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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
IMORTALIDADE DA ALMA E RESSURREIÇÃO DOS
MORTOS NO CRISTIANISMO PRIMITIVO
JOSÉ HERCULANO FILHO
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões da
Universidade Federal da Paraíba, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre.
Orientador: Prof. Dr. Severino Celestino da Silva.
Área de Concentração: Estudo das Religiões
JOÃO PESSOA
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DA PARAÍBA
CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES
CENTRO DE EDUCAÇÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS DAS RELIGIÕES
Dissertação apresentada ao Curso de Pós-
Graduação em Ciências das Religiões da
Universidade Federal da Paraíba, como requisito
parcial para obtenção do título de Mestre.
Aprovada em 29/07/2009
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
Prof. Dr. Severino Celestino da Silva - Orientador
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
___________________________________________
Profª. Drª Simone Carneiro Maldonado - Membro
Universidade Federal da Paraíba - UFPB
__________________________________________
Prof. Dr. Manoel Matusalém de Sousa - Membro
Faculdade de Educação Superior de Timbaúba - PE
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AGRADECIMENTOS
Agradecer significa demonstrar gratidão. E nesse momento é importante
reconhecer as pessoas que serviram de pontes para superar mais uma fase dessa grande
travessia, que é a vida. Mesmo correndo o risco de esquecer alguém vou iniciar em ordem
aleatória, agradeço:
Aos meus colegas mestrandos e professores do mestrado em Ciências das
Religiões, que apesar de tantas dificuldades estruturais e materiais, continuam confiantes na
missão. E que transformaram o convívio e as discussões em momentos saudosamente
prazerosos.
À minha esposa Rita de Cássia, as minhas filhas: Yasmim e Sofia, pela paciência
comigo nas longas horas de ausência e quando presente, ausente nos pensamentos.
Aos Professores Ana Coutinho, Carlos André, Elinor Theorga, Fabrício Possebon,
Neide Mielle, Simone Maldonato, pelo o apoio dado no mestrado e no trabalho de pesquisa.
Ao meu amigo Josias Mendes, poeta e filósofo, pelo esforço inabalável na difícil
missão de leitura e releitura dos textos.
Aos meus irmãos Maçom e Rosa-Cruz, Jailson Coutinho e Vitor Lins, por auxiliar
no trabalho de orientação, ajuste, bibliografia e confecção da capa do livro.
Ao meu Orientador, Amigo e companheiro de estrada Espírita, Dr. Severino
Celestino da Silva, cuja orientação paciente, permitiu-me chegar ao final desse processo
transformador.
Ao grande Dr. Professor Manoel Matusalém Sousa, nobre intelectual, que na
prazerosa obra da Justiça e da Ordem, se prontificou pacientemente a beber de mais uma fonte
de saber.
A nossa nobre servidora, amiga Maria, que com sua paciência e luz interior
ilumina cada vez mais o mestrado em Ciências das Religiões.
Enfim obrigado a todos vocês que tive a oportunidade de encontrar nessa
travessia, pois iluminaram o meu caminho e certamente iluminarão a de outras pessoas que
por aqui passarem.
Assim Seja!
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RESUMO
FILHO, José Herculano. Imortalidade da Alma e Ressurreição dos Mortos no
Cristianismo Primitivo. [Immortalité de l’âme et la Résurrection des Morts dans le
Christianisme Primitif].
Este trabalho apresenta uma descrição do tema Imortalidade da Alma e Ressurreição dos
Mortos no Cristianismo Primitivo, presente nas duas colunas basilares do conhecimento de
nossa cultura ocidental, a saber: filosofia e religião. A narrativa percorre as expressivas
culturas da antiguidade que vão dos ensinamentos Vedas, ao pensamento Grego, Persa,
Egípcio até o Judaísmo-Cristão. A proposta é construir uma retórica do processo de formação
desses conceitos na literatura teológica e filosófica nas respectivas culturas e registrar o papel
que tiveram na formação epistemológica do Cristianismo Primitivo e sua conseqüente
evolução. O tema imortalidade da alma surge na cultura ocidental com os mistérios órficos
gregos, penetra na filosofia pitagórica e abraça o pensamento platônico, enquanto que o
conceito de ressurreição é anterior ao judaísmo-cristão, tendo indícios no antigo povo Persa e
na cultura Egípcia, com o mito da ressurreição de Osíris, que tinha um caráter profundamente
hermético e iniciático, uma alegoria aos fenômenos da natureza. Com o advento de Jesus na
Palestina, o Cristianismo consequentemente herdou profundamente os fundamentos
teológicos Judaicos. E o conceito de ressurreição passou a ser objeto de no messianismo
paulino, que ultrapassou as fronteiras de Jerusalém e se expandiu para a Ásia Menor,
adentrando no império romano, tornando-se religião oficial. Nesse momento, o Cristianismo
passa pelo processo de ajuste doutrinário”, as correntes que defendiam doutrinas filosóficas,
a exemplo do gnosticismo cristão, neoplatonismo, em torno da preexistência, imortalidade,
reminiscência da alma, foram anematizadas no culo VI e nos seguintes. Passado o período
do pensamento patrológico e medieval, surge o movimento renascentista entre o século XIV e
XVI e posteriormente o iluminismo, períodos que marcaram profundamente a sociedade
européia. Daí nasce o desencantamento religioso que se instaura no seio da sociedade
intelectual da época, mudando totalmente a maneira de ver o mundo. Com os movimentos
vieram as reformas, o surgimento de doutrinas como o protestantismo, o rosacruscianismo e o
espiritualismo, também nasce um novo olhar da ciência em torno da morte e da imortalidade.
Palavras-chave: Imortalidade da alma. Cristianismo Primitivo. Ressurreição dos corpos.
Renascimento. Reencarnação.
5
RÉSUMÉ
FILHO, José Herculano. Immortalité de l’Âme et la Résurrection des Morts dans le
Christianisme Primitif. [Imortalidade da Alma e Ressurreição dos Mortos no
Cristianismo Primitivo].
Le sujet de cette dissertation porte sur l’Immortalité de l’Âme et sur la Résurrection des Morts
dans le Christianisme Primitif qu’on retrouve dans les connaissances de base de notre culture
occidentale - la philosophie et la religion. Le récit se rapporte aux grandes cultures de
l’Antiquité, à partir des enscignements du Veda jusqu’à la pensée grecque, persane,
égyptienne et même le judaïsme-chrétien. La proposition est de construire une rhétorique de
la formation de ces concepts dans la littérature théologique et philosophique des cultures
mentionnées et d'enregistrer leur rôle dans la formation épistémologique du christianisme
primitif et son évolution ultérieure. Le thème de l’immortalité de l´âme naît dans la culture
occidentale des mystères orphiques grecs, s’introduit dans la philosophie de Pythagore et
comprend la pensée platonicienne, alors que le concept de la résurrection précède le judaïsme-
chrétien et vient des persanes et de la culture égyptienne en présentant le mythe de la
résurrection d’Osiris qui avait un profond caractère hermétique et initiaque, une allégorie aux
phénomènes de la nature. Après l'avènement de Jésus en Palestine, le christianisme a hérité
d’une façon intense des arguments de la théologie judaïque. Et le concept de résurrection est
devenu l’objet de la foi dans la conviction paulinienne qui a dépassé les limites de Jérusalem
et s’est propageé en Asie Mineure, s’est introduite dans l’Empire Romain, en devenant
religion officielle. Actuellement, le christianisme est consideré comme un procéssus régissant
les idées qui défendaient les doctrines philosophiques, telles que le gnostïcisme chrétien et le
neoplatonisme qui parlent de la préexistance, de l’immortalité et de la réminiscence de l’âme,
qui se sont affaiblies au Vsiècle et au-délà. Après la période de la pensée pathologique et
médievale survient la Renaissance allant du XIVè au XVIè siècle, suivie de l’Illuminisme; ces
périodes ont profondément influencé la société européenne et par conséquent, ont provoqué la
désillusion religieuse de la société intellectuaelle de cette époque qui a changé alors
complètement sa façon de voir le monde. Ces mouvements ont entraîné les reformes,
l’apparition de doctrines telles que le protestantisme, la confrèrie rosicrucienne et le
spiritisme, et font naître un nouveau regard de la science sur la mort et l’immortalité.
Mots-clés: Immortalité de l'âme. Christianisme Primitif. Résurrection du corps. Renaissance.
Réincarnation.
6
SUMÁRIO
Introdução 08
1. O conceito de imortalidade e ressurreição nas culturas Védica e Grega 16
1.1 A sabedoria das estrofes Vedas 17
1.2 Os mistérios órficos 18
1.3 Pitágoras e o orfismo 19
1.4 A imortalidade da alma em Platão 21
1.5 Os destinos escatológicos da alma em Platão 23
1.6 O conceito de ressurreição 25
1.6.1 Osíris: ressurreição e imortalidade 26
1.6.2. Ressurreição na cultura Persa 28
1.6.3 Ressurreição no Judaísmo 30
2. O surgimento do Cristianismo e suas raízes 33
2.1 As influências das seitas judaicas na formação do Cristianismo Primitivo 35
2.2 A visão cabalística da imortalidade da alma 38
2.3 O Zohar, o livro do Esplendor 40
2.3.1 A imortalidade da alma no Zohar 42
2.3.2 A ressurreição dos mortos no Zohar 44
2.4 História dos Evangelhos Sinópticos (Lucas, Marcos e Mateus) 46
2.4.1 Os Evangelhos Sinópticos e o problema do retorno da alma 49
2.4.2 As origens do Evangelho de João 52
2.4.3 O diálogo de Nicodemos com Jesus e o problema do “nascer de novo” 54
2.5 A importância de Paulo na formação do Cristianismo Primitivo 60
2.5.1 A ressurreição na 1ª Epístola aos Coríntios de Paulo 63
2.5.2 A natureza da ressurreição em Paulo 65
7
3. Os primeiros passos da helenização do cristianismo 70
3.1 Fílon, o elo entre as culturas hebraica e grega 71
3.1.2 Fílon, e o “Cuidar do Ser” 73
3.2 O legado de Clemente de Alexandria ao Cristianismo nascente 82
3.3 A Controvérsia Ariana 83
3.4 Orígenes e a preexistência da alma 85
3.4.1 A rejeição do origenismo 88
3.5 A imortalidade da alma em Santo Agostinho 91
3.6 Gnosticismo: o contraponto da ressurreição 96
4. O dualismo metafísico pós-cristianismo primitivo 100
4.1 O movimento Rosa-Cruz 102
4.2 A doutrina Espírita 104
4.3 A Teosofia 106
4.4 Ressurreição: uma apologia da fé religiosa 108
4.5 Uma abordagem científica à crença na alma e sua imortalidade 110
Considerações Finais 115
Referências Bibliográficas 117
8
INTRODUÇÃO
Hipótese do problema e tema
Nesta pesquisa pretendemos trabalhar o tema Imortalidade da alma e ressurreição
dos mortos no Cristianismo Primitivo, presente nas duas colunas basilares do conhecimento
de nossa civilização ocidental: a filosofia e a religião. Na filosofia, a imortalidade é um dos
atributos essenciais para a definição da alma. No âmbito da religião, vincula-se aos dogmas
teológicos dos seus mitos e ritos.
As culturas mais expressivas da antiguidade abordaram a questão como algo
presente na vida humana. Tal reflexão estava posta nas manifestações religiosas e culturais
mais antigas, tanto nos povos do ocidente como do oriente, fossem nos escritos tidos como
sagrados dos Vedas, do Avesta, do livro dos mortos egípcio, ou Tanach judaico; assim como
nos pensamentos filosóficos de Pitágoras, Platão, Aristóteles, entre outros; ainda nos escritos
de Confúcio e Lao-Tze; nos poemas de Homero, nos ensinamentos de Buda e Zaratrusta. E,
posteriormente, no Cristianismo.
No pensamento indiano, uma das principais finalidades é revelar a consciência do
eu (ãtmã), função fundamental na construção dos mitos e ritos do universo védico:
A suprema e característica façanha da mentalidade bramânica (e isto foi decisivo,
não apenas para o desenvolvimento da filosofia indiana, mas também para a história
de sua civilização) foi à descoberta do Eu (ãtmã) como entidade imperecível e
independente, alicerce da personalidade consciente e da estrutura corporal
(ZIMMER, 2003, p. 20).
Na cultura do Egito, a imortalidade da alma era um elemento essencial nas
crenças funerárias. “O renascimento era um dos estágios da existência após a morte. Os textos
egípcios afirmam claramente que ‘a alma está no Céu, o corpo está na Terra’ (Tumba de Pepi
I), isto é, eles não esperavam que o corpo físico ressuscitasse.” (GADALLA, 2003, p. 147). O
livro dos mortos trata especificamente da natureza divina e o julgamento moral dos mortos.
No dicionário de filosofia o problema da imortalidade está relacionado à questão
do destino da existência depois da morte, quando sobrevém a morte, sobrevive à psique
humana, a alma transmigra, ou seja, reencarna, constituindo, por sua vez, uma recompensa ou
um castigo (MORA, 1994, p. 365).
9
Ainda neste dicionário, a imortalidade é uma concepção aceita por inúmeras
culturas, algumas chamadas primitivas pelos gregos. Os órficos elaboraram tais conceitos e os
pitagóricos redefiniram, influenciando a filosofia platônica. É também a concepção de
algumas interpretações dadas à teoria aristotélica, assim como é a concepção estóica, negada
pelos naturalistas, que contesta a imortalidade de todas as coisas, enquanto o Cristianismo a
incorpora como doutrina fundamental à sua teologia.
Na Torá judaica a imortalidade da alma está relacionada à ressurreição dos
mortos, e é mencionada muito claramente, é uma crença fundamental. Acredita-se que virá
um tempo em que todos os mortos serão trazidos de volta à vida, e o corpo e a alma serão
reunidos novamente, enquanto na Cabalá, doutrina mística do judaísmo, a imortalidade da
alma está relacionada à sua transmigração, em que a alma precisa renascer várias vezes para
purgar seus erros. A palavra hebraica para renascimento é Guilgul Neshamot, que significa
literalmente “rodas da alma”:
É para esta vasta roda metafísica, com sua coroa constelada de almas, como estrelas
nas bordas de uma galáxia, que devemos dirigir nosso olhar, se desejamos ver além
da aparência da inocência punida e da maldade recompensada. Guilgul Neshamot é
uma roda em constante movimento e, ao girar, as almas m e vão diversas vezes,
num ciclo de nascimento, evolução, morte e novo nascimento (BERG, 1993, p. 17).
Para o autor, compreender esse processo de Guilgul Neshamot, “rodas da alma”,
significa entender a verdadeira continuidade da idéia da evolução permanente, que é um
aspecto central do conceito de reencarnação.
O Cristianismo construiu sua base teológica a partir das raízes judaicas. Os
conceitos de transcendência passam necessariamente pela construção antropológica da cultura
hebraica:
O Cristianismo antigo está edificado, essencialmente, sobre premissas judaicas.
Nem Jesus nem a antiga Igreja primitiva viveram num vácuo: eles tinham um
conhecimento mais amplo do pensamento judaico, dos relatos judaicos e do modo
de vida religioso judaico, do que está preservado no Novo Testamento e em antigos
escritos cristãos. Por conseguinte, os assuntos e as tradições judaicas que não têm
relação direta com passagens específicas do Novo Testamento formam o meio no
qual o Cristianismo se cristalizou (FLUSSER, 2000, p. 14).
Dessa maneira, muitas das tradições, conceitos e conhecimentos foram
impregnados no seio da nova doutrina, até mesmo as idéias e temas judaicos cujos traços
estão presentes nas palavras de Jesus e no Novo Testamento.
O Cristianismo deu continuidade ao movimento profético judaico, que, com
profunda renovação teológica, sobretudo com novos conceitos, principalmente construídos em
torno de Jesus. Enquanto a tradição judaica manteve suas características básicas, a nova
doutrina, encarnada na imagem do Cristo ressuscitado, exprime, com simplicidade e
10
universalidade, o apelo à salvação e à imortalidade individual. “O Cristianismo distingue-se
formalmente do judaísmo pela Nova Aliança, que em sua nova visão foi dada para substituir
ou realizar a antiga” (FLUSSER, 2000, p. 64).
Segundo Eliade (1993), dentro dos novos conceitos incorporados pelo
Cristianismo, o tema da ressurreição dos mortos e do próprio Cristo, foi visto como uma
perspectiva importante para fundamentar o nascimento da nova doutrina, pois conservou
elementos dos antigos mistérios da morte e renascimento da vegetação, bastante enraizado nas
crenças populares, revelando certas relações tradicionais do ser humano com o sagrado.
Eliade (1993, p. 214-5) aborda na classificação de símbolos e ritos de renovação,
a árvore, como elemento fundamental na vegetação. Ela representa o símbolo sagrado da
ressurreição da primavera e da “regeneração” dos anos. Encarna sempre a vida inesgotável: o
que corresponde, na ontologia arcaica, à realidade absoluta, o “sagrado”, por excelência. A
árvore torna-se nela o símbolo dessa realidade.
Para o autor, a síntese mental da humanidade arcaica estabeleceu a árvore como
vínculo sagrado, em virtude do seu poder simbólico e o que ela significa, tornando-se um
objeto religioso:
Mas esse poder é, por sua vez, validado por uma ontologia: se a árvore está
carregada de forças sagradas, é porque é vertical, é porque cresce, é porque perde as
folhas e as recupera, porque, por conseguinte, se regenera (‘morre’ e ‘ressuscita’)
inúmeras vezes, porque tem seiva, etc. Todas estas validações têm a sua origem na
simples contemplação mística da árvore, como forma” e modalidade biológicas.
[...] É em virtude do seu puder, ou melhor, é porque ela manifesta uma realidade
extra-humana - que se apresenta ao homem numa certa forma, que fruto e se
regenera periodicamente - que uma árvore se torna sagrada (ELIADE, 1993, p. 217).
A validade do poder religioso da árvore é devido as suas características de
mudança e regereneração, representa na verdade, para a experiência arcaica, o símbolo do
universo:
O cosmo é simbolizado por uma árvore; a divindade manifesta-se em forma vegetal;
a fecundidade, a opulência, a fortuna, a saúde ou, a nível mais elevado, a
imortalidade e a juventude eterna estão concentradas nas plantas ou nas árvores; a
humanidade ou a raça derivam de uma espécie vegetal; a vida humana refugia-se nas
formas vegetais quando o seu curso é interrompido ardilosamente e antes do tempo;
em resumo, tudo o que é, tudo o que é vivo e criador, em estado de regeneração
continua, se exprime por símbolos vegetais. O cosmo é representado sob a forma de
uma árvore porque, da mesma forma que esta, ele regenera-se periodicamente. A
primavera é uma ressurreição da vida universal e, por conseguinte, da vida humana.
[...] A vida é integralmente reconstituída; tudo começa de novo; em resumo, repete-
se o ato primordial da criação cósmica, porque toda a regeneração é um novo
nascimento, um regresso a esse tempo mítico em que apareceu, pela primeira vez, a
forma que se regenera (ELIADE, 1993, p. 251).
Na tradição judaica e cristã, a árvore vem associada com a água, elemento
fundamental à simbologia religiosa. “O protótipo bíblico acha-se, naturalmente, no Éden: ‘a
11
árvore da vida no meio do jardim, com a árvore do conhecimento do bem e do mal. Um rio
saía do Éden para banhar o jardim e dividia-se e formava quatro braços’” (ELIADE, 1993,
p. 228).
Os antigos ritos agrários de renovação e “regeneração”, o simbolismo da
ressurreição também caracterizava as religiões de "mistérios" e iniciáticas, explicando a morte
e a vida futura como, por exemplo, o mito de Osíris, sobrevivente das inúmeras religiões de
mistérios da época helenística. A morte e a ascensão do deus, suas experiências de sofrimento,
a lenda da morte e ressurreição de Osíris era uma das crenças deste período, com seus
templos, rituais diários, festas públicas ligada às estações do ano e, à posição dos astros. Este
poder de renascer estava relacionado aos movimentos cíclicos da natureza e da fertilidade.
Contudo, desde a época helenística e perdurando por todo o período do surgimento do
cristianismo primitivo, a salvação individual caracterizou o pensamento religioso.
No cristianismo, à morte e a ressurreição de Cristo serão acrescentados outros
elementos. O ritual da via sacra, a lembrança da vida de Jesus seriam um modelo exemplar
para os cristãos. A imagem do Cristo ressurgido foi fundamental para a vitalidade religiosa,
conferindo-lhe uma autoridade superior. Disse-lhe Jesus: Eu sou a ressurreição. Quem crê
em mim, ainda que morra, viverá. E quem vive e crê em mim jamais morrerá” (Jo 11:25).
Para Eliade (1993), a ressurreição imprime no pensamento nascente um caráter
divino, místico e sobrenatural na figura de Jesus. De acordo com as religiões antigas, a
salvação passava por ritos de caráter iniciático de morte e renascimento, assim como o
batismo e a comunhão. O batismo cristão, a eucaristia no mistério do pão e vinho
transmutados em carne e sangue do salvador, marca o processo de sincretismo com antigas
crenças.
Entretanto, a ressurreição dos mortos, construída no advento da ressurreição de
Cristo, é o elemento mais incisivo para formação teológica do Cristianismo. O Novo
Testamento está recheado de argumentos em torno da doutrina que justifique as anunciações
da vida eterna, na 1ª Epístola aos Coríntios, capitulo 15, encontra-se a declaração mais
clássica. A cristologia de Paulo, um indivíduo culto e intelectualizado, coloca em suas
Epístolas a ressurreição dos mortos como um acontecimento revelador da natureza de Cristo:
A ressurreição descrita em Paulo não era diferente daquilo que se poderia encontrar
nos estudos rabínicos mais refinados, excetuando, naturalmente, a ênfase cristã
sobre a importância da pessoa de Jesus Cristo como as primícias dos ressurrectos,
além do fato de que os cristãos sempre vincularam a ressurreição de Cristo à
concretização da imortalidade. Porquanto, é a vida de Cristo que possibilita aos
remidos viverem em qualquer sentido espiritual, na imortalidade ao nível da alma,
ou, finalmente, na imortalidade final, quando a alma houver de ser revestida pelo
corpo espiritual (CHAMPLIN, 2001, p. 5159).
12
Para Reale (1990), o conceito de “alma” é uma criação grega, cuja evolução segue
as idéias a partir de Sócrates, que fez dela a essência do indivíduo e Platão fundamenta a sua
imortalidade com conceitos racionais:
Ora, a mensagem cristã propôs o problema do homem em termos completamente
diferentes. Nos textos sacros, o termo “alma” não aparece nas acepções gregas. O
Cristianismo não nega que, com a morte do homem, sobreviva algo dele; pelo
contrário, fala expressamente dos mortos como sendo recebidos no “seio de
Abraão”. Entretanto, o Cristianismo não aponta em absoluto para a imortalidade da
alma, mas sim para a “ressurreição dos mortos”. Essa é uma das marcas da nova fé.
E a ressurreição implica no retorno também do corpo à vida (REALE, 1990, p. 392).
Duas culturas totalmente diferentes concebiam duas antropologias também
diferentes. A civilização helênica tinha uma concepção antropológica que se baseava na
somatória de duas partes: o corpo e a alma, herdado do idealismo metafísico grego.
A civilização semítica, particularmente a hebraica, não fazia tal distinção. O corpo
era concebido como o ser humano na sua totalidade. É neste contexto, que reflete sobre Paulo
a idéia de ressurreição dos mortos, mesmo inserido na civilização e na cultura grega que, no
entanto, preserva a força da antropologia semítica.
Paulo é o precursor da “boa nova”, ele é o personagem fundamental desse
encontro entre o conceito teológico judaico e a antropologia helênica. Em suas Epístolas,
aborda o tema ressurreição dos mortos, como preâmbulo da cristã, conceito trazido da
tradição semita, berço de sua formação teológica:
Paulo é conhecido como o apóstolo da ressurreição porque fez dela o ponto central
da sua fé. Muitos cristãos vêem Paulo como opositor dos gnósticos. Mas os
gnósticos, na verdade, buscavam nele apoio para sua visão sobre a ressurreição.
Encontravam em suas cartas evidências de que ele também via a ressurreição como
um despertar espiritual (PROPHET, 1997, p. 161-2).
A natureza contingente das cartas de Paulo é amplamente conhecida,
principalmente pelos diversos temas abordados, devido os problemas e desafios específicos da
nova doutrina, que começava a surgir diante de um universo diversificado da cultura helênica.
Ao longo de suas cartas, ele emprega em vários momentos imagens escatológicas e
freqüentemente apocalípticas. No caso da 1ª Epístola aos Coríntios, capítulo 15, o destaque do
seu estilo é em torno da ressurreição futura dos crentes, baseando-se na ressurreição de Cristo.
A princípio, os pensadores do Cristianismo primitivo não consideraram a doutrina
da imortalidade da alma como negação de sua fé, procurando às vezes conciliá-la. Contudo, a
mediação entre a imortalidade e ressurreição dos mortos, iria constituir um dos temas mais
eloqüente pela reflexão filosófica cristã, com diferentes resultados, como veremos nessa
dissertação. Se a imortalidade da alma e a ressurreição dos corpos estão presentes na cultura
13
de nossa civilização e são doutrinas de conhecimento e fé, por que são distintas entre elas?
Será que existem diferenças? Por que um problema de interpretação entre imortalidade da
alma e ressurreição corpo?
Motivação e estrutura metodológica
A origem e o destino da vida sempre constituíram objeto de indagação. É inerente
a natureza humana a investigação desses elementos como forma de justificativa da existência
humana.
Sempre nos assustou o comportamento dos indivíduos, embora saibamos que
“somos seres inacabados”, não nascemos prontos, estamos em construção. Mas, a única
intelecção que nivela os seres humanos é o desconhecimento do destino depois da morte.
Fenômeno que atinge a todos os indivíduos. Existe algo depois da morte? Se depois da morte
não há nada, que sentido tem a vida?
Formulando tais questionamentos é que muitas vezes o indivíduo constrói
respostas arbitrárias e insuficientes seguindo a construção do seu sincretismo religioso.
A experiência da morte é intransferível e pessoal e antecede a reflexão religiosa e
filosófica, já que convivemos com ela desde cedo, quando ainda não somos capazes de
conceituá-las.
A superficialidade ou profundidade diante do assunto, a fuga quando deparamos
com o sentimento da morte, foram coisas que nos estimularam a pesquisar ao fenômeno da
imortalidade da alma e a ressurreição.
Para construir a dialética em torno da questão da imortalidade da alma e
ressurreição dos corpos, será feita uma pesquisa descritiva do tema. Narrando suas
consonâncias de sentidos nas diversas culturas, que ao longo dos tempos se encontraram e
muitas vezes se fundiram. A narrativa se dará muitas vezes por uma narrativa descrita.
Para tanto, os procedimentos técnicos desse trabalho serão bibliográficos e
documentais, utilizando o método da fenomenologia para fomentar os conceitos construídos
pelas correntes filosóficas e religiosas acerca da imortalidade da alma e da ressurreição.
A fenomenologia foi introduzida por Edmund Husserl (1859), filósofo alemão,
que “[...] retoma o conceito de homem animal racional (sintetizado no ‘Cogito, ergo sum’ de
Descartes) e mostra que nele o ser humano tem sua identidade assegurada por ser racional, ao
invés de a racionalidade ser vista como um modo de ser do humano” (MASINI, 1999, p. 61).
14
Ou seja, é um método não dedutivo e nem indutivo, preocupa-se apenas com a descrição
direta do fenômeno:
Fenomenologia significa estudo dos fenômenos, isto é, daquilo que aparece à
consciência, daquilo que é dado. Trata-se de explorar este dado, a própria coisa que
se percebe, em que se pensa, de que se fala, evitando forjar hipóteses, tanto sobre o
laço que une o fenômeno como o ser de que é fenômeno. Não é necessário sair do
pedaço de cera para fazer uma filosofia da substancia extensa, nem para fazer uma
filosofia do espaço, forma a priori da sensibilidade: importa circunscreve-se ao
próprio pedaço de cera, sem pressuposto, descreve-lo apenas tal como se nos
apresenta (LYOTARD, 1986, p. 10-11).
Mas, antes da descrição do fenômeno, a fenomenologia “[...] é uma meditação
lógica que visa ultrapassar as próprias incertezas da lógica, com vista e por meio de uma
linguagem ou logos que exclua incerteza” (LYOTARD, 1986, p. 10).
Segundo Santana (2008, p. 32), essencialmente, o método é uma abertura do
pesquisador que deseja entender determinado fenômeno como ele se mostra. Precisa partir de
uma atitude de abertura, destituído de preconceitos ou pré-definições.
A fenomenologia permite aprender e a interpretar o fenômeno em questão e não
apenas fazer uma descrição passiva. É a trajetória que será percorrida pelo pesquisador a
partir das interrogações feitas ao fenômeno. Conforme Masini (1999), “O método
fenomenológico não se limita a uma descrição passiva. É simultaneamente tarefa de
interpretação (tarefa da hermenêutica) que consiste em pôr a descoberto os sentidos menos
aparentes, os que o fenômeno tem de mais fundamental.” Isto é:
A pesquisa (como em qualquer outra situação) é a apropriação do conhecimento dá-
se através do círculo hermenêutico: compreensão-interpretação-nova compreensão.
Toda hermenêutica é explicita ou implicitamente compreensão de si mesmo
mediante a compreensão do outro. Ricoeur afirma que para compreender-se a si
mesmo o ser humano necessita refletir. Porque: 1. É através da reflexão que se a
apropriação do nosso ato de existir, através de uma crítica aplicada às obras e atos
uma interpretação dos mbolos dessas obras e atos. 2. A consciência inicialmente é
falsa consciência e é necessário elevar-se através de uma crítica corretiva (caminhos
da compreensão para compreensão) - desvendando os símbolos do agir/pensar/
sentir de cada um de nós (MASINI, 1999, p. 64).
Para Masini (1999, p. 66), o enforque da fenomenologia de pesquisa não busca
destruir os resultados das abordagens empiricistas, mas sim chamar a atenção para as suas
limitações e lacuna, ou seja, “as pesquisas de enforque fenomenológico constituem-se pois
como etapas de compreensão e interpretação do fenômeno - que poderá ser retomado e visto
sob nova interpretação.”
A preocupação do método é a descrição direta da experiência tal como ela é. A
fenomenologia permite compreender melhor o problema descrito, impõe a tarefa de esclarecer
o próprio objeto na sua constituição.
15
Objetivo e divisão do trabalho
O objetivo desta dissertação é fazer uma dialética hermenêutica da problemática:
imortalidade da alma e fé na ressurreição dos mortos no Cristianismo primitivo, construindo
uma narrativa da formação dos conceitos que se formaram no encontro de duas culturas
diferentes. De um lado, a compreensão antropológica helênica, especificamente a platônica,
que entende o ser humano como uma somatória de duas partes: corpo e alma. Esta visão
dicotômica valoriza a alma em detrimento do corpo, o seu cárcere. Do outro lado, na
intelecção semítica, modelo que não conhece uma alma sem corpo. O corpo significa o ser
humano na sua totalidade. A literatura judaica o fala em criação do corpo, mas sim, do ser
humano.
O presente trabalho se divide em quatro capítulos. No primeiro serão apresentadas
as raízes do conceito de imortalidade e de ressurreição anterior à cultura Grega e Hebraica,
uma breve história das tradições, respectivamente.
O segundo capítulo trata do conceito judaico-cristão acerca da ressurreição do
corpo e da alma, dentro da visão cabalista e ainda da helenização do Cristianismo primitivo
dado por Paulo de Tarso, o Apóstolo do Gentio, que, utilizando a argumentação retórica
grega, introduziu a idéia da ressurreição judaica no mundo helenístico-romano.
No terceiro capítulo, será feito um estudo sobre a formação do Cristianismo nos
primeiros séculos, abordando a morte em Santo Agostinho e a questão da preexistência da
alma em Orígenes, em que ocorre o desfecho do anátema contra a preexistência, e por fim a
influência do gnosticismo no conceito de ressurreição.
O quarto capítulo será feito uma narrativa sobre o período renascentista que
trouxe à tona o antropocentrismo e o heliocentrismo e posteriormente o surgimento de novas
doutrinas místicas religiosas como a Rosa-Cruz, o Espiritismo e a Teosofia, que abordam a
reencarnação como conceito fundamental na imortalidade da alma. Também, uma descrição
da reforma religiosa e o papel da ciência moderna no desenlace do conhecimento científico
frente aos dogmas teológicos, surgindo daí a fase intelectual do iluminismo, período em que
nasceu a ciência psíquica e por fim a ciência subatômica e quântica, que permitiu construir
novos conceitos acerca da morte e da imortalidade humana.
16
CAPÍTULO I
O conceito de imortalidade e ressurreição nas culturas Védica e Grega
O problema da morte atinge todos os seres humanos. Se depois da morte não
nada, que sentido tem a vida humana? A experiência da morte é pessoal e antecede a toda
reflexão filosófica. A imortalidade do indivíduo se percebe na expressão da arte, na ética, na
relação uns com os outros, na construção do conhecimento, na busca de se eternizar através
das suas ações. Neste sentido, a idéia de imortalidade implica que o ser imortal é
transcendente, transpõe as dimensões perceptíveis.
Segundo o historiador das religiões, Eliade (1983), os povos de quase todas as
épocas, do mais simples até o mais expressivo saber, demonstram a crença na imortalidade da
alma, principalmente através dos mitos, ritos e honras oferecidas aos mortos:
A crença numa vida post mortem parece demonstrada, desde os tempos mais
recuados, pela utilização da ocra vermelha, substituto ritual do sangue, e, portanto
“símbolo” da vida. (...) A fortiori, a crença na imortalidade é confirmada pelas
sepulturas; de outra forma, não se compreenderia o trabalho empregado para
enterrar os corpos. Essa imortalidade podia ser exclusivamente “espiritual”, isto é,
concebida como uma pós-existência da alma, crença corroborada pela aparição dos
mortos nos sonhos. Mas pode-se também interpretar certas sepulturas como uma
precaução contra o eventual retorno dos mortos; nesses casos, os cadáveres eram
dobrados e talvez amarrados (ELIADE, 1983, p. 26-7).
As construções simbólicas nos rituais fúnebres dos povos antigos comprovam a
forte ligação dos homens primitivos com a morte:
Em suma, pode-se concluir que as sepulturas confirmam a crença na imortalidade, e
trazem alguns esclarecimentos suplementares: enterros orientados para leste,
marcando a intenção de tornar o destino da alma solidário com o curso do sol,
portanto a esperança de “re-nascimento”, de uma pós-existência num outro mundo;
crença na continuação da atividade específica; certos ritos funerários, indicados
pelas oferendas de objetos de adorno e restos de refeições (ELIADE, 1983, p. 28).
Portanto, a inumação dos mortos, as cerimônias religiosas carregadas de
simbolismo, onde cada objeto tem seu significado, são argumentos indiscutíveis da crença na
continuação post mortem do indivíduo nesses povos, que depositavam a esperança de “re-
nascimento”, de uma pós-existência num outro mundo.
17
1.1 A sabedoria das estrofes Vedas
O Rig-Veda ou “a Sabedoria das estrofes recitadas” é uma coleção de 1017 hinos,
acrescidos de mais 11 (incorporados ao livro VIII), tardiamente elaborados, que a tradição
incorporou posteriormente, totalizando 1028. São hinos que tratam em sua grande parte de
temas religiosos, utilizados em cerimônias sagradas. Enquanto realiza-se o rito, os versos são
recitados, ora invocando a presença divina, ora narrando os mitos primordiais, ora pedindo
proteção e riquezas, etc. (POSSEBON, 2006, p. 21-2).
Segundo Eliade (1983, p. 37-8), nos hinos são citados os deuses, entre eles o deus
Soma, a bebida sagrada, a bebida da “não-morte”. Com os 120 hinos que lhe são consagrados,
Soma aparece como o terceiro no panteão védico, um livro inteiro do Rig Veda, o IX, é
dedicado ao Soma Pavamâna, o que está sendo clarificado. Os textos insistem nas cerimônias
que narram a aquisição da planta e sua preparação. “Todas as virtudes do soma são solidárias
da experiência extática ocasionada pela sua absorção. ‘Bebemos o soma’, lê-se num hino
célebre (VII, 48), ‘e nos tornamos imortais; tendo chegado à luz, encontramos os deuses. O
que pode atualmente fazer a impiedade ou malícia do mortal, ó imortal?’”
O Soma, a bebida sagrada, exerce uma função importante dentro do ritual
religioso védico, embora seja limitado aos sacerdotes e a determinados número de pessoas:
O Soma estimula o pensamento reanima a coragem do guerreiro, aumenta o vigor
sexual, cura as enfermidades. Bebido em comum pelos sacerdotes e pelos deuses,
ele aproxima a Terra do Céu, reforça e prolonga a vida, garante a fecundidade. Na
verdade, a experiência extática revela ao mesmo tempo a plenitude vital, o sentido
de uma liberdade sem limites, a posse de forças físicas e espirituais apenas
suspeitadas. Donde o sentimento de comunidade com os deuses, ou até de
pertencimento ao mundo divino, a certeza da “não-morte”, isto é, em primeiro lugar,
de uma vida plena indefinidamente prolongada (ELIADE, 1983, p. 38).
Dentro da mitologia Veda tão bem elaborada quão complicada, o Soma, planta
sacrifical, licor fermentado, tornado bebida divina que confere a imortalidade, foi elevado à
dignidade de um deus, devido seu papel desempenhado dentro das experiências ritualísticas.
O Soma teve “(...) uma ressonância considerável graças aos hinos que o exaltavam e graças,
sobretudo às interpretações que elas suscitaram. A revelação de uma existência plena e
beatífica, em comunhão com os deuses, continuou a obsedar a espiritualidade indiana muito
tempo depois do desaparecimento da bebida original” (ELIADE, 1983, p. 38).
18
1.2 Os mistérios órficos
Na Grécia, em círculos restritos, desenvolveu a religião dos mistérios, que tinha
suas crenças específicas, seus ritos e práticas. Segundo Reale (1993, p. 24), entre os ciclos de
mistérios o que mais se destacou e influenciou a filosofia foram os mistérios órficos, que tinha
nos seus princípios doutrinários as seguintes proposições:
a) No ser humano se hospeda um principio divino, uma alma que caiu em um
corpo em virtude de uma culpa original;
b) essa alma não apenas preexiste ao corpo, mas também não morre com o corpo,
destinada a renascer em corpos sucessivos, para expiar a culpa original;
c) os ritos e as práticas da “vida órfica” são a única via para pôr fim ao ciclo de
renascimento da alma;
d) por conseqüência, quem vive a vida órfica (os iniciados), uma recompensa
depois da morte, da mesma forma que há uma punição para os não iniciados.
No dicionário de filosofia, Orfismo (lat. Orphismus; in. Orphism; fr. Orphisme;
al. Ofphismus; it. Orfismo) é uma seita filosófico-religiosa bastante difundida na Grécia a
partir do séc. VI a.C e que se julgava fundada por Orfeu. Segundo sua crença fundamental, a
vida terrena era uma simples preparação para uma vida mais elevada, e que podia ser
merecida por meio de cerimônias e de ritos purificadores. Essa crença passou para várias
escolas filosóficas da Grécia antiga, Pitágoras, Empédocles, Platão (ABBAGNANO, 1998, p.
732).
Para muitos pensadores, o princípio da transmigração da alma veio aos filósofos
gregos através da doutrina órfica. A partir do orfísmo nasce o conceito dualista do ser
humano:
Com o orfísmo nasce à primeira concepção dualista de alma (=demônio) e corpo
(=lugar de expiação da alma): pela primeira vez o homem vê contrapor-se em si dois
princípios em luta um contra o outro, justamente porque o corpo é visto como
cárcere e lugar de punição do demônio. [...] Assim, o homem começa a compreender
que nem todas as tendências que percebe em si são boas, que algumas, ao contrário,
devem ser reprimidas e comprimidas, e que é necessário purificar o elemento divino
nele existente do elemento corpóreo e, portanto, mortificar o corpo (REALE, 1993,
p. 24).
