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PONTÍFICIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE TEOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM TEOLOGIA
MESTRADO EM TEOLOGIA
SALETE VERONICA DAL MAGO
LUGARES TEOLÓGICOS DA
REVELAÇÃO DIVINA NO PENSAMENTO
DE ANDRÉS TORRES QUEIRUGA
Prof. Dr. Luiz Carlos Susin
Orientador
Porto Alegre
2009
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SALETE VERONICA DAL MAGO
LUGARES TEOLÓGICOS DA REVELAÇÃO DIVINA
NO PENSAMENTO DE ANDRÉS TORRES QUEIRUGA
Dissertação apresentada à Faculdade de
Teologia, da Pontifícia Universidade
Calica do Rio Grande do Sul, como
requisito parcial para obtenção do grau
de Mestre em Teologia, Área de
Concentração em Teologia Sistemática.
Orientador: Prof. Dr. Luiz Carlos Susin
Porto Alegre
2009
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4
A gratidão é a memória do coração.
Meu agradecimento a Deus e à
Congregação das Irmãs Franciscanas
de Nossa Senhora Aparecida pela
oportunidade desse aprofundamento
teológico. Agradeço também ao meu
orientador Prof. Dr. Luiz Carlos
Susin, que me orientou no decorrer
deste trabalho.
5
RESUMO
A presente dissertação sobre os Lugares teológicos da revelação divina no pensamento de
Andrés Torres Queiruga tem por objetivo aprofundar a compreensão dos lugares da
revelação divina tendo como base as ideias do grande autor moderno, Andrés Torres
Queiruga. Inicialmente analiso a questão da revelação como experiência humana, tendo
Deus como sujeito. Na perspectiva de Queiruga, a revelação não cai do céu, como algo
estranho aos humanos. O processo revelador integra-se na própria constituição do ser
humano. Deus toma a iniciativa de se revelar. Revela-se a todos e desde sempre na
generosidade irrestrita de seu amor. Seguindo os passos de Queiruga, nesta dissertação,
investigo ainda o modo como Deus se revela na tradição, na palavra e na história,
chegando à culminância da revelação em Jesus de Nazaré, considerando a cruz e a
ressurreição como parte dessa revelação de Deus em Jesus Cristo. Por fim, analiso o
pensamento de Queiruga sobre a revelação de Deus nas diferentes manifestações
religiosas. Para o autor, todas as religiões são verdadeiras e constituem, por isso mesmo,
caminhos reais de salvação, para os que buscam viver a fé de forma honesta.
Palavras-chave: Deus. Revelação. Experiência. Tradição. História. Jesus Cristo. Religiões.
6
ABSTRACT
This dissertation about the Theological places of divine revelation aims at broadening the
knowledge about the places of divine revelation having as fundamentals the ideas of the
great modern author, Andrés Torres Queiruga. It initially analyses the revelation as a
human experience that has God as subject. According to Queiruga, the revelation should
not be considered something supernatural that is far away from humans, because the
revelation process is part of the human constitution. God, with great loving generosity,
reveals himself to everyone, and it has always been this way. In the light of Queiruga, I
investigate how God reveals himself in tradition, word and history, arriving at the
revelation as Jesus of Nazareth, considering the cross and the resurrection as part of God’s
revelation as Jesus Christ. Finally, I analyze the thoughts of Queiruga about God’s
revelation in different religious manifestations. The author believes that all religions are
truthful and, because of that, are actual paths leading to salvation to all who honestly live
their faith.
Keywords: God. Revelation. Experience. Tradition. History. Jesus Christ. Religions.
7
SUMÁRIO
RESUMO.............................................................................................................................. 5
ABSTRACT..........................................................................................................................6
INTRODUÇÃO....................................................................................................................8
1.
EXPERIÊNCIA E REVELAÇÃO DE DEUS ............................................................ 15
1.1
O LUGAR DA REVELAÇÃO................................................................................ 17
1.2
DEUS COMO SUJEITO DA REVELAÇÃO .........................................................21
1.3
EXPERIÊNCIA HUMANA DA REVELAÇÃO ....................................................27
2.
HISTÓRIA E REVELAÇÃO DE DEUS ....................................................................37
2.1
A REVELAÇÃO NA HISTÓRIA ...........................................................................38
2.2
A “PALAVRA” – LUGAR DA REVELAÇÃO......................................................43
2.3
A TRADIÇÃO COMO “PLENITUDE” DA REVELAÇÃO NA HISTÓRIA ....... 47
2.4
HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E HISTÓRIA UNIVERSAL................................... 49
3.
JESUS DE NAZARÉ REVELAÇÃO PLENA ...........................................................54
3.1
JESUS DE NAZARÉ, REVELAÇÃO PLENA.......................................................55
3.1.1
A Cruz como sinal revelador............................................................................... 60
3.1.2
A revelação de Deus na Ressurreição de Jesus................................................... 63
3.2
UNIVERSALIDADE DA REVELAÇÃO NO ENCONTRO COM AS
RELIGIÕES............................................................................................................. 67
3.3
A REVELAÇÃO COMO REALIZAÇÃO ÚLTIMA DO SER HUMANO EM
PLENITUDE ESCATOLÓGICA............................................................................ 75
CONCLUSÃO.................................................................................................................... 78
REFERÊNCIAS................................................................................................................. 84
8
INTRODUÇÃO
Neste momento histórico, mais do que nunca se constata a necessidade de
experiências profundas que contribuam para a existência de pessoas mais integradas,
voltadas para o transcendente e com um sentido para a vida. Nas mais diferentes
expressões religiosas, revela-se a busca do ser humano por um encontro consigo mesmo e
com Deus, fonte de sentido para a vida.
A modernidade e pós-modernidade, com toda a sua carga de novidades, parecem
explicar e traçar o caminho da felicidade. O unilateral progresso, no entanto, provocou
grandes desequilíbrios entre os povos, tornando-se superficial, não atendendo ao ser
humano enquanto pessoa na sua singularidade. Por sua vez, o excessivo racionalismo não
educa para a sensibilidade, para gestos solidários e o compromisso social. Tendências em
nossa sociedade, como o individualismo, egocentrismo, materialismo, indiferença,
consumismo, exploração e competição, tornam a sociedade fechada sobre si mesma e
destituindo-a de sua abertura ao transcendente. A novidade radical do mundo moderno
desconcertou o pensamento religioso. A secularização e o ateísmo são os sinais mais
evidentes de uma crise que afetou tudo.
No entanto, se o novo desconcerta, também traz consigo possibilidades novas. Por
trás das mudanças, forças que trabalham a história, buscando fundamentos para uma
nova e mais adequada forma de sentido no momento atual da humanidade. Busca-se
reestruturar a totalidade, numa compreensão mais global. A grande dificuldade que se
apresenta nessa nova realidade é a acomodação ou inércia, resistindo à mudança ou
defendendo-se com pequenos arranjos que não vão à raiz das questões. Impõe-se, pois, a
necessidade de repensar conceitos e o próprio modo de entender nossa relação com Deus.
Ou seja, uma inversão radical na vivência e nos conceitos que corresponda a “levar a sério
a absoluta primazia do Deus que nos criou e continua nos criando por amor; única e
exclusivamente por amor”
1
.
1
TORRES QUEIRUGA, A. Fim do Cristianismo pré-moderno, p.16.
9
Diante desta realidade, torna-se relevante aprofundar como se a revelação de
Deus na experiência humana, na Tradição, na Palavra, na História e de modo singular em
Jesus Cristo, sua vida, morte e ressurreição. Quanto mais a pessoa cresce na experiência
humana de integração consigo mesma, com sua verdade e com o outro, a partir de Jesus
Cristo e seu projeto, quanto mais encontra um sentido para sua vida e é capaz de
reconhecer Deus atuando na história humana, mais humana, mais solidária e fraterna esta
será, e mais comprometida na luta pela justiça e a defesa da vida. Assim ao longo da
história, Deus foi se manifestando contando com pessoas que constituíssem sua revelação
no mundo.
A presente dissertação é fruto de uma pesquisa bibliográfica sobre o tema: Lugares
teológicos da Revelação Divina no pensamento de Andrés Torres Queiruga. Busca expor
sistematicamente o conteúdo, tendo como texto base o livro: A revelação de Deus na
realização humana, mas também contando com as demais obras do autor, e de alguns
confrontos com outros autores que abordam o mesmo tema.
Andrés Torres Queiruga é um dos principais teólogos europeus da atualidade
2
.
Tem-se caracterizado pela abordagem renovada das grandes questões teológicas, que estão
no coração da e da pregação cristã, buscando fidelidade ao ensino das Escrituras e da
Tradição. Pensando estas questões, em coerência com as exigências metodológicas e
críticas da modernidade, em confronto com o pensamento, a cultura e as tradições
religiosas de nossos dias. Seus escritos apresentam com simplicidade e rigor científico a
cristã, em categorias de nosso tempo. Tanto que se transforma, aos poucos em marco
referencial no pensamento teológico atual, e sua leitura se torna imprescindível no contexto
latino-americano. Como destaca Afonso M. L. Soares, o teólogo galego Andrés Torres
Queiruga é alguém com quem se pode estabelecer um diálogo franco, respeitoso e sem
falsas concessões. O próprio autor retoma várias vezes, em seus livros, o propósito de estar
2
ANDRÉS TORRES QUEIRUGA nasceu em 1940. É sacerdote e teólogo. Licenciado em Filosofia e
Teologia pela Universidade de Comillas, Espanha. Doutorou-se em Filosofia pela Universidade de Santiago
de Compostela, Espanha e em Teologia pela Universidade Gregoriana de Roma, Itália. Lecionou Teologia
Fundamental no Instituto Teológico de Santiago de 1968 a 1987. Atualmente, é professor de Teologia
Fundamental no Instituto Teológico Compostelano e de Filosofia da Religião na Universidade de Santiago
de Compostela, Espanha. É membro da Real Academia Galega e Diretor de Encrucillada: Revista Galega de
Pensamento Cristián; é também membro do Conselho Editorial de Iglesia Viva, consultor da Revista
Portuguesa de Filosofia e membro co-fundador da Sociedade Espanhola de Ciências da Religião. Entre suas
muitas publicações incluem-se: Recuperar la salvación (1977, 2001); Creo em Dios Padre (1998),
Recuperar la creación (1997); Fin Del cristianismo pre moderno (2000); Repensar la resurrección (2003);
Esperanza apesar del mal (2005); La revelación divina en la realización humana (Madri 2008; ed. rev. de
1977). Endereço: O. Courralinã 23 G, 15705 Santiago de Compostela, Corunã, Espanha. Notas
bibliográficas sobre Andrés Torres Queiruga, Cf. Concilium nº 326, 2008/3, p. 148.
10
em sintonia com as mais justas inquietações e questionamentos da sensibilidade atual. A
teologia de Torres Queiruga representa uma tentativa bem sucedida de pensar a
inculturação da na sociedade moderna e que pode servir de chave de leitura para outras
possíveis inculturações
3
.
O autor no qual desenvolve-se o tema referido trabalha atualmente no contexto
leigo, de uma universidade pública, tendo como foco a filosofia da religião. Esse contexto
explica o viés de sua contribuição à teologia católica.
No decorrer do trabalho busca-se elucidar os lugares teológicos da revelação de
Deus, segundo o autor, a saber: a revelação como experiência humana, a revelação na
Escritura, na Tradição, na História, em Jesus, sua morte e ressurreição como a revelação
plena; e também a revelação de Deus nas diferentes expressões religiosas, o que foi objeto
de suas pesquisas mais recentes. O presente trabalho não segue a linha histórico-genética
do pensamento de Queiruga. Es focado num tema específico e em sua exposição
sistemática.
Para desenvolver o tema proposto, no primeiro capítulo, é tratada a dimensão da
experiência e revelação de Deus que se no ser humano. Deus, que na liberdade de seu
amor irrestrito se entrega sem reservas, e a pessoa que acolhe a revelação como
experiência concedida por iniciativa divina. A revelação de Deus ao ser humano permite
perceber como o encontro com Deus possibilita à pessoa construir-se em liberdade e
alcance o sentido último e sua máxima realização. A “revelação significa o progressivo
fazer-se real, o histórico realizar-se do ser humano em sua última e mais profunda
dimensão”
4
. Segundo o autor, a primeira experiência a permear todo o projeto cristão é a
de estarmos todos, a humanidade inteira, mergulhados no amor desmesurado de um Deus
que se nos sempre e plenamente. A cultura, como também a tradição religiosa, pode ser
uma tentativa autêntica de resposta a quem primeiro nos amou. E seu amor não se exaure
nem mesmo se a nossa resposta for negativa
5
.
A revelação de Deus na experiência humana, segundo o autor, não é algo que cai do
céu como coisa estranha ao ser humano; ao contrário, o processo revelador faz parte da
própria constituição do ser humano. Deus é o sujeito da revelação, vindo ao nosso
encontro. Do lado humano, é necessário perceber-se de que alguém está presente, falando,
animando, interpelando. Pois Deus não se revela de modo arbitrário e mesquinho, revela-se
3
Cf.TORRES QUEIRUGA, A. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 8.
4
TORRES QUEIRUGA, A. A Revelação de Deus na realização humana, p. 239.
5
Cf. Ibidem, p. 10.
11
a todos e desde sempre, na generosidade irrestrita de seu amor. Não “silêncio de Deus”
e, sim, incapacidade humana para captar, imediata e claramente a sua voz.
É a partir desta afirmação que se torna fecundo e necessário o diálogo entre as
diversas religiões, pois cada uma, a partir de sua tradição, capta a manifestação de Deus na
vida. Falar da experiência humana da revelação, nada mais é do que dizer que Deus não se
revela, a não ser na e para a humanização de homens e mulheres que buscam dar sentido
para suas vidas. Deus se revela para nos tornar mais humanos, mais solidários, mais
fraternos.
No segundo capítulo é descrito sobre a história e revelação de Deus. Segundo
Torres Queiruga, Deus age na história. Desde o início da vida humana Deus se revelou na
história de homens e mulheres. A própria religião, os ritos e mitos comprovam isso. O
mistério divino se manifesta dentro de nosso mundo. Podemos encontrá-lo na natureza,
que, enquanto criação de Deus, nos remete ao Criador e também se manifesta na pessoa e
na história que vive de uma esperança que significa algo mais que a própria História.
Para Torres Queiruga, a Palavra é também lugar da revelação. A Palavra revelada
nos profetas e na História do povo de Israel não aparece como palavra feita, mas como
uma experiência viva, como um “dar-se conta” da presença divina. Segundo o autor, na
História da humanidade, houve poucas linguagens tão fecundas quanto à linguagem dos
profetas bíblicos. Falar em revelação nas Escrituras implica em falar de Tradição. Ambas
podem ser concebidas não como grandezas paralelas e sim como mutuamente implicadas.
A Escritura como tal está mais envolvida pela Tradição. A Tradição, tomada como ato da
Igreja, não pode em absoluto ser concebida sem a Escritura. Segundo o que nos diz a Dei
Verbum, o que os apóstolos transmitiram compreende o suficiente para que as pessoas
possam viver uma vida evangélica e santa. A Igreja tem por isso a missão de conservar e
transmitir a todos as razões da fé.
Segundo o autor, Deus se revelou na história da salvação desde o Antigo
Testamento até Jesus de Nazaré. Essa revelação, que é oferecida a toda pessoa humana, é
por isso universal. Mais do que nunca, hoje, o cristianismo está confrontado com sua
missão universal. Jesus de Nazaré se torna o arquétipo real de um sujeito universal para a
História, sem tulos nem glórias, senão o de sua profunda humanidade. O verdadeiro
“servo de Javé”, conforme o anúncio de Isaias (Is 52, 53). Aquele que não tinha onde
reclinar a cabeça (Mt 8,20), assumindo a condição de escravo (Fl 2,5). Nisso está o amor
absolutamente universal que marca o dinamismo da revelação.
12
Ao se falar em revelação na História da Salvação em confronto com a História
Universal se toca a essência da experiência cristã, ou seja, aquilo que ela descobre não está
separado do que descobrem os demais, pois o mesmo Deus que salva é que está
trabalhando com sua graça em toda humanidade. Portanto, o anúncio da experiência cristã
deve dar-se de forma simples e humilde, dando-se conta de que as “sementes do Verbo”
estão presentes em cada cultura. O diálogo assim se torna possível, pois consiste em
avançar no seio de uma mesma experiência. A universalidade cristã não pode impor na
História qualquer particularismo cultural, mas deve estar disposta a encarnar-se em cada
cultura. A relação entre História Universal e História da Salvação é tal que a História da
Salvação não quer de forma alguma ser a negação da História do mundo e sim sua
capacitação e vivência a partir de uma nova e mais profunda relação.
No terceiro capítulo, busca-se descrever, Jesus de Nazaré como a revelação plena.
O ser humano vai pouco a pouco descobrindo o verdadeiro rosto de Deus e, a partir dele, a
verdadeira orientação para vida. Em Jesus Cristo, a pessoa experimenta a possibilidade
máxima. Nele o ser humano desvenda a chave fundamental de sua existência, na qual se
abre a possibilidade de realizar-se de modo pleno.
A comunhão salvadora e amorosa de Deus com a pessoa que alcança em Cristo sua
plenitude, não significa um fim, mas o grande começo, a “nova criação”, o espaço onde a
todo ser humano é aberta a possibilidade de avançar para a ‘idade adulta, até a estatura que
corresponde à plenitude em Cristo’ (Ef 4,13).
A revelação plena está incluída no mistério de Cristo e a partir dele pode ser
entendida. Nele aconteceu de modo insuperável o encontro revelador de Deus com o ser
humano. Na História da Salvação, antes de Cristo, tudo foi um caminho para Ele, e, depois
dele, um caminhar a partir de sua plenitude. Em Jesus a revelação não é um ditado, mas
uma experiência pessoal com toda riqueza do humano em todas as dimensões.
Segundo Torres Queiruga, em Jesus Cristo como plenitude da existência concreta,
na acolhida e na entrega, acontece ao máximo a capacidade de infinito. Realiza-se na
História aquilo que parecia impossível, Jesus se torna presença pessoal de Deus para o ser
humano, sem nenhum tipo de reserva. Jesus revela o mistério absoluto de seu amor e de
sua decisão salvadora.
Totalmente entregue à História, Jesus recolhe em si, elevando-o ao pleno
cumprimento todo processo revelador anterior. E mais do que isso, a partir dele, toda a
humanidade encontra acesso a essa plenitude, podendo participar da realização definitiva.
13
Para o autor, Deus revela-se na História de cada pessoa que se abre ao divino, como
também, ao longo da História da Salvação, foi se revelando de diferentes formas
assumindo a plenitude em Jesus de Nazaré. A plenitude da revelação como abertura
histórica nos apresenta a revelação como algo sempre atual e aberto ao futuro. Jesus Cristo
plenitude da palavra definitiva de Deus fecha em si toda a revelação da História da
Salvação; ao mesmo tempo abre-se como palavra reveladora toda a História da Salvação
passada, presente e futura. “A historicidade do homem não fica, pois, anulada. Ao
contrário, fica estabelecida em seu âmbito definitivo e carregada com as possibilidades de
uma promessa infinita”
6
.
Uma das formas da revelação de Deus a nós foi através da cruz e ressurreição de
Jesus, tema desenvolvido no terceiro capítulo. Deus nunca esteve tão perto de Jesus como
na cruz. Ele não quis a morte do Filho, assim como não quer o mal no mundo. O
sofrimento é algo sobre o qual Deus se compadece. Para Jesus, a cruz foi manifestação do
amor levado às últimas consequências. Foi fiel à missão, deu-se sem reserva, sem guardar
nada pra si, nem a própria vida.
Jesus morre na cruz, condenado pela religião e pela política, como tantos profetas
de ontem e de hoje, e, de certo modo, como todos aqueles que lutam em favor da vida para
todos. Sua perseverança até o fim é o selo de seu amor. Torna-se para nós modelo no
assumir na esperança o próprio fracasso e na entrega ao amor apesar de toda
incompreensão. Diante desta realidade é que podemos entender a cruz como sinal revelado,
ou seja, como expressão do amor absoluto e da entrega da vida do próprio Filho de Deus.
Como o conceito de revelação, entende Queiruga, a revelação na ressurreição de
Jesus não pode ser compreendida como algo milagroso, alheio à realidade humana, sem
conexão com a experiência. Deve-se perceber a revelação de Deus na realidade bem
humana de Jesus, como também no contexto em que viveram Ele e seus discípulos. A
ressurreição de Jesus situa-se, portanto, numa situação nova, que supõe uma experiência
nova, não milagrosa, mas real. Experiência vista aqui como resultado integrador de
diferentes “experiências”, como resultado de toda sua vida. Ao se falar em ressurreição, é
preciso referir-se a uma experiência global desse tipo.
Neste mesmo capítulo busco também descrever o pensamento do autor sobre a
universalidade da revelação que se concretiza nas diferentes expressões religiosas, ou seja,
no encontro com as religiões. O Deus que cria por amor, vive debruçado com generosidade
6
TORRES QUEIRUGA, A. A Revelação de Deus na realização humana, p. 255.
14
irrestrita sobre todas e cada uma de suas criaturas. Portanto, todas as religiões são
verdadeiras e constituem, por isso mesmo, caminhos reais de salvação para os que buscam
praticar delas honestamente.
Deus revela-se nas diferentes formas de acolher a fé, pois não existe religião sem
alguma verdade, como também nenhuma absolutamente perfeita. Deus se dá totalmente em
todas, mas a acolhida por parte da pessoa é que difere em cada uma.
A revelação de Deus é o núcleo central de toda experiência religiosa, como também
o lugar do encontro e do diálogo entre as diversas religiões e a cultura secular. O autor
chega a afirmar que Deus não cria homens e mulheres religiosos”, cria simplesmente
homens e mulheres humanos. Porque, em se tratando de religião como um pensar Deus e
servir a Deus, convém lembrar que o Abbá de Jesus não procura buscar a si mesmo, nem
busca ser servido. Jesus Cristo em sua prática pensa em nós e busca exclusivamente nosso
bem.
Para o autor, as consequências desta compreensão são importantes para uma visão
que nasce de um modo aberto e positivo de situar-se no mundo. As práticas que
contribuem para o crescimento e amadurecimento da vida humana colocam-se no
dinamismo do Criador. Com esta nova imagem de Deus, somos conseqüentemente
conduzidos a uma nova imagem do cristianismo. Uma imagem que leva a uma nova
relação com as outras religiões e com a própria sociedade, buscando valorizar e respeitar o
Deus que se revela nas diferentes formas de expressão da e nas diferentes realidades
humanas e sociais.
Por fim, na conclusão, destaca-se a importância de poder aprofundar um tema como
este com os elementos relevantes que o autor apresenta, e ao mesmo tempo, os desafios
que permanecem, sem a pretensão de esgotar a reflexão.
15
1. EXPERIÊNCIA E REVELAÇÃO DE DEUS
Ao iniciarmos a reflexão sobre este tema, faz-se necessário esclarecer o sentido dos
termos experiência e revelação. Segundo o dicionário Aurélio, a experiência consiste no
ato ou efeito de experimentar, é a prática da vida, ou seja, uma pessoa vivida, cheia de
experiência. É a habilidade prática adquirida através do exercício constante de uma
profissão, de uma arte
7
.
