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Universidade Estadual Paulista – UNESP. Instituto de Artes.
Programa de Pós – Graduação em Artes.
Mestrado.
A FIGURA HUMANA FRAGMENTADA NA PINTURA:
TIRADENTES ESQUARTEJADO EM
PEDRO AMÉRICO E ADRIANA VAREJÃO.
REGILENE APARECIDA SARZI-RIBEIRO
São Paulo – SP.
2007
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REGILENE APARECIDA SARZI-RIBEIRO
A FIGURA HUMANA FRAGMENTADA NA PINTURA:
TIRADENTES ESQUARTEJADO EM
PEDRO AMÉRICO E ADRIANA VAREJÃO.
Dissertação apresentada ao Instituto de
Artes da Universidade Estadual Paulista
“Júlio de Mesquita Filho” – São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em Artes.
Área de Concentração: Artes Visuais
Linha de Pesquisa: Abordagem Teórica,
Histórica e Cultural da Arte
Orientador: Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento.
Este exemplar corresponde à Dissertação defendida e aprovada pela
Comissão Julgadora em 25 de Junho de 2007.
Banca
Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento (orientador)
Prof. Dr. Domingos Tadeu Chiarelli (membro)
Prof. Dr. Norberto Stori (membro)
São Paulo – SP.
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Sarzi-Ribeiro, Regilene Aparecida.
S251f A Figura Humana Fragmentada na Pintura: “Tiradentes esquartejado”
em Pedro Américo e Adriana Varejão / Regilene Aparecida Sarzi-
Ribeiro. - - São Paulo, SP: [s.n.], 2007.
137 p.: il. color.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho”, Instituto de Artes.
Orientador: José Leonardo do Nascimento.
Inclui bibliografia.
1. Arte – História - Brasil. 2. Pintura brasileira. 3. Figura humana na
arte. 4. Fragmento. 5. Tiradentes esquartejado. I. Nascimento, José
Leonardo. II. Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”.
Instituto de Artes. III. Título.
CDD – 709.81
759.81
704.942
i
Ao meu artista interior
ii
Agradeço a
Meu querido Sérgio, por seu amor, incentivo e esforços
constantes para que eu realizasse este trabalho.
Meu pai, Hélio, pela força e essência masculina em mim.
Meus tios Nair e Décio pelo carinho e acolhida em São Paulo.
Prof. Dr. José Leonardo do Nascimento, pela orientação
inspiradora e repleta de palavras de estímulo.
Prof. Dr. Milton Sogabe e Prof. Dr. Norberto Stori
pelas observações tão preciosas.
iii
In Memorian
Mãe querida, Madalena Maria.
iv
RESUMO
Esta pesquisa tem como tema a Figura Humana Fragmentada e trata da representação de
corpos em fragmentos na Pintura, utilizando como referência a teoria de Omar
Calabrese sobre o Fragmento. O recorte temporal partiu do Neoclassicismo (século
XVIII) para chegar ao século XX: período de maior transformação formal na
representação da figura humana, marcada por obras cuja temática são fragmentos de
corpos. Os objetivos da pesquisa são: estudar o tema da figura humana fragmentada nas
obras de pintura dentro do recorte temporal proposto; identificar, comparar e discutir os
aspectos estéticos e iconográficos dessas composições pictóricas e analisar as obras
escolhidas como objetos de estudo: “Tiradentes Esquartejado” (1893) de Pedro Américo
(1843-1905) e “Reflexos de Sonhos no Sonho de Outro Espelho (Estudo sobre o
Tiradentes de Pedro Américo)” (1998) de Adriana Varejão (1964). Os procedimentos
metodológicos são: análise iconográfica e comparativa, dentro do referencial sócio-
histórico. Os resultados apontaram que o tema da Figura Humana permanece sendo
representado por meio da dualidade: figura-inteira versus figura-fragmentada, pois
representar o corpo em partes tem o mesmo significado e importância quanto inteiro.
Tiradentes esquartejado em Pedro Américo se relaciona com os elementos estéticos que
definem uma composição como obra-pormenor e em Adriana Varejão com obra-
fragmento.
Palavras-Chave: história da arte; pintura; figura humana; fragmento; Tiradentes
esquartejado.
v
ABSTRACT
This research has how the Fragmented Human Figure theme and treats of representation
on the body on fragments in the Picture, utilizing as reference the Omar Calabrese’s
about Fragment theory. The temporal cut parted of Neoclassicism (18
th
century) for to
come in the 20
th
century: period of larger formal transformation in the human figure
representation, marked by works whose thematic are body’s fragments. The objectives
of research are: to study the theme of fragmented figure human in the works of picture
within of temporal cut proposed; to identify, to compare and to discuss the
iconographies and esthetics aspects from that’s pictures composition and to analyze the
works choices: “Quarted Tiradentes” (1893) of Pedro Américo (1843-1905) and
“Reflections of Dreams on a Dream of Another Mirror (Study after Pedro Américo’s
Tiradentes)” (1998) of Adriana Varejão (1964). The methodology’s proceedings are:
comparative and iconographic analyses, within of historic-associate reference. The
results have pointed for the theme of human figure stays being represents by means of
duality: intact figure versus fragmented figure, for to represent the body in parts has the
same significance e importance as intact. Quarted Tiradentes in Pedro Américo to relate
to aesthetics elements that define one composition how detail-work and in Adriana
Varejão with fragment-work’s.
Key words: art history; picture; human figure; fragment; quarted Tiradentes.
vi
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura Página
01 – Alex Flemming – Israel (2001)...............................................................................10
02 – Jean Michel Basquiat – Early Moses (1983)...........................................................11
03 – Cânone Egípcio (1000 a 2000 a.C).........................................................................15
04 – Cânone de Policleto (Séc.V a.C).............................................................................16
05 – Cânone de Leonardo da Vinci (Séc. XVI)..............................................................17
06 – Cânone de Cousin (Séc. XVIII – XIX)...................................................................18
07 – Rembrandt – A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632)..........................................20
08 – Dominique Ingres – A Banhista de Valpinçon (1808).............................................23
09 – Théodore Géricault – Estudos de membros truncados (1818-19)...........................25
10 – Théodore Géricault – A Balsa da Medusa (1819)...................................................27
11 – Pedro Américo – A Batalha de Avaí (1877)............................................................31
12 – Edgar Degas – Três Bailarinas na sala de dança (1880)........................................34
13 – José Ferras de Almeida Jr. – Descanso do Modelo (1882).....................................37
14 – Rodolfo Amoedo – Estudo de Mulher (1884).........................................................39
15 – Pablo Picasso – Le Demoiselles d’Avigon (1907)...................................................40
16 – Marcel Duchamp – Nu Descendant un escalier no. 2 (1912-6)..............................44
17 – Ismael Nery – A Moça com ramo de flores – (1929)..............................................45
18 – Pablo Picasso – Guernica (1937)............................................................................47
19 – Lasar Segall – A Guerra (1942)..............................................................................51
20 – William de Kooning – Mulher (1949).....................................................................53
21 – Francis Bacon – Estudo para retrato no divã dobrado (1963)...............................56
22 – Andy Warhol – Torso (1977)..................................................................................60
23 – Andy Warhol – Torsos (1977).……………………………………………………61
24 – Carlos Vergara – Duas Figuras (1985)...................................................................62
25 – Iberê Camargo – Ciclistas (1991)............................................................................65
26 – Lucian Freud – Encostada nos trapos (1988-89)....................................................68
27 – Jenny Saville – Marcada a Ferro (1992)................................................................69
28 – Adriana Varejão – Azul e Branca em Carne (2002)................................................71
29 – Pedro Américo – Tiradentes esquartejado (1893)..................................................76
30 – Aurélio de Figueiredo e Mello – Martírio de Tiradentes (1893)............................77
31 – Símbolo da Inconfidência Mineira..........................................................................80
vii
32 – Cândido Portinari – Painel Tiradentes (1918-49)...................................................82
33 – João Câmara Filho – Painel da Inconfidência Mineira (1981-86)..........................87
34 – Marat, Tiradentes esquartejado e A Balsa da Medusa (detalhe)..........................100
35 – Tiradentes esquartejado, Pietá e A Deposição de Cristo......................................102
36 – Pedro Américo – Tiradentes esquartejado (1893)................................................105
37 – Pedro Américo – Tiradentes esquartejado (1893) – Detalhe do tronco................106
38 – Pedro Américo – Tiradentes esquartejado (1893) – Detalhe da perna.................107
39 Pedro Américo Tiradentes esquartejado (1893) Eixos de Composição
.......................................................................................................................................108
40 – Pedro Américo – Tiradentes esquartejado (1893) – Composição Triangular......110
41 – Pedro Américo – Estudos de Anatomia para Tiradentes esquartejado (1892-
93)..................................................................................................................................111
42 – Adriana Varejão – Varejão Acadêmicos – Heróis (1997).....................................115
43 – Arlindo Daibert – Açougue Brasil (1978).............................................................116
44 Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998)....................................121
45 Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998) Detalhe dos
Manequins.....................................................................................................................122
46 - Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998) Detalhe da Disposição
das Pinturas....................................................................................................................122
47 - Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998) Detalhe
Fragmentos....................................................................................................................124
48 - Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998) Detalhe
Fragmentos....................................................................................................................125
49 - Adriana Varejão Projeto para Instalação Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudos sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998) Detalhe
Fragmentos....................................................................................................................126
viii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO...............................................................................................................01
Capítulo I
PERCURSO HISTÓRICO..............................................................................................09
1.1 – O Fragmento na Teoria de Omar Calabrese...........................................................09
1.2 A Figura Humana Fragmentada na Pintura............................................................13
Capítulo II
ICONOGRAFIA DE TIRADENTES..............................................................................73
Capítulo III
“TIRADENTES ESQUARTEJADO” em PEDRO AMÉRICO e ADRIANA VAREJÃO
.........................................................................................................................................93
3.1 – Pedro Américo e a obra Tiradentes esquartejado .................................................93
3.1.1 – O Artista..............................................................................................................93
3.1.2 – A Obra.................................................................................................................95
3.1.3 – A Análise...........................................................................................................104
3.2 – Adriana Varejão e a obra Reflexos de Sonhos no Sonho de Outro Espelho (Estudo
sobre o Tiradentes de Pedro Américo) .........................................................................113
3.2.1 – A Artista............................................................................................................113
3.2.2 – A Obra...............................................................................................................114
3.2.3 A Análise...........................................................................................................120
3.3 Pedro Américo x Adriana Varejão: Tiradentes esquartejado x Reflexo de Sonhos
no Sonho de outro espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) ................127
CONSIDERAÇÕES FINAIS........................................................................................130
REFERÊNCIAS............................................................................................................132
1
INTRODUÇÃO
A Arte atual é marcada pelas experiências de uma lista significativa de artistas e
curadorias que levantam hoje interrogações a partir do corpo. Neste sentido, recordo-me de
algumas visitas às mais recentes mostras realizadas, cuja temática envolvia o corpo e a figura
humana. Como em 2003 na mostra Metacorpos, no Paço das Artes e no evento Corpo e
Tecnologia, no SENAC Serviço Nacional do Comércio - SP; em 2005 na individual de
Carmem Gebaile, Pés Marcados, no SESC Serviço Social do Comércio - SP e no evento O
Corpo nas Artes Visuais, no Instituto Itaú Cultural - SP e em 2006, na mostra A Figura
Humana em Representação na Pinacoteca do Estado, em São Paulo.
Assim, introduzo esta pesquisa que tem como tema a Figura Humana Fragmentada na
Pintura e trata de fragmentos de corpos humanos observados em contraposição com corpos
representados inteiros. O recorte prevê o estudo de produções pictóricas que ao longo da
História da Arte e da Pintura se manifestaram pela presença marcante destas imagens,
definidas segundo Omar Calabrese (1988) como obras-fragmento.
Duas obras foram escolhidas como objetos de estudo: Tiradentes Esquartejado (1893)
de Pedro Américo (1843-1905) Museu Imperial de Juiz de Fora (MG) e a obra Reflexos de
Sonhos no Sonho de Outro Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) (1998) de
Adriana Varejão (1964) – Coleção Ricard Akagawa – São Paulo.
Mediante o estudo dos elementos estéticos que compõem a temática da figura humana
fragmentada e a figura de Tiradentes esquartejado nestas obras, pretendo encontrar subsídios
para elucidar a seguinte questão: estas obras de Pedro Américo e Adriana Varejão contêm os
aspectos formais dos fenômenos artísticos denominados como obra-fragmento por Omar
Calabrese?
A escolha da Figura Humana Fragmentada na Pintura como tema de pesquisa desta
dissertação ocorreu primeiro em virtude da minha experiência pessoal e profissional para com
o assunto. que como Artista Plástica eu vivencio em minha produção artística o uso de
fragmentos e pormenores da figura humana como tema em trabalhos que denomino de série
Futebol (2000).
Durante a graduação pesquisei a figura humana nas diferentes disciplinas do curso.
Com apoio da FAPESP Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e sob a
orientação da Profa. Dra. Cleide dos Santos Costa Biancardi desenvolvi uma Pesquisa de
Iniciação Científica junto ao Departamento de Artes da FAAC Faculdade de Arquitetura,
Artes e Comunicação – UNESP – Campus de Bauru-SP.
2
A seguir, a mesma pesquisa foi apresentada como Trabalho de Conclusão de Curso
sob o título A Via Sacra como Manifestação Artística Nos Templos Católicos de Bauru no
ano de 1994, cujo enfoque centrou-se no tratamento das figuras humanas que compõem a Via
Sacra por diferentes artistas.
Outro fator determinante foi minha atuação como professora de Artes desde 1996, no
ensino do Desenho Artístico, Gravura e Aquarela para adultos e adolescentes. Tais cursos
oferecidos em Atelier próprio; Projetos Culturais da Secretaria Estadual de Cultura e
Secretarias Municipais de Cultura, e atualmente como Professora no Curso de Educação
Artística da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação – FAAC – UNESP de Bauru, me
levaram a estudar a temática da figura humana intensamente, a partir de 1999.
Dessa prática surgiram primeiro os estudos clássicos, torsos femininos e masculinos.
Logo após, um estudo mais conceitual por meio da apropriação de fotografias deu origem aos
desenhos da Série Futebol em 2000.
O processo criativo destes trabalhos ocorre a partir de um banco de imagens sobre
futebol, do qual são escolhidas as imagens de que serão feitos os recortes e a fragmentação
das partes do corpo humano - como as pernas e pés, de preferência onde o corpo se deforma.
Hoje são trabalhos em aquarela, gravuras, colagens e fotomontagens.
Quanto ao recorte temporal proposto, possibilita a construção de um percurso histórico
do tema do Neoclassicismo e Romantismo (século XVIII) ao século XX e começo do século
XXI, que se justifica por compreender um dos períodos de maior transformação formal na
representação da figura humana, marcada pelo surgimento dos fragmentos de corpos como
temática.
Entre os brasileiros se encontra o tema da figura humana nas obras de artistas como
Pedro Américo (1843-1906), Candido Portinari (1903-1962), Iberê Camargo (1914-1994),
Carlos Vergara (1941), Luís Paulo Baravelli (1942), Leonilson (1957-1993), João Câmara
(1944), Rosângela Rennó (1962), Alex Flemming (1954), e Adriana Varejão (1964), entre
outros.
Todavia, a escolha dos artistas plásticos Pedro Américo e Adriana Varejão e suas
respectivas obras, Tiradentes Esquartejado (1893) e as pinturas de Reflexos de Sonhos no
Sonho de Outro Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) (1998), para objeto
de estudo, ocorreu em razão da maneira como estes dois artistas tratam o tema da figura
humana: por partes de corpos.
No caso de Pedro Américo o uso de partes da figura humana representa um relato da
situação política brasileira e a condenação, em 1792, do inconfidente mineiro, José Joaquim
3
as Silva Xavier, o Tiradentes. A obra Tiradentes esquartejado representa, ainda, uma clara
intenção de representar o herói nacional destroçado, mutilado. As obras de Pedro Américo
apontam para a sua formação acadêmica influenciada pelo Romantismo e pelo Realismo,
como irei demonstrar ao confrontá-lo com Théodore Géricault, dentro do recorte temporal
proposto.
Por sua vez, em Adriana Varejão a figura humana também é relacionada às questões
como memória cultural e identidade nacional. Porém, a artista carioca retoma a pintura
Tiradentes Esquartejado (1893) não por acaso e a separa em pequenas pinturas sobre tela,
fragmentando a mesma imagem do corpo do líder revolucionário mineiro representado por
partes anteriormente por Pedro Américo.
As obras escolhidas para objeto de estudo foram observadas e apreciadas por mim em
1998, durante a XXIV Bienal Internacional de São Paulo. Ambas foram expostas, em núcleos
diferentes, mas participavam da temática daquela Bienal que foi a “Antropofagia nos une”. A
pintura Tiradentes esquartejado de Pedro Américo compôs a “Núcleo Histórico
Antropofagia e Histórias de Canibalismos” e a instalação de Adriana Varejão, foi exposta no
núcleo “Uns e Outros”. Foi assim que eu pude conhecê-las pessoalmente e então surgiram
minhas primeiras inquietações sobre as relações entre ambas.
Justifico este estudo, por fim, pela necessidade de ampliar a compreensão do conceito
fragmento e sua aplicação nas Artes Visuais, sobretudo, na Pintura Brasileira.
Ao sugerir a aplicação da teoria do fragmento de Omar Calabrese (1988) para novos
apontamentos sobre o assunto, proponho um estudo sob a ótica desta teoria estética e
filosófica que tem merecido destaque na atualidade. Considerando que a proposta de
Calabrese vem ao encontro do que muitos artistas plásticos propuseram em suas criações nas
últimas décadas do século XX.
Portanto, como o tema possui uma história a ser discutida e o autor acima citado
aponta para a fragmentação como uma forma de utilização da imagem na Arte
Contemporânea, conforme será visto no estudo, tenho como objetivos nesta pesquisa: estudar
o tema da figura humana fragmentada nas obras de pintura dentro do recorte temporal
proposto; construir um percurso histórico do tema; identificar, comparar e discutir os aspectos
estéticos e iconográficos dessas composições pictóricas e caracterizar as obras escolhidas para
ilustrar o objeto de pesquisa como obras-fragmento.
Com este propósito realizo uma pesquisa bibliográfica sobre o tema, visando à
construção do percurso histórico e o estudo da relação dialética entre o Fragmento e o tema da
Figura Humana; uma pesquisa documental junto a programas e folder de exposições,
4
catálogos e jornais que se refiram ao objeto de estudo em questão e a seguir procedo à
documentação iconográfica das obras escolhidas para a caracterização como obra-fragmento,
por meio da coleta de imagens via fotos ou imagens digitais.
O trabalho de identificação, caracterização e discussão dos aspectos estéticos das obras
é instaurado a partir de análises comparativas entre os elementos estilísticos, formais,
portanto, iconográficos, bem como sócio-culturais e iconológicos das mesmas, buscando
atribuir significado aos fatos a partir do contexto que ocorrem e valorizar suas contradições
dinâmicas, configurando-se numa pesquisa qualitativa.
Dessa forma, as referências teóricas que servem de estrutura conceitual para o
desenvolvimento da investigação pretendida, num primeiro momento, analisam os aspectos
históricos e sociais da relação da figura humana e o fragmento, ao mesmo tempo em que os
remete, figura inteira e fragmento, aos seus contextos culturais e estéticos.
As análises comparativas buscam uma compreensão mais efetiva da relação dialética
entre o todo e a parte, no que as aproxima e as distingue dentro do tema da Figura Humana na
Pintura. Para no momento seguinte a partir dos estudos de Calabrese e de sua teoria sobre
Fragmento, do Capítulo IV do livro A Idade Neobarroca (1988), apresentar os elementos que
podem caracterizar as obras de Pedro Américo e Adriana Varejão como obras-fragmento.
Portanto, os procedimentos metodológicos são: a construção de um percurso histórico
por meio da análise iconográfica e leitura de obras de arte, bem como a interpretação ou
síntese iconológica a partir de análise formal comparativa, dentro do referencial cio-
histórico acima proposto.
Para abordar o problema da pesquisa e os elementos envolvidos no processo de
fragmentação da Figura Humana na Pintura e sua conseqüente autonomia na Arte
Contemporânea, o método utilizado é o do Materialismo Dialético, de enfoque sócio-
histórico, segundo Triviños (1982) e Goldmann (1979). As principais características deste
método, que justificam inclusive a escolha do mesmo para esta pesquisa são: a compreensão
da realidade a partir do princípio do conflito e da contradição como algo que é permanente e
fator de explicação de suas transformações; nada se constrói fora da história e o homem é
compreendido como produtor e produto desta relação social; o caráter total da existência
humana e sua ligação indissolúvel com a história e com os fatos sociais e o conceito de
totalidade usado como instrumento interpretativo.
Sendo assim, nesta abordagem a análise do objeto artístico busca reter a compreensão
do particular no geral e vice-versa. A perspectiva totalizadora da abordagem dialética tem a
capacidade de refletir as relações reais do fenômeno. Ao mesmo tempo em que a realidade
5
objetiva como um todo coerente, analisa e compreendem as partes deste todo, relacionando
conjunto e unidade, complexidade e diferenciação, aproximações e distanciamentos entre os
objetos analisados.
Na elaboração da fundamentação teórica da pesquisa, partirei do teórico Silveira
(1979) que faz um estudo das abordagens metodológicas do objeto artístico e as diferentes
correntes de procedimentos e instrumentos de estudo da obra de arte. Silveira percorre desde
os precursores e teóricos da Pura Visibilidade, passando pelo conceito de História da Arte
como História das Formas de Wölfflin e História da Arte como História das Imagens de
Panofsky até a Crítica de Arte e Interpretação Sígnica de Mukarovsky, Barthes e Eco.
Apresenta-se, portanto, como um roteiro de abordagens do objeto artístico, dentre as quais
escolho para a minha pesquisa a abordagem de Panofsky, como irei fundamentar adiante.
Para a construção do percurso histórico do tema utilizo como principal referência
teórica o historiador italiano Argan (1992), cuja principal característica é o estudo de cunho
histórico-crítico da Arte. Sua abordagem do objeto artístico parte da contextualização
histórica das obras e os artistas para analisar o momento sócio-político e abordar os aspectos
filosóficos e poéticos envolvidos no processo de criação. Ao final de cada contextualização do
período histórico, utilizando o instrumento de Leitura de Obras de Arte, Argan analisa as
obras e as interpreta, sem deixar de relacioná-las com a trajetória histórica das mesmas.
Como referencial teórico para análise e interpretação dos dados coletados optei pelos
procedimentos de Panofsky (1976), que tratam da relação da Iconografia e da Iconologia
como instrumentos de estudo de imagens. A análise iconográfica, que pressupõe
anteriormente uma descrição pré-iconográfica via a história dos estilos e dos aspectos formais
da obra em conjunto com o modo como os objetos e os acontecimentos se expressam ao longo
da história, aborda o objeto artístico em seu conteúdo temático secundário, o qual constitui o
mundo das imagens, histórias e alegorias.
Para Panofsky tal estudo deve utilizar como complemento o conhecimento das fontes
literárias e a história dos tipos, ou seja, como em diferentes épocas temas e conceitos foram
expressos por objetos e ações. Ao passo que a análise iconológica compreende a descoberta e
a interpretação dos valores simbólicos a partir de um método que advém da síntese mais do
que da análise. O autor afirma que o estudo do objeto artístico deve permear os três níveis de
análise e síntese para conter um estudo completo do fenômeno.
Em função desta relação do formal com o social tenho em Hauser (1971) e nos seus
estudos sobre a História Social da Arte uma referência para o tratamento das relações entre a
6
sociedade e a obra de arte. O autor por meio de um estudo preciso não se limita a integrar os
movimentos artísticos com o seu momento, mas indica suas origens e suas condições sociais.
Para fundamentar as relações entre o Fragmento e as Obras de Arte geradas num
determinado âmbito social e complementar a visão de Hauser, encontrei em Francastel (1990)
um estudo sobre as dimensões e a significação do espaço pictórico. O conceito de Francastel
sobre a relação da Pintura com a sociedade propõe um olhar sobre os objetos artísticos como
um sistema de figuração. Seu pensamento aponta para uma relação com as obras de arte
pictóricas como fatos de cunho relativo, coerente e representativo de determinada fase de
desenvolvimento do espírito humano e demonstra na sua visão como abordar uma obra de arte
em suas relações sociais.
Os autores Coli (2002) e Oliva (1981) são referências para o estudo dos conceitos de
fragmento e contribuem como complemento para o pensamento de Calabrese (1988) sobre a
manifestação do fragmento na atualidade, bem como sua caracterização. Em Coli encontro
referências que serviram de base para as minhas primeiras investigações sobre a Figura
Humana Fragmentada. Este autor relata um percurso do processo de fragmentação pelo qual
passou a Figura Humana, analisando o caminho de desconstrução do tema que teria se
iniciado no século XVIII. Já em Oliva o conceito de fragmento ganha certa amplitude e
possibilita a reflexão sobre importantes estudos a respeito das tendências internacionais da
nova pintura na década de 1980, mais conhecida como Nova Figuração. Oliva ressalta
aspectos da fragmentação que são relevantes, como a ocorrência do fragmento como um
sintoma que pode se caracterizar num signo de desejo de mudança e de mutações constantes.
Esse conceito se aproxima do conceito de Calabrese em que o fragmento é reflexo do espírito
do tempo contemporâneo.
Nesse viés utilizo ambos os teóricos para contextualizar o Fragmento, por meio de
suas visões a despeito do mesmo, durante o percurso histórico da Figura Humana sem me
deter na descrição de suas teorias. Já que a proposta é fixar a teoria de Omar Calabrese (1988)
como principal referência teórica para caracterização das obras escolhidas para objetos de
estudo. Justifico a escolha de Omar Calabrese (1988), pois o autor é claro ao apontar as
características formais que para ele definem uma obra-pormenor e uma obra-fragmento.
Para o teórico italiano Omar Calabrese o fenômeno da Fragmentação está diretamente
relacionado à perda da totalidade ou a perda de integridade que pode se manifestar entre os
mais variados campos de conhecimento e da vida do homem atual. É uma característica do
espírito do nosso tempo que o autor denomina de Neobarroco. O Neobarroco é conceituado
por ele como um ar do tempo e que, entre outras características, é marcado pelo uso de
7
fragmentos e pormenores de imagens, esculturas e trechos de obras aplicados aos mais
variados tipos de textos, visuais ou literários. Esse modo ou ar do tempo pode ser observado
na constante presença de obras-fragmento que muitos artistas contemporâneos produzem.
O conceito de Fragmento aplicado nesta pesquisa se refere às considerações tecidas
por Omar Calabrese no Capítulo IV Pormenor e Fragmento do livro A Idade Neobarroca
(1988), no qual o autor discute e define o que considera obra-pormenor e obra-fragmento.
Neste contexto Calabrese considera a idéia do todo como sistema e conjunto, que
pressupõe a parte, ou seja, a porção, o fragmento e o pormenor. Portanto a primeira
consideração refere-se ao fragmento e ao pormenor como sinônimos de parte, como termos
interdefinidos, porém conceitos em oposição que são duas ações efetivas concebidas de
maneira completamente diferentes.
A palavra pormenor, ou detalhe, tem origem no francês renascentista e significa talhar-
se. Esse talhar-se nos remete a uma ação do sujeito sobre ele mesmo. O pormenor pode ser
observado a partir do inteiro e da operação do talho. Um exemplo comum dessa ação é o
zoom da televisão. Já o fragmento elabora sua ação de tornar-se parte, de uma maneira
completamente diferente. O fragmento quebra, corta-se e se separa totalmente do conjunto e
ao cindir sua relação com o todo, se torna autônomo. A etimologia do fragmento deriva do
latim frangere que significa quebrar.
Para Calabrese pode acontecer de um fragmento se tornar ele mesmo o próprio
sistema, ou seja, quando o fragmento se apresentar na forma de uma obra fragmentária com
aspecto de inteiro. É para esse conceito de fragmento que pretendo dar ênfase nesta pesquisa.
Optei por dividir os resultados da pesquisa em três partes, nas quais abordo os
diferentes aspectos do assunto, com ênfase para àqueles que eu considero os mais pertinentes.
Esta divisão em três capítulos é uma tentativa de estabelecer um raciocínio
cronológico na construção conceitual da argumentação por mim pretendida.
No primeiro capítulo descrevo o conceito de Fragmento na teoria de Omar Calabrese e
as características formais que definem uma obra-fragmento. A seguir apresento o percurso
histórico do tema na História da Arte e na História da Arte Brasileira, de acordo com o recorte
proposto. Nele busco definir os paradigmas que historicamente nortearam a relação dialética
entre a parte e o todo na representação da Figura Humana na História da Pintura e introduzo
as obras de pintura brasileiras de maneira panorâmica, mediante um paralelo com a História
da Arte mundial.
No segundo capítulo desenvolvo uma breve investigação com vistas á identificação,
caracterização e discussão da produção iconográfica em torno do assunto Tiradentes e das
8
obras que ilustrarão o objeto da minha pesquisa. Neste momento estabeleço um paralelo com
outros artistas brasileiros que pintaram Tiradentes esquartejado, relatando quais são os outros
Tiradentes, em quais contextos foram produzidos e como se relacionam com as obras de
Pedro Américo e Adriana Varejão.
A seguir, no terceiro capítulo, realizo o exercício de análise estética e comparativa das
produções pictóricas Tiradentes esquartejado e Reflexos de Sonhos no Sonho de Outro
Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo), respectivamente de Pedro Américo e
Adriana Varejão, com a finalidade de elucidar a teoria de Omar Calabrese.
Nas Considerações Finais teço algumas reflexões e apresento algumas relações entre
as obras de Pedro Américo e Adriana Varejão, semelhanças e distinções. Assim como o
resultado da observação dos elementos formais de Calabrese para a poética de obras-
fragmento.
Acrescento ao final, o que eu abstraí do estudo e as contribuições do mesmo para a
Pesquisa em Artes, de acordo com um percurso histórico que se remete à representação da
figura humana, e de um estudo de duas obras, que por possuírem o mesmo assunto
Tiradentes esquartejado – dialogam histórica e formalmente entre si.
Em 1893, Pedro Américo e em 1998, Adriana Varejão.
Dois percursos pictóricos que se encontram por meio da Figura Humana Fragmentada.
9
Capítulo I
PERCURSO HISTÓRICO
Há por fazer, uma longa história das regiões fronteiriças entre arte e ciência, centrada no corpo,
nos seus fragmentos, no cadáver. O século 19 foi pródigo em imagens artísticas ou científicas –
às vezes, artísticas e científicas a um só tempo. (COLI, 2002, p.10).
1.3 O Fragmento na Teoria de Omar Calabrese.
Para deixar claro o que considero Fragmento nesta pesquisa é fundamental conceituar
pormenor e fragmento conforme a teoria do italiano Omar Calabrese, tendo como suporte o
capítulo IV, Pormenor e Fragmento, do livro A Idade Neobarroca (1988).
Primeiramente devemos considerar a idéia do todo, sistema e conjunto, que pressupõe
a parte, porção, fragmento e o pormenor. Portanto, a primeira consideração: o fragmento e o
pormenor são sinônimos de parte e termos interdefinidos, porém, são conceitos em oposição,
já que se configuram duas ações efetivas concebidas de maneira completamente diferentes.
1
A palavra pormenor, ou detalhe, tem origem no francês renascentista e significa talhar-
se. Esse talhar-se nos remete a uma ação do sujeito sobre ele mesmo. O pormenor pode ser
observado a partir do inteiro e da operação do talho. Um exemplo comum dessa ação é o
zoom da televisão.
Ou ainda como o define Calabrese:
O detalhe em suma, é ‘de-finido’, isto é, tornado perceptível a partir do inteiro
e da operação do talho. o inteiro e a substância da operação permitem, de
facto, a de-finição do detalhe, isto é, o gesto de pôr em relevo motivado pelo
elemento em relação ao todo a que pertence. Por outras palavras: o detalhe é
aproximado por meio de uma precedente aproximação ao seu inteiro; e
percebe-se a forma do detalhe até que esta fique em relação perceptível com o
seu inteiro. (CALABRESE, 1988, p.86).
1
Omar Calabrese afirma ainda: “termos que mantêm relações de reciprocidade, implicação e pressuposição”.
Para Calabrese: “Um não se explica sem o outro”. CALABRESE, 1988, p. 83-104.
10
Na obra Israel (2001) de Alex Flemming [fig.01] os confins da parte do corpo
representado são expandidos para as extremidades do quadro dificultando a visualidade da
parte como um inteiro. A parte permanece inacabada e precisa do exercício de relação com
um corpo inteiro para ser identificada como corpo. Trata-se de uma obra-pormenor.
Figura 01 - Alex Flemming
Israel (2001)
Fotografia e tinta acrílica sobre PVC
154 x 202 cm
Coleção particular - Série Body Building
Já o fragmento, conforme Calabrese elabora sua ação de tornar-se parte de uma
maneira completamente diferente. O fragmento quebra, corta-se, se separa totalmente do
conjunto e ao cindir sua relação com o todo, se torna autônomo.
A etimologia do fragmento deriva do latim frangere que significa quebrar. Essa é sua
diferença basal para com o pormenor. O fragmento não contempla um inteiro anterior a ele
para ser definido. Ele será observado tal como ele é e não como uma ação de um sujeito
anterior. uma ruptura com o sistema que o gerou, enquanto que o pormenor dialoga
constantemente com o conjunto que o gerou.
