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Eduardo Jorge de Oliveira
MANUAIS DE ZOOLOGIA
Os animais de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
Belo Horizonte
2009
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Eduardo Jorge de Oliveira
MANUAIS DE ZOOLOGIA
Os animais de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Letras: Estudos Literários, da
Faculdade de Letras da Universidade Federal de
Minas Gerais, como requisito para a obtenção do
título de Mestre em Letras: Estudos Literários.
Área de concentração: Teoria da Literatura
Orientador: Prof. Dr. Maria Esther Maciel de
Oliveira Borges
Belo Horizonte
Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais
2009
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Ficha catalográfica elaborada pelos Bibliotecários da Biblioteca FALE/UFMG
Oliveira, Eduardo Jorge de.
B732.Yo-m Manuais de zoologia [manuscrito] : os animais de Jorge Luis
Borges e Wilson Bueno / Eduardo Jorge de Oliveira. – 2009.
123 f., enc.
Orientadora: Maria Ester Maciel de Oliveira Borges.
Área de concentração: Teoria da Literatura.
Linha de Pesquisa: Poéticas da Modernidade.
Dissertação mestrado) Universidade Federal de Minas
Gerais, Faculdade de Letras.
Bibliografia: f. 116-123.
1. Borges, Jorge Luis, 1899–1986 Crítica e interpretão
Teses. 2. Bueno, Wilson Crítica e interpretação Teses. 3. Animais
na literatura Teses. 4. Zoologia Classificão Teses. 5. Animais
de zoológico Teses. 6. Literatura fantástica – História e crítica
Teses. 7. Literatura comparada Teses. I. Oliveira, Maria Éster
Maciel de. II. Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de
Letras. III. Título.
CDD: Ar863.3
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AGRADECIMENTOS
A Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), pela bolsa
concedida para a realização desta pesquisa;
ao Programa de Intercâmbio e Difusão Cultural do Ministério da Cultura (MinC), pelo apoio a
ida a Buenos Aires;
a Fundación Centro de Estudos Brasileiros (FUNCEB), pelo convite para compartilhar a
pesquisa, o que gerou uma grande aprendizagem;
a Carolina Vieira, por aceitar partir e partilhar;
a Maria Elisa Rodrigues Moreira, pela leitura atenta;
a Carlos Augusto Lima, pelos primeiros livros de Bueno;
aos professores do POSLIT (UFMG), em especial Vera Casa Nova e Márcia Arbex;
a Maria Esther Maciel, pelo princípio de tudo, por todas as orientações e pela interlocução
nesses anos.
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Calas-te e não respondes
às minhas palavras; só dás suspiros lá no fundo do peito,
e tudo o que consegues quando falo é mugir em resposta.
Ovídio, Metamorfoses, livro I.
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RESUMO
Esta dissertação tem como objetivo realizar um estudo a partir das obras Manual de zoología
fantástica (1957), de Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, e Jardim zoológico (1997), de
Wilson Bueno, além da relação entre cada livro com o gesto de catalogar animais. Tendo a
questão da representação do animal para cada um dos escritores como eixo, esta pesquisa
propõe uma breve incursão dos autores estudados por bestiários medievais, relatos de
viajantes, jardins zoológicos, fábulas, além de compêndios da história natural. Como corpus
para tal estudo, trabalhamos sob a perspectiva de autores como Michel Foucault, sobretudo As
palavras e as coisas; Armelle Le Bras-Choppard, sobre a questão da animalidade; Gilles
Deleuze, sobre a colocação em série e, com Felix Guattari, a questão do “devir-animal”;
Jacques Derrida, sobre o aspecto da fábula e da representação animal; Georges Bataille, ainda
no que diz respeito à animalidade; e Silviano Santiago, nas reflexões sobre a América Latina,
além de suas leituras críticas decorrentes de Borges. Incluíram-se ainda perspectivas críticas
como as de Silvia Molloy, Beatriz Sarlo, Alan Pauls, Eneida Maria de Souza, Lyslei
Nascimento, Susana Scramin (em relação a Wilson Bueno) entre outros críticos, além da
perspectiva teórico-crítica de Maria Esther Maciel, que orientou este trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Jorge Luis Borges, Wilson Bueno, bestiário, classificação, animal na
literatura.
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RESUMEN
Esta disertación tiene como objetivo realizar un estudio a partir de las obras Manual de
zoología fantástica (1957), de Jorge Luis Borges y Margarita Guerrero, y Jardim zoológico
(1997), de Wilson Bueno, además de investigar la relación entre cada libro con el gesto de
catalogar animales. Con la cuestión de la representación del animal para cada uno de los
escritores como eje, este trabajo propone una breve incursión de los autores estudiados por
bestiarios medievales, relatos de viajantes, jardines zoológicos, fábulas, aparte de compendios
de la historia natural. Como corpus para tal estudio, trabajamos bajo la perspectiva de autores
como Michel Foucault, sobre todo Las palabras y las cosas; Armelle Le Bras-Choppard,
sobre la cuestión de la animalidad; Gilles Deleuze, sobre la colocación en serie y con Felix
Guattari, la cuestión del “devir-animal”; Jacques Derrida, sobre el aspecto de la fábula y de la
representación animal; Georges Bataille, todavía sobre lo que dice respeto a la animalidad; y
Silviano Santiago, en las reflexiones sobre Latinoamérica, además de sus lecturas críticas
originadas de Borges, sobre quien aquí incluimos perspectivas críticas de autores como Silvia
Molloy, Beatriz Sarlo, Alan Pauls, Eneida Maria de Souza, Lyslei Nascimento, Susana
Scramin (en relación a Wilson Bueno), entre otros críticos, y todavía de la perspectiva
teórico-crítica de Maria Esther Maciel, quien orientó este trabajo.
PALABRAS-CLAVE: Jorge Luis Borges, Wilson Bueno, bestiario, clasificación, animal en
la literatura.
8
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................
p. 8
1 OS ANIMAIS DE JORGE LUIS BORGES E WILSON BUENO..............................
p. 11
1.1 Com o Baldanders solto, dentro da escrita ...............................................................
p. 11
1.2 Remontar a ruína: uma breve incursão pelos bestiários medievais ..........................
p. 24
1.3 Com outros animais soltos, dentro da escrita ...........................................................
p. 30
2 O MANUAL DE ZOOLOGÍA FANTÁSTICA E A QUESTÃO DOS LUGARES .......
p. 39
2.1 Um zoo nos jardins da heterotopia ...........................................................................
p. 39
2.2 Os caminhos bifurcados da série ..............................................................................
p. 44
2.3 O A Bao A Qu, o Odradek e o Borametz ou “Lá onde, desde o fundo dos tempos,
a linguagem se entrecruza com o espaço” ......................................................................
p. 48
2.3.1 Qual a forma do A Bao A Qu?..............................................................................
p. 49
2.3.2 O lugar incerto do Odradek ..................................................................................
p. 52
2.3.3 A pele do Borametz ...............................................................................................
p. 55
3 O ZOOLÓGICO E SEUS LIMITES ...........................................................................
p. 62
3.1 O animal e as fronteiras do Outro ............................................................................
p. 62
3.2 Os animais do novo mundo. O novo mundo dos animais. .......................................
p. 70
3.3 As armadilhas do zoológico .....................................................................................
p. 78
4 SABER E AFETO: A ZOOLOGIA DE BORGES E BUENO....................................
p. 87
4.1 Os saberes e afetos de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno.......................................
p. 87
4.2 Homem, instinto ou instituição?................................................................................
p. 98
4.3 Um animal sonhado por J. L. Borges. Um animal sonhado por W. Bueno..............
p. 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVOS PONTOS DE PARTIDA.................................
p. 111
REFERÊNCIAS .............................................................................................................
p. 116
8
INTRODUÇÃO
Uma pesquisa se inicia com uma pergunta, e talvez todo o esforço para responder
a esta pergunta ou inquietação durante alguns anos resulte em um corpus que traga outras
inquietações, novas perguntas. A primeira pergunta que surgiu diante de um contato inicial
com Manual de zoología fantástica, de Jorge Luis Borges (em colaboração com Margarita
Guerrero) e Jardim zoológico, de Wilson Bueno, foi a seguinte: por que o animal?
Os caminhos para uma resposta são múltiplos. Um deles é a pesquisa em si.
Diante de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno e de suas obras selecionadas Manual de
zoología fantástica (BORGES e GUERREIRO, 1984) e Jardim zoológico (BUENO, 1999)
observamos uma questão inicial que poderia ser uma boa justificativa para agrupá-los: a
catalogação dos animais.
Assim, o que apresentamos primeiramente com Jorge Luis Borges, sobre a
questão dos animais, é que existe justamente um problema de lugar: de onde o escritor fala?
Vale ressaltar que, diante de toda uma tradição medieval-teratológica contida na própria
episteme europeia, Michel Foucault ri não das enumerações de seres teratológicos de
Aldrovandi ou de san Isidoro de Sevilla, que são tão insólitas quanto a enciclopédia chinesa
do autor argentino, mas sim de um texto de Borges; desse riso de Foucault surge um livro-
chave para se compreender a formação das ciências humanas, As palavras e as coisas
(FOUCAULT, 2007), do qual citamos o início do prefácio:
Este livro nasceu de um texto de Borges. Do riso que, com sua leitura, perturba
todas as familiaridades do pensamento do nosso: daquele que tem nossa idade e
nossa geografia –, abalando todas as superfícies ordenadas e todos os planos que
tornam sensata para nós a profusão de seres, fazendo vacilar e inquietando, por
muito tempo, nossa prática milenar do Mesmo e do Outro. (FOUCAULT, 2007, p.
IX)
A referida enciclopédia chinesa que, com um agrupamento alfabético e linear,
reúne uma insólita fauna, possui no próprio título um termo que a distancia: “chinesa”. A
China que se situa no imaginário tanto de Borges quanto de Foucault pode muito bem se
situar nos limites dos trópicos, como analisou Silviano Santiago (1991). Neste sentido,
“enciclopédia” e “chinesa” são duas palavras que se encontram em uma vizinhança súbita,
algo que possa ser traduzido como um “rigor exótico”. Este rigor assumiu para Foucault um
assombro diante de uma episteme baseada no Mesmo, como a europeia, analisada pelo
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filósofo francês. Se com Jorge Luis Borges esse “rigor exótico” possui uma diferença para o
pensamento, com o escritor brasileiro Wilson Bueno levamos a questão mais adiante. Se
Bueno partilha com Borges esse “rigor exótico”, o ato de catalogar os animais, ainda na
questão inicial do lugar, entretanto, ele cria hibridismos ao situar seu “jardim zoológico” nas
regiões fronteiriças do Brasil com outros países da América Latina. Nesse aspecto, além de
criar e catalogar uma fauna insólita, Bueno explora dialetos indígenas e o portunhol praticado
nas fronteiras. Se a maior utilização de tal procedimento se encontra em seu livro Mar
Paraguayo (BUENO, 1992), é possível encontrar traços do mesmo no decorrer de Jardim
zoológico.
A pergunta sobre a escolha do gesto de catalogar o animal insiste: por que o
animal? O animal, para a humanidade, encontra-se nos confins do ser mesmo que
precisamente não saibamos ao certo onde é esse lugar. Não é à toa que, frente a esta
dificuldade, Martin Heidegger vai chamá-lo de pobre de mundo. Nesse aspecto, e em
contraposição ao animal, para o filósofo alemão, o homem é formador de mundo.
1
Mesmo com todo esse poder “formador de mundo”, o homem ainda está sujeito à
“animalidade” que o habita, metáfora utilizada para destituir a humanidade do homem
2
ou
para saciar seu desejo de metamorfose; com isso, surgem diversos usos do poder pelo próprio
homem para sujeição do seu semelhante, como questiona Armelle Le Bras-Chopard (2000, p.
251, tradução nossa) quando pergunta: “Quais espécies humanas enviar ao zoo?”. Esse
questionamento assinala que a própria “humanidade” pode ser destituída do homem.
No que toca ao animal, o caminho é outro. Não existe a destituição da
“animalidade” do animal, e sim o que pode ser pensado é sua relação com a linguagem
humana, como aponta José Gil:
3
Mesmo que a humanidade, formulada em primeiro lugar, seja a seguir posta em
dúvida, é com fundamento nessa certeza inicial que se interroga a humanidade do
outro. O caso recíproco nunca acontece: não nos perguntamos se um golfinho, ou
um chipanzé, é humano, apenas nos interrogamos quanto à sua inteligência ou
linguagem aproximamo-nos, por certo, do limiar para do qual a animalidade
cessa. (GIL, 2006, p. 17)
1
A esse aspecto Giorgio Agamben dedicou um livro, Lo abierto, no qual o pensador italiano expõe e discute a
seguinte tese de Heidegger: “a pedra é sem mundo [weltlos], o animal é pobre de mundo [weltarm], o homem é
formador de mundo [weltbildend]” (AGAMBEN, 2007a, p.95, tradução nossa). Jacques Derrida, por sua vez,
retoma essa tese para justamente provocar o pensamento diante desse Outro, o Animal: “É uma palavra, o
animal, é uma denominação que os homens instituíram, um nome que eles se deram o direito e a autoridade de
dar a outro vivente” (DERRIDA, 2002, p. 48).
2
A questão do animal como metáfora é discutida no Capítulo 4 da dissertação, “Saber e afeto: a zoologia de
Borges e Bueno”.
3
Essa reflexão de José Gil é importante para aprofundar a discussão de Jacques Derrida em O animal que logo
sou, abordada no decorrer desta pesquisa (DERRIDA, 2002).
10
Sem dúvida, o aspecto da linguagem que separa homem e animal é algo
fundamental para a discussão e, por isso, junto a esse problema do “lugar”, que é fulcral ao
pensamento de Michel Foucault, escolhemos as enumerações e catalogações de animais.
Nesse aspecto, encontramos um vasto material nas obras estudadas de Jorge Luis Borges e
Wilson Bueno em que, inclusive, pelo gesto de cada um dos escritores, é possível levar aos
seus limites a própria palavra “animal”.
Ainda para tentar responder a esta pergunta, “por que o animal?”, percorremos
brevemente as obras de Aristóteles, Plínio, o Velho e O fisiólogo – que data provavelmente do
século III da nossa era e é considerada a matriz dos bestiários medievais –, assim como os
referidos livros medievos até chegarmos aos relatos de viajantes entre os séculos XVI e
XVIII. Nesse período em que seres e objetos heteróclitos representavam uma fonte de saber
encontramos a gênese dos zoológicos modernos e o que John Berger identificou como “um
epitáfio do encontro do homem com os animais” (BERGER, 1987, p. 23, tradução nossa). É
nesse contexto que situamos a zoologia de Jorge Luis Borges e a de Wilson Bueno.
Ressaltamos ainda que a abordagem sobre a Wilson Bueno se concentra em seu livro Jardim
zoológico, embora exista um breve percurso em Manual de zoofilia e Mar Paraguayo.
Ressaltamos que em uma perspectiva crítica em relação à fábula, em nosso recorte de leitura-
crítica não incluímos Cachorros do Céu (2005), onde este viés da fábula é mais evidente.
A pesquisa que resulta nesta dissertação aborda a catalogação dos animais sob os
aspectos dos compêndios de história natural, do bestiário, do relato de viajante, do zoológico,
da montagem, do devir, da fábula, da metáfora e da metamorfose, onde as escritas de Jorge
Luis Borges e de Wilson Bueno se aproximam e se distanciam de cada um destes aspectos e
também entre elas, pois se Manual de zoología fantástica e Jardim zoológico possuem uma
afinidade inicial, são no entanto livros distintos entre si, e cada um destes aspectos apresenta
relação particular que procurou ser contemplada ao longo da pesquisa.
Assim, diante ainda da pergunta inicial e de dois anos de pesquisas sobre o tema,
todas as leituras, transcrições, releituras e escritas parecem se tornar um inicio, uma
introdução às zoologias latino-americanas cujos escritores aqui escolhidos, Jorge Luis Borges
e Wilson Bueno, são tão importantes para esse gesto que é todo começo.
11
1 OS ANIMAIS DE JORGE LUIS BORGES E WILSON BUENO
Para iniciar a análise pelo viés dos animais de ambos os escritores aqui estudados,
resolvemos soltar alguns ao longo do texto. Será assim que compreenderemos melhor o
percurso da pesquisa: seguir o rastro de tais animais que, mesmo em estado de verbete,
possuem características que extrapolam classificações e organizações positivas. Esses animais
fazem parte de uma fauna que percorre e perturba a episteme, seja a europeia ou as tentativas
classificatórias de um exotismo da América Latina. Uma dessas tentativas é a de se colocar
diante do Outro, como Michel Foucault se posicionou em As palavras e as coisas. A surpresa
diante de tudo isso vem da tarefa crítica-criativa de dois escritores que catalogam esses corpos
junto a diversas tradições, como a dos bestiários da Idade Média. Nesse aspecto recorremos,
em primeiro lugar, a um animal compilado por Jorge Luis Borges no Manual de zoología
fantástica: o Baldanders.
1.1 Com o Baldanders solto, dentro da escrita
Começamos este trajeto entre as obras dos escritores Jorge Luis Borges e Wilson
Bueno por um animal imaginário chamado Baldanders, para através dele procurar articular os
problemas que surgem em nossa própria escrita ao pensar a questão dos animais presentes nos
textos de Borges e Bueno.
Assim, o limite e a dificuldade para a classificação de um animal descrito e
posicionado como verbete, nos livros Manual de zoología fantástica, de 1957, de Jorge Luis
Borges e Margarita Guerrero, e Jardim zoológico, de 1999, de Wilson Bueno, se apresenta
como recurso criativo para a constituição de suas obras. No Manual de zoología fantástica
existe um verbete para o Baldanders, no qual nos deparamos com algo que não se fixa,
portanto, de difícil classificação:
Em um bosque, o protagonista depara com uma estátua de pedra, que lhe parece o
ídolo de algum velho templo germânico. Toca-a e a estátua lhe diz que é Baldanders
e assume as formas de um homem, de um carvalho, de uma porca, de um salsichão,
de um prado coberto de trevo, de esterco, de uma flor, de um ramo florido, de uma
amoreira, de uma tapeçaria de seda, de muitas outras coisas e seres, e então,
novamente, de um homem. (BORGES e GUERRERO, 1984, p.158, tradução nossa)
12
Com o Baldanders dentro desta escrita assumimos uma dificuldade inicial. Como
tentar fixar, classificar o que não tem uma forma fixa e que está sempre em movimento? Pois
além do Baldanders, diversos animais existentes, imaginários e em metamorfose se farão
presentes nesse trabalho... Por isso a ideia de verbete, para os autores que integram esse
estudo, se torna frágil, mas ao mesmo tempo tencionada. Frágil, porque o próprio conceito da
lexicografia de um “verbete”, que o vincula à marcação de uma entrada de enciclopédia,
glossário ou dicionário, não fornece uma definição precisa e sim vários caminhos bifurcados,
diversos tempos e espaços; tencionada, porque é com a marcação de novas entradas ao
universo da classificação que Jorge Luis Borges e Wilson Bueno irão elaborar seus trabalhos
no universo ficcional, ou seja, é ironizando “os próprios da classificação” o verbete, o
dicionário e a enciclopédia que os dois escritores estabelecem uma força criativa dentro de
seus jogos ficcionais. Tanto em Manual de zoología fantástica quanto no Jardim Zoológico o
verbete se torna um limite de classificação e, para cada animal, existe um verbete, uma
entrada. Maria Esther Maciel, em “Poéticas do inclassificável”, trata justamente dessa
dimensão aqui discutida, do quanto “O que nos leva a afirmar que onde falha a classificação
advém a imaginação. Na falta de critérios para se definir com precisão um objeto estranho, há
que se inventar novas formas – sejam elas metafóricas ou não – para que ele possa ser descrito
e especificado” (MACIEL, 2008b, p. 158).
O que Borges e Bueno fazem com seus verbetes é ressaltar seres de uma estranha
riqueza natural, que não cabem em uma forma fixa, pois são diferentes ou mudam
constantemente, conforme o Baldanders de Borges. Vale ressaltar que não se tratam de seres
que se metamorfoseiam, e sim de seres que, mesmo possuindo uma estrutura corporal simples
e determinada, habitam de maneira heteróclita e nada linear os livros dos dois autores. A
presença destes animais confirma que o mundo definido como humano é cheio de
surpresas, sendo possivelmente tão heteróclito quanto a própria fauna contida nos livros de
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno, e que a classificação homogeneíza e simplifica o mundo,
como se criasse uma aparência retilínea deste. É nesta perspectiva que Michel Foucault afirma
que existe uma impossibilidade de se ver o mundo dentro de um movimento retilíneo:
Quando finalmente se revelou impossível fazer entrar o mundo inteiro nas leis do
movimento retilíneo, quando a complexidade do vegetal e do animal resistiu
suficientemente às formas simples da substância extensa, então foi necessário que a
natureza se manifestasse em sua estranha riqueza. (FOUCAULT, 2007, p. 175)
13
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno, com seus animais, inviabilizam uma aparência
retilínea do mundo, pois cada um a seu modo explorou uma grande variedade do mundo
animal, variedade esta que inclui o animal-homem, tal como o Baldanders também o tem em
uma de suas formas. O que ambos fazem é partir de outra forma de catalogação, ou seja, de
uma montagem explícita de “bestiários” de vários tipos e procedências. O diálogo, portanto, é
amplo e se estabelece com toda uma tradição europeia de bestiários medievais e de momentos
anteriores, além de relatos de viajantes entre os séculos XVI e XVIII mais presente em
Wilson Bueno, como iremos apresentar e do choque destas tradições com uma ideia de
América Latina.
Armelle Le Bras-Chopard, em Le zoo des philosophes, marca uma questão a partir
de duas palavras que trazemos e discutimos em relação a Jorge Luis Borges e a Wilson
Bueno: “bestiário” e “zoo”. A autora vai diferenciar a utilização de ambas as palavras,
mostrando que o bestiário tem uma conotação mais descritiva, suscetível de dar lugar a um
catálogo, enquanto o zoo sugere um princípio de seleção, uma escolha que se estabelece sobre
uma série de exclusões (LE BRAS-CHOPARD, 2000, p. 22). Como utilizaremos ambos os
termos para analisar as obras de Borges e Bueno, pensamos que esses escritores trabalham
com os limites de uma descrição e de uma seleção. Portanto, a articulação literária que ambos
fazem vai do “bestiário” ao “zoo” para lidar com uma diferença.
É por isso que tomamos o Baldanders, atentando sobretudo para o étimo de seu
nome que, segundo Borges, é o Ya diferente ou Ya otro (BORGES e GUERRERO, 1984, p.
158), para iniciar esta incursão pelos livros Manual de Zoología Fantástica e Jardim
Zoológico. Esse ser deflagra um limite que atravessa todo nosso estudo: a relação do humano
diante do Outro, do que ele nomeia animal seja “real” ou imaginário. Este outro, do
Baldanders, remete à própria condição de diferença, do situar-se diante do Outro, como é
sugerido nas páginas iniciais de As palavras e as coisas, de Michel Foucault, que citamos na
Introdução.
É a partir da leitura de Michel Foucault que retratamos um animal da natureza do
Baldanders como um ser que está operando continuamente com o Outro, em mudanças
constantes que não permitem que ele seja fixado em nenhuma delas. Assim, perguntamos: o
que desconcerta Michel Foucault em relação a essa prática milenar do Mesmo e do Outro
seria a própria enciclopédia chinesa de Borges ou o lugar de onde Borges enuncia esta
enciclopédia? Pois, falando em termos topológicos, antes, na Europa era possível ler
classificações inquietantes como a de Aldrovandi, criada em 1642, que dividia monstros em:
“1. Monstros simples do lado superior; 2. simples do lado inferior; 3. reunidos segundo um
14
eixo vertical; 4. com a cabeça oposta no mesmo diâmetro; 5. por união dos homens e
animais...” (GIL, 2006, p. 76). Ou ainda outra classificação, a de Isidoro de Sevilha, onde os
monstros se dividem:
1. Pelo tamanho; 2. Pela pequenez; 3. Defeito das partes; 4. Transformação de certas
partes; 5. De todas as partes; 6. Deslocação das vísceras; 7. Aderência das partes; 8.
Desenvolvimento precoce ou tardio das partes; 9. União dos Gêneros; 10. Várias
deformidades. (GIL, 2006, p. 76)
Jorge Luis Borges retoma todo esse imaginário contido no próprio continente
europeu e o torna Outro, possivelmente por falar a partir de um lugar diferente, situado em
outra geografia, para assim fazer de sua situação de escritor sua própria condição de
Baldanders, ya diferente, ya otro. Nesse regime de classificação de sua enciclopédia chinesa,
encontramos um ponto de partida para toda sua zoologia, alcançando também a zoologia de
Wilson Bueno, que retoma a classificação de Borges de maneira tão heteróclita quanto o
escritor argentino retomou as classificações anteriores. Por isso, é fundamental uma incursão
pelo texto que tanto influenciou e desconcertou Michel Foucault, contido na narrativa “O
idioma analítico de John Wilkins”, do livro Outras inquisições, de 1952:
(...) os animais se dividem em (a) pertencentes ao imperador, (b) embalsamados, (c)
amestrados, (d) leitões, (e) sereias, (f) fabulosos, (g) cães soltos, (h) incluídos nesta
classificação, (i) que se agitam como loucos, (j) inumeráveis, (k) desenhados com
um finíssimo pincel de pêlo de camelo, (l) etcétera, (m) que acabam de quebrar o
vaso, (n) que de longe parecem moscas. (BORGES, 1999a, p. 94)
Sem dúvida, essa é uma citação das mais recortadas da obra de Borges. Tão
recortada que o fragmento passa a ser tomado pelo todo, ou seja, no prefácio de Michel
Foucault de As palavras e as coisas, a citação borgiana adquire o caráter de uma pequena
narrativa autônoma, desvinculada do texto do qual foi extraída.
Vale considerar, aqui, o próprio início da narrativa “O idioma analítico de John
Wilkins”, em que o escritor argentino fala de uma omissão, uma falha no lugar privilegiado da
classificação: “Acabo de verificar que na décima quarta edição da Encyclopaedia Britannica,
foi suprimido o verbete sobre John Wilkins” (BORGES, 1999a, p. 92). Assim, usar um
fragmento de Borges, “uma certa enciclopédia chinesa” em detrimento da narrativa “O idioma
analítico de John Wilkins”, é um procedimento de leitura do próprio escritor incorporado pelo
filósofo francês. Esta pequena e desconcertante enciclopédia chinesa dentro da obra de Jorge
Luis Borges é, por si, esse já diferente, já outro.
15
Ainda com essa ideia de outro, retomamos a questão do “riso desconcertante”
colocada por Foucault, tal como foi tratada por Silviano Santiago, para quem esse “outro”, a
China, contida na enciclopédia borgiana, é a própria América Latina: “A China é o melhor
palco metafórico e incendiário para o exotismo por excelência deste Outro-do-Ocidente-
dentro-do-Ocidente, que é a América Latina” (SANTIAGO, 1991, p. 32).
É com essa leitura que Lyslei Nascimento também aborda a questão em um plano
político da América Latina:
Silviano Santiago, em “A ameaça do lobisomem”, lembra essas páginas
introdutórias de As palavras e as coisas, destacando que a enciclopédia chinesa, com
sua classificação divergente de ordem instituída, duplica antigas leituras europeias
das culturas colonizadas e acabam sendo responsáveis por uma das mais canônicas
leituras do escritor argentino, porque reencenam e rearfimam o teor exótico e
estranho para a condição latino-americana. (NASCIMENTO, 2007, p. 67)
Dada esta condição latino-americana, Wilson Bueno a tratou no plano do exótico
e do estranho, de um modo que possivelmente não se situa em uma leitura canônica. Por um
procedimento tão heteróclito quando o borgiano, ele criou um jardim zoológico que traz para
o campo visível da linguagem uma estranha riqueza natural, onde estão contidas diversas
mitologias indígenas de zonas da fronteira do Brasil com outros países da América Latina.
Se a enciclopédia de Borges traz esse teor de diferença, Bueno se apropria de
uma topografia que não vem de uma geografia cosmopolita, mas de um Brasil fronteiriço,
de regiões indígenas, de lugares cuja imagem não tem linhas firmes e bem desenhadas até
mesmo ao próprio brasileiro, como em um país como o Paraguai.
4
Por isso os seres deste
zoológico de Bueno coexistem, como afirmou Susana Scramin, “entre entidades animais,
seres humanos e seres fantásticos” (SCRAMIN, 2007, p. 128). E, para visualizar precisamente
estes animais, ressaltamos um trecho do verbete dos tiguasús:
Os índios do Chaco paraguaio acreditam que o tiguasú monstro repugnante com
um nariz todo úmido e em carne viva – protege os humanos contra a morte.
Isto acontece, contudo, se o postulante aos seus obséquios, ao menos uma vez na
vida tenha untado, dos tiguasús, o repulsivo naso, com o pohã, uma espécie de
unguento obtido das folhas maceradas da tapiá selvagem.
4
Pensando nesta questão, o segundo livro de Wilson Bueno, Mar paraguayo, de 1992, pode ser lido como uma
obra que traz essa perspectiva do Jardim Zoológico, em termos de mitologia indígena aqui, no caso, a
guarani. É um livro que desestabiliza a língua portuguesa, pois foi todo escrito em portunhol, com diversos
elementos do guarani. Néstor Perlongher, na apresentação do livro, fala de sua fluidez, onde “tudo boia, como
numa suspensão barroca, entre a prosa e a poesia, entre o devir animal e o devir mulher” (PERLONGHER apud
BUENO, 1992, p. 9). E Wilson Bueno, logo no início do livro, nos fala um pouco desta trajetória em sua escrita
em portunhol: “Queriendo-me talvez acabe aspirando, en neste zoo de signos, a la urdidura essencial del afecto
que se vá em la cola del escorpión” (BUENO, 1992, p. 13).
16
Segundo estes índios cândidos, aferrados ao guarani, sua língua, com uma teimosia
dura e inegociável, os tiguasús costumam aparecer nos pueblos perdidos do interior
paraguaio, sempre no começo da primavera dos anos ímpares, um fenômeno que os
mbyás deram o longuíssimo nome de yecuaacuaaã. (BUENO, 1999, p. 41-42)
O autor parece percorrer um território mais específico que o de Borges ao situar
seu jardim zoológico na América Latina, ou talvez tenha levado a sério o pedido de Borges no
prólogo de O livro dos seres imaginários, de 1974, ampliação do Manual de Zoología
Fantástica: “Convidamos o eventual leitor da Colômbia ou do Paraguai a nos remeter nomes,
a fidedigna descrição e os hábitos mais conspícuos dos monstros locais” (BORGES e
GUERRERO, 2006, p. 13). Convém ressaltar que, dentro da América Latina, Borges convoca
a margem da margem, Colômbia e Paraguai, e Wilson Bueno, com seu projeto literário como
em Mar Paraguayo parece captar, no Brasil, um projeto literário de Borges jogado no devir,
como se fosse uma carta ao mar (“paraguayo”).
A zoologia de Bueno parece partir desse pedido de Borges. Essa relação, porém,
não vai impor um modelo e não cabe aqui medir linhas de força entre cada autor de um
escritor para o outro, mas vai manter tensa a discussão que abre As palavras e as coisas, de
Foucault, que possui, por sua vez, vários desdobramentos das colocações de Silviano Santiago
a respeito deste “Outro-do-Ocidente-dentro-do-Ocidente”, a América Latina. Tanto que, para
pensarmos as obras de Wilson Bueno e de Jorge Luis Borges, trazemos a maneira com que
Santiago rearticula essa questão a partir do discurso de Foucault:
A China de Borges, continua ele, indicia o modo “como o encanto exótico de um
outro pensamento [o do latino-americano achinesado] é o limite do nosso [o do
europeu]”. De um lado, limitado pelo “olhar codificado” e, do outro, pelo
“conhecimento reflexivo”, o filósofo encontra na enciclopédia chinesa de Borges
uma “região mediana” que liberta a ordem classificatória naquilo que a institui.
(SANTIAGO, 1991, p. 32)
Tal enciclopédia chinesa realmente seria uma “região mediana” que liberta a
ordem classificatória? Com isso, voltamos ao problema da classificação. Uma questão que se
estabelece para as obras Manual de zoología fantástica e Jardim zoológico é o fato de ambas
possuírem dois pontos intimamente ligados: a história natural e a linguagem. Por isso, as
reflexões de Michel Foucault, no que tocam a essa aproximação, estão intrinsecamente
vinculadas ao próprio ato classificatório que estas obras parecem perturbar e afetar. Se por um
lado, a enciclopédia de Borges libera o pensamento da ordem puramente classificatória como
pensou Foucault, por outro essa liberação cria uma aporia diante do gesto que cataloga,
17
ordena e classifica. Para entender melhor essa questão, voltamos ao que afirmou Michel
Foucault:
A história natural é contemporânea da linguagem: está no mesmo nível do jogo
espontâneo que analisa as representações na lembrança, fixa seus elementos comuns,
estabelece signos a partir deles e, finalmente, impõe nomes. Classificar e falar
encontram seu lugar de origem nesse mesmo espaço que a representação abre no
interior de si, porque ela é votada ao tempo, à memória, à reflexão, à continuidade.
(FOUCAULT, 2007, p. 219-220)
A aporia encontra-se nesse ponto. É com a linguagem que se classifica o mundo
natural. Com a mesma linguagem também é possível parodiar, ironizar e fragmentar toda essa
classificação, criando verdadeiras rupturas de continuidade, de uma ideia de tempo linear e de
falhas às quais as mais sérias classificações estão sujeitas. Onde, como afirmou Beatriz Sarlo
em Borges, um escritor na periferia, “O verdadeiro problema filosófico está na transgressão
dos cortes lógicos entre as categorias, que torna impossível a organização visível do mundo”
(SARLO, 2008, p. 103).
Como então o Manual de zoología fantástica e o Jardim zoológico se tornam uma
“representação aberta no interior de si” ao lidar com elementos tais como tempo, memória,
reflexão e, sobretudo, continuidade, sem passar por um gesto classificatório? Maria Esther
Maciel, em A memória das coisas, chega a chamar esse gesto classificatório, em Borges, de
irônico. A leitura da autora do conto “A biblioteca de Babel” abre o campo das nossas
reflexões ao gesto irônico da classificação e isso tanto vale para Jorge Luis Borges quanto
para Wilson Bueno. Trata-se de “evidenciar a insensatez e a ineficácia de toda tentativa de
arquivamento ou classificação exaustiva do conhecimento e das coisas do mundo, visto que
todo recenseamento tende, em seus limites, a revelar o caráter do que é naturalmente
incontrolável e ilimitado” (MACIEL, 2004, p. 14).
Como catalogar e classificar o que é incontrolável e ilimitado? Michel Foucault,
ao citar o Systema naturae, de Lineu, fala de um trabalho exaustivo, além de uma exigência
onerosa que é o que a linguagem fez à história natural: operar uma passagem de uma estrutura
visível deste mundo a um caráter taxonômico. Assim, em torno de um “método”, Lineu fala
de um edifício da linguagem onde reinam os “Nomes exatos das coisas”:
O método, alma da ciência, designa à primeira vista qualquer corpo da natureza, de
tal sorte que esse corpo enuncia o nome que lhe é próprio, e que esse nome evoca
todos os conhecimentos que puderam ser adquiridos no curso do tempo acerca do
18
corpo assim nomeado: de modo que na extrema confusão se descobre a ordem
soberana da natureza. (LINEU apud FOUCAULT, 2007, p. 221)
Descobrir a natureza pela linguagem. Assim podemos resumir de uma maneira
mais simples esse princípio de classificação de Lineu, considerado o grande precursor da
taxonomia moderna. Jorge Luis Borges e Wilson Bueno parecem seguir um caminho oposto:
descobrir a linguagem pela natureza, pois o que ambos fazem com seus verbetes é mergulhar
em um universo considerado “natural” de animais que possuem um efeito ficcional de reais e
fabulosos para criar novas relações de linguagem dentro da escrita literária. Seria uma
provocação, um gesto irônico da classificação, como foi exposto por Maria Esther Maciel.
Com essa ironia do gesto classificatório, Susana Scramin, a propósito do Jardim
Zoológico, aponta para um caminho traçado por ambos os escritores: o da montagem.
Montagem é um termo que se tornou mais conhecido a partir do teórico russo do cinema e
cineasta Sergei Eisenstein, sobretudo a partir da publicação do livro Montagem, de 1938. A
montagem, como um procedimento para a criação de “bestiários” como os de Jorge Luis
Borges e Wilson Bueno, inclui a “desmontagem” de um sistema natural de classificação, e
reestrutura elementos de uma ordenação, como tempo, memória, reflexão e continuidade.
Assim, a partir da leitura da montagem do Jardim zoológico, Susana Scramin argumenta: “A
montagem como procedimento pressupõe a desmontagem, a dissociação prévia do que a
constrói, daquilo que, em suma, não faz mais que remontar ruínas, tanto no aspecto de
rememoração de temas como estruturas” (SCRAMIN, 2007, p. 132).
E qual é o trabalho de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno sobre os animais senão
o de remontar as ruínas dos bestiários medievais e dos relatos de viajantes? Tanto como tema
quanto como estrutura, os bestiários medievais são “rememorados” em suas obras.
Em Borges isso acontece de maneira mais explícita, onde o caráter de compilação
está mais presente, pois o autor argentino, ao modo de um monge copista, transcreve os
animais de diversas literaturas e mitologias universais. Bueno, por sua vez, ao valer-se de tal
procedimento de compilação, cria entretanto boa parte de sua fauna por uma mitologia
ameríndia, situada na América do Sul, sobretudo nas zonas fronteiriças do Brasil.
Uma prova disso são os rememorantes de seu Jardim zoológico, cujo verbete
integral aqui citamos:
Também chamados de os duendes da noite, os rememorantes são animais dotados de
uma inimaginável memória.
Vigiam o sono dos demais seres que habitam este nosso mundo acerbo, graças a uma
característica que faz deles, dos rememorantes, únicos sobre o planeta não
19
dormem, nunca dormiram, e, porque sejam perenemente insones, podem penetrar
nosso sono sem se deixarem contaminar por sua impossível matéria.
Os rememorantes possuem ainda outra qualidade essencial ao seu ofício alcançam
perscrutar, mesmo no sono mais embrutecido, os sonhos que ali morem e se
movimentem com esta graça inquieta que costuma ser, dos sonhos, o seu maior
triunfo.
Tudo imprimem à formidável memória, os rememorantes, e são eles que nos
assopram ao ouvido excertos de histórias contadas por sonhos esquecidos ou mesmo
o sanguinolento entrecho de um pesadelo para sempre soterrado pelo que havia nele
de mágoa e escasso abraço.
Nada temem da natureza dos sonhos e nem poderia ser de outra forma, pois, detalhe
supremo, os rememorantes se alimentam deles e nos dão a ver sobras sonhadas,
lapsos, fragmentos, fluidos recortes e vagas esquinas de um sonho que, sabemos,
com rigorosa certeza, ter sido bem mais do que o inútil sem nexo, por exemplo, de
um olho boiando na água ou o simulacro de asas com que ainda uma vez tentamos e
não conseguimos voar.