Segundo Torres Queiruga, o conceito de revelação que chegou até nós e que
prevaleceu no imaginário coletivo, se apresenta como uma lista de verdades “caídas do
céu”, através do milagre da “inspiração”, operado na mente de algum profeta ou
hagiógrafo. Verdades, na sua origem, inacessíveis à razão humana e que nós devemos crer,
pois são inspiradas. Deus nos disse tais verdades, sem que tenhamos possibilidade de
comprová-las. Torna-se, assim, uma revelação imposta de fora sem responder a nossas
necessidades e perguntas. Faz-se necessário, portanto, reafirmar o que nos diz a bíblica,
a revelação de um Deus que na liberdade de seu amor irrestrito e sempre em ação, se
entrega sem reservas e sem medida.
Para Torres Queiruga, a Palavra revelada ajuda a dar luz, a ver com os próprios
olhos a realidade enquanto habitada por Deus. Por isso, todo crente deve e pode chegar a
dizer por si mesmo, o que o povo disse à samaritana: “Já não cremos por causa daquilo que
você disse. Agora, nós mesmos ouvimos e sabemos que este é, de fato, o Salvador do
mundo” (Jo 4,42), ou seja, a revelação passa a ser uma experiência pessoal. Um encontro
pessoal com Jesus Cristo, revelação plena de Deus. Experiência que perpassa todo o ser
humano e que faz olhar para si, para o outro e a realidade a partir de Deus e de seu projeto
de amor
8
.
A pessoa vive e acolhe a revelação como experiência dada por Deus, ou seja, como
iniciativa divina, revelação, palavra, mandato. Temos como exemplo Moisés e, mais tarde,
os outros profetas. A autenticidade da vivência da revelação de Deus na vida dessas
7
Cf. ‘Experiência’. FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário da Língua Portuguesa, p. 862.
8
TORRES QUEIRUGA, A. Anotações da palestra: A teologia desde a modernidade, proferida em São
Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
16
pessoas é tão manifesta que seria superficial pensar numa simulação. Naquele que é
receptivo à iniciativa de Deus inicia-se um processo de apropriação, pois o chamado se
dirige bem concretamente à pessoa em sua realidade.
Segundo o pensamento de Queiruga há na revelação uma verdadeira apropriação. A
comunidade não se sente convocada a algo alheio. Ela experimenta sua presença e vive a
partir disso uma transformação; assim, o “Deus de nossos pais” e o “Deus de Moisés
passou a ser o nosso Deus, da mesma forma que, mais tarde, o Pai de Jesus passa a ser o
“nosso Pai”. Esta constatação é muito importante, por mostrar que na apropriação
comunitária da revelação dá-se uma dialética muito peculiar de exterioridade e
interioridade... apóia-se na palavra do mediador, mas dentro de uma dinâmica que leva à
experiência e “intuição” direta
9
.
Segundo o autor, dentro dessa realidade, detendo-nos agora à questão do
testemunho, vemos que este torna-se como que um contraponto à experiência, como um
conhecimento que não alcança a coisa mesma, mas que depende do enunciado de outra
realidade, sem entrar em contato direto com a experiência e sem que caiba a possibilidade
de se independizar dos enunciados comunicados”
10
. Na revelação de Deus, ao contrário,
tudo se apóia na novidade de uma origem histórica. O ser humano não se manifesta por si
mesmo, senão pela livre iniciativa da ação de Deus. Não se trata de um desdobrar-se
imanente de sua essência e sim de uma determinação realizada por Deus na História.
Lessing, que se serve da categoria da educação para falar da revelação, assim se expressa:
O que é a educação para o indivíduo, isso é a revelação para o gênero humano. A educação
não ao homem nada que este não pudesse alcançar por si mesmo; dá-lhe o que poderia
alcançar por si, só que assim o obtém mais fácil e rapidamente. Igualmente a revelação não
ao gênero humano nada que a inteligência humana não poderia eventualmente alcançar
por si mesma
11
.
9
Cf. TORRES QUEIRUGA, Andrés. A revelação de Deus na realização humana, p. 108.
10
Ibidem, p.109-110.
11
Cf. Ibidem, p.127-128.
17
1.1 O LUGAR DA REVELAÇÃO
Para Queiruga, a transcendência e imanência da revelação, têm o papel
irrenunciável de manter erguida e irredutível, diante da crítica, a transcendência da
revelação, sempre exposta a perder-se em meio ao interesse de cada época. Se a palavra
reveladora, assim como se encontra na Bíblia aparece como unidade inseparável da palavra
humana e da palavra divina, sua interpretação estará sempre aberta à dupla possibilidade de
atender mais ao lado humano, arriscando-se a descuidar do divino, ou atender mais ao lado
divino, arriscando-se a descuidar do humano
12
.
Para a Igreja Católica, a reação contra a tendência a ressaltar unilateralmente o
caráter transcendente da revelação, destacam-se dois meios pelos quais se assegurou um
conceito de revelação mais adequado e justo. O primeiro foram os estudos bíblicos, que,
apesar das dificuldades, foram impondo um novo modo de considerar a Revelação. O
segundo foi o contato com a teologia protestante, que, à parte, o fato de operar nesta
mesma direção, proporcionava sugestões e abria novas perspectivas. A teologia elaborada
nesse ambiente e acolhida afinal na constituição Dei Verbum, do Vaticano II, renovou a
fundo o tratamento da questão: a situação atual teve aí sua condição de possibilidade
13
.
Segundo Torres Queiruga, a revelação, ao ser algo que acontece entre Deus e o
homem na história, implica necessariamente três dimensões fundamentais: divina,
subjetiva e histórica.
Dimensão DivinaQueiruga faz menção a Karl Barth,
14
dizendo que o pensamento
tradicional tem aqui seu espaço à medida que continua tendo seus representantes. Ou seja,
a revelação como palavra autorizada de Deus apenas atendia às condições subjetivas do
homem a quem era dirigida. O maior defensor desta tendência é Karl Barth. Para ele, a
revelação não é mais que manifestação na história humana da mesma história primogênita
divina. A eleição ou predestinação do Filho pelo Pai, eternamente realizada e manifestada
pelo Espírito, reflete-se no tempo através da eleição do homem em Jesus Cristo. Por isso,
12
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 80.
13
Cf. Ibidem, p. 86-87.
14
KARL BARTH teólogo cristão protestante, pastor da Igreja Reformada. Um dos líderes da Teologia
dialética. Nasceu em Basiléia e foi criado em Berna (Suíça). Suas principais obras: A carta aos Romanos
(1922) e Dogmática Eclesiástica (1932-1968).
18
Deus é o sujeito absoluto; o homem, a rigor, nem sequer pode perguntar, e a própria
recepção da revelação é realizada pelo Espírito Santo. A revelação consiste assim na
Palavra de Deus no sentido mais rigoroso e exclusivo da expressão
15
.
Dentro do catolicismo, paralelo a Barth, temos o famoso “natural” “sobrenatural”
representado por Hans Urs Von Baltasar
16
. Também para ele a revelação consiste, antes de
tudo, na manifestação dentro de nossa história do amor intratrinitário de Deus.
Manifestação que acontece em Cristo, sobretudo na obediência e amor totais da cruz e que,
diferentemente da concepção barthiana, inclui toda a criação e toda a história, desvelando
seu sentido
17
. Balthasar deixa a desejar quando manifesta pouca atenção às mediações
humanas da revelação. “A figura da revelação é contemplada diretamente em si mesma,
sem se preocupar em mostrar os múltiplos condicionamentos humanos de sua gênese e de
sua formulação”
18
.
Dimensão Subjetiva Segundo Torres Queiruga, a dimensão subjetiva foi em
muitos aspectos o motor da renovação. Seu movimento é amplo e difícil de ser
classificado. Indicar-se-ão apenas algumas dimensões da subjetividade. Andrés Torres
Queiruga, ao se referir ao pensamento de Rudolf Bultmann,
19
ressalta que, apesar de sua
tendência à teologia dialética, a preocupação exegética e o contato com a filosofia
existencial de Heidegger o levam a concentrar sua preocupação sobre o sujeito, acentuando
a subjetividade existencial, entre as dimensões da revelação. “Em última análise, a
revelação consiste numa Palavra de Deus que não revela ‘nada’ fora do ser autêntico do
homem. E este, reconhecendo-se pecador, não se absolutiza a si mesmo e abre-se à graça
da justificação: que foi, afinal, revelado? Absolutamente nada, se a questão da revelação
15
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 88.
16
HANS URS VON BALTHASAR, sua reflexão teológica e cultural visa sobretudo confirmar sua intuição
fundamental: demonstrar a realidade de Cristo como a coisa mais importante, pois é precisamente a Palavra
humana de Deus para o mundo. Intuição que se explicita especificamente em dois ensaios: Derrubar os
bastiões (1952) Só o amor é crível (1963). Cf. GIBELLINI, Rosino. A Teologia do século XX, p. 237ss.
17
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 89.
18
Ibidem, p. 89.
19
A obra mais significativa do teólogo Rudolf Bultmann, são os quatro volumes que reúnem seus mais
importantes ensaios de teologia sistemática e traz o significativo título Crer e Compreender (1933-1965). A
Teologia de Bultmann é efeito de uma coerente aplicação da interpretação existencial dos enunciados
centrais do Novo Testamento: Teologia como interpretação existencial. A Teologia Existencial é uma
modalidade de teologia da Palavra. A revelação acontece como tal, como Palavra de Deus. Bultmann
admitia, no fundo apenas um sacramento, o da Palavra. Alguma, entre muitas obras do autor, destaca-se aqui:
Gesú (1926), Il Cristianesimo primitivo nel quadro delle religioni antiche (1949), Prediche di Marburg
(1956), Storia ed escatologia (1957). Cf. GIBELLINI R. Op. Cit, p. 37.
19
pergunta por doutrinas (...). Porém tudo, enquanto o homem tem seus olhos abertos sobre
si mesmo e pode se entender de novo a si mesmo”
20
.
Paul Tillich,
21
que também partilha da preocupação existencial, amplia e enriquece
ainda mais esta perspectiva. Acentua a subjetividade profunda e cultural da revelação. “O
‘profundo’, o ‘abismo’, o ‘fundo do ser’, são símbolos do divino. Quando este consegue
manifestar-se, emergindo a consciência, nasce a revelação, que é manifestação do fundo do
ser para o conhecimento humano”
22
. Desta forma na revelação estão integrados todos os
estratos da subjetividade desde sua raiz mais profunda, como também a síntese do racional
e do emocional. O inteiro ser do homem entra assim em jogo na revelação, tanto o
individual como o coletivo. Para Tillich a revelação é a manifestação da profundidade do
ser.
Torres Queiruga descreve que algo semelhante podemos constatar em Karl
Rahner,
23
sendo que o mais original de sua contribuição consiste em acentuar a
subjetividade transcendental da revelação. Para ele, a partir da profunda reconfiguração
ontológica que supõe o ‘”existencial-sobrenatural”, todo homem e o homem todo está
impregnado pela presença da revelação. É constitutiva do homem a vocação a ser “ouvinte
da Palavra”, o próprio movimento de sua existência já é vocação transcendental
24
.
Dimensão Histórica – Torres Queiruga, falando sobre a dimensão histórica, ressalta
a primazia do espaço aberto pela comunicação entre Deus e o homem como lugar em que
se realiza a revelação. Lugar do qual diversas teorias ressalta distintas dimensões. Numa
primeira teoria cabe assinalar a concepção personalista. Martin Buber
25
abriu caminho ao
assinalar a realidade unificante do “entre”, isto é, do espaço vital entre o eu e o tu, que é o
que os constitui num “nós” dialogante. A revelação deixa de ser um processo meramente
20
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 90.
21
PAUL TILLICH nasceu na Prússia, na aldeia de Starzaddel, nas proximidades de Guben, em 1886. Sua
principal obra: Teologia Sistemática (1951-1963).
22
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 91.
23
KARL RAHNER (1904-1984), nasceu em 5 de março de 1904 em Friburgo (Alemanha). Sua principal
obra: Curso Fundamental da Fé. Outras obras: Missão e Graça (1959); Ouvintes da Palavra (Barcelona
1968). Cf. Gibellini, R. Op. Cit, p. 223.
24
Cf. TORRES QUEIRUGA. A revelação de Deus na realização humana, p. 92.
25
MARTIN BUBER filósofo, escritor e pedagogo. Judeu de origem austríaca. Em suas publicações
filosóficas, enfatizou que não existência sem comunicação e diálogo. As palavras-princípio, eu-tu
(relação), eu-isso (experiência), demonstram as duas dimensões da filosofia do diálogo, que segundo Buber,
abarcam a existência. Algumas obras: Histórias de Rabi; O socialismo utópico; Eu e Tu.
20
objetivo para fazer-se comunicação viva e pessoal, encontro entre Deus que chama e salva,
e o homem que escuta e aceita
26
.
Para o autor, diante do intimismo da teologia existencial de Rodolf Bultmann, o
mérito foi de Oscar Culmann
27
que deu ênfase definitiva à História da Salvação. Remeteu-
se à objetividade da história:
Aos fatos salvadores em que a revelação de Deus se mostrava
como ação no espaço aberto pela dialética promessa-cumprimento.
Sobretudo para teologia católica, sempre ameaçada pelo
abstracionismo escolástico, significou enriquecimento e concreção.
Sua influência na Constituição sobre a Revelação Divina (Dei
Verbum) do Vaticano II e a orientação global da obra coletiva
Mysterium Salutis são disso uma boa prova.
28
Na teologia evangélica, Gerhard Ebeling
29
chama a atenção para o déficit de
experiência na teologia e destaca o papel da “Experiência”. Na teologia católica é essa a
ocupação mais intensa de Edward Schillebeeckx.
30
“A revelação, nos diz ele, por sua
própria natureza tem a ver com a experiência humana. A revelação é uma experiência
expressa com palavras; é a ação salvífica de Deus enquanto experimentada e expressa pelo
homem”
31
.
Segundo Torres Queiruga, não se podem negar as imensas dificuldades em relação
ao tema da revelação, mas também não se pode negar que nele aparece envolvidos, o
homem bíblico, do mesmo modo que, em geral, o homem religioso, que experimenta
sempre a revelação primordial e originariamente como algo próprio, que lhe permite
26
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 92-93.
27
OSCAR CULMANN, teólogo evangélico. Uma de suas principais obras são o livro Cristo e o Tempo
(Barcelona 1946). Cf. Gibellini, R. Op.Cit, p. 256.
28
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 93.
29
GERHARD EBELING nasceu em 1912; foi discípulo de Bultmann em Marburg. É autor do denso artigo
sobre Hermenêutica. Para ele, a hermenêutica é a doutrina do compreender, mas, enquanto tal, configura-se
como doutrina da Palavra, uma vez que o compreender se articula em linguagem e palavras. Cf. Gibellini, R.
Op. Cit, p. 71.
30
EDWARD SCHILLEBEECKX nasceu em 12 de novembro de 1914, em Antuérpia, Bélgica. Doutorou-se
em 1951 e, Le Saulchoir, com o tema: A economia sacramental da salvação. Que deu origem a seu primeiro
livro de Sacramentele Heilseconomie (A economia sacramental da salvação). Nesta obra apresentou os
sacramentos como sinais. Em 1956, foi nomeado professor do Instituto Superior de Ciências Religiosas em
Lovaina e, a partir de 1957, professor ordinário de Dogmática e de História da Teologia na Universidade
Católica de Nimega. Cf. HACKMANN, G. L. Borges. Servir a Cristo na Comunidade, p. 9-10.
31
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 94.
21
compreender e realizar a si mesmo, desde seu ser mais profundo. Os questionamentos, por
mais corretos e justificados que sejam, aparecem sempre depois e é justamente isso:
questionamentos dos aspectos obscuros deste dado fundamental. Gerhard Von Rad,
considerando isso a partir da Bíblia, diz : Israel descobriu Deus na História e, ao fazê-lo,
foi-se descobrindo a si mesmo
32
. A insistência na identidade humana da revelação, no
entanto, não dá conta de toda experiência religiosa. Na revelação o homem se sente
certamente levado ao mais profundo de si mesmo. Porém, com igual direito, pode-se
afirmar que se sente também levado para além de si mesmo, elevado acima de suas
potencialidades
33
.
1.2 DEUS COMO SUJEITO DA REVELAÇÃO
Segundo Andrés Torres Queiruga, a revelação de Deus não é algo que
extraordinariamente tenha caído do céu, sobre alguns “profetas” ou “escritores" e que nós
simplesmente precisamos acolher, aceitar. Ao contrário: a revelação é algo que nasce de
dentro: um dar-se conta do que Deus está procurando dar-nos a conhecer através da
realidade. Da realidade em seu modo de ser criatura, com os fortes impulsos que procuram
orientar o mundo e a história para sua humanização, e com os impulsos que dentro de nós
procuram levar-nos ao bem, à fraternidade e à plenitude na comunhão com Ele. Deus está
se manifestando a nós continuamente através de tudo, tratando de abrir um pouco mais
nossa capacidade, de vencer nossas cegueiras, de superar nossas resistências
34
.
O autor afirma com segurança e decisão de que o limite da revelação não é imposto
por Deus, e sim pela impossibilidade da criatura. O divino é sempre experimentado como
“transcendência ativa”, que sai por própria iniciativa ao encontro do homem. Um modo de
ser de Deus que não pode ser chamado de pura revelação. Fica evidente que há outro modo
que é o que o uso teológico vivenciou como relação. “Enquanto o homem experimenta em
si mesmo, na natureza ou na história a Deus chegando a ele, como se manifestando a ele,
está tendo a experiência radical da revelação”
35
. Deus ao longo da História vai se
32
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 103-104.
33
Cf. Ibidem, p. 105.
34
Cf. Idem, O que queremos dizer quando dizemos inferno? p. 18.
35
Idem, A revelação de Deus na realização humana, p. 149.
22
revelando, e nós o percebemos a partir do momento em que, como humanos, sabemos
contemplar e perceber através de nossa sensibilidade a ação reveladora de Deus. Deus está
realmente presente em todas as pessoas, e se revela a elas, apesar de todas as deformações.
Revela-se, sobretudo, nas experiências mediadoras das tradições religiosas. Existe um
continuum salvífico e revelador na experiência religiosa da humanidade
36
. Segundo o
autor, a revelação de Deus se deu ao longo da História de forma real e concreta a um povo,
o povo de Israel.
Deus está realmente presente em todos os homens; estes, em sua
experiência religiosa, captam essa presença como revelação ativa e
salvadora: entre eles um povo, o de Israel, que vive e expressa
de modo específico, por sua intensidade e por sua pureza essa
revelação iniciando assim a história santa que aparece recolhida na
Bíblia.
37
A revelação de Deus nós a podemos perceber a partir da experiência que o ser
humano vai realizando no decorrer de sua vida. Na medida em que vai permitindo e
acolhendo a revelação em si mesmo. A união com Deus não é algo que vem de fora, mas é
algo que parte de dentro e vai se constituindo, moldando o ser humano. Para Torres
Queiruga, a revelação não tem de “entrar” na vida do homem, visto que é a presença viva
daquele mesmo que está suscitando seu ser, suscitando sua liberdade e empurrando sua
história. Deus não necessita “chegar” ao homem porque está sempre com Ele. Por isso,
para o homem, a revelação efetiva é sempre uma experiência realizada, algo com o qual se
encontra no mesmo ato de tomar consciência dela. É aperceber-se de que alguém está
presente, falando, perdoando, animando, interpelando
38
.
Em todo processo revelador, segundo o autor, Deus é que vai tomando a
iniciativa, Ele se coloca como alguém que vem ao encontro do ser humano e quer
revelar-se da mesma forma a todos, independente de raça, cultura ou condição social. Não
é um Deus que se oculta porque quer, que vai se mostrando com maior ou menor evidência
para esta ou aquela pessoa, que se manifesta a muitos ou a poucos, que deixa para mais
adiante o que poderia ter revelado agora. Mas é um Deus que se apressa em tomar a
36
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 151.
37
Ibidem, p. 151.
38
Cf. Ibidem, p.154-155.
23
iniciativa, cujo amor é urgente, que quer revelar-se o mais rápido possível, a um maior
número possível de pessoas, que desejaria abrir os olhos e o coração do ser humano ao
dom desde sempre disponível.
Para o autor, onde o ser humano se apresenta aberto, Deus aparece como luz
fazendo emergir e sentir sua presença. Quando aparece uma ocasião, em que o ser humano
cede à experiência de amor, Deus concentra ali todo o seu amor à pessoa e prossegue
apoiando-a com todos os meios de sua graça. Quando nos referimos à liberdade divina e o
sentido da “eleição”, o que se percebe é que o próprio fato da revelação é pura e
incondicionada liberdade, pois, se Deus não quisesse revelar-se de nenhuma forma o ser
humano poderia alcançar sua intimidade
39
.
Portanto, a eleição não é “prévia” a isso, mas deve ser interpretada justamente a
partir disso. “A eleição não como um ‘favoritismo’ por estar radicalmente destinada a
todos; porém como um meio de ‘acidente’, pois Deus está total e pessoalmente em sua
relação concreta com cada homem”
40
. Deus foi se revelando ao longo da História da
Salvação no Antigo Testamento e nas diferentes religiões, mas em Jesus Cristo, graças à
sua humanidade totalmente aberta ao seu amor e ao seu convite, Deus finalmente pôde
mostrar seu rosto mais verdadeiro e definitivo
41
.
Segundo Torres Queiruga, a revelação de Deus é real e verdadeira não apenas
porque tenha de entrar no mundo irrompendo seus mecanismos e fazendo-se sentir de
forma milagrosa. É real, pelo fato de estar doando-se desde sempre num gesto expressivo
de sua presença criadora e salvadora. O próprio fato da criação é sua revelação
fundamental; e a própria criação, em seu modo de ser, em seus dinamismos e em suas
metas e aspirações, vão desvelando no tempo e na história tanto o projeto de Deus sobre
ela como o que, em cada momento, está procurando realizar. Enfim, a revelação consiste
em “aperceber-se” do Deus que, como origem fundante e amor comunicativo, está “já
dentro”, habitando a criação e manifestando-se nela
42
.
O processo revelador, conforme o autor, pode, por vezes, tornar-se difícil ou lento,
mas com certeza, não é por parte de Deus senão do ser humano, de sua pequenez ou de sua
prepotência. Da parte de Deus, se ele não quisesse manifestar-se, nada saberíamos dele.
Como também, nenhum conhecimento concreto e real de Deus vem a ser possível pela
39
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 289.
40
Ibidem, p. 289.
41
Cf. Idem. O Mistério de Jesus o Cristo: divindade “na” humanidade. Concilium, nº 326, 2008, p. 38.
42
Cf. Idem. Repensar a ressurreição, p.104.
24
simples iniciativa humana. O ser humano pode dar-se como resposta à sua iniciativa. “Só
Deus pode ser conhecido por Deus, diz uma frase clássica. E vale notar que, se bem
considerada, essa é, nada mais e nada menos, que a definição da revelação”
43
.
Segundo Torres Queiruga, Deus vai se revelando ao ser humano num movimento
constante de surpresa e descoberta, na presença como também na ausência, no encontro e
na procura constante daquele que sacia a fome de vida, paz, justiça e amor. De alguma
maneira o homem está sempre “vendo” a Deus, co-afirmando sua presença. Na vida
ordinária, ele tão somente necessita que algo o desperte, que sacuda sua atenção
44
.
Por vezes, as situações da vida sacodem a consciência da pessoa, rompendo sua
rotina e abrindo-a ao chamado divino, ou seja: “Uma situação que com sua estranheza,
mesmo sendo natural, rompe a superfície do ordinário e faz com que ‘se quebre o gelo’,
que ‘amanheça a luz’, que ‘caia a ficha’, isto é, que numa experiência de ‘desvelamento’ se
abra a dimensão religiosa da realidade”
45
.
