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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Berenice W. Pompilio
AMAPÁ: Viagem como metáfora
Cultura e Memórias
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANTROPOLOGIA
SÃO PAULO
Março/2009
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Berenice W. Pompilio
AMAPÁ: Viagem como metáfora
Cultura e Memórias
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS – ANTROPOLOGIA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em Ciências
Sociais, na área de concentração
Antropologia, sob a orientação da Profª.
Drª. Terezinha Bernardo.
SÃO PAULO
Março/2009
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Banca Examinadora
____________________________________
____________________________________
____________________________________
____________________________________
____________________________________
Este trabalho é dedicado ao povo do Amapá,
representado em cada informante que nos recebeu,
ouviu, alimentou e ajudou.
Com especial carinho, aos povos remanescentes de
quilombos de Campos do Laguinho, Coração, Curiaú
e Mazagão, e às demais comunidades que não
puderam ser visitadas, mas foram aqui mencionadas.
AGRADECIMENTOS
A Deus, que é real e vivo em minha vida.
À Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelo apoio aos seus docentes,
proporcionando bolsas de capacitação na própria instituição, e pelo empenho em ser
um espaço de conhecimento e de produção científica motivadora.
Ao Programa de Pós-Graduação de Ciências Sociais, pela visão de excelência na
observação e aceitação de pesquisas de outras áreas de conhecimento afins,
objetivando muito mais a consonância com a diversidade humana e suas
necessidades do que com regras burocráticas arraigadas.
A muitas pessoas que contribuíram de diferentes formas e em diferentes estágios
deste trabalho. Externo, aqui, a minha gratidão, reforçada pela alegria de terminar
mais essa etapa de meu percurso profissional com o apoio de cada uma delas.
Especialmente, à Professora Doutora Terezinha Bernardo, pela aceitação inicial do
projeto e por sua orientação da pesquisa.
Ao Departamento de Francês da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pela
ajuda infinita em todos os momentos em que só se conta com um colega de trabalho
dedicado e humano.
Ao Professor Doutor Marcos Reigota, pela confiança em mim depositada ao sugerir
o Amapá como espaço de pesquisa.
Ao Dr. Rafael Tassinari, por ser um profissional sensível e competente, que me
colocou de pé para chegar até aqui.
À Ana Carmem Del Collado, por me salvar de mim mesma e acreditar na minha
superação.
À Solange Rafael, minha irmã, pela generosidade e cuidado, e por estar sempre ao
meu lado neste percurso.
Aos meus pais, pelo afeto tão necessário neste processo.
A Adriano Rosa Casanova, pelo companheirismo e criatividade na captação das
imagens.
À Ângela Di Sessa, pelos diálogos oportunos e indispensáveis em tantas
oportunidades, e pelo trabalho na produção das imagens.
À Ana Paula Amaral Craveiro, pelo cuidado e profissionalismo impecáveis na revisão
deste trabalho.
Ao Capitão Adroaldo Penna e sua família, pela amizade e guarida carinhosa.
Aos encantos mitológicos que um dia orientaram meus passos.
Ao povo do Amapá e a cada um daqueles que ajudaram a construir esta tese.
AMA PA – Lugar da chuva.
Palavra tupi que nomeou as terras ao norte do Brasil.
“Viagens são sempre experiências de estranhamento.
Viajar é empreitar o tempo.”
(SÉRGIO CARDOSO)
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo fazer uma incursão no cotidiano dos
habitantes do Amapá, especialmente junto aos remanescentes de quilombos e
comunidades ribeirinhas do arquipélago do Bailique. A partir de uma pesquisa
etnográfica desenvolvida desde 2004, este trabalho foi inspirado, principalmente,
nas ideias de Maurice Halbwachs, Ecléa Bosi e Pierre Nora, sobre memória coletiva
e suas particularidades, de mãos dadas com a memória histórica e da vivência local.
Configuraram-se, ainda, como teorias complementares, relacionadas à memória
discursiva, as que tratam do silêncio, além das ideias sobre os ruídos da memória,
encontradas no discurso de Barthes. Trazendo, inicialmente, uma visão geral do
Amapá, com seu histórico e manifestações culturais, o estudo apresenta, logo em
seguida, uma espécie de diário da viagem, narrando desde os preparativos para a
mesma até as entrevistas realizadas no local, além dos paramentos teóricos e
metodológicos para a sua realização. As informações do corpus, posteriormente
analisadas, orientam a discussão da memória coletiva e de seu importante papel na
formação cultural entre a articulação do real e do vivido com as lembranças frutos de
abstrações produtivas de um discurso que cria significados e transfere
conhecimento. Encaminhando as análises do corpus para considerações sobre a
oportunidade de recolher algo entre os habitantes, como suas lembranças, é
estabelecido um lugar que merece aprofundamento de pesquisas sobre o direito de
propriedade imaterial, a terra, os gestos, os objetos, os cantos e o discurso. A
riqueza imaterial revelada na análise conduz, ainda, para um testemunho de
resistência das uniões de remanescentes de quilombos, hoje na quinta geração, que
permanecem vivos nos seus habitantes, delineando espaços, lembrando direitos,
agendando mudanças, reeditando festas e danças, sem perder de vista o passado
que os conservou e o meio que os cerca.
Palavras-chave: Amapá. Arquipélago do Bailique. Remanescentes de quilombos.
Memória coletiva. Memória imaterial.
RESUMÉ
Cette recherche a le but de faire une incursion dans le quotidien des habitants du
Amapá; surtout auprès des anciens habitants des “quilombos” et des communautés
des marges des rivières et de l’archipel du Bailique. A partir d’une recherche
ethnographique developée en 2004, le travail a prit son instigation surtout aux
environs des idées de Maurice Halbwachs, Pierre Nora entre autres qui ont parlé de
la mémoire colective et leurs particularités, toujours avec la mémoire historique et de
la vie local. Il y en a aussi, dans la recherche, des configurations des théories
complémentaires relacionnées à la mémoire discursive du point de vue du langage à
partir des idées envers le silence du discours, chez Roland Barthes. On travaille
d’abord, une vision général de l’histoire et leurs manifestations culturelles. L’étude
présente ensuite, un rapport de voyage, qui racconte les arrangements jusqu’aux
enterwies réalisées in loco et en plus les paramètres thèoriques, méthodologiques et
ses réalisations. Les informations du corpus, ont été discutées ultérieurment, en
organisant comme ça l’orientation de la discution de la mémoire colective et son rôle
important dans la formation culturelle entre l’articulation du réel et du vécu
embriquées avec les souvenirs, fruits des abstrations productives d’un discours qui
crée des significations et transfere le savoir. En conduisant les analyses du corpus
pour des considérations entre les habitants avec leurs souvenirs, on a établie un lieu
qui rite des aprofondissements du droit de proprieté imatériel, la terre, les gestes,
les objets, les chants, et le discours lui même. La richesse imatériel revelée dans
l’analyse, conduit encore vers un témoignage de résistance des unions des anciens
habitants des “quilombos” qui ont produit des changements, en faisant la réedition
des fêtes, des dances, sans jamais perdre de vue le passé qui les a conservé et le
milieu qui les entourne.
Mots clés: Amapá. Archipel du Bailique. Anciens habitants des “quilombos”. Mémoire
collective. Mémoire imatériel.
ABSTRACT
This study aims to make an incursion in the daily lives of the inhabitants of the
Amapá, especially with the remnants of “quilombos” and riverside communities of the
archipelago of Bailique. From an ethnographic research carried out since 2004, this
work was inspired, mainly, on the ideas of Maurice Halbwachs, Pierre Nora and
Ecléa Bosi, about collective memory and its peculiarities, hand in hand with the
historical memory and local experience. As additional theories related to discursive
memory, were used the thoughts about the silence of memory and the ideas of
Barthes about the noise of the memory found in speech. Bringing initially an overview
of Amapá, with its historical and cultural events, the study shows a kind of diary of the
journey, narrating from the preparations for the interviews beyond the theoretical
canonicals of methodology for its implementation. Information from the corpus, then
analyzed, guided the discussion of collective memory and its role in shaping the
cultural link between the real with the memories of abstractions fruit production of a
speech that creates meaning and transfers knowledge. Guided the analysis of the
corpus to considerations about the opportunity to collect something from the people
and their memories, it establishes a place that deserves further research on the
intangible right of property, land, gestures, objects, singing and speech. The analysis
revealed in intangible wealth leads, indeed, a testimony of strength of associations of
remnants of “quilombos”, at present in the fifth generation, which remain alive
outlining areas, reminding rights, scheduling changes, reprinted parties and dances,
without losing of the sight the past that preserved them and the way that encloses
them.
Keywords: Amapá. Archipelago of Bailique. Remnants of “quilombos”. Collective
memory. Immaterial memory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 12
1 AMAPÁ: UMA VISÃO GERAL ............................................................................. 23
1.1 Histórico ........................................................................................................ 23
1.1.1 Mazagan do Marrocos – Mazagão no Brasil ......................................... 36
1.1.2 Do Forte de São José de Macapá .......................................................... 43
1.2 Elementos culturais ...................................................................................... 47
1.2.1 O Batuque e o Marabaixo........................................................................ 50
2 DIÁRIO DE VIAGEM ............................................................................................ 61
2.1 A motivação e os preparativos para a viagem ........................................... 61
2.2 Um fato novo para a viagem ........................................................................ 64
2.3 A reviravolta no percurso ............................................................................ 65
2.4 O embarque ................................................................................................... 69
2.5 O Bailique ...................................................................................................... 80
2.5.1 As ilhas visitadas .................................................................................... 87
2.6 A volta para Macapá ................................................................................... 102
2.7 O I Fórum de Cultura do Amapá ................................................................ 107
2.8 O X Encontro de Tambores ........................................................................ 117
2.9 Outras manifestações culturais presenciadas ......................................... 132
2.9.1 Limpeza espiritual do local do Encontro ............................................ 132
2.9.2 Visita à casa de Candomblé do Babalorixá Cláudio de Oxossi ........ 133
2.9.3 Ritual de iniciação no Candomblé........................................................ 135
2.9.4 A criação dos ladrões de Marabaixo ................................................... 138
2.9.5 A confecção dos instrumentos no Curiaú .......................................... 143
2.9.6 A Feira da Farinha ................................................................................. 145
3 MEMÓRIA – ANÁLISE DAS LEMBRANÇAS DOS AMAPAENSES ................ 148
3.1 Discussão teórica ....................................................................................... 148
3.2 Análise do corpus – Entrevistas ............................................................... 176
3.2.1 Categoria: Vida e espaço ..................................................................... 176
3.2.2 Categoria: Religiosidade e cultura do Marabaixo .............................. 204
CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................. 236
REFERÊNCIAS...................................................................................................... 246
ANEXO A – Transcrição das entrevistas............................................................ 254
ANEXO B – Folheto da Missa dos Quilombos/2004.......................................... 430
12
INTRODUÇÃO
A opção por estudar a memória dos habitantes do Amapá, especificamente
dos remanescentes de quilombos e de comunidades ribeirinhas do arquipélago do
Bailique, tem uma justificativa histórica, social e antropológica.
Histórica, pelo fato de a organização urbana de Macapá ter se revelado de
extremo interesse para as pesquisas de raízes africanas, pois foi a partir de lutas e
fugas de escravos, em uma dificílima colonização, para não falar em desastre
colonial, que os quilombos se formaram, tecendo ligações com uma ancestralidade
fundamental para a construção dessa memória. Certamente conhecido, mas pouco
trabalhado enquanto pesquisa acadêmica, esse fato conquistou o espaço inédito
necessário para ser palco desta tese.
Social e antropológica, visto que faz parte da formação da sociedade
brasileira, malgrado a distância de Macapá dos grandes centros, aonde seus
habitantes pouco chegaram ou penetraram. No entanto, ocuparam um espaço,
construindo sua história através de uma memória coletiva que avança no passado
sem deixar de viver e confirmar, no presente, os tempos vividos no coletivo, onde
tudo se entrelaça.
Em um espaço com mais de 70% (setenta por cento) de sua área constituída
de Floresta Amazônica, o Amapá teve a grata felicidade de poder nela abrigar-se, e
ali permitir o desenvolvimento e a manutenção de inúmeras comunidades de
fugitivos das ordens da Corte lusitana.
Não se tratam de escravos apenas, mas de índios e brancos europeus que
fizeram suas rotas de sobrevivência na região. Hoje, ainda, o Amapá possui grande
parte de seu território preservado, desenvolvendo projetos bem-sucedidos de
manejo adequado dos espaços da floresta.
A concepção de vida e desenvolvimento sustentável da floresta, em meio a
comunidades remanescentes de quilombos, e a preocupação com descendentes de
etnias indígenas, ribeirinhos, e toda a mestiçagem presente no Amapá,
desenvolveram a trama humana do local, em que a mobilidade espacial
desenvolvida se relacionou com a mobilidade afetiva, que George Simmel (1908)
identificou como o reino dos sonhos, afetos, imagens, impressões, intuições,
13
crendices, para o qual os discursos silenciosos, os olhares e as hesitações conferem
uma autenticidade antropológica incontestável.
Os depoimentos transcritos neste trabalho levaram-me a um Amapá
concebido por seus habitantes, e é a partir dessas visões que se contam essas
memórias, que se constroem para formar um futuro e não apenas para restaurar o
passado.
Foi um mergulho produtivo que fez com que muitas visões, pensamentos e,
até mesmo, ações sobre determinados fatos ocorridos durante a pesquisa
causassem transformações profundas em meu modo de pensar, perceber e agir.
Essa mudança fora prevista pelo Professor Reigota
1
, profundo conhecedor do
Amapá, que me disse, citando Merleau Ponty (1945), que esse tempo de lembrança
não é exatamente o tempo do passado, mas sim, o futuro do passado.
Nada mais adequado do que essa reflexão, pois o Amapá se reinventa desde
que começa a contar suas lembranças, e ressurge, ao final das interpretações dos
dados das entrevistas, novamente como um espaço de luta, mas, hoje, a batalha é
apoiada pela defesa constante de que as raízes culturais, sociais, religiosas e
antropológicas estão na pele de nosso povo remanescente de escravos africanos.
O chamado para esta pesquisa configurou-se em 2004, após um
planejamento intenso, quando então montei minha expedição ao Amapá em busca
de uma visão que pudesse aproximar Linguagem e Antropologia.
É importante nomear, aqui, o projeto que deu início a esta tese. O objeto
sempre foi o Amapá, mas sob o viés linguístico apoiado na memória antropológica
da linguagem, a alteridade do discurso de fronteira.
Este projeto iria mapear particularidades sociolinguísticas da região de
fronteira do Amapá e da Guiana, compreendendo o limite do Rio Oiapoque e sua
fronteira terrestre com a cidade de Clevelândia do Norte, onde as águas do mesmo
rio impõem seus limites no extremo norte do estado do Amapá e sua saída para o
Atlântico.
Pretendia-se tratar do créole, ou creolo, língua falada na Guiana a partir da
colonização francesa. O créole é falado pelos habilitantes da Guiana, além do
1
O Professor Doutor Marco Antonio Reigota é docente da Universidade Uniso de Sorocaba.
Pensador das questões ambientalistas desde os anos 80, desenvolveu reflexões que o levaram à
cadeira de Pacifismo da Universidade de Tóquio, única a manter tal cátedra no mundo acadêmico.
Foi conselheiro ambiental do ex-governador João Capiberibe, no Amapá.
14
francês, e por brasileiros na fronteira do Amapá-Calçoene com o Rio Oiapoque, fato
que gerou uma hipótese de que haveria interesse linguístico de cruzamentos que
pudessem sustentar uma pesquisa antropológica na região, assim como as
possíveis convivências linguísticas com o português. Tal hipótese, se confirmada,
geraria uma pesquisa produtiva e inédita.
A língua e a cultura apareceram em função de um desejo acadêmico de
enveredar no doutorado pela Antropologia, sem perder o contato com a Linguística,
na qual se baseia minha formação, e contatar as pesquisas sobre memória afro no
Brasil, desenvolvidas pela Professora Doutora Terezinha Bernardo.
Brevemente, cabe uma explicação: a ngua falada na época da colonização
era uma versão do francês atual, que se modificou com o tempo, mas guardou
resquícios desse francês arcaico falado nas colônias misturado a línguas africanas
faladas pelos escravos trazidos para a região pelos franceses.
Historicamente, as lutas de fronteiras e as constantes invasões francesas
teriam deixado traços. A língua deixada por eles na Guiana foi, então, um francês
falado por escravos e por algumas poucas etnias indígenas que não fugiram da
escravidão como muitas outras que atravessaram o rio em direção à floresta, no
território do Amapá, para se livrarem da colonização francesa.
Foi da resistência de grupos indígenas e remanescentes de escravos que a
ideia para esta tese se alimentou. Por acreditar na colocação de Mauss (2001)
2
, de
que a língua não é mero instrumento de comunicação, mas traduz o caráter de um
povo, acreditei poder ser possível desenvolver um bom trabalho.
Contudo, a almejada pesquisa da relação entre Linguagem e Antropologia se
revelou infértil no local. Rompeu-se esse primeiro projeto e seguiu-se o relato de
viagem que ora apresento como resultado capaz de trazer, para o espaço
acadêmico, informações preciosas de dezenas de comunidades remanescentes de
quilombos, além da memória relatada da cultura do Amapá.
O trajeto da pesquisa encontrou um Amapá que expôs um corpo social
profundo e uma alma enraizada na mestiçagem indígena e africana, apresentando
suas raízes e razões através da reconstrução das imagens coletadas e dos
2
Marcel Mauss trata dos caminhos da sociedade, entendendo a forma dialógica de comunicação
como própria ao entendimento humano, talvez antes de Bakthin ter sido entronizado na mesma área
da Antropologia e Linguagem, com linhas de encontro do humano na sociedade.
15
depoimentos colhidos, espontâneos ou vividos em uma experiência pessoal ou de
trabalho.
Para além disso, esta tese espera abrir um espaço de reflexão sobre o
Amapá, como produtor de cultura afrodescendente e de resistência nas questões do
negro descendente de africanos escravizados nas terras do norte do país, pois nos
faltam elementos sobre fatos da escravidão e da inserção dos negros na sociedade,
bem como de sua evolução sociocultural, especialmente no Amapá.
“Amapá: Viagem como metáfora. Cultura e Memórias” tem a intenção de
trabalhar com o ineditismo de imagens e a riqueza dos remanescentes de
quilombos, suas atividades, seus espaços, assim como a presença ribeirinha nas
comunidades do Bailique, arquipélago paradisíaco ao norte do Amapá, no qual a
população remanescente de coletores da floresta faz contraponto com a população
urbana remanescente de quilombos, formando um dos espaços urbanos nacionais
que guarda e reedita manifestações culturais que continuam a unir, até hoje,
diferentes grupos, como se dá no Encontro de Tambores.
Esta tese se apresenta, então, como uma “memória do Amapá”, uma coleta
de memórias de habitantes da região amapaense, com ênfase na população urbana
e periférica de Macapá, e nos habitantes do arquipélago do Bailique.
Para melhor compreensão, o trabalho está dividido em três capítulos. No
primeiro, traremos uma visão geral do Amapá, com um breve histórico e a exposição
de algumas de suas manifestações culturais, como o Marabaixo e o Batuque. O
segundo capítulo figura como um diário de viagem, narrando tudo o que nos
acometeu em nosso percurso, desde os preparativos para a nossa expedição. No
terceiro e último capítulo, faremos as análises do corpus.
Com base nas considerações teóricas de Halbwachs a respeito da
constituição de uma memória coletiva e pessoal, além das ideias de outros teóricos
importantes na área, como Ecléa Bosi e Pierre Nora, fui levada ao estudo dos
acontecimentos humanos do local, em suas coisas mais simples, tais como os
habitantes se apresentam na vida real, no decurso das múltiplas lembranças
relatadas, onde as projeções utópicas e as construções arbitrárias se defrontaram
com os papéis reais e imaginários. Enfim, pude viver a teoria na prática, operando
sim para falar, aqui, de um futuro do passado do Amapá.
Além dos relatos, a utilização das imagens como dado de suporte foi
necessária e desejável, pois apenas os textos não dariam conta da extraordinária
16
riqueza de detalhes, dos olhares, dos sorrisos e dos longos silêncios que
pontilharam as entrevistas, aparecendo como elemento fundamental do quadro de
memória do povo do Amapá. Trata-se do silêncio construtor do lembrar, que está
apoiado na análise teórica de Paul Zumthor (2000), sobre a poética do silêncio, e de
Eni Orlandi (1992), sobre movimento dos sentidos e formas do silêncio.
Os silêncios dos informantes nos levaram a um recurso de retomada de suas
falas em um tom de voz sempre muito baixo, para não perdermos o fio silencioso da
memória que nos apresentavam. Tal ação se repetia sempre que o informante
apresentava lacunas mais longas em seu discurso, ou alguma dificuldade em se
expressar no silêncio eloquente. Foram sempre colocações não invasivas e sem
julgamento de valor do que fora dito.
Cada silenciar individual chamava a atenção do grupo de informantes, que se
entreolhava e ia dando explicações com os significados eloquentes das mãos, dos
olhares entre os pares, das risadas cúmplices. Sentíamos que a lembrança se fazia
memória e os relatos buscavam as razões coletivas para as derrotas individuais.
O indivíduo é um ser social, mas nunca devemos esquecer que é um ser
social individual, com uma biografia que não é idêntica à de ninguém mais.
Trata-se de alguém a quem “é preciso prestar atenção”. [...] Se existe um
“mim” que incorpora a atitude de algum grupo em algum nível de
generalidade, também um “eu” que preserva uma liberdade potencial de
reagir ao “outro generalizado” (SAHLINS, 2004, p. 309).
O discurso marcado pelo silêncio faz pensar em marcas culturais mais
ancestrais de cruzamentos com etnias e colonos, assim como escravos, onde
sabemos que o silêncio representa, em termos de comunicação, um espaço
discursivo em que os falantes poderiam estar em busca da palavra mais adequada
ao seu relato, ou, simplesmente, estar recusando a informação, ou calando em si a
dor ou a busca de um fato em suas lembranças, mas também simboliza a revelação
de contaminações de linguagem e postura diante do discurso.
Segundo Pierre Nora (1997b, p. 1677), “a memória se enraíza no concreto, no
espaço, gesto, imagem e objeto”. Buscamos, então, observar o que de memória
apareceria em suas manifestações e, em seus diferentes depoimentos, as
semelhanças e a originalidade. O Marabaixo, manifestação cultural específica do
Amapá, apareceu, por exemplo, na fala dos informantes, no início, como dado
17
religioso diante das reuniões dos grupos para festejarem seus santos de devoção, e
depois, como espaço de lazer e encontros.
No dizer de Barthes (1984, p. 13), “La science se parle, la litterature s’écrit;
l’une est conduite par la voix, l’autre par la main; ce n’est pas le même corps”
3
.
Como tal explicação, o autor tenta definir essas duas áreas do conhecimento,
Ciência e Literatura, e, pelo que pudemos sentir, a própria vivência dos fatos.
Segundo Barthes, vive-se a memória.
Vale notar que o planejamento desta pesquisa foi realizado concomitante às
coletas de entrevistas e o armazenamento de dados. A meta traçada era a de
recolher o máximo de dados referentes à vida dos habitantes remanescentes de
quilombos em comunidades que abrigassem negros, reconhecidas ou não como
espaços remanescentes, que teriam, em suas lembranças e relatos, uma base da
formação sociocultural da memória do Amapá.
Consideramos, aqui, em primeira instância, as entrevistas realizadas no
arquipélago do Bailique, que serviram de piloto para os demais depoimentos
colhidos nas comunidades de Macapá e no Encontro de Tambores. Assim,
inicialmente, as coletas foram organizadas nas ilhas do arquipélago, com pessoas
em geral acima de 50 anos, que se dispuseram a falar de suas lembranças.
Nossa solicitação aos informantes era a de que lembrassem de como suas
vidas tinham se articulado nos locais onde habitavam, das particularidades do local e
das famílias, e do modo de organização do trabalho e do lazer, para podermos,
como isso, depreender o modo de organização de vida nos quilombos.
Com as entrevistas, procuramos colher o máximo de relatos, de maneira
informal, nos lugares de origem dos entrevistados, sempre que possível. Em uma
das oportunidades, em Macapá, as entrevistas se deram nos alojamentos
provisórios adequados pelo estado (para o Encontro de Tambores), onde os
habitantes das comunidades remanescentes ficaram acampados à espera do seu
dia de dançar Marabaixo.
Em viagens a outras comunidades, como o Mazagão Velho, pessoas se
dispuseram a falar de si e do que lhes vinha à memória quando o assunto era
lembrar de suas vidas. Buscamos, então, observar os relatos com os olhos focados
nos pressupostos halbwachianos, registrando o movimento de depoimentos que se
3
Texto original em francês. Em português: A ciência se fala, a literatura de escreve; uma é conduzida
pela voz, a outra pela mão; não se trata do mesmo corpo.
18
tornaram as falas dos informantes, onde o acontecimento real outrora vivido em
comum fazia referência sempre ao grupo com que viviam.
O vivido individual atestava a evolução e os aspectos do grupo. Pois, o que
seria do “eu” se não houvesse o “nós” da comunidade, do meio que o abrigou? “A
memória individual existe, mas ela está enraizada nos quadros diversos que a
simultaneidade ou a contingência reaproxima momentaneamente” (HALBWACHS,
2004, p. 14).
Seguimos ouvindo os depoimentos e os relatos na cidade de Macapá, nas
comunidades urbanas, nos terreiros de Candomblé, na igreja e em um ateliê de arte.
A organização das entrevistas obedeceu ao ritmo da viagem, sendo as
primeiras coletadas em decorrência das visitas realizadas no arquipélago, com os
habitantes da Vila Progresso, da Escola Bosque e da Vila Macedônia; e,
posteriormente, em Itamatatuba, Vila Paraíso e Parazinho. Nas demais ilhas
(Cordeiro, Buritizal, Fula dos Macacos e Ilha dos Pretos), apesar de termos nelas
aportado, não conseguimos encontrar pessoas dispostas a falar. O que nos pareceu
é que existe uma diferença sensível de urbanização entre as ilhas, e isso se faz
sentir no visual das casas, na ausência de infraestrutura e nos ancoradouros por
vezes desmoronando.
No Encontro de Tambores, os relatos fizeram o seguinte percurso entre as
comunidades: procurávamos o responsável pela comunidade e fazíamos a ele a
solicitação de conversar com os integrantes nos alojamentos. Escolhemos para as
entrevistas as comunidades cujas localizações eram distantes e de difícil acesso
entre si, como Abacate da Pedreira, Ambé, Carvão, Casa Grande, Cunani, Igarapé
do Lago, Lagoa dos Índios, Matapi, Maruanum, São Pedro dos Bois e Vila Nova.
As comunidades seguintes foram visitadas in loco, tendo sido o Curiaú
visitado por quatro vezes, o Mazagão, por duas vezes, e os Campos do Laguinho e
Coração, uma vez. No total, foram ouvidas quinze comunidades.
Participaram da coleta apenas a pesquisadora e o responsável pela captação
das imagens e som. As notas de campo e os diários foram utilizados em alguns
trechos transcritos para o corpo do trabalho definitivo, por representarem dados que
não haviam sido mencionados, mas que foram percebidos durante as entrevistas,
assim como reflexões sobre a avaliação dos dados.
Para a captação de som e imagem desses relatos foram utilizadas máquina
fotográfica e filmadora digitais, e microfones de sensibilidade adequados a
19
gravações externas. Os materiais coletados eram salvos em computadores que
estivessem disponíveis em lan houses ou em casas de amigos colaboradores que,
generosos, vinham até nós com máquinas portáteis para descarregarmos os
arquivos.
Mesmo com a alta tecnologia que utilizamos, tivemos alguns contratempos
com os equipamentos, como problemas com o vento em algumas de nossas
entrevistas, e, posteriormente, com uma espécie de fungo que destruiu parte dos
microfones, acabando por danificar alguns dos registros, que não puderam ser
utilizados. Contudo, tal perda de material fílmico e sonoro não prejudicou o resultado
final.
Os materiais coletados foram armazenados em CDs, sendo transcritos e
analisados, texto e imagem separadamente, para depois serem submetidos a
análises. A análise das entrevistas delineou o perfil da cultura local, e as imagens
nos permitiram um passeio estatístico quanto aos biótipos, grupos familiares,
número de filhos, atividades de subsistência, crenças, religiosidade, alimentação,
entre outras características da região.
O cronograma inicial de 60 dias foi cumprido, tendo sido atingida plenamente
a meta de coleta de corpus através das entrevistas, que captaram o perfil dos
habitantes e delinearam dados da memória e da cultura junto aos remanescentes de
quilombos. Tivemos a vantagem de poder conviver com habitantes do Bailique, que
nos hospedaram em Macapá e foram capazes de nos dar um contraponto da visão
dos ilhéus e da urbanidade.
O fato de não termos aplicado um questionário preestabelecido revelou-se
positivo, pois os informantes ficaram à vontade para falar sobre o que lhes era mais
emergente, onde se racionaliza o espírito, como coloca Halbwachs (2004, p. 19),
quando explica esse processo de lembrar:
Nos entrecruzamentos dos tempos sociais onde se situa a lembrança,
respondem os entrecruzamentos do espaço, quer se trate do espaço
endurecido e cristalizado, quer se trate de extensões reais nas quais os
grupos fixam, provisória ou definitivamente, os acontecimentos que
correspondem às suas relações mútuas com os outros grupos.
O nosso plano de coleta visava o conhecimento do universo observado,
através dos fatos e dados culturais mencionados. Pedíamos ao entrevistado para
que se identificasse com nome e comunidade a que pertencia, sugerindo que
20
falasse sobre como era a vida antigamente e como se lembrava disso. Por vezes, foi
necessária a intervenção, no sentido de socorrer o informante em alguma dificuldade
de vocabulário ou expressão de algum sentimento. Um recurso que funcionou bem
nos momentos de vacilo ou gaguejo, foi a repetição da última frase dita pelo
informante, em tom de pergunta. Isso, em geral, recuperava a fala anterior, fazendo-
o avançar. As entrevistas, no entanto, seguiram um caráter mais exploratório, com
algumas coletas de informações a partir de perguntas, quando o informante
apresentava timidez acentuada que o paralisava.
Foram realizadas 80 entrevistas, durante as quais deixávamos a filmadora
capturando imagens, com som direto, permitindo que o informante ficasse livre para
falar de sua vida no Amae nas terras remanescentes de quilombos. Sentimos ter
contribuído, naquele momento, para o lançamento da busca de lembranças no
grupo. E isso pode trazer à vida imagens apagadas, espaços destruídos pelos anos
e distâncias, não impedindo a construção de relatos do passado como atividade
temporal coletiva.
Aqueles mencionados silêncios a que nos acostumamos serviam para os
informantes refletirem e reagirem face aos relatos uns dos outros, lembrando
ausências de objetos e lugares, fatos e nomes. Essa constatação foi vivida nas
primeiras escutas no Bailique e o cessou de acontecer durante todo o tempo da
pesquisa de campo.
A história do Amapá foi construída sobre eixos silenciosos. As diferentes
formações com os diferentes sentidos se encontraram, ainda que paradoxais, em um
lugar conciliador, o do silêncio na memória discursiva de seu povo. As fugas em
surdina, silenciosas, têm bases antropológicas que ficarão claras nas análises dos
relatos, já que é, no silenciar, que o sujeito vai trabalhar a contradição do seu
coletivo, refletindo sempre o seu discurso no do outro.
Tal reflexo vem a ser o que Orlandi (1992) chama de discurso constitutivo, o
qual, para se dizer alguma coisa, é preciso não dizer nada. É preciso silenciar,
criando a possibilidade para o interlocutor de trabalhar essa contradição que o situa
na relação dele com o outro, que é, como ele, múltiplo. A sensação é a de que os
informantes recuam no tempo de suas falas e recuperam alguma coisa, um não dito
que apaga outra palavra, mas que se recupera na memória do relato.
“Quando eu me entendi”, o Amapá fazia parte de minhas ideias de
pesquisa. Esta frase “quando eu me entendi”, está relacionada com a forma de se
21
colocar dos meus informantes, ao contarem suas histórias e suas memórias em
todas as entrevistas.
Entender-se seria como quando dei por mim, ou quando eu cresci, ou ainda,
quando me casei, quando meu pai morreu, enfim, a ideia presente é a de que ao
entender-se, a pessoa entrava em relação com a realidade. Esse processo da frase
“quando eu me entendi” também se deu comigo, pois pude entrar neste universo
depois que me entendi com relação ao monumental espaço cultural em que me
encontrava e tentava registrar.
A sequência da análise foi realizada através da leitura e visualização das
imagens, tendo sempre como sustentação a teoria da memória coletiva de
Halbwachs (2004), além da interação com os dados que ambos, “informante e
pesquisador”, viveram e aprenderam a construir em uma dinâmica circular de
cooperação.
A hipótese inicial de que a memória do Amapá tem uma formação de base
semelhante aos demais espaços do país, em termos de remanescentes de
quilombos, esteve sempre beirando a suspeita de que a formação do povo do
Amapá, de sua cultura e de sua composição geográfica foi determinada, em muito,
pelo movimento contínuo e intenso de fugas e chegadas de negros escravos ao
delta do Rio Amazonas no Brasil colonial, onde o Amapá foi criado como uma utopia.
A memória, aqui, é importante, e tem estado oculta ou em repouso muito,
e seria relevante trazê-la a público, com fins de reconhecimento e visibilidade, em
um tempo em que a busca de nossa identidade africana torna-se fundamental.
Como foi formada? Em que bases? E como chegou a essa organização que
encontramos hoje?
Não foi por acaso, mas sim por razões insondáveis, que o curso deste
trabalho mudou sobre as águas do Amazonas. E foi assim que ocorreu; não apenas
no olhar, onde vimos paradoxos transformadores. O silêncio, tônica das entrevistas e
dos locais, foi importante nas questões de memória encontradas em grande
quantidade nos relatos, o que nos a dimensão do silêncio no ruminar da palavra
como sabedoria dos simples, dos pouco estudados, da cultura dita popular.
Pareceu-nos, enfim, uma epifania.
23
1 AMAPÁ: UMA VISÃO GERAL
1.1 Histórico
Começa em 1637 a colonização europeia do Amapá como Capitania do
Cabo Norte. [...] do Oiapoque ao Pau, passando pelo Jarí [...] no ano de
1758, Pombal e seu irmão M. Furtado, realmente fazem construir o forte
de Macapá sobre as ruínas do Cumaú; ergue-se Santo Antônio do
Macapá. [...] 1769, [...] para transferir, desde a África sua população de
cento e sessenta famílias negras mouras. [...] 1894, negros libertos,
Germano e Firmino Ribeiro Pinheiro (irmãos) e Clément Tomba
acharam ouro no Calçoene.
“O Governador do Estado, tendo em vista a deliberação pela qual o
Governo Federal o autoriza a tomar posse do território que se achava
em litígio entre o Brasil e a França, de acordo com a solução dada pelo
laudo do Conselho Federal Suíço, a cujo arbitramento havia sido
submetida a questão, em virtude de comum acordo dos países,
firmado no tratado de 20 de abril de 1897:
DECRETA:
Art. 1º. Fica incorporado ao Estado o território compreendido entre a
margem esquerda do rio Araguari e a direita do Oiapoque e demais
limites determinados pelo laudo de Berna”.
(JOSÉ SARNEY & PEDRO COSTA)
No século XVII, em 1680, colonizadores portugueses iniciaram sua fixação na
região amazônica, às margens da grande bacia de águas doces jamais vista pelos
europeus lusitanos no Novo Mundo. Era a Capitania do Cabo Norte, o Amapá.
Mas esse espaço estava isolado sem colonos e sem atividade local. A região
norte, que abriga a imensa bacia dos rios Amazonas, Jarí, Paru, Maiacaré e
Oiapoque, era, à época, um espaço despovoado de colonos portugueses, que
despertava a cobiça colonialista de franceses, ingleses, holandeses e espanhóis,
todos em busca de metais, madeira, entre outras riquezas naturais.
Terra pantanosa, entrecortada por rios menores e igarapés de difícil
navegação, dependia das marés para sua organização e vida. Tinha, no entanto,
saída para o Atlântico e fronteiras inexploradas com metais e pedras preciosas.
24
Entre os que chegaram, Yáñez Pinzón
4
esteve na foz do Rio Amazonas e
espantou-se com a dimensão: “[...] Água doce que estendia por cerca de cinquenta
léguas de largo e dezesseis léguas no caminho do mar, toldando o oceano
(SARNEY et al, 2003, p. 10). Ainda hoje, essa descrição do delta amazônico é o
cartão postal da cidade de Macapá.
O Amapá consta das cartografias mais antigas da Europa, que demonstram
as razões da importância do local e as imprecisões reais da fronteira do Rio
Amazonas sobre o estado. O Rio Amazonas, no Amapá, recebe o Rio Jarí, que vem
das alturas da Serra do Tumucumaque, onde, hoje, existem comunidades indígenas
e pequenas vilas de descendentes de escravos.
As dificuldades em terra e a força dos rios vitimaram muitos exploradores,
como Francisco Orelana, que morreu tragado pelas águas em busca de riquezas e,
segundo suspeitam Sarney et al (2003), tais desastres com os exploradores teriam
ocorrido na época das pororocas.
Anexado à Capitania do Grão-Pará e Maranhão, sem que dela se ocupasse o
governador do Pará, o Amapá era mais uma parte da imensa capitania sem atenção.
Expulsando os invasores, por muito tempo, o Amapá seguiu sendo a periferia da
Capitania do Grão-Pará e, até hoje, os registros históricos do estado estão nas
estantes oficiais de Belém.
A formação do Amapá surpreende pela ironia e beleza da constatação de que
muito de sua origem se deveu a fugas. Macapá vai viver, por séculos, um perfil de
ocupação humana irregular, do ponto de vista europeu, fortemente marcado pela
presença de etnias indígenas e exploradores ocasionais, em épocas diferentes.
Às margens da imensa bacia, encontravam-se centenas de nações indígenas
e, dentre elas, devemos destacar a nação Tucujus
5
, junto às margens do Rio Jarí,
4
Navegador espanhol, Vicente Yáñez Pinzón (1462-1514), em expedição ao Brasil, foi o primeiro a
cruzar a linha do Equador, por volta de 1508, quando encontrou o Rio (hoje) Oiapoque, nomeado por
ele com seu nome, nomeação que perdurou por vários séculos. Encontrou a foz do Amazonas,
nomeando-o de Rio Dulce, e seguiu para a Guiana na fronteira com o Brasil. Mais ao fundo do
Amapá, nomeia os Rios Paru e Maiacaré, onde se ergueu uma fortaleza, o Fortim de Pinzón,
posteriormente usada pelos franceses e conquistada pelos portugueses.
5
O povo Tucuju fazia parte das populações que ocupavam a região ao norte do país, sendo a
margem esquerda, hoje Macapá, povoada ainda por Tapuias, Aruaques, Caraíbas e Tupis-guaranis.
No entanto, são os Tucujus que seguiram ocupando espaços no norte, até a ocupação colonial,
quando se retiraram mais para dentro da floresta. Remanescentes Tucujus, em número muito
reduzido, entraram nas lutas internas, depois da colonização, como aliados contra as invasões
francesas no local, e são reconhecidos como aliados fundamentais nas guerras da região. Ainda hoje,
a palavra Tucuju tem significado especial na região, nomeando ruas e produtos.
25
estendendo seus domínios até a margem esquerda do Rio Amazonas e do Rio Paru.
Guerreiros em lutas constantes com outras nações, como Tapujuçus, Tapuiaçus,
Marigus Aruaques, Caraíbas e Tupis-guaranis, estes últimos vindos do litoral sul em
fuga da colonização, os Tucujus foram os primeiros a serem escravizados e ainda os
primeiros a fugirem para dentro da floresta.
Chegava-se ao local pela costa norte do Atlântico, entrando-se, pelos rios, em
uma terra fraturada que facilitava saídas marítimas para fugas, esconderijos,
armadilhas e lutas de guerrilha. Especula-se ser a Ilha dos Pretos, no Bailique,
resultado da saída pelo mar que escravos teriam tomado para chegar a o
arquipélago.
Em 1637, começou a colonização da Capitania do Cabo Norte e Grão-Pará,
por Bento Maciel Parentes. Dizia-se sobre esses limites em Portugal: “Pela banda do
Norte, as terras da Capitania do Cabo Norte, são elas só maiores que toda a
Espanha junta [...]. Relata um dos aventureiros que aqui esteve com Pinzón”
(SARNEY et al, 2003, p. 76).
As disputas pelas terras do lugar foram resolvidas, inicialmente, pelo Tratado
Provisional de 1688-1689, vetando o estabelecimento de colonização de Portugal e
França, sendo que os portugueses tinham levado para colonos e soldados que
ficaram aguardando a posse das terras dadas pela Coroa lusitana.
O Tratado foi desrespeitado pelos franceses, com regularidade espantosa, e
essa situação de fronteira se resolveu em 1713, na Holanda, com a chamada
Guerra do Contestado
6
.
em 1748, D. João declarou a região como sendo Província dos Tucujus”,
onde índios e escravos eram mais numerosos que os brancos, fato que, de resto, se
repete no local até hoje. A população considerada branca é reduzida face aos
descendentes de negros e índios.
A Coroa portuguesa entendia a necessidade de defender a região dos demais
europeus que ali chegavam pelo mar, tais como holandeses, espanhóis e,
principalmente, os franceses. Era preciso construir ali um forte, para defender a
região, por várias razões e, dentre elas, duas eram fundamentais: a primeira, as
6
A Guerra do Contestado foi uma luta jurídica e in loco, de Portugal e França, pelo território em que,
atualmente, está localizado o Amapá. Foi resolvida depois de 300 anos de lutas e discussões
diplomáticas, quando, na Corte Internacional de Haia, a Suíça arbitrou o ganho de causa para
Portugal, obrigando a França a abandonar o Contestado e a pagar indenizações à Coroa portuguesa
pela invasão sequenciada do território.
26
constantes invasões, e a segunda, a transferência da cidade de Mazagan, de
Marrocos, na África, para as terras do Amapá.
Havia a motivação, mas não havia um projeto que pudesse tomar corpo até
os idos de 1760. Em 1764, no delta do Rio Amazonas, por influência do Marquês de
Pombal
7
, ministro da Coroa Portuguesa (entre outros cargos de destaque), com
plenos poderes sobre os projetos da Coroa em todas as colônias, decidiu-se
construir o Forte de São José de Macapá ou Macaba (originalmente), em nome da
soberania colonial.
Essa fortaleza pode ser considerada o marco zero da organização do
povoamento da cidade. A bandeira do estado atesta essa ideia, trazendo, em seu
corpo, a figura geométrica do Forte, como se vê a seguir
8
:
Figura 01: Bandeira do estado do Amapá.
Fonte: BRASIL, 2009c.
7
Sebastião José Carvalho e Melo (1699-1782) nasceu em Leiria, Portugal. Figura controversa da
história de Portugal e do Brasil, ficou mais conhecido como Marquês de Pombal, depois de comprar o
seu título de nobreza. Reconhecido como um dos poucos iluministas da Corte lusitana, assumiu lugar
de destaque sob o reinado de D. José I. Despótico e com plenos poderes na Corte e fora dela, era
um estadista brilhante, de visão comercial apurada, tendo sido nomeado, em 1750, Secretário de
Negócios Estrangeiros. Logo, nomeou seu irmão, Francisco Xavier de Mendonça Furtado, governador
e Capitão Geral do Grão-Pará e Maranhão. Criou a Companhia Geral de Comércio do Grão-Pará e
Maranhão, e outra de Pernambuco e Paraíba. Visava mais a geração de riquezas para a metrópole e
menos o desenvolvimento das colônias, e angariou muitos desafetos por causa de sua forma de
administrar. Com a expulsão dos jesuítas do Brasil sob suas ordens, os índios que trabalhavam
voluntariamente fugiram ou dispersaram. Pombal teve que administrar a derrama das Minas Gerais,
e, por isso, abandonou as Companhias; perdeu poder, e interrompeu o comércio nas Capitanias
citadas, promovendo uma estagnação prolongada nas mesmas, incluindo o Amapá.
8
Segundo o Governo do Estado do Amapá, de acordo com o Decreto 008, de 23 de abril de 1984,
a bandeira do estado traz uma simbologia que procura identificar, de maneira figurativa, o passado do
povo amapaense, representada pela figura geométrica da Fortaleza de o José, motivo e origem da
evolução da cidade de Macapá. Escolhida por uma comissão designada pelo governador Anníbal
Barcellos (Decreto nº 4, de 30 de janeiro de 1984), a bandeira possui formato retangular e é
confeccionada a partir das cores azul, verde, amarelo e branco, constantes da bandeira nacional, e o
negro. O campo azul simboliza a justiça e o céu amapaense; o verde representa a área de floresta
nativa no estado, ainda preservada, simbolizando, também, a esperança, o futuro, o amor, a
liberdade e a abundância; o amarelo significa a união e as riquezas do subsolo; o branco lembra a
pureza e a paz, a vontade do estado do Amapá em viver com segurança e em comunhão com todos
os que nele vivem, significando, ainda, que a discórdia não pode ter guarida entre o Poder Público e a
população; e o negro representa o respeito permanente aos que tombaram no passado, em lutas ou
não, e que, em vida, fizeram algo de bom para o engrandecimento dessa região (BRASIL, 2009c).
27
Os planos e projetos para o Forte foram iniciados antes mesmo de a
população transladada de Marrocos chegar ao Amapá. Isso porque a desastrosa
logística de trazer para o Brasil a cidade de Mazagan, construída na África, ia
perdendo, na verdade, a razão de ser, visto que as Cruzadas já não tinham o
mesmo interesse na Europa, além dos altos custos das infindáveis batalhas com os
mouros.
O espaço onde se encontra o Forte de São José foi acessado pelas águas do
Rio Amazonas, tendo sido a fortaleza construída sobre o aterro do seu leito, pois
se encontrava terra firme a oeste e a leste do local.
Esse fato colocou a necessidade imediata de aterramento do lugar, para que
ali se erguesse uma plataforma seca, onde se pudesse construir a defesa das terras
para as quais as famílias que chegariam dos Açores, transladadas do Marrocos,
seriam enviadas para povoar área tão inóspita.
A ocupação não foi tranquila e as guerras com os Tucujus prolongaram-se até
que eles foram vencidos e forçados a trabalhar na construção do Forte de São José
de Macapá.
Era uma ambiciosa empreitada, que demandou da Coroa investimentos
colossais, sob todos os aspectos dessa construção, quais sejam o trabalho insano e
insalubre dentro das águas do aterro, as constantes marés que assolavam as
fundações, o isolamento dos empreiteiros e mestres de obras, as dificuldades com
os materiais que tinham que viajar meses até chegar lá, e os transportes de madeira
em canoas que exigiam habilidade do indígena, pouco afeito à obrigatoriedade.
A mão de obra, em geral de cativos africanos ou degredados da Coroa, não
suportava as duras condições de insalubridade da construção. As fugas e as leis da
Coroa para o trabalho dos índios (que podiam trabalhar seis meses e depois
tinham que ser conduzidos às aldeias), obrigavam o envio de mão de obra escrava
em maior quantidade e o deslocamento de soldados em escoltas que levavam mais
outros meses para voltarem ao canteiro de obras com outras levas de índios.
Nesse contexto, as fugas fizeram o contraponto da necessidade de
construções para a cidade que seria transferida e para o Forte. Foram, na verdade,
as fugas e a fixação compulsória dos colonos que se transformaram na base de
crescimento e desenvolvimento da pequena Macapá.
Após a implantação da cidade de Mazagão junto ao Rio Mutuacá, portanto
bem longe da fortaleza, o Forte se tornou apenas, e tão somente, um espaço de
28
guarida para degredados, banidos da Coroa, colonos rebeldes e fugitivos de outras
terras que por chegavam, nos tantos navios de carga humana que deixaram
tantos escravos.
Mas a construção do Forte levou décadas e, enquanto isso, os franceses
empreenderam invasões importantes naquela área, vindos agora pelo mar da
Guiana, por onde faziam também o tráfico de escravos.
Um deles, Daniel de la Touche
9
, veio ao local com a missão de criar a França
Equinocial, mas foi preso por Jerônimo de Albuquerque, que o derrotou com
mínimos soldados e índios, enquanto o francês dispunha de 2.000 índios e centenas
de soldados
10
.
Outro francês que se aventurou pelo Amapá foi o famoso Cardeal Richelieu,
personagem mundialmente retratado como grande estadista da Corte francesa, que
também esteve ligado ao Amapá ao criar a Companhia de Exploração do Cabo do
Norte, como se chamava, na época, a foz do Amazonas, tendo financiado inúmeras
expedições ao local, em busca de madeira, especiarias, peles de animais, penas e
garimpo. Desistiu do negócio, devido às perdas comerciais maiores do que as
conquistas realizadas e mantidas. Nesse sentido, os fortes existentes no local
foram fundamentais para rechaçar essas e outras investidas.
O inglês Walter Raleigh relatava a presença de animais mitológicos na região,
pois pensou ter chegado ao Eldorado ao encontrar o delta amazônico em Macapá. A
Província da Amapaia era, na época, um terreno muito plano e pantanoso rodeado
pelo grande rio, e a água barrenta, que se espraiava em pequenas ramificações por
entre a terra úmida, dava asas à imaginação dos conquistadores, que diziam: “lá
crescem vermes e serpentes venenosas [...]” (SARNEY et al, 2003, p. 15). Sir Walter
Raleigh
11
não estava distante da verdade.
Outro inglês, seduzido por Raleigh, foi o Duque de Buckingham, que
empreendeu uma viagem em que os navios naufragaram na foz do Rio Amazonas,
9
Nobre francês, também conhecido como Senhor de la Ravardière, foi o fundador da cidade de São
Luís do Maranhão, tendo dado à cidade o nome do rei da França.
10
Em 2005, Emmanuelle de Riedmatton, cineasta suíça, interessou-se pela memória desses fatos
históricos e filmou o livro “Papagaios amarelos” (como eram chamados os franceses pelos índios que
já conheciam os portugueses), lamentando a perda da memória dos traços franceses em São Luís.
11
Lorde inglês que criou uma companhia de transporte de escravos e especiarias, e estendeu seus
interesses ao Amapá.
29
nas costas do Amapá. Não morreu por ter sido auxiliado por índios que faziam
comércio de fronteira e falavam o francês, os Palinkur
12
.
Quando o Forte estava na fase final da construção, foi assolado por
problemas de insalubridade dos locais de assentamento das povoações. A água,
contaminada pelas condições de higiene deploráveis, abria caminho para as
doenças mais perigosas, como o cólera, a febre tifo, verminoses graves, entre outras
enfermidades como infecções por picadas de mosquitos e insetos desconhecidos.
Colonos morriam sem assistência alguma e, muitas vezes, recorriam aos índios que
conheciam as ervas de cura. Intensificavam-se as fugas, pela demora da chegada
dos materiais e do preparo das argamassas, que custavam muito trabalho.
O governador, assombrado com as perdas e fugas, solicitava à Coroa, com
alta frequência, o envio de escravos e remédios. Na época, o Marquês de Pombal
fez chegar ao Amapá carregamentos de remédios e mão de obra escrava em grande
quantidade. Mas as fugas eram sempre maiores do que a chegada de novos
escravos, que logo se adaptavam à sistemática de fugas nas cheias ou entre
pororocas, as quais levavam sempre partes da construção e, com elas, escravos
escondidos nos troncos e detritos até o Rio Curiaú e igarapés afluentes que
desembocavam nos campos do Laguinho
13
.
Não foi o grande rio que ajudou os fugitivos, mas também os indígenas,
que indicavam as saídas das águas dos igarapés, que não cessavam de subir e
vazar com intervalos regulares, facilitando e possibilitando o planejamento das
saídas em horas precisas ainda não dominadas pelos colonos. Cobertos de lama,
confundiam-se com folhagens nos horários matinais e, quando o sol estava a pino e
as temperaturas impediam os colonos de vigiar, os escravos desapareciam mato
dentro.
As características de riquezas naturais e a abundância de caça e pesca foram
determinantes para a sobrevivência dos fugitivos, pois a recuperação pelos senhores
11
Etnia originalmente guianesa, dividiu-se na fronteira do Brasil com a Guiana e é, até hoje,
considerada uma tribo especialmente dotada para as línguas. Atualmente, os Palinkur falam o patois,
o créole e o francês, além do Pa’ikwaki, uma língua filiada à família linguística Aruak. Eram
perseguidos sem tréguas pelos portugueses, porque negociavam com os franceses, sendo
conhecidos como amis des françois (amigos dos franceses).
13
Hoje, o Laguinho não existe mais, mas era uma área formada por um igara que entrava pela
floresta na direção ao leste do Forte. O lago, não muito grande, oferecia campos possíveis de serem
arados. Distava, em linha reta, alguns poucos quilômetros do que, no presente, é o centro da cidade.
Na época, com a floresta plena, isso determinava uma grande distância mais do que suficiente para
dar segurança aos fugitivos.
30
e capatazes tinha pouco sucesso. Com frequência, caçadores de escravos se
perdiam na floresta, por desconhecimento do local e de seus perigos. o raro,
acabavam dando por perdidos os escravos foragidos, e os que porventura eram
recuperados empreendiam novas fugas, levando mais gente consigo.
Com essas evasões, abriam-se espaços para novas investidas da França,
obrigando a luta contra os franceses e deixando descoberta a construção do Forte.
As milícias vindas para a colônia não tinham nenhuma experiência ou ideia de como
se comportar em terreno tão quido e enlameado, com umidade relativa altíssima,
fato que demandava preparo físico.
E foi nesse espaço que desembarcou Francisco Xavier Mendonça Furtado, o
irmão de Pombal, com uns poucos colonos açorianos, para iniciar a colônia que, em
poucos anos, foi elevada à condição de vila pela influência de Pombal na Corte, pois
a povoação não crescera significativamente em população para justificar a elevação.
A cidade de Macapá se iniciou com uma população reduzida de colonos e
soldados, que se uniram às índias, formando o tecido social mestiço que temos no
país. Foi a população negra e indígena miscigenada com brancos que formou a
base humana do estado.
no século XIX, o Amapá passou por inúmeras mudanças, sendo o trabalho
de migrantes do Maranhão e do Pará a origem da mão de obra na época. A corrida
do ouro, posteriormente, mudou a face do lugar, e muitos negros enriqueceram,
adquiriram terras, compraram gado nativo, construíram casas e barcos, chegando ao
extremo norte da colônia.
relatos de casos de negros que “enricaram” ao conseguir comercializar as
preciosidades e que eram vistos com artefatos de ouro e joias frequentemente
enterradas nos quintais em baús de madeira, só abertos em tempos de festa.
As histórias dessa fase foram muitas, com relatos que passaram para a
cultura local como o mito do negro rico que não demonstrava sua condição,
permanecendo na floresta em situação de pobreza aparente quebrada nas festas
e na oferta de instrumentos e roupas para os encontros de tambores ou festas de
padroeiros, quando financiavam o alimento.
A França seguiu invadindo a região e conseguiu estabelecer uma República
no coração da floresta, em terras do Amapá: a República Equinocial do Cunanin ou
Cunani, na margem esquerda do rio de mesmo nome, onde, hoje, está localizada a
31
comunidade remanescente de quilombos do Cunani, com uma população bastante
numerosa.
Esse fato desencadeou inúmeras lutas com os habitantes pela posse da terra,
pois a França seguiu cunhando moedas, selos e bônus coloniais, erigindo em plena
selva uma vila com telhas de Marselha e materiais de construção trazidos da
Europa, como vidros, pisos, fechaduras, imagens religiosas, entre outros.
Era uma República que angariava adeptos entre índios e negros locais
fugitivos, e brancos portugueses considerados, depois das lutas, traidores da pátria,
tendo sido enviados a Portugal, onde foram julgados e sentenciados. Instalaram-se
sem conseguirem se fixar por muito tempo devido às investidas de defesa das terras
por parte dos colonos e das milícias lusitanas.
O Cunani passou a ser local de passagem de fugas, onde índios
comercializavam, acabando por criar uma estrada de fuga. Posteriormente, após a
devolução das terras, fugitivos que se aquilombavam no local aproveitavam as
estruturas deixadas e a rota de comércio para escoar a sua produção.
A Igreja, muito tempo depois, enviou, ocasionalmente, padres que tinham
problemas na Corte para cuidar das almas dos habitantes, em um movimento que
nos parece apontar para um reconhecimento de que a colonização do lugar teria
futuro.
É digno de nota o fato de os quilombos do Amapá nunca terem sido
perseguidos ou destruídos em incursões coloniais, e isso se deve, sem dúvida, à
condição geográfica da região. Acredita-se que haja documentação sobre essas
fugas e espaços quilombolas nos arquivos do Pará, explicando as razões porque
fugitivos foram deixados em paz até a abolição.
Após a abolição, os então quilombolas, fugidos e vivendo independentes,
tinham adquirido terras e riquezas retiradas da floresta, e passaram a se dedicar ao
comércio e agricultura, compondo o perfil de abastecedores de alimentos da cidade.
Autossuficientes, os quilombolas acabaram por criar uma rede de circulação de suas
mercadorias entre as comunidades, que serviu como elemento de preservação dos
espaços remanescentes de quilombos existentes.
Em 1893, em plena corrida do ouro, a França e o Brasil se envolveram em
mais uma luta territorial, mas, desta vez, com um herói nacional, o cidadão Francisco
Xavier da Veiga Cabral, o Cabralzinho, que, no mesmo ano, liderou a resistência e
32
venceu os franceses em uma luta que contou com a maciça participação dos índios
da região e de garimpeiros negros locais.
No entanto, o herói brasileiro do Amaera nordestino e contaminado pela
ideia de fundar uma República e, depois de vencer os franceses, tentou recuperar a
República da floresta, elevando-se a governador. Durou bem pouco a ideia e os
portugueses retomaram as terras, destruindo quase tudo que lembrasse a França
Equinocial no Amapá.
Ainda assim, Francisco Xavier da Veiga Cabral é considerado “herói do
Amapá”. Seu nome é encontrado em ruas, bairros da cidade, bares e lojas; o
Cabralzinho, como é chamado carinhosamente na história do Amapá, segue sendo
festejado.
Somente entre 1897 e 1900, são arbitradas decisões da Confederação Suíça
pelo Contestado, que afasta, por completo, do Amapá as invasões francesas, sendo
a fronteira líquida do Oiapoque e Araguari definitivamente brasileira.
O dia 1º de dezembro de 1900 é, então, considerado a data de nascimento do
Amapá, festejando-se a ascensão do território à condição de estado da União
14
.
14
Como se viu, Portugal teve, nas fronteiras do continente brasileiro, uma área de atrito com a
França, que considerava as terras férteis e viçosas do Amapá amazônico parte de suas terras
colonizadas no Suriname e Guiana. Parceiros tenazes nessa luta, ambos infligiram à região e aos
habitantes originais a perda de centenas de vidas e danos irreparáveis em termos culturais. Nações
inteiras foram dizimadas nas lutas entre a França e o Reino Português pelas terras do Amapá. Diante
do exposto até aqui, segue uma cronologia desse histórico e longo litígio de terras entre os dois
países:
1688 - Assinatura do Tratado Provisional, vetando a colonos franceses e portugueses o
estabelecimento na região.
1700 - O Tratado perde a sua validade.
1701 - Retificação do Tratado. Os limites estavam sendo desrespeitados. A França incursionava pela
região, com atividade extrativa de minério e madeira, dizimando as nações menores pelo seu
caminho.
1702 - Portugal anula o Tratado e a Inglaterra é chamada a intervir para as negociações.
1713 - Holanda media a ação portuguesa, e é assinado o Tratado de Utrecht entre Portugal e França,
estabelecendo o Rio Oiapoque como limite de fronteira entre Brasil e Guiana Francesa.
1714 - Daí em diante, a França entende que o Tratado beneficiava Portugal e, assim, não é
respeitado, sendo a França invasora declarada das fronteiras, escravizando indígenas na região. O
nome de Claude D’Orvillers é lembrado como o maior incursionista das fronteiras e o mais cruel para
com os nativos.
1722 a 1728 - João da Maia Gama investe sobre os vizinhos e luta pelas fronteiras. A posteriori, João
Paes do Amaral, Francisco Mello Palheta, Diogo Pinto da Gaya e Francisco Xavier Botero.
1738 - Portugueses se estabelecem na região e criam o destacamento militar do Macapá. Essa
região fazia parte do Maranhão e Grão-Pará que, em 1747, era uma região esquecida e sem recursos
da Coroa portuguesa.
1748 - Pelas solicitações e informes constantes do governador Francisco Pedro de Mendonça Gurjão,
D. João declara a região como sendo Província dos Tucujus, delimitando-a geograficamente, e
determinando o levantamento das nações indígenas da região para exploração de mão de obra e
defesa do território.
1750 - Francisco Xavier de Mendonça Furtado implementa a colonização.
33
Um novo projeto de invasão é tentado pelo francês Adolph Brezet
15
, em
1902, que tentou recuperar as bases da República do Cunani e foi impedido,
facilmente, pelo governo brasileiro.
Até a década de 50, registros de fugas, desta vez no sentido contrário,
sendo os índios da Guiana que se refugiaram no território brasileiro, entrando no
Amapá.
Os Galibi
16
e os Galibi do Oiapoque vieram do litoral da Guiana. Os Juminã
viveram por muito tempo na bacia do Uaça e na Guiana, mas, com suas terras
demarcadas em 1980, fixaram-se definitivamente no Brasil. Os Karipuna são uma
tribo católica que tem uma língua com resquícios do velho francês falado na
1751 - Em dezembro, Mendonça Furtado organiza expedição à Macapá, levando colonos vindos dos
Açores e soldados portugueses.
1752 - A Província progride rápido, mas a insalubridade e a umidade elevada da região aceleram
processos epidêmicos. Nesse ano, o cólera dizima nações inteiras, e índios fogem para dentro das
matas densas em busca da cura para o mal. Ainda nesse ano, em março, Mendonça Furtado,
governador, chega à região com um médico e controla a doença.
1758 - Mendonça Furtado volta à região para demarcar fronteiras, fazer respeitar o Tratado de Madri,
que regularizava as terras espanholas na região, e elevar a Vila à Província de Macapá – Vila de São
José do Macapá.
1764 - Colonos dos ores fazem construir o Forte de São José nas costas do Amapá, para evitar
entradas francesas pelas encostas dos rios ao extremo noroeste da povoação. O Forte é construído
com mão de obra escrava e de índios. A França queria a posse do Rio Araguari. mudanças nas
áreas demandadas, mas os litígios não cessam.
1841 - O Contestado franco-brasileiro impede ambas as nações de irem até a região do Oiapoque.
1853 - Retomada das negociações, sem sucesso.
1857 - Nova retomada infrutífera.
1858 a 1885 - As entradas francesas acabam por criar a República do Cunani, com Jules Gross à sua
frente. O governo português elimina a republiqueta.
1893 - Inicia-se uma corrida do ouro que, de todas as formas, desestabilizou a região.
1894 - O Governador da Guiana, M. Charvein, inicia, na região, uma coleta de impostos, prisões de
garimpeiros brasileiros, e toda sorte de injustiças e cobranças de taxas em ouro, exigindo
pagamentos e partes das extrações apenas por estarem na área do Contestado, ou seja, em uma
área não demarcada ainda e, portanto, que alegava ser da França. O Brasil reage a isso, com três
governadores para a região. Charvien foi nomeado Capitão Honorário defensor do Amapá. Em 15 de
maio do mesmo ano, o Capitão Lunier lidera uma invasão francesa ao Amapá.
1895 - O senhor Francisco Xavier da Veiga Cabral, cidadão da região, lidera a resistência, e é
considerado o “herói do Amapá”. Essa luta de resistentes contou com a maciça participação de
garimpeiros de várias nacionalidades e fundamentalmente dos índios da região.
1897 - Em 10 de abril, o Contestado é alvo de decisões arbitradas pela Confederação Suíça e pelo
Barão do Rio Branco, que assinam um compromisso sobre a região.
1900 - A sentença vem pelo governo da Suíça, estabelecendo ao Brasil a posse definitiva do
Contestado entre o Oiapoque e o Araguari. O dia de dezembro de 1900 é considerado a data de
nascimento do Amapá.
15
Essa tentativa de Adolph Brezet de fazer voltar a República do Cunani na região estava bastante
organizada, mas não deixou de haver luta nem de se formarem heróis locais entre os indígenas e ex-
escravos.
16
Os Galibis constam como coletores especialistas da floresta, dominando a extração do açaí e da
bacaba (coquinhos semelhantes ao açaí, mas de sabor mais delicado, cujo caldo é cor de café com
leite róseo). A planta nasce nos quintais de Macapá e é utilizada pelas famílias como alternativa na
falta do açaí.
34
colonização, o maridane. Os Palikur foram mencionados, na literatura de 1513, como
elementos da terra que sabiam fazer trocas e ganhar com elas, e teriam sido os
primeiros a comercializar com os franceses, incorporando elementos da língua
francesa à sua língua original.
Os Waiãpi, que viviam nas margens do Oiapoque, chegaram à Capitania
vindos do litoral da Guiana, com uma língua perdida, a kirib, que, em contato com os
franceses, foi substituída pelo patoá, misturado ao creolo, quando chegaram às
margens do Jarí. Refugiaram-se no baixo Xingu, junto aos Rios Jarí e Amapari,
depois de terem sido quase dizimados em uma corrida de ouro. Só em 1980
conseguem se fixar em uma reserva demarcada, com auxílio de uma entidade
filantrópica alemã, que os apoia até hoje pela forma como atuam no
desenvolvimento sustentável na região, pois vivem do garimpo sem química e com
extrativismo adequado à mata.
Vale considerar, ainda, a chegada da estrada de ferro à região, nos anos 50,
fato que foi o destrutivo quanto as demais investidas anteriores. A ferrovia, que foi
construída para servir ao transporte de manganês da jazida existente na Serra do
Navio, a oeste de Macapá, nunca ofereceu benefícios à população que se formou à
sua volta e acabou por escoar o corte ilegal de madeira
17
.
A título de desenvolvimento, o Amapá abrigou, ainda, um desastre ambiental,
com a permissão estatal para a construção de uma usina de celulose no Rio Jarí. Foi
o chamado Projeto Jarí. O que realmente aconteceu na região foi uma devastação
em todos os sentidos. Apesar de os números de produção apresentados parecerem
positivos, a usina não oferece empregos suficientes nem se responsabiliza pelos
danos ambientais que produz diariamente.
17
A região da Serra do Navio, a oeste de Macapá, tem uma posição geográfica estratégica. Antes da
chegada da ferrovia, em 1941, os norte-americanos construíram ali uma base militar, que foi
importante pela fácil saída para o mar rumo ao norte da África, onde a guerra se desenvolvia,
alegando, ainda, para estar ali, a proteção da Amazônia pelo interesse na produção de borracha, já
que os japoneses haviam tomado os seringais asiáticos. A jazida existente na Serra tinha alto teor de
manganês e foi cedida, nos anos 50, a um grupo de brasileiros que se associou aos Estados Unidos
com a Empresa US Bethlehem Steel, a qual, no momento, precisava de matéria-prima para produção
de aço para fins bélicos. Como a jazida era rentável, fizeram construir a Estrada de Ferro do Amapá,
para escoar a produção industrial. Localizada às margens do Rio Amapari, ela tem 193 km de
extensão, sendo 108 km em espaços de clareiras produzidas pela derrubada da floresta, onde havia
plantações de arroz, mandioca, milho e feijão, que depois foram abandonadas, pois nunca
produziram nem para consumo local. Com mais 85 km dentro da mata, atravessa rios e igarapés, e
nunca previu qualquer benefício para a população local que se aglomerou pelo caminho da estrada. A
jazida chegou a produzir 1 milhão de toneladas de minérios/ano, mas, hoje, a mina está fechada,
tendo deixado montanhas de minérios sem padrão de uso assoreando as margens dos rios.
35
O Projeto Jarí
18
foi vencido pela floresta, que ocupa 90% (noventa por cento)
do município e abriga a área de Proteção Ambiental Montanhas do Tumucumaque,
terras originais dos Waianos e Apalais, do tronco dos Waiãpi, que convivem, hoje,
com as sequelas deixadas pelas devastações, como a prostituição, o banditismo e
ausência de desenvolvimento social e urbano. No governo Capiberibe, de 1995 a
2001, a região cresceu e as condições de vida e educação foram elevadas
19
.
O Amapá é, atualmente, um lugar de grandes espaços cobertos por Floresta
Amazônica ainda intocada, que acolhe projetos produtivos de coletores da floresta e
formação de erveiros (pessoas que vão conhecer as plantas e multiplicar os
conhecimentos da famacopeia da região).
Por fim, cabe observar que a Universidade Federal do Amapá abriga um
projeto de estudos da flora e fauna, além de fomentar o artesanato e a produção
controlada de mudas de açaí
20
, espécie de palmeira da região, importantíssima na
alimentação e na cultura do estado.
18
Cronologia comentada do Projeto Jarí: De 1899 a 1948, José Júlio de Andrade estabeleceu um
império na fronteira do Amapá com o Pará, nas margens do Rio Jarí. Explorou toda a região, com
atividades de agroindústria, que incluíam a criação de pastagem para gado de corte, devastando
áreas de floresta que abrigavam fauna e flora de madeiras centenárias, para além das etnias
desmanteladas e assassinadas. Em 1949, uma empresa luso-brasileira assumiu o comando das
atividades, com a então chamada Jarí Indústria e Comércio, seguindo com a devastação até 1967,
quando a ditadura acolheu a venda do negócio para um empresário norte-americano, Daniel K.
Ludwig, que pretendia substituir a floresta nativa por uma espécie de gmelina arbórea, para produção
em massa de celulose, além de criar espaços livres na floresta para o manejo de suínos e bovinos, e
arrozais nas terras alagadas. À época, a parte brasileira já não existia. A agora chamada Jarí
Florestal e Agropecuária Ltda. procedeu à derrubada da floresta restante para plantar pinus e
eucaliptus para produzir celulose, sobre uma plataforma flutuante fabricada no Japão, que levou três
meses para atravessar os oceanos e ser assentada sobre 40 mil árvores da espécie maçaranduba,
especialmente forte e resistente às intempéries da região. A usina seguiu produzindo toneladas de
celulose, mas ocorreram inúmeros acidentes de porte industrial, que diminuíram a capacidade de
superação de Ludwig, que abandonou o projeto em 1980, com receio de que o final da ditadura
acabasse com as facilidades que lhe eram oferecidas. Assim, 23 empresas assumiram a usina de
celulose e seguem produzindo, já em escala maior e mais adequada ao local, até os dias de hoje.
19
Hoje, nomeada como Laranjal do Jarí, a região tem 29.699 km
2
e uma população de 35.872
habitantes, havendo, portanto, em média, uma ocupação de um habitante por km
2
. Foi construída à
margem esquerda do Rio Jarí, sobre palafitas, para abrigar os trabalhadores e os demais
aventureiros ligados à exploração do local. Na margem esquerda, as construções obedeceram ao
projeto de urbanização de estilo norte-americano, com gramados dividindo as casas, ruas arborizadas
e todos os benefícios de um lugar urbanizado. Na margem direita, nada foi feito e, hoje, o crescimento
da população expurgada do Monte Dourado (como é chamada a cidade da outra margem) ameaça a
sobrevivência de todos, evidentemente, pela violência e precariedade de todos os serviços.
20
Açaí ou juçara é o fruto da palmeira conhecida como açaizeiro, cujo nome científico é Euterpe
oleracea. É uma espécie nativa das várzeas da região amazônica, especificamente da Venezuela,
Colômbia, Equador, Guianas e Brasil (estados do Amazonas, Amapá, Pará, Maranhão e Acre). A
forma tradicional de tomar o na Amazônia é com farinha de mandioca ou tapioca. quem
prefira fazer um pirão com farinha e comer com peixe assado ou camarão. Nas demais regiões do
Brasil, o açaí é preparado da polpa congelada da fruta, batida com xarope de guaraná, gerando uma
pasta parecida com um sorvete, com a adição opcional de frutas e cereais. (WIKIPÉDIA, 2009).
36
A seguir, trataremos, mais especificamente, da implantação da cidade de
Mazagão e da construção do Forte de São José de Macapá, acontecimentos que,
como se viu, contribuíram imensamente para a formação histórica do Amapá.
1.1.1 Mazagan do Marrocos – Mazagão no Brasil
[...]
como deixas ao nosso Mazagam
pellos Mouros cetiado
[...]
quereis saber de húo desgrassado
pois me vi em húo instante obrigado a perder para sempre minha terra
[...]
ja ficou Mazagam abandonado
ja ficou todo o povo despejado
ja tudo pelo mar vem embarcado
[...]
as mulheres comessam a publicar
que de modo nenhum se han de embarcar
Esta pois he amigo a minha estoria
este o estado do nosso Mazagam
de que apennas há hoje por memória
as ruínas da sua perdiçam
[...]
(LAURENT VIDAL)
Hoje, o Mazagão, no Amapá, é uma referência de remanescentes de
quilombos.
Inicialmente dedicado à colonização com portugueses, foi povoado pelos
escravos foragidos da construção do Forte de São José de Macapá, que
encontravam, junto aos locais, um espaço de convívio impensável para a época.
No entanto, há, nos registros de Laurent Vidal (2008), a menção desse tipo de
convivência, ainda mais que os escravos também sabiam garimpar e trocavam suas
vidas por ouro e pedras encontradas no caminho de suas fugas, e também em
função do manejo de canoas, conhecimento de plantas e frutas, entendimento da
caça selvagem, de trilhas na mata, e domínio do manejo agrícola e de animais,
como o búfalo nativo da região.
37
Há, na narrativa da cidade de Mazagão, uma série de fatos que a tornam um
paradoxo a partir de sua própria história, do Amapá e da colonização das terras
amazônicas.
Produto da política de colonização portuguesa ao norte da África, Mazagan
foi, no Marrocos, uma fortificação que construiu, em torno de si, uma cidade
organizada, com um funcionamento militaresco que serviu por muito tempo à Coroa
lusitana. Braço avançado das campanhas enfurecidas das cruzadas, visava a
ocupação de terras extremamente produtivas e com localização extraordinária com
face para o Atlântico.
Como se isso não bastasse, o lugar contava com uma geografia natural
invejável para uma fortificação, possuindo uma baía que suportava navios de grande
porte. A Coroa portuguesa jamais pensou em perder essa joia do Oriente. Talvez por
essas e outras tantas razões, Mazagan, na África, não foi simplesmente deixado
para trás quando as Cruzadas se encerraram e o porto perdeu a importância.
Mazagan, como fortificação e cidade de sucesso até certa época, desafiara a
engenhosidade lusitana em uma operação jamais realizada por nenhuma nação
colonizadora, que fez viajar até Lisboa a cidade inteira em uma frota de barcos que
levaram pedras e ferragens, animais e plantas.
Assim, cabe, neste espaço de reflexão sobre os remanescentes de
quilombos, relatar os fatos que tornaram a joia da Coroa portuguesa na África um
espaço devoluto de resistência à escravidão africana no Brasil.
Voltemos a uma parte da história de Portugal que determina a ocupação das
terras do Amapá, através da inusitada manobra de logística.
Como é sabido, a Europa lutava pelas terras do Oriente, especialmente as
das rotas de comércio que cruzavam a costa africana de norte a sul. Entre 1505 e
1509, Portugal lutava contra os mouros na costa norte; entre batalhas vencidas,
ocupou uma torre em ruínas na região do Marrocos, chamada El Brija, que fora local
de defesa estratégica dos árabes no extremo norte da África. Semidestruída, a torre
foi recuperada, e a ela foram acrescentadas as estruturas de uma fortaleza de
quatro torres, em 1514. Com esse investimento, Portugal criou, no lugar, um espaço
de apoio às retomadas de terras orientais dos mouros no século XVI.
Cruzadas à parte, em realidade, a Coroa buscava novas rotas para expandir o
comércio e implantar entrepostos em toda a costa africana. Instalaram a fortaleza de
38
Mazagan na região de Dukkala, a meio caminho do Marrocos, entre Tanger e
Agadir.
Considerada, na época, o local mais seguro em toda a costa atlântica ao
norte, a região era famosa pela excelência de suas terras, onde se produziu o
melhor trigo desde o Império Romano. Ganho certo para a Coroa e perda
insuportável para os mouros.
A fortaleza foi nomeada “Mazagan”, com herança na língua berbere Ma zig
han, que quer dizer “água do céu”, por ser um local de chuvas perenes que enchiam
os poços locais para os mouros. De valor inestimável, o local teria uma vida de luta e
mortes.
Laurent Vidal (2008)
21
apresenta uma descrição minuciosa da construção da
fortaleza no Marrocos, assim como as suas agruras da vida dos colonos lá sediados.
O final melancólico do último espaço remanescente das Cruzadas inicia um outro
calvário para os colonos, pela decisão da Coroa de transportar a cidadela inteira de
Mazagan para o Amapá. A busca de semelhanças parece ter sido um dos erros
desse translado.
A descrição de Laurent Vidal (2008, p. 19-20) para a fortaleza de Mazagan
nos dá uma ideia da grandiosidade desse local:
[...]
A fortaleza é um imenso quadrilátero de formato irregular, com metade
repousando sobre um aterro, a ponto de parecer, a quem a observa desde a
linha da costa, “uma cidade flutuante“, como uma jangada de pedra
montada entre a planície e o oceano. Suas muralhas, de 11 metros de
largura, elevam-se 14 metros acima do solo. Há na cidade, mais de
setecentas casas, a maioria assobradada, com terraços, janelas e portas de
pedra. Fossos em torno da muralha isolam ainda mais a fortaleza. [...]
Acolheu, na época, as maiores embarcações em sua eclusa natural. Outro
lado tinha uma saída para o mar que podia ser acessado em chalupas,
facilitando fugas e saídas silenciosas diretamente em mar aberto.
Os povoadores, soldados e colonos que foram enviados à Mazagan, eram,
em sua maioria, açorianos fugidos das terras vulcânicas, madeirenses sem qualquer
opção desde a queimada de anos na Ilha da Madeira, e os famosos degredados e
21
Recentemente lançada, a obra Mazagão: A cidade que atravessou o Atlântico”, de Laurent Vidal
(2008), faz o resgate dessa parte da história da civilização ocidental, com um olhar apurado de
antropólogo e crítico dos esquecimentos a que relegamos a memória de antepassados no nosso
presente.
39
banidos de Portugal e colônias, além de exilados, criminosos e condenados, estes,
transformados em soldados
22
.
Não se informava aos colonos a origem da soldadesca e vice-versa, mas logo
ficava claro quem era quem na hierarquia, pois, na verdade, a Coroa queria essas
pessoas longe do reino, e cada um tentaria estabelecer-se da forma mais nobre que
se pudesse imaginar.
Consta o envio de 52 revoltosos que lutavam contra as taxas abusivas sobre
o vinho do Porto na região do Douro; eram proprietários, comerciantes do vinho e
camponeses, o que significa que eram pessoas de bem que desagradaram à Coroa.
Banidos e misturados aos demais inferiores, sobressaiam-se pelas vias culturais de
educação e religiosidade.
Mazagan era uma prisão ao ar livre para as pessoas para enviadas.
Estima-se que a média tenha sido de algumas centenas de pessoas nessas
condições. Consta, ainda, a existência de mouros que se passavam para o lado dos
cristãos, registrando-se como cristãos convertidos e batizando-se, podendo casar
com os colonos. Nesses registros, havia mouros convertidos que vieram com as
famílias para o Brasil, misturando-se, convivendo na fortaleza e se unindo nas lutas
e ataques.
As lutas pelo território africano continuaram e Mazagan tornou-se a última
fronteira que resistiu em batalhas desiguais entre mouros numerosos e guardas
lusitanas cada vez mais reduzidas sem reposição das baixas. A fortaleza era
inexpugnável.
Festejavam os colonos, mas iniciava-se uma fase de lutas de guerrilha em
que os mouros roubavam plantações, animais, envenenavam a água dos poços,
matando colonos e soldados, enfraquecendo o moral, e esgotando as forças dos
habitantes constantemente ameaçados. Foram lutas e resistências que constituíram
o chão dessa cidadela.
22
A Coroa portuguesa sempre operou sua colonização com pessoas de categoria social inferiorizada.
Os militares de baixa patente tinham sido condenados por crimes menores ligados a finanças e
embustes comerciais. Aos banidos por razões políticas e religiosas, arrastavam a família toda para o
degredo e o definitivo afastamento das colônias, para onde não poderiam mais voltar até a terceira e
quinta gerações, dependendo do crime. Degredados e criminosos eram os responsáveis por delitos
graves, como roubos, assassinatos e conspirações de todo tipo. E ainda havia os que tinham seus
parentes e desafetos enviados para as listas infindáveis de disponíveis para colonização. O tráfico de
influências nas listas era questão de status na Corte portuguesa. Os que eram designados para
colonizar e tinham delitos ficavam felizes por escapar da morte, mas tinham sempre uma razão
justificada para fugas e descumprimento de regras da Coroa nas colônias.
40
A fortaleza começou seu declínio em um conflito de 120 mil árabes contra 20
mil portugueses, dando início à lendária batalha do Mazagan, que matou 25 mil
mouros e 98 soldados portugueses, com 19 civis.
As dores locais, no entanto, não impressionaram a Coroa, que abandonou
pouco a pouco a fortaleza à própria sorte. A Coroa retirou por completo sua ajuda à
Mazagan e voltou-se totalmente para o Brasil, cujas fronteiras estavam sendo
ameaçadas, principalmente pelos franceses. A nova perda, para quem tinha
perdido o país e os direitos, fomentou um motim que acabou com o medo maior de
morrerem em mãos dos mouros sabedores do abandono.
Mazagan, sem água, comida e demais cuidados era, ainda, palco de doenças
as mais desconhecidas, e acredita-se tenha sido a desidratação e o cólera as que
mais vitimaram a fortaleza. Mazaganenses não eram, para Portugal, pessoas
capazes de voltar ao convívio do reino, pela alegação de não serem população de
baixa nobreza, sem artes ou refinamento.
Sem o envio de tropas de Portugal, as ordens eram de evacuar o local, não
sem antes destruí-lo por completo em um incêndio que durou vários dias, dada a
solidez da construção. Embarcados todos, Mazagan era, agora, uma cidade à
deriva, que, afinal, vai para Lisboa com onze barcos.
Apinhados por alguns dias com fome e sede, chegaram à Lisboa no cais de
Belém. Mas ficaram, no mínimo, seis meses e, no máximo, três anos, hospedados
em casas do bairro de Belém, próximo ao porto. Muitos morreram ao saber que não
poderiam permanecer em Lisboa, outros fugiram, muitos adoeceram, e outros tantos
morreram em hospitais e hospícios. Era-lhes proibido sair do bairro em função das
fugas.
Após muitos problemas, doenças, mortes, crimes e desespero, o Marquês de
Pombal decidiu enviar Mazagan, com todos os habitantes que sobraram e mais
outros nas mesmas condições, para povoar o Amapá e construir um forte
semelhante àquele do Marrocos.
Foram quatorze bairros alojados nos barcos que navegaram separados,
seguindo uma hierarquia de mais ou menos nobre. Foi o irmão de Pombal, Furtado
de Mendonça, que cuidou pessoalmente da transferência. Os primeiros quatro
navios partiram, em fevereiro de 1768, com dezoito famílias para se instalarem em
Vila Vistoza, à margem esquerda do Rio Amazonas.
41
A transferência de Mazagan do Marrocos para o Brasil transformou o espírito
dos mazaganenses. Não estariam defendendo a cruz e a cristã, mas defenderiam
um território e suas vidas em terras rodeadas de mitos, onde o inimigo era
desconhecido, e o local, hostil.
Vieram para o Amapá 2.093 adultos, 595 crianças, sendo, do total, 543
soldados. Nada parecido com os contingentes que sempre estavam nas torres da
fortaleza. Para os que tinham perdido a família no transporte e na espera, a Coroa
designou famílias, nas quais eles se agregariam. As famílias suplementares eram a
imagem que permite juntar pessoas às listas para enviá-las ao Grão-Pará. Nesse
trecho de poema, podemos perceber como se sentiam os “colonos” portugueses
obrigados a povoar as terras novas:
Esta, pois he amigo a minha estoria
este o estado do nosso Mazagam
de que apennas há hoje por memória
as ruínas da sua perdiçam (VIDAL, 2008, p. 78).
O governador do Grão-Pará deveria providenciar morada e comida de
imediato para “que se estabeleça huma nova povoação na costa setentrional das
Amazonas para se darem as maons com o Macapá e com a vila vistoza” (VIDAL,
2008, p. 94).
Todavia, o abandono, as regras draconianas, as doenças, a nostalgia da
terra, a fome e o sentimento de fuga eram constantes. A deserção foi um fato, e
muitos se esconderam, abriram um comércio, se estabeleceram e pagaram ao
governador uma propina para lá ficarem e não serem delatados.
Uma vez aqui, foram deixados em pequenas aldeias, que foram elevadas a
vilas para dar início à colonização; portanto, estariam em contato direto com os
donos da terra, os índios. Outras famílias foram para a vila de Sant’Anna, outras
ficaram nas barras dos Rios Mutuacá, Matapy e Macapá. Extremamente insalubres,
essas são as primeiras vilas a se deslocarem na região. Enquanto assentavam as
famílias, a cidade seguia, agora, tentando se erguer sobre o Rio Amazonas.
Mão de obra indígena foi recrutada e 1.152 índios e centenas de escravos
trabalharam na obra da cidade. A demarcação do Rio Mutuacá definiu o local da
cidade que iria ser construída, a qual, no projeto, era perfeita e admirável. No
42
entanto, as condições da obra eram péssimas e as pessoas iam adoecendo e
morrendo como moscas.
As deserções e fugas de escravos se misturaram às fugas dos brancos para
as províncias do Pará e Maranhão. A Coroa, depois de quinze anos de perdas e
desastres na colônia, concedeu aos moradores de Mazagão liberdade de se
instalarem no interior das fronteiras do Pará, sendo que algumas famílias foram
obrigadas a ficar no local onde viviam em “huma indigência irremediável” (VIDAL,
2008, p. 36).
As famílias designadas para o local onde hoje é o Mazagão foram escolhidas
entre os ainda leais ao rei, que essa seria a pior das vilas a ser construída, pois
ficaria no meio da floresta, entre os Rios Maruanum e Matapí.
Essa transferência acabou sendo um golpe de sorte para a Coroa, visto que
as Companhias Gerais, que faziam o tráfico de escravos e mercadorias, passaram a
fazê-lo com custo zero, pois o soldo dos soldados e os custos dos transportados
deveriam ser pagos assim que fixassem residência.
A demora em fazê-lo permitiu à Coroa emitir uma Carta gia, que informava
ter reduzido o pagamento por terras, escravaria e alguns animais, armas e
implementos agrícolas, assim como sementes, em razão dos prejuízos sofridos com
o translado. Ou seja, os mazaganenses não receberiam os réis que recebiam em
Marrocos; os escravos saíam de graça para a Coroa, e os demais prometidos eram
infinitamente mais baratos do que as quantias que deveriam dar aos colonos para se
assentarem. Tinham sido pagos in natura e acorrentados às terras amazônicas, sem
dinheiro sequer para negociar uma viagem. A compensação era vista na posse
de escravos que vieram a custo zero também.
A justiça real, no entanto, anunciou que pagaria as contas em suaves
parcelas nos próximos anos. E assim foi feito; que eram parcelas em escravos,
prata, ouro, tecidos e materiais de consumo, como botões, pentes, rendas, e afins.
Os militares de patente e os soldados ilhados reclamaram ao rei e receberam, enfim,
depois de quatro anos, os soldos atrasados. Os “nobres se rebelaram”, a Coroa
voltou atrás, tentou pagar, mas tudo se deteriorara com a distância burocrática.
Novamente abandonadas, 300 famílias apenas se estabelecem no Mazagão e o
lugar passa a ser uma vila sem alma, um local que espera infinitamente, uma cidade
de memória nostálgica e amargurada.
43
Em 1783, Portugal cessou toda a mínima ajuda à Nova Mazagão. Em 1785,
registrou um religioso, em carta à Coroa, que restavam 900 pessoas no lugar,
contando com os escravos mais numerosos que os colonos.
Hoje, o rio não passa mais pela cidade de Mazagão, que muda a grafia e a
pronúncia, dependendo de quem escreve ou fala: Mazaga, Mazagan, Mazagão.
Atualmente, o Mazagão se divide em Mazagão Velho e Novo, sendo o novo, uma
espécie de invasão de terras do Mazagão original por pessoas que não pertencem à
cidade.
Em nossa visita, percorremos a cidade e seu entorno, encontrando uma
escavação. As fundações de uma igreja e uma casa de armas estão semiescavadas
em meio à vegetação que já cobre a maioria dos espaços escavados em uma
missão arqueológica que se perdeu na memória dos habitantes.
documentos espalhados em casas de moradores mais antigos e peças
históricas na igreja reformada e totalmente perdida no cenário local que data da
época colonial. Não desapareceram, mas, de certa forma, se perdem na falta de
interesse do estado em recuperar uma parte da história do país e do Amapá.
A leitura histórica da formação do Amapá tem uma conjunção de fatos que
acabam por se justificar na sequência dos acontecimentos ocorridos na implantação
do Mazagão e na construção do Forte de São José de Macapá.
1.1.2 Do Forte de São José de Macapá
Haja palavras para averbar memórias pródigas, peremptórias,
redentoras.
Diários delirantes, saudades dilacerantes, sentimentos errantes.
[...]
(ANTONIO MIRANDA)
O Forte de São José de Macapá deu origem à capital do Amapá. Localizado à
margem esquerda do Rio Amazonas, ocupou as terras dos Tucujus, etnia numerosa
da região que, ainda hoje, nomeia lugares, ruas e produtos locais.
44
Sua construção foi iniciada no reinado de D. José I, em 1764, por ordem do
Marquês de Pombal, que já havia feito construir outros três fortes e fortins na região,
diante das frequentes investidas dos franceses, entre outros povos, nas terras do
Cabo Norte.
Levou dezoito anos para ser concluído, sendo inaugurado, ainda incompleto,
no dia 19 de março de 1782, dia de São José, santo que lhe deu o nome. Seu estilo
foi traçado pelo engenheiro Sebastian Le Preste Vauban, que deu seu nome ao tipo
de construção que representa uma figura geométrica de oitava classe: “o estilo
Vauban.
Com muralhas de 8 metros de altura e 3 metros de espessura, o Forte era o
mais completo construído. Com fosso, revelim, cisternas, latrinas internas,
escoadouro de águas pluviais com 10 metros de diâmetro, caminho coberto,
redente, túnel de escape e fundos falsos para fugas e armadilhas, o Forte também
reutilizava as águas recolhidas das chuvas na limpeza do local.
Reina uma série de dúvidas em torno das dimensões da fortaleza, pois alguns
afirmam que seriam ainda maiores do que as atuais. No entanto, não se encontram
referências das medidas do Forte. Os sites e bibliografias consultadas não
esclarecem nem informam em números essas medidas. Em 2008, uma missão
arqueológica da Universidade Federal do Ceará fez escavações no parque que
rodeia o Forte e, certamente, teremos uma definição das medidas e dos acréscimos
a partir do que for encontrado no sítio aberto.
A construção era a primeira parte de um projeto de colonização que
complementaria a transposição de Mazagan. A intenção era a de construir um forte
que defendesse a Nova Mazagão e as terras colonizadas.
A transposição, como relatamos brevemente, foi uma catástrofe para todos os
colonos, em vários aspectos. Para a Coroa, uma estratégia calculada de ocupação
de locais remotos e ameaçados, como o Cabo Norte e os arquipélagos da região.
A mão de obra indígena não suportou o trabalho terrível de aterrar parte do rio
para fazer a base do Forte. O indígena se adaptou mal à tarefa, além do fato de a
legislação ser protetora e não permitir exaurir as forças dos índios. A mão de obra
escrava foi, então, trazida em grandes levas com custos baixos, que se esperava
reconduzi-los ao trabalho junto aos colonos depois da construção. Essa era uma das
estratégias de pagamento do rei aos seus colonos sem desembolsar nenhum
dinheiro.
45
A população escrava trabalhava em condições insuportáveis; a malária atingia
a todos e as febres desconhecidas vitimavam dezenas a cada estação. O aterro do
local custou muitas vidas, pois os escravos trabalhavam com água aa cintura por
dias. A busca de pedras e outros materiais levava dias de navegação por entre
igarapés e rios perigosos em canoas indígenas em comboio. Muitos não voltavam.
Importante notar, ainda, que não eram apenas os escravos que sofriam na tal
construção, mas também a milícia e os superiores, obrigados a vigiar e cuidar da
escravaria e da construção ao mesmo tempo. Ambas as funções, guardadas as
devidas distâncias, eram sobrecargas do limite humano em uma construção na
floresta equatorial. Epidemias dizimaram os escravos e soldados no canteiro de
obras, obrigando os comandantes a pararem a construção até que a Coroa
mandasse remédios e outras levas de escravos. Eram meses de espera e morte.
Na verdade, o Forte, idealizado para defender a cidade ainda não construída,
nunca foi atacado ou recebeu ordens de atuar em nenhuma das pendências de
fronteira com outras nações europeias que atacavam o território. Construção
determinada a proteger a entrada nas terras do Amapá, foi um investimento material
e humano grandioso que, afinal, nunca disparou nenhum dos seus mais de 40
canhões. No entanto, manteve sua atividade militar por décadas.
Viveu sempre o paradoxo de ter sido concebido contra inimigos e nunca ter
servido ao seu propósito de defesa. Ironicamente, deveria defender as terras, mas,
na realidade, abriu, com suas quatro pontas, os caminhos para fugas bem-sucedidas
de escravos, índios e colonos cativos alocados na sua construção.
As marcas da transposição e da construção do Forte são a descontinuidade e
a deterioração dos materiais e das pessoas. As fugas pareciam ser a única saída
não para os escravos, mas para os colonos que, vendo recusados seus pedidos
de volta para Lisboa, refugiavam-se em pequenos vilarejos na região, para depois se
embrenharem em canoas, ajudados pelos índios rumo à Belém do Grão-Pará. Eram
dezenas de famílias que abandonaram as casas de palha depois das monções
típicas da floresta.
As fugas dos escravos determinaram atitudes mais rígidas e controle de horas
de trabalho. Mas, ainda assim, eles fugiam e, definitivamente, ficavam perdidos para
a administração, pois a floresta era perigosa, as marés surpreendiam e a caça aos
fugidos era mais cara do que trazer novas levas de escravos.
46
Complexo e de difícil solução, esse problema das fugas de escravos era,
assim, uma constante no Amapá, e o comportamento dos humanos escravizados
seguia a regra de que “onde escravidão há revolta”, mencionado em Del Priore e
Venâncio (2004, p. 83), explicando a resistência e rebeldia dos cativos.
Em Macapá, a mão de obra cativa, obrigada a trabalhar em condições sub-
humanas na construção do Forte, encontrava coadjuvantes, justificando ainda mais
as revoltas e fugas rumo à floresta e seus misteriosos caminhos.
Em geral, os homens eram os que mais fugiam, devido à fragilidade das
mulheres, as quais, apesar disso, seguiam em menor número, mas em fluxo
constante. Em Macapá, chegavam a fugir núcleos de famílias inteiras, que se
perdiam na floresta e acabavam por se esconder em diferentes quilombos como
medida de segurança.
Não obstante as inúmeras formas de repressão, as fugas foram muito bem-
sucedidas, principalmente pela simpatia dos indígenas e pelo conhecimento de
estratégias de caça dominadas pelos negros. Ajudar um fugitivo era ainda pior do
que a fuga e os castigos de mutilação, os mais comuns.
A legislação entendia que o fugitivo cometia vários delitos ao mesmo tempo:
contra o rei, contra o senhor e contra si mesmo. Del Priore e Venâncio (2004, p. 84)
ainda mencionam “o roubo de si próprio”, quando se tratava de designar uma fuga.
O cativo não tinha pertencimento de seu corpo e, como tal, ao fugir, roubava-se a si
próprio, lesando o senhor da posse e do seu corpo, que representava um preço em
trabalho e custo. No local, essas perdas eram ainda mais custosas, em função das
dificuldades de acesso e de manutenção dos escravos em espaços abertos sem
correntes.
No Amapá, estimam-se, em média, três mil escravos registrados na época da
chegada dos colonos, mas sabemos, também, que, depois disso, antes da
organização da localidade em vila e cidade, perderam-se os registros e, portanto,
esses números podem ser maiores.
Com o tempo, os escravos criaram rotas de escape que, hoje, fazem parte do
espaço urbano da capital, além de determinarem a própria geografia do que,
atualmente, é o estado do Amapá, onde existem 34 comunidades remanescentes de
quilombos.
Consideramos o Amapá como um lugar privilegiado do ponto de vista do
sucesso das fugas, devido ao fato irrefutável de que os quilombos da região foram
47
responsáveis, em certa medida, pela formação urbana, constituindo um
determinante cultural do estado. Acreditamos ser essa uma característica própria a
muitos outros estados brasileiros, nos quais a presença dos quilombos foi uma
realidade modificadora da organização populacional. Foi a massa humana
escravizada que acabou por “colonizar” as regiões mais internas de Macapá e a
construção do Forte foi o adjuvante ideal das fugas para a liberdade bem ali na
floresta.
Os quilombos representaram, na época, a sobrevivência dos cativos e, hoje,
orientam a formação de muitas comunidades, mantendo a sobrevivência de uma
cultura que estaria perdida não fosse essa coragem e revolta. Atualmente, são
depositários da riqueza de uma cultura imaterial reconhecida por legislação da
Unesco, e no Brasil, desde a Constituição de 1988, que, no art. 216, define como
patrimônio cultural os bens materiais ou imateriais portadores de referência à
identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade
brasileira, incluindo as ações, os grupos, a arte, a língua, as expressões, a forma de
viver, entre outros elementos.
Estamos, então, diante de um universo que tem em si o reconhecimento de
que sua forma de viver é patrimônio imaterial do país. O fato de terem sido os
quilombos os organizadores da vida em Macapá e em várias localidades do estado,
reitera a necessidade urgente de olharmos para a pesquisa no local com a maior
seriedade e respeito pelas manifestações e relatos ali colhidos.
1.2 Elementos culturais
O tempo é a matéria da memória, [...] o tempo presente, os homens
presentes, a vida presente.
(CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE)
O Amaé rico em manifestações folclóricas, revelando, entre outros pontos,
a nostalgia do negro, o aspecto da vida indígena, as brigas entre cristãos e mouros,
e devoção a entes canonizados pela Igreja Católica. Tudo é realizado com a
participação maciça da população, de turistas e até da imprensa internacional.
48
Ao longo do ano, são realizados vários eventos, em Macapá e nos demais
municípios do estado, com o objetivo de valorizar, preservar e divulgar o folclore
local. Os ritmos herdados pelos negros e escravos são predominantes na música e
na dança, com grande destaque para as manifestações do Batuque e do Marabaixo,
das quais trataremos mais adiante, em detalhes.
Muitas das festividades acontecem nos dias dos santos padroeiros locais.
Para citar alguns exemplos, em Macapá, a principal festa é a de São José, em
homenagem ao padroeiro da cidade, com missas na Igreja de São José e na capela
do Forte, novenários e procissões. No Curiaú, são comemoradas a Festa do Divino e
a de São Joaquim. No Igarapé do Lago, são festejados o Divino e a Nossa Senhora
da Piedade.
Na quadra junina, são apresentados, em várias regiões, os cordões de
pássaros e do boi, com grande participação das comunidades nesse entretenimento
folclórico. Os cordões consistem em representações teatrais, na maneira típica do
povo. Durante o desenvolvimento da história representada no cordão, as
personagens dialogam e cantam no linguajar local.
Outra festividade que deve ser lembrada é a Festa de São Tiago,
comemorada, em Mazagão Velho, com cavalhada, procissão e baile de máscaras.
Por suas heranças culturais e históricas, o Mazagão Velho, distrito do município de
Mazagão, hospeda, todos os anos, no período de 16 a 28 de julho, uma encenação
popular, que retrata as batalhas entre cristãos e mouros, que disputavam, na África,
a hegemonia da fé, sob domínio português. Os atores são os próprios moradores da
comunidade, que lembram, anualmente, as razões da vinda da cidade inteira de
Mazagan de Marrocos para os trópicos.
A cada ano cresce a quantidade de pessoas que se desloca para a cidade
durante a festa, que tem caráter religioso e que faz alusão à lenda de São Tiago,
tido como um soldado anônimo e misterioso, que apareceu nas batalhas no
continente africano, lutando ao lado dos cristãos e colaborando fortemente para a
sua vitória.
Em resumo, a festa recria a luta de cristãos e mouros no Marrocos, pela
cidadela de Mazagan. Segundo a história, houve uma trégua ardilosa na batalha,
quando, então, o rei Caldeira, mouro, propôs um baile para comemorar a paz. Ele
havia levado comida envenenada aos portugueses, que, desconfiados, foram ao
baile mascarados, dando aquela comida aos mouros, que morreram e acabaram
49
perdendo a guerra. Os mouros coroaram o filho do rei morto, de apenas três anos, e
perderam as batalhas seguintes, nas quais os cristãos tinham o apoio do soldado
misterioso
23
.
A festa era realizada em 13 de maio, em comemoração à Lei Áurea, mas,
depois, foi colocada em outra data, na tentativa de angariar mais adeptos; no
entanto, a entrada dos cultos evangélicos tem roubado simpatizantes do festejo,
devido à falta de visão cultural dessas entidades do valor da comemoração para
além da fé, o que tem reduzido em muito a participação dos moradores.