E porque se alimentem de nossos sonhos, vão por aí, ruminando-os o tempo inteiro,
justamente naquelas manhãs em que, ingênuos, nos deixamos enganar, pensando que
há muitas noites nada sonhamos.
É com eles que os rememorantes se refestelam, gordas jiboias de nossa talvez mais
sublime quimera. (BUENO, 1999, p. 65-66)
A partir de um rememorante, o gesto irônico de classificação fica mais evidente.
O rememorante, como um corpo nomeado, ao contrário do que sugeriu Lineu, não evoca
todos os conhecimentos adquiridos no curso do tempo sobre esse corpo. Na verdade, assim
como o Baldanders de Jorge Luis Borges, o rememorante não possui uma forma fixa, pois o
autor sutilmente, dentro de um verbete, evita classificá-lo de forma precisa, científica e
taxonômica. A montagem do verbete nos conduz à definição de um nome sem corpo, pois não
existe uma imagem que “mostre” um rememorante. Por isso, é pertinente trazer a reflexão da
montagem de um teórico como Eisenstein – que se valeu de diversos procedimentos literários
para elaborar sua teoria – e partiu de um problema de Gorki, “como escrever?”:
A montagem ajuda na solução desta tarefa. A força da montagem reside nisto, no
fato de incluir no processo criativo a razão e o sentimento do espectador. O
espectador é compelido a passar pela mesma estrada criativa trilhada pelo autor para
criar a imagem. O espectador não apenas os elementos representados na obra
terminada, mas também experimenta o processo dinâmico do surgimento e reunião
da imagem, exatamente como foi experimentado pelo autor. E este é, obviamente, o
maior grau possível de aproximação do objetivo de transmitir visualmente as
percepções e intenções do autor em toda a sua plenitude, de transmiti-las com “a
força da tangibilidade física”, com a qual elas surgiram diante do autor em sua obra
e em sua visão criativas. (EISENSTEIN, 2002, p. 29)
O que sabemos sobre os rememorantes está no verbete de Jardim zoológico, em
um recorte feito por Wilson Bueno. Sobre os rememorantes, como ainda sobre o Baldanders
ou sobre os tiguasús, a imagem que fica é aquela montada pelo autor. Trilhamos o caminho
demarcado pela escrita em sua “tangibilidade física”, sobre o que havia de ruínas para serem
20
remontadas, onde um texto com tais imagens precisa justamente dessa força criativa do
escritor.
A montagem à qual se referiu Eisenstein faz parte de uma técnica inerente ao
cinema, sendo assim um procedimento fundamental para o próprio meio. Peter Bürger, no
seu livro Teoria da Vanguarda, afirma que a montagem é um procedimento inerente tanto à
literatura quanto ao cinema e às artes plásticas:
A montagem pressupõe a fragmentação da realidade e descreve a fase da
constituição da obra. Uma vez que o conceito desempenha um papel não apenas nas
artes plásticas e na literatura, mas também no cinema, a primeira questão a ser
esclarecida é sobre o que esse conceito designa, respectivamente, nos vários meios.
(BÜRGER, 2008, p. 148)
Assim, não se trata apenas de utilizar um conceito do cinema para ilustrar um
procedimento literário, e sim de operá-lo em um campo de reflexões a partir das obras
estudadas. Partindo deste conceito, o de montagem, percorremos uma leitura de bestiários
medievais frente ao Manual de Zoología Fantástica, de Borges, e ao Jardim Zoológico, de
Bueno.
As possibilidades de leitura e também de remontagem para cada um desses
verbetes são inesgotáveis. Voltando à fauna da enciclopédia chinesa de Borges, encontramos
um dos itens que abre o fragmento ao infinito: (l) etcétera. Sobretudo por estar situado dentro
da ordenação e não ao final, como usualmente se utiliza formalmente esse termo. O princípio
de montagem se torna evidente. Borges rompe com a sucessividade que o termo “etcétera”
suscita quando disposto linearmente ao final de uma frase, pois assim temos a ideia de
continuidade. Quando o “etcétera” vai para o meio do texto, Borges monta, em seu texto, um
plano infinito dentro do finito. Ele quebra a aparência de continuidade da linguagem,
manipulando um continuum e, no restrito espaço de algumas linhas, altera completamente a
ordem da classificação.
Manual de zoología fantástica e Jardim zoológico são livros que possuem essa
característica de abertura a outros livros. Assim, convém ler o prólogo de um destes, O livro
dos seres imaginários, em que o escritor argentino alerta: “Um livro desta índole é
necessariamente incompleto; cada nova edição é o núcleo de edições futuras, que podem
multiplicar-se ao infinito” (BORGES e GUERRERO, 2006, p. 13). Ou seja, torna-se
impossível catalogar todos os animais reais e fantásticos que existem e, na medida em que
essa catalogação prossegue, surgem outros livros. Assim, num dos momentos em que o
prólogo se abre ao infinito, a linguagem amplia todo um mundo natural. É nesse sentido que
esse prólogo de Borges aponta para a tarefa árdua do escritor que monta seus livros e os abre
21
a outros livros, do próprio autor ou de outros escritores criando, a partir desse princípio, uma
verdadeira biblioteca.
Nos livros de Borges, os prólogos que originalmente são textos preliminares de
apresentação de uma obra, que fornecem explicações sobre o conteúdo do livro geralmente
assumem outra característica, convertendo-se em verdadeiras construções cartográficas, como
analisou Silviano Santiago: “Ele [o prólogo] é trabalhado por um grande desdobramento e por
desdobramentos menores, desdobramentos dentro do desdobramento” (SANTIAGO, 1991, p.
37). Lyslei Nascimento também faz uma incursão pelos prólogos de Jorge Luis Borges:
Sob o signo da ironia, podemos ler, também, outro exemplo da obsessão de Borges
pelos catálogos e listas, mais especificamente em O livro dos seres imaginários,
publicado em 1974. Os prólogos, os prefácios, as notas de de página, que
normalmente servem para auxiliar a leitura ou referendar a escrita, são, no entanto,
em Borges, em sua maioria, falsos, dissimulados ou adulterados. Então antes
perturbam do que guiam o leitor. (NASCIMENTO, 2007, p. 70)
Essa perturbação causada ao leitor apontada por Lyslei Nascimento ocorre
justamente pela ironia com a qual Borges lida com o problema da classificação. É uma
“perturbação” da ordem da literatura borgiana, elaborada a partir das falhas da linguagem e do
fato da dúvida de uma linguagem que referende o real. Como afirmou Beatriz Sarlo, Borges é
“um escritor que, paradoxalmente, constrói sua originalidade por via da citação, da cópia, da
reescrita de textos alheios, porque desde sempre pensa a escrita a partir da leitura e desconfia
da possibilidade de representação literária do real” (SARLO, 2008, p. 21). Então, essa
perturbação acaba sendo da ordem da desconfiança. Afirmamos ainda, com Silvia Molloy,
que seus prólogos, além de perturbar o leitor, são enganosamente ingênuos e autenticamente
divertidos, que articulam toda uma concepção de literatura. Tratando especificamente do
prólogo do Manual de zoología fantástica, Silviano Santiago nos apresenta um exemplo claro
do que discutimos anteriormente:
O todo compõe um jardim zoológico no caso de “senderos que se bifurcan” cujo
horizonte anunciado é o infinito. O grande desdobramento enuncia e abriga
simultaneamente o jardim zoológico da realidade e o jardim zoológico das
mitologias. De um lado, nos diz o texto, a “zoología de Dios” (os animais) e, de
outro, a “zoología de los sueños” (os monstros). (SANTIAGO, 1991, p. 37)
Segundo a afirmação de Silviano Santiago, no prefácio ao Manual de zoología
fantástica, Borges faz uma classificação singular, afirmando a existência de dois tipos de
zoológicos: um jardim zoológico da realidade e um jardim zoológico das mitologias. Para ele,
um monstro (pertencente ao jardim zoológico das mitologias) não é outra coisa que uma
22
combinação de elementos de seres reais e as possibilidades da arte combinatória lidam com o
infinito (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 8).
Borges, ao lidar com esta divisão dos zoológicos, vai tratar do primeiro, o
zoológico da realidade, mencionando que para uma criança que descobre o mundo animal, um
camelo, por exemplo, não é mais estranho que o espelho, a água ou as escadas (BORGES e
GUERRERO, 1984, p. 7). Ainda os objetos inseridos na nossa cultura, tais como brinquedos,
especificamente bichos de pelúcia ou ilustrações de enciclopédias, para o autor argentino,
preparam essa criança para ver sem horror o animal do zoológico: “também, o tigre de pano e
o tigre das figuras da enciclopédia o prepararam para ver sem horror o tigre de carne e osso”
(BORGES e GUERRERO, 1984, p. 7, tradução nossa). E Borges prossegue com este
zoológico da realidade:
Platão (se mediarmos esta investigação) nos diria que a criança viu o tigre, no
mundo anterior dos arquétipos, e que agora ao vê-lo o reconhece. Schopenhauer
(ainda mais assombrosamente) nos diria que a criança olha os tigres sem horror
porque não ignora que ele é os tigres e os tigres são ele ou, melhor dizendo, que os
tigres e ele são de uma mesma essência, a Vontade. (BORGES e GUERRERO,
1984, p. 7, tradução nossa)
Por outro lado, o jardim zoológico das mitologias deveria exceder o primeiro, pois
sua fauna é de esfinges, grifos, centauros, entre outros animais. Neste jardim, podemos
construir um número indefinido de monstros, afirma Borges, mas a quantidade não é
considerável porque são poucos os que realmente podem trabalhar na imaginação das pessoas
(BORGES e GUERRERO, 1984, p. 8). E assim encerra Borges seu prólogo, afirmando o
porquê da zoologia dos sonhos ser mais pobre que a zoologia de Deus.
Outro ponto importante desse prólogo é justamente uma afirmação explícita de
Borges sobre as transformações dos seres: “Deliberadamente, excluímos deste manual as
lendas sobre transformações do ser humano: o lobisomem, o werewolf, etcétera” (BORGES e
GUERRERO, 1984, p. 8, tradução nossa). Não à toa o texto de Silviano Santiago intitula-se
de “A ameaça do lobisomem”: “Até este ponto estivemos percorrendo o caminho de uma
leitura canônica de Borges. Súbito uma frase final do prólogo, um detalhe, fala de uma
ameaça. A ameaça é anunciada e logo exorcizada pelo gesto incisivo da exclusão”
(SANTIAGO, 1991, p. 38). O ponto de partida dessa leitura de Silviano Santiago pode ser
conferido nas páginas dos Mil Platôs de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no texto “Devir-
Intenso, Devir-Animal, Devir-Imperceptível”, onde os filósofos argumentam essa questão em
Borges:
23
J. L. Borges, autor renomado por seu excesso de cultura, fracassou pelo menos em
dois livros, dos quais os títulos eram bonitos: primeiro uma História Universal da
Infâmia, porque ele não viu a diferença elementar que os feiticeiros fazem entre a
trapaça e a traição (e os devires-animais estão aí, forçosamente do lado da
traição). Uma segunda vez, em seu Livro dos seres imaginários, onde ele não faz
do mito uma imagem composta e sem graça, mas elimina todos os problemas da
matilha, e, para o homem, de devir-animal correspondente: “Deliberadamente,
excluímos deste manual as lendas sobre as transformações do ser humano, o
lobisomem, o homem-lobo, etc.” Borges se interessa pelas características, mesmo
as mais fantásticas, enquanto que os feiticeiros sabem que os lobisomens são
bandos, os vampiros também, e que esses bandos transformam-se uns nos outros.
(DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 22)
Será que Borges se interessa apenas pelas características dos animais? Por este
caminho Borges se aproxima do caráter descritivo de um bestiário, mas por seu exíguo
volume, também do modo excludente de um zoológico. Entre um e outro, Jorge Luis Borges
vai além, pois existe um “salto” no Manual de zoología fantástica, um salto que está no início
do livro, uma trapaça e uma “traição”. Assim, após essa referida passagem de Deleuze e
Guattari, vale ressaltar a questão dos prólogos de Borges. Os filósofos parecem “perturbados”
com a leitura do prólogo de O livro dos seres imaginários, por exemplo. Porque não
considerar o Baldanders como uma das lendas das transformações do humano? E porque não
ler toda a fauna heteróclita de Borges como uma matilha? que como afirmaram os
filósofos, “O universo não funciona por filiação” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 23),
afirmação essa presente constantemente na obra de Jorge Luis Borges. Não poderíamos
afirmar que Deleuze e Guattari foram trapaceados e traídos pela escrita de Borges?
Quando Borges assume a exclusão, afirma uma determinada seleção e deixa de
lado o “bestiário”, passando para o “zoológico”, para lembrarmos a referida distinção feita
por Armelle Le Bras-Choppard. O autor argentino praticamente faz seu bestiário operar em
um zoológico; bestiário esse que contém as duas faunas divididas por Borges, a dos sonhos e
a de Deus. Borges cataloga os animais, descreve-os e, uma vez constituído o “bestiário”, lhe
dá um aspecto de zoológico, lidando com a exclusão apontada em seu prefácio.
Entretanto, a exclusão de seres que sofrem metamorfose tal qual está escrita, se
sobreposta à fauna de uma enciclopédia chinesa, cria uma contradição. A contradição que
acontece dentro do prólogo do Manual de Zoología Fantástica é, no mínimo, insólita, pois
Borges exclui até mesmo um dos animais que está na sua enciclopédia chinesa, uma das
“categorias” que a abre ao infinito: etcétera.
24
Maria Esther Maciel, em “Poéticas do inclassificável”, recorta o “etcétera”
contido na enciclopédia chinesa de Borges e o relaciona com as “leis paródicas da ficção” sob
as quais o autor argentino parece elaborar seus textos:
O fato de o etcétera borgiano vir não no final da lista, como seria previsível, mas
antes das duas últimas categorias, garante-lhe inevitavelmente um estatuto mais
sólido dentro do conjunto, o que gera ainda mais estranhamento no leitor e rompe
com a previsibilidade da própria lógica classificatória dos sistemas convencionais.
Daí as perguntas: seria esse etcétera o topos por excelência do “inclassificável” e,
por extensão, a categoria que falta a todos os sistemas taxonômicos em geral? Ao
combinar, em um mesmo espaço discursivo, as regras de classificação com as leis
paródicas da ficção, Borges não estaria evidenciando a impossibilidade de uma
classificação do universo ou do conhecimento que não seja arbitrária, provisória e
conjetural, visto que todo recenseamento/ordenação tende, em seus limites, a revelar
o caráter do que é naturalmente incontrolável e ilimitado? (MACIEL, 2008b, p.
157).
O etcétera apresenta, além da ideia de infinito, a própria precariedade e
transitoriedade de todo o sistema de classificação do Universo. Borges torna isso mais preciso
quando nos diz, em “O idioma analítico de John Wilkins”, que “notoriamente, não
classificação do universo que não seja arbitrária e conjectural. A razão é muito simples: não
sabemos o que é o universo” (BORGES, 1999a, p. 94). Assim, a pergunta, que não deixa de
lado o caráter de perturbação do leitor, é: Etcétera mesmo não incluso formalmente como
um verbete no Manual de Zoología Fantástica –, contido na enciclopédia chinesa de Borges,
não conteria o lobisomem, o werewolf, todos os seres nos quais o homem se metamorfoseia,
incluindo o próprio etcétera? E também o Baldanders, este ser que habita em forma de
verbete tanto o Manual de zoología fantástica quanto O livro dos seres imaginários? Não é
ele mais uma lenda de transformação do ser humano? Portanto, não se trataria ele também de
uma “ameaça”, para recordar a reflexão de Silviano Santiago? Ou, esse prólogo não seria
mais uma trapaça de Borges, contida em uma tiragem perdida de uma das raras enciclopédias,
como a de “Tlön, Uqbar, Orbis Tertius”?: “Um livro que não encerre seu contralivro é
considerado incompleto” (BORGES, 1998a, p. 484).
1.2 Remontar a ruína: uma breve incursão pelos bestiários medievais
Abrir um livro e retirar de dentro um outro. É praticamente esse o movimento que
fazem Jorge Luis Borges e Wilson Bueno em suas escritas, sobretudo quando relacionadas
25
aos animais. Wilson Bueno, que começa a elaborar um zoo na linguagem com o Mar
paraguayo, de 1992, passa também pelo Manual de zoofilia, de 1995, para chegar ao seu
Jardim zoológico, de 1999. Assim, o Manual de zoologia fantástica, de 1957, de Jorge Luis
Borges, é um livro que precede O livro dos seres imaginários, de 1974, ou seja, com a
ampliação do Manual de zoología fantástica chegamos a O livro dos seres imaginários. Tal
ampliação, que se multiplica ao infinito, nos remete à própria ideia de uma “Biblioteca de
Babel”, onde lemos: “a escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A
certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagoriza” (BORGES, 1998c, p. 522).
Ao que parece, a escrita dos livros citados se articula continuamente, como se um livro abrisse
caminho a outro, como se ao escrever com frequência sobre os animais, ambos os escritores
chegassem a se distrair da própria condição dos homens. Ao mesmo tempo, quando a escrita
tem a necessidade de ser incompleta, traz a própria condição do homem, que precisa e sempre
precisará dos animais para uma espécie de tentativa de completude de seu saber e de
habilidades que não possui.
Para não se anular ou tornar-se um assombro, o homem continua seu trabalho com
a escrita porque nem tudo está escrito. Os livros precisam ser ampliados e completados ou
reescritos por outros autores. Esse é o trabalho constante de remontar a ruína. É onde se
articula um princípio de montagem. Os acréscimos de outros seres ao original Manual de
zoología fantástica justificam até mesmo a mudança de título, O livro dos seres imaginários,
onde entram seres como pigmeus, gnomos, outras variedades de dragões e até mesmo animais
sonhados por escritores como Franz Kafka e Edgar Allan Poe. Daí que, no referido prólogo,
Borges mencione sucintamente a ideia de uma quase totalidade em torno da locução “seres
imaginários” contida em seu livro:
O nome deste livro justificaria a inclusão do príncipe Hamlet, do ponto, da linha, da
superfície, do hipercubo, de todas as palavras genéticas e, talvez, de cada um de nós
e da divindade. Em suma, quase do universo. Ativemo-nos, contudo, ao que
imediatamente sugere a locução “seres imaginários”, compilamos um manual dos
estranhos entes que engendrou, ao longo do tempo e do espaço, a fantasia dos
homens. (BORGES e GUERRERO, 2006, p. 13)
Borges é muito preciso quando utiliza o termo “fantasia dos homens” que cria os
“seres imaginários”, seres estes que também pertencem a toda uma tradição de bestiários.
Armelle Le Bras-Chopard (2000, p. 18) argumenta que a imaginação que inventa os animais
fabulosos vem de muito longe, mas que o animal, quando passa ao discurso do homem,
mesmo não sendo fantástico ou monstruoso, é imaginário.
26
Com relação aos bestiários medievais, a leitura de Virginia Naughton sobre esses
livros nos é fundamental para compreender a citação do pequeno trecho do autor argentino e
de Bras-Chopard sobre seres imaginários, além de nos ajudar a pensar em uma definição de
bestiário:
O “bestiário” constitui um dos tópicos alegóricos fundamentais da Idade Média, e a
partir de sua leitura é possível reconstruir as relações que o homem medieval
mantinha com a natureza, e ao mesmo tempo nos permite localizar sua posição no
esquema geral das coisas criadas. Junto a esta zoologia simbólica, deve se situar
também aquele remédio imaginário, e igualmente aos bestiários, a base de sua
credibilidade e ampla aceitação surgia de combinar algumas observações empíricas
com propósitos morais e religiosos e tudo isso, no marco de uma profusa e
abundante “imagería”. (NAUGHTON, 2005, p. 18, tradução nossa)
Os bestiários foram publicações de um largo alcance dentro da cultura da Idade
Média. Por isso, originalmente exerceram uma função pedagógica, chegando mesmo a serem
conhecidos como a bíblia dos pobres (PERADEJORDI, 2000, p. 10), justamente porque
também serviram de suporte para o ensino moral e religioso. Mary del Priore, em Esquecidos
por Deus, fala brevemente sobre o assunto:
O importante é que, além de enfeitar capitéis, pórticos e iluminuras, os monstros
passaram a encontrar seu lugar em bestiários livros que somavam histórias e
descrições de animais verdadeiros e imaginários –, fazendo com que a erudição
enciclopédica e o pensamento religioso se reunissem. Nesses bestiários, a ênfase na
moralidade, apregoada pela Igreja católica, passa a dar novo sentido alegórico aos
monstros. Vale ainda lembrar que o método de interpretação que consistia em
emprestar à teratologia um sentido edificante remonta pelo menos aos estoicos. Seu
ardente desejo de conciliar a filosofia com a religião popular os conduziu a buscar
nas entidades mitológicas um significado espiritual; e em suas aventuras um
ensinamento sobre os bons costumes. (PRIORE, 2000, p.27-28)
O escritor Umberto Eco, na organização de História da Feiura, passa por esse
universo dos bestiários e nota que a necessidade de alguma explicação por um viés
enciclopédico sobre determinado tema deu origem aos bestiários ligados ao ensino de alguma
moral:
Para entender que é o sentido espiritual de uma pedra preciosa ou de um animal, era
preciso ter à mão uma “enciclopédia” que dissesse qual o significado alegórico
daquelas coisas. Nasceram assim os bestiários moralizados, nos quais cada criatura
mencionada (não importa se real ou legendária) era associada a um ensinamento
moral. (ECO, 2007, p. 114)
Entretanto, os bestiários não se resumiam apenas à transmissão de uma pedagogia
religiosa. Maria Esther Maciel, em O animal escrito, ressalta que o ensino moral não era a
27
única “função” do bestiário enquanto gênero, já que este, além do texto moralizante, percorria
o universo erótico, o religioso e o satírico (MACIEL, 2008a, p. 13). O bestiário é, inclusive,
considerado um trabalho sério de história natural e foi uma base fundadora do conhecimento
da biologia que se aproxima das reflexões de Michel Foucault acerca da linguagem e do
mundo natural.
O primeiro bestiário de que se tem notícia data provavelmente do século III de
nossa era, O fisiólogo, considerado o ancestral dos bestiários medievais, manuscrito que foi
copiado ao longo dos séculos. Juli Peradejordi, na introdução de uma das edições de O
fisiólogo, nos oferece algumas fontes para esse manuscrito. Escrito em grego, provavelmente
em Alexandria, o suposto “autor” do livro teria se utilizado de fontes indianas, judaicas e
egípcias, além de textos de Heródoto e san Isidoro de Sevilha. Peradejordi ainda atenta para as
possibilidades de uma identificação desse “autor”:
Pysiologus, “o Naturalista”, autor deste Bestiário/Lapidário, é de fato um
compilador que bebe tanto nas fontes pagãs como no texto bíblico ou nos Pais da
Igreja. Não se sabe a certa ciência quem era esse personagem e se embaralharam
diversos autores para os vários Fisiólogos que chegaram até nós. Entre os possíveis
autores dos Bestiários contamos com personagens como são Basílio, são Jerônimo
ou são João Crisóstomo. (PERADEJORDI, 2000, p. 10, tradução nossa)
Possivelmente, a ideia mais geral que sempre associa o bestiário ao ensino
religioso venha do próprio O fisiólogo, pois como publicação mais antiga, ele foi o primeiro
texto com esse caráter a entrar no mundo cristão (ECO, 2007, p. 114). Na abertura do livro, o
Leão, tratado como o rei dos animais, é associado a Jesus Cristo, cujo título é Começamos a
falar, em primeiro lugar, do leão, rei de todos os animais: “Jacob, quando bendisse o seu filho
Judá, disse: ‘cachorro de leão, Judá. Filho de minhas entranhas’. O fisiólogo, que anotou estes
discursos, disse: ‘O leão possui três particularidades’”(PERADEJORDI, 2000, p. 15, tradução
nossa). Assim se estrutura o primeiro verbete de O fisiólogo, com as três particularidades do
leão: a primeira é apagar suas pegadas com o próprio rabo ao sentir o cheiro do caçador. A
segunda é que quando dorme seus olhos permanecem abertos, e a terceira é que quando a leoa
tem um filhote e este nasce morto, ela ainda cuida dele por três dias. Cada uma dessas fases
está associada à vida de Jesus Cristo.
5
5
Georges Bataille, em Teoria de la religión , afirma algo sobre o Leão que desmonta uma leitura moralizante: “O
leão não é o rei dos animais: não é no movimento das águas mais que uma onda alta que derruba as outras mais
fracas” (BATAILLE, 1981, p. 22, tradução nossa). A leitura de Bataille desarticula uma moral própria da fábula,
que será uma das reflexões de Jacques Derrida desenvolvidas no decorrer deste estudo.
28
A compilação de textos oriundos de fontes pagãs e bíblicas torna os bestiários
livros com diversos diversos níveis de significação, pois além de exercer uma influência
pedagógica por conta das exegeses bíblicas, os textos também trazem um determinado saber
natural. Daí que o fisiólogo também signifique aquele que possui o conhecimento (logos) da
natureza (physis) (PERADEJORDI, 2000, p. 10). E essa mentalidade especular se prolongará
por toda a Idade Média, já que afinal a natureza, criação de Deus, é seu reflexo.
Michel Foucault, no capítulo “A prosa do mundo”, de As palavras e as coisas,
essa tarefa de quem compila bestiários ou compõe histórias de animais como a de recolher
tudo em um único saber, preceito no qual estava incluído O fisiólogo:
Quando se tem de fazer a história de um animal, inútil e impossível escolher entre o
ofício de naturalista e o de compilador: o que é preciso é recolher, numa única e
mesma forma de saber, tudo o que foi visto e ouvido, tudo o que foi contado pela
natureza ou pelos homens, pela linguagem no mundo, das tradições ou dos poetas.
(FOUCAULT, 2007, p. 55)
Esse caminho analisado por Foucault não será distinto dos escritores antigos ou
contemporâneos que compilam, ou melhor, montam histórias de animais ou seus bestiários,
onde mundo natural e linguagem convergem em um único saber. Compilar tudo o que foi
visto e ouvido é também o que os próprios escritores Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
fazem ao lidarem com diversas tradições e criarem obras que concentrem essas compilações
reais e imaginárias que são e serão disponibilizadas a outros escritores-compiladores que
virão.
Em The book of beasts, organizado por T. H. White, existe um estudo que entra
em consenso com a leitura do bestiário como uma das bases para o conhecimento do mundo
natural, e White ainda nos fala dessa tradição de livros “sem autor” que se estende por toda a
literatura:
Não um autor particular de um bestiário. É uma compilação, como um livro de
recados (scrapbook) naturalista que surgiu a partir de inúmeras colaborações. Suas
fontes remontam de um passado distante, aos Pais da Igreja, à Roma, à Grécia, ao
Egito, à mitologia, e ultimamente à tradição oral que deve ter sido contemporânea às
cavernas de cromagnon. Sua influência é estendida à literatura e, como visto nas
notas, camponeses ainda repetem muitos de seus ditados/provérbios. (WHITE, 1956,
p. 231, tradução nossa)
A ideia do bestiário como um álbum de recortes naturalista é muito interessante
para pensarmos esse tipo de livro que nasce híbrido pela própria natureza e também para
pensarmos seu procedimento de montagem. E com essas reflexões lembramos Michel
29
Foucault (2007, p. 181), que toma a história natural como a nomeação do visível, por
considerar que quando os naturalistas pensavam em decifrar a natureza, se aproximar de um
conhecimento natural (e até, por conseguinte se aproximar do conhecimento de Deus), eles na
verdade estavam iniciando uma teoria das palavras. Desta maneira, pensamos que os
bestiários, ao lidarem com o mundo natural por via da linguagem, tornando o visível e o
invisível escrito e transcrito, tornaram-se um “gênero” literário que se perpetua até hoje, agora
com um recorte autoral, em que diversos escritores dialogam de maneira criativa com estes
textos predecessores.
Ressaltamos que, dentro do campo da literatura latino-americana, Jorge Luis
Borges foi o precursor na utilização de bestiários com um interesse explícito pelo diálogo
criativo com essa tradição, tendo inclusive deflagrado, entre os escritores do século XX, certo
interesse por esses livros medievos, como mais uma vez explica Virginia Naughton:
Em nossa época, o interesse pelos bestiários foi renovado graças às expressões
estéticas e literárias que o tomaram por objeto. Entre elas, a admirável Zoologia
Fantástica de Borges, nosso maior escritor, e outras contribuições procedentes da
música, da pintura e da escultura. E se bem que no homem medieval a dimensão do
“maravilhoso” fazia parte do cotidiano, enquanto em nosso tempo é interrompido,
subvertido, para abrir assim um espaço misterioso e recôndito, e talvez nisso resida o
interesse renovado por aquelas descrições fantásticas. (NAUGHTON, 2005, p. 22,
tradução nossa)
Os bestiários nos parecem hoje, portanto, borgianos por natureza. Como se uma
determinada ordem genealógica da criação, posta em dúvida diversas vezes por Borges e
sendo tomada de uma maneira anacrônica também se sucedesse diante da própria rede
ficcional articulada pelo autor no seu Manual de zoología fantástica e em O livro dos seres
imaginários.
Alexandre Eulálio, em 1958, um ano após a publicação do Manual de zoología
fantástica, publica no Diário de Notícias de Porto Alegre um artigo, em cuja conclusão afirma
encontrar no Borges compilador o Borges inventor:
Tal pode ser o desafio do comovido zoólogo Jorge Luis Borges, que nessa fauna tão
eloquente encontra alguns dos melhores pretextos da sua obra. Porque está presente
neste livro, aparentemente fútil e sem maior consequência, o escritor de imaginação
ardente, bom leitor e seguro, das principais literaturas do mundo, que, numa
compilação de invenções alheias, revela-se (confirma-se) insuperável inventor.
(EULALIO apud SCHWARTZ, 2001, p. 297)
Os gestos de compilar e montar associados à invenção, dentro de um campo
ficcional, fazem de Jorge Luis Borges e, ao seu modo, Wilson Bueno escritores que
30
reordenam e reorganizam os sentidos. Assim, a existência de livros como Manual de zoología
fantástica e Jardim zoológico pode ser lida até mesmo como uma perturbação à história,
instaurando-se de maneira anacrônica, no século XX, onde a própria história parece estar em
plena desordem, como podemos ler em Beatriz Sarlo:
Quando a história parece haver tirado de cena os valores (quando a história é história
de guerras e de atos públicos desumanos ou imorais), a literatura propõe um modelo,
às vezes tão horrendo quanto o da história, mas sempre mais perfeito por ser
imaginário e ter, por sua natureza ficcional, a capacidade de estabelecer um desvio
irônico ou paradoxal diante da experiência. Diante da desordem dos fatos, a
invenção responde não com um espelho do mundo, mas com uma ideia do mundo:
avança tomando distância da empiria. (SARLO, 2008, p. 157)
O que Borges e Bueno fazem com seus livros é justamente estabelecer esse desvio
da história, mesmo que com isso ambos não desprezem a história, mas o façam a partir de
uma própria catástrofe (ou várias catástrofes) dentro da história, pois eles estão em um outro
lugar, Borges em Buenos Aires e Bueno no Brasil, ambos no “bloco” nada homogêneo da
América Latina.
6
As insólitas classificações (e agrupamentos) no Manual de zoología fantástica e
no Jardim zoológico são significativas não para a literatura latino-americana e suas
relações com os animais, mas também como parte de um pensamento que se aproveita de uma
história universal para preparar suas histórias universais, como afirmou Eneida Maria de
Souza, a respeito de Borges: “O importante, contudo, é perceber de que tipo de discurso
histórico Borges se livra e de que maneira interpreta o caráter repetitivo e simulado do texto
que rege o destino das histórias universais da infâmia” (SOUZA, 1999, p. 18).
1.3 Com outros animais soltos, dentro da escrita
Para pensarmos esse movimento da História para as histórias universais é
fundamental discutir a presença dos animais na literatura ocidental. Essa presença é antiga e
possui um percurso diacrônico, como podemos conferir no breve panorama de Maria Esther
Maciel:
6
Sobre estes lugares, Brasil e Argentina, caberia ainda um aprofundamento na vizinhança entre ambos os países
e suas relações com a história, algo que procuraremos aprofundar em outros estudos.
31
De Esopo (620-560 a.C.), Aristóteles (384- 322 a.C.) e Plínio o Velho (23-79 d.C.),
passando por Isidoro de Sevilha (560-636 d.C.) e os bestiários medievais, até os
relatos de viajantes do século XVI e os inúmeros bestiários modernos e
contemporâneos, de distintas nacionalidades e tradições, os animais nunca deixaram
de se inscrever de maneira incisiva no imaginário poético e ficcional do Ocidente.
(MACIEL, 2007, p. 198)
A presença dos animais, portanto, parece ser algo inerente ao próprio homem em
seus relatos, nas compilações de seu saber e até mesmo para uma afirmação do homem como
uma espécie distinta, cercada por um saber, marca que parece conferir à humanidade um grau
de superioridade sobre as demais espécies. Assim, Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
parecem tomar uma escrita metódica sobre animais, que ironiza o próprio saber taxonômico e
enciclopédico.
Le Bras-Chopard ainda argumenta que, em todo esse percurso, mesmo em níveis
diferentes, permanecem as características humanas nas descrições dos animais, como se a
humanidade deixasse seu traço na escrita sobre os animais ou encontrasse nas próprias falhas
de alguns homens algo que possa assim ser excluído da humanidade:
Mesmo nos mais objetivos escritos e científicos, de Aristóteles aos sócio-biologistas
contemporâneos, passando por Buffon ou Darwin, e sem esquecer os bestiários da
Idade Média que deliberadamente abriram uma lição de moral, os autores descrevem
dos animais as características e os comportamentos que são de fato humanos e que
será mais fácil trazer de volta às certas categorias de homens para lhes excluir da
humanidade. (LE BRAS-CHOPARD, 2000, p. 18-19, tradução nossa)
Ressaltamos, porém, que essa leitura de Le Bras-Chopard sobre a relação da
escrita com os animais é muito genérica e que não pode ser aplicada diretamente a todas as
escritas relacionadas a animais, inclusive aos bestiários. Como Maria Esther Maciel
demonstrou, os bestiários na Idade Média não tinham exclusivamente uma função pedagógica
para o ensino moral e cristão; da mesma forma, textos literários que utilizam os bestiários
como modelo também não podem ser generalizados na argumentação da cientista política
francesa.
Para analisar esses percursos traçados tanto por Maria Esther Maciel quanto por
Le Bras-Chopard, será interessante observarmos com mais detalhes algumas destas obras e
autores citados, até chegar a Borges e Bueno, para entendermos como essa mudança de
perspectiva até mesmo histórica ocorre dentro de suas obras, situadas em um momento
mais recente, no final do século XX.
Dentro deste percurso, a História dos animais, de Aristóteles, é uma obra
inaugural. O filósofo escreveu seis livros que integram o compêndio. Nesses livros, o maior
32
mérito de Aristóteles é fornecer bases de rigor científico dentro do mundo natural. Entretanto,
mesmo dentro de toda uma rigidez, em suas catalogações é possível encontrar descrições
fabulosas e imaginativas, até mesmo histórias de pescadores:
Houve pescadores, gente com experiência, que disseram ter visto no mar animais
parecidos com tacos de madeira, negros, arredondados e de uma grossura uniforme;
outros parecidos com escudos, de cor avermelhada e com barbatanas numerosas;
outros ainda, pela forma e pelo tamanho, idênticos a um órgão sexual masculino,
salvo que, em vez de testículos, apresentam duas barbatanas. Dizem os pescadores
que este último veio uma vez agarrado a uma cana com muitos anzóis.
(ARISTÓTELES, 2006, p.184)
Aristóteles se vale da analogia de um animal com uma parte do corpo humano;
mesmo assim, seus relatos, por mais que se pretendam “científicos”, dialogam com os
verbetes que situam a fauna fantástica de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno, visto que ainda
podemos encontrar na obra do filósofo seres que, por exemplo, se decompõem, como o peixe-
espuma: “O peixe-espuma, que é estéril e húmido, dura pouco tempo. Por fim, restam a
cabeça e os olhos. Todavia os pescadores arranjaram uma maneira de o transportar; é que,
depois de salgado, resiste melhor” (ARISTÓTELES, 2006, p. 280). Animais de geração
espontânea ou que se assemelham ao órgão sexual humano masculino, além de seres
etimológicos como o “efêmero”, um animal alado e de quatro patas, singular pela duração
curta da vida, de onde lhe vem o nome (ARISTÓTELES, 2006, p. 63), fazem do tratado
zoológico de Aristóteles um livro onde história e ficção se misturam.
A História natural, de Plínio, o Velho, é outra grande enciclopédia do saber
antigo. Dividido em 37 volumes, no livro VIII se inclui um volume sobre os animais
terrestres. Entretanto, no decorrer de seus livros é possível deparar-se com seres tidos
ficcionalmente por reais e outros imaginários. Italo Calvino, em Por que ler os clássicos, fala
desta aventura que é ler os volumes escritos por Plínio, O velho, e não apenas consultá-los:
O uso que sempre se fez de Plínio, penso eu, foi o de consulta, tanto para saber o que
os antigos conheciam ou acreditavam conhecer sobre determinado argumento quanto
para compilar curiosidades e disparates. (Sob este último aspecto, não se pode
negligenciar o Livro I, ou seja, o sumário da obra, cujas sugestões vêm de
aproximações imprevistas: “Peixes que têm uma pedrinha na cabeça; peixes que se
escondem no inverno; peixes que sentem a influência dos astros; preços
extraordinários pagos por certos peixes” (...) Mas Plínio é também um autor que
merece uma leitura ampla, no movimento calmo de sua prosa, animada pela
admiração por tudo aquilo que existe e pelo respeito à infinita diversidade dos
fenômenos. (CALVINO, 1994, p. 44)
33
Calvino propõe uma leitura contínua da prosa de Plínio, enquanto Jorge Luis
Borges, no prólogo de O livro dos seres imaginários relata que seu(s) livro(s) sobre zoologia
fantástica foi composto justamente para uma leitura com interrupções: “Como todas as
miscelâneas, como os inesgotáveis volumes de Robert Burton, de Fraser ou de Plínio, O livro
dos seres imaginários não foi escrito para uma leitura ininterrupta” (BORGES e
GUERRERO, 2006, p. 13).
Neste sentido é interessante mencionar um fragmento do livro Ficções, de 1944,
de Jorge Luis Borges, onde Irineu Funes é capaz de “enumerar, em latim e espanhol, os casos
de memória prodigiosa registrado pela Naturalis Historia” (BORGES, 1998e, p. 542). Beatriz
Sarlo, por sua vez, aponta para a questão da montagem, do corte, dentro dos textos de Borges
que ampliamos para Wilson Bueno onde “a literatura, justamente, rompe com essa
imediatez ligada à memória, à percepção e à repetição. A literatura trabalha com o
heterogêneo, corta, cola, salta, mistura: operações que Funes não pode realizar com suas
percepções nem, portanto, com suas recordações” (SARLO, 2008, p. 63). Jorge Luis Borges e
Wilson Bueno, em seus “bestiários”, por intermédio de uma compilação de fragmentos, lidam
com esses saltos temporais, encaixes de citações de épocas distintas sem preocuparem-se com
uma ordem cronológica, com constantes aberturas a interrupções.