Como se observa na obra Early Moses (1983) de Jean-Michel Basquiat [fig.02] em
que a parte do corpo representado apresenta visualmente seus confins e é possível identificar
o fragmento de uma perna, contendo o pé, cortada na altura dos joelhos. Bem como outro
fragmento, à direita da tela, de um separado da perna na altura das canelas, do qual se vê o
corte provocado pela ação de talhar-se e que termina por configurar a intenção clara do artista
de representar esta parte do corpo como um inteiro. Configura-se numa obra-fragmento.
11
Figura 02 - Jean-Michel Basquiat
Early Moses (1983)
Acrílico e pastel oleoso sobre tela
198x151cm
Gallery Bruno Bischofberger, Zurique.
Segundo as palavras de Calabrese:
[...] na realidade, a geometria do fragmento é a de uma ruptura em que as
linhas de fronteira devem considerar-se como motivadas por forças (por
exemplo, forças físicas) que produziu o ‘incidente’ que isolou o fragmento do
seu ‘todo’ de pertença. A análise da linha irregular de fronteira permitirá
então não uma obra de ‘re-constituição’, como se disse a propósito do detalhe,
mas de ‘re-construção’, pela via de hipóteses de sistema de pertença.
Pressuposto assim, também ele, como parte de um sistema, o fragmento não é
explicado. Ao contrário do pormenor, o qual, pelo contrário, embora
pressuposto do mesmo modo, explica de uma maneira nova o mesmo sistema.
(CALABRESE, 1988, p.88).
Portanto, para Calabrese (1988) as características mais marcantes do fragmento são: o
ato de quebrar; nele o inteiro está in absentia; os confins do fragmento não são definidos e
sim interrompidos; é o recorte de uma coisa; a geometria de um fragmento é a de uma ruptura;
12
a análise da linha irregular da fronteira permite uma obra de re-construção/ re-constituição do
todo pela via de hipóteses do sistema de pertença; o fragmento não é explicado, ele explica de
um jeito novo o mesmo sistema; o fragmento torna-se ele próprio o sistema de renúncia à
pressuposição da sua pertença a um sistema (CALABRESE, 1988).
Pode acontecer de um fragmento se tornar ele mesmo o próprio sistema: “Isto é,
quando se apresenta uma obra fragmentária de aspecto verdadeiramente inteiro. Neste caso,
falta sua referência, e o ‘fragmento’ nada pressupõe fora dele, remete para a sua pura
fenomenologia.” (CALABRESE, 1988, p.89). É para esse conceito de fragmento que esta
pesquisa pretende dar ênfase, ao buscar caracterizar as obras escolhidas para objetos de estudo
como obras-fragmento.
Por fim, faz se necessário a contextualização destas produções-fragmento e produções-
pormenor dentro da teoria de Omar Calabrese, conforme ele mesmo esclarece: como espíritos
do tempo neobarroco. O autor considera tal poética de produção de fragmentos como
resultado de um gosto atual por partes fragmentos gerada pela perda da totalidade ou
perda da integridade, como característica do neobarroco, que Calabrese conceitua como um
“ar do tempo” (CALABRESE, 1988, p.10).
O Neobarroco não significa um retorno ao Barroco (Século XVII), movimento
artístico historicamente estabelecido, antes ele se configura num gosto; numa maneira de
conceber formas e imagens que se alastra por muitos fenômenos culturais.
Para Calabrese estão associados a este espírito do tempo moderno, teorias como a
teoria das catástrofes, fractais, estruturas dissipativas, caos, complexidade e certas formas de
arte, literatura, filosofia e consumo cultural.
Para tanto, o autor propõe a discussão de temas como Ritmo e repetição; Limite e
excesso; Pormenor e fragmento; Instabilidade e metamorfoses; Desordem e caos; e
labirinto; Complexidade e dissipação, entre outros pares de contradições e oposições comuns
às expressões estéticas modernas e contemporâneas.
Quanto ao uso destes conceitos como estratégia de pesquisa, descrição ou explicação
de fenômenos, Calabrese afirma que ambos podem ser utilizados como instrumentos de
análise que ele próprio define como: instrumento-detalhe ou instrumento-fragmento
2
.
O autor afirma ainda, que esta oposição entre as categorias, detalhe versus fragmento,
permite: “[...] contrapor uma epistemologia do pormenor a uma epistemologia do fragmento
[...]” (CALABRESE, 1988, p.89), assim como realizar um estudo de quatro tipos diferentes
2
Ibid., p.89.
13
de fenômenos de gosto: “[...] uma poética de produção de pormenores; uma poética de
produção de fragmentos; uma poética de recepção de pormenores e uma poética de recepção
de fragmentos [...]” (CALABRESE, 1988, p.97), sendo que para o estudo que proponho neste
momento, me aproximo da poética de produção de fragmentos.
1.4 – A Figura Humana Fragmentada na Pintura.
A representação da figura humana sempre foi determinada por cânones que vinculam
as partes do corpo à sua relação com o conjunto, com o corpo inteiro. Esta representação é
marcada, sobretudo, por dois pólos que nortearam a representação do tema entre os artistas,
conforme Laneyrie-Dagen afirma:
Desde a Antiguidade até o início do século XX, a representação da figura
humana foi a preocupação maior da arte ocidental e sua principal
característica em relação às tradições artísticas judaica ou muçulmana. Mas os
artistas, e depois deles os críticos, hesitaram entre dois partidos dificilmente
conciliáveis: a busca da beleza ideal, isto é, da representação de um corpo
humano perfeito [...], e a de uma verdade da representação, que dê a ilusão da
presença de um personagem real. (LANEYRIE-DAGEN, 2004, p.09).
No entanto, para este estudo não interessa aprofundar a história das proporções, ou
realizar um estudo sobre os cânones de representação. Mas, acompanhar o surgimento do
fragmento do corpo como representação da Figura Humana, bem como a relação dialética
entre a parte e o todo na representação da Figura Humana na História da Arte e da Pintura.
De maneira panorâmica o estudo das obras é apresentado por meio de um percurso
histórico cronológico, procurando demonstrar as diversas manifestações do tema sempre
comparando a figura intacta versus a figura fragmentada, até nas ocasiões em que o fragmento
se torna o tema de produções pictóricas.
14
A fim de tornar-se tão importante quanto às partes do corpo, foi necessário ao
fragmento que os artistas utilizassem-no como todo. A parte com valor de inteiro, realizando
o ato de talhar ou cindir o fragmento, do corpo total e, talhada
3
, a parte se torna autônoma.
Esse procedimento é suficiente para que o fragmento baste numa representação
artística e não necessite da representação da figura humana inteira, com todas as suas partes
constituintes, para representar o tema da figura humana.
Como a relação de proporção entre as várias partes do corpo humano e os elementos
da natureza que o circundam sempre foi a base das representações da figura humana, e o
surgimento do fragmento advém desta relação, opto por apresentar um resumo de quatro
cânones de proporção (ESCOLA DE ARTE, 1998), por meio de um breve relato dos módulos
de medida de cada um deles, como introdução ao percurso histórico da Figura Humana
fragmentada.
O estudo dos cânones é realizado por historiadores da arte interessados na teoria das
proporções, que não é o caso desta pesquisa, mas que segundo Panofsky:
Por teoria das proporções, se devemos começar por uma definição,
entendemos um sistema de estabelecer relações matemáticas entre as diversas
partes de uma criatura, particularmente dos seres humanos na medida em que
esses seres sejam considerados temas de uma representação artística.
(PANOFSKY, 1976, p. 90-91).
Tais cânones determinam as proporções que devem vigorar em um desenho do corpo
de um homem ou mulher e estão vinculados ao tipo de cultura e aos diferentes momentos
históricos, portanto, sofreram variações ao longo dos séculos.
Essas mudanças ocorreram em função de aspectos formais, religiosos e sócio-culturais
e podem se revelar como alterações de expressões estilísticas, que demonstram uma intenção
artística da época ou do artista, o que leva a considerar a história das proporções como história
dos estilos. (PANOFSKY, 1976).
3
Talhada. sf . Porção cortada de certos corpos; fatia, naco. AMORA, 2000, p.706.
15
Sem aprofundar os aspectos históricos e analisá-los em específico, resumi, logo
abaixo, alguns dos cânones utilizados pelos artistas ao longo dos séculos para que se tenha
uma idéia geral sobre como é o sistema de representação tradicional da figura humana.
O Cânone Egípcio [fig.03], estudado pelo egiptólogo alemão Lepsius (1810-1884) e
pelo historiador francês Blanc (1813-1882), refere-se à figura humana na arte do antigo Egito
entre 1000 e 2000 a.C. Neste cânone, segundo Lepsius, a unidade de medida ou módulo é o
comprimento do pé reproduzido seis vezes e um terço no desenho do corpo inteiro. Blanc, por
sua vez, interpretou o cânone afirmando que o módulo usado como medida pelos artistas
correspondia ao comprimento do dedo médio, reproduzido vinte e uma vezes e meia.
Figura 03
Cânone Egípcio
(1000 a 2000 a.C.)
Segundo Panofsky: “A figura humana criada por um artista egípcio devia,
supostamente, estar investida de uma vida real, mas no sentido aristotélico – apenas
‘potencial’; reproduzia a forma e não a função do ser humano, numa ‘replica’ mais
duradoura.” (PANOFSKY, 1976, p.98).
O Cânone de Policleto [fig.04] foi usado na Grécia e remonta ao culo V a.C. Seu
módulo de medida corresponde a sete vezes e meia a altura da cabeça e tinha como meta
16
estabelecer um padrão estético que buscava capturar a beleza do corpo, bem característico do
pensamento clássico. Panofsky descreve o cânone de Policleto como a observação da figura
humana que previa o estudo de:
[...] cada parte separada e o corpo inteiro, isto significava que a teoria clássica
das proporções como utilizada pelos gregos abandonara a idéia de construir o
corpo baseada em um módulo absoluto, [...] tentava estabelecer relações entre
os membros, anatomicamente diferenciados e distintos uns dos outros, e o
corpo inteiro. E conclui: [...] a estética clássica identificava o princípio da
beleza com a harmonia das partes entre si e com o todo. A Grécia clássica,
portanto, opunha ao código de arte inflexível, mecânico, estático e
convencional dos egípcios, um sistema de relações, elástico, flexível,
dinâmico e esteticamente relevante. (PANOFSKY, 1976, p.102 e 105).
Figura 04
Cânone Policleto
(Século V a.C)
Este cânone dinâmico passou pelos estudos do escultor Lisipo e foi retomado e
modificado por Vitruvio (século I a.C.). Segundo Lichtenstein os escritos de Vitruvio como
Da Arquitetura ou Os dez livros da arquitetura (30-26 a.C.) além de relacionar o ser humano
com espaços arquitetônicos: “Ao enunciar as características dessas proporções ideais comuns,
ele define um cânone de beleza que, sem mudança notável, inspirará o desenho dos corpos no
Ocidente desde o Renascimento até o final do século XIX.” (LICHTENSTEIN, 2004, p. 18).
17
A seguir, o Cânone de Leonardo [fig.05] destacou-se a partir do século XVI. Leonardo
da Vinci (1452-1519) seguiu algumas indicações de Vitruvio
4
e aceitou a regra do quadrado,
segundo a qual o homem com braços abertos pode se inscrever dentro de um quadrado e um
círculo, cujo centro é o umbigo. Leonardo, de acordo com Lichtenstein (2004), acrescenta ao
cânone de Vitruvio: “A exigência de uma correção anatômica das figuras [...]”, pois conforme
ele mesmo afirma em seus escritos
5
: “[...] praticou cerca de trinta dissecações ao longo de sua
carreira.” (LICHTENSTEIN, 2004, p.36). Portanto, para representar o tema da figura humana
o artista precisava, agora, conhecer anatomia e não bastava mais apenas conhecer as regras
de proporções e sim, segundo Lichtenstein: “[...] uma ciência aprofundada da estrutura do
esfolado.” (LICHTENSTEIN, 2004, p.36).
Figura 05
Cânone de Leonardo da Vinci
(Século XVI)
Mais conhecido atualmente e comumente usado como cânone moderno, século XVIII-
XIX, o Cânone de Cousin
6
(1792-1867), [fig.06], tem como módulo de medida a altura da
cabeça que deve ser reproduzida oito vezes para se obter a altura total do corpo humano.
4
Sobre o módulo de medida de Vitruvio, ver também LICHTENSTEIN, 2004, p.18-20.
5
[...] para obter verdadeiro e pleno conhecimento, desfiz mais de dez corpos humanos, destruindo todos os
outros membros, removendo as mínimas partículas de carne em torno a essas veias se encontravam, sem sangrá-
las, senão pelo imperceptível sangramento das veias capilares; e como um corpo não durava tanto tempo, era
preciso gradativamente proceder em muitos corpos, para que se completasse o entendimento por inteiro; o que
repeti duas vezes para ver as diferenças. In A Anatomia, Tratado da Pintura, LICHTENSTEIN, 2004, p. 39.
6
Victor Cousin, filósofo, educador e historiador francês. Seu ecletismo e a combinação e o estudo de muitas
filosofias diferentes, fez dele o mais bem conhecido pensador liberal de seu tempo. COBRA, 2001.
18
Do século XVIII para o XIX surge uma nova configuração do olhar humano sobre si
mesmo que altera sensivelmente o sistema de representação da figura humana, conforme aduz
Lichtenstein:
Mas, a partir do século XVIII, a contradição entre a exigência de verdade e o
desejo de beleza se faz sentir de forma mais cruel. [...] novos modelos de
corpos se oferecem aos pintores do início do século XVIII, cansados de imitar
as belas obras antigas. [...] os caracteres essenciais do corpo figurado à
maneira clássica ainda se mantêm pelo menos até a primeira metade do século
XIX. (LICHTENSTEIN, 2004, p.11-12).
Figura 06
Cânone de Cousin
(século XVIII-XIX)
Antes era um sistema representativo pautado na tradição clássica, na inspiração
religiosa e no respeito pelo intacto - pelo corpo belo e coeso. Agora surge uma frieza e
racionalidade técnicas que paulatinamente expõe o corpo e sua fragilidade, suas deformações
e torna a figura humana representada mais próxima do corpo real no sentido de aproximação
com a imagem real e não mais idealizada, como sempre fora pela cultura clássica. Esse foco
sobre si mesmo desloca o olhar do homem do Divino para o seu próprio ser, para o seu corpo
real. Por conseguinte, o corpo é agora colocado em evidência e à disposição da arte e da
ciência conforme afirma Coli: “De imagem divina até o Neoclassicismo o Corpo passa a ser
exposto no século 19 em toda a sua fragilidade e a se constituir numa poética do fragmento
contra as certezas científicas e a tirania da perfeição”. (COLI, 2002, p.05).
19
Tal comportamento é marcado pela emancipação cultural do corpo que durante
séculos foi representado como símbolo da integridade humana, espelho da beleza e da
divindade, mas também caracterizado por uma divisão entre sujeito e objeto, que passa agora
a ser suporte do eu e também de outros. Um corpo que agora é, ao mesmo tempo, encarnação
e representação, carne e imagem da carne. Essa nova relação do homem para com o seu corpo
se estabelece na medida em que, segundo Villaça e Góes:
[...] a instabilidade ou impossibilidade da representação corporal surge como
efeito de fatores como o abandono da concepção divina dos corpos, o
crescimento do materialismo com as teorias do homem-máquina, base de uma
relação mais técnica do que ética com o corpo e a crise do humanismo depois
das grandes guerras. (VILLAÇA E GÓES, 2001, p.132).
Movido pelo ideal do Humanismo, compreendido como a valorização do homem e da
natureza em oposição ao divino e ao sobrenatural que marca o grande movimento cultural em
direção ao indivíduo e à pesquisa do real, o movimento artístico do Renascimento perdurou
entre os séculos XV e XVI, foi muito mais que o simples reviver da antiga cultura greco-
romana. No tocante à representação da figura humana, como se viu com o cânone de
Leonardo da Vinci, o estudo da anatomia ganha espaço junto com o apreço pelas regras de
proporção.
Este caráter científico imprimido ao estudo da Figura Humana e fortalecido pelos
ideais renascentistas é conseqüência, pelo menos no âmbito das artes, das orientações
naturalistas do final da idade Média, que segundo Lichtenstein:
[...] leva até mesmo os pintores que defendem um belo ideal a refletir sobre os
meios de dar carne e movimento as suas figuras. De fato, o século XV inventa
o corpo. Ele investiga sua anatomia (Leonardo), explora as condições de sua
estabilidade e as modalidades de sua locomoção (Alberti), e, em nome das
necessidades da istoria, busca os meios de fazer ver, pelos gestos e a
expressão, as paixões dos diferentes personagens, que a literatura teria
exprimido por palavras. (LICHTENSTEIN, 2004, p.10).
Na obra A Lição de Anatomia do Doutor Tulp (1632), [fig.07] Rembrandt (1606-1669)
utiliza recursos pictóricos como a gradação de meios tons e penumbras, para envolver os
20
personagens da cena. Uma intensa luz no corpo do cadáver que está sendo dissecado cria um
clima de descoberta e curiosidade pelo tema e estabelece uma relação significativa para com a
pintura de figura humana da época. O corpo permanece intacto, não sinal de sangue ou
vísceras à mostra, nem tampouco as partes foram representadas em destaque.
Entretanto, um dos braços que está sem pele e tem seu músculo à vista mostra um
corpo sem vida e demonstra uma alteração na maneira de se relacionar com a representação
do mesmo, idealizado, divinizado.
Figura 07 - Rembrandt
A Lição de Anatomia do Dr. Tulp (1632)
Óleo sobre tela
1,62 x 2,16 m
Museu Mauritshuis, Amsterdam, Holanda.
Para Silva a obra A Lição de Anatomia do Dr. Tulp de Rembrandt é:
Um exemplo clássico do início de um novo período no que se refere à
concepção de corpo e que é impensável em épocas anteriores, porém o
desenvolvimento da ciência tradicional traz uma valorização do conhecimento
inexistente até então. (SILVA, 2001, p.17).
No Neoclassicismo, a partir de 1780, o projeto de beleza que é proposto como
instrumento de conhecimento universal e visava abranger todos os ramos do saber humano,
21
buscou melhorar o mundo através do retorno à razão e de um agudo senso de moralidade.
Ainda segundo Silva: “Essa forma de racionalização, que apresenta suas raízes nas
perspectivas de Descartes e Newton, se estende a vários setores da sociedade, inclusive à
Arte.” (SILVA, 2001, p.18).
Esse retorno à razão imprimiu um caráter formal à pintura neoclássica, em que os
modelos greco-romanos teriam de ser retomados, conforme relata Argan:
Tema comum a toda a arte neoclássica é a crítica, que logo se torna
condenação, da arte imediatamente anterior, o Barroco e o Rococó. Adotando
a arte greco-romana como modelo de equilíbrio, proporção, clareza, condena-
se os excessos de uma arte que tinha sua sede na imaginação e aspirava
despertá-la nos outros. (ARGAN, 1992, p.21).
A representação do corpo humano ainda significava o centro e o apogeu da Arte
Neoclássica e o respeito pelo entendimento das formas humanas era tanto que o aprendizado
neoclássico previa primeiro a pintura dos modelos nus, para depois representá-los vestidos.
Para Coli essa postura: “[...] coincide com o respeito religioso pela intacta coesão
[...]”, e será marcada “[...] Agora, pela visão científica, as partes, organizadas e em função,
produzem o todo” (COLI, 2002, p.5).
Neste contexto cito Jean Auguste Dominique Ingres (1780-1867). Importante e
polêmico mestre do cenário artístico neoclássico que interpretava a figura humana por meio
do desenho de suas partes, as quais depois eram combinadas para a representação do corpo.
Ingres representou a figura humana intacta, mas, a ênfase que ele deu às partes
ultrapassou as normas de representação do conjunto e resultou em obras como A Grande
Odalisca (1814) e A Banhista de Valpinçon (1808), cuja característica formal da figura
humana é a de um corpo intacto, porém, desproporcional em suas partes. O artista viveu
durante muitos anos em Roma onde foi diretor da Academia Francesa em Florença entre os
anos de 1820 e 1824, e depois em Villa Médici, entre 1835 e 1841.
Como não era adepto da tendência neoclássica revolucionária de Jacques-Louis David
(1748-1825), seu professor, nem tampouco da linha moderada liderada por Antônio de
Cânova (1757-1822), ilustres representantes do Neoclassicismo, Ingres por vezes não é
considerado um artista neoclássico.
De acordo com Argan para Ingres:
22
[...] o objeto, tanto o clássico, quanto o romântico, não o interessava;
concebia a arte como pura forma. [...] a obra de arte não tem funções
cognitivas ou morais, não serve ao Estado nem à Igreja, à revolução, nem à
reação. Traz em si sua própria razão intelectual e sua moral. [...] é a arte que
faz a estética, porque revela o significado que a forma tem enquanto forma, e
não como explicação de um conteúdo. (ARGAN, 1992, p.50).
O comportamento de Ingres diante da representação da figura humana reflete a sua
postura diante da Arte que prestigiava a forma em detrimento ao conteúdo, por isso ele se
preocupava mais com a forma das partes do corpo do que com o conjunto final. Com isso,
Ingres estabeleceu uma forte relação com o pensamento científico da época, que contaminou a
Arte e vinculou o estudo das partes do corpo para depois representá-lo inteiro.
Como esclarece Coli: “Conseguir a suprema perfeição num elemento, depois, montá-la
no todo, sem que esse todo possa se reclamar da autonomia e da perspectiva, eis a
conseqüência.” (COLI, 2002, p.6).
Essa preocupação com a forma perfeita da figura humana na obra de Ingres pode ser
observada na obra A Banhista de Valpinçon (1808), [fig.08]. O quadro tem o tema de uma
figura feminina de costas. Seu rosto levemente inclinado para baixo está parcialmente de
perfil, cuja posição é denominada de meio perfil ou truncada e possibilita que se observe
parcialmente sua expressão. Os cabelos presos por um lenço ou turbante vermelho e branco
deixam nu o pescoço e as costas da banhista e permite a observação das suas formas curvas e
suaves.
O desenho é preciso, a forma dos ombros assim como a silhueta da cintura e das coxas
é bem acentuada. As linhas das dobras dos tecidos e o tratamento dado ao panejamento, firme
e bem demarcado, contrastam com a suavidade do corpo arredondado. O pescoço e os ombros
são ondulados, mais abaixo a linha da cintura e dos quadris é uma coisa só, contínua.
A respeito das formas da figura feminina de Ingres aduz Argan:
Tente-se isolar os contornos: as pernas parecem magras demais, o tronco
excessivamente dilatado, a figura desproporcional. Os críticos acadêmicos
nunca perdoarão seu pintor predileto por ter outorgado à sua Odalisca (1814)
uma vértebra a mais: não compreendiam o erro anatômico era um prazer
erótico, quase uma longa e delicada carícia sobre aquele belo corpo, do
mesmo modo, que na Banhista, as costas demasiado largas prolongam o
prazer da luz [...]. (ARGAN, 1992, p.52).
23
Figura 08 - Dominique Ingres
A Banhista de Valpinçon (1808)
Óleo sobre Tela
1,46 x 0,97 m.
Musée du Louvre, Paris.
As pernas não combinam com a posição das costas da mulher, uma é muito mais fina
que a outra e não se encaixam nas regras de perspectiva. Ao observar atentamente se tem a
sensação de que algo está estranho. Este estranho é resultado do tratamento dado às partes do
corpo em detrimento à composição do todo. Outro resultado é a sensação que se tem ao olhar
o corpo todo que parece sem ossos, sem uma estrutura anatômica.
É um corpo representado intacto e inteiro, porém, deformado pelo ideal de beleza
neoclássico e gerado pela busca da forma ideal. Ingres será o primeiro artista a expressar o
problema da arte como um problema de visão, mostrando que o tratamento dado à forma na
expressão artística representa um modo de experimentar e ver a realidade, peculiar do artista.
A par disso, a revolução iluminista marcada pela postura científica e metódica,
vinculou a desmontagem do corpo em partes à compreensão do todo. Para Argan tal
procedimento pode ser considerado como uma característica da cultura iluminista que passou
a encarar a natureza da seguinte forma:
24
A natureza o é mais a ordem revelada e imutável da criação, mas o
ambiente da existência humana; não é mais o modelo universal, mas um
estímulo a cada um que reage de modo diferente; não é mais a fonte de todo o
saber, mas o objeto da pesquisa cognitiva. (ARGAN, 1992, p.12).
No final do século XVIII enquanto o Neoclassicismo e o Romantismo estabeleciam o
estudo das partes do corpo humano, com a finalidade de representar melhor o conjunto
perfeito, era construída a guilhotina. Um instrumento de punição social que além de garantir a
qualquer tipo de criminoso o mesmo tipo de morte, já que antes os plebeus eram enforcados e
os aristocratas decapitados, colocou o cadáver humano em evidência.
A despeito da guilhotina aduz Coli:
A guilhotina multiplicaria as punições por crimes políticos ou ideológicos. As
cabeças míticas da Medusa, cortada por Perseu, ou de São João Batista, obtida
por Salomé numa bandeja de prata, cedem lugar agora a um contato presente,
cotidiano, dessas cabeças verdadeiras, sem corpo, que o imaginário
encarregava-se de multiplicar. (COLI, 2002, p.08)
No mesmo período ocorrem as guerras modernas do período napoleônico, quando
milhares de pessoas são mortas e aleijadas e as características da representação da figura
humana vão sendo alteradas com as transformações de cada época. Ainda segundo Coli, estes
conflitos teriam exercido uma influência mais determinante na representação da figura
humana: “Essas guerras provocaram o aperfeiçoamento das técnicas cirúrgicas, voltadas para
amputação e reparação de ferimentos”. (COLI, 2002, p.08).
Coli conclui a propósito da guilhotina e das guerras modernas: “Esses são alguns dos
motivos que levaram o cadáver, a putrefação, a entrar como elemento constituinte das novas
sensibilidades que se difundiram durante o século 19”. (COLI, 2002, p. 08).
Com o Realismo, que surge na Europa em meados do século XIX, tais características
são modificadas pela dramaticidade e sensibilidade dos temas, revelando aspectos que
contrapõem a forma e o conteúdo. Como a beleza dos corpos humanos em oposição à dor e ao
sofrimento que a condição humana é capaz de proporcionar aos seres humanos. Um realismo
que de maneira alguma é uma imitação da natureza e sim uma recusa moral da concepção
clássico–cristã da arte como catarse, como afirma Argan a despeito das características da
25
pintura do francês Théodore Géricault (1791-1824): “O realismo, para Géricault, é justamente
a derrota do ideal, a inutilidade e a negatividade da história, a hostilidade entre homem e
natureza, a ameaça da morte nas ações da vida.” (ARGAN, 1992, p. 53).
Por isso, Géricault busca captar num mesmo corpo a grandeza e a decadência, o belo e
o feio, a nobreza e a depravação, a vida em sua contrariedade e precariedade que são os
primeiros pressupostos do Realismo do século XIX. Reafirmados pela postura de Géricault,
conforme aduz Michel: “Géricault é um artista marginal, que permanece alheio ao sistema
acadêmico. Sem dúvida vem daí seu desdém manifesto pela norma social pelos interditos
burgueses”. (MICHEL, 1998, p. 126). Estudos realizados por Géricault para a tela A Balsa da
Medusa (1819) apresentam pedaços de pernas e braços humanos. Trata-se da série intitulada
Fragmentos Anatômicos (1818), [fig.09], que Coli define como:
[...] estudos que adquirem feitura e aspecto de obras definitivas, mas que
apresentam o tema singular de pedaços de pernas ou braços. Não são,
porém, fragmentos de uma anatomia a ser reconstruída em sua inteireza: são
fragmentos de corpos, são fragmentos de cadáveres, que o pintor decidiu
não identificar, não sugerir unidade nenhuma. Não são estudos de partes de
uma imagem; são figurações de partes mortas, a espera de putrefação.
(COLI, 2002, p. 8).
Figura 09 - Théodore Géricault
Série Fragmentos Anatômicos –
Estudos de membros truncados (1818-9).
Óleo sobre Tela
0,50 x 0,60 m
Musée Fabre, Montoellier.
26
Tais imagens apontam para a relação dialética entre a representação das partes e do
todo da figura humana, da morte e da vida. Géricault não relaciona as partes do corpo por ele
representadas com alguma identidade ou unidade para com o todo, porque o que lhe interessa
são os fragmentos, as pernas, os pés, o braço ou uma mão e não o corpo todo, intacto.
Esta série foi feita a partir da observação real dos cadáveres do naufrágio de uma
fragata francesa na costa africana em 1816
7
.
Sensibilizado com o fato, Géricault realizou diferentes procedimentos para obter
informações sobre a tragédia e assim poder pintar sua tela histórica, A Balsa da Medusa
8
(1819).
Entre outros procedimentos, o artista fez entrevistas com os sobreviventes do
naufrágio que relataram os horrores vividos por eles em alto mar e teve acesso ao depósito em
que ficaram os despojos e os corpos das vítimas trazidos para a França, em terra firme, após o
episódio. Não satisfeito, Géricault fez vários estudos de rostos de pacientes de um manicômio
para interpretar o horror de seres atormentados e ainda construiu, em seu atelier, uma réplica
da fragata para reconstruir a cena e dar mais realismo à representação do fato.
O quadro A Balsa da Medusa [fig.10] é composto de 19 personagens, homens. Os
corpos representados não estão em pedaços, mas a maneira como o artista retratou cada um
deles demonstra a sua intenção de representar a dificuldade e a fragilidade dos corpos
humanos diante da forte tormenta que sucumbiu a fragata.
Um corpo aparece preso à embarcação e tem à mostra apenas seu tórax, à esquerda.
Outro homem, nu, está retorcido e permanece no barco porque o companheiro o segura pela
cintura. Outros estão mortos e caem sobre as pernas dos sobreviventes e o corpo mais
exposto, à direita da cena, tem o rosto coberto e as pernas presas a uma madeira que aparenta
uma posição incomoda, causando desconforto ao serem observadas.
7
Segundo Argan: “A obra mais famosa de Géricault é A Jangada da medusa, iniciada em 1818, dois anos após a
trágica ocorrência do motim [...].” ARGAN, 1992, p.53.
8
Sobre Théodore Géricault e a obra A Balsa da Medusa, ver também JANSON, 2001, p.862-864.
27
Figura 10 - Théodore Géricault
A Balsa da Medusa (1819)
Óleo sobre tela
4,91 x 7,16 m
Musée du Louvre, Paris.
O céu está escuro, repleto de nuvens e o mar revolto e agitado dão dramaticidade e
realismo à cena. Apenas uma vela está içada e as demais caídas sobre a embarcação no lado
esquerdo da tela, servem como escudo para alguns sobreviventes. Os dezenove corpos
formam uma composição triangular, simétrica, dividida por uma diagonal que corta a
composição de cima a baixo, da direita para a esquerda, configurando a organização
composicional. O mastro e as cordas que sustentam a embarcação e o outro triângulo, com a
ponta voltada para baixo e à direita, delimitam a composição junto com o corpo de um
náufrago, morto, preso aos escombros do barco.
Tal composição pode ser interpretada como a intenção de Géricault de representar a
instabilidade da situação, bem como a dualidade entre a vida e a morte. Esta instabilidade
pode ser simbolizada pela vela e pelo mastro da fragata, que ainda em pé representam a única
chance de salvamento dos sobreviventes em detrimento ao outro extremo da composição,
marcado pela presença sica e real do corpo morto, abandonado, simbolizando a presença da
morte. O restante dos personagens são corpos desesperados que se agarram tentando o
salvamento de algo que parece já estabelecido: a morte.
Nas palavras de Reynolds, a obra A Balsa da Medusa, é:
28
[...] una barroca composición piramidal de cuerpos muertos y agonizantes
culmina en la figura de um supervivente negro (que recuerda al negro de la
pintura de Copley) pedindo frenéticamente ayada; el dramático claroscuro
subraya los extremos de desesperación y esperanza. (REYNOLDS, 1985, p.
20).
Segundo relatos históricos o naufrágio foi causado pela incompetência do capitão e
como havia poucos botes salva-vidas morreram muitas pessoas. A tragédia com o barco do
governo francês, repleto de passageiros colonos, foi interpretada pela opinião pública como
um descaso do governo daquele país pela segurança e bem-estar de seus súditos. Os
sobreviventes, quase 150 colonos, permaneceram a deriva por 12 dias em alto mar e sobre os
escombros do barco. Amontoados morreram quase todos, restando apenas 15 sobreviventes.
Argan em sua análise sobre a pintura cita o historiador da revolução, Michelet, que
teria visto esta tela de Géricault como uma alegoria: “[...] da França à deriva depois da queda
de Napoleão: ‘nessa jangada embarcou a França inteira, toda a nossa sociedade’”. (ARGAN,
1992, p. 53).
A respeito do caráter histórico de A Balsa da Medusa (1819) Argan afirma: “É,
portanto, um quadro de história contemporânea, construído sobre um fato de crônica que
abalara profundamente a opinião pública; o pintor se faz intérprete do sentimento popular”
(ARGAN, 1992, p. 53).
Nesta obra, Théodore Géricault se coloca no papel de intérprete da opinião pública e
porta voz da dor daqueles corpos. Heroísmo e glória versus desespero e morte estampados na
catástrofe, como assinala Michel: “[...] universo de drama e do luto, em que se compraz a arte
deletéria de Géricault, cuja pintura é uma variação permanente sobre o motivo patético do
homem ferido” (MICHEL, 1998, p. 127).
