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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE LETRAS
Coordenação dos Programas de Pós-Graduação em Letras
Doutorado em Estudos Linguísticos
Linha de Pesquisa: Descrição Linguística
Área de concentração: Estudos de Linguagem
MARIA NAZARÉ DE CARVALHO LAROCA
O CARÁTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO
NITERÓI
2009
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ii
MARIA NAZARÉ DE CARVALHO LAROCA
O CARÁTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO
Tese apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de Doutor
em Estudos Linguísticos, Área de
Concentração em Estudos de
Linguagem, Curso de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense.
Orientadora: Profª Dra. Maria Jussara Abraçado de Almeida
Niterói
2009
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iii
MARIA NAZARÉ DE CARVALHO LAROCA
O CARÁTER VERBO-NOMINAL DO ASPECTO EM ESPERANTO
Tese apresentada como requisito
parcial à obtenção do grau de Doutor
em Estudos Linguísticos, Área de
Concentração em Estudos de
Linguagem, Curso de Pós-Graduação
em Letras, Instituto de Letras da
Universidade Federal Fluminense.
Orientadora: Profª Dra. Maria
Jussara Abraçado de Almeida
Aprovada em 18 de agosto de 2009.
BANCA EXAMINADORA
__________________________________________________________________
Profª Drª JUSSARA ABRAÇADO (UFF) - Orientadora
__________________________________________________________________
Profª Drª CLÁUDIA RONCARATI (UFF)
__________________________________________________________________
Prof. Dr. JOSÉ PASSINI (UFJF)
________________________________________________________
Prof. Dr. JÜRGEN HEYE (PUC-RJ)
_________________________________________________________________
Prof. Dr. PIERRE GUISAN (UFRJ)
__________________________________________________________________
Profª Drª MARIANGELA RIOS DE OLIVEIRA (UFF) Suplente
__________________________________________________________________
Profª DRª LÚCIA FURTADO DE MENDONÇA CYRANKA (UFJF) - Suplente
Niterói
2009
iv
A. L. L. Zamenhof, Apóstolo da Paz,
esta singela homenagem pelos 150 anos de seu nascimento.
v
AGRADECIMENTOS
A Deus, pela oportunidade de poder ter feito este trabalho;
À Profa. Dra. Jussara Abraçado, pela orientação segura, compreensão e amizade;
Aos meus primeiros professores de Esperanto,
Ângela Faria e Saulo Salgado Wanderley, pelo entusiasmo, dedicação e
disponibilidade;
Ao Prof. Eduardo Nadalin, pela solidariedade e apoio;
Aos meus filhos, Lucas e Flávia, pelo carinho e compreensão.
vi
EPÍGRAFE
―Ni semas kaj semas, neniam laciĝas,
Pri l‘ tempoj estontaj pensante.
Cent semoj perdiĝas, mil semoj perdiĝas,
Ni semas kaj semas konstante.‖
1
(L. L. Zamenhof - La vojo)
1
Tradução literal: Semeamos e semeamos, nunca nos cansamos,/ Nos tempos futuros pensando./ Cem
sementes se perdem, mil sementes se perdem,/ Semeamos e semeamos, nunca nos cansamos. (L. L.
Zamenhof - O caminho)
vii
RESUMO
Esta tese demonstra que a função aspectual é configurada em Esperanto por meio de
estratégias discursivo-gramaticais em interação com o valor semântico ou Aktionsart
da forma verbal ou participial. À luz dos conceitos funcionalistas, adotamos como
pressuposto o caráter composicional do aspecto, o qual se manifesta como uma
propriedade da predicação. Os corpora examinados atestam a ocorrência de diferentes
recursos de aspectualização em Esperanto, corroborando a nossa hipótese geral de que
o aspecto está presente e funciona no uso dessa língua internacional. Explicitamos as
estratégias que o usuário do Esperanto utiliza para codificar o aspecto, isto é, o modo
como ocorreu, ocorre ou ocorrerá a ação, o evento ou o processo verbal no que
concerne à sua duração e / ou realização, codificados como verbo ou nome verbal, isto
é, particípio.
Palavras-chave: Esperanto; Aspecto; Aktionsart; Predicação; Funcionalismo
Linguístico.
viii
ABSTRACT
This dissertation demonstrates that aspectual function is performed in Esperanto
through grammatical discursive strategies that interact with semantic value or
Aktionsart of participial and verbal forms. According to functionalist definitions we
consider as presupposition the compositional character of aspect, which manifests as a
property of predication. The corpora examined attest that different resources of
aspectualization occur in Esperanto. This means that it corroborates our general
hypothesis that grammatical aspect is present and it is functional in Esperanto
language. We explicit strategies that Esperanto user utilizes to code grammatical
aspect, i.e., the way the action, the event or the verbal process occurred, occur or they
shall occur, focusing the duration and/or realization codified as verb or verbal name,
i.e., participle.
Keywords: Esperanto; Aspect; Aktionsart; Predication; Linguistic Functionalism.
ix
LISTA DE TABELAS
TABELA 1 - Tabela de Bertinetto 40
TABELA 2 - Ocorrência de sufixos participiais imperfectizadores 161
TABELA 3 - Ocorrência de sufixos participiais perfectizadores 163
TABELA 4 - Ocorrência dos sufixos participiais passivos: -ata / -ita 165
TABELA 5 - Ocorrências de verbo esti + particípio-adjetivo 166
TABELA 6 - Ocorrência de sufixos participiais ativos 168
TABELA 7- Ocorrência de sufixos participiais passivos 169
TABELA 8 - Ocorrência de sufixos participiais aspectuais prospectivos 171
TABELA 9 - Ocorrência de sufixos participiais substantivos ativos e passivos 172
TABELA 10 - Ocorrência do operador ek- em C1 173
TABELA 11 - Ocorrência do operador ek- em C2 174
TABELA 12 - Ocorrência de ek-(1) e ek- (2) em 04 narrativas 174
TABELA 13 - Aspectualizadores inceptivos 175
TABELA 14 - Operadores derivacionais perfectizadores 175
x
LISTA DE GRÁFICOS
GRÁFICO 1 - Estratégia de imperfectização 162
GRÁFICO 2 - Estratégia de perfectização 164
GRÁFICO 3 - Verbo esti + particípio 168
xi
LISTA DE QUADROS
QUADRO 1 - Tipos de aspecto segundo Comrie 57
QUADRO 2 - C1 Narrativas originais em Esperanto 60
QUADRO 3 - C1 Narrativas vertidas para o Esperanto 61
QUADRO 4 - Morfemas raízes 91
QUADRO 5 - Morfemas marcadores de classes de palavras 92
QUADRO 6 - Amostra de itens lexicais 92
QUADRO 7 - Paradigma verbal do Esperanto 98
QUADRO 8 - Particípios ativos e passivos 104
QUADRO 9 - Estrutura do particípio-adjetivo presente ativo 105
QUADRO 10 - Estrutura do particípio-adjetivo passado ativo 106
QUADRO 11 - Estrutura do particípio-adjetivo futuro ativo 106
QUADRO 12 - Estrutura do particípio-adjetivo presente passivo 107
QUADRO 13 - Estrutura do particípio-adjetivo passado passivo 107
QUADRO 14 - Estrutura do particípio-adjetivo futuro passivo 107
xii
QUADRO 15 - Aspectos gramaticais em Esperanto: operadores aspectuais (1) 135
QUADRO 16 - Aspecto imperfectivo: operadores aspectuais (2) 136
QUADRO 17 - Aspectos perfectivos: operadores aspectuais de perfectização 145
QUADRO 18 - Operadores aspectuais adverbiais 184
xiii
LISTA DE ANEXOS
ANEXO I - Narrativas escritas em Esperanto e traduzidas em português 203
ANEXO II - Manifesto de Praga 368
ANEXO III - Fotos de livros 371
ANEXO IV - Foto de falante nativo de Esperanto 374
ANEXO V - Dois artigos de João Guimarães Rosa 376
ANEXO VI - Fotos de atividades educativas 383
ANEXO VII - Fotos de atividades culturais e artísticas 386
ANEXO VIII - Regras da gramática do Esperanto 388
xiv
SUMÁRIO
LISTA DE TABELAS IX
LISTA DE GRÁFICOS X
LISTA DE QUADROS XI
LISTA DE ANEXOS XIII
1 INTRODUÇÃO 16
2 DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO 18
2.1 OBJETO E OBJETIVOS DA PESQUISA 18
2.2 HIPÓTESES E JUSTIFICATIVA 18
3 ORIENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA DA PESQUISA 22
3.1 PRESSUPOSTOS FUNCIONALISTAS 22
3.2 ABORDAGENS SOBRE O(S) ASPECTO(S) 25
3.2.1 Problemática do(s) aspecto(s) 26
3.2.2 Conceitos de aspecto e Aktionsart 30
3.2.3 Aktionsart ou classes aspectuais lexicais 37
3.2.4 Aspecto e tempo 44
3.2.5 Considerações gerais sobre tipologia aspectual 55
3.3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS 60
4 VISÃO GERAL DO ESPERANTO 65
4.1 ESPERANTO COMO LÍNGUA PLANEJADA 65
4.2 INTERLÍNGUA E INTERLINGUÍSTICA 66
4.3 CENÁRIO LINGUÍSTICO DO SÉCULO XIX 67
4.4 BREVE HISTÓRICO DO ESPERANTO E DO MOVIMENTO
ESPERANTISTA 69
4.5 ASPECTOS LINGUÍSTICOS DO ESPERANTO 84
4.5.1 Apresentação da gramática do Esperanto 86
4.5.2. Aspectos da estrutura lexical do Esperanto 89
4.5.3. Processos de formação de palavras em Esperanto 94
4.5.4 O sistema verbal do Esperanto 97
5 A QUESTÃO DOS PARTICÍPIOS 104
xv
5.1 PARTICÍPIOS-ADJETIVOS NAS NARRATIVAS DOS CORPORA C1
E C2 115
5.2 A PREDICAÇÃO EM ESPERANTO 117
6 O ASPECTO EM ESPERANTO: ANÁLISE QUALITATIVA E ESTUDO DE
FREQUÊNCIA 122
6.1 A DISTINÇÃO ASPECTUAL ENTRE PARTICÍPIOS TERMINADOS EM
ATA E ITA 123
6.2 A POLÊMICA QUESTÃO ATA VS. ITA 129
6.3 ESCOLAS ATISTAS VS.ITISTAS 132
6.4 TIPOS DE ASPECTO EM ESPERANTO 133
6.4.1 Aspecto imperfectivo 136
6.4.1.1 Aspecto imperfectivo inceptivo 137
6.4.1.2 Aspecto imperfectivo cursivo 139
6.4.1.3 Aspecto imperfectivo durativo 141
6.4.1.4 Aspecto imperfectivo terminativo 143
6.4.2 Aspecto perfectivo 144
6.4.3 Aspecto prospectivo 152
6.5 RELAÇÃO ENTRE ASPECTO E VOZ EM ESPERANTO 154
6.6 ANÁLISE DAS FUNÇÕES ASPECTUAIS DOS AFIXOS EK- E -5. 156
6.7 ASPECTO ITERATIVO 157
6.8 ESTUDO DE FREQUÊNCIA 161
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS 178
7.1 EXPRESSÃO DO ASPECTO PELAS PERÍFRASES VERBAIS 178
7.2 OPERADORES ASPECTUAIS ORACIONAIS 179
7.3ARGUMENTOS DO VERBO 182
7.4 ADVÉRBIOS E SINTAGMAS ADVERBIAIS ASPECTUALIZADORES 183
7.5 ASPECTUALIDADE E MODO DE ORGANIZAÇÃO DISCURSIVA 188
REFERÊNCIAS 194
REFERÊNCIA DAS NARRATIVAS DE C1 e C2 200
ANEXOS 202
1 INTRODUÇÃO
Na presente tese, procuramos explicitar as estratégias que o usuário da língua
internacional Esperanto utiliza para decodificar o aspecto, isto é, o modo como ocorreu,
ocorre ou ocorrerá a ação, o evento ou o processo verbal no que concerne à sua duração e / ou
realização, codificados como verbo ou nome verbal, isto é, particípio.
Assim sendo, compartilhamos a concepção de que o aspecto permite que as dimensões
temporais de uma situação sejam descritas a partir de diferentes pontos de vista, de acordo
com as necessidades do modo de organização discursiva.
Convém observar ainda que as noções ditas aspectuais apresentam-se codificadas, em
diversas línguas, por meio de variados tipos de expressões linguísticas, abrangendo um
continuum que se estende do lexical ao perifrástico.
Quanto à organização deste trabalho, além deste capítulo de caráter introdutório, no
primeiro capítulo, são feitas a delimitação e a justificativa do objeto de estudo desta pesquisa
bem como a formulação das questões e hipóteses que fundamentam esta tese.
No segundo capítulo, apresentamos os pressupostos funcionalistas que orientam este
trabalho e discutimos as diversas abordagens sobre aspecto, tempo e Aktionsart. Informamos
ainda sobre os procedimentos metodológicos adotados na presente análise.
No terceiro, fazemos um breve estudo sobre o Esperanto, apresentando-o sob o ponto
de vista histórico e linguístico, com algumas informações sobre o movimento esperantista
nacional e internacional.
No quarto capítulo, debruçamo-nos sobre a questão dos particípios, argumentando
sobre a importância do seu emprego como operadores aspectuais da predicação.
No quinto capítulo procedemos à análise qualitativa e estudo de frequência dos dados,
buscando a validação das hipóteses formuladas. Também propomos uma tipologia aspectual
esperanta.
17
No capítulo sexto, que traz nossas considerações finais, aduzimos diversos operadores
aspectuais identificados nos dados dos corpora e tratamos da relação entre aspectualidade e
modo de organização discursiva, reiterando, assim, a validação das hipóteses principais.
2 DELIMITAÇÃO DO OBJETO DE ESTUDO
2.1OBJETO E OBJETIVOS DA PESQUISA
Elegemos como objeto de estudo o uso do aspecto em Esperanto
2
língua
internacional planejada que funciona como meio de comunicação entre pessoas de idiomas
diferentes, há cento e vinte e dois anos.
O objetivo central de nossa proposta é desvendar e descrever as estratégias discursivas
e gramaticais, utilizadas pelos usuários desse idioma para decodificar o aspecto em narrativas
escritas. ―[...] as estratégias dizem respeito ao modo como um sujeito (individual ou coletivo)
é conduzido a escolher (de maneira consciente ou não) um certo número de operações
linguageiras.‖(CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2004, p.219). Em outras palavras, as
estratégias discursivas e gramaticais correspondem aos chamados espaço de coerções e espaço
de estratégias, respectivamente.
3
2.2 HIPÓTESES E JUSTIFICATIVA
Temos como base a hipótese geral de que o aspecto está presente e funciona no uso do
Esperanto, apesar de não constar nas gramáticas descritivas
4
e normativas que tratam dessa
língua internacional.
2
Seguindo a tradição esperantista, grafamos com letra maiúscula o nome da língua, distinguindo-a do particípio
―esperanto‖ , isto é, ―aquele que espera‖.
3
[...] a estruturação de um ato de linguagem comporta dois espaços: [...] um espaço de coerções, que abrange os
dados mínimos aos quais é preciso satisfazer para que o ato de linguagem seja válido, [...] um espaço de
estratégias que corresponde às possíveis escolhas que os sujeitos podem fazer da encenação do ato de
linguagem.‖ (CHARAUDEAU; MAINGUENAU, 2004, p.219)
4
São poucos os pesquisadores que trataram do tema em questão.
19
Como segunda hipótese, postulamos o caráter verbo-nominal do aspecto em
Esperanto, isto é, definimos o aspecto como a representação discursivo-gramatical da
temporalidade interna do verbo e também do particípio.
À luz dos pressupostos teóricos do funcionalismo linguístico norte-americano, as
categorias linguísticas não são discretas ou binárias, mas distribuem-se numa escala gradiente,
num continuum. Com base nessa abordagem, consideramos o particípio uma forma de
transição entre o verbo e o adjetivo, como bem o definem Waringhien e Kalocsay (1980,
p.132). O particípio em Esperanto pertence, pois, a uma classe sui generis: exerce funções
próprias do adjetivo, do advérbio e até do substantivo, sem perder a característica da
verbalidade ou qualidade verbal.
Segundo o modelo funcionalista adotado nesta tese, baseamo-nos em Hopper (1979,
p.219) quando este define o aspecto como ―um recurso ou uma série de recursos que existem
com o objetivo de guiar o usuário da língua no texto‖.