O autor, descrevendo sobre Deus como sujeito da revelação, nos diz que, porque
Deus nos ama, o mundo torna-se habitável e visível. Ele nos ama de maneira única, nos
criou por amor e no amor permanece como um Pai-Mãe, voltado sobre nossa História, a
fim de nos ajudar e salvar-nos. Se ele cria por amor, quer dar-se a todos e dar-se
totalmente
46
. Sua presença é total, abrangendo toda realidade, dando com isso um colorido
existencial. O tema da revelação ficaria a desejar se não falássemos da questão da
linguagem religiosa: “Nela se revela necessariamente à índole da experiência reveladora
que a sustenta, e por sua vez constitui o ponto de sua decisiva iluminação”
47
.
Aqui se reflete também o desvelamento do mistério na abertura do ordinário, ou
seja: a revelação não cria uma linguagem própria e exclusiva, que seria, bem por isso,
ininteligível e inútil, mas transforma a linguagem ordinária, de maneira que através dela
apareça o mistério. Trata-se de uma transformação da linguagem mediante a própria
linguagem, com ajuda de estratégias adequadas, que tornam patente sua radical e infinita
abertura
48
.
“Há, pois, um poder revelador na linguagem religiosa, que ‘rompe’ cada um dos
nossos intentos de fazer de nossa experiência um sistema fechado”
49
.
A presença de Deus
43
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreição, p. 105.
44
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 179.
45
Ibidem, p.180.
46
Cf. Idem. Do Terror de Isaac ao Abbá de Jesus, p. 31-32.
47
Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 183.
48
Cf. Ibidem, p.184.
49
Ibidem, p. 187.
25
na realidade total, se coloca como uma presença reveladora e capaz de expressar-se em
atos concretos, não como algo do tipo intencionalista, mas como presença real.
Até aqui insistimos no movimento que vai de nós até Deus e no caráter do Deus
sempre aí, como uma presença a ser descoberta, agora iremos destacar que,
a revelação é, antes de tudo, um movimento de Deus até nós e que
tem caráter dinâmico: o ‘sempre aí’ indica tão somente que a
presença sustentadora e a união radicam Deus-homem como raiz
que alimenta e possibilita seu chegar sempre novo, vivo e
histórico.
50
A revelação de Deus acontece lá onde a pessoa, por sua fidelidade ou situação
pessoal que vive, se “apercebe”. “Não foi Deus, que já estava ali falando no gesto vivo e
sempre atual de cada situação concreta, quem mudou; quem mudou foi o ser humano, que,
por fim, descobre o que lhe estava sendo dito: ‘o Senhor estava neste lugar, e eu não sabia’
(Gn 28,16), e ao descobrí-lo transforma a sua vida”
51
.
Em Moisés podemos constatar como a revelação de Deus não é algo “espetacular”.
Ele vai se revelando à medida que nós humanos lhe permitimos e somos sensíveis à sua
presença. Para Moisés, a revelação se produziu quando ele se “apercebeu” de que, na
rebeldia que sentia contra a opressão injusta do faraó estava se manifestando a “voz” de
Iahweh. No próprio sentimento, enquanto expressão do ato criador e salvador de Deus,
soube ler que este está sempre nos dizendo que se compadece de toda a opressão e de todo
o sofrimento
52
.
Segundo Torres Queiruga, percebe-se aqui claramente que Deus não mudou em “si
mesmo” no sentido de que, a partir da constatação de Moisés diante das injustiças, Deus
tivesse se tornado mais compassivo e misericordioso, mas mudou para Moisés e, a partir de
Moisés, também para nós hoje.
A realidade que nos cerca, o espaço, é o corpo onde Deus se expressa, ou podemos
até dizer que é o rosto onde as pessoas podem ver e sentir a manifestação da presença
divina. “A inteira realidade é um gesto ativo e voluntário de Deus, que através dela se
50
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 189.
51
Idem. Repensar a ressurreição, p. 106.
52
Cf Ibidem, p.106.
26
manifesta e se revela ao homem”
53
. Olhando para a realidade e sua evolução, os processos
históricos e o crescimento da pessoa humana vemos aí, a manifestação de Deus.
Quando o homem consegue descobrir em tudo isso a ação criadora
de Deus, que o sustenta para que se realize; quando percebe a
liberdade divina, que amorosamente vai empurrando-o para
autenticidade; quando escuta aí a palavra de amor que chama, então
está acontecendo a revelação
54
.
Para Torres Queiruga, podemos dizer que este é o segredo de muitos místicos que
conseguem captar em tudo a presença de Deus, sua ação criadora e salvadora. É como
despertar do sono da aparência ordinária para realidade e poder constatar em tudo a
presença do Criador. Para estes místicos “o mundo se converte num espelho fluído e
transparente em que o homem, contemplando seu rosto, descobre o rosto do bem amado,
seu rosto verdadeiro”
55
. Lembra-nos isso também o apóstolo Paulo quando fala aos judeus
convertidos: “Deus que fez o homem para que este o encontre, Deus, a quem tentamos
apreender através do andar às apalpadelas de nossas vidas, este Deus se encontra tão
estendido e é tão palpável como uma atmosfera que nos banhasse. Por toda a parte nos
envolve, como ao próprio mundo”
56
.
A invisibilidade de Deus no mundo não significa um problema, mas ao contrário a
figura concreta da revelação. Deus é conhecido quando vem ao mundo e se revela, mas não
pode ser visto a partir das condições deste mundo. “Pois o modo divino de Deus aparecer
supera as possibilidades deste mundo que, como tal, dissocia no espaço, no tempo e dentro
do tempo, nos diversos modos temporais”
57
.
Na experiência da revelação, quando autêntica, a pessoa humana é capaz de
compreender que toda iniciativa em se revelar vem de Deus. E que somente, ao vir Deus ao
seu encontro, cabe ao ser humano reconhecê-lo. “Por isso o homem verdadeiramente
religioso proclamou sempre que é Deus quem fala, ama, perdoa... e que o homem
unicamente responde na fé, na oração, no louvor, na adoração”
58
. Para Torres Queiruga,
53
TORRES QUEIRUGA, A. revelação de Deus na realização humana, p.189.
54
Ibidem, p.189.
55
Ibidem, p.190.
56
Ibidem, p.190.
57
Ibidem, p. 191.
58
Ibidem, p. 193.
27
aqui, encontra-se também uma das dificuldades da pessoa em querer objetivar, coisificar
Deus, querendo apoderar-se dele, ou rebaixando-o à condição de um objeto passivo da
atividade humana.
Segundo o autor, a revelação não consiste em algo estático mas traz em si uma
dinamicidade, num constante dar-se a conhecer dinâmico. “A pessoa é conhecida
enquanto se a conhecer, está presente enquanto se faz presente”
59
. Toda a relação de
amizade abre à pessoa um mundo cheio de surpresas, de realizações. A partir desta chave
de leitura podemos ler toda a revelação Bíblica. “No encontro com Deus, que está desde
sempre chamando o homem, vão aparecendo novas dimensões e abrindo-se profundezas de
nenhuma maneira suspeitadas nem dedutíveis desde os primeiros estádios”
60
.
Deus não é alguém estagnado, parado, pelo contrário, é sempre ato. Não é um
profeta que aparece e se retira, que se cansa e se anima novamente. Como “ato puro”, é
alguém que está sempre em ação. “Meu Pai continua trabalhando e eu também trabalho”
(Jo 5,17). Presente a toda a criação e atento a cada um em particular, movendo os corações
com seu espírito, em todo tempo e circunstância (cf. Rm 8,22-30). De uma maneira que
ultrapassam todos os limites de nossa compreensão, revela-se sempre ao homem,
“pressionando” a consciência humana para que cada pessoa em cada circunstância o possa
descobrir. E quando a descoberta se produz, é sempre descoberta do Deus que estava aí,
mas chega e se revela porque quer
61
. Para Queiruga, a revelação se dá como um ato livre e
concreto do amor de Deus. Ele determina seu próprio ser. Isso não significa submissão ao
homem, nem mesmo uma distância indiferente, mas é uma liberdade que se dá no amor. É
pura adesão e entrega gratuita por parte de Deus. Toda a presença divina ao homem, em
qualquer tempo, modo ou lugar, é sempre ato concreto e decisão livre de Deus.
1.3 EXPERIÊNCIA HUMANA DA REVELAÇÃO
Quando falamos de experiência, partimos da definição de que é o ato ou efeito de
experimentar, ou a prática que vamos adquirindo em nossa vida. É a prática adquirida com
o exercício constante de algo. Dizemos: aquela pessoa é cheia de experiência, ou seja,
59
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 195.
60
Ibidem, p. 196.
61
Cf. Ibidem, p.197.
28
adquiriu com exercício constante de uma profissão uma prática capaz de responder por
determinado trabalho. Segundo Andrés Torres Queiruga, ao se falar de “experiência”,
“tratamos de evocar seu caráter de vivência presente, de presença atual, de influência
operativa sobre o sujeito, ante o que poderia ser mera recordação do passado ou simples
aceitação, porque outros o dizem, de algo externo e alheio”
62
.
Na verdade o autor ao falar em “experiência” e revelação, responde a um dos
grandes desafios deste tempo moderno, que é o da fé, ou da revelação de Deus, que parte
da experiência. No entanto não esclarece muito o conceito de experiência. E, além do mais,
aborda esse conceito, partindo da experiência empírica e científica, mas a experiência da
revelação de Deus também traz o lado de experiência que é mistério e que é experiência
amorosa.
Diante do termo “experiência”, é importante distinguir as diferentes expressões
com que se conjugam as experiências. Como, por exemplo, a experiência científica da
experiência existencial. A experiência científica é aquela que se conhece através da
ciência, em que se a relação entre sujeito e objeto. Nessa experiência de relação se
exerce um controle entre sujeito e objeto. Na experiência existencial, a experiência conduz
o ser humano e o ser humano é atingido, ou sofre a experiência.
Entre as experiências existenciais humanas, a experiência amorosa e a experiência
mística são as duas mais características. A experiência amorosa está ligada ao
relacionamento com a alteridade. O ser humano vai ao encontro do outro porque tem
dentro de si a possibilidade existencial concreta de sair de si e estabelecer uma relação de
amor, de encontro com o outro, uma experiência amorosa. Esta capacidade de sair de si
torna o ser humano aberto à relação com o transcendente, à experiência mística. A
experiência mística está ligada ao mistério, ao inefável, é algo dado gratuitamente por
Deus. Ele vem ao encontro, toma a iniciativa, revela-se, deixa-se encontrar. É uma
experiência que não tem como ‘dizer’, é mistério.
Outras experiências que caracterizam o ser humano são as experiências limites, ou
seja, a experiência da morte, da solidão, do sofrimento inocente, do erro. Na experiência de
morte está a experiência da finitude humana. Da incapacidade do ser humano de fazer
frente a essa realidade, a única certeza que está subjacente ao nosso viver. Outra
experiência limite é a da solidão. Estar sozinho pode ser uma experiência positiva, boa,
desde que se tenha consciência. A escolha de ficar sozinha durante um tempo pode ser
62
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 256.
29
enriquecedora. Olhando para a experiência do limite da solidão o ser humano passa por um
estado de profunda separação, isso pode se manifestar no sentimento de abandono,
rejeição, insegurança, falta de esperança. Enfim a experiência de estar consigo mesmo
numa solidão profunda, numa experiência limite.
A experiência limite do sofrimento inocente. Fazer a experiência de sofrer por algo
que não se praticou. Experimentar o limite de pagar injustamente por aquilo que a
consciência não acusa. Temos em Jesus o exemplo de alguém que na experiência da cruz
experimentou a máxima expressão do sofrimento inocente, mas que nele se tornou um
sofrimento redentor, fonte de sentido para todo sofrimento humano.
E, por fim, a experiência humana do limite do erro, do pecado, da fragilidade. Faz
parte da nossa experiência ordinária a imperfeição, o erro e a ruptura. Queremos ser
perfeito, nunca falhar. Mas a vida mostra-nos quanto falhamos. Apesar de não ser preciso
errar para ser humano, a verdade é que errar faz parte do limite da experiência humana.
Jürgen Moltmann, no seu livro O Espírito da Vida, descreve o conceito de
experiência e, mais concretamente a experiência a partir do Espírito. Segundo ele, tanto na
Filosofia quanto na Teologia o conceito de experiência é um dos menos esclarecidos. E pelo
fato de o conceito não estar estabelecido, logo a curiosidade desperta quando se parte de
experiências. “Experiência, no sentido mais amplo, designa a totalidade daquilo que ocorre
ao homem na vida de sua consciência”
63
, ou que, “experiência, abrange a totalidade daquilo
que a razão adquire no exercício de sua atividade”
64
.
Para Moltmann, no entanto, a maioria de nossas experiências não as fazemos com a
consciência nem com a razão, ou intenção consciente. Ao contrário,
percebemos com nossos sentidos as ocorrências que nos atingem,
elas tocam-nos o corpo, penetram nas camadas inconscientes de
nossa alma, e de certo uma pequena parte delas se torna
consciente e é ‘adquirida’ pela razão no exercício de sua atividade
reflexiva e interpretativa.... É evidente que a consciência, a razão e
a vontade racional fazem parte do sentir e do elaborar as
experiências. Mas nossa totalidade corpórea também experimenta
de outra maneira e também elabora as experiências de outras
maneiras.
65
63
MOLTMANN, J. O Espírito da Vida, p. 30.
64
Ibidem, p. 30.
65
Ibidem, p. 32.
30
Diz Moltmann que “a experiência do espírito de Deus não está limitada à
autoexperiência do sujeito humano, mas é um elemento constitutivo também na
experiência do tu, experiência da comunhão e na experiência da natureza”
66
. Portanto, na
medida em que Deus está em todas as coisas e todas as coisas estão em Deus, e, portanto, o
próprio Deus à sua maneira, experimenta todas as coisas, é possível a experiência em, com
e ao lado de toda a experiência diária do mundo.
Segundo Moltmann, a possibilidade que temos de reconhecer Deus em todas as
coisas e todas as coisas em Deus, fundamenta-se teologicamente na compreensão do
Espírito de Deus como força de toda a criação e fonte da vida. Como nos diz o salmo
“Escondes tua face e eles se apavoram, retiras sua respiração e eles expiram, voltando ao
seu pó. Envias teu sopro e eles são recriados, e assim renovas a face da terra” (Sl 104, 29-
30). Portanto, para Moltmann, toda a experiência de uma criatura do espírito é também
uma experiência do próprio espírito. Assim, toda a autoexperiência passa a ser também
uma experiência do espírito, de vida de Deus no ser humano.
O teólogo Karl Rahner, ao se referir à relação do homem com o transcendente,
enquanto criatura, frisa que essa experiência transcendental necessariamente nos remete ao
mistério:
está dado o que venha a ser condição de criatura e na verdade como
algo que é experimentado imediatamente nessa experiência. O
termo ‘condição de criatura’ interpreta corretamente essa
experiência original da relação entre nós e Deus. Em primeira
instância e originariamente, a condição de criatura refere-se a uma
relação cuja natureza só pode descobrir no seio da experiência
transcendental como tal e não no fato de uma coisa fundar-se na
outra do mesmo gênero dela.
67
Segundo Andrés Torres Queiruga, a revelação de Deus na realização humana vai se
realizando numa progressiva relação com Deus. “Unicamente à medida que a livre e
consciente subjetividade do homem vai-se apropriando na história do manifestar-se de
66
MOLTMANN, J. O Espírito da Vida, p. 44.
67
RAHNER, K. Curso Fundamental da Fé, p. 97.
31
Deus, pode acontecer a revelação. Por isso, esta o pode vir pronta, cda do céu.Tem
de fazer-se no próprio ir-se fazendo do homem
68
.
A revelação de Deus na realizão humana nada mais é do que dizer que Deus
o se revela, a não ser na e para humanização dos homens e mulheres que buscam dar
maior sentido e razão de ser para a sua exisncia.Deus se revela para nos tornar mais
humanos, solidários e fraternos, construindo o sonho de Deus de uma sociedade de
irmãos e irmãs.
Segundo o autor, se Deus cria o ser humano por amor, e por amor se oferece
gratuitamente a ele, eno o ser humano é aquele que recebe, que acolhe, que deixa ser
a ação de Deus em si mesmo. Para Queiruga, a idéia do Deus que cria por amor, parece
ser uma das chaves de leitura importante para uma nova forma de compreender a
relão imancia-transcendência.
Falando de criação, preserva a máxima diferença; mas vendo-a a
partir do amor, assegura a máxima identidade, (maior que a mãe
com sua criatura: Is 49,15). Fundando e sustentando o mundo,
Deus promove sua autonomia sem nela interferir, é presença viva
sem ter que ‘entrar’ em um espaço que está sempre cheio de sua
presença ativa, com iniciativa irrestrita e absoluta.
69
Segundo o nosso autor, a Palavra de Deus que nunca se esgota num único
paradigma, se encarna sempre, criando Hisria e assumindo as queses vitais e
cruciais do ser humano. Ela não se realiza senão na vivência cotidiana, mediante a
aceitação do homem. Deus é alguém que se aproxima do ser humano, para auxiliá-lo,
o o tolhe na liberdade. A dinâmica da salvação consiste na real dialética entre Deus e
a pessoa. De um lado está Deus em pura e constante doação e do outro, o ser humano e
seu empenho por receber e acolher a bondade divina. Neste contexto o ser humano
realiza a “experncia de Deus que, em sua bondade possibilita ao ser humano fazer a
experiência do divino.
68
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 292.
69
Idem. O Vaticano II e a Teologia. Concilium, nº 312, 2005, p. 26-27.
32
Ao se falar em experiência, e aqui experiência de Deus que se revela no humano,
tem também o confronto com Edward Schillebeeckx, que trata deste assunto
70
. Para ele,
“sem experiência não há revelação. De um lado, nenhum argumento que venha desde fora da
cristã poderá justificar esta fé, por outro lado, a salvação que se nos oferece
generosamente não pode ser vista fora da vida e da experiência humana”
71
. A revelação por
sua própria natureza tem a ver com a experiência humana, é uma experiência expressa em
palavras. É a ação salvífica de Deus enquanto experimentada e expressada pelo homem
72
.
O próprio Torres Queiruga, na apresentação do livro cristiana y Sociedad moderna, de
Schillebeeckx, comenta sobre a sua meta principal de romper com a oposição entre a
revelação concebida como mistério e a experiência humana. Mostra como a experiência
cotidiana tem muito caráter revelador, e por outro lado, a revelação religiosa chega a nós e
resulta como significativa se conectada com a experiência. Desta forma a revelação não se
impõe arbitrariamente, senão traz em si a autoridade da experiência.
Segundo a apreciação de Queiruga, Schillebeeckx termina a obra falando da
possibilidade de uma experiência de efetiva nas condições da sociedade atual. A
dificuldade vem, de uma parte, da pobreza experiencial da sociedade e de outra, das
mudanças profundas na socialização do cristianismo. Segundo ele, somente uma Igreja que
70
Para Edward Schillebeeckx a experiência é mais que mera vivência. A experiência realiza-se em processo
dialético com o concurso de perceber e pensar e de pensar e perceber. O pensar torna possível a experiência,
e experiência torna necessário novo pensar. Schillebeeckx em seus estudos busca compreender a experiência
cristã, concreta e contemporânea. Segundo ele, falta à teologia católica uma hermenêutica. O que se utiliza na
teologia católica, como equivalente a uma teoria hermenêutica, é a teoria da evolução do dogma, que permite
explicar a persistência da mesma verdade dogmática nas manifestações da fé em contexto cultural que passou
por mudanças, como desenvolvimento legítimo e homogêneo do implícito para o explícito. Segundo
Schillebeeckx, a consciência humana que faz experiência não é uma folha em branco e jamais se realiza em
vácuo psíquico ou sócio-histórico. aspectos complexos em relação à estrutura de nossas experiências.
Para o autor, uma experiência para ser competente, ter ‘autoridade’, deverá ser pesquisada racional e
criticamente. A experiência só se torna competente quando leva criticamente em conta os pressupostos do
seu surgimento. Experiências humanas são mediadas social e politicamente. Portanto, é preciso análise exata
da situação atual, para que novas experiências possam manifestar sua força originária. ( Cf. Gibellini, R. Op.
Cit, p. 325). Para Schillebeeckx, a revelação chega propriamente à sua plenitude como revelação real na
resposta de a uma situação muito concreta com um horizonte próprio de questões. Insiste em que toda a
experiência existe sempre enquanto interpretada. Isso vale contra todo fundamentalismo bíblico por parte dos
fiéis e contra toda acusação apressada de extrinsecismo por parte dos não fiéis. Não existe oposição entre
experiência e interpretação, de maneira que a pudesse ser tão-só uma interpretação, e apenas a não-fé se
apoiasse na experiência. Ambos, fiel e não-fiel, experimentam interpretando. É necessária a experiência viva
e real para que haja interpretação cristológica autêntica: ‘nenhuma revelação sem experiência’. A ruptura
entre e experiência é uma das causas fundamentais da crise atual entre os cristãos fiéis à Igreja. Cf.
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a Cristologia, p.74.
71
SCHILLEBEECKX, E. Cristo Y los cristianos, p. 39.
72
Ibidem, p. 39.
33
seja capaz de renunciar à uniformidade, aproveitando a plural riqueza dos grupos e
comunidades, terá uma presença profunda
73
.
A revelação pela história se realiza também na história individual. A crise da
comunidade no exilio babilônico supôs um avanço culminante no processo revelador.
O homem experimentou com decisiva nitidez a presença de Deus no
próprio cleo de seu estar sendo pessoa. A intimidade dramática da
vida de Jeremias como lugar em que descobre o Senhor em
proximidade, força e vivacidade nunca vista até então, constitui um
exemplo bem significativo.
74
Para o autor, a consciência da pessoa constitui um lugar privilegiado no anúncio do
divino para o homem. “Considerada em toda sua radicalidade e amplitude, a consciência
constitui de algum modo a determinação ontológica do homem em sua mais íntima
especificidade”
75
. Todo nosso ser é, enfim, um gesto real de Deus feito desde seu poder e sua
liberdade criadora. Gesto intencionado, dirigido a nós para que o captemos: na realidade
smica, na realidade histórica ou na realidade individual. Não há outra possibilidade, dada a
“diferença ontológica entre o criador e a criatura. Captar este gesto é acolher na
intencionalidade humana a ativa intencionalidade Divina que a ela se dirige: a revelação.
O ser humano é emergente, ou seja, não está plantado na horizontalidade de um
mundo redondo, mas é um ser aberto e dinâmico, que continua por outros caminhos, o
processo. Descobrindo, ao olhar para trás, o processo evolutivo, movido por um dinamismo
infinito, aberto a uma plenitude que lhe chegue a partir de fora e a partir de cima. Dentro
desta realidade e falando agora a partir da perspectiva religiosa e iluminado por ela, o
homem se sente, por trás, modelado desde a raiz pela mão criadora de Deus que o
impulsiona e, pela frente, colado ao rosto desse mesmo Deus, que o chama e lhe vem ao
encontro nas mil figuras, da realidade total. A revelação se insere nesta abertura. É
justamente a descoberta deste rosto e a escuta de sua palavra
76
.
73
Cf. SCHILLEBEECKX, E. Fé cristiana Y sociedad moderna, p. 10-12.
74
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 168.
75
Ibidem, p. 169.
76
Cf. Ibidem, p. 174.