Mesmo com uma abertura à interrupção, a proposta de Calvino de ater-se
calmamente à prosa de Plínio, o Velho, não deixa de ser pertinente também a Jorge Luis
Borges e Wilson Bueno, pois não se trata de um gesto contraditório ater-se atentamente aos
verbetes de ambos os escritores, visto que, conforme a discussão em torno dos “prólogos” de
Borges, eles propriamente não orientam o leitor, apesar de montar questões para seus livros,
como a da leitura interrompida.
Pela leitura de Italo Calvino, todo o saber contido na História natural, de Plínio, o
Velho, foi importante, sobretudo na Idade Média, para se lidar com os limites, as fronteiras do
humano:
Que os territórios desconhecidos na fronteira da Terra alojem seres na fronteira do
humano não deve causar espanto: os arimaspos com um olho no meio da testa,
que disputam as minas de ouro com os grifos; os habitantes das florestas de
Abarimon, que correm velozmente com os pés virados ao contrário; os andróginos
de Nasamona, que alternam os sexos quando se acasalam; os tíbios, que num olho
têm duas pupilas e no outro, a figura de um cavalo. (CALVINO, 1994, p. 48)
Esses seres situavam-se nos confins de lugares habitados pela humanidade. E,
pelo intermédio do relato de viajantes, era possível se obter informações sobre tais seres. Não
34
à toa Aristóteles, em sua História dos animais, obtém parte dos relatos de viajantes,
pescadores, enfim, pessoas que transitavam nesses limites.
José Gil, no livro Monstros, ressalta a sobrevivência dessas fronteiras do mundo
antigo no medieval:
Até o século XVI, esta estereotipia de imagens não irá mudar: existem povos
monstruosos nas regiões extremas do mundo como testemunham os relatos de
alguns viajantes gregos que os viram; relatos esses transmitidos através de
compiladores e historiadores, entre os quais os mais ilustres, os mais citados, são
Homero, Heródoto, Plínio, Estrabão, Solinus e Diodoro da Sicília. (GIL, 2006, p.
23-24)
É a partir da leitura da relação entre o espaço cartográfico e os seres imaginários,
contidos em relatos de viajantes e compilados por historiadores e curiosos, que o escritor
brasileiro Wilson Bueno vai encontrar uma fonte para a elaboração de seu Jardim zoológico,
questão que será abordada a seguir. Jorge Luis Borges também é outro autor que encontra em
todos esses relatos, sobretudo em Plínio, o Velho, trechos que reproduzirá em seu Manual de
zoología fantástica e, por conseguinte, em O livro dos seres imaginários.
Ainda sobre essa transição, cujo breve recorte foi traçado a partir do panorama de
Maria Esther Maciel e de Armelle Le Bras-Chopard, Italo Calvino tem uma passagem que
marca bem esse percurso diacrônico:
A fonte principal é a Historia animalium de Aristóteles, mas Plínio recupera de
autores mais crédulos ou mais fantasiosos as lendas que o estagirita descartava ou
transcrevia somente para refutar. Isso ocorre tanto para as informações sobre os
animais bem conhecidos quanto para a menção e descrição de animais fantásticos,
cuja listagem se mistura à dos primeiros: assim, falando dos elefantes, uma
digressão nos informa sobre os dragões, seus inimigos naturais; a propósito dos
lobos, Plínio registra (embora recriminando a credulidade dos gregos) as lendas dos
lobisomens. É dessa zoologia que fazem parte a cobra-de-duas-cabeças, o basilisco,
o catóblepas, os corocotes, os leucócrotes, os lentofontes, os manticores, que destas
páginas passarão a povoar os bestiários medievais. (CALVINO, 1994, p. 53-54)
Plínio foi, portanto, o verdadeiro compilador de histórias de animais que não
dispensou nenhuma de suas fontes. Ele é a fonte mais segura do saber do mundo antigo. É
partindo de Plínio, no mundo antigo, que percebemos hoje a sobrevivência de um animal
fantástico como o catoblepas:
Entre os hespérios/etiópes está a fonte de Nigris, por muitos considerada a cabeça do
Nilo. mencionei os argumentos nos quais essa opinião se apoia. Perto dessa fonte,
foi encontrada uma besta selvagem, chamada “catoblepas”, um animal de tamanho
médio e em outros aspectos lento ao movimentar seus membros; sua cabeça é
consideravelmente pesada e ele a carrega com grande dificuldade, estando sempre
35
ajoelhado. Se não fosse por essa circunstância, provaria a destruição (p. 2282) da
raça humana; porque todos os que o encaravam, caíam mortos. (PLINY THE
ELDER, 1855, 8, 32, tradução nossa)
Os comentadores de Plínio, o Velho argumentam que, segundo o local e sua
descrição, o catoblepas assemelha-se ao antílope gnu, animal pertencente a uma fauna local.
7
E, assim, com esses seres híbridos surgidos a partir da semelhança com outros, toda uma nova
fauna passa a povoar os livros compilados na Idade Média e, por conseguinte, uma parte
destes seres, mesmo no seu anacronismo, se faz presente em bestiários contemporâneos.
Encontramos ainda no Bestiario Medieval, organizado por Virginia Naughton, a descrição
formal deste mesmo ser, o catoblepas, séculos depois da descrição de Plínio, o Velho:
Descrição geral: O catoblepas é um animal de quatro patas com uma cabeça
desmesurada, cujo peso o obriga a caminhar olhando para baixo. Em grego,
catoblepas significa “olhar para baixo”. Tem uma grande e espessa grenha roliça
que pendura seus olhos. Se a besta consegue elevar sua cabeça, quem ela olhe
morrerá imediatamente, assim mesmo, seu hálito é muito perigoso, pois se alimenta
de plantas venenosas. (NAUGHTON, 2005, p. 84, tradução nossa)
A descrição acima obedece ao saber contido na História Natural, de Plínio, o
Velho. Essa descrição, que passou por séculos de compilação e cópia de escritores anônimos,
continuou o seu percurso até chegar ao século XX. No início da segunda metade do século
XX, lemos no Manual de zoología fantástica o seguinte verbete para o catoblepas:
Plínio (VIII, 32) conta que nos confins da Etiópia, não longe das nascentes do Nilo,
vive o catoblepas, “fera de tamanho mediano e de andar preguiçoso. A cabeça é
extraordinariamente pesada e ao animal muito trabalho de carregá-la; sempre se
inclina para o chão. Não fosse por essa circunstância, o catoblepas acabaria com a
espécie humana, porque todo homem que lhe vê os olhos cai morto”.
Catoblepas, em grego, quer dizer “que olha para baixo”. Cuvier sugeriu que o gnu
(contaminado pelo basilisco e pelas górgonas) inspirou aos antigos o catoblepas. Lê-
se no final da Tentação de Santo Antão:
O catoblepas (búfalo negro, com uma cabeça de porco que cai até o chão, unida ao
lombo por um pescoço delgado, comprido e frouxo como um intestino esvaziado.
Chafurda na lama, e suas patas desaparecem sob a enorme melena de pelos duros
que lhe cobrem a cara):
Gordo, melancólico, sombrio, não faço outra coisa senão sentir sob o ventre o
calor do lodo. Meu crânio é tão pesado que me é impossível carregá-lo. Eu o enrolo
a meu redor, lentamente; e, com as mandíbulas entreabertas, arranco com a língua as
ervas venenosas umedecidas por meu bafo. Certa vez, sem me dar conta, devorei
minhas patas.
7
Cuvier pensa que é provável que ele (o catoblepas) seja o Antílope gnu; ele, observa, tem uma aparência muito
estranha e lúgubre; Ajasson, vol. vi. p. 435; Lemaire, vol. iii. p. 405.--B. Disponível em:
http://www.perseus.tufts.edu/cgi-bin/ptext?lookup=Plin.+Nat.+8.32. Último acesso em: 9 jan. 2009.
36
“Ninguém, Antão, jamais viu meus olhos, ou quem os viu morreu. Se levantasse
minhas pálpebras róseas e inchadas, morrerias em seguida”. (BORGES e
GUERRERO, 1984, p. 48, tradução nossa)
Também Antão, no livro de Gustave Flaubert, traduzido no Brasil como As
tentações de Santo Antão, depois de sofrer várias tentações entre pigmeus, ciapodes,
cinocéfalos, marticoras, blemios, nishas, depara-se com o catoblepas, cuja descrição do santo
diz o seguinte (ou resume-se em):
Búfalo negro, com focinho de porco pendendo até o chão e ligado às espáduas por
um pescoço delgado, comprido e flácido como uma tripa esvaziada.
Está chafurdando no chão, e suas patas estão cobertas pela enorme crina de pêlos
duros que lhe cobrem o focinho. (FLAUBERT, 2004, p. 161)
Depois de descrever a criatura em analogia com um animal o búfalo (bem mais
semelhante ao antílope gnu ao qual se referiam os comentadores de Plínio) Flaubert voz
a esse ser, voz esta que Borges utilizou para compor o seu verbete para o catoblepas:
Gordo, merencório, feroz, sinto continuamente no meu ventre a quentura da lama.
Meu crânio é tão pesado que não consigo carregá-lo. Lentamente eu o enrolo à
minha volta e, de queixada entreaberta, arranco com a língua as ervas venenosas
umedecidas pelo meu hálito. Uma vez devorei as patas, sem dar por isso.
Antão, ninguém viu meus olhos, e os que viram, morreram. (FLAUBERT, 2004, p.
161)
Como o bestiário na Idade Média estava inserido na vida cristã desse período, a
utilização de diversos seres que compõem As tentações de Santo Antão mantém todo um
imaginário medievo ligado às tentações do santo. Esse trecho é uma referência para os dois
escritores estudados, Borges e Bueno. Ambos citam este fragmento de Gustave Flaubert para
seus verbetes do catoblepas.
O escritor brasileiro, no Jardim Zoológico, que retrata o mesmo ser em um
verbete, envolve todo um diálogo com Plínio, o Velho, Gustave Flaubert e Jorge Luis Borges:
Flaubert, nas Tentações de Santo Antão, nos apresenta o catoblepas, curiosíssimo
monstro da zoologia fantástica, lembrado também por Jorge Luis Borges em um de
seus bestiários onde faz questão de nos dar do animal a etimologia. Catoblepas quer
dizer, em grego, “aquele que olha para baixo”.
Não fosse por esta circunstância, o catoblepas acabaria com o gênero humano, já que
é impossível ser por ele olhado sem que nos sobrevenha a morte imediata.
Durante muitos séculos acreditou-se que este animal, em todos os sentidos
enigmático, guardasse atrás de sua extrema feiura uma generosidade de raiz
arrastando a pesada testa no chão, coberta por espessa e ampla crina, ferindo-a
muitas vezes, guardava-se de todo e qualquer ímpeto, temeroso do poder letal de
seus olhos.
37
Isto até que uma bela tarde, nos confins da Etiópia, junto às fontes do Nilo, seu
habitat natural, o catoblepas escapa e, juntando-se a um rebanho de cabras, cruza
com uma delas e morre a pauladas pelo dono da fazenda.
Alguns meses depois, assim que o fruto de sua esquiva natureza nasce sob a cândida
forma de um cabritinho maltês, uma a uma vão morrendo todas as cabras, depois os
bois, os cavalos, os porcos, todos os cães, todos os gatos e todas as galinhas. A
seguir, os pássaros, os corvos, os ratos...
Conclui a lenda que um bicho escapou ileso do catoblepas cruzado em cabra: o
homem, este ser melancólico, coberto de pêlos e olhando o morticínio dos animais
como uma fatalidade necessária ao triunfo de sua espécie.
E é ele mesmo quem, por sua vez, haverá de cruzar com o monstro híbrido,
recriando o catoblepas original aquele, de novo, de medonha e emaranhada crina a
lhe esconder os olhos, e que os prefere assim, baixos, arrastados ao chão, a congelar
na morte horrível um homem ou mulher sobre a face da Terra. (BUENO, 1999, p.
55-56)
O catoblepas é um exemplo de animal fantástico que está sempre presente na
literatura que envolve “seres imaginários”. Presente em relatos e compilado em diversos
bestiários da Idade Média, suas características praticamente são as mesmas: anda cabisbaixo,
com uma cabeça cujo peso seu corpo suporta com sofrimento, e possui um olhar que, ao se
encontrar com o do homem, é capaz de matá-lo. Wilson Bueno que, além de compilar relatos
à sua maneira, retomou Plínio, Flaubert e Borges, cria ainda um outro ser, fruto da cópula de
um catoblepas com uma cabra, mesmo que na pele e na forma de um cabrito maltês.
É importante ressaltar que Borges, no prólogo do Manual de zoología fantástica,
refere-se ao fato de a zoologia de Deus ser mais rica que a zoologia mitológica, cuja
população deveria exceder a do primeiro zoo, “já que um monstro não é outra coisa que uma
combinação de elementos de seres reais e que as possibilidades da arte combinatória lidam
com o infinito” (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 8, tradução nossa).
Armelle Le Bras-Chopard, ainda a partir dessa ressonância da divisão dos zoos de
Borges, elege em seu livro um zoo dos filósofos, ao mesmo tempo mais rico e mais pobre. A
autora argumenta que é mais pobre no que toca aos animais “reais”, pois é preciso reduzir os
animais aos textos dos filósofos que ela estuda; e mais rico porque envolve animais fabulosos,
monstros e categorias de seres humanos animalizados, pois reunir todo o reino animal não é
suficiente para esconjurar esse medo do Outro (LE BRAS-CHOPARD, 2000, p. 22).
Gustave Flaubert, citado nos verbetes para o catoblepas por Borges e Bueno, é
também um exemplo para esse zoológico das mitologias: “Flaubert congregou, nas últimas
páginas de A tentação, todos os monstros clássicos e medievais” (BORGES e GUERRERO,
1984, p. 8, tradução nossa). A questão que Borges coloca é que o repertório desses monstros,
desde a antiguidade, é limitado, porque são poucos os que podem operar sobre a nossa
imaginação. Neste ponto, analisar a presença de um ser como o catoblepas é uma maneira
38
prática de observar essa questão. Observar que os escritores criam variações sobre um
repertório existente para a criação de seus “bestiários” é algo que nos leva a uma ideia que
será explorada no decorrer deste trabalho: a de série.
Ao mesmo tempo em que existe uma serialidade para esses seres imaginários, é
possível acontecer ainda outra operação, a da transformação do “animal”, como observa
Sylvia Molloy a propósito do Baldanders, de Borges:
Os seres imaginários que descreve Borges, como o Baldanders, “cujo nome
podemos traduzir por ‘Já diferente’ ou ‘Já outro’, são monstros sucessivos, criaturas
do tempo. Certas épocas ressaltam sua diferença; outras a esquecem. No tempo de
Plínio, o Basilisco, cujo nome significa pequeno rei, era uma fantasia discreta, “uma
serpente que tinha na cabeça uma mancha clara em forma de coroa”. Com o tempo,
sua monstruosidade se barroquiza, torna-se chamativa. Transforma-se em galo; com
penas amarelas; com escamas; com cauda que conclui em outra cabeça de galo; com
oito pés”. (MOLLOY apud BORGES, 2006, p. 10, tradução nossa)
O nome do animal pode prevalecer mesmo que seu corpo seja outro. Esse é outro
caso que existe como uma maneira de sobrevivência desses seres, transformados pela escrita.
Existe, assim, um acúmulo de saber sobre eles, que sobrevive mesmo em novas situações
variações –, dentro da produção literária contemporânea, a exemplo da de Wilson Bueno.
Conforme Susana Scramin apontou a montagem como um procedimento de escrita para o
Jardim Zoológico, pensamos que essa questão se prolonga por toda uma cadeia de
compilações, passando por diversas épocas e tradições, como se esses seres, como o
Baldanders de Borges ou os tiguasús de Bueno, entre tantos outros animais, estivessem soltos
em distintas temporalidades do gesto escritural, o que se torna mais evidente quando se expõe
a montagem que abrange desde a História dos animais, de Aristóteles até o Jardim zoológico,
de Bueno, passando por Jorge Luis Borges e Plínio, o Velho, além dos monges copistas da
Idade Média, entre tantos outros escritores que montaram seus bestiários. Pensamos,
sobretudo, que uma “coleção de animais” dessa natureza sempre terá um proposital caráter
falho, de falta, porque e aqui, pensado radicalmente a partir de Jorge Luis Borges, que
retoma todo esse percurso de maneira anacrônica estabelece a condição de uma heterotopia
no plano da escrita.
39
2 O MANUAL DE ZOOLOGÍA FANTÁSTICA E A QUESTÃO DOS LUGARES
O jardim é um espaço que nos remete, pela sua constituição, a outros tempos e
espaços. Assim, será do jardim e de “outros lugares” constituídos a partir dele, que se
desenrolam nas séries, que entraremos na discussão do Manual de zoología fantástica, de
Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, até mesmo na constituição de O livro dos seres
imaginários. Ao modo do capítulo anterior, nesse recorte espacial, alguns animais
encontrados na zoologia borgiana serão analisados. Nessa pesquisa, uma repentina vizinhança
aproxima os corpos do A Bao A Qu, do Odradek e do Borametz, que serão discutidos adiante.
2.1 Um zoo nos jardins da heterotopia
O Manual de zoología fantástica é uma verdadeira incursão por uma diversidade
de espaços e tempos, em diversas culturas e literaturas. Assim, para percorrer devidamente a
afirmação anterior, no início desse texto, é preciso fazer uma nova aproximação do livro de
Borges ao pensamento de Michel Foucault, sobretudo para entender essa relação com a
diversidade do “manual”, intimamente ligado à própria ideia de montagem, de justaposição, e
onde é criado literalmente outro espaço para os animais inscritos pelo autor argentino.
Michel Foucault, em um texto-conferência de 1984, intitulado “Outros espaços”,
desenha uma definição para esses espaços que se aproximam de uma ideia de jardim, que
abrange, inclusive, o zoológico:
A heterotopia tem o poder de justapor em um lugar real vários espaços, vários
posicionamentos que são em si próprios incompatíveis. (...) mas talvez o exemplo
mais antigo dessas heterotopias, na forma de posicionamentos contraditórios, o
exemplo mais antigo, talvez, seja o jardim. (...) O jardim é, desde a mais longínqua
Antiguidade, uma espécie de heterotopia feliz e universalizante (daí nossos jardins
zoológicos). (FOUCAULT, 2006, p. 418)
Situar o “jardim” como o exemplo mais antigo de uma heterotopia nos remete a
leitura desses outros espaços às portas de um labirinto. Um jardim pode aqui, muito bem, se
situar como um labirinto onde os caminhos se bifurcam, porque quando Borges compõe o
Manual de zoología fantástica, sua leitura passa por esse jardim de caminhos bifurcados: “em
40
todas as ficções, cada vez que um homem se defronta com diversas alternativas, opta por uma
e elimina as outras” (BORGES, 1971, p. 111-112, tradução nossa). Borges, nesse aspecto,
parece tomar vários caminhos no Manual de zoología fantástica. São várias mitologias,
narrativas e fragmentos filosóficos que diversificam os verbetes nele contidos. Frente a essa
questão, Foucault retoma a utopia como um topos sem lugar real, o qual também elimina os
lugares reais. O filósofo francês acredita em experiências mistas, nas quais está situada a
heterotopia.
Identificar no jardim zoológico um lugar da heterotopia é uma questão inicial para
pensarmos a relação entre Borges e sua zoologia, porque pela leitura de Foucault o jardim, de
maneira geral, dispõe em um mesmo espaço diversos espécimes de plantas, além da
possibilidade arquitetônica da constituição de caminhos, desvios e composições. No caso do
jardim zoológico – que engloba a “zoologia de Deus” –, ele vai se tornando mais complexo no
que diz respeito à própria ideia de uma coleção de animais, situada em um espaço outro
organizado pelo homem, no qual existe uma espécie de recorte da natureza habitat que
situa o zoológico em um ambiente justaposto, montado, sem que ele deixe de ser igualmente
heteróclito.
Assim, de imediato surge uma pergunta: o Manual de zoología fantástica seria
uma obra heterotópica? A dificuldade de elaborar uma resposta que sentencie um sim ou um
não é grande: Borges, quando possibilita uma leitura de tal natureza de sua obra,
inevitavelmente abre um paradoxo para que toda teoria elaborada a partir de sua obra possa se
esboroar, pois tal como Ts’ui Pen, em “El jardín de senderos que se bifurcan”, ele “opta
simultaneamente por todas”. Seu anacronismo “cria, assim, diversos porvires, diversos
tempos, que também proliferam e se bifurcam” (BORGES, 1971, p. 112, tradução nossa). Ou,
como assinalou Otto Maria Carpeaux, um dos primeiros críticos da obra borgiana no Brasil:
[Borges] cita, em notas eruditas, profusão de livros de todos os tempos e de todas as
literaturas, metade reais, metade imaginárias. Também gosta de citar, de livros que
realmente existem, páginas que não constam deles. Define, ele próprio, sua técnica
literária como sendo “de anacronismos deliberados e atribuições errôneas”.
(CARPEAUX apud SCHWARTZ, 2001, p. 288)
Essa pequena passagem de Carpeaux confirma a relação anacrônica e de
montagem, para atualizarmos essa perspectiva que Borges traçou no desenvolvimento de
sua obra. É, contudo, a partir desse “método” borgiano que Michel Foucault, em As palavras
e as coisas, constitui parte importante de sua obra tão ligada ao autor da enciclopédia chinesa.
41
Foucault marca a diferença entre a utopia e a heterotopia, sobretudo no aspecto da linguagem,
possivelmente ainda sob a leitura de Borges:
As utopias consolam: é que, se elas não têm lugar real, desabrocham, contudo, num
espaço maravilhoso e liso; abrem cidades com vastas avenidas, jardins bem
plantados, regiões fáceis, ainda que o acesso a elas seja quimérico. As heterotopias
inquietam, sem dúvida porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem
de nomear isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham,
porque arruínam de antemão a “sintaxe”, e não somente aquela que constrói as
frases aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos” (ao lado e em frente
uma das outras) as palavras e as coisas. (FOUCAULT, 2007, p. XIII)
A partir dessa afirmação de Foucault estamos diante de um problema que se inicia
na linguagem, mas que não se encerra nela mesma. Essa marca de uma destituição da
linguagem originada dentro de si e em segredo foi um dos maiores gestos escriturais de
Borges e uma contribuição das mais radicais para levantar problemas dentro e a partir da
literatura, questionando assim um lugar utópico da literatura no sentido de um consolo, e
dando e ela lugares tão reais partindo do fato de que a linguagem é matéria quanto
quaisquer outros.
Prolongando suas reflexões sobre a heterotopia, Michel Foucault utiliza como
exemplo, em “Outros espaços” agora percorrendo nuances entre utopia e heterotopia um
material igualmente utilizado por Borges: o espelho. O espelho, presente abundantemente nas
narrativas de Borges, possui um caráter paradoxal e Foucault o situa tanto nos limites da
utopia, quanto na ordem da heterotopia:
O espelho, afinal, é uma utopia, pois é um lugar sem lugar. No espelho, eu me vejo
onde não estou, em um espaço irreal que se abre virtualmente atrás da superfície,
eu estou longe, onde não estou, uma espécie de sombra que me a mim
mesmo minha própria visibilidade, que me permite me olhar onde estou ausente:
utopia do espelho. Mas é igualmente uma heterotopia, na medida em que o espelho
existe realmente, e que tem, no lugar que ocupo, uma espécie de efeito retroativo; é
a partir do espelho que me descubro ausente no lugar em que estou porque eu me
vejo lá longe. (FOUCAULT, 2006, p. 415)
Nesse limite se encontra o Manual de zoología fantástica, pois nesse “jardim
zoológico” de Borges o que não falta são espelhos, sobretudo porque existem até mesmo os
“animais dos espelhos”, de onde se origina o “Tigre do Espelho” (BORGES e GUERRERO,
1984, p. 15). Borges descreve que em um verdadeiro tempo mítico “naquele tempo”, o
mundo dos espelhos e o mundo dos homens não estavam como agora, incomunicáveis. Eram,
ademais, muito diversos, e nele não coincidiam nem os seres, nem as cores, nem as formas.
Tanto o reino especular quanto o humano viviam em paz, os espelhos eram abertos. Na
42
descrição, Borges retrata uma invasão dos seres dos espelhos ao mundo humano onde, a partir
de então, os espelhos foram fechados, sendo esse mundo condenado a repetir todos os atos
dos homens. Assim, como escreveu Borges, esse império de repetições do espelho nos dias
de hoje – está com seus dias contados:
O primeiro a despertar será o peixe. No fundo do espelho perceberemos uma linha
muito tênue e a cor dessa linha não se parecerá com nenhuma outra. Depois, irão
despertando as outras formas. Aos poucos diferirão de nós, aos poucos deixarão de
nos imitar. Romperão as barreiras de vidro ou de metal e dessa vez não serão
vencidas. Junto às criaturas dos espelhos combaterão as criaturas da água.
(BORGES e GUERRERO, 1984, p. 14-15, tradução nossa)
Se, por um lado, Michel Foucault trata de uma situação paradoxal entre utopia e
heterotopia, proporcionada pelo espelho, Borges, por outro, abre o espelho para sua
ambiguidade como objeto. Os textos de Borges não apontam apenas para o futuro, mas situam
no mesmo presente o in illo tempore, o kairós, o passado, criando para o leitor uma
“heterocronia”, pois tal como na narrativa do livro Ficciones, “El jardín de senderos que se
bifurcan”, o verdadeiro labirinto é temporal. E, assim como o espelho, é possível situar o texto
borgiano diante da própria consciência da linguagem. A linguagem deixará de repetir o
mundo, de ser o espelho do mundo, e poderá se voltar contra o homem como a iminente
revolta do mundo dos espelhos. O jardim zoológico de Borges, talvez, situe-se em uma zona
limite, abordada por Foucault entre a utopia e a heterotopia, pois o espelho de Borges é a
linguagem. Uma linguagem que não reflete o mundo tal como ele é. A zoologia borgiana, ao
se bifurcar na “zoologia de Deus” e na “zoologia dos sonhos”, não pertence a uma zoologia
que se fundamenta no real. Por isso, no texto “El soterrado cimiento”, de Las letras de
Borges, Sylvia Molloy pontua que uma leitura das séries borgianas não passa somente pela
heterotopia: “A heterotopia não é o único indício da anomalia, da monstruosidade das séries
borgianas, ainda que não caiba dúvida de que o não-lugar em que se fundam perturba de
maneira decisiva” (MOLLOY, 1999, p. 177, tradução nossa). Não excluir a heterotopia, mas
colocá-la como um dos caminhos para o jardim em que se insere o Manual de zoología
fantástica: é dessa maneira que se abre, em Borges, o caminho para a série.
Michel Foucault expõe um posicionamento que muito bem poderia ser o de
Borges, especificamente para a zoologia que este monta, visto que ao lermos tanto o Manual
de zoología fantástica quanto O livro dos seres imaginários, notamos uma relação dessas
obras com a série, a partir de uma vizinhança, de um posicionamento de cada animal nos
livros. É com a definição de um posicionamento ou de vários que nos aproximamos da série
43
pela “descrição”, como afirmou Foucault: “Atualmente, o posicionamento substitui a
extensão, que substituía a localização. O posicionamento é definido pelas relações de
vizinhança entre pontos ou elementos; formalmente, podem-se descrevê-las como séries,
organogramas, grades” (FOUCAULT, 2006, p. 412). O agrupamento dos animais de Borges
não segue um tempo linear, agrupa vários tempos e espaços na sua literatura, pois os textos
compilados não estão agrupados aleatoriamente, muito menos se encontram organizados
cronologicamente, gerando, assim, uma vizinhança perturbadora em uma ordem inexplicável.
Pelo fato de a cronologia encontrar-se exposta de uma maneira não-linear, em
recortes, é que se torna possível a inserção do Manual de zoología fantástica em uma ruptura
com um tempo tradicional, lido aqui como o histórico ou, como precisa Michel Foucault:
As heterotopias estão ligadas, mais frequentemente, a recortes do tempo, ou seja,
elas dão para o que se poderia chamar, por pura simetria, de heterocronias; a
heterotopia se põe a funcionar plenamente quando os homens se encontram em uma
espécie de ruptura absoluta com seu tempo tradicional. (FOUCAULT, 2006, p. 418)
Foucault, por simetria, remete-se às “heterocronias” ao tratar de diversos recortes
no tempo, de onde é possível romper com uma linha única do tempo, em virtude de uma
prazerosa convivência com diversas épocas onde, para Borges, não podia se situar melhor
senão nos livros. Afinal, um livro é também responsável por transportar uma biblioteca, pois
com essa leitura se amplia a noção de um tempo linear e cronológico.
8
O Manual de zoología
fantástica também opera dessa maneira, pois além de trazer diversos animais, o que Borges
transporta mesmo em relação a outros seres são outros livros, outros autores.
Borges agrupa monstros antigos, animais fantásticos medievais, mas também no
seu “bestiário” se encontram Kafka, Homero, Dante, Galileu, Jesus Cristo, Buda, enfim,
indistintamente se concentram ciência, literatura e religião. Em suas diversas temporalidades
se intercalam, não sem certo silêncio, toda uma fauna contida em ambos os livros, Manual de
zoología fantástica e O livro dos seres imaginários. Talvez Borges tenha operado de tal
maneira seus textos que os animais postos em verbete, hierarquicamente, estivessem no
mesmo patamar que todos esses outros “seres”, pois todos podem ser articulados em uma
8
Na nota final de “A biblioteca de Babel”, Borges anota o seguinte: “Letizia Alvarez de Toledo observou que a
vasta biblioteca é inútil; a rigor, bastaria um único volume, de formato comum, impresso em corpo nove ou em
corpo dez, composto por um número infinito de folhas infinitamente delgadas (Cavalieri, em princípios do
século XVII, disse que todo corpo sólido é superposição de um número infinito de planos.). O manuseio desse
‘vade mecum’ sedoso não seria cômodo: cada folha aparente se desdobraria em outras análogas; a inconcebível
folha central não teria reverso” (BORGES, 1998c, p. 523). Essa nota de rodapé de Borges, ao encerrar a
narrativa, desmonta a própria ideia de biblioteca e dispõe do livro um único livro como um material
extremamente frágil e efêmero, colocando assim, em questão, uma forma tão tradicional de fixar o saber da
humanidade.
44
heterocronia. Ainda sobre esse conceito que Foucault trata como desdobramento do espaço
heterotopia –, é perceptível que a leitura do filósofo sobre essas diversas temporalidades está
em pleno diálogo com o autor de “El jardín de senderos que se bifurcan”:
Diferentemente de Newton e de Schopenhauer, seu antepassado não acreditava num
tempo uniforme, absoluto. Acreditava em infinitas séries de tempos, numa rede
crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos. Essa trama
de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se
ignoram, abrange todas as possibilidades. (BORGES, 1971, p. 82, tradução nossa)
Essa definição de Borges toca na especificidade do Manual de zoología
fantástica, onde a leitura desse “manual” traz uma diversidade de animais que nenhum
zoológico dos sonhos ou de Deus pode reunir, da qual nenhuma mensagem edificante,
com moral, com sátira ou com outro ensinamento de um bestiário pode participar, pois seu
autor o deixou com uma singularidade cujas “infinitas séries de tempos” nenhum compêndio,
enciclopédia ou dicionário pode atravessar ou perfurar.
2.2 Os caminhos bifurcados da série
Silvia Molloy (1999), diante desses caminhos borgianos, chama a atenção para o
que o Manual de zoología fantástica tem de mais heteróclito, que é sua constituição como
uma série. O conjunto de animais desse livro de Borges, além do lugar onde o autor monta
essa série a própria América Latina –, é heteróclito e, por isso, talvez exista um campo
paradoxal ao seu redor que, de uma maneira fulgurante, o aproxime das heterotopias de
Michel Foucault.
A leitura que Flora Süssekind faz das observações de Sylvia Molloy, em “Borges
e a série”, abre algumas reflexões sobre essa ideia. Flora acompanha uma “perspectiva
cambiante” do texto de Borges, que por sua vez, se estabelece em projeções múltiplas e
discordantes (SÜSSEKIND, 1998, p. 139). A leitura aparente do Manual de zoología
fantástica o associa a uma “enciclopédia” que parece formalmente dispor de diversas
informações sobre animais reais e imaginários que não apresentam um desvio formal do que
se espera de um verbete de enciclopédia convencional. Entretanto, como Borges utiliza todo
um procedimento de montagem, a ordem instituída dentro do Manual de zoología fantástica é
outra, pois ela pode ser alterada a qualquer momento, tanto por Borges, em companhia de
45
Margarita Guerrero, com O livro dos seres imaginários, quanto por outros leitores-escritores,
como Wilson Bueno, que instaura de uma maneira anacrônica a forma predileta do escritor
argentino – diversos verbetes sobre animais fantásticos das regiões fronteiriças do Brasil.
Flora Süssekind, ainda sob a leitura de Sylvia Molloy, discorre com maior
precisão sobre esse principio de “seriação” e sua capacidade desviante de uma história
contínua apontando, como registra Molloy, para “o prazer continuado de um parágrafo cujo
acúmulo de detalhes cancela toda antecipação possível e propõe, com cada novo elemento na
série, a possibilidade de se desviar da continuidade da história” (MOLLOY apud
SÜSSEKIND, 1998, p. 139). Ou seja, bifurcar os caminhos, manipulando contextos, como
será discutido um pouco mais adiante. Essa questão da continuidade pelo viés da história e
de um anacronismo – é refletida com precisão no Manual de zoología fantástica.
Na literatura, Borges lida com duas questões que o afastam de um pensamento
histórico. A primeira delas é o infinito. Logo no prólogo do Manual de zoología fantástica ele
afirma: “Além do mais, não pretendemos que este livro, por acaso o primeiro do gênero,
abarque o número total de animais fantásticos. Investigamos as literaturas clássicas e
orientais, mas nos consta que o tema que abordamos é infinito” (BORGES e GUERRERO,
1984, p. 8, tradução nossa). Por não conseguir abranger a totalidade desses animais, sobretudo
na literatura clássica e oriental, o gesto de Borges é o de inaugurar uma nova tradição nessa
forma de listar e catalogar animais, para que outros leitores-autores continuem essa tarefa
infinita e inventiva de catalogação. É nesse caminho que Maria Esther Maciel aponta essa
questão levantada por Jorge Luis Borges:
No que se refere especificamente à zooliteratura fantástica do século XX, pode-se
afirmar que Borges teve um papel medular para a retomada dessa vertente. Ao
publicar, em 1957, o referido compêndio sobre animais imaginários, ele abre
espaço para a proliferação criativa de uma nova safra de bestiários, sobretudo no
âmbito das letras hispano-americanas. (MACIEL, 2008a, p. 21)
Foram diversos os autores que retomaram esse projeto de Borges em uma
escritura contínua de bestiários, onde cada autor, ao elaborar seu bestiário, parece construir
uma enciclopédia que prosseguirá infinitamente. A respeito de tal “papel medular” de Borges,
Alan Pauls, em El factor Borges, aborda essa trama borgiana em torno de uma falsa presença
da história, pelo fato de o enciclopedismo de Borges ser a prática sistemática de uma espécie
de “ficção do saber”, nela englobando as próprias culturas universais (PAULS, 2004, p. 85).
Assim, é dessa maneira que surge a segunda questão, que é a linguagem, tomada não como
ponto enclausurador mas, para ser constantemente pensada na literatura de Borges, como algo
46
que está prestes a extravasar, no seu limite de constituição como ato, pois, afinal, é dentro de
sua escrita que o autor é um verdadeiro “engenheiro de contextos”, como assinalou Alan
Pauls:
Haveria que revisar mais uma vez, agora à luz desta ideia, o retrato que se pinta de
Borges como um escritor “encerrado” na linguagem, nos livros, na literatura. A
obsessão constante pelo contexto talvez a obsessão mais borgiana de Borges
explica, por exemplo, o prodígio e o volume de energia, Borges inverte, ao longo de
meio século, nas sucessivas reedições de suas obras. Supressões, correções,
lembretes, prólogos aos prólogos, notas de rodapé, posfácios: essa mania da
retificação com a que Borges altera sua própria obra demonstra que para ele reeditar
não é repetir, ou que uma repetição não é o retorno do mesmo, senão, precisamente,
a possibilidade de aparição de uma diferença. (PAULS, 2004, p. 119-120, tradução
nossa)
O Manual de zoología fantástica segue esse caminho. Primeiro, pode-se até
afirmar que o prólogo é uma força responsável pela compilação de todo o livro e justifica
mesmo sua montagem. Ainda na leitura de Pauls, “no prólogo, Borges, como sempre, pede a
cumplicidade do leitor” (PAULS, 2004, p. 65, tradução nossa). Assim, a existência de um
livro afim, como O livro dos seres imaginários, toca em uma repetição que traz o traço da
diferença. Encarar a repetição como uma produção de diferença é uma operação crítica
remetida diretamente a Gilles Deleuze, sobretudo no livro Lógica do sentido, que assim
argumenta em “Sobre a colocação em séries”:
Se considerarmos somente a sucessão dos nomes, a série opera uma síntese do
homogêneo, cada nome distingue-se do precedente apenas pela posição, seu grau ou
tipo: de acordo com a teoria dos “tipos”, com efeito, cada nome que designa o
sentido de um precedente é de um grau superior a este nome e ao que ele designa.
Mas se considerarmos não mais a simples sucessão de nomes, mas o que alterna
nesta sucessão, vemos que cada nome é tomado primeiro na designação que opera e,
em seguida, no sentido que exprime, uma vez que é este sentido que serve de
designado a outro nome. (DELEUZE, 1974, p. 39)
Borges praticava constantemente essa sucessão apontada por Deleuze. O ponto
levantado por Deleuze, “o que alterna nesta sucessão”, remete diretamente ao que a
linguagem tem de mais material: o fato de se situar no plano da sucessão. “O aleph”, narrativa
borgiana do livro homônimo de 1949, é um verdadeiro encontro entre o animal fantástico com
a linguagem
9
– e suas impossibilidades sucessivas –, pois desse encontro nenhum animal
escrito pode escapar, como Borges explica:
9
O Aleph é uma das maneiras mais instigantes de se pensar o problema da sucessão e simultaneidade dentro da
linguagem e um modo, a nosso ver, mais preciso que as reflexões de Deleuze, onde o filósofo parte desse
problema para pensar a série.
