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Universidade de São Paulo
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas
Olivo Bedin
O fazer poético de João Cabral de Melo Neto
e de Fernando Pessoa
São Paulo
2009
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Olivo Bedin
O fazer poético de João Cabral de Melo Neto e de Fernando
Pessoa
Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de
São Paulo USP, com vistas à obtenção do
título de Doutor em Letras.
Área de Estudos Comparados de Literaturas de
Língua Portuguesa
Orientador: Prof. Dr. Mário César Lugarinho.
São Paulo
2009
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BEDIN, Olivo. O fazer poético de João Cabral de Melo Neto e de
Fernando Pessoa. Tese apresentada à Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo USP,
com vistas à obtenção do título de Doutor em Letras. Área de
Estudos Comparados de Literaturas de Língua Portuguesa
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. MÁRIO CESAR LUGARINHO Instituição: FFLCH - USP
Julgamento: __________Assinatura ____________________
Profa. Dra. SIMONE CAPUTO GOMES Instituição: FFLCH - USP
Julgamento: __________Assinatura ____________________
Prof. Dr. EMERSON DA CRUZ INACIO Instituição: FFLCH - USP
Julgamento: __________Assinatura ____________________
Profa. Dra. ELISA GUIMARÃES Instituição: MACKENZIE -SP
Julgamento: __________Assinatura ____________________
Profa. Dra. ROSEMEIRE LEÃO DA SILVA FACCINA Instituição:
MACKENZIE SP.
Julgamento: __________Assinatura ____________________
3
A meus pais (in memoriam) razão vital e incentivo primeiro que
me levariam a descobrir algumas das intermináveis incógnitas
da vida.
À minha esposa Sandra e à minha filha Maria Camila pela
paciência, estímulo e compreensão, qualidades indispensáveis
como suporte para a convivência familiar, durante as muitas
horas de trabalho e pesquisa
4
AGRADECIMENTOS
Embora em caminhos diferentes e dialéticos, a razão e o
sentimento provêm da mesma fonte: DEUS, logo, os primeiros
agradecimentos elevo-os a Ele que, através das coisas simples
da vida, faz-nos entender as complexas realidades e incógnitas
do universo real e transcendental.
Em segundo lugar, agradeço à Profª. Drª. Benilde Justo Lacorte
Caniato (in memoriam), primeiro pela oportunidade de ser seu
orientando, mas, principalmente, pelo exemplo de humildade,
dedicação e abnegação ao trabalho a que se entregou. Um
eterno Deus lhe pague, pelo seu estímulo, apoio, paciência e
pelas suas orientações. Tenho certeza que Deus lhe reservou
um maravilhoso lugar perto dEle, na composição das bancas
celestiais, como recompensa de todo o seu trabalho e
sofrimento, professora.
À Profª. Drª. Elisa Guimarães, minha orientadora de mestrado
do Mackenzie pela inestimável colaboração e da qual provieram
importantes orientações para a realização deste trabalho.
Por último, agradeço ao Prof. Dr. Mário Lugarinho por ter
abraçado minha causa, pelas orientações, apoio e ter aceitado a
incumbência de ser meu novo orientador. Aos demais
professores da banca, meu reconhecimento pelo apoio, pelo
estímulo e pela sua avaliação.
A todos, meu eterno MUITO OBRIGADO!
5
LEGUM ET LABORIS OMNES SERVI SUMUS UT LIBERI ESSE
POSSIMUS.
6
BEDIN, Olivo. O fazer poético de João Cabral de Melo Neto e de
Fernando Pessoa. 2009, f. Tese (Doutorado). Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São
Paulo, São Paulo, 2009.
RESUMO
Considerações sobre literatura comparada e a contextualização
histórica da vida e obra de João Cabral de Melo Neto e de
Fernando Pessoa, referenciando os principais fatos e fatores que
contribuíram e influenciaram a projeção artística de ambos.
Reflexão em torno do fazer poético de João Cabral de Melo Neto
e de Fernando Pessoa, notadamente nos aspectos estilísticos
que serão abordados em alguns de seus poemas,
especificamente, os relativos às construções metafóricas.
Palavras-chave: poesia do século XX, metáfora, literatura
comparada.
7
BEDIN, Olivo. The poetic production process of João Cabral de Mello Neto
and Fernando Pessoa. 2009, f. Thesis (Doctoral). Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2009.
Abstract
Considerations about compared literature and the historical
contextualization of João Cabral de Mello Neto’s and Fernando Pessoa’s life
and work, making reference to the main facts and factors that contributed
and influenced their artistic projections. Reflection around to the poetic
production process of João Cabral de Mello Neto and Fernando Pessoa,
particularly on the stylistic aspects that are going to be approached in
some of their poems,
specifically the ones related to metaphoric constructions.
Keywords: 20th century poem, methafor, compared literature.
8
SUMÁRIO
Introdução ................................................................................................................................. 10
CAPÍTULO 1 – Primeiras considerações ................................................................................. 18
1.1 - Literatura Comparada - Histórico/função/definição ................................................... 18
1.2 – João Cabral de Melo Neto ............................................................................................ 25
1.3 – Fernando Pessoa ........................................................................................................... 37
CAPÍTULO 2 – A metáfora e o fazer poético ......................................................................... 51
2.1- A metáfora: aspectos teóricos ........................................................................................ 52
2.2- A metáfora em João Cabral de Melo Neto .................................................................... 65
2.3- A metáfora em Fernando Pessoa ................................................................................... 76
2.4- O fazer poético: origem e evolução histórica ................................................................ 87
3.1 - João Cabral de Melo Neto .......................................................................................... 115
3.2- Fernando Pessoa .......................................................................................................... 153
CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 192
BIBLIOGRAFIA .................................................................................................................... 199
9
INTRODUÇÃO
Com este trabalho de pesquisa pretendemos propor uma
análise e reflexão que abranjam, não só a concepção sobre o
fazer poético de João Cabral de Melo e de Fernando Pessoa,
bem como, sobre alguns aspectos estilísticos. A análise destes,
limitar-se-á, no entanto, às construções metafóricas
encontradas em poemas dos referidos autores.
Como referenciado anteriormente, os objetivos deste
trabalho fundamentam-se na análise de importantes fatores
(aspectos) da obra de João Cabral de Melo Neto e de Fernando
Pessoa. Quanto à linguagem/estilo, analisaremos certas figuras
de palavras como a metáfora que se caracteriza por apresentar
sempre uma mudança, substituição ou transposição do sentido
real para o sentido figurado.
No capítulo 1, serão feitas algumas considerações sobre
literatura comparada de tal forma que tenhamos uma noção
clara sobre a base de nosso trabalho que consiste, exatamente,
na análise comparativa (respeitadas todas as limitações que ela
implica...) da obra de dois autores de países diferentes,
embora, ambos dominem e escrevam no mesmo idioma.
Segundo P. Brunel e outros (1995) no livro: “Que é
literatura comparada?, podemos destacar que, durante muito
tempo, a mesma foi vista como especialidade rara e mesmo
esotérica e, às vezes, considerada com desconfiança e ironia;
hoje, no entanto, deixou de ser privilégio de algumas
universidades de vanguarda e entrou, em toda parte, nos
costumes acadêmicos.
10
Como a literatura comparada não é uma técnica aplicada a
um domínio restrito e preciso e, sendo ampla e variada, reflete
um estado de espírito feito de curiosidade, de gosto pela
síntese, de abertura a todo fenômeno literário, quaisquer que
sejam seu tempo e lugar, diversificando-se, portanto, de acordo
e em todos os territórios.
Aos poucos, entretanto, contra essas células fechadas de
um tipo novo, a literatura comparada se insurgiu, pois ela tem
como traço, na escala do mundo, o fenômeno intelectual ligado
a uma evolução psicológica. Ela pertence não só à vida do
espírito, mas simplesmente à vida, com suas complexidades,
seus instintos cegos, seus impulsos generosos e seu movimento
incessante.
Da mesma forma será feita a contextualização da vida e da
obra dos dois poetas. Fernando Pessoa, por exemplo, cuja
infância passou junto aos pais e a avó paterna louca, ficou
profundamente marcado pela tuberculose de seu pai que foi
afastado de Lisboa por ordem médica, vindo a falecer e
deixando a família aos cuidados de duas criadas. Veremos
também que o novo casamento da mãe, Maria Magdalena, com o
comandante João Miguel, teve profundas mudanças na vida
dele, pois, isso fez com que a nova família se mudasse para a
África do Sul onde Fernando Pessoa recebeu formação escolar
segundo os moldes britânicos.
Quanto à obra, Fernando Pessoa (ele-mesmo), é um poeta
que verte um lirismo puro, produto de uma sensibilidade
extremada, de uma inteligência poética rara. Seus versos
procuram expressar o eterno desconforto de uma alma em
desamparo e solidão que, por vezes, tem a impressão de que
11
tudo é sonho e que os limites entre o real e o ilusório são
tênues.
Um poeta genial já é um fato raro e Fernando Pessoa não
foi apenas um, mas vários. Sua obsessão pelo fazer poético não
encontrou limites. Despojando-se do eu pessoal vestiu várias
personas (personalidades) poéticas e viveu dialeticamente
quase todas as possibilidades do ser-em-poesia.
Sua poesia sonda o destino cósmico do ser humano,
perplexo com a obscuridade e o mistério da existência. Sente-se
nela uma ânsia de infinito, de absoluto, cortada frequentemente
pela pequenez do cotidiano.
A inquietação, a necessidade de compreender todas as
coisas, a busca constante de consciência, que inclui saber ser
ela uma impossibilidade, constituem algumas das características
fundamentais de sua obra, reveladas de forma profunda no
poema O andaime, especialmente nos aspectos inerentes à
dualidade vida/morte, como veremos na análise do mesmo no
capítulo 3 item 3.2.
João Cabral de Melo Neto, por sua vez, nasceu em Recife e
passou sua infância nos engenhos de açúcar de São Lourenço da
Mata e Moreno. Em 1946, Cabral ingressou na carreira
diplomática, viajando em várias cidades do mundo, tendo sido
brilhante, tanto como diplomata quanto como literato. Do ponto
de vista de sua obra, João Cabral é chamado de poeta-
engenheiro, tal o grau de premeditação formal que emprega na
confecção de seus poemas. Quando escreve, coloca palavra
sobre palavra, assim como o engenheiro coloca pedra sobre
pedra.
12
A preocupação com o fazer poético, encarado como fruto
do trabalho paciente e lúcido do poeta, é uma constante em sua
obra, que também trata, sem derramamentos sentimentais, dos
problemas sociais do Nordeste, principalmente no longo poema
Morte e vida severina.
No capítulo 2, além de ser feita uma pesquisa sobre a
origem e a evolução histórica da arte poética, serão colocadas
as diversas definições, sobre o fazer poético, desde Aristóteles,
Horácio até as concebidas tanto por João Cabral de Melo Neto,
bem como, por Fernando Pessoa, embasadas, quando necessário
e possível, por análises de estudiosos dos dois poetas.
Para João Cabral, o fazer poético consiste em uma poesia
que diga NÃO a todo tipo de confessionalismo, exigindo um tipo
de verso que obrigue o leitor a despertar, fazendo apelo à sua
razão e à sua inteligência, não cedendo ao automatismo do
surrealismo vigente, nem se deixando raptar por qualquer
estado emocional ditado por aquilo que se chama inspiração.
Fernando Pessoa, por sua vez, define o fazer poético
como:
O eu lírico do poeta, quando escreve, deixa em estado
de suspensão o sentimento que moveu a fazê-lo e
passa, paradoxalmente, a fingir no papel a emoção que
momentos antes era real, ou seja, na concepção do eu
poético, o escrever é um ato da razão e da imaginação
que tenta recriar o que o coração subjetivamente
sente.
Neste mesmo capítulo, faremos a análise estilística das
construções metafóricas que se caracterizam por apresentar
sempre uma mudança, substituição ou transposição do sentido
real para o sentido figurado da palavra.
A linguagem poética se reduz à metáfora, tão complexa
quanto o fenômeno poético que exprime. Tensão entre opostos,
13
no encalço de vislumbrar-lhes o fugidio limiar, a poesia se
define como um universo metafórico, em que uma tensão se
patenteia, se multiplica e jamais se esgota: envolvido no
redemoinho do fenômeno que intenta verbalizar, o poeta busca
uma forma adequada a metáfora não raro cônscio de
aguçar, ao invés de arrefecer, a tensão de que se sustenta e em
que se consome.
Do ângulo da conotação/denotação, observa-se que a
poesia constitui a tensão entre a camada denotativa, reflexo
do mundo físico e a camada conotativa reflexo do mundo
intelectivo do poeta desenvolvida no contexto do poema: a
poesia se desintegraria, caso se anulasse qualquer das
camadas, principalmente a conotativa.
Finalmente, no capítulo 3- será feita a análise referente ao
fazer poético, em alguns poemas dos dois poetas. Para João
Cabral, por exemplo, a poesia é uma construção, uma
composição uma coisa planejada de fora para dentro.
O poeta precisa furtar-se da inspiração como forma
romântica de entusiasmo que embriaga, do sonho que fascina e
do inconsciente que o reduziria a um papel lamentavelmente
passivo, de tal forma que, ganhando essa luta que se trava no
campo da folha em branco, ele possa construir o poema como
máquina da linguagem, fazendo cessar o esforço determinado
pela necessidade de expressão.
Por sua vez, Fernando Pessoa, em seu poema máximo que
exprime a idéia do fazer poético Autopsicografia- quando
afirma: O poeta é um fingidor. Essa proposição é esclarecida,
nos três versos seguintes, tomando, por núcleo, a dor: (o
14
poeta) Finge tão completamente / Que chega a fingir que é
dor / A dor que deveras sente.
O que quis dizer? Que a poesia não se encontra na dor
sentida, mas no fingimento da dor. A dor sofrida, real, para
alcançar o plano da Arte, tem de ser uma dor fingida,
imaginada, pois só esta pode ser expressa em palavras. A
palavra é a única forma de objetivar, tornar concreta, a dor,
que, como tal, se mostra, aparece, para a visão dos outros,
para a audição dos outros, para a sensação dos outros.
A forma de pensar o fazer poético de Fernando Pessoa não
é comum e está marcado, em todo o seu trajeto, por
dificuldades. O poema nasce no mundo da imaginação sob o
vigilante olhar crítico e racional do poeta. No intercâmbio
permanente entre uma e outra, em constante movimento
circular segredo que só almas geniais possuem -, está a
faculdade de produzir o belo poético. Mas, como se disse antes,
o concurso do leitor é imprescindível.
Quanto à análise dos aspectos estilísticos, serão extraídos
da obra dos poetas, alguns poemas, que serão definidos no
decorrer deste trabalho, referente ao emprego de metáforas
cuja importância semântico-estilística está estreitamente ligada
à manifestação do pensamento dos poetas. Essa ligação está
diretamente relacionada ao processo da construção sintática
coerente como forma implícita, às vezes, de os poetas fazerem
a leitura da realidade do mundo que os cerca.
Em relação à literatura comparada, tomamos como base
bibliográfica o livro Que é literatura comparada? de P.Brunel
et alii (1995) que nos mostra não se tratar apenas de uma
técnica aplicada a um domínio restrito e preciso, mas amplo e
15
variado aberto a todo fenômeno literário, quaisquer que sejam
seu tempo e lugar.
Quanto à evolução histórica, tomaremos por base o livro A
Arte Poética de Horácio de Pedro José da Fonseca o qual nos
relata com detalhes e precisão toda evolução e prática dos
conceitos inerentes à idiossincrasia literária dos poetas e
literatos desde a antiga Grécia, Roma, Idade Média, até o
século XX.
Finalmente, em relação à análise do fazer poético tanto em
João Cabral de Melo Neto como em Fernando Pessoa, basear-
nos-emos em livros e sites que versem especificamente sobre o
tema, bem como, forneçam-nos elementos abrangentes de
constatação dos fundamentos e conceitos no processo poético
de ambos.
Serão selecionados alguns poemas de cada autor,
notadamente aqueles cujo conteúdo servir de embasamento da
nossa análise, os quais se constituirão no corpus deste
trabalho de pesquisa e, baseados nesses textos, (poesias),
procederemos à análise e fundamentação propostas em cada um
dos capítulos anteriormente citados.
Destarte, os poemas servirão como referência à nossa
análise estilística, ou seja, na identificação das metáforas
existentes nos mesmos, bem como, procederemos a um
levantamento da evolução histórica da arte poética, sua
16
importância e influência no fazer poético de cada poeta em seus
respectivos poemas.
17
CAPÍTULO 1 PRIMEIRAS CONSIDERAÇÕES
1.1 - Literatura Comparada - Histórico/função/definição
A palavra buscada pulsa latente como a
matéria à espera da forma, numa equação
análoga à do Universo: todas as disparidades
que constituem a forma do Cosmos se
aglutinariam para tornar ato a matéria que
nelas habita: a unidade da palavra, o seu
potencial energético, difundir-se-ia pelos
poemas, assim tornados reflexos concretos
duma ausência incorpórea que apenas se
manifesta por meio dos poemas e não por meio
de uma única palavra. (Aristóteles)
Em seu livro Literatura comparada no mundo: questões e
métodos, Carvalhal afirma que adentrar o terreno da Literatura
Comparada é preparar-se para caminhar por trilhas diversas do
pensamento humano. É desprezar fronteiras e penetrar em
territórios diferentes e descobrir que o Outro pode ser o
Mesmo ou que o Outro pode ser Eu mesmo, ou
simplesmente o Outro; é valer-se da oportunidade de olhar
longe para ver de perto como o Outro fala, do que o Outro fala,
o que o Outro pensa, onde o Outro vive, como vive; é, enfim,
estabelecer comparações atitude normal do ser humano. O
exercício do comparativismo colabora para o entendimento do
Outro (CARVALHAL, 1997, p. 8) e é exatamente nesse
18
processo que a literatura comparada tem sua participação
garantida nos mecanismos de integração cultural.
A título de ilustração e como foi dito, na parte objetivos
deste Projeto de Pesquisa, ou seja, que o mesmo tem, como
finalidade, a análise abrangente e comparativa de importantes
fatores literário-filosófico-religiosos de Fernando Pessoa e de
João Cabral de Melo Neto, faremos, a seguir, um breve histórico
sobre literatura comparada, sua função e definição, tendo como
referência principal P. Brunel et alii, em seu livro Que é
literatura comprada?
Segundo os autores citados, podemos destacar que,
durante muito tempo, a mesma foi vista como especialidade
rara e mesmo esotérica e, às vezes, considerada com
desconfiança e ironia; hoje, no entanto, deixou de ser privilégio
de algumas universidades de vanguarda e entrou, em toda
parte, nos costumes acadêmicos.
Habitando o mesmo universo, ou seja, discutindo o objeto
de estudo da Literatura Comparada, Leyla Perrone-Moysés
também nos oferece sua perspectiva:
Estudando relações entre diferentes literaturas
nacionais, autores e obras, a literatura
comparada não só admite, mas comprova que a
literatura se produz num constante diálogo de
textos, por retomadas, empréstimos e trocas. A
literatura nasce da literatura; cada obra nova é
uma continuação, por consentimento ou
contestação, das obras anteriores, dos gêneros
e temas já existentes. Escrever é, pois,
dialogar com a literatura anterior e com a
contemporânea. (1990, p. 94)
Na França e nos EUA, por exemplo, especialistas de todas
as disciplinas são atraídos pela idéia comparatista cujo futuro
19
está garantido, levando-se em conta o interesse de uma
multidão crescente de estudantes de todos os níveis, viveiro de
futuros pesquisadores ou simpatizantes.
Como a literatura comparada não é uma técnica aplicada a
um domínio restrito e preciso e, sendo ampla e variada, reflete
um estado de espírito feito de curiosidade, de gosto pela
síntese, de abertura a todo fenômeno literário, quaisquer que
sejam seu tempo e lugar, diversificando-se, portanto, de acordo
e em todos os territórios.
As tradições intelectuais nacionais, as necessidades locais,
as civilizações diferentes modelam suas fisionomias e, embora
francesa na origem, a literatura comparada se torna universal.
Pouco a pouco, foi sendo exorcizado o nacionalismo
literário de cujo contexto, aliás, nasceu a idéia comparatista.
Isso tornou possível que literatura, língua e nação, três
entidades independentes, durante muito tempo, convergissem
no curso do séc. XVIII e, sobretudo no começo do séc. XIX, até
formarem uma única entidade em três noções. Aos poucos,
entretanto, contra essas células fechadas de um tipo novo, a
literatura comparada se insurgiu, pois, ela tem como traço na
escala do mundo, o fenômeno intelectual ligado a uma evolução
psicológica. Ela pertence não só à vida do espírito, mas
simplesmente à vida, com suas complexidades, seus instintos
cegos, seus impulsos generosos e seu movimento incessante.
(P.BRUNEL ET ALII, 1995, p. 16)
Como prova real disso é só observarmos que, no
microcosmo comparatista, por exemplo, (e a história da Europa
do Leste prova muito bem isso), lêem-se os medos e as
esperanças, os ódios e os amores dos povos, os sobressaltos
20
políticos e mesmo os ímpetos religiosos dos Estados e das
civilizações.
Com isso, podemos dizer que a literatura comparada tem
sua sorte ligada às paixões dos homens e, conseqüentemente,
seria inconcebível a idéia de que cada nação tivesse sua própria
literatura como manifestação única, indivisível, não-passível de
associações e, na qual, traços literário-artístico-religiosos não
pudessem ser manifestados de forma idêntica, concomitante e
carregada dos mesmos traços psicológicos e idiossincráticos
pelos cidadãos de nações diferentes.
Apesar disso, cautela se faz necessária quando se trata de
deduzir a universalidade da linguagem artística, da mesma
forma que a das idéias, pois, a língua, a raça, o clima, a pátria
podem representar um papel, mas é aconselhável pesquisar,
antes de tudo, as causas puramente estéticas; sim, porque a
literatura comparada nos faz tomar consciência dos
intercâmbios intelectuais como das correspondências entre
literatura e as artes e nos ajuda a aproximá-las ou opô-las.
É oportuno ressaltar que a literatura geral é o estudo das
coincidências, das analogias; a literatura comparada (no sentido
restrito do termo) é o estudo das influências determinadas e
pertencentes a tal civilização ou a tal tradição, pois a obra de
arte não é criada a partir apenas da visão do artista, mas
também, a partir de outras obras e é, exatamente nesse
momento, que surge a intertextualidade na qual, quando se
mistura várias línguas e várias culturas, subjazem o objeto e o
domínio próprios do comparatista, ou seja, o intercâmbio dos
valores poéticos e estéticos de uma nação para outra e a
comunicação entre as culturas pela linguagem. (P.BRUNEL ET
ALII, 1995, p. 96).
21
Este, o intercâmbio, então, a partir desse princípio,
constata que, para além da massa confusa das obras,
prisioneiras de seu criador e das fronteiras nacionais, aparecem
funções espirituais vitais, de onde nascem os textos que
estudamos. Uma forma, uma estrutura, um gênero não são
abstrações. Servem a uma necessidade e se encarnam num
lugar, num tempo, numa língua, mas sabem também vagar,
encontrando rejeições e incompatibilidades, tanto quanto
adesões que devem ser explicadas num caso como no outro;
depois evoluem e morrem. A literatura comparada se esforça
por captar a vida das formas, extrai as constantes e as
variáveis da morfologia literária e, sem pretender, como fazia
recentemente a crítica, dirigir com confiança excessiva as
mutações futuras, tentará pelos menos explicá-las. (P. BRUNEL
ET ALII, 1995, p. 129).
Com isso, o comparatista, através de exemplos tomados de
todas as literaturas, sem distinção de proveniência, poderá tirar
uma lição útil, ou seja, como o escritor, espelho vivo do
universo visível e invisível, procurará, ele próprio, o teatro de
realidades espirituais, esforçando-se por transcrever o mundo
interior e exterior com o auxílio de simples pequenos signos
pretos pousados no papel. Entre essas realidades se encontram
o tempo e o espaço, assim como o movimento que os combina,
todas as sensações, os objetos, os sentimentos elementares
profundos (como o medo e o sentimento trágico da vida), as
relações do eu e do outro, do eu e da natureza, os ritmos
íntimos. (P.BRUNEL ET ALII, 1995, pg. 131).
Na verdade, o objeto do comparatista parece múltiplo
como o mundo e, perpetuamente, fugidio pois, trata das
relações literárias entre todas as literaturas do globo. Tudo na
22
literatura comparada indica uma função, no sentido matemático
do termo, que subsiste atrás do jogo flutuante das variáveis
que a compõem.
Diante de todas as considerações feitas neste capítulo e, à
guisa de uma conclusão, tentaremos reuni-las numa primeira
definição que nos parece bastante pertinente sobre Que é
literatura comparada? P. Brunel et alii, na p. 140, definem-na
da seguinte maneira:
A literatura comparada é arte metódica, pela
pesquisa de vínculos de analogia, de
parentesco e de influência, de aproximar a
literatura de outros domínios da expressão ou
do conhecimento, ou, para sermos mais
precisos, de aproximar os fatos e os textos
literários entre si, distantes ou não no tempo e
no espaço, com a condição de que pertençam a
várias línguas ou a várias culturas, façam elas
parte de uma mesma tradição, a fim de melhor
descrevê-los, compreendê-los e apreciá-los.
Finalmente, como segunda e última e fazendo uma tábua
rasa das múltiplas distinções requeridas de uma definição
erudita, ater-nos-emos a dois princípios:
1- A língua na qual uma literatura está escrita ou a
unidade espiritual da coletividade da qual ela é a
expressão (ligada a fronteiras políticas, a um passado
nacional, a uma religião, a um povo, a uma raça) cortam
naturalmente a literatura em células restritas.
Colocando-se acima dessas restrições, o comparatista se
esforçará para não estudar jamais estas células
separadamente;
A literatura é uma das manifestações específicas da
atividade espiritual do homem, da mesma forma que a arte, a
23
religião, a ação política ou social etc. Pode-se, pois, estudá-la
como função fundamental, sem consideração de tempo ou lugar.
(P. BRUNEL ET ALII, 1995, p. 141).
Posto isso, podemos oferecer uma definição mais lapidar
que possa figurar num repertório:
Literatura comparada: descrição analítica, comparação
metódica e diferencial, interpretação sintética dos fenômenos
literários interlingüísticos ou interculturais, pela história, pela
crítica e pela filosofia a fim de melhor compreender a literatura
como uma função específica do ser humano.
24
1.2 João Cabral de Melo Neto
Antes de iniciarmos, propriamente, a conceituação teórica
e a análise sobre o fazer poético na obra de João Cabral de Melo
Neto e de Fernando Pessoa, citaremos, a título de ilustração e
informações complementares, alguns aspectos importantes
sobre a biografia e bibliografia dos mesmos.
O primeiro poeta a ser referenciado nesse sentido é JOÃO
CABRAL DE MELO NETO. O poeta nasceu em Recife, em 1920 e
morreu no Rio e Janeiro em 1999. Após passar a infância em
engenhos de açúcar, estudou com os Irmãos Maristas em sua
cidade natal. Adolescente, freqüentava a roda literária do café
Lafayette (Recife), reduto de artistas e intelectuais. O contato
com os cassacos (trabalhadores em engenhos e usinas de cana-
de-açúcar), no entanto, para quem lia poemas de cordel, foi
uma experiência que ficou sempre em sua memória.
Depois de feitos os estudos no Recife, e a vinda ao Rio de
Janeiro em 1940, onde mais tarde passou a residir, e o ingresso
na vida diplomática, que o leva pelo mundo, dão-lhe a
necessária distância para ver melhor, com pungência e
preocupação, a verdadeira realidade de Pernambuco e do
Nordeste em geral.
Antes de falarmos sobre os aspectos bibliográficos de João
Cabral, faz-se necessária uma referência à escola literária
neomodernista tida como um movimento de recuperação de
certas formas tradicionais consagradas, quer pelo formalismo
parnasiano, quer pela escritura impressionista e simbolista,
25
embora, nenhum dos autores que optaram por essa linha
ocupem hoje um lugar de destaque na História da Literatura
Brasileira.
Na verdade, o que se pode dizer é que o ímpeto destruidor
e revolucionário da Geração de 22, já arrefecido na de 30, dilui-
se ainda mais a partir de 45: a preocupação era a de produzir
de forma mais confortável para a sensibilidade de cada artista.
É, exatamente, nesse sentido que aparece e se destaca a poesia
de João Cabral, o mais importante poeta desse período.
Seu primeiro livro, Pedra do sono, foi publicado em 1942,
no qual é nítida a influência de Carlos Drummond de Andrade.
Em O Engenheiro, publicado em 1945, manifesta os rumos
definitivos de sua obra. Logo se distinguiu do espírito
formalista da geração de 45 pela elaboração de uma linguagem
seca e objetiva, passando a trilhar um caminho bem pessoal.
Entre os anos 40 e 90, durante cinco longas décadas,
surgindo depois da enorme efervescência da poesia dos anos 30
e influindo vivamente na formação das vanguardas poéticas dos
anos 50 e 60, a obra de João Cabral de Melo Neto (1920-99)
deixa ler um largo trecho da história da poesia brasileira
moderna e contemporânea, ao mesmo tempo, que se identifica
como um paradigma fundamental para o futuro dessa história.
Mas foi nos anos 50 que mais claramente se configurou o seu
traçado.
A publicação, em 1956, pela José Olympio, do livro Duas
Águas, ao mesmo tempo, que reunia a obra de João Cabral, com
os livros dos anos 40 e 50 - de Pedra do Sono, de 1942, a O Rio
ou Relação da Viagem Que Faz o Capibaribe de Sua Nascente à
Cidade do Recife, de 1954 -, incluía também três novos livros.
26
Os dois primeiros escritos entre 1954 e 1955, e o último, em
1955: Morte e Vida Severina: Auto de Natal Pernambucano,
Paisagens com Figuras e Uma Faca Só Lâmina, ou Serventia das
Idéias Fixas.
O título da coletânea, cuja primeira referência era a um
certo tipo de telhado muito comum em casas simples do
Nordeste, sugeria também uma divisão da obra em duas
vertentes: a dos poemas voltados para a expressão de estados
oníricos e de vigília, em que se mesclam emoções, afetividades
e consciência do próprio fazer poético, que, de um modo geral,
corresponde às obras publicadas até 1947, com Psicologia da
Composição; e a de uma poesia mais transitiva e, por assim
dizer, social, que, iniciando-se com o longo poema de 1950, O
Cão sem Plumas, atinge o seu ápice com Morte e Vida Severina,
publicado em 1956.
A poesia de João Cabral se caracteriza pela objetividade na
constatação da realidade e, em alguns casos, pela tendência ao
surrealismo, mesmo que depois o autor tenha execrado esse
movimento artístico. Em entrevista ao Cadernos de Literatura
Brasileira nº 1, (1966), João Cabral justifica esse fato do
seguinte modo:
A situação era a seguinte: aquele grupo que eu
freqüentava no café do Recife era
profundamente influenciado pelo surrealismo.
Mas o surrealismo, na minha opinião, sempre
foi o traumatismo da escrita. Como eu era
absolutamente incapaz de fazer a tal escrita
automática, com a qual eu não concordava e,
ao mesmo tempo, desejava continuar fazendo
parte do grupo do Café Lafayette, eu forjei um
tipo de surrealismo, quer dizer, meu
surrealismo era algo construído.
27
No nível temático, podemos distinguir, em sua poética, o
Nordeste, com sua gente: os retirantes, suas tradições, seu
folclore, a herança medieval e os engenhos; de modo muito
particular, seu estado natal Pernambuco e sua cidade, o Recife.
São objeto de verificação e análise os mocambos, os cemitérios
e o rio Capibaribe, que aparece, por mais de uma vez,
personificado.
Nesse sentido, na mesma entrevista ao Cadernos de
Literatura Brasileira, (1966) João Cabral declara:
Para mim, a poesia é uma construção, como
uma casa. Isso eu aprendi com Le Corbusier
1
. A
poesia é uma composição. Quando digo
composição, quero dizer uma coisa construída,
planejada de fora para dentro. Ninguém
imagina que Picasso fez os quadros que fez
porque estava inspirado. O problema dele era
pegar a tela, estudar os espaços, os volumes.
Eu só entendo o poético neste (sic) sentido.
Vou fazer uma poesia de tal extensão, com tais
e tais elementos, coisa que eu vou colocando
como se fossem tijolos. É por isso que eu posso
gastar anos e anos fazendo um poema: porque
existe planejamento.
Observemos o texto abaixo que se constitui em um outro
exemplo típico desse processo. Parte do poema extraído de O
Cão sem Plumas, título que metaforiza o rio Capibaribe.
Paisagem do Capibaribe
Entre a paisagem
o rio fluía
como uma espada de líquido espesso.
Como um cão
humilde e espesso.
Entre a paisagem
(fluía)
de homens plantados na lama;
1
Arquiteto francês (1887-1965), considerado o pioneiro da arquitetura moderna.
28
de casas de lama
plantadas em ilhas
coaguladas na lama;
paisagem de anfíbios
de lama e lama.
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Um cão sem plumas
é quando uma árvore sem voz.
É quando de um pássaro
suas raízes no ar.
É quando a alguma coisa
roem tão fundo
até o que não tem).
[...]
Mas ele conhecia melhor
os homens sem pluma.
Estes
secam
ainda mais além
de sua caliça extrema;
ainda mais além
de sua palha;
mais além
da palha de seu chapéu;
mais além
até
da camisa que não têm;
muito mais além do nome
mesmo escrito na folha
do papel mais seco.
[...]
Na água do rio,
lentamente,
se vão perdendo
em lama; numa lama
que pouco a pouco
também não pode falar:
que pouco a pouco
ganha os gestos defuntos
29
da lama;
o sangue de goma,
o olho paralítico
da lama.
[...]
Difícil é saber
se aquele homem
já não está
mais aquém do homem;
mais aquém do homem
ao menos capaz de roer
os ossos do ofício;
capaz de sangrar
na praça;
capaz de gritar
se a moenda lhe mastiga o braço;
capaz
de ter a vida mastigada
e não apenas
dissolvida
(naquela água macia
que amolece seus ossos
como amoleceu as pedras).
O construtivismo sempre foi a grande marca da poesia do
autor, sendo que, a partir de O Engenheiro e de Psicologia da
Composição, o estilo cabralino se consolida: uma poesia clássica
no sentido de buscar o equilíbrio, a harmonia, a objetividade, o
rigor formal. O engenheiro poema transcrito abaixo, é o
exemplo típico em que se concretizam todas essas
características do fazer poético de Cabral. Vejamos:
O Engenheiro
A luz, o sol, o ar livre
Envolvem o sonho do engenheiro.
O engenheiro sonha coisas claras:
Superfícies, tênis, um copo de água.
O lápis, o esquadro, o papel;
O desenho, o projeto, o número:
O engenheiro pensa o mundo justo,
mundo que nenhum véu encobre.
30
(Em certas tardes nós subíamos
ao edifício. A cidade diária
como um jornal que todos liam,
ganhava um pulmão de cimento e vidro.)
