respeito da cena que criou em palavras. Em Vereda da salvação, mal o
leitor abre a página-cortina do primeiro ato, tem, diante dos olhos, a descrição visual
do lugar onde acontece a história:
Clareira no meio de uma mata. Árvores frondosas formam uma
muralha em volta de um grupo de casebres de pau-a-pique. Os
casebres, cobertos com folhas de indaiá, estão dispostos em
11
C’est au niveau de l’espace (...) que se fait l’articulation texte-représentation. (T.A.)
87
semicírculo quebrado, sendo que um deles, o da direita, é isolado
dos outros, formando uma passagem por onde se avista, mais longe,
o tronco das árvores. Tem-se a impressão de que os casebres estão
sufocados pela mata exuberante; é como se estivessem no fundo de
um poço, tendo como única saída a clareira das copas das árvores.
Além dos casebres e da mata, vemos, no círculo aberto pelas
árvores, um céu avermelhado, no princípio; depois, coberto de
estrelas. Mais ou menos no meio do cenário, uma cisterna serve a
todos os casebres. O primeiro casebre da esquerda pertence a
Manoel. Um corte na parede externa revela uma sala pequena, com
mesa, pilha de sacos cheios de cereais, bancos e caixotes; duas
portas ligam a sala ao quarto e à cozinha. Do outro lado, em frente e
isolado, o casebre de Joaquim. Outro corte nos revela uma sala
semelhante à de Manoel, porém sem mesa e sem pilha de sacos.
Alguns caixotes servem de bancos e, num canto, uma grande
imagem de Cristo, enfeitada com papéis coloridos. Numa tábua,
amarrada à parede com arame, diversas bíblias estão enfileiradas. O
casebre de Artuliana fica no centro do placo, entre o de Manoel e o
de Joaquim. Um pouco fora do alinhamento e voltado ligeiramente
para a esquerda, mostra mais o quarto do que a sala. No quarto, três
jiraus servem de cama. Os casebres são mal construídos, dando a
impressão de que poderão cair de uma hora para outra; os paus das
paredes, mal dispostos, deixam ver o interior quando iluminados à
noite. (ANDRADE, 1986, p.233)
Nem sempre a cenografia do espetáculo corresponderá ao proposto
pelo autor da peça. Na montagem de Vereda feita pelo Grupo Divulgação, em 1992,
todo o detalhamento cenográfico de Jorge Andrade foi substituído por um cenário
simbolista, no qual dois portais de madeira rústica, um de cada lado do palco,
representavam as casas de Manoel e Joaquim; ao centro, uma enorme cruz
enfeitada com uma coroa de flores mostrava a separação dos homens pela religião.
Os portais, em forma de H, simbolizavam a humanidade, enquanto a cruz traduzia a
crença no elemento transcendental. De maneiras completamente distintas, ambas as
propostas – a descrita por Jorge Andrade e a concebida por José Luiz Ribeiro, diretor
e cenógrafo do Grupo Divulgação são capazes de despertar sensações que
traduzem o espírito da peça: a concepção andradiana torna manifesto o sufocamento
do povo pela vida de miséria, tendo como única saída a clareira que se abre em
direção ao céu (plano transcendente); já a cenografia de José Luiz Ribeiro se foca na
divisão do homem pela fé.
88
Segundo Anne Ubersfeld (1996, p.115),
o espaço teatral é o lugar mesmo da mímesis: construído com
elementos do texto, ele deverá se afirmar ao mesmo tempo como
figura de qualquer coisa no mundo (...).
12
Assim, a concepção de Ubersfeld sobre a passagem do texto para a cena, quando a
palavra ergue-se para ocupar o espaço da encenação, equivale ao que Jacques
Aumont (1993, p.95) chama de “aspecto mapa”, pelo qual “a imitação da natureza
passa por esquemas múltiplos: esquemas mentais vinculados a universais”.
De todos os envolvidos na arte de transformar o drama em cena, o
primordial é, sem dúvida, o ator. É através de seu corpo, seus olhos, sua voz, suas
mãos que o verbo é feito carne. É ele quem transforma a memória de seus próprios
pensamentos, sensações e emoções para dar vida aos pensamentos, sensações e
emoções dos personagens.
MINISTRO: (...) E onde encontrou seu filho?
MARTA: (...) [Sobre Jo] Encontrei... no corpo de outro. (...)