5
6
Aplicando-se os princípios
gestaltistas da organização da percepção
7
, aos planos discursivos do texto, isto é, observando-
se a distinção entre o que é mais central (figura) e o que é mais periférico (fundo), depreende-
se também uma função cognitiva do discurso, além da sua função comunicativa. Nos termos
de Hopper:
Os aspectos distinguem o caminho principal do texto e permitem ao ouvinte
(leitor) armazenar os eventos reais do discurso como um grupo linear,
enquanto simultaneamente processa o acúmulo de comentário e de
informações de suporte, que acrescenta textura, mas não substância ao
discurso propriamente dito. O aspecto, pode, portanto, ser comparado a um
―mecanismo de controle de fluxo‖ (flow-control mechanism) metáfora de
Talmy Givón e como tal tem importante correlação
psicolinguística.(HOPPER, 1979, p.220)
8
Na percepção de eventos, normalmente identificamos alguns fatos como mais salientes
do que outros. De acordo com o interesse e a intenção comunicativa, podemos codificá-los
linguisticamente, transformando-os em narrativas, ou seja, em ―reportagens linguísticas de um
5
A maioria das traduções são de nossa responsabilidade.
6
No original: Aspect considered from a discourse perspective is a device or set of devices which exists in order
to guide the language user through a text.‖
7
―Tendemos a organizar percepções no objeto observado (a figura) e o segundo plano contra o qual ela se
destaca (o fundo). A figura parece ser mais substancial e destacar-se do seu fundo. Figura e fundo são
reversíveis, você pode ver dois rostos ou uma taça (numa determinada ilustração, por exemplo), a depender da
maneira como organiza sua percepção‖.( SCHULTZ; SCHULTZ, 1992,p. 311)
8
No original: The aspects pick out the main route through the text and allow the listener (reader) to store the
actual events of the discourse as a linear group while simultaneously processing accumulations of commentary
and supportive information which add texture but not substance to the discourse itself. Aspect can therefore be
likened to a “flow-control mechanism”, as such, it surely has significant psycholinguistic correlates.‖
20
evento passado e acabado, estocado e disponível na memória dos indivíduos.‖(SILVEIRA,
1990, p.69).
Por meio de uma análise translinguística, Hopper (1979) identificou na narrativa dois
planos distintos e complementares: o plano da figura (foreground), constituído de cláusulas
que reproduzem iconicamente o eixo dêitico-temporal em que os fatos se deram no real e o
plano do fundo (background), formado por cláusulas que formam uma espécie de moldura
para os eventos, dando suporte, ampliando, esclarecendo ou comentando o que é relatado pela
figura.
Para o autor supramencionado, por meio da figura, o falante destaca os fatos mais
importantes do evento, orientando, assim, o seu ouvinte. Tais estratégias são usadas por
diferentes línguas, constituindo essa distinção um universal, com origem em funções
comunicativas centrais e talvez psicológicas, conforme proposta de Hopper e Thompson
(1980, p.283).
Tal postura é discutida por Silveira (1990, p.69) que, com base em McCleary (1982) e
Kálmar (1983), faz uma revisão dos conceitos de figura e fundo, enquanto propriedades
perceptivas e discursivas, mostrando que nem sempre é simples e claro precisar o que é ou
não importante para o desenvolvimento da narrativa.
Em vez de aceitar a distinção puramente dicotômica figura e fundo, em termos de
relevância, a autora em questão apresenta uma visão gradiente, postulando uma ―hierarquia de
fundidade‖ para caracterizar os diversos tipos de fundo. Tal abordagem parte do pressuposto
de Slobin (1987), segundo o qual a relevância (ou figuridade) é codificada por uma escala
funcional, onde a figura funciona como o pico altamente relevante e o fundo como uma
depressão com o menor grau de relevância.
Além de Silveira (1990), linguistas como Tomlin (1987) citado por CUNHA, 2003)
postulam a necessidade de se redefinir a categoria planos discursivos e considerá-la não mais
em termos binários, e, sim, como um continuum cujos polos seriam a superfigura e o
superfundo.
Dentro desse contexto escalar, no texto narrativo, as sequências de eventos são
geralmente expressas por formas verbais perfectivas
9
mais frequentes na construção dos graus
de fundidade do primeiro plano até chegar-se à superfigura, instaurando um lado de maior
9
Do latim perfectivus, a, um, 'que acaba, que conclui completamente’. Em uma primeira definição, entendemos
como perfectiva a forma verbal que denota ação ou processo em sua plena finitude; como imperfectiva, a forma
verbal que expressa ação ou processo não terminados, isto é, ainda em desenvolvimento.
21
relevância ou saliência; enquanto o superfundo, típico do lado mais difuso e mais vago, é
caracterizado por formas verbais imperfectivas.
Dado o exposto, tendo em vista as hipóteses acima delineadas, esta pesquisa justifica-
se, pois, não pela oportunidade de aprofundamento no estudo do aspecto (lexical e
principalmente gramatical) mas também pela importância de trazer uma contribuição para
os estudos linguísticos em geral, pela abordagem de fenômenos concernentes ao Esperanto,
que, como língua auxiliar internacinal, funciona como instrumento de comunicação e veículo
de transmissão de cultura, para milhões de usuários, habitantes de cerca de cento e vinte
países.
RESUMO
Elegemos como objeto de estudo o uso do aspecto em Esperanto. O objetivo central
desta tese é explicitar as estratégias discursivas e gramaticais, utilizadas pelos usuários desse
idioma, para a codificação do aspecto em narrativas escritas. São duas as hipóteses
consideradas: o aspecto está presente e funciona no uso da língua; o aspecto tem caráter
verbo-nominal em Esperanto.
3 ORIENTAÇÃO TEÓRICA E METODOLÓGICA DA PESQUISA
3.1 PRESSUPOSTOS FUNCIONALISTAS
Nesta tese, sob a orientação teórica do funcionalismo linguístico, assumimos a
proposta de Castilho (2002), quando esse autor descreve os diversos recursos linguísticos
utilizados para codificar o aspecto em Português:
Vou fundamentar-me nessas fases para descrever as opções do falante ao
codificar o aspecto: (1) a primeira opção é escolher um item no léxico
marcado pela Aktionsart requerida por sua necessidade expressiva; (2) a
segunda opção é confirmar tal Aktionsart, ou alterá-la, por meio de recursos
morfológicos e sintáticos; a terceira opção é acomodar o aspecto assim
configurado na articulação discursiva. (CASTILHO, 2002, p.85)
Adotamos, portanto, seu ponto de vista composicional quando o autor supracitado
define o aspecto verbal como ―uma propriedade da predicação que consiste em representar os
graus de desenvolvimento do estado de coisas codificado, ou, por outras palavras, as fases
que ele pode compreender‖. (CASTILHO, 2002, p.83) Guiado pelo funcionalismo, o olhar do
linguista - antes centrado apenas na estrutura gramatical - busca abranger agora todo o
fenômeno linguístico-discursivo. Pretende, portanto, dar conta da linguagem em uso no
contexto social, dando relevo ao discurso, para melhor depreender as estratégias criativas do
usuário para organizar funcionalmente seu texto, tendo em vista determinado interlocutor, em
dada situação de comunicação.
Na abordagem funcionalista, discurso e gramática são conceitos que interagem
dinamicamente, numa relação de reciprocidade; compreendidos de modo escalar. Desse
modo, o discurso (interação linguístico-sociocomunicativa) e a gramática relacionam-se na
23
seguinte equação: ―a) a gramática molda o discurso; b) o discurso molda a
gramática.‖(DUBOIS, 1993 a, p. 8 citado por NEVES, 2007, p.29)
Segundo Givón, citado por Neves (2007, p.24), o paradigma funcionalista objetiva
instaurar ―um quadro explícito, sistemático e abrangente de sintaxe, semântica e pragmática
unificadas como um todo‖. Abandona-se então a tradicional concepção modular da gramática,
optando-se pelo conceito de gradiência das categorias, que seriam mais bem explicadas em
termos de extremidades de um continuum, conforme propõe Taylor (1989, p.189-190).
Em termos de Dik (1980, p.1), citado por Neves (2001, p.79), ―a teoria funcionalista
distingue o sistema da língua e o uso da língua, mas evita estudar cada um deles fazendo
abstração do outro.‖
De acordo com Pezatti (2004, p.168), ―no enfoque funcionalista, a pragmática
representa o componente mais abrangente, no interior do qual se devem estudar a semântica e
a sintaxe: a semântica é dependente da pragmática, e a sintaxe, da semântica.‖ Assim, ao
incorporar a pragmática na gramática, o funcionalismo admite determinações discursivas na
sintaxe. (NEVES, 2007, p.25)
Em suma, a teoria funcionalista tem como objetivo fundamental explicar as formas
linguísticas por meio do seu uso real na situação de comunicação. Entende que a gramática de
uma língua natural o obstante configurar um sistema de padrões regulares apresenta
uma maleabilidade estrutural que possibilita o sistema adaptar-se às pressões externas
motivadas por necessidades discursivas do usuário.
Assim, à luz do enfoque funcionalista, também entendemos o aspecto em Esperanto
como uma escolha discursiva do usuário da língua. Este decide, por exempo, entre a
representação perfectiva ou imperfectiva da temporalidade interna de um estado de coisas, por
meio de operadores de aspectualização disponíveis nessa língua internacional.
Segundo Atanasov (1983, p. 52), L. L. Zamenhof (1859-1917), criador do Esperanto
10
não criou propriamente uma teoria sintática da língua. Esta, porém, oferece variados recursos
gramaticais e discursivos para que o usuário possa representar a categoria
11
de aspecto. Tais
recursos emergem no Fundamento de Esperanto (ZAMENHOF, 1991), na seção denominada
Ekzercaro (―Coleção de exercícios‖
que contextualizam a gramática por meio da
10
Desenvolvemos esse tema no Cap. 5 deste trabalho.
11
O aspecto é visto como uma ―categoria‖ por diversos linguistas como Castilho (1968; 2002), Comrie (1976),
Bybee (1985).
24
exemplificação de enunciados-modelo) e nos primeiros textos originais em Esperanto, além
de traduções de obras literárias feitas pelo criador e iniciador
12
do idioma.
É importante ressaltar que foi a partir desse primeiro contexto discursivo literário que
emergiu a sintaxe da língua, imitada pelos primeiros usuários, mas, pouco a pouco, moldada
pelas necessidades comunicativas dos variados falantes internacionais e enriquecida pela
criatividade de poetas, romancistas, cronistas literários, tradutores, ensaístas, jornalistas e
outros.
Tal fato vem confirmar os postulados funcionalistas a respeito da maleabilidade
(BOLINGER, 1977) e emergência (HOPPER, 1987) da gramática das línguas ditas naturais,
características que podem ser, com as devidas ressalvas, estendidas ao Esperanto, cuja
evolução é monitorada pela Academia de Esperanto, órgão consultivo internacional, formado
por linguistas e filólogos de diversas nacionalidades. Seu atual presidente, eleito em 2008, é o
linguista britânico J. C. Wells (University College London) e o vice-presidente é o linguista
indiano Probal Dasgupta (University of Hyderabad), o qual é também o dirigente da UEA
(Universala Esperanto Asocio), Associação Universal de Esperanto.
Para melhor esclarecer a natureza da evolução do Esperanto, valemo-nos da
explicação de Passini :
O Esperanto evolui, mas não exatamente como as línguas nacionais. Isso é
compreensível, tendo-se em vista sua função de interlíngua, usada pela quase
totalidade dos seus falantes como segunda língua. Nessa condição, o
processo inovador funciona menos intensamente, pela cautela natural do
usuário e também pela predominância do uso escrito, oratório formal, sobre
aquele de conversação descontraída, diária. (PASSINI, 2008, p.64)
Dado o exposto, a postura funcionalista aqui adotada possibilita-nos a investigação do
uso do Esperanto que, muito, superou a sua gênese, a saber, um projeto de língua, a qual,
evoluindo numa escala gradiente, encontra-se no ponto de interseção entre o artificial e o
natural. Comporta-se, pois, funcionalmente, como as línguas naturais, como instrumento de
comunicação internacional, adaptada pelo usuário, às diversas situações de interlocução.
12
Zamenhof preferia ser chamado de ―iniciador‖ em vez de ―criador‖ do Esperanto.
25
3.2 ABORDAGENS SOBRE O(S) ASPECTO(S)
Nossa pesquisa tem como base principalmente os conceitos de Castilho (1968; 2002),
Bybee (1985), Comrie (1976) e Bertinetto (2001). A clássica definição de Comrie, a saber,
―aspectos são os diferentes modos de ver a constituição temporal interna de uma situação‖
13
(COMRIE, 1976, p.3), retoma Holt (1943, p.6 ) quando este diz que ―aspectos são as
diferentes maneiras de conceber o desenvolvimento do processo em si mesmo‖
14
, ou seja, a
visão do contorno temporal interno de uma situação.
E ―quando o aspecto é definido como distinguindo modos diferentes de ver a
constituição temporal interna de uma situação, ele claramente se qualifica como uma
categoria gramatical de importância translinguística.‖
15
(BYBEE, 1985, p.152)
Os enunciados (1) e (2) abaixo, apresentados por Campos (1997, p.19), exemplificam
o aspecto de ponto de vista
16
, isto é, perspectivas distintas sobre o evento: um contraste entre
os usos perfectivo e imperfectivo do verbo chover:
(1) Chovia a cântaros esta manhã, quando saí.
(2) Choveu a cântaros esta manhã, quando saí.
A partir de um ponto de referência temporal (quando saí), o uso imperfectivo chovia
explicita um processo em curso, considerado no seu desenrolar; por outro lado, o uso
perfectivo choveu remete para um processo considerado como um bloco que inclui as suas
próprias fronteiras. Desse modo, a distinção entre os usos aspectuais perfectivo e imperfectivo
é baseada na escolha de o usuário fazer uma ―referência explícita à constituição temporal
interna de uma situação‖
17
(COMRIE, 1976, p. 21) ou descrevê-la como um todo inanalisável
único.
Adotamos nesta tese o ponto de vista composicional de Castilho (2002) quando esse
autor define o aspecto verbal como uma propriedade da predicação e entendemos também
como Comrie (1976, p.45) que as situações não são descritas por verbos sozinhos, mas antes
13
No original: ―Aspects are different ways of viewing the internal temporal constituency of a situation.‖
14
Definição de Holt: ―les manières diverses de concevoir l‘écoulement du procés meme‖, i.e, ―different ways of
conceiving the flow of the process itself.‖
15
No original: ―When aspect is defined as distinguishing different ways of viewing the internal temporal
constituency of a situation, it clearly qualifies as a grammatical category of cross-linguistic significance.”
16
―Aspecto de ponto de vista‖ (viewpoint aspect) termo introduzido por Smith (1991), conforme Rothstein
(2004, p. 01)
17
No original: ―(...) explicit reference to internal temporal constituency of the situation.”
26
pelo verbo junto com seus argumentos (sujeito e objetos)‖
18
Desse modo, para corroborar
nossos pressupostos teóricos, acatamos as palavras de Campos:
O princípio da composicionalidade parece reger toda a atividade da
linguagem na sua manifestação nas línguas naturais. Nos estudos sobre a
categoria de aspecto, este princípio é particularmente sublinhado, ao
pretender-se ir para além de uma descrição / enumeração de formas e
valores não contextualizados. (CAMPOS, 1997, P. 183)
3.2.1 Problemática do(s) aspecto(s)
Categoria gramatical de importância translinguística, segundo Bybee (1985, p.152), o
aspecto é também a mais complexa e controvertida. O seu problema começa pela
ambiguidade do termo que, de acordo com o enfoque, pode designar dois conceitos distintos,
embora fortemente interligados: aspecto gramatical (ou simplesmente aspecto), quer se
manifeste por meio do sistema gramatical (isto é, por meio de recursos morfossintáticos de
uma dada ngua) e aspecto lexical, quer se represente por meio de recursos lexicais dessa
língua.
Devido à sua frequência de uso nos estudos aspectológicos, para designar o aspecto na
sua manifestação lexical, o vocábulo alemão Aktionsart (que significa modo de ser da ação,
tipos de ação) estabeleceu-se como termo metalinguístico, sem necessidade de tradução. No
entanto, autores como Comrie (1976) e Lyons (1977), entre outros, que preferem utilizar
designações como ‗significado inerente‘ (inherent meaning) e ‗caráter aspectual‘ (aspectual
character) respectivamente, por considerarem pouco clara a utilização que se faz do termo
Aktionsart.
Assim, Lyons (1977, p.706) decidiu abandonar a palavra alemã e introduzir a
expressão ‗caráter aspectual‘, definindo-o assim: ―o caráter aspectual do verbo, ou
simplesmente, seu ‗caráter‘ se a parte de seu significado por meio do qual ele
(normalmente) denota um tipo de situação em vez de outro‖, ou seja, as propriedades
semânticas inerentes à situação verbal. Em português, distingue-se, por exemplo,―uma ação
que principia, como em partir, uma que termina, como em chegar, uma que se desdobra sem
alusão ao início ou ao fim, como andar, viajar, uma que se repete como em saltitar, etc.