A água, o vento a claridade
De um lado o rio, no alto as nuvens,
Situavam na natureza o edifício
Crescendo de suas forças simples
João Cabral fez uma poesia anti-lírica, polindo o prosaico
até atingir a luminosidade poética, dirigindo-se, sobretudo, ao
intelecto e, de certa forma, mais presa à realidade que o
próprio autor pois, sempre teve, em função do seu trabalho,
cindidos o pensar sobre a matéria do poema e o dia-a-dia de
funcionário público, ocupado com negociações internacionais,
independentes da coerência de sua visão de mundo.
Provavelmente acarretou essa espécie de cisão interna e
sérios prejuízos, não para a construção da obra, mas para a sua
saúde, sempre abalada ou agredida, sem defesa possível, como
de livrá-lo de suas obsessões. É importante observar que seus
poemas refletem de forma quase sempre indireta, ou através da
descrição, o fazer poético dos grandes escritores ou artistas
plásticos do nosso tempo.
Situado cronologicamente na geração de 45, dela se afasta
por essa sua atitude diante do fazer poético, que diz NÃO a todo
tipo de confessionalismo, exigindo um tipo de verso que obrigue
o leitor a despertar, fazendo apelo à sua razão e inteligência,
não cedendo ao automatismo do surrealismo vigente, nem se
deixando raptar por qualquer estado emocional ditado por
aquilo que se chama inspiração.
Dessa forma, sua arte poética se opõe frontalmente com a
poesia-estado-emocional. João Cabral comenta a esse respeito
31
que, desde o momento que se descobriu ser a missão do poeta
não a de falar poeticamente das coisas do mundo, mas, sim, a
de criar no leitor um estado especial, independentemente de
todo o assunto que pudesse transmitir, a poesia perdeu sua
capacidade de explorar a realidade, de transmitir por meio da
linguagem afetiva, um conhecimento da realidade. A poesia
passou a ser um estado, uma sensação, a freqüência de
realidades artificiais, com o que Cabral nunca concordou.
Cabral arremata, dizendo que todos esses valores têm de
ser levados em conta se se quer entender, amar, a literatura
brasileira moderna. Mas, quando, além disso, pretende-se
julgar as obras dessa literatura, uma última coisa tem de estar
presente na memória do leitor, ou seja, que a preponderância
do poético atingiu profundamente, talvez mais profundamente
do que a nenhum outro, os valores normativos definidos nas
preceptivas, em que tradicionalmente se apoiava a crítica.
(OBRA COMPLETA, 1999, p. 755-756).
Por fim, conclui (1999, p. 756) que o valor básico, hoje em
dia, é a presença do poético. Ora, o poético é uma substância
caprichosa e para alcançá-lo todos os métodos são válidos. Sua
apreensão justifica tudo, todas as violências contra a ciência
literária (que nas escolas e universidades professores meio
melancólicos ainda estão ensinando), as invenções formais mais
gratuitas. (OBRA COMPLETA, 1999, p. 756).
João Cabral é chamado, com justiça, de o poeta-
engenheiro, devido ao grau de premeditação formal empregada
na produção de seus poemas. Quando escreve, coloca palavra
sobre palavra, assim como o engenheiro coloca pedra sobre
pedra. Faz uma poesia visual, sólida, geométrica, exata, sóbria,
em que a palavra articulada ganha massa, volume e nitidez.
32
Sua poesia é pensada, racional, num evidente combate ao
sentimentalismo choroso, utilizando-se de uma linguagem
elíptica, enxuta, concisa. Valoriza o substantivo e o verbo, usa
poucos adjetivos e, quando eles aparecem, são essenciais.
Um poema que exemplifica esse tipo de linguagem é Catar
Feijão que faz parte do livro A Educação pela pedra, de João
Cabral de Melo Neto, cuja primeira edição foi publicada em
1965.
Catar feijão
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
Ora, nesse catar feijão entra um risco:
o de que entre os grãos pesados entre
um grão qualquer, pedra ou indigesto,
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a como o risco.
Esse poema será analisado no cap. 3, como exemplo que
tipifica, de maneira clara, o fazer poético de João Cabral.
Segundo o próprio autor, sua obra apresenta duas linhas
mestras, duas águas (cada uma das superfícies planas que
constituem um telhado): a metalingüística que abrange os
poemas de investigação do próprio fazer poético, segundo a
ótica construtivista do autor. Vejamos um exemplo:
33
O poema
A tinta e a lápis
Escrevem-se todos
Os versos do mundo.
Que monstros existem
Nadando no poço
E negro e fecundo?
Que outros deslizam
Largando o carvão
De seus ossos?
Como o ser vivo
Que é um verso,
Um organismo
Com sangue e sopro,
Pode brotar
De germes mortos?
O papel nem sempre
É branco como
A primeira manhã.
É muitas vezes
O pardo e pobre
Papel de embrulho;
É de outras vezes
De carta aérea,
Leve de nuvem.
Mas é no papel,
No branco asséptico,
Que o verso rebenta.
Como um ser vivo
Pode brotar
De um chão mineral?
Por outro lado, ele converte a miséria, a indigência, a
fome e a secura da paisagem em elementos poéticos de tal
plasticidade, de tal essência que parece conseguir chegar à
caliça (restos de construção), estrutura básica dessa
temática, como se observa no seguinte poema:
34
O luto no sertão
Pelo sertão não se tem como
Não se viver sempre enlutado;
Lá o luto não de vestir,
É de nascer com, luto nato.
Sobe de dentro, tinge a pele
De um fosco fulo: é quase raça;
Luto levado toda a vida
E que a vida empoeira e desgasta.
E mesmo o urubu que ali exerce,
Negro tão puro em outras praças,
Quando no Sertão, usa a batina
Negra-fouveiro, pardavasca
Para finalizar essa parte sobre aspectos biográficos e
bibliográficos de João Cabral, fazem-se necessários alguns
aportes em relação à mais importante obra dele - Morte e vida
severina peça teatral de origem medieval e popular,
estruturada em forma de auto. Morte e Vida Severina, cujo
subtítulo é Auto de Natal Pernambucano, é um dos poemas mais
célebres de João Cabral e, talvez, a obra em que sua ótica
socialista esteja mais evidente. Trata-se da história de
Severino, retirante de vinte anos de idade, que vai lá da Serra
da Costela, limites da Paraíba (com Pernambuco) até o Recife,
com esperanças de encontrar melhores condições de vida.
O subtítulo já denuncia a influência que a estrutura
moralizante do teatro medieval vicentino exerceu sobre o poeta.
A referência ao natal fica por conta de um nascimento que
mudará a vida do protagonista; o pernambucano remete ao
espaço focalizado.
Além da grande sonoridade provocada pela predominância
de versos em redondilha maior, de rimas sem um esquema
35
regular, mas constantes, de repetições de palavras e de versos
inteiros, a obra prende a atenção do leitor-ouvinte, por
combinar simplicidade e concentração, fortes imagens visuais e
auditivas, com linguagem muito próxima do registro oral.
O tema de Morte e vida severina é o itinerário do retirante
nordestino, que parte do sertão paraibano em direção ao litoral,
em busca de sobrevivência, devido à seca e às precárias, senão
insustentáveis, condições de vida num contexto de sucessivas
mortes, provocadas pela miséria e pelo abandono; a obra
conjuga, ainda, o sabor das palavras poéticas com a sua
encarnação, proporcionada pelos recursos da arte da
dramaturgia. (EMÍLIA AMARAL ET ALII, 2000, p. 301).
Morte e vida severina é uma homenagem às várias culturas
ibéricas: os monólogos do Retirante têm em comum com o
romanceiro ibérico o uso do heptassílabo e a assonância; a cena
do Irmão das Almas homenageia o romance catalão do conde
Arnaut; a cena do velório é pernambucana; a mulher da janela
é um poema narrativo em português arcaico incorporado ao
folclore pernambucano. A cena do coveiro é curiosamente
escrita, em versos livres, quem sabe com a intenção de
continuar, de levar adiante uma conquista modernista. O
diálogo do retirante com Mestre Carpina segue os processos da
tenção galega; o resto é romance castelhano. A cena do
nascimento de Cristo se tornou um fato realista; a cena dos
presentes, como outras, tem relação com os autos
pernambucanos do século passado. As ciganas estão nos autos
antigos, prevendo o futuro nascimento da criança. (OBRA
COMPLETA, 1994, p. 18).
36
1.3 Fernando Pessoa
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a aí quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
(Fernando Pessoa)
Antes mesmo de iniciarmos a citação dos aspectos
biográficos e bibliográficos de Fernando Pessoa, é interessante
que se faça uma pequena contextualização histórica da própria
literatura portuguesa e, após, falarmos sobre o primeiro
momento do Modernismo Português cujos aspectos ideológico-
nacionalistas tiveram destacada influência na produção literária
do poeta.
Para melhor entendermos a visão e postura estético-
literárias de Fernando Pessoa, é importante que seja feita a
contextualização histórica da própria literatura em Portugal, no
que tange às características principais das escolas literárias que
antecederam o Modernismo, pois sabemos que este representa
uma atitude estética e que, conscientemente, procura novos
rumos para a expressão artística, denotando não satisfação ou
discordância com os princípios estéticos das escolas literárias
anteriores.
Sabemos, no entanto, que a evolução do processo literário,
a partir das origens, em pleno século XII, já experimentara
todos os modos de abordagem do objeto da Literatura, que,
grosso modo, consiste numa reelaboração da realidade, filtrada
37
pela sensibilidade e pela Weltanschauung do artista, ou seja,
pela visão cosmopolita do mesmo.
Assim é que o Classicismo, por exemplo, vê a realidade
concebida como a projeção, no sensível, de realidades
arquetípicas. Há, com efeito, a intenção de racionalizar a
realidade, ou dela apresentar os aspectos suscetíveis de
resistirem à apreensão pela razão. É a realidade verossímil, a
pensada e não a real, e não a sensível, que interessa ao
clássico. A natureza é tratada como uma fonte de conceitos, de
idéias, de generalizações. Árvore, para o clássico, é uma
abstração que resulta do ser sensível depois de despido de todo
o contingente, de todo o circunstancial.
O Romantismo, por sua vez, valoriza o sensível com toda a
sua plasticidade: a natureza impõe-se como uma fonte de
belezas, de emoções, de sentimentos. O próprio homem
sentimentaliza-se em alto grau: suas ações em face da
realidade são determinadas pelo coração, pelo impulso
sentimentalista e sentimentalizante. A realidade, agora, é a
sentida, isto é, a portadora de elevada carga emotiva. Árvore,
para o romântico, só pode se referir a uma árvore determinada,
da qual se lembra nos pormenores mais valorativos e que ele
viu num determinado lugar, num determinado momento,
suscitando-lhe uma comoção estética profunda.
(www.revista.agulha.nom.br/-2008)
Fernando Pessoa, no entanto, (através de Caeiro) não
perdoa aos românticos a visão animista ou panteísta da
natureza, conforme constatamos nos versos a seguir:
38
Li hoje quase duas páginas
Do livro de um poeta místico
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores
sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Por outro lado, o objeto das preocupações do Realismo, é a
realidade em si, captável pelo exercício dos sentidos físicos. É
inerente a este estilo de época a tentativa de fazer uma
desmistificação da realidade: despojá-la, quanto possível, do
conceito (e do pré-conceito) e das projeções sentimentalizantes
do eu sobre ela como acontecia com os românticos. Árvore,
para o realista, é aquela árvore representada em todos os seus
aspectos de realidade, quer sejam valorativos, quer sejam
depreciativos. Árvore é exatamente aquilo que ela é quando
observada sem qualquer pré-conceito ou pós-conceito - no
sensível. (www.revista.agulha.nom.br/-2008).
O Simbolismo, por sua vez, surge como uma reação, uma
revolta, contra a realidade apresentada nua e cruamente pelos
realistas. O Simbolismo não pode admitir a concepção realista
que se centra numa mundividência caracterizada pela
dicotomização da realidade em dois compartimentos estanques,
separados e incomunicáveis: o eu e o não-eu. Entre um e outro,
havia de, por força da mesma complexidade da realidade do
todo, haver algo em comum que possibilitasse a comunicação e
interação entre todos os níveis e planos do universo não se
limitando, entretanto, à mera projeção de sentimentos.
39
As crises que ocorreram, por exemplo, durante a primeira
década republicana em Portugal geraram um profundo
sentimento nacionalista. A corrente literária Saudosista foi a
mais ativa daquele período, tendo como órgão representativo a
revista A Águia (1910/32). Os membros dessa corrente viam o
saudosismo como o traço mais típico da cultura portuguesa e
acreditavam que ele poderia surgir como base para o
ressurgimento da glória lusitana, invocando o passado, o
Império, o Sebastianismo e as Grandes Navegações.
Nomes ilustres colaboraram na revista, dentre eles
Fernando Pessoa que, numa série de artigos denominados A
Nova Poesia Portuguesa, vaticinava uma futura civilização
européia de caráter lusitano:
deve estar para muito breve o aparecimento do
poeta supremo de nossa raça e ousando tirar a
verdadeira conclusão que se nos impõe [...], o
poeta supremo da Europa, de todos os tempos
[...]. E a nossa grande raça partirá em busca de
uma Índia nova, que não existe no espaço, em
naus que são construídas daquilo de que os
sonhos são feitos.
Esse primeiro momento do Modernismo português
apresenta uma série de inovações quanto à forma e à temática.
O verso livre instala-se como recurso essencial para incorporar
as propostas vanguardistas de imaginação sem fios, das
palavras em liberdade, do culto à velocidade
Ousados, os escritores desse primeiro momento são
marcados pela originalidade e pelo experimentalismo, como
40
declara um dos nomes mais relevantes do Modernismo, Almada
Negreiros:
Nós não somos do século de inventar palavras.
As palavras já foram todas inventadas. Nós
somos do século de inventar outra vez as
palavras que já foram inventadas.
Através da revista Orpheu, os jovens talentos da revista A
Águia superaram rapidamente a orientação saudosista, ao
tomarem contato com as vanguardas européias, evoluindo para
o Modernismo. A revista Orpheu, considerada o marco inicial do
Modernismo português, colocaria Portugal no fluxo cultural do
restante da Europa.
Feita a contextualização histórica da literatura portuguesa
que precedeu ao Modernismo, passemos para os principais
aspectos e fatos biográficos do poeta.
Fernando Pessoa nasceu em Lisboa em 1888, vindo a
falecer na mesma cidade em 1935. Com a morte do pai, foi com
a mãe para Durban, África do Sul, aos cinco anos de idade,
onde passou a infância e a adolescência.
Essa contingência familiar determina a diversidade
lingüística do poeta. Nos dez anos que passou na África, Pessoa
integra plenamente a língua inglesa, chegando a obter no
exame de admissão na Universidade do Cabo, o prestigioso
prêmio Queen Victoria Memorial Prize pelo melhor ensaio de
estilo inglês. Sua formação intelectual, portanto, será
fortemente marcada pelo convívio cotidiano com autores da
língua inglesa. Com cerca de 20 anos, Pessoa já está em plena
atividade de criação literária, escrevendo poesia e prosa em
português, inglês e francês.
41
A infância no Largo de São Carlos, junto aos pais e a avó
paterna louca, D.Dionísia, é abalada pela tuberculose do pai,
que é afastado de Lisboa pelos médicos. A mãe e o irmão,
também de saúde frágil, ficam aos cuidados de duas criadas.
Em janeiro de 1893, o pai morre. Em 1895, D. Maria Magdalena
conhece o comandante João Miguel Rosa com quem se casa por
procuração uma vez que este fora nomeado cônsul em Durban,
África do Sul. Cinco meses depois, Fernando com sete anos
parte para a África junto com a mãe, antes, porém, rabisca seus
primeiros versos, uma quadra em redondilhas maiores, que
intitulou: À Minha Querida Mamã.
Ó terras de Portugal
Ó terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.
Um fato interessante da vida de Pessoa como estudante é
que, em 1897, ele ingressa na escola de West Street e em três
meses obtém a equivalência de cinco anos letivos, tendo sido
sempre um dos alunos mais brilhantes.
Em 1905, volta para Lisboa. Sua produção literária se
intensifica e, além de ler mais atentamente os clássicos
portugueses, passa a escrever poemas na língua natal; torna-se
também correspondente estrangeiro, profissão que exerceria
até o fim da vida. A vida boêmia passa a ser intensa, trocando
experiências artísticas e intelectuais com amigos e cultivando
uma cirrose que o abatia.
Em 28 de novembro de 1935, Fernando Pessoa é internado
por causa de uma cólica hepática que o matou dois dias depois.
42
Suas últimas palavras foram escritas em inglês, num pedaço de
papel e diziam: “Eu não sei o que o amanhã trará
2
.
Fernando Pessoa foi um poeta genial e raro, sim, porque
ele não foi apenas um, mas vários. Sua obsessão pelo fazer
poético não encontrou limites. Despojando-se de seu eu
pessoal, vestiu várias personas poéticas e viveu
dialeticamente quase todas as possibilidades do ser-em-poesia.
Pessoa viveu mais no plano criativo do que no plano concreto e
criar foi a grande finalidade de sua vida.
Embora tenha participado intensamente das publicações do
Modernismo português, seu único livro publicado em vida foi
Mensagem, obra com a qual participou de um concurso de
poesia, em 1934, pouco antes de morrer. O prêmio de segunda
categoria que lhe deram, nessa última experiência literária,
mostra o quanto não foi reconhecido em vida, embora tenha
dedicado toda ela à arte e à poesia. É considerado um dos
maiores poetas europeus.
Poeta filósofo, sutil e complexo, Fernando Pessoa escreve
em redondilhas rimadas, fundamentalmente procurando reunir o
sentir e o pensar, ou como ele mesmo disse: O que em mim
sente ´stá pensando.
A inquietação, a necessidade de compreender todas as
coisas, a busca constante de consciência, que inclui saber ser
ela uma impossibilidade, constituem algumas das características
fundamentais de sua obra. Na verdade, Fernando Pessoa
ortônimo,ele mesmo, verte um lirismo puro, fruto de uma
sensibilidade extremada, de uma inteligência poética rara. Seus
versos procuram expressar o eterno desconforto de uma alma
em desamparo e solidão que, por vezes, tem a impressão de
2
”. I know not what tomorrow will bring
43
que tudo é sonho e que os limites entre o real e o sonho são
tênues.
A maioria de seus poemas reflete Pessoa como um ser
angustiado e insatisfeito, sempre em busca de um Além que
talvez se encontre em vidas passadas e futuras, obsediado pela
idéia de mistério e de morte, consciente até ao absurdo,
corroído pelo vício de pensar, incapaz de realizar-se
humanamente, já que a felicidade existe, sim, mas está sempre
onde ele não está, habitado pela náusea da vida e pelo tédio
que é até só de ter tédio, contíguo à inércia, empurrando para
depois de amanhã a realização dos planos que fará para
amanhã, adiando pois, a vida, tentando escapar à angústia
existencial pelo mergulho no sonho, pela volta à infância, pela
negação de tudo que o aflige profundamente, Fernando Pessoa
o poeta Fernando Pessoa revela-se triste e só.
Como preencher o vácuo da solidão, senão povoando-a
com seus outros eus consoantes ou dissonantes? Como ocupar
os espaços silenciosos, senão ouvindo as outras vozes porque
se exprime? Foi o que fez o poeta-origem, seguindo a sua
inclinação originária, mais instintiva, e a sua racionalização
posterior, plenamente consciente do ofício de escrever.
Desdobrando-se, expõe suas verdades parciais e, às vezes,
dialeticamente apresentadas e cria a possibilidade de aprender-
se na sua poliédrica totalidade. (CLEONICE BERARDINELLI,
1985. Capa e contracapa).
Sua poesia sonda o destino cósmico do ser humano,
perplexo com a obscuridade e o mistério da existência. Sente-se
nela uma ânsia de infinito, de absoluto, cortada freqüentemente
pela pequenez do cotidiano. Entre suas preocupações está o
fazer poético, ou seja, a metalinguagem.
44
A metalinguagem é elemento inicial da posição
vanguardista de Fernando Pessoa. No poema Isto, o poeta
responde às acusações de insinceridade que recebe da tradição
literária confidencialista que se consolidou nas letras européias
a partir do século XIX com o advento do Romantismo.
Diz Fernando Pessoa:
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
As idéias expressas na primeira quadra de Autopsicografia
tornam-se recorrentes nos três últimos versos da primeira
estrofe de "Isto". O que há de mais belo neste poema é a
comparação entre o terraço e o produto da experiência
existencial do poeta: "Tudo o que sonho ou passo / O que me
falha ou finda...". Os elementos existenciais são como um
terraço sobre outra coisa linda que é a poesia do poema, que o
poeta escreve com a liberdade que lhe assiste de criar sem
sentir, facultando aos leitores a liberdade de sentirem o que
lhes for permitido na depreensão do poema.
45
Considerando, portanto, que o poeta é um fingidor, não se
deve tomar sua criação literária como um referencial
investigativo de seus próprios posicionamentos a respeito de
assuntos pertinentes à vida em sociedade. Por isso, as
propostas de interpretação que se seguem nos artigos baseados
na obra dos heterônimos não pretendem delimitar suas crenças
pessoais (até porque a heteronímia é também produto do
fingimento poético), mas antes inferir, a partir de uma lógica
intuitiva e supra-racional, pautada também na experiência que
forma a consciência empírica dos leitores, quais conceitos se
refletem nos textos de Fernando Pessoa e quais as propostas
reflexivas trazidas por esses textos.
Apesar da delicadeza de seus temas, ele os conduz com a
extrema lucidez de quem sente com a imaginação e não usa o
coração, obtendo assim um distanciamento que o afasta do
caminho fácil do sentimentalismo confessional.
De forma alguma poderíamos deixar de colocar alguns
aspectos literário-poéticos sobre a heteronímia pessoana,
lembrando oportunamente que o objetivo não é fazermos uma
análise ou um estudo aprofundado e abrangente dos
heterônimos, mas, apenas, a citação de algumas inerências com
o intuito ilustrativo-complementar de tentarmos compreender
melhor o perfil poético de Fernando Pessoa - ortônimo, ou seja,
o heterônimo de si mesmo.
Apaixonado por filosofia, ocultismo, por estudos de
psicologia e psicanálise, autodidata de grande erudição, Pessoa
constitui um caso único de desdobramento de si mesmo em
outras personalidades poéticas. Sua capacidade de deixar-se
possuir por outros seres que, como ele, são poetas e de assim,
46
criar outros eus os heterônimos tem sido tema de
inumeráveis estudos, debates e controvérsias.
Além da produção, como ortônimo (ele mesmo), assumiu
várias outras personalidades poéticas: a dos heterônimos. Cada
heterônimo tem vida própria, um passado, uma biografia, um
aspecto físico, uma letra, um estilo, um ponto de vista e, até,
um mapa astral. Cada um deles, mesmo os que ainda dormem
na arca do inedistismo, é um poeta diferente, como parte
integrante de seu gênio multifacetado.
Álvaro de Campos, por exemplo, afirma que “fingir é
conhecer-se, enquanto Pessoa, num de seus poemas mais
conhecidos, diz que: O poeta é um fingidor. Certamente, ao
lermos o poema Autopsicografia, entenderemos melhor a razão
de o poeta ter feito essa afirmação. Vejamos:
Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração
O primeiro verso dá idéia de ficção, que significa ato ou
efeito de fingir. É o produto da invenção. Há a dor real do poeta
("a dor que deveras sente") e há a dor fictícia, inventada pela
linguagem poética.
47
Ninguém, em qualquer literatura, teve tão lúcida
consciência do problema do fingimento poético como Fernando
Pessoa. Para ele, Pessoa sabia que "... a sinceridade psicológica
não possui valor no plano da criação poética", o que justifica a
primeira quadra de Autopsicografia.
Quando Pessoa refere-se, no último verso dessa quadra, à
"dor que deveras sente", quer dizer que entende o fazer poético
como atitude que, se abrange os elementos existenciais,
também os transcende, pois "a dor fingida, a dor que figura no
poema, mesmo quando se prende a uma dor real, não se
identifica (necessariamente) com esta".
Nesse sentido, o fingimento pessoano, isto é, o processo
de despersonalização que faz o poeta inventar-se através de
outras criaturas as quais, no entanto, encontra dentro de si -
pode ser entendido como busca de recriação poética de uma
unidade perdida, de algo que seja absoluto, que transcenda
todas as verdades parciais, relativas, fragmentadas.
Parece que Fernando Pessoa aplicou com sabedoria, o
princípio de Górgias filósofo sofista grego quando este diz
que a poética é engano, porém, um engano sábio, pois quem
engana atua melhor do que quem não engana e quem é
enganado é mais sábio de quem não o é. Em outras palavras, a
poesia é ficção com uma mensagem e a mensagem será mais
perfeitamente construída, e tanto mais bem recebida quanto
mais souber a arte de fingir, isto é, quanto melhor o poeta
conhecer os procedimentos técnicos de sua arte e melhor
souber usá-los.
Esses paradoxos apontam para a modernidade do poeta,
em seu reconhecimento da perda da identidade do ser humano,
48
da fragmentação do eu, cindindo num mundo que destruiu as
certezas inquestionáveis e quebrou o mito da personalidade
como algo inteiro, igual a si mesmo.
Assumindo a sua diversidade, a sua pluralidade, a sua
multiplicidade de elementos, quase sempre conflitantes, Pessoa
procura a unidade, a integridade do ser humano.
O verso E há em cada canto de minha alma um altar
erguido a um deus diferente (Passagem das horas Álvaro de
Campos), pode ser considerado uma síntese do poema, e do
sentido da modernidade nele expresso, na medida em que se
refere à multiplicidade de estímulos/caminhos/deuses, ou seja,
de objetos de culto, e à fragmentação do humano dela
decorrente.
Em Ricardo Reis, temos como temática, a passagem do
tempo, a irreversibilidade do Fado (Destino), a necessidade de
fruir o tempo presente. Sua atitude diante da vida é serena,
intelectualizada, contida, contemplativa. Combina, basicamente,
duas correntes filosóficas da antigüidade: o epicurismo, que
identifica o bem soberano com o prazer encontrado na prática
da virtude e na cultura do espírito; e o estoicismo, que prega a
impassibilidade diante da dor e do infortúnio.
Finalizando a parte referente aos aspectos biográficos e
bibliográficos podemos dizer que Pessoa é um poeta que
conjuga lucidez e vidência, que se coloca entre o pendor para a
paixão, o sonho, a entrega mágico-poética aos mistérios e a
postura analítico-racional de constante indagação crítica.
A resposta ao ingrato presente é, na poesia mítica, a
ressacralização da memória mais profunda da comunidade. E
quando a mitologia de base tradicional falha, ou de algum modo
49
já não entra nesse projeto de recusa, é sempre possível
remexer as camadas da psique individual. É o que Fernando
Pessoa reflete ao compor seus poemas de maneira geral, pois,
na sua poesia trabalha a linguagem da infância recalcada e
distante, a metáfora do desejo, o texto do Inconsciente, a
grafia do sonho, como ocorre nos exemplos a seguir:
Ah, quanto mais ao povo a alma falta,
Mais a minha alma atlântica se exalta
E entorna
E em mim, num mar que não tem tempo ou ´spaço,
Vejo entre a cerração teu vulto baço
Que torna.
[A última nau (Mensagem)]
O sonho é ver as formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte
Os beijos merecidos da verdade.
[Fernando Pessoa, Horizonte (Mensagem)]
A poesia recompõe cada vez mais arduamente o universo
mágico que os novos tempos renegam. A condição do poeta,
expulso da república, é agora um fato íntimo e insuperado.
Podemos afirmar, ainda, que Fernando Pessoa
contextualiza sua poesia, inserindo suas imagens e
pensamentos em uma trama já em si mesma multidimensional;
uma trama em que o eu lírico vive ora experiências novas, ora
lembranças de infância, ora valores tradicionais, ora anseios de
mudança, ora suspensão desoladora de crenças e esperanças.
(ALFREDO BOSI, 2004, p. 13)
Assim, Pessoa fragmentou-se, multiplicou-se, reinventou-
se, convivendo em profundidade com todas as grandes
50
contradições do nosso tempo e recriando-as poeticamente,
numa das monumentais obras-primas da poesia do século XX.
CAPÍTULO 2 A METÁFORA E O FAZER POÉTICO
51
2.1- A metáfora: aspectos teóricos
Esclarecemos, inicialmente, que todas as considerações e
citações teóricas feitas neste capítulo não têm, como objetivo
específico, o estudo aprofundado e abrangente sobre a figura
citada, mas, sim, de oferecermos um suporte teórico referente à
mesma, baseados em diversos estudiosos do assunto, a fim de
que nos possibilite um melhor entendimento quanto à
importância e ao valor estilístico-semântico que ela representa
nos poemas dos autores supracitados.
Sabemos que todas as palavras do nosso léxico possuem
um sentido original (primeiro) ou denotativo, mas que
dependendo da contextualização, elas podem assumir um outro
sentido, dando origem à conotação. É na contextualização
conotativa que surge a metáfora a qual consiste em retirar uma
palavra de seu contexto convencional (denotativo) e transportá-
la para um novo campo de significação (conotativa), por meio
de uma comparação implícita, de uma similaridade existente
entre as duas.
Na tradição dos mestres da retórica, a metáfora é um
tropo, ou seja, uma mudança bem-sucedida de significação de
uma palavra ou de uma locução; seria mesmo o tropo por
excelência. Pela metáfora, diz-nos Du Marsais, transporta-se,
52
por assim dizer, a significação própria de um nome para outra
significação, que só lhe convém em virtude de uma comparação
que existe na mente.
A existência de similitudes no mundo objetivo, a
incapacidade de abstração absoluta, a pobreza relativa do
vocabulário disponível em contraste com a riqueza e a
numerosidade das idéias a transmitir e, ainda, o prazer estético
da caracterização pitoresca constituem as motivações da
metáfora.
Aristóteles definia a metáfora como uma palavra tomada
em outro sentido, sendo que, embora pertinente à metáfora,
não a enquadra. Outros recursos de estilo se enquadram na
definição aristotélica de metáfora como o ato falho, a
impropriedade, a ironia. A metáfora não precisa ser uma
palavra, mas uma unidade semântica, que não precisa ser
mínima como é a palavra.
Conforme análise feita no site
http://www.radames.manosso.nom.br
(em 26.12.2008),
intuímos que estamos diante de uma metáfora quando, ao
fazermos uma leitura imediata, deparamo-nos com uma
impertinência, ou seja, atribui-se a um referente algo que não
lhe diz respeito ou se classifica o referente numa classe a que
não pertence. Constatada a impertinência, o receptor da
mensagem vai aplicar à situação um algoritmo metafórico. Se a
aplicação for plausível teremos a metáfora, caso contrário, um
lapso, uma impropriedade ou outro fenômeno.
O algoritmo da metáfora comporta até quatro elementos:
comparado.
comparante.
atributo explícito.
53
atributo implícito.
O atributo explícito só aparece em metáforas de segundo
tipo. O atributo implícito deve ser pertinente ao comparante e
ao comparado, o atributo explícito pertinente ao comparante.
Determinar o atributo implícito é decifrar a metáfora, mas não o
atributo na sua essência e sim todas as modificações e
acréscimos que decorrem de sua ligação com o comparante e a
decifração fica mais direcionada se o comparante tiver atributos
marcados. (www.radames.manosso.nom.br
-2008, p. 1)
No mesmo site, temos que o atributo marcado é aquele
que tem com seu sujeito uma relação simbólica, ou seja, a
cultura convenciona que o atributo marcado é um símbolo de
seu sujeito ou vice-versa. Assim, 'altura' é um atributo marcado
de 'girafa', 'peso' é um atributo marcado de 'elefante'. Isso
quer dizer que toda vez que essas palavras forem usadas ou
referenciadas, em qualquer contexto, o atributo marcado será
associado ao seu sujeito.
A metáfora é uma comparação elíptica em que sempre está
ausente o atributo comum. Em muitos casos também faltam as
balizas de comparação: 'como', 'tal qual'. Quando não há baliza
de comparação, a estrutura sintática da metáfora de tipo I fica
igual à usada para estabelecer identidades. Daí a metáfora ser
vista como uma impertinência na leitura imediata.
Sejam as frases:
Quintiliano é o autor de Instituições Oratórias.
Aristóteles é genial.
Maria é uma flor.
A primeira frase serve para o estabelecimento de uma
relação de equivalência. O significado de Quintiliano é
54
considerado equivalente ao de autor de Instituições Oratórias.
Equivalência redutível a uma relação tautológica do tipo A é A.
Na segunda frase, o que se estabelece é uma relação
determinado determinante. O termo genial é determinante de
Aristóteles, trata-se de uma atribuição.
Na terceira frase, temos uma metáfora.
Ainda, conforme o mesmo site, temos que a forma
sintática das três frases é a mesma. Em função disso a
metáfora numa leitura imediata aparece como impertinência.
Esta semelhança entre as formas sintáticas não é ocasional.
Sendo a metáfora uma comparação elíptica, ela nos é
apresentada pela mesma forma que se usa para estabelecer
identidades.
Disso inferimos três tipos de metáforas:
A - As metáforas que explicitam comparado e comparante
são classificadas como do tipo I.
Observemos os enunciados que mostram a mesma
metáfora:
Maria é uma flor
Maria é como uma flor.
Maria: uma flor.
Maria flor.
Imaginemos as frases acima proferidas num contexto em
que 'Maria' é uma mulher. Pela leitura imediata concluímos
que estamos diante de uma impertinência, pois, 'mulher' e
'flor' são classes disjuntas.
O algoritmo da metáfora consiste em determinar:
55
O comparado: Maria.
O comparante: flor.
O atributo implícito: provavelmente bela, delicada,
perfumosa, suave.
A determinação do atributo implícito nem sempre é
simples. A pertinência ao contexto é fundamental. A
metáfora é um recurso de semântica aberta e em certos
casos as incertezas quanto ao atributo implícito são
grandes.
B- As metáforas que explicitam comparado e atributo
explícito são consideradas como do tipo II.
Exemplo: amargo regresso
Comparado: regresso
Comparante: sabor
Atributo explícito: amargo
Atributo implícito: ruim, desagradável.
C- E as metáforas em que o comparante substitui o
comparado são classificadas como do tipo III.
Exemplo: a chave do problema.
Comparado: solução
Comparante: chave
Atributo implícito: capacidade de abrir portas, caminhos.
A metáfora possui algumas variações que, na verdade, são
estudadas como se fossem outras figuras de linguagem
independentemente da relação semântica que possuem com a
metáfora propriamente dita.
56
Vejamos os casos da hipérbole, do símbolo, da sinestesia e
da catacrese.
A hipérbole é um caso especial de metáfora, usada para
passar uma impressão de grau extremo ou de exagero em que o
comparante caracteriza-se por ser um extremo em relação ao
comparado. Por exemplo: demorou um século; Comparado:
tempo da demora; Comparante: um século; Atributo implícito:
demora.