Os mistérios órficos pressupõem uma distinção, não de natureza como também
de valor entre a alma imortal e o corpo perecível, que através do qual ela realiza sua
purificação. Tal dualismo passa a ser uma característica fundamental do pensamento grego ao
problema metafísico-teológico, isto é, na solução das relações entre a realidade humana e o
absoluto.
19
1.3 Pitágoras e o orfísmo
Pitágoras nasceu em Samos, filho de Mnesarco, viveu o apogeu de sua vida em
torno do século IV a.C. Ao longo dos séculos foram inúmeras referências a sua filosofia, o
biógrafo dos filósofos Gregos, Diógenes Laércio, resume as etapas de sua vida assim:
Jovem e ávido de ciência, abandonou sua pátria e foi iniciado em todos os ritos
mistéricos, tanto Gregos como bárbaros. Depois, foi para o Egito (...); depois esteve
entre os caldeus e magos. Posteriormente, em Creta, com Epimênides, entrou no
antro de Ida, mas também no Egito entrou nos santuários e aprendeu os arcanos da
teologia egípcia. Então, retornou a Samos e, encontrando sua pátria sob tirania de
Policratas, levantou velas para Crotona, na Itália. Ali, elaborou leis para os italiotas
e conseguiu grande fama, juntamente com seus seguidores, que em numero de cerca
de trezentos, administravam tão bem a coisa pública que seu governo foi quase uma
aristocracia (REALE, 1993, p. 38).
A filosofia de Pitágoras é composta de três elementos fundamentais: a) a dúbia
reputação de sábio, que muitos pensadores contemporâneos e posteriormente lhe atribuíram;
b) a doutrina da reencarnação, que era fundamental na sua escola; e, c) a associação com
cultos e escritos órficos, que influenciou significantemente seu pensamento. Tais princípios
foram, sem dúvida, essenciais dentro de sua doutrina.
Para ele, o saber era cultivado como meio para alcançar um fim. Tal fim consistia
na prática de um modo de vida direcionada a purificar e a libertar a alma do corpo. Segundo
Reale (1993, p. 45), Pitágoras parece ter sido o primeiro filósofo grego a sustentar a teoria da
metempsicose, na qual a alma, devido a uma culpa originária, é obrigada a reencarnar-se em
sucessivas vidas corpóreas para expiar a culpa. Tal reencarnação não apenas em forma
humana, mas também em corpo de animais.
Platão, na sua dialética, refere-se várias vezes a Pitágoras, sobre sua filosofia, de
tal maneira que a sua metafísica iria sofrer profundamente das suas idéias. O Fédon, por
exemplo, recria uma autêntica mistura de elementos diversos dos ensinamentos escatológicos
pitagóricos, sobre o destino da alma com uma prescrição detalhada da sua ética-religiosa.
Pitágoras nada escreveu, mas exerceu grande respeito e influência nos filósofos da
época e posteriormente. O pouco que se conhece dele vem de fragmentos de outros
pensadores, como por exemplo: Empédocles, Xenófanes, Heródoto e posteriormente Platão
que cita em seus diálogos.
Num dos poucos escritos acerca da doutrina da reencarnação de Pitágoras, Kirk,
cita os fragmentos de Xenófanes e Heródoto, escrito por Diógenes Laércio:
20
260. Sobre o tema da reencarnação, dá testemunho Xenófanes numa elegia que
começa: “Agora vou passar a outra história e mostrar o caminho.” O que diz de
Pitágoras reza assim: “Diz-se que certa vez, ao passar por um cachorro que estava a
ser espancado, cheio de pena, disse: ‘Pára, não lhe batas mais, porque é a alma de
um amigo que eu reconheci, ao ouvir a sua voz.’”
261. Além disso, os Egípcios foram os primeiros a sustentar a doutrina de que a
alma humana é imortal e que, quando o corpo perece, ela entra noutro animal, que
esteja a nascer nesse preciso momento, e de que quando tiver completado o ciclo das
criaturas da terra firme e do mar e do ar, volta a entrar no corpo de um homem que
esteja a nascer; e de que o seu ciclo se completa num período de 3.000 anos. Alguns
Gregos que adotaram esta doutrina, uns em tempo antigos, e alguns outros mais
tarde, como se fosse da sua própria invenção; os seus nomes conheço-os eu, mas
abstenho-me de aqui os referir (KIRK, 1994, p. 229).
Num desses textos acima cita o nome de Pitágoras, mas para Kirk (1994) é bem
provável que ambos a ele se refiram embora Heródoto pudesse ter falado também de
Empédocles, pensador contemporâneo, onde seus poemas eram semelhantes à doutrina de
Pitágoras, que também testemunha suas idéias e escreve a seu respeito.
Enquanto Xenófanes faz um gracejo, conforme o autor destaca em Barnes: “o
gracejo não teria sentido, se o seu alvo não fosse um transmigracionista” (BARNES apud
KIRK, 1994, p. 229).
Segundo o autor, Heródoto atribui aos Egípcios a paternidade da imortalidade da
alma, conforme o texto acima. Lembra que a doutrina da reencarnação pode ter vindo de fora
da cultura Grega (Índia ou da Ásia Central), mas, a metempsicose, ao contrário da
metamorfose em formas animais, não se encontra em documentos ou na arte Egípcia e sim
nas idéias e práticas verdadeiramente gregas.
O importante do pensamento pitagórico é a construção do conceito de alma,
psyché, tirada do orfismo. A doutrina da transmigração pressupõe que nos seres vivos, tanto
nos homens como nos animais, existe algo individual e constante, um “ser” que preserva a sua
identidade por força da sua própria essência, independente do corpo que possui.
Juntamente com a definição da idéia de alma, é criado um novo conceito genérico
de “ser vivo”, e dentro desse conceito está uma psyché, que não é obviamente a imagem
impotente e inconsciente da recordação do hades dos poemas Homéricos. Ela não é afetada
pela morte, mas sim, é imortal.
A idéia da imortalidade da alma sofre uma ruptura, uma evolução natural do
pensamento grego, ou seja, a “descoberta do indivíduo”, que tem corpo e alma e o mundo é o
palco de suas experiências.
21
1.4 A imortalidade da alma em Platão
Para muitos pensadores, Platão não é apenas o metafísico e o dialético: quem o
interpretou sob esse aspecto reduziu-lhe simplesmente a um sistemático. Sua filosofia está
impregnada por um aspecto fortemente religioso, que constitui fonte inesgotável para os
espíritos sedentos ao transcendente. A dimensão stica, espiritual latente em seus diálogos,
mapeou pela primeira vez o pensamento da filosofia grega, dando uma profundidade ao
conhecimento humano acerca da alma e seus designos.
A retomada do conceito da imortalidade da alma em Platão, não é uma simples
reelaboração de temas órfico e pitagórico. Mas sim, constrói um novo significado, a
descoberta do mundo inteligível:
A existência de uma alma imortal, que unicamente pode dar sentido à visão da vida
que descrevemos, não permanece mais mera crença nem somente e esperança,
mas é racionalmente demonstrada. No orfismo tratava-se de uma simples doutrina
misteriosófica; nos pré-socráticos que tinha aceitado a visão órfica, era um
pressuposto em contraste com seus princípios físicos; em Platão, ao contrário, está
fundamentada e apoiada perfeitamente sobre a metafísica, isto é, sobre a doutrina do
supra-sensível, da qual se torna como que um corolário: a alma é a dimensão
inteligível e imaterial do homem, e eterna como é eterno o inteligível e imaterial
(REALE, 1993, p. 183-4).
A questão da imortalidade da alma em Platão ganha uma dimensão muito maior
na sua teoria, muito além do pensamento socrático e do orfismo, “estabelece uma mediação
sintética entre as instâncias racionalistas do primeiro e as instâncias místicas do segundo”
(REALE, 1993, p. 184). No livro Fédon, Platão apresentam argumentos acerca da
imortalidade da alma, quando diz:
A alma humana é capaz de conhecer as coisas imutáveis e eternas; mas, para poder
captar essas coisas ela deve ter, como conditio sine qua non, uma natureza que lhes
seja afim; caso contrário tais coisas permaneceriam fora da sua capacidade; assim,
pois, sendo elas imutáveis e eternas, também a alma dever ser imutável e eterna
(REALE, 1993, p. 185).
Segundo Reale (1993) o filósofo constrói sua teoria com a hipótese de existir duas
realidades: a) as realidades visíveis, isto é, perceptíveis e sensíveis e b) as realidades
invisíveis e inteligíveis. Na primeira realidade as coisas existem, mas nunca permanecem nas
mesmas condições, enquanto as segundas, pelo contrário, são as que permanecem imutáveis.
Dentre dessas duas realidades, o indivíduo é constituído, ou seja, de corpo e alma, enquanto o
seu corpo está na realidade visível, sua alma opera na realidade invisível e inteligível. “Não há
dúvidas de que o corpo é afim à realidade visível, a alma ao invisível e inteligível; e já que o
visível é mutável e o inteligível imutável, a alma deve ser imutável” (REALE, 1993, p. 186).
22
Na República, Platão deixou outra referência a acerca da imortalidade da alma,
quando fala da questão do bem e do mal. Ele apresenta tais categorias como essências nas
coisas. “O mal é o que corrompe e destrói (enquanto o bem é o que ajuda e acrescenta)”:
Ora, se pudéssemos encontrar algo que tenha o mal que o torna mau, mas que, não
obstante, não o pode dissolver nem destruir, deveremos concluir que tal realidade é
estruturalmente indestrutível, que, se não a pode destruir o seu próprio mal, a
fortiori não o poderá destruir o mal das outras coisas. Pois bem, é esse exatamente o
caso da alma. Ela tem o seu mal que é o vício (injustiça, insensatez, impiedade, etc.);
mas o vício, por mais que seja, não destrói a alma que continua a viver, mesmo se
muito má, justamente o oposto do que acontece com o corpo que, ao ser estragado
pelo seu mal, corrompe-se e morre. Portanto, se a alma não pode ser destruída pelo
mal do corpo porque o mal do corpo (em força do princípio estabelecido) é alheio à
alma e, como tal, não pode atingi-la; e se não pode nem mesmo ser destruída pelo
seu próprio mal, por violento que seja, então ela é indestrutível (REALE, 1993, p.
189).
No seu tratado, as conclusões racionais são incisivas quando fala a acerca da
incorruptibilidade da alma e da degradação do corpo. São realidades distintas, mas intrínsecas
no indivíduo.
Por fim, Reale (1993, p. 190) diz que no Fedro a imortalidade da alma é deduzida
do conceito de psyché entendida com princípio do movimento (dizer vida significa dizer
movimento; portanto, o conceito de alma como princípio do movimento não é senão uma
derivação, a modo de corolário, do conceito de alma como princípio de vida). E o princípio de
movimento, enquanto tal, nunca pode cessar.
Eis a demonstração de Platão em suas argumentações no diálogo com Fedro
(245c - 246a):
Toda alma é imortal, pois aquilo que se mantém sempre em movimento é imortal;
aquilo, entretanto, que move alguma coisa mais ou é movido por alguma coisa mais,
quando cessa seu movimento, deixa de viver. Assim, é somente aquilo que move a si
mesmo que nunca cessa de mover-se, constituindo também a fonte e principio de
movimento para todas as demais coisas que se movem. Mas principio não é gerado,
porque tudo que é gerado é necessariamente gerado a partir de um principio, e o
principio não é gerado a partir de coisa alguma, pois se fosse não seria gerado a
partir de um principio. E uma vez que é não gerado, tem necessariamente que ser
também indestrutível, já que se o principio fosse destruído, jamais poderia ser
gerado a partir de qualquer coisas nem qualquer coisa que lhe é distinta a partir dele,
posto que todas as coisas m que ser geradas com base num princípio. Por
conseguinte, o automotor (aquilo que move a si mesmo) é necessariamente o
princípio do movimento, não sendo ele nem destruído nem gerado, caso contrário
todo o céu e toda a geração necessariamente se bateriam e se deteriam, e jamais
teriam novamente uma causa para retomar o movimento. Mas desde que
constatamos que aquilo que se move por si mesmo é imortal, aquele que afirmar que
esse automovimento é a essência e o fundamento da alma não incorrerá em
ignomínia. De fato, todo corpo que recebe movimento de uma fonte externa não
possui alma, enquanto o que tem seu movimento dentro de si possui alma, uma vez
ser essa a natureza da alma. Entretanto, na hipótese de ser isso verdadeiro, a saber,
que aquilo que move a si mesmo (o automotor) nada é senão a alma, seria
necessariamente de se inferir que a alma é não gerada e imortal (PLATÃO, 2008, p.
58).
23
As argumentações que Platão constrói em torno da imortalidade da alma são
numerosas e diversas. Mas, para Reale (1993, p. 191), um ponto permanece estabelecido para
quem crê na possibilidade da metafísica: a existência e a imortalidade da alma têm sentido
se admite um ser supra-sensível, meta-empírico, que Platão denominava de mundo das Idéias,
mas que significa, em última análise, apenas o seguinte: a alma é a dimensão inteligível,
meta-empírica, incorruptível do ser humano.
1.5 Os destinos escatológicos da alma em Platão
A imparidade do indivíduo implica uma reflexão sobre a própria possibilidade de
se falar sobre a morte e seu destino. A investigação sobre a imortalidade coloca em questão a
própria reflexão humana. Uma reflexão que traz em seu bojo, as questões de fundo de
conhecimento e do método peculiar do pensamento grego.
Platão, no Fédon, consegue apresentar argumentos em prol da imortalidade, onde
entrelaça os princípios da inteligibilidade, formando um arcabouço de uma nova
epistemologia. Ele se encarrega de fazer uma construção dialética do problema, na narrativa
da morte de Sócrates. Mas a morte em questão não é uma morte qualquer: é a morte de
Sócrates, “[...] o melhor, o mais sábio e justo entre todos os que havíamos conhecidos”
(PLATÃO, 2005, p. 128).
A princípio Platão recorre aos mitos gregos para situar o problema do destino da
alma quando separa do corpo. No mito de Er, que encerra o diálogo A República, escreve que
as almas escolhem o tipo de vida que irão ter na encarnação seguinte. No Fedro, Platão divide
em nove os graus de elevação da psyché (alma); um caminho ascético rumo à tentativa de
permanência da psyché (alma) no mundo inteligível, onde a filosofia é um valioso e
fundamental instrumento para que haja a superação da necessidade (anánkê) cíclica da
metempsýchôsis.
Mas o que motiva a grande ansiedade em descortinar a planície da verdade é o fato
de o pasto adequado para a melhor parte da alma estar no prado nela situado, sendo
esse pasto que nutre a asa responsável pela ascensão da alma. Ademais, constitui lei
divina da inevitabilidade a alma que acompanha um deus e que conquista a visão de
qualquer das verdades estar livre de dano até o período subseqüente, e se for sempre
capaz de conquistá-la, estará sempre livre de sofrer dano; quando, pelo contrário,
devido a incapacidade de ser acompanhante, não consegue ver, e por conta de algum
acidente, adquire uma carga de esquecimento e vício, tornando-se pesada, e ao
tornar-se pesada perde suas asas e desce à terra, então vige a lei [...] (PLATÃO,
2008, p. 62).
24
Para Reale (1993, p. 191), a verdade é que os mitos pretendem sugerir a crer numa
espécie de “fé razoável”. Em síntese, consiste no seguinte: o ser humano está sobre a terra
como de passagem e a vida terrena é como uma provação. A verdadeira vida está no além, no
Hades (o invisível). E no Hades a alma é “julgada” segundo unicamente o critério da justiça e
da injustiça, da temperança e da devassidão, da virtude e do vício.
O julgamento da alma no Hades passa por valores distintos do mundo, ou seja,
para Reale (1993, p. 192), “pesam tão-somente os sinais da justiça e de injustiça que ela traz
em si”. Conforme afirma:
A sorte que cabe às almas pode ser tríplice: a) Se viveu em plena justiça receberá
um premio (irá a lugares maravilhosos nas Ilhas dos Bem-aventurados, ou a lugares
ainda superiores e indescritíveis), b) se viveu na injustiça plena, a ponto de ter-se
tornado incurável, receberá um castigo eterno (será precipitada no Tártaro), c) se
contraiu, nesse caso somente injustiças sanáveis, ou seja, viveu parte justamente e
parte injustamente, arrependendo-se ademais das próprias injustiças, nesse caso será
apenas temporariamente punida (depois, expiada a sua culpa, receberá o prêmio que
merece) (REALE, 1993, p. 192).
No Fédon, Platão consegue apresentar argumentos em prol da imortalidade, em
que entrelaça os princípios da inteligibilidade, formando um arcabouço de uma nova
epistemologia.
Para Reale (1993, p. 58), ele engloba na sua dialética três pontos fundamentais da
metafísica. São elas: a) a teoria das Idéias, b) a teoria dos primeiros Princípios e c) a doutrina
do Demiurgo. A teoria das idéias funda-se numa inferência meta-impírica; a teoria do
primeiro princípio é construída com alusões numerosas; por fim a doutrina do demiurgo é
expressa amplamente como Inteligência que ordena e governa o cosmo.
No que trata do destino da alma, Platão exprime através das alegorias as
categorias que passam à alma depois da sua passagem, onde é submetida ao julgamento de
suas virtudes e vícios. Eis a passagem do livro do Fédon que retrata uma das mais poderosas
intuições do pensamento platônico acerca do fim último da alma:
É justo que vocês reflitam que, como a alma é imortal, consequentemente ela exige
o nosso cuidado, não em atenção ao tempo da vida, mas em toda a sua duração;
porque aquele que não se importa com ela e não a cuida, corre grave risco. Com
efeito, se a morte fosse o fim de tudo, para os maus seria uma felicidade se verem
livres do corpo, da sua própria maldade e, com isso, da alma. Mas, como a
imortalidade da alma é evidente, não terão como fugir dos males, não terão salvação
possível, a não ser que se transformem, no mais alto grau, em pessoas boas e sábias.
Porque, quando forem para o Hades, não levarão nada mais do que a formação
moral e os seus hábitos, o que, segundo dizem, desde o começo da viagem para o
além, promove a máxima utilidade ou prejuízo a quem morre (PLATÃO, 2005, p.
110).
25
Na narrativa do destino último da alma, Platão descreve que depois da alma
cumprida sua trajetória no mundo, segue para o Hades em companhia de seu guia, que conduz
conforme foi ordenado. “Após terem obtido a merecida sorte e ai demorado o tempo
necessário, um outro guia, então, os trará de volta para cá, isso depois de longos períodos”,
isto é:
A alma sábia e edificada, então, segue obedientemente o seu guia e não ignora a
sorte que a espera; mas a alma presa ao corpo pelas paixões, como foi exposto
anteriormente, é atraída, durante muito tempo, por ele, bem como pelo lugar visível,
e, depois de tenaz resistência e de diversas provas, é conduzido à força e com
dificuldade pelo gênio encarregado dela (PLATÃO, 2005, p. 111).
1.6 O conceito de ressurreição
A crença na ressurreição é muito explícita na cultura judaico-cristã. Mas sabemos
que essa doutrina é anterior, existiu entre os povos primitivos, que tinha o costume de sepultar
juntamente com seus mortos utensílios, alimentos e seus pertences.
Nesse aspecto podemos incluir os cultos religiosos da antiga Persa, hoje o Irã.
Segundo Eliade (1983, p. 139), “a concepção cíclico, era familiar aos hebreus, muitas
outras idéias religiosas foram descobertas, revalorizadas ou sistematizadas no Irã”, como por
exemplo, a doutrina da ressurreição dos corpos.
Egípcios que levavam uma existência religiosa voltada para os destinos além-
túmulo e a preservação desta imortalidade estavam presentes nos elaborados ritos funerários,
na construção de sepulturas, em suas minuciosas técnicas de mumificação e nos cuidados com
o destino da alma e da morada espiritual.
A ressurreição, uma metáfora divina que a história de Osíris e o percurso do deus-
Sol, na sua morte e renascimento de todos os dias referendavam era o objetivo final pelo qual
destinavam as orações dos fieis, que celebravam nas cerimônias funerárias. Em quase todos os
textos, túmulos, mumificação e ritos permitiam que o morto pudesse alcançar a imortalidade e
viver, eternamente, num corpo transformado e glorificado para vida eterna.
A associação e a coalescência dos deuses são operações familiares ao pensamento
religioso egípcio desde a mais remota antiguidade. O que constitui a originalidade
da teologia do novo império é, por um lado, o postulado do duplo processo de
osirificação de Ré e de solarização de Osíris; por outro lado, a convicção de que esse
duplo processo revela o sentido secreto da existência humana, e precisamente a
complementaridade entre a vida e a morte. [...] O Livro dos Mortos é o guia por
excelência da alma no além (ELIADE, 1983, p. 137).
26
O conjunto das crenças funerárias egípcias merece ser destacado por vários
motivos. Em primeiro lugar porque apesar do tempo e da diferença cultural, nunca deixou de
despertar interesse e curiosidade de todos aqueles que se preocupam com temas
transcendentais e espirituais.
1.6.1 Osíris: ressurreição e imortalidade
A idéia da imortalidade, durante séculos, formou o eixo central da vida religiosa e
social dos antigos egípcios. A preocupação do destino além-túmulo e a preservação desta
imortalidade alimentaram as crenças na ressurreição, presente nos elaborados ritos funerários,
na construção de sepulturas, nas técnicas de mumificação e nos cuidados com o destino da
alma.
O conjunto de crenças lentamente estruturou-se do ponto de vista mitológico,
religioso e cultural, desde os períodos pré-dinásticos até seu modelo mais tradicional do
médio império em diante, com suas múmias, tumbas, livro dos mortos, julgamento, o reino de
Osíris-Rá, acabou por consolidar várias matrizes religiosas em diferentes períodos históricos:
Mas, sem demora, a civilização egípcia elaborou um estilo característico, que
transparece em todas as suas criações. Sem dúvida a própria geografia impunha um
desenvolvimento diferente daquele peculiar às culturas sumério-acadianas. [...] Mas
foram à religião, e sobre o dogma da divindade do Faraó, que contribuíram, desde o
inicio, para modelar a estrutura da civilização egípcia (ELIADE, 1983, p. 109-110).
A grande coleção de textos religiosos reunidos ao longo dos tempos, que ficou
conhecido como "O Livro dos Mortos", continha uma série de orações e fórmulas mágicas, de
caráter iniciático, para facilitar a viagem da alma para além túmulo.
O medo da morte e a esperança na vida futura foram motivos para idealizarem um
conjunto de práticas religiosas. De uma idéia arcaica dos mortos vivendo no solo onde
estavam enterrados, cercados pelas forças dos ciclos naturais de germinação e crescimento,
chegou-se a uma teologia da transformação divina do morto, representada na mitologia do
deus Osíris:
27
Na XVIIª Dinastia, o Capítulo CLIV do Livro dos Mortos declara expressamente
que Osíris nunca se decompôs, nem se putrefez, nem apodreceu, nem se transformou
em vermes, nem pereceu, mas gozou a vida na plena posse de todos os membros do
seu corpo. Assim se colocam na boca do falecido rei Tutmósis III estas palavras:
“Viverei, viverei. Crescerei, crescerei, crescerei. Acordarei em paz; não apodrecerei;
[...]. Meu corpo será composto (isto é, constituído), e não se corromperá nem será
destruído nesta terra.” E o rei, como todos os mais seguidores de Osíris, acreditava
que gozaria a vida e a felicidade eternas num corpo perfeitamente constituído
porque Osíris vencera a morte, ressurgira dos mortos, e vivia num corpo perfeito em
todos os seus membros; além disso, por gerações sem conta, Osíris foi o tipo e o
emblema da ressurreição e, fiadas no seu poder de conferir imortalidade ao homem,
incontáveis gerações viveram e morreram (BUDGE, 1993, p. 32).
O historiador Eliade (1983), apresenta sinteticamente os mitos e a função religiosa
de Osíris, que passa pelo processo de morte e ressurreição num drama único e específico:
durante a batalha com Seth, Horus teve um olho arrancado. Após a sua vitória ele ofereceu
este olho a Osíris e, na tradição popular egípcia, o olho de Horus converteu-se em amuleto
poderoso contra todas as formas de malefício e encantamento. Após sua vitória Horus desceu
ao mundo subterrâneo dos mortos e acordou Osíris, ressuscitando-o com palavras, rituais e in-
vocações sagradas: "Osíris! Olha! Osíris! Escuta! Levante-te! Ressuscita!” (Livro das
Pirâmides, 258 s.).
Entretanto para o autor, Osíris foi ressuscitado enquanto pessoa espiritual, força
vital, passando a assegurar a fertilidade, a força reprodutiva e de crescimento de toda a Terra.
O mito da ressurreição de Osíris tinha um caráter profundamente hermético e iniciático, uma
alegoria aos fenômenos da Natureza.
Trata-se de uma audaciosa valorização da morte, assumida doravante como uma
espécie de transmutação exaltadora da existência encarnada. A morte põe um termo
à passagem da esfera do insignificante para a esfera do significativo. O túmulo é o
lugar onde se cumpre à transfiguração (sakh) do homem, pois o morto se transforma
em um Akh, um “espírito transfigurado” (ELIADE, 1983, p. 124-5).
No conceito do autor, o mito revela uma representação da realidade, os seus
significados, símbolos e ritos são fundamentais, não como função unificadora da
experiência gico-religiosa do ser humano, mas também revela sempre, em qualquer que
seja o seu contexto, a unidade fundamental de várias zonas do real do contexto humano. “O
mito exprime plástica e dramaticamente o que a metafísica e a teologia definem
dialeticamente” (ELIADE, 1993, p. 340).
Este mito que tinha uma concepção profundamente enraizada nos ritos agrários e
de fertilidade recebe um tratamento mais elaborado do ponto de vista simbólico, quando a
religião egípcia começou a ficar mais organizada teológica e filosoficamente. O deus Osíris
não era mais uma simples divindade agrária. Ele era uma alegoria dos ciclos da existência, das
metamorfoses da vida que oscilavam entre morte e ressurreição:
28
Osíris, em alguns de seus aspectos, foi identificado com o Nilo, com e com
muitos outros “deuses” conhecidos dos egípcios, mas era aspecto como deus da
ressurreição e da vida eterna que ele apelou para os homens no Vale do Nilo; e por
milhares de anos homens e mulheres morreram acreditando que, porquanto tudo o
que foi feito para Osíris seria feito para eles simbolicamente, como ele, iriam
levantar novamente e herdar a vida eterna. Por mais que no passado tenhamos
traçado as idéias religiosas no Egito, nunca abordamos um tempo no qual pudesse
ser dito não ter existido ali uma crença na ressurreição; para todo lugar é assumido
que Osíris levantou da morte; céticos devem ter existido, e eles provavelmente
perguntaram aos seus sacerdotes o que os coríntios perguntaram a São Paulo:
“Como são os mortos elevados? E como que corpo eles vêm?” Mas, além da dúvida,
a crença na ressurreição foi aceita pelas classes dominantes do Egito (BUDGE,
2004, p. 56).
De acordo com Budge (2004, p. 69), a principal razão para a persistência do culto
de Osíris no Egito foi, provavelmente, o fato de que ele prometia a ressurreição a seus
seguidores. Mesmo depois que o Cristianismo tenha chegado entre eles, ainda continuaram a
mumificar seus mortos para assegurar a vida eterna.
1.6.2 Ressurreição na cultura Persa
Por volta do século VI a.C., a incidência do fenômeno profético teve profundas
repercussões em diferentes tradições religiosas, com uma grande força criadora e inovadora,
marcada por características universal e ecumênica. As suas mensagens vinham recheadas da
idéias de um Deus único, com poder soberano e transcendente, os portadores das novas
mensagens eram fortes personalidades religiosas que subverteram estruturas e com seus
pensamentos levaram à criação de novos movimentos religiosos. Assim foi com o
Zoroastrismo, que surgiu nesse período, na região da Pérsia, habitada por comunidades de
pastores de origem indo-européia.
Os ritos funerários, as mitologias da morte, as concepções relacionadas com a pós-
existência da alma transformam-se lentamente, em que pese às reformas e às
conversões. Isso equivale a dizer que muitas informações fornecidas por textos
avésticos e pélvis são igualmente válidas para a época pré-zaratustriana (ELIADE,
1983, p. 168).
O estudo antropológico da religião iraniana revela que este movimento, assim
como a tradição judaico-cristã desde o profetismo bíblico, incorporou uma concepção linear
de tempo, revalorizou e sistematizou idéias fundamentais para o desenvolvimento posterior do
próprio Judaísmo e em seguida do Cristianismo. Numerosos foram os textos dos Evangelhos
que revelaram sua fonte da gnose zoroástrica, num encontro decisivo do judaísmo após o
Exílio e da insurreição contra a excessiva helenização do pensamento, da cultura e da religião.
29
Perante uma comunidade constituída por pastores sedentários emergiu a figura
lendária do profeta Zaratustra, o reformador das antigas radiações religiosas e o missionário
da pregação da palavra de um único Deus, Ahura-Mazda, uma divindade do panteão antigo,
elevada por ele à categoria de Supremo Criador. O profeta construiu então um sistema reli-
gioso articulado com a idéia de uma nova e verdadeira proposta salvacionista, pressupondo a
existência de um Deus, Ahura-Mazda, o "Sábio Senhor", que revelava a religião, diretamente
a seu profeta Zaratustra. Estas revelações ocorriam através de visões e diálogos durante os
quais Deus esclarecia dúvidas e indicava o caminho da sabedoria e da salvação.
São vários os mitos e crenças escatológicos cristalizados na doutrina de
Zaratrusta, uma delas é a idéia da ressurreição:
A crença parece muito antiga, mas está expressamente proclamada no Yasht, 19, 11
e 89, que fala na “ressurreição dos mortos” relacionada com a chegada “Daquele
que Vive”, ou seja, do Saoshyant anunciado por Zaratustra. A ressurreição
enquadra-se, portanto, na Renovação final, que implica por outro lado o julgamento
universal (ELIADE, 1983, p. 172).
Os textos do Avesta revelam um paralelismo entre as festas do Ano Novo e a
Renovação escatológica, significando a ressurreição. Conforme Eliade (1983, p. 173), “Por
ocasião de cada Ano Novo, recebem-se roupas novas e, no fim do Tempo, Ohrmazd dará aos
ressuscitados vestes gloriosas.”
A doutrina do zoroastrismo de renovação foi reforçada gradualmente pela
florificação do poder criador do rito.
Uma vez que a finalidade ultima era a regeneração universal, valorizou-se a função
fundamental, cosmogônica, do sacrifício: com efeito, a renovação escatológica não
“salva” a humanidade, mas ainda a recria, efetuando a ressurreição dos corpos.
Isso implica uma nova Criação, indestrutível, incorruptível (ELIADE, 1983, p. 168).
O mundo renovado e purificado representava uma nova criação sem a presença de
impurezas ou ação do mal e os ressuscitados receberiam vestes gloriosas e indestrutíveis que
eram a imagem da imortalidade espiritual num mundo transfigurado, que a nova crença
conferia aos seus fiéis.
Na verdade, os profetas de Israel, a mensagem cristã e o islamismo sofreram
influências significativas do zoroastrismo, incorporando na sua tradição pontos fundamentais
da doutrina, entre os quais: alcançar o reino de Deus como objetivo principal das aspirações
humanas, a doutrina do juízo final, o purgatório, como espaço intermediário das almas que
não alcançaram o céu ou o paraíso, a figura de um salvador, que viria para renovar o mundo e
por fim a ressurreição dos mortos, doutrina que fundamenta a teologia judaico-cristã.
30
1.6.3 Ressurreição no Judaísmo
A religião de Israel é acima de tudo uma religião do Livro. Conforme diz Eliade
(1983, p. 193), com tal tradição vem o profetismo bíblico que se constitui num movimento
importante dentro do judaísmo, ele influi ao longo de todo o Antigo Testamento:
Alguns autores e dos mais notáveis afirmaram que a cosmogonia e os mitos de
origem (criação do homem, origem da morte, etc) desempenharam um papel
secundário na consciência religiosa de Israel. Em suma, os hebreus interessavam-se
mais pela “história santa”, isto é, pelas suas relações com Deus, do que pela história
das origens, que narra os acontecimentos míticos e fabulosos do primordium
(ELIADE, 1983, p. 194).
Desde Moisés, toda uma linhagem de herdeiros de seus dons, homens e mulheres,
guiaram e mantiveram a cultura religiosa durante as dispersões, cativeiros e exílios, foram
personagens das revelações e formaram o corpo teológico em torno de três importantes linhas,
a saber:
A primeira delas foi o monoteísmo absoluto, a teoria de Deus único, Iahweh, o
Deus de Israel. O segundo aspecto estava ligado à função moral das profecias. A partir de um
contato direto com Iahweh, fosse pela visão, audição ou inspiração, os profetas falavam da
revolta divina contra uma determinada situação ou acontecimento, contra a natureza humana e
a natureza das coisas. Todo o discurso apontava para a necessidade de transformação de
hábitos, práticas e da unidade religiosa.
Por fim, o terceiro aspecto profético estava ligado à possibilidade de salvação do
indivíduo após o julgamento final. Iahweh pouparia os que se revelassem justos e fiéis
cumpridores da Lei. A estes concederia a salvação e felicidade eterna. O reino de Deus e de
seus eleitos seria de felicidade, num clima espiritual de prosperidade, justiça, santidade,
perdão, conhecimento de Deus, paz e alegria. Este sonho esperançoso alimentou séculos de
religião aguardando a vinda do Messias, o julgamento final, o reino de Deus e a salvação
eterna.
Para Eliade (1983) uma das conseqüências do profetismo foi o fato de que, ao
combater a idolatria, o paganismo e os cultos aos diferentes deuses, promoveu uma profunda
dessacralização e desvalorização da natureza, da religiosidade cósmica, dos ritos agrários e da
fertilidade que caracterizavam as crenças primitivas. Esta dessacralização da natureza foi sinal
de uma nova visão religiosa: a valorização da história, os acontecimentos históricos como
portadores de um valor próprio, a tradição, na medida em que eram determinados pela
vontade de Deus:
31
Mas seja qual for a fonte da sua inspiração (sonho, visão, audição, conhecimento
milagroso, etc.), o que os profetas recebiam era sempre a palavra de Javé. Essas
revelações diretas, pessoas, eram evidentemente interpretadas à luz da sua
profunda e transmitidas segundo certos modelos tradicionais (ELIADE, 1983, p.
185).
Os textos bíblicos insistem na futilidade da condição humana, que a
mortalidade do indivíduo é conseqüência do seu pecado:
Como em tantas outras culturas tradicionais, a morte é degradante: ela reduz o
homem a uma pós-existência larvar no mulo ou no sheol, região escura e
aterradora nas profundezas da terra. [...] Por conseguinte, o morto está privado de
relacionar-se com Deus, o que constitui, para o fiel, a mais terrível das provações.
No entanto, Javé é mais poderoso do que a morte: se o desejasse, poderia arrancar o
homem de sua sepultura. Alguns Salmos aludem a esse prodígio: “Do Sheol fizeste
subir a minha alma; resgataste-me de entre aqueles que descem à sepultura” (30: 4);
“Não morrerei, antes viverei [...]; Javé me castigou severamente, mas não me
entregou à morte” (118: 17). São essas as únicas referências à ressurreição dos
mortos antes do cativeiro na Babilônia (587-538), quando uma parte da população
será submetida à influência da escatologia iraniana (ELIADE, 1983, p. 178).
Segundo Kaplan (2003, p. 47), a ressurreição dos mortos é uma das crenças
fundamentais no judaísmo. “Acreditamos que virá um tempo em que todos os mortos serão
trazidos de volta à vida, e corpo e alma serão reunidos.”
A ressurreição é mencionada na To quando Deus diz: “Eu faço morrer e faço
viver” (Deuteronômio 32:39). Esta crença é expressa de maneira mais explicita nas
palavras do profeta: “Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres ressurgirão.
Despertai e cantai, vós que habitais o pó.” (Isaías 26:19) Este conceito é expresso
muito claramente no livro de Daniel (12:2): “E muitos dos que dormem no solo
poeirento acordarão, uns para a vida eterna e outros para o opróbrio, para o horror
eterno” (KAPLAN, 2003, p. 47).
Para ilustrar a doutrina da ressurreição dos mortos na cultura judaica o autor cita a
seguinte passagem talmúdica:
Certa vez, [o romano] Antonino disse a Rabi [Judá, o Príncipe]: “O corpo e a alma
podem ambos escapar do julgamento de Deus. O corpo pode se defender dizendo:
‘Foi a alma que pecou! Pois veja, desde o dia em que a alma me deixou, eu fiquei
parado como uma pedra morta [e nada fiz de errado].’ A alma pode [analogamente]
dizer: ‘Foi o corpo que pecou. Desde que deixei o corpo, tenho voado livre como um
pássaro.’
Rabi respondeu-lhe: ‘Eu te darei um exemplo: Um rei humano tinha um lindo
pomar, cheio de figos precoces. Ele designou dois guardas para o pomar, um
aleijado e um cego. O guarda aleijado disse ao cego: ‘Vejo lindas frutas neste
pomar. Carregue-me em teus ombros e poderemos compartilhá-las. Eles
executaram o plano, com o guarda cego carregando o aleijado, até terem comido
todas as melhores frutas do pomar.
Quando o rei voltou, perguntou aos dois vigias: ‘Aonde estão minhas melhores
frutas.?’
O guarda aleijado retrucou: ‘caso tenho pés [para poder ir atrás das frutas]?’ O
guarda cego [analogamente] disse: ‘Acaso tenho olhos para ver [as frutas]?
O rei, contudo, não foi enganado. Ele colocou o aleijado sobre os ombros do cego e
julgou-os conjuntamente.
32
De maneira similar, Deus trará a alma e a reunirá ao corpo, e depois julgará os dois
conjuntamente. Assim está escrito: ‘Do alto Ele convoca o céu e a terra, para julgar
Seu povo’ [Salmos 50:4] (KAPLAN, 2003, p.47-8).
Portanto, conforme afirma Kaplan (2003, p. 48), o Talmud fornece uma razão
profunda para a ressurreição dos mortos. “No fim dos tempos, o homem será julgado como
uma pessoa completa, um ser humano total, com corpo e alma.”
33
CAPÍTULO II
O surgimento do Cristianismo e suas raízes
Examinando o momento histórico do surgimento do Cristianismo, se vê a evidente
ebulição social da Palestina, favorecendo o conflito de várias correntes ideológicas. Também
se percebe uma mistura de elementos econômicos, simbólicos, religiosos e sociais na rejeição
aos romanos, os quais eram politicamente dominantes.
O historiador do século I, Flávio Josefo, conta no livro História dos Hebreus,
como era constituída a sociedade judaica da época:
520. Havia então entre nós três seitas, divergentes nas questões relativas às ações
humanas. A primeira era a dos fariseus; a segunda, a dos saduceus; a terceira, a dos
essênios. Os fariseus atribuem certas coisas ao destino, porém nem todas, e crêem
que as outras dependem de nossa liberdade, de sorte que podemos realizá-las ou não.
Os essênios afirmam que tudo geralmente depende do destino e que nada nos
acontece que ele não determine. Os saduceus, ao contrário, negam absolutamente o
poder do destino, dizendo que ele é uma quimera e que as nossas ações dependem
tão absolutamente de nós que somos os únicos autores de todos os bens e males que
nos acontecem, conforme seguimos um bom ou um mau conselho (JOSEFO, 2004,
p. 611).
Nos seus relatos percebe-se que o sincretismo religioso era predominante. As
seitas, além de políticas, eram ideológicas, influenciavam a vida cotidiana de seu povo,
participavam da vigilância dos costumes e das tradições. Era muitas vezes a resistência da
tradição ou a consonância do sistema dominante.
As inúmeras idéias que permeavam o cerne das doutrinas judaicas também se
diferenciavam entre elas acerca da imortalidade da alma e do destino humano. Flávio Josefo
em outro momento do seu livro registra essas distinções:
760. Entre os judeus, os que faziam profissão particular de sabedoria estavam,
vários séculos, divididos em três seitas: os essênios, os saduceus e os fariseus [...]. A
maneira de viver dos fariseus não é fácil nem cheia de delícias: é simples. [...].
