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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados:
inclusão ou exclusão social?
Telma Maria Leite
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP,
como parte das exigências para a obtenção do
título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.
RIBEIRÃO PRETO – SP
2007
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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FFCLRP – DEPARTAMENTO DE PSICOLOGIA E EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM PSICOLOGIA
Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados:
inclusão ou exclusão social?
Telma Maria Leite
Prof. Dr. Sérgio Kodato
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP,
como parte das exigências para a obtenção do
título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.
RIBEIRÃO PRETO – SP
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Leite, Telma Maria
Representações Sociais sobre Instituição Asilar por Idosos
Abrigados: inclusão ou exclusão social? Ribeirão Preto, 2007.
228p. : il. ; 30cm
Dissertação de Mestrado apresentada à Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto / USP – Dep. de
Psicologia e Educação.
Orientador: Kodato, Sérgio
1. Representações Sociais. 2. Instituição Asilar. 3.
Idosos. 4. Inclusão ou Exclusão Social.
FOLHA DE APROVAÇÃO
Telma Maria Leite
Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados: inclusão ou exclusão
social?
Dissertação apresentada à Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da USP,
como parte das exigências para a obtenção do
título de Mestre em Ciências, Área: Psicologia.
Aprovado em:
Banca Examinadora
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Prof. Dr. _______________________________________________________________
Instituição: _________________________ Assinatura: ________________________
Dedico este trabalho à avó
Teresa e ao avô Leite; aos
meus tios Bito, Chica e Tito;
aos meus primos Sócrates e
Zezeca
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Sérgio Kodato, pela oportunidade e paciência na longa travessia do Rio Grande;
Aos meus pais, Miron e Júlia, e aos meus irmãos, Terê e Nino, a quem sou eternamente grata;
Ao Adriano, pela presença, auxílio, incentivo e confiança;
A todos das famílias Tatico e Leite, pela alegria que me proporcionam;
Aos “meus amigos de fé, meus irmãos camaradas”; em especial, à Alícia, Cérise, Chico,
Cristina, Deise, Marcilene Flores, Eléa Geléia, Quatti e Simone Poch, pelo carinho e
companheirismo;
À Cida, S. Nilton, Rosalvo e Zilá, com quem puder compartilhar os meus primeiros passos na
área social. Além disso, à comunidade de todo o Setor Norte, especialmente aos “moleques
sangue bom” Diogo, Marquinhos, Nandinho e Reginho;
Às famílias Camisa Verde e Carreiro, pela saudação conjunta aos céus: [...] Pegue a bandeira
de paz, deixe a bandeira de guerra [...];
Ao Antônio Alexandre, Bueno, Cris, Rogério Shareid e Thaís Senne, por abrirem as portas do
interior paulista;
À Sônia, pela atenção e cuidado;
Ao André, Bruno, Fernanda, Karen e Karina, pelo acolhimento e confiança;
Ao Alexandre, Aline, Daniel, Eleusa, Elizabeth, Thaísa e Zaira, por compartilharem
experiências e por contribuírem na construção de conhecimentos ao longo da pesquisa. À
Magda, pelo auxílio, sobretudo, na etapa final do trabalho;
A todos com quem convivi nesta cidade e no decorrer da Pós-graduação; em especial, à
Andréa Attiê, Érika Kawakami, Joana, Josi, Thomas e Wata;
Aos atuais companheiros da Casa 13 (Antônio, Cleidson Rodrigues, Rogério Corujão, Dennys
Eduardo da FEA, Glauber, Leandro Jibóia, Lourdes, Lucas, Mirkolino, Naira, Paula, Priscila,
Selma, Yolanda e Zezera) e aos ex-moradores (Andréa, Carlo, Chicão, Cristina, Mariana,
Rodrigo Dalacqua, Rodrigo Orlandini e Valter), pela diversão, luta conjunta e tolerância
cotidiana: “Ô,ô,ô,ô, my brothers, a lua não me traiu!”. Além disso, agradeço aos parceiros da
Casa 12 e Casa G pela convivência agradável.
Agradeço, especialmente, às companheiras do “puxadinho”, Claudita e Luciana, pelas prosas
fiadas e cuidados especiais;
Aos participantes do mutirão da Qualificação e da Dissertação, pelo auxílio e constante
disponibilidade;
Ao Prof. Dr. Marco Antônio de C. Figueiredo e à Prof. Dra. Carmen Lúcia Cardoso, pelas
ricas contribuições no Exame de Qualificação;
Ao Eduardo Benedicto, Enrico e Cris, por acolherem os esfarrapados d'alma;
Aos funcionários deste Campus, pela atenção e bom atendimento; em especial àqueles que
trabalham no Setor do Serviço Social, na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, no Sisusp,
Bandejão e Biblioteca. E salve a sala 2!;
Ao Alex, Carlos, Daniel, Fred, Henrique, João Paulo, Juliana e Rodolfo, pela paciência e
prontidão no atendimento aos ignorantes da tecnologia avançada;
Aos integrantes da “Família do Samba” e agregados – com quem aprendi que “o samba
agoniza, mas não morre” –, pelas animadas tardes de sábado. Agradeço, sobretudo, ao ilustre
casal, Neusa e Sandro, pelo cuidado e gentileza;
À trupe do Chorinho, pelas divertidas manhãs de domingo; especialmente ao Chiquinho, Sr.
Batista, Sr. José Inácio, e José Carlos, que mostram, cada qual a seu modo, como se “dança” a
vida;
Aos funcionários dos abrigos, por terem permitido a realização da coleta de dados da
pesquisa. Aos idosos, pela disponibilidade em compartilhar as suas histórias de vida;
Ao Angenor, Pedro Luís e discípulos, pelas inspirações.
“A tua saudade corta
Como aço de navaia
O coração fica aflito
Bate uma, a outra faia
Os óio se enche d`água
Que até a vista se atrapaia”.
Cuitelinho - Domínio popular
Tema recolhido por Paulo Vanzolini e Antônio Carlos Xandó
RESUMO
LEITE, T. M. Representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados:
inclusão ou exclusão social? 2007. 228 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.
Os idosos constituem o segmento populacional que mais cresce no Brasil. Há hoje cerca de
quinze milhões de pessoas na terceira idade. Estatísticas mostram que em vinte anos o número
pode ser de trinta e dois milhões. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), a
população de idosos no país, entre 1950 e 2025, aumentará dezesseis vezes. O presente
trabalho tem como objetivo compreender, a partir da perspectiva da Psicologia Social, as
representações sociais sobre instituição asilar por idosos abrigados, centrando-se na seguinte
questão: quais são as representações que idosos institucionalizados têm a respeito de sua
condição de vida? O eixo da pesquisa é a análise dos discursos deles sobre suas vidas anterior
e posterior à institucionalização, investigando se apontam os mecanismos sociais que os
excluem por ali viver. Caso percebam-se incluídos, como assumem discursivamente a sua
efetiva representação de inclusão na sociedade. Realizaram-se entrevistas com dezesseis
moradores de duas instituições públicas de uma cidade do interior de Minas Gerais. O
procedimento envolveu a realização de entrevistas semi-estruturadas. O referencial teórico-
metodológico da pesquisa é a Teoria das Representações Sociais, na formulação de
Moscovici, por esta permitir a observação dos indivíduos enquanto grupos, sem perder a
referência do campo social em que se inserem. Houve investigação qualitativa dos dados por
meio de temas e categorias na perspectiva da análise de conteúdo da Bardin (1977). Os dados
foram analisados em três fases: pré-análise; exploração do material; interpretação dos dados.
Tal procedimento envolve leituras flutuantes do material discursivo; definição de dimensões
temáticas; discriminação de unidades de significado; estabelecimento de categorias temáticas.
Os resultados indicam que a ida para o abrigo é uma conseqüência de um processo anterior,
verificado na trajetória de vida destes entrevistados. Vários elementos comuns socialmente os
caracterizam: baixo grau de escolaridade; execução de trabalhos economicamente
desvalorizados; perdas familiares significativas. A internação é representada por eles como
conseqüência de uma série de perdas sociais ocorrida ao longo de anos. O surgimento de
doenças e a solidão decorrente de tais perdas são assumidas como justificativas para a
ausência de autonomia e independência que acarretou a institucionalização. A ida para o
abrigo, contudo, também é vista sob a perspectiva de uma ancoragem e de uma mudança de
significação social, como uma forma de inclusão na sociedade, visto que discursivamente
afirmem que sua função é de provê-los e deles cuidar no que traçam como etapa final de suas
vidas. Sendo assim, concluiu-se, por um lado, que a representação por idosos figura a
instituição como excludente, sobretudo em relação a suas vidas pregressas; por outro,
contudo, a representação social da instituição modela-se como inclusiva, haja vista afirme-se
discursivamente como um vínculo social a partir de uma adesão coletiva.
Palavras-chave: Representações sociais. Instituição asilar. Idosos. Inclusão ou exclusão social.
ABSTRACT
LEITE, T. M. Social representations of asylums among sheltered elders: social inclusion
or exclusion? 2007. 228 f. Thesis (Master’s) – Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de
Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, 2007.
Elders constitute the age-band that presents the highest growing rate in Brazil, adding up to
fifteen million nowadays, and, according to statistics, being able to reach thirty-two million
within twenty years. The World Health Organization (WHO) projects that, between 1950 and
2025, the elder population will raise sixteen times. This study aims to comprehend, through
the Social Psychology perspective, the social representations of the asylum institution among
sheltered elders, underlining this issue: what are the representations that institutionalized
elders elaborate about their conditions of life? The focus of this research is the analysis of
their discourses about their lives before and after the institutionalization; investigating if they
point the social devices that exclude them for living in this institution, and, in case of
perceiving this exclusion, how they present their representations of inclusion in society, in
their discourses. The data collect included the application of semi-structured interviews
among sixteen sheltered elders from two public institutions of a city in the country side of
Minas Gerais State. The theoretical and methodological reference that offers basis for this
study is the Social Representations theory, formulated by Moscovici, for allowing the
observation of the subjects as groups, without missing the reference to the social context
which they belong to. It was also performed a qualitative analysis of the data, establishing
themes and categories, through the perspective of the content analysis formulated by Bardin.
The data were analyzed in three phases – pre-analysis, exploration of the material, data
interpretation –, involving random reading of the discursive material, definition of thematic
dimensions, discrimination of the meaning unities, establishment of thematic categories. The
results indicate that being sent to the asylum is a consequence of a previous process, that was
noticed in the life story of the subjects. They present several elements in common: few years
in school, working in low-income jobs, having severe family losses. Arriving at the institution
is represented as a consequence of a social losses chain they’ve had through the years. The
appearance of diseases and the loneliness caused by such losses are pointed as reasons for the
lack of autonomy and independence that drove them into the institutionalization. Going to the
asylum is also represented through the perspective of an anchoring, and of a social meaning
shift, as a form of inclusion in society, considering that its function includes offering care and
support to the subjects, specially in this phase of life, according to them. Therefore, it is
possible to conclude that, on one hand, the representations present the institution as excluding,
specially considering the elders’ life stories before the institutionalization; although, on the
other hand, the social representations can describe the institution as inclusive, once it also
points, in the discourse, a social belonging to a group.
Key-words: Social Representations. Asylum institution. Elders. Inclusion or social exclusion.
LISTA DE SIGLAS
CEAI Centro Educacional de Assistência Integrada
FFCLRP Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto
IBGE Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
INPS Instituto Nacional de Previdência Social
LBA Legião Brasileira de Assistência
LOAS Lei Orgânica de Assistência Social
OMS Organização Mundial da Saúde
ONU Organização das Nações Unidas
SESC Serviço Social do Comércio
UAI Unidade de Atendimento Integrado
UnATI Universidade Aberta à Terceira Idade
WHO World Health Organization
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO ................................................................................................................ 1
1 INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 5
1.1 A Psicologia Social e a Teoria das Representações Sociais.............................................. 5
1.2 O critério etário para estabelecer a velhice no capitalismo: ciência ou representação
histórica?.................................................................................................................................. 7
1.3 A crítica ao critério etário: a velhice como um produto histórico-social ........................ 10
1.4 O critério etário como determinante de comportamentos e papéis sociais...................... 13
1.5 A velhice, afinal, como construção histórica e social...................................................... 14
1.6 O idoso na sociedade contemporânea.............................................................................. 15
1.7 Institucionalização do idoso ............................................................................................ 18
1.8 Qualidade de vida na terceira idade................................................................................. 20
1.9 Solidão: mal-estar da velhice?......................................................................................... 21
1.10 Religiosidade e sua carga simbólica.............................................................................. 22
1.11 Reativação: antídoto contra a solidão?.......................................................................... 22
1.12 Do crescimento da população idosa .............................................................................. 24
1.13 Política Nacional para o Idoso: a Previdência Social e o Estatuto do Idoso ................. 31
1.14 Programas de atendimento aos idosos........................................................................... 35
1.15 A violência e dominação na sociedade: os idosos são retratos delas?........................... 37
2 OBJETIVOS ..................................................................................................................... 41
2.1 Objetivo geral .................................................................................................................. 41
2.2 Objetivos específicos....................................................................................................... 41
3 JUSTIFICATIVA ............................................................................................................. 43
4 METODOLOGIA............................................................................................................. 45
4.1 Teoria das Representações Sociais.................................................................................. 45
4.2 Pesquisa qualitativa ......................................................................................................... 50
4.3 Observação participante e diário de campo..................................................................... 52
4.4 Entrevistas semi-estruturadas .......................................................................................... 54
4.5 Coleta de dados................................................................................................................ 55
4.5.1 Procedimentos .............................................................................................................. 55
4.5.2 Aspectos éticos ............................................................................................................. 57
4.5.3 Participantes ................................................................................................................. 58
4.6 Contexto de realização do estudo.................................................................................... 62
4.6.1 Caracterização da cidade em relação à temática analisada........................................... 62
4.6.2 Sobre as instituições ..................................................................................................... 62
4.6.2.1 Primeira instituição.................................................................................................... 62
4.6.2.2 Segunda instituição.................................................................................................... 67
4.6.2.3 Aspectos comuns entre as instituições....................................................................... 72
4.7. Análise de conteúdo ....................................................................................................... 73
5 RESULTADOS ................................................................................................................. 79
a) Origem............................................................................................................................... 80
Categoria 01: Estrutura Familiar ........................................................................................... 80
Subcategoria 1.1: Composição familiar................................................................................. 81
Subcategoria 1.2: Dinâmica familiar..................................................................................... 83
Subcategoria 1.3: Figuras de identificação............................................................................ 86
Categoria 02: Processos de inclusão ou de exclusão social................................................... 88
Subcategoria 2.1: Formação escolar...................................................................................... 88
Subcategoria 2.2: Atividades profissionais ........................................................................... 90
Subcategoria 2.3: Causas da internação ................................................................................ 92
Categoria 03: Vulnerabilidade............................................................................................... 95
Subcategoria 3.1: Doença como limitação da vida................................................................ 95
Subcategoria 3.2: Solidão...................................................................................................... 97
b) Institucionalização............................................................................................................. 99
Categoria 04: Cotidiano......................................................................................................... 99
Subcategoria 4.1: Convivência no abrigo............................................................................ 100
Subcategoria 4.2: Reativação .............................................................................................. 102
Subcategoria 4.3: Visitas e socialização externa................................................................. 103
Categoria 05: Percepção do abrigo...................................................................................... 105
Categoria 06: Sentimentos e perdas .................................................................................... 108
Subcategoria 6.1: Auto-percepção....................................................................................... 108
Subcategoria 6.2: Distanciamento familiar ......................................................................... 110
Categoria 07: Espiritualidade e crença ................................................................................ 112
Categoria 08: Expectativas.................................................................................................. 114
Subcategoria 8.1: Expectativa em relação à família............................................................ 114
Subcategoria 8.2: Expectativa de vida................................................................................. 116
Subcategoria 8.3: Expectativa de autonomia e independência............................................ 119
6 DISCUSSÃO ................................................................................................................... 121
Internação ............................................................................................................................ 121
As instituições e suas representações .................................................................................. 124
Restrições e autonomia........................................................................................................ 130
Convivendo na instituição ................................................................................................... 133
A família longínqua............................................................................................................. 136
Intramuros: a espera pelos familiares.................................................................................. 138
Convivendo com o lado de lá .............................................................................................. 142
Representações da própria imagem..................................................................................... 143
Reativando o tempo............................................................................................................. 147
O território do divino........................................................................................................... 150
Próximas projeções.............................................................................................................. 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................................ 159
REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 167
APÊNDICE A .................................................................................................................... 181
APÊNDICE B..................................................................................................................... 182
APÊNDICE C .................................................................................................................... 183
APÊNDICE D .................................................................................................................... 200
ANEXO A........................................................................................................................... 228
1
APRESENTAÇÃO
O presente trabalho trata da temática do envelhecimento da população na perspectiva
da Psicologia Social. Eu própria, para particularizar e dar um exemplo específico, defrontei-
me com os idosos e algumas de suas dificuldades de inserção na sociedade, quando trabalhei
como psicóloga social na prefeitura da cidade de Uberlândia (M.G) entre os anos de 2003 e
2005. Para mim, deste modo, tratar tal questão é relevante para melhor compreendê-la, e
poder, inclusive, contribuir para o subsídio de programas sociais de assistência ao idoso.
Meu interesse por questões relativas aos idosos aumentou quando cursei, como aluna
especial no curso de pós-graduação da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto (FFCLRP) no primeiro semestre de 2002, a disciplina “Violência Institucional: análise e
intervenção”, pois nas discussões lá ocorridas pude perceber que a violência em sua forma
manifesta e simbólica pode se associar em determinadas instituições. Isso me levou a
investigar se esse fenômeno também poderia ocorrer no caso dos idosos institucionalizados.
Como trabalho final dessa disciplina, iniciei o que ora se apresenta como dissertação
de Mestrado: entrevistas com idosos residentes em instituições de abrigo, localizadas na
cidade de Uberlândia, para, a partir da análise destas, compreender as representações sociais
sobre instituição construídas por idosos abrigados.
Tendo, pois, restringido o foco da investigação ao plano teórico da Psicologia Social,
especificamente na perspectiva metodológica da Teoria das Representações Sociais, realizei a
análise das entrevistas dos idosos abrigados a fim de apreender as significações e sentidos que
eles atribuem à instituição asilar com o intuito de verificar a inserção ou não deles, enquanto
grupo social, na sociedade, visto que haja, depois que eles passam a residir em abrigos,
ruptura com o modo pelo qual anteriormente se inseriam no meio social.
O plano dessa pesquisa é, pois, demarcar no nível social as especificidades do
psiquismo individual
1
sem, contudo, deixar de levá-lo em conta: as representações sociais dos
idosos, partindo das condições específicas daqueles que vivem em abrigos, avalia a fala dos
mesmos, tanto em suas constelações intelectuais individuais, como sociais, estabelecendo o
modo pelo qual eles consideram sua inserção ou não na sociedade. As análises das entrevistas
1
Jodelet (2001, p. 26) aponta até mesmo para o risco de reducionismo de apreender as representações sociais
como intra-individuais: “de fato, numa exploração em permanente tensão entre os pólos psicológico e social, os
diferentes trabalhos desenvolvidos em laboratório e em campo tiveram freqüentemente seu foco, por
preocupação heurística, sobre aspectos bem circunscritos dos fenômenos representativos. Não sem correr, às
vezes, o risco de levá-los a acontecimentos intra-individuais ou de diluí-los em processos ideológicos ou
culturais”.
2
dos idosos têm assim como objetivo demarcar a presença do plano social como operante
desde a fala do indivíduo e também como este àquele, reciprocamente, estabelece ou
modifica. De fato, quando se considera a influência do meio social nas produções das
representações sociais de velhice, pode-se dizer:
[...] La representación social del viejo ya no sólo define lo que es la vejez,
sino que también establece qué y cómo debe ser, qué es ser viejo y cómo se
debe serlo. Pero más importante aún es que no sólo los otros grupos etáreos,
los no viejos, comparten esa representación, sino que siendo el
envejecimiento una condición universal, el propio sujeto que envejece la
hace suya, la internaliza y por tanto, se convierte en el elemento por el cual
se autodefine
(FERNÁNDEZ; REYES, 1996).
É, pois, tendo por interesse compreender as representações por idosos
institucionalizados que o presente trabalho enfrenta tal problema. Certas etapas serão seguidas
na introdução para melhor esclarecer a questão. Antes de mais nada, é preciso delimitar o
horizonte da Psicologia Social e como a Teoria das Representações Sociais nela se insere,
visto seja a metodologia aqui utilizada
2
. O passo seguinte será formular um quadro mais
amplo sobre o idoso. Neste momento, caberá verificar qual é um possível conhecimento
científico
3
de base biológica que se produz sobre o idoso, e como este se mescla a condições
históricas que influenciam o processo constitutivo das suas representações sociais. Aqui, para
além da diversidade de representações ao longo da História, caberá, sobretudo, deter-se em
como elas também contemporaneamente se formam a partir dos diferentes grupos de interesse
e das políticas sociais estabelecidas para o idoso
4
; apontar-se-á aqui também, em relação a tais
representações sociais contemporâneas sobre idosos, o papel atribuído à instituição total,
particularmente, no caso, aos abrigos a ele destinados na sociedade brasileira atual.
Passar-se-á, então, especificamente à representação positiva do idoso quando se deixa
2
Aqui se trata de apenas apontar os traços mais gerais da Psicologia Social e da Teoria das Representações
Sociais. Mais à frente a questão teórica sobre esta última será retomada.
3
Moscovici (1978) aponta para a diferença entre, por um lado, a ciência e seu referente e, por outro, o
conhecimento que dela se tem e se partilha socialmente. Foi este último o que mais lhe interessou no estudo da
psicanálise. Além disso, criticou, por exemplo, Durkheim por este confundir a religião com a ciência. Esta, como
é abstrata e autônoma nela mesma, não dá margem ao simbólico. A questão aqui tratada, contudo, é mais
complexa, pois a velhice, embora tenha evidentes traços biológicos, enquanto representação social já é
simbolizada a partir das diversidades social e histórica que seu estudo implica.
4
A representação social, como afirma Jodelet (2001), é uma partilha do mundo que nomeia e define diferentes
aspectos da realidade. Sendo assim, ela é um fenômeno complexo, pois distingue-se da ciência, sendo uma
aparência de saber sobre a realidade que implica uma interpretação, uma tomada de decisões e posicionamento
sobre o mundo, mesmo que defensivamente. Por isso mesmo, varia a partir da diversidade dos grupos sociais e
de suas posições ideológicas, sendo mais ou menos científica de acordo com experiências privadas e afetivas que
também nela se mesclam. Os meios de comunicação, por exemplo, são qualificadores, produzindo discursos
diversos de acordo com os interesses e grupos com os quais se relacionam. Sendo assim, as representações
sociais sempre se fazem a partir do interesse de um grupo, sendo, pois, uma reconstrução do objeto e, por isso,
implicando um afastamento daquilo a que se referem.
3
de falar na velhice e se passa a representá-la como terceira idade. Aqui serão destacados
tópicos que se referem a uma melhor qualidade de vida para o idoso. Isso, como se verá,
acarreta discutir questões relativas à qualidade e estilo de vida como categorias que, extraídas
de suas falas, remetem a aspectos fundamentais para uma longevidade saudável.
Destacar-se-ão, a seguir, centrando-se em índices populacionais, questões como o
aumento do número de idosos e da expectativa destes; com a mesma perspectiva, a
composição familiar na sociedade contemporânea e o papel do idoso nela. Mais à frente,
retomando tal dimensão do idoso em relação às novas demandas sociais acarretadas pelo
aumento populacional e à mudança de seu papel na família, caberá analisar as políticas
públicas empreendidas no Brasil: o Estatuto do Idoso será então analisado enquanto especifica
os papéis sociais do idoso bem como seus direitos. Além disso, certos programas não-
governamentais, como os do Serviço Social do Comércio (SESC) e o da Universidade Aberta
à Terceira Idade (UnATI), receberão destaque.
Por fim, visto isso aponte para o problema que me levou a este estudo, caberá
discorrer sobre a violência contra o idoso, tanto no aspecto físico e direto como no moral e
simbólico. Mesmo que além do horizonte da investigação aqui empreendida, tal foco servirá
para realçar uma questão sobre a qual objetiva-se nesta pesquisa tentar esclarecer: a possível
inclusão social dos idosos que vivem em abrigos.
Cumpridas as etapas desta introdução, centrar-se-á, nos capítulos seguintes, a pesquisa
principal a ser aqui focada nas seguintes questões: quais as representações sociais sobre
instituição produzidas por idosos abrigados? Que operadores e estratégias eles próprios
produzem como resposta aos aspectos biológicos do envelhecimento? Como eles representam
a instituição em que vivem e que práticas sociais desenvolvem a partir do questionamento
existencial na instituição? O fato de viverem em abrigos é por eles percebido como exclusão
da sociedade ou eles nela ainda se sentem incluídos? Em quais imagens sociais as
representações sobre o abrigo estão ancoradas? Elas objetivam-se a partir de que parâmetros
de comparação com suas vidas antes de viver em abrigos?
4
5
1 INTRODUÇÃO
1.1 A Psicologia Social e a Teoria das Representações Sociais
Cabe, portanto, antes de mais nada, demarcar o horizonte em que este trabalho se
realiza: a Psicologia Social como campo de conhecimento. Esta, com efeito, afirma que o
psiquismo do indivíduo não pode se abstrair da interseção entre sua história pessoal e as
condições históricas da sociedade. Desse modo, o indivíduo é, ao mesmo tempo, produto
histórico-social e construtor da sociedade, visto ser capaz de transformá-la. Esta concepção
foca, portanto, a relação entre indivíduo e meio, e propõe a construção de um espaço de
encontro em que eles mutuamente se implicam (DOISE, 2002).
Assim, conforme salienta Bosi (1994) ao tratar da memória entre os idosos, o trabalho
do psicólogo social move-se num plano que mescla o individual e o social. Para esta autora,
com efeito, deve-se considerar a memória como um fenômeno decorrente da influência do
meio social sobre o indivíduo, adquirindo caráter individual, familiar, grupal e social. Ela não
pode, portanto, ser representada isoladamente nos indivíduos fechados em si mesmos, mas
nas suas relações com diversas instituições, como a família, o trabalho e outros grupos com
os quais convivem.
Por isso, para Bosi (1994), a lembrança é fruto do outro e da situação presente e não
significa reviver o passado tal como ocorreu, mas refazer, reconstituir, repensar com imagens
e idéias de hoje, a experiência dele. O processo de reconstrução do passado, através da vida
atual, é decorrente das relações sociais, como, por exemplo, as familiares e profissionais
vividas pelo indivíduo.
Assim como esta autora aborda a questão, tratar-se-á aqui de apreender – ressaltando-
se, contudo, as especificidades próprias aqui implicadas pelo uso de outra metodologia – o
tema abordado pelo modo que é próprio à Psicologia Social, pois a descrição que o indivíduo
idoso dá de sua vida só se compreende na rede das relações sociais e na produção de sentidos
para a sua existência.
Embora neste plano mais amplo de uma pesquisa em Psicologia Social, será aqui
especificamente empregada, contudo, a Teoria das Representações Sociais como referencial
metodológico, visto que esta entenda o social a partir do sujeito, entendido como um grupo,
que o representa, sendo este também só compreensível a partir daquele. Esta teoria, portanto,
6
não se preocupa com os indivíduos enquanto tais, mas na sua inserção social a partir do lugar
que ocupam. Há, pois, uma partilha das representações pelo grupo, que é, ao mesmo tempo,
um dado preexistente à comunicação porque determinada por valores que são estabelecidos a
partir da condição social, mas que implicam também uma aderência, porque “partilhar uma
idéia ou uma linguagem é também afirmar um vínculo social e uma identidade” (JODELET,
2001, p. 34). A adesão coletiva reforça assim o vínculo social ao estabelecer representações
próprias de um grupo; com efeito, a própria capacidade de extensão da representação mostra,
intelectualmente, a particularidade de cada grupo.
Além disso, a Teoria das Representações Sociais analisa a sociedade em suas
transformações constantes, assim possibilitando focar a vida do idoso tanto na perspectiva de
como esta se configura para quem o expressa, enquanto sujeito, como também conceituá-lo
no plano social enquanto passível de mudança: essas constelações intelectuais, uma vez
fixadas sem se apontar as transformações, fazem-nos esquecer que são obras nossas e,
portanto, têm começo e poderão ter um fim. Assim, para esta teoria, a existência no exterior
ostenta a marca de uma passagem pelo interior do psiquismo individual e social
(MOSCOVICI, 1978).
Desse modo, estudar as representações sociais, segundo Oliveira e Werba (1999 apud
SILVA; LUNA, 2004, p. 5), é conhecer:
[...] o modo como um grupo humano constrói um conjunto de saberes que
expressam a identidade de um grupo social, as representações que ele forma
sobre uma diversidade de objetos, tanto próximos como remotos, e
principalmente o conjunto dos códigos culturais que definem, em cada
momento histórico, as regras de uma comunidade.
É também importante frisar no tocante à representação social, como afirma Jodelet
(2001), que ela é uma teoria com um referente objetivo, pois trata as representações como
formas de saber. Desse modo, é um estudo do próprio fenômeno cognitivo a partir de
conteúdos representativos diversos: a linguagem, discursos, documentos e práticas sociais.
Estuda assim, em primeiro lugar, o aspecto social e funcional do fenômeno cognitivo; em
segundo, as condições de sua gênese; por fim, seu funcionamento e eficácia. Lida, pois, com
algo concreto e observável, mesmo que este seja reconstruído pelo pesquisador.
Tal método, destacando-lhes as práticas discursivas, permite traçar, na análise dos
idosos residentes nos abrigos, tanto as condições materiais dos extratos sociais a que
pertenciam, quanto, em termos de psiquismo, a compreensão que eles próprios têm das
condições sociais em que atualmente vivem. Demonstra-se também a eficácia deste em
destacar, por meio dos processos de ancoragem e objetivação, a formação das representações
7
que asseguram aos idosos abrigados sua incorporação ao social. Aqui, é importante notar que,
mesmo quando há novidade, esta é enquadrada em esquemas antigos e já conhecidos. Tais
representações permitem a instrumentalização de um saber, tendo um valor funcional para a
interpretação e gestão do ambiente. Há, pois, uma possível naturalização das noções pela qual
estas passam, pela objetivação, a ter valor de realidades concretas, utilizáveis na ação sobre o
mundo e os outros. Esta estrutura imagética da representação é fundamentada como guia de
leitura e referência para compreender, por generalização funcional, a realidade em que vivem
(JODELET, 2001).
Antes, porém, de tratar a questão específica deste trabalho é preciso, passo importante
também na Teoria das Representações Sociais, delimitar como o idoso é compreendido de
um possível ponto de vista científico, visto por aqui se trace um referencial a ser analisado; e,
concomitantemente, tratá-lo a partir da perspectiva histórica de cada sociedade, dado que
aqui se apresente a representação social determinante das políticas públicas relativas ao
idoso, bem como da própria determinação de como a ciência deve analisá-lo. Como se verá,
portanto, o possível referencial científico aqui não deixa de ser, permanentemente, uma
possível representação do mundo, pois, via de regra, é um recorte estruturado a partir das
condições sociais e históricas com possíveis interesses ideológicos em jogo.
Para compreender a realidade e a significação da longevidade, é, portanto,
indispensável examinar o lugar simbólico que é destinado aos idosos, que referencial ou
representação se faz deles em diferentes tempos, em diversos lugares. O interesse desse
confronto é que ele permitirá, senão dar, ao menos entrever, respostas para esta questão
essencial: o que é inelutável na condição de vida dos que vivem mais tempo? Em que medida
a sociedade é responsável por ela? (BEAUVOIR, 1990).
1.2 O critério etário para estabelecer a velhice
5
no capitalismo: ciência ou representação
histórica?
Os homens, conforme descreve Vargas (1994 apud GRÜNEWALD, 1997), tomaram
consciência da alteração de seu organismo corporal e procuraram, desde a Antiguidade,
analisar e circunscrever as características do envelhecimento. Sendo assim, podem-se citar
5
Como a bibliografia utiliza o termo velhice, este será aqui empregado, visto que a carga semântica negativa
nele implicada é fruto desta perspectiva introduzida pelo capitalismo.
8
concepções sobre o processo de envelhecimento que remontam ao século VI a.C. na Grécia.
Também os romanos lançaram-se ao estudo das transformações humanas por causa da idade
6
.
Encontravam-se, pois, nessa época, entre filósofos e pensadores de toda parte do mundo, as
primeiras tentativas de circunscrever e definir o processo de envelhecimento.
O contexto, no entanto, em que o processo do envelhecimento passa a ganhar
visibilidade e a ser objeto de discursos e práticas específicas para o idoso coincide com um
período de grande atividade intelectual e de profundas transformações sociais decorrentes da
expansão do capitalismo. Segundo Lima (1999):
[...] a Europa vive as conseqüências da expansão do Capitalismo [século
XIX] e, nesse momento, os principais esforços intelectuais vão se voltar para
a análise dos problemas daí decorridos, a partir de uma perspectiva secular.
Ou seja, localizando na sociedade, sem referências transcendentais, as causas
e respostas dos principais problemas vividos na época - entre eles as
condições de pobreza e marginalidade envolvendo parte da população que,
com o avanço da idade, enfrentava dificuldades para garantir uma
subsistência mínima. Desde então, parte significativa do discurso sobre a
velhice esteve relacionado às transformações na sociedade, e a velhice
passou a ter uma presença crescente entre as preocupações sociais.
Neste sentido, no momento em que a sociedade passa a ter como norma e valor central
a produção e o trabalho, a velhice sofre uma espécie de marginalização desta norma, sendo,
portanto, fortemente associada, conforme tal perspectiva, à doença e à decadência física,
decorrente das limitações impostas pela idade e pela saúde, pois, nesse período, o indivíduo
encontra-se naturalmente mais sujeito às perdas de ordem biológica, física, afetiva, social e
econômica. O envelhecimento passou, com o advento do capitalismo, a ser considerado
basicamente como um processo constituído de perdas em que se restringem as possibilidades
de ganhos, pois o homem idoso se afasta do eixo central desta sociedade, o trabalho
(DEBERT, 1999b).
De acordo com esse paradigma de valorização do trabalho e da força produtiva,
conforme aponta Birman (1999), a caracterização do indivíduo passou a ser centrada no
critério etário, tendo acarretado uma transformação social na qual a idade determinou atitudes
e projetos políticos da sociedade para com seus membros. As diferentes etapas etárias da
história do indivíduo passaram, portanto, a adquirir valores e significados diversos,
fundamentadas nos discursos biológico e psicológico, de acordo com suas possibilidades para
a produção e reprodução de riquezas. Os indivíduos de idade avançada, nessa perspectiva,
ocuparam um lugar marginalizado na existência humana, na medida em que a individualidade
6
O de Senectute de Cícero, por exemplo, foi escrito no século I a.C. O texto ainda era, para Simone de Beauvoir,
uma das principais referências sobre o tema quando ela dele tratou em seu livro Velhice (1990).
9
já teria realizado os seus potenciais e perderia então o seu valor social. Desse modo, eles, não
tendo mais a possibilidade de produção de riqueza, perderam também o seu valor simbólico.
A transformação do critério etário em algo determinante para se estabelecer a velhice
ocorreu, pois, na passagem dos séculos XVIII para o XIX, instituindo que o ciclo biológico da
existência humana pode ser classificado em faixas etárias bem definidas que delimitou
direitos e deveres. O conceito de velhice, portanto, constituiu-se, a partir de certa conjuntura
histórica e teórica, caracterizando-se a partir do ponto de vista biológico. Para Foucault (1976
apud BIRMAN, 1995, p. 32):
[...] foi nesse contexto histórico que os governos passaram a formular, de
maneira sistemática, que a riqueza maior do Estado não se restringia às
riquezas existentes na sua natureza, mas na qualidade da população.
Portanto, quanto mais o Estado investisse nas condições biológicas de sua
população e nas condições sanitárias de seu território, maior seria a sua
riqueza material, pois as condições de vida de sua população seria a
condição concreta de possibilidade para a produção de riqueza
.
Sendo assim, mesmo hoje, a classificação internacional mais conceituada não foge a
tal critério etário estabelecido a partir destes pressupostos produzidos historicamente pelo
capitalismo. A Organização Mundial da Saúde (OMS), em consonância com uma
preocupação científica para esta questão e com finalidades de políticas de saúde e
previdenciária, estabelece a população idosa como aquela a partir dos sessenta anos de idade
7
.
Esse limite é válido para os países em desenvolvimento, admitindo, entretanto, um outro, o de
sessenta e cinco anos, para os países desenvolvidos, já que nestes, além de melhores
condições de assistência social e de saúde pública, os idosos possuem um índice de
longevidade maior há mais tempo (CAMARANO; MEDEIROS, 1999; NERI; FREIRE,
2000).
Erbolato (2000) também busca estabelecer numa base científica o critério da faixa
etária como definidora dos grupos etários mais velhos. Sendo assim, justifica o
estabelecimento do início da velhice aos sessenta anos em países em desenvolvimento, tendo
em vista estudos realizados por cientistas europeus no século passado que descobriram, dentre
várias alterações, diminuição do tamanho e de funcionamento dos órgãos do corpo humano.
7
Tal critério etário é, conforme se observa neste trabalho, passível de discussão. Aqui, ademais, a idade não
pôde ser adotada na seleção dos idosos entrevistados, visto ter se verificado, ao entrar em contato com os
abrigos, que, mesmo poucas, há pessoas neles residentes com idade inferior a sessenta anos, marco que
caracteriza para a OMS a entrada para a terceira idade. Assim sendo, desconsiderou-se em parte o critério etário
na escolha dos entrevistados, tendo sido levado em conta nesta escolha como determinante o fato de se morar no
abrigo. Mas apenas um dos entrevistados tinha menos de sessenta anos. Estas questões, de qualquer modo,
foram, como se poderá verificar, consideradas nos Resultados e Discussão deste trabalho.
10
1.3 A crítica ao critério etário: a velhice como um produto histórico-social
Debert (1998, 1999b) e Prado (2002), no entanto, reafirmam que não se pode descurar
de modo algum das condições materiais e históricas para se compreender esta possível
categorização etária com critérios ditos científicos e estritamente biológicos: a idade
cronológica passou a ganhar relevância na sociedade ao se sobrepor ao modo de vida
caracterizado pelo parentesco, pela posição social ou pelo lugar de origem das estruturas
familiares.
Esse fenômeno decorre das mudanças estruturais de uma economia de base agrária e
doméstica para o capitalismo centrado no mercado de trabalho e na produção industrial. É
necessário também, neste aspecto, considerar o processo pelo qual ocorre o deslocamento de
questões atinentes ao domínio familiar e privado para a esfera pública, passando o Estado a
regular o curso da vida por meio da definição de cortes etários com vistas à escolarização,
participação no mercado de trabalho e aposentadoria.
Deve-se, além disso, também apontar para o confronto de que é fruto tal
categorização. A manipulação das categorias de idade, segundo Bordieu (1983 apud
DEBERT, 1998, p. 53), “envolve uma luta política entre grupos de interesses distintos que
colocam em movimento um jogo de poderes ligado a grupos sociais distintos em diferentes
momentos do ciclo de vida”. Gusmão (2001, p. 121), nesse sentido, afirma:
[...] É nesse campo de confronto e de tensão que, no caso da sociedade
moderna, a fragilidade da vida social se expõe de modo mais intenso e, com
ela, coloca-se em dúvida a persistência das condições que tornam a vida
possível para aquele que envelhece, acenando com o fim próximo e
inexorável - a morte.
O critério etário, entretanto, não se deu apenas por um caráter negativo, o da exclusão
do idoso do processo produtivo. A sociedade capitalista, neste sentido, também demarcou,
com base em lutas sociais dos trabalhadores, um sentido positivo para ele: o do afastamento
do trabalho para um descanso remunerado na etapa final da vida. Sendo assim, tal critério
serve também ao propósito de demarcar uma idade para que os indivíduos parassem de
trabalhar e passassem a receber benefícios e assistência do governo. Observa-se, portanto, que
o dito critério científico aponta, ao tratar da determinação a fim de estabelecer uma mudança
de categoria etária, para diferentes interesses e confrontos com marcados traços sociais e
históricos (DEBERT, 1999b; ERBOLATO, 2000; FRANÇA, 1999).
11
Embora benefícios extraídos de tal categorização sejam hauridos, como, por exemplo,
a aposentadoria, implicando uma melhoria da qualidade de vida dos idosos, cria-se com isso
um outro complicador, pois ela se marca por um caráter homogeneizador, haja vista a criação
“de uma identidade comum em torno do universo da velhice, uma vez que classifica as
pessoas não-produtivas segundo a idade cronológica”(PEREIRA, 2005, p. 40), reforçando
assim o sentido negativo pelo qual a sociedade capitalista a define .
É importante ressaltar, além disso, que o critério etário nem sempre demarcou a
representação da velhice. Em outras épocas, como se viu, ela foi reconhecida de modo
diverso: não a partir de um referencial biológico, mas tendo como definidor uma sabedoria
adquirida pela experiência. Isso, contudo, se modificou na sociedade capitalista, porque,
segundo Veras (2004, p. 425):
[...] a ciência impulsiona o processo do capitalismo global, como produto e
sustentáculo do desenvolvimento da sociedade moderna. Se, por um lado,
muitos benefícios foram alcançados por intermédio do conhecimento
científico, por outro, a ciência silenciou outras formas de saber. Neste
contexto, a tradição e a sabedoria dos anciãos perderam valor frente à
palavra da ciência.
Cabral (1996 apud GUSMÃO, 2001, p. 121), ademais, afirma que em outras
sociedades:
[...] o saber acumulado pelo velho o habilita a um lugar de destaque. Porém,
numa sociedade centrada no jovem e no que representa sua força de trabalho
e produção, o velho torna-se aquele que já não pode responder aos objetivos
do sistema. A contradição que lhe é inerente - e à velhice - coloca os limites
do que é razoável como comportamento, atitude que se espera daquele que
envelhece. O que se espera é que não impeça o processo social, ordenado de
modo capitalista e racional. Espera-se que, da velhice, não se levantem os
aspectos ‘reprimidos’ da vida sócio-cultural. O velho e a velhice fazem parte
da vida sócio-cultural, mas nela estão sem lugar. São, pois, sujeitos
reprimidos no contexto social, sem possuir ou ter uma forma óbvia de
expressão.
A idade, embora estivesse de alguma forma presente como critério de demarcação de
grupos nas sociedades arcaicas, não apresenta a mesma relevância dada no mundo moderno.
Conforme salienta Debert (1998, 1999b) e Sommerhalder e Nogueira (2000), os idosos de
sociedades históricas e tradicionais, de modo geral, eram valorizados por servirem como
mantenedores e transmissores dos valores, pela sabedoria, experiência e conhecimento
adquiridos ao longo da vida. Estas últimas autoras ressaltam que, com o processo de
modernização da sociedade, tal papel se perdeu, tendo ele sido assumido por outras
instituições e categorias sociais.
Não se pode, assim sendo, considerar a classificação etária em seu caráter estritamente
12
científico. Desse modo, é necessário reafirmar-lhe sua demarcação histórica com a
conseqüente mudança de estatuto social do idoso. Groisman (1999 apud PRADO, 2002),
nesse sentido, afirma que:
[...] nas sociedades pré-modernas, os idosos gozavam de prestígio e eram
respeitados pelos demais em sua autoridade e sabedoria derivada da posição
de patriarcas em extensas famílias onde os velhos detinham conhecimento e
poder. Com o processo de modernização, a industrialização traria o
afastamento dos velhos do mundo produtivo, a urbanização resultaria na
redução do tamanho da família esgotando o poder patriarcal do idoso, cujo
saber não seria mais adequado às necessidades dos jovens escolarizados e
mais valorizados e, por fim, a marginalização e a solidão constituiriam, em
conjunto, as mazelas de uma nova forma de discriminação social: o
‘etarismo’.
Os idosos, portanto, ocupam posições sociais e lugares simbólicos variados nas
diversas culturas. Sendo assim, enquanto no ocidente, como se viu, há maior tendência a
valorizar-se o jovem, visto este deter forças para a produção econômica, no oriente, a velhice,
ainda hoje mais valorizada, é compreendida como sinônimo de sabedoria e experiência,
assumindo os idosos importantes funções no seio familiar e da comunidade na qual se inserem
(DEBERT, 1998, 1999b).
A perspectiva da categorização etária, contudo, não é, como aponta a própria OMS,
um critério rígido e absoluto no mundo moderno. Ela já passa assim a sofrer matizes e
contornos, pois em sociedades pós-modernas de países mais desenvolvidos, por exemplo, a
diferenciação por idade pode não assumir tamanha importância discriminatória, visto que:
[...] o sistema de gradação por idade é flexível graças à interveniência de
técnicas de prolongamento da juventude, à disseminação de novos valores
relativos à sexualidade das pessoas mais velhas, ao sistema de bem-estar
social que discrimina menos os cidadãos idosos, às mudanças tecnológicas
no trabalho, à possibilidade de adiamento da aposentadoria
(NERI, 2001a,
p. 18)
.
Por isso mesmo, quando se estipulam categorias etárias na diferenciação das etapas do
desenvolvimento humano, verifica-se que determinados papéis sociais podem confrontar-se
com a idade cronológica, traçando-lhe limites. A categorização etária deve ser assim
considerada apenas como uma questão referencial, visto que varie o modo de vivenciar o
envelhecimento em função das diferentes histórias de vida dos indivíduos e dos diversos
contextos sociais em que eles se inserem (PEREIRA, 2005).
Debert (1999a, p. 50) também aponta limites da categorização do idoso por critério
etário, pois esta “está impregnada de uma visão essencialista, de caráter biológico e a-
histórico da vida”. O problema do idoso configura, pois, as dobras e articulações da própria
sociedade, pois se esta, por um lado, pode determiná-la de algum modo a partir de certos
13
parâmetros etários, por outro, as respostas e soluções dão a espessura do enfrentamento que
uma sociedade pode ter, de tal modo que ao invés de fissuras apresentem-se rearticulações de
uma sociedade mais satisfatoriamente constituída.
Cabe também ressaltar, como faz Beauvoir (1990), que a atitude da sociedade, no que
tange à classificação etária da velhice, é amgua. Em geral, ela não a considera como uma
fase de idade nitidamente marcada. Sendo assim, pode-se afirmar que a crise da puberdade
permite traçar entre o adolescente e o adulto uma linha de demarcação, arbitrária apenas
dentro de limites estreitos: com dezoito anos, com vinte e um anos, os jovens são admitidos
na sociedade dos homens. Quase sempre os “ritos de passagem” envolvem esta promoção. O
momento em que começa a idade avançada, no entanto, é mal definido, e varia de acordo com
as épocas e lugares. Não se encontram, em parte alguma, estes “ritos de passagem” que
estabeleçam a velhice como um novo estatuto social em que o indivíduo adentre.
1.4 O critério etário como determinante de comportamentos e papéis sociais
Cabe ainda reforçar um aspecto já mencionado como outra dificuldade própria de se
restringir a longevidade à categorização etária. Como uma sociedade, de modo geral,
organiza-se com base em critérios cronológicos, isto é, define comportamentos de acordo com
a faixa de idade das pessoas
8
, as expectativas e convenções sociais e a forma de organização
de um grupo dependem de parâmetros sociais e exercem influência no modo como os
indivíduos agem e são julgados. O critério cronológico funciona, desse modo, como ponto de
referência e como elemento organizador, uma vez que se vive num mundo temporalizado.
Neste mesmo sentido, Camarano e Medeiros (1999, p. 7) afirmam que “uma das
conseqüências do uso da idade para a definição de idoso é o poder prescritivo contido nessa
definição”. A sociedade cria expectativas em relação aos papéis sociais dos idosos e exerce,
desse modo, diversas formas de coerção para que eles sejam cumpridos, desconsiderando as
características peculiares dos indivíduos (PRADO, 2002).
Isso, contudo, deveria ser matizado pelo reconhecimento de que há padrões e
regulações sociais que definem as diferenças de tais agrupamentos para além dos critérios
8
O critério etário, porém, não é o único utilizado pela sociedade para organizar o curso de vida. Há também,
segundo Neri (2001a), critérios de classe social, etnia, profissão e educação que se entrelaçam para determinar a
posição dos indivíduos e dos grupos na sociedade. Nesta pesquisa considerou-se, portanto, todos estes critérios
na compreensão das representações dos idosos abrigados.
14
estritamente etários. O envelhecimento não possui valor unívoco (DEPS, 1993). Assim sendo,
antropológica e culturalmente, a idade cronológica não pode ser vista como um dado apenas
objetivo, pois ela é significada como um princípio que norteia novos direitos e deveres:
[...] A infância, a adolescência, a vida adulta e a velhice não constituem
propriedades substanciais que os indivíduos adquirem com o avanço da
idade. Pelo contrário, o processo biológico, que é real e pode ser reconhecido
por sinais externos do corpo, é apropriado e elaborado simbolicamente por
todas as sociedades, em rituais que definem, nas fronteiras etárias, um
sentido político e organizador do sistema social
(MINAYO; COIMBRA
JÚNIOR, 2002, p. 15).
Nessa perspectiva, os idosos tendem a apresentar os mesmos comportamentos e
características atribuídas à sua idade, sem possibilidade de pensar e agir de modo diferente do
que deles se espera. Além disso, ao associar os indivíduos de idade avançada aos aspectos
depreciativos, reforça-se, assim, a visão de inutilidade e incapacidade imposta sobre os idosos
pelo meio. Isso pode contribuir, cada vez mais, para o seu afastamento das relações com o
outro, bem como para evitar a realização de atividades, transformando o envelhecimento em
uma experiência difícil de ser enfrentada.
1.5 A velhice, afinal, como construção histórica e social
A velhice, portanto, não é apenas um dado preciso e estritamente científico. Ao
contrário, ela é significada histórica e socialmente (SILVEIRA, 2002): a longevidade, como
em todas as situações humanas, tem uma dimensão existencial e modifica a relação do
homem com o tempo, com o mundo e com sua própria história, revestindo-se de
características biopsíquicas, bem como de aspectos sociais e culturais. O homem, assim
sendo, nunca vive em estado natural. Na sua idade avançada, como em qualquer idade, seu
estatuto lhe é imposto pela sociedade à qual pertence (BEAUVOIR, 1990).
Os traços culturais e históricos que determinam os indivíduos de idades avançadas em
dada sociedade não deixam de expor esta pelo reverso. Sendo assim, o papel e valor
assumidos por estes indivíduos podem colocá-la em questão:
[...] uma vez que, através dela, desvenda-se o sentido ou o não sentido de
qualquer vida anterior. Mas se a velhice, enquanto destino biológico, é uma
realidade que transcende a história, não é menos verdade que este destino é
vivido de maneira variável segundo o contexto social. Para julgar a nossa
coletividade, é necessário confrontar as soluções que ela escolheu com as
que outras adotaram, através do tempo e do espaço. Essa comparação
15
permitirá determinar o que a condição do velho comporta de inelutável, em
que medida e a que preço poderiam ser amenizadas suas dificuldades e qual
é, portanto, a parte de responsabilidade para com o idoso que se pode atribuir
ao sistema no qual vivemos
(BEAUVOIR, 1990, p. 16).
É preciso, pois, ao tratar da longevidade, vê-la como articulada em traços históricos
que desenham a configuração da própria sociedade, pois as respostas e soluções oferecidas
por esta desvelam seus próprios conflitos. Segundo Lloret (1998 apud GUSMÃO, 2001, p.
119), é necessário compreender:
[...] como se articulam as imagens impostas pela memória coletiva, pelo
imaginário social ou pelo costume. Também há que se avaliar como as
práticas cotidianas reforçam essas imagens ou as recriam, além de desvelar o
modo como certos estudos sociais ou psicossociais, certos interesses
econômicos e políticos - sem esquecer as razões legislativas e gerenciais na
classificação ou ordenação das populações - as conformam e determinam.
1.6 O idoso na sociedade contemporânea
A idéia de incapacidade física e as perdas dela decorrentes estiveram, como se viu,
sempre associadas à caracterização do envelhecimento com o advento do capitalismo. Dadas,
no entanto, as novas condições propiciadas pela medicina, atualmente evidencia-se o
prolongamento da vida dos idosos, acarretando mudanças nas representações sociais destes,
deixando-se assim de focar apenas a doença e a decrepitude física, mas passando-se a também
pôr em relevo suas possíveis atividades e satisfações.
Cabe, assim, ressaltar que, contemporaneamente, o critério etário produzido social e
historicamente com o advento do capitalismo tem sido matizado com fortes nuanças. A
longevidade, assim sendo, tem sido tema de pesquisas em diversas áreas acadêmicas,
sobretudo nas áreas relacionadas à qualidade de vida e saúde física e mental dos idosos.
A própria noção de terceira idade, conforme salienta Debert (1998), é assim uma
criação recente das sociedades ocidentais contemporâneas a partir destas novas abordagens
para representar positivamente a velhice
9
. Ela é, por isso mesmo, acompanhada de um
9
As próprias palavras carregam semanticamente a valoração que a sociedade dá ao referente, conforme se
depreende da Teoria das Representações Sociais. Sendo assim, hoje em dia, chamar alguém de velho ou falar da
velhice implica uma forte carga semântica negativa. Neste estudo, por isso mesmo, a partir de agora, serão
utilizados preferencialmente o termo idoso e a palavra longevidade ou terceira idade em vez de velho e velhice,
justamente para evitar esta representação social negativa presente em tais palavras. No entanto, como se viu, não
pareceu ser preciso evitá-las quando delas se falava como construção histórica. Além disso, visto uma vasta
bibliografia se refira à velhice, haverá ainda momentos em que se julgou sem sentido corrigi-la, desde que se
tenham presentes as devidas ressalvas feitas aqui.
16
conjunto de práticas e instituições encarregadas de atender as necessidades dessa população
que, a partir dos anos 70 do século XX, em boa parte das sociedades européias e americanas,
deveria ser afastada da marginalização e solidão que até então a caracterizavam.
Embora o processo de envelhecimento e a procura por alternativas propiciadoras de
uma longevidade satisfatória sejam, cada vez mais, postos em evidência e discutidos,
constituindo, inclusive, temas de inúmeras produções acadêmicas, percebe-se, contudo, ao
analisar as condições de saúde e bem-estar oferecidas aos idosos, nem sempre haver uma
efetiva melhora nas condições de vida dos mesmos (VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987).
Além disso, ainda prevalecem socialmente os antigos preconceitos contra eles. Estes são,
sobretudo, manifestados, conforme apontam Neri e Freire (2000, p. 8):
[...] sob a forma de afastamento, desgosto, ridicularização e negação, por
respostas de ingênua benevolência e por práticas discriminatórias. Há uma
grande associação, seja através da rejeição ou da exaltação acrítica da
velhice, entre esse evento do ciclo vital com a morte, a doença, o
afastamento e a dependência.
Nota-se, outrossim, um outro problema que a sociedade contemporânea lança aos
idosos: diferentemente deste afastamento e rejeição imposto ao idoso, decorrentes, como se
viu, de certas diretrizes próprias do capitalismo, há hoje, por parte do meio social, quase
contraditoriamente, expectativas e cobranças que exigem deles uma participação mais ativa e
efetiva na sociedade contemporânea (DEBERT, 1999b).
Cria-se, assim, tal expectativa de que os idosos sigam um padrão que não é adequado a
sua faixa etária, sem considerar-lhes as especificidades. Não se oferece, contudo, ao menos a
uma grande parte dos idosos, a possibilidade de condições para a realização de tais tarefas
assim preconizadas; nem mesmo, quando da impossibilidade de cumpri-las, a experimentação
efetiva de novos papéis no meio em que eles se inserem (NERI, 1993).
A questão é ainda mais delicada em vista das melhoras tecnológicas e das condições
de saúde pública. Decorre delas um significativo aumento mundial do número de idosos.
Segundo Veras (2004, p. 424), o “cenário que se desenha é de profundas transformações
sociais, não só pelo aumento proporcional do número de idosos nos diferentes países e
sociedades, mas igualmente em função do desenvolvimento da ciência e da tecnologia”.
O problema é maior em países mais pobres, em menores condições, portanto, de
enfrentar esta questão. Sendo assim, as características principais deste processo de
envelhecimento em países subdesenvolvidos, conforme apontam Ramos, Veras e Kalache
(1987, p. 211), decorrem:
17
[...] de um lado, do fato do envelhecimento populacional estar se dando sem
que tenha havido uma real melhoria das condições de vida de uma grande
parcela dessas populações; de outro lado, da rapidez com que esse
envelhecimento está ocorrendo. Na verdade, nos países menos
desenvolvidos, o contingente de pessoas prestes a envelhecer, dadas as
reduções nas taxas de mortalidade, é proporcionalmente bastante expressivo
quando comparado com o contingente disponível no início do século nos
países desenvolvidos. Com a baixa real da fecundidade, a tendência é haver
transformações drásticas na estrutura etária desses países, em tempo
relativamente curto, sem que as conquistas sociais tenham se processado
devidamente para a maioria da população.
Esta nova face histórica do processo de envelhecimento populacional acarreta,
portanto, novos e graves desafios em países menos desenvolvidos. No Brasil, por exemplo, os
problemas avolumam-se em função do descaso e desatenção sociais para com a questão,
expressos, sobretudo, pela escassez de recursos financeiros destinados ao atendimento de uma
demanda crescente do segmento idoso.
Desse modo, reserva-se a alguns os benefícios do avanço tecnológico e médico,
enquanto à maior parte dos idosos resta apenas a possibilidade de uma vida limitada e sem
oportunidades:
[...] A grande maioria dos idosos compõe aquela parte da população que,
confrontada com as novas perspectivas de envelhecimento abertas pela
modernidade, delas pouco se apropria. Nesses casos, pode-se dizer que os
idosos são vítimas de uma dupla discriminação - a da idade e a da pobreza -
que aprofunda sua exclusão
(GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000, p. 116-
117).
Tais questões, conseqüentemente, refletem-se sobretudo na vida atual dos idosos
brasileiros institucionalizados, visto que estes se deparem com um problema duplo: além da
dificuldade de inserção social em decorrência da idade avançada, sofrem ruptura do modo de
vida anterior na sociedade pelo fato de passarem a viver em instituições de abrigo,
resignando-se a este modo de vida.
Percebe-se assim, conforme aponta Chauí (1994), que ainda hoje grande parte dos
idosos é tratada sob a ótica do regime capitalista, pois não possuem função social que outras
sociedades lhes atribuíam, uma vez que habilidades como aconselhar e lembrar são
mecanismos não valorizados, ocorrendo opressão à velhice. Esta opressão, conforme afirma a
autora, ocorre a partir de mecanismos institucionais visíveis, como os abrigos, bem como por
questões psicológicas expressas por meio da discriminação e inexistência do diálogo.
Estabelecido, pois, que a demarcação daquilo que contemporaneamente se denomina
terceira idade é uma construção histórica e social; estabelecido quais são certas representações
sociais dominantes na sociedade contemporânea, cabe agora, passo seguinte e importante para
18
objetivo aqui traçado, demarcar qual papel social é hoje em dia reservado às instituições e aos
abrigos, especificando-lhes a relação para com o idoso.
1.7 Institucionalização do idoso
As manifestas mudanças biológicas decorrentes da idade acarretam, pois, quando
vistas sob o ângulo das perspectivas sociais, perdas ainda maiores por parte dos indivíduos
mais longevos. Ao se investigar, por exemplo, a percepção que indivíduos com idade entre
treze e quarenta e cinco anos têm dos mais velhos, constatou-se, nos resultados de pesquisa
obtidos por Neri (1993), que elas apresentaram uma tendência a relacioná-la com
improdutividade, dependência, solidão, conflitos familiares e desvalorização social, aspectos
estes associados à perda da autonomia e mudança de papéis sociais decorrentes da idade.
Além disso, da perspectiva do psiquismo do próprio idoso, segundo Davim et al.
(2004), a progressiva perda de recursos físicos, mentais e sociais tende a despertar
sentimentos de desamparo. O prolongamento da vida humana, portanto, parece deixar o
indivíduo impotente, indefeso e fragilizado para tomar as suas próprias decisões e enfrentar os
seus problemas cotidianos.
Os idosos, sendo assim, têm sido vistos como pessoas improdutivas, mas pouco se faz
para recuperar sua identidade e elevar a sua auto-estima. Além disso, eles nem sempre
permanecem no convívio dos seus familiares, passando a morar em abrigos, longe de parentes
e amigos.
Tal separação, além disso, não é a única marca de tal agrupamento. Há, além desta,
para os idosos que vivem em abrigo, outro agravante que socialmente lhes caracteriza mais
fortemente: a exclusão social como um outro possível estigma a ser marcado naqueles que ali
vivem. A questão, neste caso, é ainda mais complexa, visto que tais idosos passem a residir
em locais caracterizados, conforme salienta Goffman (1961), como um modelo de instituição
total.
As instituições totais caracterizam-se por “seu fechamento ou seu caráter total” para
com a sociedade. São, assim, “simbolizadas pela barreira à relação social com o mundo
externo e por proibições à saída que muitas vezes estão incluídas no esquema físico, como por
exemplo, portas fechadas e paredes altas” (GOFFMAN, 1961, p. 16).
A barreira imposta pelas instituições totais entre o internado e o mundo externo
19
assinala uma “mutilação do eu”, haja vista a modificação do modo de vida sofrida em função
da rotina estabelecida pela instituição e sua forma padronizada de funcionamento, cujo
objetivo principal é a manutenção do controle dos seus membros:
[...] O novato chega ao estabelecimento com uma concepção de si mesmo
que se tornou possível por algumas disposições sociais estáveis no seu
mundo doméstico. Ao entrar, é imediatamente despido do apoio dado por
tais disposições. Na linguagem exata de algumas de nossas mais antigas
instituições totais, começa com uma série de rebaixamento, degradações,
humilhações e profanações do eu. O seu eu é sistematicamente, embora
muitas vezes não intencionalmente, mortificado. Começa a passar por
algumas mudanças radicais em sua carreira moral, uma carreira composta
pelas progressivas mudanças que ocorrem nas crenças que têm a seu respeito
e a respeito dos outros que são significativos para ele
(GOFFMAN, 1961,
p. 24).
Os internados, ao chegarem na instituição, possuem uma “cultura aparente”, derivada
de um “mundo da família”, na qual o modo de vida e o conjunto de atividades sociais lhes
determinam a identidade. As instituições totais, por sua vez, parecem não substituir, pela sua
cultura específica, o que fora construído pelo internado até a sua admissão na instituição.
Nesse sentido, “se ocorre mudança cultural, talvez se refira ao afastamento de algumas
oportunidades de comportamento e ao fracasso para acompanhar mudanças sociais recentes
no mundo externo” (GOFFMAN, 1961, p. 23).
Este autor também aponta algumas características que são próprias das instituições
totais: todos os aspectos da vida são realizados no mesmo local e por meio de uma única
autoridade; a atividade diária do institucionalizado é realizada na companhia de um grupo de
pessoas e estas são tratadas do mesmo modo; além disso, elas são obrigadas a fazer as
mesmas atividades em conjunto; as atividades diárias são estabelecidas em horários pré-
determinados.
Tais atividades obrigatórias são supostamente planejadas para atender sobretudo aos
objetivos da instituição. Resta saber como nela se sente quem foi afastado de uma cultura
anterior diversa e, muita vez, é obrigado a viver nesta outra. A representação social dela por
idosos que nela vivem pode aclarar tal questão. Mais do que isso, pode-se, a partir deste ponto
específico, de alguma maneira indicar, a partir da avaliação dos próprios idosos, melhorias na
instituição para otimizar a qualidade de vida dos que ali estão abrigados, bem como de uma
nova inserção mais satisfatória na sociedade mesmo com a permanência deles na instituição.
Tais objetivos, com efeito, são uma das maiores preocupações da sociedade atual com relação
ao idoso, características próprias daquilo que ora se denomina como terceira idade.
20
1.8 Qualidade de vida na terceira idade
Segundo Neri (1993), avaliar a qualidade de vida na terceira idade implica na adoção
de critérios de ordem: biológica, como a longevidade e a saúde do corpo; psicológica, como a
saúde mental; sócio-cultural, como o grau de satisfação com a vida, atividades realizadas e
produtividade; familiar, como a continuidade dos papéis exercidos na família; de convivência
social, como as relações informais e de amizade. Assim sendo, o contexto social, as políticas
públicas orientadas aos idosos, os eventos de vida atuais e passados e as características
pessoais podem lhes constituir tanto uma ameaça como, ao contrário, prover um
envelhecimento satisfatório.
Estudos recentes sobre o envelhecimento demonstram que a longevidade não tem sido
tratada apenas como uma ausência temporária de doença e tão pouco como um período
caracterizado basicamente por ansiedade, preocupação e solidão. A tendência contemporânea
sobre o envelhecimento consiste assim numa revisão dos estereótipos a ele associados. Desse
modo, a “idéia de um processo de perdas tem sido substituída pela consideração de que os
estágios mais avançados da vida são momentos propícios para novas conquistas, guiadas pela
busca do prazer e da satisfação social” (DEBERT, 1999b, p. 14).
Há, desde a década de 40, interesse na investigação dos fatores que influenciam na
qualidade de vida. Os estudos iniciais, segundo Neri (1993), apontaram a satisfação e a
expectativa futura de vida como aspectos essenciais para o bem-estar dos idosos. Além disso,
as novas concepções, desenvolvidas a partir dos anos 70, consideram que uma qualidade de
vida satisfatória, no que se passou a qualificar como terceira idade, é resultante de todo o
percurso de vida do indivíduo (NERI; FREIRE, 2000). Tais estudos vão, pois, na contramão
dos que consideram a longevidade apenas na perspectiva de uma homogeinização, sobretudo,
como se viu, em decorrência de um agrupamento etário.
O conceito de qualidade de vida, sendo assim, está relacionado à auto-estima e ao
bem-estar pessoal e abrange uma série de aspectos como: a capacidade funcional; o nível
sócio-econômico; o estado emocional; a interação social; a atividade intelectual; o auto-
cuidado; o suporte familiar; o próprio estado de saúde; os valores culturais, éticos e a
religiosidade; o estilo de vida; a satisfação com o emprego ou com atividades diárias; o
ambiente em que se vive (VECCHIA et al., 2005).
Além disso, alguns estudos, conforme aponta Vitta (2000), mostram que há relação
entre as mudanças físicas e fisiológicas do envelhecimento com as de natureza psicossocial.
21
As dificuldades para realizar atividades cotidianas, decorrentes das limitações físicas,
interferem na relação social e na autonomia, resultando em alterações emocionais. Desse
modo, encontra-se, com freqüência, entre idosos, sobretudo os doentes, uma diminuição na
satisfação com a vida, na auto-estima e na autonomia, além de quadros de depressão, de
ansiedade e solidão.
1.9 Solidão: mal-estar da velhice?
Cabe, pois, por um lado, ressaltar o isolamento como um dos fatores determinantes na
sociedade contemporânea para a perda de satisfação com a vida para o idoso, pois a solidão é
representada socialmente como um dos aspectos marcantes dos indivíduos em idades
avançadas, traçando em grande parte os contornos do seu psiquismo; por outro, contudo, é
preciso apresentar o modo de combatê-la, facultando ao idoso as atividades que criem ou
recriem elos sociais. Tal dilema é, pois, a razão dos dois próximos tópicos deste estudo. Mais
à frente, ver-se-á, inclusive, que a solidão é uma das subcategorias temáticas extraídas dos
discursos dos entrevistados.
A solidão, de acordo com Capitanini (2000), é um dos aspectos mais ressaltados como
fator de mal-estar na velhice. Nos últimos trinta anos tem-se atentado, em função das
condições da vida moderna e dos novos arranjos familiares, para tal questão como grave
problemática da terceira idade, pois as mudanças freqüentes no estilo de vida contribuem para
o isolamento dos idosos.
Há inúmeros fatores que podem acarretar na solidão do idoso. Segundo Davim et al.
(2004, p. 519):
[...] a situação familiar do idoso no Brasil reflete o efeito cumulativo em
eventos sócio-econômicos, demográficos e de saúde ao longo dos anos,
demonstrando que o tamanho da prole, as separações, o celibato, a
mortalidade, a viuvez, os recasamentos e as migrações, vão originando, no
decorrer das décadas, tipos de arranjos familiares e domésticos, no qual o
morar sozinho, com parentes ou em asilos, pode ser o resultado desses
desenlaces.
Existem, no entanto, aspectos relevantes do psiquismo dos idosos que parecem
sustentá-los contra as vicissitudes da solidão. O psiquismo acentua, resgata ou incorpora
novos horizontes para fortalecer-se. Sendo assim, alguns indivíduos, com o avançar da idade,
acentuam as preocupações com questões de foro íntimo, sobretudo aquelas relacionadas com
22
sentimentos e comportamentos religiosos. Percebe-se, portanto, que há modificação no
interesse e na personalidade, em função da idade, conduzindo os indivíduos para uma
interiorização:
[...] Esse aumento da auto-reflexão e introspecção, que tende a se iniciar na
meia-idade e acentuar-se com o passar dos anos, traz consigo reflexões de
natureza retrospectiva, avaliação da vida, busca de um significado ou
propósito para a vida, considerações sobre o futuro e a finitude da existência,
o que abre a porta para as questões religiosas
(GOLDSTEIN, 1993, p. 93).
1.10 Religiosidade e sua carga simbólica
Os resultados de uma pesquisa realizada por Goldstein e Neri (1993), que objetivou
investigar, dentre outros fatores, a opinião dos adultos sobre um eventual aumento da sua
religiosidade com o passar dos anos, mostraram que 70% dos participantes afirmam ter
percebido que a sua religiosidade aumentou com a idade. Destes, 78,6% vêem esse aumento
como reflexo de seu crescimento pessoal; 14,5% atribuem-no a algum acontecimento
marcante em suas vidas; 6,8% mencionam mudanças de um grupo religioso para outro. O
aumento da religiosidade como reflexo do crescimento pessoal, conforme o que é declarado
pela maioria, estaria vinculado à adesão a uma relação mais pessoal com a divindade como
forma de lidar com o estresse. De acordo com essa mesma pesquisa, para 87,3%, as
representações das relações com Deus ajudam a lidar com a solidão; 68,2% apegam-se à fé
como o elemento mais importante na vida; 95,3% apóiam-se na crença em Deus em ocasiões
difíceis, buscando apoio ou força.
Os fenômenos da solidão e da religiosidade no universo de marcas discursivas desta
pesquisa se apresentam nas representações por idosos abrigados como diálogos com o divino
e o transcendente. Entende-se, com isso, que eles talvez melhor possam articular socialmente
as constituições do psiquismo, por meio da ancoragem e objetivação, enquadrando as novas
relações sociais, com as quais se deparam por meio de práticas religiosas e crença na
divindade, a esquemas antigos.
1.11 Reativação
10
: antídoto contra a solidão?
10
Reativação, conforme sugestão do Prof. Dr. Marco Antônio de C. Figueiredo no Exame de Qualificação,
significa retomada do espaço vital para reintegração no convívio social e incorporação de realizações pessoais no
23
O idoso nem sempre, contudo, pende para a solidão. Ao contrário, freqüentemente ele
procura se manter ligado às principais fontes de significado das funções sociais, ou seja, a
reativação, o trabalho e a manutenção dos papéis sociais são nele fatores valorados e
importantes. Sendo assim, como são socialmente postos, estes favorecem a obtenção de
satisfação pessoal e propiciam significados e sentidos à existência, repercutindo
favoravelmente no desenvolvimento da saúde física e mental. No entanto, nem sempre isso
ocorre, pois dadas as condições materiais e as representações socialmente dominantes do
processo de envelhecimento no regime de produção capitalista, os idosos são, via de regra,
afastados dos seus postos de trabalho e de seus anteriores papéis sociais (CAPITANINI,
2000).
De acordo com os dados apresentados numa pesquisa sobre a relação entre o trabalho
feminino e saúde na terceira idade, verifica-se que há diferenças significativas do estado de
saúde entre as idosas que permanecem no mercado de trabalho e as que estão inativas.
Percebe-se, assim, que as idosas ativas, na maioria dos casos, avaliam a sua própria saúde
como satisfatória e relatam menor freqüência de doenças crônicas. A permanência destas
mulheres na vida produtiva representa, portanto, “diferenças sócio-demográficas nas
condições de saúde, mobilidade e autonomia e no uso de serviços de saúde. O trabalho, assim
como a condição de saúde das idosas, é conseqüência de eventos ocorridos ao longo da vida”
(BARRETO; GIATTI, 2002, p. 838).
A percepção negativa da terceira idade reflete nas reduzidas oportunidades no
mercado de trabalho oferecidas aos idosos e nos inexistentes ou escassos investimentos para a
sua reciclagem e atualização, visto que o estigma associado à idade limita as suas
possibilidades de opção e de decisão por uma atividade. Desse modo, tendo em vista padrões
atuais de produtividade, “o investimento no idoso ou para o idoso é subestimado, uma vez que
não se acredita na possibilidade de retorno. O seu bem-estar é secundado em uma política que
privilegia o mais jovem, sem levar em conta o princípio democrático de igualdade social”
(DEPS, 1993, p. 73).
A questão é ainda mais grave para os idosos abrigados em instituições. Na análise
específica de integração social da velhice sob a perspectiva de idosos institucionalizados, em
pesquisa realizada por Neri (1993), verificou-se que a reduzida participação dos mesmos em
atividades operacionais deve ser compreendida dentro de uma análise ampla do contexto
institucional no qual eles estão inseridos. Constata-se, em grande parte dos abrigos, o
despreparo ou mesmo a falta de recursos e pessoal capacitado, fazendo que eles adquiram a
cotidiano vivido na terceira idade.
24
característica de “depositários” de idosos.
Davim et al. (2004, p. 520), deste modo, caracteriza as instituições asilares como:
[...] locais com espaço e áreas físicas semelhantes a grandes alojamentos, em
que raras são as que mantêm pessoal especializado para assistência social e à
saúde ou que possuam uma proposta de trabalho voltada para manter o idoso
independente e autônomo. Eles vivem, na maioria das vezes, como se
estivessem em reformatórios ou internatos, com regras de entradas e saídas,
poucas possibilidades de vida social, afetiva e sexual ativa. Na realidade,
muitas vezes o que se encontra são depósitos de pessoas, que,
fundamentados na idéia de amor ao próximo e amparo aos desabrigados,
consideram que os abrigos, juntamente com os cuidados a eles prestados, são
suficientes às pessoas que estejam em seus últimos dias de vida.
A mudança na concepção dos indivíduos com idade próxima ou superior a sessenta
anos deveria, assim, refletir-se também no melhor planejamento do espaço físico, com
conseqüente adequação deste às práticas de determinadas atividades, pois várias dificuldades
específicas do idoso obstaculizam sua realização.
Neste sentido, Cardoso (2005, p. 41) afirma que:
[...] à medida que aumenta a população dependente, seja pelo ingresso de
novos residentes, ou fragilização dos antigos, uma instituição para idosos
corre o risco de tornar-se um hospital de terceira linha ou, pior, uma
antecâmera da morte. Mantê-la como unidade de vida ou como qualquer
lugar onde a vida é valorizada e a dignidade dos idosos é reconhecida até o
leito da morte é um desafio permanente para as instituições.
Na análise das entrevistas, a partir da fala dos idosos abrigados, a reativação apresenta
por ancoragem a recomposição do que anteriormente figuravam pelo trabalho, podendo assim
dizer que ela se lhes figura como um modo de inclusão social a partir dos novos esquemas
presentes na vida deles no abrigo.
1.12 Do crescimento da população idosa
Não se pode também, ao se indagar sobre o papel dos idosos na sociedade e em suas
transformações, ignorar o aumento mundial da população idosa nas últimas décadas.