O símbolo É a metáfora que acontece quando o nome de
um ser ou coisa concreta assume um valor convencional e
abstrato. Por exemplo: A cruz pode enfrentar a espada. Não se
trata, naturalmente, de usar o crucifixo como arma... Quer-se
dizer, por exemplo, que a religião cristã, simbolizada pela cruz,
pode enfrentar a violência, simbolizada pela espada.
"E acreditam nas flores vencendo o canhão." O verso de
Geraldo Vandré tem sentido semelhante: as flores simbolizam a
paz; o canhão, a guerra.
A sinestesia apresenta uma variedade de metáfora
bastante usada no processo de comunicação falada e,
principalmente, a escrita que é a sinestesia a qual consiste no
cruzamento de duas ou mais sensações distintas ou, então, a
atribuição a uma coisa de qualidade que lhe é incompatível,
aceita apenas no plano figurado. É a figura dos sentidos. Por
exemplo, o grito áspero (sensação auditiva x sensação tátil).
A catacrese é uma variedade de metáfora natural da
língua, de emprego corrente, que serve para suprir a
inexistência de um nome específico para determinada coisa.
Também é conhecida e classificada como uma metáfora
desgastada, ou seja, argumentativa da comparação mental e
57
tornou-se, em função disso, uma expressão comum. Por
exemplo, Nariz do avião, pé da mesa, boca da noite, dente de
alho, embarcar no trem, etc. Em relação à catacrese, também
conhecida como metáfora morta ou lexicalizada, podemos
considerar que a metaforização é um processo de vasto uso na
criação de léxico. Uma metáfora pode se vulgarizar a ponto de
se converter em léxico. Em muitos casos, a percepção da
origem metafórica chega a se dissipar. A metáfora lexicalizada,
a rigor, deixa de existir como metáfora.
Quando dizemos 'Maria é uma flor' estamos sugerindo que
o enunciado seja decodificado por um algoritmo metafórico, no
qual Maria continua a denominar uma mulher e flor continua a
designar um vegetal, ou seja, na metáfora original nem
comparado nem comparante sofrem mutação ou transferência
de sentido. Maria continua a designar a Maria e flor continua a
designar a flor. Se a comunidade começar a chamar Maria
sempre por flor teremos uma lexicalização. O termo flor passará
a ser signo para a Maria. (www.radames.manosso.nom.br.2008,
p. 3)
Notadamente, afirma Nilce S. Martins em seu livro
Introdução à Estilística (1989, p. 90-91) que o mais importante
fator de afetividade é certamente o emprego da linguagem
figurada, seja da metáfora e da metonímia, em que as palavras
assumem um sentido mais afastado do significado fundamental,
seja das figuras de construção e pensamento em que as
palavras envolvidas assumem um relevo ou conotação especial.
Nota-se que é praticamente impossível delimitar o valor
expressivo das figuras apenas à palavra; mesmo que em certas
metáforas, a expressividade se concentre em determinada
palavra, ela só é apreendida pela relação sintático-semântica
58
dessa palavra com outras, portanto, ela coexiste na estrutura
frásica.
As figuras de linguagem - que a retórica clássica descrevia
como sendo os traços, as formas ou os torneios mais ou menos
notáveis e de um efeito mais ou menos feliz, pelos quais o
discurso, na expressão das idéias, dos pensamentos, se afasta
mais ou menos do que teria sido a expressão simples e comum
e que a Neo-retórica, mais simplificadamente, considera
alterações da linguagem (metáboles) são importantes não só
na linguagem literária, mas também na linguagem do povo, que
tem sua retórica intuitiva.
Du Marsais já dizia, com evidente exagero, que se fazem
mais metáforas num dia de feira do que numa sessão de
Academia. Em geral, as metáforas populares (tão freqüentes
na gíria) são menos surpreendentes e requintadas e se repetem
até se desgastarem, ao passo que as metáforas dos artistas são
originais, imprevistas e, o mais das vezes, não se repetem,
ficando restritas a um verso, uma frase.
A maioria das gramáticas têm, tradicionalmente, como uma
de suas unidades - a Estilística definida, segundo o Dicionário
Houaiss (2001, p. 1254) como a arte de escrever de forma
apurada, elegante, ou ainda, como o ramo da Lingüística que
estuda a língua na sua forma expressiva, analisando o uso dos
processos fônicos, sintáticos e de criação de significados que
individualizam estilos.
No momento em que a Estilística se envolve na criação de
significados (novos), une-se à Semântica cuja linguagem se
manifesta sob dois aspectos essenciais: denotativo (uso das
palavras no sentido original/etimológico) e conotativo ou
59
figurado. Neste, caracteriza-se a linguagem figurada, na qual
as palavras são usadas fora dos padrões normais da
comunicação, especialmente no que tange aos seus aspectos
significativos.
Para Massaud Moysés, a poesia se constrói na linguagem
essencialmente conotativa a tal ponto de uma lembrar
automaticamente a outra. Não significa, porém, ausência de
denotação, uma vez que essa constitui o primeiro sentido que
todos os vocábulos ostentam no interior do texto. Se é lícito
falar em denotação pura ao nível do dicionário ou da
linguagem referencial, em se tratando de conotação o quadro
muda de figura: por conotação de um vocábulo não se entende
a soma de sentidos indenotativos, mas uma série de sentidos
contextuais que principia pela denotação. Por outros termos, o
sentido denotativo participa necessariamente da conotação:
esta, não exclui o sentido referencial; antes, inclui-o
sistematicamente. (A CRIAÇÃO POÉTICA, 1977, p. 132).
Do ângulo da conotação/denotação, observa-se que a
poesia constitui a tensão entre a camada denotativa, reflexo do
mundo físico, e a camada conotativa, desenvolvida no contexto
do poema: a poesia igualmente se desintegraria caso se
anulasse qualquer das camadas. (MASSAUD MOYSÉS, 1977, p.
144)
Como ilustração disso, consideremos que se olharmos para
o céu e observarmos, à noite, uma estrela e pensarmos: Eis
um astro que brilha no céu, de tamanho médio como o nosso
Sol, estamos utilizando a linguagem objetiva, denotativa, isto
é, aquela que se utiliza da palavra no sentido expresso em
dicionários e que é empregado na comunicação diária.
60
No entanto Manuel Bandeira empregou a palavra estrela
com um sentido novo e criativo:
Vi uma estrela tão alta,
Vi uma estrela tão fria!
Vi uma estrela luzindo
Na minha vida vazia.
Observando-se a estrofe acima, percebemos que o autor
usou a palavra estrela com outro significado, que não o
estritamente dicionarizado, pois, no contexto, percebe-se que a
estrela é fria, algo distante, alheio e indiferente. O valor da
palavra já não é denotativo (no sentido de astro) e, sim,
conotativo, isto é, está ligado à idéia que se adquiriu de ideal,
de desejo, de amor.
A linguagem figurada não é uso exclusivo de poetas; pelo
contrário, está presente no cotidiano, numa simples conversa,
no trabalho, no lazer, nos encontros amorosos. É ela de que nos
utilizamos quando, na nossa conversa com um colega, dizemos
uma gíria, ou quando fazemos uma comparação. Vejamos:
Amaral da Telesp tem costa quente. (Revista Veja). Nesse
caso costa quente foi usado no sentido de que Amaral tem a
proteção ou auxílio de alguém superior. Pode-se dizer, então,
que a linguagem figurada, especialmente a metáfora, é um
recurso facilitador ou promotor de nossa criatividade lingüística.
Serve, assim, para dar novo tom ao nosso pensamento, dando-
lhe mais vigor, trazendo mais colorido e graça à nossa
comunicação e expressão.
Massaud Moysés, em seu livro A criação Poética (1977, p.
121) esclarece que a metáfora se monta em torno de uma
comparação, explícita ou implícita, entre dois vocábulos ou
frases, de que resulta a transformação de sentido de cada
61
membro e o nascimento de um sentido novo, proveniente da
totalidade de um enunciado.
Alguns teóricos preferem criar uma sigla bifronte,
comparação metafórica, que, acolhendo a existência de mais de
um tipo de comparação, não dissimula que a metáfora
pressupõe sempre uma comparação, in praesentia ou in
absentia . Por exemplo, se dissermos: seus dentes (a coisa A)
são um colar de pérolas (a coisa B), temos os dois termos o
comparado (a coisa A) e o comparante (a coisa B) expressos
na frase. Dizemos, então, que é metáfora in praesentia; se
apenas o termo comparante está explícito, trata-se de
metáfora in absentia ou pura: Exemplo: Duas esmeraldas
cintilavam-lhe na face. O termo comparado olhos está ausente
(implícito).
Na verdade, a diferença reside no fato de que a
comparação explícita revela o processo, todo ou em parte, que
proporcionou a instauração do novo sentido, ao passo que a
implícita apenas expõe o resultado da operação redutora e a
condensação de sentido decorrente.
Maria Luiza Ramos, em seu livro Fenomenologia da Obra
Poética (1974, p. 100-101) preconiza: Se a imaginação é a
capacidade de representar pelo pensamento um objeto, em vez
de intuí-lo pela percepção, claro se torna seu papel substitutivo
e complementar. E é essa função substitutiva que caracteriza a
imagem no terreno da expressão lingüística: a intencionalidade
de uma determinada significação nominal é deslocada de um
objeto para outro.
Naturalmente isso é possível pelo fato de o conteúdo
formal de determinada palavra apresentar analogia com o
62
conteúdo de outra palavra, para a qual se deslocou a
intencionalidade. Em vez de constituir processo anômalo de
significação, a metáfora é apenas o resultado da multirradiação
do fator direção intencional que integra a strutura nominal.
Vejamos este exemplo:
Com minhas frágeis
e frias mãos
cavei um poço
no fundo do horto
da solidão. (H.Lisboa)
Imediatamente, percebe-se que esse poço não tem
caracterização existencial dentro do contexto, do mesmo modo
que não tem horto da solidão. E o que confere a essas palavras
uma posição existencial definida, ou seja, uma supra-realidade,
é o fato de seu conteúdo formal evocar o objeto da angústia ou
da insatisfação do poeta, sentimentos cuja abstração é difícil de
traduzir num conteúdo material. O poço apresenta-se, então,
como a concretização do vazio e da ameaça nesse lugar anímico
tão bem representado pela expressão horto da solidão.
Finalmente, e sem a intenção de esgotarmos todas as
definições, análises, ilustrações sobre metáfora, do ponto de
vista teórico, à guisa de algumas perspectivas de conclusão,
reportamo-nos, nesse sentido, à referenciação feita por
Massaud Moysés em seu livro A Criação Poética (1977, p. 123)
A comparação pura e a metáfora ainda se
distinguem pela máscara, impostura,
embuste: enquanto a comparação manifesta
um juízo nítido, direto e unívoco, a metáfora
propõe um engano, na medida em que,
obliterando o sentido que pretende revelar, dá
margem para que se adie para sempre a
definição esperada (MASSAUD MOYSÉS, 1977,
p. 123).
63
Por meio da metáfora, o pensamento se outorga o direito à
vaguidade, escondendo seu rosto na máscara polifacetada que o
encontro de dois termos afivela, porque não pode mostrá-lo às
claras sem decompor-se, - ou porque o pensamento é,
intrinsecamente, a metáfora que se formula. Pensamento
complexo que segrega a máscara por meio da qual se exprime e
se esconde; máscara polimórfica que aponta o rosto nela oculto
sem declarar-lhe a natureza, porque igualmente poliédrica ou
multifacetada. (MASSAUD MOYSÉS, 1977, P. 123)
O que vemos são dois universos permutáveis e
indissociáveis, formando uma unidade, - a máscara e seu
segredo -, sem que possamos desvendar este nem substituir
aquela: a máscara adere definitivamente ao rosto, com ele se
confunde e se identifica, de forma a pressupor o outro, num
interminável movimento dialético: a metáfora não se produz
senão quando a consciência da unidade dos termos da
transferência coexiste com a consciência e suas diferenças.
(MASSAUD MOYSÉS, 1977, p. 123)
Para finalizarmos as considerações e ou citações teóricas
sobre a metáfora (Item 2.1- cap.2) é indispensável notar-se a
estreita ligação e coerente manifestação desse extraordinário
recurso estilístico no processo comunicativo – explícito ou
implícito nos poemas de João Cabral de Melo Neto e de
Fernando Pessoa. Certamente, o uso da metáfora contribuiu de
forma incisiva na projeção dos aspectos filosóficos, religiosos e
os inerentes ao próprio fazer poético como concepção artística
dos dois poetas como veremos na análise feita neste capítulo 3
- itens 3.1 e 3.2, respectivamente.
64
2.2- A metáfora em João Cabral de Melo Neto
Como dissemos no início deste capítulo, passaremos à
identificação e à análise de alguns poemas (ou parte deles) de
João Cabral de Melo Neto, iniciando com o poema mais
importante da obra dele: Morte e vida severina.
Em Morte e vida severina (Auto de Natal) de João Cabral,
quando Severino fala de ouros nordestinos, vítimas da mesma
sorte adversa, assim se exprime:
Se ao menos mais cinco havia
Com nome de Severino
Filhos de tantas Marias
Mulheres de outros tantos
Já finados Zacarias,
Vivendo na mesma serra
Magra e ossuda, em que eu vivia.
O poeta constrói aí uma metáfora de tipo tradicional, pois,
os significantes magra e ossuda não são considerados no seu
aspecto denotativo ou lingüístico, mas sim, no se aspecto
poético. A expressão conota uma realidade inóspita, agressiva,
um chão que é só pedra e escarpa, sem terra fofa para se
cultivar. (MARIA LUIZA RAMOS, 1974, p. 104-105).
Já quando o poeta chama de terra aos mortos do cemitério
de Nossa Senhora da Luz, a imagem é mais sutil, porque não há
relação lógica entre os dois significados:
Mortos ao ar livre, agora
À terra livre é que estão
São tão terra que nem sente
A terra a sua intrusão.
65
Os mortos são tão terra (metáfora) que se estabelece uma
comunhão perfeita entre os dois, como se fossem uma coisa só.
No entanto, não se trata de uma imagem inacessível apesar
de psicológica porque considerar-se o corpo morto como pura
matéria ou pó, é uma imagem de conotação universal, mas
também, em um contexto social, podemos entender quão
insignificantes são esses seres humanos que estão mortos.
No exemplo
Aqui o mar é uma montanha
Regular, redonda e azul
Mais alta que os arrecifes
E os mangues rasos do sul.
exige um esforço de associação bem maior por parte do leitor,
principalmente, quando este pertence a outro contexto social,
sem a vivência do poeta, o que pode fazer com que a relação
entre ambos não se estabeleça.
Ressalta-se, aqui, a questão das formações discursivas dos
interlocutores, ou seja, se o leitor não conhece a realidade do
nordeste, da seca e outras provocações cíclicas da natureza,
nessa região, dificilmente, entenderá que o mar a que ele se
refere como uma montanha regular, redonda e azul, nada mais
é do que o céu infinitamente azul, total e continuamente
desprovido de quaisquer nuvens que pudessem trair a
esperança do retirante no sentido da possibilidade de chuva.
A metáfora, seja tradicional, seja psicológica, é recurso
expressivo de que a linguagem coloquial se vale a cada
instante. É interessante observar que o maior efeito sobre o
leitor é aquele em que os termos relacionados são distanciados
entre si, ou quando a relação se faz de maneira psicológica. É o
caso da seguinte imagem, por exemplo:
66
Aquele rio
Era como um cão sem plumas.
O leitor menos avisado poderá rir-se da comparação
absurda que o poeta fez, no entanto, o absurdo é exatamente
um dos fatores do cômico e o humor tanto quanto o grotesco
reside, muitas vezes, na aproximação de elementos díspares.
De qualquer forma, também aqui, é o contexto que vai
emprestar dimensão poética à imagem, não por explicá-la, mas,
por situá-la num todo expressivo e significativo. MARIA LUIZA
RAMOS, 1974, p. 105).
Para que se verifique uma imagem metafórica, é
necessário que haja, ao mesmo tempo, afinidade e divergência.
Ou como observa Tudor Vianu, em seu livro Los problemas de la
metafora (1967, p.19): Uma metáfora pressupõe a alternância,
na consciência, de duas séries de representações:
1 - uma série de semelhanças entre a realidade designada
em sentido próprio pela palavra respectiva e a realidade
designada por ela em sentido metafórico;
2 - uma série de diferenças entre as duas realidades. A
metáfora é a constante psicológica da percepção de uma
unidade dos objetos através do véu de suas diferenças.
Quando estudamos o adjetivo, sabemos que ele se
caracteriza por ser pertinente a um substantivo, qualificando-o
ou determinando-o e que o epíteto palavra ou frase que
qualifica pessoa ou coisa caracteriza-se por não ser
necessário no contexto e, muitas vezes, impertinente, ao nome
regente. Como exemplo, podemos citar a seguinte estrofe,
também de João Cabral:
67
As nuvens são cabelos
Crescendo como rios
São os gestos brancos
Da cantora muda.
Sabemos, no entanto, que o epíteto impertinente é
também de natureza psicológica e sua existência foi registrada
pelos antigos com os nomes de catacrese (no caso de gestos
brancos) e de antítese (na expressão cantora muda). No
primeiro exemplo verifica-se ainda um caso de sinestesia, que é
uma das mais interessantes modalidades de metáfora, por
constituir-se na transposição de reações sensoriais de natureza
heterogênea, provocando na mente do leitor um todo
homogêneo e complexo. (MARIA LUIZA RAMOS, 1974, p. 106).
Não resta dúvida de que o processo metafórico, de cunho
sinestésico ou não, baseia-se na aproximação de palavras que
apresentem certa analogia de conteúdo formal.
Há um aspecto explorado, hoje, chamado processo de
exploração de palavras que não se conhece na literatura
tradicional, ou melhor, um processo de desordenação, ou seja,
de deixar as palavras em liberdade. E enumeração de
expressões aparentemente desconexas é ainda uma forma de
inconseqüência, como se pode observar neste poema de João
Cabral de Melo Neto:
Mulher. Mulher e pombos.
Mulher entre sonhos.
Nuvens nos seus sonhos?
Nuvens nos seus cabelos.
A visita espera na sala
A notícia, no telefone;
A morte cresce na hora,
A primavera, além da janela.)
68
Mulher sentada. Tranqüila
Na sala, como se voasse.
A inconseqüência, no entanto, como sucede à metáfora
psicológica, é arma de dois gumes, porque pode também gerar
o absurdo em vez de redundar em poesia. É o que acontece, à
primeira vista, neste poema, se o interlocutor, em sua leitura,
não a fizer com atenção e contextualização devidas. Levados em
consideração esses aspectos, o poema não gera o absurdo, pois
o último verso retoma admiravelmente o primeiro, através da
associação entre mulher e vôo, ou mulher e pombos. (MARIA
LUIZA RAMOS, 1974, p. 121).
Outro poema a seguir transcrito - em cujo conteúdo
estruturam-se passagens conotativas extremamente
interessantes é o da Psicologia da composição:
Psicologia da composição
Não a forma encontrada
Como uma concha perdida
Nos frouxos areais como
Cabelos,
Não a forma obtida
Em lance santo ou raro,
Tiro nas lebres de vidro
Do invisível,
Mas a forma atingida
Como a ponta do novelo
Que atenção, lenta,
Desenrola,
Aranha, como o mais extremo
Desse fio frágil, que se rompe
Ao peso, sempre, das mãos
Enormes.
Na verdade, o poema em si, em sua essência, é uma
grande metáfora em relação à busca e a realização perfeita do
69
fazer poético cuja análise, nesse sentido, será feita no capítulo
3 item 3.1.
Por exemplo, a expressão frouxos areais pode parecer
redundância, mas frouxos, é aí um epíteto poético, pois o poeta
quer chamar a atenção para a idéia de instabilidade, para o
terreno movediço que é o da inspiração ocasional e fortuita. Por
isso, talvez, o símile – como cabelos - que, no contexto
marítimo da estrofe, traz conotações de algas, de coisa
imprecisa e amorfa.
Quando o poeta fala em o mais extremo / desse fio
frágil, já não é mais o novelo evocado na terceira estrofe e
nem o fio como substância que a aranha possui, dispõe e
domina com habilidade para tecer sua rede, mas, refere-se a
um outro fio frágil e que se rompe:
Ao peso, sempre, das mãos
Enormes.
Torna-se evidente, agora, que não se trata mais de aranha
alguma, em cuja imagem se funde o próprio poeta, através do
símbolo, as mãos. O adjetivo enormes desperta-nos as mais
curiosas conotações, sim, porque se o fio se rompe em função
das mãos pesadas e enormes em relação à matéria trabalhada,
é porque elas são grosseiras, rudes, inábeis, incapazes,
portanto, ínfimas. Eis, então, que a expressão enormes é
metáfora extraordinária que sugere e encobre a idéia antitética
de impotência. (MARIA LUIZA RAMOS, 1974, p. 202).
Por outro lado, se compararmos o fio com o processo
poético, certamente, Cabral refere-se com ironia às mãos
enormes como metáfora dos poetas inábeis, rudes e incapazes
de fazerem uma poesia “construída” como uma casa, mas
apenas, uma poesia-flor, poesia tradicional, romântica e que
70
deverá reduzir-se a fezes, como veremos adiante na análise da
poesia Antíode.
Na estrofe:
Mulheres vão e vêm nadando
Em rios invisíveis.
Automóveis, como peixes cegos
Compõem minhas visões mecânicas.
Vemos que, assim, como numa espécie de palco móvel,
espaço aberto e ilimitado, entre a percepção sensível e as
lembranças, entre o olho que vê e a memória que evoca, nem o
passado se distingue do presente nem o interior do exterior. Os
olhos que espiam a rua enxergam, por desdobramento
visionário, o invisível no visível.
Fica assim bem marcado o sentido alegórico que tem o
título desse primeiro livro de João Cabral. Sua pedra de sono é
o objeto mediador entre o sonho e a poesia, que a tradição
bíblica reconheceu e consagrou na pedra de Jacó. No último
verso visões mecânicas é uma metáfora que reflete a postura
de Cabral no sentido de captar a poesia latente ao espírito em
estado de sono.
Dominada por um complexo de imponderabilidade, que
valoriza a indeterminação, a inconsistência e a fluidez das
coisas, a experiência, a que o estado de sono dá acesso, se
articula numa semântica do vago em torno de palavras
preferenciais, como nuvem, sonho, vulto e fantasma. Já para a
segunda forma de pressão, a resposta mais completa foi dada
com a publicação do poema O Cão sem Plumas, em que a
matéria regional é tratada pelo verso rigoroso e disfórico
(disforia, inquietude) que o poeta aprendera a dominar nos
livros publicados até 1947. Na verdade, esse poema parece ser
71
uma dupla resposta: à pressão de época mencionada e ao
próprio estágio a que chegara João Cabral com as três partes
que constituem Psicologia da Composição, onde a
predominância é de poemas, como a "Antíode", em que
sobressaem a negatividade e a recusa do lírico.
Contra a poesia dita profunda, a "Antíode" que, através de
diversas metáforas, buscava realizar uma limpeza nos despojos
líricos tradicionais, precisamente ali onde mais se escondem os
ardis da inconsciência poética, isto é, nas relações dadas e
aceitas, sem discussão, entre poesia e imagem.
Já nas duas primeiras estrofes do poema, essas relações
são postas sob suspeição:
Poesia, te escrevia:
flor! conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
gerando cogumelos
(raros, frágeis cogu-
melos) no úmido
calor de nossa boca.
É esse sentido de limpeza, ainda que pareça irônico o uso
da palavra na substituição que o poeta faz de flor por fezes,
que permite, nas últimas estrofes do poema, a superação da
imagem pela linguagem:
Poesia, não será esse
o sentido em que
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor-virtude - em
disfarçados urinóis.)
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, como as
manhãs no tempo.
72
Com a decomposição da metáfora que perde seu poder
enfeitiçante, opera-se concomitantemente, em Antíode, a
decomposição final da idéia de poesia pura, de que a flor, como
forma delicada, é o emblema. Já no quadro semântico formado
com traços de morte e da desagregação em que a flor reduzir-
se-á a fezes, ou seja, metaforicamente, a flor é a poesia
tradicional que se despoja de todas as roupagens supérfluas e
de toda profundidade ilusória de todos os ornamentos da
fantasia e da sublimação dos sentimentos de tal forma que a
construção do poema seja a máquina da linguagem.
Outro poema fortemente marcado por metáforas é Catar
feijão em que, já no próprio título, Cabral revela sua
concepção do ato criador, tendo o objeto da construção do
poema, como referência, um ato do cotidiano no qual também o
escolher, o combinar são necessários. Esse poema, aliás, será
bastante explorado, no capítulo 3 item 3.1- referente à
análise de o fazer poético de João Cabral.
Assim, ele, como o catador de feijão, seleciona os
melhores grãos (palavras), a fim de construir uma poesia que
fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo-se de
tudo o que for leve e oco, palha e eco, que é a sobra, a sujeira,
pois o bom feijão fica no fundo. Desde aí, o poema
conotativamente inicia seu jogo poético. Na verdade, ao término
de sua leitura, sabe-se que o que lhe interessa mesmo é o
catar palavras. (www.coladaweb.com.2008
, p. 1)
Continuando a análise baseada no mesmo site, é
interessante observar que até o verbo catar assume o sentido
de escolher porque catar feijão é como catar palavras, ou seja,
recolher, retirar o que não é feijão ou não é feijão bom, o que
não é palavra adequada ou não é palavra boa.
73
Há também uma metáfora interessante no primeiro verso
em relação ao verbo limitar Catar feijão se limita com
escrever quando quer mesmo a idéia de que escrever se limita
com catar feijão. O jogo através do símile se faz o inverso,
torna-se o real comparado na condição de comparante. Note-se,
igualmente, que o sentido do verbo limitar não é o de
estabelecer limites, fronteiras, porém, de estabelecer
proximidades (e não igualdade) entre comparante e comparado:
Catar feijão se limita
com escrever e, não é o mesmo que
catar feijão, é como escrever. (www.coladaweb.com
. -2008, p.
1)
As diferenças e semelhanças dos dois atos ficam
garantidamente asseguradas nos versos do poema. E para
demonstrar concretamente essa imagem, seguem-se os verso
dois, três e quatro, com os quais estabelece simultaneamente a
semelhança / diferença no ato de jogar: "joga-se os grãos na
água do alguidar" é semelhante apenas na intenção de escolher
a "ou as palavras na folha de papel".
A imagem é muito significativa, ainda mais quando se
observa que a "água-papel" se contrasta com a "água
alguidar" não apenas quanto à imagem produzida: líquida, a do
alguidar, sólida (e branca), a do papel, mas também porque a
complexidade do verbo boiar é muito maior pelo efeito que o
contexto lhe confere. Ora, na água papel, efetivamente as
palavras não bóiam porque não há fundo, mas conotativamente
bóiam, quando ao texto não se ajustam, sendo então necessário
"catá-las, separá-las, escolhê-las de tal forma que possam
fazer parte da composição.
E nessa linha se fecha a primeira fase: pois para catar
esse feijão, soprar nele e jogar o leve e oco, a palha e eco.
74
Esses são elementos concretamente próprios do ato de catar
feijão jogado no alguidar: o que sobe é leve, palha, oco e, pois,
eco (sujeira). Mas poeticamente é no catar palavras que ele se
aplica: jogar fora as que são palha, ocas, portanto, eco. Deve-
se atentar ainda para a especial conotação metafórica da
palavra eco, que no poema é eco (sujeira de que se deve livrar)
por fazer eco, ou seja, (som desagradável que se deve evitar).
É interessante observar que na segunda parte, a segunda
estrofe do poema expõe uma das conseqüências ou um dos
resultados possíveis desse ato de catar feijão; o risco que se
corre, pois pode ficar no fundo algo que, como o feijão, não
bóia e que, estranho, pode se tornar um perigo: "um grão
qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de quebrar
dente". Isto para esse real catar feijão na água do alguidar.
Entretanto para o catar palavras, o efeito é outro bem
contrário: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo:"
(www.coladaweb.com
. -2008, p. 2)
Como se verifica, o processo composicional estabelecido se
mantém. Apenas que desta feita a implícita comparação se dá
de forma direta. A pedra para o "catar palavra" não é indigesta,
mas sim renovadora. Melhor dizendo, o indigesto em "catar
palavras", qual seja, o que rompe o tradicional (o habitual) não
causa problemas, ao contrário, instaura o novo, criativamente
considerado, "a pedra dá à frase seu grão mais vivo: obstrui a
leitura fluviante, flutual. (www.coladaweb.com
. -2008, p. 2)
75
2.3- A metáfora em Fernando Pessoa
Após feita a identificação e a análise de algumas metáforas
em poemas de João Cabral de melo Neto, passaremos à
identificação e à análise de metáforas presentes em alguns
poemas da vasta obra de Fernando Pessoa. O primeiro poema
que servirá de base para essa análise é O andaime cujo teor
transcreveremos, como segue:
O Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A ´sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha sp'rança
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
76
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente, deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
(PRESENÇA, nº 31-32, Junho de 1931)
1 - o andaime
No título já encontramos a grande metáfora, pois, o
andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às alturas, as
paredes de uma casa. No poema, a casa é a vida do poeta a
casa por fabricar que nunca chegou a ser; o andaime, as
esperanças irrealizáveis, o projeto inconcluso, a ilusão que se
revelou numa mentira. O andaime era inútil como a vida e seus
anseios.
77
Essa referência metafórica encontra-se no último verso do
poema - A casa por fabricar,- em que a casa, na simbologia
geral, é o centro do mundo e significa o seu interior, o refúgio
íntimo de cada homem. Nessa composição, o interior e a alma
do poeta se constituem num enorme vácuo rodeado por um
andaime inútil, por isso, ele se sente vazio tendo em vista que
a casa não chegou a ser edificada.
No terceiro verso, da segunda estrofe, temos:
2- este seu correr vazio - é o fruto da vida vivida em
vão e tem, como conseqüência o correr vazio do rio que nada
mais é do que a própria vida vazia, sem sentido, do poeta. O rio
como escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte
e de renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o
oceano e o ajuntamento das águas o retorno à indiferenciação.
O poeta recorda seu passado, olhando as ondas do rio e ouvindo
o som morto das águas.
O ajuntamento das águas do rio com o oceano pressupõe e
representa a morte das mesmas e, também, a morte do poeta
frente ao passado, às suas irrealizações, ao andaime inútil e ao
encontro do amanhã, do infinito, quiçá, com Deus.
3. No 1° verso, 3ª. estrofe: a´sp´rança que pouco
alcança faz-nos lembrar o provérbio quem espera sempre
alcança em que o poeta parece não acreditar muito ou quase
nada pois, para ele, a esperança pouco alcança, ou seja, de
certa forma, é inútil acreditar em alguma coisa nesta vida. As
esperanças estão mortas, porque já não acredita mais nelas,
embora ainda não as tenha esquecido, porém, hão de morrer.
4. No 3° verso, da 3ª. estrofe: e uma bola de criança
igual à saudade da infância, o desejo de retorno ao seio
78
materno. A esperança e o desejo do poeta são comparados a
uma bola. A bola atirada ao alto por uma criança sobe mais que
a esperança que sente, do que o desejo que tem. Notamos aqui
a pequenez e a impotência do poeta ante essas duras
constatações, provavelmente, no outono da vida dele.
No entanto, devemos ter certo cuidado com quaisquer
afirmações referentes a Pessoa porque ele como poeta é um
fingidor e, portanto, tudo isso talvez não passe de mais um
recurso poético embasado em argumentos falaciosos os quais
lhe permitem fingir tão completamente a própria dor, a dor
real, verdadeira, como se ela não existisse de fato.
5. No 4° e 5° versos , da 5ª. estrofe: só no palco era
rainha/ despiu-se e o reino acabou.
A ilusão (rainha) mantinha o poeta, mas numa visão irreal,
impossível, sobre o palco da vida.
Despiu-se
,ou seja, o poeta caiu no mundo real e, então,
percebe o engano: tudo não passou de uma enorme e
inexplicável ilusão.
6- No 4° e 5° versos, da 9ª. estrofe, temos: do que eu
deveria ser muro/ do meu deserto jardim.
O muro simboliza a comunicação cortada, interrompida:
pode servir para proteção, defesa, mas, ao mesmo tempo, é
símbolo de cárcere, falta de liberdade.
O jardim, por sua vez, simboliza o paraíso terrestre ou
celeste e aparece nos sonhos como a expressão de um desejo
puro. Desse modo, o paraíso que o jardim simboliza torna-se o
vazio, a ausência de felicidade; o muro o corte, o impedimento
79
de realizar o sonhado. O corpo do poeta é o muro da alma, o
guardião, defesa do que já nada há para guardar. Daí, o poeta
referir-se a um deserto jardim, sem árvores, nem canteiro de
flores; está deserto como sua própria alma que está árida e
deserta: sem sonhos, sem vida, sem passado, sem futuro.
Outro poema que, embora de extrema importância para a
criação poética de Fernando Pessoa, podemos analisá-lo
também em relação a algumas metáforas. No já citado poema
Autopsicografia, na primeira e na segunda estrofe, o poeta
manifesta seu sentimento artístico e o sentimento que deve
sentir o receptor, destinatário de sua mensagem: aquele que irá
ler o poema.
O poeta é um fingidor,
Finge tão completamente,
Que finge que é dor
O que deveras sente.
Poeta é um termo que se origina de um verbo do grego que
significa fazer. Assim, poeta é o fazedor, o criador, o
construtor.
O verbo fingere, do latim, tem, entre outros, os seguintes
significados básicos:
1) modelar em barro;
2) modelar em qualquer matéria plástica;
3) moldar, esculpir, reproduzir os traços;
4) representar;
5) imaginar, inventar, produzir, criar;
6) fingir.
(DICIONÁRIO ESCOLAR LATINO-PORTUGUÊS - MEC - 1962)
80
O poeta é um modelador que usa, metaforicamente, o
barro do sensível, o material que ele tira da terra, enquanto na
terra, para fazer seus versos, tecer seus sonhos.
O poeta é um modelador que usa qualquer matéria
plasmável para urdir seus poemas, seus universos, seja ela os
êxtases de um santo, seja ela os orgasmos lúbricos de um
devasso, seja ela o sagrado, seja ela o profano, seja ela o
solene, seja ela o irreverente. O poeta esculpe, com sua
criatividade, paisagens de sonhos em que gostaria de viajar,
calabouços de trevas em que precisa estar.
Na terceira estrofe, Pessoa apresenta o resultado das
relações expostas nas proposições anteriores e que conclui a
primeira parte da Arte Poética, indicando assim a conclusão,
quando escreve: o coração (símbolo da sensibilidade) é um
comboio de corda que gira nas calhas de roda para entreter a
razão.
Examinemos algumas expressões, constantes na última
estrofe, aplicando-lhes o princípio da analogia, procurando
atingir, pelo que está em baixo (o denotado), o que está em
cima (o conotado):
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração.
calhas de roda - corresponderiam ao conteúdo semêmico
de trilhos (de estrada de ferro), isto é, caminhos que levam a
um determinado lugar, passando sempre pelos mesmos sítios.