Atribui ao destino tudo o que acontece, sem, todavia, tirar ao homem o poder de
consentir. [...]. Eles julgam que as almas são imortais, julgadas em um outro mundo
e recompensadas ou castigadas segundo foram neste - virtuosas ou viciosas - e que
umas são eternamente retidas prisioneiras nessa outra vida, e outras retornam a esta.
Eles granjearam, por essa crença, tão grande autoridade entre o povo que este segue
os seus sentimentos em tudo o que se refere ao culto de Deus e às orações solenes
que lhe são feitas [...].
34
A opinião dos saduceus é que as almas morrem com os corpos e que a única coisa
que somos obrigados a fazer é observar a lei, sendo um ato de virtude não tentar
exceder em sabedoria os que a ensinam. Os adeptos dessa seita são em pequeno
número, mas ela é composta de pessoas da mais alta condição. [...].
Os essênios, a terceira seita, atribuem e entregam todas as coisas, sem exceção, à
providência de Deus. Crêem que as almas são imortais, acham que se deve fazer
todo o possível para praticar a justiça e se contentam em enviar as suas ofertas ao
Templo, sem oferecer os sacrifícios, porque o fazem em particular, com
cerimônias ainda maiores. Os seus costumes são irreprocháveis, e a sua única
ocupação é cultivar a terra. Sua virtude é tão admirável que supera em muito a dos
gregos e de outras nações, porque eles fazem disso todo o seu empenho e
preocupação e a ela se aplicam continuamente [...] (JOSEFO, 2004, p. 864-5).
Foi nessa atmosfera que surgiu o Cristianismo, carregado das tradições judaicas.
Além de que Jesus era judeu e viveu entre eles. Por conseguinte, sem nenhuma dúvida, sua
mensagem pertence à estrutura do judaísmo de seu tempo, conforme afirma Flusser:
O Cristianismo antigo está edificado, essencialmente, sobre premissas judaicas.
Nem Jesus nem a antiga Igreja primitiva viveram num vácuo: eles tinham um
conhecimento mais amplo do pensamento judaico, dos relatos judaicos e do modo
de vida religioso judaico, do que o que está preservado no Novo Testamento e em
antigos escritos cristos. Por conseguinte, os assuntos e as tradições judaicas que não
têm relação direta com passagens especificas do Novo Testamento formam o meio
no qual o cristianismo se cristalizou. Desse modo até idéias e temas judaicos cujos
traços não estão presentes nas palavras de Jesus e no Novo Testamento criaram a
matriz para a nova religião. Isso é verdade em especial à luz do fato de que muitos
conceitos judaicos eram conhecidos, e a maioria foi aceita como evidente por si
mesma por Jesus e, mais tarde, pela Igreja primitiva (FLUSSER, 2000, p. 14).
Diante desse quadro que se formou na Palestina, as questões doutrinárias da nova
religião não poderiam ser diferenciadas da tradição. Quando o Cristianismo primitivo nasceu
levou com ele também os conceitos fundamentais da tradição judaica.
Por conseguinte, as influências da cultura religiosa da época que formava a
plataforma semita foram importantes para a construção do “caminho da boa nova”: “Tanto a
corrente judaica principal, ou seja, o judaísmo rabínico não sectário, quanto à seita essênia,
cuja literatura se tornou acessível após a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto em
Qumran” (FLUSSER, 2000, p. 15).
Nessa diversidade religiosa, o precursor do Cristianismo, Jesus, é uma
personagem que aparece apenas nos relatos dos Evangelhos: Mateus, Marcos, Lucas e João.
“Os três Evangelhos baseiam-se primordialmente em material histórico comum, ao passo que
o quarto, João, é corretamente considerado como se mais se preocupasse mais com a
apresentação de uma perspectiva teológica” (FLUSSER, 2002, p. 2).
A simetria entre Mateus, Marcos e Lucas são tantas que, segundo Flusser (2002,
p. 2), poderia ser disposta em três colunas paralelas, de modo a formar uma sinopse - daí a
designação “Evangelho Sinópticos”, a eles atribuídos.
35
Para Flusser (2002, p. 3), os primeiros registros de Jesus não podem ser
considerados tão indignos de credulidade, pois os Evangelhos retratam um judeu fiel aos
princípios de sua época, ou seja:
A grandiosidade da vida de Jesus também nos fala na atualidade: o chamado no seu
batismo, os laços rompidos com sua família e sua descoberta de uma filiação nova
sublime; o pandemônio dos enfermos e dos possessos e sua morte na cruz. Assim, as
palavras que Mateus (28:20) coloca nos lábios do Senhor ressurrecto assumem par
nós um significado novo e não eclesiástico: “E eis que estou convosco todos os dias,
até a consumação do século” (FLUSSER, 2002, p. 5).
2.1 As influências das seitas judaicas na formação do Cristianismo Primitivo
Os Manuscritos do Mar Morto ganharam nos últimos tempos relevância para os
estudiosos, principalmente, em torno das informações acerca do Cristianismo primitivo. O
que chamou atenção em suas pesquisas foram os traços semelhantes entre as doutrinas da
época. Os discursos abordados, as temáticas e sua linguagem em torno de temas parecidos.
Conforme afirma Flusser:
muitas analogias entre os novos pergaminhos e os Evangelhos Sinópticos, as
epístolas paulinas e os livros restantes do NT, mas essas analogias são mais
abundantes nas áreas em que os livros do Novo Testamento em questão se
assemelham mais ao Evangelho de João. As analogias entre os novos pergaminhos e
a literatura paulina são quase tão importantes para nosso propósito quanto as outras,
uma vez que tem havido uma tendências secular de afastar o máximo possível o
Evangelho de João das epístolas de São Paulo [...] O mesmo dualismo ético aparece
em todo o Novo Testamento, mas mais uma vez é expressado com mais força por
João e Paulo (FLUSSER, 2000, p. 50).
Para o autor, os inúmeros pontos de contatos que ocorreram entre as duas
doutrinas e as semelhanças dos escritos da seita de Qumran com o Cristianismo pré-paulino
são essenciais para entender que os autores, tanto dos Manuscritos do Mar Morto, como os do
Novo Testamento, tiveram bases teológicas comuns.
Segundo ele, as pesquisas dos Manuscritos de Qumran, renderam alguns
resultados fundamentais, são elas:
36
1) Ao contrário do Evangelho de João, os Evangelhos Sinópticos apresentam
poucas, e comparativamente pouco importantes, analogias com os escritos sectários.
Isso parece indicar que os pergaminhos não contribuirão muito para a compreensão
da personalidade de Jesus e do mundo religioso de seus discípulos. A literatura
talmúdica permanece sendo nossa principal fonte para a interpretação dos
Evangelhos Sinópticos o que prova, em minha opinião, que Jesus e seus
seguidores eram mais próximos do judaísmo farisaico do que da seita de Qumran.
2) Há uma marcante semelhança com os pergaminhos na Epístola do NT e nos
escritos de João Evangelista. Nesse grupo, Paulo, João Evangelista e o autor da
Epistola aos Hebreus são as personalidades destacadas.
3) A maioria das analogias com os pergaminhos ocorre em material que é comum a
todos ou pelo menos vários autores do grupo acima mencionado. Traços particulares
de algum desses autores não são, em regra, afins como o pensamento sectário
(FLUSSER, 2000, p. 51).
No exame literário teológico que David Flusser faz entre os Manuscritos de
Qumran e o Novo Testamento, vários traços comuns em seus temas, segundo suas
conclusões, as quais serão destacadas, como por exemplo: O dualismo do bem e do mal, em
que, “[...] A seita se julga idêntica à parte justa da humanidade e se chama de ‘Filhos da Luz’.
A mesma denominação é usada para os cristãos, por Paulo e João” (FLUSSER, 2000, p. 53).
Outro aspecto e a crença na predestinação, que a seita de Qumran associa a
divisão da humanidade em dois grupos: os dos justos e o dos maus. O cristianismo primitivo
vincula essa idéia em sua teologia através dos textos de João e Paulo. Daí vem outro tema que
é semelhante entre as doutrinas, a eleição da graça, resultado da predestinação divina, que
também se encontra no Novo Testamento, principalmente nas Epístolas de Paulo.
A nova aliança, que tem sua origem em Jeremias (31:31-32), e é usada no texto de
Qumran, e sua expressão também está no Cristianismo para se diferenciar do judaísmo e
renovar a antiga aliança.
Outro conceito é a questão do batismo, que após a aliança, trouxe aos membros da
seita a redenção do pecado. No Cristianismo essa crença é combinada com a morte do
Salvador que expia o pecado do cristão e renova sua aliança através da instituição do batismo.
“O batismo, tal como praticado por João Batista e pela seita tinha uma dupla importância:
pureza ritual e expiação, ou redenção do pecado” (FLUSSER, 2000, p. 70).
Por último, o tema carne e espírito, que gerou uma longa discussão entre vários
estudiosos, devido às inúmeras interpretações dentro da Bíblia, na filosofia grega e na gnose,
mesmo antes dos Manuscritos de Qumran.
No pensamento grego, existem duas realidades, o indivíduo é constituído de corpo
e alma, enquanto o seu corpo está na realidade visível, sua alma opera na realidade invisível e
inteligível. A gnose vê o corpo, sendo material, como oposto ao espírito.
37
A questão é: o texto Sagrado é a junção dessas duas linhas de pensamento, ou é
uma construção independente. Segundo o autor, o termo “carne”, é uma influência do Antigo
Testamento, mas não implica dizer que o conceito dualista de corpo e alma sofreu apenas tais
influências, como afirma:
A discussão foi reaberta pouco tempo, que os Manuscritos do Mar Morto nos
forneceram um quarto grupo de pensamento a ser comparado com doutrina do Novo
Testamento sobre a carne e o espírito. Isso é assim porque o contraste entre carne e
espírito também é conhecido dos autores de Qumran, embora não discorram sobre
ele com ênfase comparável às declarações de Paulo. [...]. Temos de reexaminar a
questão porque, com certeza, ela vem sob o tópico de possíveis conexões entre os
Manuscritos do Mar Morto e o pensamento cristão primitivo. Paulo não é o único
autor do NT que tratou do contraste entre carne e espírito; João Evangelista também
diz que “o que é nascido da carne é carne; e o que é nascido do Espírito é espírito”
(João 3:6) (FLUSSER, 2000, p. 76).
De fato esse tema: “carne e espírito”, inerente nas seitas semitas e posteriormente
no Cristianismo, é uma abordagem da realidade dualista considerada como questão
fundamental para a formação dos conceitos de imortalidade da alma e ressurreição da carne.
Pois os autores dos textos Sagrados, nessa época, tinham conhecimentos de outros
conceitos acerca do problema.
Por conseguinte era utilizado em vários momentos para distinguir as realidades
contrárias, como por exemplo: bem e mal, virtude e corrupção, “pecado da carne”, corpo
corruptível”, “espírito do mundo”, “reino da carne”, “fruto do espírito”, “obras da carne”,
entre outros termos, como afirma Flusser:
O contraste entre a carne e o espírito pode ser combinado com a oposição dos Filhos
da Luz aos Filhos das Trevas e, desse modo, produz aspectos adicionais da doutrina
dualista: os Filhos da Luz são os Eleitos, e o espírito lhes foi dado, ao passo que
aqueles que pertencem às trevas permanecem carnais. Essa é a opinião de Paulo:
“Porque os que se inclinam para a carne cogitam das coisas da carne; mas os que se
inclinam para o Espírito, das coisas do Espírito” (Rom 8:5) [...] (FLUSSER, 2002,
p. 82).
Pode-se inferir que a literatura das doutrinas da época tinha em seus conceitos
dualistas de corpo e alma, a justificativa da construção de suas teologias. Conforme diz o
autor:
Como vimos o dualismo “carne-espírito” do NT e de alguns escritos de Qumran está
baseado na idéia de que a natureza vil do homem pode ser enobrecida pela dádiva
divina do Espírito. Essa concepção está bem próxima da concepção grega (e
gnóstica), de que há dois princípios na natureza do homem: a matéria vil e o espírito
nobre (FLUSSER, 2002, p. 83).
38
Na conclusão de Flusser (2002), os primeiros cristãos utilizaram parte da doutrina
de Qumran para estabelecer sua própria antropologia e seu próprio ideal sobre a igreja, como
Civitas Dei. A estrutura da seita foi desmontada e as pedras reutilizadas para construir o
alicerce do Cristianismo primitivo.
Vários materiais entraram na construção dessa edificação nova e maior, desde as
pedras tiradas de outras casas antigas (grega e judaica) quanto às pedras lapidadas na
experiência religiosa cristã. “O material não apenas foi colhido, mas também fundido,
remodelado e enriquecido pelo impacto da personalidade e doutrina de Jesus, e pelas
tremendas forças criativas disparadas pela nova fé” (FLUSSER, 2002, p. 85).
2.2 A visão cabalística da imortalidade da alma
Sabemos que no Judaísmo contém diversas correntes religiosas, que ao longo do
tempo de sua formação o conceito de imortalidade da alma e/ou ressurreição sofreu oscilações
dentro de sua teologia. E seus compêndios foram incorporados nas tradições e na vida
cotidiana de seu povo, influenciando a construção das colunas teológicas do Cristianismo
primitivo e do Islamismo.
Mas é na doutrina stica do Judaísmo, a Cabalá, que os conceitos de
imortalidade da alma e ressurreição afloram e se consolidam como teologia fundamental do
destino humano. “A Cabalá é o judaísmo místico. É o significado mais profundo e oculto da
Torá, ou Bíblia” (BERG, 1998, p. 9).
Segundo Lalande (1996, p. 131), Cabalá ou Kabbalah (hebraico) significa coisa
recebida. Obra de filosofia hebraica, composta em época desconhecida e que se apresenta
como resumo de uma tradição secreta. Doutrina cujos traços essenciais são: o esoterismo e,
em particular, a possibilidade de decifrar um sentido secreto na Bíblia.
A Cabalá foi uma criação excepcional da mística esotérica judaica, conforme
afirma Eliade (1984), resgatando uma herança gnóstica, muitas vezes tingida de heresia para a
tradição rabínica, ou seja:
A Cabala contribuiu para fortalecer, direta ou indiretamente, a resistência espiritual
das comunidades judaicas da dispersão. De mais e mais, a Cabala, embora
insuficientemente conhecida e mediocremente compreendida por certos autores
cristãos, durante e após o Renascimento, desempenhou um papel no processo de
“desprovincializaçãoda cristandade ocidental; em outras palavras, ela faz parte da
história das idéias da Europa entre os séculos XIV e XIX (ELIADE, 1984, p. 195).
39
Conforme Eliade (1984) afirma, ela reintroduz no judaísmo várias idéias e mitos
relacionados à religiosidade de tipo cósmico. Ou seja:
A santificação da vida por meio do trabalho e dos ritos prescritos pelo Talmud, os
cabalistas acrescentam a valorização mitológica da Natureza e do homem,
importância da experiência mística e até certos temas de origem gnóstica. Pode-se
descobrir nesse fenômeno de “abertura” e nesse esforço de revaloração a nostalgia
de um Universo religioso onde o Antigo Testamento e Talmud coexistem com
religiosidade cósmica, o gnosticismo e a mística (ELIADE, 1984, p. 199).
No dicionário Enciclopédico das Religiões (1995, p. 461), Cabalá (Jud) palavra
hebraica para “tradição”. É a corrente religiosa mística do judaísmo que designou a tradição
oral que era transmitida paralelamente à Lei Escrita. Adotada pelos místicos para designar a
continuidade de sua “tradição” desde os primeiros tempos.
O misticismo em geral esforça-se por atingir um contato vital e intenso com a
Divindade; do mesmo modo, no misticismo judaico, esse desejo de uma consciência
imediata de Deus é de comunhão com Ele é básica. No nível filosófico, a cabalá
também procura explicar a relação entre Deus e a criação, existência do bem e do
mal, e mostrar o caminho da perfeição espiritual. Foi influenciada em todas as
épocas por diversas correntes espirituais como o gnosticismo e o neoplatonismo; no
entanto, sempre conservou seu caráter fundamentalmente hebraico. [...] Os primeiro
sinais do misticismo judaico são encontrados desde o século I, mas o estudo dos
manuscritos do mar Morto pode fazer datar até de mais cedo o conhecimento do
assunto. O sincretismo religioso (mistura e fusão de várias religiões orientais,
mitologias, noções semifilosóficas, etc.) da época, assim como as especulações
messiânicas estimuladas pelas catástrofes nacionais e políticas na Palestina,
provocaram um tipo especial de interesse pela Bíblia cujas tendências escatológicas
e místicas salientava. Os escritos apocalípticos como o Livro de Enoc e Esdras IV
são típicos dessa época. O clímax do cabalismo foi o aparecimento do Zohar, ligado
a Moses de Léon (1305). Todos os sistemas cabalísticos posteriores derivaram do
Zohar, que defende idéia da manifestação própria ou revelação de Deus através das
Sefirot divinas que dele emanam (SCHLESINGER, 1995, p. 461-2).
Os símbolos numéricos, as letras e as palavras da Torá ganham sentido exclusivo
na Cabalá e seu conhecimento conduz a interpretação própria acerca da realidade do mundo e
o destino humano:
Através do conhecimento básico e das práticas místicas da Cabalá podemos atingir
os mais altos níveis espirituais possíveis. Enquanto muitos se baseiam na crença, na
e nos dogmas ao buscar o sentido da vida, do desconhecido e do invisível, os
cabalistas procuram uma conexão espiritual com o Criador e Suas forças, de forma
que o estranho se torna familiar e a se transforma em conhecimento (BERG,
1998, p. 9).
Parte do judaísmo, especialmente as correntes ortodoxas e cabalista, além de
acreditar na imortalidade da alma, considera também que depois da morte, ela reencarna numa
nova forma física, ou seja, renasce novamente. Nessas doutrinas recebem o nome de
“transmigração das almas”, em hebraico chama-se Guilgul Neshamot. Conforme Kaplan apud
40
Silva (2001, p. 159), não é possível entender a Cabalá sem acreditar na eternidade da alma e
suas reencarnações.
O advento da Cabalá relaciona o cumprimento da missão humana, sobretudo, com
a doutrina na metempsicose, o Guilgul, ou seja:
Cada alma guarda a sua individualidade até o momento de sua restauração espiritual.
As almas que cumpriram os mandamentos guardam cada qual em seu lugar
abençoado, a sua integração em Adão, quando se verificará a restauração universal.
Em síntese, a verdadeira história do mundo é aquele das migrações e das inter-
relações das almas. A metempsicose (Guilgul) constitui um momento no processo
de restauração, Tikkun (ELIADE, 1984, p. 203).
A doutrina cabalística, trouxe em seu novo conceitos três idéias fundamentais para
a beatificação humana com Deus, de acordo com Eliade (1984), são eles: a morte, o
arrependimento e o renascimento. Isto é:
A humanidade está sob a ameaça não apenas da sua própria corrupção, mas também
das corrupções do mundo; esta foi provocada pela primeira fenda na criação, quando
o “sujeito” se separou do “objeto”. Ao insistir na morte e no renascimento
(interpretado como uma reencarnação ou um renascimento espiritual obtido em
conseqüência do arrependimento), a propaganda dos cabalistas - através da qual o
novo messianismo se esforçava por abrir um caminho para si - alcançou grande
popularidade (ELIADE, 1984, p. 200).
2.3 O Zohar, o livro do Esplendor
Segundo a tradição mística judaica, o Zohar é um dos livros que forma a doutrina
do conhecimento cabalístico. Os textos do “Livro do Esplendor”, o Zohar, “[...] é considerado
a espinha dorsal da Cabalá (‘recebimento’ em hebraico), por sua vez a parte mais mística e
secreta da Torá Oral” (BENSION , 2006, p. 21).
A origem do “Livro do Esplendor”, o Zohar, passou por várias fases de
discussões, desde a divulgação oral, até os escritos fragmentados no final do século XIII, na
região de Castela, Espanha. Conforme cita Mehoudar, na introdução do Zohar, quando fala da
autoria da obra:
Ariel Bension refere-se a duas teses majoritárias presente em seu tempo (1930). A
primeira, até hoje consagrada no meio religioso tradicional e amplamente difundida,
atribui a sua autoria Shimon bem Yohai. Encontrei na revista Morashá um artigo
que, apoiado em estudos de autores conhecidos e consistentes, detalha uma linha
significativa da “tese da antiguidade”. O fer -Zohar (ou Livro do Esplendor) é
considerado a espinha dorsal da Cabalá (“recebimento” em hebraico) por sua vez a
parte mais mística e secreta da Tora Oral. [...].
A Outra tese a que Bension se refere é a de que o Zohar constitua uma criação
tardia, isto é, do século XIII e, mais especificamente, do próprio rabi Moisés de
Leon. Essa idéia apoiou-se no fato de o manuscrito antigo nunca ter sido encontrado
(BENSIOR, 2006, p. 22).
41
Para Bensior (2006), as pesquisas acerca da redação definitiva da obra, levando
em consideração os traços de estilo e conteúdo da época do surgimento do escritos no século
XIII, parece que os estudiosos não se opõem à teoria que a obra tem uma antiqüíssima
tradição oral e escrita de textos e ensinamentos. Mesmo que tenha sido implementado por
Moisés Leon na sua época, ou seja, no século XIII, quando teve acesso às fontes antigas do
Zohar.
A Revista eletrônica Judaica, Morashá, na sua edição 44, de março de 2004, traz
um artigo sobre a história do surgimento do Zohar, que confunde segundo os relatos
históricos com a vida do Rabi Shimon ben Yochai e de seus discípulos fornecidas pelo
Talmud, que no ano de 3909 (149 da E.C.), logo depois do decreto de morto das autoridades
romanas, fugiu com seu filho, Rabi Elazar, e se esconderam em uma caverna.
permaneceram durante treze anos, estudando, noite e dia, a Torá.
Transcorridos doze anos da reclusão dos eruditos, morre o governador romano,
levando consigo o decreto de morte contra Rabi Shimon. Quando o grande sábio e
seu filho emergem do isolamento da caverna, deparam com um homem que arava e
semeava a terra. Os dois, que se tinham recolhido por mais de uma década numa
caverna, exclusiva e ininterruptamente estudando a Torá, não podiam compreender
como devotava um judeu o seu tempo a uma ocupação mundana qualquer - e não a
questões eternas, como a oração e o estudo da Lei. Encararam, pois, o homem, com
desagrado, e de seus olhos se projeta um raio de fogo que o queima. Eis que dos
Céus lhes chega uma voz, tonitruante: "Para destruir o Meu mundo saístes da
reclusão?" E a Voz lhes ordenou voltar ao isolamento da caverna, tendo
permanecido por mais um ano, imersos no estudo. Quando, pela segunda e última
vez emergem da caverna, pai e filho regozijaram-se ao constatar que os judeus de
Israel se ocupavam do cumprimento dos sagrados Mandamentos Divinos. não
incomodava ao Rashbi o que de mundano o cercava e disse a Elazar, seu filho, que o
que ambos estudaram da Tobastava para sustentar o mundo. Rabi Shimon estava
em busca de maneiras de retificar o mundo; não de condená-lo.
De seu longo confinamento, emergiu Rabi Shimon espiritualmente mais sábio e
mais poderoso do que nunca. Reunindo seu filho, seu genro e os discípulos mais
próximos, começa a lhes revelar os segredos da Cabalá que ele próprio recebera
durante os treze anos em que estivera recluso. [...] Mas, com Rabi Shimon, a Cabalá
começou a ser transcrita, de forma sistemática, e divulgada pelo mundo. Daí
considerarem-no o "pai" do misticismo judaico. Um de seus discípulos, Rabi Abba,
seu escriba mais proeminente, foi quem redigiu o Sefer Ha'Zohar - "o Livro do
Esplendor" - espinha dorsal dos estudos cabalísticos (DJMAL, 2004, p. 3).
De acordo com Bension (2006) as fontes do Zohar podem ser encontradas na
tradição judaica, especificamente, são elas: o Pentateuco, os Profetas, Daniel, o Apocalipse, o
Livro de Enoque, os Talmudes (Mishná, Guemara e Hagadá), os Midrashim e a literatura
gaonítica. Elas que deram suporte para constituir a diversidade de assuntos abordados,
influenciando inúmeras obras poéticas, filosóficas e místicas ao longo dos tempos. Por fim, o
autor das passagens selecionadas diz:
42
Ainda que seja difícil obter dados históricos exatos a respeito da origem do Zohar,
sabemos que o rabi Moisés de Leon (1250-1305), místico espanhol, o trouxe à luz
no final do século XIII. Ele era natural de Leon, mas passou a última parte da vida
em Arévola, na província de Ávila, essa terra mística embalada nos braços das
austeras Sierras, que mais tarde testemunhou o nascimento da maior mística cristã
espanhola, Santa Teresa. Erudito e cabalista, Moisés de Leon afirmou que o Zohar
era um manuscrito antigo que lhe havia chegado às mãos de modo milagroso. Ele foi
atribuído a rabi Shimon bem Yochai - um tanaíta do século II e personalidade das
mais destacadas entre as mencionadas no Talmud - a quem, segundo se conta, havia
sido revelado durante os treze anos que passou em solidão (BENSIOR, 2006, p. 46).
Alguns críticos consideram o livro de estilo obscuro, onírico, de difícil
penetração. Devido seu estilo subjetivo do enredo e de um puro lirismo de pensamento
oriental, diferenciado da literatura do mundo ocidental. “Segundo Scholem, o Zohar
representa a teosofia judaica, isto é, uma doutrina mística cujo objetivo principal é o
conhecimento e a descrição das obras misteriosas da divindade” (ELIADE, 1984, p. 198).
2.3.1 A imortalidade da alma no Zohar
O Zohar, fonte das discussões teológicas da Cabalá, aborda diversos temas, do
quais alguns deles nos interessam para a construção desse trabalho, são eles: imortalidade da
alma e ressurreição dos mortos, explícitos na segunda parte do livro, no capitulo 23 e
seguintes.
O problema da imortalidade da alma no Zohar se compara aos diálogos
platônicos, quando argumenta em torno de um mito ou de uma metáfora na intenção de
persuadir acerca do objeto em discussão, utilizando das expressões simbólicas e míticas da
cultura grega.
Também, “[...] ao lado desse simbolismo orgânico, o Zohar utiliza o simbolismo
das palavras, os nomes que Deus conferiu a Si mesmo” (ELIADE, 1984, p. 198), para
discernir acerca da doutrina religiosa e filosófica judaica. Vejamos o que diz o texto sobre a
questão:
Sabei que vossas almas são imortais! A alma parte somente quando o Anjo da Morte
tomou posse do corpo. E uma vez mais a alma toma a forma que vestia antes de vir
ao mundo. Tampouco pode a alma experimentar uma real alegria até que se sinta
vestindo então pode continuar aprendendo o significado dos mistérios profundos. E
a alma que não encontra de pronto seu envoltório celeste sabe que não entrará de
pronto no Céu, mas apenas após ter sido castigada. Tão logo tenha havido um desejo
de arrependimento, mesmo quando não tenha sido levado a cabo, -se à alma outra
oportunidade e lhe é permitido, depois de algum tempo, regressar a seu Paraíso
(BENSION, 2006, p. 212).
43
O objetivo da narrativa é clarear acerca do destino da alma humana, quando
explicita, através dos fatos ocorridos, no processo de morte do indivíduo e que em seguida
acontece o retorno da alma ao mundo de origem, lugar a que pertencia e lá encontra o
envoltório celeste.
Para o Zohar, o corpo humano é composto dos elementos da terra, enquanto que a
alma é constituída dos elementos superiores, ou seja: “[...] A alma é formada no Mundo
Superior pelos quatro ventos que sopram do Paraíso e formam seu envoltório. É esse
envoltório que dá à alma a mesma forma que tinha na terra” (BENSIOR, 2006, p. 212).
No livro Zohar continua a descrição do que acontece com a alma, quando ela
precisa cumprir com sua finalidade no mundo, afirmando o seguinte:
Pois a alma que não cumpriu sua tarefa na terra é retirada e transplantada outra vez
na terra. Infeliz a alma que é obrigada a voltar a terra para reparar os erros
cometidos pelo homem cujo corpo ela anima! Pois a transmigração é imposta como
um castigo para alma, um castigo que varia segundo a natureza dos pecados que a
alma cometeu. E toda a alma que pecou deve voltar a terra até que, por sua
perfeição, seja capaz de alcançar o sexto grau da região de onde emanou. Somente
as almas que emanam do lado da Shechiná - sétimo grau celeste - nunca estão
sujeitas a transmigração (BENSION, 2006, p. 212).
Para o Ocidente o sentido de transmigração da alma significa metempsicose ou
reencarnação da alma, para o hebraico esse termo é Guilgul Neshamot, que literalmente
significa “rodas da alma”, ou seja:
A metempsicose (Guilgul) constitui um momento no processo de restauração,
Tikkun. A duração desse processo pode ser abreviada por certos atos religiosos (rito,
penitência, meditação, prece). É importante assinalar que, depois de 1550, a
concepção de Guilgul torna-se parte integrante das crenças populares e do folclore
religioso dos judeus (ELIADE, 1984, p. 203).
No capitulo seguinte, dentro do texto do Zohar, na alegoria de Jonas, a narrativa
descreve o processo da alma do indivíduo, que passa pelo julgamento dos seus atos e a volta
ao corpo para cumprir sua finalidade no mundo.
Para o entendimento de Berg (1998, p. 70), a alma ao entrar no corpo, é como um
homem que é colocado na prisão. Fica presa - incapacitada de exercer sua influência como
poderia desejar. É obrigada a submeter-se às leis e principio do universo físico, assim como
um prisioneiro se submete às leis da prisão.
Podemos perceber uma grande semelhança com a descrição de Platão no Fédon,
as expressões simbólicas, a construção alegórica do mito em torno do que acontece com alma,
durante o processo de julgamento e o retorno ao mundo.
44
As duas narrativas se caracterizam pelas questões éticas e morais dos indivíduos,
principalmente no diz respeito às virtudes, as paixões e os apegos humanos, desencadeando
por fim o destino último de cada indivíduo.
Podemos dizer que a semelhanças das narrativas existem apenas pelo objetivo do
discurso, necessariamente ocorre para explicitar algo que não se consegue explicar
racionalmente, mas apenas através da alegoria simbólica.
Embora tenha elementos parecidos entre as duas correntes de pensamento, pois
são povos que registraram em livro seus conhecimentos, as diferenças recaem nas expressões
culturais. Enquanto a grega elaborou seu conhecimento no campo da racionalidade, a semita
construiu seus costumes no profetismo bíblico, edificando sua tradição religiosa.
2.3.2 A ressurreição dos mortos no Zohar
No capitulo vinte e cinco do Zohar é abordada a ressurreição dos mortos.
Doutrina fundamental na tradição Judaica; vejamos o que o diz:
Sabei que os corpos dos mortos voltarão a viver com as mesmas almas que tiveram
antes. E renovarão a face do mundo. As almas dos que hão de ser ressuscitados estão
sempre na presença do Todo Poderoso, esperando Seu sinal para irem e animarem
os corpos. No momento da Ressurreição, Deus fará com que caia um Orvalho sobre
a terra, na qual os mortos estavam enterrados, e estes se levantarão. Esse Orvalho
vem da árvore da Vida, e é um Orvalho de Luz. Mas desde que a Serpente
governa a terra, esse Orvalho não cai e o Rio celeste está seco, de modo que o
Espírito da Vida já não flui dele (BENSIOR, 2006, p. 217).
O conceito de ressurreição dos mortos que se tem hoje no ocidente vem do Antigo
Testamento. As expressões mais antigas da Bíblia foram a partir dos livros de Daniel e
Ezequiel. No Novo Testamento este sentido tem sido considerado em vários momentos dos
Evangelhos Sinópticos, no livro de João, nas Epístolas de Paulo, todos com sentido
diferenciado, ou seja, com outra interpretação, e por fim Apocalipse com influência da idéia
dos livros da Torá, Daniel e Ezequiel.
A ressurreição é mencionada em vários momentos na Torá, o Antigo Testamento,
para a tradição ocidental. No livro de Daniel, esta crença é expressa de maneira explícita
quando diz: “E muitos dos que dormem no solo poeirento acordarão, uns para a vida eterna e
outros para o opróbrio, para o horror eterno” (Dn 12:2).
45
Daniel foi quem lançou para a posteridade a idéia messiânica da ressurreição e da
eternidade das penas. “É ele quem apresenta a mais antiga expressão de na ressurreição,
tanto dos justo como dos injustos” (SILVA, 2001, p. 216).
No entanto, segundo Silva (2001), a idéia de oportunidade aos justos e injustos é
incompleta no livro do profeta Daniel, isto é: “E muitos dos que dormem no solo poeirento
[...]” (12:2), ou seja, muitos e não todos. Tal afirmação se choca com a doutrina do Guilgul
Neshamot, a qual é apresentada por algumas correntes místicas do judaísmo.
Contudo, para Kaplan (2003, p. 47) há duas correntes de opinião acerca da
ressurreição. A primeira consolidado pela maioria dos pesquisadores e por todos os cabalistas,
de que a ressurreição é um passo inicial em direção ao mundo vindouro. “Segundo essa
opinião, os mortos ressuscitados viverão para sempre e o mundo vindouro existinum plano
físico, onde corpo e alma estarão reunidos.”
A segundo opinião defendida pelo Rambam (Maimônides), e vários outros
autores, diz que o mundo vindouro é puramente espiritual e a ressurreição nada mais é do que
um estado transitório, ou seja:
O mundo vindouro é, portanto idêntico ao “mundo das almas” para onde vai a alma
do homem imediatamente após morte. Segundo Maimônides e aqueles que seguem
suas opiniões, o corpo experimenta a morte duas vezes. Primeiro vem à morte
“natural”, que acabará sendo seguida pela ressurreição. Depois esse corpo morre
novamente e retorna a um mundo futuro puramente espiritual (KAPLAN, 2003, p.
51).
Outra descrição da ressurreição dos mortos é no livro de Ezequiel, delineando
uma visão muito clara em torno da questão, quando diz:
A mão de Iahweh veio sobre mim e me conduziu para fora pelo espírito de Iahweh e
me pousou no meio de um vale que estava cheio de ossos. E ai fez com que eu me
movesse em torno deles de todos os lados. Os ossos eram abundantes na superfície
do vale e estavam muitos secos. Ele me disse: “Filho do homem, porventura
tornarão a viver estes ossos?” Ao que respondi: “Senhor Iahweh, tu o saber”. Então
me disse: “Profetiza a respeito destes ossos e dize-lhe: Ossos secos, ouvi a palavra
de Iahweh. Assim fala o Senhor Iahweh a estes ossos seco: Eis que vou fazer com
que sejais penetrados pelo espírito e vivereis. Cobrir-vos-ei de tendões, farei com
que sejais cobertos de carne e vos revestirei de pele. Porei em vós o meu espírito e
vivereis. Então sabereis que eu sou Iahweh” (EZEQUIEL, 1995, 37:1-6).
Esse relato do capítulo 37 do livro de Ezequiel (37:1-6) configura um quadro vivo
acerca da ressurreição dos mortos. Mas, ainda assim, para Kaplan (2003), existem discussões
no Talmud sobre este evento, se ele realmente aconteceu ou se foi apenas uma visão que teve
o autor do livro. “Pelo contexto, podemos ver que a polêmica se relaciona com a questão de
podermos ou não aprender algo a respeito da ressurreição final com Ezequiel. O Talmud
afirma que, segundo a opinião de tudo fora uma mera visão [...]” (KAPLAN, 2003, p. 54).
46
E quando, no momento da Ressurreição, descerem a terra, trarão essa Luz com elas
e embelezarão o corpo que habitam. Ele então fulgurará com um esplendor interno,
igual ao esplendor do Céu. E os homens terão um conhecimento perfeito das coisas
Divinas. Então todas as criaturas saberão que a alma que as anima é a Alma de Vida,
a Alma de Felicidade, a Alma que recebe os grandes deleites diretamente do alto e
os transmite ao corpo (BENSIOR, 2006, p. 218).
Portanto, para algumas correntes do pensamento judaico, principalmente a mística
cabalista, não se pode aprender com o processo de ressurreição narrado no livro de Ezequiel,
pois não representa a ressurreição final dos mortos. Ou seja, a ressurreição se dará de outra
maneira. Mas, ainda, contudo, outras correntes que acreditam que os mortos ressuscitarão
nesse mundo e viverão para sempre na terra.
2.4 História dos Evangelhos Sinópticos (Lucas, Marcos e Mateus)
O ponto de partida sobre o qual deve basear-se qualquer investigação sobre a
historicidade dos textos, parece ser o “interesse histórico” dos escritores dos Evangelhos. É
verdade que uma verdade espiritual pode ser comunicada até mesmo através de um mito.
Mas, “tem sido negado por alguns que os evangelistas tivessem tido qualquer autêntico
interesse histórico, ou então, se o tiveram que esse foi assoberbado por relatos exagerados e
fanáticos, mesclados com lendas” (CHAMPLIN, 2001, p. 160).
Segundo Champlin (1995), os exames realizados nos textos revelam uma
preocupação histórica dos textos do Novo Testamento. Em Lucas existe uma narração
coordenada dos fatos, os quais o autor apresenta vários fatores importantes, são eles:
a. Lucas afirmava que seus relatos se alicerçavam sobre narrativas de testemunhos
oculares. [...].
b. Lucas afirmava que certas pessoas, ainda vivas, tinham visto as coisas sobre as
quais ele escrevia, e que aquilo que Jesus fizera e dissera era “crido com xima
firmeza”.
c. Lucas afirmava ter feito cuidadosa investigação, tendo descoberto evidências
significativas e confirmações do que estava prestes a relatar.
d. Lucas usou o evangelho de Marcos como seu principal esboço histórico, pelo que
deve ter ficado satisfeito, mediante suas investigações, de que o que ali estava
contido, refletia fatos históricos objetivos.
e. Lucas, por ser médico (Col. 4:12), provavelmente ter-se-ia, mostrado sóbrio e
cuidadoso, não se deixando arrastar por relatos de “entusiastas fanáticos”.
f. Lucas, estava em posição imensamente melhor para conhecer a situação
“histórica” do cristianismo primitivo, do que qualquer crítico moderno, o qual,
apesar de todos os seus protestos, tem que basear-se essencialmente sobre
“sentimentos a priori” no tocante ao que “provavelmente sucedeu”, mas que não
conta com qualquer meio palpável de comprovar os seus sentimentos (CHAMPLIN,
1995, p. 169).
47
Enquanto o Evangelho de Marcos, conforme afirma o autor, foi identificado como
as memórias de Pedro. Ou seja, o autor de Marcos preservou narrativas de testemunhos
oculares.
Um erudito católico-romano, papirologista, José O’Callaghan, descobriu entre o
material dos Papiros do Mar Morto, um fragmento de 17 letras, que corta
verticalmente cinco linhas do texto, e que ele identificou como Marc. 6:52, 53. Seu
trabalho sobre isso foi relatado na publicação do Instituto Bíblico Pontifício de
Roma, intitulado bíblica. Além desse fragmento, O’Callaghan vinculou um
fragmento de cinco letras a Marc. 4:28, além de um fragmento de sete letras a Tia.
1.23, 24. [...] Esses fragmentos foram escritos no tipo de escrita grega “zierstil”, a
qual, conforme dizem os paleógrafos, era usada mais ou menos entre 50 A.C e 50
D.C. Isso significa que o evangelho de Marcos poderia ter sido escrito antes do ano
50 de nossa era, o que certamente indicaria que se alicerçou sobre narrativas de
testemunhas oculares (CHAMPLIN, 1995, p. 170).
Esse é o Evangelho que contém poucas declarações de Jesus, não registra o
Sermão do Monte e nem a narrativa do nascimento de Jesus. Chamado pelos pesquisadores de
“Evangelho escasso”. Contudo, “foi considerado uma história digna de figurar lado a lado
com evangelhos mais elaborados, porque tinha uma mui significativa contribuição a fazer:
narrava essencialmente e de forma exata, a vida e as obras de Jesus” (CHAMPLIN, 1995, p.
170).