Dados fornecidos por Silva e Neri (1993) a respeito do aumento progressivo da
população idosa no Brasil apontam que, até 1950, era de 4% a taxa de pessoas que
apresentavam 60 anos de idade. A partir daquele ano tal porcentagem elevou-se, apresentando
uma taxa de 5,15% em 1970, 6,1% em 1980 e 7,2% no início dos anos 90. Em 2005, por sua
25
vez, verificou-se que há 15% de idosos na população brasileira, enquanto eles são 17% da
população nos países desenvolvidos.
Pereira, Curioni e Veras (2003) afirmam, segundo dados do Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística – IBGE (2002), que em 1950 eram cerca de 204 milhões de idosos no
mundo. Já em 1998, quase cinco décadas depois, esse contingente alcançava 579 milhões de
pessoas, um crescimento de quase 8 milhões de pessoas idosas por ano. As projeções indicam
que, em 2050, a população idosa será de 1.900 milhões de pessoas, montante equivalente à
população infantil de 0 a 14 anos de idade.
De acordo com Ramos et al. (1987 apud REZENDE, 2001, p. 1), o Brasil, em 1950,
ocupava a 16
a
posição entre os países que apresentavam o maior número de idosos do mundo,
contando com cerca de 2.000.000 de pessoas com a idade de 60 anos ou mais, dado
equivalente a 4,8% do total da população. Dados projetam que em 75 anos tal número
percentual poderá quase triplicar.
Os dados apontados pelo IBGE no ano de 1978, segundo Silva e Neri (1993), mostram
que a expectativa de vida da população brasileira, em 1950, era de 50 anos, visto que apenas
35% das pessoas atingiam a idade de 60 anos.
Berquó (1999), porém, ressalta que a população, entre 1940 e 1960, experimentou um
aumento em seu ritmo de crescimento anual que se elevou de 2,34% ao ano, na década de
1940, para 3,05% no decênio seguinte. Essa transição ocorreu devido ao declínio da
mortalidade e uma constância, nesse período, na taxa de natalidade que foi igual a 6,2 filhos
por mulher. A expectativa de vida, por sua vez, elevou-se de 41,5 anos em 1940 para 51,6
anos em 1960.
Houve, assim, predomínio no Brasil, até 1970, de jovens menores de 15 anos em
relação a adultos de 15 a 64 anos, e de idosos de 65 anos ou mais. Após esse período e, por
decorrência da queda da taxa de natalidade, grupo de jovens passou a representar, a partir de
1980, proporcionalmente bem menos no cômputo geral da população, abrindo, com isso,
espaço para aumentar o peso relativo dos agrupamentos etários até então minoritários
(BERQUÓ, 1999).
O aumento atual da população de idosos no Brasil cresce significativamente, sendo um
dos países em que tal fenômeno ocorre com maior índice percentual de crescimento.
Pesquisadores interessados no estudo de idosos brasileiros reconhecem a contribuição dos
avanços médicos no aumento da expectativa de vida da população. Houve, então, ao se
comparar a situação de vida da população atual com a de trinta ou quarenta anos atrás, uma
“melhoria nutricional, elevação dos níveis de higiene pessoal, melhores condições sanitárias
26
em geral e, particularmente, condições ambientais no trabalho e nas residências muito mais
adequadas que anteriormente” (VERAS, 1988, p. 384).
No Brasil, conforme descreve este mesmo autor, a interação desses fatores, na
explicação do aumento percentual da população idosa, provocou redução das taxas de
mortalidade, sobretudo nos primeiros anos de vida, e diminuição significativa do índice de
natalidade, principalmente nos centros urbanos.
Os motivos desta diminuição decorreram, portanto, do intenso processo de
urbanização da população brasileira e da necessidade de limitação do aumento da família,
associados a um modo de vida diverso devido a uma crise econômica. Este contexto assim se
caracterizou pela progressiva incorporação da mulher à força de trabalho; pelas mudanças de
padrões sócio-culturais decorrentes da própria migração; da veiculação, pelos meios de
comunicação, de um padrão de vida caracterizado, sobretudo, por um número reduzido de
integrantes das famílias; pela crescente propagação dos meios contraceptivos (RAMOS;
VERAS; KALACHE, 1987; VERAS, 1988).
Chaimowicz (1997, p. 188), nesse sentido, afirma que:
[...] nos países industrializados a queda das taxas de mortalidade e
fecundidade, iniciadas no século passado, acompanhou a ampliação da
cobertura dos sistemas de proteção social e melhorias das condições de
habitação, alimentação, trabalho e do saneamento básico. No Brasil, por
outro lado, o declínio da mortalidade que deu início à transição demográfica
foi determinado mais pela ação médico-sanitária do Estado que por
transformações estruturais que pudessem se traduzir em melhoria da
qualidade de vida da população: nas primeiras décadas do século XX,
através de políticas urbanas de saúde pública como a vacinação, higiene
pública e outras campanhas sanitárias; a partir da década de 40, pela
ampliação e desenvolvimento tecnológico da atenção médica na rede
pública.
Outro aspecto, agora específico, a se considerar no aumento da população idosa, é o
predomínio nele da população feminina, com as conseqüências disso para as políticas sociais,
em especial, as de saúde pública. Assim, o aumento significativo da expectativa de vida da
população mundial, de acordo com Ramos, Veras e Kalache (1987), não ocorre de modo
uniforme em ambos os sexos. A população brasileira, entre 1920 e 1982, experimentou um
aumento de quase trinta anos de vida, sendo este aumento mais significativo para a mulher.
Berquó (1999), nesse sentido, afirma que o número absoluto de idosas brasileiras de
sessenta e cinco anos de idade ou mais tem sido superior ao número de homens idosos desta
mesma idade. Tal fenômeno acentuou-se nos últimos anos. As mulheres, desde 1950, têm
uma maior expectativa de vida do que os idosos do sexo masculino.
27
Veras, Ramos e Kalache (1987, p. 229) descrevem que “ao lado de diferenças
biológicas, como, por exemplo, o fator de proteção conferido por hormônios femininos em
relação à isquemia coronariana”, está o fato de que as mulheres se expõem menos do que os
homens aos fatores de risco para a saúde.
Pode-se mencionar, dentre outros fatores, a diferença de exposição da mulher às
causas de risco de trabalho, tendo em vista o predomínio do homem na execução de tarefas e
funções de maior periculosidade. Desse modo, a taxa de mortalidade da população masculina,
devido a causas externas, é maior do que a das mulheres, visto que entre os homens ocorram
mais: acidentes, em geral, e automobilísticos, em particular; homicídios; quedas acidentais no
trabalho; e até mesmo suicídios.
Percebe-se, além disso, que há, entre homens e mulheres, diferenças de atitudes em
relação às doenças e incapacidades. As mulheres, de modo geral, são mais atentas e
cuidadosas com a saúde; demonstram melhor conhecimento das doenças; utilizam-se com
maior freqüência dos serviços de saúde, favorecendo um melhor prognóstico das doenças
crônicas. Além disso, houve diminuição da mortalidade materna por causa da melhoria de
assistência médica obstetrícia. O consumo excessivo do tabaco e do álcool, por sua vez,
ocasiona uma maior taxa de mortalidade masculina. O uso destas substâncias são uma das
principais causas de morte nos indivíduos de faixa etária acima de quarenta e cinco anos de
idade (VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987).
Tais autores afirmam, no entanto, que estes fatores de risco predominantes no sexo
masculino, responsáveis por reduzir o seu período de vida, podem atualmente estender-se às
mulheres, sobretudo pelo fato de elas lutarem e conquistarem direitos e oportunidades iguais
aos dos homens, ampliando o seu espaço no mundo contemporâneo. Desse modo, pode-se
observar nas mulheres a incorporação de valores e hábitos que, até pouco, eram restritos aos
homens. Esta mudança nos padrões de conduta pode ser verificada, por exemplo, pelo
consumo de cigarro por adolescentes do sexo feminino e pela crescente inserção da mulher no
mercado de trabalho.
O crescimento percentual da população idosa feminina não deixa, porém, de acarretar
certos problemas; com efeito, Debert (1999b) e Neri (2001b) mostram que a maior
longevidade das mulheres idosas significa maior risco, uma vez que elas são física e
socialmente mais frágeis do que os homens. Tal fato é visto como problema médico e social.
Além disso, é objeto de discurso ambíguo das instituições sociais e do Estado, haja vista que
este, ao mesmo tempo que as protege, consideram-nas responsáveis pelos problemas –
sobretudo os de ordem econômica – enfrentados pelos sistemas públicos de saúde e de
28
previdência social.
Nesse sentido, Goldani (1999) afirma, em relação ao prolongamento da vida das
idosas brasileiras, que elas enfrentam uma série de desvantagens acumuladas ao longo de uma
vida de discriminação e de desigualdades estruturais marcada por trabalho não remunerado;
recebimento de benefícios mínimos de aposentadoria; e, em grande parte, pela não aquisição
de planos de atendimento à saúde.
A autora acima mencionada afirma, tendo por base trabalhadoras idosas, que estas
recebem salários equivalentes à metade ou pouco mais dos salários recebidos pelos homens.
Assim sendo, dentre os idosos, elas acabam se tornando os mais dependentes e
financeiramente carentes. Além disso, visto seja superior a expectativa de vida das mulheres
em relação à dos homens, deve-se destacar que muitos dos problemas enfrentados pelas
idosas femininas estão relacionados ao fato de elas permanecerem sozinhas e dependentes.
Assim sendo, são necessárias reestruturações no âmbito social, institucional, político,
econômico e da saúde, pois os idosos, cada vez mais, em maior número, apresentam
características peculiares e necessidades próprias. Essa transição demográfica requer,
portanto, a criação de novos espaços e, conseqüentemente, exige a reformulação de conceitos
e posturas.
O aumento mundial do número de idosos transformou-se, deste modo, em questão
pública. O envelhecimento passou a ser um problema enfrentado mundialmente, sobretudo
pelos países menos desenvolvidos, nos quais as questões relativas à saúde e ao atendimento à
população mostram-se, na maior parte das vezes, precárias (VERAS, 2000).
Nesse sentido, nos últimos anos tem havido, nestes países, aumento significativo das
iniciativas voltadas para as pessoas que se encontram na terceira idade, bem como para a
ampliação das discussões referentes a seus direitos, sobretudo em relação à qualidade de vida
e aposentadoria:
[...] Mesmo em um país como o Brasil, tradicionalmente identificado como
um ‘país jovem’, que dá pouca atenção aos seus idosos, a velhice vem se
tornando, de forma particular, uma questão de ordem pública, não mais
restrita à esfera privada e da família
(LIMA, 1999).
No contexto social atual, porém, ocorrem poucas ações efetivas para realizar as
transformações sociais necessárias devido ao envelhecimento populacional, visto que este seja
o início de um processo em desenvolvimento. Veras (2003, p. 706), desse modo, afirma que,
“ao propor uma mudança do patamar de discussão da transição demográfica, deve-se buscar
algo análogo na área da saúde, em relação à (re)organização dos modelos assistenciais”:
[...] Apesar das fortes pressões criadas pelas mudanças demográficas, o
29
incremento das demandas por políticas sociais orientadas a idosos não deve
ser tratado apenas como resultado de uma determinada composição etária.
Mudanças no papel dos idosos na sociedade devem ser vistas como um dos
determinantes dessas demandas. Essa perspectiva é importante do ponto de
vista da formulação de políticas de assistência, sejam elas públicas ou
privadas, pois mostra que a melhoria das condições de vida dos idosos não
depende apenas de mudanças no regime demográfico
(CAMARANO et
al., 1999, p. 63).
No caso do Brasil, ao mesmo tempo em que o prolongamento da vida é um ganho
coletivo, este também se torna uma ameaça social, pois os custos decorrentes do
envelhecimento populacional mostram-se elevados. Segundo os autores acima mencionados,
este novo cenário gera preocupação, uma vez que acarrete novas demandas com relação às
políticas públicas, colocando, desse modo, desafios para o Estado, a sociedade e a família:
[...] Os custos da aposentadoria e da cobertura médico assistencial da velhice
são apresentados como indicadores da inviabilidade de um sistema que, em
um futuro próximo, não poderá arcar com os gastos de atendimento, mesmo
quando a qualidade dos serviços é precária
(DEBERT, 1999b, p. 22-23).
O controle da mortalidade e a diminuição da taxa de natalidade, além disso, acarretam
mudanças sociais porque modificam a estrutura familiar. Há assim alterações na composição e
dinâmica familiar (VERAS, 1994). Segundo Goldstein e Siqueira (2000), os avanços
tecnológicos e as mudanças sócio-econômicas da modernidade possibilitam, no seio das
famílias, o convívio de três ou quatro gerações, cada qual composta por poucos membros.
Essa experiência sem precedentes acarreta sérias questões a respeito das relações sociais e da
solidariedade entre as gerações. Agrava-se a questão pelo predomínio de mulheres na terceira
idade. Tal fato acarreta um maior número de idosas que, afastadas da família, passam a viver
em instituições.
Zimerman (2000, p. 50), nesse sentido, afirma que:
[...] à medida que vamos envelhecendo, vemos a família se alterando e, em
especial, a posição de cada membro dentro dela. Os papéis vão se
modificando e a relação de dependência torna-se diferente. O velho, que já
teve filhos sob seu cuidado e dependência, agora é quem necessita de
assistência e torna-se mais dependente. Muitas vezes as famílias têm
dificuldades para entender essas mudanças de papéis e lidar com elas.
Ajudá-las nessa questão é fundamental, uma vez que a interação familiar é
vital para o bem-estar do velho e ele próprio faz parte desse sistema.
Desde a década de 80, nos países desenvolvidos, houve, em razão disso, mudanças nas
configurações familiares, surgindo assim novas políticas sociais referentes à saúde e ao
trabalho a fim de acomodar as demandas sociais decorrentes deste número expressivo de
idosos:
30
[...] Em vários países da Europa e nos Estados Unidos, há mais de duas
décadas, ocorrem investimentos sociais para a construção e a manutenção de
redes de suporte ao idoso, quer atendendo-o diretamente, quer prestando
apoio aos familiares, voluntários e profissionais encarregados de ampará-los
(SILVA; NERI, 1993, p. 217).
Nos EUA e Canadá, 80% e 94%, respectivamente, das pessoas que cuidam dos idosos
são filhos, parentes e amigos. Segundo Kane e Kane (1990 apud SILVA; NERI, 1993, p.
217), “um terço desses cuidadores são únicos, em geral cônjuges idosas, filhas de meia-idade
e viúvas”. Ao citar relatos de idosos brasileiros, Ramos (1987 apud SILVA; NERI, 1993, p.
217) podia em 1987 afirmar que “2% não contam com qualquer ajuda familiar em caso de
doença ou incapacidade, 40% contam com o cônjuge, 35% com a filha, 11% com o filho e
10% com a família”.
Tais números, contudo, não podem expressar os problemas atuais brasileiros, pois,
conforme afirmam Veras, Ramos e Kalache (1987, p. 288), se “uma importante modalidade
de suporte social é obtida através dos sistemas informais de apoio que consistem nos parentes,
vizinhos ou amigos”, há uma evidente mudança de perspectiva, já que essa estrutura social foi
por muito tempo o referencial maior de apoio na comunidade, mas atualmente tende a
diminuir do mesmo modo e pelos mesmos motivos que estão acarretando o desaparecimento
da família numerosa.
Tal fato implica em dificuldades de adaptação e assimilação do idoso à sociedade
brasileira sem que haja uma resposta adequada do Estado à questão (VERAS, 1988, 2004;
VERAS; RAMOS; KALACHE, 1987; ZIMERMAN, 2000). O problema é ainda maior nos
grandes centros populacionais: as relações com a família, para idosos de nível sócio-
econômico baixo que apresentam comprometimentos físicos e cognitivos, configuram-se
como mais problemáticas no que se refere à convivência com os filhos. Tal aspecto se agrava
com a carência de instituições de apoio ao idoso. Além disso, quando há, o asilamento
geralmente é representado como negativo, com significados de abandono ou refúgio, tanto por
idosos como por familiares de todos os níveis sócio-econômicos (SILVA; NERI, 1993).
O aumento da participação social dos idosos e o surgimento de novas representações
sobre o processo de envelhecimento não podem, conforme aponta Lima (1999):
[...] ser explicados unicamente pelo envelhecimento da população, pois são
reflexo de mudanças que implicam redefinições das formas de periodização
da vida, das categorias etárias que recortam a organização da sociedade e a
revisão das formas tradicionais de gerir a experiência de envelhecimento.
Um processo de ‘politização’, com características próprias das sociedades
contemporâneas, está alçando a velhice à dimensão pública, tornando mais
evidentes os mecanismos e os agentes de sua construção social, bem como
explicitando o papel desempenhado por cada um deles: o Estado, através de
31
políticas sociais, o saber científico institucionalizado e as pessoas idosas.
Segundo Goldstein (2000), a diminuição do tamanho da prole, o divórcio, as
migrações internas, o aumento do trabalho da mulher fora de casa e as mudanças dos valores
sociais e familiares estão fortemente associados a dificuldades sociais e familiares no
fornecimento de apoio econômico, físico e psicológico a idosos dependentes e fragilizados.
Essas dificuldades são potencializadas pela escassez de serviços especializados de saúde em
hospitais, ambulatórios e centros-dia, bem como pela ausência de oferta organizada de
serviços de atendimento domiciliar a idosos.
A falta, contudo, de condições sociais, institucionais e familiares para o cuidado de
idosos dependentes e fragilizados aumenta a probabilidade de ocorrência de maus-tratos,
abandono e institucionalização. O país não propicia uma rede suficiente de instituições que
ofereçam serviços adequados aos idosos e a maioria delas tem natureza filantrópica
11
(GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000).
1.13 Política Nacional para o Idoso: a Previdência Social e o Estatuto do Idoso
O aumento percentual e em números absolutos dos idosos da população brasileira
acarreta problemas que, como se viu, o Estado e a sociedade têm tido dificuldades em
enfrentar de modo satisfatório. Por isso mesmo, nos últimos anos, implementaram-se leis e
desenvolveram-se programas destinados aos idosos, buscando modos para dar-lhes proteção,
bem como para tratá-los dignamente.
No entanto, como é o caso de muitas leis no Brasil, a implementação é ainda precária,
pois o Estado se omite quanto aos programas de proteção e avaliação das medidas
implantadas, o que se nota em relação às instituições de assistência aos idosos.
Nessa perspectiva, a Previdência Social, a partir da década de 70 do século passado,
instituiu a aposentadoria para idosos e garantiu, com isso, a vida dos mesmos na sociedade
brasileira, assegurando os seus direitos como cidadãos plenos. Além disso, na década de 90,
conforme apontam Camarano et al. (1999), o governo passou a estabelecer legislações e
11
Segundo Rezende (2001), os asilos, enquanto instituições de assistência social ao idoso, desde o início da sua
existência na Europa, tinham caráter caritativo. Eles restringiam seu atendimento aos grupos mais pobres da
sociedade, consolidando sua realidade histórica nas idéias de caridade e filantropia. Nota-se, portanto, que essa
concepção vigora nos dias de hoje, sobretudo nos países subdesenvolvidos, nos quais as condições sociais e
econômicas da população são precárias, restando a alguns idosos a internação.
32
programas sociais destinados especificamente para a população idosa.
A Constituição de 1.988 foi importante motor para tais iniciativas, sobretudo a partir
do capítulo de que dispõe a respeito da Seguridade Social que trata de assuntos sociais
relevantes para os segmentos etários mais velhos. Por meio dela firmaram-se, assim sendo,
direitos dos idosos; garantiu-se também a participação deles na comunidade; determinou-se,
para a família, a sociedade e o Estado, a responsabilidade e dever pelos seus cuidados e
amparo.
Foi aprovada, em 7 de dezembro de 1993, a Lei n° 8.742, denominada Lei Orgânica de
Assistência Social (LOAS). Tal lei prevê, em seu Artigo 1°, que a assistência social é “direito
do cidadão e dever do Estado”. Ela, assim sendo, consiste em uma “Política de Seguridade
Social não contributiva, que provê os mínimos sociais, realizada através de um conjunto
integrado de ações de iniciativa pública e da sociedade, para garantir o atendimento às
necessidades básicas”, e, conforme previsto pelo parágrafo I do Artigo 2°, na proteção à
família, maternidade, infância, adolescência e aos idosos (BRASIL, Leis e Decretos, 1993).
Além disso, no tocante aos segmentos populacionais mais velhos, o Artigo 2° desta lei
dispõe sobre medidas que garantam, por meio de comprovação, a concessão do valor
correspondente a um salário mínimo de benefício mensal aos idosos que não possuam meios
para prover a própria subsistência ou de serem providos por sua família.
Em função da instabilidade no atendimento e crise dos modelos institucionais de
assistência aos idosos, a Política Nacional do Idoso, instituída pela Lei de n° 8.842, de 4 de
janeiro de 1.994, regulamentada pelo Decreto de n° 1.948, de 3 de julho de 1996,
implementou ações no sentido de obter maior conscientização política acerca do
envelhecimento e suas nuanças, e assegurou os direitos sociais dos idosos, tendo em vista a
sua autonomia e participação efetiva na sociedade (BRASIL, Leis e Decretos, 1994).
O artigo 3º dessa mesma lei prevê que “a família, a sociedade e o estado têm o dever
de assegurar ao idoso todos os direitos da cidadania, garantindo sua participação na
comunidade, defendendo sua dignidade, bem-estar e o direito à vida”. Além disso, no Artigo
4° consta que se deve “priorizar o atendimento ao idoso através de suas próprias famílias, em
detrimento do atendimento asilar, à exceção dos idosos que não possuam condições que
garantam sua própria sobrevivência”.
Esta Lei, assim sendo, parte do pressuposto de que, embora haja um escalonamento no
compromisso de cada segmento para com o idoso, o envelhecimento é de responsabilidade da
sociedade em geral. Há, primeiramente, uma responsabilidade da família, pois nela ocorrem
os vínculos estruturantes que asseguram ao idoso seu papel social; na ausência dela, a
33
sociedade deve assumir a responsabilidade por ele, sendo obrigada a acolhê-lo em instituições
destinadas a tal fim. As diretrizes da Política Nacional do Idoso, portanto, “buscam viabilizar
sua integração às demais gerações; descentralizar, tornando-o agente participativo na
formulação, implementação e avaliação de políticas, planos e projetos a eles direcionados”
(CAMARANO et al., 1999, p. 65).
Cabe, portanto, como competência dos órgãos públicos, estimular a criação de locais
de atendimento aos idosos, tendo em vista a estratégia de atendimento não-asilar, como
centros de convivência, “cujo objetivo é a integração com as famílias, com outros idosos e
outras gerações”; centro de cuidados diurnos, “objetivando o atendimento ao idoso
dependente”; casas-lares para “os idosos que não podem contar com a família para sua
manutenção”; atendimento domiciliar, “cujo objetivo é prestar serviços ao idoso sem retirá-lo
de sua família ou comunidade”; atendimento asilar, “prestado em casos excepcionais aos
idosos dependentes, sem família ou incapazes de prover sua subsistência por outros meios”;
oficinas abrigadas de trabalho, “cujo objetivo é utilizar ou desenvolver a capacidade produtiva
dos idosos” (CAMARANO et al., 1999, p. 66). Tais medidas parecem destacar a importância
da permanência do idoso no núcleo familiar. Na ausência deste, destaca-se a tentativa de
mantê-lo com os papéis sociais a que já está habituado, evitando-se afastá-lo de suas
atividades e da sua comunidade.
Em 2003, instituiu-se o Estatuto do Idoso (Lei n° 10.741, de 1° de outubro de 2003),
com o intuito de acrescentar novos dispositivos à Política Nacional do Idoso. Tal Estatuto
exige uma revisão de prioridades das linhas de ação das políticas públicas, tendo em vista a
regulação dos direitos assegurados às pessoas com mais de sessenta anos. Sendo assim,
prioriza o “atendimento do idoso por sua própria família, em detrimento do atendimento
asilar, exceto dos que não a possuem ou careçam de condições de manutenção da própria
existência” (Inciso V, Parágrafo Único, Art. 3º do Título I – Disposições Preliminares)
(BRASIL, Leis e decretos, 2003a, p. 15). Desse modo, esta lei (Parágrafo 1, Art. 37, do
Capítulo IX – Da Habitação) prevê que a “assistência integral na modalidade de entidade de
longa permanência será prestada quando verificada inexistência de grupo familiar, casa-lar,
abandono ou carência de recursos financeiros próprios ou da família” (BRASIL, Leis e
decretos, 2003a, p. 22).
Isso representa, portanto, um marco na conscientização política e social do país, tendo
em vista a regulamentação dos direitos fundamentais dos idosos no sentido de assegurar-lhes
proteção legal enquanto plenos sujeitos de direito que demandam especial proteção. Essa lei,
34
desse modo, reconhece as necessidades específicas dos idosos e delega obrigações à família,
ao Estado e à sociedade para com os mesmos.
Tal Estatuto constitui, sendo assim, um marco jurídico importante na proteção dos
idosos e, portanto, na proposta de assistência integral para a manutenção da saúde física e
moral dos mesmos. Nota-se, por outro lado, que há dificuldades para a sua efetiva
implementação, sobretudo no que se refere aos direitos assegurados na prioridade de
atendimento em serviços de saúde e na concessão dos benefícios relacionados a este aspecto,
em virtude da falta de recursos e de estrutura precária na área em questão.
Assim sendo, as medidas contidas no Estatuto do Idoso tornar-se-ão impraticáveis
caso não sejam adotados pelo governo novos procedimentos de ação e, sobretudo, destinados
recursos financeiros compatíveis para a efetivação das mesmas:
[...] O desejo comum na sociedade brasileira é que o novo Estatuto passe a
representar mais que uma conquista, tornando-se um instrumento de
transformação da atual realidade dos idosos no país. A expectativa de todos é
que deixe de existir descompasso entre o que diz a norma no papel e a
realidade cotidiana. De qualquer forma, o fato de colocar o tema em debate e
de representar um instrumento legal de luta em favor da sua efetiva
implementação já torna o Estatuto do Idoso bem-vindo
(ESTATUTO do
Idoso, 2004, p. 4).
Constata-se, assim sendo, que é marcante a disparidade existente entre a legislação
vigente e a realidade dos idosos no Brasil. É necessário, para que se reverta tal situação, que
as leis sejam efetivamente implementadas, com permanente fiscalização dos diferentes
segmentos sociais do seu cumprimento, dado o fato de que somente a mobilização
permanente da sociedade seja capaz de configurar novos olhares sobre o processo de
envelhecimento da população brasileira e suas nuanças, podendo assim exigir, dos órgãos
governamentais competentes, que as leis sejam de fato cumpridas.
A legislação brasileira referente aos idosos não é assim eficientemente aplicada, visto
que há não só contradições nos próprios textos legais, bem como o desconhecimento de seu
conteúdo por parte expressiva da população brasileira. É preciso, pois, uma mudança no plano
de política pública para que isso não ocorra:
[...] A dificuldade de funcionamento efetivo da legislação está muito ligada à
tradição centralizadora e segmentadora das políticas públicas no Brasil, que
provoca a superposição desarticulada de programas e projetos voltados para
um mesmo público. A área de amparo à terceira idade é um dos exemplos
que mais chama atenção para a necessidade de uma ‘intersetorialidade’ na
ação pública, pois os idosos muitas vezes são ‘vítimas’ de projetos
implantados sem qualquer articulação pelos órgãos de educação, de
assistência social e de saúde
(VOGT, 2002).
35
1.14 Programas de atendimento aos idosos
Segundo Goldstein (1999), o crescimento percentual do número de idosos e a atenção
sobre o processo de envelhecimento implicam um aumento do interesse da sociedade pela
solução dos problemas individuais e coletivos surgidos nas áreas da educação, saúde e direitos
sociais relacionados aos idosos. Assim sendo, além da criação de leis destinadas aos idosos,
há também programas específicos que visam à melhoria da qualidade de vida na longevidade.
No Brasil, especificamente, a ausência de iniciativas de atendimento aos idosos e a
carência de pesquisa e estudos científicos, sobretudo em comparação com outros países,
impulsionaram, a partir dos anos 60, algumas entidades na implementação dos primeiros
trabalhos destinados a este segmento. Dentre elas, podem-se destacar a Legião Brasileira de
Assistência (LBA) e o Serviço Social do Comércio (SESC) (LIMA, 1999).
Segundo este autor, o trabalho destas entidades, baseado na percepção de que as
atividades de lazer pudessem contribuir para reverter a condição marginal dos idosos, consiste
em suprir a ausência de papéis sociais a fim de amenizar-lhes a solidão. Tal modelo de
intervenção, assim sendo, visa a contribuir para a superação da imagem do idoso como
doente, excluído e marginalizado pela sociedade, tendo em vista a melhoria da sua qualidade
de vida.
Surgiram então diversas iniciativas nos principais centros urbanos do país, organizadas
por órgãos públicos e privados, que visaram ao lazer e ao convívio social dos idosos. Dentre
estas iniciativas, vale destacar a criação, no ano de 1993, da Universidade Aberta à Terceira
Idade (UnATI).
Esta universidade foi criada, portanto, com o intuito de possibilitar aos idosos,
fundamentada em pressupostos teóricos e técnicos, a reinserção deles no meio social. Sendo
assim, busca estimular a participação dos idosos nas atividades sociais e culturais e propiciar
informações que permitam reflexões sobre o processo do envelhecimento. Isto faz com que as
experiências singulares possam ser compartilhadas num “contexto marcado pelo surgimento
de um discurso científico sobre a velhice e o envelhecimento e por mudanças na forma como
os indivíduos, ao envelhecer, negociam com imagens estereotipadas da velhice” (LIMA,
1999).
A UnATI possui um programa de educação permanente: visa à integração social do
idoso; possibilita o desenvolvimento de suas potencialidades, resgatando sua cidadania e
36
participação na produção de novos valores; promove a sua capacitação para compreensão do
processo de envelhecimento, atuando na redefinição das imagens dos segmentos etários
avançados, e, além disso, favorece as relações entre as gerações, tendo em vista o resgate da
sua memória e a transmissão de seus conhecimentos aos mais jovens, como meio de
preservação de suas identidades culturais. O papel desta universidade é assim a integração
entre famílias, idosos e comunidade a fim de identificar ações transformadoras e, sobretudo,
firmar compromissos que abram novas perspectivas ao processo de envelhecimento
(GOLDSTEIN; SIQUEIRA, 2000).
Ainda que haja diversas iniciativas, como as da LBA, SESC e UnATI, a quase
inexistência de uma rede de suporte formal por parte do Estado, bem como de uma política de
saúde pública e de assistência social efetiva, que auxilie e instrumentalize as famílias para o
cuidado de seus idosos, ainda são os principais fatores que contribuem para a
institucionalização e, por vezes, para a segregação dos idosos.
Cabe ressaltar, contudo, algumas iniciativas que, ainda recentes, podem, se
efetivamente levadas a termo, contribuir para que a institucionalização do idoso não ocorra.
Sendo assim, vale a pena destacar que:
[...] em algumas cidades, inicia-se a formação de associações de familiares
apoiados por técnicos, visando proporcionar apoio sócio-emocional aos
familiares cuidadores. Nossa tradição de prestação de serviços voluntários
em qualquer área atinge também a dos cuidados com a velhice, cujo amparo
normalmente é responsabilidade da família
(GOLDSTEIN; SIQUEIRA,
2000, p. 120-121).
1.15 A violência e dominação na sociedade: os idosos são retratos delas?
Como a sociedade é formada por elementos de força desigual, a expressão da justiça
encontra-se nos graus diferenciados de poder existentes dentro dela (STAUB, 1.975).
Ressaltam-se nas relações de gênero as várias possibilidades de dominação e exploração. O
gênero, a sociedade, a família e os vínculos nelas estabelecidos contêm hierarquias nas quais
as figuras expressivas mostram-se como dominadoras e exploradoras (SAFFIOTI, 1992).
A longevidade também não escapa destas teias: como socialmente posta, é muitas
vezes estigmatizada e encontra-se associada à depreciação e perdas. Há nela, pois, as marcas
da injustiça, visto que esteja à margem do plano em que opera o poder. Sendo assim, no
imaginário social de valoração do jovem e das satisfações do trabalho, o idoso,
37
independentemente do possível abandono, parece propício a sofrer pela exclusão.
Motta (1991 apud NERI, 2001b, p.173) afirma que:
[...] normas e sanções são poderosos mecanismos sociais, fundamentais ao
processo de atribuição dos seres humanos a categorias homogêneas. Idade,
raça e etnia, classe social e gênero são categorias relacionais que configuram
diferenças, oposições, alianças e hierarquias, e que justificam as relações de
dominação e poder existentes no seio da sociedade.
No caso dos idosos, tais fatos se agravam por causa da estigmatização dos grupos
etários avançados. Como o sofrimento e a injustiça podem permear as relações de poder, os
idosos, em geral alijados destas relações, sofrem diversos modos de violência, nos planos
físico, simbólico ou moral: padecem, no plano físico, as agruras biológicas da idade; mas
além dos maus-tratos e agressões de que podem ser vítimas, há também a violência simbólica
expressa na negligência e no abandono.
Além disso, o preconceito moral, com o estigma explícito da segregação, é ainda
maior. Resta, assim, verificar se há contra os idosos abrigados o preconceito que gere, para
além da dominação social, algum tipo de violência, sobretudo se, não tão evidente, esta seja
posta no plano simbólico.
A literatura sobre o processo de envelhecimento e suas nuanças não deixa de salientar
a violência contra o idoso (CUNHA, 2001; MINAYO, 2003). Sendo assim, como o século
XX presenciou uma série de transformações no processo do envelhecimento, a violência
simbólica contra o idoso deve ser entendida a partir de tais transformações (CUNHA, 2001).
De acordo com este autor, ampliou-se o enfoque de estudo ocorrendo a transferência
da vertente “vítima” para a análise causal dos fenômenos psicossociais, nos quais o
conhecimento da dinâmica vitimal e do processo de vitimização individual ou coletiva
possam ser melhor entendidos. Os idosos, neste aspecto, são vitimizados pelas implicações
que os preconceitos lhes impõem e atingidos individualmente em âmbito familiar e/ou
coletivamente pelo próprio sistema social, sofrendo vitimização direta ou indireta pela
comunidade ou família.
O Estatuto do Idoso no Brasil não deixa de ressaltar que qualquer violência contra os
idosos pode ser cometida. A lei lhes garante a cidadania plena. Nesse sentido, estão
preservados os seus direitos, o que implica, explicitamente, que eles não podem sofrer
violência alguma, simbólica ou manifesta. Estão previstos, portanto, os deveres da família, da
instituição, do Estado e dos demais cidadãos em relação aos idosos, não podendo eles ser
vítimas de qualquer pessoa ou grupo social. Nesse sentido, o Artigo 4° dessa lei prevê que
“nenhum idoso será objeto de qualquer tipo de negligência, discriminação, violência,
38
crueldade ou opressão, e todo atentado aos seus direitos, por ação ou omissão, será punido na
forma da lei”. Além disso, o Parágrafo 1° deste Artigo estabelece que “é dever de todos
prevenir a ameaça ou violação aos direitos do idoso” (BRASIL, Leis e Decretos, 1993a, p.
16).
Assim, antes de se deter em qualquer vitimização no plano das instituições, é preciso
ressaltar que no Brasil há também nos planos familiar e social uma série de violências contra
o idoso. Nessa perspectiva, Minayo (2003, p. 784-785) afirma:
[...] No caso brasileiro, as violências contra os idosos se expressam em
tradicionais formas de discriminação, como o atributo que comumente lhes é
impingido como ‘descartáveis’ e ‘peso social’. Por parte do Estado, esse
grande regulador do curso da vida, o idoso hoje é responsabilizado pelo
custo insustentável da Previdência Social e, ao mesmo tempo, sofre uma
enorme omissão quanto a políticas e programas de proteção específicos. [...]
No âmbito das instituições de assistência social e saúde, são freqüentes as
denúncias de maus tratos e negligências. Mas nada se iguala aos abusos e
negligências no interior dos próprios lares, onde choque de gerações,
problemas de espaço físico, dificuldades financeiras costumam se somar a
um imaginário social que considera a velhice como ‘decadência’.
Tendo como base dados fornecidos pela literatura nacional e internacional, Minayo
(2003, p 788) afirma que a violência contra idosos constitui um problema universal:
[...] Estudos de várias culturas e de cunho comparativo entre países têm
demonstrado que pessoas de todos os status sócio-econômicos, etnias e
religiões são vulneráveis aos maus-tratos, que ocorrem de várias formas:
física, sexual, emocional e financeira. Freqüentemente, uma pessoa de idade
sofre, ao mesmo tempo, vários tipos de maus-tratos.
No Brasil, embora a violência ocorrida no âmbito familiar possa estar presente, visto
que determinadas famílias abandonem seus familiares, assinala-se a violência institucional,
cuja maior expressão são os asilos de idosos, sobretudo os conveniados com o Estado
(Menezes 1999 apud MINAYO, 2003, p. 788), nos quais “são comuns processos de maus-
tratos, de despersonalização, de destituição de poder e vontade, de falta ou inadequação de
alimentos e, também, omissão de cuidados médicos específicos e personalizados” (Machado
et al., 2001 apud MINAYO, 2003, p. 788). Além disso, deve-se considerar o papel omissivo
do Estado no desenvolvimento de programas destinados à proteção da população idosa e na
avaliação das instituições de abrigo que prestam assistência aos idosos.
Minayo (2003, p.788) demonstra, tendo como referência estudos internacionais, que:
[...] noventa por cento dos casos de maus-tratos e negligência contra as
pessoas acima de sessenta anos ocorrem nos lares. Essas pesquisas revelam
que cerca de dois terços dos agressores são filhos e cônjuges dos idosos
vitimizados. Tais dados, além de mostrar o ambiente familiar como
conflituoso, abusivo e perigoso, ressaltam também o fato de a questão do
idoso continuar a ser, na maioria das sociedades, responsabilidades das
39
famílias.
Para o Brasil, algumas pesquisas como a de Menezes (1999 apud MINAYO, 2003,
p.789) demonstram também a alta prevalência de violência familiar. Mas o estado atual dos
trabalhos existentes não permite explicitar a proporção em que esse fenômeno incide sobre o
conjunto das violências e acidentes em idosos.
É preciso, por outro lado, indagar, acerca da violência contra os idosos, o papel social
das instituições que deles cuidam e avaliar se elas são soluções para quem delas necessita ou
se, por outro lado, podem vitimizar quem nelas habita. Cabe, porém, mapear os contornos da
possível violência: trata-se, para além da física e moral, de tentar circunscrever até que ponto
a sociedade e suas instituições, em relação aos idosos, inserem-nos na vida social ou dela os
exclui. Seria, no caso de uma possível exclusão, isso também uma violência contra o idoso?
Este passo, porém, está além dos limites desse trabalho. Aqui caberá tentar responder sobre a
possibilidade de, a partir das representações sociais por idosos abrigados, encontrar possíveis
respostas a uma melhora de vida que possa afastar a violência institucional contra a terceira
idade e planejar uma inserção social mais efetiva do idoso na sociedade.
40
41
2 OBJETIVOS
2.1 Objetivo geral
Essa pesquisa tem como objetivo compreender as representações sociais sobre
instituição asilar formuladas por idosos abrigados para verificar os processos de inclusão ou
exclusão presentes na vida institucionalizada.
2.2 Objetivos específicos
Verificar, através das representações de inclusão ou exclusão social por idosos
abrigados, se estes se percebem incluídos ou não na sociedade ao longo de sua
trajetória de vida;
Investigar se a institucionalização significa ou não para os idosos um processo de
ruptura e exclusão da sociedade;
Subsidiar, por meio desta pesquisa, o planejamento de estratégias institucionais
voltadas para amenizar os possíveis efeitos danosos da vida abrigada, tendo em vista
melhor inserção dos idosos em instituições.
42
43
3 JUSTIFICATIVA
Há atualmente um expressivo número percentual de idosos. Tal fato aparece como um
fenômeno mundial. O crescimento deste segmento populacional nem sempre, contudo, é
acompanhado por políticas sociais nas quais os idosos tenham voz ativa. Parte significativa
deles vive institucionalizada. É preciso, pois, dar-lhes também a palavra.
Segundo Saad (1991 apud SILVA; NERI, 1993), a expectativa de vida da população
mundial, que hoje é de 66 anos, passará a ser de 73 anos em 2025. Porém, de acordo com
dados fornecidos pelo IBGE (BRASIL, Leis e Decretos, 2003b), para o ano de 2005, estimou-
se em 72 anos a esperança de vida, contra 70,5 anos em 2000 e 71,3 em 2003.
Além disso, tais dados mostram que o Brasil ocupa, com base em 192 países, a 86ª
posição na listagem da expectativa de vida da Organização das Nações Unidas (ONU). De
1980 a 2003, a expectativa de vida do brasileiro cresceu 8,8 anos, o equivalente a 7,9 anos
para os homens e mais 9,5 anos para as mulheres.
No Brasil, segundo Junqueira (1998), estima-se que a população com mais de sessenta
anos esteja próxima de 10 milhões de habitantes. Em 2025, dados indicam que o país ocupará
a 6
a
posição entre os países com maiores números absolutos de idosos. Tais projeções
apontam que haverá 31,8 milhões de pessoas idosas, o equivalente a 12,1% da população
brasileira.
O Brasil encontra-se, pois, entre os países de maior número de idosos do mundo.
Entretanto, tal aumento não vem sendo acompanhado de uma melhora significativa na
qualidade de vida dos mesmos, pois tudo se faz como se o Estado brasileiro se centrasse
sobretudo nas áreas de atividade e produção, caracterizando-se como um país jovem, cuja
ordem e progresso, concentrando-se em destacar quem nele pode produzir, parecem implicar
que avançar para o futuro significa não ter políticas sociais mais eficazes que assegurem as
camadas populacionais mais afetadas por suas desigualdades econômicas.
É preciso, pois, antes de mais nada, atentar para isto: a velhice é resultado do embate
de valores produzidos por forças e poder. A dimensão sócio-política cria representações sobre
idosos. No Brasil, sobretudo, já que as modificações materiais e econômicas do país
rapidamente reorganizam o percentual populacional no equilíbrio de seus grupos etários. Os
dados quantitativos acerca dos idosos não podem, pois, se dissociar dos aspectos qualitativos
destes dados na perspectiva de um pesquisador da área social num país com evidentes
diferenças econômicas da população. Sendo assim, é preciso que um trabalho acadêmico
44
possa contribuir para uma melhor compreensão da vida de um segmento de uma parte
específica da população brasileira, os idosos abrigados.
Assim sendo, pretende-se contribuir com uma análise das condições destes idosos,
tentando com isso proporcionar subsídios para a melhoria das instituições que se propõem a
cuidar deles. Como a questão tem sido pouco explorada, justifica-se uma pesquisa que possa
auxiliar na melhoria da vida de tais idosos; das próprias instituições; da relação do idoso e da
instituição com a sociedade, objetivando uma melhor inserção daqueles nesta.
Além de visar novos conhecimentos a respeito do tema, é preciso contribuir para a
discussão com todos aqueles que demonstram interesse pelo assunto, especialmente os
profissionais ligados à área desta pesquisa. Mas não só: também é preciso levar o debate à
comunidade em que se formulam os padrões culturais e, principalmente, aos próprios idosos,
já que, sobretudo por uma efetiva participação deles, haveria a possibilidade de melhor
avaliação destes padrões.
Além do mais, acredita-se na importância de produzir uma pesquisa a respeito de um
tema relevante para o momento atual, em que ao menos se afirma a busca de uma redefinição
de valores. É fundamental, neste sentido, contribuir com um estudo que não trate o idoso
pelos padrões que uma sociedade voltada ao consumo fornece: não se quer aqui afastar o
estigma pela violência do silêncio; ou o que talvez seja pior pelo rejuvenescimento do
velho, tornando-o apenas um adolescente mais idoso, numa suposta terceira idade como
prolongamento da juventude.
45
4 METODOLOGIA
4.1 Teoria das Representações Sociais
Este trabalho metodologicamente tem como referência a Teoria das Representações
Sociais. Segundo Spink (1.993), um primeiro delineamento formal do conceito desta teoria
surgiu na pesquisa de Moscovici, a propósito do fenômeno da socialização da Psicanálise e do
processo de sua transformação a fim de servir a outros usos e funções sociais.
Embora já se utilizasse do conceito representação, Moscovici (1978) renovou e
confirmou a especificidade da Psicologia Social na articulação entre o individual e o social,
refutando teorias que se baseiam em explicações unicamente sociais. Em oposição ao modelo
individualista, Moscovici (2001) visou, tendo como referência inicial as representações
coletivas de Durkheim, a uma nova explicação para os fenômenos sociais, por meio da qual se
podia, retirando elementos da Psicologia e das Ciências Sociais, melhor situar a Psicologia
Social.
Moscovici (1978), em sua obra clássica sobre representação social da psicanálise,
apontou para a importância de Durkheim como um dos primeiros a formular a noção de
representação como coletiva, produto, pois, do pensamento social, visto que ultrapasse a
dimensão estrita do aspecto individual. Sendo assim, Durkheim é para ele fundamental na
diferenciação das representações coletivas das individuais.
Moscovici (2001) aponta para o fato de que as representações coletivas, no sentido
proposto por Durkheim, perduram às gerações pela forte coerção do social e memória
coletiva. A marca significante das representações coletivas seria, pois, para ele a estabilidade,
diferenciando-se das representações individuais, cuja característica básica é a percepção e a
imagem permanentemente mutáveis. Aquele critica o conceito de representações coletivas de
Durkheim, pois este as caracteriza por terem estabilidade e permanência e se distinguem das
representações individuais efêmeras e variáveis. Entretanto, há um problema: não se distingue
a ciência da religião.
Lévi-Bruhl marca um importante passo em relação a Durkheim, pois corretamente
destaca a diversidade das mentalidades coletivas. Sendo assim, no estudo das sociedades ditas
primitivas, o seu estudo mostra como há muito mais fortemente a presença do sobrenatural e
de vínculos místicos do que as formas civilizadas baseadas no pensamento lógico. Para este
46
autor, a mente primitiva opera diversamente da científica, pois não se conduz pelo princípio
da não-contradição. Há, assim, a forte presença do aspecto afetivo nessas representações: a
sombra como alma é, para tais formações sociais consideradas primitivas, efetivamente uma
percepção. Ocorre aqui então algo a destacar: o fato de que a diversidade a partir dos meios
sociais é mais radical que uma mera escala de domínios, como a ciência e a religião.
Ambos, contudo, mesmo em seus limites, são, segundo Moscovici (2001), importantes
por realçar aspectos sociais como fundamentais à representação. Sendo assim, Durkheim
estabelece a importância do simbólico na vida social, mostrando como a sociedade se torna
consciente de si mesma por meio dos esquemas coletivos de enunciação. Lévi-Bruhl, por sua
vez, mostra como a sociedade se representa em seus símbolos tendo a base psíquica como
produtora deste processo. Estes dois pensadores contribuíram para consolidar a importância
da construção simbólica das representações sociais.
Segundo Moscovici (2001), Piaget, ao investigar o mundo da criança e o processo de
simbolização, pôde verificar como o universo interior confunde-se com o exterior. Este último
autor, portanto, aponta para a novidade de ressaltar a especificidade das representações em
termos psíquicos. Ele assim se afasta de Durkheim, pois para este a coletividade é entendida
como permanente, tornando as representações coercitivas e homogêneas. Piaget, contudo, ao
explorar o universo simbólico infantil, releva a interiorização das regras, ressaltando a
importância da cooperação na representação moral. Este é um ponto fundamental para
Moscovici, pois não é a coerção, como em Durkheim, o que determina exclusivamente os
modelos de pensamento, devendo-se ressaltar a importância da cooperação grupal.
Para Moscovici (2001), além disso, em Piaget há um avanço em relação a Lévi-Bruhl,
pois não se estabelece mais a separação de mentalidades apenas a partir da diferença entre a
sociedade primitiva e a civilizada. Ao contrário, aponta-se para tal separação no interior da
nossa cultura. Uma, quente e mística, é sociocêntrica, e foca na relação entre os homens; a
outra, fria, sensível à contradição, descentrada, está posta pela relação do sujeito com o
objeto. Uma, portanto, deve ser analisada enquanto representação social; a outra, como
ciência.
Moscovici (2001) também destaca Freud. Este, ao estudar a histeria, percebeu a força
das representações de coisas e palavras na constituição inconsciente de episódios somáticos,
doenças cujas causas estão ligadas ao psiquismo. No entanto, ressalta-se que o domínio das
representações psíquicas não se apresenta destacado do social. No caso das teorias sexuais da
criança, Freud aponta para o fato de que estas são verdadeiras para elas. Isso indica que o
psiquismo constitui-se pelas trocas sociais, dos valores que aí se engendram. Além disso, ele
47
ressalta que o inconsciente é resultado do processo coletivo que se transforma em
representação individual.
Moscovici (2001) afirma que nestes dois autores as representações comuns não são
apenas pertinentes para demarcar evoluções coletivas, mas são também cruciais para
compreender a história pessoal, pois é menor a distância entre elementos coletivos e
individuais:
[...] Piaget e Freud são propensos à idéia de que tal aproximação corresponde
mais à natureza das coisas. O primeiro esclareceu a composição psíquica das
representações. O segundo no-las mostrou sob um outro ângulo, saídas de
um processo de transformação dos saberes, e explicitou a maneira como são
interiorizadas
(MOSCOVICI, 2001, p. 59).
A Teoria das Representações Sociais procura enfatizar que o social não pode se
destacar do psiquismo individual, nem este daquele. As representações sociais, sendo assim,
articulam elementos cognitivos, sociais e afetivos à linguagem. As relações sociais que afetam
tanto as representações quanto a própria realidade social precisam ser entendidas a partir do
contexto que as engendra e de sua funcionalidade nas relações sociais, mas sem desprezar a
reelaboração delas pelo indivíduo.
Moscovici (1978) estabelece que a representação, em geral, pode ser passiva – como
uma imagem no cérebro – ou ativa. Neste caso, diz ele, ela modela o que é dado do exterior.
Sendo assim, mesmo quando reproduz, ela o remodela. Além disso, a representação não é
nunca unívoca, pois há uma liberdade de jogo para a atividade mental que se esforça em
apreendê-la a partir de tal dado. Partindo deste, ela depois vem a ser um fluxo de associações,
da qual a linguagem é maior prova, pois esta remodela o dado externo que assim passa, pois,
ao campo da metáfora, do simbólico. Há sempre, portanto, uma possibilidade de remodelação
desta partilha implicada pela representação, pois ela não só lança um sistema de valores,
noções e práticas para o indivíduo se orientar no meio social e material a fim de dominar tais
valores, como também propõe aos membros da comunidade um meio para trocá-los, e
códigos para nomear e classificá-los. Nunca, entretanto, ela perde tal caráter simbólico.
A representação social, portanto, sendo “um corpus organizado de conhecimentos e
uma das atividades psíquicas pelas quais os homens tornam a realidade física e social
inteligível” (MOSCOVICI, 1978, p. 27-28), é tanto individual quanto social, já que ela, ao se
inserir num grupo ou numa relação cotidiana de trocas, faz com que tais atividades liberem no
homem seu poder de imaginação. Sendo assim, tanto o social modela o indivíduo como este,
àquele, pois as representações são tanto construídas pelo sujeito quanto adquiridas por este do
meio social: “[...] era necessário deslocar a ênfase sobre a comunicação que permite aos
48
sentimentos e aos indivíduos convergirem; de modo que algo individual pode tornar-se social
ou vice-versa” (MOSCOVICI, 2001, p. 62).
Esse referencial, não trata, pois, a relação entre os indivíduos e a sociedade como algo
fixo, ou um mero objeto relacional, pois considera que os indivíduos se relacionam entre si
por meio de determinadas situações sociais em que se inserem nos grupos ou instituições.
Moscovici, portanto, vislumbrou, na possibilidade da junção do psicológico com o
social, uma redefinição dos conceitos e métodos da Psicologia Social, até então estritamente
centrados no indivíduo. Enquanto o modelo norte-americano propunha uma Psicologia Social
no qual o meio pouco atuava sobre os processos psicológicos individuais, a nova proposta
preconizava as relações humanas como primordiais. Assim sendo, consideravam-se tanto os
comportamentos individuais quanto os fatos sociais em seu aspecto concreto e singular.
Esse constructo teórico, nessa perspectiva, pretende conferir um caráter inovador na
Psicologia Social, visto centrar-se na relação entre o sujeito e o objeto. O sujeito, por
intermédio de sua atividade e relação com o objeto, constrói tanto este como a si próprio,
tendo em vista que eles não sejam absolutamente heterogêneos em seu campo de ação: “o
estímulo e a resposta se formam em conjunto. Quer dizer, a resposta não é uma reação ao
estímulo, mas, até certo ponto, está na sua origem. O estímulo é determinado pela resposta”
(MOSCOVICI, 1978, p. 48).
Nesse sentido, Sá (1993, p. 20) afirma que “não importa apenas a influência
unidirecional dos contextos sociais sobre os comportamentos, estados e processos individuais,
mas também a participação destes na construção das próprias realidades sociais”. Assim
sendo, os conhecimentos produzidos ao longo do tempo por diferentes domínios do saber,
como a religião, a ciência, os conhecimentos e as tradições do senso comum, fazem-se
presentes na vivência do indivíduo, por meio dos processos de reprodução social representada
por instituições, modelos, normas e convenções (SPINK, 1.994). As representações resultam,
portanto, de construções sociais, ao mesmo tempo em que emprestam sentido às suas práticas.
As representações configuram-se como guias de leitura e referência para compreender,
por generalização funcional, a realidade, por meio de formulações dos indivíduos acerca de
determinado fenômeno, tendo como base os conhecimentos inerentes a uma sociedade
(JODELET, 2001). Assim, elas constituem as realidades sociais, sendo os indivíduos, por
meio de suas interações sociais, produtores de suas próprias representações.
As representações sociais, sendo assim, caracterizam-se como fenômenos sociais e são
concebidas como teorias que os indivíduos formulam acerca da natureza dos eventos, objetos
e situações em seu mundo social, remetendo ao conhecimento do sentido comum e do
49
pensamento natural por oposição ao pensamento científico. Segundo Jodelet (1984 apud
ANDRADE, 2003, p. 208), elas são “constituídas a partir de nossas experiências e também de
informações, conhecimentos e modelos de pensamentos que recebemos e transmitimos
através da tradição, da educação e da comunicação social”.
Para melhor compreensão do fenômeno das representações sociais, Moscovici (1978)
propôs um modelo teórico que as caracteriza como estrutura de natureza conceptual e
figurativa. Estas estruturas propiciam a compreensão de como as representações atualizam-se
no indivíduo:
[...] A psicologia clássica, que deu muita atenção aos fenômenos da
representação, forneceu-nos úteis indicações de partida. Concebeu-os como
processos de mediação entre conceito e percepção. A par dessas duas
instâncias psíquicas, uma de ordem puramente intelectual e a outra
predominantemente sensorial, as representações constituem uma terceira
instância, esta de propriedades mistas
(MOSCOVICI, 1978, p. 56).
Desse modo, a representação, segundo o autor supra citado, não é uma instância
intermediária, visto ela se constituir como um processo que torna o conceito e a percepção de
certo modo intercambiáveis, uma vez que se engendram reciprocamente
Nesse sentido, enquanto a presença do objeto é dispensável para a atividade
conceptual, a sua ausência é uma impossibilidade para a atividade perceptiva. Assim, a
representação seguiria, segundo Sá (1993, p. 33):
[...] por um lado, a linha de pensamento conceptual, capaz de se aplicar a um
objeto não presente, de concebê-lo, portanto, dar-lhe um sentido, simbolizá-
lo. E, por outro lado, à maneira da atividade perceptiva, trataria de recuperar
esse objeto, dar-lhe uma concretude icônica, figurá-lo, torná-lo ‘tangível’:
[...] a representação de um objeto é uma representação diferente do objeto.
Moscovici (1978, p. 58), a esse respeito, afirma que “representar uma coisa, um
estado, não consiste simplesmente em desdobrá-lo, repeti-lo ou reproduzi-lo; é reconstituí-lo,
retocá-lo, modificar-lhe o texto”.
A estrutura das representações possui, portanto, duas faces indissociáveis, ou seja,
uma figurativa, e a outra, simbólica. Para Moscovici (1978, p. 65), isso “faz compreender a
toda figura um sentido e a todo o sentido uma figura”. Assim sendo, fornecer um contexto
inteligível ao objeto, ou seja, interpretá-lo, e dar materialidade a um objeto abstrato,
corresponde à face simbólica e figurativa das representações sociais. A cada um dessas faces
corresponde um processo que, articulado, caracteriza a estrutura das representações sociais: a
ancoragem e a objetivação.
Pode-se, por um lado, definir a ancoragem como processo de atribuição de sentido. Ela
constitui o modo de classificação e denominação de objetos sociais, pois permite “incorporar
50
o que é estranho, através de uma rede de significações em torno do objeto, de maneira a
relacioná-lo a valores e práticas sociais” (SÁ, 1993, p. 38). Além disso, tal processo tem como
função, segundo este autor, a mediação entre o indivíduo e o seu meio e entre os membros de
um mesmo grupo, possibilitando assim a identidade do grupo e o sentimento de
pertencimento do indivíduo.
Desse modo, a ancoragem consiste, de acordo com Jodelet (1984 apud SÁ, 1993, p.
37) na “integração cognitiva do objeto representado – sejam idéias, acontecimentos, pessoas,
relações, etc – a um sistema de pensamento social preexistente e nas transformações
implicadas”.
A objetivação, por outro, “torna concreto, quase tangível o que é abstrato,
transformando o conceito em uma imagem”. Jodelet (1984 apud SÁ, 1993, p. 39) afirma que
ela é uma “operação imaginante e estruturante pela qual se dá uma forma – ou figura –
específica ao conhecimento acerca do objeto, tornando concreto, quase tangível, o conceito
abstrato, materializando a palavra”.
12
As representações sociais, sendo assim, são produtos sociais, tendo de referir-se às
condições de sua produção, pois as situações sociais naturais e complexas as produzem.
Torna-se, pois, necessário compreender como o pensamento individual se fundamenta no
social, sendo por este produzido. Moscovici (1978) assim considerou a interação dialética
como a propulsora da formulação da Teoria das Representações Sociais, dado que o social
existe na condição de haver um sujeito e este se configura naquele.
4.2 Pesquisa qualitativa
A pesquisa qualitativa, nos últimos 30 anos, ganhou espaço, sobretudo na área das
Ciências Sociais. Pode-se apontar, dentre os principais motivos do aumento de sua utilização,
a insuficiência e inadequação dos métodos quantitativos para responder a alguns temas de
grande importância e de contornos não mensuráveis estatisticamente.
12
Segundo Jodelet (1986, p. 486), “más complejo y fundamental de lo que há podido parecer, el processo de
anclaje, situado em uma relación dialéctica com la objetivización, articula las três funciones básicas de la
representación: función cognitiva de integración de la novedad, función de interpretación de la realidad y
función de orientación de las conductas y las relaciones sociales”.
51
Assim sendo, parte-se do pressuposto de que o mundo social não é um dado objetivo e
invariável, visto que ele seja construído ativamente pelos indivíduos em seu cotidiano. Desse
modo, a pesquisa qualitativa tem como característica principal:
[...] fornecer dados básicos para o desenvolvimento e a compreensão das
relações entre os atores sociais e sua situação. O objetivo é uma
compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em
relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos
(GASKEL, 2002, p. 65).
Esta pesquisa, de acordo com Bogdan e Biklen (1994a) e Lüdke e André (1986a),
possui algumas características, tais como: o ambiente a ser investigado é fonte direta de dados
e o pesquisador é o instrumento principal; envolve a obtenção de dados descritivos, ou seja,
os dados são recolhidos em forma de palavras ou imagens e não em números; tem-se maior
interesse pelo processo do que simplesmente pelos resultados ou produtos, isto é, ao
investigar determinado problema, interessa-se por verificar o modo como ele se manifesta na
interação cotidiana; os dados são analisados de forma indutiva, por meio de abstração, e não
por meio de hipóteses pré-determinadas; o significado tem grande importância, visto que o
interesse está no modo como os indivíduos atribuem sentido para as suas vidas.
As pesquisas qualitativas, de acordo com Nogueira- Martins e Bógus (2004/2005), têm
assim por objeto o entendimento de um contexto, a observação de vários fenômenos em um
pequeno grupo e a explicação dos comportamentos de seus agentes e objetos. Delas, portanto,
faz parte a obtenção de dados descritivos mediante contato direto e interativo do pesquisador
com o contexto e o objeto de estudo, sendo aquele que faz a pesquisa também considerado um
intérprete envolvido na realidade sobre a qual se debruça.
Desse modo, o interesse do pesquisador está na busca do significado dos fatos, eventos
e vivências, pois ele exerce um papel organizador nos indivíduos: o que os fenômenos
representam, dá molde à vida das pessoas. Num outro nível, “os significados que eles
ganham, passam também a ser partilhados culturalmente e assim organizam o grupo social em
torno destas representações e simbolismos” (TURATO, 2005, p. 510).
Este autor afirma que o pesquisador procura, nesse sentido, entender os fenômenos,
segundo a perspectiva dos participantes da situação estudada, podendo, a partir daí, formular
suas interpretações acerca dos mesmos. Busca-se, pois, compreender, por intermédio da
metodologia qualitativa, o processo pelo qual as pessoas constroem significados e os
descrevem.
Segundo Maanen (1979a apud NEVES, 1996, p. 1):
52
[...] a expressão pesquisa qualitativa assume diferentes significados no
campo das ciências sociais. Compreende um conjunto de diferentes técnicas
interpretativas que visam a descrever e a decodificar os componentes de um
sistema complexo de significados. Tem por objetivo traduzir e expressar o
sentido dos fenômenos do mundo social; trata-se de reduzir a distância entre
indicador e indicado, entre teoria e dados, entre contexto e ação.
O significado, desse modo, tem função estruturante, visto que as pessoas tendem a
organizar as suas vidas em função do significado que atribuem para as situações. O
pesquisador, na abordagem qualitativa, objetiva, portanto, conhecer as suas vivências e as
representações que elas constroem das suas experiências de vida.
Minayo (1992, p. 10) aponta as metodologias qualitativas como:
[...] aquelas capazes de incorporar a questão do significado e da
intencionalidade como inerentes aos atos, às relações, e às estruturas sociais,
sendo essas últimas tomadas tanto no seu advento quanto na sua
transformação, como construções humanas significativas. O estudo
qualitativo pretende, pois, apreender a totalidade coletada visando, em
última instância, atingir o conhecimento de um fenômeno histórico que é
significativo em sua singularidade.
Pode-se afirmar, sob essa ótica, que pesquisas qualitativas valorizam a realidade
estudada, considerando-a como um fenômeno cultural, histórico e dinâmico, experienciado e
descrito por um pesquisador a partir do contato com o seu objeto de estudo.
Assim, de acordo com Spink e Menegon (1997), numa pesquisa qualitativa outros
processos são privilegiados, pois enfatizam-se aspectos específicos do campo de investigação.
Nesse sentido, valoriza-se a descrição detalhada do contexto da pesquisa, do caminho
percorrido pelo pesquisador e de como este procedeu em sua interpretação, permitindo uma
visão detalhada do fenômeno estudado.
A pesquisa qualitativa, desse modo, passa a ser vista como um recurso no qual
ocorrem processos de produção de sentido mediados pelas relações estabelecidas entre
pesquisador e participantes.
4.3 Observação participante e diário de campo
Destaca-se aqui, dentre os vários métodos da pesquisa qualitativa, a observação
participante e o diário de campo. Estes são utilizados com o intuito de ampliar-se o horizonte
de análise em relação a condições, processo de funcionamento e organização de um dado
53
contexto. A utilização do diário de campo e da observação participante permite assim
estabelecer relações informais que são significativas no tratamento qualitativo dos dados.
A observação participante possibilita ao pesquisador coletar dados por meio da
participação na vida cotidiana de um grupo por um período determinado. Ela permite que se
atente ao processo de apropriação de conhecimento dos vários segmentos de um contexto,
podendo o pesquisador analisar o cotidiano, bem como a dinâmica e o funcionamento do
local.
O pesquisador, quando realiza observação participante, está aberto, conforme aponta
Gaskel (2002, p. 72), “a uma maior amplitude e profundidade de informação, é capaz de
triangular diferentes impressões e observações, e consegue conferir discrepâncias emergentes
no decurso do trabalho de campo”.
Cruz Neto (2002) afirma que a observação participante, realizada através de um
contato direto do observador com o fenômeno a ser observado, tem por finalidade obter
informações sobre a realidade e o contexto do objeto a ser investigado. A importância desta
técnica está na possibilidade de captar vários detalhes, situações ou fenômenos diretamente
ligados à realidade.
Paralelamente à observação participante, destaca-se o uso do diário de campo. Este se
constitui como um instrumento ao qual se pode recorrer, a qualquer momento da pesquisa, em
busca de percepções, questionamentos e informações adicionais do pesquisador não obtidas
pela utilização de outras técnicas.
No diário de campo, devem-se constar todas as informações que não sejam o registro
das entrevistas formais. Estas informações devem referir-se, conforme aponta Minayo (1992,
p. 100), às “observações sobre conversas informais, comportamentos, instituições, gestos,
expressões que digam respeito ao tema da pesquisa. Fala, comportamentos, hábitos, usos,
costumes, celebrações e instituições compõem o quadro das representações sociais”.
Assim sendo, o pesquisador, por meio das notas de campo, faz “descrição das pessoas,
objectos, lugares, acontecimentos, atividades e conversas” (BOGDAN; BIKLEN, 1994b, p.
150). Tais notas, desse modo, são os registros das percepções do pesquisador, isto é, referem-
se ao que ele ouve, vê, experiencia e pensa no decurso da coleta dos dados, bem como ao que
ele reflete sobre os dados do estudo qualitativo.
O conteúdo das observações, desse modo, deve envolver dois tipos de materiais: o
primeiro é meramente descritivo. A preocupação, nesta situação, é “a de captar uma imagem
por palavras do local, pessoas, acções e conversas observadas” (BOGDAN; BIKLEN, 1994b,
p. 152). Esta parte descritiva refere-se, portanto, ao registro objetivo, por parte do
54
pesquisador, dos detalhes ocorridos no campo de investigação. O segundo é reflexivo e se
atém ao ponto de vista do observador, isto é, às suas idéias, preocupações e observações
pessoais feitas ao longo da coleta dos dados (BOGDAN; BIKLEN,1994b; LÜDKE; ANDRÉ,
1986b).
4.4 Entrevistas semi-estruturadas
A entrevista representa um dos instrumentos básicos da coleta de dados. A sua
vantagem sobre outras técnicas é que permite “a captação imediata e corrente da informação
desejada, praticamente com qualquer tipo de entrevistado e sobre os mais variados tópicos”
(LÜDKE; ANDRÉ, 1986, p. 34). Ela possibilita, assim, a ocorrência de “correções,
esclarecimentos e adaptações que a tornam eficaz na obtenção das informações desejadas”
(NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004, p. 49).
Neste estudo foram utilizadas entrevistas semi-estruturadas, visto que possibilitem, a
partir de um roteiro previamente estruturado, aprofundar, por meio do contato com os
entrevistados, os temas de interesse para a pesquisa. Esta entrevista é, de acordo com Triviños
(1987, p. 146):
[...] aquela que parte de certos questionamentos básicos, apoiados em teorias
e hipóteses, que interessam à pesquisa e que, em seguida, oferecem amplo
campo de interrogativas, junto de novas hipóteses que vão surgindo à
medida que recebem as respostas do informante.
Desse modo, o entrevistado, seguindo de modo espontâneo a linha de seu pensamento
e de suas experiências, dentro do foco principal dado pelo pesquisador, passa a participar na
elaboração do conteúdo da pesquisa (NOGUEIRA-MARTINS; BÓGUS, 2004).
Tal técnica caracteriza-se pela formulação prévia de algumas perguntas, tendo o
entrevistador uma participação ativa na entrevista. Apesar de seguir um roteiro, cabe a ele
realizar perguntas adicionais a fim de esclarecer questões que permitam melhor compreensão
da situação de interesse da pesquisa e do contexto em que esta se insere.
A entrevista semi-estruturada, conforme aponta Triviños (1987) e Assis et al. (1998),
valoriza a presença do pesquisador e oferece todas as perspectivas possíveis para que o
entrevistado alcance a liberdade e a espontaneidade necessárias, enriquecendo a investigação.
55
4.5 Coleta de dados
4.5.1 Procedimentos
A pesquisa foi realizada em dois abrigos de idosos da cidade mineira de Uberlândia
em meados de julho a agosto de 2005, num período aproximado de 30 dias. O procedimento
inicial foi o de contatar as coordenadoras das instituições para apresentar o objetivo da
pesquisa e solicitar permissão para realizá-la naqueles locais.
Dada a permissão, acompanhou-se, no período de duas semanas – sendo destas, uma
dedicada a cada abrigo – o funcionamento e a rotina dos mesmos, a fim de verificar as suas
dinâmicas cotidianas e melhor entender como os participantes elaboram e equacionam o seu
modo atual de vida. Atentou-se, sobretudo, à maneira como os funcionários e os idosos
interagiam; como aqueles e estes se relacionavam entre si; à relação estabelecida entre a
coordenadora, os funcionários e os próprios asilados; e, por fim, à rotina de trabalho dos
funcionários e de vida dos idosos ali residentes.
Participou-se, neste período, tanto das refeições dos idosos quanto dos intervalos das
atividades e outros afazeres determinados pelo abrigo. Isto sempre ocorreu em contato direto
com os idosos e com alguns funcionários.
Num segundo momento – no primeiro abrigo, no decorrer de duas semanas, no
segundo, ao longo de vinte dias – entrou-se em contato com os idosos que se encontravam
deitados em suas camas; sentados na porta dos quartos ou na sala de televisão; e também com
aqueles que permaneciam, nos intervalos das refeições e de outras atividades, sentados nos
bancos do pátio da instituição ou em suas cadeiras de roda. Os idosos ali permaneciam,
geralmente, a fim de passar o tempo. Nesse momento, tão logo estabelecido o contato,
informou-se ao idoso o papel do pesquisador naquelas instituições, o objetivo da pesquisa, e
indagou-se do interesse ou não de ele participar desse estudo.
Foi-lhes assim explicado, no transcorrer da conversa, que o pesquisador ali se
encontrava para realizar uma pesquisa acerca de idosos que moravam em abrigos, e, assim
sendo, indagou sobre seu interesse em contribuir com tal estudo.
Realizou-se, portanto, observação participante como técnica complementar na
obtenção de informações sobre o contexto institucional e a sua forma de organização e
funcionamento. Além disso, utilizou-se do diário de campo, tanto no registro das observações,
56
quanto na anotação das reflexões que emergiram a partir do contato do pesquisador com o
contexto em questão. As anotações neste diário foram realizadas imediatamente após a saída
do pesquisador dos abrigos. O presente estudo, assim sendo, enquadra-se na abordagem
qualitativa, ou seja, visa a focalizar e a investigar um problema nas atividades e interações
diárias de um determinado meio.
Estabeleceu-se como critério de exclusão, o idoso que, por decorrência de quadro
demencial severo, não apresentasse condições mínimas para responder as questões abordadas
na entrevista. Os participantes, que ao serem abordados aceitassem conceder entrevistas,
foram novamente informados do objetivo da pesquisa, bem como do sigilo e da necessidade
da assinatura do Termo de esclarecimento aos sujeitos da pesquisa
13
.
Além disso, foram-lhes explicados os motivos pelos quais haviam sido escolhidas as
instituições e a opção de tê-los como entrevistados, bem como os passos subseqüentes do
estudo. Cabe ressaltar, além disso, que se escolheram tais abrigos por eles oferecerem
permissão e livre acesso do pesquisador às suas dependências.
Foram, no total, entrevistados dezesseis idosos. O critério estabelecido para a
determinação deste número de entrevistados foi a saturação dos dados, ou seja, repetições de
informações que configuram uma problemática, sem o surgimento de novos dados
significativos. A saturação, assim sendo, constitui como um indicativo da suficiência de
informações concedidas pelos entrevistados. (BOGDAN; BIKLEN, 1994a).
As entrevistas foram realizadas individualmente, em local escolhido pelos próprios
participantes, tendo ocorrido em diversos locais: nos quartos dos idosos; na porta dos seus
quartos, sentados em cadeiras; no sofá localizado na sala; na recepção do abrigo; nas mesas
em que se fornecem as refeições; e nos pátios dos abrigos. Elas duraram, em média, cinqüenta
minutos, e, com o consentimento deles, foram gravadas com o intuito de obter-se a maior
fidelidade possível das respostas para análise posterior.
O pesquisador entrou em contato com alguns entrevistados, após a realização das
entrevistas, a fim de solicitar informações complementares para o estudo, visto que elas não
tinham sido mencionadas ao longo das entrevistas. Além disso, em algumas situações, elas
não haviam ficado claras, e, em outras, faltavam dados suficientes para o entendimento de
determinadas questões.
Utilizaram-se, como materiais, um gravador, fitas cassetes, papel, caneta e cópias dos
Termos de esclarecimento aos sujeitos e da pesquisa. Os participantes, nas entrevistas,
puderam discorrer sobre as suas histórias de vida, possibilitando a compreensão das
13
Ver Apêndice A.
57
representações sociais sobre as instituições nas quais eles se encontram.
Anotaram-se, em diário de campo e como complementação às entrevistas, os assuntos
comentados pelos entrevistados após ter sido desligado o gravador; as observações realizadas
sobre a instituição e sua dinâmica de funcionamento; e as informações complementares aos
conteúdos concedidos nas entrevistas a fim de registrar dados relevantes que emergissem
nesta situação informal.
Realizaram-se entrevistas semi-estruturadas. Algumas questões
14
foram previamente
formuladas e adequadas ao fim proposto, possibilitando a obtenção de informações e dados
necessários à construção da pesquisa; outras, no entanto, emergiram no decorrer das
entrevistas como complemento dos relatos dos entrevistados.
As questões propostas estavam associadas ao objetivo da pesquisa, ou seja, à aquisição
de informações que possibilitassem compreender os significados e sentidos atribuídos à
instituição asilar por idosos abrigados. As questões principais se referiram aos motivos pelos
quais os idosos encontram-se na instituição e o que isso representa para eles. Tais indagações
foram entremeadas com dados pessoais dos sujeitos, como naturalidade, data de nascimento,
grau de escolaridade, estado civil, profissão e recebimento ou não de algum benefício
previdenciário.
Para verificar as representações sociais sobre instituição asilar por estes idosos,
formularam-se questões determinadas que se centraram na história de vida e na situação atual
do entrevistado. O fato de viver em abrigos institucionais pode fornecer contornos ao seu
discurso e ao sentido existencial. As entrevistas objetivaram investigar as seguintes questões:
os idosos nos abrigos se sentem ou não marginalizados da sociedade? Há neles representações
sociais de inclusão na sociedade ou de exclusão dela? Quais são as representações sobre
instituição que circulam no grupo estudado?
4.5.2 Aspectos éticos
15
O presente estudo foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Faculdade de
Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto (FFCLRP-USP), pelo Processo de número
194/05 – 2005.1.748.59.1, e aprovado em 20 de julho de 2005.
14
Ver, no Apêndice B, o roteiro completo das entrevistas.
15
Ver Anexo A.
58
4.5.3 Participantes
Contou-se, para a realização desta pesquisa, com a participação de dezesseis
entrevistados em dois abrigos para idosos da cidade de Uberlândia. Destes, cinco idosos, um
do sexo masculino e os demais do sexo feminino, estão abrigados na primeira instituição que
o pesquisador contatou. Os demais participantes da pesquisa, ou seja, onze entrevistados,
encontram-se abrigados na segunda instituição contatada. Deles, dois são do sexo masculino e
nove, do sexo feminino.