As figuras humanas são retratadas dentro da tradição clássica da pintura histórica, mas
a situação que as envolve é a de um plano instável, da morte e do desespero. É o contraste
entre a beleza dos corpos, embora destroçados e desfigurados pelo acidente, versus o realismo
do acontecimento. Exemplifica o estudo das partes e um precoce interesse pelo fragmento, a
fim de reconstruir o conjunto do corpo intacto, porém, frágil e composto de partes. A eterna
relação entre o todo e a parte, entre a vida e a morte.
No Brasil oitocentista a cidade mais importante da América Latina era o Rio de
Janeiro caracterizado por uma cidade opulenta, cuja atividade agrícola cafeicultora era à base
de sua riqueza. A situação econômica e política do Império eram estáveis, o que levou o país a
29
se desenvolver artística e politicamente. Tal desenvolvimento se deve, sobretudo, ao incentivo
pessoal do imperador Pedro II, potente defensor das artes, das letras e das ciências. Essa
defesa teve a clara intenção de usar a Arte para fins políticos como atesta Migliaccio:
O século XIX foi uma época de transformações. O Brasil passa de colônia a
Império e a arte é promovida pelo estado com finalidades políticas. A cultura
figurativa colonial, largamente dominada pela produção religiosa, é
substituída. È preciso construir a imagem do novo estado, herdeiro do reino
católico e da vocação oceânica de Portugal, destinado a ser grande potência, e
a tarefa é confiada aos integrantes da Missão Artística Francesa. Para isso,
eles introduzem as instituições características das sociedades contemporâneas:
o ensino acadêmico, as exposições e as primeiras formas de crítica.
(MIGLIACCIO, 2000, p. 38).
A ajuda do Imperador era na forma de bolsas de estudo da Academia Imperial de
Belas Artes e nos prêmios de viagens das Exposições Gerais de Belas Artes. Foram muito
poucos artistas que conseguiram ir para Paris e conhecer outros grandes centros culturais do
século XIX.
Em Paris e na Europa o contato deste seleto grupo de artistas brasileiros com os
artistas neoclássicos e com o naturalismo em voga na época ocorreu de fato. O encontro com
obras de cenas históricas e trágicas, como A Balsa da Medusa (1819) de Théodore Géricault,
foi um dos motivos que contribuiu para que os artistas brasileiros produzissem obras
relacionadas com motivos sociais marcantes e fatos históricos nacionais. Como as obras A
Batalha do Avaí (1879) de Pedro Américo e A Batalha de Guararapes (1879), de Vitor
Meireles, que retratam a guerra contra o Paraguai, entre 1864 e 1870. Os resultados da guerra,
como a morte de milhares de pessoas e um imenso desgaste econômico, serviram de tema
para as criações dos brasileiros, consoante com o relato de Kelly: “[...] gerados e sustentados
pelo café, os grandiloqüentes pintores do Império cultuam o trono e a pátria, segundo os
cânones do academismo.” (KELLY, 1979, p. 543).
Em resumo, foi neste contexto que Vitor Meireles (1832-1903) e Pedro Américo
(1843-1905) se tornaram os maiores expoentes da pintura acadêmica brasileira. Ambos foram
para a Europa com ajuda do Império e tomaram contato com a obra dos pintores Eugène
Delacroix (1799-1863) e Géricault, conforme constatei nos comentários dos historiadores a
seguir. Sobre a relação de Vitor Meireles com a obra de Géricault, Guedes acentua:
30
Ao debruçar-se sobre os estudos de A Balsa da Medusa, Meireles teve a
oportunidade de vivenciar, por meio de sua apreensão, um significado
inerente à própria forma plástica em suas relações internas, possibilitando-lhe
a descoberta intuitiva de seus princípios organizadores. Nesse sentido,
aprofunda tal relação perceptiva ao executar uma cópia do original em
dimensões pormenorizadas (35,5 x 51,5 cm), no ano de 1857. (GUEDES,
2004, p. 25).
Os autores Oliveira e Mattos constatam a influência desta obra ao relatar as fontes
usadas por Pedro Américo para produzir seu primeiro quadro de batalha A Batalha de Campo
Grande (1871), [fig.11]:
Quando Pedro Américo concebeu seu primeiro quadro de batalha em 1871,
ele lançou mão, em larga medida, das lições que aprendera com sua cópia de
A Balsa da Medusa de Théodore Géricault. Assim, à maneira do artista
romântico, ele adotou no quadro uma estrutura piramidal que permitisse
intensificar o sentimento de tensão envolvido no episódio representado.
(OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 104).
Ainda sobre a relação disposta acima, Oliveira e Mattos esclarecem que dentro da
tradição da pintura histórica a composição piramidal possui longa trajetória e que nesse
sentido: “[...] o grupo de três cavaleiros ao centro do quadro de Pedro Américo deriva da
disposição dos três homens que formam o topo da pirâmide no quadro de Géricault.”
(OLIVEIRA; MATTOS, 1999, p. 104).
Considerando essas contaminações, cabe observar algumas características formais no
tratamento do tema da figura humana nas obras de pintura de Pedro Américo. Mesmo em
decorrência da temática de batalha em suas obras o corpo é representado inteiro e a relação
com as partes constituintes, como braços, pernas e troncos é estabelecida dentro dos padrões
acadêmicos de representação da figura. Assim como a dualidade da condição humana,
representada pelo corpo intacto, viril, repleto de vitalidade em detrimento ao corpo ferido,
fragmentado, frágil diante da morte.
Antes, porém, vale destacar a conclusão de Coelho sobre um dos significados da
representação do corpo para a Pintura, que vem ao encontro da intenção destes artistas em
retratar a dualidade da condição física humana:
31
A imagem do rosto fornece, de certo modo, o perfil psicológico do retratado,
seu caráter, supostamente suas idéias. A noção de que os olhos são as janelas
da alma e que mostrando os olhos se permite uma visão interior do retratado.
A visão do corpo, porém, vai muito mais longe, é mais abrangente. A imagem
do corpo é a imagem da vida em sua totalidade. Em sua vitalidade. Em sua
sedução. (COELHO, 2000, p. 46).
Trata-se do combate entre a vida e a morte, que toma forma na representação do tema
da figura humana e na relação dialética entre representá-la intacta ou por fragmentos. Como
se observa nas obras de pintura de nus femininos, cenas históricas, mitológicas, bíblicas e ou
de batalhas como as de Pedro Américo.
A figura humana é retratada de forma clássica e intacta como na obra A Batalha de
Avaí (1879), [fig.11].
Figura 11 - Pedro Américo
A Batalha de Avaí (1877)
Óleo sobre tela
6,0 x 11,0 m
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.
32
Entretanto, o realismo da cena impõe aos corpos posições desconfortáveis, desumanas.
A pintura retrata um emaranhado de corpos viris em batalha, lutando. Outros caídos, atingidos
por golpes violentos no confronto com os adversários, têm seus corpos expostos, sangrando.
É a representação da vida na forma de corpos em pé, se defendendo, ao mesmo tempo
em que presenciam a morte, real, crua, fria, apresentada por cadáveres no chão, pisoteados.
Corpos fortes e frágeis juntos na mesma cena, como na Balsa de Medusa de Géricault.
Como de se verificar numa análise sobre a Batalha de Avaí feita por Gonzaga -
Duque, um dos principais críticos de arte brasileiros da época, da qual transcrevo um trecho:
Na ‘Batalha de Avaí’ [...] é a guerra com toda sua hediondez, com todos os
seus crimes, com todas as explosões da sua barbaridade. O soldado em luta é
uma fera que conquista faminta, a posse da preia. Não conhece complacência.
Ataca enraivecido porque é atacado sem generosidade, mata para não ser
morto [...]. Cada homem que cai, desperta o camarada da fileira a raiva que
vai crescendo rapidamente. Uma bala, que arranca a pala de um boné, faz
tremer o estilhaço de uma bomba, que leva a pele de um braço, faz gritar, e de
medo e da dor nasce a alucinação da vingança [...] quanto mais se mata, mais
se deseja matar. O cheiro de pólvora, a poeira, o sangue, os gritos [...]. De um
lado homens caindo, contorcendo-se desesperadamente na agonia de uma
morte sem consolações e sem paz, tendo os intestinos à mão, que convulsa, os
aperta [...]. Os cavaleiros caem com os cavalos [...] mordendo os cadáveres
que juncam o chão, mordendo os seus próprios membros, até que a pata de
um cavalo lhes fenda o crânio [...]. (GONZAGA - DUQUE, 1888, p. 149-
151).
Não obstante, esse modelo entra em crise e abre caminho para o Realismo Burguês
9
no
Brasil, pelos seguintes motivos conforme Migliaccio:
A guerra do Paraguai, as grandes exposições universais, o surgimento de um
público de amadores da arte nas capitais, aliados ao fortalecimento da
oposição, causam uma crescente intolerância a arte oficial da Academia
Imperial. (MIGLIACCIO, 2000, p. 40)
9
Sobre o Realismo e seus diferentes estilos, ver MALPAS (2000).
33
Na Europa o movimento artístico que revolucionou profundamente a pintura, o
Impressionismo (1874), deu início às grandes tendências da arte do século XX e propôs, entre
outros, alguns pressupostos de ruptura para com a arte clássica, como ressalta Argan:
Para além da ruptura com as poéticas opostas e complementares do ‘clássico’
e do ‘romântico’, o problema que se colocava era o de enfrentar a realidade
sem o suporte de ambos; libertar a sensação visual de qualquer experiência ou
noção adquirida e de qualquer postura previamente ordenada que pudesse
prejudicar sua imediaticidade, e a operação pictórica de qualquer regra ou
costume técnico [...]. (ARGAN, 1992, p. 75).
Em termos gerais os artistas impressionistas por meio da observação do efeito da luz
sobre os objetos, procuraram retratar em suas pinturas as constantes alterações que a luz
provoca na natureza dando maior ênfase à cor do que ao desenho. Porém, quanto à figura
humana e o tratamento estético dado às suas partes afirma Lichtenstein:
Ao longo do século XIX, morre assim todo um sistema. [...] No final do
século XIX e nos primeiros anos do século XX, os pintores e os escultores
reinventam assim um ‘novo’ corpo que nada mais tem a ver com o cânone
artístico tradicional, isto é, que não tende nem a dar a ilusão do natural, nem a
refletir uma pretensa beleza ideal. O estatuto desse corpo muda
consideravelmente a partir de então. (LICHTEINSTEIN, 2004, p. 12-13).
Nesse norte, Edgar Degas (1834-1917) merece destaque, não por sua preocupação
em apreender o momento do movimento e da expressão do corpo, como nas telas Aula de
Balé (1874) e O Ensaio (1877), mas por buscar uma nova forma de representar a figura
humana livre dos conflitos clássicos, segundo o depoimento de Lichtenstein:
Cézanne ou Degas buscam também, cada um à sua maneira, escapar à
alternativa realista ou acadêmica, através de uma nova definição dos volumes
ou desestabilizando, cortando – até chegarem a um corpo dividido em dois ou
estirado no esforço da dança. (LICHTENSTEIN, 2004, p. 12-13).
Certamente, uma das contribuições mais significativas de Degas para a pintura
moderna é a angulação oblíqua, o enquadramento das cenas e a ambientação da figura
34
humana no tempo e no espaço pictóricos por meio da observação imediata da cena, que
mostram a influência do desenho de Ingres e da técnica da fotografia sobre sua obra.
Entretanto, Degas sabia muito bem que, segundo aduz Argan: “[...] a fotografia apresenta um
instante, e a pintura uma síntese do movimento; por isso a pintura não pode ser substituída
pela fotografia.” (ARGAN, 1992, p. 106).
Degas penetra no espaço moderno pelo viés da forma, da pele e do desenho dos
músculos de seus modelos, diferentemente dos seus contemporâneos, que promovem o estudo
das cores. O tema da figura humana em sua obra é marcado pela presença da figura feminina.
Mulheres passando roupa, penteando os cabelos, lavando os pés e as que ficaram mais
conhecidas nas artes plásticas: as bailarinas. Como as obras, Aula de Ba(1874), Bailarina
vista por trás (1876), Bailarina com leque (1879), Bailarinas no palco (1880) e Três
Bailarinas na Sala de Dança (1880), [fig.12], variações sobre o mesmo tema. Aliás, um
comportamento tipicamente impressionista que interpretava a mesma paisagem, por exemplo,
em diferentes momentos do dia.
Figura 12 - Edgar Degas
Três Bailarinas na sala de dança (1880)
Óleo sobre tela
0,50 x 0,60 m
Quensland Art Musée d’Orsay, Paris
Para a história da figura humana Degas representa um quase realismo que apresenta o
corpo intacto, mas, dialoga com a fotografia ao mesmo tempo em que destorce os cânones da
representação, porque introduz a figura do corpo humano na atmosfera impressionista.
35
Atmosfera esta que fragmenta as cores e desmonta a forma por meio da representação da
efemeridade do tempo. Degas é moderno porque é contraditório. Fragmenta a imagem dos
corpos quando se apropria dos enquadramentos e dos cortes fotográficos. Altera a figura com
a representação rápida e ágil dos movimentos, traços e pinceladas como nas corridas de
cavalos. Mas, permanece fiel à figura quando prestigia a linha e faz sutis anotações de
mobilidade nos rostos e nas expressões faciais, como nas bailarinas.
Em comentário a esta atitude de Degas frente à figura humana, Argan afirma que: “O
desenho de Degas é um gesto rápido, preênsil, resolutivo, que arrebata algo do real e dele se
apropria. Não é contemplação: o que se chama de sensação visual é o produto ágil mecanismo
de captação e possui estrutura própria [...].” (ARGAN, 1992, p. 106).
A estrutura anatômica da figura humana em Degas é construída sob as bases do
desenho clássico com proporção e respeito pelo corpo. Porém não importa mais se este
corpo será representado intacto ou não, o que importa é o movimento que ele realiza no tempo
e no espaço onde se encontra. Tal comportamento pode ser explicado pelo fascínio que Degas
detinha por Ingres e pelas obras de Paolo Ucello (1397-1475), Sandro Botticelli (1445-1510),
Leonardo da Vinci (1452-1519) e Rafael Sanzio (1483-1520) conforme alguns relatos de
textos biográficos
10
.
Por volta de 1830, a invenção da Fotografia revela, por meio dos planos de
composições e percepção mais detalhada de imagens, coisas que o olhar humano, mais lento e
menos preciso, não conseguia captar. Surgem as discussões entre a pintura e a fotografia,
deflagrada pelo comentário de Argan sobre o contexto:
A hipótese de que a fotografia reproduz a realidade como ela é e a pintura a
reproduz como a se é insustentável: a objetiva fotográfica reproduz, pelo
menos na primeira fase de seu desenvolvimento técnico, o funcionamento do
olho humano. (ARGAN, 1992, p. 79).
O amplo registro dos movimentos, a disposição e a iluminação dos objetos, bem como
os enquadramentos e os novos enfoques trazidos pela fotografia possibilitaram ao pintor mais
dinamismo e riqueza de detalhes. A desconstrução dos contornos dos objetos, ante a
deformação que a foto causa ao captar a velocidade do movimento de um objeto, é um dos
elementos que certamente contribui para acentuar a fragmentação da figura humana.
10
Em seus relatos pessoais Degas se recorda de um encontro com Ingres e de suas palavras: “[...] nunca desenhe
a partir da natureza meu jovem. Desenhe sempre de memória e, segundo o trabalho dos grandes mestres”.
GONCOURT, 1997, p. 03.
36
Segundo Rosa Olivares
11
o olhar humano é o instrumento que mais fragmenta as
imagens que são produzidas ao redor do próprio ser humano e afirma ainda que:
[...] a arte se faz basicamente com o olhar; por isso a história da arte, a história
das imagens, sagradas ou artísticas, é repleta de fragmentos de corpos.
Somente a câmera fotográfica e posteriormente a imagem cinematográfica
conseguiram igualar-se ao olho [...]. (OLIVARES, 1998, p. 508).
Em contrapartida até o começo do século XX a tendência que dominou na pintura
francesa e depois em todo o mundo ocidental foi o Realismo Burguês, cujas características, no
Brasil, Leite destaca: “[...] o Realismo Burguês, como um todo, revelou-se formalmente
vazio, com seu apelo barato ao sentimental e ao erótico, não raro caindo na mera anedota.”
(LEITE, 1982, p. 189).
Neste contexto, cito a presença de um artista brasileiro cuja linguagem plástica rica e
nobre relaciona-se com essa tendência. Sua produção pictórica é marcada por pinturas de
pinceladas sensuais, delicadas e realistas. Refiro-me a José Ferraz de Almeida Jr. (1850-
1899), artista eclético que abordou desde temas históricos, religiosos, retratos e paisagens até
figura humana, como o Nu, Descanso do Modelo (1882), [fig.13].
O quadro Descanso do Modelo tem como tema a figura humana feminina de uma
modelo que posa para o artista. Retrata um ambiente interno, aos moldes de Degas, composto
de uma sala decorada por tapetes, objetos de artes como vasos e cerâmicas.
No centro da composição, sentada de costas e na frente de um piano, se encontra a
imagem da modelo. Ela tem os ombros e as costas nuas, não vemos suas pernas e um tecido
estampado atado às cinturas esconde suas ancas deixando à mostra apenas às curvas e as
linhas sinuosas dos quadris e das cinturas. Está de perfil, o rosto levemente levantado, cabelos
presos e olha em direção à figura masculina à sua esquerda.
11
Neste texto, traduzido do espanhol por Sandra Cowie, para o Catálogo da XXIV Bienal de São Paulo – Núcleo
Histórico: Antropologia e Histórias de Canibalismos, OLIVARES (1998) trata a fragmentação como uma forma
do homem-artista se relacionar com seu próprio corpo e relata diferentes processos de fragmentação em obras de
artes visuais.
37
Figura. 13 - José Ferraz de Almeida Jr.
Descanso do Modelo (1882)
Óleo sobre tela
0,37 x 0,46 m
Coleção Agnaldo de Oliveira, São Paulo.
Sentado à frente de um cavalete e de uma tela está um homem vestido de terno preto,
chapéu, possui barba, tem um cigarro na boca, bochechas vermelhas e um leve sorriso maroto
que fixa o olhar em direção à figura feminina. São as únicas figuras humanas na pintura.
Porém são contrastantes e representam os papéis do feminino e do masculino, da virilidade e
da sensualidade, da vida e das relações sociais que a representação do tema da figura humana
pode abarcar. A figura humana masculina contrasta com a figura do corpo feminino pelo
tratamento de cor, vestimentas, entre outros elementos estéticos. O homem está vestido, roupa
escura, frio, colocado à esquerda, virado de frente para o público e mais abaixo do eixo
central da composição. Em contrapartida a mulher está nua, sua pele é clara e rosa, cor de
pêssego suave, tons quentes, ela está de costas e ocupa o eixo central da composição.
Os corpos foram representados de acordo com os cânones acadêmicos de
representação da figura humana e as partes do corpo feminino são perfeitas e bem elaboradas,
buscando o ideal do corpo intacto, sem deformidades ou fragmentações. O tema e posição do
corpo, nu e de costas, como em Descanso do Modelo de Almeida Jr., sempre foram muito
explorados pela pintura clássica e acentuam a atmosfera de mistério e sensualidade de um
ambiente como o de um atelier e suas modelos. Sobre esta obra, dispõe Coelho: “Em Almeida
38
Júnior, não é a vida que se vê, mas a carne: o corpo está mais que vivo sua sensualidade
transparece e toma conta da cena pintada e do pintor.” (COELHO, 2000, p. 47).
Tais tendências aliadas à intolerância para com a arte oficial da então Academia
Imperial de Belas Artes trazem novas possibilidades estilísticas aos artistas brasileiros, como
aduz Migliaccio: “Os jovens Belmiro de Almeida, Aurélio Francisco de Figueiredo e Mello,
Rodolfo Amoedo e o crítico Gonzaga Duque, encarnam um novo ideal inspirado no
simbolismo francês.” (MIGLIACCIO, 2000, p. 41).
Dentro da temática da figura humana destaque para Rodolfo Amoedo (1857-1941)
como acentua Motta: “Entusiasta da figura humana, a obra de Rodolfo Amoedo é quase toda a
ela dedicada.” (MOTTA, 1979, p. 76). Sobre a obra Estudo de mulher (1884), [fig.14], que no
mesmo ano de sua produção participa da Exposição Geral de Belas Artes no Rio de Janeiro,
Chiarelli (2002) comenta a visão do crítico da Revista Ilustrada, que na época teria ficado
impressionado com a obra.
Chiarelli relata sua percepção do fato no texto Rodolfo Amoedo entre a Academia e a
Academia, do qual transcrevo aqui um excerto:
Das obras enviadas por Amoedo fica impressionadíssimo com a tela Estudo
de mulher’. Mesmo entusiasmado com o tênue abandono das regras
acadêmica que percebe naqueles artistas, o crítico não consegue evitar ficar
chocado com o forte erotismo que exala daquela tela de Amoedo. Parece que
para ele o artista teria ido longe demais na maneira objetiva e ao mesmo
tempo refinadamente sensual com que tratou a superfície da figura nua de
mulher, emoldurada por elementos - sedas, peles, tapeçarias tratados com
igual sensualidade. De alguma maneira, pode-se dizer que Rodolfo Amoedo
com tal obra inaugurava no Brasil o realismo burguês em pintura, corroendo
os pintores idealizantes da Academia e – ironia – os pudores da própria crítica
realista/naturalista. (CHIARELLI, 2002, p. 153).
Na obra Estudo de Mulher o tema é a figura humana. Trata-se de um corpo feminino,
nu, representado de costas, deitado sobre uma cama confortável, num ambiente aconchegante
e caloroso.
39
Figura 14 - Rodolfo Amoedo
Estudo de Mulher (1884)
Óleo sobre tela
1,50 x 2,00 m
Museu Nacional de Belas Artes, Rio de Janeiro, RJ.
A figura da mulher está deitada sobre uma cama com enormes travesseiros bordados,
uma colcha em tons de marrons, sienas e sépias. Os pés cruzados estão relaxados sobre uma
colcha, com muitas dobras, dourada, brilhante, que contrasta com a pele suave da mulher, em
tons de rosa e pêssego. O fundo no alto da tela lembra um papel de parede, decorado com
flores e abaixo, na parte inferior da tela, no chão um tapete felpudo, de cor escura, de pele de
animal aquece ainda mais a cena. A figura feminina, nua, foi representada por um desenho
suave, sinuoso, que respeita o corpo intacto. O leque na mão da mulher, aberto, acentua as
formas femininas, arredondadas, criando uma harmonia com as linhas sinuosas da cintura e
das ancas. Sobre a obra, acima descrita, de Amoedo e o tratamento dado pelo artista brasileiro
à figura humana cabe, por oportuno, citar um trecho da análise que Coelho faz da pintura:
[...] propôs um outro corpo que atrai o observador como um vórtice. Faz algo
que os outros aqui mostrados não exploram: a proximidade entre o que
interessa mostra o corpo da mulher, e as coisas que, envolvendo-a, acentuam,
por metonímia, a sensação que se pretende mostrar. A colcha, magnífica
como pintura, é sensivelmente mole, suave em suas dobras e recantos e faz a
40
ligação entre o corpo da mulher, quase tão branco quanto ela, e o tapete
felpudo e escuro que a mão roça. E o travesseiro é um convite ao repouso. È
um dia quente, como mostra o leque que se acabou de usar e a coberta rechaça
pelo corpo e o calor é a desculpa do pintor para fazer essa tela
sensualíssima. (COELHO, 2000, p. 48).
Em 1907, influenciado pelas pesquisas de Paul Cézanne (1839-1906), pelos
precursores do Cubismo (1908) assim como pela Arte Africana, o artista espanhol Pablo
Picasso (1881-1973) pinta Le Demoiselles d’ Avignon
12
(1907), [fig.15], e realiza, segundo
Argan (1992), a primeira ão de ruptura na História da Arte Moderna. Quando Picasso
chegou a Paris, em 1901, demonstrou muito interesse pelas obras de Edgar Degas (1834-
1917) e Toulouse-Lautrec (1864-1901) pelos aspectos plástico-gráficos de ambos, sobretudo,
pela crítica social de Lautrec.
Figura 15 - Pablo Picasso
Le Demoiselles d´ Avignon (1907)
Óleo sobre tela
2,44 x 2,33 m.
Nova York, Museum of Modern Art.
12
Sobre Picasso e Le Demoiselles d’ Avignon, ver também JANSON, 2001, p.953.
41
Picasso não se interessava pelas cores brilhantes do movimento impressionista e
Cézanne ainda era um estranho. Por volta de 1905, Cézanne se torna conhecido e figura
ilustre no cenário artístico parisiense. Picasso sensibilizado pela obra As Grandes Banhistas
(1898-1905), em Le Demoiselles d’ Avignon retoma a estrutura pesada e híspida das mulheres
de Cézanne. Um tema inusitado de homens e mulheres banhando-se ao ar livre numa
paisagem foi interpretado numa série de trabalhos de Cézanne, que apontaram para sua
obsessão em associar as figuras e a paisagem num todo natural. Como atesta Swinglehurst
sobre esta obra de Cézanne: “Ele mudou as proporções naturais de forma a satisfazer as
necessidades da composição e fundir os planos simplificados dos corpos no espaço do
quadro.” (SWINGLEHURST, 1996, p. 71).
O momento histórico é marcado pela crise da cultura européia, a qual se forçada a
buscar novos valores para modelo fora da cultura européia. Influenciado pela escultura negra,
Picasso se utiliza da estrutura plástica e formal da mesma e soluciona aparentemente a
questão histórica. Não se trata de copiar a arte africana, mas de usá-la como referência para
representar a contradição entre a situação européia que apresentava sinais de sufocamento
imposto pela civilidade extrema, representada pela obra de Cézanne, como apontavam as
críticas a Picasso, versus a barbárie encontrada nas obras de escultura africanas.
Conforme observa Argan (1992), as características formais de Le Demoiselles d’
Avignon são a dureza expressionista; estendimento da cor em largas zonas lisas; linhas duras,
cortantes, angulosas em planos sólidos e ângulos vivos que adquirem consistência
volumétrica; o fundo se aproxima das figuras por ser dividido em inúmeros planos duros e
agudos como estilhaços de vidros; o espaço é deformado e decomposto tal como as figuras.
Nesta tela, que tem como tema a figura humana composta de cinco mulheres, os
corpos estão intactos. Todavia, o desenho das partes como braços, pernas e troncos é marcado
por traços retos, angulosos que modificam a estrutura visual das figuras representadas e
apontam à relação de Picasso para com as normas de representação. A parte não combina com
o corpo representado intacto.
A figura humana de Picasso permanece intacta e representada mimeticamente, pois é
reconhecível nestas imagens o tema da figura humana, entretanto, algumas das figuras têm em
suas partes o desconforto da desproporcionalidade. O artista reconstrói o corpo por meio de
uma combinação de partes e não pelo desenho de um inteiro composto de partes. Essa
reconstrução do corpo intacto caracteriza a figura humana mimeticamente e é o aspecto que
permite o seu reconhecimento como tal.
42
Algumas partes não se encaixam nos corpos, são deformadas e decompostas. Isso
porque Picasso não está preocupado com a coerência estilística e harmônica do conjunto e sim
com o que cada parte pode representar para a expressão plástica da pintura.
A respeito dessa despreocupação de Picasso com a harmonia do conjunto, aduz Argan:
“A chamada coerência estilística, pela qual todas as partes de uma obra de arte formam uma
totalidade harmônica é um preconceito a ser eliminado. Porque arte é vida e vida e realidade
não são coerentes.” (ARGAN, 1992, p. 424).
Todavia, se Picasso concebia dessa forma a relação entre as partes compositivas do
quadro, não é estranho pensar que as partes que compõem a figura humana também pudessem
ser tratadas por ele dentro dessa concepção de conjunto, que não pressupunha coerência. As
linhas retas e angulosas em detrimento às tradicionais linhas onduladas, curvas e suaves que,
até então, nortearam o desenho de figura humana é outro elemento de ruptura.
Comparando com o desenho de Ingres que é sinuoso, delicado, deformado, mas
idealizado; e o de Degas feito de linhas suaves, deformadas pelo movimento e pelos cortes
fotográficos; o desenho de Picasso torna os músculos facetados, recortados por linhas bem
demarcadas, ora contornadas de negro, ora de branco. Neste particular se distância de Ingres,
mas conversa muito com Degas.
Ocorre que em 1907 quando Picasso concebe Le Demoiselles d’ Avignon era a
representação fauvista que estava em voga com suas cores brilhantes e temas como cidades
costeiras e lugares reais ou imaginários e sua pintura não é nada parecida com isso. A obra Le
Demoiselles evoca diferentes tradições e ao mesmo tempo se destaca entre elas. Como a
relação temática com as obras Banho turco (1893) de Ingres e uma das telas da série
Banhistas de Cézanne relatada por Harrison, Frascina e Perry (1998).
Ambas foram expostas no Salão dos Independentes de 1907 provocando comparações
inusitadas. Como a que aponta a obra de Ingres Banho turco, considerada síntese de todos
seus estudos sobre o nu feminino, na qual aborda o tema erótico-romântico com mais
realismo, como: “[...] legítima pela crítica, em contraste com a versão modernista do tema que
é a representação sexualmente mais ambígua de um grupo de nus ao ‘ar livre’ da série de
banhistas de Cézanne.” (HARRISON, FRASCINA e PERRY, 1998, p. 106).
A contradição da situação histórica é manifestada na tela Le Demoiselles d’ Avignon
em diferentes aspectos formais, como na posição das figuras truncadas que não estão nem de
perfil nem de frente; não possuem volume, pois o claro e escuro é muito suave gerando o
43
efeito de chapado dos planos; as cabeças são muito pequenas com relação aos corpos nas três
figuras à esquerda e o uso das máscaras nos rostos das mulheres à direita, que detona a
relação de proporção entre o corpo e os rostos.
Picasso abre caminho para o Cubismo Analítico (1908) que quebra a relação espaço-
forma e revela uma continuidade absoluta entre o objeto e o espaço. Segundo Argan: “[...] a
imagem parece esboçada, talhada, gravada no espaço, que se converte em matéria sólida [...]”
(ARGAN, 1992, p. 680), ao mesmo tempo em que penetra na superfície da pintura.
Paralelamente movimentos como o Futurismo (1910), Dadaísmo (1914) e o
Surrealismo (1917) por meio de seus pensamentos e manifestos geram novas tendências no
tratamento da figura humana nas Artes Plásticas. Como o Futurismo que defende o
movimento enquanto velocidade traduzida como uma força física que deforma os corpos até a
fronteira de sua elasticidade, revelando como conseqüência o dinamismo invisível da causa
13
.
Em Marcel Duchamp (1887-1968), figura determinante para o Dadaísmo
14
, a mudança
ocorre na estrutura do objeto. Na obra Nu descendant un escalier no. 2 (1912), [fig.16],
Duchamp desmembra o corpo humano, multiplica seus componentes, altera o tipo
morfológico de seus órgãos internos e muda o sistema do seu funcionamento biológico para
uma mecânica mais condizente com a sociedade moderna.
Neste sentido, afirma Argan: “Neste quadro, introduz um elemento cinético: uma
figura nua que desce as escadas individualiza as sucessivas posições, e liga-as num complexo
ritmo de formas.” (ARGAN, 1992, p. 438).
Quanto às características formais da figura humana na obra Nu descendant um escalier
no. 2, os cânones de proporção que norteiam a representação clássica do tema não são
seguidos por Duchamp, que está interessado em apresentar as alterações físicas que o corpo
sofre no desenvolvimento de movimentos mecânicos como na sociedade atual.
As partes que integram o corpo também não são reconhecíveis. O que se observa é um
emaranhado de linhas e formas, fragmentados, cuja composição visa à representação das
alterações do movimento mecânico no corpo. Marcel Duchamp está preocupado com as
deformações e com o movimento das formas do corpo. Para tanto apresenta a desconstrução
total do padrão clássico de representação.
Não é possível fazer uma leitura da relação das partes com o todo. Na imagem pode-se
observar que Duchamp, buscando ênfase para o movimento do corpo, prestigia os braços e as
pernas. A representação da figura humana não é mimética, no sentido de imitar a figura
13
ARGAN, 1992, p. 458.
14
Sobre o Dadaísmo e Marcel Duchamp, ver também JANSON, 2001, p.969.
44
humana, mas como esclarece Argan na obra Nu descendant un escalier no. 2: “[...] o
movimento é uma condição objetiva que ao objeto em movimento uma forma diferente da
do objeto imóvel.” (ARGAN, 1992, p. 438).
Figura 16 - Marcel Duchamp
Nu Descendant un escalier no. 2 (1912-6)
Aquarela, tinta, lápis e pastel sobre papel fotográfico.
1,47 x 0,89 m
Philadelphia, Museum Of Art
Para Argan (1992) Duchamp e Picasso protagonizaram dois momentos importantes da
Arte Moderna. Picasso, em 1907, quando pinta Le Demoiselles d´Avignon e coloca em cheque
a estética fauvista e Duchamp, em 1912-1913, com Nu Descendant un Escalier no. 2 que
detona o cubismo analítico: “Nesta data, Duchamp está em polêmica com o Cubismo
analítico: recusa seu caráter estático, no qual reconhece um limite formalista.” (ARGAN,
1992, p. 438).
No cenário artístico brasileiro, entre os anos de 1920 e 1930, a obra de Ismael Nery
(1900-1934), cuja temática abordada sempre fora a figura humana, merece destaque.