34
Segundo o nosso autor, a revelação por parte de Deus sempre se realiza na liberdade
do homem. A relação pessoal do ser humano com Deus, embora oferecida e disponível por
parte de Deus, é efetivada quando é acolhida por parte de quem recebe a doação, ou seja,
o somente na resposta da pessoa se faz realidade concreta. Portanto, o processo da
revelação se identifica com a história do homem, avançando com ele em sua caminhada e
realizando-se em sua realização. Estamos muito acostumados a identificar o real com o físico
quando no homem o real é o espiritual. Através do corpo recupera-se todo o esforço
constitutivo do cosmos e da vida, que se traduz em consciência e liberdade. A revelação
implica pois, em algo bem simultâneo: “ação de Deus e a realização do homem”.
A pessoa humana descobre em sua emergência a força criadora e salvadora de Deus
que o pressiona para sua realização, mas sabe, também, que essa realização é sua, que é ela
mesma que cresce. Descobrir-se desde Deus é maturar o próprio ser, ir dando a ele a
substância de seu último e mais autêntico crescimento; ao mesmo tempo este crescimento vai
possibilitando uma dialética progressiva, novas capacidades de acolher a ação de Deus
77
.
Continuando com a concretude da revelação pode-se intuir que a presença de Deus na
liberdade humana possui uma eficácia inédita que, sem romper com a transcendência, o faz
distinta da presença em tudo o mais. O ser humano que “emerge” no mundo, realizando-se
no encontro com Deus, é o ponto em que a ação divina encontra uma possibilidade de ação
dirigida imediatamente à mudança, à transformação ou à conversão da pessoa
78
.
Para Torres Queiruga a presença de Deus se revela como chamado à mudança, à
conversão de vida, convite ao novo. Deus assim, pode influir diretamente no homem através
da liberdade. Fazendo-o receber influxos a cada momento por meio da natureza, da história e
do próprio Deus. Ele não entra em concorrência com a liberdade humana, a graça da
revelação consiste em que Deus se manifeste e confirme sua liberdade no quadro da livre
atividade do homem. À medida que Deus vai adentrando a liberdade humana, também
capacita o homem para que oriente na justa direção o mundo. “Deus entra na história e
transforma o mundo não à base de milagres e intencionismo, e sim através de sua presença
reveladora na liberdade do homem”
79
.
Deus não se manifesta como milagreiro que vai salvar a pessoa humana tirando-a da
opressão, injustiças, guerras, enfermidades, mas busca entrar na história humana através de
nossa liberdade, para transformar tudo isso. “Para abrir um horizonte de esperança, onde
77
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 202.
78
Cf. Ibidem, p. 203.
79
Ibidem, p. 205.
35
tudo possa ser assumido sem destruir o sentido de nosso ser e aniquilar nossa possibilidade
de realização”
80
. Influir no mundo através da liberdade, do amor que chama, corrige,
potencializa. A revelação se realiza no face a face do encontro. Aperceber-se da presença de
Deus não é descobrir um espaço neutro que a pessoa explora por sua iniciativa; ao contrário,
é sentir-se chamado, interpelado, levado sempre mais além de si mesmo por caminhos nunca
antes suspeitados, que um amor livre e gratuito vai traçando e iluminando. Quanto mais
intensa é a descoberta, mais evidente se faz seu caráter de dom
81
.
Segundo Torres Queiruga, a revelação consiste em ir descobrindo a ão de Deus
através de nosso ser, não é algo misterioso que irrompe na realidade. Podemos dizer
comparativamente que a revelação não é a cegonha e sim a “parteira”, ela ajuda a dar a luz o
que esdentro. Deus não falha, s é que falhamos, por isso o tem sentido entender a
revelação como um “milagre” intervencionista na história humana. Que Deus é esse, que faz
milagre a um e não a outro? Um Deus limitado não é Deus, Ele continua sendo onipotente, a
culpa existe em s, porque somos seres finitos. Não há nenhum conhecimento de Deus que
o seja revelação. Se algo descobriu de Deus, é porque Ele se deixa revelar
82
.
O que chamamos de revelação é uma resposta real e concreta a perguntas humanas e
por isso mesmo, são sempre as mesmas perguntas. Dessa forma, descobrimos a revelação,
porque alguém no-la anuncia; mas a aceitamos porque, despertados pelo anúncio, ‘vemos’
por nós mesmos que essa é a resposta certa”
83
.
Diante da religião, o seu fundador não coloca nos ouvintes algo externo que lhes seja
alheio, mas ajuda as pessoas a “dar-se conta”, a “dar à luz”. É a arte da parteira. Aquilo que
eles ou elas o em sua realidade mais íntima, a partir da presença viva e atuante de Deus
na criação e na História
84
.
Se a revelação consiste em dar-se conta de que Deus já estava aí, é porque a partir de
seu amor, Ele estava fazendo todo o possível para se manifestar, na máxima medida. “O
limite não é fruto da ‘mesquinhez’ divina que podendo revelar-se mais, ou melhor, o quer
fazê-lo. É fruto da inevitável limitação humana, infinitamente desproporcional ao mistério
que, como generosidade irrestrita, procura dar-se e manifestar-se por todos os meios”
85
.
80
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 206.
81
Cf. Ibidem, p. 211.
82
Idem. Anotações pessoais da palestra: O fazer teológico em tempos s-modernos, proferida em o
Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
83
Idem. Autocompreensão cristã, p. 18.
84
Cf. Ibidem, p. 18.
85
Ibidem, p. 20.
36
Deus não cria por amor a si mesmo, mas por amor a todo homem e a toda mulher.
Oferece-nos como dom a participação em sua plenitude. “A única coisa que não pode nem
quer é romper os limites de sua finitude; é preciso respeitar o crescimento da liberdade e o
trabalho da história, sem os quais a existência humana não pode ser, nem realizar-se”
86
.
86
TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreensão cristã, p. 20.
37
2. HISTÓRIA E REVELAÇÃO DE DEUS
Segundo Torres Queiruga, hoje, mais do que nunca se faz necessário retomar a
História e a forma como Deus foi se manifestando ao longo desta História. Por muito
tempo se herdou a idéia de ver a História sob a seqüência paraíso queda castigo
redenção – glória. Seqüência esta que, de certa forma, está incrustada no imaginário
coletivo tanto secular como religioso. Portanto, é importante romper com esse esquema
buscando uma leitura mais condizente e que leve a sério Deus em seu amor incondicional.
Ou seja, um esquema que, em lugar de ver um “Deus” que castiga implacavelmente
uma falta original, não só expulsando do paraíso e introduzindo o sofrimento e a morte no
mundo, mas exigindo inclusive o sacrifício de seu Filho para outorgar o perdão, propõe
uma sequência radicalmente distinta: a do Deus que por amor traz à existência sua criatura
que, como não poderia deixar de ser, nasce imperfeita, mas é sustentada incansavelmente
em seu crescimento ao longo de toda sua história que culmina em Cristo e que, graças à
ressurreição, se abre à esperança da glória definitiva, sem sombras nem fissuras
87
.
Deus não cria o ser humano primeiro como criatura neutra “natural” para depois
elevá-la a um estágio superior “sobrenatural”. Criada por amor, no amor e para o amor, a
criatura humana está desde sempre envolvida na graça salvadora de Deus, que a sustenta
no ser e a promove na sua realização possível na história, até a plenitude da comunhão
definitiva”
88
. Com isso, segundo Torres Queiruga, é possível compreender a imagem
divina a partir de um Deus amoroso, próximo, sem perder nada da riqueza que se buscava
expressar, mas igualmente sem cair em um otimismo cil. O mal continua sendo real e
não se nega sua dura presença, mas não é castigo divino, é antes um obstáculo que,
opondo-se igualmente à criatura e ao impulso criador que a sustenta, representa aquilo que
Deus “não quer” e em cuja superação Deus, como Pai-Mãe ao lado de seus filhos e filhas,
trabalha ele mesmo, apoiando e inspirando nosso esforço.
87
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal, p. 11.
88
Ibidem, p. 78.
38
A salvação em Jesus Cristo não é o preço a se pagar a um 'Deus'
irado; é exatamente o contrário: a culminação da ‘luta amorosa’
que, ao longo e no espaço de toda a história, o Deus-abbá sustenta
contra nossos limites inevitáveis e contra nossas resistências
culpáveis, com o único fim de nos dar a conhecer seu amor e fazer-
nos capazes de acolher sua ajuda.
89
2.1 A REVELAÇÃO NA HISTÓRIA
Percebendo a História como uma dos espaços teológicos da revelação de Deus,
Torres Queiruga entende que a revelação de Deus na História de homens e mulheres de
se manifestou desde o início da vida humana. Por sua vez, a “revelação na história aparece
partindo de sua própria raiz, não nascendo na história, mas também criando história e
realizando-se nela”
90
.
Para o autor, desde sempre o ser humano constatou que Deus se nos manifesta,
como o comprovam as religiões, os mitos e os ritos da humanidade, que pressupõem uma
comunicação real entre Deus e o homem
91
.
O mistério divino se manifesta dentro de nosso mundo. Podemos
encontrá-lo na natureza, que, enquanto criação de Deus, nos remete
ao Criador; no mistério que se revela no homem mesmo; e na
história, que vive de uma esperança que significa algo mais que a
história.
92
A plenitude da revelação com seu dinamismo não oferece resistência histórica.
Contudo, corre o risco de recair em fórmulas ou esquemas intelectuais. A Dei Verbum é
um exemplo disso, quando afirma a revelação como o revelar-se a si mesmo, manifestando
o mistério de sua vontade por parte de Deus. Ou ainda, ao centrar em Cristo a plenitude da
revelação, mas que no final apresenta a revelação como algo feito e fechado. “Não há de se
89
TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal, p. 78-79.
90
Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 140.
91
Cf. Ibidem, p. 144.
92
Ibidem, p. 148.
39
esperar outra revelação pública antes da gloriosa manifestação de Jesus Cristo nosso
Senhor”
93
.
Segundo Queiruga, a plenitude da revelação, como abertura histórica, nos apresenta
a revelação como algo sempre atual e aberto ao futuro, com o cuidado sempre novo de não
cair na armadilha da linguagem. Compara isso com uma “amizade” ou um “amor”, que,
depois de um longo tempo de gestação chega a um ponto em que a confiança é total e a
entrega, sem reservas. Pensar no término deste amor seria não entender nada, pelo
contrário, é neste momento que se desenvolve todas as potencialidades e possibilidades,
numa abertura ao futuro
94
. A mesma coisa, até mais rica e profunda, podemos dizer da
revelação.
Que a comunhão salvadora e amorosa de Deus com o homem
alcance em Cristo a plenitude, não significa um fim, mas o grande
começo, a ‘nova criação’, o espaço onde, a todo o homem é aberta
a possibilidade de avançar para a ‘idade adulta’, até a estatura que
corresponde à plenitude de Cristo (Ef 4,13).
95
Jesus Cristo plenitude da palavra definitiva de Deus, fecha em si toda revelação da
história da salvação ao mesmo tempo, abre-se como reveladora toda história da revelação
passada, presente e futura. “A historicidade do homem não fica, pois, anulada. Ao
contrário, fica estabelecida em seu âmbito definitivo e carregada com as possibilidades de
uma promessa infinita”
96
. Portanto, a revelação definitiva, como oferecimento histórico,
não passa a ser uma figura morta do passado, destinada apenas à repetição da memória. “É
a vida insuperável, porém sempre aberta a realizar-se na própria vida da história
humana”
97
.
Segundo o teólogo João Batista Libânio, existe um círculo hermenêutico entre a
história e a revelação: a História permite compreender a revelação e a concepção de
história é afetada pela revelação. Porém, história e revelação não são grandezas da mesma
natureza, mas se nutrem da mesma fonte de verdade
98
. Na revelação Deus toma a iniciativa
93
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 251.
94
Cf. Ibidem, p. 252.
95
Ibidem, p. 253.
96
Ibidem, p. 255.
97
Ibidem, p. 255.
98
Cf. LIBÂNIO, João B. Teologia da revelação a partir da Modernidade, p. 287.
40
e vem ao encontro do ser humano num diálogo amoroso, enquanto a história é construção
humana. Mas ambas se complementam, se projetam para a mesma direção, a plenificação
da história e a totalização da revelação.
Consciente de que o limite da revelação não é algo imposto por Deus e sim pela
impossibilidade da criatura, é que, hoje mais do que em outros tempos, a sensibilidade faz
superar com maior profundidade e coerência esta intuição. Isso não apenas se pode dizer
pela simples tradição bíblica, que rompendo a circularidade do tempo dá primazia ao
futuro, mas pela irrenunciável historicidade do homem. “Este consiste em realizar-se na
história, mediante o exercício da própria liberdade”
99
.
Torres Queiruga afirma que história e revelação podem ser entendidas como
dimensões que são afetadas pela ação de Deus e da pessoa humana. É na história que Deus
se revela, por amor ao ser humano e por respeito à sua liberdade de criatura que faz
história. O projeto de Deus, portanto, não se impõe, mas é dom gratuito. O teólogo
Wolfhart Pannenberg também defende a idéia da teologia como história.
Não se pode falar de revelação como palavra, e sim de revelação
como história; Deus não se auto-revela diretamente por sua palavra
endereçada ao homem, e sim indiretamente, na língua dos fatos,
isto é, por meio de suas intervenções na história, entre as quais a
ressurreição de Jesus Cristo.
100
Confrontando os espaços teológicos da revelação de Deus descritos por Torres
Queiruga, o teólogo Luiz Carlos Susin
101
no livro Descer da cruz os pobres, relata que, por
muito tempo, o lugar que pretendeu ser espaço humano do divino, a mediação reveladora,
foi o lugar teológico do poder. Quanto maior a potência, mais revelaria a onipotência
divina
102
. Ao referir-se à história como um dos espaços teológicos da revelação de Deus, o
Concílio Vaticano II, a partir da sensibilidade pastoral de muitos bispos, falando dos
99
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 287.
100
GIBELLINI, R. A Teologia do Século XX, p. 273.
101
LUIZ CARLOS SUSIN é frade Capuchinho. Nasceu em Caxias do Sul em 1949. Atualmente é professor
da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, e colega de Torres Queiruga no Comitê de
redação da Revista Internacional de Teologia Concilium.
102
Cf. SUSIN, Luiz C. O privilégio e o perigo do “lugar teológico” dos pobres na Igreja. In: VIGIL, J. M.
(org) Descer da cruz os pobres, p. 324.
41
“sinais dos tempos”, define com toda decisão a história e seus acontecimentos como lugar
teológico.
A teologia latino-americana, entretanto, passa a perceber essa história como um dos
lugares teológicos da revelação, mas, a partir de seu reverso. A partir daqueles que “não
têm poder”, que não triunfam, que historicamente foram explorados, ou seja, “os pobres”.
O lugar do pobre é o lugar da universalidade, a partir do qual todos têm possibilidade de
encontrar Deus, de entendê-lo e de receber a salvação universal
103
.
Para Torres Queiruga, a história é criação de Deus na medida em que toda sua
realidade e toda energia nela desenvolvida está fluindo constantemente de suas mãos
criadoras. O que sucede é que essa ação divina se realiza através da liberdade humana. A
ação de Deus se realiza em e através da liberdade humana por ela sustentada. O exercício
autêntico dessa liberdade é o lugar privilegiado no qual Deus se faz presente como fonte de
energia que suscita e como pólo de amor que atrai. O divino como constitutivo nuclear da
experiência social, a densidade sacral do mundo da fertilidade, verdadeira transição entre a
natureza e a cultura; as funções sociais com seus ritos de iniciação, consagração e
passagem; a própria história do clã, da tribo ou nação, com seus deuses protetores e suas
peculiares configurações religiosas foram sempre fontes fecundas de manifestação do
sagrado
104
.
Para o nosso autor, o povo de Israel, na origem de sua história, no momento de sua
decadência, na experiência do caos, como também na sua plenitude, descobriu a presença
ativa de Deus. No próprio esforço por afirmar-se através da dor e da alegria, da escravidão
e da libertação conseguiu descobrir a presença viva de Deus. Descoberta que tem a mesma
verdade daquela feita a partir da natureza. Diferentemente da natureza, com sua ordem
imutável, na história essa descoberta se realiza numa interação aberta, que se vai
aprofundando e auto-desdobrando acumulativamente como impacto de cada nova
experiência
105
.
Através da natureza contemplamos a glória e a grandeza da divindade, tendendo a
uma religião epifânica, na História, pelo contrário, se avança com a narração do tempo
real, com a presença de Deus se realizando no processo mesmo da realização do homem.
103
Cf. SUSIN, Luiz C. O privilégio e o perigo do “lugar teológico” dos pobres na Igreja. In: VIGIL, J. M.
(org) Descer da cruz os pobres,, p. 327.
104
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p.163-164.
105
Ibidem, p.165.
42
Em lugar da criação aparece a aliança como matriz fecundíssima de sentido, que tende a
‘historicizar’ o próprio mito, e abre a inesgotável riqueza de atributos éticos de Deus”
106
.
Torres Queiruga, em seu livro A revelação de Deus na realização humana,
descreve que toda a criança israelita do futuro sempre poderá perguntar a seu pai o
significado daquela história (Ex 12, 21-27) para conhecer assim a fidelidade de Iahweh e
aprender a descobri-la na própria vida. Esta mesma constatação é possível fazê-la através
da revelação profética.
Para o autor, captar a revelação é um processo de toda a pessoa. Tem lugar na vida
cognitiva e na emotiva, mas igualmente, e de modo decisivo o tem, na conduta prática. O
homem, cuja conduta se deixa guiar pelo dinamismo do amor e do serviço, está, mesmo
sem sabê-lo, captando e obedecendo ao chamado da graça; nele acontece e se manifesta
estritamente a revelação de Deus. Por sua vez, quem diz ter captado “cognoscitivamente” a
revelação, terá de mostrá-lo em sua práxis real, pois aceitar a revelação de Deus é aceitar
seus caminhos
107
.
A descoberta de Deus na história não acontece sem alguns pressupostos, vemos
assim o exemplo na própria experiência fundante do Êxodo, em que Moisés, não partia do
zero, pois tinha por trás não a tradição dos pais, mas também as religiões vizinhas como
a madianita e a egípcia. A história da revelação será a história religiosa da experiência cada
vez mais profunda e intensa na existência do individuo e na vida do povo. Com toda
evidência, Israel chegou a uma visão histórica impregnada pela fé, tendo como centro
dinamizador a experiência da libertação do Egito.
Sem buscar exclusivismo, nem querendo ser melhores do que os outros, o autor
defende que a religião bíblica se caracteriza, entre as demais, como uma religião aberta à
História. Que vai descobrindo-se a si mesma no decorrer do tempo, enfrentando novas
situações, novos problemas. Descobrindo a Deus, naquilo que Ele quer ser para nossa vida
e nossas atitudes diante dele e dos demais. Somos chamados a estar bem atentos à história,
ao que acontece na comunidade, na sociedade, na nação e no mundo, porque é que
vamos encontrar o Deus real e verdadeiro. ‘Eu serei aquele que serei’, disse a voz da sarça
a Moisés; ou seja, Deus é aquele que vai mostrando-se com sua presença ativa nas diversas
transformações da História. é que iremos encontrando, é que iremos descobrindo os
traços autênticos de seu rosto salvador
108
.
106
TORRES QUEIRUGA, A. A Revelação de Deus na realização humana, p.165.
107
Cf. Ibidem, p. 166-167.
108
Cf. Idem. O Cristianismo no mundo de hoje, p. 21.
43
2.2 A “PALAVRA” – LUGAR DA REVELAÇÃO
Para Torres Queiruga, a Palavra é um dos lugares por excelência da revelação de
Deus. Ao longo da história do povo de Israel, Deus foi se revelando em diferentes fatos,
pessoas, acontecimentos. A palavra revelada a partir dos profetas bíblicos se expressa
através de dimensões íntimas do ser humano, como vemos em Oséias: Como poderia eu
abandonar-te, ó Efraim, entregar-te, ó Israel (...) Meu coração se contorce dentro de mim,
minhas entranhas comovem-se. Não executarei o ardor de minha ira, não tornarei a
destruir Efraim porque eu sou um Deus e não um homem, eu sou santo no meio de ti, não
retornarei com furor (Os 11, 8-9)
109
.
Portanto, a revelação seja qual for sua essência mais íntima, não aparece como
palavra feita, como oráculo de uma divindade executado por vidente, mas como uma
experiência viva, como um “dar-se conta” a partir das sugestões e necessidades que estão à
volta, no contato com o sagrado
110
. A esta vinculação da palavra profética com a vida e a
história se devem também à riqueza e as modalidades de sua expressão. Na história da
humanidade houve poucas linguagens tão fecundas quanto à linguagem dos profetas
bíblicos. A revelação aparece assim descobrindo-se e expressando-se através das
dimensões mais íntimas do humano
111
. Tanto nos salmos como na literatura sapiencial
percebe-se a contribuição humana no articular o impulso que vem de Deus. A revelação
se realiza incorporando em si a carne e o sangue do esforço humano”
112
.
Por vezes, segundo o autor, dentro da tradição cristã, corremos o risco de fazer da
Bíblia um mundo à parte, sem nenhum contato com a realidade circundante, como nascida
totalmente de si mesma, isolada, sem influência ou derivações. A religião bíblica se
apresenta com uma força e com uma riqueza excepcional. Seria ingênuo pensar que os
homens da Bíblia viviam toda a sua ética, seu culto e sua religiosidade como algo
109
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 59.
110
Cf. Ibidem, p. 54.
111
Cf. Ibidem, p. 59.
112
Ibidem, p. 66.
44
expressamente revelado
113
. Na Bíblia não existe uma palavra determinada para designar o
que nós chamamos tão espontaneamente de ‘revelação’. Aparecem diversas expressões
como desvelar, aparecer, falar. A terminologia não clarificada indica que a Bíblia está
menos interessada no conceito e na reflexão acerca da revelação, do que no fato e no
acontecimento dela
114
.
A Bíblia, logo no seu surgimento, já manifesta seu caráter de encarnação e de
profunda humanidade. Vemos que a partir da monarquia e, portanto, de uma mudança
significativa na organização do povo, Israel percebe a necessidade de buscar uma nova
compreensão de si mesmo, a partir da fé. A Bíblia será pois a expressão dessa consciência.
Ou seja, vemos aqui que a revelação não surgirá a partir de um ditado verbal, expressão
usada pelo autor, mas como uma necessidade histórica e a consequente criação das
condições de sua possibilidade.
Segundo Torres Queiruga, se nos perguntamos de onde vem essa consciência
impregnada pela em seu Deus, perceberemos que um ponto de partida, ou seja, a
experiência que marcou toda a história de Israel: a libertação do Egito. Os relatos bíblicos
sobre o êxodo nos trazem narrações grandiosas, mas que historicamente tiveram pouca
repercussão no mundo egípcio. Contudo, por uma série de motivos, os hebreus viram
nestes mesmos acontecimentos a presença de Deus que os libertava e os conduzia a uma
terra onde pudessem constituir-se como povo. Percebe-se que no fundo há aqui uma pessoa
e uma experiência: Moisés e sua interpretação dos acontecimentos. Podemos através disso
perceber mais uma vez que o sentido e a essência da revelação não estão em ouvir vozes,
mas em discernir os sinais dos tempos, numa linguagem em que também o Concílio
Vaticano II pode nos iluminar, para perceber a presença viva de Deus nos acontecimentos,
presença que pede de nós uma resposta, um compromisso.