A seguir, traremos um esboço das manifestações culturais mais autênticas do
Amapá, que são o Batuque e o Marabaixo, revelando suas origens, seus encantos e
23
Para entender melhor a encenação, é preciso saber um pouco mais sobre a interessante história
que deu origem à festividade. Desde a conquista das terras africanas, os lusitanos tentaram obrigar
os muçulmanos a se tornarem cristãos e aceitarem a em Cristo e o batismo de sua religião. Esse
fato provocou a reação dos seguidores de Maomé, que declararam guerra aos cristãos, estes
liderados, na época, pelos capitães Atalaia, Jorge e Tiago. Durante dias, ocorreram batalhas
acirradas, com grande vantagem para os lusitanos, que resistiam aos constantes ataques dos
mouros. Estes, chefiados pelo Rei Caldeira, armaram uma cilada, que consistia em entregar, aos
capitães cristãos, presentes em forma de iguarias. Os cristãos receberam os presentes e
desconfiaram que pudessem estar envenenados. Assim, jogaram uma parte da comida para os
animais na granja dos mouros, e guardaram a outra, objetivando preparar um contra-ataque. Sem
nada saber, os mouros confiaram na vitória e, à noite, deram um baile de máscaras, estendendo o
convite aos cristãos que quisessem passar para o seu lado, sem que pudessem ser reconhecidos
pelos seus superiores. Os cristãos compareceram mascarados à festa, levando a parte da comida
que haviam recebido como presente dos mouros e a distribuíram aos seus inimigos. Quando
amanheceu o dia, muitos soldados mouros jaziam mortos por haverem comido o presente dos
cristãos e, entre eles, estava o Rei Caldeira. Seu filho, denominado Menino Caldeirinha, assumiu o
trono. Na manhã do outro dia, os cristãos aproveitaram o desespero e a desorganização de seus
inimigos para atacá-los. Movidos pela fé, iniciaram uma luta sem precedentes, só amenizada por volta
do meio-dia, quando os mouros, aproveitando o descanso dos cristãos, mandaram um vigia o Bobo
Velho para tentar persuadir seus conterrâneos que haviam se convertido ao Cristianismo a
retornarem para seu lado. Além disso, o Bobo Velho poderia espionar o estado em que se encontrava
a força dos seus inimigos. Quando ele chegou perto dos cristãos, esses o apedrejaram. No fim da
tarde, antes de iniciar a batalha, os cristãos mandaram o Atalaia espionar os mouros. Atalaia
arrebatou a bandeira do acampamento mouro, mas foi descoberto pelos inimigos que o feriram.
Mesmo ferido de morte, o Atalaia conseguiu chegar próximo de seu acampamento, e atirou a
bandeira a seus companheiros, dando gritos de alerta. Em represália, os mouros decapitaram-no,
espetaram sua cabeça em uma vara, e colocaram-na junto ao muro do acampamento cristão, para
que estes ficassem com medo. Ainda com planos para vencer os cristãos, o rei Caldeirinha mandou
que seus soldados fizessem uma passeata ao redor do acampamento, a fim de raptar as crianças
cristãs, que, curiosas, foram facilmente apanhadas. Depois do êxito do plano, elas foram vendidas e o
dinheiro arrecadado serviu para comprar armas e munição. Quando os cristãos souberam do roubo
de suas crianças, iniciaram uma violenta batalha carregada de grande heroísmo e fé. O rei
Caldeirinha ainda propôs a troca do corpo de Atalaia pela bandeira moura em poder dos cristãos.
Estes aceitaram a troca, mas receberam o corpo e não entregaram a bandeira. A batalha recomeçou
com essa atitude e, ao entardecer, os cristãos pediram a Deus que prolongasse o dia, a fim de que
pudessem vencer tão desesperada luta. Assim, parecia que o dia estava se prolongando e os cristãos
foram vencendo as batalhas que se sucediam, até que o jovem rei Caldeirinha foi aprisionado,
enquanto seus soldados fugiam. Mortos muitos infiéis mouros, os cristãos rejubilaram-se pela vitória,
agradecendo a Deus e, em passeata, levaram o rei mouro vencido. À noite, depois de tudo,
organizaram um baile chamado “Vomo nê”, que vem simbolizar a vitória alcançada por eles (BRASIL,
2009a).
50
a forte influência que carregam da cultura negra que foi trazida da África e recriada
no Amapá pelos escravos e seus descendentes.
1.2.1 O Batuque e o Marabaixo
O espaço é distante, o espaço é profundo. Permanece inacessível por
excesso ou por falta quando está sempre aí, ao redor de nós.
[...]
O espaço sempre é mais além... Ele permanece aí.
(GEORGES DIDI-HUBERMAN)
O Batuque e o Marabaixo são as manifestações culturais mais expressivas e
tradicionais que se encontram, hoje, no Amapá. Suas origens datam de mais de três
séculos e, desde então, guardam vivas a poesia e a dança, para além da simples
vontade de dançar ou festejar.
Fazendo parte das raízes culturais que compõem a identidade amapaense,
sua origem é resultado, principalmente, das tradições dos africanos que vieram
escravizados para o Amapá. Hoje, são seus descendentes que procuram conservá-
las, na música e na dança.
O Batuque teve origem ao sul de Angola, na África, acreditando-se, ainda,
que existisse também no Congo e em Luanda. Em 1642, foi registrada a primeira
manifestação de Batuque tal como o conhecemos hoje, em Santiago e Cabo Verde,
locais cuja origem dos escravos foi Angola e Guiné, na África Oriental, exatos
lugares de onde vieram os contingentes de escravos para a Amazônia, segundo
Sanzio (2005), em sua obra etnográfica sobre a geografia dos remanescentes de
quilombos no Brasil.
Na verdade, o Batuque surgiu como uma dança que deveria ser feita após o
falecimento de um ente querido, cuja alma, após três dias vagando entre os vivos,
precisava ser encaminhada para junto de seus ancestrais, para ser bom com os
vivos, que tinham que dançar o mais alegremente possível para o provar a raiva
do morto. No entanto, o Batuque do Amapá, certamente herdeiro das raízes
africanas, não parece ter ficado com essa função da dança, já que incentiva a
51
participação das crianças, que lhe dão uma graça especial e uma alegria
contagiante.
O Batuque e o Marabaixo são manifestações muito semelhantes de música e
dança. Ambos são comoventes e cadenciados por um ritmo marcado por tambores.
A dança é feita em roda e, como sabemos, as reuniões em círculo são uma
característica de culturas africanas e indígenas, tendo relação com rituais e
divindades.
O circular e o memorial seguem sendo um conceito verdadeiro até hoje. Nos
terreiros e nos cultos indígenas, a dança em rculo é feita no sentido anti-horário,
para mostrar que o que foi pode voltar, e, no Batuque e no Marabaixo, o é
diferente.
No século XIX, viajantes que aqui estiveram mencionaram, em diários de
viagem, que os negros se encontravam e logo formavam um círculo e batiam
palmas, cadenciando dança. Mas esse tipo de dança foi reprimido pelos
colonizadores, por muito tempo, em função do seu gestual, que era tido como imoral
e danoso aos homens, pela sensualidade, que é dançado por pares de homens e
mulheres, onde os gestos definem uma corte realmente sensual de cada parceiro.
O Marabaixo e o Batuque têm gestuais semelhantes, sendo o primeiro muito
mais sensual nos gestos e gritos, e o último mais melódico e movimentado. No
Batuque, os passos e as evoluções em rculo são menos bailados e mais ritmados,
com os pés mais arrastados e colados ao chão, dando mais cadência ao ritmo.
Nas duas manifestações, as danças são executadas com volteios de saias
rodadas, com a diferença de que, no Marabaixo, os pés chamam a atenção pela
forma como ficam presos, dando passos mais curtos, e o bailado se faz em maior
tempo para girar toda a quadra em que ficam os dançantes.
As saias são coloridas, em geral, podendo ser de cores únicas, mas todas
apresentam decoração em babados e rendas nas barras das mangas e na bainha
das saias.
Passa agora a saia colorida, que pode ser em chita ou em seda, lisa ou
florada, mas sempre em tons muito vivos, com muito cor-de-rosa, verde,
azul, amarelo, encarnado, roxo, numa variedade surpreendente de matizes.
A saia pode ter uma pala de um palmo, que a ajuste às ancas, ou vir toda
franzida no cós. Termina, geralmente, num ou mais folhos, ornado ou não
de uma das cores do pano se é estampado – ou em um tom diverso,
quando é liso (MEIRELLES, 2003, p. 39-40).
52
Essa descrição que Cecília Meirelles faz em sua obra “Batuque, samba e
macumba: Estudos de gesto e ritmo 1926-1934” poderia ser, simplesmente,
realocada na dança e na vestimenta do Batuque e do Marabaixo de hoje. A autora
descreveu, com artística e apurada observação, as vestimentas das baianas dos
anos 20 e 30 em Salvador e no Rio de Janeiro, e encontramos o espelhamento
das roupas das dançarinas atuais, que, com o tempo, estilizaram as vestes,
guardando semelhanças e itens sicos que aproximam a africanidade da época
com a africanidade de Macapá do presente.
É encantador perceber que os velhos costumes das vestimentas dos
escravos se mantiveram como memória cultural coletiva, sem que quase nada dela
se perdesse. As dançarinas não portam as subssaias ou saiotes engomados e
rendados nas danças de tambores, mas o gesto de arrebatar as saias lembra o
dancema
24
de mostrar a riqueza de suas vestimentas e a proximidade das saias
coloniais.
Hoje, são usadas bermudas colantes, em geral, de cor única, seguindo um
dos tons das saias. Assim, volteios e rodadas, que revelariam partes íntimas do
corpo, revelam agora pernas torneadas por tecidos colantes tão sensuais quanto
foram as rendas um dia. Os dançantes masculinos vestem roupas brancas, calças e
camisas, sem toalhas.
No Batuque, o cavalheiro aborda a dama na roda e aproxima-se sorrindo e
batendo palmas, entrando no compasso da dançante. A dama, por sua vez, pode
gritar, aceitar ou apertar o passo para fugir do cavalheiro indesejado.
Considerada uma dança “quente”, apaixonante, ela tem um ritmo que vai
crescendo até os pares se tocarem, a ponto de a proximidade permitir que o homem
seque o suor do rosto na toalha
25
que a mulher carrega no ombro, com parte do
traje da dança. “Terá pelo ombro um grande xale retangular, de um e meio a dois
metros de comprimento, com uma largura de uns oitenta centímetros [...] É o
24
O conceito do dancema seria a expressão mínima de cada passo de uma dança. Assim como o
conceito de fonema é a menor unidade sonora, o dancema seria não a menor unidade, mas cada
unidade dançada, cada passo. Assim, girar e cobrir o cavalheiro com a saia seria o dancema principal
no Batuque e Marabaixo.
25
A toalha tem uma evolução visível na cultura, como adaptação dos panos da Costa usados, até
hoje, nos trajes africanos, que servem, em alguns casos, dependendo da ocasião, para secar o suor
do rosto e das mãos. O pano, longo, é colocado sobre o ombro sem nenhuma forma de prender ao
corpo. Nos trajes de Batuque, as toalhas são usadas como enfeites, assim como o pano da Costa
ancestral. Elas têm cores de contraste com as roupas e as estampas, podendo ser coloridas ou
brancas (as últimas mais raras), e não saem dos ombros senão para secar o rosto da dançante ou do
homem no ato da dança.
53
autêntico pano da ‘Costa’ (da costa da África) ou de alguma das suas inúmeras
imitações” (MEIRELLES, 2003, p. 42).
Na cabeça das mulheres, um lenço amarrado como um turbante, mas ele
dura pouco durante a dança, em que os volteios desfazem o cuidado dos laços. As
dançarinas mais velhas conseguem manter a ordem dos lenços que são amarrados
em forma de triângulo na base da cabeça para trás. O lenço, em geral, foi sendo
substituído, com o passar dos tempos, por uma flor artificial com as cores das
roupas, que adorna os cabelos ora de um lado, ora dos dois lados. As meninas
portam tiaras com flores ou tranças decoradas com flores e fitas.
Nos pés, sandálias sem salto ou com um pequeno saltinho, permitindo que as
dançarinas possam fazer barulho ao bater os pés no chão. Esse apetrecho tem
relação, ainda, com a descrição de Meirelles (2003), que aponta serem sempre
menores as sandálias do que os pés, a fim de forçar um andar saltitante.
No Marabaixo, os dançantes evoluem para todos os lados com pés que
batem levemente no chão sem sair completamente. A evolução feminina segue
sendo semelhante à do Batuque, no entanto, a dança masculina evolui com gestos
bruscos de minueto.
Os homens portam leques de palha de buriti, com que dançam se abanando e
abanando as damas, até escolherem uma, quando então, se colocam à frente dela,
evoluindo de forma a impedi-la de evoluir. O homem enseja a corte como um
mestre-sala, gira sobre o corpo e abana a dama várias vezes, até que se abaixa e
o leque para ela, substituindo o objeto por um gesto de braços, embalando o ar
diante da dama. A hora de parar a corte se quando ela grita, levanta a saia e sai
deslizando.
Às vezes, a corteresultado e o cavalheiro tem a chance de ter o seu leque
abanado sobre ele pela dama, que, em seguida, faz as saias rodarem a ponto de
cobrir o homem, que segue dançando sob a saia. Esse é um ponto alto, em que a
roda toda grita e o par sai dançando. Tal dancema segue uma abordagem sensual,
que se nas expressões faciais dos dançarinos, sejam homens ou mulheres. Com
gritinhos e quase risadas, a dama redobra os passos para enganar o cavalheiro, que
a segue até conseguir ser coberto, por segundos, pela roda da saia.
Toda a sequência é muito sensual e poderia, talvez, representar uma dança
ritual ancestral de casamento ou de passagem para a idade adulta, ou ainda,
qualquer outra forma de assediar um par de uma maneira que lembra uma roda de
54
dança europeia. Mas a lembrança está também nas rodas indígenas e, mais ainda,
nas rodas africanas, onde dançarinos, a cada momento, realizam seus passos no
meio da roda, desafiando alguém para entrar, dançar e fazer melhor.
Essa hipótese, assim como as demais, pode tecer alguns fios da trama do
Batuque e do Marabaixo como dados culturais. O certo é que as danças de Batuque
e Marabaixo são executadas com uma alegria contagiante.
Sem dúvida alguma, cheios de uma graça e elegância únicas, os dancemas
dessas manifestações representam uma atividade artística distinta e harmoniosa, em
que braços e pernas exaltadas discorrem gestos suaves de parafusar os casais, um
tanto semelhante a danças rituais do Candomblé, onde os dançantes abaixam-se
até o chão sem perder o ritmo e o equilíbrio sutil da sensualidade cadenciada pelos
tambores.
Sobreviventes de uma memória ancestral de rituais africanos certamente de
cunho erótico, conservam, ainda hoje, os dois gêneros, Batuque e Marabaixo, essas
índoles de folguedo, de convencimento e de desafio, tanto quanto de sedução,
convite e assédio sensual e libidinoso.
Vale notar que a palavra “batuque” não restringe sua definição a essa dança
tal qual a conhecemos agora, mas engloba, em geral, todo ritmo marcado por
percussão em tambores
26
. Isso porque, historicamente, o Batuque consistia,
simplesmente, em tocar os tambores e outras percussões, em dias de domingo e na
coincidência do calendário cristão. O termo teria sido trazido da palavra “ngoma”,
que, em bantu, significa tambor, música, performance, ou, de forma mais
generalizada, bater em algo para produzir som.
no que se refere ao Marabaixo, uma das explicações para a origem do
nome viria da própria expressão “mar abaixo”, indicando o trajeto que os negros
fizeram, vindos da África para o Brasil.
Em ambas as manifestações, o corpo guarda resquícios que recusam ficar
parados dentro de alguma forma, provocam. As danças de origem africana são,
não raro, um despertar do ritmo próprio do corpo, como ir e vir, cair e levantar,
vergar para os lados qual galho no vento, andar com passinhos tão miúdos que
diríamos haver pequenos trilhos nos pés dos dançantes, mas, também, dar saltos,
26
Instrumentos de percussão originalmente tocados na África por todas as etnias lá existentes.
55
gritos, e jogar braços ao léu, nas palmas ritmadas seguindo o tambor, na cabeça e
no rosto, que acompanham tudo, como nos traços de enorme prazer.
Os dançarinos vão se inspirando no ritmo, nos gritos e na possibilidade de
mudar de dama. Os pares do início o se sustentam até o final; eles trocam, se
reencontram, mas podem não acabar juntos a dança. Isso dá uma espécie de
alegria marota, de fuga engraçada do par, que, ao se ver deixado, busca outra saia
rodando.
O entrelaçar da alegria com o dinâmico êxtase que tais danças promovem,
culmina na cumplicidade dos dançantes e seus corpos. Mais rápido, mais lento, às
vezes repetindo o mesmo ritmo, elas engendram a perfeita relação do tempo e
contratempo musical, quando possibilitam volteios do dançante sobre si mesmo e
manobras de pernas dos homens em busca do mesmo compasso da companheira
de ocasião.
O balanço do corpo, ora pra trás, ora pra frente, é complementado pelo
movimento dos braços da mulher, que segura a saia para mudar o peso do corpo na
direção oposta do parceiro, fingindo uma fuga do assédio.
As pausas dos tambores dão espaço para os compassos da percussão dos
pandeiros enormes, com mais de dois palmos de circunferência, além das caixas
reais, que invertem o tempo das batidas, oferecendo, aos dançantes, espaço para a
visagem, ou seja, o fingir que vai à frente e virar sobre o corpo e ir para trás, assim
como as pausas cercadas de sorrisos e gritos, onde as hesitações se repetem para
voltarem ao início dos passos, quando os tambores retomam o ritmo.
Os tambores sempre foram tocados por grupos de homens, antes exclusivos
na percussão das festas que reúnem o Batuque e o Marabaixo, mas essa dinâmica
vem mudando, em face da saída dos homens para procurar trabalho, de tal sorte
que é possível, hoje em dia, encontrar mulheres tocando com maestria.
Os tambores são tocados deitados sobre suportes de madeira, nos quais o
músico se senta sobre eles para tocar. A posição de execução é difícil, de tal sorte
que o músico deve ter um preparo físico bom e ser mais esguio, em função de ter
que ficar, por horas, dobrado sobre o estômago, com as pernas flexionadas,
chegando os joelhos perto do chão e os pés para trás. As pernas variam a postura,
mas o corpo está sempre voltado sobre si mesmo.
Além do ritmo marcado, o que não se altera, no Batuque e no Marabaixo, é o
grupo de mulheres que cantam. As vozes das cantoras têm grande semelhança com
56
as do Candomblé, que, para invocar os orixás, devem ser agudas e com certa
estridência metálica. São marcadas por uma rouquidão fina, que puxa os gritos e
arremata com sons como “hi hêêê”
27
, com variações em cada grupo. Cantam,
repetidamente, a mesma música pequena, infinitamente, sem que os brincantes se
cansem de dançar e refazer os mesmos passos.
As músicas são quadras cantadas, cujos versos e composições são
chamados de ladrões, os quais, com rimas simples, mas inteligentes, retratam a vida
real, o dia a dia das pessoas e, muitas vezes, ao estilo de repentistas do Nordeste,
os improvisos acontecem, resultando sempre em quadras engraçadas e inspiradas
no que as cantoras estão vendo naquele momento entre os dançantes. Quando das
festas nas comunidades, elas mexem com casais, filhos e avós, guardando muita
semelhança com o desafio de violeiros do Nordeste.
No entanto, essa pode ser uma herança também africana, pois o ladrão é
uma forma primitiva de poesia oral remanescente da África, onde contar histórias e
relatar fatos ocorridos são obra e função dos griots
28
, personagens que viajam entre
as ideias e lugares, fazendo versos e cantando os ladrões por dinheiro e por arte.
Contam o que viram e o que lhes pedem para contar.
No Marabaixo e no Batuque, as cantoras e compositoras de ladrões, por sua
forma de comunicar notícias e rir dos fatos sociais tornando-os públicos e
comunitários, permanecem, assim, repetindo um tanto do papel dos griots. Todos
são passíveis de produzir ladrões, temas do cotidiano e da cultura local, que são
desenvolvidos como canções
29
, que remetem a um dado memorial encontrado em
Meillassoux (1995, p. 107), que os refere em relação a um comportamento do
escravo.
27
Esses gritos se parecem com o aboio, que é o ruído que fazem os boiadeiros ao pastorar o gado
no campo ou na caatinga. Apesar da semelhança, o aboio de gado é melancólico e os gritos do
Batuque e Marabaixo dele diferem pela alegria. Mas também se parecem com a ritualística dos
cantos dos terreiros, em que as vozes femininas respondem às cantigas sempre com vozes um tanto
altas e sempre superando as vozes masculinas.
28
Os griots são elementos da cultura africana que desempenham papel de contadores de histórias
ocorridas em terras por onde passam. São músicos que cantam e tocam instrumentos. As histórias
são cantadas, e ele é um músico que canta e toca instrumentos. Com status bastante reconhecido e
elevado, os griots eram, nos tempos coloniais, espécies de conselheiros de reis e príncipes africanos,
que deviam ter um ou dois em suas cortes. Contar histórias do cotidiano na África é, ainda hoje, um
lugar de destaque para cantores e artistas da linguagem, em muitas das etnias africanas, e os griots
têm espaço na indústria fonográfica mundial, gravando suas composições comercialmente, de modo
que podemos acompanhar suas carreiras por toda a Europa e África.
29
Os versos e demais formas de construção poética serão tratadas, com mais detalhes, mais adiante,
neste trabalho.
57
Os ladrões estão ligados a uma percepção herdada das estruturas africanas
dos clãs, onde o escravo não era considerado gente e, segundo o autor, a
escravidão, mesmo longinquamente herdada, mesmo temperada pelo sangue dos
francos, alimentava uma ideologia poderosa de discriminação e de arbítrio, “em tudo
quanto o cativo, ex-cativo, ou forro produziam, culturalmente”.
Aparentemente, os termos descivilizados, dessocializados,
despersonalizados, entre outras colocações sobre o tema, parecem explicar a
nomeação dos versos de Batuque e Marabaixo por ladrões. Neste sentido,
Meillassoux (1995) coloca que os fatos sociais vividos pelos cativos, em relação à
sua condição de estranhos absolutos à sociedade acolhedora de sua força de
trabalho, os caracterizavam pela dedicação infinita ao trabalho e o ócio da arte, ou
usar o tempo para produzir arte. Ao lançar mão da linguagem, da poesia, dos
versos, isso seria uma atitude de furtar o tempo.
Os ladrões, compostos a partir de acontecimentos locais ou remanescentes
de memórias pessoais, revelam, ainda, um traço de familiaridade com o cordel, ao
contar fatos em versos, sendo, no entanto, os ladrões, escritos em outro ritmo,
seguindo os compassos dados pelos couros de tambores ancestrais, cuja lei da
identidade não se limita a controlar graves e agudos, mas a conceituar o belo e o
harmônico de uma arte não esquecida: a arte de se divertir com o próprio corpo em
seu próprio espaço memorial.
Mas o é no encanto dos ladrões que se caracterizam o Batuque e o
Marabaixo. Muitas vezes, eles são dançados apenas na palma da mão e na
percussão. Quando as palmas se revezam, as cantoras fazem os deságios dos
gritos mais expressivos.
As duas manifestações o bastante semelhantes em termos de batidas e
toques e, na maioria das festas das comunidades no Amapá, ambas ocorrem juntas.
A passagem do Batuque para o Marabaixo é feita com a troca de instrumentos,
deixando de lado o tipiti
30
e os cilindros de madeira
31
, ficando pandeiro, caixas e
30
O tipiti é feito de madeira oca, onde estão sementes que fazem a percussão com um som de água
caindo. Há, ainda, duas madeiras ocas muito lisas, que são batidas uma na outra acompanhando os
gritos. Tal instrumento faz lembrar os chifres de boi ou búfalo, que são utilizados nas roças de
Candomblé em situações rituais em que se querem chamar todos os iniciados a entrarem em transe.
A semelhança remete, novamente, ao universo africano de remanescentes de escravos nos
quilombos.
31
Uma espécie de reco-reco de madeira cavada, tocada, em geral, por meninos, com uma vareta
fina.
58
tambores. Essa passagem se com a diminuição do ritmo e a parada de um e
outro instrumento, que vai sendo substituído pelo aumento significativo dos toques
de tambor.
No Marabaixo, o pandeiro é tocado de forma diferente, batido com golpes de
mão aberta, como se faz no samba, escorregando os dedos pelo couro, tocando de
leve as bordas, fazendo vibrar as plaquetinhas de metal da circunferência. Quando
isso acontece, as pessoas se deixam levar pelo som, que ainda nelas reverbera,
sendo possível ver evoluções individuais ao sabor do prazer da dança que ecoa no
corpo de cada um.
As duas manifestações têm como componente de alegria, a gengibirra,
beberagem feita à base de gengibre, limão e mel com cachaça, que resulta em um
líquido grosso, vendido gelado, que mantém o sabor forte e ardido do gengibre,
atenuado pela combinação doce-azedo do limão. A bebida aquece o corpo e eleva o
desejo de girar e rodar, e é isso que se faz em uma festa de tambor em Macapá,
onde parece que as mudanças culturais se fazem sem outros grandes traumas,
senão os que já suficientes tenham sido feitos.
Diante de todo esse cenário característico do Batuque e do Marabaixo, fica
claro que essas duas manifestações seguem sendo práticas aglutinadoras de
festividades, encontros e inserção dos elementos culturais resultantes da
miscigenação e das raízes que branco, índio e africano possuem e repassam para
onde se espalham.
Dos brancos, ficaram as ladainhas rezadas e cantadas sempre antes de
qualquer festa com quilombolas, que ainda sabem repetir as rezas em latim, a
menção dos santos nos ladrões, os próprios santos como protetores de cada grupo,
além do uso de bandeiras, estandartes e as fitas nas imagens, os costumes de ir à
missa (já em desuso antes de qualquer festa), tudo ligado a crenças e atos religiosos
europeus, sem falar na reverência diante desses ícones.
Dos índios, os pés arrastados no chão sem fadiga depois de horas de danças,
a bebida como propulsora de um êxtase feliz realizado na dança, o círculo, os gritos
e o uso de colares e enfeites nos braços e tornozelos. Dos africanos, entre outras
características, o som, que nos é familiar, sempre de inspiração percussiva e ritmada
na palma das mãos.
O fato de terem sido preservados os rituais presentes nas manifestações de
Batuque e Marabaixo confirma que a cultura organiza e é organizada de forma a dar
59
um sentido aos elementos com que convive. Isso corrobora, ainda, a colocação de
Laraia (2002), sobre a forma como o hábito cultural ocorre.
A ritualística fica por conta da ligação com os símbolos religiosos. O escravo e
o índio, ao festejar, deviam fazê-lo em nome e em datas tidas como litúrgicas e
marcadas por elementos católicos, como as bandeiras, os santos, as representações
de cores originais, assim como notamos na frequente presença de bandeiras ou
estandartes que vão à frente dos grupos antes de se iniciarem as festividades. Outro
sinal ritualístico, que, hoje, porém, não é muito observado, é a reza obrigatória de
um terço ou de uma ladainha, com toda a comunidade, um dia antes de partirem
para o Encontro de Tambores.
Assim, o sistema que acolheu a cultura no Amapá sempre esteve ligado a
pelo menos três redes de pertencimento: o indígena, o branco e o africano. A própria
compreensão da vivência humana torna a busca pela memória um fato
indissociável da história de luta de vários grupos que vieram colonizar a região.
61
2 DIÁRIO DE VIAGEM
Em tudo quanto olhei fiquei em parte.
Com tudo quanto vi, se passa, passo,
Nem distingue a memória
Do que vi do que fui.
(RICARDO REIS – Heterônimo de Fernando Pessoa)
2.1 A motivação e os preparativos para a viagem
A escolha por ouvir, nesta viagem, relatos de memória do povo do Amapá
justifica-se pela vitalidade e diversidade de recursos naturais e humanos da região,
bem como pela sua importância histórica, social e antropológica.
Sendo a memória oral um instrumento valioso para se construir a vida
cotidiana de uma dada cultura, optamos por ouvir velhos e jovens que quiseram falar
de suas vidas, relatar histórias ouvidas e cantar versos de cabeça, enfim, contar tudo
do que se lembravam de suas vidas no Amapá.
Segundo E. Bosi (2003), a oralidade é mediadora de gerações e do
passado/presente, de tal sorte que tais relatos são intermediários da cultura que
conviveu com escola, igreja, Estado, mas que resistiu na oralidade, espaço de
riqueza inconteste na cultura local.
O esquecimento, que, nas palavras de Paul Ricoeur (2000, p. 63), “ronda o
indivíduo”, é superado pelas histórias das sensibilidades, opinião essa
compartilhada por E. Bosi (2003). Reiterando a visão de Pierre Nora (1997b, p.
1677), de que as raízes da memória estão no concreto, no espaço, no gesto, na
imagem e no objeto, entendemos que: “A história se liga apenas a continuidades
temporais, às evoluções e às relações entre as coisas”.
A memória está no sensível. Nesse sentido, segundo P. Ricoeur (2000, p. 63),
é no sensível que se encontram:
62
A memória e seus relatos, que engendram a saúde cultural dos indivíduos
através de sua própria história, assim como sua relação com a vida e os
relatos de si mesmo já que é preciso que som e sentido não se separem
indefinidamente na memória.
Lançamos mão de Ricoeur com o conceito de sonoridade ligado à memória,
por acreditarmos que sonoridade e silêncio, no Amapá, serão lugares a serem
considerados.
Os sons do Amapá, suas imagens e suas lembranças reúnem-se no relato
desta viagem, tentando capturar um tempo como ponto de fuga infinito que remonta
aos primórdios das descobertas e achados europeus em terras e águas do delta
amazônico, para chegar ao presente, em que a memória recente recorre a um
governo que valorizou a cultura local e considerou a diversidade de uma terra
longínqua sem praias, que recebe, há 6.000 anos, duas fachadas aquáticas: a fluvial
amazônica e a equatorial atlântica.
Essa é, potencialmente, uma fronteira física e humana que requer nossa
atenção, se não por esses dados, tanto mais pelas manifestações culturais dos
remanescentes de quilombos. São dezenas de comunidades ainda não tratadas do
ponto de vista antropológico, para além de sua catalogação
32
.
Trataremos, então, aqui, das relações e da memória do povo do Amapá, mais
especificamente dos ribeirinhos do arquipélago do Bailique e dos habitantes das
comunidades remanescentes de quilombos em Macapá, revelando suas lembranças
e memórias, inspiradas em fatos que percorreram as graças do tempo, como disse
E. Bosi (2003). Discorreremos, ainda, sobre algumas das manifestações culturais e
religiosas mais produtivas da região, que são o Marabaixo e o Batuque.
Segundo teorias largamente autorizadas relativas à memória e seu espaço
sociocultural, como a de M. Halbwachs e outras que estão inseridas ao longo deste
trabalho, tentamos captar os resultados de uma escuta atenta de pessoas que se
dispuseram a sugerir a recriação do passado de suas vidas e suas interpretações.
Costuma-se planejar viagens com antecedência, mas, ao se realizarem, elas
jamais serão como planejamos.
32
Uma delas deu-se a conhecer apenas em um recente trabalho de doutorado que veio a ser
publicado em 2006, intitulado “Quilombolas: Tradição e cultura da resistência, no qual Rafael Sanzio
dos Anjos menciona e descreve, brevemente, mas com propriedade, em imagens e texto, o Curiaú,
um dos quilombos remanescentes de Macapá. Mas esses são, na verdade, mais de uma dezena.
63
Essa viagem confirmou tal observação, pois nada do que fora programado no
princípio aconteceu. Foram surpresas nem sempre agradáveis desde a chegada ao
solo, no dia 10 de novembro de 2004, mas foi, sem dúvida, melhor do que o
planejado.
Foi uma experiência para além do deslocar-se para fora do lugar de origem,
como se define “viajar”. Deveria ser uma viagem acadêmica, mas deixei-me conduzir
e surpreender para, então, tratar dos fatos como preciosidade de pesquisa
antropológica digna de ser tema desta tese.
O entendimento do local me foi dado em uma sucessão de vivências e fatos,
exigindo uma postura nova relacionada com a distância e o tempo, pois, lá, a
extensão se torna proximidade. Passei para outra ordem, onde tempo não
representa uma distância a ser percorrida, mas uma mudança de registro do próprio
corpo, do olhar e da escuta.
Ao viajar, empreitamos o tempo, como coloca Cardoso (2000) e, desse modo,
passei a fazer a empreitada de mudar de lugar no interior de um mesmo mundo, o
mundo fora dele, o Amapá.
Esse sentimento temporal está colocado em Halbwachs (2004, p. 107),
quando diz que o tempo completamente homogêneo é o tempo da mecânica e da
física, é o tempo matemático, é aquele que se opõe ao “tempo vivido” de um lugar a
outro, de um polo a outro, que aqui nos interessa por tratar do tempo da memória, o
tempo vivido.
Quando conseguimos sair de nossa situação temporal, colocando-nos do
ponto de vista de outros grupos e de conjuntos mais amplos, estamos no tempo
vivido do outro. É quando, afinal, acontece a alteridade. Ao esvaziarmos a matéria
do nosso tempo, nos permitimos ampliar conteúdos vividos pelo outro.
Viajar, o deslocar-se simplesmente, o nos permite essa vivência temporal;
temos que ser nômades. Temos que caminhar e observar em busca dessa viagem
mais profunda de encantamento sim, e de acolhimento de realidades culturais
diversas, onde as brechas de sentido se entrelaçam, transformando aquilo que se
nos apresenta.
Encantar-se com um trabalho acadêmico é uma graça inesperada até para os
mais experientes pesquisadores, e foi isso o que ocorreu com a pesquisa nas
comunidades do Amapá, acolhendo seus relatos com a mesma generosidade com
64
que fui acolhida. A tese tomou corpo no tempo da viagem, que sempre é um
encontro e uma forma de sentir o pulso do mundo à nossa volta.
Desde o início dos preparativos, eu tentava antever o Amapá geográfico no
espaço amazônico: no preço dos bilhetes, na escolha das roupas leves para o calor
de 42ºC, na definição da filmadora, na sensibilidade da máquina fotográfica e dos
pequenos gravadores, das frágeis películas e cabos, na quantidade de cabos para
ligações desconhecidas...
33
Nos tempos de preparação e embasamento das hipóteses, encontrei o
tradutor Nilson Moulin
34
, que me ajudou com um exemplar raro sobre a língua
créole. Tudo parecia caminhar bem.
Inicialmente, iríamos até Macapá e, lá, em dois dias, embarcaríamos para
Brasília rumo à Caiena, capital da Guiana, de onde seguiríamos para o Oiapoque,
por terra. Ficaríamos na região, onde uma colônia de brasileiros, e voltaríamos
pelo Rio Amazonas até Macapá, pesquisando em Clevelândia, local em que
guianeses radicados no Brasil.
2.2 Um fato novo para a viagem
Aceitando uma sugestão
35
, entrei em contato com um grupo de
pesquisadores espanhóis, os quais, por coincidência, preparavam-se para subir até
o Amapá em um barco. O grupo precisava de uma parceria para o rateio da viagem.
33
Neste momento, ficou claro para mim que eu precisaria de alguém com conhecimento dessa “coisa
toda” para operar com o sentimento de aventura controlado semelhante ao que tive durante os
preparativos. Assim, firmei parceria com um jovem aluno do curso de francês, Adriano Rosa
Casanova. O aceite para ser o fotógrafo lhe caiu bem, que ele finalizava o curso de mídias digitais
na PUC Marquês - São Paulo, com mérito e criatividade premiada, o que lhe proporcionou realizar um
trabalho de excelência, que enaltece a qualidade deste estudo, delineando um panorama memorial
do Amapá, através de imagens humanas e ambientais. Atualmente, Casanova encontra-se na
Espanha, após defender uma dissertação de Mestrado em Londres, na Universidade de Arte e
Tecnologias Digitais. Quanto ao tratamento dado às imagens, esse foi um trabalho de pós-produção
da fotógrafa etnóloga da imigração italiana em São Paulo, Ângela Di Sessa, que transformou os
pedaços de imagens (takes) e os momentos captados em percurso de memória digna do olhar
nômade, viajante.
34
Nilson Moulin, tradutor e professor universitário, foi como um assessor do governador João
Capiberibe, em 2000, sendo responsável pelos projetos levados a termo na gestão do governador,
além de trabalhar, em São Paulo e em Brasília, pela aprovação de atividades fundamentais para a
colocação do Amapá como produtor e gestor de seu próprio desenvolvimento. Hoje, atua no terceiro
grau e segue traduzindo e assessorando as secretarias do estado do Amapá, no atual governo.
35
Sugestão que me foi dada pelo Professor Reigota.
65
A expedição dos pesquisadores era composta por cinco membros de duas
universidades, que pretendiam subir até o arquipélago do Bailique. Da Universidad
de Alicante, na Espanha, dois docentes da área de Sociologia e Teoria da Educação
– o Professor Antonio Aledo Tur, Coordenador do Programa de Doutorado em
Sociedade e Cultura Contemporânea, e outro professor de nome Miguel e dois
alunos, Pedro e Jorge, orientandos de pesquisas em Biologia. Da Universidade
Estadual de Londrina, no Brasil, o Professor Nilson Giraldi, docente da área de
Biologia e Meio Ambiente
36
.
O fato inesperado de que poderia me juntar ao grupo em uma expedição
pouco comum e muito cara se feita individualmente animou a viagem, e eu incluí o
Bailique no roteiro.
Contato feito, o pagamento da viagem seria realizado no dia em que nos
encontrássemos, e deveria ser em dinheiro, pois seria uma parte do pagamento do
barco. Esse fato surgiu como um dado novo, visto que serviria como preparação do
trabalho de campo, e acabou por se revelar como mudança fundamental no
percurso da tese que aqui se relata.
Os detalhes eram os seguintes: saindo do porto de Macapá, em datas muito
próximas às que eu definira para a minha chegada na capital, esperaria dois dias
pelo grupo. Subiríamos pelo Rio Amazonas por quinze dias, para navegarmos no
arquipélago do Bailique, que faz fronteira com o Atlântico nas ilhas mais ao norte.
Minha adesão ao grupo permitiria contatos, nas ilhas, com habitantes que
tinham estado na Guiana ou com famílias cujos parentes moravam em Caiena ou
próximos da fronteira, segundo eu depreendi de conversas informais com os
Professores Reigota e Moulin, grandes conhecedores da região.
2.3 A reviravolta no percurso
Chegamos à Macapá em uma madrugada de novembro de 2004 e, logo no
saguão do aeroporto, pude perceber o início da crise aérea que abalou o país, na
época. As companhias Varig e Vasp, das quais compráramos os bilhetes de
36
O Professor Nilson Giraldi foi uma espécie de guia e intérprete para os espanhóis.
66
sequência da viagem para Caiena e de volta para São Paulo, haviam desaparecido:
balcões, funcionários e aviões. O choque foi terrível, mas não poderíamos perder a
viagem agendada com os pesquisadores espanhóis.
conseguiríamos voltar por outra companhia aérea pagando novos bilhetes,
e isso ficou caro. Compramos a volta para São Paulo e dei por perdida a viagem à
Guiana. Com isso, perdemos muito dinheiro das despesas da pesquisa, pois nada
nos foi devolvido e o prejuízo foi bem grande. Informei-me para tentar ir por terra,
mas não havia estrada. De barco, o custo era inviável.
Acabara, então, a pesquisa, no mesmo dia em que desembarquei. Em
choque, mas acreditando que alguma coisa poderia ser feita, aguardamos dois dias
pela chegada dos outros pesquisadores. Nesse tempo de angústia, em silenciosas
horas sem conseguir pensar em uma saída possível, começamos a conhecer parte
da região.
Imaginei que a troca com os demais integrantes da expedição poderia me dar
um espaço com pares ideais para rever a situação da pesquisa interrompida antes
mesmo de começar, mas a expedição aconteceria bem longe da fronteira, pois
havia, ainda, o impedimento legal na fronteira terra/água com a Guiana. A polícia
local não reconhece barcos comerciais que levam passageiros mesmo com visto de
entrada; só pelo aeroporto. Incontornável.
Assim, deveria pensar outro caminho para reescrever o percurso, ou traçar
um outro percurso. No entanto, o fato nos levou para fora do projeto e para dentro
de outra realidade, onde se constituiu um percurso de viagem como metáfora de
acesso aos relatos da cultura do Amapá através de seu povo.
Fiquei hospedada em um hotel familiar, uma quase pensão indicada por um
taxista. Tentando manter certa alegria por estar , sufocava em um quarto com
um ventilador capenga. A janela dava para um quintal de dimensões impensáveis
para um hotel urbano. Havia um canil com mais de vinte cães, além de porcos,
galinhas e algumas aves que voavam pelo saguão e na cozinha do hotel. Duas
araras vermelhas e azuis, e papagaios verdes de tons e plumagens diferentes, em
uma área cheia de mangueiras e açaís. O quintal em Macapá é a floresta.
Macapá é o “país” do açaí, e só é possível sobreviver ao calor consumindo
o caldo roxo, diariamente, em cada refeição e fora delas. Não tem nenhuma
referência com o que se costuma comer no Sudeste. Lá, o caldo é grosso como
mingau, e é colocado sobre o arroz, feijão, carnes, ou servido com açúcar como final
67
da refeição, ou com farinha de mandioca ou tapioca, como lanche em cuias.
Bicicletas cruzam as ruas sem asfalto entregando sacos de açaí nas casas, onde
são preparados artesanalmente. Eu observava o entorno sem muitas ideias,
querendo ser turista naquele momento.
A viagem teve uma reviravolta e eu estava, agora, olhando as águas do
Amazonas que banham a capital, aguardando os espanhóis para decidirmos os
detalhes da expedição, caminhando na calçada beira-rio.
Aguardando os espanhóis...
Isso soou tão fantástico quanto poderia ser em se falando de expedição,
barco, colônia. A espera nos deu tempo de percorrer lugares como o IEPA (Instituto
de Pesquisas Científicas e Tecnológicas do Estado do Amapá), onde encontramos
viveiros de espécies extintas e ameaçadas da floresta, assim como inúmeras
pesquisas e projetos que privilegiam os conhecimentos locais de ervas, garrafadas,
mézinhas e o plantio sustentável de espécies da farmacopeia nacional. O lugar é um
recorte da floresta no perímetro urbano da cidade.
Foram dois dias em que pude andar e ver, também, a ambiciosa fortaleza de
São José de Macapá, construção que, como explanamos, foi o marco zero do
início da colonização do Amapá e que se tornou referência de arquitetura militar
colonial no país, tendo sua história ligada visceralmente à construção da cidade e
das comunidades remanescentes de quilombos.
Conhecemos o forte, mas voltaríamos a fazer isso, posteriormente, em busca
de outros detalhes. O monumento nunca fora utilizado e mantém os problemas
típicos de uma obra realizada sobre o aterro das águas do rio. É extremamente
úmido e fungos crescem nas fendas das paredes, pelo chão, por entre as pedras.
lugares em que se pode ver a água vertendo, fazendo pequenas poças no piso
enegrecido, donde uma poeira grudenta de fungos exala um cheiro pantanoso.
O dia seguinte seria de espera pelo embarque. Fomos, então, ao encontro do
grupo da expedição para um almoço em um restaurante que avançava em um
trapiche sobre o rio. Eram cinco homens, conforme foi mencionado, com certo
clima de alegria e distância cuidadosa dos estrangeiros com os locais.
Não se pode dizer que foi um encontro de reconhecimento, mas de
constatação de quem eram as pessoas com quem embarcaríamos. Estávamos
entrando na expedição para aproveitar o barco e não para participar das pesquisas
do grupo e, assim, o nos esforçamos em perguntas mais longas sobre a
68
expedição deles, assim como eles não nos perguntaram sobre a nossa. O intérprete,
professor da Universidade Estadual de Londrina, colocava-se como tradutor e, a
princípio, nos pareceu mais simpático.
A conversa seguiu pelos detalhes da viagem, apresentações e
especificidades, como datas de saída e volta. O primeiro contato foi de certo
desconforto, que se confirmaria na sequência dos dias.
Acredito ter deixado essa impressão primeira impedir as perguntas
necessárias que poderiam ajudar na pesquisa, mas não tinha nada definido e isso
foi, ao mesmo tempo, um entrave e uma ajuda preciosa.
Algumas informações básicas seriam importantes, tais como quais ilhas
visitariam, quanto tempo em cada ilha seria necessário para eles, se eu poderia
alterar datas se algo me interessasse e quais as possibilidades de mudanças
durante o percurso. Mas, fizemos o acerto financeiro; não houve espaço para as
perguntas nem durante o percurso da expedição.
Partiríamos do cais central, no final da tarde do dia seguinte, mas deveríamos
apresentar as bagagens no início da tarde, junto ao ancoradouro. Com as mochilas
preparadas, fechamos a conta e reservamos novamente o quarto para a volta,
quando haveria uma grande atividade cultural na cidade: o I Fórum de Cultura do
Amapá, além da Feira Internacional de Indústria e Comércio da Região Norte.
No Amapá, o tempo não conta, pois a vida é pautada pelo rio, o ir e vir das
marés, suas vontades e seus sinais.
Esse tempo que se movimenta com a matraz de imediato a ideia de um
tempo de fábula e de memória, que é, segundo M. Pêcheux (1999, p. 56), um
espaço circular de divisões, disjunções, deslocamentos, retomadas, conflitos e
regularização. Revela-se, assim, como um espaço de desdobramentos e
contradiscursos, exatamente como estávamos vivenciando com a quebra do projeto
inicial.
Eu vivenciava um deslocamento que estava me levando a pensar minha
pesquisa e minha vida do ponto de vista exatamente dessa simbólica condução no
tempo, onde as marés nos submetem a uma perda constante e a uma recuperação
de coisas realocadas.
Deixava vazar o projeto anterior para me preencher de novos sentidos vindos
com a volta da maré, que sempre traz novidades. A ngua se esvaziara e o silêncio
69
da cheia estava para fazer pensar. Depois que entendemos isso tudo, ficamos
mais confortáveis na própria pele. Não há como resistir a essas vazantes e cheias...
Preparava-me para inéditos, pois nunca havia estado tão ao norte do país, tão
na barra final do Brasil. Pensei na riqueza daquele momento. Decidi usar a descrição
de Lucy Dias e Roberto Gambini (1999, p. 349) sobre as marcas do olhar, para fazer
o exercício de usar o mesmo como espaço privilegiado na viagem, por ter ele outra
consistência:
O olhar não descansa sobre a paisagem contínua de um espaço
interiormente articulado, mas se enreda nos interstícios de extensões
descontínuas, desconcertadas pelo estranhamento. Aqui o olho defronta
constantemente limites, lacunas, divisões e alteridade, conforma-se a um
espaço aberto, fragmentado e lacerado. Assim, trinca e se rompe a
superfície lisa e luminosa antes oferecida à visão, dando lugar a um lusco-
fusco de zonas claras e escuras, que se esquivam à totalização. E o
impulso inquiridor do olho nasce justamente dessa descontinuidade, deste
inacabamento do mundo: o logro das aparências, a magia das perspectivas,
a opacidade das sombras, os enigmas das falhas, enfim, as vacilações das
significações ou as resistências que encontra a articulação plena de sua
totalidade. Por isso, o olhar não acumula e não abraça, mas procura; não
deriva sobre uma superfície plana, mas escava, fixa, fura mirando as frestas
deste mundo instável e deslizante que instiga e provoca a cada instante sua
empresa de inspeção e interrogação... O olhar pensa. [...].
Entrando no universo do meu olhar com outra consistência, fiquei tentando
nunca deixá-lo apenas descansando sobre as paisagens. Tentava articulá-lo nos
descontínuos, deixando-se levar pelos estranhamentos, pelo depaysement, pelo
desenraizamento, como se não houvesse país para onde voltar.
E foi com esse sentimento ainda não teorizado que abandonei a infelicidade
do projeto anulado e deixei-me invadir pelo olhar viajante, pelo nomadismo, pelo
silêncio anterior à voz. Eu estava sem palavras e isso era parte da nova realidade da
pesquisa.
2.4 O embarque
O cais central de Macapá, onde o barco estava ancorado, embarcava os
alimentos e diversos materiais, naquela hora da tarde. Era um barco branco, com
uma larga faixa azul na parte inferior até a metade do casco. Seu nome era
70
“Maresia”, e nele embarcavam pacotes em papel pardo, sacos de farinha cheios de
volumes indefinidos, bebidas e água, cachos de pacova (uma das qualidades
amazônicas de banana), frutas em cestos e várias caixas de isopor. O volume
parecia ser para alimentar um batalhão por meses sem tocar a terra.
O dia avançava e um defeito no barco interrompeu o embarque. Fomos
informados de que haveria mais demora no embarque dos nossos volumes.
Aproveitamos o tempo para visitar o Hotel Central de Macapá, o mais antigo
da cidade, com ares de construção dos anos 60, onde tomamos um lanche e
flanamos pela avenida beira-rio.
Grandes troncos de árvores boiavam na maré que enchia naquela hora,
ficando presos a espaços assoreados pontilhados de outros troncos vindos em
outras marés. São árvores cortadas com serras e descascadas, o que nos fez
pensar no desmatamento como uma realidade próxima e dolorosa. Havia outros
troncos que mostravam as raízes arrancadas com torrões de terra ainda agarrados.
Esses, certamente, seriam resultados das frequentes pororocas.
Pedaços de barcos, sobras de redes de pesca, muito lixo plástico, latas,
chinelos e roupas vivem à deriva, na beira-rio de Macapá.
A margem, de onde pudemos observar, era um bolsão para onde a água fluía
e ficava presa pela terra inundada de lixo que transformava o lugar em um alagado
de cor de cinza escuro. Havia, ali, árvores desde há muito tempo encalhadas.
Meninos tomavam banho na maré vazante, pulando do ancoradouro nas
ondas do rio. Alguns pulavam com bicicletas da altura de uns 4 metros e subiam
pelas escadas laterais do trapiche para mergulhar de novo. Era a “hora do banho” de
crianças pobres do local, disse-nos um passante. Os banhos acontecem quando a
maré vaza e deixa descobertas árvores frondosas que os desavisados nem
imaginam existir submersas abaixo da linha d’água.
O sol iniciava sua curva descente em um espetáculo à parte, juntamente com
meninos que apareciam para jogar o futebol na lama. Com a vazante, que leva umas
duas horas para encher novamente, o leito do rio fica exposto, formando uma praia
imensa coberta de lodo escuro como lodo de mangue.
As crianças se organizavam em dois lados de um imaginário campo de
futebol e começavam a jogar uma partida rápida e divertida para eles, caindo
seguidamente na lama. Outros, com pedaços de madeira, escorregavam qual
prancha na beira-mar.
71
O sol não aquecia tanto e se podiam ver as mínimas ondas que voltavam
trazendo o rio para o seu leito habitual. Uma correria se iniciava até o trapiche do
cais, quando, então, os meninos enlameados mergulhavam várias vezes ainda antes
de a maré encher por completo. Pessoas jogavam moedas, que eles buscavam em
mergulhos estabanados e traziam de volta. É inacreditável, mas os meninos
encontravam algumas das moedas jogadas!
Voltamos ao cais central e nos sentamos às mesas de um ônibus estacionado
que servia lanches. Dali, seguimos acompanhando o movimento no nosso barco.
Garçonetes subiam escadas na lateral do ônibus, onde entregavam comandas e
pegavam os pedidos. Era um espetáculo circense o tal ônibus.
Pedimos um lanche aconselhado pela garçonete. Imenso! Era a marca
conhecida do local. Grande como o rio.
A longa espera, já na boca da noite, foi quebrada pelo voo de baratas
enormes que vinham do rio caindo sobre os carros, pessoas e mesas,
aparentemente, em um voo cego. O difícil era ficar fora do alcance dos rasantes que
faziam; apesar de os moradores afirmarem que eram inofensivas, assustavam o
ruído e o impacto. Insetos incríveis, mais parecidos com grandes besouros, nada
tinham de asquerosos, mas de exóticos e surpreendentes, quando soubemos que
viajam muito para morrer nas terras úmidas da floresta tropical.
São insetos migratórios, medindo uns 20 centímetros quando de asas
abertas. Ao caírem, as baratas estavam quase mortas, arrastando-se por minutos
e morrendo. Havíamos visto quantidades delas pelos cantos do Forte de São José,
quando visitamos o local, sem saber, entretanto, que se tratava de tal espécie.
No barco, homens sumiam dentro e voltavam em falatórios. Dava certa
insegurança e o grupo impaciente de estrangeiros rondava todo o tempo.
Os homens haviam trabalhado por horas seguidas no barco e, agora, já
escurecendo, avisaram do embarque, afinal. A viagem até o Bailique seria noturna.
Embarcamos por volta das 20h00min, exaustos todos, mas, por razões diferentes,
zarpamos. Eu, com o sentimento de ter um projeto se desmanchando nas águas
agitadas pelo motor.
O interior do barco abrigava dois beliches na parte inferior junto ao casco,
quentíssimo, além de vários suportes para redes. Por segurança, eu levara a minha,
mas decidi por uma das camas mais perto da porta.
72
Seguiu-se o embarque de dois assistentes de navegação: Ivan e Pedro,
ribeirinhos de pequena estatura, magros, de cabelos lisos e pele escura, silenciosos.
Além deles, embarcou um guia da região, que soube depois ser o contato dos
pesquisadores e o produtor da expedição, que faria os contatos nas ilhas. Parecia
um indígena-mouro e, com quase dois metros de altura, tinha dificuldade em ficar de
nas áreas cobertas do barco. Era o Sr. Amarildo, que trouxe uma jovem senhora,
de nome Maria Antônia, na garupa de sua moto. Segunda e única figura feminina
além de mim a embarcar, ela se ocuparia da cozinha e da arrumação do barco.
E, afinal, embarcou o mais importante de todos: o competente Sr. Adroaldo
Penna, piloto e capitão do barco. Baixo, mais para gordo, de aparência forte, tinha
mãos grossas e pés largos e espalmados em uma sandália de dedo gasta. Ele se
movia na embarcação com uma agilidade incrível, subindo e descendo, arrumando
tudo, acondicionando a carga e mexendo em partes do barco. Durante toda a
viagem, usou bermudas largas, camiseta regata e um boné (apenas quando o sol
batia de frente no vidro do barco). Simpático, nos recebeu no passadiço, dando as
boas-vindas. Fomos apresentados aos tripulantes.
O Sr. Adroaldo se movimentava muito, parecendo preocupado com a hora e a
maré. Coisa indissociável e precisa. o sairíamos, no entanto, antes da próxima
maré alta. Ninguém sabia ao certo a hora, só ele.
Um lanche foi servido, com sucos e frutas, pacovas fritas, pães e queijos. Mas
essa dieta não durou muito, sendo logo substituída por mandioca, cuscuz de milho,
bolachas de água e inhames. O pão é raro no local. Cansados e ansiosos,
consumimos, quase em silêncio, o lanche servido, e creio ter sido o medo que calou
a todos. Navegaríamos à noite.
Passei a chamar o Sr. Adroaldo de “Capitão”, e o nome pegou para os
demais. Foi ele quem me ensinou o valor do silêncio amazônico como forma
produtiva de conhecimento. Foi com a escuta atenta e a observação silenciosa
ensinadas pelo Capitão, que me refiz da perda do projeto Guiana e criei um novo.
Sairíamos com onze pessoas a bordo, que depois se tornaram treze, com as
trocas de ajudantes que desembarcavam e embarcavam no percurso até as ilhas.
Aos poucos, Macapá foi sumindo e o Rio Amazonas tomando dimensões
marítimas. Lá, às vezes, dava para esquecer de que se estava em um rio, e
passamos a ver apenas o horizonte sem margem, por algum tempo, a que a
escuridão noturna nos envolveu.
73
A cozinheira tinha uma tarefa heroica: a de cozinhar para tantas pessoas em
um espaço exíguo de 60 x 80 cm, onde cabia um fogão de duas bocas à direita e
uma pia minúscula à esquerda, com um frigobar sob a pia, e prateleiras estreitas
acima do fogão. O melhor da “cozinha” era a vista panorâmica da escotilha quadrada
de dois palmos.
O espaço interno de convivência do barco era dividido por dois freezers
horizontais e a tampa do motor que ficava sempre fechada, servindo de mesa para
as refeições. Na proa, um banheiro, com a mesma janelinha quadrada, dava, ao
toalete, uma visão das margens do rio enquanto se tomava banho no chuveiro que
bombeava a água todo o tempo. Toda a água utilizada no barco era do rio. Havia na
proa, ainda, uma varanda com uma pia, onde se limpava peixe e lavava roupas, e
encontrava-se uma corda grossa amarrada ao barco, a título de possibilidade de
banho radical enquanto se navegava.
O pessoal do barco e o fotógrafo foram os únicos a ter coragem de tal proeza.
Eles desciam pela corda, metiam os pés em grossos nós que ficavam sob as águas
e, ali, tomavam banho e refrescavam-se. Durante toda a viagem, não usaram o
banheiro para banhos, exceto na volta à Macapá.
O que causava medo era a força da correnteza e a possibilidade de ser
atingido pelas hélices ou detritos do leito do rio. Mas, foi seguro, como disseram.
Nenhum acidente aconteceu. No mesmo espaço, lavava-se a roupa e colocava-a
para secar ao vento, que levou muitas peças ali estendidas nas cordas finas
disputadas por todos. Roupas íntimas secavam na parte baixa do barco, perto da
hélice e à mercê do boto
37
, que, segundo eles, carrega esse tipo de roupa por puro
deleite.
A parte superior do barco era do Capitão e tripulação, que dormiam ao ar
livre, em redes ao relento, cobertos até a cabeça com lençóis. Antes de se recolher,
baldeavam água e se lavavam em cima. Ao que me pareceu, a água do rio
37
A lenda do boto é uma das mais difundidas da mitologia amazônica. Diz a lenda que, em noites de
lua cheia, o boto, um peixe de água doce, da família dos golfinhos, sai da água e se transforma em
um belo rapaz, que toma de assalto o coração das moças que por ele se apaixonam. No período da
lua cheia, namora a moça que encontra e, ao final da lua, ele parte levando-a consigo, ou deixando-a
grávida ou loucamente apaixonada. Esse mito, assim como os demais difundidos na região variam de
lugar para lugar e fazem parte da cultura local, no que se refere à paixão, amor infeliz e gravidez
indesejada. A expressão “filho do boto”, em geral, significa filho sem paternidade reconhecida;
“mulher de boto” quer dizer aquela cujo marido some de casa por dias ou definitivamente; e “amor de
boto” pode ser entendido como amor de poucos dias.
74
espantava mosquitos e demais insetos. Ninguém foi vitimado, em nenhum momento,
por tais espécies.
A proa tinha espaço de lazer, com uma rede em volta para evitar quedas, mas
não era o local mais seguro para estar com o barco em movimento.
A navegação noturna assusta. Não se nada à frente ou dos lados. Tinha a
impressão de que apenas balançávamos, se não fosse pelo ruído do motor que era
ensurdecedor nos primeiros dias e que não se notava mais nos dias subsequentes.
No Amazonas, navegar à noite e não ter medo não era coisa comum para o
grupo; mas a fadiga venceu a todos, que se arranjaram em redes estendidas por
todo o barco e nos beliches. A qualquer hora do dia ou da noite, parecia um forno,
de tão quente, onde só se dormia pela extrema fadiga.
As preocupações com o projeto voltaram e, sem poder dormir, sentei-me no
chão do barco, repensando o projeto e as possíveis saídas. Encontrei, na noite
amazônica, o reverso literal do trabalho, quando virei os papéis do projeto e comecei
a escrever sobre o que se passara e as observações até aquele momento. As
poucas palavras trocadas com o barqueiro, o Capitão Adroaldo Penna, deram o tom
mestiço da possibilidade de um projeto e a via de acesso.
Ali, estava a passagem para uma pesquisa, sugerida pelo Capitão, em torno
das comunidades remanescentes de quilombos existentes em Macapá. A pesquisa
foi delineada ali, no chão do barco, ouvindo um legítimo filho do Amapá,
especialmente do Bailique, a me dar dicas de roteiro das comunidades e da festa
que ia ocorrer na cidade quando da nossa volta. Agora, era observar o rio e ocupar
espaços onde a significação aleatória dos locais desconhecidos ofereceria a porta
de entrada para um mergulho no mundo do sentido da vida contado pelas marés.
A noite avançava com o barco e o barqueiro que, em silêncio, atentamente,
parecia ver tudo muito claro à sua frente, olhando na escuridão, vendo coisas na
água, onde ele metia uma caneca que ficava presa por uma corda e que ele puxava
para cima e jogava na cabeça e braços, deixando um último gole para beber. “Para
acordar”, dizia ele. Fez várias manobras no leme, na maior escuridão, esclarecendo
que eram por conta de troncos navegando, ou ainda, desvios de bancos de areia.
Falei com ele do projeto, dos problemas, meio em desabafo, tentando ouvir
meu próprio relato de tudo. Ele no leme, eu no chão do barco, com os pés tocando a
água fria do rio por algum tempo, enquanto abria o canal de conversa que foi
invadindo a noite, com fatos relacionados aos povos remanescentes dos quilombos
75
do Amapá, das famílias do Bailique descendentes diretas de índios e europeus, da
pesca, do rio, das ilhas novas que o rio criava e de uma realidade social intensa, na
qual as danças ocupam um lugar de destaque e são marcadas pelas manifestações
do Batuque e do Marabaixo.
O Capitão seguiu falando dos curiosos versos chamados ladrões, que são
cantados pelas vozes femininas locais, e revelou grande entusiasmo ao se referir ao
Curiaú, um dos primeiros quilombos de Macapá e um dos poucos que têm as
escrituras de posse das terras, e do Mazagão, onde a festa de São Tiago recria, a
cada ano, a chegada de colonos portugueses expulsos do Marrocos, que foram
transladados para o Brasil para criar uma colônia com o mesmo nome.
Relatou-me, ainda, sobre as mudanças realizadas nas comunidades pelo
então governador João Alberto Capiberibe, a quem a população chama
carinhosamente de Capí, que traçou um plano de desenvolvimento sustentável da
região nunca antes realizado no país. Falou de como a vida se tornou mais viável
durante essa gestão, principalmente no Bailique.
“Há muito que ver e escrever professora”, disse-me ele. Era verdade.
Encontrei ali o olhar antropológico da observação aguda, mas desavisada, do
viajante e seu relato.
Passei a escrever tudo quanto via e ouvia a partir da primeira noite. A
pesquisa objetivaria a riquíssima cultura local em torno das comunidades de
remanescentes de quilombos, registrando a memória contida nos relatos dos
habitantes encontrados, incluindo, ainda, os ribeirinhos que visitaríamos durante a
viagem e todos os que se dispusessem a falar conosco e, naturalmente, puxassem
pela memória relatos de suas vidas. Estaria assim, compondo a trama do tecido
sociocultural que, a partir desse momento, passaria a ser o foco da pesquisa.
Encontramos em Sahlins (2004, p. 106), uma colocação que apoia esse
sentimento de falar de si em falando do todo cultural:
Por outro lado é bem sabido que, ao falar, o indivíduo coloca todo o
esquema cultural à sua própria disposição [...] contextualizam todas as
categorias abstratas por meio de referências do falante de si [...] a fala
inventa um mundo desenvolvido de dentro para fora a partir do
conhecimento verdadeiro e seguro do “eu”.
76
Foi ainda, em conversas com o Capitão, que a camaradagem e a amizade
delinearam espaços de paradas e visitas a comunidades que não estavam no roteiro
da expedição.
O primeiro dia no barco amanhecia por volta das 5h00min, em um espetáculo
único do Amazonas. Recolhi-me para tentar um descanso no beliche e acordei com
o cheiro de café. Na pia da varanda, ao abrir a torneira, esperei que a água
clareasse para eu poder usar. Mas ela descia inalterada pela torneira. Pensei em
caixa d’água suja. E, então, olhei para o lado, onde ficava o lavatório do barco, e
estava o rio com aquela mesma cor de água. Penitenciava-me pela ingenuidade
urbana a cada momento...
Em seguida, não consegui identificar a forma do coador de café que a
Senhora Antônia usava. Ao chegar mais perto, verifiquei ser uma meia. Sim,
tomaríamos café coado em uma meia, que era um utensílio de cozinha do barco!
Não comentei o fato, mas era bizarro, de toda forma, viver coisas que sempre se
falava em tom de brincadeira.
Pareceu ser um dado cultural generalizado e o “coador” foi rapidamente
guardado após passar o café; não ficaria à mostra até confiarem que não teríamos
restrições àquela prática. Até então, o café foi coado às escondidas na minúscula
cozinha, ou muito cedo, na varanda. Com os dias, eu mesma fiz café, várias vezes,
na meia que, afinal, tinha cor de café, de rio e, por vezes, sabor de terra e peixe.
Houve fartura nas refeições durante toda a viagem e o primeiro camostrou
isso, com frutas de vários tipos, pão branco, biscoitos, margarina, queijo, mel... Era
um hotel várias estrelas em termos de variedade no item gastronomia.
Ancoramos na barranca de uma ilha para o café da manhã, com o sol
passado das 9h00min, muito quente. Comíamos sobre a tampa do motor e sentados
pelos cantos do barco. Nunca vi, nos dias em que viajamos, os ajudantes do barco
comerem. Eles sumiam com os pratos para o teto do barco até para o café. Com os
dias, servi café para os imediatos atentos na navegação.
Diariamente, canoas vinham até o barco, com mulheres índias oferecendo
peixe fresco, mel, açaí e frutas silvestres, que comprávamos com entusiasmo e por
preços adequados, segundo o Capitão. Era admirável o fato de elas navegarem com
um remo e nos alcançarem sempre depois de tantos quilômetros percorridos;
isso, sem falar do equilíbrio perfeito ao ficarem em sobre a canoa fina e estreita.
77
E, pela primeira vez, vi moluscos de água doce que eram vendidos em pequenos
cestos de palha, cobertos com folhas verdes para não secarem ao sol.
Essas abordagens seguiram-se a chegarmos a uma das ilhas onde
descarregamos gás de cozinha e os pacotes pardos do embarque, além de
pegarmos um motor de popa que, em outra ilha, seria colocado em uma “voadeira”
(um barco de alumínio pequeno e muito leve).
A partir dali, as índias não voltaram mais. Esse barco leve nos levaria às ilhas
de difícil acesso, à embocadura do rio com o mar, aos igarapés e de uma ilha à
outra, quando nos deslocássemos entre elas. Mas ainda não era ali o Bailique...
Navegamos durante a noite e o dia todo para chegarmos às outras ilhas após
o almoço. O Bailique dista 185 km da capital, aproximadamente doze a quinze horas
de barco, dependendo da velocidade e das condições de navegação. Nós levamos
mais de treze horas por termos navegado à noite. Os barcos de linha só navegam de
dia e a viagem é sofrida pelas inexistentes acomodações em redes. Eles
transportam de tudo além de passageiros.
Durante todo o percurso diurno, os pesquisadores do grupo conversavam
entre eles, trocando de lugar no barco quando nos aproximávamos ou puxávamos
conversa. Essa forma de agir de estrangeiros em terras brasileiras deixava-nos em
um desconforto que perduraria pelos dias que se seguiram. A alegação de não falar
português era constantemente quebrada pela interferência do professor intérprete,
que não ajudou muito e, pelo contrário, acabou por criar certa animosidade no
grupo. Informações sobre eles chegaram a mim, posteriormente, em conversa com o
Capitão, que fora contratado pelo Sr. Amarildo, uma espécie de produtor da viagem,
responsável pela comida, roteiro e contratação de pessoal de bordo.
Na verdade, a identificação dos integrantes do grupo da expedição se fez
depois de três dias de navegação, por meio de um cartão de visitas que fora dado
ao Capitão. Como já relatamos brevemente, os estrangeiros eram espanhóis e
estavam acompanhados do professor brasileiro Nilson Giraldi, um pesquisador
avalizado como criterioso e confiável da Universidade Estadual de Londrina, mas
que, lamentavelmente, não se comportou como um docente pesquisador, dando
espaço a avaliações de lugar comum, discriminação e maus modos nos locais
públicos e nas casas dos moradores, nas visitas realizadas nas ilhas.
78
Explico, sucintamente, alguns fatos que desestabilizaram a comunicação do
grupo conosco, gerando animosidade e provocando eventos lamentáveis durante o
tempo da viagem.
Desde o primeiro momento nas ilhas, houve uma visível inadequação do
grupo de pesquisadores com relação à vida local e aos modos e falas locais, fatos
que seriam condizentes com uma mentalidade de colonizador que não queria
fazer segredo disso.
Os espanhóis, ao saírem do barco pela primeira vez para pisar nas terras do
Bailique, fizeram um desfile da entronizada fanfarronice de poder e de
conhecimento dito superior. Calçavam grossas botas de caminhada e bermudas de
cor cáqui, ao estilo inglês da colonização indiana, com meias brancas até o joelho, e
camisetas de manga longa sob as jaquetas também de cor cáqui, com bolsos por
todos os lados, abotoadas até o pescoço, com um lenço branco fechando a gola. Os
chapéus, em modelos holywoodianos das aventuras mais conhecidas, tinham uma
aba traseira cobrindo o pescoço, ao estilo militar da legião estrangeira. Um dos
pesquisadores ainda levava uma varinha sob o braço direito.
A visão foi engraçada e nos remeteu de imediato ao que se pensa sobre os
trópicos perigosos e capazes de tantos males. As roupas foram se repetindo dia a
dia, até que a floresta venceu os europeus. Em quatro dias de paradas e
caminhadas pelas ilhas, eles deixaram suas roupas de savana, para entrar nos
chinelos de dedo e nas camisetas, lambuzados com muito filtro solar de fator 100
(cem).
O cenário das casas de palafitas nas barrancas foi comentado com demérito
pelos espanhóis, pelo visível fato de não disporem de saneamento. Eles faziam
comentários desairosos sobre a beleza ou feiura dos moradores, ridicularizavam as
soluções de desembarque, nas margens de atracação nas ilhas, discriminavam
pessoas com falas misóginas e machistas, tudo ao mesmo tempo. Ao verem as
índias que vendiam seus produtos, divertiam-se em dar menos dinheiro pelas
compras, pois a venda era feita no balanço do barco em movimento, com motor em
velocidade mínima, o que nem sempre facilitava a negociação. Gabavam-se de ter
pago bem menos e ter conseguido mais produtos, alegando que eram “coisas da
floresta”, que elas pegavam de graça.
A postura de superioridade e desprezo pelo outro diferente nunca deixou de
aparecer em nossas interações. Notava-se um ar de conhecedor impaciente e um
79
olhar de comentar desprezado sobre as condições humanas encontradas,
persistindo a velha postura de verificação de “onde poderíamos obter lucro nessas
terras?”. Lamentável foi perceber que o comportamento inadequado era,
invariavelmente, puxado pelo professor de Londrina.
O grupo pretendia buscar informações sobre a pesca e o beneficiamento de
camarões no rio e mar na foz do Amazonas. Lá, estávamos diante de representantes
da alma de Pinzón a nos atormentar. O espanhol aventureiro e o nativo colaborador,
em pleno desencontro na base das interpretações dos contatos e da cultura local.
Não nos era possível romper totalmente com o grupo, mas a animosidade se
estabeleceu, fazendo-nos cindir diante dos fatos, de tal sorte que nos reservamos a
uma convivência simplória. Sentimos muito em ter que relatar tais fatos, por
acreditarmos serem importantes para a reflexão do quanto não se avançou na
convivência harmônica do homem com o homem e do quanto o branco ocidental crê
ser seu o poder civilizatório
38
.
A partir dessa menção, os pesquisadores serão deixados de lado nos meus
relatos, por terem alimentado uma série de estereótipos negativos do estrangeiro em
terras brasileiras, com interesses escusos e deturpados nunca esperados de
docentes e acadêmicos representantes de instituições sólidas e respeitáveis.
Finalmente, o dia seguinte já avançava pela tarde, quando avistamos as
primeiras ilhas do arquipélago de Bailique. Abordamos duas ilhotas com casas de
palafita, onde pegamos um outro passageiro e entregamos materiais de construção
em outra casa do local. As ilhas são distantes entre si e os igarapés que lhes dão
acesso seguem, às vezes, o constante movimento das marés.
38
É necessário voltar um pouco no tempo para relembrar a visão europeia da África e tentar explicar
o sentimento de visto no comportamento e na postura apresentada pelos pesquisadores
espanhóis. No século XIII, haviam pisado nas terras africanas, conhecendo, inclusive, o deserto do
Saara e as civilizações ali encontradas. No entanto, acreditavam ser o centro da Terra, entendendo
que o que ficava fora do círculo europeu, como o país dos negros exposto ao sol inclemente, era
inabitável para os humanos e possível apenas para os monstros. Ao evoluírem nas navegações,
conhecendo os povos e suas riquezas, os europeus tão somente alimentaram suas crenças de
superioridade. Essa era a mentalidade da época, que decidiu a grande partilha da África relacionada
desde sempre ao mal, ao demônio, à negatividade, deixando um rastro que se encarna na cultura
europeia ajudada pela Igreja, ao associar a África aos filhos de (filho de Noé, amaldiçoado por ter
revelado os comportamentos negativos do pai, de bebedeira e de desnudar-se). Os esteriótipos da
negritude se estendem aos que diferem na cor da pele e na cultura equatorial, e isso é, sem dúvida,
facilmente encontrado na literatura, em que os europeus lidavam com um tanto de medo superado
por certa admiração pelo exótico. Fora do modelo católico, mas ainda que professando a mesma fé,
ainda que aprendendo a língua do europeu, ainda que sendo gentis e generosos, os habitantes das
bordas da Europa seguem sendo vistos como menores, inferiores, incultos, capazes de revoltas,
traições e violências. Se tal não fosse, nos desprezariam pela cor da pele mais escura, sendo,
portanto, de ascendência negra ou indígena, esse último não menos desprezado.
80
Estávamos no Bailique e começaria, então, a próxima etapa da viagem, onde
deveríamos encontrar moradores dispostos a fazer relatos de vida e que, agora,
eram o foco de nosso projeto da memória de habitantes do Amapá, inicialmente dos
ribeirinhos do Bailique e, posteriormente, de remanescentes de quilombos na capital.
2.5 O Bailique
O trabalho de pesquisa foi, de fato, iniciado no Bailique, lugar onde se
preserva parte da cultura do Amapá: a cultura ribeirinha.
A intimidade dos habitantes com o rio tem um misto de admiração, gratidão e
um respeito quase religioso. No rio, não se faz lazer, não se lava roupa e bebe-se a
sua água sem cerimônia alguma. Entende-se e desculpa-se o rio quando ele vem
derrubando tudo à sua frente. O rio quer assim, é do rio, é jeito de ser, é cultura
local.
Para documentar essa viagem à procura de fatos e relatos da memória do
Amapá, buscamos uma teoria preocupada com as atividades desenvolvidas e a sua
memória. Halbwachs (2004) oferece instrumentos para o relato e a organização do
vivido e do ouvido, uma vez que é, no passado recente ou longínquo, que passado e
presente se reconstroem.
São depoimentos reais vividos individualmente ou em grupos, onde o “eu” e
sua duração situam-se no ponto de encontro de duas séries divergentes, ou seja, a
primeira, que fica ligada a aspectos vivos e materiais da lembrança, e a segunda,
que reconstrói aquilo que é do passado. Quando se recorda dos fatos, apela para a
comunidade em que viveu ou vive; o “eu” não lembra sozinho, ele é parte de um
todo social afetivo que lhe assegura o pertencimento e a autoridade para lembrar.
No dizer de E. Bosi (2003, p. 31):
A memória opera com grande liberdade escolhendo acontecimentos no
espaço e no tempo, não arbitrariamente, mas porque se relacionam através
de índices comuns. São configurações mais intensas quando sobre elas
incide o brilho de um significado coletivo.
81
É esse o índice comum: o Rio Amazonas na vida dos ribeirinhos do Bailique.
É o que os une e alimenta, formando a imagem memorial de tantos anos em
configurações com a floresta e os igarapés do rio.
O seu significado é, para todos, a própria memória cultural. Na escuta dos
relatos, essa relação brilhante e plena de significado se expande quando falam do
rio e de quando o rio era diferente, ou encheu, ou de quando viajaram nele para
longe do Bailique.
A memória junto aos ribeirinhos élida e cria um compasso de espera, onde
encontramos o desejo de voltar a fazer o que faziam, viver como viviam. Acreditam-
se menos felizes por terem se afastado da floresta, da terra, dos animais, sempre
lamentando a proibição da caça. No entanto, eles ficam por lá, se deixam ficar.
A diversidade humana na região isolada do Bailique reduziu em muito a
presença de escravos africanos, diminuindo as chances das misturas étnicas como
ocorreu na capital. As etnias indígenas existentes dispensavam a mão de obra
escrava no local. Os donos da terra e os índios de várias etnias foram os pontos de
contato dos primeiros brancos colonos do Bailique. Os Tucujus, muito numerosos, e
os Waiãpi podem ser reencontrados no biótipo local muito mais indígena.
No Bailique, a predominância é de ribeirinhos, sendo visível a maior
miscigenação com brancos do que com negros. Os habitantes têm cabelos lisos
(que vão do alourado ao negro), pele clara (sem ser branca) e estatura baixa
(máxima de 1,65 metros) e esguia.
Acreditamos que as dificuldades de acesso ao arquipélago determinaram a
baixa densidade de escravos na região. O fato de não encontrarmos negros no
Bailique foi mencionado nas entrevistas, em que os habitantes se empenharam em
lembrar, com orgulho, de suas raízes portuguesas e modalizaram os comentários da
inexistência de índios e negros no local. Todos se consideram descendentes de
portugueses e descartam miscigenações com indígenas ou negros. Inútil o esforço,
mas compreensível, já que essa mentalidade é bastante emblemática no país.
Há a narração de anos e anos de navegações estrangeiras que vinham
buscar produtos da floresta, madeira, peixes, e que, é claro, geravam filhos. Tudo
quanto se retirava da floresta e do rio era comprado pelos navios.
O comércio internacional nas ilhas era uma realidade que começou a
escassear nos anos 60 e desapareceu por completo no início dos anos 70. o
relato de um alemão que teria chegado às ilhas em um avião pequeno e que teria se
82
relacionado com várias mulheres locais durante os anos em que lá vivera escondido.
Consta ter sido um foragido de guerra, que, nos anos posteriores, fora preso e
levado para Macapá, deixando filhos no local.
Encontramos, em uma das casas que visitamos, latas antigas de biscoitos
alemães e farinha de trigo suíça, guardadas como prova de que houve, no local,
presença estrangeira. Havia latas de conserva, com rótulos impressos, que eram
usadas como canecas.
A coleta era a principal atividade, juntamente com a pesca de uma espécie de
peixe em especial, do qual se retirava, da barriga, uma gordura que chamam de
“grude”. Era o comércio do “grude”. Segundo relatos, embarcavam grandes
quantidades da gordura, embalada em palhas de buriti e armazenada em geladeiras
fornecidas pelos comerciantes estrangeiros. Havia, também, um outro peixe, que era
secado ao sol e armazenado em camadas separadas por lascas de cascas de
árvores.
A grande maioria da população é natural do arquipélago e migrou entre
ilhas ou para localidades mais próximas. A capital foi a última opção para algumas
gerações. As cidades vizinhas de Santana ou Laranjal (Laranjal do Jarí), e do
Oiapoque foram locais que receberam os nativos do arquipélago. Poucos dos
entrevistados revelaram a saída das ilhas como solução para dificuldades, pelo
menos nas duas gerações anteriores à atual.
Até os anos 90, iam a Macapá quando da necessidade de hospitais,
papeladas burocráticas ou viagens para fora do estado. Mas as novas gerações não
ficam mais nas ilhas e partem para a capital, logo que acabam o ensino médio, ou
tentam a travessia perigosa e clandestina para a Guiana.
Nas ilhas, a maioria da população é de casais de meia idade, velhos e
crianças, as quais, muitas vezes, são netos criados pelos avós cujos pais saíram em
busca de trabalho e oportunidades. Os jovens acima de 18 anos não são
numerosos.
Uma cultura assentada que migra, leva uma forma de entender o mundo de
maneira deslocada, mas leva, também, seu tesouro, seus costumes e, ao fazê-lo, se
adapta, adensa sua carga cultural. A presença de migrantes internos também é
entendida como coisa que o rio impõe. A saber, de tanto ver barco navegar, se tem
vontade de ir também. Isso nos foi dito por uma das informantes, ao lamentar estar
praticamente sem familiares por terem eles migrado.
83
Os relatos corroboram a definição de cultura de Kroeber (apud LARAIA, 2002,
p. 21), em que ele afirma ser o homem o possuidor de um tesouro de signos com a
faculdade de multiplicar infinitamente esses conhecimentos, de assegurar a retenção
de suas ideias de todo tipo, e que comunicá-los para outros homens e transmitir aos
seus descendentes como herança parece ser um desejo sempre crescente. Ao
conseguir isso, ele faz parte da própria natureza que registra seus acontecimentos
na terra, na rocha, no leito dos rios.
O Bailique está mergulhado nesse jogo de conhecer e repassar. Há muito que
aprender com o Amapá e suas margens equatoriais.
O arquipélago do Bailique fica ao norte da capital Amapá e abriga ilhas em
um total de 1.700 km, espraiados entre dois gigantes: de um lado, o Rio Amazonas,
e de outro, o Atlântico, em sua porção equatorial. A parte frontal do arquipélago é
banhada pelo Amazonas e Atlântico, e a face posterior, pelo Rio Araguari e um rio
menor, o Rio Gurijuta.
Bailique pode ser definido como “ilhas que bailam”
39
. E tal nome pode ter se
originado em decorrência do fato de que as ilhas na região aparecem e
desaparecem conforme o nível das águas. ilhas que se formam de baixo para
cima, emergindo do leito do rio e ficando secas com o tempo. Quando solidificam,
secando as areias na superfície, as pessoas observam como se comportam nas
39
algumas discussões em torno da origem etimológica da palavra que nomeia o arquipélago no
norte do Amapá. Entre elas, a mais comum, que circula entre o povo, é a de que Bailique quer dizer
“ilhas que bailam”. Não houve onde encontrarmos confirmação desta definição, apesar de fazer
algum sentido em função das ilhas que brotam do leito do rio e sobem para a superfície formando
novas ilhas, com intervalos de décadas. Ou, ainda, pelo fato de as ilhas, em função das marés,
ficarem, nas cheias, com as terras alagadas, como que “bailando” sobre as águas. Outra explicação
que pode ser confirmada é a de que a palavra tem raízes na desinência sufixal da ngua francesa:
ique, equivalente a ité/isme, que significa ser próprio a alguma coisa ou alguma situação, como se vê
em panique, acade[mique], philosoph[ique]. Um outro argumento que nos pareceu bastante plausível
e condizente com a formação inicial do Amapá é o de que a palavra derivaria de formações
modificadas da língua falada na África muçulmana, de onde vieram os primeiros colonos com a
transferência da cidade de Mazagan. A transformação ficaria por conta do processo dito formação de
substantivos adjetivais subsidiários que resultaram, em português, em [ismo], [isma]. Os fonemas {q}
e {c} vieram com o falar dos muçulmanos, apurando-se em um outro som, o {g}. Transmitidos, em
princípio, às línguas peninsulares, da Espanha e Portugal, chegaram ao Brasil em palavras como
acequi/achaque/maiquie/almoiaivar/tabique. Sabemos que, em árabe, o prefixo al é parte integrante
das palavras, e que, por uso inadequado e conforto fonético, foi incorporado e unido em termos que
hoje usamos no português. Assim, especularíamos que Bailique poderia ter sido Ba al ique, ou ainda,
Bal al ique, fato fonético que eliminaria, em português, a repetição de al al, comum nas línguas
peninsulares. Nessa linha de raciocínio, ique significaria frequentação de um lugar. Voltando um
pouco na etimologia latina, temos icus, do latim relativo a lugar que serve a; e ikóç, do grego, aquilo
que serve a alguma coisa, próprio para alguma coisa. Em um exemplo de processo de sufixação para
chegarmos, em francês, ao ique, teríamos: Unus Unicus Unique. Mas, de todas as possíveis
explicações para a definição de Bailique, a primeira e mais popular parece-nos ser a que melhor se
presta às imagens do arquipélago. Ilhas que bailam.
84
cheias para ver se para usar o local. Secas por completo, recebem pequenas
hortas, mudas de açaí, buriti e, muito depois, alguns habitam sobre elas. O processo
de formação pode levar duas gerações, segundo relatos.
As ilhas que compõem o Bailique, de sul para o norte do arquipélago, são:
Curuá, Guimarães, Buritizal, Banco do Areão, Marinheiro, Macedônia, Parazinho,
Ilha do Bailique, Ilha do Brigue, Ilha do Franco, Ilha do Faustino, Terra Grande, Ilha
Vitória, Ilha do Juruá, Guará e Ilha Grande. Há, ainda, as Ilhas do Limão, Pará e
Fortaleza, que não constam do mapa oficial do estado.
Na Ilha Grande, existe um corte na geografia local, chamado de Furo do
Araguari, por onde navegamos e conhecemos as costas da Terra Grande e da Ilha
do Faustino. Navegando por ele, encontramos a saída do arquipélago junto à Ponta
do Maruim, onde se avista, no horizonte, uma massa verde que é a reserva biológica
do Lago Piratuba, que abriga o famoso Cabo Norte, que faz parte da história do
Amapá contra as invasões francesas.
No arquipélago, vivem 38 comunidades, que, em geral, não tomam o mesmo
nome da ilha. O nome da ilha é frequentemente substituído pelo da comunidade e
acaba esquecido. Por exemplo, a Ilha Grande é a Vila Progresso.
Trata-se de um universo de 7.000 habitantes, os quais, até 1995, não
dispunham, como ainda em algumas ilhas não dispõem, de água tratada,
eletricidade, navegação de transporte e destinação de lixo e esgoto.
Na Vila Progresso, na Ilha Grande, encontra-se a maior comunidade
evangélica do arquipélago e, efetivamente, trata-se de um grupo que preserva o
local, preocupa-se com a ocupação e mantém uma ordem na ilha que não foi vista
nas demais. As ruas são varridas e limpas, mantendo-se nelas, inclusive, lixeiras.
Ali, está abrigada, atualmente, uma das poucas estações de reciclagem de
lixo descartável do arquipélago. O projeto foi iniciado em 2000, na gestão
Capiberibe, e, após quatro anos, subsiste de forma menos eficiente.
A estação é uma espécie de gaiola vertical com fundo telado, pintada de azul
para destacar do verde local, colocada ao lado do atracadouro, onde os moradores
depositam o lixo reciclável. A coleta mensal fez a diferença no assoreamento do rio e
igarapés da região.
Ao lado da coletora, uma estação de tratamento da água bombeada do rio
para as casas. Com filtros naturais e cloro, a água passa por um processo de
filtragem, que diminuiu em muito os problemas de saúde na região. Hoje, o material
85
é mantido abaixo do ideal pela Prefeitura local. E algumas estações nas demais ilhas
não funcionam, de modo que a água do rio é fervida e usada para todas as
atividades. Realmente, as ilhas que mantêm as melhores condições de vida são a
Progresso e a Macedônia.
um posto de saúde precário e a população recorre, comumente, às
erveiras e benzedeiras, que tratam os males com chás, garrafadas e rituais.
A escola chegou em 1998, na ilha da Vila Progresso, com a construção da
Escola Bosque
40
, um projeto que conseguiu manter alunos do ensino médio por
mais tempo nas ilhas, pois, aentão, percorriam horas de barco para irem à escola
mais próxima, com o agravante de que a navegação de transporte sempre foi um
problema na região amazônica. Ruim, insegura e sem regularidade, fazia da
escolaridade uma atividade pouco motivadora.
Mandar os filhos para a capital era algo caro e que dependia de conseguir
parentes que os abrigassem até terminarem o primeiro ciclo. E, assim, as poucas
letras eram ensinadas por quem sabia bem pouco. Os projetos de alfabetização de
40
A Escola Bosque foi referência mundial, na época de Capiberibe, como um complexo escolar onde
as crianças ficavam em período integral, com assistência médica e odontológica. Assistida por um
corpo docente competente, a Escola foi citada internacionalmente como espaço sustentável de
educação na floresta. Suas instalações inéditas e condizentes com as mais delicadas questões
ambientais de um local no meio da floresta tropical, como os dejetos humanos e o lixo reciclável,
foram referência ambiental e educacional, como um projeto avançado, visando manter os jovens na
região com uma educação de formação para as necessidades regionais e locais. Mudou muito desde
então, mas seguiu existindo apesar das perdas irreparáveis de material humano e projetos
ambientais. A Escola mantém, ainda hoje, crianças e jovens recebendo educação em suas
dependências, onde os barcos de transporte escolar foram mantidos e passam por todo o
arquipélago, recolhendo os estudantes em dois períodos, a partir das 5h30min da manhã, deixando-
os no ancoradouro da Escola até 7h00min, quando caminham sobre as ruas de palafitas que servem
de arruamento para as instalações da instituição. Ainda resistem projetos como a horta, coleta
seletiva de lixo, usos e costumes do mato, entre outras atividades que buscam manter a criança local
ocupada e longe de ameaças à sua integridade. A merenda é oferecida também com produtos
plantados pelos alunos e professores. Os projetos de biblioteca e artes seguem tentando manter os
grupos interessados e produtivos, apesar da rede de distribuição dos produtos ter sido rompida. Essa
rede de distribuição foi, durante certo tempo, um canal de comunicação das ilhas com a capital, pois
os materiais ali produzidos eram levados à capital e vendidos em feiras de artesanato, revertendo
alguma renda para os projetos da Escola. O fato de o arquipélago estar a umas dez horas de barco
de Macapá inviabiliza a saída de produtos e o fluxo de comércio, ali frequente. Apesar de terem
conseguido manter algumas de suas ações mais importantes na Escola depois do governo
Capiberibe, é visível a falta de continuidade de algumas práticas escolares e a perda de espaços,
como a biblioteca, além do desgaste de móveis e materiais escolares insuficientes. Como sempre
acontece no país, o esforço constante dos professores e alunos é que mantém viva a ideia inicial da
Escola Bosque. O que se pôde ver foi o esforço dos professores incansáveis em promover e divulgar
atividades e eventos da instituição. O que se lamenta aqui é o fato de um projeto internacionalmente
aprovado estar se perdendo. Relatado em detalhes, o projeto está explicitado na obra Amapá: Um
norte para o Brasil”. São Paulo: Cortez, 2000, organizada por Nilson Moulin, onde o então governador
Capiberibe foi entrevistado por quatro jornalistas e ambientalistas, descrevendo seus projetos
sustentáveis no Amapá.
86
adultos conseguiram diminuir um tanto essa realidade, mas, com a falta de espaço
de aplicação da aprendizagem, eles se perderam. Alguns moradores sabem apenas
assinar o nome e leem muito pouco.
O Bailique tem um visual paradisíaco belíssimo. Às margens do rio, casas
em palafitas, com telhados de madeira e varandas. As barrancas dos dois lados das
margens avermelhadas mostravam as raízes e as erosões provocadas pela força
das marés. Os ancoradouros de madeira, com mais de 3 metros de largura
colocados água adentro, servem de acesso a terra e descida para banhos no fim da
tarde, pois, de manhã, não se vê movimento de banhistas, só de pesca artesanal.
À primeira vista, o povo é reservado e de poucas palavras; olham e analisam,
antes de dizerem qualquer coisa. Ouve-se uma resposta mínima ao bom dia e boa
tarde.
O grande lance de sorte na expedição ao Bailique foi o fato de o Capitão ser
natural de e conhecer muita gente pelas ilhas; trabalhara como barqueiro de
linha na região, no governo Capiberibe, e isso nos ajudou a trazer pessoas que nos
atendiam na mais absoluta confiança em nome do “Adroaldo”
41
.
Relatar as experiências passadas nessas terras foi a possibilidade, para
nossos informantes, de fazerem ligações com o que viveram e com o que estava em
repouso, quase esquecido.
A associação de lugares, fatos e objetos a dados vividos mostrou certa
regularidade no processo do lembrar e da evolução do material que se guarda ou
não, que se liga à sua vida. As saídas do local, as dificuldades vencidas e a lida
diária seriam uma espécie de processo evolutivo na diversidade das lembranças de
cada um.
Difusa e complexa, a cultura do Bailique se expôs. A busca de uma vida
melhor levou muitos habitantes a tentarem a Guiana. Outros deixaram regiões
próximas, pela escassez da floresta. A região de Santana, próxima de Macapá foi
mencionada, assim como Fazendinha e Viçosa. Os relatos dessa evolução se
revelavam em longos silêncios.
41
Natural do Bailique, o senhor Adroaldo Penna, o Capitão, é profundo conhecedor do Rio Amazonas
e da região, e nos ajudou muito no percurso da pesquisa e na coleta de corpus nas ilhas e na capital.
A ajuda do Capitão ao nosso trabalho de pesquisa apresentou uma cordialidade que nos foi de
absoluta valia e importância. Nosso agradecimento é, e será sempre, não apenas pelo
trabalho, mas
pela amizade que segue fiel e solidária como o povo do Amapá.
87
Talvez a escuridão seja também um dos dados que compõem o silêncio no
Bailique, que a iluminação no arquipélago é produzida por um gerador ligado das
16h00min às 22h00min, e não interruptores nas casas. o escolha nem
espaço para o uso. Ela fica acesa até que se apaga. É comum a família, após essa
hora, ficar nas varandas das casas conversando, ou, na maioria das vezes, apenas
silenciando, ouvindo os ruídos locais.
2.5.1 As ilhas visitadas
Nas ilhas do arquipélago do Bailique, entre as águas contorcidas do
Amazonas, revelaram-se dias e noites em que a palavra do cotidiano se expandiu
em horas de oitivas de relatos em marcha sob o sol da linha do Equador. Fomos
captando imagens, como pano de fundo e boca de cena desta tese, onde o silêncio
das conversas em uma sociedade fechada como essa encaminhou um trabalho de
conceitos e ousadias no sentido de cultura e relatos.
Nesse sentido, Esmeraldina dos Santos
42
(2002, p. 23) escreveu:
Às vezes, fico apreciando a beleza da natureza, aqueles que sabem
aproveitar o trabalho não se deixam escravizar, os negros que queriam
sobreviver não deixavam nada para trás, de tudo valia o esforço, e são
muitos [...] O Curiaú era um quilombo e por isso tem um lago que se chama
lago do mocambo, que era onde os escravos se escondiam; hoje, se
encontram muitas vasilhas de barro, herança dos nossos antepassados. De
onde vieram tantos escravos?... Não sei! sei que fizeram vida em
Macapá, o estão mortos, pois permanecem vivos dentro de nós. São
filhos dessa natureza que não os desprezou. O negro é vida, eu me
encontro em tudo isto.
A primeira ilha abordada foi a Curuá, onde o ancoradouro estava em bom
estado. Fato raro, pois, em geral, são destruídos, ou quase isso, pela força de
pororocas ou marés fortes que carregam muitos detritos, barrancos, terra e pedras
que derrubam qualquer obstáculo à sua passagem. Havia acesso a terra e fomos
pela manhã.
42
Esmeraldina dos Santos é uma escritora artesanal, filha de Dª. Chiquinha do Curiaú (uma anciã
considerada um “museu vivo” da região). Ambas são filhas do Curiaú e compositoras de ladrões de
Marabaixo, além de serem exímias contadoras de histórias.
88
As ruas das cidades sobre palafitas são também de madeira e, nelas, mal
cabem duas pessoas lado a lado. Deve-se parar se alguém vier no sentido contrário.
Não há veículos automotores no local, fato benéfico para todos.
Nessa ilha, buscamos a peixaria local, onde um senhor, de nome Adalberto,
que “conhece todo mundo”, poderia nos ouvir e tentar falar com os habitantes,
ajudando com as entrevistas. Ouviríamos os moradores das ilhas para coletar seus
depoimentos e suas histórias de vida, suas lembranças.
O local da peixaria era uma construção de madeira, pintada de azul e
vermelho, com uma porta que se abria para um terreiro grande, cheio de balaios
de pesca, restos de barcos, redes e afins.
O Sr. Adalberto, um homem pequeno e forte, estava enfiado com meio corpo
em um dos freezers e se ocupava em encher uma caixa de isopor, separando peixes
de todos os tipos. Ele nos recebeu com atenção, ouviu nossa solicitação e, com
seriedade, prometeu falar com os habitantes sobre nossa intenção de ouvir relatos
de vida e trabalho para uma pesquisa de uma universidade. Disse-nos que avisaria
no barco quando tivesse resposta.
Andamos pela ilha, compramos peixe e frutas, percorremos o comércio, tudo
enquanto esperávamos pelas notícias. Encontramos pessoas nas portas das casas
de madeira elevadas do chão. Fiz contato visual e pessoal com tantos quantos
cruzavam comigo.
Após o contato inicial, recebemos, em dois dias, a resposta de que, no dia
seguinte, faríamos uma das entrevistas com as mulheres da Vila Progresso.
tínhamos o local e hora para a conversa agendada pelo Sr. Adalberto da
peixaria. Não sabíamos onde seria, mas pouco importava: iniciávamos.
Comemoramos comprando peixes e um camarão cor de berinjela, que foram recém-
pescados por uma jovem com seu pai, que saiam da água, puxando uma pequena
canoa indígena cavada em um tronco de árvore, para vender o camarão por R$ 1,00
(um real) o quilo.
Os peixes e crustáceos da região vivem nas águas do mar e do rio, e muitos
são pescados na água doce quando das cheias que refletem a entrada do mar
nas águas do arquipélago. Creio ser daí o sabor especial dos peixes da região.
Na manhã da entrevista, passeamos pelas ruas de tábuas e encontramos um
jardim com várias espécies de plantas medicinais, além de flores cuidadosamente
89
cultivadas e protegidas das formigas por pequenas cabaças cheias de uma água
esverdeada.
Paramos para admirar e, da varanda, uma senhora pequenina e gentil
respondeu às perguntas que fazíamos sobre as plantas. Ela disse se chamar Rosa e
ser a responsável pelo jardim. As ervas são cultivadas na época de maré seca, pois,
quando das cheias, a casa fica ilhada sobre a água e, então, o jardim e a horta ficam
submersos por meses. Natural do Bailique, Dª. Rosa se comprometeu a falar de
suas lembranças de lá e a chamar algumas amigas para o bate-papo.
As mulheres aceitavam falar, mas em grupo, fato que facilitou meu trabalho
de deslocamento nas ilhas.
Fazia o calor de sempre e passava das 15h00min. Arrumamos o espaço e
ficamos à espera das mulheres para a entrevista. O Sr. Adalberto passou no local
para ver se ia tudo bem e avisou: “podem esperar, elas virão”.
Agradecemos a ajuda e ficamos por um bom tempo aguardando e pensando
se levaríamos um fora, que, afinal, aquela gente não nos conhecia nem tinha
qualquer compromisso com o Sr. Adalberto para aceitar o convite. Mas elas foram
chegando, de sombrinhas abertas, vestidas com extrema simplicidade, algumas
descalças, e muito desconfiadas e silenciosas, quase como se estivessem sendo
obrigadas a estar ali.
A surpresa foi a Dª. Rosa, que encontramos pela manhã, entrar puxando duas
outras mulheres pela mão. Elas estavam tímidas e Dª. Rosa, uma das primeiras a
chegar para a conversa, nos ajudou muito com a resistência no grupo.
Tentei ser o mais simpática que a ocasião permitiu e logo aprendi duas lições:
a primeira é que não se come ou bebe assim que se chega. Pelo sol, pelo calor, pela
saúde, espera-se esfriar o corpo para depois consumir alguma coisa. Esse costume
chamou a atenção pela semelhança com um ritual das casas de Candomblé, onde
não se come ou se fala com os membros da casa antes de descansar e tomar um
banho. Tais costumes parecem se aproximar de heranças indígenas e africanas.
A segunda lição foi merendar “depois da obrigação”, que era, afinal, a
entrevista. As mulheres nada comeram ou beberam durante os depoimentos.
quando demos por encerrado o bate-papo, é que elas aceitaram o lanche que
havíamos preparado.
Nossa busca estava se concretizando em relatos das manifestações culturais
locais, de fatos ocorridos nas ilhas e das atividades mais comuns dos moradores.
90
Na Macedônia, que apresenta organização semelhante à Ilha Progresso, foi
organizada uma entrevista no salão aberto do cabaré da Selma, pessoa que teve
coragem de manter um local desse tipo com prostitutas na ilha. Ela cuida das moças
e das eventuais crianças, em um espaço de madeira, com telhado alto, treliças dos
lados e uma grande varanda de piso bem liso para servir de palco para os casais
dançarem.
Selma, uma mulher alta, forte, de cabelos longos em cachos e de olhar
manso e desconfiado, falava bem, alegrou-se em receber pesquisadores e parecia
ter intimidade com tais situações. Ela nos ofereceu o seu bar para os encontros com
o pessoal da ilha, mas o quis falar conosco nem fazer relato algum. Um pouco
distante, ela mostrou o bar, que funciona todas as noites até às 22h00min, quando o
gerador desliga as luzes das casas. O local possui aparelhagem de som, pista de
dança e dois quartos nos fundos para os encontros, além de dois banheiros.
Um homem que não quis se identificar é ajudante da Selma e faz, às vezes,
shows de dublagem em estilo drag queen (transformista) e danças. Segundo nos
disse, ele desenha moda, costura e faz fantasias para as comunidades e para as
apresentações da Escola Bosque. Ajudando no bar, o rapaz se considera feliz e
gratificado por estar em uma ilha onde pode se travestir e criar seus dois filhos
adotivos. Ele disse que seu nome de trabalho é Robie.
Infelizmente, na noite em que fomos ao bar, a luz foi cortada às 18h00min e
não voltou até o dia seguinte, impedindo o registro de mais um relato.
Seguimos aportando em várias ilhas, mas nem sempre tínhamos entrevistas.
Quando isso ocorria, ficávamos apenas observando e registrando.
A abordagem dos pequenos portos e trapiches precários foi, quase sempre,
cheia de aventuras no que se refere a conseguirmos sair do barco. Por vezes, o
ancoradouro estava assoreado, obrigando todos a descerem por uma escada de
corda e nos atolarmos no lodo até os joelhos. Atravessávamos a beira e nos
lavávamos para podermos ir até os habitantes. Outras vezes, nos ofereciam tábuas
finas demais, instáveis e mal fincadas no leito do rio. Em outras paradas, a mae
as pororocas tinham levado o ancoradouro.
Constatamos o abandono dos locais, que deveriam ser mantidos pela
Prefeitura, com a reconstrução dos ancoradouros. O que ocorre sempre são
mutirões de manutenção promovidos pelos habitantes, que precisam desembarcar
todo tipo de material, incluindo pessoas.