Constam, nos quadros a seguir, dados sócio-demográficos que permitem caracterizar
os dezesseis participantes acima mencionados.
59
Quadro 1 – Caracterização dos participantes da primeira instituição
16
Participantes
17
Naturalidade Idade Escolaridade
Estado
civil
Profissão
Recebimento
de benefício
Estado de saúde
Data de
ingresso no
abrigo
1. Suyá
Patrocínio -
M.G
82 anos
Primário
incompleto
(2ª série)
Solteira Doméstica Aposentadoria
Doença de Chagas,
diabetes e problema de
varizes.
08-12-1995
2. Miro
Alto Garças -
M.T
74 anos Alfabetizado Separado
Trabalhou como corretor,
em olaria e cerâmica;
guarda (fazer anotação de
placa de carro) e comércio
Aposentadoria
Derrame cerebral (o
lado direito do corpo é
quase paralisado)
31-01-1996
3. Celeste
Zona rural de
Igarapava -
S.P
79 anos Alfabetizada Solteira Doméstica Aposentadoria 02-03-2001
4. Aracê
Sacramento -
M.G
64 anos
Primário
incompleto
(3ª série)
Viúva Do lar
Cistociscóide
(ovo de solitária)
04-10-1997
5. Lana
Zona rural de
Uberlândia -
M.G
68 anos
Primeiro ano
primário (3ª
série)
Viúva
Doméstica e
pajem de criança
Aposentadoria
Derrame isquêmico,
labirintite, hipertensão;
Mal de Alzheimer
12-12-2004
16
Os dados aqui apresentados se referem ipsis litteris aos prontuários dos idosos abrigados fornecidos pelas duas instituições. Em ambas, tais dados são preenchidos pelo
coordenador do abrigo com as informações que o responsável pela internação do idoso lhe fornece. Na ausência de responsável, o próprio idoso os repassa. Além disso, há
uma avaliação médica prévia à internação cujas informações do diagnóstico constam nos prontuários. A consulta dos prontuários para esta pesquisa foi realizada em agosto de
2005.
17
Foram dados nesta seção e nos tópicos subseqüentes, nomes fictícios aos entrevistados, às pessoas que foram por eles mencionadas e às instituições, tendo em vista a
preservação do anonimato deles.
60
Quadro 2 – Caracterização dos participantes da segunda instituição
Participantes Naturalidade Idade Escolaridade
Estado
civil
Profissão
Recebimento
de benefício
Estado de saúde
Data de ingresso
no abrigo
6. Ava
Zona rural de
Veríssimo - M.G
89 anos
3° ano
primário
Viúva Doméstica
Pensão do
marido
Insuficiência cardíaca e
hipertensão
28-09-2003
7. Tiana
Zona rural de
Monte Alegre -
M.G
83 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria
Hérnia (dependente de
bengala ou de andador)
08-10-1999
8. Zica
Bom Jardim -
M.G (mas foi
registrada em
Uberlândia -
M.G)
80 anos Analfabeta Viúva
Doméstica e
pajem de criança
Aposentadoria
Derrame cerebral (depen-
dente de cadeira de rodas),
insuficiência cardíaca e hi-
pertensão
02-02-1999
9. Doca
Zona rural de São
Gotardo - M.G
71 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria Hipertensão 16-02-2000
10. Ina
Zona rural de
Tupaciguara -
M.G
73 anos
Primário
incompleto
Separada Costureira Aposentadoria Esquizofrenia 08-08-2002
11. Ceci
Paracatu - M.G 79 anos Analfabeta Viúva Doméstica Aposentadoria
07-04-2004
12. Iole
Zona rural de
Uberlândia - M.G
81 anos
3° ano
primário
Separada
Trabalhou em
alfaiataria
Aposentadoria – 31-05-2001
13. Lude
Zona rural de
Uberlândia - M.G
79 anos Analfabeta Solteira
Zeladeira de
hotel e pensão
Aposentadoria
Chagas intestinal, depressão
crônica, derrame cerebral
15-12-2001
61
14. Irajá
Uberaba - M.G 99 anos
1° ano
primário
Solteira
Pajem de criança
e auxílio aos
enfermeiros em
hospitais
Aposentadoria
Insuficiência cardíaca,
artroplastia bilat
coxofemural
25-09-2002
15. Peri
Araguari - M.G 60 anos
4° ano
primário
Solteiro
Auxiliava o pai
no comércio: em
armazém e bar
Aposentadoria
Hidrocefalia (meningite) -
válvula na cabeça
21-02-2003
16. Aog
Miraporanga
(Distrito de
Uberlândia -
M.G)
58 anos
Primário
incompleto
Solteiro
Lavoura e auxi-
liar de serviços
em construtora
civil
Déficit cognitivo 05-01-2002
62
4.6 Contexto de realização do estudo
4.6.1 Caracterização da cidade em relação à temática analisada
Segundo o senso populacional de 2000, Uberlândia, cidade situada na região do
Triângulo Mineiro, no Estado de Minas Gerais, conta com um total de 570.042 habitantes. A
população idosa está estimada em 8% da população total, o que corresponde a
aproximadamente 43.000 pessoas. Destes, segundo dados fornecidos em 2004 pelo IBGE,
25.172 tinham entre 60 a 69 anos, 12.758 possuíam entre 70 a 79 anos e 4.786 pessoas
apresentavam idade acima de 80 anos (PREFEITURA MUNICIPAL DE UBERLÂNDIA,
2005).
Mantêm-se registrados no Conselho Municipal do Idoso e com alvará de
funcionamento seis abrigos particulares, com cerca de 180 idosos no total, e seis
filantrópicos. Destes últimos, um é caracterizado como “lar-dia”
18
e assiste a 40 idosos. Os
abrigos filantrópicos assistem no total a aproximadamente 250 idosos.
4.6.2 Sobre as instituições
Neste tópico será inicialmente apresentada a especificidade de cada instituição.
Posteriormente será considerado o que há de comum entre elas.
4.6.2.1 Primeira instituição
Esta instituição
19
foi fundada em 30 de agosto de 1995. Ela mantém vínculo com a
18
Os idosos que permanecem no abrigo pelo sistema “lar-dia” passam o dia naquele local e retornam para suas
residências no final da tarde.
19
Todas as informações referentes à descrição e funcionamento do abrigo foram concedidas pela coordenadora
da instituição.
63
igreja presbiteriana, tendo sido criada por iniciativa de um grupo de pessoas a ela
relacionadas.
Tal grupo interessou-se por conhecer o atendimento asilar da cidade de São Paulo,
também vinculado à igreja presbiteriana, tendo em vista a criação de um abrigo na cidade de
Uberlândia com o objetivo de suprir a demanda, solicitada na própria comunidade evangélica,
por vagas em abrigo.
A Fundação Presbiteriana, reconhecendo a persistência da idéia de criação de um
abrigo por este grupo, concedeu-lhes terreno e alguns recursos para que fossem iniciadas as
obras de construção do abrigo. Tais obras, contudo, em função da escassez de recurso, só
terminaram depois de dez anos.
O abrigo tem capacidade para assistir a vinte e três idosos. Atualmente todas as vagas
estão preenchidas. Dentre os idosos, vinte e um são internos e dois permanecem no local
como lar-dia. Destes, um é do sexo feminino e o outro, do sexo masculino. Dos idosos
internos, há seis homens e quinze mulheres.
Os critérios estabelecidos para a admissão do idoso na instituição são: carência
financeira, não estar acometido por doença infecto-contagiosa e não ser portador de doença
mental.
As admissões dos idosos no abrigo, por sua vez, decorrem das solicitações da
Promotoria; do Conselho Municipal do Idoso; da família; do interesse do próprio idoso; de
denúncias, realizadas pelos vizinhos dos idosos ou por terceiros, decorrentes de abandono ou
maus-tratos por eles sofridos.
O contato inicial com o idoso é efetuado por meio das visitas domiciliares realizadas
pela Assistente Social da Curadoria do Idoso. Esta, num segundo momento, contata o abrigo a
fim de verificar a existência ou não de vaga. O idoso, caso haja vaga disponível, é
imediatamente admitido no abrigo. Se não houver disponibilidade, ele é encaminhado para
outros abrigos da cidade.
O abrigo possui caráter filantrópico, sem fins lucrativos, e é subvencionado pela
Prefeitura Municipal de Uberlândia. Esta se responsabiliza pelo pagamento dos salários dos
funcionários, bem como pelo fornecimento da alimentação básica consumida no local, que é,
por sua vez, complementada por doações provenientes da comunidade.
A referida instituição é coordenada por uma psicóloga. Esta se responsabiliza por
questões referentes às admissões dos idosos e burocracias em geral. Ela coordena, no total,
uma equipe formada por quatorze funcionários. Tal equipe, além desta coordenadora geral, é
64
constituída por duas cozinheiras; um vigia noturno; cinco funcionários que trabalham como
auxiliares de Enfermagem, sendo um deles responsável por cobrir as férias dos demais; quatro
funcionários que exercem a função de auxiliar de serviços gerais e um que se ocupa com as
funções de auxiliar de secretaria.
Há parcerias com universidades, tanto particulares quanto pública, que cedem
estagiários dos cursos de Psicologia, Técnico em Enfermagem e de Nutrição, que atendem aos
idosos. Os estagiários deste último curso responsabilizam-se por realizar avaliação nutricional
dos mesmos.
Há uma média de quinze voluntários que prestam serviços ao local. Destes, um atua
como enfermeiro e os demais contribuem em diversas tarefas: no transporte dos idosos para a
realização de consultas médicas; no bazar, como forma de confeccionar materiais e objetos
diversos que são vendidos para arrecadar fundos para a instituição; em pequenos reparos da
estrutura física do local; na doação dos lanches e no atendimento a algum pedido solicitado
pela instituição.
O Programa Saúde da Família e o Projeto Serenidade, ambos subvencionados pela
Prefeitura Municipal, também assistem à instituição. Os idosos, por meio do Projeto
Serenidade, recebem atendimento fisioterápico e médico. O atendimento fisioterápico ocorre
quatro vezes na semana e as consultas médicas são realizadas uma vez na semana. Os
profissionais que integram o Programa Saúde da Família oferecem, por sua vez, atendimentos
mensais aos idosos.
Os idosos que apresentam condições físicas satisfatórias participam de atividades de
recreação, realizadas dentro do próprio abrigo e oferecidas por integrantes de um grupo de
dança. A participação de cada idoso é opcional, respeitando a vontade de cada um deles.
Além disso, a esses idosos é oferecida a possibilidade de participar semanalmente de
atividades propiciadas por um órgão da Prefeitura Municipal. Este órgão, criado e
desenvolvido exclusivamente para o atendimento dos idosos da cidade, promove atividades
diversas de recreação. Podem-se mencionar, dentre estas, dança e atividades manuais. Os
idosos do abrigo são transportados para este local por meio de veículo e motorista cedidos
pela própria Prefeitura Municipal.
Como a instituição foi construída ao lado da Igreja Presbiteriana, há, pelo pastor da
igreja, celebração diária de cultos. Na sua ausência, uma idosa, interna do abrigo, encarrega-
se de realizar tal tarefa dentro do próprio abrigo. No entanto, a participação dos idosos nos
cultos é facultativa, uma vez que a instituição respeite os diferentes credos, já que se admitem
65
idosos de diversas religiões.
Quanto à estrutura física da instituição, há seis banheiros, localizados em diversas
partes do abrigo, e oito quartos. Destes, cinco estão na área interna da instituição e três na
externa. Na área interna, quatro quartos abrigam mulheres e cada um comporta três pessoas, e
o outro, estruturado para acolher quatro pessoas, é ocupado por homens. Na área externa, há
um quarto masculino e um feminino e ambos comportam duas pessoas.
Os idosos são distribuídos nos quartos por dois critérios: um, considera a afinidade
entre eles; o outro, estabelece que idosos diagnosticados como possuidores de suas faculdades
mentais devam coabitar com aqueles que tenham grau menor de lucidez.
O abrigo não realiza reuniões com os familiares dos idosos. Indagada da razão pela
qual isso não ocorre, a coordenadora apenas afirmou o fato de que no momento não se faz tais
reuniões.
A instituição oferece aos idosos seis refeições diárias que são distribuídas em café da
manhã, lanche, almoço, lanche da tarde, jantar e lanche noturno.
Além disso, há uma casa, composta por quatro cômodos, localizada na lateral externa
do abrigo, em que mora a entrevistada Suyá. Tal casa, por decisão do coordenador da
instituição, foi construída especialmente para esta interna, após o falecimento de sua irmã,
com quem juntamente morou no abrigo. Um dos funcionários do abrigo realiza a limpeza da
casa que, por sua vez, é toda mobiliada.
Constatou-se, a partir das observações gerais sobre a instituição, registradas no diário
de campo, e das impressões a respeito dos idosos entrevistados, que Suyá possui certo
privilégio naquele local. O fato de ela morar em uma casa localizada dentro do próprio abrigo
é, no entanto, criticada pela atual coordenadora do local que sugeriu a esta entrevistada morar
dentro da instituição, não tendo sido aceita a proposta.
Parece ser-lhe dada, pelos funcionários e colegas abrigados, uma condição de
superioridade em relação aos demais idosos. Possivelmente tal fato ocorra tendo como critério
a sua integridade física e mental, já que, além de não possuir doenças incapacitantes, ela tem
condições de cuidar de si mesma, sem ajuda de ninguém, e de auxiliar na realização de
algumas tarefas do abrigo. Isso pôde ser verificado no tratamento dos colegas e funcionários
para com ela, e também por receber uma série de atribuições, como liderar os cultos na
ausência do pastor e responsabilizar-se pelo conserto das roupas do abrigo e dos colegas.
Além disso, ela pode sair do abrigo quando deseja, bem como possui autonomia para cuidar
dos colegas quando a enfermeira se ausenta para acompanhar algum interno ao hospital.
66
Quanto à participação dos entrevistados, notou-se que eles prontamente se dispuseram,
ao serem abordados pelo pesquisador, a conceder entrevistas.
Constatou-se que a entrevistada Aracê ingressou no abrigo quando tinha idade inferior
a sessenta anos, ou seja, ao marco que sinaliza em termos legais a entrada para a terceira
idade.
Notou-se, dentre todos os idosos da instituição, que apenas as entrevistadas Suyá e
Aracê mantinham-se ocupadas, respectivamente, com trabalho manual e no auxílio aos
funcionários do abrigo em tarefas relacionadas à cozinha e na limpeza do pátio da instituição.
A ociosidade, portanto, é um aspecto marcante na vida de grande parte dos entrevistados e
dos demais idosos do abrigo.
Pode-se salientar que há contato restrito entre os idosos abrigados e os funcionários,
salvo nas situações em que aqueles requerem cuidados destes. Além disso, percebeu-se que há
conflito entre alguns idosos e funcionários, sendo que a implicância entre eles é mútua e
verbalmente manifesta. Isto pôde ser verificado nos depoimentos das entrevistadas Celeste e
Lana que afirmam não ser respeitadas por alguns funcionários. Estes, por sua vez,
comentaram que não se pode confiar no que é dito por aqueles.
Lana, por outro lado, demonstrou estabelecer, em comparação com os demais
entrevistados, maior contato e aproximação com os colegas, evidenciando-se nela
preocupação e maiores cuidados para com os demais. Além disso, no período em que o
pesquisador manteve-se presente na instituição, apenas esta entrevistada recebeu visita
familiar, mais precisamente do irmão.
Verificou-se que há um número expressivo de idosos que apresentam algum tipo de
seqüela física decorrente de problemas de saúde. Este aspecto pôde ser observado em relação
aos entrevistados Miro e Lana.
Observou-se uma tentativa por parte de Celeste em agradar o pesquisador, tendo lhe
oferecido, de maneira insistente, um vaso com alecrim que havia sido por ela própria
plantado. Presume-se, a partir desta atitude, uma necessidade de ela se mostrar como uma
pessoa bondosa, e, além disso, como um meio de retribuir a atenção recebida.
Miro, por sua vez, forneceu indícios, ao longo da entrevista, de que tentava estabelecer
relação de intimidade com o pesquisador, uma vez que manteve interesse em saber o seu
estado civil, bem como demonstrou interesse por outras informações pessoais. Além disso, ele
pareceu reforçar em sua fala, a partir da informação do pesquisador sobre o sigilo da
entrevista, que o diálogo estabelecido entre ele e o pesquisador seria mantido entre eles como
67
um pacto de confiança e fidelidade.
A coordenadora da instituição mostrou-se disponível, porém, por breve período de
tempo, talvez em função de seus inúmeros afazeres, para conceder informações sobre o abrigo
ao pesquisador.
4.6.2.2 Segunda instituição
O Lar da Saudade é um dos projetos sócio-educativos do Grupo da Esperança
20
. Esta é
uma organização da sociedade civil fundada em primeiro de janeiro de 1950 na cidade do Rio
de Janeiro. Tem como objetivo promover educação e cultura sem descurar do aspecto
espiritual e, além disso, fornece alimentação, saúde e trabalho na formação do que eles
descrevem como um cidadão ecumênico.
O Grupo da Esperança propaga que suas atividades consistem no desenvolvimento de
programas e projetos voltados à necessidade das comunidades com o objetivo de propiciar
gestação saudável, infância segura, adolescência produtiva e terceira idade participativa,
resgatando, assim, segundo ela, a dignidade, os valores morais e espirituais das populações
que vivem em risco social.
O Lar da Saudade, em Uberlândia, foi inaugurado em 28 de junho de 1961, e provê
assistência integral, em regime de internato, a idosos em situação de risco social. A instituição
possui capacidade para abrigar quarenta e duas pessoas. Atualmente todas as vagas estão
completas, sendo que há vinte e quatro mulheres e dezoito homens.
A admissão do idoso decorre dos seguintes motivos: carência sócio-econômica;
denúncias de maus-tratos a partir de informações da comunidade, dos vizinhos dos idosos e
da Curadoria do Idoso, órgão atrelado à Secretaria de Desenvolvimento Social da Prefeitura
Municipal de Uberlândia; vontade do próprio idoso; conflitos familiares; decisão de ordem
judicial.
Admite-se, portanto, o idoso que se encontra em situação de risco pessoal ou social,
possuindo ou não família. O critério de maior importância é a condição sócio-econômica do
20
As informações aqui contidas foram fornecidas pela coordenadora do abrigo, bem como extraídas de um
material impresso, organizado por ela própria, baseado em documentos do Grupo da Esperança, que trata da
criação e organização da instituição.
68
idoso, que, em situação de extrema carência, é aceito na instituição a fim de evitar o
abandono. Para tanto, a Assistente Social da Curadoria do Idoso realiza uma avaliação a fim
de se inteirar a respeito da vida do mesmo para, em seguida, providenciar o ingresso dele no
abrigo.
Não se admitem, a princípio, idosos que apresentam doenças transmissíveis, distúrbios
ou deficiências mentais
21
. Faz-se, para que ocorra a admissão, exame médico prévio, baseado
em informações concedidas pelos familiares, como avaliação do estado de saúde do idoso.
A instituição é filantrópica e não possui fins lucrativos. Ela recebe subvenção da
prefeitura quanto à cobertura dos gastos referentes aos alimentos e materiais de limpeza. O
Grupo da Esperança arca com outros gastos. Há também recursos complementares aos da
própria instituição: seja por meio do auxílio de trabalho de voluntários, seja por bazares
abertos à comunidade com a participação de voluntários e dos próprios idosos na confecção
de materiais a serem vendidos.
A instituição também conta com um trabalho de telemarketing em que se solicitam,
por telefone, donativos da comunidade. Realizam-se, além disso, parcerias com empresas a
fim de receber qualquer tipo de auxílio. São igualmente aceitos donativos de familiares que
possam contribuir de algum modo.
O abrigo conta com uma equipe de funcionários, voluntários e estagiários que
atendem aos idosos e auxiliam na manutenção e funcionamento da instituição. A equipe de
funcionários é composta por uma coordenadora geral da instituição; uma fisioterapeuta; uma
assistente social; uma recepcionista; duas cozinheiras e uma auxiliar de cozinha; sete
auxiliares de enfermagem; três funcionárias que realizam serviços gerais; uma funcionária
responsável pela lavanderia e uma pela rouparia; um motorista.
Conta-se com a colaboração de trinta e quatro voluntários. Estes auxiliam nas funções
de enfermagem; na costura e reforma das roupas dos idosos; passam as roupas utilizadas no
local; preparam e servem lanches; contribuem na realização de bazar a fim de arrecadar
recursos financeiros para a instituição; oferecem aos idosos atividades como aula de
alfabetização, de artes e trabalhos manuais.
A instituição firma parceria com diversas universidades da cidade que concedem
estagiários do curso de Psicologia, Enfermagem, Serviço Social, Educação Física e Nutrição.
Há também parceria com escola de natação a fim de proporcionar atividades físicas àqueles
21
Verificou-se, embora se afirme que não são aceitos idosos nestas condições, que há vários casos de internos
que manifestam sinais sugestivos dos referidos quadros.
69
idosos que se encontram em condições satisfatórias de saúde.
A instituição tem caráter religioso, mas não propaga um único credo. Assim, lá
ocorrem cultos ecumênicos para quem deseja participar de atividades religiosas. Respeita-se,
pois, a religião seguida por cada idoso, não constituindo esta, portanto, critério para admissão
dos idosos e dos funcionários.
Quanto ao aspecto físico da instituição, cabe ressaltar que há nela quatorze quartos.
Cada quarto é ocupado por três pessoas e em todos há banheiro. O idoso, ao ingressar no
abrigo, ocupa o quarto em que houver vaga. Num segundo momento, quando possível, o
agrupamento dos idosos nos dormitórios é feito a partir da afinidade entre eles.
Realiza-se trimestralmente, pela Assistente Social, reunião obrigatória com os
familiares dos idosos para tratar de assuntos gerais referentes ao processo de internação,
sobretudo pela necessidade e importância de eles manterem contato com o idoso ali abrigado.
Oferecem-se seis refeições diárias com acompanhamento, durante todo o tempo, dos
funcionários. Proporcionam-se, em geral, alimentação balanceada e dietas específicas, em
particular, para os idosos que necessitem de tais cuidados.
Notou-se, por meio dos contatos com os idosos, a partir das observações participantes
e das anotações realizadas no diário de campo, que a maioria dos idosos, ao serem abordados
pelo pesquisador, dispuseram-se a conceder entrevistas, exceto dois deles que alegaram não
estar dispostos para conversar.
Embora as entrevistadas Ina, Iole e Lude tenham prontamente aceito conceder
entrevistas, percebeu-se que houve, da parte delas, certo incômodo por conversar sobre suas
vidas, respondendo as indagações sem muito prolongar os assuntos em questão. Além disso,
notou-se que estas três entrevistadas, além de Ceci, permaneciam sozinhas por todo o tempo,
privando-se do contato com qualquer pessoa. Lude, especialmente, ficava deitada em sua
cama, na maior parte do tempo, e levantava-se apenas para realizar as refeições e higiene
diárias.
Observou-se que as entrevistadas Doca e Zica apresentavam certa desconfiança da
coordenadora do abrigo quanto à utilização do dinheiro, que permanece sob os cuidados
desta, referente às suas aposentadorias e pensões.
Ao mesmo tempo em que elas compreendem a necessidade do uso do dinheiro com os
gastos da própria instituição e para provê-las, parecem indignar-se com o fato de não mais
terem, em função da doença ou da idade, ou mediante a associação entre tais aspectos,
controle sobre o bem que lhes propiciava autonomia e possibilitava realizar escolhas. Além
70
disso, aborrecem-se com o fato de que o dinheiro, entendido por elas como fruto de seu
trabalho e esforços pessoais, beneficie também a todos.
Percebeu-se que no abrigo residem pessoas com idade inferior a sessenta anos, embora
esta idade seja estipulada por lei como o marco para a entrada na terceira idade e, portanto,
consista como um dos critérios para ingresso do idoso na instituição. Este aspecto, dentre os
idosos participantes deste estudo, pôde ser observado em relação ao entrevistado Aog. Além
disso, percebeu-se que o entrevistado Peri ingressou no abrigo quando ainda não tinha tal
idade.
Constatou-se, ainda, que a maioria dos idosos permanecia ociosa na maior parte do
tempo, isolada no pátio do abrigo, em seus quartos ou em contato com outros idosos.
Percebeu-se, dentre todos os entrevistados, que somente Ava ocupava-se com a realização de
atividade, isto é, ela dedicava o seu tempo à realização de trabalho manual. Além dela, Ceci
diariamente regava, no período da manhã, as plantas do abrigo.
Pode-se dizer, a partir das observações realizadas sobre as relações nas instituições,
que é mínimo o contato dos idosos entre si e deles com os funcionários do abrigo. Estes se
mostraram presentes somente nos horários das refeições e nas situações que requeriam
maiores cuidados no atendimento aos idosos. Alguns destes, por sua vez, reclamaram que não
eram prontamente atendidos nas situações em que solicitavam os funcionários, como se
verificou no caso da entrevistada Irajá. Esta, portanto, reclamou que não era atendida quando
solicitava medicação nas situações em que sentia dor ou diante da necessidade de algo.
Notou-se, por outro lado, que os idosos permaneciam juntos apenas durante as
refeições realizadas no refeitório. Assim sendo, essa situação parece propiciar condições para
que sejam instaurados conflitos, visto que alguns deles não aceitem determinadas atitudes e
comportamentos que provêm dos demais.
Ocorrem, por parte de alguns idosos, implicâncias com o fato de algum colega sentar-
se no lugar que eles freqüentemente ocupam; alguns deles não aceitam certas limitações
apresentadas pelo outros na realização das refeições; outros se aborrecem por não serem
primeiramente servidos pelos funcionários. Aog, por exemplo, realiza as suas refeições no
pátio a fim de evitar conflito com alguns colegas com quem não tem afinidade, o que, aliás,
foi verbalmente expresso por ele.
Por outro lado, o tratamento dos idosos em relação aos funcionários é diferenciado,
marcado por muito respeito, – com exceção de Irajá – sobretudo ao se comparar com as
relações estabelecidas entre os mesmos nas poucas situações observadas de contato entre eles.
71
Isto pode ser explicado pela dependência que eles têm dos cuidados dos funcionários, bem
como pelo fato de estes serem atenciosos para com eles. Os funcionários, sendo assim, são
por eles colocados em posição de destaque, pois, além de gozarem da autonomia de ir e vir,
trabalharem e possuírem boas condições físicas, são de certo modo representados pelos idosos
como responsáveis por eles.
Observou-se que há um número considerável de idosos que apresenta problemas
físicos decorrentes de doenças. Este aspecto pôde ser verificado em relação à Tiana, Zica,
Lude, Irajá e Peri, e em grande parte dos demais idosos abrigados que lá vivem, mas que não
foram aqui entrevistados.
Mais particularmente, cabe notar que, a partir das impressões registradas no diário de
campo em relação à Tiana, houve uma grande utilização por parte dela do termo “minha
filha” durante a entrevista. Cabe aqui destacar, em primeiro lugar, o fato de a entrevistada ter
perdido seu único filho. Embora a expressão seja coloquial, pode-se ressaltar o forte valor
afetivo aqui presente, sugerindo uma provável gratidão pelo respeito e atenção a ela
concedidos pelo pesquisador.
Prosseguindo em tais observações mais particulares sobre cada entrevistado, ressalta-
se que, ao longo de todo o contato com o pesquisador, Ava justificou, – seja no início, seja no
decorrer da entrevista ou nas interações posteriores – que o seu desejo de retornar para casa
não está, de maneira alguma, vinculado ao modo como ela é tratada no abrigo. Percebeu-se
que há da parte dela extrema preocupação em salientar que seu desejo de retorno ao lar está
fortemente ligado a querer estar num ambiente mais familiar. Registrou-se em diário de
campo o visível incômodo dela quando, no decorrer da entrevista, uma funcionária entrou no
quarto para limpar o banheiro. Neste momento de ausência de privacidade, ela reiterou
diversas vezes o desejo de voltar para casa, mas ressaltando o fato de que as pessoas que
trabalham no abrigo tratam-na bem. Tal fato, aliás, está registrado em sua entrevista, quando
ela, como se falasse também para a funcionária, diz num tom um pouco mais elevado do que
o habitual: “[...] eles aqui não é ruim! Eles aqui não é ruim, não! Eles é muito bom! Boa
pessoa com a gente e tudo. Mas é porque eu quero ir embora pra minha casa [...]”.
Ao contrário desta entrevistada, percebeu-se que Doca utilizou-se do contato com o
pesquisador para explicitar as impressões dela sobre o abrigo, ressaltando privações e
restrições a que tem de se submeter na instituição, como ausência de atendimento quando
solicitado, falta de produtos de que carece, impossibilidade de dispor de suas economias.
Além disso, notou-se, no mesmo tom, que ela aproveitou deste contato para reiterar seus
72
pedidos. Reclamou do não atendimento da demanda de alguns produtos que, conforme diz,
deveriam ser comprados com o restante do dinheiro da aposentadoria destinado
exclusivamente ao atendimento dos pedidos dos internos.
Esta problemática foi também observada em relação à Irajá. Esta, por ocasião da
entrevista, reclamou das restrições do abrigo, especificamente dos funcionários, no
atendimento aos seus pedidos de cuidado para alívio da dor que comumente sente.
Observou-se, assim sendo, que a entrevista deu ensejo a várias reclamações, como se a
entrevistadora pudesse servir de porta-voz de tais insatisfações e fosse alçada à condição de
intermediadora nas reivindicações entre os idosos e a coordenadora da instituição. Tal fato
revela que estas idosas se sentem sem voz ativa na instituição, desvelando o aspecto de
dependência sob a qual estão submetidas, pois não mais dispõem de condições para
resolverem os problemas que as afligem, seja pela idade, seja pelo fato de perceberem a vida
no abrigo como restritiva.
Notou-se, no período de contato do pesquisador com os idosos e com a instituição, que
nenhum dos seus parentes os visitou, exceto uma das sobrinhas de Tiana que, além de visitá-
la, procurou a coordenadora da instituição para tratar de questões burocráticas.
A coordenadora do local mostrou-se extremamente solícita ao longo de toda a
pesquisa.
4.6.2.3 Aspectos comuns entre as instituições
Todos os idosos possuem convênio médico que lhes oferece pronto atendimento. A
equipe de profissionais disponibilizada por tal convênio os atende no próprio abrigo, mediante
contato e solicitação da coordenadora do local. Tal equipe realiza, nesta situação,
atendimentos aos idosos que exijam procedimentos médicos simples. Além disso, quando
necessário, encaminha-os em ambulância própria, equipada com materiais de primeiros
socorros, para órgãos públicos que se dispõem de estrutura necessária para atender aos casos
de maior gravidade e às situações nas quais os idosos correm risco de vida.
Os abrigos retêm valor correspondente a 70% da aposentadoria, benefício ou pensão
dos idosos para arcar com os gastos e despesas relativos à instituição. Os 30% do valor
restante são gastos no atendimento de pedidos efetuados por eles.
73
A retirada do dinheiro é feita através de curatela, ou seja, uma pessoa da família
possui o direito, mediante permissão e assinatura do idoso, de responsabilizar-se pela conta
bancária e bens deste. Quando isso não ocorre, esse direito é transferido para a instituição a
fim de que ela assuma tal função. Em relação à segunda instituição mencionada, estima-se,
por idoso, um custo mensal que varia entre R$ 327,50 a R$ 416,00.
As visitas ocorrem diariamente entre 14h e 17h e não se restringem aos familiares,
parentes e amigos dos idosos, sendo, portanto, extensivas à comunidade.
Observou-se que há nas instituições número superior de mulheres em relação aos
homens.
Há nos abrigos um número expressivo de idosos que apresenta distúrbio articulatório
caracterizado por uma disfunção da fala devido à falta de dente. Este aspecto dificultou ao
pesquisador a compreensão da fala dos entrevistados, sobretudo na realização da etapa de
transcrição das fitas.
Os funcionários dos abrigos, em função da sua extensa rotina de trabalho, mantêm-se
ocupados por todo o tempo com os seus afazeres até se encerrar o seu turno de trabalho.
Notou-se que há um número significativo de idosos residentes nos abrigos em questão
portadores de doenças degenerativas, bem como de alguns que possuem algum tipo de
deficiência ou doença mental. Além disso, há também um número considerável de idosos que
apresentam problemas físicos decorrentes de doenças.
4.7 Análise de conteúdo
Utilizou-se, sobretudo no tratamento dos conteúdos das entrevistas, a análise temática
ou categorial, na perspectiva da análise de conteúdo de Bardin (1977).
A análise de conteúdo pode ser considerada como um conjunto de instrumentos
metodológicos utilizados na decodificação de comunicações em ciências sociais, que serve
para diversas situações de investigação: estudo das motivações; atitudes; valores; crenças ou
tendências. Sendo assim, “desde que se começou a lidar com comunicações, que se pretende
compreender para além dos seus significados imediatos, parece útil o recurso da análise de
conteúdo” (BARDIN, 1977, p. 29). Esta pode ser melhor definida como:
74
[...] um conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos, sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência de
conhecimentos relativos à produção/recepção de variáveis inferidas destas
mensagens
(BARDIN, 1977, p. 42).
A análise de conteúdo abrange, portanto, as iniciativas de explicitação, sistematização
e expressão do conteúdo das mensagens. A sua finalidade é efetuar deduções lógicas e
justificadas a respeito da origem de tais mensagens, atentando-se, sobretudo, para quem as
emitiu e ao seu contexto de produção. O interesse, assim sendo, não é na mera descrição dos
objetos, mas no que está neles implícito e pode ser evidenciado por meio da investigação:
[...] Do ponto de vista operacional, a análise de conteúdo parte de uma
literatura de primeiro plano para atingir um nível mais aprofundado: aquele
que ultrapassa os significados manifestos. Para isso, a análise de conteúdo
em termos gerais relaciona estruturas semânticas (significantes) com
estruturas sociológicas (significados) dos enunciados. Articula a superfície
dos textos descrita e analisada com os fatores que determinam suas
características: variáveis psicossociais, contexto cultural, contexto e processo
de produção de mensagens
(MINAYO, 1992, p. 203).
A análise temática ou categorial foi, portanto, a técnica utilizada no tratamento dos
dados qualitativos desta pesquisa, visto que possibilite, mediante o uso da inferência e da
atividade interpretativa, atingir os significados latentes destes materiais, possibilitando assim
apreender o processo de elaboração e significação das representações sociais sobre
instituições asilares por idosos abrigados.
A categorização, de acordo com Bardin (1977), consiste em classificar elementos
constitutivos de um conjunto, por diferenciação e por reagrupamento segundo o gênero ou
analogia, com critérios previamente definidos: as categorias são rubricas ou classes que
reúnem um grupo de elementos sob um título genérico, podendo mencionar as unidades de
registro no caso da análise de conteúdo, dado que tal agrupamento seja efetuado em razão das
características comuns destes elementos.
Nesse sentido, Minayo (1992, p. 209) afirma que a realização de uma análise temática
consiste em:
[...] descobrir os núcleos de sentido que compõem uma comunicação cuja
presença ou freqüência signifiquem alguma coisa para o objetivo analítico
visado. Ou seja, tradicionalmente, a análise temática se encaminha para a
contagem de freqüência das unidades de significação como definitórias do
caráter do discurso. Ou, ao contrário, qualitativamente a presença de
determinados temas denota os valores de referência e os modelos de
comportamento presentes no discurso.
75
Para que a análise de um conteúdo, no entanto, seja válida, um conjunto de categorias
da comunicação deve possuir determinadas características. São elas: exclusão mútua;
homogeneidade; pertinência; objetividade e fidelidade; e produtividade.
Na exclusão mútua, cada elemento não pode ser classificado em duas ou mais
categorias. O princípio da exclusão mútua depende da homogeneidade das categorias, isto é,
um mesmo conjunto categorial funciona com apenas um registro e com uma dimensão de
análise. Considera-se, assim, que uma categoria é pertinente se ela estiver adaptada ao
material de análise e se pertencer a um quadro teórico definido. A objetividade e a fidelidade
asseguram, por meio de codificadores diferentes, resultados iguais. Desse modo, partes
diferentes do mesmo material devem ser codificadas da mesma maneira, mesmo quando
submetidas a várias análises. Um conjunto de categorias é considerado produtivo se ele for
capaz de fornecer resultados significativos em índices de inferências, em novas hipóteses e
em dados exatos (BARDIN, 1977).
Cabe salientar que o processo operacional de sistematização do conteúdo das
mensagens, por meio da análise temática ou categorial, ocorre por etapas sucessivas. São elas:
a pré-análise; a exploração do material; e o tratamento dos resultados obtidos e
interpretação (BARDIN, 1977; MINAYO, 1992).
Assim sendo, a pré-análise é a primeira etapa do processo de análise das
comunicações. Ela é a fase da organização e sistematização das idéias que consiste na escolha
dos documentos que serão analisados; na reformulação das hipóteses e objetivos inicias da
pesquisa, tendo como base o material coletado; na elaboração de indicadores que irão
fundamentar a interpretação final.
A pré-análise é subdividida, de acordo com Minayo (1992), em três etapas. Estas são:
leitura flutuante; constituição do corpus; formulação de hipóteses e objetivos.
Deve-se ter, na leitura flutuante, contato aprofundado com o material discursivo,
atentando-se para as impressões e orientações do seu conteúdo, o que possibilita a
organização dos temas no conjunto das comunicações; a constituição do corpus refere-se à
organização do material que deve ocorrer de modo que responda aos critérios de validade,
como a exaustividade, representatividade, homogeneidade e pertinência
22
; a formulação de
hipóteses e objetivos diz respeito à necessidade de estabelecer hipóteses iniciais provisórias e
22
De acordo com Minayo (1992, p. 209), a exaustividade “contempla todos os aspectos levantados no roteiro”; a
representatividade contém “a representação do universo pretendido”; a homogeneidade deve obedecer “a
critérios precisos de escolha em torno dos temas, técnicas e interlocutores”; e na pertinência “os documentos
analisados devem ser adequados ao objetivo do trabalho”.
76
flexíveis, que podem ser verificadas nos procedimentos de análise a fim de serem ou não
confirmadas. Determina-se nesta fase, conforme aponta Minayo (1992, p. 210):
[...] a unidade de registro (palavra-chave ou frase), a unidade de contexto (a
delimitação do contexto de compreensão da unidade de registro), os recortes,
a forma de categorização, a modalidade de codificação e os conceitos
teóricos mais gerais que orientarão a análise.
Pode-se mencionar a exploração do material como a segunda etapa de sistematização
do conteúdo das comunicações. Nesta etapa, os dados brutos do material são transformados e
agregados em unidades a fim de se atingir o núcleo de compreensão e sentido do texto. Este
procedimento envolve, portanto, o recorte do material, que permite a escolha das unidades de
significação, e a classificação e agregação dos dados em categorias (BARDIN, 1977;
MINAYO, 1992).
A terceira etapa de organização dos dados consiste no tratamento dos resultados
obtidos e interpretação. Os dados brutos, nesta etapa, devem ser tratados de modo que se
obtenham resultados significativos e válidos. O pesquisador, nesse sentido, pode realizar
inferências e interpretações de acordo com os objetivos propostos ou, a partir da leitura do
material, possibilitar o aparecimento de novas dimensões teóricas, podendo servir a outras
análises.
Para realizar a análise dos dados desta pesquisa, considerou-se, portanto, o conteúdo
total de dezesseis entrevistas com o intuito de compreender os relatos dos idosos. O processo
de análise destes dados consistiu, a princípio, na transcrição integral das entrevistas
23
e na
realização de estudo minucioso dos seus conteúdos, buscando-se atentar para as impressões e
indagações que pudessem daí emergir.
Os conteúdos principais da pesquisa foram, portanto, discriminados e, posteriormente,
realizou-se uma síntese
24
de todo o discurso, visando à compreensão das relações entre
instituição; meio social e cultural; e os idosos. Assim sendo, organizaram-se as marcas
discursivas em unidades de significado que foram agrupadas em conjuntos temáticos. Este
trabalho de codificação, isto é, de desmembramento do texto em agrupamentos semelhantes,
resultou num conjunto de categorias e subcategorias associadas ao objetivo da pesquisa.
A fase de interpretação baseou-se em todos os materiais de informação obtidos no
processo de coleta dos dados. Desse modo, as inferências e interpretações dos conteúdos
manifestos e latentes da comunicação embasaram-se em todos os materiais coletados, ou seja,
23
Ver, no Apêndice C, cinco entrevistas transcritas na íntegra.
24
Ver, no Apêndice D, a síntese de todas as entrevistas.
77
quer por meio das observações realizadas nos abrigos; quer das anotações em diário de
campo; quer pelos conteúdos das entrevistas.
Atentou-se, sobretudo, para os conteúdos afetivos; para o processo de construção do
discurso; para as contradições e variações. Isto possibilitou mapear a relação destes com o
objetivo da pesquisa.
As inferências e interpretações dos conteúdos das entrevistas e dos dados informais
obtidos no processo de coleta dos dados possibilitaram ao pesquisador estabelecer relações:
entre os idosos e as instituições; entre eles mesmos; entre estes e os funcionários dos abrigos.
Por fim, estabelecer a percepção dos mesmos a respeito da sua atual condição de vida,
considerando sempre o meio social e institucional na produção destas representações.
A apresentação dos resultados e a posterior discussão dos dados obtidos nesta pesquisa
foram, portanto, realizadas a partir de definições, nomeações e estudo das categorias de
natureza temática, baseadas na literatura, o que possibilitou relacionar os achados deste estudo
com as propostas existentes na literatura sobre o tema em questão.
78
79
5 RESULTADOS
As entrevistas, depois de transcritas, foram decompostas em unidades de significado e
posteriormente organizadas em categorias. Estas retratam as representações dos idosos
institucionalizados acerca de sua vida anterior ao asilamento, salientando-se suas relações
familiares e afetivas. Revelam, além disso, a condição atual deles, sobretudo no que concerne
à vivência no abrigo, e também as expectativas que tenham do futuro. Procurou-se, nesse
sentido, categorizar tais representações em relação à questão central deste trabalho, ou seja,
como os idosos avaliam a instituição e os processos de inclusão e exclusão sociais.
Elencaram-se, tendo como base a análise de dezesseis entrevistas, dois tópicos: um
referente ao período anterior à institucionalização; o outro, à sua vida atual no abrigo. O
primeiro, portanto, centra-se na origem dos entrevistados; o segundo, condição atual deles,
focando-a a partir do ingresso na instituição. Definiram-se, em função dos temas recorrentes
nos discursos dos entrevistados, oito categorias e dezesseis subcategorias que se encontram
abaixo especificadas.
a) Origem
Categoria 1
Estrutura familiar
Categoria 2
Processos de
inclusão ou
de exclusão social
Categoria 3
Vulnerabilidade
Subcategoria
3.1
Doença como
limitação da
vida
Subcategoria
3.2
Solidão
Subcategoria
1.1
Composição
familiar
Subcategoria
1.2
Dinâmica
familiar
Subcategoria
1.3
Figuras de
identificação
Subcategoria
2.1
Formação
escolar
Subcategoria
2.2
Trabalho
Subcategoria
2.3
Causas da
internação
80
a) Origem
O tópico aqui denominado origem está relacionado à classe social dos entrevistados e
à proveniência econômica dos mesmos, além de referir-se à dinâmica de organização e
funcionamento de suas famílias. Refere-se, além disso, às condições de vida em relação às
situações sócio-econômicas de suas famílias, assim como o modo pelo qual os agrupamentos
nucleares constituíram-se e estruturaram-se. Também se eles instituíram suas próprias
famílias nucleares (cônjuge e filhos).
Categoria 01: Estrutura Familiar
A categoria aqui denominada estrutura familiar refere-se ao modo de disposição e
organização dos membros das famílias, seja no tocante ao número de indivíduos que as
b) Institucionalização
Categoria 4
Cotidiano
Categoria 5
Percepção do
Abri
g
o
Categoria 6
Sentimentos e
p
erdas
Categoria 7
Espiritualidade e
cren
ç
a
Categoria 8
Expectativas
Subcategoria
4.1
Convivência
no abrigo
Subcategoria
4.2
Reativação
Subcategoria
4.3
Visitas e
socialização
externa
Subcategoria
6.1
Auto-percepção
Subcategoria
8.1
Expectativa
em relação à
família
Subcategoria
8.2
Expectativa
de vida
Subcategoria.
8.3
Expectativa
de autonomia
e
independênci
Subcategoria
6.2
Distanciamento
familiar
81
compõem, seja às respectivas funções e papéis específicos por eles ocupados no meio
familiar.
Nesta categoria foram delimitadas três subcategorias que se referem, respectivamente,
à composição familiar dos entrevistados; à dinâmica de funcionamento das suas famílias;
às figuras com as quais eles, no decorrer da vida, identificaram-se.
Subcategoria 1.1: Composição familiar
Tal subcategoria refere-se aos familiares e parentes dos entrevistados, ou seja, àqueles
que fazem parte da composição familiar.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Éramos cinco irmãos. [...] Meu irmão mais novo, o único que ainda é vivo,
está em São Paulo. [...] Eu tenho muitos primos, tenho três sobrinhas [...].
2. Miro
[...] De irmão homem só resta eu. Mulher também só tem duas. [...] Tenho muito
p
arente aqui. Tenho sobrinha, tenho sobrinho. [...] Eu adquiri uma filha do
p
rimeiro casamento. [...] E eu tenho neto [...].
3. Celeste
[...] Eu tenho cinco irmãos e cinco irmãs comigo. [...] Hoje, de irmã tem mais
três e eu. [...] E sobrinho tem muito [...].
4. Aracê
[...] Esta família era, por tudo, sete irmãs e treze irmãos. [...] Hoje só existe três
[...] Tem os meus sobrinhos. [...].
5. Lana
[...] Eu tenho só um filho e eu tenho três neto. E eu tenho mais duas irmãs. Meu,
só tem um irmão. [...] Parente eu tenho e os meus sobrinhos também [...]”.
6. Ava
[...] Sou mãe de três filhos. Um morreu, o do meio. [...] O meu filho [mais novo]
tem uma filha. [...] Tenho irmãos. Nove irmãos. Mas deles, agora tem só três.
[...] Eu tenho primo e sobrinho espalhado aqui [...].
7. Tiana
[...] Nós [ela e irmãos] era em doze. [...] Hoje não tenho irmão. Se existir, é um e
no estado de São Paulo. [...] Sobrinho eu tenho bastante aí [...].
8. Zica
[...] O filho que eu tenho é adotivo. [...] Ele tem um casal de filho. [...] Estou
tendo quatro irmãos só. Já morreu quase tudo de nove [...] Eu tenho sobrinho
aqui, né? [...].
9. Doca
[...] Minha mãe pariu dez filho. Mas tem só cinco. [...] Mas eu tenho um mundo
véio de sobrinho! [...].
10. Ina
[...] Tenho dois irmão e uma irmã também. [...] Era nove no total. [...] Os neto
tem três, né? [...] Tenho sobrinhos [...].
82
11. Ceci
[...] Tenho três irmão, mas mora na Bahia. [...] Aqui eu tenho primo [...].
12. Iole
[...] Não tive filhos. [...] Tenho um irmão que já morreu, né? Agora tem é irmã.
Duas irmã. [...] Eu tenho parente demais! Primo, sobrinho, tudo eu tenho [...].
13. Lude
[...] Eu criei uma menina desde pequenininha, né? [...] Ela tem filho casado
também. [...] Eu tinha nove irmão comigo, né? Fartou eu. [...] Tenho uns
sobrinho aí [...].
14. Irajá
[...] Tive dois irmão, mas já morreram os dois. [...] Eu tenho sobrinha, mas
mora em outra cidade [...].
15. Peri
[...] Nós somos um monte de irmão porque meu pai era casado duas vezes. [...]
Do segundo casamento do meu pai é eu, meu irmão, mais dois irmão e uma
irmã. Essa irmã já faleceu. [...] Eu tenho sobrinho. Tenho primo [...].
16. Aog
[...] As minhas duas irmã é que eu ainda tenho até hoje. [...] Da parte do meu
p
ai eu tenho tio [...].
Todos os entrevistados enfatizaram a importância dos familiares e parentes, sejam
eles de grau próximo de parentesco ou não. Nota-se que todos eles fazem parte de famílias
numerosas. Dois entrevistados (Irajá e Aog), contudo, integram famílias pouco numerosas,
constituídas por três filhos. Treze entrevistados mencionaram a existência de irmãos. Destes,
apenas Ceci e Aog não perderam nenhum dos irmãos, permanecendo assim todos vivos. As
entrevistadas Lude e Irajá não mais têm irmãos vivos. A entrevistada Tiana tinha onze
irmãos. Dentre estes, todos os de quem ela tinha notícia faleceram. Há, entretanto, uma irmã
de paradeiro desconhecido. O entrevistado Peri tinha oito irmãos, sendo quatro do primeiro
casamento do pai; os demais são bilaterais. Destes últimos, uma irmã faleceu.
Em relação ao número absoluto de irmãos dos entrevistados, de um total de 64 irmãos
do sexo masculino, 53 faleceram; de 56 irmãs, 34 morreram
25
. Observa-se, no que se refere à
ordem de nascimento dos entrevistados em relação aos seus irmãos, que os entrevistados
Miro, Peri e Aog são os filhos mais novos. As participantes Suyá, Aracê e Iole são o segundo
filho mais novo; Ava e Ceci são as filhas mais velhas. Os demais encontram-se entre estas
escalas.
Dentre os entrevistados, sete deles (Miro, Lana, Ava, Ceci, Tiana, Ina e Zica) tiveram
filhos, embora tenha havido, em alguns casos, perdas dos mesmos
26
. Miro, Lana e Ava têm
filhos e netos legítimos. Zica e Lude têm, cada uma delas, um filho e netos adotivos.
25
Cabe registrar que aqui não se inclui entre as falecidas a irmã da entrevistada Tiana, cujo paradeiro esta afirma
desconhecer.
26
A perda dos filhos, embora seja um aspecto importante na caracterização da dinâmica das famílias, será
considerada com mais vagar na categoria na subcategoria nomeada solidão.
83
Quinze entrevistados indicaram a existência de parentes de grau de parentesco
próximo, incluindo primos e sobrinhos. Aog, como exceção, tem somente tios paternos.
Subcategoria 1.2: Dinâmica familiar
Esta subcategoria refere-se ao funcionamento e à dinâmica familiar, ou seja, ao modo
como os membros das famílias se relacionam e interagem entre si.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] O meu tio ficou sabendo que uma mulher queria uma negrinha do serviço, né?, e
a minha mãe tinha morrido. O pai, já não tinha pai, né?, porque ele vivia sumido e
não queria saber da família. Então me mandaram pra lá. Eu tinha uns dez anos [...]
E os meus irmãos foram cada um pra uma casa, trabalhando também. [...] Eu sou
solteira [...].
2. Miro
[...] Os meus pai foi muito bom para nós tudo. [...] Mamãe tinha uma coisa comigo
p
orque eu era caçula, sabe? [...] Ela pelejava comigo! Ela também fazia as coisa pra
me agradar [...].
3. Celeste
[...] Nós tinha horta, tinha verdura, e eu e meus irmão trabalhava junto com a minha
mãe e com o meu pai. [...] A mamãe morreu, né?, e... descontrolou tudo. [...] Eu
queria ter casado porque eu sou solteira, né? [...] E era pra mim casar. Mas depois
nós [ela e o nubente] resorveu não casar, né? [...] Hoje eu estou pensando na minha
irmã se tem algum doente lá. [...] Eu não vou telefonar porque eu não gosto de mexer
nas coisa que não é minha [...].
4. Aracê
[...] Mamãe e papai tinha o maior cuidado comigo. Ela falou para as minhas irmãs
terem cuidado para comigo. [...] Sofria desmaio demais! [...] Eu morava com uma
irmã. Ela me tratava muito bem [...].
5. Lana
[...] Eu e meus irmão morava com a minha mãe e com o meu pai, sempre
trabalhando. Mas depois que eles morreram, que nós era ainda meio pequeno, cada
um tomou um rumo [...].
6. Ava
[...] Mamãe fazia porvilho; nós torrava farinha. Nós fazia era isso, tudo junto, os
meus irmão [...].
7. Tiana
[...] Lá na roça, minha filha, eu fazia de tudo. [...] Nós trabalhava junto com os meus
p
ai, e eles nunca deixou faltar nada pra nós. Trabalhava muito, mas... eu já fui
nascida e criada ali... A gente não sentia, né? [...] E vivia bem porque eu tinha eles
[...] Nem não sei se a minha irmã existe porque eu não tenho notícia dela, e nem ela
tem notícia minha [...].
84
8. Zica
[...] Mamãe largou do meu pai e ele viveu com outra mulher. [...] Eu fiquei com o
meu avô e minha mãe, e, não sei porquê, os meus irmão foram criados pra lá com o
meu pai e a mulher dele. A gente via um ao outro muito pouco [...].
9. Doca
[...] Na fazenda, eu e meus irmão vivia trabalhando com nossos pais. Aqui [cidade]
nós morava em torno da minha mãe. [...] Eu e minhas três irmãs vinha buscar
serragem de madeira pra ferver roupa, né? [...] Tenho uma irmã muito boa, mas a
outra é mardita [...].
10. Ina
[...] Na roça eu e meus irmãos morava com pai e com mãe. Vivemos com eles na roça
até cada um tomar um jeito na vida e se virar [...].
11. Ceci
[...] O meu pai morreu e deixou os filho pequeno. [...] Aí saí pro mundo. Eu e meus
irmão saímo muito com a minha mãe pra ela trabalhar. [...] A minha mãe me batia
demais porque eu era custosa. [...] Ela era muito ruim pra mim [...] Quando nós
morava na mesma cidade, eles [irmãos] não ligava pra mim [...].
12. Iole
[...] O meu pai já morreu. A minha mãe já morreu há muitos ano. Nós viveu junto até
os meus irmão crescer e cada um arrumar a vida [...].
13. Lude
[...] Eu morava com a minha irmã, mas depois que ela morreu eu fiquei igual bolinha
de ping-pong na casa da minha família. Joga pra aqui. Joga pra ali, né? [...] Eu
morava com a menina que eu criei. [...] Agora, ela decidiu ir pra praia, que ela
p
egou um dinheiro meu, gastou. [...] Nunca casei não! Nunca gostei desse negócio de
casamento não! [...].
14. Irajá
[...] Fui, uai, até os dez, onze ano, fiquei com os meus pai. Depois meu pai morreu,
minha mãe ficou sozinha. [...] Eu trabalhava pra ganhar dinheiro pra ajudar a minha
mãe a pagar aluguel de casa, comprar o que comer... [...] Eu e meus imão combinava
muito porque eles era muito bão. [...] Eu nunca casei e nunca quis casar. Meu pai
não deixava casar com gente pobre não [...].
15. Peri
[...] Meus irmãos foram saindo de casa, aí só ficou eu e mais um. E depois foi
esparramando tudo. [...] Continuei morando com o meu pai, com a minha mãe até...
até o fim deles. E ajudando eles no trabalho. [...] Eu sou solteiro [...].
16. Aog
[...] Nós [ele e irmãs] ficamo sempre junto com os meus pai lá na roça sendo criado
p
or eles. [...] Eu, com a irmã minha que mora fora, toda a vida a gente teve melhor
convivência. Agora, essa que mora aqui, nós também combinou mais ou menos. [...]
Eu sou sorteiro. Não casei não [...].
Nota-se que a maioria dos entrevistados, ao menos em parte da infância, foi criada
pelos pais. Assim, quinze entrevistados identificam a família nuclear como uma instituição
que lhes garantiu proteção nos primeiros anos de vida. A única exceção é Suyá, já que houve
distanciamento de sua base familiar, devido à ausência do pai. As entrevistadas Lana, Ceci e
Zica assinalaram uma ruptura da família nuclear durante a infância, em virtude da separação
dos pais ou morte de um ou de ambos os genitores. Lude, por sua vez, não deixou claro o tipo
de relação estabelecida entre ela e seus pais.
85
A mãe é representada, conforme aponta Suyá, como sustentáculo da família, sendo
assim a figura responsável por mantê-la integrada. Mesmo com o distanciamento do pai, mas
sob a guarda da mãe, os filhos se mantiveram unidos, acompanhando-a no trabalho. A perda
da mãe, contudo, fez com que houvesse a separação dos filhos.
Nove dos entrevistados provêm do meio rural. O trabalho exercido neste meio, para
sete destes, apareceu como mediador da união familiar, pois os membros da família
trabalhavam em colaboração conjunta a favor de sua própria subsistência. Os demais
entrevistados são provenientes do meio urbano. Embora também refiram o trabalho na
infância, não destacaram em suas falas que este seja um elemento unificador da família nem
que seja a área urbana um espaço delimitado para a convivência familiar. Suyá e Ceci que
acompanhavam a mãe ao trabalho, não apresentaram marcas de que elas próprias
trabalhassem nem de que tal ocasião fosse agregadora da família.
Onze entrevistados fizeram referência ao relacionamento entre eles e os irmãos: seis
entrevistados (Aracê, Lana, Doca, Lude, Irajá e Aog) mantinham bom relacionamento com os
irmãos, sendo por eles respeitados. A entrevistada Doca, contudo, apontou conflito com uma
de suas irmãs; os entrevistados Ceci, Tiana e Peri referiram-se ao distanciamento entre eles; a
entrevistada Celeste denota dificuldade de relacionamento com a irmã quando afirma com
esta se preocupar sem, no entanto, se sentir à vontade para procurá-la.
A migração do meio rural para o urbano decorreu, para Celeste, Lana e Tiana, da
perda de um ou dos dois genitores. Ina afirmou que a mudança para a cidade ocorreu em
virtude de seu casamento, com treze anos de idade. Os demais entrevistados justificaram a
mudança para obtenção de emprego, circunstâncias pessoais e motivos de saúde. Os
entrevistados Ava, Lude e Aog são os únicos que se mudaram para a cidade depois de adultos.
Todos os entrevistados, pelo que se nota a partir de suas origens, são provenientes de
famílias simples e de baixo nível sócio-econômico.
Quanto à constituição familiar, verificou-se que dez entrevistados se casaram
27
. Seis
entrevistados, por sua vez, permaneceram solteiros.
Em contraposição à representação idealizada da família nuclear, existem indícios nas
marcas discursivas de que a constituição de suas próprias famílias não configuraram um
período satisfatório. Três entrevistadas (Aracê, Ina e Iole) assinalam o matrimônio como um
27
As marcas discursivas de separação ou viuvez, embora refiram algo importante sobre a dinâmica familiar,
serão tratadas, contudo, na categoria vulnerabilidade em sua subcategoria solidão, visto aqui se interprete que a
perda daí decorrente deva ser posta em maior relevo.
86
período conturbado. Outras três (Ava, Doca e Zica) ressaltam aspectos positivos do
casamento, acentuando a estabilidade financeira que dele auriram. Cabe ressaltar que as
entrevistadas Lana, Ceci e Tiana apenas referiram o fato de terem se casado, explicitando
poucos detalhes do matrimônio. Miro, por sua vez, foi o único homem a contrair matrimônio
do grupo.
Outro aspecto verificado na constituição das suas próprias famílias, em que houve
casamentos e nascimentos de filhos, é o fato de, mesmo tendo se dedicado a trabalhos
assalariados nas cidades em que viveram, não se registrou melhora nos seus padrões de vida.
A vida deles, assim como na família de origem, foi marcada por trabalhos que pudessem
garantir a subsistência pessoal ou da família, embora Miro e Ceci vislumbrassem melhora no
padrão de vida, o que se pôde verificar na subcategoria atividades profissionais.
Subcategoria 1.3: Figuras de identificação
Esta subcategoria apresenta-se bastante associada à subcategoria dinâmica familiar,
visto que aqui se explorem as figuras de identificação determinantes da constituição
identitária dos participantes.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu e meus irmãos fomos criados praticamente só pela minha mãe. [...] Ela
trabalhava pra tratar dos filhos, né?, e eu sempre ia pro trabalho com ela.
Todo lado que ela ia eu ia com ela, né? [...].
2. Miro
[...] Papai quando morreu eu não tinha quinze ano. Mamãe... mamãe morreu
nova, com mais de sessenta anos, mas eu e meus irmãos ficamos tudo criado na
barra da saia dela [...].
3. Celeste
[...] Eu gostava da mamãe porque nós ficava fazendo companhia uma pra
outra. [...] Todo dia ela falava pra mim que eu ia sofrer o dia que ela morresse
p
orque a gente era muito grudada uma na outra. E eu sinto muita falta dela
[...].
4. Aracê
[...] Meus pais sempre zelaram de mim. [...] Morei mais tempo com uma irmã,
que é a irmã acima de mim, e ela quem sempre cuidou de mim depois que
mamãe e papai faleceram [...].
87
5. Lana
[...] Eu fiquei sem meus pai desde nova. [...] O meu irmão desde pequeninho
que ele cuida das irmã. [...] E aí ele faz o que pode e o que não pode pra gente
[...].
6. Ava
[...] Papai foi muito bão pra nós e a mamãe também. Eles sempre tratavam os
f
ilho muito bem e nós respeitava muito eles também. [...] Graças a Deus ele
[marido] era bom pra mim. [...] Eu vivo com a INPS que ele deixou. E deixou a
casa pra mim. Quer dizer que ele está tratando de mim até hoje [...].
7. Tiana
[...] Tinha morrido mãe, morreu pai, e ficou só os filhos. Então eu tinha uma
irmã casada aqui. Ela era a mais velha. Então ela trouxe nós pra cá pra nós
morar com ela, pra nós viver com ela [...].
8. Zica
[...] A mamãe criou eu sozinha e os meus irmão ficou lá com o meu pai. [...] O
meu marido era muito bom pra mim. [...] Trabalhei muito, ajudei ele [...].
9. Doca
[...] Eu fiquei junto da minha mãe até casar. [...] Apareceu um véio lá, já de
idade também, gostou de mim e interessou pelo casamento. [...] Dos meus pai
eu era escrava. No tempo do meu véio só tinha aquela vida limpa, né? Não me
f
altava nada na companhia dele [...].
10. Ina
[...] Eu fui criada com pai e com mãe. Eu e meus irmão viveu ao redor deles
até crescer [...].
11. Ceci
[...] Depois que o meu pai morreu, a minha mãe cuidou dos filho sozinha.
Onde ia, ela levava nós pra todo lado [...] Meu marido e eu tivemo sempre
j
unto buscando serviço melhor. Ele não me deixava na falta das coisas [...].
12. Iole
Não indica
13. Lude
[...] O meu cunhado zelava de mim, né?, porque eu trabalhava pra ele, né?, em
hotel. Ele nunca deixou me fartá nada não! [...].
14. Irajá
[...] Meu pai morreu e eu e meus irmão ficamo junto com a minha mãe
ajudando ela no serviço. Era sempre nós com ela [...].
15. Peri
[...] Fui criado com pai e mãe. [...] Eu tinha aquela amizade com a minha mãe!
[...] Nós dois era tudo unido um com o outro. [...] Fui companhia dela e eu
olhava ela se fosse preciso [...].
16. Aog
[...] Uai, a minha minha mãe e meu pai, que já faleceu há muitos ano, criou eu
e as minhas irmã [...].
Quatorze entrevistados tiveram os pais como figuras centrais de identificação. Seis
entrevistados, em função do falecimento precoce do pai ou por meio do contato restrito com o
mesmo, apontaram a mãe como figura principal de identificação, visto que ela tenha sido
responsável pelo sustento e cuidados necessários dos filhos. Este aspecto é diferentemente
88
verificado no caso de Aracê, que, com o falecimento da mãe, permaneceu sob os cuidados do
pai.
Estas figuras expressivas, com o falecimento dos genitores, foram assumidas por
algum membro da família, passando este assim a preencher a função de figura de
identificação tornada vaga. Observa-se que três entrevistadas (Aracê, Lana e Tiana) referiram-
se aos irmãos como as figuras com as quais se identificam, pois estes, com a ausência dos
pais, assumiram, em certo momento da vida dos entrevistados, o cuidado deles.
Pode-se apontar, além das figuras de identificação acima mencionadas, que as
entrevistadas Ava, Ceci, Doca e Zica indicaram seus maridos como figuras de grande
importância pessoal. Lude, por sua vez, apontou o cunhado, marido de uma de suas irmãs,
como figura provedora e propiciadora de cuidados.
Categoria 02: Processos de inclusão ou de exclusão social
A categoria processos de inclusão ou de exclusão social está associada à socialização
dos entrevistados e aos processos de inclusão e/ou exclusão social aos quais estão submetidos.
Dela emergem três subcategorias que se referem à formação escolar; às atividades
profissionais exercidas no decorrer de suas vidas; aos motivos que acarretaram a
institucionalização.
Subcategoria 2.1: Formação escolar
Esta subcategoria aponta o grau de escolaridade dos entrevistados. Pode-se verificar
que eles tiveram poucas oportunidades para um maior desenvolvimento nos estudos.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu estudei só os dois anos. Antigamente era o primeiro e o segundo ano,
né? [...].
89
2. Miro
Não informado
3. Celeste
[...] Eu estudei pouco. Eu não fiz série, não. Escrevo pouco. Eu era mocinha
p
equena e nós ia pra escola. Mas não... não... não aprendeu nada. A mulher
não prestava pra ensinar [...].
4. Aracê
[...] Eu tenho pouco estudo porque eu estudei até o terceiro ano primário. Eu
saí da escola por conta dos desmaios que eu sofria demais! Epilepsia [...].
5. Lana
[...] Eu falo que estudei até o terceiro grau. [...] De certo é por que foi lá pra
roça, né? [...].
6. Ava
[...] Estudei, mas foi bem pouco. Só até o terceiro ano [...].
7. Tiana
[...] Mas eu e meus irmão só trabalhou porque naquele tempo não dava
importância pro estudo [...].
8. Zica
[...] Não cheguei nem a ir na escola. [...] Meu ir... meus irmão que morava
com o meu pai foi pra escola, e eu não fui. Diz que mulher não precisava de
aprender a ler [...].
9. Doca
[...] Não pude estudar. Não tive oportunidade, né? Era só trabalhar [...].
10. Ina
Não informado
11. Ceci
Não informado
12. Iole
[...] Estudei, uai! [...] Foi um... dois... três ano. Três ano porque foi lá na roça
[...].
13. Lude
[...] Não estudei, não! [...].
14. Irajá
[...] Estudei só no primeiro ano. Não tinha tempo. Eu empregava [...].
15. Peri
[...] Eu estudei até o quarto ano primário [...].
16. Aog
[...] Eu tive uma escola, sabe?, quando eu era menino. [...] Mas... eu nem sei
quanto tempo foi porque tem muitos ano atrás. [...] Só sei que foi pouco tempo,
né? [...].
Seis entrevistados (Suyá, Aracê, Lana, Ava, Iole e Irajá) apresentam nível de formação
correspondente ao antigo primário, mas sem tê-lo concluído. Peri é o único que o concluiu.
Observou-se, além disso, que Celeste, embora alfabetizada, não concluiu nenhum ano escolar.
As entrevistadas Tiana, Doca, Zica e Lude são analfabetas, sem nunca ter freqüentado a
escola.
90
Cabe ressaltar que três entrevistados (Miro, Ceci e Ina) não informaram o grau de
escolaridade por eles cursado, e Aog afirmou que não sabe informar sobre a série escolar
estudada.
A subcategoria formação escolar indica, sendo assim, um processo de exclusão
social, pois todos os entrevistados ressaltaram impedimentos e limitações sociais em
decorrência de pouco estudo.
Subcategoria 2.2: Atividades profissionais
A subcategoria atividades profissionais sintetiza o processo produtivo e o papel
estruturador que desempenha na própria organização familiar, bem como determina a inserção
das pessoas na sociedade.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu trabalhei muito. Desde criança, né?, eu já trabalhava na casa dos
outros, na casa que eu fui criada. Eu era cozinheira de pensão com quatorze
anos [...].
2. Miro
[...] Trabalhei em muita coisa: em olaria, cerâmica. [...] Quando eu tinha uma
base de quinze ano, eu trabalhei em uma companhia chamada CR. CER, Mato
Grosso. [...] Depois trabalhei de... de guarda [...] Eu toquei comércio também,
até antes de vir pra cá. [...] Eu estava alicerçado. Bem alicerçado mesmo! [...]
E eu tenho um dinheiro no banco também, né? Pego o extrato. Está rico, não
tá? [...].
3. Celeste
[...] A minha infância foi de trabalhar na roça de capinar. Eu capinava,
apanhava café, apanhava argodom. [...] Na cidade eu lavava roupa pra um,
p
ra outro, e passava [...].
4. Aracê
[...] Desde pequena sempre trabalhei dentro de casa. [...] Depois eu morei
j
unto com as minhas irmãs. Continuei ajudando elas no serviço de casa [...].
5. Lana
[...] Desde criancinha pequena que eu trabalho fora porque eu fiquei sem pai,
sem mãe, né? [...] Trabalhava em roça apanhando algodão. [...] E eu
trabalhava nas casa. [...] Cuido de criança. [...] Lavava. Passava [...].
6. Ava
[...] Eu trabalhei na roça com a minha família. [...] Quando do tempo da
minha mãe nós fiava. [...] Vixe!, era muita gente que eu trabalhei! Tanto na
roça, como na cidade. [...] Eu lavava roupa [...].
91
7. Tiana
[...] A minha vida na roça era boa porque eu trabalhava. [...] Na cidade eu
trabalhei em muitas casa. [...] Depois eu parei de trabalhar de doméstica e
p
eguei lavação de roupa, passação [...].
8. Zica
[...] Eu trabalhei quatorze ano de doméstica com uma mulher. Eu ajudei ela a
criar os filho dela. [...] Eu aposentei e aí eu trabalhava só em casa [...].
9. Doca
[...] No tempo da minha mãe, na fazenda, quando não era no pilão, pegava
quarta de arroz, quarta de café dos vizinho lá pra limpar e moer o café no
p
ilão. [...] Na cidade eu lavei muitas roupa pros outros [...].
10. Ina
[...] Na roça nós morava quando criança e nós trabalhava muito, né? Fiava.
[...] Depois que o marido largou de mim e que eu tive meu filho, fui cuidar,
costurar [...].
11. Ceci
[...] Uai, eu e meu marido mudava muito de cidade porque é o preço. Ganhar
mais. [...] Eu era cozinheira [...].
12. Iole
[...] Eu trabalhei na alfaiataria muitos ano. Duas alfaiataria [...].
13. Lude
[...] Eu tinha minha profissão de zeladeira. [...] O meu cunhado fornecia as
marmita lá na cadeia, né?, e eu que ajudava em tudo porque a minha... a
minha irmã era doente [...].
14. Irajá
[...] Eu era pajem de criança. [...] Eu tinha uns quinze, dezesseis ano, eu já
trabalhava de limpar casa pros outro. Depois eu fui pro hospital ajudar a
olhar os doente porque não tinha quem ajudasse a enfermeira [...].
15. Peri
[...] Trabalhei muito tempo com o meu pai no depósito de bebida. Depois ele
p
ôs um armazém. Trabalhei com ele lá no armazém. Depois ele pôs... ele
comprou um bar. Eu trabalhei no bar com ele [...].
16. Aog
[...] Já trabalhei muito desde que eu era criança. [...] Trabalhava na roça
quando eu morava lá. [...] Era serviço braçal, né? [...] Nós [ele e família]
morava em fazenda dos outro. Eu trabalhava pra eles e a minha família
também.[...] Eu trabalhei numa construtora também uns tempo quando eu vim
da roça pra cidade. Eu trabalhava como auxiliar de serviços gerais [...].
Sete dos nove entrevistados que provêm da zona rural referiram-se ao trabalho, na
infância, como o principal aspecto de suas vidas. Ele serviu como função integradora da
família, já que era exercido em colaboração conjunta no meio familiar e rural, e como garantia
de subsistência das próprias famílias. O trabalho, contudo, foi considerado bastante penoso e
árduo, o que não lhes permitiu vivenciar a vida infantil.
No entanto, com a migração para a cidade, assumiu-lhes outra dimensão: trabalhos
assalariados, geralmente no setor de serviços, marcando uma integração parcial com o
processo social.
92
Todos os entrevistados, depois da infância, trabalharam. Aracê, contudo, sempre
trabalhou em serviços domésticos, seja na casa dos pais, seja no seu próprio lar ou na casa da
irmã com quem posterior morou. Peri, embora trabalhasse no comércio, permaneceu sempre
na esfera familiar. Os demais trabalharam para terceiros.
O trabalho, desse modo, emprestou-lhes sentido existencial. Os entrevistados, antes de
viveram no abrigo, mesmo os que já se encontravam aposentados, sempre optaram por
realizar alguma atividade. O trabalho é sempre representado como um fator de inclusão social
e sobrevivência.
Observa-se que os trabalhos exercidos pela maioria dos entrevistados do sexo
feminino estavam associados aos serviços domésticos em geral. Assim sendo, do total de
treze entrevistadas, oito trabalharam como empregada doméstica e cinco exerceram funções
extensivas ou socialmente relacionadas ao trabalho doméstico.
Os entrevistados do sexo masculino, por sua vez, ocuparam-se com funções que não
estivessem atreladas ao trabalho nos limites do espaço doméstico.
Subcategoria 2.3: Causas da internação
As limitações da autonomia impostas pela idade avançada ou pelas doenças, a
conseqüente dependência de um outro, e a impossibilidade do cuidado para consigo mesmos,
constituem as causas da internação.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu vim pra cá porque eu estava muito doente, né?, e eu tomava conta de
uma irmã. Ela sofreu derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava dando conta
mais de cuidar dela [...].
2. Miro
[...] Me deu derrame e eu vim pra cá. [...] O sobrinho meu que trouxe eu,
p
orque ele achava que aqui é mió pra tratar [...].
3. Celeste
[...] Uai, pra onde que eu ia, né? Cinco irmão morreu. A outra era casada e
marido você sabe como é que era, né? Não gosta da gente, né? [...] Como eu
f
iquei suzinha, aí o meu cunhado telefonou pro homem daqui. [...] Aí combinou
e eu vim pra cá [...].
93
4. Aracê
[...] A minha irmã que me... que me colocou aqui por causa dos desmaio que
eu sofria. Ela não queria me deixar sozinha [...].
5. Lana
[...] Me deu derrame. [...] Quando eu chamava eles [filho e nora], eles vinha
com a maior brutalidade, me sentando na parede, que eu vomitava até sangue!
[...] “– Meu filho, eu não agüento essa vida não! Me leva pro asilo, pelo amor
de Deus!” [...].
6. Ava
[...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava
sozinha, mas eu adoeci.[...] Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu
derramo. [...] Se eu estava sentada num lugar, ela [neta] ia lá e falava: “– Sai
daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra hora eu levantava, ela vinha lá,
me dava coice, me dava cotovelada. [...] Foi a minha sobrinha que arranjou
aqui porque o meu filho pediu, né? [...].
7. Tiana
[...] Eu fiquei doente e aí eu fui morar com uma sobrinha. Foi, ela precisava
trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. [...] Então aí ela... ela
f
oi e me trouxe pra cá [...].
8. Zica
[...] Uai!, eu... eu morava com o meu filho, mas a minha sobrinha, porque eu
adoeci, me levou pra casa dela, né? [...] Ela trabalhava fora e ela não podia
me olhar, né? [...] Depois ela me trouxe pra cá [...].
9. Doca
[...] Foi eu mesmo. Idéia minha de vir pra cá. [...] Não deu certo de ficar na
casa da minha irmã, eu vortei pr`aqui [...].
10. Ina
[...] Os meus neto falou que não era mais pra mim morar sozinha, não! Morar
sozinha, né? Perigoso, né?, por causa da saúde. Eu fiquei na casa de uma
sobrinha. Depois a minha sobrinha me mandou pra cá. [...].