47
Mesmo porque o problema central é insolúvel: a enumeração, sequer parcial, de um
conjunto infinito nesse instante gigantesco, vi milhões de atos prazerosos ou atrozes;
nenhum me assombrou tanto como o fato de que todos ocupassem o mesmo ponto,
sem superposição e sem transparência. O que viram meus olhos foi simultâneo; o
que transcreverei, sucessivo, pois a linguagem o é. (BORGES, 1998b, p. 695)
Borges utiliza vários recursos em seus textos para espacializar essa sucessão, de
forma a elevar a linguagem à potência do simultâneo e, consequentemente, ao infinito, pois
como afirmou Flora Süssekind (1998, p.146-147), esse gesto seria “para uma redefinição que
não exclua a narratividade, o pictórico e o poético. Ou, ao contrário, para o uso de
procedimentos de acumulação e simultaneização via enumeração, por exemplo que
segmentem e desdobrem o fio sequencial de seus relatos.” Neste caso, a enciclopédia chinesa
de Borges é o exemplo mais claro. Entretanto, a articulação dos animais no Manual de
zoología fantástica e em O livro dos seres imaginários possui o mesmo princípio, mesmo sem
se pautar numa ordem alfabética, de maneira sequencial, pois ambos os livros em uma
seriação – se compõem como uma repetição, no mínimo de duas séries, como delimitou Gilles
Deleuze (1974, p. 39): “Desta vez, trata-se de uma síntese do heterogêneo; ou antes, a forma
serial se realiza necessariamente na simultaneidade de duas séries pelo menos.” Essa
simultaneidade de séries está compreendida nos dois livros de Borges: neles lemos o
entrelaçamento das leituras de Michel Foucault com as de Gilles Deleuze, onde a linguagem
de ambos os livros operam entre si como uma “síntese do heterogêneo”, justamente pelo fato
dos livros citados sintetizarem o ato da linguagem que tenta se constituir como simultâneo e,
na verdade, o que ela consegue é se tornar heterogênea. Enfim, ao ler tal síntese pelo aleph
nos deparamos com o efeito do simultâneo que acontece pelo heterogêneo, onde se inserem
tanto a literatura quanto o pensamento de Borges, estes, aliás, inseparáveis.
Como as leituras de Borges geralmente trazem uma abertura para o infinito, as
séries, que não se comportam sistematicamente em uma série para cada livro, essencialmente
se tornam multisseriais, pois a forma serial assim o é, compreendendo ainda a afirmação de
Deleuze sobre a múltipla operação da série (DELEUZE, 1974, p. 39). Contudo, é com tal
ressonância que a escrita do verbete, em termos de estrutura aparentemente repetitiva, se
insinua em uma escritura que constitui uma diferença. Essa diferença ocorre justamente
porque Borges cria grandes variações, conforme podemos ler a partir de Sylvia Molloy, no
prefácio de O livro dos seres imaginários:
Menos que um dicionário fantástico ou um catálogo teratológico, O livro dos seres
imaginários é uma lúcida reflexão sobre a literatura como fato temporal e móvel.
Um catálogo de seres imaginários fixos um repertório estável de monstros,
48
digamos interessa pouco a Borges, mais atento às variantes que às definições
redutoras do dicionário brutal. (MOLLOY apud BORGES e GUERRERO, 2006, p.
10)
Molloy aqui traça uma distinção entre a escrita em paródia da catalogação de
Borges e as definições redutoras de um dicionário, onde a palavra ou o verbete tem um caráter
funcional aplicado a um saber, cujo objetivo está mais em homogeneizar esse saber
completar uma parte que falta pela via informacional a ter que gerar uma diferença a partir
da escrita.
2.3 O A Bao A Qu, o Odradek e o Borametz ou “Lá onde, desde o fundo dos tempos, a
linguagem se entrecruza com o espaço”
10
A partir de uma ideia de diferença, levamos em consideração três animais
fantásticos contidos no Manual de zoología fantástica de Jorge Luis Borges. São eles o A Bao
A Qu, o Odradek e o Borametz. O motivo da escolha desses três animais se dá pelas seguintes
questões: o A Bao A Qu é um animal que habita o primeiro degrau de uma grande escadaria
que acesso à paisagem mais maravilhosa do mundo. Ele vive no primeiro degrau da
escadaria da Torre da Vitória, situando-se, portanto, no início de uma passagem, ocupando um
lugar transitório. O Odradek instaura uma questão semelhante, pois é um animal de
“domicílio incerto” e, portanto, representa um problema de lugar para um animal de sua
natureza. o Borametz põe em evidência outro ponto em comum com os dois animais
citados anteriormente, a matéria de seus corpos, cuja constituição é hibrida, tal como a escrita
do verbete que os cria. O Borametz é um animal fantástico cujo corpo também é vegetal. A
pergunta de Michel Foucault, no prefácio de As palavras e as coisas, posiciona justamente o
lugar ou o não-lugar que esses animais têm em comum: “onde poderiam eles se justapor,
senão no não-lugar da linguagem?”; e o filósofo continua: “mas esta (a linguagem), ao
desdobrá-los, não abre mais que um espaço impensável.” É nesse espaço impensável que
vamos percorrer a existência fulgurante de tais seres.
10
FOUCAULT, 2007, p. XII.
49
2.3.1 Qual a forma do A Bao A Qu?
No que se refere ao primeiro animal, A Bao A Qu, é com ele que Borges inicia seu
Manual de zoología fantástica. Citamos aqui o verbete integral:
Para contemplar a paisagem mais maravilhosa do mundo, é preciso chegar ao último
andar da Torre da Vitória, em Chitor. Existe um terraço circular que permite
dominar todo o horizonte. Uma escada em caracol leva ao terraço, mas se
atrevem a subir aqueles que não creem na fábula, que diz assim:
“Na escada da Torre da Vitória mora desde o princípio dos tempos o A Bao A Qu,
sensível aos valores das almas humanas. Vive em estado letárgico, no primeiro
degrau, e desfruta de vida consciente quando alguém sobe a escada. A vibração
da pessoa que se aproxima lhe infunde vida, e uma luz interior se insinua nele. Ao
mesmo tempo, seu corpo e sua pele quase translúcida começam a se mover. Quando
alguém sobe a escada, o A Bao A Qu põe-se quase nos calcanhares do visitante e
sobe agarrando-se à borda dos degraus curvos e gastos pelos pés de gerações de
peregrinos. Em cada degrau sua cor se intensifica, sua forma se aperfeiçoa e a luz
que irradia é cada vez mais brilhante. Testemunha de sua sensibilidade é o fato de
que consegue sua forma perfeita no último degrau, quando o que sobe é um ser
evoluído espiritualmente. Não sendo assim, o A Bao A Qu sofre quando não
consegue formar-se totalmente e sua queixa é um rumor pouco perceptível,
semelhante ao roçar da seda. Porém, quando o homem ou a mulher que o revivem
estão cheios de pureza, o A Bao A Qu pode chegar ao último degrau,
completamente formado e irradiando uma viva luz azul. Seu regresso à vida é muito
breve, pois, ao descer o peregrino, o A Bao A Qu cai rolando até o primeiro degrau,
onde, apagado e semelhante a uma lâmina de contornos vagos, espera o próximo
visitante. é possível vê-lo bem quando chega à metade da escada, onde os
prolongamentos de seu corpo, que, como pequenos braços, o ajudam a subir,
definem-se claramente. quem diga que ele com todo o corpo e que ao tato
lembra a pele do pêssego.
No curso dos séculos, o A Bao A Qu chegou apenas uma vez à perfeição.
O capitão Burton registra a lenda do A Bao A Qu em uma das notas de sua versão de
As mil e uma noites. (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 11-12, tradução nossa)
Ao iniciar o livro com o A Bao A Qu, Borges nos remete a um problema de
forma, pois o A Bao A Qu possui uma forma cambiante, e não uma forma fixa. Assim, ao ler
essa obra mais detidamente, é possível perceber uma série de transformações pelas quais
diversos animais passam. Já as transformações do ser humano foram “excluídas”
deliberadamente; entretanto, as transformações entre os animais estão figuradas em diversos
verbetes, como o do A Bao A Qu, que também possui mudanças formais em seu ser. A sua
mudança pode ser mensurada por degraus, em que cada um representa um novo estágio, de
acordo com a forma de seu corpo, de sua evolução. De uma existência praticamente informe e
sem vida, até ser avistado no meio das escadarias com um corpo incompleto, com uma cor
indefinida e uma luz oscilante, o A Bao A Qu também é um ser que sofre por não atingir a
perfeição, pois para que isso ocorra ele depende diretamente da perfeição espiritual do ser
50
humano que ascende aos degraus da escada, fato alcançando apenas uma vez e Borges não
especifica qual foi essa vez – durante todo o curso dos séculos.
Borges, no início do verbete, assumindo uma posição de copista ou de narrador
que apenas transmite um fato ocorrido, pontua o início da história do A Bao A Qu como uma
fábula. Esse é justamente um ponto que gostaríamos de explorar. A fábula, em sua relação
direta com a escrita sobre animais, não seria justamente uma construção de caráter
moralizante, edificante, que utiliza o animal para conduzir ao homem uma lição, uma
mensagem em um tempo linear ao próprio homem?
Fiorin e Savioli possuem uma definição de fábula que nos fornece elementos
teóricos que podem nos ajudar a compreender melhor esta questão:
A fábula é uma narração que se divide em duas partes: a “narração propriamente
dita”, que é um texto figurativo, em que os personagens são animais, homens, etc; e
a “moral”, que é um texto temático, que reitera o significado da narração, indicando
a leitura que dela se deve fazer. A fábula é sempre uma história de homens, mesmo
quando os personagens são animais. (FIORIN e SAVIOLI, 2000, p. 398)
Mesmo que essa discussão seja mais aprofundada no próximo capítulo dedicado à
escrita de Wilson Bueno, é interessante observar que Borges, como se elaborasse um ardiloso
jogo mental, ressalta que se atrevem a subir as escadas os que não acreditam na fábula.
Como se a própria crença na fábula, posta em dúvida, questionasse uma moral sobre a história
do A Bao A Qu. Discussão esta que Jacques Derrida interroga profundamente em O animal
que logo sou, ao afirmar que a fábula antropomorfiza o animal:
Seria preciso, sobretudo evitar a fábula. A afabulação, conhecemos sua história,
permanece um amansamento antropomórfico, um assujeitamento moralizador, uma
domesticação. Sempre um discurso do homem; sobre o homem; efetivamente sobre
a animalidade do homem, mas para o homem, e no homem. (DERRIDA, 2002, p.
70)
Da discussão sobre a fábula como um “amansamento antropomórfico”, provocada
por Jacques Derrida, Michel Foucault, igualmente a partir da fábula, elabora uma questão que
problematiza a fábula na linguagem, onde ela se insere na ordem da utopia, que se trata de
uma “linha reta da linguagem”:
Eis porque as utopias permitem as fábulas e os discursos: situam-se na linha reta da
linguagem, na dimensão fundamental da “fábula”; as heterotopias (encontradas tão
frequentemente em Borges) dessecam o propósito, estancam as palavras nelas
próprias, contestam, desde a raiz, toda possibilidade de gramática, desfazem os
mitos e imprimem esterilidade ao lirismo das frases. (FOUCAULT, 2007, p. XIII)
51
Borges, ao agrupar os animais em seu manual, desintegra uma unidade mítica, e
por mais que estejamos diante de um texto claro, uma linguagem objetiva que simula o
princípio da informação, a montagem praticada pelo autor argentino solapa essa gramática no
silêncio da própria linguagem, na justaposição, como na apropriação indistinta e integral que
faz de uma narrativa de Kafka para incluí-la em seu manual, o Odradek.
Assim, o desafio deste trabalho é ler Borges e Wilson Bueno por outro viés
que não o fabuloso, do tempo linear que limpa a animalidade do homem e que reduz toda essa
produção que englobam diversos “bestiários” e “zoológicos” a uma lição de moral. Por isso
interessa-nos o problema da forma, objetivando considerar, a partir de cada um desses animais
fantásticos, o problema de classificação que eles colocam ao homem, gerando literalmente um
problema de limite de conhecimento, de limite de saber. Problema esse levantado também por
Georges Bataille, quando em seu Dicionário Crítico publica um verbete chamado “informe”:
Um dicionário começaria a partir do momento em que ele não desse mais o sentido
das palavras, mas sim suas obrigações. Assim, informe, não é somente um adjetivo
com certo sentido, mas um termo que serve para desorganizar, exigindo, geralmente,
que cada coisa tenha sua própria forma. Isto que ele nomeia não aponta um caminho
fixo e pode ser facilmente despedaçado, da mesma forma que uma aranha ou um
verme também o podem. De fato, para o contentamento dos acadêmicos, seria
necessário que o universo tomasse forma. Toda a filosofia não tem outro objetivo:
trata-se de dar uma roupagem ao que existe, dar uma aparência matemática. Por
outro lado, afirmar que o universo não se assemelha a nada e que ele não é nada
além de informe retoma a ideia de que o universo é como uma aranha ou um escarro.
(BATAILLE, 1994, p. 98-99)
De maneira semelhante à de Georges Bataille, Borges conjecturou uma existência
do Universo captada pelo saber humano em “O idioma analítico de John Wilkins”. O A Bao A
Qu pode ser lido como uma dessas manifestações do “informe” e, no verbete, o seu problema
de forma é mais ressaltado do que, por exemplo, a apresentação de seu estado perfeito. São,
portanto, suas características ainda formantes que são ressaltadas e esse tópico, no Manual
de zoología fantástica, é um ponto muito importante, pois os seres, sem uma formação
definitiva, estão sempre em movimento nos saberes que os constituem. Sem dúvida, ele é um
livro constituído em torno de diversos saberes, da ordem do enciclopédico, mas, ao mesmo
tempo, esse saber é constantemente passível de mudança. Sem uma forma fixa, é um saber
“informe”, cujo corpo sempre está em formação. Por isso, a forma do livro varia, pois após o
lançamento de O livro dos seres imaginários, o Manual de zoología fantástica pareceu
incompleto, inacabado. Diversos pensadores, como Gilles Deleuze, Armelle Le Bras-
Chopard, Michel Foucault, por exemplo, citam sempre o livro que o sucede, pois, pelo fato de
o Manual de zoología fantástica estar contido em O livro dos seres imaginários, parece que
52
sua existência se torna até injustificável como uma publicação autônoma, sobretudo quando se
leva em consideração o gesto borgiano constituidor de uma série.
Ainda trazendo a leitura do A Bao A Qu que não abre mais O livro dos seres
imaginários, agora iniciado pelo dragão –, este se coloca em relação com um visitante de uma
escadaria (ressalte-se que a escada é, por natureza, um lugar de passagem), o que nos remete à
questão levantada por Borges para seu “manual”, lido de maneira não sucessiva, como um
livro para ser consultado. Não é só a vida do A Bao A Qu que aqui se torna frágil; ressaltamos
que sua vida depende, além dos visitantes da Torre da Vitória, igualmente do leitor, ou
especificamente, como argumenta Silvia Molloy (apud BORGES e GUERRERO, 2006, p.
11), “A leitura de Borges é tão generosa quanto anacrônica. Resgata do esquecimento
monstros ilustres, reescreve-os desde nosso presente, dotando-os de uma frágil vida, a do
tempo de nossa leitura”.
Dentro da fragilidade da vida desses seres, o corpo do A Bao A Qu, acumulador de
energia quando junto de um ser humano, pode ser lido ainda sob o ponto de vista de um corpo
metamórfico, mas uma metamorfose que se realiza nesse corpo através de uma constante
alteração de seu equilíbrio, como assinalou José Gil em As metamorfoses do corpo:
Estabelece-se aqui uma subtil economia dos poderes singulares e dos signos
coletivos cujo fim é, mais uma vez, o de permitir ao corpo desempenhar o seu papel
de suporte dos códigos e de acumulador de energia. Qualquer desregramento deste
equilíbrio econômico se traduzirá ou por hipertrofia do signo, ou do corpo. (GIL,
1997, p. 48)
O A Bao A Qu e aqui, por extensão, o Odradek, são seres cujos corpos são
singulares e, ao mesmo tempo, fazem parte de signos coletivos. O primeiro porque, para se
formar, depende do outro; o segundo, porque sua indefesa existência sobreviverá diante de
toda uma geração de seres humanos.
2.3.2 O lugar incerto do Odradek
Outro animal fantástico que põe em questão a fragilidade constitutiva do seu ser
enquanto escrita é o Odradek. Fragilidade inclusive humana, como podemos ler no verbete de
Borges, que na verdade, é um texto assinado por Franz Kafka:
53
Alguns derivam do eslavo a palavra odradek e querem explicar sua formação
mediante essa origem. Outros a derivam do alemão e admitem apenas uma
influência do eslavo. A incerteza de ambas as interpretações é a melhor prova de que
são falsas; além disso, nenhuma delas nos dá uma explicação da palavra.
Naturalmente ninguém perderia tempo em tais estudos se não existisse realmente um
ser chamado Odradek. Seu aspecto é o de um carretel de linha, achatado e em forma
de estrela, e a verdade é que parece feito de linha, mas de pedaços de linha, cortados,
velhos, emaranhados e misturados, de tipos e cores diferentes. Não é apenas um
carretel; do centro da estrela sai uma hastezinha transversal e nesta se articula outra
em ângulo reto. Com a ajuda desta última de um lado e um dos raios da estrela do
outro, o conjunto pode ficar de pé como se tivesse duas pernas.
Seríamos tentados a crer que essa estrutura teve alguma vez uma forma adequada a
uma função e que agora está quebrada. Entretanto, esse não parece ser o caso; não
pelo menos nenhum sinal disso; em parte alguma se veem remendos ou rupturas; o
conjunto parece inútil, porém completo a sua maneira. Nada mais podemos dizer,
porque Odradek tem extraordinária mobilidade e não se deixa capturar.
Tanto pode estar no forro como no vão da escada, nos corredores, no vestíbulo. Às
vezes passam-se meses sem que alguém o veja. Terá fugido para as casas vizinhas,
mas sempre volta à nossa. Muitas vezes, quando cruzamos a porta e o vemos
encostado ao balaústre da escada, temos vontade de falar-lhe. Naturalmente não se
fazem a ele perguntas difíceis, mas sim o tratamos seu tamanho diminuto nos leva
a isso tal uma criança. “Como te chamas?”, perguntam-lhe. “Odradek”, diz. “E
onde moras?” “Domicílio incerto”, responde e ri, mas é um riso sem pulmões. Soa
como um sussuro de folhas secas. Geralmente, o diálogo acaba aí. Nem sempre se
conseguem essas respostas; por vezes guarda um longo silêncio, como a madeira de
que parece ser feito.
Inutilmente me pergunto o que acontecerá a ele. Pode morrer? Tudo o que morre
teve antes um objetivo, uma espécie de atividade, e assim se gastou; isso não
acontece com Odradek. Descerá a escada arrastando fiapos diante dos pés de meus
filhos e dos filhos de meus filhos? Não faz mal a ninguém, mas a ideia de que possa
sobreviver a mim quase me causa dor. (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 119-120,
tradução nossa)
A narrativa de Kafka, intulada Die Sorge des Hausvaters (traduzida no rodapé do
verbete por La preocupación del padre de familia), parece propor no Manual de zoología
fantástica a questão contida em “Pierre Menard, autor do Quixote”, visto que, dentro do
conjunto, a narrativa de Kafka recebe a autoria de Borges, agora na maneira de verbete. Ao
mesmo tempo em que o Borges narrador constitui também sua obra pela parte visível,
“facilmente enumerável” (BORGES, 1998d, p. 490), ele inclui outra, “subterrânea, a
interminavelmente heroica, ímpar” (BORGES, 1998d, p. 492). E ler essa obra subterrânea em
Borges é uma tarefa que nos leva ao infinito. Portanto, incorporar o Odradek a um catálogo
insólito como o Manual de zoología fantástica é abrir o próprio “manual” a uma obra que se
constitui invisível, movediça como o próprio Odradek.
A constituição do Odradek sugere a montagem em si, que ele se compõe de
pedaços de diversos velhos fios cortados, atados e entrelaçados, de cores e matérias
diferentes. Tais constituição e duração mantêm uma ressonância com o que afirmou Jurgis
Baltrusaitis (1993, p. 26, tradução nossa) em Le Moyen-Âge fantastique: “mesmo feito de
peças e pedaços, o monstro parece ser capaz de viver e isso talvez seja uma das razões de seu
54
sucesso”. Saber que o Odradek sobreviverá ao narrador da história é encontrar a razão de seu
incômodo, pois uma constituição de pedaços um animal fantástico sobreviverá à unidade
do ser humano. Mais uma vez, outro animal fantástico está nas escadas. Assim como o A Bao
A Qu, o Odradek vive em um lugar de passagem ou vários lugares de passagem, pois além de
nas escadas, vive também nos corredores ou no saguão, por exemplo. É habitando esses não-
lugares que o Odradek, sempre que perguntado onde vive, responde “Domicílio incerto”, e
com essa resposta encerra a conversa. Aqui, a fragilidade do Odradek é posta em questão,
pois diferentemente do A Bao A Qu, ele não depende do ser humano; aliás, sobrevive à frágil
vida racional e objetiva do homem, pois tudo o que morre teve uma meta, uma espécie de
atividade. Entretanto, ele se arma um paradoxo, pois sua vida também é constituída do tempo
de leitura. Assim, por mais que Borges compile um manual com animais fantásticos de
diversos tempos, todos os seres do Manual de zoología fantástica são passageiros, situam-se
como o Odradek no domicílio incerto da linguagem. Sobre a especificidade desses animais
fantásticos, Silvia Molloy fala dessa transitoriedade: “Os seres que o povoam são menos
monstros sagrados que simulacros, deformações trêmulas e enormes, toscas e comovedoras
tentativas de nomear o Unheimliche
11
, de conjurá-lo dando-lhe forma passageira” (MOLLOY
apud BORGES e GUERRERO, 2006, p. 12).
A forma passageira em que Borges inscreve seus animais, além do lugar de
passagem onde eles estão situados, também se encontra no próprio homem. Ao contrário da
fábula, que permite, por intermédio da mensagem, prolongar a existência do homem em lições
de moral, os verbetes de Borges, sobretudo o Odradek, nos levam a essa fragilidade do
homem, à sua existência passageira, e até mesmo à sua invenção, conforme afirmou Michel
Foucault (2007, p. XXI): “Contudo, é um reconforto e um profundo apaziguamento pensar
que o homem não passa de uma invenção recente, uma figura que não tem dois séculos, uma
simples dobra do nosso saber, e que desaparecerá desde que este houver encontrado uma nova
forma.”
Como afirmou o narrador, o Odradek não faz mal a ninguém; entretanto, a ideia
de que esse animal fantástico poderá sobreviver à sua existência é quase dolorosa para ele. O
que o Odradek atinge, portanto, é essa “simples dobra do nosso saber”, que é o homem.
Desestabiliza e afeta o humano, como se, ainda para manter alguma dignidade, o narrador a
qualificasse de “quase dolorosa” para encobrir a dor de uma existência limitada, inerente a
cada ser humano. Ao mesmo tempo, o “quase” demonstra um orgulho que possui o mesmo
11
O termo encontra-se grafado com “e” no final que adjetiva o substantivo Unheimlich que, em uma perspectiva
psicanalítica, aborda o “sinistro” ou o “estranho”.
55
grau de existência da dor. Sem partir para uma leitura psicanalítica, mas ainda no
desdobramento da afirmação de Sylvia Molloy, cabe afirmar que o Odradek situa-se numa
tentativa de se nomear o Unheimlich, embora seja preciso salientar que toda a escrita do
Manual de zoología fantástica esteja na sua tentativa, pois é na tentativa que Borges exprime
em tais animais fantásticos um caráter sempre em formação, ao passo que o Homem, que
Foucault chamou de “simples dobra do nosso saber”, se considera formado, completo,
quando se imagina no topo da cadeia situada entre ele e os animais.
2.3.3 A pele do Borametz
O terceiro animal, aqui brevemente discutido, intercala as formas animal e
vegetal. O exemplo desse gênero, amplamente difundido em compêndios antigos e em
bestiários medievais, é a mandrágora, assim apresentada por Borges no Manual de zoología
fantástica:
Como o borametz, a planta chamada mandrágora. Confina com o reino animal,
porque grita quando a arrancam; esse grito pode enlouquecer aqueles que o escutam
(Romeu e Julieta, IV, 3). Pitágoras chamou-a antropomorfa; o agrônomo latino
Lúcio Columela, semi-humana; e Alberto Magno escreveu que as mandrágoras
representam a humanidade, com a distinção dos sexos. Antes, Plínio tinha dito que a
mandrágora branca é o macho e a negra a fêmea. Também, que aqueles que a
colhem traçam ao redor três círculos com a espada e olham para o poente; o cheiro
das folhas é tão forte que costuma deixar as pessoas mudas. Arrancá-la era correr o
risco de espantosas calamidades; o último livro da Guerra Judia de Flávio Josefo
nos aconselha a recorrer um cão amestrado. Arrancada a planta, o animal morre, mas
as folhas servem para fins narcóticos, mágicos e laxantes. (BORGES e
GUERRERO, 1984, p. 103, tradução nossa)
Na relação entre a mandrágora e o borametz, notamos que seus verbetes, dentro
do Manual de zoología fantástica e, por conseguinte, dentro de O livro dos seres imaginários,
estão interligados. Um verbete remete ao outro, pois essa mescla de animal e vegetal une suas
existências. Eis o verbete sobre o Borametz:
O cordeiro vegetal da Tartária, também chamado borametz e polypodium borametz e
polipódio chinês, é uma planta cuja forma é a de um cordeiro, coberta de pelugem
dourada. Eleva-se sobre quatro ou cinco raízes; as plantas morrem a seu redor e ela
se mantém viçosa; quando a cortam, sai um suco sangrento. Os lobos se deliciam em
devorá-la. Sir Thomas Browne a descreve no terceiro livro da obra Pseudodoxia
Epidêmica (Londres, 1646). Em outros monstros se combinam espécies ou gêneros
animais; no borametz, o reino vegetal e o reino animal.
56
Recordemos, a esse propósito, a mandrágora, que grita como um homem quando a
arrancam, e a triste selva dos suicidas, em um dos círculos do Inferno, de cujos
troncos feridos brotam a um tempo sangue e palavras, e aquela árvore sonhada
por Chesterton, que devorou os pássaros aninhados em seus ramos e que, na
primavera, deu penas em lugar de folhas. (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 40,
tradução nossa)
É no mundo vegetal que a metamorfose acontece de maneira mais visível e
constatável. Assim, com a mescla dos reinos animal e vegetal, obtém-se um efeito inerente ao
que analisamos aqui sobre a questão das mudanças de formas. Johann Wolfgang von Goethe,
além de um dos grandes nomes impressos na literatura universal (weltliteratur), foi um atento
observador dos fenômenos da natureza. Em 1790, fruto de um estudo inacabado, surgiu A
metamorfose das plantas. Na introdução desse livro, Maria Filomena Molder aponta, além da
metamorfose, onde cada forma é formação, que a contemplação é requerida para dar conta da
ideia da transformação contínua. Essa contemplação exige, explica Molder, “anéis
intermediários” que se dividem nos campos da filosofia, da poética, da arte, da biologia, da
antropologia e da teoria da linguagem (MOLDER apud GOETHE, 1993, p. 9), e Goethe foi
um observador atento a todos esses campos. Dentro dessa breve divisão vale salientar que o
escritor alemão era um colecionador de herbários e, entre seus estudos sobre a “difícil arte da
classificação”, encontravam-se diversas obras de Lineu e Rousseau. Ao trazer esse sucinto
estudo de Goethe para uma leitura dos animais fantásticos de Jorge Luis Borges, pensamos
justamente na constituição que Borges deu a cada um deles e que a deliberada exclusão das
metamorfoses dos seres humanos, apontada por Gilles Deleuze e por Silviano Santiago pode
se tratar de uma trapaça armada pelo escritor argentino em seu prólogo. Como atentou
Goethe:
Nós voltamo-nos imediatamente para o que tem forma. O inorgânico, o vegetativo, o
animal, o humano, tudo se significa a si próprio e aparece como o que é ao nosso
sentido externo e ao nosso sentido interno. A forma é algo em movimento, algo que
advém, algo que está em transição. A doutrina da forma é a doutrina da
transformação. A doutrina da metamorfose é a chave de todos os sinais da natureza.
(GOETHE, 1993, p. 27)
Quando Goethe anota todos esses sinais da natureza, recordamos as reflexões de
Michel Foucault sobre a relação entre natureza e linguagem, justamente no aspecto em que
esta última alcança a nomeação do mundo visível. Isso é constatável na própria anotação de
Maria Filomena Molder, na qual ela afirma que “o visível indicia o invisível, o reino dos
visíveis é um reino luminoso, medium e celebração do mundo dos invisíveis” (MOLDER
apud GOETHE, 1993, p. 28). Aqui, incluímos o Manual de zoología fantástica como uma
57
celebração do mundo dos invisíveis, tal como também poderíamos inserir Pierre Menard – um
ser imaginário – nessa caracterização. Ainda, segundo Molder:
O que se manifesta, o que é, porque é, não pode deixar de aparecer, o aparecer
mostra o que é, significa-se; quer dizer, o que se mostra, mostra-se a si próprio e a
outro, significa-se, assinalando a sua relação consigo próprio e com o todo; pelo
aparecer, o que é configura-se, toma forma (...) Se a forma é concebida como algo
em movimento, como o que está sempre em vias de ser, então a forma é, no seu
sentido primordial, formação: a doutrina da forma é doutrina da transformação.
(MOLDER apud GOETHE, 1993, p. 28)
O Manual de zoología fantástica e O livro dos seres imaginários, assim como os
seus animais fantásticos situados em verbetes, se articulam dessa maneira, são formas em
formação. Por mais que um animal do Manual de zoología fantástica seja plenamente
conhecido, como as sereias, o centauro, o minotauro, Borges não lhes uma forma fixa
recortando-os do ambiente mítico – e sempre ressalta as diversas possibilidades de
representação desses animais ao longo de diversas culturas e literaturas. Seus verbetes, como
foram estabelecidos em seus prólogos, estão em constante transformação. Por serem
“escrevíveis”, permitem o estabelecimento de outras escritas, pois estão abertos para isso.
Portanto, quando nos referimos à metamorfose, não se trata de uma leitura dos seres em
constante mutação à maneira de Ovídio, mas de seres híbridos, sem forma fixa, cuja maior
constatação metamórfica pode ser averiguada na zona da escrita. Por isso, é fundamental ter
cuidado sobre esse aspecto, sobretudo no que tange aos animais fantásticos com que estamos
lidando. E, a partir das metamorfoses, Armelle Le Bras-Chopard faz uma observação precisa,
que retoma a questão abordada anteriormente a partir de Goethe. Assim lemos em seu
fragmento do texto “Les métamorphoses”:
Embora as metamorfoses sejam por definição da ordem do movimento, abertas
sobre uma infinidade de possibilidades, se pode detectar certos traços permanentes
nas passagens de um reino a outro, relativas à origem e ao destino do ser
transformado; a particularidade de sua hibridez; o papel do olhar do outro na
determinação de sua natureza. (LE BRAS-CHOPARD, 2000, p. 221, tradução
nossa)
Mesmo os animais estando com uma forma em contínuo movimento, como o A
Bao A Qu, não existe propriamente uma mudança de reino, ou seja, do animal ao vegetal, por
exemplo. No caso do Borametz e da Mandrágora, eles também não passam por tal processo,
pois já estão situados entre os reinos animal e vegetal. Um animal como o Baldanders possui
uma mudança contínua e metamórfica, mas o que deve ser ressaltado aqui, sobre a
58
metamorfose, é que em Borges essas mudanças acontecem como um movimento da escrita; a
escrita é metamórfica.
O Borametz, assim como a Mandrágora, por ter uma estreita relação com o
mundo vegetal, torna mais evidente essa questão acerca da obra de Borges, apesar de ser um
verbete muito curto e praticamente dividido com a Mandrágora. Ainda assim ele nos fornece
elementos importantes para uma reflexão em torno do ato de nomear. Afinal, foi por
intermédio do mundo vegetal que Goethe criticou Lineu, como podemos verificar no
apontamento para as notas de seu inacabado A metamorfose das plantas:
Mesmo numa nomenclatura muito elaborada, temos de pensar que é uma
nomenclatura, temos de pensar que uma palavra é um contraste agarrado, ajustado a
um fenómeno qualquer, e, por conseguinte, deve ser considerada apenas como um
expediente da nossa comodidade. (GOETHE, 1993, p. 62)
Em um dicionário ou enciclopédia, parece que o expediente da palavra estanca e
demarca uma definição precisa, tal como a palavra “informe” de Bataille, onde um dicionário
deixaria de fornecer sentido às palavras e sim lhes daria obrigações. A leitura dos verbetes de
Jorge Luis Borges, no Manual de zoología fantástica, exige um esforço maior, porque é
dentro do texto que o autor abre, paradoxalmente, um incômodo diante do saber, pois os
verbetes se apresentam insuficientes em termos classificatórios, e essa insuficiência indica
que toda e qualquer classificação recorre também à imaginação, como já ressaltou no primeiro
capítulo Maria Esther Maciel: “Na falta de critérios para se definir com precisão um objeto
estranho, que se inventar novas formas sejam elas metafóricas ou não para que ele
possa ser descrito e especificado” (MACIEL, 2007, p. 158).
É com esse princípio que Philipp Blom, no capítulo “O dragão e o carneiro
tártaro”, do livro Ter e manter: uma história íntima de colecionadores e coleções, apresenta
uma série de fatos insólitos que estão intimamente relacionados não apenas ao Borametz,
como também à própria constituição da série borgiana a que vai do Manual de zoología
fantástica a O livro dos seres imaginários justamente através de um animal, o Dragão. No
Manual de zoología fantástica, Borges utiliza duas espécies desse animal, o “Dragão” e o
“Dragão chinês”. Outro dragão foi acrescentado em O livro dos seres imaginários, o qual,
inclusive, abre o livro. Levando em consideração o dragão, Philipp Blom assim inicia o texto:
Os dragões sempre saíram rastejando de suas covas no começo dos tempos para
testar a virtude e a da humanidade. Nas lendas, aparecem nos portões das cidades,
devorando o sangue de inocentes, e desafiando os guerreiros mais fortes e mais
59
piedosos a defenderem a ordem das coisas, brandindo espada contra hálito de fogo.
(BLOM, 2003, p. 29)
O dragão é um animal com uma vasta simbologia, que merece um estudo à parte;
entretanto, aqui ele não é nosso foco, e sim uma “passagem” para chegarmos ao Borametz.
Philipp Blom, a partir do dragão, apresenta um colecionador muito importante
para o século XVI, Ulisse Aldrovandi (1522-1605). Aldrovandi foi um grande colaborador
para uma verdadeira explosão das atividades científicas em sua época, graças ao seu ato de
colecionar uma proliferante quantidade de criaturas estranhas. Esse colecionador italiano,
segundo Blom (2003, p. 31), “julgava-se um novo Aristóteles e tinha a intenção de concluir o
que Aristóteles e Plínio começaram: uma enciclopédia da natureza”.
Um ponto que toca diretamente à natureza do Manual de zoología fantástica é a
captura de um dragão, tal como foi descrita no seguinte relato de Aldrovandi, considerado por
Blom como um texto sério e convincente:
O dragão foi visto pela primeira vez em 13 de maio de 1572, sibilando como uma
cobra. Estivera escondido na pequena propriedade de Mestre Petrônio, perto de
Dosius, num lugar chamado Malonolta. Às cinco da tarde, foi apanhado numa
estrada pública por um pastor chamado Batista de Camaldulus, perto da sebe de uma
fazenda particular, a uma milha dos remotos arrabaldes de Bolonha. Batista
conduzia seu carro de boi para casa quando os bois pararam de repente. Bateu-lhes,
berrou, mas eles se recusaram a prosseguir, e caíram de joelhos. Nesse momento o
pastor ouviu o som sibilante e ficou espantado de ver o estranho dragãozinho à sua
frente. Trêmulo, golpeou-o na cabeça com o bastão e matou-o. (BLOM, 2003, p. 29-
30)
O pequeno dragão, segundo Aldrovandi, morreu com apenas um golpe de bastão.
Esse relato documental que toca nos liames do fantástico apresenta outra versão das diversas
histórias envolvendo dragões, dentre as quais está a de Borges, visto que ele assim inicia O
livro dos seres imaginários:
O dragão possui a capacidade de assumir muitas formas, mas estas são inescrutáveis.
Em geral o imaginam com cabeça de cavalo, cauda de serpente, grandes asas laterais
e quatro garras, cada uma dotada de quatro unhas. Fala-se também de suas nove
semelhanças: seus cornos se assemelham aos de um cervo, sua cabeça à do camelo,
seus olhos aos de um demônio, seu pescoço ao da serpente, seu ventre ao de um
molusco, suas escamas às de um peixe, suas garras às da águia, as plantas de seus
pés às do tigre e suas orelhas às do boi. espécimes aos quais faltam orelhas e que
ouvem pelos chifres. É comum representá-lo com uma pérola, que pende em seu
pescoço e é emblema do sol. Nessa pérola está seu poder. É inofensivo se despojado
dela. (BORGES e GUERRERO, 2006, p. 15)
60
O dragão de Aldrovandi foi possivelmente morto com um golpe por estar
desprovido de sua pérola, se analisarmos o que escreveu o colecionador italiano frente ao
fragmento de Jorge Luis Borges. É partindo desse relato de Aldrovandi que Philipp Blom
prosseguirá sua incursão pelas diversas coleções do século XVI, tempo em que as coleções,
além de facilitar os avanços da ciência, eram um verdadeiro “repositório de conhecimento”, e
em que as raridades e estranhezas também tinham fins de entretenimento e diversão (BLOM,
2003, p. 41). Assim, chegamos a outro colecionador, Jan Jacobsz Swammerdam (1606-1678),
não tão famoso quanto Aldrovandi, mas que além de colecionar uma estranha zoologia,
também escreveu algumas monografias como bloedelose dierkens (“pequenos animais sem
sangue”, ou insetos) e Bybel der natuure (“Bíblia da natureza”) – que, na verdade, se trata do
seu primeiro trabalho reescrito, encontrado cinquenta anos depois de sua morte. O que
Swammerdam possui em comum com Jorge Luis Borges é justamente o fato de que:
Além de cerca de três mil insetos, sua coleção continha espécimes situados na
fronteira do conhecimento existente, como “a pele de um carneiro tártaro que cresce
a partir da terra”, uma planta lanosa, que segundo a crença se transformava num
carneiro à noite para comer as plantas circundantes e sangrava quando cortada.
(BLOM, 2003, p. 42)
É aqui que voltamos à leitura do verbete Borametz, contido no Manual de
zoología fantástica. Swammerdam possuía em sua coleção a pele de um Borametz, um ser
que até os dias de hoje está situado na “fronteira do conhecimento existente”. Crer na
existência do Borametz não era uma questão de ingenuidade, mas um passo para alimentar a
curiosidade, que seria uma das principais fontes estruturais da cultura científica da época,
como assegura Philipp Blom:
Aceitar pelo menos que tais criaturas eram possíveis, até prova conclusiva em
contrário, era boa ciência, não superstição, sobretudo em uma cultura alimentada
desde a mais tenra infância por histórias e milagres bíblicos, e por conceitos de
história natural apresentados por Plínio, Platão e Aristóteles, que ainda exerciam
considerável influência. (BLOM, 2003, p.42)
É perceptível que toda essa influência de Plínio, Aristóteles e, por excelência,
Platão, exerceu um grande poder nas descobertas objetivas a que estava se encaminhando a
ciência. Alexandre Eulálio, em texto sobre o Manual de zoología fantástica, ressalta esse
período fértil do Renascimento:
Animais esféricos chamou Borges, d’après Platão (Leis, 898) às estrelas, aos
planetas e à própria terra que pisamos. A Renascença, palpitante de um platonismo
61
ao mesmo tempo mundano e conventual, usou da ideia sem timidez. Vanini glosou-a
generosamente, Marsílio Ficino falou dos cabelos, ossos e dentes da terra, e o grande
Giordano Bruno “sintió que los planetas eran grandes animales tranquilos, de sangre
caliente”. Kepler e Robert Fludd, o oculista do século XVIII, assim como Fechner,
no século XIX, não deixaram de pensar nessa ideia. (EULALIO apud SCHWARTZ,
2001, p. 294).