91
Mas, ao tocarmos a terra, as pessoas sabiam o que estávamos fazendo e
se aproximavam e se colocavam à disposição. Isso ocorreu, por exemplo, na Ilha do
Comércio, onde fomos abordados pela proprietária de uma grande loja instalada em
um galpão de madeira que vendia roupas. Depois, ela se juntou ao grupo de
mulheres que entrevistamos.
Voltávamos para o barco sempre que terminávamos as entrevistas, para
anotações. Não fazíamos refeições fora dele, pois não existem restaurantes nas
ilhas.
Houve momentos em que a matinha vazado tanto que levava toda a água,
deixando pequenas cacimbas mais para dentro do rio, onde o barco podia ficar com
segurança, mas tão longe da ilha que alcançar o atracadouro só era possível com a
voadeira, fato que ficou comum na viagem: descer e “voar” pelo rio até chegar à
margem.
Em outra ocasião, aportamos e dormimos com o trapiche batendo no barco a
uma altura em que podíamos acessar a terra apenas estendendo o para fora da
embarcação. Podia-se deixar o barco com um passo. Ao amanhecer, o trapiche
estava a uma altura de uns 8 metros acima da embarcação.
O Capitão, sabendo do fato, tinha ido a terra antes que vazasse toda a água,
e amarrara uma corda cheia de grandes nós para que pudéssemos desembarcar.
Um tanto de aventura inusitada. Não aceitei a oferta da corda e, ao olhar o leito do
rio exposto, decidi esperar pela volta da maré, que mais parecia um paliteiro
derramado. Um acidente seria bem ruim naquele momento.
A maque nos abaixou elevou-nos até a beira do trapiche em uma hora ou
duas. E, então, lembrei-me de que, no Amapá, o tempo é diferente e não pode ser
comparado com o da metrópole
43
.
43
O tempo, assim como o espaço, constitui-se como abstrações criadas por absoluta necessidade do
homem para sobreviver; é parte da vida de cada um de nós, que vivemos imersos nele. O tempo na
urbanidade das grandes metrópoles vive de uma sincronia com o mundo, com a globalização, onde
tudo se passa em nano segundos, onde o tempo da comunicação é, como coloca Ricoeur (1996),
intratemporal, uma estrutura usada na prática em que se vive. “Eu sou o meu tempo”, dizemos na
urbes. O indivíduo é o seu próprio tempo e tudo depende do segundo a mais ou a menos que ele
perde ou ganha em uma corrida entre dois pontos. A medida de velocidade, necessariamente, deve
ser muito rápida. Na urbes, acorda-se com uma imagem e dorme-se com outra. Acordar e percorrer
ruas que nos conduzem ao nosso trabalho, por exemplo, pode ser uma aventura breve. Ao voltar pelo
mesmo caminho, podemos verificar que uma dezena de casas ou um prédio desapareceram da
paisagem, dando lugar a um vazio de escombros. Desse modo, o tempo na urbanidade é mercadoria,
e, como tal, pode ser contabilizado pelos urbanos que se submetem ao controle de suas vidas. Além
disso, a natureza também tem um tempo exíguo, onde o é dado conhecer ou atentar para nada
que não seja medido em espaços temporais racionalizados. A natureza não se presta à urbanidade
92
A vida no barco tinha uma rotina de sol. Ou fazíamos os contatos muito cedo,
ou somente depois das 16h00min, quando sol baixava. Isso porque, na região, o
trabalho sob o sol é quase impossível até para os habitantes locais, que andam de
sombrinhas. Então, ficávamos preparados todo o tempo para podermos descer e
procurar os possíveis informantes.
À noite, não me deitava antes de a brisa fria começar a soprar no barco, e
isso era sempre depois do início da madrugada. A tripulação, depois do banho com
a água puxada direto do rio, descia e comentava os planos do dia seguinte.
Essa rotina imposta pela diplomacia do Capitão acabou por vencer algumas
dificuldades, tais como ir a ilhas para fazer apenas a minha pesquisa, deixando os
pesquisadores espanhóis, por algumas vezes, sem ação no barco, como eu ficava
quando eles iam a ilhas em que não havia ninguém que quisesse ser entrevistado.
Organizei-me com ele para conseguir possíveis informantes e ele se tornou
meu parceiro de pesquisa. Em cada lugar, havia uma ou outra pessoa disposta a
falar conosco. Foram pescadores, coletores da floresta, parteiras, professores e
comerciantes, todos contatados pelo Capitão assim que descia a terra depois da
ancoragem.
Na Vila Progresso, pedimos um banho no rio. Sem aprovação do Capitão, eu
e a Antonia (a cozinheira do barco) fomos nos banhar. Entramos na beirada próxima
ao braço, em busca de profundidade para o corpo todo. Fomos surpreendidas por
centenas de alfinetadas no corpo. Saímos correndo da água e nossos braços e
pernas sangravam com filetes fininhos de sangue. A explicação foi a de que são
microcamarões, que mordem dessa forma naquele local.
sem prejuízos. O tempo urbano será acionado, portanto, por inúmeras informações capazes de
mudar e fragmentar a memória. no caso específico do Amapá, um tempo que não pode ser
capturado senão pelo conhecimento dessa mesma natureza e de suas características básicas. O
homem de não é prisioneiro desse tempo descrito, mas encara como uma sequência temporal a
sua vida entre as marés, fato da natureza das águas e suas comunicações. Lá, o indivíduo não é
considerado um vencedor ao imprimir o seu tempo ou o tempo das suas necessidades, em uma
manobra arriscada sobre a pororoca, ou ao pegar sua voadeira em uma vazante profunda. Se o fizer,
será encarado como homem sem sabedoria ou conhecimento, pois é preciso considerar o tempo e o
espaço da natureza e a sua forma de atuar nela, e não sobre ela. Ninguém quer driblar uma cheia e
se gabar disso. O querer segue o que determina o tempo natural. Espera-se pela cheia para descer
do barco, espera-se pela vazante para acessar um porto... A necessidade de integração é real e
vivida em um Amapá que, no seu tempo, sobreviveu na memória de seu povo e reedita suas
lembranças no tempo circular de ir e vir, onde é possível recuperar condições do passado em uma
temporalidade que confere vitalidade às funções urbanas de dezenas de espaços de quilombos.
93
Para estancar a coceira e o sangue, esfregamos o lodo da margem
intensamente no corpo. Depois, passamos umas folhas amassadas. Ficamos
amedrontadas com o fato e nunca mais pensamos em banhos refrescantes no rio.
O Capitão nos disse que banho no rio só na rabeira do barco, onde os
camarões não atacam por causa da velocidade do motor. Os banhos devem ser na
beirada, baldeando água. Ninguém mergulha nas águas do rio, que comanda a vida
das pessoas em todas as horas do dia e da noite. um respeito sensível para com
o rio e seus comportamentos. Ele é uma entidade a ser respeitada e cuidada com as
suas características.
Nessa viagem, o rio é o dono dos ritmos da vida.
Lá, por exemplo, espera-se
pela cheia, respeitando a vontade do rio. Não se compararia essa sensação de
espera pela cheia a uma outra espera qualquer em um tempo deslocado do rio.
Tudo quanto se passa em volta, dentro, às margens, de cada lado do rio,
pode esperar. As pessoas sempre esperam no Amapá. E isso não compromete o
fato ou a viagem, e parece que, afinal, há uma cumplicidade do tempo cronos com o
rio e seus maneirismos.
É normal ficar por algumas horas à espera de um instante em que se pode
ouvir a água batendo de leve na madeira do barco para, em seguida, sermos
balançados e navegarmos até a margem desejada. E nada se perde enquanto se
espera. Olha-se o entorno, repara-se em tudo e, às vezes, só às vezes, se fala sobre
o fato de a vida esperar pelas marés. Isso faz parte.
Amanhecia muito cedo e era difícil sair do torpor da noite mal dormida. Isso foi
uma constante na viagem, por causa do calor e das acomodações. Surpreendeu-
nos, positivamente, a falta de insetos que imaginamos dominavam o local. Ninguém
foi picado por mosquito algum. As queimaduras de pele foram notáveis nos jovens
espanhóis, apesar de o lazer nas águas ser coisa rara e cuidadosa, mas que não
tem nada a ver com a existência de piranhas.
Depois do despertar, encontrávamos uma mesa de café colocada sobre a
tampa do motor. Sempre tinha frutas, sucos e, por vezes, uns “biscoitos no barbante”
buscados em terra. O barbante era a embalagem.
Uma de nossas informantes, de nome Rosana, era quem fabricava os
biscoitos na Ilha da Macedônia. Consistentes e saborosos, fazem parte da
alimentação local tal como o pão, que, lá, não se faz pão e pouco se come essa
iguaria. A explicação é a de que o trigo embolora rápido no clima das ilhas. Os
94
biscoitos são rosquinhas feitas de farinha de mandioca e fubá, com alguma farinha
de trigo; as doces vêm com açúcar ou mel, e as salgadas, com polvilho. Os biscoitos
dessa mistura, apesar de mais resistentes à umidade, não podem ser embalados em
papel ou em plástico, pois ficam murchos e, por isso, são colocados no barbante.
Segundo Rosana, após saírem do forno, ela vai colocando as rosquinhas em
um longo barbante, que fica em exposição pendurado sobre o balcão do comércio
dela, um pequeno mercadinho. Assim, elas esfriam naturalmente, em contato com a
umidade, e podem durar um pouco mais.
A freguesia vai até ela sempre às 7h00min e às 17h00min, pois a fabricação
dos biscoitos tem hora certa. No ato da compra, as pessoas recebem um barbante,
em que a Rosana enfia as rosquinhas e dá um nozinho. Então, elas saem pelas ruas
de palafitas com o cordão levado no braço feito uma pulseira ou, por molecagem, as
crianças o levam no pescoço como se fosse um colar. Outro espetáculo à parte.
Aportando nas comunidades ribeirinhas e pesqueiras, descíamos para ouvir
relatos e registrar a cultura local. Isso era uma rotina que só se interrompia quando o
Capitão anunciava passeios pelo arquipélago. Foram excursões por lugares pouco
conhecidos, como as ilhas que crescem no meio do leito e vêm de baixo para cima
até sedimentarem-se. Lá, cresce um capim fino, cor de manteiga, onde pássaros
bem pequenos pousam e ficam balançando. espécies de garças que ficam
nessas ilhas se alimentando nas areias. Segundo o Capitão, são elas que indicam
quando os locais podem ser habitados sem perigo.
Vimos, em quase todas as ilhas, ninhos de pássaros que parecem bolhas
penduradas nos galhos mais altos de algumas árvores. São grandes ninhos que
desafiam a gravidade, sustentados por uma amarração mínima na parte estreita que
se prende aos galhos. Na mata, vimos palmeiras de açaís nativos, onde crianças
subiam e retiravam os cachos, descendo apenas com uma corda amarrada nos pés.
Na Ilha do Comércio, lojas de roupas, tecidos, farmácia, perfumaria,
sapatos, insumos agrícolas, enfim, tudo o que uma pequena comunidade precisa
para viver. Visitamos um armazém, de modelo antigo dos secos e molhados, onde
se compra de tudo. Lá, os ventiladores de teto não dão conta do calor e as
geladeiras e freezers funcionam com geradores próprios.
Na saída do armazém, fomos abordados pelo jornalista da TV Tucuju, rede
local repetidora da Rede Globo, que nos entrevistou sobre as impressões das ilhas e
95
o nosso propósito no local. A reportagem foi ao ar e pudemos vê-la na casa do
Professor Mauro, que trabalha na Escola Bosque.
No mesmo dia, à tarde, fomos à Escola Bosque, que era uma espécie de
ponto de encontro, onde pudemos observar os mapas de satélite da região e
entrevistar professores e alguns alunos.
A escola tinha preparado uma apresentação dos alunos para os
pesquisadores. Assistimos a uma tentativa de recuperação de uma dança indígena:
a “dança do coatá”. Uma espécie de quadrilha de casais com s arrastados e
viravoltas dos pares sobre si mesmos, ao som de uma canção que dizia como era o
coatá
44
e suas preferências.
O esforço de manter a memória de atividades culturais como essa é
importante para a escola e seus alunos. O evento foi registrado pela TV Tucuju,
como atividade regional digna de nota, por ser de preservação e educação.
Em seguida ao coatá, vimos uma dança improvisada sobre a música
“Aquarela do Brasil”, apresentada por crianças bem pequenas, vestidas de “índios
brasileiros”. A apresentação tinha sido criada e produzida por aquele rapaz que se
travestia e fazia shows no cabaré da Selma, na Macedônia.
A escola apresentou, na sequência, uma exposição de trabalhos manuais em
cestaria e balaios, redes de pesca, entalhe em madeira queimada da floresta,
sementes de coleta de mutirão e peças em barro cru.
A instituição foi visitada ainda outras vezes, quando pudemos acompanhar
aulas, atividades de horta, colheita de aí, plantação de mudas na floresta etc. A
direção fez questão de dizer que a escola poderia ser melhor, se houvesse interesse
nos projetos ambientais e sustentáveis.
Fomos levados, ainda, pelo Professor Mauro até a Sra. Deolinda, sua sogra,
que era uma parteira excepcional, pois sabia ler e escrever bem, e registrou os
nascimentos desde o seu primeiro bebê nas ilhas. Somando, ela tem para mais de
mil registros não oficiais, com dia, hora, peso e parentescos.
44
O coatá é uma espécie de primata pequeno e muito conhecido na região, medindo,
aproximadamente, 1,20 metros, e pesando cerca de 10 quilos. Aparece no norte do país, sendo
encontrado mais raramente no Nordeste. Tem pelagem preta ou branca, sendo os brancos mais
raros. Os pretos têm um triângulo branco sobre a fronte, com listas na face; o inverso acontece com
os brancos. No Amapá, existe uma comunidade indígena no Laranjal que se chama Coatá-Laranjal.
96
Dª. Deolinda está aposentada pelo projeto “Parindo um mundo novo”
45
, que
tirou da clandestinidade as parteiras da floresta. Ela foi uma das nossas informantes,
entre outras mulheres contatadas na Vila Progresso.
Encontramos coletoras de materiais da floresta, pescadoras, viúvas de
pescadores, parteiras e, em geral, todas apresentaram histórico de agricultura.
No posto de saúde, conhecemos Tereza Bordalo, que se orgulhava de ter
conhecido a cidade de o Paulo através do projeto das parteiras. Tereza falava o
patuá, uma outra língua falada na fronteira com o Oiapoque, pelas etnias que
subsistem. O som do patuá se parece com um francês em que não pronuncia o / r /,
além de lembrar línguas indígenas pelos sons mais estalados.
Foi uma boa surpresa o encontro com a Dª. Tereza, que, no entanto, não nos
rendeu outra entrevista, pois a parteira seguia para Macapá na mesma hora em que
nos encontramos.
Entre todas as ilhas que visitamos no arquipélago, encontramos, em apenas
uma, a Vila Progresso, uma comunidade em que os membros trabalham em grande
parte no continente, só voltando para casa no fim de semana.
Essa característica ficou restrita a essa comunidade, sendo pouco comum
nas demais, onde as pessoas vivem apenas dos recursos do projeto federal do
“Bolsa Família”, que as ilhas sofrem a ausência dos homens que buscam trabalho
fora do estado, principalmente em São Luís, no Maranhão, ou, ainda, em Minas
Gerais.
O desemprego é generalizado, pois a população vivia da coleta da floresta e
da venda desses produtos, através de cooperativas, além da caça e da pesca. A
caça está proibida e, apesar de eles conseguirem caçar por vezes, sempre se veem
sujeitos a denúncias anônimas.
Enquanto o governo Capiberibe chegou a criar empregos e formas de reter a
população, os governos que se seguiram o mantiveram as frentes de trabalho e
as cooperativas de coleta têm, hoje, que se organizar individualmente. Os homens
saem em busca de trabalho e as mulheres ficam e guardam os espaços físicos e da
memória.
45
Levado a êxito pela esposa do ex-governador, Janete Capiberibe, tal projeto capacitou mais de 130
mulheres parteiras, dando-lhes acesso a materiais de higiene, formação escolar e direitos
trabalhistas. Mais detalhes podem ser encontrados na obra “Parindo um mundo novo: Janete
Capiberibe e as parteiras do Amapá”. São Paulo: Cortez/Unicef, 2002, organizado por Luiza Jucá e
Nilson Moulin.
97
Nas ilhas do Bailique, não foi encontrado nenhum projeto de natureza
sustentável que possa dar aos moradores esperança de sobrevivência e
continuidade digna de trabalho na região. Isso ficou patente nas entrevistas
realizadas com os membros das comunidades, que se mostraram totalmente
desanimados, abatidos, descrentes e preocupados com o futuro dos poucos filhos
das ilhas, que devem partir assim que terminarem os estudos, pois o em que
trabalhar no Bailique.
Relatos de coletoras de materiais da floresta deram conta de que nem essa
atividade mais está sendo produtiva, pois a capital não tem mais interesse em
castanhas colhidas, açaí natural ou matérias-primas da floresta.
A expedição registrou barqueiros que não podem fazer barcos por não terem
a quem vender, e pescadores que só têm canoas ou voadeiras para se locomover, o
que dificulta as viagens mais longas e mais distantes para a pesca comercial. Os
barcos de linha são sempre muito ruins e perigosos, não dispondo de
acondicionamento para o pescado. As voadeiras são caras e de difícil manutenção,
pois dependem de diesel como combustível, que é encontrado no continente,
pois não há abastecimento oficial nas ilhas.
O combustível como um todo é transportado pelo rio e, frequentemente, por
ser manipulado sem qualquer cuidado e técnica segura, causa acidentes ambientais
graves nunca noticiados. A gasolina é inexistente nas ilhas e aparece se for
levada sob encomenda. O barco da nossa expedição levava estoque de combustível
no teto da embarcação, exposto ao sol e sem nenhum cuidado maior.
Por todo o arquipélago, encontramos uma população que se alimenta de
peixe, açaí, farinha de mandioca e enlatados vindos do continente. As verduras e
legumes são raros e cultivados em quintais de uma e outra casa, nos meses de
seca, pois, na cheia, o rio cobre todo o terreno das casas que ficam sobre as
palafitas.
O consumo de carne bovina é inexistente, assim como de cabras e bodes. Na
capital, é possível encontrar a carne de búfalo, mas os preços são um dos fatores
limitantes para o consumo pela população em geral.
Ainda se come carne de caça, apesar das proibições e apreensões do Ibama,
sendo considerada elemento da cultura local. As pessoas ficam constrangidas
quando encontradas comendo caça e se desculpam sempre que podem pelo
98
costume, entendido, hoje, como predatório e antiambiental. No entanto, em muitas
situações, só conseguem comer carne se infringirem a proibição de caça silvestre.
A farinha de mandioca é consumida em alta escala, sendo alimento
obrigatório junto com o açaí ou a bacaba, fruto de palmeira semelhante ao açaí,
sendo de cor e sabor diferentes, semelhante a café com leite frio. O pão não faz
parte da dieta local e tem sido recentemente levado às mesas mais pobres pela falta
do açaí e pela chegada de supermercados.
O calor, felizmente, obriga o consumo de sucos de frutas locais mais do que
refrigerantes. A banana, chamada de pacova, é consumida frita, quando verde, e
cozida, quando madura, acompanhando a comida. Sobre a pacova, Cascudo (2001,
p. 12) esclarece: “Em 1569 [...] na Bahia, encontram-se bananeiras [...] competindo
com pacovas nativas [...] sendo as pacovas mais grossas, mais longas, com miolo
mole”. Ricas em tanino, as pacovas são encontradas junto às águas e terras úmidas;
quando cozidas, suprem a falta do pão e legumes.
Fomos, ainda, a uma pequena ilha atrás de um enorme igarapé que dava
para o mar aberto, onde se colhe mel de abelhas locais. o consigo definir o sabor
daquelas flores do mar. As quantidades são pequenas como devem ser.
Havia, na pequenina ilha, uma mistura de ribeirinhos e índios, a julgar pelo
tipo físico dos moradores. Apenas duas famílias com algumas crianças. Pudemos
encontrar esse mel em Macapá, na Feira da Farinha, onde um homem vendia
apenas seis vidros da iguaria, que prováramos alardeando as maravilhas do
produto.
na Ilha do Estaleiro, duas famílias que constroem barcos de pesca e de
transporte. Fomos visitá-las. Ambas tinham um barco em obras. Com poucos
recursos, pais e filhos fazem barcos artesanais e vivem das encomendas que
aparecem e que são, hoje, mais raras, pois os estaleiros da capital são mais
rápidos e trabalham com madeira certificada, segundo nos disseram.
O artesão de barcos que encontramos é branco, de olhos muito claros, e seus
filhos são apenas queimados do sol, mantendo a cor clara. São, na verdade,
ribeirinhos de longa data e antiga ascendência europeia.
Ele não quis participar dos relatos, certamente por receio de ser perguntado a
respeito da madeira que usa em suas embarcações. Contudo, curioso foi o orgulho
com que mencionou não existirem mais índios no Bailique. Segundo ele, nunca
99
houve. Foi a única vez em que ouvimos falar sobre cor e raça referindo-se à
população local.
Fui abordada nessa ilha por um senhor que me pediu para ver a filha dele que
se encontrava “enferma”. Como éramos de fora, disseram que eu era doutora e, por
acaso, usava branco no dia em que me encontrou. Esclarecido o erro, ainda assim
ele quis me falar dos problemas da filha e aceitou ser nosso informante. O Sr.
Furtado tinha uma filha de 15 anos, com deficiência mental em algum nível, além de
epilepsia, perda de memória e déficit de aprendizagem. Nada pudemos fazer por
eles, mas o relato emocionado está em nossos registros que serão analisados.
Sobre a presença de negros nas ilhas visitadas, foi possível notar a sua
mistura com os caboclos ribeirinhos de características indígenas fortes, mas de pele
bastante escura. Porém, vale observar que, quando perguntados sobre diferenças
de origens étnicas, os moradores foram categóricos em dizer que, por lá, havia
famílias brancas e que os negros estavam todos na Ilha dos Pretos.
A Ilha dos Pretos é uma espécie de lenda, onde não se é admitido sem que
se faça uma negociação com os moradores, pela sua recusa em se comunicar com
quem é estranho à ilha. Todos negros, os moradores são de duas famílias:
Assunção e Santos. O que chama a atenção é o fato de serem todos negros,
estarem isolados e terem um procedimento com o lugar que estaria adequado a
cuidados ambientais os mais recentes. Não se pisa no local calçado, por exemplo.
Isso nos foi contado pelo Sr. Amarildo, que se desculpou por não podermos ir até a
ilha, pois os habitantes não costumam receber ninguém.
Os habitantes de lá são arredios, mantendo uma sociedade fechada e restrita,
e vivendo quase sem sair dessa ilha. Na pesquisa, pude determinar que alguns
grupos de fugitivos, ao se isolarem e conseguirem se organizar, temiam ser
molestados ou ficavam inseguros, e talvez isso justifique a recusa desses moradores
da Ilha dos Pretos de se relacionarem com outras pessoas. Por esse motivo,
nenhuma informação sobre a Ilha dos Pretos pôde ser, de fato, verificada.
A Ilha do Hotel é um outro lugar digno de nota. Hoje, é um local fantasma. No
governo Capiberibe, estava projetado para abrigar laboratórios, clínicas e um
pequeno hospital de emergência, além de representar um posto avançado de
pesquisas sustentáveis na floresta, com subsídios federais e internacionais. Haveria
um hotel, na mesma ilha, onde se poderia hospedar e conhecer o local com
100
estudantes da Universidade Federal com impacto programado nos locais visitados.
O complexo está construído, mas fechado e vazio.
Nas Ilhas Carneiro, Paraíso e Arraial, a solicitação de relatos e conversas não
foi aceita. São ilhas menores, pouco organizadas, onde se pôde perceber a
necessidade da organização da coleta seletiva, pois o entorno tem tanto lixo
reciclável à deriva nas margens que o barco teme atracar e carregar os detritos na
hélice do motor. Pouco desenvolvidas, vivem exclusivamente da pesca.
muitas crianças e pessoas de idade, e não se veem jovens, pois estes
deixam o arquipélago para trabalhar e estudar na capital. um déficit imenso de
escolas de ensino médio no local e as únicas possibilidades são as cidades mais
próximas, como Santana e Macapá.
O Buritizal é outra ilha grande que vive apenas da coleta das folhas e frutos
do buriti
46
. Não encontramos a pessoa de contato na ilha, mas ficou claro que a
população é composta de extrativistas, que vivem da comercialização dos produtos
do buriti.
Essa ilha tem palmeiras em grande quantidade logo na entrada do pequeno
porto bem arrumado, onde se atraca com facilidade e segurança, pois ali chegam os
barcos para carregar as longas palhas e subprodutos.
Quando chegamos à Ilha de Itamatatuba, nos deparamos com um
ancoradouro quase todo destruído. A pequena vila é o nada, onde se vende Coca-
Cola e gelo em uma geladeira ligada a um pequeno gerador a diesel. São 250
crianças e 50 famílias que cozinham na lenha.
Foi criada, ali, uma Usina de Beneficiamento de pescado e camarão. O local é
a embocadura do rio e do mar, recebendo, então, peixes de mar e rio, sendo a
presença do camarão em volume tão impressionante que justificava a usina com
galpões de beneficiamento dispondo de câmaras frigoríficas e rede de
comercialização.
O projeto foi tocado pelo governo, em parceria com uma cooperativa que
empregava as famílias em todo o processo. Havia barcos cooperados, lavanderia
para higienização das roupas usadas na linha de produção e uma cozinha industrial.
46
O buriti é uma árvore da qual tudo se aproveita e cujas folhas secas fornecem material para
trabalhos artesanais sem conta. O fruto do buriti, um coco com cor de caramelo, tem uma polpa com
que se faz um doce pastoso com goiabada. Por ser um coco, tem uma gordura vegetal cor de azeite
de dendê. Até o caule das folhas é usado como produto de impermeabilização de peças artesanais.
101
Funcionou até a saída de Capiberibe do governo e foi se perdendo com roubos e
sumiços de maquinário e barcos. Finalmente, visitamos os galpões vazios e
verificamos o piso com buracos, de onde foram arrancadas as máquinas.
A população favelizou-se; vive miseravelmente de pesca artesanal, não
dispondo de nenhum recurso para além deles mesmos. As pessoas que tentaram
falar conosco não quiseram ser fotografadas nem registradas. Os depoimentos de
duas mulheres, entre lágrimas, apontaram, inclusive, para violência quanto à
identificação dos responsáveis pelos roubos dos materiais e o fim da cooperativa.
O cenário dessa ilha era arrasador. Sem arruamento, com casas derrubadas
e caídas pela ação do tempo, sem ancoradouro, sem gerador, sem possibilidade
alguma.
Saímos da ilha completamente desolados, e a volta para o barco foi pesada e
silenciosa. Os pesquisadores espanhóis tinham estado quando funcionava a
usina e foi a primeira vez, em dias, que eles falaram abertamente conosco, contando
sobre o projeto, que incluía exatamente a pesca e o beneficiamento de camarão no
Bailique, com verbas internacionais para estudo e início de criadouros das espécies
mais rentáveis. Essa sensação de fracasso dos moradores da região durou um bom
tempo para ser digerida.
A última ilha que visitamos foi a Ilha do Parazinho, a mais extrema, distante
uma hora de barco das Ilhas Macedônia e Progresso, devendo ser visitada em
horários muito precisos em função das correntes marítimas que a cercam.
Ela é praticamente uma ilha marítima, que abriga uma reserva ecológica com
mata virgem de um lado e pequenas enseadas voltadas para o mar. Os banhos são
perigosos e as correntes podem ser observadas em redemoinhos. Como estávamos
de voadeira, muito frágil, não fomos autorizados a sair do barco. O Capitão
comentou que a ilha corre o risco de desaparecer, pois as marés cruzadas do mar e
do rio levam cada vez mais e mais as terras da ilha.
Conhecemos, também, o Tartarugalzinho, onde uma estação incubadora
de tartarugas marinhas guardadas pelo Sr. Orivaldo e sua família, que, sem maiores
recursos, senão a própria força e o conhecimento local, vigiam as espécies nas
incubadoras cercadas de madeira e galhos finos preenchidos de areia. Ali, os
pequenos animais dormem sob a areia, aquecidos pelo sol da linha do Equador e
regados pelas marés de sal e de rio, até o dia de voltarem para a natureza diversa
que as espera.
102
Havia tantas árvores com frutos, que podíamos escolher pelo tamanho de
cada fruta. Um bosque de cajueiros nos alimentou. Espetáculo à parte é o fato de o
bosque ficar submerso diariamente por horas quando a maré sobe. Não se pode
imaginar essas coisas acontecendo: só se pode vivenciar isso no Bailique.
Andávamos pela ilha, quando o Sr. Orivaldo, também distraído com a nossa
conversa, olhou para o sol e disse para apressarmos o passo. Foi uma operação
rápida e nos encaminhamos para a voadeira amarrada em um tronco, meio atolada
na lama cinzenta. Com a água fazendo pequenas e rápidas marolas, o barco se
soltou e já boiava. Ivan, marinheiro que nos acompanhou na viagem, foi empurrando
a embarcação para fora do igarapé, com água nos pés e, em segundos, a água
estava em seus joelhos.
Pulamos no barco com a água subindo depressa enquanto a maré invadia o
igarapé em ondinhas sequenciais sempre mais volumosas, fazendo desaparecer a
pequena rota de areia por onde havíamos entrado. Navegamos um pouco no mar
Atlântico, na divisão entre rio e mar, ambos misturados a preencher o igarapé onde a
casa se podia ver ao fundo. Perguntáramos se a ma enchesse mais que o
normal se a casa ficaria submersa. Ainda na praia, o Sr. Orivaldo nos garantiu que
tal coisa nunca acontecera e que ele tinha uma canoa ao lado da casa. Não haveria
muito a salvar das águas senão a vida, os remos, e uma rede, talvez.
Creio que não verei uma coisa tão integrada ao ecossistema como a estação
das tartarugas no Tartarugalzinho e as explicações de salvamento do Sr. Orivaldo.
2.6 A volta para Macapá
Passamos treze dias navegando pelo arquipélago do Bailique. Durante esse
tempo, redimensionei o trabalho, as questões pertinentes e o seu desenvolvimento
durante as semanas em que ficaria na capital. Fora uma oportunidade única de
pensar a tese in loco e sem interferências externas senão as que interessavam ao
tema.
Havíamos agendado com o Capitão a assessoria nas abordagens das
comunidades remanescentes. A experiência nas ilhas nos assegurava as vantagens
de ter, conosco, uma pessoa do lugar, intermediando os convites e as entrevistas.
103
A volta se preparava com o mesmo cuidado da partida de Macapá. O Sr.
Amarildo comprava mantimentos em pequena quantidade, inclusive os barbantes de
biscoitos.
Uma situação delicada se colocou. O Capitão foi solicitado a embarcar, nas
Ilhas Progresso e Macedônia, doze pessoas que estavam sem condução para a
capital.
Precisavam ir à capital e o barcos regulares suficientes nas ilhas. Eram
três mães com crianças em busca de médico em Macapá, comerciantes, jovens que
iam fazer vestibular, produtores e coletores com suas cargas, e um enfermeiro que,
após seis meses nas ilhas, voltava à capital para solicitar ao governador
providências para o posto médico abandonado.
Como seria dizer não a pessoas naquelas condições? No entanto, a
sobrecarga do barco ficava evidente e sabe-se dos acidentes regulares no Rio
Amazonas por essa razão. Consultados, dissemos sim, desde que a segurança
fosse preservada.
Era visível no discurso do Capitão o desejo de levar as pessoas. Ele deveria
cobrar por isso e seria um ganho extra na volta. Os pesquisadores pediram coletes
salva-vidas e nos preparamos para uma viagem apertada, pois mais gente no barco
significaria reduzir ainda mais o espaço. A volta se faria em dezesseis horas, pois a
sobrecarga exigia menor velocidade.
As pessoas ficaram do lado de fora do barco e não desceram para dentro em
nenhum momento. As mães com crianças ficaram em cima, no lugar da tripulação.
Os demais se espalharam pela popa. Teriam sido avisadas pelo Sr. Amarildo de
que, nas horas de viagem, não poderiam usar as dependências do barco nem
consumir nada, exceto se tivessem trazido lanches. As condições devem ter sido as
esperadas, pois ninguém pediu ou reclamou de nada. Simplesmente, dessa forma.
A longa noite foi de alguma conversa com o enfermeiro, que estava pesaroso
por partir, mas precisava ver cumpridas as promessas do governo nunca realizadas
desde que lá fora alocado no mesmo prédio do posto.
O enfermeiro dormia em uma rede dentro do posto, visto que não estava
previsto para ele uma casa ou alojamento no local. Recorria aos moradores para
sobreviver e trabalhava com chás e ervas discutidas com a parteira e as senhoras
que dominavam as ervas locais. decidira partir por causa da falta de soro
antiofídico, que era conservado na geladeira de uma das casas, pois a do posto
104
estava quebrada. meses, usava os serviços da erveira local, que trazia material
da floresta para colocar sobre a ferida do infeliz que chegava ao posto mordido de
cobra. Estava tranquilo com relação à segurança do posto, pois nada tinha dentro,
então, o que temer? Quanto aos cuidados, ficaram a cargo da erveira local
acostumada a curas na mata e às perdas fatais para as cobras. Infelizmente, não
conheci essa senhora que, segundo ele, morava mato dentro.
A propósito, em nossa estada na região, fomos solicitados, por duas vezes
em treze dias, a emprestar diesel para um barco levar até Macapá pessoas com
mordida de cobra. Um foi para a capital e melhorou, o outro ficou muito mal, mas foi
salvo por uma das erveiras. Não conseguimos localizar as pessoas para
confirmarmos o atendimento, mas o assunto ocupou as conversas nos dias
subsequentes.
A viagem foi um caminho preparado para o trabalho, detalhando a sequência
para as entrevistas que realizaríamos em Macapá junto às comunidades de
remanescentes de quilombos.
Os relatos colhidos criaram um ambiente interno de transformação da
concepção do trabalho, de tal sorte que, ao voltar, continuamos a navegar nos
dados, nas imagens e nos contatos teóricos por ela inspirados.
Aportamos em um domingo cheio de sol, sabendo dos dois eventos de
grande importância para a cidade: o primeiro deles era a Feira Internacional de
Indústria e Comércio da Região Norte, alocada em uma área muito bem estruturada,
abrigando produtores e comerciantes com tudo quanto um parque industrial pode
oferecer.
Foi interessante constatar a presença de artesãos ao lado da movelaria de
exportação, com madeira certificada do Amapá e da Guiana. Havia artistas plásticos
disputando público com artesãos das comunidades remanescentes, que ocupavam
espaços com seus produtos, além de grupos indígenas representantes de uma
cooperativa dos povos da floresta, com seus produtos artesanais. A feira movimenta,
anualmente, uma enorme quantidade de produtos e faz girar o setor econômico do
estado e adjacências.
Na região do Rio Jarí, uma comunidade de agricultores produz, hoje, grande
parte das verduras e legumes consumidos na região. No local, agendamos
entrevistas com representantes das comunidades remanescentes que se
105
encontravam em Macapá para o outro evento, o segundo acima mencionado, este
de lazer e cultura: o Encontro de Tambores.
O Encontro, hoje realizado nas dependências do UNA (União dos Negros do
Amapá), faria sua abertura em dois dias. Ele ocorre para comemorar o Dia da
Consciência Negra, mais conhecido por lá como Dia de Zumbi dos Palmares.
Realizado com 42 comunidades das regiões mais distantes da capital, até
aquelas do perímetro urbano, nele os grupos se reúnem para dançar o Marabaixo e
o Batuque, manifestações musicais e de dança.
Além desses eventos, havia o I Fórum de Cultura do Amapá, promovido pela
sociedade civil, governo do Estado e Secretaria de Educação, contando com a
presença de um representante da Secretaria da Identidade e da Diversidade
Cultural, na época, o ator Sérgio Mamberti.
Criada em 2004, tal Secretaria é ligada ao Ministério da Cultura e está
incluída no Plano de Desenvolvimento do atual governo, com a missão de valorizar a
identidade e preservar a integridade e a soberania cultural do país, em apoio à
produção cultural de redes e grupos, buscando estabilizar manifestações as mais
diversas.
A presença de um representante da Secretaria deu o tom da importância que
o Fórum e o Encontro de Tambores têm para a diversidade cultural do país e do
estado do Amapá.
A cidade, portanto, estava cheia de gente e, ao desembarcarmos, fomos
direto ao hotel onde deixáramos nossa reserva de acomodações. Era muito cedo e o
recepcionista do hotel disse que não havia reserva alguma em nossos nomes.
Mesmo sob protestos, fomos parar na calçada, com toda a bagagem da viagem,
mais a que ficara no depósito do hotel. Um táxi nos levou até hotéis que não
ofereciam as menores condições de sobrevivência.
Voltamos ao barco, em busca de abrigo temporário, mas nele havia outras
pessoas organizando uma outra atividade. Buscamos outros hotéis e
encontramos um quarto em um hotel em construção, onde tomamos café com a
família do proprietário. O preço era muito alto para o orçamento e precisávamos
encontrar alguma coisa viável, pois o Fórum e o Encontro durariam ainda duas
semanas.
106
Acomodados e tentando descansar um pouco, vimos os espanhóis, também
na mesma situação, ocuparem o quarto ao lado, com piso ainda sem acabamento e
banheiro sem azulejos.
O encontro foi surreal, pois eles nos cumprimentaram com um menear de
cabeça. À exceção do Professor Antonio, que veio me dar o seu cartão e dizer que
se me interessasse em disponibilizar meu material junto com os relatos dele na
Internet, ele teria prazer em armazenar meus dados durante a noite, em uma
operação direta via computador.
Agradeci e me perguntei como seria juntar meus dados aos deles depois do
que presenciamos. O fato acabou ali mesmo na calçada do hotel em construção.
Tínhamos, para o mesmo dia, um almoço na casa do Capitão, que nos
convidara, mas não aos demais pesquisadores. Fomos para a casa dele, dispostos a
pedir para dormirmos no barco até que ele zarpasse de novo ou buscar uma pensão
em casa de alguma família que ele recomendasse.
O simples relato do problema fez o Capitão nos levar à casa da Dª. Bartira,
sua mãe, e sugerir que ficássemos lá, pagando um mínimo pela estadia, que se
converteria na conta de luz do mês, coisa de R$ 30,00 (trinta reais), no máximo,
que não se aquecem eletricamente os banhos.
Combinamos, então, pagar R$ 100,00 (cem reais) pelos quinze dias, sem
alimentação, só banho e dormida.
A Dª. Bartira, filha do Bailique, pequenina, meio índia meio branca, de olhos
verdes, cabelos pretos e muito gentil, nos acolheu como filhos da casa, nos dando o
quarto com ar condicionado e com vista para os açaís do quintal.
Lá, ficamos por todo o tempo em que estivemos em Macapá. Nosso quartel
general, nosso refúgio, nossos amigos. Foram mais de quarenta dias nessa casa,
acolhedora e generosa.
No mesmo dia, buscamos nossos pertences no hotel e, ao voltarmos, havia
um lanche sobre a mesa, que compartilhamos com os filhos Daniel, Aldo, Célia e o
esposo, além do marido da Dª. Bartira, um caboclo pequeno, forte, queimado de sol
e de cabelos brancos. Fechadíssimo, só falou conosco na chegada e na saída.
Com a Dª. Bartira, aprendi dicas da culinária local, a tomar banho sem
transpirar depois, a comer banana pacova verde, a cismar na rede da varanda
espantando o calor, entre outras coisas. Ouvia as lembranças dela, naquela rua do
Buritizal, onde as árvores tinham quase desaparecido. Havia uma mata de buriti
107
quando o marido comprou o terreno ali. Tinha a alguma caça por lá. Depois,
“sumiu tudo”, lamentou ela.
A amizade que se estabeleceu entre nós foi maravilhosa e pude ouvir suas
queixas e dificuldades familiares e pessoais. tivera episódios depressivos e tinha
a saúde fragilizada. Foram dias e noites de cumplicidade e relatos complementares
sobre o Bailique e sua formação.
As ruas da cidade não tinham placas, mas tinham nomes. Alguém escrevia o
nome em algum pedaço de madeira e pendurava em um poste ou na fachada de
uma casa, mas não era uma constante. Assim, encontrar a rua era uma busca
sempre interessante e proveitosa, pois falávamos com os passantes que, não raro,
nos levavam até o local. Localizávamos as coisas pelas referências espaciais, como:
“é aquela rua que tem uma casa branca com janelas azuis, e em frente tem um
mercantil [supermercado]”. A casa de Dª. Bartira era a que tinha duas árvores na
porta. A maior parte das ruas não tem calçamento nem calçadas, não
saneamento básico, e pés de feijão sempre crescem nas portas das casas. O centro
é asfaltado e derrete sob o sol, formando bolsões e ondulações de material preto e
grudento. Melhor seria deixar sem asfalto...
Mais uma vez, o Capitão nos salvara. Estabeleceu-se uma rede de
informações em torno dessa família e, a cada dia, nos chegavam avisos de pessoas
dispostas a nos receber, convites para festas comunitárias, entre outras atividades.
2.7 O I Fórum de Cultura do Amapá
Esperamos por dois dias pelo início das atividades dos tambores, enquanto
acompanhamos o I Fórum de Cultura do Amapá, realizado pela Secretaria de
Educação e pelo governo do Estado, com a participação do governo federal e da
sociedade civil.
O Fórum foi aberto com uma semana de atividades em comemoração ao Dia
da Consciência Negra, não exatamente vinculado ao Encontro de Tambores, mas no
rastro dele, pois o Fórum poderia ser realizado em outra data. É clara a intenção de
percorrer caminhos acadêmicos e populares nas proximidades do Encontro, evento
108
internacionalmente conhecido, que arrebanha uma parte significativa da população e
opinião pública para a festa.
Digamos que o Encontro é a festa mais antiga e mais importante da região, e
criar um evento de cultura na mesma época parece ter sido uma excelente ideia,
que as atividades do Fórum estavam voltadas para um público que, externo ao
estado, tinha muito a ver e ouvir sobre o Amapá para além da festa.
Haveria atividades acadêmicas e de cunho político, com mesa de discussão
do tema cultura, além da presença de teóricos e autoridades da área, que abririam a
semana de comemorações.
O prédio que sediou o rum tinha uma arquitetura bastante comum no Norte
e Nordeste. Um grande pátio com jardim exuberante no centro e varandas com as
salas recuadas em busca de ventilação e abrigo do sol, ao estilo de conventos
religiosos, onde a área central permite a circulação, assim como o contato visual
com o complexo de salas e varandas dos três andares.
Impossível não pensar na arquitetura das construções indígenas, que as
formas circulares das instalações, onde todos podiam se ver ao saírem das salas,
lembrava a formação das ocas
47
. Salas grandes, com mobiliário pesado de pura
madeira, atendiam às necessidades de ventilação, pois as palestras e oficinas que
presenciamos podiam aproveitar das portas abertas, tentando ventilar o calor
sempre em torno dos 39-40°C, com o sol ao longe no parapeito das varandas.
A abertura do Fórum contou com discursos equilibrados e muito articulados,
que enfatizavam a necessidade de fazer o Amapá se apresentar na educação e
cultura com seu potencial distribuído entre as comunidades remanescentes de
quilombos, e a grande vitalidade da população urbana, que tem, nas comunidades
indígenas, outro dado de preservação e produção de cultura e memória.
Foi lembrado o fato de ser o Amapá um dos poucos estados que contam com
parte da Floresta Amazônica preservada e com a reorganização de projetos
sustentáveis para as cidades ribeirinhas.
47
Espécie de habitação indígena, feita de palha de palmeira, podendo variar no tipo de palha,
dependendo da região. As aldeias indígenas são formadas por várias ocas e, em geral, são
construídas em forma circular, de maneira que, cada qual, ao sair de sua oca, possa ter uma visão
inteira das demais ocas da aldeia. Isso é, para os indígenas, uma forma de integração com os demais
integrantes da tribo, mas, também, é uma possibilidade de ampliação de visão do todo. É sabido que
os jesuítas, logo ao chegarem às aldeias, demoliram essa concepção, impondo a construção das
ocas umas atrás das outras, de forma que, cada índio, ao sair, via quem estava à sua frente e ao
seu lado. Essa limitação de visão e orientação foi estratégica na colonização dos indígenas no país.
109
Importante mencionar que foi sentida a ausência de grupos indígenas na
abertura do Fórum. E isso é uma realidade local. A cultura indígena é inserida
apenas em momentos em que se deseja ser compatível com ideologias planetárias
ou estar de acordo com o chamado comportamento político de boa aceitação social,
mas a marca indígena é facilmente reconhecida pelos pés descalços. Onde as
pessoas param ou se sentam, tiram os calçados e colocam os pés no chão, com
uma intimidade e prazer comparados ao indígena que anda assim todo o tempo.
Destaca-se que o homem é, em grande parte, resultado do meio cultural em
que foi socializado. Na socialização ancestral do povo do Amapá, o hábito de pés no
chão é herdeiro de um longo processo cumulativo que reflete o conhecimento e a
experiência adquirida pelas gerações que o antecederam. Essa visão de Kroeber,
partilhada por Laraia (2002), diz muito sobre essa observação da cultura local.
O discurso do representante da Secretaria de Identidade e Diversidade
Cultural, na época o ator Sérgio Mamberti, foi na direção da necessidade de
continuidade das atividades e projetos das comunidades, depositários de
informações de uma região maltratada nos compêndios escolares e historicamente
carente de esclarecimento sobre uma cultura riquíssima e espantosamente
preservada.
O representante saudou a iniciativa do I Fórum Cultural, desejando que o
movimento produzisse outros bem-sucedidos encontros, mas também não
mencionou indígenas e ribeirinhos, descendentes diretos dos índios.
Duas mesas de palestras, respectivamente sobre políticas públicas em cultura
e educação e sobre a educação indígena no estado, foram abertas. A primeira era
formada por pessoas ligadas às comunidades remanescentes, que apresentaram
cantigas de Marabaixo, com instrumentos de percussão, convidando a todos para o
Encontro de Tambores que se realizaria em dois dias. A segunda foi o grupo de
dança Baraká, com integrantes da comunidade remanescente do Laguinho ou
Campos do Laguinho, que teria sido o primeiro dos quilombos nas terras da região.
A dança do grupo trouxe crianças e jovens da comunidade, que se
apresentaram com visível orgulho e bastante articulação nas falas relacionadas às
questões de remanescência de negros no Amapá.
As canções do Marabaixo eram marcadas por uma poesia que lembrava o
cordel cantado, ou ainda, as cantigas de viola do Nordeste. A voz principal era de
uma jovem, Daniela Ramos, neta da matriarca da comunidade, conhecida pela
110
interpretação perfeita dos gritos tradicionais das canções de Marabaixo, que, em
geral, o têm autoria determinada. No entanto, a jovem apresentou várias canções
de sua autoria. Esse fato é relativamente novo na cultura do Marabaixo, pois houve
um tempo extenso em que não se soube de composições novas, talvez até pelo
dispersar das comunidades e pela interrupção das festas.
Muito positivo, portanto, o fato de a composição dos temas ter sido
recuperada, principalmente no Laguinho, uma região de descendentes de
quilombos.
Ao final da apresentação, um grupo de crianças fez uma fala entrecortada
pelos gritos, chamando a plateia para o pátio, cantando o Marabaixo: “É de manhã /
é de madrugada / vamu tira leite sa dona / lá da cavalhada”.
fora, uma exposição fora montada com pequenas barracas azuis, onde as
comunidades expunham e vendiam suas produções. Nem todas estavam
representadas, dadas as dificuldades de transporte e as distâncias. Por ter sido este
o primeiro ano do Fórum e o lançamento da exposição, a iniciativa pode ser
considerada promissora para todos os envolvidos.
Acredita-se que as instituições do estado tentaram captar, no local, recursos
artesanais e produtos locais em torno do que é mais representativo para as
comunidades que habitam no estado. Das etnias indígenas, somente os Waiãpi
expuseram e venderam seu artesanato
48
.
Cada comunidade ali representada pôde falar de sua localização, suas
atividades e sua participação nos ateliês que seriam realizados. Foi outro momento
de surpresas felizes, pois os discursos eram de entusiasmo com a possibilidade de
mostrar o que fazem.
Dois dias se seguiram em que os ateliês e as comunicações de todas as
comunidades aconteceram dentro de uma organização impecável. Havia um
sentimento de importância, qualidade, simpatia e desejo de se fazer ouvir e ver.
As comunicações que pudemos registrar foram de mulheres de duas
comunidades. Uma tratou da inserção das mulheres na produção e execução dos
48
Os Waiãpi são um grupo indígena bastante organizado, com catálogo de produtos, regras de
confecção e pedidos agendados. Dispõem de uma casa de artesanato no centro de Macapá, onde os
índios se revezam na administração. Andam seminus, entendem o que dizemos, mas,
aparentemente, não falam português. Deixam que uma atendente vestida à moda ocidental receba e
faça os pedidos e as vendas, sendo os homens que lidam com o dinheiro e as vendas pela Internet.
Ficamos positivamente surpresos com tudo o que vimos junto aos Waiãpi.
111
instrumentos de percussão das festas, que esse era um trabalho exclusivamente
masculino e o fato de os homens, tempos, deixarem suas famílias para trabalhar
fora, reduziu demais a produção das caixas e tambores. Quanto à execução, ela
contou que, ao iniciarem as aulas entre mulheres de outras comunidades, não
acreditavam serem capazes de fazer tudo aquilo.
Depoimentos tocantes e reveladores de capacidade artística sensível se
fizeram ouvir, ao final, quando duas representantes do Laguinho e de Campina
Grande executaram toques de tambor e alguns versos de Marabaixo.
A outra comunicação foi de uma representante da comunidade do Coração,
que explicou a formação da cooperativa de mulheres artesãs criada no mesmo
rastro do abandono masculino. A representante, Sra. Rosângela Nascimento Costa,
com um discurso muito articulado, falou da rotina das artesãs, que vão de
madrugada para a floresta coletar materiais os mais variados, como cascas, folhas,
sementes, pedra, penas caídas, entre tantas outras coisas dadas pela mata.
Em Sahlins (2004, p. 145), encontramos uma discussão extensa sobre os
coletores e concordamos com o paradoxo por ele mencionado como dado de
realidade dessas comunidades que trabalham e ganham com o artesanato:
É esse o paradoxo que pretendo frisar. Os caçadores coletores, por força
das circunstâncias, têm um padrão de vida simples. Mas considerando-se
isso como seu objetivo, e dados os seus meios adequados de produção,
todas as necessidades materiais das pessoas costumam ser facilmente
satisfeitas.
Essa colocação é bem-vinda no momento em que a cultura ocidental erigiu
um altar às necessidades infinitas e inatingíveis, sempre renovadas a cada dia que
amanhece e que o homem se dá conta de que não tem o suficiente.
Um depoimento neste sentido foi trazido pela representante da comunidade
de Campina Grande, que disse: “não precisamos de muito para viver se não
quisermos ter tudo que se mostra na TV, no rádio”. Outra colocação deu conta de
que, se houver alimento e circulação do material coletado, eles terão sempre o que
fazer e comer. Pode parecer simples demais, mas é o modo como essas populações
vêm crescendo e se impondo socialmente no estado.
Voltando ao relato de Rosângela Nascimento, ela conta que, na volta, com o
sol nascido, as artesãs vão para a cooperativa, onde separam a coleta e
organizam as mesas de produção, de acordo com os pedidos que devem
112
despachar. A organização está filiada ao SENAC (Serviço Nacional de
Aprendizagem Comercial), que comercializa os produtos do Coração: bijuterias,
objetos de decoração ou encomendas segundo o catálogo que já existe. Essa
comunidade foi uma feliz surpresa em termos de organização e manutenção das
famílias no local com sustento fornecido pelo trabalho cooperado
49
.
O segundo dia foi de grandes rodas de conversas, onde as mulheres, e desta
vez muitos homens, contaram suas experiências. A comunidade de Ambé fez parte
do mencionado projeto das parteiras do Amapá e passou a fazer formação de
mão de obra de Enfermagem, de cuidadoras de crianças e de parteiras. A
multiplicação dessa mão de obra é fundamental no estado, que a rede de saúde é
precária, além de possibilitar acesso à escolaridade para a população fora da idade
escolar.
A comunidade de São Roque relatou experiências de xamãnismo, curas e
tratamentos de saúde física e espiritual pela intervenção de práticas indígenas
ancestrais, que chegaram aos ribeirinhos e remanescentes que estavam em busca
de cura, alívio de dores e de outros problemas. A utilização de Medicina natural a
partir dos recursos da floresta é, no Amapá, uma prática respeitada, à qual a
população recorre sempre.
Houve relatos de mulheres que foram “subtraídas” de suas atividades para
ficarem na floresta por dias e voltarem com o manejo das divindades elementais.
Tais relatos mobilizaram mais depoimentos de outras comunidades, como que
avalizando os acontecimentos contados. Entre as mulheres que estavam, três
revelaram ter passado pela experiência da “abdução” pelos elementais da floresta,
para depois se tornarem referências em benzeduras e conhecimento de ervas.
Com olhar vivo e alegre, Dª. Sinira, uma de nossas informantes, conta a
experiência de sua abdução na floresta:
Nós tinha ido colher na floresta, era cedo e ficamos por colhendo muitas
coisas. Eu fui até o brejinho, assim perto, molhar a cara e me beber água
com uma caneca de lata. Sim, eu vi o brejinho, e sim, eu o me entendi
mais. Digo que, quando voltei em mim tava toda rasgada, esfolada nas mão,
49
As mulheres entrevistadas mencionaram que, depois que passaram a integrar o grupo de coletoras
e artesãs, deixaram os trabalhos de faxineiras e catadoras de latinhas na cidade, e nunca mais faltou
gás em casa nem suas crianças choraram com fome. Essa realidade pode parecer simplória, mas o
Brasil profundo passa fome sim e tem necessidades básicas simples, mas pouco atendidas em
termos de poder de compra. Assim, poder comprar um botijão de gás, que, para muitos, pode ser
adquirido sem sofrimento, é, nesse caso, um dado de crescimento econômico do grupo.
113
nos joelho, e meu cabelo tava todo pra cima arrepiado que parecia arame
[Dª. Sinira é negra, de cabelos pretos e muito lisos]. Eu tava tonta e a
caneca tava na bera do brejinho. Eu acho que eu dormi e não sei quanto
tempo fiquei ali sem conseguir dar com nadinha de nada. A cabeça tava
assim como cheia de algodão leve sabe, mas como vazia. Caminhei até a
trilha e tinha umas pessoas ali assustada que me viram e gritaram: “Ela
aqui!”. Eles me levaram pra casa, e lá eu fiquei uns dias para entender, e
entendi quando uma comadre veio dizer: “Sinira, tu foi pega dos maracá da
floresta, agora tu é pajé de cura”. De verdade, eu nem liguei, mas, com
tempo, eu comecei a dar chá e dizer pros de casa como curar ferida. Fazia
umas coisa com folha que eu nem sabia o que era.
Ao relatar essa história, Dª. Sinira ria muito e nos disse, depois, que não sabe
de nada mesmo
50
. Que são, de fato, os caboclos da floresta, os encantados das
covas das árvores que fazem isso para não perderem os segredos das ervas.
Essa realidade tem raízes na mitologia amazônica, onde elementais
sequestram pessoas que, ao voltarem, adquiriram aptidões de xamãs, erveiros,
benzedores, curandeiros e videntes. As pessoas não relatam tais fatos com orgulho
ou consternação, mas como ocorrência tácita e esperada, culturalmente apoiada,
que a população acessa tais pessoas sempre que precisa, antes de consultar um
médico.
Relatos como os de Dª. Sinira podem nos parecer estranhos, inicialmente,
mas as histórias da floresta são cheias de mistérios e superstições, e não se deve
duvidar delas, que esse é um universo que, na verdade, os que nele habitam o
conhecem realmente.
Um outro grupo de mulheres do Mazagão Velho trouxe a experiência das
erveiras, que, hoje, também é multiplicado entre as comunidades. O fato de o
Mazagão ser muito distante de Macapá incentiva as práticas xamãnicas e demais
aptidões em lidar com a natureza em favor da população.
Preparação das garrafadas, canteiros de sementes, hortas comunitárias com
espécies locais, além do ensino do conhecimento e utilização das ervas, são
trabalhos desenvolvidos e acolhidos pelo IEPA (Instituto de Pesquisas Científicas e
Tecnológicas do Estado do Amapá), que oferece formação e apoia iniciativas que
possam ajudar a melhorar o conhecimento da flora local, entre outras áreas de
atuação. As pesquisas desenvolvidas deram origem a uma série de
50
Hoje, Dª. Sinira é erveira da comunidade, parteira, formada em Enfermagem, além de ser artesã de
palha de buriti.
114
medicamentos fitoterápicos produzidos em escala industrial, que são do
conhecimento e uso do povo da floresta.
Nas comunidades, sempre com pouco acesso a tratamento médico, são
produzidos medicamentos de custo zero, nesse segmento de conhecimento das
ervas da floresta.
Duas outras comunidades apresentaram seus progressos também: Igarapé
do Lago e Matapí, que vivem, em parte, da produção de peças de barro para venda
internacional. As peças são produzidas por um grupo de oleiras, que buscam o barro
em condições de verdadeira aventura
51
, pois o material que deu destaque
internacional aos potes ali produzidos é encontrado em determinadas regiões da
floresta, depois de uma busca difícil e perigosa.
Uma integrante da comunidade Matapí, relatou essa experiência:
Nóis sai bem cedinho, sim, no escuro, coisa de quatro hora, senão o sol não
deixa cavar. Como nóis acha o barro bom? A gente incalca o pé nas trilhas,
e vai vendo quando escorrega e aparece um barro diferente. Ele é meio
marrom clarinho, parece mantega, e misturado vem outro que é bom
mesmo, que é parece giz com uns raio fininho de preto. Depois de cozido,
fica muito bonita as peça. O difícil é carregar o barro. A gente leva os
menino e eles vão trazendo de poco em poco. A gente leva até uma
semana só carregando ele até o terreiro.
O Fórum foi encerrado com um show de danças sempre voltadas para o tema
afro e de exaltação dos escravos. O grupo do Laguinho cantou em dialeto africano
(ketu). Um outro grupo de dança, do Laranjal do Jarí, trouxe o Boi Bumbá do
Maranhão.
Diante da apresentação do grupo do Laranjal do Jarí, ficou claro que as
perdas humanas e culturais foram definitivas naquela região. O grupo dizia estar
apresentando a cultura local, mas o que se pôde ver, na realidade, foi uma
demonstração de que, por lá, as referências culturais se perderam e o existe uma
identidade resolvida, pois foi apresentada uma dança do boi do Maranhão, em
51
Na verdade, a atividade de descoberta busca e retirada do barro que serve para a olaria artesanal
sempre foi tarefa dos homens. Os homens coletavam o barro e traziam para as mulheres produzir as
peças. Eram eles ainda que buscavam as madeiras de chão galhos e pedaços de madeira caídos
no solo para a queima das peças, que era feita, segundo tradições indígenas, em fornos cavados
no solo (hoje, a queima é feita em fornos altos, ao estilo da queima de cerâmicas). Além disso, os
homens cuidavam da retirada das peças dos fornos, que ofereciam perigo de queimaduras graves.
No entanto, em função da mencionada debandada masculina em busca de trabalho, de salários
fixos e de benefícios sociais para os familiares, todas as etapas desse processo são, hoje em dia,
praticadas pelas mulheres.
115
função da migração intensa que houve no lugar quando da implementação da usina
de celulose.
A população do Laranjal do Jarí é constituída, em sua totalidade (salvo
raríssimas exceções), por pessoas vindas de todo o país, sobretudo do Nordeste,
Maranhão e Pará, lutando por uma identidade cultural e, segundo pudemos apurar
em entrevistas, o lugar não possui nada em particular com relação à cultura.
Os habitantes, todos muito motivados, percorreram uma distância de mais de
2.000 quilômetros para se apresentarem no Fórum. O grupo seguia a apresentação
ao estilo de escolas de samba, com uma sequência de alas. Uma dançava lambada;
na seguinte, um grupo de jovens vestia túnicas pretas com capuzes e rostos
pintados de preto com riscos nas faces, lembrando uma pintura indígena, ao som da
música Thriller, de Michel Jackson.
Fechando as alas, vinha um grupo dançando carimbó e trazendo uma
imagem do boto cor-de-rosa, desenhada e pintada em papel, que era levada como
faixa horizontal sobre as cabeças das demais alas, em movimentos de ir e vir. As
músicas se misturavam, mas as alas não se confundiam nos ritmos.
Tudo isso acontecendo ao mesmo tempo foi um momento de reflexão no idílio
amazônico que tínhamos vivido no Bailique. Mas aquela era também uma amostra
de vida, na qual a memória passa a se construir sobre outros tipos de
deslocamentos. um real entendimento nesse grupo sobre a tentativa de
conservação de um passado de cada um e o desejo de articular isso com o
presente, juntando memória e percepção de hábitos, que entendemos como uma
espécie de memória que acaba por criar hábitos.
Durante o Fórum, conhecemos, ainda, pessoas ligadas à arte. Uma das
nossas entrevistas foi com um artista plástico premiado na Europa, nascido na
Guiana, de pai guianês e mãe amapaense de Santana, o Josapha. Com ele,
encontramos o também artista plástico Aog, nascido em Macapá, filho de
pescadores e agricultores, que se retirou do meio rural e trabalha, desde então, com
madeira e materiais variados em instalações de contestação social.
Os dois artistas trabalham em totens, utilizando as madeiras devolutas
encontradas no rio (aquelas encalhadas na maré, que tínhamos visto antes de
116
embarcarmos para o Bailique), e fazem suas produções em um ateliê situado no
Bairro do Trem
52
.
Conhecemos, também, os organizadores do UNA (União dos Negros do
Amapá), que nos asseguraram entrada livre para captação de imagens em meio aos
grupos dançantes, entrevistas com os líderes comunitários que iam se apresentar, a
listagem dos locais onde as comunidades estavam alojadas, além de garantirem
uma preciosa entrevista com o Babalorixá
53
Pai Salvino, responsável pela parte
espiritual do UNA.
Fomos apresentados ao Padre Paulo, que nos deu a entrevista de
contraponto da mistura religiosa que pudemos presenciar nos Tambores, e
conhecemos um dos integrantes da produção do Fórum, que mora no Curiaú e nos
ajudou a aprender um pouco mais da geografia do velho quilombo.
Sem nos esquecermos de pessoas especiais, como o Mauro, um dos
responsáveis pela realização do evento, que se orgulhava da transmissão ao vivo
para canais europeus do Encontro de Tambores. Após o Encontro, nos recebeu em
sua casa, para olharmos uma série de fotos de famílias negras do século XIX, que
saíram da floresta para virem à cidade, depois de muito tempo isoladas.
A família dele era uma das que não voltou para a floresta e preferiu se
estabelecer em Macapá, como comerciantes de lavagem de roupas e costuras. Seus
avós, segundo ele, falavam francês entre si, ou ainda o patois, ou talvez o
creolo/criolo, e não comiam sentados em cadeiras.
As pessoas que conhecemos no Fórum de Cultura foram, de uma forma ou
de outra, guias para nossas entrevistas. Ao final do evento, tínhamos camisetas e
vários presentes das comunidades, além de cartõezinhos com indicação dos nomes
de pessoas que eles acreditavam ser as mais velhas, ou ainda as que detinham
lembranças e memória das comunidades.
Nosso trabalho foi maravilhosamente acolhido por todas as pessoas para
quem revelamos nossas intenções. Pareceu-nos que os habitantes de Macapá têm a
real dimensão da riqueza humana e do que representam historicamente os espaços
52
A origem do nome Bairro do Trem vem do fato de, inicialmente, ter sido o lugar de partida do trem
da mineradora da Serra do Navio. A estação foi deslocada, mas o bairro permanece com o mesmo
nome.
53
Um Babalorixá é uma espécie de sacerdote e chefe de um terreiro de Candomblé.
117
remanescentes de quilombos, fato que refaz o perfil dos remanescentes mais jovens
com relação à aceitação social do negro no Brasil como uma realidade concreta.
Havia, sempre que mencionávamos a coleta de lembranças dos quilombolas,
um acolhimento agradável e um sentido de acréscimo ao saber que se poderiam
preservar algumas das suas riquezas. Dos relatos orais que coletamos, foram os
mediadores entre as gerações uma das coisas mais interessantes e ricas que
registramos.
Sempre fomos aos locais de alojamento acompanhados por alguém da
comunidade que seria entrevistada por indicação dos nossos amigos. Em geral,
eram jovens que tinham saído das comunidades para trabalhar e voltavam nos fins
de semana, ou pessoas que moravam nos locais e sabiam histórias, mas queriam
que fossem relatadas pelos mais velhos.
Isso foi uma atitude constante nas entrevistas, nas quais os velhos eram
assessorados pelos jovens, que funcionavam como pontos vivos de veracidade do
que eles contavam.
O respeito com que os jovens solicitavam aos velhos para que relatassem o
que viveram parece conter um pedido de desculpas por lhes pedir coisas que estão
quase esquecidas ou que lhes possa causar desagrado, como coloca Bosi (2003),
ao dizer que a história de mentes e sensibilidades privilegia o coletivo da memória.
“Há, portanto uma memória coletiva produzida no interior de uma classe, que se
alimenta de imagens, sentimentos, ideias e valores que dão identidade àquela
classe [...] Cabe-nos interpretar tanto a lembrança quanto o esquecimento” (BOSI,
2003, p. 18).
2.8 O X Encontro de Tambores
As manifestações culturais que pudemos vivenciar com mais intensidade em
nossa viagem foram o Batuque e o Marabaixo, concentradas em uma mesma festa:
o Encontro de Tambores.
Nos dias atuais, o Encontro é realizado, anualmente, em Macapá, como
festejo comemorativo do Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro, e pode ser
entendido como uma festividade que reúne, com essas duas manifestações de
118
dança e canto, as comunidades remanescentes de quilombos. É uma “vadiação”,
como disseram alguns, onde se dançam esses dois ritmos muito semelhantes.
Descrever as festas é um prazer que precisa ser limitado pela necessidade de
sermos precisos e fiéis ao constatado. Mas, de alguma forma, isso parece ficar
aquém da descrição etnográfica viável. O prazer de vadiar, de ser capaz de
manifestar-se com seus corpos dizendo da vida e dos guardados tanto tempo,
recupera, em cada detalhe, gerações em diferentes espaços, mas com a mesma
encarnação.
As manifestações culturais envolvidas na festa chamada de Encontro de
Tambores revelam, delicadamente, a gama dos panteões cristãos indígenas e
africanos, que eram festejados em rodízio em cada comunidade, nos primórdios
desse evento.
O Encontro era conhecido, originalmente, como “Festa dos Tambores” e,
cada ano, era realizado em uma comunidade diferente de remanescentes de
quilombos. Havia um festeiro encarregado da organização, que se deslocava a
cada uma das comunidades, fazendo os convites pessoalmente, agendando
detalhes de alojamento e alimentação, e responsabilizando um componente da
comunidade para cada atividade. Além disso, ele decidia as cores dos grupos que
iriam se apresentar no festejo.
Sim, as cores sempre foram muito importantes. Até hoje, cada comunidade
tem as suas e pode, eventualmente, mudar alguma coisa, mas, basicamente, os
grupos permanecem com as mesmas cores a cada festa. A escolha das cores tem
relação com os santos de devoção de cada comunidade, originalmente católicos.
A festividade dos tambores sempre foi anual, dando espaço para que as
comunidades se organizassem com os preparativos. Ninguém soube nos dizer se
comemoravam, na época de maio, o fim da escravidão, mas, pelo que pudemos
ouvir de nossos informantes, eles acreditam que o evento sempre foi mais para
comemorar o santo de cada comunidade. Assim, a data da festa variava segundo as
devoções. Podia ser para o Divino, que era o festejo mais frequente, ou para
qualquer outro santo a ser comemorado em sua data própria ou fora dela.
119
Parece que não há, na memória, relação da festa com a Lei Áurea, e
acreditamos, pela forma um tanto distanciada de colocarem a questão, que isso não
era comentado nas comunidades por haver, por trás, um receio ou medo de falar
54
.
A comunidade escolhida para acolher a festa deveria oferecer alojamento,
comodidades básicas e alimentação, durante os dias em que o festejo acontecia. Às
vezes, duas ou três famílias poderiam ser as anfitriãs das festividades.
Havia nas comunidades, um espaço redondo, semelhante a chão batido,
coberto de folhas de palmeira, com bancos e tamboretes de madeira feitos de toras
de árvores. A forma redonda e coberta, sem nada embaixo, remete, e não sem
razão, às malocas indígenas muito comuns às etnias da região. Além disso, havia
um fogão à lenha do lado de fora, mesas onde se preparavam as comidas e
serviam-se as refeições, e um lugar mais alto, uma espécie de tablado, que era
usado para os grupos de música e canto se destacarem na festa.
Vale ressaltar, ainda, que havia uma espécie de ritual de confecção das
roupas para dançar na festa. Costureiras locais e de fora eram chamadas a fazer as
costuras, seguindo um modelo básico para todas as vestimentas. Tecidos eram
comprados de fora e trazidos de Belém, São Luís, Santana e, às vezes, da Guiana
(um tanto mais raro nos tempos passados).
O santo de devoção era arrumado e enfeitado em um andor rústico, para
desfilar pelas comunidades mais próximas, onde havia um ritual específico para
adesão dos convivas. O ritual era simples e consistia em algumas etapas.
Em primeiro lugar, o festeiro, vestido de branco e com enfeites na lapela e na
cintura, carregava uma bandeira com as cores do santo ou toda branca com
imagens do santo pintadas e bordadas com fitas, flores de papel e palhas verdes
enfeitando o mastro. Os acabamentos da ponta eram finalizados por laços de fita. O
54
Sem dúvida, para remanescentes de quilombos, falar da Lei Áurea não seria algo muito confortável,
mesmo porque a distância e o isolamento dos locais afastaram, por muitas gerações, a possibilidade
de conhecimento da dita lei. Nesse caso, o não dito, o não festejado, passa por um silenciar de vários
níveis: um deles, o desconhecimento; outro, o distanciamento dos fatos sociais e políticos; e, ainda, a
difícil relação da liberdade com uma lei. A vida nos quilombos sempre proporcionou um conforto na
ignorância e no afastamento protegido. Nisso, esse silenciar nos pareceu resultado dessa distância,
onde o festejar passou desde muito ao largo das leis ufanistas de libertação dos escravos tão
tardias no país. Esse seria um silêncio com significação, no qual encontramos um estatuto
significativo por estar ligado não apenas ao mítico, mas, principalmente, ao sagrado, onde as
palavras tentam explicar os ritos, e os próprios ritos não o explicáveis em palavras. O silêncio é,
então, a relação som e sentido via palavras ou ritos, ou ainda e mais especialmente como constatado
em nossos informantes, no vel do simbólico das paráfrases que pudemos ver e sentir, mas nem
sempre ouvir por palavras.
120
andor, tão enfeitado quanto a bandeira, levava o santo e era carregado pelos
homens. Um pálio de tecido branco cobria o andor, até que entrasse na maloca.
Uma ladainha era cantada para o santo e os rosários eram rezados em
conjunto com os pedidos e cantos. Um habitante era o depositário da ciência da
reza, que era dita em latim.
Depois, a população de cada comunidade entrava, então, com pares de
casais que iniciavam a dança. As composições para a data poderiam ser feitas por
todos, mas apenas as mulheres puxavam o canto, abrindo a cantoria com gritos
agudos e longos, acompanhados dos batuques dos instrumentos.
A dança era feita em círculos. Inicialmente, a comunidade anfitriã cantava
e dançava, para, depois de três músicas, ser permitida a entrada da plateia no
círculo de dança
55
. As demais comunidades se revezavam nas danças, intercaladas
por intervalos, até que todas tivessem feito sua apresentação.
Geralmente, a festa durava três dias e era realizada no fim de semana.
Durante esse tempo, dançava-se noite e dia, comendo e bebendo a gengibirra,
bebida à base de cachaça em infusão com gengibre, cravo, canela e açúcar, que era
preparada dias antes para que pudesse macerar. Havia, ainda, a cachaça com
infusão de folhas, preparada apenas por algumas pessoas, pois a bebida deveria ser
feita dentro da floresta
56
. Essa era uma bebida especialmente forte, oferecida
aos convidados especiais e familiares dos festeiros.
Ao fim dos três dias, as comunidades decidiam qual santo deveria ser
festejado no próximo ano e qual festeiro seria indicado.
Na verdade, segundo relatos de Dª. Chiquinha do Curiaú, a festa tinha data
para começar, mas não para acabar. “Quem queria ficava mais, quem tinha lida ia
embora. Mas era muito bom reunir o povo todo e ver as caras dos amigos, os filhos,
os netos, e saber das histórias de caça, de colheita, de bú [bois]”.
A partir de certo momento histórico, a queima de fogos passou a ser mais um
atrativo de beleza da festa. Dª. Chiquinha se lembra que era já casada, com crianças
grandes, quando começaram os fogos. Seus filhos têm, hoje, cerca de 40 anos,
então isso deve ter sido por volta dos anos 60.
55
Como se falou no primeiro capítulo deste trabalho, a dança em círculos é um dado cultural
indígena e africano.
56
A pessoa deveria entrar e buscar as ervas, colocar nas garrafas e depois sair da floresta. Não
poderia retirar as ervas do local.
121
E Dª. Chiquinha ainda nos disse:
Nesse tempo, a gente num tinha preocupação de roubo nem maldade. Já
tinha tudo certo e ninguém podia fazer besteira senão era chamado na
atenção. E depois, tinha a novena, não é? Cada qual que rezasse a sua e
pedia proteção e juízo pro povo, não é?
Entretanto, não obstante essa vontade e alegria de se unir, com o tempo, as
comunidades empobreceram muito e os festejos o aconteciam mais com a
mesma frequência nem com a mesma fartura. Prossegue Dª. Chiquinha, em seu
relato:
Depois disso, a festa começou a ficar fraca e todo mundo nem queria mais
sair das casas. Cada qual fazia só no seu terreiro e pronto. Depois, ela foi
se acabando mesmo e quando o Capiberibe [João Capiberibe], nos anos
90, voltou para cá, é que a gente começou a pensar em reunir de novo
assim grande.
Podemos localizar, aqui, a época histórica do país, como sendo o tempo da
ditadura militar, que teve ação importante nos estados do Norte e Nordeste,
determinando o fim das comemorações e o exílio de João Capiberibe, que fugiu do
país em função de suas implicações políticas.
em 1994, no governo de João Capiberibe, reinicia-se a festa, que tinha
cessado por completo, só voltando a acontecer a partir de iniciativas governamentais
e municipais, principalmente pela ação do governador. Em sua gestão, Capiberibe
voltou sua atenção para os problemas de cultura local e de desenvolvimento
sustentável, e passou a realizar ações fundamentais como a recuperação do espaço
cultural de troca proporcionado pela festividade de tambores, que se havia perdido
entre as comunidades remanescentes de quilombos.
Ciente da história local, o governador Capiberibe dispôs de um terreno
histórico na capital. Esse lugar dista algumas quadras do Forte de São José de
Macapá e, durante a construção da fortaleza, foi parte de uma trilha que conduzia os
fugitivos através dos Campos do Laguinho
57
. A passagem era exatamente por entre
o terreno, que, se traçada uma linha reta, fica alinhado com uma das faces do Forte.
57
Como já mencionado anteriormente, Campos do Laguinho ou Laguinho teria sido o primeiro
quilombo urbano de Macapá.
122
João Capiberibe entregou à Janete Capiberibe (Primeira-dama) a
incumbência de projetar, no terreno, algo que pudesse ser um espaço, ao mesmo
tempo, de museu, culto e cultura afro-brasileira em Macapá.
E assim, pelas mãos do Babalorixá Pai Salvino, um afrodescendente, surgiu o
espaço do UNA (União dos Negros do Amapá), que, hoje, abriga o festejo agora
chamado de Encontro de Tambores e não mais de Festa dos Tambores, por reunir,
atualmente, todas as comunidades remanescentes, para festejar seus santos de
devoção, em um espaço, em uma data que une, ideologicamente, os
descendentes de africanos escravos do país, que é o Dia da Consciência Negra, ou
como querem alguns, Dia de Zumbi.
A festa passou, então, a ocorrer não mais nos locais das comunidades, mas
sediada na capital, neste espaço determinado, a partir de subsídio do estado para as
roupas e demais apetrechos, fazendo parte dos calendários oficiais da cidade e do
UNA.
As festas e manifestações seguem, hoje, no espaço do UNA, em um plano
determinado ora pela comunidade, ora por outras instâncias, como datas de santos
católicos, estações do ano, colheitas ou, simplesmente, desejo de lazer. Isso vai
mantendo um fio condutor, que é a vontade que eles têm de cantar, dançar e de
desafiarem-se, destacando-se do todo pelas escolhas de cantos, pelo ineditismo de
seus ladrões e pela vertiginosa e incansável movimentação de seus componentes,
que parecem deslizar com s colados no chão, em rodas de saias e com camisas
brancas molhadas de suor e gengibirra.
Mas não foi em relação ao local e ao nome que se deram as mudanças no
festejo. Os habitantes comemoravam entre seus pares e passaram a comemorar em
público. Há tempos, a festividade é transmitida, internacionalmente, via satélite,
graças às boas relações do governador com a França e a Alemanha, que muito
fizeram pelos projetos sociais ali implantados.
A festa mudou historicamente e socialmente. Segundo Laraia (2002), dois
tipos de mudança cultural: uma que é interna, resultante da dinâmica do próprio
sistema cultural, e uma segunda, que é o resultado do contato de um sistema
cultural com um outro.
As manifestações culturais presenciadas em Macapá sofreram mudanças
importantes que nos parecem ter sido lentas, mas constantes e, certamente,
obedeceram, desde os seus primórdios, a exigências delineadas pelos padrões
123
culturais locais, externos e internos aos grupos. Uma das razões das mudanças foi
resultante do próprio entorno, enquanto natureza; outras foram imposições de um
governo, ou Estado e seus representantes, ou, até mesmo, decorrentes de
discordâncias internas com relação aos dias e objetivos das festas.
Isso faz parte do sistema cultural que, sempre em movimento, nos faz agora
refletir nos depoimentos em que informantes relatam, alegremente, antigas festas e,
um tanto meditativos, as mudanças básicas nas festividades principais que pudemos
apreciar e analisar.
A mudança de datas e espaços do Encontro criou certas distorções, pois as
comunidades inteiras agora se deslocam para o local da festa sem poder trazer nada
mais do que roupas e instrumentos.
Desenraizar-se, levando consigo a festa, quebra a pertinência da
comemoração com as coisas naturais, como as colheitas, as chuvas, as primeiras
frutas de época, entre outras coisas delicadas do ponto de vista antropológico.
Entretanto, essas perdas poderiam ser definitivas, caso não se fizesse nada por
elas. Perde-se o espaço e a memória relatada em torno das composições e ensaios
de passos, bem como a possibilidade de dialogia entre os membros.
A significativa perda de elementos culturais fez a cultura local das
comunidades se reencontrarem para celebrar a mesma festa com uma grande
alteração: a perda da significação religiosa da festa se pela via oficial laica que
não enfatiza os ritos católicos preexistentes que preparavam a saída dos grupos
para irem às outras comunidades, como as rezas, os terços, as pequenas
procissões e as ladainhas.
Perdas culturais, sem dúvida, aconteceram; no entanto, a festa, com toda a
publicidade dos tempos modernos, pode democratizar-se, contribuir para a recriação
das raízes africanas e chamar a atenção sobre a questão de terras remanescentes
dos quilombos, dando novo ânimo aos grupos mais empobrecidos, que já não
participavam nem das reuniões entre eles.
A transformação do eixo das crenças religiosas também foi positiva, pois
verificamos mudanças entre os remanescentes, os quais, antes, não aceitavam os
124
toques de rituais ligados aos orixás
58
e, hoje, cantam as canções em um yorubá
59
miscigenado, como era de se esperar.
“Ê ô fi aláyé ó iré ilé àwa / E bàbá a àwúre ó iré ilé àwasse”. Esse canto
yorubá, aqui transcrito, pôde ser ouvido no início do Encontro que presenciamos. Em
português, quer dizer: Ó Senhor do mundo que usa a (cobertura branca), faça
nossa casa feliz / Senhor e pai, dê-nos boa sorte e faça nossa casa feliz.
Na abertura do festejo, o espaço estava iluminado por tochas e as luzes
estavam desligadas. O padê de Exú
60
foi cantado por iniciados, despacharam-se as
portas
61
e água foi borrifada no solo sagrado.
O Babalorixá Pai Salvino, paramentado de branco e dourado, entrou
dançando com um adjá
62
, à frente do grupo de iniciados, todos de branco, que
foram ocupando a arena, fazendo dois círculos um pequeno no centro e um maior
em volta.
Os dois círculos giravam em sentido anti-horário, simbolizando que o que
se foi pode voltar, enquanto se cantava uma cantiga para cada orixá. Não se
cantava mais de uma cantiga, pois isso deixaria o ritual muito longo, visto que são,
em média, doze orixás.
Pai Salvino abriu as festividades com uma saudação a Oxalá
63
: Onísé a
àwúre a nlá oní a àwúre a nlá (Senhor faz com que tenhamos boa sorte e
com que sejamos grandes).
58
Os orixás são divindades africanas que correspondem a pontos de força da natureza e os seus
arquétipos estão relacionados às manifestações dessas forças. Em geral, como em demais culturas,
a mística fica sobre os cinco elementos da natureza e partes da terra, do corpo e da vida humana.
59
O yorubá é uma língua africana antiga, herdada de seus antepassados pelo povo yorubá. Ele é
falado, ao lado de outros idiomas, na parte oeste da África, principalmente na Nigéria, Benin, Togo e
Serra Leoa. No continente americano, o yorubá é praticado, sobretudo em ritos religiosos, como nos
ritos afro-brasileiros, sendo chamado, também, de Nagô. Hoje, evoluído como ewe, é falado no Togo.
60
O Padê de Exú é um ritual executado antes de qualquer cerimônia interna ou pública do
Candomblé. Exú é sempre o primeiro orixá a ser homenageado.
61
Despachar as portas é um ritual realizado antes de qualquer outro que possa vir a ocorrer no
espaço sagrado do terreiro de Candomblé. São ofertados alimentos específicos ao orixá Exu, que
deve comê-los para, então, ser “despachado”, ou seja, mandado para fora do local, para que os
demais orixás possam chegar. Canta-se, batem-se palmas e dança-se diante dos pontos sagrados do
terreiro, principalmente portas e janelas.
62
Adjá é uma sineta de metal, utilizada pelos sacerdotes do Candomblé durante as festas públicas,
acompanhando o toque e nas oferendas, com a finalidade de chamar os orixás ou provocar o transe.
O objeto pode ser de uma, duas ou três sinetas, e o cabo é feito do mesmo material, que pode ser de
bronze, metal dourado ou prateado.
63
Oxalá é o orixá associado à criação do mundo e da espécie humana.
125
A roda se encaminhou para sair e foi tocada a “vamunha”
64
, toque de
recolher nos terreiros. Todos apressaram o passo, em rodas de saias, deixando a
arena de costas e chutando o solo para fora, no gesto maior de consideração e
honra que se pode fazer no Candomblé, afinal aquele era um solo sagrado por tê-los
acolhido.
Impressionou o silêncio da plateia, ainda reduzida, que não aplaudiu, talvez
por mil outras razões, mas creio ter sido pelo forte caráter religioso, que enchia o ar
e que marcou essa abertura da festa.
Com o adjá nas mãos, Pai Salvino foi o último a deixar a arena, fazendo um
gesto com as mãos de dentro para fora, como que oferecendo a arena para a festa,
e dizendo palavras em yorubá, batendo a sineta na palma da mão.
As luzes se acenderam e o palco principal foi iluminado, mostrando outro
palco menor mais abaixo, onde uma enorme mesa, coberta de toalhas litúrgicas
católicas, recebia a arrumação aos moldes de uma mesa de igreja. Uma grande
bíblia aberta, um cálice dourado coberto com uma toalhinha rendada, um recipiente
dourado ao lado do cálice e algumas flores ao lado de um crucifixo marrom grande o
bastante para ser visto de longe. Palhas de buriti foram colocadas em frente à mesa,
formando uma decoração exuberante. Um homem defumou a mesa com um
defumador católico.
Os instrumentos começaram a afinação e logo se ouviram os primeiros
acordes dos tambores, esquentados por competentes percussionistas. A abertura foi
feita com um batuque, ao qual correspondeu a entrada de um padre paramentado,
que adentrou o recinto no balanço do tambor, pedindo “Paz na terra aos homens de
boa vontade”.
Era o Padre Paulo, que iniciou seu discurso falando sobre as restrições feitas
pelo Bispado de Macapá, proibindo-o de rezar a Missa dos Quilombos como vinha
fazendo até então, desde 2003. O bispo atual entendeu que a missa não poderia ser
feita, ali, em uma arena onde “se festejava o que se festejava”, pela mistura e
presença de outro tipo de crença.
64
A vamunha é um ritmo tocado pelos tambores na roda de Candomblé. Também conhecido pelos
nomes “ramonha”, “vamonha”, “avamunha”, “avania” ou “avaninha”, é tocado para todos os orixás,
quando, então, os iniciados entram em transe.
126
Ouviu-se um murmurar no público e o Padre Paulo informou que faria uma
liturgia cristã com as bênçãos de Oxalá e não uma missa, mas que o Senhor Jesus
receberia e abençoaria seu povo como sempre.
Contudo, a “missa” estava impressa em folhetos
65
, que tinham sido
distribuídos ao público, e cada parte do ritual católico contava com uma série de
orações bastante questionadoras da problemática do racismo e da realidade
ancestral de sofrimento dos negros.
O roteiro da celebração também impressionou pela inclusão de cantos afro
para Oxalá. Havia preces como:
ATO PENITENCIAL
PERDOAI-NOS SENHOR
PELOS GRITOS DE AMOR
DESSE POVO DE DOR
PERDOAI-NOS SENHOR
Cristo Senhor perdoai
Os filhos desse teu chão.
[...]
GLÓRIA
Eu olhei pro céu, e vi um jasmim, é louvor sem fim Olorum meu pai.
Olorum meu pai é louvor sem fim eu olhei pro céu e vi um jasmim.
MEDITAÇÃO
Se o Senhor não estivesse a favor da nossa gente, diga ao Povo de Israel,
diga ao povo de Israel.
Se Olorum não estivesse a favor da negra gente, diga ao povo de Zumbi,
diga ao povo de Zumbi.
Se Tupã não estivesse a favor da minha gente, diga ao povo dos quilombos,
diga ao povo dos quilombos.
Se meu pai o estivesse a favor da nossa gente, diga ao povo oprimido,
diga ao povo oprimido.
Solo: QUANDO NOS ARRANCARAM A MÃE TERRA, INVADIRAM OS
RIOS E AS FLORESTAS, NOS TERIAM ARRASTADO A CORRENTEZA E
ACABADO COM A GENTE CONCERTEZA. E AFOGADO MEU POVO NAS
PROFUNDEZAS Ô! E AFOGADO MEU POVO NAS PROFUNDEZAS (bis).
Olorum bendito sejas porque nunca permitisses que esses cães nos
devorassem, que esses cães nos devorassem.
65
No Anexo B desta tese, encontra-se o folheto da Missa dos Quilombos/2004.
127
O discurso da missa teve mais um tom próprio à celebração da Consciência
Negra do que um tom conciliador e de constrição católica. Os cantos eram
conhecidos e entoados com sorrisos de cumplicidade feliz, sendo fragrante o
entusiasmo do povo das comunidades na participação.
Contudo, os dirigentes de comunidades e da organização do evento
lamentavam a proibição imposta pelo Bispado, que a missa sempre foi transmitida
ao vivo durante anos e agora dependia de ordens eclesiásticas para tanto. A cisão
emocional inicial se faz sentir e podegerar dissidências reais se as proibições
seguirem acontecendo.
A celebração teve a duração normal de uma missa, com intróito, leitura de
evangelhos, benção das águas, ofertório e comunhão. Na hora da leitura de
escrituras, os tambores tocaram em surdina e o povo cantava um refrão, com as
mãos fechadas agitadas para cima: “Bate tambor bate tambor bate tambor”.
Uma lembrança do movimento Black Power
66
veio à memória, de imediato,
com os gestos dos punhos fechados agitados para cima ao som dos cantos da
missa. Enquanto o Padre Paulo lia, a população dos grupos do evento fazia o gesto,
ao qual o Padre se juntou, cantando em uníssono e visivelmente emocionado.
Passou, em seguida, para o ofertório, momento em que se cantou um ladrão que
dizia:
Senhor, não temos o que trazer a ti
Somos pobres oh Senhor
Só podemos te ofertar coisa de negro
Coisa de negro
Coisa de negro.
E as comunidades, nesse momento, faziam filas, cada qual com uma grande
gamela cheia de frutas levadas para cima do altar, que foram abençoadas e, logo
depois, distribuídas aos presentes em comunhão.
A celebração seguiu com um toque surdo de tambores mais alegre, enquanto
as pessoas comiam melancia, manga, banana e frutas regionais. Ao final, algumas
66
A expressão foi criada por Stokely Carmichel, que aderiu ao movimento racial de valorização e
criação de instituições negras por todo o mundo, principalmente nos Estados Unidos, dos anos 60 a
70. A busca do orgulho racial retomou sua crescente rota depois de Luther King e sua luta pelos
direitos civis dos negros nos Estados Unidos.
128
pessoas das comunidades iam passando com toalhas para que todos pudessem
limpar as mãos.
A sequência era de encerramento e de aspersão com água benta, jogada
com o instrumento católico, que é um bastão colocado dentro de um recipiente e
retirado na direção da plateia, fazendo o sinal da cruz, momento em que o Santo foi
cantado desta forma:
SANTO, SANTO, SANTO
O SENHOR É SANTO
SANTO, SANTO, SANTO
OLORUM É SANTO
[...]
É bendito o que vem de Tupã
Vem em nome do Senhor (4x)
Hosana, hosana, hosana
[...]
Vem chegando Jesus sarava (bis)
[...]
Nosso Deus nos salva.
As pessoas levantavam as mãos e se benziam ao receberem as gotinhas de
água, enquanto a música executada era o “Canto de Oxalá”, tocado em ritmo de
Marabaixo: “Ony saruê Saum Age / Ony saruê Oberiomã / Baba saruê Saum Age”.
Todos começaram a dançar, ocupando a arena em um ritmo lento, mas
crescente, enchendo-a completamente, fazendo as voltas das saias e das
bandeiras, em uma festa emocionante, enlevada por um sentimento redimido de
injustiça.
Parecia que todos ali estavam de acordo que a mistura de tudo aquilo era
deles por direito e que as manifestações de dores e alegrias estavam mais que
lícitas e bem colocadas. Havia orgulho da negritude que acolhia a todos no canto
final naquela arena.
O Padre Paulo cantava e dançava no palco, descendo, em seguida, para se
juntar ao povo. Vestido com sua túnica de motivos africanos, ao lado de Pai Salvino
e dos demais adeptos da seita, Padre Paulo dava a sensação de que talvez fosse
um filho do axé afro do Candomblé (e isso não seria nada impossível), tendo ali
realizado um momento de desobediência litúrgica festejada por todos, que,
acolhendo o padre, acolhiam sua desobediência e sua possível punição, a qual, de
129
fato, ocorreu, como soubemos, depois, na entrevista que o sacerdote nos concedeu.
Mas o ar encheu-se de ânimo, de força, de um espírito de união e de
entendimento de cada qual sobre o seu espaço de sofrimento e de recuperação pela
negritude e tudo quanto tem significado o ser negro no Brasil, no Amapá, em uma
comunidade remanescente de quilombos.
Todos estavam admirados com essa força que circulava e enlevava, assim
como muito emocionados. Os mais velhos das comunidades, ainda sentindo aquele
receio ancestral, resistiam ao ritmo afro e à canção, mas os jovens caiam na dança.
Os tambores encerraram e foram retomadas as atividades do Encontro. A
missa terminara em uma apoteose, que parecia difícil de encerrar. Mas o
seguimento da festa tinha que ser retomado. Os músicos se retiraram do palco e as
luzes foram reduzidas, enquanto a mesa de celebração era desvestida de sua toalha
branca e seus cálices e castiçais.
A seguir, um batuque fez entrar as comunidades em formação de quadrilha,
homens e mulheres, com um homem à frente com a bandeira do santo de devoção
de cada grupo.
Antigamente, quando as comunidades se deslocavam para festejar em outros
quilombos, esse ritual era feito nas águas nos barcos e tinha uma série de
exigências. Os integrantes do grupo deveriam entrar no barco sem falar, sem
conversas profanas, rezando um terço ou entoando hinos do santo em questão.
Deveria haver um coordenador em cada embarcação, que zelaria por essa atividade
litúrgica. Caso alguém desrespeitasse, deveria ser coberto com um pano branco e
ficar de joelhos até o final da travessia, orando e pedindo perdão em orações. Se tal
pessoa fosse a porta-estandarte da comunidade, perderia o posto, só podendo
recuperá-lo no ano seguinte. A bandeira deveria ir à frente do barco, em evoluções
artísticas, sem, no entanto, tocar a água. Quem deixasse molhar a bandeira também
era punido e perdia o posto. Não se podia comer ou beber na viagem. A devoção
tinha de ser absoluta e silenciosa, fora os cantos e rezas.
Na festa atual, as bandeiras eram as primeiras a entrar na arena, evoluindo
sem tocar o chão, lembrando, assim, a travessia sem tocar a água. As pessoas não
falavam, não sorriam e não dançavam realmente. Era uma quadrilha silenciosa que
entrava, dava a volta na arena e saía, enquanto, no palco, se anunciava o nome de
cada uma das comunidades que iriam participar da noite de festa.
130
Em pequenos intervalos, as comunidades começaram a ser chamadas para
se apresentar. Cada comunidade tinha direito a uma apresentação de uma hora, em
média, sendo meia hora para fazer suas evoluções e, em seguida, haveria a
entrada da plateia. Eles entravam em pares e ocupavam toda a arena, enquanto, no
palco maior, as duplas de mulheres puxavam os ladrões, que se sucediam.
A repetição dos ladrões era inevitável, que o repertório histórico não foi
pesquisado nem aumentado com divulgação para os demais. No entanto, o curioso
é que, a cada entrada e a cada repetição do ladrão, se cantava como se fosse outro
e os tambores tocavam de modo diferente, sem fadiga do som dos cantos.
Foram apresentadas, em três dias, 30 comunidades, todas com suas cores e
seus santos, suas mulheres lindas e capazes de, mesmo velhas, dançarem com a
graça de jovens experientes, nos passos enganosos de driblar as cortes masculinas.
Era comum ver os jovens tentarem fazer a corte a senhoras, que sorriam
muito. Eles insistiam como para dizer que elas eram sim desejáveis. Esse jogo
sensual e carinhoso se viu em todas as apresentações de todas as comunidades,
que, depois de evoluírem por minutos, já faziam os gestos de convite para a plateia
entrar na arena. Os gestos ficavam por conta de quem portava os leques de palha
ou as tolhas que eram rodadas no ar e agitadas para dentro da arena para que as
pessoas aceitassem o convite.
Após as apresentações dos grupos de cada noite, as cantoras e os sicos
se revezavam para a vadiagem da plateia, que rodava na arena ao som do Batuque
e do Marabaixo, abrindo espaço para as paqueras, os olhares e as ofertas de
gengibirra em copo alheio. Leques chegavam às nossas mãos sem que nos
déssemos conta de onde vieram. Acabávamos dançando, levados pelo ritmo que
agradava ao corpo.
No final dos três dias, as comunidades do Encontro prometeram voltar e os
tambores ensaiaram o Hino Nacional em ritmo de Batuque. Mas eram apenas os
acordes iniciais do hino, para depois cair no batuque, que era muito bom de dançar.
Durante todo o período das festividades, uma exposição de fotos e utensílios
rituais do Candomblé ficou diante da roça do UNA, com muitas visitações e sempre
com a presença de um iniciado a explicar aos interessados. Havia roupas de
iniciação, colares, fotos de rituais no UNA e uma quantidade enorme de utensílios
usados em uma casa de Candomblé.
131
A emoção das luzes e do povo negro cantando e dançando em um local a
eles dedicado, que foi um dia a rota de fuga do cativeiro, foi, para mim, um momento
de inesquecível afeto pelo que se realizou para a recuperação da dignidade e da
cidadania dos negros do Amapá. São necessárias medidas concretas na
institucionalização das terras quilombolas e na preservação de sua cultura.
Segundo Milton Santos (apud SANZIO, 2004, p. 40): “A reparação é
necessária. Na medida em que uma comunidade é secularmente posta à margem, a
nação tem que se ocupar dela. Os negros não são integrados no Brasil. Isso é um
risco para a unidade nacional”.
Geertz (1999), por sua vez, discute o valor dos saberes locais, levando em
conta um senso comum de pertencimento, produção cultural, sabedoria ancestral,
formas de vida e de sobrevivência, assim como cantar e rezar, dançar e festejar.
Comum, mas não absoluto nem igual, mas profundamente centrado em cada região,
local, em cada parte do espaço em que determinadas comunidades se organizam e
vivem. A simples descrição desta manifestação, ainda segundo Geertz (1999), pode
contribuir, e o faz, para tornar outras mais claras; outras tantas que virão.
Apresentar um espaço diverso e mergulhado em uma rede complexa de vida
e integração com o meio jamais pensado se estabeleceu como desafio desta coleta.
Nada de complexidades conceituais, mas as mais densas complexidades humanas,
para apresentar esse espaço ao norte do Brasil com sua cultura, seus habitantes,
sua arte, sua memória.
Da preparação intelectual do Fórum de Cultura à organização do evento dos
tambores pelo Estado, da urdidura da escolha de cores e modelos de roupas em
cada comunidade à apresentação dos grupos cantando os ladrões do Batuque e do
Marabaixo, tudo leva a um sentimento de pertencimento afro, que mantém com a
cultura indígena uma relação já marcada na pele e na cultura mais remota da
colonização.
O religioso e o profano, se é que ainda se pode dizer essa palavra em termos
culturais, estão de tal forma imbricados, que padre canta yorubá e babalaô abre a
festa pedindo a benção do Senhor dos céus. Nada de novo, já sabemos da simbiose
religiosa no país, mas o dado de mudança e de adesão ao pertencimento veio na
voz do Padre Paulo, que informou ter sido proibido de realizar a Missa dos
Quilombos como vinha sendo feito até 2003, mas que ele faria sim uma liturgia cristã
132
com as bênçãos de Oxalá. Isso corrobora a sensação de pertencimento mencionada
acima, já que o Padre Paulo é negro e nascido em Macapá.
2.9 Outras manifestações culturais presenciadas
No que diz respeito à cultura e às tradições do Amapá e dos remanescentes
de quilombos, não presenciamos apenas o Fórum Cultural e o Encontro de
Tambores, em nossa estada na região.
Pudemos assistir à limpeza espiritual do local onde foi realizado o Encontro;
visitamos duas casas de Candomblé, sendo que em uma presenciamos um ritual de
iniciação; fomos a uma casa no Mazagão e soubemos um pouco mais sobre a
criação de ladrões de Marabaixo; aprendemos sobre a confecção de instrumentos,
no Curiaú; e vimos, também, a Feira da Farinha, em Macapá.
Um fato se destaca na observação das festas e manifestações culturais e
religiosas: a consciência que os participantes têm de que são negros e
descendentes de africanos escravos.
Isso parece estar na ordem do dia em Macapá, junto à população negra de
remanescentes de quilombos. Essa sim é uma mudança que se pode constatar e
que, sem dúvida, chega em boa hora.
2.9.1 Limpeza espiritual do local do Encontro
Fomos convidados a assistir à limpeza espiritual do local do Encontro de
Tambores, realizada três dias após o festejo, na parte do UNA dedicada ao terreiro
de Candomblé zelado pelo Babalorixá Salvino de Angola.
A noite clara não demandava iluminação artificial e dava, ao todo, um ar
místico e sensual. Durante o dia, tinham sido retiradas as oferendas feitas aos orixás
do local. São feitas oferendas de flores e comidas, que devem ficar de um a 21 dias
no lugar, para depois serem retiradas (“levantadas”) e levadas a uma corrente de
água doce.
133
A lavagem também tinha sido feita e um perfume inundava o local. Com três
homens e uma mulher, Pai Salvino cantava diante dos quartos de orixá
67
,
colocando, sobre cada assentamento
68
, um tecido branco, fininho como gaze,
enquanto se saudava cada orixá com o seu chamamento próprio.
Em seguida, Pai Salvino dizia rezas e os outros batiam paó
69
, encerrando o
ritual com uma defumação.
Depois do ritual, um lanche, com comida típica de São Paulo, foi servido à luz
da lua, quando, então, Pai Salvino nos concedeu uma conversa. Os alimentos eram
pães, (“porque paulista gosta de pão, não é?”, disse ele), sucos de frutas locais,
bolos de mandioca e polvilho, pudim de coco e um chá de lavanda muito perfumado
e agradável.
Falamos por horas e Pai Salvino contou-nos sobre sua vida e sua chegada a
Macapá, dando-nos uma ideia do espaço importante que o Candomblé ocupa
naquela sociedade.
2.9.2 Visita à casa de Candomblé do Babalorixá Cláudio de Oxóssi
Visitamos, também, a casa de Candomblé do Babalorixá Cláudio de
Oxossi
70
. O terreiro, ou roça, ficava na periferia de Macapá, em um terreno grande,
onde, de longe, se sabe ser ali um local dedicado aos cultos afro. A casa, pintada de
67
Em cada templo religioso, são cultuados todos os orixás. Há, nas grandes roças, casas grandes,
onde cada orixá pode ter o seu próprio quarto. Nas casas menores, todos são cultuados em um único
quarto de santo.
68
Assentamento ou ibá é o conjunto de utensílios que cada orixá recebe nos rituais de criação de um
local, para ele ficar ali e ser cultuado. Colocam-se pedras, moedas e tantos outros materiais, que
ficam dentro de tigelas, bacias ou recipientes de barro, dependendo de cada orixá. O assentamento
seria como um espaço de culto pequeno e móvel. Em geral, cada assentamento é colocado em
prateleiras, obedecendo a uma hierarquia de antiguidade dos filhos da casa, função e tipos de orixás.