Segundo Leite (1982) com relação ao tema da figura humana, Nery foi um clássico admirador
45
desde Tintoretto (1515-1549) e Rafael (1483-1520) à Marc Chagall (1887-1985), Marx Enerst
(1891-1976) e Pablo Picasso (1881-1973).
A obra A Moça com ramo de flores (1929), [fig. 17] é da última fase do artista,
surrealista, e surge de 1927 até o fim da vida do artista conforme aponta a crítica. Esta fase é
marcada por figuras humanas que segundo Leite:
[...] flutuam no espaço enquanto as casas e as linhas do horizonte assumem as
mais inesperadas posições. [...] imagens que se interpenetram ou se
confundem, formas humanas que se decompõem ou se multiplicam [...] entes
híbridos a meio caminha entre o masculino e o feminino [...]. (LEITE, 1982,
p. 220).
Citado por Chiarelli, Mario de Andrade comenta este aspecto dual da presença do
feminino e do masculino numa mesma figura na obra de Nery como a busca de “[...] um tipo
ideal representativo do ser humano” (CHIARELLI, 2002, p. 51).
Figura 17 - Ismael Nery
A Moça com ramo de flores (1929)
Óleo sobre cartão
0,61 x 0,50 m.
Coleção Alberto Alves, São Paulo, SP.
46
Para esta pesquisa a figura humana de Nery é representativa na medida em que
constrói uma imagem do corpo pautado nas regras de proporção, mas rompe com outro
padrão de representação que é o do clássico feminino e masculino, conforme aduz Chiarelli:
“[...] foi em seus desenhos, pinturas e aquarelas e, sobretudo, nos auto-retratos, nos retratos de
sua mulher, Adalgisa Nery, e nos retratos onde ambos aparecem que se torna perfeitamente
visível qual o ‘tipo ideal’ de Nery: o ser hermafrodita, unindo os opostos.” (CHIARELLI,
2002, p. 52).
A pintura A Moça com ramo de flores tem como tema a figura humana feminina.
Trata-se da representação de um corpo de mulher, dos joelhos para cima, parcialmente vestido
com um lingerie fino, transparente, sentado sobre um sofá vermelho. O corpo está intacto e as
partes integram um conjunto harmonioso. Entretanto, o corte das pernas na altura dos joelhos
reflete um corte fotográfico, cujo enquadramento da figura se fixa no centro da composição e
estabelece a ocupação espacial. É um corpo representado parcialmente, que as pernas e os
pés da mulher não aparecem na pintura. Mas é concebido dentro dos cânones de proporção,
pois as partes formam um todo perfeito.
As formas do corpo feminino são arredondadas, os seios circulares e a posição dos
braços levemente dobrados para a esquerda e para a direita na parte superior da tela geram o
efeito de expansão do corpo, significando uma atitude de liberdade. O corpo ocupa a maior
área do espaço pictórico e se encontra no eixo central da composição, marcado pelos seios e
pelas flores que uma das mãos segura e que foram posicionadas como uma flecha indicando
para o órgão sexual feminino.
Para Ismael Nery o corpo é sinônimo de sensualidade, liberdade e ócio. Nery
apresenta essa concepção do tema da figura humana na pintura A Moça com ramo de flores
que na visão de Coelho é:
[...] um outro modo de representação do moderno: o corpo e a carne o são
revelados em sua matéria sensível e, no entanto, a idéia de sensualidade chega
ao observador pelo signo totalizante constituído pela posição do corpo (o
exato oposto do corpo de Amoedo) pela peça de roupa leve, transparente e
aberta, e pelas flores seguras na mão e que caem na direção do centro do
prazer, em outra aproximação metonímica carregada de significados eróticos.
(COELHO, 2000, p. 49).
47
De volta à Europa, a situação política era de ruptura diante da agressão fascista na
Espanha, do rearmamento alemão e do golpe italiano na Etiópia. Culturalmente Paris
organizava a grande Exposição Internacional consagrada ao trabalho, à paz e ao progresso.
Cenário de contradição e tumulto onde Picasso ficara responsável pela decoração do Pavilhão
Espanhol na mostra parisiense. Em abril de 1937, mediante a notícia de que os bombardeiros
alemães atacaram a antiga cidade de Guernica, com o objetivo de semear o terror entre a
população civil, Picasso pinta para o Pavilhão da República Espanhola na Exposição
Internacional de Paris o mural Guernica (1937), [fig.18], em desagravo à atrocidade do
massacre.
Com ênfase à carnificina que resultou o ataque, Picasso não pinta Guernica para
descrever o acontecimento, nem tampouco, visa representar o fato com imagens literárias ou
dramáticas que apelassem para o trágico. Sua meta foi trazer o delito à consciência por meio
da forma, conforme nos aponta Argan:
O quadro não deve representar nem significar, mas desenvolver uma força de
sugestão; a força não deve brotar do objeto ou do conteúdo (que todos sabem
é a notícia do dia), e sim da forma. A forma é a expressão mais alta da
civilização ocidental, herdeira da cultura clássica; a crise da forma é o sinal da
crise da civilização. (ARGAN, 1992, p. 475).
Figura 18 - Pablo Picasso
Guernica (1937)
Têmpera sobre tela
3,54 x 7,82 m.
Madri. Casón del Bon Retiro.
48
Por isso, Guernica
15
é uma obra singular no tocante à representação da figura humana.
Nesta obra Picasso utiliza o tema de corpos e pedaços de corpos, explorando a forma
desconectada dos padrões clássicos e dos cânones de proporção e ainda compõe com estas
formas uma imagem aquém dos padrões miméticos de representação de fatos históricos e
dramáticos. As fragmentações encontradas nos aspectos formais da composição dos corpos
representam o auge da negação dos cânones de proporção que nortearam durante muito tempo
a representação do tema da figura humana. Tais cânones de fato foram muitas vezes
idealizados, como pelos neoclássicos e Ingres, mas até então não tinham sido desestruturados
ou ignorados como o foram por Picasso.
Este painel
16
pode ser considerado um exemplo de fragmentação do tema da figura
humana e nele o artista explora as distorções, fragmentações e metamorfoses que dilaceram o
corpo humano em partes. O clímax da criação de Picasso em Guernica, relevante para esta
pesquisa, está no uso da figura como forma fragmentada e como elemento de ruptura com os
padrões de representação da figura humana, exatamente como afirma Argan (1992). A forma
intacta, inteira e herdeira da cultura clássica ocidental com a qual Picasso rompe supera a sua
primeira ação de ruptura, iniciada na obra Le Demoiselles d’Avignon, ainda dentro dos
padrões miméticos de representação como já observei.
Como apresentei anteriormente o fragmento surge na pintura como um procedimento
de pesquisa da figura humana, para se conhecer as partes constituintes de um corpo a ser
representado intacto, e em Guernica o fragmento é ele mesmo a forma, o elemento inteiro.
Não reconstrução, as partes permanecem como partes na obra e possuem valor de
partes. O fragmento possui caráter de inteiro. Essa alteração na forma, inteiro-parte x parte-
inteiro, pode ser relacionada com a crise da forma da qual fala Argan (1992) interpretada por
ele como crise da civilização ocidental
17
. Aponto tal crise como uma crise de procedimentos,
de modelos e crise da ciência, mais uma vez confirmada por Argan em sua argumentação
sobre a crítica social e contra a linguagem cubista que Picasso imprime ao pintar Guernica da
qual transcrevo aqui um trecho:
15
Sobre Guernica, ver Ibid., p.958.
16
Sobre “Guernica” e seu caráter social, afirma ainda Argan: “A visão de Guernica é a visão da morte em ação;
[...]”. Comparando com Géricault, Picasso não é um delator do fato e sim “[...] está dentro do fato, [...] está entre
as vítimas”. ARGAN, 1992, p.476.
17
Sobre Guernica e a crise da civilização ocidental, ver também Argan: “Com ele morre a arte, a civilização
clássica, a arte e a civilização cuja meta era o conhecimento, a compreensão plena da natureza e da história.”
ARGAN, loc. cit.
49
O que havia sido um novo modo de conhecer e representar uma ponte entre a
arte e a ciência torna-se despedaçadamente violento, destruição e morte. Os
instrumentos com que os nazistas exterminaram Guernica eram científicos;
será científica a eliminação de milhões de homens nos campos de extermínio.
E tudo isso não é exterior, e sim interior à lógica do capitalismo no poder.
(ARGAN, 1992, p. 476).
Quanto à figura humana não há nenhum corpo intacto e representado dentro dos
padrões clássicos de representação do tema, sobretudo, com relação aos cânones e a figura
inteira. Os corpos são deformados, representados em partes, desconectados pela característica
da composição fragmentária. Picasso sugere relação entre as partes, mas não mais harmonia
entre as partes e as representa dessa forma. É um conjunto porque todas as imagens estão no
mesmo espaço da pintura, mas que não contempla harmonia. Isso porque, como já disse
Picasso não concorda com o fato de a Arte ter que apresentar o belo e a harmonia se a vida
não é ela mesma só beleza ou harmonia, mas sim conflito e caos.
Por conseguinte, ocorre em sua obra uma organização espacial que não prevê relação
de conjunto estabelecida dentro dos padrões clássicos de representação. Mas que propõe, sim,
uma nova relação composicional, qual seja de formas e partes que estão juntas num mesmo
espaço e que representem o caos e diversidade de valores da vida humana.
O espaço da pintura será o palco onde estas formas se relacionam e não se relacionam
ao mesmo tempo. As posições das figuras e as direções para as quais muitas delas apontam
gera uma relação entre elas, mas ao mesmo tempo são independentes se as isolarmos do todo.
É o caso da mulher que segura uma criança nos braços à esquerda da pintura. Ela é
representada dos joelhos para cima, parece vestir uma saia listrada e tem um dos seios a
mostra. Seu longo pescoço e sua boca aberta para cima remetem nosso olhar para a cabeça do
minotauro, porém as duas figuras não se tocam. Em relação oposta está a figura caída no
chão, que tem um dos braços esticados a extrema esquerda e o outro no centro inferior da
pintura, cuja cabeça tem a boca virada para o alto. Porém o corpo desta figura não se
claramente porque seu tórax se confunde com o corpo do cavalo assim como suas pernas. As
figuras ora se confundem com o fundo, ora são totalmente independentes.
Em direção ao centro e na parte superior da composição vê-se uma cabeça sem
pescoço ou corpo, que olha em direção ao centro da tela onde está a cabeça de um cavalo e
um olho grande com uma lâmpada em seu interior. Próxima a esta cabeça está um braço,
esticado, segurando uma lamparina. Não fica claro se este braço pertence a esta cabeça.
50
Ambos os fragmentos podem ser interpretados como figura e fundo, relacionados ou
não entre si. Porquanto, ainda em Argan, encontra-se uma colocação sobre os aspectos
formais de Guernica: “[...] assisti-se neste quadro, a uma metamorfose não menos atordoante
do que a que transformava as rosadas demoiselles em fetiches negros: a violência e a morte
geometrizam, mecanizam os rostos e os membros das figuras.”. (ARGAN, 1992, p. 476).
Todo envolvimento político dos artistas se manifesta na forma de alterações nas
tendências no meio artístico internacional nos anos de 1930. O que se nota é o surgimento de
movimentos artísticos contrários aos regimes de força implantados na Europa como o
comunismo na União Soviética, o fascismo na Espanha e na Itália e o nazismo na Alemanha.
Movimentos marcados pela forte presença de uma arte realista que coloca em segundo plano a
arte de especulação formal, prescrita no começo do século. Cabe, por oportuno, destacar a
contextualização de Amaral sobre a situação da arte brasileira neste panorama:
Por vezes, a preocupação social que transparece nos trabalhos de nossos
artistas pode ser breve, como no caso de Tarsila do Amaral e Lívio Abramo,
único artista brasileiro a ser motivado pela Guerra Civil espanhola como
tema, na segunda metade dos anos 30. Ou como, no que se refere à compaixão
humana, sempre presente na obra de Lasar Segall, em particular sob a
temática da evasão da Europa pelos peregrinos e do fantasma da Segunda
Guerra Mundial. (AMARAL, 2003, p. 03).
O quadro A Guerra (1942), [fig. 19], de Lasar Segall (1891-1957) tem como tema a
figura humana na forma de um grupo de soldados numa trincheira. O ano em que foi pintado
o quadro é 1942, auge na Segunda Guerra Mundial, e o artista pinta com o propósito de
apresentar os horrores da guerra. É um amontoado de corpos. Soldados mortos e feridos usam
fardas e capacete. Um emaranhado de figuras, de corpos e partes de corpos, distribuídos por
toda a composição e espaço pictórico.
Ao fundo, no último plano da pintura, uma paisagem com uma extensa planície. O céu
está repleto de fumaça dos ataques e bombardeios. Na parte superior da tela, tanto a direita
quanto à esquerda, algumas árvores sem folhas dão o sinal de destruição da natureza causada
pela batalha.
51
Figura 19 - Lasar Segall
A Guerra (1942)
Óleo sobre tela
18, 5 x 27,0 m.
Museu de Arte de São Paulo, SP.
Quanto à figura humana, notam-se corpos inteiros e em pedaços, como na parte
superior da tela à esquerda em que se encontra uma cabeça de perfil olhando para cima. Logo
abaixo um e a parte de uma perna, uma mão, uma bota. Mais para a direita um corpo
encostado no monte de soldados não tem a cabeça. É um corpo sem cabeça com o pescoço
sangrando e, acima e abaixo deste corpo, notam-se duas cabeças sem corpo, degoladas. Na
mesma direção deste corpo sem cabeça, no chão, está a parte de um braço e uma mão.
São corpos despedaçados, fragmentados, apresentados no máximo da degradação
física, sagrando, jogados e amontoados, abandonados, após a carnificina da guerra.
Trata-se de um retrato fiel à cena da guerra e realista quanto ao tratamento do tema da
figura humana. Assim como Géricault, Segall expõe o corpo em suas fragilidades. As partes
do corpo expostas na obra Guerra representam a relação dialética entre a vida e a morte,
protagonizada pela representação do corpo na Arte. A vida, na forma do corpo inteiro, belo,
intacto e a morte, representada pelo corpo em fragmentos. É um realismo marcado pelos
sofrimentos impostos aos homens pelas guerras modernas e pela relação cada vez mais
concreta do homem para com o seu corpo.
Entre 1945 e 1950, de acordo com Argan: "[...] a decomposição cubista permanece
como a grande descoberta do século, mas deve ser explosiva e não analítica, refletir no
52
rompimento da forma a imagem do real elaborada pela consciência dilacerada contraditória
do homem do nosso tempo.” (ARGAN, 1992, p. 534).
Após a Segunda Guerra Mundial o centro da cultura artística mundial desloca-se de
Paris para Nova York, dando inicio a um dos fenômenos mais grandiosos da História da Arte
do século XX que fora a Arte Americana e o Expressionismo Abstrato ou conhecido também,
como Pintura Gestual
18
. Os EUA recebem os artistas estrangeiros, mas imediatamente adapta-
os ao seu modo de vida. Todavia, mesmo adaptados ao modernismo e à forma de vida norte-
americana alguns artistas não se dobram facilmente ao uso da arte não figurativa, que
imperava no cenário artístico norte-americano no dizer expressivo de Chipp:
Mas foi a vigorosa escola nova-iorquina, surgida imediatamente após o
término da Segunda Guerra Mundial, que emergiu como dominante, criando
influências que gradualmente foram ganhando a Europa, invertendo assim a
tradicional marcha da civilização rumo ao Ocidente. (CHIPP, 1996, p. 509).
Nesta conjuntura encontra-se o artista holandês William de Kooning
19
(1904) que
chegou à América em 1926. Kooning foi um dos maiores expoentes do Expressionismo
Abstrato, denominado Action Painting da Escola de Nova York, conforme aduz Greenberg:
De Kooning conquistou uma aceitação mais rápida e mais ampla neste país do que qualquer
outro ´expressionista abstrato´ originário [...]”. (GREENBERG, 1996, p. 219-220).
Da obra de Kooning o que interessa para o estudo sobre o tema da figura humana que
aqui realizo é a série Mulheres. Segundo Argan (1992) nas obras desta série; inspirado na
linguagem figurativa européia do expressionismo, áspera e violenta; Kooning exprime a
angústia da condição humana, do estar no mundo.
Os fragmentos de figuração aliados a um gesto explosivo desintegram a realidade e
esvaziam a imagem das características expressionistas de conteúdo, tema e comoções sociais.
Como acrescenta Argan: “[...] sua pintura decididamente ‘informal’: como no fundo doloso de
um poço descobre-se, com um arrepio de nojo, a carcaça que infectou suas águas”. (ARGAN,
1992, p. 528). Greenberg por sua vez se reporta à Kooning como um dos mais talentosos
desenhistas e inventivo artista, cujo objetivo aparente é uma síntese da tradição e do
modernismo, que lhe dera mais flexibilidade dentro do cânone projetual do cubismo tardio e
afirma ainda:
18
Ver JANSON, 2001, p. 973.
19
Sobre W. de Kooning, ver depoimentos de conferências apresentadas pelo artista em 1950, em Nova York,
como O renascimento e a ordem. CHIPP, 1996, p.564-565.
53
O método de sua selvageria continuou a ser quase antiquadamente, e
ansiosamente, cubista sob a cor jogada e torturada, quando ele deixou a
abstração por algum tempo para atacar a figura feminina com uma fúria mais
explícita do que a que animou qualquer uma das violações da lógica
fisionômica por Picasso. (GREENBERG, 1996, p. 220).
A obra Mulher (1949), [fig.20], tem como elemento principal uma figura feminina
deformada com uma cabeça desproporcional ao corpo, menor. O pescoço é longo. Seu rosto
está de perfil, deformado, a boca, enorme, está aberta, expondo os dentes. Possui o nariz
grande, com as narinas expostas pela posição de perfil e o olho levemente fechado. Os cabelos
na cor laranja, são longos, cobrem os ombros.
Figura 20 - William de Kooning
Mulher (1949)
Óleo, esmalte e carvão sobre tela.
1,53 x 1,21 m.
Hanover (Pens.), coleção Boris Leavitt.
O tórax e a região do abdômen foram representados na forma de um quadrado. Esta
configuração amplia o corpo feminino, deixando os ombros largos e o abdômen expandido
54
por uma das nádegas, projetada para frente e no lado esquerdo do corpo. Os seios ora se
parecem com os órgãos femininos, ora com peitos masculinos. O corpo na região inferior, as
pernas e membros como as ancas e os quadris, são deformados por uma espécie de
achatamento para que a figura se encaixe no espaço pictórico da tela. A figura é contornada
por traços negros, finos em algumas regiões e mais largos nas áreas em que houve
necessidade de estabelecer a impressão de volume, em traços e pinceladas ágeis. A pintura
tem um aspecto violento e vigoroso, no tocante ao ritmo das pinceladas e na construção da
figura feminina, retorcida, como que para caber na pintura.
Quanto à figura humana o corpo está representado intacto, mas o tratamento dado às
partes não representa os modelos clássicos de representação da figura humana. A figura não é
simétrica, sua posição de meio perfil expõe mais algumas partes do seu corpo em detrimento a
outras.
A figura toda pode ser colocada dentro de um retângulo. No entanto, o corpo feminino
na parte inferior, pode ser inserido num quadrado e a superior num estreito e fino retângulo.
Este tratamento geométrico proporciona um desequilíbrio composicional no corpo e afasta a
figura de Kooning das formas tradicionais de construção de figuras humanas, geralmente
colocadas pelos cânones na forma de um retângulo cumprido na vertical, em pé. Nota-se que
o pescoço está fora de eixo com relação às pernas, imprimindo à figura uma situação de
deslocamento.
Com a Nova Figuração
20
o que fica em evidência não é a questão do reconhecimento
ou não da figura do corpo. A nova imagem ressalta que ela não se resume somente neste
caráter da representação da figura humana e sim no valor que se confere a ela.
Nesse contexto cito o artista inglês Francis Bacon (1909-1992) e a sua polêmica
produção pictórica que, como aduz Argan: “[...] assinala o limite extremo da desvalorização,
da degradação voluntária não apenas da figura, mas da pintura como arte da figuração.”
(Argan, 1992, p. 559). Argan não concorda com a introdução de Bacon no movimento da
Nova Figuração porque, segundo ele, é clara a intenção de desconstrução da imagem do corpo
nas obras do artista e afirma: “[...] é absurdo falar em ‘nova figuração’ para a deliberada e
atroz desfiguração de Bacon.” (Argan, 1992, p. 489). Bacon, que se apropria da figura
humana para deformá-la e depreciá-la diante do público, é na concepção de Argan:
[...] último herdeiro do “sublime”, sublima, todavia não idealiza: por isso, o
“sublime”, para ele, não é o super, e sim o subumano, não o sacro ou o divino,
20
Sobre a Nova Figuração, ver ARGAN, 1992, p. 559.
55
e sim o demoníaco. [...] ele não acredita na eleição ou na salvação, mas na
degradação e na queda da humanidade. (ARGAN, 1992, p. 488).
Todavia como de se verificar Francis Bacon, considerado por Filho (2003) como
um dos “clássicos da modernidade”, nomeou a figura humana como tema de suas pinturas por
ter sido: “[...] influenciado pela figuras biomórficas de Picasso, distorceu ao limite o corpo
humano. Reduziu-o a um amontoado de carne de açougue, [...]” (FILHO, 2003, p. 29).
A despeito do tema da figura humana na obra de Bacon e sua relação com Picasso,
Ades traça as seguintes considerações:
[...] a fragmentação do corpo, a fusão dos corpos no ardor do desejo, sua
tensão no auge das sensações, corpos revelados pelos raios-X ou despidos
para o sacrifício [...]. Como o eram para Picasso, o corpo, sua carne e seus
orifícios são o grande tema de Bacon, havendo diferenças e convergências
significativas nas distorções [...]. (ADES, 1998, p. 408).
Na obra Estudo para retrato no divã dobrado (1963), [fig. 21], o tema da figura
humana é abordada por Bacon na forma de um homem sentado numa poltrona azul com
listras brancas.
Uma imagem distorcida do corpo masculino reconhecível como tal pela presença de
um rosto e um tórax que as mãos e os pés não estão representados nitidamente. A figura
veste uma roupa, talvez uma camisa rosa, e a parte inferior do corpo, as pernas, estão nuas e
receberam tratamento tonal de cinza escuro.
As deformações no corpo e no rosto dificultam a visualização das expressões físicas
da figura. O rosto disforme tem as regiões de sombra coloridas de cinza e foi alongado no
queixo, acentuando a deformidade do conjunto facial. Os olhos colocados na sombra
interferem na expressão, assim como o nariz desproporcional. A figura está sentada de lado,
não se observa suas mãos nem tampouco seus pés.
Está claro que Bacon não segue as regras de proporção da figura humana, entretanto,
representa o corpo intacto. Sua intervenção na imagem do corpo é antes uma adequação à sua
concepção de corpo e o que esta presença física representa para a sua concepção de vida.
56
Figura 21 - Francis Bacon
Estudo para retrato no divã dobrado (1963)
Óleo sobre tela
1,98 x 1,47 m.
Collection The Estate of Francis Bacon.
Degradação e sofrimento, um corpo concreto que não é idealizado pela beleza e sim
pelo grotesco. Muito mais morte do que vida. O corpo é intacto, mas não inteiro, faltam-lhe os
pés, parte dos braços e as mãos. Os tons escuros das pernas e parte do abdômen lembram
ossos carbonizados, contrastantes com o tom rosado do peito e da parte superior da figura.
O fundo superior da tela em preto remete-se a parte inferior da figura que está no
centro da composição. Ao mesmo tempo em que o laranja, na região inferior, remete para a
figura posta sobre um aparato azul, tom complementar. Ambos os tons reforçam a
composição principal que é o corpo e a poltrona, rosa e azul, aliás, as cores que
tradicionalmente representam a corrente sanguínea. O ambiente de uma arena ou um palco
sugere a vida e os seres humanos em cena, na constante luta para sustentar um corpo em vida,
degradado, violentado, mas vivo.
Sendo assim, quanto à figura humana e a representação do tema não se observa
relação com os ideais clássicos de beleza. Pelo contrário o que se nota é uma necessidade de
romper com toda e qualquer idealização do corpo e mostrar suas verdades, suas deformidades,
revelando-os como fantasmas aparentes na forma e no conteúdo da pintura. Nesta obra,
57
mesmo representando a figura intacta, algumas partes do corpo foram abstraídas por meio da
deformação, o que mostra a desatenção de Bacon pelo corpo como um conjunto perfeito.
Portanto, Kooning elege a figura humana feminina para apresentar o conflito vivido
pelos artistas contemporâneos no tocante à representação da figura do corpo humano e o uso
dos cânones de proporção, ao passo que Francis Bacon prefere os corpos masculinos, na
maioria de suas obras, para abordar o tema. Ademais, as posturas de Bacon e Kooning
demonstram o quanto é significativo o ato e a atitude de desconstrução da figura humana para
a História da Arte e para a história do tema, bem como para a história da pintura.
Por volta do ano de 1955 surge em Londres, na Inglaterra, a Pop Arte. Na ocasião as
imagens veiculadas pelos meios de comunicação norte-americanos, recém chegados à
Inglaterra, deflagraram o movimento artístico marcado pelo retorno ao figurativo e à
representação do real. Em síntese, essa referência ao dia-a-dia e às vivências humanas se
fixou na crítica às imagens e produtos de comércio como ilustrações de revistas, fotografias
veiculadas pelos jornais, objetos e móveis produzidos em série, alimentos e roupas destinados
à sociedade de consumo
21
. Portanto, cabe registrar que segundo Chiarelli: “Esse processo
pode ser acompanhado mediante certas tendências surgidas e/ou desenvolvidas nos Estados
Unidos e depois internacionalizadas.” (CHIARELLI, 2002, p. 121). Em comentário a arte
deste período, pós Segunda Guerra Mundial, esclarece ainda Chiarelli que:
É possível caracterizar uma parte significativa da produção artística
internacional desde o final da II Grande Guerra pelo progressivo afastamento
da subjetividade e da expressão do eu do artista, rumo a uma persistente
apropriação de uma lógica produtiva artificial e anônima, típica das
sociedades industriais e pós-industriais, e a seus signos mais evidentes.
(CHIARELLI, 2002, p. 121).
Na Europa a Pop Arte fazia alusão à não criatividade da sociedade de massa, ao passo
que nos Estados Unidos os artistas da Pop criticavam imagens de cinema, celebridades
fabricadas pela mídia, produtos de desejo dos norte-americanos, como eletrodomésticos e
carros dos anos de 1930. Todo esse movimento causado pela Pop Arte dividiu opiniões a
respeito de sua originalidade. Na Alemanha a Pop Arte envolveu inclusive as esferas do
político e do social como sustenta Lobo: “Na Alemanha a Arte Pop tem intenção crítica, como
o Expressionismo invade os domínios do social e político.” (LOBO, 1981, p. 184).
21
Sobre os aspectos popular e não-intelectual da Pop Arte, ver JANSON, 2001, p. 983.
58
Soma-se a esses fatos a presença de Andy Warhol (1930-1987), um dos idealizadores
da Pop Arte que explorou o tema da figura humana por meio de fragmentos de corpos como
torsos e pés. A esse respeito, alude King sobre a predileção do artista:
Ao rever as imagens de Warhol do corpo humano, tem-se a impressão de que
o artista preferia focalizar partes ou fragmentos, como as cabeças, torsos,
pênis ou pés. Os retratos, pelos quais se interessou durante toda sua carreira, e
os Torsos, uma grande série de pinturas criadas em 1977, são as mais
completas realizações destas visões parciais. (KING, 1996, p. 42).
Com efeito, convém evidenciar que a representação da figura humana na obra de
Warhol ultrapassa os aspectos estéticos e formais do tema, para discutir valores simbólicos
imprimidos na imagem corporal, como a sensualidade e o erotismo do corpo humano. Essa
constatação é feita por King ao comparar “os retratos e os nus, assuntos tradicionais de Andy
Warhol” (KING, 1996, p. 42), onde sustenta:
A técnica artística empregada distingue claramente os Torsos de Warhol da
pornografia, mas há um conteúdo significativamente sexual em sua arte.
Warhol olha o nu de uma maneira franca, estendendo os limites com o seu
enfoque direto nos elementos essenciais dos corpos masculinos e femininos.
(KING, 1996, p. 42).
No tocante à representação da figura humana e suas relações com os cânones de
proporção, Warhol trata a figura com proporção, porém, não representa o corpo inteiro.
Não importa o corpo todo, mas somente o pedaço que se relaciona com a sexualidade
ou com os propósitos do artista para com aquela imagem. Em virtude do que foi mencionado
King acrescenta:
Para criar sua interpretação contemporânea, carregada de sexo, do nu clássico
ideal, Warhol começou por selecionar os próprios modelos. Para as pinturas
da série Torso, escolheu representações perfeitas do ideal do corpo masculino
da década de 70: homens com massa e musculatura bem definidas, rijos, de
nádegas arredondadas e pênis grandes. É interessante notar que, enquanto a
seleção destas imagens foi feita em função da escolha da ênfase dada por
59
Warhol, ela também serve para eliminar rostos que podem não ser tão bonitos
quantos os corpos. (KING, 1996, p. 52).
Quanto à relação dialética entre a figura humana inteira, o todo versus a parte, os
fragmentos dos corpos e como as obras de Warhol contribuem para a construção da
historiografia do tema, basta observar que nelas a parte, o fragmento, possui valor de inteiro.
O fragmento se evidencia, conforme constatamos nas palavras de King: “De uma maneira, ele
tornou os Torsos objetos sexuais textuais por cortar as figuras e enfocar a genitália e as
nádegas, deixando de lado a cabeça e a maior parte do restante do corpo.” (KING, 1996, p.
42).
Warhol confere à parte, aos fragmentos, o mesmo tratamento dado pelos Neoclássicos
e Românticos ao corpo inteiro e intacto. O artista pop olha para as partes do corpo com olhar
idealizador, buscando nas partes a beleza das formas que antes era perseguida pelos artistas no
corpo inteiro. Todavia, é uma beleza não mais divinizada, mas erotizada pelo olhar pop de um
homem-artista da sociedade de massa, que persegue o sucesso e tem na exposição do corpo e
da imagem da figura humana uma obsessão. Por fim, ainda em King cabe ressaltar, segundo a
autora, as relações que Warhol estabeleceu em sua obra para com a arte tradicional e a
representação do tema da figura humana:
Como os seus retratos, os Torsos de Warhol têm suas raízes tanto no histórico
quanto no contemporâneo, nas metáforas populares e na sensibilidade. Os
Torsos, com seus corpos bem definidos, sem cabeças nem pernas, em
descanso e em movimento, ecoam fragmentos da antiguidade. O nome que o
artista deu para estas pinturas é significativo neste contexto, porque ‘torso’ é
um termo da Arte histórica tradicional. Mas Warhol definiu o termo
livremente, enfocando em segmentos do corpo de tamanhos diferentes, desde
os ombros até os joelhos, ressaltando a genitália, as nádegas, e o físico de suas
figuras. (KING, 1996, p. 47).
Nas obras de Warhol escolhidas para esta pesquisa Torso (1977), [fig. 22], e Torsos
(1977), [fig. 23], observa-se no tema da figura humana, dois torsos em duas diferentes
abordagens.
No primeiro trabalho, Torso (1977) trata-se da imagem de uma mulher de frente, num
corte que prestigia o órgão sexual feminino, seu umbigo e parte de suas pernas. E em Torsos
(1977) uma imagem serial de um corpo de costas repetido cinco vezes, uma ao lado da outra
60
na horizontal, do qual se vêem as ancas, uma parte de suas nádegas, quadris e cintura.
Conforme aduzido anteriormente, Kooning preferiu as mulheres e Bacon à figura
masculina para abordar a temática da figura humana. Porém Warhol acerca-se de ambos os
sexos em suas séries, conforme observa King: “Embora todos os retratos e nus de Warhol
representem um certo grau de idealização pode-se dizer que as mulheres representam o
máximo nos retratos e os homens são o ponto alto dos Torsos.” (KING, 1996, p. 53).
Figura 22 - Andy Warhol
Torso (1977)
Tinta sintética polímera e serigrafia sobre tela
81,5 x 66 cm
The Andy Warhol Foundation Collection.
Quanto às imagens repetidas de Warhol, como as pinturas de Marilyn Monroe, as latas
de sopa ou as imagens multiplicadas de carros batidos e dos órgãos sexuais masculinos, como
na série de Torsos acima, Coelho acrescenta: “[...] na sociedade de massa e do consumo, a
unidade, o singular, não tem vez. O sentido só parece formar-se quando a unidade é repetida –
quando não há mais unidade”. (COELHO, 1999, p. 108).
Tal esclarecimento sobre o contexto que Warhol produziu suas obras, cuja forma
fragmentada e a repetição destas partes, lado a lado, são os aspectos formais que mais se
destacam em suas composições, coincide com o fortalecimento do fragmento enquanto
imagem capaz de representar o objeto como um todo.
61
Figura 23 - Andy Warhol
Torsos (1977)
Tinta sintética polímera e
Serigrafia sobre tela
1,28 m x 4,95 m
The Andy Warhol Museum, Pittsburgh.
Cabe por oportuno, destacar um comentário de Chiarelli sobre a Arte Pop deste
período que se destaca por apresentar o caráter serial, a impessoalidade das figuras e a tida
intenção de Warhol de tornar tais imagens ícones e não apenas representações do tema da
figura humana:
O uso de elementos modulares, o caráter serial e a impessoalidade de peças e
imagens transformadas em ícones são a marca registrada dessas produções
[...] A abstração pós-pictórica, a pop art, a minimal (e seus herdeiros mais
recentes) possuem como ponto em comum justamente a apropriação de uma
lógica serial e modular. (CHIARELLI, 2002, p. 121).