(CÂMARA, 1967, p.141).
18
No original: ―(…) situations are not described by verbs alone, but rather by the verb together with its
arguments (subject and objects).”
27
Em substituição a Aktionsart, também ocorrem outras designações como, por
exemplo, ‗aspecto lexical‘, usado preferencialmente por Rothstein (2004) e também por
Vilela e Koch (2001). Também em lugar de Aktionsart, Bertinetto (2001) criou o termo
‗acionalidade‘(actionality), isto é, o caráter de ação, acional do verbo. Distinguindo aspecto
(gramatical) e acionalidade, assim afirma Bertinetto:
Ele (o aspecto) é então uma categoria completamente independente em
relação à acionalidade, considerando que esta está finalmente ligada ao
significado lexical dos vários predicados. Enquanto o aspecto é veiculado
por recursos morfossintáticos, a acionalidade é uma propriedade do léxico
(embora processos derivacionais possam frequentemente estar envolvidos).
(BERTINETTO, 2001, p. 184)
19
De qualquer forma, cumpre-nos reafirmar, porém, que Aktionsart e aspecto são
categorias linguísticas distintas, mas inextricavelmente entrelaçadas. Comrie apesar de não
adotar o termo Aktionsart apresenta duas distinções entre aspecto e Aktionsart, que
transcrevemos a seguir:
A primeira distinção é entre aspecto como uma gramaticalização de
distinções semânticas relevantes, enquanto Aktionsart representa uma
lexicalização das distinções, independentemente de como tais distinções são
lexicalizadas; esse uso de Aktionsart é similar à noção de significado
inerente. A segunda distinção, que é a usada pela maioria dos eslavistas, e
frequentemente por cientistas de países eslavos ao escrever sobre outras
línguas, é entre aspecto como uma gramaticalização da distinção semântica,
e Aktionsart como uma lexicalização da distinção, contanto que a distinção
seja por meio da morfologia derivacional. (COMRIE, 1976, p.7)
20
Essa segunda distinção, que restringe Aktionsart à morfologia derivacional, torna
ainda mais problemática a questão aspectual, uma vez que os autores divergem quanto a
conceitos como derivação e flexão. Não é sempre fácil traçar limites precisos entre a
morfologia lexical (derivacional) e a flexional, como também entre a morfologia e a sintaxe.
Segundo Mathews (1974, p.38), a mais alta divisão entre flexão e formação de palavras (a
19
No original: It is thus a completely independent category with respect to Actionality, considering that the
latter is ultimately attached to the lexical meaning of the various predicates. In other words, while Aspect is
vehicled by morphosyntactic devices. Actionality is a property of the lexicon (although derivational processes
may often be involved).”
20
No original: The first distinction is between aspect as grammaticalisation of the relevant semantic
distinctions, while aktionsart represents lexicalisation of the distinctions, irrespective of how these distinctions
are lexicalised; this use of aktionsart is similar to the notion of inherent meaning. The second distinction, which
is that used by most Slavists, and often by scholars in Slavonic countries writing on other languages, is between
aspect as grammaticalisation of the semantic distinction, and aktionsart as lexicalisation of the distinction
provided that the lexicalisation is by means of derivational morphology.”
28
última cobrindo derivação e composição) é definida precisamente pela distinção entre ‗formas
do mesmo paradigma‘(flexionais), por exemplo, as formas do verbo CASAR: casar / casei /
casamos / casando etc e ‗formas de paradigmas separados‘ (derivacionais): por exemplo,
verbo CASAR e nome substantivo: CASAMENTO.
Para Bybee (1985, p.11), os elementos semânticos podem ser expressos de três
formas, a saber: lexical, flexional e sintática. A expressão lexical combina dois ou mais
elementos semânticos em um único item vocabular como, por exemplo, a forma verbal matar,
que engloba significados como morrer e causar; em Esperanto murdi (assassinar). Por meio
da expressão flexional, cada elemento semântico é expresso normalmente por um sufixo
terminal adicionado à raiz ou base da palavra. Por definição, a flexão tem traços de
obrigatoriedade e generalidade, como o morfema de número plural nos adjetivos em
concordância com os substantivos: livros novos; em Esperanto, libroj novaj. Na expressão
sintática ou perifrástica expressam-se os diferentes elementos semânticos por meio de itens
lexicais independentes, separados como, por exemplo, a expressão mais usada de futuro em
Português: vou viajar (ao lado da forma verbal flexional viajarei). Em Esperanto podemos
exemplificar com a expressão perifrástica do aspecto inceptivo komenci labori (começar a
trabalhar).
No entanto, ainda segundo Bybee (1985, p.12), a expressão lexical, a flexional e a
sintática (ou perifrástica) não constituem categorias discretas, mas abrangem áreas em um
continuum ou gradiência. Assim, a expressão derivacional, como tipo intermediário, situa-se
entre a lexical e a flexional. Os morfemas derivacionais assemelham-se a expressões lexicais
―no sentido de serem frequentemente restritos na aplicabilidade e idiossincráticos na formação
ou significado.‖(BYBEE, 1985, p.12).
Cumpre-nos ressaltar, todavia, uma peculiaridade do Esperanto com relação à
morfologia derivacional. Os afixos formadores de novas palavras, altamente produtivos em
aplicabilidade tanto os prefixos quanto os sufixos têm autonomia sintática na frase,
identificando-se com itens lexicais independentes. Assim, por exemplo, a forma verbal
mortigi (matar, assassinar) é formada pelo verbo morti (morrer) e pelo sufixo ig (i) causar,
fazer; o verbo konigi fazer conhecer (formado por koni- conhecer e pelo sufixo -ig (i) ); a
forma verbal konstruigi fazer ou mandar construir; supozigi (fazer supor). O sufixo ig
funciona como verbo independente, igi (fazer, mandar) tendo outro verbo como
complemento. Assim, podem-se formar, por exemplo, expressões como igi konstrui (ou
konstruigi) fazer ou mandar construir; igi supozi (ou supozigi) fazer supor.
29
No que se refere ao aspecto, como informa Gonçalves (2005, p.158), vale lembrar
ainda que, ―por sua maior relevância, o aspecto tem alcance morfológico maior que o tempo
no verbo: atua na flexão e na derivação.‖ Tal se aplica também ao Esperanto como pode ser
verificado nos capítulos seguintes.
Podem-se estudar o(s) aspecto(s) sob múltiplos enfoques: no âmbito da tradição da
linguística eslava, oriental, ou no da ocidental, anglo-saxônica; podem-se enfocá-los,
separadamente, a partir de uma perspectiva léxico-semântica de um lado, ou morfossintática
de outro, e ainda sob o enfoque discursivo (Hopper, 1979); ou optar por uma pesquisa que
contemple todos esses enfoques como instrumentos necessários para dar conta das oposições
aspectuais.
Como as distinções aspectuais são de base semântica, elas gramaticalizam-se ou
lexicalizam-se nas línguas de maneiras variadas. Estudos translinguísticos, que exploraram e
compararam várias línguas, como os de Bybee (1985) e Comrie (1976), comprovam que
diversas expressões formais das distinções aspectuais. Também Godoi aborda com
propriedade essa questão:
(...) o aspecto é necessariamente uma categoria semântica universal sujeita a
variações tipológicas e específicas das línguas particulares principalmente no
que diz respeito a configurações morfossintáticas. (GODOI, 1992, p.285)
Assim, nesses últimos cinquenta anos, sob diferentes abordagens, foi construída uma
profícua aspectologia
21
envolvendo múltiplas questões. Graças à variedade de perspectivas
teóricas e classificações muitas vezes divergentes e confusas, Godoi (1992), em sua tese de
doutorado, Aspectos do aspecto, avalia a situação como ―caótica‖, afirmando que ―nos
encontramos diante de uma categoria mal compreendida‖. (GODOI, 1992, p.8)
O problema complicou-se com a tradução francesa do termo alemão Aktionsart
(‗modo ou tipo de ação‘) por ‗aspecto‘, não se traduzindo também o termo alemão Aspekt
(aspecto), por sua vez tradução da palavra russa vid, o que contribuiu para o estabelecimento
da confusão, ―baralhando noções que diziam respeito a níveis linguísticos distintos
(Aktionsart: nível semântico; Aspekt: nível morfológico)‖. (CASTILHO, 1968, p. 42).
21
Termo usado pelo linguista e aspectólogo Prof. Dr. Ataliba de Castilho, em conversa pessoal, em setembro de
2006, na Universidade Federal de Juiz de Fora - MG.
30
3.2.2 Conceitos de aspecto e Aktionsart
Comrie (1976, p.7) informa-nos que foi Agrell (1908) quem fez a primeira distinção
entre os termos aspecto e Aktionsart na linguística eslava; o primeiro como a codificação
gramatical da distinção semântica relevante, o segundo como a lexicalização da distinção,
‗desde que essa lexicalização seja feita por meio da morfologia derivacional‘. Uma outra
distinção entre aspecto gramatical e aspecto lexical restringe menos o sentido de Aktionsart,
que então passa a representar a lexicalização das distinções semânticas, independentemente de
como tais distinções são lexicalizadas. Esse uso de Aktionsart contempla o significado
inerente do lexema
22
verbal.
Para melhor desenvolver o tema proposto, arrolamos abaixo alguns conceitos de aspecto
encontrados na literatura:
(1) Comrie
Como definição geral de aspecto, podemos tomar a formulação de que
‗aspectos são diferentes modos de ver a constituição temporal interna de uma
situação‘. (...) O aspecto não concerne à relação do tempo da situação com
qualquer outro ponto temporal, mas antes com a constituição temporal
interna da situação; pode-se estabelecer a diferença como aquela entre o
tempo interno da situação (aspecto) e o tempo externo da situação (tempo /
tense) (COMRIE, 1976, p.3-5)
Essa definição geral apresentada por Comrie tornou-se o conceito clássico de aspecto,
base de todos os estudos posteriores do referido tema. A estrutura temporal interna da situação
distingue-se do tempo externo, que é uma categoria dêitica, a qual depende da instância do
discurso.
Para ilustrar a definição acima citada, Comrie (1976, p.3) assim o exemplifica em
Inglês, Russo, Francês, Espanhol e Italiano:
a) Inglês: John was reading when I entered.
b) Russo: Ivan čital, kogda ja vošel.
c) Francês: Jean lisait quand j`entrai.
d) Espanhol: Juan leía cuando entré.
e) Italiano: Gianni leggeva quando entrai.
Complementando essa exemplificação de Comrie, acrescentamos as versões em
Português e em Esperanto:
22
Empregamos o termo lexema no sentido de ―unidade fundamental do léxico de uma língua‖ ( the fundamental
unit of the of the language) ( Mathews, 1974, p.22); equivale ao semantema de Vendryes (1958, p. 133).
31
f) Português: João estava lendo quando entrei.
g) Esperanto: possíveis versões: (i) Johano estis leganta kiam mi eniris. (ii) Johano legadis
kiam mi eniris.
Segundo Comrie, em cada uma dessas sentenças, o primeiro verbo apresenta o pano de
fundo para algum evento, enquanto o evento em si é introduzido pelo segundo verbo. Trata-se
da clássica função discursiva do aspecto, apresentada por Hopper (1979): sinalizar a
distinção figura e fundo de que tratamos no terceiro capítulo desta tese.
Prosseguindo com a apresentação das definições:
(2) Bybee
23
O aspecto, então, refere-se exclusivamente à ação ou estado descritos pelo
verbo. Ele não afeta os participantes nem se refere a eles. Portanto deve-se
dizer que o aspecto é a categoria que é mais direta e exclusivamente
relevante para o verbo. (...) De fato, a função do aspecto é permitir que as
dimensões temporais de uma situação sejam descritas a partir de diferentes
pontos de vista, dependendo de como se pretende ajustar a situação ao
discurso. (BYBEE, 1985, p.21; p.142)
Nessas considerações, Bybee não destaca a relevância do aspecto em relação ao
verbo mas também confirma a sua função discursiva.
(3) Castilho
O aspecto é a visão objetiva da relação entre o processo e o estado expressos
pelo verbo e a ideia de duração ou desenvolvimento. É, pois, a representação
espacial do processo. Esta definição, baseada na observação dos fatos,
atende à realidade etimológica da palavra ‗aspecto (que encerra a raiz *
spek = ver ) e insiste na objetividade característica da noção aspectual, a que
contrapomos a subjetividade da noção temporal. [grifos nossos]
(...) Aspecto, ao contrário, é o ponto de vista subjetivo (em relação ao modo
de ação, bem entendido) do falante sobre o desenvolvimento da ação. Reduz-
se a uma compreensão stricto sensu do problema, pois se reporta apenas aos
graus de realização da ação e não à sua natureza mesma, que é a Aktionsart.
Daqui se reduzirem as noções aspectuais a uma bipolaridade, segundo a ação
dure (imperfectivo) ou se complete (perfectivo). [grifo nosso] (CASTILHO,
1968, p.14; p.41)
23
No original: Aspect, then, refers exclusively to the actions or state described by the verb. It does not affect the
participants, nor does it refer to them. Thus, it might be said that aspect is the category that is most directly and
exclusively relevant to the verb. (…) Indeed, the function of aspect is to allow the temporal dimensions of a
situation to be described from different points of view depending on how the situation is intended to fit into the
discourse.”
32
Essa definição de Castilho pode parecer contraditória, pois define aspecto ora como
objetivo ora como subjetivo. A dita objetividade, todavia, é característica apenas com relação
à sua natureza simbólica, isto é, não dêitica; esta última define o tempo verbal. Interessa-nos,
sobretudo, o caráter subjetivo do aspecto, o chamado aspecto de ponto de vista (viewpoint
aspect) de Smith (1991), ou nos termos da acima citada definição de Castilho: ―o ponto de
vista subjetivo (em relação ao modo de ação, bem entendido) do falante sobre o
desenvolvimento da ação‖. (CASTILHO, 1968, p. )
(4) Dubois et al
O aspecto é uma categoria gramatical que exprime a representação que o
falante faz do processo expresso pelo verbo (ou pelo nome de ação), isto é, a
representação de sua duração, de seu desenvolvimento ou de seu acabamento
(aspecto incoativo, progressivo, resultativo, etc.) [...]. (DUBOIS et AL.,
1973, p.53)
24
O que especialmente nos interessa nessa definição de Dubois é a identificação do
aspecto nos nomes de ação, argumento por nós utilizado para caracterizar o aspecto em
Esperanto.
(5) Travaglia
Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO [grifo do autor], não dêitica,
através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases, sendo que
estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do
desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação.
(TRAVAGLIA, 1985, p.53)
Essa definição de Travaglia é ampla e sintética. O autor usa o termo TEMPO (com
letras maiúsculas) para indicar ―o espaço temporal ocupado pela situação‖ (TRAVAGLIA,
1985, p.51), distinguindo, assim, o aspecto da categoria tradicional de tempo verbal, dêitica
como o faz Comrie (1976, p.3-5)
(6) Ilari
As formas do verbo, em português, exprimem simultaneamente tempo,
modo e aspecto [grifo do autor]. Aspecto é uma questão de fases. Dizemos
que o verbo do português exprime aspecto porque ele nos a possibilidade
de representar o mesmo fato, ora como um todo indivisível, ora como um
composto por diferentes ―fases‖, uma das quais é posta em foco. (ILARI,
2004, p.19)
24
No original: L‟aspect est une catégorie grammaticale qui exprime la représentation que se fait le sujet
parlant du procés exprime par le verbe (ou par le nom d‟action), c‟est-à-dire la représentation de as durée, de
son déroulement ou de son achèvement (aspect inchoatif, progressif, résultatif, etc.)”
33
Ilari, por outro lado, em sua definição, enfatiza a característica especial de o aspecto
ser uma questão de fases.
(7) Câmara
em muitas outras línguas que refletem outras culturas do presente e do
passado -, a noção dominante que rege a distribuição das formas verbais, é a
que os linguistas alemães denominaram AKTIONSART, isto é, - maneira de
ser da ação. Em português a exemplo da nomenclatura francesa e inglesa,
traduz-se o termo alemão por ASPECTO [grifo do autor]. Trata-se, com
efeito, do aspecto por que se apresenta o processo verbal do ponto de vista
de sua duração. (CÃMARA, 1967, 141)
Mattoso Câmara, em sua definição, mistura os conceitos de Aktionsart e Aspecto.
Tratamos dessa questão nas seções seguintes.
(8)Verkuyil
Aktionsart e aspecto são a mesma coisa até que haja evidência contrária
aspectualidade é o termo para cobrir os dois termos tradicionais sem
nenhum compromisso a priori com o uso dos dois termos mencionados. [...]