Sobre a origem ou autoria do Evangelho de Marcos é a citação que nos é
fornecida por Papias, bispo de Hierápolis em cerca de 140 D.C., encontrada na obra de
Eusébio, primeiro entre os historiadores da igreja. A seção III, 39.15 de sua História
Eclesiástica diz o seguinte:
Isto o presbítero também costumava dizer: “Marcos, que realmente se tornou o
primeiro intérprete de Pedro, escreveu com exatidão, tanto quanto podia relembrar,
sobre as coisas feitas ou ditas pelo Senhor, embora não em ordem”. Pois ele nem
ouvira ao Senhor nem fora seu seguidor pessoal; mas em período posterior,
conforme eu disse, passara a seguir a Pedro, que costumava adaptar os ensinamentos
às necessidades do momento, mas não como se estivesse traçando uma narrativa
corrente dos oráculos do Senhor: de tal forma que Marcos não incorreu em equívoco
ao escrever certas questões, conforme podia lembrar-se delas. Pois tinha apenas um
objetivo em mira, a saber, não deixar de fora coisa alguma das coisas que ouvira e
não incluir entre elas qualquer declaração falsa (CHAMPLIN, 1995, p. 657).
O Evangelho de Mateus é considerado, “[...] em todos os tempos, como narrativa
autoritária da vida de Cristo, o documento fundamental da religião cristã” (SCOTT apud
CHAMPLIN, 1995, p. 259).
Segundo os historiadores, pelos meados do século II D.C., era os textos mais
usados nas comunidades cristas. “Esse evangelho nunca perdeu sua popularidade, e apesar de
alguém dizer que gosta deste ou daquele evangelho, é provável que quanto ao uso real,
Mateus seja o mais constantemente empregado” (CHAMPLIN, 1995, p. 259).
48
A autoria do Evangelho tem se julgado que foi escrito por Mateus, o publicano
que era chamado Levi, conforme se no evangelho de Marcos, tendo aquele vindo a tornar-
se um dos apóstolos de Jesus. “O Testemunho, conforme é descrito acima, após o tempo de
Eusébio, passou a ser universalmente aceito. Assim é que Jerônimo, o mais sábio das
autoridades eclesiásticas (400 D.C.) ensinou tal coisa, aliando-se a Agostinho (400 D.C.), o
mais notável dos primeiros teólogos cristãos” (CHAMPLIN, 1995, p.260).
Os textos Sinópticos levantaram diversos questionamentos até hoje não superados
pelos eruditos. Podem-se postular certos números de perguntas que incorporam em si mesmas
a essência do problema desses Evangelhos:
1. Os evangelhos foram escritos “independentemente” uns dos outros, sem qualquer
fonte comum oral e escrita, sendo narrativas somente feitas de memória?
2. Se houve fontes comuns escritas ou orais, de que natureza e quantas eram elas?
3. Qual dos evangelhos sinópticos é primário? E esse evangelho foi usado
diretamente como fonte de informação pelos demais evangelistas? Nesse caso, como
explicar as diferenças, até mesmo no material em comum?
4. Qual foi a fonte de material usado pelos evangelistas não-primárias, naquilo em
que estão de acordo entre si, nas passagens que não figuram em Marcos?
5. Quando um evangelho não primário tem material peculiar a si mesma, qual foi
sua fonte informativa?
6. Quais foram às fontes informativas do evangelho primário? (CHAMPLIN, 1995,
p. 174).
Champlin (1995, p. 174) busca responder a questão da formação acima
considerando as seguintes idéias: A primeira é a teoria do ‘não-documento’, essa “[...] idéia
diz que os evangelhos se desenvolveram independentemente uns dos outros, sem qualquer
‘fonte comum’ na tradição oral ou escrita. Segundo essa posição, supõe-se que os vários
autores apenas escreveram o que tinham visto ou ouvido”.
Essa linha de pensamento foi rejeitada pelos estudiosos do Novo Testamento,
pelas seguintes razões:
a. As obras e palavras de Jesus foram vastíssimas (João 20:30 e 21:25). De acordo
com a teoria do “não-documentos”, como se pode explicar por que os três autores
dos evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas acertaram com o mesmo esboço
histórico, já que se tratava apenas de um “esboço”? [...].
b. Com base na teoria do não-documento, é impossível explicar o emprego de
palavras e frases idênticas, parágrafos quase idênticos, pelos três evangelhos, o
descreverem um mesmo evento, ou ao relatarem algum ensinamento de Jesus. [...]
c. Papias, discípulo de João (apostolo?), diz-nos que Marcos não registrou os
acontecimentos da vida de Jesus necessariamente na ordem em que sucederam.
Sendo fato que a ordem de acontecimentos em Marcos nem sempre reflete os fatos
históricos, como pode ser que os autores de Mateus e Lucas registram de modo geral
a mesma ordem de acontecimentos? Se porventura escreveram de memória, quase
certamente teriam corrigido a ordem dada por Marcos, apresentando ordens diversas
para os acontecimentos da vida de Jesus (CHAMPLIN, 1995, p. 174-5).
49
A segunda teoria é a do documento único, que alguns estudiosos supõem que os
evangelhos sinópticos tiveram apenas uma fonte inicial e que seus autores usaram em comum.
Terceira teoria é dos dois documentos, visto por muitos eruditos, que “[...] consideram
Marcos como o evangelho original (pelo menos dentre os que conhecemos hoje em dia); e que
esse evangelho foi usado como base do esboço histórico de Mateus e Lucas é posição firme
de muitas” (CHAMPLIN, 1995, p. 175).
Por último e a teoria dos quatro documentos, que segundo Champlin não se
aproxima da perfeição para os estudiosos. “No entanto, de modo geral, essa teoria nos fornece
uma boa maneira de ‘abordar’ o problema, e, como teoria, certamente tem sido mais frutífera
que as outras que já foram propostas” (CHAMPLIN, 1995, p. 175).
Contudo, a construção dos Evangelhos Sinópticos não partiu apenas de uma fonte,
a teoria dos quatro documentos, embora não seja uma questão resolvida acerca da origem do
escritos, mas para os pesquisadores se aproxima da solução do problema. Tal teoria defende
que:
É possível que mais fontes informativas estejam envolvidas, e não somente quatro;
mas é igualmente possível que muitas coisas declaradas nessa teoria sejam válidas,
ainda que não possamos proferir qualquer resposta absoluta no caso do problema
das fontes informativas (CHAMPLIN, 1995, p. 175).
As fontes que constituem a teoria dos quatro documentos que forma os
Evangelhos Sinópticos são as seguintes: os escritos da tradição da igreja de Antioquia da
Síria, o protomarcos, documentos do Evangelho de Marcos, a fonte “Q”, Quelle, fonte
didática, isto é, fonte de ensinamentos de Jesus, cerca de 250 versículos, e por fim a tradição
da igreja de Cesaréia e outros lugares (CHAMPLIN, 1995, p. 175-6).
Contudo, as investigações não se encerram com as teorias levantadas. Mas
acredita-se que algumas das coisas aqui levantadas se aproximam mais dos fatos ocorridos
concernente às fontes informativas dos Evangelhos Sinópticos.
2.4.1 Os Evangelhos Sinópticos e o problema do retorno da alma
Existem várias referências acerca da ressurreição dos mortos e imortalidade da
alma em diversos momentos do Novo Testamento, principalmente em torno da ressurreição de
Jesus Cristo, da transfiguração de Elias e Moises entre outros fatos. Agora resta saber se a
teologia cristã primitiva se inspirou na tradição rabínica ou na doutrina mística de algumas
das seitas judaicas para abordar tais questões nos Evangelhos.
50
O Evangelho de Marcos, de acordo com Champlin (1995), é o Evangelho original
(dentre os que possuímos no NT), retrata a passagem da transfiguração de Moises e Elias e
sua volta. Nessa passagem o autor defende que muitas conversas foram espalhadas na época
acerca do messianismo de Jesus, ou seja:
As autoridades religiosas tentaram contrabalançar de muitos modos, com
argumentos vários. Um desses argumentos é o deste texto: ‘Elias deve voltar
primeiro, pois assim dizem as Escrituras. Jesus não pode ser o Messias, pois Elias
ainda não voltou’. Sem dúvida isso preocupava a muitos seguidores de Jesus, e a
controvérsia continuou rugindo após a ressurreição.
Na reposta cristã: 1. João Batista era o “Elias” do “primeiro advento. Alguns
podem ter crido que ele era a reencarnação literal de Elias, mas outros pensaram que
ele meramente dava continuação à sua missão (CHAMPLIN, 1995, p. 734).
O diálogo que ocorre a transfiguração e o capítulo 9, versículo de 2 a 13 do
Evangelho de Marcos e diz o seguinte:
Seis dias depois Jesus tomou consigo a Pedro, Tiago e João, e os levou sozinho, para
um lugar retirado sobre uma alta montanha. Ali foi transfigurado diante deles. Suas
vestes tornaram-se resplandecentes, extremamente brancas, de uma alvura tal como
nenhum lavadeiro na terra as poderia alvejar. E lhes apareceram Elias com Moisés,
conversando com Jesus. Então Pedro, tomando a palavra, diz a Jesus: “Rabi, é bom
estarmos aqui. Façamos, pois, três tendas: uma para ti, outra para Moisés e outra
para Elias”. Pois não sabia o que dizer, porque estavam atemorizados. (9:2-6)
Ao descerem da montanha, ordenou-lhe que a ninguém contassem o que tinham
visto, a quando o Filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles
observaram a recomendação perguntando-se o que significa “ressuscitar dos
mortos”. E perguntaram-lhe: “Por que motivos os escribas dizem que é preciso que
Elias venha primeiro?” Ele respondeu: “Elias certamente virá primeiro, par restaurar
tudo. Mas como está escrito a respeito do Filho do Homem que deverá sofrer muito
e ser desprezado? Eu, porém vos digo: Elias veio, e fizeram com ele tudo o que
quiseram, como dele está escrito” (MARCOS, 9:9:13).
No Evangelho de Mateus, ocorre uma narrativa semelhante quando Jesus retorna
da montanha juntamente com Pedro, Tiago e João, após a transfiguração de Elias e Moisés. E
ele ordena que ninguém deva saber dos fatos ocorridos. E os discípulos novamente
interrogaram-lhe:
“Por que razão os escribas dizem que é preciso que Elias venha primeiro?”
Respondeu-lhes Jesus: “Certamente Elias terá de vir para restaurar tudo. Eu vos
digo, porém, que Elias já veio, mas não o reconheceram. Ao contrario, fizeram com
ele tudo quando quiseram. Assim também o Filho do Homem irá sofrer da parte
deles”. Então os discípulos entenderam que se referia a João Batista (MATEUS,
17:10-13).
A volta de Elias, o profeta de Israel, configura o conhecimento de Jesus, como
também dos autores dos diálogos acerca do renascimento da alma e seu destino. Quando os
discípulos perguntam por que os doutores da Lei judaica, os escribas, afirmam que Elias
precisa vir primeiro, antes do messias.
51
Para Silva (2001, p. 236) é uma prova contundente sobre a reencarnação de Elias,
agora como João Batista. “Ora, pela resposta dos apóstolos, notamos que tanto eles como o
povo judeu, naquela época, acreditavam plenamente na Reencarnação e que grandes vultos,
como os profetas, podiam voltar.”
As passagens sobre Elias caracterizam a existência da alma após a morte. Se não,
nos diálogos de Jesus com seus discípulos, ele poderia negar sugestivamente Elias entre eles.
No conceito moderno da palavra, a volta do profeta “Elias para restaurar tudo”, para muitos
estudiosos contemporâneos, significa a reencarnação da alma.
A passagem que fala da transfiguração de Elias, para Champlin (1995), ocorreu
uma “transformação” momentânea quanto à forma devida - foi à espiritualização, isto é:
Jesus assumiu uma forma mais espiritual e mostrou aos homens a vereda da
espiritualização, que caracteriza aos remidos quando da “parousia”, quando então
seremos semelhantes a ele, pois haveremos de vê-lo como ele é. Isso nos conduzirá,
finalmente, à participação em sua natureza, no sentido mais literal. Esse é o mais
elevado conceito espiritual que se conhece. Por ocasião da transfiguração, pois,
houve uma espécie de Cristofania, quando o Filho de Deus se manifestou em sua
verdadeira forma (CHAMPLIN, 1995, p. 733).
No que diz respeito à doutrina do “[...] ressurgir dentre os mortos [...]”, ou seja,
doutrina da ressurreição, (Marcos, 9:19), o autor diz:
Na linguagem cristã, isso significa “dentre os espíritos dos mortos”, manifestando-se
novamente no plano terrestre. Sendo judeus, eles sabiam o que significava a palavra
ressurreição. Mas não sabiam como aplicar isso a Jesus. o esperavam que isso
pudesse ser visto por eles, sobretudo no caso daquele que tinham sem dúvida como
o Messias. Para eles a doutrina da ressurreição era um dogma, mas não uma verdade
vital, que pudesse tornar-se uma experiência real (CHAMPLIN, 1995, p. 734).
Enquanto na passagem do texto sobre a volta de Elias, inicialmente, conforme
Champlin (1995, p. 735) existe uma controvérsia no cristianismo primitivo acerca do caráter
messiânico de Jesus, embora não haja razão para duvidar da autenticidade das declarações
históricas “anteriores à ressurreição”. “O aparecimento de Elias, por ocasião da
transfiguração, teria relembrado os discípulos acerca da controvérsia, sobre o “Messias”. Por
isso é que fizeram a indagação constante neste versículo.” Isto é: o ressurgir dentre os mortos.
52
2.4.2 As origens do Evangelho de João
O Evangelho de João tem uma característica própria, o autor demonstra profundo
conhecimento do personagem narrado e foi influenciado pelo pensamento gnóstico, místico e
religioso da época. Seu personagem ganha transcendência espiritual, como também transpõe
os limites da Palestina e do mundo greco-romano da época, nem tão pouco os limites de uma
vida terrena, mas sim a própria eternidade, conforme afirma Champlin (1995, p. 251).
Segundo o autor, sabe-se mais sobre João através dos três Evangelhos do que o
próprio Evangelho que tem o seu nome. A princípio é identificado como o “discípulo amado”
de Jesus. Foi considerado pelos eruditos fariseus como homem sem cultura e sem letras,
que não recebeu o ensinamento acadêmico dos rabinos. Tanto os escritos do Novo Testamento
quanto os Apócrifos falam que era filho de Zebedeu e Salomé, segundo os Evangelhos
Sinópticos era pescador no lago de Genezaré quando foi convidado por Jesus para segui-lo,
justamente com seu irmão Thiago. Considerado um homem de natureza explosiva, tinha
posições radicais, prova disso é que foi repreendido em vários momentos por Jesus. Segundo
a tradição João morreu em Éfeso no tempo do imperador Trajano entre 98 a 117 D.C.
(CHAMPLIN, 1997, p. 541).
As pesquisas demonstram que o Evangelho de João é um dos textos mais antigos
do Novo Testamento. Descobertas de fragmentos desse Evangelho intitulado P(52),
denunciam que no culo II D.C. circulavam textos de João nas comunidades Cristã em
larga distribuição, até mesmo nas comunidades gnósticas havia parte dele. Até que outras
evidências sejam descobertas, os eruditos trabalham na hipótese que o Evangelho de João foi
escrito no período entre 90 e 100 D.C. (CHAMPLIN, 1995, p. 251).
Considerando apenas a tradição eclesiástica, sem outras evidências, seriamos
forçados a acreditar na autoria de João, pois sabemos que a tradição cristã favorece a autoria
devido à preocupação da homogeneidade canônica dos textos.
Nos primeiros momentos do Cristianismo, uma referência mais antiga ao apostolo
João, como autor desse Evangelho, foi um fragmento muratoriano, escrito aproximadamente
no ano de 170 D.C., um período significante para validar a autoria do texto do Evangelho de
João (CHAMPLIN, 1995, p. 251).
De acordo com o autor, uma das evidências é que o escritor do Evangelho foi um
judeu, embora tenha corrente contrária a tal afirmação, mas considera os termos lingüísticos,
as idéias utilizadas e as expressões de origem semita, como por exemplo: “filho da perdição”
53
(João 17.12), “permanecer em” (João 14:17, 15:14 e I João 2:6) para consolidar a autoria
judaica. As evidencias contrárias estão, por exemplo, nos escritos de Inácio, que viveu na
época de Paulo e não faz referência a João ou algum Evangelho, quando escreveu acerca da
igreja de Éfeso, na sua viagem a Roma, onde foi martirizado (CHAMPLIN, 1995, p. 252).
Quanto ao idioma dos textos, mesmo considerando os termos lingüísticos, as
idéias utilizadas e as expressões de origem semita, citadas acima que consolidam a autoria
judaica, em que relatam com grande riqueza de detalhes o templo, as aldeias ao redor e as
distâncias entre elas de Jerusalém, prova que o autor conhecia bem a região. Mesmo assim,
utilizou a língua grega para escrever o Evangelho, num ambiente helenista, utilizando a
sintaxe do idioma, sinal que manejava bem o grego, um conceito diferente da personagem
João Evangelista dos fariseus, que diziam que era iletrado e sem cultura, favorecendo mais
ainda a não autoria joanina deste Evangelho (CHAMPLIN, 1995, p. 252).
No diálogo de Jesus com Nicodemos, percebe-se que o autor utiliza uma dialética
diferente dos Evangelhos Sinópticos, um discurso abstrato metafísico, uma narrativa
simbólica e alegórica, bem como metáforas prolongadas. A linguagem utilizada é uniforme,
bem mais estruturada do que os Sinópticos e de mais fácil assimilação do conteúdo,
reforçando a teoria de um único autor.
Segundo Champlin (1995, p. 254) as pesquisas m sugerido quatro localidades, a
saber: Jerusalém, Antioquia, Éfeso e Alexandria. Quem defende Jerusalém, argumenta que o
próprio evangelho revela na riqueza de detalhes que o autor narra do lugar, acerca dos
costumes judaicos, do templo e da geografia da região, reforçando tal teoria com os achados
dos papiros do mar Morto, que tem uma aparente similaridade.
Quanto à origem em Antioquia para o surgimento do Evangelho, o autor diz que
alguns pesquisadores têm visto a semelhança entre o pensamento e a fraseologia do evangelho
de João e as epístolas de Inácio, bispo de Antioquia, como também os salmos ou Odes de
Salomão, que foram escritos no idioma siríaco. Outra argumentação forte é a existência de um
fragmento do século IV, em siríaco, com comentário de Efraem, sobre o Diatessaron de
Taciano, que diz: “João escreveu aquele (evangelho), em Antioquia, porquanto permaneceu
no país até aos tempos de Trajano” (CHAMPLIN, 1995, p. 254).
No que diz a respeito da cidade de Éfeso, conforme o autor, a tradição vincula o
Evangelho devido às idéias, os discursos, que levam a indicar como local em foco, chegando
a pensar que houve alguma conexão dos escritos com essa cidade, a história eclesiástica
também considera que tenha surgido em Éfeso, que o apóstolo João mudou-se para a Ásia
Menor. A cidade de Alexandria está ligada à idéia que o evangelho de João exerceu influência
54
sobre o movimento gnóstico que existia na comunidade intelectual, já que o mesmo tem uma
linguagem próxima a essa corrente de pensamento (CHAMPLIN, 1995, p. 254).
Sabemos que no ano 70 D.C, o templo judaico e Jerusalém foram destruídos, e os
Judeus foram dispersos. O Evangelho de João foi destinado justamente às comunidades
remanescentes da Palestina e para os novos cristãos, principalmente os gentios da Ásia
Menor, que sofriam influência de vários correntes filosóficas como, por exemplo: o
neoplatonismo, o estoicismo, o gnosticismo e a doutrina de Hermes Trismegistus, que
significa “três vezes o maior”. A idéia do Logos”, a similaridade com alguns elementos
lingüísticos, levou os pesquisadores acreditarem que o autor teve acesso à cultura e que
também produziu os escritos herméticos. Principalmente o capítulo terceiro e sexto do
evangelho de João são fundamentais para a semelhança das idéias básicas da doutrina do
renascimento e dos ritos de purificação e do batismo que caracterizava esses movimentos
“não cristãos” do mundo helênico (CHAMPLIN, 1995, p. 254).
2.4.3 O diálogo de Nicodemos com Jesus e o problema do “nascer de novo”
Existe um dialogo clássico de Jesus e Nicodemos no Evangelho de João (3:1-12).
Esta passagem do Evangelho é o mais bem conhecido de todos os capítulos da Bíblia.
[...] Consiste na continuação do tema iniciado no segundo capítulo desse evangelho,
onde Jesus aparece como alguém que operou muitos sinais, os quais tiveram a
virtude de convencer os seus próprios discípulos sobre a autenticidade das
reivindicações messiânicas de Jesus e que obtiveram considerável número de
seguidores entre a população de Jerusalém (CHAMPLIN, 1995, p. 302).
Neste quarto Evangelho depreendemos que Nicodemos pertence à seita dos
Fariseus e é membro do Sinédrio (João 7:50). Segundo Josefo (2004, p. 864): os Fariseus
julgavam que as almas eram imortais, julgadas em outro mundo e recompensadas ou
castigadas segundo seu merecimento. E que algumas delas eram eternamente retidas
prisioneiras, enquanto outras retornavam ao mundo.
No diálogo do Evangelho, Champlin (1995), relata um contexto onde mostra a
disseminação da doutrina Cristã entre os judeus, ou seja:
55
Jesus já havia penetrado fundo na cidade eclesiástica da hierarquia dos judeus,
porquanto Nicodemos era membro do augusto Sinédrio (conforme se depreende do
trecho de João 7:50). A influência de Jesus em Jerusalém, pois, era universal; e
apesar do Sinédrio não ter enviado Nicodemos como representante oficial para
entrevistar Jesus, sua entrevista com ele se torna ainda mais convincente como
consubstanciação da autoridade espiritual de Jesus, posto que foi como um furtivo
interessado, na calada da noite, um homem convencido da autoridade de Jesus,
embora conservasse secretamente, para si mesmo, esses pontos de vista
(CHAMPLIN, 1995, p. 302).
Na leitura contextual do capítulo 3, versículos 1 a 12, do Evangelho de João,
um diálogo que caracteriza realidades distintas. Uma delas a de Nicodemos que representa a
realidade da época, ou seja, “um notável entre os judeus” (3:1), um doutor da lei. Certamente
foi “[...] atraído por Jesus por causa de seus milagres e ensinamentos, bem como por causa de
sua conexão com o grupo que então proclamava a breve inauguração do reino de Deus”
(CHAMPLIN, p. 303).
Nicodemos veio ao encontro de Jesus, segundo o Evangelho de João (3:2), na
calada da noite para ter um diálogo, e sugere várias interpretações, ou seja:
1. Alguns m chegado à conclusão de que Nicodemos era um hipócrita, que viera
com más intenções, fingindo simplicidade; e veio à noite a fim de parecer vir às
ocultas, embora querendo dar a entender que era inquiridor sincero.
2. É possível que ele simplesmente desejasse evitar qualquer comentário por parte
de seus pares, os outros membros do sinédrio, posto que ainda não sabia exatamente
quem era Jesus, e nem de que autoridade estava ele investido. Assim, pois, estaria
sendo meramente cauteloso.
3. Outros trechos bíblicos, entretanto, parecem definir a questão, como o trecho de
João 12:42, o qual, apesar de não mencionar Nicodemos diretamente, menciona
aqueles entre os principais lideres que criam em Jesus, mas que, por causa dos
fariseus, não o confessavam;e isso entender o receio que tais lideres tinham dos
fariseus. [...] Assim sendo, sob a cobertura das trevas da noite, Nicodemos buscou e
encontrou luz para sua alma. Suas próprias convicções são expressas pelas palavras
que ele proferiu: “... sabemos que és Mestre vindo da parte de Deus...” como
também pelo fato de que ele veio a Jesus, arriscando-se a ser visto com quem foi,
desde o principio, reputado como adversário do governo autorizado civil e
eclesiástico (CHAMPLIN, 1995, p.303).
Inicialmente Nicodemos dirige-se no diálogo, chamando Jesus de Rabi,
certamente título que aceitou por ele, quando lhe responde as perguntas acerca do “nascer de
novo”. “Esse capítulo introduz o grande tema do novo nascimento, o qual, na realidade,
quando é corretamente compreendido [...], é então encarado como o mais excelso tema do
evangelho, e a esperança da humanidade inteira” (CHAMPLIN, 1995, p. 302).
56
Eis a descrição do capitulo 3, versículos de 1 a 12:
Havia, entre os fariseus um homem, chamado Nicodemos, um notável entre os
judeus. À noite ele veio encontrar Jesus e lhe disse: “Rabi, sabemos que vens da
parte de Deus como mestre, pois ninguém pode fazer os sinais que fazes, se Deus
não estiver com ele.” Jesus lhe respondeu: “Em verdade, em verdade, te digo: quem
não nascer de novo não pode ver o Reino de Deus.” Disse-lhe Nicodemos: “Como
pode um homem nascer, sendo velho? Poderá entrar segunda vez no seio de sua
mãe e nascer?Respondeu-lhe Jesus: “Em verdade, em verdade, te digo: quem não
nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que nasceu da
carne é carne, o que nasceu do Espírito é espírito. Não te admires de eu te haver
dito: vós deveis nascer de novo. O vento sopra onde quer e ouves o seu ruído, mas
não sabes de onde vem nem para onde vai. Assim acontece com todo aquele que
nasceu do Espírito.” Perguntou-lhe Nicodemos: “Como isso pode acontecer?”
Respondeu-lhe Jesus: “És mestre de Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em
verdade, te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém
não acolheis o nosso testemunho. Se não credes quando vos falo das coisas da terra,
como crereis quando vos falar das coisas do céu?” (JOÃO, 3:1-12).
No versículo 3 do diálogo, podemos considerar que qualquer um dos sentidos da
palavra não vai desconfigurar o significado da dialética, que em seguida o interlocutor
reforça com seu próprio espanto quando diz: “Como pode um homem nascer, sendo velho?
Poderá entrar uma segunda vez no seio de sua mãe e nascer?” (3:4).
Vejamos as considerações de Champlin (1995, p. 304), diz:
“... nascer de novo...”. Muitos são os elementos deste versículo, juntamente com o
vs. 5, e as explicações são muitas e variadas. Observaremos essas coisas, uma por
uma:
“... de novo...” O termo grego pode significar aqui uma dentre duas coisas, a saber:
1. Novamente, isto é, nascernovamente’, nascer do alto. Ambos são traduções
possíveis, e ambas têm sido defendidas pelos eruditos.
“Em favor da tradução do alto, podemos dizer que isso corresponderia ao método
usual de João ao descrever a obra da regeneração espiritual como nascimento vindo
de Deus.”
“Em favor da tradução novamente, podemos dizer que “do alto” não descreve o fato,
mas antes, a natureza do novo nascimento. Isso significa que o novo nascimento
necessariamente tem sua origem em Deus, no Espírito Santo, no outro mundo, que é
o mundo essencial. O fato que se impõe, é que o individuo nasce ‘novamente’”
(CHAMPLIN, 1995, p. 304).
Mais adiante diz:
“Essa idéia é consubstanciada pela observação de que o vs. 4 indica, mui
definidamente, que Nicodemos compreendeu desse modo as palavras de Jesus.
Ficou preocupado ante a idéia de um segundo nascimento, um homem a entrar no
ventre materno, para nascer de novo. Nicodemos não deveria ter ficado surpreendido
ante um nascimento que importasse em regeneração espiritual, que tivesse sua
origem no céu. Outrossim, a versão siríaco, que tem raízes no século II de nossa era
(o siríaco era o idioma falado por Cristo e seus apóstolos), traduz essa palavra como
de novo, e não do alto. Além disso o vs. 5, que descreve o novo nascimento,
subentende que se trata de uma espécie distinta de nascimento, ou seja, um segundo
nascimento” (CHAMPLIN, 1995, p. 304).
57
O diálogo de Nicodemos com Jesus tem dado muito trabalho aos hermeneutas e
exegetas que negam e renegam o texto “nascer de novo” (1:3), certamente devido à doutrina
clerical e/ou dogmática em que estão comprometidos muitos deles. No entanto não se pode
negar o sentido do texto, embora possa contestar, mas talvez por desconhecer a essência
contextual do diálogo, ou a doutrina do retorno da alma, para muitos contemporâneos à
doutrina da reencarnação.
Certamente, devido ao complexo e emaranhado contexto cultural, à distância e a
cisão lingüística que separam da época do diálogo, que o vocábulo anôthenem grego
pode significar “de novo” e “do alto”. Outro aspecto fundamental de rejeição da doutrina do
retorno da alma é que altera literalmente os dogmas estabelecidos pela teologia ao longo dos
séculos, quando se criou os parâmetros conciliais da doutrina cristã.
O autor cita que Nicodemos no versículo 4 entendeu literalmente a problema em
questão. Tanto que nos versículos 5 e 6, Jesus descreve como se dá o “novo nascimento”, uma
descrição que subentende que se trata de uma nova maneira de nascer, algo de novo nos
valores do interlocutor, mesmo conhecendo a lei e a tradição judaica.
Nos versículos 7 a 12 a dialética desvela afirmações incisivas em torno da
doutrina do “reino de Deus”, com um discurso direto em torno da mesma premissa: “nascer
de novo”. Sugerindo uma verdade que não se impõe, mas requer conhecimento, tanto que no
versículo 10 e 11 diz: “És mestre em Israel e ignoras essas coisas? Em verdade, em verdade,
te digo: falamos do que sabemos e damos testemunho do que vimos, porém não acolheis o
nosso testemunho.”
uma consonância nesse diálogo a qual os pesquisadores concordam: Jesus
falava de uma nova realidade configurada como o “reino de Deus” e para alcançá-la seria
necessário gennêthê anôthen”, ou seja, “nascer de novoou “nascer do alto”. Mesmo assim,
surgem duas correntes de interpretação acerca desse diálogo, uma delas defendida pela
tradição eclesiástica que diz que Jesus falava apenas do batismo, e outra que é em torno do
renascimento da alma, ou seja, o retorno da alma, o “nascer de novo”.
O diálogo introduz a idéia do novo nascimento, ou seja, o retorno da alma, ou do
espírito ao corpo. Segundo Silva, este é o texto que tem dado mais trabalho aos exegetas que
querem negar o renascimento da alma, isto é, a reencarnação (SILVA, 2001, p. 238):
No entanto, é o mais claro e contundente de todos, por isso, existe um verdadeiro
malabarismo por parte destes, no sentido de obscurecer o verdadeiro e claro sentido
desta passagem. Iniciamos pelo vocábulo “anóten” que em grego pode significar
“de novo e “do alto” (grifo do autor) (SILVA, 2001, p. 238).
58
Mas para o autor, nesta passagem o vocábulo significa realmente “de novo”,
porém a maioria dos exegetas emprega o termo “do alto” para justificar sua descrença na
reencarnação, ou seja, negar a doutrina no renascimento da alma no corpo. Lembra ainda que
este malabarismo de sentido envolve o problema gramatical na tradução do texto hebraico
para o grego, do grego para o latim e finalmente para o português, a nossa língua.
Muitos começam com a afirmação de que Jesus teria dito: “AQUELE QUE NÃO
NASCER ‘DO ALTO’”. Observe, no entanto, que a pergunta feita por Nicodemos,
em seguida, denota que ele entendeu que Jesus falava realmente em nascer “de
novo” e não “do alto”: Como pode “o homem, depois de velho, entrar pela
segunda vez (deuteron) no ventre materno?” (grifo do autor) (SILVA, 2001, p.
239).
Para Silva (2001, p. 239), a ambigüidade de entendimento somente ocorre na
língua grega. Pois, no hebraico a língua que realmente ocorreu o diálogo entre Jesus e
Nicodemos o problema não existe.
O parágrafo a seguir extraído de Analisando as Traduções Bíblicas é certamente o
mais incisivo na questão, o autor faz a transliteração do texto do hebraico para o português,
que diz:
O texto é bem claro e jamais pode significar “do alto”. Diz o seguinte: (im
iualed ish mimkôr ‘al lô-iukal lirôt et-malkut haelohim”) im=se, lô=não,
iualed=incompleto do grau qal do verbo “nolad”= nascer, ish=um homem,
mimekôr= palavra composta, formada por mi=de + makôr=fonte de água viva,
origem. Existe a expressão hebraica “Mekôr chaim” que quer dizer “fonte da
vida”. Observe que não existe nada referente “ao alto”, no texto grego, como
muitos querem se fazer entender. Assim, o Cristo fala que aquele que não nascer em
origem, no sentido de se voltar à fonte original da vida, ou seja, nascer novamente,
“não poderá”, (lô-iuchal =incompleto do verbo ichôl =poder) ver o reino de Deus
(lirôt et-malkut haelohim) (grifo do autor) (SILVA, 2001, p. 239).
Considerando à questão gramatical do texto grego na passagem do Evangelho de
João (3:1-12), quando Jesus fala da necessidade de nascer da água e do espírito, Silva (2001,
p. 240) afirma:
A questão gramatical: No texto em grego não artigo diante das palavras “água”
(ek ydatos= de água) “e espírito” (kai pneumatos), portanto, o texto fala em
nascer “de água e de espírito”. Não é portanto, nascer da água do batismo, nem do
espírito, mas de água (por meio da água) e de espírito (pela Reencarnação do
espírito) (grifo do autor) (SILVA, 2001, p. 240).
Na tradição eclesiástica essa passagem do capítulo 3 é vista como definição da
água batismal, ou seja, somente os homens que se submetem ao ritual do batismo pela água
seriam regenerados. “Todavia não é provável que esteja em vista o batismo cristão, posto que
Nicodemos não poderia ter feito qualquer idéia a respeito, sendo instituição de data bem
posterior [...]”, ou seja, não existia na época a doutrina do batismo cristão, conforme afirma
Champlin (1995, p. 305).
59
Nas considerações de Prophet é colocado que:
De acordo com a teologia cristã, temos apenas uma vida para cumprir o requisito de
Jesus. Quem não conseguir cumpri-lo em uma única vida falhou. Ponto final. Nunca
mais poderá entrar no reino de Deus.
Alguns cristãos dizem que existem religiões com deuses estranhos. Estranho para
mim seria um Deus que estabelecesse para os seus condições impossíveis de serem
cumpridas. [...].
O que a passagem realmente significa é: se alguém não nascer da água e do Espírito
nesta vida, precisa nascer de novo através do ventre de outra mãe - e assim por
diante até que tenha a oportunidade de entrar no reino de Deus, que denomino
consciência de Deus. A visão reencarnacionista oferece uma alternativa para a visão
de tudo-ou-nada do céu e do inferno. Se alguém não nascer de novo nesta vida, Deus
permitirá que retorne para ter outra oportunidade de buscar o renascimento pelo
Espírito (PHOPHET, 1997, p. 117).
Podemos perguntar: como Nicodemos poderia entender acerca do batismo, se ele
era judeu e não conhecia tais conceitos cristãos que ainda não tinham sido estabelecidos?
Podemos lembrar que Jesus, poderia falar de coisas acerca da tradição e não poderia falar
de outro conceito, se não os judaicos:
Não é impossível que Nicodemos estivesse suficientemente familiarizado com o
batismo de João, para que pudesse compreender uma alusão ao fato; porém, em
parte alguma das Escrituras foi declarado que o batismo de João pudesse produzir a
salvação ou o novo nascimento. Pelo contrário, era um rito inteiramente preparatório
do arrependimento, a fim de que viessem a receber corretamente ao Messias e ao seu
reino (CHAMPLIN, 1995, p. 305).
Para as correntes tradicionais que negam a doutrina do retorno da alma, ou
melhor, nem admitem tais princípios nos textos sagrados, dizem que nesse diálogo Jesus
falava literalmente da regeneração do homem pelo batismo, tal que a purificação dos pecados
e o renascimento da alma se dariam através do Espírito Santo. Enquanto outras encaram o
novo nascimento ou regeneração pelo batismo como conversão, arrependimento dos pecados,
um ato de fé, uma mudança de mente e de coração para com Deus através do batismo
(CHAMPLIN, 1995, p. 305).
Igualmente, o batismo não poderia representar literalmente a regeneração do
homem como afirmam os hermeneutas. A interpretação assumida por Champlin é a seguinte:
1. Não precisamos supor haver qualquer ensino de regeneração batismal nesta
passagem. O autor deste quarto evangelho era por demais místico, por demais
voltado para as coisas do outro mundo, em seus ensinos, para ensinar qualquer
noção de que qualquer ato físico possa fazer parte daquele nascimento que se origina
no alto.
2. Apesar disso expressar certa verdade, não razão para supormos que Jesus não
se referiu alguma forma de batismo em água, como símbolo da operação do
Espírito, que vem do alto. A água simbolizava justamente essa operação, no A.T., e
Nicodemos sem dúvida teria podido compreender essa referência.
3. O fato de que as passagens de Paulo, sobre a salvação e a justificação, nem menos
mencionam o batismo em água, demonstra que tal batismo não pode ser o agente
real da regeneração, por melhor que o represente (CHAMPLIN, 1995, p. 305).
60
Resta então examinar os diversos conceitos de qual seja a doutrina bíblica do novo
nascimento. Deve-se lembrar que é indiscutível que temos uma versão muito condensada da
conversa entre Jesus e Nicodemos. Mesmo assim, seria pretensão afirmar literalmente que tal
diálogo fala apenas da conversão e regeneração do homem através do ritual do batismo.
Se buscarmos a liturgia religiosa, vamos encontrar apenas justificativas em torno
da teoria ritualista do batismo, como argumentos fundamentais para a passagem do diálogo
entre Jesus e Nicodemos, mas poderemos também recorrer a Espinosa, filósofo do século
XVII, para contestar tais teorias, quando diz:
Admira-me bastante, pois, a engenhosidade de pessoas, como aquelas de quem
falei, que enxergam na Escritura mistérios tão profundos que se torna impossível
explicá-los em qualquer língua humana e que, além disso, introduziram na religião
tantas matérias de especulação filosófica que a Igreja até parece uma academia e a
religião uma ciência, ou melhor, uma controvérsia. [...].
O comum dos teólogos, todavia, entende que se devem interpretar metaforicamente
aquelas passagens em que se atribuem a Deus coisas que eles conseguem ver pela
luz natural serem incompatíveis com a natureza divina, ao passo que tudo aquilo que
escapa à sua capacidade de compreensão se deverá aceitar à letra. Porém, se todas as
passagens daquele gênero que se encontram na Escritura tivessem obrigatoriamente
de ser interpretadas e entendidas metaforicamente, então a Bíblia não teria sido
escrita para o povo e para o vulgo ignorante, mas unicamente para os especialistas,
designadamente os filósofos (ESPINOSA, 2003, p. 1632-1677).
Certo que não se pode finalizar a questão em torno do paradigma do diálogo de
Jesus e Nicodemos, acerca da doutrina do “reino de Deus”. Mas, podemos dizer que as
diversas interpretações em torno do “nascer de novo” ou “nascer do alto” têm seus elementos
de verdade. Pois, no diálogo deixou entendido que o autor tinha coisas a mais a desvelar, além
das coisas do mundo terreno; a natureza mística e a transcendência do discurso revelam que
existem muitos segredos, muitas surpresas e muitos mistérios dos qual o interlocutor não pôde
compreender plenamente no ensinamento de Jesus.
2.5 A importância de Paulo na formação do Cristianismo Primitivo
Sabe-se de Paulo muito mais do que qualquer outro personagem apostólico. As
fontes principalmente são os Atos dos apóstolos. Champlin (1995) cita outras fontes
secundárias de informação que os pesquisadores consideram importantes, que são as
Epístolas, que servem para estabelecer a cronologia da sua vida e o livro apócrifo Atos de
Paulo” escrito na segunda metade do século II D.C.
Paulo nasceu em Tarso, na Cilícia, província da Síria, provavelmente na primeira
década do século I D.C., sendo assim um contemporâneo mais jovem de Jesus, embora não
61
haja registro de que ele o tenha visto alguma vez. “Essa cidade se tornou uma região de
síntese entre o oriente e o ocidente, entre a cultura grega, a cultura oriental, e, finalmente, a
cultura romana. Também se saber que era um centro cultural, e que ali era muito forte a
variedade do estoicismo romano” (CHAMPLIN, 1995, p. 29).
Seus pais eram Judeus, muito dedicados à religião e pertenciam à seita dos
fariseus, ou, pelo menos, eram influenciados por ela. Tinham cidadania romana e sabe-se que
pertenciam à tribo de Benjamim.