Morria e renascia todas as noites (...). É no trabalho que
compreendemos os outros. Quem se transforma em negro, em
homem ou mulher, em judeu ou mouro, sente cada um como
realmente é. Abandona seu corpo por um outro. Esquece seus
sentimentos e faz outros nascerem. Guarda em algum lugar suas
idéias e ensina outras. Encontra em si mesmo sentimentos que
o de todos. (ANDRADE, 1986, p.43)
Pelas palavras de Marta, tem-se idéia da força de representação
necessária ao ator. Segundo Gustavo Burla (2004, p.119),
um texto escrito é seco, vazio, pálido e faminto pela voz do ator que
lhe dará vida. O esboço de vida presente na fala enquanto texto é a
rubrica, o que não quer dizer muita coisa perto da palavra proferida
por uma boa voz, com inflexão apropriada e com verdade. O
significado de cada palavra ganha peso conforme é pronunciada (...).
A natureza dos personagens se liberta pelo corpo e pela voz do
ator. Em Vereda da salvação, para tomar o mesmo exemplo, é imprescinvel
que a sensualidade de Artuliana e a imponência física de Manoel, descritas no
12
(...) l’éspace théâtral est le lieu même de la mimésis: construit aves des élémentes du texte, il devra
s’affirmer em même temps figure de quelque chose dans le monde (...). (T.A.)
89
texto, sejam levadas à cena para se contrapor ao sentimento fanático de
religiosidade levado aos limites pela peça.
Artuliana é mais provocante do que bonita. Os seios, desenvolvidos e
empinados, dão-lhe um modo insólito, agressivo. Um dos seios
quase escapa por um rasgo do vestido. qualquer coisa em seu
rosto e seu corpo de bastante atrevido. (...) Manoel é atarracado, sem
ser baixo. O rosto é queimado de sol e as mãos calosas e de veias
saltadas. A camisa revela um peito cheio de pêlos. Seus movimentos
são calmos e os olhos serenos. Seu rosto queimado, a barba e os
cabelos grisalhos, o corpo forte, fazem dele uma figura imponente.
(ANDRADE, 1986, p. 234)
Cabe também ao ator a tarefa de dar cor ao texto. Sua voz, suas
intenções e inflexões, aliadas a seus gestos, postura e expressão, conferem calor às
palavras frias da palavra escrita. Em As confrarias, o ator José diz a Quitéria: “(...)
não tenho mais certeza se sou eu. Quem sou eu? Que é que se esconde dentro de
mim?” (Ibidem, p.55). Sua doação ao personagem e ao público às vezes é tão total e
completa que chega ao ponto de sua identidade confundir-se com aquela do ser de
papel e memória que representa. Sua voz é a consciência do personagem; seu
corpo, o instrumento pelo qual a palavra pode transbordar livremente por cada
movimento, por cada gesto. A sobrevivência do drama depende ardentemente da
voz e do corpo do ator. “Não posso ser sem meu corpo. E sou o que o meu corpo é.
É de personagem, filósofo ou meu mesmo?” (Ibid., p.52).
Na cena, o homem é a matéria-prima de uma escultura viva,
cinzelada não apenas pelo dramaturgo, mas por cada uma das os que, juntas,
contribuem para a constrão do espetáculo. Contudo, a criação extrapola esses
limites. O teatro, mais do que tudo, é o verbo feito carne em presença de
testemunhas. O essencial da arte dramática é despertar o público, provocar
reões na platéia à qual se dirige. Simultaneamente, porém, é o espectador o
verdadeiro dono da identidade e da meria nica; é o outro em cena, a rao
de ser de qualquer representação. O teatro é o templo onde se reza uma missa de
corpo presente, pois a concretude da relão entre palco e platéia depende do
corpo exposto do ator e sua entrega aoblico.
90
No verdadeiro teatro, o teatro vivo, existem espectadores vivos,
atuantes, cientes da coletividade (...). Encontrando esse processo
durante a apresentação, o teatro assume sua forma plena de arte
coletiva, arte que se faz apenas diante de seu público, ao contrário
das outras. O hic et nunc benjaminiano funciona nesse momento, na
presença do outro no momento da criação, antes do que não se tem
a essência do teatro. (BURLA, 2004, p.184)
A representação é um jogo de projeção, identificação e desejo. O
espectador enxerga no outro, no ator, aquilo que, de alguma maneira, é próprio de
sua natureza, seja no campo da realidade ou do simbólico. O teatro desnuda
conflitos que se escondem nas entranhas do indivíduo, dramas reais que se
encenam como parte da vida cotidiana de cada um ou como aspirações de uma
existência idealizada, através da projeção no outro daquilo que se almeja ou supõe
ser. Evidentemente, trata-se aqui de uma atitude quase narcísica, em que o outro é
visto como um espelho a refletir desejos e angústias. Por vezes, através da catarse,
o espectador, ao se ver refletido no palco, toma para si a dor representada, como se
essa imagem especular enxergada no outro fosse ele próprio ou as pessoas
próximas a ele. Seus conflitos internos são reelaborados através da identificação
mimética, e as emoções surgidas deste processo são purgadas, purificadas, sem a
necessidade de que ocorra, em um plano real, a resolução dessas emoções.