11. Ceci
[...] Eu era benzedeira, né?, e foi um paciente meu que veio aqui falar de mim.
Ele disse que tinha uma dó de mim de ver eu ficar sozinha! [...] Aí ele pegou e
arrumou aqui sem eu saber [...].
12. Iole
[...] Minhas sobrinhas me trouxeram pra cá. É porque eu... a minha vida
estava era muito sozinha, sabe? [...].
13. Lude
[...] Infelizmente a menina que eu criei me deixou aqui. Eu é que pedi pra vir,
né?, porque estava pra casa de um parente, pra casa de outro, parecendo
cachorro sem dono [...].
14. Irajá
[...] Eu estava andando na cadeira de roda. E eu não podia fazer uma comida
p
ra mim, eu não podia andar. [...] Precisava ficar pedindo os outro. [...] A
diretora daqui foi lá me vê na minha casa e me buscou. [...].
15. Peri
[...] A minha mãe estava meia doente; então, meu irmão trouxe ela pra cá. Aí
eles daqui viram que eu não tinha onde ficar e deixaram eu ficar aqui com ela
[...].
94
16. Aog
[...] Cheguei aqui [abrigo], conversei com a senhora aí, e... aí deu certo, né? E
é o fato de eu estar morando aqui esse tempo tudo. [...] Eu moro aqui pelo fato
de... Primeira coisa é lugar de morar que eu não tenho. [...] E segundo é... [...]
É porque eu não tenho saúde, né? [...].
A limitação física, que acarreta dependência dos cuidados do outro, e a falta de
pessoas a quem possam recorrer, configuraram um quadro em que o abrigo é representado
como única instância de acolhimento.
Desse modo, doze entrevistados atribuíram às restrições físicas impostas pelas
patologias os motivos causadores da internação no abrigo. Além disso, para o entrevistado
Aog, esta ocorreu por ele não ter local para morar. O sentido da instituição, neste caso, é de
um lar substituto.
Outros fatores mencionados referiram-se ao trabalho dos familiares, o que os
impossibilita de cuidar satisfatoriamente do idoso. Se a justificativa, no plano explícito, é a
ocupação e a necessidade de trabalho dos mesmos, no plano implícito, um idoso doente e
dependente passa a representar um incômodo, pois depende das condições financeiras e
psicológicas da família. A sociedade, no entanto, não quer se reconhecer no idoso pobre,
doente e abandonado, como fruto de seus conflitos e contradições, excluindo-o do convívio ao
encaminhá-lo para as instituições totais.
Suyá cuidava da irmã, que dela dependia completamente. Como ela própria foi
também acometida por doença e não mais tinha condições de continuar a zelar da irmã,
decidiu, assim, que as duas fossem para o abrigo.
As entrevistadas Lana e Ava, mesmo doentes, eram vítimas de maus-tratos familiares.
O abrigo, nesse sentido, constitui-se como um refúgio da violência contra o idoso.
Doca apontou o conflito familiar como motivo de ela ter sido internada no abrigo. Este
caso aponta para o processo de rejeição e marginalização no próprio grupo familiar.
A decisão da ida para o abrigo, para quatro entrevistados (Suyá, Lana, Doca e Aog),
decorreu da resolução própria. No entanto, para onze entrevistados, esta decisão foi tomada
por familiares ou terceiros, isto é, vizinhos, denúncias anônimas ou pessoas conhecidas.
Observa-se, assim sendo, que a maioria dos entrevistados foi internada contra a própria
vontade, o que influencia na adaptação ao abrigo e no desejo de estabelecer novas relações.
Lude apontou motivos contraditórios que acarretaram a sua ida para o abrigo.
Atribuiu, por um lado, ao abandono da filha, que a deixou naquele local, mas por outro,
95
apontou o fato de sentir-se desrespeitada pelos parentes por permanecer perambulando pelas
casas dos mesmos, sem lugar fixo de moradia.
Categoria 03: Vulnerabilidade
Percebe-se que a vulnerabilidade às doenças e à solidão é determinada por aspectos
que não dependem diretamente das ações dos entrevistados, embora estes, cada qual a seu
modo, possam lidar de maneiras diferentes com estas questões. Esta categoria sistematiza,
portanto, os diferentes modos e meios de enfrentar o envelhecimento.
Dela derivam duas subcategorias: a doença como limitação da vida e a solidão, que
são determinantes do sofrimento psíquico do idoso e do sentimento de impotência e
abandono.
Subcategoria 3.1: Doença como limitação da vida
A doença como limitação da vida expressa a falta de liberdade na realização e
escolhas e tomada de decisões. Desse modo, as limitações físicas são apontadas como perda
de autonomia e independência. Esta subcategoria, portanto, está relacionada à categoria
anterior, ou seja, aos motivos que acarretaram a ida deles para o abrigo.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu tive que ir para São Paulo fazer um tratamento e lá fez os exames e
descobriu que eu tinha Chagas. [...] Aqui [abrigo] eu saía, eu pegava ônibus,
eu ia onde eu queria. Mas agora eu não posso fazer isso mais devido ao meu
estado de saúde, né? [...] Porque eu tenho aquele problema de artrose, né? Eu
tenho problema de... de... de coluna muito sério [...].
2. Miro
[...] Eu subia de bicicleta, descia; descia, subia; descia o dia inteiro!, Até que
deu o derrame. E estou aí até hoje. [...] Ô trem encravado que é o derrame,
né?, porque não tem... não tenho jeito mais de andar [...].
96
3. Celeste
[...] Eu tenho problema nas perna. Tanto que eu tenho medo de sair sozinha,
né?, e cair na rua, né? [...] Tem a mulher que me dá banho aqui porque eu não
p
osso, né? [...].
4. Aracê
[...] Eu, desde a idade de cinco anos provocando desmaio, nunca podia ficar
sozinha dentro de casa porque o incômodo diariamente ele sempre provocava.
[...] Por causa do desmaio eu não posso fazer muito serviço e os remédios
deixa a gente com a cabeça lerda [...].
5. Lana
[...] Trabalhei até... sessenta e... e... seis anos, posso dizer, porque aí me deu
derrame, fiquei desafirmada, né? [...] Nem pra varrer não estou dando conta,
né?, porque caindo à toa, né? [...].
6. Ava
[...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava
sozinha, mas eu adoeci. Eu sofro do coração e sofro de pressão alta também
[...].
7. Tiana
[...] Aí depois que eu fiquei doente eu não pude trabalhar mais porque não dei
conta. [...] Eu tenho problema nas perna. Eu tenho problema de muita tonteira.
Muita mesmo! Problema nas vista. Agora eu tenho uma hérnia também muito
grande [...].
8. Zica
[...] Eu sofri derrame na verdade. Eu não ando mais [...].
9. Doca
[...] Não faço mais nada, não. [...] Eu não posso olhar perto porque dói demais
as vista. [...] Eles falam que eu tenho diabete. [...] Eu tenho problema..., não
sei se é da tiróide ou se é do relógio da vida [...].
10. Ina
[...] Uai, ficando velha também, né? Ficando de idade e doente. Aí não tem
j
eito mais de morar sozinha e fazer as coisas [...].
11. Ceci
Não tem problemas de saúde
12. Iole
Não tem problemas de saúde
13. Lude
[...] Eu sofri começo de derrame, né?, e parece que não sara! [...].
14. Irajá
[...] Trabalhei até que quebrei as perna. Agora não posso trabalhar mais. Eu
também não posso sair. Como é que eu vou com essa perna ruim? [...].
15. Peri
[...] Ah, eu fiquei doente quando eu era menino. [...] Eu tenho um aparelho
dentro do corpo. [...] Eu não posso fazer algumas coisas, principalmente
esforço. Agora, as minhas perna é que não está muito boa, não! [...] Essa aqui
que deu negócio... Começo de trombose [...].
16. Aog
[...] Toda a vida eu tive o problema de não pegar peso, né? Problema de
coluna. [...] E agora vários outro problema que eu tenho. Problema de
estômago, né? [...] Mas eu não tenho condições pra trabalhar por causa da
saúde [...].
97
Tal subcategoria demonstra que as doenças crônicas como Chagas, artrose, trombose,
epilepsia e cardiopatia acarretam doenças secundárias que configuram uma síndrome de
natureza evolutiva e incapacitante.
As limitações decorrentes da doença, associadas à perda da autonomia pela
impossibilidade de cuidarem de si mesmos, foram verificadas em grande parte dos
entrevistados, com exceção da Ceci e Iole. Estas não apresentam problemas de saúde, mas,
em função das limitações provocadas pela idade avançada, demonstram dificuldades para
cuidarem delas mesmas.
Suyá, Ava, Doca e Aog, embora tenham mencionado a existência de diversas doenças,
não possuem doenças incapacitantes.
Nove entrevistados queixaram-se das limitações impostas ao trabalho, provocadas pela
doença, deixando assim de realizar atividades produtivas e remuneradas. A perda da
capacidade para o trabalho e as dependências física e financeira concorrem, sendo assim, para
a representação da instituição como depósito de inválidos.
Subcategoria 3.2: Solidão
A subcategoria solidão, formulada como um “vazio”, refere-se aos sentimentos
discursivamente marcados em conseqüência do afirmar-se estar só. Ela decorre das suas
histórias de vida marcadas por diversas perdas familiares, sobretudo de maridos e filhos, e da
falta de pessoas a quem possam recorrer.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu vivi sempre no serviço porque eu perdi a mãe nova ainda. Sem pai, sem
mãe, né? O pai também tinha desaparecido e eu era sempre para as casas dos
outros, né? [...].
2. Miro
[...] Eu só tenho uma filha, mas eu vi ela pouco. Eu tinha um filho com outra
mulher, mas ele morreu de acidente de mota. [...] Há muito tempo que eu estou
sozinho [...].
3. Celeste
[...] Depois que papai morreu, passou uns tempos mamãe morreu. E meus
irmãos foi morrendo [...] e eu fiquei suzinha na casa [...].
98
4. Aracê
[...] Tive casada cinco anos, mas depois separei. [...]. Hoje eu sou viúva. [...]
Eu não tive condição de ter filhos. Os remédios que eu tomo diariamente para
os incômodos não deixar desmaiar, lia na bula, nunca deixa engravidar [...].
5. Lana
[...] Eu fiquei sem meus pai desde nova. [...] Aí depois eu casei lá em São
Paulo. Fui pra Bahia, mas depois fiquei viúva [...].
6. Ava
[...] Faz muitos ano que o meu filho morreu. [...] Meu marido morreu, bem
dizer, de repente. A gente sente falta das pessoa, né? [...] Isso dá interferência
na vida da gente [...].
7. Tiana
[...] Criei um filho só. Morreu meu filho, uai! O marido morreu também. [...]
Meu marido morreu de repente, né? O menino teve doente muito tempo [...].
8. Zica
[...] Tem mais de vinte ano que eu sou viúva. [...] Tive uma filha. Morreu. Era
mulherzinha. Um ano e meio. Deu sarampo recolhido nela. [...] E também foi
só essa: não evitei; não arrumei nada; e não criei mais [...].
9. Doca
[...] Perdi meus pai, mas a perca maior foi o meu esposo. [...] Sinto farta da
p
essoa dele, da companhia. [...] Eu perdi também filho. Eu perdi quatro
abortinho [...].
10. Ina
[...] Fui casada. Hoje é largada. [...] Eu cuidei do meu filho até ele casar. [...]
Depois eu morei sozinha. [...] O meu filho morreu de desastre [...].
11. Ceci
[...] Eu sou viúva. Criei uma filha. A filha morreu com dois ano. Deu meningite
na cabeça. [...] Eu não criei mais não. Eu não quis porque o meu velho tinha
muita dificuldade pra trabalhar. [...] Eu casei velha; por isso que eu criei só
uma filha [...].
12. Iole
[...] Uai, casei, não deu certo. [...] Foi ser preciso largar. Ele arrumou outra.
E também nem mexi com filho, não! [...].
13. Lude
[...] Eu não tem... não tem família não! [...] Os meus irmão tudo já morreu. Eu
estou aqui sozinha [...].
14. Irajá
[...] Tinha irmão, meus irmão morreu. Morreu tudo. [...] Eu não tenho
ninguém. [...] Quando a mulher daqui [coordenadora do abrigo] foi lá me
buscar eu estava sozinha e Deus [...].
15. Peri
[...] Inclusive meus pais já morreram. E os meus irmão está cada um pra um
lugar. Tudo separado um do outro [...].
16. Aog
[...] Lá no bairro que eu morei, eu morava sozinho. E... e depois no prédio
também eu tive muito tempo morando sozinho porque o prédio, quando eu fui
p
ra lá, estava em construção, né? [...] E... então eu estava morando lá pra
mim... pra mim não ficar na rua porque eu não tinha parente - não tenho -, não
tinha aonde morar, né?, e não tinha emprego [...].
99
Em relação ao estado civil, de dez entrevistados que se casaram, três se separaram e
sete ficaram viúvos. Miro e Ava casaram-se oficialmente uma vez; amasiaram-se outra, tendo
seus companheiros falecidos. Miro cita, ademais, vários relacionamentos sem que se tenham
criado vínculos. Todas estas relações, portanto, foram marcadamente apontadas por ele como
transitórias.
Quatro dos entrevistados (Ava, Ceci, Tiana e Zica) perderam seus filhos legítimos e
únicos, – com exceção de Ava que tem mais dois filhos – quando crianças, por doença. Os
entrevistados Miro e Ina perderam seus filhos já adultos. O primeiro, em virtude de um
acidente de moto; a segunda, em decorrência de um acidente automobilístico, perdeu seu
único filho. Isto mostra uma vida trágica marcada por perdas e separações.
As entrevistadas Aracê, Ceci, Doca e Zica fizeram menção à impossibilidade de
engravidar: Aracê e Doca desejavam ter filhos; Ceci e Zica não conseguiram engravidar
novamente após a perda de seus únicos filhos. Desse modo, configura-se, assim, a solidão
representada como uma predestinação.
b) Institucionalização
Este tópico refere-se ao ingresso dos idosos no abrigo e aos seus desdobramentos, ou
seja, como eles se sentem por estar na instituição e o modo de vida neste local estabelecido,
assim como a sociabilidade e a subjetividade na instituição.
Categoria 04: Cotidiano
Esta categoria delimita as vivências cotidianas dos idosos nos abrigos. Refere-se,
assim sendo, às interações sociais, às tarefas e atividades diárias e às estratégias criadas para
superar o ócio.
Esta categoria subdivide-se em três subcategorias: convivência dos idosos; atividades
realizadas; visitas e socialização externa dos idosos abrigados.
100
Subcategoria 4.1: Convivência no abrigo
A subcategoria convivência no abrigo refere-se ao modo como as relações cotidianas
são estabelecidas dentro do abrigo, seja entre os idosos residentes, seja entre estes e os
funcionários da instituição.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu me dou bem com as pessoas que moram e trabalham aqui [...].
2. Miro
[...] O pessoal aqui é tudo bão. Tudo camarada. Dou bem com todo mundo
daqui [...].
3. Celeste
[...] E eu não combino com aquela [funcionária do abrigo] que saiu de carro. É
um... um... uma estróia! [...] Mas aqui eu converso com um, converso com
outro [...].
4. Aracê
[...] Tem uns que é sem educação. Por isso que não sou com todos aqui. [...] E
uns que são internos aqui também tem a cabeça melhor que a gente e vive
f
azendo malandragem [...].
5. Lana
[...] Aqui tem uma enfermeira que implicou comigo. [...] porque essas pessoa
muito fraca, principalmente essa [idosa abrigada] que passa aqui sempre, é
muito agarrada comigo. [...] E ela [enfermeira], enciumando, diz que eu não
sou enfermeira, não posso cuidar, nem nada. [...].
6. Ava
[...] Eu não tenho mal querência com ninguém aqui. [...] Fazer amizade com
todo mundo, porque tem gente que qualquer coisinha fica com raiva de você, te
olha com a cara ruim, coisa e tal, né? [...].
7. Tiana
[...] Eu gosto muito deles daqui. [...] Só tenho que gabar, porque são todos
muito bão. Trata a gente muito bem! [...].
8. Zica
[...] As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, têm umas aqui que não vai,
não! É tudo doido. [...] Não compensa conversar, não! [...] Eu não tenho nada
que queixar da minha companheira de quarto [...].
9. Doca
[...] Tem quatro muié aqui, que implica comigo, é que eu tenho sentimento. [...]
Mas aqui, oh, eu tenho as minha amizade. [...] Eu tenho duas amiga do
coração, firme e importante, que é as do meu quarto [...].
10. Ina
[...] Tem dia que tem umas briga aqui com uns, mas tem dia que passa [...].
11. Ceci
[...] Eu aqui eu sou muito perseguida porque eu sou filha de Jesus. [...] Aqui é
bom-dia e boa-tarde que eu dou. Não fico de xodó fazendo rodinha na beira da
cadeira de ninguém, não, porque elas gostam de ilusão e eu não gosto [...].
101
12. Iole
[...] Tem a mulher que mora aqui, né?, nessa cama aqui. [...] É... é... essa
mulher é muito custosa! [...] Eu não tenho relacionamento com ninguém! [...].
13. Lude
[...] Tem uns doido aí, um povo muito esquisito. Eu não dou pra ficar junto
com eles, não! [...] Não relaciono bom, não! Tem umas mulher que já me
ameaçou muitas vez aqui. Elas é muito custosa! [...] Até que não tem
separação com os outros não! [...].
14. Irajá
[...] Eu não converso com as enfermeira não! [...] Elas não conversa [...]
Quando acaba de doar a janta, elas fica doida! Deita a... as de cadeira de
roda, fala com elas, deita tudo e vem, apronta e vai embora [...].
15. Peri
[...] Tudo boa a convivência aqui dentro com as pessoas daqui. Não tem... não
tem briga, não tem encrenca, não tem nada com ninguém [...].
16. Aog
[...] É muito bão a minha convivência aqui. [...] Não!, quer dizer: têm umas
p
essoas que eu nem não converso. [...] Inclusive eu até saí da mesa [para fazer
as refeições] por causa disso [...] Agora eu sento num cantinho que tem lá, mas
f
ora da mesa, já pra evitar confusão, né?[...] Agora, não, com as outras
p
essoas, não! Eu tenho comunicação muito bem! [...].
Sete entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Lana, Ava, Tiana e Peri), embora pouco se
relacionem com os colegas abrigados, destacaram ter, em geral, bom relacionamento entre si,
declarando compreensão e respeito para com as diferenças no modo de ser de cada um. Tal
aspecto é diferentemente verificado em Aracê, Zica, Iole, Lude e Aog que afirmaram não
manter bom relacionamento com alguns colegas, visto que não aceitem o modo como estes se
comportam. Além disso, referem-se a eles como “sem educação; estróia; malandro; pessoa
fraca; doido”, o que indica relações estereotipadas e preconceituosas.
Irajá, por sua vez, referiu-se apenas à sua convivência com os funcionários,
atribuindo-lhes descaso para com ela. Celeste e Lana referiram-se também à convivência com
os mesmos, marcada por conflito.
Pode-se perceber, a partir destes dados, que todos os entrevistados mantêm vínculos
frágeis com os colegas de instituição, exceto nos casos das entrevistadas Tiana, Doca e Zica,
que mantêm contato estreito entre si, e acentuem ter respeito para com os funcionários.
Nota-se, em relação às entrevistadas Ceci, Ina e Iole, que o menor contato estabelecido
com os colegas é marcado por conflito. Da entrevistada Lude depreende-se algo semelhante,
embora destaque que com alguns ela tenha um bom relacionamento.
A frieza nas relações sociais dentro da instiutição alimenta, sendo assim, a
representação do abrigo como depositário de idosos, visto que não ocorra um trabalho em
grupo a fim de romper estereótipos e estimular o estabelecimento de vínculos.
102
Subcategoria 4.2: Reativação
A subcategoria reativação demarca a participação ativa no abrigo, buscando
preencher o espaço vazio e o ócio angustiante.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu ainda conserto as roupas do abrigo até hoje. [...] E também faço
crochê. Fico aqui fazendo crochê o dia inteiro! [...] Então a pessoa vem e
gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre trabalhando [...].
2. Miro
[...] Lá no CEAI, eu vou lá toda segunda e sexta. [...] Está com quatro ano que
eu estou andando nisso. Acho bão. Passa o tempo, né? [...].
3. Celeste
[...] Não faço nada aqui. [...] É... é... eu arrumo a minha cama. [...] Eu venho
p
ra cá, sento aqui e fico aqui vendo o dia [...].
4. Aracê
[...] A cozinheira aí me pede pra fazer uma coisa e outra. Varrer, fazer a
limpeza por fora mais é eu que faço [...].
5. Lana
[...] Eu vivo aqui é matando inseto. Não faço nada. Tenho tudo prontinho aqui
[...].
6. Ava
[...] Aqui eu faço crochê. Só. [...] Eu faço crochê todo dia. Até hoje eu ainda
vendo. [...].
7. Tiana
[...] A atividade que eu faço aqui é esse: escreve um pouquinho; lê um
p
ouquinho [...].
8. Zica
[...] Aqui eu faço desenho [...] Tirando dos desenho mais nada eu não faço
[...].
9. Doca
[...] Eu já fiz muito tapete. Hoje eu não faço mais nada. [...] A doutora me
p
roibiu de fazer porque de olhar perto dói demais! [...].
10. Ina
[...] Não faz nada aqui, menina! Fico à toa. Eu não tenho coragem de
trabalhar mais [...].
11. Ceci
[...] Eu faço a limpeza aqui no quintal. Varro, águo as planta tudo da manhã
[...].
12. Iole
[...] Não faço nada aqui. Não tem nada que quero fazer [...].
13. Lude
[...] Não faço nada aqui, não! E não quero fazer nada também não! [...].
14. Irajá
[...] Não faço nada não! Arrumo a minha cama e deito [...].
103
15. Peri
[...] Eu gosto é de escrever. Eu assisto às aulas que têm aqui [...].
16. Aog
[...] Aqui eu não faço nada. Não mexo com nada. Gosto de ficar mais quieto
[...].
Metade dos entrevistados, de acordo com suas capacidades físicas, realiza atividades
cuja finalidade precípua é o preenchimento do tempo. Embora atividades como crochê, tarefas
relacionadas à cozinha e cuidados com plantas sejam repetitivas, podem ter efeitos
terapêuticos. Tais atividades, por serem realizadas a partir de iniciativa pessoal, indicam,
desse modo, não haver práticas de terapia ocupacional organizadas institucionalmente.
A outra metade dos entrevistados permanece ociosa durante todo o dia, justificando a
inatividade pelo desinteresse em realizar qualquer tipo de atividade dentro do abrigo. O ócio,
a angústia decorrente da ausência de vínculos afetivos e o institucionalismo configuram o
fenômeno denominado por Goffman (1961) de “mortificação do eu”.
As entrevistadas Lana e Doca, por sua vez, afirmaram que permanecem ociosas em
função das limitações impostas pela doença. Ina justificou a ociosidade pela perda de vigor
físico atribuído à idade avançada. Lana também afirmou permanecer ociosa pelo fato de
receber tudo pronto do abrigo. Percebe-se, nessa representação do abrigo como local de
ociosidade, o sentido de improdutividade, associado à terceira idade, circulante no imaginário
institucional.
Subcategoria 4.3: Visitas e socialização externa
A subcategoria visitas e socialização externa delimita discursivamente as referências
dos entrevistados com relação ao contato mantido entre eles e as pessoas que não moram no
abrigo. Num regime de clausura, a visita dos familiares indica a pertença a uma família e a
representação do mundo externo, social e vivo.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Recebo visita de muita gente. [...] Essas pessoas que vêm visitar o abrigo,
né? Agora, meus parentes também vêm. Sempre [...].
104
2. Miro
[...] Ih!, todo dia tem visita! [...] Tem muitas pessoas que vêm! Nossa, todo dia!
Os meus sobrinho e minha irmã vêm quando pode [...].
3. Celeste
[...] De vez em quando uns dos meus sobrinhos vêm aqui. Minha irmã e meu
cunhado vêm aqui de vez em quando. Quando eles pode vir, eles vêm [...].
4. Aracê
[...] Ih!, vem gente demais aqui visitar. Conhecidos daqui mesmo. [...] A minha
irmã vem aqui de vez em quando. Ela não passa sem vir aqui, não! [...].
5. Lana
[...] Tem meu irmão e tem as crianças do colégio eles vêm sempre aqui. [...] O
meu filho vem sempre assim de quinze em quinze ou mais, quando precisa
trazer alguma coisa ou... pra me levar ao médico, né? [...].
6. Ava
[...] Recebo visita do meu menino toda semana. [...] Recebo da minha prima
que mora ali. [...] Vem aqui uma cumade minha. Vem a minha sobrinha. [...]
Sempre elas vêm aqui [...].
7. Tiana
[...] Recebo muita visita! [...] Recebo visita do povo que vem aí. Dos visitante,
né? Alguns dos meus parente vêm. [...] A sobrinha com quem eu morava de vez
em quando ela vem [...].
8. Zica
[...] Eles [filho e neto] vêm me ver de quinze em quinze dia, porque o meu filho
trabalha na chácara, né? [...] Os irmão daqui tudo eu tenho notícia muito de
vez em quando. Eles vêm cá. A lá de Taguatinga veio. Tem uns dois mês que
ela veio aqui [...].
9. Doca
[...] Sempre vem umas pessoa aqui pra conversar. [...] Uma irmã minha e uma
sobrinha vêm aqui de vez em quando [...].
10. Ina
[...] É custoso demais vir cá os meus neto. [...] Recebo visita das amigas, né?
De vez em quando vem uma amiga. Aqui eu conheci elas [...].
11. Ceci
[...] Recebo visita de conhecido. [...] Recebo de um... de um homem que tem
um... um centro [de umbanda]. [...] Ele mora no fundo de onde eu morava [...].
12. Iole
[...] De vez em quando as minhas irmã aparecem por aqui. [...] Um dia... um
dia a minha sobrinha veio me buscar pra ir à missa [...].
13. Lude
[...] É muito custoso a menina vir aqui [filha adotiva]. [...] Ontem mesmo teve
uma sobrinha minha aqui. E só ela vem aqui de vez em quando [...].
14. Irajá
[...] De primeiro vinha muita visita, mas agora não vem não. A minha amiga
arrumou namorado e agora demora a vir [...].
15. Peri
[...] De vez... de vez em quando vem uma irmã minha que mora aqui. [...] O
meu irmão mora fora. De vez em quando vem cá [...].
16. Aog
[...] Recebo sempre visita de várias pessoas, né?, que visitam aqui. [...] Recebo
visitas é de um senhor que vem cá. [...] Aliás, esses dois senhor eles
f
reqüentava já há muito tempo lá nesse asilo que eu morei. [...] Aí eu vim pra
cá e aqui também eles continua vindo fazendo visita [...].
105
Com exceção dos entrevistados Ceci, Irajá e Aog, os demais afirmaram receber visitas
dos familiares. Porém, destes entrevistados, apenas três (Suyá, Lana e Ava) declararam
receber visitas freqüentes de alguns deles. Os outros dez entrevistados afirmaram receber
visitas esporádicas dos familiares, indicando o abandono ao qual possa estar submetido o
idoso institucionalizado.
Metade dos entrevistados (Suyá, Miro, Aracê, Lana, Tiana, Doca, Ina e Aog) afirmou
que recebe inúmeras e freqüentes visitas da comunidade, ou seja, de pessoas com quem eles
não mantêm vínculos permanentes. A outra metade não mencionou receber visitas da
comunidade.
Os entrevistados Ceci, Irajá e Aog afirmaram receber visitas de pessoas que eles
conheceram no período anterior à ida para o abrigo.
Categoria 05: Percepção do abrigo
Esta categoria refere-se ao modo como os idosos percebem o abrigo e aos sentidos
que constroem para a vida institucionalizada.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Aqui tem tudo que precisa pra viver uma pessoa na minha idade, que
p
recisa de cuidados, né? Afinal de contas, aqui tem tudo o que uma pessoa que
tem problema de saúde, como eu tenho, que precisaria de um lugar pra viver
[...].
2. Miro
[...] Eu senti bão, uai!, de vir pr`aqui. Estou bem tratado, né?, bem zelado.
Aqui não falta médico. Comê, quatro vez por dia. Se precisar de remédio, vem
na hora [...] Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha
irmã? [...].
3. Celeste
[...] Ah, eu chorei quando vim pra cá. Morar aqui tem que morar, né?, porque
p
ra onde é que eu vou? [...] Médico não farta aqui. E remédio, graças a Deus!
[...].
4. Aracê
[...] Ah, tanto faz lá na casa da minha irmã, como tanto faz aqui. Uma coisa
só! [...] De um jeito só. Tudo bem. Vai bem [...] Tem uns aqui da cabeça fraca.
Isso me deixa nervosa [...].
106
5. Lana
[...] Morre muita gente aqui porque, quando vem, já vem tudo fracassado, né?
[...] E aqui, oh, eu vivo bem: eu saí do inferno e caí no céu, né? [comparação
da vida atual com o período em que morava com o filho e a nora.] [...] Porque
aqui, oh, a gente tem mais liberdade [...].
6. Ava
[...] Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se está doente, se sente uma
dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente. [...] Mas você na sua
casa, fazer uma comparação: se você quiser fazer uma coisa, você faz; se você
não quiser, você não faz. [...] E na casa dos outros não é assim... Na casa dos
outros, come o que os outro dá [...].
7. Tiana
[...] Eles têm muita paciência com a gente. [...] O que eles puderem fazer... o
que eles podem fazer pra gente eles fazem [...].
8. Zica
[...] Eu tenho muito desgosto daqui. [...] Porque é muita gente falso, muita
gente defeituoso. É perigoso demais da conta! [...] Aqui não falta nada. Tem
médico, tem tudo, né?, no jeito. [...] O tratamento aqui é bão demais! [...].
9. Doca
[...] Aqui, consagradamente, eu já conversei com eles tudo aqui, é um sagrado
lar. [...] E as funcionária têm que dar desconto porque não tem tudo na hora.
[...] Mas aqui eu não tenho direito de pedir nada! É muita coisa que a gente
p
recisa e... e não tem [...].
10. Ina
[...] Ih!, achei ruim demais vir pra cá. Eu acho muito ruim! [...] Uai, não tem
nada a fazer mais não. Como é que faz? Eu estou nesse lugar [...].
11. Ceci
[...] Eu fiquei assim chocada quando vim pra cá, mas eu conformei. [...] Eu
não podia ficar lá [na casa dela] sozinha, conformei. [...] Quando a mulher
daqui me buscou, ela falou: “– A senhora não leva nada daqui pra lá. Nada
daqui pra lá porque lá onde a senhora vai tem tudo: comida no prato, cama
p
ra senhora dormir, banho no tempo e na hora”. E aqui tem tudo isso mesmo
que a gente precisa [...].
12. Iole
[...] Ah, eu não senti bem nada em vir pra cá não! [...] Se não tivesse me
trazido eu estava lá. [...] Era minha casinha. [...] E eu tomava conta de lá [...].
13. Lude
[...] Aqui não é bom, não, mas o quê que vai fazer, né? Eu porque estava...
estava... pra casa de um, pra casa de outro, sem lugar. [...] Aqui tem uns doido
que Deus me livre! [...] Se eles entrar aqui o dia que eles está na onda de
loucura neles, eles pode fazer qualquer coisa com a gente, né? Pode machucar
muito, pode me matar. E ainda sair matando uma véia aí, oh! [...].
14. Irajá
[...] Ah, eu achei ruim de vir pra cá porque casa dos outros não vai não! [...]
Você pede um remédio, não tem. Pede outro, não dá. Pede outro, some. Pede
uma coisa, não dá. [...] Mas o quê que eu vou fazer, né? Eu, sozinha, como é
que eu andava? [...].
15. Peri
[...] Aqui é uma estadia da gente. É um... é um... é uma coisa que a gente vem
p
ra morar. Ficar. Tomo banho todo dia. Troca roupa limpa todo dia. [...] Aqui
nós recebemos cinco refeição por dia. [...] Praticamente aqui todos aqui são
uma família aqui dentro, né? [...] Aqui eu trato. Eu estou... eu tenho médico
p
articular pra me tratar. Faço fisioterapia [...].
107
16. Aog
[...] O asilo é... é... dá apoio pras pessoas doente, né? Para as pessoas idoso e
doente, né? [...] Eu sentia muito ruim pelo costume de... pelo fato de eu sair
todo dia. E em asilo não pode sair, né? [...] Hoje eu praticamente acostumei
morar em asilo [...].
O abrigo é percebido, para a maioria dos entrevistados, com exceção de Irajá, como
provedor, representado como um local de cuidados com a saúde física e de atendimento às
necessidades de sobrevivência, embora grande parte dos entrevistados tenha feito referência
ao descontentamento por ter ido para o abrigo, bem como da condição de interno. Assim, o
sentido atribuído à instituição, em função da perda da liberdade de ir e vir, é de clausura e
carência de subjetividade produtiva.
Por outro lado, a instituição é representada como mal necessário no prosseguimento da
vida, tendo eles de se conformar com o fato de lá estar e com a vida que ora caminha diante
da impossibilidade de efetuar escolhas.
Percebe-se que o abrigo, nas marcas discursivas “eu chorei quando vim pra cá”;
“fiquei chocada”; “tenho muito desgosto”; “não me sinto bem”, foi imposto ao idoso como
uma “solução” para sua penúria, abandono e solidão.
A vida atual, para nove entrevistados (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Zica, Lude, Irajá
e Aog), é insatisfatória, restrita e limitada, o que os faz sentirem insatisfeitos e à espera de
mudanças. Miro e Peri consideram aceitável a vida na instituição. Para Aracê, embora a vida
no abrigo não seja essencialmente insatisfatória, ela afirmou ser indiferente viver ali ou em
outro lugar.
Quatro entrevistadas (Aracê, Lana, Zica e Lude) representam o abrigo como um local
de assistência a pessoas inválidas e mentalmente limitadas, ou seja, de quem não têm
consciência daquilo que fazem. A representação da instituição como sanatório, expressa pela
marca discursiva “aqui tem uns doido que Deus me livre!”, demonstra a intolerância ao
diferente que, paradoxalmente, encontra-se na mesma situação do intolerante.
A maior parte dos entrevistados não representa o abrigo como um lar e não gostaria,
portanto, de estar naquele local.
Peri, ao contrário, referiu-se ao abrigo como uma família, sendo assim porta-voz
daqueles que, ao sofrerem um processo de abandono e marginalização desde a infância,
encontram estabilidade e cuidados na terceira idade.
Apenas Suyá e Aog mencionaram o abrigo como um local de acolhimento a pessoas
de idade avançada.
108
Categoria 06: Sentimentos e perdas
A categoria intitulada de sentimentos e perdas refere-se às conseqüências das perdas
que tiveram ao longo da vida de suas vidas e ao modo como elaboram o luto. Destaca-se aqui
também os sentimentos de solidão como resultado expresso das diversas perdas familiares, do
distanciamento dos parentes e da ausência de vínculos.
Esta categoria compreende duas subcategorias, ou seja, a de auto-percepção e
distanciamento dos familiares.
Subcategoria 6.1: Auto-percepção
A subcategoria auto-percepção diz respeito ao modo como os entrevistados referem-
se a si mesmos.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu fui pra essa casa onde morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar
uma menina cedo, ainda mais de cor, né? O povo tem muito preconceito, né?
[...] Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a gente já passou
tão duro na vida! E agora eu tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de
mim, né?, quando preciso assim [...].
2. Miro
[...] Eu sou um cabra já andado. Muito. Sabido de um mundo de coisa. [...]
Por isso que eu digo: eu já desfrutei a vida, puta merda! [...] Andei por todo
lado e virei pra trás. Aí estou aqui. [...] O que eu acho é que falta saúde. A
saúde é o principal. Faltou ele, acabou, né? [...].
3. Celeste
[...] É, eu sei que eu já sofri! [...] A vida da gente é dura, né? Nós, desde
p
equena, é trabalhando. A minha vida não foi fácil, não! Labuta. [...] Com a
idade a gente vai ficando fraca e isso atrapalha a vida da gente porque não dá
conta de fazer as coisa [...].
4. Aracê
[...] Eu sofro nervoso demais! Sempre eu fui muito nervosa. [...] Eu sofro
constantemente é desmaio. Agora já tem mais de um ano que eu não sofro, mas
o... minha cabeça é provocada ainda. O sentido muito fraco. [...] A memória é
muito falhada, esquecida demais! [...].
109
5. Lana
[...] Eu acho que nasci pra sofrer é porque é... desde criança fiquei sem pai,
sem mãe, e vivia pras casa dos outro pelejando, né?, pra viver. Então, eu acho
que eu nasci pra sofrer até a hora da morte [...].
6. Ava
[...] A gente quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa
mesmo! O que é da gente é da gente. Eu tenho minha casa, tenho os meus trem,
eu estou aqui, oh, desse jeito! [...] Ah!, a vida da gente é assim mesmo! Depois
a gente vai ficando de mais idade, é uma coisa e outra, né? [...].
7. Tiana
[...] Eu não queria mudar nada na minha vida. [...] Em pé, eu não fico em pé
sozinha. Eu só fico em pé segurando isso aqui. [bengala]. Não tem jeito de
nada mais, né? [...].
8. Zica
[...] Eu trabalhava. Agora, depois que eu sofri derrame, acabou, porque não
tem mais jeito de muita coisa [...].
9. Doca
[...] Porque, pensando bem, se eu for um... um... veja bem o meu
tamanhozinho, né? Se eu fosse uma criatura melhor de saúde, eu ajudava fazer
alguma coisa de serviço. O único incômodo que eu nunca tive: preguiça. Eu
não fui criada com preguiça não! [...].
10. Ina
[...] É duro o que eu estou passando. É triste! A minha vida é ruim demais! [...]
Meu marido não prestava pra nada. Eu criei filho sozinha e eu passava até
f
ome. [...] Eu casei com treze anos porque gostei dele. [...] É bobagem, né?,
que eu fiz, né? [...] Hoje não tem vontade mais com a idade. Parece que a
idade impede de fazer as coisas [...].
11. Ceci
[...] Eu sou benzedeira. [...] Eu faço caridade. Benzo as pessoa só com prece.
[...] Fiz prece com carta e sarou, né? [cura de uma pessoa que a procurou] [...].
Desapareceu na mesma hora. E diz que doía pior do que um trem! [...].
12. Iole
[...] Eu ando muito nervosa, sabe? Eu bato em mim mesma. [...] Tenho raiva
de mim, da minha vida de hoje. [...] Hoje eu sinto a minha vida virou uma
besteira, virou um bobagem [...].
13. Lude
[...] Antigamente eu tinha gosto na vida. Eu era alegre. Eu não era assim sem
f
orça, não! [...] Hoje o meu caminho não tem sentido mais não! [...].
14. Irajá
[...] Se eu lembrar de trem que eu já fui! Desde os quinze ano que eu... eu era
empregada pra pajiar criança dos outro. Eu sofria muito. Não era pouca coisa
não! [...] Minha vida, uai, acabou! Por que como é que eu vou fazer? Eu não
p
osso sair, não vou arranjar meus negócio, não posso fazer em nada [...].
15. Peri
[...] Eu sei fazer muita coisa. Eu sei escrever. Eu sei ler. [...] E eu não tenho
muito estudo não, hein? Tenho o quarto ano primário só. [...] Não... não vem
dizer que eu estou atrás de gente de... de sexta série, de sétima série pra frente
aí que me passa pra trás! Não me passa, não! [...].
16. Aog
[...] Eu trato todo mundo bem aonde eu chego. E aonde eu chego eu, graças a
Deus, é, todo mundo fica gostando de mim.[...] Inclusive aqui mesmo eles têm
me admirado por esse fato aqui porque aqui tem muita confusão. Muita briga,
discursão, né? E eu estou sempre por fora, né? [...].
110
Sete entrevistados (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Doca, Ina e Irajá) representam-se
como sofredores e vítimas do mundo. As marcas discursivas “eu nasci pra sofrer” e “Deus
sofreu, eu sofro animada”, indicam uma representação de si como predestinada à doença e ao
sofrimento.
Além disso, seis entrevistados – Suyá, Celeste, Lana, Ina, Iole e Irajá – demonstraram
que a vida era ruim no período anterior da ida para o abrigo. Por outro lado, para dez
entrevistados, a vida antes do abrigo era satisfatória.
Doze entrevistados apresentam indícios de que é negativa a representação que eles têm
de si, sendo pouco valorados por estarem num local que proporciona cuidados vitais, mas não
propicia incentivos para o prosseguimento satisfatório da vida. O fato de estarem cerceados e
inativos parece levar a uma condição regredida da auto-percepção de modo a generalizar essa
representação negativa, independente dos diferentes históricos de vida descritos.
Nesse sentido, sete entrevistados (Miro, Ava, Doca, Ina, Zica, Lude e Irajá) apontaram
para o sentido de fatalidade, pois foram vítimas de doenças graves e crônicas. A entrevistada
Aracê ressaltou que o “nervosismo” sempre a acompanhou. Aog apresentou a doença como
companheira inseparável, sendo a atual condição uma extensão de sua vida anterior.
Cinco entrevistados (Suyá, Ceci, Tiana, Peri e Aog) têm uma percepção positiva de si
mesmos na atual condição de abrigados. Tiana e Peri positivamente demonstraram
maleabilidade para depreender das circunstâncias uma representação positiva, mesmo que em
ambos se note debilidade física. A entrevistada Suyá apresentou uma auto-percepção positiva
da condição atual por sentir que no abrigo ela é mais valorizada do que fora dele. A
entrevistada Ceci declarou possuir um dom especial, afirmando assim ser capaz de benzer
para curar quem precise. Aog afirmou tratar bem as pessoas com quem convive e, como
retribuição, é por elas bem tratado.
Subcategoria 6.2: Distanciamento familiar
A subcategoria aqui denominada distanciamento familiar refere-se ao modo como
ocorre a relação dos entrevistados com os seus familiares, mostrando-se intrínseca e
fortemente associada à subcategoria solidão.
111
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Depois é que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou.
Separou tudo os irmãos. Cada um foi pra um lugar, né? [...].
2. Miro
[...] Não tenho notícia nenhuma da minha filha. Já está desligado há muitos
anos já. [...] Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica custoso [...].
3. Celeste
[...] As minhas irmãs me escrevem de vez em quando, telefona lá na minha
irmã. [...] Tudo me escreve que... tem saudade de mim, mas elas precisam
trabalhar também [...].
4. Aracê
[...] O meu sobrinho que mora aqui veio muitas vezes já. [...] Mas hoje ele vem
p
ouco, bem pouco aqui. É atarefado. [...] Os meus irmãos estão todos velhos,
j
á de idade também. Aí fica difícil pra eles vir aqui [...]”.
5. Lana
Não indica
6. Ava
[...] Ah!, os meus irmão nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei
p
orquê não! [...].
7. Tiana
[...] De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito. Três,
quatro mês, cinco, seis. [...] Eles falam que está apertado por causa do
serviço; que não tem tempo; que não sei o quê. [...] Mas... não sei se é isso,
não! Eu acho que é porque não quer vir [...].
8. Zica
[...] A minha sobrinha trouxe eu pra cá e pronto, largou aí! E ficou custoso de
ela vir cá. [...] Mas embora que ela trabalha, né? [...].
9. Doca
[...] A minha irmã falou que não podia vim cá me ver porque ela está meia
doente. E as filhas dela trabalha, né? [...] Não sei por que os meu parente eles
não vêm não, sô! [...].
10. Ina
[...] Os neto tudo aqui e nem vem cá também. [...] Eles fala que está ocupado,
né? Trabalhando, né? [...] Tenho um irmão aí que mora na mesma rua daqui,
mas não vem cá de jeito nenhum! [...].
11. Ceci
[...] Meus irmão ficou homem e foi embora pra Bahia. [...] Eu não tenho
contato com eles [...].
12. Iole
[...] As minhas irmã eu vejo pouco. [...] Não sei o quê que aconteceu, não! [...].
13. Lude
[...] E, tirando ela [filha adotiva], só uma sobrinha que vem aqui muito de vez
em quando. [...] Mas eu não faço muita questão não! [...].
14. Irajá
[...] Eu tenho sobrinha, mas não vale nada com ninguém não! Nem me
conhece! [...].
15. Peri
[...] Eu tenho irmão espalhado aqui e em um monte de lugar. É tudo meio
afastado da gente. [...] Não sei porquê que afastaram [...].
112
16. Aog
[...] Já tem uns vinte ano que eu não vejo essa irmã minha que mora fora. Ela
não vem cá e eu também não tenho condições de ir lá, né? [...] Da irmã que
mora aqui eu tenho notícia. [...] Mas deve ter mais de ano que eu nem lá [local
onde ela mora e trabalha] eu não vou. [...] Visitar aqui ela nunca veio [...].
Seis entrevistados (Suyá, Miro, Ceci, Irajá, Peri e Aog) representam o distanciamento
dos seus familiares como conseqüência da dinâmica de suas famílias ocorrida no período
anterior à institucionalização. Tal distanciamento permanece para a maioria deles,
configurando um quadro de rejeição e abandono por estarem excluídos do meio familiar.
Para os demais, o distanciamento dos familiares ocorreu no período posterior à ida
deles para o abrigo, mas o quadro de afastamento e isolamento consiste em um processo
ocorrido ao longo de suas vidas.
Oito entrevistados (Celeste, Aracê, Tiana, Doca, Ina, Zica, Iole e Lude) justificaram,
pelo trabalho ou por outras obrigações dos familiares, o distanciamento que todos ou alguns
destes estabeleceram a partir da ida deles para o abrigo, procurando, assim, racionalizar o
abandono. As entrevistadas Ava e Iole declararam desconhecer as razões do distanciamento.
Ina e Lude, nada justificaram. A última delas, no entanto, afirmou que não tem interesse em
manter contato com a filha adotiva.
As entrevistadas Lana e Ava, embora a partir do asilamento tenham se distanciado de
alguns parentes, mantêm contato com outros. Isto poderá ser verificado na subcategoria
visitas e socialização externa, na qual se observa que elas recebem visitas freqüentes destes,
fundamentais para a manutenção de uma auto-estima positiva.
Categoria 07: Espiritualidade e crença
A categoria aqui denominada espiritualidade e crença refere-se à influência
imaginada das forças que transcendem ao domínio dos indivíduos. A vivência espiritual é,
portanto, uma experiência subjetiva e simbólica que propicia significado para a existência dos
entrevistados. Esta categoria refere-se, pois, à busca de um apoio transcendental no
enfrentamento das dificuldades e problemas apresentados na vida cotidiana, auxiliando na
manutenção do equilíbrio e lucidez.
113
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Então esse lugar foi preparado por Deus pra mim. Eu não tenho a menor
dúvida disso. [...] Sempre Deus nunca me desamparou, né? [...] Aqueles que
confiam nele, ele não desampara [...].
2. Miro
[...] Ah!, é tanta coisa da gente na vida, né? [...] Entregar pra Deus que ele
arruma tudo, né? [...] A única coisa que pode resolver é Deus. Mais nada [...].
3. Celeste
[...] Eu deito na cama, vou rezando, vou rezando, vou rezando... até dormir!
[...] Não sei o quê que vai ser, né? É. Mas Deus é que sabe, né? [...].
4. Aracê
[...] Eu, pra começar da minha infância, seguindo a Deus, crente,
Presbiteriana, só quero a Deus. [...] A gente não sabe o dia de hoje, de
amanhã e depois de amanhã. Só Deus sabe [...].
5. Lana
[...] Uai, tem que sofrer porque, nossa, o destino é esse, né? [...] Então eu sei
que Deus sofreu também, eu sofro animada [...].
6. Ava
[...] A gente nunca deve esquecer de Deus. [...] Deus dá força pra gente; dá
coragem pra gente; dá saúde pra gente, né? [...].
7. Tiana
Não indica
8. Zica
[...] Eu vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não, está nas mãos
de Deus [...].
9. Doca
[...] Eu falo com Deus, né? Peço força. Porque cada um é com Deus nessa
vida, né? [...].
10. Ina
[...] Só um filho eu tive. E um aborto que eu tive. Pecado que eu levei pra Deus
[...].
11. Ceci
[...] Quando tenho qualquer coisa, [...] eu firmo nele, no Senhor Ogum, e deito,
f
alo pra ele. Eu oro pra ele todo dia, toda noite. Oro pra ele me olhar, sabe?
[...].
12. Iole
[...] Deus podia ter dó de mim. Me ajudar, né? [...] E me tirar eu. Tirar eu
desse mundo [...].
13. Lude
Não indica
14. Irajá
Não indica
15. Peri
Não indica
16. Aog
Não indica
Deus ou outra divindade foi apontado, por onze entrevistados, como referência e guia
em suas vidas.
114
A divindade, para seis entrevistadas (Suyá, Aracê, Lana, Ava, Ceci e Doca), é
representada como apoio fundamental para o prosseguimento de suas vidas. Todas elas
dedicam-se às práticas católicas e evangélicas, com exceção de Ceci que crê nos orixás como
fonte de apoio e proteção.
Ina, em razão de forte sentimento de culpa por ter realizado um aborto, reportou-se a
Deus como figura onipotente e punitiva, que a castiga, a seu ver justamente, por pecados que
afirma ter cometido em sua vida pregressa. Tem-se aqui, portanto, a instituição asilar
representada como local de expiação de culpa e pecados cometidos.
Iole, por entender que a sua vida atual é desprovida de sentido, referiu-se a Deus como
aquele que pode resolver a sua situação insolúvel, retirando-lhe a vida. Há, neste caso, uma
representação do abrigo como local de espera da morte.
Categoria 08: Expectativas
Esta categoria refere-se à expectativa que os idosos têm em relação à família; à vida
futura; à possibilidade de adquirir autonomia e independência para efetivar escolhas.
Três subcategorias, pois, resultam desta categoria. Elas são assim designadas:
expectativa em relação à família; expectativa de vida; expectativa de autonomia e
independência.
Subcategoria 8.1: Expectativa em relação à família
Outro ponto importante que se percebe nas entrevistas é a figuração do distanciamento
ou proximidade com a família como importante para o prosseguimento de suas vidas, seja em
relação à possibilidade de estreitar relações com quem não mais têm contato, apresentando
carência de vínculos mais estreitos, seja por manifestarem vontade de serem cuidados por
pessoas mais próximas. Daí se identifica esta subcategoria, a da expectativa em relação à
família.
115
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Eu queria assim que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado,
né?, e que tivesse tido um lar mesmo, né? [...] Acho triste, né?, triste da família
ter esparramado [...].
2. Miro
[...] Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! [...] Ela
veio uma vez lá na cidade que eu morava. Só essa vez. Acabou! [...].
3. Celeste
[...] Eu espero da minha família que eles me dá um pouco de dinheiro pra
comprar os trem que eu quero, né?, mas ninguém não me dá nem um tostão!
[...] Ah, eu queria assim: ter a mamãe, o papai, os meus irmãos tudo, né? Mas
não tem nenhum! [...].
4. Aracê
[...] Só a minha irmã vindo aqui visitar a mim é o que interessa [...].
5. Lana
[...] Meu sobrinho disse que vem cá me buscar a qualquer hora pra mim ir lá
numa chácara que ele comprou. E ele está arrumando lá pra mim poder ir,
f
icar lá um pouco, [...] passar umas hora lá com eles [família] [...].
6. Ava
[...] Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou
embora. [...] Meu filho falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus
quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou arrumar lá pra nós ir embora e vou levar
a senhora [...].
7. Tiana
[...] Eu queria que os meus parentes viessem ao menos uma vez no mês. [...]
Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? [...] Tem muitos ano que eu não
vejo a minha irmã. E eu tinha vontade de saber notícia dela! [...].
8. Zica
[...] Vou ficando aqui até esperar o meu fio. [...] Ele só farta poder me zelar
[...].
9. Doca
[...] Ao invés de me cuidar, né?, os meus parentes, mas não me cuida de mim.
Não importa comigo [...].
10. Ina
[...] Os neto não pode zelar de mim. Mas bem que podia. [...] Mas, ah, eu
queria que eles viesse aqui, que a minha irmã viesse aqui, né? [...].
11. Ceci
[...] Eu tenho uns parente aqui, mas eu não gosto deles, não, porque eles é
metido a rico. Eles é rico. [...] Eu não interesso por notícia deles não! Eu não
dou confiança pra eles não! [...].
12. Iole
Não indica
13. Lude
[...] Eles da minha família não faz nada pra mim, né? Eles têm fazenda... Uma
tem fazenda, a outra tem casa boa pra morar. Não paga aluguel, né? [...] Era
p
ra menina [filha adotiva] ter zelado de mim, né? Mas ela não tem condução
também, né? [...].
14. Irajá
Não indica
116
15. Peri
[...] Gostaria que fosse bom eu e mais meus outros irmão. É a convivência da
gente que deve fazer assim ficar bom, ficar melhor [...].
16. Aog
[...] É a comunicação, é a convivência, né?, que importa da família. [...] Pra
mim o importante é isso porque tem várias família que não tem nem boa
convivência [...].
Três entrevistadas – Aracê, Lana, Tiana –, mesmo conformadas com o fato de que
viverão no abrigo, demonstram vontade de continuar mantendo contato com os familiares,
recebendo visitas dos mesmos. A espera de um parente próximo ou distante mantém a
esperança do reconhecimento afetivo e do contato fundamental com o mundo externo, sem o
qual o mundo se reduz à vida institucionalizada, marcada pela falta de expectativa, em que a
noção de futuro deixa de existir.
A expectativa das entrevistadas Ava, Doca, Ina, Zica e Lude é a de poder voltar a
morar com os familiares e de ser por eles cuidadas.
O cuidado que almejam dos familiares, para as entrevistadas Celeste e Lude, poderia
se objetivar por meio dos bens materiais e financeiros que eles possuem, havendo aqui uma
associação entre afeto e dinheiro.
Quatro entrevistados (Suyá, Miro, Peri e Aog) imaginam a união dos familiares como
se pudessem reunir o que se tornou disperso ao longo de suas vidas. Há assim, pois, nos casos
de Suyá e Miro, uma idealização de retorno a um possível convívio familiar que efetivamente
é marcado por ele nunca ter ocorrido. Peri e Aog marcaram discursivamente a expectativa em
relação à família como a retomada de um convívio cercado de afetos e vínculos.
No caso da entrevistada Ceci, a expectativa que ela tem dos familiares é marcada
negativamente, como se da parte dela, mesmo que saliente as boas condições financeiras
deles, não houvesse desejo algum de contato ou de cuidados.
Subcategoria 8.2: Expectativa de vida
A subcategoria expectativa de vida relaciona-se com a subcategoria anterior.
Enquanto, contudo, aquela especifica e demarca seu foco no que os entrevistados dizem
esperar das relações familiares, esta aqui amplia a configuração do horizonte, pois ela se
117
refere ao que se espera, daqui adiante, para a própria vida futura, ou da expectativa com
relação à morte, enunciada como limite daquela.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Ah, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver muito
tempo, não! Eu quero ir embora. [...] Eu já estou com oitenta e um e estou
inteirando oitenta e dois anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a
vontade dele [...].
2. Miro
[...] Eu acho que não espero nada mais, não! Derrame é duro de sarar. [...] Eu
nunca ouvi falar em derrame sarar. [...] Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí
eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? [...].
3. Celeste
[...] Uai, pra onde eu vou, né? [...] Não sei o que que eu vou mudar, né? Tem
que ficar é aqui. [...] É duro a gente viver assim, né?, sem poder fazer as coisa!
[...] É a morte que eu estou esperando, né? E peço a mamãe todo dia pra ela
vir me buscar. [...] Aqui eles fala que a gente... Eles morre aqui, mas eles veve,
vive lá no céu. Eu acho que sim, né? [...].
4. Aracê
[...] A gente não escolhe a vida da gente assim não! [...] Escolhimento assim
p
ra frente, não! [...] Depois que eu estou doente assim, interna aqui, não...
não... não quero mais nada, não! [...] Ah, eu espero o que Deus mandar. [...].
5. Lana
[...] Uai, não tem jeito mais de mudar nada porque eu já estou dessa idade, né?
[...] Os meus prano é ficar aí até chegar a morte. É isso que eu espero. Eu
espero só a morte [...].
6. Ava
[...] Ih!, eu tenho uma vontade de ir embora pra casa! Nossa Senhora, casa da
gente é bom demais! Mas falar a verdade: eles aqui não é ruim! [...] Mas é
p
orque eu quero ir embora pra minha casa. [...] Ah!, daqui pra frente, nós tudo
está nas mão de Deus, né? [...].
7. Tiana
[...] Eu não quero fazer mais nada, porque as vistas não ajuda. [...] O que me
interessa agora é só ir passear na casa deles, dos sobrinho. [...] Agora, minha
f
ilha, plano pra vida eu não... não espero é nada mais porque eu já estou no
f
im da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é esperar [...].
8. Zica
[...] Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do meu filho. [...] O dia que o meu
f
ilho puder me levar, bem. O dia que ele não puder, fica, né? [...].
9. Doca
[...] Eu tinha uma vontade de voltar pra casa da minha irmã! Porque família é
f
amília! [...] Ai, espero a hora que Deus leva dessa vida, né? [...].
10. Ina
[...] Uai, não tem nada a fazer mais, não! Como é que faz? [...] Eu queria
escolher a minha casinha, mas eu não posso morar sozinha. [...] Ah, mas um
dia a minha sorte vai melhorar, né? [...].
118
11. Ceci
[...] Daqui em diante eu penso só em morrer. Só morrer. Eu não tenho vontade
de nada, não! [...] Então quando ele vê que eu mereço desencarnar, ele vem,
recolhe meu espírito, porque eu sou filha dele [...].
12. Iole
[...] Pra mim... nenhum... não serve nenhum lugar. [...] Eu peço demais pra
Deus ter misericórdia de mim, sabe? Me tirar eu desse mundo [...].
13. Lude
[...] Não quero fazer nada porque agora eu não tenho possibilidade de fazer
mais nada, né? [...] Depois de véia, já cansada. [...] Mas, ah, tenho planos de
morrer, morrer! [...].
14. Irajá
[...] Eu não faço nada, minha filha! E não espero nada. Eu sinto vontade é de
morrer [...] pra livrar desse mundo pra não sofrer o tanto que eu estou
sofrendo. [...] Eu queria ter minha casa, ter uma pessoa que me ajudasse [...].
15. Peri
[...] Ah, eu não... não... não sei de nada, não sei o quê que vai acontecer
comigo. [...] Gostaria que fosse uma coisa boa pra mim sair daqui porque meu
irmão já quis me tirar daqui muitas vezes. Mas eu não quis sair, não! [...] Ele
mexe com... está mexendo com chácara fora daqui. [...] Fico doente lá, como é
que fica? É preciso ficar quieto aqui [...].
16. Aog
[...] Se eu conseguir aposentar, aí eu não sei, não! Eu tenho idéia de sair
daqui. E a gente ainda vai planejar o quê que vai ser, o quê que vai fazer,
aonde vai morar. Às vezes nem não vai fazer nada também [...].
A expectativa de vida, para oito entrevistados (Miro, Ava, Doca, Ina, Zica, Irajá, Peri e
Aog) é a possibilidade de sair do abrigo para retomar contato com os familiares ou de realizar
algo em suas vidas.
As marcas discursivas da maioria dos entrevistados revelaram que estes não têm mais
expectativa com relação à vida futura, seja por afirmarem o desejo de morrer, seja o de
salientarem não ter mais nada a cumprir na vida.
Sendo assim, em dez entrevistados – Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Doca,
Iole, Lude e Irajá – a expectativa é de que a vida, tendo já completado seu ciclo, finde. Desse
modo, todos eles ressaltaram estar à espera da morte.
No caso das entrevistadas Suyá, Celeste, Aracê, Ceci, Doca e Iole, contudo, salienta-se
que a morte é uma decisão divina ou transcendente, ou seja, afirma-se a morte como
determinação e vontade de Deus ou como transcendência para outra vida.
Depreende-se, nos casos de Miro e Ina, que nada mais eles têm a realizar, em função
das limitações da saúde, como se a vida tivesse cumprido seu ciclo, sem, contudo, que eles
vinculem explicitamente tal termo à morte.
119
O diálogo cotidiano com as divindades, a sacralização da morte e o “nada” como uma
expressão recorrente, indicam que o vazio apoderou-se de suas vidas.
Subcategoria 8.3: Expectativa de autonomia e independência
A categoria aqui estabelecida refere-se à expectativa de autonomia e independência
física para realização de atividades da vida diária.
Participantes Marcas discursivas
1. Suyá
[...] Mas... eu não gostaria de ficar assim, igual os meus colegas, na cadeira de
roda. Assim é triste, muito triste, né? [...].
2. Miro
[...] Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço até demais! [...] A melhora é
um tantinho assim que a gente nem não vê. Se melhorar um pouco assim eu já
f
ico animado de fazer mais. [...] Espero fazer muita coisa ainda [...].
3. Celeste
[...] Eu tomo remédio antes do armoço e depois na hora de deitar [...] Eu
tenho uma vontade de sarar! [...] Eu tenho vontade de andar, né?, de ir nos
lugar, porque [a perna] atrapalha um pouco pra andar, né? [...].
4. Aracê
[...] Faço a lavagem, ajudo a fazer limpeza, ajudo a cozinheira cascar uma
verdura e outra. [...] Gostaria de fazer uma coisa e outra, mas... aqui... a gente
não... não dá conta de... trabalhar, fazer uma coisa e outra, o serviço daqui
[...].
5. Lana
[...] Eu peço a Deus que me dê força até a hora da morte pra mim ao meno
andar, ir ao banheiro, tomar meu banho. [...] Gostaria de ter liberdade [...].
6. Ava
[...] Ah!, lá em casa eu vou... vou... plantar minhas cebola, eu vou arranjar
meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minha galinha... [...].
7. Tiana
[...] Não penso em fazer mais nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como
eu trabalhava [...].
8. Zica
Não indica
9. Doca
[...] Eu tomo o meu banho, né? Eu mesmo arrumo meu cabelo. [...] E Deus
Senhor tenha piedade! Porque eu peço pra não ficar prostrada, pra não
sacrificar mais a lutadora, né? [...].
120
10. Ina
[...] É eu que tomava conta da minha casinha. Eu que fazia comida. Tudo era
eu que fazia. [...] Se eu pudesse consumir a minha vida, eu consumia. Eu ficava
na minha casa, mas não posso [...].
11. Ceci
Não indica
12. Iole
[...] Eu tenho vontade de viver a minha vida e fazer as coisa! Mas não tem jeito
não! [...].
13. Lude
[...] Eu não tenho iniciativa pra nada mais. Não quero fazer mais nada. Depois
disso pra cá, que a menina [filha adotiva]
pegou o meu dinheiro, acabou! Pode
dizer que eu morri e vivi outra vez [...].
14. Irajá
Não indica
15. Peri
[...] Eu tenho vontade de levar a vida... a vida normal. Normal é a que sempre
tem: é estudar, é fazer uma coisa, fazer outra [...].
16. Aog
[...] Quando eu sair, por exemplo, se eu conseguir isso, aí eu vou ser uma
p
essoa assim... eu vou ter mais liberdade, né? [...] Vou poder ir aonde eu
quero, por exemplo, e participar mais das coisa, o qual eu não estou
p
articipando nada disso aqui [...].
Para a maior parte dos entrevistados, a marca de autonomia e independência é a
retomada de suas condições de vida anteriores ao asilamento, tendo em vista maior liberdade
na efetuação de escolha. Sendo assim, em sete entrevistados há uma forte associação entre
restrição da autonomia e o fato de estarem no abrigo entendido como limitante.
Suyá, Lana e Doca têm como expectativa a autonomia física que ainda possuem, ou
seja, esperam apenas manter as condições físicas necessárias que hoje apresentam para a
conservação da autonomia que as permite ainda cuidar de si mesmas.
Aracê realiza atividades no abrigo. Manifestou a expectativa de poder ter maior
liberdade de autonomia para o trabalho, visto que lá ocorram limitações de sua atividade
estabelecidas pelas restrições presentes no abrigo.
As entrevistadas Tiana e Lude possuem marcas negativas quanto à expectativa futura
de autonomia. A primeira faz associação entre expectativa e trabalho: como não mais há
possibilidade para trabalhar, por ela ter sido acometida pela doença, a expectativa se finda.
Lude justificou o desinteresse pela vida ou por qualquer atividade pelas atitudes desonestas da
filha adotiva. Esta a enganou, ao pegar sem o seu consentimento, todo o dinheiro da
aposentadoria.
121
6 DISCUSSÃO
Tendo em vista as categorias temáticas referentes à vida pregressa e a experiência de
institucionalização, realizou-se análise dos temas recorrentes que desvelam o objeto da
investigação: representações sociais sobre instituição asilar e sentidos existenciais construídos
por idosos abrigados.
Internação
As causas da institucionalização estão diretamente associadas em suas representações
às limitações físicas. Associam-na também ao fato de, sem poderem viver só, não haver
alguém mais próximo com quem possam contar. Há, pois, na ida para o abrigo um sentido de
perda que se lhes afigura como impossibilidade de independência. É assim figurada como
dupla decorrência do processo de vida: a perda ou ausência de pessoas próximas; os limites
físicos.
O abrigo se configura, inicialmente, como uma região de exclusão de uma vida
anterior em que não mais se inserem em virtude das limitações físicas. Se se pode dizer que
econômica e socialmente eles ocupavam local pouco privilegiado na sociedade, a ruptura e
exclusão são nitidamente marcadas na ida para o abrigo, como se condensasse, tornando-o
manifesto, um processo já presente por estarem afastados do trabalho e da família, elementos
destacados por eles como de inserção social. Muito do que declaram como perda anterior,
inclusive, é realçado com o asilamento.
A doença ou decrepitude física ocasionada pela idade avançada são apresentadas por
todos os entrevistados como razão da ida para o abrigo. A maioria morava sozinha (Suyá,
Miro, Celeste, Ceci, Tiana, Ina, Iole, Irajá e Aog), mas salienta que, em razão de problemas
físicos, passou a depender de alguém. Irajá, por exemplo, já que usava cadeira de rodas,
contava com a cooperação diária dos vizinhos, visto que ela não se encontrava em condições
de cuidar de si mesma: [...] Eu estava andando na cadeira de roda. E eu não podia fazer uma
comida pra mim, eu não podia andar. [...] Precisava ficar pedindo os outro [...]
.
122
Para Suyá, o fato de não ter a quem recorrer culminou na ida para o abrigo, visto não
mais conseguir cuidar de si própria, nem da irmã: [...] Eu vim pra cá porque eu estava muito
doente, né?, e eu tomava conta de uma irmã. Ela sofreu derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava
dando conta mais de cuidar dela [...]
.
Para os demais entrevistados (Aracê, Lana, Ava, Doca, Zica, Lude e Peri), embora eles
morassem com as suas famílias, as doenças fizeram com que se tornassem dependentes dos
cuidados dos seus familiares As entrevistadas Lana e Ava, em particular, relacionam a ida
para o abrigo aos maus-tratos sofridos por membros de suas famílias: [...] Me deu derrame. [...]
Quando eu chamava eles [filho e nora], eles vinha com a maior brutalidade, me sentando na parede,
que eu vomitava até sangue! [...] “– Meu filho, eu não agüento essa vida, não! Me leva pro asilo, pelo
amor de Deus!”
[...] (Lana). Ava e Peri, além das próprias limitações físicas, justificam a ida
para o abrigo também em razão de doenças sofridas por quem deles cuidava: [...] A minha mãe
estava meia doente; então, meu irmão trouxe ela pra cá. Aí eles daqui viram que eu não tinha onde
ficar e deixaram eu ficar aqui com ela [...]
(Peri).
O caso de Ava é assim emblemático. Ela morava sozinha, mas, por ter ficado doente,
mudou-se para a casa do filho. Ela permaneceu sob os seus cuidados até este adoecer. Além
disso, a sua decisão de ida para o abrigo ocorreu em função dos maus-tratos da neta e da nora:
[...] Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu adoeci.
[...] Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu derramo. [...] Se eu estava sentada num lugar, ela
[neta] ia lá e falava: “– Sai daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra hora eu levantava, ela vinha
lá, me dava coice, me dava cotovelada [...]
. Pode-se aí perceber um conflito de gerações.
Depreende-se do que ela afirma como uma diferença de pensamento que sua idade e a doença
do filho retiravam-lhes força, em função de poder e autoridade, pois o conflito girava em
torno de quem mandava na casa e ordenava nas questões em disputa.
Minayo (1994) afirma, nessa perspectiva, que a violência é um fenômeno complexo e
dinâmico que se origina e desenvolve na vida em sociedade. Na configuração da violência,
portanto, relacionam-se problemas de diversas ordens, mesclando, entre outras coisas,
relações humanas e institucionais ao plano individual.
Percebe-se que as causas da institucionalização, para Aracê, Tiana e Zica, estão
relacionadas à impossibilidade de os familiares cuidarem delas pela ocupação diária exigida
por suas obrigações:
[...] Eu fiquei doente e aí eu fui morar com uma sobrinha. Foi, ela precisava
trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. [...] Então aí ela... ela foi e me trouxe pra cá
[...]
(Tiana).
123
Observa-se, no caso das entrevistadas acima mencionadas, que os familiares de quem
elas dependiam eram do sexo feminino. Segundo Veras, Ramos e Kalache (1987), a maior
participação da mulher no mercado de trabalho implica, na família, na falta de alguém que
cuide do idoso em caso de doença ou de incapacidade física, pois tais funções são
culturalmente atribuídas à mulher.
A ida para o abrigo deve-se, em grande parte, à decisão do outro, seja este um familiar
ou não. Este aspecto pode ser verificado em onze entrevistados. Para os entrevistados Miro,
Tiana, Zica e Iole, a decisão decorreu dos sobrinhos. No caso de Celeste, do cunhado; para
Aracê e o Peri, dos irmãos; no caso da entrevistada Ava, a decisão partiu do filho; Ceci, de
conhecido; Ina, dos netos; Irajá, da coordenadora do abrigo mediante denúncia da
comunidade. Nota-se, em todos estes, a ausência de autonomia em conduzir suas próprias
vidas.
As entrevistadas Ceci e Iole não foram para o abrigo por decisão própria. No entanto,
assumem a ida para este local como modo de escapar da solidão. Embora permanecer lá lhes
cause descontentamento, afirmaram que não mais era possível morarem sozinhas em função
da solidão: [...] Minhas sobrinhas me trouxeram pra cá. É porque eu... a minha vida estava era muito
sozinha, sabe? [...]
(Iole).
Lude aponta causas contraditórias da ida para o abrigo, haja vista a necessidade de
afastar-se dos motivos reais como meio de manter a sua integridade psíquica. Ela inicialmente
aponta o fato de a filha adotiva tê-la deixado naquele local. Posteriormente, afirma que
ocorreu por escolha própria, dado o desprezo e desrespeito dos familiares, já que passou a
residir, sem local fixo, na casa de diversos parentes. Ao deparar-se com uma situação de
abandono, ela se apega a mecanismos defensivos como meio de proteção psíquica: [...]
Infelizmente a menina que eu criei me deixou aqui. Eu é que pedi pra vir, né?, porque estava pra casa
de um parente, pra casa de outro, parecendo cachorro sem dono [...]
.
Suyá, Lana, Doca e Aog, por iniciativa própria, decidiram morar no abrigo por
julgarem não haver outra possibilidade. No caso de Doca, o conflito familiar impulsionou a
sua decisão: [...] Foi eu mesmo. Idéia minha de vir pra cá. [...] Não deu certo de ficar na casa da
minha irmã, eu vortei pr`aqui [...]
. Em relação à entrada voluntária na instituição, Goffman
(1961, p. 25) afirma que “o novato parcialmente já se afastara de seu mundo doméstico; o que
é nitidamente cortado pela instituição é algo que já tinha começado a definhar”.
Veras (1988) declara que a mudança do modelo das famílias tradicionais para as
atuais, expressa pelo menor número de membros das famílias e pelo aumento do número de
124
separações entre os casais, acarreta, como conseqüência para o idoso, a diminuição do auxílio
familiar, levando-o a morar sozinho ou com parentes distantes. Este aspecto pode ser
verificado nos entrevistados em questão, visto que as suas famílias de origem sejam
numerosas. Tais aspectos estão relacionados à solidão. Além disso, as limitações físicas
decorrentes da doença ou da idade avançada tornam-nos incapazes de cuidarem de si mesmos.
A falta de pessoas com quem possam contar agrega-se aos demais motivos como causa da
institucionalização.
Rezende (2001) afirma, ademais, que o mundo do capital e a absorção dos indivíduos
pelo trabalho, além da individualização progressiva, contribuem para um aumento da
institucionalização dos idosos, visto que estes dificilmente dispõem de suporte familiar. A
situação dos indivíduos que progressivamente perdem a autonomia e a independência,
chegando aos limites da miséria e do abandono, é agravada, nos países em desenvolvimento,
sobretudo pela falta de estrutura e apoio a eles dados. No caso presente, além da ausência, na
maior parte dos casos, do suporte de uma estrutura familiar, a impossibilidade de permanecer
no mundo do trabalho, bem como os valores financeiros pouco expressivos que recebem,
quando isso ocorre, acarretam a ida para o abrigo.
As instituições, por sua vez, constituem-se na resposta que a sociedade atual
desenvolve como mecanismo para lidar com tais problemas por ela mesma criados. Tais
instituições existem devido ao papel representado hoje pelo grande número de idosos na
sociedade; pela questão econômica, visto que muitas famílias não podem mantê-los em casa;
pela necessidade de evitar o abandono daqueles que não têm família. Os motivos pelos quais
ocorre a solicitação de vaga nos abrigos por parte das famílias, de outra parte, é a falta de
tempo ou de recursos para os cuidados com os idosos que mantêm grande dependência de
seus familiares para realização das atividades diárias. Assim sendo, os motivos determinantes
da internação de grande parte de idosos, em que pese a dependência física ou mental, é a
miséria e o abandono (ZIMERMAN, 2000). Nos casos presentes, os idosos figuram as perdas
familiares assim como a ausência de autonomia em decorrência da debilidade física como
determinantes para a institucionalização. O abandono dos familiares é figurado com nuanças,
ainda que se apresente. A miséria está ausente, embora, na maioria dos casos, seja ressaltada
por eles a precariedade econômica em que viviam antes da internação.
As instituições e suas representações
125
Quinze entrevistados representam o abrigo como um local provedor. A entrevistada
Irajá é a única exceção. Relacionam-no, sobretudo, aos cuidados da saúde física. Desse modo,
é figurado como uma espécie de instituição hospitalar de mais longa permanência, dado o fato
de que não associem as limitações do corpo a um órgão específico cuja cura tenha prazo
delimitado para ocorrer. Em pesquisa sobre idosos, ressalta-se que os problemas de saúde não
são focalizados no mau funcionamento de um órgão ou sistema específico, mas em algo
inerente à totalidade do ser (ANDRADE, 2003). Este aspecto hospitalar do abrigo é assim
destacado mesmo por aqueles, como as entrevistadas Ceci e Iole, que não apresentam nenhum
problema de saúde.
Zica expressa claramente a sua percepção sobre o abrigo como um local de tratamento
da saúde, associando-o a “hospital”: [...] Aqui não falta nada. Tem médico, tem tudo, né?, no jeito.
[...] O tratamento aqui é bão demais! [...]
. Ela, neste sentido, também afirma: [...] O menino [filho
da antiga patroa] não vem aqui, não. Ele não gosta de hospital [...]
.
Aog ainda mais fortemente estabelece esta relação. Sua representação, no entanto, traz
marcas a serem consideradas, pois dá uma conotação diversa à palavra que socialmente
designa negativamente a instituição para idosos: [...] O asilo é... é... dá apoio pras pessoas
doente, né? Para as pessoas idoso e doente, né? [...]