69
Nos rituais de Candomblé, os filhos de santo (iniciados no Candomblé) fazem o paó batendo as
palmas das mãos, em ritmo sincopado, quando é preciso comunicar alguma coisa, mas não se pode
falar. O gesto milenar remete ao som da chuva caindo sobre o solo, batendo no barro, fazendo que a
natureza frutos, germine, fertilize, crie vida. O paó tem uma medida de sete palmas roucas, pois
são batidas com a mão em concha, para tornar o som abafado, sendo três curtas e sete mais rápidas.
Ao final de um ritual, o paó é batido seguido de palmas em desordem. É, ainda, uma expressão de
respeito e consideração bater paó quando uma pessoa ilustre ou querida chega a um terreiro.
70
Tivemos a oportunidade de entrevistar Riwanda Lina dos Santos, coordenadora de uma ONG, o
IMENA (Instituto de Mulheres Negras do Amapá). Riwanda, neta de Dª. Chiquinha do Curiaú, nos
forneceu informações importantes sobre a presença das religiões afro e dos terreiros existentes na
cidade, e nos colocou em contato com o Babalorixá Cláudio de Oxóssi, por telefone, a quem
solicitamos uma entrevista, no terreiro, para falarmos do Candomblé.
134
branco, possuía uma bandeira na cumieira, um purrão (pote de barro com 1 metro
de altura) colocado sobre a casa e algumas pedras no caminho para a entrada.
Chegamos ao local de táxi. Uma criança nos esperava no canto da rua e saiu
correndo para a casa. Ao descermos e abordarmos a casa, os portões se abriram e
umas 30 pessoas nos aguardavam, em semicírculo, todas paramentadas de branco,
com seus fios de contas e turbantes, batendo paó enquanto entrávamos. Todos
davam graças aos orixás pela nossa presença naquele solo sagrado.
Nunca havia sido acolhida dessa forma em nenhuma casa de Candomblé. Fui
recebida com honras de visitante ilustre, como se faz em terreiros, onde receber
bem aquele que chega à sua casa é uma lei, acolhendo-se o hóspede com os filhos
da casa paramentados, o chão coberto de folhas, o local todo defumado e os
atabaques em toque de “varrum”
71
.
Os tambores eram tocados “dobrando com as varetas” (significa tocar em
ritmo fixo, apenas batidas secas, até que as entradas se façam todas), enquanto eu
cumprimentava os quatro cantos do salão, os assentamentos e os tambores.
O Babalorixá então saiu da cadeira que ocupava e abriu os braços,
recebendo-nos com uma reza ritual que obriga os iniciados a ficarem mais baixos do
que o pai de santo. Rezamos todos e ele abriu um xirê
72
completo, com uma cantiga
de cada orixá, dando a roda do centro para mim, além dele e mais as iniciadas mais
antigas e com cargos maiores na casa, assim como as mais velhas. Recebi um pano
da Costa branco, que coloquei na cintura, e dancei com eles.
Cláudio não me conhecia e disse-me estar honrado com tal orixá em sua casa
(referindo-se ao meu orixá). Passou a cantar para Iemanjá
73
e, ao final, me deu a
cadeira dele. Os cantos pararam, todos me pediram a benção e sumiram dentro da
casa.
O nosso espetáculo acabou com a exibição de dança de uma de suas
filhas da casa, que apresentou uma dança estilizada de orixás com grande beleza e
perfeição de gestos, fechando como um espetáculo à parte a visita ao terreiro.
71
O toque de varrum é uma sequência dissonante das varinhas sobre os couros dos tambores.
72
O xirê é uma sequência de toques e cantigas para todos os orixás, que é executada durante um
ritual ou festa de Candomblé.
73
Iemanjá é um orixá, cujo nome deriva da expressão yorubá Yèyé omo ejá(Mãe cujos filhos são
peixes). Conhecida como a Rainha do Mar, Iemanjá goza, no Brasil, de grande popularidade entre os
seguidores de religiões afro-brasileiras e, até mesmo, entre os membros de religiões distintas.
135
A casa funciona em consonância com a tradição afro de terreiros de
Candomblé, sendo que a nação ali cultuada é Jeje. uma grande discussão com
relação aos terreiros que cultuam Jeje
74
, pois se acredita que, no Brasil, existam
poucas e raras pessoas confiáveis de posse dos registros orais dos voduns. Cláudio
nos falou das dificuldades do jeje e da sua opção pelo kêtu, linha de adoração
baseada em outros orixás e princípios mais conhecidos e muito mais divulgados e
cultuados.
Ao sairmos, recebemos presentes, tais como um folheto de ritual de
fundamento, com recomendações para os dias seguintes das entrevistas e do
trabalho, e um potinho com “pemba preparada”, um ritual que deve ser usado
como proteção do corpo.
Esse tipo de manifestação de acolhida pela qual passamos faz lembrar de
raízes originárias nos rituais de casas de tradição da Bahia e de São Paulo, como
centros de culto afro que guardam os princípios de acolhimento dos visitantes, tal
qual a cultura oriental mouro-árabe o faz. O visitante recebe o melhor prato e o
melhor lugar na sala, é alvo de honras como receber a seus pés os filhos de santo
(os iniciados no Candomblé) batendo paó para ele, ou ainda, recebe a permissão
para cantar uma cantiga ou oração para um orixá.
Voltamos várias vezes a essa casa, que sempre nos tratou como visitantes
especiais e bem-vindos. Era uma casa de Candomblé tão organizada e conhecedora
dessas manifestações tão antigas no Amapá, que ficou bastante claro o quanto de
africanidade está ali preservada e sendo alvo de perpetuação na memória de seus
adeptos.
2.9.3 Ritual de iniciação no Candomblé
Outra surpresa que tivemos foi poder presenciar um ritual de iniciação de
Candomblé, em geral restrito, mas que nos foi permitido assistir sem dizer palavra
74
O Candomblé Jeje cultua os Voduns do Reino de Dahomey, trazidos para o Brasil pelos africanos
escravizados em várias regiões da África Ocidental e África Central. Os voduns são diferentes dos
orixás tradicionais, estando acima deles, pois pensam, decidem e possuem senso de distância, pena,
ódio, amor e tempo.
136
alguma ou nos olharmos até o final do cerimonial. Tratou-se de um banho de iaô
75
,
sob a luz da lua, com cantos, danças e rezas, na casa de Candomblé do Babalorixá
Fernando de Iansã.
O convite para visitarmos a casa, que é uma roça na cidade, veio de Daniel
Penna, filho da Dª. Bartira, mãe do Capitão. Daniel frequentava a roça do Babalorixá
Fernando e tocava tambor nas festas, mas sem ser iniciado, pois a dúvida sobre a
veracidade da religião deixava-o em suspenso, sem conseguir se decidir a entrar
mais seriamente na casa.
Fomos a tal casa, em uma noite de lua cheia, na boca da madrugada.
Chegamos e ficamos por uns 40 minutos sozinhos no salão do terreiro. Isso ocorre
em casas de Candomblé mais tradicionais, onde o pai ou mãe de santo não fala
nem aparece para as pessoas que acabam de chegar e que têm o corpo ainda
quente da caminhada. Esperam “esfriar”, para poderem aparecer e falar com o
visitante, oferecendo-lhe sempre água para beber.
Era início da madrugada, por volta das 2h00min, quando começaram os
preparativos para o banho do iaô. Ervas lavadas foram quinadas dentro de bacias,
com água retirada de um purrão bem em cima do iché
76
da casa, e separadas em
um chá em uma caneca de ágate lascada, para acompanhar a água do banho. Em
um prato, havia três quiabos crus lavados e uma espécie de purê de farinha de milho
branca separada em três bolinhos.
Um rapaz entrou por uma porta pequena e baixa que dava para o salão e
ouviram-se palavras em outra língua, talvez yorubá, chamando o orixá do iaô. O
iniciado foi coberto com panos brancos da cabeça aos pés e, por isso, não era
possível saber se era homem ou mulher.
Em seguida, o rapaz saiu puxando o iniciado (ou iniciada) pelos panos
brancos. Fora do salão, giraram a pessoa três vezes e tocaram um adjá sobre
cabeça dela. A pessoa se agachou e começou o banho, ao som de rezas e cantos
em sussurro.
O pai de santo participava, tocando o adjá e puxando as rezas, sentado em
uma cadeira, um pouco afastado do grupo. Os panos foram retirados e foi feita uma
espécie de biombo com os lençóis em torno da pessoa, que, depois, julgamos ser
75
Iaô é o nome dado ao iniciado em terreiros de Candomblé.
76
Local cavado no centro dos salões, onde se colocam objetos e sacrifícios de animais para dar ao
orixá força para sustentar a casa.
137
um homem, por ter sido o ritual conduzido apenas por homens. Naquela noite, não
vimos uma mulher na casa, fato que acreditamos ter relação com o tipo de orixá
recolhido, no caso, um orixá masculino.
As águas foram jogadas sobre o iaô e o banho se fez em silêncio total.
Secaram a pessoa com outros panos, todos sempre brancos, que sabemos ser uma
tônica da religião afro no Brasil, devido à condição da escravaria, a qual não tinha
acesso ou possibilidade de possuir tecidos que não fossem o algodão cru lavado.
Sob outros panos brancos, o iniciado rodou novamente e foi conduzido ao
centro do salão, onde, sentado sobre o iché, bebeu o chá por baixo dos panos e
comeu os quiabos, ao som de outras rezas e cantos, que o reconduziram ao quarto.
Depois disso, o pai de santo jogou água do purrão em torno dos nossos pés e
fomos levados para uma mesa de lanche no meio do quintal descoberto e iluminado
com velas, onde ceiamos uma refeição à base de frutas, milho amarelo e milho
branco em cuscuz, quiabos crus como salada, tudo acompanhado do mesmo chá
servido ao iniciado, o chá de “levante”
77
.
Na mesma casa, fomos convidados para uma festa de Ogum
78
. Essa outra
festa mais pareceu um samba de pagode ou de quintal, em que pouco se viu de
religiosidade. Foi uma feijoada oferecida por um dos filhos da casa, sendo uma
espécie de confraternização de lazer, onde se dançou muito samba com passos de
Candomblé.
O detalhe cultural ficou por conta do açaí trazido direto de um lugar especial e
recém-preparado, com o qual se regava os pratos. Tudo fica melhor com açaí, dizem
por lá. E pode-se saber, por experiência, que pode não ficar melhor, mas a sensação
de mal-estar, devido ao calor intenso e constante de quase 40°C, é relativizada
quando se consome a iguaria diariamente.
77
O chá de “levante” é feito das folhas de uma planta que nasce em brejos e dá ramos em formato de
arbustos e uma floração branca em cachos (as flores são conhecidas como borboletas). O chá é
muito perfumado e tem efeito calmante, sendo recomendada a sua ingestão antes de dormir.
78
Ogum é um orixá importantíssimo na África e no Brasil. Sua origem, de acordo com a história, data
de eras remotas. Ogum é considerado o primeiro dos orixás a descer do céu para a Terra, após a
criação, visando uma futura vida humana. No Candomblé, Ogum é frequentemente identificado como
São Jorge.
138
2.9.4 A criação dos ladrões de Marabaixo
Em uma de nossas visitas ao Mazagão, fomos chamados a uma casa, em
que o dono, o Sr. Antonio José, estava no fundo de um poço, de onde retirava lama
e pedras em busca de água. Depois que o Rio Mutuacá foi desviado nas lutas
ancestrais pelo território, a água é um problema doloroso na comunidade.
O Sr. Antonio saiu de coberto de lama e pó, e com duas canecas de água
retirada de um tonel plástico. Ele se lavou e veio nos atender. Ele queria nos mostrar
composições de ladrões que havia criado. Sentamos no terreiro da casa, aos fundos,
e, acompanhado de um pandeiro e um tambor, ele cantou vários ladrões.
Depois, ofereceu-nos um CD, onde conseguira gravar algumas de suas
produções e registrar os ladrões mais conhecidos do Marabaixo, juntamente com
Josué da Conceição Videira, outro compositor do Mazagão, que também nos
concedeu entrevista
79
.
Entre as composições do Sr. Antonio, havia uma que ouvíramos no evento
dos tambores, chamada “Senzala”:
Na senzala o negro
Tanto tanto apanhou
Por causa de sua cor
Tanto sangue derramou
Por causa de sua cor
Tanto sangue derramou
Viva princesa Izabel
Que foi quem nos libertou
Tenho uma mágoa no peito
Uma dor no coração
De quem não gosta do negro
Renegando seu irmão
Eu sou negro e fui escravo
Ao mundo posso gritar
Cultivo minhas raízes
Mazagão é meu lugar
Quando eu vim da minha terra
Meu coração lá ficou
Era a casa de meus pais
Onde o sonho começou
79
O CD, intitulado Mazagão: Canto de um povo”, foi editado em 2003, mas não teve divulgação
comercial.
139
Vim embora sem destino
Muito triste a chorar
Hoje vivo abençoado
A vocês posso cantar
Mazagão terra querida
Nunca esquecerei de ti
És o berço da cultura
Foi lá onde eu nasci
Morena vem sem demora
Pra este salão dançar
No gingado dessa dança
Até o dia clarear (Autoria de Antonio José, nosso informante).
Outro ladrão muito cantado no Encontro foi “Adeus Talina”, que segue sendo
o mais tocado e conhecido da região, no qual se relata a vida de um casal, cujo
marido beberrão, “Seu” Vavico, avisou que iria embora caso a mulher, Dª. Talina,
não fizesse par com ele na festa de Marabaixo, no Mazagão. Ela recusou, ele se foi,
e a mulher foi atrás e recuperou o marido. “Seu” Vavico e Dª. Talina foram
personagens do Mazagão.
Adeus Talina
Adeus Tatá
Se você não for, eu vou
Marabaixo dançar
Talina mandou-me embora
Disse que não me quer mais
Vou tomar uma gengibirra
Pra esquecer o que ela me faz
Eu mandei fazer um barco
Da casca da mandioca
O mastro do meu pau
A vela de tapioca
[...]
Valei-me nossa Senhora
Senhora da Conceição
Quem canta comigo chora
Soluça que nem pagão
[...]
Menina levanta a saia
Não deixa a saia rasgar
A saia custa dinheiro
Dinheiro custa ganhar (Autoria de Josué da Conceição, nosso informante).
140
Os ladrões cantados apresentam a tônica do amor à terra, dos afetos e da
vida. Sua métrica traz vestígios lexicais da língua africana falada pelos escravos
levados para a região, como reminiscências dialetais de um dialeto banto, que,
certamente modificado, alimentou-se do português e vice-versa.
Além disso, a estrutura poética dos ladrões tem raízes em poemas da língua
benguele, da África, onde tais cantos eram chamados de vissungos, palavra que
vem do umbundo, ovisungo (cantiga, cântico). Os vissungos eram cantos
exclusivamente executados no trabalho e nas práticas sociais por escravos
africanos, que, oriundos de Angola, foram levados para as lavras de ouro e
diamantes de São João da Chapada e adjacências, próximo à cidade atualmente
conhecida como Diamantina, no estado de Minas Gerais.
O professor e linguista Augusto Aires da Mata Machado, no final dos anos 20,
juntamente com Araújo Sobrinho, recolheram os cantos dos negros na região de
Diamantina, agrupando-os em um léxico e uma gramática da língua dos negros
benguelas. Quatorze desses cantos foram reunidos em uma gravação histórica
intitulada “O canto dos escravos”
80
, onde Tia Doca, Geraldo Filme e Clementina de
Jesus interpretam os vissungos.
Segue trecho de uma das canções interpretadas por Clementina:
Buriquinho piquinino
Parente du quisanba na cacunda
Urucunta onde vai ô parente
Pru quilombo du Tum
Ê chora gongo ê de vera (JESUS; FILME; DOCA, 2003).
Os vissungos poderiam ser considerados, então, os ancestrais dos ladrões do
Amapá, pela semelhança entre suas linhas melódicas e métricas.
Para escrever as canções do cotidiano criadas qual poesia ingênua, qual
poemas de cordel, os compositores de ladrões deram preferência às quadras. A
quadra é um poema de quatro versos, com rimas que obedecem, com algumas
variações, ao cruzamento clássico A B B A, que ficam no campo do improviso,
80
O “Canto dos Escravos é uma coleção de quatorze cantos da série recolhida por Aires da Mata
Machado, no fim dos anos 20, em São João da Chapada, município de Diamantina, Minas Gerais.
Interpretando os cantos, Tia Doca, pastora da Velha Guarda da Portela, Geraldo Filme, um dos
nomes fundamentais do samba paulistano, e Clementina de Jesus, considerada a rainha negra da
voz. Original de 1982, em LP, o trabalho saiu no formato digital, em CD, em 2003.
141
podendo ser desenvolvidas em sextilhas, sétimas, oitavas e décimas (estrofes,
respectivamente, de seis, sete, oito ou dez sílabas).
As quadras vieram com os colonos e foram mata adentro se estabelecendo
na nossa cultura, como parte do cordel que relata o cotidiano, ponteia e ironiza
costumes, conta fatos, reclama suas dores. Muito comum no cordel mais simples, a
quadra é considerada a deusa da inspiração dos compositores, pela simplicidade e
facilidade da construção das rimas.
Menina quando tu fores
Me escreva lá do caminho
Se não tiveres papel
Na asa de um passarinho (Autoria de Josué da Conceição Videira, nosso
informante).
Coisa linda é madrugada,
Com luar pelo terreiro,
Viola em beira de estrada,
Cantiga de violeiro (Cordel de autoria de César Coelho, poeta do Ceará) (
BAHÁ’Í, 2009).
Mas, não se pode olvidar que a contribuição colonial da quadra tem um
representante na contemporaneidade, que se dedicou, entre tantos versos históricos
e geniais, a criar quadras em nome da herança portuguesa dessa forma de poesia
tão conhecida e usada em Portugal. Trata-se de Fernando Pessoa, que tem nada
menos do que 325 quadras, em Obras Completas (1976), fazendo-nos entender que
muito mais a revelar nas quadras do que apenas rimas singulares e versos
simples, por serem elas a manifestação em que o povo comunga com a alma
humilde de todos nós errantes dentro de si.
Quadras
Na frente da minha casa
Passa rio passa riacho
Cada dia que te vejo
Mais bonito eu te acho (PESSOA, 1976, p. 365).
Joguei um limãozinho
Por cima da sacristia
Deu no padre deu na pia
Deu no moço que eu queria (PESSOA, 1976, p. 368).
Marabaixo é dança boa
Vamos todos balançar
Dança negro e dança branco
E se dança em qualquer lugar (Autoria de Josué da Conceição Videira,
nosso informante).
142
Ladrões
Eu vou eu vou
Eu vou prá lá
Eu vou pru rio
Pru rio Mutuacá
Juntei todos escravos
E lá fomos trabalhar
Trabalhamos não deu certo
Foi o jeito sair de lá.
Subimos o rio acima
Chegamos no Mazagão
Chegamos não tinha rede
Dormimos tudo no chão
Ó meu Deus que sofrimento
Tenha de nós compaixão (Autoria de Josué da Conceição Videira, nosso
informante).
As quadras são, então, a base poética dos ladrões, onde se conta o caso
ocorrido, constituindo-se em uma composição poética popular de heranças ibérico-
provençais, a qual, com grande espaço na cultura lusitana, acaba, por obviedade
colonial, chegando ao Brasil sob várias formas.
Em nossa poesia popular, as quadras fazem parte do brincar, da roda, das
parlendas e brincadeiras de ciranda em alguns estados do país. Quem não sabe
dizer a famosa “batatinha quando nasce...”? No Amapá, essa arte está, do mesmo
modo, cristalizada nos ladrões de Marabaixo.
Você me mandou cantar
Pensando que eu não sabia
Eu sou como a cigarra
Quando não canta assovia (Autoria desconhecida).
O cordel, nas quadras de Marabaixo, se integraria à grande família do cordel
nordestino, reforçando a teoria de que, para fazer verso, não é preciso saber ler e
escrever, já que o importante na métrica é a prática do cotidiano.
Os ladrões são a memória do convívio do colonizador com os escravos, que a
ela também uniram seus vissungos. Originais, guardam a tradição da arte ancestral
dessa composição, que fala da universalidade cultural que subsiste a modismos e
perdas de arquivos vivos, compositores que jamais tiveram suas quadras escritas
por alguém.
143
Vai-te carta venturosa
Por este mundo sem fim
Pergunta pra aquele ingrato
Se ainda gosta de mim (Autoria desconhecida).
Sobre as quadras de Marabaixo serem chamadas de “ladrões”, Dª. Chiquinha,
anciã, museu vivo do Curiaú, que também compõe os versos, especulou, na
entrevista que nos concedeu, as razões de tal nomeação. Ela acredita que o nome
nasceu do fato de os negros não poderem fazer coisas de brancos, como compor.
As razões parecem indicar sim essa hipótese, mas também o fato de que, ao
compor, o escravo tirava um momento de prazer e lazer, roubando tempo de
trabalho do senhor de escravos.
Contudo, não há nenhuma preocupação em saber a razão desse nome por
parte das outras pessoas que entrevistamos, e elas não sabiam dizer razões para
esse “batismo”.
O fato de que essas quadras foram trazidas pelos colonos poderia também ter
um dado de roubo de propriedade intelectual, digamos assim, o que justificaria a
nomenclatura de “ladrão”. O que fica claro, no entanto, é o desconhecimento de que
existam, em solo africano ancestral, as mesmas características dos ladrões nos
vissungos.
2.9.5 A confecção dos instrumentos no Curiaú
Em uma das visitas que fizemos ao Curiaú, presenciamos a confecção de
instrumentos para Batuque e Marabaixo, na oficina de um artesão, o Pedro, filho de
Dª. Chiquinha do Curiaú.
A arte de cavar os tambores foi passada de geração a geração, não no
Curiaú, mas também em outros quilombos. A madeira é escolhida na floresta, em
geral madeira derrubada, que já está com umidade do solo, facilitando a cava
manual do tronco, o qual, vazado dos dois lados, ganha um couro cru de bode,
carneiro ou boi (os mais comuns), ou de animais como cobra e capivara (agora
proibidos).
144
Depois de cavado e recebido o couro, o tambor vai para o sol, untado com
óleos vegetais, em geral de babaçu ou buriti, entre outros. Óleo de cozinha não
serve, por ser industrial e mofar o couro com o tempo, disse-nos Pedro.
A permanência no sol infiltra os óleos nos veios da madeira, que é lixada ou
raspada com cacos de vidro para o tambor ficar lisinho e poder ser pintado. Em
seguida, o instrumento é deixado ao sol para afinar. Essa afinação leva dias, sendo
testada pelo Pedro, que só vende o tambor quando o som está perfeito.
Havia vários tambores no local, ao sol, para serem afinados. Segundo o
artesão, a arte de afinação não é dominada por muitos, mas a criação de tambores é
mais comum, sendo possível encontrar pelo menos uma pessoa que o faça, em
cada comunidade.
Pedro ensina a seus filhos e sobrinhos a confecção de pandeiros, curicas
(que são instrumentos de percussão que imitam o som de um pássaro da família dos
papagaios), além dos troncos com sementes e das caixas coloniais que precisam de
troncos mais largos e mais altos.
Com as proibições de caça e corte da floresta na região, Pedro iniciou a
busca de materiais que pudessem viabilizar a confecção dos instrumentos sem a
madeira. Encontrou nos canos de PVC uma boa solução.
Os canos com bitolas diferentes e com medidas exatas nas circunferências,
ajudam mais ainda o artesão. Os canos são colocados ao sol para amolecer e
recebem uma pasta de cola e argila com materiais da floresta por dentro. A afinação
de cada tambor dependerá da camada fina ou grossa da massa que, ao secar, dá,
ao som, uma tonalidade de madeira. Os couros colocados são amarrados com palha
de buriti e uma espécie de betume, que faz o acabamento super-resistente à
umidade e ao uso.
Pedro vive da venda das peças para outras comunidades, além de trabalhar
com um grupo de percussão “Raízes do Bolão”, cantando nas festas. O grupo foi
herdado de seu pai, já falecido, que foi festeiro durante muitos anos no Curiaú.
145
2.9.6 A Feira da Farinha
Como sabemos, a farinha de mandioca é a base alimentar da cultura indígena
e africana. Encontramos “casas de farinha” no Curiaú e no Mazagão.
Tais casas, presentes nos primórdios das comunidades, eram encarregadas
de produzir maiores quantidades do alimento, que eram acumuladas em barracões
de madeira, suspensos do chão por toras, ao tempo da Festa dos Tambores nos
moldes antigos.
Em Macapá, toda quarta-feira é dia da Feira da Farinha. O evento é realizado
em uma avenida totalmente desprovida de vegetação, onde uma “ilha” de
concreto no meio, que parece ter sido idealizada para ser uma via de duas mãos,
com iluminação dividindo as pistas.
A atividade é dos agricultores da região periférica de Macapá, mas a Feira
recebe farinheiros de lugares bem distantes.
Cada produtor oferece diferentes tipos de farinha de mandioca, que o
comprador experimenta da seguinte forma: faz uma concha com as pontas dos
dedos e joga a farinha na boca, de baixo para cima, sem sujar o rosto ou se
engasgar.
As pessoas mastigam as farinhas aencontrarem aquela que agrade ao seu
paladar.
Come-se tanta farinha nessa Feira que se pode até pular uma refeição, por
se estar alimentado. Para os que não sabem lançar a farinha na boca, os farinheiros
disponibilizam uma colher de pau ou uma cabacinha preta bem pequenina, pintada
de preto, como as cuias de Belém, onde se toma o tacacá
81
.
As compras nunca são inferiores a 5 kg e os carretos o feitos em carrinhos
de pedreiro até a casa do comprador.
Na casa de Dª. Bartira, onde ficamos hospedados, havia quatro baldes de 20
litros cada, com tampas onde se lia: grossa, fina, crua e torrada, uma para cada
ocasião. A família mantinha os baldes sempre cheios, pois o açaí, base alimentar da
região, é consumido diariamente com farinha.
81
O tacacá é uma iguaria da região amazônica brasileira, em particular do Pará. É preparado com um
caldo fino de cor amarelada chamado tucupi, sobre o qual se coloca goma, camarão e jambu. Serve-
se muito quente, temperado com sal e pimenta, em cuias.
146
Ante o exposto sobre todas essas outras atividades culturais que
presenciamos em nossa viagem, podemos concluir que elas são uma expressão da
cultura e das memórias dos ritos do povo do Amapá, o qual tem uma fortíssima base
africana, que teve muito de sua forma de expressão herdada dos remanescentes de
quilombos, assim como dos costumes indígenas mais arraigados, como o consumo
do açaí e do peixe como alimentos principais.
As danças, as cores e a própria cor da pele denotam a pertinência aos
ancestrais indígenas e africanos que formaram o país.
No Amapá, fica ainda mais evidente que a presença do europeu foi
assimilada em poucas famílias, em geral, naquelas afastadas e isoladas, como
algumas poucas encontradas no Bailique.
Os traços culturais do estado são, de resto, semelhantes aos dos demais
habitantes do país, e isso torna o lugar, ainda não tratado nesse aspecto por muitos,
um espaço de interesse antropológico digno de receber ainda mais pesquisas, pois
há muito que ser revelado por lá das especificidades da memória do Amapá.
148
3 MEMÓRIA – ANÁLISE DAS LEMBRANÇAS DOS AMAPAENSES
3.1 Discussão teórica
Uma memória não poderia ser concebida como uma esfera plena,
cujas bordas seriam transcendentais históricas e cujo conteúdo seria
um sentido homogêneo, acumulado ao modo de um reservatório: é
necessariamente um espaço móvel de divisões, de disjunções, de
deslocamentos e de retomadas, de conflitos de regulação... Um espaço
de desdobramentos, réplicas, polêmicas e contradiscursos.
(MICHEL PÊCHEUX)
A escolha, neste estudo, pelo caminho da memória busca trabalhar com a
noção da cultura em uma via de mão dupla, como coloca Le Goff (1986), e justifica-
se pela importância da pesquisa antropológica sobre o paradoxo da realidade que se
vive sendo ela, no entanto já passada, a memória.
A memória é um recurso metodológico de excelência para abordagem de
realidades vividas, e o seu uso em trabalhos antropológicos vem demonstrando a
possibilidade de realização de estudos do cotidiano e das representações individuais
e sociais.
Espera-se, nesta abordagem teórica, poder apresentar partes da cultura do
Amapá através de traços de sua memória ligados aos remanescentes de quilombos.
O estado do Amapá foi, em certo sentido, esquecido e silenciado a partir do início
complicado de sua colonização.
Enquanto espaço de alocação de colonos indesejáveis em Portugal, o Ama
passou, sequencialmente, pelo fracassado processo colonizador implantado na
África ocidental, com a perda do Marrocos para os mouros, e pela longa anexação
ao Grão-Pará e Maranhão, estando sempre em luta por uma estabilização territorial
e social, sendo que a questão maior foi a disputada fronteira com a Guiana.
Vale notar que a sua identidade histórica poderia ser fortalecida se os seus
documentos e a sua memória oficial retida nos museus de Belém do Pará voltassem
para o estado, criando um outro movimento necessário enquanto desenvolvimento
149
de políticas da memória, visando a catalogação e a formação de um patrimônio
cultural material do Amapá.
Entendemos que a propriedade e a conservação da memória de quaisquer
fatos devam sim fazer parte dos diversos interesses de uma dada sociedade, e isso
se aplicaria, sem vida, ao acervo alijado do Amapá e sua memória catalogada,
já imobilizada em algum arquivo estadual ou federal.
A ideia de atualização mecânica e repouso em local de pertencimento de
acervos é bastante relevante, já que, até hoje, segue adormecida, sem sabermos em
que estado de conservação se encontram as preciosas documentações
pertencentes à história e à memória material do estado do Amapá.
Assim, tal busca junto à voz do povo, atrás de material cultural via lembranças
e memórias relatos, se faz necessária, ainda mais pelo fato de que o Amapá já tem o
reconhecimento de que essa memória é também imaterial e aceita
internacionalmente
82
.
no início da pesquisa, aparece uma memória, um corpo de fatos e dados
sem um espaço em sua própria casa. Parece importante que se recolham dados,
que se pesquisem seus espaços e seu povo, que sua cultura seja alvo de
discussões produtivas e ações determinantes para a inserção do passado no
presente. Se não pelo todo da riqueza local, pela confirmação de que, mais uma
vez, a participação fundante dessa riqueza está intrinsecamente ligada à cultura
afro-brasileira como parte integrante da sua formação antropológica e social.
A justificativa histórica e socioantropológica parece, assim, plena de razões
urgentes, como a própria sociedade ocidental, segundo coloca Todorov (1995, p.
20):
A cultura, no sentido que os etnólogos dão a essa palavra, é
essencialmente um negócio de memória: É o conhecimento de um certo
número de códigos do comportamento e da capacidade de se servir deles.
Possuir a cultura, [...] é antes de mais nada a história e sua geografia [...],
seus documentos e suas maneiras de agir e de pensar.
É necessário agregar, ainda, ao conceito de cultura, o fato de as mulheres e
os homens negros escravizados viverem em sociedades e em culturas com outros
82
Como se observa pela existência de obras estrangeiras que tratam do local. Ver OLIVEIRA PINTO,
T. de. (Org.). “Amazonien in der discussion: Nachhaltige entwicklung in Amapá als alternative”. Berlim:
ICBRA (Veröffentlichungen des Brasilianischen Kulturinstituts in Berlin- Dokumnetation Band I), 1996.
150
símbolos, outras organizações, enfim, adaptados. Ao serem forçados a sair de sua
organização social e de seus limites, eles passaram, então, a ressignificar todo o seu
programa de entendimento do mundo, seus símbolos, sua cultura.
Esse processo cultural mantém o aprendido e, quando conhece outro
sistema e nele é forçado a viver, adquire o novo. Aprende uma outra simbologia,
interpreta outra linguagem e recria com qualidade. Tem sido assim nas sociedades
escravizadas e não foi diferente com a escravidão africana no Brasil.
As formas que os escravos têm de manter seus sistemas de símbolos e de
expressão passam por filtros brutais, os quais não nos deteremos aqui a descrever
por acreditarmos que a escravidão é bastante conhecida em seu perverso
esmagamento do outro, principalmente sob os aspectos culturais.
A massa escravizada de negros no Brasil entrou perdendo, mas trouxe,
ainda que humilhada, a sua cultura herdada e vivida, para conviver com outras tão
esmagadas quanto a sua. E chegou, embora não soubesse naquele momento, para
construir parte da cultura de um lugar que seria, para os seus descendentes, um
novo continente, com uma cultura herdada e modificada, mas, ainda assim, uma
herança coletiva.
No Amapá, os negros chegaram para se inserir em uma sociedade tribal,
selvagem, desprovida de status, mas com cultura própria, com criatividade. Os
colonos portugueses, por sua vez, vieram com ranços e desafetos determinados
pela forma mesquinha e violenta com que os seus próprios conterrâneos os
trataram. Tais colonos trouxeram a derrota da fuga de Mazagan, na África, que,
para a sociedade católica lusitana, representava uma falha de caráter irrevogável
quanto a suas memórias, pois eles lutaram pela Cruz e pela Coroa portuguesa no
Marrocos.
O fim dessa luta e a perda simbólica da Cruz e do reino lançou essa
população em um vazio ideológico, que, ao ser transportada sem os seus bens e
ser impedida de voltar ao convívio em Lisboa, perdeu contato com suas raízes, tal
como os negros, ainda que em outras fases menos desumanas, mas tão cruéis
quanto.
A vida desafiadora em uma fortaleza em pleno território mouro guardava uma
manutenção dos espaços conquistados e um heroísmo pessoal, que se mantinha na
saga memorial dos descobrimentos.
151
Na memória desses colonos, flutuavam as lutas e as marchas, as naus e as
riquezas conquistadas. Mas essa memória não se estabeleceu na fortaleza, pois, ao
saírem de lá, 2 mil pessoas deixaram, por decreto real, tudo quanto tinham, incluindo
notações (diários de famílias, listas de compras, petições, memorandos, cartas
enviadas e recebidas) e uma cultura de colonizadores pela Cruz.
A Cruz os traíra, digamos assim, pois lhes haviam sido prometidas comendas,
títulos, possibilidades de acesso à nobreza intermediária de servidores do reino.
Enganados, feridos, muitos aleijados, tinham as feridas do desprestígio e da
subconsideração na alma mais do que no corpo, uma vez que este se recuperaria
para esperar a mudança para a América.
A razão desta repetição de fatos e dados é necessária para entendermos do
que é feita a memória do Amapá: de uma metáfora de mudança de continente, em
uma imagem de uma jangada de pedras que cruzou por duas vezes os mares
desconhecidos sem vislumbrar mudança, mas apenas deslocamento.
Era uma cidade de pedra que viajou e que, ao chegar ao Novo Continente,
atolou nas águas do rio-mar e abriu caminho em fugas para a tão sonhada
Mazagão, que se viu reduzida a “uma povoação original que se constitui apenas de
casas e edifícios de madeira, de tetos recobertos de palha, facilmente desmontáveis”
(VIDAL, 2008, p. 141).
Um povo que aguardava, novamente, a construção do projeto glorioso onde a
Nova Mazagão apresentaria “todas as características de uma cidade colonial de
formas regulares, pronta para acolher uma sociedade que deve se encaixar sem
dificuldades [...] em um espaço tão hostil quanto a Amazônia” (VIDAL, 2008, p. 142-
143).
Na verdade, tratava-se de uma sólida fortaleza cercada de muros em plena
selva, que foi pouco a pouco destruída, abandonada, tão logo ali se alojaram os
colonos. A cidade da memória, que se tornou a cidade vivida, se perdeu na tentativa
de releitura das lembranças de seus habitantes, por terem eles passado por um
processo mental desgastante e complexo, que leva ao esquecimento.
Queremos colocar, aqui, que a memória colonial portuguesa que veio para o
Amapá, para além de sua formação humana desprestigiosa, carregava um
esquecimento, que, ao entrar em contato com outras culturas tão fortes quanto a
indígena e a africana, acabou por se misturar e acolher como suas algumas das
características mais marcantes, mantendo umas poucas ligadas a duas fontes: a
152
religiosa, pela sequência de missões chegadas, e a militar, de onde herdaram as
caixas de Marabaixo (que têm, até hoje, a forma de construção e encordoar
idênticas às caixas coloniais de toques militares) e o pandeiro (de origem mais
ancestral do que colonial, vindo dos mouros, dos escravos e dos indígenas).
Houve, durante o tempo em que tais colonos esperaram pelo embarque para
o Brasil, um tanto de fatos que se perderam em uma estada em Lisboa, onde os
relatos eram proibidos legalmente pelo Marquês de Pombal. Na espera, outras
separações, outros tempos corrompidos e outros traços de memória enfraquecidos,
posto que, agora, a lembrança da própria origem lusitana lhes estava sendo negada.
Isso, acreditamos, influenciou a memória dos colonos que vieram para o Cabo
Norte. Uma cidade ressentida, com uma memória separada de seu território. Um
corpo obrigado a vagar longe de seus conhecimentos. O que se perde em definitivo
com a obra colonizadora é o espírito da cidade que havia sido o Mazagan africano e,
não se sabe onde, poderia se realizar novamente.
O imaginário europeu tinha, da América e da colônia recente, a imagem do
inferno na terra. Na história da Nova Mazagão, que é o embrião da formação e da
memória do Amapá, existe, segundo Vidal (2008), uma infinidade de fontes oficiais e
relatos sobre os fatos, em Portugal, Belém e Rio de Janeiro, mas nenhuma fonte que
tenha escrito e relatado o discurso das pessoas transportadas, ou que nos permita
perceber o jogo social dos mazaganenses, pois estes “raramente escrevem e
quando o fazem é através de um escrevente juramentado(VIDAL, 2008, p. 96),
que a massa colonizadora era analfabeta. um vazio do que pensava o colono
chegado às Américas.
Foram as marés e os tortuosos caminhos líquidos que assustaram e
dificultaram a chegada ao Mazagão, e que também nos impediram, em várias
situações, de acessar grupos, voltar a algumas ilhas e chegar a comunidades
longínquas de Macapá. Acessar a memória do Amapá é, sem dúvida, uma tarefa
utópica.
Amontoados em canoas [...] é preciso contornar a ilha do Marajó. [...] o
caminho mais frequentado e mais seguro é por dentro via rios menores que
enfrentar os redemoinhos e o caudal do Amazonas. [...] navegar por
igarapé-mirins, estreitos para as canoas, onde se espera de maré em maré
até o Macapá esperando a vazante maior para entrar no Mutuacá cujas
margens se aproximam tanto que fecham a passagem de duas canoas ao
mesmo tempo. A viagem é, pois, feita em comboio de várias canoas
amarradas umas às outras. Afundavam gradualmente com poucas
153
lembranças de uma vida europeia no universo líquido e vegetal da floresta
de ruídos novos e de bandos de japins
83
, pássaros amarelos que
constroem ninhos suspensos que ainda hoje se encontram nas ilhas do
delta do rio (VIDAL, 2008, p. 156-159).
Expulsos de seu país para irem ao Marrocos, os colonos estavam lá diante do
desafio de conservação de informações e representações do seu passado. Suas
vidas são tratadas como a de fracassados retirados em surdina, covardemente
levados como animais em barcos apinhados de gente.
Essa lembrança seria, para os colonos, um ponto de contato e de uma visão
menos violenta para com os escravos que afinal eram transportados. Não tinham
direitos, foram abandonados, relegados e impedidos de manifestar qualquer gesto.
Mal comparando, mas, inevitavelmente, a comparação se estabelece entre os
três contingentes humanos que formaram o Amapá. Colonos, escravos negros e
escravos índios se alternaram, descontentes e tão semelhantes, formando um corpo
social que partilha traição, violência e feitos memoráveis em sua terra natal.
Trata-se do que Simone Weil (apud BOSI, 2003, p. 175) chamou de
desenraizamento:
O enraizamento é talvez a necessidade mais importante e mais
desconhecida da alma humana e uma das mais difíceis de definir. O ser
humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência
de uma coletividade que conserva vivos certos tesouros do passado e
certos procedimentos do futuro.
Partimos do princípio de que as populações que vieram construir o Cabo
Norte, um Mazagan transladado, uma nova capitania do Amapá, estavam
padecendo do desenraizamento. Junto aos colonos: retirados de Portugal, enviados
ao Marrocos, retirados de lá, enviados a Lisboa, enviados à Belém do Pará,
enviados ao Amapá. Junto aos escravos: retirados violentamente de suas terras,
enviados a um local desconhecido, levados, sem destino, aos portos de Belém e
Maranhão, enviados ao Amapá sem saber onde realmente estariam. E, finalmente,
junto aos indígenas: expulsos de suas terras, levados para outras regiões e forçados
83
Japins são os pássaros que foram vistos assim que entramos no Bailique. Amarelos e ágeis, os
japins constroem ninhos altíssimos, confeccionados tal como bolsões atados nos galhos das árvores
à beira dos rios. Silvam entre os voos, sempre em bandos, que pescam rastreando as águas e saem,
com pequeninos peixes nos bicos, direto para os ninhos.
154
a trabalhar em sistema de escravidão e servidão em lugares que antes eram seus
campos de caça, pesca ou lazer.
“O desenraizamento é a mais perigosa doença que atinge a cultura” (BOSI,
2003, p. 178), assim como a imigração forçada é um desenraizamento
desmoralizante que esfria a alma, estanca objetivos e, principalmente, desfaz o
sentimento de identidade com o vivido. O indivíduo passa a não existir
intrinsecamente, por não conseguir relacionar o que vive com o vivido.
As fugas dos colonos e dos negros e a retirada dos índios para mais adentro
da floresta fizeram com que essas três forças de composição do Amapá perdessem
o espaço de alimentação de suas vidas, suas imagens, seus signos, seus mitos.
Desenraizadas pelo projeto utópico do estado, viram a impossibilidade de significar
seus valores em situação tão calamitosa quanto uma colonização como essa, onde
os patrimônios culturais ficaram desenraizados.
Contudo, Halbwachs (2004) afirma que, apoiando suas impressões e
lembranças nas impressões e lembranças dos demais e de si mesmos como
testemunhos de si próprios, os três pilares, nunca sós, acabaram por se fundir, sem
perder o que lhes era essencial.
A transposição de pelo menos duas das três forças cumpriu, de pronto, a
solicitação em lançarem-se na construção de um espaço fortificado para uns, e que,
para outros, no caso dos escravos, não serviria de fortificação. A motivação para
ambos era estranha. Os colonos, com a memória da praça forte ancorada em terra
firme, contrapunham-se à ideia de construir sobre a água e aterrar um rio,
contestando que poderiam sair dali até mesmo antes de finalizado o Forte, que
nada lhes era assegurado senão a impossibilidade de voltar a Lisboa. Aos escravos,
a escravidão, e isso não se discute em termos de preservar lembranças.
O que parece ter ficado muito marcado na base da tessitura da memória da
cultura do Amapá é o fato de que o lugar, para alguns, foi a passagem para a
liberdade e a possibilidade de, enfim, construir outra vida, com os apetrechos
culturais que tinham, no caso dos escravos. Para outros, a desgraça de um degredo
forçado e a impossibilidade de amorizar o espaço inóspito que deveriam habitar, no
caso dos colonos. E, para outros, a oferta de espaço conhecido para reorganizar
suas culturas e seus povos, no caso dos índios servidores.
Um meio líquido que moldou duas das três forças em termos de apego,
esquecimento e rememoração de lembranças em ambos os grupos. Como parte de
155
um reino deslocado que beneficiava seus servidores e se engrandecia na memória
de cada um dos que recebiam a graça (ou a desdita) de servir no degredo ao invés
da morte. Uma graça de servir em uma missão tão nobre e necessária quanto a
colonização do Novo Mundo. Afinal, eles eram beneficiários de um pacto comum que
os reconhecia como heróis, cruzando suas memórias com a memória oficial de
Portugal. Digamos que se retro alimentavam.
Mas algo ocorre no tormentoso ciclo da memória desses colonos, que,
segundo Halbwachs (2004), para que a memória se beneficie do outro, não basta
que ela nos traga seu testemunho; é preciso que concorde com pontos de contato
comuns à memória coletiva.
Havia, de um lado, a necessidade de Portugal e sua memória oficial, e, de
outro, a memória coletiva de colonos que não concordavam, afinal, com esse
registro oficial. Sua memória marginalizada envergonhava, de certa forma, a Coroa,
com suas lembranças de batalhas perdidas e de coisas indizíveis para uma
civilização católica que, no Marrocos, confraternizou muitas vezes com o inimigo.
Uma memória envergonhada deveria ser esquecida.
Durante todo o processo dessa longa movimentação, nada beneficiou a
memória dos grupos, que parece estar até hoje nos subterrâneos, em função da
própria memória oficial, esta sim, a hoje registrada. Assim, divergências
incontornáveis foram reprimidas no âmbito pessoal e privado, onde a força de pontos
de referência diferentes vão formar a memória pessoal assim como a memória
coletiva, a qual, no caso dos colonos, passa a ser alimentada por contradições e
perdas de pontos de contato definitivos.
Certamente, os colonos sentiram-se um tanto como os próprios negros,
transladados sem explicações, sem direito a levar seus pertences pessoais senão a
roupa do corpo. Passaram fome e sede, adoeceram e, ao chegarem a Lisboa, havia
sido preparado para eles um gueto, com regras que os impedia de circular, com
atendimentos médicos com a guarda miliciana e com visitas a parentes sendo
consideradas crimes que poderiam rever a ficha judicial de cada um.
Todos à espera da ordem de Pombal para levá-los a um lugar que, para o
europeu, era um espaço monstruoso, com ameaças mais reais do que os mouros ao
pé da fortaleza de Mazagan.
Quando, finalmente, vieram para o Brasil, ficaram em Belém do Pará à espera
da construção do forte e da escolha do local em que se faria construir a Nova
156
Mazagão. Essa espera pela definição também esgarçou os dados das lembranças,
pois a capitania do Grão-Pará e Belém, vila mais importante, era uma tentativa de
réplica tropical de espaços do reino. Belém, a simples palavra corroborada pelo
porto, pelo tamanho da vila e pelos espaços mais viáveis para a vida, se constituiu
como desejo de repouso.
Os que, finalmente, chegaram estavam tão desorientados quanto os
escravos, com o agravante para os primeiros de que desconheciam o tipo de
ambiente tropical, fato conhecido por alguns dos grupos de escravos.
Suas lembranças mais pessoais foram avivadas naquele ambiente colonial, e
muitos, muitos mesmo, deram jeito de se estabelecer na cidade, ou ainda, se
retiraram um tanto para dentro das terras de Belém em busca de refúgio, até que o
envio fosse concluído. Os registros dessa época dão conta de que famílias e
núcleos de colonos sumiam das listas sob suborno; outros faziam comércios e
justificavam suas permanências em Belém.
Em função da perda do passado que se realizou no Marrocos, há, na
construção da memória do Amapá, uma ruptura, com a fuga de ideais dos colonos
brancos ali forçados a viver, além de uma perda de identidade e de relação com
suas lembranças ancestrais corrompidas durante todo esse doloroso processo.
Os que não se abrigaram em Belém foram, enfim, enviados à aventura do
Mazagão tropical. Não adaptados, pouco a pouco, cederam às mazelas infinitas da
região, a ponto de largarem quase que por completo o povoamento ali formado.
Poucos colonos ficaram no Mazagan original, que acabou por ser totalmente
abandonado.
As referências trazidas pelos colonos estavam carregadas das lembranças
lusitanas nas formas de atuar, nos locais ancestrais, nas maneiras de agir
socialmente, nas paisagens e datas históricas, assim como na religiosidade mística,
nos ritos alimentares e na relação com a música e o canto.
Esses dados podem conformar, empiricamente, como coloca Pollak (1989), a
memória de um dado grupo, que se estrutura com base em uma hierarquia que, ao
se constituir como tal, forma suas bases no sentimento de pertinência entre os pares
do grupo, para além das fronteiras sociais e políticas. Desse modo, a memória
coletiva dos colonos esteve assim estruturada, quando foram colonizar a fortaleza de
Mazagan, no Marrocos, mantendo-se estável e sustentada em suas fronteiras
ideológicas e sociais.
157
Havia adesão do grupo a tudo isso e, principalmente, o que Halbwachs (2004,
p. 12) chama de “comunidade afetiva padrão”. O grupo que estava no gueto de
Lisboa rumo ao Brasil tinha suas lembranças de pertencimento afetivo
corrompidas, e a imposição política, ainda que entendida por eles, não possibilitava
a reconstrução em base comum. estavam à deriva de suas lembranças
ancestrais, perdiam na fumaça o Marrocos e isolavam-se em seus pensamentos
mais pessimistas sobre o futuro. Em tempos de crise e guerra, é a memória
subterrânea que se preserva.
A problemática desse movimento esbarrou na difícil memória entre colonos
e milicianos, nativos e escravos. Os testemunhos nem sempre concordavam em
suas memórias, pelo desnível social e religioso, e também pelo poder que os
mantinha nivelados no esquecimento paulatino, mas seguro, de suas memórias
oficiais.
Antagonismos nessas memórias de colonos foram duramente cooptados
pelas lembranças dos demais grupos, e sim, havia pontos de contato na
sobrevivência e nas fugas que acabaram por formar a base comum da memória
coletiva que se organizava nas terras do Mazagão, no Amapá.
Os resistentes eram os índios, os negros e as miscigenações daí resultantes
que ficaram e transformaram. Há, nessa metáfora de translado, uma linha de contato
fundamental para o que se tem, no presente, como realidade social local.
É um caldo de cultura que impressiona, quando, hoje, voltamos nossa
atenção para as tantas etnias aqui chegadas da África, para as milhares de nações
indígenas espalhadas em troncos linguísticos específicos, com costumes próximos e
simbologia partilhada, e para a minoria numérica em primeira instância da cultura
europeia determinada a se impor como exemplo de civilização no Novo Mundo.
É nesse universo que a vida no Amapá começa com muitas perdas
irreparáveis, pois a memória dos mazaganenses do Marrocos se esvai e a dos
índios se afasta, restando-nos apenas a memória dos negros, com a qual a cultura
local se reestrutura e avança. Isso delineia o convívio e o entendimento da cultura e
da estrutura sociopolítica local. Tal processo, no entanto, pode durar um tempo tão
longo que, às vezes, não há quem possa dar testemunho dessas memórias.
Outro fato a ser considerado é o meio ambiente, a natureza que acolhe a
cultura que chega e com a qual, pela ancestral relação geográfica com o continente
africano, estabelecemos relações de proximidade, especialmente no conhecimento
158
da floresta, das águas em grandes quantidades, e da escuta e do proveito que se
pode fazer de tudo isso.
A memória dos escravos, sua resistência e suas perspectivas de luta e de
subsistência subverteram a memória do Amapá. Referimo-nos, especialmente, às
culturas africanas que aqui chegaram, entrando em contato com a cultura indígena,
sendo ambas vítimas, e não raro parceiras, da cultura europeia que as escravizava,
mas partilhando a memória oral e as estruturas sociais muitas vezes semelhantes.
Entretanto, a cultura branca é de elite em qualquer espaço dessa colonização,
e não pode ser escamoteada. A sua perpetuação como dado oficial da memória
local fica por conta da permanente e segura missão apostólica que sempre foi o
braço mais longo e mais largo do poder real português. E, segundo essa ideia de
relacionamento e de culturas, acreditamos que a ação social deve ser entendida a
partir de um projeto cultural que organiza a experiência prática de uma dada cultura
com uma outra, em uma relação dialógica, ainda que não em iguais proporções nem
em igualdade de forças.
Neste particular, Sahlins (2004, p. 63 e 105) coloca que o homem faz o
caminho de uma autorregulação cultural, um percurso lento e doloroso, onde
podemos encontrar, na cultura e no seu rememorar em busca de sua identidade, o:
[...] ato final para a cultura que consiste na sua absorção, de uma maneira
ou de outra, dentro da natureza. [...] incluindo-se em um ecossistema mais
geral onde o sujeito ou em grupo, desenvolve e desfruta de poderes de
autorregulação a partir de limitações culturais sempre mediadas por um
sistema de simbologias partilhadas que organiza as relações do homem
com outros homens.
Essa regulação sobre os limites, no caso específico da população escrava,
vai se estabelecer na oralidade, lugar de riqueza na transmissão de valores, por usar
a sensibilidade gestual, o olhar e as expressões faciais de que a linguagem não
conta.
O branco, que tem sua linguagem estabelecida, nela se refugia, e a mistura
dessas duas formas de atuar na cultura deu conta de preservar cantos e cultos
religiosos, ladainhas em latim, devoções e ritos sempre de inspiração religiosa.
Os digos e a capacidade de se servir desses recursos estão marcados nas
manifestações artísticas, sócio-históricas e culturais dos escravos na sociedade que
os conteve. Nunca sós, nunca isolados, enquanto lhes viesse à memória sua
159
vivência trocada com povos diversos e, no caso específico do Amapá, três deles,
engendrados na alteridade dessas lembranças em um espaço de compartilhamento.
Uma memória compartilhada, que, segundo Bosi (2003) é produzida no interior de
uma classe com poder de difusão, alimentando imagens, sentimentos, ideias e
valores que os identificam.
Parece que essa face compartilhada não faltou aos colonos e demais grupos,
e há, nesse relatar da memória compartilhada ou coletiva, o processo de
silenciamento que se deseja aprofundar aqui, em função do perfil social que formou
a alma do Amapá.
Acreditamos que o silêncio na cultura oral (e esse seria o caso da cultura local
na época) determinou a amarração do tecido social da população até bem pouco
tempo, quando um governo trouxe um projeto de desenvolvimento sustentável, no
qual, holisticamente, se deu voz a todo tipo de ação humana ali contida.
Foi dada possibilidade de expressão ao povo do Amapá e revelada a
importância de relatar suas histórias, de mostrar seu conhecimento e seus símbolos.
Foram criados espaços para que uma memória silenciosa se manifestasse.
Essa memória, que Pollak (1989) define como subterrânea, é aquela que trata
de dar voz às lembranças dos excluídos, dos esquecidos, das minorias, que
marginalizadas e abandonadas, não fizeram parte da história oficial. Subversiva,
essa memória tem a capacidade de permanecer silenciosa por culos e
aparecer quando sua sobrevivência é ameaçada ou novamente desconsiderada.
Mas um sentido no silêncio que foi relegado: ele é a incompletude da
linguagem. Não por não saber, mas por estar em uma relação em que o não dizer
pode ser mais produtivo que o revelar-se. E Orlandi (1992) nos apresenta as razões
do silêncio, esclarecendo que o sentido não para por estar em silêncio, ele
apenas muda de caminho.
Diante do silenciar tão longo dessa memória, temos o silêncio como uma
respiração, um fôlego de significação, ou ainda, um lugar de recuo necessário para
que se possa significar. “Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para
o que não é ‘um’ apenas, mas para o que permite o movimento do sujeito”
(ORLANDI, 1992, p. 12-13).
Na presença da memória subterrânea, o silêncio é, também, um sentido
iminente que se expressa no corpo, no trabalho, mas, ainda assim, um sentido.
160
Pensamos no silêncio como fundador das relações entre senhores e escravos,
colonos e índios, entre os participantes dessa aventura colonizadora.
A materialidade da língua na memória esbarra em uma contradição que
segue sendo a mesma das questões envolvidas no discurso histórico. Diferentes
sujeitos = diferentes sentidos. A memória do Ama subverte a materialidade do
discurso histórico no momento em que a formação dessa memória se em uma
fuga metafórica muito maior. uma fuga simbólica para todos os participantes e
seus contribuintes, que determinou o ir-se, o se ir, o deixar-se levar contido na
impossibilidade de recusa, e lá, afinal, o ir além, e ainda, o permanecer cativo
também fazendo parte de outra metáfora, a do cativo na colonização local, pois
todos eram cativos de alguma forma.
O silêncio aparece como um conciliador nessa formação. Desde o início,
tantos silenciares nessa campanha lusitana... O local original era uma ruína
silenciosa que foi habitada. Os pedidos de ajuda para as batalhas eram respondidos
com silenciosos períodos em que nenhuma carta vinha do reino. Silenciosamente,
chegou-se até lá, e de retiraram todos em surdina, em uma noite apenas. Foi uma
espera silenciosa, durante a qual nada se podia dizer ou apelar; cartas eram
impedidas de serem escritas.
O silêncio sobre o local da nova fundação se junta ao silêncio dos escravos,
inicialmente, pela barreira da língua e, posteriormente, por preservação e
sobrevivência. Aos colonos, restava o silêncio não da falta de sentido, mas de outros
sentidos ali encontrados.
O silêncio é sim a possibilidade para o sujeito de trabalhar sua contradição
constitutiva, a que o situa na relação do “umcom o “múltiplo”, a que aceita
a reduplicação e o deslocamento que nos deixa ver que todo o discurso
sempre se remete a outro que lhe dá realidade significativa (ORLANDI,
1992, p. 23).
Na memória coletiva local, um diálogo entre a ancestralidade e o silêncio
constitutivo dessa memória. Tal conversa se faz através de uma contradição. Havia
o desejo de falar de seus ancestrais, de suas artes e crenças, e de interação com o
outro, além da realidade ameaçadora. Então, o silenciar do que se sabia cria a
contradição da aceitação de outros deuses, outras artes, outras formas de se
aproximar do outro.
161
Mas, e se o outro também se abstivesse do que era seu? E aqui falamos,
especialmente, dos colonos e dos índios, que, como os negros, também abriram
mão de suas lembranças e dados de civilização constitutivos para se relacionar.
Silenciosos de parte a parte, envoltos pelo viver na floresta e sobreviver em
condições adversas, fazem do silêncio a melhor arma de resistência. Esse
movimento silenciador do humano com o outro parece ter construído uma memória
de voz baixa, quase inaudível, mas plena e produtora de sentido.
É interessante verificar como essa face silenciosa do sentido da memória
local se organiza diante do desenvolvimento global e das necessidades
agroindustriais, que se valem de uma memória oficial para reivindicar os territórios, a
água, o manejo da floresta, enfim, a sobrevivência como um todo. O que ocorre é o
silêncio nessa cultura, que acaba por mediar as relações entre linguagem, mundo e
pensamento, resistindo à pressão de controle exercida pela urgência da linguagem,
e que significa sua memória de outras formas.
Vemos isso acontecendo em cada comunidade ouvida que acolheu o silêncio
como forma de atuar com o outro. E foi ali, na Floresta Amazônica, às margens do
grande Rio Amazonas, que pudemos compreender que uma relação fundamental
(fundadora) entre o homem e o silêncio, diante de uma tentativa de significação. É a
eloquência silenciosa quem nos fala o Amapá diante do seu povo.
A memória oficial disputa, então, com a memória subterrânea, silenciosa, a
qual, no tempo, se fortaleceu, ampliando seu papel durante as fugas e o processo
de miscigenação com os indígenas.
Os processos de significação que esse silêncio criou são, hoje, os motores da
transmissão oral de suas lembranças entre os integrantes das comunidades
remanescentes de quilombos, que não permitirão que se ignore haver vida e ação
humana onde a história oficial registra dados esporádicos de ocupação do solo.
Essa mesma memória oficial subestimou as dezenas de espaços onde a memória
coletiva do Amapá tem se mantido atualizada e viva.
A memória coletiva trata dos fatos e lembranças sempre ligados a fatos
físicos, em seus aspectos vivos e materiais, em busca de uma visão do passado, na
qual o grupo atesta e veracidade às lembranças individuais. É de cada fato
simples ocorrido em cada espaço privado que se alimenta a memória de um grupo
que, até hoje, o faz oralmente.
162
Em um processo histórico e diacrônico de abordagem das lembranças
relatadas no Amapá, não se trata de elencar deméritos do passado, mas de projetar
um espaço para que se fale da memória e das lembranças traumatizantes sofridas e
dissidentes de si mesmas.
E, aqui, estamos nos referindo aos colonos, escravos e índios, mas, muito
especialmente, aos escravos e seus remanescentes, cujas memórias, em certa
medida, estão perdidas sob séculos de memórias oficiais, e que, lenta, mas
precisamente, têm nos chegado em pesquisas e publicações, arejando os
subterrâneos.
O Amapá é um grande sítio arqueológico da memória dessas populações que
ali foram obrigadas, de maneiras diversas, a silenciar suas memórias. Essa situação
da memória do Amapá vai ao encontro da afirmação de Pollak (1989, p. 228), para
quem:
O longo silêncio sobre o passado, longe de conduzir ao esquecimento, é a
resistência que uma sociedade civil impotente opõe ao excesso de
discursos oficiais. Ao mesmo tempo, ela transmite cuidadosamente as
lembranças dissidentes nas redes familiares e de amizades, esperando a
hora da verdade e da redistribuição das cartas políticas e ideológicas.
Embora na maioria das vezes esteja ligada a fenômenos de dominação, a
clivagem entre memória oficial e dominante e memórias subterrâneas,
assim como a significação do silêncio sobre o passado, não remete
forçosamente à oposição entre Estado dominador e sociedade civil.
Inscrito no Marabaixo e no Batuque, entre outras manifestações culturais
definidoras do povo do Amapá e de sua memória, está o tempo de Macapá, na sua
eterna espera de que as marés lhe deem passagem.
Não porque ter pressa, que o tempo não nos pertence, mas ao rio. Não
porque correr, posto que espaços seculares estão lá, felizmente não intactos,
mas vividos como fato natural para os moradores das terras um dia habitadas por
fugitivos da escravidão, os quais, sem o saber, prepararam um espaço que os
acolheu e guardaram, atrás das malocas, seus pilões de vida, seus segredos de
transformação do grão em alimento.
Alimentamos-nos e agradecemos cada suor derramado, cada olhar para o
céu e, principalmente, cada falta de tempo de cavar pilões novos, canoas novas,
colheres de pau, remos, cestos etc.
163
O capitalismo comercial com base na escravidão indígena e negra é, como
sabemos, o leito em que se sedimentou a história do Amapá.
“A história é a soma de todas as histórias possíveis: uma coleção de ofícios e
de pontos de vista, de ontem, de hoje, de amanhã” (BRAUDEL, 1992, p. 27).
Acreditamos que, com essa visão, também acrescentamos a questão do
desenvolvimento do Amapá ter se delineado a partir das entradas mata adentro
pelos fugitivos da escravidão. Eles abriram o caminho da capitania, levando uma
outra visão de vida em sociedade e um medo que surte outros efeitos, como
veremos mais adiante.
Vale notar que, no campo da conformação humana amapaense, o índio foi
elemento que apareceu com insistência para determinar o partilhamento da
mestiçagem e da cultura em geral com o negro e com o branco vindo do Marrocos.
Cabe, no entanto, ressaltar que, nos relatos colhidos, a memória indígena se
desvaneceu, e os afrodescendentes e ribeirinhos descartam o dado biológico
inegável em seus rostos, cabelos, tons de pele, apesar de a cultura indígena gritar
sua presença no Amapá e na sua gente. o sendo objeto deste trabalho, as etnias
indígenas ficarão apenas como um referencial da memória do Ama em muitas
situações, imagens, cores e personalidade dos informantes.
Hoje, a presença negra no Amapá leva em conta, com orgulho, a existência
de comunidades remanescentes de quilombos, e esse dado não pode ser
subestimado, pois pertence à memória desse povo.
Na coleta das lembranças, não houve preocupação em separar os
afrodescendentes dos demais brancos e índios, mas, tão somente, em ouvir os
relatos e registrá-los. Enredando suas memórias, estavam homens e mulheres do
Amapá que, não por acaso, são descendentes afro-indígenas, até com participações
substanciais de ancestrais brancos.
O processo de urbanização de Macapá se deu a partir da efetiva construção
do Forte de São José, mas, principalmente, pelas inegáveis fugas dos escravos
envolvidos nessa empreitada, os quais engendraram uma rede de sobrevivência que
se estabeleceu e se estabilizou, a posteriori, sob as vistas grossas e benesses de
colonos e senhores locais, quando da compra e venda de bens e produtos vindos e
164
levados por capatazes, indígenas, caçadores, seringueiros, entre outros, que
escoavam a produção dos quilombos e lá faziam chegar o resultado das trocas
84
.
A carência de o de obra para a construção do Forte de o José
fracassara na escravidão indígena, recebendo a solução com a chegada das
famílias açorianas e sua escravaria. Contudo, essa mão de obra escrava negra
também se revelou difícil de manejar pelas dificuldades que a construção
apresentava e pelos maus tratos infligidos aos negros que trabalhavam com água
acima da cintura por horas, sem alimentação, sendo presas fáceis de animais e
peçonhas das águas, sem deixar de mencionar o clima próprio ao impaludismo,
febre amarela, entre outros males.
A fuga de escravos negros se torna tão frequente quanto as marés do
Amazonas. Não se imaginava, à época, que seriam essas fugas que consolidariam,
de maneira inédita, a formação da cidade de Macapá, pois a questão da
sobrevivência também se arrisca aqui, em um jogo importante, como coloca Bosi
(2003), falando dessa relação.
A memória está para o homem em sociedade tanto quanto outros direitos
ligados à sua sobrevivência. O fato de se tratar, neste estudo, de história recente
ligada ao passado torna mais feliz a pesquisa que se ampara sobre testemunhos
vivos e passíveis de serem reconstituídos.
A reconstrução de comportamentos e os seus registros e entendimentos
ancoram a sensibilidade de uma época que, hoje, é vivida exatamente como se
no paradoxo colocado por Huberman (1996, p. 21). Ainda mais porque “a memória
coletiva [e, no caso, entendemos que este trabalho apresenta uma memória
coletiva], trabalha por uma ideologia que se sobrepõe à memória individual daquele
que relata”.
Há um privilegiar de uma coletividade, e isso foi observado nas entrevistas em
que informantes buscavam a opinião de outros moradores da comunidade para
validar suas memórias.
84
Os quilombos tinham várias formas de organização. “Muitos... pequenos, outros maiores, mas
todos com mesmo objetivo: fugir do sistema escravista. [...] tinham modelos econômicos [...] os
extrativistas, os mineradores, os agricultores, os pastoris, os de serviço, os predatórios. [...]
dinamizavam uma agricultura policultura comunitária, que satisfazia às necessidades dos quilombolas
e ainda produzia um excedente comerciável [...] formando uma variedade de gêneros e bens que a
sociedade escravista desconhecia” (FREITAS, 1980, p. 43).
165
Existe sim uma narrativa coletiva que vai privilegiar mito, ideologias e
religiosidades. A memória coletiva é uma corrente de pensamento contínuo, de uma
continuidade que não tem nada de artificial, pois ela só retém do passado o que dele
ainda é vivo ou capaz de viver na consciência do grupo que o mantém.
E acreditamos, assim, na afirmação de Halbwachs (2004, p. 13), que nos
localiza ainda mais sobre esses lugares da memória:
Não basta reconstruir peça por peça a imagem de um acontecimento
passado para se obter uma lembrança. É preciso que essa reconstrução se
opere a partir de dados e de noções comuns que se encontram tanto em
nosso espírito quanto no dos outros, porque eles passam sem cessas
destes àquele e reciprocamente, o que só é possível se eles fazem e
continuam a fazer parte de uma mesma sociedade. Somente assim
podemos compreender que uma lembrança possa ser ao mesmo tempo
reconhecida e reconstruída.
Ou seja, acreditamos que, no ato de lembrar, quando vem à memória cada
sentimento vivido em cada situação, se descortina o véu do aparente esquecimento
em que esses dados haviam sido guardados. Trazê-los à luz e reatualizá-los
engendra uma vitalidade, uma crítica, uma outra versão maturada na vivência de
cada um no presente sempre produtivo para o ato de criar, dizer, contar a memória.
Bernardo (2007, p. 33) sintetiza o resultado desse lembrar e faz dele memória
no percurso da pesquisa, dizendo que:
[...] as subjetividades emergem, fazendo com que a etnografia a ser
realizada apresente conteúdos que vão além das interpretações dos
significados dos fatos objetivos. É nessa trama dos significados dos fatos
objetivo-subjetivos que os quadros diferentes e desiguais de interpretação
serão construídos.
De nada adiantaria, no entanto, esse esforço de lembrar, se essa trama de
significados estivesse desconectada diacronicamente. Halbwachs (2004, p. 127)
chama isso de “religar uma lembrança a um conjunto de outras lembranças, das
quais se conhece o lugar no tempo”.
Por ser resultado de uma abordagem oral, a memória do Amapá, produzida
no interior dos habitantes remanescentes de quilombos, interpreta lembranças e
esquecimentos sem preocupação com o absolutismo da verdade que, na Ciência
Antropológica, é tão relativo quanto o paradoxo da divisão do olhar. É nos
166
esquecimentos, no aumento, nas omissões, nos exageros que se delimita a
realidade de uma época, em que se mede o traço deixado no presente.
A memória vem tentando problematizar sua inscrição em várias ciências e, na
Antropologia, se apresenta como parte fundamental de estabelecimento do laço
social individual e coletivo, pelo fato de esses fatores estarem imbricados, como
coloca Bernardo (2007). E isso se exatamente através dos laços e das situações
de conflito, discriminações e jogos políticos, como ocorreu com os escravos no
Amapá.
Segundo Ricoeur (2000, p. 12), a memória seria “a única guardiã de algo que
realmente aconteceu num tempo”. A memória é parte da história, é uma das
matrizes de organização dos fatos, pois ainda que não haja história contada e
escrita, a memória seria a depositária de fatos ocorridos em um tempo real,
guardando sua carga de veracidade e perenidade, assegurando, no ato de contar, a
reatualização de tais fatos.
A memória é, então, parte indissociável da história. Em Macapá, nas oitivas
de informantes, sentia-se essa reatualização da própria história com os espaços
pessoais deslizando por entre eles.
Como elemento subjetivo, o tempo deixa vestígios que se dividem entre as
nossas almas e o interior dos fatos, no interior do próprio tempo, na memória. O
tempo da memória vai e volta. A memória é feita de idas e vindas.
Esse processo de ir e vir, inerente à memória, é, em nosso trabalho, a própria
representação do rio na cultura do Amapá, que, para entender a vida, é
necessário olharmos para trás, para nossas raízes; mas, para viver a vida, é preciso
olhar para frente, isto é, para o que não existe, e ali produzir o tecido da memória tal
como a conhecemos e a representamos.
O corpus desta pesquisa vai à busca dos vestígios da cultura do Marabaixo e
do Batuque, manifestações artísticas e religiosas do povo do Amapá, para encontrar
esse movimento que se identifica com a própria dança e o movimento de ir e vir das
águas do rio.
O Marabaixo e o Batuque foram escolhidos como material mais relevante,
para além da memória relatada dos fatos e vidas da região, constituindo um fio
condutor entre as comunidades entrevistadas. Pudemos, assim, estabelecer uma
relação de tempo e memória dessas manifestações, bem como sua evolução como
167
dado positivo de resistência e solidariedade grupal com qualidade cultural
superlativa.
Não no sentido mais conhecido de que o que se vive tende a ser entendido
por nós como sendo a coisa mais extraordinária experimentada no passado, mas
como a vivência da importância de que a memória negra do Brasil deve ser o
ressignificar da presença e da sobrevivência de remanescentes de quilombos do
Amapá na atualidade nacional.
Não se busca aqui um ineditismo, mas um descortinar da generalidade dos
fatos e relatos dos remanescentes de quilombos em busca de traços comuns, para
aprendermos com eles e não para torná-los únicos e exemplares. Pois, como coloca
Todorov (1995, p. 36), “quem diz comparação diz semelhanças e diferenças”.
Paul Ricoeur (2000) defende a existência da memória “esclarecida”, capaz de
reanimar espaços históricos em declínio. Isso se justifica em função da perda de
pessoas idosas que levam consigo a memória. Compreende-se que haja, então,
pesquisas que busquem compor a memória de remanescentes de quilombos como
desafio de resgatar o desempenho e a vida dessa coletividade negra que ora se
populariza como fato histórico importante para a memória socioantropológica do
Brasil.
As comemorações do Marabaixo e do Batuque, no Encontro de Tambores,
deslocadas dos terreiros das comunidades para o espaço público, mostram o quanto
as questões de memória negra vêm ganhando espaço na vida social do país, como
se buscassem um perpetuar-se para outras gerações. Encontramos, aqui, o Estado
que busca o espetáculo que lhe possa render espaço político; contudo, o que se
revela é a transformação de uma manifestação cultural restrita a grupos em um
evento de interesse social e antropológico, de transformação na memória dos
Encontros de Tambores.
Rememorar publicamente é também investir na legitimidade coletiva dos
quilombos e de seus moradores no século XXI. O que fica no bojo de
comemorações e festas como a do Encontro de Tambores é a tentativa de
consolidar a memória coletiva dos negros do Amapá e suas comunidades
remanescentes de quilombos com o seu tempo e o tempo do relato que fizeram para
nossa pesquisa.
Dessa forma, cremos ser possível reconstituir os fatos que deram origem aos
quilombos de Macapá, às organizações familiares, às estruturas de trabalho, aos
168
tipos de atuações religiosas, à miscigenação local, às produções mercantis e às
ligações religiosas com a terra e o espaço.
Halbwachs (2004) nos deixa confortáveis para fazermos tais afirmações, uma
vez que, para ele, a memória se apoia, por um lado, no passado vivido e, por outro,
no pertencimento ao grupo. Assim, a memória não é apenas um fenômeno
individual, mas é, também, uma construção social e um fenômeno coletivo de
interiorização.
Seguindo com a argumentação de Halbwachs (2004), a lembrança seria uma
forma de atualizar a memória e, desta maneira, recuperar dados do passado
aparentemente esquecidos. As negações das nossas raízes negra e indígena
podem, aqui, com essa visão sobre memória encontrada em Halbwachs, ser
atualizadas.
O negro é negado em nossa sociedade exatamente pelo racismo que o cerca,
assim como o índio. Apesar da aceitação falsa e mentirosa, a atual conjuntura nos
coloca diante da necessidade de conhecermos como o negro é, como foi e como se
relacionou antes e hoje. E, assim, caminha esta tese à procura dos quilombos do
Amapá, para responder essas questões.
A história e o relato de memórias para uma dialética da duração do negro em
nossa sociedade é fundamental para uma dialética de duração do discurso dos
remanescentes de quilombos, visto que são tentativas de reconstrução do passado
apoiadas na memória, que vão revelar informações que servirão para compor o
quadro dos quilombos no país.
Mergulhar no espaço social do outro requer um exercício de visão aguçada,
assim como o exercício de registrar o que pensa e diz o outro, aquele que
pretendemos revelar. Esse material observado constitui a base da reconstrução do
passado dos remanescentes de quilombos. É, enfim, a memória coletiva dos
quilombos do Amapá.
No entender de Barros (apud BERNARDO, 2007), é no ato de lembrar que
nos servimos de campos de significados – os quadros sociais – que funcionam como
pontos de referência, além de fatos da linguagem que carregam os sentidos mais
generalizados de um dado grupo. Neste sentido, as noções de tempo e espaço,
estruturantes dos quadros sociais da memória, são fundamentais para a
rememoração do passado, à medida que as localizações espacial e temporal das
lembranças são a essência da memória.
169
O que conduziu o fato pesquisado das manifestações culturais e artísticas em
Macapá beirou sempre a sensibilidade para a linguagem, com certa dose de
fantástico, pois todo o trabalho da memória é capaz de decompor o tempo passado,
escolhendo realidades cronológicas, em um tempo breve ou mais longo, mas que
guarda, poeticamente, a captura do presente do átimo do passado. O passado
transmuta-se em futuro e captura o tempo no átimo da alteridade, porque ele fulgura
um instante e se desvanece.
que se tratar, também no tocante à memória, das questões de tempo e
discurso, ou ainda, de questões discursivas que se fizeram presentes na pesquisa.
Isso será tomado dos trabalhos de Barthes (1984) e de Bakthin (1998), dos quais se
depreende que os silêncios e as palavras estudadas e ditas agregam fatos
importantíssimos à memória.
Como coloca Bernardo (2007), na medida em que afloram situações de
silêncio ou esquecimento, não deve haver insistência para que os indivíduos
lembrem, uma vez que, no estudo da memória, os silêncios e os esquecimentos têm
tanta importância quanto o ato de lembrar.
Outro recurso que tomamos é do sociólogo Harold Garfinkel (apud GEERTZ,
1999), que diz respeito aos conceitos de trabalhar a conversa como recurso
metodológico, fato que nos rendeu espaços de escuta intensa e de silenciamentos
profundos e constrangedores. O corpo fala, o povo fala, e a memória, espalhada
pelos campos do Curiaú e demais comunidades, falou. E esperamos poder apreciar,
aqui, essa dialogia da memória do Amapá, sua gente, sua cultura.
Estávamos, naquele momento, rastreando níveis do discurso do Amapá, em
que as estruturas ideológicas sociais e culturais estavam prestes a ser registradas,
ditas, reveladas. Acreditamos que as hesitações sempre presentes em nossas
interações diziam respeito a esse momento de absoluta intimidade do entrevistado
com seu discurso mais interno e íntimo sobre si e o seu lugar naquela cultura.
E essa colocação se relaciona à nossa concordância com Pierre Achard
(1999), quando ele ressalta que tais fatos revelam a possibilidade de a memória
poder intervir pela falta, excesso ou repetição, enquadrando fatos e dados não
apenas no discurso do falado, mas em conteúdos memorizados que funcionam
como paráfrases, sendo o silêncio uma das mais fortes, onde a memória se apoia.
A expressão símbolo do Amapá e de seus relatos foi: “Quando eu me
entendi”. Essa frase era dita antes e depois de silêncios; parecia ser um recurso
170
usado pelos informantes quando buscavam encontrar, na memória, a data, o tempo
e o espaço memorial em que coisas se passaram. Havia, sim, um movimento de
seleção dos fatos lembrados.
O entender-se vinha como uma validação de que o informante dizia verdade.
Não se trata de invenção, pois ele já era crescido, entendia o mundo em que estava
inserido, vivia no Amapá e podia falar por ser integrante dali. Trata-se, na verdade,
de um nível do discurso que diz respeito ao refinamento da informação.
No relato ouvido de vários informantes sobre o início do Quilombo do Curiaú,
pudemos presenciar tudo isso, e, ainda, um espaço discursivo compartilhado com a
referência sobre o nome Curiaú, resultado de uma mistura de sons e falas regionais
da época colonial, em que poucos se entendiam, mas muitos falavam tentando se
fazer entender. O “Ú” era o boi. “Criá” era a atividade pastoril dos negros tão
acostumados ao manejo de búfalos e bovinos na África
85
. “Vamos embora criá us ú
- criá ú”.
Há, como coloca Achard (1999), um consenso nessa memória, uma espécie
de história maximizada da palavra Curiaú, que passou a ser a representação desse
consenso implícito. Consenso esse, formador de memória através da linguagem.
A estruturação discursiva constitui a materialidade da memória social em
certa medida, sendo tal materialidade entendida em termos de compartilhamento de
discursos em circulação.
A memória trabalha, então, com esses discursos que trazem dados implícitos,
os quais são da ordem do imaginário, mas também são do corpo discursivo social
compartilhado. O indivíduo se sente portador de uma memória que ele reconstrói a
partir de paráfrases atualizadas a cada nova pergunta ou ocorrência de palavras
conhecidas. Neste caso, as palavras são, para a memória, starts para os dados.
Vejamos a palavra e a representação de quilombo. Em uma linha discursiva
histórica, ela tem vários acessos na memória. Dos tempos coloniais, ela gravitou em
torno de situação irregular de aglomerados humanos escondidos, ilegais, passíveis
de serem atacados e violentamente dissolvidos. Significou lugar de sobrevida,
possibilidades de abrigo em meio a fugas, solidez para criar famílias de escravos,
fugitivos, entre outros. E finaliza dando nome a terras que abrigam descendentes de
85
Os búfalos eram nativos das terras alagadas e foram alvo do trato pastoril dos fugitivos em muitos
espaços quilombolas.
171
remanescentes de escravos, que, hoje, se orgulham da memória dos fugitivos da
construção do Forte de São José.
Existe, pois, na linguagem, um jogo de forças que não pode ser esquecido em
se falando de memória. Se situarmos a memória junto à história, acrescentaríamos o
antropológico e o linguístico espaço em que o ser social transmite e faz circular seu
discurso, e não estaamos nos distanciando da verdade a ser acrescentada ou
mencionada aqui como sendo espaço fundamental para a memória, que é a
linguística. Não apenas a linguagem em si, da qual somos todos dotados. Não
apenas o falar, mas os olhares, a forma, o espaço, o tempo em que realiza essa fala,
o lugar do enunciador, entre outros fatos que determinam e modificam as
interlocuções entre os homens.
Assim, ao registrarmos relatos de remanescentes, o estávamos ouvindo
somente o informante, mas paráfrases construídas muito tempo, em espaços e
lugares internos e externos a ele.
Há, ainda, o fato de que existem mais de quinze comunidades que acabaram
por se separar em busca de sobrevivência, ou seja, o espaço não compartilhado não
elimina o discurso, mas o caracteriza por resquícios e ligações que apareceram em
expressões, ditos e, até mesmo, na forma de cumprimentar e dar adeus, onde a
simbologia verbal intrínseca se fazia igual, significando semelhanças distantes.
A memória, para Davalon (1995)
86
, tem essa dupla dimensão do dito e do
simbólico nela contidos. Ela é capaz, ainda, de produzir cultura, como sabemos na
linguagem; afinal, o agi et o ve se mostram, então, absolutamente verdadeiros. O
espetáculo produzido em Macapá no Encontro de Tambores é, anualmente,
transmitido ao vivo para a Europa e Estados Unidos.
Davallon alinha-se a Halbwachs, no sentido de considerar imagem e
linguagem como operadoras da memória coletiva, cuja base é o tecido social mais
fino e confiável em termos de registro das memórias. Acreditamos que a memória
como fato social tem, sem vida, como defende Davallon (1995), uma dimensão
semiótica que lhe é intrínseca e, por isso, verdadeira e confiável para ser registrada
como tal.
86
Jean Davallon é, hoje, um dos pensadores que trabalha sobre a memória, levando em conta a
imagem e o som como fatores que deslocam a memória social que não se encontraria mais na
cabeça dos indivíduos, mas registrada nas mídias. Para Davallon, a imagem é a grande operadora de
memória.
172
A memória social e essa produção de sentidos perdidos/longínquos e
retomados no Encontro de Tambores, e nas nossas entrevistas, corrobora o fato de
que, para haver memória, é necessário que o saber e/ou o acontecimento consiga
sair do anonimato, da indiferença, do limbo da memória, pois é a possibilidade de
criar e desenvolver uma lembrança que vai evocar, na linguagem, espaços que
ainda estão vivos na consciência dos indivíduos.
“A memória é o que ainda é vivo na consciência de um grupo para o indivíduo
e que é significativo para a comunidade”, coloca Halbwachs (2004, p. 126).
Entre tantas, duas dimensões da memória se destacam: os fatos em si (a
festa do Encontro dos Tambores e as entrevistas), e a significação que esses fatos
adquirem em contato com as reflexões que se fazem diante dos grupos cantantes,
das roupas, dos sons e dos cheiros do evento, ou dos silenciosos espaços que
abrigaram as entrevistas, onde o fundo era a terra e o rio.
As imagens e o discurso jogam um jogo fundamental nesta caracterização da
memória do Amapá, que estamos certos de que os acontecimentos, o Encontro e
as entrevistas, puderam fazer lembrar e reavivar a vivacidade envolvida em uma
reconstrução de dados e noções comuns entre os diferentes membros daquela
comunidade.
A memória coletiva dos informantes entra, aqui, em uma dimensão
intersubjetiva e grupal, e nos revela suas imagens e seus discursos. Tal memória,
enquanto coletiva, não poderia ultrapassar o grupo, pois deve ser viva ou guardar a
paz de viver na lembrança. E isso nos foi possível ver e registrar: a memória que se
alimenta do coletivo e nele se refaz.
O que torna esses fatos mais agradáveis aos olhos e ouvidos como memória
do Amapá são exatamente as imagens que dessa memória resultaram, onde o ato, a
fala, o som e o olhar, por vezes, se encontrarão como estruturas do objeto memória,
podendo se tornar um momento de recordação, ou até, um dado histórico. Em
muitas situações, nossas imagens nos parecem um relato síntese da memória do
Amapá, por sabermos ser possível para elas, enquanto fatos e objetos culturais,
determinar a memória social e, de certa maneira, a histórica, em alguns momentos.
Em nossa pesquisa, a imagem foi operadora da memória social do Amapá por
representar a realidade encontrada, não raro, mais eloquente do que as palavras
não ditas, quando, por exemplo, fomos proibidos de desembarcar na Ilha dos Pretos,
173
cujos moradores nem quiseram saber o que desejávamos ali
87
. Simplesmente, a
imagem da margem vazia e o recado dado por um homem jovem à beira do
atracadouro, definiram o silêncio e o claustro da ilha para gente como nós, fora
deles.
Temos essa imagem como operadora de simbolização da memória do
Amapá, apurando nosso olhar para o que cada cor e cada forma nos disseram,
recitaram e conformaram, como símbolo linguístico se transformando em fato
memorizado, em lembrança acolhida.
Trabalhamos, nesta pesquisa, com a imagem e a palavra como operadores
socioculturais e sociolinguísticos, pois, segundo Halbwachs (2004), a reconstrução
de um acontecimento passado, para se tornar lembrança, precisa da existência de
pontos de vista compartilhados pelos membros da comunidade e de noções que lhe
sejam comuns, permitindo que a imagem, por operar com olhar, apresente a
capacidade de conferir, ao quadro da história, a força da lembrança, sendo o registro
da relação intersubjetiva já citada anteriormente, assim como da relação social.
Em absoluto se pretende, aqui, exaurir os fatos e as possibilidades de
registros realizados na coleta do corpus desta tese, mas sabemos que o material
poderia ser ainda trabalhado em outras instâncias do nicho da memória,
testemunhando a vivacidade das lembranças individuais e dos grupos que, durante
tantos anos e por tanto tempo, souberam se opor a tentativas de adensamento de
memórias oficiais, legitimando a memória coletiva de sua gente transmitida nos
terreiros dos quilombos, nas casas das famílias e nas associações, onde a
afetividade com os ritos sempre foi mais significativa.
87
A referida ilha foi abordada por nosso barco, sem que pudéssemos desembarcar, já que os
moradores, negros remanescentes e familiares de escravos, não têm o hábito de confraternizar com
brancos e outros moradores da região. Isolados, sobrevivem como os demais ribeirinhos, mas são
rigorosos quanto ao recebimento de coisas de fora. Disseram-nos, nas demais comunidades, que
eles não permitem que se pise na ilha com calçados. Verdade ou não, sabemos apenas que uma
comunidade ilhéu, onde existem negros remanescentes e descendentes de escravos que podem ter
um material riquíssimo para ser catalogado como memória negra do Amapá.
176
3.2 Análise do corpus – Entrevistas
A unidade de elocução tem um nome muito antigo: é o canto. O canto
não é uma eufonia, ou uma qualidade das imagens [...] é a maneira de
tomar o mundo em sua linguagem.
(ROLAND BARTHES)
A seguir, faremos a análise das entrevistas que colhemos em nossa viagem
ao Amapá, dividida em duas categorias, para melhor compreensão. Selecionamos
os discursos de alguns informantes e analisamos o que de mais recorrente em
suas lembranças e o que de marcante eles nos trouxeram como dados de suas
memórias.
3.2.1 Categoria: Vida e espaço
No Amapá, o que emerge do espaço é a paisagem de completa vizinhança
com a floresta plena de desafios para a vida.
Diante disso, a análise que se fará agora terá como foco os percursos de
nossos informantes nesse espaço, suas roças, seus cantos e danças, o lazer sitiado
com raízes, enfim, estará centrada “sobre o espaço, sobre o nosso espaço aquele
que ocupamos por onde passamos, ao qual sempre temos acesso e que em todo o
caso nossa imaginação ou nosso pensamento é capaz de reconstruir”
(HALBWACHS, 2004, p. 150).
As colocações de nossos informantes revelam a restrição de suas vidas ao
quilombo, suas atividades rurais, a disposição das famílias e a proximidade de todos
ao se frequentarem em suas festas, cada vez em um quilombo diferente, sem que,
no entanto, se saísse para o espaço urbano de Macapá.
O espaço público do informante poderia, por vezes, acontecer em saídas por
razões imperiosas, como doença ou estudo. Hoje, pelas festas, o deslocamento se
faz em caráter de exceção e por um gesto de boa vontade dos cantores, músicos e
dançarinos das comunidades.
177
Esse fato os faz enfrentar dificuldades que acabam por aparecer em seus
depoimentos como obstáculos a serem encarados se quiserem dançar. O que move
os grupos é, em grande escala, a chance de dançar em um espaço público e serem
vistos, apreciados.
As vicissitudes não são relatadas como trágicas e tão ruins, mas como parte
do esperado. Nenhuma das comunidades visitadas e relatadas difere desse
panorama, onde não há a lamentar se a dança correr bem, o grupo cantar direitinho,
a música for correta e os gritos afinados.
Nos relatos de nossos informantes, as descrições do espaço público sempre
dão conta de como era a cidade na sua parte mais central, nunca deixando de se
lembrar do Forte como fato grandioso, das dificuldades de aterramento, da lama e
dos igarapés cortando a terra, onde, hoje, se estendem as ruas de Macapá.
Mas o afeto nas descrições aparece em relação aos espaços rurais, às
familiaridades, às colheitas, às trocas em casamentos, que cada detalhe espacial
desempenha certo papel na memória coletiva. Os aspectos, cada um deles, e seus
detalhes têm um sentido próprio a cada grupo e a cada um de seus membros,
constituindo-os tal como os encontramos em seus relatos.
Seguem trechos de algumas das entrevistas que realizamos, com as
respectivas análises
88
:
B: Miguel das Neves. Então faz tempo que o senhor está aqui no Mazagão?
MN: É. Meus filhos eu criei aqui.
B: E o que o senhor estava falando da Fortaleza de São José? Da capital?
MN: Naquela época em que eu estava com a idade de dez anos, eu alcancei
aquilo um matagal. foi um tempo em que virou até (hipódromo), na época em
que o governo Janarí
89
(...)
B: Janarí?
88
Legenda para os trechos transcritos a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; /
barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre parênteses):
dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; MN: Sr. Miguel das Neves (“Seu”
Vavá); Loc01: Locutor não identificado.
89
Janarí Gentil Nunes foi Capitão do Exército Brasileiro e autor de obras sobre a bandeira nacional e
a história geral do Brasil. Foi nomeado governador do então território federal do Amapá, quando, em
1944, o Pará abriu mão dessas terras ao norte do país. Janarí está alojado na memória local como o
governador que abriu o Amapá para exploração e comércio maiores, na época em que a navegação
estrangeira entrava e saía do território sem qualquer regulamentação, e comercializava com as
populações ribeirinhas a extração de matérias-primas e produtos da floresta. São dessa época muitas
das citações de nossos entrevistados.
178
MN: (...) na época assumiu o cargo no governo. Ali, onde é agora o Banco do
Brasil, ali era feio.
B: Era feio?
MN: Ali era feio. Ali era um igarapé.
B: Ali era um igarapé?
MN: Era, na beira do igarapé. tinha uma estradazinha, um trafegozinho
para o lado direito da minha casa. um trilhozinho. Aquilo não tinha não. Era
alagado. Tudo alagado.
B: E a maré chegava até lá?
MN: Chegava [ri]. A água invadia por todo canto. Aquele igarapezinho, a
gente entrava de cano dentro dele e ia saltar lá no fim dele.
A vida traçada pela água torna o lugar um desafio misterioso, ao se pensar
em como se fez para chegar ao que é hoje.
As locomoções, a vida, os produtos, tudo quanto relatam nossos informantes
está relacionado com a água e as marés.
B: E onde dava o fim do igarapé?
MN: Não ia muito longe, não. Chegava até ali para a banda do Barro Alto, lá/
B: Chamava Barro Alto?
MN: Barro Alto, é. ele terminava, o igarapé. Mas era um anhingal fechado.
Dava muito peixe lá dentro desse anhingal. Quando a água baixava, aí ela entrava e
vazava, e aí o peixe ficava lá dentro no anhingal.
B: Aí era fácil pescar.
MN: Aí é só pegar.
B: O senhor morava para lá, então?
MN: Morei.
B: O senhor morou um tempo lá?
MN: Morei.
B: O senhor decidiu voltar para o Mazagão?
Muitos foram os que saíram das comunidades e tentaram viver em Macapá.
Nesse sentido, o relato da volta para as comunidades de origem é uma colocação
geral. No Bailique, o vários os que partiram e voltaram. Isso ocorre com a
179
população das comunidades, que se afasta por razões externas e volta logo que
resolve seus problemas.
A vida na roça, ou o “viver de roça”, é relatado em todas as entrevistas. A
memória das dificuldades com a vida rural é uma constante, mas delineia a realidade
do Amapá abem pouco tempo. Digamos que, nos anos 50 e 60, com a corrida do
ouro, Macapá experimentou explosões de euforia em relação ao precioso minério.
Mas esse relato ficou restrito ao Curiaú e ao Mazagão; nas demais comunidades,
não houve registro da corrida do ouro.
MN: Decidi voltar para cá e trabalhar em roça.
B: E aí o senhor criou os filhos, os netos?
MN: Tudinho com trabalho de roça. Graças a Deus. Oito. Oito filhos.
B: Estão todos no Mazagão?
MN: Não. Tem uns para Macapá, tem uns para Marabá. Até agora em
dezembro, eu estou esperando ver ele, ele prometeu que vem passar o Natal aqui.
B: Passar o Natal com o senhor. E em Mazagão tinha ouro?
MN: Tinha.
B: Me conta essa história. Tinha ouro? Me conte.
MN: Eu acho que, naquela época, no tempo dos escravos, o ouro não tinha
valor, porque muita gente idosa aqui, eles tinham ouro. Aí, o que acontecia? Antes
de morrer, eles enterravam. Olha, aqui tinha um velho, eu conheci ele, chamava-se
Mané Diniz, ele morava em um igarapé (no verão), em um lugar chamado Espinhel,
dentro do Espinhel. Eu sinto que lá ele deixou esse dinheiro enterrado, esse ouro.
B: Era muito?
MN: Era muito. Olha, sabe o que ele fazia? Quando ele vinha da barraca,
depois chegava dia de domingo, chamava aquele rapazinho que ele gostava de
brincar com ele, ia para lá. Chegava lá. “Vocês querem ver uma coisa?”, “O que
é?”, “Eu vou mostrar aqui uma coisa para vocês”. ele ia para dentro do quarto,
onde ele morava, e trazia uma esteira de taboa, estendia assim, no meio da sala,
voltava lá para dentro, trazia um lençol branco, estendia em cima da esteira, voltava
e trazia um copo assim dessa altura, ele abria, derramava em cima e espalhava
assim com a mão. Tudo espalhado. Era ouro. De toda qualidade. Era anel, era
broche, cordão de ouro. Ele tinha cordão de ouro. Ele dizia: “Quer ver o tamanho
180
desse cordão?”. Ele pegava lá o cordão, levantava, puxava assim e ficava muito alto
o cordão.
B: O cordão no chão. Era muito ouro?
MN: Muito ouro. Aquilo era anel, era broche, tudo puro.
B: Olha só. Onde será que ele conseguiu?
MN: Aí a gente ficava olhando. Ele dizia assim: “Já viram?”, “Já”, “Então agora
eu vou guardar”. Botava tudinho, botava dentro de um cofre, fechava, levava para
dentro, guardava [ri].
Os macapaenses sempre voltam ao seu local de origem, ao seu quilombo
remanescente, pelo fato de que, ao nascerem, encontram um espaço cultural
formado, que os impulsiona para uma identificação com aquilo tudo. Estabelecem,
assim, conversas em diferentes áreas em que se vão colocando e se reconhecendo
como parte do tecido social que gerou aquele grupo. As tradições e a cultura são
marcas de pertencimento, que figuram como uma espécie de tipo sanguíneo. Não se
escapa delas.
Os relatos de negros que possuíam ouro ocorreram sempre com essa
característica de que pairava certa desconfiança sobre a sua origem. O fato de
serem peças em ouro pode levar a pensar que seriam produto de roubo. Isso não
pode ser desprezado como suspeita, pois é relatado que muitos negros
desapareciam por dias e voltavam sem nada dizer, sem falar com ninguém,
retornando, em seguida, à vida de roça.
O folclore de mostrar o ouro em determinadas situações parece ter sido uma
das formas de se impor na comunidade. O modo como o nosso informante se refere
àquele homem que possuía ouro não é desrespeitosa nem pejorativa, mas tem certo
riso e uma complacência cúmplice.
Nunca se viu tal ouro afinal, mas as escavações podem até encontrar peças
elucidantes dessa fase do Mazagão.
B: Quer dizer que se cavar a mata, pode ser que se encontre alguma coisa.
MN: Várias famílias que vieram para cá, para Mazagão, então tem a família
Fróes. Esse rio aqui, ele era muito largo. Entrava navio aqui, sabe? Agora, devido na
época da Cabanagem, em mil e oitocentos, parece que oitenta e cinco, assim.
181
B: Tudo bem. Cabanagem. A gente já vai até os livros e encontra as datas
90
.
MN: Então os cabanas tentaram invadir aqui, Mazagão, porque isso aqui tinha
muito ouro, e eles tentaram invadir aqui a cidade. Os homens daquela época, que
estava habitado aqui, eles foram fazer grandes (derrubas), que aqui atrás nós temos
um lago com o nome de Himalaia. Esse lago é o lago do rio (...) que vocês
atravessaram. É lago desse rio e lago do Rio Preto. Então, os cabanas tentaram
invadir, vindo pelo Rio Preto para invadir aqui a cidade. Então, os homens daquela
época, eles tiveram/ foram fazer grande derrubas nos canais aí, para impedir a
passagem das cabanas. Conclusão, a Cabanagem terminou, eles não fizeram
limpeza mais nos canais, não tiraram aquele entulho, aqueles galhos. O volume de
água maior cambou para o Rio Preto. O Rio Preto é um rio muito bom, tem um
volume de água (...) e aqui ficou nessa situação. Mas, antes disso, foi colonizado
aqui. Nós tivemos várias famílias aqui, mas cada igarapé desses daqui, aqui tem
muitos igarapés com nomes, eram famílias que habitavam. Famílias grandes. Nós
temos uma rua aqui, a travessa de lá, eram os Maués. Era uma família Maués que
veio e habitou aquela rua. Nós temos um igarapé aqui com o nome Fróes, outra
família, Fróes. Nós temos um igarapé com o nome João Papele, família João
Papele, que habitou nesse igarapé. Nós temos um igarapé em cima com o nome de
Limeira, foi outra família, Limeira. Temos outra família, Cabral, outra família. Então,
onde eles habitavam, ficavam os nomes deles. adiante, nós temos outro rio com
o nome João Borges. Por aí a senhora vê a quantidade de população que havia aqui
nessa época.
A memória do local tem, em particular, o fato de que, hoje, falta água no
Mazagão. Essa situação se deve, principalmente, a essa perda do rio durante a
Cabanagem, a luta dos cabanos, que chegaram a encostar-se às terras do
Mazagão.
90
A Cabanagem foi uma grande revolta popular, ocorrida na província do Pará, de 1835 a 1840. Uma
população de pobres negros, colonos mestiços empobrecidos, ribeirinhos e índios se revoltaram com
a exploração dos governadores da província do Pará, que lhes pagavam muito pouco pelos produtos
que retiravam da floresta. Miseráveis, habitavam a beira dos rios em cabanas improvisadas, onde
armazenavam os produtos e viviam sob injustiças sociais e constante violência dos compradores e
fazendeiros do Pará. Os cabanos, com o apoio dos fazendeiros, iniciaram a revolta e foram, em
seguida, perseguidos pelos que a eles se aliaram. Chegaram a tomar o poder no Pará, mas,
desorganizados, perderam-se no poder e foram caçados e mortos, violentamente, pelas tropas
imperiais. Segundo dados oficiais, morreram 30 mil cabanos, e os sobreviventes voltaram à
escravidão.
182
A busca por ouro nas terras para fomentar a revolta, assim como a
localização do lugar, sempre foi um dado de especial atenção tanto para os que ali
viviam se considerando seguros quanto para os que vieram depois do fim da
escravidão e lá encontraram um espaço fértil e calmo para viver.
Foi possível, através dos dados históricos informados por Laurent Vidal
(2008), em sua obra, rastrear os nomes das famílias mencionadas no relato de
nosso informante, principalmente, no Mazagão, como sendo as primeiras na
chegada do translado da cidade original do Marrocos. Elas realmente existiram e as
localizações indicadas pelo informante são claras e fidedignas.
O que emerge das falas são os locais e seus habitantes eméritos, e nem
tanto, mas de toda forma, aparecem as pessoas que, afinal, constituíram o Mazagão
que vimos. Não se tratam de lembranças individuais, mas da memória coletiva que
se vai delineando, conservada no grupo de pessoas que ali ficou. Eles concordam
com suas memórias e os pontos de contato são capazes de reconstruir até os
espaços urbanos, segundo os relatos.
São aqui trazidas, então, memórias de espaços de uma realidade que
sabemos ter sido muito posterior aos escravos, mas que conta do quanto a vida
local no país sempre tem a fé por testemunha e o quanto dessa prática influenciou a
religiosidade que constituiu a segunda categoria dessa análise (a ser estudada no
próximo tópico).
Loc01: Padre Júlio Maria Lombardi, que fundou o colégio de freiras, irmãs
Marianas. Aquele outro é o padre (Hermano), que trabalhou aqui na comunidade.
Trabalhou e morreu nessa comunidade aqui. Foi um dos padres mais importantes/
B: O Hermano? Que apoiou, ficou aqui/
Loc01: Que apoiava a comunidade.
B: Mil novecentos e onze a mil novecentos e vinte e um. Ele apoiava a
comunidade?
Loc01: Ele ia para a roça com o pessoal/
A estátua do Padre Júlio destoa da paisagem e parece olhar para um lugar
muito longe do Mazagão e do espaço amazônico. Uma estátua erigida no meio da
floresta, cercada de casas amareladas e sombreada por árvores, um tom de
183
paisagem desejada e o real. Uma tentativa de moderno e apurado, almejando
chamar a atenção de quem entra no centro de Mazagão.