A história da conversão de Paulo é contada em três momentos do livro de Atos
(9:3-19; 22:6-21; 26:12-18), havendo algumas variações entre si. “Em sua epistolas Paulo não
nenhuma descrição desse acontecimento, mas indica que algo de sobrenatural lhe
aconteceu, porquanto ele reivindica revelação direta de sua mensagem, da parte de Cristo.”
(CHAMPLIN, 1995, p. 30).
A partir do encontro de Paulo de Tarso com Jesus a caminho de Damasco,
conforme relata nos Atos dos Apóstolos (At 9:3-6) houve uma mudança fundamental no
messianismo Paulino. A cristologia torna-se enforque da sua teologia:
Essa ocorrência tem todos os sinais de uma experiência stica, tais como o
brilhante resplendor, o sentimento de temor, a purificação psicológica e a renovação
espiritual, e até mesmo (conforme ocorre algumas vezes, nesses casos) alguma
forma de incapacidade física temporal logo em seguida, o que, na experiência de
Paulo, foi à cegueira. Portanto, parece lógico supormos que Paulo teve uma
experiência mística real, que o seu contacto com algum poder mais alto foi genuíno,
poder esse que o próprio Paulo define como Jesus; e grande parte da teologia e da
experiência cristã depende dessa declaração.
Naturalmente que essa não foi à única experiência mística de Paulo, pois ele também
menciona algumas outras (tal como a visita ao terceiro céu, em II Cor. 12). Parece
que ele recebeu nada menos que sete grandes visões e a sua doutrina repousa sobre a
informação transmitida por meio delas. O cristianismo repousa sobre o aparecimento
do Cristo ressurrecto aos vários apóstolos e sobre mensagem que ele lhe trouxe
quando voltou de entre os mortos (CHAMPLIN, 1995, p. 30).
Daí em diante iniciou a sua peregrinação missionária por diversas cidades do
oriente médio, por onde realmente teve começo a evangelização na Ásia menor, com a
conversão dos gentios, ou seja, os estrangeiros e a expansão inicial do Cristianismo primitivo.
Mas não demorou para os judeus radicais começarem a se incomodar com as pregações
Paulina e foi numa dessas, em Listra (At 14:5-6), que ele foi apedrejado.
Alguns intérpretes acreditam que foi nessa ocasião que Paulo teve a sua visão do
terceiro céu (II Cor. 12), e que ele realmente esteve morto, mas reviveu. É possível
que sua alma tenha sido momentaneamente liberta de seu corpo dormente e à beira
da morte, o que algumas vezes ocorre, conforme também se tem aprendido em
estudos parapsicológicos (CHAMPLIN, 1995, p. 30).
62
Houve várias viagens missionárias, esteve de volta em diversos momentos na
Palestina, e foi em seu discurso aos judeus em Jerusalém que Paulo se identificou com eles
dizendo: “Eu sou judeu. Nasci em Tarso, da Cilícia, mas criei-me nesta cidade, educado aos
pés de Gamaliel na observância da Lei de nossos pais, cheio de zelo por Deus, com vós todos
no dia de hoje” (At 22:3).
Paulo foi o apóstolo dos gentios, sua pregação, seu investimento missionário foi
apresentar a nova doutrina, que não somente aceitava os pecadores, os publicanos e os
desprezados, mas lhe prometia um destino mais elevado do que qualquer coisa exposta pelo
judaísmo. Ou seja:
O Cristianismo, porém, volta-se para as coisas da outra vida, e é essa atitude, em seu
ensino acerca da total transformação do crente segundo a imagem de Jesus, o
Messias, o Senhor eterno, que, aos olhos dos judeus, inspirava aos gentios
“pretensões” e ambições jamais ouvidas. Paulo tornou-se o porta-voz mais
proeminente dessa nova mensagem, sendo bem reconhecido o fato de que somente
Paulo expõe, com clareza e pormenores, a mensagem central da posição e do destino
da “igreja”, que declaradamente, e na realidade, viria a ser essencialmente uma
igreja gentílica (CHAMPLIN, 1995, p. 33).
Mas, a sua fama corria nos quatro cantos do oriente. E, “o mais estranho é que a
dificuldade foi provocada por alguns judeus que vinham da província da Ásia, que por acaso
estavam no templo e reconheceram Paulo; foram eles que agitaram as multidões e fizeram-nas
atacar o apóstolo.” Daí, foi aprisionado pelas autoridades romanas acusado de perturbador da
ordem (CHAMPLIN, 1995, p.31).
Depois de passar um período em Cesaréia, alguns judeus continuaram a persegui-
lo, até o procurador da província ter negado a ouvir o seu caso. Contudo ele apela para César,
que era direito de todos os cidadãos romanos, criando assim motivo de sua viagem a Roma:
O fanático perseguidor dos cristãos, Paulo de Tarso, converteu-se ao cristianismo
dois anos depois da crucificação de Jesus Cristo (Atos 6.3 e seguintes). Quase trinta
anos depois, o grande catequista e propagador da doutrina de Jesus fez sua ultima
viagem, desta vez como preso. Na Judéia, governada desde 61 o procurador Festo;
foi ele quem mandou Paulo para Roma, sob a custódia do centurião Júlio, acusado
de graves crimes (Atos 27.1). [...] Nas perseguições dos cristãos que começaram no
tempo de Nero, Paulo sofreu o martírio e a morte. Na qualidade de cidadão romano,
não morreu, como Pedro, na cruz, e sim pela espada (KELLER, 1992, p. 395-6).
Assim, terminou a carreira do mais influente missionário do Cristianismo
primitivo em toda a sua história, após ter combatido o bom combate, ter terminado a carreira
conservada a fé.
63
2.5.1 A ressurreição na 1ª Epístola aos Coríntios de Paulo
O messianismo Paulino fluiu na população, foi à pregação de boca em boca de
uma “boa nova” que prometia a salvação dos pecados, e por fim a ressurreição dos mortos,
com uma idéia salvacionista que envolveu as comunidades e depois uma sociedade, que
passava por processos profundos de transformação, devido aos conflitos culturais da
colonização romana. Paulo com sua idéia contaminou um imaginário popular da sociedade,
cercada de mitos, deuses e divindades, envolveu nas entranhas do Cristianismo primitivo
ações de solidariedade e mártires.
Muitos cristãos convertidos eram ou foram injustiçados, ou comerciantes judeus e
não judeus das cidades romanas ou conquistadas pelo império romano. E, seu maior objetivo
naquele momento era os gentios, ou seja, os estrangeiros. A Judéia no momento do
nascimento de Jesus e no período paulino, era parte do mundo Romano. O Cristianismo
primitivo conquistou esse universo no oriente, algo extraordinário para a consolidação da
nova doutrina.
Paulo recorre aos ensinamentos do Antigo Testamento, para construir sua teologia
em torno da anunciação da “boa nova”. Pelos registros do Antigo Testamento, a ressurreição
dos mortos era uma doutrina antiga na Palestina. “A crença na ressurreição foi-se tornando
cada vez mais comum após os exílios, sobretudo no período dos Macabeus. E, pelo tempo em
que nasceu Jesus Cristo, era uma crença praticamente universal na Palestina e no judaísmo em
geral” (CHAMPLIN, 2001, p. 5159).
A ressurreição é um dos adventos centrais na tradição Cristã. Pois, a história do
Cristianismo inicia justamente com a premissa da ressurreição de Jesus. Existe uma unidade
nos Evangelhos Sinópticos, quando narram o fenômeno da ressurreição. Nas Epístolas Paulo é
muito incisivo na questão da ressurreição dos mortos. A declaração clássica dessa passagem é
o capítulo 15 da Epístola aos Coríntios. Pode-se dizer que seu conceito acerca da
ressurreição não diferencia da tradição judaica, ou seja:
Podemos supor que a descrição exposta por Paulo não era muito diferente daquilo
que se poderia encontrar nos estudos rabínicos mais refinados, excetuando,
naturalmente, a ênfase cristã sobre a importância da pessoa de Jesus Cristo como as
primícias dos ressurrectos, além do fato de que os cristãos sempre vincularam a
ressurreição de Cristo à concretização da imortalidade, porquanto é a vida de Cristo
que possibilita aos remidos viverem em qualquer sentido espiritual, na imortalidade
ao nível da alma, ou, finalmente, na imortalidade final, quando a alma houver de ser
revestida pelo corpo espiritual (CHAMPLIN, 2001, p. 5159-60).
64
A doutrina da ressurreição era comum entre as seitas judaicas, os fariseus
defendiam a crença na sobrevivência da alma, na existência de um mundo sobrenatural, como
também os essênios. A exceção era a tradição dos saduceus, que considerava o Pentateuco
como seu “cânon”, rejeitando os conceitos de ressurreição e a sobrevivência da alma.
De acordo com Champlin (1995, p. 2), pelo o que se sabe Paulo foi o primeiro
missionário cristão a chegar à Grécia, conforme os registros históricos. Chegou a Corinto
proveniente de Atenas, sentindo-se muito desencorajado, porquanto seus esforços ali haviam
dado bem pouco fruto. Sua permanência durou dezoito meses, tornando a cidade um centro
importante da igreja primitiva cristã. Foi com os crentes de Corinto que o apóstolo manteve
extensas correspondências em torno de diversos assuntos teológicos.
Podemos facilmente imaginar que a epístola enviada pelos crentes de Corinto ao
apóstolo Paulo lhe fizera indagações sobre a natureza da ressurreição, porquanto, em
Corinto, havia alguns que pareciam negar que se deveria esperar a ressurreição,
dizendo que a mesma já havia ocorrido, provavelmente querendo dar a entender com
isso que a ressurreição de Cristo e outros eventos paralelos já tinham tido lugar. É
que esses falsos mestres não faziam a menor idéia de como a ressurreição do Senhor
Jesus garante a ressurreição de todos os remidos. Parece que haviam abandonado a
idéia judaica comum de que os justos finalmente seriam ressuscitados, sem falarmos
na ressurreição geral dos perdidos. Mui provavelmente esse problema doutrinário
surgiu em Corinto porque, entre os gentios, a doutrina da ressurreição era um ensino
estranho, embora não totalmente desconhecido em seus mitos; ou então porque, em
Corinto havia alguns que demonstravam tendências gnósticas, as quais, de mistura
com conceitos do judaísmo e da filosofia e mitologia gregas, além dos conceitos
cristão, aquela gente terminara por criar um doutrina que reputava desnecessária
qualquer ressurreição do corpo físico (CHAMPLIN, 1995, p. 5).
De maneira geral, a primeira Epístola aos Coríntios não foi uma epístola
doutrinária, embora que sejam discutidos temas essencialmente teológico. “E por causa dos
muitos problemas acerca dos quais o apóstolo escreveu, no intuito de corrigi-lo, encontramos
a mais completa declaração ética da cristã, em todo o N.T.” (CHAMPLIN, 1995, p. 5). O
autor tenta encontrar razões pela qual o tema ressurreição dos mortos tenha surgido na
Epístola aos Coríntios. Todavia, existem razões teológicas, além das circunstâncias históricas.
Algumas delas são nomeadas pelo autor:
A vida eterna, por meio da ressurreição, nos é dada por meio de Cristo (ver I Cor.
15);
[...] A ressurreição (o que provavelmente inclui as idéias da ascensão e glorificação
de Cristo, o que é comum nas paginas do N. T) garante a verdadeira vida eterna para
os crentes, e o décimo quinto capítulo desta epístola é a mais completa declaração
que possuímos sobre esse tema (CHAMPLIN, 1995, p. 5).
Segundo Champlin (1995, p. 6), a doutrina da ressurreição de Paulo só ocorre para
os remidos, ou seja, remido no sentido de “quitado, desobrigado de qualquer compromisso”,
conforme o dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), quando da segunda vinda de Cristo, ou
65
seja: “Ele nos ensina as verdades sublimes da imortalidade e da transformação do crente,
acrescentando que certos remidos passarão para esse estado sem experimentar a despeito da
morte física”.
Apesar de que Paulo se demorou sobre a simples imortalidade da alma (conforme
fica amplamente demonstrado no quinto capítulo da segunda epístola aos Coríntios),
a glorificação completa ocorrerá por meio da ressurreição, quando houver
novamente a reunião da personalidade humana, em seus elementos constitutivos,
bem como através da ascensão e da glorificação juntamente com Cristo, que fica
implícita na doutrina da ressurreição (CHAMPLIN, 1995, p. 6).
Portanto, o apóstolo Paulo procurou demonstrar a importância da doutrina da
ressurreição, como parte essencial na cristã. Contudo, na verdade, se for compreendida
apropriadamente, a ressurreição é um aspecto importante, não apenas da sobrevivência, mas
também da “sobrevivência cristã”, “[...] a qual possui elementos que ultrapassam em muito a
mera idéia da sobrevivência da alma, conforme essa idéia e conhecida em outras tradições”
(CHAMPLIN, 1995, p. 235).
2.5.2 A natureza da ressurreição em Paulo
No décimo quinto capítulo da Epístola aos Coríntios, as descrições e a defesa
paulina acerca da ressurreição, tem sido uns dos argumentos mais elevados da literatura
bíblica em torno da questão, como também controvertido, a saber:
Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer
que não ressurreição dos mortos? Se não ressurreição dos mortos, também
Cristo não ressuscitou, E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa pregação, vazia
também é a vossa fé. Acontece mesmo que somos falsas testemunhas de Deus, pois
atestamos contra Deus que ele ressuscitou a Cristo, quando de fato não ressuscitou,
se é que os mortos não ressuscitam. Pois, se os mortos não ressuscitam, também
Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, ilusória é a vossa fé; ainda estais
nos vossos pecados. Por conseguinte, aqueles que adormecem em Cristo estão
perdidos. Se temos esperança em Cristo o-somente para esta vida, somos os mais
dignos de compaixão de todos os homens (I CORINTIOS, 15:12-19).
Não vida que Paulo fazia oposição a algum grupo contrário à nova doutrina
que crescia e ganhava espaço na comunidade. Poderia ser os próprios judeus que moravam em
Corinto, que defendiam o conceito tradicional da sua doutrina. Ou até mesmo os cristãos que
imaginavam que a ressurreição tinha ocorrido com Jesus. Por fim, se especula a
possibilidade de alguma corrente de intelectuais grega.
66
Sabe-se que o conceito de ressurreição sofreu várias modificações dentro da
própria doutrina judaica e também no Cristianismo, de forma que num primeiro momento
requereu uma posição de Paulo acerca do problema, ou seja:
É verdade que essa doutrina tem sido sujeita as várias modificações formas cruas, tal
como a noção judaica que, de alguma maneira, os cadáveres seriam levados por
túneis até Jerusalém, onde seriam reavivados; ou como aquele ensino de discípulos
de Corinto, que haviam absorvido idéias judaicas - tudo o que contribuía para tornar
ainda mais obstinada a oposição contra a ressurreição.
As classes intelectuais, que conheciam bem sua filosofia, provavelmente pensavam
em sobrevivência somente em termos da imortalidade da alma: e é bem possível que
esses tais houvessem criado várias piadas acerca da ressurreição. Não é muito
provável que o problema abordado por Paulo envolvesse a “sobrevivência”, mas
tão-somente envolvia o modo da sobrevivência (CHAMPLIN, 1995, p. 234).
Paulo mais adiante na Epístola, descreve os motivos de defender a ressurreição em
Cristo, dizendo:
Mas não! Cristo ressuscitou dos mortos, primícias dos que adormeceram. Com
efeito, visto que a morte veio por um homem, também por um homem vem à
ressurreição dos mortos. Pois, assim como todos morrem em Adão, em Cristo todos
receberão a vida. Cada um, porém, em sua ordem: como primícias, Cristo; depois,
aqueles que pertencem a Cristo, por ocasião da sua vinda. A seguir haverá o fim,
quando ele entregar o reino a Deus Pai, depois de ter destruído todo Principado, toda
Autoridade, todo Poder. Pois é preciso que ele reine, até que tenha posto todos os
seus inimigos debaixo dos seus s. O último inimigo a ser destruído será a Morte,
pois ele tudo colocou debaixo dos pés dele. Mas, quando ele disser: “Tudo está
submetido”, evidentemente excluir-se-á aquele que tudo lhe submeteu. E, quando
todas as coisas lhe tiverem sido submetidas, então o próprio Filho se submeterá
àquele que tudo lhe submeteu, para que Deus seja tudo em todos (I CORINTIOS,
15:20-28).
Para Champlin (1995), Paulo recorre a Adão para justificar o evento de geração
humana e seus pecados. E, necessariamente a partir do advento da ressurreição de Cristo vem
o resgate, ou seja:
Na esfera terrena houve um começo, uma queda, em que penetrou o pecado e todas
as suas terríveis conseqüências. Uma dessas conseqüências foi a “mortalidade”, que
passou a caracterizar o homem, o complexo formado pela “alma-corpo”. Essa foi à
contribuição negativa de Adão. [...]
Porém, eis que surge Cristo. Ele se tornou mortal, tendo sofrido os maus efeitos do
pecado, embora sem ter ele mesmo cometido jamais algum pecado. [...] Não
obstante, ele tomou sobre si a natureza de homens pecaminosos (ver Rom. 8:3), e
não a mesma natureza que Adão tivera, quando ainda não havia caído no pecado.
[...] A ressurreição, por conseguinte, é presente de Cristo, sendo a reversão completa
de nossa existência “mortal” [...] (CHAMPLIN, 1995, p. 250).
De maneira que, a Epístola prossegue fornecendo a ordem dos acontecimentos
escatológicos da doutrina da ressurreição e algumas indicações sobre os significados dos
mesmos. A seção que vai do vigésimo nono ao trigésimo quarto, reinicia a exposição de
provas da ressurreição, advertindo incoerência de certos costumes dos crentes da época em
Corinto, os quais não acreditavam na ressurreição (CHAMPLIN, 1995, p. 256):
67
Se não fosse assim, que proveito teriam aqueles que se fazem batizar em favor dos
mortos? Se os mortos realmente não ressuscitam, por que se fazem batizar em favor
deles? E nós mesmos, por que a todo o momento nos expomos ao perigo?
Diariamente estou exposto à morte, tão certo, irmãos, quanto vós sois a minha glória
em Jesus Cristo nosso Senhor. De que me teria adiantado lutar contra os animais em
Éfeso, se eu tivesse apenas interesses humanos? Se os mortos não ressuscitam,
comamos e bebamos, pois amanhã morreremos. Não vos deixeis iludir: “As más
companhias corrompem os bons costumes”. Tornai-vos sóbrios, como é necessário,
e não pequeis! Pois alguns dentre vós tudo ignoram a respeito de Deus. Digo-o para
a vossa vergonha (1Cor 15:29-34).
Parece que no final da seção trigésima quarta, Paulo adverte que dentre eles
haviam alguns oponentes da doutrina da ressurreição, isto é, muito deles desconheciam em si
as práticas cristãs, embora eram chamados de “irmãos”, mas que eram corruptos em sua
vivência doutrinária. “Esse é um pensamento solene e condenador, visto que no seio do
cristianismo primitivo, por causa de uma pedagogia deficiente e da tolerância à moral baixa,
existiam ‘agnósticos práticos’, ainda que não o confessassem abertamente com a boca”
(CHAMPLIN, 1995, p. 259).
Depois de declarar que a ressurreição faz parte do evangelho da igreja primitiva
nos primeiros versículos da Epístola aos Coríntios, mostrando ainda as conseqüências do
mundo sem essa manifestação. Por fim, na seção seguinte, ele toma para si o desafio de
descrever a natureza da ressurreição, dizendo:
Mas, dirá alguém, como ressuscitam os mortos? Com que corpo voltam? Insensato!
O que semeias não readquire vida a não ser que mora. E o que semeias não é o corpo
da futura planta que deve nascer, mas um simples grão de trigo ou de qualquer outra
espécie. A seguir, Deus lhe corpo como quer; a cada um das sementes ele dá o
corpo que lhe é próprio.
Nenhuma carne é igual às outras, mas uma é a carne dos homens, outra a carne dos
quadrúpedes, outra a dos pássaros, outra a dos peixes. Há corpos celestes e
corpos terrestres. São, porém, diversos o brilho dos celestes e o brilho dos terrestres.
Um é o brilho do sol, outro o brilho da lua, e outro o brilho das estrelas. E até de
estrela par estrelas diferenças de brilho. O mesmo se dá com a ressurreição dos
mortos, semeado corruptível, o corpo ressuscita incorruptível; semeado desprezível,
ressuscita reluzente de glória; semeado na fraqueza, ressuscita cheio de força;
semeado corpo psíquico, ressuscita corpo espiritual (1Cor 15:35-44).
O Rabino Alexander Safra explica este versículo dizendo que assim como a
árvore retorna à vida depois de ter sobrevivido ao inverno, também nós retornamos à vida
após passarmos por períodos duros, negros e infernais. E que, passando por tudo isso, nós
“mudamos” ao mesmo em tempo que permanecemos constantes como espíritos (SAFRA,
1995, apud SILVA, 2001, p. 228).
Paulo utiliza a ilustração dos rabinos, sobre a “semente” em fruição, para falar
acerca da ressurreição. “É essa símile, por igual modo, é usada no quarto evangelho. (Ver
João 12:34). Mas Paulo desejava entender que a ressurreição do corpo será algo inteiramente
68
diferente do antigo corpo físico, porquanto ‘... carne e sangue não podem herdar o reino de
Deus ...’” (CHAMPLIN, 1995, p. 260), ou seja:
É um pensamento errôneo, entre tantos crentes de hoje em dia, que o corpo
ressurrecto terá carne e ossos, mas não sangue. Trata-se de uma interpretação
extremamente materialista. Antes, a diferença entre o corpo antigo e o novo é que
este envolverá grande elevação do ser, tal como existe elevação entre a mera
semente e a árvore por ela produzida. Outrossim, por essa ilustração, Paulo não
estava esperando a possibilidade que a “fruição” terá a “mesma natureza” que a
“semente”, porque esta secção inteira é contrária a tal pensamento. Antes, haverá
vastíssima diferença, porque o corpo ressurrecto não será “físico” sob hipótese
nenhuma. Antes, será um corpo “espiritual” (ver quarenta e quatro deste capítulo).
Por conseguinte, não será um corpo “material”. [...] O corpo ressurrecto será veiculo
ideal par a alma redimida. Será um corpo “espiritual” em algum sentido. Não
sabemos exatamente como será essa forma, tal como não sabemos do que a alma é
feita (CHAMPLIN, 1995, p. 260).
Por fim, Paulo vai demonstrar a natureza da ressurreição nos versículos de
quarenta e cinco a cinqüenta e três, falando do corpo espiritual que será a continuidade do
corpo físico, onde diz:
Se um corpo psíquico, também um espiritual. Assim está escrito: o primeiro
homem, Adão foi feito alma vivente; o último Adão tornou-se espírito que dá a vida.
Primeiro foi feito não o que é espiritual, mas o que é psíquico; o que é espiritual
vem depois. O primeiro homem tirado da terra é terrestre. O segundo homem vem
do céu. Qual foi o homem terrestre, tais são também os terrestres. Qual foi o homem
celeste, tais serões os celestes. E, assim com trouxemos a imagem do homem
terrestre, assim também traremos a imagem do homem celeste.
Digo-me, irmãos: a carne e o sangue não podem herdar o Reino de Deus, nem a
corrupção herdar a incorruptibilidade. Eis que vos dou a conhecer um mistério: nem
todos morreremos, mas todos seremos transformados, num instante, num abrir e
fechar de olhos, ao som da trombeta final; sim, a trombeta tocará, e os mortos
ressurgirão incorruptíveis, e nos seremos transformados. Com efeito, é necessário
que este ser corruptível revista a incorruptibilidade e que este ser mortal revista a
imortalidade (1Cor 15:45-53).
Segundo Silva (2001, p. 227), o conceito de ressurreição, dado por Paulo, mexe
com o raciocínio dos teólogos e mostra que o seu conceito de ressurreição da carne não é
aquele entendido pela maioria, de um corpo que se ergue no juízo final, e neste caso, Paulo
está plenamente de acordo com o princípio da Reencarnação.
E o autor continua explorando os ensinamentos Paulino acerca da ressurreição, eis
a definição que utiliza:
Paulo chama de insensato aquele que pensa que na ressurreição se volta com
algum corpo ou com o mesmo corpo físico. Paulo sofre com o desconhecimento
deles sobre uma coisa tão lógica: se a semente plantada no solo ressurge
completamente diferente, como pode o homem voltar com o mesmo corpo?
(grifo do autor).
É lógico que o corpo que ressurgirá será diferente do anterior, pois um corpo
material e um corpo espiritual, semeado corpo animal ressurge corpo espiritual,
conforme os versículos 43 e 44. a pergunta feita por Paulo mostra que os que lhe
questionavam, (com que corpo voltam?) acreditavam na Reencarnação, pois par se
ter que escolher um corpo para voltar, significa que estes já foram possuidores de
vários corpos (SILVA, 2001, p. 227).
69
Num certo momento da epístola pode parecer confusa é não definir um único e
claro discurso em torno da ressurreição. Contudo, Paulo era judeu e certamente falava do
conhecimento judaico acerca da doutrina que professava.
Na opinião de Prophet (1997, p. 160), Paulo ensinou em dois níveis: Um para os
psíquicos, aqueles que se encontravam ao nível das coisas materiais, e outro para os
pneumatistas, os que eram “dotados de espírito” e, por isso, capazes de compreender a
sabedoria de Deus. Mas, uma coisa é certa - Paulo pensava a restauração da personalidade
humana por inteiro, e não um mero espírito sem corpo. Certamente a compreensão de como
isso ocorre ainda é limitada para o conhecimento dos exegetas e hermeneutas.
Por fim, Robert Browning, poeta e dramaturgo inglês, do século IXX, escreveu
Prospice, um poema que retrata uma eloqüente expressão de horror humano diante da morte.
Porém, transparece uma tênue esperança eterna, embora que velada, paralelo literário que
reflete a 1ª Epístola aos Coríntios de Paulo. Eis o que diz:
Temer à morte? Sentir o nevoeiro em minha garganta,
Nebulosidade em meu rosto,
Quando as neves começam, e os toques denotam
Que me aproximo do lugar,
O poder da noite, a pressão do temporal,
O posto do adversário;
Onde se post, o arquimedo em forma visível,
Mas, o homem forte deve ir-se:
Pois a via termina e o cume é tingido,
E as barreiras caem,
Há uma batalha a lutar, antes da guarnição ser ganha,
A recompensa de tudo.
Odiaria que a morte me tapasse os olhos, permitindo
Que eu me arrastasse para fora.
Não! mas que eu prove tudo, conduzindo-me como meus pares,
Os heróis antigos.
Suportar o golpe, em um minuto pagar os direitos da vida,
Na forma de dor, trevas e frio,
Pois de repente o pior se torna o melhor para o bravo,
O negro minuto do fim,
E os elementos rilham, as vozes inimigas rugem,
Irão se calando, irão se misturando,
Serão transformadas, sendo um principio a paz na dor,
Então uma luz, então teu coração,
Ó tu alma de minha alma! Agarrar-me-ei a ti de novo,
E com Deus terei o meu descanso!
70
CAPÍTULO III
Os primeiros passos da helenização do cristianismo
A Diáspora ou dispersão judaica era um fato consumado no final do século I a.C.
Os judeus haviam sido deportados para a Babilônia no século VI a.C., e nunca mais voltaram
integralmente à sua pátria ancestral. No período helenístico habitavam todo o Mediterrâneo
Oriental, principalmente na Ásia Menor, Síria, Egito (Alexandria), além da Babilônia e da
Pérsia. Organizavam-se em comunidades. E muitas delas obtiveram direitos de autonomia,
construíram suas sinagogas, escolas, cemitérios e, na maioria das vezes, dispunham de
tribunais próprios com plena autonomia jurídica. Viviam separados do resto da população,
sem absorver integralmente seus costumes e crenças, bem que isso ocorresse de maneira
parcial.
Mas, o avanço do império romano ao Oriente acabou por colocar a maioria dos
judeus sob seu domínio. O judaísmo era uma religião muito antiga quando entraram em
contato com os romanos. E, o encontro das duas culturas: semita e helênica foi inevitável. Daí
transpirou uma vasta literatura religiosa e filosófica que revolucionou o curso do pensamento
humano no ocidente. Foi a partir da pequena nação judaica que surgiu o mais radical desafio à
sabedoria dos gregos: o cristianismo. Enquanto “os judeus pedem sinais, e os gregos andam
em busca de sabedoria, nos, porém, anunciamos Cristo [...]” (1 Cor 1:22-23).
Contudo, a difusão da mensagem de Jesus Cristo inicia justamente como
propaganda dos judeus da Diáspora, nas cidades helenísticas. A princípio ocorreu
exclusivamente nas sinagogas dos judeus helenizados, para onde convergiam muitos gentios
simpatizantes do judaísmo. Igualmente, os apóstolos de Cristo, que consideravam a Lei
judaica com certa liberdade, traziam muitos gregos ao seio desta nova seita que expandia na
cidade de Antioquia. E, por volta dos anos quarenta, receberam o nome de Christianoí (antes
eram chamados de nazarenos, galileus, santos, irmãos, o caminho, discípulos para se referirem
a si mesmos):
A este grande centro do mundo helenístico-romano, com uma grande e ativa
comunidade judaico-helenística, acorreram alguns cristãos cipriotas e cireneus,
expulsos de Jerusalém, e iniciaram a predicação da mensagem cristã aos helenos.
Como o grego era falado em todas as sinagogas das cidades mediterrâneas, e, por
sua situação geográfica, entre o oriente sírio e a filosófica Hélade, Antioquia - A
Pérola do Oriente - torna-se o epicentro da predicação paulina, cuja base formal fora
a argumentação retórica dos próprios gregos (SANTOS, 2006, p. 35).
71
E os paradoxos seguem com a história do nascimento e expansão do cristianismo
primitivo.
Entre 100 a.C. e 300 d.C, não houve obra no mundo grego que se pudesse comparar
com a literatura em latim dos períodos de César e de Augusto: os gregos imperiais
nunca tiveram um Cícero nem um Virgílio, nem sequer um Horácio ou um
Propércio. Por outra parte, em latim não houve nada que se pudesse comparar, em
importância revolucionária, ao Novo Testamento, produto da cultura grega. Por
suposto, isso significa que a literatura cristã em grego teve uma importância decisiva
na conformação da fisionomia intelectual da cristandade (MAMIGLIANO, 1996,
apud SANTOS, 2006, p. 36).
Mas, porém coube justamente a Paulo o desafio de apresentar a “boa nova”, um
judeu de educação rabínica, com cidadania romana, conhecedor da cultura clássica e do
sincretismo religioso dos gentios, defensor das Leis judaicas - os primeiros passos da
helenização do cristianismo. Sem ele o cristianismo teria sido apenas uma seita obscura
dentro do judaísmo.
É com a pregação de Paulo que o cristianismo primitivo dá o seu passo mais
importante, com a afirmação de que “Cristo é um homem celeste” (1Cor., 15: 47),
pré-existente em Deus. Com isso, apresenta-se o mistério da encarnação, que abre
caminho para o gnosticismo, e a teoria estóica do Lógos (lovgoj), que foi uma
tendência a divinizar o ideal moral e religioso de Jesus. Este conceito de lógos
provém de Fílon de Alexandria, para quem o Lógos e a inteligência de Deus são
uma só coisa, assim como para Paulo (1Cor. 12:12; 2Cor. 3:17). (SANTOS, 2006, p.
36-37).
3.1 Fílon, o elo entre as culturas hebraica e grega
O judeu Fílon, que viveu em Alexandria no século I de nossa era, foi
contemporâneo de Cristo e surge como o primeiro pensador a tentar conciliar o conteúdo
bíblico à tradição filosófica ocidental.
Escreveu várias obras entre as quais se destacou pelos comentários alegóricos do
Pentateuco, uma série de tratados sobre episódios bíblicos, o Cuidar do Ser, entre outras.
Conservaram-se vários dos seus escritos e para alguns historiadores é considerado o precursor
dos padres, ou seja, que do ponto de vista do seu pensamento em geral, desenvolveu-se no
mundo cristão a era dos grandes padres, a Patrística. Suas interpretações foram seguidas pela
escola cristã de Alexandria, especialmente pelos cristãos Orígenes e Eusébio de Cesaréia.
72
A obra de Fílon vibra com todos os ecos; ligado à lei judaica, vendo nos estóicos os
melhores dos filósofos, íntimo dos cultos dos mistérios, conhecedor de Platão e dos
pitagóricos, usando, para comentar a Bíblia, um método tal que pudesse inserir nela
elementos diversos, ele não podia ser estudado sem que de todos os lados se
abrissem horizontes; nele se refletia toda a história da filosofia grega até nossa era
bem como a situação religiosa de seu tempo; nele se anunciava a mística pagã e
cristã que se seguiriam. Não que Fílon seja um compilador; ele tem amores e ódios
muito firmes e deliberados; mas seu pensamento não forma um sistema como
aqueles que se vê (ou que se restabelece) nos grandes clássicos: é antes uma corrente
que passa, alimentando-se de todas as doutrinas de que precisa (BRÉHIER, 1955,
apud NASCIMENTOS, 2003, p. 57).
Fílon de Alexandria entendia que a Torá era escrita com linguagem humana. Daí
utilizava da interpretação alegórica, um método que iria influenciar grande parte dos teólogos
cristãos ao longo dos séculos, tornando-se uma importante maneira de leitura dos textos
sagrados longo do tempo da história Patrística.
Para Reale (1990, p. 403), a filosofia mosaica de Fílon representou a aquisição de
uma série de novos conceitos, desconhecidos para o pensamento grego, a começar pelo
conceito de “criação”, do qual ele forneceu a primeira formulação em termos sistemáticos:
Deus cria a matéria do nada e depois imprime a forma sobre ela.
O método com o qual Fílon operou a mediação foi o da “alegorese”. Ele sustenta
que a Bíblia tem a) um significado literal, que, no entanto, não é o mais importante,
e b) um significado oculto, segundo o qual as personagens e eventos bíblicos são
símbolos de conceitos e verdades morais, espirituais e metafísicas (REALE, 1990, p.
402).
Na sua reflexão acerca do ser humano, Fílon parece seguir em parte a doutrina
platônica, quando distingui “alma” e “corpo” no homem. Mas, pouco a pouco, ele amadurece
uma concepção nova, mais avançada, fazendo irromper no ser humano uma terceira
dimensão, de tal natureza que chega a transformar radicalmente o significado, o valor e o
alcance das outras duas. Segundo essa nova concepção, no qual o componente é constituído
por: corpo, alma-intelecto e Espírito proveniente de Deus. “Segundo a nova perspectiva, o
intelecto humano é corruptível, no sentido que é intelecto ‘terreno’, a menos que Deus inspire
nele ‘uma força de verdadeira vida’, que é o Espírito divino (pneuma)”. (REALE, 1990, p.
404).
Fílon utilizou as diferentes doutrinas da época não para tomar o partido delas, nem
tão pouco para fundi-las em vago sincretismo religioso, mas antes para procurar, em cada uma
delas, um momento particular da vida moral. Com efeito, nele diversas idéias do progresso
moral, e é completamente impossível reduzi-las uma à outra, colocar sobre uma linha única e
contínua os estados da alma que devem conduzir à perfeição (BRÉHIER, 1950, apud
NASCIMENTO, 2003, p. 68).
73
3.1.2 Fílon e o “Cuidar do Ser”
Filon de Alexandria, utiliza tal idéia na sua pequena obra “Cuidar do Ser”, quando
narra com propriedade os ideais da comunidade os Terapeutas de Alexandria. Antes de tudo é
importante definir o sentido da palavra “terapeuta”, que pode ter os dois sentidos principais
do verbo do qual provém: “servir, cuidar, render culto” e “tratar, sarar”. Tais significados vêm
da utilização da dialética de Platão em seus tratados filosóficos, referência singular para Fílon.
Segundo Leloup (2007, p. 24), Platão utiliza em dois momentos, em Górgias, no
inicio de sua carreira filosófica, quando qualifica um cozinheiro, um tecelão, como
therapeutes somatos: “que cuida do corpo”. Mas quando em Leis, em outro momento de sua
vida, ele emprega o sentido therapeutes ao filho, como “servidor dos deuses, da família e da
cidade.”
A therapia é então guardar-se puro de toda paixão, irreflexão e humor para com
aquilo que vem dos deuses e dos homens”. Os papiros de Sarápis, por sua vez, nos
falam dos Terapeutas como sendo homens que sabem “orar” pela saúde dos que
sofrem. Portanto, no tempo de Fílon o terapeuta é um tecelão, um cozinheiro; ele
cuida do corpo, cuida também das imagens que habitam em sua alma, cuidam dos
deuses e dos logoi (palavras) que os deuses dizem à sua alma, é um psicólogo
(LELOUP, 2007, p. 25).
Fílon inicia seu tratado sobre os Terapeutas, considerando-os como filósofos,
“adeptos da vida contemplativa”, aqueles que professam a medicina distinta das outras,
homens e mulheres que buscam o saber como caminho para viver em comunhão com a
natureza divina.
2. O próprio nome desses filósofos, os assim chamados Terapeutas, revela o seu
projeto, em primeiro lugar porque a medicina (iatrikè), que professam, é superior
àquela que vem sendo exercida em nossas cidades - uma medicina que apenas cuida
do corpo, enquanto a outra também cuida do psiquismo (psykas), atormentado por
essas doenças penosas e difíceis de curar que são o apego ao prazer, a desorientação
do desejo, a tristeza, as fobias, as invejas, a ignorância, o não conformar-se ao que é
e uma infinidade de outras patologias (pathon) e sofrimentos [...] (FILON, 2007, p.
35-6).
Os Terapeutas são definidos como “verdadeiros filósofos”, ou seja, aqueles que
“[...] não se contentam apenas em discorrer sobre este ou aquele tema, como fazem os
sofistas; eles se esforçam por conformar o seu agir com o pensamento e o pensamento com o
seu Ser profundo.” (LELOUP, 2007, p. 69). Sua virtude não se limite a especular ou absorver
o conhecimento, mas em aplicar a si mesmo tudo que sabe, para ir de encontro à origem de
sua natureza.
74
Esses filósofos, que andam a procura da Inteligência criadora (sophia), para amá-la,
são também médicos (iatrikè); cuidam dos corpos mas, observa atentamente Fílon,
não cuidam apenas do corpo, pois é por isso que merecem o nome de “Terapeutas”.
E esclarece: para o Terapeuta, o corpo não pode ser visto somente como um objeto,
uma coisa ou uma máquina funcionando com defeito, que seria mister “consertar”.
Não; o corpo é um corpo “animado”. [...] Cuidar do corpo de alguém é prestar
atenção ao sopro que o anima. Para os antigos hebreus, a doença e a morte se
achavam ligadas a uma “perda” ou a uma falta de ar (sopro) (LELOUP, 2007, 70-1).
O cuidar nos Terapeutas toma dimensão diferente das outras doutrinas, pois
entende o indivíduo nos aspectos corpo, alma e espírito, seus ensinamentos propõem prevenir
a adversidade do mundo através de novos hábitos, que harmoniza a dualidade humana,
combatendo as doenças da alma que para ele é de difícil cura.
Nas suas comunidades reúnem costumes religiosos e filosóficos, Fílon passa a
idéia de que eles estão sempre preocupados não com o corpo, o qual os alimentam com
regramentos e disciplina, mas também com a alma, no momento em que se preocupam com o
ser, cuidando das doenças psíquicas. Combatendo os desejos desorientados, à tristeza, os
vícios, as invejas, a ignorância, enfim o sofrimento do indivíduo e da alma, contra isso, busca
educar a mente, disciplinar o pensamento, se orientar através das sagradas leis. Das doenças
da alma, Fílon destaca algumas para discernir:
Dessa multidão infinita das pathè, Fílon examina mais detidamente algumas. O
termo pathè se traduz geralmente por “paixão”. A paixão, segundo Fílon, é aquilo
que destrói o ser humano, dissolve-o, atomiza-o, leva-o a “perder a razão”, que é
harmonia com o Logos criador. A paixão é aquilo que desfigura a imagem e a
semelhança de Deus em nós, ou seja: a liberdade. O ser humano subjugado pelas
paixões não é mais livre. A divindade não mora mais nele. O Terapeuta tem como
função tornar o homem livre, liberta-lo das paixões que, consciente ou
inconscientemente, o arrastam e fazem dele “um cavaleiro que perdeu o domínio da
carruagem e é arrastado por cavalos enlouquecidos” (LELOUP, 2007, p. 72).