Em toda a formação do conhecimento humano, por todos os tempos, os animais
sempre se situaram em uma zona de fronteira. Os animais do Manual de zoología fantástica
são assim como os do Jardim Zoológico, abordados a seguir – verdadeiros seres
fronteiriços, que se situam entre o que é possível acreditar ou não, o que realmente é possível
se conhecer ou não. É justamente nesse ponto que Borges não rompe com nenhum tempo
algo próprio da modernidade e sim traz todos os tempos (o antigo, o medieval, o moderno,
entre outros) para o seu pequeno manual. É assim que autores como Aristóteles, Plínio, o
Velho, Ulisse Aldrovandi, Jan Jacobsz Swammerdam, como também Jorge Luis Borges e
Wilson Bueno, podem ser considerados verdadeiros escritores-fronteira, resgatando aqui um
termo de François Hartog para designar os viajantes inaugurais: “Esses viajantes inaugurais
deslocam-se até as fronteiras, são eles próprios marcos de fronteira, embora móveis. Vão e
estão, por assim dizer, dos dois lados das fronteiras, grandes ou pequenas: ao mesmo tempo
dentro e fora, intermediários, barqueiros, tradutores” (HARTOG, 2004, p. 15).
O mundo antigo não tinha uma fronteira geopolítica desenhada no espaço, pois
suas demarcações eram dadas, sobretudo, pela imaginação, como analisou José Gil no livro
Monstros.
12
Posteriormente, essa fronteira foi transposta para as coleções, e Borges traz essas
fronteiras para a literatura da segunda metade do século XX, lidando com todos esses tempos,
afirmando-se como um barqueiro, um tradutor na acepção de Hartog. Dessa maneira, o
Manual de zoología fantástica, em seu anacronismo, comporta temporalidades diferentes, do
mundo antigo passando pelo mundo medieval, com um deslocamento até as coleções
renascentistas. Ele atravessa, sobretudo, diversas literaturas canônicas e não-canônicas,
deslocando essas fronteiras, pois Borges, de maneira geral, remontou a estrutura do cânone
literário e, aqui, o cânone literário em relação aos animais fantásticos. O Manual de zoología
fantástica evidencia, ainda, uma nova maneira de lidar com essas fronteiras, com o Outro.
12
Gil nos dá o exemplo desses verdadeiros “mapas”, ressaltando de um texto de Mandeville algumas
demarcações, cartografia na qual podemos também situar a Odisseia. Assim recorta José Gil alguns relatos de
Mandeville: “De vai-se por mar meridional a outra ilha chamada Dedin que é muito grande e comprida; a
gente desse país é de natureza diversa: o pai come o filho e o filho o pai, o homem a mulher e a mulher o marido
e quando (...)”; ou “Como numa ilha do Sul gentes de feia estatura pois não possuem cabeça e têm olhos nos
ombros e a boca no peito e outros a parte dianteira atrás” (GIL, 2006, p.48).
62
Fronteiras em termo de escrita, pois Borges cria uma cumplicidade com esse Outro-escritor, e
fronteiras que põe em dúvida os limites entre o humano e o inumano.
3 O ZOOLÓGICO E SEUS LIMITES
A relação entre Wilson Bueno e Jorge Luis Borges pode ser lida como algo que
vai além da influência que o último exerceu sobre o primeiro. Nesse aspecto, a linha que traça
a história da literatura deve ser repensada junto aos próprios anacronismos de Jorge Luis
Borges e sua prática de criar “precursores”, quando inverte o papel de quem influencia quem.
Assim, Jardim zoológico pode ser uma obra na qual encontramos uma escrita vinculada à do
escritor argentino, mais precisamente na forma de se estabelecer como um catálogo, um
exíguo catálogo que está aberto ao infinito movimento do livro. Tal movimento em Wilson
Bueno, que vai do Manual de zoofilia ao Jardim zoológico é, sem dúvida, borgiano;
entretanto, esse é apenas o ponto de partida. Bueno parece ampliar esse movimento de um
livro a outro a toda sua obra, que não cataloga exclusivamente animais, mas que experimenta
os limites, as fronteiras do Outro.
3.1 O animal e as fronteiras do Outro
Apesar de existir uma vasta produção de bestiários por toda a América Latina,
poucos foram os escritores que levaram a sério o pedido de Borges, tal como escreveu o autor
em O livro dos seres imaginários, solicitando o envio de colaborações dos eventuais leitores
da Colômbia ou do Paraguai. O gesto de colaborar com o referido projeto, de remeter os
nomes de animais fantásticos dos seus respectivos países para Jorge Luis Borges e para
Margarita Guerrero é, em si, uma nova escrita que se constitui. Assim, tal gesto, que passa
tanto pela montagem quanto pela série, não se esgota. Em 1992, quando Borges não estava
mais entre nós, o escritor paranaense Wilson Bueno publica um livro chamado Mar
Paraguayo. O título parece remeter diretamente a Borges, que buscava um eventual leitor da
Colômbia ou do Paraguai, e é importante ressaltar que Bueno escreveu o Paraguay em uma
linguagem híbrida ou, para ser mais específico, em uma linguagem típica das regiões
63
fronteiriças entre o Brasil e outros países da América Latina, o portunhol. O livro não possui
uma catalogação de animais sistematizada, tal como o Manual de zoología fantástica e O
livro dos seres imaginários, de Borges, ou o Manual de zoofilia e Jardim zoológico, livros
publicados posteriormente pelo próprio autor. Porém, um animal que bem poderia estar
presente em qualquer um dos livros citados. Trata-se de um “cachorro” chamado Brinks,
animal de propriedade da “marafona del balneário”. A personagem assim o define: “mi perro,
mi tiquito perro que atende por el ruído de Brinks e es tan pequetito, tan juguete-de-pelos, tan
colita acima como se fuera uma coma móbile y bifurcada” (BUENO, 1992, p. 18). Brinks
situa-se em um limite. Um limite, por um lado, entre os animais fantásticos catalogados nos
livros de ambos os autores e, por outro, um animal fantástico que é de estimação,
13
pois no
elucidário do autor, localizado nas últimas páginas do livro, existe uma variação nas maneiras
de a “marafona” chamar o Brinks, um animal tão pequeno que é invisível. Assim explica
Bueno tanto o termo tupi “Brinks’michimirá’itotekemi” quanto o
“brinkssisinhinhozinhoziinhozinhozinho”:
Tamanha aglutinação de sufixos diminutivos acoplados ao nome próprio, Brinks,
realiza em guarani o que pode ser visto através de um microscópio, tornando a
coisa diminuída, algo (quase) invisível; na sugestão do texto, o que não se pode ver
ou o que efetivamente, no caso, não existe. (BUENO, 1992, p. 75)
Por isso, em seus delírios, a “marafona”, no decorrer de toda a narrativa, intercala
“estoy tan sola” com os momentos nos quais conversa com Brinks, “Pero aca seguimos, yo e
tu, Brinks’i” ou “Donde estás? Donde estuvo se tu no es más que la sombra em dibujo de la
noche que va me pegando assolutamente sola” (BUENO, 1992, p. 61; 63). Começando pelo
Paraguay, Wilson Bueno se torna um colaborador assíduo de Jorge Luis Borges, escrevendo,
por intermédio dessas colaborações, sua própria obra. Assim, de imediato, existe uma
escrita que se estabelece a partir da escrita do Outro. Esse é o primeiro exercício diante do
Outro que Borges e Bueno realizam para chegar aos animais.
Silviano Santiago, em “O entre-lugar do discurso latino-americano”, afirma
justamente essa possibilidade de escrever:
13
Nesse aspecto, Armelle Le Bras-Chopard anota uma observação interessante para uma leitura do animal
doméstico que bem pode ser associado ao Brinks: “O estatuto dessas três categorias de animais domésticos tem
mudado consideravelmente em algumas décadas. Os animais de companhia são múltiplos e diversificados
(deveria realmente acrescentar ao cachorro e ao gato todos os canários, porcos-da-índia, peixes-dourados,
tartarugas, tarântulas e outros animaizinhos exóticos)” (LE BRAS-CHOPARD, 2000, p. 170, tradução nossa).
Brinks seria um cão mas, por seu tamanho e constituição, não se trata de um animal de companhia, no sentido
que Le Bras-Chopard escreve e, paradoxalmente, pode muito bem estar situado no termo “outros animaizinhos
exóticos”.
64
O escritor latino-americano brinca com os signos de um outro escritor, de uma outra
obra. As palavras do outro têm a particularidade de se apresentarem como objetos
que fascinam seus olhos, seus dedos, e a escritura do segundo texto é em parte a
história de uma experiência sensual com o signo estrangeiro. (SANTIAGO, 2000, p.
21)
Existe uma verdadeira sensualidade na escrita de Wilson Bueno diante dos signos
de Borges, onde um corpo a corpo de sua escrita com a produção do escritor argentino,
inclusive com o próprio “manual” de Borges; tanto é assim que, em 1997, Bueno publica o
Manual de zoofilia. O título da obra nos remete ao plano do afeto “filia”– destacando-se
como um passo importante para a publicação do livro seguinte, Jardim zoológico, de 1999,
além do uso do vocábulo “manual”, que se articula com Jorge Luis Borges.
O Manual de zoofilia, que anteriormente havia sido publicado em uma pequena
tiragem artesanal pela editora Noa-Noa (de Florianópolis), traz diversos animais da “zoologia
de Deus”, tais como cisnes, borboletas, lagartas, pardais, gatos, cadelas, escorpiões, galos,
elefantes, urubus, cavalos, lobos, camaleões, andorinhas, morcegos, panteras, aranhas,
antílopes, águias, raposas, colibris, moscas, polvos e rouxinóis. Entretanto, não são apenas
esses animais que compõem o livro. Dragões, dinossauros e corruíras também fazem parte do
universo do livro. Dessa fauna insólita, inserimos aqui o verbete que abre o livro, Corruíras:
Se uma instala seu ninho na caixa do correio, breve notícia de um Deus, outra vem
pra descrever um círculo de voo e dança em torno da caixa feito quem incensasse
um altar, toda núpcias no janeiro que nos aconteceu.
quem se ocupe descobrir, das corruíras, um dia, a sua pauta de música que não
há.
Vê-se no mínimo de teu olho o lapso feliz embora a carne e o estrume.
Prefiro que sejam, as corruíras, uma a uma, este movimento haicai de uma vida
batendo ardente num coração de arroz. (BUENO, 1997, p. 7)
De imediato, pela leitura do verbete de Wilson Bueno nota-se uma diferença em
relação aos verbetes do Manual de zoología fantástica, de Jorge Luis Borges. A diferença
instaurada por Bueno é que os corruíras não são animais literários como os da zoologia
borgiana. A descrição é simples, direta. Entretanto, com toda a simplicidade descritiva, ele
não deixa de ser tão insólito quanto os seres catalogados por Borges e, inclusive, estaria
sujeito a tal feito. Ainda no mesmo livro, observa-se que Wilson Bueno insere um verbete
para os lobisomens, fato excluído deliberadamente da zoologia fantástica de Borges, motivo
de crítica de Gilles Deleuze e Felix Guattari e, por conseguinte, de Silviano Santiago, ao autor
argentino. Citemos, então, o verbete Lobisomens:
65
Às noites de sexta-feira pelo imaginário navegam peludos, vacilantes, dúbios.
Impossível descrevê-los senão por amor à melancolia e ao tédio. Quiçá no dedo um
rubi trêmulo.
Sim, não é do amor a ríspida matéria com que lhe bato na cara, feito quem te xinga e
apedreja, com que lhe bato na cara, meus medos, pêlos, meus receios, dores-de-
cotovelo, focinhos, sinas, um tanto corneador baixo o teto que nos vê passar. Fareja?
Na noite grande, me instalo no centro de seu coração absolutamente dono,
absolutamente senhor de suas curvas, nádegas e virilhas. Latifundiário feroz te vigio,
te cerco a arame-farpado, lhe dou combate.
Mas por que terá sempre de ser eu a vítima desarvorado, ambulante, pedinte
assíduo de você, cantando Agnaldo Timóteo, brigando na porta do Operário?
Na casa de seu lar você dorme e talvez sonhe com um velho lobisomem, aquele,
este, que anda pelas ruas, abraçado ao pensamento de você com a última flor de uma
alegria à toa. (BUENO, 1997, p. 55)
Wilson Bueno, ao descrever os lobisomens, diz: “impossível descrevê-los senão
por amor à melancolia e ao tédio”. Seria por tal motivo que Borges não descreveu o
lobisomem em seu projeto de uma zoologia fantástica? Nas palavras de Silviano Santiago, em
“A ameaça do lobisomem”, o que está em jogo é o processo de transformação:
Estamos fazendo rolar pela mesa da literatura o dado da transformação do ser
humano no texto de Borges. Está em jogo no processo de produção textual não mais
a figura do desdobramento do um em dois, ad infinitum, ou do acasalamento do dois
em um, ad infinitum, mas a figura da transformação. Transformação, entendamo-
nos, é a figura que traduz o puro movimento sem direção fixa, é o movimento do
devir outro que é dado, não como o um que é conjunção de dois, a priori morto, mas
como “confusión ignorante”. (SANTIAGO, 1991, p. 38)
O fato é que, por um lado, temos uma imagem cristalizada de um ser metamórfico
como o lobisomem e por outro, em definitivo, Borges não excluiu a transformação de seus
livros, e sim deu outros contornos de metamorfose a seus seres, difíceis de serem definidos
em uma primeira leitura. Tais contornos, na referida obra de Bueno, são igualmente difíceis
de definição, simplesmente pelo fato de que Wilson Bueno não se deixou ameaçar pelo
lobisomem. A escrita que compõe o Manual de zoofilia é uma escrita cuja transformação é
constante. Na fauna convocada por Bueno situam-se, inclusive, as “crianças”. Inserir
“crianças” em uma zoofilia é incluir o “projeto de ser humano”, cujos registros, além de tal
verbete feito pela estrutura verbal das palavras –, “são tantos retratos em que, coloridas,
aparecem, rindo” (BUENO, 1997, p. 41). A pergunta que fazemos, diante de tal verbete, é:
quando nasce, o homem é um animal como qualquer outro, por estar longe da linguagem e da
racionalidade? E, dela, desdobra-se uma questão: quando este outro, o animal, passa a ser um
limite para o homem?
Dispor o animal como Outro, nesse sentido, é uma maneira que justifica até
mesmo o seu confinamento, pois não é à toa que, por exemplo, não exista em um zoológico
66
uma jaula para mostrar o homem como espécie. “Há muito tempo, pode-se dizer que o
animal nos olha?” É esta a pergunta de Jacques Derrida. “Mas, que animal? Insiste. O outro.”
(DERRIDA, 2002, p. 15). Esse é um olhar cruzado por milênios. E desde os tempos mais
remotos observa-se, da cena de origem bíblica até as mais contemporâneas experiências
genéticas, que o olhar do homem a estes seres “pobres de mundo é um olhar que demarca
bem um propósito dentro dos limites do humano. É com esta consciência diante do olhar do
outro que vai existir um limite do humano colocado por Derrida:
Como todo olhar sem fundo, como os olhos do outro, esse olhar dito “animal” me dá
a ver o limite abissal do humano: o inumano ou o a-humano, os fins do homem, ou
seja, a passagem das fronteiras a partir da qual o homem ousa se anunciar a si
mesmo, chamando-se assim pelo nome que ele acredita se dar. (DERRIDA, 2002,
p.31)
É por ser “diferente” e “outro” que o animal é subjugado e, por isso, esse ponto
cria um impasse filosófico, pois como afirmou Gilles Deleuze, fazendo eco à afirmação de
Jacques Derrida, o homem não possui devir, pois ele é em si uma instituição de poder:
O devir não vai no sentido inverso, e não entramos num devir-Homem, uma vez que
o homem se apresenta como uma forma de expressão dominante que pretende
impor-se a toda matéria, ao passo que a mulher, animal ou molécula têm sempre um
componente de fuga que se furta à sua própria formalização. (DELEUZE, 2008, p.
11)
Assim, na abordagem de Deleuze, a criança não teria um componente de fuga que
permitiria figurá-la no Manual de zoofilia? Afinal, quando o homem nasce, ele não estaria
destituído de saber? Não estaria ele no seu limite biológico da animalidade? Maria Esther
Maciel aborda, sob essa fronteira, o limite do outro que é ponto de partida para as discussões
de Jacques Derrida em O animal que logo sou. Sobre essa fronteira entre o homem e esse
outro, o animal, Maciel comenta:
Dentro do repertório brasileiro, destaca-se ainda, num contexto bem mais
contemporâneo, o escritor paranaense Wilson Bueno que, além de recriar antigos
bestiários a partir de um enfoque cultural notadamente latino-americano, busca
trazer para seus escritos, à feição de Clarice Lispector, “o it dos animais”. Isso, por
ele ser também um escritor consciente de que, mais do que comparar os “mundos
humanos” aos “mundos animais”, cabe à literatura explorar a intensa complexidade
de cada um deles. Principalmente em seus livros Jardim zoológico (1999) e Manual
de zoofilia (1997), Bueno explora a passagem das fronteiras entre o humano e o
inumano, num processo de identificação do sujeito poético com o que Derrida
chama de “esse completamente outro” que é o animal. (MACIEL, 2007, p. 201)
67
O animal situa-se nesse campo nomeado Outro. Ultrapassar a fronteira do humano
para atingir o referido campo nos coloca diante de uma aporia. Aporia que se estende no
processo de escrita e que, longe de ser resolvida racionalmente, opera com um verdadeiro
“devir” e, no caso de Wilson Bueno, um “devir-animal”.
Seria praticamente com um “devir-animal” que Wilson Bueno vai compor esses
livros citados por Maria Esther Maciel? E esse devir, para ser melhor articulado, propõe uma
aproximação de dois pensamentos: o de Gilles Deleuze e o de Jacques Derrida. E aqui,
Wilson Bueno será o ponto de encontro entre o “devir-animal” e os animots.
14
Aliás, podemos
até, por entrelaçamento, arriscar dizer que os animots (de Derrida e, por conseguinte, de
Wilson Bueno) decorrem desse devir. Como propuseram Deleuze e Guattari em um de seus
platôs, “se um escritor é um feiticeiro é porque escrever é um devir, escrever é atravessado
por estranhos devires que não são devires-escritor, mas devires-rato, devires-inseto, devires-
lobo, etc” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 21). Wilson Bueno, em uma entrevista feita
por Dirce Waltrick do Amarante, apoia-se justamente numa feitiçaria ligada à força da escrita,
quando afirma: “Literatura para mim é bruxedo, feitiçaria. Nesse sentido sou borgiano até a
raiz do último cabelo.”
15
Essa feitiçaria utilizada por Deleuze e Guattari como uma operação crítica é muito
próxima das considerações de Jacques Derrida, para quem um invasor potencial se alojaria no
operador de escritura, de leitura, de interpretação (DERRIDA, 2002, p. 74). Em relação a esse
potencial invasor, Derrida refere-se a um animal de leitura e reescritura. E sobre o “operador
de escritura”, aqui no caso nos referimos a Jorge Luis Borges e Wilson Bueno. Entretanto,
para esclarecer essa relação será necessário primeiro pensar o que Deleuze e Guattari
propõem com devir-animal. Em primeiro lugar, não se trata de um conceito que possa ser
explicado ou sistematizado e, sim, de uma operação crítica utilizada pelos filósofos franceses
que assim nos dizem: “um devir-animal que não se contenta em passar pela semelhança, para
o qual a semelhança, ao contrário, seria um obstáculo, uma parada” (DELEUZE e
GUATTARI, 2007, p. 12). Esse caminho aponta uma relação estabelecida entre o homem e o
animal em uma ordem frágil, que não é a da imitação.
16
Não se trata de imitar o animal
14
Sobre a terminologia Animots, o tradutor desse livro de Jacques Derrida, Fábio Landa, explica em nota:
Animots, em francês, pronuncia-se exatamente da mesma maneira que Animaux, o plural de animal. ‘Mot’ em
francês quer dizer ‘palavra’. A constituição deste novo vocábulo pelo autor obedece ao mesmo procedimento de
DIFFÉRENCE e DIFFÉRANCE efetuado por Derrida anteriormente, que se distinguem na escritura e não na
pronúncia”. (LANDA apud DERRIDA, 2002, p. 70).
15
Trata-se da entrevista “A primeira idade de Wilson Bueno”, feita por Dirce Waltrick do Amarante. Disponível
em: www.cronopios.com.br/site/artigos.asp?id=3882. Último acesso em: 25 mar. 2009.
16
As observações do historiador da arte e etnógrafo Aby Warburg tocam a questão do problema da imitação
frente aos índios “pueblos” da América do Norte, em El ritual de la serpiente: “Quando, por exemplo, o índio
68
exteriormente em termos de linguagem para que se obtenha, assim, uma identificação com o
animal, pois o próprio “devir” não é da ordem da identificação, imitação ou semelhança,
como reforçam Deleuze e Guattari. Assim, é nessa base e com tal fundamento que os filósofos
criticaram Jorge Luis Borges em O livro dos seres imaginários porque, para eles, Borges
eliminou os devires de seu livro, fato do qual discordamos, pois acreditamos que a leitura de
Deleuze e Guattari possivelmente parte de uma “deliberação” contida no prólogo de O livro
dos seres imaginários e os prólogos de Borges são sempre armadilhas, trapaças ou ainda
traições –; afinal, um devir-animal está sempre tratando de uma matilha, um bando, uma
população, um povoamento, enfim, uma multiplicidade (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p.
19). Assumindo a voz de um feiticeiro, Deleuze e Guattari, com essa questão, chegam ao
problema da classificação:
Nós, feiticeiros, sabemos disso desde sempre. Pode acontecer que outras instâncias,
aliás muito diferentes entre si, tenham uma outra consideração do animal: pode-se
reter ou extrair do animal certas características, espécies e gêneros, formas e
funções, etc. A sociedade e o Estado precisam das características animais para
classificar os homens; a história natural e a ciência precisam das características para
classificar os próprios animais. (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 19-20)
As características para a classificação se tornam necessárias para que, assim,
exista um lugar-comum do gesto classificatório. Por mais redundante que isso possa parecer, a
operação crítica do “devir-animal” de Gilles Deleuze e Félix Guattari atinge o problema da
classificação. Paralelo a isso – e tocando de outro modo a questão – supõe-se que uma escrita
passe pelo plano da fábula, da imitação do animal, para assim extrair uma mensagem para o
homem e estabelecer uma genealogia para a afirmação de uma identidade a humana, e
acabar com o devir pela instituição de um poder. No entanto, não se trata desse o caminho
abordado por Jorge Luis Borges, pois tal como afirmamos no capítulo anterior, o Manual de
zoología fantástica e O livro dos seres imaginários podem ser lidos como um devir do
escritor argentino com a escrita; afinal, como afirmou Deleuze (2008, p. 11), “a escrita é
inseparável do devir”, e assim, um dos grandes feitos de Borges foi compor uma verdadeira
matilha enciclopédica que contraria a crítica de Deleuze e Guattari. No caso de Wilson
Bueno, a questão do devir torna-se mais evidente, a partir da leitura de Deleuze e Guattari e,
mesmo assim, Bueno ainda descreve uma situação do animal além da matilha que nos faz
repensar as críticas direcionadas a Borges: “Há o desamparo recurvo do lobo se o líder da
imita os movimentos e as expressões do animal, não se introduz no corpo da presa para divertir-se, mas para
poder apropriar-se de um elemento mágico da natureza através da metamorfose pessoa, algo que não poderia ser
obtido sem ampliar e modificar sua condição humana” (WARBURG, 2004, p. 29, tradução nossa).
69
alcateia o expulsa, além-matilha. É um animal quebrado sem seu bando. Não se fie contudo
em seus caninos. Moram neles, nos lobos, os acidentes da fome e os do pânico” (BUENO,
1997, p.35).
É justamente nesse fragmento do verbete Lobo que perguntamos: um animal fora
da matilha deixaria o seu devir? Talvez, como podemos ler a partir de Wilson Bueno, seu
devir também se encontre nos dentes caninos, na força da mordida, no gesto de arrancar a
carne e na sua fome, como no caso do lobo. Então, para quê maior intensidade de devir?
17
E,
quanto à classificação, ainda no verbete do lobisomem, por exemplo, Bueno nega emitir uma
descrição do lobisomem (ser que se situa para cada um de nós no plano do sonho, do
imaginário?), pois é impossível descrevê-lo, disse o escritor paranaense, jogando com uma
imagem cristalizada em nossa imaginação. Ao mesmo tempo, é a imaginação o melhor
lugar para que o “puro movimento sem duração fixa”, abordado por Silviano Santiago, possa
exercer sua mutação.
Jacques Derrida, por sua vez, ao se referir a esse invasor alojado no “operador de
escritura”, fornece-nos elementos para uma outra maneira de ler o próprio “devir-animal”:
Nem animal nem não-animal, nem orgânico nem inorgânico, nem vivente nem
morto, esse invasor potencial seria como um vírus de computador. Ele se alojaria
num operador de escritura, de leitura, de interpretação. Mas, se posso notá-lo
antecipando amplamente sobre o que se seguirá, seria um animal capaz de rasurar
(portanto de apagar um rastro, disso que Lacan diz ser o animal incapaz). Esse
quase-animal não teria mais que se referir ao ser como tal (disso que Heidegger dirá
ser o animal incapaz), pois ele se daria conta da necessidade de rasurar o “ser”.
(DERRIDA, 2002, p. 74)
Derrida, ao estabelecer essa questão “quase-animal” e “operador da escritura”,
desloca todo o problema da classificação, que inevitavelmente passa pela identificação, pela
semelhança, para chegar até a possibilidade de uma rasura do “ser”. Rasura essa que vai de
encontro a matrizes do pensamento ocidental, que aqui se figuram, como exemplo, na
psicanálise de Lacan (mas não nela)
18
e na filosofia de Heidegger (que também não se
17
Nesse aspecto, uma das grandes fontes dos estudos centrados na imanência, o autor Georges Bataille, possui
um livro fundamental para compreender essa questão, Teoria de la religión. O escritor francês, na abertura do
livro, apresenta um pequeno ensaio sobre a “animalidade” e assim escreve: “um organismo, por outra parte, está
separado dos processos que lhe são similares, cada organismo está separado dos outros organismos: neste
sentido, a vida orgânica, ao mesmo tempo que acentua a relação com o mundo, retira do mundo, isola a planta ou
o animal, que podem teoricamente, se a relação fundamental da nutrição se deixa a parte, ser abordados como
mundos autônomos” (BATAILLE, 1981, p. 23-24, tradução nossa). Enfim, não existe superioridade entre o
devorador e o devorado.
18
Maria Esther Maciel anota, ainda sobre o problema da ordem do pensamento sobre o animal a que se refere
Jacques Derrida em seu livro: “Neste livro, ao confrontar a assertiva de Heidegger segundo a qual ‘o animal é
pobre de mundo’ pelo fato de serem privado de logos, Derrida realiza uma espécie de desconstrução do
70
refere apenas a ela). Assim, é a partir de tais operações críticas que se torna possível ler em
Wilson Bueno e em Jorge Luis Borges toda uma multiplicidade que envolve as zoologias de
ambos os escritores. Afinal, como afirmou Derrida:
“O animal”, como se todos os viventes não humanos pudessem ser reagrupados no
sentido comum desse “lugar-comum”. (...)
Neste conceito que serve para qualquer coisa, no vasto campo do animal, no singular
genérico, no estranho fechamento deste artigo definido (“O animal” e não
“animais”) seriam encerrados, como em uma floresta virgem, um parque zoológico,
um território de caça ou de pesca, um viveiro ou um abatedouro, um espaço de
domesticação, “todos os viventes” que o homem não reconheceria como seus
semelhantes, seus próximos ou seus irmãos. E isso apesar dos espaços infinitos que
separam o lagarto do cão, o protozoário do golfinho, o tubarão do carneiro, o
papagaio do chipanzé, o camelo da águia, o esquilo do tigre ou o elefante do gato, as
formigas do bicho-de-seda ou o ouriço da equidna (...). (DERRIDA, 2002, p. 64-65)
Essa multiplicidade, segundo o pensamento de Derrida, pode acontecer no
plural de “o animal”, evitando, assim, essa palavra que agrupa de maneira tão aleatória seres
de natureza tão diferentes, pois o espaço que os separa entre si é infinito, por isso reuni-los
sob a palavra os animais torna-se uma operação tão arriscada para suas existências dentro da
própria da linguagem.
É partindo dessa multiplicidade que, antes de fazer incursões pelo Jardim
zoológico, de Wilson Bueno, transitaremos por todo um imaginário dos viajantes europeus
advindo da cultura medieval dos bestiários – ao se depararem com animais nunca antes vistos,
pois para a constituição do que conhecemos por zoológico, vários relatos sobre animais
fantásticos foram escritos e vários espécimes de animais considerados “exóticos” foram
transportados. Nesse aspecto, John Berger, em seu ensaio “Por que olhamos os animais?”,
relata: “Do mesmo modo, no século XIX, os zoos públicos supunham uma confirmação do
moderno poder colonial. A captura dos animais era uma representação simbólica da conquista
de todas aquelas terras distantes e exóticas” (BERGER, 1987, p. 23-24, tradução nossa).
Dessa maneira, com o surgimento do Novo Mundo a escrita sobre animais fantásticos ganhou
uma nova dimensão, com destaque para a obra de Wilson Bueno, que se apropriará desse
imaginário europeu sobre a América de uma maneira crítico-inventiva.
3.2 Os animais do novo mundo. O novo mundo dos animais.
humanismo logocêntrico do Ocidente, questionando tambéKant, Levinas e Lacan, que como Heidegger,
afirmaram que o animal é privado de linguagem” (MACIEL, 2007, p. 201).
71
“A América, continente misterioso, de impenetrável floresta, apresentou imenso
campo ao delírio da imaginação europeia em matéria de seres monstruosos, habitantes de sua
selva” (TAUNAY, 1998, p. 255). Nesse breve relato, incluído em Monstros e monstrengos do
Brasil, A. d’Escragnolle-Taunay nos fornece elementos para pensar as imagens artísticas e
literárias concebidas entre os séculos XVI e XVIII. As viagens dos primeiros etnógrafos e,
sobretudo, seus relatos, são fundamentais para se compreender toda uma continuidade de
verdadeiros registros literários de animais fantásticos, agora em um novo contexto, como
estabelece Mary del Priore na introdução do livro:
Afinal, duzentos anos de fascinantes monstruosidades são visitadas por nosso autor,
permitindo-nos resgatar do fundo cultural luso-americano, entre os séculos XVI e
XVIII, as estruturas mentais segundo as quais se concebiam monstros e sua
diferença. O importante é, contudo, perceber que as imagens literárias por ele
recolhidas, além de sobreviver no interior de determinados sistemas de pensamento,
sempre resumiram as tendências de certas correntes de ideias, estabelecendo a
continuidade de uma tradição de mirabilias. (PRIORE apud TAUNAY, 1998, p. 21-
22)
Esse é um ponto interessante para tratar da escrita de Jorge Luis Borges e,
sobretudo, da de Wilson Bueno, pelo fato de estes se apropriarem de tradições europeias e
desenvolvê-las de maneira inusitada e criativa em suas respectivas literaturas, o que não
exclui desse gesto algo tão original quando político. Observamos que o imaginário presente
nos relatos de viajantes dos séculos XVI a XVIII, por exemplo, estava povoado de histórias
oriundas dos bestiários medievais. Assim, em um primeiro momento, foi verossímil para os
cronistas europeus associarem uma fauna do novo mundo nunca antes vista com os animais
fabulosos.
Em A memória das coisas, Maria Esther Maciel sugere a imagem do assombro de
tais viajantes que lidaram com uma fauna nunca antes vista:
De fato, se o que se faz convergir as imagens zoológicas do passado e do presente é
a tentativa de se representar a diferença como disformidade e deslocamento, a
atitude cultural diante de tal diferença é o que vai colocá-las em tensão. Sabe-se que,
da perspectiva renascentista dos cronistas europeus, a diferença inscreve-se na
ordem do assombro. (MACIEL, 2004, p. 53)
É sob o efeito de tal assombro, como se diante de uma fauna fantasma, que grande
parte dos registros foi composta, escrita e desenhada em pranchas. A tensão dos aventureiro-
viajantes está, portanto, documentada. Desses registros e documentos, A. d’Escragnolle-
72
Taunay, após um período intenso de pesquisa, escreveu o referido livro Monstros e
monstrengos do Brasil.
Na nota inicial desse livro encontra-se algo que talvez suscite o adjetivo
“borgiano”, pela maneira como o autor compõe o prólogo, mesmo que este se sintetize em
algumas linhas, pois Taunay fala da incompletude de seus estudos e faz um convite a
pesquisadores-escritores:
Muito incompleto se apresenta o nosso tentame; apenas exploramos os volumes
mais conhecidos da bibliografia brasileira. muito ainda em que aprofundar tal
assunto. O que fica feito servirá quiçá de incitamento a trabalhadores mais
persistentes desta mesma seara curiosa e pitoresca. (TAUNAY, 1998, p. 31)
A tarefa de catalogar animais reais e fantásticos parece ser infinita e, por mais
árduo que seja o esforço de quem está criando-catalogando tais animais, sempre estará se
compondo nada mais que um recorte. Talvez isso tenha atraído Jorge Luis Borges, pois tal
zoologia possivelmente seja apenas uma das múltiplas maneiras para se nomear o infinito.
Entretanto, essa escrita atravessa tempos é anacrônica e quando se situa nos relatos de
viajantes-etnográfos não vem sem um substrato próprio ao que os bestiários medievais
legaram ao mundo renascentista.
Ainda no livro A memória das coisas, Maria Esther Maciel sintetiza o que vai nos
fornecer diversos elementos para pensarmos os próprios bestiários latino-americanos:
Assim, pode-se dizer que os cronistas europeus do século XVI encontravam
subsídios fantásticos e princípios de organização para suas descrições da natureza
tropical nos próprios clássicos da zoologia ocidental, acrescidos de toda uma carga
supersticiosa que os textos medievais legaram para o imaginário renascentista. Daí
que, ao desembarcarem no continente latino-americano, trouxessem, além do
impulso aventureiro e da ambição da conquista, o medo e a expectativa fantasiosa de
encontrar monstros apavorantes que pudessem servir de evidências concretas para as
especulações medievais sobre as terras desconhecidas. Munidos deste referencial e
movidos por um interesse taxonômico próprio da episteme europeia da época foi
que cronistas como Pero Vaz de Caminha, Gandavo, Gabriel Soares, os jesuítas, os
viajantes alemães como Ulrico Schmidel e Hans Staden, o espanhol Cabeza de
Vaca, e o francês André Thevet, dentre muitos outros, dedicaram-se a descrições de
papagaios, cobras, tatus, gambás, tucanos, iguanas, macacos etc., complementando-
as com detalhes absurdos e nelas incluindo variantes fantásticas de tais animais.
(MACIEL, 2004, p. 51)
A partir da leitura desse excerto de Maria Esther Maciel, pode-se afirmar que
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno, em suas respectivas proporções, estenderam outros
espaços e linhas de força na literatura latino-americana em suas respectivas tradições entre
bestiários e jardins zoológicos. Ambos os escritores se apropriaram tanto da tradição dos
73
bestiários quanto da força inventiva dos relatos de viajantes, com suas zoologias reais e
imaginárias, e se aproveitaram, inclusive, do que Silviano Santiago, em “A ameaça do
lobisomem”, chamou de “a monstruosidade dos trópicos (e não das delícias tropicais)”
(SANTIAGO, 1991, p. 32). É com essa força monstruosa que Bueno elabora uma fauna
vibrante de um zoo que existe entre o espanto e a admiração.
As influências de tais relatos etnográficos de viajantes, perceptíveis nos livros de
Wilson Bueno, nos fazem pensar que diversos animais fantásticos, cuja existência era tida por
verdadeira apenas em relatos e bestiários, se fizeram reais nos confins da América e que nas
errantes passagens de viajantes com seus “interesses taxonômicos próprios da episteme
europeia”, o universo ficcional ficou ainda mais rico e peculiar. Para ressaltar esse aspecto,
nos valemos do Agôalumem, de Bueno:
Atestam os primeiros navegadores lusos a aparição, a oeste da rota atlântica das
Índias em águas raramente visitadas pelos próprios navegadores, por temerárias –,
de um monstro em todos os sentidos extraordinário: o Agôalumen, monstro marinho
e aéreo capaz de voar a consideráveis altitudes e retornar, intacto, ao fundo das
águas, assim que se precipite a noite do grande mar.
registros do Agôalumen, conhecido por argonautas genoveses como Aqualudus,
ou simplesmente como Aqua! (assim mesmo, de forma exclamada e interjetiva),
também no diário de bordo de aterrados marinheiros espanhóis que deram de frente
com ele ao se desgarrarem da flotinha em que viajavam, sobretudo ao fim do século
XV, época asssinalada pelo misticismo mais cru e pelo esoterismo mais desvairado.
(BUENO, 1999, p. 29-30)
A maneira com a qual Wilson Bueno escreve esse verbete não deixa de ser irônica
e divertida, pois o escritor realmente parodia a forma como os relatos de viajantes foram
escritos. Tomemos um exemplo: Jean de Léry, autor de Viagem à terra do Brasil, não era um
intelectual ou cientista que gozava de alguma reputação e sim um simples sapateiro e
estudioso da teologia, quando embarcou com outros artesãos para colaborar no processo de
colonização francesa. O livro citado, fruto de seu relato etnográfico, foi publicado
originalmente em 1577 (LÉRY, 1980, p. 15). A obra, por sua vez, é uma crítica às memórias
de André Thévet, intitulada Cosmografia, referente à sua viagem ao Brasil em 1556, ou seja,
antes da expedição do autor de Viagem à terra do Brasil. E tal como escreveu Léry (1980, p.
53): “Minha intenção e meu objetivo serão apenas contar o que pratiquei, vi, ouvi e observei,
quer no mar, na ida e na volta, quer entre os selvagens americanos com os quais convivi
durante mais ou menos um ano.”
Na introdução da edição brasileira de seu livro, assinada pelas iniciais R. B. de
M., existe uma análise que observa o seu trajeto de sucesso ao ser lançado, até se transformar
apenas em um documento:
74
Lido em seu tempo como livro de viagem e aventuras, de grande sucesso, traduzido
para o holandês, o alemão e latim (a língua universal de então) nosso calvinista
gozou de popularidade até o século XVIII. Outros viajantes, outras terras exóticas de
selvagens, e outras preocupações também vieram desviar a atenção dos amadores de
histórias e aventuras. Com os anos que passavam Léry perdia a atualidade e, de livro
para o grande público que era, foi, aos poucos, ficando documento para eruditos e
historiadores.