Valorizada como tal, a solitária estátua não conseguiu inverter a sensação de
abandono que a praça local apresenta. Um compasso de vazio, onde está a marca
do local, do grupo, mas apenas para os locais, exatamente como diz Halbwachs
(2004, p. 133):
Cada aspecto, cada detalhe desse lugar, em sim mesmo, tem um sentido
que é inteligível apenas para os membros do grupo, porque todas as partes
do espaço que ele ocupou correspondem a outro tanto de aspectos
diferentes da estrutura e da vida de sua sociedade.
MN: Contar a história. É o seguinte: tem muitas coisas que tem aí, por
exemplo, que não é do meu tempo. Livros que eu li, livros que não existem mais e
também os antigos, velhos, que eu conversava bastante. Eu era garoto, gostava de
conversar, e eles me contavam as coisas. E eles começaram, começaram com a
fundação da cidade. Essa cidade aqui, ela foi fundada dia vinte e três de janeiro de
mil setecentos e setenta, por cento e sessenta e três famílias, portugueses e
escravos. Eu ainda soube que meu tataravô era reminiscente dessas famílias que
vieram, família Duarte. Meu avô era Antonio Duarte da Silva, dessa família. Essa
família/ Aí, com o tempo, foi progredindo aqui. Não sei, por exemplo, explicar como
foi para progredir, mas sei que eles vieram, foram os primeiros que se localizaram
aqui. Tanto que aqui foi formada uma cidade que pertencia ao estado do Pará. Foi
formada uma cidade aqui e fizeram grandes monumentos aqui. Esteve na igreja
velha?
B: Estive.
MN: Primeira igreja, bem antiga aquela ali. Aquela igreja ficava no centro da
cidade.
B: Então a cidade era mais lá para dentro?
MN: Sim, senhora. Era mais para dentro.
A igreja, assim como a estátua do Padre Júlio, está no local com o intuito de
criar um ar de espaço religioso, mas, na verdade, o que se tem é um lugar um tanto
abandonado, que faz sentido quando, na festa de São Tiago, no caso do
Mazagão, um padre visita a comunidade e reza uma missa.
184
De resto, não espaço religioso no local além da igreja que não funciona,
com estátuas em roca policromadas e santos de tamanho natural com cabeleiras
naturais alouradas. São relíquias que se perdem pelo tempo úmido e pela falta de
cuidados especiais. Tudo muito silencioso e em repouso.
B: Então o senhor é um dos fundadores.
MN: A minha família foi uma das fundadoras desta cidade. De maneira que a
cidade progrediu, e de mil novecentos e quatorze para , por exemplo, em mil
novecentos e quatorze, a minha mãe chegou formada aqui. A minha mãe era
brasileira, o meu pai era libanês, então ela chegou formada para cá. Ela ainda
lecionou aqui, onde é a igreja, era a Intendência. Naquela época, não se chamava
Prefeitura. O intendente daqui, para a senhora ver como era, sabe quem era? Era
um senador, o Manoel Valente Flecha.
B: Essa família Flecha, tem gente no Bailique. E no Curiaú tem Flecha
também.
MN: Aqui é Valente Flecha.
Loc01: Valente Flecha, senador. Até hoje/
MN: Essa rua aqui é Senador Flecha. Um senador, o intendente daqui. Então,
a minha mãe chegou formada, lecionou na Intendência, onde ela ficou. Houve a
força política, foi desmoronando o negócio. Até hoje acontece, a política/ chegaram,
depuseram e vieram [ruídos] matar o velho Flecha. que não assassinaram ele,
assassinaram a filha dele. Mataram a filha dele.
MN: E o Flecha se mudou daqui. Ficou aqui entregue ao Mendonça, que não
sabia coisa nenhuma. Aí a cidade encheu de decadente. fundaram para ali,
aquele Mazagão dali, que aquilo ali não existia, em mil novecentos e quinze, e
aqui entrou em decadência. Uma família aqui, outra família pra lá, outra família foi
para Maracá, ficou preso e aqui ficou sem meio de vida, de maneira que nós
estamos até agora nessa situação aqui.
Esse relato acima transcrito é o único que se refere à comunidade branca no
Mazagão. Nosso informante, sendo branco e da origem mencionada, casou-se com
uma cabocla, que anda de pés descalços e quase não fala, apenas concorda com a
cabeça quando ele fala e olha para ela.
185
As disputas de terras e riquezas são contempladas no Mazagão, nesse relato.
As costumeiras tocaias e armadilhas foram, por tanto tempo, no país, o espaço de
mando dos mais poderosos e proprietários.
A menção aos negócios desfeitos é recorrente em outros relatos no Mazagão,
por razões diversas, mas, em geral, pela distância do local e das pessoas que para
se dirigiram, a saber, os negros, fazendo partir de os derradeiros brancos, que,
por ventura, ainda estivessem morando na área. A decadência e os decadentes são,
na verdade, pessoas que não tinham espaço na capital e buscavam o lugar devoluto
que tinha se constituído ali.
A referência ao outro Mazagão advém de uma disputa de espaço muito além
da terra. Os decadentes seriam migrantes egressos da corrida do ouro, mineiros
sem ter como voltar para sua terra natal, que buscaram o Mazagão para se instalar.
Foram impedidos pelos moradores, que assinalaram ser, ali, um reduto de negros e
remanescentes, não permitindo que essas pessoas se alojassem no local.
Assim, criou-se “Mazaganópolis”: um espaço de terra na entrada do Mazagão
Velho, onde essas pessoas fizeram uma pequena cidade. Sem vínculos
remanescentes, elas são desconsideradas pelos locais. Eis, aí, uma memória que
não encontra lugar nas lembranças relatadas, pois a menção é sempre pejorativa,
apontando para o fato de serem nordestinos que vieram trabalhar na mineração e ali
ficaram.
Os fatos relacionados aos “melhores” na sociedade de Mazagão estão
sempre ligados àqueles que se aproximaram do poder mais recentemente. Vejamos
que o relato acima transcrito nos apresenta, aqui, um dado da fatia social mais
ilustre do Mazagão. O informante é aposentado do Estado, seu pai tinha terras, a
mãe era professora, o nome da escola é o nome de sua mãe...
B: E o senhor ficou porque o senhor tinha ganho de vida?
MN: Bom, eu tinha, porque o meu pai tinha terrenos aqui, comprou terrenos
aqui, e a minha mãe era professora (bastante, o nome) dessa escola aí. Então, a
minha mãe lecionou aqui trinta e oito anos. E eu fiquei por aqui. Em mil e
novecentos/ eu nasci em mil e novecentos e vinte. Em mil novecentos e quarenta e
um, eu fui para o Exército. Naquele tempo, o Exército era em Belém. Eram vinte e
seis batalhões caçadores.
B: Tudo era em Belém, não é?
186
MN: Tudo era em Belém. Fui para Belém, isso era o estado do Pará. Eu fui
para e, de lá, eu fui sair de casa no dia onze de outubro de mil novecentos e
quarenta e um, e cheguei no dia seis de dezembro de mil novecentos e quarenta e
cinco. É, no Exército, porque a guerra, a Segunda Guerra Mundial iniciou em mil
novecentos e trinta e nove e terminou em quarenta e cinco. E eu fui com o
Estado para a Itália. Fui para a Força Expedicionária. Passamos uns sete meses no
front italiano.
B: E o senhor voltou para cá, como é que o senhor encontrou aqui?
MN: Minha mãe estava ainda lecionando quando eu cheguei aqui, em
quarenta em cinco. Meu pai tinha morrido. Meu pai tinha um comerciozinho aqui,
varejista. (Assumi) o comércio, depois eu entrei na antiga Guarda Territorial. Eu tinha
direitos adquiridos e eu entrei na Guarda Territorial, e fiquei nomeado como
comissário de polícia aqui. O comércio, mesmo naquele tempo, era o tempo da
borracha, uma coisinha ali, uma coisinha aqui. Não dava para nada, estava
desvalorizado. A borracha subia e abaixava, subia e abaixava, e eu, como tinha
direitos adquiridos, eu requeri os direitos e entrei na Guarda Territorial. Fiquei aqui
como comissário de polícia. Aqui eu passei treze anos, aí me casei aqui com a dona
Maria, casamos em mil novecentos e quarenta e oito. Nós, agora no mês de julho,
dia vinte e nove de julho, nós fazemos cinquenta e seis anos de casado. Os filhos
precisavam de ginásio, aqui só tinha o primário. Eu tive que me mudar para Macapá.
B: Chegaram a mudar para lá?
MN: É, passei vinte e quatro anos em Macapá. Agora, depois eles se
formaram, foram para Belém, fizeram vestibular, tinha entrado no vestibular em
Belém, mandei eles para Belém, estudaram, se formaram.
Essa lembrança nos mostra um tempo do Mazagão em que o lugar mantinha
certa organização. A remota memória da Segunda Guerra Mundial é uma surpresa
encontrada no relato. O “comerciozinho” é recorrente em todos os depoimentos que
falam de vida e sobrevivência com os produtos da floresta, entre eles, a borracha. O
cotidiano local se fazia entre poucos, com mínimos recursos.
Outro fato a ser considerado é a recorrência de que tudo se passou por muito
tempo em Belém, incluindo atividades básicas, como educação e saúde, além da
sobrevivência em pequenos comércios.
187
A formação de nível superior existe pouco tempo no Amapá, com uma
Universidade Federal, e, hoje, com outras instituições privadas de ensino,
implantadas nos anos 90.
Esse é o único relato que encontramos de um morador do Mazagão narrando
tal nível de conhecimento e o funcionamento da estrutura social da região.
B: E as casas tinham esse padrão? Essa janela alta? As janelas por aqui, as
casas por aqui eram mais ou menos parecidas com essa sua?
MN: Eram, eram.
B: Era assim que as outras pessoas faziam as casas?
MN: Era.
Esposa: Tudo uma emendada na outra. Tudo.
B: Coladinhas assim?
Esposa: Tudo.
B: Como se a gente encostasse a parede da minha casa para fazer a sua.
MN: Essa aqui e aquela casa pegada era só uma parede. Agora, ultimamente,
essa casa aqui está registrada no tombo do patrimônio nacional brasileiro. Fizeram
uma reforma nela, mas não foi uma reforma, fizeram uma casa nova, derrubaram
tudo e ainda fizeram pior do que a velha que estava lá. Está tudo caindo aí.
Loc01: Descaracterizam muita coisa.
MN: Então eu já fiz a minha parede de madeira.
B: Já fez sua parede ali para não ter problema, está certo.
Loc01: O assoalho que era do tipo desse daqui. Eles tiraram, levaram a
madeira e meteram qualquer tábua. Aí foi feito normal.
Esse relato nos apresenta a organização espacial do centro do Mazagão,
onde as poucas casas, umas quinze que ainda subsistem, foram construídas uma
junto da outra, como se cada uma aproveitasse a parede da outra para se erguer.
Esse tipo de construção tem origem na colonização portuguesa, com portas
estreitas na entrada, janelas dos dois lados da porta, direito muito alto e teto sem
forro, deixando entrever as tesouras em madeira de lei avermelhada. Cômodos
largos, com janelas que dão para dentro da casa, onde a cozinha é colocada nos
fundos, dando para um pomar e um terreiro onde se criam animais.
188
No entanto, essas construções foram encontradas apenas no Mazagão. No
Curiaú, as casas de mocambos é que são as mais comuns.
É de se observar, ainda, o fato de o local indicado ter sido efetivamente
construído inicialmente como colônia, na melhor forma da época. Com o passar dos
tempos, restam reminiscências que atestam esse sonho português de colonizar a
floresta tropical amazônica.
MN: Eu topo falar, principalmente para a juventude. (Não é porque) ele está
presente, um dos rapazes aí, professor, ele é muito diferenciado. Eu aprovo a atitude
dele, porque a gente tem que ter alguém para se interessar. Para não acabar.
MN: Eu sou narrador da Festa de São Tiago, então convido a rapaziada para
ir comigo na Festa de São Tiago, porque vão aprender.
B: Eu soube da história dos cavalos que são usados na festa.
MN: No dia da Festa de São Tiago, Mazagão fica pequena para o povo. As
maiores autoridades vêm para cá, governador. Essa casa nossa aqui, o governador,
uma vez, “Essa é a casa do seu Vavá?”. É uma parada obrigatória.
A festa de São Tiago é um dos maiores acontecimentos do Amapá, assim
como o Encontro de Tambores. Fazendo parte do calendário oficial do estado, a
festividade acolhe muita gente, por vários dias, podendo ser considerada uma
espécie de quermesse. A população passa dias confeccionando máscaras, roupas e
chapéus, além de enfeites para os cavalos.
Essa comemoração repete a luta dos portugueses contra os mouros, ainda
em Marrocos. Com as lembranças meio apagadas para as razões históricas da
festa, o que acontece é que os fragmentos dessa memória histórica são capazes de
fazer subsistir a alegoria da própria memória da festividade.
O movimento da festa recupera a marca sobre o solo. Mazagão, de certa
forma, perdeu-se de sua memória mais ancestral, mas a festa impressa em seu solo
o faz revivê-la a cada ano.
189
Falando, agora, um pouco sobre o artesanato da região, que revela as
marcas de pertencimento dos moradores em cada trabalho que confeccionam,
podemos destacar o relato de uma de nossas informantes
91
:
R: Isso. Elas gostam muito. A genteo vende o artesanato, assim por
vender, mas vende a história, sabe? Às vezes, a gente nem sabe o tipo de semente
que tem, por exemplo, dentro, e vem outro senhor da comunidade. Tem essa
integração. É muito legal. Outra coisa que é muito forte aqui dentro da comunidade é
que as nossas artesãs, elas dançam. São as mesmas que dançam o Batuque, que
dançam o Marabaixo, que participaram agora dos tambores dançando o Batuque, o
Marabaixo, levando o nome da comunidade. Então, a inspiração que elas têm para
produzir as peças vem daí. Os colares têm uma linha mais voltada para o lado afro e
voltada para a cultura do Marabaixo, que são as bonecas negras, as bonecas de
palha, sempre estilizadas, representando o Batuque e o Marabaixo.
Aqui, a comunidade relatada é a Coração, onde uma cooperativa foi criada
para produzir e vender artesanato para todo o Brasil. Apoiadas pelo SEBRAE
(Serviço de Apoio às Micro e Pequenas Empresas), as artesãs produzem em um
espaço quase dentro da floresta, em uma verdadeira troca de lembranças.
Essa característica fortalece a consciência da negritude, do pertencimento ao
quilombo remanescente. Imprimindo suas marcas no trabalho que produzem, as
artesãs revelam aspectos positivos e negativos do percurso que fizeram para chegar
ao que possuem hoje.
R: Olha, foi assim. Como as primeiras mulheres que juntavam aqui eram
negras, senhoras negras, da minha cor, assim, da comunidade, a gente começou a
chamar, assim, de senzala, primeiro. “Vamos para a senzala fazer o artesanato”.
Depois, a gente achou que quilombo era mais bonito. Era uma reunião de mulheres.
A gente tem isso muito entre a gente. Além de a gente fazer o artesanato, a gente
conta o dia a dia, sabe? O que acontece com a gente. Uma conta uma coisa alegre,
outra conta uma coisa triste. Geralmente, elas o muito alegres (lá embaixo). E
ficou o nome quilombo. A gente quis fazer uma homenagem ao meu avô, João
91
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (palavras entre parênteses): dúvida em trecho de
difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; R: Sra. Rosângela Nascimento Costa.
190
Costa, negro, velho, antigo, que morou aqui. Mas, ao mesmo tempo, a gente tinha
muita vontade de homenagear a minha avó. A origem dela, índia.
Podemos perceber, aqui, a lembrança das dificuldades ancestrais (senzalas,
violências domésticas, assédios, castigos), no sentido da identificação de ser negra,
de ser mulher e de ser alguém que, na comunidade, não tinha atividade de produção
que pudesse reverter em renda. A valorização positiva encontra-se no momento
atual, em que se produz e se vende o material.
Sendo uma comunidade pequena, o Coração tenta se impor como espaço
negro e remanescente, embora alguns entendam que o lugar nunca foi um
quilombo, mas somente um local de passagem. A avaliação é rala, mas faz sentido,
pois, através desse espaço, chega-se ao Laguinho e à comunidade do Carvão.
R: É. Chamavam ela assim, pelo apelido, e a gente nunca tinha pesquisado,
nunca tinha prestado atenção no que era tapuia. Achava que a gente não dava
valor. Criança, moleca, não dava valor. E quando foi um dia, a minha irmã, nós
estávamos reunidas numa exposição no Centro de Cultura Negra, e a minha irmã
disse: “Ro, vamos completar o nome da nossa associação?”. Não vai ser
quilombo. Quilombo de Arte. Mas a gente vai colocar um nome indígena. E ela
começou a cantarolar uma música que tem aqui em Macapá, que é do grupo Pilão.
O grupo Pilão é um grupo tradicional que faz músicas voltadas para a cultura da
terra. E ela começou a cantarolar: “Tapuias”. Ela estava com o apelido da minha avó
na mente e começou a cantarolar a música: “Tapuia, José, tapuia, tapuia para pegar
o camarão”. Quando ela terminou de cantar “Tapuia para pegar o camarão”, todo
mundo que estava ao redor começou a rir dela, porque a música não é tapuia, é
gapuia. Ninguém tapuia para pegar o camarão, se gapuia. Chama no linguajar
caboclo gapuiar para pegar o camarão. E todo mundo riu dela e ela ficou assim com
vergonha. Depois ela disse assim: “Mas eu falei tapuia, porque eu lembrei da minha
avó, e casou bem”. ela disse: “Ro, é uma inspiração”. É uma feliz coincidência
que veio de dentro, então vai ficar tapuia. ela disse: “Quilombo de Artes Tapuia”.
Ficou bonito o nome, e a partir daí, a gente nunca mais deixou de chamar o nome do
nosso Quilombo de Arte Tapuia. Homenageou as duas coisas e foi uma feliz
coincidência.
191
R: Porque as minhas companheiras, que trabalham comigo, eu tenho muito
amor por elas. Elas são mulheres desempregadas. A dona Gorete, por exemplo, que
planta horta. Se você acordar às cinco horas da manhã e olhar aqui na varanda,
você a dona Gorete plantando a sua verdura, trabalhando, cultivando. A dona
Dica, por exemplo, tem mais de cinquenta anos, quase sessenta anos, mas ela faz
os artesanatos às tardes aqui conosco e, quando chega o horário de folga, ela vai
para a cidade fazer a faxina das casas. Sabe? Tem a Marilena, tem a dona Socorro.
A dona Socorro, por exemplo, faz os (paneirinhos) lindos, mas, na hora de folga, a
Marilena, quando não está aqui, está no lixão. Ela é (carapirá), sabe? Ela junta
papelão, ela junta latinha para vender.
Temos no Quilombo Tapuia, ou Coração, uma recuperação histórica das
dificuldades pelas quais as negras passavam. Em geral, as mulheres não tinham
companheiros e deviam cuidar dos filhos menores. A mulher que fosse livre ou
foragida devia buscar sua subsistência. O Coração é, assim, quase em sua
totalidade, composto de mulheres com filhos, em busca de renda para viver.
Como memória histórica, podemos afirmar que as populações negras
femininas foram desde sempre abandonadas à sua própria sorte. No entanto, são
exatamente elas que passaram a produzir e criar espaços de comércio. Sabemos
que, no início do século XX, as negras eram produtivas, independente de terem ou
não homens ao seu lado. Isso não foi diferente no Amapá. Não se menciona, aqui, a
figura masculina, e fica patente que a autonomia dessa comunidade se deve ao
trabalho vigoroso de mulheres negras.
Sobre a presença de negros na região e a ascendência dos moradores,
selecionamos alguns trechos de relatos de alguns de nossos informantes,
moradores do Bailique
92
:
Da: Aqui não tem os costumes indígenas, mas tem / vem de uma outra
família.
B: Qual seria?
Da: Eu não sei.
B: Português, espanhol? Italiana?
92
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (...): trecho de difícil compreensão; B: Berenice
Pompilio; Da: Sr. Davi; D: Sra. Deolinda.
192
Da: Eu não lembro qual é esse povo, mas eu acho que veio do estado
mesmo.
B: Mas deve ter, não é?
Da: Mas tem, sim. Tem gente.
B: Porque eu acho, Davi, que quem veio para cá, os primeiros (...)
Da: Fez um trabalho sobre isso, mas eu não consigo lembrar a origem do
pessoal.
B: Mas eu acho que deve ter.
Da: Tem sim, tem sim. Tem algumas pessoas antigas que sabem.
Geralmente, assim, o povo já formaram famílias aqui.
B: Eram grupos de famílias.
Da: Eram várias famílias. O pessoal vai crescendo, vai casando e vai ficando
aqui. Tendo filhos. Aí vai só expandindo, só.
B: Você trabalha aqui (...)
Da: Não, eu moro lá na frente. Ele é conhecido, meu pai.
B: Seu pai é o seu Domingos?
Da: É. Vocês foram lá ontem.
B: Quer dizer que ele é outra família. Qual é o sobrenome dele? Você sabe?
Da: Sobrenome dele? Eu não sei. Parece que é Queiroz Barbosa.
B: Deve ser espanhol, português.
Da: A minha veio daqui mesmo.
D: Não. Aqui, graças a Deus, que não teve esses negócios de negros, índio,
não. Tinha indo para o Oiapoque, para lá, para cá, para cima também. Porque
no Oiapoque tem mesmo (raça), é só índio mesmo. Eles se criaram lá mesmo.
A situação de ascendência das famílias é fato que parece ser um acordo
tácito entre os moradores: “somos todos daqui. Nunca houve estrangeiros aqui,
senão nossos tataravós e avós”.
Essa busca de identificação com a ancestralidade original se dá em função de
saberem, principalmente os moradores do Bailique, que os demais lugares são
habitados por negros em sua maioria. Os negros que foram levados como escravos
para a Guiana Francesa são entendidos pelos locais do Bailique como gente que era
da Guiana. Para eles, os negros eram uma raça que havia se criado por lá. Não
193
mencionaram, em momento algum, a existência de negros com parte da história do
país ou do Amapá.
O caso do arquipélago é um exemplo nesse particular. A situação atual
sugere que as famílias locais foram para as ilhas, em verdade, em tempos bastante
remotos, e isso se comprova pela ausência de negros por lá. Tanto é, que a mesma
entrevistada relata:
D: É, português veio, que não foi do meu tempo. Eles eram meus avôs.
Meus bisavós.
B: Seus bisavós?
D: É, meus bisavós, eles vieram de Portugal diretamente do tempo que não é
nosso tempo.
B: Em outros tempos.
D: Do tempo que teve aquela briga de Cabral (...) eles ainda estavam
querendo, os portugueses estavam querendo invadir o Brasil. Eu acho que estavam
invadindo mesmo.
B: E tem aquela briga também da Guiana. A Guiana veio descendo, querendo
pegar parte daqui e Portugal querendo prender também aí.
D: Foi essa briga. E foi o tempo em que eles vieram de lá. correndo
também, com medo de morrer, como diz o Antônio (...) correndo para não morrer e
saltando para se defender, aí eles vieram e compraram essa ilha tudinho. Os velhos.
O nome dele era Ramiro Baiano, Ramiro Baiano, já não sei bem o nome, sobrenome
dele. Todos eles vieram de lá. A mãe da minha mãe veio de lá também. Vieram tudo
moça, vieram casando.
Acredita-se na mobilidade dos colonos em busca de espaços menos
perigosos do que o entorno da construção do Forte, menos ermos do que o
longínquo Mazagão. As ilhas são paradisíacas, e, através dos igarapés floresta
dentro, é possível acessar cidades como Santana, desde sempre, porto e centro
comercial importante.
194
Ainda fazendo recordar as origens dos moradores, segue mais um relato de
outra informante, moradora da comunidade de Maruanum
93
:
B: E de estrangeiro. A senhora chegou a conhecer estrangeiro aqui, em
Macapi ou em Maruanum?
J: Não.
B: Chegou a conhecer pessoas estrangeiras, não?
J: Tenho visto já para cá.
B: E brancos, nessa região que a senhora estava, não existia?
J: Alguns.
B: E esses brancos eram o quê? Dono de comércio?
J: Nada.
B: Fazendeiro?
J: Nada. Às vezes, a mãe casava com um/ Eu conheci uma senhora, que eu
não conheci mesmo a mãe dela. Eu (...) ela. Era Joaquina o nome dela. Ela era filha
de gente branco, mas ela não se tinha por isso. O pai dela era branco, a mãe dela.
Foi a pessoa que eu conheci no Maruanum. Hoje/
A memória oficial dos fatos se desvanece diante das suas próprias
lembranças. A compra das ilhas por latifundiários do comércio adaptou a mão de
obra local à coleta de materiais da floresta. Eles colhiam e vendiam aos
atravessadores, e assim viveram por várias décadas.
A menção carregada de racismo existente no Bailique foi única nas
entrevistas. O continente não tem nenhum registro de tais colocações. Pelo
contrário, em Macapá, ser negro não parece ser um fato digno de nota, mas é uma
realidade com a qual os urbanos estão acostumados a lidar.
Contudo, na comunidade do Maruanum, muito entrada na floresta, a ausência
de estrangeiros difere do depoimento do Bailique, pelo fato de o Maruanum ser,
efetivamente, um espaço remanescente de quilombo. O que chama a atenção é o
relato repetido, em todas as comunidades, da ausência de estrangeiros nas terras
do Amapá.
93
Legenda para os trechos transcritos a seguir: / barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de
difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; J: Sra. Joana.
195
B: A senhora chegou a ver criança nascer? Ajudou criança nascer?
J: Criança eu tenho visto.
B: Nesses tempos ou mais antigo?
J: Não, mas agora novato mesmo, ainda não, mas eu peguei quinze crianças.
B: Mesmo sem ser parteira, a senhora pegou quinze crianças. Está certo.
J: Peguei quinze crianças. Não peguei mais porque eu não posso lidar.
Quando eu pego, assim, ainda mais se eu for lavar, me dá uma dor nas pernas,
no braço. Assim que é.
Em termos de atividade feminina, a parteira parece ocupar a memória coletiva
desde o Bailique até as comunidades urbanas, onde os relatos de mulheres que
“pegavam” crianças é um fato que, hoje, faz parte da história recente do estado.
Desde 2000, existe um projeto chamado “Parteiras do Amapá Parindo um mundo
novo”, que recuperou a população feminina local.
Seguem mais trechos de relatos que corroboram essa situação
94
:
D: Foi, foi um entendimento que me deu, que eu não sei. O que eu dissesse,
era aquilo mesmo. que eu ainda não tinha feito nenhum parto. Ele disse: “Ah,
cunhada, se a maré der seca, que não der para (pegar uma velha)”. Ali no
Jaranduba, um igarapé que tem ali. Uma parteira que foi a parteira de todos os meus
filhos quase, “Aí a senhora vai fazer o parto da Raimunda”, “Você endireita criança
estando torta, e a senhora endireita. Então, o filho direito tem até sozinho”. “Ai, meu
Deus do céu, não tenho coragem. Ainda mais na minha irmã”. pensou? Era o
segundo filho dela. Aí não foi que deu uma maré seca mesmo? A gente morava bem
perto, assim. ele veio: “Cunhada”, “O que é?”, “Raimunda está com dor”. “Ai meu
Deus, espere lá que eu vou para lá acompanhar ela até a maré dar” (...) já de manhã
já. a dor (espetou), eu puxei, estava direito, foi rápido. Sem demora, a criança
nasceu. foi o primeiro parto que eu fiz no ano de mil novecentos e setenta, dia
seis de janeiro. Ainda foi ainda (...)
B: A senhora tem ideia de quantos a senhora já fez?
D: o que eu anotei, foram setecentos e sessenta e pouco. Mas, com
tudo que eu fiz mesmo, entre aborto, essas coisas que eu tenho feito parto em
94
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre
parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; D: Sra. Deolinda.
196
Macapá. Eu morava em Macapá, eu fazia bastante parto . Então, eu não gostava,
porque todos os partos que eu fazia, eu tinha que ir no cartório registrar. Era por
isso que eu não fazia. Morei onze anos em Macapá, andei pegando umas oito ou
nove crianças lá. Foi. Depois eu vinha para cá, que eu tinha uma (marretagenzinha
de roupa) pra cá, fumo e vendia negócio de luz.
Como se pode constatar, a mulher, no Bailique ou na capital, lidava com a
mesma falta de recursos.
Atuar como parteira rendia sempre algum dinheiro e tornava a mulher
conhecida no local. Essa senhora que fez o relato acima tem um arquivo, em pastas
de papelão, no qual marca cada parto, com dia, hora, nome e dificuldade enfrentada.
Na realidade, esse arquivo constitui lembranças que essa mulher, ao reler, acessa
homens e mulheres que ajudou a nascer.
Atualmente, a atividade é reconhecida pelo estado e confere, às mulheres
parteiras, um certificado.
A citada “marretagenzinha” era a coleta e venda dos produtos da floresta para
compradores que não desciam dos barcos. Eram intermediados por capatazes, que
faziam os fardos com os coletores e os despachavam nas embarcações. Essa
situação foi, para os ilhéus e demais habitantes do Amapá, a fonte de renda e
trabalho por muitas décadas.
É importante apontar essa lembrança do “negócio de luz”, que era a compra e
venda de combustível para os moradores iluminarem suas casas. Houve muitos
problemas com o transporte desses materiais, que findou com uma proibição de
carregar combustível, que foi, por anos nessas Ilhas, a única forma de iluminação.
Vale notar que a comunidade do Curiaú também apresenta características
semelhantes aos demais espaços encontrados. Famílias vivendo da roça, mulheres
parteiras e ocupadas com coleta de materiais na floresta, além das marretagens
mencionadas.
No Curiaú, encontramos pessoas muito velhas e com relatos que dão conta
de sua atestada idade avançada. Pessoas com memórias quase apagadas, mas que
compartilharam a forma de viver e trabalhar, assim como suas atividades de lazer.
Uma dessas pessoas é um senhor considerado o mais velho morador do
Curiaú, estimando-se sua idade em 100 anos ou mais. Nunca se casou, mas sabe-
se que ele teve filhos; porém, nunca se viu nenhum deles.
197
Essa característica de os homens não se casarem e não reconhecerem os
filhos também era muito comum nos espaços de remanescentes, onde os homens
não ficavam com as mulheres com quem se relacionavam e tinham filhos. As
mulheres permaneciam nos locais, enquanto os homens, muitas vezes, saiam à
caça e pesca e não voltavam, ou fugiam nas saídas e refugiavam-se em outros
lugares, não retornando mais ao local de origem.
As lembranças desses moradores mais velhos o de pessoas que nunca
saíram do mesmo lugar por toda sua vida. Não havia necessidade de sair, pois a
comunidade abrigava todo o tipo de pessoas e suas habilidades.
Assim, as referências desses moradores mais antigos compõem um espaço
de trocas e atividades nas comunidades, cuja característica era a de se manter fora
do alcance do mundo exterior. Tais moradores foram sempre ajudados por aqueles
que saiam e traziam para o lugar as novidades de fora.
Essa resistência em sair das comunidades é relatada como parte do
comportamento de praticamente todas as gerações que ali viveram até os anos 50.
O que muda isso, em parte, é a corrida do ouro, e a chegada dos produtos
eletrônicos, que pode ser constatada, no Curiaú, através da existência de antenas
parabólicas nas casas.
Seguem trechos de um relato de resistência a mudanças
95
:
Ru: Sei que tem coisas lá, mas nunca fui. Nunca tive vontade de sair. Nem sei
como se sai daqui. Meu marido e meus filhos ia fora, mas eu não. Meu marido
morreu de poucos anos, e aí que eu não queria sair, mais deixar ele aqui. Meus filho
foram tudo para fora. Tem um em são Paulo que nunca mais eu vi. Tem tempo
demais que ele foi.
Ru: Eu acendo a luz da lamparina e pronto. É luz que basta pra comer e
depois fico na porta e vou dormir.
Ru: Eu não gosto de falar. Não gosto porque não ajuda nada falar do que não
tem.
95
Legenda para os trechos transcritos a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; B:
Berenice Pompilio; Ru: Sra. Ruth.
198
Ru: Meus vizinho me traz quando eles pesca, mas o lago ruim de peixe.
Aqui era uma fartura que nem sei explicar. A mata era ali [apontando para o asfalto
da estrada que corta o quilombo]. A gente saía e voltava com comida e fruta. Agora
tem que comprar tudo, se quiser comer. Tem sido bem ruim essa coisa de compra
de comida, porque a gente não tem dinheiro e não pode comer da mata que é
proibido, não é? O peixe eu não vou lá. Então, eu fico aqui.
A caça, proibida na floresta que cerca o lugar, é uma surpresa para todos,
hoje em dia, quando tudo quanto se deseja comer deve ser comprado fora de lá.
Atualmente, a visão de um animal que chega até as cercanias é um acontecimento.
Não se pode matar, mas, como se diz em Macapá, a caça, por lá, é cultural, pois
não se trata de caça predatória, mas de subsistência.
O assunto fica por conta de uma memória obscura, como se evitassem falar
dela na atualidade. Talvez subterrânea, essa memória é, hoje, apenas reafirmada
pelo contrário, ao falarem apenas da proibição com pesar.
Não folclore encantador em se ter vivido naquelas terras, a partir dos anos
60. Até lá, a vida se levava, se mantinha, mas tudo foi ficando menor, decadente e
sem recursos da floresta, antes amiga e parceira dos remanescentes, que foram
proibidos de ali colher seu sustento.
Irremediavelmente isolados da pior forma possível, não podem sair nem
podem se manter dentro sem ter de onde retirar comida, e vão ficando sempre
mais reduzidos. O que causou alguma mudança foi o governo Capiberibe, que
implantou recursos de sustentabilidade no manejo dos búfalos e nas matas de buritis
nativas, com o reflorestamento das mesmas palmeiras. Mas, não durou muito e,
atualmente, o lugar é explorado por particulares.
O abandono do espaço pelos descendentes dos derradeiros depositários da
memória local torna a vida muito cruel no Curiaú. As casas são distantes umas das
outras, e pessoas velhas e doentes, com pouca mobilidade, não podem pedir ajuda
com facilidade.
Contudo, o orgulho de ser nativo do Curiaú é um dos fatos importantes na
memória coletiva que une as pessoas entrevistadas. Todos fazem questão de dizer
que nunca saíram de lá, outros que lá nasceram e lá morrerão.
199
Segue mais um relato de uma das moradoras mais antigas da região
96
:
M: Não gosto de dar muita conversa.
B: É mesmo? Como é o seu nome?
M: Meu nome é Marcelina.
B: Marcelina.
M: Eu não tenho pai, não tenho irmão, não tenho nada.
B: A senhora nasceu aqui no Curiaú?
M: Foi. Nós e os irmãos tudo nascemos tudo no Curiaú. Eu tenho um filho que
nasceu no Macapá. Quando eu cresci, ele foi no braço. Se criou aqui no Curiaú. Eu
sou daqui do Curiaú. A minha mãe era do Curiaú, meu pai, a minha avó. Eu conheci
duas avós, do meu pai e da minha mãe, graças a Deus. Fui criada com a minha avó.
Aqui tem muita gente que foi nascida aqui.
Os velhos moradores partilham lembranças de roças, de famílias desfeitas, de
filhos sumidos no mundo, de penúria de alimento e da caridade de alguns que os
sustentam. A velha base humana do Curiaú está se desfazendo e as terras ainda
alagadas estão cada vez menos visíveis na entrada do quilombo remanescente.
O desamparo apareceu mais claramente no Curiaú. Resistentes, os
moradores disseram sem ter o que dizer. Talvez uma vergonha, ou, ainda, uma
nostalgia do que foi o quilombo e da possibilidade de vida que sempre existiu e,
hoje, aparece cada vez mais remota pelas proibições de caça e pesca, pela falta de
água, entre outros problemas.
No entanto, percebe-se que “existe nas lembranças de uns e de outros, zonas
de sombras, silêncios, não-ditos. As fronteiras destes silêncios e não-ditos com o
esquecimento definitivo e reprimido inconsciente não são, evidentemente, estanques
e estão em perpétuo deslocamento” (POLLAK, 1989, p. 8).
Vale analisar, ainda, no Curiaú, as lembranças de uma senhora que é
considerada um museu vivo do lugar, pela sua idade avançada. Os relatos da anciã
retratam bem como era o local antigamente
97
:
96
Legenda para os trechos transcritos a seguir: B: Berenice Pompilio; M: Sra. Marcelina.
97
Legenda para os trechos transcritos a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; /
barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre parênteses):
dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; F: Sra. Francisca dos Santos (Dª.
Chiquinha do Curiaú); E: Sra. Esmeraldina dos Santos; Loc01: Locutor não identificado.
200
Loc01: Tem a ver com o nome do pai do Ladinho, o Julião Ramos?
E: É, tinha a ver, porque eles colocaram Julião, mas depois nem ficou, ficou
Ladinho, porque era Ladinho.
B: A gente está aqui falando das famílias, como era o nome das famílias.
Machado, Santos Ramos, os primeiros.
F: Os primeiros? Chamava Linos.
B: Linos.
F: Depois do Linos, teve (meu pai) Francisco Nonato, teve João Inácio dos
Santos, Maria Domingas dos Santos, (Feliciana).
B: E aí as famílias vão se juntando?
F: Maior de Curiaú. Nasceu/ E quando eu nasci, a minha avó já (...) com meu
pai, minha tia Benedita Ramos dos Santos, Manoel (...) Ramos (...) Ana Maria
Ramos, aquela minha tia que quase (...). Tinha o João Inácio, que era filho de Rosa.
A Rosa, eu já não sei o sobrenome da Rosa. (...) Eu já não sei o nome dela inteiro.
B: Então é Linos, Inácio dos Santos, os Ramos e os Machado.
F: Machado é passado do Leopoldo Machado, que era padrinho deles. Ele
batizou João Milton.
Loc01: E a Rua Leopoldo Machado tem a ver?
E: Tem. O Pedro Lazarini era avô de minha mãe.
F: O Pedro Lazarini era o meu avô.
Loc01: Ah, o seu avô era o Pedro Lazarini?
Vale ressaltar que os casamentos entre parentes são característicos dos
habitantes de quilombos. No Bailique, apesar de não ser um quilombo, essa
característica de uniões interfamiliares é realidade; tanto sim, que há uma constante
presença de doenças mentais entre os habitantes, ocasionadas pela
consanguinidade.
E: (Contam) no livro que é que eles não tinham dinheiro.
Loc01: Eu conheci um filho do Amilton Silva.
E: Eles eram fazendeiros, então eles não tinham/ nunca serviram para ser
tenente, coronel e tal, mas tinham dinheiro para comprar patente, e passou a se
chamar capitão (Pedro Lazarini).
F: João Pedro era Machado, era Leopoldo. Leopoldo Machado.
201
B: Eles compravam as patentes?
F: (...) Teodoro Mendes.
B: Teodoro Mendes também é rua, não é? E como é que pode, não é,
Esmeralda? Vocês terem nomes nas ruas e passar privação, passar necessidade?
F: Desse lado não dão nenhum valor a nós. Vou lhe dizer que o governo
daquele prefeito, ele não tem (os olhos na) pobreza.
Loc01: (...) deu o nome do Bairro Muca? Mas a casa dele (...)
F: Esse era um fazendeiro, meu filho. Foi cria de Jorge Picanço. Conhece a
família Picanço? O (...) dos Picanço é irmão de criação do (...). Era preto.
B: A família Picanço era branca?
F: É branca, é branca. (Joaquim) Picanço era primo do meu pai.
Loc01: Tem algum descendente aqui no Curiaú?
F: Tem aqui no Curiaú e tem para Mandaquari. Aqui, tem uma invasão aqui,
grande. Nessa invasão aqui, (Leopoldo) fazia casa.
Loc01: Mandaquari é uma localidade.
F: Era uma fazenda. A mãe dele foi para lá, sabe por quê? [inaudível] Daí ela
casou com ele (...)
Loc01: Ele tinha uma grande extensão de terra, depois evoluíram, a cidade
começou a levar o progresso e botou o nome do Bairro Muca.
F: Se não fossem, meus amores, se arrumassem o pessoal mais velho,
conhecedores, se os filhos, netos se interessassem aqui não tinha essa invasão.
Isso aí é do Leopoldo Machado.
B: Pois é, essa família do Leopoldo (...)
F: Passava aqui, aqui. Esse caminho era trilho de passar carro de boi e
cavalo. (...) para Macapá tinha uma (balsa) que pulava o lago, então passava lá. Daí
descobriram esse pedaço, essa mata aqui, você olhava a casa dele (...)
B: E aí ele?
F: Desistiu (...)
B: Com a casa (...)
F: Hoje em dia, se a senhora arrumar um pedacinho de terra, trata logo de
cercar. Esse tempo, não. Ninguém tinha missão com nada. Você podia descer (e
gapuiar) em qualquer (poça), você podia descer no igarapé (...) não pegava, tu
compreende? Igarapé, (...) pegar os peixes (...) pescando. Hoje, desse lado, não tem
nada a ver (...).
202
E: Ficou diferente hoje.
A genealogia dos quilombos remanescentes tem uma constituição toda
especial, pois descende, por proximidade e costume, diretamente dos senhores dos
escravos fugidos. Ao saírem das obras, das casas, das lidas dos senhores, os
negros levavam consigo elementos culturais, tais como o nome de família.
Bernardo (2007)
retrata bem a questão dos sobrenomes ou nomes de família
entre negros. Após a Lei do Ventre Livre, os nascidos de escravos eram um
problema para os senhores que se livravam deles em regime de troca, dando-lhes
seus nomes. O nome dado aos negros “trocados” era o das famílias que os acolhiam
nas trocas, perdendo, assim, o nome anterior. Poderiam ser “Oliveira” de origem e
passar a “Coelho” ou “Silva” na sequência
98
.
muita controvérsia sobre as questões dos nomes familiares no Brasil,
exatamente por causa dos costumes portugueses de nomear filhos e netos com
nomes de padrinhos, ignorar a paternidade e usar o nome da mãe, ou ainda,
escolher outro nome qualquer da família, eliminando, assim, os reais vínculos de
familiaridade. O fato é que, como dissemos, os nomes citados nas comunidades,
principalmente no Curiaú e no Mazagão, são parte dos nomes das famílias que
vieram para o Amapá transportados do Marrocos.
Outro fato a se analisar é a situação agrícola e de propriedades rurais em
todos os espaços quilombolas, onde os ex-escravos nunca souberam como produzir
mais, como guardar dinheiro e reaplicar na roça, enfim, como estabelecer um nível
de sobrevivência financeira que os aproximasse do elemento branco da sociedade.
As terras dessa nossa informante foram adensadas por ter ela um marido que
conhecia um tanto de leis e que, por isso, foi registrando as terras em nome da
esposa. Pelas leis da abolição, os negros deveriam se ligar ao trabalho livre, mas
não lhes foi apresentada a maneira viável de fazê-lo.
E, assim, o meio de subsistência rural ficou sendo a vida dos habitantes
dessas comunidades, que passaram a disputar suas terras de fato com posseiros e
poderosos de todos os tipos. A esse respeito, Fernandes (1965, p. 2), menciona: “A
98
Bernardo (2007, p. 127) relata o fato em que uma negra nascera na família dos Cardim e fora
entregue, em troca de comida, aos Campos Sales. Ao morrer, não se podia enterrar a tal senhora
pela confusão dos nomes. No Amapá, os nomes, aparentemente, seguiram o mesmo processo,
sendo que a maioria deles pertencia, inicialmente, aos colonos e, posteriormente, aos religiosos que
ali se instalaram.
203
preocupação com o destino do escravo mantivera-se em foco enquanto se ligou a
ele o futuro da lavoura [...]”.
A ideia era de manter o negro ligado ao meio rural, por não se imaginar uma
possível ascensão na sociedade urbana. A desocupação no meio urbano sempre foi
punida com prisão agrícola e nomeação de vadiagem ou vagabundagem. Essa
realidade justifica ainda mais as afirmações dos informantes de nunca terem saído
do quilombo. A presença de negros na cidade representaria uma chance de ser
inquirido, e até preso, caso não pudesse confirmar sua procedência e ocupação,
como refere a informante:
E: Meu nome é Esmeraldina dos Santos, Rodovia do Curiaú, o carteiro vem
direitinho aqui. Quilômetro quatro, número quinhentos e dezessete. Na maloca,
vem direitinho aqui. Na maloca entre o rio. Eu escrevo a história do Curiaú. Tem um
livro meu aí. E eu tô fazendo outro com as histórias de mamãe [Dª. Chiquinha].
E: Mamãe sempre foi festeira, e Pedro sempre tocou caixa. Aí, ele ficou
fazendo caixa e pandeiro de Marabaixo e ela sempre fazendo ladrão. Eu faço ladrão
também, mas é menos. Ela na roça fica fazendo e, na volta, canta um novo e Pedro,
meu irmão, ele toca tudo que ela canta.
A vida dos negros do Amapá é tocada por duas forças de igual valor. O
trabalho rural aos anos 80 nas comunidades, em análise, e a produção artístico-
cultural.
O canto, a poesia e os ladrões herdados das quadras portuguesas fazem, até
hoje, a maior manifestação da região, que é a festa do canto do Marabaixo junto
com o Batuque.
Uma festa não pode acontecer sem que o amapaense rural ou urbano dance
o ritmo. As composições, antes restritas, são, atualmente, festejadas pelos
ineditismos de tantas mulheres negras que se aventuraram em cantar seus ladrões
nas rodas de Marabaixo.
O trabalho e a vida sempre foram orientados pelos cantos, os quais, em
muitos estados do país, foram catalogados (como em Minas Gerais, onde os
vissungos têm formação semelhante). Eram cantos repetitivos, cantados na lida da
roça, nos acessos por barco, nas lidas de coleta, enfim, no dia a dia, sempre
204
acompanhados de gritos e sons assemelhados a pássaros e outros animais,
marcando, assim, suas presenças.
Diante do exposto até aqui, podemos nos utilizar das palavras de Halbwachs
(2004, p. 166), para darmos nossa conclusão: “Resumindo tudo o que foi dito da
maioria dos grupos, não somente aqueles que resultam da justaposição permanente
de seus membros, dentro dos limites de uma cidade, um quilombo, um estado [...]”.
Muitos outros também imprimem de algum modo sua marca sobre o solo e evocam
suas lembranças coletivas no interior do quadro espacial assim definido. tantas
maneiras de representar o espaço quantos sejam os grupos. Aqui ainda uma
parte do espaço que se diferencia das outras: é aquela na qual há a parte mais ativa
da sociedade, que se interessa pelos bens, reside geralmente, e sobre a qual deixa
sua marca.
A vida e o trabalho realizado nesses espaços remanescentes de quilombos
no Amapá estão marcados pelo sentimento ancestral de gerações de negros
escravos, que escolheram a vida. Decorridas décadas, gerações, podemos
encontrá-los, hoje, perenes, como memória de uma sociedade que houve por seu
bem preservar-se em meio a toda injusta forma de julgo que foi a escravidão.
Os quilombos remanescentes do Amapá são um espaço de lembranças, em
que a memória do coletivo negro de ex-escravos construiu um acesso que nos dá
passagem e deve ser observado, ouvido, trabalhado e exposto aos demais espaços
que lhe o devidos, ou seja, a toda a sociedade deste país, em busca da
conservação desses solos e do que emana deles, para retomá-los até que a
visibilidade de cada um possa ser viabilizada.
3.2.2 Categoria: Religiosidade e cultura do Marabaixo
As entrevistas que serão analisadas nesta categoria trazem, em um primeiro
momento, o sentimento de propriedade dos amapaenses sobre a manifestação
cultural do Marabaixo, onde “nos afiguramos de que a memória de nosso grupo é
também contínua como os locais nos quais parece que ela se conserva”
(HALBWACHS, 2004, p. 162).
205
No Marabaixo, a memória está preservada e avança com possibilidades de se
estabilizar nas próximas gerações das comunidades.
Uma dança com as características reveladas e analisadas anteriormente,
onde os negros transbordam desejos e sensualidade para além do lazer e da
alegria, foi brilhantemente tornada um espaço litúrgico, momento de adoração e
respeito contrito pelos símbolos cristãos, acrescentando, ainda, preferências de e
cuidados estritos com os santos católicos e todo aparato que lhes é devido.
As necessidades que perduram e mantêm o espaço social e cultural se
instalaram permanentemente na cultura do Marabaixo, como símbolo religioso que
acaba em folguedo ingênuo e brincalhão. Isso ocorreu uma vez que, segundo
Halbwachs (2004, p. 163):
[...] um grupo [humano qualquer] ou ainda religioso, mais que qualquer
outro, tem a necessidade de se apoiar sobre um objeto, sobre alguma
realidade que dure, porque ele próprio pretende não mudar, ainda que em
torno dele as instituições e os costumes se transformem e que ideias e
experiências se renovem.
As razões para isso passaram pela luta de manutenção estrita, reiterando
hábitos e costumes constatados nas danças e ritos que levaram à religiosidade.
Mas, o que se deu foi a observância de regras e disposições que se uniram a
períodos de interesse único pela dança, que acabou por atuar sobre o tempo da
memória, essa grande matéria simbólica.
Em geral, o grupo social tem a necessidade de centrar sua atenção sobre
determinados pontos em que a substância humana fala mais alto quando outros ritos
podem se impor, mantendo, ainda, a massa espiritual quase intacta.
Assim, amplia-se o limite da memória para o fato de que, para nós, é um outro
sendo o mesmo Marabaixo que se assumiu, hoje, no mesmo lugar do anterior e com
espaço suficientemente estável para poder durar sem envelhecer nem perder partes,
mas acrescentando outras fundamentais, que estão na memória subterrânea, que
diz respeito aos ancestrais africanos, os quais, certamente, dançaram Marabaixo
nas senzalas e terreiros de quilombos no Amapá (HALBWACHS, 2004).
Essa manifestação é o leitmotiv do negro remanescente de africanos do
Amapá, que dela faz, hoje, o símbolo litúrgico e cultural mais importante do estado,
juntamente com o Forte de São José, que foi o início de tudo. O negro começou nas
águas e para se volta, em um movimento que leva mar abaixo seus ladrões, ao
206
som de suas caixas deitadas, seus pandeiros mouros, seus gritos indígenas, e sua
crença na felicidade arrancada em fugas e festas no meio da floresta, que foi o
ventre livre para tantas vidas, onde o meio líquido é o final, o mater motiv.
Ao comentar a memória coletiva de Halbwachs, Jean Duvignaud (apud
HALBWACHS, 2004, p. 14)
99
coloca que:
A rememoração pessoal situa-se na encruzilhada das malhas de
solidariedade múltiplas dentro das quais estamos engajados. Nada escapa
à trama sincrônica da existência social atual, e é da combinação destes
diversos elementos que pode emergir esta forma que chamamos de
lembrança, porque a traduzimos em uma linguagem.
E a religiosidade é, também, lembrança de vida rememorada, pessoalmente,
na trama das comunidades que dançam e oram no Marabaixo. Com predominância
evidentemente cristã, as referências são de santos católicos, missas, ladainhas,
rezas de terços, festas de santos e do Divino.
No entanto, nota-se que as construções católicas são reduzidíssimas, ao
passo que as evangélicas chegam a dezenas por toda parte. Mas o macapaense
que conhecemos, e que vive nas comunidades remanescentes de quilombos,
guarda a lembrança de uma religiosidade captada dos senhores de escravos e,
posteriormente, do convívio intenso com padres e missões que por passaram.
Não se tem a igreja como espaço de fé, mas o santo e a dança para louvar.
Difícil seria se livrar dessas crenças que davam o conforto de não serem
ainda mais perseguidos. Nos quilombos, adorando dessa forma, e, depois, com
padres adornando a dança com ritos cristãos, mantiveram assegurado o direito à
e ao lazer.
Assim, o Encontro de Tambores sempre tinha sido o encontro dos santos de
cada comunidade e de suas bandeiras para se dançar e cantar. A devoção
ritualizada e a presença de ladainha em latim encontradas no Curiaú vão ao
encontro desse panorama que é comum no Brasil. Somos, de resto, uma nação
católica, pois é o que nos consta oficialmente.
99
Tal comentário encontra-se no prefácio da obra de Halbwachs (2004).
207
Seguem trechos de relatos de alguns de nossos informantes
100
:
JC: Se fizerem uma filmagem desse material que nós temos, que fazem parte
dessa encenação dessa festa, porque as meninas/ são doze crianças, são doze
personagens, crianças de nove a doze anos, que são os personagens dessa festa.
Então, cada uma tem um significado ali. É muito bonito. São todas vestidas de
branco, vestidas até aqui [aponta para a canela], como se fosse no tempo do
Império. É toda uma história.
B: Isso é em agosto?
JC: É em agosto, do dia dezesseis ao/ mas o dia principal mesmo é o dia
vinte e três e vinte e quatro. Começa dezesseis, com uma alvorada. Aqui nós temos/
porque essa música aqui é de (...) que a gente chama.
Tal como uma festa do Divino encenada em cidades pelo país todo, essa
encenação não difere muito do que se conhece. O elemento dos doze, as doze
crianças, a cor branca, tudo remete ao Divino no Catolicismo popular.
O culto religioso anda junto com a cultura do Marabaixo, sem a qual nada se
faz nem se organiza. A chegada dos barcos para levar o santo local e a bandeira
deve ser pontual, coisa difícil sempre, em se tratando de navegação fluvial. E um
longo ritual para todos entrarem no barco com as imagens, como se no relato
deste entrevistado:
JC: Existe o Marabaixo quando a gente sai na rua, o Marabaixo de rua. É
diferente o baixo, diferente a música. Vou até tocar para vocês ouvirem aqui para
não saírem/ porque a gente tocou lá (no encontro de capoeira).
JC: [começa a cantar] A bandeira chegou, vou embora, a quarta-feira
chegou no dia, na hora. No dia, na hora (...) Nossa Senhora no u se alegrou,
Nossa Senhora, Nossa Senhora no céu se alegrou. Se alegrou com prazer e
alegria, se alegrou com prazer e alegria. Jesus Cristo, rei da glória, filho da Virgem
Maria. Jesus Cristo, rei da glória, filho da Virgem Maria. De madrugada eu fui ver a
100
Legenda para os trechos transcritos a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; /
barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre parênteses):
dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; JC: Sr. Josué da Conceição Videira;
Ru: Sra. Ruth; J: Sra. Joana.
208
Conceição, de madrugada eu fui ver a Conceição. Encontrei Nossa Senhora com um
raminho de ouro na mão. Encontrei Nossa Senhora, Nossa Senhora com um
raminho de ouro na mão. Pedi um cadinho, ela me disse que não, pedi um cadinho,
ela me disse que não. Fui pedir, ela me deu o seu cordão, fui pedir, fui pedir,
ela me deu o seu cordão. Frade São Francisco, me desmancha esse cordão, Frade
São Francisco, me desmancha esse cordão. Que me deu Nossa Senhora pelas suas
bentas mãos, Nossa Senhora, Nossa senhora pelas suas bentas mãos.
E outro informante continua:
J: Só um dia para chegar lá.
J: Passava três dias, quando ia buscar a mãe de Deus de barco, ia em
Mazagão.
A busca da Mãe de Deus refere, aqui, à antiga forma de festejar o Encontro
de Tambores, quando as comunidades se revezavam nos locais das festas a cada
ano. A imagem era uma única e, frequentemente, a de uma Nossa Senhora, que
viajava de comunidade em comunidade. Era apenas uma imagem venerada; daí a
obrigação de buscar e levar a mesma imagem nas datas de festas.
Deve-se esse costume ao fato de que, “nos começo”, como dizem os
moradores, o se saía das localidades para fora dos limites entre as comunidades.
Antigamente, todas comunidades tinham e festejos para um único santo, uma
única imagem, que ficava na comunidade que seria a festeira da vez. Ocorreram
discussões, pois outras comunidades queriam o santo também. Foi decidido, então,
que cada qual teria uma imagem igual à principal, mas isso veio para criar uma
cisão geral, vez que, ao encomendarem o santo igual, as comunidades também
encomendavam outro de sua devoção.
B: Pegava todo mundo no caminho? Ia pegando as pessoas no caminho?
J: Pegava só a santa, porque o Maruanum é terra de muita gente.
B: É terra de?
J: Muita gente.
B: Muita gente. E qual era a santa?
209
J: O santo que nós venerava? Santo Antônio. Aí, depois, cada um trocou o
seu.
B: Como é essa troca de santo?
J: Uma (loja) tem o santo. Chega lá, dá o dinheiro, recebe o santo.
B; Para quem que dá o dinheiro?
J: Pros donos dos santos, que vendem. Eles vendem.
B: Os santeiros, eles fazem os santos.
J: É. Cada uma tem o seu.
B: Então, não era mais como antigamente, um único santo para o grupo todo.
Então, depois que teve essa dissolução, cada uma comprou seu santo.
As viagens para buscar os santos nos locais (quilombos) eram
acompanhadas por representantes da igreja e dos festeiros que exerciam autoridade
litúrgica sobre os grupos, sendo eles, ainda, que preparavam as ladainhas, as
trezenas, os rosários e rezas preparatórias para purificar o povo que ia buscar o
santo. Objeto místico e poderoso, certamente, foi desejado como ícone de acesso
divino em cada mocambo.
Ru: Os santos era de todos e daí teve briga e daí cada um ficou com seu
santo. Cada um festejava seu santo. Então era festa e Marabaixo sempre. Todo
tempo tinha festa de batuque.
Até os anos 70, as imagens eram sempre as mesmas, e foi, a partir de então,
que as pessoas passaram a comprar imagens e revelar suas devoções cristãs a
santos diferentes daqueles cultuados pelas comunidades. Atualmente, cada morador
escolhe o santo para sua devoção, sem que se explique qualquer relação entre o
santo escolhido e a comunidade local.
Tudo leva a crer que se trata de escolha para marcar a diferença nas
apresentações dos santos nos encontros, e isso sim é uma tradição mantida dos
colonizadores, que era vesti-los, enfeitá-los, cercá-los de fitas de devoção
correspondentes a orações e pedidos feitos ao santo. Isso se mantém.
A inserção provável de artesãos vindos de outras regiões, imigrantes
nordestinos que têm tradição de santeiros, deve ter ocorrido nos anos de exploração
210
dos minerais. A lembrança de tais tempos se refere a um “eles” não identificado,
apenas mencionando que foram “eles”, quando “eles” vieram.
A desagregação dos habitantes em torno de um santo está relacionada à
afirmação de Halbwachs (2004) de que ela ocorre em circunstâncias tais que as
pessoas giram em torno do mesmo círculo e, por essas e outras razões, acabam
sendo conduzidas para outro grupo, mas que acabam apenas mudando de par na
dança. Essa colocação é, na verdade, uma avaliação profética, no caso do
Marabaixo, pois, hoje, as mudanças, com certeza, trocaram os pares, mas a dança
continua.
Segue o relato:
Ru: Agora, mudado, feio, cada um tem o seu. Eu não tenho, não queria
não.
Ru: Mas eu tenho que isso foi ruim, vê que as coisas se acabaram, as
pessoas foram para fora trabalhar e não trabalhava mais dentro. E depois não
tinha que ir de barco, ia a nas casa, mas nem tinha de comer era dançar. Isso
não era bom e foi que acabou de ficar cada um no seu terreiro sem ver os outro.
A memória dos tempos em que se fazia a festa em turnos nas comunidades
aparece, aqui, como lamento da perda das características onde os cantos eram de
todos, não havendo disputa pela autoria, como ocorre hoje. Não havia disputa pelo
santo a ser festejado, que havia um santo. A mudança para que cada qual
tivesse seu santo de devoção acabou por fraturar a devoção maior e pulverizar a
festa também no Curiaú.
Devemos destacar, ainda, a falta de alimento nas festas. Os moradores iam
às comemorações para festejar por dias e noites, comendo, dormindo, tocando,
compondo etc. A festa tinha caráter aglutinador, comemorativo de colheitas e caças,
de louvar simplesmente uma divindade. Esses fatos se perderam e são lamentados
na memória do lado bom e antigo dos festejos, que, hoje, para essa nossa
informante, estão acabados, que cada qual fica no seu terreiro e não se falam
mais entre si nem para arranjar a festa que é feita fora de lá.
O mesmo problema referido das divisões dos santos de devoção acabou por
findar a reza que era feita sempre dias antes da saída do povo para ir até as outras
comunidades festejar. A reza em latim fazia parte da preparação da festa, sendo
211
feita em terra, com os habitantes e a bandeira do grupo. Rezavam todos juntos,
para, depois, abrirem o caminho para seguirem nos barcos, em silêncio, até o local
em que seria festejado o santo.
Sobre as rezas em latim, segue trecho de relato de um de nossos
informantes, que era responsável por fazê-las
101
:
Loc01: Eu não sei, é o senhor quem reza. Não sei lhe dizer.
B: Ele sabe mesmo?
Loc01: Sabe sim. O único que reza por aqui é ele.
B: Não se faz mais?
Jo: Já vem em outro sentido, não é? As coisas, a tendência é mudar.
B: Infelizmente. A gente devia mudar o que é legal, o que é bom, o que é
agradável.
Jo: O que é bom também a gente tinha que guardar um pouco.
B: Exatamente. Por exemplo, a ladainha.
Jo: Conservar ela ali.
Nota-se que várias perdas se deram no tocante à religiosidade e às tradições.
A perda de tradições leva o silenciar dos fatos por desgosto, pela perda da crença.
Mas algumas famílias continuam perpetuando as tradições, para que continuem
vivas, mesmo que novos elementos entrem no cenário, como se observa nos
trechos dos depoimentos que seguem
102
:
B: A senhora chegou a dançar as danças de Marabaixo?
M: Ih, de Marabaixo, Batuque, eu dancei bem. Agora vai haver um batuque aí.
B: E a senhora vai quando tem?
M: Vou. A Senhora da Conceição me ajude.
B: Claro. A senhora lembra de alguma cantiga?
M: Uma eu lembro, sim.
B: Quer cantar uma para nós?
M: Não, não vou, não. Não vou cantar nadinha, nada, nada.
101
Legenda para o trecho transcrito a seguir: B: Berenice Pompilio; Jo: Sr. João da Ladainha; Loc01:
Locutor não identificado.
102
Legenda para o trecho transcrito a seguir: B: Berenice Pompilio; M: Sra. Marcelina.
212
B: Nada? Então está bom. Não vamos cantar nada. A senhora, de falar
com a gente, a gente já ficou muito feliz. Está bom?
M: Eu tenho um filho, esse filho canta cantigas de Batuque.
B: E onde ele está?
M: Ah, você não sabe. Está no Macapá, ele mora no Macapá (Emanoel).
Esse dado é ainda importante quanto à memória do Marabaixo. Em todas as
entrevistas, havia uma e outra pessoa da família que cantava, compunha e
participava, de alguma forma, das festas de tambor e das comemorações dos
santos. Como dissemos anteriormente, a festa sempre foi um espaço aglutinador
dos remanescentes em seus espaços, e, nesse sentido, entendemos que “para que
nossa memória se auxilie com a dos outros, não basta que eles nos tragam seus
depoimentos: é necessário ainda que ela não tenha cessado de concordar com suas
memórias” (HALBWACHS, 2004, p. 39).
Encontramos, no Curiaú, uma família que está unida na composição de
ladrões e na confecção de instrumentos de Batuque e Marabaixo. A matriarca
compõe ladrões e os filhos e netos cantam e confeccionam instrumentos
103
.
P: Esse daqui vai tomar conta daqui mais uns anos.
B: Esses são os construtores dos tambores. Como é que chama o construtor
do tambor?
P: Quem faz o instrumento é o/ trabalho de artesão.
B: Artesão.
P: Deixando no sol, ele estica, ou então, só no calor do fogo. Esse é o
pandeiro original para se usar no Batuque. Tem um pano bem aqui por causa dos
pregos. Tem uns preguinhos aqui.
B: O lugar de pegar é aqui? Mas, em São Paulo, não tem sol para isso,
não. Precisa ser o sol daqui.
P: Não, mas a só no calor do fogo, rapidinho.
Loc04: Isso aqui é pele da?
P: Bode.
Loc02: Cuidado que dentro tem prego.
103
Legenda para o trecho transcrito a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; B:
Berenice Pompilio; P: Sr. Pedro dos Santos; Loc01, Loc02 e Loc03: Locutores não identificados.
213
Loc01: Mas toda vez que você for bater, você tem que esquentar ele.
P: Um fogão a gás, mesmo. Ou então uma lâmpada de duzentos.
B: Esquentar. Ele estica.
É preciso apoiar-se em depoimentos e lembranças mais antigas, cujos rastros
subsistem em muitas coisas para além do discurso. Nessa família, todas as coisas
passadas, como arte e ação na comunidade, são, hoje, o esteio da memória
individual que se une à memória coletiva.
As mudanças no Encontro e no Marabaixo foram encaradas como fato
consumado, e essa foi a única família que propôs uma mudança positiva quanto aos
festejos estagnados nas comunidades, pretendendo, na época da entrevista, fazer
festas em suas próprias malocas. Cada qual faria sua própria festa, pequena, no dia
do seu santo. Essa forma de comemorar pode recuperar a antiga tradição e captar
memórias desconectadas da festa ancestral, transformando-a.
P: Agora eu vou improvisar, fazer uma improvisação de colocar tarraxa neles,
enquanto vocês viajam. A gente viaja muito, a gente está sempre em São Paulo,
sempre lá pelo Sesc Pompeia. No Sesc Pompeia.
B: Vocês estão sempre indo para lá?
P: A gente deu oficina no Sesc Pompeia.
B: Ah, foi? Quando?
P: Em dois mil e três, ano retrasado. Ano retrasado eu fui no Sesc, ensinar
como é feito os instrumentos.
B: E levou o seu filho?
P: Não, ele não foi. Estava aqui estudando.
B: Mas ele já sabe confeccionar, já sabe fazer?
P: Ele já sabe tocar. Tira um som.
B: E ele gosta? Você gosta disso? Você fez algum sozinho assim? Já?
Deixa ele tocar um pouco para a gente ver, sozinho.
[o menino toca]
B: Tem mais filhos?
P: Só aquela moça e a outra, está ali. Mas aquelas, é só para dançar.
214
A oficina de instrumentos tem sido um espaço de chamada para os demais
mocambos e famílias, que chegam com crianças e jovens, pois em várias famílias
a arte se perdeu. O fato de eles já terem tido visibilidade nacional e internacional, os
referenda na comunidade do Curiaú. Os filhos e netos da maloca desse nosso
informante são capazes de preparar uma festa de ponta a ponta, desde a confecção
dos instrumentos até a composição dos ladrões. E a família fica entusiasmada com a
possibilidade de passar o que sabem. Estão felizes por ver, ao longe e no seu solo,
a recuperação daquilo que todos amam fazer.
Saindo um pouco da memória relacionada ao Marabaixo, vamos nos ater,
agora, a outras lembranças de nossos informantes, ligadas, também, à religiosidade.
No que diz respeito à saúde e doença, o tratamento de males comuns na
região, como febre, verminose, alergia, picadas de insetos, feridas, era feito com
recursos do ambiente da floresta. Os informantes se referem a inúmeros chás e
folhas como medicamentos que iam buscar na mata e preparavam, enquanto as
pessoas doentes esperavam pela poção
104
.
Essa é talvez uma das intrigantes memórias que ficaram ainda enterradas e
submersas nas terras de quilombos do Amapá.
B: Deixa eu perguntar uma outra coisa para a senhora. Como é que se fazia
essas coisas/ por exemplo, se o marido ficou doente, vocês levavam para médico,
punha no barco, viajava para tentar curar, ou tinha aquele pessoal que faz remédio.
J: Eu levava ele no médico às vezes. Às vezes, não. Tratava com remédio
do mato.
B: Mas a senhora mesmo?
J: Era. Aquele remédio, (um purgante) que prestava para a gente. Ia ver
aquele remédio bom para a dor, para banho.
B: O que era bom pra dor?
J: Se agarrava aquele anador de planta. Fazia da manjerona um chá. Fazia
da alfazema e alecrim, a sene. A sene é muito boa para dor (...) Ou fazia, comprava
mamona e fazia o chá desse remédio. O capim marim ou erva-cidreira. Fazia aquele
chá, dava aquele purgante para a pessoa. Passava. Era assim que era. Era muito
difícil a gente ir no médico.
104
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre
parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; J: Sra. Joana.
215
J: Mas eu era boa de fazer remédio. Uma pessoa que tivesse doente de
remédio. Se tinha um com dor no dente, (...) “Fulano está passando ruim, com dor
no dente”. Às vezes eu não estava, dava para a Rosa. A minha mãe, quando nós se
entendemos, ela parou quase de trabalhar. Doía muito as cadeiras. Quem
trabalhava era nós, eu e minha irmã solteira e uma sobrinha, que nós morava junto.
Aí, eu chegava, ela dizia: “Ah, minha filha, eu estava te esperando para fazer um
remédio para fulano, que ele está com dor no dente, o dia todo chorando”. Eu ia,
fazia aquela bola, botava no dente dele.
J: Eu fazia, uns eu ainda me lembro. Eu pegava aquela cachopa do algodão,
que estava verde, rapava ela bem rapadinha. Eu ia, tirava a rema do limão, palito de
fósforo. Botava uma pitinhazinha de sal. Aí, eu ia no piano
105
, se ele tinha aquele
dente, não é? Encharcava bem aquilo lá na pasta e colocava no dente.
B: E passava.
J: Passava.
B: Mas quem ensinava isso para a senhora? A senhora tirava/
J: Tirava do meu cérebro mesmo.
B: Ninguém nunca lhe ensinou?
J: Nunca, nunca. Depois, eles me esperavam.
B: Era intuição?
J: Era intuição. É o que eu digo para eles, eu digo: “Hoje, eu o sirvo nem
para fazer remédio, não sei fazer remédio”. Fazia muito remédio para os outros. Ali
na (Pirativa
106
), quando eu conhecia uma pessoa, eles me chamavam para mim
fazer remédio, e hoje não tem quase isso aqui.
Além dessa preparação de remédios com produtos da floresta, os relatos que
ouvimos sempre fazem referência à presença de curandeiros, rezadores e pessoas
que curavam ou faziam poções.
No Bailique, colhemos o depoimento de uma parteira, que conta a história de
um homem enfeitiçado
107
:
105
Forma muito antiga de se referir aos dentes.
106
São Raimundo do Pirativa, comunidade remanescente de quilombo, próxima de Lagoa dos Índios
e Maruanum. Com 175 habitantes, leva o nome do rio que existe no local.
107
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (...): trecho de difícil compreensão; (palavras entre
parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; D: Sra. Deolinda; N: Sr.
Nilson.
216
D: Tinha. Era no tempo dos meus pais, meu pai era pescador. Trabalhava
com pesca. Ele tinha o (Finadeoli), que era um português, morava ali para cima. (...)
Canoa, canoas grandes. Meu pai trabalhava em uma, era o encarregado dela, ele
pescava. E nós/ aí nesse tempo que ele pescava, a gente não tinha precisão de
fazer nada, a gente mesmo comia o que ele colocava para dentro de casa. Minha
mãe não tinha esse trabalho. Quando meu pai foi enfeitiçado, sabe o que é feitiço?
D: Meu pai foi enfeitiçado por causa de uma espingarda dele, o cunhado
enfeitiçou para buscar a espingarda dele. Que ele tinha emprestado para ele, não
devolveu. Aí meu pai foi buscar a espingarda.
B: Ele era um índio, de descendência índia?
D: Não, não. Não era, não. Era porque ele tinha no Amapá, tinha uma mulher
que chamava Brasilina, que era dessas que pegava fogo, ela virava fogo. Perigosa.
Era conhecida dele, amiga dele. Aí ele foi lá.
B: Ela era branca?
D: Não sei. Era uma velhona, acho que de setenta anos, oitenta. Aí ele foi lá e
mandou fazer feitiço no meu pai. Meu pai levou quatro anos (no fundo da rede), e
a mamãe foi passar a trabalhar. Eu era pequena, com os meus nove anos.
N: O que aconteceu com seu pai daí?
D: Ele foi enfeitiçado, ele adoeceu.
N: Ele adoeceu?
D: Adoeceu.
N: Sim, mas o que ele tinha?
D: (...) Era dor, era fraqueza. Era um monte de coisa.
N: Quatro anos ele ficou.
D: Quatro anos ele ficou acamado e minha mãe que nos sustentava, sabe?
D: ele se tratou com um curador que tinha. O pajé, eu sei que tiraram um
bocado de bicho dele. Era lagarto, era centopeia, um bocado de coisa que tiraram.
B: De dentro dele?
D: É, saía do umbigo, saía da boca.
N: E a senhora via isso, ou não?
D: Vi, vi.
N: Quantos anos a senhora tinha?
D: Eu tinha nove anos. Vi, vi, eu vi o bicho. Era um lagarto desse tamanhinho
assim. Ele era todo pintadinho de verde, amarelo, azul.
217
B: Saiu do umbigo?
D: Não, ele porgou ele. (...) ele ficou bom, ele ficou bom, mas o ficou
mais como ele era. Ele não podia trabalhar, não trabalhava muito, assim.
A menção ao pajé é rápida e não se alonga no relato de nossa informante.
Assim, poderíamos dizer que essa é uma memória subterrânea, como coloca Pollak
(1989), onde longos períodos de forçoso esquecimento do passado submetem a
memória e suas manifestações a um percurso descendente, subterrâneo, de difícil
aceitação, manifestação a respeito e, principalmente, aquiescência dos fatos que
ficaram submetidos à obscuridade.
Essa é outra memória que não se esconde por inteiro, mas toma muito
cuidado na escolha das palavras para se referir ao conhecimento de plantas e
preparação de remédios. O fato de todos, ou muitos, saberem fazer remédios, curar
males comuns, rezar sobre feridas, enfim, a aquisição de conhecimento na vida
vivida não aparece naturalmente.
É, na verdade, o receio de ser classificado(a) como feiticeiro(a),
macumbeiro(a), pajé, entre outros nomes, que inibiu os relatos de vida e
religiosidade no sentido de revelar as atuações nessa área. Isso sem contar o
estigma do negro(a) macumbeiro(a), ligado diretamente ao subterrâneo do
pertencimento afro nas questões religiosas. Diante disso, fica, aqui, a indagação: se
ninguém conheceu, se nunca se viu, por canto algum, feiticeiro(a), curandeiro(a) ou
rezador(a), por que temeriam ser nomeados como tal?
Deve-se destacar, também, que os informantes, nunca, em nenhum
momento, se referem à presença de ritos africanos ou semelhantes. A afirmação é
sempre negativa e enfática do não.
Nesse sentido, a presença dos negros no Bailique, ignorada e reafirmada
como inexistente, parece ser parte dessa memória subterrânea das ilhas, onde
também se nega a presença de índios, admitindo-se feitiçarias e curas por pajés ou
xamãs.
218
Subterrânea, ainda, é a memória dos ritos que mal foram revelados sobre as
preparações para os encontros de Marabaixo. Seguem trechos do relato do padre
da região
108
:
Pe: Aqui no nosso lado, eu até tentei, mas não entendo, a questão do
sincretismo religioso era muito forte até o início do século passado. Em dezesseis,
mil novecentos e dezesseis, chegou um padre aqui, Padre Júlio, parece que suíço.
Havia toda uma sintonia entre a religiosidade popular e a religião oficial, no caso era
o catolicismo. Inclusive como tem hoje na Bahia a lavagem do Bonfim, aquela coisa
toda. Aqui também tinha uma coisa similar e eles começavam a celebração do ciclo
do Marabaixo dentro da catedral, que é o prédio mais antigo daqui da cidade. Aí,
esse padre chegou e disse que aquilo era coisa do diabo, que era/ não podia
acontecer e eles tinham que sair, deixar essas poluições, digamos assim, que existia
dentro. Eles tinham que viver um catolicismo autêntico, europeu mesmo, naquele
sentido, sem sincretismo, sem nada. E proibiu os negros de fazerem aqueles rituais
que começavam dentro da igreja.
B: E (...) dos rituais?
Pe: Eram os mesmos que são feitos hoje, mas que são feitos hoje,
geralmente, na casa do festeiro. Aquela cerimônia que hoje está reservada/ aqui,
cada comunidade tem o seu centro de convivência, e as cerimônias, elas se dão
nesses dois aspectos: uma parte na igreja. Cada comunidade dessa, trinta e duas
parece, não sei, cada comunidade tem a sua capelinha. Tem os padroeiros, as
comunidades que têm seus padroeiros. A festa acontece dentro da igreja, uma parte
no centro, e tem as famílias também que fazem várias festas. E os padres, que
aqui nós somos uma igreja missionária.
B: Qual é a congregação de vocês?
Pe: Aqui tem os P.I.M.E., pessoal do P.I.M.E. São todos italianos. P.I.M.E.
Pontifício Instituto de Missões Estrangeiras, todos italianos. Então, s somos aqui
uns trinta e cinco padres. Brasileiro mesmo, nós somos seis. seis. E entra
aquela questão que a senhora colocava. Entre nós seis, quer dizer, uns são, vamos
usar esse termo, o pardos, mas tem uns que se dizem índios, mas ele o tem,
108
Legenda para os trechos transcritos a seguir: / barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de
difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; Pe: Padre Paulo.
219
assim, identificação. Quer dizer, o único que tem essa identificação mesmo com a
questão/ que assume mesmo a identidade, sou eu.
B: É mesmo? Os outros são todos caboclos?
Pe: São todos caboclos. Aquilo que a senhora colocava, todos caboclos, sem
identidade. Sem identidade.
B: Porque me chamou a atenção, porque eu pensei até que pudessem ser
dominicanos, porque os dominicanos têm essa/ eu vou usar a palavra, talvez não
seja adequada, mas essa rebeldia, essa visão além do altar, além da liturgia.
Pe: nasce de uma questão que eles chamam hoje muito de inculturação.
Eles procuram entrar na realidade, essa questão toda que eles falam muito hoje, a
questão da cultura, valorizar. Aquilo que os portugueses, quando chegaram aqui,
não fizeram. Muitas congregações, hoje até missionários protestantes, católicos,
fizeram dentro das aldeias, estão fazendo, destruir, acabar com tudo.
Toda a argumentação do padre, acima transcrita, esclarece a profunda lacuna
que a memória subterrânea lançou aos mestiços de índios sem identidade e sem
memória, aos caboclos que não são brancos nem negros e que não têm nada a
acrescentar. Isso nos parece ser outro espaço de possíveis investigações
antropológicas ligadas à memória da região norte do país.
No relato de outra informante, também notamos a negação dessa memória
subterrânea
109
:
B: Não tinha dança de Candomblé nem nada.
J: Não.
B: Nem cultuava orixá?
J: Nada.
B: Só cultua mesmo os santos católicos.
J: É, nós era. Agora nós viemos ver essa dança deles aqui (no grupo) de
cultura negra.
B: Vocês não conheciam?
J: Não.
109
Legenda para os trechos transcritos a seguir: (palavras entre parênteses): dúvida em trecho de
difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; J: Sra. Joana.
220
B: Sua mãe também não, nem notícia da sua vó, nada. Muito longe. Ninguém
nem sabia.
J: Notícia disso, não.
B: Notícia disso de jeito nenhum?
J: De jeito nenhum. Nunca vimos, nós viemos ver aqui.
Essa informante, da comunidade do Maruanum, enfatiza o completo
desconhecimento da cultura afro no quilombo remanescente. Se preciso algum
tempo para que essa memória ancestral e subterrânea possa voltar à vida. Ou
ainda, para que algum dos integrantes do grupo, como sugere Halbwachs (2004),
atinja essa recriação através de uma lembrança mais profunda, se colocando no
lugar do outro e se permitindo entender uma ou mais correntes de pensamento
coletivo em que se insira. Talvez exista uma memória subterrânea, que não encontra
contexto favorável para surgir.
A negação do conhecimento de ritos afro ou culturas religiosas deixadas
pelos escravos em suas famílias parece ser uma memória estabilizada de forma
subterrânea nos grupos entrevistados. Uma razão a mais para isso seria o fato de
que tais comunidades são rurais, e sabemos que os terreiros de Candomblé e as
manifestações africanas foram mais difundidas no meio urbano.
As razões parecem estar localizadas no medo de serem capturados e terem
mais essa falta contra eles, que, por muitas décadas, os adeptos eram
perseguidos, presos e torturados. Os rituais cristãos davam aos fugitivos a
necessária proteção. Cultuar um santo católico pode ter sido uma forma de se
aproximar mais dos colonizadores, de sua sociedade, de sua cultura. É recorrente,
então, a negação do conhecimento dos ritos africanos e a informação de que
vieram a conhecer a partir do Encontro de Tambores realizado na Capital.
Explicam-se tais comportamentos pelo fato de que os acontecimentos que se
fundem em memória não são e nunca serão de todos os que viveram os fatos.
resistências, influências, que obedecemos ou não. E quando todos esses fatores se
cruzam em um determinado ponto de encontro coletivo, acabam por produzir
estados de percepção ainda mais complexos, onde se busca ver o fato de uma
maneira única, capaz de incluir a todos.
O Encontro deslocado, a dança quase ritual e comunitária transformada em
pública, a ausência da proximidade e camaradagem, e a quebra dos ritos,
221
transformaram o mesmo acontecimento em muitos outros, cujas lembranças se
produzirão depois, em outras tantas memórias ainda mais complexas e talvez mais
confusas. No entanto, elas se apoiam e permanecem para serem acessadas,
tomando corpo e se completando.
Hoje, os ritos religiosos quebrados junto aos costumes das comunidades,
acabaram por abrir um espaço muito mais produtivo para os habitantes negros que,
subterraneamente, desconhecem a cultura africana. A troca do rural com o urbano
mais pleno de conhecimento resultará em mudanças e acessos. O tempo, na
memória, como nas marés, se esvazia e volta de tempo em tempo, pouco a pouco,
trazendo partes e outras partes, que o recompõem na memória.
Segundo Halbwachs (2004, p. 82):
Uma vez que nos indicam como precisão o caminho que teremos que
seguir, esses traços se evidenciam, os ligamos um ao outro, aprofundam-se
e se juntam por si mesmos. Então eles existem, porém eram mais
marcantes na memória dos outros do que em nós mesmos. Sem dúvida,
reconstruímos, mas essa reconstrução se opera segundo linhas
demarcadas e delineadas por nossas outras lembranças ou pelas
lembranças dos outros. [...] a memória se enriquece de bens alheios que,
desde que se tenham enraizado e encontrado seu lugar, não se distinguem
mais das outras lembranças.
“O tempo”, “aquele tempo”, “no antes”, são essas as formas de se referir ao
passado junto aos nossos informantes. E, no intuito de preservar e difundir “aquele
tempo”, encontramos uma informante remanescente de quilombos, que retratou o
que sabe, o que ouviu e o que viveu daquelas tradições, em um livro. Seguem
trechos de seu relato
110
:
B: Como é que deu essa ideia de fazer o livro?
E: Eu/ foi quando/ um dia a gente conversando, não é? Papai conversando,
ele me contando. Uma tarde, isso foi uma tarde. Ele falou um monte de coisa e
depois ele olhou, assim: “Só que a gente morre e leva tudo”. Aí, aquilo deu um
estalo: “Poxa, é tanta coisa bonita, ele contando”. que eu comecei a escrever.
eu trabalhava, eu voltava dia de bado, que eu tinha mais tempo. eu comecei a
110
Legenda para os trechos transcritos a seguir: [entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários; /
barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de difícil compreensão; B: Berenice Pompilio; E: Sra.
Esmeraldina dos Santos; P: Sr. Pedro dos Santos; F: Sra. Francisca dos Santos (Dª. Chiquinha do
Curiaú).
222
escrever o livro. Saiu. Um pouquinho, mas as pessoas gostam bastante. Inclusive
foram alguns para São Paulo, saiu alguns lá em São Paulo. Eu levei bastante, queria
levar.
E: Uma manhã, quando nós acordamos, ouvimos até uma piada de uns
rapazes. A gente estava lá em cima, na cobertura, fazendo assim. Aí eles passaram,
a gente estava sentada e o rapaz do hotel, Davi, ficava na porta, eu me lembro muito
bem. Ele era moreninho, parece/ ele disse assim: “Hoje o hotel está cheio de índio”.
Poxa, eu fiquei triste, sabe? eu disse assim/ depois eu disse para o Davi: “É,
Davi”/só que ele deve ser também índio, porque o nosso Brasil, ele é mais índio do
que holandês, americano. eu fiquei triste com a diferença que ele fez, com a
discriminação que ele fez na hora. tudo isso eu estou contando agora (...) que a
discriminação hoje ainda existe. Existe, infelizmente. A gente está no ponto de
chegar nessa consciência de todo mundo sentar (...) porque eu tenho uma filha, a
minha segunda filha é neta de/ como é? Não, não. A Samanta. De judia. Então, pelo
amor de Deus, eu acho que não tem nada a ver.
Sobre essa história narrada por nossa informante, cabe ressaltar que “[...] os
jovens arrastam consigo uma parte dos adultos mais velhos, que apressam o passo
como se temessem ‘perder uma boa ocasião’ [...]” (HALBWACHS, 2004, p. 87). Ela
viveu a ocasião em plena São Paulo. Longínqua e próxima, foi capaz de criar o
discurso necessário para fazer ver parte da história de cada brasileiro como o “Davi,
do hotel”, uma vez que cada um é membro de vários grupos e de um grupo ao
mesmo tempo.
Essa nossa informante relaciona sucessivas memórias e coloca em seus
livros (ela tem um publicado e um no prelo), onde nada se subordina a nada, porque,
em se falando de remanescentes de quilombos, qualquer fato é tão interessante
quanto o outro e merece ser enfatizado.
Seguem mais relatos:
P: A gente chegou na Alemanha, a gente estava bem informado. Na
Alemanha, tinha cartazes. Estava sendo o encontro mundial na Alemanha, estava
vindo índios e negros. estava uma situação que para a gente se dar bem. A
gente não ouve, não, e teve nenhum transtorno de nada, entendeu? Foi uma coisa
que, quando começou a nossa apresentação no Centro Cultural alemão, foi uma
223
coisa inédita. Quando começou com os tambores, as pessoas saíram para dançar.
Inclusive a Primeira Imperatriz, ela saiu, a gente não conhecia, o Irã me chamou:
“Pedro, aquela mulher que está de vermelho é embaixatriz alemã. Pode tirar a
mulher para dançar”. Não teve problema. Fui tirar, ela saiu para o salão e todo
mundo acompanhou, está entendendo?
B: Em Marabaixo?
P: Em Marabaixo e Batuque. E quando terminou o show, ela pegou, chamou
todo mundo, ela disse para o Tiago, que foi quem levou a gente. “Tiago, pode fazer
de tudo por esse povo, que é muito bom o trabalho deles. Vieram aqui, fizeram uma
belíssima apresentação. Eu adorei demais. muitos parabéns ao governador João
Pedro Capiberibe”. Assim ela falou. Foi muito legal.
B: A senhora foi para São Paulo. O que a senhora achou de São Paulo?
F: Gostei muito.
B: Gostou? Daquela loucura de carro. E a senhora andou de metrô?
F: Andei. Andamos no viaduto, entramos, passava lá (...)
P: Na Barra Funda. Pegava na Barra Funda.
F: Fomos fazer compra no Brás.
F: Agora, o que escassearam para nós foi isso aqui [levanta o copo com
cerveja].
B: Escassearam cerveja?
F: Foi (...) mas não tinha hora de dar cerveja. Agora, quando nós fomos para
Brasília, o prefeito que deu levou s, abasteceu o ônibus de cerveja, refrigerante,
tudo.
B: Deu para matar a sede?
E: De Belém-Brasília.
B: Vocês foram Belém-Brasília?
E: Belém-Brasília de ônibus.
F: Eu gostei muito.
E: Foi linda a viagem.
B: Gostou? Foi gostoso. Gostou da praia? Tomou banho na praia?
F: Não chegamos a ir na praia. Fomos na praia no Maranhão. No Maranhão,
a gente foi.
224
Exemplares, esses representantes do Curiaú têm, hoje, vídeos gravados, dão
entrevistas e escrevem livros que são publicados, ainda que domesticamente. São,
em primeira instância, os que fazem as lembranças subsistirem, buscando espaço
de divulgação e fixando, de alguma forma, a memória de seu solo. Aglutinar
períodos de informações, que se vão muito distantes no passado, é a forma de
assegurar que permaneçam por muito tempo perto de si e dos seus, convertendo-os
em lembranças mais presentes e possíveis de serem renovadas.
O privilégio de ouvir tais depoimentos corrobora a absoluta necessidade de se
fazer pesquisas antropológicas junto aos quilombos remanescentes do Amapá e do
resto do Brasil, por acreditarmos que tal situação sociocultural e histórica pode, sem
dúvida, ajudar-nos no resgate e recuperação adequados da parte africana que
constitui nosso país.
Por fim, por todo o exposto nessa categoria de análise, parece que podemos
concluir que a religiosidade africana foi enterrada pela religiosidade cristã.
Responsável pela cega que se desenvolveu em séculos de opressão e violência
contra qualquer menção de desvio do caminho indicado pela Santa Sé, colonizados
e descendentes, em terras distantes como o Amapá, não poderiam deixar de
sucumbir ao apagamento deliberado de suas crenças.
A memória subterrânea dos ritos afro, hoje, no entanto, está emergindo
através dos movimentos sociais de autorização e entronização do negro na
sociedade brasileira, constatados, no Amapá. O Padre, que celebrou a Missa dos
Quilombos quando estivemos no local, fez uma reflexão apurada sobre essas bases
subterrâneas do Encontro de Tambores, o que justifica a inserção, neste momento
da análise do corpus, de seu depoimento ligado ao binômio Marabaixo-fé e ao seu
pertencimento afro.
A entrevista reproduzida a seguir nos revela a figura de um homem articulado,
com conhecimentos e sabedoria acima da média, e preparado para enfrentar as
dificuldades decorrentes do sincretismo religioso grandemente difundido no país, e
especialmente dividido no Amapá por uma terceira via mística, que seria a da Pena
e Maracá. Esta última é o xamãnismo, diferente dos ritos africanos, mas afeito aos
cultos à natureza e à proximidade com elementais como água, fogo, pedras e
sessões de defumações que duram dias e dias no meio da floresta.
225
O Padre coloca a religião no ponto de encontro com a natureza do povo do
Amapá, critica a perda de identidade, e tenta, em seu trabalho evangelizador,
aproximar as diferentes correntes religiosas
111
:
Pe: É, porque depois do Padre lio, em mil novecentos e quarenta e oito,
chegaram aqui esses padres italianos do P.I.M.E. O Getúlio Vargas criou o território.
Então, aqui no Macapá, quando foi criado o território, era só mesmo ali, o centro e os
negros. Eles moravam ali, onde é a residência do governador. Tudo era ali no
centro, girava em torno do centro. O rio vinha até quase que/ aquela parte na frente
da cidade, tudo era rio. Foi tudo aterrado.
B: Ali onde tem aquela pracinha? Aqueles coqueirinhos, aquela coisa?
Pe: Aquela praça, Banco do Brasil.
B: Ali foi aterrado?
Pe: Tudo foi aterrado. A Fortaleza ficava dentro do rio. O Rio Amazonas vinha
até aqui quase com o Cândido Mendes.
B: Com essas mesmas marés?
Pe: Tudo, tudo, tudo. Entendeu? Então, os negros, ali onde é a residência do
governador, na frente da igreja, tudo era negro. Tudo ali era casa de negro. Palafitas
de barro, como existe no Nordeste. Aí, quando virou território, o Janarí chegou aqui
e tirou todos os negros que estavam ali em volta da catedral, da igrejinha, jogou
pro Laguinho. Era um lago que tinha.
B: Que era distante.
Pe: Era distante.
B: Hoje já é uma coisa um pouco mais/
Pe: Está dentro. Jogou para e depois foram para a favela. A favela mudou
depois, agora não é mais favela, mas tinha a favela e era também para onde os
negros foram. E aí, a cidade foi crescendo, crescendo, crescendo.
B: Expulsando sempre os negros para os lugares mais distantes. E o Curiaú,
nessa época o senhor nem cuidava da situação, Mazagão?
Pe: Não, não, porque eu tenho quarenta e dois anos. Não tenho assim, não
tenho muita/
111
Legenda para os trechos transcritos a seguir: / barra: corte na estrutura da frase; (...): trecho de
difícil compreensão; (palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão; B:
Berenice Pompilio; Pe: Padre Paulo.
226
B: Então o senhor nasceu aqui, na capital, no centro.
Pe: Nasci na capital.
A crítica foi esclarecedora como ponte dos tempos em que a fortaleza
provocava fugas de sua construção e que o Amapá era um território governado por
apadrinhados do poder do estado.
Na verdade, não se veem favelas em Macapá. Há bairros muito simples, onde
a concentração de pequenas casas faz lembrar as construções coloniais de
Mazagão Velho. Os Campos do Laguinho, originalmente um quilombo, foi por
tempos abandonado, por ser lugar de negros, onde ninguém queria morar. Mas, com
a expulsão desses mesmos negros do centro, a volta para o espaço remanescente
acabou por criar uma noção de pertencimento indo na direção da memória do
espaço.
Jean Duvignaud, no prefácio da obra de Halbwachs (2004, p. 15), diz que “a
memória não pode ser o alicerce da consciência, uma vez que ela é tão somente
uma de suas direções, uma perspectiva possível que racionaliza o espírito”. A volta
ao local ancestral é uma dessas direções em busca de uma perspectiva de
identidade.
Pe: Eu falei por alto na missa. Lá para o Sul, tem muitas colônias italianas,
japonesas, não sei o quê, portuguesa, e eles mantêm/ o Amapá, é uma questão sui
generis. Uma questão que foge daquilo que o Brasil lá/ eu acho que nós somos uma
ilha, entendeu? Nós, sempre eu penso assim, sem ter estudado muito, acho que nós
éramos o povo mais aculturado, puro. Tirando os índios.
B: Seria o povo de cultura mais tradicional, sem muita poluição.
Pe: Sem muita poluição. Pela distância, o isolamento, entendeu?
Pe: A minha base é Macapá. Macapá hoje/ eu costumo sempre dizer que
Macapá começou a perder essa característica a partir de mil novecentos e setenta e
quatro, quando foi gerada a primeira imagem da Rede Globo aqui em Macapá,
entendeu? Então, naquela época, eu era molequinho de treze, quatorze anos, mas
eu fazia/ então, eu vejo que Macapá, culturalmente, é dividido em duas partes,
antes e depois da televisão.
B: Eu já ouvi isso de uma pessoa em uma comunidade.
227
Pe: Então, a dominação cultural foi muito devastadora, entendeu? E a
questão que, infelizmente, aqui ninguém está estudando, na proporção em número
de habitantes, Macapá, no Brasil, dizem que é a maior em nível de suicídio de
jovens. Quase que toda semana são/
B: Que dado estranho esse.
Pe: Quase toda semana morrem três, duas pessoas que se matam aqui.
B: Falta de perspectiva de trabalho.
Pe: Perspectiva e falta, eu acho, dessa identidade.
B: Eles não estão mais identificados com o que era o Amapá.
Pe: Com nada, com nada.
B: E não podem se identificar com aquilo que veem na televisão.
Pe: Com o que na televisão. Justamente. Mais ou menos, eu acho que é
um fenômeno muito ligado ao que está acontecendo a uma aldeia, parece, do Mato
Grosso. A perda da identidade/não sei se a senhora acompanhou, acho que é no
Mato Grosso. O pessoal estava querendo estudar o porquê do suicídio dentro de
uma aldeia no Mato Grosso. Estava virando epidemia. Então, aqui em Macapá
também já há alguns estudos, algumas preocupações, mas muito superficial.
A perda da memória, ou ainda, de certa identidade está ligada ao que vive o
homem em seu espaço. O Amapá tem vivido de ondas de progresso artificiais, que
não beneficiaram a todos, além de terem prejudicado, em muito, o ambiente da
floresta, ganha pão dos menos favorecidos locais.
A memória está ligada a fatores sociais, e a consciência desses fatos é
determinante para que o homem preze suas lembranças, suas histórias de vida
vivida.
Pe: Eu vi aqui um menino, quer dizer, de dez anos, tentou suicídio. Corda. Aí,
ele veio aqui comigo, o pai veio aqui comigo, porque eles pensavam que era
espírito, entendeu? Conversando com ele, conversando com a criança, “Ele viu na
televisão”. Ele viu porque apareceu um suicídio, alguém se matou, e a televisão, o
canal foi e filmou o cara pendurado. filmou, o moleque teve um
probleminha lá. Entendeu? Então, acho que a questão aqui da identidade cultural é
uma questão muito difícil, que precisa ser trabalhada. Eu acho que a Igreja, ela
contribuiu muito nesse sentido de ajudar a destruir, perseguir a cultura popular. Os
228
padres estrangeiros não conseguiram entender, não conseguiram mergulhar no
mundo mítico do caboclo, entendeu? E contribuiu para ele perder essa autoestima,
essa valorização/ aquilo que eu falava. Lá no Sul, quando o pessoal da Europa, os
portugueses, descendentes, eles trabalham a questão da valorização, do resgate,
de preservar. A memória é cultura, não é?
B: Aqui, não.
Pe: Aqui é bagunça, é folclore.
B: É folclore, é macumba.
Pe: É. Entendeu? E, até hoje, a Igreja, os padres perseguem muito essa
questão do sincretismo.
A posição aberta para o sincretismo relatada pelo Padre não é capaz de
anular o preconceito na direção dos ritos africanos, tendo em vista ser ele mesmo
um negro do Amapá.
B: em São Paulo, eu fui em uma casa de santo, Francisco de Xapanã
112
,
que é de Belém, e ele faz reuniões com todas as religiões e chama os padres e os
capuchinhos e os dominicanos frequentam a casa dele. Vão aos (...), o a festas,
fazem ter essa integração com ele. Para mim, foi uma coisa completamente nova. E
aí, quando eu cheguei aqui e vi a sua fala, foi muito discutida a questão da missa e
da liturgia. Se era uma missa ou era uma liturgia. Então, para quem não conhece
muito missa, ficou achando que aquilo era uma missa. E quem sabe a liturgia, sabe
que não era uma missa.
Pe: Uma paraliturgia, se chama.
Pe: A questão é que aqui, na nossa cabeça, na nossa cultura ocidental, é
muito dualista, não é?
B: Tem bem e mal.
Pe: Bem e mal, ou é isso ou é aquilo. Homem, mulher, céu e terra, luz e
escuro, essa coisa toda aí, sagrado, profano. Então, para nós aqui, a questão de
rituais, da dança, do ambiente que a gente vive ainda é encarado muito como uma
coisa suja, uma coisa podre, uma coisa do mundo, uma coisa do diabo. As próprias
pessoas, elas não compreendem. Ao mesmo tempo em que elas estão ali, elas não
112
Xapanã é designação de Omolú, o deus da doença, no Candomblé Jeje Mina e Jeje Fon Mahin.
229
estão. Uma coisa que me chamou a atenção esse ano foi o comportamento das
pessoas ali, do público que foi participar da celebração. Foi totalmente diferente do
ano passado.
B: Para melhor ou para pior?
Pe: Para melhor, no sentido que eu percebi que eles percebem que o espaço
sagrado, ele se torna sagrado não quando está presente a eucaristia, que é o ponto
central da Igreja Católica, mas quando está os santos deles. Entendeu?
O espaço acolheu os velhos santos das comunidades e o encontro litúrgico
testemunhou cada uma daquelas crenças e suas devoções. Apoiando-se em suas
crenças, mas também pela evocação dos sacerdotes, a se adaptou e reconstituiu
um quadro interessante que se abriu a uma interpretação semiótica e, talvez, muito
pessoal da pesquisadora.
Estávamos, ali, diante de uma abertura para os urbanos, os brancos, que os
desconsideram por serem assumidamente negros, habitantes de quilombos
remanescentes. Os santos os aproximam da cultura branca, o cuidado com os
santos os classificam como negros de bem. A aceitação dos ritmos dos tambores
africanos parece vir de muito longe e evoca, talvez, um hábito perdido, uma semente
em um canto da alma africana ancestral. Recordações preciosamente conservadas.
Pe: E essa questão da celebração, me disseram que rolou essa questão aí,
mas que eu vejo assim: que aqui em Macapá essa questão foi trabalhada
sempre, a questão de encarar a questão do negro. Ideologia. Ideologizar a questão
do preconceito que o negro tem contra branco e o sei o que mais, aquela questão
toda. Cria guetos. Os brancos não podem participar, isso daqui é nosso ou não
sei que. Ou até mesmo o negro discriminar outro negro de outro bairro, de outro
lugar. Então, eu acho que essa questão rolou mais no meio desse pessoal
intelectual. Porque, na verdade, se tivessem me chamado para conversar sobre
essa questão, eu teria colocado isso muito claro. Por exemplo, a questão da bebida,
a questão da bebida no Candomblé, na Umbanda, quem bebe não é o cavalo, não é
a pessoa que/ é o espírito que está bebendo.
B: E é um mistério, porque a pessoa volta a si sem estar alcoolizada.
Pe: Então, e é proibido. Se um bêbado, uma pessoa bêbada chegar e for
bagunçar aquele ritual, aquele cerimonial, eles, com toda delicadeza, eles afastam
230
porque é proibido beber, os humanos. quem pode beber, quem pode fumar é
quem está incorporado. Então, a questão da/ a meu ver, foi a questão de o ano
passado, os outros anos tinham pessoas vendendo bebida, cachaça (...) e tudo mais
e o pessoal, justamente por não ter essa visão do sagrado, não ter essa/ então, não
entrava no clima de comunhão com aquilo que você estava celebrando e
atrapalhava um pouquinho. Em vez de você educar, o negócio virava bagunça. A
meu ver, a questão era essa.
B: E parece que a questão foi resolvida, porque até a bebida que estava
sendo vendida, estava sendo tomada com moderação, nada de complicado.
Pe: Porque, antigamente, nas celebrações, rituais de Batuque, Marabaixo,
eles bebiam só a gengibirra, que era a bebida sagrada.
B: Que é (gengibre, água) cachaça.
Pe: Mas era sagrada.
B: Mesmo porque essas bebidas, quando consumidas por grupos, por
exemplo, no Candomblé ou na Umbanda, ou os índios quando vão ao Santo Daime,
quando consomem essas coisas/
Pe: Santo Daime lá no Sul, chimarrão.
B: É para entrar em transe, entrar em alfa.
Pe: E partilhar. É o mesmo sentido do chimarrão. Um vai tomando, vai
tomando, vai tomando. A reunião.