. A figuração mescla a tal ponto sentidos
diferentes que passa a implicar hospital como local de reclusão: [...] Eu sentia muito ruim pelo
costume de... pelo fato de eu sair todo dia. E em asilo não pode sair, né? [...] Hoje eu praticamente
acostumei morar em asilo [...]
.
Outra figuração positivamente formulada por quase todos, com exceção de Irajá, é
que, por ancoragem, o abrigo se enquadra nas antigas estruturas mentais da infância
relacionadas à atenção e cuidado socialmente vinculados à família. Peri associa-o ao papel
que ele assume como provedor e cuidador ao papel cumprido por uma família. Destaca-se
assim a sobreposição entre o espaço familiar da infância: [...] Aqui é uma estadia da gente. É
um... é um... é uma coisa que a gente vem pra morar. Ficar. Tomo banho todo dia. Troca roupa limpa
todo dia. [...] Aqui nós recebemos cinco refeição por dia. [...] Praticamente aqui todos aqui são uma
família aqui dentro, né? [...]
.
Tal figuração do abrigo como provedor remete a outro aspecto importante relacionado
à infância: o sentido igualitário com quem simbolizam a vida em família encontra certa
ressonância no tratamento semelhante pelo qual são cuidados. Tal fato é vinculado a outra
característica destacada daquele período distante em suas vidas: a alimentação em comum.
Esta os faz iguais, como eram com os familiares, sem distinção e exclusão que socialmente os
126
marcaram na vida anterior ao asilamento: [...] Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se
está doente, se sente uma dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente [...]
(Ava).
Todos os entrevistados delineiam o abrigo, na terceira figuração digna de destaque,
como perda de autonomia, ocorrida antes da internação, com a conseqüente dependência de
outrem. Neste caso, realçam a ausência de alguém a quem possam recorrer. O abrigo é este
local acolhedor, figurado como “tábua de salvação” e último recurso daqueles que sem ele
encontrar-se-iam inteiramente sozinhos. Funciona, pois, como um local de inclusão de
pessoas socialmente excluídas e que se figuram como vitimizadas.
Para Iole, a separação conjugal foi percebida como uma primeira ruptura, pois o
marido a trocou por outra pessoa. Vivia só antes de ir para o abrigo, mas reclama da ida para
lá, pois isso parece explicitar outro rompimento e quebra de continuidade de seu lar, ao afastá-
la do espaço doméstico a que se apegara. A percepção do abrigo está, portanto, associada à
solidão e às perdas ocorridas em suas vidas como último refúgio: [...] Uai!, viveu... viveu uma
vida bobage. Viveu uma vida besteira purinha! [...] Uai, ele... [ex-marido] ele arrumou outra! [...] Ah,
eu não senti bem nada em vir pra cá não! [...] Se não tivesse me trazido eu estava lá. [...] Era minha
casinha. [...] E eu tomava conta de lá [...].
Lude conforma-se com o fato de morar no abrigo por
não haver outra possibilidade de escolha: [...] Aqui não é bom, não, mas o quê que vai fazer, né?
Eu porque estava... estava... pra casa de um, pra casa de outro, sem lugar [...]
.
Outra representação destacada pelos idosos do abrigo demarca-o como um local de
permanência provisória. Nove entrevistados (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Zica, Irajá, Peri e
Aog) percebem-no assim como um local de espera para o retorno ao lar; para a casa de algum
familiar; ou para retomar a vida anterior. Parece aqui ocorrer uma distorção
28
do referente,
pois nenhum dos entrevistados, ou mesmo da maior parte dos idosos abrigados, deixa de viver
no abrigo. Há nesta configuração a marca de que a vida atual não lhes é satisfatória, pois se
contrapõe à estranheza do abrigo e da reunião circunstancial de pessoas que nele vivem ao
espaço privado e familiar, figurado como mais acolhedor. A instituição, mesmo que, por
ancoragem, passe a ter significados de acolhimento, não se lhes figura completamente como
um espaço doméstico, sempre para eles configurado como mais hospitaleiro: [...] Eu tinha uma
vontade de voltar pra casa da minha irmã! Porque família é família! [...]
(Doca). Para as
28
Na distorção, segundo Jodelet (2001, p. 36), “todos os atributos do objeto representado estão presentes,
porém, acentuados ou atenuados, de modo específico”. Dentre eles, há um mecanismo de inversão em que,
exemplifica-se, “o dominado apresenta as características inversas às do dominante; assim, a imagem da criança
autêntica é o reflexo invertido da imagem do adulto na sociedade”. Doravante, quando citado, tal conceito –
assim como outros retirados da mesma autora que serão apontados – aparecerá em itálico.
127
entrevistadas Ava e Zica, há muitos anos no abrigo, mesmo sem muita perspectiva de dele
sair, este se traça como um local de espera, visto que afirmem o desejo de retornar para as
suas casas
29
.
Os demais entrevistados (Suyá, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Iole e Lude), por sua vez,
percebem-no como um local permanente de moradia, visto não haver outra possibilidade de
escolha, aceitando a realidade que a elas se apresenta. O abrigo, por meio da ancoragem,
passa a significar, com as novas representações que se constroem a partir das antigas, um
novo lar. A entrevistada Tiana, inclusive, explicita satisfação por morar nele: [...] A escolha
acho que é essa que eu estou aqui agora. Uai, minha filha, é isso que eu escolho, né? É essa vida que
eu estou vivendo aqui é que eu esco... que eu escolho [...]
. Excetuam-se apenas Iole e Lude, que,
ao negar qualquer valor à vida atual, conformam-se em apenas esperar a morte: [...] Não quero
fazer nada porque agora eu não tenho possibilidade de fazer mais nada, né? [...] Mas, ah, tenho
planos de morrer, morrer! [...]
(Lude).
Para Celeste, além de a instituição ser representada como um local de acolhimento a
pessoas que estão sozinhas, e, portanto, não têm a quem recorrer, destaca-se, paradoxalmente,
tanto como um local de espera fim da vida, quanto explicita a expectativa de ela dele sair para
fazer o que deseja: [...] É a morte que eu estou esperando, né? E peço a mamãe todo dia pra ela vir
me buscar. [...] Aqui eles fala que a gente... Eles morre aqui, mas eles veve... vive lá no céu [...] Eu
tenho uma vontade de sarar! [...] Eu tenho vontade de andar, né?, de ir nos lugar, porque [a perna]
atrapalha um pouco pra andar, né? [...]
.
A sexta configuração (Miro, Celeste, Ava, Doca, Ina, Lude, Irajá e Aog) digna de
destaque ressalta, negativamente, o abrigo como um local de restrição da liberdade, visto que
impossibilite a efetuação de escolhas. Ele assim é visto como um local impeditivo. Nota-se,
em certos casos, que a percepção que se tem do abrigo é uma extensão da própria história de
vida, marcada por uma série de perdas que a foram destituindo de sentido. Embora Doca
considere o abrigo como um local sagrado, porque provedor, contraditoriamente afirma que
ele é restritivo, pois diminui a sua possibilidade de efetivar o que quer, destituindo-a de
direitos, pois permanentemente ela depende de alguém que, sobrecarregado, conforme afirma,
não pode realizar seus desejos: [...] Aqui, consagradamente, eu já conversei com eles tudo aqui, é
um sagrado lar. [...] E as funcionária têm que dar desconto porque não tem tudo na hora. [...] Mas
aqui eu não tenho direito de pedir nada! É muita coisa que a gente precisa e... e não tem [...]
.
29
Tal questão será retomada no tópico denominado Intramuros: a espera pelos familiares.
128
Lana, contudo, ao contrário deles, percebe o abrigo como um local que propicia
liberdade, visto que ela o contraponha aos maus-tratos sofridos antes pela nora e pelo filho. O
abrigo, assim sendo, é visto como um local que, por propiciar cuidados, implica liberdade de
efetuar escolhas, ao contrário da violência que vivenciava em família: [...] E aqui, oh, eu vivo
bem: eu saí do inferno e caí no céu, né? [comparação da vida atual com o período em que morava com
o filho e a nora.] [...] Porque aqui, oh, a gente tem mais liberdade [...]
.
As entrevistadas Aracê, Lana, Zica e Lude também destacam a instituição como um
local de acolhimento e cuidados. No entanto, elas o percebem como um local para pessoas
inválidas e esclerosadas, ou seja, que não têm consciência do que fazem. O abrigo, desse
modo, é percebido como um local que não impõe restrição de acolhimento, pois abriga
pessoas com características físicas e mentais diversificadas: [...] Eu tenho muito desgosto daqui.
[...] Porque é muita gente falso, muita gente defeituoso [...]
. (Zica). Para Zica e Lude, ademais, o
abrigo se mostra como um ambiente estranho, arriscado e até mesmo de perigo para a vida,
uma vez que abriga pessoas com diversas debilidades mentais: [...] Aqui tem uns doido que Deus
me livre! [...] Se eles entrar aqui o dia que eles está na onda de loucura neles, eles pode fazer
qualquer coisa com a gente, né? Pode machucar muito, pode me matar. E ainda sair matando uma
véia aí, oh! [...]
(Lude). Tal imagem parece, contudo, realçar marcadamente diferenças: o
enunciador se postula saudável, por suplementação
30
, vítima de um companheiro estranho,
perigoso ou mentalmente deficiente. Nesse sentido, o abrigo nada tem de familiar, visto ser
tudo ali figurado como desconhecido, pois está desvinculado do tipo de vida que levavam,
seja em relação aos vínculos que mantinham e aos hábitos anteriormente criados, seja quanto
aos bens materiais que possuíam. Assim, elas o vêem como um local de não pertencimento,
visto que a vida pelo abrigo propiciada esteja desvinculada das suas histórias e estilos de vida
estabelecidos no período anterior ao ingresso na instituição. Este é mais um dos aspectos que
contribui para a “mortificação do eu”. Segundo Goffman (1961, p. 28-29):
[...] um conjunto de bens individuais tem uma relação muito grande com o
eu. [...] No entanto, ao ser admitido numa instituição, é muito provável que o
indivíduo seja despido de sua aparência usual, bem como dos equipamentos
e serviços com os quais a mantém, o que provoca desfiguração pessoal [...]
A perda de um sentido de segurança pessoal é comum, e constitui um
fundamento para angústias quanto aos desfiguramento.
30
Na suplementação, conforme aponta Jodelet (2001, p. 36), conferem-se “atributos e conotações que não lhe
são próprias ao objeto representado, [...] um acréscimo de significações devido ao investimento do sujeito
naquilo e a seu imaginário”.
129
Irajá é uma exceção. Representa a instituição como um local restritivo, visto que não
atenda às necessidades básicas por ela apresentadas: o abrigo não cuida bem da sua saúde e
não propicia a atenção e cuidados que ela requer. Por outro lado, paradoxalmente, ela se
conforma por ser esta a sua única possibilidade de prosseguir com a vida, visto que se depare
com a impossibilidade de cuidar de si mesma em função das limitações da saúde: [...] Ah, eu
achei ruim de vir pra cá porque casa dos outros não vai não! [...] Você pede um remédio, não tem.
Pede outro, não dá. Pede outro, some. Pede uma coisa, não dá. [...] Mas o quê que eu vou fazer, né?
Eu, sozinha, como é que eu andava? [...]
.
Cabe ressaltar, acerca destas representações, que o idoso, ao ser abrigado, conforme
aponta Medeiros (1981), é separado de seus hábitos anteriores de vida, de pessoas a ele
significativas e de referenciais que o permitiam ter o seu próprio mundo. A vida no abrigo,
por sua vez, é limitada e muitas vezes se configura para os abrigados como impeditiva para o
idoso reconstruir seu próprio espaço, perdendo ele seus antigos referenciais e não criando
novos, tendo em vista a dinâmica da instituição. Desse modo, ele se perde no espaço do outro
e passa a fazer parte do abrigo apenas como mais um elemento, sem sentido, no meio de
tantos iguais.
Há um risco, pois, de o idoso não assumir sua vida na instituição por sentir-se
homogeneizado, tendo perdido suas características individuais. Sem reconstruir novas
significações, o idoso pode isolar-se da vida presente dando sentido a sua vida atual apenas
pelo passado:
[...] La reminiscencia es un mecanismo que ayuda a solucionar la crisis de
identidad producida por el proceso de envejecimiento, ya que con ella el
adulto mayor logra perpetuar su pasado en el presente. Una de las principales
reminiscencias reportadas fue su añoranza por la situación del anciano en
épocas pasadas, sobre todo lo relativo al respeto e importancia de la figura
del anciano dentro de la familia y de la comunidad
(FERNÁNDEZ;
REYES, 1996).
Cumpre também destacar que, embora os abrigos sejam destinados ao acolhimento de
pessoas da terceira idade, apenas Suyá e Aog referiram-se a ele como um local de abrigo a
idosos. Curiosamente são estes os que têm neles maiores privilégios: Suyá mora na única casa
dentro da instituição; Aog foi viver lá sem ter 60 anos, idade na qual se encontra o marco
inicial que define o idoso.
Davim et al. (2004) afirmam que os abrigos geralmente são locais inapropriados e
inadequados às necessidades do idoso, visto que não lhes oferecem assistência social,
cuidados básicos de higiene e alimentação. Além disso, os abrigos dificultam as relações no
130
contexto comunitário, indispensáveis à manutenção do idoso pela vida e pela construção de
sua cidadania. Os entrevistados, contudo, exceto Irajá, configuram positivamente os dois
abrigos em que vivem em relação a tais problemas. Cumpre destacar assim que tais abrigos,
por suas condições materiais oferecidas, não se enquadram numa definição de local não
propício em termos de saúde e alimentação.
Restrições e autonomia
O principal motivo que levou à institucionalização dos entrevistados foi a perda da
autonomia em função da limitação física. Na impossibilidade de cuidarem de si mesmos ou de
ter quem deles tratasse, o abrigo lhes oferece tais cuidados. Este, no entanto, reforça-lhes
limitações, pois cerceia ainda mais a vida com as restrições de mobilidade e as regras ali
impostas
31
. Tais figurações, contudo, são, em geral, bastante paradoxais, pois ora contrapõem
os limites presentes na instituição a uma antiga liberdade que almejam novamente obter; ora
figuram esta como perdida e o abrigo, mesmo com suas normas, é a melhor opção que pode
haver atualmente para eles.
A vida no abrigo, para Iole e Lude, figuram as restrições no abrigo como limitadoras e
não encontram mais razões que justifiquem suas vidas ali ou em outro lugar. Não há, pois, o
desejo de liberdade, mas apenas a constatação de que os limites da instituição encontram-se
em consonância com os de suas vidas:
[...] Pra mim... nenhum... não serve nenhum lugar. Eu peço
demais pra Deus ter misericórdia de mim, sabe? Me tirar eu desse mundo [...]
(Iole).
As entrevistadas Ceci e Tiana, ao também associar a condição atual como fim do seu
ciclo de vida, manifestam espera da morte. Não associam, contudo, isso às limitações trazidas
pelo asilamento, mas como resultado dos limites impostos pela própria vida ou pela doença:
[...] Daqui em diante eu penso só em morrer. Só morrer. Eu não tenho vontade de nada, não! [...]
Então quando ele vê que eu mereço desencarnar, ele vem, recolhe meu espírito, porque eu sou filha
dele [...]
(Ceci).
Suyá e Miro configuram a limitação apenas à doença. A instituição é positiva por lhes
ajudar neste momento: ou a melhorar; ou propiciar tudo que necessitam para viver em suas
atuais condições de saúde. Miro, nesse sentido, afirma: [...] Eu acho que não espero nada mais,
31
Tal questão foi tratada no tópico Institucionalização do idoso na Introdução.
131
não! Derrame é duro de sarar. [...] Eu nunca ouvi falar em derrame sarar [...]. Suyá, inclusive, é
um caso à parte, pois, como se viu, gozou de completa liberdade de ir e vir até não poder
mais, em virtude de sua condição física, se locomover sem riscos.
Celeste, Doca, Ina e Aog apontam certas restrições no abrigo e manifestam
insatisfação em ali estar. Todos os quatro, no entanto, dizem que lá estão porque não há outra
solução. Paradoxalmente, contudo, figuram mais fortemente do que os entrevistados
anteriores o desejo de autonomia ao expressar a vontade manifesta de retornarem para uma
maior liberdade configurada para eles na vida externa do abrigo. Pretendem, assim, dele sair e
reviver no futuro esta independência que crêem ter tido no passado. A fala de Aog
exemplifica tal aspecto: [...] Quando eu sair, por exemplo, se eu conseguir isso, aí eu vou ser uma
pessoa assim... eu vou ter mais liberdade, né? [...] Vou poder ir aonde eu quero, por exemplo, e
participar mais das coisa, o qual eu não estou participando nada disso aqui [...]
. Além disso, a
entrevistada Doca, como já se viu, configura as restrições por não ter quando deseja as coisas
que quer.
Os entrevistados Ava, Zica e Peri representam a vida institucionalizada como
vinculada a restrições. Explicitam assim o desejo de retomar uma antiga autonomia figurada
por eles no fato de poder voltar a viver fora do abrigo. No entanto, embora destaquem os
limites que os cercam ali, delineiam como positiva a permanência na instituição, não se
furtando a participar de atividades ou de querer realizar algo lá dentro. A fala de Peri confirma
tal afirmação: [...] Eu tenho vontade de levar a vida... a vida normal. Normal é a que sempre tem: é
estudar, é fazer uma coisa, fazer outra [...]
. A entrevistada Lana, além de considerar boa a vida
no abrigo, manifesta o desejo de maior liberdade, sem, contudo, expressá-la em comparação
com a vida anterior ao asilamento.
A instituição asilar, no entanto, não deveria ser assim figurada; com efeito, mesmo
com as restrições a ela inerentes, seria preciso que nela sobressaísse o bem-estar do idoso:
[...] Muitos idosos encaram o processo de institucionalização como perda de
liberdade, abandono pelos filhos, aproximação da morte, além da ansiedade
quanto à condução do tratamento pelos funcionários. Tem de se levar em
conta que o abrigo cumpre o papel de acolhimento ao idoso excluído da
sociedade e da família, abandonado e sem um lar fixo, podendo se tornar o
único ponto de referência para uma vida e um envelhecimento dignos
(FREIRE JÚNIOR; TAVARES, 2004/2005, p. 152).
Dever-se-ia, pois, mesmo com restrições inelutáveis, estimular a busca de autonomia
dos abrigados, pois o bem-estar na instituição parece estar associado à possibilidade de
escolha do que se deseja realizar. Poder escolher é algo, inclusive, assimilável à cidadania, o
132
que, além do bem-estar físico e imediato, pode acarretar, a longo prazo, a percepção de que a
autonomia propicia a todo idoso o sentido de inclusão social de que ele parece carecer:
[...] Na etapa da velhice, é comum observarmos que as pessoas que cercam o
idoso freqüentemente têm atitudes que contribuem para que ele vá perdendo
a sua autonomia. Uma das piores formas de exclusão do idoso é seu
isolamento em casa ou seu asilamento e na maioria das vezes a família,
seguida pela sociedade e o Estado, aparece como responsável pela maior
expropriação da autonomia do idoso
(BRAGA, 2001, p. 4).
No abrigo, figura-se uma busca incessante de situações que propiciem a realização de
escolhas. Tal marca se nota, sobretudo, quando os entrevistados destacam as tarefas que
executam. O desejo de melhora do estado de saúde é freqüentemente apontado como meio de
readquirir autonomia. Mesmo em pequenos detalhes nota-se o cuidado deles em destacar a
importância da autonomia, seja nos cuidados físicos para não depender de alguém; seja pela
ausência de coisas que tinham e que não são, por alguma ancoragem, ressignificadas. O valor
de trabalho, por exemplo, não é substituído.
Suyá, Lana e Doca apontam os cuidados para consigo mesmas como a maneira de não
se tornarem dependentes dos cuidados de um outro. Figuram o que querem pelo que evitam:
tornarem-se dependentes como alguns companheiros de abrigo. Isto se verifica no depoimento
de Suyá: [...] Mas... eu não gostaria de ficar assim, igual os meus colegas, na cadeira de roda. Assim
é triste, muito triste, né? [...]
. Miro também relaciona autonomia aos cuidados físicos. Pratica,
assim, exercícios de fisioterapia para obter autonomia. Seu escopo, no entanto, é poder sair do
abrigo:
[...] Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço até demais! [...] Espero fazer muita coisa
ainda. [...] Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? [...]
.
Ava, Ina, Iole e Aog negam o presente pelo destaque da figuração do passado ou da
melhora futura. O trabalho, em alguns casos, só é incluso na afirmação deles ao retorno ao lar,
como se a volta à casa recuperasse o sentido existencial, sobretudo pelo espaço de autonomia
e identidade, expressos, no caso de Ava, nos pronomes possessivos que lhe asseguram pelo
retorno ao passado o sentido do presente: [...] Ah!, lá em casa eu vou... vou... plantar minhas
cebola, eu vou arranjar meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minhas galinha... [...]
. A
autonomia, no entanto, é por eles representada como algo vislumbrado apenas mentalmente.
Seis entrevistados (Aracê, Lana, Ava, Tiana, Doca e Peri) destacam que a autonomia e
independência obtêm-se pelo trabalho. O trabalho, assim sendo, propicia significado à vida.
Nota-se, pois, nesta representação a contraposição do sentido inclusivo pelo qual figuram o
trabalho antes da internação. Como não mais conseguem trabalhar, em função das limitações
133
impostas pela doença, a autonomia lhes parece negada. Para Tiana, por exemplo, a vida deve
se moldar em conformidade com uma certa exigência social, isto é, uma pessoa só adquire
valor se trabalhar e produzir. Sendo assim, ela delineia a falta de expectativa na vida pela
impossibilidade de exercer, em função da doença, algum tipo de trabalho: [...] Não penso em
fazer mais nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como eu trabalhava [...]
.
Lude responsabiliza um outro pela perda de autonomia. Atribui assim às atitudes da
filha, que pegara todo o dinheiro de sua aposentadoria, o desinteresse pela vida: [...] Eu não
tenho iniciativa pra nada mais. Não quero fazer mais nada. Depois disso pra cá, que a menina [filha
adotiva] pegou o meu dinheiro, acabou! Pode dizer que eu morri e vivi outra vez [...]
.
Convivendo na instituição
A convivência no abrigo de idosos implica uma série de questões de difícil contorno;
com efeito, agregam-se pessoas com diferentes históricos de vida que estão ou se figuram
impossibilitadas de tomar suas próprias decisões. Há, pois, evidente ruptura com o passado
para, talvez permanentemente, viver uma vida institucional que rompe com o que passa a ser
um espaço exterior, mas no qual, até então, habitavam. Além deste convívio mútuo entre os
internos, numa ao menos aparente situação de iguais, estão também presentes os funcionários
que lá trabalham (GOFFMAN, 1961). Cria-se com isso uma situação hierárquica que implica
maior dificuldade nas relações:
[...] As instituições, por serem praticamente formadas só por velhos, com
exceção das pessoas que lá trabalham, criam uma situação muito diferente da
que existe no mundo real. Com o tempo, o velho perde contato com crianças
e com pessoas do sexo oposto. As instituições não são pensadas como um
lugar para onde as pessoas vão para uma temporada de longa duração
(ZIMERMAN, 2000, p. 97).
Os relacionamentos entre si e com os funcionários do abrigo são mencionados por dez
entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Aracê, Lana, Ava, Tiana, Zica, Peri e Aog). Cinco (Ceci,
Doca, Ina, Iole e Lude) ressaltam apenas sua convivência com os colegas abrigados. Irajá
destaca apenas o seu convívio com os funcionários do abrigo.
A maioria dos entrevistados mantém pouco contato entre si, com exceção de Tiana,
Doca e Zica que se mostram próximas umas das outras.
134
Embora haja pouco contato, sete entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Lana, Ava, Tiana
e Peri) apontam como satisfatória a convivência em relação aos colegas abrigados,
respeitando as diferenças existentes entre eles. Essa disponibilidade apresentada por eles
parece, contudo, querer destacar que são pessoas de fácil convivência. Tal figuração parece
estar relacionada com o fato de que há, nas instituições, maiores gratificações quando os
internos apresentam comportamentos maleáveis (GOFFMAN, 1961).
Aracê, Zica, Iole, Lude e Aog não aceitam o comportamento de alguns colegas. Ao se
indisporem com determinadas atitudes, figuram não compreender nem aceitar algo
fundamental nas instituições: as diferenças ali presentes. Desse modo, preferem isolar-se: [...]
[...] É muito bão a minha convivência aqui. [...] Não!, quer dizer: têm umas pessoas que eu nem não
converso. [...] Inclusive eu até saí da mesa [para fazer as refeições] por causa disso [...] Agora eu
sento num cantinho que tem lá, mas fora da mesa, já pra evitar confusão, né? [...]
(Aog).
Tais entrevistados, apesar de apresentarem doenças, crêem que, no tocante ao aspecto
mental, se mantenham saudáveis. Tal fato lhes estabelece diferenças intransponíveis, pois daí
decorre que efetuem uma discriminação baseada na avaliação que fazem da sanidade dos
outros abrigados: [...] As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, tem umas aqui que não vai, não! É
tudo doido. [...] Não compensa conversar, não! [...]
(Zica). Observa-se o aspecto mental como
parâmetro de comparação e aceitação ou segregação do outro. Baseados em tais diferenças,
representam-se positivamente, sugerindo uma supremacia em relação aos demais. Parece aqui
ocorrer o efeito da suplementação; com efeito, há aqui:
[...] uma tendência a projetar em outra pessoa traços que se possui, sobretudo
se acreditarmos que esses traços são avaliados desfavoravelmente; a
projeção sobre outro serve para restaurar a auto-estima, uma representação
do outro conforme a si mesmo valoriza sua própria imagem, construída a
partir de grupos de referência
(JODELET, 2001, p. 36).
Ceci, Ina e Iole configuram como conflituoso o pouco contato que estabelecem com os
colegas. Ceci aborrece-se com eles por terem expectativas futuras. Além disso, sente-se,
porque é do bem, ameaçada pelos outros: [...] Eu aqui eu sou muito perseguida porque eu sou
filha de Jesus. [...] Aqui é bom-dia e boa-tarde que eu dou. Não fico de xodó fazendo rodinha na beira
da cadeira de ninguém, não, porque elas gostam de ilusão e eu não gosto [...]
. Ressalta-se outra vez
a diferença. Neste caso, acentuada por elo divino. Há aqui um acento da diferença que
preserva o ego de uma possível padronização institucional, evitando sua mutilação
(GOFFMAN, 1961).
135
Duas entrevistadas, Celeste e Lana, apresentam conflito com funcionários, visto que
estes ajam de modo que as contrarie. Elas parecem não aceitar as restrições impostas pela vida
na instituição. Os funcionários, contra os quais se rebelam, possivelmente representa para elas
tais limites: [...] Aqui tem uma enfermeira que implicou comigo. [...] porque essas pessoa muito
fraca, principalmente essa [idosa abrigada] que passa aqui sempre, é muito agarrada comigo. [...] E
ela [enfermeira], enciumando, diz que eu não sou enfermeira, não posso cuidar, nem nada [...]
(Lana).
Irajá reclama dos funcionários, mas parece não entrar em conflito com eles. Afirma
não ser atendida e crê, com relação aos demais abrigados, que lhe é dada pouca atenção.
Figura assim uma carência que parece estender no abrigo a desconsideração social de que se
sentia vítima antes de nele ingressar:
[...] Eu não converso com as enfermeira não! [...] Elas não
conversa. [...] Quando acaba de doar a janta, elas fica doida! Deita a... as de cadeira de roda, fala
com elas, deita tudo e vem, apronta e vai embora [...]
.
Tais aspectos condizem com o que afirma Goffman (1961, p. 18-19) sobre as relações
estabelecidas entre os internos e os funcionários das instituições totais:
[...] Geralmente, os internados vivem na instituição e têm contato restrito
com o mundo existente fora de suas paredes. A equipe dirigente muitas
vezes trabalha num sistema de oito horas por dia e está integrada no mundo
externo. Cada agrupamento tende a conceber o outro através de estereótipos
limitados e hostis - a equipe dirigente muitas vezes vê os internados como
amargos, reservados e não merecedores de confiança; os internados muitas
vezes vêem os dirigentes como condescendentes, arbitrários e mesquinhos.
Os participantes da equipe dirigente tendem a sentir-se superiores e corretos;
os internados tendem, pelo menos sob alguns aspectos, a sentir-se inferiores,
fracos, censuráveis e culpados.
Para os demais entrevistados, em contraste com a afirmação acima descrita, há
evidência de bom relacionamento com os funcionários. Estes, por serem considerados
superiores e serem de quem se dependa, são em geral respeitados em toda instituição [...] Eu
gosto muito deles daqui. [...] Só tenho que gabar, porque são todos muito bão. Trata a gente muito
bem! [...]
(Tiana).
Nota-se que a convivência no abrigo, de modo geral, é delicada, pois o convívio diário
entre as pessoas, que anteriormente não se conheciam, é ali estabelecido pela primeira vez.
Não há, pois, possibilidade na escolha dos relacionamentos, visto que se torna obrigatória a
convivência mútua. Goffman (1961, p. 31), nesse sentido, afirma:
[...] Nas instituições totais há outra forma de mortificação; a partir da
admissão, ocorre uma espécie de exposição contaminadora. No mundo
externo, o indivíduo pode manter objetos que se ligam aos seus sentimentos
136
do eu - por exemplo, seu corpo, suas ações imediatas, seus pensamentos e
alguns de seus bens - fora de contato com coisas estranhas e contaminadoras.
No entanto, nas instituições totais esses territórios do eu são violados; a
fronteira que o indivíduo estabelece entre seu ser e o ambiente é invadida e
as encarnações do eu são profanadas.
Percebe-se que grande parte dos problemas que emergem da convivência nas
instituições está ligada aos relacionamentos que são estabelecidos naqueles locais. Assim
sendo, é importante, segundo afirmações de Zimerman (2000), que os idosos saibam lidar
com as diferenças que, porventura, possam existir entre eles, sobretudo no que refere às
diferenças sociais, econômicas, culturais, religiosas e de temperamento. Além disso, eles
podem se deparar com alguns idosos que aceitam estar na instituição, bem como com outros
que comumente se queixam e mostram-se, com freqüência, doentes e deprimidos.
A família longínqua
O distanciamento dos familiares, conforme explicitado pelos entrevistados Suyá, Miro,
Ceci, Irajá, Peri e Aog, ocorreu no período anterior ao ingresso deles no abrigo, por serem
frágeis os vínculos afetivos. Para os demais, com exceção de Lana e Ava, esse distanciamento
se intensificou após o ingresso na instituição. Estas duas entrevistadas, embora mencionem o
distanciamento de alguns dos familiares, apontam a permanência de contato freqüente com
outros. De modo geral, o distanciamento familiar é representado como uma fragmentação da
estrutura familiar ocorrida depois da infância. A dispersão daí decorrente enfraqueceu
vínculos. A ida para o abrigo, no entanto, marca, indelével, a consumação da separação, pois
lhes configura o afastamento.
O falecimento da mãe, para Suyá, é apontado como a causa da separação dos filhos
desde sua infância. Embora ela aponte tal distanciamento, este hoje não se verifica em relação
a outros parentes, tendo em vista o recebimento no abrigo de visitas freqüentes de sobrinhas e
primas: [...] Depois é que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou. Separou tudo os
irmãos. Cada um foi pra um lugar, né? [...]
. Miro apresenta o distanciamento da filha como algo
que ocorrera ao longo dos anos, a partir da falta de contato e da não criação de vínculos
estreitos. Justifica que isto atualmente não pode ocorrer pelo fato de ela ser casada e ter
responsabilidades como mãe e esposa. Demonstra ser assim tênue o vínculo entre eles
137
estabelecido, fazendo que ela não o visite no abrigo: [...] Não tenho notícia nenhuma da minha
filha. Já está desligado há muitos anos já. [...] Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica
custoso [...]
.
Ceci indica que ela e os irmãos sempre mantiveram distantes uns dos outros.
Atualmente seus irmãos moram em outro estado, pois mudaram-se para tal local à procura de
melhor emprego. Eles não mantêm contato entre si e ela afirma que, mesmo quando moravam
na mesma cidade, não se interessavam por ter notícias dela: [...] Quando nós morava na mesma
cidade, eles [irmãos] não ligava pra mim. [...] Meus irmão ficou homem e foi embora pra Bahia. [...]
Eu não tenho contato com eles [...]
.
A vida de Irajá foi marcada por diversas perdas e ela revela que atualmente tem apenas
uma sobrinha viva. Esta não manifesta interesse por ela, tão pouco a conhece; por isso, ela
parece desdenhar da sobrinha, ao desmerecê-la: [...] Eu tenho sobrinha, mas não vale nada com
ninguém não! Nem me conhece! [...]
.
Peri e Aog, ao contrário desta, indicam a existência de familiares de grau de
parentesco próximo, embora mencionem distanciamento entre eles. Peri afirma desconhecer o
motivo de tal distanciamento: [...] Eu tenho irmão espalhado aqui e em um monte de lugar. É tudo
meio afastado da gente. [...] Não sei porquê que afastaram [...]
; Aog, embora diga que mantenha
contato com as irmãs, revela, de modo contraditório, que eles não se encontram há vários anos
justificando o distanciamento pelo desinteresse delas em visitá-lo, bem como pela
impossibilidade de ele visitá-las: [...] Já tem uns vinte ano que eu não vejo essa irmã minha que
mora fora. Ela não vem cá e eu também não tenho condições de ir lá, né? [...] Da irmã que mora aqui
eu tenho notícia. [...] Mas deve ter mais de ano que eu nem lá [local onde ela mora e trabalha] eu não
vou. [...] Visitar aqui ela nunca veio [...]
.
A ida para o abrigo, para oito entrevistados (Celeste, Aracê, Doca, Ina, Zica, Iole e
Lude), determinou um maior distanciamento entre eles e seus familiares.
Percebe-se que o distanciamento dos familiares é justificado por fatores externos que
independam dos seus atos e comportamentos. Nove entrevistados (Miro, Celeste, Aracê, Ava,
Tiana, Doca, Ina, Zica e Aog) assim o representam. Há aqui uma espécie de mecanismo
defensivo, evitando se depararem com sentimentos decorrentes da solidão que os assolam e
não se responsabilizando por isso. No entanto, no caso de Lude, tal fato não ocorre. Ao
contrário, por considerar os familiares causa de suas mazelas, manifesta desejo de distância
deles, como se, ante a possibilidade de ser desdenhada, ressaltasse o seu desprezo, a fim de
138
que pelo ataque se tenha a melhor defesa: [...] E, tirando ela [filha adotiva], só uma sobrinha que
vem aqui muito de vez em quando. [...] Mas eu não faço muita questão não! [...]
.
Celeste, Aracê, Tiana, Doca, Ina e Zica apegam-se ao trabalho dos familiares e a falta
de tempo ou impossibilidade deles como justificativas do distanciamento, sendo relegados a
segundo plano.
Tiana apresenta o trabalho como justificativa dada por seus próprios familiares sobre o
distanciamento deles. Por outro lado, diferentemente dos demais entrevistados, mostra-se
ciente, enfrentando a realidade tal como a apresenta, de que tal distanciamento possa ocorrer
em virtude de desinteresse dos mesmos por visitá-la. Isto é expresso em sua fala e reiterado
pelos risos ao longo da entrevista. Estes parecem atuar como meio de enfrentamento das dores
com as quais depara, conforme se verifica na anotação do diário de campo sobre o significado
deste comportamento:
[...] De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito. Três,
quatro mês, cinco, seis. [...] Eles falam que está apertado por causa do serviço; que não tem tempo;
que não sei o quê. [...] Mas... não sei se é isso, não! Eu acho que é porque não quer vir [...]
.
Os entrevistados Ava, Doca, Iole e Peri justificam o distanciamento de certos
familiares, alegando desconhecimento dos motivos por que isso ocorre: [...] Ah!, os meus irmão
nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei porquê não! [...]
(Ava). Ina, em particular,
apenas menciona o distanciamento dos irmãos, sem apresentar justificativa de tal fato: [...]
Tenho um irmão aí que mora na mesma rua daqui, mas não vem cá de jeito nenhum! [...].
Nota-se que alguns entrevistados apresentam maior empenho em revelar causas para certos
parentes, talvez mais próximos, sem mencionar as de outros.
Observa-se que, com a ida para o abrigo, os laços familiares tendem a se atenuar, seja
em função da legitimação da separação e da distância física estabelecida entre eles e seus
familiares, ou pelo próprio afastamento que é decorrente de certo descaso da parte destes,
justificado pelos idosos por motivos externos, como trabalho e falta de tempo.
Morar no abrigo, portanto, implica em uma certa ruptura com o meio social. O
distanciamento dos familiares, após o período de ingresso no abrigo, parece reforçar a sua
imagem como um local de segregação, seja em relação ao mundo externo propriamente dito,
seja à continuidade dos tênues vínculos que lá mantinham.
Intramuros: a espera pelos familiares
139
Parece haver por parte dos idosos abrigados dois efeitos sobre os conteúdos
representativos da infância. Por subtração
32
, eles figuram-na suprimindo atributos que
possivelmente nela estiveram presentes. Sendo assim, nada se fala sobre os possíveis castigos
corporais que os pais costumavam aplicar aos filhos; por suplementação, conferem-lhe
atributos que lhe acrescem significação. É “devido ao investimento do sujeito naquilo e a seu
imaginário” (JODELET, 2001, p. 36) que eles contrapõem, na maior parte negativamente, a
pouca presença dos familiares no abrigo, desejando-lhes visitas, mesmo que apenas
esporádicas; positivamente, contudo, a maioria tem neles sua principal expectativa futura: a
saída do abrigo para morar com algum familiar.
Quase todos os entrevistados têm a expectativa de ter maior aproximação dos
familiares, mantendo contato, ainda que pouco, por meio de visitas dos membros de suas
famílias ao abrigo. Iole e Irajá, contudo, são exceções por não manifestarem expresso desejo
de que isso ocorra.
As entrevistadas Aracê, Lana e Tiana figuram a instituição como única realidade em
que podem viver. Mencionam, com relação aos familiares, apenas que gostariam de recebê-
los no abrigo, ou, como afirmam as entrevistadas Lana e Tiana, de elas esporadicamente
visitá-los. Nota-se que Tiana representa a questão como desejo que dela não depende, visto
que nada possa fazer quanto ao interesse dos familiares por ela: [...] Eu queria que os meus
parentes viessem ao menos uma vez no mês. [...] Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? [...]
.
Ina tanto ressalta o desejo de receber visitas dos familiares, quanto manifesta vontade de ser
cuidada por eles: [...] Os neto não pode zelar de mim. Mas bem que podia. [...] Mas, ah, eu queria
que eles viesse aqui, que a minha irmã viesse aqui, né? [...]
.
Ressalta-se, em relação às entrevistadas Ava, Doca, Ina, Zica e Lude, que elas têm
como expectativa serem cuidadas por seus familiares. Acentua-se, por distorção, o referente:
a família é vista como meio no qual deveriam viver. Tal figuração, contudo, é por elas
mesmas refigurado, já que, em outro momento, explicitam, justificando os familiares, a
impossibilidade de serem por eles cuidadas.
A expectativa que Ava e Zica têm das suas famílias está associada à possibilidade de
seus filhos poderem cuidar delas ante suas manifestas vontades de retornar para casa. A
entrevistada Ava depende da melhora do estado de saúde do filho que sofrera “derrame
cerebral”:
[...] Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou embora. [...]
32
A subtração, segundo Jodelet (2001, p. 37), “corresponde à supressão de atributos pertencentes ao objeto: na
maior parte dos casos resulta do efeito repressivo das normas sociais”.
140
Meu filho falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou
arrumar lá pra nós ir embora e vou levar a senhora [...]
; Zica, por sua vez, depende da mudança
de trabalho do filho, visto que, embora para ela o filho queira, não pode fazê-lo por morar
num local distante da cidade: [...] Vou ficando aqui até esperar o meu fio. [...] Ele só farta poder
me zelar [...] Enquanto ele estiver morando na chácara não tem jeito também não. A hora que ele vir
pra cidade, aí é bom, né? [...]
. Percebe-se, porém, que esse período de espera, que compreende
o tempo em que elas se encontram no abrigo, resulte, conforme se verifica em seus
prontuários, em pouco mais de dois anos para Ava; para Zica, em quase 6 anos. Há, portanto,
como meio de enfrentar a realidade, a expectativa como espera, a fim de amenizar a situação
presente ao se depararem com a possibilidade de não ser concretizado o que elas tanto
almejam. Pode-se dizer, além disso, que o bem-estar delas depende do outro e a condição
atual parece se resumir nesta expectativa.
Suyá, Miro, Celeste, Tiana, Peri e Aog apontam a antiga estrutura familiar da infância
como expectativa futura, por suplementação, idealmente imaginada como passível de
novamente ocorrer com os parentes que ainda permanecem vivos.
Suyá aponta o desejo de a família estar unida para que pudesse experienciar, de modo
idealizado, o funcionamento efetivo da antiga família, com todos os seus membros – pais e
filhos –, cada qual reocupando os lugares devidos e exercendo suas funções no meio familiar.
Desse modo, ao referir-se sobre a importância de uma família, declara que gostaria de ter
experienciado uma efetiva relação familiar, com a condição de ter sido criada sem que se
separasse dos irmãos. Como se encontra satisfeita com o abrigo, figura no passado algo que,
inclusive, evita no presente visto constate a impossibilidade de efetivação:
[...] Eu queria assim
que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado, né?, e que tivesse tido um lar mesmo, né? [...]
Acho triste, né?, triste da família ter esparramado [...]
.
Miro aponta o desejo de ter contato com a filha, com quem, desde a infância desta,
mantivera-se distante e ausente. Como já perdeu a mulher e o filho do segundo casamento,
parece, pois, dadas tais adversidades, querer recompor o antigo vínculo familiar da infância
dele com os pais. A filha distante lhe aparece, assim, como último elo desta possibilidade:
[...]
Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! [...] Ela veio uma vez lá na cidade
que eu morava. Só essa vez. Acabou! [...]
.
Algo semelhante é representado por Peri e Aog. Ao manifestarem que a convivência
familiar é responsável pela integração de membros de uma família, miram uma condição
passada que, em relação aos irmãos, gostariam que ocorresse em suas vidas. Aog, inclusive,
141
explicita a reunião familiar como uma “festa”, montando, assim, um cenário cuja figuração
discursiva aponta para este horizonte da infância entendido como um momento privilegiado
de suas vidas: [...] É a comunicação, é a convivência, né?, que importa da família. [...] Pra mim o
importante é isso porque tem várias família que não tem nem boa convivência [...]
.
Há, no entanto, quem configure a relação familiar pela perspectiva material. As
entrevistadas Celeste e Lude expressam desejo manifesto de receber ajuda financeira dos
familiares. Os afetos são aqui associados a bens. Já que parecem não poder, por desinteresse
dos familiares, receber-lhes afeto, o dinheiro serve como prova de atenção e cuidado. Além
disso, elas parecem fazer uma comparação entre elas e seus familiares, visto que eles muito
têm e elas nada possuem. Para Celeste, a desigualdade atual configura-se, invertida e injusta,
contrária à proximidade da infância: [...] Eu espero da minha família que eles me dá um pouco de
dinheiro pra comprar os trem que eu quero, né?, mas ninguém não me dá nem um tostão! [...]
. Ava
ressalta ganhos materiais dos filhos, mas destaca-os como prova de cuidado deles para com
ela:
[...] Ele [filho mais novo] tirou um terreninho pra mim e fez a casa pra mim. [...] Graças a Deus,
o meu filho não é ruim pra mim. O que mora em São Paulo sempre vem aí, traz roupa pra mim, traz
roupa de cama, traz roupa pra vestir. Tudo ele compra [...]
.
Tal é também a perspectiva da entrevistada Ceci. Os bens materiais que os parentes
possuem justificam o desinteresse dela, que não os possui, por eles; com efeito, considera-os
“metidos” e afirma não querer contato com os mesmos. O quadro é semelhante ao das
entrevistadas Celeste e Lude. Aqui, contudo, nota-se uma hostilidade mais acentuada. Ceci,
por distorção, ao não se permitir entrar em contato com referentes que possam lhe mostrar a
realidade marcada por abandono e solidão, modifica os significados, como meio de preservar
intactos os seus núcleos psíquicos, do que possa ser apenas desinteresse dos familiares em
relação a ela:
[...] Eu tenho uns parente aqui, mas eu não gosto deles, não, porque eles é metido a
rico. Eles é rico. [...] Eu não interesso por notícia deles não! Eu não dou confiança pra eles não! [...]
.
Há, pois, por parte de praticamente todos os entrevistados, uma marcada diferenciação
entre a vida familiar e o contraste desta com a instituição. Goffman (1961, p. 22), nesse
sentido, afirma:
[...] As instituições totais são também incompatíveis com outro elemento
decisivo da nossa sociedade - a família. A vida familial é às vezes
contrastada com a vida solitária, mas, na realidade, um contraste mais
adequado poderia ser feito com a vida em grupo, pois aqueles que comem e
dormem no trabalho, com um grupo de companheiros de serviço,
dificilmente podem manter uma existência doméstica significativa.
142
Como, porém, seus laços familiares antes e durante a vida no abrigo são tênues, eles
lançam a comparação para a infância, momento em que percebem a família em seus vínculos
e elos fortalecidos.
Convivendo com o lado de lá
A maioria dos entrevistados, com exceção de Ceci, Irajá e Aog, recebem visitas dos
familiares. Dentre eles, somente Suyá, Lana e Ava mantêm contato freqüente com alguns
deles: [...] Recebo visita do meu menino toda semana. [...] Recebo da minha prima que mora ali. [...]
Vem aqui uma cumade minha. Vem a minha sobrinha. [...] Sempre elas vêm aqui [...]
(Ava). Para os
demais, elas são esporádicas, num espaço de quinze dias ou, o que geralmente ocorre, mais.
Estas são assim marcadas pelos entrevistados:
[...] De vez em quando uns dos meus sobrinhos vêm
aqui. Minha irmã e meu cunhado vêm aqui de vez em quando. Quando eles pode vir, eles vêm [...]
(Celeste).
Nota-se, pois, o prosseguimento de um processo de ruptura com a família já ressaltado
na dinâmica. Acentua-se, contudo, tal corte pelo isolamento e distância que o abrigo lhes
parece representar. Além disso, é possível se entrever que os entrevistados percebem mais
claramente a separação dos familiares com a situação que lhes leva ao abrigo. O fato de que
nenhum familiar os assuma neste momento configura-se mais evidente.
Oito entrevistados (Suyá, Miro, Aracê, Lana, Tiana, Doca, Ina e Aog) demonstram
receber muitas visitas da comunidade, ou seja, de pessoas com quem eles, em grande parte,
não mantêm vínculo efetivo e, muito menos, afetivo. Deste aspecto, aliás, pouco se fala em
geral. Parece que eles criam – ou criaram por suas relações ao longo da vida – uma defesa de
vínculos mais estreitos a fim de evitar a frustração de uma futura ruptura: [...] Recebo visita de
muita gente. [...] Essas pessoas que vêm visitar o abrigo, né?
(Suyá).
Ina afirma receber visitas abundantes e freqüentes da comunidade, ou seja, de pessoas
que ali esporadicamente vão e com as quais, portanto, não mantém vínculos estreitos. Sugere
em sua fala, contudo, ter intimidade com elas. Parece ocorrer aqui uma compensação,
substituindo por ancoragem, o distanciamento dos parentes: [...] Recebo visita das amigas, né?
De vez em quando vem uma amiga. Aqui eu conheci elas [...]
(Ina). Age, assim, a representação no
sentido de aplacar uma possível dor em razão da distância dos familiares: as visitas freqüentes
143
da comunidade, embora não criem vínculos efetivos com os abrigados, servem como meio de
estes justificarem que não estão sozinhos e abandonados, ou seja, que são lembrados.
Os entrevistados Ceci, Irajá e Aog recebem visitas esporádicas de pessoas que
conheceram antes do ingresso no abrigo, o que evidencia terem com eles vínculos mais
próximos: [...] Recebo visita de conhecido. [...] Recebo de um... de um homem que tem um... um
centro [de umbanda]. [...] Ele mora no fundo de onde eu morava [...]
(Ceci). Nota-se que há uma
tendência a ocorrer, à medida que se envelhece, restrições nas relações sociais decorrentes,
dentre vários fatores, das perdas de pessoas próximas, da falta de estímulo e das limitações
físicas e psíquicas. Pode-se assim melhor evidenciar tal aspecto em idosos moradores em
abrigos, visto que neste local o contato social é ainda mais restrito.
As visitas da comunidade, no entanto, não devem ter minorada sua importância. Ao
contrário, elas permitem a estruturação da ancoragem que lhes faculta a possibilidade de
figurar elos com o espaço social exterior ao abrigo. Sluzki (1997a) e Valla (2000) (apud
FREIRE JÚNIOR; TAVARES, 2004/2005, p. 151) afirmam assim que:
[...] o apoio social contribui para manutenção da saúde das pessoas,
aumentando a sobrevida e acelerando os processos de cura; além de permitir
a superação de certos acontecimentos como a morte de alguém da família, a
perda da capacidade de trabalhar, a perda de papéis sociais, o despejo da
casa ou mesmo a institucionalização, entre outros. Assim, a rede de apoio e o
convívio com outras pessoas podem ser entendidos como verdadeira
estratégia de sobrevivência.
Representações da própria imagem
Pode-se dizer, conforme já se viu, que, antes de ir para a instituição, cada um carrega
uma “cultura aparente” derivada do “mundo da família”. Ao entrar na instituição, esta, pela
padronização ali imposta, contribui para a “mortificação do eu”. Há, pois, uma ruptura com o
espaço externo e as configurações lá formadas por cada um. Como “as pessoas atribuem
sentimentos do eu àquilo que possuem”, cabe à instituição, uma vez que o internado seja
despojado de seus bens, “providenciar pelo menos algumas substituições, mas estas
apresentam padronizadas, uniformes no caráter e uniformemente distribuídas. Tais bens são
claramente marcados como pertencentes à instituição” (GOFFMAN, 1961, p. 27). O interno,
144
desprovido de seu mundo anterior, deve assim reorientar-se sob normas e diretrizes
institucionais que se configuram como agentes de identidade dos idosos.
Percebe-se, em grande parte dos entrevistados, uma espécie de uma dissociação gerada
pela própria instituição; com efeito, a percepção que os entrevistados têm de si mesmos
aponta para as condições anteriores à padronização operada pelo abrigo. Em vista da
preservação do ego, as referências dos entrevistados são daquilo que possuíam antes da
institucionalização. Miro, sendo assim, valora-se pelos bens materiais que obteve, ou seja, um
indivíduo adquire valor se ele possuir uma gama de bens acumulados ao longo da vida. Tal
figuração parece recompor-lhe o ego mutilado pela solidão que vivencia no abrigo.
A percepção de si da maioria dos entrevistados (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ava,
Doca, Ina e Irajá) representa-os como sofredores e vítimas. A vitimização, neste caso, lança-
se para o exterior da instituição. A ida para o abrigo é apenas o arremate de um longo
processo de enfraquecimento de um ego figurado no mundo. A institucionalização opera
assim a mutilação de um eu que ora, retrospectivamente, se figura enfraquecido.
Muitos têm na doença precoce a configuração de uma percepção enfraquecida de si
mesmos. Aracê é a mais emblemática: o fato de ter sempre estado doente criou-lhe limitações
intransponíveis. Ressalta com isso a necessidade de cuidados e as limitações em relação à
vida: [...] Eu, desde a idade de cinco anos provocando desmaio, nunca podia ficar sozinha dentro de
casa porque o incômodo diariamente ele sempre provocava. [...] Por causa do desmaio eu não posso
fazer muito serviço e os remédios deixa a gente com a cabeça lerda [...]
.
Suyá e Lana justificam o sofrimento que lhes acompanha desde a infância. A perda
precoce dos pais é o marco inicial que lhes traça os limites na vida. O trabalho figura-se como
provedor e inclusivo, pois lhes assegurou enfrentar adversidades. Suyá, vítima de preconceito
racial, aponta a vida no abrigo como o avesso do que teve até então: ela, antes, pouco teve e
muito sofreu pela solidão; hoje, muito tem e pouco sofre, porque é cuidada: [...] Eu fui pra essa
casa onde morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar uma menina cedo, ainda mais de cor, né?
O povo tem muito preconceito, né? [...] Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a
gente já passou tão duro na vida! E agora eu tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de mim, né?,
quando preciso assim [...]
.
Ina representa-se como vítima de suas próprias decisões anteriores, reputadas como
equívocas. O casamento aos treze anos de idade; a figura ausente do marido; o aborto que
praticou, tudo é configurado como escolhas errôneas anteriores que são cobradas no presente.
A institucionalização, também neste caso, encontra um ego já enfraquecido: [...] É duro o que
145
eu estou passando. É triste! A minha vida é ruim demais! [...] Meu marido não prestava pra nada. Eu
criei filho sozinha e eu passava até fome. [...] Eu casei com treze anos porque gostei dele. [...] É
bobagem, né?, que eu fiz, né? [...]
.
As entrevistadas Lana e Ava representam a vida associada a uma predestinação. Para
Lana o sofrimento, desde a infância, é uma refiguração do padecer de Cristo. As coisas que
lhes acontecem, obras do destino, isentam-nas de qualquer responsabilidade
: [...] Eu acho que
nasci pra sofrer é porque é... desde criança fiquei sem pai, sem mãe, e vivia pras casa dos outro
pelejando, né?, pra viver. Então, eu acho que eu nasci pra sofrer até a hora da morte [...]
. Ava, no
entanto, declara contraditoriamente que cada um determina sua vida. Se a pessoa agir ou não
corretamente, fará que ela seja reconhecida de um ou de outro modo, dependendo do que fez.
Ora obra do destino, ora das próprias ações, o ego arca com forças a ele exteriores ou
constrói-se por suas próprias forças. Em ambos os casos, contudo, figura-se o presente pelo
passado: [...] A gente quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa mesmo! O que é da
gente é da gente. Eu tenho minha casa, tenho os meus trem, eu estou aqui, oh, desse jeito! [...] Ah!, a
vida da gente é assim mesmo! Depois a gente vai ficando de mais idade, é uma coisa e outra, né? [...]
.
Seis entrevistadas (Suyá, Celeste, Lana, Doca, Zica e Irajá) também apontam no
passado as figurações de sua percepção atual. O trabalho excessivo, neste caso, é descrito
como razão dos seus sofrimentos, visto que a vida fora marcada por muita luta e esforço. Ele,
no entanto, também lhes é figurado como norteador da vida, servindo como parâmetro na
avaliação deles mesmos. Ao mesmo tempo que seu excesso se afigura como sofrimento, sua
ausência os faz verem-se como incapazes, implicando, com exceções das entrevistadas Suyá e
Zica, a perda de sentido de suas vidas:
[...] Se eu lembrar de trem que eu já fui! Desde os quinze
ano que eu... eu era empregada pra pajiar criança dos outro. Eu sofria muito. Não era pouca coisa
não! [...]
(Irajá).
Parece haver sempre, pois, uma associação da vida passada com a atual. Reforçam-se,
porém, nesta os traços que os fazem ter a percepção de si mesmos associada à desvalorização
e inutilidade.
Há também a projeção do passado no presente em relação às doenças decorrentes da
idade. Neste caso, portanto, o passado é visto como causa imediata da ida para o abrigo. Há
aqui fortes sentimentos negativos associados à desvalorização e diminuição da auto-estima.
Isto pode ser verificado em relação à Celeste, Ava, Tiana, Doca, Ina, Zica e Irajá. A idade
avançada e as doenças acarretam a impossibilidade de efetuar escolhas, pois a vida se tornara
limitada. Doca assim afirma: [...] Porque, pensando bem, se eu for um... um... veja bem o meu
146
tamanhozinho, né? Se eu fosse uma criatura melhor de saúde, eu ajudava fazer alguma coisa de
serviço. O único incômodo que eu nunca tive: preguiça. Eu não fui criada com preguiça não! [...]
.
Celeste, Ava e Ina, além disso, fazem associação entre idade e incapacidade ou
desinteresse por realizar atividades de qualquer natureza. Eles parecem perceber que, com o
avançar da idade, a vida fica mais restrita, não tendo condições alguma de efetuar escolhas.
Celeste, sobre este aspecto, comenta: [...] Com a idade a gente vai ficando fraca e isso atrapalha a
vida da gente porque não dá conta de fazer as coisa [...]
.
Os entrevistados Ceci, Peri e Aog figuram a auto-percepção mais positiva. A
institucionalização, neste caso, por meio da ancoragem, cria objetivações positivas a partir de
esquemas fora do abrigo socialmente valorados. Ceci figura-se caridosa e praticante do bem, e
diz, como benzedeira, ter o dom da cura: [...] Eu sou benzedeira. [...] Eu faço caridade. Benzo as
pessoa só com prece. [...] Fiz prece com carta e sarou, né? [cura de uma pessoa que a procurou] [...].
Desapareceu na mesma hora. E diz que doía pior do que um trem! [...]
. Peri valora-se pelo saber,
pois, embora tenha pouco estudo, mostra-se conhecedor das coisas. Ele, assim, declara: [...]
Eu sei fazer muita coisa. Eu sei escrever. Eu sei ler. [...] E eu não tenho muito estudo não, hein?
Tenho o quarto ano primário só. [...] Não... não vem dizer que eu estou atrás de gente de... de sexta
série, de sétima série pra frente aí que me passa pra trás! Não me passa, não! [...]
. Aog destaca a si
mesmo pela sociabilidade que diz ter fora do abrigo e lá com os funcionários, pois descreve-
se distante das confusões dos demais abrigados: [...] Eu trato todo mundo bem aonde eu chego. E
aonde eu chego eu, graças a Deus, é, todo mundo fica gostando de mim. [...] Inclusive aqui mesmo
eles têm me admirado por esse fato aqui porque aqui tem muita confusão. Muita briga, discursão, né?
E eu estou sempre por fora, né? [...]
.
Iole e Lude também focam a percepção de si no presente em relação ao passado. No
entanto, aqui o contraste marca negativamente apenas a vida atual, pois anteriormente podiam
realizar escolhas:
[...] Antigamente eu tinha gosto na vida. Eu era alegre. Eu não era assim sem
força, não! [...] Hoje o meu caminho não tem sentido mais não! [...]
(Lude).
Os idosos, sobretudo os institucionalizados, em conseqüência da perda de papéis
sociais ou dos estereótipos acerca da longevidade, defrontam-se com crises provenientes com
o avanço da idade. Tal fato, conforme visto, faz que eles, em geral, figurem-se a partir do que
foi, lançando no passado as bases positivas e, sobretudo negativas, de sua própria imagem. O
ego enfraquecido percebe-se, por meio da exclusão pela qual figura a vida no abrigo, excluído
também na sua vida social anterior. À instituição, portanto, cabe propiciar condições para que,
em vez de mutilação, haja reconstrução deste ego enfraquecido que a ela chega. Isso, como se
147
depreende da representação de Ceci, Peri e Aog, é possível. Para tanto, o respeito à
individualidade expresso por seu histórico de vida é fundamental:
[...] Nessa problemática, o idoso institucionalizado constitui, quase sempre,
um grupo privado de seus projetos, pois encontra-se afastado da família, da
casa, dos amigos, das relações nas quais sua história de vida foi construída.
Pode-se associar a essa exclusão social as marcas e seqüelas das doenças
crônicas não transmissíveis, que são os motivos principais de sua internação
inclusive nas Instituições de Longa Permanência (ILP). [...] Pensadas como
cenários de cuidados, as ILP ainda constituem um desafio, principalmente se
contrastadas com a proposta da promoção da saúde, que se funda no
empoderamento, expressos, entre outros aspectos, pelo direito à
individualidade, muitas vezes interditado neste contexto
(FREIRE
JÚNIOR; TAVA RES, 2004/2005, p. 148)
.
Reativando o tempo
A questão da reativação no abrigo se liga de imediato a uma questão mais ampla: o
fato de que os idosos, em geral, após a aposentadoria tenham de enfrentar as conseqüências
do afastamento do trabalho. Este talvez seja, conforme aponta França (1999, p. 9-10), “a
perda mais importante da vida social das pessoas, pois ela pode resultar em outras perdas
futuras, que tendem a afetar a sua estrutura psicológica”:
[...] A aposentadoria e a inatividade podem assim levar a um sentimento de
depressão que conseqüentemente compromete a saúde do indivíduo. [...] Por
isso, mesmo para os idosos não abrigados, é preciso um planejamento de
vida para que se encontre uma nova organização das atividades diárias para
que haja mudanças no tocante [...] ‘à afetividade, à vida familiar, ao lazer, à
participação sociocomunitária’, bem como de um trabalho remunerado ou
voluntário que permita ‘enfrentar objetivamente as condições frustrantes a
que muitos aposentados ficam expostos’. Deve-se, contudo, ressaltar que tal
planejamento não se apresenta, via de regra, realizado pelos próprios
interessados. Ao contrário, [...] a falta da consciência, o fatalismo e certas
características de personalidade podem levar à acomodação e à espera de que
alguém, o ‘outro’, ou o governo tomem alguma atitude. [...] É preciso
destacar esta responsabilidade individual diante do coletivo e do próprio
destino. Walter Benjamin (1994) em Rua de mão única aborda a importância
da nossa interferência no planejamento de um dia: ‘A felicidade das
próximas vinte e quatro horas depende de que nós, ao acordar, saibamos
como apanhá-la’
(FRANÇA, 1999, p. 12).
A questão, se assim se apresenta em difíceis contornos para o aposentado
genericamente referido, é ainda mais difícil de ser enfrentada pelos idosos abrigados, cujo
planejamento parece por eles próprios figurado como pertencente inteiramente a um outro, a
148
instituição asilar.
No caso presente, podem-se separar as atividades dos entrevistados entre aquelas
realizadas fora ou dentro do abrigo. As primeiras são sempre planejadas pela própria
instituição asilar em cooperação com outras instituições. Dentro do próprio abrigo, por sua
vez, há atividades institucionais promovidas pela coordenadora sob a supervisão de
voluntários, cujo planejamento, portanto, é da instituição; há, por outro, atividades
voluntárias, ou seja, por iniciativa dos próprios idosos. Neste caso, algumas se realizam em
benefício da própria instituição, tendo uma dimensão coletiva; outras, no entanto,
permanecem no âmbito individual, para aumentar a própria renda, objetivando satisfação
pessoal.
Miro é o único a realizar atividades programadas fora do abrigo: [...] Lá no CEAI, eu
vou lá toda segunda e sexta. [...] Acho bão. Passa o tempo, né? [...]. Nota-se, pois, que ele
figura tais atividades como prazerosas e lúdicas, ocupando-lhe positivamente o dia. Parece
assim se apresentar dupla importância para quem tem disposição para realizar tais tarefas: sair
do espaço em que se encontra encerrado; ampliar socialmente o horizonte ao encontrar outros
idosos.
Os entrevistados Tiana, Zica e Peri realizam atividades internamente propostas pelo
abrigo. Estes lá realizam atividades associadas ao cotidiano escolar, como desenho, escrita e
leitura, a fim de aprender ou de exercitar o que não tiveram maior oportunidade de realizar ao
longo da vida: [...] A atividade que eu faço aqui é esse: escreve um pouquinho; lê um pouquinho [...]
(Tiana).
Por outro lado, Suyá, Aracê e Ceci realizam tarefas voluntárias para o próprio abrigo,
mas que não são por este planejadas. A principal atividade aqui é a de auxiliar os funcionários
na execução de tarefas. Cada uma delas, respectivamente, realiza o conserto das roupas da
instituição; auxilia os funcionários na realização das funções de cozinha e limpeza do pátio do
abrigo; responsabiliza-se por aguar as plantas do local. O depoimento de Ceci exprime tal
questão: [...] Eu faço a limpeza aqui no quintal. Varro, águo as planta tudo da manhã [...].
Suyá e Ava são as únicas que se ocupam com a realização diária de trabalhos manuais.
Tais atividades, além de voluntárias, são as únicas que permanecem na esfera estritamente
individual, com resultados efetivos e concretos. Observa-se que estes são realizados com mais
envolvimento e satisfação dos que aqueles feitos pelos demais entrevistados. Elas não
representam suas atividades no abrigo como mero preenchimento do tempo. Usufruem,
ademais, do produto de seus trabalhos. Além, pois, de eles darem significado para as suas
149
vidas, fazendo que elas se orgulhem de serem reconhecidas pelo que fazem, seus produtos são
vendidos para as pessoas que visitam o abrigo: [...] E também faço crochê. Fico aqui fazendo
crochê o dia inteiro! [...] Então a pessoa vem e gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre
trabalhando [...]
(Suyá).
Metade dos entrevistados, no entanto, permanece ociosa durante todo o tempo. Cinco
entrevistados (Celeste, Iole, Lude, Irajá e Aog), depois de ingressarem no abrigo, não
manifestaram vontade de realizar qualquer tipo de atividade. Este aspecto parece indicar um
reforço da condição do idoso aposentado acima mencionado, pois a permanência no abrigo
ainda mais se lhes configura como limitadora de ação, fazendo com que eles se desinteressem
por realizar atividades que não estão na esfera de seus desejos. Além disso, a ida para o
abrigo, para a maioria destes entrevistados, não dependeu de suas decisões, o que, em geral,
os contrariou, demonstrando eles assim ainda maior desinteresse pela vida que ali levam: [...]
Não faço nada aqui, não! E não quero fazer nada também não! [...]
(Lude).
Aog, por sua vez, manifesta indisposição para o trabalho, justificando-a, ao longo da
vida, por algumas doenças incapacitantes que apresenta. Desse modo, embora o trabalho seja
referido desde a infância, a ociosidade no abrigo é para ele uma extensão de sua vida
caracterizada por inatividade: [...] Aqui eu não faço nada. Não mexo com nada. Gosto de ficar mais
quieto [...]
.
Lana e Doca também justificam a ociosidade no abrigo pelas doenças que lhes
acometeram. Estas, tendo como base a representação que elas formulam da doença,
incapacitam-na de realizar qualquer tipo de atividade; algumas vezes, parece que se apegam
às doenças como meio de não realizar determinadas tarefas que elas não queiram cumprir: [...]
Eu já fiz muito tapete. Hoje eu não faço mais nada. [...] A doutora me proibiu de fazer porque de
olhar perto dói demais! [...]
(Doca). Além disso, Lana explica a ociosidade pelo fato de receber
tudo pronto do abrigo, não precisando realizar qualquer esforço: [...] Eu vivo aqui é matando
inseto. Não faço nada. Tenho tudo prontinho aqui [...]
. Afirma, contudo, a tentativa, mas
impossibilidade de realizar tarefas em razão de suas limitações físicas: [...] Nem pra varrer não
estou dando conta, né?, porque caindo à toa, né? [...]
.
Observa-se que a adoção de atividades que promovam a interação física e social do
idoso com o ambiente em que ele vive é, portanto, necessária, pois pode aumentar o seu bem-
estar e assim promover aumento na qualidade de vida. Porém, a promoção ou não de
atividades, sobretudo para idosos que vivem em abrigos, deve ser analisada com base na
dinâmica do contexto institucional.
150
A atividade na longevidade tem correlação importante com a satisfação na vida. A
manutenção da auto-estima, segundo Andrade (2003), deve-se, em parte, à sensação de
pertencer a um grupo social produtivo e tem efeitos benéficos na saúde física, social e mental
dos idosos. Deve-se, contudo, sempre respeitar a individualidade do idoso ao lhe propor tais
atividades.
O território do divino
O recurso à divindade pode ser explicado como um modo de o homem criar
mecanismos para enfrentar situações com as quais não saiba lidar:
[...] Estes [deuses] mantêm sua tríplice missão: exorcizar os terrores da
natureza, reconciliar os homens com a crueldade do Destino, particularmente
a que é demonstrada na morte, e compensá-los pelos sofrimentos e privações
que uma vida civilizada em comum lhes impôs
(FREUD, 1988c).
Sem que as forças naturais contemporaneamente estejam presentes de modo intenso,
nota-se, no caso dos abrigados, a presença marcada de duas características acima citadas:
Deus é por eles representado como Destino inexorável; a divindade recompensa, ou pune,
com justiça os atos que eles figuram como tendo sido deliberada ou forçosamente levados a
praticar.
Onze entrevistados (Suyá, Miro, Celeste, Aracê, Lana, Ava, Ceci, Doca, Ina, Zica e
Iole) delineiam a presença do divino no horizonte de suas vidas na instituição. Destes, apenas
Suyá, Miro, Aracê, Lana e Ava representam-no explicitamente na vida anterior ao abrigo.
Para Miro, como curso natural das coisas; para os demais, como a força do destino que
governa o presente e decide no futuro o que virá.
No abrigo, a divindade é representada, para as entrevistadas Suyá, Lana, Ava, Ceci e
Doca, como aquela que cuida e protege, garantindo-lhes forças para prosseguirem com a vida.
A figura divina neste caso serve como segurança contra incertezas e adversidades. Os
entrevistados Miro, Celeste e Zica referem-se a Deus como aquele que lhes conduz a vida,
visto que eles, por causa da doença e perda de autonomia, não mais a controlam. Deus figura,
pois, como solução de problemas para quemo consegue enfrentá-los, ou por insegurança,
ou por enfraquecimento físico: [...] Eu vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não,
está nas mãos de Deus [...]
(Zica).
151
Há, pois, uma representação da divindade como fuga da situação em que se
encontram. O maior recurso a Deus a partir da condição abrigada parece implicar a reposição
de forças superiores a partir da constatação de uma situação de desamparo não enfrentada
completamente:
[...] A origem da atitude religiosa pode ser remontada, em linhas muito
claras, até o sentimento de desamparo infantil. [...] A ‘unidade com o
universo’, que constitui seu conteúdo ideacional, soa como uma primeira
tentativa de consolação religiosa, como se configurasse uma outra maneira
de rejeitar o perigo que o ego reconhece a ameaçá-lo a partir do mundo
externo
(FREUD, 1998c).
Deus também é figurado como uma justiça retributiva das ações terrenas no plano
divino. A entrevistada Aracê utiliza-se da crença em Deus para referir a si mesma como uma
pessoa bondosa que segue o bom caminho. Assim sendo, crer em Deus, desde a infância, é,
para ela, significado da prática do bem, suporte que dá sentido a suas ações: [...] Eu, pra
começar da minha infância, seguindo a Deus, crente, Presbiteriana, só quero a Deus [...]
.
Deus também, de modo semelhante, é representado como justiça punitiva. Desse
modo, Ina refere-se a Ele como aquele que a julgará pelas suas atitudes e comportamentos
inadequados, pois é visto como quem a condenará e castigará pelo aborto cometido. Isso,
aliás, ela representa como algo que já ocorre: seu único filho faleceu por decorrência de
acidente automobilístico. Deus parece aí agir como aquele quem castiga os atos iníquos: [...]
Só um filho eu tive. E um aborto que eu tive. Pecado que eu levei pra Deus [...]
.
Iole refere-se a Deus como aquele que pode resolver seu conflito, ou seja, tirar-lhe a
vida. Desse modo, a falta de sentido existencial e o seu sofrimento, decorrente de estar no
abrigo e da sua história de vida marcada, sobretudo, pela solidão e pelo fato de ter sido, pelo
marido, trocada por outra mulher, teriam, pela morte, seu fim. Deus, assim sendo, pode ser a
única solução dos seus conflitos, visto que ele seja, pela força que ela lhe atribui, o único a
dar fim ao seu sofrimento: [...] Deus podia ter dó de mim. Me ajudar, né? [...] E me tirar eu. Tirar
eu desse mundo [...]
.
Destaca-se, além disso, o fato de o primeiro abrigo, ligado à Igreja Presbiteriana,
encontrar, dentre os cinco idosos entrevistados, três que participam do culto nele praticado.
Dos outros dois, Celeste, ainda que não explicite ir ao culto, salienta ser praticante fervorosa:
[...] Eu deito na cama, vou rezando, vou rezando, vou rezando... até dormir! [...] Não sei o quê que
vai ser, né? É. Mas Deus é que sabe, né? [...]
.
152
Há, pois, neste abrigo, uma relação direta da instituição com a religião, parecendo
uniformizar escolhas:
[...] A religião restringe esse jogo de escolha e adaptação, desde que impõe
igualmente a todos o seu próprio caminho para a aquisição da felicidade e da
proteção contra o sofrimento. Sua técnica consiste em depreciar o valor da
vida e deformar o quadro do mundo real de maneira delirante - maneira que
pressupõe uma intimidação da inteligência. A esse preço, por fixá-las à força
num estado de infantilismo psicológico e por arrastá-las a um delírio de
massa, a religião consegue poupar a muitas pessoas uma neurose individual
(FREUD, 1988c).
Presume-se que haja, neste caso, um fortalecimento institucional da religião com um
propósito de uniformização. Tal fato, embora possa reafirmar ou criar novos valores no
desamparo em que muitos idosos possam estar vivendo, uniformiza e homogeiniza padrões,
fazendo assim da religião um agente de institucionalização do ego, sem a necessidade de
mortificá-lo; com efeito, neste caso, reafirmam-se crenças cujos significados, por objetivação,
já se encontravam presentes na representação efetuada pelos entrevistados.
Os entrevistados do outro abrigo, ligado ao Grupo da Esperança, não parecem seguir
uniformemente uma religião. Ecumênico, o abrigo, além de parecer incentivar, não restringe
práticas religiosas, possibilitando maiores escolhas e efetiva prática da fé de cada um.
O caso notável da entrevistada Ceci o confirma. Os orixás são temas recorrentes em
sua entrevista. Eles, além de a proteger, são os responsáveis por guiar sua vida. O
distanciamento dela para com os colegas de abrigo e a falta de expectativa na vida são
justificados a partir de ordens recebidas das entidades. Estes, diz ela, recobrem traços já vistos
no tocante ao divino, pois conduzem a sua vida a fim de protegê-la. Mais próximos e diretos
que um deus monoteísta, eles determinam-lhe o que deve ou não ser feito: [...] Quando tenho
qualquer coisa, [...] eu firmo nele, no Senhor Ogum, e deito, falo pra ele. Eu oro pra ele todo dia,
toda noite. Oro pra ele me olhar, sabe? [...]
.
Há, pois, de se salientar três aspectos em sua fala. O primeiro é que, mesmo que a
instituição permita, sua prática religiosa a distancia dos demais asilados; em segundo, é dupla
via desta distância: dela, ao se considerar superior por sua prática; da possível distância dos
demais abrigados com relação a ela, por não comungarem do mesmo credo; por fim, a
questão acerca da própria instituição: em que medida o respeito devido às individualidades
resguarda, no tocante às práticas religiosas, a manutenção de um espaço comunitário que, sem
ser homogêneo, se mantenha igualitário?
153
Nota-se que os entrevistados Tiana, Lude, Irajá, Peri e Aog não mencionam Deus nem
nenhuma prática religiosa em suas falas. Neste caso, cabe destacar que os entrevistados Tiana,
Lude, Peri e Aog, embora com nuanças diferentes, assumem como, na atual conjuntura de
suas vidas, o abrigo como melhor opção. No caso de Irajá, seu ego parece se recompor pelo
que Goffman (1961) aponta presente em diversas instituições: a rebeldia às regras para manter
traços identitários que não se enquadrem às normas nem lhe mortifiquem o eu.
A religião e o apelo ao divino parecem assim, sobretudo para os entrevistados que não
os mencionam antes do asilamento, funcionar como uma estruturação por ancoragem de
novas significações mentais a partir de antigos esquemas. Na ausência da família e do
trabalho, valores de significação social fundamentais antes da institucionalização para a
estruturação do psiquismo, o transcendente dá-lhes o arcabouço para sustentar a fragmentação
e mortificação que, na ausência de significados, poderiam conduzir alguns dos idosos a se
entregar à solidão e à possível depressão desta decorrente.