No tocante ao estudo do tema da figura humana nas obras de pintura brasileiras deste
contexto histórico, optei pela análise da obra Duas Figuras (1965), [fig.24], do artista plástico
Carlos Vergara (1941). Nesta obra se observam algumas das características estéticas do
período, como a criação de ícones e a presença de uma figuração muito peculiar do artista.
O artista interessado em aprofundar sua busca formal pinta, sobretudo nos anos de
1960 e 1970, temas como palmeiras, bananeiras e índios.
62
Figura 24 - Carlos Vergara
Duas Figuras (1985)
Nanquim e guache
49 x 65 cm
Coleção Gilberto Chateaubriand, São Paulo, SP.
Contudo na obra Duas Figuras, cuja temática é a figura humana, encontram-se alguns
elementos como as cores e o tratamento das figuras, deformadas e retorcidas que o relacionam
com artistas como Iberê Camargo, como analisa Pontual:
A afirmação inicial do trabalho de Carlos Vergara prova o quanto 1964 foi
divisor de águas na sociedade e na arte brasileiras. Como o mestre (Iberê
Camargo) refletia-se na disposição de dissolver a figura em constelações tanto
nebulosas quanto emblemáticas, no fio de prumo abstrato. (PONTUAL 1987,
s/p.).
Sobre sua importância para o âmbito artístico nacional expõe Araújo: “[...] Vergara se
revela um pintor à procura de uma brasilidade reconhecível no que poderia haver de mais
brasileiro, [...] a cor da terra [...] constrói uma impressionante gama de cores terrosas que
acrescenta uma notável dose de dramaticidade [...].” (ARAÚJO, 1999, p. 03).
A pintura Duas Figuras apresenta o tema da figura humana, retratado pela presença de
dois corpos, duas figuras sentadas de costas. Destes corpos são vistas as ancas, as costas e os
rostos de meio perfil. Um está olhando para o outro. O da esquerda parece um homem, tem
63
cabelos curtos, seu corpo é maior, sugere masculinidade, aliado a alguns toques de cor azul,
indicando uma roupa na cor comumente relacionada à figura masculina. O corpo da direita,
todo colorido de rosa e vermelho, cores comumente relacionadas ao feminino, tem cabelos
longos e feições mais femininas, como um nariz mais alongado e o olhar mais acentuado.
Ambos parecem estar com as pernas cruzadas, como sugere a figura da esquerda da qual
vemos um de seus pés à esquerda e abaixo da pintura.
As figuras, aparentemente, estão nuas, pois não sinal de vestimentas, como um cós
de calça ou uma gola de camisa, a não ser o tratamento tonal que diferencia um corpo do
outro e não se caracterizam como tons de pele humana. Os corpos não seguem os cânones de
representação da figura humana observado, sobretudo, pela deformação e desproporção dos
corpos para com as partes, como o tamanho das cabeças. A cabeça do corpo da esquerda é
mais proporcional à figura, do que a cabeça do corpo da direita, bem maior com relação ao
corpo inteiro. São corpos disformes, acentuados na cintura e nas ancas. A posição, sentados e
de costas, não aparenta desconforto, mas os corpos torcidos foram elaborados para representar
figuras inteiras. No conjunto, as formas dos corpos são sinuosas e os rostos são os mais
deformados, como o da figura da direita que possui um nariz enorme os olhos abertos fixos na
figura esquerda.
A pintura na década de 1980 é marcada por rápidas transformações, pelo
ressurgimento de centros artísticos tradicionais na Europa e regionais localizados na América.
O futuro da Arte não é claro e são inúmeras as alternativas de estilos e linguagens artísticas,
sem apontar conclusões definitivas. Os primeiros sinais dessa indefinição surgem nos anos de
1970, identificado pelo uso dos prefixos “neos” (JANSON, 2001) entre outros fatores para
descrever as tendências atuais, como descreve Janson: “A arte dos anos 80 tem simplesmente
sido designada como pós-moderna, o que é incongruente: a modernidade nunca pode ser
ultrapassada, porque significa meramente o que é contemporâneo.” (JANSON, 2001, p.
1000).
Não obstante, durante os anos de 1980 o crítico italiano Bonito Oliva formulou uma
teoria sobre a pintura deste período a partir da produção pictórica italiana. As considerações
de Oliva receberam tão amplo e rápido destaque que passaram a ser referência para outras
tendências internacionais.
Em 1981 Oliva publicou na Revista Flash Art um artigo em que anunciava o tema de
seu livro, lançado um ano após esta publicação, sob o título de Transavantgarde
International. Neste livro Oliva apresenta o que ele caracteriza como Nova Imagem com
64
características como ecletismo, atemporalidade, fragmentação, neutralidade e as relações de
mercado, bem como o retorno à pintura.
Nesse viés a característica da fragmentação, de certa maneira conectada ao aspecto do
ecletismo na teoria de Oliva, pois o autor a define como decorrência do ato de revisitar
imagens do passado em todas as direções temporais e genealógicas, possui especial interesse
para esta pesquisa e é assim determinada por Oliva: “Trabalhar em fragmentos significa
preferir as vibrações da sensibilidade ao conteúdo ideológico monolítico. Essas vibrações são
necessariamente descontínuas [...] Os fragmentos são sintomas de um êxtase de dissociação.
São signos de um desejo de mutações contínuas.” (OLIVA, 1981, p. 38). Para tanto esclarece
ainda Oliva que o fragmentário pode ocorrer numa obra de arte tanto no plano formal quanto
no temático.
A crise da Arte do século XX é marcada pelo ecletismo generalizado, variedade
inquietante de estilos e por obras que refletem causas e preocupações individuais. (JANSON,
2001).
No cenário nacional encontra-se a produção pictórica de Iberê Camargo (1914-1994) e
a sua concepção marcante do tema da figura humana. A despeito da Arte Brasileira deste
período e a obra de Iberê cabe destacar as palavras de Coelho sobre ambos:
A Arte brasileira do século XX teve muitos casos (talvez os mais numerosos,
no conjunto dessa arte) de adesão a gestos intelectuais, a gestos puramente
artísticos – quase digo: a gestos encerrados em si mesmos. [...] um sinal
recorrente de uma certa facilidade, imaturidade ou ligeireza dessa arte, que o
observador pode ver ultrapassado na política de artistas como Iberê. A
juventude de uma arte, que quase sempre dialoga com o estoque inerte de
idéias do mundo, [...] tão atraente e significativa quanto uma outra fase dessa
mesma arte que se permite, e pode mantê-la, uma conversa mais próxima com
a
vida. (COELHO, 2003, p. 73).
O tema da figura humana na obra de Iberê Camargo pode observada em suas séries Os
Ciclistas e As Idiotas, imagens que permaneceram em suas composições pictóricas até o fim
de sua vida. A despeito da presença do tema da figura humana na obra do artista, observa-se
que paulatinamente ela se torna o centro da cena das pinturas de Iberê, por meio de
personagens solitários, sombrios e disformes. Em comentário crítico sobre as pinturas de
figura humana de Iberê, o crítico de arte Ronaldo Brito afirma: “[...] as últimas telas de Iberê
65
Camargo assustam e encantam ao mesmo tempo a sobriedade terrível com que em em
evidência o drama do sujeito moderno [...].” (BRITO, 1994, p. 17).
A maioria das figuras representadas por Iberê tem um aspecto sombrio, são escuras,
cadavéricas, porém muito expressivas como na obra Ciclistas (1991), [fig. 25]. Os corpos
quase sempre nus são disformes, parecem esqueletos. Em nada reproduzem uma preocupação
com os cânones de proporção ou com a tradição clássica do tema. Pelo contrário, a figura
humana na pintura de Iberê Camargo se transforma no espelho de personagens mórbidos e
assustadores. Os rostos têm olhares perdidos e um aspecto de horror sustentado pela feiúra
dos corpos. Estas figuras são representações da vida na forma do corpo humano, o corpo
físico, que sofre as dores da existência para além de sua condição física, nas dores da alma.
Figura 25 - Iberê Camargo
Ciclistas (1991)
Óleo sobre tela
200 x 155 cm
Coleção Maria Camargo, Fundação Iberê Camargo.
As características formais da pintura de figura humana deste artista são: a
desproporção dos corpos e a falta de acabamento das partes, como rostos, braços, pernas e
pés. Os troncos são grandes, mas as pernas curtas e os braços deformados, concluídos por
66
mãos estilizadas e sem arremates. O pescoço e a cabeça são levemente maiores que o corpo,
sem cabelo e os rostos, cadavéricos, são quase sempre carregados de expressões de mistério.
As figuras são representadas intactas, nas quais as partes que constituem os corpos foram
elaboradas visando o corpo como um todo. Entretanto, elas não são idealizadas e
representadas por um ideal de beleza tradicional, mas sim pela visão de um artista sobre a
solidão, o medo da morte, a ação irônica do tempo.
Enfim, com estes propósitos Iberê apresenta a figura humana por meio de corpos
desfigurados, grosseiros e abandonados, sem acabamento, que intrigam e causam repulsa ao
mesmo tempo em que convocam o observador para os sentimentos e o sofrimento do corpo
humano. A respeito da relação de Iberê com outros movimentos artísticos, como o
Expressionismo a exemplo, Naves adverte:
O que dizer do expressionismo paradoxal de Iberê Camargo? Por certo, não é
somente o desencanto com a realidade e suas exigências que o oprime; não é
do confronto entre uma subjetividade tolhida e uma existência avara que
nasce o seu drama. (NAVES, 1996, p. 22).
Contudo, as pinturas de figura humana de Iberê Camargo se relacionam esteticamente
e simbolicamente com a obra de Francis Bacon e Willem de Kooning. Aproxima-se de Bacon
e de suas imagens retorcidas, as quais representam o subumano e o demoníaco como condição
humana e de Kooning, cujo gesto expressionista é um gesto explosivo que desintegra a
realidade e deforma os corpos. Tais aproximações da obra de Iberê para com outros artistas,
que impregnaram a temática da figura humana com o grotesco e o subumano, são confirmadas
por Coelho:
A pintura de Iberê é das que atribuem à arte feita no Brasil um dos tons mais
fortes da grande arte contemporânea: o da arte trágica deslizando na direção
da arte de reverberação metafísica. Seus interlocutores privilegiados no
exterior são artistas como Anselm Kiefer, o Gerhard Richard das várias telas
em preto e branco, Francis Bacon. Pela forma, mais os alemães do que o
inglês. No conteúdo e na matéria, os três: um mesmo eixo emocional da
discussão contemporânea. (COELHO, 2003, p. 73).
No viés contrário à Arte Pop, que de acordo com Malpas foi uma tendência artística
“[...] seduzida pelas superfícies brilhantes das propagandas das revistas e pela novidade da
67
fotografia colorida [...]” (MALPAS, 2000, p. 57) e ainda na qual os artistas retrataram a figura
humana usando fragmentos de corpos, como se nota nas pinturas de Andy Warhol,
encontram-se os artistas realistas britânicos. Um grupo que oferece um tratamento
diferenciado à figura humana, caracterizado, sobretudo pela representação dos corpos inteiros,
porém não menos repletos de valores e conotações sociais.
Refiro-me a Lucian Freud (1922) e suas pinturas figurativas, cujo tema principal é o
corpo nu. As pinturas de figura humana de Freud atentam para aspectos realistas do corpo
humano. O artista usa do realismo e das técnicas pictóricas do mesmo, para dar ênfase às
dobras, às formas e as cores da pele humana e dos órgãos sexuais de figuras humanas, somado
às posições desconfortáveis e composições inusitadas. A despeito de Lucian Freud e sua
abordagem do tema da figura humana, aduz Malpas:
O resultado é uma tensão que emerge da investigação quase médica da
superfície dos corpos, e de uma pintura que não exclui qualquer tonalidade,
matiz ou resíduo indesejável, e, contudo jamais impõe às figuras uma
dissolução de sua forma humana, como pode ocorrer em Francis Bacon com
sua busca pela ‘brutalidade do fato’. (MALPAS, 2000, p. 58).
O tema do quadro de Lucian Freud, intitulado Encostada nos trapos (1988-1989),
[fig.26], é a figura humana, a imagem de um corpo feminino encostada sobre tecidos e está
nu. Tem as pernas retas, estiradas, e os pés firmes no chão, para fora dos tecidos. O tronco é
sinuoso e tem as curvas femininas bem demarcadas. O braço direito está ao lado do corpo, ao
passo que o da esquerda, acima dos ombros, forma um ângulo que o posiciona para longe do
mesmo. A cabeça da figura cai sobre seu braço esquerdo e vê-se o rosto da mulher de perfil.
O corpo nu contrasta com os tecidos, em enorme quantidade, sobre os quais ele se encontra
encostado. As dobras suaves da pele da mulher se relacionam com as dobras acentuadas dos
tecidos que, em alguns pontos da composição, recebe tratamento tonal muito próximo aos da
pele humana. Isso também se observa em determinadas áreas de sombra da pele feminina
onde são usadas nuances de cinza, comuns à cor acinzentada dos tecidos.
Tais relações entre o corpo e os tecidos podem ser interpretadas como uma alusão à
roupa e ao corpo humano. Um corpo nu representado com toda naturalidade como que
despido dos “trapos”, que podem significar as regras sociais, as convenções de representação,
enfim, a pele, o corpo versus a roupa, as convenções. É um corpo representado intacto. Não
possui deformações ou fragmentações que gerem rupturas diretas com os cânones de
68
representação. Trata-se de um exercício mimético da forma que apresenta uma figura humana
natural, repleta de significações, não mais idealizada. É um corpo inteiro, porém mais real,
verdadeiro, mais próximo daquele que se pode tocar, porém continua sendo uma
representação, uma interpretação e a visão de um artista.
Figura 26 - Lucian Freud
Encostada nos trapos (1988-89)
Óleo sobre tela
1,68 x 1,38 m.
National Art Collections Fund, Tate Gallery.
O realismo de Lucian Freud resgata, com as devidas proporções, alguns dos objetivos
de ricault com relação à fragilidade do corpo, mostrados por meio de aspectos formais e
estéticos que escancaram com o visceral e o orgânico da materialidade desse corpo. Freud
demonstra que não é necessário fragmentar o corpo ou mostrar suas sceras, como o fez
Lasar Segall e o próprio Géricault, para mostrar a fragilidade e o sensível da figura humana.
Como Lucian Freud apresenta uma averiguação precisa do corpo humano, contudo
sem anular a forma da figura, Jenny Saville (1970) aborda o tema da figura humana de uma
maneira que a aproxima da morbidez de Francis Bacon e Iberê Camargo. Porém, Saville se
distancia deles e ultrapassa Lucian Freud no tratamento estético, que é realista e mordaz.
69
Na obra Marcada a ferro (1992), [fig.27], o tema é a figura humana. Uma mulher nua,
obesa, representada até os quadris. A perspectiva com vista de baixo, olho de minhoca na
linguagem artística, deforma o que se vê tornando tudo maior.
Figura 27 - Jenny Saville
Marcada a Ferro (1992)
Óleo sobre tela
2,13 x 1,82 m
Saatchi Collection, Londres.
Observe que o enquadramento permite notar que a figura está sendo observada de
baixo para cima. Esse ajuste é que torna a parte inferior do corpo e a região do tórax maiores
que os ombros e a cabeça da mulher inclinada para a esquerda, cortada na testa, quase não
coube na tela. Outra característica do enquadramento nesta pintura é que ele aproxima o corpo
representado, como um zoom fotográfico. O corpo toma todo o espaço da tela, entretanto, esta
aproximação é que causa estranheza, porque aumenta a escala de proporção das partes do
corpo e gera um mal estar e uma sensação de sufocamento. As mãos, o abdômen e os seios
são muito maiores que os ombros e a cabeça da figura proporcionalmente.
O tratamento tonal dado à pele é realista, buscando enfatizar as nuances da pele, mas
muito mais as carnes e as gorduras do corpo. Isso se reflete no comportamento da modelo que
aperta o abdômen, com uma das suas mãos, e põe à mostra a gordura do próprio físico bem
como as gorduras da barriga e abaixo do seio, a esquerda do quadro.
70
A respeito da pintura realista de Saville e suas relações com os trabalhos de Lucian
Freud, aduz Malpas: “[...] pinturas que sugeriam a idéia de um Lucian Freud através de
espelhos convexos: distorções cuidadosamente planejadas dilatavam partes dos torsos.”
(MALPAS, 2000, p. 74).
Nas obras de Saville além do tratamento realista dado à pele dos corpos, outro
procedimento sobre este elemento físico a distingue de Lucian Freud. Trata-se da inscrição de
palavras feitas com pincel sobre a tinta molhada, por cima do corpo representado na tela,
como se fosse uma tatuagem. Malpas comenta a despeito deste efeito pictórico na obra
Marcada a ferro de Saville: “Essa técnica é estranhamente mutiladora e insinua que a simples
pintura do corpo parece não ser suficiente (como é para Freud).” (MALPAS, 2000, p. 74).
Em virtude do que foi mencionado, têm-se como resultado uma série de pinturas cuja
característica da representação do tema da figura humana advém de um interesse pelo corpo e
pelas partes do corpo em suas deformidades e mutilações reais, como a obesidade, tatuagens e
problemas de nascença. Neste sentido trata-se da representação do corpo, mesmo que inteiro,
pelo viés do fragmento, ou seja, por uma preocupação muito mais presente pelas partes e
elementos que compõem o corpo, como o fora no Neoclassicismo.
O que se busca agora é um todo real, no sentido mais restrito do termo. O que se
pretende é um corpo impregnado de referências reais como a gordura e as inscrições de
palavras. Um corpo relacionado, sobretudo, com o corpo social.
De igual forma a obra da artista plástica brasileira Adriana Varejão (1964) visa um
questionamento sobre o corpo e questões sociais, porém no âmbito da identidade nacional e
do processo de colonização vivido pelo Brasil. Toda essa bagagem que carrega o corpo
humano, o corpo brasileiro, em detrimento à herança barroca européia, que a artista questiona
por meio do tratamento estético da figura humana. O aspecto físico dos corpos representados,
quase sempre partidos, é de fragmentos e em decomposição, tendo as vísceras e o sangue à
mostra, conforme aduz Chaimovich:
Misturando pintura e objetos, expunha vísceras, extirpações e sangue ao lado
de azulejos, tatuagens e porcelana. A herança estética do Brasil era assim
apresentada como resultante de um processo de dominação, em que a nós
cabia o papel de vítima. (CHAIMOVICH, 2000, Caderno Especial 2).
71
A despeito do impacto de algumas obras de Varejão, cabe ressaltar que para a artista
suas imagens repletas de sangue e entranhas se remetem à estética barroca e à violência do
colonialismo, como na obra Azul Branca em Carne (2002), [fig. 28].
Figura 28 - Adriana Varejão
Azul Branca em Carne (2002)
Óleo sobre tela
270x 200x 40 cm
Collection Foundation Cartier pour l’art Contemporain, Paris.
As obras de Adriana Varejão causam ao mesmo tempo aversão e fascinação.
Sentimentos e sensações despertados por suas obras pelo uso de nacos de carne e cortes
profundos na tela. Entretanto, segundo a própria artista, quando pinta não pensa em trazer à
tona nenhum destes sentimentos
22
. Sua pesquisa se fixa nos aspectos estéticos e formais
destes elementos, conforme relata Adriana Varejão numa entrevista à Weiss que cita: “Não
penso em causar nada quando estou fazendo meus trabalhos. [...] Não vejo carne como algo
mórbido. [...] É a visualidade desse material que me interessa.” (WEISS, 2000, p. D13).
22
A artista em vários depoimentos sobre suas obras esclarece que se preocupa com os aspectos formais e
estéticos das formas e das cores da carne e do sangue, por exemplo, e não em chocar ou causar repulsa. WEISS,
2000.
72
Encerro o percurso histórico que contemplou algumas das abordagens do tema dentro
do recorte temporal proposto pela pesquisa. Acerca do relato acima organizado, cabe ressaltar
que a forma de interpretar a figura humana dentro de uma dialética entre fragmentos e o
conjunto intacto do corpo, conforme sugere Omar Calabrese (1988), pode significar a
representação do tema de acordo com o “espírito do tempo”
23
, contemporâneo.
23
Sobre o conceito ver CALABRESE, 1988, p. 103.
73
Capítulo II
ICONOGRAFIA DE TIRADENTES
Como mitos costumam dizer mais sobre a história que os criou do que sobre si mesmo, o que o
mito de Tiradentes diz sobre a história brasileira? (PIZA, 2001, p. D6).
Mais do que protagonista da Inconfidência Mineira e líder popular, o alferes Joaquim
José da Silva Xavier (1746-1789), o Tiradentes, se tornou um ícone da história do Brasil
como atesta Milliet:
A sentença de 1792 leva-o à forca por crime de lesa-majestade. Infame aos
olhos da coroa, menosprezado pelo Império, poderia ter permanecido no
limbo da história, não fosse a mudança do regime e a necessidade que os
novos governos m de legitimar-se. Quase um século após a sua morte, vem
a reabilitação. A república faz dele um mito. Joaquim José da Silva Xavier, o
Tiradentes, intitulado Mártir da Nação Brasileira, assume, tardiamente, lugar
de maior relevância na história do Brasil, com direito a comemoração anual,
estátua, efígie, destaque nos compêndios escolares e no panteão da pátria.
(MILLIET, 2001, p. 11).
Tiradentes nasceu na Fazenda do Pombal, entre as cidades de José Del-Rei, atual
Tiradentes, e São João Del-Rei em 1746. Seu pai era português, Sr. Domingos da Silva dos
Santos e a mãe, brasileira, Sra. Antônia da Encarnação Xavier. Mas Tiradentes foi criado por
um padrinho que era cirurgião e que o acolheu quando perdeu a mãe aos nove anos de idade e
depois o pai, aos onze. Foi com este padrinho que o alferes aprendeu as noções práticas de
medicina e odontologia que lhe renderam o apelido de Tiradentes.
Consta que ele nunca se casou, mas teve uma filha de nome Joaquina com uma
senhora viúva com quem manteve um romance. Não estudou regularmente, mas seu
conhecimento era razoável. Foi nomeado pela rainha D. Maria I, em 1781, comandante de
patrulha do Caminho Novo, estrada pela qual chegava ao Rio de Janeiro o ouro e o diamante
extraídos na Capitania de Minas Gerais.
74
O alferes Tiradentes envolveu-se intensamente com a Inconfidência Mineira e pediu
licença de seu regimento em 1787, para ir ao Rio de Janeiro onde conheceu José Álvares
Maciel que chegara da Europa pouco tempo antes, com novas idéias políticas e filosóficas.
A partir de 1788, quando volta a Minas Gerais, Tiradentes divulga publicamente os
ideais do movimento. Porém, logo em 1789 é denunciada a conspiração por Joaquim Silvério
dos Reis e Tiradentes é preso no Rio de Janeiro.
Durante a Devassa, nome dado ao processo de investigação, permaneceu preso numa
masmorra e foi ouvido por quatro vezes. No começo negou tudo, mas ao final assumiu toda a
responsabilidade, inocentando os demais envolvidos.
Aos 18 de abril de 1789 foi lida a sua sentença de morte, e três dias depois ele foi
executado em forca erguida no Largo da Lampadosa, hoje Praça Tiradentes, no Rio de
Janeiro. Sua pena previa além do enforcamento a decapitação e o esquartejamento, bem como
a exposição de sua cabeça na Vila Rica e os quatro quartos do corpo dependurados em postes
ao longo do Caminho Novo, do qual fora comandante. Como é descrita a sentença
condenatória segundo Grandes Personagens da Nossa História, citada por Christo:
Portanto condenam ao réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o
Tiradentes, alferes que foi da tropa paga da capitania de Minas, a que com
braço e pregação seja conduzido pelas ruas blicas ao lugar da forca e nela
morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a
cabeça e levada a Vila Rica, onde em o lugar mais público dela será pregada,
em um poste alto até que o tempo o consuma; e o seu corpo será dividido em
quatro quartos, e pregado em postes, pelo caminho de Minas, no Sítio da
Varginha e das cebolas, onde o réu teve suas infames práticas, e o mais nos
sítios de maiores povoações até que o tempo os consuma [...]. (GRANDES
PERSONAGENS DA NOSSA HISTÓRIA, 1969, v.1, p.232 apud CRHISTO,
2005, p.272).
Quanto ao reconhecimento de Tiradentes como mártir da Inconfidência Mineira ter
ocorrido muitos anos depois, somente em 1867 quando se ergueu na cidade de Ouro Preto o
primeiro monumento em sua memória e mais tarde ainda, em 1965, quando o dia 21 de abril
se torna feriado nacional por decreto lei, demonstra como o episódio ecoou na sociedade
brasileira por interesse e muito lentamente.
75
No entanto, a representação da cena do seu enforcamento e esquartejamento, bem
como de fatos que circundaram o episódio se tornarão temas de pinturas brasileiras surgidas
após o centenário de sua morte.
Estas pinturas se configuram numa rica iconografia para pesquisa dos aspectos
estéticos que envolvem a representação do tema da figura humana na pintura brasileira, bem
como a representação do corpo inteiro versus o corpo em partes, fragmentos.
Ademais, o contato com tal iconografia pictórica se deve ao fato do tema Tiradentes
ser o assunto de ambas as obras analisadas iconologicamente mais adiante, como exemplos do
objeto de estudo, no próximo capítulo desta Dissertação.
A escolha do estudo da obra de Aurélio de Figueiredo e Melo, Cândido Portinari e
João Câmara Filho se deve ao fato de que estes três artistas são marcos na iconografia de
Tiradentes, como demonstrarei a seguir.
Aurélio de Figueiredo pintou a primeira cena de Tiradentes ao da forca, momentos
antes de sua execução, tomando um caminho totalmente diverso de Pedro Américo e sua obra
Tiradentes esquartejado, [fig.29]. Aliás, a cena de Aurélio de Figueiredo se tornará um
modelo para diversas outras produções pictóricas sobre o tema.
Cândido Portinari, por sua vez, pinta o esquartejamento cinqüenta anos depois de
Pedro Américo e atualiza a cena da execução, assim como João Câmara, que em 1986, dará
início a uma série de releituras inéditas de Tiradentes esquartejado.
Portanto, como afirma Christo: “Tiradentes esquartejado foi igualmente apropriado
por outros artistas, como Arlindo Daibert, Sandro Donatello Teixeira, Wesley Duke Lee e
Adriana Varejão.” (CHRISTO, 2005, p. 26).
Um breve estudo de algumas das produções pictóricas que retratam a temática
envolvendo a morte de Tiradentes é relevante por permitir um entendimento do fato, sua
contextualização histórica e um universo visual que permeia até hoje as produções pictóricas
que abordam o tema.
As obras a serem observadas são pinturas que além de corroborar o fato histórico,
possuem em seus conteúdos uma proposta de reflexão crítica dos aspectos sociais, políticos e
culturais cristalizados pela imagem de Tiradentes e pelas relações desta figura com os
aspectos estéticos e formais da representação da figura humana.
76
Figura 29 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893)
Óleo sobre tela
262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
O fato histórico caracterizado como uma conspiração contra o Império marcou
profundamente a história da Inconfidência Mineira e foi deflagrada no ano de 1789, por uma
denúncia e ao mesmo tempo uma traição. Sobre o acontecimento sempre pairou dúvidas,
incertezas e muitos segredos, conforme relata precisamente Milliet:
Corria o ano de 1789. A delação põe em movimento a máquina repressiva do
governo colonial: à ordem da prisão dos suspeitos, segue-se a abertura de uma
devassa em Vila Rica. [...] Dentre os réus, um único acaba por assumir as
idéias e intenções que lhe são imputadas: O Tiradentes. [...] Em 1792, a
Alçada, finalmente, pronuncia a sentença. Cumpre-se a farsa. Dos doze
condenados à pena capital, apenas o Tiradentes não merece real clemência.
Enforcado, esquartejado, as partes do corpo expostas à execração pública [...]
Tudo acontece num cenário de terror montado para sustentar um domínio em
crise. (MILLIET, 2001, p. 13).
77
No mesmo ano, 1893, que Pedro Américo apresenta ao público a pintura Tiradentes
esquartejado, seu irmão Aurélio de Figueiredo e Melo (1854-1916) pinta a tela Martírio de
Tiradentes, [fig.30].
Um óleo sobre tela que hoje se encontra no Museu Histórico Nacional do Rio de
Janeiro. Aurélio, num viés totalmente contrário ao do irmão mais velho, retrata o momento
que antecede o enforcamento de Tiradentes. Sua pintura mostra “a cena ao pé da forca”
(MILLIET, 2001, p. 175) e passa a determinar um padrão constantemente retomado pela
iconografia de Tiradentes, muito mais que a imagem do esquartejamento escolhido por Pedro
Américo.
Figura 30 - Aurélio de Figueiredo e Melo
Martírio de Tiradentes (1893)
Óleo sobre tela
57x45cm
Museu Histórico Nacional, Rio de Janeiro, RJ.
O fato de Tiradentes ser retratado mais nos momentos que sucederam o seu
enforcamento, como nas obras Leitura da sentença dos inconfidentes (s/d) de Eduardo de Sá e
Tiradentes ante o carrasco (1963) de Rafael Falco, torna a obra de Pedro Américo ainda mais
relevante para o estudo.
78
A obra Tiradentes esquartejado é um ícone do acontecimento histórico sem ecos,
interpretado por poucas imagens brasileiras com as quais se possa comparar o corpo
esquartejado, porque conforme esclarece Callado:
[...] todos nós aprendemos na escola que o Tiradentes, depois de enforcado,
foi esquartejado, mas a imagem aceita, aprovada, é a da forca, o mártir
barbudo, vestido com a alva, isto é, o camisolão, aguardando o momento de
entrar na morte e na história. (CALLADO, 1997, s/p).
Dessa forma as obras de Aurélio Figueiredo e Melo e de Pedro Américo se aproximam
e se distanciam ao mesmo tempo, porque tratam da mesma temática: figura humana e
Tiradentes, porém, concebem a figura humana de maneira totalmente diversa. Em Aurélio a
figura humana permanece intacta em oposição à obra Tiradentes esquartejado na qual a figura
humana é representada em partes.A pintura de Aurélio Figueiredo tem como tema o
Tiradentes, composta de três figuras humanas vestidas e representadas por corpos intactos. No
céu vemos quatro aves e uma pomba branca na parte inferior da tela. Do palco onde está
disposta a forca nota-se uma parte da escadaria em linha diagonal acentuada e outros três
elementos de madeira: um pilar à esquerda, uma parte da cerca que circunda o palco, à direita
e parte da forca no eixo centro-direito da pintura. O tratamento cromático é suave composto
de tons pastéis de verde, azul, ocre e branco para as regiões de luz, em contraste com sienas,
sépias e marrons das sombras.
O desenho não é muito refinado como se percebe nas mãos pouco detalhadas do
Tiradentes. Pinceladas soltas e rápidas, porém, bem colocadas nas regiões de luz intensa ou
como nas asas da pomba, sugerem a preocupação do artista mais com o conteúdo do que com
a forma. Entretanto, as figuras possuem proporção e o artista segue as regras de anatomia e
proporção dos corpos. Aurélio se abstém das preocupações do idealismo neoclássico que
perseguia um alto grau de acabamento e realismo para abarcar a emocionalidade da ocasião.
Isso pode ser observado na estrutura composicional da pintura. Três homens, três figuras
humanas, três referências imagéticas: o condenado - Tiradentes, o confessor - o padre que
pede por clemência divina e o carrasco - aquele que executará o ato do enforcamento.
As figuras são representadas intactas, exceto pela posição em que se encontram na
composição que dificulta a observação das pernas do carrasco, representadas dos joelhos para
baixo, em função do corte perspectivo da cena. O conjunto de três figuras foi muito bem
elaborado pelo pintor, que ao compor com os três corpos gera equilíbrio e harmonia fixados
79
por meio da composição triangular. Tiradentes em e no centro da composição ocupa a
posição do ápice do triângulo voltado para cima, em contraposição com a figura do pássaro
branco que caracteriza um outro ápice, de um triângulo voltado para baixo. Certamente o
artista faz referência aos aspectos opositivos da vida versus a morte, da prisão de Tiradentes
versus a liberdade representada pela pomba.
Para Milliet a pomba representa um reforço simbólico para além da solução
composicional ao qual o artista não teria resistido utilizar:
Bem resolvida a composição, Aurélio não resiste ao reforço simbólico.
Introduz uma pomba branca a meio do segmento inferior da tela, em perfeita
coordenação com o crucifixo acima, estabelecendo assim uma relação entre
sofrimento e paz espiritual, dado atenuante que acena com a recompensa
moral á dor. (MILLIET, 2001, p. 177).
Outros elementos da composição reforçam a estrutura triangular criada por Aurélio
com as figura humanas como os pilares de madeira que sustentam o palco da forca. Atrás do
Tiradentes a forca, bem mais alta que o condenado, extrapola os limites da tela por meio de
um corte que não permite ver a forca, gerando expectativa e mistério.
A cor da madeira, amarronzada, serve para contrastar com a túnica branca do alferes.
À esquerda outro pilar de madeira um pouco mais alto que a figura religiosa, caracteriza a
ponta esquerda do triângulo e na extremidade direita, agora bem mais baixo que a figura do
carrasco, a outra ponta direita, marcada pelas ripas que circundam o palco do enforcamento.