Daria, então, a idéia de pré-destinação, fatalidade - uma
concepção fatalista da existência, ou seja, como se houvesse
81
uma pré-imposição de coisas das quais o poeta não poderia
fugir.
gira - rodopia, descreve um movimento circular
turbilhonante; rodopia, agita-se vertiginosamente, mociona-se,
emociona-se, comociona-se. Essa última associação leva-nos à
idéia de sentimentos (em oposição à razão);
comboio de corda - série de carros arrastados por um
elemento motor, no caso, a corda. Se comboio de corda
corresponde a coração temos, por uma operação analógica:
comboio - carros arrastados (puxados, tirados) e,
metaforicamente, sentimentos, anseios, esperanças,
preocupações, recordações, que o homem arrasta, através de e
em o coração, pela existência em fora;
(de) corda - elemento que impulsiona, durante certo lapso
de tempo, tendo, previamente, sido impulsionado. E aqui fica
uma pergunta latente, angustiante: impulsionado por quem? E a
resposta está bem distante, talvez, inexista. Embora pareça
que tenhamos um sujeito indeterminado, na verdade, quem
teria impulsionado o comboio seria uma Força Superior, do
Além, a mesma que age sobre o destino do poeta.
E assim, o coração gira, descendo à realidade e voltando a
si, e descendo novamente à realidade, num circuito sem fim,
como um comboio que em seus vagões transporta tudo aquilo
que ele pode transportar: sentimentos, emoções, temores,
esperanças, alegrias, tristezas, dores, afagos ... e memórias,
quantas memórias! E esse esfalfar-se do coração tem um
objetivo, que ele não consegue ver: o de alimentar a razão, que
funciona como um mecanismo filtrador e sutilizador da
experiência. E o coração de carne, já por sua natureza, é o que
82
mais sofre com os embates da carne, a ela se entregando, e
criando apegos e âncoras e estalagens para o seu sentir. E gira
em calhas de roda, seguindo um itinerário do qual não pode se
desviar, pois, para ele, só existe esta dimensão para o seu
sentir.
Mas o coração - incluindo-se aqui o coração real e os
corações mais sutis da individualidade - realiza um outro giro
de âmbito maior, como se fora um comboio de corda que se
apresenta na forma de inumeráveis vagões-personalidades, que
ficam girando sem parar, um na luz do sensível, e os outros na
luz do inteligível mais próximo deste plano em que ora viajamos
o nosso estar sendo.
O vagãozinho verde chegou à linha do nascimento, e já
percorreu um bom trecho do caminho na vida, e logo chegará à
fronteira da morte, quando voltará , outra vez, à roda da
espera.
Percebe-se como Fernando Pessoa utilizou as metáforas:
calhas de roda e comboio de corda. Há algo de criança nesta
última. O leitor deve conservar a alma infantil, ainda não
contaminada, pura, fresca e límpida, para sentir bem, isto é,
para bem sentir o que suas sensações captam do mundo.
a entreter - para entreter, ocupar, fornecer elementos,
dados, para. Haveria, é verdade, paralelamente, sugerida a
idéia de distração, entretenimento, que, conquanto válida,
menos pertinente. Entreter, entre outros significados, tem o de
manter, conservar. Daqui podemos derivar: fornecer alimentos
ou elementos de manutenção para. E, por generalização,
teríamos: fornecer algo (aquilo que o coração pode oferecer, no
caso, sentimentos, emoções.
83
assim - desta maneira, da maneira apresentada nas
estrofes 1 e 2, girando, o coração (através dos sentimentos, do
sentir) gera dor no sensível.
Nisto está implícita a concepção de linguagem poética que
para Fernando Pessoa tem o poder de manipular arbitrariamente
os sentimentos humanos de modo a torná-los alheios à razão,
por isso, no último quarteto de Autopsicografia, o coração,
representante simbólico das emoções humanas no mundo
ocidental, é comparado metaforicamente a um comboio de
corda, isto é, a um brinquedo que entretém a razão.
Quando Pessoa refere-se, no último verso dessa quadra, à
"dor que deveras sente", quer dizer que entende o fazer poético
como atitude que, se abrange, também transcende os elementos
existenciais, pois "a dor fingida, a dor que figura no poema,
mesmo quando se prende a uma dor real, não se identifica
(necessariamente) com esta".
Para finalizarmos a análise metafórica de poemas,
consideremos o poema Isto, em que o poeta responde às
acusações de insinceridade que recebe da tradição literária
romântico-confidencialista:
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
84
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Partindo do verso Essa coisa é que é linda, o poeta
demonstra sentir o que se passa no mundo da inteligência, da
imaginação: no mundo das essências, porque ele é um poeta
fingidor que não finge; é um enganador que não mente;
é um coração que não sente o vulgar das aparências e,
tudo o que sonha ou passa, o que falha ou finda, É como que
um terraço. Como que, um limite, mas, para ele, um limite-
ilimitado, porque não usa o coração. Nesse espaço finito/infinito
as coisas são transfiguradas pela imaginação, ultrapassando
as contingências da vida, deixando o que está ao pé, isto é,
no chão, nas aparências, para elevar-se e chegar à inteligência,
onde se elabora a poesia. Aí, no mundo intelectual, livre de
enleio, sério do que não é, o poeta cria.
http://mais.uol.com.br/view/fernando-pessoa- em 10/2008.
Podemos dizer que as idéias expressas na primeira quadra
de Autopsicografia tornam-se recorrentes nos três últimos
versos da primeira estrofe de Isto. O que há de mais belo neste
poema é a comparação entre o terraço e o produto da
experiência existencial do poeta: "Tudo o que sonho ou passo /
O que me falha ou finda...". Os elementos existenciais são como
um terraço sobre outra coisa linda que é a poesia do poema,
que o poeta escreve com a liberdade que lhe assiste de criar
sem sentir, facultando aos leitores a liberdade de sentirem o
que lhes for permitido na depreensão do poema.
Por último, Fernando Pessoa tinha consciência da
necessidade do outro para estabelecer o diálogo que leva à
criação da dramaturgia-poética, tanto que a manifestou em
85
Autopsicografia. Sentia, nisso, a impotência do poeta por
compreender que a poesia, onde só uma voz é ouvida, e, assim,
incapaz de dialogar, é limitada. E fala disso no poema ISTO,
através da metáfora terraço. Para ele essa limitação era
insuportável. Esse, talvez, um dos motivos de outrar-se, na
heteronímia, na busca de outros-eus, para obter o
complemento de sua mais funda natureza nas profundezas de
outrem: a voz que falta. http://mais.uol.com.br/view/fernando-
pessoa- em 10/2008.
Talvez, seja essa a verdadeira e grande metáfora: a
heteronímia através da qual, Pessoa transportava-se para
outros-eus, fugindo, quiçá, da incompreensão com a qual se
defrontava no mundo em que vivia porque, este, não sabia que
ele, Fernando, não se identificava como Pessoa-ele-mesmo,
precisando transformar-se em Pessoa-ele-mesmo-um-outro para
realizar-se.
86
2.4- O fazer poético: origem e evolução histórica
É dever do poeta descobrir e estabelecer
semelhanças. (Aristóteles)
Após feito o levantamento sobre os aspectos teóricos da
metáfora, bem como a identificação e análise dessa figura de
pensamento, em poemas de João Cabral e Fernando Pessoa,
passaremos, conforme citado na Introdução deste trabalho, à
citação e à análise de diversas definições sobre o fazer poético,
delineando os aspectos fundamentais os quais se reportam
desde as origens históricas do fazer poético, ou seja, da arte
poética, até hoje, com os poetas Fernando Pessoa e João Cabral
de Melo Neto.
Com esse intento e para que se mantenha a coerência da
linha de nossa pesquisa, iniciaremos essa parte com algumas
importantes considerações e constatações referentes à Arte
Poética de Aristóteles que, junto com Platão, foram os primeiros
a tratarem essa questão com a seriedade de que ela se faz
merecedora.
Começaremos com a citação de vários aspectos históricos
referentes à origem da poesia e seus diferentes gêneros. Dentre
as causas que deram origem à poesia, sem dúvida, a mais
importante é aquela que provém diretamente da natureza do
homem: a imitação. Essa tendência para a imitação é, portanto,
instintiva no ser humano, o qual começa a desenvolvê-la desde
87
criança e é, nesse ponto, que os humanos se distinguem de
todos os outros seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida
para a imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros
conhecimentos e nela todos experimentam prazer.
(www.charleskiefer.com.br.2008
)
Os seres humanos sentem prazer em olhar para as
imagens que reproduzem objetos. A contemplação delas os
instrui e os induz a discorrerem sobre cada uma, ou a discernir
nas imagens as pessoas deste ou daquele sujeito conhecido.
Caso ocorra de alguém não ter visto ainda o original, não é a
imitação que produz o prazer, mas a perfeita execução, ou o
colorido, ou alguma outra causa do mesmo gênero.
Como nos é natural a tendência à imitação, bem como o
gosto da harmonia e do ritmo nas primeiras idades, os homens
mais aptos por natureza para esses exercícios foram aos poucos
criando a poesia por meio de ensaios improvisados e, assim, o
gênero poético se dividiu em diferentes espécies, consoante o
caráter moral de cada sujeito imitador. Os espíritos mais
propensos à gravidade reproduziram as belas ações e seus
realizadores; os espíritos de menor valor voltaram-se para as
pessoas ordinárias a fim de as censurarem do mesmo modo que
os primeiros compunham hinos de elogio em louvor aos seus
heróis. (www.charleskiefer.com.br.2008
).
Houve, portanto, entre os antigos, poetas heróicos e
poetas satíricos. Do mesmo modo que Homero foi sobretudo
cantor de assuntos sérios (ele é único, não só porque atingiu o
belo, mas também porque suas imitações pertencem ao gênero
dramático), foi também ele o primeiro a traçar as linhas
mestras da comédia, distribuindo sob forma dramática tanto a
censura como o ridículo.
88
Sem dúvida, Homero é por muitas razões, digno de elogio
e, a principal delas é o fato dele ser entre os poetas o único que
faz as coisas como elas devem ser feitas. O poeta deve dialogar
com o leitor o menos possível, pois não é procedendo assim que
ele é imitador. Os poetas que não Homero, pelo contrário, ao
longo do poema procedem como atores em cena, imitam pouco
e raramente; ao passo que Homero, após curto preâmbulo,
introduz imediatamente um homem, uma mulher ou outro
personagem e nenhum carece de caráter e, de cada um, são
estudados os costumes. (www.charleskiefer.com.br.2008, p.
51).
No mesmo site, temos ainda que nas tragédias, é
necessária a presença do maravilhoso, mas na epopéia pode-se
ir além e avançar até o irracional, através do qual se obtém
este maravilhoso no grau mais elevado, porque na epopéia
nossos olhos não contemplam espetáculo algum. Ora, o
maravilhoso agrada, e a prova está em que todos quantos
narram alguma coisa acrescentam pormenores imaginários, com
intuito de agradar.
Quanto aos assuntos poéticos é preferível escolher o
impossível verossímil ao possível incrível, ou seja, os assuntos
poéticos não devem ser constituídos de elementos irracionais,
neles não deve entrar nada de contrário à razão. Antes de mais
nada não se deveriam compor fábulas desse gênero; mas, se há
poetas que as fazem e de maneira que pareçam ser razoáveis,
pode-se introduzir nelas o absurdo, pois o passo inverossímil da
Odisséia, que trata do desembarque de Ulisses , não seria
tolerável, se fosse redigido por um mau poeta. Mas, em nosso
caso, o poeta dispõe de outros méritos que lhe possibilitam
89
mascarar o absurdo por meio de subterfúgios.
(www.charleskiefer.com.br.2008, p. 52).
A questão dos maus poetas é retomada por Horácio,
baseando-se em Platão e Aristóteles os quais entendiam que
para ser bom poeta é necessário ou ter um engenho excelente
ou ser furioso. Porém os maus poetas abusaram deste
pensamento e entenderam que o trabalho e o estudo nada
serviam para a poesia, bastando imitar os poetas, que
abstraídos pelo entusiasmo nada cuidam de si, buscando os
lugares solitários com outros muitos delírios e exterioridades de
loucos, de cuja postura Horácio escarnece.
Já na antiga Grécia havia pontos de controvérsia em
relação à forma de se fazer poesia e as soluções para eles,
sobre o número e as diferentes espécies de controvérsia,
algumas considerações devem ser feitas à luz de
esclarecimentos.
Sendo o poeta um imitador, como o é o pintor ou qualquer
outro criador de figuras, perante as coisas será induzido a
assumir uma dessas três maneiras de imitá-las: como elas eram
ou são, como os outros dizem que são ou dizem que parecem
ser, ou como deveriam ser. (Talvez, nessa referência já se
torne possível citarmos Fernando Pessoa quando diz que o poeta
é um fingidor, ou seja, ele imita a realidade, mas, com o poder
de disfarçá-la a seu bel prazer).
O poeta exprime essas maneiras diversas por meio da
elocução, que comporta a glosa, a metáfora e muitas outras
modificações dos termos, como as admitimos nos poetas.
Acrescentemos que não se aplica o mesmo critério rigoroso da
política à poesia, nem às outras artes em relação à poesia.
90
Em arte poética, são duas as ocasiões de se cometer
faltas: umas referentes à própria estrutura da poesia; outras,
acidentais. Se o poeta se propõe imitar o impossível, a falta é
dele. Mas se o erro provém de uma escolha mal feita, e.g., se
ele representou um cavalo movendo ao mesmo tempo as duas
patas do lado direito, ou se a falta se refere a algum
conhecimento particular como a medicina ou qualquer outra
ciência, ou se de qualquer modo ele admitiu a existência de
coisas impossíveis, então o erro não é intrínseco à própria
poesia. (www.charleskiefer.com.br.2008, p. 54).
Arte Poética como já vimos, é expressão que remete, em
primeiro lugar, para Aristóteles (384-322 a.C.) e para o seu
conhecido tratado sobre a poesia. Ao que se pensa e julga
saber, esse tratado, composto na parte final da vida do autor,
revela o caráter acromático (sem cor) de importante parte do
corpo textual aristotélico.
A Arte Poética de Aristóteles, tal como hoje a conhecemos,
divide-se em duas partes. A primeira desenvolve um conceito de
poesia como imitação de ações, que se afasta, ou mesmo
contrapõe, ao de Platão, para quem a poesia era narração e não
imitação (cf. Livro III, A República). A arte poética em
Aristóteles requer operadores diretos, agentes ou personagens,
enquanto em Platão exige (apenas) recitadores. A imitação
aristotélica, processando-se por meios, objetos e modos
diferentes, não se confunde, porém, com cópia ou reprodução
fiel da realidade, carreando antes, pela percepção do geral a
que filosoficamente aspira, criação autônoma e transfiguração
heterogênea.
A segunda parte da Poética, a mais extensa, estuda a
tragédia, uma das espécies ou gêneros da poesia dramática, e
91
faz a comparação da tragédia e da epopéia, um gênero da
poesia narrativa ou não-dramática.
A Arte Poética de Aristóteles aparece-nos hoje, depois do
romantismo e dos modernismos, não só como exemplo de rigor
e fundamento de estudos clássicos, o que nunca deixou de ser,
mas, sobretudo, como o primeiro texto que tentou com êxito
compreender e problematizar a singularidade do fenômeno
poético.
Em suma, devemos atribuir a presença do impossível à
própria poesia, ou ao melhor para a situação, ou à opinião
corrente. No que diz respeito à poesia, deve-se preferir o
impossível crível ao possível incrível; quanto às coisas
irracionais referidas pela opinião, temos de admiti-las tais como
são propaladas e mostrar que por vezes não são ilógicas, pois é
verossímil que aconteçam coisas embora, na aparência,
pareçam inverossímeis.
De Aristóteles, passaremos para algumas considerações
sobre a Arte Poética de Horácio e sua importância na teorização
poética do neoclassicismo português, sempre nessa linha
evolutivo-histórica do fazer poético, abrangendo as diversas
concepções e definições atinentes ao mesmo.
Sabemos que, Quintus Horatius Flaccus ou Quinto Horácio
Flaco foi um poeta lírico, satírico e filósofo latino, nascido em
Venúsia, Itália. Sua obra exerceu forte influência sobre os
autores renascentistas e classicistas em geral e é considerada
modelo de perfeição formal e de conteúdo ético.
Dentre os vários livros que escreveu, destaca-se sua obra
prima composta de três livros de poemas líricos, as Odes (23
a.C.), complementada por um quarto volume (13 a.C.). Sua
92
poesia é, de tal modo sentenciosa, que muitos de seus versos
acabaram se tornando provérbios.
A influência de sua poesia sobre a literatura deu origem ao
Horacianismo. Suas principais obras de impecável perfeição
formal, são dedicadas ao amor, aos dois sexos, ao vinho e a
alegria de viver.
No entanto, a influência de tal gênio não poderia ver-se
confinada apenas ao âmbito da literatura latina. Quando Horácio
afirma solenemente, na ode final do livro terceiro: “Tenho
criado um monumento mais perene que o latão
3
”, estava certamente
consciente do valor das letras, da perenidade de seus escritos e
da imortalidade que a poesia lhe conferiria.
Assim, as considerações que serão feitas, a seguir,
baseiam-se, em parte, no livro: A Arte Poética de Horácio por
Pedro José da Fonseca e comentários de Emília M. Rocha de
Oliveira, publicados em: Agora. Estudos Clássicos em Debate 2
(2000:155-183), portanto, as citações que seguem, serão
identificadas pelo número da página constante nos referidos
Estudos Clássicos.
Chegamos, então, no momento de falarmos sobre a
importância de Horácio na teorização poética do neoclassicismo
português que se utilizou largamente dos aspectos contidos na
obra do mesmo sobre o fazer poético para atacar diretamente a
concepção literária do Barroco.
Destarte, O Verdadeiro Método de Estudar, proposto por
Luís António Verney em 1746, representa o primeiro ataque
direto à literatura barroca que, então, havia iniciado um
processo de degeneração. Faltava, no entanto, uma obra que
3
Exegi monumentum aere perennius.
93
congregasse os preceitos fundamentais para a criação de uma
poesia de bom gosto.
Dessa necessidade nasce, no ano de 1748, publicada por
Francisco José Freire, a sua Arte Poética ou regras da
verdadeira poesia, manual teorizador da doutrina neoclássica,
de uma poesia verdadeira e oposta à criação poética barroca.
Da obra desse autor afirmou Aníbal Pinto de Castro:
Direta ou indiretamente, a sua informação
abrangia muitos e variados autores, antigos e
modernos, incluindo nestes alguns dos
principais vultos da teorização poética e dos
comentadores dos tratadistas clássicos,
sobretudo, italianos, desde o Renascimento.
Dentre os tratadistas clássicos mais antigos, Francisco
José Freire vai conferir grande destaque a Horácio. Se a teoria
literária aristotélica, reunida na Poética e na Retórica,
constituiu o fundamento da criação poética barroca, já no
século XVIII, Horácio e a sua Epístola aos Pisões
4
, a qual havia
proporcionado à Poética renascentista os seus postulados mais
fecundos, assumem uma maior evidência. (AGORA, 2000,
p.159).
Não esqueçamos, todavia, que Aristóteles, guia do
pensamento e ensino escolásticos, continuou a ser considerado
autoridade única em questões fundamentais de estética
literária, conferindo-se a ele uma importância não menor do que
aquela que, entretanto, revestiu a figura de Horácio.
Assim, a exemplo de Francisco José Freire, muitos outros
pensadores, sobretudo nos últimos quarenta anos do século
XVIII, decidem perfilhar não apenas os fundamentos teóricos de
Horácio, como, aliás, já o haviam feito os nossos quinhentistas
4
Epistula ad Pisones
94
Sá de Miranda e, sobretudo, António Ferreira, mas também
traduzir e até mesmo comentar o texto horaciano.
É, pois, neste contexto que surge, em 1790, a tradução
anotada e comentada por Pedro José da Fonseca da Arte Poética
de Horácio. Aliás, o próprio Fonseca, no prólogo, tece, de forma
encomiástica, os seguintes comentários à Epístola:
Fora bem mal logrado tempo todo quanto em
novas recomendações se despendesse para
sublimar o merecimento incontestável da
Poética de Horacio, que traduzida e ilustrada
ofereço ao público. O grande nome de seu
Autor, sempre exaltado com os mais sublimes
louvores pelos Eruditos de todos os séculos, e
por isso vulgarmente conhecido e venerado até
dos mesmos indoutos, não necessita mais que
proferir-se, para conciliar a cada uma de suas
obras de estimação universal. Nenhum outro
poeta se conhece (...) que lhe leve vantagem
assim na excelência do engenho, como em
grandeza de juízo, abundância de doutrina,
variedade de discurso, escolha de cousas, e
beleza na maneira de as tratar. (AG0RA, 2000,
p. 160).
Ainda no prólogo, diz-nos Fonseca que o modelo a seguir
em todos os gêneros de literatura deverá ser a Arte Poética:
Horacio (porque se diga tudo pela voz de um só
é de todos os Antigos quem no grau mais
perfeito uniu em si a maior diversidade de
engenho e de merecimento; a elevação e a
delicadeza; a ternura e alegria; o fogo e o
prazer, a filosofia e o gosto). Deste, conforme
se disse é ele o legislador em todos os gêneros
de literatura.
Mais à frente, acrescenta que o tratado horaciano pode ser
considerado um código do bom gosto, ou seja, só poderão
95
conseguir o beneplácito das Musas, aqueles versos que forem
dignos da sua aprovação.
Tanto assim, que Mr. Dacier, o qual no conceito
de Sanadon, a ilustrou mais feliz e
cuidadosamente que nenhum outro dos poemas
de Horacio, e que dela faz grandes elogios,
resolutamente assegura ser esta depois da
Poética de Aristóteles a mais excelente obra de
crítica, que dos Antigos nos resta, e de que se
pode tirar maior utilidade. Pelo que não é de
admirar que se repute como o mais precioso
monumento, que nos deixou neste gênero a
Antiguidade Romana, e que haja quem a
denomine o código do bom gosto, ou o da
razão para todas as artes em geral, e o mesmo
bom gosto reduzido a princípios. (AGORA,
2000, p. 161).
Os preceitos estético-literários de Horácio são tão
importantes que só poderão conseguir o beneplácito das Musas
aqueles versos que forem dignos da sua aprovação. Bem certo
pela própria experiência de uma tão infalível verdade o nosso
judicioso e insigne Poeta, Antonio Ferreira, elegantemente a
exprime e a inculca pelo seguinte modo:
Quem não tem mais objeto
Que seguir seu juízo nu, que aceitos
versos fará a Horácio, digo ás Musas,
que os desfaz, das Musas são desfeitos.
O bom louva Horacio, o mau acusas,
De bons engenhos mestre artificioso,
Não sofre, falsas cores, vãs escusas.
Fonseca conclui o seu elogio a Horácio, afirmando acerca
da sua Epístola:
De sorte que não se deve ela tanto considerar
uma Poética, como a quinta essência desta
mesma arte, isto é, de uma coleção de
preceitos sobre a Poesia.
96
Pedro da Fonseca, depois de, no prólogo, refletir sobre a
autoridade de Horácio, expõe o motivo que o levou a traduzir,
anotar e comentar a Arte Poética:
A utilidade de meus discípulos (...) foi quem
me excitou o desejo de tomar deste mesmo
sem número de cousas acima declaradas tudo
quanto presumisse, que poderia dar inteira luz
às doutrinas, que na referida obra se contém.
Explanam-se elas nas nossas escolas,
principalmente nas de Retórica, á Mocidade
estudiosa, mas pode ser que o fruto de tão
louvável uso, o qual nunca deverá abolir-se,
não haja até aqui sido sempre proporcionado
(...) ao trabalho e diligência dos que as
explicavam, e ao aproveitamento daqueles, que
se instruíam. (AGORA, 2000, p. 162).
Se o seu primário objetivo foi coligir o mais adequado
para a mocidade entender bem e ler com aproveitamento a
Poética de Horácio, o segundo, mas não menos importante,
consistia em explicitar os princípios estético-literários nela
contidos, razão de ser, aliás, do seu Comentário Critico:
Mas sem embargo disto cuidei o mais que
permitiu a minha tênue possibilidade em acudir
a outra mais essencial, e sobre todas
importantíssima falta, qual seria a de
explicação aos preceitos poéticos. Para esta
reservei o Comentário Crítico posto no fim em
Português. Nele tomei então plena liberdade
para sem restrição de autoridades, que
escassamente declaro, pesar os diversos
pareceres dos Comentadores, e escolher o que
por verossímil e natural melhor me agradou.
Vejamos, pois, em que medida é que a teoria poética
propugnada por Fonseca exprime os códigos poéticos
neoclássicos.
Sendo o poeta um imitador, é natural que sua poesia seja
a imitação da natureza, por isso que, para os neoclássicos, à
97
semelhança dos renascentistas, a poesia, como arte, é imitação.
O objeto de mimese é a natureza. Como tal, o poeta deve
estudá-la criteriosamente.
A concepção da poesia como mimese radicava na Poética
de Aristóteles, mas foi à fonte horaciana que os neoclássicos
foram bebê-la. A natureza não se identifica propriamente com a
realidade exterior, física, com a paisagem; pelo contrário,
identifica-se essencialmente com o universo interior, psíquico,
do ser humano. Consequentemente, para os autores
neoclássicos, a imitação da natureza exigia o estudo do homem,
dos seus sentimentos, dos seus medos, das suas aspirações.
Assim, Pedro da Fonseca, a propósito do verso 317, diz-nos:
(AGORA, 2000, p. 165).
Este modelo da vida e dos costumes, é a
natureza, e as ações, que os homens
geralmente costumam fazer, pois sobre elas
deve formar o poeta, que bem quiser imitar,
todas as belas cópias, que só lhe pode oferecer
um tão perfeito original.
Essa imitação da natureza não se identifica com uma
cópia servil, com uma reprodução realista e minuciosamente
exata. Os poetas deveriam, antes, selecionar apenas os traços
universais e acentuar os aspectos característicos e essenciais
do modelo, eliminando os traços acidentais e transitórios,
desprovidos de significado no domínio do universal poético. Por
isso, afirma:
Desta sorte todas as expressões serão vivas e
adequadas às pessoas, pois como o poeta não
as toma do caráter particular deste ou daquele
homem, mas sim das inclinações, que a
natureza inspira em comum segundo os
diversos caracteres, que há nos homens,
nunca, uma tal imitação deixará de ser exata e
verdadeira.
98
Importa, todavia, referir que, em Elementos da Poética
tirados de Aristóteles, de Horácio, e dos mais célebres
modernos: Pedro da Fonseca inicia a exposição da teoria da
imitação com uma longa citação de Aristóteles, afirmando, logo
a seguir, que Horácio se limitou a abraçar as idéias aristotélicas
acerca desta questão, ou seja, a aceitar que uma das causas da
poesia é a mimese.
Fonseca esclarece, referindo, como exemplo, a personagem
de Enéas:
Virgilio quando deu ao seu Herói a sabedoria, a
piedade e o valor, nada disto tirou de Enéas,
que nunca viu, nem também o achou em
Homero ou algum outro poeta, mas contemplou
estas virtudes segundo a natureza, e delas
formou a idéia de um perfeito Príncipe, e
consumado General.
De fato, um bom poeta é sempre um sábio imitador:
Isto mesmo deve fazer um sábio imitador, isto
é, um bom poeta, que nunca deverá atender ao
que faz um ou outro homem em particular, mas
sim ao que a natureza em geral quer que cada
um faça segundo os costumes, e paixões, que
se lhe atribuirão, e nestas circunstâncias ao
que deve e pode fazer verossimilmente. (...)
Esta interpretação nos parece boa por se
fundar na doutrina de Aristóteles.
Uma das partes mais importantes do livro A Arte Poética
de Horácio, de Pedro José da Fonseca é, exatamente, a questão
da dialética engenho/arte, pois da necessidade de definir os
fundamentos da criação literária nasce o debate entre o domínio
do engenho, que perspectivava o poeta possuído de um furor
animi, e a primazia da arte, sinônimo de técnica adquirida em
99
função do estudo e do trabalho. É este um dos conceitos que
separa os poetas barrocos dos neoclássicos.
Fonseca, comentando os vv. 295-305 da Arte Poética
(1992), a propósito desse binômio, afirma:
Como Horacio tem recomendado tanto o
cuidado da emenda, e não faltaria quem lhe
opusesse a autoridade de Demócrito, o qual
dizia que para alguém se distinguir na poesia
valia mais o entusiasmo e furor natural do que
a arte: o Poeta, que há de estabelecer o
contrário mostrando a estreita união, que
ambas estas cousas devem ter entre si, dá
primeiro a ver a má interpretação, em que
alguns tomavam a doutrina do referido
Filósofo, e as ridículas conseqüências, que dela
resultavam. Essa opinião de Demócrito,
exposta aqui por Horácio, é também a de
Platão e Aristóteles. Este último estabelece
que, para ser bom poeta é necessário ou ter
um engenho excelente ou ser furioso. Porém
os maus poetas abusarão deste pensamento e
se capacitarão que o trabalho e o estudo nada
serviam para a poesia, bastando imitar os
poetas, que abstraídos do entusiasmo nada
cuidam em si, e buscam os lugares solitários
com outros muitos delírios, e exterioridades de
loucos, que Horácio escarnece.
O autor contradiz, assim, aqueles que postulavam que só
os possessos do furor animi poderiam ser bons poetas: um
mau poeta é na realidade um furioso. De acordo com esta
idéia, afirmou Aguiar e Silva (1998): O intelectualismo clássico
revelava-se na concepção do fenômeno da criação poética.
Herdeiro de uma longa tradição teórica, que procedia de
Aristóteles e de Horácio e fora retomada e desenvolvida pela
poética quinhentista de matriz aristotélica e horaciana, segundo
a qual a techne, a ars, o saber, o trabalho de correção, da
lapidação
5
constituem fatores essenciais da criação poética, o
5
limae labor
100
classicismo rejeita explicitamente a concepção platônica e
neoplatônica do ato criador poético como manifestação de uma
"loucura" ou de um "furor divino".
Pedro da Fonseca diz que a Poesia não requer estudo, mas
sim, veia e talento focando desta forma uma das principais
dicotomias da teoria horaciana: ars / ingenium, que a seu
tempo abordaremos. E para provar que
apenas o talento importa, desfiam tais poetastros de
imediato uma sequência de nomes e apelidos de poetas em que
furor, sem letras só havia. Note-se que o motivo do furor
poético foi também abordado por Horácio no final da sua Arte
Poética, embora o tópico remonte já a Platão, que o aborda no
Fedro:
Um terceiro gênero de possessão divina e de loucura
provém das Musas; quando encontra uma alma delicada e pura,
desperta-a e arrebata-a, levando-a a exprimir-se em odes e
outras formas de poesia. E como conseqüência de tal furor,
abundam os versos boçais, absolutamente incompreensíveis, o
que leva o poeta a hiperbolicamente afirmar que nem suando
sangue os percebemos, até mesmo porque os versos estão
desprovidos de qualquer conteúdo: Aqui não há segredo, nem
verdade / oculta, há só palavras campanudas / que a cruel Rima
puxa sem piedade.
Relativamente a esta passagem, destacamos,
primeiramente, a alusão à produção poética barroca; por outro
lado, está aqui bem evidente o propósito arcádico de abolir a
rima, considerada quase como uma prisão que limitava o
pensamento e a atividade poética.
Neste sentido, diz Fonseca:
101
Que não baste haver no poeta engenho para
inventar as cousas, compor a fabula, e dar o
decoro ás personagens; mas que lhe seja
também necessária a arte para que os versos
tomando as graças da elocução tornem assim
mais belos os pensamentos pela recíproca
dependência, que isto tem entre si; (...) Assim
é, como o Poeta deixa dito, que mais vale ser a
fabula especiosa em alguns lugares pela força
das cousas, e que se pintem com viveza os
costumes, do que um estéril jogo de palavras,
as quais somente deleitem os ouvidos. Porém
para que nos versos não haja um tão grande
defeito ajunte-se ao engenho a arte, e vença
esta com incansável aplicação, qual era a dos
Gregos, aquelas dificuldades, que há para unir
em qualquer obra poética todas estas virtudes.
(AGORA, 2000, p. 168).
A arte, como techne, era posta ao serviço do engenho
impetuoso e indômito, cabendo-lhe refreá-lo e discipliná-lo.
Pedro da Fonseca, noutro passo, defende a necessidade
simultânea de engenho e arte:
A opinião quase comum, de que basta o
engenho para a poesia, dá bem a conhecer
quanto na realidade é ele necessário, ou,
dizendo melhor, indispensável. Porém Horacio
não quer, todavia que sem embargo de toda a
sua importância, repute-se como unicamente
preciso, e por isso resolve a questão, que diz
se ventilava a este respeito. Quanto a mim,
continua ele, nem a arte servirá de cousa
alguma sem a natureza, nem também a
natureza independente da arte. Por isso
convém que uma tome da outra grandes
auxílios e sejam inseparáveis companheiras.
Pois ao parecer de Cícero só quando a um feliz
engenho se ajunta a arte e o estudo, é que se
vê resultar desta união um não sei que de
singular, e admirável, que nos encanta.
(AGORA, 2000, p. 169).
Acrescenta, no entanto, que não é fácil encontrar-se num
poeta a perfeita união do engenho com a arte:
102
Porém esta união é difícil encontrar-se, como pondera
aquele mesmo, que entre nós melhor a soube fazer, dizendo de
si:
Não me falta na vida honesto estudo,
Com longa experiência misturado,
Nem engenho, que aqui vereis presente;
cousas, que juntas se acham raramente.
A arte adquiria-se por meio do estudo continuado e da
doutrina ou saber teórico, a cuja aprendizagem deveria o poeta
dedicar-se. O racionalismo dominava então o ideário do
neoclassicismo. A razão, advogada como princípio norteador da
criação poética, correspondia ao bom senso que devolvia o
equilíbrio aos exageros da imaginação e aos arroubos da
fantasia e que elucidava o poeta na criação da sua obra.
Outro ponto que se tornou igualmente essencial para os
neoclássicos foi a questão da imitação dos modelos greco-
latinos para a formação do bom poeta. Horácio, nos vv. 268-
269, recomenda aos Pisões que tomem por modelo os autores
gregos. O princípio da imitação dos Antigos foi herdado dos
renascentistas pelos poetas neoclássicos e deriva da admiração
com que os humanistas do século XVI imitaram os autores
gregos e latinos, absorvendo das suas obras os temas e as
formas.
Também Pedro José da Fonseca insiste na necessidade de
imitar os modelos, já que os assuntos inventados são mais
dificultosos de tratar do que são os conhecidos.
Todavia, adverte:
Convém imitar os Antigos, mas não sem a
liberdade tão indispensável ao poeta de dispor
o seu assunto de modo, que a Fábula seja
sempre a alma do poema.
103
O princípio da imitação dos Antigos, para os neoclássicos,
não corresponde necessariamente a uma cópia servil, porque,
no dizer de Fonseca, se pode evitar uma imitação servil nos
assuntos, que outros poetas fizeram públicos, de sorte que
fiquem sendo próprios daquele poeta, que de novo usa deles.