Próximas projeções
O quadro modelado pelos entrevistados de suas expectativas futuras é o de contornos
mais negativamente marcados. Aponta-se, na maioria dos casos, o círculo da vida como tendo
sido completado, nada mais lhes restando a fazer. Sendo assim, acentua-se a exclusão de que
sentem vitimados por viver no abrigo. Quando positiva, a figuração dos entrevistados é
contraditória, pois implica ter a esperança de sair do abrigo, mas eles próprios ressaltam a
quase impossibilidade de que isso ocorra.
Nota-se, pois, na projeção da vida futura um dos principais problemas de inserção
destes idosos. Há como um quadro de desalento em relação ao presente que se estende para o
futuro. A marca depressiva que enfatiza as perdas apontam aqui até para uma maior: a morte
como esperança de resolução das dificuldades; a doença como limitação permanente:
[...] Do ponto de vista vivencial, o idoso está numa situação de perdas
continuadas; a diminuição sócio-familiar, a perda do status ocupacional e
económico, o declínio físico continuado, a maior frequência de doenças
físicas e a incapacidade pragmática crescente, bem como o aparecimento de
fenómenos degenerativos ou doenças físicas incapacitantes, compõem o
elenco de perdas suficientes para desenvolver um quadro de sintomatologia
depressiva. [...] Outro aspecto a enfatizar é a depressão no idoso
154
institucionalizado. Encontra-se separado do ambiente familiar e habitacional,
sensação de abandono, inutilidade e dependência, isolado da actualidade
cultural. A baixa qualidade de vida (falta de intimidade, insegurança, tristeza
silênciosa, etc.) oferecida nessas instituições, o insuficiente grau de bem-
estar pessoal, a reduzida auto-estima, contribui para o agravamento do
estado depressivo
(CHAVES, 2006, p. 5-6).
A rotina rígida dos abrigos contribuem, por meio da perda da autonomia e da falta de
expectativa de vida dos idosos, por torná-los pessoas apáticas e passivas à espera do fim,
sobretudo por desconsiderar as particularidades de cada um e as suas histórias e experiências
pessoais (REZENDE, 2001).
A figuração da morte como expectativa central é assim apresentada por dez
entrevistadas (Suyá, Celeste, Aracê, Lana, Ceci, Tiana, Doca, Iole, Lude e Irajá). A idade
avançada é diretamente relacionada ao fim da vida. Em comparação com a natureza, assim
como os dias nascem e morrem, o quadro aqui acentua o ocaso de uma noite final que se
aproxima: [...] Agora, minha filha, plano pra vida eu não... não espero é nada mais porque eu já
estou no fim da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é esperar [...]
(Tiana).
Tal perspectiva, conforme aponta Freud (1998b), positivamente poderia ser
apresentada como um enfrentamento direto e natural da realidade humana, ou seja, um retorno
resoluto de que a vida implica a preparação para a morte:
[...] Nosso inconsciente é tão inacessível à idéia de nossa própria morte, tão
inclinado ao assassinato em relação a estranhos, tão dividido (isto é,
ambivalente) para com aqueles que amamos, como era o homem primevo.
Contudo, como nos distanciamos desse estado primevo em nossa atitude
convencional e cultural para com a morte! [...] Não devemos confessar que
em nossa atitude civilizada para com a morte estamos mais uma vez vivendo
psicologicamente acima de nossos meios, e não devemos, antes, voltar atrás
e reconhecer a verdade? Não seria melhor dar à morte o lugar na realidade e
em nossos pensamentos que lhe é devido, e dar um pouco mais de
proeminência à atitude inconsciente para com a morte, que, até agora, tão
cuidadosamente suprimimos? Isso dificilmente parece um progresso no
sentido de uma realização mais elevada, mas antes, sob certos aspectos, um
passo atrás - uma regressão; mas tem a vantagem de levar mais em conta a
verdade e de novamente tornar a vida mais tolerável para nós. Tolerar a vida
continua a ser, afinal de contas, o primeiro dever de todos os seres vivos. A
ilusão perderá todo o seu valor, se tornar isso mais difícil para nós. [...]
Lembramo-nos do velho ditado: Si vis pacem, para bellum. Se queres
preservar a paz, prepara-te para a guerra. [...] Estaria de acordo com o tempo
em que vivemos alterá-lo para: Si vis vitam, para mortem. Se queres suportar
a vida, preparar-te para a morte
(FREUD, 1998b).
Tal atitude, no entanto, não é tomada por todos como limitada à esfera humana, em
que se configure a vida como um ciclo natural que encontre na morte seu limite. Para a
155
metade deles (Celeste, Lana, Tiana, Lude e Irajá), assume-se resignadamente a sua espera.
Diversamente, contudo, do que indica o autor supra citado, pois, neste caso, tal fato revela
pendores depressivos, já que não se vincula a morte às atividades da vida, mas apenas
enquanto espera de quem nada mais tem a fazer. A entrevistada Lana, nesse sentido, declara:
[...] Uai, não tem jeito mais de mudar nada porque eu já estou dessa idade, né? [...] Os meus prano é
ficar aí até chegar a morte. É isso que eu espero. Eu espero só a morte [...]
.
Suyá, Aracê, Ceci, Doca e Iole traçam diferentemente tal quadro. Para eles, vincula-se
a morte a um encontro com a divindade. Fora da esfera humana, a morte ganha relevo
enquanto esfera do transcendente, espaço superior e mais elevado do que o dos homens. Há,
pois, o que Freud (1998c) apresente como ilusão, pois dissocia-se da realidade presente em
função de uma projeção superior de perfeição divina:
[...] A própria morte não é uma extinção, não constitui um retorno ao
inanimado inorgânico, mas o começo de um novo tipo de existência que se
acha no caminho da evolução para algo mais elevado. E, olhando na outra
direção, essa visão anuncia que as mesmas leis morais que nossas
civilizações estabeleceram, governam também o universo inteiro, com a
única diferença de serem mantidas por uma corte suprema de justiça
incomparavelmente mais poderosa e harmoniosa. Ao final, todo o bem é
recompensado e todo o mal, punido, se não na realidade, sob esta forma de
vida, pelo menos em existências posteriores que se iniciam após a morte.
Assim, todos os terrores, sofrimentos e asperezas da vida estão destinados a
se desfazer. A vida após a morte, que continua a vida sobre a terra
exatamente como a parte invisível do espectro se une à parte visível, nos
conduz à perfeição que talvez tenhamos deixado de atingir aqui. E a
sabedoria superior que dirige esse curso das coisas, a bondade infinita que
nela se expressa, a justiça que nela atinge seu objetivo, são os atributos dos
seres divinos que também nos criaram, e ao mundo como um todo, ou
melhor, de um ser divino no qual, em nossa civilização, todos os deuses da
Antiguidade foram condensados
.
Os valores da vida assim aparecem enfraquecidos na representação de todos os
entrevistados que dela só esperam a morte. Algumas entrevistadas (Celeste, Aracê e Tiana)
relacionam tal fato às doenças e limitações da ação daí advindas: [...] Depois que eu estou
doente assim, interna aqui, não... não... não quero mais nada, não! [...] Ah, eu espero o que Deus
mandar [...]
(Aracê). Esta e Tiana, diferentemente de Celeste, mesmo assim aceitam a vida
institucional e lá participam do que podem, até ser impossibilitada por suas condições físicas.
Outros, à própria longevidade, cuja conseqüência mais clara é a morte. É o caso de Lude e
Suyá. Esta declara: [...] Ah, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver muito
tempo, não! Eu quero ir embora. [...] Eu já estou com oitenta e um e estou inteirando oitenta e dois
anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a vontade dele [...]
.
156
Celeste, Tiana, Doca e Irajá, embora afirmem esperar a morte, contraditoriamente
apresentam a esperança de melhora de saúde, ou de maior autonomia, para mudar ou tornar
mais prazerosa sua situação atual: [...] Eu não faço nada, minha filha! E não espero nada. Eu sinto
vontade é de morrer [...] pra livrar desse mundo pra não sofrer o tanto que eu estou sofrendo. [...] Eu
queria ter minha casa, ter uma pessoa que me ajudasse [...]
(Irajá). Celeste, Doca e Irajá projetam
a saída do abrigo. Tiana expressa o desejo de visitar os parentes. Sem afirmar querer sair do
abrigo, ela apenas anseia por maior contato social.
Seis entrevistados (Miro, Ava, Ina, Zica, Peri e Aog) não indicam a morte como
questão futura mais importante. Se para os demais a morte é a marca definitiva e consoladora,
dado ser a solução externa definitiva para seus conflitos, estes não a figuram como ruptura
determinante para o fim das suas atuais condições de vida. No entanto, isso nem sempre
significa enfrentamento da realidade, pois projetam, contraditoriamente, tanto uma esperança
numa situação no futuro melhor do que a atual, marcadamente figurada como negativa,
quanto aceitam o futuro tal qual se fosse o presente.
Miro, Ava, Ina, Zica, Peri figuram poucas expectativas futuras em virtude da doença e
das limitações decorrentes desta. Afirmam nada mais ter a fazer. Delineiam, assim, o futuro
como limitado, em prosseguimento da vida atual no abrigo, que declaram positivamente
aceitar. Contraditoriamente, contudo, esperam, desde que melhorem de saúde, sair do abrigo,
e retornar para as próprias casas ou a dos familiares. O abrigo é, pois, também figurado por
eles como um mal menor do qual pretendem, com melhores condições físicas, sair. Reforça-se
a imagem dele como um hospital. Aqui, provisório, de que partirão quando recobrarem a
saúde. Peri, nesse sentido, afirma: [...] Ah, eu não... não... não sei de nada, não sei o quê que vai
acontecer comigo. [...] Gostaria que fosse uma coisa boa pra mim sair daqui porque meu irmão já
quis me tirar daqui muitas vezes. Mas eu não quis sair, não! [...] Ele mexe com... está mexendo com
chácara fora daqui. [...] Fico doente lá, como é que fica? É preciso ficar quieto aqui [...]
.
Aog apresenta figurações peculiares no tocante às expectativas futuras. Embora tenha
em comum com os demais deste grupo não só o fato de não entregar o futuro à morte como
também a permanência no abrigo em razão da doença, ele tem a expectativa associada a
motivos externos, isto é, ao recebimento de benefício previdenciário a fim de que possa
garantir, fora da instituição, o seu próprio sustento. A condição financeira daí decorrente
parece garantir-lhe autonomia e liberdade de escolha. Como, no entanto, as coisas podem ou
não ocorrer em conformidade com o que ele espera. ele não cria grandes expectativas quanto
a isso: [...] Se eu conseguir aposentar, aí eu não sei, não! Eu tenho idéia de sair daqui. E a gente
157
ainda vai planejar o quê que vai ser, o quê que vai fazer, aonde vai morar. Às vezes nem não vai fazer
nada também [...].
Como a entrevistada Zica, parece assim se precaver contra frustrações
futuras: [...] Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do meu filho. [...] O dia que o meu filho puder me
levar, bem. O dia que ele não puder, fica, né? [...]
.
Cabe por fim destacar alguns aspectos aqui verificados na representação feita pelos
entrevistados. A perda da autonomia figura-se para eles como uma entrega das decisões sobre
seus futuros nas mãos de outra pessoa. Tal aspecto se percebe nos entrevistados Ava, Tiana,
Doca, Zica, Peri e Aog. Para a maioria destes, nas mãos dos familiares; para Aog, de um
órgão público.
Outro fenômeno notável é que, dos únicos três homens entrevistados, nenhum delineia
a morte como expectativa. Além disso, não figuram o futuro como decisão divina.
Diferentemente, dez mulheres apresentam a morte como principal expectativa futura. Destas,
cinco apontam-na como melhora, pois dirige-se ao transcendente. Parece haver aqui um eco
das diferenças sociais de gênero; com efeito, sem a casa e a família, os homens parecem não
ansiar pela morte como solução da vida. Além disso, o recurso à divindade para traçar o
futuro está vinculado, conforme aponta Carvalho (2006), ao apego religioso socialmente mais
entronizado na vida das mulheres.
Vale ressaltar que a expectativa quanto ao futuro é um aspecto fundamental a ser
considerado na terceira idade; com efeito, as dificuldades de integração dos idosos na
sociedade moderna negam-lhes um lugar significativo, pois a longevidade é muitas vezes
considerada apenas como próxima ao fim da vida sem perspectivas de crescimento e
desenvolvimento. Ao atingir a vida longeva, os idosos tendem a sentir-se sozinhos e, ante a
realidade que se lhes apresenta, a ela adaptam-se, contra ela reagem ou, sobretudo, deixam-se
morrer, social e fisicamente. A morte, ante tal quadro, pode passar a ser vista com maior
naturalidade, uma vez que, dadas as diversas situações de perdas ao longo da vida, a ela se
acostumem (ZIMERMAN, 2000). Além disso, a melancolia (FREUD, 1988a), decorrente da
ausência dos entes mais próximos, pode criar um quadro depressivo cuja saída o idoso, sem
forças para enfrentar a vida, encontra na morte.
158
159
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As representações de instituição por idosos abrigados convergem para certas
formulações comuns que destacam, em suas trajetórias de vida, elementos que compõem um
mosaico, em que certas marcas são mais expressivas e reiteradas. Elementos se sobrepõem
principalmente em certas etapas existenciais como registros com maior realce na figuração do
que percebem como inclusão ou exclusão social.
A infância para os entrevistados do meio rural é por todos determinante nos traços
mais fortes de inclusão social. Destacam-se aqui dois aspectos: a integração da família; o
trabalho comunitário na esfera familiar para subsistência.
A integração do núcleo familiar é, por suplementação, uma espécie de eixo
ideologicamente representado pelos idosos como paradigma para a vida restante. Os
contornos que ali se delineiam passam a ser requeridos modelarmente como escopo a ser
revivido. Muito do quadro de isolamento e distância familiar que na terceira idade se
apresenta – tanto antes quanto depois da institucionalização – é por eles compreendida em
contraposição a esta imagem da presença contínua, da estrutura de família que poucos (Lana e
Ava) marcam como posteriormente reavivada.
Nesta esfera familiar, associa-se à imagem de reunião através do trabalho no seio da
família também como imagem de inclusão. Destaca-se o fato de os entrevistados figurarem a
família como um grupo fechado em que não se percebe a presença do exterior. A imagem
apresenta o grupo familiar como limite que se basta, como se de nada necessitasse do que se
supõe externo, do qual, aliás, nada se fala.
O trabalho, mesmo que posteriormente em posições socialmente representadas como
subalternas, manterá algo inclusivo que parece dever muito a esta imagem da infância. Numa
lavoura de subsistência, o trabalho afasta, mesmo que se socialmente estivesse presente, as
forças do patronato, da subserviência e da baixa remuneração. Ele agrega a família:
considerado sempre o modelo conjunto e ideal a configurar a inclusão.
A infância dos asilados que viveram no meio urbano também se compõe como
momento marcante da vida. Estes, em menor número (sete entrevistados), não apresentam tão
destacadamente a inclusão familiar. Em vista do trabalho, sobretudo das mães, há aqui
também uma figuração da exclusão; com efeito, trabalhando para terceiros, os filhos
acompanham-nas em serviços em que é mais visível a submissão. Além disso, o trabalho dos
160
pais é uma ruptura com o lar entendido em sentido mais lato, pois os serviços trazem o espaço
externo, rompendo os limites mais amplos e inclusivos da família no meio rural.
Há marcada ruptura com a fase posterior de suas vidas. Em contraposição à infância, a
dispersão familiar é por eles percebida como um momento marcante de quebra da antiga
unidade. O êxodo rural e as vicissitudes em busca de trabalho tornam a maioria deles vítimas
de um processo pouco absorvido e traduzido, nos termos pelos quais expressam a exclusão,
por um espalhar que apenas figuram como decomposição familiar causada pela morte dos
pais.
Eles curiosamente nunca apontam razões sociais como causas desta separação. Tal
fato é marcante em suas representações: eles não delineiam forças mais amplas na sociedade
nas suas ações. Todos os acontecimentos de suas vidas configuram-se apenas no horizonte da
proximidade imediata: é sempre a morte dos pais; a doença; a ação de um filho, ou algo
semelhante.
Tais mudanças sociais, – como a ida do meio rural para o urbano, no caso dos que
provinham do campo; mudanças para outras cidades maiores, no caso dos de origem urbana –
revelam, no entanto, a falta de planejamento político do país, resultando num processo de
exclusão que será, sem que se apresente tal dimensão, sempre confrontado pelos idosos com a
primeira imagem da infância, na qual a família se encontrava reunida. Deste processo pode-se
inferir que eles se tornam vítimas, duplamente: não puderam manter-se em seu local de
origem; não se garantiu, na velhice, nem um local de referência em que pudessem viver, nem
as condições materiais que evitassem o asilamento.
Percebe-se, pois, que há uma violência simbolicamente figurada por eles nesta ruptura
tanto do local de origem como da família nuclear. Isso, contudo, não é completamente
explicitado. Nota-se, por este trajeto, que há uma violência social anterior cuja resultante à
frente será o abrigo, que se configura então como solução provedora e fixadora, recompondo
antigos aspectos da origem de grande parte deles.
Mesmo reparadora, há, no entanto, implícita na ida para o abrigo uma outra violência
também simbólica: a falta de escolha, de autonomia para decidir seus próprios destinos,
obrigando-os a sair do convívio e da vida que até então levavam. Este é um dos principais
modos de representação da insatisfação com a vida institucional: a liberdade tolhida antes da
internação, mas que a instituição reforça.
Cabe, antes de realçar suas representações do abrigo, destacar mais dois problemas
enfrentados pelos idosos antes da internação. Um é a evidente falta de políticas públicas para
161
as pessoas mais carentes da terceira idade, criando dependências materiais e financeiras que
implicam a falta de autonomia. A família, responsável legal por assegurar-lhes as condições,
não possuem, na maioria dos casos, estrutura e possibilidade para mantê-los, mesmo que isso
também não se encontre claro em suas configurações. A ida para o abrigo é, antes,
representada por eles como se encontrasse suas causas na ruptura familiar ocorrida no fim da
infância, com a conseqüente ausência de um eixo a que pertençam: a cidade em que estão,
Uberlândia, pouco tem a ver, enquanto referência, com suas vidas, pois nenhum entrevistado
nasceu neste local.
Depois da dispersão familiar, no entanto, há o outro problema a destacar: o trabalho
percebido por eles como fator de inclusão social antes da terceira idade. Pelas funções que
exerceram, seus empregos e ocupações são representados socialmente como marginais ou
secundários. Para eles, entretanto, o trabalho delineia um papel social compreendido como
integrador e, pelo esforço empreendido, útil e significativo. Afinal, representam-no como
provedor e necessário para a sobrevivência. Socialmente, pelas próprias representações,
destacam-lhes a utilidade para outros, mesmo que impliquem uma subserviência. A ausência
do trabalho na terceira idade será, por isso, também figurada como causa da exclusão e da ida
para o abrigo.
Este, do ponto de vista social, é, pois, conseqüência do afastamento implicado na falta
do que lhes era mais significativo e principal modo de inserção numa sociedade em que, de
modo geral, tiveram muito poucas oportunidades. A impossibilidade de exercício do trabalho
é, portanto, um outro fator para determinar-lhes o asilamento. Tal fato, porém, também não é
por eles marcado como causa imediata do ingresso na instituição.
Mais do que estas causas sociais por eles marcadas negativamente como razão da ida
para o abrigo, ou seja, a ausência de um eixo familiar e a impossibilidade de trabalhar; eles
justificam positivamente a institucionalização pelas doenças e falta de condições de quem os
trate. Aqui a família é mais diretamente apresentada como causa, mas, por ancoragem,
também justificada. A doença é o que lhes impede de trabalhar e cuidar de si mesmos. Sendo
assim, as causas sociais, políticas ou familiares, são internalizadas pela doença como razão
principal para separar-se da vida anterior: as evidências de desajustes sociais são, por
ancoragem, assumidas corporalmente nas debilidades físicas que apresentam. Eles assim
incorporam muito da representação social dominante na sociedade para caracterizar o idoso.
Diferentemente, contudo, da dispersão da infância, agora a separação social significa
“confinamento”, perda de escolhas. A falta de autonomia será doravante o principal motivo de
162
angústia. Mas a representação do próprio abrigo não é negativa: em geral, é o estado de seus
corpos que para lá os encaminham. Neste sentido, a figuração do abrigo será percebida como
um hospital, local em que as pessoas vão, dada a fraqueza física, ou para sarar ou para morrer.
Neste último caso, delineia-se como a ante-sala da morte. Sempre, contudo, sem assumir por
completo tal sentido: há, por outro, para quase todos, a configuração da possibilidade de
retornar à vida com parentes, ou mesmo sozinhos, numa recuperação física que este hospital
também pode proporcionar.
A ida para o abrigo, mesmo sendo fruto de uma ruptura e de uma dor, encontra outras
figurações positivas nas representações efetuadas pelos idosos. Antes de mais nada, ele
retoma uma nova significação, por ancoragem, de um sentido presente na infância. Estrutura-
se, pois, a partir da imagem do prover. Mesmo sem a positivação plena composta
conjuntamente com a família e o trabalho em conjunto, ressaltam-se os cuidados médicos e
alimentares que ali recebem, contrapondo-se ao que sofreram antes de ir para lá: a falta de
quem os trate e as debilidades físicas.
Neste sentido positivo, representam a igualdade de tratamento oferecido a todos, bem
como a alimentação servida sem criar distinções como algo inclusivo, já que todos recebem o
mesmo. Evidencia-se, pois, em contraste com a desigualdade e perda que figuram, excluí-los
de condições materiais e físicas existentes antes da ida para o abrigo.
A internação no abrigo, além disso, visto que eles representam o afastamento social
pela distância dos parentes por debilidade física, é figurada, por ancoragem, como inserção
neste novo grupo social. O acolhimento institucional funciona para aplacar o abandono e a
solidão. Mas isso nem sempre ocorre completamente. Tal fato se dá, sobretudo, para quem
assume tarefas institucionais e por elas procura.
A internação é representada por alguns deles (Suyá, Aracê, Ava e Tiana), nesse
sentido, como uma nova inserção, pois estes buscam justificar suas vidas a partir das tarefas e
obrigações que desenvolvem no cotidiano institucional, obtendo assim legitimidade de um
sentido para viver a partir dos novos papéis que precisam construir na internação.
Estes novos papéis se apresentam, sobretudo, contrapostos à antiga imagem de
utilidade figurada por eles como presente no trabalho. Nota-se, no entanto, que a necessidade
de ocupação e as expectativas de vida dos mesmos estão condicionadas à saúde e à autonomia
e independência, ou seja, há uma busca pelo trabalho, desde que figurem a possibilidade de
empreendê-lo. Por incorporarem a fraqueza física, até alguns idosos lá nada fazem ou querem
fazer (Celeste, Lana, Doca, Ina, Iole, Lude, Irajá e Aog), ainda que certos deles pudessem.
163
A realização de atividades empresta para alguns idosos sentido existencial ao se
depararem com a incessante busca de algo que venha a preencher as suas vidas. Há assim uma
visão funcional de vida que se molda em conformidade com uma certa exigência social, isto
é, uma pessoa só adquire valor se trabalhar e produzir. Recupera-se, com isso, não só parte da
imagem da infância, mas também a representação socialmente dominante de uma sociedade
capitalista. Quanto à infância, lá o mundo externo estava representado como excluído, visto
que a família o completava integralmente no trabalho conjunto. Aqui, a família está
efetivamente no mundo externo. É preciso, pois, haver funções que, por outras, reestruturem
este mundo dos internos.
Neste momento, nota-se em suas representações certos pressupostos sociais, ou seja,
como a atual sociedade exclui o idoso, seja para a perspectiva do trabalho, seja por ter o
jovem como modelo, vê-se como a violência do afastamento é apaziguada por uma fala que
refigura a exclusão: a inserção num todo institucional deve assim procurar afastar o psiquismo
do enfrentamento da violência de se ver sem referências que garantem sua estruturação. Os
fios do tempo, mínimos de relações afetivas, devem reconstruir-se em função do presente que
eles institucionalizam ao reiterar o cumprimento de funções que possam justificar as suas
vidas.
Percebe-se, aliás, a importância da reativação no próprio plano afetivo. Nota-se que os
entrevistados não distinguem o plano dos afetos com o das funções, institucionalizando assim
os afetos em função da realização de tarefas e atividades ou na expectativa de voltar a fazê-
las. Não se fala, aliás, nem na saída do abrigo para reencontrar afeições, mas, sim, certos
papéis funcionais na estrutura familiar. Suas representações, como espécie de castração,
perderam uma função social pela deficiência decorrente da saúde física que justifica as suas
histórias de vida pela idade. Portanto, necessitaram criar um novo vínculo social que possa
explicar, mostrando-se presente, a partir das funções exercidas, o sentido da vida e a harmonia
estabelecida com as suas respectivas histórias, sejam elas de abandono ou do distanciamento
dos familiares.
Neste sentido, no entanto, há outro sentido negativo para o abrigo, pois ele não
funciona completamente como inclusivo; com efeito, o trabalho sempre foi percebido por eles
como fator de integração, seja, modelarmente, da família; seja como resistência e luta para
sobreviver, pelo papel que cumpriram na sociedade. A reativação não se figura por todos eles
como esta reposição. Cabe aqui insistir: ela deveria ser estimulada na instituição para repor e
reestruturar parte destas perdas.
164
Desse modo, dever-se-ia procurar traçar no trabalho um respeito a partir da
constatação explicitada das diferenças: a história de vida de cada um poderia ser levada em
conta para estimular práticas não padronizadas; com efeito, como afirma Goffman, a
“mortificação do eu” institucional homogeiniza e cria padrões: estimular práticas iguais
provavelmente reforce esta perda de identidade que deveria ser combatida. No entanto, ali
estão pessoas com nomes e histórias. A reativação deveria procurar ser qualitativa, e não mera
quantificação de números de idosos – como, aliás, tende a ser um trabalho acadêmico que os
enumera e torna personas fictícias.
Prova de que a reativação deve operar junto com o respeito à individualidade são os
exemplos das entrevistadas Suyá e Ava. O crochê mantém vínculos com o trabalho anterior;
não é uma atividade imposta. Além disso, pela venda, faz que tenham contato com as pessoas
de fora do abrigo. Estas entrevistadas assim readquirem o valor de uma função social que o
trabalho já lhes deu. Fornece-lhes, ademais, um dinheiro próprio que podem usufruir sem o
controle institucional. Devolve-lhes direitos, respeito e autonomia de que muitos ali carecem.
O caso da entrevistada Suyá levanta outro problema: ela teve autonomia na decisão de
ir para o abrigo, coisas que poucos tiveram. Além disso, já interna, ela teve liberdade de ir e
vir, podendo sair de lá a hora que quisesse. Embora não se possa tratar em bloco tal questão,
isto deveria ser estendido, dentro dos limites possíveis, para os demais. Foi a própria Suyá
quem decidiu que não mais sairia do abrigo por causa das limitações da saúde, ou seja, teve o
discernimento para decidir, quando quis, o melhor para ela, mantendo-se de algum modo
respeitada sua cidadania: fora as intempéries e doenças que pode acometer qualquer um, isso
faz lembrar que o idoso não é um menor de idade, mas um cidadão a ser, inclusive, mais
respeitado pelas experiências que teve, como, aliás, muitas sociedades o fazem. O critério
para ocupar-lhe um lugar é a idade, já que nela acumulam-se experiências e discernimento.
O caso da Suyá aponta também para outra questão de inclusão que não abarca todos
que lá estão. No caso dela, também não houve rompimento familiar na ida para lá. Este
também foi o caso do Peri, que foi para o abrigo juntamente com a mãe. Ambos não
representam a instituição como ruptura. Suyá e a irmã foram as primeiras pessoas a morar no
abrigo. Foi assim para um espaço social que já freqüentavam, pois o abrigo é da religião
delas. Quando lá chegaram, Suyá pôde ajudar as enfermeiras em certas atividades. Não
rompimento familiar nem de círculo social, reativação que sempre lhe deu funções e figuração
de utilidade, tudo fez e faz que ela não perceba negativamente o abrigo. Amenizar a ruptura,
165
mantendo elos com a vida anterior, é, pois, um princípio altamente positivo para a vida
institucionalizada.
Outra questão que se pode propor para melhora da instituição a partir das
representações modeladas pelos idosos é a relação com o espaço externo. Praticamente não há
o estímulo para atividades fora do espaço intramuros. Um dos principais pontos atuais de
reativação e socialização de idosos são os programas de terceira idade que estimulam contatos
entre eles, seja em associações ou clubes para organizar festas e viagens. Nada disso se vê no
abrigo. O único contato externo explicitado (Miro) é marcado como altamente positivo.
Além disso, as próprias visitas da comunidade também são atividades que quebram
com a solidão e separação dos familiares. Tais encontros seriam ainda mais proveitosos se
refigurassem a imagem do convívio alegre da festa na infância (Celeste, Ava e Aog). As
visitas, mesmo que padronizadas e formais, mostram-se positivas, muito ganhariam se
retomassem este elo com um dos poucos traços pelos quais delineiam a felicidade como algo
presente ao longo de suas vidas.
O elo da família, outra questão delicada, pois sempre implica que suas questões mais
pessoais e específicas devam merecer destaque, também precisa ser priorizada. A se notar,
neste sentido, uma diferença entre as duas instituições: o segundo abrigo, ao manter contato
constante com os familiares por meio de reuniões, reforça vínculos que o outro não parece
preocupado em estimular.
Há outras questões que merecem ser ressaltadas. Embora a igualdade seja um quadro
apresentado pelos idosos como presente nos abrigos, notam-se, conforme aponta Goffman
(1961), certos privilégios entre os internos. Este é o caso da Suyá. O curioso é que nenhum
dos demais figura claramente tal questão como um problema: dada a carência material em que
viviam no período anterior ao asilamento, o tratamento presente é destacado como positivo
em detrimento de qualquer menção a privilégios.
Há, sim, um cuidado em se manterem afastados da imagem pela qual vêem o outro.
Como lá se mesclam idosos em diferentes condições psicofísicas de saúde, há uma constante
demarcação do próprio psiquismo ao se negar ser o outro. Esta ruptura parece reforçar a
ligação na infância com os familiares, com aquilo que lhes é semelhante. Deve-se, pois, pôr
em questão se, assim como em outras instituições, o critério psíquico e físico da sanidade não
deveria criar parâmetros para estabelecer proximidades de relacionamento e convívio.
Outra questão difícil de ser abordada é a religião. Ainda que ela possa implicar uma
fuga do enfrentamento dos problemas atuais, ela lhes figura um caráter catártico ao entregar
166
nas mãos da Providência tanto o presente quanto o futuro. Reconforta na solidão, recompõe,
por ancoragem, ou reforça, por incremento de uma objetivação social anterior, os elos da vida
que podem se mostrar sem sentido, se com ela não se contasse.
Cabe, no entanto, destacar as possíveis dificuldades de aceitação de diferenças
religiosas. Este parece ser um problema tanto para o primeiro abrigo, ligado a uma religião;
quanto ao segundo, em que a presença de crenças distintas livremente manifestas pode
estabelecer conflitos entre os internos.
Vale destacar que nenhum dos dois abrigos apresenta traços de violência manifesta. A
dignidade e integridade física dos idosos são preservadas e eles assim as configuram
positivamente, marcando em si mesmos, pela doença e fraqueza física, uma carência que lá é
tratada. No entanto, a dignidade da cidadania não se nota: o principal reclamo de todos é a
perda de autonomia, de não poderem mais assumir decisões na própria vida. Há nisto uma
violência simbólica: a que retira dos homens um de seus direitos mais valorosos, a liberdade.
Aqui, contudo, se a instituição pode melhorar – e ela deveria, e muito, fazer isso –, tal
melhora não ocorrerá completamente se as desigualdades sociais do lado de fora do abrigo
não diminuírem. Afinal, eles levam para a instituição e lá internalizam as exclusões que estão
fora de seus muros, mas que são internamente representadas por eles.
Por último, cabe aqui destacar que as representações sociais sobre instituição se
caracterizam por uma diversidade de significados e sentidos existenciais. Se se olhar pela
trajetória de vida, marcada por perdas e abandono, o abrigo é configurado como “tábua de
salvação” e “providência divina”, sendo assim um lugar que acolhe, cuida, trata das doenças e
supre as necessidades materiais. Por outro lado, o asilamento resulta de um processo de
exclusão do meio social. Nesse sentido, o abrigo é representado como um local desagradável
e “frio”, restando a espera da morte.
As representações sobre instituição asilar estão ancoradas nas significações
construídas de outras instituições em que se viveu a dialética da inclusão e exclusão social,
objetivadas por meio de imagens, ora positivas, como “hospital; lar substituto; local divino”;
ora negativas, como “ambiente não-familiar e ameaçador; local de assistência precária e de
atendimento desigual e injusto”, dependendo da posição do idoso frente às suas necessidades
e desejos. Os sentidos atribuídos pelos sujeitos à instituição sintetizam uma existência
marcada pela busca de uma adaptação ativa à sociedade pelos fracassos e sucessos
percebidos; pelas relações de amor e ódio; pelos processos de vida e morte.
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180
181
APÊNDICE A – Termo de esclarecimento aos sujeitos da pesquisa
Eu, Telma Maria Leite, aluna do Programa de Pós-Graduação em Psicologia vinculado à
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo - Ribeirão Preto, sob
orientação do Prof. Dr. Sérgio Kodato, estou realizando um estudo sobre idosos que moram
em abrigos. Pretendo, portanto, compreender como cada idoso percebe a sua vida. Assim
sendo, necessito de sua colaboração para participar de uma entrevista. Para tanto:
a) A sua participação deverá ser inteiramente voluntária, ou seja, de sua livre vontade;
b) Não existe nenhum risco em participar da entrevista;
c) A entrevista será gravada para eu não perder as informações que o(a) Sr(a) me der,
mas essa gravação não será mostrada a ninguém;
d) O(a) Sr(a) será entrevistado sobre questões ligadas à sua vida passada, presente e o
que espera dela para daqui em diante.
e) Todas as informações que o(a) Sr(a) der serão mantidas em sigilo absoluto e utilizadas
apenas para esse estudo. Assim, o seu nome não será identificado e ninguém saberá da
sua participação;
f) O(a) Sr(a) estará livre para desistir da sua participação em qualquer momento da
entrevista.
Considerando os aspectos acima descritos, eu, ______________________________,
aceito participar desse estudo, visto que minha participação é inteiramente voluntária e estou
livre, a qualquer momento, para desistir de conceder a entrevista, sem nenhum prejuízo a
mim.
Assinatura do entrevistado: __________________________________________________.
Assinatura do entrevistador: _________________________________________________.
Uberlândia,________, de______________________de_________.
182
APÊNDICE B – Roteiro de entrevista
Fale-me sobre a sua vida.
Como foi o seu relacionamento com os seus pais?
Como é o seu relacionamento com os seus irmãos?
Há quanto tempo o(a) senhor(a) está aqui no abrigo?
Qual foi o motivo da sua vinda para cá?
Como foi essa decisão de vir para o abrigo?
Como é para o(a) senhor(a) morar aqui?
Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
O(a) senhor recebe visitas?
O(a) senhor(a) faz alguma atividade aqui dentro?
O(a) senhora faz algum plano para daqui adiante?
O(a) senhor(a) gostaria de falar mais alguma coisa?
183
APÊNDICE C – Síntese das entrevistas
33
ENTREVISTA 1
Entrevistada: Suyá
Naturalidade: Patrocínio - M.G
Idade: 82 anos
Escolaridade: 1° ano primário
Estado civil: Solteira
Tempo de abrigo: 09 anos e 07 meses
A entrevistada é de uma família constituída por cinco filhos – três mulheres e dois homens. Destes,
apenas um, que é o mais novo, está vivo. Ela é a penúltima filha do casal. É solteira, natural de
Patrocínio, cidade localizada no Triângulo Mineiro. Cursou até o segundo ano primário. Embora seus
pais fossem casados, ela e os irmãos, segundo suas afirmações, foram criados praticamente apenas
pela mãe, pois o pai “aparecia em casa, engravidava esta e desaparecia”. Ela afirma que não o
conheceu, embora declare que tem lembrança dele, ainda que pouca. A mãe, conforme relata, fez de
tudo para os filhos, trabalhando em serviço pesado no meio rural para cuidar deles. Ela acompanhava a
mãe no trabalho, fosse na colheita, fosse na lavagem de roupas nas casas dos outros. Os irmãos, após o
falecimento da mãe, separaram-se uns dos outros. Três permaneceram com os familiares: um ficou na
casa da avó; outro, na do tio; uma, com a tia. Ela e uma de suas irmãs foram morar e trabalhar na casa
de terceiros. Declara que se entristece com o fato de a família ter se esparramado, porque a considera
uma instituição divina. Na ausência do pai, um tio dela decidiu que moraria em casa de terceiros. Este
soube, por meio de uma conhecida, que uma mulher queria “criar uma negrinha do serviço”. Começou
a trabalhar nessa casa quando tinha cerca de dez anos. Afirma que foi para tal lugar para ser escrava
pelo fato de eles terem pego “uma menina cedo, ainda mais de cor”. Além disso, declara também ter
sido tratada como escrava por haver “muito preconceito por causa da cor”. Não recebia salário e era
mal tratada. Morou nessa casa, em que funcionava uma pensão, por cerca de treze anos. Lá exerceu a
função de cozinheira a partir dos quatorze anos. Deixou de ali trabalhar por decisão da patroa, que lhe
pediu “para juntar as trouxas”. Isto ocorreu, conforme afirma, por ter se revoltado com o modo pelo
qual era tratada. Ao sair dessa casa, passou a morar próxima dos familiares. Mudou-se, então, para
Patrocínio. Lá trabalhou em casas de família e também como cozinheira em um colégio durante sete
anos. Nestes empregos recebeu um pequeno salário, o suficiente, segundo ela, para arcar com gastos
referentes à comida. Afirma que, nas casas em que trabalhou, os quarto em que dormia eram sempre
os piores. Mesmo assim, diz que foi vítima de maior preconceito na primeira casa em que morou.
Destaca que os motivos para mudar de emprego, via de regra, foram conflitos dela com os patrões.
Trabalhou nessas residências até por volta de quarenta anos, quando se mudou para Uberlândia
acompanhando a família que fora para lá. Além disso, os americanos para os quais trabalhava
voltaram para seu país. Em Uberlândia, também trabalhou em várias residências, mas, neste ínterim,
começou a aprender a costurar. Depois ela adoeceu e, com ajuda de amigos, foi encaminhada para São
Paulo a fim de fazer tratamento para Doença de Chagas. Como seu caso foi considerado muito grave,
disseram-lhe que havia poucas chances de sobreviver. Dos três anos que lhe deram de vida já
ultrapassou os trinta. Passou então a viver de costura, já que não podia trabalhar em outra coisa. A sua
família é extensa. Atualmente tem primos e sobrinhas. Estas a visitam com freqüência no abrigo. De
vez em quando tem notícias do irmão que mora em São Paulo. Afirma que não queria morar com
ninguém da família, porque tiraria a liberdade dos outros e ficaria sem a sua. O motivo de ter ido para
o abrigo foi o fato de uma de suas irmãs, que sofrera “derrame cerebral”, depender de seus cuidados, e
ela, por também estar doente, não mais poder ajudá-la. Antes da sua decisão final de ir para o abrigo,
consultou sua médica que lhe aconselhou a sua internação e da irmã, pois no futuro elas não poderiam
de forma alguma viver sozinhas. Foi para lá a convite do pastor de sua igreja. Este já havia dito que
tão logo o abrigo ficasse pronto, ela e a irmã iriam para tal local. Quando decidiu, ela e a irmã foram
prontamente aceitas na instituição, sendo as duas primeiras moradoras do abrigo. Afirma não ter
33
As informações sobre os idosos apresentadas inicialmente neste tópico foram retiradas de seus prontuários. As
sínteses foram realizadas a partir dos dados fornecidos pelos próprios idosos nas entrevistas.
184
estranhado nada quando se mudou para lá. A irmã faleceu no abrigo. Após sua morte, o pastor da
igreja construiu uma casa dentro do próprio abrigo para ela morar. A princípio, por estar deprimida,
não se importou com a casa, mas diz que depois gostou muito dela. Afirma estar num lugar “que Deus
preparou pra velhice dela e pro que não tem boa saúde”. Como, segundo diz, já sofreu muito na vida,
ali encontra tudo limpo e também quem dela cuide. Diz que ali uma pessoa idosa e doente encontra
tudo de que precisa para viver. Considera-o um lugar preparado por Deus, pois acredita que quem nele
confia não fica desamparado. Também atribui a Deus o fato de muitas pessoas a ajudarem ao longo da
vida. Anteriormente saía do abrigo quando quisesse. Por causa do seu estado de saúde atual,
permanece nele o tempo todo por opção própria e também por sugestão do pastor da igerja. Afirma ter
bom relacionamento com os colegas e funcionários do abrigo. Recebe visitas freqüentes dos parentes e
de pessoas da comunidade. Ela ajudava a olhar os internos quando a enfermeira estava sozinha e tinha
de levar, em situação emergencial, algum idoso para o hospital. Atualmente conserta as roupas dos
internos do abrigo e, na maior parte do tempo, faz crochê, que é vendido, sob encomenda, a pessoas
que freqüentam o abrigo. Lamenta, retrospectivamente, não ter tido um lar. Declara, sobre o futuro,
não querer viver por muito tempo mais, pois, segundo ela, tudo está “nas mãos de Deus e que seja feita
a vontade dele, mas gostaria de não ficar igual aos colegas, na cadeira de rodas porque é muito triste”.
ENTREVISTA 2
Entrevistado: Miro
Naturalidade: Alto Graças - M.T
Idade: 74 anos
Escolaridade: Alfabetizado
Estado civil: Separado
Tempo de abrigo: 09 anos e 06 meses
O entrevistado é natural de Alto Garças (M.T). É de uma família constituída por doze filhos (seis
homens e seis mulheres). Atualmente há duas irmãs vivas. Uma mora no Paraná; a outra, em
Uberlândia. Ele e seus irmãos foram criados pelos pais. Estes, conforme afirma, foram muito bons
para os filhos. Tinha cerca de quinze anos quando seu pai faleceu. A mãe faleceu com mais de
sessenta anos. Declara que a mãe lhe tinha um afeto especial por ser o filho caçula. Casou-se, mas se
separou, com pouco mais de três anos de casado, porque se apaixonou por outra mulher. Teve uma
filha desse casamento. Com a nova companheira também teve um filho. Como esta faleceu, o filho,
ainda criança, foi criado apenas por ele. Este também faleceu, aos vinte e dois anos de idade, vítima de
acidente de moto. Em relação à filha, declara que pouco se encontraram. Afirma que desfrutou muito
da vida, tendo se casado e se amasiado várias vezes. Após a morte da segunda esposa e do filho,
preferiu não ter mais elos duradouros. Está sozinho há mais de vinte anos. Trabalhou, ao longo dos
anos, em diversas coisas: como corretor; em olaria; como guarda que fazia controle de chegada e saída
de carro; teve uma loja comercial; além disso, negociou muitos produtos. Afirma que vivia bem
financeiramente até ter ficado doente. Se não fosse a doença, diz ele, estaria rico. Mas, mesmo assim,
paradoxalmente declara ter dinheiro no banco e estar rico. Sofreu “derrame cerebral”, o que, segundo
ele, desencadeou-lhe a ida para o abrigo. Um dos sobrinhos foi o responsável por levá-lo até lá, porque
achou que este seria o melhor local para tratar de sua saúde, visto que tal sobrinho não poderia cuidar
dele. Diz que foi para este abrigo porque tem muitos parentes em Uberlândia. Quanto à doença, afirma
que ela interferiu na sua locomoção, mas que as seqüelas não foram tão graves, porque ele ainda pode
ler e escrever, estando a memória preservada. Declara se sentir bem no abrigo, por lá ser bem tratado e
ter tudo de que precisa: médico, várias refeições por dia; remédios; pronto atendimento quando
necessário. No entanto, afirma que, nas atuais condições de saúde, qualquer lugar ser-lhe-ia bom.
Acredita que a saúde é a coisa principal para o homem, pois sem ela tudo acaba. Em Uberlândia, além
de uma irmã, tem muitos sobrinhos. Possui parentes em outras cidades. Afirma receber visitas
esporádicas de um sobrinho e da irmã, porque, segundo alega, eles são muito ocupados. Visitam-no ou
mensalmente ou num período mais espaçado. Mantém contato por telefone com os sobrinhos. Diz que
os parentes estão longe e que não mais se importa com isso. Recebe visitas de várias pessoas da
comunidade. Afirma que as pessoas do abrigo são boas e que se dá bem com todos. Em relação às
atividades, vai semanalmente ao CEAI há quatro anos. Afirma isso ser bom por ajudar a passar o
185
tempo. Faz fisioterapia semanalmente, além de caminhada e muitos exercícios. Declara que, embora a
melhora seja imperceptível, anima-se a sempre fazer mais. Espera fazer muita coisa ainda e, se tivesse
saúde, cuidaria da casa herdada da irmã recentemente falecida, atualmente alugada. Por outro lado,
afirma que não espera mais nada da vida porque nunca ouviu falar que alguém recobrasse a saúde
depois de um “derrame”. Ainda tem expectativa de encontrar-se com a filha, mas constata que nunca
houve tal contato para que isso ocorra agora. Além disso, alega ser para ela difícil fazer isso, já que é
casada e tem filho. Ele, por causa da doença, não pode ir até lá. Diz, contraditoriamente, que não se
preocupa com esse distanciamento por não haver mais vínculos entre eles há vários anos. Como
muitos anos se passaram, afirma que não se recorda dela, dizendo ser preciso haver contato para que
possa haver relacionamento. Declara, assim, que a vida é uma constante mudança em que nada
perdura. Conclui que o melhor é “entregar pra Deus porque ele arruma tudo. A única coisa que pode
resolver é Deus. Mais nada”.
ENTREVISTA 3
Entrevistada: Celeste
Naturalidade: Zona rural de Igarapava - S.P
Idade: 79 anos
Escolaridade: Alfabetizada
Estado civil: Solteira
Tempo de abrigo: 03 anos e 08 meses
A entrevistada é proveniente da zona rural de Igarapava (S.P), tendo lá passado a infância e a
adolescência com os pais. Estes faleceram há muitos anos. Ela é a terceira filha mais nova desta
família constituída por doze irmãos, cinco homens e sete mulheres. Somente três permanecem vivas.
Uma de suas irmãs também reside em Uberlândia; as demais, em diferentes cidades: uma, no Distrito
Federal; a outra, em Goiânia. A entrevistada possui baixo nível de escolaridade, pois não chegou a
concluir nenhuma série escolar. É, no entanto, alfabetizada. Declara que havia tranqüilidade no lar,
tendo tido um bom relacionamento com os pais, marcado sempre por um respeito mútuo. Afirma que
tanto os seus pais agradavam os filhos quanto estes, desde crianças, auxiliavam-nos em todos os
serviços domésticos. A sua infância no meio rural foi assim, de acordo com ela, marcada pelo
trabalho; com efeito, além de colaborar com os pais nas tarefas domésticas, ela amiúde os ajudava no
plantio e colheita de produtos que possibilitavam a subsistência da família. Afirma ter sempre sido
feliz enquanto morou com os pais. Segundo ela, sua vida só se descontrolou a partir das doenças que
lhes ocasionaram a morte. Ela conta que permaneceu morando sozinha após a morte dos demais
irmãos. Ela destaca que, após os falecimentos – sobretudo o da mãe, dado o forte vínculo com ela –
sua vida não mais teve alegria. Trabalhou, quando se mudou para a cidade de Uberlândia, como
lavadeira e passadeira de roupas. É solteira e afirma que teve vontade de se casar. Declara ter tido a
possibilidade, mas, sem apontar justificativa, diz que ela e o nubente desistiram do casamento. Morou,
por um curto período de tempo, com a irmã que reside em Uberlândia. Não pôde, contudo, lá
permanecer porque, segundo ela, não era bem quista pelo cunhado. O avançar da idade e as limitações
da saúde, decorrentes da doença, impedem-na de trabalhar, visto não mais ter forças suficientes para o
trabalho em função do que ela afirma ser o “enfraquecimento das pernas”. Não consegue, contudo,
precisar qual é este problema físico. Afirma que o dinheiro que recebe da aposentadoria a “protege”.
Os motivos, portanto, que acarretaram a ida para o abrigo, de acordo com as suas afirmações, resultam
do fato de estar sozinha; em função do falecimento dos pais e dos irmãos; da falta de pessoas a quem
possa recorrer por causa das limitações da saúde, visto que as irmãs, sobrinhos e outros parentes por
ela não se interessem nem lhe queiram próxima deles. A vaga no abrigo foi obtida pelo cunhado. Foi
ele quem entrou em contato com o local e, na seqüência, firmou o acordo de internação. Ela diz ter
respeitado esta decisão dos familiares, visto que perdera, com a idade, o poder de decisão sobre sua
própria vida. Afirma ter ficado, a princípio, insatisfeita em lá morar, mas que aos poucos foi se
acostumado, visto não ter outra escolha. Comenta, de modo contraditório, que desconhece o motivo da
decisão do cunhado procurar por vaga no abrigo e refere a sua vida como “dura”, já que não é possível
fazer o que deseja, dadas as limitações decorrentes da doença, e pelo fato de permanecer distante dos
seus familiares. Afirma que tem como expectativa receber dinheiro da família para poder então
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comprar as coisas que deseja, visto que os seus familiares nada lhe dão. Recebe visitas esporádicas da
irmã e do cunhado que residem em Uberlândia. Estes, vez ou outra, trazem cartas ou notícias das
outras irmãs. Tem vários sobrinhos e também recebe visitas esparsas de alguns deles. Possui primos e
outros parentes de grau mais distante, mas não tem com estes nenhuma proximidade. Mantém contato
restrito com os colegas de abrigo. Afirma que arruma diariamente a cama dela. Permanece, contudo,
ociosa durante o dia todo, sentada em uma cadeira que se encontra no pátio do abrigo. Depende, em
função da tal “fraqueza nas pernas”, dos cuidados de um funcionário do abrigo que se responsabiliza
por dar-lhe o banho. Declara que é bem assistida no abrigo, pois não lhe faltam médico e remédio.
Nota, no entanto, um enfraquecimento com o avançar da idade. Diz que, por tais limitações de saúde,
está impedida de realizar certas tarefas. Afirma ter conflito com funcionários do abrigo porque retiram,
sem seu consentimento, folhas de alecrim de seu vaso. Em relação à convivência com os colegas,
declara se relacionar apenas com alguns deles. A vida dela, segundo suas afirmações, fora sempre
difícil e, assim sendo, marcada por muito esforço e luta. O desejo expresso é o de ter a mãe, o pai e
todos os irmãos presentes ao seu redor. Relembra, tendo se emocionado, a época em que a mãe era
viva, quando permaneciam diariamente juntas, fazendo companhia uma para a outra. Concorda com a
afirmação da mãe que lhe previa muito sofrimento após sua morte. Pede, assim, que a mãe venha
buscá-la, findando o infortúnio da vida terrena para viver lá no céu. Quanto às precauções clínicas, ela
afirma seguir à risca e de bom grado a medicação prescrita, como manifesta vontade de curar-se, pois
almeja autonomia e independência para fazer o que deseja. Declara, no entanto, que desconhece o
rumo que sua vida seguirá. Diz, porém, que Deus sabe o que deve fazer por ela. Não deixa, contudo,
de pedir a morte para Deus, pois se sente uma pessoa sofrida e abandonada pelos familiares.
ENTREVISTA 4
Entrevistada: Aracê
Naturalidade: Sacramento - M.G
Idade: 64 anos
Escolaridade: 3° ano primário
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 07 anos e 09 meses
A entrevistada é natural de Sacramento, cidade localizada no Triângulo Mineiro. A sua família base
era composta, além dos pais, por sete filhas e treze filhos, sendo ela a penúltima a nascer. Atualmente,
apenas três irmãos estão vivos: duas irmãs e um irmão. Todos residem no Distrito Federal. Ela tem
também vários sobrinhos dispersos, morando em São Paulo, em Rondônia e no Distrito Federal.
Apenas um deles reside em Uberlândia. Afirma que ela sempre morou com os pais. Mesmo com o
falecimento da mãe, que ocorreu há cerca de dez anos, permaneceu com o pai até a morte. Afirma que
ela e o pai tinham bom relacionamento, sendo muito próximos um do outro. Declara ter epilepsia
desde os cinco anos de idade. Foi assim obrigada, por ordem médica, a interromper os estudos, dadas
as freqüentes crises convulsivas causadas pela doença. Cursou, por isso, apenas até o terceiro ano
primário. Comenta não ter crises há mais de ano, mas diz que, conseqüência da doença, a sua “cabeça
é ainda provocada e o sentido é muito fraco, tendo ficado lerda e esquecida demais”, o que a
impossibilita de recordar os fatos passados. Em virtude disso, os pais, segundo ela, cercavam-na de
cuidados, tendo a mãe recomendado aos outros filhos que mantivessem o mesmo tratamento, visto que
a “sua cabeça não funcione direito” por causa dos inúmeros desmaios sofridos. Casou-se após a morte
do pai. Permaneceu casada por cinco anos. Logo após a separação conjugal, o ex-marido também
faleceu. Afirma que se separou dele porque ele tinha “fingido” passar para a sua religião (ela é
evangélica, membro da Igreja Presbiteriana); e – o que para ela é ainda mais grave – porque ele a tinha
“forçado a ir para a macumbaria”. Assim sendo, afirma ter-lhe avisado, visto ele se interessasse por
outra religião, que “passasse sozinho para o caminho do demônio, porque macumbaria é algo maligno
e nunca de Deus”. Ela e a sua família, entretanto, desde criança são, conforme ressalta, seguidores de
Deus. Dedicou-se, enquanto permaneceu casada, aos serviços domésticos. Não teve filhos, pois os
remédios que toma diariamente poderiam interferir na concepção. Morou, após a separação conjugal,
com as irmãs, auxiliando-as nos serviços domésticos. Permaneceu por um tempo maior na casa da
irmã de quem se diz mais próxima. Esta, mais velha, lhe é imediatamente precedente. Ali permaneceu
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até a irmã decidir levá-la para o abrigo. Afirma ter sido bem cuidada por ela, o que diz ocorrer ainda
hoje. Isso faz, segundo diz, que seus sobrinhos tenham ciúmes da relação dela com a irmã, dado o
excesso de zelo que esta sempre lhe teve. Refere, porém, os desmaios como o principal motivo de sua
ida para o abrigo, já que não podia, por causa disso, permanecer sozinha em casa. Diz também que,
desrespeitando orientações médicas, lá se mantinha sempre ocupada com os serviços domésticos.
Acresce que se machucava muito, pois, em função dos desmaios, caía sobre objetos de estruturas
metálicas, como fogão e ferro de passar roupas. A decisão de ir para um abrigo na cidade de
Uberlândia ocorreu por sugestão do sogro do sobrinho dela, que é o pastor da igreja a que o abrigo está
vinculado. Retorna a Brasília apenas para o Natal, passando-o com a família, a convite da irmã mais
velha. Em tal ocasião, para lá viaja com o sobrinho que mora em Uberlândia. Esta irmã também a
visita esporadicamente. Recebe, contudo, notícias freqüentes dela por meio do pastor da igreja.
Justifica, pelo excesso de trabalho, as poucas visitas do sobrinho; pela idade avançada, o fato de os
outros irmãos não a visitarem. Comenta, contudo, receber visitas diárias das pessoas que freqüentam o
abrigo. Afirma que é para ela indiferente morar no abrigo ou na casa da sua irmã, mas declara que
gostava, quando permaneceu na casa da família, de manter-se ocupada com os afazeres domésticos
diários. Diz não conseguir realizar os serviços do abrigo dada a sobrecarga de trabalho. Declara, além
disso, não ter bom relacionamento com alguns colegas do abrigo, irritando-se com o fato de eles terem
“cabeça fraca”, visto que a incomodem com tais limitações. Falta-lhes, segundo ela, boa educação,
além de, como contraditoriamente afirma, “fazerem malandragem por ter a cabeça melhor do que a
dela”. Eles, ademais, diz ela, têm “malícia” e aborrecem-na, por agirem de modo a irritá-la. As
atitudes destes fazem-na recordar-se, por semelhança, das atitudes dos sobrinhos quando ela morava
com a família. Cabe, por fim, ressaltar que ela se dispõe, quando se encontra em boas condições de
saúde, a ajudar a cozinheira do abrigo. Auxilia assim, a pedido desta, na retirada da polpa das frutas,
na realização da limpeza do pátio e no descascar verduras. Gosta, além disso, de assistir aos cultos
realizados na igreja. Afirma não ter expectativas para a vida, ressaltando, entretanto, querer continuar
recebendo visitas da irmã. Destaca não poder efetuar escolhas, visto sempre ter sido muito doente e,
em decorrência disso, ter hoje de morar no abrigo. Espera as ordens de Deus para a sua vida presente e
futura, pois, conforme alega, a escolha “do dia de hoje, de amanhã e de depois de amanhã”, visto ela
não tenha como determinar as possibilidades para a sua vida, não está em suas mãos.
ENTREVISTA 5
Entrevistada: Lana
Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G
Idade: 68 anos
Escolaridade: 3° ano primário
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 07 meses
Os pais desta entrevistada tiveram cinco filhas e um filho. Atualmente, além dela, estão vivos duas
irmãs e um irmão. Ela é viúva, tendo um filho, três netos e vários sobrinhos. Nasceu e foi criada na
zona rural, numa região próxima à cidade de Uberlândia (M.G). Justifica por ter tal proveniência o
fato de ter cursado somente até o terceiro ano primário. Trabalhou até sessenta e seis anos de idade,
tendo parado apenas quando, segundo afirma, sofreu “derrame cerebral”. Apresenta ainda as seqüelas
físicas da doença. O trabalho esteve, portanto, presente em sua vida desde a infância. Sendo assim,
relata que auxiliava os pais tanto nos afazeres domésticos diários quanto no plantio e colheita de
alimentos para a subsistência da família. Com o falecimento dos pais, no início da adolescência,
mudou-se para São Paulo e empregou-se como babá de crianças e doméstica, lavando e passando
roupas na residência da madrinha do irmão. Lá se casou e mudou-se para a Bahia, local de nascimento
do filho. Passados alguns anos, ficou viúva. Relata que na Bahia trabalhou na zona rural, outra vez
plantando e cultivando produtos para o sustento da família. Cuidou, além disso, do próprio lar e
exerceu, nas horas vagas, a função de costureira. O seu filho então amasiou-se e, sem a permissão
dela, conforme afirma, morou com a esposa em sua casa. O fato de ela estar doente, de não ser
respeitada pela nora, e de elas permanecerem em conflito fez que ela entrasse em contato, por meio de
carta, com os familiares que residem em Uberlândia, a fim de solicitar que eles a buscassem. Assim
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seu irmão a levou para lá, passando ela então a residir nos fundos da casa dele. Afirma, no entanto, ter
ficado insatisfeita por estar longe do filho. Diz ter sofrido muito por não aceitar tal distanciamento. O
seu irmão, diante dessa situação, escreveu para o filho dela pedindo para que este também se mudasse
para Uberlândia e vivesse próximo da mãe. Tendo o filho prontamente atendido o pedido, ela
novamente passou a morar com ele e a nora. Mas, visto que ela e a nora outra vez se desentendessem,
relata que o casal mudou de bairro. Ela, por sua vez, foi para a casa da irmã – que é a mais velha
dentre os irmãos vivos – a fim de auxiliá-la, já que esta se encontrava doente. Retornou, porém, após
alguns meses, para a casa do filho. Dado que este e sua esposa lhe tivessem “desmanchado a casa”, ela
diz que, desse modo, teve de morar com eles, tendo sido construído um cômodo especialmente para
ela. Foi, neste período, que afirma ter sofrido “derrame cerebral”. Necessitou então do auxílio
constante dos mesmos para locomover-se dentro de casa. Declara ter então sofrido maus tratos, tanto
morais como físicos. Diz também que houve, da parte dos dois, negligência com a sua saúde. Assim
sendo, pediu ao filho para que a levasse a um abrigo, pois não queria mais viver naquela situação. O
irmão dela, ao ficar ciente dos maus tratos e saber da vontade da irmã, conseguiu uma vaga no abrigo.
Ela, em vista disso, comenta não ter boa relação com o filho e com a nora, dado eles serem, segundo
ela, “muito nervosos e impacientes”. O irmão a que ela faz referência é o “caçula” da família. Ela
afirma que ele sempre se responsabilizou pelos cuidados dos demais irmãos. Por isso, diz ter muito
respeito para com ele. Tal irmão a visita com freqüência. O seu filho a leva quinzenalmente ao
médico. Além disso, aparece quando é preciso levar-lhe alguma coisa no abrigo. Os seus netos e
sobrinhos visitam-na esporadicamente. Ela comenta receber visitas das crianças de algumas escolas
primárias que, segundo suas afirmações, levam os alunos aos asilos para visitar as pessoas que lá
estão. Tem, a partir da promessa de um dos seus sobrinhos, a expectativa de passear na chácara dele a
fim de “passar umas horas” com a família. Ela justifica permanecer todo o tempo ociosa porque recebe
tudo na mão e já pronto. Acresce, porém, que não realiza tarefa alguma no abrigo por estar, como
seqüela do “derrame cerebral”, “desafirmada”. Declara que o filho se aborrece com o fato de ela fazer
comentários sobre a sua história de vida e os motivos que a levaram para o abrigo. Comenta que um
funcionário do abrigo não gosta dela, chamando-lhe a atenção quando ela se prontifica a auxiliar nos
cuidados de alguns colegas. Afirma que a vida no abrigo lhe propicia liberdade, pois se sente no
direito de efetuar escolhas, ao contrário do modo como vivia com o filho e a nora. Assim sendo, de
acordo com as suas afirmações, “ela saiu do inferno e caiu no céu”. Justifica pela idade a falta de
expectativa na vida, e afirma que deve permanecer no abrigo até a sua morte por não haver outra
possibilidade de escolha. Diz pedir a Deus que ele lhe dê forças suficientes, até o fim de seus dias,
para conseguir realizar ao menos os cuidados básicos consigo própria. Ela, segundo a sua afirmação,
“nasceu para sofrer até a hora da morte pela força do destino” porque a vida dela, em toda a sua
trajetória, sempre foi marcada por sofrimento decorrente da perda precoce dos pais e de muita luta e
esforço para a sua sobrevivência. Além disso, justifica o seu sofrimento comparando-o com a desgraça
sofrida por Jesus. Afirma assim poder suportá-lo, já que o próprio Jesus também muito sofreu.
ENTREVISTA 6
Entrevistada: Ava
Naturalidade: Zona rural de Veríssimo - M.G
Idade: 89 anos
Escolaridade: 3° ano primário
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 1 ano e 10 meses
A entrevistada nasceu e foi criada na zona rural de Veríssimo (M.G.). É a filha mais velha de uma
família de nove filhos – cinco homens e quatro mulheres. Atualmente apenas uma irmã e um irmão
estão vivos. Ambos moram em Uberlândia. Afirma que a infância vivida no meio rural foi muito boa,
sobretudo pelo ótimo relacionamento entre pais e filhos, com muito respeito destes para com aqueles.
Neste período, a mãe e os filhos trabalhavam em conjunto. Estudou até o terceiro ano primário. Casou-
se quando já morava na cidade, mas há mais de vinte anos é viúva. Ainda hoje declara sentir muita
falta do marido, pois, para ela, tal perda é “a coisa mais doída da vida”. Ressalta que se dava muito
bem com ele, pois, além de muito trabalhador, ele nada deixava faltar em casa. Diz que o marido trata
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dela até hoje, porque lhe deixou casa e pensão, dinheiro que atualmente a mantém. Salienta, por um
lado, que não quis morar, após o falecimento dele, com outras pessoas, embora propostas de
pretendentes tenham surgido. Por outro, declara ter tido um outro companheiro, também já falecido.
Teve três filhos. Um deles morreu ainda criança por causa de sarampo. O filho mais velho mora
atualmente em São Paulo; o mais novo, em Uberlândia. Este foi criado por uma irmã dela até os onze
anos de idade para poder estudar. Nesta idade, contudo, voltou a morar com ela. Afirma ser boa sua
convivência com os filhos. Ressalta, no entanto, nunca ter necessitado de qualquer ajuda deles, em
virtude do que o marido lhe deixara. Destaca, mesmo assim, que o filho mais novo, quando a visita,
sempre a presenteia. Ela trabalhou, no meio rural e na cidade, como lavadeira. Depois de alguns anos
de casada, o marido não quis que ela trabalhasse fora, já que ele e os filhos garantiriam o sustento da
casa. Passou, então, a lidar exclusivamente com os afazeres domésticos. Morava sozinha até se
adoecer. Passou a residir com o filho mais novo numa casa construída para ela nos fundos da dele.
Este, conforme ela afirma, cuidou muito dela nesta época. Afirma, contudo, que tinha conflitos com a
nora e com a neta, tendo sofrido, inclusive, maus-tratos físicos e morais. Crê que as duas foram a
causa de sua ida para o abrigo, pois, seu filho, alegando não mais suportar ver os sofrimentos da mãe,
pediu para que uma sobrinha dela arrumasse uma vaga no abrigo, tendo ido para lá a partir da doença
do filho. Este sofreu “derrame cerebral” Depois da sua institucionalização, esta neta também levou o
pai para fazer fisioterapia no abrigo. Este saiu de lá depois de ter apresentado melhoras físicas. Ele a
visita semanalmente. Os seus irmãos nunca a visitaram e ela não sabe precisar o motivo. Afirma ter
muitos parentes e declara receber sempre visitas da prima, da comadre e de uma sobrinha. Afirma que
os demais idosos são boas pessoas. Ressalta que o abrigo é um bom lugar, pois todos são atendidos
quando preciso, além de a comida ser boa e a mesma para todos. Diz tratar todo mundo bem. Ocupa-se
com a realização diária de crochê que faz tanto para seu prazer quanto para vender. Embora refira a
vida no abrigo como tranqüila, espera a melhora do estado de saúde do filho para retornar para a sua
casa, fazendo, contudo, reiteradamente a ressalva de que esta vontade não está relacionada ao modo
como é tratada no abrigo. Diz que o filho sempre reafirma o desejo de que ela more novamente com
ele. Ressalta, assim, que na própria casa há liberdade para fazer e comer o que deseja, diferentemente
da casa dos outros em que se deve aceitar o que lhe dão. Afirma que não se deve esquecer de Deus
porque ele dá “força, coragem e saúde”. Além disso, diz que daqui em diante “nós tudo está nas mãos
de Deus” e, se Deus quiser, ela voltará para a sua casa. Lá ela quer “plantar cebola, criar galinhas e
cuidar da casa”.
ENTREVISTA 7
Entrevistada: Tiana
Naturalidade: Zona rural de Monte Alegre - M.G
Idade: 83 anos
Escolaridade: Analfabeta
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 05 anos e 09 meses
A entrevistada nasceu e foi criada pelos pais, juntamente com os irmãos, na zona rural de Monte
Alegre (M.G). Ela é a sexta de uma família de doze filhos – seis mulheres e seis homens. Três (uma
mulher e dois homens) faleceram ainda crianças. Ela desconhece o paradeiro de uma de suas irmãs; os
demaisjá morreram. Manifesta, contudo, vontade de ter notícias da irmã. Afirma que na infância ela e
os irmãos apenas trabalharam porque “naquele tempo não dava importância pro estudo”. Declara que a
vida na roça era boa, porque ela e a família trabalhavam e todos tinham saúde, não tendo “dificuldade
de nada”. Declara, pois, que “vivia muito feliz” nesta época, pois os filhos trabalhavam em
colaboração conjunta com os pais no plantio e colheita de produtos agrícolas. Estes, ademais, não
deixaram faltar nada para aqueles. Afirma que trabalhava em excesso, mas não sentia o peso do
trabalho porque a rotina de vida no campo lhe era familiar, visto que nascera e crescera naquele local
e, além disso, porque tinha os pais. Reitera, pois, “que vivia bem, alegre e satisfeita, porque tinha
eles”. Ela e os irmãos, ainda solteiros, se mudaram para a cidade, em função do falecimento dos pais.
Foram morar com a irmã mais velha, já casada, que passou a se responsabilizar pelos cuidados deles.
Posteriormente, em virtude do trabalho do cunhado, todos retornaram com eles para o meio rural.
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Afirma reiteradamente ter, então, se casado no local em que o cunhado trabalhava, a “Fazenda das
Flore”, localizada no município de Canápolis. Atualmente é viúva. Teve um único filho, mas este
faleceu com um ano e três meses de idade, vítima de doença. Na cidade, trabalhou em diversas
residências como doméstica, lavadeira e passadeira de roupas. Por ficar doente e não mais poder
trabalhar, sua patroa a aposentou, passando, a partir daí, a morar com uma sobrinha. Seu estado de
saúde se agravou depois disso: “problemas nas pernas, nas vistas, muita tonteira e hérnia”. Ela, em
vista disso, passou a depender totalmente dos cuidados da sobrinha. Como esta precisava trabalhar e se
preocupava com o fato de ela permanecer sozinha em casa, decidiu levá-la para o abrigo. Esta
sobrinha foi e ainda é, segundo suas afirmações, muito boa pra ela e tentava, no período em que
moravam juntas, satisfazer as suas vontades. Atualmente, no entanto, a sobrinha não mais trabalha
porque também é doente. Ela afirma ter muitos sobrinhos. Recebe visitas esparsas de alguns de seus
parentes, num intervalo que varia de três a seis meses ou mais. A sobrinha, com a qual viveu,
comparece mensalmente ao abrigo para tratar de questões burocráticas relativas à sua permanência no
local. Ela manifesta vontade de receber visitas mais freqüentes dos familiares, pelo menos uma vez ao
mês. Afirma desconhecer os motivos da demora das visitas dos mesmos, embora mencione a falta de
tempo deles decorrente do excesso de trabalho. Acredita, por outro lado, que eles não a visitam por
mero desinteresse. Ela lamenta, mas diz nada poder fazer. Por outro lado, fala que não se incomoda
com isso e “o dia que eles resolverem, eles vão”. Ela justifica as suas poucas visitas na casa dos
parentes pela indisponibilidade dos funcionários do abrigo em levá-la, dado o excesso de trabalho
deles. Quando há possibilidade, a família dela a busca. Declara, por outro lado, receber muitas visitas
da comunidade. No abrigo, ela realiza atividades voltadas para a leitura e escrita. Comenta que acha
bom estar naquele local e gosta muito das pessoas que lá estão, pois são “boas pessoas”, não tendo ela
que se “queixar de ninguém”. Diz que os funcionários a tratam muito bem, têm muita paciência com
ela e com os seus colegas e fazem o que podem para atendê-los. Declara “que não quer fazer mais
nada” e não deseja “mudar nada em sua vida”. Afirma que apenas mudaria se pudesse continuar
trabalhando. Além disso, afirma que não quer fazer mais nada porque “as vistas não ajudam”; por
outro lado, diz que não há possibilidade de fazer mais nada porque ela depende do uso de bengala.
Segundo ela, a escolha para sua vida é essa que ora se faz, ou seja, é a vida que ela está vivendo.
Manifesta interesse apenas por passar algumas horas ou um dia na casa dos seus familiares. Não faz
planos e não espera mais nada porque “está no fim da vida e já fez o que tinha de ser feito: agora é
esperar”.
ENTREVISTADA 8
Entrevistada: Zica
Naturalidade: Bom Jardim - M.G
Idade: 80 anos
Escolaridade: Analfabeta
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 05 anos e 07 meses
A entrevistada, embora seja natural de Bom Jardim (M.G), foi registrada em Uberlândia (M.G), pois
mudou-se, ainda nova, para esta cidade. É a quinta de uma família de dez filhos (quatro mulheres e
seis homens). Atualmente tem quatro irmãos vivos, sendo destes apenas uma mulher. Esta reside em
Brasília; um irmão mora em São Paulo; os demais, em Uberlândia. Com a separação dos pais, ocorrida
na infância, ela permaneceu sob os cuidados da mãe e do avô. Os seus irmãos, por sua vez, ficaram
sob a responsabilidade do pai e da madrasta com quem este se casou. Teve pouco contato com os
irmãos na infância. Desconhece, segundo afirma, o motivo por que foi separada dos irmãos. Justifica
não ter freqüentado escola porque onde foi criada acreditavam que mulher não precisava aprender a
ler. Afirma ter tido vontade de estudar. Salienta que seus irmãos, que permaneceram com o pai,
estudaram. Ela se casou, mas é viúva há mais de vinte anos. Diz ter tido um bom marido. Ela o
auxiliou, tendo também trabalhado muito. Foi empregada doméstica durante quatorze anos na casa de
uma mesma família, exercendo funções de cozinheira e auxiliando na educação dos filhos da patroa.
Atualmente é aposentada. Teve uma única filha, mas esta faleceu quando tinha um ano e meio de
idade, vítima de sarampo. Não teve outros filhos, ainda que, conforme diz, não os tivesse evitado.
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Adotou um menino com sete meses de vida como filho. Morou com ele antes de ir para o abrigo.
Quando adoeceu, já aposentada, cuidava do neto que é deficiente, visto que seu filho bebia muito. No
entanto, conforme afirma, depois da sua doença, o filho passou a cuidar muito bem do neto dela. Ela
sofreu “derrame cerebral”. As conseqüências da doença impediram-na de se locomover. Passou então
a andar em cadeira de rodas. Diz ter se descuidado da saúde por trabalhar demais a vida toda. Depois
da doença, permaneceu na casa de uma das sobrinhas durante quinze dias. Antes disso, porém, morou
um tempo na casa de um dos seus irmãos. Diz que a sobrinha, por trabalhar fora e não poder dela
cuidar, levou-a ao abrigo, por lá haver tratamento fisioterápico. Ressalta que seu estado de saúde atual
apresentou melhora quando comparado ao anterior à internação. Acha bom estar no abrigo, pois,
conforme ressalta, lá tem “fartura”; não falta médico; tem “tudo no jeito”. Além disso, afirma que é
muito bem tratada, pois ela e os outros internos fazem fisioterapia semanalmente. Destaca, contudo,
não se sentir totalmente à vontade, porque lá é muita “gente falso, muita gente defeituoso, sendo um
local perigoso”. Diz que, sem motivo algum, foi atacada por um interno. Além disso, afirma que o
“povo de lá é tudo doido” e tem “gente de todo jeito”. Mantém-se, por isso, mais distante e silenciosa.
Destaca, no entanto, gostar dos funcionários, mantendo também, segundo ela, um bom relacionamento
com a sua colega de quarto. Recebe visitas esporádicas dos irmãos que moram em Uberlândia.
Recebeu visita recente da irmã, após o falecimento do marido desta. Não tem notícia há muito tempo
do irmão que mora em São Paulo e, conforme ela afirma, não a visita porque já está velho O filho e o
neto a visitam quinzenalmente, nas folgas do trabalho do filho, já que este trabalha numa chácara e
não pode sair de lá com mais freqüência. Além destes, recebe visitas da neta que, segundo afirma, a
visita muito. Tem sobrinhos e alguns deles a visitam. A sobrinha, que a levou para o abrigo, raramente
a visita. Recebe também visitas da antiga patroa e da filha dela. O filho dessa sua antiga patroa não a
visita porque ele não gosta de “hospital”. Ela destaca que no abrigo não vê o dinheiro de sua
aposentadoria, pois “a mulher pega o dinheiro e nós não vê um puto”. Reclama, pois, do fato de que,
se quiser algo, ter de encomendar, sem ter acesso ao dinheiro. No abrigo ocupa o tempo desenhando.