Esse trajeto de livro que atraiu um grande público a um documento de época é um
aspecto que, ao confrontá-lo com o Jardim zoológico, de Wilson Bueno, torna perceptível que
a realização da fauna do autor brasileiro está distante de qualquer tentativa de documentação
etnográfica, apesar de se nutrir também desse universo de Léry como procedimento literário.
Bueno faz o caminho inverso, usa a imaginação para operar a taxonomia e, dessa forma, borra
as cartografias e os mapas, reconfigura os lugares em que se situa esse novo mundo. Sob esse
prisma, a leitura de Maria Esther Maciel a respeito do autor trata dessa cartografia acidentada:
Ele [Bueno] parece nos dizer, à feição de Octavio Paz, que nós, latino-americanos,
somos e não somos Ocidente, visto que a ocidentalidade da América Latina não se
define senão pela via do paradoxo. Somos ocidentais pela força da geografia, das
cartografias, das caravelas e da modernização. Não o somos, porque nosso lugar na
história cultural do Ocidente inscreve-se nas margens e nos desvãos dessa mesma
história, está dentro e fora do mapa que nos circunscreve. (MACIEL, 2008a, p. 41)
A descoberta de terras longínquas, durante muito tempo, séculos atrás, tinha
como objetivo a chegada à Ásia e ao Oriente em geral. Lendo sob essa ótica a questão de uma
fauna insólita existente sob o sol do continente latino-americano e, em torno dessa cartografia,
precisamente em termos de localização, não seria incomum afirmar que, para diversos
viajantes-etnográfos, o continente da América talvez fosse mais um oriente a ser desbravado,
domado e conquistado.
Voltando a Jean de Léry, este afirmou que tomou a decisão de publicar seu
livro para desmascarar Thévet, pois este foi um refinado mentiroso e um imprudente
caluniador (LÉRY, 1980, p. 32). No entanto, Léry fará descrições de animais tão fantásticos
quanto Thévet, como no caso dos peixes-voadores, cuja imagem recorda o Agôalumen de
Bueno:
Desde então tivemos mar calmo e vento tão propício que fomos impelidos até três
ou quatro graus aquém da linha do Equinocial. Nessas paragens apanhamos muitos
golfinhos, dourados, albacores, bonitos e boa quantidade de outras espécies de
peixes, além de peixes voadores cuja existência sempre julgara ser peta de
marinheiros e que na realidade é certa. (...) E como acontecia frequentemente
baterem alguns nos mastros de nossos navios facilmente os apanhávamos nos
75
convés com as mãos. Este peixe conforme o que observei na ida e na volta é de
forma semelhante ao arenque, embora um pouco mais comprido e redondo; tem
pequenas barbatanas nas faces, asas imitantes às de um morcego, quase tão grandes
quanto o corpo, e é de muito bom paladar. (LÉRY, 1980, p. 67)
Existe uma diferença significativa entre o Agôalumen e os peixes-voadores, mas a
maneira de ambos se movimentarem, saindo do mar para o ar é semelhante. Tal fato pode ter
inspirado o próprio Wilson Bueno para a criação de seu animal fantástico. Outro fato é que o
modo “etnográfico” da escrita de ambos se articula de tal modo que o texto de Wilson Bueno
entre a paródia e a ironia atinge uma escrita que parece datar quase da mesma época. A
tripulação à qual pertencia Léry, pela descrição do viajante, não atestou a existência de um
peixe-voador como também saboreou tal animal como uma iguaria, devorando um animal
considerado anteriormente fantástico. Sob esse aspecto, a incorporação do animal fantástico
por parte da tripulação representa um “efeito de real” que relatos anteriores baseados na
descrição não tinham. Por isso, talvez, o caráter “etnográfico” de tais textos tenha uma grande
contribuição para o Jardim Zoológico de Bueno que, mesmo assim, segue um caminho
inverso, visto que em seus verbetes encontramos uma força de contato muito maior entre
humanos e animais fantásticos, onde os corpos, imbuídos de uma diferença que os constitui,
se tocam, têm relacionamentos sexuais, devoram uns aos outros, se chocam.
Sob o signo da água, diversos navegadores e viajantes-etnógrafos tiveram
iluminações, visões e delírios, dos quais se formou uma linha tênue entre o que era
documentado e estabelecido como verdade ou o que era pura fantasia, pois, na vida incerta
dessas descobertas, tudo estava entrelaçado, tudo podia acontecer:
Da existência de pessoas que se sustentavam de água, exclusivamente, ninguém
podia duvidar, à vista de tantas testemunhas corroborantes. Quem também se atrevia
a contestar uma legião de doutos quando todos concordes admitiam a existência de
homens e mulheres marinhos? (TAUNAY, 1998, p.189)
Assim, uma nova documentação endossava de outra maneira a autoridade de
grandes nomes das ciências naturais, como Plínio, o Velho, Eliano, Pausânias, entre outros;
documentação esta em que se insere, hoje, Viagem à terra do Brasil, de Jean de Léry. Wilson
Bueno, portanto, aproveita-se dessa documentação para inseri-la ficcionalmente em seu
verbete Agôalumem:
A crer nas crônicas lusitanas, não nem haverá como o Agôalumem, ao modo de
um impossível lagarto transmutado em dragão, animal transparente e da cor da água,
a exibir, triunfante, seja no fantástico voo ou no mergulho ao fundo, o seu esplendor
de água-viva, o cegante celofane de sua líquida textura e, dentro dele, no ventre do
76
Agôalumem, feito um milagre proverbial e de grande generosidade, borbulhas e
conchas, peixes e gerânios, hipocampos, imponentes arraias, o mistério de todo um
mar de sargaços. (...)
Um espetáculo que o cartógrafo lusitano Agamenão de Cunha deixou para sempre
grafado em toscos cadernos de desenho, hoje praticamente destruídos pelo tempo,
um dos tesouros da Biblioteca Nacional de Lisboa, e entre aqueles documentos
acessíveis após espessa e quase intransponível barreira burocrática. Os que
chegaram até eles, aos documentos, chegaram também à primeira anotação gráfica
do Agôalumem, ali onde se o monstro com dois pares de asas, exagerado em
continente e com o mar inteirinho dentro dele. (BUENO, 1999, p. 30-31)
O autor, à maneira de um viajante português, anota detalhadamente as
informações sobre os documentos que guardam uma imagem irrepresentável? do
Agôalumem. Um animal fantástico transparente que, quando saía do mar, transpunha os seus
segredos no ar, em seu corpo transparente. Desenhar um animal de corpo transparente, com o
mar e seus segredos em seu interior, equivaleria a desenhar, portanto, o mar no ar e dessa
forma no corpo de tal animal não se apagariam as fronteiras entre um e outro? Nesse trecho
do verbete citado, Wilson Bueno retrata um desenho que representa o Agôalumem, cujo
acesso a tal documento é como o próprio animal, praticamente impossível.
Além dos relatos de animais fantásticos assustadores, existia ainda certo
maravilhamento diante de outros, cuja existência duvidosa podia ser comprovada por tais
viajantes, e sob esse aspecto, o Agôalumen pode se situar entre o estupor e a admiração, como
podemos constatar em outro fragmento do mesmo verbete de Bueno:
O terror de tê-lo visto de frente é que, maravilhados, e amolecidos, os marinheiros
costumavam não experimentar de novo o grande mar, tocados de uma angústia que
os alienistas da época diziam ser a vertigem de quem tivesse visto, a pleno sol, um
monstro de água e melancolia. Homens rudes, passavam a temer a mais inocente
lagartixa, o que constituía suprema desonra muita vez punida com a morte.
relatos de que nas noites pesadelares, noites hoje velhas de mais de cinco séculos, os
navegadores, a sonhar alto, deliravam, chamando, incessantes, de seus catres, o
Agôalumen, de “maravilha” “Ó maravilha”, “Ó maravilha”, “Ó maravilha”...
(BUENO, 1999, p. 32)
O delírio dos navegantes tratados por Wilson Bueno, “Ó maravilha”, “Ó
maravilha”, “Ó maravilha...”, sugere uma determinada atração existente no mundo antigo e no
mundo medieval pelas terras ainda inexploradas (ECO, 2007, p. 116). Armelle Le Bras-
Chopard (2000, p. 171, tradução nossa) anota essa característica referente a “bestas
selvagens”: “As representações de animais selvagens vão especular outras áreas: a admiração
ou o medo...” Como se o temor diante do desconhecido tentasse revelar um segredo da
natureza, mas que ele permaneceria – e permanece – ainda como enigma.
77
Assim as pessoas, entre medo e admiração, conviviam com uma fauna heteróclita,
legado das descrições e documentos mais longínquos. O fascínio, porém, chegava a exercer
e a nutrir um poder sobre as narrativas que circunscreviam tais animais. Como afirma
Umberto Eco (2007, p. 116), existia ainda “a tensão atônita com que os leitores daqueles
livros (os bestiários) fantasiavam todas aquelas maravilhas”. Os monstros nem sempre eram
ameaçadores e assim exerciam fascínio:
Embora certamente não fossem considerados exemplos de beleza, nem todos estes
monstros eram percebidos como perigosos. Sem dúvida eram temíveis o Basilisco,
de hálito envenenado, a Quimera de cabeça de leão e corpo metade dragão, metade
cabra, a besta leucrococa (de corpo de asno, traseiro de cervo, coxas de leão, pés de
cavalo, um chifre bifurcado, boca talhada até as orelhas da qual saía uma voz quase
humana e um único osso no lugar dos dentes) ou a Mantícora (com três fileiras de
dentes, corpo de leão, rabo de escorpião, olhos azuis, carnação cor de sangue, silvo
de serpente). (ECO, 2007, p. 116)
É partindo desses outros corpos que as reflexões de Michel de Montaigne, no
ensaio “Apologia de Raimond Sebond”, ressaltam essa diferença entre seres monstruosos e
híbridos com os seres humanos, reflexão essa que o faz pensar nos possíveis erros da
descrição da própria espécie humana:
A acreditar-se em Plínio e Heródoto, existem, em certas regiões, homens que quase
não se assemelham a nós. Em outras participam, pela sua conformação bastarda, do
ser humano e do animal. Haveria regiões onde os homens nascem sem cabeça, com
os olhos e a boca no peito; outras onde cada indivíduo reúne em si ambos os sexos;
outras onde os homens andam de quatro; outras onde têm um olho na testa e cuja
cabeça se assemelha à do cão; outras onde a parte inferior dos seres que vivem
dentro d’água se parece com a de um peixe; outras onde os homens têm a cabeça tão
dura e a pele da fronte tão resistente que o ferro não fere; outras onde eles não tem
barba; outras onde o fogo é desconhecido; e ainda regiões onde o esperma do
indivíduo é preto; e, outras mais, onde o homem se transforma naturalmente em lobo
ou em mula e volta a ser homem. Se tais asserções são exatas e se, como diz
Plutarco, em alguns lugares da Índia homens sem boca que se alimentam
respirando certos perfumes, quantos erros se deparariam em nossas descrições da
espécie humana? (MONTAIGNE, 1962, p. 247)
Seria a partir das contribuições de uma linha taxonômica e de uma episteme
europeia que o homem se instituiu como uma instância que encerra o seu poder e sua clara
separação das demais espécies, inclusive dos seres híbridos, cujos corpos, de alguma maneira,
portam uma semelhança com esse homem e ainda assim são classificados em alguma
subespécie, para a indignação de Michel de Montaigne? Da lista de seres que derivam de
Umberto Eco e de Michel de Montaigne, poderíamos imaginar e incluir o Agôalumem e
outros seres contidos das narrativas de Wilson Bueno, onde o autor de Jardim zoológico não
78
busca uma totalidade de catalogação e, nesse mundo, onde a convivência do homem com
esses seres é “natural”, o homem também não é um ser superior que se institui como tal e
domina o Outro (ou o confina) dentro de um jardim zoológico.
3.3 As armadilhas do zoológico
Visitar o jardim zoológico é um programa propício para toda a família. É ali que
os pais explicam aos filhos particularidades sobre cada animal e onde todos aprendem juntos
sobre a fauna (e a flora) por intermédio de placas que contêm o nome do animal e informam
resumidamente sobre a região habitada por outros da mesma espécie. O nome do animal é
duplo, popular e científico grafado em latim, para manter o antigo sistema de classificação
do qual todos são tributários – e ainda pode haver alguma outra particularidade de sua vida, da
espécie que ele ali representa. O contato é feito com toda segurança, pois existem jaulas,
grades de ferro ou um grande fosso que mantém a distância e mantém a salvo um domingo,
um feriado ou uma efeméride que possibilite o encontro e o lazer da família. Frente a esse
quadro, pouco se tem a argumentar em relação a uma atividade instrutiva e corriqueira da
família. Pouco?
A jaula, as grades de ferro ou um grande fosso mantêm a distância entre os seres
humanos e os animais. Distância essa eliminada no Jardim zoológico de Wilson Bueno, assim
como toda a possibilidade de um passeio edificante e instrutivo para quem nele adentra.
Mesmo com a ausência de jaulas, o fosso que separa o homem do outro, o animal, é visível, e
Bueno, nesse limbo, cria animais que não caberiam em nenhum espaço físico de um jardim
zoológico, muito menos em uma fábula de Esopo ou La Fontaine, pois mesmo que Bueno os
cite, seu procedimento mais parodia e ironiza uma fábula do que repete suas lições e avisos à
humanidade. É com um gesto de esvaziamento da fábula e desses espaços e práticas
institucionais do zoológico que o olhar contemporâneo de Bueno rompe as jaulas e as grades,
como podemos ler nas observações de Maria Esther Maciel:
o olhar contemporâneo de artistas e escritores latino-americanos, que retoma as
imagens zoológicas que se criaram em torno de nosso continente, vem esvaziar a
diferença de seu caráter exótico, assumindo-a como traço constitutivo de uma
identidade disforme, heteróclita, paradoxal. (MACIEL, 2004, p. 54)
79
O autor, portanto, esvazia de exotismo relatos de viajantes, alucinados com a
diferença e, ao mesmo tempo, torna insólita e heteróclita a homogeneização do jardim
zoológico como um espaço de confinamento do outro, o animal. Como desdobramento desse
aspecto, Maria Esther Maciel, em O animal escrito, ao lançar um olhar sobre a zoologia
contemporânea, depara-se com os “bestiários” de Wilson Bueno:
no caso dos bestiários do paranaense Wilson Bueno, especialmente no livro
Jardim Zoológico (1999), o caráter fantástico é mais ostensivo, uma vez que seus
bichos são um compósito de elementos mitológicos, lendas indígenas, referências
culturais brasileiras e hispano-americanas. Híbridos, fronteiriços, os bichos de
Bueno são marcados pelos cruzamentos transnacionais advindos do contato entre os
países do continente sul-americano. (MACIEL, 2008a, p. 34)
É dentro dessa perspectiva que a “fauna inclassificável” de Wilson Bueno opera,
de maneira anacrônica mesmo inscrevendo-se em uma “ordem da atopia”, como afirmou
Maria Esther Maciel, ao encontrar seu espaço institucional de existência no termo jardim
zoológico (MACIEL, 2008a, p. 35) –, vide o próprio título do livro que se desmontará por si
mesmo, no decorrer da leitura. Essa “ordem da atopianão deixa de incluir também a ordem
da heterotopia, à qual se referiu Michel Foucault, e o próprio “não-lugar” que a linguagem
instaura para cada um dos animais do Jardim zoológico. Assim, essa questão também nos faz
pensar esses limites da classificação, agora sob o prisma da organização tão própria ao
zoológico como espaço institucional. Afinal, como Wilson Bueno organiza o seu insólito
zoológico? Antes de qualquer tentativa de responder a essa pergunta, é preciso pensar esses
limiares da representação, sobretudo pelo que Michel Foucault escreveu sobre “a organização
dos seres” em As palavras e as coisas:
A partir de Jussieu, de Lamarck e de Vicq d’Azyr, o caráter, ou antes, a
transformação da estrutura em caráter vai basear-se num princípio interno,
irredutível ao jogo recíproco das representações. Esse princípio (ao qual
corresponde, na ordem da economia, o trabalho) é a organização. (FOUCAULT,
2007, p. 311)
Dessa organização comentada por Foucault o caráter classificatório opera uma
mudança fundamental com os textos aqui analisados pois, se antes a linguagem se constituiu
como a nomeação do visível, segundo o filósofo francês agora, para ter uma organização, uma
hierarquia entre seres, ela será ordenada por características invisíveis. Assim, os textos com os
quais estamos lidando Manual de zoología fantástica, de Jorge Luis Borges e Jardim
zoológico, de Wilson Bueno – não passam por tal critério taxonômico, inclusive porque existe
um verdadeiro jogo entre as estruturas visíveis dos animais, citações de outros autores e
80
registros de outras épocas que se “organizam” uma vez que, enquanto verbetes, eles se
estruturam de um outro modo, pelo viés da montagem. Sobre o primeiro princípio de
organização aqui citado, Foucault mais uma vez argumenta: “Vê-se que o caráter não é
diretamente extraído da estrutura visível e sem outro critério senão sua presença ou ausência;
funda-se na existência de funções essenciais ao ser vivo e nas relações de importância que
não procedem apenas da descrição” (FOUCAULT, 2007, p. 312).
A descrição de animais fantásticos é um elemento muito importante. É, na
verdade, toda a base, desde Aristóteles, passando por Plínio, o Velho, passando pelos
bestiários medievais e relatos de viajantes até a produção literária mais contemporânea, como
a de Wilson Bueno. Então, é aqui que a diferença de Borges e de Bueno entre tais livros se
constitui radicalmente, pois, com a afirmação da ciência moderna, os fundamentos que uniam
história natural e linguagem, agora se distanciam da perspectiva de reduzir uma distância,
“para conduzir a linguagem o mais próximo possível do olhar e, as coisas olhadas, o mais
próximo possível das palavras” (FOUCAULT, 2007, p. 181) e, agora diferem sob a ótica da
necessidade de organizar os seres, para, assim, classificá-los. No que diz respeito à
classificação dos seres, a linguagem retornará a operar a partir do invisível:
Classificar, portanto, não será mais referir o visível a si mesmo, encarregando um de
seus elementos de representar os outros; será, num movimento que faz revolver a
análise, reportar o visível ao invisível, como à sua razão profunda, depois de alçar de
novo dessa secreta arquitetura em direção aos seus sinais manifestos, que não dados
à superfície dos corpos. (FOUCAULT, 2007, p. 315)
Animais como o peixe-voador, descrito por Jean de Léry, ou o Agôalumen,
descrito por Wilson Bueno, não portam um traço de invisibilidade necessário para a ciência
como se reproduz a estrutura interna do seu corpo, etc. –, evidenciando, assim, o seu caráter.
Consequentemente, o que mais esses animais fantásticos marcam é a constituição de seu
corpo exterior, como observou Susana Scramin ao mostrar que Bueno parece se aproveitar
desse desenvolvimento taxonômico da ciência para compor inadequados seres inautênticos:
“Mesmo inadequados, mesmo inautênticos, as plantas, os animais, os artefatos culturais e
seres humanos emprestam seus fragmentos para a composição da montagem de mais um ser
inautêntico” (SCRAMIN, 2007, p. 137). Cabe então a pergunta para marcar uma diferença das
escritas de Wilson Bueno e Jorge Luis Borges sob o critério da classificação científica: a
escrita compõe, portanto, seres inautênticos frente à taxonomia da ciência que procura
autenticar espécies e seres para assim ordená-los de acordo com seus critérios de
classificação?
81
Por isso, como também argumentou Maria Esther Maciel, o Jardim zoológico de
Wilson Bueno se insere na ordem da atopia, do não-lugar da linguagem sem excluir aí uma
heterotopia –, onde o que é visível assume uma importância para a montagem do livro, tal
como afirmou Scramin:
Os fragmentos dos animais que compõe o jardim não são passíveis de uma
classificação científica, tornando ainda mais complicado pensar no jardim zoológico
moderno, cujo princípio organizador é a catalogação em espécies, subespécies,
famílias etc. O procedimento de composição desses seres imaginários é o da
montagem. (SCRAMIN, 2007, p. 136)
O Jardim zoológico de Bueno situa-se, portanto, entre um bestiário e um jardim
zoológico. Seus verbetes atingem descrições que ultrapassam a acepção de um bestiário, por
conter certa etnografia (real, imaginária?), ao mesmo tempo em que o seu princípio
organizador – o da montagem – difere dos critérios de organização do zoológico, baseado em
princípios da ciência moderna, conforme descrito anteriormente por Michel Foucault. Os
animais de Wilson Bueno, como descrito em alguns verbetes, situam-se entre a existência e a
inexistência, como no caso dos guapés:
O que comove nos guapés é o tamanho: micro-cães menores do que um
camundongo doméstico, são em tudo idênticos aos jaguaras que povoam as malocas
de pulga e uivo.
Intensos, mínimos, replicantes, latem muito, principalmente quando em fuga, um
latido agudo e aflitivo feito agulhas a crivarem vosso tímpano.
Quem nos ciência dos guapés são os índios kaxuianas, do Alto Amazonas,
descrevendo-os como pequenos monstros traiçoeiros capazes de penetrar a vagina
das mulheres grávidas, se dormem desprevenidas, e então motivando um desastre
de consequências imprevisíveis sobretudo com a furiosa devoração do feto baixo
esganiçadas mordidas.
Segundo alguns sertanistas, não há, contudo, espetáculo mais desconcertante do que
flagrar, no oco de velhas árvores ou em buracos cavados próximo à barranca dos
rios, uma ninhada de guapés jovens os microscópicos filhotes agitando os
rabinhos, enroscando-se e mordendo-se uns aos outros ou disputando, das cadelas,
as tetículas inverossímeis.
Ao pressentirem movimentação estranha, ganem e uivam, em fuga, desaparecendo
sob o mato rasteiro, como se nunca, em tempo algum, houvessem existido.
(BUENO, 1999, p. 15-16)
De imediato é possível lembrar o micro-cão Brinks da narrativa Mar Paraguayo
seria ele um guapé domesticado?, um micro-cão de estimação da marafona do balneário? Ou
pode-se argumentar que Wilson Bueno segue um caminho inverso ao do homem tal como
argumentou Michel de Montaigne (1962, p. 251): “Como o homem é insensato! Incapaz de
forjar o mais microscópico animal, faz deuses às dúzias!”. Os animais ínfimos são mais
difíceis de serem criados do que deuses porque o homem, insistindo no princípio de
82
Montaigne, prefere criar o que está além de si para se equiparar a ter que se “reduzir” a seres
de menor importância à sua existência. Eis um limite no qual o homem está inserido, entre
duas invisibilidades: a primeira de grandes deuses e a segunda de animais microscópicos.
Inclusive porque parece que não há espaço em um jardim zoológico para animais de tal porte,
sendo esse, assim, um encontro impossível.
Nesse aspecto, as reflexões de John Berger tratam dessas impossibilidades de
encontro do homem com os animais qualquer que seja o seu tamanho dentro de um
zoológico, ainda no momento do surgimento deste:
Os zoos públicos apareceram no início do período que assistiria o desaparecimento
dos animais da vida cotidiana. Esses zoos, aonde vão as pessoas para se encontrar
com os animais, para observá-los, para vê-los, são, na realidade, monumentos à
impossibilidade de tais encontros. Os zoos modernos constituem o epitáfio a uma
relação que era tão antiga como o homem. Frequentemente isso não é visto desta
perspectiva porque ninguém se questiona adequadamente sua existência. (BERGER,
1987, p.23, tradução nossa)
Com o título Jardim zoológico Bueno parece questionar a existência de tal lugar,
dispondo também a dúvida sobre a existência dos diversos seres que, nesse sentido, estão
contidos. John Berger expõe que os zoológicos surgem justamente no período em que os
animais estavam desaparecendo da vida cotidiana do homem (seja com a crise do animal-
máquina ou com a crise do espaço rural), e quando surgem, os zoos tentam se afirmar como
possibilidade de encontro do homem com o animal ou, ampliando a hipótese, do homem com
a natureza selvagem mas que esse encontro, quando muito realiza, é o encontro do homem
com a domesticada natureza selvagem. Ainda segundo Berger (1987, p. 23, tradução nossa):
“No momento de sua fundação, o zoo de Londres, em 1828, o Jardin de Plantes, em 1793, o
zoo de Berlim, em 1844, aportaram um prestígio considerável a estas capitais.” O Novo
Mundo, nesses séculos, ainda se inscrevia na ordem do exótico, do diferente e do assombroso.
É possível perceber que o que conhecemos como o formato moderno de jardim zoológico
traz, desde a Antiguidade, “estruturas” de utilização dos animais para a constituição de um
saber. E arriscamos afirmar que o zoológico desempenha o papel de uma exegese
contemporânea fabular sobre os animais ali expostos para situar o homem em si mesmo.
Daí, dentro do zoológico, isolados de seus ambientes e tendo apenas um breve
recorte do habitat entre jaulas, os animais perdem a naturalidade de seus instintos mais
básicos de sobrevivência, pois dependem de um criador para se alimentarem e com ele
constroem uma relação de dependência. O estado de pleno confinamento em que esses
animais estão altera seu comportamento e sua movimentação: geralmente as pessoas se
83
perguntam, em frente a algumas jaulas, no ensolarado domingo familiar, quando os animais
praticamente não se movem – “ele está morto?” “por que ele não se mexe?”
No Jardim zoológico de Wilson Bueno acontece justamente o contrário. Os
animais estão soltos, dançam, atacam, se matam, são abatidos, se chocam contra outras
superfícies, vigiam o sono de outros seres, vibram na ausência de luz, são invisíveis, efêmeros
ou quase não existem. Estão vivos em plena escrita e, sob esse aspecto, podemos dizer que
estão mais vivos do que várias espécies de animais da “zoologia de Deus”, para utilizar um
termo borgiano, contidas em um zoológico.
A grande maioria desses animais do zoológico de Bueno pertence a uma fauna
sul-americana. Parece que, com um posicionamento crítico diante de relatos de viajantes entre
os séculos XVI e XVIII, o escritor parece perguntar: “então é uma fauna insólita que vocês
querem?” E pela escrita radicaliza todos esses relatos, cria, inventa ou reelabora fatos que
durante séculos foram verossímeis no Velho Mundo, através de livros que eram um
verdadeiro sucesso entre a população europeia, desejosa de conhecer as barbaridades do novo
mundo. É aqui que o caráter fantástico e híbrido dos animais de Wilson Bueno possui uma
força política, pois sua escrita atinge dois elementos fundamentais e míticos do Velho Mundo:
“unidade” e “pureza”.
19
Do Mar paraguayo aos “bestiários”, os livros de Wilson Bueno
tocam o ponto que tanto assombrou os viajantes-etnógrafos, escritores, filósofos, pensadores e
diversas pessoas do continente europeu: o “Outro”, o “diferente”, também tocado por Jorge
Luis Borges através do Baldanders. Por mais que existisse uma série de bestiários e criaturas
híbridas no continente europeu, seus registros estavam em uma zona da fronteira, da distância.
Isso ocorre desde Aristóteles, que escreveu boa parte do seu tratado zoológico baseado nos
relatos dos sábios que acompanharam Alexandre, o Grande, na sua expedição à Ásia, fato
registrado por Plínio, o Velho:
O rei Alexandre-o-Grande, desejoso de conhecer a história natural dos animais,
confiou a realização deste estudo ao homem mais conhecedor nas diversas ciências,
Aristóteles. Pôs então sob sua orientação, por toda a Ásia e Grécia, vários milhares
de homens que viviam da caça, da criação de aves, da pesca, ou que mantinham
viveiros, rebanhos, colmeias, tanques, aviários, de modo a que nenhuma espécie
escapasse ao conhecimento. Depois de interrogar esses indivíduos, Aristóteles
escreveu cerca de cinquenta volumes sobre os animais. (SOUZA E SILVA apud
ARISTÓTELES, 2006, p. 14)
19
Silviano Santiago anota essa questão em “O entre-lugar do discurso latino-americano”: “A maior contribuição
da América Latina para a cultura ocidental vem da destruição sistemática dos conceitos de unidade e de pureza:
estes dois conceitos perdem o contorno exato de seu significado, perdem seu peso esmagador, seu sinal de
superioridade cultural, à medida que o trabalho de contaminação dos latino-americanos se afirma, se mostra mais
e mais eficaz” (SANTIAGO, 2000, p. 16).
84
De fato, o problema político do lugar de onde se fala e de onde se detém o
conhecimento não é novo. A tentativa de esgotar um conhecimento, como enfrentou
Aristóteles no gesto de catalogar todas as espécies de animais do mundo, é irrealizável porque
é ilusório chegar a uma totalidade do universo. Sob esse aspecto, as invenções zoológicas de
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno criticam justamente esse tipo de procedimento, dispondo
em pequenos livros um universo que não atingirá tal totalidade. É por isso que, na América
Latina, esse ato exaustivo de catalogar é paródico, com uma predominância do elemento
híbrido. Silviano Santiago, em “O entre-lugar do discurso-latino americano”, se vale
justamente desse caráter híbrido para argumentar sobre essa alteração de “unidade” e
“pureza”, citada anteriormente:
No novo e infatigável movimento de oposição de mancha racial, de sabotagem dos
valores culturais e sociais impostos pelos conquistadores –, uma transformação
maior se opera na superfície, mas que afeta definitivamente a correção dos dois
sistemas principais que contribuíram para a propagação da cultura ocidental entre
nós: o código linguístico e o código religioso. Esses códigos perdem seu estatuto de
pureza e pouco a pouco se deixam enriquecer por novas aquisições, por miúdas
metamorfoses, por estranhas corrupções, que transformam a integridade do Livro
Santo e do Dicionário e da Gramática europeus. O elemento híbrido reina.
(SANTIAGO, 2000, p. 15-16)
Com a dissolução de conceitos como os de “unidade” e de “pureza”, alteram-se
dois gestos tais como “falar” e “escrever” pois, ainda na leitura de Silviano Santiago (2000, p.
17), “falar, escrever, significa: falar contra, escrever contra.” Prova de tal hibridismo são as
yararás,
20
um dos animais do zoológico latino-americano de Wilson Bueno:
Bichos encontrados na banda oriental do Paraguai, as yararás são exclusivamente
femininas. A rigor, constituem exemplares perfeitos de réptil hermafrodita, mas
como para os índios inexistia esta mediação e tão o limitado império dos dois
sexos as yararás serão sempre as yararás fêmeas, femínias, serpentes
emplumadas, os olhos de moça e o recurvo par de presas que apunhala os
apaixonados.
Zoólotras chilenos que pesquisaram o mito na aldeia de Soledad, encontraram
história de homens que engravidaram a yarará, acrescentando ter dela nascido,
algum tempo depois, uma espécie feroz de cobra curta e grossa, a qual, por cega,
atira-se, odiosa, em qualquer direção. Parecida com um cão em fúria. (...)
O sexo das yararás é uma fenda oblíquoa ao meio de seu coleante corpo de jiboia.
Ali os homens jovens são felizes. (...)
As yararás enternecem o coração dos índios adolescentes que as chamam, nas siestas
calcinadas, em plena mudança de voz, as chamam, os duros mamilos intumescidos e
o abrasado calor à altura da pélvis, yararámichimíra’ytotekemi, de um modo ritmado
e contínuo, yararámichimíra’ytotekemi, até a síncope, yararámichimíra’ytotekemi, a
síncope com que pela quinta vez decaem do paraíso. (BUENO, 1999, p. 51-52)
20
Yarará não é um termo criado por Wilson Bueno, trata-se de uma espécie de cobra que prevalece na América
do Sul.
85
A própria “língua” se movimenta sem pureza e unidade e, com muita
sensualidade, é português, tupi, com alguma influência do espanhol da fronteira, trazendo
ainda certa dicção do Mar Paraguayo. O corpo aqui também está destituído de pureza e
unidade que, tal como entre os seres humanos, está no modo sexuado de reprodução, pois o
verbete acompanha o próprio movimento sexual ritmado e contínuo que atinge uma
síncope após repetir musicalmente um refrão tupi. Nesse verbete, Wilson Bueno põe em
questão a forma humana por meio de um acasalamento diferente. De dois seres diferentes,
nasce um terceiro
21
– o que impossibilita qualquer organização ou catalogação de cunho
natural-científico –, e o que existe, na verdade, é uma fusão entre homem e animal da qual a
preponderância não é da ordem racional, própria do homem. A respeito especificamente desse
verbete, Susana Scramin comenta os traços de tais justaposições:
Encontram-se, dessa maneira, justapostas as lendas da Cobra-grande da Amazônia,
da cobra emplumada do leste do Paraguai, território de confinamento não somente
de culturas, mas de confinamento geopolítico, portanto, confinamento de
“entidades”, e a sua versão chilena que oferece atributos à sua descendência
monstruosamente anômala em si mesma de um cão em fúria que reage mais por
vingança contra o destino que os homens impuseram à sua mãe e a sua
descendência. (SCRAMIN, 2007, p. 134)
Notadamente, os livros Jardim zoológico e Manual de zoofilia possuem, sob o
aspecto político, uma força. Primeiro, pelo fato do escritor criar animais de corpos complexos,
híbridos, que põem em dúvida sua “unidade”. Em seguida, pelo fato de existir uma
pluralidade linguística, inscrevendo tais animais nas “contaminações” entre dialetos
ameríndios, o tupi e o portunhol da fronteira, destituindo a língua portuguesa de toda sua
“pureza”. Nesse aspecto, Wilson Bueno mais uma vez se aproxima de Jorge Luis Borges,
quando o autor argentino adota em diversos pontos de sua obra o criollismo da baixa cultura
Argentina.
22
Sob tal proximidade, em relação à própria tradição na América Latina, Bueno por
sua vez incorpora Borges em um de seus verbetes, os nácares:
21
A recorrência a um terceiro ser, nascido do ato sexual de dois seres distintos, é algo que marca bem a diferença
entre as obras de Wilson Bueno e Jorge Luis Borges. Enquanto Borges pesquisa e cataloga seus animais na
literatura universal, Bueno cruza os seres, mesmo que catalogados e cria um terceiro animal, diferente dos dois
que anteriormente lhe deram origem.
22
Como anotou Beatriz Sarlo sobre essa questão do lugar, que muito bem pode dialogar com as considerações de
Silviano Santiago: “Essa é a liberdade dos latino-americanos (assim Borges poderia ter respondido), construída
sobre a consciência de uma falta. Ler toda a literatura do mundo em Buenos Aires e reescrever alguns desses
textos é uma experiência incomparável à do escritor que trabalha no território seguro de uma pátria que lhe
oferece uma tradição cultural menos problemática” (SARLO, 2008, p. 70).
86
Estes pequeninos monstros vibram em exclusivo na ausência de luz.
Inteiramente nacarados, são do tamanho de um punho fechado de homem e agitam-
se, na sombra, estrepitosos e muito leves.
registros que dão os nácares, de par em par, saltitantes e inverossímeis,
pululando os cantos das casas senhoriais ou dos velhos apartamentos.
O escritor Jorge Luis Borges, zoólotra profissional, confidencia que, inteiramente
cego, certo entardecer em Maipú, chegou a ver nitidamente um casal de nácar entre
o pé de uma mesa e a base de uma poltrona.
Mexiam-se, invisíveis aos olhos cheios de luz dos que enxergavam e, segundo
Borges, nunca jamais poderiam supor que os testemunhassem em sua ingenuidade
escondida, os olhos leitosos de um poeta cego, às quinze para as seis de um
demorado crepúsculo em Buenos Aires. (BUENO, 1999, p.27-28)
Aqui, diversos elementos se encontram. Borges é, na acepção de O livro dos seres
imaginários, um ser imaginário. Jorge Luis Borges e Wilson Bueno se encontram, hoje, em
um único lugar possível, o não-lugar da linguagem, da escrita. Os nácares são animais que
praticamente podem ser avistados na ausência de luz, por uma vibração. Aqui, além de
relatar o fato biográfico da cegueira do autor argentino, Wilson Bueno vai além, dá o golpe na
cultura retiniana, onde a visão ocupa o centro dos sentidos. O crítico argentino Nicolás Rosa
sutilmente aponta um fio que pode conduzir a uma leitura dos animais de Borges e Bueno:
A sequência evolução, seleção, desenvolvimento orgânico, está prefixada nos
antigos viajantes que construíam suas narrações tanto científicas quanto literárias e
o ser ambidestro era uma antecipação epistêmica da literatura chamada fantástica, de
entes incongruentes, heteróclitos e quem sabe, heterotópicos, pois é ali de onde se
podem ler os sistemas imaginários da época que presidem tanto a ciência quanto a
escritura “ouvidas” (Heródoto) e não “vista” (de visu), próprio dos séculos futuros.
A mudança da audição à visão modificou todas as ciências da época, as exigências
da realidade as colocou a prova. (ROSA, 2006, p. 191, tradução nossa)
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno compartilham de uma linha tênue entre o
ouvido e o visto. Aqui, os nácares trazem esta condição de todos os animais dos livros
estudados, cujos seres podem ser visíveis por uma invisibilidade própria da linguagem
literária. Por mais que sejam ilustrados, retratados, é no texto que tais animais encontram a
plena realização de seu ser, no “inverossímil”, termo comumente utilizado por Bueno, plenos
de saberes e plenos de afetos.
Então, dentro dessa leitura, perguntamos em que medida essas escritas comportam
saberes e afetos, pois não se trata apenas de organizar os saberes no enciclopedismo de Jorge
Luis Borges e os afetos na zoofilia de Wilson Bueno. A questão proposta é a seguinte: em que
ponto saber e afeto se entrelaçam no Manual de zoología fantástica, de Borges e no Jardim
zoológico, de Bueno, de tal forma que seria impossível delimitar onde começa um e onde
termina outro? É por esse caminho, então, que vamos seguir no próximo capítulo.
87
4 SABER E AFETO: A ZOOLOGIA DE BORGES E BUENO
Entrecruzar as zoologias de dois escritores situados na América Latina. Esse é um
desafio que também será um exercício para, neste ato de aproximação, compreender suas
diferenças. É assim que nos propomos a trilhar, no final desta pesquisa, as zoologias de Jorge
Luis Borges e Wilson Bueno: nos limites do saber e do afeto.
4.1 Os saberes e afetos de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
Uma primeira leitura oriunda da relação entre os saberes e afetos nas escritas de
Jorge Luis Borges e Wilson Bueno poderia “organizar” os autores no seguinte horizonte de
expectativa: os saberes de Jorge Luis Borges naturalmente se inscreveriam no seu gesto
escritural enciclopédico, enquanto os afetos de Wilson Bueno, por sua vez, apareceriam a
partir de um “devir” contido no movimento contínuo de suas “zoofilias”. Entretanto, ao
organizar a questão dessa forma, direcionaríamos uma série de discussões para um
fechamento previsto para essa leitura crítica, justamente porque seria até tautológico
relacionar o saber a Borges e o afeto a Bueno. O desafio, portanto, é entrelaçar saber e afeto
na escrita de ambos, sobretudo para tentar inscrever um traço da diferença entre suas
literaturas, já que existe um afetivo gesto de catalogar que aqui os une.