A aspectualidade pode ser vista como um fenômeno unificado concernente a
certas propriedades da estruturação temporal para a qual as línguas
desenvolveram diferentes estratégias de codificação em sua morfologia ou
sintaxe. (VERKUYIL, 1999, p.115-116)
25
Verkuyil (como Mattoso Câmara e muitos outros) mistura Aktionsart e aspecto; em
seu conceito introduz a expressão aspectualidade ―para cobrir os dois termos tradicionais sem
nenhum compromisso a priori com o uso dos dois termos mencionados‖.
No âmbito das inúmeras abordagens aspectológicas, identificamos, portanto, aquelas
que não fazem distinção entre os aspectos lexical e gramatical e outras que distinguem esses
dois conceitos a partir de critérios diversos. Uns linguistas operam com as distinções formais
entre as propriedades aspectuais expressas por uma categoria gramatical (na morfologia
flexional como, por exemplo, o pretérito imperfeito e o perfeito em Português; em Francês o
imparfait ou o passé simple; e as distinções aspectuais que são lexicalizadas por uma
morfologia derivacional (como dormir vs. adormecer ou dormir vs. dormitar) ou que não são
de forma alguma caracterizadas morfologicamente, como a distinção léxico-semântica em
português entre partir e chegar.
25
No original: ―[…] Aktionsart and aspect are the same until there is evidence to the contrary aspectuality
being the term to cover the two traditional terms without any a priori commitment to the use of the two terms just
mentioned (….) Aspectuality can be seen as a unified phenomenon concerning certain properties of temporal
structuring by natural language, for which languages have developed different strategies to encode it in their
morphology or syntax”.
34
Outros postulam uma distinção semântica, como Smith (1991) que distingue o aspecto
de situação - ou aspecto lexical - do aspecto de ponto de vista - ou aspecto gramatical.
Rothstein (2004), ao desenvolver uma análise aspectual de base semântica, associa o aspecto
lexical (seu objeto de estudo) ao aspecto de situação de Smith, correspondente a Aktionsart.
A autora assim distingue os aspectos:
(9) Rothstein
O aspecto lexical, às vezes denominado ―Aktionsart‖ e correspondente ao
aspecto de situação de Smith, cobre distinções entre propriedades de tipos de
eventos (event-types) denotados por expressões verbais, as quais os
linguistas tentaram capturar pela classificação dos verbos em classes. O
aspecto gramatical, em particular o contraste entre perfectivo e imperfectivo,
concerne à distinção de perspectiva sobre eventos, ou ―aspecto de ponto de
vista‖ de Smith. (ROTHSTEIN, 2004, p,1)
26
De modo similar, Castilho (1968, p.41) atribui ao aspecto, em contraste com
Aktionsart, o caráter de ponto de vista subjetivo do falante sobre o desenvolvimento da ação.
Aqui as noções aspectuais se distinguem da natureza mesma do verbo (Aktionsart),
reportando-se apenas aos graus de realização da ação: segundo a ação se complete
(perfectivo), ou segundo a ação dure (imperfectivo).
Também Bache (1982) discute essa questão, determinando que a distinção entre
aspecto e Aktionsart deve ser mantida no terreno da semântica. Assim afirma o autor:
O aspecto é uma categoria mais ou menos SUBJETIVA na medida que ela
envolve a escolha do falante / escritor entre uma descrição perfectiva ou
imperfectiva da situação referida por um verbo, ao passo que Aktionsart é
uma categoria OBJETIVA na medida que ela envolve a constituição real da
situação descrita.‖
27
[grifos do autor] (BACHE, 1982, p.64).
Sob essa perspectiva, deparamo-nos com a objetividade simbólica do aspecto lexical
(Aktionsart) - que não depende do olhar do usuário, uma vez que diz respeito ao léxico,
fazendo parte de um elenco de propriedades semânticas que caracterizam determinados itens
lexicais verbais - e a subjetividade do aspecto gramatical - que é uma opção do falante para
suprir suas necessidades comunicativas e discursivas. Por outro lado, cumpre observar que
26
No original: Lexical aspect, sometimes called „Aktionsart‟ and corresponding to Smith‟s situation aspect,
covers distinctions between properties of event-types denoted by verbal expressions, which linguists have tried to
capture by classifying verbs into verb classes. Grammatical aspect, in particular the contrast between perfective
and imperfective, concerns the distinction in perspective on events, or Smith‟s „viewpoint aspect‟.”
27
No original: Aspect is a more or less SUBJECTIVE category in that it involves the speaker/writer‟s choice
between a „perfective‟ or „imperfective‟ description of the situation referred to by a verb, whereas Aktionsart is
an OBJECTIVE category in that it involves the actual constituency of the situation described.”
35
mesmo essas propriedades léxico-semânticas não são estanques; Campos (1997, p.14), por
exemplo, concorda com os que falam em ―[...] ‗tendência‘ (ou ‗orientação‘) aspectual dos
lexemas que, em definitivo, só no emprego discursivo se confirma ou não‖, já que ―uma teoria
linguística deve dar conta - de maneira integrada - da semântica e da pragmática‖.
28
(HOPPER;TRAUGOTT, 1993, p. 69).
Para Corôa (2005, p.65), o aspecto limita-se com o modo de ser da ação (Aktionsart) e
distingue-se dele, embora ambos possam frequentemente expressar o mesmo conteúdo. A
autora caracteriza o aspecto como categoria gramatical e o modo de ser da ação como
categoria léxico-semântica. Segundo Corôa, a distinção semântica expressa pelo aspecto
reduz-se à oposição imperfectivo / perfectivo, ancorando-se na definição de aspecto como
tempo inerente ao evento.
Costa (1990, p.23), ao fazer uma abordagem semântica do aspecto, opta por não
postular duas categorias distintas, a saber, aspecto e modo de ser da ação. Justifica tal postura
por ser mais econômica para a análise. Baseando-se também no conceito de aspecto revelado
por Comrie, a autora supramencionada (1976, p.33) postula que a oposição aspectual sica
em português caracteriza-se por opor a não-referência à constituição temporal interna (termo
não marcado: o perfectivo) a essa referência (termo marcado: o imperfectivo).
Segundo Costa, distingue-se o perfectivo por não admitir subdivisões quanto à sua
temporalidade interna; o fato expresso está referido no enunciado como um bloco inteiriço. O
imperfectivo, porém, expressa essa temporalidade interna, admitindo tais subdivisões:
[...] pode referir o fato como em curso; pode referir uma das fases
constitutivas da temporalidade interna do fato (inicial, intermediária, final);
ou referir o fato como um estado resultante de um processo anterior.‖
(COSTA, 1990, p. 33).
Por outro lado, Vilela e Koch (2001, p.70), utilizando-se de um único termo, aspecto,
distinguem dois tipos de aspecto: o aspecto lexical, isto é, ―modo de ação‖, ligado ao
significado do lexema verbal, e o aspecto gramatical, ligado aos tempos verbais. Nos termos
dos autores supracitados:
Os verbos podem indicar o decurso (ou tempo interno) e a quantificação do
acontecer verbal.[...] A aspectualidade pode insistir no tempo interior
(princípio, duração, fim), na qualidade ou quantidade do acontecer verbal
28
No original: […] linguistic theory should eventually provide an integrated account of semantics and
pragmatics.”
36
(intensificação, diminuição, quantificação, etc.). (VILELA; KOCH, 2001,
p.70)
A maioria dos manuais de gramática define o verbo como ―a palavra que exprime um
fato (ação, estado ou fenômeno) representado no tempo.‖(CUNHA, 1983, p.253). Tal
definição, todavia, não contempla a complexidade dos significados gramaticais do verbo que
se apresentam em uma ordem decrescente de relevância, assim hierarquizados, segundo
Bybee (1985, p. 24):
[+relevante] [-relevante]
valência > voz > aspecto > tempo > modo > concordância de número> concordância de
pessoa.
Segundo a autora, as relações de valência
29
são mais relevantes, pois alteram
substancialmente o conteúdo do verbo. Tendo investigado amostras de cinquenta línguas,
Bybee (1985, p.13) conclui que a relevância depende da saliência cultural ou cognitiva. Além
disso, esse princípio pode determinar o tipo de expressão linguística, por exemplo,
significados reciprocamente importantes tendem a manifestar-se por meio de recursos lexicais
ou morfológicos.
Com relação ao verbo, a autora supracitada afirma que ―uma categoria é relevante na
medida que o significado da categoria afeta diretamente o conteúdo lexical da raiz
verbal.‖
30
(BYBEE, 1985, p.15) Exemplificando sua afirmação, ela compara a categoria de
aspecto com a de concordância de pessoa com o sujeito da oração. Retomando o conceito de
aspecto apresentado por Comrie, Bybee demonstra a alta relevância do aspecto para o verbo,
que aquele se refere exclusivamente à ação ou estado descritos por este. Conforme essa
autora, o aspecto lexical não afeta os participantes nem se refere a eles. Por isso, ele é a
categoria que é mais direta e exclusivamente relevante para o verbo. Por outro lado, ―a
concordância com o sujeito é algo menos relevante para o verbo, visto que ela se refere a um
argumento dele, e não à ação ou estado descritos pelo verbo em si.‖
31
(BYBEE, 1985, p.15)
Ainda segundo Bybee, quando o aspecto é uma categoria gramatical flexional, a
mudança de sentido efetuada por ele tende a ser pequena. A autora (1985, p. 21), citando
Hopper (1977), afirma que o ‗aspecto flexional‘ serve para indicar como a ação ou estado
29
Valência diz respeito ao número de sintagmas nominais (argumentos) exigidos pelo verbo; por exemplo, o
verbo dar é trivalente: exige um sujeito e dois objetos como, por exemplo: Maria deu um livro a João.
30
No original: A category is relevant to the verb extent that the meaning of the category directly affects the
lexical content of the verb stem.”
31
No original: Subject agreement is somewhat less relevant to the verb, since it refers to an argument of verb,
and not to the action or state described by the verb itself.”
37
descritos pelo verbo deverão ser vistos no contexto do discurso como um todo. A informação
de fundo é expressa por formas verbais imperfectivas, e a informação de figura da linha
narrativa principal aparece na forma verbal perfectiva. Esse uso discursivo do aspecto deixa o
significado básico do verbo não afetado, e somente muda sua relação com a unidade
discursiva.
3.2.3 Aktionsart ou classes aspectuais lexicais
A tradicional classificação semântica dos verbos é herdeira da filosofia do século XX.
Foi, sobretudo, a classificação de Vendler (1967) - referência indispensável em estudos sobre
Aktionsart e aspecto - que se tornou a mais influente nas pesquisas linguísticas dos últimos
quarenta anos.
Na obra Linguistics in Philosophy (1967), Vendler trata dos esquemas temporais (time
schemata) mais comuns pressupostos por vários verbos ingleses. Esse autor (1967, p. 107)
distribui os verbos ingleses em quatro classes semânticas
32
, a saber:
a) estados (states): ter (have), possuir (possess), desejar algo,(desire something), querer algo
(want something),gostar(like), amar(love), odiar(hate), saber(know), acreditar em coisas
(believe things);
b) atividades (activities): correr(run), caminhar (walk), nadar (swim), empurrar algo puxar
algo (push something), puxar algo ( pull something );
c)
accomplishments
33
: pintar um quadro (paint a picture), fazer uma cadeira (make a chair),
escrever um romance (write a novel), ler uma novela (read a novel); construir uma casa (build
a house);
d) achievements: reconhecer (recognize), compreender (realize), localizar algo (spot
something), perder um objeto (lose an object), encontrar um objeto (find an object), alcançar
o topo (reach the summit ), ganhar uma corrida (win a race).
32
Tal divisão remete-nos a algumas categorias aristotélicas como estado e ação.
33
Os termos accomplishment e achievement estão consagrados na literatura. O equivalente a accomplishment
em espanhol é realización; logro equivale a achievement; em português a tradução seria realização e
consecução, respectivamente.
38
É interessante notar que a intuição de Vendler não distinguia apenas os verbos
isoladamente, mas contemplava os sintagmas verbais (verbos e seus complementos).
Intuitivamente, os verbos ditos de accomplishment como em pintar um quadro, fazer uma
cadeira, correr um quilômetro implicam uma ‗tarefa‘ a ser realizada e são processos que têm
um ponto final natural. De modo geral, estados são situações não dinâmicas, tais como ser
feliz, amar; atividades são processos de final aberto, como correr, brincar; por outro lado,
achievements são eventos quase instantâneos que acabam assim que começam, tais como
notar, achar, perder, conseguir.
Os verbos de atividade e os de accomplishment compartilham a noção de progresso no
tempo, isto é, têm tempo contínuo. Todavia, enquanto os verbos de atividade seguem no
tempo de modo homogêneo, pois qualquer parte do processo é da mesma natureza do que o
todo, o mesmo não ocorre com os accomplishments do tipo de correr um quilômetro ou
escrever uma carta. Estes predicados também seguem no tempo, mas continuam em direção a
um término que é logicamente necessário para que o evento se efetive. (VENDLER, 1967,
p.101-102)
De acordo com Rothstein (2004, p. 7), a classificação vendleriana expressa uma
intuição de que duas propriedades que são cruciais na categorização dos tipos de eventos:
telicidade e fases. Um tipo de evento é télico se ele tem um ponto de parada natural, chamado
ponto de culminação ou ponto de conjunto terminal; um tipo de evento (ou ―eventualidade‖
nos termos da autora) tem fases, se podemos analisá-lo como progressivo ou em
desenvolvimento.
A primeira propriedade [+ télico] agrupa accomplishments e achievements, de um
lado; e estados e atividades, de outro. Essa propriedade remete à distinção aristotélica kinesis
vs. enérgeia. ‗Eventualidades‘ do primeiro tipo são [+ télicos] ou télicos, apresentando uma
delimitação inerente ou potencial, isto é, tendem para um telos, um ponto final, cujas
propriedades são determinadas pela descrição do evento. ‗Eventualidades‘ do segundo tipo
são [- télicas] ou atélicas, pois não apresentam uma delimitação interna, não visam a um telos,
isto é, uma vez que elas começaram, podem continuar indefinidamente, que a natureza do
evento em si não determina seu ponto final.
Em outras palavras, se alguém parar de correr um quilômetro, ele não correu
um quilômetro; se alguém parar de desenhar um círculo ele o desenhou
um círculo. Mas o homem que para de correr, de fato correu, e aquele que
para de puxar uma carroça, realmente a puxou. (...) correr um quilômetro ou
39
desenhar um círculo têm que ter um clímax, que tem que ser atingido.
(VENDLER, 1967, p.100)
34
À semelhança da telicidade, a perfectividade ( na visão de alguns linguistas) também
se refere ao ponto final do intervalo relevante (correspondente ao tempo do evento de dado
predicado). Bertinetto (2001, p. 201), todavia, apresenta a seguinte distinção terminológica:
terminatividade e delimitação, termos referentes a perfectividade e telicidade
respectivamente, ou seja, o primeiro ligado ao domínio do aspecto e o segundo ao campo da
classe acional (‗acionalidade‘ ou Aktionsart).
Com relação à perfectividade, o ponto final é externo ao evento; condicionado pela
visão perfectiva assumida pelo usuário, que escolhe ver o evento em sua inteireza, isto é,
como correspondendo a um intervalo fechado à sua fronteira direita, independente da natureza
acional do predicado envolvido. Quanto à delimitação, porém, o ponto final é interno ao
evento télico. A interpretação perfectiva é a que tipicamente realiza a telicidade inerente do
predicado télico. Assim, por exemplo, em João construiu uma cadeira, um estado de a
cadeira estar construída, como uma consequência do evento de construir.
Conforme Bertinetto (2001, p.202), cumpre notar que ―o relacionamento entre
delimitação e terminatividade não é simétrico, tanto eventos télicos quanto atélicos podem ser
vistos como aspectualmente terminados.‖
35
Apesar de a telicidade implicar a perfectividade
(isto é, a delimitação implicar a terminatividade), a perfectividade é neutra com relação à
telicidade (isto é, a terminatividade não implica a delimitação). Podemos exemplificar com o
uso perfectivo de uma situação atélica, isto é, uma situação aspectualmente terminada que se
refere a uma situação não delimitada como:
(3) Ontem o bebê chorou a manhã toda.
Aqui a situação é apresentada perfectivamente do ponto de vista aspectual, isto é,
como terminada (ou seja, limitada por um intervalo fechado) independentemente das
propriedades semânticas inerentes do predicado, isto é, de sua atelicidade.
Por outro lado, uma situação télica pode ser apresentada imperfectivamente, como não
terminada, uma vez que o aspecto imperfectivo não implica atingir o telos como no enunciado
a seguir:
(4) João estava desenhando um círculo.
34
No original: In other words, if someone stops running a mile, he did not run a mile; if one stops drawing a
circle, he did not draw a circle. But the man who stops running did run, and he who stops pushing the cart did
push it. (…) running a mile and drawing a circle do have a „climax,‟ which has to be reached.”