Realça sua habilidade, afirmando que faz qualquer coisa que lhe pedirem. Não participa de outras
tarefas, porque, conforme afirma, tem dificuldade em enxergar, além de utilizar uma só mão. Diz que,
excetuando a visão, não sofre mais nada, mesmo que tenha tido um “derrame cerebral” e a perna e o
braço sejam “bobos”. Contraditoriamente, entretanto, diz que depois da doença, “acabou, porque não
tem mais jeito de muita coisa”. Ela afirma que, embora queira, seu filho não tem condições financeiras
de pagar uma pessoa para cuidar dela e de seu neto, pois, se assim fosse, ela estaria na casa dele. Se
pudesse escolher, preferiria morar na casa do filho. Diz, no entanto, que ele não pode levá-la porque
trabalha na chácara, distante da cidade, sem condições de cuidar de sua saúde numa emergência.
Afirma que tinha uma vida boa, mas “Deus quis assim: a gente trabalha uns tempos, depois adoece.
Não sabe se vai viver, se vai morrer ou o que vai acontecer”. Além disso, diz que ficará no abrigo “até
Deus quiser e às vezes ela pode ir pra casa do filho, às vezes pode morrer ali”. Se ela vai voltar ou não,
está nas “mãos de Deus”. “O dia que o filho puder levar, bem. O dia que ele não puder, fica. Ele só
falta poder zelar dela”.
ENTREVISTA 9
Entrevistada: Doca
Idade: 71 anos
Escolaridade: Analfabeta
Naturalidade: Zona rural de São Gotardo - M.G
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 04 anos e 07 meses
A entrevistada é a oitava filha de uma família constituída por dez irmãos, sendo cinco mulheres e
cinco homens. De todos os irmãos, atualmente cinco estão vivos: quatro mulheres e um homem. Ela e
os irmãos foram criados pelos pais no meio rural, numa região do município de São Gotardo (M.G). É
analfabeta e justifica, por ter sempre trabalhado, o fato de não ter freqüentado nenhuma escola. Afirma
que a família lá sempre laborava em colaboração uns com os outros: ora para o próprio sustento; ora,
na limpeza de arroz e na moagem de café, para os vizinhos. Da roça eles se mudaram para Uberlândia.
Ali, ela e algumas irmãs trabalharam como lavadeiras de roupa. Então sua mãe e um dos irmãos
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“idearam” que ela se casasse, conforme ela relata: “[...] A minha mãe e meu irmão não sei o quê que
ideiou. Apareceu um véio lá, já de idade também, gostou de mim e interessou pelo casamento. [...]
Então fez o casamento [...]”. Ela tinha trinta e oito anos de idade quando se casou com o marido de
cinqüenta e oito anos. Afirma que a sua vida teve paz nos anos em que conviveu com o marido, pois,
além de ter a companhia dele, nada lhe faltou na casa em termos materiais. Engravidou por quatro
vezes, mas nenhuma tentativa foi bem sucedida, pois em todas ocorreu aborto espontâneo. O marido
dela, por sua vez, já tinha três filhos. Ela, contudo, com eles não manteve contato. Demonstra
ressentimento por uma irmã e sobrinha, pois afirma que as mesmas sempre quiseram se aproveitar do
pouco dinheiro que ela e o marido tinham, visto que constantemente lhe pedissem algo. Tal fato fez,
conforme infere, que aos poucos o seu marido “perdesse as forças” e adoecesse. O sobrinho dele
responsabilizou-se pelos cuidados e tratamento médico, mas o marido rapidamente faleceu. Afirma
que este “não sai de sua cabeça”, pois a vida com ele “era limpa”, diferentemente de quando viveu
com os pais de quem, conforme declara, ela sempre fora escrava. Afirma que “ficou fraca da cabeça”
por não poder, em função dos desentendimentos ocorridos, continuar morando com a família. Decidiu,
assim sendo, morar no abrigo por vontade própria, embora ainda tenha a expectativa de voltar a residir
com os familiares. Ela tem vários sobrinhos, mas mantém pouco contato com a família, que apenas
esporadicamente a visita. Vive em conflito com uma parte dos seus familiares, embora afirme ter bom
relacionamento com uma das irmãs. Esta, inclusive, mora próximo do abrigo. O fato de tal irmã não
visitá-la, segunda sua afirmação, justifica-se por esta ser doente; quanto aos sobrinhos, ela diz que eles
não têm tempo, em função do trabalho. Ela, no entanto, manifesta expressa vontade de deles receber
cuidados. Assegura, contraditoriamente, que a irmã mencionada é injusta ao não visitá-la, já que ela,
cuidando-lhe dos filhos, auxiliou-a quando esta dela necessitou. Ressalta, porém, receber visitas da
comunidade. Acha que a sua vida no abrigo é restrita, pois não tem o que precisa e não se sente no
direito de pedir o que deseja, embora diga, de modo contraditório, que se satisfaça com as condições
básicas que lhe são oferecidas. Nesse sentido, o abrigo, segundo a sua opinião, é “um sagrado lar”.
Afirma manter bom relacionamento com os colegas que moram no abrigo, sobretudo com aqueles com
quem compartilha quarto. Relata, contudo, que há conflitos e ressentimentos da sua parte com alguns
deles que criticam o seu físico e o seu modo de ser. Encontra-se atualmente ociosa, pois deixou de
fazer tapetes, por recomendação da fisioterapeuta, visto manifestasse irritação nos olhos. Tem várias
doenças: a diabetes; problema na tireóide; complicações cardíacas. Tais doenças tornam-na
dependente do uso diário de medicação. Pede, em razão disso, forças a Deus e suplica para que ele
dela tenha “piedade” a fim de não deixá-la “prostrada”, isto é, dependente dos cuidados permanentes
de um outro.
ENTREVISTA 10
Entrevistada: Ina
Naturalidade: Zona rural de Tupaciguara - M.G
Idade: 73 anos
Escolaridade: Primário incompleto
Estado civil: Separada
Tempo de abrigo: 03 anos e 01 mês
A entrevistada tinha nove irmãos, cinco homens e quatro mulheres. Ela é a quinta filha. Atualmente
apenas três estão vivos, sendo dois homens e uma mulher. Somente um dos irmãos mora em
Uberlândia. Ela e os irmãos foram criados pelos pais na zona rural, num distrito de Tupaciguara,
cidade localizada no Triângulo Mineiro. O trabalho, nesse período de sua vida, ela justifica, era
excessivo, visto que todos os membros da família, em colaboração conjunta, fiavam tecidos a fim de
contribuir para com o sustento da casa. Os filhos moraram com os pais durante a infância. Ela se casou
aos treze anos de idade em Tupaciguara. Ali morou até o período de ingresso no abrigo. O casamento,
de acordo com a sua afirmação, ocorreu por vontade própria, mas manifesta arrependimento de ter se
casado tão jovem. O marido separou-se dela quando ainda estava grávida do filho. Após alguns anos,
porém, ele quis reatar o casamento, mas ela afirma ter recusado tal proposta. Comenta não ter notícias
mais recentes do ex-marido. Soube, contudo, por informações dos netos, que ele reside em outro
abrigo da cidade. O ex-marido, segundo seus comentários, não tinha bom caráter, pois não trabalhava,
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não a auxiliava na criação do filho nem nas despesas e gastos da casa, deixando-os passar até fome.
Desse modo, responsabilizou-se sozinha pelos cuidados do filho. Sendo assim, com a separação
conjugal, trabalhou como costureira para garantir o sustento da casa. O filho faleceu há tempos, em
razão de um acidente automobilístico. Ela criou apenas este filho. Declara ter praticado um aborto.
Isso, afirma, é “um pecado que ela levará para Deus”. Morou com este filho até ele casar-se e residiu
sozinha até a data de ingresso no abrigo. Tem três netos e diz que houve proibição da parte deles de
ela continuar morando sozinha, por precaução, dadas suas limitações da saúde. Uma sobrinha,
residente em Uberlândia, prontificou-se a cuidar dela, tendo se mudado para a cidade. Permaneceu por
uma semana na casa da sobrinha que, após esse período, levou-a definitivamente para o abrigo.
Justifica pela ausência do filho sua ida para o abrigo, pois estaria morando com ele, conforme crê, caso
ainda estivesse vivo. Não mantém contato com os irmãos, dado o fato de eles não a visitarem no
abrigo. Um destes, inclusive, é vizinho do abrigo em que ela se encontra. Recebe, contudo, visitas
freqüentes das “amigas”, palavra pela qual designa as pessoas da comunidade que conheceu nas visitas
realizadas ao abrigo. Além disso, de acordo com as suas afirmações, os netos a visitam
esporadicamente em virtude de ocupações diárias. Manifesta claramente o desejo de que eles e sua
irmã visitem-na com maior freqüência. Diz que permanece ociosa no abrigo todo o tempo, pois alega
não mais ter “coragem para o trabalho”. Afirma que o relacionamento com os colegas do abrigo é
instável e oscilante, havendo alguns dias conflituosos, mas outros calmos. Afirma, assim, que se sente
insatisfeita com a vida atual, pelo fato de morar no abrigo, alegando que sua vida é “triste e muito
ruim”. Assevera, contudo, ter de se conformar, pois declara que não há outra escolha para ela a não ser
morar no abrigo Mantém, entretanto, a expectativa de retornar para sua casa, da qual, afirma, sempre
cuidara bem. Assim, embora esteja ciente de que as doenças decorrentes da idade avançada
impossibilitem-na de morar sozinha e ter autonomia para conduzir a sua própria vida, foca em seu
horizonte a possibilidade de independência. Mas não só. Além disso, declara também querer ser
cuidada pelos netos, embora afirme que eles não tenham condições de zelar por ela.
ENTREVISTA 11
Entrevistada: Ceci
Naturalidade: Paracatu - M.G
Idade: 79 anos
Escolaridade: Analfabeta
Estado civil: Viúva
Tempo de abrigo: 09 meses
A entrevistada é a filha primogênita de uma família constituída por quatro filhos – três mulheres e um
homem. Todos estes estão vivos. É natural de Paracatu, cidade localizada no interior de Minas Gerais.
Após a morte do pai, mudou-se com a mãe e os irmãos, ainda crianças, para uma cidade localizada no
Triângulo Mineiro. Moraram então em diversas cidades da região, sempre em busca de um melhor
emprego. Afirma que a mãe criou e sustentou sozinha os seus filhos. Sendo assim, a mãe, segundo ela,
sofreu muito para criá-los. Ela comenta que acompanhava a mãe no serviço. Ressalta, porém, que ela a
castigava com freqüência. Justifica a mãe, contudo, afirmando ter sido ela muito “custosa”, visto que
um “espírito mal nela entrou”, tornando-a um “demônio em figura de gente”. Os irmãos moram na
Bahia. Para lá mudaram em busca de emprego. Eles, segundo afirma, não mantêm contato com ela.
Esta, por sua vez, justifica o distanciamento dos mesmos pelo fato de eles nunca terem se importado
com ela, mesmo quando moravam na mesma cidade. Assim sendo, raramente recebe notícias deles.
Quando isso ocorre, é por meio de conhecidos que para lá viajam e trazem notícias dos irmãos. Foi
casada, mas hoje é viúva. Teve uma filha, mas esta faleceu aos dois anos de idade por causa de uma
meningite. Afirma, a princípio, que não pôde mais engravidar pelo fato de o marido nunca ter tido
estabilidade financeira. Comenta a seguir, contudo, que não teve outros filhos por ter se casado mais
velha, com trinta anos de idade. Relata que ela e o marido mudavam com freqüência de cidade, sempre
em busca de serviço e salário melhores. Moraram em capitais e em cidades do interior de vários
estados, trabalhando geralmente em empregos temporários. Afirma ter trabalhado como cozinheira
em residência e em restaurante; o marido, por sua vez, exerceu a profissão de instalador de luminosos.
Eles então se mudaram para Uberlândia, onde ela está há cinqüenta anos. Após o falecimento do
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marido, passou a morar sozinha em uma pequena casa cedida gentilmente por um conhecido enquanto
trabalhava como benzedeira. Fazia assim, de acordo com a sua declaração, “caridade para as pessoas”.
Afirma que “benzia com preces e não incorporava porque a enfermidade poderia descarregar-se na
pessoa que está sendo benta”. Responsabilizou-se assim, segundo ela, por benzer pessoas que
necessitassem de orações para promover a cura das enfermidades do corpo e paz para os males da
alma. A ida para o abrigo ocorreu de modo inesperado e por meio de terceiros. Segundo sua
afirmação, um “paciente dela tinha dó de vê-la morando sozinha”. Além disso, conforme ela declara,
quando ele soube do boato de que alguns dos seus vizinhos poderiam matá-la para tomar os seus
“guias espirituais”, arrumou imediatamente uma vaga no abrigo, sem nem mesmo comunicá-la.
Afirma que a coordenadora do abrigo a buscou em casa. Ela afirma que se assustou com o fato de ter
de se mudar de modo inesperado para o abrigo, mas depois compreendeu que não mais seria possível
morar sozinha em sua casa por causa da idade. Recebe visitas dos seus conhecidos, pessoas que
mantêm ligação com centros de umbanda e com quem ela tinha algum contato antes de ir para o
abrigo. Tem primos em Uberlândia, mas não se interessa nem por deles ter notícias nem por manter
contato com eles, alegando não gostar destes primos porque os considera “ricos e metidos”. Afirma
que é perseguida pelos colegas de abrigo, visto que a atormentem e dela tenham inveja “por ser filha
de Jesus”. Além disso, declara que “não fica de xodó fazendo rodinha na beira da cadeira dos colegas
porque eles gostam de ilusão e ela não gosta”. Mantém por tais motivos contato restrito com eles.
Alega permanecer no abrigo unicamente porque os orixás, seus protetores, dela “têm ciúmes e se
transformam em gente”, o que a faz “perder os sentidos”. Afirma possuir um “rei que tem ciúmes dela
e teme que os outros possam matá-la pelo fato de ser muito bondosa”. Assim, alega que é conduzida
por “guias”, a quem recorre em busca de apoio ou ante a necessidade de algum pedido. Diz que eles
proibem-na de sair do abrigo; de pentear cabelo; de realizar tarefas diversas (embora ela tenha dito que
varre e regue as plantas do quintal do abrigo); de relacionar-se com as pessoas que nele moram.
Afirma que não tem interesse algum em fazer mais nada, tendo assim apenas a morte como
expectativa. Não pede, contudo, para morrer por ser, como ela própria afirma, “filha de Jesus”. Este,
sendo assim, deve levá-la quando vir que ela mereça “desencarnar”.
ENTREVISTA 12
Entrevistada: Iole
Idade: 81 anos
Escolaridade: 3° ano primário
Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G
Estado civil: Separada
Tempo de abrigo: 03 anos e 10 meses
A família desta entrevistada, além dos pais, era composta por quatro filhos, sendo ela a terceira. Como
o irmão já faleceu, tem apenas duas irmãs vivas, além de inúmeros primos e sobrinhos. Foi criada
pelos pais, falecidos há muitos anos. Ela, assim como os irmãos, nasceu e morou na zona rural, num
distrito de Uberlândia. Cursou apenas até o terceiro ano primário. Foi para a cidade com os irmãos tão
logo se tornou independente. Lá trabalhou por muitos anos em duas alfaiatarias. Casou-se, mas,
segundo ela afirma, como “o casamento não deu certo”, separou-se. Assevera que seu casamento foi
uma “bobagem”, porque o marido, segundo ela, “arrumou outra”. Não teve filhos. Morava sozinha e
afirma desconhecer o motivo pelo qual suas sobrinhas decidiram levá-la para o abrigo. Sente-se
insatisfeita em lá morar, pois gostaria de estar na casa dela. Reconhece, contudo, que estava muito só.
Soube, por funcionários do abrigo, que seu ex-marido a procurou; comenta, entretanto, que não o viu.
Uma das suas sobrinhas de vez em quando a busca para levá-la à igreja; outra a visita com freqüência.
Ela, inicialmente, comentou não receber visitas das irmãs. Mas depois afirmou que elas a visitam
esporadicamente. Além disso, diz que não as procurará, porque alega que elas deveriam ir até ela caso
tivessem realmente interesse em vê-la. Permanece ociosa o tempo todo, não manifestando interesse em
se ocupar com alguma atividade. É distante das colegas do quarto e também não se relaciona com os
demais abrigados. Não apresenta nenhum problema de saúde. Afirma que não se sente bem pelo fato
de estar no abrigo e percebe, segundo as suas afirmações, que “a sua vida virou besteira” após a sua
ida para lá. Afirma sentir-se muito nervosa atualmente e, por isso, bate em si mesma com raiva. Além
195
disso, pede, conforme sua afirmação, “para que Deus tenha dó e misericórdia dela e tire-a desse
mundo”. Observa, no entanto, que gostaria de ter a mesma vida tranqüila de quando era solteira,
manifestando vontade de ter autonomia para viver a vida e fazer o que deseja. Isso, contudo, segundo
ela própria declara, não é mais possível.
ENTREVISTA 13
Entrevistada: Lude
Naturalidade: Zona rural de Uberlândia - M.G
Idade: 79 anos
Escolaridade: Analfabeta
Estado civil: Solteira
Tempo de abrigo: 04 anos e 05 meses
Esta entrevistada é a sétima filha de uma família composta por nove irmãos (quatro mulheres e cinco
homens). Todos estes já faleceram. Ela e os irmãos foram criados pelos pais na zona rural, numa
região localizada nos arredores de Uberlândia (M.G). Nunca freqüentou a escola. É solteira e,
conforme ela própria diz, “nunca gostou desse negócio de casamento”. Criou, porém, uma filha
adotiva desde que esta era criança, a quem ela se refere como “menina”. Esta, segundo afirma,
constituiu família, visto ter se casado e tido filhos. Declara, entretanto que foi por ela ludibriada, pois a
filha adotiva, segunda ela, pegou o dinheiro da sua aposentadoria, usando-o para mudar-se de cidade.
A entrevistada, por sua vez, morou na zona rural com um dos seus sobrinhos, e só se mudou para
Uberlândia após o fato de “menina”, conforme relata, ter-lhe levado todo o dinheiro. A sua vida, após
tal acontecimento, ficou desprovida de sentido. Ela, assim sendo, afirma que “viver e morrer é uma
coisa só”. Declara, além disso, que o falecimento dos irmãos tirou-lhe também a alegria. A sua
família, de acordo com o que ela relata, possui bens materiais, embora ela nada tenha. Eles, contudo,
segundo ela, não a ajudam. Morou, entretanto, durante um tempo com uma das irmãs e com o
cunhado. Dado o fato de a irmã ter adoecido, trabalhou neste período como “zeladeira”, auxiliando o
cunhado em um hotel e numa pensão, fornecendo marmitas. Afirma, assim, ter com eles contribuído.
Comenta que o cunhado cuidou dela e lhe proveu de todo o necessário, incluindo a medicação de que
sempre dependeu. Comentou ter sido alegre nesse período em que trabalhou. Afirma que “sofreu
começo de derrame cerebral”, e diz nunca ter tido boa saúde. Num primeiro momento, de acordo com
as suas afirmações, a ida dela para o abrigo decorreu de a filha adotiva tê-la deixado naquele local.
Mas, num segundo, afirma que a escolha de morar no abrigo foi dela própria, visto não tivesse local
fixo de moradia e daí, conseqüentemente, permanecesse a cada momento na casa de um parente,
parecendo, como ela própria afirma, “um cachorro sem dono”. Acresce que, embora não goste de
morar no abrigo, a sua permanência lá é obrigatória, dado não haja outra possibilidade de escolha para
a vida, pois não tem para onde ir. De modo contraditório, porém, afirma que no abrigo sente-se melhor
do que no período em que perambulava pelas casas dos diversos familiares. Recebe visitas de algumas
das sobrinhas, mas diz que elas a procuram apenas para tirar-lhe o sossego. Dada a morte dos pais e
irmãos, afirma não ter mais família, assim explicando o fato de ser sozinha. Recebe visitas esporádicas
da filha adotiva, mas afirma não fazer questão de que ela vá vê-la. Declara, de modo contraditório, que
tinha como pretensão de ser por ela cuidada, embora esteja ciente que a filha adotiva não tenha
condições de fazê-lo. Permanece no abrigo deitada em sua cama todo o tempo, pois não manifesta
interesse por nenhuma atividade. Justifica a ociosidade e o desinteresse em ocupar o tempo pela
impossibilidade de poder fazer algo, dado o cansaço decorrente da idade. Entra em conflito com
alguns colegas de abrigo e não tem, sendo assim, bom relacionamento com eles. Não se relaciona com
quem ela considera, conforme afirma, “doidos e esquisitos”. Ela considera os demais colegas como a
ela semelhantes, pois, conforme declara, não há entre eles “separação”. Afirma, por fim, não ter
nenhuma expectativa para a vida, devendo apenas permanecer no abrigo, pois declara que tem a morte
como único plano.
ENTREVISTA 14
Entrevistada: Irajá
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Naturalidade: Uberaba - M.G
Idade: 99 anos
Escolaridade: 1° ano primário
Estado civil: Solteira
Tempo de abrigo: 03 anos e 02 meses
A entrevistada ora em questão, bem como seus dois irmãos – um homem e uma mulher –, foi criada
pelos pais, sendo ela a filha “do meio”. É natural de Uberaba (M.G). O trabalho e a conseqüente falta
de tempo são, conforme diz, a justificativa por ter freqüentado a escola somente no primeiro ano do
ensino primário. Diz ela que não acredita ter cem anos de idade, como afirmam as pessoas com quem
mantém contato. Pensa estar com oitenta anos. Alega ter sido oficialmente registrada às pressas,
quando já era adulta, a fim de que pudesse trabalhar como cozinheira na residência de uma família.
Desse modo, afirma que no seu registro os dados são incorretos, aumentando-lhe a idade. O pai
faleceu quando ela tinha cerca de onze anos de idade. A sua mãe, desse modo, responsabilizou-se
sozinha pela criação dos filhos. Logo após o falecimento do pai, a mãe trabalhou numa clínica,
enquanto ela exercia a função de pajem de criança, para auxiliar no pagamento do aluguel da casa em
que moravam e nos gastos com as despesas da família. Também na adolescência, com cerca de quinze
anos, trabalhou como doméstica; depois, em hospitais, auxiliando médicos e enfermeiros nos cuidados
para com os enfermos. É solteira e afirma não ter tido interesse em se casar. Justifica tal fato porque o
pai dela sempre disse que seus filhos não podiam se casar com pessoas de baixo nível sócio-
econômico, pois a vida dos mesmos seguiria caminho semelhante ao deles, com dificuldades e muita
luta. Ela diz ter acreditado nele e, portanto, nunca ter almejado o casamento. A sua irmã mais velha foi
a única filha a se casar. Afirma que mantinha bom relacionamento com os irmãos, todos já falecidos,
referindo-se a eles como boas pessoas. Ela se considera muito sofrida por ter trabalhado desde criança.
Após o falecimento da mãe, morou sozinha. Teve, contudo, por alguns anos a companhia de um casal
que ela acolheu em sua casa, visto que eles, naquela ocasião, segundo sua afirmação, procurassem
local para morar. Ela e tal casal, conforme sua declaração, dividiam as despesas da casa. Quando eles
se mudaram, ela voltou a morar sozinha. Depois, alojou em sua casa uma moça com o filho, pois,
segundo afirma, eles também necessitavam de um local para morar. Esta moça, além de dividir com
ela as funções domésticas, trabalhava como manicure. A entrevistada relata que um dia, cuidando da
casa, caiu e quebrou a perna. Quando retornou do hospital, a moça lhe disse que se mudaria para a
casa dos pais dela, em outro estado. Menciona tal fato aborrecida, pois indigna-se com o fato de não
ter recebido auxílio da moça no momento em que mais dela precisara, pois, segundo afirma, ela
ajudara a moça quando esta se encontrava sozinha, necessitando de abrigo. Voltou, pois, depois disso,
a morar sozinha. Mas, conseqüência da queda que sofrera, passou a necessitar do uso de andador e de
cadeira de rodas, tendo de contar diariamente com o auxílio de uma vizinha que lhe ajudava durante o
dia, fazendo-lhe também companhia durante as noites. Declara que assim se encontrava quando a
coordenadora do abrigo entrou em contato com ela e levou-a para lá, uma vez que lhe diziam não
poder continuar vivendo sozinha. Comenta que ficou contrariada com o fato de ter de morar no abrigo,
pois, conforme afirma, “casa dos outros não vai, não”. Anseia assim poder retornar para a sua casa,
visto que lá tenha, segundo diz, mais liberdade. Conta, para tanto, com a possibilidade de receber
auxílio de alguém. Recebe visitas esporádicas no abrigo da tal moça que, após alguns meses, retornou
da casa dos pais. Comentou não lhe dar confiança, visto que desconfie de tal interesse, acreditando que
esta a procurou com a intenção de lhe pedir auxílio financeiro. Recebia, até pouco tempo atrás, visitas
freqüentes de amigas que conhecera no período anterior ao asilamento. Tais visitas atualmente são
esporádicas, pois, segundo ela, a melhor amiga arrumou namorado. Afirma, a princípio, que não tem
parentes, para a seguir declarar, contraditoriamente, que tem sobrinhas. Do mesmo modo
contraditório, alega, inicialmente, que não mantém contato com as sobrinhas porque elas moram em
outra cidade. Declara depois, entretanto, que não se relacionam porque elas nem mesmo a conhecem.
Comenta permanecer ociosa durante todo o tempo, visto que a dor, decorrente do seu problema na
perna, a impeça de realizar diversas tarefas. Ela se ocupa apenas em arrumar sua cama e dobrar as
cobertas. Aborrece-se por não conseguir, em função da perna, sair do abrigo para visitar as pessoas
que conhece. Afirma assim que, por tal motivo e também pelo fato de sentir-se sozinha sem ter
ninguém, a sua vida não mais tem sentido. Alega não conversar com os enfermeiros porque eles, após
assistirem aos internos, vão embora e não lhe dão atenção. Além disso, indigna-se com o fato de ela
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lhes solicitar remédios, além de outras coisas, e o ser atendida. Assim sendo, diz estar insatisfeita
com o fato de morar no abrigo. Declara, contudo, conformar-se com a vida atual, dado não haver outra
possibilidade de escolha, já que reconhece não ter condições de sozinha cuidar da própria vida.
Afirma, entretanto, sentir vontade de morrer, pois nada mais, dadas as limitações da perna, pode fazer
sozinha. Além, pois, de não ter expectativa futura, acredita também que a morte seria a solução do
sofrimento que padece, decorrente de “muito desgosto na vida”. Reafirma que, visto não poder fazer
as coisas, a vida acabou.
ENTREVISTA 15
Entrevistado: Peri
Naturalidade: Araguari - M.G
Idade: 60 anos
Escolaridade: 4° ano primário
Estado civil: Solteiro
Tempo de abrigo: 01 ano e 07 meses
O entrevistado possui oito irmãos. Quatro, dois homens e duas mulheres, contudo, são meios-irmãos,
apenas pelo lado paterno, visto sejam frutos do primeiro casamento do pai. Ele é o filho mais novo
dentre os cinco filhos bilaterais, quatro homens e uma mulher, já falecida, do segundo casamento do
pai. Ele, juntamente com estes irmãos, foi criado pelos pais em Araguari, cidade localizada no interior
de Minas Gerais. Os demais, quando novos, saíram de casa em busca de emprego, tendo apenas ele e
um outro permanecido na companhia dos pais. Este irmão, posteriormente, também de lá saiu, tendo
somente ele ali permanecido. Trabalhou sempre com o pai no comércio e auxiliou-o, primeiramente no
depósito de bebidas; depois, no bar que o mesmo adquirira; por fim, no armazém que o pai
administrou até o fim da vida. É solteiro. Tem hidrocefalia desde criança e, por isso, faz uso diário de
medicação. Cursou até o quarto ano primário e vangloria-se por saber fazer diversas coisas, embora
tenha pouco estudo. Orgulha-se do fato de sempre ter vivido com os pais e não lhes ter deixado. Com
o falecimento do pai e o fato de a mãe não mais conseguir, em função das limitações da saúde, cuidar
dela mesma, esta mudou-se para o abrigo, por iniciativa de um dos seus filhos, visto dependesse do
uso de andador para locomover-se. O coordenador do abrigo, dado o fato de ele não ter onde morar,
permitiu a sua permanência no abrigo com a mãe. Afirma ter mantido bom relacionamento com a mãe
e cuidado dela quando necessário, além de lhe fazer companhia. Diz que o fato de ela morar no abrigo
muito a auxiliou, dados os cuidados diários ali recebidos, no tratamento da sua saúde. A mãe dele,
porém, faleceu há dois anos. Abrigo, para ele, é “uma estadia, um local que se tem para morar”.
Recebe visitas esporádicas de dois irmãos bilaterais e declara que ele e os irmãos, tanto do primeiro
como do segundo casamento do pai, são distantes uns dos outros, embora não saiba dizer os motivos
que levaram a este distanciamento. Diz apenas que seus irmãos foram aos poucos se “esparramando”.
Há alguns anos não tem notícias dos irmãos que moram em outras cidades. Expressa, no entanto,
manifesto desejo de manter contato efetivo com os irmãos, afirmando que a convivência é a
responsável por fazer com que as relações tornem-se sólidas. Tem sobrinhos, mas justifica, dado o
trabalho excessivo deles, o fato de não o visitarem. Tem primos, bem como outros parentes de grau
mais distante. A sua vida, com a instalação da doença, desde a infância, ficou um pouco limitada, dado
o fato de ele não poder fazer muito esforço. Além disso, tal limitação se intensificou recentemente,
visto que apresente problemas nas pernas, sobretudo em uma delas, com início de trombose. Afirma
que tem bom relacionamento com as pessoas que moram no abrigo e prontifica-se a auxiliar qualquer
pessoa no que for preciso, considerando que todos no abrigo constituam uma família. Comenta que
auxiliava os funcionários na locomoção de alguns idosos para que eles pudessem realizar alguma
atividade ou para conduzir os colegas que são dependentes de cadeira de rodas, mas afirma que houve
proibição, por parte do coordenador do abrigo, da realização desse tipo de ajuda por parte das pessoas
também ali abrigadas. Ele declara que gosta de escrever e assiste às aulas oferecidas pelo abrigo aos
idosos que lá se encontram. Afirma não saber os rumos que a vida dele seguirá, mas manifesta vontade
de sair do abrigo para que possa, conforme comenta, “levar uma vida normal”, ou seja, poder estudar,
efetuar escolhas e optar por realizar o que deseja. Um dos seus irmãos, a quem ele se refere como boa
pessoa, fez-lhe diversos convites para que com ele morasse. Acredita, contudo, que não deve sair do
198
abrigo neste momento pelo fato de seu irmão residir em uma chácara distante da cidade, dificultando o
acesso a diversos recursos, sobretudo médicos. Crê, no entanto, que a única possibilidade de sair do
abrigo, no que se refere aos cuidados da sua saúde, é quando houver a certeza de que poderá levar uma
vida segura fora dali. Acredita que o irmão dele, no momento, não tem uma vida estável e, por isso,
não lhe propiciaria uma qualidade de vida satisfatória semelhante à de que dispõe no abrigo.
ENTREVISTA 16
Entrevistado: Aog
Naturalidade: Miraporanga (Distrito de Uberlândia - M.G)
Idade: 58 anos
Escolaridade: Primário incompleto
Estado civil: Solteiro
Tempo de abrigo: 02 anos e 06 meses
O entrevistado, assim como as suas duas irmãs, ainda vivas, foi criado na zona rural pelos pais, já
falecidos há muitos anos. Ele, filho mais novo do casal, é natural de Miraporanga, distrito de
Uberlândia (M.G). Tem pouco estudo, mas declara, pelo longo tempo em que saiu da escola, não
recordar até que série cursou. Como os pais não tinham propriedade, eles moravam e trabalhavam em
fazendas de terceiros, tendo ele efetuado, desde a infância, serviço braçal ou lidado com o gado. É
solteiro. Reside há cerca de vinte anos em Uberlândia, apontando problemas de saúde como a razão da
sua mudança para o meio urbano. Na cidade, trabalhou, por cerca de dois meses, numa construtora de
imóveis, exercendo a função de auxiliar de serviços gerais. No decorrer desse curto período, morou
sozinho em uma casa que alugara. Residiu, depois, em uma pensão. Por “não poder pegar peso”,
conforme ele próprio afirma, em função de um problema na coluna, abandonou o trabalho, não tendo
tido, então, mais condições financeiras para custear a sua estada na pensão. Desse modo, por não ter
onde morar e para evitar que ficasse nas ruas, visto que não conseguisse emprego, abrigou-se num
prédio em construção, local em que afirma ter morado durante cinco anos com a permissão do mestre-
de-obra responsável pelo local. Este permitiu que ele lá permanecesse até a finalização da obra, pois os
apartamentos, a partir daí, seriam ocupados pelos futuros proprietários. Este também lhe fez, quando
do término da obra, uma proposta para que ele assumisse a função de faxineiro do prédio. Ele, no
entanto, recusou, alegando que o salário seria insuficiente para custear o aluguel de uma casa em que
pudesse morar. Além deste emprego, houve também a possibilidade de trabalhar numa chácara, mas
ele novamente não aceitou. Alegou, nesta situação, que não havia recursos necessários para montagem
da casa em que moraria. Além disso, diz que teria de assumir, além das suas funções na chácara, a
responsabilidade de todos os afazeres domésticos. Sendo assim, julgando que as possibilidades de
trabalho eram inviáveis, relatou sua condição de vida para um casal que já havia mudado para o
prédio. Estes se responsabilizaram por lhe conseguir uma vaga num dos abrigos da cidade. A partir
daí, então, passou a neles morar. Viveu cerca de nove anos no antigo abrigo. Há aproximadamente
dois anos reside no abrigo em que reside atualmente. A saída daquele abrigo, de acordo com sua
afirmação, decorreu da agressão de um colega de quem ele fora vítima, além de diversas outras
situações que não o agradaram, mas que ele não precisa quais sejam. Declara que não comunicou a sua
saída a ninguém, tendo, a partir daí, se deslocado para o albergue da cidade. Permaneceu neste local
por cerca de um mês, até conseguir vaga no abrigo em que ele atualmente está. Sua irmã foi
comunicada do seu desaparecimento do antigo abrigo e só soube, segundo ele, de seu paradeiro por
meio da coordenadora daquele em que ora reside, depois de ele a ter procurado para solicitar uma
vaga. O abrigo, segundo ele, é o único lugar em que pode morar, visto ser muito doente e não ter a
quem recorrer. É, conforme sua opinião, um local que tem como função dar apoio e assistência às
pessoas doentes e idosas. Ele, de acordo com o que declara, apresenta diversos problemas de saúde:
faz tratamento de pele e de micose; tem problema no estômago. Afirma que, se não morasse no abrigo,
não teria condições de se tratar. Diz, num primeiro momento, que se sente insatisfeito por morar no
abrigo em que se encontra, visto que a sua vida tenha se tornado limitada e restrita, uma vez que não
possua autonomia e liberdade para realizar escolhas. Mas, a seguir, comenta que se acostumou com o
modo e ritmo de vida que há ali. Além disso, deduz, tendo a si mesmo como referência, que as pessoas
procuram por vagas em abrigos diante de necessidades extremas, pois supõe que ninguém deva gostar
199
de morar nestes locais, uma vez que eles cerceiem a liberdade. Comenta que as normas de
funcionamento do abrigo em que ele atualmente reside restringem a sua possibilidade de ir e vir, pois
elas não permitem que os internos saiam sozinhos. Diz que gostaria de que tais normas
assemelhassem-se às do abrigo em que morou, pois, neste, a sua saída era permitida. Afirma, por sua
vez, que apreciava morar sozinho no prédio em construção, pois neste local tinha completa liberdade
para conduzir a vida do modo como bem quisesse, além de poder ocupar-se com um e outro serviço ali
mesmo, ou realizando, quando solicitado, pequenos afazeres para os vizinhos do local. Uma de suas
irmãs reside em Uberlândia e a outra mora em Brasília. Afirma que sempre teve maior entrosamento
com esta irmã, mas diz que eles não se encontram há cerca de vinte anos, visto que ela não o visite e
ele não tenha condições de ir ao encontro dela. Recebe, porém, notícias dela por meio da irmã que
mora em Uberlândia. Faz cerca de um ano que ele e esta irmã não se encontram, pois afirma ser
complicado para ele visitá-la, uma vez que a “patroa” - proprietária da residência em quem ela
trabalha e mora - estabeleceu o domingo para visitas, sendo este dia difícil para os funcionários do
abrigo levá-lo. Diz que, quando morou no prédio, mantinha contato mais efetivo com esta irmã,
visitando-a quinzenalmente. Ela, no entanto, foi ao abrigo somente uma vez, na ocasião em que se
resolveu a ida dele para lá. Convocada, há alguns meses, para participar de uma reunião, ela lá não
compareceu. Ele comenta que esta irmã não gosta de que ele more em abrigo e ela lhe sugere, quando
se encontram, que procure algum emprego. Ele, por sua vez, contesta a opinião da irmã, alegando que
ela desconsidera a sua impossibilidade de trabalhar, em virtude do problema na coluna. Afirma que
não lhe agrada o fato de permanecer distante das irmãs, sobretudo por elas serem de grau de
parentesco próximo e por considerá-las como as únicas pessoas que efetivamente compõem a sua
família. Diz que a convivência, o bom relacionamento e a união são aspectos importantes de uma
família, pois há famílias que não possuem tal dinâmica de funcionamento. Comenta que receba visitas
esporádicas de um senhor que conhecera por meio das visitas da comunidade no abrigo em que
primeiramente morou. É também freqüentemente visitado por pessoas da comunidade. Acredita que
estejam vivos alguns tios paternos, mas declara ter perdido, há muito tempo, o contato com os
mesmos. Eles freqüentavam a casa dele, quando este ainda era criança, mas não mais se comunicaram
depois de ele se tornar adulto. Afirma que não tem nenhum parente do lado materno. Comenta que
sempre é educado com todas as pessoas com quem convive e que elas sempre gostam dele. Assim
sendo, afirma tratar bem as pessoas no abrigo e que elas, por sua vez, tratam-no bem. Alega não gostar
de conflito, embora ele e um colega de abrigo não conversem. A fim de evitar confusões, conforme
declara, afastou-se do mesmo e passou a ignorá-lo. Assegura que os funcionários do abrigo lhe tecem
elogios pelo fato de ele não dar atenção aos problemas que surgem na instituição. Eles, conforme
afirma, elegeram-no, tendo como base as suas atitudes, o interno que apresenta melhor
comportamento. Permanece ocioso todo o tempo, pois, de acordo com suas próprias palavras, “não
mexe com nada e gosta de ficar quieto”. Declara, a princípio, que possui poucos planos para a sua
vida, mas afirma, num segundo momento, que estabelecerá vários outros, caso consiga aposentar-se,
visto que tenha, como expectativa de vida, sair do abrigo e procurar, desse modo, um local para morar.
Ressalta, contudo, saber que tal expectativa pode ou não ocorrer. Anseia, como ele próprio afirma,
“por melhora da sua vida”, ou seja, espera por liberdade para viver do modo como deseja, tendo
possibilidade de efetuar escolhas. Cita, como exemplo, vontade de ter contato efetivo com as pessoas
que conhece, podendo realizar-lhes visitas sem restrições.
200
APÊNDICE D – Transcrições das entrevistas 1, 2, 6, 7 e 8
ENTREVISTA 1
Entrevistada: Suyá
P: Fale-me sobre sua vida.
R: Eu tenho oitenta e um, quase oitenta e dois anos. Eu estudei só os dois anos. Antigamente era o
primeiro e o segundo ano, né? Eu sou solteira. Eu recebo aposentadoria porque eu trabalhava antes de
vir pra cá. Eu trabalhei muito. Desde criança, né?, eu já trabalhava na casa dos outros, na casa que eu
fui criada. Eu era cozinheira de pensão com quatorze anos.
P: Como foi a sua trajetória de trabalho?
R: Bom. Eu vivi sempre no serviço porque eu perdi a mãe nova ainda. Sem pai, sem mãe, né? O pai
também tinha desaparecido e eu era sempre para as casas dos outros, né? Morei numa casa, onde era o
meu serviço. Foi muitos e muitos anos, desde que a minha mãe morreu. Eu fui pra essa casa onde
morei pra ser escrava, bem dizer, porque pegar uma menina cedo, ainda mais de cor, né? O povo tem
muito preconceito, né? Então a gente era tratada como, dizer a verdade, como escrava mesmo, né? É,
por causa da cor é muito preconceito, né? Eu penso que foram uns doze, treze anos que eu morei lá.
(Pausa.) E os meus irmãos foram cada um pra uma casa, trabalhando também.
P: O que a senhora quer dizer com “ser tratada como escrava”?
R: Ah!, ser escrava é porque não tinha ordenado, né?, nem o salário. E não tinha nada. Não era bem
tratada assim. Era humilhada, sabe? E era criada mesmo pro serviço, sabe?, da casa. (Pausa.) Eu
gostaria de ser tratada com carinho, com consideração, né? E não era, sabe? Era mesmo pro serviço,
viu?, da casa.
P: Como foi a decisão de morar nessa casa?
R: Foi uma pessoa conhecida, sabe? É... A mulher ficou sabendo que a mulher queria uma menina,
né?, criar uma negrinha do serviço. (Risos.) A verdade é essa, né? O meu tio ficou sabendo que uma
mulher queria uma negrinha do serviço, né?, e a minha mãe tinha morrido. O pai, já não tinha pai, né?,
porque ele vivia sumido e não queria saber da família. Então me mandaram pra lá. Eu tinha uns dez
anos. Morei muitos anos nessa casa! Aí foi daqui pr`ali. Trabalhei numa casa, trabalhei noutra,
trabalhei noutra. Eu já recebia ordenado. Pouquinho, muito pouquinho, mas eu recebia. Naquele tempo
a gente não tinha... Empregada não tinha garantia nenhuma, né? Nenhuma mesmo! Ganhava aquele
dinheirinho, e pra comer! Os quarto sempre os pior, né?, que existia na casa pra dormir. E era assim,
né?, a vida. Trabalhei nessas casas eu penso que até uns trinta e tantos anos, quase quarenta. Saía de
uma casa, de um lugar, ia pra outro lugar.
P: Qual o motivo de sair de uma casa e ir para outra?
R: Uai, é... Quando a gente saía... a gente ficava muito tempo, mas o motivo dessa casa que eu morei
mais tempo, porque eu fui criada lá, não era bem tratada e eu revoltei. Fiquei revoltada demais! Até
que chegou um dia... Mas essa última vez ela mandou eu juntar minha trouxa e sair e eu saí. Fui
embora ficar perto do meu povo. Mas trabalhando, né? Sempre saía de uma casa, ia pra outra. Saía de
um emprego, brigava (Risos), descombinava. Outra hora era porque eu não queria ficar mais. Queria
procurar outro lugar que fosse melhor, né? Assim!
201
P: A senhora se sentia “tratada como escrava” somente nessa casa ou também nas outras casas em que
trabalhou?
R: Não, não! Nas outras casas não foi tanto assim. Por exemplo, eu fiquei... Os... os americanos
também falam que são muito preconceituosos, né? Portanto que lá no país é... eu acho que ainda é tudo
separado, né?, os negros dos brancos, né? Mas lá não foi tanto assim, sabe? Trabalhar eu trabalhei três
anos. Lá eu trabalhei. Nesse colégio também eu trabalhei sete anos. Mas lá eu... era cozinheira
também. E... é assim! A pessoa, por exemplo, eles falavam que a gente era empregada. Mas não era
empregada. Eu não ganhava um centavo, né?, pra fazer o serviço. Nem roupa direito eu não tinha. Na
mesma hora que... acho que o tempo da escravidão era assim, né? Depois eu vim pra cá. Eu estava
morando em Patrocínio, na cidade onde eu e meus irmãos nascemos. Não sei se eu já tinha quarenta.
Eu estava trabalhando na casa do americano, mas depois meu povo tinha mudado pra cá. Aí essa
família ia embora pros Estados Unidos, então eu vim pra cá. Aí meu povo estava morando aqui. Aí eu
fiquei trabalhando em uma casa e outra também... Mas eu sempre tive muita vontade de aprender a
costurar. Então eu ia aprendendo aos pouquinhos. Depois eu... eu... porque estava muito doente e
minha amiga veio aqui e ficou preocupada comigo, com meu estado de saúde. Eu tive que ir para São
Paulo fazer um tratamento e lá fez os exames e descobriu que eu tinha Chagas. E o médico me disse
que era um caso muito grave meu caso de Chagas. Ele me recomendou muito repouso, muito...
tratamento. Então, um ajudou daqui, ajudou dali e encaminhou eu para lá. Lá eu vivia em tratamento,
eu vivia em tratamento de saúde, sabe? Eu fui muito mal pra lá. E eu costurava. Costurei pra fora.
Quando eu descobri é porque eu já estava muito doente, né? Tanto que o médico, quando eu fui daqui,
fui desenganada, né? Cheguei lá, esperava conseguir tratamento no Hospital das Clínicas, não
conseguia. Eles me mandaram pra Santa Casa. Aí eu fiquei lá, até na Santa Casa. O médico me disse
que eu podia viver mais uns três anos. E ele já foi já tem bem uns trinta anos. (Risos.) Quase que
devem ter uns trinta anos que eu fiquei e ele foi. (Risos).
P: A senhora falou sobre os seus pais. Como foi o seu relacionamento com eles?
R: A minha mãe e o meu pai eram casados, mas o meu pai eu nem cheguei a conhecer ele, não, sabe?
Ele... ele vinha em casa, desaparecia, aí minha mãe ficava grávida. Aí ele sumia. Às vezes, quando ele
voltava, os meninos já estavam com dois anos, até quase três... Era desse jeito. Tornava a arrumar
mais. Foi assim, sabe?, até que, por fim, a minha mãe saiu conosco porque ele não estava em casa
também. Vivia só sumido, né?, e nem sabia por onde ele andava assim. Depois, passava uns tempos,
ele voltava. Era assim. Eu não conheci ele de... não tenho a menor lembrança! Só um pouquinho
mesmo que eu tenho... que eu lembro dele. Eu só esperaria que a gente tivesse um pai que
considerasse a família, né?, que desse valor, que pudesse ter um nome de pai mesmo, né?, realmente,
porque nunca foi assim. Eu e meus irmãos fomos criados praticamente só pela minha mãe. E a minha
mãe faleceu há muitos anos. E... pois é. Foi assim! Eu fui pra essa casa lá onde eu morei. Foi... foi...
foi quando a minha mãe morreu. Depois é que... que fui de uma casa pra outra trabalhando. Trabalhei
num colégio lá em Patrocínio muitos anos como cozinheira. E depois trabalhei nessa outra casa.
Quando eu vim embora, eu estava trabalhando na casa dos americanos. E aqui mesmo, eu também já
trabalhei em casa de família. Depois é que eu fui pra São Paulo. Agora, a mãe fazia o que podia,
coitada, né? Ela morria de trabalhar pra tratar dos filhos. Trabalhava, né?, a semana inteirinha esse
serviço muito pesado de roça, né? Tanto que, quando ela adoeceu, eu não gosto de lembrar disso,
mas... ela morreu à mingua, né? (Pausa).
P: A senhora comentou sobre os seus irmãos. Quantos são?
R: Éramos cinco irmãos. A que sofreu derrame, a outra mais velha que morreu e um que também já
morreu. Meu irmão mais novo, o único que ainda é vivo, está em São Paulo. Esse irmão vez em
quando eu tenho notícia. Ele liga de vez em quando. Eu sou o segundo filho mais novo da minha casa.
Esse de São Paulo é o mais novo de todos os irmãos.
P: Como é o seu relacionamento de vocês dois?
202
R: Uai, a gente tem muito pouca lembrança! A minha mãe saía pra trabalhar pras casa dos outros,
fazer farinha, fazer... panhar café, panhar... Fazer esses serviços assim. Ela saía e eu acompanhava ela,
assim. Lavava roupa nas casa dos outros, né? Fazer... esses serviços assim. Ela trabalhava pra tratar
dos filhos, né?, e eu sempre ia pro trabalho com ela. Todo lado que ela ia eu ia com ela, né? Depois é
que a minha mãe morreu é que a gente esparramou, separou. Separou tudo os irmãos. Cada um foi pra
um lugar, né?, trabalhando nas casas dos outros.
P: O que a senhora pensa sobre isso?
R: Acho triste, né? Triste da família ter esparramado. Eu acho muito bonito, muito importante um lar,
a família. Eu acho muito bonita! Essa instituição é divina, né? Foi Deus que constituiu a família, né?
Eu acho muito bonito.
P: Por que a senhora acha que vocês se “esparramaram”?
R: Ah!, porque quando minha irmã foi... Ele morou com a minha irmã mais velha uns tempos. Depois
ele foi pra São Paulo e ele ficou lá na casa dos outros assim, sozinho. Não casou, né? E vivia uma vida
muito sem futuro demais, né? E milagrosamente, por muito milagre de Deus, ele foi encontrado.
Graças a Deus. Ele adquiriu família sem ter casado, mas pelo menos agora ele tem a casinha dele, ele
tem... ele aposentou também, né? Ele caiu da laje e machucou e agora ele não pode trabalhar mais. Ele
é pedreiro. Mas melhorou. As meninas já estão moças. Uma até já... já formou em inglês e está
fazendo outro curso agora. A outra também está estudando. E ele está... melhorou demais, graças a
Deus, né? O outro morreu. E essa que veio pra cá comigo.
P: Como foi a vida dos seus irmãos com o falecimento da sua mãe?
R: Cada um foi pra uma casa... foi pra uma casa. Um ficou lá na casa da minha avó, da minha... avó. O
outro na casa do meu tio. A outra, essa que veio pra cá comigo, também ficou nas casas das pessoas
que a gente conhecia, né? Tudo trabalhando. A mais velha foi pra casa da minha tia, mas... tudo foi
assim. (Pausa.) É. Eu queria assim que... que eu e meus irmãos não tivéssemos separado, né?, e que
tivesse tido um lar mesmo, né?, porque a gente assim... porque muita... a ignorância é tanta assim das
pessoas! Aquilo fica tratando a menina assim como um traste, como um intruso, né?, como uma coisa
inútil, né? E isso... eu passei por isso demais da conta, né? O meu irmão demais também, né? E umas
pessoas recebem de um jeito e outras de outro, né? Umas não sei se é ser mais orgulhoso, né? E... eles
é duro. A pessoa quando é tratada com desprezo é muito triste, né? Por isso que a gente não deve,
sabe?... Carinho é uma coisa tão barata (Risos): não custa nada! Coisa que todo mundo pode dar. Não
é verdade? Coisa que todo mundo pode dar a uma criança, né? Passa a mão numa cabeça de uma
criança mostrando o amor. Isso é tão importante na vida de uma pessoa! Tão importante! E aí a gente
não faz muitas das vezes, né?, porque a maior parte, essas coisas, dessas pessoas que se tornam esses
bandido, essas pessoas tão perigosas, vai saber atrás dessa vida o porquê, o que aconteceu. Você pode
saber. A maior parte dos casos é isso: é a criação.
P: A senhora, além dos irmãos, tem outros parentes?
R: Bom... Como assim?
P: A senhora tem sobrinhos, primos ou outros parentes?
R: Eu tenho, eu tenho, eu tenho, eu tenho. Eu tenho muitos parentes! A minha família é grande. Eu
tenho muitos primos, tenho três sobrinhas, que são filhas da minha irmã, e tem uma que ela criou.
P: Onde eles moram?
R: Mora aqui. A que ela criou mora aqui. Tem uma moça que é loira, sabe? Ela... Menos uma que são
os netinhos dela.
203
P: A senhora tem algum contato com eles?
R: Dema... Tenho, sim. As minhas sobrinhas vêm sempre aqui. Eu gosto demais delas! Todas elas.
São quatro com ela, né? Eu não queria morar com ninguém porque... assim é bem melhor, né? Porque
a gente fica sem liberdade, né?, tira a liberdade dos outros também, né? Não é como estar aqui, assim
sozinha, né?
P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo?
R: Desde que começou. Desde que inaugurou. Está fazendo dez anos em dezembro. Dia oito de
dezembro faz dez anos que eu estou aqui.
P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá?
R: Eu vim pra cá porque eu estava muito doente, né?, e eu tomava conta de uma irmã. Ela sofreu
derrame. Eu cuidava dela e eu já não estava dando conta mais de cuidar dela. Ela viveu vinte e três
anos depois que sofreu derrame. A outra irmã que cuidou dela nove anos. Mas, depois, ela morreu e eu
fiquei cuidando dela. E a nossa médica falou que... Quando eu falei pra ela que nós íamos ficar e ela
não achou ruim a idéia, não: “– Porque vai chegar um tempo que você não vai dar conta nem de você,
nem dela. Nem de cuidar de você, nem dela”. Mas, depois que nós estávamos aqui, ela morreu.
P: Como foi essa decisão de vir para o abrigo?
R: Bom. A gente... Bem, o nosso pastor era muito... Conhecia já... nos conhecia muitos anos e ele
sempre falava: “– Quando eu fizer o abrigo eu vou levar vocês pra lá”. Então já estava tudo arrumado,
né? Ele e o S. Mário que foi diretor daqui por noves anos. Ele também conhecia a gente muito, de
modo que não houve problema, né? E eu telefonei pra ele. Mas eu também tinha que vir mesmo
porque eu estava muito doente na ocasião, né? Vindo pra cá eu não estranhei nada, não estranhei nada.
No começo era só nós duas, né? Mas logo, logo, começou a juntar gente, né? E eu achei bom e ela
também achou.
P: Como é para a senhora morar aqui?
R: Eu estou muito bem. Eu não tenho... não tenho a menor dúvida de que eu estou num lugar que Deus
preparou pra mim, pra minha velhice, pro que não tem boa saúde, né? Aqui eu tenho o que eu preciso.
Pra mim eu... do tanto que eu já sofri, né?, as coisas que a gente já passou tão duro na vida! E agora eu
tenho asseio, tenho aqui, tenho quem cuida de mim, né?, quando preciso assim. Eu ainda posso fazer
alguma coisa, posso cuidar do meu corpo, né? Mas aqui o que eu precisar, eu tenho aqui. E eu já saí,
mas não quis sair mais, né? Aqui eu saía, eu pegava ônibus, eu ia onde eu queria. Mas agora eu não
posso fazer isso mais devido ao meu estado de saúde, né? Eu não tenho condição. Eu não tenho
condição de pegar ônibus mais. É isso aí. Porque eu tenho aquele problema de artrose, né? Eu tenho
problema de... de... de coluna muito sério. Eu tenho problema muito sério de coluna. Então eu já não
posso mais. Dessa última vez que eu saí, eu caí dentro do ônibus. Ainda bem que foi dentro do ônibus.
Aí o S. Mário – nesse tempo era o S. Mário o diretor daqui – ele não quis que eu saísse mais sozinha.
Então agora, quando eu tenho que sair, eu tenho que ir ao médico, eles me levam, né?
P: O que a senhora quer dizer com “ter o que precisa”?
R: Hein?
P: O que é “ter o que precisa”?
R: Tudo, tudo. Aqui tem tudo que precisa pra viver uma pessoa na minha idade, que precisa de
cuidados, né? Afinal de contas, aqui tem tudo o que uma pessoa que tem problema de saúde, como eu
tenho, que precisaria de um lugar pra viver. Então esse lugar foi preparado por Deus pra mim. Eu não
tenho a menor dúvida disso. Eu estou bem, muito bem, graças a Deus. Sempre Deus nunca me
204
desamparou, né? E não desampara mesmo! Aqueles que confiam nele, ele não desampara. Mas eu... é
evidente que viver assim pelas casas dos outros, trabalha aqui, trabalha ali, cada casa é um... de um
jeito, né? A gente tem a comida e um quarto. Os quartinho sempre os pior pra dormir, né? É sempre
assim. Agora tem pessoas que são bem tratadas demais mesmo, né? Mas eu... sempre fui... fiz muita
amizade, graças a Deus. Fiz bons amigos, né? E Deus preparou pessoas que me ajudou demais! Por
exemplo, tem um que já morreu, né?, há muitos anos. E essa foi uma benção mesmo na minha vida. E
através dela, outras pessoas ficaram me conhecendo, como o senhor... o senhor aqui que morou em
São Paulo. O irmão dela é advogado lá. Agora já está aposentado. Então é isso. Através dessa minha
amiga eles ficaram me conhecendo e me ajudaram muito. Muito mesmo!
P: Ajudaram em que sentido?
R: Bom. Aquele problema que eu tive, né?, assim de resolver o problema. Por exemplo de... Ela é
enfermeira, né? Lá no hospital, ela... Tudo que eu precisava, ela conseguia pra mim. Ele como
advogado também. O que eu precisei, né? Eu conheci pessoas boas, né? São amigos na verdade.
P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
R: É bom. Eu me dou bem com as pessoas que moram e trabalham aqui.
P: A senhora recebe visitas além dos seus parentes?
R: Recebo visita de muita gente. No abrigo vem muita gente, né? Essas pessoas que vêm visitar o
abrigo, né? Agora meus parentes também vêm. Sempre.
P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro?
R: O que que eu faço? Bom. No princípio... Desde primeiro eu fazia bastante coisa. Eu até fazia as
compras daqui. Eu até em supermercado cheguei a fazer. Fazia compra de sacolão. O sacolão é aqui
pertinho, ali na esquina, né? Elas preenchia o papel com o pedido das coisas, né?, e eu ia, escolhia as
coisas e trazia. Consertava as roupas. Eu ainda conserto as roupas do abrigo até hoje. Fico, por
exemplo, a noite assim... Às vezes a enfermeira estava sozinha e precisa de uma emergência, assim de
sair com uma pessoa que precisava de ir pro hospital. Aconteceu muitas vezes. E, na noite que minha
irmã morreu, a enfermeira foi levar ela pro hospital e eu fiquei tomando conta deles. Eu fazia muito.
Agora o que eu faço é só mesmo consertar as roupas, né? E fico, quando precisa de alguma coisinha
assim, de eu olhar. Eu assim eu faço, né? É, eu já ajudei bastante, porque o S. Mário fala que eu já
ajudei demais pro abrigo. E também faço crochê. Fico aqui fazendo crochê o dia inteiro! Mais pra
mim, né? Sempre trabalhando. Faço o dia inteiro. Tenho freguesia, graças a Deus. Agora eu não sou...
eu não sou... “– Dá licença, eu tomo remédio”. [Ela se levanta, dirige-se ao banheiro e retorna para o
local em que estava sentada.] Ah!, eu gosto demais! Gosto muito de fazer crochê, sabe? [Ela se levanta
para pegar o crochê a fim de mostrar ao pesquisador.] Eu comecei sem esperar que isso acontecesse.
Quando eu estava em São Paulo, eu aprendi lá na minha escola, né? E depois eu vim pra cá e fui
fazendo, tirando amostra, perguntando pra uma e outra pessoa, apanhando, né?, (Risos), quebrando
cabeça. Esse daqui é um leque, um tapete leque. Esse daqui eu fiz mais pra amostra, mas eu já fiz oito
desses pra encomenda, sabe? [Ela se levanta para guardar o crochê].
P: Como as pessoas ficam sabendo que a senhora faz crochê?
R: Elas vêm... vêm aqui, ficam sabendo e vê, né? Eu não sei negociar, não! Não sou de negócio.
(Risos.) Nem! Às vezes eles chegam e eu nem mostro para ninguém. Mas toda a vida eu fui assim.
Então a pessoa vem e gosta, né? E encomenda, né? Estou sempre trabalhando. Tenho serviço direto,
graças a Deus. Fiz pra uma moça psicóloga. Conhece a Luciana? Não sei se ela já terminou... Eu acho
que já.
205
P: Há quanto tempo a senhora mora nesta casa?
R: Não, não, não morava! A casinha foi feita depois. Depois que minha irmã morreu é que fez a
casinha aqui pra mim.
P: E como foi a decisão de fazer esta casa para a senhora?
R: O S. Mário que era o... o... presidente, o diretor, né?, ele, um dia, ele falou que ia fazer essa casinha
aqui pra mim, né? E eu estava muito doente, porque eu tive depressão, né? E eu nem liguei, sabe?
Quando ele falou, eu nem liguei. Diz ele, foi Deus que pôs na cabeça dele que devia fazer aqui. E ele
resolveu fazer e fez mesmo, né? Depois que fez, aí eu achei bom demais, né? (Risos.) É. Mas hoje,
graças a Deus, eu estou muito feliz com Jesus. Louvado seja Deus. Sou contente mesmo!
P: A senhora faz algum plano para daqui em diante?
R: Quinze anos? Essa espera eu não sei mais o que é, não!
P: Eu digo: planos para a sua vida daqui em diante.
R: Ah! Daqui em diante... (Risos.) Ah!, daqui em diante não penso em nada, não! Eu não espero viver
muito tempo, não! Eu quero ir embora. (Risos.) Eu já estou com oitenta e um e estou inteirando oitenta
e dois anos! Estou nas mãos de Deus, né? Seja feita a vontade dele. Mas... eu não gostaria de ficar
assim, igual os meus colegas, na cadeira de roda. Assim é triste, muito triste, né? Mas ser feita a
vontade de Deus.
P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa?
R: Não. (Risos.) Acho que... Parece que a gente já falou tudo, né? Não sei.
206
ENTREVISTA 2
Entrevistado: Miro
P: Fale-me sobre a sua vida.
R: Eu tenho setenta e três ano, mas fui registrado a dois a mais, pra mim poder votar. Mas já está no
registro. Mas eu não tenho, né? Para com Deus eu não tenho. Mas está bom! O meu cunhado, ele é
farmacêutico formado. Ele é louco por partido, né? Nesse tempo era PSD e UDN. Registrou eu, uma
irmã minha mais um irmão numa idade avançada. Ele já morreu também. Era farmacêutico formado.
Chamava Nelson Pereira. Tem um filho em Guarulhos, que é meu sobrinho. É advogado metalúrgico.
E ele tem duas filhas que já formou também. Advogada. Tem uma mansão lá que é um mundo! Está,
oh!, muntado! Eu já fui lá três vez. As filha dele casou. É sozinha já.
P: O senhor trabalhava?
R: Trabalhava. Eu era corretor. Ih! Tanta coisa que eu até esqueci! (Pausa.) Vixe! Eu trabalhei muito
tempo! Trabalhei em muita coisa: em olaria, cerâmica. Tudo isso. Isso aí tudo eu faço, sabe? Fazia.
Quando eu tinha uma base de quinze ano, eu trabalhei em uma companhia chamada CR. CER, Mato
Grosso. Trabalhei muito tempo. Trabalhei, depois saí. Fui pra olaria. Depois trabalhei de... de guarda
e... tomar nota de carro: pra onde você vai; pra onde você vem; que carga você vai levando; pra onde
você vai. Ih!, aquele piseiro, sabe? Muito coisa eu fazia. Tá doido! Eu toquei comércio também, até
antes de vir pra cá. Quando sofreu o derrame, aí eu estava por minha conta no Alto Araguaia. Eu
estava por minha conta antes de vir pra cá e o meu comércio estava controlado. Tinha bebida,
refrigerante, Guaraná, Caracu, bolo, caramelo... Eu vim de Mato Grosso com um senhor, Francisco
José de Jesus. Francisco José de Jesus! Um pouco vesgo. Fui em Guarulhos com ele. Fui comprar
bolacha. Tinha um carrão assim escrito no carro: Francisco José de Jesus! Fui com ele lá, vortei, e o
meu menino já estava assim... Ele não me cobrou passagem. Ele falou: “– Miro, eu vou te levar em
Guarulho. Não te cobro nada e nem a despesa também. Não cobro nada de você porque você é dos
freguês mió que eu tenho lá no Alto Araguaia!”. (Risos.) Eu falei: “– Muito bem”. Me levou. Me
levou lá na casa do meu sobrinho. Eu apresentei pra ele. O Paulinho ficou muito satisfeito com ele. “–
Ah, S. Paulinho, isso é... tio do senhor?”. “– É!”. “– O que o senhor precisar aqui comigo o senhor
pode falar que eu telefono qualquer hora pro senhor. Eu acudo na hora!”. É isso aí.
P: O senhor foi criado com os seus pais?
R: Fui. Vixe!, nossa!
P: Como foi o seu relacionamento com eles?
R: Os meus pai foi muito bom para nós tudo. Papai quando morreu eu não tinha quinze ano. Mamãe...
mamãe morreu nova, com mais de sessenta anos, mas eu e meus irmãos ficamos tudo criado na barra
da saia dela. Eu ainda trouxe ela aqui. Vixe! Ela era de Trindade. Trindade. O papai também era de
Trindade. Tudo era goiano. Tinha fazenda, tinha gado. A filha da mamãe falou: “– Mãe, vamos
passear no Uberlândia? Fica lá comigo uns três mês!”. Ela falou assim: “– Não, eu não vou, não! Eu já
estou velha, já! Se eu resorvê, eu vou mais o Miro”, que é eu. Eu falei: “– A hora que a senhora quiser
ir pode falar que eu vou”. Aí um dia ela resorveu. “– Ah, então eu já vou buscar dinheiro lá na
fazenda!”. Eu trouxe ela e ela ficou aqui três meses com a filha dela. A filha já morreu. Chama,
chama... Francisca. Aí depois ela ficou doida pra voltar e escreveu pra mim buscar ela. Eu peguei e
vim. Levei pro Mato Grosso. Mamãe tinha uma coisa comigo porque eu era caçula, sabe? Toda a vida
eu era caçula. Ela pelejava comigo! Ela também fazia as coisa pra me agradar. Toda coisa ela falava
pra mim: “– Ô meu filho, compra uma bicicletinha pra você! Você gosta! Reloginho...”. É. Ai, ai!
P: O senhor tem outros irmãos?
R: Cinco. Cinco!
207
P: Como é o seu relacionamento com eles?
R: Morreu tudo já os meus irmão. Era o Mauro, Walmir, Júlio, Eduardo, Airton. De irmão homem só
resta eu. Mulher só tem duas. Uma mora aqui, a outra mora em Paraná. As outra irmã morreu. Mulher
é a Aparecida, Isildinha, Francisca, Tina e Tereza. É a Ti... Isildinha... Isildinha!
P: O senhor tem notícia delas?
R: Essa aí morreu, uai! Chamava Francisca.
P: Qual é o seu estado civil: solteiro, casado ou viúvo?
R: Casei no civil e no padre. A minha mulher mora em Jataí, Goiás. Conhece? Está lá. Ela tem duas
casas. As minhas duas casas. Ela foi lá em Alto Araguaia e falou: “– Miro, eu vim aqui pra você
assinar a procuração porque eu quero dar uma casa pra menina minha. E você sabe, nós é casado e
sem você eu não dou. Você vai lá?”. Eu falei: “– Vou!”. Fui lá em Jataí, assinei. Eu era bãozão! Ainda
bão, sabe? Assinei e vortei. Mas, ah!, uns três anos ou mais ficamos casados! Ah!, é... Eu adquiri só
um filho... uma filha. Eu adquiri uma filha do primeiro casamento. Ela era desse tamanhozinho assim,
oh! Eu sabia... não. Você quer ver a foto dela? Quando eu separei dela, ela não tinha nada. Depois ela
controlou. Controlou, melhorou de vida. (Pausa.) Eu morei em... Eu nasci em Alto Garças, pra lá de
Araguaia, Mato Grosso. Ela hoje está grande! Mudei de lá pra cá. Passei pro Araguaia. Fiquei muitos
anos no Araguaia. Eu estava alicerçado. Bem alicerçado mesmo! Aí... Me deu derrame e eu vim pra
cá. Isso tem nove anos. Eu estava lá no Araguaia. Eu estava dirigindo, oh! Quando deu o derrame, o
rapaz do Posto de Saúde de lá falou: “– Miro, vai olhar essa pressão, Miro!”. Eu disse: “– Não, eu
estou bão!”. Até que o trem deu. Eu subia de bicicleta, descia; descia, subia; descia o dia inteiro! Até
que deu o derrame. E estou aí até hoje. Ô trem encravado que é o derrame, né?, porque não tem... não
tenho jeito mais de andar. Não tem jeito, né?
P: O senhor falou que tem uma filha. Há outros filhos?
R: Eu só tenho uma filha, mas eu vi ela pouco. Eu tinha um filho com outra mulher, mas ele morreu de
acidente de mota. Era motoqueiro, mecânico de mota, mecânico de carro, consertava televisão Ele era
motoqueiro. Chamava Sócrates da Silva. Morreu de mota. Êh!, mais eu vou te contar! Morreu com
vinte e dois anos. Ele falou: “– Pai, eu tenho que ir no Jataí comprar decalco platinado, condensador
de mota, porque aqui não tem essas peça. Tem cinco mota pra mim arrumar de Cuiabá. Está tudo
desmontada aí. Eu tenho que ir lá”. Eu falei: “– Deixa pra você ir amanhã!”. “– Não, é hoje!”. Ficou
teimando, teimando, pôs o capacete, pegou o documento e saiu e voltou. “– Ô, eu esqueci minha
identidade!”. Eu falei: “– Deixa pra você ir amanhã!”. Ele falou: “– Não. Eu quero ir é hoje!”. Aí foi.
Foi embora. Aí quando foi três horas da madrugada chegou a funerária lá em casa com ele, minhas
duas sobrinhas minhas...: uma sobrinha, um primo e a prima. Falou: “– Pan, pan, pan, pan”. “– Quem
é? Quem que fala? Se não falar quem que é, eu não abro!”. “– Ah!, Miro, é seu sobrin... é sua prima e
um primo seu de Mineiros. Infelizmente o Adão morreu de acidente”. Nossa Senhora, arranjou um
baque em mim! Nossa! Quando abriu a funerária assim, a Kombi, estava ele. Ele era filho com outra
mulher. Eu peguei ele desse tamanhozinho aqui! [Mostra, com a mão, o tamanho de uma criança bem
pequena.] Quando ela morreu, eu fui criando ele até... ficar rapazinho, sabe? Não bebia, não fumava,
não estragava dinheiro com farra, nem nada. Ele gostava era disso, oh! [Esfrega o dedo polegar com o
médio, referindo-se a dinheiro.] Não aprendeu arte nenhuma. Ele falou: “– Eu não vou aprender
profissão nenhuma com ninguém! Eu vou trabalhar às minhas custas. Não quero ser mandado por
ninguém!”. Já aprendeu por conta dele: motoqueiro; mecânico de carro; mecânico de moto; consertava
televisão; consertava energia. Eu tinha uma televisão Philco, enguiçou lá, eu falei: “– Eu vou levar no
conserto”. “– Não, pai, não leva não!”. Eu vou consertar pro senhor. Eu não cobro nada. Se o senhor
leva pra outro, o outro vai cobrar do senhor uns quinhentos cruzeiros”. Ele levou pro quarto dele e
olhou ela tudo. Desmanchou ela todinha e juntou dois fios arrebentados. Está pronto!
P: O senhor tem outros parentes?
208
R: Tenho parente em Mineiros. Eu ia lá muitas vezes. Minha tia chamava Yolanda, irmã da minha
mãe. E o meu tio chamava Vinícius. Também já morreu tudo. Ficou as casa lá tudo pros filho. Aqui
tenho irmã, tenho sobrinha, tenho sobrinho, tenho muito parente aqui. Bom. De lá eu tinha mais
parente. No Alto Araguaia eu tinha uma irmã com o nome de Helena. Minha irmã morreu agora em
fevereiro. Fevereiro. Chamava Helena. O herdeiro dela é eu, porque ela não tinha filho. Ficou a casa
dela pra mim, e a geladeira e a máquina de pé. E está alugada ainda, porque a minha sobrinha já está
tomando conta. A Cristina. Ela veio aqui: “– Tio Miro, aqui o papel, oh! O senhor quer vender lá ou
como é que é?”. Eu falei: “– Oh!, vamos parar, né?. Deixa eu normalizar primeiro”. Então está
alugada. A casa está alugada lá. Tem água, tem luz, tem quintalão, tem laranja. Tudo.
P: O senhor mantém contato com os seus parentes?
R: Tenho. Eu converso por telefone com sobrinha minha. Sobrinha, sobrinho também. Eu tenho uma
sobrinha que chama Cristina. É minha afilhada e sobrinha. Ela casou e morreu o marido dela de
acidente. Ficou a casa de dois andares pra ela. Deixou duas filhas e um salário de novecentos pra ela.
Então ela ficou muntada também, né? O meu sobrinho, o que me trouxe pra cá, passou aqui uma vez.
Foi em Alto Araguaia, onde ele nasceu, Mato Grosso. Não! Alto Garças, onde ele nasceu. Passou ele e
a mulher dele. O carro dele é tudo importado. Ele tem três carro. Tudo importado. O carro usou com
ele dois ano, ele vende, acaba logo. Quer outro novo. Demanda quando ele pega lá. Ele falou: “– Tio
Miro, quando eu pego uma demanda, se tiver qualquer coisa eu recebo. Revorve. Eu tenho cinco
revorve, aí que eu recebi demanda. Às vezes não tem dinheiro eu recebo qualquer trem e vendo pra
outro”. (Pausa.) Aprendeu? Você vai guardar isso na memória também, né?, o que eu falei assim.
Você vai falar: “Bem que o Miro falou pra mim!”. Menino, é desse jeito!
P: Há quanto tempo o senhor está aqui no abrigo?
R: Nove anos que estou aqui. Faz tempo. Eles não tinham nem terminado a casa ainda. O S. Mário
ainda falou pra mim: “– Miro, pode deixar que eu te levo a hora que terminar de fazer um banheiro
lá”. Ele fez, foi lá me buscar e eu estou aí até hoje fazendo fisioterapia e tudo isso, sabe? Todo
exercício eu faço. (Pausa).
P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá?
R: Meu sobrinho que trouxe eu. Advogado metalúrgico lá em Guarulhos. Eu tive sozinho uns tempo.
Muito tempo. Foi uns vinte anos. Eu larguei da minha mulher. Não foi por ela, foi por mim. Foi trocar
conversa no meio de muita mulher e aí atrapalhou. (Risos.) Ela falou: “– Miro, Miro, nós larga, Miro,
nós larga!”. “– Mexer com isso, não!”. Morei com uma de Jataí. Chama Sebastiana. Ela é bonita,
sabe? Morei com ela também muito tempo. E ela depois morreu de... de... essa doença que não cura!
Como é que fala? Essa doença que dá e é duro salvar: câncer! É, câncer. Deu na mulher. Eh, tanta
coisa que eu passei na vida, Nossa Senhora! Passei muita coisa boa, desfrutei minha vida. Muito
mesmo! E depois que eu casei, amiguei outra vez cinco vez. E larguei. Fui pra Jataí. De Jataí pra
Campinas. De Guarulhos virei pra trás. Andei por todo lado e virei pra trás. Aí estou aqui. E eu vim
pra cá porque eu tenho muito parente aqui. Tenho muito parente aqui. Tenho sobrinho, tenho sobrinha.
P: Como foi essa decisão do seu sobrinho de trazer o senhor para o abrigo?
R: O sobrinho meu que trouxe eu, porque ele achava que aqui é mió pra tratar. Eu vim de Araguaia pra
cá. Meu sobrinho trouxe do... do Guarulho foi no Araguaia. Ele trouxe e pôs eu aqui porque eu estava
doente. Ele ainda falou: “– Tio Miro, eu não vou dar... tratar do senhor porque isso é dureza pra sarar!
E só sara com terapia. Se fosse apenas pelo dinheiro eu pagava o possível pra tratar do senhor. Mas
não é, não! Não adianta dinheiro pra isso. É só movimento”.
P: Como é para o senhor morar aqui?
209
R: Uai! Eu senti bão, uai!, de vir pr`aqui! Estou bem tratado, né?, bem zelado. Aqui não falta médico.