De fato, este princípio, quando seguido de forma radical e
acrítica, podia conduzir o poeta à simples tradução ou à redução
das suas obras a plágio de temas já excessivamente explorados.
O bom poeta deveria ter em mente o princípio da originalidade.
(AGORA, 2000, p. 171)..
A permanente demanda de perfeição estética levava a que
os poetas e os críticos considerassem que a poesia ou era
efetivamente boa ou era inequívoca e irremediavelmente de má
qualidade. Horácio exorta os Pisões a serem perfeitos, porque
de outra sorte se tornariam intoleráveis e desprezíveis. Pedro
da Fonseca, por sua vez, diz-nos que a poesia “senão é
excelente, é insuportável. Em poesia não havia, portanto, meio
termo. Por isso era importante que o poeta revisse e
aperfeiçoasse os seus textos de forma incansável, na procura da
expressão mais sublime.
Limae labor et mora
A perfeição estético-literária, no entender de Horácio, só
seria alcançada mediante o limae labor et mora. A doutrina do
neoclassicismo preconizava este princípio. Aliás, não podemos
obliterar que um meio braço pegando em um podão com a
epígrafe corte do inútil
6
- será a empresa da Arcádia; por ser
este o instrumento com que os agricultores cortam das árvores
6
Inutilia truncat
104
os ramos secos e viciosos; e o emprego da Arcádia examinar
com uma exata crítica as obras dos seus Pastores, e separar o
bom do defeituoso. (AGORA, 2000, p. 173).
Na análise do poema Catar feijão, capítulo 3 item 3.1-
João Cabral de Melo Neto revela sua concepção do ato criador.
Tem como objeto a construção do poema, toma como referência
um ato do cotidiano em que também o escolher, o combinar são
necessários. O jogar as palavras é a primeira etapa criadora: a
inspiração. Essa leva o artista a colocar no papel suas iniciais
impressões. Porém, o verdadeiro artista não fica aí: ele, assim
como o catador de feijões, seleciona os melhores grãos, a fim
de construir uma poesia que fale, não pelo excesso, mas pela
contenção, desfazendo- se de tudo o que for leve e oco, palha e
eco.
Desta forma, e consoante a qualidade dos versos
produzidos, uns morrem logo, enquanto outros, seguros / do
tempo e da inveja, estimações / merecem bem aos séculos
futuros, estando portanto, aqui presente o tópico da
imortalidade da poesia. Um bom exemplo da perenidade da obra
literária é o dado por Sá de Miranda, António Ferreira e
Camões, o que, segundo Fonseca, se deve ao fato de estes
depurarem os seus escritos: nestes houve a rija lima / que o
Grão Flaco inculcava aos seus Pisões. Tal como é
declaradamente referido, este preceito é expresso por Horácio
no v.291 da Arte Poética: limae labor et mora. O mesmo ideal
de depuração é reiterado posteriormente, nos vv.438-52,
quando o Venusino aborda o motivo do verdadeiro crítico e
amigo, ao julgamento de quem deve um poema ser submetido.
Fonseca continua afirmando que a poesia depende, pois,
do estudo, do trabalho, do exercício e da revisão constante.
105
Qualquer poeta que menospreze estes preceitos jamais será um
bom poeta. Este não deverá, aliás, confiar somente no seu
juízo, que é inevitavelmente parcial. Nesse sentido, João Cabral
de Melo Neto afirmará mais adiante:
Para mim, a poesia é uma construção, como
uma casa. A poesia é uma composição. Quando
digo composição, quero dizer uma coisa
construída, planejada de fora para dentro. Eu
só entendo o poético neste (sic) sentido. Vou
fazer uma poesia de tal extensão, com tais e
tais elementos, coisa que eu vou colocando
como se fossem tijolos. É por isso que eu posso
gastar anos e anos fazendo um poema: porque
existe planejamento.
Por outro lado, Pedro da Fonseca na sua obra Invectiva
7
contra os maus poetas, alerta-nos para a existência de um surto
de poetas, ou melhor, dos que se julgam poetas, que, tal como
uma praga daninha, anda os campos de Apolo devastando,
situação, aliás, idêntica àquela de que Horácio nos dá
testemunho na sátira 1.4.141, onde afirma hiperbolicamente e
de forma cômica que o número de poetas excede o dos que não
o são. (CARLOS MORA, 2003, p. 242).
Mora continua (2003, p.244) dizendo que é fastidioso é o
fato de estes maus poetas terem por hábito seguir os bons,
perseguindo-os como sanguessugas aferrados” que “jamais
deixam os pobres miseráveis / sem de sangue ficarem
esgotados. Tal passagem parece recordar-nos a nona sátira do
livro primeiro de Horácio, quando este se vê abordado por um
indivíduo que se apresenta como homem de letras e que
incansavelmente o persegue pelas ruas de Roma, apesar de
7
Invectiva: palavra ou uma série de palavras injuriosas, ofensivas e violentas contra
alguém ou algo.
106
todos os esforços do nosso poeta para se livrar de tamanho
impertinente.
A situação dos maus poetas resolver-se-ia, segundo
depreendemos pela leitura do texto setecentista, se aqueles
recorressem à leitura dos melhores ou, pelo menos, mais
famosos autores clássicos, sendo Horácio, Aristóteles, Virgílio e
Homero, aqui, encarados como modelos a seguir.
Torna-se, também, imprescindível que o poeta submeta
sua obra à crítica de um amigo sincero e experiente em
questões de literatura porque, conforme nos diz Fonseca:
Um amigo sábio e desinteressado é a mais
segura guia, que também pode ter quem
pretende distinguir-se na poesia. Mas é cousa
difícil encontrar pessoas de semelhante
caráter.
Sendo assim, como aconselha o nosso autor, o poeta não
deveria submeter as suas produções à opinião de um amigo
interesseiro e lisonjeiro, ainda que este lhe afagasse o ego:
Não é menor o concurso de aduladores, que a
tropel vem buscar o prêmio da sua lisonja nos
bens daqueles, que lhes dão ouvidos; do que o
de compradores, que a voz do pregoeiro
convoca para o público leilão. Os louvores, que
imeritamente se dão a muitos poetas
principiantes, cria-lhes aquele orgulho, e
indocilidade, de que jamais podem despir-se.
(...) O juízo de um só sábio, ainda quando
censura e repreende, é mais para prezar que os
louvores de muitos ignorantes.
Noutro passo, adverte que o poeta deverá saber escolher o
seu censor:
(...) averigúe o poeta por todos os modos o
caráter daqueles, que o louvam. Quando não,
107
será escarnecido e enganado, como o corvo da
fabula pelos lisonjeiros aplausos da astuta e
simulada raposa.
Tenha-se por isso em lembrança esta prudente máxima do
sábio Sá de Miranda:
Não o tenhas por amigo
Quem te anda sempre à vontade
Dissimulando contigo.
Em suma, qualquer que seja o defeito de uma obra
literária, o fiel e sábio censor deverá assinalá-lo, para que
depois se possa com a emenda mudar e reduzir à inteira
perfeição. É de temer e reprovar um poeta cheio de amor
próprio e que se deixa alucinar pelos aplausos que lhe dão os
lisonjeiros, querendo que suportem os seus maus versos e, o
que é pior, lhos aprovem.
Concebida desta forma, a teoria literária do neoclassicismo
tinha, naturalmente, de ser corroborada por um conjunto de
regras com forte caráter vinculativo. (AGORA, 2000, p. 175).
A primeira delas concentra-se na observância do decorum
em que o poeta selecionava cuidadosamente os temas e os
gêneros. Cada gênero, cada forma literária possui regras
específicas, respeitantes ao tema, à estrutura e às questões
estilísticas.
A propósito do verso 86, afirma Fonseca:
O poeta da mesma sorte, que qualquer outro
Escritor, deve escolher o gênero de estilo, que
108
convém à qualidade da matéria, que há de
tratar. Cada poema tem seu caráter próprio, e
a principal obrigação do poeta é saber observá-
lo. Sobre um argumento trágico não se deve
escrever uma Comédia, nem ao contrário uma
Tragédia quando o assunto for cômico. E pelo
mesmo modo em os demais poemas. Diferente
há de ser o majestoso estilo da Epopéia, da
simplicidade da Écloga, e ternura da Elegia; e a
elevação da Ode é muito estranha à
mordacidade da Sátira e à agudeza do
Epigrama. Em tudo se há de guardar decoro.
A observância do decoro obrigava o poeta não apenas a
selecionar criteriosamente os temas, mas também a dosar as
diversas partes de cada um dos temas.
Intimamente ligadas ao preceito do decoro encontravam-se
as conveniências as quais podem ser internas, ou seja, quando
dizem respeito à coerência e à harmonia internas da obra, e
externas, isto é, concernentes à acomodação da obra ao gosto,
à sensibilidade e às usanças do público.
As conveniências internas, referidas por Horácio nos versos
114-120, 125-127 e 156, prescrevem que as personagens
revelem comportamentos adequados à sua idade e condição.
A este respeito, diz-nos Fonseca:
Desta sorte cada personagem deve ter seu
estilo particular, assim como tem seus
costumes, pelo que se há de fazer diferença
entre uma personagem divina e humana, entre
idade e idade, entre mulher nobre e poderosa,
e a plebéia e humilde, entre um e outro gênero
de vida, entre nação e nação, entre lugar e
lugar, e se lhes hão de atribuir aqueles
discursos, que a cada hum forem próprios.
(AGORA, 2000, p. 177).
109
As conveniências externas determinam que o poeta
respeite os usos e os preceitos morais da sociedade que
integra, que repudie o tratamento de assuntos indecorosos e
cruéis, como assassínios ou duelos, por exemplo, e que se
abstenha de certas liberdades na descrição da vida sentimental
das personagens.
É o que postula Fonseca, quando comenta os vv.179:
Há três qualidades de cousas que se devem
simplesmente referir e não representar sobre a
cena, e vem ser as cousas muito horrorosas e
lamentáveis, as inverossímeis de se fazerem, e
as desonestas.
O decoro implicava ainda o respeito pela verossimilhança,
sobretudo no que concerne ao drama e à epopéia. Fonseca,
subscrevendo este conceito aristotélico, aconselha a
organização coerente dos fatos narrados ou representados, de
forma a que a coesão interna da obra fosse mantida. O poeta
não deve, no entanto, condicionar radicalmente a elaboração da
sua obra ao preceito da veracidade, já que o recurso exclusivo à
verdade histórica aniquila a imaginação. (AGORA, 2000, p.
177).
Não podemos ignorar que para os autores e críticos
neoclássicos o objetivo da literatura não era a realidade
concreta e verdadeira, aquilo que de fato aconteceu, mas o
verossímil, ou seja, o que pode acontecer. O verdadeiro pode
mesmo vir a ser inacreditável, distanciando-se, por
conseguinte, do verossímil. Os autores neoclássicos, apesar de
em nome da verossimilhança, condenarem os excessos do
maravilhoso barroco, sobretudo no âmbito da literatura
dramática, não excluíam a hipótese de que a poesia épica
110
denunciasse algumas nuances de maravilhoso. (AGORA, 2000,
p. 178).
Finalmente, o conceito de decorum exigia que a elocução
fosse adequada ao assunto, que houvesse um equilíbrio
harmonioso entre a forma e o conteúdo. Assim, Pedro José da
Fonseca censura aqueles que usam de um estilo inadequado à
matéria tratada:
(...) pois que a oração há de sempre acomodar-
se às cousas, sendo grave nas graves, humilde
nas humildes, e medíocre nas medíocres.
Fonseca não podia, por isso, deixar de verberar de forma
acérrima aqueles que, à maneira barroca, caíam no vício do
discurso afetado e pomposo e na tentação do recurso
exacerbado ao artifício estilístico. A poesia de bom gosto
caracterizar-se-ia pela harmonia perfeita entre a matéria
poética e o ornato estilístico. O uso imoderado deste último
punha em risco a sobriedade e a correção da obra literária.
Afinal, o estilo rebuscado e artificioso afirmava-se como um dos
males de que enfermava a literatura barroca.
Antes de nos direcionarmos para uma conclusão referente
às considerações sobre a Arte Poética dos neoclassicistas
portugueses que, como vimos, foi fortemente influenciada pela
horaciana, abordaremos sucintamente alguns aspectos
relacionados à dimensão social da literatura dessa época.
Sabemos que o conceito de decorum, ao estabelecer a
dialética entre o processo de criação da obra literária e o
mecanismo da sua recepção, quer dizer, ao exigir que o criador
da obra literária adequasse o objeto da criação ao gosto e
sensibilidade do respectivo receptor, conferiu uma dimensão
111
mais profunda à literatura, uma dimensão social. De fato, os
autores e teóricos neoclássicos são unânimes em reconhecer
que a poesia deve aliar o utile e o dulce, conciliar a utilidade
formativa e a intenção lúdica, contribuindo para tornar o
homem melhor e mais digno. Os poetas procuram conceber
obras que criem no leitor deleite estético, mas que,
simultaneamente, formem moral e civicamente o homem.
(AGORA, 2000, p. 180).
Pedro da Fonseca preceitua, ainda, que o poeta deve,
simultaneamente, instruir e deleitar:
Os poemas, que houverem de merecer a geral
aprovação, é de força, que misturem o
agradável com o útil, divertindo o leitor ou
espectador, ao mesmo passo, que lhe dão
instrutivas e proveitosas lições. Ajunte, pois, o
poeta ambas estas virtudes, instrua e deleite,
e desta sorte terá por si os votos de todos
(...).
Os criadores neoclássicos encontram-se, portanto,
distantes da concepção hedonística da literatura, mas também
não lhe prescrevem uma função exclusivamente pedagógica.
A título de conclusão desta parte, podemos dizer que o
neoclassicismo, movimento nascido do espírito crítico do
iluminismo, visou restaurar e revalorizar a expressão, as
formas, os gêneros, as regras e as técnicas clássicas que se
desenvolveram em Portugal no século XVI. Perante os excessos
barrocos, as consciências começaram a dar conta de como se
andava longe dos modelos antigos. A expressão literária,
excessivamente guarnecida de ornamentos estilísticos, tornara-
se difícil de compreender e até ilógica, sem que os poetas
112
barrocos tivessem consciência de que se apartavam das fontes
verdadeiras.
Assim, em 1756, surgem os árcades lusitanos que viriam
oficializar entre nós o neoclassicismo literário sob a divisa
Inutilia truncat, e tinham como objetivo principal atacar os
excessos verbalísticos do barroco e restaurar as formas
literárias dos bons paradigmas greco-latinos, truncando, como
inútil, toda a obra que destoasse da harmonia e do equilíbrio
clássicos. Foi em função desse espírito renovador que se
orientou a teorização literária nas últimas quatro décadas do
século XVIII. (AGORA, 2000, p. 181).
A importância concedida à Arte Poética de Horácio vem de
Francisco José Freire e do distinto árcade Pedro António Correia
Garção. No entanto, o corpo de doutrina horaciana encontrou,
como em toda a Europa, favor especial entre outros latinistas
portugueses dentre os quais destacamos Pedro José da Fonseca,
cuja obra, encerrando e exprimindo, como, aliás, tivemos
oportunidade de constatar, os códigos poéticos quinhentistas,
sem esquecermos outras atualizações que da doutrina horaciana
se fizeram, constituem a prova de que a matriz clássica presidiu
a criação literária até o romantismo. É que a má compreensão
da teoria horaciana e a sua redução a um código de regras
permitiu que o arcadismo poético se prolongasse entre nós até
penetrar o próprio século XIX. (AGORA, 2000, p. 182).
A suposta lateralidade de autores como Pedro da Fonseca
não nos deve fazer esquecer ou ignorar o valor particular do
que nos dão a conhecer. Esta edição da Arte Poética de Horácio
teve o mérito de revelar os preceitos poéticos horacianos ao
público português e de, simultaneamente, compendiar o corpus
doutrinário da literatura neoclássica. Afinal, são autores como
113
estes que revelam as impressões dominantes na época em que
viveram.
Pudemos constatar serem muitos os motivos que, tomados
da lição de Horácio, foram agora recuperados pelo autor da
Invectiva: a alusão aos pretensos poetas; a crítica aos que
compõem um elevado número de versos, confundindo assim
quantidade com qualidade; a imitação dos modelos; os maus
críticos; o furor poético; o labor limae; as dicotomias ars /
ingenium, res / uerba e docere / delectare.
Deste modo, podemos uma vez mais constatar que, quase
dezoito séculos após a morte de Horácio, os seus ensinamentos
permanecem válidos, o que nos permite, por um lado,
comprovar a certeza de Horácio quando afirmou ter terminado
um monumento mais perene do que o bronze, e, por outro,
corroborar a opinião do autor da Invectiva, quando diz que uns
versos morrem logo, outros, seguros / do tempo e da inveja,
estimações / merecem bem aos séculos futuros. (CARLOS
MORA, 2003, P. 250).
Naturalmente, temos de observar que todas as
considerações feitas, neste capítulo, inerentes à Arte Poética,
tanto as referentes à literatura grega (Aristóteles e Platão),
bem como, as da literatura latina (especialmente Horácio), e
sua influência sobre a literatura portuguesa dos neoclássicos,
são de cunho histórico-literário e devem servir de embasamento
para o estudo e o entendimento, dessa mesma Arte Poética, em
nossos poetas: João Cabral de Melo Neto e Fernando Pessoa,
pela inegável influência que a mesma exerceu sobre a produção
literária de ambos.
114
CAPITULO 3. O FAZER POÉTICO
3.1 - João Cabral de Melo Neto
Nesse contexto, iniciaremos as considerações e análises
inerentes ao fazer poético em João Cabral de Melo Neto,
recuperando a citação
8
já feita anteriormente em que o poeta
declara: Para mim, a poesia é uma construção, como uma casa.
Isso eu aprendi com Le Corbusier. A poesia é uma composição.
Na verdade, João Cabral sofreu forte influência de Paul
Valéry para quem o ato de pensar, que se prolonga no ato de
escrever, consiste numa operação de caráter voluntário no qual
deve predominar a disciplina intelectual que suprindo o
supérfluo, evitando o fácil, impedindo a desordem, recusando o
vago, tolhendo a intromissão do inconsciente ou da efusão
sentimental, impõe limites à dispersão dos fenômenos
subjetivos e certa consistência à sua incessante fluidez.
O poeta precisa furtar-se da inspiração como forma
romântica de entusiasmo que embriaga, do sonho que fascina e
do inconsciente que o reduziria a um papel lamentavelmente
8
115
passivo, de tal forma que, ganhando essa luta que se trava no
campo da folha em branco, ele possa construir o poema como
máquina da linguagem, fazendo cessar o esforço determinado
pela necessidade de expressão.
Desse ponto de vista, o verso parecerá a João Cabral um
organismo que vive dos germes mortos da experiência
subjetiva, porém, acaba questionando:
Como o ser vivo
Que é um verso
Um organismo
Com sangue e sopro,
Pode brotar
De germes mortos?
A explicação mais coerente seria a de que as lembranças e
os sentimentos, que permeiam os diversos níveis da experiência
psicológica, morrem para renascerem na linguagem e só passam
à linguagem depois de mortos. É a matéria interior em
desagregação que se deposita na matéria física da folha em
branco, na qual o verso irrompe. (BENEDITO NUNES, 2007, p.
30). Mas pergunta novamente João Cabral:
Como um ser vivo
Pode brotar
De um chão mineral?
A passagem do estado poético à expressão implica, pois,
uma dupla calcinação: a que começa interiormente para
terminar no verso, e a outra, do próprio verso, que sendo vivo
se mineraliza no chão consistente da escrita, em que é traçado
a:
116
Carvão de lápis,carvão
Da idéia fixa, carvão
Da emoção extinta, carvão
Consumido nos sonhos.
(A lição da poesia)
Conforme analisa Benedito Nunes (2007, p. 156), o corpo
orgânico do verso se torna o vestígio da emoção morta ao ser
tolhida pela intervenção do pensamento, pelo cálculo da
inteligência, ratio operandi na composição do poema. Ao fazer-
se depois que a emoção se extinguiu e o sonho se consumiu, o
poema é sempre um póstumo do fervor subjetivo. O que na
verdade morre nessas espécies intensivas da experiência
interior para que o verso possa nascer é a inspiração, a idéia
fixa de que elas constituem as forças coadjuvantes.
O embate do poeta com as palavras, por onde a
composição natural se introduz no processo poético, trava-se,
na poesia de João Cabral, em função da contenda maior entre a
inspiração e o trabalho de arte de que ela é o palco.
Como se vê, o poeta, já agora como teórico, não suprime a
inspiração. Seja qual for a natureza que se atribua a esse
elemento contingente, afetivo, não racional e aleatório, é de
encontro à inspiração aos raptos da emoção a aos
afloramentos do êxtase que o trabalho de arte se realiza; e
é da morte da inspiração pela disciplina intelectual que nasce a
vida própria do poema (BENEDITO NUNES, 2007, p. 156-157).
Após definir a origem, como se constitui e como se
materializa o verso, podemos partir para a definição de poeta
moderno, ou seja, da própria função moderna da poesia que,
segundo João Cabral, na Tese apresentada ao Congresso de
117
Poesia de São Paulo em 1954, preconiza que o poeta moderno,
em geral, justifica a necessidade das inovações formais que é
levado a introduzir em sua obra a partir de uma das seguintes
atitudes mentais:
. a necessidade de captar mais completamente os
matizes sutis, cambiantes, nefáveis, de sua
expressão pessoal (subjetiva) e
. o desejo de aprender melhor as ressonâncias das
múltiplas e complexas aparências da vida
moderna.(objetiva).
Mas, apesar da aparente oposição dessas duas atitudes
uma subjetiva e a outra objetiva as pesquisas formais a que
são levadas as duas famílias de poetas estão, no fundo,
determinadas pelas condições que a vida moderna, em seu
conjunto, impõe ao homem de hoje.
A realidade exterior tornou-se mais complexa e exige, para
ser captada, um instrumento mais maleável e de reflexos
imediatos. E a realidade interior, daí decorrente, também
tornou-se mais complexa, por mais inespacial e intemporal que
o poeta pretenda ser, e passou a exigir um uso do instrumento
da linguagem altamente diverso do lúcido e direto dos autores
clássicos.
A necessidade de exprimir objetiva ou subjetivamente a
vida moderna levou a um certo tipo especializado de
aprofundamento formal da poesia, à descoberta de novos
processos, à renovação de processos antigos.
E, conforme continua João Cabral na mesma Tese (1954),
apesar de os poetas terem inventado o verso e a linguagem que
a vida moderna estava a exigir, a verdade é que não
118
conseguiram manter os tipos, gêneros ou formas de poemas
dentro dos quais organizassem os materiais de sua expressão, a
fim de tornarem-na capaz de entrar em comunicação com os
homens nas condições que a vida social lhes impõe
modernamente.
Cabral continua sua análise, dizendo que no plano dos
tipos poemáticos, tudo o que os poetas contemporâneos
obtiveram foi o chamado poema moderno, esse híbrido de
monólogo interior e de discurso de praça, de diário íntimo e de
declaração de princípios, de balbucio e de hermenêutica
filosófica, monotonamente linear e sem estrutura discursiva ou
desenvolvimento melódico, escrito quase sempre na primeira
pessoa e usado indiferentemente para qualquer espécie de
mensagem que seu autor pretenda enviar.
No entanto, o que é pior, é que o poeta contemporâneo
chegou a ele passivamente, por inércia, simplesmente por não
ter cogitado do assunto. Esse tipo de poema é a própria
ausência de construção e organização, é o simples acúmulo de
material poético, rico, é verdade, em seu tratamento do verso,
da imagem e da palavra, mas atirado desordenadamente numa
caixa de depósito.
Como conclusão das análises feitas, Cabral acredita que a
consideração desse aspecto da poesia contemporânea pode
contribuir para a diminuição do abismo que separa hoje em dia
o poeta de seu leitor e reconhece que as razões desse divórcio
residem bem mais na preferência dos poetas pela abordagem de
temas intimistas e individualistas.
Acredita também que pesquisas no sentido de se
encontrarem formas ajustadas às condições de vida do homem
119
moderno, principalmente através da utilização dos meios
técnicos de difusão que surgiram em nossos dias, poderão
contribuir para resolver, ao menos até certo ponto, o que lhe
parece o problema principal da poesia de hoje que é o de sua
própria sobrevivência.
No livro Obra Completa (1999, p. 723), Cabral fala sobre
poesia e composição, considerando que a composição é, para
uns, o ato de aprisionar a poesia no poema e para outros, o de
elaborar a poesia em poema; que para uns é o momento
inexplicável de um achado e para outros as horas enormes de
uma procura, segundo uns e outros se aproximem dos extremos
a que se pode levar o enunciado desta conversa, a composição
é, hoje em dia, assunto por demais complexo, e falar da
composição, tarefa agora dificílima, se quem fala preza, em
alguma medida, a objetividade.
Para empregar uma palavra bastante corrente na vida
literária de agora, o que se exige de cada artista é que ele
transmita aquilo que em si mesmo é mais autêntico, e sua
identidade será reconhecida na medida em que não se
identifique com nenhuma expressão já conhecida.
A composição literária oscila permanentemente entre dois
pontos extremos a que é possível levar as idéias de inspiração e
trabalho de arte. De certa maneira, cada solução que ocorre a
um poeta é lograda com a preponderância de um outro desses
elementos. Mas essencialmente essas duas maneiras de fazer
não se opõem. Se uma solução é obtida espontaneamente, como
um presente dos deuses, ou se ela é obtida após uma
elaboração demorada, como conquista dos homens, o fato mais
importante permanece: são ambas conquistas de homem, de um
homem tolerante ou rigoroso, de um homem rico de ressonância
120
ou de um homem pobre de ressonâncias. (OBRA COMPLETA,
1999, P. 725)
Já que é impossível apresentar um tipo ideal de
composição, perfeitamente válido para o poema moderno e
capaz de contribuir para a realização do que exige modernidade
de um poema, temos de nos limitar ao estudo do que as idéias
opostas de inspiração e trabalho artístico trouxeram à poesia de
hoje. Na literatura atual, a polarização entre essas idéias
chegou a seus pontos mais extremos e é a partir desses
extremos que se organizam as idéias hoje correntes sobre
composição.
Cabral faz duras críticas aos poetas que fazem poesia sem
se preocuparem com o fazer poético propriamente dito são os
poetas em cujos poemas predomina a teoria da inspiração.
Para ele, está claro que nesse tipo de escritores, vamos
encontrar todos os adeptos da sinceridade e da autenticidade a
qualquer preço, para quem essas palavras significam cinismo e
deformação, vamos encontrar os mórbidos, os místicos, os
invertidos, os irracionais e de todas as formas de desespero
com que um grande número de intelectuais de hoje fazem sua
profissão de descrença no homem.
No ensaio A máquina do poema, Benedito Nunes faz
muitas observações sobre a poesia de João Cabral, as quais
transcendem a mera leitura e impõem-se como modos de pensar
a literatura e, conseqüentemente, a linguagem, afirmando:
Oposições e equivalências, esvaziamento e
acréscimo, movimentos internos da poesia de A
educação pela pedra configuram os acordos e
os desacordos, os antagonismos e os nexos do
mundo e da vida. Neste livro, cada poema é um
mundo verbal completo, denso, que se enrola
sobre si mesmo, mas desenrolar sobre o real,
121
num desmentido à tese de intransitividade da
linguagem poética, a teia dos significados que
o iluminam.
(...) A passagem se efetua, acima ou abaixo da
realidade constituída, no domínio dos possíveis
modos de ser que a linguagem poética
entreabre, e que permitem visioná-la como um
conjunto de ilimitadas possibilidades, algumas
das quais ficam em suspenso no universo
imaginário do poeta. Para Cabral, esse universo
imaginário, que nasce na máquina poética, do
ensemble da composição é, na sua
impressionante transparência, homólogo ao
outro, natural e humano, com o qual nos
comunica.
Aos poucos, conforme nos diz Benedito Nunes em seu livro
João Cabral: a máquina do poema, Cabral realiza o distrato com
a poesia de expressão dos sentimentos pessoais, pronunciado
no ceticismo ostensivo de Alguma poesia e Brejo das almas,
diante da existência e do valor do estado de emoção poética. A
luta desigual com as palavras, resultante desse ceticismo,
levará Cabral a dirigir a intencionalidade criadora sobre as
palavras mesmas que, para ele na verdade, é onde estão os
poemas que esperam ser escritos (BENEDITO NUNES, 2007, p.
22).
A poesia de João Cabral seguiu, inicialmente, a tendência
de neutralização do lirismo puro. Crescerá, no entanto, em
regime de crise interna e numa luta consigo mesma, que reflete
a própria crise histórica da poesia; chegará submetendo o
processo criador a uma análise reflexiva e crítica, que já
começa em O engenheiro e a problematizar, na poética negativa
de Psicologia da composição (1947), o alcance da lírica
moderna.
122
Entre o Eu que se exprime e o objeto da expressão, que
são seus próprios estados ou modificações, a poesia reflexiva e
crítica do poeta introduziu uma distância que a expressão lírica
não comporta.
Nunes (2007, p. 44) continua sua análise, dizendo que a
depuração e o esvaziamento, operações básicas da poética
negativa, sustentarão permanentemente, na poesia de João
Cabral, esse distanciamento entre a disposição afetiva pessoal e
a matéria da linguagem, entre o sujeito que fala e o objeto de
que se fala.
Os poemas de Pedra do sono constituem fases diversas de
um só e mesmo estado poético. São as faces de um mundo
onírico composto de palavras-chave, de fragmentos da infância,
de desejos reminiscentes, que ligam o visível ao invisível e
onde tudo se faz em movimento de vôo. Voam os pensamentos,
a poesia e os objetos:
O telefone com asas e o poeta
Pensando que fosse o avião
Que levaria de sua noite furiosa
Aquelas máquinas em fuga.
Numa espécie de palco móvel, de espaço aberto e
ilimitado, entre a percepção sensível e as lembranças, entre o
olho que vê e a memória que evoca, nem o passado se distingue
do presente nem o interior do exterior. Os olhos que espiam a
rua enxergam, por desdobramento visionário, o invisível no
visível (BENEDITO NUNES, 2007, P. 24).
Os poemas reunidos em Pedra do sono servem de divisa à
primeira experiência poética de João Cabral: captar a poesia
latente ao espírito em estado de sono, ou seja, é a experiência
123
do poeta dormindo, pois para ele, o sono predispõe à poesia,
aguçando, no poeta, certa vocação para o sobrenatural e o
invisível, certa percepção do sentido oculto das coisas inertes.
Mas o sortilégio que perdurará até o final de Pedra do
sono, continuará a ser considerado o efeito da poesia, cuja
natureza de evocação encantatória estampa-se no último poema
da coletânea, O poema e a água. Só quando o sonho,
tematizado em O engenheiro, tornar-se o plano de fundo, o
aspecto de retaguarda, cada vez mais recuado, da experiência
poética é que se abrirá uma saída do estado de sono para o
estado de vigília, do mundo onírico para o mundo perceptivo
(BENEDITO NUNES, 2007, P. 26).
Percebe-se essa mudança de estado, no poema As nuvens
em que a identidade metafórica do sujeito vai mudando como
por força de seu próprio movimento aéreo:
As nuvens são cabelos
Crescendo como rios
São os gestos brancos
Da cantora muda;
São estátuas em vôo
À beira de um mar;
A flora e a fauna leves
De países de vento.
É necessário ressaltar a importância do livro O cão sem
plumas o qual dispõe de impressionante bateria de recursos
retóricos e, é nele, que se dá a bifurcação da arte poética de
Cabral em dois tipos de dicção: de um lado, a de O rio e Morte
e vida severina, de outro, com maior rigor e clareza na
construção, a de poemas como Uma faca só lâmina e dos
incluídos em Paisagens com figuras, de repertório temático
variado.
124
Essas duas vertentes, no entanto, foram reconhecidas pelo
próprio autor que as juntou num só volume denominado Duas
águas (1956), que inclui na primeira água os livros anteriores
Pedra do sono, O engenheiro, Psicologia da composição, ao
lado de O cão sem plumas, Uma faca só lâmina e Paisagens com
figuras e na segunda Os três mal-amados, ao lado de O rio e
Morte e vida severina.
Do ponto de vista dessa divisão é que a poesia de Cabral,
apreciada no desdobramento de suas duas águas, tem sido
alvo de juízos contraditórios, conforme Benedito Nunes (2007,
P.51), sendo que para os que valorizam o trabalho da
inteligência qualificam de desvio ao rigor a linha de O rio e
Morte e vida severina; e os que acreditam que a elaboração
poética, intelectualmente conduzida, só faz multiplicar os
invólucros da poesia, sem nada acrescentar à sua substância,
condenam o cerebralismo da linha que passa por Uma faca só
lâmina, em nome de uma suposta autenticidade da outra,
garantida pelo valor social de seus temas e pelo espírito
participante que a anima.
Interpretamos assim, segundo Nunes (2007, P. 53), a
diferença que o próprio autor estabeleceu no esclarecimento
preliminar a Duas águas:
Duas águas querem corresponder a duas intenções do
autor e decorrentemente a duas maneiras de apreensão por
parte do leitor ou do ouvinte: de um lado, poemas para serem
lidos em silêncio, numa comunicação a dois, poemas cujo
aproveitamento temático quase sempre concentrado exigem
mais do que leitura, releitura; de outro, poemas para auditório,
numa comunicação múltipla, poemas que, menos que lidos,
podem ser ouvidos.
125
A distinção aí estabelecida, sem atingir o fazer poético, é
uma distinção na tática de comunicabilidade. Trata-se de um
princípio pragmático, deveras importante para quem, como João
Cabral, pretende retirar a poesia moderna de seu alheamento
individualista.
Considerando os aspectos teóricos na concepção de João
Cabral inerentes ao fazer poético, passaremos à análise de
alguns poemas e, como ponto de partida, iniciaremos com o
poema Catar feijão.
O poema Catar feijão faz parte do livro A educação pela
pedra, de João Cabral de Melo Neto, cuja primeira versão foi
publicada em 1965.
Catar feijão
1.
Catar feijão se limita com escrever:
joga-se os grãos na água do alguidar
e as palavras na folha de papel;
e depois, joga-se fora o que boiar.
Certo, toda palavra boiará no papel,
água congelada, por chumbo seu verbo:
pois para catar esse feijão, soprar nele,
e jogar fora o leve e oco, palha e eco.
2
Ora, nesse catar feijão entra um, risco
o de que entre os grãos pesados entre
um grão imastigável, de quebrar dente.
Certo não, quando ao catar palavras:
a pedra dá à frase seu grão mais vivo:
obstrui a leitura fluviante, flutual,
açula a atenção, isca-a com risco.
126
No poema João Cabral de Melo Neto revela sua concepção
do ato criador. Tem como objeto a construção do poema, toma
como referência um ato do cotidiano em que também o
escolher, o combinar são necessários. O jogar as palavras é a
primeira etapa criadora: a inspiração. Essa leva o artista a
colocar no papel suas iniciais impressões. Porém, o verdadeiro
artista não fica aí: ele, assim como o catador de feijões,
seleciona os melhores grãos, a fim de construir uma poesia que
fale, não pelo excesso, mas pela contenção, desfazendo- se de
tudo o que for leve e oco, palha e eco. O que já foi dito não
interessa, pois não passaria de mera repetição. Sua paixão e
consciência buscam a originalidade da forma e do conteúdo.