Martin Esslin (1978, p.26) reforça, a partir das reações do público, a
natureza coletiva do drama. Segundo ele, o conjunto de memórias reais e cênicas
trazidas à tona por dramaturgo, diretor, cenógrafos, atores é apenas a metade do
processo total que configura a representação. A outra metade é justamente a platéia,
cuja reação é imprescindível para que exista drama. Mesmo quando a intenção é
romper com a catarse, como no teatro brechtiano, o objetivo é provocar o
espectador, fazer com que reaja e tome atitudes concretas diante da vida.
O novo teatro interessa ao homem social porque o homem se ajudou
a si mesmo no plano social, tecnicamente, cientificamente e
politicamente. O novo teatro expõe qualquer tipo junto com seu
comportamento, de modo a projetar luz sobre suas motivações
sociais; o homem pode ser compreendido se elas são bem
conhecidas. Indivíduos continuam a ser indivíduos, mas se tornam
um fenômeno social; suas paixões e também seus destinos se
91
tornam uma preocupação social. A posição do indivíduo na sociedade
perde sua “naturalidade” e passa a ser o centro da atenção. O efeito-
d
13
é uma medida social. (BRECHT, 2002, p.100)
O “efeito-V” efeito de distanciamento ou de estranhamento –,
intensamente utilizado por Brecht, é o mecanismo responsável por romper o
processo catártico o escoamento de emoções e purificação e permitir que se
instale seu oposto, o que Elder Olson (1975, p.25) denomina de katástasis
distanciamento da projeção individual na crítica feita pela comédia e que, aqui, faz
com que o teatro tenha uma ação crítica sobre o público, incitando-o a tomar atitudes
concretas com relação à vida. Como explica Gerd Bornheim (1992, p.248-9),
as estruturas gerais da sociedade moderna deixam de funcionar
como mero pano de fundo, firmadamente passivo e a partir do qual se
desdobrariam as atividades humanas, inclusive o teatro. (...) a
sociedade pode agora tornar-se transparente em relação aos seus
próprios movimentos internos, a máquina do mundo exibe enfim suas
engrenagens. A decorrência disso tudo está em que o indivíduo
passa a interferir na transformação das estruturas sociais como
nunca no passado. (...). O efeito de distanciamento prende-se
essencialmente a essa possibilidade crítica, que deita as suas raízes
não na atividade teatral, e sim, primeiramente, na própria conjuntura
social, que, por sua vez, permitirá a instauração de um teatro crítico.
De qualquer modo, enquanto platéia, cada espectador deixa de ser um
indivíduo isolado na própria subjetividade para se transformar em algo como uma
“alma coletiva” (cf. BARRAULT, 1958), encarnada quando o contágio dos indivíduos
transformados em platéia nivela seus conhecimentos e sua emoções. Com o
equilíbrio razão/emoção presente na katástasis, essa “alma” se aprofunda
criticamente e constrói o que se poderia chamar de “consciente coletivo”:
(...) algum tipo de reação coletiva, de consenso, freqüentemente
aparecerá entre o público, reação esta que, em um espetáculo teatral,
tende a se tornar manifesta tanto para atores quanto para o público.
Qualquer indivíduo que jamais tenha representado em um palco
garantirá que a reação coletiva a uma peça é palpavelmente real. A
platéia, sob certos aspectos, deixará de ser mera reunião de
indivíduos isolados, transformando-se em um consciente coletivo.
(ESSLIN, 1978, p.27-8)
13
Embora na tradução conste “efeito-d”, o efeito de distanciamento ao qual se refere Brecht é
conhecido como “efeito-V”, devido ao termo alemão Verfremdungseffekt.