Comê, quatro vez por dia. Se precisar de remédio, vem na hora. Então está bem tratado, não está? Pra
mim qualquer lugar estava bão. E está bão até hoje. Não me falta nada. (Pausa.) Ah!, eu nem não sei.
O que eu acho é que falta saúde. A saúde é o principal. Faltou ele, acabou, né?
P: Por que o senhor acha que “faltou saúde, acabou”?
R: Uai!, porque não tem jeito mais de andar. Não tem jeito, né? Ô, pô, tá doido! Se eu tivesse saúde, aí
eu não ia tomar conta da casa da minha irmã? Está lá, oh!, alugada. Está os trem tudo dela lá em um
cômodo na casa dela, né? Tem geladeira, tem máquina de pé, tem... tem geladeira, máquina de pé,
guarda-roupa. Tanta coisa ela tem lá, mas eu não posso ir lá, né? Mas não me prejudicou muita coisa,
não, sabe? Eu sei ler ainda, sei escrever. Se você me falar uma coisa hoje, eu te falo outra vez. Muitos
dias eu falo. É só o jeito de andar. Eu ando meio mancando, né? Meu braço também. Aqui não estava
mexendo, não, oh! Aí tem terapêutica, sabe? Agora mesmo saiu uma aí. Você viu? Você conhece ela?
Onte eu fiz, porque eu é segunda e quinta. Fiz onte e, agora, quinta. Lá no CEAI [Centro de Apoio ao
Idoso], eu vou lá toda segunda e sexta. Tem um senhor lá que deu derrame. Falou: “– Miro, eu não sei
ler mais. Saiu da cabeça. Eu falei pra mim ver, não dou conta mais”. Chama Eurípedes. E tem mulher
também. Ih!, você precisa de ver o tanto! Nossa Senhora, tanta mulher que deu derrame! Agora está de
férias. Entrou dia seis. Um mês. Aí vem um ônibus buscar nós. Buscar todo mundo. E eu vou no CEAI
I, no II, no I, numa Van. Essa é segunda-feira, e o outro é terça. Vai começar agora em agosto. Está de
férias. Está com quatro ano que eu estou andando nisso. Acho bão. Passa o tempo, né?
P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
R: O pessoal aqui é tudo bão. Tudo camarada. Dou bem com todo mundo daqui. A D. Suyá é muito
boa. Ela costura também, né? Se precisa de pregar um botão da camisa ela prega. Cerzir, zig-zag. Eu
tinha uma máquina de pé bonita e vendi no Araguaia. Marca Zig-zag. Eu gambiava muito lá: era
máquina de pé; era bicicleta; era carro; revorve; relógio. Tanta coisa! Eu estava bem lá. Estava bem,
menina, tá doido! Se eu não tivesse dado derrame eu estava era rico. Era um homem que vivia
independente no Alto Araguaia. Todo mundo falava pra mim: “– Miro, você pode levar fiado”. “–
Não, não quero não!”. “ Pode levar. Você é direito”. “ Mas eu não quero!”. (Risos.) Pra que
comprar fiado, né?, eu tinha dinheiro! Comprar fiado mais pra quê? Roupa eu tenho muita. Pra que
comprar mais? Eu tenho muita roupa que eu trouxe lá do Araguaia. Tinha uma senhora, D. Ângela – a
costureira de lá chamava D. Ângela. Costurava pra mulher enxoval de casamento. Tudo ela fazia.
Tinha fazenda. O filho dela tinha fazenda, tinha açougue. Eu falei: “D. Ângela, a senhora não precisa
trabalhar”. “Não, Miro, eu não agüento ficar sem... sem trabalhar, não! Vou trabalhar”. Tá véia! Está
com noventa anos.
P: O senhor recebe visitas?
R: Ih!, todo dia tem visita!
P: Quem são as pessoas que o visitam?
R: Ih!, muita gente! Eu nem não sei mais! Tem muitas pessoas que vêm! Nossa, todo dia! Os meus
sobrinho e minha irmã vêm quando pode. Tem muitos que é ocupado, não vem todo dia, né? Vem de
um mês, dois. Assim... Pra mim... é bom, né? (Pausa.) Mas está tudo longe. Está tudo longe. Não estou
nem ligando por isso mai... por isso, não. Hoje eu não preocupo idéia com muié; não preocupo com
filho. Há muito tempo que eu estou sozinho. Eu preocupava com o menino meu que morreu. Esse
viveu comigo desde assim, oh!, [Mostra novamente o tamanho de uma criança muito pequena] até
morrer.
P: O senhor faz alguma atividade aqui dentro?
210
R: Não. Só... exercício. (Pausa.) Exercício. E eu tenho um dinheiro no banco também, né? Pego o
extrato. Está rico, não tá? E dois mil reais que eu emprestei pra um sobrinho meu que chama Roberto
Tiluca. Roberto Tiluca! “– Tio Miro, empresta dois mil pra mim, Tio Miro? Eu pago o senhor, os juro
que tiver correndo, Tio Miro! Eu estou desempregado agora, perdi o emprego”. Falei: “– Olha,
Bertinho...!”. “– Ih, não, Tio Miro, empresta!”. Emprestei, e até hoje! Está com oito anos. Não vem
aqui não! Foi chamado pra vir aqui. “– Eu não vou, não! Eu estou devendo pro Tio Miro dois mil
reais, e... e... não tenho dinheiro pra dar”. Mentira! Ele já comprou casa de quarenta mil reais aí, e não
pagou porque não quis.
P: O senhor faz algum plano para daqui adiante?
R: Ah, eu não... não sei, não! Eu acho que não espero nada mais, não! Derrame é duro de sarar. Eu
nunca ouvi falar em derrame sarar. Você já viu? Tá doido! Eu pelejo, faço terapia de todo jeito. Faço
até demais! A terapêutica falou: “– Você... você é danado, você faz muita coisa!”. E está custoso! Eu
faço caminhada; vou no banheiro ali e tem um cano assim, oh!: levanto e abaixo; levanto e abaixo.
Deito na cama e levanto os pé assim, oh! Eu não estico os pé, não, oh! Esse aqui, oh, é dureza! Isso é
muito pouco. A melhora é um tantinho assim que a gente nem não vê. Se melhorar um pouco assim eu
já fico animado de fazer mais. (Risos.) Ah!, isso é... memória. Mas deu fraco em mim. Tem uns que dá
demais, né? Você não ouviu falar isso, sobre a memória? Atingiu a memória. (Pausa.) Espero fazer
muita coisa ainda.
P: O quê, por exemplo, o senhor espera fazer?
R: Andava muito de carro, de bicicleta. Quando eu vim pra cá eu tinha uma Brasília novinha. E eu
peguei e vendi ela. Eu falei: eu não posso guiar mais. Só meu sobrinho é que estava dirigindo. Aí eu
fui lá e vendi ela. Tinha duas bicicleta no Alto Araguaia. Mandei vender ela também. Uma verdinha.
Tinha até seta nela, assim, oh!, no lado esquerdo e no lado direito. Uma Ceci de mulher novinha que
eu tinha também. Eu gambirava muito lá no Alto Araguaia: comprava, vendia; comprava, vendia.
Passeava pra São Paulo onde está meu sobrinho. Chama Lázaro Pereira. Estudou até! Está muntado no
dinheiro, oh! Um advogado metalúrgico ganha dinheiro, não ganha? E ele formou duas filha também.
Filha dele, sobrinha minha. Uma já casou. É... é... Eu não... não... eu não... não interesso mais por...
por morar com muié, de ter mulher pra mim. Hoje em dia só tem vagabundagem de muié e de homem.
Lá no Araguaia tinha um senhor, chamava... Esqueci o nome dele. Ele tinha fazenda, tinha madeireira.
Casado. Bem casado. Envolveu! Envolveu, envolveu, até que ficou puro! Aí ele foi e voltou pra
mulher dele. E ela: “– Não, eu não quero mais, não! Pode virar pra lá! Depois que acabou tudo que
você tinha!”. Ah!, é José! O nome dele é José. Ela falou: “– Eu não quero de jeito nenhum mais! Eu
era tão boa para você e você vivia pintando comigo”. É. Ele falou: “– Então eu vou morrer!”. “– Então
pode morrer!”. E começou. E lá tinha um delegado que chamava Sombrinha, lá no Araguaia. E ele era
dureza, justiceiro que só vendo! Ele falou: “–Quem precisa de apanhar é moleque, porque eu conheço
cara é de home. Home eu conheço, moleque também”. (Risos.) “– Não, vem me bater! Você queria me
bater! Toma o meu revorve!”. “– Não, ninguém quer tomar o seu revorve, não! Você está doido,
rapaz! Você não está certo”. “– Vem tomar!”. “– Não!”. “– Vem me prender!”. “– Também não!”.
Olha, ele é dureza! “– Então você não quer prender?” Ele falou: “– Não!”. “– Então eu vou ali pra
minha casa dormir um soninho e volto agora mesmo”. “– Vai!”. Chegou lá, pegou o revorve, oh!, pá!
Morreu! Aí o delegado foi lá e pegou o revorve dele. Eu fui no enterro dele. A mulher dele nem lá foi
pra ver como é que era. Como que era mulher vagabunda, e home também tem. (Risos).
P: O senhor gostaria de falar mais alguma coisa?
R: Não. Podemos parar mesmo. Tem muita coisa. Mas não é agora, não. Te dei... te dei uma escola
também, não dei? Das coisas que passou comigo pode passar com você também, né? É... hoje em dia
está... está desse jeito. É duro de você entender, né? Você casa, por exemplo, casa e... logo o home já
começa a andar, chega brigando com a mulher... Já está arrumando outra, né? É desse jeito, porque
vira a cabeça. Gosta de outra. Passa a gostar de outra, né? Passou a gostar, pronto, né? Eu sou um
211
cabra já andado. Muito. Sabido de um mundo de coisa. Tá doido! Eu falei muita coisa. Agora você
fala a sua vida também! (Risos.) Agora fala: “– Você é casada, hein?”. (Risos).
P: Hoje nós estamos aqui para falar do senhor.
R: Todo final de mês ia todo mundo pra São Paulo. E apareceu uma mulher lá, uma moça bonita.
Falou: “– Moço, você é da onde?”. “– Eu sou de Mato Grosso. Por quê?”. “– Nada”. Falou assim: “–
Nada!”. Puxou o terno pro meu lado, sabe? Ela pegou e me deu o relógio dela. Tem muitos anos,
sabe? Falou: “– Eu vou te dar esse relógio pra você. Você fuma?”. Falei: “– Fumo”. “– Vou mandar
comprar cigarro pra você”. Aí ela falou pra mim... [Ele se levanta, dirige-se ao quarto e retorna
trazendo uma foto para mostrar-me].
P: Essa é...
R: Filha.
P: Que idade ela tinha aqui?
R: Ah, era mais de vinte ano! Hoje ela tem uma base de trinta, quarenta.
P: Como o senhor conseguiu essa foto?
R: Eu tinha fotografia dela. A minha filha é feia?
P: O que o senhor acha dela?
R: Todo mundo acha ela bonitinha, né? (Pausa).
P: Onde ela mora?
R: Em Jataí mesmo. É de lá. A mulher... tem duas casas com ela, né? Deu uma pra menina e ela ficou
com a outra. Está morando lá toda vida.
P: Vocês mantêm contato um com o outro?
R: A que eu casei? Não! Ela está lá longe. Não! Tem muito tempo que eu não vou lá e nem ela vem cá
também. A última vez que eu vi ela foi no Araguaia, quando elas foi lá. Encontrava minha filha.
(Pausa.) E eu tenho neto. (Pausa.) Eu tenho uma vontade de ver a minha filha, mas está tão longe! O
contato acabou. Mais nunca mais. A filha, quando ela veio aí... Ela veio uma vez lá na cidade que eu
morava. Só essa vez. Acabou! Casou também. Tem filho. Não pode sair, né? Fica custoso. O marido
dela é motorista e... pedreiro. Eu não preocupo com isso, não! Não procurei, não tenho notícia
nenhuma, nem telefone, nem nada. Eu não preocupo com isso mais, não! Nem procuro também. Não
tenho notícia nenhuma da minha filha. Já está desligado há muitos anos já, porque eu não posso ir lá e
ela não vem cá também. Se eu tivesse sadio eu ia lá. Eu não tenho nem o telefone dela porque passou
muito tempo, né? Eu nem alembro mais. (Pausa.) Eu nem não sonho com ela. Nem... (Pausa.) Quando
eu fui lá assinar a procuração a mulher falou: “– Ó Miro!, isso aqui tudo é nosso, oh!”. Falei: “– Não,
eu não quero nada! Pode ficar tudo pra você”. “– Mas você tem mulher lá?”. Eu falei: “– Não, não
tenho. Tinha, mas não tenho mais”. “– Fica aqui com nós!”. Eu falei: “– Não, eu vou embora!”. “–
Ah!, então você tem outra lá, né?”. Eu falei: “– Muito quebra-galho, lá eu tenho é muito...”. (Pausa.)
Ah!, é tanta coisa da gente na vida, né? (Pausa.) Uma coisa, outra; uma coisa, outra. Passa um ano;
passa dois; vem uma coisa; passa três; vem mais... E... fico quieto. Entregar pra Deus, não é? Entregar
pra Deus que ele arruma tudo, né? Você também não é assim? (Risos.) A única coisa que pode
resolver é Deus. Mais nada. (Pausa.) Eu fiquei distanciado é porque não combinava. É isso. Quando
você casar você vai ver como é que é. Ou você casou já? (Risos.) Não? Ah!, então você já é casada!
Ah!, eu não importo com isso, não! É do jeito que está mesmo. E hoje em dia, quantos e quantas aqui
212
casado, o marido dá... dá uma doença e fica aí toda vida, oh! E a mulher fica pulando cambango aí, oh!
Eu vi foi muitas.
P: O que é pulando cambango?
R: É pulando moitinha. Vinha com o motorista aí pra ver o marido, mas o outro está lá aguardando,
esperando ele. Ara!
P: Como o senhor gostaria que fosse a sua relação com a filha?
R: Não acha nada. (Pausa.) Ai! A gente pra gostar muito é preciso de ter muita relação, né? Assim,
morar junto. Aí a gente lembra. Mas assim: passar trinta
ano; vinte. Não alembra mais, não! Lembra
por lembrar. Foi muito pouco. (Pausa.) Muito pouco. Ah!, eu num sei, não! Só Deus que sabe. (Pausa
grande.) Pois é. Quando eu trabalhei nessa fazenda, essa moça falou assim: “Ô moço, você quer ir
morar comigo em São Paulo?”. Eu falei: “Vou procurar mamãe”. “Lá eu te dou muita roupa pra
você. Tem casa boa lá pra nós morar. Te dou tudo pra você”. Eu falei: “– Eu vou falar pra mamãe”.
Falei pra mamãe. “Não vai de jeito nenhum!”. (Risos.) Eu falei: “– Mãe, lá é bom!”. “– Não, não
vai!”. Eu era novinho, sabe? “– Não vai”. Eu falei pra ela: “– Não! Mamãe não quer que eu vou!”. “
Então eu vou deixar o meu telefone aqui pra você. A R. Panamá. Se você resorve a ir um dia, você vai
parar lá na minha casa”. (Risos.) Vixe! Ah!, nunca mais! Ela pegou um aviãozão. Me deu o relógio
dela pra mim, um relógio de mulher... de homem. Cigarro ela mandava comprar pra mim todo dia.
Não era pra mim ir lá na rua, não! (Risos.) Eh! Por isso que eu digo: eu já desfrutei a vida, puta merda!
(Pausa.) Hoje em dia, esses rapaz e essas moça de hoje em dia não aproveita mais nada. É pouco
tempo: morre de tanta doença que aparece, né? [Ele conversa com a funcionária do abrigo que passava
perto do local em que conversávamos. Olha o relógio e diz: “– Já é quatro e meia, hein? Você já está
quase na hora de ir, hein?”. Ela respondeu: “– Já passou da hora. Eu vou é no de quatro horas”.]
[Retorna à entrevista.] Já é quatro e trinta e dois. Tá satisfeita?
P: O que o senhor quer dizer com “desfrutei muito”?
R: Passeei muito; namorei; casei; larguei; ajuntei; mais larguei outra vez. (Risos.) É isso! O casamento
eu achei bom. Foi, virei a cabeça, né? Depois virei a cabeça também. Virei... virou por outra mulher.
Você também está pensando em você, né? Com o tempo tudo vai virando, né? É amor de outro. É isso.
Fica doidinho por causa de outro e vira. Vê uma mulher assim e... “– Puta, mas que mulher bonita!”. E
se ela insistir com você, você sendo homem, ih!, logo vira. Dinheiro não segura amor, não! Não
adianta. Quantos e quantos têm dinheiro e a cabeça vira por causa de um pobrezinho, né? Você já não
viu aquele... aquele dito da Igrejinha da Serra?
P: Como é?
R: Dois rapaz. Um rapaz gostava muito da moça. E o rapaz também da moça, e a moça gostava dele. E
ele era pobre. Só tocava violão. E o pai não queria porque ele era pobre. Combinou os dois e beberam
veneno. Bebeu e morreu. Foi enterrado em Rio Verde. Eu vi a casinha lá deles quando eu fui pra São
Paulo. Você não ouviu contar isso? Foi desse jeito, né? (Risos.) É amor. E é... É pobre. Ela queria ele
e não queria o rico. [Ele começa a cantar: “Vou me embora pra terra lá. Eu aqui não posso mais morar.
Vou me embora pra ver se eu esqueço da mulher que eu mais amo na vida”]. É assim. (Risos.) Tá
respondendo, aí? Vixe!, conversei muito borracha, hein? Vixe, não pode nem mostrar pros outros, né?
P: Essa conversa, como eu falei para o senhor, será utilizada apenas para o estudo que estou
realizando.
R: Ah, pensei que você ia mostrar! (Risos.) É só pra nós dois, né?
213
ENTREVISTA 6
Entrevistada: Ava
P: Fale-me sobre a sua vida.
R: Eu fui nascida na fazenda de um homem chamado Mauro. Eu fui criada... nascida e criada na roça
perto de um lugar chamado Veríssimo. Estava com dois ano quando nós mudou de lá. Mudou pra um
lugar com nome de Piracanjuba. Lá eu criei. Estudei, mas foi bem pouco. Só até o terceiro ano. Aí
quando eu estava moça, nós mudou pra um lugar por nome de Patrimônio de São José do Rio do
Peixe. E depois... lá eu casei, né? Eu fui casada. Depois nós mudou pra cá pra labutar. Meu marido
morreu aqui. Fiquei viúva. Já tem mais de vinte ano que o meu marido morreu. Sou mãe de três filhos.
Um morreu, o do meio. E tem dois. Tem o mais velho e tem o terceiro. Eu fiquei com Deus. Eu não
quis morar com ninguém. Um chamava; o outro chamava, e eu não morava, não! Ele deixou uma casa
pra mim, deixou INPS pra mim. Graças a Deus ele era bom pra mim. O nome dele era Márcio José
Guimarães. E eu, Ava Maria Guimarães. Agora, os meus menino... O mais velho chama Paulo Mário,
né? O do... o do meio chama... chama Antônio Pedro. O mais novo chama Hélio Henrique Guimarães.
(Risos.) (Pausa.) Eu estou com oitenta e nove ano. (Risos.) Eu sou do dia sete de novembro de um mil
novecentos e quinze. (Pausa.) Nós morava no Patrimônio quando o meu filho morreu. Ele morreu foi
lá. Então... é isso aí! Mas... agora, os outros dois..., quer dizer, o Hélio Henrique, eu não dei escola pra
ele. Ele entrou na escola com cinco ano, porque a minha irmã é madrinha dele. Então ele: “– Ah!, não,
não quero entrar na escola!”. Ele não queria. “– Ah!, ele está muito novo, Cleusa!”. O nome dela é
Cleusa. Então, ela: “– Não, madrinha, deixa ele ir!”. Foi... foi... Depois que ela casou, levou! (Risos.)
Levou ele, né? Depois ela falou – ela é professora – : “– Ó madrinha, agora o Hélio Henrique fica
comigo porque ele olha os menino pra mim!”. Ele foi e ficou lá com ela. Ela criou ele e ele saiu de lá
com onze anos. É quando ele veio pra cá. Ela dava roupa pra ele, deu escola. Ela quem deu escola pra
ele. Eu dava roupa pra ele também, porque a gente que é mãe, né? Às vez eu comprava um terno de
roupa, ela falava: “– Ah!, madrinha...” – eu sou madrinha dela – “– Ah!, madrinha, pra quê? Depois eu
compro pra você!”. “– Não, mas eu sou a mãe dele, uai!”. (Risos.) Depois disso ele foi morar comigo.
Com onze anos ele foi lá pra casa. (Pausa.) Faz muitos ano que o meu filho morreu. O Hélio Henrique
é o mais novo. O Hélio Henrique já fez sessenta ano no dia cinco de dezembro. Ele é... Ele estava mais
ou meno com sessenta e dois ano. Ele sofreu sarampo. Ele sofreu sarampo quando criança e morreu.
(Pausa.) O Antônio Pedro. (Pausa.) Eu sei que a vida da gente é assim mesmo, né?
P: Assim mesmo, como?
R: É assim mesmo. Porque... a gente nasce num lugar, muda pra outro. Daquilo muda pra outro.
Daquilo vai pra outro. Eu nunca pensava que ia morar em cidade. (Risos.) Eu, não! Mas foi, nós
mudou pra cá. Meu marido morreu, bem dizer, de repente. A gente sente falta das pessoa, né? A gente
nunca esquece daquelas pessoa. Isso dá interferência na vida da gente. Ih!, demais... Deus me livre!
Nós combinava bem. É. E a gente está aqui... O Hélio Henrique vem cá toda semana. Dia de segunda.
Qualquer um dia desses aqui ele vem cá.
P: Em que sentido essas perdas interferiram na sua vida?
R: Uai!, ele morreu de repente, né? Ele falou: “– Ava, eu estou com vontade de comer canjica!”. Eu
falei: “– Uai!, então compra, ué!”. Ele foi e comprou. Ele cozinhou a canjica, comprou leite, eu fui e
falei: “– Por que você comprou dois litro de leite se nós é só dois?”. Os menino já tinha casado. Todos
os dois, né? Ele falou: “– Um pra nós comer com lei... com canjica; o outro pra nós comer coalhada
amanhã”. Agora, quando meu irmão chegou lá, nós comeu canjica e tudo, meu marido saiu e foi pra
venda. Ele chegou lá na venda. Ele bebeu pinga. Foi, deu congestão cerebral. Foi... Ele não tinha
chegado e eu falei pro Hélio Henrique: “– Ô Hélio Henrique, o seu pai não está aqui, não!”. Foi, e o
Hélio Henrique falou: “– Eu vou lá no boteco e eu vou levar o carro”. Mas ele não bebia pinga assim,
não! Ele nunca chegou lá em casa tonto! Ele falava que tinha uma raiva desses homem que chegava
em casa brigando com a mulher, quebrando trem! Ele tinha rai... Ele não... Lá, um dia, ele bebia um
golinho. Ele foi, bebeu lá e morreu. Foi. O Hélio Henrique foi, chegou lá: “– Ah!, S. Sebastião, cadê o
214
papai?”. E tinha um atalho assim, oh! Ele falou: “– Já foi embora”. Ele falou: “– Não!”. Foi. O Hélio
Henrique saiu no atalho. Ele estava caído lá no chão. Foi, o Hélio Henrique chamou ele, chamou, ele
não respondeu. Foi ver, foi lá no S. Sebastião e falou: “– Ó S. Sebastião, eu chamei, chamei, ele não
respondeu. Vamos lá comigo?”. Foi, S. Sebastião chegou lá, chamou ele, falou: “– Ai, seu pai
morreu!”. Foi, pôs ele lá no carro e levou lá pra casa. Chegou lá, S. Sebastião me chamou: “– Ó D.
Ava, vem cá! Eu vou falar pra senhora uma coisa”. Eu falei: “– O quê?”. “– O marido da senhora
morreu”. Eu falei: “– Ah!, quê que foi?”. “–Vem cá pra senhora ver!”. Eu fui lá, apalpei ele, ele estava
quentinho. Foi, ele levou lá, levou ele pra Medicina. Foi, o povo da Medicina falou: “– Não, vocês
pode levar ele pra trás! Amanhã cedo nós vai buscar ele pra fazer autópsia”. Foi, levou lá pra casa,
passou a noite lá. No outro dia, sete hora mais ou meno, eles foram lá. Levaram ele, fizeram autópsia
nele e levaram ele pra casa outra vez. Depois, quando foi de tardinha, fez o enterro dele. Mas ele era
muito trabalhador! Muito mesmo! Não deixava faltar nada pra mim.
P: Onde os seus filhos moram?
R: O mais velho mora em São Paulo. O mais novo mora aqui. Eu moro com ele.
P: Como assim: “eu moro com ele”?
R: Eu, se Deus quiser, quando o meu menino acabar de ficar bom, eu vou embora.
P: Como é o seu relacionamento com eles?
R: Graças a Deus vive bem. Ele não é ruim pra mim. Quer dizer, ele nunca tratou de mim, porque meu
marido deixou casa, deixou INPS. Eu vivo é com o meu INPS. Lá eles é bão. Eles vai comprar as
coisa, ele: “– Mãe, o que a senhora precisa?”. “– Eu não preciso, porque eu tenho, graças a Deus, né?”.
Mas eles sempre compra alguma coisa pra mim. (Risos.) Eu peço pra eles é boa vida, né? Que Deus dá
bom, boa idéia pra eles. Que eles... Graças a Deus eles não é brigador com ninguém. Ele é pintor e
todo mundo gosta muito do serviço dele. É. Ele é pintor de casa, todos os dois. É.
P: A senhora tem irmãos?
R: Tenho irmãos. Nove irmãos. São cinco filho homem e quatro filha mulher. Mas deles, agora tem
três. (Risos.) É eu, a Fiinha e o compadre Elmar. Eu sou a mais velha. E a Fiinha, essa é a caçula. Ela
chama Lourdes Cristina. (Risos).
P: Onde eles moram?
R: Eles moram tudo aqui em Uberlândia.
P: Como é o seu relacionamento com eles?
R: Ah!, os meus irmão nunca veio cá, não!, desde que estou aqui. E eu não sei o porquê, não! O meu
irmão chama Elmar Henrique dos Santos. O meu irmão nunca veio aqui, não! Mas aqui, graças a
Deus, a gente come, bebe. Não bebe, não come, se não quiser. Eles é muito bãozinho.
P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo?
R: Agora, no dia vinte e nove de setembro, vai fazer dois anos.
P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá?
R: Eu vim pra cá foi porque o meu filho sofreu derramo. Ele sofreu derramo. A mulher dele largou ele
e foi embora. Largou ele de derramo. O meu filho tem uma filha. Foi, a filha dele foi lá e trouxe ele. E
nós veio pra cá. Depois nós estava lá, a filha dele estava fazendo muita ruindade pra mim. Juntou ela
215
com a mãe dela e me jogou na rua. Eu vim pra cá porque a filha dele me tocou. Uai!, eu fiquei muito
esquisita, porque eu gostava muito da minha casa, e tudo! Ela é muito esquisita. Essa menina é muito
má pra mim, toda a vida! Quando eu fazia... Eu morava lá, eu tinha meu fogão a gás e meu fogão de
lenha. Às vez eu estava fazendo o comê e ela ia lá e jogava água no fogo. Apagava o fogo tudo, falava
que não precisava de mim. Falava que... E lá era meu. Ela falava que eu não mandava lá, que eu não
mandava lá. Eu falei pra ela: “– Uai!, vai lá, vai lá na prefeitura! Manda aqui quem... O nome que está
lá na prefeitura é que manda! Manda aqui o nome que está lá na prefeitura, porque eu lavei tanta
roupa, pelejei pra comprar aqui. Você não deu um puto vintém! Agora, pra falar que eu não mando
aqui!”. A mãe dela me puxando pra mão, ela me empurrando, me xingando. Foi, o Henrique garrou a
Mônica, sobrinha minha, e ele foi lá. Ele falou assim: “–Mônica, arruma um lugarzinho pra minha mãe
porque eu não agüento mais a Geralda mais a Neca fazer ruindade pra minha mãe! A minha mãe
caladinha e tudo, e elas pintando com a minha mãe!”. Foi a minha sobrinha que arranjou aqui porque o
meu filho pediu, né? E agora, graças a Deus, ele está bem bonzinho! Ele veio pra cá numa cadeira de
roda. Foi a... dona... dona... Como é que é o nome dela? Ah!, aquela... Como que ela chama aquela
fazedeira de biscoito? É... Gabriela! D. Gabriela fez fisioterapia nele. Graças a Deus, ele está
bonzinho. [Entra no banheiro, nesse momento, uma funcionária do abrigo. O banheiro localiza-se
dentro do quarto.] Mas falar a verdade: eles aqui não é ruim! Eles aqui não é ruim, não! Eles é muito
bom! Boa pessoa com a gente e tudo. Mas é porque eu quero ir embora pra minha casa. Não é dizer
que é ruindade deles, não! Eles é bom. Aqui põe num prato o mesmo pra todo mundo. Se está doente,
se sente uma dor, fala pras enfermeiras que elas dá remédio pra gente. É. Não é ruim. (Pausa.) A gente
quando tem de passar por uma coisa, menina, a gente passa mesmo! O que é da gente é da gente. Eu
tenho minha casa, tenho os meus trem, eu estou aqui, oh!, desse jeito. O que a gente tem de passar,
ninguém passa. Ninguém passa! O que a minha neta fez comigo, do jeito que ela fez, me livre! A
menina dele fazer do jeito que ela fazia, Deus me livre! Agora, o meu menino vem cá. Toda semana
ele vem. Tem semana que ele vem duas vez. Outra hora ele vem uma vez. Mas... falar que eles aqui é
ruim, não é, não!
P: Por que a senhora acha que a sua neta agia assim?
R: Uai!, ruindade dela, porque eu nunca fiz nada com ela. Eu nunca fiz nada com ela! Mas ela é assim
mesmo: ela briga com a mãe dela, joga praga na mãe dela, a mãe dela joga praga nela. É assim! Eu
estava em pé assim, oh!, ela veio de lá, falou: “– Eu não quero mais você na minha companhia!”. Eu
falei: “– Não, eu dou um jeito, uai! Você não quer mais a minha companhia, eu tenho jeito pra mim.
Brasil é grande! Você não me quer, eu não brigo com ninguém!”. Pergunta pra eles aqui se eu brigo
com alguém! Eu fui morar com o meu filho, foi porque eu fiquei doente. Eu morava sozinha, mas eu
adoeci. Eu sofro do coração e sofro de pressão alta também. Pra mim não ficar sozinha, tinha dia que
ele vinha do serviço, passava lá em casa e eu estava passando mal. Eu falava: “– Eu estou passando
mal”. Ele falava: “– Mãe, então eu vou levar a senhora lá na UAI!”. Ele me levava lá, me aplicava
soro. Ele ia embora, lá pra Morada Nova, aí pras onze hora, meia-noite, sozinho. Eu ficava
incomodada com ele, porque ele ia sozinho, e Deus, né? E ele ficava lá incomodado comigo. No outro
dia a sete hora ele batia lá em casa. “– Mãe, eu não dormi, mãe! Cheguei lá, tomei banho, jantei, mas
fiquei pensando na senhora! Eu não dormi”. Pois aí ele já tinha feito café, tomava café, ia pro serviço.
E, quando era de tarde, ele tornava a passar lá pra ver como é que eu estava. Aí eu resolvi vender lá e
ficar com ele lá. Mas ele na casa dele e eu na minha. Ele fez uma casinha pra mim. Ele tirou um
terreninho pra mim e fez a casa pra mim. Ele morava na frente e eu no fundo. (Risos.) Graças a Deus,
o meu filho não é ruim pra mim. O que mora em São Paulo sempre vem aí, traz roupa pra mim, traz
roupa de cama, traz roupa pra vestir. Tudo ele compra. (Risos).
P: Vocês dois vieram para cá?
R: Não, não! Ele ficou lá na filha dele. Veio só eu. Depois ela arrumou... arrumou aqui pra ele fazer
fisioterapia aqui. Depois eu vim pra cá. Foi. E arrumou aqui tudo pra mim. Mas eu quero ir embora
pra minha casa, se Deus quiser! Na hora que ele veio, ele falou: “– Ó mãe, é só eu ficar mais
bonzinho, eu vou...”. Nós tem casa: eu tenho a minha casa e ele tem a dele. Ele comprou uma lá na
Morada Nova. Tem um terreno lá. Eu tinha a casa ali, oh! Depois, por causa de ficar doente, e vendeu
216
lá, né? E ele comprou um terreninho pra mim e fez uma casa pra mim. A dele lá fica mais ou menos
assim, de frente. (Pausa.) Ah!, é ruim, né? Quê que eu vou fazer? Se, graças a Deus, ele está
bonzinho... Meu filho fala: “– Ó mãe, não precisa pensar muito em mim, não, porque eu estou bão. Eu
estou tomando os remédio direitinho!”. Ele está tratando com dois médico, graças a Deus! Meu filho
falou: “– Graças a Deus. Um dia desses, se Deus quiser, eu vou ficar mais bão, eu vou arrumar lá pra
nós ir embora e vou levar a senhora”. A gente nunca deve esquecer de Deus. Deus dá dá força pra
gente; dá coragem pra gente; dá saúde pra gente, né? (Risos.) Graças a Deus. Às vezes eu falo que
tenho oitenta e nove e muita gente fala que é minha mentira. Eu falo: “– Não é mentira, uai! Eu sou de
um mil novecentos quinze. Eu sou de um mil novecentos e quinze do dia nove... do dia sete de
dezem... de... novembro”. A mamãe casou no dia vinte de janeiro de um mil novecentos e quinze e eu
sou de um mil novecentos e quinze. Fazia onze ano... Não! Onze mês que ela tinha casado quando ela
ganhou eu. (Risos).
P: Como é para a senhora morar aqui?
R: Não, aqui não é ruim, não! E a gente leva uma vida tranqüila. Mas falar a verdade... Que seja a
verdade! Eles não é ruim pra gente. O que eles põe no prato de um, eles põe no prato de todo mundo.
Se sente uma dor, clama que está doendo, elas dá um remedinho a gente. Eu não tenho nada a clamar
deles, não! Eu tenho vontade de ir embora. Mas não é falar que eles é que é ruim, eles que é isso...
Não, não! Eles não é ruim pessoa, não! O meu filho que está lá em São Paulo não queria que eu viesse,
né? Mas ele está lá pro São Paulo e elas fazendo desse jeito comigo, né? Um dia foi que eu estava
aqui, ele falou: “– Ô mãe, se a senhora não tivesse vindo pra cá, a senhora sabe que tinha morrido?”.
Se eu estava sentada num lugar, ela ia lá e falava: “– Sai daí que eu vou sentar aí. Sai daí, sô!”. Outra
hora eu levantava, ela vinha lá, me dava coice, me dava cotovelada. Aí foi um dia, eu falei assim: “– Ó
menina, uma hora eu te dou um pescoção que eu vou te jogar muito longe!”. Aí foi um dia, ela
colocou o Fausto: “– Ó vô, a vó falou que um dia vai me dar um pescoção e vai me jogar muito
longe!”. Aí eu fui e falei assim: “– Mas conta pro seu pai por que... conta pro seu avô por que... por
que eu vou fazer isso com você. Conta!”. Aí ele foi e não falou nada, não. O Hélio Henrique falou: “–
Não, mãe, se Deus quiser, a hora que eu ficar mais bão eu vou arrumar a casa”. Ele arranjou a casa lá.
A minha casa tem um povo morando pra olhar as duas casa, né? Quando ele ficar mais bão, ele vai
arrumar e nós vamos embora. Meus filho nenhum é ruim pra mim, graças a Deus. Nenhum. Nenhum
dos dois. O de São Paulo até desejou pra mim ir pra lá, mas eu não gosto de São Paulo, não. Lá é
muito frio, né? (Risos.) Eu já fui lá em São Paulo muitas vez, mas, ah!, quando eu quero ir embora ele
me põe na... no ônibus e fala pro motorista: “–Oh!, minha mãe lá vai aqui com você!”. “– Oh!, então o
senhor me apresenta ela!”. Aí ele me apresenta eu pro motorista, né? Chegava aí na rodoviária eu
pegava um táxi, ia lá pra casa. Chegava aqui era cinco hora, quatro e meia. (Risos).
P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
R: Ahn?
P: Como é o convívio diário, o dia-a-dia com as pessoas que estão aqui?
R: Ah!, graças a Deus, eu não tenho mal querência com ninguém aqui. (Risos.) Eu estava em outro
quarto, me passaram pra esse aqui. Tudo é bão! A gente que faz a gente é a gente. (Risos.) Não adianta
uma comparação: a pessoa há anos num serviço, você fala: “– Ah!, fulano é muito boa!”. Você vem cá
e me arruma pra trabalhar lá e eu vou trabalhar lá. Quando eu não fui, eu faço uma coisa errada lá,
pego um trem da mulher, levo outra coisa: “– Uai! Mas fulana é mentirosa! Falou que fulana era muito
boa e fulana não era boa”. (Risos.) Não é? Fazer amizade com todo mundo, porque tem gente que
qualquer coisinha fica com raiva de você, te olha com a cara ruim, coisa e tal, né? A gente não pode
ser assim.
P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro?
217
R: Aqui eu faço crochê. Só. (Risos.) Eu é que estou fazendo esses crochezinho. Eu estou fazendo é pra
mim mesmo. (Risos.) Eu faço um pouquinho, saio, ando, depois faço mais um bocadinho. Aqui eu
faço só crochê. Eu vendi só um aqui. Só um caminho de mesa. Foi. Meu menino, acabando de ficar
mais bão, eu vou pra casa. Ih!, eu tenho uma vontade de ir embora pra casa! Nossa Senhora, casa da
gente é bom demais! É, uai! Mas você na sua casa, fazer uma comparação: se você quiser fazer uma
coisa, você faz; se você não quiser, você não faz; se deu vontade de comer alguma coisa, você vai lá,
você compra aquilo assim. E na casa dos outros não é assim... Na casa dos outros, come o que os outro
dá. É que aqui não é ruim. Aqui não é ruim, não! Mas eu que quero ir embora. Mas falar que eles aqui
é ruim, é isso, aquilo outro, não é, não! (Risos.) Eu é que tenho vontade de ir embora. Mas falar que é
ruindade deles, não! (Risos.) Graças a Deus.
P: A senhora recebe visitas?
R: Recebo.
P: Quem são as pessoas que a visitam?
R: Recebo visita do meu menino toda semana. Recebo da minha prima que mora ali. Eu tenho muito
parente aqui, ih! Eu tenho primo e sobrinho espalhado aqui. Vem aqui uma cumade minha. Vem a
minha sobrinha. Já veio qua... quatro vez.. Vem a Alice, vem a Salete, vem a Antônia, vem a Mônica.
É. Já veio aqui. Agora, a... Agora, vem a... a Amparo. A Maria do Amparo com as filha. Uma filha
dela chama Maria, a outra chama Amparo. Sempre elas vêm aqui. Vem a neta dela também. Sempre
elas vêm aqui. Só as filhas da cumade Teca têm seis mulher e três home. Agora do compadre
Bernardino têm uns seis também. (Pausa.) Aqui eles não deixa sair, não! Pra mim sair daqui tem que
existir uma pessoa pra assinar pra mim ir. Só assim eles deixa sair. Se Deus quiser, eu quero ir pra
minha casa.
P: A senhora falou de problema de saúde. Como é?
R: Ah!, sô!, eu sinto uma dor assim! [Ela aponta para o coração.] Agora esses dia, graças a Deus, eu
não sentindo, não! É, mais é, estou aí! Graças a Deus, eu estou alimentando bem, eu estou dormindo.
P: A senhora chegou a trabalhar fora de casa?
R: Ih!, muito, nossa Senhora! Ah!, trabalhei... Eu nunca trabalhei de carteira assinada. Nós morava na
roça. Eu trabalhava pra uma mulher de nome Conceição. O marido dela chamava Luiz. Trabalhei
muito pra esse povo. Trabalhei pra D. Betinha. O marido dela chamava Tõe Veca. Vixe!, era muita
gente que eu já trabalhei! Tanto na roça, como na cidade. Aqui trabalhei pra D. Nair. Trabalhei pra...
pra D. Beatriz. Pra muita gente que eu nem sei mais o nome das mulher. Eu lavava roupa. Lavava pra
Dona... Como é que é? Pra D. Cláudia. Ih!, muita gente! Ah!, sô!, eu nem sei até que idade eu
trabalhei, não!, porque depois o meu marido não deixou eu trabalhar mais. Ele falou: “– Você não
precisa estar trabalhando assim, não, sô! Eu trabalho, os menino trabalha. Não, você não vai trabalhar
mais, não!”. Aí eu fui... (Risos.) “– Nada! Você fazendo o servicinho de casa, lavando a roupa, está
bom!”. Depois ele morreu. Eu vivo com a INPS que ele deixou. E deixou a casa pra mim. Quer dizer
que ele está tratando de mim até hoje. (Pausa.) É. A vida não é fácil, não! Não é mole a pessoa perder
o marido, não. Nem! É a coisa mais doída que tem na vida. É. Não é mole, não! (Pausa.) Mas eu, toda
a vida, eu gostava dos meus crochê. Eu faço crochê todo dia. Até hoje eu ainda vendo. Eu faço tapete
na máquina. Eu faço tapete na mão. Eu faço coberta de retalho na máquina. Quando nós morava lá na
roça, nós criava muito, porque, quando nós morava lá na roça, lá eles alugava... Primeiro, onde eu
criei, onde eu fui criada, toda a lavoura era lá. Depois eles vendeu lá. Depois nós mudou. Nós mudou
lá pro Patrimônio. Porque na roça a gente não tem que pagar água, não tem que pagar luz, não tem que
pagar nada. É a gente que planta as verdura da gente, né? (Risos.) É porque eu fui criada na roça. A
gente vai é do costume, né? O ritmo da cidade é muito diferente da roça. Quando do tempo da minha
mãe nós fiava; mamãe fazia porvilho; nós torrava farinha. Nós fazia era isso, tudo junto, os meus
irmão. Era bão lá na roça, onde nós morava. Bão mesmo! Papai, graças a Deus, era bão pra nós. A
218
mamãe... Mas, ah!, não! Eu acho muito melhor na roça do que na cidade. Depois nós mudou pra cá,
criava umas galinha. Mas eles foram lá, roubaram. Porque, depois que meu marido morreu, eu arranjei
um outro. O outro sofria do coração. Quando ele foi saber que eles tinha roubado nossas galinha, ele
foi e morreu. Ele foi e morreu por causa disso.
P: A senhora faz algum plano para daqui em diante?
R: Ah!, daqui pra frente, nós tudo está nas mão de Deus, né? Agora, se Deus me ajudar, eu quero ir pra
minha casa, viver na minha casa. Mas falar que eu quero ir daqui, que eles é ruim, não! Não posso
falar que eles é ruim. Eu gosto é de falar é a verdade, menina! Não é? (Risos.) Ah!, lá em casa eu
vou... vou... plantar minhas cebola, eu vou arranjar meu... arranjar minha casa, eu vou criar as minha
galinha... (Risos.) É desse jeito!
P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa?
R: (Risos.) Ah!, se a gente for falar é muita coisa, né? (Risos.) Se for falar é alguma coisa de família.
O papai e a mamãe era bão pra nós. (Pausa).
P: Como foi o seu relacionamento com os seus pais?
R: O papai levava nós em festa. Na roça fazia muita... eles falava pagode, né? Fazia muito pagode, nós
ia. Papai marcava... papai marcava quadrilha, nós dançava. (Risos.) E vai indo, graças a Deus! Papai
foi muito bão pra nós e a mamãe também. Eles sempre tratavam os filho muito bem e nós respeitava
muito eles também. Meu pai chama Aristides Custódio dos Santos e a mamãe chama Maria Augusta
dos Santos. Ah!, a vida da gente é assim mesmo! Depois a gente vai ficando de mais idade, é uma
coisa e outra, né? Agora, eu... Ah sô!, eu, devido a idade, a gente sente uma coisa, sente outra, né?,
essa dor no peito. É isso aí!
219
ENTREVISTA 7
Entrevistada: Tiana
P: Fale-me sobre a sua vida.
R: Sou viúva, sou viúva. (Pausa.) Fui nascida e criada na roça. Quando eu vim pra cidade, em Monte
Alegre, eu morava na roça, sabe? A roça onde nós morava fica pertinho dessa cidade. A minha vida na
roça era boa porque eu trabalhava, tinha saúde. Eu tinha muita saúde! Meus irmão – tudo sadio
também – tinha saúde. Nós não tinha dificuldade de nada. Meus pai, minhas mãe, meus irmão. Tudo.
Eu vivia muito feliz. Lá na roça, minha filha, eu fazia de tudo: eu capinava; eu batia arroz; eu colhia
feijão; pegava milho; nós banava café. Trabalhava no cafezal, sabe? Fazia colheita de café. Nós fazia
isso tudo. Nós trabalhava junto com os meus pai, e eles nunca deixou faltar nada pra nós. Trabalhava
muito, mas... eu já fui nascida e criada ali... A gente não sentia, né? Na roça eu trabalhava muito, mas
não sentia. E vivia bem porque eu tinha eles. Nós vivia bem porque eu tinha meus pai, né? E eles era
muito bão pra nós. Vivia bem. Vivia alegre, satisfeita. Todo mundo alegre, satisfeita. Vivia bem. Eu
gostava de lá. É isso. (Pausa.) Mas eu e meus irmão só trabalhou porque naquele tempo não dava
importância pro estudo. Então aí eu vim pra cidade porque meu pai morreu. Tinha morrido mãe,
morreu pai e ficou só os filhos. Então eu tinha uma irmã casada aqui. Ela era a mais velha. Então ela
trouxe nós pra cá pra nós morar com ela, pra nós viver com ela. Ela chamava Arminda. Tudo era
solteiro, né? Aí nós viemo pra cá. Sou... Traba... Quando... Depois que eu vim pra cidade eu
trabalhava. Na cidade, eu trabalhei em muitas casa. Era de serviço de doméstica, né? É. Depois eu
parei de trabalhar de doméstica e peguei lavação de roupa, passação. Aí trabalhava cada dia numa
casa. Depois eu fiquei doente, né? Adoeci, né?, e a minha patroa me aposentou. É isso aí. Aí não pude
trabalhar mais e ela me aposentou.
P: Vocês são quantos irmãos?
R: Nós era em oi... em nove. Era em doze, morreu três. Ficou... é... Nós era em doze: morreu três,
ficou nove. Os nove criou. Os três que morreu, morreu tudo pequeno.
P: Dos seus irmãos, são quantos homens e mulheres no total?
R: Dos que morreu, era uma mulher e dois homem. Dos que foi criado, mulher era cinco, contando
mais eu, e homem era quatro.
P: Atualmente vocês são quantos?
R: Hoje não tenho irmão. Se existir, é um e no estado de São Paulo. Nem não sei se a minha irmã
existe porque eu não tenho notícia dela, e nem ela tem notícia minha. E nem endereço. Tem muitos
ano que nós não vê uma a outra. Agora meus irmãos daqui... Minha irmã morreu. Só eu aqui de... Só
tenho sobrinho. Sobrinho eu tenho bastante aí. Filho dos meus irmão, né? Mas irmão, irmã, aqui eu
não tenho mais, não.
P: Por que vocês não têm notícia uma da outra?
R: Uai! Porque eu... eu vim pra cá. Ela... ela... ela mora lá, né? Daí ela mudou de fazenda. Mudou e
não... não tem endereço nem dela, nem ela tem meu. É isso. Tem muitos ano já. Tem muitos ano que
eu não vejo a minha irmã. E eu tinha vontade de saber notícia dela! (Pausa.) Agora, o sogro dela, não
sei se é vivo também não. Foi embora, mas tem muitos ano. Morava em Guaíra. E o marido... Ela
trabalhava mais o marido dela em uma daquelas fazenda do banco. Eu nem sei aonde é ali. De certo
que é pros lado de Guaíra, né? Eu não sei. Eu não estava aqui. Eu não sei falar. Eu não sei se ela é
viva, se... Mas deve ser porque ela é bem mais nova do que eu. Se bem que irmão bem mais novo que
eu já morreu. O caçula, o mais novo. Ele é bem mais novo. Morreu tudo também. Eu sou, dos doze
irmão, e dos três que já morreu, a sexta filha dos meus pai. (Risos).
220
P: Qual é o seu problema de saúde?
R: Uai, minha filha, eu tenho problema nas perna. Eu tenho problema de muita tonteira. Muita mesmo!
Problema nas vista. Agora eu tenho uma hérnia também muito grande. É isso.
P: Quando a senhora se casou?
R: Quando que foi? Eu casei aqui. Aí minha irmã trouxe nós pra cá, né? Aí, daqui, aqui eu casei. Casei
na Fazenda das Flore. Eu morava na Fazenda das Flore. Daqui nós foi. O marido dela arranjou um
serviço na Fazenda Flore e foi pra lá. E nós mudou pra lá, sabe? Então eu casei. Eu casei... eu casei em
Canápolis. Nesse tempo que eu casei em Canápolis não tinha cartório. Lá era pouquinhas casa, e lá
não tinha cartório. Então, fazia o re... fazia o... Tirava os papel aqui em... em Monte Alegre. De Monte
Alegre a gente ia pra... pra uma pensão lá e eles fazia o... o... O escrivão daqui fazia o casamento lá.
Foi assim que foi o meu casamento.
P: A senhora teve filhos?
R: Criei um filho só. Morreu meu filho, uai! O marido morreu também. Eles adoeceu e morreu. Meu
marido morreu de repente, né? O menino esteve doente muito tempo. Depois nós morava na Fazenda
das Flor e minha irmã morava aqui. Eu trouxe ele pra cá pra tratar aqui. Lá em um... Ele estava
tratando com um farmacêutico lá em Canápolis. O farmacêutico não estava conhecendo a doença dele.
Passou a doença. Quando veio pra cá tratar a doença, já estava passada. Eu nem nunca ouvi falar nessa
doença. O médico é que falou que ele tinha uma doença com o nome piluríase. Eu nunca ouvi falar
nisso. Você já viu? Você conhece? Quem tratou dele foi o Dr. Guilherme. Ele foi, ele mudou pra...
Esse doutor mudou pra Belo Horizonte. Ele não mora aqui mais não. Ele morreu pequeno. Um ano e
três mês. Ele era criancinha.
P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo?
R: Cinco anos. Mais de cinco anos. Vai fazer seis agora dia nove de outubro. Vai fazer seis ano que eu
estou aqui.
P: Qual foi o motivo da sua vinda pra cá?
R: Então... Aí depois eu fui morar aqui com uma sobrinha minha aqui, a Rosária. Aí depois que eu
fiquei doente, eu não pude trabalhar mais porque não dei conta. Eu fiquei doente e aí eu fui morar com
uma sobrinha. Foi, ela precisava trabalhar também, e eu não dava conta de fazer nada. E eu ficava
sozinha e não podia fazer as coisa, né? Aí ela arrumou e pôs aqui pra mim... pra mim. Eu vim pra cá.
Ela ficava com medo de eu... de eu ficar sozinha, cair, machucar ou queimar. Então aí ela... ela foi e
me trouxe pra cá. Arrumou aqui. Ela era muito boa pra mim. Muito boa mesmo! Não tenho que falar,
que queixar dela. Ela foi muito boa. O que ela pôde fazer pra mim ela fez. Fazia alegre, satisfeita,
contente. Mas muito mesmo! Às vez eu estava com vontade de comer um trem. Quando eu esperava,
ela estava chegando com aquele trem pra mim. Ou ela sabia que eu gostava daquele trem, quando eu
via, ela comprava lá e trazia. Quando eu via, ela trazia pra mim. Ela era muito boa e é boa até hoje,
tadinha! E ela também, hoje em dia, também veve doente também. Não está trabalhando mais. Ela
mora em... aqui em... Luizote.
P: Como é para a senhora morar aqui?
R: Acho bão, minha filha! Acho bão. Acho bão estar aqui. Eu achei bom, eu gostei. Eu gostei muito
mesmo! Assim está muito bom! Eu não queria mudar nada na minha vida e não penso em fazer mais
nada. Eu mudava se eu pudesse trabalhar como eu trabalhava. Não... não... não... não vai dar mesmo
mais, né? Não tem nada não. O que me interessa agora é só ir passear na casa deles, dos sobrinho.
Ficar lá um dia, ir cedo e voltar de tarde. Ou ficar um dia, ficar dois. Ou ficar um pouquinho lá e
voltar. É só isso.
221
P: A senhora visita os seus sobrinhos?
R: Uai, minha filha, vou. Até fui esturdia. No Dia das Mães eu fui, sabe? Mas eles aqui não têm tempo
de estar levando a gente. Eles é muito corrido aqui, muito ocupado, né? Eles tendo tempo, eles leva a
gente. Eles... eles... Agora, o povo da gente tendo jeito de buscar, eles vêm buscar e a gente vai. Eles
deixa ir, né? A gente incomoda, mas pra levar é... é... muita coisa pra eles. Tem muitas coisa pra eles
cuidar, né? Aí a gente... Agora, eles podendo, eles leva.
P: A senhora recebe visitas?
R: Uai, minha filha, recebo. Recebo muita visita!
P: Quem são as pessoas que a visitam?
R: Recebo visita do povo que vem aí. Dos visitante, né? Alguns dos meus parente vêm. Não é todos,
não. Algum deles vêm. Alguns. De vez em quando algum dos meus parente vem aí. Demora muito.
Três, quatro mês, cinco, seis. Aí aparece um de vez em... Uma sobrinha vem de mês em mês porque
precisa vim. Os outros demora três, quatro, cinco, seis mês. Até... acho que até mais. Mas vem. Algum
deles vem. Eu queria que os meus parentes viessem ao menos uma vez no mês. (Risos.) Se não
pudesse vir mais, pelo menos uma vez no mês, né? Mas não vem, uai! O quê que eu vou fazer, né? A
sobrinha com quem eu morava de vez em quando ela vem. Agora tem um... deve ter mais de uns dois
mês que ela não vem cá. Tem mais de dois mês que eu fui lá na Iná. Dia das Mãe já está com dois
mês. Mais de dois mês. Eu fui... eu fui no dia oito de... no dia oito de... de maio, junho, julho. Agora já
está com mês e tanto já. Já tem mais. [Ela dirige a pergunta para a sua companheira de quarto que
permaneceu, durante toda a entrevista, sentada em sua cama: “– Já tem uns quatro mês que ela veio cá,
né, Doca? Tem uns quatro mês, né?”.] [Retorna à entrevistadora.] Pra aí assim: quatro mês, cinco, por
aí.... É assim que eles vêm cá. Desse jeito! Quatro, cinco mês, seis. (Risos.) É assim. Eu não sei por
que que eles demoram, né? Eles falam que está apertado por causa do serviço; que não tem tempo; que
não sei o quê. Mas... não sei se é isso, não! Eu acho que é porque não quer vir. (Risos.) Eu acho que é
isso, né? Eu acho que é porque não quer vir mesmo, uai! (Pausa.) E eu fico, ah!, pensando, achando
ruim! Mas o quê que vai fazer, né? Eu não incomodo mais não! O dia que eles resorvê eles vêm.
(Risos.) Né?
P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
R: É muito bom. Eu gosto muito deles daqui. São todos muito bão. São boas pessoas. Eu não tenho
nada que falar. Só tenho que gabar, porque são todos muito bão. Trata a gente muito bem! O que eles
puderem fazer... o que eles podem fazer pra gente eles fazem. Eu tenho é que falar bem, não é falar
mal, né? Pra mim está tudo bem. Tudo são bão. Eu não tenho que queixar de ninguém! Tudo eles são
bão.
P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro?
R: Uai, minha filha, a atividade que eu faço é esse: escreve um pouquinho; lê um pouquinho. (Risos.)
Só isso! Eu não quero fazer mais nada, porque as vistas não ajuda. Não tem jeito de fazer na... Em pé,
eu não fico em pé sozinha. Eu só fico em pé segurando isso aqui. (Ela aponta para uma bengala.) Não
tem jeito de nada mais, né? Uai! Não tem jeito de fazer nada mais, né? (Pausa).
P: A senhora faz algum plano para daqui em diante?
R: A escolha acho que é essa que eu estou aqui agora. Uai, minha filha, é isso que eu escolho, né? É
essa vida que eu estou vivendo aqui é que eu esco... que eu escolho. Eu sair daqui e ir na casa do meu
povo se eu pudesse... tivesse jeito, ia lá, passeava, voltava, ficava aqui. É isso. Só isso, né?, minha
filha, porque não tem outro jeito, né? O jeito é esse. Agora, minha filha, plano pra vida eu não... não
espero é nada mais porque eu já estou no fim da vida, né? Eu já fiz o que tinha que fazer. Agora, é
esperar. (Risos.) Não tem jeito mais de falar. Eu não espero mais nada não, né?
222
P: A senhora gostaria de dizer mais alguma coisa?
R: Não. É só isso mesmo, filha. É só isso mesmo. (Pausa.) Eles têm muita paciência com a gente. É
tudo muito bão aí.
223
ENTREVISTA 8
Entrevistada: Zica
P: Fale-me sobre a sua vida.
R: Eu sou daqui de Uberlândia. Sou nascida em... Como é que chama o lugar, gente! Ih!, eu esqueci o
nome do lugar! É.. é... Bom Jardim. Mas fui registrada aqui. E vim pra Uberlândia novinha com os
meus pais. Depois o papai... Mamãe largou do meu pai, e ele viveu com outra mulher. A mamãe criou
eu sozinha, e os meus irmão ficou lá com o meu pai. Até já morreu todos os dois. Todos os dois já
morreu... Não cheguei nem a ir na escola. Meu ir... meus irmão que morava com o meu pai foi pra
escola, e eu não fui. Diz que mulher não precisava de aprender a ler. E eu não aprendi porque eu não
fui na escola. Mas tive vontade de aprender. Se eu fosse... viesse pra com o meu pai, eu sabia ler,
porque o meu pai pôs os menino tudo na escola. E eu, o meu avô não pôs. Eu fiquei com o meu avô e
minha mãe. E não sei por que os meus irmão foram criados pra lá com o meu pai e a mulher dele. A
gente via um ao outro muito pouco. (Pausa.) Eu fui casada, sabe? Fui casada nos dois, no cartório e na
igreja. Depois fiquei viúva. Agora, hoje eu sou viúva. Tem mais de vinte ano que eu sou viúva. O meu
marido era muito bom pra mim. Aí depois ele morreu. Eu... Ele... Nós morava em Goiás, né? Aí o dia
que nós chegou... chegou aqui em um... em um mês, no outro mês ele morreu. Ele era mais velho do
que eu. Ele era... Quando nós casou, ele tinha vinte e oito; eu tinha vinte. Foi bem, graças a Deus!
Trabalhei muito, ajudei ele.
P: Atualmente a senhora tem irmãos?
R: Eu tenho. Agora eu estou tendo só... deixa eu ver: quatro! Estou tendo quatro irmãos só. Já morreu
quase tudo, de nove. Deles, eu tinha três irmã e seis irmão homem. Eu fui a quinta a nascer. Quer dizer
que abaixo de mim ainda tive quatro irmão.
P: Onde eles moram?
R: Uma mora em Taguatinga, em Brasília. E os dois mora aqui. Um não, não! Um mora em São Paula,
e aqui mora dois. O mais velho mora em São Paula.
P: Como é o seu relacionamento com os seus irmãos?
R: O meu irmão de São Paula não vem aqui porque ele já está velho já, né? Muito tempo que ele não
vem cá. Desse não tenho notícia dele, não! Os irmão daqui tudo eu tenho notícia muito de vez em
quando. Eles vêm cá. A lá de Taguatinga veio. Tem uns dois mês que ela veio aqui. Ela ficou viúva,
ela veio cá. Veio me ver. É a caçula.
P: O que a senhora pensa sobre o fato de ter sido criada pela mãe?
R: Foi... foi... Mas... é só... Tudo bem. Tudo... Eu sofri derrame na verdade. Eu não ando mais. Eu
trabalhava. Agora, depois que eu sofri derrame, acabou, porque não tem mais jeito de muita coisa.
Adoece é de repente, né? A gente não sabe, né? Eu estava sadia, boa mesmo, quando o derrame me
pegou. Isso é pra você ver que coisa esquisita, né? Mas eles falam que é de pressão. Não sei se eu
sofria de pressão, nem nada. Eu não tomava remédio! A gente é boba. Na... na época que eu casei a
gente é boba demais, né? Não importou com nada, né? Era só trabalhar, né? De forma é que é só isso
mesmo.
P: A senhora teve filhos?
R: Tive uma filha. Morreu. Um ano e meio. Era mulherzinha. Deu sarampo recolhido nela. O sarampo
recolheu. Ela estava com... estava... estava boazinha. Depois ela adoeceu. Ficou dois mês, logo ela
morreu. Nem o médico, era tão bobo que não conheceu nem a doença da menina, uai! Não conheceu
não! Tratava da menina e não sabia o quê que era que a menina tinha: a menina acabou morrendo. E
224
também foi só essa: não evitei; não arrumei nada; e não criei mais. Eu criei esse adotivo. O filho que
eu tenho é adotivo. Ele me quer muito bem. Eu peguei ele pra criar com sete mês. Ele me quer muito
bem! Meu filho tem quarenta e cinco ano. Muito bom meu filho pra mim. Hoje, hoje, hoje... ele tem
um menino deficiente. Eu criava ele, mas depois eu adoeci. Ele que toma conta do menino. Ele
trabalha, o menino fica na creche. Vorta, trabalha na chácara, né?, vem trabalhar, de tarde busca o
menino. Mas mora sozinho, ele e o filho. Um trabalhão pra ele, coitado! Mas ele... mas ele tra...
trabalha. Quer muito bem o filho, né? Ele zela melhor do que eu! (Risos.) Ele não gostava dele, não!
Ele bebia muita pinga quando eu criava o filho dele. Mas não gostava do menino de jeito nenhum!
Agora cuida bem do filho, sô! Anda muito bem arrumadinho, assiadinho. Nada aperta pro menino. Ele
quer bem o menino, sabe? Domingo é dia do meu filho e do meu neto vir cá. Eles vêm cá me ver de
quinze em quinze dia, porque o meu filho trabalha na chácara, né? Como é que ele vem cá? Mas se
não fosse isso eu estava com ele. Mas ele não pode pagar uma pessoa pra me olhar, olhar eu e o filho,
né? Mas se eu pudesse, vixe!, eu estava em casa, oh!
P: Ele tem outros filhos?
R: Ele tem um casal de filho. Não. Esse menino dele é de uma mulher que ele casou com ela, né? Ela
dava muito acesso e ela... ela bebia demais. Ele largou dela. Aí ele juntou com uma outra preta. Viveu
oito ano e criou a menina. Ele tem só um casal. A minha neta mora aqui embaixo, perto da... É na
Avenida Araguari. Ela vem muito me ver a menina dele. A gente fica com uma vida atrapalhada,
sabe? Ele não tem mulher, é custoso pra ele. É pesado. Ele trabalha muito, né? Mas dá conta de tudo
quanto há! O menino é bem zelado. É.
P: Há quanto tempo a senhora está aqui no abrigo?
R: Tem cinco ano.
P: Qual foi o motivo da sua vinda para cá?
R: Uai!, eu... eu morava com o meu filho, mas a minha sobrinha, porque eu adoeci, me levou pra casa
dela, né? Eu tenho sobrinho aqui, né? E... e... ela deixou a minha casa fechada. Fiquei uns tempo na...
na casa da minha irmã na Santa Luzia e eu fui lá pra casa da minha sobrinha. Ela trabalhava fora e ela
não podia me olhar, né? Aí ela... ela soube que aqui era bom pra fazer fisioterapia. Depois ela me
trouxe pra cá. Com quinze dia ela me trouxe pra cá, pra fazer fisioterapia, né? E aí eu peguei a fazer
fisioterapia e melhorei, graças a Deus. Em vista do que eu vim pra cá eu estou boa, sabe? A minha
sobrinha trouxe eu pra cá e pronto, largou aí! E ficou custoso dela vir cá. Não vem cá fácil me ver.
Mas embora que ela trabalha, né? Mas assim mesmo, né?, sô! É sadia, né? Pode vir ver a gente, né? A
obrigação dela é vir cá me ver, não é? Mas ela quase não vem. Vêm as outras irmã dela, mas ela não
vem, não.
P: Então a senhora e o seu filho moravam juntos?
R: Ele morava comigo. A casa era minha. É. Aí depois eu fui e adoeci, né? E pegaram ele, tadinho,
puseram na rua! Isso é minha sobrinha, hein? Pôs ele na rua. Me... me levou pra casa dela e o menino
ficou pr`aqui, pr`ali, o menino que eu criava. O fio dele que eu criava. E... e... e... não, vou te contar!
Não posso nem lembrar disso.
P: Por que a senhora acha que a sua sobrinha agiu assim?
R: Uai!, não sei! Não sei por quê que ela fez isso, não! Jogou ele na rua! Nesse tempo eu estava fora
de si, eu não sabia. Eu estava... estava ruim demais por conta do derrame.
P: Como é para a senhora morar aqui?
225
R: Hoje eu acho bão, graças a Deus. O povo é muito pra... É muito bão. Aqui tem muita fartura, a
gente come bem, não farta nada pra gente. Mas se eu pudesse escolher, ah!, eu ia... ia pra casa do meu
filho! Mas ele não pode me levar, né? Eu ainda tenho intenção de ir pra casa do filho. Se a hora que eu
puder, ele... ele mudar da chácara. É lá... lá perto da... no Distrito de Martinésia que ele mora, né? É
longe pra... pra ele vir cá. Ele vem me ver de quinze em quinze dia porque ele trabalha. Sábado é forga
dele. No outro sábado ele trabalha. Mas não pode vir... vir... vir cá todo dia, né? O ruim é isso que eu
acho. Ele é muito bom pra mim, né? Mas cuida do ser... do menino dele. Cuida do serviço, né? Não
tem tempo, né? É muito bom. Ah!, é muito bo... É muito boa, sô! Mas... aqui é... é... Eu tenho muito
desgosto daqui. Sabe por quê que é? Porque é muita gente falso, muita gente defeituoso. É perigoso
demais da conta! A gente não pode falar nada que eles grita com a gente.
P: A senhora está falando de quem?
R: Do povo que é internado aqui. Os que trabalha aqui, não, é muito bom! Os enfermeiro é bom
demais! Os que vem pra cá, Deus me livre! Aquela que está ali, oh!, de blusa vermeia, ela me pegou
uma vez e me unhou tudo assim, oh!, sem eu falar nada. Ainda é ruim de natureza, precisa ver! Eu não
gosto dela, não! Ah vai!... vai falar as coisa! Ah!, você não é nada meu, você não me conhece! Eu não
sou nada sua! Uai!, não é nada minha, o quê que eu vou falar? Conversar com ela pra quê, né? Largo
pra lá. Agora as outra, não! As outra é muito boa. As enfermeira é boa demais! Mas as daqui, tem
umas aqui que não vai, não! É tudo doido.
P: E a sua casa hoje?
R: Eu levei meus trem de lá pra minha... minha irmã. Morreu ela e o meu cunhado. Agora os meus
trem lá, eu não sei o quê que foi feito dos meus trem. Sim, senhora! De certo ele... todo mundo
opiniou. E certamente... “– Não fui eu que pus e os trem da mamãe eu não vou mexer, né?”. E acabou
com tudo... Não... não tem mais nada. A casa... aquela casa era alugada. Era alugada, né? Ela tirou os
meus trem e deixou ele na rua com o menino dele. Ela fez isso comigo, sabe? Eu tenho uma dó dele!
Mas hoje não farta nada pra ele. É. Deus é muito bão, né? Ela vem cá de vez em quando me ver. Ih!,
oh!, tem tempo que ela não vem cá! É. Mas está muito bão. Hoje nada falta pra ele. Ele mora numa
chácara pra lá... perto de Martinésia. Está muito bem. Ele... ele cuida do menino, ele mesmo conzinha,
lava a roupinha dele. O dia que ele não... Sábado passado ele não veio, não, porque ele esteve, ele
esteve... ele trabalhava, né? Agora sábado que vem ele tem a forga dele, ele vem cá me ver mais o
rapazinho dele. Ele já está um moção o filho dele. Tem vinte ano o menino dele.
P: Como é o seu relacionamento com as pessoas que estão aqui?
R: Dá certo. Aquela lá, oh!, nós... nós era vizinha de quarto, né? Agora, foi, ela me passou pra cá. E a
outra que eu estava... que estava lá comigo, veio pra cá. E eu que estou... que estou pra cá no quarto da
D. Doca. Eu não tenho nada que queixar da minha companheira de quarto. Mas os outro... é um povo
tudo esquisito. Sei não! A gente tem uma natureza e o outro tem outro, né? Eu sou calada. Não gosto
de estar conversando. Não compensa, né? Não compensa conversar, não! Mas o tratamento aqui é
muito bão. Eu tenho uma... Eu faço fisioterapia. Tem a doutora que vem de segunda a sexta. Ela faz
fisioterapia nesse povão tudo aqui. É muito boa a médica. Eu não tenho nada que queixar daqui, não!
São muito bom. Muito bom! Eu não tenho nada que dizer daqui, não!
P: A senhora chegou a trabalhar fora de casa?
R: Eu trabalhei quatorze ano de doméstica com uma mulher. Eu ajudei ela a criar os filho dela, um
casal. Depois eles foram pra minha casa, porque eles ficou tudo embutido na minha casa. Mas todo...
todo dia eu ia, sim! Só no sábado eu não trabalhava, eu ficava em casa, né? Mas a semana inteira pra
ela. Pois é. Quatorze ano eu trabalhei de doméstica, né? Eu olhava os menino dela. É. Ela trabalhava
no Centro de Saúde, e eu ficava em casa e eu olhava os menino dela. Um casal de filho que ela tinha.
Por isso eu recebo aposentadoria. Mas vai prá pagar luz. Pagar luz e água. Uma coisa que, né?, a não
ser que nós ajuda a pagar, como é que faz, né? Mas sei que eu sou aposentada, mas agora eu não sei. A
226
mulher pega o dinheiro, nós não vê um puto. É desse jeito. Nós quer uma coisa, encomenda. Eles
compra, mas nós não vê dinheiro. É desse jeito! Agora foi pra trezentos o meu salário. O meu décimo
terceiro esse ano eu não vi um tostão! Quando o meu menino recebia pra mim eu pegava tudo. Agora
ele não pega mais pra mim. Quem recebe de nós tudo aqui é eles. É desse jeito!
P: Como foi trabalhar nessa casa durante esses quatorze anos?
R: Uai!, foi muito bom. Eu gosto demais dela. Ela gosta demais de mim. Eu... eu não tenho nada que
queixar dela. Muito boa, sabe? Até hoje ela vem cá me ver. Tem uma menina que gosta demais de
mim! O menino não vem aqui, não! Ele não gosta de hospital. Mas a... a menina dela vem. Ele é bom
demais! Ela é muito boa. O marido dela. Os filhos dela é bom pra mim.
P: A senhora faz alguma atividade aqui dentro?
R: Nós... nós... nós faz desenho que eu... os outros tudo... Aqui eu faço desenho. Eu faço muito bem
desenho. O que elas riscar pra mim eu faço. Muita coisa. Trem difícil, trem bom. Mas é tudo bão! Os
desenho é bonito. É. Tirando dos desenho mais nada eu não faço porque eu não... não posso firmar
com as vista. É porque eu não agüento, né?, fazer, né?, por causa da mão, né? Eu faço só com uma
mão, né? Ai, ai! Como eu te falei, eu era sadia. Foi. Eu trabalhei quatorze ano na casa, né?, da mulher,
ajudando a cuidar dos filho dela, cozinhando pra ela. E ela trabalhava no Centro de Saúde, né?
Deixava a casa por minha conta, dos filhos dela, né? Eu era boa de saúde. É. A coisa quando tem de
acontecer, acontece, né? Mas quando me deu derrame eu já não trabalhava pra ela mais não. Faz...
fazia tempo que eu tinha deixado ela.
P: Como é? [Ela disse algo que não foi possível ao pesquisador entender.]
R: Quando eu trabalhei... Quando me deu derrame eu já tinha... já fazia tempo que eu já tinha ido pra
minha casa, não trabalhava pra ela mais não. Eu aposentei e aí eu trabalhava só em casa. Aí eu olhava
o meu neto, né? Tinha uma vidinha boa! (Risos.) Mas é. Deus quis assim, né? A gente trabalha uns
tempo, depois adoece, né? Não sabe se vai viver, se vai morrer, se vai... o quê que vai acontecer. Eu
vou ficando aqui até Deus quiser. Se eu vou ficar ou não, está só nas mãos de Deus. (Pausa.) O dia que
o meu filho puder me levar, bem! O dia que ele não puder, fica, né? Mas não por ele, porque, tadinho,
ele tem vontade de me levar pra lá! Mas não pode, né? Enquanto ele estiver morando na chácara não
tem jeito também não. A hora que ele vir pra cidade, aí é bom, né? Que aí já tem... ele pode me levar
no... no recurso se for preciso, né? Aqui não falta nada. Tem médico, tem tudo, né?, no jeito. Tem a
doutora aí que faz a fisioterapia, né?, de segunda a sexta. O tratamento aqui é bão demais! (Pausa.)
(Ela aponta para idosos próximos que se encontram no pátio do abrigo.) Ele não come sozinho aquele
ali, oh! Tudo ele depende. Ele é bruto! Nervoso que só vendo! Aquela ali, ela... ela não conversa. Eu
não sei o quê que ela tem. O filho dela diz que bebe demais! Tem setenta ano, sessenta ano o filho
dela, e ela está aí. De certo que foi descuido do filho, né? Ela está aí: não conversa, não alimenta pela
sonda. Tadinha, é só daquele jeito lá, oh! Aqui tem gente de todo jeito, sabe? Só você vendo que
tristeza! É. Não falta nada!
P: A senhora faz algum plano para daqui adiante?
R: Vou ficando aqui até esperar o meu fio; até ele melhorar de situação, porque ele ganha mais do que
eu e o filho dele. Porque o filho dele é aposentado e eu, né?, mas ele não pode me olhar. Eu vou
ficando aqui, né?, até Deus quiser. (Risos.) Eu não sei. Eu falo que às vez eu posso ir pra casa do meu
filho, às vez eu posso morrer aqui, né? (Risos.) Ele só farta poder me zelar. Mas... mas ele... O menino
trabalha muito, mas dá conta direitinho. Zela bem do filho dele. Zela mió do que eu. (Risos.) Ele tem
um ciúme do fio dele que péla! (Risos.) Ah!, um menino doente também! O povo judiar dele pra quê,
né? É... No mais está tudo bem! Está tudo certo, graças a Deus! O que me... o que me amola mais é as
vista que não presta. Minha vista, nossa! De manhã é pior. Eu vou no sol assim e não agüento ficar no
sol. Enquanto não operar não tem jeito de melhorar. Mas não é sobre o derrame, não. O derrame que
deu, eu não sofro dor nenhuma, graças a Deus! Só a perna que é boba, mais o braço. Eu sou sadia até,
227
sabe? Graças a Deus. Tirando das vista, mais nada eu não sofro pela idade que eu tenho, né? (Risos.)
É. (Pausa).
P: A senhora gostaria de falar mais alguma coisa?
R: Não. É só isso então. Está bom, né? Já falei muito. Ai, ai! Eu falei que está tudo certo, né? (Pausa.)
Está tudo certo, né? Aqui, oh!, mais bobo é a perna. Eu... eu... eu... pra mim sentar na cama... pra me
dar banho eu ajudo a sentar na cama. Eu ajudo vestir roupa.
228
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