35
No original: The relationship between boundedness and terminativity is not symmetric: both telic and atelic
events may be viewed as aspectually terminated.”
40
Bertinetto (2001, p.183) diz que esse fato é conhecido como o ―paradoxo do
imperfectivo‖, embora o autor prefira outra denominação como o ―paradoxo da telicidade‖.
Aqui a suspensão da telicidade deve-se à construção imperfectiva. Em uma sentença de
sentido aspectual progressivo como João estava desenhando um círculo, um intervalo
aberto, uma vez que o ponto final (potencial) do evento télico é deixado não especificado: o
círculo pode ou não ter sido completado.
As limitações recíprocas das classes vendlerianas podem ser avaliadas na base dos
traços [± durativo], [±dinâmico], [± homogêneo], conforme esta tabela de Bertinetto :
TABELA 1 - Tabela de Bertinetto
Durativo
Dinâmico
Homogêneo
Estados
+
-
+
Atividades
+
+
+
Achievements
-
+
-
Accomplishments
+
+
-
Fonte: BERTINETTO, 2001, p.178
Com relação ao traço ‗duração‘, estados, atividades e accomplishments são [+
durativos]. Por outro lado, como qualquer evento leva alguma quantidade de tempo físico para
ocorrer, a noção [-durativo] evidentemente deve ser interpretada em um sentido estritamente
operacional, linguístico. Os verbos de achievement denotam eventos intuitivamente
considerados [-durativos], quase instantâneos, que acabam assim que começam como
reconhecer, localizar, notar, achar, perder, alcançar, morrer etc.
O traço ‗dinamicidade‘ é intuitivamente mais claro. Geralmente estados são
considerados [-dinâmicos] em oposição a atividades, accomplishments e achievements. Em
termos de Bertinetto (2001, p.180) ―[...] estados, em oposição a eventos dinâmicos, não têm
granularidade interna: eles o ‗densos‘, i. e., sua estrutura é isomórfica com a estrutura do
tempo.‖
36
Todavia a divisão entre estados e eventos dinâmicos não é uma oposição
dicotômica nítida, pois tais significados não são bem demarcados. Devem ser considerados os
significados intermediários entre o [+ dinâmico] e o [-dinâmico] nesses dois eixos do campo
semântico, sendo fundamental a noção de continuum.
36
No original: ―[…] states, as opposed to dynamic events, have no internal granularity: they are „dense‟, i.e.
their structure is isomorphic with the structure of time.”
41
Bertinetto propõe uma interpretação das classes vendlerianas com ―embasamento
ontológico e formal‖
37
(2001, p.181). Para o autor, um evento é composto de ―átomos
dinâmicos‖, instanciados por uma sequência nima de gestos. Analogamente, os estados
podem ser também concebidos como compostos de átomos estáticos. Entretanto há uma
diferença entre os átomos dinâmicos e estáticos: os dinâmicos correspondem a uma
granularidade mínima permitida pelo dado evento considerado; por isso eles não o
divisíveis indefinidamente, diferindo dos estados que não têm granularidade e podem ser
divididos à vontade. Assim, ainda em termos de Bertinetto:
Eventos durativos são compostos de um conjunto de átomos (dinâmicos ou
estáticos, conforme exigido), enquanto os não durativos (i. e. achievements)
consistem idealmente de um único átomo dinâmico. Contudo, uma vez que
achievements são eventos não homogêneos, além de um átomo dinâmico
eles também apresentam um átomo estático, instanciando o ‗telos‘ atingido
pelo completamento do evento. De modo semelhante, os accomplishments
também envolvem um átomo estático e acréscimo a um conjunto de
dinâmicos. (BERTINETTO, 2001, p.181)
38
O traço ‗homogeneidade‘refere-se à falta de uma fronteira interna, inerente ao evento.
Estados e atividades são considerados [+ homogêneos]. Segundo Bertinetto (2001, p.179)
―eventos atélicos possuem a propriedade de ‗subintervalo‘ (‗sub-interval‟ property), pela qual
se entende que se um evento f ocorre em um intervalo I, f também ocorre em qualquer
subintervalo relevante de I. [...]‖.
39
Literalmente, essa propriedade somente funciona com
verbos de estados, de modo que cada ―constituinte‖ da situação é exatamente igual a todo
outro ―constituinte‖ e, portanto, nenhuma fase pode ser distinguida.
Por exemplo:
(5) Maria amou João durante trinta anos
Esse enunciado implica que em qualquer tempo, durante aqueles trinta anos, ela o amou.
Cumpre observar que, com verbos de atividades, são permitidas lacunas pragmaticamente
irrelevantes, como é o caso do enunciado (6):
37
No original: ―Ontological and formal grounds.‖
38
No original: Durative events consist of a set of atoms (dynamic or static as required), while non-durative
ones (namely, achievements) ideally consist of a single dynamic atom. However, since achievements are
dishomogenous events, in addition to the dynamic atom they also present a static atom, instantiating the „telos‟
attained by the completion of the event. Similarly, accomplishments also involve a static atom in addition to a set
of dynamic ones.”
39
No original: Atelic events are generally said to possess the „sub-interval‟ property, by which it is meant that
if event occurs at interval I, f also occurs at any relevant sub-interval of I.”
42
(6) João trabalhou o dia inteiro. Evidentemente, sabe-se que João não trabalhou sem parar:
ele parou para descansar, almoçar, etc. Todavia, as descontinuidades pragmáticas no interior
do evento podem ser desconsideradas para o propósito da propriedade de subintervalo.
Ainda de acordo com Bertinetto (2001, p. 179), a interpretação correta dessa
propriedade deve ser modulada pela granularidade distinta do evento dado. Uma análise
ligeira de exemplos de verbos de atividades como andar, chorar e esperar mostra-nos que a
granularidade de chorar é mais fina do que a de andar, mas é mais grosseira do que a de
esperar, que denota situação muito mais próxima de um estado, uma vez que qualquer
subintervalo de esperar pode literalmente instanciar um ato de tal espécie.
A classificação vendleriana dos verbos em estados, atividades, achievements e
accomplishments é útil em termos de predição do comportamento linguístico de predicados
verbais, ou seja, predição de como verbos de classes verbais particulares interagem com
argumentos e modificadores.
Embora não seja este o foco de nosso objeto de estudo, é válida a referência às
pesquisas sobre Aktionsart, pois, nos termos de Rothstein (2004, p. 4), ―as classes aspectuais
lexicais não são generalizações sobre os significados dos verbos, mas conjuntos de restrições
sobre como a gramática nos permite individualizar eventos‖.
40
Desse modo, ―estado‖,
―atividade‖, ―achievement‖ e ―accomplishment‖ são propriedades de verbos.
Ainda na abordagem de Rothstein (2004, p.33), telicidade e atelicidade, porém, são
propriedades de SVs (sintagmas verbais). O modo de determinação da (a)telicidade dependerá
da característica da classe verbal particular. Por exemplo: (a) construir uma casa e (b)
construir casas, são respectivamente SVs télico e atélico em cujos núcleos um verbo de
accomplishment (construir); (c) correr até o mercado ou (d) correr um quilômetro são ambos
SVs télicos, em cujos núcleos há um verbo de atividade.
Com relação à telicidade, o status do SV depende da interação do significado do V
(verbo) com outros elementos no SV.
41
É a estrutura do objeto direto de um accomplishment
como, por exemplo, construir que determinará se ele é núcleo de um SV télico ou atélico; no
exemplo (b), o SN plural, sem determinante, casas, foi responsável pela atelicidade. Assim,
verbos como construir, escrever, comer são télicos quando seus argumentos temáticos têm
determinantes definidos, quantificados, ou numéricos, e são atélicos quando o mesmo
argumento é um nome de massa ou um ―plural nu‖ (ing. bare plural), isto é, constituído
40
No original: ―[…] lexical aspectual classes are not generalizations over verb meanings, but sets of constraints
on how the grammar allows us to individuate events.”
41
Esse tema foi discutido originalmente por Verkuyil (1972).
43
apenas do nome plural sem determinantes; como por exemplo, cartas, em ―ele escreve
cartas‖.
(7) João escreve três cartas [em meia hora]. (télico)
(8) João escreve cartas [durante horas]. (atélico)
Por outro lado, um SN denotando medida ou direção pode tornar télico um SV cujo
núcleo é um verbo de atividade, atélico, como correr:
(9) João correu de manhã. (atélico)
(10) João correu um quilômetro. (télico)
(11) Maria correu até o mercado. (télico)
O contexto também pode motivar a leitura télica de um predicado encabeçado por um
verbo de atividade. Rothstein (2004, p.31) chama esse condicionamento de ―instância de
coerção‖: o modificador ―em um tempo X‖ força uma interpretação do predicado verbal como
télico. No exemplo contextualizado abaixo, o verbo de atividade correr é interpretado como
núcleo de um predicado télico com o sentido de ―correr uma distância específica‖, aceitando o
modificador télico ―em um tempo X‖.
Exemplo de contexto: Todos sabem que João da Silva é um maratonista e que, no
domingo anterior, houve uma maratona em sua cidade, por isso ele pode dizer:
(12) - Domingo passado eu corri (em) 2 horas e 20 minutos. (télico)
Como contribuição para a gramática, a teoria vendleriana das classes aspectuais
lexicais é, portanto, válida em termos de predição do comportamento linguístico de
predicados verbais. Para Rothstein (2004, p. 196), ―a teoria do aspecto lexical não apenas
restringe quais eventos são individuados. Ela restringe como predicados podem mudar de uma
classe para outra.‖
42
Conquanto o aspecto lexical (ou Aktionsart) não seja o objeto de estudo primordial
deste trabalho, a teoria do aspecto lexical de Rothstein e a abordagem de Bertinetto das
classes semânticas verbais são pressupostos indispensáveis para embasar a nossa proposta de
descrição do aspecto em Esperanto, dando suporte à leitura do uso aspectual das estratégias
discursivo-gramaticais em narrativas esperantas originais e traduzidas.
Os verbos do Esperanto também podem ser divididos semanticamente nas classes
lexicais vendlerianas: estados, atividades, accomplishments e achievements. Essas
propriedades semânticas, inerentes aos verbos, são muito úteis em termos de predição do
comportamento linguístico dos afixos participiais na codificação do aspecto, especialmente
42
No original: The theory of lexical aspect doesn‟t only constrain which events are individuated. It constrains
how predicates can shift from one class to another.”
44
quanto aos particípios-adjetivos passivos terminados em at(a) e it(a) que são estudados no
próximo capítulo.
3.2.4 Aspecto e tempo
Do ponto de vista filosófico, a tradicional aspectologia ocidental é herdeira da
classificação semântica aristotélica dos verbos. Aristóteles distingue duas classes verbais: a
dos estados e a dos processos e estes, ainda segundo o filósofo, subdividem-se em
movimentos (kinesis) e atividades (enérgeia). Aristóteles ―distingue os verbos de kinesis
como ―construir‖, os de exis, como ―viver‖, os de praxis , como ―pensar‖. (NEF, 1995, p. 41)
No contexto das abordagens filosóficas da linguagem, o filósofo neoplatônico Plotino,
por exemplo, preocupa-se em classificar as ações e apresenta sua própria classificação dos
verbos, ao distinguir atos instantâneos e atos sucessivos. Conforme se lê em Nef (1995, p.40),
Plotino não segue a divisão aristotélica entre o agir e o sofrer, e questiona assim o primeiro:
―o agir, segundo eles [os peripatéticos], compreende os atos e os movimentos, os atos que se
produzem instantaneamente, e os movimentos que se produzem sucessivamente, como a ação
de cortar?‖
Em uma definição geral, básica, o que caracteriza o aspecto é a ideia de duração de
um evento, processo ou estado, não implicando o tempo de sua ocorrência com relação ao
momento da enunciação. Conforme Vendryes, o indo-europeu preocupava-se mais com a
duração do que com o tempo:
O que o interessava em uma ação não era indicar em que momento (passado,
presente ou futuro) se executava, mas, sim, indicar se era considerada em sua
continuidade ou somente em um ponto de seu desenvolvimento, se era um
ponto inicial ou o final, se a ação se efetuava uma só vez ou se repetia, se
tinha um término e um resultado.Daí as distinções que adotou a Gramática
Comparada entre verbos durativos, ou instantâneos, perfectivos ou
imperfectivos, incoativos, iterativos, terminativos, etc. (VENDRYES, 1958,
p.153)
43
Desse modo, de acordo com a história das nguas indo-europeias, a noção de tempo é
mais recente do que a de aspecto; em alguns casos, sendo este substituído por aquele.
43
No original: Lo que se interesaba en una acción no era indicar en qmomento (pasado, presente o futuro)
se ejecutaba, sino indicar si se la consideraba en su continuidad o sólo en un ponto de su desarrollo, si era el
punto inicial o el final, si la acción se efectuaba una sola vez o se repetía, si tenía un término y un resultado. De
ahí las distinciones que ha adoptado la Gramática comparada entre verbos durativos o instantáneos, perfectivos
o imperfectivos, incoativos, iterativos, terminativos, etc.”
45
Cumpre-nos, todavia, esclarecer que não houve uma radical supressão da categoria de aspecto
em proveito da de tempo. Como observa Câmara (1967, p.145), ―trata-se apenas de uma
predominância da categoria de tempo para a classificação e distribuição das formas verbais,
isto é, para o sistema de conjugação.‖
Não obstante, a noção de aspecto sobrevive nas línguas modernas anglo-saxônicas e
neolatinas, como Vendryes o demonstra, exemplificando com o alemão, o inglês e o francês e,
com relação a este último, o autor assim argumenta:
O francês não é, pois, inapto para expressar o aspecto, que
encontramaneira de fazê-lo quando tem necessidade. Somente que o aspecto
não é em francês uma categoria gramatical regular. Dado um verbo francês,
não se podem indicar seu iterativo ou durativo da mesma maneira que se
indica o futuro ou o imperfeito.
44
(VENDRYES, 1958, p.162)
Apesar disso, para compreender-se o sistema verbal do sânscrito ou do grego antigos é
necessário levar em consideração as noções aspectuais. De acordo com Lyons (1970, p. 12)
deve-se também a Aristóteles o reconhecimento da categoria de tempo no verbo grego,
depreendendo noções como ‗presente‘ e ‗passado‘ a partir de certas variações sistemáticas das
formas verbais. No entanto, foram os estoicos que identificaram nos verbos gregos algo mais
do que a referência apenas temporal, a saber, a realização ou não-realização da ação expressa
pela forma verbal.
Era o aspecto, portanto, que regulava o emprego do verbo indo-europeu. Em termos de
Castilho:
[...] os temas verbais mais relevantes eram o do aoristo, que expressava o
processo considerado em si mesmo, o do presente, que indicava o processo
em seu desenvolvimento, e o do perfeito, que representava o estado
consequente a um processo cumprido. (CASTILHO, 1968, P.22-23)
Dentre as línguas indo-europeias, somente as eslavas conservaram até hoje a categoria
de aspecto como eixo principal do seu sistema verbal. Segundo Lyons (1977, p.705), o termo
aspecto foi primeiramente empregado para a distinção entre perfectivo e imperfectivo na
flexão dos verbos do russo e de outras línguas eslavas. O aspecto perfectivo lembra o termo
que empregavam os gramáticos estoicos para a noção bastante parecida com ―acabamento‖,
44
No original: El francés no es, pues, inapto para expresar el aspecto, ya que encuentra manera de hacerlo
cuando tiene necesidad. Solamente que el aspecto no es en francés, no se pueden indicar su iterativo o durativo
de la misma manera que se indica el futuro o el imperfectivo.”
46
em oposição ao imperfectivo (duração). Por exemplo, em relação ao polonês, nos termos de
Nadalin:
[...] ao se consultar um dicionário português-polonês, é comum encontrar
para um determinado verbo português, pelo menos dois verbos
correspondentes em polonês. Por exemplo, o verbo português escrever
corresponde, em polonês, a pelo menos dois verbos pisać e napisać, sendo o
primeiro imperfectivo e o segundo perfectivo.
Correspondendo ao único verbo português escrever, os verbos poloneses
pisać (imperfectivo) e napisać (perfectivo) significam, respectivamente,
―estar escrevendo‖ e ―escrever algo do começo ao fim‖. (NADALIN, 2005.,
p.32)
Lyons (1970, p.241) informa-nos que, no sistema aspectual grego, além da distinção
perfectivo vs. imperfectivo, um terceiro termo, o aoristo que, em certas posições sintáticas,
está em oposição ao mesmo tempo com o perfectivo e com o imperfectivo. A distinção
imperfectivo / aoristo refere-se à duração da ação descrita. Por exemplo, ao aoristo
bouleúsasthai (―decidir‖, sem indicação do fato de que a decisão é momentânea ou não) opõe-
se o imperfectivo bouleúesthai, que significa ―estar decidindo, ocupado em decidir‖. Por outro
lado, como foi mencionado acima, a oposição perfectivo / imperfectivo, em grego, diz
respeito ao acabamento; assim, ao imperfectivo bouleúesthai ―estar decidindo‖ opõe-se o
perfectivo bebouleŭsthai, ―ter decidido‖. Tal sistema de três formas pode ter sido uma
característica do indo-europeu, já que as noções aspectuais de acabamento e de duração
encontram-se, em conjunto ou separadamente, em muitas línguas.