O autor trabalha, também, a partir da Palavra como revelação, a questão do
“movimento profético”. Percebe-se a força e a vitalidade com que a revelação de Deus se
através dos profetas. Num primeiro momento segundo Torres Queiruga, a impressão
de que os profetas possuem um contato privilegiado com Deus, contudo, também neles,
quanto mais sintonizam em sua experiência, mais se aprecia a presença do ser humano, da
história, da sociedade nas entranhas do processo. Pode-se dizer que a principal
característica do movimento profético não está numa inovação da revelação, mas na
fidelidade com a qual os profetas vivem a no Deus Javé. Não trazem com isso novas
113
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 24.
45
imagens de Deus, mas sim uma experiência mais plena de Deus. É a partir da inserção dos
profetas na realidade social e política de sua época, vivida num profundo contato com
Deus, que nasce a sua palavra ou a ‘Palavra de Iahweh
115
.
Para o autor, a “palavra” na tradução da revelação refere-se a uma necessidade
estrutural. “A experiência reveladora, para sê-lo, tem de ser vivenciada como manifestação
de Deus. Essa vivência precisa, por sua vez, ser expressa, tanto para ser compreendida
como para ser comunicada”
116
. No êxodo, se repete constantemente: disse Iahweh a
Moisés. E à medida que avança a história da revelação, este dizer de Deus vai ganhando
em intensidade e extensão. Trata-se de um dizer entranhado na experiência.
Para Torres Queiruga, o Deus do Antigo Testamento se apresenta ao ser humano
sem reservas em seu amor e apoio, respeitando, no entanto, a opção da liberdade não
forçando jamais sua acolhida. O Antigo Testamento transformou essa realidade em tema
central sob dois conceitos fundamentais: promessa e aliança. O conceito de aliança,
embora reconhecendo a desigualdade infinita dos contraentes, “como o céu está sobre a
terra”, sabe que a opção humana é um constitutivo intrínseco dela. O conceito de promessa
põe a ênfase na iniciativa absoluta de Deus, que não depende da resposta humana, mas que
salva por si mesmo, partindo da gratuidade de seu amor
117
.
O Deus que cria unicamente por amor, é evidente que vive voltado com
generosidade irrestrita sobre todas e cada uma de suas criaturas. Deus que nos criou para a
felicidade em comunhão com Ele, chama a todos e desde sempre: “Não houve desde o
começo do mundo um homem ou uma mulher que não tenham nascidos amparados,
habitados e promovidos por sua ação reveladora e por seu amor incondicional”
118
. A
revelação vista enquanto Escritura Sagrada aparece como palavra inspirada, que vem de
Deus e vai se revestindo de qualidades divinas. A revelação é a fonte de onde procede a
doutrina sagrada
119
.
Para Torres Queiruga, uma nova visão do Deus bíblico conduz a um conceito
peculiar, e de certo modo único, de criação. A experiência ao ser modelada, sobre a
imagem do Deus da Bíblia, adquire uma concretude especifica. “O Deus que cria é o
114
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 25.
115
Cf. SOARES, A. M. L. A revelação de Deus na realização humana, p. 46-73. Resenha sobre o livro com
o mesmo título de Torres Queiruga. Disponível em: <www.lanteri.org.br/htm/queiruga.htm>. Acesso em 26
de maio de 2009.
116
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 30.
117
Cf. Ibidem, p. 102-103.
118
Ibidem, p. 110.
119
Cf. Ibidem, p. 43.
46
mesmo que liberta no Êxodo, é anunciado pelos profetas e meditado pela sabedoria; ele
mesmo, cuja presença é levada a sua culminação insuperável na palavra e na vida de Jesus
de Nazaré”
120
. A experiência reveladora de Deus no Antigo Testamento deve ser
completada com a do Abbá de Jesus. Com certeza, em Jesus de Nazaré vemos a presença
palpável, real da revelação de Deus à humanidade, como Palavra “feito carne”.
Segundo o autor Torres Queiruga, a tendência a considerar a revelação como
palavra, e como a palavra consignada e fixada em livro, será naturalmente herdada pelo
Novo Testamento. A revelação veterotestamentária significa para o Novo Testamento a
Palavra de Deus: Deus falou aos profetas e falou através deles. Sem dúvida, a aparição de
Jesus supôs um acontecimento de tal magnitude, que sua presença viva constituiu-se, para
a experiência original, na figural real e palpável da revelação de Deus. A palavra aparecia
sustentada e transcendida pela encarnação. Ele foi mestre e revelador, com a doutrina, mas
também com as obras e com a vida inteira
121
. O evangelista São João identifica Jesus com
a própria palavra, o Logos,
Ele é por inteiro, revelação e palavra. Palavra que ainda é carne
viva e concreta, que vimos com nossos olhos, que contemplamos e
que nossas mãos apalparam (1 Jo 1,1); mas que, afinal, também
precisa chegar-nos por meio de palavras e que por palavras nos
entrega sua revelação: “manifestei o teu nome àqueles que do
mundo me deste. Eram teus e os deste a mim e eles guardaram a
tua palavra (Jo 17, 6).
122
Diante da percepção de que em Jesus de Nazaré se dá a revelação plena, a própria
teologia de comum acordo concorda na impossibilidade de continuar pensando a revelação
como um “ditado”. O autor deixa-nos aqui uma questão fundamental: E a consciência de
Jesus? Ele sempre possuiu plena consciência de sua divindade, como defende a teologia
clássica, ou tal consciência também teve que passar por mediações humanas? Neste ponto
a teologia não tem plena certeza, mas, mesmo não tendo tudo claro, compreende que a
divindade de Jesus se realiza em sua autêntica humanidade. “E o menino crescia, tornava-
se robusto, enchia-se de sabedoria; e a graça de Deus estava com ele”(Lc 2,40). Isso
120
TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal, p.95.
121
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 33-34.
122
Ibidem, p. 35.
47
também nos faz compreender, segundo Queiruga, que também para Jesus houve um
processo autenticamente humano que o levou à descoberta de sua união com o Pai.
Deus, portanto, segundo o pensamento de Torres Queiruga, não se revela de forma
extraordinária no mundo, mas mediante um processo, no qual mulheres e homens vão
percebendo seu emergir vivo e real na própria experiência humana, na medida em que
estes se colocam em relação com o sagrado. Podemos relacionar isto com a bonita história
de Carlos Mesters
123
em seu livro, Flor sem defesa, no qual diz que o primeiro livro que
Deus escreveu foi o livro da vida, o livro da Bíblia veio depois, porque o homem não
acolheu o primeiro.
Esta imagem de Carlos Mesters, nos é iluminadora pois nos ajuda a entender e
entrar na dinâmica do processo revelador, compreendendo a Palavra de Deus como espaço
também da revelação de Deus. Podemos dizer que a teologia clássica, no afã de querer dar
um tom abstrato e metafísico à revelação, contribuiu para que a revelação se afastasse do
sentido bíblico, como também da realidade humana. A contribuição das ciências bíblicas
tem devolvido à revelação bíblica sua justa fisionomia, reconhecendo a primazia do
Espírito de Deus, mas também, mostrando que a revelação, como nos diz Torres Queiruga,
dá-se na densidade do humano
124
.
2.3 A TRADIÇÃO COMO “PLENITUDE” DA REVELAÇÃO NA HISTÓRIA
Segundo o autor, talvez, o melhor modo de compreender a Tradição cristã consiste
em vê-la como realização da plenitude da revelação. A plenitude, significa que o lento e
difícil processo pelo qual o homem vai chegando a si mesmo a partir da revelação viva
com Deus que se lhe comunica, alcança o ponto de maturidade. Onde as chaves
fundamentais ficam desveladas e disponíveis e, portanto, a partir de então, é quando
verdadeiramente a revelação começa a ser experiência plena e efetiva. A Tradição constitui
justamente a História em ato dessa plenitude na História
125
.
123
CARLOS MESTERS é frade Carmelita, formado em teologia bíblica e doutor especializado em
Apocalipse. Natural da Holanda, trabalha no Brasil. É autor de inúmeras obras na especialidade bíblica.
124
Cf. SOARES, A. M. L. A revelação de Deus na realização humana, p. 46-73. Resenha sobre o livro com
o mesmo título de Torres Queiruga. Disponível em: <www.lanteri.org.br/htm/queiruga.htm>. Acesso em 26
de maio de 2009.
125
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 397-398.
48
Segundo a terminologia hegeliana não é desproposital afirmar que a Tradição é, ao
mesmo tempo, o espírito subjetivo da Igreja enquanto consciência, vivência e impulso que
a partir de Deus a anima inteiramente; e o espírito objetivo, enquanto multiforme
objetivação no culto, no pensamento, na arte, na vida e na ação.
O próprio Concílio Vaticano II disse o essencial diante do tema da Tradição, no
documento Dei Verbum, 8:
O que os apóstolos transmitiram compreende todo o necessário
para que o povo de Deus leve uma vida santa e cresça em sua fé;
assim a Igreja com seu ensinamento, sua vida, seu culto, conserva e
transmite a todas as gerações tudo o que ela mesma é, e tudo o que
ela crê.
Para Torres Queiruga, ao se falar em Tradição e Escritura, por muito tempo, se
viveu como polaridade o que a natureza e história são chamadas a viver em indissolúvel
unidade. Mas, hoje, se pode dizer que “Escritura e Tradição não podem ser concebidas
de nenhum modo como grandezas paralelas, e sim como mutuamente implicadas. Nelas a
mais abrangente é evidentemente a Tradição, e a mais defendida, a Escritura”
126
. A
Escritura como tal, está mais envolvida pela Tradição. A Tradição, tomada como ato da
Igreja, não pode em absoluto ser concebida sem a Escritura. Sem a Tradição a Escritura
tampouco poderia ser entendida, nem sequer, ao menos com certa garantia, ser reconhecida
em sua existência e legitimidade. Realmente, nem a leitura católica da Escritura e
tampouco a leitura feita pela Reforma pode conceber-se sem sua longa e determinante
contextualização no seio da experiência tradicional
127
.
No entanto, segundo o autor, pode-se dizer que internamente a Tradição precede”,
de certa forma a Escritura, mas também a Escritura “precede” a Tradição. A razão está em
que o fato de escrever foi um dos fatores mais eficazes e dinâmicos na própria constituição
da tradição eclesial. A Escritura é, de certa forma, uma objetivação da Tradição, mas ao
seu lado, também, estão outras objetivações como: os escritos dos padres, os textos
litúrgicos ou a práxis sacramental. Não é, contudo, uma a mais ao lado de outras, uma vez
que na Escritura, na riqueza de seus gêneros e de suas formas, no que tem de sugestivo seu
126
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 399.
127
Cf. Ibidem, p. 400.
49
simbolismo e amplitude do “mundo” por ela aberto, se reflete de algum modo toda
experiência reveladora. E se reflete com as qualidades insubstituíveis do texto escrito;
qualidades que, numa história em contínua expansão pela amplitude e pluralismo cultural,
são as únicas capazes de tornar possível a sobrevivência fiel e suficientemente unívoca
dessa mesma tradição.
Portanto, segundo o autor Torres Queiruga, como Igreja, não se pode manter a
Tradição sem uma constante volta às Escrituras. A Tradição é a presença viva da
revelação, e esta está constituída à base de “experiências de desvelamento”, alcançadas por
pessoas privilegiadas, em momentos privilegiados e fixados numa Escritura privilegiada. A
Escritura é assim o meio pelo qual a consciência da revelação se mantém viva na
história
128
.
Levando em conta a importância central da hermenêutica em nosso tempo
provocada a ampliar nosso horizonte e saindo de nossas disputas confessionais percebe-se
que,
a relação Escritura –Tradição está, com toda a evidência, entrando
num terreno mais amplo e generoso. Como uma nova promessa,
está chamando todas as teologias a sair de si, à elaboração de uma
compreensão mais unitária, simultaneamente mais de acordo com o
futuro e mais fiel às origens.
129
2.4 HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E HISTÓRIA UNIVERSAL
Para Torres Queiruga nunca o cristianismo esteve tão diretamente confrontado
como hoje com sua missão universal, diante dos diferentes povos e culturas. “Unicamente
aquela revelação na qual se alcança a plenitude do homem pode ser, com justiça, universal,
ou seja, apresentar-se como oferecimento a todos os homens”
130
. Para tratar da salvação é
necessário retomar a atitude do Deus de Jesus Cristo. Um Deus que se apresenta como pura
gratuidade, generosidade e amor. A partir de Jesus Cristo, Deus cria o ser humano para
plena realização. A concepção de um Deus que invade o inconsciente coletivo dos cristãos
128
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 401-402.
129
Ibidem, p. 402.
50
cria aversão, medo, descrédito. Vivemos num tempo em que crentes ou não crentes, não
suportam mais as exigências vindas de uma mentalidade religiosa tradicionalista,
formalista e ritualisticamente estéril.
Segundo o teólogo Karl Rahner, o cristianismo não é um ensinamento sobre fatos e
realidades que sempre se apresentam de maneira igual, mas, sim, é a proclamação de uma
história da salvação, de um agir salvífico e revelador de Deus para o ser humano e com o
ser humano. Ao mesmo tempo, é também a proclamação de uma História da Salvação e
não-salvação, de revelação e sua interpretação que também é feita pela própria pessoa. De
tal forma, que a história singular da salvação e revelação, portada pela liberdade de Deus e
da pessoa ao mesmo tempo, forma uma unidade
131
.
Para Torres Queiruga, a religião atual sobrevive com um peso que não lhe é
pertinente. A atual crise religiosa que estamos enfrentando é proveniente da diluição das
sustentações que alimentavam este modelo de religiosidade. Diante disso, a necessidade de
repensar os fundamentos da fé, tarefa da Teologia e preocupação do autor descrita no livro
Recuperar a salvação. Para o autor, se Deus cria a pessoa por puro amor e se oferece no
amor e na gratuidade, então o ser humano é aquele que acolhe, que deixa ser a ação de
Deus em si mesmo.
A Palavra de Deus que nunca se esgota, se encarna sempre, recria a História,
assume as questões vitais da vida humana. Ela se concretiza mediante a acolhida e
aceitação do ser humano. Diante disso, segundo Torres Queiruga, Deus se aproxima do
humano e o auxilia em sua realização. De um lado, portanto, está Deus como pura entrega
e doação e, de outra lado, o ser humano que acolhe e recebe a bondade divina. O divino
não é adversário do humano. A criação é o lugar efetivo no qual é operada a ação de Deus.
Para o autor, salvar não consiste em negar a criação, mas em conduzi-la à plenitude de sua
realização. Salvar-se é essencialmente acolher o projeto original de Deus.
A reconstituição da imagem de Deus, segundo a revelação evangélica, permite
traçar uma reflexão profunda sobre a cristã, permitindo também um diálogo fecundo
com as diferentes manifestações religiosas de nosso tempo. Deus manifesta a
universalidade de sua mensagem através da forma humilde com que se apresenta e da sua
abertura real à universalidade de todos os homens. Em Jesus de Nazaré Deus se encarna, se
faz pequeno, simples, humilde, assumindo o sofrimento e a cruz. “A radical oposição de
Jesus a particularizar a salvação, evitando assim excluir dela algum grupo ou individuo, foi
130
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 294.
51
referendada e visualizada dentro da história: a do sofrimento, a de não ter nada, a de dar
absolutamente tudo”
132
.
Para Karl Rahner, a História da Salvação e a revelação de Deus são a síntese
dada da ação histórica de Deus e da ação histórica do ser humano, pois a história divina e
humana da salvação não se pode conceber de maneira sinergética. Deus é, ao mesmo
tempo, o fundamento e o que energiza o ser humano com a graça e a responsabilidade pela
sua própria ação. Por isso, a ação salvífica divina, manifesta-se sempre na história humana
da salvação, a revelação manifesta-se sempre na fé
133
.
Jesus de Nazaré se torna um arquétipo real de um sujeito universal para a história,
sem títulos, sem glórias, sem privilégios senão o de sua profunda humanidade. O
verdadeiro “servo de Javé”, conforme anunciado pelo profeta Isaías (Is 52-53). Aquele que
não tinha ‘onde reclinar a cabeça’ (Mt 8,20) ‘assumindo a condição de escravo’ (Fl 2,5)
134
.
Percebe-se aqui, mais do que nunca, o amor absolutamente universal que marca o
dinamismo da revelação que está na entrega que Deus faz em seu filho Jesus aos
humilhados e ofendidos. Não precisamos como cristãos de mais justificativa como
presença real da revelação de Deus. “Uma fé que se proclama universal, e que o faz a partir
da experiência da cruz, tem de buscar necessariamente o ‘universal humano’ através do
esforço de uma maior justiça e de uma melhor vida para todos os homens”
135
.
Para Torres Queiruga, falando-se a partir da revelação na história da salvação em
confronto com a história universal, percebe-se que à essência da experiência cristã pertence
à consciência de que o que ela descobre não está separado do que descobrem os demais,
que o mesmo Deus que salva é o que está trabalhando com sua graça em toda a
humanidade a fim de trazê-la à mesma experiência. Portanto o anúncio da mensagem do
Evangelho, constitutivo desta experiência, não pode ser feito de forma “imperialista”,
como quem quer impor algo, mas de saber que as sementes do Verbo estão presentes
na realidade, de que nesta cultura diferente, Deus já está habitando. “O diálogo então
torna-se possível, porque consiste em avançar no seio de uma mesma experiência. Não
imposição, porque se trata de ajudar a reconhecer um Deus que é de todos”
136
.
131
Cf. RAHNER, K. Curso Fundamental da Fé, p. 171.
132
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 294.
133
Cf. RAHNER, K. Curso Fundamental da Fé, p. 176.
134
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 296.
135
Ibidem, p. 296.
136
Ibidem, p. 300.
52
Segundo o autor Torres Queiruga, a sensibilidade atual é alérgica a tudo que é
particular e tende a se universalizar. No sentido histórico, por outro lado, faz compreender
que tudo é situado no tempo e no espaço. Não existe uma universalidade abstrata, mas
somente aquela mediada lentamente pelos caminhos da história. A própria Teologia
compreendeu que a universalidade somente se realiza pela mediação histórica particular.
Por paradoxal que pareça, num mundo sempre mais universalizado, a consciência histórica
nos tem feito ver que uma religião somente poderá ser realmente universal se chegar a ser a
partir de dentro de uma particularidade histórica
137
.
A universalidade cristã, portanto, não pode querer impor na história nenhum
particularismo cultural, mas pelo contrário deve estar disposta a encarnar-se em cada
cultura buscando descobrir nela as sementes do Evangelho. A relação entre história
universal e história da salvação quer assim nos revelar que a história da salvação não quer
de forma alguma ser a negação da história do mundo, e sim sua capacitação e vivência a
partir de uma nova e mais profunda relação.
Uma revelação não poderia ser verdadeiramente plena se, de algum modo, não
alcançasse todos os homens. Sabemos, no entanto, que na multidão de homens e mulheres
destinatários desta revelação constituem uma minoria em contínua regressão, dentro da real
universalidade humana. Isto nos revela que um grande número de homens e mulheres não
chegará de modo efetivo à revelação bíblica. Como podemos então diante disso, considerar
a revelação ‘universal’?
Para Torres Queiruga, se a revelação é tomada em seu significado pleno, como
outro nome ou outro modo da salvação, compreende-se a transcendência do que aqui está
em jogo. Na realidade, por esta questão, passa uma das divisórias do fazer teológico,
segundo se atenda, ou a universalidade numérica dos homens, e aí se dilua a universalidade
especifica da revelação cristã; ou, ao invés, a centralidade de Cristo, deixando-se na
sombra do destino salvífico-revelador da multidão imensa dos que não conhecem
138
.
Torna-se necessário uma mediação, caso queiramos manter as duas evidências
fundamentais da experiência cristã, ou seja: “A universal vontade salvífica de Deus, ‘que
deseja que todos os homens se salvem’ (1Tm 2,4) e a radical centralidade de Cristo, pois
‘não há salvação em nenhum outro’ (At 4,12)”
139
.
137
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreensão Cristã, p. 26.
138
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 274.
139
Ibidem, p. 274.
53
A essência de Deus é ser dom e manifestação, o tem necessidade externa, Ele se
oferece desde sempre. Torres Queiruga retoma em seu livro, A revelação de Deus na
realização humana uma colocação de Christian Duquoc segundo a qual muitos tencionam
desvincular Deus de uma revelação histórica particular.
Ninguém menos que um pensador tão fino como George Morel
chegou a abandonar o cristianismo por isto. Crê, com efeito, que
assim pode assegurar a ‘gratuidade da relação com Deus’, o qual
está próximo a todos, e por isso não se envolve na história, pois
envolver-se significa escolher, e escolher significa excluir; o Deus
particularizado numa eleição histórica, para amar Jacó, tem de
odiar Esaú (Ml 1, 2-3).
140
No pensamento de Torres Queiruga, a concepção emergente da universalidade
reforça a afirmação de que ela nada mais é do que a outra face da plenitude, ou seja:
Unicamente aquela revelação na qual se alcança a plenitude do homem pode ser, com
justiça, universal, ou seja apresentar-se como oferecimento a todos os homens. Justamente
porque em Jesus se alcança esse limite insuperável, rompe-se nele toda particularidade e
sua revelação aparece intrinsecamente destinada a todos
141
.
Fica, sem dúvida, para todos nós a pergunta: se ainda hoje vemos a humanidade
num momento crítico de unificação cultural e verdadeira humanização, como foi possível
que Deus considerasse ‘maduros’ os tempos há vinte séculos? Quando esta pergunta
ultrapassa nossa compreensão, permanece nosso assombro diante da incrível entrega total
de Deus a uma história tão imperfeita. Neste sentido não se mostra tão artificial a
interpretação de que a revelação definitiva de Jesus se produz, justamente, no tempo em
que se o mínimo de condições para a inserção efetiva de seu dinamismo na corrente da
história universal.
140
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 279-280.
141
Cf. Ibidem, p. 294.
54
3. JESUS DE NAZARÉ REVELAÇÃO PLENA
Para Torres Queiruga, em Jesus de Nazaré acontece a revelação de Deus em forma
plena. Isso não significa conceber este dado como algo negativo, que, de certa forma,
paralise a história. Não significa que o Deus que até em tão se revelava ao homem para
comunicar-lhe verdades, a partir de Cristo deixasse de fazê-lo. A revelação consiste no
lento processo e no longo caminho pelo qual Deus vai seguindo e fazendo sentir sua
presença. O ser humano descobre assim, pouco a pouco, o verdadeiro rosto de Deus e, a
partir dele, a verdadeira orientação do próprio ser e da própria conduta. Que este processo
chegue em Cristo a seu auge, não supõe um acabar-se negativo, e sim totalmente o
contrário: o ápice positivo da máxima possibilidade. Em Cristo o homem tem, finalmente,
desvendado as chaves fundamentais em que se funda sua existência
142
.
Para o autor, esta realidade, longe de paralisar o homem, abre-lhe a possibilidade de
realizar-se de modo pleno. Ou seja, o ser humano tem diante de si todas as suas
possibilidades. Sabe quem é Deus, embora Ele continue sendo mistério. Mas um mistério
já desvelado como amor incondicional e promessa sem volta. Sabe-se qual o sentido
fundamental do caminho no mundo e com o próximo diante de Deus, pois está sempre
presente o chamado ao seguimento de Jesus.
Torres Queiruga apresenta dois exemplos que podem ajudar a esclarecer isso.