A apresentação dessa estrutura de composição fechada na figura geométrica triangular
também pode representar a intenção do artista de representar a cena como algo inevitável, sem
saída, fechada. Um triângulo, dois triângulos, um para cima e outro para baixo, encerra algo
intrínseco à cena.
O condenado, o confessor e o carrasco não têm escapatória e o desfecho da cena,
sabemos, será o enforcamento de Tiradentes, a figura central da pintura. Para Milliet esta
estrutura compositiva é ampliada pelo ângulo imposto por Aurélio ao observador e recebe
atenção do pintor, como relata:
[...] que o enquadramento potencializa a dramaticidade do momento. Tudo
poderia cair na banalidade, não fosse o ponto de vista baixo, a tomada não
frontal e muito próxima dos protagonistas e o forte contraste entre as áreas de
80
luz e sombra. O espectador estaria situado na zona escura, bem abaixo do
patamar da forca, cujas tábuas formam um plano de acentuada diagonal.
(MILLIET, 2001, p. 177).
Por fim uma última relação a despeito da composição triangular das figuras da pintura
Martírio de Tiradentes. Esta se refere ao significado da figura geométrica do triângulo para a
Inconfidência Mineira. Como sabemos o símbolo do movimento [fig.31], sugerido como lema
por Alvarenga Peixoto é um triângulo vermelho, representando a Santíssima Trindade
(Secretaria de Estado da Cultura Brasília, 2006) e tendo à sua volta a frase de Virgílio:
Libertas que sera tamen (Liberdade ainda que tardia).
Figura 31
Símbolo da Inconfidência Mineira
A disposição das figuras na forma de um triângulo reafirma a ligação entre elas,
sobretudo, a de Tiradentes com a Inconfidência Mineira. Não há o que contestar, a imagem do
enforcamento é a imagem da Inconfidência tendo como ápice o corpo do Tiradentes ereto,
firme na posição de morrer pelo movimento. Portanto Aurélio de Figueiredo e Melo segue um
caminho contrário ao de Pedro Américo, quando opta por retratar o momento anterior ao
enforcamento. São dois pilares, dois opostos: Aurélio retrata o corpo intacto enquanto que
Pedro Américo o seu esquartejamento.
Outro elemento visual os separa e os aproxima. Trata-se do corte perspectivo e o
ângulo de visão. Em Aurélio, o corte não permite ver o corpo do carrasco inteiro, por
exemplo, mesmo sabendo que o mesmo está representado intacto, ou seja, contempla um
81
todo. Pedro Américo ignora este recurso do corte e mostra a cena inteira, centralizada,
escancarando as partes do corpo de Tiradentes, ali, dispostas em fragmentos.
Quanto ao ângulo de visão da pintura de Aurélio de uma visão rebaixada, imposta
abaixo da linha do horizonte que causa angustia e amplia o mistério da cena, novamente é
totalmente contrário à de Pedro Américo, que estabelece o ângulo de visão na altura normal
do olhar, bem de frente, nua e cruamente.
Duas pinturas sobre Tiradentes: Martírio de Tiradentes e Tiradentes esquartejado.
Uma é emoção e dramaticidade a outra é emoção e realidade, respectivamente. Ambas têm
como cenário o palco do enforcamento do alferes mineiro, mas uma é o antes e a outra é o
depois. Uma representa a violência de esperar pela morte, vivida pelo condenado e a outra é a
própria morte. Uma traz ainda o corpo vivo, inteiro, e a outra a total ausência da vida, um
corpo morto, em partes.
Meio século depois que Aurélio de Figueiredo e Melo pintou a tela Martírio de
Tiradentes e Pedro Américo Tiradentes esquartejado, ambas de 1893, o artista Cândido
Portinari (1903-1962) pinta o mural Tiradentes.
Portinari recebe uma encomenda do industrial e literato Francisco Inácio Peixoto para
pintar um painel para o saguão de entrada do Colégio Cataguases
24
, na cidade de Cataguases
interior de Minas Gerais, projetado pelo arquiteto Oscar Niemeyer mentor do convite.
O artista paulista aceita a encomenda e pinta o Painel Tiradentes, [fig.32], optando
pela temática do relato do episódio mais marcante da Inconfidência Mineira, que fora a
condenação e o esquartejamento do alferes José Joaquim da Silva Xavier, muito embora a
temática da encomenda fosse livre.
Composto pelos principais episódios e protagonistas da Inconfidência Mineira, o
painel começou a ser pintado por Portinari em seu atelier no ano de 1948 e foi concluído já na
parede do Colégio Cataguases em 1949.
De dimensões gigantescas, num total de 17,70 x 3,09 metros, o mural é uma pintura à
têmpera composta por três telas justapostas que hoje se encontra em exposição no Salão de
Atos Tiradentes no Memorial da América Latina na cidade de São Paulo, permanentemente.
24
Projeto Portinari (http://www.portinari.org.br, pesquisado em 13/08/2006) onde consta ainda a seguinte
informação sobre o painel: “Esta obra foi premiada com a Medalha de Ouro da Paz no 2º. Congresso Mundial
dos Partidários da Paz em 1950, em Varsóvia, Polônia”.
82
Figura 32 - Cândido Portinari
Painel Tiradentes (1948-1949)
Têmpera sobre tela- 309 x 1787 cm
Fundação Memorial da América Latina – São Paulo – SP.
Sua maior contribuição à iconografia de Tiradentes é a retomada da representação do
corpo do alferes esquartejado. Portinari quebra um ciclo de praticamente cinqüenta anos de
representações das cenas antecessoras ao esquartejamento, que na maioria das vezes
representaram o corpo de Tiradentes e, portanto, o tema da figura humana, inteiros
25
.
O ápice visual de sua pintura é a cena do esquartejamento, na qual as partes de
Tiradentes são dependuradas em postes pelo Caminho Novo
26
e a figura humana, portanto,
aparece fragmentada.
Quanto à figura humana e a representação do corpo inteiro e ou fragmentado, Portinari
mais uma vez se apropria do espaço pictórico e da idéia de seqüência, de continuidade,
também como um recurso de tratamento formal aplicado à figura humana, embora obedeça
aos cânones de representação da figura. No primeiro conjunto pictórico, as figuras humanas
são representadas por meio de corpos inteiros, intactos, além de serem agrupadas em blocos
27
o que constitui uma forma geométrica triangular. Esses coletivos de figuras reforçam o
aspecto de coesão no tratamento dos corpos, em sua maioria, vestidos.
Entretanto, no segundo painel esta coesão é quebrada exatamente no conjunto
pictórico central, que o painel é um tríptico. É nele que Portinari escolhe fragmentar a
figura humana por meio do corpo esquartejado de Tiradentes. Da esquerda para a direita,
vários grupos de figuras humanas são dispostas tanto mais à frente, quanto ao fundo da
pintura. A variação do tamanho dos corpos, bem como a quantidade de figuras, provoca um
contraste que culmina na cena do enforcamento que tem no corpo de Tiradentes, maior do que
todas as outras figuras humanas representadas no tríptico, a figura de destaque.
25
Para Christo: “Cândido Portinari (1903-1962) será o primeiro pintor, após 55 anos, a retomar o tema do
esquartejamento.” CHRISTO, 2005, p. 135.
26
A mesma estrada da qual Tiradentes fora comandante de patrulha nomeado em 1781. Ver em
http://www.cidadeshistoricas.art.br/hac/bio_tir_p.htm
, pesquisado em 13/08/2006.
27
Sobre este aspecto da coesão preleciona Christo (2005): “A conjuração é apresentada como algo coeso. Na
primeira cena, os conjurados formam um único bloco, cujas cabeças situam-se num mesmo plano.” CHRISTO,
2005, p. 134.
83
Além disso, o corpo de Tiradentes é apresentado em partes, desconjuntado
28
, antes
mesmo de ser representado no próximo conjunto pictórico, terceiro e último, suspenso nos
mastros de Portinari. A cabeça está no chão. Para Christo: “Portinari, por sua vez, faz o corpo
esquartejado lembrar mera marionete solta ao chão, com a cabeça largada no plano inferior.
Sem qualquer sacralidade, o corpo expressa a dor, escorchado, se esvai em sangue”.
(CHRISTO, 2005, p. 135).
Logo acima próximo à cabeça, uma perna completamente fora de lugar, aponta para a
esquerda e mais para o alto um braço e uma mão apontam ao contrário, para a direita. No topo
da figura um outro braço deixa a mostra o ombro e a outra mão de Tiradentes, situados mais
próximos da corda, instrumento e símbolo do enforcamento
29
. Sobre esta imagem de
Tiradentes e a representação do fato por meio do corpo desmembrado, cabe citar a análise que
faz Milliet acerca das impressões geradas pela escolha de Portinari de assim representar o
corpo: “Os membros decepados envoltos em panos formam uma pirâmide em torno da estaca
da forca. A dimensão exagerada das partes sugere que se esse corpo fosse remontado seria o
de um gigante.” (MILLIET, 2001, p. 230).
Na terceira pintura e na primeira seqüência de imagens são dispostos os quartos de
Tiradentes no alto de quatro mastros
30
. No alto de cada poste, um quarto do corpo mutilado.
Os dois primeiros apresentam o seu tórax e os braços, e os outros dois, mais adentro e ao
centro e em perspectiva, as pernas. Esses pedaços são montados como carnes dispostas num
balcão de açougue e causa repulsa e estranhamento, pois escalpelados esses quartos
apresentam uma aparente ausência de pele, o que acentua a prática do terror em torno do
fato
31
.
Esta cena é a reconstrução da condenação conforme consta nos documentos de 1792
citados por Callado:
Ouçam o texto da chamada Certidão da execução do Tiradentes, ou, por
outras palavras o quase desdenhosos atestado de óbito que lhe fizeram:
28
Milliet em seu estudo sobre esta obra, relaciona este corpo desconjuntado de Tiradentes com a figura do
espantalho e com o horror do “ritual da forca, o esquartejamento e a exibição do corpo aos pedaços que enchem
o povo de pavor”, na obra de Portinari. MILLIET, 2001, p. 230-232.
29
Para o mural e especificamente para as cenas de Tiradentes esquartejado, Portinari fez uma série de gravuras
em metal, água-forte, e grafite sobre papel. Ver no site do Projeto Portinari, http://www.portinari.org.br
30
“A próxima cena apresenta quatro postes sustentadores das partes esquartejadas do corpo de Tiradentes,
acompanhadas por abutres e flores de cacto. A musculação exposta associa-se ás montanhas sulcadas do
Caminho Novo das Minas Gerais. Por fim, a cabeça, como a de uma escultura, elevada no alto de mastro, no
interior de uma caixa.” CHRISTO, 2005, p. 134.
31
Sobre a violência e o choque visual destas imagens, ver MORAIS, Frederico, “Tiradentes nas artes plásticas
brasileiras”, in NEVES, José Alberto Pinto (coord.), Tiradentes, Brasília: MEC, 1993, p. 88.
84
Francisco Luís da Rocha, Desembargador dos Agravos da relação desta
Cidade, e escrivão da Comissão expedida contra os Réus da Conjuração
formada em Minas Gerais: Certifico que o Réu Joaquim José da Silva Xavier
foi levado ao lugar da forca levantada no Campo de São Domingos, e nela
padeceu de morte natural, e lhe foi cortada a cabeça, e corpo dividido em
quatro quartos, e como assim passou na verdade lavrei apresente certidão; e
dou minha fé. Rio de Janeiro, 21 de Abril de 1792. (CALLADO, 1997, s/p).
Finalmente, as montanhas claras contrastam com o vermelho das carnes de Tiradentes.
A seguir, os grupos de figuras são recompostos e no último cenário, na imagem à extrema
direita, ocorre um fato inédito na iconografia de Tiradentes que é a reconstrução da figura
humana. Após o esquartejamento ela é recomposta, simbolicamente, por meio da composição
das figuras em grupo e representadas por corpos inteiros.
Segundo Christo em sua análise do mito do herói no qual se configura Tiradentes e sua
iconografia para a historiografia brasileira: “A ênfase é reservada ao corpo esquartejado, que
se oferece ao povo. Na morte, herói e povo comungam. A narrativa de Portinari não celebra
um herói isolado, oficial, mas sua relação com o povo. Expõe cruelmente a dor, mas no final,
o alcançar da liberdade.” (CHRISTO, 2005, p. 134).
O último mastro
32
presente na pintura traz no alto a imagem da cabeça do mártir, como
se fazem nas festas folclóricas em que os estandartes são erguidos para homenagear São João
ou Santo Antônio. Assim, o fragmento permanece em cena, mas ao redor, a figura humana é
reconstruída por meio da representação coletiva dos grupos de pessoas, testemunhas oculares
do fato.
Portinari ao representar o corpo humano via a seriação de figuras, constrói um
processo de fragmentação interna inerente à estrutura de composição por ele escolhida. Esse
processo prevê a construção e a desconstrução da figura humana que culmina no corpo do
Tiradentes, esquartejado, não por acaso, e se estabelece na cena que apresenta as partes do
corpo no alto dos mastros, para depois ser reconstituída na última série de imagens do
painel
33
.
32
Neste particular nomeio os postes de mastro, sobretudo, numa alusão aos mastros de Alfredo Volpi (1896-
1988). Assim como em Volpi, os postes de Portinari constroem relações de figura e fundo na composição, como
forte elemento vertical e pictórico.
33
Esta reconstituição pode ser exemplificada pela descrição desta cena por Christo: “À esquerda uma família de
retirantes em lamento e, à direita, um grupo de mulheres, ostentando correntes partidas”. CHRISTO, 2005, p.
134.
85
Convém evidenciar, contudo, que Portinari não se detém na figura esquartejada e
recompõe a figura humana e ao finalizar sua representação com imagens de corpos inteiros,
fecha um ciclo dentro do processo de fragmentação da figura humana por ele mesmo
estabelecido em sua composição e dispõe sua postura frente ao tema.
Antes, como vimos em Aurélio de Figueiredo e Melo a figura de Tiradentes fora
apresentada inteira e o corpo além de intacto, respeita os cânones de proporção da figura
humana. Na mesma época, em 1893, com Pedro Américo ocorre o oposto e a figura do corpo
de Tiradentes é representada por partes, embora também respeite os cânones, conforme a
leitura simbólica de Christo:
Em Pedro Américo, o corpo é apresentado realisticamente, não obstante
poupar o observador das contrações da morte, do excesso de sangue, dispondo
as partes do cadáver de modo a favorecer uma leitura a princípio religiosa,
enfatizada pela presença do crucifixo. (CHRISTO, 2005, p. 135).
Agora nesta obra de 1949, em Portinari, as duas situações estão presentes. O artista
representa os corpos dos personagens inteiros como um corpo coletivo, depois fragmenta e
representa o individual, solitário e fragmentado corpo de Tiradentes, para terminar
reconstruindo essa figura humana por meio dos corpos das figuras inteiras, restituindo-lhes o
corpo coletivo, perdido no esquartejamento. Toda essa concepção estética não se apresenta
apenas no plano formal, mas revela-se, sobretudo, no âmbito do simbólico e na relevância
social e política destes fatos históricos, assim como o é o episódio do esquartejamento de
Tiradentes.
Neste vértice, entre os artistas que se apropriam de temáticas históricas e abordaram o
fato ocorrido com Tiradentes num diálogo atual com a tradição pictórica do século XIX,
encontra-se o artista plástico João Câmara Filho (1944).
No ano de 1986, João Câmara pinta o Mural da Inconfidência Mineira, um dos
trabalhos que o qualificaria como um pintor histórico, sobretudo, por buscar a construção de
um discurso sobre os fatos. Contudo, esta tradição é renovada pela introdução de uma crítica
contemporânea radical construída por meio, entre outros elementos, da fragmentação das
imagens
34
. Essa fragmentação pode ser encontrada na obra figurativa de João Câmara mesmo
34
Christo discorda afirmando que no painel de João mara as figuras fragmentadas que o caracterizam não
aparecem: “A linguagem figurativa de João Câmara revela-se sem as grandes fragmentações e torções
expressionistas que a caracterizam, a exemplo da série Cenas da vida brasileira: 1930-1954, realizada na década
86
em fases anteriores quando a produção do artista, já por volta de 1960, começa a apresentar as
características que determinariam a sua pintura.
Câmara caracteriza-se por apresentar ao lado de figuras humanas com seus corpos
estruturados, representações de corpos fragmentados ou mesmo rendidos a torções e
deformações, como dispõe a despeito Lopes:
Desde o início de sua produção, João Câmara revela total obsessão pelo
retrato e pelo corpo humano, submetendo-os; na maioria das vezes, a
estranhas deformações e ambigüidades. [...] Em algumas obras, arquiteta
cenas e cenários em que as figuras se projetam com tal verossimilhança, como
se estivessem vivas no écran da tela para nos encarar, provocar e desafiar.
Mais lentamente, vamos-nos dando conta dos paradoxos e da blague, seja pelo
ridículo das atitudes e ações, seja pelas amputações, torções e rotações que
imprime ao corpo ou a partes dele. (LOPES, 1995, p. 54).
João Câmara executa o Mural da Inconfidência [fig.33] a convite do arquiteto Oscar
Niemeyer e pelo então governador do Distrito Federal José Aparecido de Oliveira.
Uma encomenda que previa a realização de um painel, projetado em 1981 e instalado
em 1986
35
, para o Panteão da Pátria Tancredo Neves, em Brasília, cujo tema deveria ser a
Inconfidência Mineira.
O Painel é composto por sete quadros monocromáticos, em preto e branco, pintados
com tinta acrílica sobre tela em chassi de alumínio. Sua área total é de oitenta e quatro metros
quadrados, sendo vinte e um metros de comprimento por quatro de altura.
Segundo a Secretaria de Estado da Cultura de Brasília D.F.: “Cada um dos quadros
tem título e história próprios, dentro de um contexto geral, que simboliza uma das ginas
mais ricas da história do Brasil”, (SEC Secretaria de estado da Cultura, 2006) e assim
descreve os sete painéis
36
:
1º. Painel O Sacrifício da Industrial Nacional: representa a queima dos
teares e o sacrifício alegórico da jovem indústria nacional [...]. O Painel
denuncia a oposição imposta por Portugal e pela Inglaterra ao movimento
de 70, tornando o painel Inconfidência Mineira mais didático, embora não menos crítico.” CHRISTO, 2005, p.
138.
35
Ibid., p. 136.
36
Maraliz de Castro Vieira Christo, autora da tese de doutoramento sobre a obra Tiradentes Esquartejado de Pedro Américo
traz uma descrição mais detalhada das cenas do painel Tiradentes de João Câmara. Ibid., p. 136-141.
87
1º. Painel
2º. Painel
3º. Painel
4º. Painel
5º. Painel
6º. Painel
7º. Painel
Figura 33
João Câmara Filho
Painel da Inconfidência Mineira (1981-
1986)
Acrílico sobre tela
400x700 cm
Panteão da Pátria – Tancredo Neves,
Brasília – DF.
88
fabril e mercantil brasileiro, no final do século XVIII.
2º. Painel Reunião
dos Inconfidentes: mostra uma das incontáveis reuniões dos inconfidentes.
[...] O inconfidente sentado com os pés sobre os livros seria Tiradentes,
que o pintor se auto-retrata como se Tiradentes fosse o artista se
imortalizando na própria obra. 3º. Painel – Pregação de Tiradentes: no
terceiro painel nós temos Tiradentes pregando seus ideais de liberdade. A
cena nos retrata Tiradentes vestido de farda de alferes do século XVIII tendo
ao fundo uma mina do século XX, a mina de Serra pelada, indicando, assim a
movimentação atemporal do espírito de liberdade. [...] A cobra aos pés do
cavalo representa a traição ao movimento da Inconfidência. 4º. Painel A
Morte de Cláudio Manoel da Costa: no quarto painel uma homenagem ao
poeta Cláudio Manoel, um dos inconfidentes. Estando preso com os
inconfidentes, numa certa manhã o seu corpo é encontrado morto por
enforcamento. [...] 5º. Painel A Farsa do Julgamento: no quinto painel nós
temos a farsa do julgamento dos inconfidentes. Concebida como um teatro
grotesco, [...], fala-se o idioma clichê da história oficial. 6º. Painel – O
Enforcamento de Tiradentes: neste quadro aparecem em cena: o Mártir, o
carrasco e o religioso. [...] O público é reduzido à sombra que aparece no
fundo. 7º. Painel O Corpo: o corpo de Tiradentes, embora esquartejado, é
recomposto numa crucificação, tendo como pano de fundo a cidade de Vila
Rica, hoje, Ouro Preto, onde todos os fatos aconteceram. O aspecto comum
em toda obra é o triângulo, símbolo do movimento da Inconfidência Mineira
e a lamparina acesa, ora apagada, faz uma referência à luz, luz de liberdade.
(SEC – Secretaria de Estado de Cultura, 14/08/2006).
Das sete pinturas que compõem o painel, escolhi O Enforcamento de Tiradentes, o
sexto painel da série, por entender que a leitura de todas as sete pinturas acarretaria um
trabalho intenso e que não é o principal objetivo deste trabalho. Contudo, a escolha deste
quadro para leitura se deve ao fato da mesma oferecer informações relevantes que servem de
comparação para com as outras obras estudadas neste capítulo, como a presença dos três
personagens ícones da representação da morte de Tiradentes, que são o condenado, o religioso
e o carrasco. E, sobretudo, pelo fato da pintura ser a que mais se aproxima da obra de Aurélio
de Figueiredo e Melo e, ao mesmo tempo, por se contrapor à cena do esquartejamento de
Pedro Américo.
A obra O Enforcamento de Tiradentes (1985-1986), sexto painel que compõe o mural
da Inconfidência Mineira pintado por João Câmara, tem como tema a cena clássica do
89
enforcamento, composta dos três personagens que caracterizam esta cena: o condenado, o
religioso e o carrasco, situados à extrema direita da tela. Como relatei anteriormente na obra
Martírio de Tiradentes de Aurélio de Figueiredo e Melo esta cena atualiza “[...] um
paradigma que será constantemente retomado na iconografia do herói: a cena ao da forca
[...]” (MILLIET, 2001, p. 175). Contudo, outros personagens também aparecem para assistir
os últimos momentos de Tiradentes e vemos em segundo plano três soldados e mais ao fundo
da pintura as sombras de pessoas, supostamente o público.
O carrasco está situado na parte superior da composição quase ao centro da pintura.
Sua altura e o movimento das mãos segurando a corda demonstram seu status, daquele que
detém o poder para executar a condenação. Ao passo que, a posição de Tiradentes, num
degrau abaixo ao do carrasco, o situa numa posição de submissão, comprovado pelo seu
semblante e pelas mãos atadas pelos nós feitos em sua camisola branca. Bem abaixo, na parte
extrema e inferior da pintura, centralizada, se encontra a figura do frei. O homem religioso
tem as mãos em posição de oração e seu corpo é representado da cintura para cima.
Observando a composição estabelecida por estas três figuras, encontra-se novamente a
presença da figura geométrica do triângulo, com o ápice voltado para a direita, na figura de
Tiradentes. Esta figura geométrica triangular gerada pela composição do padre, do Tiradentes
e do carrasco é equilibrada e compensada pelo desenho das cordas usadas no enforcamento
que criam um outro triângulo voltado para a esquerda, no chão, na altura dos pés do carrasco e
de Tiradentes.
O palco do enforcamento está centralizado e divide a pintura entre aquele que reza por
Tiradentes e aquele que o condena. O Padre, porém, nada pode fazer por Tiradentes a não ser
unir as mãos. A forca e o palco estabelecem duas linhas horizontais na composição, que se
opõem às figuras de Tiradentes e o carrasco, na extrema direita da pintura. Em oposição, estão
três soldados portando suas espadas apontadas para as costas do carrasco para que não haja
dúvida sobre a condenação, nem tampouco, para que ela deixe de ser concluída. Estes
soldados também formam um triângulo, a partir do soldado mais alto, disposto mais à frente
que se encontra na parte superior e na extrema esquerda da tela, fazendo contraponto com a
figura de Tiradentes.
Finalmente a forca, representada por um caibro de madeira, tem o tamanho de toda a
extensão da pintura. Como uma moldura ela encerra o espaço pictórico superior da pintura e
tem a função de nos remeter novamente à imagem do enforcamento. Por fim, a presença do
público na obra, ao fundo, é representada pelas sombras de mãos levantadas para o alto num
90
acesso de manifestação da qual não se toma conhecimento, pois nada mais são do que
fantasmas, na penumbra.
Quanto à figura humana, os corpos são representados intactos em função da temática
da cena que antecede ao esquartejamento de Tiradentes. Os corpos estão vestidos e apenas o
corpo do Tiradentes e do carrasco podem ser vistos inteiros. Dos corpos dos soldados não se
pode ver os pés e o padre aparece da cintura para cima, entretanto, os corpos são retratado
intactos, recortados apenas pela circunstancia da composição.
as mãos que aparecem ao fundo, como sombras do povo, podem ser consideradas
fragmentos. A representação apenas das mãos com intenção de corpo inteiro é clara, pois se
trata de uma parte do corpo sendo utilizada para indicar a presença física dos corpos das
pessoas que assistem à cena sem precisar representá-lo inteiro, com tronco, pernas e cabeça.
Mesmo assim a maioria das figuras humanas representadas respeita os cânones de
representação do corpo humano e contemplam aspectos de inteiro, sem, no entanto, se
preocupar com o estilo clássico de representação do tema, como observei em Aurélio de
Figueiredo e Melo e para com a qual Portinari já indicava certo grau de ruptura.
A obra apresenta a figura humana tanto fragmentada quanto de corpo inteiro, embora a
maioria dos corpos contemple um conjunto de partes representadas pelos personagens da
pintura.
Em virtude do que foi mencionado, cabe ressaltar as circunstancias em que cada obra
aqui estudada foi concebida e tecer comparações a despeito de alguns elementos observados
entre as três leituras, como a questão da encomenda e do tema, da presença do público
37
e a
figura humana inteira ou fragmentada.
Primeiro a questão da encomenda e do tema. Aurélio de Figueiredo e Melo não pintou
Martírio de Tiradentes porque recebera uma encomenda, mas para atender à “demanda
oficial” (MILLIET, 2001, p. 176), tanto que sua obra data de 1893, mesmo ano que Pedro
Américo pinta Tiradentes esquartejado. Já Cândido Portinari pintou o Mural Tiradentes, em
1948-1949, em virtude de uma encomenda mas de temática livre. Não lhe foi solicitado pintar
algo sobre a Inconfidência Mineira, porém o artista se envolveu com a história mineira e nela
se inspirou, ou melhor, se esmerou.
37
“Cândido Portinari privilegia, num momento de avaliação do papel do povo na política brasileira, a inserção
social do herói, as diferentes reações ao seu drama: a indiferença dos bem trajados, a dor, a revolta, a comunhão
cristã do povo com o seu martírio. João Câmara busca a denúncia do domínio colonial, da repressão, na
conjuntura de crítica ao passado recente, possibilitada pela abertura política. [...] Pedro Américo, por seu turno,
prende-se ao drama íntimo dos personagens, à solidão de Tiradentes, [...]”. Ibid., p. 140-141.
91
Segundo os relatos sobre o processo de criação desta obra de Portinari, ele se
contaminou com o episódio que marcou o povo mineiro e nele mergulhou, consultando livros
e documentos da época até se tornar um especialista na história da Inconfidência Mineira.
Nota-se que a relação com a temática extrapola as relações formais e clássicas, sobretudo,
quanto à cor e a narrativa contínua da história, para se manifestar em Portinari por meio de
um comportamento clássico quanto à pesquisa que desenvolve sobre o tema, como se nota
entre os artistas neoclássicos que representam a tradição clássica de temas históricos.
Ao passo que João Câmara, no ano de 1985, recebe uma encomenda que vem com o
tema estabelecido. O artista não tinha liberdade de escolha, devia ater-se à Inconfidência
Mineira. Esse detalhe conduz todo o processo criativo, querendo ou não, do artista. É certo
que por se tratar de João Câmara e pelas características estilísticas do artista, a obra contém o
caráter cultural e sócio-político peculiar ao tema solicitado, sem ferir a sua personalidade e a
sua maneira de pintar.
Dando prosseguimento, quanto à presença ou não do público, a pintura de Figueiredo
e Melo não contempla este elemento. Portinari é quem introduz o público nas cenas da
iconografia de Tiradentes, como foi afirmado, inclusive de uma maneira muito peculiar,
como narradores dos fatos. João Câmara, por sua vez, questiona o papel do público e o coloca
numa posição diminuta, no último plano da pintura, totalmente ao fundo e o representa por
meio de fragmentos cujo tratamento tonal, na penumbra, caracteriza estas imagens como
sombras. As pessoas que estavam assistindo à cena tornam-se espectros, fantasmas, que não
tiveram voz ativa no decorrer do acontecimento. Em João Câmara o público perde o status
dado a ele por Portinari.
Por fim, a figura humana é representada inteira em Aurélio de Figueiredo e Melo e
inteira, mas também fragmentada nas obras de Cândido Portinari e João Câmara. O
esquartejamento é comum aos dois artistas, mantendo assim uma forte relação com o quadro
Tiradentes esquartejado de Pedro Américo. Para Christo, no entanto, Câmara se aproxima
mais de Pedro Américo. Na sua leitura iconológica, que objetiva desmontar o mito do herói,
ela afirma: “Quanto ao esquartejamento, Câmara se aproxima de Pedro Américo. Ambos
representam o martírio cristão e o abandono do herói. Ao contrário de Portinari, Pedro
Américo e João Câmara não configuram a liberdade conquistada.” (CHRISTO, 2005, p. 140).
Na pintura de Aurélio a figura humana é representada dentro dos cânones clássicos,
enquanto que em Portinari a fragmentação e o gigantismo da figura de Tiradentes, por
exemplo, deformam e desestruturam essas relações, mas é reestruturado no fim da pintura. Ao
passo que na obra de João Câmara a figura humana é retratada dentro dos códigos simbólicos
92
que o artista estabelece, quando o corpo precisa ser mostrado inteiro, ele assim aparece. Agora
se uma parte do corpo, como as mãos, é suficiente para representar a cena e a idéia do
artista, lá está o fragmento.
Dado o exposto, das três obras estudadas é a de João Câmara que marca uma nova
trajetória para as obras artísticas que envolvem a temática de Tiradentes, celebrada pelo
surgimento de releituras do quadro de Pedro Américo, Tiradentes esquartejado (1893).
O próximo passo será, portanto, o de me debruçar sobre a obra de Tiradentes
esquartejado de Pedro Américo e sobre a releitura do mesmo feita por Adriana Varejão. Este
procedimento objetiva, por meio da análise das características formais da figura humana e a
relação da figura inteira versus fragmentada, o levantamento dos elementos que as
caracterizem como obra-fragmento segundo Omar Calabrese encerrando assim a pesquisa
com uma ilustração estética dos conceitos de fragmento do autor.
93
Capítulo III
“TIRADENTES ESQUARTEJADO” em PEDRO AMÉRICO e ADRIANA VAREJÃO
3.1 Pedro Américo e a obra Tiradentes esquartejado.
3.1.1 - O Artista.
Paraibano, Pedro Américo de Figueiredo e Mello
38
nasceu no dia 29 de Abril de 1843,
na cidade de Areias, Paraíba do Norte e faleceu em 07 de Outubro de 1905, na cidade de
Florença, Itália.
Como desde muito jovem Pedro Américo apresentou aptidão artística, já que desde os
sete anos de idade desenhava retratos e paisagens, em 1852 foi nomeado desenhista oficial da
Comissão exploradora que veio para o Brasil estudar as florestas brasileiras a pedido da corte
Portuguesa, chefiada por Louis Jacques Brunet. Este naturalista francês conheceu o talento de
Pedro Américo para o desenho e o indicou para o então Presidente da província da Paraíba,
com tal função e assim acompanhar as expedições. Durante dois anos desenhou plantas e
animais, catalogou espécies e ilustrou os cadernos dos pesquisadores franceses.
Em 1854, chegou ao Rio de Janeiro onde cursou Humanidades no Colégio Pedro II e a
Academia de Belas Artes, com notáveis estudos. Durante o curso na Academia de Belas
Artes, Pedro Américo ganhou 15 medalhas de ouro e prata, diversos diplomas e aprovações
em louvor.
Todo esse empenho foi recompensado por uma bolsa
39
de estudos na Europa,
comumente cedida pelo Imperador a artistas plásticos como Vítor Meireles, por exemplo. Em
Paris, Pedro Américo se matriculou na Academia de Belas Artes e ao mesmo tempo no
Instituto de Física, bem como logo depois na Universidade de Sorbonne, onde recebeu o
apelido de “o filósofo”, por sua grande dedicação aos estudos e pensamentos profundos.
Pintor, desenhista, professor, caricaturista e escritor, Pedro Américo foi assim descrito por
Gonzaga - Duque como:
38
GONZAGA - DUQUE, 1888, p.140.
39
Sobre esta bolsa de estudos, ver relato de MELLO JÚNIOR, 1983, p.15-19, que atesta a presença de uma carta
que Pedro Américo teria enviado ao Imperador, usando seus dotes literários e persuasivos, para assim conseguir
uma bolsa e estudar na Europa, pois na ocasião o número de bolsas estava esgotado.
94
Pedro Américo de Figueiredo Cirne e Mello (1843-1905) Pintor paraibano.