No caso do escritor brasileiro, de modo mais imediato, pode-se dizer que há, ainda
em uma primeira leitura, de sua parte, uma relação mais intrínseca com o mundo zoológico,
como se ele escrevesse sob a pele do animal, exercitando justamente o que Gilles Deleuze e
Félix Guattari chamaram de “devir-animal”,
23
ou seja, uma relação entre humano e inumano
que não se define pela correspondência e muito menos pelos princípios de semelhança,
imitação ou identificação (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 18), mas um “devir” que se
23
Sobre o “devir-animal” convém ressaltar a desconfiança de Jean Baudrillard, em Simulacres et simulation , no
que diz respeito à argumentação crítica dos filósofos em torno do que eles pensam em termos de uma
“desterritorizalização”. Assim prossegue Baudrillard sobre esse aspecto: “Eles tem servido, por sua vez, de
metáfora pelas virtudes e pelos vícios, de modelo energético e ecológico, de modelo mecânico e formal na
biônica, de registro fantasmático pelo inconsciente e, por último, de modelo de desterritorialização absoluta do
desejo no ‘devir-animal’ de Deleuze (paradoxal: utilizar o animal como modelo de desterritorialização porque
ele é por excelência o ser do território)” (BAUDRILLARD, 1981, p. 201, tradução nossa).
88
instaura pela ordem da aliança e do pacto. Segundo os filósofos, esse devir não faz parte
simplesmente de uma identificação com um animal:
O devir-animal do homem é real, sem que seja real o animal que ele se torna; e,
simultaneamente, o devir-outro do animal é real sem que esse outro seja real (...) O
devir nada produz por filiação; toda filiação seria imaginária. O devir é sempre de
uma ordem outra que a da filiação. Ele é da ordem da aliança. (DELEUZE e
GUATTARI, 2007, p. 18-19)
Aqui existe um aspecto delicado, mesmo que integre o plano da “relação” criado
pela linguagem. E, talvez, a melhor leitura para essa quebra de uma ordem da filiação
encontrada no “devir-animal” e pensada no plano da literatura, em Jorge Luis Borges e
Wilson Bueno, se encontre no livro Outras inquisições, de Jorge Luis Borges, na narrativa
“Kafka e seus precursores”:
No vocábulo crítico, a palavra precursor é indispensável, mas se deveria tentar
purificá-la de toda conotação de polêmica ou de rivalidade. O fato é que cada
escritor cria seus precursores. Seu trabalho modifica nossa concepção do passado,
como de modificar o futuro. Nessa correlação, não importa a identidade ou a
pluralidade dos homens. (BORGES, 1999b, p. 98)
Nesse aspecto, Borges abandona a filiação, estabelece relações ou “correlações”
na ordem da aliança, do pacto, que o escritor traça em sua obra afinal, “não importa a
identidade ou a pluralidade dos homens” e, mais uma vez, em Borges encontramos
elementos para uma operação crítica que, ao ser confrontada com o pensamento de Deleuze e
Guattari, condensa as questões abordadas pelos filósofos dentro do universo da ficção. Assim,
partindo desse “devir-animal” – mas não somente se pautando nele – é que vamos pensar essa
relação na ordem da aliança que, da mesma forma, Wilson Bueno estabelece com a obra de
Borges. Para percorrer esses saberes e afetos, Bueno, como leitor, trava um pacto com Borges
e, quebrando até mesmo uma relação genealógica, suas zoologias podem ser consideradas no
Brasil precursoras das zoologias borgianas, pois através de suas leituras se torna possível
acessar com mais atenção as zoologias de Borges.
A partir de tais zoologias, o primeiro plano plausível para discutirmos é a questão
da metáfora. Julieta Yelin, em tese intitulada Historia de animales: la fábula y el bestiário en
la literatura latinoamericana de la segunda postguerra, apresenta um panorama da relação
homem e animal pelo viés da metáfora:
A ideia de que a relação entre homem e animal é do tipo metafórica foi nas últimas
décadas crescentemente desenvolvida e apoiada por historiadores da arte,
89
arqueólogos, antropólogos sociais, sociólogos e filósofos. Alguns sustentam,
inclusive, que o animal foi a primeira metáfora do homem, e que, como se isto fosse
pouco, essa primeira imagem foi provavelmente pintada com sangue animal. É uma
hipótese sumamente potente porque liga o problema da representação do animal com
o momento da ficção fundacional do humano o da aquisição da linguagem, ou
seja, da capacidade de metaforizar. A humanidade se inaugura no preciso instante
em que se abre um espaço metafórico a respeito do animal. (YELIN, 2008, p.
103, tradução nossa).
Por mais que a metáfora tenha nascido da semelhança do homem com o animal,
ela instituiu a diferença: sua linguagem. Com esta diferença instituída entre o homem e o
animal, a metáfora “animal” se prolonga em um campo simbólico composto por heráldicas,
signos zodíacos, brinquedos, estampas de roupas e até mesmo o jardim zoológico, entre outras
representações. Neste lugar, o zoológico se encarrega de mostrar uma totalidade desse mundo
selvagem partido e perdido ao homem enquanto espécie. O que reforça esse aspecto é
justamente um artigo de John Berger intitulado “Animals as metaphor”. O referido artigo foi
publicado no final dos anos setenta na revista americana New Society:
Aquilo que distinguiu o homem dos animais foi a capacidade humana de
pensamento simbólico, capacidade inseparável do desenvolvimento da linguagem no
qual as palavras não eram meros sinais, senão significantes de algo diferente de si
mesmas. Contudo, os primeiros símbolos foram animais. O que distinguiu o homem
dos animais nasceu de sua relação entre eles. (BERGER, 1977, p. 504, tradução
nossa)
Conforme John Berger, foi de uma relação entre o homem e o animal que ambos
se diferenciaram e, assim, a linguagem pelo viés do pensamento simbólico do homem se
estabeleceria a partir de uma metáfora fundadora. Ainda no mesmo artigo, Berger expõe a
seguinte hipótese: “se a primeira metáfora foi animal, isso foi porque a relação entre o homem
e o animal é metafórica” (BERGER, 1977, p. 504, tradução nossa). A relação entre homem e
animal torna-se viável enquanto metafórica por um paradoxo, pois enquanto homem e animal
são próximos de diversas maneiras, por outro lado, eles vivem em mundos incomunicáveis.
Quando afirmamos a existência de uma incomunicabilidade entre homem e animal, nos
referimos ao acesso tanto a um quanto a outro pelo viés da linguagem; afinal, imaginamos o
animal, por mais “real” que seja sua existência no mundo. Uma vez representado pela escrita,
um animal “real” é um animal ficcional. Então, fruto desta “metáfora fundadora”, a partir
de Berger, talvez seja interessante ler que o primeiro sacrifício para a constituição da
linguagem humana foi o animal. Tal sacrifício pode estar intrínseco à própria definição de
metáfora, um modelo analógico de pensamento que identifica um objeto com outro,
90
inscrevendo um ou mais objetos nas qualidades do segundo.
24
É por isso que em um primeiro
aspecto, dentro do Jardim zoológico, o animal, na própria linguagem, possui uma função que
ultrapassa a metafórica, mesmo que o título de seu livro possa ser lido como uma metáfora.
25
Entretanto nos arriscamos, diante de tal leitura, a dizer que uma abordagem metafórica nos
forneceria uma imagem fixa de um determinado animal. Para sair da própria metáfora, na
leitura de Wilson Bueno, é preciso constituir um movimento que impeça a possibilidade de se
fixar o animal em uma forma de organização, tal como esta foi definida por Michel Foucault
em termos de constituição de uma episteme. É aqui, em virtude dessa organização para uma
classificação (da metáfora) e de uma dificuldade de organização (metamorfose), que jogamos
o metafórico contra o metamórfico. Desenvolvendo essa questão por intermédio de um
exemplo, o jardim zoológico é um referente utilizado continuamente como metáfora, uma
metáfora mais próxima de uma bestialização ou de situações de confinamento. Wilson Bueno,
em seus animais-verbetes, faz jogos contínuos de transformação, faz da metáfora um ponto de
partida para tal gesto, seus animais seguem em movimentos contínuos, cujo recorte nos faz
deparar com o limite do verbete.
Assim, a operação crítica de Gilles Deleuze e Félix Guattari pode ser melhor
compreendida a partir da constituição de animais em movimentos contínuos. Nesse aspecto, o
grande desafio do Jardim zoológico de Bueno talvez seja arruinar a metáfora, figura de
linguagem destituída de movimento, o que a torna mais viável de se encerrar geralmente nos
limites da fábula. Nesse limite, o homem utiliza uma característica animal para criar
analogias, para falar de si a partir de uma característica animal.
A analogia, definida por Michel Foucault, situa-se na ordem da semelhança,
mesmo que imbuída de um novo uso, pois se trata de um “velho conceito, familiar já à ciência
grega e ao pensamento medieval, mas cujo uso se tornou provavelmente diferente”
24
Nessa discussão nos valemos do verbete “metaphor”, de Harmon, Holman e Thrall: “Uma analogia que
identifica um objeto com outro e que atribui ao primeiro objeto uma ou mais qualidades do segundo”
(HARMON, HOLMAN e THRALL, 2006, p. 320, tradução nossa).
25
Nesse aspecto, no livro A história da eternidade , Borges possui uma pequena narrativa intitulada “A
metáfora”, de onde reproduzimos o seguinte excerto que nos ajuda a compreender a questão da analogia
suscitada por Michel Foucault em As palavras e as coisas. Assim nos diz Borges: “No livro III da Retórica,
Aristóteles observou que toda metáfora surge da intuição de uma analogia entre coisas diferentes; Middleton
Murry exige que a analogia seja real e que até então não tenha sido observada (Countries of the Mind, II, 4).
Aristóteles, como se vê, baseia a metáfora nas coisas e não na linguagem; os tropos conservados por Snorri são
(ou parecem) resultados de um processo mental, que não percebe analogias mas combina palavras; a um ou outro
podem impressionar (cisne vermelho, falcão do sangue), mas nada revelam ou comunicam. São, por assim dizer,
objetos verbais, puros e independentes como um cristal ou como um anel de prata” (BORGES, 1998f, p. 421). A
partir desse excerto, captamos a leitura borgiana da metáfora e pensamos sua relação com o fixo, com a
“cristalização” de imagens. Tal leitura de cristalização pode ser matizada ainda pelo próprio étimo da metáfora:
metaphorá, em grego, meta (trans) mais phérein (levar), sendo uma transposição, uma mudança de um sentido
próprio para um figurado (FILIPAK, 1984, p. 24).
91
(FOUCAULT, 2007, p. 29). Essa diferença, segundo Foucault, acontece porque “o seu poder
é imenso, pois as similitudes que executa não são aquelas visíveis, maciças, das próprias
coisas; basta serem as semelhanças mais sutis das relações” (FOUCAULT, 2007, p. 29).
Mesmo que os animais de Wilson Bueno não se constituam de metamorfoses contínuas, o
movimento de suas transformações e o hibridismo de seus seres oriundos de lendas
indígenas e do diálogo com outras literaturas, como a do próprio Borges faz com que
estejam constituídos em uma morfologia sem definição precisa. É aqui que essas
transformações possuem relevância, pois vale ressaltar que o lugar da escrita de Wilson
Bueno implode uma lógica do jardim zoológico. É que Bueno, a partir desse lugar-comum,
elabora um outro incomum com uma fauna insólita, arruinando o zoológico como metáfora
que ensina ao homem a vida natural dos animais.
Ressaltamos que a metáfora, no entanto, é um procedimento que foge a modelos
esquemáticos, inclusive por ser praticamente inevitável na escrita, uma figura inerente a
diversos modos de pensar. A discussão que aqui propomos é que, ao chocar o metafórico
contra o metamórfico, a metáfora torna-se um ponto de partida para os movimentos contínuos
da metamorfose. Com essa leitura, a metáfora não fica estanque em um conceito esquemático,
sendo tanto dialógica quanto paradoxal. Inclusive porque se fizermos uma leitura refinada do
“devir-animal”, esse movimento contínuo proposto por Deleuze e Guattari se torna
metafórico. O animal é metáfora, mesmo o devir sendo um vetor para a metamorfose ou o
movimento contínuo.
Octavio Paz, em Conjunções e disjunções (1979), trabalha com a metáfora na
perspectiva da encarnação das imagens. Com isso, o crítico mexicano faz de tal figura de
linguagem algo menos cristalizado:
Deste ponto de vista, a arte é o equivalente moderno do rito e da festa: o poeta e o
romancista constroem objetos simbólicos, organismos que emitem imagens. Fazem
o que faz o selvagem: convertem a linguagem em corpo. As palavras não são
coisas e, sem deixar de ser signos, se animam, ganham corpo. (PAZ, 1979, p. 18)
Neste limiar entre a metáfora e a metamorfose os animais aqui estudados
literalmente ganham corpo.
26
E com este cuidado procuramos fazer uma leitura crítica de
26
Modesto Carone, em Metáfora e montagem , também apresenta uma discussão que aborda nossas reflexões
anteriores sobre a montagem, discussão esta que se aproxima das considerações de Antoine Compagnon em O
trabalho da citação (2007), articulação de leitura entre a montagem e o bricoleur que pretendemos desenvolver
em estudo futuro. No entanto, Carone, concilia essa discussão temporariamente: “Outro fenômeno reconhecido
normalmente como montagem em literatura é a incorporação, ao texto, de trechos provenientes de outras fontes
‘citações’ que passam a agir no corpo do mesmo poema, ora como foco de contraste, ora como fator de
sustentação semântica, ora realizando simultaneamente os dois desempenhos” (CARONE NETTO, 1974, p.
92
diversos verbetes do Jardim zoológico. Aqui a vida natural não mais natural é uma
tentativa vã de registro por etnógrafos, que tentam descrever os últimos espécimes de animais
já completamente extintos, como os “dagdas”:
O último dagda foi visto por volta de 1895, ao sul do Índico, na costa leste da ilha de
Madagascar, pelo zoolótra francês Charles-Henri Lebault.
Em seu diário de bordo, lamenta o cientista o então incipiente desenvolvimento da
fotografia que o impediu registrar para a posteridade, dada a morosidade do
processo, o impecável instante em que um dagda, sacudindo os compridos pelos,
surgiu na praia e andou extenso trecho de areia, farejando o ar com o focinho em
forma de flor, esfomeado e vociferante, atrás dos grandes buracos onde as tartarugas
põem seus ovos. (BUENO, 1997, p. 43)
Existe uma impossibilidade de registrar, por parte do zoólatra, a imagem real de
um “dagda”. O que mostra que a escrita de Wilson Bueno acentua seu caráter de movimento
contínuo mesmo que, efetivamente, um animal não esteja em processo de metamorfose
sucessiva. O animal “inexistente” parece fugir naturalmente à classificação do etnógrafo e, em
linhas gerais, a qualquer prova da ciência. Parece que Bueno, dentro de uma invisibilidade
própria da literatura, traz o que é plausivelmente visível a um etnógrafo e o transporta ao
campo invisível da inclassificação, pois por mais que nos resvalemos de todo um saber em
torno das possibilidades de classificar, o inclassificável será sempre o inclassificável.
Tal constituição de um outro saber implica uma relação diferente com os
costumes na América Latina, fato que Wilson Bueno utilizou em suas respectivas
catalogações. Entretanto, cabe uma pergunta: o que seriam esses costumes na América
Latina? Silviano Santiago argumenta justamente para um desvio de norma:
A América Latina institui seu lugar no mapa da civilização ocidental graças ao
movimento de desvio da norma, ativo e destruidor, que transfigura os elementos
feitos e imutáveis que os europeus exportavam para o novo mundo. (SANTIAGO,
2000, p. 16)
Santiago ainda acrescenta que “sua geografia deve ser uma geografia de
assimilação e de agressividade, de aprendizagem e de reação, de falsa obediência.”
(SANTIAGO, 2000, p. 16). Sob esse aspecto, Georges Bataille, em contribuição para a revista
Imán, secretariada por Alejo Carpentier em Paris, no início dos anos 1930, escreveu a
seguinte consideração para o dossiê “Conhecimento da América Latina”:
101). Tal efeito pode ser observado em modulações distintas nas obras de Borges (mais explicitamente) e de
Bueno (de maneira menos explícita).
93
Se considerarmos, pois, uma parte tão vasta do mundo como é a América Latina,
não importa tanto saber se os costumes que nela se encontram têm em si um valor
humano excepcional; resultaria muito mais interessante observar quais seriam os
elementos estranhos suscetíveis de corromper e destruir esses costumes.
(BATAILLE, 1931, p. 12)
Poderíamos aproximar o pensamento de Georges Bataille das afirmações
anteriores de Silviano Santiago sobre a América Latina no que condiz com “uma falsa
obediência”, onde encontraríamos neste ambiente algo propício tanto para os verbetes quanto
para os livros (do Manual de zoología fantástica para O livro dos seres imaginários) de Jorge
Luis Borges e (do Manual de zoofilia para o Jardim zoológico) de Wilson Bueno. Essa leitura
se distancia da clássica consideração de Michel de Montaigne sobre uma “pureza” existente
no Brasil, que ele, possivelmente impressionado com a leitura de um livro de viagens como o
Diário de Colón,
27
descreveu no início da colonização do país, em “Apologia de Raymond
Sebond”:
Dizem que no Brasil as pessoas morrem de velhice, o que se atribui à pureza e à
calma do ar que respiram, e que, a meu ver, provém antes da serenidade e da
tranquilidade de suas almas isentas de paixões, de desgostos, de preocupações que
excitam e contrariam. Ignorantes, iletrados, sem lei nem rei, nem religião alguma,
sua vida desenvolve-se numa admirável simplicidade. (MONTAIGNE, 1962, p. 218)
A ideia de uma vida pura, calma e tranquila se contrapõe aos “elementos
estranhos” contidos nos próprios costumes. Estes últimos foram referendados nas notas,
desenhos e relatos de outros viajantes que entraram em contato com o país entre os séculos
XVI e XVIII, como discutimos no capítulo anterior. Entretanto, é preciso acrescentar algo
sobre as relações desses relatos com o saber. Margarita Pierini, em “La mirada y el discurso:
la literatura de viajes”, aponta justamente algumas leituras prévias que tais viajantes tinham
ao percorrer a América Latina. Esse viajante, segundo a autora, “É, também, o possuidor de
um saber prévio, que nasce de leituras anteriores como a do livro de Marco Pólo; e haverá de
‘ler’ a realidade a partir de expectativas determinadas por elas” (PIERINI, 1994, p. 163,
tradução nossa). Ou seja, existia a combinação da episteme e do imaginário, com a mesclagem
dos bestiários da Idade Média a outras leituras para que se compusesse a formação de um
saber pré-científico, o que modificava o modo de ver esse Novo Mundo:
27
Segundo Margarita Pierini, sobre o conteúdo do referido Diário: “Seu texto, por outro lado, inaugura em nível
temático uma série de modelos que para os olhos europeus serão desde então unidos à imagem de América: a
natureza idílica, exuberante, paradisíaca; o bom selvagem, manso, quase irracional, que promete ser um bom
servidor” (PIERINI, 1994, p. 163, tradução nossa). Vale ressaltar que o Diario, de Colón, é considerado o
primeiro relato de viajantes pela América Latina.
94
O olhar do descobridor é um olhar “de cima”: é o dono do saber, o representante de
um pensamento que se concebe como o único verdadeiro. Os outros, os homens que
encontra em seu trajeto, são unicamente objetos de conhecimento, nunca se pode
conceber-lhes como também sujeitos. (PIERINI, 1994, p. 163, tradução nossa)
Assim, o que Wilson Bueno faz é utilizar esses elementos para a desarticulação de
tal episteme, operando com o imaginário que o circundava. Tal feito implica na construção
tanto de uma linguagem pautada em um verbete que não informa, quanto no contraponto de
um corpo a corpo entre viajantes, índios e animais contido no seu zoológico. Os verbetes de
Wilson Bueno, ao contrário das jaulas de um zoo, não separam os animais, mas nos levam a
nos deparar com a diversidade solta de sua fauna escrita, reforçando um entre-lugar para a
geografia da América Latina.
28
Jorge Luis Borges, por sua vez, parte de outro caminho, pois para o escritor
argentino parecia que a vida estava distante da experiência de um corpo a corpo, como
assinala Alan Pauls:
A “vida”, então, tinha um caráter eminentemente corporal e começava a se definir
pelo conflito, duas condições as quais as elegantes perplexidades metafísicas de
Borges não pareciam dever-lhes em demasia. Viver era tocar, golpear, entrar em
algum tipo de corpo a corpo, involucrar-se diretamente com as dimensões mais
impuras da experiência. (PAULS, 2004, p. 35, tradução nossa)
Isso não quer dizer que, como volto a reforçar, os animais de Jorge Luis Borges
não estejam em constante movimento ou destituídos de um “devir”. Os animais catalogados
por Borges, por um caminho diverso do trilhado pelos animais de Bueno, possuem um corpo a
corpo com a literatura, com a perplexidade metafísica. Era dessa forma que Borges se
distanciava, aparentemente, das “dimensões mais impuras da experiência”. Aparentemente,
porque esse é o grande movimento metamórfico nos animais catalogados por Borges, uma vez
que são essas perplexidades metafísicas, encontradas comumente em Borges, que dão corpo
aos seus seres, tais como os próprios “animais metafísicos”: “O problema da origem das
ideias agrega duas curiosas criaturas à zoologia fantástica” (BORGES e GUERRERO, 1984,
28
Silviano Santiago aponta a leitura da América colonizada como cópia e simulacro do mundo europeu: “A
América transforma-se em ‘cópia’, simulacro que se quer mais e mais semelhante ao original, quando sua
originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em sua ‘origem’, apagada completamente
pelos conquistadores. Pelo extermínio constante dos traços originais, pelo esquecimento da origem, o fenômeno
da duplicação se estabelece como a única regra válida para a civilização” (SANTIAGO, 2000, p. 14). O que
Wilson Bueno e Jorge Luis Borges fazem a respeito de tal imagem da América na ordem do simulacro é romper
com essa cópia, instaurando um outro lugar, ou melhor, outros lugares na leitura da heterotopia dentro da
América Latina.
95
p. 18, tradução nossa). As duas criaturas referidas por Borges são a “estátua sensível” de
Condillac e “o animal hipotético” de Lotze.
29
Na questão aqui discutida, a primeira criatura é a que melhor exemplifica o ponto
de partida de Borges para essa outra aproximação a uma impureza da experiência pousada no
corpo. A história da origem desse animal é a seguinte: após Descartes ter professado a
doutrina das ideias inatas, Etiennne Bonmot de Condillac imaginou uma estátua de mármore
“organizada e conformada como o corpo de um homem” (BORGES e GUERRERO, 1984, p.
18, tradução nossa). Essa estátua possuía uma alma que não tinha percepção e pensamento. E,
aos poucos, começando pelo olfato, a estátua, na medida em que vai obtendo uma percepção,
elabora o pensamento do mundo e isso vai se intensificando. Do olfato às faculdades de
entendimento, a estátua chega à consciência, à noção abstrata de número e à noção de eu. “O
autor”, precisa Borges, “conferirá depois a seu homem hipotético a audição, o paladar, a
visão, e por fim o tato. Este último sentido lhe revelará que existe o espaço e que no espaço,
ele está em um corpo” (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 18-19, tradução nossa). Essa
estátua, que aos poucos se transforma em um homem, parece ser um antecessor direto do
movimento contínuo do Baldanders. É daí, da ideia, que Borges acessa o corpo, o toque, o
contato e, por conseguinte, as formas paródicas de catalogação. Esse contato, por mais que se
situe, segundo o próprio autor, como “metafísico”, trava dois pontos importantes: o
movimento da transformação do homem, ou melhor, em homem (movimento que Deleuze e
Guattari afirmaram não existir no outro livro que contém os referidos verbetes, O livro dos
seres imaginários); e o fato de ser esse verbete o que melhor explicita uma trajetória do
mundo das ideias à percepção corporal – individual, portanto – do mundo.
É por esses movimentos que se torna possível acessar um “devir” e, mais
especificamente, um “devir-animal” na escrita de Jorge Luis Borges. Como, da mesma forma,
iremos explicitar um pouco mais adiante a questão do afeto
30
existente nesse gesto de Borges,
a partir do sonho. Georges Bataille, longe de simplesmente ilustrar a questão de Deleuze e
29
Sobre o “animal hipotético” de Lotze, Borges apresenta apenas uma pequena descrição final no verbete: “A
outra criatura suscitada pelo problema do conhecimento é o ‘animal hipotético’ de Lotze. Mais solitário que a
estátua que cheira rosas e que finalmente é um homem, este animal não tem na pele senão um ponto sensível e
movível, na extremidade de uma antena. Sua conformação lhe proíbe, como se vê, as percepções simultâneas.
Lotze pensa que a capacidade de retrair ou projetar sua antena sensível bastará para que o quase animal
incomunicado descubra o mundo externo (sem o socorro das categorias kantianas) e distinga um objeto
estacionário de um objeto móvel” (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 19, tradução nossa).
30
Gilles Deleuze, em Espinosa: Filosofia prática, a partir de Espinosa trata da noção de “afeto” e “afecto”:
“Observou-se que, em regra geral, a afecção (affectio) se referiria diretamente ao corpo, ao passo que o afeto
(affectus) se referiria ao espírito: mas a verdadeira diferença não está aí; Ela existe entre a afecção do corpo e sua
ideia que envolve a natureza do corpo exterior, por uma parte, e, por outro lado, o afeto que implica tanto para o
corpo como para o espírito um aumento ou uma diminuição da potência de agir” (DELEUZE, 2002, p. 56).
96
Guattari do “devir”, nos aproxima de uma operação crítica nada fácil, sobretudo quando
pensamos nessa criatura metafísica do verbete de Jorge Luis Borges. Em um de seus verbetes-
críticos chamado metamorfose, escrito para a revista Documents, Bataille vai tratar do homem
como uma prisão de aparência burocrática. Lendo este verbete após a leitura da questão do
devir-animal e dos animais metafísicos, observamos como o escritor francês compõe essa
relação homem-animal:
Animais selvagens. Com respeito aos animais selvagens, os sentimentos equívocos
dos seres humanos talvez sejam mais irrisórios do que em qualquer outro caso. a
dignidade humana (na aparência, acima de qualquer suspeita) mas não será preciso
irmos ao jardim zoológico: por exemplo, quando os animais veem surgir a multidão
de criancinhas seguidas por papás-homens e mamãs-mulheres. Apesar das
aparências, o hábito não consegue impedir um homem de saber que mente como um
cão quando fala de dignidade humana no meio dos animais. Porque em presença de
seres ilegais e profundamente livres (os únicos verdadeiramente outlaws), a mais
equívoca das invejas ainda leva a melhor sobre uma estúpida sensação de
superioridade prática (inveja que se manifesta nos selvagens sob a forma de totem
que se dissimula, de um modo cômico, nos chapéus com penas das nossas avós de
família). Com tantos animais no mundo perdemos isto: a inocente crueldade, a
monstruosidade opaca dos olhos que mal se diferenciam de pequenas bolhas
formadas à superfície da lama, o horror ligado à vida como uma árvore à luz.
Restam os gabinetes, os bilhetes de identidade, uma vida de criados biliosos e, no
entanto, sei que estridente loucura chega a parecer-se, durante certos desatinos,
com a metamorfose.
Podemos definir a obsessão da metamorfose como uma violenta necessidade que
aliás se confunde com cada uma das nossas necessidade animais, que arrastam um
homem a afastar-se de repente dos gestos e das atitudes exigidas pela natureza
humana: por exemplo, um homem no meio dos outros, num apartamento, deitar-se
de barriga para baixo e começar a comer a comida do cão. Há, pois, em cada homem
um animal fechado numa prisão como um forçado, e também uma porta; se
abrirmos essa porta, o animal corre para fora como o forçado que encontra a saída da
prisão; e então, de um modo provisório, o homem cai morto e o animal comporta-se
como um animal sem preocupação nenhuma de provocar admiração poética do
morto. É neste sentido que se olha para um homem como uma prisão de aparência
burocrática. (BATAILLE, 1994, p. 104-105).
Essa necessidade de metamorfose do homem, descrita por Bataille, parece
arruinar sua “figura humana” dotada de saber positivo que impõe uma clara força de
separação e, assim, de dominação que subjuga o Outro, como apresentamos em algumas
reflexões de Jacques Derrida sobre os animais. Como se para instituir seu saber fosse
necessário confinar e organizar toda uma fauna em um espaço como o jardim zoológico.
Saber esse que talvez tenha sido o único revestimento que pudesse conferir permanência à
espécie humana. Michel de Montaigne, ao abordar a vida nua do homem, parece ampliar essa
sua dimensão da necessidade de metamorfose:
97
Dizem essas queixas que o homem é o único animal abandonado nu sobre a terra
nua. Chega amarrado, arrochado, e para se armar e se defender precisa recorrer aos
despojos de outrem. A natureza revestiu todas as criaturas de carapaças, casca,
pelos, lã, espinhos, couro, escamas, seda, segundo suas necessidades; armou-as de
garras, dentes, chifres para o ataque e a defesa, ensinando-lhes ainda a nadar, correr,
voar, cantar, ao passo que o homem não pode, sem aprendizado, andar, falar, comer.
Apenas sabe chorar. (MONTAIGNE, 1962, p. 189)
Assim, foi o saber vindo da própria experiência do aprendizado que outorgou
ao homem sua capacidade de distanciar-se dos demais animais. E, a partir do saber, é que ele
instituiu o poder. Em Arqueologia do saber, Michel Foucault apresenta algumas dimensões da
constituição de um saber:
Um saber é aquele de que podemos falar em uma prática discursiva que se encontra
assim especificada: o domínio constituído pelos diferentes objetos que adquirirão ou
não um estatuto científico (...) Um saber é também o espaço em que o sujeito pode
tomar posição para falar dos objetos de que se ocupa em seu discurso (...) Um saber
é também o campo de coordenação e de subordinação dos enunciados em que os
conceitos aparecem, se definem, são aplicados e se transformam (...) Finalmente, um
saber se define por possibilidades de utilização e de apropriação oferecidos pelo
discurso. (FOUCAULT, 1972, p. 220-221)
É exatamente aqui que voltamos para o primeiro momento deste capítulo, quando
o homem se diferenciou do animal pela utilização deste último como metáfora. Imprimindo a
sobrevivência da espécie a partir desse gesto, o homem, pelo viés do saber, paradoxalmente
foi se destituindo de movimento, de devir.
O desvio da formalização é algo muito ligado aos livros aqui estudados, pois eles
sempre possuem um componente que não conclui uma forma. Ainda no mesmo texto,
Deleuze argumenta: “Escrever é um caso de devir, sempre inacabado, sempre em via de fazer-
se, e que extravasa qualquer matéria visível ou vivida.” (DELEUZE, 2008, p. 11). Os animais
de Jorge Luis Borges e de Wilson Bueno parecem não estar completamente formados. E
mesmo Borges, ao descrever os “animais metafísicos”, ao descrever uma estátua que se
transforma em homem, a descreve em vias de uma metamorfose, da alteração de um corpo.
Por isso, ler também um outro verbete, como o “metamorfose” de Georges Bataille, nos leva a
tocar na frágil relação atual entre o homem e o animal, na perspectiva do corpo e da frustração
diante de qualquer tentativa de transformação, pois não basta se jogar ao chão para se
alimentar de uma comida de cachorro para acionar um “devir-animal”. Neste ponto se torna
compreensível a fala de Bataille do animal como um “forçado”, ou seja, como um prisioneiro
dentro de uma Instituição chamada Homem.
98
4.2 Homem, instinto ou instituição?
Como insistir em uma relação de saber e afeto, para ler o Manual de zoología
fantástica e o Jardim zoológico? E, ainda, como pensar que esse afeto possa ser desdobrável
em um “afecto”, na acepção de Gilles Deleuze, na qual “o afecto não é a passagem de um
estado vivido a um outro, mas o devir não humano do homem” (DELEUZE, 1992, p. 224)?
Antes disso, é necessário esboçar algumas considerações sobre o homem para
entendê-lo como uma instituição de poder. Em 1966, Gilles Deleuze publicou o artigo “O
homem, uma existência duvidosa”,
31
no qual analisa o livro As palavras e as coisas , de
Michel Foucault, e dentre suas considerações ressaltamos o saber que suscita a questão do
nascimento do homem: “Em quais condições as ciências do homem foram possíveis na forma
do saber, ou qual é, verdadeiramente, a data de nascimento do homem?” (DELEUZE, 2005, p.
108). Essa pergunta marca bem a existência do homem, seu surgimento, assim como as
ciências humanas, a partir do momento em que o homem tem a consciência de que sabe e,
cada vez mais, esse saber se expande como conhecimento que gera uma capacidade mais
arguta de identificar e identificar-se no mundo, tal como pode ser lido também no verbete
animais metafísicos, do Manual de zoología fantástica. Isso traça uma relação do que
poderíamos chamar de uma identidade do homem, definida desde os tempos de Aristóteles, do
homem como um animal racional ou um animal político?
Para problematizar ainda mais a questão, em a Arqueologia do saber Michel
Foucault elabora outros locais para o saber, uma vez que este não se localiza apenas na
ciência: “O saber não está investido somente em demonstrações, pode estar em ficções,
reflexões, narrativas, regulamentos institucionais, decisões políticas” (FOUCAULT, 1972, p.
227). É preciso destacar que, possivelmente, o saber contido em ficções e narrativas esteja
imbuído de algo que não esteja ligado apenas ao homem como instituição por mais que
estejamos dentro de uma instituição chamada Literatura – e ainda mais, é por esse outro saber
que se torna possível aproximar-se de um afeto. Ler próximo do afeto os movimentos
(metamórficos) que os animais – de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno – são capazes de fazer
é ler também pelo que eles são capazes de afetar:
31
Publicado em Le nouvel Observateur , Paris, em 1º de junho de 1966, p. 32-34, encontra-se reproduzido na
coletânea A ilha deserta (DELEUZE, 2005).
99
De um lado, um corpo, por menor que seja, sempre comporta uma infinidade de
partículas: são as relações de repouso e movimento, de velocidades e de lentidões
entre partículas que definem um corpo, a individualidade de um corpo: de outro
lado, um corpo afeta outros corpos: é este poder de afetar e de ser afetado que
também define um corpo na sua individualidade. (DELEUZE, 2002, p. 128)
A partir de outro saber ficcional, narrativo –, junto a essa capacidade de
movimento pelo afecto de Gilles Deleuze, é que os livros aqui estudados podem apontar para
uma etologia. Uma etologia no sentido indicado por Deleuze, como um dos ramos do saber
que se define por afetos e por corpos, por homens e por animais (DELEUZE, 2002, p. 130).
Esse avanço, que poderia gerar uma crise de identidade para o homem, talvez encontre outra
leitura nas considerações de Deleuze e Guattari, pois o “devir-animal” não passa pela
identificação, portanto não passa por um saber positivo. Este sim, paradoxalmente, põe o
homem em crise, uma vez que para se diferenciar do animal, o homem avança nas diversas
áreas do conhecimento para se afirmar. Assim, por que não ler a fauna de Borges e Bueno,
imbuída deste saber narrativo, pelo afeto?
Concretamente, se definirmos os corpos e os pensamentos como poderes de afetar e
de ser afetado, muitas coisas mudam. Definiremos um animal, ou um homem, não
por sua forma ou por seus órgãos e suas funções, e tampouco como sujeito: nós o
definiremos pelos afetos de que ele é capaz. (DELEUZE, 2002, p. 129)
Afinal, na medida em que se avança na afirmação de um determinado saber
positivo, mais esse saber entra em crise. E de que afetos Jorge Luis Borges e Wilson Bueno
são capazes em suas obras aqui estudadas? O que de afeto também nesse estudo e nesse
recorte? Por isso em relação a Borges, por mais que ele se inscreva como escritor na ordem do
enciclopédico, da biblioteca o que não deixa de ser uma realidade consensual em sua
fortuna crítica –, um fato é inegável: seu saber afeta. Existe em seu “saber” algo que deixa
suas catalogações fantásticas e imaginárias plenas de movimento, de “devir”. Seu saber é
justamente o saber que põe em crise as formas de catalogação, as entradas tradicionais de
dicionários e enciclopédias, e não é um saber positivo da ciência que visa classificar e
organizar. É um saber que introduz caminhos ambivalentes, dúbios, bifurcados, que parodiam
o discurso de um saber que faz com que o homem avance cada vez mais sua ordem de animal
racional. É um saber próximo do devir, possível de ser encontrado na literatura e é
fundamental para fornecer outros elementos para uma leitura de seus seres. Assim, o ponto ao
qual queremos chegar, ao tratar desse “devir-animal” em Borges, é pensar essa ordem da
diferença entre saberes, delimitada anteriormente por Michel Foucault em Arqueologia do
saber. Por isso existe outra proximidade do autor argentino com o que proferiram Deleuze e
Guattari, pois:
Trata-se de ordenar as diferenças para chegar a uma correspondência das relações,
pois o animal, por sua vez, distribui-se segundo relações diferenciais ou oposições
distintivas de espécies; e, da mesma forma, o homem, segundo os grupos
considerados. (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 16)
O mesmo saber que constitui a organização do animal em espécies decorre do que
também distingue o homem em grupos, o que, em uma leitura por um viés político, faz com
que o homem, como instituição, denomine e justifique a animalidade – e o confinamento – de
semelhantes da mesma espécie. Por isso é que, destituído de afeto, o animal acaba tendo um
papel essencial para a formação de outros grupos humanos, os animalizados, como afirmou
Armelle Le Bras-Chopard: “O animal desempenhará um papel essencial nesta estratégia que
consiste a importar ao seu reino grupos inteiros de seres humanos” (LE BRAS-CHOPARD,
2002, p. 245, tradução nossa). A título de exemplificação, citamos o estudo de Michel
Foucault, A história da loucura (2005), em que ele aponta a coincidência do surgimento dos
zoológicos com o confinamento de tal grupo considerado “louco”:
O fato negativo que é “o louco ser tratado não como um ser humano” tem um
conteúdo bastante positivo; esta inumana diferença tem, na realidade, valor de
obsessão: suas raízes estão nos velhos temores que, desde a Antiguidade e sobretudo
desde a Idade Média, deram ao mundo animal sua estranha familiaridade, suas
maravilhas ameaçadoras e todo seu peso de abafada inquietude. No entanto, esse
medo animal, que acompanha, com toda sua paisagem imaginária, a percepção da
loucura, não tem mais o mesmo sentido de dois ou três séculos antes: a metamorfose
animal não é mais o signo visível dos poderes infernais, nem o resultado de uma
alquimia diabólica do desatino. O animal no homem não funciona mais como um
indício do além; ele se tornou sua loucura, que não mantém relação alguma a não ser
consigo mesma: sua loucura em estado natural. A animalidade que assola a loucura
despoja o homem do que nele pode haver de humano, mas não para entregá-lo a
outros poderes, apenas para estabelecê-lo no grau zero de sua própria natureza. A
loucura, em suas formas últimas, é, para o classicismo, o homem em relacionamento
imediato com sua animalidade, sem outra referência qualquer, sem nenhum recurso.