Quando a amizade entre duas pessoas chega ao ponto de sua plenitude isso não paralisa a
amizade, ao contrário, abre-se ao máximo de suas possibilidades. Outro exemplo se na
“história da espécie a milenar ascensão da evolução animal que alcança no ser humano a
abertura infinita da consciência e da liberdade, chega também a uma plenitude insuperável.
Isto não significa paralisação da vida, senão entrada no âmbito pleno e inesgotável da
história”
143
.
Para o autor, a revelação que alcança sua plenitude em Cristo não fecha, mas antes
abre, não paralisa a presença de Deus mas antes a torna patente em sua máxima atualidade.
Por isso, a revelação é sempre atual: Deus continua se revelando, não no modo de abrir
142
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização, p. 414.
143
Ibidem, p. 414.
55
novas chaves, isso se atingiu em Cristo, mas no modo de poder todos vivê-las na livre
acolhida de sua presença viva. Contudo, esta acolhida do Deus que se totalmente foi
total em Cristo, para os demais, é um processo sempre aberto e, portanto, historia em
desdobramento, que tem sempre à frente como meta e como garantia a plenitude do
Crucificado-Ressuscitado
144
.
A comunhão salvadora e amorosa de Deus com o homem que alcança em Cristo
sua plenitude, não significa um fim, mas o grande começo, a ‘nova criação’, o espaço onde
a todo homem é aberta a possibilidade de avançar para a idade adulta ‘ até que alcancemos
todos nós a unidade da e do pleno conhecimento do Filho de Deus, o estado de Homem
Perfeito, a medida da estatura da plenitude de Cristo’(Ef 4,13).
As religiões foram, ao longo dos tempos, espaços e modos de configurar socialmente
o descobrimento do divino como Esperança contra a dor e o sofrimento humano. Por isso, a
blia foi abrindo-se desde o exílio da Babilônia até a salvação que abarca todos os povos. E,
sobretudo, por isso a esperança se abre no Evangelho para ‘todos os povos’, com a segurança
de que o Senhor estará com eles ‘ao fim do mundo’ (Mt 28,19-20)
145
. Paulo foi quem
procurou explicitar esta idéia que estava viva, mas nem sempre explícita no anúncio de
Jesus. Revelando-nos Deus como o Abbá que ama todos sem discriminações nem
favoritismos, até o ponto de não excluir sequer os maus, a quem faz compartilhar com os
bons o sol e a chuva. Consciente da ameaça de desesperança que paira sobre a humanidade,
Paulo de falar dos que ainda não descobriram o Senhor como daqueles que estão ‘sem
esperança e sem Deus no mundo(Ef 2,12; Cf. 1Ts 4,13). Mas a experiência da salvação a
partir de Cristo o fez ver que, se todos estávamos sob o poder do pecado (Rm 3, 9-23) e se
todos continuamos sob a ameaça da desesperança, todos vivemos envolvidos na graça
salvadora e nos ‘gloriamos na esperança da glória de Deus’ (Rm 3, 2)
146
.
3.1 JESUS DE NAZARÉ, REVELAÇÃO PLENA
Segundo Torres Queiruga, em Jesus a autocomunicação de Deus alcança sua
plenitude insuperável e definitiva. A história da salvação se torna plena em Jesus de Nazaré.
144
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 414.
145
Cf. Idem. Esperança apesar do mal, p. 110.
146
Cf. Ibidem, p. 110-111.
56
Podemos constatar isso ao longo do Novo Testamento. Como por exemplo nos sinóticos
quando se diz: ‘não vim revogar a lei, mas dar-lhe pleno cumprimento’ (Mt. 5,17). Como
também na elaboração joanina de Jesus como o ‘logos de Deus ‘pleno de graça e de
verdade’ (Jo 1,14.16-17). A carta aos Hebreus também formula esta idéia de forma bem
consciente: ‘Muitas vezes e de modos diversos falou Deus, outrora, a nossos pais pelos
profetas. Agora, neste período definitivo, falou-nos por meio do Filho, a quem constituiu
herdeiro de todas as coisas’ (Hb 1,1-2)
147
.
A revelação plena está, de fato, incluída no mistério de Cristo e a partir dele
pode ser entendida. Isso significa que nele aconteceu de modo insuperável o encontro
revelador de Deus com o ser humano, ou seja: “A livre decisão divina de comunicar-se
totalmente e sem reservas. Cristo é o homem capaz de experimentar em toda a sua
radicalidade a presença ativa de Deus que se nos quer dar, e capaz também de acolhê-la
com a entrega absoluta de sua liberdade”
148
.
Segundo o pensamento de Torres Queiruga, podemos afirmar que na história da
salvação, antes de Cristo, tudo foi caminho rumo a Ele e, depois dele, um caminhar a partir
de sua plenitude. Nele a revelação não é um ditado, mas uma pessoa com toda a riqueza do
humano em todas as dimensões. Quando a crise modernista buscava superar a concepção
intelectual, foi a figura de Jesus Cristo que apareceu como chave para uma nova
compreensão. Não é mera figura retórica dizer que a vida e atuação de Cristo, não menos
que suas palavras, constituem a substância da revelação. Ele é a verdade e viveu a verdade,
não menos que a manifestou. Cada movimento de sua vida no Espírito significa um
ajustamento de todo seu espírito, mente, coração e vontade. Portanto, quando Deus se
revela ao espírito num grau extraordinário, é na experiência total que devemos buscar a
revelação e não simplesmente no elemento mental. Deus age com obras, não com
palavras
149
.
Em Jesus nos encontramos diante de uma existência humana na qual estão já
aplicadas todas as chaves, na qual o ser humano alcança sua realização última e definitiva.
O projeto de Deus diante do ser humano alcança em Jesus a realização plena. Nada ficou
para ser desvelado, na relação amorosa e livre de Deus para com o ser humano.
Para Torres Queiruga, em Cristo, como plenitude da existência na acolhida e na
entrega, se abre, ao máximo, a capacidade de infinito, realiza-se na história o que parecia
147
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 229.
148
Ibidem, p. 241.
149
Cf. Ibidem, p. 243.
57
impossível. Jesus Cristo se torna presença pessoal de Deus para o homem, realiza-se nele
aquilo que se considera por vezes impossível:
Que Deus possa abrir para o homem sem nenhum tipo de reserva, o
mistério absoluto de seu amor e de sua irrevogável decisão
salvadora e que a partir da humanidade esse amor e essa decisão
possam ser acolhidos numa opção total, sem reservas de egoísmo
nem deformações de pecado.
150
Segundo Queiruga, em sua plenitude, totalmente entregue à História, Jesus Cristo
recolhe em si elevando a pleno cumprimento todo processo revelador anterior, no qual ele
mesmo cresce como homem e o cumpre como Filho. Sobretudo quando ele abre a todos os
homens e mulheres o acesso a essa plenitude, ou seja: a partir dele, toda humanidade é
colocada na nova situação, tendo e para sempre a possibilidade de participar dessa
realização definitiva. Esta possibilidade que pode ser vivida e experimentada por cada
nova geração de filhos e filhas
151
.
Através de sua vida terrena e ressurreição gloriosa, Jesus Cristo constitui o marco
de toda a realização cristã. Sua vida, enquanto “revelada”, se torna modelo a ser imitado
como vida verdadeiramente humana em entrega absoluta na morte. Através da
ressurreição, converte-se num modelo vivo e criador da História. Vivo, porque não
estamos confinados na mera recordação, mas assistidos por sua presença real: mediante seu
espírito, o ressuscitado torna continuamente efetiva a revelação
152
.
Portanto, a revelação plena em Jesus de Nazaré vem a ser como que uma abertura
individual e histórica. Individual, enquanto cada pessoa tem na entrega absoluta de Jesus
um caminho, e histórica, enquanto se tem na presença do Ressuscitado um caminho aberto
ao futuro como realidade a ser construída. A vida de Jesus como nosso modelo concreto, e
a ressurreição como campo inesgotável alimentam a nossa caminhada histórica e cristã.
História aberta que nos diz que não podemos esperar: o paraíso na terra foi desvelado
definitivamente como fantasma totalitário e perigoso pela manifestação suprema da
cruz
153
.
150
TORRES QUEIRUGA A. A revelação de Deus na realização humana, p. 269.
151
Cf. Ibidem, p. 269.
152
Cf. Ibidem, p. 270.
153
Cf. Ibidem, p. 271.
58
Toda a História de Israel que, de certa forma, apropriava-se do acontecido como
povo “eleito de Deus”, encontra em Jesus a universalização. Derruba-se o muro (Ef 2,14)
eliminam-se as diferenças de homem ou mulher, escravo ou livre, judeu ou grego (Gl 3,
28).
Agora, não é apenas Israel quem pode apropriar-se, mas o
mundo inteiro: todos os povos e todas as religiões recebem a
possibilidade de fazerem-se discípulos (Mt 28,20), de entrar na
posse da ‘incomensurável’ riqueza já manifestado por Deus em
Cristo (Ef 3,8).
154
A plenitude em Jesus se revela como universalismo absoluto e sem fronteiras, na
totalidade do tempo e espaço. Deus se revela à humanidade de forma livre e sem reservas,
e, em Jesus de Nazaré, encontra a máxima recepção possível na história. “Cristo foi o
homem capaz de experimentar em toda a sua radicalidade a presença ativa de Deus e
acolhê-la na entrega absoluta de sua liberdade”
155
. Jesus Cristo também foi humano, e por
isso limitado, teve que ir perfazendo seu caminho. Dentro da história não podia viver na
plena transparência: de fato, os próprios evangelhos nos apresentavam Jesus envolvido
na busca e na pergunta ao último momento de sua vida: “Meu Deus, meu Deus, por que
me abandonaste”? (Mt 15,34). Somente através da ruptura dos limites históricos pela
morte, pôde entrar na luz plena da ressurreição
156
.
Torres Queiruga afirma que a experiência do Abbá em Jesus alcança sua
grandeza insuperável e rompe todas as expectativas, adquirindo intensidade e ternura que
vão alimentar para sempre a experiência religiosa. “Constitui o núcleo mais íntimo e
original de sua personalidade”
157
. A revelação de Deus em Jesus na experiência de audácia
e ternura constitui o anúncio de um tempo novo: do homem filial, porque tem a segurança
de que Deus, em sua profundeza mais abismal e em sua interioridade mais entranhável, é
um Deus paternal. Jesus estava consciente da novidade e de suas conseqüências, como
mostra, maravilhosa e misteriosamente, seu ‘hino de júbilo’: “Eu te louvo, ó Pai, Senhor do
céu e da terra, porque ocultastes estas coisas aos sábios e doutores e as revelaste aos
154
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 272.
155
Idem. O diálogo das religiões, p. 49.
156
Cf. Ibidem, p. 54.
157
Idem. Creio em Deus Pai, p. 96.
59
pequeninos”(Mt 11,25)
158
. Desta forma, percebemos que Deus revela em Jesus sua
paternidade entranhável como fonte de confiança e ternura que alimenta a vida e missão de
Jesus, e que permanece até os dias de hoje, alimentando a vida de seus seguidores e
seguidoras.
Em Jesus de Nazaré se manifestou o máximo da revelação de que Deus é amor e
perdão incondicional. Jesus é o Filho de Deus, porém, distinto de nós. Não podemos ver
quem é Deus, senão em Jesus, pois Ele não fala de si mesmo mas do ‘Abbá’, o Pai
159
.
É importante, ao se falar que a revelação em Jesus Cristo alcança plenitude, refletir
sobre a ‘consciência humana de Jesus’. A teologia clássica trabalhou por muito tempo com
um esquema vertical e monofisista sobre isso. Jesus teria chegado a terra sabendo de
tudo, e sua missão constituiu em ir revelando-nos isto aos poucos. Vem a ser este o
significado da conhecida tripartição da ciência de Cristo: beatífica, infusa e experimental.
Porém a ciência infusa e a beatífica eram, por definição, algo dado e perfeito, que a
humanidade de Jesus recebia positivamente. Por isso, tudo era claro para ele, sem sombra
de dúvida, erro ou ignorância.
Hoje, mesmo sem ter tudo totalmente claro, segundo Torres Queiruga, a Teologia já
compreende que a divindade de Jesus se realiza em sua autêntica humanidade. A mesma
pessoa que crescia em estatura, passando de criança que não sabia andar nem mesmo
alimentar-se, a jovem e adulto capaz de trabalhar e de percorrer seu país, sua união com o
Pai, foi sendo descoberta em sua missão por meio de um processo autenticamente humano.
Faz-se necessário dar destaque a esta questão a fim de nos sensibilizar para o caráter
encarnado do processo revelador
160
.
Por mais que busquemos compreender, percebemos que não existem dimensões
mais profundas na relação do ser humano com Deus do que a revelação de Deus na pessoa
de Jesus Cristo e seu projeto. Em Jesus, Deus se revela um Deus amor por excelência, vem
ao nosso encontro em sua humanidade, se faz um de nós e nos ama sem medida. Revela-
nos que, Deus é Pai e amor, que nos ama muito mais do que podem amar-nos um pai ou
uma mãe, que ama sem condições e perdoa sem limites, que o faz com todos, sem exceção,
que o amor é a única lei da vida, que o serviço é a norma”
161
.
158
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Creio em Deus Pai, p. 97.
159
Idem. Anotações pessoais da palestra: O fazer teológico em tempos s-modernos, proferida em São
Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
160
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 71-72.
161
Ibidem. O cristianismo no mundo de hoje, p. 23.
60
3.1.1 A Cruz como sinal revelador
Dentro dos lugares teológicos da revelação de Deus no dizer do autor está a Cruz e
a Ressurreição de Jesus. Deus nunca esteve tão perto de Jesus como na cruz. O Pai não
queria que Jesus morresse, queria simplesmente sua fidelidade à missão que lhe confiara.
O abandono faz parte do humano, e não mal nenhum que nos possa afastar do amor de
Deus. Só é digna uma que acredita no amor. Deus não quis a morte de seu Filho, como
também não quer o mal no mundo. Sofrimento e dor humana são experiências de que Deus
se compadece. Jesus não queria morrer na cruz, assumiu-a por amor aos seus. O amor
suporta o sofrimento.
A morte de Jesus na cruz não foi algo querido por Deus. O querer divino, está
apenas na livre assunção dos fatos provocados pela liberdade humana, passando por cima
de um prévio e decidido ‘não querer’ nada de mal para seu Filho. “A cruz é um produto
terrível do pecado, se a encarnarmos na perspectiva humana; e é manifestação do amor
levado até as últimas consequências, se a olharmos da perspectiva do Cristo”
162
. Podemos
ainda ver este acontecimento como revelação extrema do amor de Deus na pessoa de Jesus.
Jesus assume a cruz porque, na verdade, o ser humano não tolera a defesa do pobre,
do oprimido. Jesus não compactuou com a injustiça e hipocrisia dos homens. Ele, bom
como é, assumiu posição em defesa dos mais fracos, até as últimas consequências. Ele “foi
fiel à sua missão, dando-se sem reservas, sem guardar nada para si, nem sequer o mais
valioso: sua própria vida, sua ilusão de ver coroada sua obra”
163
.
Segundo Torres Queiruga, se perdermos isso de vista, a morte de Jesus passa a ser
vista como um fantasma teológico, frio e sem sentido. Corre-se o risco de olhar como “um
escândalo” que torna incompreensível o amor de Deus. Pois “vista em seu realismo cru, a
morte na cruz apareceu como um supremo indicador do amor de Jesus e do amor do Pai e
abre diante de nós sua inesgotável exemplaridade e sua capacidade de redenção”
164
. Jesus
não morre na cruz por um capricho ou em força de uma maldade absoluta e desencarnada.
Os que fizeram com que ele morresse tinham motivos muito sérios para agir como agiram.
162
TORRES QUEIRUGA, A. Recuperar a salvação, p. 181.
163
Ibidem, p. 181.
164
Ibidem, p. 182.
61
Para os escribas, os fariseus e os anciãos, Jesus rompia com todos
os seus esquemas religiosos e interditaria um sistema social que
estava profundamente socializado e lhes conferia sua própria
identidade: que um homem morra pelo povo e não pereça a
nação toda (Jo 11,50).
165
Jesus morre na cruz, segundo o autor, condenado por uma religião e por uma
política como tantos profetas de ontem e de hoje, e, de certo modo, como todos aqueles
que lutam em favor da paz e da justiça. Jesus vive até o extremo o fracasso constitutivo da
história de dor da humanidade. Deu sua vida por amor e foi esmagado justamente por
aqueles a quem amou. A perseverança até o fim foi o selo de seu amor. Ele se torna para
nós exemplo e modelo de como assumir na esperança o fracasso que a vida nos apresenta.
Entrega-se ao amor, apesar de toda incompreensão. Diante desta realidade é que podemos
entender a cruz como sinal revelado, ou seja, como expressão do amor e da entrega da vida
pelo Filho de Deus.
Deus, em tudo isso, “age como o autêntico Pai que acompanha seu filho na vida,
sem nunca inibir sua iniciativa nem anular sua personalidade”
166
. Jesus não morre
desesperadamente, no mais profundo de si, permanece uma grande confiança: “Pai, em
tuas mãos entrego o meu espírito” (Lc 23,46). Não melhor explicação para atitude do
Pai do que aquela contida na Bíblia: Deus amou tanto o mundo que entregou o seu Filho
único (Jo 3,16).O óbvio e surpreendente amor do Filho, se por nós “até o fim”. Deus
por querer unicamente nos salvar, consente na imensa dor de tolerar a morte de seu
Filho
167
.
Em Jesus revela-se a nós o supremo amor como sentido e expressão da cruz. Vendo
o que se passa com Jesus podemos melhor encontrar a certeza de nossa salvação. Deus
está conosco, ainda que não o vejamos, ainda que tenha de nos deixar afundar na dor e, por
fim, na morte. Esse é o preço inextinguível da finitude, verdadeiramente, Jesus penetrou
em nossa dor para salvá-la e apropriou-se do que de mais terrível em nossa condição,
com o objetivo de nos possibilitar e nos ajudar a assumi-la
168
. Isso se torna um sinal
revelado do próprio Deus. Sem esse sentido profundo da cruz, torna-se difícil convencer o
ser humano a respeito do amor de Deus, e mais ainda, de seu apaixonado interesse em nos
165
TORRES QUEIRUGA, A. Recuperar a salvação, p. 182.
166
Ibidem, p. 183.
167
Cf. Ibidem, p. 184.
168
Cf. Ibidem, p. 185.
62
salvar. Mas a partir disso será possível dizer ao ser humano que a sua cruz tem um sentido,
principalmente quando assumida nesta mesma perspectiva de Jesus Cristo.
Segundo Torres Queiruga, a entrega de Jesus na cruz, por puro amor, é o suficiente
para justificar sua dor vivida na entrega e na confiança. Essa entrega na cruz revela o amor
absoluto de Deus que em Jesus se torna visível à humanidade. Mas não podemos apenas
olhar este fato do sofrimento, da dor e da entrega confiante na cruz, mas olhar toda a vida
de Jesus como absoluto desprendimento e entrega incondicional. Jesus foi pobre. Podemos
contemplar isso a partir da gruta onde nasce, da túnica, único bem material que lhe restara,
sorteada ao da cruz. “O Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça” (Mt 8,20; Lc
9, 58). Jesus se identifica aqui com a sorte dos pobres
169
.
O autor cita o “Quarto Cântico” do servo de Iahweh, no qual desde o inicio, a
comunidade cristã reconhece Jesus, realização plena da figura do servo que acumula em si
a negatividade humana que nem parecia mais gente. Eis que meu servo de
prosperar, ele se elevará, será exaltado, será posto nas alturas. Exatamente como multidões
ficaram pasmadas á vista dele, tão desfigurado estava seu aspecto e a sua forma não
parecida de um homem... era desprezado e abandonado pelos homens, um homem sujeito à
dor, familiarizado com a enfermidade. Como uma pessoa de quem todos escondem o rosto;
desprezado, não fazíamos caso nenhum dele. E no entanto, eram as nossas enfermidades
que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava (Is 52,13-14; 53,3-4).
Embora numa perspectiva diferente, Paulo também descreve a dialética
humilhação-exaltação de Cristo, ou seja, o significado profundo da kénosis, do
esvaziamento. “Jesus esvaziou-se totalmente de si mesmo, de sua ‘condição divina’ e
assumiu a ‘condição de escravo’ que situando-o no último degrau da escala humana,
permitiu-lhe ser ‘simplesmente homem’ em toda a universalidade e por isso nos salvou”
170
.
Em Jesus de Nazaré não aparece de forma alguma um Deus afastado da miséria
humana. Da angústia do ser humano, diante da força cega das catástrofes naturais ou diante
da dor da mãe na morte do filho único, ou dos irmãos quando morre seu irmão querido, ou
da tremenda solidão dos excluídos da sociedade, da fome, da sede, do desamparo, da
violência
171
.
169
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Recuperar a salvação, p. 186-187.
170
Ibidem, p. 190.
171
Cf. Ibidem, p. 124-125.
63
3.1.2 A revelação de Deus na Ressurreição de Jesus
A maneira como o autor coloca a questão e orienta para soluções aos inúmeros
problemas que suscita a cristã na ressurreição, coincide com a posição dos melhores
autores contemporâneos, mas supõe a superação de inúmeras falsas abordagens que
prevaleceram até em passado recente e ainda estão vivas no vocabulário e na mentalidade
dos cristãos, mesmo os católicos.
Segundo Torres Queiruga, assim como a compreensão da revelação, também a
revelação na ressurreição de Jesus não pode ser compreendida como algo milagroso, alheio
à realidade humana, sem conexão com a experiência. Cabe aqui o esforço de perceber a
revelação de Deus na realidade bem humana de Jesus de Nazaré, no contexto religioso e
cultural em que viveu Ele e seus discípulos.
A teologia bíblica revela a incompatibilidade, por exemplo, entre imortalidade e
ressurreição. “Uma convicção não somente contrária à evidência histórica, como ainda por
cima, potencialmente perigosa, à medida que converte a ressurreição em algo isolado da
real experiência humana e, portanto, não verdadeiramente comunicável”
172
.
Para o autor, falar em ressurreição implica em falar de uma vida presenteada por
Deus ao ser humano que, em si, é imortal. Para a Bíblia, a vida eterna é um dom divino.
Com efeito, quem entender o mundo, o mesmo que o ser humano
em corpo e alma, como uma criatura, a saber, como saído em sua
totalidade da vontade do criador, e, por conseguinte, recebendo o
ser recebido desta origem, é possível que, ao mesmo tempo, tenha
este ser, chamado do nada, por algo que seja por si mesmo estável,
e que considere inimaginável que esse se volte ao nada. Em todo
caso, o próprio conceito de criatura faz com que esta seja incapaz
de se conservar por si mesmo no Ser.
173
Não somente o concebido caráter unitário da antropologia bíblica, mas também, e
com maior razão, o caráter estritamente pessoal da relação com Deus faz com que o
pensamento bíblico pense a ‘pessoa inteira’ quando fala de ressurreição. “É o sujeito orante
172
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreição, p. 122.
173
Ibidem, p. 124.
64
e sofredor, gozoso e adorador, não uma parte do mesmo que anseia pela comunhão eterna
com Deus”
174
. Nota-se aqui, como até mesmo os que acentuam o dualismo e a imortalidade
natural insistem em que “na morte não morrem, tomada a coisa com rigor, nem o corpo do
homem nem a sua alma, mas o ser humano em si mesmo”
175
.
O caráter pessoal da ressurreição segundo a Bíblia, é de suma importância, pois,
entre categorias do pensamento humano, unicamente as pessoais podem ajudar a
compreender este mistério no qual a máxima comunhão com Deus não leva o indivíduo à
dissolução, mas antes à sua máxima afirmação: “Ali chegando, serei verdadeiramente
pessoa, disse de forma admirável Santo Inácio de Antioquia”
176
.