92
Da mesma maneira com que os acontecimentos no palco afetam o
público, qualquer manifestação da platéia, seja ela positiva ou negativa, intervém
profunda e fortemente na interpretação dos atores. Se o espectador responde, com
qualquer sinal, o ator é imediatamente inspirado por essa reação, que, por sua vez,
causará respostas cada vez mais eloqüentes da platéia. Se o público ri dos
malandros e das prostitutas que entram e saem da delegacia de Senhora na Boca
do Lixo, seu riso é contagiante.
GARCIA: Qual é o caso?
GUARDA: Batedor de bufosa.
GARCIA: É só da leve?
GUARDA: Da pesada também: dois assaltos.
MALANDRO 1: Eu?! Nem sei por que estou aqui, doutor.
GARCIA: Sem-vergonha!
MALANDRO 1: Eu peguei o ônibus pra visitar meu irmão que trabalha
numa construção e de repente uma comadre começou a esgüelar,
dizendo que eu estava pondo a prestativa nela!
GUARDA: Na bolsa dela.
MALANDRO 1: (...) Meu algum é nenhum, doutor. Ia pedir dinheiro
pro meu irmão porque estou doente.
GARCIA: Que é que você tem?
MALANDRO 1: (Mártir) Estou tuberculoso doutor.
GARCIA: Tuberculoso, hein?
MALANDRO 1: Preciso ser internado. (...)se a gente fica doente, que
é que a gente pode fazer? Minha prestativa nunca morou no bolso de
ninguém. Isso não. Minha família é gente de classe.
GARCIA: Você tem duas passagens por vadiagem. (...)
repouso nele de doze horas.
MALANDRO 1: (Trágico) Mas, seu doutor...
GARCIA: É bom pra quem está tuberculoso.
GUARDA: Vamos. Fecha o boquejo!
MALANDRO 1: ia perguntar se o grude hoje é bom. [grifo nosso]
(ANDRADE, 1986, p.312-3)
14
A risada de um espectador somente tem o poder de desencadear
gargalhadas por toda a platéia e afetar, diretamente, os atores no placo, que
passam a se empenhar mais pela graça da cena. O mesmo acontece com uma
cena emotiva. Embora as grimas sejam mais diceis de ser arrancadas do que
14
Acrescente-se, aqui, a importância da oralidade expressa no jargão do texto e que aponta
indiscutivelmente para sua concretização cênica (ver grifos).
93
os risos, o sincio às vezes grita eloentemente diante de uma cena como
aquela em que Nmia, de Senhora na Boca do Lixo, percebe o estado do
casao onde funciona a delegacia, para depois perder-se novamente.
NOÊMIA: [olhando para o lustre] (Perdida) Ainda pouco... parecia
brilhar como milhares de estrelas! (Num murmúrio) “Vim para me
casar...!”
(Subitamente, Camila rompe em choro doloroso. Os soluços agitam
seu corpo e ela abraça ainda mais Noêmia. Esta acaricia levemente a
cabeça de Camila, como se fosse uma criança.)
NOÊMIA: (Delicada) Shisss! Que é isto? Aqui, seu pai me disse: se
tiver uma filha, um dia, vai se chamar Camila. Nome de heroína de
Corneille... de princesa medieval! (ANDRADE, 1986, p.338)
O famoso feedback entre palco e platéia é, na verdade, triangular,
tendo com base a própria afetação platéia-plaia. Cada espectador compartilha
com o outro a emoção e a refleo provocadas pelo especulo. A dramaturgia,
levada à cena, cumpre seu papel de contingente de uma meria que, como
árvore, pode ser a cada momento partida e replantada, retomada e transmutada,
deixando seu rasto na contemporaneidade.
Seja através do mico ou do trágico, seja para despertar paio ou
ação concreta, a relação proporcionada pelo teatro é eternamente simbtica,
levando a um constante holocausto da identidade: a morte do autor pela vida do
texto; a morte do texto pela vida da cena; a morte do ator pela vida do
personagem; a morte do personagem pela vida do conflito; a morte do conflito
pela vida da experiência transmitida ao público; a morte da representação pela
constrão da identidade da memória do vivido. Em sua obra, Jorge Andrade,
como um doador de si mesmo, parte suas raízes em incontáveis identidades, em
diferentes ramos que terminarão por florescer, regados com o olhar ctico sobre
o passado, aquilo que os homens o hoje.
94
Procurar... procurar... procurar...
que mais poderia ter feito...?