(REVISTA UNIVERSITÁRIA N°1. FACULDADES TOLEDO DE
ARAÇATUBA. São Paulo. 1997).
Em Cabral, continua a mesma a revista, o eu-lírico está
presente com toda a força que sua ausência impõe,
diferentemente de outros poetas, seus contemporâneos ou
antecessores, que propuseram uma lírica subjetiva, idealizadora
do mundo em oposição a este, quer expressando uma visão
pessimista, irônica ou inconformada. Cabral não. Ele silencia a
voz valorativa. Apresenta uma poética, em sua maior parte,
crua, destituída de individualidade, mas não isenta de seu olhar
original sobre a realidade.
O poeta seleciona, vê e revela, mesmo disfarçando, o que
seus olhos percebem. Numa postura inovadora: a pedra dando à
frase seu grão mais vivo; o prazer mais vivo.
O rigor composicional do poema largamente difundido pela
crítica nesse livro chega a seu ápice. São quarenta e oito
poemas escritos em duas estrofes que muito se assemelham a
quadros pictóricos, visualmente considerados. Ao todo cada
127
poema atinge dezesseis ou vinte e quatro versos e o universo
temático sempre tendo a ver com o Nordeste / Espanha, a
condição humana e o fazer poético. Tudo isso numa rede de
inter-relações lucidamente arquitetada. Catar feijão se
apresenta composicionalmente em duas partes, com a marcação
da segunda delas como o número 2.
Na primeira parte o poeta descreve o que se pode
denominar de habitual, comum num ato de catar feijão: a
limpa, isto é, "jogar fora o leve e oco, palha e eco" que é a
sobra, a sujeira o "eco", pois o bom do feijão fica no fundo.
Ocorre, porém, que já desde aí o poema conotativamente inicia
seu jogo poético. A começar pelo título: Catar feijão. Nada mais
despistador. (
www.coladaweb.com.2008
, P. 1).
Na verdade, ao término de sua leitura, sabe-se que lhe
interessa mesmo é o "catar" palavras. E nessa linha do
despiste, o primeiro verso enuncia que "catar feijão se limita
com escrever, quando quer mesmo a idéia de que escrever se
limita com catar feijão. O jogo através do símile se faz o
inverso, toma-se o real comparado na condição de comparante.
A composição começa por demonstrar assim que ela toma-se a
si mesma como modelo desse catar feijão em que a pedra dá à
frase seu grão mais vivo:/ obstrui a leitura fluviante, flutual,
/açula a atenção, isca-a com o risco. (REVISTA UNIVERSITÁRIA
N° 1. 1997).
O verbo catar assume o sentido de escolher. Porque catar
feijão é, como catar palavras, recolher, retirar o que não é
feijão ou não é feijão bom,o que não é palavra adequada ou não
é palavra boa. Nota-se que o rigor de escolha é mesmo
exemplar. Conquanto haja o propósito de conceituar o ato de
escrever, com a importância fundamental que lhe há de ser
128
dada, o poeta usa o verbo limitar para estabelecer proximidades
(e não igualdade) entre comparante e comparado: "Catar feijão
se limita com escrever", e não é o mesmo que catar feijão é
como escrever. (www.coladaweb.com.2008
).
As diferenças e semelhanças dos dois atos ficam
garantidamente asseguradas nos versos do poema. E para
demonstrar concretamente essa imagem, seguem-se os verso
dois, três e quatro, com os quais estabelece simultaneamente a
semelhança/diferença no ato de jogar: "joga-se os grãos na
água do alguidar" é semelhante apenas na intenção de escolher
a "e as palavras na folha de papel".
E a imagem da diferença novamente se estabelece, pois,
ao contrário dos grãos, as palavras não vão fundo, bóiam no
papel, não obstante chumbo: Certo, toda palavra boiará no
papel, / água congelada, por chumbo seu verbo. A imagem é
muito significativa, ainda mais quando se observa que a "água-
papel" se contrasta com a "água alguidar" não apenas quanto
à imagem produzida: líquida, a do alguidar, sólida (e branca), a
do papel, mas também porque a complexidade do verbo boiar é
muito maior pelo efeito que o contexto lhe confere. Ora, na
água papel, efetivamente as palavras não bóiam porque não
há fundo, mas conotativamente bóiam, quando ao texto não se
ajustam, sendo então necessário "catá-las". (REVISTA
UNIVERSITÁRIA N° 1 - 1997).
Com o visível propósito de evidenciar, concretizar a
imagem buscada, o poema efetivamente se constrói sob o efeito
de uma espécie de hipálage, atribui-se o que é próprio do catar
feijão ao escrever (poesia) e vice-versa, numa estrutura
sintática direcionada pelo símile. E nessa linha se fecha a
primeira fase: "pois para catar esse feijão, soprar nele e jogar o
129
leve e oco, a palha e eco. "Esses são elementos concretamente
próprios do ato de catar feijão jogado no alguidar: o que sobe é
leve, palha, oco e, pois, eco (sujeira). Mas poeticamente é no
"catar" palavras que ele se aplica: jogar fora as que são palha,
ocas, portanto, eco. Deve-se atentar ainda para a especial
conotação da palavra eco, que no poema é eco (sujeira de que
se deve livrar) por fazer eco, (som desagradável, que se deve
evitar). (www.passeiweb.com – 2008)
Na segunda parte, conforme análise da Revista
Universitária, na segunda estrofe, o poema expõe uma das
conseqüências ou um dos resultados possíveis desse ato de
catar feijão; o risco que se corre, pois pode ficar no fundo algo
que, como o feijão, não bóia e que, estranho, é um perigo: "um
grão qualquer, pedra ou indigesto, um grão imastigável, de
quebrar dente". Isto para esse real catar feijão na água do
alguidar. Entretanto para catar palavra o efeito é outro bem
contrário: "a pedra dá à frase seu grão mais vivo:" Como se
verifica, o processo composicional estabelecido se mantém.
Apenas que desta feita a implícita comparação se dá de
forma direta. A pedra para o "catar palavra" não é indigesta,
mas sim renovadora. Melhor dizendo, o indigesto em "catar
palavras", qual seja, o que rompe o tradicional (o habitual) não
causa problemas, ao contrário, instaura o novo, criativamente
considerado, "a pedra dá à frase seu grão mais vivo: / obstrui a
leitura fluviante, flutual.
A sintaxe do poema é também bem peculiar. Sua estrutura
dá sustentação à forma lógico-argumentativa em que se
organiza. A reflexão sobre o fazer poético, que busca limites no
130
catar feijão, se conduz por acirrada linguagem lógico
argumentativa. Os versos são as medidas extensas e variáveis,
mais apropriados e adequados a esse tipo de raciocínio, no
caso, poemático. Mas o que singulariza a sintaxe poemática de
Catar feijão é a construção firmada em frases elípticas, o que
concorre tanto para a economia vocabular do poema enquanto
para a sua pauta rítmica. (www.passeiweb.com. – 2008)
Na seqüência da nossa análise, abordaremos os aspectos
mais importantes referentes ao poema O cão sem plumas,
publicado em 1950, com o qual o poeta inicia um ciclo de
poemas em que explicita sua preocupação com a realidade
nordestina e a denúncia da miséria. Busca, em meio uma
atmosfera mineral, a vida possível. Ressalta-se na redundância,
na duplicação de palavras e ritmos, o poema sugere a cadência
da prosa e a monotonia das águas barrentas do Capibaribe, cão
sem pêlo ou pluma, reduzido só a detritos e lama.
Com este poema longo, O cão sem plumas, a linguagem
depurada parece encontrar uma temática a altura: o rio
Capibaribe, que corta a cidade de Recife, rio-detrito, com sua
sujeira, seus detritos com a população miserável que lhe habita
as margens, trágico espelho do subdesenvolvimento. O cão
desemplumado, portanto, é a metáfora de Cabral para o rio
Capibaribe e sua cinzenta convivência com os homens-
caranguejos, que também são cães sem plumas. "Difícil é saber/
se aquele homem/ já não está/ mais aquém do homem".
(
www.passeiweb.com.2008
).
Poema soberbo, O Cão sem Plumas é a descrição das
condições sub-humanas nas palafitas e mocambos do Recife. A
dicção é dura, como convém ao tema, mas nunca resvala para o
panfleto. Só mesmo um grande artista poderia assumir ecos de
131
um discurso social, sem ser panfletário, romântico ou
esteticista, escreve o colunista Daniel Piza (Gazeta Mercantil,
18/10/1999). É um longo e hermético poema que denuncia não
só o estado do rio, mas também a situação de exclusão da
população ribeirinha, que não vive apenas à margem do rio,
mas principalmente, à margem de tudo.
O poema se constrói em duas instâncias geográficas: a da
geografia física, que reflete sobre as questões regionais
propriamente ditas (a descrição do rio, sua desembocadura,
seus mangues e o processo de seu desaguamento no mar), e a
da geografia humana, que nos faz pensar não só sobre as
condições sociais e econômicas do homem que habita suas
margens, mas também sobre o que faz de um homem um
homem, ou seja, o poema parte de uma reflexão sobre a região
e se completa com outra de caráter mais universal.
(www.passeiweb.com.2008
).
Há ainda, para a compreensão do poema, de se relevar
uma oposição: a que o autor criou entre as coisas como
deveriam ser e as coisas como na realidade se apresentam.
Assim, ao falar da água do rio, ele sonha com a água perfeita (a
água do copo, a água da chuva azul, a água que se abre aos
peixes, a água que teria os enfeites ou as plumas das plantas),
ao mesmo tempo em que sofre ao constatar que ela não existe
no rio Capibaribe, cuja água tem lodo, ferrugem e lama.
Também, ao se referir ao habitante das margens do rio, o autor
reflete sobre o que um homem devia ser (sonho e pluma) e se
revolta diante da dificuldade de achar, naquele ser, um homem.
Outro ponto que se pode ressaltar é a pertinente análise
do meio ambiente, sem isolá-lo das questões humanas - rio e
homem são entidades indissociáveis no poema, tão confundidos
132
que não é possível saber onde um começa e outro termina; a
pobreza e a negritude do rio são causa da pobreza do homem
negro de lama.
No poema, que se compõe de quatro momentos (Paisagem
do Capibaribe, I e II; Fábula do Capibaribe, III e Discurso do
Capibaribe, IV), os versos a seguir, extraídos do IV momento,
ilustram com precisão o que foi dito acima:
Como o rio
aqueles homens
são como cães sem plumas
(um cão sem plumas
é mais
que um cão saqueado;
é mais
que um cão assassinado.
Na paisagem do rio
difícil é saber
onde começa o rio;
onde a lama
começa do rio;
onde a terra
começa da lama;
onde o homem,
onde a pele
começa da lama;
onde começa o homem
naquele homem.
Por fim, há um claro posicionamento do poeta no sentido
de chamar o leitor à reflexão sobre o fato de que o rio será
aquilo que o homem fizer dele, como a ave que conquista o seu
vôo, e sobre a sociedade, que transforma o rio num não-rio, o
mar num não-mar, o mangue num não-mangue e o homem num
não-homem.
I. Paisagem do Capibaribe
133
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
134
É notório, conforme analisa Roberta da Costa de Souza
9
que a obra de João Cabral de Melo Neto se caracteriza por
assumir o esforço do poeta na construção de sua arte em
oposição à inspiração. Nesse trabalho preocupado com a
elaboração, o rigor e a clareza, algumas imagens constantes,
como a pedra, o deserto, o rio e a faca, expressam a conciliação
daquilo que elas representam com a própria filosofia norteadora
da composição dos poemas que integram. (Em fase de
elaboração)
A poética cabralina caminha em companhia da visão ética
que ele constrói. Os próprios objetos carregam uma ética e uma
poética. A pedra, por exemplo, traz como princípios morais a
resistência, a solidez e a permanência. No poema Uma faca só
lâmina, predomina a imagem da faca que seria uma outra
forma de atuação dos valores da pedra.
O poema Uma faca só lâmina, de João Cabral de Melo
Neto, ainda, segundo Costa de Souza, constrói-se a partir de
relações comparativas, baseadas em três objetos: a bala, o
relógio e a faca. O primeiro verso já indica tratar-se de uma
espécie de discurso interrompido. O leitor se depara com a
expressão Assim como, que provoca a sensação de
continuação de uma fala anterior. Outras expressões, qual,
igual a aparecem no restante do poema e perpetuam essa
idéia.
Essa dificuldade de falar sobre o objeto leva ao uso de
uma série de metáforas. Não se consegue descrever o objeto a
partir dele próprio, então se utilizam outros objetos para
construir imagens a fim de tentar chegar até ele. Embora se
encontrem no lugar da coisa comparada, não a representa, são
9
Costa de Souza, Roberta da. Mestranda em Teoria da Literatura. UFRJ. 2008
135
insuficientes. Estabelecem-se comparações, relações, porém
não se chega ao objeto por meio delas, mas ele parece se
esquivar, se esvair.
Seja bala, relógio,
Ou a lâmina colérica,
É contudo uma ausência
O que esse homem leva.
A indefinição do objeto se define pela ausência, talvez, por
isso, a dificuldade, por não se conhecer os limites da ausência.
É uma ausência ativa, cortante, que nos leva de volta às duas
idéias convergentes de Diálogo: a agudeza e o nada ou vazio,
singularizadas no canto da Andaluzia e na tourada e que a
imagem da faca individualizou.
Mas o que não está
nele está como uma bala:
tem o ferro do chumbo,
mesma fibra compacta.
Isso que não está
nele como a coisa ciosa
presença de uma faca,
de qualquer faca nova.
O sentimento de inquietação, obsessivo quando
permanente, é o sentimento de uma ausência impreenchível,
que cai no vazio de sua própria avidez:
Por isso é que o melhor
dos símbolos usados
é a lâmina cruel
(melhor se de Pasmado):
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina.
136
nenhum melhor indica
aquela ausência sôfrega
que a imagem de uma faca
reduzida à sua boca.
que a imagem de uma faca
entregue inteiramente
à fome pelas coisas
que nas facas se sente.
Todas as imagens carregam significações contraditórias. Ao
invadir um corpo, uma bala torna-o mais pesado, mas o que se
agrega a esse corpo, na verdade, não pretende lhe acrescentar
nada, pois está ali para lhe tirar a vida. O relógio, que pulsa
impiedosamente, parece querer lembrar que a cada movimento
retira mais um instante da vida do homem, que
irremediavelmente não mais voltará.
Apesar de fazer uso da bala e do relógio, a imagem
mais próxima é a da faca, mais especificamente da faca que só
tivesse lâmina.
porque nenhum indica
essa ausência tão ávida
como a imagem da faca
que só tivesse lâmina
O próprio título da obra, conforme analisa Costa de Souza,
já demonstra essa carência, uma faca cujo cabo lhe falta, daí a
dificuldade de pegá-la. Como segurar uma faca com apenas a
lâmina? Como manuseá-la? Quem tentar segurá-la, certamente
se cortará, pois ela é toda corte, pronta para cortar e machucar
o tempo todo, totalmente potência arisca para ferir. E essa
justamente é a sua natureza: do corte, da ferida impiedosa. Ela
não perde o corte por cortar, mas por não cortar. Traz em si
essa potência inegável, que precisa se manifestar para ser ela
mesma com mais intensidade, para se mostrar em toda a sua
plenitude.
137
A faca é potência de corte, mas sozinha ela não sai do
lugar. Todo poder de destruição que encerra depende da mão
humana para vir à tona. Mesmo parada, guarda a potência
talvez que não se apague/ e somente adormeça na maré-
baixa. O fato de manter-se inativa não significa que assim
permanecerá.
(Porém quando a maré
já nem se espera mais,
eis que a faca ressurge
com todos seus cristais)
Afinal, a insatisfação, o descontentamento, o
inconformismo levam o homem a se superar, a ir além daquilo
que esperam dele, a ultrapassar os seus próprios limites. O
desejo incontrolável nasce da falta, de uma carência
insuportável. No entanto, satisfazer um desejo nunca lhe
garante a plenitude, pois essa falta permanente, essa
incompletude inerente produz mais e mais desejos em busca de
realização. O homem nunca se dá por satisfeito, nunca está
completo, sempre lhe faltará algo. É essa falta que faz ele estar
sempre em busca, à procura de. Lidar com essa eterna
insatisfação e incompletude fortalece o homem.
E tudo o que era vago,
toda frouxa matéria
para quem sofre a faca
ganha nervos, arestas.
Em volta tudo ganha
a vida mais intensa,
Com nitidez de agulha
e presença de vespa.
Em meio à rotina, o lado mais cortante se revela. É preciso
coragem para se arriscar, aquilo que parece ruim, pode ser
138
bom, depende do olhar, da vontade, da disposição para se
rasgar. Bala, relógio, faca paradas, imóveis, parecem
inofensivos, mas guardam a potência, como o homem. Basta um
simples gesto para afirmar a essência de cada uma delas, mas é
necessária a atitude. No caso do relógio, atitude em forma de
reflexão (que também é ação), pensar sobre o que se fez e o
que se fará com o tempo disponível, como aproveitá-lo da
melhor maneira possível. (ROBERTA DA COSTA E SOUZA, 2008)
No epílogo, o poema se refere explicitamente à linguagem.
A incapacidade da linguagem já se evidenciara nos primeiros
versos, diante das metáforas sempre insuficientes para se
atingir o objeto. Agora se afirma a utilidade das imagens
citadas (bala, relógio, faca), pois o esforço da construção das
metáforas exige que o poeta vá além do uso cotidiano das
palavras. Asfixiadas debaixo do pó, despercebidas no dia-a-
dia tornam-se palavras extintas no almoxarifado.
Para lhes dar vida novamente, é preciso recuperar a
potência oculta que as caracteriza, essência inerente sempre
pronta a ser renovada.
Pois somente essa faca
dará a tal operário
olhos mais frescos para
o seu vocabulário.
A linguagem também trabalha com esse jogo de presença e
ausência. Quando a palavra se liberta do seu referencial e,
trabalhada poeticamente, contempla a ambigüidade, liberta-se
das amarras da linguagem e se faz mais linguagem. Ao rasgar a
si mesma, revela-se em toda a potência inerente de criação e,
se recriando, reinventa o mundo ao redor.
139
O conflito dramático que alimenta a obra se baseia na luta
entre aquilo que se quer dizer e aquilo que pode ser dito. E,
para poder dizer,
o poeta se utilizará de
O que em todas as facas
é a melhor qualidade:
a agudeza feroz,
certa eletricidade,
mais a violência limpa
que elas têm, tão exatas,
o gosto do deserto,
o estilo das facas.
O gosto do deserto, o estilo das facas, nos dois últimos
versos nada mais é que o estilo norteador da própria
composição do poema. Daí o sentido de imitação da forma, ou
seja, o poeta aprende com os objetos uma maneira de imitar a
realidade. Isso ocorre com a imagem da pedra, em outros
poemas, e aqui no caso da faca. Essas imagens expressam a
linguagem da carência e da dureza, da secura, e estabelecem a
relação de dependência entre a composição e a comunicação,
pois os objetos lhe ensinam como ler a realidade, que se torna
a estratégia pela qual é possível falar no poema.(ROBERTA DA
COSTA E SOUZA, 2008).
O esforço desse querer dizer converge numa espécie de
conflito dramático existente em Uma faca só lâmina: insistir
no dizer mesmo diante de toda a extrema dificuldade de se
expressar. Essa tendência dialética, continua Costa de Souza,
afirma-se na luta dramática das tentativas de se conseguir falar
sobre um vazio, que se exprime numa sensação de discussão
entre as metáforas de Uma faca só lâmina. A própria seleção
dos objetos já consiste numa escolha subjetiva, portanto
objetividade e subjetividade não constituem conceitos tão
estanques e opostos quanto supõe a visão lírica tradicional.
140
Seja poesia do menos ou imitação da forma,
independentemente de conceitos teóricos, a poética cabralina
simultaneamente constrói a sua própria ética, que permeia toda
a obra e, também, se faz presente em Uma faca só lâmina.
Para Benedito Nunes (1974, P. 171), a imagem da pedra, que
contém o ideal ético de resistência fria, de dureza obstinada e
agressividade, se transforma na lâmina da faca. Se a pedra
conserva uma resistência moral, a faca guarda em sua natureza
cortante, aguda, penetrante e agressiva uma inquietação
torturante.
Em uma faca composta apenas de lâmina basta encostar
para se dar o corte, porque tal como se alimenta uma idéia fixa
a cada dia, a lâmina guarda uma ausência torturante dentro de
si, potência pronta para se manifestar num simples gesto.
Da mesma forma, completa Costa de Souza, a visão ética
severa, que acompanha a poética do esvaziamento, serve não
para esvaziar o homem, mas para mostrar como a falta produz
o desejo que move o ser humano, capaz de colocar em atividade
o que se mantém aparentemente inativo, porém conserva sua
potência destruidora intacta pronta para se manifestar a
qualquer momento. Em Cabral, a carência e a ausência geram
produtividade, o esvaziamento constitui parte do processo para
a plenitude do ser.
Quanto mais longe se vai, na literatura, mais adiante se
vai, no próprio homem. A poesia é ambígua e contraditória,
porque o próprio homem também é um ser essencialmente
ambíguo e contraditório. Portanto, sempre há algo a ser
explorado no reverso do que se mostra.
141
Por último, faremos a análise dos poemas O Rio e Morte e
Vida Severina, cuja linguagem, catalisadora de metamorfoses,
transmuta Rio em Homem e Homem em Rio, tornando esses
elementos temáticos, em seu relacionamento recíproco, imagens
poéticas confluentes. Têm-se, no caso, duas histórias (a de
Severino, retirante do sertão nordestino e a do Capibaribe, rio
cujo leito leva ao Recife), que, cruzadas, originam um sistema
de equivalências, em que o rio humanizado e o homem
fluvializado confundem suas naturezas, em face de um estado
de precariedade compartilhado por ambos.
(www.filologia.org.2008
).
As passagens, a seguir, extraídas, respectivamente, dos
poemas acima mencionados, põem em evidência, por
perspectivas diferentes (primeiramente, a do Capibaribe,
depois, a de Severino), o processo de amalgamação que liga de
forma indivisa Rio e Homem:
Os rios que eu encontro
Vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
Que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
Que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.
(O Rio, in MELO NETO, 1986, P. 117)
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
142
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam.
(Morte e Vida Severina, in MELO NETO, 1986, P.77)
Assim como o rio Capibaribe, Severino se define por sua
natureza desvalida ambos estão sujeitos a um destino de
penúria, motivado pela seca. É a marca da carência que os
aproxima e une numa poética de travessia. Sempre mirando-se,
um sendo o eco do outro, rio e homem mal podem ser
distinguidos. Sente-se que o rio se identifica com o viver
nordestino, ou mesmo que o rio e a vida são a mesma coisa.
Tem-se, no caso, a configuração do elemento fluvial como
extensão do humano (e vice-versa). (www.filologia.org.2008
).
A idéia mais frisada nos poemas parece ser a de que a
vida, identificada com a natureza do rio, é translato, viagem,
que coincide com a procura de melhores paragens. Tal busca
implica difíceis andanças, luta constante e o defrontar com
duras realidades, o que põe à prova a capacidade de resistência
às asperezas.
Compondo uma escritura fortemente voltada para a
captação da realidade social e humana, os poemas em questão
recriam paisagens dessublimadas, dão a ver um espaço
depurado de imagens idealizadas, resultando o texto poético
numa mescla de esferas que abarca o regional e o universal.
Devido a isso, nas dúvidas, inquietações, esperanças e
desesperanças dos severinos-rios, ressoam indagações próprias
do ser humano, em qualquer parte e em todos os tempos.
(www.filologia.org.2008
).
143
Segundo o mesmo site, em relação ao poema Morte e Vida
Severina, deve-se atentar para o fato de que, embora Severino,
no monólogo de abertura, tente inicialmente se identificar
como um primeiro passo daquilo que representa a viagem, como
uma busca de fixação de algo no movimento de retirada sua
insistência em dar sinais de identificação queda infrutífera, pois
esbarra na anonimidade, na despersonificação do nordestino
depauperado, em condição comum de penúria.
Um e muitos, o personagem do Auto, que se chama
Severino e que, como o rio, vem do sertão para desaguar nos
mangues do Recife, abrange todos os outros incontáveis
severinos:
Somos muitos severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
Iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte Severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
(Morte e Vida Severina, in MELO NETO, 1986, P.71)
O que acaba ocorrendo, é a personalização dramática de
um sujeito coletivo, passivo e anônimo. Severina é a condição
geral da vida do retirante que a seca escorraça do sertão e que
o latifúndio escorraça da terra; severino só pode ser
144
substantivo comum e não próprio,como severinidade o gênero
abstrato da total carência. O dado pessoal, nesse caso, cede
lugar à condição impessoal de um destino coletivo de miséria e
míngua que guarda grande semelhança com o destino do rio,
desfalcado de suas águas.
Morte e Vida Severina exibe na base de sua construção
uma dose de oralidade e uma perspectiva teatral que foram
buscadas na tradição do folclore pernambucano. A parte final do
poema (as últimas seis cenas) é essencialmente uma releitura
do pastoril. Alinhavada com um estilo irônico, que desarticula o
cristalizado, essa forma tradicional de narrar é recuperada e
revitalizada na pauta do poeta. O auto retoma os tradicionais
quadros e personagens natalinos, mas os subverte, pela ironia
dessublimadora do nascimento de uma criança entre os
habitantes do mangue, cujo destino, previsto pelas ciganas,
será o de também levar uma vida severina.
(
www.filologia.orb.2008
, p. 3
).
Assim como há um texto, escrevendo-se, tecendo-se e
reprocessando outros, também as existências de Severino e do
Capibaribe, entrecruzando seus fios, estão em incessante
processo de construção, deslocamento. Tanto na ação dramática
da peça quanto na narração de viagem do rio, têm-se o
deslocamento constante e a notação descritiva/narrativa de
quem está de passagem. Em ambos, fica patente a decisão de
viagem. (BENEDITO NUNES, 2007, P. 59-60)
Variante do percurso seguido pelo Capibaribe, do sertão
até o Recife, a viagem de Severino é igualmente de mudança e
fuga. Em ambos os poemas, a experiência de viagem redunda
em experiência visual que se realiza por etapas. Dois olhares
o de Severino e o do Capibaribe deslizam por sobre um
145
mesmo cenário (o sertão, o Agreste, a caatinga, a Mata),
registrando os mesmos referenciais: a toponímia e os elementos
econômicos (plantações de cana, engenhos e usinas).
Há, portanto, uma correlação entre esses dois olhares, que
se imbricam, na reafirmação do precário, da penúria, que é vida
presidida pela morte. Em ambos os casos, a história do morrer
e do viver enforma o tema da viagem. Ressalte-se que a viagem
de Severino parece carregar tão somente o peso da morte,
principalmente, na primeira parte do poema em que as
peregrinações do personagem conduzem-no, irremediavelmente,
a encontros sucessivos com a morte, que assume diferentes
faces.
Acompanhar a sua peregrinação até o Recife (disposta em
fragmentos poéticos), é, em certo sentido, percorrer os passos
da via crucis. Por outro lado, as águas do Capibaribe (ainda que
intermitentes em certos locais), guardando semelhanças com os
anseios humanos, encenam, em sua descida para o mar, o
desejo de preservar, através da mobilidade, a esperança em
face das agruras.
Ao terminar o auto dentro do Auto, seu José reata com
Severino o diálogo interrompido e, sobre isso, Benedito Nunes
(2007, P. 64) nos diz que à filosofia do desespero e do suicídio
vivida pelo retirante, seu José responde com a necessidade de a
firmação da vida, figura didática extraída da alegoria natalina e
que implica numa negação do estado de existência para o
indivíduo. Apreende-se com tal desfecho que a condição
Severina não é permanente, que a severinidade constitui uma
entificação determinada de fora para dentro.
146
Assim como, continua Nunes (2007, P. 64), no curso do
drama, a tragédia foi interrompida pela comédia, esta
interrompe a ação sem finalizá-la, deixando-nos descortinar,
como cumpre à poesia fazê-lo, um outro possível plano de ação
aberto pelo primeiro e entregue, para além da linguagem e de
sua realidade textual, à responsabilidade ética decisória dos
indivíduos. A implosão da vida severina poderá transformar-se
em explosão.
À luz de uma recapitulação inerente à trajetória de o fazer
poético de João Cabral, podemos dizer que as primeiras obras
de João Cabral (Pedra do sono, O engenheiro, Psicologia da
composição) iniciam o trabalho do despojamento: a linguagem
torna-se cada vez mais rigorosa e seca. O poeta dá a impressão
de estar experimentando e definindo o seu instrumental e os
poemas geralmente tematizam o próprio fazer poético. Quando
muito, centram-se no mundo objetivo. Em nenhum momento, o
escritor se deixa atrair pela confissão sentimental. O eu está
fora de seu horizonte lírico.
Como nenhum outro autor de sua época, João Cabral de
Melo Neto vê a lírica como a elaboração de um artefato de
linguagem. Para ele, a criação poética, longe de ser o resultado
da inspiração ou do transe (a exemplo do que românticos,
simbolistas e surrealistas pensavam), é entendida como uma
lenta e sofrida pesquisa de expressão.
Por isso, ele despreza a intuição, o mistério e as
revelações inconscientes como móveis do fazer literário,
oferecendo em troca uma poética em que tudo é medido,
calculado, trabalhado, em um meticuloso processo de
construção. O poeta busca a palavra objetiva, a palavra exata,
como quem procurasse uma fórmula matemática para
147
representar o mundo. O resultado de seu esforço é uma lírica
cerebral que rompe com a poesia feita nos idos de 1940,
excessivamente palavrosa, prisioneira da musicalidade fácil e do
exagero metafórico. (
http://educaterra.com.br/literatura
)
Como conclusão da análise de o fazer poético na obra de
João Cabral de Melo Neto, podemos dizer que sua atitude
criadora, corresponde ao estilo cauteloso e lento, de avanço e
recuo, de paciência e atenção concentrada, estilo de poeta
tecelão que maneja a linguagem como um tear, enrolando e
desenrolando, em movimentos de ida e volta, nos fios do
discurso que os fusos das palavras tramam a rede verbal das
coisas. Mas essas operações de enrolar e desenrolar, de fazer e
refazer, de decompor e recompor, constituem uma das
afinidades de João Cabral que disseca e revira as coisas pelo
avesso para melhor conhecê-las. (BENEDITO NUNES, 2007, p.
103)
Direcionando-nos para o final da análise, é importante
ainda que sejam feitas algumas referências sobre um de seus
poemas mais famosos, pois, nele estão contidas, praticamente,
todas as diretrizes básicas para a composição de um poema,
segundo Cabral, que é Psicologia da Composição. Nesse
poema, através de uma argumentação metapoética, João
Cabral consolida-se:
Saio de meu poema
como quem lava as mãos.
Algumas conchas tornaram-se,
que o sol da atenção
cristalizou; alguma palavra
que desabrochei, como a um pássaro.
148
Uma nova versão para o sentido órfico da criação: a
palavra que desabrocha, ganha espaço próprio. J. C. retorna à
idéia inicial de sua criação: página em branco:
Esta folha branca
me proscreve o sonho,
me incita ao verso
nítido e preciso. (...}
O poema, com seus cavalos,
quer explodir (...)
Vivo com certas palavras,
abelhas domésticas.
A página em branco inquieta, suscita e incita a um versejar
nítido e preciso, numa explosão verbal pela tessitura/textura do
discurso o texto. O poeta convive com as palavras como
abelhas domesticadas, produtivas, mansas e obedientes.
No mesmo grandioso poema, digressa sobre a forma de
sua poesia:
Não a forma encontrada
como uma concha, perdida
nos frouxos areais
como cabelos;
não a forma obtida
em lance santo ou raro,
tiro nas lebres de vidro
do invisível;
mas a forma atingida
como a ponta do novelo
que a atenção, lenta,
desenrola (...)
Sempre em busca da forma nítida e precisa. O sentido
apriorístico dado ao signo não é programado, mas é cultivado
numa relação permanente do autor com sua obra. Uma vocação
anafórica do poeta em sublinhar e definir formas e sentidos no
149
discurso, que vira estilo por sua reiteratividade. Não admite a
forma improvisada, deve ser o produto da atenção extremada.
É mineral o papel
onde escrever
o verso; o verso
que é possível não fazer.
São minerais
as flores e as plantas,
as frutas e os bichos
quando em estado de palavra.
Mineral é uma metáfora que J. C. usará, por toda a vida,
para referir-se à materialidade do poema, como são
minerais as coisas do mundo que o poeta interpreta ou expõe
no seu estado de palavra. A poesia coisifica o mundo não
verbal, tornando-o palavras no texto, no sentido de
conhecimento objetivo, ou seja, torna mineral qualquer sentido
no poema, pelas palavras. Ao contrário, na ausência da palavra,
não há nada.
onde foi palavra
(potros ou touros
contidos) resta a severa
forma do vazio.
A leitura de J. C. não pode ser meramente pela semântica,
no sentido etimológico rigoroso das palavras, porque ele
violenta tanto a gramática quanto as significações ordinárias
das palavras. Vai exigir, por parte do leitor, a já mencionada
relação ou movimentação anafórica e metonímica na recepção,
interpretação, decodificação. Se temos as chaves do enigma, se
estamos familiarizados com sua linguagem e formato, a leitura
dá-se mais escorreita, mas, sempre com as ambigüidades
originais. Sua linguagem é sempre desconcertante, desorienta e
sugere mais que explicita, que ao nominar pode querer disfarçar
150
ou distorcer ou até mesmo confundir... É no clima ou na
atmosfera do antidiscurso que se pode apreender sua
polissêmica mensagem.
O poema, com seus cavalos,
quer explodir
teu tempo claro: romper
seu branco fio, seu cimento
O poema quer explodir as convenções do leitor, sua leitura
viciada, seu cimento experiência para novas formas de
leitura e compreensão da poesia. Sem concessões, J.C. quebra,
assim, a tradição brasileira da poesia discursiva arcádica,
romântica e parnasiana.
Rompendo paradigmas formais poéticos em voga (estéticas
literárias anteriores ao Modernismo, especialmente o
Romantismo)-espaço de confessionismos, sentimentalismos,
testemunhos vãos, beletristas mesmo-, que J. C. repudia.
Poesia, te escrevia:
flor! Conhecendo
que és fezes. Fezes
como qualquer,
gerando cogumelos
(raros, frágeis, cogu
melos) no úmido
calor de nossa boca.
Delicado, escrevia:
flor! (Cogumelos
serão flor? Espécie
estranha, espécie
extinta de flor, flor
não de todo flor,
mas flor, bolha
aberta no maduro).
Delicado, evitava
o estrume do poema,
seu caule, seu ovário,
151
suas intestinações.