Solidária com o caráter pessoal, para Torres Queiruga, a criação induz a uma
tematização clara, tanto do valor permanente e intransferível do individuo como da história
como processo único e irreversível em que se realiza. Na concepção bíblica, a repetição de
vidas diferentes não encontra lugar, pois esvaziaria de sentido a experiência desta relação
única de cada individuo com o Criador. E dado que, justamente por influência da Bíblia, o
sentido histórico constitui um dos fundamentos irreversíveis da cultura ocidental
177
.
Segundo o autor, a concepção bíblica da ressurreição está íntima e
indissoluvelmente unida à idéia de uma história que, para o indivíduo e a humanidade, se
apresenta como caminho único. De tal modo que, partindo do amor criador de Deus e
acompanhada por ele, tal história desenvolve-se em um tempo irreversível, para alcançar a
plenitude na comunhão definitiva da salvação
178
. Isso não impede, no entanto, que
aprendamos aspectos colocados em especial relevo pela ressurreição, como por exemplo,
“a vivenciar melhor a profundidade infinita de nossa origem no seio eterno de Deus, a
repensar o tema de uma possível maturação nessa passagem misteriosa que une a morte
física e a plena comunhão final”
179
.
A ressurreição de Jesus coloca-se, portanto, numa situação, que supõe uma
experiência nova, não numa experiência milagrosa, mas numa experiência real. “Daí que o
próprio fato de falar em novidade ou em caráter específico da ressurreição de Jesus,
174
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreição, p.124.
175
Ibidem, p. 124-125.
176
Ibidem, p. 126.
177
Cf. Ibidem, p. 129.
178
Cf. Ibidem, p. 130.
179
Ibidem, p. 130.
65
portanto, de uma situação, supõe que teve de haver uma experiência nova. De outro modo,
a afirmação ficaria reduzida a conceitos vazios ou palavrórios sem sentido”
180
.
Para Torres Queiruga, a dificuldade que se manifesta aqui talvez seja da própria
compreensão de experiência que temos e que aqui iremos tomá-la no seu sentido mais
óbvio de “encontro consciente com o real que se impõe por si mesmo.” Ou seja,
determinar-nos de maneira precisa em que consiste a novidade da experiência da
ressurreição. Isso porque, dado o seu caráter transcendente, a novidade não pode ser
buscada diretamente em acontecimentos empíricos ou em modificações empíricas de
realidades mundanas. Algo que, em princípio, é hoje aceito por quase todos, na medida em
que, geralmente, se exclui o caráter estritamente milagroso dos acontecimentos pascais.
Esta exclusão, no entanto, por vezes não se mantém em sua coerência. Normalmente, isso
se mediante qualificações lingüísticas ou deslocamentos semânticos: não são milagres
‘espetaculares’, o ressuscitado é invisível e intangível, mas se deixa ver ou tocar de
maneira ‘especial e misteriosa’; não é objetivável, mas perceptível aos olhos da fé
181
.
Para o autor, outro elemento a considerar quando se fala da experiência é a
tendência a pensar em experiências pontuais e concretas, como se toda experiência
tivesse de ser feita sobre algum dado ou fenômeno particular, concreto e isolado. O próprio
Aristóteles falava que existe outro significado fundamental: o da experiência no singular,
como resultado integrador de diferentes ‘experiências’, como resultado de toda a vida. Ao
pensar na ressurreição, é preciso referir-se a uma experiência global desse tipo.
Concretamente, podemos analisar a realidade dos primeiros discípulos. Trata-se de
toda uma experiência que eles realizaram numa situação concreta em que se encontravam.
Situação fruto de uma intensa convivência com Jesus, do impacto que tiveram com sua
morte e das experiências que vieram depois dela. Tudo isso os levou a uma nova
configuração de sua realidade vital, que até então só era compreensível para eles se
contemplassem também nela o dado “novo” da ressurreição de Jesus. Ou seja, somente ao
se aperceberem de que Jesus não fora anulado pela morte, mas que continuava vivo e
presente em pessoa embora num modo novo de existência, eles podiam compreender a si
mesmos, a Jesus e Deus em quem acreditavam
182
.
Segundo o que nos diz o autor, ao analisarmos a ressurreição de Jesus como
referência para nossa cristã, percebemos que prevalece algo em comum, a marca da
180
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreição, p. 133.
181
Cf. Ibidem, p. 133-134.
182
Cf. Ibidem, p. 135.
66
continuidade com a presente na tradição bíblica e conseguida através de um longo e
duro processo revelador. Dentro desta realidade os discípulos corresponderam e também
confessaram que Jesus de Nazaré, “assassinado injustamente por sua fidelidade, não
permaneceu aniquilado pela morte física; senão que ele cumpriu de maneira exemplar o
destino do justo: que Deus o ressuscitou e que, por isso, continua vivo apesar de sua
derrota aparente”
183
.
Sem romper este plano, faz-se sentir outra realidade mais profunda, que é o que
marca a diferença. Nota-se, principalmente, no fato de que não se sem mais “ao céu”,
pois a ressurreição não significa que Jesus perca o contato com a história e se afaste da
comunidade. Pelo contrário, toda a ênfase está em que se torna presente de “uma nova
forma”, reavivando a fé, chamando para missão e sustentando a esperança no futuro
184
.
Segundo Torres Queiruga, sabemos que a narração das aparições do ressuscitado
não pode ser tomada ao pé da letra, pois são construções imaginativas com base nas
recordações do Jesus a quem os discípulos haviam visto e ouvido. Todavia, narram uma
relação real, pois verdadeiramente o Senhor, morto e desaparecido da visibilidade
histórica, fez-se para eles presença viva e pessoal, reavivando sua fé e transformando a sua
vida. Desse modo, torna-se claro que a função da recordação imaginativa consiste em dar
concretude à experiência atual, que de outro modo, tornar-se-ia indeterminada, diluída e
psicologicamente ineficaz
185
.
Assim como os discípulos, também nós somos privados da presença física de Jesus
morto na história. Como eles, também nós estamos situados perante a presença
transcendente mas real do ressuscitado. Profundamente mudado, porque alcançou a
plenitude, Ele é o mesmo Jesus que os discípulos conheceram. “Como Cristo glorioso
identificado com o Pai, o Nazareno tem agora um novo modo de existência; contudo,
continua sendo o mesmo: com idêntico amor e idêntica ternura, com o mesmo cuidado e a
mesma entrega”
186
.
183
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a ressurreição, p. 140.
184
Cf. Ibidem, p. 141.
185
Cf. Ibidem, p. 144.
186
Ibidem, p. 244.
67
3.2 UNIVERSALIDADE DA REVELAÇÃO NO ENCONTRO COM AS
RELIGIÕES
Segundo Torres Queiruga, ao longo dos tempos dentro da visão tradicional nas
religiões, fomos acostumados a conceber Deus como o “Senhor” que nos cria para servir.
Disso nasce uma idéia dualista, ou seja, o que vem de Deus corresponde a uma realidade
sagrada e outra, que vem de nós, o profano”. Esta idéia continua, em boa medida,
dominando o imaginário cristão, consequentemente levando a uma práxis dicotômica.
Muito mais quando se pensa na idéia de “salvação” e “criação”. Aos poucos a teologia
iniciou um processo de superação dessa visão buscando uma coerência e aproximação mais
plena entre salvação e criação. A idéia de criação a partir do amor, que se faz única e
exclusivamente a partir de nós, elimina todo equivoco e rompe pela raiz com todo
dualismo. Falar de salvação tende a induzir o pensamento a entender que a Deus
interessa o “religioso”, aquilo que se relaciona com Ele. Ao invés, falar de criação permite
considerar que o que lhe interessa somos nós, tudo em nós, corpo e espírito, individuo e
sociedade, cosmo e história
187
.
Torres Queiruga chega a afirmar que Deus não cria homens e mulheres
“religiosos”, cria simplesmente homens e mulheres humanos, porque em se tratando de
religião como um pensar em Deus e servir a Deus, o Abbá de Jesus não procura buscar a si
mesmo nem ser servido. Jesus Cristo em sua prática pensa em nós e busca exclusivamente
nosso bem
188
.
As conseqüências dessa compreensão são importantes, porque nos leva a uma visão
que nasce de um modo aberto e positivo de situar-nos no mundo. As práticas que
contribuem para o crescimento e amadurecimento da vida humana colocam-se no
dinamismo do Criador. Tendo esta nova imagem de Deus, conseqüentemente, somos
conduzidos a uma nova imagem do cristianismo. Uma imagem que leva a uma nova
relação com as outras religiões e com a própria sociedade.
O autor, após desenvolver a idéia da revelação presente na palavra, na tradição e na
história, amplia seu pensamento para a revelação que se nas diferentes religiões.
Segundo ele, até pouco tempo, fomos levados a pensar, pela teologia e tradição da Igreja,
que “Deus escolhera um povo, ao qual somente entregara a revelação sobrenatural,
187
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Um Deus para hoje, p. 27.
68
deixando todos os outros no estado de uma religião natural”
189
. Na raiz desta concepção
estava um modelo de revelação como um ‘ditado’ divino no qual cabia ao ser humano a
leitura da palavra e a acolhida das verdades. Dentro disso cabia a compreensão de que
“fora da Igreja não salvação”. Felizmente, com a caminhada da Igreja, especialmente
com o Concílio Vaticano II buscou-se superar essa realidade,
mesmo
que
com
certa
timidez,
admitindo
a
“verdade e eficácia salvífica”
das
outras religiões
190
. Embora, se
possam constatar os limites e o vazio existente entre os princípios afirmados no Concílio,
com o hábito mental que continua bastante presente no imaginário dos cristãos. Percebe-se
no entanto, como essa concepção elitista e egoísta não cabe, quando se fala, na
universalidade radical e na generosidade infinita do Criador.
É evidente que um Deus que cria por amor, vive debruçado com generosidade
irrestrita sobre todas e cada uma de suas criaturas. Não cabe pensar na imagem cruel de um
pai egoísta que, gerando muitos filhos, preocupa-se com os seus preferidos, rejeitando
os outros
191
.
Desde o início do mundo, mulher e homem nasceram e foram amparados e
promovidos pelo amor incondicional do Deus da revelação. As religiões, no fundo, buscam
configurar de forma visível esta descoberta e por isso se consideram reveladas. “E é
preciso sempre partir, portanto, do principio de que todas as religiões são verdadeiras e
constituem, por isso mesmo, caminhos reais de salvação para os que honestamente os
praticam”
192
.
Segundo Torres Queiruga, a criação é fruto do amor do Criador, portanto a
experiência religiosa, ou a religião como tal, transforma-se num auxílio necessário e
indispensável para a realização do ser humano. A salvação do homem consiste
essencialmente na acolhida do projeto original do criador.
Isso não significa que todas as religiões vivam com igual coerência. Pois, tem a ver
com a situação histórica e as circunstâncias a que surgiram. Edward Schillebeeckx entre
188
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Um Deus para hoje, p. 28.
189
Ibidem, p. 31.
190
Cf. Ibidem, p. 32, Cf. Nota 21. Nesta nota Torres Queiruga cita um documento conciliar, decisivo para
nosso tema: “A Igreja católica não rejeita nada do que nestas religiões (não cristãs) de verdadeiro e santo.
Considera com sincero respeito os modos de agir e viver, os preceitos e doutrinas. Ainda que divirjam em
muitos pontos do que ela professa e ensina, não poucas vezes refletem uma centelha daquela verdade que
ilumina todos os homens. (....) Por conseguinte, exorta seus filhos a que, com prudência e caridade, mediante
o diálogo e a colaboração com os adeptos de outras religiões, dando testemunho da e da vida cristã,
reconheçam, guardem e promovam aqueles bens espirituais e morais, assim como os valores sócio-culturais
que neles existem”. Nostra Aetate, nº 2.
191
Cf. Ibidem, p. 33.
192
Ibidem, p. 34.
69
outros autores, trabalha a realidade da experiência e revelação e abre possibilidade do
diálogo entre as religiões cristãs e não cristã quando afirma, por exemplo, que não existe
ruptura entre fé e experiência, e que, portanto, “é na experiência que a pergunta humana e a
oferta cristã podem chegar a um encontro real. O homem moderno reflete sobre
determinadas experiências e as interpreta, muitas vezes, tateando cautelosamente de modo
religioso”
193
.
Olhando desta forma, segundo o que nos diz Torres Queiruga, percebe-se que não
existe religião sem alguma verdade, como também nenhuma absolutamente perfeita. O
próprio São Paulo no entusiasmo inicial de nossa Igreja, chega a afirmar que o cristianismo
achava-se em pobres ‘vasos de barro’ (2Cor 4,7). Aqui talvez esteja a raiz da diferença
existente entre as religiões: Deus doa-se o quanto pode em todas elas; mas a acolhida
difere, forçosamente, em cada uma. Isto não tem nada de parecido com “eleição” divina
arbitrária, mas quando, dentro da própria religião com suas possibilidades, alguém
responde honestamente a Deus, tem o direito de sentir-se único para ele e, nesse sentido,
“eleito”, ainda que seja melhor evitar essa perigosa expressão, pois o amor não discrimina
(Cf. 1Cor 12) e Deus não faz acepção de pessoas (Rm 2, 11).
A convicção de que a revelação divina culminou em Jesus Cristo deve estar longe
de qualquer favoritismo. É antes, uma forma de expressão máxima do amor e da
encarnação de Deus em nosso meio e uma forma de chegar ao coração de todos os que
acreditam.
Para Torres Queiruga, quando conhecemos de perto as riquezas simbólicas, os
rituais e a arte presentes nas demais religiões, não podemos continuar pensando que fora da
Bíblia, o que vem das outras religiões tudo são trevas e provêm do maligno. Aqui pode
nos ajudar muito a compreensão que John Hick tem desta realidade quando afirma que as
religiões, cada uma delas, são totalidades complexas de respostas ao divino, com suas
diferentes formas de experiência religiosa, seus próprios mitos e símbolos, seus sistemas
teológicos, suas liturgias e sua arte, suas éticas e estilos de vida, suas escrituras e tradições:
todos os elementos que interagem e se reforçam mutuamente. E essas totalidades diferentes
constituem respostas humanas diferentes, no contexto das culturas
194
.
Para Torres Queiruga, falando agora do cristianismo, afirma que “o Deus que se
revela a nós não aparece jamais como possessão própria nem salvação exclusiva, e sim
como aquele que mantém sua transcendência gratuita e intrinsecamente destinada a
193
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a Cristologia, p.74.
70
todos”
195
. Sem dúvida, desde o início do cristianismo primitivo, houve o cuidado e a
preocupação em compreender de fato a implicação universalista da mensagem evangélica.
A experiência cristã, que bem rápido anunciou a centralidade de
Cristo, a ponto de afirmar que “não há salvação em nenhum outro”
(At 4,12), não podia deixar de proclamar igualmente a
universalidade da salvação que brota da essência mais íntima de
seu Deus que ‘é amor’ (1 Jo 4, 8-16) e que por isso mesmo ‘quer
que todos os homens se salvem’(1Tm 2,4).
196
Segundo Torres Queiruga, a relação de diálogo com outras religiões e a constatação
da revelação de Deus em cada uma, remete à cristã e a leva a interrogar-se,
desapropriando-se de qualquer egocentrismo.“O encontro com as religiões se insere nessa
mesma dinâmica, emoldurando em um regime de dom e gratuidade, dentro do qual a
concorrência ou a tentativa de domínio acaba desmascarada como soberba e pecado”
197
.
Deus manifesta sua presença real e salvadora no coração de toda a história humana,
que se traduz de forma mais concreta nas religiões. A revelação não poderia ser
verdadeiramente plena, se, de algum modo, não alcançasse todos os homens e mulheres.
Portanto se justifica, aqui, a necessidade da universalidade da revelação. A universalidade
da revelação pode-se dar unicamente através da mediação histórica particular. Dificilmente
conseguiremos buscar um diálogo autêntico com outras religiões quando partimos do
pressuposto de que “nós somos a religião verdadeira” e que as outras manifestações
religiosas são falsas. Isso porque toda pessoa humana está em constitutiva relação
sobrenatural com Deus, em relação viva com Ele.
As religiões são exatamente a tematização desta relação, por isso que todas as
religiões” podem ser consideradas verdadeiras. A questão é, pois, ver o grau de verdade’
que, nesta difícil e obscura peleja por captar a irradiação amorosa do mistério, alcança cada
religião”
198
. Visto que o cristianismo, em sua missão de anúncio e denúncia, não vai ao
deserto da pura ausência, mas à plenitude da própria experiência, reconhece ser um “servo
194
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. O diálogo das religiões, p. 16-17.
195
Ibidem, p. 21.
196
Ibidem, p. 21-22.
197
Ibidem, p. 22.
198
Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 341.
71
inútil” que não busca anunciar a si mesmo, não é dono da semente que lança e muito
menos a faz crescer (Cf. 1Cor 3,6-7). Dá gratuitamente o que de graça recebeu
199
.
Para o autor, na realidade que vivemos hoje, é preciso
ir
além da própria religião,
saber que existe pluralismo religioso dentro da própria Igreja católica. Não podemos
absolutizar o que dizemos sobre Deus. As formulações sobre Deus não são absolutas.
Compreende-se, portanto, que toda religião seja revelada na justa medida em que é capaz
de dar-se conta da presença de Deus e acolhê-la, em contraste com o ateísmo que nega sua
presença
200
.
Aceitando como necessária uma base pluralista, Queiruga fala num pluralismo
assimétrico, categoria esta imperfeita, como todas, numa questão ainda em movimento,
mas que permite juntar realismo e respeito e postula a necessidade do diálogo. O
pluralismo num diálogo assimétrico, afirma que a revelação de Deus nas religiões possui
autonomia histórica, entra em relação dialética com o cristianismo e as outras religiões e
não numa relação de dependência. O que não significa que todas as religiões são
igualmente reveladoras, pois o amor de Deus é, sim, irrestrito, mas a recepção humana
resulta inevitavelmente desigual tanto na história da religião como entre as distintas
religiões
201
. Impõe-se diálogo e respeito.
Respeito, porque sem negar o fato das diferenças, reconhece
inequivocamente revelação real em toda religião. Diálogo, porque
sob a assimetria ‘horizontal’ entre as religiões, reconhece, mais
fundamentalmente, a ‘vertical’ de todas com Deus. Nenhuma
configuração religiosa pode esgotar a infinita riqueza do Deus
sempre maior que, transbordando toda compreensão particular,
descentra todas para o mistério comum.
202
Segundo o autor, toda religião é finita, não existe nenhuma que seja em todos os
aspectos, melhor nem pior que as demais, e que, por isso, não tenha algo que aprender e
algo que oferecer. Não somente a religião senão todo verdadeiro conhecimento de Deus é
revelado. É claro, o conhecimento concreto e não considerações abstratas.
199
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana,, p. 342.
200
Idem. Anotações de um polígrafo: A teologia desde a modernidade, entregue por ocasião do Simpósio: “O
lugar da Teologia na Universidade do Século XXI”. Em São Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
201
Cf. Idem. Repensar o pluralismo: da inculturação à inreligionação. Concilium. nº 319, 2007, p.113.
202
Ibidem, p. 113-114.
72
Segundo o autor, toda a religião nos leva a reconhecer a presença de Deus, a dar
resposta às nossas perguntas humanas. “Em última instância, às perguntas mais humanas
que existem: por que nascemos, para que vivemos, o que será de nós, por que o mundo
existe, quais são as metas fundamentais do nosso existir”
203
. Não que a religião tenha
respostas prontas para isso, mas a atitude religiosa surge quando o ser humano se conta
que existem perguntas para as quais satisfação quando nossa existência está apoiada
em Deus, em sua presença. “E compreende igualmente que era Deus quem já estava
suscitando essa resposta, quem a estava revelando”
204
.
Esta realidade é comum a todas as religiões, daí que o diálogo entre as diversas
religiões, tem adquirido grande relevância em nosso tempo. Seria muita pretensão querer
que somente em nossa religião se encontrem as respostas para as grandes e urgentes
perguntas da humanidade. É evidente que, os que nos confessamos cristãos, o fazemos
porque nos parece que a resposta cristã é, definitivamente, a mais completa, a que melhor
responde no seu conjunto. Porém, ao mesmo tempo, sabemos que no humano não
perfeito. Um cristão pode e deve aprender do budista, do hinduista, do islamita ou de
seguidores de qualquer religião
205
.
Para Queiruga, o que mais importa em tudo isso, não é a religião em si, mas a
contribuição que a religião pode dar à existência humana. As diferentes religiões são
captações do irrestrito manifestar-se de Deus. Ao invés de exclusivismos, faz-se necessário
partir do fundamental: todas as religiões são verdadeiras, no sentido que nelas se capta
realmente, mesmo se inadequadamente, algo da presença de Deus. Os limites estão no
modo e na definitividade. São verdadeiras e autêntica revelação, como o Vaticano II
reconhece solenemente, mesmo se captada em limites de tempo, lugar, cultura
206
.
A revelação bíblica tem seus pecados e suas deformações, mas superou-se em Jesus
Cristo. Longe de ser um favoritismo, constitui uma estratégia do amor de Deus, que busca
atingir todos os povos. Israel conseguiu acolher Deus num caminho bem próprio e original.
Revelou uma sensibilidade sem limites para captar a presença divina em seu caráter
pessoal e histórico. Deus, que em seu amor sem fronteiras não busca outra coisa senão
manifestar-se o máximo possível a todos os homens, “aproveitou” essas possibilidades que
ele mesmo sustentava para oferecê-las também aos demais. O que não significa que, como
203
TORRES QUEIRUGA, A. O cristianismo no mundo de hoje, p. 14.
204
Ibidem, p. 15.
205
Cf. Ibidem, p. 16.
206
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 415.
73
às vezes ingenuamente se supõe, Deus abandonasse os demais, pois a revelação continuou
trabalhando a intimidade de todas e de cada uma das religiões
207
.
Portanto, o diálogo com as demais religiões requer verdade e realismo. Primeiro,
porque parte da tentativa de descobrir melhor a presença de Deus que é de todos e a todos
se manifesta. E em segundo lugar porque de se tratar sempre de um “oferecimento
maiêutico”, apoiado não sobre a excelência da própria religião, mas sobre “o Deus que
quer ser dado à luz” na consciência de toda a humanidade. Assim, todas as religiões têm
algo a oferecer. Todos damos e recebemos, porque nada é nosso, tudo é graça. Graça
destinada a todos.
A experiência religiosa dá-se misturada às experiências humanas, porém sob a luz e
em base à tradição religiosa concreta em que se está e que serve de marco interpretativo
que sentido à vida. Desta forma, a fé procede de uma escuta atenta da mensagem cristã,
porém se consome e se transmite em uma experiência pessoal.
Aqui podemos encontrar uma linha de pensamento de Schillebeeckx, segundo ele,
como o ser humano pode chegar à religião através da experiência com outras pessoas e
com o mundo, esta mediação mundana explica a diferença entre as distintas religiões. A
pluralidade de religiões pode explicar-se pela mesma raiz, ou seja, pela multiplicidade de
experiências humanas dentro de uma história e de uma situação concreta. Assim, falar de
Deus a partir de experiências humanas está essencialmente relacionado com a
possibilidade de falar religiosamente das experiências mundanas, ainda que sempre à luz
de uma determinada tradição religiosa, por exemplo, a tradição experiencial cristã
208
. A
religião tem a ver com o dia-a-dia da vida das pessoas.