O apego ao prazer é uma das principais perturbações que ameaça o equilíbrio das
pessoas, quando associam sua felicidade as coisas mundanas. “O prazer em si mesmo não é
um coisa má; é até o sinal de que uma coisa está bem feita.” (LELOUP, 2007, p.73). Mas, o
apego leva a necessidade, a dependência do indivíduo, pois o prazer é algo passageiro e não
demora na estação do tempo.
Mas o prazer é fugaz, e quem gostaria de fazer-lo durar! Queres fazer durar
aquilo que não é feito par durar pode ser causa de dor. O apego ao prazer implica
a dor; neste sentido é eu é preciso curar-se do apego, acolhe-lo quando vem coroar
um ato bem feito, mas não chorar por causa da coroa quando murcha; não ficar
segurando-a, não se apegar a ela. Mas que no prazer, a fonte do sofrimento estaria
no apego ao prazer ou na busca do prazer pelo prazer. Fazer do prazer um fim é
falhar no único fim que pode saciar-nos plenamente: o Ser (LELOUP, 2007, p. 74).
Fílon vai falar em grande parte no seu tratado que o projeto dos Terapeutas é
tratar das “patologias” humanas, começando pelo “domínio dos sentidos”, “[...] porque ‘os
75
sentidos geram o prazer’, e o prazer é um dos grandes fatores de alienação da criatura
humana. Todas as realidades exteriores podem exercer decisiva ascendência sobre o ser
humano e reduzi-lo à escravidão [...]” (LELOUP, 2007, p.74). De maneira que seus sentidos
podem se agregar às paixões e delas construírem um circulo vicioso de fantasias, daí que
ocorre a dependência dos sentidos e da vida humana.
Segundo Leloup (2007, p. 75), não se trata para Fílon, de mutilar-se, nem de
renunciar ao uso dos sentidos, mas de aprender a moderação. O que o aflige intensamente, nos
banquetes de outras culturas, o qual denuncia em seu texto, é a falta de medida e a devassidão
que tiraniza os seres humanos, nelas os homens não são mais senhor dos seus próprios
sentidos e sim algoz dos prazeres e dos vícios.
A harmonia vai aparecer em vários momentos no tratado de Filon, que é sinônimo
de saúde, onde deve ocorrer entre o corpo e a alma, relação indispensável para o equilíbrio do
homem. “A saúde, para os Terapeutas, está nessa harmonia entre o fundo e a forma, entre a
palavra e o pensamento, entre a palavra e a vida.” (LELOUP, 2007, p. 79).
Para Fílon, a causa da desarmonia no homem é a desorientação do desejo, é a falta
dos objetivos da vida, é a busca incansável do prazer, gerando ansiedade e sofrimento. “Até
poderia parecer, para Fílon, que o simples fato de desejar constitua uma doença, sinal de
insatisfação, de uma “falta”, [...]. A sabedoria será então assumir essa falta, viver com ela sem
dor, e satisfazer-se com aquilo que é dado no momento presente.” (LELOUP, 2007, p. 80).
Mas o homem é um ser constituído de desejos, pensa e necessita deles para viver
no mundo, algo fundamental para preencher seu ego, o sentido das coisas e da vida.
Da mesma forma que o mal não está no prazer, mas na dependência dele e no apego
a ele, o mal também não consiste no fato de desejar. O drama do ser humano é
desejar realidades relativamente reais e pedir a essas realidades transitórias que
sejam “a” Realidade e permaneçam imutáveis. poderá decepcionar-se. A
conversão do desejo consiste em considerar tudo o que existe não como sendo o Ser,
mas como sua expressão ou a Sua manifestação. O desejo idolatra os seus objetos,
esta é a sua enfermidade ou a sua perversão: pedir o Infinito a seres finitos, pedir o
Absoluto a seres relativos. A cura do desejo, para os Terapeutas, consistirá, portanto,
num primeiro momento, em reorientar o desejo para aquilo que É, ou mais
exatamente, para “Aquele que É”, Ho On, o Ser (LELOUP, 2007, p. 81).
A frustração dos desejos é causa de muitas tristezas, desarmonia dos pensamentos,
ausência da satisfação da vontade interna do indivíduo. “Existem diferentes formas de
tristeza, desde o simples pesar até o desespero ou ainda essa falta de apetite de todas as coisas
e, mais particularmente, da vida espiritual, que os antigos chamam de acídia.” (LELOUP,
2007, p. 84).
76
A saúde do ser humano é a alegria. E essa alegria necessariamente está
relacionada à satisfação dos desejos internos com a sintonia em Deus, do contrário:
Estar triste, para Fílon, é estar separado do Ser, é viver como se Ele não existisse; é
esquecer a realidade d’Aquele que É e dar importância desmesurada àquilo que não
é. Uma vida desordenada não pode senão conduzir à tristeza, pois é tecida de
ilusões. A tristeza é sintoma de uma vida longe do Ser. [...] a alegria, a chara,
constitui o sinal da presença de Deus no ser humano. É também uma qualidade pela
qual se reconhece o Terapeuta (LELOUP, 2007, p. 84-5).
Fílon nomeia outras categorias intrínsecas na natureza humana, que se revela à
medida que se relacionado com as coisas do mundo, seja com pessoas, trabalhos ou atividades
sociais, como, por exemplo, fobia, traduzido por phoboi, que significa medo, temores, receios,
obsessões. Uma outra coisa e a cupidez, a inveja que se instala no pensamento de muitas
pessoas causando-lhes sofrimento e angustia.
A inveja, a cupidez e o ciúme acham-se ligados uma falta de segurança e de certeza
interior. Segundo Fílon e os Terapeutas, deve-se procurar a causa desse sofrimento e
de muitos outros na ignorância (asophrynai), que não é falta de ciência ou de saber,
mas falta de sabedoria, autodesconhecimento, não conhecimento do Ser que está em
si mesmo, “no qual vivemos, nos movemos e existimos”. Somente este Ser é a nossa
riqueza e nossa estabilidade, a nossa paz, pois “só Ele É” (LELOUP, 2007, p. 92).
A doença da alma é a incapacidade de perceber o real, aceita-lo e agir em
“ressonância” com ele. Nas palavras de Leloup (2007, p. 93), o Terapeuta levando uma vida
em conformidade com aquilo que é, aproxima-se da Realidade que faz ser o que é; de certo
modo, torna-se imitador de Deus e vai haurir em Deus “a força e o exemplo para fazer como
ele o bem das criaturas. Tornar-se um órgão da filantropia divina”.
Num primeiro momento do seu tratado, Fílon situa as inúmeras patologias da
alma humana, que os Terapeutas terão que curar e em seguida aponta porque merecem esse
título dizendo: “[...] Se eles se chamam Terapeutas, é também porque receberam uma
educação conforme a natureza e às sagradas leis e porque cuidam do Ser (therapeuem to On),
que é melhor do que o Bem, mais puro que o Uno, anterior à mônada.” (FILON, 2007, p. 36)
[2].
Os Terapeutas apresentam virtudes incomparáveis e Fílon registra algumas delas
entre os religiosos, os pensadores gregos e egípcios. Mas não podem ser comparados, pois
eles não agregam em seus valores a veneração aos elementos da natureza, nem tão pouco aos
deuses ou animais.
Para ele, uma distinção entre os Terapeutas com os religiosos e os gregos, que
tomam os elementos: a terra, a água, o ar, o fogo, as imagens, as estátuas como parte dos seus
77
mitos e ritos. Como também os egípcios que prestam honras aos animais, veneram como
deuses.
10. Essas pessoas contaminam com sua tolice não apenas seus compatriotas mas
também todos aqueles que delas se aproximam; elas recusam todos os cuidados e
permanecem incuráveis, privadas da visão, o mais necessário dos sentidos - não me
refiro à visão carnal, mas à visão da alma que permite discernir a verdade e a
mentira (FILON, 2007, p. 38).
Os adeptos dos Terapeutas, segundo Fílon (2007, p. 39), não são apenas por
costumes, nem tão pouco por exortação ou solicitação de outrem, mas impulsionados pelo
amor divino. Suas virtudes estão ligadas ao cuidar do Ser, o qual se entende como corpo, alma
e espírito.
Pertencer a essa comunidade é antes de tudo mudar de hábitos, ou seja, o cuidar
da alma está relacionado com o cuidar dos desejos e das paixões e o cuidar do corpo está
relacionado à alimentação.
O cuidar da alma passa pelo “desejo da imortalidade e de vida bem-aventurada
[...]”, também passa pelo desapego as coisas do mundo, “[...] dão seus bens aos filhos e filhas
ou aos seus parentes: deliberadamente os fazem herdeiros por antecipação; aqueles que não
têm família deixam tudo para seus companheiros e seus amigos” (FILON, 2007, p. 39),
ajudam-se mutuamente, são solidários uns com os outros.
16. Quanto melhor e mais admirável é a conduta dos Terapeutas que, embora
apaixonados pela filosofia, mas preferindo a magnanimidade à negligência, doam os
seus bens ao invés de destruí-los. Assim esses bens são úteis aos outros e a eles
mesmos: aos outros fornecendo-lhes recursos abundantes e a eles mesmos
permitindo-lhes aplicar-se à filosofia; pois perde-se tempo na administração dos
próprios bens e da própria fortuna. Ora, é bom poupar o tempo, e o médico
Hipocrates disse: “Curta é a vida, longa é a ciência” (FILON, 2007, p. 40-1).
Os Terapeutas estão espalhados em muitos lugares da terra, vivem em pequenas
aldeias, em comunidades, pois amam a vida comunitária. Além disso, podem socorrer-se uns
aos outros em caso de necessidade. Moram em casa simples, mas em cada uma delas existem
“[...] um lugar sagrado chamado ‘santuário’ ou mosteiro: é que, isolados, cumprem os
mistérios da vida santa. Nada levam para o santuário, [...], mas somente as Leis, os Oráculos
dos Profetas, os Hinos e os outros livros pelos quais aumentam e aperfeiçoam a ciência e a
piedade.” (FILON, 2007, p. 43).
O cuidar da alma para Fílon, que ocorre dentro da comunidade dos Terapeutas, é
pouco valorizado nas cidades e muito combatido em sociedade mercantilista, a de consumo,
que existiam na época e ainda não tinha em suas leis sociais a preocupação coletiva dos
filósofos Terapeutas.
78
Segundo ele, os Terapeutas tinham em seu código de ética o principio divino, pois
“Deus está sempre presente a seu espírito; mesmo em seus sonhos não imaginam outra coisa
senão a beleza das Virtudes e das Potências divinas; também muitos deles, quando têm um
sonho em seu sono, revelam em alta voz às doutrinas admiráveis da filosofia sagrada.”
(FILON, 2007, p. 43-4).
Eles têm o habito da oração duas vezes ao dia, ao nascer do sol buscam a paz
celestial para enfrentar a diversidade mundo e “[...] ao pôr-do-sol, pedem que sua alma,
totalmente aliviada do tumulto das sensações e do universo sensível e como que retirada no
quarto do conselho, se ocupe em procurar a verdade”. (FILON, 2007, p. 44).
Antes de cuidar do outro com seu ofício, os Terapeutas primeiro cuidavam de si,
buscavam combater seus vícios e seus maus hábitos.
39. De modo geral, eles se esforçam para elimina o orgulho, sabendo que o orgulho
é o começo da ilusão e a ausência de orgulho o começo da verdade, e que estas duas
atitudes são como duas fontes; da ilusão brotam as diversas espécies de males e da
verdade, a multidão dos bens humanos e divinos (FILON, 2007, p. 48).
A disciplina, a interação com a natureza, os hábitos alimentares, o desapego às
coisas do mundo, a igualdade e a fraternidade entre os homens, são princípios fundamentais
que Fílon percebeu na doutrina dos Terapeutas, além do respeito à velhice e as mulheres que
participavam dos ciclos de ensinamento da sociedade:
67. Após as orações, os Anciões se colocam à mesa de acordo com a data de sua
entrada na família. Os Terapeutas não vêem como Anciãos os velhos ou os mais
idosos; estes são até considerados como jovens e crianças se tarde aderiram à
doutrina. São Anciãos aqueles que, desde sua idade jovem, cresceram e se
desenvolveram na filosofia contemplativa, a mias nobre e a mais divina.
68. As mulheres também participam da refeição: a maioria são idosas e virgens. Elas
guardam suas castidades, não por obrigação, como algumas sacerdotisas da Grécia,
mas voluntariamente, por zelo apaixonado da sabedoria. Ávidas de viver com ela,
essas Terapeutas são livres quanto aos prazeres do corpo e anseiam não por uma
prole mortal, mas imortal, que só a alma amada de Deus pode gerar, sendo a
semente paterna um raio inteligível que a torna capaz de contemplar os segredo
(dogmata) da sabedoria (FILON, 2007, p. 57-8).
Em suas comunidades não escravos, entendem que os homens devem ser livres
e senhor de sua vida. “Eles não são servidos por escravos, pois pensam que possuir servos é
contra a natureza: esta de fato, nos fez nascer livres. Mas às injustiças e a cupidez de alguns
homens que buscavam estabelecer a desigualdade, fonte de todos os males, deram aos mais
fortes poder sobre os mais fracos.” (FILON, 2007, p. 58).
79
A questão do cuidar do ser ganha um aspecto singular nessa sociedade, pois além
de trata a vida no sentido filosófico, também trata de aplicar os conceitos na comunidade,
trabalhando questões fundamentais em torno dos membros, na tentativa de construir ciclo de
harmonia e paz.
Fílon de Alexandria, neste texto não fala de Deus, mas na verdade fala do Ser, e é
dele que se deve cuidar. Entende-se que o cuidar do Ser era o cuidar de si e do outro que
também está o Ser, ou seja, o Ser está dentro de cada um de nós.
Vimos que a terapia no tempo de Fílon consistia em cuidar do corpo (alimento e
vestuário), cuidar da psyché, das imagens e dos arquétipos que o animam, cuidar do
seu desejo e da orientação que se lhe daria, cuidar do outro pela oração. Importa,
agora, cuidar do Ser (LELOUP, 2007, p. 98-9).
Mas, afinal o que é cuidar do Ser, que Fílon percebe nos Terapeutas de
Alexandria, que é “[...] melhor do que o Bem, mais puro que o Uno, anterior à mônada? o
dissemos: Ho On é para ele uma tradução do YHWH inefável e transcendente, anterior a, além
de, melhor que tudo aquilo que os filósofos foram capazes de imaginar ou pensar como
princípio para tudo o que existe: o Uno, a Mônada, o Bem...” (LELOUP, 2007, p. 99).
Assim, “cuidar do Ser” não significa ocupa-se com uma Existência, que se poderia
apreender ou aconchegar no mais íntimo do ser humano; trata-se de uma
transcendência interior, que é sempre dentro de nós o Desconhecido e o Inacessível.
O Ser não é um “algo” qualquer, mas um Espaço, um Aberto que importa manter
livre. [...] cuidar no homem daquilo que escapa ao homem, pois se não houvesse em
nós esse espaço, essa liberdade, essa santidade, esse incriado, não haveria saída para
o que é condicionado, feito, criado... (LELOUP, 2007, p. 101).
O Ser que fala Fílon é distinto dos demais, é uma outra realidade, uma consciência
diferente, que os Terapeutas descobriram em si e nos indivíduos. “Seu modo de vida, suas
leituras, suas orações, a dança, os cantos em comum têm como objetivo lembra-lhe este
Essencial sem o qual nada subsiste, a fim de que suavemente, com o coração e a mente
sossegados possa alegra-se na sua Presença” (LELUOP, 2007, p. 102).
Um dos aspectos concretos dos Terapeutas é construir um modo de vida livre, sem
entraves, sem apegos as coisas do mundo, onde não impeça a busca do verdadeiro sentido da
vida. Observa-se que eles têm filhos, bens, formam famílias e nesse sentido não são grupos
isolados, que desprezam os laços familiar nem tão pouco os bens materiais.
São comunidades organizadas, que seguem uma filosofia de vida, buscam no
equilíbrio e na simplicidade a tranqüilidade da alma.
80
[...] O equilíbrio, a medida, nem perto; nem longe demais. Os Terapeutas não
formam um grupo fusional, cada membro tem seu lugar próprio a uma distância que
evita as perturbações da promiscuidade. Nem são também eremitas selvagens,
individualistas, ciosos da própria independência. Sabem “socorrer-se uns aos outros”
não em caso de incurso de piratas, mas também quando psicológica ou espiritual
se sentem em perigo, ameaçados por esses piratas mais sutis que são os
pensamentos, os remorsos ou as outras pulsões suicidas. Os Terapeutas formam uma
fraternidade de solitários; a autonomia é importante, vem a ser a própria condição da
maturidade, da cura e das relações autênticas. Se estão juntos, paradoxalmente, é
para aprenderem a melhor estar sós. O que matem unidos nas suas diferenças é o
desejo comum do melhor; eles estão de acordo quanto a essa “orientação para o Ser
(LELOUP, 2007, p. 109-10).
Sabemos que a felicidade é desejo de qualquer ser humano, para os Terapeutas
não poderiam ser diferentes. Mas, eles compreendem que para encontrá-la é preciso percorrer
um caminho diferente dos demais homens, é preciso aprender a ver as coisas com clareza, ou
seja:
11. A família dos Terapeutas, cujo esforço constante é aprender a ver claro, deve
apegar-se à contemplação do Ser, elevar-se acima do sol sensível e nunca abandonar
esta regra de vida que conduz à perfeita felicidade (FILON, 2007, p. 39).
Portanto,
Os Terapeutas, como o resto dos humanos, procuram à felicidade, sabem que
nenhuma felicidade duradoura pode ter por fundamento a ilusão. A verdade é a
própria condição da verdadeira alegria e, por isso, é necessário antes de tudo
“procurar ver com clareza”. Isso supõe “sair das projeções”, que não nos deixam ver
o que é. Um elemento importante da terapia dos Antigos é a epochè, “o pôr entre
parêntesis”. Olhar para uma coisa, uma pessoa, um acontecimento e “pôr entre
parêntesis”, isto é, “suspender” o juízo, não projetar sobre “isto” os temores e
desejos, todos esses “pacotes de memórias” de que se acha carregado o menor dos
nossos olhares (LELOUP, 2007, p. 111).
Aprender a ver com clareza, significa que o indivíduo precisa ter uma visão
esclarecida das coisas, construir em si um olhar que vem de dentro da alma, que transpira em
seus hábitos, na rotina do dia-a-dia, as atitudes conciliadoras, que esteja sempre em comunhão
com o ciclo da natureza divina.
Este olhar amoroso, iluminador, o Terapeuta não pode adquiri-lo a não ser por uma
contemplação (theoria) assídua da luz que está ‘acima do sol sensível’. [...] Uma
pessoa se torna o que ama, torna-se o que olha. O Terapeuta pode vir a ser claridade
para aqueles que têm a coragem de depositar diante dele os fragmentos noturnos da
sua vida. Ele é então testemunha humilde e solar da Estrela que os trouxe aaqui.
Por muito tempo ainda depois de tê-lo deixado, o tempo se torna menos pesado. A
pessoa fica então como que “ensolarada” (LELOUP, 2007, p. 113).
Adquirir a virtude do Terapeuta, de olhar claro e esclarecedor, é antes de tudo
adquirir a humildade. Fílon identifica os males do indivíduo quando existe ausência de
humildade, ou seja, o orgulho, que cerca os pensamentos e enraíza a alma de ignorância. Os
Terapeutas:
81
39. De modo geral, eles se esforçam para eliminar o orgulho, sabendo que o orgulho
é o começo d ilusão e a ausência de orgulho o começo da verdade, e que estas duas
atitudes são como duas fontes: da ilusão brotam as diversas espécies de males e d
verdade, a multidão dos bens humanos e divinos (FILON, 2007, p. 48).
A maneira de olhar o mundo pode fazer dele um ambiente belo ou desagradável.
Segundo Leloup (2007, p. 116), “[...] a pessoa orgulhosa aprisiona todas as coisas no seu
olhar; está ela mesma encerrada nessa autoprojeção que toma pela realidade. A pessoa
humilde e verdadeira, porém, restitui todas as coisas à sua identidade e à sua liberdade.”
No último parágrafo, Fílon busca sintetizar o que sabe acerca dos Terapeutas
dizendo o seguinte:
90. Eis, pois, o que eu tinha a dizer sobre os Terapeutas que se entregam
contemplação da natureza que vivem a alma unificada. Cidadãos do céu e do
mundo, eles estão realmente unidos ao Pai e o Criador de todas as coisas pela
virtude, que lhe traz o dom mais precioso para um homem bom: a amizade com
Deus, presente melhor que qualquer outra prosperidade e que conduz rapidamente
ao cúmulo da felicidade (eudeimoniam) (FILON, 2007, p. 65).
Os Terapeutas são contemplativos, buscam olhar o mundo com clareza tanto
dentro como fora de si, embora que se transforme continuamente, o mundo preciso ser visto.
“A perda das nossas faculdades contemplativas está ligada à perda do sentido do Real.
Contemplar a natureza nos recorda que a missão do ser humano não é tanto fazer, mas ser, ser
com e na natureza [...]” (LELOUP, 2007, p. 133-4).
Vivem com “a alma unificada”. Alguns traduzem: “só pela alma”, o que
diferencia sentido. Psychè monè podem ter os dois sentidos. Fílon inclina-se às vezes ora por
este ora por aquele sentido, ou seja, às vezes ele se faz grego com os gregos, ou judeu com os
judeus. “Viver pela alma” é sair da realidade do mundo, sair do corpo, nesse sentido Fílon
está sendo platônica, saindo do mundo da caverna. E “viver com a alma unificada” é viver no
mundo e no corpo, com num templo, num lugar de passagem, sem negar a realidade que
habito (LELOUP, 2007, p. 134).
82
3.2 O legado de Clemente de Alexandria ao Cristianismo nascente
Clemente de Alexandria, Grego de uma família de libertos. Segundo o dicionário
Aurélio, liberto significa escravo que passou à condição de livre, posto em liberdade
(FERREIRA, 2004). Nascido por volta ano 150 d.C., segundo Reale (1990), Tito Flávio
Clemente encontra a doutrina cristã na juventude e a ela se converte de maneira profunda.
Durante anos seguidos se dedicou a conciliar e filosofia, em incessantes viagens da Grécia
para a Síria e da Palestina para o Egito, veio a ser um ícone da igreja primitiva, procurou
penetrar melhor na doutrina de Cristo, ouvindo atentamente aos cristãos e sábios. Sua
literatura é assim caracterizada:
Um dos maiores modernos de patologia, Quasten, assim caracteriza o nosso autor:
“A obra de Clemente de Alexandria marca toda uma época. Não seria exagero
louvar nele o fundador da teologia especulativa. (...) Clemente foi o iniciador arguto
e feliz de uma escola que se propunha a defender e aprofundar a com o auxilio da
filosofia” (REALE, 1990, p. 411).
Clemente viveu e respirou a atmosfera da segunda Sofística, movimento cultural
grego iniciado no século I d.C., que foi um refinado produto da mímesis rhetoriké ou cultura
literária, cujo objetivo era tornar os poetas e escritores helenístico-romanos êmulos dos
antigos.
Segundo Santos (2006, p. 38-9) em sua tese, diz que Clemente como um erudito
filho de seu tempo, não vacila em empregar sua erudição e sua capacidade retórica no terreno
da apologética cristã, uma vez que os integrantes da segunda Sofística vão propagar que o
discurso é para a alma o que o phármakon é para o corpo: “A retórica é, por assim dizer, o
homem no logos: ele se projeta, se exprime e, como o homem é múltiplo, a pluralidade das
vozes se traduz na riqueza das expressões que servem de atributos à realidade.” Era preciso,
portanto, apresentar o cristianismo aos gregos como a última etapa de um processo que se
iniciou com os hebreus, foi pressentido por alguns filósofos gregos e se concretizou, na
plenitude dos tempos, com a parousía do Logos divino.
A idéia que constitui a base central do pensamento de Clemente é o Logos,
entendido em triplo sentido, conforme Reale (1990, p. 412) afirma: a) principio criador do
mundo, b) princípio de toda forma de sabedoria, que inspirou os profetas e os filósofos, e por
último c) princípio de salvação (Logos encarnado).
Desde os fins do século II o Cristianismo vinha, aos poucos, se estruturando
intelectualmente e se estabelecendo autonomamente na sua doutrina filosófica. Entretanto,
somente a partir do contato cultural alexandrino, que o movimento cristão pôde, de fato, se
83
consolidar, haja vista, o enorme intercâmbio intelectual que se estabelecia na cidade.
Costuma-se atribuir a fundação da Escola Alexandrina, denominada Catequética, por Panteno,
um estóico convertido ao cristianismo (REALE, 1990, p. 411).
Depois de morte de Panteno, foi sucedido por Clemente, que se dedicou a
trabalhar o método hermenêutico filoniano, a alegoria; que por sua vez o foi por Orígenes.
Com este último, a Escola de Alexandria deixa seu caráter privado ou simplesmente
apologético-catequético-doutrinário e se torna uma verdadeira escola de ensino superior, no
qual de, de fato, se filosofava o Cristianismo. Como professor, abre as portas para alunos
tanto cristãos como para judeus e gregos. Traça um projeto pedagógico em dois níveis: a)
instrução preliminar dos catecúmenos, ministrado por Héraclas; b) e o curso superior
ministrado por ele, onde se aprofundava o saber, e era aberto a todos (FIGUEIREDO, 1988,
apud MARQUES, 2006, p. 80).
A proposta inicial de Clemente é construir um itinerário pedagógico que leve o ser
humano à sabedoria. Esta pode ser atingida mediante um treinamento, isto significa que, o
conhecimento está intrinsecamente ligado com a prática do ensino: “[...] Mas se a ignorância é
desejo de treinar e de instrução, ensinando então produz conhecimento das coisas divinas e
humanas” (CLEMENTE, 2006, apud MARQUES, 2006, p. 83).
A originalidade do pensamento de Clemente era construir uma pedagogia do
conhecimento das coisas divinas e humanas, embora que Platão tenha elaborado uma proposta
semelhante, a “Paidéia”, que defende a concepção das idéias inatas no indivíduo que apenas
devem ser relembradas, se difere de Clemente, alegando que o conhecimento é produção, ou
seja, é produto dialético da prática pedagógica, isto é: “[...] o selo seguro do conhecimento
está composto de natureza, educação e exercício” (CLEMENTE, 2006, apud MARQUES,
2006, p. 84).
3.3 A Controvérsia Ariana
Quando no começo do século IV, um padre Líbio chamado Ário interrogou o
bispo de Alexandria com a seguinte pergunta: “‘Se o Pai gerou o Filho, aquele que foi gerado
teve um início de existência’. Em outras palavras, se o Pai é o progenitor do Filho, não teve
este Filho um princípio? Ou, como disse Ário: ‘Houve um tempo em que o Filho não existia’”
(PROPHET, 1997, p. 185).
84
Deste evento em diante houve uma sucessão ininterrupta de debates entre os
partidários da teoria de Ário e o bispo de Alexandria, intermediada por seu diácono Atanásio.
Pois, até então, ninguém ainda tinha expressado esta idéias de tal forma. Para muitos
eclesiásticos da época a afirmação de Ário de que o Filho teve um princípio não passava de
uma heresia. Iniciou-se um conflito teológico dentro do Cristianismo primitivo. “A Igreja
estava praticamente dividida quando esta controvérsia chegou aos ouvidos do Imperador
Romano Constantino que com um gesto que mudou definitivamente o curso do Cristianismo
decidiu resolver sozinha a questão” (PROPHET, 1997, p. 185). Mas qual era, afinal, a
importância desta controvérsia? Onde estaria o problema do Filho Jesus ter tido ou não um
princípio?
Os ortodoxos acusavam os arianos de tentarem rebaixar o Filho ao afirmar que ele
havia tido um princípio. Mas, na verdade, os arianos davam-lhe uma posição de destaque,
honrando-o como “a primeira das criaturas”. Ário descreveu o Filho como aquele que se
tornou “perfeitamente Deus, o único gerado e imutável”, mas dizia também que ele havia tido
um princípio. “Somos perseguidos”, escreveu, “por afirmamos que o Filho teve um princípio”
(PROPHET, 1997, p. 186).
Mas para Prophet (1997), a questão em jogo não era o “Filho primogênito”, mas:
Se Jesus era um homem que se tornou Filho de Deus, isto significava que outros
homens também poderiam fazê-lo. Esta idéia era inaceitável para os ortodoxos e daí
a sua insistência em afirmar que Jesus havia sido sempre Deus e era completamente
diferente de todos os seres criados. [...] A postura teológica da Igreja era, em parte,
ditada pelas suas necessidades políticas. A posição ariana tinha um potencial para
destruir a autoridade da Igreja, porque sugeria que a alma não precisava da Igreja
para alcançar a salvação (PROPHET, 1997, p. 187).
O desfecho dessa controvérsia ariana tornou-se crucial para a posição da Igreja
acerca da reencarnação e da oportunidade da alma unir-se a Deus. Ou seja, “[...] a igreja
decidiu que a alma humana não é e nunca foi uma parte de Deus e que, ao contrário, pertence
o mundo material e está separada de Deus por um grande abismo.” (PROPHET, 1997, p.
187). E que esse abismo o ser humano não pode atravessar sem a ajuda da igreja.
Orígenes e seu antecessor, Clemente de Alexandria, conviveram num mundo
platônico. Para eles era evidente o mundo espiritual. De tal modo que a alma pertencia a ele
enquanto o corpo pertencia ao mundo material.
Ao negar a origem e o potencial divinos do homem, a doutrina da criação a partir do
nada elimina a preexistência e a reencarnação. Depois da igreja adora esta doutrina,
rejeitar o origenismo e o arisnismo foi apenas uma questão de tempo. Na verdade, a
controvérsia ariana foi apenas um tiro na batalha pra a erradicação da tradição
mística representada por Orígenes (PROPHET, 1997, p. 190).
85
Contudo, “Orígenes teria concordado com a idéia ariana de que a meta do Filho de
Deus era ajudar as outras criaturas a tingirem a divindade. [...]. Afirma que Jesus veio para dar
às pessoas ‘os meios por se tornarem divinas’” (PROPHET, 1997, p. 192).
Tal controvérsia desencadeou uma grande discussão que levaria o Imperador
Constantino a convocar o primeiro Concílio de Nicéia em junho de 325, para restabelecer a
união entre os cristãos. O concílio foi secretariado por Atanásio, ardoroso defensor da
santíssima trindade, com o Filho idêntico ao Pai em substância. O arianismo foi condenado
pelo Concílio, mas a disputa teológica sobre a divindade de Cristo não terminou e continuou
sendo objeto, no Oriente e no Ocidente, de diferentes orientações doutrinárias. “Apenas dois
bispos, além de Ário, recusaram-se a assinar o credo. Constantino baniu-os do império,
enquanto os outros bispos continuaram a celebrar a sua união numa grande festa realizada no
palácio imperial” (PROPHET, 1997, p. 203).
3.4 Orígenes e a preexistência da alma
A cidade de Alexandria, situada a Oeste do delta do rio Nilo, norte do Egito, as
margens do mar Mediterrâneo, nos primeiros séculos era um grande centro cultural do
Oriente, contava com instituições de ensino, museu, possuía a maior biblioteca da
antiguidade. Enfim, era na verdade um grande pólo científico, na qual se encontravam
filósofos, poetas, matemáticos, artistas entre outras expressões. Para Reale (1990), foi nessa
atmosfera que nasceu Orígenes, por volta de 185. Seu pai Leonídio morreu mártir,
testemunhando a fé cristã. O patrimônio da família foi seqüestrado e Orígenes passou a
ganhar a vida ensinando.
Ainda jovem, a partir de 203, assumiu a direção da escola catequética, tornando-se
um verdadeiro modelo, pela doutrina e pelas virtudes. Em 231, forçado a abandonar
Alexandria pela aversão que lhe devotava o bispo Demétrio, Orígenes prosseguiu
sua atividade em Cesaréia, na Palestina, com grande sucesso. Atingido pela
perseguição aos cristãos ordenada por Décio, foi preso e torturado. Morreu em 253
devido às conseqüências dessas torturas (REALE, 1990, p. 412).
No que concerne à influência, Orígenes recebeu a mesma formação intelectual de
Plotino, a da escola de Amônio Sacas, a qual forjou o neoplatonismo. Certamente, as
doutrinas ditas orientais não lhe eram estranhas, e muito menos o realce num conhecimento
psíquico direto com o transcendente, típica das idéias da escola. Teve acesso ao conhecimento
da doutrina palingenética. Segundo o dicionário Aurélio, é uma palavra que vem do grego
86
palingenesía, pelo latim tardio palingenesia, substantivo feminino de filosofia que significa
eterno retorno, para Schopenhauer, renascimento sucessivo dos mesmos indivíduos
(FERREIRA, 2004).
Dedicou-se ao estudo da filosofia e se utilizou dela para estruturar o cristianismo
primitivo, foi dele a primeira tentativa de síntese entre filosofia e fé cristã: nele, as doutrinas
gregas, particularmente a platônica e a estóica serviram de instrumentos conceituais para
interpretarem racionalmente as Escrituras Sagradas. Embora que, o pensamento de Orígenes
fosse durante muito tempo objeto de acirrados debates e acesas polêmicas, que envenenaram
os ânimos intelectuais dos padres da nova igreja em formação, alcançando sua fase
culminante no início do século VI, a ponto de provocarem a condenação das teorias de
Orígenes até pelo imperador Justiniano, em 543, e depois por um concílio, em 553. Com isso,
houve uma grande perda e alterações da sua enorme produção literária. De acordo com Reale
(1990), dentre as obras que chegaram até nos, foram: Os princípios, que é sua obra-prima
doutrinária (infelizmente, porém, não nos chegou com sua redação original), Contra Celso e
Comentário a João.
O pensamento de Orígenes coloca no centro Deus e a Trindade (não o Logos, como
havia feito Clemente). A chave filosófica em que pensa Deus é a da incorporeidade.
[...] “Deus não pode ser entendido como corpo”, mas sim como “realidade
intelectual e espiritual” e “natureza intelectual simples”. Deus não pode ser
conhecido em sua natureza: “Em sua realidade, Deus é incompreensível e
inescrutável. Com efeito, podemos pensar e compreender qualquer coisa de Deus,
mas devemos crer que ele é amplamente superior àquilo que dele pensamos. [...] Por
isso, sua natureza não pode ser compreendida pela capacidade da mente humana,
mesmo que seja a mais pura e a mais limpa” (REALE, 1990, p. 413).
Segundo Reale (1990, p. 415), para Orígenes “[...] Deus criou os seres racionais,
livres, todos iguais entre si - e os criou à própria imagem (enquanto racionais). A natureza
finita das criaturas e sua liberdade deram origem a uma diversidade no seu comportamento.”
Contudo Deus criou:
O corpo e o mundo corpóreo em geral nasceram como conseqüência do pecado.
Deus revestiu de corpos as almas que se afastaram parcialmente dele. Mas o corpo
não é algo negativo (como para os platônicos e, sobretudo, para os gnósticos): é o
instrumento e o meio de expiação e purificação. A alma, portanto, preexistia ao
corpo, ainda que não de modo platônico, porque criada do nada. E a diversidade dos
homens e de suas condições remonta à diversidade de comportamento na vida
anterior (maior ou menor afastamento de Deus) (REALE, 1990, p. 415).
Igualmente, com os mistérios gregos, onde admitia que nosso universo é
constituído por uma série de "mundos" habitados, onde a alma se aperfeiçoa. Diz-nos
Orígenes: “Deus não começou a agir pela primeira vez quando criou este mundo visível.
87
Acreditamos que, como depois do fim deste mundo haverá um outro, da mesma forma, antes
deste houve outros” (REALE, 1990, p. 415):
Orígenes como seu mestre Clemente, se apaixonou pela metafísica dos
pitagóricos, estóicos, gnósticos, e principalmente, pelas idéias platônicas, as quais adotaram
em sua doutrina:
Em sua escola, em que se ensinava também a geometria, a aritmética, a literatura e a
filosofia gregas, ele sustentava que, bem antes da união com corpos carnais, às
almas preexistiam no u. Estas inteligências puras e santas eram substancias
espirituais livres, luminosas pecaram e foram condenadas por Deus a sofrer a
encarnação no baixo mundo (PRIEUR, 1994, p. 122).
Para Prieur (1994, p. 122), a assimilação da encarnação a um estado inferior, a do
corpo é muito característico nas doutrinas budista, nas idéias dos cátaros, no jansenismo com
também no velho cristianismo. E assim nasceu o conceito de corpo e alma em Orígenes, um
conceito semelhante às idéias gregas, que incorpora outras componentes, como os múltiplos
universos, ou seja, o mundo deve ser entendido como um dos inúmeros criado por Deus.
Parece que dentro desses conceitos a doutrina da imortalidade da alma é uma constante em
Orígenes, como fora anteriormente nos conceitos de Pitágoras, Platão, e toda a tradição órifca
grega até Plotino. Talvez Orígenes tivesse consciência de indícios desta doutrina no próprio
evangelho, como em Mateus (17:9-13), Marcos, (9:9-13) com a transfiguração de Elias e em
João (3:1-12) no diálogo com Nicodemos.
Essa visão relaciona-se estreitamente com a concepção origeniana segundo qual, no
fim, todos os espíritos se purificarão, resgatando as suas culpas, mas, para
purificarem-se inteiramente é necessário que eles sofram uma longa, gradual e
progressiva expiação e correção, passando, portanto por muitas reencarnações em
mundos sucessivos (REALE, 1990, p. 415).
Contudo, o sistema de Orígenes sobre a doutrina da criação e a teoria da
preexistência das almas foram motivos para suas idéias serem condenadas no seio dos
teólogos cristão. Certamente contrariando os dogmas já estabelecidos naquela época:
Invocando ousadamente João, 14:2, “Há numerosas moradas na casa do Pai”,
Orígenes fazia o seguinte comentário: “O Senhor faz alusão às diferentes estações
que as almas devem ocupar depois de despojadas de seus corpos atuais, a fim de se
investir dos novos” (PRIEUR, p. 123).
Em seguida o autor complementar dizendo:
Essa fala de Cristo é, no entanto, clara: As numerosas moradas não são os corpos
múltiplos, mas os múltiplos céus que compõem o Céu. Para extrair a doutrina
reencarnacionista dos versículos acima citados, é preciso violentar o texto do Novo
Testamento e obriga-lo a dizer o que ele não diz, como nos albergues espanhóis de
antigamente, levar o que se quer encontrar lá (PRIEUR, 1994, p. 123).
88
Para o autor o grande mérito de Orígenes foi ter compreendido e ensinado a
formação do ser humano, que para ele constitui-se em três partes, que o o corpo físico, o
espírito e corpo aéreo. Isto é: “As almas conservavam tal corpo depois da morte, e era por
essa razão, dizia ele, que se viam aparições em torno dos túmulos” (PRIEUR, 1994, p. 123).
Por fim, Reale (1990, p. 416) diz que Orígenes foi um pensador notável em todos
os campos do conhecimento. “Os seus próprios erros devem-se aos excessos de um grande
espírito generoso, não a mesquinhos desejos de originalidade”.
3.4.1 A rejeição do origenismo
No ano 400 d.C., no Egito, na comunidade Nitria ao sul de Alexandria, o bispo
Teófilo, com o apoio do governo imperial, investe contra os monges origenistas do deserto.
“A missão das tropas, agora, era incendiar a biblioteca e as celas e enviar os trezentos monges
remanescentes para o exílio. Os monges foram proibidos de reestabelecer sua colônia em
qualquer outro lugar [...]. Chegara à hora de travar mais uma batalha na guerra contra
Orígenes e suas idéias” (PROPHET, 1997, p. 206-7).
Mesmo depois de Constantino e de Nicéia, os textos de Orígenes continuavam
populares entre os que buscavam esclarecimento sobre a natureza do Cristo, o
destino da alma e a ressurreição. Alguns dos monges mais cultos adotaram as idéias
de Orígenes e usavam-nas em suas práticas místicas com o intuito de alcançar a
união com Deus. A hierarquia da Igreja tolerava estas práticas e até o bispo Teófilo
simpatizava com elas.