Nos termos de Câmara (1967, p.144) ―é também uma distinção de aspectos que
constitui na conjugação latina a divisão entre formas IMPERFEITAS, ou de INFECTUM, e
formas PERFEITAS, ou de PERFECTUM. ‖ [grifos do autor]. O infectum exprime o processo
em sua realização; o perfectum, a ação concluída; por exemplo, respectivamente, făcio (faço):
fēci (fiz), com alternância vocálica no tema do perfectum (fēci), em contraste com o tema do
infectum (făcio). Essa base aspectual manteve-se na conjugação do verbo em latim clássico.
Segundo informações de Castilho (1968, p.21), o gramático comparativista alemão
Georg Curtius, em 1846, ao estudar a formação dos tempos e modos dos verbos gregos ,
comparando-os com o sistema verbal das línguas eslavas, identificou os ―graus do tempo‖ (al.
Zeitstufe), isto é, o presente, o passado e o futuro, e a ―qualidade do tempo‖(Zeitart), de
denotação aspectual: a) ação durativa, expressa pelas formas do tema presente; b) ação
incipiente, indicada pelas formas do tema do aoristo, e c) ação completa, atualizada pelas
formas do tema do perfeito. Para Curtius, Zeitart (posteriormente traduzida por aspecto) era
47
uma categoria gramatical, morfológica, mas foi compreendida pelos autores que o seguiram
como uma categoria de base apenas semântica.
É digno de nota o fato de Curtius apresentar uma vinculação entre tempo e aspecto,
que o termo alemão Zeitart (aspecto) significa ‗qualidade do tempo‘ Naquela época, pois,
Curtius já intuía o conceito tradicionalmente aceito de aspecto, introduzido por Comrie
(1976).
Em toda a literatura linguística pesquisada, portanto, as noções de temporalidade e
aspectualidade apresentam-se como intrinsecamente relacionadas. Em muitos desses estudos,
porém, pode-se notar uma confusão terminológica e conceitual entre as categorias de aspecto
e tempo. Tal confusão é herança da gramática greco-latina, devido a um equívoco dos
estoicos. Apesar de estes terem identificado o significado aspectual verbal de completo /
incompleto (ou perfeito / imperfeito respectivamente), incluíram tal noção na significação da
categoria de tempo.
Isso explica a classificação como apenas temporal do morfema que distingue o
pretérito imperfeito nas línguas românicas como em português o sufixo va em cantava, por
exemplo, descrito como modo-temporal, e não (modo-)aspecto-temporal.
Segundo Lyons (1977, p. 705), em todas as línguas do mundo, o aspecto é mais
comum e frequente do que o tempo: muitas línguas que não têm tempo, mas muito poucas
são as que não têm aspecto, considerando ainda a possibilidade de o aspecto ser
ontogeneticamente mais básico do que o tempo. Em outra obra, o mesmo autor (1970, p.241)
considera que as distinções aspectuais relacionam-se com o tempo, à medida que dizem
respeito à distribuição ou contorno temporal de uma ação, acontecimento ou estado de coisas.
No entanto, ao contrário do tempo, o aspecto não é uma categoria dêitica, pois não se refere
ao momento da enunciação.
O linguista Meillet (1948) vê interferências entre tempo e aspecto. Para o autor,
Há uma categoria que interfere frequentemente com a do ‗tempo‘, é a que se
conhece em gramática eslava sob o nome de ‗aspecto‘ e cuja característica
corresponde tão bem, senão melhor, ao caráter do verbo que a categoria do
‗tempo‘. A categoria de aspecto, não menos variada que a de tempo, abrange
tudo o que é relativo à duração e ao grau de realização dos processos
indicados pelos verbos.
45
(MEILLET, 1948, p.183)
45
No original: Il y a une catégorie qui interfère souvent avec celle du „temps‟, c‟est celle qu‟on connaît en
grammaire slave sous le nom d‟ „aspect‟ et dont le caractère répond aussi bien, sinon mieux, au caractère du
verbe que la catègorie du „temps‟. La catégorie de l‟ „aspect‟, non moins variée que celle du „temps‟, embrasse
tout ce qui est relatif à la durée et au degré d‟achèvement des procès indiques par les verbs.”
48
Essa interferência ou inter-relação entre aspecto e tempo também tem sido
pesquisada em abordagens sobre aquisição da linguagem. Com relação a esse tema, Wagner
(1999, p. 661) levanta a hipótese de que as crianças inicialmente usam a morfologia verbal
para codificar o aspecto, e não tempo; tal hipótse é por ela denominada Aspect First
Hypothesis (Hipótese da Anterioridade do Aspecto) . A autora fez uma experiência com
quarenta e seis crianças de dois e três anos de idade, falantes de língua inglesa.
Para testar-lhes a compreensão do tempo, enquanto categoria marcada no sistema
auxiliar, essa linguista utilizou como método uma tarefa de combinar sentenças com cenas
apresentadas. As crianças operaram com múltiplas possibilidades do mesmo evento, sendo-
lhes perguntado se um personagem is V‟ ing, was V‟ ing e is gonna V (aproximadamente em
português: está V-ndo‘, ‗estava/esteve V- ndo‘ e ‗vai V- r‘ ). A pesquisadora percebeu que
mesmo as crianças menores (de dois anos) puderam compreender o tempo, com sucesso,
nesse experimento denominado Teste I.
Não obstante o sucesso do Teste I, ela obteve resultado diferente ao aplicar o Teste II.
Neste foi mudada a informação disponível nas cenas, questionando-se se o evento de tempo
passado alcançava (sim ou não) seu ponto de completamento (ou conclusão). Participaram
trinta e seis crianças de dois, três e quatro anos de idade. Os resultados mostraram que as
crianças pequenas de dois anos de idade puderam somente compreender com sucesso os
auxiliares temporais de passado e presente quando a informação de tempo passado nas cenas
era coextensiva com a informação de completamento ou conclusão contida nas mesmas. Ou
seja, quando o evento de tempo passado apresentava-se incompleto, as crianças de dois anos
demonstraram não entender o significado do tempo expresso pelos auxiliares.
Assim, o resultado do Teste II sinaliza que as crianças de dois anos estão usando uma
informação aspectual de conclusão ou completamento (completion information), e não uma
informação de ordenação temporal. Por sua vez, isso sugere que essas crianças podem estar
fazendo um julgamento de aspecto (perfectivo / imperfectivo), e não um julgamento de tempo
(passado / presente), ou que, no nimo, o aspecto influencia a interpretação de tempo para
tais crianças.
A principal fonte de evidência para a Aspect First Hypothesis vem do exame da
distribuição da produção da morfologia verbal das crianças. A análise de enunciados de
crianças com a idade aproximadamente de dois anos e seis meses mostrou que a morfologia
do tempo passado (em algumas línguas, a morfologia do perfectivo) é geralmente restrita a
verbos télicos, que descrevem eventos naturalmente delimitados, ao passo que a morfologia
49
do tempo presente (em algumas línguas, morfologia do imperfectivo) é restrita a verbos
atélicos, que descrevem eventos sem qualquer ponto final inerente.
Portanto, nos dados da produção inicial de crianças de língua inglesa, encontram-se
expressões verbais télicas e no tempo passado como broke (quebrou) e made (fez); e outras
atélicas como playing (brincando, tocando) e riding (cavalgando), ao passo que as formas que
combinam um verbo atélico com marcador de passado, ou um verbo télico com um marcador
de imperfectivo (ex.: breaking, played) são extremamente raras.
Desse modo, pode-se pensar que, nessas gramáticas incipientes das crianças, a
morfologia verbal inicialmente marca o aspecto lexical; isto é, o sufixo ed codifica um
evento como um predicado télico e o sufixo ing, como um predicado atélico. Há, portanto,
uma expectativa de que o significado dos morfemas verbais seja altamente especificado pelos
verbos aos quais se adicionam. Segundo Wagner (1999, p. 663) essa distribuição da
morfologia verbal de acordo com o tipo de aspecto lexical do verbo foi documentada em
várias línguas, a saber, Inglês, Italiano, Francês, Polonês, Turco, Japonês, Alemão, Português,
Mandarim e Hebreu.
Ainda de acordo com Wagner (1999, p. 664), muitas línguas fundem a informação de
tempo e a de aspecto em um único morfema como o Inglês, o Francês, o Italiano, o Japonês e
o Português. Nesta última, por exemplo, em verbos flexionados no pretérito imperfeito do
indicativo como cantava ou partia, é impossível identificarem-se separadamente os morfemas
de tempo e aspecto.
Não obstante a frequência desse fato, a hipótese de Wagner (―Aspect First
Hypothesis‖) afirma com ênfase que o aspecto é marcado às custas do tempo nos estágios
iniciais da aquisição da linguagem. ―O argumento a favor dessa ideia de que as crianças estão
inicialmente ignorando a informação de tempo apoia-se no fato de que a morfologia é
distribuída de acordo com o tipo de aspecto lexical do verbo.‖
46
(WAGNER, 1999, p.664). A
grande força dessa hipótese é a de que a informação de tempo não é codificada pela
morfologia incipiente das crianças.
Seguindo os passos de Wagner, Reis (2008), em estudo relativo à aquisição do
português brasileiro, apresenta uma pesquisa que estuda a produção de uma criança (nomeada
―G‖) de um ano e dez meses a três anos e seis meses, para verificar a hipótese de que a
morfologia verbal marca inicialmente aspecto. Segundo essa autora, foram analisados seis
arquivos, cada um referente às idades de 1;10, 2;01, 2;03, 2:08, 3;00, 3;06, num total de 561
46
No original: ―The argument in favour of this idea that children are initially ignoring tense information rests on
the fact that the morphology is distributed according to lexical aspectual type of the verb.‖
50
sentenças consideradas. ―Para cada período, foi feito um levantamento dos verbos produzidos
pela criança de acordo com seu aspecto lexical e também sua flexão verbal ou a perífrase
verbal usada com o verbo.‖(REIS, 2008, p. 476).
Os dados dessa criança com um ano e dez meses parecem reforçar a hipótese de que
ela estaria usando a flexão verbal de tempo para marcar, inicialmente, o aspecto lexical.
A observação da produção desse primeiro período analisado de G parece
confirmar a hipótese de que a flexão do passado estaria sendo usada, pela
criança, para indicar que um evento é télico, e que a flexão do presente
estaria indicando um evento atélico. Pode-se dizer isso porque, nesse
primeiro período, G usa somente verbos de achievement (que têm traço
[+télico]) no pretérito perfeito e somente verbos de atividade (que têm traço
[- télico]) no presente progressivo (―estar + gerúndio‖). (REIS, 2008, p. 478-
479)
De acordo com Reis, nas transcrições dos períodos seguintes, a correlação entre a
flexão verbal (quer de tempo ou de aspecto) e o aspecto lexical (ou acionalidade) parece ser
enfraquecida, sinalizando ―a possibilidade de a gramática de G‖ ter passado por uma espécie
de maturação‖. (REIS, 2008, p. 481).
Retomando o objeto de nossa tese, cumpre-nos lembrar a importância dada ao tempo
nas gramáticas das línguas românicas:
A importância atribuída ao tempo gramatical nas gramáticas portuguesas e
nos métodos de ensino de português decorre do fato de a nossa língua, como
as outras línguas românicas, organizar o sistema verbal em torno do eixo
temporal, dividido em passado e presente, ou em passado, presente e futuro,
localizando o enunciador o seu enunciado em relação ao momento da sua
enunciação, origem da estruturação da temporalidade discursiva.
(CAMPOS, 1997, p. 11)
Linguistas e filósofos têm dificuldade em definir o tempo presente. O presente
gramatical é distinto do presente físico ou filosófico, que é um instante não dimensional,
separando o pretérito do futuro e passando, sem cessar, do pretérito até o futuro.
Quando Fiorin (2002, p.149) afirma que deve haver uma coincidência entre momento
do acontecimento (MA), momento de referência (MR) e momento da enunciação (ME), esse
autor faz uma advertência, ao dizer que é fundamental precisar o que significa a tal
coincidência, uma vez que
o momento da enunciação é difícil de delimitar, na medida em que foge sem
cessar. Na verdade, o presente é uma abstração do espírito, uma vez que,
51
como mostra Guillaume, ele recompõe-se com instantes que acabaram de
passar e com instantes que ainda vão passar. (GUILAUME,1968, p. 51, apud
FIORIN, 2002, p.149)
As palavras de Guillaume confirmam as de Kalocsay (1966, p.41), quando este define
o presente como um construto gramatical composto de um ―fragmento do pretérito e um
fragmento do futuro‖.
47
Este autor (1966, p. 40) apresenta-nos um interessante exemplo em
Esperanto dessa característica do tempo gramatical presente
48
: la tempo pasas. (O tempo
passa.) Segundo esse autor, pode-se substituir tal frase por:
La tempo pasis kaj pasos. (O tempo passou e passará.)
Portanto, pasas = pasis + pasos (passa = passou + passará).
Consequentemente, como regra geral: presente = pretérito + futuro; isto é: ação
presente é aquela que contém o pretérito, portanto é começada, e contém também o futuro,
porque ainda não é terminada. O presente, pois, indica uma ação ou série de ões começadas
e ainda não terminadas. Há, pois, certa duração
49
50
inerente ao presente. Este é mais bem
definido como aspecto de caráter imperfectivo do que propriamente tempo, denotando ação
começada-não terminada.
De acordo com Kalocsay (1966, p.41), graficamente os três tempos gramaticais
geralmente são assim representados:
PRESENTE
PRETÉRITO
Na representação acima, futuro é o tempo antes do começo da situação; pretérito é o
tempo depois do fim da situação; presente é o tempo da duração da situação.
Criticando tal representação gráfica, o autor supracitado propõe a seguinte, que
representa de modo mais adequado os três tempos gramaticais:
PRESENTE
FUTURO
PRETÉRITO
47
No original: ―[...] el peco da preterito kaj peco da futuro‖.
48
Em Esperanto,os tempos presente, passado e futuro são codificados, respectivamente, pelos morfemas
as, -is e os.
49
Nota de Kalocsay (1966, p.42): ―O próprio Zamenhof escreveu: ‗o tempo presente existe verdadeiramente
apenas quando a ação ou o estado dura suficientemente‘. ‖
50
No original: Zamenhof skribis mem, ke „tempo estanta ekzistas vere nur, kiam la ago aŭ stato daŭras sufiĉe.
52
A linha do tempo presente é um misto de pretérito e futuro; estes dois últimos são
tempos homogêneos. Essa representação temporal de Kalocsay aproxima-se do pensamento
aristotélico. Nos termos de Aristóteles, ―com efeito, para o tempo presente convergem o
passado e o futuro.‖ (Categorias: VI, 4b20, p.86). Também quando o filósofo argumenta que
nenhuma das partes do tempo permanece: ―e como aquilo que não permanece poderia ter uma
posição? Seria preferível que alguém dissesse haver uma ordem, pelo fato de isto ser anterior,
aquilo, posterior, em relação ao tempo.‖(Categorias: VI, 5a15, p.87).
O tempo pretérito em Esperanto (marcado morfologicamente por -is ) é neutro quanto
à aspectualidade, ou seja, pode-se chamá-lo de pretérito aoristo, pois é indefinido quanto ao
aspecto. Conforme Fiorin (2002, p.152), o pretérito denota uma relação de anterioridade entre
o momento do acontecimento e o momento de referência presente.
O tempo futuro (marcado por -os ), por outro lado, indica uma relação de
posterioridade entre o momento de referência presente e o momento do acontecimento. O
morfema de futuro -os também é neutro quanto ao aspecto.
Com relação à interação aspecto-temporal, Castilho (1968, p.39) assim nos esclarece:
― [...] a nova categoria, conquanto relacionada em diversos pontos com o tempo, dele se afasta
nisto que representa uma atualização espacial, qualitativa do processo verbal, enquanto o
tempo se empenha sobretudo em sua vinculação com um dado momento‖. [grifo do autor]
Benveniste também enfatiza o papel da enunciação na caracterização do tempo:
Poder-se-ia supor que a temporalidade é um quadro inato do pensamento.