B: Nas casas de Candomblé, você toma esse gengibre, em algumas casas
em São Paulo, em um movimento de comunhão, exatamente. Passa-se a bebida
para todos tomarem. Acho que ficou interessante mesmo.
Pe: Então, a meu ver, a questão da celebração, na minha cabeça, tinha duas
questões. A questão da falta de sintonia com aquilo que você estava celebrando, e
depois uma outra questão é realmente dentro da cidade, dentro dos grupos da
Igreja, dentro da renovação. Pessoal é contra a celebração dentro do espaço
cultural, porque logo depois tem a casa dos orixás, entendeu? o pessoal, Pai
Salvino (...) aquelas coisas todas, então até o ano retrasado, na mesma noite, tinha
a celebração da eucaristia, missa dos quilombos e, logo depois, tinha o encontro das
religiões afro. Aí, vinha o Candomblé, vinha Umbanda, vinham todos os guerreiros,
tal, tal, tal e, como era logo depois, eles estavam na celebração, que a maioria é
católico, entendeu? Então vinham, recebiam a comunhão. Eu digo: “Bem, mas se eu
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estou aqui, se é um encontro, não tem sentido, na hora da benção final, eu dar a
bênção sozinho”, porque aí seria contra todos os paradigmas da/
B: Da própria religião.
Pe: E do próprio encontro. O fato de eu estar em cima, com a religião
tradicional predominante no Brasil, e dar a benção final lá, eu chamava todos os
sacerdotes das outras/ mas um site joga para todo o Brasil. Eles fizeram/ eles fazem
um tape e jogam para o Brasil e o mundo. o bispo recebia carta de rios lugares
do Brasil que a Igreja estava adorando o diabo. “Como é que pode misturar a
celebração?”.
A busca do sincretismo como dado de memória do povo local está na base
dessa ideia de celebração do Padre. A colocação de Halbwachs (2004, p. 36) é
esclarecedora desse sentimento que tomou os grupos na liturgia:
Algumas vezes, as circunstâncias são tais que essas pessoas giram de
algum modo num mesmo círculo e são reconduzidas de um grupo para
outro, como nessas velhas figuras de dança onde mudando sempre de
dançarino, reencontramos o mesmo, porém, com intervalos bem próximos.
Então não as perdemos senão para reencontrá-las e com a mesma
faculdade de esquecimento se exerce alternativamente em detrimento e em
vantagem de cada um dos grupos que elas atravessam, podemos dizer que
as tornamos a achar inteiramente.
Sabemos que o contrário também poderia ocorrer, e alguns daqueles
dançarinos jamais retomariam os ritmos afro de seus antepassados, mas detalhes
foram acrescentados ao canto da semente. Isso é memória também.
B: Ainda hoje, Padre Paulo, isso acontece?
Pe: Até o ano passado, vinha carta de todo o Brasil. Pessoal dizendo que a
gente estava cultuando Jesus Cristo, Oxalá, Oxossi, Tupã, não sei o quê, e que era
inadmissível um bispo católico/ onde é que estava o bispo que não via o exagero.
Aqui em Macapá saiu/ saiu. Eu não li, esses dias que uma amiga minha me disse. O
ano passado, logo depois, eu li o artigo que alguém escreveu no jornal aqui de
Macapá.
B: E esse ano, saiu alguma coisa?
Pe: Eu não vi, eu não vi.
B: E dá para lutar contra isso?
232
Pe: Lutar contra isso. Lutar contra isso. Eu acho que tem várias questões
que me entristece. Porque, primeiro, eu acho que a questão do negro, antes de ser
questão política, questão cultural, é questão de identidade. Ou você é, ou você não
é. Ninguém um dia vai dormir e acorda: “Ah, agora eu tenho que lutar”. É questão de
consciência, não é nem questão de cor, é questão de sangue. É questão de sangue.
A pessoa pode ter a sua pele e ser negro. Ser negro. É uma questão mesmo de/ eu
acho que ser negro é você sentir saudade da África, entendeu? Eu acho que é sentir
saudade da África. E sentir saudade não é uma coisa que ensinam para a gente. A
gente nasce com isso, entendeu? A gente nasce. Agora, o que pode acontecer
é a cultura dominante, o preconceito, a discriminação. Matar isso dentro de você.
Dizem que isso é coisa de doido, é doença, coisa do diabo, coisa que você tem que
esquecer, entendeu?
B: Você tem paroquianos que sejam do Candomblé ou da Umbanda?
Pe: O Pai Salvino, o terreiro dele faz parte aqui da paróquia. Fica aqui dentro
da paróquia. Tem aqui o/ tem mãe de santo. O pessoal fica escandalizado porque
ela recebe a comunhão. Ela recebe a comunhão.
B: Por que não receberia?
Pe: Porque acham que a mentalidade (...) do Brasil é que esse pessoal está
adorando o diabo e não pode. Não pode misturar.
B: Então, não teria muito como lutar contra. Mas seguir fazendo, continuar
fazendo sempre um movimento, uma fala importante como a sua. Eu gravei, eu
tenho a sua fala gravada.
Pe: Então, eu acho que a grande questão para a gente trabalhar essa
questão do negro, é uma questão que está aí, a maioria de nós é negro ou é índio e
negro e índio. É a escola trabalhar essa questão. Nós não temos professores
capacitados para isso. As igrejas todas, a visão é uma visão europeia de destruir
esse sentimento dentro das pessoas. O governo poderia ser parceiro dentro desse
projeto, ele manipula, ele usa essa estrutura, essa organização, em benefício
próprio, e quem tem uma consciência mais ou menos/ tem os vícios, uma
consciência ideológica partidária.
B: Aí é mais difícil ainda.
Pe: Uma consciência equivocada e, às vezes, até muitos de nós usa o
movimento para se promover. Entra a questão do complexo de inferioridade que é
real em todo ser humano, independente de/
233
B: Sem dúvida. Você se sente inferiorizado por uma coisa ou por outra. Às
vezes, não pela cor, mas por outros motivos.
Pe: Mas muitos negros, devido a toda essa carga de rejeição que o sistema
colocou na nossa cabeça, o cara realmente trabalha a questão com raiva, com
rancor.
B: Ou, então, com muita tristeza.
Pe: Muita tristeza.
Pe: Mas, infelizmente, a Igreja é totalmente/ contra/ esse projeto de resgatar,
de trabalhar, ela quer implantar realmente o padrão europeu.
B: Quer manter o padrão europeu.
Pe: Quer manter o padrão europeu, descaracterizando e negando a
religiosidade popular. Tenta matar a religiosidade popular.
B: Como é que o Padre Paulo fica nessa situação?
Pe: Olha, é difícil você manter uma identidade dentro dessa realidade.
Primeiro que, antes de ser padre, eu sou gente e não posso negar minha origem. Eu
sou negro, mas todo o meu passado, minha mãe era negra, minha avó nasceu
depois do Ventre Livre. Meus bisavós eram escravos. Minha avó já nasceu livre, mas
com certeza viveu, conheceu o regime escravista, dominado. Então, eu ainda peguei
ainda/ bebi um pouquinho, apesar da idade. Porque a escravidão, aqui na
Amazônia, veio até mil novecentos e quarenta e tatatá.
B: Até o final da guerra.
Pe: É. Tem um sentido, assim, da dominação sobre os negros.
B: Bom, até há pouco tempo, em Jarí, você tinha trabalho escravo.
Pe: Então, a minha posição de dentro da Igreja é de muito conflito, muito
conflito. Porque eu não posso negar a minha essência e eu acho que a pessoa que
tenta negar essa realidade, ela se violenta. Ela se violenta e vai viver uma outra
realidade que não é a realidade dela.
B: Mas o senhor não abandonaria o sacerdócio?
Pe: Não, não, não. Até porque eu acho que nós temos que tratar a questão do
negro em uma visão espiritual. Porque eu acho que, não sei se eu estou errado, mas
não existe um povo mais espiritual do que o negro. O negro, ele tem uma sintonia
com a natureza. Muito mais abrangente do que a do próprio índio, porque o índio é
restrito à natureza, à floresta, ao rio.
234
B: Se você tira ele dali, ele não consegue sobreviver. Com as vivências dele,
não sobrevive.
Pe: Os deuses do negro, a visão cosmológica do negro, ela é muito mais
infinita, muito mais abrangente.
B: E abrangeu inclusive a religião católica.
Pe: Eles conseguiram.
B: Eles ultrapassaram, eles deram um passo de qualidade nisso tudo.
Pe: Então, eu acho que se você quiser reunir, trabalhar essa questão do
resgate da saudade. Porque saudade não tem nada a ver com tristeza, com dor.
Acho que você pode manifestar sua saudade com alegria, com festa, entendeu?
Como eu costumo sempre dizer, brincando aqui com o pessoal: “Olha, pessoal, às
vezes eu tenho a impressão que essa missa que nós fazemos aqui é mais triste do
que uma celebração de velório”. Porque você vê, por exemplo, os negros da
Guiana. O velório deles é festa. Muita comida, batuque, pá, pá, pá. Eles vão batendo
tambor para o cemitério, colocam a roupa vermelha e vão para o cemitério. É festa.
B: Afinal, a alma vai se encontrar com Deus.
Pe: Vai se encontrar com Deus. Quer dizer, quando nasce, não sabe o que
vai ser daquela pessoa. Quando morre, sabe que vai para o seu o destino. Então,
não tem porque tristeza. Então, apesar de todos os conflitos com os padres, com
superiores, o povo mesmo. Muita pressão de muitos líderes na Igreja. Não
compreende isso, entendeu? Mas acho que a gente não pode parar. Porque parar é
você terminar de matar a dignidade desse povo. Porque é dessa forma que eles
manifestam a alegria. O batuque do Marabaixo mesmo é um toque de tristeza. É um
toque de tristeza. A batida. Então, eu acho que você, no meio de tantos padres que
tem aqui, tantos líderes católicos, eu sou o único que (...) do deserto, essa missão.
Então, matar essa visão/ porque também eu acho que a Igreja, ela tem que falar a
linguagem do povo. Se nós quisermos levar o sagrado, fazer o povo ir ao encontro
do sagrado, de Deus, nós temos que mergulhar dentro dessa realidade aí, e dentro
dessa realidade, assumir essa realidade, sem querer dizer que não presta, e você
trabalhar a questão da dignidade, do amor próprio, da autoestima.
B: O senhor vai continuar fazendo a missa?
Pe: Vamos continuar. Até porque acho que toda celebração deveria ser isso.
Toda celebração é celebração da vida. Ninguém celebra a morte. A senhora é
antropóloga, sabe disso. Se falava muito aqui no Brasil de cultura da morte. Na
235
verdade, o pessoal diz que o, não existe cultura de morte, existe estrutura de
morte.
B: Quem tem cultura da morte é o México.
Pe: Então, eu acho que se a celebração é a celebração da vida, então você
não pode celebrar de uma forma morta, parada.
B: A celebração foi belíssima.
Pe: Você tem que dançar, você tem que/ eu acho que até mesmo a bebida
dentro. Eu achei até melhor do jeito que foi do que se tivesse a eucaristia, porque,
na verdade, para o povo, o pão não simboliza nada, não significa nada. Dentro da
cultura judaica, tem tudo a ver o pão, o vinho, mas para nós aqui não tem, não tem
como simbologia, o tem, entendeu? Eu acho que essa questão do negro aqui
precisa de mais parcerias, mais pessoas que assumam. Eu faço uma crítica muito
grande a esse povo todo que está lutando, que, como dizia Che Guevara, com
ternura. Acho que tudo tem que ser com ternura. A minha tristeza é ver que muitos
desses companheiros aí estão raivosos, amargurados. Parece que é uma frustração,
como se a gente quisesse agora implantar o império dos negros e fazer os brancos
escravos. Mesmo que eles neguem isso, mas têm esse sentimento.
B: Esse medo.
Pe: E vem a questão das inseguranças, das vaidades. “Tu não vem tirar o
meu espaço”. Então, eu sinto que, no Brasil, ainda existe isso, e em Macapá
também.
O depoimento integral do Padre está aqui por questões de pertencimento em
vários veis. O primeiro da religiosidade, o segundo da negritude, o terceiro do
esclarecimento, e poderíamos seguir elencando, mas nos basta saber que ele fez,
aqui, uma radiografia do sincretismo religioso do Amapá.
Não depende de cada um dos negros do Amapá adotar uma atitude de voltar
ao grupo de origem, mas eles podem, em um encontro, em uma leitura, em um
curso, garantir que aquelas coisas nos dizem algo que corresponde a qualquer coisa
que não lhes parece tão desconhecida. Essas lembranças poderão vir e fugir, voltar
e formar camadas independentes, que estarão, de alguma forma, ligadas umas
sobre as outras, estando dentro e fora delas, sendo um e sendo grupo.
O perigo que existe, aqui e agora, é o fato do tempo da sociedade pós-
humana brutal, que isola e individualiza.
236
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Segundo Barthes (1984), na Antiguidade, a unidade de elocução era
chamada de “canto”, que, de acordo com a mitologia orfeônica, era uma maneira de
manter o mundo submetido à linguagem. Formado entre as coisas e as palavras, o
canto é uma espécie de anterioridade à vida tal como a conhecemos... O canto teria
sido vivido antes de falarmos dele. Criando signos, a oralidade do canto é o
reservatório da memória futura, predeterminando a palavra que usamos na
modernidade.
O canto do Marabaixo no Amapá concretiza essa percepção, por ser, ao
mesmo tempo, um espaço silencioso onde a água e as marés dão as tonalidades e
alturas dos sons, e, ainda, uma sonoridade, como signo da silenciosa anterioridade
do canto, que mobiliza os corpos e as memórias vividas no local.
Apesar das perdas sofridas no corpo social e cultural, essa memória não
perdeu seu corpo nem sua linguagem ou sua constituição primordial, pois se
mantém aquilo que Barthes (1984) chamou de bruissement, ou seja, o barulho
daquilo que está funcionando bem. Aquele som que não é desagradável ao ouvido e
que pode até nos embalar, sendo confortável ao corpo.
Esse lugar que rui e funciona bem, está cumprindo o sentido de
manutenção de lembranças, de prosseguimento de manifestações culturais
enredadas pela trama ancestral do canto, das danças e dos ritos mobilizadores de
entusiasmo, que, acima das mazelas, sem dúvida, enormes, que se abateram sobre
a sua sobrevivência, foram capazes de ultrapassar tais limites.
Implantados, alojados e arejados pela recente valorização das raízes negras
de ex-escravos no Brasil, os habitantes do Amapá apresentaram vivacidade,
tradição e respeito à diversidade de suas próprias raízes africanas, e, hoje, festejam,
com iguais e diferentes, a celebração do Marabaixo, valorizando o canto e
compondo ladrões delicados e malandros.
Ladrões esses que vão de igual altura com outros cantos remanescentes de
Yorubá, Mina, Palikur, Galibis, ou de ladainhas cristãs aos santos e divinos, em belo
latim franciscano: Dona nobis pacen et salva nos hostibus (Dá-nos a paz e proteja-
nos dos inimigos).
237
Suas lembranças dão como certa a suspeita de que, no país, quase todos são
descendentes de africanos, ainda que de pele branca. Somos todos herdeiros da
força do canto, do vigor das danças, da tenacidade do homem da floresta. Tanto as
camadas humanas formadas desde a chegada dos primeiros navios enviados por
Pombal ao Cabo Norte, como as miscigenadas camadas que ali vieram garimpar
nos anos 50 e 60, sedimentaram um corpo social forte e leve, que, apesar de
submetido, se mostrou suficiente para enfrentar os novos desafios dessa sociedade
pós-humana que a tecnologia crê ser imperiosa.
A luz que vem com o cair da noite e se vai às 22h00min, nas ilhas do Bailique,
impõe o horário de recolhimento, e quem a desliga nem sonha que é com os olhos
do breu que os ilhéus vão floresta adentro, para amanhecer e colher o que ela
lhes queira dar.
As distâncias são percorridas em barcos de amigos, muito mais do que em
barcos de linha, fazendo-se viagens de amizades e camaradagens, muito mais do
que as oficiais com dia marcado, produzindo-se, assim, a vida nas ilhas. O rio
Amazonas, o mar Atlântico, enfim, as marés, o elas que, de verdade, dão o
parâmetro de como se vive no Amapá de forma gigantesca, paciente e respeitosa
com tudo quanto é de vida e nos pode tocar.
Não ruído ou anulação sonora naquilo que ouvimos dos informantes, mas
um pulsar maciço de uma comunidade expandida em um estado, onde o sentido da
palavra no canto acompanha uma utopia, que foi muito pensada fora de seus
limites, mas que, afinal, o formou. O fato de estarem em fuga e encontrarem por
espaços em que se sentiam seguros é, com certeza, responsável pelo sentimento de
pertencimento à terra e de preservação e criatividade dos cantos e danças dessas
pessoas.
Muito se perdeu, sabemos e lamentamos, mas também pensamos em buscar
mais, pois onde fumaça, houve fogo, ou seja, música, gritos e frutos, restando,
ainda, outras tantas comunidades remanescentes no Amapá a serem visitadas, a
partir das quais poderíamos juntar mais e mais peças a esse mosaico cultural de
remanescência indígena, europeia e africana no país.
Como fora articulado tudo isso? A memória coletiva é um apanhado de
analogias que vai convencendo os grupos a permanecerem os mesmos, vez que ela
se fixa exatamente no grupo e não apenas em um de seus elementos.
238
Isso fortalece e sedimenta o coletivo da memória em acontecimentos que,
dentro do grupo, acabam por se resolver em similitudes (HALBWACHS, 2004), como
se verificou no Encontro de Tambores deslocado para a capital, fazendo viajar
comunidades que traziam seus conteúdos idênticos e seus traços fundamentais, que
ali estavam preservados pelo próprio grupo.
Um dia, transportaram Mazagão do Marrocos para o Amapá, e, hoje, se
transporta o Amapá, contendo Mazagões” de vários nomes, para o local ao lado do
Forte, de onde, em um tempo ancestral, fugiram tantos para tantos igarapés e
laguinhos para “criá ús”.
Impossível não ler a semiologia dessa volta, dessa maravilhosa viagem em
barcos cheios de bandeiras, de rezas e santinhos envoltos em fitas, entre cantos e
saias rodadas com jeito de flor, e sons de folia.
Utopia de vanguarda, sem dúvida, o então Cabo Norte, Macapá, que recebeu
a desvairada colônia flutuante de Marrocos, acabou por possibilitar o barulho
silencioso que faz o seu corpo nos enormes pandeiros – ancestrais dos instrumentos
mouros e nos gritos de prazer na dança dessa civilização, que seguem ecoando
nos terreiros de Marabaixo.
Esses agentes sônicos e silenciosos estão corporificados nas danças, nos
ladrões, na sensualidade e na metáfora da linguagem em meio à cultura
miscigenada há tantos séculos.
O uso de símbolos descreve, em Macapá, uma paisagem em que
sentimentos, entendimentos, percepções e atos de criação artística se arranjam
afirmativamente. Bandeiras impecáveis que conduzem as comunidades e os santos
católicos vindos de alguns lugares do passado distante são, ainda, relíquias e
heranças, as quais, hoje, definem muito mais a alma do amapaense do que a
própria devoção, pois “é natural que dentro dessas formações novas de
comunidades, encontrem-se muitos traços das comunidades mãe, e que muitas
noções elaboradas nestas passem para aquelas” (HALBWACHS, 2004, p. 117).
Lá, o sistema de crenças balança e pode mudar, vez que o uma solidez
católica, apesar dos anos cristãos passados. Tal sistema pode se redefinir e
assumir uma sombra que cresce a cada momento em que um remanescente de
escravos se volta pelo menos para conhecer as crenças africanas aqui deixadas nos
Candomblés e na Pena e Maracá.
239
Desfile de almas que compõem a realidade do Brasil, eles são lavados,
formosos, cheirosos, simples, justos, corretos. Aceitam os santos, os fardos
amarrados de fitas para que não sumam, e se permitem um estágio de prazer em
transe que antes não lhes cabia. O enlevo do puro prazer do folguedo traz
lembranças que não se querem estancar, e a dança e o canto evocam a vida
passada na memória.
Almas guardiãs, carregando bandeiras de sabedoria da terra, do ar, do
espírito de ancestrais que cantavam na lida das lavouras e nas travessias dos
igarapés. Almas que cuidam, ainda, de suas sombras periféricas, crescendo quando
iluminadas pelo igual desejo compartilhado de cantar e dançar para se fazer real e
diferente na repetição infinita de canções as mesmas, sempre e sempre.
Coletando fragmentos nas vidas dos informantes, lançamos luzes e outros
barulhos possíveis para a criação de novos mitos plausíveis que articularam a
composição do Amapá aqui colocada, uma vez que o uso da linguagem oral, na
verdade, é uma formidável extensão de possibilidades de arquivamento da memória,
que, assim, pode sair de seus limites físicos e psíquicos para se colocar no outro
(HALBWACHS, 2004).
Longe da amnésia social, o Amapá, em alguns momentos, transbordou fatos
e lembranças, particularidades e silenciosos espaços nunca gaguejados, nem aos
pedaços, nunca carecendo de grandes esforços de reorganização para serem
relatados.
A memória do Amapá apareceu-nos como um arsenal genético, como coloca
Le Goff (1988), onde o patrimônio que vai contribuir para a sua memória coletiva de
longa e curta duração vem, pelos laços sanguíneos, como dado de sua espécie,
comportamento, etnia, reflexão, entre outros.
Vale notar que, nos grupos visitados, não encontramos a figura do depositário
da memória, mas um corpo memorial que tem uma função social de guardar
lembranças como testemunha, e que as compartilha, generosamente, com quem
quiser ouvir.
A memória das manifestações culturais parece estar salva em uma sabedoria
poética nas quadras dos ladrões e nos toques repetitivos do Marabaixo e do
Batuque, como inscrições vivas do coletivo do povo, e, aqui, nos lembramos de
Homero, em sua sábia afirmação de que “versificar é se lembrar, não esquecer”.
240
Esse seria o antídoto contra o esquecimento, sendo a memória a única fonte
de imortalidade. Os versos das quadras que alimentam os ladrões, os pequenos
poemas de fatos vividos, são, segundo Bernardo (2007), a saudade, que é um
conceito que trata de uma experiência universal: a da passagem, duração e
consciência reflexiva do tempo. Para Bernardo (2007), a saudade é o discurso da
temporalidade como experiência vivida e reversível que cristaliza uma dada
qualidade.
Da Matta (apud BERNARDO, 2007, p. 195-196) afirma que “pela saudade
podemos invocar e dialogar com pedaços de tempo e assim fazendo trazer os
tempos especiais e desejados de volta”. No entanto, Bernardo (2007) vai mais além,
e observa, com preciosa clareza, o ponto da universalidade, sustentando que, ao
ignorar, na sua definição de saudade, as lembranças dos oprimidos e discriminados,
em todos os aspectos do humano, Da Matta deixa de lado as lembranças de
rupturas difíceis de serem corrigidas, a ponto de gerarem subterrâneos, onde essas
saudades não mencionadas e suas manifestações foram amordaçadas e
enterradas, para que se pudesse sobreviver acima delas. Revela, ainda, um discurso
voltado apenas para os estratos sociais, cujas memórias se caracterizam pela
continuidade (como são as sociedades ocidentais e algumas orientais), não levando
em conta os grupos discriminados dos negros velhos e velhas.
Silêncio! É preciso, ainda, colocarmos aqui, a reflexão sobre as questões do
silêncio na memória e nas lembranças do Amapá, segundo Eni Orlandi (1992).
Dissemos que o lugar é silencioso, que os informantes se calam e retomam a
palavra sem fazer pontes de sentido. Isso é parte do que se chama silêncio. É o
espaço do sentido, a condição de significar. Ele é, digamos, a respiração, o fôlego
da significação, e um lugar de recuo necessário para que se possa significar e para
que o sentido, então, faça sentido, pois “as palavras são cheias de sentido a não se
dizer e, além disso, colocamos no silêncio muitas delas” (ORLANDI, 1992, p. 16).
A materialidade da linguagem na expressão discursiva da memória esbarra
em uma discussão: diferentes sujeitos = diferentes sentidos. Como vimos em
Halbwachs (2004), essa contradição estaria resolvida na coletividade e no
compartilhamento, e assim, a memória do Amapá subverte e surpreende quando
passa, rigorosamente, pelo abandono e pela fuga de diferentes sujeitos em
diferentes sentidos, como elementos formadores de lembranças.
241
Vejamos, rapidamente, a fuga dos colonos do Marrocos (com Mazagão nas
costas), a fuga dos negros da construção do Forte, as fugas dos colonos do
Mazagão Novo, a fuga dos índios da região e da Guiana para o Amapá.
um conjugar-se de fugas e um movimento de silêncios em construção a
partir daí. Fugia-se para se construir além. Mas, em rotas diversas: uma dos que
queriam sair do Amapá para Belém do Pará e, talvez, Lisboa, e outra dos que, não
podendo sair de lá, buscavam espaços melhores para se estabelecerem em silêncio.
Isso acabou por criar um paradigma conciliador cheio de sentido, que
propiciou aos envolvidos trabalharem suas contradições constitutivas em relação aos
demais viventes da colônia, que aceitavam o deslocamento e a reduplicação dos
espaços onde passaram a trabalhar suas contradições, na constituição de seu
coletivo, remetendo-se sempre ao outro.
Ambos, no entanto, atuando sobre dois silêncios diferentes: o silêncio
fundador, aquele que é o não dito, e o silêncio constitutivo, onde para se dizer é
preciso não dizer. Este último era característico dos colonos, e isso pode ser
entendido no relato histórico de Laurent Vidal (2008) sobre o Mazagão e os
documentos históricos dos fatos.
os outros foram se abrigar no silêncio constitutivo, pelo menos em algum
lugar, por muito tempo. Tempo em que viveram silenciando, a partir de estímulos,
que, afinal, significaram impregnar o outro com seu dito, a ponto de esse conteúdo
ser capaz de se inscrever no outro, fazendo-o refletir e agir posteriormente,
ampliando o espaço de significação.
Diante desse silêncio, vale indagar: o que poderia ser mais silencioso do que
um museu? Amapá é, enfim, o Museu Sacaca
113
, onde, a céu aberto, se construiu o
espaço dos ribeirinhos, dos negros, dos brancos miscigenados com índios,
resultando em uma vitrine de memória empalidecida diante do que se apresentou
ser Macapá. E é, também, o Museu do Curiaú, uma grande área verde recebeu um
mocambo construído de madeira, todo em treliças, no qual não se colocou nenhuma
peça, onde os pássaros se abrigam por vezes, e um assobio de ventos é o único
113
O Museu Sacaca de Desenvolvimento Sustentável é um espaço a céu aberto, que recria a vida
dos habitantes da região amazônica no estado. Com doze mil metros quadrados, criado na gestão
Capiberibe, abriga as réplicas dos objetos e casas de ribeirinhos, quilombolas e tribos indígenas,
como os Waiãpi e os Palikur, além de sítios arqueológicos. Recebeu esse nome de um profundo
conhecedor de plantas amazônicas para fitoterapia, o Sr. Raimundo dos Santos Souza (1926-1999),
que foi nomeado Sacaca, “Senhor da floresta”, após uma pajelança no Poço do Mato, tendo sido
auxiliar de vários cientistas e intelectuais que visitaram e trabalharam no Amapá.
242
testemunho de que a memória local está fora de lá, por estar viva e pulsante e
prescindir desses espaços, pois é “no tempo determinado pelo grupo e pelos seus
conteúdos que as lembranças se reconstituem e onde o tempo de cada um se
apoia” (HALBWACHS, 2004, p. 86).
O Museu do Curiaú, totalmente vazio, encontra-se ali, gritando que ele,
museu, está dentro de um outro museu, muito maior e mais significativo, que é o
próprio Curiaú, pleno de relíquias. O silêncio do museu da multiplicidade a ser
apreendida no Amapá.
Os dois museus tentam estacar, ali, o tempo da vida do Amapá, mas o tempo
será cúmplice em guardar fatos e coisas quando representar, com o meio e o
homem, um contínuo espaço, onde ontem e hoje se encontram para um bem comum
a todos, cujas naturezas não se alteraram, mas se posicionaram mais ou menos do
ponto de vista de seus membros, estando corpo e alma sempre atualizando fatos e
descarregando, em ladrões e festas, a memória de coisas que são dignas de se
lembrar.
Se nos reportarmos aos gregos, de onde nunca cessa a memória,
encontramos a divinização do que seria um dom próprio dos humanos para ser
cultivado independente aqui do tipo de humano. A mãe das Musas, a Memória,
tenta, como de resto todos nós na contemporaneidade, escapar da temporalidade
capaz de transformar todo o arsenal de lembranças em si, acomodada tal qual nos
coloca Halbwachs (2004, p. 92), afirmando que:
[...] cada um desses grupos tem uma história. Neles distinguimos imagens e
acontecimentos. Mas o que chama a atenção, é que, na memória, as
similitudes passam, entretanto, para o primeiro plano. No momento em que
o grupo considera seu passado, sente acertadamente que permanece o
mesmo e toma consciência de sua identidade através do tempo.
Foram detalhes reconstituídos, por toda parte, em um quadro temporal, no
qual armazenamos o maior número possível de dados em busca do corpo das
lembranças que comporiam a memória do Amapá neste trabalho.
O tempo nos pareceu empecilho, dado os dois meses que ficamos; no
entanto, fomos arrebatados pelo tempo do vivido, citado em Halbwachs (2004), onde
o tempo real físico pouco importa, pois o que nós vivemos com os entrevistados e
nas visitas às comunidades remanescentes, nos colocou diante desse tempo em
243
que o homem tende a se aproximar quando se entende em grupo, esvaziando-se da
sua matéria distintiva entre ele e os outros.
Na alteridade geométrica de sua existência no espaço compartilhado dessas
reminiscências, o relato de memórias não pode ser senão sugestivo, infinito em seu
caráter lacunar de imagens e fatos que se nos escaparam e escaparão sempre, já
que, especialmente em Macapá, o tempo cronos é de outra ordem.
Nas palavras de Halbwachs (2004, p. 129):
[...] não é o número de lembranças que importa aqui. Enquanto o grupo não
muda sensivelmente, o tempo que sua memória abrange pode se alongar: é
sempre um meio contínuo, que se torna acessível em toda a sua extensão.
É quando se transforma que um novo tempo começa para ele e que sua
atenção se afasta progressivamente daquilo que foi, e do que não é mais
agora. Mas o tempo antigo pode subsistir ao lado do tempo novo, e mesmo
nele, para aqueles de seus membros, para quem uma tal transformação
tenha abalado menos, como se o antigo grupo recusasse a se deixar
absorver inteiramente pelo novo grupo que nasceu de sua subsistência. Se
a memória atinge então regiões do passado inegavelmente distantes,
conforme as partes do corpo social que se considera, não é porque uns têm
mais lembranças do que os outros: mas as duas partes do grupo organizam
seu pensamento em torno de centros de interesses que não são mais
completamente os mesmos.
Parece-nos, enfim, que o Amapá é um espaço onde as práticas e teorias
sobre a memória podem ser entendidas e constatadas como fato exemplar de como
os povos se lembram, se transformam e se reorganizam em seus relatos
remanescentes de acontecimentos longínquos de suas vidas vividas.
E nos parece bem-vinda uma reflexão das quatro ações que podem nos
ajudar a manter a memória em lugar privilegiado de nossas existências: a primeira
seria dispor, em ordem de importância, o que se quer lembrar. Aqui, o povo lembrou
das vidas, de como se organizavam, de como casavam, de como produziam e se
alimentavam, além de se recordarem de como a terra em questão é a dádiva de
seus ancestrais fugitivos do cativeiro.
A segunda seria o interesse pelo que se deseja lembrar, e, nesse sentido, as
festas de tambores, os terreiros em festa, as composições de ladrões e a recente
democratização das execuções dos instrumentos do Marabaixo avançam sobre esse
interesse que deve ser preservado.
A terceira, que avançou na guarda da memória do Amapá, é a dialogia real
entre símbolos habituais e não habituais, que, hoje, alargam o horizonte das crenças
e ritos africanos e da religiosidade cristã.
244
E, finalmente, a quarta, que é meditar sobre elas e repetir, a quem quiser
ouvir, suas impressões, sua , suas lembranças passadas e recentes como fato do
vivido capaz de enquadrar-se na memória geral desse coletivo.
Memória, arte, cultura e vida não podem apelar apenas à cultura letrada em
busca de apoio, mas, principalmente, à inteligente coletividade resistente e que se
mostra sempre que encontra espaços.
Que este seja um dos espaços em que ela se manifeste, dando-nos acesso a
seu delicado e esplêndido tecido memorial que construiu suas vidas nesse espaço.
Por tanto tempo em segundo plano no panorama nacional, a memória do Amapá
responde como a destruição de uma memória histórica que ligou o estado, apenas
nos anos 60, ao destino do Brasil, com uma memória que dispensa museus na sua
transmissão oral e na interdisciplinaridade que se instaura entre os seus viventes, os
quais exaltam coletivamente seus acontecimentos, seus gestos, suas imagens,
muito mais em suas palavras do que em possíveis textos sobre eles.
Ficamos, então, com Pierre Nora (1997b), um dos que mais falou sobre a
memória que hoje constitui a vida vivida no Amapá: vivem hoje, o que restou do
passado em suas vidas em grupos ou, ainda, o que os grupos do passado deixaram
para ser vivido hoje.
São espaços de resistência cultural, social, religiosa e, hoje, política, já que as
terras onde se encontram as comunidades carecem de outra luta, agora em direção
aos registros oficiais de posse.
O que nos fica dessa necessidade das comunidades, é o fato irrefutável de
que foram os negros fugidos, os ex-escravos e seus remanescentes, os
responsáveis pela formação e ocupação do solo brasileiro, onde, paciente e
sistematicamente, viveram conformando esses espaços através da cultura africana
herdada de seus mais longínquos ancestrais, e que, no presente, devem sim receber
o mérito de suas posses adequadamente reconhecidas.
Foi amplamente divulgado, durante o tempo em que esta tese foi
desenvolvida, o fato de que foram abertos sítios arqueológicos no Mazagão, que dão
conta das riquezas que ainda estão enterradas naquele solo. São as marcas
deixadas pelos não menos valorosos colonos que ali tentaram desesperadamente
manter uma colônia. O fracasso deles impulsionou outra tomada do espaço, e foi
graças aos negros e mestiços lá chegados que, atualmente, o Mazagão se insere no
mapa do Brasil.
245
Valor seja dado a todos que contribuíram para que esse estado extremo ao
norte do país pudesse apresentar um tecido social tão profícuo quanto hoje se
apresenta.
A memória, onde a história pode se alimentar, não busca apenas salvar o
passado senão para se servir dele no presente e no futuro, mas, principalmente,
para orientar a continuidade de sua própria sobrevivência. Saibamos que a memória
coletiva, tão brilhantemente tratada em Halbwachs, serve muito mais à liberação do
que para subjugar os homens. E a memória dos negros oprimidos parece nos
mostrar que a sua medida de tradição oral é mais infinita e afinada com as próprias
tradições da pesquisa cultural antropológica, como apontou Bernardo (2007).
246
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254
ANEXO A – Transcrição das entrevistas
Transcrição DVD 01
Gravação realizada em: novembro de 2004.
Entrevistados: Miguel das Neves (“Seu” Vavá), Josué da Conceição Videira,
Antonio José (Pinto) e Rosângela Nascimento Costa.
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Mazagão Velho.
Tempo total de gravação: 00h 59min 30s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; MN: Miguel das Neves (“Seu” Vavá); Loc01: Locutor não
identificado; JC: Josué da Conceição Videira; AJ: Antonio José (Pinto); R: Rosângela
Nascimento Costa.
255
00” 00’
B: Como é seu nome?
MN: Miguel das Neves.
B: Miguel das Neves. Então faz tempo que o senhor está aqui no Mazagão?
MN: É. Meus filhos eu criei aqui.
B: E o que o senhor estava falando da Fortaleza de São José? Da capital?
MN: Naquela época em que eu estava com a idade de dez anos, eu alcancei aquilo
um matagal. foi um tempo em que virou até (hipódromo), na época em que o
governo (...)
B: (Junari)?
MN: (...) na época assumiu o cargo no governo. Ali, onde é agora o Banco do Brasil,
ali era feio.
B: Era feio?
MN: Ali era feio. Ali era um igarapé.
B: Ali era um igarapé?
MN: Era, na beira do igarapé. tinha uma estradazinha, um trafegozinho para o
lado direito da minha casa. Só um trilhozinho. Aquilo não tinha não. Era alagado.
Tudo alagado.
B: E a maré chegava até lá?
MN: Chegava [ri]. A água invadia por todo canto. Aquele igarapezinho, a gente
entreva de cano dentro dele e ia saltar lá no fim dele.
B: E onde dava o fim do igarapé?
MN: Não ia muito longe, não. Chegava até ali para a banda do Barro Alto, lá/
B: Chamava Barro Alto?
256
MN: Barro Alto, é. ele terminava, o igarapé. Mas era um anhingal fechado. Dava
muito peixe dentro desse anhingal. Quando a água baixava, ela entrava e
vazava, e aí o peixe ficava lá dentro no anhingal.
B: Aí era fácil pescar.
MN: Aí é só pegar.
B: O senhor morava para lá, então?
MN: Morei.
B: O senhor morou um tempo lá?
MN: Morei.
B: O senhor decidiu voltar para cá?
MN: Decidi voltar para cá e trabalhar em roça.
B: E aí o senhor criou os filhos, os netos?
MN: Tudinho com trabalho de roça. Graças a Deus. Oito. Oito filhos.
B: Estão todos no Mazagão?
MN: Não. Tem uns para Macapá, tem uns para Marabá. Até agora em dezembro, eu
estou esperando ver ele, ele prometeu que vem passar o Natal aqui.
B: Passar o Natal com o senhor. E em Mazagão tinha ouro?
MN: Tinha.
B: Me conta essa história. Tinha ouro? Me conte.
MN: Eu acho que, naquela época, no tempo dos escravos, o ouro não tinha valor,
porque muita gente idosa aqui, eles tinham ouro. Aí, o que acontecia? Antes de
morrer, eles enterravam. Olha, aqui tinha um velho, eu conheci ele, chamava-se
Mané Diniz, ele morava em um igarapé (no verão), em um lugar chamado Espinhel,
dentro do Espinhel. Eu sinto que lá ele deixou esse dinheiro enterrado, esse ouro.
257
B: Era muito?
MN: Era muito. Olha, sabe o que ele fazia? Quando ele vinha da barraca, depois
chegava dia de domingo, chamava aquele rapazinho que ele gostava de brincar com
ele, ia para lá. Chegava lá. “Vocês querem ver uma coisa?”, “O que é?”, “Eu vou
mostrar aqui uma coisa para vocês”. ele ia para dentro do quarto, onde ele
morava, e trazia uma esteira de taboa, estendia assim, no meio da sala, voltava
para dentro, trazia um lençol branco, estendia em cima da esteira, voltava e trazia
um copo assim dessa altura, aí ele abria, derramava em cima e espalhava assim
com a mão. Tudo espalhado. Era ouro. De toda qualidade. Era anel, era broche,
cordão de ouro. Ele tinha cordão de ouro. Ele dizia: “Quer ver o tamanho desse
cordão?”. Ele pegava o cordão, levantava, puxava assim e ficava muito alto o
cordão.
B: O cordão no chão. Era muito ouro?
MN: Muito ouro. Aquilo era anel, era broche, tudo puro.
B: Olha só. Onde será que ele conseguiu?
MN: Aí a gente ficava olhando. Ele dizia assim: “Já viram?”, “Já”, “Então agora eu
vou guardar”. Botava tudinho, botava dentro de um cofre, fechava, levava para
dentro, guardava [ri].
B: Será que ele guardou lá para dentro?
Loc01: Hoje em dia, ele só mostrava uma vez.
B: Hoje em dia, mostrava uma vez só.
Loc01: Vou me demorar mais um pouco na igreja.
B: Então, está bom. Senhor/Desculpa. Muito obrigada pela sua gentileza e pela sua
entrevista. Adorei a história.
[cenas da cidade] 00 06”
258
Loc01: Padre Júlio Maria Lombardi, que fundou o colégio de freiras, irmãs Marianas.
Aquele outro é o padre (Hermano), que trabalhou aqui na comunidade. Trabalhou
e morreu nessa comunidade aqui. Foi um dos padres mais importantes/
B: O Hermano? Que apoiou, ficou aqui/
Loc01: Que apoiava a comunidade.
B: Mil novecentos e onze a mil novecentos e vinte e um. Ele apoiava a comunidade?
Loc01: Ele ia para a roça com o pessoal/
00 07”
B: É lindo. Que madeira é essa? São madeiras diferentes?
[cenas da casa de “Seu” Vavá]
00 07” 53’
MN: Contar a história, é o seguinte: tem muitas coisas que tem , por exemplo, que
não é do meu tempo. Livros que eu li, livros que não existem mais e também os
antigos, velhos, que eu conversava bastante. Eu era garoto, gostava de conversar, e
eles me contavam as coisas. E eles começaram, começaram com a fundação da
cidade. Essa cidade aqui, ela foi fundada dia vinte e três de janeiro de mil setecentos
e setenta, por cento e sessenta e três famílias, portugueses e escravos. Eu ainda
soube que meu tataravô era reminiscente dessas famílias que vieram, família
Duarte. Meu avô era Antonio Duarte da Silva, dessa família. Essa família/ Aí, com o
tempo, foi progredindo aqui. Não sei, por exemplo, explicar como foi para progredir,
mas sei que eles vieram, foram os primeiros que se localizaram aqui. Tanto que aqui
foi formada uma cidade que pertencia ao estado do Pará. Foi formada uma cidade
aqui e fizeram grandes monumentos aqui. Esteve na igreja velha?
B: Estive.
MN: Primeira igreja, bem antiga aquela ali. Aquela igreja ficava no centro da cidade.
B: Então a cidade era mais lá para dentro?
259
MN: Sim, senhora. Era mais para dentro.
B: Quer dizer que se cavar a mata, pode ser que se encontre alguma coisa.
MN: Várias famílias que vieram para cá, para Mazagão, então tem a família Fróes.
Esse rio aqui, ele era muito largo. Entrava navio aqui, sabe? Agora, devido na época
da Cabanagem, em mil e oitocentos, parece que oitenta e cinco, assim.
B: Tudo bem. Cabanagem. A gente já vai até os livros e encontra as datas.
MN: Então os cabanas tentaram invadir aqui, Mazagão, porque isso aqui tinha muito
ouro, e eles tentaram invadir aqui a cidade. Os homens daquela época, que
estava habitado aqui, eles foram fazer grandes (derrubas), que aqui atrás nós temos
um lago com o nome de Himalaia. Esse lago é o lago do rio (...) que vocês
atravessaram. É lago desse rio e lago do Rio Preto. Então, os cabanas tentaram
invadir, vindo pelo Rio Preto para invadir aqui a cidade. Então, os homens daquela
época, eles tiveram/ foram fazer grande derrubas nos canais aí, para impedir a
passagem das cabanas. Conclusão, a Cabanagem terminou, eles não fizeram
limpeza mais nos canais, não tiraram aquele entulho, aqueles galhos. O volume de
água maior cambou para o Rio Preto. O Rio Preto é um rio muito bom, tem um
volume de água (...) e aqui ficou nessa situação. Mas, antes disso, foi colonizado
aqui. Nós tivemos várias famílias aqui, mas cada igarapé desses daqui, aqui tem
muitos igarapés com nomes, eram famílias que habitavam. Famílias grandes. Nós
temos uma rua aqui, a travessa de lá, eram os Maués. Era uma família Maués que
veio e habitou aquela rua. Nós temos um igarapé aqui com o nome Fróes, outra
família, Fróes. Nós temos um igarapé com o nome João Papele, família João
Papele, que habitou nesse igarapé. Nós temos um igarapé em cima com o nome de
Limeira, foi outra família, Limeira. Temos outra família, Cabral, outra família. Então,
onde eles habitavam, ficavam os nomes deles. Lá adiante, nós temos outro rio com
o nome João Borges. Por aí a senhora vê a quantidade de população que havia aqui
nessa época.
B: O senhor já citou mais de oito famílias, eu anotei.
MN: Famílias que habitavam aqui e fora as famílias outras que vieram de outra
parte. Por exemplo, ultimamente, já de mil e novecentos para cá, já chegou
260
também o meu pai. O meu pai era libanês. Veio para cá, veio com um tio meu.
Vieram lá do Líbano para cá e aqui ficaram. Meu pai aqui seguiu.
B: E a sua família é Washington? Não, Washington é seu nome. A família chama-se
Washington?
MN: A minha família é Elíades. Meu apaterno. O meu avô materno era Duarte da
Silva, exatamente como eu estou falando.
B: Então o senhor é um dos fundadores.
MN: A minha família foi uma das fundadoras desta cidade. De maneira que a cidade
progrediu, e de mil novecentos e quatorze para cá, por exemplo, em mil novecentos
e quatorze, a minha mãe chegou formada aqui. A minha mãe era brasileira, o meu
pai era libanês, então ela chegou formada para cá. Ela ainda lecionou aqui, onde é a
igreja, era a Intendência. Naquela época, não se chamava Prefeitura. O intendente
daqui, para a senhora ver como era, sabe quem era? Era um senador, o Manoel
Valente Flecha.
B: Essa família Flecha, tem gente no Bailique. E no Curiaú tem Flecha também.
MN: Aqui é Valente Flecha.
Loc01: Valente Flecha, senador. Até hoje/
MN: Essa rua aqui é Senador Flecha. Um senador, o intendente daqui. Então, a
minha mãe chegou formada, lecionou na Intendência, onde ela ficou. Houve a força
política, foi desmoronando o negócio. Até hoje acontece, a política/ chegaram,
depuseram e vieram [ruídos] matar o velho Flecha. que o assassinaram ele,
assassinaram a filha dele. Mataram a filha dele.
Loc01: Sete anos, não era sete? Sete ou quatro? A filha dele, que mataram?
MN: O que é que tem?
Loc01: Sete ou quatro anos?
MN: Era uns sete anos.
261
Loc3: (...) na perna dela.
MN: E o Flecha se mudou daqui. Ficou aqui entregue ao Mendonça, que não sabia
coisa nenhuma. Aí a cidade encheu de decadente. Aí fundaram para ali, aquele
Mazagão dali, que aquilo ali não existia, em mil novecentos e quinze, e aqui
entrou em decadência. Uma família aqui, outra família pra lá, outra família foi para
Maracá, ficou preso e aqui ficou sem meio de vida, de maneira que nós estamos até
agora nessa situação aqui.
B: E o senhor ficou porque o senhor tinha ganho de vida?
MN: Bom, eu tinha, porque o meu pai tinha terrenos aqui, comprou terrenos aqui, e a
minha mãe era professora (bastante, o nome) dessa escola aí. Então, a minha mãe
lecionou aqui trinta e oito anos. E eu fiquei por aqui. Em mil e novecentos/ eu nasci
em mil e novecentos e vinte. Em mil novecentos e quarenta e um, eu fui para o
Exército. Naquele tempo, o Exército era em Belém. Eram vinte e seis batalhões
caçadores.
B: Tudo era em Belém, não é?
MN: Tudo era em Belém. Fui para Belém, isso era o estado do Pará. Eu fui para lá e,
de lá, eu fui sair de casa no dia onze de outubro de mil novecentos e quarenta e um,
e cheguei no dia seis de dezembro de mil novecentos e quarenta e cinco. É, no
Exército, porque a guerra, a Segunda Guerra Mundial iniciou em mil novecentos e
trinta e nove e terminou em quarenta e cinco. E eu fui com o Estado para a
Itália. Fui para a Força Expedicionária. Passamos uns sete meses no front italiano.
B: E o senhor voltou para cá, como é que o senhor encontrou aqui?
MN: Minha mãe estava ainda lecionando quando eu cheguei aqui, em quarenta em
cinco. Meu pai tinha morrido. Meu pai tinha um comerciozinho aqui, varejista.
(Assumi) o comércio, depois eu entrei na antiga Guarda Territorial. Eu tinha direitos
adquiridos e eu entrei na Guarda Territorial, e fiquei nomeado como comissário de
polícia aqui. O comércio, mesmo naquele tempo, era o tempo da borracha, uma
coisinha ali, uma coisinha aqui. Não dava para nada, estava desvalorizado. A
borracha subia e abaixava, subia e abaixava, e eu, como tinha direitos adquiridos,
eu requeri os direitos e entrei na Guarda Territorial. Fiquei aqui como comissário de
262
polícia. Aqui eu passei treze anos, me casei aqui com a dona Maria, casamos em
mil novecentos e quarenta e oito. Nós, agora no mês de julho, dia vinte e nove de
julho, nós fazemos cinquenta e seis anos de casado. Os filhos precisavam de
ginásio, aqui só tinha o primário. Eu tive que me mudar para Macapá.
B: Chegaram a mudar para lá?
MN: É, passei vinte e quatro anos em Macapá. Agora, depois eles se formaram,
foram para Belém, fizeram vestibular, tinha entrado no vestibular em Belém, mandei
eles para Belém, estudaram, se formaram.
B: E aqui, ficou com quem a casa?
MN: Fechada. Deixou fechada. E quando eles voltaram, se formaram, se
empregaram, casaram, “Bom, agora eu vou voltar”. Voltei para cá. A casa velha
estava aqui me esperando [ri].
B: E boa, não é? Velha e boa.
MN: Tem uma reforma que eu fiz nela agora há pouco tempo.
B: É, o Antônio falou que o senhor reformou. Essas telhas são de que época?
MN: Conservei a estrutura. Isso é casa de duzentos anos. Olha, o assoalho é
primitivo.
B: Nós pegamos o assoalho. É um assoalho muito bonito e todo trabalhado.
Lindo. Lindo. Muito bonito. E as janelas também. É toda uma arquitetura que não se
faz, não é? Essa coisa vazada para circular o ar, porque aqui é muito quente. Quem
que imaginou a casa?
MN: Saiu de mim mesmo.
B: Foi o senhor mesmo que pensou essa divisão?
MN: Porque eu boto o mestre para trabalhar, mas quem manda sou eu. Quando vem
o pessoal trabalhar comigo, eu faço logo uma recomendação: “Tem quatro coisas
aqui: o meu trabalhador não tem hora para entrar nem para sair, eu não quero vadio,
não quero malcriado e não quero teimoso”.
263
B: Tem que trabalhar muito calado.
MN: Tem muito mestre que quer fazer como ele quer fazer. Não, tem que fazer
como eu mandar.
B: E as casas tinham esse padrão? Essa janela alta? As janelas por aqui, as casas
por aqui eram mais ou menos parecidas com essa sua?
MN: Eram, eram.
B: Era assim que as outras pessoas faziam as casas?
MN: Era.
Esposa: Tudo uma emendada na outra. Tudo.
B: Coladinhas assim?
Esposa: Tudo.
B: Como se a gente encostasse a parede da minha casa para fazer a sua.
MN: Essa aqui e aquela casa pegada era uma parede. Agora, ultimamente, essa
casa aqui está registrada no tombo do patrimônio nacional brasileiro. Fizeram uma
reforma nela, mas não foi uma reforma, fizeram uma casa nova, derrubaram tudo e
ainda fizeram pior do que a velha que estava lá. Está tudo caindo aí.
Loc01: Descaracterizam muita coisa.
MN: Então eu já fiz a minha parede de madeira.
B: Já fez sua parede ali para não ter problema, está certo.
Loc01: O assoalho que era do tipo desse daqui. Eles tiraram, levaram a madeira e
meteram qualquer tábua. Aí foi feito normal.
B: E de quem é a casa?
MN: Quem mora é uma cunhada minha. Agora ela está doente, ela é da minha
idade. Quer dizer, ela é mais nova do que eu um ano, está com oitenta e três anos.
264
Eu tenho oitenta e quatro anos, graças a Deus. E ela então adoeceu, levaram ela
daqui e a casa ficou fechada e só vem para cá em tempo de festa.
B: Escerto, senhor. Quero agradecer muito o senhor, mesmo, de coração, porque
é muito difícil essas informações. Porque, às vezes, as pessoas falam: “Não quero
falar”, “Não estou com vontade”, e isso para nós é muito importante, porque é uma
forma de manter, conservar.
MN: Eu topo falar, principalmente para a juventude. (Não é porque) ele está
presente, um dos rapazes aí, professor, ele é muito diferenciado. Eu aprovo a atitude
dele, porque a gente tem que ter alguém para se interessar. Para não acabar.
B: E depois, outra coisa. As pessoas falam no Sul: “Mas por que você vai para o
Macapá? É muito longe” Por que não ir para o Macapá? Acho que tem muito pouca
informação sobre o Macapá.
MN: Eu sou narrador da Festa de São Tiago, então convido a rapaziada para ir
comigo na Festa de São Tiago, porque vão aprender.
B: Eu soube da história dos cavalos que são usados na festa.
MN: No dia da Festa de São Tiago, Mazagão fica pequena para o povo. As maiores
autoridades vêm para cá, governador. Essa casa nossa aqui, o governador, uma
vez, “Essa é a casa do seu Vavá?”. É uma parada obrigatória.
B: Parar aqui e fazer uma visita, e para a dona Maria. Visitar o povo da terra.
MN: E quando é tempo de festa, está toda a minha família. Meus filhos, noras,
genros, vem todos para cá.
B: E hoje, como é que o senhor sente? O senhor acha que a população tem
alguma forma de desenvolver um pouco mais? Desassorear o rio para poder
voltar a água? Não?
MN: A gente aqui fica sem dizer nada nesse assunto, porque entra administração,
sai administração, e continua sempre o mesmo. A gente pondera, promessas,
não é, professor? Mas não são realizadas.
265
B: Mas, olha, a gente promete o que a gente puder divulgar essa história/
[cenas na igreja] 00 24” 56 a 00 27” 18’
JC: Graças a Deus, muitas pessoas aqui conseguem fazer isso, porque quando
eu tomei partida disso, a gente aqui, com o meu irmão (também perto), a gente
estava um pouco decaído, sabe? As pessoas antigas tinham esse problema de não
passar as coisas para ninguém. Então, eles achavam que somente eles podiam
saber as coisas. Não tinha nada escrito, nada. Então, a curiosidade da gente é tão
grande que a gente procurou, eu busquei isso e, hoje, o Marabaixo é uma da/
segunda maiores festas culturais aqui do Mazagão Velho.
AJ: E temos a facilidade, porque a gente faz letra do Marabaixo também.
B: Vocês também fazem letra?
AJ: Fazemos letra do Marabaixo.
JC: O CD que saiu agora, a importância dele é essa. Tem composições nossas, a
gente não colocou só as músicas/
B: As tradicionais.
AJ: As tradicionais.
B: Canta uma nova.
B: Vocês escrevem primeiro ou gravam?
AJ: A gente faz todo o trabalho. Depois que a gente escreve, nós passamos um ano
ensaiando e tirando erro para sair quase sem erro, porque para vender um CD, tem
que ter feito um trabalho de qualidade. fazer a letra, tirar erro, consertar algum
erro das músicas antigas, também, que tinham, que eram exageradas, mas isso sem
descaracterizar a música.
B: Porque o antigo tinha essa característica de errar.
AJ: Isso, exatamente.
266
B: Agora, vocês pegam um caso ainda que acontece na comunidade e vão fazer a
letra em cima daquilo ou
AJ: Sem dúvida. Vamos cantar, aí a senhora vai escutar para a senhora ver um caso
e depois a gente explica a música para a senhora.
JC e AJ: Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for, eu vou Marabaixo dançar.
Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for, eu vou Marabaixo dançar. Talina
mandou-me embora, disse que não me quer mais. Vou tomar uma gengibirra para
esquecer o que ela me faz. Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for, eu vou
Marabaixo dançar. Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for eu vou, Marabaixo
dançar. Vou embora, vou embora (...). Com uma mão seguro a vela, com a outra
dou adeus. Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for, eu vou Marabaixo dançar.
Adeus Talina, Adeus Tatá, se você não for, eu vou Marabaixo dançar.
AJ: Agora escute a história dessa/
JC: Bem, eu sempre convivi com velhos, um casal de senhores, e eles eram muito
antigos aqui na vila, a faleceram agora. Então, ele tomava sempre uma pinga.
Uma vez ele chegou, ele chegava ficava meio saliente, o negócio da pinga dele e
também, na época, por causa do Marabaixo, que ele chegou convidando ela, a
Natalina, que ele chamava. O nome dela era Natalina, mas ele não chamava
Natalina, era Talina. Aí, ele convidou ela para ir ao Marabaixo e ela não gostava,
era muito católica, ela fazia muito a parte religiosa. Negócio de cultura profana ela
não entrava muito. Daí eles começaram a brigar, aí ele disse para ela: “É, Tatá, se tu
não vai, então eu vou. Adeus”. Daí veio: “Adeus Talina, adeus Tatá”. eu fiquei
com aquilo. Depois de uns seis anos, assim, que eu entrei na comissão para ajudar
o pessoal a reviver a festa, aí eu tinha um objetivo meu, o meu objetivo era entrar na
comissão para reviver a festa, mas meu objetivo era esse, era fazer composição. Eu
aproveitei o ensejo da música, da palavra deles e montei uma música em
homenagem a eles. Ficou ótima. Aí o meu irmão surgiu com outra lá pro pessoal.
AJ: É uma homenagem/ para relembrar o que os negros sofriam na senzala. Ela é
assim: “Na senzala, o negro tanto, tanto apanhou, por causa de sua cor, tanto
sangue derramou”.
267
B: Vocês cantaram essa lá na hora.
AJ: Cantamos.
B: A gente gravou esse material.
JC: Nosso objetivo mesmo era esse/
AJ: Esse é um trabalho muito antigo nosso/
JC: Para inovar, para colocar o povo. Hoje em dia, aqui na época do Marabaixo, mês
de agosto, dia vinte e quatro, parece um carnaval. O povo todo participa. Hoje,
qualquer criança canta o Marabaixo e ela dança, ela bate.
B: Que bom. Acho que vocês conseguiram fazer/ reviver uma coisa importante de
vocês aqui na região, de cultura mesmo.
JC: Essa festa, ela tem toda uma encenação. Existe Marabaixo em qualquer canto
do estado do Amapá que você vá, existe Marabaixo, mas aqui tem toda uma
encenação/ (apenas) do Espírito Santo.
AJ: Festa do Divino Espírito Santo é/
JC: Aqui, dia dezesseis até o dia vinte e quatro de agosto. Isso aqui não importa se
é segunda, terça, quinta, sexta. Tanto faz. A comunidade para e cai na gandaia.
AJ: Cai em dia de semana. Ainda acompanhado de um licor chamado gengibirra,
que a galera/
JC: O importante é que o governo estadual e nem municipal não/ é a comunidade
que faz, por isso que dá certo.
B: Você é Josué de que?
JC: Josué da Conceição Videira.
B: Você é Videira também?
AJ: Não, não. Antonio José (Pinto).
268
JC: Ele é filho do meu pai, pulava a cerca para lá.
AJ: É, o pai dele pulava a cerca. Professora, e uma das grandes vantagens do
nosso Marabaixo é que a letra é explicável. Muitas comunidades cantam Marabaixo,
mas tu escutando, tu não entende o que eles estão cantando. E nós, não. Nós
cantamos o Marabaixo e a gente mostra o que a gente está cantando. Letra, porque
isso também é importante no Marabaixo, é a letra.
B: É, os cantores, às vezes, tem uma voz que não é boa.
JC: Nós fazemos um trabalho aqui, por exemplo, todo domingo aqui em casa, a
gente se reúne, quem quer aprender a bater, a cantar ou até mesmo surge com uma
música escrita e não tem voz. Realmente, a gente, todo domingo, a gente está
reunido aqui, trabalhando em cima disso. Porque as pessoas não esperaram que
eu que canto, o outro se mate cantando. Ele também, o povo responde mesmo.
Frequenta e vem querer aprender a bater, querer aprender a cantar, porque escrever
a música não é difícil, o problema é você colocá-la nesse ritmo.
B: Tem que fazer os versos/
JC: Tudo de acordo.
AJ: É demorado, mas depois que fica pronto.
JC: Nós criamos uma expectativa muito grande, graças a Deus isso/
B: Correspondeu o trabalho.
JC: Correspondeu.
AJ: Bastante. Inclusive, o pessoal fica esperando: “Qual é a nova? Qual é a
nova?”.
JC: O pessoal me pergunta assim: “Teu pai, tua mãe, teu avô gostavam?”. o,
nunca gostaram. Que eu saiba, não. Nunca me disseram: “Nós vamos bater a
caixa”.
AJ: Não sei como nós nascemos com esse sangue, não é? Esse sangue negro
mesmo.
269
JC: Porque, graças a Deus, eu sou um cara que não bebo, não fumo. Até porque a
comissão que eu convivo são mais as mulheres, (só eu) praticamente no meio. E é
só mulheres de quarenta anos para cima, até a última idade. Mas se você observar o
grande respeito que eu tenho por elas e que elas m comigo, é uma coisa muito
importante.
B: O propósito é outro. Essa água é muito boa, de onde é?
JC: Daqui mesmo.
B: Do poço? Excelente a água, muito boa.
JC: Então, nosso objetivo é esse, cada vez mais melhorar.
B: E eu vou voltar o ano que vem e eu quero fazer um trabalho mais demorado com
vocês.
JC: Justamente. Quando a gente pega umas pessoas aqui, fazem o trabalho
bacana, bem original.
B: É, a gente veio fazer umas tomadas, para voltar.
JC: Se fizerem uma filmagem desse material que s temos, que fazem parte dessa
encenação dessa festa, porque as meninas/ são doze crianças, são doze
personagens, crianças de nove a doze anos, que são os personagens dessa festa.
Então, cada uma tem um significado ali. É muito bonito. São todas vestidas de
branco, vestidas até aqui [aponta para a canela], como se fosse no tempo do
Império. É toda uma história.
B: Isso é em agosto?
JC: É em agosto, do dia dezesseis ao/ mas o dia principal mesmo é o dia vinte e três
e vinte e quatro. Começa dezesseis, com uma alvorada. Aqui nós temos/ porque
essa música aqui é de (...) que a gente chama. Existe o Marabaixo quando a gente
sai na rua, o Marabaixo de rua. É diferente o baixo, diferente a música. Vou até tocar
para vocês ouvirem aqui para não saírem/ porque a gente tocou (no encontro de
capoeira).
270
JC: [começa a cantar] A bandeira chegou, vou embora, a quarta-feira chegou
no dia, na hora. No dia, na hora (...) Nossa Senhora no céu se alegrou, Nossa
Senhora, Nossa Senhora no céu se alegrou. Se alegrou com prazer e alegria, se
alegrou com prazer e alegria. Jesus Cristo, rei da glória, filho da Virgem Maria. Jesus
Cristo, rei da glória, filho da Virgem Maria. De madrugada eu fui ver a Conceição, de
madrugada eu fui ver a Conceição. Encontrei Nossa Senhora com um raminho de
ouro na mão. Encontrei Nossa Senhora, Nossa Senhora com um raminho de ouro na
mão. Pedi um cadinho, ela me disse que não, pedi um cadinho, ela me disse que
não. Fui pedir, ela me deu o seu cordão, fui pedir, fui pedir, ela me deu o seu
cordão. Frade São Francisco, me desmancha esse cordão, Frade São Francisco, me
desmancha esse cordão. Que me deu Nossa Senhora pelas suas bentas mãos,
Nossa Senhora, Nossa senhora pelas suas bentas mãos.
JC: [volta a conversar] Então isso vai seguindo, sabe? É uma coisa bem, bem
demorada.
B: Isso é uma saída?
JC: É. Demora mais porque sai na rua, assim, o pessoal/
B: Parece uma ladainha.
JC: Aí o pessoal bate a mão assim um no outro e roda. Vão se divertindo.
B: Josué, estou levando seu disco para São Paulo, para mostrar para o povo e
espero voltar no ano que vem.
JC: Nós temos a agradecer por essa divulgação. E isso é um pouquinho da
nossa cultura, não é nem a metade.
B: Isso é uma cabeça de alfinete que eu estou levando, mas eu quero vir aqui para
levar um monte de alfinete.
JC: Com certeza, o dia em que você vier, marque. “Tô indo para aí”.
B: Eu quero pegar o endereço de correio de vocês, aí pega uns peixes para a gente
comer.
271
JC: Com certeza, a gente aqui, graças a Deus, está no meio de uma fartura.
B: Que árvore é essa?
JC: É cupuaçu.
B: Nunca tinha visto a árvore.
JC: Está cheio o quintal aqui de árvore e está cheio de fruta também.
B: Você gosta de cupuaçu? Está bom, Josué. Muito obrigada.
39” 42 a 40” 19’ [fotos]
B: Rosângela, que é da comunidade da Vila do Coração, que é de um grupo de
mulheres que trabalham, que se reuniu para fazer um trabalho usando todo o
material da floresta para fazer com que gire um pouco mais de dinheiro na
comunidade, e são fundamentalmente mais uma das comunidades negras aqui da
região, entre Mazagão e Curiaú, essa região toda de Macapá. Rosângela.
R: Bom, eu sou a Rosângela Nascimento Costa, eu sou descendente daqui da
comunidade. Meu avô, seu João Costa, um dos primeiros moradores que fundou
aqui a comunidade da Vila do Coração, e minha avó, dona Carmelina Geraldo da
Costa, teve um romance. Eles não chegaram a casar. Teve um romance com João
Costa e daí nasceu meu pai, Raimundo Sá. Teve uma infância todinha aqui na
comunidade da Vila do Coração, criando gado, plantando roça e, depois de adulto,
ele foi para a cidade, morar em Macapá, a dezessete quilômetros. E a gente cresceu
lá, mas sempre a gente vinha aqui na comunidade visitá-la. Ficaram os outros/ o
irmão dele, que é o tio João Costa, que mora aqui. É o morador mais antigo, tem
noventa e seis anos, ainda continua vivo aqui na comunidade, mas um pouco assim.
Daquelas terras que eram do meu pai, foi se perdendo com o tempo, e cresci na
cidade vindo aqui de vez em quando visitar a minha avó, com aquele desejo de um
dia retornar de vez para cá, para a comunidade, para resgatar um pouco daquilo que
a gente viveu na infância, que meu pai viveu, com a minha avó. E não deu outra.
Depois de adulto, a gente conseguiu readquirir um terreno e viemos para cá,
construir essa casa. Meu pai era pedreiro, mestre de obra, e a minha mãe,
costureira. Assim, sem nunca ter feito curso, meu pai construía casas, desenhava
272
planta de casas, sem nunca ter conhecido nenhum engenheiro na vida, porque,
naquela época, não existia aqui em Macapá. E a gente foi desde criança, minha mãe
costurando, nos criando assim, a gente foi convivendo com aquilo de pegar
retalhinho de pano embaixo da máquina de costura e fazer um vestidinho de
boneca. Quando chegava na época do Natal, minha mãe fazia os enfeites de Natal,
fazia os arranjos, as árvores de Natal de galho de pau, e a gente foi convivendo com
aquilo, aprendendo desde criança. Não deu outra. Aí a família toda, quando se viu,
estava fazendo artesanato. E depois que a gente cresceu, fazendo artesanato,
depois para sobreviver fazia os arranjos de Natal. Quando chegava na época dos
Finados, nós fazíamos as flores para levar para o cemitério. Na época da coroação,
no mês de maio, de Nossa Senhora, a gente ia na igreja, fazia as grinaldas dos
anjos, e assim a gente conseguia ganhar algum dinheirinho. Eu lembro, assim, que
tudo isso foi juntando aquele desejo, aquela vontade de/ eu sempre tinha aquele
desejo dentro de mim: “Um dia eu vou voltar para lá, para onde meu pai viveu com a
minha avó e vou fazer alguma coisa por aquela comunidade, para levar o nome,
para fazer alguma coisa pela cultura”. Quando a gente adquiriu o terreno, eu vim
para cá, eu lembro que juntava, assim eu, mais a minha filha, a outra minha irmã, a
Nete, e começávamos a fazer artesanato informalmente, nós. Isso foi
despertando interesse na comunidade. A mulherada, quando passava, ficava
curiosa sobre o que a gente estava fazendo. Aí, foi juntando uma, juntando outra.
Todo mundo era bem-vindo, foi juntando e o grupo foi crescendo. Aqui dentro, a
gente tem a intenção de criar uma associação de artesãos. Foi criando aquele
grupo, foi crescendo, crescendo. Chegou um ponto que os próprios senhores aqui
da comunidade, as crianças, eles iam para a roça, que aqui é o caminho que vai
para a roça, e achavam uma semente bonita, diferente e traziam para a gente:
“Olha, dona Ro, serve para alguma coisa?”. A mulherada começou a produzir as
bijuterias a partir daí. Isso também despertou interesse nelas mesmas. Nós temos
um dia que a gente tira para ir dentro da mata ver a semente que a gente mesmo
cata. Se vocês tivessem a oportunidade de nos acompanhar lá embaixo das árvores,
como é gostoso. A gente tem as botas embaixo, a gente vai dentro da mata, pega
as sementes, pega as fibras, pega as (foias), isso tudo. Eu sempre digo assim: “A
gente tem esse impacto com elas”. Elas têm muito orgulho de aprontar uma peça e
depois contar a história, sabe? Isso sim é que faz o diferencial.
273
B: O percurso da peça.
R: Isso.
B: Isso é uma questão de arte, já ultrapassa o artesanato.
R: Isso. Elas gostam muito. A gente não vende o artesanato, assim por vender, mas
vende a história, sabe? Às vezes, a gente nem sabe o tipo de semente que tem, por
exemplo, dentro, e vem outro senhor da comunidade. Tem essa integração. É
muito legal. Outra coisa que é muito forte aqui dentro da comunidade é que as
nossas artesãs, elas dançam. São as mesmas que dançam o Batuque, que dançam
o Marabaixo, que participaram agora dos tambores dançando o Batuque, o
Marabaixo, levando o nome da comunidade. Então, a inspiração que elas têm para
produzir as peças vem daí. Os colares têm uma linha mais voltada para o lado afro e
voltada para a cultura do Marabaixo, que são as bonecas negras, as bonecas de
palha, sempre estilizadas, representando o Batuque e o Marabaixo.
B: Aqueles tambores.
R: Os tambores do Marabaixo, o macaco, que é a caixa que se bate um outro som.
Tudo isso a gente faz aqui e, se vocês tivessem vindo mais cedo, teriam tido a
oportunidade de ver.
B: É que é muito distante e nós só conseguimos o carro na hora do almoço. Saímos
de Macapá era uma da tarde, não demos conta de chegar aqui a tempo. Agora,
Rosângela, essas pessoas que fazem parte da comunidade, são pessoas de um
grupo de origem afrodescendente, daqui do Coração também?
R: Sim, todas elas. As mulheres que fazem parte da nossa associação
necessariamente são moradoras daqui. A maioria delas são das famílias mais
antigas. A gente diz que todo mundo é parente aqui na comunidade.
B: Qual o nome das famílias? Porque o que eu tenho visto é que realmente cada
comunidade tem uma relação familiar muito grande.
R: Tem a família Damasceno, que a Maria Paz ela é presidente de um grupo
folclórico daqui, que dança o Marabaixo. Tem a família da dona Diva, que é a
274
mesma família minha, Costa, que é das festas tradicionais, do Batuque e Marabaixo
também. Tem a família da Vera Rola também, que é um dos antigos, entendeu? A
família da dona Saduca também, que veio daqui do Mazagão, atravessando para
e foi se juntando. Dona Saduca é a (barqueira) mais antiga aqui da comunidade e
acho que do estado. Ela tem noventa e cinco anos, dança o Batuque. Manhã eu
posso ter a oportunidade de levá-los lá.
B: Amanhã, se a gente conseguir o carro, com certeza a gente virá. Esse senhor,
seu João Costa e essa senhora.
R: o os mais antigos aqui da comunidade. Ela gosta muito de contar a história
dela. Ela conta melhor do que a gente.
B: Claro, sem dúvida. E eu queria perguntar: você tem lá embaixo a associação.
R: Dos artesãos do Quilombo de Artes Tapuia.
B: Esse nome vem de quem? Quem criou? Como é que surgiu?
R: Olha, foi assim. Como as primeiras mulheres que juntavam aqui eram negras,
senhoras negras, da minha cor, assim, da comunidade, a gente começou a chamar,
assim, de senzala, primeiro. “Vamos para a senzala fazer o artesanato”. Depois, a
gente achou que quilombo era mais bonito. Era uma reunião de mulheres. A gente
tem isso muito entre a gente. Além de a gente fazer o artesanato, a gente conta o
dia a dia, sabe? O que acontece com a gente. Uma conta uma coisa alegre, outra
conta uma coisa triste. Geralmente, elas são muito alegres (lá embaixo). E ficou o
nome quilombo. A gente quis fazer uma homenagem ao meu avô, João Costa,
negro, velho, antigo, que morou aqui. Mas, ao mesmo tempo, a gente tinha muita
vontade de homenagear a minha avó. A origem dela, índia.
B: Tapuia.
R: É. Chamavam ela assim, pelo apelido, e a gente nunca tinha pesquisado, nunca
tinha prestado atenção no que era tapuia. Achava que a gente não dava valor.
Criança, moleca, não dava valor. E quando foi um dia, a minha irmã, nós estávamos
reunidas numa exposição no Centro de Cultura Negra, e a minha irmã disse: “Ro,
vamos completar o nome da nossa associação?”. Não vai ser quilombo.
275
Quilombo de Arte. Mas a gente vai colocar um nome indígena. E ela começou a
cantarolar uma música que tem aqui em Macapá, que é do grupo Pilão. O grupo
Pilão é um grupo tradicional que faz músicas voltadas para a cultura da terra. E ela
começou a cantarolar: “Tapuias”. Ela estava com o apelido da minha avó na mente e
começou a cantarolar a música: “Tapuia, José, tapuia, tapuia para pegar o camarão”.
Quando ela terminou de cantar “Tapuia para pegar o camarão”, todo mundo que
estava ao redor começou a rir dela, porque a música não é tapuia, é gapuia.
Ninguém tapuia para pegar o camarão, se gapuia. Chama no linguajar caboclo
gapuiar para pegar o camarão. E todo mundo riu dela e ela ficou assim com
vergonha. Depois ela disse assim: “Mas eu falei tapuia, porque eu lembrei da minha
avó, e casou bem”. ela disse: “Ro, é uma inspiração”. É uma feliz coincidência
que veio de dentro, então vai ficar tapuia. ela disse: “Quilombo de Artes Tapuia”.
Ficou bonito o nome, e a partir daí, a gente nunca mais deixou de chamar o nome do
nosso Quilombo de Arte Tapuia. Homenageou as duas coisas e foi uma feliz
coincidência.
B: E eu acho que o espaço que o seu pai construiu com vocês foi um espaço
belíssimo. Uma casa linda que dá de frente para a lua, de frente para o lago. Tem as
araras, tem tudo aí. Eu queria que você mostrasse o ateliê para a gente. Pode ser?
R: Tá. uma observação, Berenice. A casa foi construída depois que meu pai
faleceu, foi meu marido. foi meu marido que fez assim. Meu marido, antes de
eu casar com ele, ele conheceu meu pai antes de falecer. Meu pai tem quinze anos
de falecido. E o meu marido é muito cuidadoso. Eu digo, assim, sempre, ele foi o
meu primeiro incentivador, porque ele, para fazer um ateliê do jeito que ele fez
embaixo, com maquinário, mobiliou de tudo, as peças básicas que a mulherada
precisava. Sempre digo assim: “Eu sou muito feliz por ter sido filha do meu pai e ter
casado com a pessoa que eu casei”. Juntou tudo assim. Um pouco de cultura, um
pouco de oportunidade que a pessoa que eu escolhi para viver me deu na vida, de
ter tudo isso aqui e ainda mais de poder compartilhar com as minhas companheiras
aqui da comunidade.
B: Que você tinha escolhido para você.
276
R: Porque as minhas companheiras, que trabalham comigo, eu tenho muito amor por
elas. Elas são mulheres desempregadas. A dona Gorete, por exemplo, que planta
horta. Se você acordar às cinco horas da manhã e olhar aqui na varanda, você vê a
dona Gorete plantando a sua verdura, trabalhando, cultivando. A dona Dica, por
exemplo, tem mais de cinquenta anos, quase sessenta anos, mas ela faz os
artesanatos às tardes aqui conosco e, quando chega o horário de folga, ela vai para
a cidade fazer a faxina das casas. Sabe? Tem a Marilena, tem a dona Socorro. A
dona Socorro, por exemplo, faz os (paneirinhos) lindos, mas, na hora de folga, a
Marilena, quando não está aqui, está no lixão. Ela é (carapirá), sabe? Ela junta
papelão, ela junta latinha para vender.
B: E vocês têm um jeito de como um quilombo cooperativo, de reverter a renda disso
para essas famílias?
R: Eu sempre digo assim: “Alguma coisinha ainda está faltando aqui no quilombo”.
Tem toda estrutura, tem matéria-prima abundante aqui dentro da mata, tem a
vontade delas, tem o próprio design que foi criado na linha, que faz o diferencial.
Uma única coisinha que está faltando ainda um pouco é a comercialização. Porque,
como vopode ver, é distante da cidade. Então, a gente o tem um local ainda
para comercializar as peças. Às vezes que vêm os turistas aqui, alguma pessoa, o
SEBRAE traz, ou a gente leva nas feiras do SEBRAE e vende tudo. Isso está
faltando. Essa semana, por exemplo, agora, todo mundo ficou com o seu dinheirinho
por causa do equinócio, foi uma felicidade, assim, geral. Três delas estavam sem o
gás na cozinha, cozinhando no carvão, e conseguiram comprar o gás, conseguiram
comprar os alimentos. Foi uma felicidade geral depois que terminou. E recebemos
encomendas para o Natal. Elas estão produzindo embaixo presépios, anjinhos e
está uma perspectiva, assim, boa. Mas eu tenho um sonho, sabe, Berenice? Eu
tenho um sonho, assim, que é muito vivo dentro de mim e delas, de a gente
transformar aqui o quilombo em um polo de produção artesanal, onde se venha
muita gente, compre o artesanato todos os dias, que para as minhas
companheiras não precisarem/ não desmerecendo as outras atividades que elas
fazem, mas de ficar, assim, trabalhando só no artesanato.
B: E com isso dar conta/
277
R: Dar conta de sustentar a família, de sobreviver. Eu tenho esse sonho.
B: Vamos ver, vamos atrás. O sonho a gente tem que correr atrás, mas eu acho que
vocês estão indo em um caminho bastante correto. Vocês, com essa parceria com o
SEBRAE, acho que vocês podem conseguir um pouco mais. Fazia parceira com o
aeroporto, com polos rodoviários, ter uma barraquinha, uma coisa lá. É onde passa o
turista. Então pensa um pouco nisso. No que puder contar com a gente para a
divulgação, a gente está às ordens. Muito obrigada. Vamos dar uma olhadinha lá?
56” 45’ a 59” 30’ [cenas no ateliê]
278
Transcrição DVD 02
Gravação realizada em: novembro de 2004.
Entrevistados: Esmeraldina dos Santos, Dª. Francisca dos Santos (Dª. Chiquinha),
e Padre Paulo.
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Curiaú.
Tempo total de gravação: 01h 02min 41s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; E: Esmeraldina dos Santos; Loc01: Locutor não identificado; F:
Francisca dos Santos (Dª. Chiquinha); Pe: Padre Paulo.
279
00” 00’
E: Tem que ir no cartório e registrar, porque tem gente/ como aconteceu com a
Xuxa, não é? Disse que o nome da filha dela ia ser Sasha, aquele cara registrou
aquela firma e, hoje em dia, a Sasha não pode fazer nada.
B: Não sabia disso. Existe isso?
E: É uma história muito/ existe sim. Muito louca. O cara chega e diz: “É minha, fui
eu que fiz”. Autoria é minha. Aí, a gente já fica assim.
B: Olha, Esmeralda, esse é o meu endereço.
E: A gente vai colocar o nosso aqui para a senhora.
B: Cante aí a sua música.
E: [canta] no mundo da lua, me sinto tão nua, eu quero andar. na estrada,
gastando sapato pra lá e pra . Mas ainda me sinto tão velha, vou para (favela)
pagodear. Quando eu me sinto sozinha, volto pro Laguinho, eu vou descansar.
ficando com medo, sem emprego, preciso me alimentar. Só que a idade não
deixa, eles querem me aposentar. Vou viver de pagode, o que eu quero é pagodear.
[corte]
E: [canta] Sonho de uma mulher, queria trabalhar para poder se sustentar.
[conversa] É essa a música.
[corte]
E: (Perco) um pouco, mas está tudo no papel. [canta] Vou viver de brisa, vou viver
de brisa. Vou viver de brisa, se não tiver o que trabalhar. Vou viver de brisa, vou
viver de brisa. Vou viver de brisa, que eu não posso mais trabalhar. [conversa] Essa
música o Macunaíma (cantou).
[corte]
E: Trabalhar, não é? eu peguei, (disse) para os meninos, todos meus sobrinhos,
“Pô, tia, pode pegar essas músicas?, ”Toma, leva”.
280
B: Para a família você dá.
E: Dou para a família.
B: Mas vamos registrar. Vocês têm o registro da Biblioteca Nacional aqui?
E: Acho que não, aqui da nossa casa, não temos.
[corte]
[trecho com o áudio com muita interferência de 01” 54’ até 18” 34’]
E: Minha mãe deve lembrar, porque nós era para puxar Machado, que é do meu pai,
mas a gente puxou Santos. O meu pai é (...) Machado de Santos, porque, na época,
a gente puxava para os padrinhos, e não para o pai.
B: Ah, puxava o nome do padrinho.
E: Do padrinho, o do pai. É como meu finado irmão Saci, que era JoRaimundo
Ramos dos Santos, pelo padrinho dele.
B: Ramos dos Santos.
Loc01: Tem a ver com o nome do pai do Ladinho, o Julião Ramos?
E: É, tinha a ver, porque eles colocaram Julião, mas depois nem ficou, ficou Ladinho,
porque era Ladinho.
B: A gente está aqui falando das famílias, como era o nome das famílias. Machado,
Santos Ramos, os primeiros.
F: Os primeiros? Chamava Linos.
B: Linos.
F: Depois do Linos, teve (meu pai) Francisco Nonato, teve João Inácio dos Santos,
Maria Domingas dos Santos, (Feliciana).
B: E aí as famílias vão se juntando?
281
F: Maior de Curiaú. Nasceu/ E quando eu nasci, a minha avó (...) com meu pai,
minha tia Benedita Ramos dos Santos, Manoel (...) Ramos (...) Ana Maria Ramos,
aquela minha tia que quase (...). Tinha o João Inácio, que era filho de Rosa. A Rosa,
eu já não sei o sobrenome da Rosa. (...) Eu já não sei o nome dela inteiro.
B: Então é Linos, Inácio dos Santos, os Ramos e os Machado.
F: Machado é passado do Leopoldo Machado, que era padrinho deles. Ele batizou
João Milton.
Loc01: E a Rua Leopoldo Machado tem a ver?
E: Tem. O Pedro Lazarini era avô de minha mãe.
F: O Pedro Lazarini era o meu avô.
Loc01: Ah, o seu avô era o Pedro Lazarini?
E: (Contam) no livro que é que eles não tinham dinheiro.
Loc01: Eu conheci um filho do Amilton Silva.
E: Eles eram fazendeiros, então eles o tinham/ nunca serviram para ser tenente,
coronel e tal, mas tinham dinheiro para comprar patente, e passou a se chamar
capitão (Pedro Lazarini).
F: João Pedro era Machado, era Leopoldo. Leopoldo Machado.
B: Eles compravam as patentes?
F: (...) Teodoro Mendes.
B: Teodoro Mendes também é rua, não é? E como é que pode, não é, Esmeralda?
Vocês terem nomes nas ruas e passar privação, passar necessidade?
F: Desse lado não dão nenhum valor a nós. Vou lhe dizer que o governo daquele
prefeito, ele não tem (os olhos na) pobreza.
Loc01: (...) deu o nome do Bairro Muca? Mas a casa dele (...)
282
F: Esse era um fazendeiro, meu filho. Foi cria de Jorge Picanço. Conhece a família
Picanço? O (...) dos Picanço é irmão de criação do (...). Era preto.
B: A família Picanço era branca?
F: É branca, é branca. (Joaquim) Picanço era primo do meu pai.
Loc01: Tem algum descendente aqui no Curiaú?
F: Tem aqui no Curiaú e tem para Mandaquari. Aqui, tem uma invasão aqui, grande.
Nessa invasão aqui, (Leopoldo) fazia casa.
Loc01: Mandaquari é uma localidade.
F: Era uma fazenda. A mãe dele foi para lá, sabe por quê? [inaudível] Daí ela casou
com ele (...)
Loc01: Ele tinha uma grande extensão de terra, depois evoluíram, a cidade começou
a levar o progresso e botou o nome do Bairro Muca.
F: Se o fossem, meus amores, se arrumassem o pessoal mais velho,
conhecedores, se os filhos, netos se interessassem aqui não tinha essa invasão.
Isso aí é do Leopoldo Machado.
B: Pois é, essa família do Leopoldo (...)
F: Passava aqui, aqui. Esse caminho era trilho de passar carro de boi e cavalo.
(...) para Macapá tinha uma (balsa) que pulava o lago, então passava lá. Daí
descobriram esse pedaço, essa mata aqui, você olhava a casa dele (...)
B: E aí ele?
F: Desistiu (...)
B: Com a casa (...)
F: Hoje em dia, se a senhora arrumar um pedacinho de terra, trata logo de cercar.
Esse tempo, não. Ninguém tinha missão com nada. Você podia descer (e gapuiar)
em qualquer (poça), você podia descer no igarapé (...) não pegava, tu compreende?
283
Igarapé, (...) pegar os peixes (...) pescando. Hoje, desse lado, não tem nada a ver
(...).
E: Ficou diferente hoje.
Loc01: Quer dizer que quando o Waldez assumiu, tirou (...)
F: Acabou tudo, acabou tudo.
E: Tirou a gente do (...). Vosabe que ali fazia cursos, as pessoas saiam dali
para o mercado de trabalho. Aí, ele pegou e disse que não, não. Hoje virou uma
boate lá. De vez em quando, tem festa lá no (...)
B: Mas o Capi, se ele voltar, ou voltar a Janete, o governo que voltar, vai ter muito
trabalho.
Loc01: Vai ter que refazer tudo de novo.
E: Vai, para ajeitar de novo.
B: Tem que refazer tudo o que estava pronto.
Loc01: O Capi sempre passa aqui para (...)?
E: Passa, todo sábado pela manhã ele passa.
F: Ele passa ali, eu grito. Daí ele para.
E: Porque eu digo assim: “O governo que vem para ajudar o povo, ele está no meio
do povo”. Porque o nosso Waldez não está no meio. Ele não é do povo. Ele não é
do povo. Eu conversei com ele na chegada dele, meus amigos me levaram para
ele, conheci e tal, mas não tem interesse.
F: Dois governadores, veio o Marcelo e depois esse. Marcelo não valor a nós.
Nunca deu valor para nós. Nós tivemos apoio, a nossa cultura de Macapá, o primeiro
governador que foi (...) esse não é solidário com a gente. Depois, entrava um
carinha (...) nós se virava para fazer a nossa festa. Quando o Capiberibe sentou na
cadeira, nós temos ajuda. Da despesa para a nossa festa, do (açougue), café, arroz,
tudo vinha, até os pedaços de (fita, de crochê).
284
B: Todo mundo fala: “Mas o governo não é ele, não sei o quê”.
F: Esse pessoal que fala assim não sentiram na pele ou são contra ele. (...) Por que
não quer? Nós fomos para Brasília, eu cheguei primeiro lá. Eu cheguei não sei se foi
sábado.
E: Chegou em São Paulo. Em Brasília, nós chegamos todas juntas.
F: São Paulo, São Paulo. Cheguei nove horas da manhã e essa viajou às duas
horas da tarde, chegou à noite. Em Brasília, sim, eu fui para Brasília, ele era
(senador). Chegamos (...) cumprimentar. Chegamos lá, senhora. tem horário de
sair, tem horário de entrar. Só não podia andar descalço, não podia andar de
sandália, não podia andar de bermuda e nem de vestido assim.
E: (...) o militar de Bralia, foi.
[Esmeraldina e mãe falam ao mesmo tempo]
F: Nós fomos para Macapá, esse, o João/ e agora, como era o nome dele? (...), era
prefeito. A gente chegou às seis da noite. Nesse dia (...) estava vindo para nos
buscar (...) longe. Nós chegamos lá era umas seis horas. Saiu uma escola de samba
(...). Segunda-feira. Sábado, segunda-feira nós saímos. Fomos fazer (...)
B: A Janete?
F: (...) Todo mundo que foi, todo mundo, acompanhante, foi jantar. Quinta-feira (...)
das coisas (...) melancia (...) eu não quis comer, não. Você anda de avião, o pode
para fazer (...).
B: Eu acho que se ele voltar, ele vai ter um bom trabalho pela frente.
F: Vai ter muita gente trabalhando com ele, pedindo ajuda.
E: Eu acho que é uma tristeza o que estão fazendo com ele, porque quando uma
pessoa não ganha, não é porque “Ah, eles compraram voto”. O meu voto ele não
comprou, eu votei para ele. Eu votei para ele para senador.
B: Mas parece que foi armado, não é?
285
E: Eu votei para ele para senador e votei para o meu médico, médico do meu pai,
que papai (...) Deus o livre, que ele era tudo pelo meu pai, quando meu pai adoecia.
Quando ele estava doente, que ele passava, ele tinha que parar lá em casa para ver
papai. Um ser humano incrível aquele homem. Então, eu digo: “Vou votar para eles
dois”. E eu votei para os dois, que o outro perdeu e agora quer dizer que o outro/
eu acho que isso deveria de ser/ a justiça, se existisse justiça nesse Brasil. Não,
bora ver. Colocava os dois. Vamos fazer uma eleição só para os dois, entende?
B: Fazer de novo, como teve na Colômbia (...) e ganhou de novo.
E: Ganhou de novo, para você ver. Vamos embora fazer de novo, tinha que ser
assim e não ficar julgando que todas as pessoas “foi comprado o voto”. Não foi.
Loc01: Quem é que compra voto aqui? Eu saí atrás na eleição para vender,
ninguém compra.
E: Ninguém compra [ri]. Eu fico parada assim também e digo: “Hoje, eu vou vender
meu voto”, eu vendo nada. Quem compra o meu voto?
Loc01: Ninguém compra.
F: [vozes sobrepostas] Pode perguntar (...) não devo falar nada.
E: Meu nome é Esmeraldina dos Santos, Rodovia do Curiaú, o carteiro vem
direitinho aqui. Quilômetro quatro, número quinhentos e dezessete. Na maloca,
vem direitinho aqui. Na maloca entre o rio.
[vozes sobrepostas]
[corte]
F: [canta] (...) a vida é boa, eu não faço nada, doze mil réis eu ganho à toa, doze mil
réis eu ganho à toa. Doze mil réis não para nada, para comprar cigarro e
nem pra pagar roupa engomada.
[corte]
F: [canta] Vou na casa da Ana, tem uma crioula que corta o cabelo à baiana. Eu
ouvia falar. Vou na casa da Ana, tem uma crioula que corta o cabelo à baiana.
286
Menina casa comigo, você não vai passar fome, a mamãe tem cevado, ela mata,
nós come. [conversa] Só (...)
B: É bastante. Porquinho cevado.
F: (...) Igual nós fizemos, assim, começava a cantar e os meus netos/ teve uma
vez uma (...) eu comecei cantar na casa da minha filha para eles. Depois o
vizinho foi perguntar se era músico, assim, de fora. “Não, a minha tava cantando”
[ri].
B: Era a minha avó que é cantora. É uma cantora.
F: Eu canto assim, eu canto às vezes. Eu tenho um neto que ele acompanha quando
a gente está cantando e ele está acompanhando a gente com a minha voz.
B: Ah, é? Ele canta?
F: É.
Loc01: (...) das minhas andanças dá para colocar muita coisa aí.
F: Adelson.
Loc01: Adelson Preto.
F: Adelson dos Ramos.
B: É Pedro? Pedro, aquilo o que é? Aquela casca.
F: Aquilo é o bacaba.
B: Ah, aquilo é o bacaba. Eu não gostei muito da bacaba. Gostei não. Travou.
18” 34’
Pe: Aqui já seria o fim. Pra lá já seria França já.
B: Seria a Guiana ali em cima, e o meu trabalho é também um pouco por aí. Eu
estou procurando a linguagem de fronteiras, aí a linguagem por conta da questão da
linguística, que eu sou da área da linguística na universidade.
287
Pe: Nós nhamos aqui, inclusive onde eu nasci, aqui perto, nós tínhamos umas seis
famílias de guianenses que vieram de lá.
B: A minha suspeita era a de que havia um cruzamento maior, e não há. O
cruzamento é muito mais daqui para cima, do que deles para cá. Tem muito menos
migração deles para cá, mesmo por conta da situação financeira.
Pe: Que lá é infinitamente melhor do que aqui.
B: Claro, a França dá subsistência para aquela colônia de uma forma real mesmo.
Só o fato de eles terem uma moeda forte como o euro já hoje, era o franco.
Pe: No início do culo passado, vieram muitos para cá, casaram com brasileiros e
fizeram família aqui. Inclusive perto da minha casa, dos meus pais, tinha seis
famílias de guianenses.
B: E a minha ideia seria dar uma olhada o ano que vem, ir até o Oiapoque.
Pe: Inclusive veio de um jornalista, ele veio fazer uma pesquisa aqui também,
fazendo essa relação entre Guiana e Brasil. Queria pesquisar por onde os
guianenses entraram.
B: A minha ideia é realmente fazer o mapeamento negro do Amapá, quem é essa
gente que veio para cá. Eu estou muito surpresa, porque, efetivamente, no Amapá,
tem uma situação negra muito especial. A questão das comunidades é uma coisa
muito sui generis.
Pe: A senhora não foi no Igarapé do Lago?
B: Ainda não fui/ é porque é tudo muito difícil. A gente está botando dinheiro do
próprio bolso, então para nós fica difícil a locomoção, tudo isso, e nós viemos,
participamos do Fórum de Cultura. Vimos uma movimentação interessante, algumas
falas importantes. Nem tudo são flores, mas a gente viu uma coisa interessante e
depois fomos pro UNA e tivemos a chance de ver a sua missa, a sua celebração e
nos interessou muito conversar com o senhor para saber um pouco como é que é
isso, como é esse trabalho. Porque me parece que, no Amapá, as pessoas não
querem ser nem descendentes de índios e nem descendentes de negros, e fica uma
288
coisa de coluna do meio inexplicável, porque a miscigenação é real, es para
todo mundo ver e, assim, não existe entre os negros uma mistura visível dos índios.
Mas existe entre os caboclos a mistura negro e índia. Ribeirinho? Ribeirinho você
percebe que são negros e índios que formaram aquela população. Independente
dessa questão antropológica, eu queria ouvir um pouquinho como é que o senhor
veio para aqui, se o senhor é de Macapá.
Pe: Sou daqui.
B: Como é que é a história? Porque eu senti o seu discurso, um discurso muito
político, muito forte, é um discurso importante, em minha opinião. A situação do
negro brasileiro que não é das dez mais.
Pe: Aqui no nosso lado, eu até tentei, mas não entendo, a questão do sincretismo
religioso era muito forte até o início do século passado. Em dezesseis, mil
novecentos e dezesseis, chegou um padre aqui, Padre Júlio, parece que suíço.
Havia toda uma sintonia entre a religiosidade popular e a religião oficial, no caso era
o catolicismo. Inclusive como tem hoje na Bahia a lavagem do Bonfim, aquela coisa
toda. Aqui também tinha uma coisa similar e eles começavam a celebração do ciclo
do Marabaixo dentro da catedral, que é o prédio mais antigo daqui da cidade. Aí,
esse padre chegou e disse que aquilo era coisa do diabo, que era/ não podia
acontecer e eles tinham que sair, deixar essas poluições, digamos assim, que existia
dentro. Eles tinham que viver um catolicismo autêntico, europeu mesmo, naquele
sentido, sem sincretismo, sem nada. E proibiu os negros de fazerem aqueles rituais
que começavam dentro da igreja.
B: E (...) dos rituais?
Pe: Eram os mesmos que são feitos hoje, mas que são feitos hoje, geralmente, na
casa do festeiro. Aquela cerimônia que hoje está reservada/ aqui, cada comunidade
tem o seu centro de convivência, e aí as cerimônias, elas se o nesses dois
aspectos: uma parte na igreja. Cada comunidade dessa, trinta e duas parece, não
sei, cada comunidade tem a sua capelinha. Tem os padroeiros, as comunidades que
têm seus padroeiros. A festa acontece dentro da igreja, uma parte no centro, e
tem as famílias também que fazem várias festas. E os padres, que aqui nós somos
uma igreja missionária.
289
B: Qual é a congregação de vocês?
Pe: Aqui tem os P.I.M.E., pessoal do P.I.M.E. São todos italianos. P.I.M.E. Pontifício
Instituto de Missões Estrangeiras, todos italianos. Então, nós somos aqui uns trinta e
cinco padres. Brasileiro mesmo, nós somos seis. Só seis. E entra aquela questão
que a senhora colocava. Entre nós seis, quer dizer, uns são, vamos usar esse termo,
são pardos, mas tem uns que se dizem índios, mas ele não tem, assim,
identificação. Quer dizer, o único que tem essa identificação mesmo com a questão/
que assume mesmo a identidade, sou eu.
B: É mesmo? Os outros são todos caboclos?
Pe: São todos caboclos. Aquilo que a senhora colocava, todos caboclos, sem
identidade. Sem identidade.
B: Porque me chamou a atenção, porque eu pensei até que pudessem ser
dominicanos, porque os dominicanos têm essa/ eu vou usar a palavra, talvez não
seja adequada, mas essa rebeldia, essa visão além do altar, além da liturgia.
Pe: nasce de uma questão que eles chamam hoje muito de inculturação. Eles
procuram entrar na realidade, essa questão toda que eles falam muito hoje, a
questão da cultura, valorizar. Aquilo que os portugueses, quando chegaram aqui,
não fizeram. Muitas congregações, hoje até missionários protestantes, católicos,
fizeram dentro das aldeias, estão fazendo, destruir, acabar com tudo.
B: A ideia hoje é de ser uma cultura diversa, assim como a religião é diversa, acolher
a todos. Botar todos debaixo de uma asa dos protestantes, da Assembleia de Deus,
dos batistas. Eu acredito que a igreja perca um pouco com isso. O que o senhor
acha? E nesse movimento de não dizer para esse povo: “Vocês o vão mais fazer
isso”. Isso pode ter perdido, a gente perdeu coisas no percurso.
Pe: É, porque depois do Padre Júlio, em mil novecentos e quarenta e oito, chegaram
aqui esses padres italianos do P.I.M.E. O Getúlio Vargas criou o território. Então,
aqui no Macapá, quando foi criado o território, era mesmo ali, o centro e os
negros. Eles moravam ali, onde é a residência do governador. Tudo era ali no
centro, girava em torno do centro. O rio vinha até quase que/ aquela parte na frente
da cidade, tudo era rio. Foi tudo aterrado.
290
B: Ali onde tem aquela pracinha? Aqueles coqueirinhos, aquela coisa?
Pe: Aquela praça, Banco do Brasil.
B: Ali foi aterrado?
Pe: Tudo foi aterrado. A Fortaleza ficava dentro do rio. O Rio Amazonas vinha até
aqui quase com o Cândido Mendes.
B: Com essas mesmas marés?
Pe: Tudo, tudo, tudo. Entendeu? Então, os negros, ali onde é a residência do
governador, na frente da igreja, tudo era negro. Tudo ali era casa de negro. Palafitas
de barro, como existe no Nordeste. Aí, quando virou território, o Janari chegou aqui e
tirou todos os negros que estavam ali em volta da catedral, da igrejinha, jogou pro
Laguinho. Era um lago que tinha.
B: Que era distante.
Pe: Era distante.
B: Hoje já é uma coisa um pouco mais/
Pe: Está dentro. Jogou para lá e depois foram para a favela. A favela mudou depois,
agora não é mais favela, mas tinha a favela e era também para onde os negros
foram. E aí, a cidade foi crescendo, crescendo, crescendo.
B: Expulsando sempre os negros para os lugares mais distantes. E o Curiaú, nessa
época o senhor nem cuidava da situação, Mazagão?
Pe: Não, não, porque eu tenho quarenta e dois anos. Não tenho assim, não tenho
muita/
B: Então o senhor nasceu aqui, na capital, no centro.
Pe: Nasci na capital.
[corte]
Pe: Vamos acertar. A senhora queria mais ou menos?
291
B: Não, eu queria que o senhor falasse mais ou menos isso o que o senhor está
colocando, dessa sua memória, porque o trabalho é a memória negra do Amapá e
perguntar um pouco a respeito da sua visão como uma pessoa da Igreja, uma
pessoa ligada ao movimento, que tem uma ordem, que tem uma ética, que tem uma
moral a ser preservada e o envolvimento da sua igreja ou seu com esses
movimentos dos grupos de Marabaixo que, fundamentalmente, são grupos de
remanescentes de quilombos. O que o senhor entende disso?
Pe: Eu não sei se vai complicar aí.
B: Não, não complica. É um trabalho acadêmico, não tem nada de política.
Pe: Não, não, eu sei. Na pesquisa, no trabalho que a senhora está fazendo. Porque,
às vezes, a gente/ até eu estava pensando. Eu falei por alto na missa. para o
Sul, tem muitas colônias italianas, japonesas, não sei o quê, portuguesa, e eles
mantêm/ o Amapá, é uma questão sui generis. Uma questão que foge daquilo que o
Brasil lá/ eu acho que nós somos uma ilha, entendeu? Nós, sempre eu penso assim,
sem ter estudado muito, acho que nós éramos o povo mais aculturado, puro. Tirando
os índios.
B: Seria o povo de cultura mais tradicional, sem muita poluição.
Pe: Sem muita poluição. Pela distância, o isolamento, entendeu?
B: Uma cultura mais fechada. Eu digo ao senhor que eu acredito que isso seja
verdade, sim. “Nós éramos”, mas eu vejo isso um pouco hoje. Tem uma coisa/ eu vi
nas comunidades, falei: “Não é possível, isso não acontece nos dias de hoje”.