Entretanto, no final do século IV, os teólogos ortodoxos recomeçaram a atacar
Orígenes. As principais divergências com as idéias de Orígenes eram os seus
ensinamentos sobre a natureza de Deus e do Cristo, a ressurreição e a preexistência
da alma (PROPHET, 1997, p. 207).
Vários teólogos inflamaram o debate contra as teorias de Orígenes, que se
alastraram desde a Palestina até Constantinopla, passando pelo Egito. Jerônimo e Epifânio,
contemporâneos, articularam a maior parte das argumentações. “Ás vezes, de forma muito
pouco santa, Jerônimo chamava a um de seus oponentes Grunnius Corocotta Porcellius (o
porco que grunhe)” (PROPHET, 1997, p. 208).
Finalmente, no reinado de Justiniano, de 527 a 565, a doutrina da preexistência da
alma teve seu último suspiro entre os teólogos cristãos. Quando o imperador enviou ao
patriarca Menas de Constantinopla o Edito, publicado no Sínodo constantinopolitano de 543,
contras os monges de Jerusalém que defendiam as teorias de Orígenes. [...] Justiniano,
julgando-se teólogo do trono imperial, tirou da obra de Orígenes De principiis, entre outros,
89
os seguintes nove anatematismos, encerrando com elas a sua obra Adversus Origenem líber
ou Edictum, escrito entre o fim de 542 e o inicio de 543, (DENZINGER, 2007, p. 150). Os
anatematismos de Justiniano, segundo o autor, parecem que o Papa Virgílio confirmou por
ocasião de sua passagem por Constantinopla.
Segue os nove anatematismos contra Orígenes:
1. Se alguém diz ou sustenta que as almas humanas preexistem, no sentido de serem,
anteriormente, mentes e forças santas que se desgastaram da visão divina e se
voltaram para o pior e por isto se esfriaram (ψύχω) no amor a Deus, tomando daí o
nome de almas (ψυχή), e que por punição foram mandadas para os corpos embaixo,
seja anátema.
2. Se alguém diz ou sustenta que a alma do Senhor preexistiu ou foi unida a Deus
Verbo antes da encarnação e do nascimento pela Virgem, seja anátema.
3. Se alguém diz ou sustenta que o corpo de nosso Senhor Jesus Cristo primeiro foi
formado no seio da santa virgem e que depois a ele foram unidos Deus Verbo e a
alma, como preexistente, seja anátema.
4. Se alguém diz ou sustenta que o Verbo de Deus se tornou semelhante às ordens
celestes, querubim para os querubins, serafim para os serafins, tornando-se, em
suma, semelhante às potências superiores, seja anátema.
5. Se alguém diz ou sustenta que na ressurreição os corpos humanos ressuscitam em
forma de esfera e não professa que seremos ressuscitados em posição erguida, seja
anátema.
6. Se alguém diz ou sustenta que o céu e o sol e a lua e as estrelas e as águas acima
dos céus são potências animadas e inteligentes [materiais], seja anátema.
7. Se alguém diz ou sustenta que o Senhor Cristo no século futuro será crucificado
pelos demônios como <foi> pelos homens, seja anátema.
8. Se alguém diz ou sustenta ou que o poder de Deus seja limitado e tanto produziu
quando podia apertar com a mão e pensar, ou que as criaturas são coeternas com
Deus, seja anátema.
9. Se alguém diz ou sustenta que o castigo dos demônios e dos homens ímpios é
temporário e terá fim depois de certo tempo, isto é, que haverá uma restauração dos
demônios ou dos homens ímpios, seja anátema (DENZINGER, 2007, p. 150-1).
A história da rejeição ao origenismo, teve um jogo de poder que tornaram famosa
a corte imperial. O Edito foi assinado pelos bispos. “Todavia, os anátemas não chegaram a
entrar em vigor porque a atenção de Justiniano foi desviada por uma controvérsia que ocupou
grande parte do seu tempo, o problema dos Três Capítulos” (PROPHET, 1997, p. 211).
Segundo Prophet (1997), os monges antiorigenistas, em 551, conseguiram atrair
novamente a atenção de Justiniano para a sua causa. Daí então, o imperador escreveu uma
carta aos bispos denunciando os monges origenistas da Palestina e incluindo quinze anátemas
específicos contra Orígenes. Estes quinze anátemas repetiam as criticas anteriores de Epifânio
a Orígenes. Vários deles constituíram a base da rejeição da Igreja de hoje à reencarnação.
O primeiro anátema diz:
Se alguém afirma a fictícia preexistência das almas, firmará a monstruosa
restauração que dela decorre; que seja anatematizado. (“Restauração” significa o
retorno da alma à união com Deus. Os Origenistas acreditavam que isto ocorria
através de uma senda de reencarnação). Era como se o Cristianismo tivesse deferido
um golpe mortal contra o origenismo e a reencarnação (PROPHET, 1997, p. 211).
90
Conforme Denzinger (2007, p. 154), o segundo concílio de Constantinopla, o
quinto Concílio Ecumênico de 553, foi convocado pelo imperador Justiniano para discutir a
controvérsia dos Três Capítulos, que tratava da condenação dos teólogos mais importantes da
escola de Antioquia e também conquistar para a si a aproximação dos monofisistas. Segundo
o dicionário Aurélio, monofisismo é a doutrina daqueles que admitiam em Jesus Cristo uma
só natureza (FERREIRA, 2004).
Segundo o historiador Alberigo (1995, p. 135), o concílio era presidido pelo
patriarca Eutíquio e o número de participantes girava em torno de 150 membros, a julgar
pelos documentos, o concílio tratou de duas questões fundamentais: 1) o monofisismo; 2) o
origenismo.
Para o autor, a questão monofisista, o decreto de 544/545 e a política que ele
inaugura constituíam a linha mestra do concílio. Enquanto ao origenismo, uma carta de
Justiniano, cujo texto se perdeu, servia como documento de trabalho. É certo que o concílio
condenou Orígenes, suas idéias, seus seguidores.
São consideradas como heréticas as teorias sobre a apocatástase do universo, sobre a
reencarnação das almas e outras menos conhecidas. Infelizmente, perderam-se as
atas e não possuímos sequer sua tradução latina, pois a questão não interessava aos
ocidentais. Ainda que os nossos conhecimentos sejam incompletos nesse campo, o
rápido declínio do origenismo depois do concílio indica que ele foi condenado em
termos claros e severos (ALBERIGO, 1995, p. 134).
O papa Virgilio que tinha sido afastado de Roma se recusou a participar do
Concílio. “Finalmente cedeu às pressões do imperador e conferiu o Concílio, na carta de 8 de
dezembro de 553 ao patriarca Eutíquio de Constantinopla e na Constituição, de 23 de
fevereiro de 554” (DENZINGER, 2007, p. 154).
Os 114 anatematismos deste Concílio derivam na maior parte do segundo edito de
Justiniano, de 551. Dirigida aos “Três Capítulos”, este contém 13 anatematismos,
(DENZINGER, 2007, 154). Apenas o anátema décimo primeiro cita Orígenes:
11. Se alguém não anatematiza Ário, Eunômio, Macedônio, Apolinário, Êutiques e
Orígenes juntamente com seus ímpios escritos, bem como todos os outros hereges
condenados pela santa Igreja católica e apostólica e pelos quatro supracitados
concílios, e também os que professaram ou professam doutrinas semelhantes àquelas
dos supraditos hereges e persistem na própria impiedade até a morte: seja anátema
(DENZINGER, 2007, p. 157).
As conseqüências do concilio de 553 foram visíveis mesmo muitos tempo depois
da morte do imperador. “Os monges origenistas foram expulsos de seu monastério na
Palestina, alguns bispos foram depostos e, mais uma vez, os textos de Orígenes foram
destruídos. Os monges antiorigenistas venceram” (PROPHET, 1997, p. 212).
91
Entretanto, a condenação definitiva de Orígenes privou a Igreja de uma
possibilidade única de fortalecer o seu universalismo, especialmente ao abrir a
teologia cristã para o dialogo com outros sistemas de pensamento religioso (por
exemplo, o pensamento religioso indiano). Com todas as suas implicações
audaciosas, a visão da apocatástase alinha-se entre as mais grandiosas criações
escatológicas (ELIADE, 1984, p. 64-5).
3.5 A imortalidade da alma em Santo Agostinho
Nos primeiros séculos de nossa era, do império romano, foi forjado a liturgia, a
disciplina, os costumes e os dogmas da religião cristã. Período denominado como Patrística,
onde surgiram os primeiros pensadores do Cristianismo. Inspirado é claro, na fusão teologia
judaica com a filosofia grego-romana. Dentre esses pensadores realça especial atenção o bispo
de Hipona, Santo Agostinho (345-430), que no outono de 387 D.C, se converteu ao
cristianismo por influência de sua mãe Mônica, estava com 32 anos de idade, quando se
batizou.
Certamente, Agostinho foi influenciado pelas principais correntes filosóficas
helenísticas. Em mais de um momento em sua vida foi atraído pelo ceticismo. O estoicismo
também influenciou seu pensamento como enfatizam os pesquisadores recentemente. Quanto
ao neoplatonismo, o próprio Agostinho reconhece em sua obra Confissões o papel central dos
livros platônicos. No qual afirma: “Mas depois de ler aqueles livros dos platônicos e de ser
induzido por eles a buscar a verdade incorpórea, vi que ‘as vossas perfeições invisíveis se
percebem por meio das coisas criadas’” (AGOSTINHO, 1973, p. 145).
Percebe-se que o platonismo desempenhou um papel fundamental em seu
desenvolvimento filosófico e religioso, inclusive em sua conversão final ao cristianismo.
Mesmo em estudando a Sagrada Escritura, de preferência os escritos de Paulo para
compreender algumas coisas que pareciam incongruentes entre os textos bíblicos e os
ensinamentos da Lei e dos profetas. Ele se utiliza do conhecimento da filosofia para entender
o aspecto único daqueles castos escritos:
Comecei a lê-los e notei que tudo o que de verdadeiro tinha lido nos livros dos
platônicos se encontrava naqueles, mas com esta recomendação da vossa graça: que
aquele que vê não se glorie como se não tivesse recebido não somente o que vê, mas
também a possibilidade de ver [...] (AGOSTINHO, 1973, p. 146).
92
E em seguida continua sua dedicação aos escritos de São Paulo e neoplatônico:
Nos livros platônicos ninguém ouve aquele que exclama: “Vinde a Mim, vós, os que
trabalhais”. Desdenham em aprender d’Ele, que é manso e humilde de coração.
“Escondestes estas coisas aos sábios e entendidos, e as revelastes aos humildes.”
Uma coisa é ver dum píncaro arborizado a pátria da paz e não encontrar o caminho
para ela, gastando esforços vão por vias inacessíveis, entre os ataques e insídias dos
desertores fugitivos com o seu chefe Leão e Dragão; e outra coisa é alcançar o
caminho que para conduz, defendido pelos cuidados do general celeste, onde os
que desertaram da milícia do paraíso não podem roubar, pois o evitam como um
suplício.
Estas coisas penetraram-me até às entranhas, por modos admiráveis, ao ler (São
Paulo) “o mínimo dos vossos Apóstolos”. E enchia-me de espanto, considerando as
vossas obras... (AGOSTINHO, 1973, p. 147).
Como os grandes pensadores clássicos, o desvendamento do ser humano não
poderia passar em branco nas idéias de Santo Agostinho. Inclusive ressaltou na sua obra
Confissões, que o ser humano é um “grande abismo” e um “grande problema” a se desvendar.
Seu ponto de partida foi identificar a natureza humana como sendo uma unidade
entre corpo e alma. Num de seus diálogos com Navígio, seu irmão, na obra A vida feliz,
escrito antes da sua conversão ao cristianismo, no intuito de definir como é constituído o ser
humano chegou a seguinte conclusão:
7. - Será evidente a cada um de vós, que somos compostos de alma e corpo?
Todos foram concordes, exceto Navígio, que declarou não saber.
- Mas, disse-lhe eu, pensas que ignoras tudo em geral, ou essa proposição é uma
entre outras coisas que desconheces?
- Não creio que sou totalmente ignorante, respondeu ele.
- Podes, pois, dizer-nos alguma coisa do que sabes?
- Sim, posso.
- Se isso não te incomoda, dize-nos, pois. E como ele hesitasse, interroguei:
- Sabes, pelo menos, que vives?
- Isso eu sei.
- Sabes, portanto, que tens vida, visto que ninguém pode viver a não ser que tenha
vida?
- Isso também sei.
- Sabes, igualmente, que possuis um corpo? Ele concordou.
- Sabes, então, que constas de corpo e vida?
- Sim, todavia tenho dúvidas se não existe alguma coisa a mais do que isso.
- Assim, não duvidas destes dois pontos: possuis um corpo e uma alma. Mas estás
em dúvida se não existe outra coisa que seria para o homem um complemento de
perfeição (AGOSTINHO, 1998, p. 124).
Delimitado a natureza humana, que é formada dos aspectos dualista, corpo e alma,
Agostinho atribuiu à segunda importância maior, haja vista estar presente no corpo inteiro,
além de deter a ação vivificante e norteadora da personalidade humana. Isto é:
93
A alma manda ao corpo, e este imediatamente lhe obedece; a alma uma ordem a
si mesma, e resiste! Ordena a alma à mão que se mova, e é tão grande a facilidade,
que o mandado mal se distingue da execução. E alma é alma, e a mão é o corpo! A
alma ordena que a alma queira; e, sendo a mesma alma, não obedece
(AGOSTINHO, 1973, p. 162, VIII, 9, 21).
Após a conversão ao cristianismo, Agostinho se retirou para uma aldeia ao norte
da Itália, na companhia de amigos e sua mãe Mônica, onde escreveu a obra Solilóquios entre
outras, uma obra inacabada, nela traz especificamente o tema da inteligência relacionado com
a imortalidade da alma.
O método usado nesta obra como também em outros diálogos escritos é o de
perguntas e respostas. Era o método pedagógico utilizado na época, em que o instrutor
dialogava com o discípulo, levando-o a uma conclusão através de raciocínios, às vezes até
contrário ao objetivo, para chegar à conclusão desejada.
Em outros livros, Agostinho, dialoga com seu irmão Navígio, seus amigos e às
vezes com sua mãe, Mônica. Mas, nesta obra, dialoga consigo mesmo, por isso o nome:
Solilóquios que significa falar de alguém consigo mesmo; monólogo (FERREIRA, 2004). O
motivo era fazer o papel de instrutor a si mesmo. De maneira que, proporciona com rara
beleza um exemplar de sua fecunda inteligência, tratando dos mais variados temas.
O autor formula várias doutrinas nesta obra. Uma delas é a imortalidade da alma e
a teoria da reminiscência. Certamente, conhecia muito bem tais doutrinas platônica, defendida
por Plotino e Porfírio. Teve acesso direto às tais obras desses dois discípulos de Platão,
embora não parece ter defendido profundamente as idéias deles. Conforme, afirma na
introdução da obra, Adaury Fiorotti: “Mantém a palavra reminiscência, mas esvazia-a de seu
significado platônico, introduzindo uma doutrina que lhe é própria, a doutrina da iluminação
por Deus, Sol dos espíritos” (AGOSTINHO, 1998, p. 13).
Contudo, no conceito de Agostinho, o indivíduo é um conjunto que abrange corpo
e alma, e nele existem duas características importantes: a imortalidade e a racionalidade. O
teólogo cristão ciente da doutrina da imortalidade platônica tenta demonstrar dizendo que a
alma é portadora de uma verdade imperecível, e seguia uma lógica que também deverá ser
imperecível. Em sua defesa se serve até mesmo de orientações usadas por Platão, sobretudo
no livro Fédon, ou da alma (cf. PLATÃO, 2005, p. 107-8). Isto ficou registrado num dos seus
diálogos em Solilóquios, no capítulo XIII, quando se deduz da imortalidade da alma:
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[A.] Então já consta com evidência que a alma é imortal?
[R.] Com toda evidência, se são verdadeiras as afirmações com que concordaste. A
não ser que afirmes que a alma será alma, ainda que morra.
[A.] Com certeza nunca diria tal coisa. Afirmo sim que, se perecer, pelo fato de
perecer a alma deixa de ser alma. Nem me afasta desta opinião o que grandes
filósofos disseram: que aquilo que a vida, para onde quer que vá, não pode
admitir a morte em si. [...] De modo que já não segurança no que diz respeito a
todo tipo de morte corporal, mas se deve desejar algum tipo de morte pelo qual a
alma seja tirada e salva do corpo e levada a um lugar (se houver tal lugar) onde
ela não possa perecer. Ou se nem sequer isso seja possível, e a alma se acende quase
como uma luz no mesmo corpo nem pode subsistir noutra parte, e toda morte é certa
extinção da alma ou da vida no corpo, neste caso deve-se escolher, quanto possível
seja permitido ao homem, algum tipo de vida pelo qual o gênero de vida que se leva
seja vivido com segurança e tranqüilidade; mas não sei como se pode realizar isto se
a alma morre. Oh! Como são felizes os que se convenceram por si mesmos ou foram
persuadidos por alguém que não se deve temer a morte, mesmo que a alma morra!
Pobre de mim, a quem nem argumentos nem livros ainda puderam convencer.
24. [R.] Não lamentes. A alma humana é imortal.
[A.] Como o provas?
[R.] Com base naqueles princípios com os quais concordaste antes, a meu ver, com
muita cautela.
[...] Toda ciência está na alma como sujeito. E se a ciência permanece sempre,
necessariamente permanece a alma para sempre. Ora, a ciência é verdade, e a
verdade, como a razão o demonstrou no início deste livro, permanece para sempre.
Por isso, a alma permanece para sempre e não se diz que a alma tenha morrido. Sem
absurdo, poderia negar a imortalidade da alma aquele que provasse que algumas
das afirmações discutidas acima não estejam bem fundamentadas (AGOSTINHO,
1998, p. 86, 87 e 88).
Mais adiante, no capítulo XIX, o autor descreve a ciência da alma, ou seja:
[R.] - Então, a ciência não está na alma.
[A] - Quem afirmaria isso?
[R.] - Mas, talvez, pode ser que, morrendo o sujeito, permaneça aquilo que está no
sujeito.
[A.] - Quando me convencerei disso?
[R.] - Só resta, então, que pereça a verdade.
[A.] - Mas com isso pode ser possível?
[R.] - Portanto, a alma é imortal: creia em seus raciocínios, creia na verdade; ela
clama que habita em você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela
morte corporal. Afasta-se de tua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás
destruição alguma a não ser esquecendo-te de que é algo que não pode perecer
(AGOSTINHO, 1998, p. 101-2).
O outro aspecto fundamental da alma é a sua racionalidade, que separa o ser
humano das coisas existentes, sobretudo dos outros animais, pois eles também possuem almas
(AGOSTINHO, 1996, p. 405). O atributo da alma racional para ele é privilegio humano:
Porque, sendo três essas realidades - existir, viver, intelecionar - a pedra também
existe, e o animal vive; apesar disso não é minha opinião que a pedra viva ou que o
animal intelecione. Em contraposição, é certíssimo não só que existe o ser que
inteleciona, mas também que vive. Por isso, o ser em que se reúnem as três
realidade, não hesita em o dijudiciar mais excelente que outro a que faltem as duas,
ou uma que seja. Com efeito, o ser que vier é certo que também existe, mas de ai
não se segue que também intelecione. Essa é a vida que eu entendo ser própria do
animal. Por outro lado, o ser que existe, não segue evidentemente que ao mesmo
tempo viva e intelecione, pois eu posso afirmar que os cadáveres existem, mas que
eles vivem ninguém o diria. Ora o que não vive muito menos inteleciona
(AGOSTINHO, 1990, p. 87).
95
No âmbito da evolução intelectual e religiosa de Agostinho - o estudante de
retórica, em Madaura e Cartago, deslumbrado com as divindades pagãs; o estóico leitor de
Cícero; o ouvinte maniqueu; o admirador dos céticos; do neoplatonismo e finalmente,
convertido ao cristianismo. Nessa trajetória se depara, em muitos momentos, com a morte.
Primeiro à descrição da morte de um amigo íntimo e da depressão que isso lhe causou, depois
a história dos mártires cristãos, a morte da sua mãe, Mônica e de seu filho. No texto O êxtase
de Óstia, no livro IX, capítulo 10, versículo 23 a 24, de suas Confissões, narra com muita
propriedade e intuição a passagem de sua mãe:
23. Próximo do dia em que ela ia sair desta vida - dia que s conhecíeis e nós
ignorávamos -, sucedeu, segundo creio, por disposição de vossos desígnios, que nos
encontrássemos sozinhos, ela e eu, apoiados a uma janela cuja vista dava para o
jardim interior da casa onde morávamos. Era em Óstia, na foz do Tibre, onde,
apartados da multidão, após o cansaço duma longa viagem, retemperávamos as
forças para embarcamos.
Falávamos a sós, muito docemente, “esquecendo o passado e ocupando-nos do
futuro”. Na presença d Verdade, que sois Vós, alvitrávamos qual seria a vida eterna
dos santos, “que nunca os olhos viram, nunca o ouvido ouviu, nem o coração do
homem imaginou”. Sim, os lábios do nosso coração abriam-se ansiosos para a
corrente celeste “da Vossa fonte, a fonte da Vida”, que esta em Vós, para que
aspergidos segundo a nossa capacidade, pudéssemos de algum modo pensar num
assunto tão transcendente.
24. Encaminhamos a conversa até à conclusão de que as delícias dos sentimentos do
corpo, por maiores que sejam, e por mais brilhante que seja o resplendor sensível
que as cerca, não são dignas de comparar-se à felicidade daquela vida, nem
merecem que delas se faça menção.
Elevando-nos em afetos mais ardentes por essa felicidade, divagamos gradualmente
por todas as coisas corporais até o próprio céu, donde o Sol, a Lua e as estrelas
iluminam a terra. Subíamos ainda mais em espírito, meditando, falando e admirando
as vossas obras. Chegamos as nossas almas e passamos por elas para tingir essa
região de inesgotável abundancia, onde apascentias eternamente Isareal com o pastio
da verdade. Ali a vida é a própria Sabedoria, por quem tudo foi criado, tudo o que
existiu e o que a de existir, sem que ela própria se crie a si mesma, pois existe como
sempre foi e como sempre será. Antes, não nela ter si, nem haver de ser, pois
simplesmente “é”, por ser eterna (AGOSTINHO, 1973, p. 182-3).
Segundo o tradutor Santos (1973), este capítulo é um dos mais celebres das
Confissões. Notabiliza-se pela arte descritiva, pela análise psicológica genial e intuição do
transcendente. Aborda o assunto na mais alta mística: êxtase. Convida a vislumbrar um
mundo de silêncio e de gozo para além do tempo e da fantasia dos sentidos. A cena foi
representada num quadro do artista Holandês Ary Scheffer (1795-1858).
A morte represente apenas uma passagem para outra vida. “Pois não creio que
seja pequeno o seu medo de que a morte humana, ainda que não mate a alma, traga, contudo o
esquecimento de todas as coisas e da própria verdade que tenhamos descoberto”
(AGOSTINHO, 1998, p. 106).
96
Na obra A cidade de Deus, Agostinho aborda o tema capital no capítulo XI,
quando fala dos mártires cristãos:
Muitos foram na verdade os cristãos massacrados. Muitos foram consumidos em
hedionda variedade de muitas mortes. Isto é duro de suportar, mas é comum a todos
os que foram gerados para esta vida. Uma coisa sei: ninguém teria morrido se não
existisse para morrer um dia. [...] Que importa o gênero de morte que acabará com
esta vida - quando ao que morre não se obrigará que morra de novo? A cada mortal
o ameaçam mortes de todos os lados. Nos quotidianos azares desta vida, enquanto
durar a incerteza acerca de qual das mortes surgirá, eu pergunto se não será
preferível suportar uma morrendo, a ser por todas ameaçado vivendo. Não ignoro
quão depressa preferimos viver longos nos sob o temor de tantas mortes, a
morremos de uma vez e não temermos diante de nenhuma. Mas uma coisa é o que
o sentido carnal, fraco como é, repele por medo - e outra o que a razão,
convenientemente esclarecida, convence. Não deve considerar-se a morte que
uma vida virtuosa precede. Na verdade, o que torna a morte mais não é que o
que à morte se segue. Àqueles que necessariamente hão-de morrer não deve
preocupar muito o que acontecerá para que morram, mas antes para onde terão de ir
irremediavelmente depois da morte (AGOSTINHO, 1996, p. 133-4).
Mas, o interesse fundamental do bispo de Hipona é pastoral e não retórico, por
isso se utilizar dos Evangelhos e das Epístolas de Paulo para consolidar a teoria da
ressurreição de Cristo, a qual permeia a liturgia da igreja crista. Na verdade foram os Sermões
sua maior ferramenta para alcançar o grande público. A combinação da espontaneidade e da
intenção de falar em linguagem compreensível ao povo simples com o domínio da arte
retórica explica o fascínio que seus sermões exerciam sobre os seus ouvintes e leitores de
época.
3.6 Gnosticismo: o contraponto da ressurreição
Em dezembro de 1945, um camponês árabe fez uma importante descoberta
arqueológica em Nag Hammadi, vilarejo do Alto Egito: um pote de cerâmica que continha 13
papiros. Os papiros estavam escritos em copta, uma língua camito-semítica do século III d.C.
Segundo o dicionário Aurélio é uma língua da família lingüística que ocupa a faixa que vai do
Norte da África ao S.O. da Ásia, e que se compõe de três grupos principais: a. o semítico; b. o
egípcio; c. o berbere, e ainda de três outros menores: o cuxita, o chadiano e o omótico
(FERREIRA, 2004).
Um dos mais eminentes pesquisadores, o professor Gilles Quispel, um historiador
da religião em Utrech, Holanda, ao examinar a primeira linha de um texto ficou estupefato e
incrédulo com o que leu: "Essas são as palavras secretas que Jesus, o Vivo, proferiu, e que o
seu gêmeo Judas Tomé, anotou" - O texto continha o Evangelho Segundo Tomé, que ao
97
contrário do Novo Testamento, se apresentava como "secreto". Quispel verificou que o texto
continha muitos ensinamentos presentes também no Novo Testamento; mas esses mesmos
dizeres, colocados em contextos pouco familiares, sugeriam outras dimensões de
significados” (PAGELS, 1995, p. 13).
Verificou, ainda, que algumas passagens diferiam totalmente de qualquer tradição
cristã conhecida. Outro livro encadernado no mesmo volume do Evangelho de Tomé estava o
Evangelho de Filipe. “Outros ensinamentos dessa coletânea criticam crenças cristãs bastante
comuns, como a concepção imaculada ou a ressurreição corporal, considerando-as
ingenuamente equivocadas” (PAGELS, 1995, p. 13).
Conforme o autor, uma grande parte da literatura encontrada em Nag Hammadi é
nitidamente cristã. Mas alguns textos, contudo, mostram pouca ou nenhuma influência cristã;
uns provêm de fontes ditas pagãs, enquanto outros fazem uso extensivo de tradições judaicas.
No que se referem às datas dos manuscritos, os pesquisadores poucos divergem:
Um exame dos papiros passíveis de datação aqueles usados para engrossar as
capas de couro e dos caracteres coptas empregados colocam-nos por volta do ano
350 ou 400. Mas, os estudiosos divergem radicalmente quanto às datas dos textos
originais. Alguns não podem ser posteriores a 120 ou 150 anos, pois Irineu, o bispo
ortodoxo de Lyon, escrevendo por volta de 180, declarou que os hereges “dizem
possuir mais evangelhos do que realmente existem", e lastima que na sua época
esses escritos haviam atingido grande circulação - da Gália até Roma, e da Grécia
até a Ásia Menor (PAGELS, 1995, p. 14).
Os manuscritos tinham conteúdo eminentemente gnóstico. Depois das
descobertas, o estudo das crenças e ensinamentos gnósticos ganhou outro olhar, que a
história dessa doutrina era apenas contada pelos que combateram as suas teorias. Segundo
Pagels, “os textos de Nag Hammadi, e outros semelhantes a eles, que circularam no inicio da
era cristã, foram denunciados como heréticos pelos cristãos ortodoxos em meado do século
II.” (PAGELS, 1995, p. 15).
Contudo, para Pagels (1995) os textos de Nag Hammadi, juntamente com as
fontes da tradição ortodoxa conhecidas mais de mil anos, demonstram que a política
influenciou no desenvolvimento do cristianismo:
Podemos ver, por exemplo, as implicações políticas de doutrinas ortodoxas como a
ressurreição do corpo e como as concepções gnósticas de ressurreição trazem em
sim implicações opostas, adquirindo, assim, uma perspectiva surpreendentemente
nova acerca das origens do cristianismo (PAGELS, 1995, p. 33).
Mas foi a declaração que “Jesus Cristo ressuscitou” que nasceu a igreja cristã.
“Esse talvez seja o elemento fundamental da cristã; certamente é o mais radical. Outras
religiões celebram ciclos de nascimento e morte: o cristianismo insiste que, num momento
98
histórico único e singular, o ciclo inverteu-se e um homem morto voltou à vida” (PAGELS,
1995, p. 35):
O que torna esses relatos cristãos tão extraordinários não é o ato de os amigos de
Jesus o terem “visto” após sua morte histórias de fantasmas, alucinações e visões
eram ainda mais comum naquela época do que hoje e sim o de terem ainda visto
um ser humano de verdade. Segundo Lucas, a principio os próprios discípulos,
estupefatos e aterrorizados diante do aparecimento de Jesus em meio a eles,
imediatamente supuseram estar diante do seu espírito. Mas Jesus insistiu: “Apalpe-
me e entendam, pois um espírito não tem carne e ossos, como podem ver que
tenho.” Como permanecessem incrédulos, ele pediu algo para comer, e, enquanto
observavam-no maravilhados, Jesus comeu um pedaço de peixe assado. A
mensagem é clara: nenhum espírito ou fantasma seria capaz disso (PAGELS, 1995,
p. 35).
Para Pagels (1995, p. 36), se os discípulos houvessem dito que o espírito de Jesus
continuava vivo e que ele tivesse sobrevivido após a morte, talvez a histórias fizessem sentido
para seus contemporâneos. Como ocorreu aos discípulos de Sócrates cinco séculos antes, que
haviam afirmado que sua alma era imortal. “Mas o que os cristãos declaravam era diferente e,
em termos usuais totalmente implausível. O caráter definitivo da morte, que sempre fora parte
da experiência humana, estava sendo transformado.”
Alguns escritores do culo II, como por exemplo, Tertuliano, que falava em
nome dos teólogos ortodoxos da igreja em formação: assim como Cristo ressuscitou
corporalmente do túmulo, todo aquele que acredita deve antecipar a ressurreição da carne. Ou
seja, conforme Pagels (1995), Tertuliano não deixa margem a dúvida, deixou claro que não
está falando da imortalidade da alma, mas sim da ressurreição da carne. Isto é: “Não creio que
a salvação da alma precise ser discutida: pois quase todos os hereges, não importam como a
aceitem, pelo menos não a negam” (TERTULIANO apud PAGELS, 1995, p. 36).
Em seguida complemente, falando o que ressuscita: “Essa carne, regada de
sangue, sustentada por ossos, entremeada de nervos, entrelaçada de veias; uma carne que
nasceu e que morre, indubitavelmente humana” (TERTULIANO apud PAGELS, 1995, p. 36).
Porém, algumas correntes cristãs da época, consideradas heréticas, negaram a
ressurreição literal. Consideravam tal interpretação “extremamente repulsiva, repugnante e
impossível”. Os cristãos gnósticos interpretam ressurreição de diversas maneiras (PAGELS,
1995, p. 36).
Alguns afirmam que a pessoa que ressuscita não encontra um Jesus trazido
fisicamente de volta à vida, encontra-se com Cristo num plano espiritual. Isso pode
ocorrer em sonhos, êxtases, em visões ou em momentos de iluminação espiritual.
Mas os ortodoxos condenam todas essas interpretações; Tertuliano declara que
aquele que negar a ressurreição da carne é um herege, não um cristão (PAGELS,
1995, p. 36).
99
Mas por que a tradição ortodoxa incorporou em sua teologia a interpretação literal
da ressurreição, pergunta Pagels (1995). Para ela o problema torna-se mais intrigante quando
se examina o Novo Testamento a respeito da questão. Os relatos de Lucas, narram que Jesus
apareceu aos seus discípulos na forma que eles o conheciam em sua vida terrena; e ele come
em sua companhia. E pede que apalpem quando Tomé declara que não acredita que
ressuscitou dos mortos. Mas em outro relato, em Marcos, sugerem maneira diferente de
conceber a ressurreição. Narra que: “Depois, disso, ele se manifestou de outra forma a dois
deles, enquanto caminhavam para o campo.” (Marcos, 16:12): “De modo que, se algumas
histórias do Novo Testamento insistem numa leitura literal da ressurreição, outras se prestam a
interpretações diferentes” (PAGELS, 1995, p. 37).
Se as narrativas do Novo Testamento dão margem a uma gama de interpretações,
por que os cristãos ortodoxos do século II insistiram na literalidade da ressurreição e
rejeitaram todas as outras concepções como heréticas? Proponho que não
conseguiremos responder a essa pergunta adequadamente enquanto considerarmos
tal doutrina somente em termos do seu conteúdo religioso. Se, porém, examinarmos
seus efeitos práticos sobre o movimento cristão, veremos, paradoxalmente, que a
doutrina da ressurreição do corpo também se presta a uma função política essencial:
ela legitima a autoridade de certos homens que, como sucessores do apóstolo Pedro,
reivindicam pra si o exercício exclusivo da liderança sobre as igrejas. Do século II
em diante, essa doutrina serviu para validar a sucessão apostólica dos bispos
(PAGELS, 1995, p. 38).
Os cristãos gnósticos, ao contrário dos ortodoxos, interpretaram a ressurreição de
outra maneira. “Eles firmam que, após a crucifixão, o Cristo ressuscitado continuou a se
revelar a certos discípulos, proporcionando-lhes, através de visões, novas percepções dos
mistérios divinos” (PAGELS, 1995, p. 46).
Pagels (1995, p. 46) cita Paulo, quando ele se refere a si mesmo na terceira
pessoa, falando que foi “arrebatado ao terceiro céu não sei se no corpo ou fora do corpo”.
Lá, em êxtase, ouviu “palavras inefáveis, que não é lícito ao homem repetir”. Ou seja:
Através de sua comunicação espiritual com Cristo, Paulo afirma ter descoberto uma
“sabedoria secreta” e “mistério ocultos” os quais, explica ele, não poderá partilhar
com todos, mas só com aqueles cristãos que considerar maduros” (PAGELS, 1995,
p. 46).
Pode-se dizer que o gnosticismo ser dividiu em uma popular (influenciada pelas
antigas religiões, o Zoroastrismo, que também veio a influenciar o catolicismo contribuindo
com as "crenças no céu, no inferno, na ressurreição dos mortos e no juízo final"); e outra
esotérica, de origem grega, pelo orfismo do século VI a.C., e o neoplatonismo, através de
Plotino, doutrinas que professavam, entre outros aspectos, a purificação da alma para evitar
futuros renascimentos (PROPHET, 1997, p. 70).
100
CAPÍTULO IV
O dualismo metafísico pós-cristianismo primitivo
Na história cultural e religiosa do Ocidente ocorreram muitas transformações ao
longo dos séculos. O período denominado renascimento, difundido por toda Europa entre os
séculos XIV e XVI, foi uma das épocas florescente que marcou profundamente a história,
caracterizada por uma série de descobertas culturais, cientificas, tecnológica e geográfica, que
sem excerção, tiveram um significado religioso profundo na sociedade. Nessa época:
Teremos oportunidade de discutir funções ou valores religiosos do neoplatonismo
reatualizado pelos humanistas italianos, da nova alquimia, da medicina alquímica de
Paracelso, e do heliocentrismo de Copérnico e Giordano Bruno. Contudo, mesmo
uma descoberta tecnológica como a da imprensa teve importantes conseqüências
religiosas, de fato, ela desempenhou um papel essencial na propagação e no triunfo
da Reforma (ELIADE, 1984, p. 270).
Os pensadores e alguns teólogos inauguraram uma nova fase na história ocidental.
Filósofos como, por exemplo, René Descartes com o Cogito, ergo sum: “Penso, logo existo”,
Baruch Espinosa, com o sistema Panteísta de Deus, Leibniz que desenvolveu a doutrina das
mônadas, ou seja: à idéia de que o universo é composto por unidades de força, Martinho
Lutero, que lançou suas noventa e cinto tese contra as indulgências da igreja, desencadeando
assim o movimento da reforma teológico e tantos outros movimentos.
Antes do período do renascimento, quando se falava sobre qualquer parte do
conhecimento humano, de qualquer maneira estava ligada à religião, que dominou por muito
tempo os conceitos do pensamento ocidental. A separação real do conhecimento científico, do
espiritual e do filosófico se deu quando o que nós chamamos hoje de idade moderna tomou o
lugar da idade média, ou seja, o conhecimento religioso deu lugar ao conhecimento da ciência
moderna. Teve início, portanto, uma visão antropocêntrica na qual o homem, e não mais
Deus, ocupou o centro do universo. Inaugurou-se o período de descobrimento humano.
Mudou radicalmente o campo de pesquisa. De tal forma que a visão e a maneira
de enxergar o mundo não podiam está mais submetido às crenças religiosas; o conhecimento
precisava ganhar liberdade e fugir dos conceitos dogmáticos teológicos. Na conhecida idade
média, todas as idéias eram fruto da vontade divina; da colheita do alimento ao surgimento
101
das doenças, tudo estava conectado aos destinos ocultos de Deus. Ao romper com essa linha
de pensamento, os pensadores conduziram a razão à posição de mediadora do saber.
No século XVIII, os escritores franceses provocaram uma revolução intelectual.
Suas idéias caracterizavam-se pela importância dada à razão: rejeitavam as tradições e
procuravam uma explicação racional para tudo. Filósofos e economistas procuravam novos
meios para dar felicidade aos homens. Atacavam a injustiça, a intolerância religiosa, os
privilégios. Suas opiniões abriram caminho para a revolução francesa, pois denunciaram erros
e vícios do antigo regime.
O século das luzes antecede a revolução francesa. Termo empregado pelos
próprios escritores do período, convencidos de que emergiam do obscurantismo e ignorância
para uma nova era, iluminada pela razão, a ciência e o respeito à humanidade. As novas
descobertas da ciência, a teoria da gravitação universal de Isaac Newton e o espírito de
relativismo cultural fomentado pela exploração do mundo ainda não conhecido foi também
uma base importante. Por isto, os filósofos que as divulgaram foram chamados iluministas.
Essa posição de destaque para a gica e para a razão permitiu que a ciência
avançasse rapidamente sobre os terrenos antes ocupados pela religiosa. Contudo, porém,
com o tempo, a própria ciência estabeleceu dogmas e tudo quanto é ligado à adquiriu um
caráter negativo, sofrendo naturalmente um processo de deterioração. Chegando até nos uma
crise entre ciência e religião:
Um nível crítico de confusão satura o mundo contemporâneo. Nossa nos
componentes espirituais da vida na realidade vital da consciência, dos valores e de
Deus está sendo corroída sob o ataque implacável do materialismo cientifico. Por
um lado, recebemos de braços abertos os benefícios gerados por uma ciência que
assume a visão mundial materialista. Por outro, essa visão, predominante, não
consegue corresponder às nossas intuições sobre o significado da vida (GOSWAMI,
2006, p. 17).
Embora hoje exista um grande interesse entre os pesquisadores em expandir o
campo de pesquisa além das fronteiras religiosas e racionais sobre a questão da imortalidade
da alma. Todavia, entende existe um grande abismo entre a ciência e a religião. Elas precisam
se aproximar, haja vista que muitas vezes conjugam os mesmos conhecimentos, mas não
conseguem chegarem a um consenso.