Ela é produzida, na verdade, na e pela enunciação. Da enunciação procede a
instauração da categoria do presente, e da categoria do presente nasce a
categoria do tempo. (BENVENISTE, 1989, p.85)
Ainda segundo Benveniste (1989, p. 82), ―a enunciação é este colocar em
funcionamento a língua por um ato individual de utilização.‖ O ato individual de apropriação
da língua introduz um locutor (eu) que dialoga com um alocutário (tu), instaurando um espaço
(aqui ) e um tempo (agora). O tempo verbal presente coincide com o momento da enunciação.
línguas que possuem palavras distintas para tempo no sentido cronológico,
filosófico ou psicológico e tempo gramatical. Respectivamente, o inglês usa time e tense; o
alemão, Zeit e Tempus. Autores como Corôa (2005) e outros usam a palavra latina tempus
(plural tempora) para a expressão da categoria gramatical. Em nosso trabalho usamos
normalmente o termo tempo para designar também a categoria gramatical.
53
O tempo (tense) é uma categoria dêitica que situa um evento, ação ou situação no
tempo (time) com relação ao momento da fala, ou ocasionalmente com respeito a algum outro
ponto pré-estabelecido no tempo. Ele gramaticaliza a relação entre o tempo da enunciação e o
tempo da situação que descreve. Segundo Bronkart (1999, p.276-277), qualquer abordagem
das relações temporais deve ser tricotômica, isto é, deve considerar três parâmetros: momento
da produção, momento do processo e momento psicológico da referência, ou seja, tempo de
fala, tempo do evento e tempo de referência, respectivamente.
Bronkart (1999, p.276) oferece o seguinte exemplo para nossa análise:
(13) La semaine prochaine, le journal “La Suisseréapparaît sous une forme nouvelle. (Na
próxima semana, o jornal La Suisse reaparece em novo formato.)
Aqui o momento de referência futuro é expresso pelo sintagma adverbial la semaine
prochaine / na próxima semana; entretanto o tempo do processo ou evento foi codificado no
presente. Tal decisão de codificação revela que o momento do evento está em uma relação de
inclusão com o momento de referência, explicitado pelo sintagma adverbial temporal.
Essa operação gera um efeito de sentido de aproximação (em oposição a
distanciamento), metaforizando a expressão da fonte enunciativa. De acordo com Fiorin:
[...] quando se neutralizam termos da categoria de tempo, o efeito de sentido
que se produz é o de que o tempo é pura construção do enunciador, que
presentifica o passado, torna o futuro presente, etc. Assim, com esse
procedimento, passa-se da ilusão enunciativa da naturalidade dos tempos do
dizer e do dito, da quimera de que o tempo linguístico é o tempo do mundo
para a certeza de que o tempo é efeito de sentido produzido na e pela
enunciação.(FIORIN, 1999, p.22)
Tal tempo é o denominado tempo externo ou tempo explicado que se opõe ao tempo
interno, ou tempo implicado, isto é, o tempo inerente ao desenvolvimento de qualquer
processo ou evento. O tempo explicado, nos termos de Guillaume (1964, p. 48) ―é o tempo
divisível em momentos distintos passado, presente, futuro e suas interpretações que o
discurso lhe atribui‖, em oposição ao tempo implicado, ou seja, ―o tempo que o verbo retém
em si por definição‖.
51
É esse tempo interno que é também chamado de aspecto pelos
linguistas.
Enquanto o tempo é uma propriedade da sentença e da enunciação, o aspecto é
propriedade apenas da sentença, visto não se referir ao momento da fala. Há, portanto, uma
distinção essencial entre aspecto e tempo. Em obra mais recente, Castilho (2002, p.85) postula
51
No original: Le temps expliqué (...) n‟est pas le temps que le verbe retient en soi par définition, mais le temps
divisible en moments distincts passé, présent, futur et leurs interprétations que le discours lui attribue.”
54
que ambos são propriedades da predicação, mas distinguem-se pelo fato de que o aspecto
pertence ao campo simbólico e o tempo inscreve-se no campo dêitico. A categoria de tempo é
dêitica porque se caracteriza essencialmente por ligar o momento da ação, do evento ou do
estado de coisas referidos na frase ao momento da enunciação. ―O aspecto, ao contrário do
tempo, não é uma categoria dêitica; ele não se refere ao momento da enunciação.‖
52
(LYONS, 1970, p.241)
Travaglia (1985, p. 53), em seu estudo sobre o aspecto verbal em Português, oferece-
nos uma definição de aspecto que enfatiza a temporalidade subjacente ao verbo
53
:
Aspecto é uma categoria verbal de TEMPO [grifo do autor], não dêitica,
através da qual se marca a duração da situação e/ou suas fases, sendo que
estas podem ser consideradas sob diferentes pontos de vista, a saber: o do
desenvolvimento, o do completamento e o da realização da situação.
Por outro lado, é importante ressaltar a interação aspecto-temporal nas diversas línguas
em que o aspecto é diretamente expresso por meio de vários tempos. Vale, portanto, destacar
o papel das marcas temporais na expressão do aspecto, conforme o faz Bertinetto:
[...] qualquer tempo em qualquer ngua necessariamente expressa
valores tanto temporais quanto aspectuais. Portanto não faz sentido dizer
que, por ex., o alemão não tem aspecto, ao passo que o inglês o tem. Ao
contrário, poder-se-ia dizer que o alemão carece quase completamente de
marcadores aspectuais explícitos. (...) Mas mesmo quando uma dada língua
carece de contrastes morfológicos abertos, o uso de um dado tempo em um
dado contexto necessariamente envolve uma interpretação aspectual
específica. Por exemplo, embora os pretéritos germânicos sejam em si
aspectualmente neutros, sua interpretação faz-se diretamente no contexto.
(BERTINETTO, 2001, p.186)
54
Bertinetto também observa que, do mesmo modo que não se pode calcular a
acionalidade (Aktionsart) de um predicado sem levar em consideração o conjunto relevante
de contextos sintáticos nos quais ele pode aparecer, ―o valor aspectual de um dado tempo não
52
No original: ―L‟aspect, contrairement au temps, n‟est pas une catégorie déictique; elle n‟a pas trait au
moment de l‟énonciation.”
53
Definição aqui repetida por conveniência.
54
No original: ―[…] any tense in any language necessarily expresses both temporal and aspectual values. It
thus makes no sense to say that, e.g., German has no Aspect, whereas English has. Rather, one could say that
German lacks almost completely explicit aspectual markers (although, to be sure, it presents Past and Future
Perfects). But even when a given language lacks overt morphological contrasts, the usage of a given tense in a
given context necessarily involves a specific aspectual interpretation. (…) For instance, although the German
Pasts are in themselves aspectually neutral, their interpretation becomes straight-forward in context.‖
55
é especificado de uma vez nem para sempre.‖
55
(BERTINETTO, 2001, p.185) Normalmente
os tempos têm uma caracterização predominante; Bertinetto (ibidem, p.185), porém, afirma
que o valor real dos tempos varia de acordo com o contexto, e exemplifica essa hipótese com
o uso imperfectivo do passado simples inglês, destacando a forma verbal snored (roncava):
(14) She turned on the light and looked to Ernest lying beside her. He was sound asleep. He snored.
But even he snored, his nose remained perfectly still. [grifos do autor]
( Ela acendeu a luz e olhou para Ernesto deitado ao seu lado. Ele estava profundamente
adormecido. Ele roncava. Mas mesmo roncando, seu nariz permanecia perfeitamente
silencioso.)
Ao tempo presente também se podem associar valores aspectuais diversos, a saber,
imperfectivo habitual, contínuo, iterativo, como nos dois exemplos em Português, a seguir:
(15) Joãozinho vai para a escola a pé. (habitual)
(16) Marta sabe Esperanto. (contínuo)
É de fundamental importância a abordagem de Bertinetto para este trabalho, uma vez
que o tempo é a base central do sistema verbal do Esperanto. No próximo capítulo em que
tratamos do sistema aspectual do Esperanto, mostramos que o uso do tempo presente envolve
interpretação aspectual, ao passo que o pretérito apresenta-se como neutro quanto à
aspectualidade, embora estratégias discursivas e gramaticais funcionem para promover uma
leitura imperfectiva ou perfectiva.
3.2.5 Considerações gerais sobre tipologia aspectual
A tipologia aspectual encontrada na literatura é muito variada, sendo, às vezes,
controvertida e confusa. Verificamos que um termo que classifica um tipo de aspecto numa
abordagem teórica pode mudar de sentido em outra classificação. Por exemplo, muitos
distinguem aspecto inceptivo de aspecto incoativo
56
, outros usam o primeiro termo;
quem prefira o termo ingressivo no lugar de inceptivo. Com base em suas pesquisas, Bybee
(1985) afirma que evidências para uma significação inceptiva e uma iterativa expressas
translinguisticamente. A autora, porém, questiona se tais noções também se qualificam como
membros da categoria aspecto:
Enquanto nós podemos facilmente ver uma relação conceitual, tanto quanto
uma superposição funcional, no sentido de que os imperfectivos podem ter
uma interpretação iterativa e os perfectivos podem ter uma interpretação
55
No original: ―The aspectual value of a given tense are not specified once and forever.”
56
Inceptivo e incoativo significam início de ação. autores que usam o termo incoativo com o sentido
adicional de mudança de estado. Do lat. inchoativum verbum 'verbo incoativo, aquele que indica ação começada';
inceptivo: incept- radical do particípio passado do verbo latino incipěre 'começar, dar início'.
56
inceptiva, não muita evidência para sustentar a visão de que
gramaticalmente esses dois significados estão relacionados à distinção geral
perfectivo / imperfectivo.
57
(BYBEE, 1985, p.153)
Vimos que, para Bybee, os perfectivos podem ter uma interpretação inceptiva, ao
passo que linguistas como Castilho (1968) classificam o aspecto inceptivo como imperfectivo.
O pensamento de Comrie (1976) também se assemelha ao de Bybee, quando aquele autor
assim se refere ao perfectivo ingressivo (ou inceptivo):
Em muitas línguas que têm uma distinção entre formas perfectiva e
imperfectiva, as formas perfectivas de alguns verbos, em particular dos
verbos estativos, podem de fato ser usadas para indicar o começo de uma
situação (significado ingressivo).(...) Por exemplo: em chinês mandarim,
também, um número de predicados, tanto adjetivos quanto verbos, que
normalmente se referem a um estado, podem ter um significado ingressivo
no perfectivo, por ex., gāo ‗ele é alto‘, gāo-le (perfectivo) ele se tornou
alto‘ (...) Uma análise possível desse significado ingressivo seria dizer que
tais verbos podem em geral ser ora estativos ora ingressivos, i. e., podem em
geral se referir ou a um estado ou à entrada em um estado, como, por ex.,o
inglês sit (que pode significar tanto estar sentado quanto adotar a postura
de sentar).
58
(COMRIE, 1976, p.19-20)
Convém notar que o mesmo ocorre em Esperanto, havendo distinções aspectuais entre
um verbo de estado como sidi (estar sentado) e o aspecto ingressivo (incoativo ou inceptivo)
de entrada em um estado como sidiĝi ou eksidi (sentar-se).
Quanto à tipologia aspectual, não há, portanto, uma uniformidade de termos entre os
autores que tratam do assunto em questão. Como exemplificação, apresentamos abaixo a
classificação feita por Comrie das subdivisões mais típicas da imperfectividade dos verbos na
língua inglesa.
57
No original: ―While we can easily see a conceptual relation, as well as a functional overlap, in that
imperfectives can have an inceptive interpretation, there is not much evidence to support the view that
grammatically these two meanings are related to the general perfective / imperfective distinction.‖
58
No original: In many languages that have a distinction between perfective and imperfective forms, the
perfective forms of some verbs, in particular of some stative verbs, can in fact be used to indicate the beginning
of a situation (ingressive meaning). (…) In Mandarin Chinese, too, a number of predicates, both adjectives and
verbs, that normally refer to a state can have ingressive meaning in the Perfective, e.g. tã gão „he is tall‟, tã gão-
le (Pfv.) „he became tall, has become tall‟. (…) A possible analysis of this ingressive meaning would be to say
that such verbs can in general be either sttive or ingressive, i.e. can in general refer either to the state or to entry
into that state, like for instance English sit (which can mean either „be sitting‟ or „adopt a sitting position‟).”
57
QUADRO 1 - Tipos de aspecto segundo Comrie
CLASSIFICAÇÃO DAS OPOSIÇÕES ASPECTUAIS
PERFECTIVO
IMPERFECTIVO
Contínuo
Não progressivo
Progressivo
Fonte: COMRIE, 1976, p.25
Retomando a distinção entre perfectividade e imperfectividade, estabelecida por
Comrie (1976, p.16), pode-se dizer que a primeira ―indica a visão de uma situação como um
todo único, sem distinção das várias fases separadas que a constituem; ao passo que a
imperfectividade dá atenção à estrutura interna da situação.‖
59
Em suma, como bem conclui Comrie (1976, p.21), a perfectividade se distingue
melhor pela falta de referência explícita à constituição temporal interna de uma situação do
que pela ausência de tal constituição temporal interna. Segundo o autor, é bastante possível,
portanto, que ―uma forma perfectiva seja usada para uma situação que é internamente
complexa, tal como as que duram por um considerável período de tempo, ou incluem um
número de fases distintas, contanto que somente o todo da situação seja subsumido como um
todo único.‖
60
(COMRIE, 1976, p.21)
Podemos concluir, portanto, que perfectividade e expressão de duração não são
incompatíveis, como, nos enunciados abaixo, em Português e Francês, com formas verbais
perfectivas (pretérito perfeito e passé simple, respectivamente) determinadas por construções
adverbiais temporais:
(17) Ele reinou trinta anos.
(18) Il régna trente ans.
59
No original: ―[…] perfectivity indicates the view of a situation as a single whole, without distinction of the
various separate phases that make up that situation; while the imperfective pays essential attention to the
internal structure of the situation.”
60
No original: [...] perfective forms be used for situations that are internally complex, such as those that last for
a considerable period of time, or include a number of distinct internal phases, provided only that the whole of
the situation is subsumed as a single whole”.
58
Em Esperanto, o morfema de pretérito is é também considerado tempo aoristo por
Waringhien (1989, p.195), isto é, aspectualmente neutro, denotando fato ―acontecido sem
nenhuma ênfase sobre sua duração‖.
61
Assim, os enunciados (17) e (18) acima podem ser
esperantizados como
(19) Li regis tridek jarojn (Ele reinou trinta anos) com leitura perfectiva, o que nesse caso
serve de exemplo para ratificar a afirmação de Comrie de que o perfectivo pode ser também
forma não marcada, dependendo da língua em questão: tanto línguas cujo perfectivo é
marcado (línguas eslavas) quanto línguas cujo perfectivo é não marcado (passado definido em
francês; o aoristo em grego antigo, o búlgaro e o geórgico
62
. ―Finalmente podemos considerar
a visão de que o perfectivo representa a ação pura e simples, sem matizes adicionais.‖
63
(COMRIE, 1976, p. 21).
Para Comrie, portanto, a definição de perfectivo depende da língua em questão e da
função que esse aspecto tem nessa língua: não é uma definição de caráter geral. Para esse
autor também, ―a imperfectividade não é incompatível com a perfectividade e ambas podem
ser expressas se a língua em questão possuir os recursos para fazê-lo.‖
64
(COMRIE, 1976,
p.24)
Por outro lado, na visão de Bybee:
Os aspectos perfectivos (inceptivo, pontual e completivo) veem a situação
como uma entidade delimitada, e frequentemente põem uma ênfase no seu
começo ou fim. Os aspectos imperfectivos em contraste não veem a situação
como delimitada, mas antes como em progresso (as ongoing) em um sentido
ou durativo, contínuo ou habitual.(BYBEE, 1985, p.21)
65
Ao tratar dos morfemas que indicam o começo de uma situação, ou entrada em um
estado, Bybee (1985, p.147-148) usa os termos incoativo, ingressivo ou inceptivo para
denotar tal significado aspectual. Exemplifica com o sufixo latino sc, cujo significado é
―tornar-se‖ (to become) ou ―começar a‖ (to begin to). Quando aplicado a um verbo como
dormiō (eu durmo, I sleep), ele produz obdormiscō (eu adormeço, I fall asleep), e quando
aplicado a amō (eu amo, ―I love‖) ele produz amascō (eu começo a amar, I begin to love).
61
No original: ―[...] kiel okazintan sen ia akcento pri daŭro (aoristo).”
62
Relativo à língua da República da Geórgia, no extremo Sudeste da Europa.
63
No original: ―Finally, we may consider the view that the perfective represents the action pure and simple,
without any additional overtones.‖
64
No original: ―[…] imperfectivity is not incompatible with perfectivity, and that both can be expressed if the
language in question possesses the formal means to do so.‖
65
No original: The perfective aspects (inceptive, punctual and completive) view the situation as a bounded
entity and often put an emphasis on its beginning or end. The imperfective aspects in contrast do not view the
situation as bounded, but rather as ongoing in either a durative, continuative or habitual sense.”