Pe: A minha base é Macapá. Macapá hoje/ eu costumo sempre dizer que Macapá
começou a perder essa característica a partir de mil novecentos e setenta e quatro,
quando foi gerada a primeira imagem da Rede Globo aqui em Macapá, entendeu?
Então, naquela época, eu era molequinho de treze, quatorze anos, mas eu fazia/
então, eu vejo que Macapá, culturalmente, é dividido em duas partes, antes e depois
da televisão.
B: Eu já ouvi isso de uma pessoa em uma comunidade.
292
Pe: Então, a dominação cultural foi muito devastadora, entendeu? E a questão que,
infelizmente, aqui ninguém está estudando, na proporção em número de habitantes,
Macapá, no Brasil, dizem que é a maior em nível de suicídio de jovens. Quase que
toda semana são/
B: Que dado estranho esse.
Pe: Quase toda semana morrem três, duas pessoas que se matam aqui.
B: Falta de perspectiva de trabalho.
Pe: Perspectiva e falta, eu acho, dessa identidade.
B: Eles não estão mais identificados com o que era o Amapá.
Pe: Com nada, com nada.
B: E não podem se identificar com aquilo que veem na televisão.
Pe: Com o que na televisão. Justamente. Mais ou menos, eu acho que é um
fenômeno muito ligado ao que está acontecendo a uma aldeia, parece, do Mato
Grosso. A perda da identidade/não sei se a senhora acompanhou, acho que é no
Mato Grosso. O pessoal estava querendo estudar o porquê do suicídio dentro de
uma aldeia no Mato Grosso. Estava virando epidemia. Então, aqui em Macapá
também já há alguns estudos, algumas preocupações, mas muito superficial.
B: Nós vimos um pouco isso em Bailique, com os meninos vestidos todos de preto,
calças cargo.
Pe: Eu vi aqui um menino, quer dizer, de dez anos, tentou suicídio. Corda. Aí, ele
veio aqui comigo, o pai veio aqui comigo, porque eles pensavam que era espírito,
entendeu? Conversando com ele, conversando com a criança, “Ele viu na televisão”.
Ele viu porque apareceu um suicídio, alguém se matou, e a televisão, o canal foi lá e
filmou o cara pendurado. filmou, o moleque teve um probleminha lá.
Entendeu? Então, acho que a questão aqui da identidade cultural é uma questão
muito difícil, que precisa ser trabalhada. Eu acho que a Igreja, ela contribuiu muito
nesse sentido de ajudar a destruir, perseguir a cultura popular. Os padres
estrangeiros não conseguiram entender, não conseguiram mergulhar no mundo
293
mítico do caboclo, entendeu? E contribuiu para ele perder essa autoestima, essa
valorização/ aquilo que eu falava. Lá no Sul, quando o pessoal da Europa, os
portugueses, descendentes, eles trabalham a questão da valorização, do resgate,
de preservar. A memória é cultura, não é?
B: Aqui, não.
Pe: Aqui é bagunça, é folclore.
B: É folclore, é macumba.
Pe: É. Entendeu? E, até hoje, a Igreja, os padres perseguem muito essa questão do
sincretismo.
B: em São Paulo, eu fui em uma casa de santo, Francisco de Xapanã, que é de
Belém, e ele faz reuniões com todas as religiões e chama os padres e os
capuchinhos e os dominicanos frequentam a casa dele. Vão aos (...), vão a festas,
fazem ter essa integração com ele. Para mim, foi uma coisa completamente nova. E
aí, quando eu cheguei aqui e vi a sua fala, foi muito discutida a questão da missa e
da liturgia. Se era uma missa ou era uma liturgia. Então, para quem não conhece
muito missa, ficou achando que aquilo era uma missa. E quem sabe a liturgia, sabe
que não era uma missa.
Pe: Uma paraliturgia, se chama.
B: E essa discussão rolou, não sei se o senhor sabe, essa discussão continua
rolando depois do final da/ Ontem, a gente esteve com o pai Salvino, na UNA, e
tivemos com outras pessoas. A discussão é: “Será que a gente faz essa ligação, não
faz? Continua tentando?”. A Igreja continua empurrando. Como é que é esse
momento? O senhor não fez a missa porque a Igreja não deixou, porque o senhor
achou que não era/ como é que fica isso?
Pe: A questão é que aqui, na nossa cabeça, na nossa cultura ocidental, é muito
dualista, não é?
B: Tem bem e mal.
294
Pe: Bem e mal, ou é isso ou é aquilo. Homem, mulher, céu e terra, luz e escuro,
essa coisa toda aí, sagrado, profano. Então, para nós aqui, a questão de rituais, da
dança, do ambiente que a gente vive ainda é encarado muito como uma coisa suja,
uma coisa podre, uma coisa do mundo, uma coisa do diabo. As próprias pessoas,
elas não compreendem. Ao mesmo tempo em que elas estão ali, elas não estão.
Uma coisa que me chamou a atenção esse ano foi o comportamento das pessoas
ali, do público que foi participar da celebração. Foi totalmente diferente do ano
passado.
B: Para melhor ou para pior?
Pe: Para melhor, no sentido que eu percebi que eles percebem que o espaço
sagrado, ele se torna sagrado não quando está presente a eucaristia, que é o ponto
central da Igreja Católica, mas quando está os santos deles. Entendeu?
B: Aquilo é muito mais comunhão.
Pe: Ele se sente mais ligado, o respeito dele pela imagem. Eu vi que tinha uma
pombinha desse tamanho assim [mostra a ponta do dedo], toda cheia de fita. E eles
lá/ teve uma hora que/ o pessoal lá: “Olha, tem que segurar, para não deixar
roubar, não deixar cair, não sei o quê”. Então, o fato de aquelas imagens estarem
ali, transformou aquele local mais sagrado do que se tivesse a eucaristia.
B: Quer dizer, talvez a eucaristia tenha ficado, realmente/ passado despercebido e
as pessoas que não estão muito afeitas à eucaristia ou à liturgia completa da missa/
Pe: E essa questão da celebração, me disseram que rolou essa questão aí, mas
que eu vejo assim: que aqui em Macapá essa questão já foi trabalhada sempre, a
questão de encarar a questão do negro. Ideologia. Ideologizar a questão do
preconceito que o negro tem contra branco e o sei o que mais, aquela questão
toda. Cria guetos. Os brancos não podem participar, isso daqui é nosso ou não
sei que. Ou até mesmo o negro discriminar outro negro de outro bairro, de outro
lugar. Então, eu acho que essa questão rolou mais no meio desse pessoal
intelectual. Porque, na verdade, se tivessem me chamado para conversar sobre
essa questão, eu teria colocado isso muito claro. Por exemplo, a questão da bebida,
295
a questão da bebida no Candomblé, na Umbanda, quem bebe não é o cavalo, não é
a pessoa que/ é o espírito que está bebendo.
B: E é um mistério, porque a pessoa volta a si sem estar alcoolizada.
Pe: Então, e é proibido. Se um bêbado, uma pessoa bêbada chegar lá e for
bagunçar aquele ritual, aquele cerimonial, eles, com toda delicadeza, eles afastam
porque é proibido beber, os humanos. quem pode beber, quem pode fumar é
quem está incorporado. Então, a questão da/ a meu ver, foi a questão de o ano
passado, os outros anos tinham pessoas vendendo bebida, cachaça (...) e tudo mais
e o pessoal, justamente por não ter essa visão do sagrado, não ter essa/ então, não
entrava no clima de comunhão com aquilo que você estava celebrando e
atrapalhava um pouquinho. Em vez de você educar, o negócio virava bagunça. A
meu ver, a questão era essa.
B: E parece que a questão foi resolvida, porque até a bebida que estava sendo
vendida, estava sendo tomada com moderação, nada de complicado.
Pe: Porque, antigamente, nas celebrações, rituais de Batuque, Marabaixo, eles
bebiam só a gengibirra, que era a bebida sagrada.
B: Que é (gengibre, água) cachaça.
Pe: Mas era sagrada.
B: Mesmo porque essas bebidas, quando consumidas por grupos, por exemplo, no
Candomblé ou na Umbanda, ou os índios quando vão ao Santo Daime, quando
consomem essas coisas/
Pe: Santo Daime lá no Sul, chimarrão.
B: É para entrar em transe, entrar em alfa.
Pe: E partilhar. É o mesmo sentido do chimarrão. Um vai tomando, vai tomando, vai
tomando. A reunião.
296
B: Nas casas de Candomblé, você toma esse gengibre, em algumas casas em São
Paulo, em um movimento de comunhão, exatamente. Passa-se a bebida para todos
tomarem. Acho que ficou interessante mesmo.
Pe: Então, a meu ver, a questão da celebração, na minha cabeça, tinha duas
questões. A questão da falta de sintonia com aquilo que você estava celebrando, e
depois uma outra questão é realmente dentro da cidade, dentro dos grupos da
Igreja, dentro da renovação. Pessoal é contra a celebração dentro do espaço
cultural, porque logo depois tem a casa dos orixás, entendeu? o pessoal, Pai
Salvino (...) aquelas coisas todas, então ao ano retrasado, na mesma noite, tinha
a celebração da eucaristia, missa dos quilombos e, logo depois, tinha o encontro das
religiões afro. Aí, vinha o Candomblé, vinha Umbanda, vinham todos os guerreiros,
tal, tal, tal e, como era logo depois, eles estavam na celebração, que a maioria é
católico, entendeu? Então vinham, recebiam a comunhão. Eu digo: “Bem, mas se eu
estou aqui, se é um encontro, não tem sentido, na hora da benção final, eu dar a
bênção sozinho”, porque aí seria contra todos os paradigmas da/
B: Da própria religião.
Pe: E do próprio encontro. O fato de eu estar em cima, com a religião tradicional
predominante no Brasil, e dar a benção final lá, eu chamava todos os sacerdotes
das outras/ mas um site joga para todo o Brasil. Eles fizeram/ eles fazem um tape e
jogam para o Brasil e o mundo. o bispo recebia carta de vários lugares do Brasil
que a Igreja estava adorando o diabo. “Como é que pode misturar a celebração?”.
B: Ainda hoje, Padre Paulo, isso acontece?
Pe: Até o ano passado, vinha carta de todo o Brasil. Pessoal dizendo que a gente
estava cultuando Jesus Cristo, Oxalá, Oxossi, Tupã, não sei o quê, e que era
inadmissível um bispo católico/ onde é que estava o bispo que não via o exagero.
Aqui em Macapá saiu/ saiu. Eu não li, esses dias que uma amiga minha me disse. O
ano passado, logo depois, eu li o artigo que alguém escreveu no jornal aqui de
Macapá.
B: E esse ano, saiu alguma coisa?
Pe: Eu não vi, eu não vi.
297
B: E dá para lutar contra isso?
Pe: Lutar contra isso. Lutar contra isso. Eu acho que tem várias questões que me
entristece. Porque, primeiro, eu acho que a questão do negro, antes de ser questão
política, questão cultural, é questão de identidade. Ou você é, ou você não é.
Ninguém um dia vai dormir e acorda: “Ah, agora eu tenho que lutar”. É questão de
consciência, não é nem questão de cor, é questão de sangue. É questão de sangue.
A pessoa pode ter a sua pele e ser negro. Ser negro. É uma questão mesmo de/ eu
acho que ser negro é você sentir saudade da África, entendeu? Eu acho que é sentir
saudade da África. E sentir saudade não é uma coisa que ensinam para a gente. A
gente nasce com isso, entendeu? A gente nasce. Agora, o que pode acontecer
é a cultura dominante, o preconceito, a discriminação. Matar isso dentro de você.
Dizem que isso é coisa de doido, é doença, coisa do diabo, coisa que você tem que
esquecer, entendeu?
B: Você tem paroquianos que sejam do Candomblé ou da Umbanda?
Pe: O Pai Salvino, o terreiro dele faz parte aqui da paróquia. Fica aqui dentro da
paróquia. Tem aqui o/ tem mãe de santo. O pessoal fica escandalizado porque ela
recebe a comunhão. Ela recebe a comunhão.
B: Por que não receberia?
Pe: Porque acham que a mentalidade (...) do Brasil é que esse pessoal está
adorando o diabo e não pode. Não pode misturar.
B: Então, não teria muito como lutar contra. Mas só seguir fazendo, continuar
fazendo sempre um movimento, uma fala importante como a sua. Eu gravei, eu
tenho a sua fala gravada.
Pe: Então, eu acho que a grande questão para a gente trabalhar essa questão do
negro, é uma questão que está aí, a maioria de nós é negro ou é índio e negro e
índio. É a escola trabalhar essa questão. Nós não temos professores capacitados
para isso. As igrejas todas, a visão é uma visão europeia de destruir esse
sentimento dentro das pessoas. O governo poderia ser parceiro dentro desse
projeto, ele manipula, ele usa essa estrutura, essa organização, em benefício
298
próprio, e quem tem uma consciência mais ou menos/ tem os vícios, uma
consciência ideológica partidária.
B: Aí é mais difícil ainda.
Pe: Uma consciência equivocada e, às vezes, até muitos de nós usa o movimento
para se promover. Entra a questão do complexo de inferioridade que é real em todo
ser humano, independente de/
B: Sem dúvida. Você se sente inferiorizado por uma coisa ou por outra. Às vezes,
não pela cor, mas por outros motivos.
Pe: Mas muitos negros, devido a toda essa carga de rejeição que o sistema colocou
na nossa cabeça, o cara realmente trabalha a questão com raiva, com rancor.
B: Ou, então, com muita tristeza.
Pe: Muita tristeza.
B: O que eu vi foi um povo triste, um povo nas comunidades, as pessoas olham você
muito desconfiado. Por mais sol que a gente pegue/eu tenho problemas com o sol.
Por mais sol que a gente pegue, a gente não tem essa alma. A gente não consegue
ter essa visão. E entristece muito vê-los assim. Você tem que ter padrão Globo,
tenho que ser branca, toda a questão da publicidade, que toda publicidade é branca.
Se tem muito pouca publicidade negra e a Igreja que, nesse momento, poderia fazer
a diferença.
Pe: Mas, infelizmente, a Igreja é totalmente/ contra/ esse projeto de resgatar, de
trabalhar, ela quer implantar realmente o padrão europeu.
B: Quer manter o padrão europeu.
Pe: Quer manter o padrão europeu, descaracterizando e negando a religiosidade
popular. Tenta matar a religiosidade popular.
B: Como é que o Padre Paulo fica nessa situação?
Pe: Olha, é difícil você manter uma identidade dentro dessa realidade. Primeiro que,
antes de ser padre, eu sou gente e não posso negar minha origem. Eu sou negro,
299
mas todo o meu passado, minha mãe era negra, minha avó nasceu depois do
Ventre Livre. Meus bisavós eram escravos. Minha avó nasceu livre, mas com
certeza viveu, conheceu o regime escravista, dominado. Então, eu ainda peguei
ainda/ bebi um pouquinho, apesar da idade. Porque a escravidão, aqui na
Amazônia, veio até mil novecentos e quarenta e tatatá.
B: Até o final da guerra.
Pe: É. Tem um sentido, assim, da dominação sobre os negros.
B: Bom, até há pouco tempo, em Jarí, você tinha trabalho escravo.
Pe: Então, a minha posição de dentro da Igreja é de muito conflito, muito conflito.
Porque eu não posso negar a minha essência e eu acho que a pessoa que tenta
negar essa realidade, ela se violenta. Ela se violenta e vai viver uma outra realidade
que não é a realidade dela.
B: Mas o senhor não abandonaria o sacerdócio?
Pe: Não, não, não. Até porque eu acho que nós temos que tratar a questão do negro
em uma visão espiritual. Porque eu acho que, não sei se eu estou errado, mas não
existe um povo mais espiritual do que o negro. O negro, ele tem uma sintonia com a
natureza. Muito mais abrangente do que a do próprio índio, porque o índio é restrito
à natureza, à floresta, ao rio.
B: Se você tira ele dali, ele não consegue sobreviver. Com as vivências dele, não
sobrevive.
Pe: Os deuses do negro, a visão cosmológica do negro, ela é muito mais infinita,
muito mais abrangente.
B: E abrangeu inclusive a religião católica.
Pe: Eles conseguiram.
B: Eles ultrapassaram, eles deram um passo de qualidade nisso tudo.
Pe: Então, eu acho que se você quiser reunir, trabalhar essa questão do resgate da
saudade. Porque saudade não tem nada a ver com tristeza, com dor. Acho que você
300
pode manifestar sua saudade com alegria, com festa, entendeu? Como eu costumo
sempre dizer, brincando aqui com o pessoal: “Olha, pessoal, às vezes eu tenho a
impressão que essa missa que nós fazemos aqui é mais triste do que uma
celebração de velório”. Porque você vê, por exemplo, os negros da Guiana. O
velório deles é festa. Muita comida, batuque, pá, pá, pá. Eles vão batendo tambor
para o cemitério, colocam a roupa vermelha e vão para o cemitério. É festa.
B: Afinal, a alma vai se encontrar com Deus.
Pe: Vai se encontrar com Deus. Quer dizer, quando nasce, não sabe o que vai ser
daquela pessoa. Quando morre, sabe que vai para o seu o destino. Então, não
tem porque tristeza. Então, apesar de todos os conflitos com os padres, com
superiores, o povo mesmo. Muita pressão de muitos líderes na Igreja. Não
compreende isso, entendeu? Mas acho que a gente não pode parar. Porque parar é
você terminar de matar a dignidade desse povo. Porque é dessa forma que eles
manifestam a alegria. O batuque do Marabaixo mesmo é um toque de tristeza. É um
toque de tristeza. A batida. Então, eu acho que você, no meio de tantos padres que
tem aqui, tantos líderes católicos, eu sou o único que (...) do deserto, essa missão.
Então, matar essa visão/ porque também eu acho que a Igreja, ela tem que falar a
linguagem do povo. Se nós quisermos levar o sagrado, fazer o povo ir ao encontro
do sagrado, de Deus, nós temos que mergulhar dentro dessa realidade aí, e dentro
dessa realidade, assumir essa realidade, sem querer dizer que não presta, e aí você
trabalhar a questão da dignidade, do amor próprio, da autoestima.
B: O senhor vai continuar fazendo a missa?
Pe: Vamos continuar. Até porque acho que toda celebração deveria ser isso. Toda
celebração é celebração da vida. Ninguém celebra a morte. A senhora é
antropóloga, sabe disso. Se falava muito aqui no Brasil de cultura da morte. Na
verdade, o pessoal diz que o, não existe cultura de morte, existe estrutura de
morte.
B: Quem tem cultura da morte é o México.
Pe: Então, eu acho que se a celebração é a celebração da vida, então você não
pode celebrar de uma forma morta, parada.
301
B: A celebração foi belíssima.
Pe: Votem que dançar, você tem que/ eu acho que até mesmo a bebida dentro.
Eu achei até melhor do jeito que foi do que se tivesse a eucaristia, porque, na
verdade, para o povo, o pão não simboliza nada, não significa nada. Dentro da
cultura judaica, tem tudo a ver o pão, o vinho, mas para nós aqui não tem, não tem
como simbologia, não tem, entendeu? Eu acho que essa questão do negro aqui
precisa de mais parcerias, mais pessoas que assumam. Eu faço uma crítica muito
grande a esse povo todo que está lutando, que, como dizia Che Guevara, com
ternura. Acho que tudo tem que ser com ternura. A minha tristeza é ver que muitos
desses companheiros aí estão raivosos, amargurados. Parece que é uma frustração,
como se a gente quisesse agora implantar o império dos negros e fazer os brancos
escravos. Mesmo que eles neguem isso, mas têm esse sentimento.
B: Esse medo.
Pe: E vem a questão das inseguranças, das vaidades. “Tu não vem tirar o meu
espaço”. Então, eu sinto que, no Brasil, ainda existe isso, e em Maca também.
Isso eu acho que é a grande barreira para a gente trabalhar a questão do/
[corte]
01 02” 41’
302
Transcrição DVD 03
Gravação realizada em: novembro de 2004.
Entrevistados: João da Ladainha, Pedro (irmão de Esmeraldina), Marcelina,
Esmeraldina dos Santos, Francisca dos Santos (Dª. Chiquinha) e Pedro.
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Curiaú, na maloca da senhora Francisca dos Santos, Dª. Chiquinha.
Tempo total de gravação: 01h 02min 47s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; Jo: João da Ladainha; M: Marcelina; P: Pedro (irmão de
Esmeraldina); E: Esmeraldina dos Santos; F: Francisca dos Santos (Dª. Chiquinha),
a matriarca; Loc01, Loc02, Loc03, Loc04: Locutores não identificados.
303
00” 00’ – Entrevista com o Senhor João da Ladainha.
Loc01: Eu não sei, é o senhor quem reza. Não sei lhe dizer.
B: Ele sabe mesmo?
Loc01: Sabe sim. O único que reza por aqui é ele.
B: “Seu” João. Pelas graças do Espírito Santo. Esse meu trabalho tem sido
totalmente abençoado, de verdade. Eu perdi meu caderno de nota, todinho, caderno
grande em que eu estava escrevendo todas as notas, eu perdi. Aí eu me pego com
Santo Expedito. Eu fui telefonar ontem de manhã, falei: “Meu Santo Expedito”,
debaixo daquele sol das seis horas da manhã, encostei assim no orelhão e chorei,
chorei. Eu falei: “Santo Expedito, eu preciso daquele caderno, Santo Expedito. Faz
um jeito de eu achar esse caderno”. De noite, eu cheguei no UNA, o rapaz lá, o
Mário, disse assim: “Seu caderno foi achado. Seu caderno estava no colégio”, que
eu fui fazer umas entrevistas com o pessoal. Eu entrevistei o Cunanin, o Igarapé do
Lago, três comunidades que estavam lá. Eu saí tão, assim, perturbada que eu deixei
o caderno lá. Foi uma graça que eu recebi, de verdade. Nós ficamos sem dinheiro
porque a Vasp cancelou nossa passagem/
[corte]
Jo: Para nós, que ele queria gravar no momento que a gente tivesse fazendo essa
ladainha. Quer dizer que teve. Na Itália, ele rezava essa ladainha que nós reza,
mas agora acabou.
B: Não se faz mais?
Jo: Já vem em outro sentido, não é? As coisas, a tendência é mudar.
B: Infelizmente. A gente devia mudar o que é legal, o que é bom, o que é agradável.
Jo: O que é bom também a gente tinha que guardar um pouco.
B: Exatamente. Por exemplo, a ladainha.
Jo: Conservar ela ali.
304
B: Por exemplo, as pessoas que falam, que contam as histórias. Tinha que ser
preservado.
Jo: [silêncio] Olha, está saindo uma música dele aí. Roberto Carlos.
B: Está tocando lá dentro?
[corte] Ele fala dos navios negreiros que traziam os escravos e muda a expressão
para certa consternação, que ele não menciona nem comenta.
Jo: Muito, é?
B: Muito. Eram três a quatro meses no mar.
Jo: Imagino. No mar, ainda.
B: Três, quatro meses no mar, no porão. Era complicado. Era difícil, não era cil,
não. Mas a felicidade é que tem pessoas como o senhor hoje aqui, como a Joci, que
podem lembrar.
[corte] 02” 32’
Entrevista com Dª. Marcelina no Curiaú.
Joci: Ei, tia. Tudo bom com a senhora?
M: Bom, não.
B: Não está bom não, não é?
M: Não. Quando eu penso que eu estou boa (...)
B: A senhora está doente?
M: Doente, é coisa que (...) perseguição de lagarto, não tenho medo de nenhum.
B: Perseguição de ladrão?
M: De ladrão? Vocês não compreendem as coisas. Lagarto!
B: Lagarto. Desculpa, é que eu não sou do Macapá.
305
M: Ah, bom. A senhora (não é).
B: Eu não sou daqui, eu sou de São Paulo. E aí, eu não compreendo as palavras
daqui, eu não sei. A senhora que fez esse colar seu?
M: Que?
B: A senhora fez esse colar, esse fio no pescoço.
M: Foi uma neta minha que me deu.
B: A senhora mora só, aqui?
M: o. Moro com dois netos. Sabe que eu não sou, não sou mulher de/ se eu
morasse só, não (...) pra ninguém.
B: É?
M: Não gosto de dar muita conversa.
B: É mesmo? Como é o seu nome?
M: Meu nome é Marcelina.
B: Marcelina.
M: Eu não tenho pai, não tenho irmão, não tenho nada.
B: A senhora nasceu aqui no Curiaú?
M: Que?
Loc01: A senhora nasceu aqui no Curiaú?
M: Foi. Nós e os irmãos tudo nascemos tudo no Curiaú. Eu tenho um filho que
nasceu no Macapá. Quando eu cresci, ele foi no braço. Se criou aqui no Curiaú. Eu
sou daqui do Curiaú. A minha mãe era do Curiaú, meu pai, a minha avó. Eu conheci
duas avós, do meu pai e da minha mãe, graças a Deus. Fui criada com a minha avó.
Aqui tem muita gente que foi nascida aqui.
Loc01: A senhora sabe quantos anos a senhora tem?
306
M: Não.
Loc01: A senhora não sabe?
M: Eu não sei, eu não sei quantos anos eu tenho, quantos eu não tenho, porque eu
tenho uma carteira de identidade, agora eu não sei ler. Eu não sei ler, não enxergo
nada. Nós era duas irmãs. Era a caçula. Eu era a primeira filha da minha mãe. o
sei quantos anos eu tenho. Meu irmão já morreu velho.
Loc01: Como era o nome de seu irmão?
M: Era Francisco, e a que morreu era Benedita.
B: Eles eram mais velhos que a senhora?
M: Não. Era o meu irmão que era mais velho do que nós.
B: A senhora gosta de biscoito?
M: Eu como. Me dê que eu como.
Loc02: A senhora enxerga bem?
M: É só desse olho.
Loc02: Só enxerga de um lado?
M: enxergo desse lado, mas daqui eu não enxergo. Isso aqui está uma vida, eu
não sei.
B: Está ruim?
M: Está ruim? Não sei não, o que foi isso desses olhos.
Loc02: (...) tem o mesmo problema.
B: É, seu (...) tem o mesmo problema. Ai que formiga danada!
Loc02: E a senhora não foi no médico?
M: Que?
307
B: Médico.
M: Não fui em médico, não. Não vou, não.
Loc03: Mas, por que a senhora não foi ao médico?
M: Não vou, meu filho. Não vou, não vou, não vou.
B: E não tem nenhuma erva que a senhora pudesse passar?
M: Que?
B: Alguma erva? Um chá?
M: Sai daqui que a formiga.
B: Já saí, mulher.
M: Eu não posso, não posso ficar capinando, não posso. Não faço nada.
B: Mas já saí. Foram só umas três ou quatro.
M: Não, mas não é bom. Olha, isso aqui, esse pessoal que vocês convivem, tudo é
filho do Curiaú.
B: Tudo do Curiaú?
M: Tudo.
B: Tinha mais gente antes?
M: Quando morre um, fica aí no cemitério, aí atrás da igreja.
B: Não vai mais para aquele cemitério lá lonjão?
M: Não vai mais, não. Ele é filho daqui, aqui ele fica.
B: Está certo, não é? É filho daqui, tem que ficar aqui.
M: Mas não é bom, não. Eu digo mesmo quando é de noite, eu me sento aqui, vão
passando todos os lagartos, todinhos. Não tenho medo não.
308
B: A senhora não tem medo dos lagartos?
M: Não tenho. Eu vou ter medo (...) do meu pé?
B: É mesmo.
M: Não presta.
B: A senhora chegou a dançar as danças de Marabaixo?
M: Ih, de Marabaixo, Batuque, eu dancei bem. Agora vai haver um batuque aí.
B: E a senhora vai quando tem?
M: Vou. A Senhora da Conceição me ajude.
B: Claro. A senhora lembra de alguma cantiga?
M: Uma eu lembro, sim.
B: Quer cantar uma para nós?
M: Não, não vou, não. Não vou cantar nadinha, nada, nada.
B: Nada? Então está bom. Não vamos cantar nada. A senhora, só de falar com a
gente, a gente já ficou muito feliz. Está bom?
M: Eu tenho um filho, esse filho canta cantigas de Batuque.
B: E onde ele está?
M: Ah, você não sabe. Está no Macapá, ele mora no Macapá (Emanoel).
B: Quantos filhos a senhora teve?
M: Quantos filhos? Fora os que morreu, eu tenho quatro. Eu tenho três homens e
uma mulher.
B: Todos vivos?
M: Esses três estão vivos, agora esses outro morreu. Olha, eu tive um filho foi de
duas gêmeas.
309
B: Ah, foi?
M: Foi de duas gêmeas. Então, eu tive aqui no Curiaú com parteira (curiosa), eu tive
dois homens, mais esses três.
B: E vingaram?
M: Mas se vingaram? Morreu. Porque tinha um cacho de banana, assim, pendurado,
e eu não sei o que me deu, aquela vontade, assim de eu ter me levantado, puxado a
banana e fiquei debaixo do cacho de banana e quando eu puxei, a banana caiu.
Nesse dia, não tive nada, mas, no outro dia, eu tive.
B: Perdeu as crianças.
M: Perdi, todinho. Dois homens.
B: Nossa.
M: Eu tive dois filhos de gêmeos. Perdi dois homens. Eu vou lhe dizer que mulher
eu tive só três. Morreu duas e eu tenho uma ainda, a caçula, que é a Nazaré. Só, só,
só. Tenho três homens. Ainda agora eu vim de lá da casa dele.
B: Ele mora pra lá?
M: Mora. Aquela casa ali é dele.
B: Ele que carpe aqui, limpa as coisas para a senhora?
M: Não. Isso tem um homem, um senhor, não sei, não conheço, que ele faz, roça.
Tendo um dinheiro, ele paga. Se eu fosse uma mulher (...) não estava aqui.
B: Não estava aqui, não é?
M: Não. (Tenho medo) (...) fica com raiva mesmo quando (...). É, sim. Eu digo o neto
(...).
B: Mas ele não veio ver a senhora nunca mais?
M: Não, ele vem muito por aqui, mas não vou deixar (...) para vir aqui. O Manoel
pegou um piquete de lagarto, andava embaixo. Um rapazinho pegou, mas trouxe
310
lagarto. Matou o lagarto. Um lagarto grande, vermelho. E até o pai veio me chamar
para eu ir lá. Ele matou o lagarto. O que é o/
[corte]
11” 36’ Curiaú – Entrevista com Pedro, do “Raízes do Bolão”, filho de Chiquinha.
P: Esse daqui vai tomar conta daqui mais uns anos.
B: Esses são os construtores dos tambores. Como é que chama o construtor do
tambor?
P: Quem faz o instrumento é o/ trabalho de artesão.
B: Artesão.
P: Deixando no sol, ele estica, ou então, no calor do fogo. Esse é o pandeiro
original para se usar no Batuque. Tem um pano bem aqui por causa dos pregos.
Tem uns preguinhos aqui.
B: O lugar de pegar é aqui? Mas, em o Paulo, não tem sol para isso, não.
Precisa ser o sol daqui.
P: Não, mas a só no calor do fogo, rapidinho.
Loc04: Isso aqui é pele da?
P: Bode.
Loc02: Cuidado que dentro tem prego.
B: Isso é bode? Então o senhor vai deixar ele no sol para mim a a hora de eu
viajar. Para ele afinar.
Loc01: Mas toda vez que você for bater, você tem que esquentar ele.
P: Um fogão a gás, mesmo. Ou então uma lâmpada de duzentos.
B: Esquentar. Ele estica.
311
P: Agora eu vou improvisar, fazer uma improvisação de colocar tarraxa neles,
enquanto vocês viajam. A gente viaja muito, a gente está sempre em São Paulo,
sempre lá pelo Sesc Pompeia. No Sesc Pompeia.
B: Vocês estão sempre indo para lá?
P: A gente deu oficina no Sesc Pompeia.
B: Ah, foi? Quando?
P: Em dois mil e três, ano retrasado. Ano retrasado eu fui no Sesc, ensinar como é
feito os instrumentos.
B: E levou o seu filho?
P: Não, ele não foi. Estava aqui estudando.
B: Mas ele já sabe confeccionar, já sabe fazer?
P: Ele já sabe tocar. Tira um som.
B: E ele gosta? Você gosta disso? Você fez algum sozinho assim? Já? Deixa ele
tocar um pouco para a gente ver, sozinho.
[o menino toca]
B: Tem mais filhos?
P: Só aquela moça e a outra, está ali. Mas aquelas, é só para dançar.
B: para dançar? As moças dançam e os homens tocam. Está certo. Esse é
aquele de tocar no chão?
P: É. Esse aí a gente coloca no pedestal, arma no pedestal.
B: O pedestal é fixo, é pronto? Mostra para a gente?
P: Espera um minutinho. [sai para buscar] A gente confecciona aqui. Até tambor
de escola de samba a gente confecciona. Põe o tambor em cima.
B: E aí, senta aqui em cima e toca.
312
Loc02: E qual é a cerveja que você vai tomar?
B: E não tem ninguém aí com cerveja gelada para nós tomarmos?
F: Só a minha neta.
B: Ela vende?
F: Vende.
B: Vamos comprar umas. Vamos lá? Então eu vou comprar, enquanto a Joci
puxa a corda.
[vozes sobrepostas]
B: Traz aí uma meia dúzia. Nós estamos pretendendo aqui conversar muito.
P: Vamos lá para a maloca, tem um espaço maior.
[corte] 16” 07’
P: Quando João Capiberipe fez o projeto, e chamou para a gente fazer
apresentação lá. A gente foi. Teve um intercâmbio entre Maranhão, Amapá e Belém.
Estava o Nilson, a Fafá de Belém fazendo show e a gente fez a parte cultural no
Sesc Pompeia. Fizemos no Parque Ibirapuera. A gente mostrou o Marabaixo ao
vivo lá, Batuque e, no Sesc, a gente mostrou o Marabaixo, Batuque e a confecção
do instrumento.
B: A confecção de instrumentos eu não cheguei a ver. vi o Marabaixo. Cheguei a
assistir uma apresentação de Marabaixo no Sesc, sim. Eu vi. Agora, por exemplo, a
senhora, escrevendo. Como é que deu essa ideia de fazer o livro?
E: Eu/ foi quando/ um dia a gente conversando, não é? Papai conversando, ele me
contando. Uma tarde, isso foi uma tarde. Ele falou um monte de coisa e depois ele
olhou, assim: “Só que a gente morre e leva tudo”. Aí, aquilo deu um estalo: “Poxa, é
tanta coisa bonita, ele contando”. Aí que eu comecei a escrever. Aí eu trabalhava, eu
voltava dia de sábado, que eu tinha mais tempo. eu comecei a escrever o livro.
Saiu. Um pouquinho, mas as pessoas gostam bastante. Inclusive foram alguns para
São Paulo, saiu alguns lá em São Paulo. Eu levei bastante, queria levar.
313
B: É, eu queria levar com uma dedicatória sua, para colocar na biblioteca da
Universidade de São Paulo e da PUC de São Paulo.
[corte] 17” 43’
B: Esse problema é geral. Chegar uma cultura como essa em São Paulo, que é tão
carente de coisas culturais. Tem muito movimento cultural, mas essas coisas de raiz
e fazer conhecer o resto do Brasil. Porque o paulista, ele é muito ignorante. Ele
chega assim, fala assim: “Macapá, o que é Macapá? O que é Amapá?”. As pessoas
não têm noção. Você fala Roraima, qual a capital? Você fala Acre, as pessoas não
sabem. As pessoas são muito ligadas àqueles nucleozinhos deles, àquela cultura
(...) imensa, aquela situação de vida toda asfaltada, com prédios de trinta e quatro
andares.
E: Uma manhã, quando nós acordamos, ouvimos até uma piada de uns rapazes. A
gente estava em cima, na cobertura, fazendo assim. eles passaram, a gente
estava sentada e o rapaz do hotel, Davi, ficava na porta, eu me lembro muito bem.
Ele era moreninho, parece/ ele disse assim: “Hoje o hotel está cheio de índio”. Poxa,
eu fiquei triste, sabe? eu disse assim/ depois eu disse para o Davi: “É, Davi”/só
que ele deve ser também índio, porque o nosso Brasil, ele é mais índio do que
holandês, americano. eu fiquei triste com a diferença que ele fez, com a
discriminação que ele fez na hora. tudo isso eu estou contando agora (...) que a
discriminação hoje ainda existe. Existe, infelizmente. A gente está no ponto de
chegar nessa consciência de todo mundo sentar (...) porque eu tenho uma filha, a
minha segunda filha é neta de/ como é? Não, não. A Samanta. De judia. Então, pelo
amor de Deus, eu acho que não tem nada a ver.
B: Não tinha que ter, nem que fosse não judeu, alemão, português. Não tinha que ter
isso. Eu acho que a gente é igual, a gente sangra do mesmo jeito, a gente sofre do
mesmo jeito.
E: De repente, você precisa do seu coração, como aconteceu com aquele ator da
Globo. Ele estava morrendo, um médico branco e tal. Quem é que está com o
coração desse médico? Não é o/ qual o nome dele?
B: Norton.
314
E: Pois, é. Não é ele quem está com o coração do médico? Poxa.
B: Quer dizer, isso prova que não tem nada a ver.
E: Com certeza.
B: Nossa pele, nossa cor, não tem nada a ver.
E: Não tem nada a ver.
Loc03: O Brasil é essa mistura de raça, de cultura.
E: Mistura de raça, de cultura.
P: A gente chegou na Alemanha, a gente estava bem informado. Na Alemanha,
tinha cartazes. Estava sendo o encontro mundial na Alemanha, estava vindo índios e
negros. estava uma situação que para a gente se dar bem. A gente não ouve,
não, e teve nenhum transtorno de nada, entendeu? Foi uma coisa que, quando
começou a nossa apresentação no Centro Cultural alemão, foi uma coisa inédita.
Quando começou com os tambores, as pessoas saíram para dançar. Inclusive a
Primeira Imperatriz, ela saiu, a gente não conhecia, o Irã me chamou: “Pedro, aquela
mulher que está de vermelho lá é embaixatriz alemã. Pode tirar a mulher para
dançar”. o teve problema. Fui tirar, ela saiu para o salão e todo mundo
acompanhou, está entendendo?
B: Em Marabaixo?
P: Em Marabaixo e Batuque. E quando terminou o show, ela pegou, chamou todo
mundo, ela disse para o Tiago, que foi quem levou a gente. “Tiago, pode fazer de
tudo por esse povo, que é muito bom o trabalho deles. Vieram aqui, fizeram uma
belíssima apresentação. Eu adorei demais. muitos parabéns ao governador João
Pedro Capiberibe”. Assim ela falou. Foi muito legal.
B: E quando eles foram, a senhora ficou chateada?
F: não deram o meu nome, deram o nome de outro cidadão. Na hora em que ele
estava, não deu mais para eu ir.
B: Se não a senhora tinha ido.
315
F: Para São Paulo eu fui.
B: A senhora foi para São Paulo. O que a senhora achou de São Paulo?
F: Gostei muito.
B: Gostou? Daquela loucura de carro. E a senhora andou de metrô?
F: Andei.
B: Não acredito.
F: Andei. Andamos no viaduto, entramos, passava lá (...)
P: Na Barra Funda. Pegava na Barra Funda.
F: Fomos fazer compra no Brás.
B: Foram fazer compra no Brás? É tão bonzinho. É tanta roupa boa, tanta camisola,
calçola, tudo bom e bem barato ali, bom demais. E o que a senhora gostou de comer
lá em São Paulo? Pizza?
F: Churrasco.
B: Churrasco é bom. Tem uma coisa boa de São Paulo, é churrasco. Pizza a
senhora não comeu?
F: Não. Agora, o que escassearam para nós foi isso aqui [levanta o copo com
cerveja].
B: Escassearam cerveja?
F: Foi (...) mas não tinha hora de dar cerveja. Agora, quando nós fomos para
Brasília, o prefeito que deu levou s, abasteceu o ônibus de cerveja, refrigerante,
tudo.
B: Deu para matar a sede?
E: De Belém-Brasília.
B: Vocês foram Belém-Brasília?
316
E: Belém-Brasília de ônibus.
F: Eu gostei muito.
E: Foi linda a viagem.
B: Gostou? Foi gostoso. Gostou da praia? Tomou banho na praia?
F: Maranhão (...)
B: Rio a senhora não tem medo? Rio, a senhora não tomou banho no Amazonas?
F: Não chegamos a ir na praia. Fomos na praia no Maranhão. No Maranhão, a gente
foi.
B: São Luiz.
F: (...)
B: Mas a senhora está na primeira idade. Que história de terceira idade?
F: Terceira idade, eu estou com oitenta e quatro.
B: Não é nada, que idade mais bela. Oitenta e quatro não é nada, é quarenta e oito
ao contrário. Quantos filhos a senhora botou nesse Curiaú?
F: Botei onze filhos. Neto, minha senhora, eu não confiro.
B: Já não sabe mais. Quarenta, trinta?
F: Mais. Teve filha que teve dez filhos. Uma teve dez. Aí, as outras tiveram mais
(...). Essa aqui teve dois, esse está com oito. O caçula, é!
B: Ele está coçando a cabeça, preocupado.
F: O caçula. A outra que mora pra ali, uma baixinha, está com quatro. O outro, o
mais velho tem seis.
B: Vai escasseando. Dez, os mais ajuizados têm oito, os menos ajuizados têm mais
e assim vai indo. E bisneto?
317
F: Bisneto, minha senhora, eu não confiro.
B: Não confere?
F: Não confiro.
B: As mulheres têm filhos. Eu não sei o que essa mulherada faz, que quer ter
criança.
F: Só beber açaí e fazer filho.
B: Beber açaí, beber cerveja e ter filho. Me fala uma coisa, que a senhora é festeira.
Como é que é isso?
F: A festa, essa festa de tradição, do Batuque, tem a caixa contrabaixo. Santa Maria
nós festejamos aqui. No passado, nós festejamos, foi aqui em casa, foi. Fizemos um
batuque, foi bem aqui.
B: Tinha umas trinta pessoas? Ou até cento e cinquenta é Batuque pequeno? Está
certo.
F: E aqui ainda não estava legal o salão. Estava (...)
B: A senhora estava ajeitando.
Loc03: Não tinha essa calçada ainda.
F: Não tinha, mas agora, se Deus quiser, a gente vai cercando. o banheiro era
fora e agora está tudo dentro de casa. Quer dizer, o rapaz conseguiu, meu neto.
Criei (...)
B: Para parar a chuva.
[inaudível por conta do vento]
B: E o que se come na festa da senhora?
F: Carne, tem porco.
318
B: Agora, sabe o que eu vi aqui? Em Curiaú, as pessoas estão muito tristes,
achando que antigamente era melhor.
F: É, minha senhora, em Curiaú, hoje tem festa [inaudível por causa do vento] Meus
filhos estão tocando a caixa, eu começo a cantar e o coração começa a se fechar. Aí
eu fico, peço desculpas e paro. Eles já sabem quando eu começo a pedir desculpas.
B: Porque a senhora tá com o coração apertado.
F: Aí eu choro.
B: De saudade?
F: De saudade (...) teve meu marido, que era do samba também, penso nos meus
filhos, netos. Tocava pandeiro e tocava caixa, ele tocava tambor.
B: Ele fazia o tambor com seu filho ou não?
F: Ele fazia era a caixa, assim. Botava tudo direitinho. Bonito, ajeitado [inaudível por
conta do vento]
B: Então (essa cultura) de pai pra filho foi passada.
P: Sim. Estava indo para Belém (com meu pai e) com meu padrinho. a minha
caixa estava dando problema, eu desmontei tudinho e fiquei pensando: “Bora fazer”.
Ele mostrou tudinho, eu comecei a fazer.
B: Dali para frente, foi só uma aula.
P: Uma aula, aprendi a fazer.
F: (Nunca vi tanta vontade) de fazer caixa. Fim de semana de tarde. Caixa. Nessa
festa agora, “Eu preciso de outra” (...)
B: É mesmo? Ainda bem. E nessas festas, a senhora fazia verso, como era?
F: (Alguma coisa a gente) lembra. Eu cheguei a cantar.
B: Tem alguns que já sumiram. E hoje na festa, não se canta mais? A senhora
lembra?
319
F: O que eles deixaram, a gente aprendeu e canta.
B: O que foi no passado, hoje faz.
F: Faz. Agora não tem quem tira verso novo, tudo repetido. Então, não tem mais
(cabeça), chega quatro horas da manhã, já não tenho.
B: É mesmo?
F: (...)
B: Acaba esquecido?
F: Vai embora, esquece.
B: Será que não é da senhora ficar aqui tanto no sol?
F: (...) da cabeça. E a gente vai pensando na gente que vão morrendo, aquilo que a
gente tem, aquela (...)
B: A gente vai perdendo um pouco com cada um que vai embora.
F: De ano para ano, vai o pai, no outro ano, vai a mãe. o filho também vai se
acabando.
B: Desse tempo do seu pai, a senhora lembra alguma coisa?
F: Era cantador do Batuque, do Marabaixo, e ele tocava pandeiro, tocava caixa. No
tempo em que eu me criei, doutora, os tocadores de caixa ficavam tocando até (...)
Você conhecia Benedito, Januário, Alceu, conhecia, cantava, assim (...) Mané
Paciência que chamava.
B: Manuel Paciência.
F: Isso era cantor [inaudível por conta do vento]
B: A senhora chegou a aprender a ler e escrever?
F: Não. Não (...) a minha mãe. [inaudível por conta do vento]
B: E, assim, história de assombração, que vê de noite, sem ser essas modernidades.
320
F: Acontece, acontece. Com algumas pessoas, acontece [inaudível por conta do
vento]
B: E aqui tinha alguém que fosse? Tinha? Quem que era? (...) de situações, de
rezadeira? Quem que tinha? Quem que era?
F: Algumas pessoas fazem esse trabalho, mas não era (o meu tempo). (...) Eu
andava por todo aquele mato lá (...) velho Paulo.
B: Era o velho Paulo?
F: Velho Paulo.
B: Ele era negro?
F: Ele era negro.
B: Ele era do Candomblé, de receber o santo?
F: Era, recebia (Pena e Maracá).
B: Recebia (Pena e Maracá). Quem? Tomazinha?
F: Minha madrinha.
B: Sua madrinha.
F: Depois foi se acabando essas pessoas.
B: Não passaram esse conhecimento para ninguém?
F: Uma vez (...) sumiço.
B: Passou para alguém. Na sua família não tinha ninguém?
[inaudível por causa do vento]
B: A senhora chama pelos antepassados? Chama pelos que se foram? Como é
que a gente chama? Porque lá a gente chama o nome.
321
F: Fala, pede aquela ajuda, força. Pede (...) força. Eu saio da minha casa, eu chamo
por eles.
B: Quando a senhora sai.
F: (...)
B: Eles estão enterrados por aqui ou no outro cemitério?
F: Tem o meu pai que está aqui, lá atravessando o lago. Agora fizeram esse
cemitério novo. Meu pai, minha mãe. Minha mãe está em Macapá. Minha mãe, meu
irmão.
B: Por que ele foi aqui e a sua mãe em Macapá?
F: Meu pai, nós já morávamos aqui. Eu estou aqui com um ano.
B: Ah, tem um ano só que a senhora está aqui? Ah, é. Você é uma das que voltou.
F: Queria fazer uma plantação, tinha esse pedacinho aqui, eu vim fazer a minha
casa.
B: Mas o seu filho já morava aqui com os filhos?
F: Não, eu trouxe de novo. Eles chegaram em maio tudo aqui.
B: E não teve perigo? A senhora abandonou a terra, foi embora e voltou.
F: Não, não. A gente tem descendente.
B: Isso é bom, não é?
F: Mas, olha, minha senhora, para plantar aqui, a gente tem dor na cabeça.
B: Tem dor de cabeça? Por quê?
F: Porque a terra não convém. Essa terra é muito quente, ainda agora s estamos
capinando (...) para adubar, para ver se consegue.
B: Se consegue subir alguma coisa. E se tiver aquelas mangueiras para jogar água?
322
F: Tem, aqui tem (...) isso tudo (era verde) ali manjericão, passa mais para baixo, é
tudo seco.
B: E o que a senhora achou dessa estrada que passou aí?
F: Ah, foi, essa estrada é nova. Essa estrada veio para quando (Anaí) chegou
aqui, porque ela ia até a beira do igarapé (ribeirão) (no inverno a gente) chegava lá,
(...) agora (no verão), para o outro lado tem de ser de canoa. Agora secou, a gente
ia a pé, mas Deus abençoou que fizeram essa estrada, (minha mãe ia) reclamar (se
tivesse aqui não) conseguiriam fazer essa estrada, na propriedade dela. Ela não ia
deixar. (...) Adiantou certas coisas, mas outras, para s, complicou. O igarapé
peixe. Era peixe, mas o pessoal agora deram para a criação de boi e
desprezaram que é um bicho que acaba.
B: O búfalo é mais pesado, come mais que o boi.
F: O boi não respeita a lama.
B: Ele pisa a lama todinha.
F: Mete o peito, leva para cima aquela vala, assim, no lago, e acaba.
B: Eles vieram de Marajó, não é?
F: (...) Aqui não tinha. Eu pelo menos tinha visto um ou dois até hoje.
B: Um ou dois, agora está cheio de búfalo, não é?
F: Está cheio.
B: Coisa ruim. E o que a senhora gosta de cantar? Essas músicas modernas, a
senhora aprendeu?
F: Música moderna eu não gosto muito, não. Eu não aprendo (...) [ri].
B: Então canta uma para nós.
F: Ora (...) não tem uma viola.
B: Está faltando viola. Na casa do homem que faz instrumentos não tem viola?
323
F: Ele não sabe fazer viola.
B: Como é que era? Antigamente, era só/ em Bailique, a mulher me disse assim
que lá era só clarinete.
F: Aqui também era.
B: Banjo e rabeca e viola.
F: [inaudível por conta do vento] Chamava, como é? (...) Posso falar? O mestre (...)
tinha o Zé Moreira, (...) depois chegou Benedito Araújo, depois chegou (...). Aqui tem
umas pessoas que aprenderam tocar clarinete. Seu Luís tocava clarinete. Agora
deixou também.
B: Na sua família, alguém tocava clarinete?
F: Não.
B: E rabeca?
F: Rabeca, tem um tio dessa, um primo tocava rabeca. Aprendeu a tocar. Tocava. A
gente dançava muito. Eles todos, nós dançávamos. [inaudível por conta do vento]
B: Noite toda também é demais. Noite toda nem eu aguento.
F: [inaudível por conta do vento]
B: Quando a gente é novinha, a gente aguenta. Até os vinte, a gente aguenta.
F: Não quer nem comer.
B: A gente não quer nem comer, quer dançar. Mas depois de uma certa idade,
ninguém aguenta mais.
F: (...) cinquenta.
B: É, eu estou chegando lá.
F: (...) é novinha.
B: Quase. Casei, já separei.
324
F: (...)
B: Cachaça.
F: Cachaça? (...)
B: Eu adoro uma cervejinha, mas beber todo dia, todo tempo, aí é complicado.
F: Minha cerveja, se não tiver uma garrafa, eu faço aquela garrafada.
B: Garrafada de que?
F: Dessa fruta. Como é que é o nome? Cachaça, caninha. Aí eu boto (...)
B: O que a senhora bota dentro?
F: Bota (...) bota jucá (...)
B: Tem disso daí para a gente tomar?
F: Não, não. Não tem. Eu quero ir lá na minha cunhada (...) tanto.
B: Faz uma para eu levar. É de encomenda.
F: Ah, vou fazer.
B: Faz uma de encomenda. Daqui para sábado.
F: Vem buscar sexta-feira. Amanhã à tarde, eu vou lá na minha (...) para trazer (...)
B: Porque o livro eu comprei. O livro eu comprei, quero ver o segundo. A gente
vai trocar essas informações para fazer.
E: Se a gente consegue.
B: Se a gente consegue fazer isso.
[inaudível por conta do vento]
F: (...) Faz de siquiúba, a cachaça. A senhora conhece?
B: Sim, já ouvi falar.
325
F: A senhora pega na mão, assim, a senhora pega a cachaça, corta ela assim. Corta
em quatro e um pedaço (e põe). A siquiúba.
B: Siriuba?
F: Siquiúba. Eu vou te dar umas cascas para a senhora levar. Aí, aquela siquiúba
(...) do gosto.
B: É mesmo?
[inaudível por conta do vento]
B: A sua família tem (saúde).
F: Graças a Deus.
B: E o seu marido, morreu de que?
F: Meu marido morreu de velho (...)
B: Reumatismo?
F: (...) de um lado, desse lado, a perna dele começou assim, isso aqui (de úlcera)
até aqui.
B: Nossa.
F: Olha, minha senhora [inaudível por causa do vento] desde junho a dezembro (...)
B: Não tinha remédio?
F: [inaudível por conta do vento]
B: A senhora não vai no médico?
F: Eu não vou. Meu marido ia no médico e eles não descobriam que ele tinha
uma úlcera dentro.
B: Era uma úlcera? Tinha começado com úlcera?
F: Mas ele não sentia, não é verdade?
326
E: Era por causa do medicamento que ele tomava.
B: A úlcera foi pelo medicamento.
E: Pelo medicamento. Mas muito medicamento, muito, muito medicamento.
B: E ele foi o homem que fez [inaudível por conta do vento]
F: (...) caía de cavalo (...) e nunca deu problema nenhum. Febre (...) com as pernas.
Melhorava, saía para trabalhar, ia caçar, chegava (...)
[inaudível por conta do vento]
F: (...) aí ele chegava (...) vai, toma um banho. Tira essa roupa (...)
[inaudível por conta do vento]
B: Tem que se cuidar, não é?
F: Depois meus filhos cresceram, mas não gostavam muito da roça. Daí a pouco
começaram a (...) e deixar a roça.
B: Vai acabando a roça.
F: Mandava roçar ali, mas [faz um gesto para mostrar a indiferença ao pedido]
B: Mas não quer. quer fazer tambor. Por quê? A senhora quer fazer uma rocinha
nova?
F: Eu plantava macaxeira, plantava abacaxi. Isso aqui é bom para tomate. (...)
B: E o que a senhora faz? Compra semente em Macapá?
F: Deixando com essa chuva, eu vou plantar (...) depois do São José. Hoje (...) você
olhava ali onde está aquelas árvores, o descapinado. Aqui era verde, uma melancia
que só. Boa. Mas o bicho comeu. Um bocado os vizinhos aproveitaram.
B: Os vizinhos?
[inaudível por causa do vento]
327
B: O que a senhora foi fazer em Belém?
F: Nós fomos dançar.
B: Ah, vocês foram dançar.
P: A gente foi se apresentar lá, Marabaixo e Batuque.
B: A senhora também vai? As meninas vão?
E: Minhas três filhas foram. Não foram para São Paulo nem para Brasília, mas para
Belém deu para ir todo mundo.
B: E o Sesc chamou vocês novamente?
P: Eles estavam dependendo de uma resposta lá, estavam organizando um/ para
mandar chamar a gente para fazer uma apresentação junto com o pessoal de Minas
Gerais. A gente ia se encontrar lá, mas até agora não deram resposta.
B: Aí a senhora vai?
F: Quero ir, sim.
B: Tem que ir, tem mais é que ir andar de metrô.
F: Andar de metrô [ri].
B: Andar de metrô, andar de avião.
F: (...)
B: O bicho é muito grande. Dá um medo. A gente fala que não tem medo, mas dá.
F: Agora eu não dou demonstração, mas. Quando chegamos em São Paulo, vixe
Maria. Porque sentava sempre, ia bem do meu lado, assim, pegava assim (aquele
paninho na janela) para mim olhar. Eu olho, olho, não ligo, não choro.
B: A senhora não chora? Nem grita?
F: (...) São Joaquim vai no coração, graças a Deus.
328
B: Mas a senhora chorava (...)?
F: Não chorava, não. Eu fui depois de velha. Quando era nova o tamanho (...)
tinha medo.
B: A sua mãe tinha medo?
F: Tinha medo até de navio. De navio, gostoso, (o pessoal me descia) no cais.
Acompanhava só o pessoal, entendeu?
B: outra receita para a gente. A senhora deu a receita da cachaça. outra
receita para a gente. Tudo neto?
F: É neto. Tudo Marabaixo e Batuque.
B: Elas estão indo para a escola?
F: Para a escola. (...)
B: Então, dá outra receita.
F: (...) plantar roça, plantando mandioca, tem caroço.
B: Que caroço?
F: Temos murumuru para vender.
B: Caroço de murumuru. Eles vendiam no Bailique também. No Bailique, me falaram
que também colhia murumuru. E o que tirava do murumuru?
F: Agora eu não sei o que eles fazem (...) acho que aquilo é para (...). Aquele caroço
tem uma massa branca por dentro, parece/
B: Ainda tem por aí para dentro?
F: Ainda você acha.
P: Murumuru só aproveita para pegar o tronco para fazer tambor.
B: Se ele tiver interessado, a senhora bate nele.
329
F: Nunca mais o caroço (...) o pomar, juntava caroço de murumuru, castanha para
fazer azeite.
B: Cozinhava com o azeite de castanha?
F: Cozinha. Cozinha/ quinze dias para deixar secar aquela água, aquela massa para
mandar amassar na tábua que tem, pilão.
B: Nós estivemos na casa da da Juce, tinha casa de farinha. Vocês compram
dela, não?
F: Não.
B: Compra por aqui.
F: É
B: O povo aqui tudo faz.
F: Faz.
B: A senhora chegou a ter casa de farinha?
F: Tive.
B: Teve casa de farinha?
F: Eu tive muita roça. Eu criei essa penca de filho trabalhando na roça.
B: Então, eu acho que a ideia da sua filha Esmeralda é muito boa, de fazer um
museu aqui.
F: Ela está com esse projeto, mas ela recomendou/ o que tem que passar para ela
(...) quer fazer uma casa (...) a nossa casa era assoalho, assim, de Jussara (...) o
era de telha, não. Nas casas do interior era tudo assim. De palha. Agora, quem tinha
mais alguma coisa, comprava palha de puçu, encomendava, vinha tudo do lago (...).
B: Puçu. É outra palmeira?
F: Agora, hoje em dia, não. Até aparece umas palmeiras assim.
330
B: Aquelas altas?
E: (...) museu na casa (...) Não é igual a deles. As nossas casas daquele tempo era
diferente. As paredes, olha, é muito linda. Bem trabalhada.
B: De onde você tirou essa ideia? Porque não tem nenhuma mais aqui.
E: Porque não tem. E, hoje, a gente que aqui é muito visitado e as nossas
crianças hoje estão crescendo e nunca vão saber que um dia houve essas casas. E
aí, eu quero mostrar para a sociedade hoje. Antigamente, a pessoa saía para a roça,
não passava chave, cadeado, nada. Tinha um fio, amarrava ali e ia embora. Deixava
tudo o que tinha na sua casa.
B: Esse lugar de palha, era uma casa de palha.
E: Não tinha quem mexesse. E hoje, a gente vive ali dentro de uma prisão. Hoje, a
gente vive em casa de alvenaria. Uma prisão, e a gente não pode deixar nada na
casa da gente. A gente não pode deixar nada na casa da gente que levam tudo
daqui. Eu quero mostrar para a sociedade como eram as casas, tudo de buriti, você
saía da sua casa (...) ia embora. Ficava tudo na sua casa. Tudo. Eu tenho uma
sandália, consegui um sandalião de pneu de carro que o pessoal usava na roça e
sandália de couro de boi, que as pessoas calçavam na época. E, hoje, a gente
que é todo mundo de sandália, o outro é mais diferente, tudo mais avançado.
F: (...) um tamanco assim, de pau. Não era nada que a gente tinha. Ia para a festa
de São José, a gente ia para a novena, calçava.
B: (...) era feito de madeira?
F: De madeira.
B: Qual madeira que era?
F: Faziam assim desse pau (...) que cresce grande. Está um ali.
B: Aquele bem alto?
F: Bem alto. Agora, grosso, a gente tirava aqueles cortes. Cortava, botava na prensa
e fazia (...) agora tem aquela sola com o coro curtido. Você conhece? O couro, curtia
331
o couro, a sola dava para a pessoa calçar. E andava que só. E agora (...) a gente
anda descalço.
B: Você está juntando as coisas?
E: Aos poucos (...) as roupas, que a gente chamava, o pessoal da roça chamava de
(surrão). São aquelas roupas grossas de trabalhar. Eles trabalhavam na roça e
aquilo ficava duro. Era até duro de tanto estar trabalhando, aquela roupa, ela ficava
dura, sabe? O sol, a terra e, às vezes, de algum pau que eles cortavam. Aquela,
aquela/
Loc01: (seringa?)
E: Isso. Aplicava na roupa. Mandioca também. A mandioca também, que eles
estavam descascando, a mandioca leite. Aquele leite. Tudo, sabe? Aquilo passa
tanta coisa, assim. Meu Deus, vai ficando tudo e depois a gente não sabe nem
contar.
B: E hoje, por exemplo, você pegar uma comunidade dessa, que nunca tinha
problemas de violência nem nada. Porque têm a mania de dizer, principalmente fora
das comunidades, o negro é sempre colocado como o que faz arruaça, que tem vida
irregular etc. etc. Eu acho que essa demonstração de vocês aqui, acho que é muito
pontual.
F: (...) amassava na peneira. Amassava, assim, na mão.
B: Você tem as peneiras? Vocês já arranjaram?
E: Tem peneira, tem (...). Temos o pilão, com o qual se faz paçoca, ainda faz vinho
de umbu-cajá.
B: O que é o umbu-cajá?
E: Umbu-cajá é uma fruta.
B: Uma fruta? E dá vinho?
E: É uma delícia vinho de umbu-cajá. De cajá e daquele outro, como é? O tucumã
(...) coisa gostosa.
332
B: Então, assim, ano que vem eu vou voltar.
F: Se Deus quiser.
B: Se Deus quiser. Eu vou pedir, vou pedir muito (...) ficar mais um tempinho por
aqui com a gente. E você podia passar nas casas do pessoal aqui para pegar esses
objetos, que, às vezes, são coisas que a pessoa nem dá mais valor.
F: Olha, agora a senhora não vai achar. Olha, nesse aqui é que a gente carregava
mandioca. Esses paneiros, a gente juntava caroço e fazia um grande, fazia que era
para juntar os caroços de murumuru e despejar na caixa para medir. Juntava com os
paneiros.
B: Isso aqui é um paneiro?
F: Isso aqui é um paneiro. Eu faço paneiro.
B: A senhora faz?
F: Eu faço.
B: E por onde começa? Por cima ou por baixo?
F: Começa daqui. Esse aqui, depois esse daqui, um, dois, três, quatro.
Loc03: Mostra aí para a gente. Deixa eu dar uma olhada.
B: Mostra aqui. Começa por baixo, começa por aqui. vai trançando. Esse foi a
senhora quem fez?
F: Foi. Aqui a gente arremata.
B: Seus netos sabem fazer isso?
F: Não, senhora. Eles aprendem, mas não sabem.
B: E aquelas peneiras de dois lados, assim?
F: Eu tenho a peneira de dois lados
[inaudível por causa do vento]
333
B: Rede de dormir ou rede de pesca? De dormir. Também nesse padrão?
F: Trazer aquela rede (...) só a rede.
E: Só a rede. Não precisa trazer a corda.
B: E corda? Vocês usavam corda?
F: Eu sei fazer corda.
B: A senhora sabe fazer corda?
F: Eu sei fazer corda de (...) corda de buriti. Eu sei fazer.
[inaudível por conta do vento]
B: Mas esse está bonito, esse está lindo. Todo certinho.
F: Aumenta aqui de um lado, do outro. Se a senhora quer fazer muito grande, a
senhora faz de seis buracos, seis, sete buracos. Agora, aqui você vai (...) encontro
com outro.
E: Esse aqui, olha. (...) [passa a planta de uma casa]
B: É uma casa. Uma casa com quintal, não é?
54” a 55” 20’ [gravação comprometida]
B: Sabe fazer.
F: Tem uma que faz assim trancada.
B: É linda. Ah, mas dona Esmeralda, seu projeto é muito bonito. Linda.
Loc03: É um projeto autossustentável.
B: Exatamente, autossustentável. Gente, a gente tem que pedir que o Capi volte. Eu
estou sendo bem política agora, porque eu acho que/
F: Ele passa aqui na nossa frente, ele faz aquele caminho.
334
E: Eu digo assim, também, não sei se o nosso governador que está hoje, se ele
parasse um pouco, assim, para pensar um pouco, existe tanta coisa. Não se
preocupar com a (feira). Em cima da nossa própria cultura do estado que ele
cuida, tem muita coisa, tem muita coisa. Tem muita coisa boa dentro da nossa
própria sociedade. E é uma coisa que a gente fica sempre preocupado.
P: Vou lhe dar essa aqui (...)
B: Vocês apresentaram lá. Muito obrigada.
P: Se até domingo der tempo, eu vou mandar para a senhora levar uma.
Loc02: Mostra aí a camiseta.
B: E ele deu um “G” bem bacana para a gordinha. Agora vou virar. Muito obrigada.
E: Vou preparar para ela pegar o material aqui.
B: Meu pandeiro está ali no sol.
Loc02: A gente já tem encomenda de batuque, cachaça.
B: A senhora não vai esquecer, não é? Tem a cachaça, ele vai fazer os dois
tambores e o meu pandeirinho vai ficar tomando sol até sexta-feira e eu vou ter que
arrumar um jirau grande assim para poder/ uma dessa aqui grande para poder levar
tudo.
F: Essa eu não tenho.
B: Assim grande.
F: Vou ter que chamar uma pessoa (...)
B: É bambu esse?
F: Não, esse aqui é buriti. Cresce assim.
E: Aproveite para fazer a casa, mas ele vai ser feito com a/ porque eu não quero que
fique só tirar/
335
[inaudível por conta do vento]
B: Olha, vó, eu nem sei o que dizer, agradecer sua família de receber a gente tão
bem, de falar todas essas coisas de coração.
F: Essa casa aqui está à disposição das pessoas que chegam para fazer nossa
visita, porque nós somos aquelas pessoas que trabalham com propósito, graças a
Deus. Então, aqui nós faz a nossa festa e o pessoal. Veio uma família almoçar com
a gente aqui, passaram quatro dias. No Marabaixo, minha senhora, eles enfeitaram,
ainda tem um pedaço. Colocaram dois retratos dos novos, vivos e mortos. Quando
essas flores desceram do ônibus aí, começaram a dançar, eu não aguentei, comecei
a chorar de ver elas cantarem.
Loc03: Ficou emocionada.
E: Foram uns franceses que vieram almoçar com a gente aqui.
B: Da Guiana, o pessoal que veio?
F: Foi.
B: Como é que pode o pessoal da Guiana dançar Marabaixo?
P: Eles têm uma levada, o Marabaixo, ele tem uma levada igual o zouk. eles
dançam no mesmo sistema, assim, do zouk. A gente faz um batuque, porque o
Batuque, ele é mais para cima um pouco que o Marabaixo. O Marabaixo é mais
cadenciado e ele faz mesmo sistema, mesmo toque de tambores do Batuque, eles
dançam zouk. Aí, começaram a dançar.
B: Meio-dia? Vai dar uma hora. Eu atrasei a senhora, tirei a senhora do seu serviço.
F: (...) Telefonar (...) Cochichar para ela daqui, porque ela toma logo (...)
E: Você tem celular aqui?
B: Tenho. Nós vamos anotar tudo agora. E cadê meu caderno? Está dento do carro
(...) para eu anotar meus telefones, dar o telefone também. Deixa eu ir lá pegar.
[corte] 01 01” 36’
336
Loc02: A gente foi lá sábado, domingo e segunda.
E: Eu acho que eu lhe vi, você estava filmando. Porque o público quer logo entrar e
a gente tem que deixar.
B: O que a senhora achou daquele festival que eu fui?
Loc02: Campina Grande.
B: (...) de Campina Grande que chegou, que veio com cordão de isolamento, eu
achei aquilo/
E: É muito triste. Jamais a gente vai aceitar isso, não é, mãe?
P: Eles não fizeram Marabaixo. Fizeram Marabaixo estilizado, então, eles estão fora
da comunidade.
B: Também acho, que eles não têm nem que estar junto com a comunidade.
P: Eles têm que estar fora. Negócio tão diferente, negócio de teclado, violão/
01 02” 47’
337
Transcrição DVD 04
Gravação realizada em: 12 de novembro de 2004.
Entrevistada: Joana, da Comunidade de Maruanum.
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Escola Estadual que serviu de alojamento para as comunidades que se
apresentaram no Encontro de Tambores.
Tempo total de gravação: 00h 12min 14s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; J: Joana.
00” 00’
J: Só um dia para chegar lá.
B: Um dia de barco.
338
J: Passava três dias, quando ia buscar a mãe de Deus de barco, ia em Mazagão.
B: Pegava todo mundo no caminho? Ia pegando as pessoas no caminho?
J: Pegava só a santa, porque o Maruanum é terra de muita gente.
B: É terra de?
J: Muita gente.
B: Muita gente. E qual era a santa?
J: O santo que nós venerava? Santo Antônio. Aí, depois, cada um trocou o seu.
B: Como é essa troca de santo?
J: Uma (loja) tem o santo. Chega lá, dá o dinheiro, recebe o santo.
B; Para quem que dá o dinheiro?
J: Pros donos dos santos, que vendem. Eles vendem.
B: Os santeiros, eles fazem os santos.
J: É. Cada uma tem o seu.
B: Então, não era mais como antigamente, um único santo para o grupo todo. Então,
depois que teve essa dissolução, cada uma comprou seu santo.
J: O meu está até aí.
B: O seu está aqui? Depois a gente vai filmar ele. E me fala uma coisa. E o
Candomblé e a religião afro, era cultuada, não era? Vocês esqueceram essa parte
ou na sua família/
J: Não tinha, não tinha isso.
B: Na sua família nunca houve isso?
J: Não. Nesse tempo era só mesmo Marabaixo e Batuque.
339
B: Marabaixo e Batuque. Não tinha nenhuma religiosidade nisso? A religiosidade era
católica.
J: Era só dançar Marabaixo, Batuque. Agora, era isso o que nós dançava.
B: Não tinha dança de Candomblé nem nada.
J: Não.
B: Nem cultuava orixá?
J: Nada.
B: Só cultua mesmo os santos católicos.
J: É, s era. Agora nós viemos ver essa dança deles aqui (no grupo) de cultura
negra.
B: Vocês não conheciam?
J: Não.
B: Sua mãe também não, nem notícia da sua vó, nada. Muito longe. Ninguém nem
sabia.
J: Notícia disso, não.
B: Notícia disso de jeito nenhum?
J: De jeito nenhum. Nunca vimos, nós viemos ver aqui.
B: Deixa eu perguntar uma outra coisa para a senhora. Como é que se fazia essas
coisas/ por exemplo, se o marido ficou doente, vocês levavam para médico, punha
no barco, viajava para tentar curar, ou tinha aquele pessoal que faz remédio.
J: Eu levava ele no médico às vezes. Às vezes, não. Tratava com remédio do
mato.
B: Mas a senhora mesmo?
340
J: Era. Aquele remédio, (um purgante) que prestava para a gente. Ia ver aquele
remédio bom para a dor, para banho.
B: O que era bom pra dor?
J: Se agarrava aquele anador de planta. Fazia da manjerona um chá. Fazia da
alfazema e alecrim, a sene. A sene é muito boa para dor (...) Ou fazia, comprava
mamona e fazia o chá desse remédio. O capim marim ou erva-cidreira. Fazia aquele
chá, dava aquele purgante para a pessoa. Passava. Era assim que era. Era muito
difícil a gente ir no médico.
B: A senhora chegou a ver criança nascer? Ajudou criança nascer?
J: Criança eu tenho visto.
B: Nesses tempos ou mais antigo?
J: Não, mas agora novato mesmo, ainda não, mas eu peguei quinze crianças.
B: Mesmo sem ser parteira, a senhora pegou quinze crianças. Está certo.
J: Peguei quinze crianças. Não peguei mais porque eu não posso lidar. Quando eu
pego, assim, ainda mais se eu for lavar, me uma dor nas pernas, no braço.
Assim que é.
B: E de estrangeiro. A senhora chegou a conhecer estrangeiro aqui, em Macapi
ou em Maruanum?
J: Não.
B: Chegou a conhecer pessoas estrangeiras, não?
J: Tenho visto já para cá.
B: E brancos, nessa região que a senhora estava, não existia?
J: Alguns.
B: E esses brancos eram o quê? Dono de comércio?
341
J: Nada.
B: Fazendeiro?
J: Nada. Às vezes, a e casava com um/ Eu conheci uma senhora, que eu não
conheci mesmo a mãe dela. Eu (...) ela. Era Joaquina o nome dela. Ela era filha de
gente branco, mas ela não se tinha por isso. O pai dela era branco, a mãe dela. Foi
a pessoa que eu conheci no Maruanum. Hoje/
B: E ela era o quê? Ela tinha terra também?
J: Não.
B: Não? Não tinha profissão, não fazia nada?
J: Não, (negocinho) da mandioca, que ela ajudava o marido. Gostava muito da
roça.
B: Viviam de roça, então.
J: Era. Viviam de roça.
B: Um casal só. Mas o marido era branco também?
J: Não.
B: O marido era negro.
J: Era.
B: Uma coisa mais antiga que a senhora lembra, assim, uma cena, uma coisa que
aconteceu de muitos anos. Do tempo da sua avó, por exemplo.
J: Eu não conheci.
B: Não conheceu a sua avó?
J: Não conheci avó, o conheci avô. Eu era filha única da minha mãe, sabe? A
derradeira filha.
342
B: Então, a sua e era filha única e a senhora era filha única. Que interessante. A
senhora teve cinco? Não, a senhora teve seis.
J: Filho? Eu tive/
B: Quatro meninas.
J: Não. Eu tenho vivo, mas eu tive mais.
B: Ah, estão está certo. Vivo, a senhora tem quatro mulheres.
J: E um homem.
B: E um homem, está certo. Quatro mulheres e um homem.
J: Agora, neto eu tenho muito.
B: Neto tem muito. Quantos netos tem?
J: Nem sei lhe dizer. Eu tenho mais de trinta netos. Tenho uns quarenta e pouco.
B: Nossa. Quarenta a mais. Puxa vida. O que a senhora gosta mais de fazer? A
senhora não deve lidar mais com a roça, mas das coisas mais do passado, o que a
senhora gostava mais de fazer?
J: Eu falo a minha verdade. Eu trabalho na roça, não é por que eu gosto, porque
precisão. E as minhas filhas não querem.
B: Que a senhora vai trabalhar.
J: Mas eu não me dou, assim, parada. Produz.
B: A senhora tem que fazer alguma coisa.
J: Alguma coisa para andar com o meu corpo, senão. Eu já estou mais destrelada. O
ano retrasado me deu uma dor de cabeça, eu vim parar para no hospital. Ah,
minha filha. Eu levei lá três semanas com essa dor de cabeça, que eu não comia,
não dormia e ela me trouxe para cá. Eu não queria ver, ela (questou), vim com ela.
Vim mesmo no médico, o médico disse que era malária. Eu disse que não era
malária. “Por que a senhora diz que não é?”, “Porque eu nunca tive malária. Estou
343
nessa idade e nunca tive”. Ele disse: “Mas eu lhe mostro. Fazer esses exames já”.
Mas a dor de cabeça era demais, que eu não me regulava. A menina foi, comprou
coco para encharcar minha cabeça. Fizemos os exames.
B: Não deu nada.
J: Não deu nada. Aí, o médico passou uns remédios, uns comprimidos. Eu tomei,
fiquei boa dessa dor de cabeça. Ele disse para mim que era para eu ficar sempre
tomando aquele remédio.
B: Não era pressão alta, não?
J: Não. Eu sofro de pressão alta, mas não era. Quando foi este ano, ela doeu de
novo. Ela doeu, doeu, doeu que eu não regulava. Nem os olhos eu podia abrir. Aí,
ela me trouxe para para Macapá, eu vim no médico. Aí, o dico disse que era
pressão alta, minha dor de cabeça era muita pressão alta. Tiraram a pressão. Passei
todo o dia tirando a pressão (...) É por isso que muita coisa, muito remédio e muitos
versos e certas coisas que eu sabia vai saindo do meu juízo. Da doença, que eu
acho. Mas eu era boa de fazer remédio. Uma pessoa que tivesse doente de
remédio. Se tinha um com dor no dente, (...) “Fulano está passando ruim, com dor
no dente”. Às vezes eu não estava, dava para a Rosa. A minha mãe, quando nós se
entendemos, ela parou quase de trabalhar. Doía muito as cadeiras. Quem
trabalhava era nós, eu e minha irmã solteira e uma sobrinha, que nós morava junto.
Aí, eu chegava, ela dizia: “Ah, minha filha, eu estava te esperando para fazer um
remédio para fulano, que ele está com dor no dente, o dia todo chorando”. Eu ia,
fazia aquela bola, botava no dente dele.
B: E ninguém nunca escreveu esses remédios?
J: Não.
B: A senhora não marcou em um papel, nada?
J: Eu fazia, uns eu ainda me lembro. Eu pegava aquela cachopa do algodão, que
estava verde, rapava ela bem rapadinha. Eu ia, tirava a rema do limão, palito de
fósforo. Botava uma pitinhazinha de sal. Aí, eu ia no piano, se ele tinha aquele
dente, não é? Encharcava bem aquilo lá na pasta e colocava no dente.
344
B: E passava.
J: Passava.
B: Mas quem ensinava isso para a senhora? A senhora tirava/
J: Tirava do meu cérebro mesmo.
B: Ninguém nunca lhe ensinou?
J: Nunca, nunca. Depois, eles me esperavam.
B: Era intuição?
J: Era intuição. É o que eu digo para eles, eu digo: “Hoje, eu não sirvo nem para
fazer remédio, não sei fazer remédio”. Fazia muito remédio para os outros. Ali na
(Pirativa), quando eu conhecia uma pessoa, eles me chamavam para mim fazer
remédio, e hoje não tem quase isso aqui.
B: E aquelas dores de amor, tinha remédio?
J: Acho que não [ri].
B: Dor de amor, que perdia namorado, tinha remédio? aquela tristeza, aquela
choradeira.
J: Isso tava difícil.
B: Isso não tinha remédio. Só arrumando outro.
J: Era assim.
B: A senhora não quer fechar com uma cantiga ou outros versos? Não lembra de
nada?
J: Não, eu me lembro, mas eu não tô querendo cantar.
B: Não está querendo cantar. Já cantou uma.
J: (...) uma irmã que me amava demais. E eu/
345
B: E seu marido faleceu?
J: Está com nove anos de morto. Eu moro nesse terreno lá, que nós compramos,
meus filhos e neto.
B: E a senhora tem papel de escritura, essas coisas?
J: Tenho.
B: Porque, hoje em dia, se não tiver o papel, está perdido.
J: Eu tenho. Lá tem uma escola que o Capiberibe fez, mandou fazer. Muito linda.
B: Continua funcionando?
J: Continua.
B: E as suas filhas ou filhos, alguém foi professor?
J: Não, não. Onde nós morava, não tinha, mas elas estudam, as minhas filhas.
B: Todas estudam. O tempo de antes era melhor que o de hoje ou o de hoje é
melhor?
J: Para mim lhe falar sobre educação, é o de hoje. Porque se eu/ [corte] Por que se
eu/ [corte] tinha ido na escola, eu escrevia meus remédio, não é? Mas hoje não é
bom porque, hoje, a gente tem que vim aqui cantar e a gente cantava nas roça dos
amigo. Agora muito morreu. Eu, eu também vou e fica sem nada, não é? Antes é,
era melhor sim, era.
12” 14’
346
Transcrição DVD 05
Gravação realizada em: 14 de novembro de 2004.
Entrevistados: Davi, Dona Deolinda e mulheres de Bailique (Joana, Rosa Santarina
e outras).
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Bailique.
Tempo total de gravação: 00h 12min 14s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; Da: Davi; D: Deolinda; C: criança; N: Nilson; M01, M02:
mulheres de Bailique; J: Joana; R: Rosa Santarina.
00” 00’ a 03” 55’ [imagens da Comunidade de Vila Progresso]
Vai querer vender a minha foto?
347
Vou colocar ela no álbum. Ela leu já a carta. Diga aí, fale alguma coisa. Fale.
Alô.
[corte] 04” 23’
C: o cego, o mudo e o português. O mudo falou: “Eu quero ter asa, eu quero ter
asa”. O mudo falou e o cego falou: “Eu quero ter asa”. o português ele pensou
depois. “A merda, lá vem a merda na cara, na cabeça dele”.
[corte]
C: Já? Era uma velha. Era uma vez, era o papagaio. a velha senhora mandou
comprar manteiga e ele foi comprar depois. Ele comprou na padaria. Depois, ele
estava com vontade de comer manteiga. Ele comeu pouquinho, depois queria comer
tudinho, depois: “Agora, merda, como eu vou dar a manteiga? Acabei tudo a
manteiga”. Aí eu vou dar (...) para ver se disfarça. A mulher já tinha comprado o pão.
era a manteiga. Ela passou a manteiga, a velha falou: “Tu quer, papagaio?”,
“Não. Comi muito já. Vou comer um pedaço desse pão. Não quero mais”. Aí,
quando ela foi ver, assim, no pão era merda. Só lombriga.
[corte] 05” 51 a 09” 29’ Conversa com um senhor sobre Bolsa Família e governos
anteriores do Amapá. Presença de alguém falando espanhol.
[corte]
B: Quer dizer que a maioria da população aqui está misturada com índio, branco.
Misturada com caboclo.
Da: Aqui não tem só os costumes indígenas, mas tem / vem de uma outra família.
B: Qual seria?
Da: Eu não sei.
B: Português, espanhol? Italiana?
Da: Eu não lembro qual é esse povo, mas eu acho que veio do estado mesmo.
B: Mas deve ter, não é?
348
Da: Mas tem, sim. Tem gente.
B: Porque eu acho, Davi, que quem veio para cá, os primeiros (...)
Da: Fez um trabalho sobre isso, mas eu não consigo lembrar a origem do pessoal.
B: Mas eu acho que deve ter.
Da: Tem sim, tem sim. Tem algumas pessoas antigas que sabem. Geralmente,
assim, o povo já formaram famílias aqui.
B: Eram grupos de famílias.
Da: Eram várias famílias. O pessoal vai crescendo, vai casando e vai ficando aqui.
Tendo filhos. Aí vai só expandindo, só.
B: Você trabalha aqui (...)
Da: Não, eu moro lá na frente. Ele é conhecido, meu pai.
B: Seu pai é o seu Domingos?
Da: É. Vocês foram lá ontem.
B: Quer dizer que ele é outra família. Qual é o sobrenome dele? Você sabe?
Da: Sobrenome dele? Eu não sei. Parece que é Queiroz Barbosa.
B: Deve ser espanhol, português.
Da: A minha veio daqui mesmo.
[corte] 11” 27’ Entrevista com a Dona Joana, parteira, sogra do Mauro (professor
da Escola Bosque).
B: Uma série de coisas, assim, não tem nenhuma pergunta muito formal. Uma coisa
que eu gostaria é que a senhora falasse um pouco de memória, o que a senhora
lembra de quando a senhora veio para o Bailique, se a senhora já é daqui.
D: Sou filha daqui mesmo.
349
B: É filha daqui.
D: Só não é desta ilha aqui. Morava lá do outro lado. Minha (família) me teve para lá.
B: Em outra ilha?
D: Foi. Ali do outro lado, foi. Aí, me criei para lá. A gente foi morar em um lugar
perto, que chama Macaco, ali para cima. A gente tem uns nove anos e eu acabei
de me criar lá. Quando voltei da casa dos meus pais, de lá para cá, fomos fazer casa
para o outro lado, aí eu estava moça. foi tempo que o meu pai morreu
também, aí fiquei só a com a minha mãe. Minha mãe ficou doente e aí foi tempo que
eu me amparei com esse velhão aí e tive logo um bocado de filho.
B: Aí já arrumou a vida, não é?
D: Foi. Arrumei logo a vida.
B: E a senhora nessa época lembra, assim, quem eram os primeiros povos de
Bailique? Porque a gente imagina que tenha vindo algum povo português ou
espanhol, alguma coisa assim.
D: É, português veio, que não foi do meu tempo. Eles eram meus avôs. Meus
bisavós.
B: Seus bisavós?
D: É, meus bisavós, eles vieram de Portugal diretamente do tempo que não é nosso
tempo.
B: Em outros tempos.
D: Do tempo que teve aquela briga de Cabral (...) eles ainda estavam querendo, os
portugueses estavam querendo invadir o Brasil. Eu acho que estavam invadindo
mesmo.
B: E tem aquela briga também da Guiana. A Guiana veio descendo, querendo pegar
parte daqui e Portugal querendo prender também aí.
350
D: Foi essa briga. E foi o tempo em que eles vieram de lá. Aí correndo também, com
medo de morrer, como diz o Antônio (...) correndo para não morrer e saltando para
se defender, eles vieram e compraram essa ilha tudinho. Os velhos. O nome dele
era Ramiro Baiano, Ramiro Baiano, não sei bem o nome, sobrenome dele. Todos
eles vieram de lá. A mãe da minha mãe veio de também. Vieram tudo moça,
vieram casando. Você conhece município de Breves, por aí? Não?
B: Eu ouvi falar, mas não conheço.
D: Pois é, eu tenho um bocado de parente casado por aí, vieram casando por aí.
Eles tinham muito filho, muitas filhas, e eles casando por aí. Aí vieram terminar de
casar para cá já. E aí a minha mãe, eles tiveram (...) casaram com um filho da minha
avó. Veio a minha mãe, um tio e uma tia. Ainda é viva a minha tia, veio morar aí para
cima, para Breves. E foi o começo disso aqui. tinha umas pessoas morando
antigamente. Aqui era um subúrbio, sabe? Era um matagal. Era pouca gente que
morava aqui.
B: E era inundado de água? Tinha que fazer casa?
D: Também foi assim. Aqui essa ilha não tinha.
B: Essa ilha não tinha.
D: Não, não existia não. Era só ali e aqui para trás, que tem uma mata.
B: E ela foi formada a partir da invasão do rio.
D: Foi, sabe? Tem a queda de terra para um lado e tinha do outro lado a queda de
terra. foi caindo, foi caindo de ambos os lados, o rio ficando largo, muito largo, e
formou-se. Eu me lembro quando era mesmo por baixo. Quando era bem
aquela maré seca, ela parecia roxa no fundo, com um palmo de água. Eu estava
com nove anos. Pois é, eu me lembro disso aí.
B: A senhora viu nascer a ilha.
D: Vi, vi crescer. pelos meus sete anos ela começou. (...) O pessoal vinha tomar
banho. Ficava com dois palmozinhos de água, assim fica descoberto. Camarão,
peixe. Muito camarão. Aí, depois fui crescendo, fui crescendo. Foi o tempo que eu fui
351
crescendo também, a gente/ a gente se criou tudo aí, tudo camarão. A gente
encontrava um (igarapezinho) que mora ali, (...) minha avó pegava uma rede, assim,
colocava no igarapé, cheia de camarão.
B: Então se vivia aqui na região disso.
D: É. Muita caça, muito peixe. Muito (farto).
B: Dava para viver bem.
D: Graças a Deus.
B: E a senhora está aqui, então, desde o início do Bailique?
D: É, eu sou filha daqui.
B: Você é uma filha daqui. E essa, como é que foi? Existiam índios, negros? Aqui
como é que era?
D: Não. Aqui, graças a Deus, que não teve esses negócios de negros, índio, não.
Tinha aí indo para o Oiapoque, para lá, para cá, para cima também. Porque no
Oiapoque tem mesmo (raça), é só índio mesmo. Eles se criaram lá mesmo.
B: Era uma convivência difícil, não é?
D: É, mas aqui, não. Graças a Deus. Nunca teve nada.
B: Sempre foram brancos e caboclos?
D: Só mesmo gente/É.
B: E a senhora, como é que desenvolveu essa sua profissão?
D: De que?
B: Que a senhora é parteira.
D: Parteira. Bom, isso aí, eu quero dizer para você, sem medo de errar, que isso foi
Deus quem me deu esse dom.
B: Que beleza.
352
D: Foi, porque eu nunca vi uma mulher ganhar nenê perto de mim. Aí, eu já tinha/ no
ano de mil novecentos e setenta, eu fiz o primeiro parto da minha irmã. Agora só que
eu comecei a conhecer a criança torta na barriga, porque eu endireito. Eu conheço o
jeito que a criança tiver, eu endireito. Eu faço ele ficar normal, para nascer normal. E
eu comecei/ eu morava com a minha mãe, a gente morava em um igarapé, como
eu falei ali, o Macaco chamava, não tinha, era (...) e a mamãe deu uma
escorregada, deu um escorregão assim, a criança entortou na barriga dela. Um
irmão meu, assim, ela chegou e disse: “Filha, eu passando mal, o meu filho
enviesou, enviesou aqui”. eu disse: “Ah, mãe, e agora? A gente não tem quem
chamar. Não temos parteira”. Esse tempo era bem difícil parteira.
B: Não tinha mesmo?
D: Não. E também recurso para ir para a cidade era mais difícil mesmo.
B: Imagino, se hoje é difícil, naquela época, então.
D: Mais difícil mesmo. Era tudo difícil, essa parte é. Aí, ela disse: “Vem puxar para
mim”. Eu estava com dez anos. Aí, eu disse: “Mas, mamãe, eu não sei puxar”. Aí,
ela disse assim: “Mas eu vou te ensinar”. Ela era/ela era parteira e ela era
experiente. Se minha e não tivesse morrido até hoje, ai meu Deus, era bastante
experiência. Com ela, eu aprendi muita coisa, que, até hoje, eu não esqueci, não.
Quando ela morreu, eu estava com dezesseis anos.
B: Nossa, ela morreu jovem, então?
D: Minha mãe morreu com trinta e quatro anos.
B: Não acredito.
D: Foi. Minha mãe teve (seis) filhos. Papai morreu com quarenta e oito.
B: Minha nossa. Mas foi o quê? Foi de/
D: Papai morreu afogado.
B: Aqui?
353
D: Ele sofria um problema de (...) quando dava nele, ele caía. Disseram que ele caiu
no meio do rio, ele morreu. E a minha mãe morreu de uma hemorragia que deu nela,
acho que é esse negócio de cisto. Ainda a gente levou para Macapá, mas difícil. Ela
esteve internada uns dezoito meses no Macapá. Mas não teve jeito, estava
muito cansada, não tinha mais como operar. Também, nesse tempo, os médicos
eram mais medroso. Agora, eles operam mesmo.
B: Eles operam mais fácil.
D: Agora, não. Eles operam mesmo.
B: E aí, a senhora conseguiu mudar a posição?
D: Aí, eu agarrei, peguei, ela disse: “Olha, filha, a cabeça está vindo para cá assim e
a bundinha está para cá”. Estava quase mesmo de atravessado. “Isso aqui é a
cabeça”. eu peguei, era um (...) eu fui levando. Ela disse: “Olha, passe bem o
azeite e vai levando a bundinha para cá”. Eu disse: “Mas, mamãe, a senhora vai
botar seu filho de cabeça para baixo? Não vai morrer não?” Porque eu pensava que
se ficasse de cabeça para baixo, morria. E ela disse: “Que morre, minha filha, nada.
É assim mesmo. A criança fica todo tempo de cabeça para baixo”. Fui levando, fui
levando. Ela disse: “Olha, a bundinha está aqui, agora falta leva a cabeça”. , eu
fui metendo a mão com força com azeite, foi, endireitou. Aí ela disse: “Sente aqui,
está bem direito aqui a cabeça”. Aí eu peguei, comecei a conhecer a cabeça, não é?
Porque sempre a cabeça, ela é maior do que a bunda da criança. Aí, depois disso,
eu fui ficando moça, (...) eu puxava a barriga dela também, quando ela estava com
uma dor. Já não era mais para puxar criança, mas ela tinha uma dor que dava nela e
eu puxava. Eu puxava, ajudava. Ixe, tratei da minha mãe até as últimas horas. Aí,
quando eu estava com trinta anos, eu fiz o primeiro parto, no ano de mil
novecentos e setenta. Foi. Aí, a minha irmã estava buchudona, meu cunhado
disse: “Ah, cunhada/” Mas eu endireitava filho, eu conhecia se fosse dois, eu dizia
que era dois e era mesmo. Só que eu ainda não tinha feito nenhum parto.
B: Mas é engraçado, a senhora/
D: Foi, foi um entendimento que me deu, que eu não sei. O que eu dissesse, era
aquilo mesmo. Só que eu ainda não tinha feito nenhum parto. Ele disse: “Ah,
354
cunhada, se a maré der seca, que não der para (pegar uma velha)”. Ali no
Jaranduba, um igarapé que tem ali. Uma parteira que foi a parteira de todos os meus
filhos quase, “Aí a senhora vai fazer o parto da Raimunda”, (...) Zé? Você endireita
criança estando torta, e a senhora endireita. Então, o filho direito tem até sozinho”.
“Ai, meu Deus do céu, não tenho coragem. Ainda mais na minha irmã”. pensou?
Era o segundo filho dela. não foi que deu uma maré seca mesmo? A gente
morava bem perto, assim. ele veio: “Cunhada”, “O que é?”, “Raimunda está com
dor”. “Ai meu Deus, espere que eu vou para acompanhar ela aa madar”
(...) de manhã já. a dor (espetou), eu puxei, estava direito, foi rápido. Sem
demora, a criança nasceu. foi o primeiro parto que eu fiz no ano de mil
novecentos e setenta, dia seis de janeiro. Ainda foi ainda (...)
B: A senhora tem ideia de quantos a senhora já fez?
D: o que eu anotei, foram setecentos e sessenta e pouco. Mas, com tudo que
eu fiz mesmo, entre aborto, essas coisas que eu tenho feito parto em Macapá. Eu
morava em Macapá, eu fazia bastante parto lá. Então, eu não gostava, porque todos
os partos que eu fazia, eu tinha que ir no cartório registrar. Era por isso que eu
não fazia. Morei onze anos em Macapá, andei pegando umas oito ou nove crianças
lá. Foi. Depois eu vinha para , que eu tinha uma (marretagenzinha de roupa) pra
cá, fumo e vendia negócio de luz.
B: E a senhora vivia disso? Vivia dos partos?
D: Não, porque eu tinha marido. Eu vivia com ele. Ele marretava em Maraguari, fazia
as vendas. Ia para Caiena, Maraguari.
B: Mas não pesca nem nada disso?
D: Não, nunca pescou. Nem sabe.
B: Se vocês não se comportarem, vocês vão sair. Isso não é uma brincadeira,
bom?
D: Pois é, e foi isso. Depois que eu fiz esse parto, foi indo um atrás do outro. E
era cunhada, era irmã e era tudo. E daí, eu fui fazendo parto, fazendo parto.
355
B: A senhora chegou a fazer das suas filhas?
D: Fiz de duas.
B: Noras também? Não?
D: Nora, já fiz.
B: Quantos filhos a senhora tem?
D: Eu? Tenho doze. Doze filhos. Sete filhas e cinco filhos. Todos vivos, todos estão
casados.
B: Todos com esse marido?
D: Sim, foi com ele, foi (...) muitos anos separado.
B: Às vezes não dá certo.
D: Eu não podia estar lá em Macapá e ele não queria vir para cá comigo. Ficava lá, é
aposentado mesmo.
B: Quem acostuma por aqui, a senhora acha difícil sair?
D: Eu achei. O dico me falou muito, muito/esqueci agora o nome, doutor do
coração. ele disse: “Olha, se a senhora quiser mais tempo de vida, a senhora tem
que ir embora para o interior. Não fique aqui que a senhora vai morrer”. Eu sofro de
pressão alta, colesterol. Estou doente.
B: Mas a senhora atribui isso a essa vida daqui? Ou a senhora acha que é da vida
mesmo? A sua saúde.
D: Eu tenho a minha saúde melhor aqui. Quando eu morava em Macapá, onze anos
que eu passei morando em Macapá (...) eu era cliente do pronto-socorro. Tinha
vez que eu ia desmaiada (...) tudo com aparelho. o doutor/ meu Deus, como é o
nome dele? Doutor do coração.
B: E aqui a senhora passa melhor?
356
D: Brasil, doutor Brasil. Ele falou que se eu quisesse ter mais tempo de vida, era
para eu vir para o interior. eu digo: “Para onde, então, que eu vou, meu Deus?”.
Aí queriam me mandar pro (Cambari).
B: É longe?
D: É para cima do Jarí. É muito longe. eles queriam me mandar para lá, pra mim
trabalhar num posto abandonado, coberto de (batatarana), de cerrado, sabe? eu
disse que não, que eu não ia para lá, porque eu não tinha ninguém para lá.
B: Porque aí, a senhora trabalharia naquele projeto das parteiras do Amapá?
D: Pois é. eu digo: “Não, se for para mim ir para Jarí, eu prefiro ir para Bailique”,
porque eu tinha dois filhos, Aqui eu tenho dois filhos. Naquele tempo era dois,
agora já são quatro aqui.
B: Olha só. É o Mauro.
D: Não, o Mauro é meu genro.
B: É genro, desculpe, o Mauro é genro.
D: Era o Dalto e o Baixinho esse tempo morava aqui. Agora, não, tem o (Jano)
também já mora também.
B: Quer dizer, agora já vieram mais dois.
D: É. ela também que casou esses tempos está aí, mas ela vai embora. Vai
embora o Mauro, ele não vai ficar muito tempo. Porque o trabalho dele é mais
para lá, para a cidade mesmo.
B: E a senhora aqui faz parte do grupo de parteiras do Amapá?
D: Faço.
B: E a senhora faz reuniões com o pessoal das parteiras?
D: Quando eles vêm aqui ou mandam me avisar, eu vou na reunião deles, das
parteiras. Mas tem vez que eles não mandam me avisar. Porque eu tive falando
na (Gempe), que eu tenho umas conhecidas lá, doutora Luisa, que ela até saiu da
357
Gempe, tem outras/ é, teve mudança. eu falei para ela que eu era uma pessoa
doente, eu tenho as pernas fracas. Quando me esse problema de coração, eu
fico com as pernas fracas. Aí eu disse assim para ela, que eu não estou, assim, para
estar em toda reunião. Ela disse: “Não, não carece não. A senhora é treinada.
não para a senhora estar mais. A senhora é antiga. Até parto, se para a
senhora fazer, a senhora faz, mas se não der para a senhora ir, não vai”. Tem
muitas parteiras agora. Nesse tempo era eu, nesse tempo era eu. Tinha vez
que passava de mês que eu não vinha em casa. De uma casa eu ia passando para
a outra. Passava mês que eu não vinha em casa. Eu tinha as minhas filhas para
cuidar da casa, sabe? As minhas filhas solteiras, elas estavam em casa (...) agora,
não. Eu já nem posso estar saindo aqui.
B: Nessa época de início de Bailique que a senhora lembra, tinha muito estrangeiro
por aqui?
D: Estrangeiro? Olha, tinha um que morava bem ali de fronte, era um alemão. Ele
era um alemão. Ele veio fugido da guerra, do tempo da Alemanha. Que teve aquela
guerra, não é? Ainda deram dois balaços na perna dele. Era (seca) a perna dele. Ele
veio perambulando e ficou aí. Fez uma casa bonita, ele morava lá. Sozinho, ele o
tinha mulher. Ele arrumou umas companheiras, mas também não fazia filho. Nunca
teve filho. Arrumou umas três companheiras, mas ele nunca/
B: E ele morreu aqui?
D: Ele morreu em Belém. Acho que era pulmão. Ele foi para Belém, chegou para lá,
ele morreu.
B: E franceses?
D: Francês. Eu acho que não.
B: Não? Francês não. Italiano?
D: Italiano tem. Italiano teve por aqui. Um italiano que até casou com uma sobrinha
minha. Foi, um da Itália casou com ela. Mora em Macapá. Mora em Macapá. É
bonito ele.
358
B: E tinha, assim, tinha algum grupo que falava/ sempre se falou português, ou tinha
alguém que falava qualquer língua a mais, falava outras línguas diferentes? Falava
patuá, que é uma das línguas lá de cima, do Oiapoque? Não?
D: Não. Só era ele mesmo que falava alemão.
B: E se entendia?
D: A gente entendia pouco também. Ele falava muita coisa que a gente não
entendia, sabe?
B: Mas, na verdade, ele estava meio escondido, não é?
D: Ele estava escondido.
B: Ele estava tentando não ser reconhecido.
D: Era verdade mesmo. Ele nunca foi, nunca/ Quando ele veio, tinha dezoito anos,
nunca mais foi na Alemanha. Morreu e nunca mais foi para lá.
B: E a senhora acha que essa é a melhor forma de estar hoje? A senhora acha que,
aqui, hoje, a senhora está bem, a senhora está com saúde. A senhora ainda é
chamada para fazer algum parto?
D: Ah! Para tudo eu vou. Tudo, tudo. Mesmo assim eu vou. Um dia desses, eu fiz,
nesse mês de março, eu fiz oito partos. De oito em oito dias, eu faço um parto. E
mês de março é o mês que mais chove aqui. o rapaz vem me buscar, que é meu
sobrinho, vem me buscar duas horas da madrugada. Eu saí debaixo de um tempo
com trovão. E muita trovoada e chuva grossa. Botei uma sombrinha na cabeça (...)
coloquei na cabeça e fomos até lá aquela vilagem lá em cima, a ponte chega lá.
B: Até o final da ponte, sei, sei.
D: Aí eu fui. Cheguei (foi ter o neném pela) uma da tarde do outro dia. Eu ainda
fiquei toda molhada (...) tenho sofrido muito. Tenho sofrido muito.
B: Passado maus bocados.
359
D: Meu Deus do céu. Olha, o serviço de parteira é um serviço muito duro. Eu não sei
porque que eu tenho aguentado a barra.
B: Mas talvez por/ no início a senhora pegou isso, como a senhora disse: “Deus
as coisas para a gente”. O que fazer com isso, como é que eu faço? Eu quero
realmente ser parteira? Seque eu quero ser professora? Quero ser dentista? A
gente nunca sabe.
D: E agora é isso que eu me admiro, porque eu sei bem pouco ler, sabe? Porque
nesse tempo a gente trabalhava em roça, a gente nem tinha tempo e era difícil.
Tinha um colégio no (Muritizal) e era difícil, morava mais aqui embaixo, meu pai
não deixava eu ir. Era mais difícil mesmo. Eu o estudei. Não tive essa
possibilidade de estudar. Aí fui estudar, quando eu morei em Macapá que eu estudei
ainda a primeira, terceira e fiquei/
B: Mas a senhora vê, isso é riqueza. Hoje, a senhora tem uma profissão, sem ter um
grande estudo, sem ter conseguido/
D: Pois é. Por isso é que o pessoal tendo vindo aqui me reportar, eles se admiram
de eu ter esse dom e conhecer e trabalhar com uma pessoa que saiba, seja muito
educada, seja uma pessoa letrada.