Esperava as puras,
transparentes florações
nascidas do ar, no ar
como as brisas.
Evita agora a dissimulação: em vez de flor, fezes... A
poesia é fezes, estrume, intestinação, em lugar da espécie
extinta de flor, que esperava nascesse do ar. Estes versos
enigmáticos ou emblemáticos constituem uma espécie de
declaração de princípios ou manifesto, do poema ANTIODE, e
fazem parte do livro Psicologia da Composição, que é quase
todo exclusivamente metapoético. Em que o poeta pretendeu
instaurar seu (anti)estilo. J.C. exercita a quase impossível arte
de fazer de sua poesia uma metapoesia. Enquanto que em João
Cabral a metapoesia é a poesia, em outros poetas, o que se
percebe, é a intenção de criar metapoemas para explicar sua
visão da poesia. Pode parecer uma diferença excessivamente
sutil, mas não o é, pois é nessa diferença que se percebe a
originalidade do poeta pernambucano, sua singularidade nas
letras brasileiras.
Nada de dizer como se faz ou não se deve fazer poesia. Em
vez disso, fazer metapoesia como poesia mesmo.
Como não invocar o
vício da poesia: o
corpo que entorpece
ao ar de versos? (...)
Venha, mais fácil e
portátil na memória,
o poema, flor no
colete da lembrança.
E arremata, nesses fragmentos do longo e sugestivo
poema ANTIODE:
Poesia, não será esse
o sentido em que
152
ainda te escrevo:
flor! (Te escrevo:
flor! Não uma
flor, nem aquela
flor virtude em
disfarçados urinóis.
Flor é a palavra
flor, verso inscrito
no verso, com as
manhãs no tempo.
Flor é apenas uma flor, diria Fernando Pessoa, palavra no
verso, com seu novo sentido: como a manhã no tempo. Flor,
agora, é apenas flor como pedra é apenas pedra... É palavra no
poema com as significações que se lhe queira atribuir o
verso inscrito no verso, lembrando-nos que verso é uma
composição poética. Como poeta, J. C. instaura-se como um ser
onipresente e onisciente em seus poemas, definindo e
definindo-se metalingüisticamente.
Por fim, como afirma Benedito Nunes (2007, p. 136), a
poesia de João Cabral é uma poesia agônica: sempre a mesma e
sempre diferente, repete em cada um de seus momentos a
experiência de um perpétuo recomeço, na continuidade da
mesma linguagem renovada, que evita o vocabulário
reconhecidamente poético, que dispensa o apoio das
associações habituais, que corta com as expectativas da
imaginação sedimentada, com o ouvido musical corrente,
exigindo um leitor atento, intelectualmente ativo.
3.2- Fernando Pessoa
153
Feitas as considerações e análises referentes ao fazer
poético em alguns poemas de João Cabral de Melo Neto,
passaremos a efetuar os mesmos procedimentos na obra (mais
especificamente em alguns poemas) de Fernando Pessoa.
Podemos iniciar essa parte com uma das muitas definições
de Fernando Pessoa sobre a Arte Poética:
A única realidade da vida é a sensação. A única
realidade em arte é a consciência das
sensações, ou seja, a arte, em sua plena
definição, é a expressão harmônica de nossa
consciência das sensações; isto é, nossas
sensações devem ser expressas de tal modo
que criem um objeto que será uma sensação
para outros. (FERNANDO PESSOA).
Para Fernando Pessoa, a consciência da sensação muito
mais do que a sensação tal como é captada pelo sujeito - é o
material nobre da poesia. A arte, diante de uma sensação,
modula-a, por assim dizer, intelectualizando-a. A sensação
original, depois de intelectualizada, cria um objeto novo,
inexistente como tal na realidade, mas dela derivado, que para
os outros será uma sensação, ou melhor, um objeto estético
disparador da sensação na consciência do leitor ou auditor.
Para Fernando Pessoa um poema é a projeção de uma
idéia em palavras através da emoção. A emoção não é a base
da poesia: é tão somente o meio de que a idéia se serve para
se reduzir a palavras, encarando, dessa forma, a expressão
literária, primeiramente, como fruto do entendimento.
O homem tudo tentara no sentido de reelaborar
esteticamente a realidade de uma maneira válida e falhara.
Onde a razão do fracasso? - Seguramente na parcialidade dos
métodos utilizados. Urgia empreender um novo caminho. E
154
este surgiu como uma síntese (essa era a intenção) de tudo o
que antes fora tentado, parceladamente, em vão. E assim se
chegou à adoção de uma estratégia que incluiria a razão, os
sentimentos, os sentidos, a imaginação. Deveria haver um certo
equilíbrio entre esses elementos.
Uma vez que as estéticas literárias anteriores não haviam
conseguido esse intento, ou talvez nem tentado, o Modernismo,
então, estabeleceu essa plataforma que consistia na
reelaboração da realidade utilizando todas as possibilidades
disponíveis, tendo como característica marcante, a liberdade na
forma, nos métodos, nos temas, na expressão. Entretanto, há
de se notar que essa mesma desmedida liberdade acarretou
múltiplas tentativas de interpretar a realidade, que falharam
por falta de unidade e excesso de contingencialidade. Usava-se
a soma de processos estanques, mas não a síntese deles,
síntese essa que teria de se fundamentar em sua
interseccionalidade.
E esse último conceito - demonstrou-o Pessoa - é chave na
empresa poética que vise não ao transitório, ao circunstancial,
mas ao absoluto, ao universal, ao enfoque de relações válidas,
hoje e sempre, no plano cósmico. Aqui a grande missão do
poeta: procurar extrair, pela intuição, do efêmero, elementos
que possibilitem a construção de uma cosmovisão cada vez mais
real, mais verdadeira: procurar fazer com que a assíntota-
interpretação da Vida e do Universo não detenha sua marcha
em direção à Verdade.
Fernando Antônio Nogueira Pessoa, que por aqui esteve no
período de 13 de junho de 1888 a 30 de novembro de 1935,
representa e transcende, em muitos aspectos e sentidos, o que
o Modernismo preconizava.
155
É típico recurso da crítica romântica, considerar que a
emoção é expressão imediata da personalidade do poeta,
entretanto, a poesia de Fernando Pessoa é campo minado para
esse tipo de abordagem. A obra pessoana pode ser comparada a
um espelho estilhaçado em que são refletidos aspectos
fragmentados e contraditórios da realidade. Não se pode tomar
nenhum desses fragmentos como um espelho fiel ao mundo
real, pois, buscar uma verdade na obra de Pessoa é
embaralhar-se num conjunto de opiniões mutantes, porque se,
num poema ele afirma que tudo vale a pena, logo adiante dirá
que nada vale a pena. (REVISTA DISCUTINDO LITERATURA-
ANO 1-n° 2 2008, p. 16).
Da mesma Revista (2008, p. 63) temos que a entrega de
Pessoa à sua obra reflete a dedicação dos grandes navegadores,
que fizeram a fama e a glória da nação lusitana. Pessoa
navegou o mar da poesia para descobrir continentes
inexplorados de encantamento. Diz ele: Navegadores antigos
tinham uma frase gloriosa: navegar é preciso, viver não é
preciso.
Pessoa continua: Quero para mim o espírito desta frase,
transformada a forma para a casar com o que eu sou: viver não
é necessário; o que é necessário é criar. Por isso, não conto
gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la
grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a
(minha alma) a lenha desse fogo.
Só quero torná-la de toda a humanidade. Ainda que para
isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso.
Cada vez mais ponho a essência anímica do meu sangue o
propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a
evolução da humanidade.
156
A esse respeito, transcrevemos um trecho da carta datada
de 19 de janeiro de 1915, que enviou a Armando Cortes-
Rodrigues como prova da manifestação real da consciência que
Fernando Pessoa tinha dessa realidade e que acabou se
transformando no escopo de seu fazer poético, não só na
forma, nos aspectos técnicos desse fazer, mas também,
projetando nisso, seu modus vivendi carregado de profundas
contingências existenciais que serão analisadas na seqüência
deste trabalho.
Vejamos o que disse Pessoa na carta:
De modo que, à minha sensibilidade cada vez
mais profunda, e à minha consciência cada vez
maior da terrível e religiosa missão que todo o
homem de gênio recebe de Deus com o seu
gênio, tudo quanto é futilidade literária, mera
arte, vai gradualmente soando cada vez mais a
oco e a repugnante. Pouco a pouco, mas
seguramente, no divino cumprimento íntimo de
uma evolução cujos fins me são ocultos, tenho
vindo erguendo os meus propósitos e as minhas
ambições cada vez mais à altura daquelas
qualidades que recebi. Ter uma ação sobre a
humanidade, contribuir com todo o poder do
meu esforço para a civilização vêm-se-me
tornando os graves e pesados fins da minha
vida." (FP em OP, 1986, p. 53 e 54)
Sabia-se, sentia-se, portador de uma grave
responsabilidade, sabia ter recebido de Deus uma missão
terrível e gloriosa: a de exercer uma ação em prol da
humanidade, usando para isso o gênio com que fora dotado e
tudo fez para dar cabal cumprimento ao divino mandato. Não
podia contentar-se com uma arte que fosse mera arte, mero
ornamento, mera fonte de prazer estético: sua obra havia de
voltar-se - e voltou-se - para a tentativa de deslindamento do
sentido da vida e do universo, não só porque tal mister se
157
reveste, em si mesmo, de grandiosa beleza, mas também e,
principalmente, porque isso iria - poderia - contribuir de alguma
maneira para o despertar mais vívido da consciência do homem.
(www.revista.agulha.nom.br/-2008)
Tinha a sua de ser uma arte útil; tinha de ser uma arte
bela, extremamente bela, cada vez mais bela. Um legado belo e
bom para o seu tempo, para a posteridade. Havia de dar conta
da missão; havia de dar conta da arte-missão, buscando
aperfeiçoá-la mais e mais em busca da expressão perfeita, de
uma expressão mais perfeita:
"E por isso o meu próprio conceito puramente
estético da arte subiu e dificultou-se: exijo
agora de mim muito mais perfeição e
elaboração cuidada. Devo à missão que me
sinto uma perfeição absoluta no realizado, uma
seriedade integral no escrito." (FP em OP.1986,
p. 54)
Sejam quais forem os poemas a serem analisados, neles
enfocaremos essencialmente aquilo que, de superior, de único,
de inigualável, abrigou a personalidade, o indivíduo Fernando
Antônio Nogueira Pessoa, ou seja, o seu eu-proteico-lírico,
aquele que se apresenta de muitas formas (multifacetado) e se
dedica a cantar as maravilhas não só de Portugal, mas do
Cosmos, debruçando-se perscrutadoramente sobre seus
insondáveis mistérios, para, libertando-se sublimemente das
mazelas das contingências da vida, alçar-se a planos cada vez
mais elevados, da expressão poética, num vôo altaneiro e
metafísico.
Para entendermos melhor esse enfoque é importante
relembrar que o próprio Fernando Pessoa diz que a chave para
entender a fundo e com (mais) verdade o que escreveu é ter-se
158
em mente que ele é um poeta dramático, ou seja, como tal,
sente o impacto das coisas dentro de si: comove-se, emociona-
se, empatiza-se. Como todo ser humano, ele experimenta, à sua
maneira, o reflexo-sentimento das coisas em sua alma, em seu
espírito.
E essa atitude está bem explícita em um trecho de uma
carta enviada a João Gaspar Simões, datada de 11 de dezembro
de 1931, em que o Poeta faz uma crítica à crítica psicanalítica
que, segundo ele, estaria fazendo uma análise ou abordagem
incoerente, talvez discrepante, em relação ao conteúdo e,
principalmente, em relação à sua forma de expressão poética.
Diz ele:
"Desde que o crítico fixe, porém, que sou
essencialmente poeta dramático, tem a chave
da minha personalidade, no que pode
interessar a ele, ou a qualquer pessoa que não
seja um psiquiatra, que, por hipótese, o crítico
não tem que ser. Munido desta chave, ele pode
abrir lentamente todas as fechaduras da minha
expressão. Sabe que, como poeta, sinto; que,
como poeta dramático, sinto despegando-me de
mim; que, como dramático (sem poeta),
transmudo automaticamente o que sinto para
uma expressão alheia ao que senti, construindo
na emoção uma pessoa inexistente que a
sentisse verdadeiramente, e por isso sentisse
em derivação, outras emoções que eu,
puramente eu, me esqueci de sentir." (FP em
OP,1986, p. 66)
Disto infere-se que, como poeta só, ele sente; como poeta
dramático, sente-se desapegando-se (desprendendo-se) de si
mesmo: como que sente sem sentir, fazendo-se testemunha
(im)parcial de si mesmo, de seus sentimentos, de suas
emoções. Faz-se, por assim dizer, ator de si mesmo,
representando, para si mesmo, num desdobramento singular de
159
sua personalidade, aquilo que, sentindo realmente, passa a
fingir que sente. Sentindo, é poeta; atuando, é dramático.
Solidariamente.
Como dramático (sem poeta), é como aquele que atua,
representando sentimentos e emoções que em verdade não são
suas e, isso, faz com que, num processo de despersonalização,
a mesma emoção passe a engendrar um novo foco virtual
personativo, que, sem existência carnal, passa a ter uma
maneira própria de ser, de sentir, diferente da do indivíduo em
que isso ocorre. É como se Fernando Pessoa se desdobrasse
dentro de si mesmo em diversas personalidades, cada uma com
uma maneira própria de ser e de sentir e com uma existência
própria, chegando até mesmo a ter sua própria biografia. É essa
faceta fundamental da sua obra que lhe imprime um caráter
altamente dramático e, dela, é que nascem os heterônimos,
constituindo-se, por sua vez, numa das mais importantes
facetas de sua arte poética. (www.revista.agulha.nom.br/-2008)
Podemos ler toda sua obra poética como se fôssemos os
espectadores de uma peça teatral em que atores-de-si-mesmos,
quase reais, passam-nos todas as espécies de emoções, numa
trama (implícita) altamente envolvente e patética. Ler Pessoa é
ter de enlevar-se, é ter de refletir nos profundos mistérios do
Cosmos. Ler Pessoa é ter de fruir, é ter de meditar. É ter de
maravilhar-se.
Para a criação dos heterônimos, Pessoa como que parte de
uma exortação legada pelo Senhor, para encetar o caminho da
escalada ou da auto-escalada, ou da escavação ou auto-
escavação. Embasa-se, para tanto, numa verdade, diríamos,
quase que incontestável, citando uma passagem do evangelho
de São Mateus (13:16) que diz: Mas bem-aventurados os
160
vossos olhos, porque vêem, e os vossos ouvidos, porque
ouvem e que pode ser confrontado com o seguintes versos de
Fernando Pessoa:
Deixo ao cego e ao surdo
A alma com fronteiras,
Naturalmente, o cego e o surdo aos quais Pessoa se refere,
não é no sentido biológico ou da deficiência física das pessoas,
porém, há uma conotação metafórica, ou seja, o cego e o surdo
são as pessoas que não querem ver nem ouvir qualquer coisa
que seja inerente aos aspectos culturais e existenciais; são as
pessoas que se acomodam na vida e para as quais, ele fez até
um poema intitulado Triste de quem é feliz
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Refere-se, portanto, a todos os homens, num mundo
limitado e relativo, que vivem tranquilamente o seu existir,
trivialmente cotidiano.
Pessoa, no entanto, quer sentir tudo e de todas as formas,
ter todas as experiências que a vida pode oferecer, não
admitindo, em hipótese alguma, uma postura de inércia e
passividade diante do mundo que o cerca:
Que eu quero sentir tudo
De todas as maneiras.
(FP em OP .1986, p. 407)
Assim é que se fragmenta em diversas pessoas para poder
assumir imparcialmente diversas perspectivas parciais, a fim de
poder ser o um e o todo, através das partes:
161
E como são estilhaços
Do ser as coisas, dispersas
Quebro a alma em pedaços
E em pessoas diversas.
(FP em OP.1986, p. 407)
A unidade e a identidade tornaram-se, com efeito, para
ele, já não uma casa habitável, mas uma prisão de que procura
evadir-se, escapando à obsessão do não-ser que o ameaça e
persegue:
Ser um é cadeia
Ser eu é não ser.
Viverei fugindo
Mas vivo a valer.
Ser vários, ser estrangeiro a si mesmo, exilado isso
significa para o poeta ser em potência infinitamente outro. O
ser nunca lhe é dado, no entanto, senão na finitude dos entes,
de que permanece prisioneiro:
Se quanto sinto é alheio
E de mim sou ausente
Como é que a alma veio
a acabar-se em ente?
Ele terá, pois, que acomodar-se à diversidade em que pôde
repartir-se - os poucos heterônimos a que teve de limitar-se
como poeta.
Para melhor entender o estilhaçamento do ser manifestado
em coisas, em itens de realidade, ele se fragmenta a si mesmo,
para, num processo de espelhamento, poder sentir, de uma
maneira vívida, o que isso pode significar. O que o ser fez para
criar, para existir-se, ele o faz para recriar, num movimento
interpretativo-lírico de alta dramaticidade e intensidade
cosmovisiva. (www.revista.agulha.nom.br/ - 2008)
162
Seabra afirma que, ao buscar uma definição de suas
criações literárias, como a sua tentação auto-interpretativa
frequentemente o solicitava, Pessoa divide-as em função de
uma dicotomia central: O que Fernando Pessoa escreve
pertence a duas categorias de obras, a que poderemos chamar
de ortônimas e heterônimas. (FERNANDO PESSOA OU O
POETODRAMA 1991, p. 9)
Seabra continua dizendo que, em função disso, temos de
tomar a pluralidade de visões que Pessoa nos oferece dos
heterônimos não como opiniões do autor enquanto (sic)
reduzido à sua identidade exterior à criação poética, mas como
elementos integrantes desta mesma criação: Algumas das
teorias que o autor presentemente tem, foram-lhe inspiradas
por uma ou outra dessas personalidades que, um momento,
uma hora, uns tempos, passaram consubstancialmente pela sua
própria personalidade, se é que esta existe. (FERNANDO
PESSOA OU O POETODRAMA, 1991, P. 11)
Fernando Pessoa, caminhando ainda mais, nessa tomada
de consciência da realidade, o Poeta, aprofundando suas
escavações ou auto-escavações, começa a perceber a
multiplicidade do eu, que se distribui em diversos planos da
realidade, deixando claras suas preocupações metafísicas, que
de certa forma, atormentam a alma do poeta, como nos versos
a seguir:
Serei eu, porque nada é impossível,
Vários trazidos de outros mundos, e
No mesmo ponto espacial sensível
Que sou eu, sendo eu por star aqui?
Serei eu, porque todo o pensamento
Podendo conceber, bem pode ser,
Um dilatado e múrmuro momento,
Dos tempos-seres de quem sou o viver?
(FPOP, 1986, P. 93)
163
Levado pela efervescência frenética da fantasia-
pensamento, que tudo pode conceber, queda assombrado das
possibilidades de ser e de existir do ser, começando a
vislumbrar o eu como mera projeção limitadíssima de uma
realidade assustadora e inconcebível. O homem é um e é vários.
E é ele, porque é ele que está aqui, que se sente como estando
aqui? Ou seria o homem - o seu eu - um dilatado e múrmuro
momento? Seria o eu uma manifestação do tempo, do eterno,
que, para cada um e todos, se fragmenta em tempos-seres,
de quem, no momento, ele é o viver? O homem, o eu do
homem, apresenta uma multiplicidade de manifestações
distribuídas pelos infinitos pontos de atualização de tempo-
espaço-ser. (www.revista.agulha.nom.br/ -2008)
Conforme preconiza Augusto Seabra, o mistério do ser
revela-se na poesia de Pessoa, antes de mais nada, como uma
perturbação de raiz existencial. Não há nela, no entanto,
verdadeiramente, uma diferenciação entre existir e ser, como se
nota nos versos abaixo: (FERNANDO PESSOA OU O
POETODRAMA.1991, P. 44).
Mais que a existência
É um mistério o existir, o ser, o haver
Um qualquer que não este, por ser este
Este é o problema que perturba mais.
O que é existir não nós ou o mundo
Mas existir em si.
A linguagem poética, ao incorporar os dois termos
filosóficos, fá-los na realidade sofrer uma metamorfose e sua
repetição alternada no poema é mesmo um meio de que o poeta
se serve para criar cumulativamente a suspensão de sentido
164
sobre a qual a interrogação ontológica se sustenta. (FERNANDO
PESSOA OU O POETODRAMA, 1991, P. 44).
Ainda, dentro dessa perspectiva de intermináveis
perscrutações metafísicas, sabemos que um dos grandes temas
que impressionou bastante a Fernando Pessoa foi o mistério do
mundo. O mundo, naquilo que ele tem para revelar, naquilo que
ele tem de oculto, naquilo que ele tem de aparentemente
inescrutável.
Por isso, o poeta se pergunta:
Quero fugir ao mistério.
Para onde fugirei?
Ele é a vida e a morte.
Ó Dor, aonde me irei?
(FPOP, 1986, p. 621)
O mistério, o sentido para além do sentido manifesto e
comumente estabelecido, atraía-o poderosamente, e a um
tempo poderosamente o repelia.. Queria o saber, temia o que
viria a ficar sabendo. Mas irresistível é a atração do abismo, e,
assim, a ele se entregou de corpo e alma, com toda sua
capacidade de pensar, de refletir, de meditar:
Mundo, confranges-me por existir.
Tenho-te horror porque te sinto ser.
E compreendo que te sinto ser
Até as fezes da compreensão.
Bebi a taça do pensamento
Até o fim; reconheci-a pois
Vazia e achei horror. Mas eu bebi-a.
(FPOP, 1986, p. 622)
O mundo provocava-lhe horror, porque sabia que, por trás
do existir, ele apresentava uma outra face mais permanente,
mais verdadeira, mais insubornável. Essa dimensão-essência,
essa dimensão-transcendência do mundo o apavorava, por não
165
lhe saber o sentido disso, as implicações disso, em relação a
ele, ao seu existir de ser humano. (www.revista.agulha.nom.br/ -
2008
De pouco lhe valeu, no entanto o ingente esforço do
pensar, mas a isso se dedicou pavidamente impávido, com
todas as forças do seu existir-ser em desencanto:
E neste orgulho certo
Fechado mais ainda e alheado
Me vou, do limitado e relativo
Mundo em que arrasto a cruz do meu pensar.
(FPOP, 1986, p. 622)
É o que lhe resta: arrastar a cruz do seu pensar, viver
esse suplício-fascínio de ter de pensar, de ter de transcender-se
a cada instante, a cada momento, em pós, ou seja, em busca de
um porto a que - sabe - nunca chegará. E, nessa obsessão
santa e maldita, vai-se afastando cada vez mais do mundo
limitado e relativo em que todos os outros homens vivem (mais)
tranqüilamente o seu existir trivialmente quotidiano.
Mas, em que pese tudo isso, ele pode chegar a algumas
conclusões parciais, limitadas, precariíssimas, como podemos
observar nos versos abaixo:
Eternos mundos infinitamente,
Uns dentro dos outros, sem cessar decorrem
Inúteis; Sóis, Deuses, Deus dos Deuses
Neles intercalados e perdidos
Nem a nós encontramos no infinito.
Tudo é sempre diverso, e sempre adiante
De [Deus] e Deuses: essa a luz incerta
Da suprema verdade.
(FPOP, 1986, p. 623)
Quando, pelo pensamento, adentramos o caminho da
transcendência, ela, por si mesma, se mostra infinita: o
166
transcender obriga a um novo transcender, que obriga a um
outro novo transcender, que já que o transcender não pode
negar a nada, nem a si mesmo, a tudo se impondo.
No entanto, na sua sede insaciável de desvendar o mistério
que paira sobre tudo o que há, sobre tudo o que é, Fernando
Pessoa chegou a uma posição altamente dilemática, em que
para cada investigação realizada, encontrou, não uma, mas
duas respostas opostas e excludentes uma em relação à outra.
Qual o destino do eu? A glória ou a aniquilação? É que a razão,
por discursiva, opera exatamente com dados da dualidade, que
se arboriza indefinidamente em mais e mais alternativas cada
vez mais sutis, cada vez mais requintadas, e, assim, não
consegue lhe dar uma resposta mais, ou menos, duradoura que
o pudesse confortar e, assim, o poeta vive momentos muitos de
profunda angústia metafísica. (www.revista.agulha.nom.br/ -2008).
A verdade, a busca pela verdade, ao invés de brindá-lo
com uma liberdade maior, prendeu-o, tornou-o seu escravo. A
verdade domina-o obsessivamente, já não pode parar. A
verdade, fá-lo sentir-se como um verdadeiro zumbi, em que a
vontade própria é esmagada, aniquilada. O peso da verdade,
que fica a brincar eternamente de frio-quente, faz com que
ele amaldiçoe tudo aquilo que o levou a esse labirinto sem fim:
Maldito, o dia em que pedi a ciência!
Mais maldito o que a deu porque me deste!
Diante das agruras metafísicas por que passa, só lhe resta
maldizer o dia, o momento, em que pediu a ciência, esse
instrumento aguçado que corta e recorta a realidade em
infinitos fragmentos: ora constrói, ora destrói.Ora vislumbra o
porto a que não quer chegar, ora vê-se em pleno mar, nau sem
167
rumo, sem porto a que possa chegar. O Poeta parece ter-se
dado conta de que o que ele pedira não foi sabedoria
(integradora) e sim a ciência (desintegradora). Antes ele
conhecia e não sabia e era feliz. Agora ele sabe e não pode
conhecer. (www.revista.agulha.nom.br/ - 2008).
Como aspira a voltar a ter a abençoada inconsciência, que
não o impelia ao saber, mas ao doce e solene fruir das coisas!
Que é feito dessa minha inconsciência
Que a consciência, como um traje veste?
Mas de que adianta esse momento de intensa nostalgia?
Hoje sei quase tudo e fiquei triste...
Por que me deste o que pedi, ó Santo?
Sei a verdade, enfim, do Ser que existe.
Agora ele sabe a verdade a respeito do ser que existe, ele
sabe tudo o que acontece, e virá a acontecer ao Ser no plano da
existência; agora ele sabe, ou julga saber, o que acontecerá a
ele, como um ser que é no plano da existência, que se estende
em infinitos degraus, partindo do mais denso para o mais
sutil... Ele sabe que terá de se sutilizar para avançar, e isso - a
verdade lho mostrou - significa perder-se, perder muito daquilo
que ele é no seu estar sendo. Eis aonde o levou o saber. E
conclui com profundo desalento:
Prouvera a Deus que eu não soubesse tanto!
O saber, essa preocupação sem tréguas com o saber,
imprime, em quase todos os momentos de sua vida, o selo do
desconforto, do ter de estar em quase contínua e constante
inquietação dalma.
168
Outro tema que incomodava bastante Fernando Pessoa, era
a questão sobre a morte para a qual inserida nas muitas
preocupações metafísicas do poeta devotava-lhe certo temor;
para isso, basta observarmos os versos a seguir:
Ah! o horror de morrer!
E encontrar o mistério frente a frente
Sem poder evitá-lo, sem poder...
(FPOP, 1986, p. 650)
O ter de morrer suscita nele um horror indizível, e o que
mais o aterroriza não é exatamente o ter de morrer, mas aquilo
que se oculta em densas trevas atrás disso. O não saber, o não
poder saber, é que, no fundo, o atormenta:
Pudesse eu Ter por certo que na morte
Me acabaria, me faria nada,
E eu avançara para a morte, pávido
Mas firme do seu nada.
(FPOP, 1986, p. 650)
Não é o fato de a morte poder representar a aniquilação
total que o apavora: é algo mais profundo, que tem a ver com a
dúvida, com o oscilar... E o que lhe seria mais doloroso? O
mergulhar no nada, ou o mergulhar no Ignoto? A primeira
alternativa aterroriza-o, sim, mas se pudesse ter certeza dela,
poderia assumir diante do inevitável se não uma atitude de
impassibilidade, pelo menos uma postura de firmeza, sem ter de
oscilar penosamente entre uma possibilidade e outra. A morte
para ele é como:
Um pavor corporado, um pavor frio
Como uma névoa, um pavor de todo eu
Subindo à tona intelectual de mim.
(FPOP, 1986, p. 651)
169
A tortura que sente, terrível, ele não na pode elidir; do Ser
que está por detrás do ser que ele se sente, e do qual deve
emanar o programa que faz com que ele se sinta como se
sente, desse Ser ele não pode desligar-se, para ter um arbítrio
básico mais seu; da vida que leva tão diferente das dos
demais - não pode se esquecer: a memória que nela existe
perpetua despoticamente aquilo que se sente, aquilo que não
queria se sentir. E o horror maior disso tudo é Não lhe poder
fugir. Não podê-lo esquecer. (FPOP, 1986, P. 653)
Repentinamente, parece ter encontrado uma forma de
repelir a própria morte, através de uma súplica a Deus:
Envolvei-me, fechai-me dentro em vós
E que eu não morra nunca.
(FPOP, 1986, p. 653)
Eis a última, alucinada, aspiração sua: ser envolvido por
um grande ser em sua misericórdia, para que ele, Fernando
Antônio Nogueira Pessoa, não morra nunca. E esse grito da
alma enlouquecida pelo pavor nos comove profundamente, mas
não nos esqueçamos dum dado fundamental: sua vida foi
dominada, acima de tudo, pelo oscilar, pelo ter de oscilar.
Embora, com freqüência, sejam citados os heterônimos,
queremos deixar claro que o nosso enfoque, no entanto, não
será a análise específica dos mesmos, mas, é importante
ressaltar que a heteronímia foi, sem dúvida, uma das formas
mais poderosas na construção poética de Fernando Pessoa.
Basta saber que os três grandes poetas dramáticos, se
propuseram a representar, diante dos olhos extasiados de nossa
mente, de nossa alma, de nossas emoções, o grave e grande
drama de suas existências tão ricas e tão fadadas a um fim. E
Pessoa dá a esse trio, explicitamente, o caráter de missão,
170
sentido de empreitada que visa a contribuir, dentro do possível,
para a redenção da consciência humana, imprimindo à obra dos
três um cunho místico, sagrado, religioso, metafísico. Por isso,
afirma:
Mantenho, é claro, o meu propósito de lançar
pseudonimamente a obra Caeiro-Reis-Campos.
Isso é toda uma literatura que eu criei e vivi,
que é sincera, porque é sentida, e que constitui
uma corrente com influência possível, benéfica
incontestavelmente, nas almas dos outros.
(FPO em P, 1986, p. 55)
Passa logo em seguida a explicar por que sua literatura é
sincera, dizendo que há, na obra dos três, uma profunda idéia
metafísica, que se preocupa visceralmente com a noção da
gravidade e do mistério da Vida. E conclui que, em cada um
desses três heterônimos, ele pôs um profundo conceito da vida,
divino em todos três, estando sempre atento seriamente a que
em todos eles o existir se apresentasse em toda sua gama de
mistério e importância:
Chamo insinceras às coisas feitas para fazer
pasmar, e às coisas, também repare nisto,
que é importante - que não contêm uma
fundamental idéia metafísica, isto é, por onde
não passa, ainda que como um vento, uma
noção da gravidade e do mistério da Vida. Por
isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de
Caeiro, Reis, Álvaro de Campos. Em qualquer
destes pus um profundo conceito da vida,
divino em todos três, mas em todos
gravemente atento à importância misteriosa de
existir. (FP em P. 1986, p. 55).
Analisados os pontos principais sobre o que Fernando
Pessoa concebia como a arte de fazer poesia, incluindo toda sua
171
heteronímia e dentro de um manifestar-se onto-cósmico e
existencialista, passemos à análise de alguns poemas que
refletem essa concepção do fazer poético.
Como ponto de partida, faremos a análise dos poemas
Autopsicografia e Isto conforme congregam sinteticamente as
peculiaridades da poética pessoana e denunciam as concepções
do próprio Fernando Pessoa acerca da criação poética, pois,
especialmente nesses poemas, ele nos dá uma lição de como
funciona o processo da criação literária, em que há uma
dialética ficção-realidade:
O eu lírico do poeta, quando escreve, deixa em
estado de suspensão o sentimento que o moveu
a fazê-lo e passa, paradoxalmente, a fingir no
papel a emoção que momentos antes era real,
ou seja, na concepção do eu poético, o
escrever é um ato da razão e da imaginação
que tenta recriar o que o coração
subjetivamente sente. (Fernando Pessoa)
E é exatamente nesse ponto que podemos iniciar a análise
do poema O poeta é um fingidor considerando que, quando o
nome do autor associa-se compulsivamente a um poema ou a
um verso reiterativos, sua popularidade está assegurada. Assim
aconteceu, por exemplo, com Carlos Drummond de Andrade com
o poema Pedra no caminho e com Manuel Bandeira com a
Pasárgada; é o caso, naturalmente, de Fernando Pessoa com a
primeira quadra de Autopsicografia:
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
172
Gilberto de M. Kujawskis, em seu livro Fernando Pessoa, o
outro (1979, p. 65) afirma que aqui estão os versos de Pessoa
que mais têm preocupado seus críticos ou eventuais
comentadores. Mencioná-los e propor a questão da sinceridade
criadora de Fernando Pessoa parece um lugar comum
obrigatório, certamente ao alcance do leitor menos perspicaz.
Só por isso, aqueles versos deveriam suscitar mais alguma
desconfiança. De início propõem uma questão de ordem
gramatical.
O poeta é um fingidor.
Ninguém ignora que este sufixo -or, presente em palavras
como motor, trabalhador, operador, cantor, designa ação
e não paixão. Pessoa não diz, por exemplo, o poeta é um
fingido, e sim o poeta é um fingidor. Chama-se fingidor
aquele que finge, e fingir significa inventar, fabular, fantasiar,
derivando do latim fingere, ou seja, fazer obra de barro, cera.
Fingidor é quem finge, isto é, quem inventa, fabula, fantasia;
não se confunde com fingido, aquele que se finge algo ou
alguém, o hipócrita, o impostor.
Kujawskis continua (1979, p. 67) dizendo que Pessoa,
servindo-se da ilusão, do engano, da mentira, do exagero, como
poeta reconstrói a realidade à sua maneira e, ao reconstruí-la,
torna-a inteligível. Ora, sua interpretação da realidade não é
nada mentirosa, mas absolutamente verdadeira, ensinando-nos
mais sobre as coisas, que as coisas mesmas. Por isso que o
poeta é um fingidor, mas um fingidor metódico, que emprega a
ação de fingir como método para apreender o que se passa na
vida, como caminho para penetrar seus segredos.
173
Ainda, na mesma obra, Gilberto analisa que as formas e
figuras da imaginação poética, os célebres fingimentos do
poeta, na medida em que reconstroem a vida, interpretando-a e
tornando-a inteligível, constituem órgãos de captação da
realidade. E todo homem é poeta e novelista à sua maneira
quando emprega a imaginação ao interpretar a realidade para
saber como proceder sob suas pressões. Também o homem é
um fingidor. E isto, melhor que ninguém sabia-o Antonio
Machado:
Se miente más que la cuenta
Por falta de fantasia
También la verdad se inventa.