Após estudar na ACADEMIA IMPERIAL DE BELAS ARTES DO RIO DE
JANEIRO, estagiou em Paris junto a INGRES, COGNIET E VERNET. De
volta ao Rio, foi professor de desenho e história da arte na ACADEMIA. Sua
permanência no Brasil foi várias vezes interrompida por constantes viagens à
Europa. Com formação acadêmica contaminada pelo romantismo e pelo
realismo, foi – junto com VITOR MEIRELLES –, o artista oficial do II
Império, tendo realizado várias obras encomendadas pelo Estado brasileiro.
(GONZAGA - DUQUE, 1995, nota 5, p.140).
Também na França obteve diversos prêmios, entre eles dois de primeira classe da
Academia de Belas Artes de Paris e a carta de Bacharel em Ciências Sociais da Sorbonne.
Em 1864 retorna ao Brasil e conquista por meio de um concurso a Cátedra de
Professor de Desenho da Academia de Belas Artes no Rio de Janeiro, com a pintura Sócrates
afastando Alcebíades do vício (1865). Entretanto, no ano seguinte volta à Europa e viaja pela
França, Holanda, Bélgica e Dinamarca e em 1868 recebe o grau de Doutor em Ciências
Naturais pela Universidade de Bruxelas, confirmando definitivamente sua extraordinária
aptidão para as letras e os estudos filosóficos. Quando voltou ao Brasil, agora Doutor,
reassumiu sua cadeira de Professor de Desenho e a logo em seguida, as cadeiras de Estética,
História da Arte e Arqueologia, como relata Mello Júnior:
Ao transferir-se para a cadeira de História da Arte, Estética e Arqueologia
entre 1870 e 1873 desenvolveu intensa atividade intelectual e artística no Rio
de Janeiro, inclusive como substituto interino de Vitor Meireles na cadeira de
Pintura Histórica (1870-1871). (MELLO JÚNIOR, 1983, p.33).
São deste período as pinturas Batalha de Campo Grande (1871) e Batalha de Avaí
(1877), ambas já citadas neste estudo, cuja temática militar
40
e histórica contribuiu para
projetar o artista internacionalmente. A exposição da pintura A Batalha de Avaí, em 1877, em
Florença na Itália, causou grande comoção levando o governo italiano a colocar um retrato de
40
A encomenda da pintura a Batalha de Avaí, foi marcada pela personalidade contraditória de Pedro Américo,
que segundo Donato Mello Júnior: A Pedro Américo o Ministro destinara como tema a Primeira Batalha de
Guararapes, mas o artista preferiu outro assunto militar, de maior contemporaneidade: a Batalha do Avaí, na
Guerra do Paraguai, aceitando Vítor Meireles o assunto mais antigo, ambos submetidos a contratos muito
semelhantes”. Ibid., p.35.
95
Pedro Américo na tradicional galeria italiana: a Galeria de Uffizzi. Outra obra importante de
Pedro Américo, e em especial para o cenário brasileiro, também exposta em Florença foi O
Grito do Ipiranga(1888)
41
, que hoje se encontra no Museu Paulista em São Paulo.
Pedro Américo foi eleito Deputado com a chegada da República. Cargo político que
exerceu com sua visão de intelectual e artista, conquistando importantes avanços para o meio
cultural brasileiro, como o Projeto de fundação de uma Galeria de Pintura Nacional
independente da Escola Nacional de Belas Artes, concretizado apenas em 1937 e a reforma do
Ministério da Educação e Saúde.
42
A respeito dessa passagem de Pedro Américo pela política
preleciona Milliet:
Surpreendido na Itália pela notícia de sua eleição, decide partir com a família
para o Brasil. Participa por três anos do Congresso constituinte. No exercício
da atividade parlamentar, encaminha propostas no sentido de regular a
propriedade artística e os direitos autorais, de criar um teatro e uma galeria
nacional, entre outras de interesse cultural. (MILLIET, 2001, p.156).
Sua permanência no Brasil foi curta e alegando motivos de saúde se afasta do
Congresso, retorna à Europa aonde vem a falecer aos 62 anos.
3.1.2 – A Obra.
A Pintura em questão pertence a uma série de pinturas sobre a Inconfidência Mineira
que Pedro Américo idealizou durante uma de suas estadias na cidade de Florença, na Itália.
Na realidade nunca pintou senão a obra Tiradentes esquartejado, conforme afirma
Milliet: “O fato é que Pedro Américo inicia a série pela pintura daquela que seria a última, na
seqüência das cinco obras programadas, de resto a única a ser realizada: Tiradentes
esquartejado (1893)”. (MILLIET, 2001, p.158).
Isto justifica meu interesse em analisar somente esta pintura, que foi concebida pelo
artista numa situação inusitada, sem me referir à série.
41
Sobre esta pintura ver OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles e MATTOS, Claudia Valladão (orgs.). O Brado
do Ipiranga. São Paulo. Edusp, 1999.
42
Ver MUSEU NACIONAL DE BELAS ARTES. Exposição Pedro Américo e Victor Meirelles (retrospectiva).
Rio de Janeiro. Ministério da educação e Saúde, 1941. p.01-03.
96
Consta que o Estado comprara um lote de doze obras de Pedro Américo e que o
mesmo, havia preparado seus esboços e estava pronto para começar a pintar uma enorme
alegoria sobre a abolição, aprovada pelo ministro do Império, quando chegou do Brasil a
notícia da Proclamação da República. Depois de ter pintado a Batalha de Avaí e o quadro da
Independência, mais conhecido como O grito do Ipiranga, o artista viu no tema da abolição a
oportunidade de fazer uma obra emblemática. Porém a notícia recebida em 1889, em
Florença, mudou o rumo dos seus estudos, conforme alude Milliet:
Diante da nova realidade, suspende a execução do painel, abre mão de
qualquer compensação financeira e, para cumprir o trato inicial, pinta uma
tela intitulada Voltaire abençoando o neto de Franklin em nome de Deus e da
Liberdade (1890), em sintonia com os novos tempos. (MILLIET, 2001,
P.156).
Surge a oportunidade de colocar em prática sua série de pinturas sobre a Inconfidência
Mineira, subsidiado pela ajuda financeira do então amigo Barão do Rio Branco, com o qual
sempre trocara idéias sobre temas para suas pinturas.
43
Segundo Christo um quadro destinado
à exposição pública que termina no Museu em função do contexto político da época em que
fora realizado:
O quadro Tiradentes esquartejado insere-se num paradoxo. Pintado no início
da república, retrata seu principal herói sob ótica monarquista. É uma pintura
histórica que, por sua natureza, tema e dimensão, destinava-se a ser exposta
em espaço público, mas não foi realizada a partir de uma encomenda oficial.
Fruto da vontade de seu criador, sua compra pelo Estado dependia da
capacidade de atuação do artista no sistema de arte, entretanto, este
encontrava-se bastante alterado, dada a mudança de regime político e a
desorganização da antiga Academia Imperial de Belas Artes. (CHRISTO,
2005, p.147).
O quadro, que se encontra hoje no Museu Mariano Procópio, em Juiz de Fora, Minas
Gerais, foi vendido ao governo do Estado de Minas Gerais depois de muita discussão. A
compra foi documentada pela resolução de No. 226 de 4 de Outubro de 1893, a qual autorizou
a aquisição de um quadro, conforme consta AHPMJF LIVRO DE RESOLUÇÕES DA
43
Sobre esta amizade e sua influência na produção pictórica de Pedro Américo, ver CHRISTO, 2005, p. 57-59.
97
CÂMARA MUNICIPAL DE JUIZ DE FORA
44
. De acordo com Christo a venda ocorre da
seguinte forma:
Assim depois de longa negociação, em 4 de Outubro, o município de Juiz de
Fora adquire o quadro de Pedro Américo pelo valor de 8 contos de réis,
através da verba-juros e amortização do orçamento em vigor, empregando
parte de recurso advindo de empréstimo destinado às obras de saneamento
básico da cidade. (CHRISTO, 2005, p.309).
A despeito das relações da pintura com o momento histórico e político, destaca
Milliet:
A pintura vem a blico no período especialmente conflituoso do governo
Floriano (1891-94), agitado por sérias disputas entre civis e militares,
federalistas e centralizadores, e o aparecimento de um dado novo, um tanto
alarmante: a penetração popular do jacobinismo e as desordens de rua
decorrentes. Talvez fosse conveniente não incitar o republicanismo,
exaltado pela Revolta da Armada. Das críticas publicadas na imprensa
carioca, uma sobressai por ir além das reações emocionais provocadas pela
visão do corpo esquartejado e dos protestos dos que consideram a obra uma
peça demasiado eloqüente de propaganda republicana. Trata-se do artigo do
barão Homem de Mello para o Jornal do Commercio que, além de se referir
ao naturalismo da figuração e a um certo espiritualismo de fundo romântico,
aponta uma intenção inédita na pintura do consagrado artista, em si reveladora
de um novo modo de compreender a missão da arte. (MILLIET, 2001, p.159).
A historiografia de Tiradentes esquartejado levanta questões que o incluem como
referência iconológica para a construção de um mito que o configura na imagem de um herói
nacional e cristão com fortes conotações políticas. Encontra-se, portanto, uma extensa
bibliografia que se refere à construção dessa figura emblemática, sempre relacionando
Tiradentes aos aspectos políticos, religiosos, cívicos e morais.
Nesse viés e em face de toda essa leitura fundada sobre a pintura, se tornam
necessárias algumas transcrições das autoras Milliet (2001) e Christo (2005) para não
incorrermos no erro de omissão. Contudo, devo relembrar que meu interesse se fixa nos
44
Em nota, CHRISTO, 2005, p.309.
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aspectos formais de representação da figura humana, até para não permanecer nas mesmas
relações já estabelecidas.
O primeiro elemento que facilita a implantação da figura de Tiradentes como herói
nacional é relacionado por Milliet com a ausência de imagens do século XVIII que
fornecessem características da aparência do alferes condenado ao esquartejamento e isso é
usado da seguinte maneira, segundo a autora:
A ausência de iconografia do século XVIII e a inconsistência das
informações acerca de Silva Xavier deixam livre a invenção do herói cujo
‘retrato’ imaginário está indelevelmente associado ao Cristo. A ampla
aceitação dessa caracterização tende a obscurecer suas diferentes
personificações. (MILLIET, 2001, p.135).
Em outro trecho de seu livro Tiradentes: O Corpo do Herói (2001), Milliet descreve
como que se processa a construção deste mito, mediante as leituras impostas sobre a cena e o
momento do enforcamento que cristalizou a imagem de Tiradentes como o redentor nacional:
Aflora o mártir cristão naquilo que ele tem de vítima imolada. Nada nesse
semblante revela a tensão psíquica do condenado à morte ou recorda a
impetuosidade do propagador de idéias subversivas. A caminho da forca, o
herói apresenta-se sereno, desligado do passado e indiferente ao drama
iminente. Sua expressão denota passionalidade ou determinação, qualidades
próprias do revolucionário. O olhar não trai íntima comoção, nem convoca o
espectador: um rosto vazio de densidade moral. Num passe de mágica, dos
cem anos de lutas republicanas fica expurgada toda a violência. O que
remanesce na imaginação coletiva é a efígie olímpica e, porque não dizer,
adocicada, próxima da medalha de devoção ou mesmo do santinho de
catecismo. Esse visual e o caráter que empresta ao personagem ganham
definitiva aceitação. É o Tiradentes! Reconhecem os brasileiros. (MILLIET,
2001, p.143).
Registre-se ainda o destaque para a dimensão ética e moral do quadro levantada por
Milliet e atribuída ao fato histórico pelo pintor, que deseja segundo a autora, “mostrar o
heroísmo da morte” e testemunhar o comportamento do homem para com suas crenças. Em
vista disso, alude Milliet:
99
O quadro não alude a crueldade do fato, antes a faz eternamente presente,
tornando-a moralmente relevante. Não é a lição repressora implícita na
punição que se coloca. À inutilidade da rebelião ante o poder colonial, opõe-
se a validade do sacrifício que a vitória da Independência e da República vem
confirmar. Eis a subversão de sentido: o horrendo castigo se converte em
sacrifício pela pátria. (MILLIET, 2001, p.160-161).
Com esse mesmo propósito, Milliet aponta para o aspecto religioso como um dos
fatores de construção do mito do herói republicano: “O crucifixo junto à cabeça decepada
estabelece uma relação analógica entre o mártir republicano e o divino crucificado. Essa
operação concede ao mortal a transcendência prometida pelo cristianismo, e ao herói, a glória
do santo.” (MILLIET, 2001, p.163).
Em contrapartida, em Christo encontra-se uma importante relação do mito do herói
com o movimento republicano citado pela autora da seguinte maneira:
No início do processo de construção do mito, Tiradentes era apresentado
como herói republicano, porém de caráter popular, jacobino, dos setores mais
radicais do partido, aproximando-se do florianismo. O cerceamento da ão
do Clube Tiradentes demonstrava: (...) as condições de aceitação do herói
republicano como herói nacional: a eliminação da imagem jacobina, radical
(...) Para consolidar-se como governo, a República precisava eliminar as
arestas, conciliar-se com o passado monarquista, incorporar distintas vertentes
do republicanismo. Tiradentes não deveria ser visto como herói republicano
radical, mas sim como herói cívico-religioso, como mártir, integrador,
portador da imagem do povo inteiro (...). (CARVALHO, 1990, p.69 apud
CHRISTO, 2005, p.291).
Para além das relações históricas e políticas, estão os elementos estéticos observados
em estudos iconológicos da obra Tiradentes esquartejado. Tais elementos estéticos são
encontrados nas leituras da Obra realizadas e da relação da mesma com a História da Arte.
Dentre estas análises estão as comparações, encontradas na maioria das referências
bibliográficas, para com quatro ícones da representação da figura humana, que são: a
escultura Pietá (1498-99) de Michelangelo (1475-1564); a pintura Deposição de Cristo
(1602-04) de Caravaggio (1573-1610), A morte de Marat (1793) de Jacques-Louis David
100
(1748-1825) e a Balsa da Medusa (1818-19) de Théodore Géricault (1791-1824), [fig. 34 e
35].
Figura 34
Marat, Tiradentes esquartejado e A Balsa da Medusa (detalhe).
Tais apontamentos estéticos e, sobretudo, as relações da obra de Pedro Américo para
com as composições das obras acima citadas, no meu entender, vem sendo perpetuadas por
diferentes autores. E em certa medida, como um padrão comparativo, para o qual não
pretendo me reportar, por acreditar que ele pode inibir novas leituras da obra de Pedro
Américo. Embora tais contribuições estejam inseridas nos campos da História e da História da
Arte e merecem nossa consideração tendo em vista o contexto e os objetivos das mesmas.
Portanto, justifico a minha atitude de não utilizar dos mesmos recursos para a análise e
contribuir com a historiografia transcrevendo alguns trechos de tais leituras, sem me referir a
elas na minha análise em particular da obra.
Nesse sentido as relações referidas acima são concebidas por Milliet desta forma:
primeiro quanto à obra A morte de Marat:
Ao sabor das idéias francesas, o herói brasileiro pode ser igualado aos mártires
da Revolução de 1789. Como David em A morte de Marat (1793). [...] No
Tiradentes esquartejado, Américo retoma a lição davidiana: põe de lado a
101
preocupação narrativa habitual na pintura de história e se concentra na solidão
da morte consumada. (MILLIET, 2001, p.161).
Depois com relação à Pietá:
Da ‘Pietá jacobina’ (o assim chamado quadro de Marat), Pedro Américo
aproveita o motivo do ‘braccio che s’abbandona’ que aparece na Pietá de
Michelangelo, depois no Sepultamento do Cristo de Rafael (1576) e, mais
tarde, no célebre quadro de Caravaggio de mesmo tema. Aproveita também o
recurso dos dois panos, um claro sob o torso e outro escuro que o cobre na
altura da cintura. Em seu quadro se encontra ainda o plano austero que fecha o
espaço atrás do cadáver de Marat. Faz sentido pensar que Pedro Américo, no
momento da implantação da república no Brasil, tenha recorrido à obra
emblemática de David. (MILLIET, 2001, p.162-163).
E por fim o contato de Pedro Américo com a Balsa da Medusa de Géricault:
É legítimo supor que a Balsa da Medusa de Géricault tenha vindo à mente do
artista brasileiro quando ele se volta para um assunto que envolve ação da
morte. [...] O tema, os depoimentos dos sobreviventes, as críticas, tudo deve
ter estimulado a imaginação do nosso pintor. Américo não conhecia o
quadro como dele fizera uma cópia quando estudante em Paris. (MILLIET,
2001, p.163).
No mesmo caminho seguem as comparações de Christo, primeiramente quanto à
pintura histórica:
Pode-se inserir a tela de Pedro Américo no que de mais tradicional na
pintura histórica: a transferência do culto dos mártires do domínio sacro ao
político. Nas cenas de martírio cristão, não sofrimento psíquico ou
explicação da dor. Na realidade, comemora-se o suplício, a entrega total à
religiosa; celebra-se um ritual. O corpo de Tiradentes também não revela a
dor, não tensão muscular, seu semblante é tão calmo quanto o das cabeças
decepadas de santos martirizados, a exemplo de São João Batista. (CHRISTO,
2005, p.216).
102
Figura 35
Tiradentes esquartejado, Pietá e Deposição de Cristo.
A seguir quanto à posição do braço de Tiradentes: “A citação do braço pendente da
Pietá (1497-1500), de Michelangelo, ou da Deposição de Cristo (1602-04), de Caravaggio, a
semelhança entre a cabeça de Tiradentes e a de Cristo, o crucifixo paralelo à cabeça do mártir,
onde o filho de Deus contempla, aproxima os dois dramas”. (CHRISTO, 2005, p.216). Mais
adiante afirma e acrescenta um novo elemento, algo que se distingue nas obras e as afasta:
Cem anos após, Pedro Américo emprega os mesmo elementos: “Tiradentes está praticamente
só, seu rosto não espelha a agonia da morte. O tronco e o braço direito caído estão na mesma
posição da Pietá Jacobina. Entretanto, dois elementos afastam as duas obras: a verticalidade e
a fragmentação do corpo” (CHRISTO, 2005, p.217).
No que concerne à relação da pintura de Pedro Américo com a obra A Balsa da
Medusa de Géricault, Christo destaca:
A terceira leitura possível ao Tiradentes esquartejado é a mais sutil. Diz
respeito à aproximação com o quadro de Géricault, Le radeau de la Méduse
(1818-19), [...] Pedro Américo, ao dispor os pedaços do corpo sobre o
cadafalso e ao ocultar o corte, por onde se revelariam as vísceras, refere-se à
composição empregada por Géricault, para o grupo do lado direito da sua tela.
O mastro e a vela cedem lugar ao cadafalso-cruz; o cadáver da extremidade,
cuja visão do abdômen se interrompe abruptamente pela sobreposição de
outro corpo, transforma-se no tronco de Tiradentes coberto no ventre pela
103
túnica azul; a cabeça do velho pai metamorfoseia-se na de nosso herói; o
crucifixo segue a diagonal do pano preso ao mastro; [...] (CHRISTO, 2005,
p.218-219).
Contudo as autoras fazem considerações relevantes no tocante à representação da
figura humana e à anatomia que cabe por oportuno ressaltar. Como no caso de Milliet que se
refere à anatomia como:
[...] a do esquartejado está afinada com a dos náufragos amontoados sobre a
jangada da Medusa. Na Balsa, é o heroísmo dos corpos atléticos ainda o
ideal clássico que prevalece, como também acontece com o quadro
brasileiro. [...] É na tradição clássica que Pedro Américo encontra Géricault.
Alguns recortes anatômicos devem ter impressionado Américo. Não existem
cadáveres mutilados na Balsa, embora o canibalismo tenha grassado a bordo.
Alguns corpos aparecem fragmentados pelo arranjo da composição. Na
extrema esquerda, o torso de ventre contraído e o braço em parte submerso
fazem lembrar os do Tiradentes. (MILLIET, 2001, p.166).
Por seu turno, Christo relaciona Tiradentes esquartejado com a obra Têtes coupées
(1818-1819) de Théodore Géricault e afirma:
Nesse quadro, o artista francês explorou exatamente o que é negado por Pedro
Américo: o tempo e o movimento. O sangue, que escoa da cabeça do herói,
rubro sobre o branco, numa ótima solução plástica, não será nunca absorvido
pelo tecido, a exemplo do sangue coagulado da tela de Géricault. Ao contrário
da maneira quase ritualística como os pedaços do corpo de Tiradentes foram
depositados sobre o cadafalso, as anônimas cabeças guilhotinadas nos
parecem jogadas ao acaso, instáveis e mesmo em putrefação. Não sendo
‘face(s) destinadas à respeitosa contemplação’, como Pedro Américo definiu a
face de Tiradentes, as cabeças guilhotinadas podem exibir as contrações da
morte.
45
(CHRISTO, 2005, p.284).
E conclui diante da impossibilidade de reconstrução do corpo de Tiradentes,
questionando os aspectos religiosos que também a autora observa na pintura:
45
A autora faz outras relações, ver Ibid., p.284-290.
104
Em Tiradentes, apesar da escolha de um momento difícil para a representação,
o esquartejamento, o artista busca um caminho para a espiritualidade, porém
subverte igualmente sua própria intenção, ao introduzir a materialidade da
carne exposta, representada pela perna esquerda. Tiradentes não tivera a
mesma sorte das divindades Osires e Dionysos, cujos corpos fragmentados
foram recomposto, respectivamente, por Isis e Rhéa. Fracionado e perdido no
caminho sua ressurreição é impossível. A imagem que permanece é a do
corpo esquartejado. (CHRISTO, 2005, p.290).
Como meu interesse pela pintura Tiradentes esquartejado se deve ao fato da figura
humana ser representada por fragmentos, a seguir me aprofundo nos elementos estéticos com
ênfase para o fragmento.
3.1.3 – A Análise.
O tema da pintura é Tiradentes e seu corpo esquartejado. No alto, a primeira parte do
corpo de Tiradentes a ser representada esquartejada é a sua cabeça, bem aos pés da forca,
sobre um tecido branco [fig.36].
O sangue escorre do pescoço e do lado direito, um crucifixo; a corda com os nós
afrouxados, sinalizando o ato do enforcamento, as correntes e algemas do prisioneiro. O
sangue escorre pela madeira, logo abaixo das algemas e sobre o palco da forca.
Mais abaixo e à esquerda está um dos pés do corpo esquartejado. Deste membro
vemos a planta dos pés, os tornozelos e uma pequena parte das canelas.
A propósito do elemento sangue na pintura de Pedro Américo analisa Christo:
O sangue de Tiradentes aparece com grande parcimônia, em lugares
estratégicos, não manchando a pele, revelando-se, por vezes, em quase
imperceptíveis filetes, cuja, função plástica é delimitar a superfície do corpo.
Se o quadro surpreende ao apresentar um herói aos pedaços, a sua assepsia
causa igual estranheza. (CHRISTO, 2005, p.284).
105
Figura 36 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893)
Óleo sobre tela
262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
A meu ver esta assepsia reforça o aspecto do pormenor, pois quando não apresenta o
sangue humano em demasia, Pedro Américo tira de cena um elemento que caracteriza o corte
entre as partes do corpo. A limpeza dos cortes e o sangue ausente, ou, colocado apenas em
algumas regiões muito especificas da composição, dificulta o rompimento visual do corpo e
possibilita sua reconstituição.
Ao centro, está o tronco, com pescoço, tórax e abdômen e um dos braços, inteiro, com
as mãos, intacto, junto ao tronco [fig.37]. Nesta parte do corpo não sinais de sangue e a
limpeza afasta a cena de certo grau de realismo.
A pele clara e rosada de Tiradentes e os detalhes, dos pelos do peito, dão forte tom de
ilustração à imagem e conferem naturalismo à cena, conforme aduz Milliet: “O que importa é
representar o corpo dilacerado, associando o desenho preciso ao discreto modelado. A carne
torturada parece ter sido pintada com a objetividade de quem ilustra um topos da ciência.”
(MILLIET, 2001, p.169).
106
Figura 37 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893) Detalhe - Tronco
Óleo sobre tela
262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
À direita da pintura, a farda azul do alferes foi disposta sobre o tronco impedindo a
visualização de suas sceras e do corpo fragmentado pelo corte na altura da cintura
ocasionado pelo esquartejamento. A roupa, entretanto, está ensangüentada. Porém o impacto é
menor, considerando-se o tom violáceo e marrom escuro do sangue sobre o tom azulado da
vestimenta militar. Mas, logo abaixo está o horror do sangue que escorre pelo tecido branco,
colocado por baixo da maioria das partes corpo representado. Apenas a perna à direita da
pintura não se encontra com um pano branco de fundo. Este branco do tecido acentua o
vermelho do sangue.
A perna esquartejada e disposta à direita da tela é um pormenor que contém as coxas,
a perna e os pés [fig.38]. Está fincada numa lança e foi amarrada com cordas, numa espécie
de cruz, estandarte, para ser fixada separada do corpo. Para Milliet esta forma de representar o
fragmento, apresenta o ideal de Pedro Américo de ferir visualmente, mas mesmo com forte
teor emocional o artista não perde a objetividade da representação: “Como índice maior de
crueldade, a coxa rasgada por paus é erguida como um quarto de animal em açougue. Mas
nem na exibição da carne dilacerada o artista perde o controle.” (MILLIET, 2001, P.169).
Na minha visão é este contraste entre o horror da imagem e a objetividade da
representação do corte do membro, da amarração da coxa e do estendido na lança, que
torna este pormenor, de todos os outros da pintura, o mais bem resolvido plasticamente.
107
Figura 38 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893) Detalhe - Perna
Óleo sobre tela
262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
O primeiro plano da pintura, portanto, é tomado pela presença do corpo esquartejado e
suas partes dispostas do alto a baixo, bem como da esquerda para a direita da tela. Como
cenário para este corpo orgânico, cuja pele pálida, ora acinzentada ora esverdeada, demonstra
sinais da perda da vida, tem-se o palco da forca. Ou o palco da morte versus o palco da vida.
Um conjunto geométrico de linhas verticais, horizontais e perpendiculares caracterizado por
pilares, caibros e tábuas de madeira que sustentam o palco e contrastam em tonalidade.
A madeira pintada em diferentes tons de ocre e marrom, dura e firme, resistente,
contrasta com a carne, branca e rosada, do corpo frágil, bem como com o vermelho quente do
sangue. Neste cenário não vemos a forca. Ela é sugerida pelo mastro central que corta a
pintura de cima para baixo e por outros ícones como a corda e os nós que formam um círculo,
nos remetendo à imagem do pescoço e da cabeça, à esquerda da composição. Em terceiro
plano e como fundo pictórico do quadro, está desde o alto, um céu. Um céu limpo e sem
nuvens, esverdeado, que fica esbranquiçado mais abaixo da tela, por entre as escadas e o
palco da forca ao se aproximar da linha do horizonte.
Bem abaixo do eixo central por entre as escadarias, nos espaços vazados, Pedro
Américo pintou casebres típicos de Minas Gerais. Tal interpretação é curiosa tendo em vista
108
que é do conhecimento de todos, que o local onde ocorrera o fato fora no Lampadosa, hoje
Praça Tiradentes, no Rio de Janeiro e demonstra o interesse de Pedro Américo em ambientar a
cena, numa alusão ao Estado de Minas Gerais. Pintados de branco e com as janelas repletas de
curiosos e pessoas que presenciavam de longe a cena do esquartejamento. Estas imagens não
receberam tratamento realista. São pequenas manchas que além das cores esbranquiçadas que
além das cores em tons de pastéis para caracterizar a perspectiva aérea, formam imagens
sugeridas para não concorrer com o realismo dado ao corpo. Basta comparar o de
Tiradentes, abaixo e à esquerda da cena, com a imagem das casas à direita, nas quais se
encontram duas janelas na parte inferior da pintura. O acabamento dos dedos e das unhas do
pé é bem maior do que o dado à moça e ao seu guarda-sol.
Quanto à composição Pedro Américo, estrutura-a no eixo vertical sem, contudo, deixar
de equilibrá-la com a horizontalidade do cadafalso. Este conjunto somado ao pilar vertical da
forca, que corta de cima a baixo o quadro, forma uma cruz que em contraste com as
perpendiculares tanto do corpo quanto do cadafalso e das escadas, constituem-se em
triângulos, [fig. 39 e 40].
Figura 39 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893) Detalhe - Perna
Óleo sobre tela - 262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
Composição – eixos vertical e horizontal
109
A propósito da composição e da presença dos triângulos destaca Milliet:
O pau da forma desce a prumo. A composição se organiza em torno desse
eixo central interceptado pelos planos quase horizontais dos degraus e do
patamar. Nesta pauta se inscrevem dois triângulos opostos pela base,
culminando um na cabeça, ao da forca, e o outro, na extremidade da perna
pendente. O pintor adota uma composição estável. A lógica compositiva
infunde austeridade ao conjunto e previne a exacerbação emocional.
(MILLIET, 2001, p.162).
Entretanto, na minha ótica é esta mesma composição estável, que opõe os pormenores e os
distribui dentro de triângulos com faces contrárias, que termina por gerar dinamismo à
composição. Ora direcionam a atenção para a cabeça, no alto da composição, ora para a perna
fragmentada do corpo, fincada como um estandarte, à esquerda e abaixo na pintura.
Direcionam o olhar para os dois pormenores mais importantes da composição e em parte,
dificultam a coesão visual das partes do corpo esquartejado.
A mesma figura geométrica triangular que a Inconfidência Mineira tem como símbolo,
o triângulo. Isso pode ser constatado na composição formada pelo braço estendido à esquerda;
o tórax e a perna à direita, ou ainda pelas escadas e um caibro em perpendicular na direção
contrária, apontando para o centro. A farda de Tiradentes forma outro triângulo, contrário,
com o ápice para o alto.
Para Christo a perspectiva utilizada por Pedro Américo é outro fator que colaborou
para reforçar a composição em dois planos:
A perspectiva, situando o observador bem abaixo do vel do assoalho, nos
impede a visão do plano, transformando-a apenas numa ‘linha’ onde a cabeça,
respeitando sua posição natural ocupada no corpo, situa-se entre dois eixos (o
assoalho e o mastro), metamorfoseando o cadafalso em cruz. (CHRISTO,
2005, p.286).
Quanto à temática da figura humana representada intacta versus sua representação por
partes, em Pedro Américo nota-se a representação típica do século XIX.
110
Figura 40 - Pedro Américo
Tiradentes esquartejado (1893) Detalhe - Perna
Óleo sobre tela - 262 x 162 cm
Museu Mariano Procópio, Juiz de Fora – MG.
Composição Triangular
O corpo é fragmentado, porém mantém as características da representação clássica,
sobretudo, em função da erudição do artista e de sua relação com o estilo Neoclássico.
Portanto, a figura humana em Tiradentes esquartejado é composta de pormenores que
podem ser reconstituídos dentro da própria pintura.
Isto fica claro nos inúmeros estudos de figura humana e das diferentes partes do corpo
esquartejado que Pedro Américo realizou para esta pintura.
Neles o artista prestigia o estudo da anatomia e de composição das partes do corpo a
ser representado posteriormente como nos desenhos a carvão sobre papel, Estudo de anatomia
para Tiradentes esquartejado, de 1892 e 1893 [fig.41].
Nos estudos a figura humana está representada por pormenores e na pintura final
algumas partes são suprimidas, como o órgão sexual e as virilhas. Contudo o corpo pode ser
unido por meio de um procedimento visual, que permite dentro da própria pintura a
reconstrução do corpo num inteiro.
111
Figura 41 – Pedro Américo
Estudos de Anatomia para Tiradentes esquartejado (1892-93)
Carvão sobre papel
(tamanho médio 42,5x 28,5cm)
Acervo - Galeria de Arte, Rio de Janeiro, RJ.
A representação do corpo recebeu tratamento realístico, limpo, com atenção para
certos detalhes anatômicos como a cor da pele, unhas, musculaturas e proporção.
Mesmo representando o corpo por partes e inclusive por separá-las em diferentes
estruturas, o artista mantém uma relação de proporção entre elas e demonstra essa
preocupação nos estudos a grafite.
Pedro Américo corta o corpo de forma asséptica e independente, como a perna
espetada na lança à esquerda. Segundo Christo:
A perna esquerda adquire certa autonomia. Situa-se num espaço indefinido,
quase surreal, entre o observador e o restante do corpo. Propõe algo negado
aos outros fragmentos, a exposição da carne. Não guarda nenhuma identidade,
á exceção das marcas dos grilhões. Esta autonomia é a grande inquietude do
quadro. (CHRISTO, 2005, p.289).
A representação deste pormenor dessa maneira é a meu ver mais um fator
determinante para caracterizar esta obra como obra-pormenor. O corpo está representado em
partes, por meio de pormenores. Cada parte poderia ser representada sozinha, em particular e
112
seria perfeitamente identificada como uma parte de um corpo, porém, podem ser
perfeitamente reunidos para formar novamente um todo, como ocorre com a representação do
pormenor. A cabeça e a perna espetada na lança são pormenores, porque podem reconstituir-
se ao restante do corpo para representar a figura humana.
O conjunto de pormenores representa o tema de Tiradentes esquartejado, mas
constituem diferentes representações da figura humana. Se isolarmos um dos pormenores,
sem olhar os demais, veremos que eles possuem autonomia de composição, mas mantém
relação com o conjunto da obra e conforme sugere a teoria de Omar Calabrese configuram-se
imagens de pormenores.
Todas as partes estão representadas separadas e, portanto, não configuram um corpo
inteiro, intacto. Contudo o nosso olhar pode unir as partes construindo visualmente um corpo
inteiro, que os pormenores e a força dos cortes, superior, permitem que esta operação
ocorra.
