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[A.] Então já consta com evidência que a alma é imortal?
[R.] Com toda evidência, se são verdadeiras as afirmações com que concordaste. A
não ser que afirmes que a alma será alma, ainda que morra.
[A.] Com certeza nunca diria tal coisa. Afirmo sim que, se perecer, pelo fato de
perecer a alma deixa de ser alma. Nem me afasta desta opinião o que grandes
filósofos disseram: que aquilo que dá a vida, para onde quer que vá, não pode
admitir a morte em si. [...] De modo que já não há segurança no que diz respeito a
todo tipo de morte corporal, mas se deve desejar algum tipo de morte pelo qual a
alma seja tirada sã e salva do corpo e levada a um lugar (se houver tal lugar) onde
ela não possa perecer. Ou se nem sequer isso seja possível, e a alma se acende quase
como uma luz no mesmo corpo nem pode subsistir noutra parte, e toda morte é certa
extinção da alma ou da vida no corpo, neste caso deve-se escolher, quanto possível
seja permitido ao homem, algum tipo de vida pelo qual o gênero de vida que se leva
seja vivido com segurança e tranqüilidade; mas não sei como se pode realizar isto se
a alma morre. Oh! Como são felizes os que se convenceram por si mesmos ou foram
persuadidos por alguém que não se deve temer a morte, mesmo que a alma morra!
Pobre de mim, a quem nem argumentos nem livros ainda puderam convencer.
24. [R.] Não lamentes. A alma humana é imortal.
[A.] Como o provas?
[R.] Com base naqueles princípios com os quais concordaste antes, a meu ver, com
muita cautela.
[...] Toda ciência está na alma como sujeito. E se a ciência permanece sempre,
necessariamente permanece a alma para sempre. Ora, a ciência é verdade, e a
verdade, como a razão o demonstrou no início deste livro, permanece para sempre.
Por isso, a alma permanece para sempre e não se diz que a alma tenha morrido. Sem
absurdo, só poderia negar a imortalidade da alma aquele que provasse que algumas
das afirmações discutidas acima não estejam bem fundamentadas (AGOSTINHO,
1998, p. 86, 87 e 88).
Mais adiante, no capítulo XIX, o autor descreve a ciência da alma, ou seja:
[R.] - Então, a ciência não está na alma.
[A] - Quem afirmaria isso?
[R.] - Mas, talvez, pode ser que, morrendo o sujeito, permaneça aquilo que está no
sujeito.
[A.] - Quando me convencerei disso?
[R.] - Só resta, então, que pereça a verdade.
[A.] - Mas com isso pode ser possível?
[R.] - Portanto, a alma é imortal: creia em seus raciocínios, creia na verdade; ela
clama que habita em você e que é imortal e que sua sede não lhe pode ser tirada pela
morte corporal. Afasta-se de tua sombra; volta-te para ti mesmo; não sofrerás
destruição alguma a não ser esquecendo-te de que é algo que não pode perecer
(AGOSTINHO, 1998, p. 101-2).
O outro aspecto fundamental da alma é a sua racionalidade, que separa o ser
humano das coisas existentes, sobretudo dos outros animais, pois eles também possuem almas
(AGOSTINHO, 1996, p. 405). O atributo da alma racional para ele é privilegio humano:
Porque, sendo três essas realidades - existir, viver, intelecionar - a pedra também
existe, e o animal vive; apesar disso não é minha opinião que a pedra viva ou que o
animal intelecione. Em contraposição, é certíssimo não só que existe o ser que
inteleciona, mas também que vive. Por isso, o ser em que se reúnem as três
realidade, não hesita em o dijudiciar mais excelente que outro a que faltem as duas,
ou uma que seja. Com efeito, o ser que vier é certo que também existe, mas de ai
não se segue que também intelecione. Essa é a vida que eu entendo ser própria do
animal. Por outro lado, o ser que existe, não segue evidentemente que ao mesmo
tempo viva e intelecione, pois eu posso afirmar que os cadáveres existem, mas que
eles vivem ninguém o diria. Ora o que não vive muito menos inteleciona
(AGOSTINHO, 1990, p. 87).