B: Não, e a senhora fala muito bem. Fala mesmo. Tem, assim, uma facilidade, não
tem nem vergonha, não tem nada.
D: eu falei para eles, eu digo: “Não, porque se é uma coisa que é dada por Deus,
é claro que a gente tem que aceitar, abraçar”. Em mil e cinco crianças eu ajudei a
criança a nascer. Graças a Deus. Eu tenho oito que morreu, mas que morre,
assim, no sétimo dia, e também tenho pegado criança com três morta, queda.
Aí, a criança nasce com quatro dias está tudo (...) Mas, olha, com jeito, eu vou
ajeitando, a criança nasce.
B: A senhora tem poucos óbitos, poucas crianças que morreram na sua mão.
D: É, só oito.
B: Oito de mil e tantas.
360
D: Mil e cinco.
B: Mil e cinco. É muito mesmo. Dona Deolinda, assim, o que a senhora lembra de
mais antigo aqui? Além da água, da formação de Bailique de três palmos. Achei
essa imagem linda. O Bailique estava se formando com dois palmos de água.
D: Veio do fundo.
B: A senhora acha que ela veio do fundo. Não foi quebrada?
D: Foi, quebrava a terra, assim, mas quando foi para ela nascer. Por que que essa
água não levava?
B: Como é que a senhora acha que isso aconteceu?
D: A gente/ o meu tio, ele mora em Macapá, é irmão da minha mãe. Ele disse que
ele se (alagou) no meio do rio. E ninguém sabia se tinha esse baixo aí. Não
aparecia, não. Ainda não aparecia.
B: Ele dizia que tinha/
D: Não, ele não sabia. Ninguém sabia que tinha isso embaixo. Era muita maresia,
tinha muita onda alta, porque era rio, era largo. Era daí desse um até uma mata
que tem ali atrás. Isso aqui não tinha, não. E aí, ele se (alagou) no meio do rio, de
vela (...) dobrou, e ele começou a gritar, começou a gritar, ele foi dar o para o
fundo e ele deu na praia. A primeira vez foi ele que viu e deu com o na praia. Na
praia, mas estava meio de vazante já. Daí, ele disse: “Meu Deus, se eu não estou
sentado em cima de uma raia, é terra isso aqui, é praia”. deixou a maré secar, a
maré secou a lagoa (...) morava de fronte. Chegou lá, ele disse para a minha avó
que tinha se (alagado) no meio do rio e que tinha encontrado uma praia bem no
meio do rio. Ninguém acreditou. Aí: “Quem mais quer atravessar?” (...) mediu com o
remo, a praia lá. E depois, com uns dois anos mais, ela veio aparecer. Ficava o
chão. Depois a gente foi morar nesse Macaco, eu estava com os meus dez anos,
fomos morar no Macaco e, quando a gente veio de lá, tinha assim rua (...)
passarinho, passarinho, passarinho que dava, papagaio. Aí já estava a ilha formada.
E viemos morar nessa ilha aqui. O primeiro morador fomos nós. Boa noite.
361
B: O Nilson, nosso colega.
N: A senhora não foi para São Paulo? Ah, não?
B: Ela estava dizendo que não foi, porque essas situações de saída, ela tem uma
fragilidade no coração.
D: Eu sofro do coração.
N: É que tinha várias lá e eu não lembrava do seu rosto.
B: É, porque as parteiras foram para São Paulo, fizeram uma apresentação.
D: Foi, foi a irmã/ daqui foi a Nazaré quem foi, foi a Nazaré. uma cadeira para
o mocinho sentar.
N: Eu já estava sentado.
D: Eles são crianças, eles podem sentar no chão.
N: Eu estava sentado até agora.
B: Dona Deolinda estava contando que memória mais antiga que ela tem é de como
surgiu o Bailique. É linda a história, é belíssima. Dona Deolinda, e essa questão do
açaí? A senhora conhece desde sempre? Sempre existiu aqui?
D: O açaí. Muito. Isso agora aqui tem pouco, porque surgiu esse negócio dessas
fábricas para tirarem a popa, sabe? Para fazer em conserva. andaram tirando
muito, muito. Esse mato era cheio de palmito de açaí. Açaí que a gente tomava
todo o tempo, não tinha falta de açaí. Agora, não. falha açaí. toma o que vem
de Macapá a gente compra. É, é assim.
B: Que tristeza. Bom, eu acho que, se a senhora quiser se despedir do grupo, a
gente considera um trabalho super bom.
N: Deixa eu perguntar uma coisa só. Antes do açaí tinha/ antigamente tinha outras
coisas, se vivia de outras coisas?
D: Tinha. Era no tempo dos meus pais, meu pai era pescador. Trabalhava com
pesca. Ele tinha o (Finadeoli), que era um português, morava ali para cima. (...)
362
Canoa, canoas grandes. Meu pai trabalhava em uma, era o encarregado dela, ele
pescava. E nós/ nesse tempo que ele pescava, a gente não tinha precisão de
fazer nada, a gente mesmo comia o que ele colocava para dentro de casa. Minha
mãe não tinha esse trabalho. Quando meu pai foi enfeitiçado, sabe o que é feitiço?
B: Sei.
D: Pois é. Meu pai foi enfeitiçado por causa de uma espingarda dele, o cunhado
enfeitiçou para buscar a espingarda dele. Que ele tinha emprestado para ele, não
devolveu. Aí meu pai foi buscar a espingarda.
B: Ele era um índio, de descendência índia?
D: Não, não. Não era, não. Era porque ele tinha no Amapá, tinha uma mulher que
chamava Brasilina, que era dessas que pegava fogo, ela virava fogo. Perigosa. Era
conhecida dele, amiga dele. Aí ele foi lá.
B: Ela era branca?
D: Não sei. Era uma velhona, acho que de setenta anos, oitenta. ele foi e
mandou fazer feitiço no meu pai. Meu pai levou quatro anos (no fundo da rede), e
a mamãe foi passar a trabalhar. Eu era pequena, com os meus nove anos.
N: O que aconteceu com seu pai daí?
D: Ele foi enfeitiçado, ele adoeceu.
N: Ele adoeceu?
D: Adoeceu.
N: Sim, mas o que ele tinha?
D: (...) Era dor, era fraqueza. Era um monte de coisa.
N: Quatro anos ele ficou.
D: Quatro anos ele ficou acamado e minha mãe que nos sustentava, sabe?
B: Seu genro.
363
D: Esse aí é uma benção. Eu gosto muito dele. Aí ele se tratou com um curador que
tinha. O pajé, eu sei que tiraram um bocado de bicho dele. Era lagarto, era
centopeia, um bocado de coisa que tiraram.
B: De dentro dele?
D: É, saía do umbigo, saía da boca.
N: E a senhora via isso, ou não?
D: Vi, vi.
N: Quantos anos a senhora tinha?
D: Eu tinha nove anos. Vi, vi, eu vi o bicho. Era um lagarto desse tamanhinho assim.
Ele era todo pintadinho de verde, amarelo, azul.
B: Saiu do umbigo?
D: Não, ele porgou ele. (...) ele ficou bom, ele ficou bom, mas não ficou mais
como ele era. Ele não podia trabalhar, não trabalhava muito, assim. nós fomos
morar nesse igarapé, ele fazia roça. Aí nós fomos trabalhar. eu também, com
idade de dez anos, ia para roça, (ajudava a arrancar capim), plantava tudo o que era
tipo de planta.
B: E aí tinha outras coisas para comer?
D: É, tinha. Como eu lhe falei. Bailique era um matagal, tinha poucos moradores,
mas era rico. Tinha muita caça, nesse tempo não tinha proibimento de matar uma
cotia, matar um jacaré, matar um veado. Tinha veado atravessando aqui no rio, o
pessoal cercava e matava. Era muita fartura de caça. E aí, tinha o caroço que a
gente juntava, caroço de murumuru. Aí tirava o caroço, quebrava a amêndoa, vendia
os quilos. É. E também tinha a castanha, que era de andiroba. Vendia as caixas de
castanha, vendia também o óleo. A gente se mantinha também disso.
B: Então, quer dizer, era uma vida que dava para sobreviver com o que tinha aqui.
D: Era melhor acho do que agora, porque agora não acha emprego, não tem quase
emprego e a população cresceu. Fica meio difícil, não é? Tem muita gente.
364
B: Do tanto que a senhora diz que fez de parto. Mil e cinco partos ela fez.
D: (...) que eu tenho aí.
B: O quê? Marcado?
D: Tudo marcado.
B: Mostra pra gente?
D: Mostro. Dá licença.
B: Eu acho que você vai ter que deslocar.
D: Esse é o meu certificado. Quando eu fiz esse curso, na maternidade, era no
ano de mil novecentos e setenta e nove.
B: Secretaria de Saúde. Ela é de quarenta e dois (...) Bailique. Curso de parteiras
(...) mil novecentos e oitenta. Nossa, mãe de Deus. Quanta criança. Olha. Nossa,
Adriano. Você está vendo isso? Aqui, aqui. Cada um desses é uma criança.
N: O último foi quando?
D: Foi um que está aí. Foi de julho, dia seis de julho.
B: Vinte e cinco de novembro de dois mil e quatro.
D: Não, eu fiz agora esses dias.
B: Julho de dois mil e quatro, novembro. tem um de novembro, dona Deolinda.
Tem uma catorze de novembro. É desse ano? Está aqui, dois mil e quatro.
[mostra uma foto]
B: É sua filha?
D: Não.
B: Tinha que fazer uma pasta, botar tudo assim. Existe a possibilidade de a senhora
se aposentar?
365
D: Eu já estou aposentada.
B: Já está aposentada.
D: Esse foi um dos primeiros partos que eu fiz aqui, não tinha onde anotar, eu
anotava aí nesses cadernos.
B: José Isaías, número um. Jocieli foi a segunda. E o André foi terceiro.
N: Quando foi o primeiro parto?
B: O primeiro foi em setenta. Mil novecentos e setenta, não é?
D: Mil novecentos e setenta.
B: Nossa, dona Deolinda, isso aqui é uma riqueza, é um tesouro. O mapa do tesouro
aí. Beleza, muito bom. Vamos ver se a gente faz uma pasta, manda uma pasta para
o Mauro fazer assim bem de um em um, colocar os papeizinhos. Muito obrigada,
muito obrigada mesmo. A gente queria agradecer à senhora a gentileza de receber a
gente. E depois que estiver pronto, a gente manda para o Mauro o material para ele
mostrar para a senhora. Está bom? Vou deixar meu endereço tudo direitinho, está
ok? Muito obrigada.
D: De nada. Precisando.
B: Para o povo me ver com a dona Deolinda. Agradecer a dona Deolinda, a
gentileza dela de fazer um trabalho desse com a gente. Isso deixa a gente muito
feliz, saber quem é que faz o Amapá. Que povo é esse que construiu esse país,
esse estado tão bonito. Criança nascer e crescer com saúde, está tudo aqui os
danadinhos, não é, dona Deolinda? estão tudo casado, tudo moço. Então, está
bom. Muito obrigada, viu, dona Deolinda? Obrigadão.
[corte] 42” 02’
B: Sei, mas a história é um pouco essa. Eu achei muito bonita a história dela.
M01: Qual era ela? O nome dela?
B: É a dona Deolinda.
366
M01: Ah é, ela é muito mais velha do que eu.
B: Bem mais, é? Ela nasceu aqui, mas dmorou (...) Boa tarde. Que bom que as
senhoras aceitaram o convite. Estamos esperando chegar mais alguém para a gente
começar, para eu falar tudo e a gente começar. Como é que a senhora chama?
Maria? Faltou o nome do meio, dona Maria. De Souza. A senhora é nascida aqui?
Criada aqui? A senhora é de Viçosa.
M01: É.
J: É mais longe.
B: É mais para dentro, é isso? Mas Viçosa faz parte do arquipélago, não?
M01: É só atravessar para cá.
[corte] 44” 16’
B: Histórias, palavras, quadrinhas, poesia, cantiga, receita. Qualquer coisa. O que
vocês se lembrarem e eu vou fazer um trabalho que deve ficar pronto em dois mil e
sete sobre o Amapá. Chama-se “Memória do Amapá, fronteira de linguagem”,
porque parece que o, mas a questão linguística, a questão da linguagem, o que
vocês falam é muito diferente do que se fala no Nordeste, se fala no Sudeste, não
é? Aqui em cima, vocês não têm aquele sotaque do nordestino. Aqui ninguém tem
aquele sotaque forte, do “ó xente” e tal que o nordestino tem, o cearense, o baiano.
Ninguém tem essa fala diferente deles. Então a gente veio fazer isso. O nosso
pedido é assim, que vocês falassem um pouquinho, cada uma fala um pouquinho de
si. Como chegou aqui, o que se lembra de mais interessante do lugar. Como é que
foi que casou, quantos filhos. Se os filhos moram por aqui, se não moram. O que
você se lembrar do lugar. Por exemplo, o que tinha naquele tempo que não tem mais
hoje? E o que era bom naquela época? Como é que era? Se conhecia algum
estrangeiro, se não tinha. Como é que era essa história aqui.
M01: Eu conheci, mas era/ eu conheci logo que eu fiquei viúva, eu conheci um
estrangeiro, que ele falava bem o português. Era caianês. Nesse tempo, Caiena
não era tão difícil ir para lá e nem vir de lá.
367
B: Não está muito longe a Guiana.
M01: E eles vinham comprar serimbabo.
B: O que é serimbabo?
M01: Era papagaio, periquito, veado, filho de cotia, filho de tudo quanto era bicho,
para levar para lá. Era muita (vendagem).
B: Para Caiena?
M01: Para Caiena. Então tinha o barraco onde eu trabalhava logo que eu fiquei
viúva, e era muito grande. Era os caianenses que vinha fazer compra de
serimbabo. Aí, inclusive veio esse francês, era um casal. eles se deram muito
comigo. Eles me pagavam para fazer mingau para os serimbabos. Fazia numa
panela, aquelas paneladas de mingau, e dava para periquito, papagaio, arara. Era
uma casa aqui. Até chegou o dia de eles viajarem para lá. Eu conheci esse casal, foi
a pessoa que eu conheci.
B: Eles falavam, então, francês?
M01: É, falavam francês e falavam português também.
B: E falava bem ou a senhora percebia/
M01: Não, bem português. E também quando era para eles falarem francês, era
eles dois mesmo.
B: Só eles dois.
M01: A gente não entendia nada.
B: E eles sumiram?
M01: Depois que fechou, que não deu mais para comprar.
B: Ficou proibido.
M01: Aí eles não vieram mais.
368
B: Eles eram de Caiena. Eles eram brancos?
M01: Eram moreno, meio escuro. E vinha também crioulo.
B: Vinha crioulo?
M01: Veio um que queria até que eu fosse embora com eles trabalhar. Eles me
gostaram muito, na casa que eu trabalhava, queria que eu fosse. Eles me davam
o prazo de três meses para eu vir buscar meus filhos. Só que eu tinha um/ o
pequeno, quando o pai morreu, não tinha um ano. eu fiquei com pena de deixar,
porque eu ainda não podia levar ele para saltar lá, eu agradeci. Não quis ir. Hoje
em dia, eu me arrependo de não ter ido, porque aqui ficou difícil. Muito difícil, porque
no tempo em que eu fiquei/ nós ficamos viúvas. Era melhor. eu com ela, somos
viúva. Ela ainda tem o marido dela. Para mim, eu achei melhor.
B: Que lá seria melhor?
M01: Logo quando começou, quando meu marido morreu, era melhor do que agora.
Era mais (falto).
B: A senhora falou que era mais fácil ir para Caiena do que agora. E o que é difícil?
M01: Era a passa/ viagem. Antes a viagem, diz que era de saltar lá. Depois que
saltava lá, pronto. Era chegar no (...) e estava amparado ali. E agora, não. Se
verem a gente, mandam embora, vem de volta.
B: Manda de volta?
M01: É. Prende lá, não é? ficou difícil. E eu tenho uns conhecidos que, até
hoje, mora lá. ganha por conta de mesmo, uma vizinha. A Dalva, eles
ficaram lá. Pois é, os filhos dela ficaram por lá, só que não (...) por ter nascido lá.
B: Agora, lá é outro dinheiro, por isso que ganha mais?
M01: É.
B: Lá é euro, não é? É outro dinheiro. É uma moeda mais forte.
369
M01: Mais forte. Daí, para mim foi difícil. Agora está meio difícil, que a gente
ganha o salariozinho que tem por mês. E no tempo que eu fiquei viúva, para mim era
melhor. No tempo tinha nada, eu fui trabalhar para um (rato), a gente juntava
caroço para vender, andiroba, tinha muito. Apanhava açaí para vender. Umas horas
aqui (...) para comprar. E aí isso foi acabando tudo. Está ficando tudo difícil.
B: E foi acabando porque foi desmatando?
M01: Foi tirando, tiravam (...) o açaí, olha. Estão acabando com as (...). Aonde é
mais preservado é onde nós mora, ali. Ali mesmo, o dono não deixa levar, tomam
conta. E outro vem para ver se pagam.
B: Mas quem tira, vem de fora?
M01: É, vende para fora. (...) porque aí é entrada para todo lugar, é costa.
B: Pega um barco, vai entrando e catando.
M01: Vai saindo. Vem, passa por lá e já vai tirando.
B: Quer dizer, todo mundo colhe, mas ninguém planta.
J: Ali está terminando.
M01: Vosabe que quando eu me criei aqui mesmo, eu criei meus filhos, a gente
nem comprava comida. O dinheiro era para gente comprar uma comida diferente.
Era peixe, era camarão, era tudo tipo de peixe, caça. Tudo aqui foi muito bom.
Agora, não. Não tem mais. Está acabado.
B: E me diz uma coisa, seus filhos ficaram aqui ou foram embora?
M01: Não, estão todos aqui.
B: Estão todos aqui.
M01: Graças a Deus. Tenho três que mora em Macapá, mas que eles foram
estudar e estão para ainda. Uma é casada e morava aqui, mas depois passou,
para o filho estudar, ela passou a morar pra lá.
B: A senhora tem quantos filhos?
370
M01: Nove.
B: Nove filhos. Está certo.
M01: Estão todos vivos.
B: Uma coisa, assim, que a senhora lembra de mais antigo, seria esse casal ou a
senhora lembra de alguma coisa mais antiga? Daqui. Por exemplo, essa história de
quando surgiu a terra, de quando apareceu tudo isso.
M01: Como assim, a senhora fala?
B: Uma história bem antiga, uma história que a senhora conhece, a mais antiga.
Seria essa dos franceses que a senhora contou? O que a senhora lembra de mais
antigo aqui?
M01: De mais antigo eu não lembro nada.
B: Não lembra de nada, não? Essa história dos franceses, foi em que ano? A
senhora lembra em que época?
M01: Olha, está fazendo uns quarenta anos.
B: Uns quarenta anos, mais ou menos.
M01: É, porque quantos anos o meu marido vai fazer morto? Ele morreu, eu estava
com seis meses. Ele tinha morrido quando eu comecei de encontrar, assim, de me
cruzar com eles.
B: E o seu marido, faleceu de quê?
M01: Foi de hepatite.
B: Hepatite. Não tinha essa coisa de vacina, não tinha nada?
M01: Não. Ele pegou, ele viajava muito para o Oiapoque. Quando ele adoeceu para
lá, ele ficou muito doente. Até que chegou para cá.
B: Quando ele consegue descer.
371
M01: Foi, para vir, nesse tempo barco era difícil. Para gente conseguir pegar para ir
para Macapá, estava cansado. Não deu nem para operar. Ele levou vinte dias
para ver se recuperava. Foi operar, não aguentou.
B: Essa hepatite que pega.
M01: No Oiapoque ele pegou, (...) para viajar.
B: É uma hepatite difícil.
J: Uma doença horrível.
B: Uma doença horrível, desmancha o fígado.
J: Meu filho, se ele aparecer (...)
B: Essa coisa da medicina natural, dos remédios da terra, isso ainda existe?
M01: Existe.
B: A senhora conhecia antes. Como era?
M01: O que nós conhece é muitas plantas que é remédio. Arruda, cravo, catinga de
mulata que não chama aqui. Sabugueiro, mucuracá, urubucá. Tudo isso era planta
do tempo da minha mãe, eu já lembro que eles usavam.
B: A senhora sabe para que era todas essas coisas?
M01: Era, olha, arruda é contra doença.
J: Cravo, catinga de mulata.
M01: Cravo, catinga da mulata, todas essas doenças do (rato) que pega na gente,
que entorta, fica olho torto, a boca pra cá.
B: Sei. Doença que pega assim.
M01: Mucuracá é para negócio que/ uns dizem que não existe, mas que a minha
mãe falava que existia muito, que a (...) era de bicho, que fazia mal e eu vi no
navio (...) para mim que existe. Esse urubucá, mucuracá era para isso. era para
372
isso que a gente usava, sabugueiro para sarampo, para fazer chá para sarampo,
para febre que pegava, que não quer passar. A gente fazia o (...) passa.
B: E tinha uma coisa de colocar o sabugueiro debaixo da cama. Isso existia quando
tinha sarampo?
M01: Não. Fazia o chá. O chá para melhorar. Melhorava, dava o ponto para suar,
para sair tudo. Assim a gente tratava. Até do meu filho era como eu que tratava.
B: Tirava tudo.
M01: É, tirava, passava tudo.
B: Hoje ainda vocês usam?
M01: Usa.
B: Usa ainda? Eu estava com os meus pés inchados, estavam assim, desse
tamanho. Eu sou gorda, mas o meu estava muito inchado. Eu não estava vendo
as veias do pé, não estava vendo, mas estava muito, muito inchado. Aí eu passei ali
e pedi para aquela senhorinha que tinha as florzinhas plantadas na frente do quintal.
E ela me deu quebra-pedra. Eu fiz, tomei dois, três dias que eu estou aqui, no
barco. Tomei, desapareceu. Realmente. Em São Paulo, eu já teria tomado um
comprimido. Mas aqui não tem comprimido, eu vou tomar é um chá mesmo. Fiz um
chá e tomei.
M01: Remédio caseiro. Eu gosto de remédio caseiro.
B: A senhora sabe fazer algum tipo de xarope além desses chás assim, não?
M01: Não, porque a gente não usa quase, assim, para/
B: Não tem muita doença de pulmão.
M01: Não.
B: Bronquite, essas coisas, não?
J: Bronquite a gente vê.
373
B: O que dá mais como doença aqui?
M01: Olha, a doença mais (...) que tem aqui é a asma. Quase tudo quanto é criança,
mas mais as crianças. Dá quentura. A gripe quando dá forte, a asma pode vim.
B: E vocês usam o que para asma?
M01: Olha, eu mesmo trato dos meus com xarope. Xarope, chá caseiro. Assim, no
comércio eu compro, eu faço óleo doce, mel.
B: Como é óleo doce?
M01: Uns vidrinhos.
B: Que compra aqui.
M01: É, compra. Aí passa o mel de abelha para melhorar, o limão. Põe um
limãozinho, espreme.
B: A senhora faz o mel, o mel é a base. Faz o mel com outras coisas.
M01: Aí depois, a gente dá. Pronto. Acalma a tosse. Para a canseira, quando cansa.
B: A senhora acha que é por causa da umidade?
M01: Eu sinto que é. vai (...) aquela ali é muito (...) Ela é mais velha do que s.
Muito. Os pais dela foram nascidos e criados aqui, a sogra dela.
B: A senhora nunca saiu daqui para morar? A senhora sempre morou aqui?
M01: Sempre morei aqui.
B: A senhora é aposentada do Estado ou da Prefeitura, alguma coisa, ou não?
M01: Do Estado.
B: Do Estado? Então a senhora tem uma aposentadoria.
M01: Tenho, que me ajuda.
374
B: Precisa, não é? E, assim, cantigas, essas quadras, isso que a senhora ouvia,
tinha cantador aqui? Violeiro? Não?
M01: Violeiro tinha. Eu tinha um tio que era muito bom de tocar violão. Era muito
bom na viola. Tocava viola, tocava aquele (...) (do tempo que a gente era solteira).
B: Mas não tinha mais?
M01: Não.
B: E hoje, não tem? Hoje, é essa música aqui de/
M01: Tinha aquela rabeca que chamava.
B: Que toca aqui assim. Aquela é difícil tocar a rabeca. Pouca gente toca rabeca.
M01: (...) nosso tempo.
B: No seu tempo. De quanto tempo para cá não tem mais? Pouco tempo?
M01: Isso está fazendo muitos anos.
B: Mais de vinte?
M01: Mais. Ih, eu era mocinha quando via isso. Vou fazer sessenta anos.
M02: É só musica de rádio, de aparelho?
R: Boa tarde.
B: Eu adorei vocês terem vindo, vai ser muito bom falar com quem conhece o lugar.
Se não, fica difícil. Fica muito difícil. Dona Mariana. Não quer falar agora, dona
Joana? Fala da senhora, como é que a senhora veio para como a dona Mariana
falou.
J: (...) com ela ali.
B: A Rosa? Então vamos lá. Estou tomando os nomes de tudo, está certo? A
senhora é? Seu nome?
R: Meu nome? Rosa Santarina.
375
B: A senhora nasceu aqui, dona Rosa?
R: Fui nascida e criada aqui.
B: Nascida e criada. As amigas aqui estavam dizendo que a senhora é nascida e
criada e que toda a sua família é daqui.
R: Toda família é daqui.
B: A senhora não quer contar essa história para a gente? Eu vim aqui ouvir histórias.
Meu trabalho é ouvir as histórias e tentar fazer um material escrito, um livro de
memória do Amapá. A memória das pessoas que estão aqui, como é que elas
vivem, como é que elas fazem a vida, como é que isso aconteceu.
R: Eu fui nascida ali onde o Pedro (Melena) mora. Aqui no final da vila. Aí, eu
estava com vinte anos, quando me casei vim para cá.
B: No começo da vila.
[corte] 01 01” 52’
376
Transcrição DVD 06 – 1ª parte
Gravação realizada em: 14 de novembro de 2004.
Entrevistados: Mulheres do Bailique (Joana, Rosa Santarina, Oscarina Barbosa
Vieira, Maria de Sousa, Maria de Nazaré da Luz das Neves, Marina, Dilma) e um
senhor não identificado por nome.
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Bailique.
Tempo total de gravação: 01h 00min 54s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; J: Joana; R: Rosa Santarina, O: Oscarina Barbosa Vieira, MS:
Maria de Sousa; M: Maria de Nazaré da Luz das Neves, Ma: Marina, D: Dilma, S:
senhor não identificado; J: Jucileide, professora de arte da Escola Bosque, C:
operador de câmera, P: Professora da Escola Bosque, E: Estilista.
377
00” 00’
M: Eu fazia. Meu marido fazia roça.
B: E pescava?
M: E nós plantava, nós ia para o mato, nós, com ele, tirava mel, mel da abelha.
B: Mel natural? Não é igual a esse mel que a gente faz favo?
M: Não, não.
B: Mel na mata.
M: Na mata. E a gente ia, caçava com ele, assim, na mata. Para cá, o serviço, como
se diz, era mais facilitado. Não é que nem lá. Nós saía oito horas, nove. Quando
dava meio-dia, uma hora ou duas, chegava em casa. Tranquilo trazer o que comer.
B: E hoje, não. Hoje, já está um pouco diferente.
M: É. Agora já está ficando algum lugar muito difícil. Mas aonde nós mora, para é
muito farto, lá onde eu tenho o terreno.
B: Onde é que a senhora tem o terreno?
M: É no Igarapé Grande, na beira do Jaguaraguari, pertencendo os campos. Eu
moro para lá, é muito farto lá. A senhora sabe que agora mudou tudo, tem muita
caça, mas não se pode matar, não pode fazer nada. Tem, assim, criação.
R: Olha, essa aqui é a minha filha.
B: Boa tarde. Se a senhora estava contando uma coisa de antigamente, eu quero
saber.
D: Olha, eu comprei essa rosca aqui, mas, antigamente, cinquenta anos atrás, a
gente não usava no plástico, era enfiado no barbante.
B: No barbante, passava assim. E a senhora sente saudade?
D: Sinto, sinto.
378
B: Era mais bonito, não era?
D: Era melhor.
B: Mesmo porque o barbante tinha uma utilidade depois, o plástico a gente fica com
aquele problema.
D: Já vai poluir se jogar no chão, é.
Ma: Ele sua e fica mole.
B: E isso é uma coisa feita que todo mundo conhece aqui, essa rosquinha?
D: Todo mundo conhece.
B: É como? É um pão? Você come como um pão?
D: É, isso aqui é torrado, assim, é bem sequinho.
B: É salgada?
D: É salgadinho. Isso aqui, ele é light, não engorda.
B: Oba, então para mim dá.
D: O pão engorda. É por isso que eu estou levando aqui.
B: Eu estou admirada que todas as mulheres aqui são bem, assim, delgadas,
bonitas. Eu acho as mulheres aqui muito bonitas.
Ma: (...) é feia.
B: achei mulher bonita aqui. o achei nenhuma mulher feia. Essa é a mais
nova, mais velha?
R: É a terceira filha.
D: Sou a terceira filha. Sou a mais velha das mulheres.
B: Como é teu nome?
D: Dilma.
379
B: Dilma, eu estou aqui tentando arrancar umas histórias dessas meninas, porque eu
estou trabalhando com a memória do Amapá. Eu queria agradecer imensamente.
D: Elas têm tantas histórias.
B: Então, mas elas estão, assim, meio esquecidas. Eu quero combinar uma coisa
aqui hoje, no dia de hoje.
R: Eu disse para ela, eu estou esquecida.
D: Tem um irmão que é mais criança que eu, mas ele sabe mais coisa que eu,
porque vai passando o tempo, a gente vai esquecendo, não é? E ele, não. Ele tem,
assim, a cabeça muito boa para gravar, ele não esquece, mas ele não está aqui.
B: Ele não está aqui. Quem sabe eu voltando, eu consigo encontrar com ele. Eu
estou dizendo para elas que eu vou voltar para São Paulo até o final do mês. Eu
volto para Macapá e vou fazer umas outras comunidades lá, e ano que vem eu vou
voltar. Eu, o Adriano e mais um povo aí. A gente vai voltar e eu vou voltar a
perguntar as histórias para vocês. O compromisso é que vocês comecem a lembrar
dessas histórias todas, porque eu quero fazer um material de memória.
D: Vocês já contaram alguma aqui?
B: Ela contou uma ótima de Caiena, ela contou uma história ótima.
R: Eu disse para ela/
D: A mamãe?
B: Não, dona Oscarina. Sua mãe também contou umas histórias boas.
D: Essa aqui já morou na Guiana Francesa. Essa aí anda muito.
R: Seu irmão é que conta história de pesca.
Ma: Eu já estou indo por causa do meu filho.
B: Está certo, nós vamos encerrar assim, viu, dona Maria. Não, dona Mariana.
Ma: Marina.
380
B: Marina, dona Marina, está certo. Então vem cá, dona Marina, para a gente fazer
uma imagem nós duas, aqui. Eu e dona Marina. Olha que delgada, magrinha,
maravilhosa. Olha a buchuda aqui. Tem jeito, não, cara. Essa aqui é a dona Marina,
uma das nossas informantes aqui, muito querida. Quando eu voltar o ano que vem,
ela vai contar um monte de história para mim. Está certo? Combinado?
Ma: Está certo. Combinado.
B: Está bom? um beijo aqui. Muito obrigada, viu, dona Marina? Eu quero um
beijo e um abraço de todo mundo agora.
D: Da próxima vez que você vier, vou contar um monte de histórias. Eu vou lembrar.
B: Pode deixar, eu vou querer.
D: Eu sei muitas histórias.
B: Dona Joana, muito querida, muito querida a dona Joana, uma das nossas
informantes (...) para contar história. Muito obrigada, viu, querida. Até a volta. Essa é
nossa amiga também, que contou uma história muito bonita da família dela que veio
de lá. Agora vamos ver se a gente traz os homens também para contar umas
histórias. Vai lembrando, hein? Botando as coisas na cabeça, está bom? Muito
obrigada. Cheirosa. Mas elas são tão cheirosas. Essa aqui é a fundadora do
Bailique. Ela é que fundou o Bailique, não é? Muito obrigada, sua benção.
R: Mas, viu, quando (...) porque eu sofri um derrame e eu fico esquecida.
B: Mas não faz mal, o que a senhora lembrar está de bom tamanho. E se não
lembrar, também não faz mal.
R: Minha comadre está aí para contar a verdade, o que eu passei.
J: Eu também fiquei doente.
R: Aí eu não tenho vontade. O pessoal me convida para ir cantar.
B: Isso, a senhora cantou tão bonitinho aquela, não foi?
381
C: Canta alguma coisa para a gente, aí. Canta alguma sica para a gente. Canta
alguma música.
B: Ela cantou aquela. A senhora lembrou alguma até agora? Lembrou alguma outra?
R: Tem uma de uma valsa que nós dançava.
B: Então, canta essa valsa.
R: [canta] Estava sentado em uma porta, Maria numa janela, meu coração se
reclama, por não falar mais com ela. Não chora, Maria, vai ver teus encantos, me
põe nos teus peitos que eu sou teu amante. Eu sonhava contigo a noite inteirinha,
ainda tenho esperança de a Maria ser minha.
B: Que lindo! Querida, obrigada, viu?
R: Essa era a valsa que nós dançava [ri].
B: Dona Maria, também nossa informante, ela era de Viçosa, veio para que dá
mais ganho, está certo? Vai lembrando das coisas, que a senhora está muito
quietinha. Na próxima, a senhora vai contar umas histórias bacanas que nem a da
dona Oscarina, está bom? E aqui, dona Oscarina. Dona Oscarina contou uma
história linda. Muito obrigada, Deus lhe pague. Sua benção, muito obrigada. E da
próxima vez, vamos lembrar mais. Muito obrigada, viu? Boa tarde.
08” 56’ [corte]
B: O senhor sabe se esse sobrenome era português? Era do pessoal daqui já?
S: Não sei, porque aqui apareceu a primeira pessoa que esteve aqui, de mil e
oitocentos e pouco, morreu aí, está enterrado no Brigue, não é? Foi ele que
apareceu (Amanajás), mas agora eu não sei contar como foi.
B: O Brigue é o quê? Um cemitério?
S: Um cemitério, na mesma igreja (...), lá na ponta.
B: Na Macedônia?
S: Lá mais para frente.
382
B: E ele foi o primeiro morador?
S: O primeiro a morar (...)
B: Amanajás. E o nome dele era?
S: Não lembro o nome dele.
B: Não sabe. Mas o que tiver de túmulo com Amanajás, seria o dele primeiro. Mil
oitocentos e pouco.
S: A data que ele morreu está tudo na pedra.
B: Ah, então a gente podia dar uma passada depois. E o senhor veio para
quando? Ou o senhor já nasceu no Bailique?
S: Nasci aqui.
B: Nasceu aqui. Seu pai e sua mãe eram daqui?
S: É também.
B: Também eram daqui?
S: Eram daqui.
B: Certo. E vocês tinham que tipo de atividade?
S: Olha, no tempo de antes, no tempo do meu pai, o trabalho era diferente do que
hoje. A pesca (...) e aquele tempo ajuntava o caroço de murumuru, cortava a seringa
para fazer borracha.
B: Para fazer a borracha.
S: Era isso o trabalho, mas tinha. Tinha (...) a semente para o óleo. Era um trabalho
grande. Vendia muito, muito, para muita coisa. Antigamente, era disso.
B: E o senhor achava que antes era mais fácil ou hoje está mais fácil?
S: Olha, (...) mas está mais fácil. Primeiramente, que antes aqui não existia crédito.
Crédito não tinha, você tinha que trabalhar. O meu pai trabalhava demais, tinha que
383
trabalhar. Ele serrava, (...) eu terminei com ele e acabei tranquilo, serrando também
na mata.
B: Na mata?
S: É, na mata. Um embaixo, outro em cima.
B: Serrando, serrando madeira.
S: Madeira. Essa é a vida.
B: E essa madeira era mandada para Macapá?
S: Não, por aqui mesmo vendia, ali. Era madeira grossa, para embarcação. O avô do
Cléber que mora aqui, sabe o Cléber?
B: Não, eu não conheci ele.
S: Não conhece. Aquela ponte ali (...) comprou essa madeira para embarcação.
B: Era madeira de grande porte, grandes toras para embarcação.
S: É, tirava a madeira, trava aquelas peças grossas lá. Aquele trabalho era muito
trabalho. Então, hoje (...) vai em Macapá, tem loja em que a gente apenas assina,
vai pagar depois. A Esplanada é uma delas, porque tem crediário agora para dar
entrada em janeiro. De antes, não tinha.
B: Não tinha essa facilidade. Então, antes era comprar a dinheiro vivo. Então
hoje, o senhor pode fazer uma compra e programar para pagar depois.
S: Para pagar depois.
B: O senhor acha que isso é bastante positivo.
S: É, porque antigamente era difícil, por exemplo, (...) comprar qualquer coisa,
compra um sofá, compra um armário, qualquer coisa (...) para pagar.
B: E o senhor tem esposa ainda? Sua esposa é viva?
S: Minha mulher é nova, quarenta e cinco anos.
384
B: E é a sua primeira esposa ela?
S: Morreu.
B: Ah, morreu. Aí o senhor casou pela segunda vez.
S: Foi.
B: E quantos filhos o senhor tem?
S: Treze.
B: Treze. E dessa esposa?
S: Oito. Da primeira é cinco.
B: E estão todos aqui no Bailique, não?
S: Não. Aqui, da primeira tenho (seis), outros estão em Macapá, uma filha e um filho.
Da segunda. Da primeira mulher só tenho duas filhas, uma que trabalha ali na roça e
outra que mora ali do outro lado.
B: E, assim, o senhor lembra das coisas que eram legais, bacanas, que eram boas
antigamente? O que antigamente era muito bom? As festas, as cantigas, os
encontros, a população, muito bom, o que o senhor acha?
S: Olha, eu, das festas, eu lembro pouquinho das festas, não sei se era melhor,
porque eu digo a festa em Bailique (verão) em julho, é uma festa bonita no Bailique.
Muita gente, muita gente, o (Bailique todo), mas muito bêbado. Tem muita bebida
para vender, tem uns que sabem beber e uns que não sabem. No tempo da
minha infância, nem o que comer não tinha. O cara comprava uma cachaça,
terminava aquilo, ele tinha que brincar (...) para correr.
B: Só tinha aquela.
S: Era a festa que tinha para hoje.
B: E essas festas antigamente, como eram feitas? Tem um festeiro que fazia? Era
na casa de alguém?
385
S: Tinha um festeiro que fazia, assim, anual.
B: E o que festejava?
S: Festejava São Sebastião, dezenove de janeiro.
B: Dezenove de janeiro.
S: O Natal mesmo.
B: Natal tinha lapinha, presépios, essas coisas?
S: Não.
B: Então festejava com uma festa normal.
S: Normal.
B: E tinha música?
S: Olha, maior tempo era música de sopro, clarinete.
B: Música de sopro.
S: Eu, na minha infância, quando fui rapaz, tinha duas festas que tinha música (...)
música de sopro.
B: É, a dona Rosa falou que o pessoal tocava clarinete.
S: Meu avô era músico muito do bom.
B: Tocava aqui?
S: É, mas conheci ele, o homem perdeu a vista cedo.
B: Está certo. Escute, o senhor, nesse momento, o que o senhor acha que é muito
ruim? Essa questão o senhor já falou, a questão da bebida que é muito ruim. E outra
coisa que seria muito ruim nesse momento, que não está muito bem? As senhoras
reclamaram, elas acreditam que é a falta de emprego, que elas acham que não tem
muitos postos para trabalhar.
386
S: É, tem pouco. Emprego não encontra muito. O problema (que eu estou notando)
desses treze filhos, apenas dois empregados. Um trabalha aqui, no pré-escolar. Ele
fez um concurso da Prefeitura. Passou bem. Foi o décimo sexto colocado em trinta e
oito mil, e mora em Macapá. Tem o outro, da primeira mulher, que também é
professor. O resto, tudo batalhando, desempregado. , é isso. Outra coisa que tem
no mundo, aí não é só aqui no Bailique, mudou muita coisa, é a violência.
B: Já tem aqui?
S: Tem. Um rapaz ali, um sobrinho meu de segundo grau, estava bebendo uma
cerveja ali, o rapaz cortou ele por aqui. Não deu pra nem ver quem era. Ele morreu.
Aquilo não dava para aguentar. Que eu te digo, fui conhecer Macapá. Macapá (...)
qualquer embarcação, com o dinheiro no bolso, sai com o dinheiro, a gente é vivo.
Hoje, nem vivo mais.
B: É assim? Está desse jeito? E sica? O senhor lembra de alguma música
interessante? A dona Rosa ontem falou que tinha umas valsinhas, umas coisas
interessantes. O senhor lembra de alguma coisa?
S: (Não tem que) lembrar. Sempre eles fazem na escola aquela dança, o coatá.
B: O que é o coatá?
S: É uma música que cantavam, eu mesmo não cheguei a conhecer, era muito
antiga, não é?
B: Muito antiga. Nós vamos ver, hoje à tarde, a dança o coatá. A escola vai fazer
para a gente ver.
S: Aquela senhora ali, a Rosa, ela é uma das que dançou isso. Ela dançava, (muito
tempo).
B: Hoje à tarde, a gente vai ver a dança lá. Então, tá. Então, a gente queria
agradecer a sua disponibilidade e a gentileza de conversar um pouco com a gente.
Então o senhor trabalha com madeira, o senhor é carpinteiro?
387
S: Eu sou carpinteiro, eu faço embarcação, mas a minha profissão mesmo é pesca.
A única documentação que eu tenho, o documento, é como pescador. De carpinteiro
eu não tenho, mas vou fazer também.
B: Mas o senhor é carpinteiro e faz embarcação também. Muito obrigada, viu?
Então, um abraço aqui. Muito obrigada. Até mais, a gente volta. Quem sabe a
gente volta no próximo ano para ouvir de novo.
18” 00’ [corte]
B: Esse é o açougue do “Seu” Raimundo. “Seu” Raimundo recebe pescado e
distribui, assim como carne. “Seu” Raimundo nos vendeu peixes enormes logo que
chegamos, e agora a gente veio fazer uma entrevista com ele, porque ele também é
uma das pessoas originadas aqui no Bailique. Seria o depoimento masculino que
nós não temos ainda.
18” 28’ [corte] [cenas de crianças]
19” 04’ [corte]
B: Os alunos/ têm material de vários alunos aqui. A proposta é de materiais
alternativos, palha, papelão, materiais sintéticos, utensílios de decoração.
J: Sou Jucileide, professora de arte.
B: Muito prazer, nós estamos filmando o material. Queria que você fizesse uma
falinha para a gente gravar o seu depoimento. Eu sou a Berenice, ele é o Adriano.
Está bom? Fique à vontade. Eu falei que era material da Escola Bosque, a senhora
pode continuar. Professora Jucileide, professora de arte da Escola Bosque. Vai falar
um pouquinho do material dos alunos para vocês.
J: Nós somos aqui duas professoras de artes, sou eu e a professora Loureiro, que,
no momento, não pode estar presente. Então, esse nosso trabalho aqui é um
trabalho que é feito principalmente com reaproveitamento da natureza morta, como
você vê aqui os materiais. Trabalhamos também com reaproveitamento do lixo, do
lixo urbano, que são essas peças. Reaproveitamento do lixo. Esse tipo aqui é
reaproveitamento do lixo, do lixo urbano. Trabalhamos aqui com papel e papelão e
388
vários outros. Aqui nós trabalhamos também com a natureza morta, ou seja, com
reaproveitamento do lixo nativo. Então, esse trabalho que é feito pelos alunos, aqui
eles são alunos muito criativos, são muito inteligentes e eles têm uma criatividade
muito grande. Participam mesmo, têm muito interesse, têm muita boa vontade de
trabalhar. Então, por isso daí surgiu a nossa ideia do nosso projeto, que foi do setor
produtivo. Por que esse setor produtivo? O setor produtivo é justamente a produção,
é produzir. Todo esse material que é produzido, que é feito, confeccionado pelos
alunos, este material, ele sevendido. Vendido e, com isso, tendo retorno para os
alunos. Com certeza, vai contribuir também para a renda familiar e dando mais um
incentivo para que eles continuem produzindo cada vez mais. Continuem criando.
Cada vez, eles expandindo mais. Então, esse é o objetivo do setor produtivo. É
produzir, comercializar, divulgar e, também, principalmente, valorizar a riqueza daqui
que eles têm. Essa grande riqueza que é aqui o Bailique, como a própria natureza
oferece. Trabalhamos tanto as artes práticas como trabalhamos também as artes
plásticas, que é quanto aos quadros. Então, aqui também desenvolvemos também
um grande trabalho nas artes plásticas.
22” 14’ [corte]
P: A dança do coatá está sendo/ o grupo de dança do coatá, eles apresentaram
também em Macapá, no Seminário de Educação para o Campo, e também no
Primeiro Seminário de Cultura do Estado do Amapá. Então, esse grupo de dança,
ele vai mostrar para vocês o que foi apresentado e a gente fala o nosso grupo de
dança da Escola Bosque. Diante dessa apresentação, vamos ter também a
demonstração e a apresentação da dança que foi apresentada, do folclore, o
pessoal do folclore, com a professora Ivaneli, com a professora Marcuce, professora
Marinete, pessoas que (...) na sua arte, que é o grupo (Assunção). Então, vamos ter
várias apresentações hoje. Quero agradecer a presença da Rede TV! Aqui, na
pessoa do Faustão. Agradecer também a presença de nossos colegas espanhóis,
que estão fazendo um grande trabalho aqui no arquipélago Bailique. A gente
agradece vocês, por termos vocês com a gente na Escola Bosque. A Escola Bosque
é parceiro também de toda a situação/ Queremos agradecer então a Rede TV!, na
pessoa do Faustão, que vai cair em rede nacional essa apresentação aqui. Então,
isso aí é um pouco do Bailique, é um pouco da história de cada um aqui do Bailique,
da história da Escola Bosque. Então, isso aqui é um momento muito importante para
389
nós aqui do Bailique, para cada um do Bailique, mostrando aqui a realidade, a
história e a cultura nossa, resgatando e valorizando a cultura do Bailique, que estava
adormecida e, graças a Deus, e graças à presença de nossas professoras, à
comunidade. A professora Jucileide, que é coordenadora do artesanato da Escola
Bosque também. Quero agradecer a todas as pessoas que trabalharam com a gente
durante o ano. Então, agora eu vou chamar a professora Jucileide, que vai fazer o
histórico da dança do coatá aqui no Bailique.
J: Histórico do Coatá. O coatá é um macaco que andava desengonçado, muito
valente, de cor amarelada e avermelhada. A dança do coatá é praticada há décadas
pelos moradores do arquipélago do Bailique, quando homens e mulheres imitavam o
macaco, o movimento do macaco. Dona Rosa Santana Marajás, moradora antiga do
local, conta que as festas eram dançadas ao som do clarinete e violas caipiras, até a
chegada da primeira aparelhagem de som na região. O traje típico para as damas é
saia azul comprida e blusa branca com (flores), tomara-que-caia. E um lenço branco
na cabeça, para realçar a beleza feminina. Para o cavalheiro, calça jeans e camisa
branca, mangas compridas. Essa dança pode ser dançada descalço ou com
chinelos. Hoje, a música é cantada pelo grupo Pilão. Os moradores da região dão
continuidade a essa manifestação folclórica, que é típica do arquipélago do Bailique
e está presente em todos os acontecimentos culturais do local.
25” 51 a 30” 56’ [dança do coatá]
J: A dança do coatá é um resgate da cultura bailiquense, que é um projeto também
da Escola Bosque, trabalhando a cultura bailiquense, valorizando a cultura local. A
dança do coatá, ela estava praticamente, assim, como parada, mas hoje/
31” 22’ [corte]
P: A terceira série da professora (Janete) vai apresentar o Boi-Bumbá, que foi
justamente (...) realização do primeiro festival do folclore da Escola Bosque. Foi
coordenado pela professora Marcuce, da coordenação de primeira à quarta. Então
hoje, nós vamos passar para o público novamente as crianças da terceira série, os
alunos da terceira série com o Boi-Bumbá.
31” 46’ a 42” 34’ [Boi-Bumbá e outra dança não apresentada]
390
J: Mas antes de Iaçá dar à luz, Jacira e Jandira deram à luz duas lindas meninas. O
cacique tupi, por cima dos lamentos das mães, amarguradas, as matou e Iaçá deu à
luz um lindo menino na floresta e ficou durante sete dias e sete noites. Após os
sete dias, voltou para a tribo sem a criança. Trouxe a criança depois de um mês e
apresentou-a ao pai e à tribo, pedindo-lhes que o filho ficasse na tribo, mas o pai,
por ser cacique, falou no meio da oca: “Há luas atrás, eu disse que toda e qualquer
criança que nascesse, morreria. Assim como morreram os filhos de Jacira e Jandira,
o mesmo farei com o filho de Iaçá”. Iaçá implorou ao pai e ao deus Tupã que
deixasse seu filho vivo, mas não foi atendida e seu pai matou o seu filho (Tupiraca).
E Iaçá chorou por vários dias a morte de seu filho. No sétimo dia após a morte do
menino, Iaçá voltou e começou a ouvir o choro da criança no lugar onde o filho
havia morrido, mas não tinha nenhuma criança. Até que um dia, ouvindo o choro da
criança, pediu ao deus Tupã que devolvesse seu filho. E Tupã, compadecido,
atendeu a seu pedido. Iaçá, na porta da maloca, viu uma grande luz e saiu. Para sua
surpresa, no meio da oca, estava o seu filho. Iaçá carregou a criança e agradeceu
a Tupã por devolvê-lo, porém quando percebeu que seus pés haviam se
transformado em raízes. Ao levantar o filho, seu corpo transformou-se em uma bela
palmeira e seu filho em um belo, lindo fruto. Pela manhã, todos da tribo viram,
naquela hora, aquela bela árvore e o cacique tupi agradeceu ao deus Tu pelo
fruto, mas o pajé avisou: “Este é Iaçá que se juntou ao filho e nos deu um novo
alimento”. Então a palmeira ficou conhecida como açaí, Iaçá ao contrário.
44” 12’ a 51” 34’ [dança]
[corte]
B: Aqui no Bailique esse fazendo um trabalho de decoração, de utilização de todo
o material da floresta, coleta de materiais. Eles estão reutilizando isso na decoração
e na dança, nas tradições aqui do Amapá. Vou ter que passar para ele.
E: Meu trabalho, eu trabalho com recursos naturais sem destruição da floresta,
trabalhando, fazendo maravilhas, não é? Poucos aqui exploram. O meu trabalho é
muito essa coisa, trabalhar os recursos naturais da melhor forma, um contraste de
vida, com elegância, uma coisa bonita.
B: Vocês têm uma escola de samba, alguma coisa (...)?
391
E: Meu trabalho, eu trabalho como estilista, não é?
B: De profissão, então, você é estilista?
E: Estilista. Trabalho com palha, trabalho também com negócio de tecido.
B: Mas, fundamentalmente, é pegar o que a floresta oferece e transformar nessas
coisas que você faz aqui. Está bom?
51” 26’ a 01 00” 54’ [imagens Museu do Negro]
392
Transcrição DVD 06 – 2ª parte
Gravação realizada em: 15 de novembro de 2004.
Entrevistados: Mulheres do Bailique (Joana, Rosa Santarina, Oscarina Barbosa
Vilhena, Maria de Sousa, Maria de Nazaré da Luz das Neves, Marina).
Entrevistadora: Berenice Pompilio.
Local: Bailique.
Tempo total de gravação: 01h 02min 43s
Transcrição feita por: Débora Donadel.
Legenda:
[entre colchetes]: falas sobrepostas e comentários.
/ barra: corte na estrutura da frase.
(...): trecho de difícil compreensão.
(palavras entre parênteses): dúvida em trecho de difícil compreensão.
B: Berenice Pompilio; J: Joana; R: Rosa Santarina; O: Oscarina Barbosa Vieira; MS:
Maria de Sousa; M: Maria de Nazaré da Luz das Neves; Ma: Marina.
393
00” 00’
R: Bem, o meu marido era carpinteiro e eu trabalhava no serviço do mato, ajuntando
semente, cortando seringa, fazendo borracha.
B: Ah, vocês faziam borracha aqui?
R: Era.
B: A senhora também fazia?
R: Ela também. Ela também foi (seringueira).
B: A senhora também? Nossa. A senhora também fazia?
MS: Fazia lá em Viçosa.
B: É mesmo? Em que lugar?
MS: Em Viçosa.
B: Ah. Em Viçosa. Quer dizer que tinha natureza de árvore.
Ma: Muito, muito. Até hoje tenho saudade de fazer isso.
B: E a senhora fazia. Então, ia para a mata?
R: Era. Cinco horas da manhã a gente saía. Quando era onze horas, a gente
chegava, ia fazer a borracha. Aí que ia almoçar, já era uma hora da tarde.
B: Que jornada longa. Das cinco ao meio-dia, puxa.
R: É, sim. Trabalhava muito.
J: Tudo longe.
R: Quando era inverno, era (colheição) de azeite, que é fruta da andiroba e caroço
de murumuru, vendia as caixas.
B: O murumuru não é o açaí?
394
R: Não, não. É outra fruta. A gente ajuntava aquela em quantidade e passava (...)
que era o pilar de óleo (na rua do ...)
B: Todos daqui?
R: Todos daqui. Eu morava ali na ponta, na saída aqui.
B: Como é que é essa fruta?
R: Essa fruta, ela é assim redonda.
B: Ainda existe?
R: Muito, muito aí. A gente juntava e vendia as caixas. Era, vendia as caixas e do
navio vinha embarcar. O nome do navio, chamava-se Pirapora Pará. Era o nome do
naviozinho que embarcava. Aí embarcava três mil caixas.
B: Nossa.
R: É.
B: Então, era muito rico mesmo?
R: Era sim.
B: Era o que a dona Marina estava falando. Muito rico o lugar, dava para se viver
muito bem.
R: Ele era um português, comprava de tudo.
Ma: Era paneiro.
R: Paneiro, era folha.
Ma: Palha de (...) eu lembro do papai, nós tirava para o papai, para levar aquela
(sacolona).
B: Palha?
Ma: Paneiro fazia para levar.
395
B: Vocês faziam cesto, essas coisas todas?
Ma: Não. Era só paneiro, quadrado.
R: Fazia aqueles paneiros, eles, nesse tempo, não tinha plástico, nada.
B: Como é o paneiro? Eu não conheço, não tenho a menor ideia de como é.
R: Você faz do tamanho que quer.
B: Tece a palha?
R: Vai tecendo a palha até do tamanho que quer.
B: E aí põe o peixe dentro e pronto.
Ma: É, é assim.
B: Uma espécie de embalagem, era como se fosse uma embalagem?
Ma: Era embalagem, sim.
R: Aí, cada paneiro daquele, desses grandes, eles metiam três arrobas de peixe
grande dentro, todo empalhado.
B: Gurijuba era o peixe?
R: Era o peixe. Gurijuba, guritinga e carne de jacaré, que ele comprava muito. Nesse
tempo, não tinha problema, nada.
B: Não tinha proibição.
R: continuava levando a vida. Graças a Deus que tinha muito serviço. Não tinha
emprego nem outras coisas.
B: Ia criando os filhos, tirando as coisas da mata mesmo, conforme a necessidade.
R: É.
J: Meu marido era (...)
B: Fazia a pesca. Os maridos sempre iam para a pesca ou para a caça?
396
J: Para a pesca.
B: Para a pesca. E vocês caçavam?
Ma: A gente ia. Nesse tempo que tinha muita caça, a gente caçava.
B: Com que?
Ma: Cachorro. Levava cachorro, achava a caça.
B: E o cachorro matava a caça?
Ma: Cavava, assim, nos buracos. Com os paus, a gente ia lá e matava.
B: Matava. Com o pau, com a faca?
Ma: (...) no buraco, cacetada. Quando não pegava na água, nadando.
B: Era uma luta, então?
R: (Eu pescava), ajudava e caçava. E agora você não vê mais peixe.
B: Vocês são mulheres trabalhadeiras, hein? Mas agora a gente tem que descansar
um pouco, nessa idade.
[motor de barco abafa as vozes]
B: Ainda tem o barulho de fora. A senhora falou, eu perdi por causa do barco. Eu
estava falando com ele uma coisinha, falando que antigamente tinha serviço que/
Ma: (...) levava os filhos para trabalhar. Agora tem muito rapaz que fica tudo parado,
porque não tem um emprego e não tem essa venda que tinha antes, parou tudo.
B: Aí não tem o que fazer.
J: Era filho, era marido, era tudo.
B: Todo tempo?
J: Era todo tempo. A gente criava um pouco, já estava pescando.
397
B: E hoje o filho cresce, não vai para a pesca, não vai/ não tem mais o que colher na
mata. É, a vida ficou um pouco mais/
J: E nós, quando era solteira, nosso serviço era isso.
B: Era a mata?
J: Era a mata.
B: Sucuba. O que era? Uma semente?
O: É, uma semente. Bem vermelha, ela.
R: É fruta da virola.
B: Essa eu nunca ouvi falar, sucuba.
O: Bem vermelha. Bonita a fruta dela.
B: E ainda existe na mata?
O: Tem, ixe.
R: Aqui para dentro tem muita.
O: Tem muita. Quando é tempo, a gente olha lá embaixo, está vermelhão.
B: Vocês acham que parou de vir buscar porque o pessoal na cidade parou de
comer isso? Será?
R: O murumuru, eles queriam para exportação, sabe lá para onde ia.
B: Ninguém sabe.
R: E todas as sementes. Da virola, como/
Ma: Andiroba.
B: Essa sucuba.
O: Eu acho que a semente da ucuuba é para óleo. Ela não é sucuba, ela é ucuuba.
398
B: Ucuuba?
O: É, aquela fruta dela.
R: O nome aqui que chamam mesmo é virola.
B: Virola.
R: A exportação quando vinha comprar/
B: Pedia por virola.
R: É, era assim. Compravam muito.
B: Compravam muito. Quanto tempo faz isso? A senhora lembra alguma data,
assim?
R: Eu não sei quando. Está fazendo mais ou menos uns trinta anos para mais.
Quarenta.
B: Quarenta anos.
R: O meu filho estava molecão, o mais velho. A cabeça está branca. Quando ele
trabalhava na máquina. Ah?
Ma: Quantos anos ele tem?
R: Está com cinquenta e quatro.
B: Mais ou menos isso, quarenta e poucos anos.
R: Está no cinquenta e quatro. Vai completar agora em fevereiro.
B: Nesses tempos, dona Rosa, tinha estrangeiro por aqui?
R: Não tinha.
B: Não tinha.
399
R: Basta dizer que tivemos de ver uns os estrangeiros quando eu era nova ainda, eu
tinha me casado e encostou uma voadeira com [09” 43’ a 10” 10’ dificuldade de
leitura do DVD] (...) encostou ali na ponta (...) um avião. Eu sei que/
B: Era final da guerra.
R: É. Eu sei que apareceu aí esse (...) e os vizinhos acharam aí para pôr no
marinheiro. Eu me lembro daquilo tão bom como hoje. Levaram ele na casa do
(finado) Diógenes. O (finado) Diógenes ficou com medo. Não entendia.
B: Estava ferido?
R: Não, não estava ferido não, mas é que não se entendia nada.
B: Eles eram muito brancos?
R: Era, muito branco.
B: Alemão talvez?
Ma: Era alemão.
B: Era alemão?
Ma: Era. O nome dele era Francisco.
R: tinha um Francisco, mas era alemão. Então ele morava muitos anos com o
(finado) Diógenes.
B: Ele ficou aqui, então?
R: Aí ele cuidou dos homens brancos. Ele entendia tudo. Ele entendia o que falava.
B: E o Diógenes morreu?
R: Aí lá foi o aviso para Macapá, veio um (barco) de guerra veio buscar ele.
B: É mesmo?
R: Diógenes ficou muito com medo. Já pensou?
400
B: Levaram os brancos embora.
R: Levaram os homens. Levaram, daí eu não sei.
B: Três homens?
R: Foi, três homens. Daí eu não sei para onde levaram. Levaram para aí.
O: Devem ter mandado para a terra deles.
R: A terra deles. Eu acho. Eu sei que foi daí que Macapá vieram buscar.
B: Mas sem ser isso, não tinha nenhum estrangeiro que morasse por aqui?
R: Não, senhora.
B: Que falasse com vocês, nada?
R: tinha esse velho que morava no (finado Diógenes) e depois ele veio e fez a
casa aqui embaixo de casa. E não se entendia quase o que ele falava.
B: E ele não conseguiu aprender muito a nossa língua?
R: Não. Aí ele falava assim tudo feio, mas era muito vizinho do meu sogro.
B: Era boa pessoa.
R: Era boa pessoa mesmo. Aí, muitos anos ele viveu aqui perto.
Ma: Casou com uma brasileira.
B: Casou com uma brasileira?
R: Foi. levaram ele para Macae ele era doutor. Ele era doutor mesmo. Ele
ensinava um remédio e fazia que eu gostava de ver.
B: Ele ensinava remédios?
R: Era.
B: De planta?
401
R: Era, sim. De planta, de tudo.
B: Então ele era médico, talvez?
R: Foi para Macapá. Depois de uns tempos ele morreu para lá.
B: Alguém me disse desse homem que ele tinha adoecido, que ele tinha ficado muito
doente. Que ele adoeceu e foi para lá para Macapá para se tratar e o resistiu. Ele
teria morrido por lá, porque já estava meio doente.
R: Pois é. Ele não andava mesmo muito bom. Era só ele, a família tinha abandonado
ele. Ele ainda deixou um filho de herança. Mora lá em Macapá.
B: Com essa moça?
J: O Francisquinho?
R: Até o ano (atrasado), não sei se foi a Dilma que falou com ele.
B: Ele ainda vive, o filho dele. Vive em Macapá. E a casa que ele fez aqui?
R: A casa está aí. Eu não sei nem quem foi que desmanchou essa casa. Era um
casarão (...) Bem feita.
B: E essas casas, dona Rosa? Como é que se faz isso? Por exemplo, se eu quiser
fazer uma casa aqui, os terrenos têm dono? Por exemplo, eu quero comprar esse
aqui do lado da Selma. Eu posso comprar? Como é que funciona aqui? Quando a
sua família veio, qualquer pessoa podia comprar ou tinha um que era um dono só?
R: Era um dono do terreno.
B: E era quem? Era gente de Macapá?
R: Não, o dono do terreno era meu sogro.
B: Seu sogro?
R: É.
B: E tinha escritura disso?
402
R: foi, ele se acabou, morreu. Quem ficou tomando conta foi o meu esposo e os
irmãos dele. Daí teve uma travanca, não pagou mais o terreno, ficou atrasado.
ele foi para lá, eu sei que ele fez uma reunião, fizeram uma reunião, era para
pagar o documento do terreno.
B: Sei, a escritura.
R: Sim, aí ele veio, poucos tempos ele adoeceu, morreu também. Pronto, ficou.
B: Ficou o dito pelo não dito.
R: Foi. Aí veio o enfermeiro, justamente que ele era enfermeiro, gente da gente.
B: Aqui da terra.
R: Daqui. entrou em acordo aí, não sei com quem. Com uns tios, parece que era
para doar para a Prefeitura, não sei o quê. Fizeram (...) e pronto. Os que eram os
donos daqui, os herdeiros, ficaram como foi.
B: Perderam.
R: Foi. O negócio foi isso. E agora só o que/
B: Então hoje, se quiser comprar um terreno por aqui, tem que ir atrás de quem?
Sabe quem é o dono ainda, quem é o proprietário?
R: Eu acho que é com ele mesmo. Com ele mesmo. É o Manuel, Manuelzinho
Guedes.
B: E os seus avós, os seus pais. Eles eram de origem portuguesa? Italiana? Tinha
índio na família?
R: Eram tudo brasileiro mesmo.
B: Brasileiros. Mas não tinha, assim, que se soubesse, indígena ou negros? Não?
Não tinha, assim, indígena que a senhora lembra, pessoas índias ou negras no meio
da família?
R: Não.
403
B: Não, o pessoal daqui mesmo. Não tinha a mistura de raça. Não, não é? E a
senhora conhece alguma receita boa de comida, coisa daqui? Que a senhora faça
sempre para os seus filhos, além do açaí, além dos peixes. Tem alguma coisa que a
senhora faça que seja uma coisa assim: “Vamos na casa da comadre comer tal
coisa”. Não?
R: Não, a gente compra, só parece já comprado.
R: Come um peixe mesmo da maré e agora já não aparece mais (...).
B: E, antigamente, a senhora fazia isso mesmo?
Ma: Fazia. Assado, cozido.
B: Assado e cozido. Uma coisa que eu notei é que vocês não comem muita coisa de
doce.
Ma: no café, alguma vez bolo, mingau, mingau de arroz. Com farinha mesmo, o
preferido é o açaí, aguar com o açaí.
B: pronto? Mas, antigamente, o que se fazia? Isso é uma coisa comum. Não tem,
assim, bolo de mandioca, bolo de outras coisas?
Ma: Às vezes, a gente compra, que tudo isso aí, tem.
B: Mas não se faz muito.
R: A gente é acostumada com o açaí.
B: E vocês comem todo dia?
Ma: Todo dia.
R: Se eu não tiver para mim almoçar ou jantar o açaí, eu não janto.
Ma: Também não.
B: Hoje, nós experimentamos o branco, o açaí branco, aquele verde, que, quando
bate fica verde, assim, esverdeado. Ele tem gosto de abacate. Vocês comem
abacate por aqui ou não?
404
Ma: Come.
R: Olha, a minha plantação aqui era isso. junto com a vizinha. Era aqui na frente.
Ainda tem uns livros por que tiraram o retrato, ia tirar os cachos, ficava debulhado
bem aí na beira da porta.
B: O branco?
R: O branco.
B: Eu achei o branco com gosto de abacate.
R: É muito gostoso.
B: Eu gostei mais que o vermelho.
O: Não tem aquela tinta. É uma coisa boa.
B: Eu também achei. Muito bom. Nossa, eu comi e depois eu não queria mais
almoçar. Eu comi assim, e depois/ Boa tarde. Seja bem-vinda. E eu o queria
mais/ tinha peixe, tinha farofa, aí eu estava com a barriga cheia. Falei: “Nossa,
como é suficiente”. O açaí está pronto, comeu aquilo não precisa mais nada.
Ma: Olha, o almoço pode ser pouco, mas se tem o açaí, pronto.
B: Quer dizer que toda casa tem que ter o açaí?
Ma: Lá algumas que (...) do açaí, acho que nem tem.
B: Quando falta açaí é porque está faltando comida?
Ma: Olha, tem criança que fica muito magra.
B: Não come.
Ma: Não come nada. Come besteira, assim, o, essas coisas, porque ele sente a
falta e não come.
R: Agora, quando tem as (minas) aqui eles já mandam buscar lá em Macapá.
Compra lá e traz no gelo. Umas tubas cheias.
405
B: Traz congelado.
R: Aí o pessoal cai em cima para comprar.
B: Vou fazer uma pergunta bem maluca, será que o açaí essa cor brilhante
assim? Todo mundo tem a pele muito brilhante aqui, a pele parece boa, brilha. Uma
pele que brilha assim. Será que é do açaí, gente? Olha que é.
R: Deve ser [ri].
B: Pode ser, não pode não? uma coisa, assim, bate o sol, chega a fazer aquele
brilho.
J: Quem come o açaí é uma pessoa forte mesmo.
B: A criançada toma sempre?
Ma: Eu tenho um netinho que chega: “Vovó, comer”. Eu digo: “Tu quer tal coisa?”,
“Ah, não, eu quero comer o aí”. Costume do aí. “Quero comer açaí”. pode
dar. Eu tenho que deixar, nem que seja um pouquinho daquele mais (velhinho)
assim que eu compro para deixar para ele. eu coloco na geladeira, tem que
aquilo dividir para o almoço e para a janta. Tem vez que ele almoça aquilo
mesmo.
B: Com a farinha?
Ma: É, com a farinha e pronto, vai embora.
B: Com sal ou com açúcar?
Ma: Nada, ele não bebe com açúcar. Só puro.
B: Só puro.
J: Ela já pergunta: “Cadê a comida, vovó?”, “Tem açaí?”. Então pronto.
Ma: Mas é assim mesmo.
B: Como é seu nome?
406
M: Maria de Nazaré.
B: Dona Maria, a senhora não quer sentar aqui por causa da máquina, para pegar a
senhora aqui? Dona Maria. Maria de Nazaré?
M: Maria de Nazaré da Luz das Neves.
B: Então, a dona Rosa estava falando, estava contando as histórias, e a gente veio
aqui para fazer um trabalho de memória do Amapá, porque se sabe muito de Bahia,
de Fortaleza, do Nordeste, do Sul, e do Amapá ninguém sabe nada. E eu quero
escrever isso do Amapá, quero falar do Amapá, quero fazer livro, levantar a
memória, o que vocês fazem, como era antigamente, o que vocês lembram de mais
antigo, de mais próximo e um pouco dessa memória mesmo. É memória. O trabalho
chama-se “Memória do Amapá, fronteira de linguagens”, porque são as fronteiras.
Esse ano eu estou aqui e o ano que vem eu vou subir até o Oiapoque para fazer a
memória de lá. , vou cruzar as duas histórias, e a gente vai falar um pouco disso.
Quer falar mais alguma coisa, dona Rosa? Que a senhora lembre, assim. Uma
curiosidade minha é saber mesmo o que não tinha, não tem coisa de música, de
cantador, de trova, que tem muito no Nordeste. É uma coisa muito diferente aqui. Eu
não vi nada parecido.
Ma: Nunca teve.
B: Nunca teve, dona Marina?
Ma: Nunca teve. Que eu me lembro, nunca teve. Esse negócio de cantor, cantar,
assim.
B: Cantador, cordel. ouviram falar do cordel? Aqueles livrinhos que contam as
histórias, não? Não ouviram falar?
Ma: Não.
B: Então não tinha. E danças e coisas assim? Não tinha? Festa de junho.
R: O que tinha na festa, o músico era o clarinete, a viola para acompanhar e/
Ma: Violão, aquela violinha.
407
B: Aquela rabeca, não é?
Ma: É.
B: E que ritmo era?
R: Me lembro do compadre (Alexandre) [ri].
B: Compadre o quê?
R: O meu cunhado, contava que ele foi em uma festa, a gente estava em uma
festa. Ele com os irmãos dele, não sei o que mais, primo, chamaram um
repentista para tocar. Aí, chegou , ele engatou tocando, “pi, pi, pipi”, eu/ o
pessoal assim: ele está dizendo, ele está tocando assim: “Maria Joana, tu vai é
morta, o que me importa, o que me importa” [ri]. A festa acabou na risada, nem o
músico tocou mais. E era assim.
B: E a festa era a rabeca, o violão e o clarinete.
R: Era.
B: Não tinha nenhum bumbo, nenhuma percussão?
R: Tinha. Tinha um velho que/ era o Honorato e o Mestre Benedito que eu conheci
muito, ele era/
Ma: Da nossa comunidade que eles moravam.
R: Era ele, eles tocavam. Tinha o bumbo.
B: Ele ainda é vivo, dona Joana? Todos mortos. Não tem ninguém hoje aqui que
toca clarinete, rabeca, nada?
R: Só o meu sogro.
J: (...) tocava que era uma beleza. Benedito. Era assim, o bumbo tinha (...)
R: Ele tocava (assoprando). Ele tinha o prato, o (ronco).
B: Ele tinha um conjuntinho de instrumento?
408
R: Era, era sim.
B: Pois é, os meninos hoje podiam pensar em fazer uma coisa assim, os jovens.
R: E aí saíam, brincavam bastante.
B: Brincavam. Então, esse grupo não se refez. Quer dizer, eles acabaram, ninguém
tomou a frente para fazer de novo? Nada?
J: Depois que eles morreram (...)
B: Não tem escola de música por aqui?
Ma: Não.
B: E das comunidades, não se conhece ninguém que tenha ido estudar música ou
coisa assim?
Ma: Não. Os meninos ainda não terminaram os estudos.
R: Quem sabe o meu filho caçula (...) violão e/
B: Quem toca violão? Por causa da igreja?
Ma: É.
R: Violão e/
Ma: Aquela guitarra, gostam.
R: Aquele outro que eles tocam.
B: Piano? Teclado?
R: É teclado. O meu filho toca violão e teclado.
B: Seu filho. Violão e teclado.
R: Tirando dele mesmo. Mestre nenhum, não teve não.
B: Quer dizer, não fez um conjunto?
409
R: Não.
R: (...) aí na igreja, tem dia que (...)
B: A senhora faz parte da Macedônia? Da igreja?
R: Não, dessa.
B: Daqui mesmo. É, porque atravessar para lá é complicado, não é?
R: É.
B: Devia ter ponte. O que vocês acham de ponte? Ou não? As pontes aguentariam/
uma ponte aguentaria esse movimento do Amazonas, será? Fazer ponte daqui para
as outras/
R: Não. Eu acho que aqui nessa largura, não.
B: Não tem como.
Ma: O igarapé, quando (vem as chuvas de) inverno, ele cresce, ele entorta tudo.
B: Entorta tudo, derruba tudo. Não tem como.
R: Esse igarapé tem derrubado muitas.
J: Tem derrubado, é. Vai completar o quê? Dez pontes, não é?
B: Que fizeram e derrubou? A água derrubou?
M: É horrível de ver aqui a água. Olha, aquelas pontes para ali da Escola Bosque,
vai tudo no fundo. A água mete no fundo quando cresce. Dali do hotel.
B: De quando vocês estão aqui, o Amazonas é o mesmo rio? De quando vocês
estão, desde o início, é a mesma força?
R: É, sim.
B: E umas histórias de pescador, vocês conhecem essas histórias do Amazonas,
que apareceu gente, que sumiu gente?
410
R: De pescador mesmo, se o meu irmão estivesse aqui, ele ia lhe contar muito bem.
B: Olha. E onde ele está?
R: Ele está para Macapá. (...)
Ma: (...) da costa do Norte.
B: Ele sabe história?
Ma: Sabe.
B: E vocês não conhecem história aí do rio?
Ma: Não, eu não me lembro.
B: Não sabe nada? Nenhuma história, não lembra de nenhuma história, assim? E
esses feitiços que diz que tem, que existe, que viram. Existia para algum pajé,
alguém que fizesse essas coisas, ou não?
Ma: Pajé existia.
O: Existiu.
Ma: Agora eu acho que não existe mais.
B: Ele morava dentro da mata, dona Maria?
Ma: Não, ele morava assim nas casas (igual da gente) mesmo.
B: Sei.
Ma: Aí quando ia ver ele, trazia um doente, aí ele fazia.
B: Mas para doença? Não tinha, por exemplo, se não estava dando fruto, ou
coisa assim? Animal doente?
Ma: Não.
411
B: Para as plantações, não. Porque tem muito dessas histórias de encantamento
para as plantações, não é? Eles iam, faziam alguma coisa, e a plantação voltava a
viçar e tal.
Ma: Para isso, não tem. Nunca teve, eu acho.
B: Vocês chamaram alguma vez algum pajé em casa, para ajudar para doença ou
alguém que tivesse algo assim, ou não?
Ma: Chamava, quando tinha ele, a gente chamava. Chamava. Eles faziam o
remédio. Não sei se era a fé ou se era mesmo que era bom.
B: Se era a fé ou se era o remédio.
Ma: É, se era o remédio.
B: Os dois fazem um bom remédio, a e o remédio. Porque, às vezes, a gente
toma remédio de farmácia e/
Ma: É, mas sem a fé.
J: Sem a fé, não tem nada.
B: É isso aí. A dona Maria de Souza não falou nada ainda. Queria ouvir um
pouquinho da sua história, dona Maria. Conta aí para a gente. Ela é uma comadre
quietinha assim sempre? Não? Ela é da Viçosa. A senhora nasceu em Viçosa, foi
isso?
MS: Eu nasci na Viçosa.
B: Ouve muito. Está ouvindo?
MS: Vim para cá por causa de doença, porque lá na Viçosa não tinha/ aí as meninas
que moravam para cá foram buscar ele. Por isso que nós viemos para cá.
B: E que doença que era?
MS: Era febre, uma dor na cabeça, dor no corpo, tudo.
B: Não sabia exatamente o que era.
412
MS: É. Aí, nós morava no (Sabecário), um lugar que tem ali por cima. (...) eu
desci. Lá no (Sabecário) não tinha as coisas. Aí vim para cá.
B: Vocês vieram aqui para o Bailique.
MS: Pois é.
B: E a senhora já estava casada, já tinha filho?
MS: Já, já era casada. Eu tive onze filhos.
B: Onze filhos? Estão todos aí?
MS: Não, só tem seis filhos, sete morreram.
B: Seis perderam já? Já criados?
MS: Já filho criado. Mora aí, só tem uma que mora em Macapá.
B: E a senhora fazia essa vida da dona Rosa/
[32” 26’ a 33” 00’ dificuldade de leitura do DVD]
B: Muita gente entrava na mata?
MS: É, muita gente.
B: É mesmo?
MS: Ela foi, foi, foi caindo (...) mais nada.
B: Mais nada?
Ma: Acho que fechou a fábrica. Compraram.
B: Não se explica. Não tem explicação. Ninguém falou para vocês o que estava
acontecendo?
Ma: Não. O que aconteceu para paralisar.
B: Os barcos pararam de vir, pararam de comprar.
413
MS: Os que compravam começaram a morrer.
Ma: (...) andiroba, só o óleo. E antes vendia inteira, o caroço, a castanha.
B: Castanha de caju?
Ma: Não, de andiroba.
MS: (...) caça. De peixe, tirava latas e latas de banha de peixe.
B: Banha de peixe? Que peixe que dá banha?
MS: Gurijuba, traíra.
B: De todos eles?
MS: É. Nós tirávamos.
B: E como é que tira banha de peixe? A senhora abre ele?
MS: É, a gente tira tudinho a banha, põe em uma lata para derreter.
B: Me explica, eu não tenho a menor ideia de como é que eu tiro a gordura do peixe,
meu Deus do céu. Isso é um conhecimento muito forte.
M: A gente tira, assim, aquela banha, aí coloca dentro de uma frigideira e bota no
fogo, aí vai tirando. Aí dá aquele óleo.
B: Vai recolhendo.
MS: E esse óleo de lata.
B: Cozinhava com a gordura do peixe?
MS: Era.
B: A gordura do peixe era para cozinhar?
MS: Para fritar outro peixe.
B: Para fritar os peixes?
414
MS: Era. Fazer beiju, fazer banana (...) de trigo.
B: A senhora ainda faz beiju?
MS: Faço.
O: Tirava o óleo do peixe para fritar o peixe.
B: Era tudo dele mesmo.
MS: Era.
B: E a senhora ainda faz beiju?
MS: Faço.
B: Olha só. Então, da próxima vez que eu vier vou pedir para a senhora fazer um
beiju com açaí lá na sua casa. Eu vou me convidar, vou me convidar para ir. E como
é? Aquele beiju pequenininho, parecido com a tal da tapioca ou não, é outra coisa/
M: É a mesma coisa da tapioca.
B: A mesma coisa da tapioca? Porque tem um beiju que é seco e a tapioca é mais
molhadinha. Eu ganho também, assistente?
B: Vocês plantavam mandioca para a farinha? Plantavam.
Ma: (...) a farinha.
M: E dá muito para cá, mandioca. Dá, ali para onde eu moro.
B: Mas eu não vi nenhum lugar vendendo a mandioca.
M: Eles fazem a roça e plantam mandioca, colhem a fruta e botam, assim, em um
curso com água. Quando está mole, tira o resto de (...) mistura com aquela e faz.
Tem gente que não come.
B: É a puba? É muito boa a puba. É uma farinha de primeira qualidade, farinha
gostosa.
Ma: Da mandioca a gente tira tudo, puba, tapioca, tucupi.
415
B: Tira o tucupi. Super importante.
M: Macaxeira, que aquela farinha, é branca, não é. A macaxeira.
B: E essa amarela? É de outro tipo de mandioca?
M: É.
O: A farinha amarela é de outra qualidade de mandioca e aquela branquicenta é
outra qualidade também.
Ma: E tem da macaxeira.
B: Macaxeira é a que dá só farinha, não dá para comer?
O: Dá. Aquela que dá para comer, cozinhar e para comer.
R: Faz bolo dela.
B: Lá no Nordeste, a mandioca não se come, a macaxeira se come. Aqui também é?
A mandioca é de farinha e a macaxeira é de cozinhar e comer?
O: Isso.
B: Mas vocês não plantam no quintal? Não tem?
Ma: o. Tem alguma casa que tem, porque enche muito, fica cheio e daí mata. E
algumas pontas que não fica cheio, aí dá para plantar.
B: No geral, a água enche debaixo das casas todas?
Ma: Tem casa que vai para o fundo, no meio de março, abril, janeiro começa. Agora
não porque é verão.
B: Então as casas têm que ser sempre um pouco mais altas.
R: No nível para a água não entrar.
B: E não dá medo?
Ma: Dá. A gente não dorme quando a água está cheia. A minha casa mesmo/
416
O: (...) tinha muita gente. Não foi tu uma?
Ma: Foi. Molharam tudo meu mosquiteiro. Estava assim a água.
O: (...) na casa dela (borbulhava) [ri].
Ma: Entrou no galinheiro, na minha criação, matou todos os meus galinhos, as mães
das galinhas, morreram todos afogados.
O: Essa casa de comércio aqui, que era lá na beira.
Ma: Era, já molhou muita mercadoria aí.
M: Era obrigada no prédio onde eu morava. Primeiro, a gente tinha que acordar na
hora, para tirar toda a água, a água ia saindo, a gente baldeava a água para sair
aquela terra. Dois dedos.
B: E tem cobra quando é assim?
Ma: Tem vez que dá, mas é difícil.
B: Quando vocês iam colher no mato, tinha muita cobra?
Ma: Ah, sim, plantação de caroço, castanha.
B: Mas a gente come a cobra?
Ma: Não, aqui não. Nunca.
B: Ninguém come cobra?
Ma: Aqui não. Come jacuraru.
B: O que é jacuraru?
Ma: É um bicho, que a bunda é igual à cobra, mas que ele é gostoso, jacuraru,
jacuruxi.
B: Nossa, a senhora fala umas coisas que eu não escutei nem a palavra.
J: Jacuraru, jacuruxi.
417
Ma: Jacuruxi é um bicho também que a gente come. É gostoso ele.
R: Jacaré, jacuruxi.
J: Tem jacuruxi, tem jacuraru e tem/
Ma: Tem camaleão.
B: O camaleão? É aquele que parece uma lagartixa grande?
Ma: É, verde.
M: Tem o macho e tem uma que bota o ovo.
B: E qualquer um dá para comer?
M: Qualquer um desses quatros dá, só o que não é cobra. Agora eu não sei, tem
gente que, em Caiena, leva-se sicuriju. Em Caiena, ele tira aquele couro, aquela
carne e aproveita tudinho.
Ma: Aquela jiboia também, diz que é boa a cobra jiboia.
M: Aquela planta do sicuriju, aquele lombo, sabe, ele tem espinha no
espinhaço.
B: Mas é um bicho, assim de quatro patas?
M: Não.
R: Só jacuraru e jacuruxi é.
B: É de ovo ou é de nascer? É de ovo. Engraçado, esses eu nunca vi. Ele é da
família do camaleão?
Ma: É, do lagarto.
B: Da família do lagarto.
Ma: Só que eles são grandes, o lagarto é pequenininho.
418
B: Mas vocês ainda têm coragem de entrar na mata e tentar achar alguma coisa, ou
não?
Ma: Acha, na mata ainda acha, cotia, tatu.
B: Ainda acha?
Ma: Ainda acha.
B: Mas tem que se aventurar? Tem que ter coragem de entrar na mata?
Ma: Antes não era assim. Antes saía um pedacinho daqui para ali, matava seis, sete
cotia, um tatu e já vinha para casa. Dava para comer dois, três dias.
B: Quer dizer, só matava para comer?
Ma: Era, só para comer.
R: Não tinha quem comprasse. Todo mundo trabalhava, pegavam, matavam.
B: Dona Maria, a senhora lembra da sua família? De onde eles eram, de onde eles
tinham vindo? Ou todos eram de Viçosa mesmo?
MS: Era tudo de lá.
B: Todos de Viçosa?
MS: Meu pai, minha mãe, minha vó, meu avô, era tudo de lá mesmo.
B: Tudo de lá. E não tinha índio na família, nada? Era tudo brasileiro? E falta a
senhora. A senhora chegou, eu não perguntei seu nome. Como é que a senhora
chama?
O: Oscarina Barbosa Vilhena.
B: Oscarina?
O: Barbosa Vilhena.
B: Vilhena. Então, tem parente aqui?
419
Ma: Eu.
B: Ah, tem parente. Dona Oscarina é parente da dona Marina. E conta aí, dona
Oscarina, essas coisas que as meninas contaram. Fala um bocadinho da sua
família.
O: Não sei qual as histórias.
B: Não sabe história?
R: Passa o tempo, a gente vai esquecendo.
B: Por isso que eu estou aqui, porque eu quero que vocês não esqueçam. Eu quero
que vocês lembrem. Que vocês lembrem cada vez mais, para a gente não perder.
Ma: A gente vai esquecendo.
O: É, vai esquecendo o passado.
B: Mas o passado é importante. Se a gente não tiver o passado.
J: A gente vai esquecendo muitas coisas.
B: A gente podia combinar. Que aí, o ano que vem eu venho, vocês vão lembrando
de algumas coisas para me contar. O ano que vem eu vou vir, vou parar e fazer
as mesmas perguntas. Gente, se vocês lembrarem de mais alguma coisa, o meu
trabalho eu só vou entregar em dois mil e sete.
J: s somos tudo aqui vizinhas, mas, para nós, chegar em casa do vizinho é muito
difícil. É só passagem.
B: Não é, assim, de se visitar.
J: Não é, não. Só quando a pessoa está doente, assim, a gente vai.
B: Quer dizer, vocês são amigos, amigas.
J: Somos amigas, tudo parente, primo, Maria é minha prima, comadre Rosa é minha
comadre, somos misturadas. Só essa uma e essa que não são.
420
B: Ela é de Viçosa e a senhora?
M: Sou de Viçosa também. Meu pai era de lá.
J: São duas viçosenses.
M: A senhora não conheceu o finado Antonio da Luz para lá, para Viçosa?
MS: Conheci.
M: Ele era meu avô.
MS: Sério?
M: Era. Aí ele é falecido, morreu em Macapá. Ele era meu avô, Antonio da Luz.
B: E o que ele fazia, seu avô?
M: Eu não me lembro, o meu pai que contava muita história de lá, dele. Que eles
cortavam seringa com ele. Eu já nasci para cá, para o Bailique. Minha mãe casou
com ele, ele veio de lá, casou com ela, nós nascemos os filhos tudo aqui,
bailiquense.
B: Mas a senhora tem o olho, assim, puxado, que nem o da dona Joana também.
Vocês têm um olhinho puxado muito bonito, não é? As crianças têm o olhinho assim,
uma coisa tão bonitinha, os narizinhos tão bonitinhos. Eu gostei das carinhas daqui,
achei muito bonitas. Muito bonitas as caras daqui. Fala dona Oscarina, conta uma
história.
Ma: Mas a gente é muito feia.
B: Vocês acham que vocês são muito feias?
M: Meu pai contava histórias de lá, do pessoal dele. Cortaram muita seringa, que
eles trabalharam nisso.
B: Era seringa que dava?
M: Era seringa que dava para lá, não é? Era, assim, juntar negócio de castanha,
murumuru para vender. Caroço que a gente chama. Para lá, o serviço era meio
421
pesado. Ganhando já não tinha quase. Ele criou-se lá, meu pai. Ele dizia assim: “Ah,
meu filho, aqui (...) que eu criar vocês. No tempo em que eu me criei, em Viçosa,
com meu pai, (...) era um sacrifício. Nós saía das sete horas da manpara chegar
sete horas da noite. Aqui eu saio sete horas. Quando dez horas, onze horas, eu
estou na casa trazendo o que vocês precisam para a alimentação. Lá, não, meus
filhos. Lá onde eu morava, era difícil ganhando”.
B: Em Viçosa era mais difícil.
M: Era difícil. Ele veio, assim, ganhando.
B: Entendo, entendo.
M: Aí modificou tudo o trabalho.
B: Então para cá era melhor?
M: Para tornou-se muito melhor para ele nos criar. Mas eu nunca fui, assim,
passear na Viçosa depois de moça, assim, já garotona.
B: Viçosa tem um rio importante lá?
R: Viçosa é uma ilha.
MS: (...) para chegar, passa por tudo ali.
M: Fica uma ilha no meio, no meio. E eles moravam naquela ilha. Por exemplo, o
canal passava lá e ela ficava ali, e por aqui passava outro canal e era uma ilha.
B: E era o Amazonas, dona Maria? O rio que passava em Viçosa também era o
Amazonas?
J: Era.
B: Certo. Dona Oscarina, a senhora já foi em Viçosa?
O: Não, não.
B: Não. Qual foi o lugar mais longe que a senhora foi por aqui?
422
O: Só Caiena.
B: Caiena? Só? Ela fala “só”. Ela atravessou o estado todinho, um caminho dificílimo
de chegar.
R: Quase que ia abaixo do Oiapoque.
Ma: Ela já morou pra lá.
B: Até hoje é difícil chegar em Caiena.
O: Agora é mesmo.
B: Como é? Me conte, a senhora foi lá em Caiena por quê? Tinha um namorado lá?
O: Não [ri]. A minha filha que morava para lá, foi para trabalhar. Era muito difícil
para ir para lá. É ruim, muito ruim.
B: Por que é tão ruim? Todo mundo me diz que é ruim.
O: Porque a gente não pode chegar lá e saltar como salta aqui em Macapá. Aqui em
Macapá, a embarcação encostou na beira, colocou a valisa nas costas e saltou, e de
pertozinho. não pode saltar de perto, não é? Porque é cercado de polícia.
salta se for de noite e indo pelo meio da mata. E documentado, com tudo.
Ma: Pedem o passaporte, um tal de visa.
O: A primeira vez que fomos para lá, não tinha nada disso, documento. A minha filha
(...) uma certa parte para ir para o Amapá, ela embarcou com nós, fomo com uma
embarcação. Ela embarcou com nós, nós fomos embora por fora. Quando nós
chegamos em Caiena, devia ser umas oito horas da noite. A maestava seca e
uma distância como daqui para mais longe do que aquela casa, e a embarcação
não foi mais para a terra, a maré estava seca. E a lama de lá ela não é como a lama
daqui, que a gente pisa, ela não afunda. Ela é tipo um mingau, aguada, aguada,
aguada. É muito horrível. Ela é grossa, assim, uma lama grossa. Ela é grossa. E aí,
o que faz? Nós tinha que saltar. Minha filha que sabia de tudo, tem assim, bem
assim, um ladona cabeça da montanha, ficava um, um/ esqueci agora. Um prédio
423
de polícia, o é? E essa hora que nós chegamos era hora das polícias estarem lá.
Aí a embarcação chegou lá na beira, aí o motorista disse: “Salta, salta muito ligeiro”.
B: Com essa lama toda?
O: Com toda essa lama. Era de quatro perna.
Ma: (...)
O: É, Marina, mas é perigoso, quatro pernas, olha aqui. No meio da lama. Tinha
duas crianças pequeninhas. eu coloquei uma criança assim, era da minha filha,
coloquei nas minhas costas, coloquei a minha valise, coloquei a criança em cima.
Quase que eu não ia para frente, eu me puxava assim. Mas eu queria que vocês
vissem, que desse para vocês verem, a gente carregava assim no braço, chegava a
descer esse mingau grosso.
J: Não dava coceira na gente?
O: sim. (...) rapidinho naquela lama, que não tinha jeito. O rapaz queria voltar
logo, nos descemos, ficamos tudo no meio daquela lama, tanto grossa aquela
lama. E era todo mundo espalhado naquela lama, puxando. Saltemos. Quando eu
cheguei, botamos o na terra dura na frente, na beira da rampa, ai meu Deus,
mas estava para morrer de cansada. Passava assim para tirar um monte de lama.
Nós estava pesado, pesado, pesado. Todo mundo ficou em pé, passava a mão
assim, descia aquela lama. Todo mundo com valisa nas costas e as crianças.
B: Tinha mais gente junto com a senhora?
O: Tinha, tinha sim. Tinha a minha filha, tinha o meu marido, tinha dois filhos meus,
tinhas as pequenas que tinha os filhos também. Nós éramos (...) ai, meu Deus do
céu, a criança queria chorar e não podia deixar, que era logo ali em cima a cabeceira
da montanha, onde era a polícia. Aí, olha só. Nós subimos para a terra, por meio de
umas arvorezinhas que tinha, subimos bem baixinho, por meio daquelas árvores,
assim, alcancemos mais para cima um pouco. Aí, a minha filha Maria, que morava
lá, ela disse: “Olha, agora vão por aqui, por meio desse cerrado. Vamos ver se nós
vence para não varar para aquela rua de e na frente tem um/ esqueci agora
como chama, um negócio como uma casa grande assim. Mas é enorme. Vamos ver
424
se nós vara lá, vamos ficar lá. É que eu moro. Nós fomos ficar lá, quando for de
manhã, o dia vem clareando, nós se manda de lá”. Ia para a casa dela, para frente.
Ma: Ela morava no (...)?
O: É, nós se mandemo. Vai para e para acolá e quem levava as valisas,
levava, quem lavava as crianças, levava e não deixava chorar, era dar o peito
para elas. E ela ia abaixada e nós fomos, fomos, fomos, até que nós chegamos num
casarão grande, comprido assim. Eu sei que morava um bando daquela qualidade
de gente de eti lá dentro.
B: De que?
O: De eti.
B: São negros?
O: Dessa qualidade de gente. Mas minhas irmãs, quando chegava a boca da noite,
era um estraladeiro de (terçado) dentro daquilo. Não tinha quem dormisse.
B: O que estralava?
O: Eles bebiam, ficavam de porre e todo mundo ia conversar. Nós ficava tremendo
no quarto que nós estava. Nós ainda passava assim, nós aguentava, não aguentava
mais, dormia. O meu marido ficava a noite inteira de vigília. Vigiando. Dava cada
lambada, assim, na parede, “Vá para o seu quarto”. Quando o dia vinha
clareando, nós se mandemo para a casa da pequena, da minha filha. Varamos para
a casa dela, para a banda da matinha, no sul, cedo. Agora é um lugar que é uma
beleza. (...) quem ganha para dentro? Não. Sabendo trabalhar, não beber para sair
para a rua, trabalhando, a polícia não pega. A polícia não pega. Nós moremos
quase dois anos. Faltou um mês para completar dois anos. Meu marido saía, ia para
Curu para ir trabalhar e baixava dia de sábado. Nós passamos tudo esse tempo
lá, mas polícia. Ele chegava sujo mesmo, ele chegava, varava para o (...) fazer
compra, dia de sábado. Mas nunca a polícia pegou ele.
B: E ele trabalhava em que?
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O: Trabalhava em demarcação de madeira, uma madeireira, demarcação,
baixava sábado. Mas nunca a polícia pegou ele, nunca a polícia andou atrás dele.
Muito bom, mas é maravilhoso aquele lugar para a gente morar. Levei os filhos para
lá, tinha um morando para lá, mas é que tinha para cá também. São oito.
B: E a senhora desistiu de ficar lá?
O: Aí desisti de ficar por causa dos meus filhos aqui, que eu não falava com eles.
Aí eu me mudei, vim me embora para cá. É, é. Se tivesse tudo lá, eu estava lá ainda.
Ma: (...) em Macapá, liberdade.
O: Pois é, para saltar.
B: Se pudesse circular.
O: Às vezes, eu falo assim para os meus filhos: “Olha, às vezes, a gente em
Macapá gente de , não é?” Em Macapá. Mas em Macapá, aqui no nosso Brasil,
eles chegam, saltam tranquilamente.
B: Ninguém vai atrás deles.
O: Ninguém vai espantar, ninguém vai pegar, ninguém vai prender. Mas vá daqui
para lá. Se não saber saltar, amigo, vai para ximbica, não vai nem para onde vai.
É, tia Rosa, ali é ruim. Só é ruim.
B: Vocês sabem que o governo brasileiro fez um acordo com a França, porque a
Guiana é considerada Guiana Francesa. A França é um país da Europa e eles
colonizaram a Guiana. Então, todo brasileiro tem direito a ir para qualquer território
francês, por três meses, sem pagar nada. Ele não pode ser preso, ninguém pode
molestar um brasileiro em um território francês. E a Guiana é território francês.
Então, essa perseguição que eles fazem a amapaenses que sobem, é fora da lei.
Então, vocês aqui são dessa forma perseguidos. Eu, quando/ eu ia, nós quisemos
pegar o visto, que a dona Marina falou da visa, “Pode entrar”, eu liguei para o
consulado para pedir, não é? Eu estava vindo para trabalhar, professora, tudo mais.
Eles não deixaram, disse que não, que precisava o projeto de trabalho, cento e vinte
e quatro reais para comprar a visa e mais uma carta da minha professora dizendo
426
que eu estava indo, uma carta de trabalho, comprovante de imposto de renda,
comprovante de/ aquela coisa, aquele contracheque para dizer quanto que eu
ganho, o que eu estava fazendo. Tudo isso para poder vir para cá. eu desisti.
Falei: “Deixa, eu não vou agora não”. Depois disso é que eu descobri que nós temos
um convênio e que nós podemos entrar lá e dizer: “Sou brasileiro, tenho o direito de
estar aqui, porque o meu governo fez um convênio com eles”. Então, quando
alguém disser alguma coisa, vocês podem dar essa informação, é verdadeira. Da
próxima vez que eu vier, eu vou trazer esse documento para mostrar para vocês.
Todo brasileiro pode entrar em Caiena sem ser molestado, sem passar por isso.
Agora, eles precisam saber disso, não é? Talvez eles não saibam. Agora o
impedimento de brasileiro para Caiena não existe aqui, não é? Aqui a gente recebe
todo mundo. Não tem problema nenhum.
O: Não tem problema nenhum. Chegam e estão libertos no Brasil, mas se a gente ir
daqui para lá, meu Deus. Tem que andar parece bicho, se escondendo, pega na
hora, não vai nem nas casas.
B: E seus pais eram daqui também, dona Oscarina?
O: Eram.
B: Todos daqui? Nascidos e criados aqui?
O: Nascidos e criados.
B: E tinha essa história dos estrangeiros? A senhora chegou na hora em que a gente
falou dos estrangeiros. A senhora conhecia algum estrangeiro por aqui ou esse
alemão?
O: Eu mesmo não conheci.
B: A senhora não chegou a conhecer?
O: Não, não. Não cheguei conhecer.
B: E a senhora? Também não?
M: Eu não conheci também.
427
B: A senhora é de Viçosa. E a senhora se casou aqui ou se casou em Viçosa?
M: Me casei aqui.
B: Casou aqui com bailiquense.
M: Bailiquense também. Eu tenho quarenta e dois anos de casada.
B: Puxa vida, vai fazer bodas de ouro, que beleza.
M: Sou mãe de dois filhos só.
B: O que aconteceu?
M: Porque mesmo, só dois mesmo.
Ma: Só dois, Nazaré?
M: É.
B: Olha, dona Marina, doze.
Ma: Nove.
B: Nove.
R: Eu, dez.
B: Dona Oscarina?
O: Oito.
B: Oito. Dona Maria, quantos filhos?
MS: Onze.
B: Onze filhos. A senhora é viúva ou não? A senhora é casada. Viúva é dona Marina
e dona Joana. E a senhora só dois?
M: Só dois.
B: Por escolha. Escolhi ter só dois filhos.
428
M: Só dois. Passei quatorze anos para produzir esses dois filhos.
B: E como é que eles chamam?
M: Um é Paulo e o outro é João.
B: Dois homens.
J: Eu tive sete.
B: Só esses?
M: Só esses.
B: E a senhora tem quanto tempo aqui de Bailique?
M: Olhe, eu morava ali no Igarapé Grande, na terra grande, embaixo. Então, eu
criei um neto de um filho que me deu com oito meses de nascido. era muito
dificultoso o estudo para ele, todo dia vir trazer ele, era quarenta minutos da minha
casa ao colégio. Aí o pai dele morava aqui, achei melhor vir.
B: Vir para cá. E a senhora continua criando ele.
M: É. Ele tem nove anos, vai passar pros dez. eu saía, ele ficava, assim, com os
vizinhos, com tia. A senhora sabe o que é moleque, ele era perigoso de moleque,
eu digo: “Não, eu vou me embora porque eu vou morar com o pai dele e junto
ele vai se acostumar, eu vou com ele, ele fica com o pai dele e eu venho para
cá”. E eu vim, não é? Aí eu morei um mês com ele. Falei: “Meu filho, fica aqui com o
teu pai. Eu vou voltar para lá, toda semana eu estou aqui, te dou assistência”. Ele
disse: “Não, mamãe, não me deixe aqui que eu não fico com o papai, minha mamãe.
Me leve daqui, que eu não fico”. Eu disse: “Mas meu filho, eu deixo tudo pronto para
ti, a despesa, eu no começo da semana venho passar uma semana”. “Não, não,
não”.
B: Não teve acerto.
M: Não teve acerto. É a senhora ir, você me deixa aqui para eu ir embora em uma
lancha da ilha, arrumar passagem para ir embora”. Ele já está grandinho.
429
B: A senhora decidiu ficar.
M: eu disse: “Não tem jeito”. Ele disse: “Não, esse pequeno não tem jeito mesmo
de se acostumar com nós, não. Se acostuma, acostuma (...) a mamãe”.
B: Ele chama a senhora de mamãe?
M: É, mamãe. eu fui lá, conversei com o avô dele. Não tem jeito, vai tomar conta
dele”. Mas, desde pequenino, esse menino é agarrado com nós dois. Ele tinha seis
meses, nós ia lá, ele ficava com cara de choro atrás de nós. Foi crescendo nisso. O
pai dele (...) dar ele para nós, até que um dia [fim]
430
ANEXO B – Folheto da Missa dos Quilombos/2004
431
432
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