102
4.1 O movimento Rosa-Cruz
A Europa do século XVII, passava por um período de turbulência, em todas as
áreas de conhecimento, principalmente no campo teológico cristão:
[...] em razão das teorias renascentistas, que traziam à tona o antropocentrismo e o
heliocentrismo; das reformas protestantes, notadamente a promovida por Martinho
Lutero; da contra-reforma católica; das guerras religiosas que assolavam a
Alemanha e a França ao longo dos séculos XVI e XVII; das viagens oceânicas, que
alargaram os limites do planeta até então conhecidos, com a descoberta e
colonização da América e da utilização da imprensa, que era consideravelmente
viável no inicio do século XVII, facilitando a propagação das notícias e dos
conhecimentos (OLIVEIRA, 2009, p. 23).
Foi nessa atmosfera de conflitos que surgiu o manifesto Fama Fraternitatis,
publicado anonimamente, em alemão, em 1614, na gráfica Wilhelm Wessel, em Cassel,
cidade às margens do Rio Fulda, que atualmente se localiza no estado alemão de Hesse,
região centro-oeste da Alemanha (OLIVEIRA, 2009, p, 23).
Um livrinho anônimo, Fama Fraternitatis, publicado em 1614, exigia um novo
modelo de educação. O autor revelava a existência de uma sociedade secreta, a dos
Rosa-Cruzes. Seu fundador, o incrível Christian Rosenkreuz, tinha penetrado os
“verdadeiros segredos da medicina” e, portanto, de todas as demais ciências.
Escrevera posteriormente um certo número de livros, mas essa obras eram
acessíveis aos membros da ordem rosa-cruciana. O autor da Fama Fraternitatis
dirigia-se a todos os sábios da Europa, pedindo-lhes que se unissem fraternalmente,
para realizar a reforma do conhecimento; em outros termos, para acelerar a
renovatio do mundo ocidental. Esse apelo teve uma repercussão incomparável. Em
menos de dez anos, o programa proposto pela misteriosa sociedade dos Rosa-Cruzes
foi discutido em varias centenas de livros e opúsculos (ELIADE, 1984, p. 294).
O Fama Fraternitatis que convida a uma renovatio do mundo, a reforma da
sociedade, foi uma das primeiras manifestações públicas da Rosa-Cruz, principalmente, num
período de grande controvérsia social. Sua ontologia é peculiar e abrange o conhecimento
universal, transmitidos a todos os membros e acessível ao ser humano.
Eis o resume em doze leis principais do manifesto:
1) Deus é a Inteligência Universal que pensou, manifestou e animou a Criação
segundo leis imutáveis e perfeitas. 2) Toda a Criação está impregnada de uma Alma
Universal que evolui para a perfeição de sua própria natureza. 3) A Vida é o suporte
da Evolução Cósmica, tal como se manifesta no universo e na Terra. 4) A matéria
deve sua existência a uma energia vibratória que se propaga por todo o universo e de
que todo átomo está impregnado. 5) O tempo e o espaço o estados de consciência
e não alguma realidade material independente do ser humano. 6) O ser humano é
dual em natureza e trino em manifestação. 7) A alma encarna no corpo da criança no
momento em que ela respira pela primeira vez, tornando-a um ser vivo e consciente.
8) O destino de cada ser humano é determinado pela maneira como ele aplica seu
livre-arbítrio e pelo carma que disto resulta. 9) A morte ocorre no momento em que
o ser humano faz sua última exalação e se traduz na separação definitiva entre o
corpo e a alma.
103
10) A evolução espiritual do ser humano é regida pela reencarnação e tem por
objetivo final que ele alcance a perfeição. 11)um reino supra-humano, composto
de todas as almas desencarnadas que povoam os planos invisíveis da Criação. 12)
No final de sua evolução espiritual, o ser humano alcança o estado de Mestre
Cósmico e se torna um Agente da Divindade (TOUSSAINT, 1996, p. 14 e 15, apud
OLIVEIRA, 2009, p. 150-1).
A ontologia Rosa-Cruz, revela os símbolos do antigo Egito, se assemelha aos
mistérios órficos grego e a teoria platônica, que fala do mundo transcendente, da evolução da
alma e destino final de cada uma delas.
Para a doutrina Rosa-Cruz a alma é uma centelha divina. “Quando a alma entra no
corpo físico, faz morada no interior de uma forma física preparada, com pureza ou
contaminação, para recebê-la” (LEWIS, 1993, p. 87).
A alma sai de sua morada eterna, com sua consciência ou personalidade não afetada
pelas modificações do corpo mortal, de que foi antes libertada quando da “morte” ou
transição. Ela não é composta de diferentes elementos ou componentes
temporariamente associados. É uma entidade, simples, incriada e indivisa. É a
própria antítese do corpo físico, em todas as suas características. O que quer que
possa distinguir o corpo físico é uma expressão negativa do caráter positivo da alma
(LEWIS, 1993, p. 87).
Alma que faz parte de Deus encarna num corpo para evoluir sua personalidade,
seu caráter. “Cada experiência do homem com a Lei de Compensação contribui para sua visão
da vida, sua diretriz de conduta, seu código de pensamento. A [...] experiência (cada lição),
persiste como uma pedra na estrutura do caráter que ele está construindo” (LEWIS, 1993, p.
106).
Portanto, a teoria rosacrusiana defende que alma humana é parte imaterial de seu
ser dual, a consciência do Eu, é uma entidade em evolução, com personalidade espiritual,
eterna e imortal. E como parte essencial de seu processo evolutivo, toma a reencarnação como
parte da Lei divina, ou seja:
A Reencarnação, como doutrina, oferece uma explicação mais que satisfatória para a
vida e suas tribulações, provas e compensações, devido ao fato de que ela não requer
qualquer outra suposição básica além da que se é adotada por todos os cristãos e
quase todas as demais formas de crença religiosa: a imortalidade da alma (LEWIS,
1993, p. 106).
Segundo Lewis (1993, p. 106), a doutrina da reencarnação não requer aceitação,
por mera fé, de qualquer principio de fatalismo, predestinação ou retribuição, nem tão pouco,
transfere a responsabilidade das ações humanas para a divindade celestial, mas recai
seguramente sobre o indivíduo.
O autor assegura sua idéia na reencarnação como recompensa da alma, na
seguinte hipótese: “A alma, com sua consciência ou personalidade, é imortal. Esta é a
104
suposição ou o enunciado básico de todas as doutrinas cristãs e, praticamente, de todas as
demais religiões” (LEWIS, 1993, p. 107).
Partindo desse pressuposto, Lewis (1993, p. 148) defende na teoria que a doutrina
da reencarnação “[...] é a única explicação justa para as leis universais da vida”. Portando, a
Rosa-Cruz (AMORC), tem como princípio o renascimento da alma.
4.2 A Doutrina Espírita
Hippolyte Leon Denizard Rivail, depois conhecido por Allan Kardec, nome
adotado em suas obras, formado em letras, em ciências, lingüística e pedagogia, foi quem
explicou e decodificou a doutrina Espírita, que defende a imortalidade e retorno da alma ao
corpo, ou seja, a reencarnação (PRIEUR, 1994, p. 177).
O Espiritismo não se considera uma religião organizada dentro do padrão
hierárquico e clerical. Neste sentido é profundamente distinto das religiões tradicionais que
possuem sacerdotes ou pessoas investidas de autoridade especial. Não adota cerimônias de
qualquer espécie, tais como batismo, crisma, “casamentos”, etc.
Totalmente diferente Umbanda, o Espiritismo não tem rituais, velas e vestes
especiais. Não utiliza qualquer forma de simbologia. Não adota ornamentação para cultos,
nem gestos de reverência, nem sinais cabalísticos, nem talismãs, nem defumadores ou
cânticos cerimoniais. Também não adota bebidas ou oferendas de qualquer espécie. Não deve
ser confundida com seitas, religiões ou até ritos afro-brasileiros, que são mais antigos e de
origens completamente distintas.
A Doutrina Espírita surgiu na França no meados do século XIX, quando a
sociedade européia vivia sob o clima revolucionário do pensamento, isto é: o Positivismo, o
Socialismo Científico e o Marxismo. As idéias revolucionárias do Evolucionismo acontecem
com o lançamento do Manifesto Comunista, em 1848, em Bruxelas, por Marx e seu amigo
Engels. Este trazia idéias materialistas que, de um lado, aproximavam-se das lutas, pelas
liberdades dos trabalhadores, do outro, distanciavam-se do conceito de religião dogmática,
declarando-a “ópio do povo”.
Na mesma época do lançamento do manifesto comunista e da efervescência das
idéias positivistas e evolucionistas, a doutrina Espírita ganhava corpo através das
manifestações de fenômenos, ditos espíritas, que passaram a ser observados e estudados pelo
codificador do Espiritismo.
105
Kardec (2007) vai definir os fenômenos da seguinte maneira:
O primeiro fato observado foi o da movimentação de objetos diversos. Designaram-
no vulgarmente pelo nome de mesas girantes ou dança das mesas. Este fenômeno,
que parece ter sido notado primeiramente na América, ou, melhor, que se repetiu
nesse país, porquanto a História prova que ele remonta à mais alta antiguidade, se
produziu rodeados de circunstâncias estranhas, tais como ruídos insólitos, pancadas
sem nenhuma causa ostensiva. Em seguida, propagou-se rapidamente pela Europa e
outras partes do mundo. A princípio quase que encontrou incredulidade, porém,
ao cabo de pouco tempo, a multiplicidade das experiências não mais permitiu lhe
pusessem em dúvida a realidade (KARDEC, 2007, p. 20).
Segundo Prieur (1994, p. 177), de todas as comunicações que recebeu, Kardec
tirou as seguintes conclusões: o espírito humano deve passar por várias existências que serão
desenvolvidas, nesta terra ou em outros mundos. O espírito tinha sua individualidade antes da
encarnação e a conservará após a separação entre o corpo e alma e após sua volta ao mundo.
O Espiritismo é uma doutrina que trata da origem e natureza dos espíritos e de
suas relações com o mundo material. Seu foco básico é a natureza espiritual do ser humano.
Kardec (2007) resume alguns pontos principais da doutrina que, segundo ele foi transmitida
pelos espíritos, acerca da vida e do destino humano depois da morte:
Deixando o corpo, a alma volve ao mundo dos Espíritos, donde saíra, para passar
por nova existência material após um lapso de tempo mais ou menos longo, durante
o qual permanece em estado de Espírito errante. Tendo o Espírito que passar por
muitas encarnações, segue-se que todos nós temos tido muitas existências e que
teremos ainda outras, mais ou menos aperfeiçoadas, quer na Terra, quer em outros
mundos. A encarnação dos Espíritos se sempre na espécie humana; seria erro
creditar-se que a alma ou Espírito possa encarnar no corpo de um animal. As
diferentes existências corpóreas do Espírito são sempre progressivas e nunca
regressivas; mas, a rapidez do seu progresso depende dos esforços que faça para
chegar à perfeição. As qualidades da alma são as do Espírito que está encarnado em
nós; assim, o homem de bem é a encarnação do seu progresso depende dos esforços
que faça pra chegar à perfeição. A alma possuía sua individualidade antes de
encarnar; conserva-a depois de ser haver separado do corpo (KARDEC, 2007, p. 30-
1).
A imortalidade da alma e a continuação de sua evolução é uma das teorias
fundamentais do Espiritismo. Para Kardec (2007, p. 542), o Espiritismo é forte em sua
argumentação porque se assenta sobre as próprias bases da religião: Deus, a alma, as penas e
as recompensas futuras; sobretudo, porque mostra que essas penas e recompensas são
corolários naturais da vida terrestre e, ainda, porque, no quadro que apresenta do futuro, nada
há que a razão mais exigente possa recusar.
Por fim, segundo o autor do livro dos Espíritos que utiliza uma “comunicação” de
Santo Agostinho, para contrapor-se aos incrédulos e à doutrina do materialismo, dizendo:
106
Que compensação ofereceis aos sofrimentos deste mundo, vós cuja doutrina consiste
unicamente na negação do futuro? Enquanto vos apoiais na incredulidade, ele se
apóia na confiança em Deus; ao passo que convida os homens à felicidade, à
esperança, à verdadeira fraternidade, vós lhes ofereceis o nada por perspectiva e o
egoísmo por consolação. Ele tudo explica, vós nada explicais. Ele prova pelos fatos,
vós nada provais. Como quereis que se hesite entre as duas doutrinas? (KARDEC,
2007, p. 543-4).
4.3 A Teosofia
Segundo o dicionário Aurélio, a Teosofia é um conjunto de doutrinas religioso-
filosóficas que têm por objeto a união do homem com a divindade, mediante a elevação
progressiva do espírito até à iluminação. É uma doutrina espiritualista iniciada por Helena
Petrovna Blavatsky (1831-1891), mística russa, ligada ao budismo e ao lamaísmo
(FERREIRA, 2004).
Para Chaves (2001, p. 118), a Sociedade Teosófica tem como objetivo criar um
movimento de fraternidade universal, estudar o lado oculto do homem e da natureza, e buscar
um conhecimento da essência de todas as teologias. Um dos seus princípios é a teoria da
reencarnação. Além desses objetivos importantes, a sua doutrina busca contribuir para o alívio
do sofrimento humano sob qualquer forma, tanto moral como fisicamente.
Um dos pontos em comum entre a doutrina Espírita e a Teosofia, segundo Prieur
(1994, p. 182) é “a crença no progresso infinito, aliada à reencarnação.” Isto é, Kardec
escrevia, em março de 1869, em seu testamento espiritual: “Nada do que o homem adquire,
durante sua vida terrestre, em conhecimento e em perfeições morais está perdido para ele;
na vida futura o que se faz na vida presente” (KARDEC apud PRIEUR, 1994, p. 182).
E Helena Blavatsky complementa: “O progresso é a lei universal. Em virtude de
tal lei, o espírito progride indefinidamente. Na vida sem limites em que se desenrola essa
evolução, as oportunidades para que se ofereçam progressos ao homem o têm, igualmente,
limites” (PRIEUR, 1994, p. 1982). Para o autor, na Teosofia as três premissas verdadeiras
são: Progresso, evolução e reencarnação. Contudo, as duas doutrinas se assemelham apenas
nesses pontos em comum, pois a Teosofia se fundamenta principalmente na síntese esotérica
das religiões.
Na obra A chave da Teosofia, Helena Blavatsky, responde o significado do termo
Teosofia, dizendo:
107
‘Saber Divino’, Θεοηοϕια (Theosophia) é Sabedoria dos deuses, como Θεογονια
(Theogonia), genealogia dos deuses. A palavra Θεοα, em grego significa um deus,
um dos seres divinos, e de modo nenhum “Deus”, no sentido que atualmente damos
esse termo.
Não é, portanto, a ‘Sabedoria de Deus’, segundo traduzem alguns, mas sim
Sabedoria Divina, a possuída pelos deuses. O vocábulo tem milhares de anos de
existência (BLAVATSKY, 1983, p. 23).
Em seguida descreve a origem deste nome:
Ele nos foi transmitido pelos filósofos alexandrinos chamados de amantes da
verdade, Filaleteos, palavra composta de ϕiλ (phil) “amante” e de αληθεια
(aletheia) “verdade”. O nome Teosofia data do terceiro século de nossa era, e os
primeiros que o empregaram foram Amônio Sakas e seus discípulos que fundaram o
Sistema Teosófico Eclético (BRAVATSKY, 1983, p. 23-4).
Na época de Amônio, filósofo do século III, já havia numerosas religiões e
doutrinas nas regiões da Palestina e Egito.
Os neoplatônicos formavam uma corporação numerosa e pertenciam a várias
filosofias religiosas, como sucede a nós teósofos. O Judeu Aristóbulo afirmava
naqueles dias que a ética de Aristóteles representava os ensinamentos esotéricos da
Lei de Moisés; Fílon, o judeu, se esforçava em reconciliar o Pentateuco com a
filosofia pitagórica e platônica; e Josefo provava que os essênios do Carmelo eram
simplesmente os copistas e discípulos dos terapeutas egípcios, os que curavam
(BRAVATSKY, 1983, p. 26-7).
Conforme autora ocorre à mesma coisa em nossos dias. Isto é, a proposta da
Teosofia é conciliar as idéias de todas as seitas e religiões: “Podemos provar a origem de cada
religião, assim como de cada seita, até a mais insignificante. Não são as últimas mais do que
pequenas ramificações nascidas das maiores; mas umas e outras saem do mesmo tronco, a
Religião da Sabedoria” (BRAVATSKY, 1983, p. 27).
Por conseguinte, era “[...] o objetivo de Amônio, que tentou com que cristãos e
gentios, judeus e idólatras abandonassem suas lutas e disputas para que pudessem perceber
que todos estavam de posse da mesma verdade, oculta sob diferentes aspectos, e de que todos
provinham de uma única origem. O mesmo objetivo guia a Teosofia” (BRAVATSKY, 1983,
p. 27).
A doutrina Teosófica defende o princípio da imortalidade e renascimento da alma.
De acordo com resposta da autora em sua obra, fala que o período cíclico da alma pode muito
bem ser comparado com a vida humana, ou seja:
Como cada vida é composta de dias de atividade, separados por noites de sono ou
inação, assim, em um ciclo de encarnação, cada vida ativa é seguida de um descanso
[...]
Somente por meio desses nascimentos é que pode ser atingido o progresso perpétuo
dos inumeráveis milhões de Egos até a perfeição, e um descanso final por tanto
tempo quanto haja durado o período de atividade (BRAVATSKY, 1983, p. 187-8).
108
4.4 Ressurreição: uma apologia da fé religiosa
A doutrina da ressurreição dos mortos, consolidada ao longo do tempo na cultura
religiosa pela igreja católica, nos últimos séculos ganhou um fermento renovado com o
movimento protestante, iniciado no século XVI, com o movimento da reforma teológica e se
valendo muita vezes da teoria de Paulo de Tarso, que diz:
Ora se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós
dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos,
também Cristo não ressuscitou. E, se Cristo não ressuscitou, vazia é a nossa
pregação, vazia também é a nossa fé (I CORINTIOS, 15:12-14).
No Manual de Defesa da , Kreeft (2008), a ressurreição teve conseqüências
existências incomparáveis. Segundo ele, basta comparar a atitude dos discípulos antes e
depois. “Antes da ressurreição do Mestre, eles fugiram, negaram-no e esconderam-se atrás de
portas trancadas, temerosos e confusos. Depois da ressurreição, passaram de ‘coelhos
assustados’ a santos confiantes, missionários [...], que falavam em nome de Cristo.”
Conforme o autor:
A maior importância da ressurreição não está no passado Cristo ressuscitou -, mas
no presente Cristo está vivo. O anjo no túmulo perguntou às mulheres: Por que
vocês estão procurando entre os mortos aquele que vive? (Lc 24.5). Podemos fazer a
mesma pergunta atualmente aos historiadores e estudiosos. Se Cristo estivesse
mumificado num caixão com o tulo “história” ou “apologética”, ele incendiaria a
vida deles e nosso mundo com o mesmo poder de dois mil anos atrás? E o novo
império pagão se levantaria, contemplaria, esfregaria os olhos, questionaria as
evidências e se converteria uma segunda vez? Essa é a importância existência da
ressurreição. (KREEFT, 2008, p.275).
A ressurreição é uma realidade da e da esperança, e não da história. Por não ter
referências, tende a ser vista como incrível que, em perspectiva pós-moderna, é uma categoria
integrável à realidade. Diante desse conflito é preciso uma leitura pós-moderna do testemunho
bíblico, defende o jesuíta Roger Haight, que publicou a obra Jesus Symbol of Good (Jesus,
símbolo de Deus) em 1999 e a CDF (Congregação para a Doutrina da Fé) abriu um processo
de investigação contra ele, justificando os possíveis erros teológicos do padre por não adotar o
método teológico tradicional acerca da ressurreição.
A Congregação para a Doutrina da (CDF), é uma instituição de defesa da
católica, originalmente chamada Sagrada Congregação da Romana e Universal Inquisição, foi
fundada por Paulo III em 1542 com a Constituição "Licet ab initio", para defender a Igreja das
heresias. É a mais antiga das nove Congregações da Cúria, segundo site do Vaticano,
traduzido pelo professor Everton Jobim (2003).
109
Conforme Ribeiro (2009), em coluna “A ressurreição na pós-modernidade”,
entende que a ressurreição pode ser entendida de um ponto de vista pessoal. Ela começa
com as nossas esperanças em relação à nossa própria morte e as dos nossos entes queridos. “A
esperança comum é a de que nós não morremos, mas continuamos existindo na esfera de
Deus”.
A compreensão da ressurreição de Jesus só pode começar a partir da base da
esperança, por isso para Haight não foi um evento histórico que aconteceu física e
empiricamente no continuum espaço-tempo. Ao enterrarem um ente querido,
cristãos “colocam o corpo na terra na fé-esperança de que a pessoa está ressuscitada
de uma forma que não nega a historicidade do enterro físico”. Haight não afirmaria
que o corpo de Jesus foi para algum lugar. “Não é a ressurreição de um cadáver. Não
existe um Jesus zumbi” (RIBEIRO, 2009).
Na leitura do jesuíta Roger Haight, ele sustenta que a ressurreição é uma idéia
difícil de ser entendida porque nós não temos um referente sensorial. Sempre que falamos
sobre coisas deste mundo, temos uma imaginação que trabalha em nossa ajuda. Mas com a
ressurreição, a imaginação falha e na verdade começa a trabalhar contra nós. Então, assim que
se imagina a ressurreição, a pessoa tende fazer dela algo incrível, um tipo de evento deste
mundo. Tenta uma substância visual e tangível à ressurreição. Então, a questão de dizer
que ela não foi um evento histórico é para assegurar que a ressurreição é uma realidade
transcendente, que é uma questão de fé e de esperança (RIBEIRO, 2009).
Que tipo de corpo será o ressurrecto? Pergunta Kreeft (2008). É uma questão
bastante difícil de responder, afirma ele. Para o autor, “[...] o corpo de Jesus obviamente tinha
característica bastante estranha, porque os discípulos e seus amigos chegados não o
reconheceram de imediato, mas o fizeram mais tarde” (KREEFT, 2008, p. 275).
Em seguida, o autor complementar dizendo: “Também não sabemos exatamente
como Jesus ressuscitou. Ninguém viu o ato em si, apenas às conseqüências dele (o Cristo
ressureto). Ninguém sabe que ‘tecnologia espiritual’ Deus empregou” (KREEFT, 2008, p.
277).
A teologia da ressurreição é certamente um tema complexo e tem sido objeto de
muitas controvérsias dentro da doutrina da fé cristã, relativo principalmente à forma de
compreendê-la. Perante o novo contexto contemporâneo, teólogos católicos e protestantes
vêem se esforçando por tornar a na ressurreição mais acessível, de modo a responder aos
desafios culturais da modernidade. Portanto, a ressurreição continua ainda artigo de da
religião, contudo ainda confuso e polêmico para muitos segmentos da comunidade científica
que se explica apenas através da fé religiosa.
110
4.5. Uma abordagem científica à crença na alma e sua imortalidade
Campbell (2001, p. 5), no prefácio do livro Mitos, Sonhos e Religião, fala do
grande interesse suscitado pelo diálogo inter-religioso nos tempos atuais que tem favorecido o
processo de aproximação teórica e existencial de tradições religiosas distintas e de suas
experiências místicas.
Cada vez mais as pesquisas impõem-se à necessidade do contato mais estreito,
entre religião e ciência. Verifica-se, igualmente, que um dos campos mais ricos e promissores
do diálogo ocorrem no âmbito das experiências místicas, onde, em um nível mais profundo, é
celebrada a dinâmica de enriquecimento recíproco e de cooperação fecunda, indicando a
riqueza de um encontro para além das diferenças.
Exemplo desse avanço ocorre com o físico Goswami (2006) que escreveu a obra
A Física da Alma. Nela une ciência e espiritualidade num momento do ápice das tendências
materialistas de nossa civilização, talvez por pairar na sociedade contemporânea uma certa
angústia existencial, ou uma sensação de perda de rumo, os indivíduos buscam como nunca
respostas racionais, soluções para suas indagações, depressões ou fobias, e tantos outros males
modernos. Nessa busca desesperada, cresce o interesse por leituras que abordam temas
espirituais, principalmente quando estes se encontram vinculados às questões científicas.
Podemos citar produções de filmes independentes como "O Segredo", baseado no livro de
mesmo nome, de Rhonda Byrne, e "Quem Somos Nós?" que estouraram nas bilheterias.
Nesse sentido, podemos dizer que Goswami (2006, p. 13) é uma revelação, um
cientista profundamente interessado pela espiritualidade - é o que vamos encontrar em sua
obra, quando no primeiro capítulo inicia a questão da morte e da imortalidade, perguntando:
“O que é a morte? A resposta, a princípio, parece fácil: morte é o fim da vida, a cessação da
existência. Mas... sabemos o que é a vida? Sabemos o que significa sua cessação? Não é
muito fácil responder a essas perguntas, pelo menos não através da ciência.”
O que ocorre após a morte? No passado, essa pergunta deve ter sido feita a
sacerdote, ministros, gurus, mulas, rabinos, mestres zen ou xamãs. Uma questão que
não era, nem de longe, considerada científica. Naqueles tempos, a ciência lidava
com aspectos mundanos da vida, enquanto a religião era fonte de respostas para
questionamento que tocavam mais de perto as pessoas: como viver, o que acontece
após a morte, como conhecer Deus, e outros tantos (GOSWAMI, 2006, p. 13-4).
Após a morte do corpo, quem somos nós? Pergunta o autor, segundo sua teoria
depois da morte o indivíduo não pode ser uma entidade física ou corpórea. Mas, vem à
questão do ego-identidade, como obtemos ao longo de nossa vida?
111
Para Goswami (2006, p. 14), é bem provável que a memória dessas vivências seja
preservada no cérebro sico. Além disso, as experiências em si da vida não constituem a
totalidade do desenvolvimento do ego; parece gico que nossa dotação genética tenha seu
papel. Mas tanto memória genética com a cerebral são físicas. Com o desaparecimento do
corpo e a subseqüente decomposição dessas memórias físicas, será que o ego pode
funcionar?:
Outro argumento contra a alma como ego foi apresentado pelo psicólogo Charles
Tart. Em 1990, Tart disse que o corpo e o cérebro são influências estabilizadoras de
nossa identidade. Nos sonhos, por exemplo, perdemos a consciência do corpo físico,
e veja o que acontece: nossa identidade pode vagar de um corpo onírico para outro
muitas vezes, durante um sonho. Nossa identificação, pois, não é estável. Coisas
semelhantes acontecem com a privação sensorial e o uso de drogas psicodélicas. A
ego-identidade normal e estável que vivenciamos no estado de consciência ou vigília
desaparece nesses estados alterados de consciência. Tart acredita que isso pode
indicar como é o estado alterado de consciência de estabilização que ainda nos
sejam desconhecidos (GOSWAMI, 2006, p. 15).
Portanto, em Goswami (2006, p. 15-6), a natureza da alma, ou seja, aquilo que
sobrevive à morte é uma questão difícil e controversa de determinar. Contudo, fica ainda mais
controvertida e intrigante, quando analisamos as imagens do continuum. Isto é, a vida e a
morte como uma continuidade - de muitas culturas. Porém, para ele não algo sobrevive à
morte, como esse algo retorna em outro corpo após outro nascimento, assim por diante, dando
continuidade ao processo da vida.
Para ele, Goswami (2006, p. 16), nesse processo de continuidade que passa o ser
humano, de morrer e nascer novamente ocorre pelo fato da causa e efeito da suas ações, ou
seja, o carma de cada indivíduo determina o ciclo de reencarnações.
O autor recorre aos conceitos orientais para explicar o ciclo da alma e sua
imortalidade, quando utiliza a teoria de carma. Segundo o dicionário Aurélio a palavra carma
vem do sânscrito (karman), que significa “ação”, nas filosofias da Índia, é o conjunto das
ações dos homens e suas conseqüências. Liga-se o carma às diversas teorias de transmigração,
e por meio dele se definem as noções de destino, do desejo como força geradora do destino, e
do encadeamento necessário, por força desses dois fatores, entre os diversos momentos da
vida humana (FERREIRA, 2004).
O que pode ser melhor para o homem do que acumular carma positivo, fazendo o
bem em todas as suas ações e experiências terrenas? Os conceitos hindu e budista
dizem que existe um modo supremo e perfeito de viver, cuja descoberta nos retira da
roda do carma. Os hindus dão-lhe o nome de moksha, que significa, literalmente,
“libertação”; os budistas chamam-no de nirvana, traduzido, também de forma literal,
como a extinção da chama do desejo (GOSWAMI, 2006, p. 17).
112
Segundo Goswami (2006, p. 17), podemos utilizar a filosofia para explicar as
diferenças entre judaísmo e cristianismo, hinduismo e budismo, sobretudo na idéia do que
ocorre após a morte. Para ele, em uma filosofia, o modelo específico de realidade pós-morte
desenvolvido por um sistema cultural depende muito das condições materiais que vivem as
pessoas, ou seja, se rica ou pobre:
O propósito da religião é levar os indivíduos a viverem conforme o bem, e não
segundo o mal. Se a cultura é materialmente pobre, as pessoas vivem na esperança
de desfrutar uma vida boa após a morte. Se conhecessem a reencarnação, não
hesitariam em ser más, de vez em quando, correndo o risco de um Inferno
transitório. Haveria sempre uma próxima vida para serem boas. Por isso, a idéia de
um Inferno eterno é importante, pois mantém os fiéis na linha; já conhecem o
Inferno, não o desejam para a eternidade (GOSWAMI, 2006, p. 17).
Ocorre que nas sociedades ricas, por outro lado, a idéia de retorno da alma por ser
revelado:
Nas sociedades ricas, as pessoas vivem segundo um sistema de classes, no qual a
maioria pertence a uma classe média. Se o indivíduo advém da classe média, então o
pior que lhe pode acontecer é tornar-se pobre. Nesse caso, a ameaça da reencarnação
funciona, pois o carma negativo não acarreta o Inferno como também gera uma
forma de vida inferior (uma classe inferior à atual, por exemplo) na encarnação
seguinte. Foi o que aconteceu no sistema de castas hindu da antiga e opulenta Índia,
onde floresceu o conceito de reencarnação. Hoje, as coisas na Índia estão mudando;
a maioria das pessoas é pobre, e a idéia de reencarnação não é mais tão popular. Por
outro lado, as sociedades ocidentais, com sua crescente riqueza, têm se tornado mais
estratificadas. Não é à toa que a idéia de reencarnação tem conquistado espaço
nessas sociedades (GOSWAMI, 2006, p. 17).
Por conseguinte a idéia cristã da eternidade, como também a teoria oriental de
libertação significa para Goswami (2006, p. 19) “[...] essencialmente ao estágio que podemos
verdadeiramente chamar de imortalidade da alma.”
A pergunta é: As idéias de reencarnação e de sobrevivência à morte podem ser
discussões cientifica. Para ele em tempo passado eram impossíveis tais questões, mas, hoje
sim.
Um dos principais motivos é a existência de bons dados. Referi-me antes a dados
relativos a memórias reencarnatórias espontâneas. Muitos desses dados, com alguns
de seus aspectos estudados, tratam de crianças que se recordam de vidas passadas.
Foram obtidos muitos outros dados nas chamadas regressões a vidas passadas: sob
hipnose, trauma, drogas ou técnicas especiais, as pessoas parecem recordar
incidentes de outras vidas (GOSWAMI, 2006, p. 21).
Além desses dados, as experiências de quase-morte de pacientes que foram
trazidos de volta de um estado de morte clínica, que descreveram a realidade pós-morte, pelos
menos em algumas de suas fases. “Aqueles que passam por essas experiências de quase-morte
dizem que ficaram fora de seus corpos, passaram por um túnel que leva a outro mundo, viram
parentes falecidos há muito, seres espirituais luminosos, etc.” (GOSVAMI, 2005, p. 21).
113
A ciência moderna tem se aproximado da visão monista de mundo, ou seja, a de
que existe apenas uma substância que formar as coisas. De acordo com o dicionário Aurélio,
monismo é a doutrina filosófica segundo a qual o conjunto das coisas pode ser reduzido à
unidade, quer do ponto de vista da sua substância (e o monismo poderá ser um materialismo
ou um espiritualismo), quer do ponto de vista das leis (lógicas ou físicas) pelas quais o
universo se ordena (e o monismo será lógico ou físico) (FERREIRA, 2004).
Caso existisse um mundo duplo de substância anímica, como ele poderia interagir
com o mundo material? O que pode mediar tal interação? Evidentemente, nem a
substância anímica nem a material podem agir como mediadoras. Além disso, será
que essa mediação não envolveria a troca de energias entre os dois mundos? Sendo
assim, a carga energética do mundo material acabaria mostrando excessos ou
deficiência ocasionais, mas a verdade é que isso não ocorre. Que a energia do
mundo material é uma constante é uma lei da física a lei d conservação da energia.
Portanto, a sabedoria científica, com razão, consiste em evitar o dualismo da
interação (um legado do filósofo René Descartes) em nosso modo de ver a realidade;
dualismo e ciência são como óleo e água, não se misturam (GOSWAMI, 2006, p.
22).
De forma que a ciência nos últimos séculos trabalhou com o conceito de que os
fenômenos são fenômenos de coisas constituídas pela matéria. “É um monismo baseado na
idéia de que a matéria está na base de tudo o que existe” (GOSWAMI, 2006, p. 23).
Em contra partida no lugar disso, nasce um novo paradigma postulado num
monismo baseado no primado da consciência, isto é:
Que a consciência (chamada de Espírito, Deus, Mente de Deus, Ain Sof, Tão,
Brahman, etc., ns tradições populares e espirituais), e não a matéria é a base de tudo
o que existe; um monismo baseado em uma consciência unitiva e transcendente, mas
que se torna muitas em seres sencientes como nós. Nós somos essa consciência.
Todo o mundo da experiência, inclusive a matéria, é a manifestação material de
formas transcendentais de consciência (GOSWAMI, 2006, p. 22).
Conforme Goswami (2006, p. 23), a alegoria da caverna de Platão, narrado no
livro VII da República, retrata tal idéia. Segundo ele, Platão imaginou que a experiência
humana era formada pelas sombras. No qual estamos mergulhado no mundo da caverna,
atados as cadeiras, por isso enxergamos apenas aparências das coisas dentro dela, na qual a
luz reflete as formas arquetípicas ideais:
Achamos que as sombras são realidades, mas sua fonte está atrás de nós, nos
arquétipos. No final das contas, a luz é a única realidade, pois tudo o que vemos é
luz. No monismo baseado no primado da consciência, a consciência é a luz da
caverna de Platão, os arquétipos constituem a realidade transcendente e o espetáculo
das sombras é a realidade imanente (GOSWAMI, 2006, p. 23).
Essa visão da realidade é chamada pelo autor de idealismo monista, que segundo
suas idéias é a base das grandes tradições espirituais do mundo, motivo pela qual às vezes é
chamada de filosofia perene. “O novo paradigma de uma ciência dentro da consciência, às
114
vezes chamada ciência idealista, começou quando esses conceitos ganharam credibilidade
científica” (GOSWAMI, 2006, p. 23-4).
Contudo, o grande desafio da ciência moderna diante dessa teoria, dentro da
consciência, é remodelar a discussão dos fenômenos relacionados com a morte e a
reencarnação, do ponto de vista monista (GOSWAMI, 2006, p. 25).
O que sobrevive após a morte? E se sobrevive, será que ocorre de modo
continuum - nascimento-morte-renascimento pergunta o autor. A sua resposta é que: “Existe
uma ‘alma’ que sobrevive à morte do corpo físico e que, efetivamente, reencarna em outro
corpo, formando um continuum. Ora, essa conversa faz sentido para uma ciência baseada na
consciência, mas só se pensarmos na alma em termos do quantum”(GOSWAMI, 2006, p. 25).
Para Goswami (2006), a ciência descobriu um novo modo de pensar - o modo do
quantum. O termo quantum no sentido de “uma quantidade discreta.” Ou seja:
Enquanto o corpo físico, vivo, representa possibilidades que sempre precisam se
manifestar como uma estrutura localizada, como início finito e término finito, a alma
representa potencialidades, potencialidades, sem uma estrutura localizada na manifestação.
Como potencialidade transcendental sem a fixação de manifestação local no tempo e no
espaço, ela transmigra (ou seja, é experimentada não localmente) de uma encarnação, em uma
localidade e algum momento, para outra, em um ponto distinto do tempo e do espaço
(GOSWAMI, 2006, p. 29).
Nesse aspecto, o conceito de alma em Goswami (2006, p. 29) desprende-se dos
paradoxos cartesianos e dualistas, imbuindo à dinâmica quântica e a causalidade descendente,
conferindo uma potencialidade inesperada, que permite considerar a validade dos
ensinamentos esotéricos e explicar dados anômalos.
Por fim, apresentaremos um texto do livro Persa, Mathnawi, do filósofo e místico
islâmico Jalalu’l Din Rumi (1207-1273), onde encontramos a conceituação da evolução da
mônada espiritual, ou princípio espiritual, até sua integração a Deus, que diz:
Morri mineral e converti-me em planta.
Morri planta e nasci animal.
Morri animal e me converti em homem.
Por que, pois, hei de temer a alguém?
Acaso poderei ser menos ao morrer?
Na próxima vez morrerei como homem
para que me possam nascer asas de anjo,
mas também da condição de anjo me elevarei,
por que, como ensina o Corão,
tudo perecerá, menos a face do Senhor.
Outra vez, tomarei o vôo por cima dos anjos
e me converterei no que a imaginação não pode conceber.
Na verdade, voltaremos a Ele.
115
Considerações Finais
O objetivo dessa pesquisa foi construir uma descrição do tema Imortalidade da
alma e ressurreição dos mortos no Cristianismo Primitivo, a partir de uma reflexão feita na
cultura religiosa e filosófica do ocidente, que ao longo dos séculos sofreram influências de
outras culturas. A narrativa valoriza vários aspectos, desde a formação mitológica dos ritos,
aos dogmas teológicos, que se formou em torno da problemática.
De início apresentamos as raízes do conceito de imortalidade e ressurreição
anterior à cultura Grega e Hebraica, foi uma breve narrativa histórica das tradições védicas,
órfica, egípcia e persa.
Tratamos diretamente da questão dos costumes judaico-cristãos, a importância dos
conceitos das doutrinas hebraica na formação do Cristianismo Primitivo, a visão cabalista da
morte, uma breve história dos Evangelhos Sinópticos (Lucas, Marcos e Mateus), o diálogo de
Nicodemos com Jesus no Evangelho de João, a importância de Paulo de Tarso na formação
do Cristianismo primitivo e logo depois a helenização.
Em seguida foi feito uma exposição do pensamento de Fílon, acerca do “cuidar do
ser”, do legado de Clemente de Alexandria na formatação da doutrina cristã, da controvérsia
de Ário, da preexistência da alma em Orígenes e a ocorrência do anátema contra suas idéias,
da imortalidade em Santo Agostinho, principalmente no inicio de sua conversão envolvido
com o neoplatonismo e a influência do gnosticismo no conceito de ressurreição da época.
Por fim passamos para o período denominado renascimento, difundido por toda
Europa entre os séculos XIV e XVI, onde se deu a ascensão do conhecimento científico,
caracterizado por descobertas culturais, tecnológica e geográfica, que tiveram um significado
profundo na sociedade, que era predominantemente religiosa.
Abordamos o surgimento de várias doutrinas e movimentos de reformas
teológicas, que defenderam em suas idéias: a imortalidade da alma e a ressurreição dos
corpos, como por exemplo, o movimento Rosa-Cruz, a Doutrina Espírita, a Teosofia, o
movimento Pentecostal e por fim a ciência, que veio contribuir significativamente em suas
pesquisas para o desvelamento de novos conceitos acerca do tema.
116
Sabemos que esse trabalho foi insuficiente para responder as questões em torno do
tema abordado. Mas, o nosso papel foi fomentar as pesquisas acadêmicas acerca do tema, que
se revela profundamente importante para os pilares teológicos da sociedade ocidental. Já que
nos últimos séculos o pensamento cientifico forjou um desencantamento com a vida religiosa
e hoje se ver a necessidade de inaugurar um novo encantamento com o diálogo inter-religioso,
favorecendo o processo de aproximação teórica e existencial de tradições religiosas distintas e
suas experiências místicas.
117
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