A religião é coisa bem terrena, pois nasce precisamente das
necessidades, buscas, esperanças, angústias e ilusões mais
enraizadas na realidade humana. Fala da vida e da morte, da
conduta individual e da relação com o próximo, refere-se a todos os
aspectos da existência.
209
O encontro e o diálogo entre as religiões no mundo tornaram-se hoje um dos temas
mais discutidos não na teologia, como também na filosofia da religião e na cultura.
207
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 416.
208
Cf. SCHILLEBEECKX, E. cristiana y sociedad moderna, p. 100.
74
Existem dois textos emblemáticos que Torres Queiruga trabalha em seu livro
Autocompreensão Cristã, que podem nos ajudar a compreender melhor quando se fala em
diálogo entre as religiões. Ambos os textos provêm da mesma autoridade religiosa. O
primeiro pertence ao concílio de Florença, e é de 1442:
Crê firmemente, confessa e prega (o Concílio) que ninguém dos
que estão fora da Igreja católica, não os pagãos, mas, também,
os judeus ou heréticos, bem como, os cismáticos, podem vir a se
tornar participantes da vida eterna; pelo contrário, irão ao fogo
eterno, que está preparado para o diabo e seus anjos”, mesmo
que, antes do fim de sua vida, forem agregados a esta Igreja.
210
O segundo pertence ao Concílio Vaticano II, e é de 1965:
A Igreja Católica não rejeita o que de verdadeiro e Santo nas
religiões não cristãs. Considera com sincera atenção aqueles modos
de agir e viver, aqueles preceitos e doutrinas. Se bem que em
muitos pontos estejam em desacordo com que ela mesma tem e
anuncia, não raro, contudo refletem lampejos daquela verdade que
ilumina a todos os homens (....) exorta, por isso, seus filhos a que,
com prudência e amor, através do diálogo e da colaboração com os
seguidores de outras religiões, testemunhando sempre a e a vida
cristã, reconheçam, mantenham e desenvolvam os bens espirituais e
morais, como também os valores sócio-culturais que entre eles se
encontram.
211
Cronologicamente, observa Queiruga, entre estes dois textos pouco mais de
quinhentos anos. Ideologicamente, parecem milênios. Faz-se necessário reconhecer
também que, passados pouco mais de quarenta anos, este último nos soa ainda bastante
tímido.
Estes textos nos colocam diante de um problema profundo. “Durante séculos, a
teologia cristã pôde passar à margem das religiões não cristãs sem perceber a
209
TORRES QUEIRUGA, A. Recuperar a Criação, p. 32.
210
Idem. Autocompreensão Cristã, p. 13.
211
Ibidem, p. 13.
75
monstruosidade que significa excluir seus fiéis de toda revelação e salvação divinas”
212
.
Hoje, segundo Torres Queiruga, mais do que nunca, se faz necessário uma renovação de
conceitos capazes de fazer frente à situação atual. Uma concepção de revelação baseada
numa leitura fundamentalista da Bíblia, ou em velhas posturas intelectuais e pré-criticas,
ou que não olhe de frente para os novos dados da situação cultural e religiosa será incapaz,
em sua raiz, de uma compreensão tanto teórica como aberta a uma atitude digna e
respeitosa na prática
213
.
Segundo o autor, diferentes encontros teológicos favoreceram a perceber a
convivência e a partilha da experiência de Deus nos projetos de vida de nossos povos.
Ajudaram a reascender a esperança e a entrar em intercâmbio com as culturas oprimidas de
nosso continente. O diálogo face aos diferentes conceitos de Deus existente entre o povo
poderá nos reunir em torno dos valores essenciais e contra o inimigo comum: a idolatria e
suas consequências
214
.
3.3 A REVELAÇÃO COMO REALIZAÇÃO ÚLTIMA DO SER HUMANO EM
PLENITUDE ESCATOLÓGICA
Segundo Torres Queiruga, as diferentes esferas da atividade humana são como que
o corpo em que a revelação busca se encarnar. Um corpo que tem sua dinâmica, forma seu
mundo e se integra nas diferentes culturas. De um lado a revelação evita que o ser humano
permaneça preso à banalidade, a idolatrias e, de outro, o mantém aberto para a emergência
humana no encontro com Deus
215
.
A revelação como última e autêntica realização do homem não atenta contra sua
autonomia. Ao contrário, interessa-se por ele de forma positiva e o promove. “Na
realização do ser humano realiza-se a revelação, a qual por sua vez constitui sua última e
suprema possibilidade”
216
. O Concílio Vaticano II na Gaudium et Spes nº 21 confirma isto:
212
TORRES QUEIRUGA, A. Autocompreensão Cristã, p. 15.
213
Cf. Ibidem, p. 17.
214
Cf. Ibidem, p. 8.
215
Cf. Idem. A revelação de Deus na realização humana, p. 220.
216
Ibidem, p. 220.
76
A esperança escatológica não diminui a importância das tarefas
temporais, mas antes proporciona novos motivos de apoio para seu
exercício. Faltando, ao contrário, esse fundamento divino e essa
esperança de vida eterna, a dignidade humana sofre gravíssimas
lesões.
A revelação como realização última do ser humano coloca-o como um ser crente,
aberto e plenificado na comunhão com Deus que vem ao seu encontro desde o mais além
de sua finitude. A revelação leva-o a superar o mau” e o “bom” do esforço humano por
compreender-se e realizar-se.
Acolher a revelação na fé, significa fazer a descoberta de que a
totalização do homem, atravessando e incluindo em si todo o seu
esforço cultural, completa-se ultimamente no encontro pessoal com
Deus, o qual se converte assim na chave que tudo ilumina de novo
e permite sua integração definitiva.
217
Para o autor, quando em suas buscas o homem reconheceu seu esforço de
autenticidade e acolhida consciente da revelação, “a totalização de seu ser no insuperável
encontro com o amor e com a intimidade de Deus, sabe que então tocou o mais alto e
insuperável de seu ser. Encontrou a rola e o tesouro que valem mais do que tudo e pelos
quais tudo se pode vender”
218
. Portanto, a revelação como realização última do homem não
é uma metáfora e sim a culminância.
Não se pode confundir o visível e o palpável com o real: a realidade definitiva do
homem está justamente nesta fronteira inacessível e sempre entregue ao movimento da
liberdade humana que acolhe o dom da liberdade divina. É isso que o eleva continuamente
acima de si de modo que, a partir da fé, o ser humano vai se definindo pelo encontro com o
Deus que se entrega livremente. Neste sentido o ser sempre mais humano pertence-lhe
como um constitutivo ontológico
219
.
Segundo Torres Queiruga, em Cristo a autocomunicação de Deus alcança sua
plenitude insuperável e definitiva. A partir da revelação como realização última do homem,
217
TORRES QUEIRUGA, A. A revelação de Deus na realização humana, p. 222.
218
Ibidem, p. 225.
219
Cf. Ibidem, p. 226.
77
a salvação do ser humano deixa de aparecer também como uma interrupção ou irrupção
externa, para ser uma eclosão de dentro do próprio processo, que na ‘plenitude dos tempos’
abre à ação criadora as últimas portas para sua realização definitiva na humanidade.
Criação, salvação, glorificação formam desse modo o continuum do amor divino, que,
criando-nos filhos e filhas, nos acompanham na dura luta do crescimento histórico até
acolher-nos na filiação plenamente realizada, quando o ‘conheceremos como somos
conhecidos’ (Cf. 1Cor 13, 12)
220
.
220
TORRES QUEIRUGA, A. Esperança apesar do mal, p. 90.
78
CONCLUSÃO
Chegando ao final desta dissertação sobre os lugares teológicos da revelação
divina no pensamento teológico de Andrés Torres Queiruga, não pretendo afirmar que
são apenas estes os lugares da revelação de Deus, mistério que é muito maior do que
nossa capacidade de compreensão e nossa experiência. São importantes, todavia, os
elementos teológicos apresentados por Andrés Torres Queiruga ao descrever os lugares
por ele privilegiados da revelação de Deus.
Mesmo que o autor procure responder ao desafio moderno da partindo da
experiência, os lugares teológicos da revelação divina, seja na experiência humana, na
tradição ou na história, como também em Jesus de Nazaré que é a revelação plena, não
esgotam por completo a revelação de Deus. Pois tudo está sujeito a mediações, inclusive a
revelação. As experiências da revelação de Deus podem ser ‘explicadas em parte’, sem por
isso serem entendidas no que lhes é essencial. A graça e o amor de Deus vão além das
mediações humanas.
O autor na trajetória de sua reflexão, além de acenar para os lugares teológicos da
revelação de Deus, como sendo a experiência humana, a tradição, a história e sua
culminância em Jesus de Nazaré, amplia o horizonte, reconhecendo a revelação nas
diferentes expressões religiosas. Para o diálogo, no entanto, com essas expressões
religiosas diz o autor, faz-se necessário repensar os conceitos da teologia cristã e a forma
de nos relacionar com Deus. Isso implica numa mudança de paradigma.
Diante do atual momento de crise causada pela secularização e o ateísmo, torna-se
um desafio repensar conceitos e a forma de conceber a relação de Deus conosco. Tal
reorganização do pensamento religioso, de acordo com o momento atual, quando chega a
afetar o conjunto da humanidade, constitui uma mudança de paradigma. Referimo-nos à
necessidade de uma nova forma de conceber a religiosidade, ou a espiritualidade. Segundo
Torres Queiruga a intuição básica capaz de contribuir hoje para a articulação de um novo
paradigma da espiritualidade e que se faz necessário retomar, é a do ‘Deus que cria por
amor’. A absoluta iniciativa divina pensada e vivenciada neste novo contexto leva a uma
atitude que talvez expresse bem a mudança de paradigma: viver tudo desde DEUS. Pode
79
ser esta também uma chave de leitura para o diálogo com as diferentes expressões
religiosas.
Com respeito à pós-modernidade, não se tem resposta de um perfil tão nítido, mas
isso não significa que respostas não estejam sendo dadas e talvez de uma forma mais
intensa e plural. O fato de o cristianismo estar sendo vivido nesta situação, de algum modo
está se dando respostas reais.Ou seja, ter fé, hoje, significa ser um ‘cristão pós-moderno’.
Os desafios da pós-modernidade no seu conjunto foram tão grandes que a Teologia se viu
obrigada a dar respostas imediatas que em muitos casos foram mais acomodações do que
um repensar profundo da Teologia
221
.
Para o autor, a necessidade de um novo paradigma para a teologia cristã se
fundamenta na atual realidade cultural-religiosa do mundo. A vertente religiosa dessa nova
realidade cultural, à primeira vista, oferece um ‘espetáculo paradoxal’: De um lado, crise
da religião, desencantamento do mundo, secularismo generalizado, ateísmo rompante; e de
outro lado, um mundo povoado de deuses, religiosidade redescoberta, florescimento
renovado da religiosidade popular. Frente à proliferação de novas formas de religião com
suas correspondentes espiritualidades, segundo Torres Queiruga, há que se perguntar sobre
a participação do cristianismo nesse processo. Para ele tal fenômeno responde a uma
insatisfação generalizada, que procura preencher o vazio provocado pelo abandono da
religião herdada, em alguns casos, ou pelo descontentamento com suas formas
estabelecidas, em outros. Diante disso, aparece o que se chama de ‘terreno abandonado’,
lugar onde o anseio de transcendência é sentido sem encontrar uma resposta satisfatória.
Faz-se necessário diante de tal constatação, estudar atenta e compreensivamente as causas
dessa insatisfação em sua referência específica ao cristianismo
222
.
Para Torres Queiruga, o confronto entre modernidade e cristianismo pode ser
explicado pela estreiteza dogmática’ que se apoderou de ambos. No entanto, a realidade
histórica presente oferece a oportunidade para uma visão de conjunto que propicie um
diálogo realista, uma atitude mais compreensiva e real. Portanto, o cristianismo pode
escolher dois caminhos: o da reação apologética ou o da criatividade histórica.O primeiro
busca as formas duras do fundamentalismo e do endurecimento institucional, procurando
‘cerrar fileiras’ em torno de um ‘pequeno rebanho’. Este, segundo o autor, seria o caminho
221
Cf. TORRES QUEIRUGA A. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 121.
222
Cf. Idem in SILVA, José Maria. Proximidades Teológicas à Pós-Modernidade em Hans Küng e Andrés
Torres Queiruga. Disponível em: <www.pucsp.br/rever/rv2_2006/p_silva.pdf>. Acesso em 28/05/2009.
80
mais equivocado. O segundo caminho seria o mais crível, ou seja, o da criatividade
histórica, deixando-se questionar, renovando o contato com suas raízes, aberto às
mudanças, à conversão. Adentrando por este caminho, o cristianismo terá de dar respostas
diferenciadas às duas etapas do desafio global, que são a modernidade e a pós-
modernidade
223
.
A crise que originou a modernidade consistiu em pôr em questão desde os alicerces
todo o marco em que a experiência cristã era configurada. Torres Queiruga acredita que a
Teologia tenha de levar isso muito a sério. Segundo ele, o Cristianismo entrou em crise no
‘mundo moderno’ precisamente por não ter adequado a forma da à nova situação. E
agora, reconhecendo a necessidade de mudança real, faz-se necessário, segundo o autor, a
assumir esta realidade e buscar uma adequação.
Descer às próprias raízes para elaborar a partir delas uma resposta
de conjunto. Em termos evangélicos, diríamos que não é mais hora
do remendo de pano novo sobre o pano velho, mas a de odres
novos para o vinho de um tempo novo. Em terminologia mais
atual, basta dizer que já se passou o tempo da acomodação ou do
simples reajuste, e se impõe uma mudança de paradigma.
224
Para Torres Queiruga, a crise nasce justamente porque os moldes culturais da
sociedade atual se romperam, tornando-se opacos à experiência originária. Portanto, o
desafio está nisto: ou se repensa a experiência originária da experiência cristã ou se
continua sem perceber seus reflexos na cultura.
Queiruga se arrisca a indicar algumas idéias fundamentais em torno dos quais é
possível articular um novo paradigma. A princípio pode ser articulado a partir de três
eixos, que são: a) O eixo da criação: este eixo insiste que a criação se realiza, única e
exclusivamente, por amor às criaturas, permite ver a Deus como afirmação infinita do ser
humano e de seu mundo. A ação criadora tanto mais é e mais se expande, quanto mais a
criatura se realiza. Para São Paulo a criação chegará à culminância quando Deus for tudo
em todos’ (1Cor 15,28), ou seja, quando a pessoa alcançar sua máxima plenitude. b) O
223
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. in SILVA, José Maria. Proximidades Teológicas à Pós-Modernidade em
Hans Küng e Andrés Torres Queiruga. Disponível em:<www.pucsp.br/rever/rv2_2006/p_silva.pdf>
Acesso em 28/05/2009.
224
Idem. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 121.
81
eixo da salvação: a partir da criação, fica claro que Deus cria por amor e unicamente
buscando o bem da criatura, a partir do eixo da salvação através de Cristo, fica ainda mais
fácil ter acesso a esse abismo de bondade. Se Deus cria é porque, apesar de tudo, o mundo
vale a pena. Rompidos pela morte os limites da história, Deus se mostra capaz de acolher,
com o poder de seu amor a finitude humana tornando-a infinita, de algum modo, ao
acolhê-la na comunhão de sua vida eterna. c) O eixo da revelação: a continuidade entre
criação e salvação se prolonga na revelação. Deus é uma presença sempre atual que
sustenta, promove e habita a criatura. A experiência bíblica fala de um Deus sempre em
íntima relação conosco. Santo Agostinho diz que ele nos é ‘mais íntimo que nossa própria
intimidade’. A revelação é um constante aperceber-se de sua presença. “Verdadeiramente,
Iahweh estava aqui e eu não sabia”(Gn 28,16).Vemos assim que a revelação é experiência
real e verdadeira, pois remete a uma presença viva que precisa ser reconhecida
225
.
Torres Queiruga insiste na necessidade de que a teologia cristã enfrente a necessária
mudança de paradigma repensando todos e cada um de seus grandes problemas à luz da
nova situação, dando com isso uma guinada em seus conceitos.
A partir da reflexão de Torres Queiruga sobre os lugares teológicos da revelação de
Deus, no contexto latino-americano, pode-se tranquilamente dizer, como um acréscimo ao
pensamento do autor, que um dos lugares privilegiados considerado teológico é o ‘mundo
dos pobres’. Eles não podem ser vistos apenas como objeto de compaixão e de mero
assistencialismo, ou como vítimas do pecado social e estrutural. Mas podem ser vistos
como lugar teológico privilegiado da revelação de Deus, pois, como nos diz o Evangelho
“a eles foram revelados os mistérios do Reino, ocultos aos sábios e prudentes deste
mundo” (Lc 10,21). Lugar especial para, a partir deles, reler a própria Tradição da Igreja e
a Palavra de Deus.
A teologia latino-americana passa a perceber a história como um dos lugares
teológicos da revelação, mas, a partir de seu reverso. A partir daqueles que ‘não tem
poder’, que não triunfam, que historicamente foram explorados, ou seja, ‘os pobres.’ Como
vemos na prática de Jesus, é partindo da ovelha que está fora que se garante a inclusão de
todos, é abraçando o pródigo perdido que se faz festa com todos, é recebendo os pecadores
à mesa que se dá a vida por todos. O lugar do pobre é o lugar da universalidade, a partir do
225
Cf. TORRES QUEIRUGA, A. Fim do cristianismo pré-moderno, p. 122-129.
82
qual todos têm possibilidade de encontrar Deus, de entendê-lo e dele receber a salvação
‘universal’
226
.
A partir do lugar teológico dos pobres podem-se entender melhor quem é o próprio
Cristo, sua vida e sua missão. Ele não deu preferência aos mais pobres, àqueles
necessitados de cura e de dignidade, como também, identificou-se com eles. Mesmo como
Senhor, ele é identificado nos evangelhos como aquele que serve, o menor. Segundo o
teólogo Luiz Carlos Susin, no livro Descer da cruz os pobres, a partir do lugar teológico
dos pobres se entende melhor o ser humano, sua fragilidade, um ser necessitado dos outros.
Pode-se descobrir neste ‘vazio’ o não ser deste mundo.
A partir do lugar teológico dos pobres pode-se conceber melhor a essência e a
identidade da Igreja com Povo de Deus, servidora, capaz de colocar-se a serviço dos mais
pobres e necessitados, como foi Jesus. E, por fim, a partir deste lugar teológico pode-se
compreender melhor quem é Deus, o modo dele ser e atuar na vida e na história. A glória
maior é um Deus humilde, diz Santo Agostinho, resumindo assim a revelação evangélica
de Deus, a grandeza de Deus em quem é pequeno. A prática da justiça para com o pobre e
indigente, segundo Jeremias, já é “conhecer” a Deus (Cf. Jr 22,16)
227
.
Concluindo a pesquisa sobre os lugares teológicos da revelação de Deus, nota-se
que, ao falar de revelação na experiência humana e na história, o autor não discute a fundo
a categoria de experiência e nem de história. Não deixa claro em que consiste cada uma
delas. Uma das questões, por exemplo, que não aborda é a dimensão política da história.
Ou seja, a percepção das implicações que a mensagem cristã apresenta no campo político e
social; e o desafio de ver como a mensagem cristã, o pensamento teológico, podem
desenvolver uma nova relação entre teoria e práxis. Os valores da tradição bíblica como a
justiça, a paz, a liberdade, a reconciliação não são um horizonte vazio, mas trazem consigo
uma dimensão pública e uma função crítico-libertadora diante do processo histórico e
social. Jesus, ao proclamar a Boa Notícia do Reino, a salvação, foi impulsionado a uma
prática política, na relação com os diferentes grupos religiosos-políticos de seu tempo. A
revelação cristã constitui uma que não leva apenas a tomar consciência dos valores
cristãos e de uma relação viva com Deus, mas também compromete a uma transformação
social e política da vida e da realidade. É importante saber reler a história da salvação e o
226
Cf. VIGIL, J. M. Descer da cruz os pobres, p. 327.
227
Cf. Ibidem, p. 328-329.
83
processo evangelizador também nesta perspectiva levando, assim, a uma fé mais viva e a
uma consequente práxis libertadora.
Outra observação ao pensamento do autor é que ele, ao falar da revelação de Deus
nas diferentes expressões religiosas, não faz menção da revelação de Deus na experiência
religiosa vivida em expressões culturais, simbólicas e litúrgicas da fé cristã ou em outras
expressões religiosas. A dimensão religiosa contempla necessariamente o aprofundamento
da experiência de Deus que se também a partir da cultura. A cultura pode tornar-se um
lugar da revelação de Deus, pois é a partir de sua cultura que o ser humano busca o sentido
da vida, da morte, da convivência. Aprende-se a olhar a revelação não somente do ponto de
vista da fé, mas também em experiências religiosas litúrgicas que o ser humano realiza
através das expressões simbólicas e culturais.
Não podemos absolutizar o que dizemos sobre Deus. Nenhuma das formulações
feitas sobre Deus é absoluta. Compreende-se, pois, que toda religião é revelada na justa
medida em que significa dar-se conta desta presença de Deus e acolhê-la em contraste com
o ateísmo que nega tal presença.
Concluindo, vemos que Deus, se revela a nós de maneira única e irrestrita em seu
amor que é sem medida. Cabe a nós, como humanos, sermos resposta a esta revelação de
Deus. Ele de muitos modos se revelou ao longo da história da salvação, na Tradição da
Igreja, na Palavra. Quanto mais permitirmos acolher a presença de Deus em suas diferentes
formas de se revelar, mais poderemos fazer a experiência de seu amor, bondade e
misericórdia. Diante das diferentes manifestações religiosas, das diferentes questões
relacionadas com a fé, a religião, segundo Andrés Torres Queiruga, muitas vezes, faz-se
necessário reaprender a fazer silêncio. Silêncio do missionário em meio às demais culturas
e tradições religiosas, silêncio que é contemplação das maravilhas que Deus já vem
operando em todos os povos, em cada ser humano. Por outro lado, é preciso estar
preparados para tomar a palavra e dar as razões de nossa fé.
84
REFERÊNCIAS
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2007.
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1999 (Col. Teologia hoje).
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São Paulo: Paulus, 1999 (Col. Teologia hoje).
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1999.
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______. O Vaticano II e a Teologia. Concilium, 312, (2005/4), p. 20-33.
85
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p.110-113.
______. A teologia desde a modernidade. Polígrafo entregue por ocasião do Simpósio: “O
lugar da Teologia na Universidade do Século XXI”. Em São Leopoldo, na Unisinos, em
27.05.2004.
______. O fazer teológico em tempos pós-modernos. Anotações pessoais de uma palestra
proferida por ocasião do Simpósio: “O lugar da Teologia na Universidade do Século XXI”.
Em São Leopoldo, na Unisinos, em 27.05.2004.
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FERRANDIN, Jairo. Apreciação sobre o livro: Recuperar a Salvação. Por uma
interpretação libertadora da experiência cristã de Andrés Torres Queiruga traduzido do
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SILVA, José Maria. Proximidades Teológicas à s-Modernidade em Hans Küng e Andrés
Torres Queiruga. Disponível em: <www.pucsp.br/rever/rv2_2006/p_silva.pdf> Revista de
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Disponível em: <www.lanteri.org.br/htm/queiruga.htm>. Acesso em: 26 de maio de 2009.
SUSIN, Luiz Carlos. O privilégio e o perigo do “lugar teológico” dos pobres na Igreja. In:
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