(FOUCAULT, 2005, p. 150-151)
É justamente na mesma época do surgimento e difusão dos jardins zoológicos que
a animalidade manifestada no homem passa à imanência de uma perda da razão que o assola.
Por isso, pela ausência de um logos, um homem pode simplesmente se tornar uma espécie
confinada, assim como os demais animais em um zoo. O que se tornou no período mais uma
forma de classificação zoológica para os homens não humanos, fatos que encontraram e
encontram suas consequências até hoje.
Essas reflexões no âmbito político, voltadas para o animal, não nos distanciam dos
livros Manual de zoología fantástica e Jardim zoológico e, ao mesmo tempo, distanciam os
respectivos livros de uma redução a metáforas do político. Aliás, distante dos caminhos da
fábula, encontramos nos animais de Jorge Luis Borges, mesmo que uma força mais literária,
um problema de forma, uma configuração literária ambígua do animal, uma representação da
qual sempre podemos desconfiar enquanto leitores. Em Bueno, a desconfiança seria de outra
ordem, a da hibridização dos corpos e da instabilidade da língua. Em ambos os escritores, a
linguagem literária possui uma potência de afecção, que em todos os seus verbetes ela
atinge os corpos, movimenta-os, afeta-os.
Indo em direção a outro limite, a loucura na Idade Clássica foi uma prática
discursiva definida e configurou todo um saber (clínico) em torno de suas enunciações.
Assim, Foucault se valeu para sua pesquisa de uma série de arquivos, de uma catalogação de
anônimos confinados, de “animais” instituídos pelos discursos de um poder. Tal como
Foucault argumentou, “não saber sem uma prática discursiva” (FOUCAULT, 1972, p.
221); perguntamo-nos, assim, qual é a prática discursiva de Jorge Luis Borges e Wilson
Bueno para com a catalogação de seus animais?
Como desdobramento da hipótese pela qual Borges se caracterizaria, em um
primeiro momento, por um saber literário sobre os animais, enquanto a literatura de Bueno
estaria mais atravessada pelo afeto, por uma relação de pacto com diversos bichos, propomos
uma vez mais que essa leitura seja matizada. Afinal, o saber de Borges é um saber que põe em
crise a organização do mundo, enquanto Bueno, mesmo imbuído de afetos, lida com diversos
saberes para a escrita de seus verbetes. Neste momento, um desafio que se impõe é indagar: o
que é saber? O que é afeto?
Aqui nos aproximamos de outro texto de Gilles Deleuze, “Instintos e
instituições”, contido na coletânea A ilha deserta (2005), pois quando tocamos na questão do
saber e afeto em torno da relação entre homem e animal discutimos, inevitavelmente, estes
dois aspectos:
O homem não tem instintos, ele faz instituições. O homem é um animal em vias de
despojar-se da espécie. Do mesmo modo, o instinto traduziria as urgências do
animal, e a instituição as exigências do homem: no homem, a urgência da fome
devém reivindicação de ter pão. Finalmente, no seu ponto mais agudo, o problema
do instinto e da instituição será apreendido, não nas “sociedades” animais, mas nas
relações entre animal e homem, quando as exigências do homem incidem sobre o
animal, integrando-o em instituições (totemismo e domesticação), quando as
urgências do animal encontram o homem, seja fugir ou atacar escapar ou atacá-lo,
seja para conseguir alimento e proteção. (DELEUZE, 2005, p. 28)
Por isso, nessa leitura de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno não é tão fácil pensar
simplesmente o plano do afeto próximo ao do instinto e o do saber ao da instituição.
Retomando o que disse Borges no prólogo do Manual de zoologia fantástica, voltamos à cena
de uma criança que pela primeira vez vai a um jardim zoológico. Ao apresentá-la ao leitor,
Borges afirma que essa criança pode ser qualquer um de nós ou que, por outro lado, fomos
essa criança e nos esquecemos. Nesse jardim, a criança animais que nunca viu antes, tais
como jaguares, bisontes e o mais esquisito, girafas (BORGES e GUERRERO, 1984, p. 7). O
fato é que a criança gosta de tal espetáculo que poderia simplesmente horrorizá-la. E o próprio
ato de ir ao jardim zoológico é uma diversão infantil. E Borges se pergunta: como explicar
esse fato tão comum e misterioso?
A partir da pergunta de Borges pode-se identificar certa fragilidade no discurso de
Randy Malamud, no texto “Zoo Spectatorship”: “O espectador é uma posição circunscrita
pelo paradoxo: o zoo irá permitir que ele veja tudo, mas realmente não se nada”
(MALAMUD, 2007, p. 222, tradução nossa). Malamud tem como ponto de partida o
posicionamento de John Berger, o que não deixa de fazer com que ele retome as discussões
aqui traçadas a partir de Berger, Bataille e Bueno em relação ao jardim zoológico. Entretanto,
quando chegamos a Borges, especificamente na sua última pergunta, notamos que existe algo
no zoo que tocou o escritor argentino em termos de afeto. Por isso discordamos de Malamud
quando ele afirma categoricamente que existe uma promessa do zoológico em mostrar tudo,
mas que o espectador não nada. Mesmo sob as cruéis condições de confinamento, o
animal, distanciado do homem pela metáfora fundadora do saber do ser humano, uma vez
diante do escritor argentino, foi capaz de afectá-lo/afetá-lo, mesmo que no plano da
imaginação.
Aqui, não seria incoerente afirmar que existe uma série de camadas sobrepostas na
imaginação de ambos os escritores, Borges e Bueno, que eles se nutrem de múltiplas
referências para a construção de seus textos sobre animais, incluindo não apenas os bestiários
medievais ou suas respectivas iluminuras, as narrativas, crônicas e desenhos de viajantes dos
séculos XVI e XVII, como também o jardim zoológico como instituição e, sobretudo, seus
próprios saberes e afetos construídos ao longo dessas camadas.
Sylvia Molloy, ao retomar o prólogo do Manual de zoología fantástica, nos fala
que Borges recupera “aquele momento privilegiado em que uma criança a criança que foi
Borges ou qualquer um de nós visita pela primeira vez um jardim zoológico” (MOLLOY
apud BORGES e GUERRERO, 2006, p. 9). O fato de o jardim zoológico ser um espaço
privilegiado para um passeio com crianças nos leva ao que disseram Deleuze e Guattari:
“Nota-se como elas (as crianças) falam dos animais e comovem-se com isso. Elas fazem uma
lista de afectos” (DELEUZE e GUATTARI, 2007, p. 43). Afinal, existe uma afecção
decorrente de um afeto. Em Espinosa: Filosofia prática, Deleuze segue a mesma
argumentação: “Tomemos um animal qualquer, elaboremos uma lista de afetos, em qualquer
ordem. As crianças sabem fazê-lo” (DELEUZE, 2002, p. 129). Assim, ao dispormos o
Manual de zoologia fantástica como uma lista de afetos de Jorge Luis Borges, pela retomada
deste princípio, “enganosamente ingênuo”, de uma criança no zoo,
32
existe ainda uma
articulação de uma concepção de literatura, como analisa Sylvia Molloy:
Como o enciclopedista chinês, ou como Funes, o memorioso, Borges recorre à
coleção heteróclita. O arremedo de ordem que oferece o alfabeto não faz senão
recalcar “a desatinada variedade” de um conjunto em que se roçam
assombrosamente o Pelicano e a Peluda de La Ferté-Bernard, o Uroboros e a
Valquíria. O exotismo desses seres descomunais, sua frágil coabitação nesta série
borgiana são por certo surpreendentes. Mas não menos surpreendentes, sugere
Borges, é a coexistência de termos sem qualquer concatenação linguística qualquer
organização verbal, qualquer sucessão de palavras. A literatura é, afinal de contas,
uma monstruosa série de imaginações. (MOLLOY apud BORGES e GUERRERO,
2006, p. 10)
Se a literatura é o grande afeto de Borges, logo ela é o lugar onde o autor
argentino dispõe de outras afecções, ou seja, leva tudo o que sentiu no corpo para esse afeto
maior, e nisso se encontram, sobretudo, suas leituras. Essa lista de afectos de Jorge Luis
Borges e também de Wilson Bueno que contém animais “reais” e imaginários, fabulosos e
teratológicos está repleta de saber. E aqui evocamos as reflexões de Walter Benjamin, quando
ele diz que colecionar é um fenômeno primevo do estudo: o estudante coleciona saber
(BENJAMIN, 2007, p. 245). É, portanto, com tal coleção que Borges e Bueno articulam
continuamente – em seus estudos – um fazer literário pleno de saberes e de afetos.
4.3 Um animal sonhado por J. L. Borges. Um animal sonhado por W. Bueno.
32
John Berger traça ainda a seguinte característica de uma família que visita um jardim zoológico: “A visita
familiar ao zoo constitui uma ocasião mais sentimental que um passeio pela feira ou a se assistir a um jogo de
futebol. Os adultos levam as crianças ao zoo para lhes ensinar os originais das ‘reproduções’ que têm em casa, e
quem sabe também na esperança de voltar a encontrar algo da inocência desse mundo animal reproduzido que
lembre sua própria infância (BERGER, 1987, p. 25, tradução nossa). Essa assertiva de Berger matiza as
considerações de Randy Malamud sobre o espectador do zoológico.
Jorge Luis Borges encontra no sonho de alguns escritores um caminho para
percorrer o imaginário dos mesmos.
33
E, além de exercitar sua imaginação, em seu ofício de
catalogações paradoxais e antologista, Borges também catalogou diversos “sonhos” e
organizou O livro dos sonhos (1986). O sonho, para Borges, possui um valor efetivo da
imaginação voluntária, como ele mesmo assinala em seu prólogo: “Este livro de sonhos que
os leitores tornarão a sonhar abarca os sonhos da noite os que eu assino, por exemplo
sonhos do dia, que são um exercício voluntário da nossa mente (...)” (BORGES, 1986, p. 5).
Mais uma vez em seu prólogo, Borges convoca o leitor para uma possível leitura de seu livro,
fazendo dos sonhos do dia um exercício imaginativo. Ainda no referido prólogo, Borges
evoca inicialmente as ideias de um ensaio de Joseph Addison sobre o espectador, que está em
sua compilação, onde ao tratar do dualismo do ser humano afirma que, uma vez desligada do
corpo, a alma é simultaneamente teatro, atores e plateia. Quando nos referimos ao espectador
idealizado, geralmente especulamos o Outro. No caso de Borges, e isso afirma uma de suas
estratégias ao iniciar seus livros, o leitor comumente é convocado em seus prólogos. É bom
lembrar que Borges, no Manual de zoología fantástica, se colocou também como espectador –
quando criança de um jardim zoológico. Sobre o aspecto do espectador de um zoológico
Randy Malamud faz algumas incursões e especulações:
Tenho a hipótese que a audiência zoo é passiva, minimamente imaginativa, sofrida,
pelo menos um pouco desagradável, que conduz a uma gama de comportamentos
indesejáveis ou socialmente inapropriados e inibidor, em vez de gerador, de uma
experiência criativa e a apreciação tanto de histórias de zoo e sua cultura sugere que
os espectadores tendem a mostrar poucos dos nobres instintos de inquirir ou do
apetite epistemológico e experiencial enquanto passam de gaiola em gaiola.
(MALAMUD, 2002, p. 220, tradução nossa)
Malamud, ao imaginar um espectador de zoológico pouco imaginativo, não tinha
em mente um espectador como Jorge Luis Borges. É justamente em um “sonho” de Borges
que, nesse aspecto, caberia juntarmos à catalogação de sua “zoología” um sonho de sua
autoria, coletado no Livro dos sonhos:
DREAMTIGERS
Durante a infância exerci com fervor a adoração do tigre; não o tigre esbranquiçado
dos camalotes do Rio Paraná e da confusão amazônica, mas sim o tigre raiado
asiático, real, a quem somente podem enfrentar os guerreiros, encastelados no dorso
de um elefante. Costumava eu demorar-me interminavelmente diante de uma das
33
No Manual de zoología fantástica se encontram os sonhos de três escritores com animais: C.S.Lewis, Kafka e
Edgar Allan Poe. O sonho enquanto linguagem em sua narração parece ser um momento em que os afetos do
homem se mostram mais presentes. Esta é uma das leituras possíveis a partir de Borges, sem necessitar percorrer
um viés psicanalítico.
jaulas do Zoológico; e eu gostava das volumosas enciclopédias e dos livros de
história natural por causa do esplendor de seus tigres. (Ainda me recordo dessas
figuras; eu, que não posso lembrar-me sem errar do rosto ou do sorriso de uma
mulher). Passou a infância, e caducaram meus tigres e sua paixão, porém eles ainda
estão nos meus olhos. Nesta corda de rede submersa ou caótica seguem
prevalecendo, e assim, se durmo, me distrai um sonho qualquer e em seguida sei que
se trata de um sonho. Costumo pensar, então: este é um sonho, uma pura diversão da
minha vontade, e já que tenho um poder ilimitado, vou produzir um tigre.
Oh, incompetência! Meus sonhos não sabem nunca engendrar a fera desejada. O
tigre aparece, sim, porém dissecado e débil, com impuras variações de forma, ou de
um tamanho inadmissível, ou muito fugaz, ou parecendo-se mais com um cachorro
ou com um pássaro. (BORGES, 1986, p. 134-135)
Do choque fervoroso entre as jaulas do zoológico, as volumosas enciclopédias e
os livros de história natural nasce uma afeição de Borges pelos tigres. Nesse aspecto, Borges
não foi um espectador pouco imaginativo e com uma criatividade inibida. Justamente, talvez
desse sonho de Borges, tenha nascido o seu Manual de zoología fantástica e, por conseguinte,
O livro dos seres imaginários, além da contribuição do autor argentino para uma série de
“bestiários” na literatura latino-americana. Com o referido sonho, tornam-se mais notáveis os
afetos que constituem o saber de Jorge Luis Borges. E, mesmo no sonho, outro detalhe é
importante: a questão da forma do animal não é fixa no sonho de Borges esse animal está
em pleno movimento, justamente por uma “incompetência” do autor do sonho que, na
“diversão de sua vontade”, não consegue produzir mentalmente e com fidelidade a imagem do
animal grandioso que ele quer. Aliás, essa imagem do animal sonhado por Borges seria a de
um tigre que gera um verdadeiro disparate: a imagem de seu tigre asiático está entre um
cachorro e um pássaro.
Que tigre Borges procura em seu “sonho do dia”? Que animais sua escrita cria?
Que fauna surge uma vez agrupada no não-lugar da linguagem nas reuniões insólitas de
seus livros? Longe de responder objetivamente tais perguntas, mas pensando em desdobrá-las
na discussão sobre a zoologia borgiana, encontramos em um poema intitulado “O outro tigre”,
contido em O fazedor (1999), algumas pistas da procura do escritor:
Penso em um tigre. A penumbra exalta
A vasta Biblioteca laboriosa
E parece afastar suas estantes;
Forte, inocente, ensanguentado e novo,
Ele irá por sua selva e sua manhã
E deixará seus rastros na lodosa
Margem de um rio cujo nome ignora
(Em seu mundo não há nomes nem passado,
E não há futuro, só um instante certo.)
E vencerá as bárbaras distâncias,
Farejará no enleado labirinto
Dos olores o olor da alvorada
E o olor deleitável do veado;
Entre as riscas de bambu decifro
Suas riscas e pressinto a ossatura
Sob essa pele esplêndida que vibra.
Inultilmente interpõem-se os convexos
Mares e os desertos do planeta;
Desta morada de um remoto porto
Da América do Sul, te sigo e sonho,
Oh, tigre das ribeiras do rio Ganges.
Corre a tarde em minha alma e pondero
Que o tigre vocativo de meu verso
É um tigre de símbolos e sombras,
Uma série de tropos literários
E de memórias da enciclopédia,
Não o tigre fatal, joia nefasta
Que, sob o sol ou a diversa lua,
Vai cumprindo em Sumatra ou em Bengala
Sua rotina de amor, de ócio e de morte.
A esse tigre dos símbolos opus
O verdadeiro, o de sangue quente,
O que dizima uma tribo de búfalos
E hoje, 3 de agosto de 59,
Estende sobre o prado uma pausada
Sombra, mas só o fato de nomeá-lo
E de conjecturar sua circunstância
Torna-o ficção da arte e não criatura
Animada das que andam pela terra.
Procuraremos o terceiro tigre.
Como os outros, este será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Pisa a terra. Sei disso, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em procurar pelo tempo da tarde
O outro tigre, o que não está no verso.
(BORGES, 1999c, p. 223-224)
Jorge Luis Borges parece procurar algo que chama de “o terceiro tigre”.
Entretanto, antes, é preciso pensar quais são os dois primeiros tigres no poema de Borges. No
mundo do primeiro tigre, real, não há nomes (ou ele os ignora), pois ele vive na imanência de
uma “leitura” que fareja a presa. Sobre o intervalo entre o primeiro e o segundo tigres,
convém citar a consideração de Jean Baudrillard, em “As bestas – território e metamorfoses”,
a propósito dos sonhos dos animais: “As bestas não possuem inconsciente, é bem conhecido.
Elas sonham sem dúvida, mas isto é uma conjectura de ordem bio-elétrica, e falta-lhes a
linguagem, que apenas sentido ao sonho, em inscrever-lhe em uma ordem simbólica”
(BAUDRILLARD, 1981, p. 202, tradução nossa). Sim, existe a falta de uma linguagem, mas
a linguagem que falta é a humana, para que então exista um compartilhamento, uma
comunicação entre o homem e o animal. O fato de não existir tal ato comum pela linguagem
humana não implica dizer que os animais são destituídos de uma linguagem própria. Maria
Esther Maciel argumenta sobre a distância entre o homem e o animal no aspecto da
linguagem, o que nos permitirá ler a transição do primeiro para o segundo tigre de Borges:
Emblemática, neste contexto, é a célebre frase de Wittgenstein: “se o leão pudesse
falar, nós não o entenderíamos” – variação do dizer de Ovídio, segundo o qual, “se o
animal falasse, nada diria”. Isso porque, como o filósofo sugere, a lógica que
nortearia essa fala seria radicalmente outra e, certamente, nos despertaria para o
conhecimento imediato de nossa própria ignorância. Do que se pode depreender que
a linguagem não é suficiente para responder a questão da diferença entre humano e
não-humano. (MACIEL, 2008a, p. 73)
A questão permanece em aberto e a melhor maneira que encontramos para
traduzi-la é prosseguir a leitura do poema de Borges, “O outro tigre”. Após o comentário a
respeito do primeiro tigre no poema, para chegarmos ao segundo, tendo em vista o aspecto
da linguagem, percebemos que existe uma longa distância entre um e outro tigre. O segundo
tigre é de “símbolos e sombras”, trata-se de um tigre literário, evocado da memória das
enciclopédias. E, segundo Borges, nomeá-lo o torna ficção. Pelo fato de torná-lo ficção,
ainda na leitura do poema, é retirada dele toda a força que dizima uma tribo de búfalos.
Mesmo com essa força retirada, outra força parece povoar esse segundo tigre descrito por
Borges: o exercício de animalidade do próprio escritor. Esse exercício é uma aproximação
com o animal que se concentra no próprio “devir” da escrita. Assim, como argumenta Maria
Esther Maciel, “Falar de um animal ou assumir sua persona não deixa de ser também um
gesto de espelhamento, de identificação com ele. Em outras palavras, o exercício da
animalidade que nos habita” (MACIEL, 2008a, p. 68). E é a partir de tal gesto que o autor
ficará inquieto para alcançar o “terceiro tigre”. Entretanto, note-se que o terceiro tigre
procurado por Borges ainda faz parte de um sistema de palavras humanas. É um animal que
povoa seu sonho, mas mesmo assim, além de sua força imaterial, ele pisa a terra, mesmo não
sendo o tigre vertebrado. Assim, talvez se trate dessa busca a aventura de Borges, em todas as
suas zoologias, de procurar por um tigre ou por um animal que, mesmo não sendo real, não
está no verso, não está na literatura. Fazendo uma leitura dos três tigres parece-nos que Jorge
Luis Borges criou uma verdadeira dialética da relação do animal com o escritor, cuja síntese
seria o “terceiro tigre”, que é puro movimento, que apenas por um lado pode ser lido como
um “devir-animal” de Borges, pois o pensamento de Gilles Deleuze não coaduna com a
dialética de Hegel, que consiste em tese, antítese e síntese. Nessa dialética borgiana, toda a
escrita zoomórfica se torna procura, pois o terceiro tigre parece ser um animal inalcançável,
ou seja, um animal metamórfico.
Saindo do tigre, por outro viés do mundo dos sonhos, existe um animal curioso no
Jardim zoológico de Wilson Bueno. Trata-se dos “rememorantes”, cujo verbete reproduzimos
integralmente no Capítulo 1. Bueno, no mundo dos sonhos, criou seres insones, mnemônicos,
cuja imagem apresenta a relação entre saber e afeto em Jardim zoológico. Dotados de um
apetite voraz, esses seres se nutrem de tais “afetos”, os sonhos, para assim constituírem uma
grande memória que nos remete diretamente ao personagem borgiano Irineu Funes, da
narrativa “Funes, o memorioso”. Assim como os rememorantes, Funes parecia sempre em
vigília, na escuridão de onde apenas se ouvia uma voz, que a tudo sabia. Ele era todo
memória. É aqui que chegamos a um ponto em comum entre Jorge Luis Borges e Wilson
Bueno, no que diz respeito a uma memória corporal, que se manifesta no seguinte fragmento
de Borges: “Essas lembranças não eram simples; cada imagem visual estava ligada às
sensações musculares, térmicas, etc. Podia reconstruir todos os sonhos, todos os
entressonhos” (BORGES, 1998e, p. 543). Não era apenas o essencial que era retido nessa
memória, que era rememorado, mas cada palavra, cada gesto perduraria. O corpo de Funes era
afectado por sua memória. Lembrar de algo com todos os detalhes, para ele, implicava reviver
corporalmente esses detalhes, de tal maneira que seu corpo, na leitura que fazemos, era
profundamente afectado pelo seu saber, tanto que, na narrativa, seu corpo não “suportou” sua
memória.
Possivelmente “o terceiro tigre”, para Jorge Luis Borges, se apresente como uma
abertura para sua própria afecção enciclopédica. É deste peso e desta fenda que Wilson Bueno
cria os “rememorantes”, animais capazes de devorar os sonhos mais profundos, capazes de
limpar nossa memória. É justamente aqui que os “rememorantes”, inicialmente remetidos à
Funes, se tornam de uma natureza totalmente diversa, aliás, oposta. Pois os “rememorantes”
não permitem uma acumulação de sonhos, eles captam todos os sonhos e nos sopram apenas
fragmentos. Se por um lado o excesso de memória foi um fator decisivo para a morte de
Funes, para os “rememorantes” essa memória se torna uma glutonaria a partir de um alimento
como o sonho.
Essa é uma das maiores contribuições de ambos os escritores na elaboração de
suas respectivas faunas pois, além da autonomia que existe entre ambas as zoologias, os
animais de Bueno parecem complementar os catalogados por Borges e vice-versa. Tal
autonomia se inscreve no gesto necessário do escritor para manter sua obra em pé, sozinha,
pois como argumentaram Deleuze e Guattari em “Percepto, afecto e conceito”:
O mais difícil é que o artista o faça “manter-se em sozinho”. Para isso, é preciso
por vezes muita inverossimilhança geométrica, imperfeição física, anomalia
orgânica, do ponto de vista de um modelo suposto, do ponto de vista das percepções
e afecções vividas. (DELEUZE e GUATTARI, 1992, p. 214)
Como se Borges estivesse provocando, por intermédio de materiais diversos, uma
escrita que não seja constituída apenas por toda a força de seu saber. Mas, evocando, de outro
modo, um mundo afetivo, distante, da criança atenta e imaginativa que ele foi diante de
uma jaula de um zoológico. Wilson Bueno, por sua vez, evoca esses “afectos” com os
“rememorantes”, não apenas pelo que existe de diálogo com a obra de Borges, uma outra
configuração de seu saber literário, mas pelo fato de fazer restar diante de nós imagens
imprecisas dos sonhos, fragmentos, restos do que foi uma experiência tão intensa para a
imaginação como a do sonho. De nutrir seus seres com o que nos falta em nossa vida. Enfim,
porque nos constituímos de um saber sempre incompleto, fragmentado, por mais que exista
uma sensação de habitar um corpo completo. Assim, é a partir dessa incompletude que
percorreremos nestas páginas finais uma fauna cuja ambiguidade está, primeiramente, na
própria relação com esse corpo, considerado incompleto ou alterado.
Tal ambiguidade gera outra relação com o saber que pode, inclusive, fragilizar o
homem, enquanto instituição. Se foi pelo viés da imaginação que o homem se separou dos
animais – como assinalou anteriormente John Berger –, Wilson Bueno e Jorge Luis Borges se
valem da imaginação para não separá-los. Afirmamos isso mesmo sabendo do risco de
continuar com a separação estendida entre homem e animal, como atribuiu Michel de
Montaigne:
Pela vaidade mesma dessa imaginação, iguala-se a Deus, atribuindo-se a si próprio
qualidades divinas que ele mesmo escolhe. Separa-se das outras criaturas; distribui
as faculdades físicas e intelectuais que bem entende aos animais, seus
companheiros. Como pode conhecer com sua inteligência os móveis interiores e
secretos deles? (MONTAIGNE, 1962, p. 186)
Entretanto, tal percurso imaginativo de Montaigne o de distribuir faculdades
físicas e intelectuais ao animal está mais relacionado à fábula e, mesmo que a fábula faça
parte de um universo literário, no Manual de zoologia fantástica e no Jardim zoológico o
saber existente é um saber falho, em que a fábula se desmonta. Este saber conjectural abre as
possibilidades para a imaginação, como muito bem pontua Maria Esther Maciel:
Do que sabem os animais sobre os humanos ninguém sabe, mas tudo se imagina. E
toda tentativa de se revelar esse saber falha, por apenas refletir o que queremos que
eles pensem de nós. O que não impede que escritores continuem conjeturando sobre
esse saber. (MACIEL, 2008a, p. 65).
Borges e Bueno compartilham esse saber que falha. Aliás, ambos até tiram
proveito dessa situação em suas narrativas, em seus poemas e em seus sonhos. É a partir da
falha que Bueno imagina os seus animais. É a partir da falha que Borges, pelo viés da
imaginação, os cataloga e os agrupa. Contudo, é com a imagem de um sonho que concluímos
essa leitura. Uma imagem cuja ambiguidade é muito próxima do que discutimos aqui sobre a
relação entre homem e animal, saber e afeto. Trata-se de “O sonho de Chuang Tzu”, de
Herbert Allen Giles, contido em O livro dos sonhos de Borges: “Chuang Tzu sonhou que era
uma borboleta e não sabia, ao acordar, se era um homem que tinha sonhado ser uma
borboleta, ou uma borboleta que agora sonhava ser um homem” (BORGES, 1986, p. 132).
CONSIDERAÇÕES FINAIS: NOVOS PONTOS DE PARTIDA
Ao nos depararmos com o índice dos livros Manual de zoología fantástica, de
Jorge Luis Borges e Jardim zoológico, de Wilson Bueno e após encerrar um breve estudo
sobre as referidas obras –, percebemos que a lista dos animais neles contidos como índice não
se encerra neste princípio organizador do livro. Do mesmo modo ainda o que ser dito e
analisado sobre o tema, pois parafraseando Jorge Luis Borges e Margarita Guerrero, um
estudo dessa índole é necessariamente incompleto e, ainda com Borges e Guerrero (2006, p.
14), “que alguma omissão involuntária nos seja perdoada”.
Esta paráfrase torna-se oportuna neste momento porque explicita um
procedimento catalogador que não objetiva um saber totalizador sobre os animais, mas revela
uma incompletude própria do gesto de Borges e Guerrero junto a uma fauna inicialmente
“fantástica” e, em seguida, “imaginária”. Afinal, como afirmou Maria Perla Araújo Morais
(2009, p. 62), “a reescritura, a revisão e a variação se constituem em temáticas familiares ao
universo ficcional do argentino Jorge Luis Borges”. Assim, para Borges, a reescritura está
sempre em cena. Ela é contínua.
Sobre a mudança de título que faz parte da reescrita borgiana, Morais analisa
como uma abertura a mudança dos termos “zoologia fantástica” para “seres imaginários”,
assim como “manual” para “livro”, cuja ironia de totalidade é bem maior (MORAIS, 2009, p.
63). Entretanto, afirmar que o título Manual de zoología fantástica é “bastante excludente”
retoma algumas discussões que tivemos no decorrer da dissertação. Afinal, a reescritura de
Borges situa-se entre o bestiário e o zoo. Ativar a leitura do Manual de zoología fantástica
(1957) pela exclusão é tomar por parti pris a leitura de Deleuze e Guattari que, ao apontarem
um problema, uma falha, em O livro dos seres imaginários, parecem ter caído numa cilada
tipicamente borgiana.
Mesmo que tenha se dado inicialmente pelo viés da semelhança nossa
aproximação entre Wilson Bueno e Jorge Luis Borges, preferimos situá-la em uma “súbita
vizinhança”, algo que o “não-lugar da linguagem”, sobretudo a literária, poderia tornar
possível, pois esta abordagem comparatista aponta tanto semelhanças e diferenças que
procuramos clarificar, mesmo que dentro de um limite espacial e cronológico.
Houve no princípio a semelhança pela própria condução de Wilson Bueno a uma
reescrita, que consistiu em dois livros, Manual de zoofilia (1997) e Jardim zoológico (1999).
No entanto, no decorrer das leituras, a diferença entre ambos se tornou mais forte. Enquanto
Jorge Luis Borges, em seus livros, catalogou animais e “seres” da literatura universal, Wilson
Bueno se concentrou em uma fauna insólita da América Latina, sobretudo nos confins e nas
regiões de fronteira entre os países latino-americanos, fato mais consistente em Jardim
zoológico. Por uma simetria oposta, Bueno se utiliza de fontes orais e literárias, além do autor
argentino para criar a sua fauna como lemos no quarto capítulo. Borges, por sua vez,
desloca os animais de seus contextos e reinsere-os, de modo anacrônico, na América Latina,
sendo que, por esta compilação, seria impossível afirmar que animais como o A Bao A Qu, o
Odradek ou o Borametz, para citar três exemplos brevemente analisados, não trazem um
problema do local de onde Borges fala. Retomando a estratégia de Bueno em que, da cópula
de dois seres diferentes nasce um terceiro, existe ainda outra diferença entre os dois escritores,
a qual retomamos a partir da repetição dos últimos versos do poema “O outro tigre” de
Borges:
Procuraremos o terceiro tigre.
Como os outros, este será uma forma
De meu sonho, um sistema de palavras
Humanas, não o tigre vertebrado
Que, para além dessas mitologias,
Pisa a terra. Sei disso, mas algo
Me impõe esta aventura indefinida,
Insensata e antiga, e persevero
Em procurar pelo tempo da tarde
O outro tigre, o que não está no verso.
(BORGES, 1999c, p. 224).
O que Borges procurou incessantemente em seus “manuais” e “livros” que
continham uma zoologia foi o animal que não está no verso e que também não está no mundo
real? Que animal seria esse? Essa leitura, que encerra um ciclo desta pesquisa, requer uma
hipótese acerca da animalidade nas obras estudadas de Jorge Luis Borges e Wilson Bueno.
Para chegar a este momento foi necessário um conjunto de leituras, no qual se articularam
reflexões de ordem filosófica e literária, passando pelo “devir-animal” de Gilles Deleuze e
Felix Guattari, pelos “animots” de Jacques Derrida, além de suas reflexões sobre a fábula e
de uma incursão pelos bestiários medievais e pelos relatos de viajantes.
Para chegarmos a uma hipótese que encerraria um momento deste estudo, com o
propósito de desdobrá-lo e aprofundar algumas questões desenvolvidas, faremos um pequeno
recorte no mundo da fábula. Felipe Fernández-Armesto, no livro cujo título é uma pergunta
Então você pensa que é humano? (2007) aborda a questão da fronteira animal no que diz
respeito à fábula. Em sua abordagem, Fernández-Armesto diz que muitas de nossas histórias
favoritas são antropomórficas, passando por fábulas que se tornam moralmente convincentes
por existirem corvos, camundongos e raposas como personagens. Neste aspecto, nossa
imaginação atravessa a fronteira entre humanos e outros animais, onde se configura uma clara
distinção entre ambos. Entretanto Fernández-Armesto se pergunta:
Mas outra fronteira indistinta, difícil de negociar, entre o antropomorfismo e o
zoomorfismo. Quando colocamos palavras humanas na boca de seres não humanos e
emoções humanas no peito de animais, o que está sendo desfigurado? A natureza
humana, ou a natureza dos animais que invocamos como veículos para nossas
histórias e nosso ceticismo a respeito de nós mesmos? (FERNÁNDEZ-ARMESTO,
2007, p. 17-18)
Estamos diante de uma difícil negociação entre homem e o animal. Nestes
“bestiários-zoo” de Jorge Luis Borges e de Wilson Bueno, encontramos este limite: o do
“outro tigre”, de Borges; o da cópula entre espécies distintas que geram uma outra, de Bueno.
Nestes livros e sobretudo nestes aspectos, Borges e Bueno não se entregam à fábula.
Decorrente desta questão, Jacques Derrida, em seu último seminário ministrado na
École de Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), em 2001-2002, La bête et le
souverain (2008), aborda o problema da fábula de maneira mais aprofundada:
O fabuloso da fábula não tem somente sua natureza linguageira, pelo fato da fábula
ser constituída de palavras. O fabuloso engaja também o ato, o gesto, a ação, esta
não seria mais que a operação a qual consiste a produzir uma história, a organizar, a
dispor em discurso para dizer, a por em cena as vidas, a acreditar na interpretação de
uma história, a “fazer saber”, a fazer o “saber”, a fazer performativamente, a operar
o saber. (DERRIDA, 2008, p. 63, tradução nossa).
É por isso que não lemos os animais-verbete de Jorge Luis Borges e Wilson
Bueno pelo viés da fábula, por seu caminho antropomórfico, e sim pelo que existe de
possibilidade de saber heterogêneo, que inclui o próprio “não-saber”, se quisermos ler por um
viés batailleano o problema do animal. E aqui regressamos a uma hipótese decorrente de tais
leituras: quando Maria Perla Araújo Morais afirmou que o título Manual de zoología
fantástica é bastante excludente (MORAIS, 2009, p. 63), acreditamos que a fonte da exclusão
está focada na palavra “zoologia”; afinal, torna-se mais viável, como leitor ou como crítico,
ser incluído no termo “seres”, de Borges.
Assim, diante da palavra “zoologia”, quem se exclui é o “homem”, quando ao
lermos esse étimo a partir das reflexões de Jacques Derrida, em La bête et le souverain, o
“zôon”, palavra grega de onde se origina zoo, significa “vivente” (DERRIDA, 2008, p. 49). A
animalidade, portanto, seria essa situação vivente, da “zoé”, da “bíos”, respectivamente
exclusão e inclusão,
34
na qual nosso corpo está intimamente ligado. Não há modos de se
apagar isso, por mais que existam modelos includentes e excludentes para uma dimensão que
se situa entre a vida e o político. Por isso, propomos o inverso ao afirmar que o título Manual
de zoología fantástica inclui muito mais que O livro dos seres imaginários, assim como
propõe mais questões a respeito. Por isso também nossa preocupação com alguns aspectos da
linguagem, ou melhor, com algumas figuras, como a metáfora e a metamorfose que, por mais
que não se situem de modo estanque e esquemático, são continuamente colocadas em
movimento por Jorge Luis Borges e Wilson Bueno, cada um a seu modo.
Articulando vivência e saber, Silviano Santiago, em um pequeno artigo intitulado
“Borges”, também nos ajudou a esboçar a questão do afeto no escritor argentino, cuja
predominância das leituras críticas é logocêntrica:
De imediato Borges me tocou pela maneira luminosa como articula vivência e saber.
Alguns autores nos trazem o ensolarado da vivência e o hedonismo satisfeito de um
corpo prazeroso pelo mundo; outros nos trazem o fogo do saber e o gozo luxuriante
e perverso do voyeurismo intelectual. Nem sol nem chama, sol e chama Borges é a
luz. Luminosa foi a maneira como me ajudou a resolver, pela sua ficção, problemas
de alcance teórico que as melhores teorias (os melhores teóricos que lia) deixavam
sepultados para todo o sempre. (SANTIAGO apud SCHWARTZ, 2001, p. 434)
Essa é a armadilha que Jorge Luis Borges prepara em seu universo ficcional. Suas
ficções não possuem uma porosidade que permita que um pensamento ou uma teoria as tome
por objeto, mas vai além dessa relação, onde a rede ficcional de Borges condensa um saber
heterogêneo que não pertence a um lugar-comum. Sem pertencer a um lugar-comum e a um
lugar-fetiche, a própria noção de entre-lugar, de Silviano Santiago, nasceu de uma profunda
relação de leitura da obra borgiana:
Nem o lugar-comum dos nacionalismos brabos, nem o lugar-fetiche do aristocrata
saber europeu. Lugar-comum e lugar-fetiche imaginei o entre-lugar e a solidariedade
latino-americana. Inventei o entre-lugar do discurso latino-americano que tinha
sido inaugurado pelos nossos melhores escritores. (SANTIAGO apud SCHWARTZ,
2001, p. 434)
34
Para esta discussão, que aprofundaremos em outra oportunidade, o texto “Zoologias imaginárias e biopolíticas
modernas”, de Raúl Antelo (SCHWARTZ, 2001, p. 241-260), fornece muitos elementos para o pensamento do
corpo social e do corpo biológico. Giorgio Agamben na introdução de Homo sacer comenta esta questão: “Os
gregos não possuíam um termo único para exprimir o que nós queremos dizer com a palavra vida. Serviam-se de
dois termos, semântica e morfologicamente distintos, ainda que reportáveis a um étimo comum: zoé, que
exprimia o simples fato de viver comum a todos os seres vivos (animais, homens ou deuses) e bíos, que indicava
a forma ou maneira de viver própria de um indivíduo ou de um grupo (AGAMBEN, 2007, p. 9).
Silviano Santiago, portanto, sistematizou o que era uma prática literária nada
homogênea na América Latina. Matizou uma discussão que foge de pontos determinados, seja
da episteme europeia, sejam os lugares mais comuns do Novo Mundo no imaginário europeu.
Assim, nossa leitura procurou situar-se também em um “entre” as zoologias de Jorge Luis
Borges e de Wilson Bueno. Este “entre” não é simplesmente indefinido, mas um lugar onde
estes conceitos não estão cristalizados; é um lugar onde a escrita está aberta à contínua
metamorfose, à transformação.
Por fim, diante desta abertura ao metamórfico, retomamos o que afirmou Maria
Esther Maciel: “do que sabem os animais sobre os humanos ninguém sabe, mas tudo se
imagina” (MACIEL, 2008a, p. 65). E essa é a constituição de toda uma aventura pela
literatura, pois muito se imagina sobre os animais, mas essa imaginação, convém precisar,
possui diversos pontos de partida. Alguns deles foram traçados neste breve estudo que não
pretende encerrá-los, pois tais considerações finais apresentam mais uma abertura para
continuar pelos caminhos bifurcados entre diversos “animais escritos”.
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