Fernão Dias, em O sumidouro
95
CONCLUSÃO
O que mais poderia ser feito além de perseguir os rastos deixados por
Jorge Andrade pelos intrincados caminhos da identidade e da memória? Trata-se, na
verdade, de uma busca incansável e incessante, uma vez que a obra do dramaturgo
não é apenas um ciclo quevoltas em torno da história; é, muito mais do que isso,
um imenso círculo que gira interminavelmente ao redor da própria existência. Ao
mesmo tempo em que pode ser encarado como um rito fúnebre, pois exorciza e
liberta os mortos do passado diante de testemunhas, o drama andradiano é também
um renascimento, uma procura por si mesmo e pela vida.
Os relógios parados e as árvores partidas são o símbolo do recomeço.
O ciclo da vida, assim como o ciclo do drama, é mesmo feito de exorcismos, mortes
e renascimentos, no qual a cada dia uma nova raiz se fecunda no solo da identidade.
Embora se possa dizer que as horas da existência avançam inexoráveis, os
ponteiros param para dar tempo de as memórias fluírem e se reintegrarem na
construção do presente. Da mesma forma, árvores se partem em novas sementes,
novas flores e novos frutos para dar origem a outras obras, outros pensamentos,
outras reflexões. Os rastos de Jorge Andrade são cíclicos.
Assim como os textos de Marta, a árvore e o relógio se
complementam como uma espécie de caleidoscópio teatral, pelo qual se pode ver
parte da história brasileira e a essência do ser humano sob múltiplas cores e
aspectos, tentou-se construir, aqui, através de uma visão retalhada e multicor
lançada sobre cada uma das peças do livro, um imenso e único painel em que se
descortina o papel do teatro como guardador dos rebanhos da memória e construtor
das engrenagens que atuam sobre a identidade social. Lembranças pessoais
reelaboradas como coletivas fazem com que a obra de Jorge Andrade se constitua
num pincel mágico que colore o retrato do homem e da sociedade brasileira.
Embora o escritor continue olhando continuamente para o passado,
isso o significa falta de compreensão do presente; ao contrio, o escritor o
96
faz para intervir nessa atualidade/realidade, modificando-a criticamente. É por
esse motivo que a metalinguagem é tão marcante na dramaturgia andradiana:
porque é através dela que o autor argumenta tanto a favor da criação literária ou
dratica como reelaboração do mundo e das memórias individuais e coletivas
quanto em prol do teatro como instrumento de conscientização dos homens
sobre sua própria identidade.
Em meio a esse discurso mnemo-identirio, que traz à superfície as
agruras causadas em si mesmo pelas próprias lembranças, Jorge Andrade -se
diante de sua função primordial: a de condenado a cumprir um elio solirio e
voluntário dentro de seu próprio mundo, obrigado a pairar eternamente sobre o
meio em que vive, mas sem que seus s jamais toquem no solo, pois seu
destino não é se enraizar nesse chão, mas sim usar os rastos do passado para
alargar as estradas do futuro.
Para o dramaturgo, tanto a palavra quanto a cena são elementos
essenciais para esclarecer acontecimentos e sentimentos que afetam
intensamente o presente. Sua escrita corrobora o papel da arte diante de um
processo histórico cuja caminhada deve levar à liberdade do ser humano. Ao
colocar o eu como o lugar da meria que se abre ao diálogo com todas as
vozes e épocas, o texto dramático participa da elaboração do local, do nacional
e do cultural como identidades construídas.
Para tanto, Jorge Andrade não se coloca apenas como um
observador diante do mundo, mas como alguém que participa diretamente desse
universo e que, como tal, deixa extravasar suas pprias visões, percepções e
sensações no tocante à vida. Como vem sendo constantemente reiterado, não
há maneira de se colocar diante sem, primeiramente, colocar-se em. A
representão que o dramaturgo faz da realidade atras de sua escrita é
reflexo do olhar de alguém que está inserido no real que representa, que deixa
marcas nessa realidade e que é marcado por ela. Algm que, como ator no
palco da vida, não consegue descrever a cena sem se incluir nela, assim como
97
o é capaz de falar sobre sua arte sem deixar transparecer seus pprios
anseios e temores, tanto em relão ao passado que insiste em voltar à tona
quanto em relação ao presente.
A meria, nesse sentido, é a esncia da crião, pois é o elo que
envolve todos os tempos posveis e permite estabelecer a diferença, tão
almejada, entre o que os homens o e o que gostariam de ser. Como casa da
cultura e dos bens duráveis de um povo, ela é um alicerce móvel de releituras,
como as elaboradas por Jorge Andrade, capazes de avanços e digressões no
tempo e no espaço, porque não precisa deles para acontecer, subsistir e insistir.