De onde se conclui que só nos resta concordar com o autor
de Autopsicografia, embora com uma ressalva, ou seja, o poeta
mente sempre, a poesia é que não mente nunca e, da mentira
do poeta, cria-se uma percepção, uma sensação nova,
diferente, no leitor a dor que eles não têm, por exemplo, que
é a dor fictícia, aquela dor imaginária que se materializa na
linguagem poética.
Voltando para a análise do poema em questão, é
necessário transcrevê-lo para facilitar a identificação dos
versos:
Autopsicografia
O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
E os que lêem o que escreve
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm
174
E assim nas calhas da roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama o coração
O primeiro verso dá idéia de ficção, que significa ato ou
efeito de fingir. É o produto da invenção. Há a dor real do poeta
("a dor que deveras sente") e há a dor fictícia, inventada pela
linguagem poética.
Ninguém, em qualquer literatura, teve tão lúcida
consciência do problema do fingimento poético como Fernando
Pessoa". Ele sabia que a sinceridade psicológica não possui
valor no plano da criação poética", o que justifica a primeira
quadra de "Autopsicografia".
Quando Pessoa refere-se, no último verso dessa quadra, à
"dor que deveras sente", quer dizer que entende o fazer poético
como atitude que, se abrange os elementos existenciais,
também os transcende, pois "a dor fingida, a dor que figura no
poema, mesmo quando se prende a uma dor real, não se
identifica (necessariamente) com esta".
Os que leem (os leitores) o que o poeta escreve (o
poema), na dor lida sentem bem só a (dor) que eles (os
leitores) não têm. E a dor que eles não têm é a dor fictícia,
aquela dor imaginária que se materializa na linguagem poética e
que, segundo Pessoa, é uma espécie de máscara que esconde "a
dor que deveras sente", que, por sua vez, certamente, não
difere da dor dos leitores. Mas a criação poética é ato tão
fictício que os leitores só depreendem a dor lida e nela sentem
não as duas dores (real e fictícia) que ele (o poeta) teve, mas
só a que eles não têm. (www.tanto.com.br/ - 2008).
175
Talvez se torne mais fácil examinar a teoria pessoana,
exposta em três partes, analisando os versos de cada uma das
três estrofes do poema.
No 1º verso da primeira estrofe Pessoa expõe o seu
conceito fundamental da arte poética com uma proposição
apodítica: O poeta é um fingidor. Essa proposição é esclarecida,
nos três versos seguintes, tomando, por núcleo, a dor: (o
poeta) Finge tão completamente / Que chega a fingir que é
dor / A dor que deveras sente.
O que quis dizer? Que a poesia não se encontra na dor
sentida, mas no fingimento da dor. A dor sofrida, real, para
alcançar o plano da Arte, tem de ser uma dor fingida,
imaginada, pois só esta pode ser expressa em palavras. A
palavra é a única forma de objetivar, tornar concreta, a dor,
que, como tal, se mostra, aparece, para a visão dos outros,
para a audição dos outros, para a sensação dos outros.
(www.tanto.com.br/ - 2008).
Mas, para que isso aconteça, continua a análise no mesmo
site, é necessário o poeta partir de uma dor real: A dor que
deveras sente. A dor real, a dor verdadeira, entretanto, não é
poesia. A manifestação, escrita ou verbal, da dor que deveras
se sente pode ser expressa, por qualquer um, sem qualquer
valor poético. E por que esta verdadeira dor não é poesia, não
faz poesia? Porque, para haver poesia, para que o objeto
poético seja criado, é preciso que haja imaginação. A
imaginação apossa-se do real, sublima-o para, em seguida,
transformá-lo em objeto, expressando-o em palavras e, assim,
ser devolvido, mostrado, de maneira concreta, como objeto de
arte.
176
Daí que, para que a dor se concretize no poema, deve,
antes, percorrer, no poeta, um caminho: o poeta lembra-se de
uma dor sentida e a traz para a sua imaginação pungentemente,
até mais que no real passado. Então cola sobre o objeto poema
(elaborado com palavras) algo real: A dor que deveras sente,
na sua irrealidade de dor fingida: Chega a fingir que é dor.
Então, manifesta-se o sentimento artístico, nesse percurso
circular do imaginário para o real e do real para o imaginário,
em permanente movimento de fruição.
Na 2ª estrofe, o poeta toma em conta o leitor; o
comunicador imagina o sentimento que deve sentir o receptor,
destinatário de sua mensagem: aquele que irá ler o poema. Este
não pode ter sentido a dor do poeta e, menos, a dor que
perpassou pela imaginação do poeta ao elaborar o poema, nem
sequer a dor que eles (todos os leitores) têm, mas Só a que
eles não têm. O leitor sente uma quarta dor que, fugindo do
poema, abrigar-se-á na mente de cada leitor de forma pessoal,
particularizada, conforme o grau de sensibilidade de cada um,
de seu íntimo, de seu ânimo, ou seja, a dor lida (a que passa
para o intelecto do leitor e nele se insere, para ser
interpretada, e ressurgir como outra), que despertará como
objeto de prazer, pois passa a ser um sentimento estético.
(www.tanto.com.br/ - 2008).
A poesia não está no texto escrito e/ou impresso. Está na
íntima comunicação do vivido e sentido pelo poeta com o leitor,
quando este reconhece as significações que lhe foram enviadas
por aquele, no jogo que entre si fazem. Ambos, poeta e leitor,
devem ser criadores. A força mágica do poema se desprende do
texto ao despertar no leitor a ressonância do escrito e o leva
177
para uma viagem de encantamento, onde se fundem memória e
imaginação.
A forma de pensar o fazer poético de Fernando Pessoa não é comum e
está marcado, em todo o seu trajeto, por dificuldades. O poema nasce no
mundo da imaginação sob o vigilante olhar crítico e racional do poeta. No
intercâmbio permanente entre uma e outra, em constante movimento
circular segredo que almas geniais possuem -, está a faculdade de
produzir o belo poético. Mas, como se disse antes, o concurso do leitor é
imprescindível. (http://mais.uol.com.br- 10/2008).
Na parte terceira (3ª estrofe do poema), Pessoa apresenta
o resultado das relações expostas nas proposições anteriores e
conclui a primeira parte de sua Arte Poética, escrevendo: o
coração (símbolo da sensibilidade) é um comboio de corda que
gira nas calhas de roda para entreter a razão, privilegiando,
assim, em certa medida, a poesia como entretenimento, como
gozo estético, tão lúdico para o poeta como para quem lê, ao
assinalar o lugar onde se processa a criação artística: coração
(nele brotam as sensações) e razão (nela nasce a imaginação
que inventa, ludibria, engana, fazendo o jogo um tanto lúdico
da ficção = fingimento). (www.tanto.com.br/ - 2008).
Pessoa, enfim, solda o círculo (roda), sem cessar o
movimento (comboio de corda), sem se perder (está nas calhas
de roda) e sempre a renovar-se (gira), na constante ficção de
interlúdio (a entreter), tanto intelectualmente (razão), quanto
sentimentalmente (coração). Com isso, o poeta se torna um
artista-artífice: cria o poema e depura-o, modela-o, burila-o,
retirando dele toda ganga impura. Aqui observamos uma
estreita relação com o poema Catar feijão de João Cabral de
Melo Neto, no qual, poeticamente, catar feijão seria catar
178
palavras, separando-as das palhas, oco e eco (sujeira =
ganga impura).
Outro poema que reflete de forma profunda e abrangente a
questão do fazer poético é Isto em que o poeta responde às
acusações de insinceridade que recebe da tradição literária
confidencialista que se consolidou nas letras européias a partir
do século XIX com o advento do Romantismo.
Por isso, Isto surge, quem sabe, para esclarecer
Autopsicografia e a incompreensão com a qual se defrontava no
mundo em que vivia e que não sabia que ele, Pessoa, não se
identificava como Pessoa-ele-mesmo, precisando transformar-se
em Pessoa-ele-mesmo-um-outro para realizar-se.
Neste poema ele esclarece essa sua desconformidade com
os que estão a seu lado e são incapazes de entendê-lo e põe a
limpo o seu pensamento sobre a verdadeira Arte Poética:
Isto
Dizem que finjo ou minto
Tudo o que escrevo. Não.
Eu simplesmente sinto
Com a imaginação.
Não uso o coração.
Tudo o que sonho ou passo,
O que me falha ou finda,
É como que um terraço
Sobre outra coisa ainda.
Essa coisa é que é linda.
Por isso escrevo em meio
Do que não está ao pé,
Livre do meu enleio,
Sério do que não é.
Sentir? Sinta quem lê!
Assim, o poeta é um fingidor que não finge. É um
enganador que não mente. É um coração que não sente
179
o vulgar das aparências. O poeta sente o que se passa no
mundo da inteligência, da imaginação: no mundo das essências.
E é isto, isto é, Essa coisa é que é linda, porque tudo o que
sonha ou passa, o que falha ou finda, É como que um terraço.
Como que, um limite, mas, para ele, um limite-ilimitado, porque
não usa o coração. Nesse espaço finito/infinito as coisas são
transfiguradas pela imaginação, ultrapassando as contingências
da vida, deixando o que está ao pé, isto é, no chão, nas
aparências, para elevar-se e chegar à inteligência, onde se
elabora a poesia. Aí, no mundo intelectual, livre de enleio, sério
do que não é o poeta cria. (www.tanto.com.br/ - 2008).
As idéias expressas na primeira quadra de Autopsicografia
tornam-se recorrentes nos três últimos versos da primeira
estrofe de "Isto". O que há de mais belo neste poema é a
comparação entre o terraço e o produto da experiência
existencial do poeta: "Tudo o que sonho ou passo / O que me
falha ou finda...". Os elementos existenciais são como um
terraço sobre outra coisa linda que é a poesia do poema, que o
poeta escreve com a liberdade que assiste a ele de criar sem
sentir, facultando aos leitores a liberdade de sentirem o que
lhes for permitido na depreensão do poema. (www.tanto.com.br/ -
2008).
Na abrangente e complexa temática pessoana e, após a
análise de poemas que refletem o fazer poético na sua essência,
analisaremos, por último, considerando que Pessoa jamais
conseguiu fugir das questões existenciais, o poema O Andaime
que representa metaforicamente, o entardecer da vida do
poeta, das conclusões a que ele chegou em relação a tudo que
escreveu na vida.
180
Na verdade, o poema O Andaime é como se fosse um
exame de consciência de Fernando Pessoa, ao ver aproximar-
se o fim da vida. O Andaime é, na prática, a composição
(soma) de tudo o que ele buscou na vida, porém, chega ao final
dela com uma triste constatação: o andaime também era falso e
em nada contribuiu para a construção da vida do poeta, ou seja,
na realização de seus objetivos, pois tudo não passou de um
sonho.
Esclarecemos que a análise parcial desse poema, já tinha
sido feita e publicada no livro Travessias Atlânticas: Literatura
nos países de Língua Portuguesa USP- SP- 2007, p. 133-
143), organizado pela profa. Dra. Benilde Justo Caniato. O teor
é praticamente o mesmo, tendo em vista que o artigo referente
à análise já fazia parte deste trabalho.
Antes, no entanto, a título de ilustração, transcrevemos
uma passagem do de Santo Agostinho, a qual parece encaixar-
se, perfeitamente, na angustiante temática pessoana:
Para qualquer parte que se volte a alma
humana, é à dor que se agarra, se não se fixa
em Vós, ainda mesmo que se agarre às belezas
existentes fora de Vós e de si mesma. Estas
nada teriam de belo se não proviessem de Vós.
Nascem e morrem. Nascendo, começam a
existir; crescem para se aperfeiçoarem; e,
quando perfeitas, envelhecem e morrem. Por
isso, os seres, quando nascem e se esforçam
por existir, quanto mais depressa crescem para
existir tanto mais se apressam a não existir.
(SANTO AGOSTINHO. CONFISSÕES. 1989).
Infere-se dessa parte trágica e genial que os seres correm
velozmente para seu termo: O que nasceu é preciso que ceda o
lugar ao que há de nascer. E toda esta ordem de seres
181
transeuntes decorre à maneira dum rio. (Santo Agostinho,
Comentários ao Sl 65,11).
O Andaime
O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!
Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anônimo e frio,
A vida vivida em vão.
A ´sp'rança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha sp'rança
Rola mais que o meu desejo.
Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.
Gastei tudo que não tinha
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.
Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!
Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente, deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.
Som morto das águas mansas
182
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças,
Mas as mortas esperanças
Mortas, porque hão de morrer.
Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser muro
Do meu deserto jardim.
Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.
(PRESENÇA, Nº 31-32, JUNHO DE 1931)
A inquietação, a necessidade de compreender todas as
coisas, a busca constante de consciência, que inclui saber ser
ela uma impossibilidade, constituem algumas das características
fundamentais de sua obra, reveladas de forma profunda neste
poema, especialmente nos aspectos inerentes à dualidade vida/
morte.
Ser angustiado e insatisfeito, sempre em busca de um
Além que talvez se encontre em vidas passadas e futuras,
intrigado pela idéia de mistério e de morte, consciente até ao
absurdo, corroído pelo vício de pensar, incapaz de realizar-se
humanamente, já que a felicidade existe, sim, mas está sempre
onde ele não está. Poeta habitado pela náusea da vida e pelo
tédio que é até só de ter tédio, contíguo à inércia,
empurrando para depois de amanhã a realização dos planos que
fará para amanhã adiando, pois, a vida, tentando escapar à
angústia existencial pelo mergulho no sonho, pela volta à
infância, pela negação de tudo que o aflige profundamente,
Fernando Pessoa o poeta Fernando Pessoa revela-se triste e
só.
183
O andaime é uma armação de madeira ou ferro de que se
servem os pedreiros para construir um edifício. por que o
andaime nessa composição? Há sempre na poesia de pessoa
um trilho para as alturas, uma temática de levitação para além
de tudo (ANTÓNIO QUADROS, 1987, p. 62).
O andaime é um meio de fazer erguer, para elevar às
alturas, as paredes de uma casa que, na simbologia geral, é o
centro do mundo e significa o ser interior, o refúgio íntimo de
cada homem.
Nessa composição, o poeta sente-se vazio, pois a casa não
chegou a ser edificada. O seu interior, a sua alma, é um vácuo
enorme rodeado por um andaime inútil. A esse respeito, Gerd A.
Bornheim, em Introdução ao filosofar (1998, p. 24), classifica
essa atitude como um sentimento de insatisfação moral, porque
se, em seu comportamento usual, encontramos o homem
absorvido no mundo que o cerca, a filosofia se impõe como
tarefa a partir do momento em que esse homem quotidiano cai
em si e pergunta pelo sentido de sua própria existência. O
mundo exterior é abandonado em conseqüência de um sentido
de insatisfação, levando o homem a tomar consciência de sua
própria miséria.
No entanto, se partirmos do ponto básico da doutrina
budista, tendo como referência o sutra de que tudo o que
surge necessariamente muda, por isso, se o homem admitir
isso como verdade, sua mente não pode, sob pena de perder
sua liberdade, fixar-se no passado, presente ou futuro. Eles não
existem. E, por isso, como pode a mente apegar-se a algo que
não existe? A não ser que se deixe envolver pela ilusão e aí se
afastar do caminho apontado por Siddharta (Buda). Se tudo
está em rápida e constante mudança, nada permanece, tudo é
184
vazio. Portanto, para se livrar do sofrimento, é preciso
compreender a impermanência (mutabilidade) e o vazio, ou
melhor, compreender que não existe essência duradoura nem
individualidade dentro de nós. (Informação pessoal).
Disso, infere-se que, se o homem realmente entender que
as coisas que o cercam, bem como, ele mesmo, têm caráter
puramente mutável e que, portanto, só existe o presente; tanto
a ilusão, a incerteza, a problematicidade, o risco, a decisão e o
impulso adiante, como também, a angústia existencialista
desapareceriam da mente humana, pois, com isso, o homem
erradicaria, de seu íntimo, todo o sofrimento causa única de
toda insatisfação provinda do fato de o homem ignorar a
impermanência das coisas -, gerando, assim, o equilíbrio
interior, sinônimo de realização e felicidade. Com efeito,
Fernando Pessoa esteve extremamente longe de atingir esse
equilíbrio.
Voltando à análise do poema, temos que o rio, como
escoamento das águas, é símbolo de fertilidade, de morte e de
renovação. A corrente é a vida; a água descendo para o oceano
e o ajuntamento das águas, o retorno à indiferenciação.
O cepticismo pela vida real transforma-se, no poema "O
Andaime", num cepticismo pela vida de sonho. O poeta encara o
passado como um sonho vão. Nada do que sonhara se realizou,
a sua vida foi uma inteira desilusão. O estado natural do poeta
era o sonho. Como a realidade era dolorosa, efêmera, rotineira,
refugiava-se na fantasia. O alívio, diz João Mendes, procurava-o
«no sonho, não só como evasão da vida angustiada e sem
solução; mas porque de fato o sonho se torna mais verdadeiro
que a realidade concreta» (JOÃO MENDES, 1983, p. 287).
185
Porém, em "O Andaime", o poeta descobre que também o
sonho é enganador e absurdo. A vida e o sonho, são ambos
sonhos. Nada é útil para resolver o conflito interior. Resta a
morte, o «olvido». A futilidade da vida consciente e o absurdo
do inconsciente obrigam o poeta a preferir o seio do mar.
O mar é símbolo da dinâmica da vida. Tudo sai do mar e a
ele regressa. Aí se nasce, aí se morre. Por isso, o poeta pede às
ondas que o levem para o olvido do mar, numa explícita
declaração de desistência da vida, decorrente das desilusões
pelas quais passou. (http://www.ipn
. 2008).
As ondas indicam uma ruptura com a vida habitual. O
poeta descreve-as tão leves que nem são ondas sequer. O
corte entre o passado e a tomada de consciência do presente é
radical. Todo o seu passado foi um grande erro, um engano
colossal. As ondas, o rio que corre, são o caminho de Caronte a
transportar a alma do poeta para o mar alto, o túmulo do
olvido. O rio não é o objetivo (o fim), mas o meio para
alcançar a paz plena do mar e do indefinido.
As recordações afluem-lhe à memória com a correnteza
fluvial. Mas essa correnteza leva, juntamente com as
esperanças, os sonhos irrealizáveis. O poeta está de mãos
vazias perante o rio que corre. Ressalta um sentimento de
fatalidade angustiante, «de fracasso metafísico, de queda de um
sonho anterior» (ANTÓNIO QUADROS, 1987, p. 56). As
esperanças estão mortas porque já não acredita nelas; mas
hão-de morrer porque ainda não as esqueceu. O poeta sente-se
um morto, como cadáver que deu à margem do rio.
À meditação de Fernando Pessoa, aceitando passivamente
a morte e, portanto, de certa forma, negando-se a viver,
186
podemos inserir o conceito de existência, segundo Heidegger,
como um poder-ser e, conseqüentemente, é incerteza,
problematicidade, risco, decisão, impulso adiante.
Assim como em O andaime, Pessoa nos dá o reverso, o
negativo das próprias sensações no poema Tabacaria que
pode ser considerado um dos mais significativos deste ciclo,
pois nele assistimos a uma nadificação épica de tudo. Após ter
experimentado toda espécie de filosofias, de sistemas, o poeta
descobre o seu fracasso, que não é mais que sua incapacidade
de ser:
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant
escreveu
Mas sou e, talvez serei sempre, o da mansarda.
Ainda que não more nela
Serei sempre o que não nasceu para isso.
Serei sempre só o que tinha qualidades:
..............................................................
Crer em mim? Não, nem em nada.
Segundo o conceito heideggeriano, o que se encontra na
base desse poder-ser é a dejeção, ou seja, a queda do homem
no plano das coisas do mundo. Entretanto, existe a voz da
consciência, que chama à existência, quando então nos
colocamos, no plano ontológico ou existencial, procurando o
sentido do ser dos entes, isto é o sentido de seu existir. A voz
da consciência pega o homem envolvido pelos cuidados e o
repõe diante de si mesmo, remetendo-o à questão do que ele é
no mais profundo do seu ser e que não pode ocultar: um ser
que vive para a morte.
Conforme Carlos Felipe Moisés, em seu livro Roteiro de
leitura- Mensagem, (1996, p. 90), lembra-nos que o medo da
morte é uma verdade universal, todos temos medo de morrer.
187
Talvez por isso é que, na nossa tradição cultural-religiosa, a
morte seja um tabu. Evitamos pensar no assunto na
expectativa de, com isso, protelar ao máximo o evento fatal,
como se pudéssemos viver para sempre... Mas Mensagem nos
chama a atenção para algo ainda mais grave: a possibilidade de
já estarmos mortos, a possibilidade de nos tornarmos mortos-
vivos caso não tenhamos a coragem, a determinação e o
desprendimento de seguir no encalço de nossos ideais mais
elevados.
Será que vale a pena?
Tudo vale a pena/Se a alma não é pequena,
ou seja, se não for acomodada, sem ideais.
Fernando Pessoa, no poema Triste de quem é feliz, nos
traz uma concepção um pouco diferente em relação à morte.
Para esclarecer esse paradoxo explícito no título do poema, é só
lembrar aquela verdade-ponto-de-partida: o homem é um ser
imperfeito. O que Pessoa quer dizer é: triste de quem se
acomodar, de quem se sentir feliz e satisfeito consigo mesmo e
não lutar para superar suas imperfeições. Para o poeta, a
vontade de superação é que distingue o herói do homem
comum. Melhor, é que distingue o homem verdadeiro do
simulacro de homem.
Para Fernando Pessoa não há meio-termo, ou bem o
homem se acomoda, feliz da vida, satisfeito com o que tenha
conseguido realizar, por pouco que seja, e abdica de toda
aspiração a ir mais além; ou bem se insurge contra suas
limitações, recusa-se a aceitar as amostras de felicidade ao seu
alcance e insiste em perseguir obstinadamente a realização
plena, ainda que inalcançável.
188
A primeira opção, já o sabemos, é impiedosamente
condenada pelo poeta, basta vermos o poema:
Triste de quem é feliz:
Triste de quem vive em casa,
Contente com o seu lar,
Sem que um sonho, no erguer de asa,
Faça até mais rubra a brasa
Da lareira a abandonar!
Triste de quem é feliz!
Vive porque a vida dura.
Nada na alma lhe diz
Mais que a lição da raiz-
Ter por vida a sepultura.
Eras sobre eras se somem
No tempo que em eras vem.
Ser descontente é ser homem.
Que as forças cegas se domem
Pela visão que a alma tem!
Aí aparece uma das idéias-chave do livro Mensagem, a
idéia da morte em vida que, para Pessoa, acompanha a
existência esvaziada de sonhos ambiciosos, a existência
satisfeita e feliz com suas limitações. Viver assim, é o mesmo
que ter por vida a sepultura. O contrário disso é a
insatisfação, o descontentamento e o texto afirma isso com
clareza: Triste de quem é feliz.
A propósito, enquadram-se aqui, as duas posturas básicas
do ser humano em relação à sua experiência negativa, conforme
Gerd A. Bornheim, Introdução ao filosofar (1998, p. 81). Numa,
o indivíduo se entrega a um comportamento passivo, limitando-
se a assistir ao que lhe acontece. Esta passividade, por sua
vez, pode dar-se em um plano intelectual ou em um plano
existencial. Na outra postura, o indivíduo acede a um
comportamento ativo, fazendo da negação o objeto de sua
conquista. Aqui, também, essa conquista pode processar-se
189
dentro de uma modalidade tanto intelectual como existencial. A
experiência negativa apresenta-se como passividade intelectual
na consciência da própria ignorância.
A experiência negativa pode dar-se num comportamento de
passividade existencial, na qual o sentido da realidade se esvai
como que a despeito do homem, independentemente de seu
querer: ele sofre a perda do mundo. Verifica-se uma espécie de
passio, na qual o indivíduo se torna apático e até mesmo
abúlico (quase sem vontade nenhuma) com uma intensidade
maior ou menor. Todo o comportamento do homem tende a
perder a sua razão de ser, e a sua atividade torna-se absurda
na medida em que a realidade perde sentido. (GERD
A.BORNHEIM, 1998, p. 87).
À guisa de conclusão da análise desse poema, poderíamos
afirmar que, se todo ser humano acreditasse que na vida tudo é
passageiro e impermanente, ou seja, está em constante
mutação e nada sobrevive eternamente, com certeza, o
sofrimento, o medo, a angústia e o incerto pareceriam mais
amenos e menos conflitantes no cotidiano do homem.
Essa certeza baseia-se no fato de que a impermanência
dos fenômenos faz toda a existência vazia, uma vez que, se
eles se alteram, mudam a existência de um ser. Ignorar a
impermanência também traz sofrimento. Como explicar para as
pessoas que não existe nada que tenha sido criado e que já não
esteja em vias de desaparecer? Seguindo esse raciocínio,
quando uma pessoa nasce já começa a morrer. Ela contém
dentro de si o princípio de sua própria destruição. Nada pode
mudar isso. Não há como fugir da morte, uma vez que também
estamos em constante transformação e que em um dia somos
diferentes do que fomos no outro.
190
Pra arrematar melancolicamente tudo o que foi dito e
analisado neste poema, citamos uma estrofe que consolida as
frustrações do poeta, seu fracasso, sua incapacidade de ser que
o levam a não acreditar em nada, nem nele próprio, pois ele
não é nada:
A criança que fui chora na estrada.
Deixei-a aí quando vim ser quem sou;
Mas hoje, vendo que o que sou é nada,
Quero ir buscar quem fui onde ficou.
191
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O enfoque inicial deste trabalho de literatura comparada
versava, na realidade, sobre a religiosidade e o existencialismo
na obra de João Cabral de Melo Neto e de Fernando Pessoa.
Em 06 de março de 2007, foi feito o Exame Geral de
Qualificação e o trabalho continha aproximadamente 100 (cem)
páginas. Embora tenha sido aprovado pela banca, a mesma
entendeu que o tema era demasiado abrangente e que,
facilmente, poderia haver dispersões do ponto de vista da
seqüência, concisão e congruência dos pensamentos, fatos,
idéias e argumentos que compusessem a totalidade deste
trabalho.
Como orientação, a banca examinadora sugeriu que fosse
mudado o título e seu respectivo enfoque para o fazer poético
na obra dos poetas citados. De fato, feito assim, o título passou
a ser O fazer poético na obra de João Cabral de Melo Neto e de
Fernando Pessoa.
Isso, entrementes, provocou uma mudança quase total na
estratégia composicional deste trabalho, desde a exclusão de
boa parte do que já fora escrito, bem como a substituição da
maioria dos livros que, até então, compunham a base
bibliográfica da pesquisa.
192
Em outras palavras, praticamente recomeçamos o trabalho
a partir da redefinição de uma nova bibliografia e de uma nova
estratégia redacional, ou seja, do trabalho inicial (da
Qualificação) ao trabalho final, mantivemos, apenas, duas
partes na elaboração do mesmo: uma, referente à história e à
função da literatura comparada no intercâmbio cultural das
nações, pois, o estudo e a abrangência da mesma deixou de ser
apenas privilégio de algumas universidades de vanguarda e
entrou, em toda parte, nos costumes acadêmicos.
Como vimos, a literatura comparada não é uma técnica
aplicada a um domínio restrito e preciso e, sendo ampla e
variada, reflete um estado de espírito feito de curiosidade, de
gosto pela síntese, de abertura a todo fenômeno literário,
quaisquer que sejam seu tempo e lugar, diversificando-se,
portanto, de acordo e em todos os territórios.
Achamos importante a inserção desse capítulo sobre
literatura comparada, tendo em vista nossa pesquisa embasar-
se em dois poetas de países diferentes e que, na medida do
possível e do plausível, tentamos estabelecer as diferenças e as
semelhanças entre a produção poética de João Cabral e de
Fernando Pessoa.
A outra é referente à metáfora, como recurso estilístico-
semântico-argumentativo, na identificação e análise da mesma
em poesias dos dois poetas. Podemos dizer que a linguagem
figurada, especialmente a metáfora, é um recurso facilitador ou
promotor de nossa criatividade lingüística. Serve, assim, para
dar novo tom ao nosso pensamento, dando-lhe mais vigor,
trazendo mais colorido e graça à nossa comunicação e
expressão.
193
É indispensável notar-se a estreita ligação e coerente
manifestação desse extraordinário recurso estilístico no
processo comunicativo explícito ou implícito nos poemas de
João Cabral de Melo Neto e de Fernando Pessoa. Certamente, o
uso da metáfora contribuiu de forma incisiva na projeção dos
aspectos filosóficos, religiosos e os inerentes ao próprio fazer
poético como concepção artística dos dois poetas.
Percebemos essa importância, a título de ilustração, no
exemplo a seguir, em João Cabral:
Aqui o mar é uma montanha
Regular, redonda e azul
Mais alta que os arrecifes
E os mangues rasos do sul.
Para a compreensão dessa estrofe, exige-se um esforço de
associação bem maior por parte do leitor, principalmente,
quando este pertence a outro contexto social, sem a vivência do
poeta, o que pode fazer com que a relação entre ambos não se
estabeleça.
Para tanto, deve ser considerada, aqui, a questão das
formações discursivas dos interlocutores, ou seja, se o leitor
não conhece a realidade do nordeste, da seca e outras
provocações cíclicas da natureza, dessa região, dificilmente,
entenderá que o mar a que ele se refere como uma montanha
regular, redonda e azul, nada mais é do que, metaforicamente,
o céu infinitamente azul, total e continuamente desprovido de
quaisquer nuvens que pudessem trair a esperança do retirante
no sentido da possibilidade de chuva.
O, ainda, em Fernando Pessoa:
só no palco era rainha
despiu-se e o reino acabou.
194
A ilusão (rainha=metáfora) mantinha o poeta, numa visão
irreal, impossível, sobre o palco da vida. Despiu-se
, ou seja, o
poeta caiu no mundo real e, então, percebe o engano: tudo não
passou de uma enorme e inexplicável ilusão.
Em relação à origem e evolução histórica do fazer poético
(Capítulo -2 item 2.4), entendemos necessária a inserção
desse subcapítulo, pois, consideramos que a preocupação em
relação à verdadeira arte poética, não está apenas restrita à
produção literária de João Cabral e de Fernando Pessoa, mas
trata-se de uma questão milenar.
Isso significa que, desde a antiguidade clássica (gregos e
romanos) e até mesmo em povos que os precederam, havia já a
preocupação com a verdadeira forma de se fazer poesia.
É, no entanto, com Platão e Aristóteles que essa análise
começa a tomar forma e consistência, no tratado sobre poesia,
muito embora, entre ambos, existissem conceitos e idéias que
se contrapunham como, por exemplo, em A Arte Poética de
Aristóteles, basicamente, ele desenvolve um conceito de poesia
como imitação de ações, enquanto Platão, em A República,
entendia que poesia era narração e não imitação.
Na sequência histórica, nasce na Itália, Horácio cuja obra
poética Odes, exerceu forte influência sobre autores
renascentistas e classicistas, dada sua impecável perfeição
formal e conteúdo ético.
Para Horácio, o poeta tem de ser perfeito porque, de outra
sorte, tornar-se-ia intolerável e desprezível. Em poesia,
portanto, não podia haver meio termo, por isso, era importante
que o poeta revisse e aperfeiçoasse seus textos de forma
incansável, à procura da expressão mais sublime. Enfim,
195
Horácio entendia que a perfeição estético-literária só seria
alcançada mediante o limae labor et mora.
Não há como não citar, novamente, o que João Cabral
disse a esse respeito que traduz exatamente esse conceito de
Horácio, ou seja, que o texto poético tem de ser trabalhado,
lapidado, construído com paciência, com demora:
Para mim, a poesia é uma construção, como
uma casa. A poesia é uma composição. Quando
digo composição, quero dizer uma coisa
construída, planejada de fora para dentro. Eu
só entendo o poético neste (sic) sentido. Vou
fazer uma poesia de tal extensão, com tais e
tais elementos, coisa que eu vou colocando
como se fossem tijolos. É por isso que eu posso
gastar anos e anos fazendo um poema: porque
existe planejamento.
Por último, algumas considerações serão feitas em relação
ao capítulo 3, ou mais especificamente, as atinentes à análise
de alguns poemas de João Cabral e Fernando Pessoa, à medida
que refletem aspectos concretos sobre a arte poética.
É importante destacar-se que a preocupação de ambos na
procedência para um fazer poético, reflete quase que, na sua
totalidade, a mesma concepção tida por Horácio, como já vimos,
ou seja, o texto literário-poético deve ser trabalhado, lapidado,
revisto, refeito não importa quanto demora fazendo com
que, nele, predominem sempre a razão e a imaginação e nunca
os sentimentos que geram a teoria da inspiração adotada pelos
poetas que fazem poesia sem se preocuparem com o fazer
poético.
Assim como em Horácio, cuja arte poética era provida de
impecável perfeição formal e conteúdo ético, a poética cabralina
caminha em companhia da visão ética que ele constrói,sendo
196
que os próprios objetos carregam uma ética e uma poética. A
pedra, por exemplo, traz como princípios morais a resistência, a
solidez e a permanência. No poema Uma faca só lâmina,
predomina a imagem da faca que seria uma outra forma de
atuação dos valores da pedra.
Por isso, ele despreza a intuição, o mistério e as
revelações inconscientes como propulsores do fazer literário,
oferecendo em troca uma poética em que tudo é medido,
calculado, trabalhado, em um meticuloso processo de
construção.
Na mesma linha da concepção poética horaciana e
cabralina, temos a pessoana que, partindo do poema
Autopsicografia, Pessoa nos dá uma lição de como funciona o
processo de criação poético-literária, aliás, muito bem definido
por ele, no trecho a seguir:
O eu lírico do poeta, quando escreve, deixa em
estado de suspensão o sentimento que o moveu
a fazê-lo e passa, paradoxalmente, a fingir no
papel a emoção que momentos antes era real,
ou seja, na concepção do eu poético, o
escrever é um ato da razão e da imaginação
que tenta recriar o que o coração
subjetivamente sente. (Fernando Pessoa)
Para Pessoa, o poeta é um fingidor (não um fingido,
hipócrita, impostor), mas aquele que inventa, fabula, fantasia.
Quando afirma que o poeta chega a fingir que é dor/ a dor que
deveras sente, na verdade, ele entende o fazer poético como
atitude que, se abrange, também transcende os elementos
existenciais (a dor real), pois a dor fingida, imaginada que é a
que figura no poema, necessariamente não se identifica com
aquela.
197
E, nesse fingimento, no exercício da imaginação, Pessoa
criou a heteronímia que foi, sem dúvida, uma de suas formas
mais poderosas na construção poética. Basta saber que os três
grandes poetas dramáticos, se propuseram a representar,
diante dos olhos extasiados de nossa mente, de nossa alma, de
nossas emoções, o grave e grande drama de suas existências
tão ricas e tão fadadas a um fim. E Pessoa dá a esse trio,
explicitamente, o caráter de missão, sentido de empreitada que
visa a contribuir, dentro do possível, para a redenção da
consciência humana, imprimindo à obra dos três um cunho
místico, sagrado, religioso, metafísico.
198
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