Apenas o tronco, com um dos braços representado, permanece inteiro, junto ao ombro
e ao tórax, por estratégia de composição. Neste pormenor não vemos suas extremidades, pois
a posição da farda impede que suas vísceras fiquem à mostra, como enfatiza Christo e
justifica sua composição:
Em Tiradentes esquartejado o tronco, pousado sobre o cadafalso, não foi
fracionado em dois. Pedro Américo preferiu ignorar o texto da sentença, que
ordenava ser, após o enforcamento, a cabeça cortada e o corpo dividido em
quatro partes. O artista não só manteve o tronco intacto, impedindo que fosse
reduzido a um pedaço de carne cortada, como obstruiu a visão do corte do
quadril com a túnica azul. (CHRISTO, 2005, p.286).
Contudo os dois principais pormenores compostos na pintura: a cabeça e a perna presa
à lança à esquerda, possuem os cortes do esquartejamento à mostra e expõem suas
extremidades. A cabeça foi separada do corpo pelo ato de ser talhada que nos remete a uma
ação do sujeito sobre ele mesmo. Os confins do pescoço não são definidos pela perspectiva da
peça, mas nota-se a interrupção e a irregularidade, próprias do corte.
Os confins do pormenor acusam a ação de um sujeito que separa as partes e as tornam
pedaços passíveis de reconstituição. O mesmo ocorre com a perna. Mesmo amarrada a uma
lança, sua extremidade é cortada e nota-se claramente o final da carne e os confins onde ela se
encaixaria na virilha para recompor um corpo inteiro.
113
Desta forma, o que se tem aqui representado se aproxima dos elementos formais do
que Calabrese (1988) denomina detalhe ou pormenor, quando diz que: “[...] o detalhe é
aproximado por meio de uma precedente aproximação ao seu inteiro; e percebe-se a forma do
detalhe até que esta fique em relação perceptível com o seu inteiro.” (CALABRESE, 1988,
p.86).
Dado o estudo dos aspectos formais da obra Tiradentes esquartejado (1893) de Pedro
Américo, pode-se dizer que a mesma pode ser observada como uma obra que contêm os
elementos formais dos fenômenos artísticos denominados como obra-pormenor.
3.3 Adriana Varejão e a obra Reflexos de Sonhos no Sonho de Outro Espelho (Estudo
sobre o Tiradentes de Pedro Américo).
3.2.1 – A Artista.
Adriana Varejão nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1964. Hoje a artista plástica
vive e trabalha na capital carioca, onde durante os anos de 1981 e 1985 freqüentou cursos
livres na Escola de Artes Visuais do Parque Lage EAV/ Parque Lage Rio de Janeiro.
Adriana assume que a paisagem da cidade do Rio de Janeiro favorece a dramaticidade que
busca em sua pintura: É (o Rio) um tecido de contrastes. As montanhas conferem uma
instabilidade que persiste até o mar.” (STARUSCI, 2001, p14).
Estudou Engenharia, Desenho Industrial e Comunicação Visual antes de fazer sua
escolha definitiva pelas Artes plásticas e pela carreira de pintora, como ela mesmo afirma
46
.
Para a Adriana Varejão foram duas viagens marcantes que contribuíram para sua opção,
conforme relata em entrevista à Canton (1998): “Em Nova York, visitei museus e fiquei
impressionada com a explosão de materialidade que caracterizava a obra de certos artistas,
particularmente Anselm Kiefer. No Brasil, visitei as cidades históricas de Minas Gerais e me
apaixonei pelo Barroco.” (CANTON, 1998, p.92).
São poucos os dados biográficos sobre a artista, mas consta que no começo dos anos
80, Adriana dividiu com colegas o espaço para pintar em ateliês no bairro carioca do Jardim
46
DEWEIK, 1996.
114
Botânico. De toda aquela geração de artistas, apenas Adriana Varejão persistiu e se tornou
uma das mais respeitadas pintoras brasileiras da nova geração
47
.
Após sua passagem por Ouro Preto, o tema do Barroco passa a ter destaque na
produção pictórica de Adriana e uma série de referências figurativas, como a sensualidade das
cores e a temática do Brasil do período colonial recebem nova leitura a partir de suas obras.
3.2.2 – A Obra.
A obra de Adriana Varejão é complexa e repleta de nuances que dizem respeito, em
parte, à linguagem da Pintura, à história das Imagens e ao visceral e orgânico relacionados
com a temática do corpo humano. Na sua produção artística a história da representação da
figura humana; da pintura e da história da arte se confundem com a história da carne, do
corpo, bem como com a história das imagens.
Dessa forma, darei ênfase para a representação dos corpos fragmentados e ao visceral
e carnal, em detrimento à história das imagens em suas pinturas. Muito embora estes aspectos
também permeiem a representação da figura humana de Adriana Varejão.
Adriana se apropria de imagens que antes eram de esculturas, arquitetura e outras
pinturas e cria obras de pintura. Subverte a condição das imagens. Muda a condição da carne,
do corpo de orgânico para pictórico. Para a artista a pintura é aquela que expõe um corpo e
uma corporalidade que ela relaciona com as imagens de corpos humanos. Esta materialidade
funciona como um simulador de emoções, que a carne representada não é carne, mas a
simulação da carnalidade dos corpos, que pode ser a carnalidade da pintura
48
.
O corpo humano aparece em diferentes obras da artista. A figura humana é
representada por fragmentos, que segundo a artista fazem alusão ao corpo: ao corpo barroco,
ligado à tradição barroca, cuja ênfase é para a matéria e para o corpo; ao corpo colonizado
brasileiro ou ao corpo da pintura. Um corpo que a artista representa como comida, cortada e
morta. Um corpo que se refere aos órgãos do corpo humano, ao vermelho das tintas, como do
sangue e das texturas da carne.
47
CANTON, 1998, p.92.
48
HERKENHOFF, 1993, p.02-11.
115
A artista afirma que seu processo de criação é racional, de uma enorme
previsibilidade
49
e que tudo o que cria passa antes por um projeto, o que nos remete à sua
relação com a Engenharia e com o Desenho Industrial no começo de sua formação
profissional. Os cortes nunca são aleatórios e sim, sempre muito bem pensados para alcançar
o efeito visual desejado.
Quanto ao uso dos processos fotográficos pela artista plástica observa-se que não
um procedimento único. Adriana explora os recursos da fotografia, tanto como base para suas
pinturas quanto como referência pré-iconográfica, como o fez na obra Varejão Acadêmicos
Heróis (1997), [fig. 42], na qual se apropriou de partes de corpos retiradas de obras de
Almeida Jr. (1850-1899) e Rodolfo Amoedo (1857-1941), em meio a azulejos portugueses
azuis e brancos.
Figura 42 - Adriana Varejão
Varejão Acadêmico – Heróis (1997)
Óleo sobre tela
140x160cm
Coleção Particular
49
Ver Vídeo Adriana Varejão: Metáforas da Memória, 2006.
116
Num comentário sobre a obra Charques (1999), Starusci, tece o seguinte comentário
sobre a prática de Adriana de fotografar açougues:
A artista também fotografa carnes expostas em açougues mundo afora. Trata-
se de outro aspecto evidente em sua obra, a busca de representações para a
carnalidade, também ligada à teatralidade de sua pintura. Para tanto usa
materiais semelhantes a elementos orgânicos e faz incisões nas telas e
azulejos. Assim é a série, intitulada Charques: madeira pintada de azul, com
poliuretano em tons avermelhados. (STARUSCI, 2001, p.14).
Cabe aqui acrescentar a estreita relação entre as imagens de açougues e as carnes
expostas nestes locais que seduzem Adriana Varejão e o uso das mesmas em outras produções
artísticas relacionadas à temática de Tiradentes.
O uso destas relações demonstra a força visual e estética desta conexão entre a carne
exposta, talhada e os locais de venda e exposição das mesmas e ainda, o quanto isto é atraente
do ponto de vista conceitual quando relacionado à exposição do corpo físico humano.
Refiro-me ao desenho principal da série Açougue Brasil, de 1978, de Arlindo Daibert,
[fig.43], e ao filme Os Inconfidentes, de 1972, de Joaquim Pedro de Andrade.
Figura 43- Arlindo Daibert
Açougue Brasil (1978)
Lápis sobre papel
Coleção Neysa Campos, Juiz de Fora, MG.
117
As obras se referem à Inconfidência Mineira e à tela Tiradentes esquartejado (1893)
de Pedro Américo, cada qual da sua maneira, mas ambas trazem à tona imagens de açougue
ao representar o esquartejamento.
No desenho de Daibert é explicita a relação do esquartejamento de Tiradentes com os
cortes de carnes expostos nos açougues.
O artista divide a imagem em dois planos. No superior distribui os cortes de carnes
dispostos como num balcão de açougue em meio a fotos de açougueiros. Ao passo que no
plano superior da composição, em meio às palavras Açougue Brasil, phone 1453, Arlindo
Daibert, especialista em Lingüiças de pura Carne de porco e...”, Daibert desenha a perna
espetada no mastro da pintura de Pedro Américo exatamente na mesma posição que se
encontra em Tiradentes esquartejado.
Os planos finais do filme conjugam a cena de um cine jornal, sobre as comemorações
do dia 21 de Abril na cidade de Ouro Preto, Minas Gerais, com a imagem, em close, de um
naco de carne, todo ensangüentado, sendo cortado a machadadas. Esta cena permanece por
cerca de dois minutos e o fato da mesma ser relacionada com o esquartejamento, reflete o
conteúdo plástico da parte versus o todo, explicitado no ato de cindir-se, de ser talhado.
Voltando à estética de Adriana Varejão, outro elemento da linguagem pictórica que a
artista visa subverter é a questão do suporte. A artista explora a tridimensionalidade das
imagens acrescentando objetos e cortes que expõe os aspectos da materialidade da pintura,
conforme sustenta Herkenhoff: “Na expansão do campo da pintura, primeiro a espessa carga
pictórica modelava-se em forma de relevo, porque pintar é dar um corpo. Havendo um corpo
este pode craquelar, ferir-se. Cortes expõem grande quantidade de massa pictórica como uma
paródia da carnalidade da pintura”. (HERKENHOFF, 1996, p.06).
Para caracterizar o interior dos corpos como as vísceras, veias e outros elementos
plásticos, a artista tratamento realístico para as telas visando simular a carne e o orgânico.
Por meio das cores e de um liquido chamado liquim
50
, assim como do uso de um material a
base de poliuterano em spray, que ao secar ganha aspecto de camadas e cria volumes de
gordura, como os nacos de carne
51
. A respeito desse tratamento plástico dado aos materiais
artísticos para simular a carne, segue um dos relatos de Adriana, a despeito do seu processo
criativo:
50
Liquim: espécie de liquido gelatinoso que com pouca tinta possui transparência e simula sangue.
51
Ver Vídeo Adriana Varejão: Metáforas da Memória, 2006.
118
Estava com a idéia de trabalhar em cima da carne. Tirei várias fotos em
mercados que expõem a carne sem estar no frigorífico, nas vitrines. Tem dois
mercados que estou me baseando: um em Uahaca, no México, e outro em
Belém do Pará, construído no final do século passado. No México é incrível,
porque a carne é cortada de maneira muito fina, tem vários tipos de cores,
formas e texturas. Isto é muito plástico. (DEWEIK, 1996).
Como resultado e ainda tratando dos aspectos estéticos e plásticos pelos quais sente
atração ao representar a matéria quente e visceral, Adriana recorda:
Desde Rembrandt uma tradição da pintura mais trágica. Ele fez uma série
de trabalhos para a Faculdade de Medicina em que estudantes e médicos estão
dissecando um cadáver. Goya e Francis bacon também tinham coisas barra
pesada. Eu trabalho a questão da representação. Eu pinto a textura da carne, as
superfícies. Para mim não há sangue, é tinta vermelha. (DEWEIK, 1996).
Adriana explica no ensaio que fez para o Vídeo Metáforas da Memória (2006), que
sua intenção ao fazer os cortes nos azulejos é contrapor uma superfície fria, organizada e
asséptica com a matéria pictórica cortada que expõe o corpo quente, matéria viva, caótica e
assimétrica. Um corpo vivo e pulsante, que sai dos azulejos limpos, frios. As espessuras e os
volumes dão forma às obras. As figuras mutiladas e o quadro que sangra cortado é a base que
Adriana usa para aflorar, por meio de fissuras, o que está dentro dos corpos. È uma
dissecação, mas uma dissecação feita não para revelar a morte ou o martírio, típicos da
estética do Barroco, mas para revelar a vida e a matéria interna e pulsante
52
.
Por conseguinte a presença do corpo humano na obra de Adriana Varejão e a relação
dessas imagens com a poética da artista é comentada na análise de algumas de suas obras
feitas por Herkenhoff:
‘Varal’ é um painel de azulejos com uma cena de caça, inspirada na
decoração do século XVIII da Quinta do Correio-Mor em Portugal. De uma
trave pendem órgãos e pedaços do corpo humano, esquartejado de livros de
anatomia, ex-votos, relicários com símbolos hagiográficos. [...] Na obra Ex-
Votos e Peles’, uma série de pedaços de películas de tinta é pendurada numa
certa ordem [...] as dilacerações concretas da pintura, como um martírio da
52
Ver Vídeo Adriana Varejão: Metáforas da Memória, 2006.
119
obra, estabelecem sua correspondência com os pedaços esquartejados e as
cenas de canibalismo. São fraturas, rupturas sangrantes, cesuras violentas
expondo o corpo da pintura [...] Em ‘Comida’ retrata o corpo dependurado
entre animais de caça e pesca. Cobre as imagens pintadas, espalham-se
vísceras e partes do corpo humano em carne viva, como um auto-retrato em
nova alusão à Antropofagia [...] Varejão também pinta como ‘carnação’ (a
cobertura cor de carne na escultura barroca). (HERKENHOFF, 1993).
Nesse viés da Antropofagia e do tema do canibalismo, chegamos à obra que Adriana
produziu para a XXIV Bienal Internacional de São Paulo, no ano de 1998: a releitura da obra
Tiradentes esquartejado (1893) de Pedro Américo, intitulada Reflexos de Sonhos no Sonho de
Outro Espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo).
Na mesma ocasião foram também expostos o quadro Tiradentes esquartejado (1893) e
a Balsa da Medusa (1819) de Théodore Géricault. Obras marcantes no tema da representação
da figura humana, relacionados ao tema da Antropofagia por ocasião da XXIV Bienal, e com
pontos de conexão entre si, outrora, levantados nesta pesquisa. A despeito da participação
destas obras e a vinculação do conjunto aduz Alambert:
O esquema tático da curadoria juntava esses nomes consagrados ao pintor
francês Théodore Géricault, do qual foi exibida, como eixo curatorial, a ‘obra-
prima’ A jangada da medusa, central na estratégia de apresentar o tema do
canibalismo também pela visão européia. [...] Entre os ‘clássicos’ da arte
acadêmica pré-modernista brasileira, destaque para Pedro Américo, de quem a
Bienal apresentava seu Tiradentes esquartejado (1893). Américo havia
estudado a tela Cabeças cortadas, de Géricault, que estava na Bienal, para
realizar sua obra de mitificação histórica. (ALAMBERT, 2004, p.210-211).
Adriana Varejão participou desta Bienal com três obras diferentes. No espaço
destinado à Arte dos séculos XV ao XVIII, a artista esteve presente com a obra Proposta para
uma catequese, Parte I (1993). A segunda obra de Varejão para a XXIV Bienal, foi a criação
de uma obra gráfica baseada numa gravura de Etienne De Laune, Mêleé des Guerris Nus,
(século XVI) a pedido do vice-curador Adriano Pedrosa, incluída no Catálogo do cleo
Histórico – História de Canibalismos.
120
E por fim com a obra, Reflexo de Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo sobre o
Tiradentes de Pedro Américo), de 1998, integrante do segmento “Um entre outros”. Sobre sua
participação neste segmento e a relevância da mesma, afirma Piccoli:
A inserção desse trabalho no eixo ‘um e outro’ é precisa na medida em que
articula temas importantes da exposição o espelho, o reflexo, o corpo em
pedaços, a fragmentação. Em Lacan, o espelho desempenha para a criança o
importante papel de trazer á consciência por intermédio de seu reflexo a
imagem total, organizada e simétrica do seu corpo, antes sentida e percebida
como fragmentada, Reflexo de sonhos no sonho de outro espelho opera no
sentido oposto. Não se trata do reconhecimento de minha imagem enquanto
corpo único, mas confirmação, através da pintura, de que me constituo a partir
de fragmentos. (PICCOLI, 1998, p.109 apud CHRISTO, 2005, p.38-39).
Contextualizada a obra Reflexo de Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo sobre o
Tiradentes de Pedro Américo) de Adriana Varejão, cabe a seguir a análise e o estudo do
fragmento na mesma.
3.2.3 – A Análise.
A obra de Adriana Varejão, Reflexo de Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo
sobre o Tiradentes de Pedro Américo), de 1998, [fig.44], é uma instalação que consta de uma
sala branca que mede 3x3x3m, com 21 pinturas a óleo de diferentes tamanhos e formatos,
cujo tema é Tiradentes esquartejado de Pedro Américo.
Nesta obra Adriana Varejão retoma a pintura de Pedro Américo e faz dela uma
releitura ousada, que resulta na fragmentação definitiva do corpo do líder revolucionário
mineiro e na separação das partes do corpo já fragmentado anteriormente por Pedro Américo.
Estas 21 pequenas telas foram criadas a partir de um processo criativo inusitado que
consistiu nos seguintes procedimentos: a artista pintou de negro um quarto do seu atelier e o
preparou, na medida de um cubo com 3m quadrados.
121
Figura 44 - Adriana Varejão.
Projeto para Instalação - Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) - (1998).
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
A seguir criou manequins, [fig.45], ou peças tridimensionais, com volume (altura,
largura e profundidade) tendo como molde as partes do esquartejado da pintura de Américo.
Pintou-as de branco e as distribuiu pela sala, dependurando-as no teto. Nas paredes deste
quarto colocou espelhos de diferentes formatos e tamanhos, que refletiam estas peças. Depois
fotografou o que estes espelhos refletiam.
A seguir pintou em telas o que havia fotografado, ou seja, os reflexos do corpo
esquartejado em três dimensões. As telas possuem os mesmos tamanhos e formatos dos
espelhos e depois foram colocados na mesma posição dos espelhos dentro da sala, agora
totalmente branca, numa organização que lembra muito a disposição de quadros que os
decoradores propõem para espaços internos, compondo com os tamanhos e formatos [fig.46].
Adriana Varejão aduz a respeito de sua obra:
O trabalho que estou preparando para a XXIV Bienal de São Paulo baseia-se
no quadro de Pedro Américo, o seu Tiradentes, que também estará presente na
Bienal. Meu interesse nessa pintura é mais de ordem semântica do que
pictórica. É um quadro com que muitos de nós estamos familiarizados, pois
está presente nos livros de História que costumamos estudar no colégio. Além
disso, interessou-me a representação da fragmentação do corpo e do corpo em
pedaços, algo que está em Géricault, que também estará na Bienal. Construí
um manequim e o desmembrei justamente como no quadro a que me referi:
122
Figura 45 - Adriana Varejão.
Projeto para Instalação - Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) - (1998). Detalhe – manequins
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
Figura 46 - Adriana Varejão.
Projeto para Instalação - Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo)- (1998). Detalhe - disposição pinturas.
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
123
duas pernas, um tronco com um braço, uma cabeça. Dispus as partes
especialmente dentro de quarto seguindo a mesma composição da pintura de
Pedro Américo. Era como se o quadro estivesse em terceira dimensão.
Coloquei vários espelhos nas paredes num total de 21, que refletiam as partes
do corpo e também se refletiam uns aos outros. Partindo de um mesmo ponto
de vista, fotografei cada espelho e reproduzi as imagens em pintura. Os
quadros estarão dispostos no lugar dos espelhos, tendo as mesmas dimensões.
(VAREJÃO, 1999, p.31).
Deste processo criativo podemos fazer várias relações com a obra de Pedro Américo e
com o tema da Inconfidência Mineira, bem como com os aspectos estéticos envolvidos na
produção da obra.
O processo de criação escolhido por Adriana para realização da obra se relaciona com
o fato da Inconfidência Mineira e a imagem do enforcamento como algo consumado e
fragmentado pela historiografia.
Quando reproduz as partes do corpo do esquartejado em terceira dimensão e o
fotografa, como num registro do volume e dos cortes em evidência do retalhado, Adriana
procura novos enquadramentos e cortes antes escondido pelo bidimensional.
Contudo ao pintar o esquartejado, a artista carioca retoma o pictórico e perpetua o
corpo fragmentado por meio de imagens retalhadas pelos reflexos dos espelhos e que são, em
função do seu processo de produção, impossíveis de reconstituição.
Reflexos de um corpo sem identidade, destituído de informações suficientes para que
o reconhecimento do corpo do alferes mineiro pudesse ser reconhecido pelo espectador. Não
nenhuma possibilidade do espectador se reconhecer como corpo naquelas imagens, muito
menos como o corpo de um cidadão brasileiro.
Ademais, o acabamento dado às imagens é realista e possui cor. Adriana retoma a cor,
mesmo depois de fotografar os reflexos dos manequins em branco. E retoma a cor da pele, o
vermelho do sangue e da carne assim como das vísceras e os cortes dos membros
esquartejados.
Mesmo esquartejando o corpo de forma a não permitir sua reconstituição, o tratamento
tonal e pictórico que Adriana Varejão imprime em suas imagens é realista, algo que identifica
o corpo, o sangue e as vísceras e o relaciona com a realidade, [fig.47].
124
Figura 47 - Adriana Varejão
Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) - (1998). Detalhe – Fragmentos.
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo
,
SP.
As pinturas de diferentes tamanhos ao mesmo tempo em que reinterpretam a obra de
Pedro Américo sustentam um processo de desconstrução da mesma e reforçam seu caráter
asséptico e fragmentário, conforme vimos no relato da artista sua atração pelo corpo
fragmentado.
Cabe por oportuno relatar a análise que Christo faz a despeito da sedução pelo
fragmento que Adriana Varejão experimentou ao criar esta obra:
Adriana Varejão viu no quadro de Pedro Américo a fragmentação.
Fragmentou o manequim. Fragmentou a própria imagem dos fragmentos
suspensos no ar ao refleti-los nos espelhos. Fragmentou o processo criativo
(escultura, espelho, fotografia, pintura, instalação). Fragmentou o espaço
(ateliê e Bienal). Fragmentou o tempo (o esquartejamento de Tiradentes em
1792, a pintura de Pedro Américo em 1893, a reinterpretação em 1998).
(CHRISTO, 2005, p.38).
125
A composição da obra de Adriana Varejão é marcada pela fragmentação como algo
definitivo e o aspecto realista do desenho e do tratamento pictórico geram uma oposição entre
a representação de um corpo por meio de suas partes e o reconhecimento destas partes como
fragmentos, [fig.48].
Figura 48 - Adriana Varejão
Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) - (1998). Detalhe – Fragmentos.
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
Um corpo para não ser reconstruído pelo olhar humano: um corpo-fragmento.
Assim sendo a representação da vida versus a morte, se faz presente nesta obra de
Adriana Varejão, por meio da representação da figura humana fragmentada e multiplicada. As
pinturas repletas de membros cortados com suas carnes à mostra, revelam ângulos mais cruéis
que a pintura de Pedro Américo e atualizam um fato histórico cristalizado no imaginário
brasileiro.
O espectador ao adentrar a sala branca e asséptica de Adriana Varejão, repleta de
imagens de um único corpo em pedaços, podia experimentar a sensação de não conseguir se
projetar na pintura, já que se tratava de uma sala que refletia um corpo que não era um corpo e
sim pedaços. Estes fragmentos são difíceis de serem inclusive, sob alguns ângulos,
identificados como partes de um corpo. Isto pode significar um corpo social e político
126
brasileiro destroçado, que o espectador não podia ver nem mesmo por meio dos reflexos de
seu próprio corpo ao se aproximar dos espelhos espalhados pela sala.
O caráter fragmentário da obra de Adriana Varejão; seu processo criativo, bem como o
resultado plástico, ressignifica a figura de Tiradentes esquartejado de Pedro Américo, um
ícone da pintura histórica brasileira, [fig.49].
Figura 49 - Adriana Varejão
Reflexo de Sonhos no Sonho de Outro espelho
(Estudos sobre o Tiradentes de Pedro Américo) - (1998). Detalhe – Fragmentos.
Coleção Ricard Akagawa – São Paulo, SP.
Os vermelhos e a pele rosada dos pés, das cabeças e das pernas esquartejadas em
contraposição à sala branca, limpa e asséptica, sem sangue escorrendo, em lugar algum,
causam tanto ou mais desconforto do que a obra de Pedro Américo, pois se tratam de vários
esquartejados.
Nesse sentido, não aborda a fragmentação do corpo fragmentado anteriormente por
Pedro Américo, mas, sobretudo, a multiplicação desta fragmentação.
127
Adriana Varejão atualiza a obra de Américo ao interpretá-la com um espírito
contemporâneo que tudo multiplica e põe sob confronto.
Sua obra aproxima-se, ao mesmo tempo em que se afasta da obra de Pedro Américo.
Transfere para a parte o status de inteiro, que cada fragmento atualiza e retrata o corpo
esquartejado de Tiradentes em várias e diferentes pinturas, causadas pelos diferentes e
múltiplos reflexos.
Como as pinturas são feitas da representação das partes, braços, pernas e cabeças,
suspensas e pintadas como foram refletidos pelos espelhos, o conjunto é todo fragmentado
como um quebra-cabeça sem solução, onde as peças não se encaixam. As partes do corpo
representadas possuem suas extremidades à mostra, denotam o ato de quebrar, realizado pelo
fragmento. Nelas o inteiro está in absentia e os confins do fragmento estão interrompidos
apontando para uma ruptura. O que se tem representado na obra de Adriana Varejão é o que
Calabrese afirma quando diz que: “[...] o fragmento torna-se ele próprio o sistema no caso de
renúncia à pressuposição de sua pertença a um sistema”. (CALABRESE, 1988, p.89).
Dado o exposto pode-se dizer que a obra, Reflexo de Sonhos no Sonho de outro
espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo) de Adriana Varejão pode ser
observada como uma como uma obra que contêm os elementos formais dos fenômenos
artísticos denominados como obra-fragmento.
3.4 - Pedro Américo x Adriana Varejão: Tiradentes esquartejado x Reflexo de Sonhos no
Sonho de outro espelho (Estudo sobre o Tiradentes de Pedro Américo).
Como demonstrei neste capítulo, por meio da análise estético-formal das obras
Tiradentes esquartejado e Reflexo de Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo sobre
Tiradentes de Pedro Américo) a figura humana é representada por meio de fragmentos em
ambas as obras. Contudo, Pedro Américo se aproxima mais de uma poética de uso de
pormenores, ao passo que Adriana Varejão reflete um interesse por fragmentos.
O diálogo entre as obras analisadas, não ocorre apenas no tocante ao tema, e sim no
âmbito simbólico, a que elas se referem. Mesmo Adriana Varejão afirmando, como relato
mais adiante, que sua atração pela obra de Pedro Américo foi apenas de ordem temática.
Isto porque ambas as obras nos levam a refletir sobre a condição do fato social e dos
aspectos políticos e culturais envolvidos no enforcamento de Tiradentes.
128
Assim observa-se que Pedro Américo destaca-se por excelência no plano do
bidimensional da Pintura, ao passo que Adriana Varejão, também termina por utilizar-se da
Pintura, mas inserida na linguagem contemporânea das Instalações, cujo processo criativo foi
um estudo das partes do corpo esquartejado pintadas por Pedro Américo, no plano
tridimensional.
Pedro Américo com Tiradentes esquartejado de 1893, se apresenta como um pintor de
temas históricos, marcados pela dramaticidade e sofrimento humano, podendo ser incluído
entre os artistas acadêmicos brasileiros que foram intensamente influenciados pelo
Neoclassicismo, Romantismo e Realismo.
Num salto no tempo, 105 anos depois, Adriana Varejão em sua obra, Reflexo de
Sonhos no Sonho de outro espelho (Estudo sobre Tiradentes de Pedro Américo), concebe, em
1998, uma releitura ousada da pintura histórica de Pedro Américo. Sua escolha, assim como a
interpretação que faz do tema Tiradentes, a projeta entre os artistas contemporâneos
brasileiros, cuja característica marcante é a apropriação de imagens e de ícones culturais, que
retomam a pintura histórica eo um novo sentido a estas imagens por meio de novas
intervenções e referências ideológicas.
Como se nota Pedro Américo utilizou os estudos à grafite e carvão para elaborar
previamente sua pintura, ao passo que Adriana utiliza a fotografia como técnica de registro de
estudos e com isso ressignifica a maneira e a técnica, com a qual se planeja uma obra de arte
pictórica.
Outro comportamento que os distingue, também os aproxima. Falo da relação com as
imagens que usaram para realizar suas obras. Se Pedro Américo compõe por meio de outras
obras neoclássicas, inspirado na composição e na estrutura de Ingres, David e ou Géricault,
Adriana Varejão se apropria inteiramente de uma única obra, Tiradentes esquartejado, por
interesse temático, como comenta no vídeo Adriana Varejão: Metáforas da Memória: “Eu
acho aquela pintura de Pedro Américo horrível, assim do ponto de vista, assim de pintura,
mas me interessava ela como tema”. (INSTITUTO ARTE NA ESCOLA, 2006.).
Ambos realizam suas composições por meio da intervenção e analogia com outras
obras de arte pictórica e se configuram em procedimentos de meta-pintura. O fato de Pedro
Américo representar a figura humana por meio do que Calabrese denomina pormenores, que
possibilitam a reconstituição do corpo inteiro dentro mesmo da própria pintura, demonstra o
respeito pelo intacto e pelos cânones de representação, que confirma sua poética em harmonia
com o espírito do seu tempo, o Neoclassicismo e o Academicismo brasileiro.
129
Nesse viés, Adriana Varejão apresenta um processo de apropriação e multiplicação de
imagens caracterizadas pela fragmentação e exposição do fragmento com caráter de inteiro.
Tal comportamento estilístico situa Adriana Varejão entre os artistas contemporâneos que
utilizam outras obras e imagens de segunda geração para compor suas pinturas
53
.
53
CHIARELLI, 2001, p.256-270.
130
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O estudo se mostrou pertinente, pois ao realizar um percurso histórico da temática da
figura humana contrapondo à representação da figura inteira versus a fragmentada, tendo
como instrumento a leitura estética e comparativa, apontou para o que as transformações
estéticas e formais sofridas pelo tema significaram para a iconografia do corpo e da figura
humana.
Tal procedimento encerrou como pano de fundo a História da Arte e da Pintura
Brasileira, testemunhas das variações da temática, bem como das contradições e do
surgimento do fragmento com valor de inteiro, autônomo, na Arte Moderna.
Em suma, o tema da Figura Humana ao longo da História da Arte permanece sendo
representado por meio dessa dualidade: figura-inteira versus figura-fragmentada, já que ambas
as concepções de representação do corpo humano são essenciais à expressão artística e
pictórica.
Dado o exposto o que distingui ou aproxima as diferentes obras de pintura observadas
no percurso histórico por meio da análise da figura humana nos diferentes movimentos
artísticos é o tratamento conceitual que se manifesta na forma, caracterizada por aspectos
estéticos da representação do inteiro ou do fragmento. Esta atitude conceitual reflete o espírito
do tempo e da época, como observa Omar Calabrese.
Por suposto, representar o corpo em partes tem o mesmo significado e importância do
que representá-lo inteiro.
O percurso histórico se mostrou eclético quanto à representação da figura humana e o
estudo de duas obras, detentoras do mesmo assunto, Tiradentes esquartejado, além de
dialogarem entre si, apresentaram maneiras distintas de representar o mesmo tema.
A obra Tiradentes esquartejado (1893) de Pedro Américo, por representar
mimeticamente o tema da Figura Humana, trabalha a temática por meio das partes do corpo,
131
porém, se constitui numa imagem composta de pormenores, ou seja, que possibilitam a
reconstrução do conjunto.
Constatei que os elementos estéticos que definem uma composição como obra-
pormenor na teoria do italiano Omar Calabrese, podem ser observados na análise do tema da
Figura Humana na obra Tiradentes esquartejado de Pedro Américo.
Ao passo que a obra de Adriana Varejão, Reflexo de Sonhos no Sonho de outro
espelho (Estudo sobre Tiradentes de Pedro Américo) (1998), por meio da análise estético-
formal, que investigou a apropriação da imagem de Tiradentes de Pedro Américo pela artista,
apresentou que o tratamento estético dado à Figura Humana, favoreceu o uso de fragmentos
que impossibilitam a reunião das partes.
Assim observei que as características formais apontadas por Omar Calabrese como
possíveis integrantes de uma obra-fragmento podem ser observadas em parte das informações
estéticas desta obra de Adriana Varejão.
Sugiro que outros estudos sejam realizados no tocante à representação da Figura
Humana, que a temática se constitui num rico campo de pesquisa repleto de contradições
que ainda não foram abordadas pela História da Arte.
Tais pesquisas certamente podem contribuir para a historiografia da representação do
Corpo nas Artes Visuais.
Como os aspectos psicológicos e ou políticos envolvidos nestas representações, aos
quais não me referi por não serem objetos de interesse neste momento, mas que entendo
serem relevantes para futuras pesquisas.
132
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ARTES – 8030100-2.
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