Como a memória não precisa de hora ou local marcados para vir à tona, é nela
que nasce e mantém-se viva a cultura. Atras das lembranças, o ser humano
tem poder de reinventar para si novas formas de exisncia, da mesma forma
como ocorre no teatro. Os dramas da memória, portanto, traduzem, em palavras
e cenas, os sentimentos das pessoas em relação ao mundo, são a ppria
expreso de uma sociedade.
Ao entrelaçar memórias individuais a memórias coletivas, Jorge
Andrade opta por considerar a história não como o relato oficial e documentado que
a sociedade se acostumou a tomar por verdade absoluta. O drama andradiano, ao
contrário, ao se propor a fazer uma revisão histórica, abarca tudo aquilo que é
desprezado pelas narrativas oficiais e funda-se numa outra percepção histórica,
levando em conta os sofrimentos anônimos acumulados pela humanidade.
As memórias e identidades individuais se cruzam com as memórias
e identidades sociais que formam o homem andradiano. Considerado por muitos
como um poeta do ontem e algumas vezes criticado por isso Jorge Andrade
é, antes de mais nada, um escritor de seu pprio tempo. Inusitadamente, ele é
um dos poucos dramaturgos contemporâneos, se não o único, a escrever peças
de épocas. Por esse motivo, por não retratar literalmente, nos textos e nos
palcos, as circunsncias históricas do momento em que concebeu sua obra
98
leia-se a repressão gerada pela ditadura militar o autor foi, inclusive, acusado
de se preocupar com o passado, e não com o processo político presente.
Todavia, não importa aqui discutir se o dramaturgo pecou ou não
circunstancialmente, principalmente porque, hoje, suas palavras permanecem mais
vivas e atuais do que muitas das que foram escritas como bandeira de luta contra
uma tirania específica. Como Brecht, Jorge Andrade, à sua maneira, falou contra
todas as tiranias. Construtor de uma história que extrapola as versões oficiais e
confere voz às classes anônimas, ele se vale de uma dramaturgia de memória
ainda que não se refira a instantes realmente vivenciados – para rever os lapsos que
os registros reconhecidos não conseguem abarcar. A dimensão política de sua obra
se justamente pela construção de uma identidade nacional e pela valorização do
coletivo. Em pleno processo de globalização, Jorge Andrade atenta para a
necessidade de se pensar e valorizar o local.
O localismo, no entranto, não é para ele o folclórico, o exótico ou
tudo aquilo que o senso comum se acostumou a tomar como o clichê de Brasil.
É, ao contrio, a identidade de uma nação como qualquer outra. Ao pincelar
traços de sua meria individual ou da formão identitária de Minas Gerais ou
de São Paulo, o escritor representa, na verdade, aspectos de uma identidade
compartilhada por todo o povo brasileiro, ao mesmo tempo em que põe em
xeque valores e comportamentos universais.
Em antítese à imagem arraigada de que o brasileiro se esquece de seu
passado, Jorge Andrade busca na história as mãos que modelaram a face do povo.
Ele não trata o passado com orgulho ufanista nem tampouco se envergonha dos
aspectos que, historiograficamente, construíram o país como ele é hoje; o
dramaturgo enxerga o passado histórico brasileiro como ele de fato é, dissolvendo-o
em suas próprias percepções acerca da universalidade do ser humano.
Mais do que dos relógios paradosrefúgios das memórias de todos os
tempos e das árvores partidas raízes dos múltiplos rostos e identidades que
completam o drama andradiana –, é preciso agora falar das muitas Martas perdidas
99
e encontradas nesse amplo universo de significações em que se constitui a obra de
Jorge Andrade. A personagem representa o próprio olhar do autor sobre o mundo,
visão que se coloca, ao mesmo tempo, próxima e distante dos acontecimentos, por
mais paradoxal e dicotômica que essa posição possa parecer.
Modernista quase por força do destino, já que nasceu em 1922, o
dramaturgo se embrenha como uma espécie de bandeirante pelo interior da
hisria brasileira, pondo em diálogo direto os ciclos históricos da minerão, da
cafeicultura e da industrialização, para tentar responder às incertezas de futuro
experimentadas por sua época. No entanto, é preciso destacar que se trata de
incertezas que continuam pairando sobre as cabeças de toda a sociedade,
mesmo nos tempos atuais. Ainda mais quando modeladas pelas os gicas
do teatro e de todas as merias e identidades que o tornam vivo e sempre real.
100
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