59
Numa primeira definição, a autora supracitada inclui o aspecto inceptivo como um tipo
de perfectivo, baseada em Comrie, para quem um dos significados cobertos por um perfectivo
geral em muitas línguas é precisamente esse significado inceptivo. No entanto, em suas
considerações finais, Bybee (1985, p.148) argumenta que a marcação do inceptivo mostra que
ele é ―cuidadosamente independente do perfectivo e, em muitos casos, é independente do
resto do sistema aspectual da língua.‖
66
Adotando um ponto de vista composicional, Castilho (2002, p.83) entende o aspecto
verbal como uma das propriedades da predicação. Por meio do aspecto, a predicação
representa os graus de desenvolvimento, isto é, as fases do estado de coisas que ela codifica.
Para Castilho, portanto, o aspecto é uma categoria de caráter composicional: não um
morfema específico para explicitar o aspecto em Português. O usuário dispõe de vários
recursos linguísticos: semântico-lexicais (o próprio conteúdo semântico da raiz do verbo, ou
Aktionsart); semântico-sintáticos (pela combinação da Aktionsat do verbo com os morfemas
flexionais e os verbos auxiliares; os argumentos do verbo e os adjuntos adverbiais). Segundo
esse autor, ainda que se levar em conta as condições discursivas que motivam a
emergência do aspecto, o qual é uma opção do usuário para atender às suas necessidades
comunicativas.
Transcrevemos abaixo as designações propostas Castilho (2002, p. 87) para a
classificação do aspecto, sem incluir os predicados estativos:
I Aspecto imperfectivo
a) inceptivo: fase inicial;
b) cursivo: fase em seu desenvolvimento;
c) terminativo: fase final.
II - Aspecto perfectivo
a) pontual: ação cujo começo coincide com seu desfecho;
b) resultativo: configura o resultado da ação concluída.
66
No original: ―[…] thoroughly independent of the perfective, and in most cases, to be independent of the rest of
the aspectual system of the language.”
60
O autor supramencionado reconhece duas faces do aspecto: a qualitativa, a saber, o
perfectivo e o imperfectivo, e a quantitativa que distingue o semelfactivo
67
- ocorrência
singular - e o iterativo, ocorrência múltipla, habitual ou reiterada.
Quanto à tipologia aspectual, não há, portanto, uma uniformidade de termos entre os
autores que tratam do assunto em questão. Destacamos as classificações feitas por Comrie
68
(1976, p.25) e Castilho (2002, p. 87), por sua representatividade na literatura específica sobre
a língua inglesa e a portuguesa, respectivamente. No desenvolvimento de nossa pesquisa
sobre o aspecto em Esperanto, baseamo-nos, mutatis mutandis, nas designações de Castilho
para a classificação do aspecto.
3.3 PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
Os dados utilizados nesta pesquisa distribuem-se em dois corpora, excertos de 20
(vinte) narrativas, constituintes de contos literários. O primeiro corpus (C1) narrativas
originais - compõe-se de 10 (dez) textos escritos originalmente em Esperanto; o segundo
(C2), de 10 (dez) textos vertidos para o Esperanto. Todos são constituídos de 06 (seis) páginas
em média, publicados entre os anos de 1923 e 2005.
69
Para dar maior respaldo à pesquisa, escolhemos narrativas de autores e tradutores
falantes de nguas de variadas famílias linguísticas, a saber, românicas (francês, italiano,
português brasileiro); germânicas (inglês, norueguês, dinamarquês); eslavas (russo, polonês,
búlgaro, croata); uralo-altaicas (japonês, húngaro, coreano); e chinês. Convém observar que
nossa tradução dos dados em Esperanto é, muitas vezes, literal, por questões de conveniência.
Seguem-se os Quadros (2) e (3) com a lista das narrativas (N1, N2, N3, etc) referentes
respectivamente a C1 (corpus 1), narrativas originais em Esperanto, e a C2 (corpus 2),
narrativas vertidas para o Esperanto:
QUADRO 2 - C1 Narrativas originais em Esperanto
Código
Título
Autor
Língua do
autor
N 1
Lernantino
(Uma aprendiz)
Marjorie Boulton
Inglês
67
Semelfactivo: termo usado também por Comrie (1976, p.42); do latim: semel: uma vez.
68
Ver p. 57 desta tese.
69
Vide no Anexo I, p. 203-367, a cópia das narrativas em Esperanto e as respectivas traduções em Português.
61
N 2
La viro sub la lito
(O homem embaixo da
cama)
Raymond Schwartz
Francês
N 3
Venĝo
(Vingança)
Ivan Ŝirjaev
Russo
N 4
La metropolo malsatas
(A metrópole tem fome)
J. Baghy
Húngaro
N 5
Kamarado bojko
(Camarada Bojko)
M.Ljubin
Búlgaro
N 6
La nokto de Neptuno
(A noite de Netuno)
Barbara Sokalówna
Polonês
N 7
La junulino, la ĉapelo kaj
mi
(A jovem, o chapéu e eu)
J. H. Rosbach
Norueguês
N 8
Vivo kaj morto de
Wiederboren (Vida e
morte de Wiederboren)
C. Conterno
Italiano
N 9
Mensog‟ ni ĉiutaga
(Mentira nossa de cada
dia)
Z. Takać
Croata
N 10
Kaprico pro invitkarto
(Capricho por um cartão
de convite)
Zhang Kangkang
Chinês
QUADRO 3 - C1 Narrativas vertidas para o Esperanto
Código
Título
Autor
Tradutor
Língua do
tradutor
N 11
Homo kun koro
(Um homem de
coração)
Jo-an
Hajpin Li
Coreano
N 12
La takase-barko
(O barco de Takase)
Mori Oogai
TeruoMikami
Japonês
N 13
Brakoj
(Uns braços)
Machado de
Assis
Paulo Sérgio
Viana
Português
N 14
Savita
(Salva)
Guy de
Maupassant
Daniel Luez
Francês
62
N15
Miriel
(Miriel)
Z.
Beszczynska
Wojciech
Usakiewicz
Polonês
N 16
Pri la amo
(Sobre o amor)
Anton Ĉeĥov
Aleksander
Korĵenkov
Russo
N 17
La aliulo
(O outro)
R. Kipling
Katelina Halo
Inglês
N 18
En Pirin
(Em Pirin)
Ivan Vazov
At. D.
Atanasov
Búlgaro
N 19
La brava stansoldato
(O bravo soldado de
estanho)
H. C.
Andersen
F. Skeel
Giörling)
Dinamarquês
N 20
Katarino kaj Katjo
(Catarina e Kátia)
Ferenc
Herczeg
A. Panajott
Húngaro
Para justificar a opção por corpora narrativos, servimo-nos das palavras de Hopper e
Thompson, transcritas abaixo:
A narrativa é um universal cultural prontamente acessível em uma variedade
de línguas. Além disso, a extensão das espécies discursivas facilita
grandemente as contagens estatísticas, garantindo que um número de
exemplos de dados tipos de construção estejam disponíveis em um texto.
(HOPPER; THOMPSON, 1980, p.282)
70
Para que haja narrativa é necessária a representação de uma sucessão de ações e
eventos no tempo.Como a narrativa é o discurso do fazer e do acontecer, os recursos
linguísticos predominantes dizem respeito ao uso de verbos e estruturas adverbiais temporais.
A narrativa é a camada verbal que assume a textualização da história. É nesse nível textual
que a ordem cronológica da história narrada é ou não revelada, que os fatos são resumidos ou
desenvolvidos. É nessa instância textual que se podem intercalar descrições, comentários e
diálogos. Enquanto na sequencialidade das narrativas identificamos a perfectividade, nas
descrições predomina a aspectualidade imperfectividade, marca textual do discurso do ser e
do estar.
70
No original: Narrative is a cultural universal, and hence readily accessible in a variety of languages.
Furthermore, the length of the discourse specimens greatly facilitates statistical counts, and guarantees that a
number of examples of given construction-types will be available in a text.”
63
Travaglia (1991, p.243-245), em sua Tese de Doutorado, confirma a função discursiva
do aspecto. Para esse linguista, justifica-se o uso das formas perfectivas na narração, uma vez
que esta relata os acontecimentos com uma espécie de distanciamento que permite ver cada
situação em sua globalidade, em sua completude (como acabada), apresentando-a como se
vista de fora. Afirma o autor: ―Portanto, na narração em si, o aspecto é o perfectivo, pode-se
dizer, em 100% das situações que compõem a narrativa‖.(TRAVAGLIA, 1991, p. 238)
Nos planos da figura, portanto, o aspecto perfectivo apresenta a situação em sua
totalidade, como um bloco fechado, sem a preocupação de o usuário deter o olhar em cada
fase do seu desenvolvimento. Por outro lado, nos planos de fundo, eventos e situações,
instanciados por construções aspectuais imperfectivas, apresentam-se ora em curso, ora de
modo repetido ou simultâneo aos eventos de figura. Tais características são comuns nos textos
descritivos, pois o usuário representa a situação como se vista de dentro, detendo-se nas
características do que é descrito como transitórias ou permanentes, por meio do uso do
imperfectivo quer durativo, iterativo, indeterminado ou habitual, com a função de caracterizar
seres ou coisas. Nos termos de Travaglia (1985, p. 243), ―a descrição busca dizer como é,
como se constitui a coisa descrita em suas partes, de dentro: não como apresentar o ser, a
coisa ou situação descrita em sua globalidade, em seu todo‖.
A função linguístico-discursiva do aspecto, portanto, é permitir que dimensões
temporais de uma situação sejam descritas sob diferentes pontos de vista, dependendo de
como se intenciona ajustar-se a situação ao discurso. (BYBEE, 1985, p.142)
Convém observar ainda que Hopper e Thompson (1980, p.215) chama a atenção para
o fato de que a seleção das formas verbais do perfeito (aspecto perfectivo) ou do imperfeito
(aspecto imperfectivo) é condicionada não pelas funções discursivas de figura e de fundo
mas também pelas distribuição do foco - informações novas e velhas - na oração. Nas orações
de fundo uma grande probabilidade de mudança de tópico e de informações novas na
posição de sujeito. Nas orações de figura, os sujeitos são altamente pressupostos, e o novo
material narrativo é introduzido no sintagma verbal.
RESUMO
À luz dos pressupostos funcionalistas, adotamos o ponto de vista composicional
proposto por Castilho (2002) quando esse autor define o aspecto como uma propriedade da
predicação. Entendemos o aspecto em Esperanto como uma escolha discursiva do usuário da
língua. Este decide, por exemplo, entre a representação perfectiva ou imperfectiva da
64
temporalidade interna de um estado de coisas, por meio de operadores de aspectualização
disponíveis nessa língua internacional.
Com relação aos procedimentos metodológicos, os dados utilizados nesta pesquisa
distribuem-se em dois corpora, excertos de 20 (vinte) narrativas escritas. O primeiro corpus
(C1) narrativas originais - compõe-se de 10 (dez) textos escritos originalmente em
Esperanto; o segundo (C2), de 10 (dez) textos vertidos para o Esperanto.
4 VISÃO GERAL DO ESPERANTO
4.1 O ESPERANTO COMO LÍNGUA PLANEJADA
Muitas são as expressões usadas na literatura para descrever uma língua como o
Esperanto, a saber: língua artificial, língua mundial, língua universal, língua auxiliar, língua
internacional, língua construída, língua planejada, interlíngua. Cada uma delas tem o seu
significado construído no contexto da abordagem de seu autor ou autores; algumas dessas
expressões referem-se à origem ou gênese da língua, outras à função comunicativa exercida;
outras tantas misturam esses conceitos.
É consenso no meio esperantista que a designação língua artificial carreia uma
conotação pejorativa, não obstante ter sido usada por Zamenhof: artefarita lingvo
71
.
Conforme informação de Blanke (1997, p.3), a expressão línguas artificiais também serve
para exprimir diferentes significados como, por exemplo: (1) línguas ―étnicas‖ [sic],
altamente regularizadas para sua manutenção em um estágio particular de desenvolvimento
(como o sânscrito, o latim eclesiástico) ou para a sua modernização (como o hebraico
moderno, o indonésio bahasa, o landsmal
72
); (2) línguas simbólicas, como a da gica, da
matemática, da química, para facilitar o pensamento científico; (3) linguagens de
programação para computadores (por exemplo: Algol, Cobol); (4) linguagens mecânicas para
tradução automática.
Neste trabalho optamos pela expressão língua planejada, tradução do alemão
Plansprache, para designar o Esperanto. Essa expressão foi criada pelo alemão Wüster (1931)
e é assim definida por Blanke:
71
Artefarita lingvo, isto é, língua ‗feita com arte‘.
72
Landsmal: uma das duas línguas oficiais da Noruega.
66
Podemos definir ‗língua planejada‘ como uma língua conscientemente criada
por um indivíduo ou grupo de pessoas, de acordo com um critério definido,
com o objetivo de facilitar a comunicação linguística internacional.
(BLANKE, 1997, p.10)
73
Ainda nos termos do autor supracitado, o Esperanto é internacional em sua função
comunicativa e planejado em sua origem. Importa ainda fazer a distinção entre projeto de
língua (apenas um sistema de signos que nunca chegou a funcionar como língua), projetos que
obtiveram um relativo sucesso como língua, as chamadas ―línguas planejadas incipientes‖, a
saber: Volapük, Ido, Latino sine flexione, Occidental-Interlingue, Interlingua, e ―o único
sistema inteiramente desenvolvido e até agora a única ngua planejada completamente
internacional, ou seja, o Esperanto‖.
74
(BLANKE, 1997, p.12)
4.2 INTERLÍNGUA E INTERLINGUÍSTICA
Nesta seção apresentamos uma introdução aos conceitos de interlíngua e
interlinguística. Na seção anterior foi mencionado o termo interlíngua para designar nguas
internacionais como o Esperanto. Também foi usado o nome próprio Interlingua, um projeto
de ngua criado, em 1951, por uma associação americana denominada IALA, isto é,
Internacional Auxiliary Language Association. ―Essa entidade, fundada em 1924, tinha o
objetivo de pesquisar cientificamente o problema das línguas planejadas e apressar a escolha
de um projeto bem fundamentado.‖(PASSINI, 2008, p.50)
Nesse contexto, o termo interlíngua é a tradução do vocábulo inglês interlanguage,
forma truncada do sintagma international language (língua internacional). As interlínguas
podem ser planejadas ou étnicas (como outrora fora a coiné grega, o Latim e pretende ser
hoje o Inglês
75
).
Outro significado do termo interlíngua é encontrado no contexto de ensino de línguas.
Neste contexto, o conceito de interlíngua foi proposto, nos anos 1960 e 1970, por pesquisas
como as de Adjémian (1976), Corder (1967), Nemser (1971) e Selinker (1972). Esses
73
No original: ―[…] we can define a “planned language” as a language consciously created by an individual or
group of people, in accordance with defined criteria, with the goal of facilitating international linguistic
communication.”
74
No original: ― […] the only fully developed system and so far complete international planned language
namely Esperanto.‖
75
Quanto à internacionalidade do inglês, vale dizer que uma pesquisa pedida por uma agência publicitária, para
saber das vantagens de emitir pela televisão textos publicitários em Inglês para toda a Europa, constatou que ―a
proporção de pessoas capazes de compreender corretamente o Inglês [na Europa ocidental] situa-se
sensivelmente abaixo de nossas previsões mais pessimistas visto que ela se limita a uns 6 % da população.‖
(PIRON, 2002, p.58)
67
pesquisadores mostraram que a língua do aprendiz de L2 é sistemática e que os erros
produzidos pelos aprendizes o consistem de erros casuais, mas, ao contrário, sugerem um
comportamento governado por regras. De acordo com a linguista gerativista White (2003, p.
1), as gramáticas de falantes não nativos são referidas como ―gramáticas de interlínguas.‖
76
De modo geral, a Interlinguística é o estudo das línguas planejadas. Otto Jespersen,
um dos primeiros interlinguistas, definiu a Interlinguística como o ramo da Linguística que
pesquisa a estrutura e as ideias básicas de todas as línguas com a finalidade de estabelecer
uma norma para as interlínguas‖
77
(SCHUBERT, 1989:16), isto é, línguas auxiliares
destinadas ao uso oral e escrito entre pessoas que o podem fazer-se entender por meio de
suas línguas nativas.
4.3 CENÁRIO LINGUÍSTICO DO SÉCULO XIX
A tentativa de solução dos problemas de comunicação e intercâmbio cultural da
humanidade herdeira dos filhos de Babel sempre frequentou as preocupações de sábios,
filósofos e cientistas. Já em 1657, o filósofo e educador cristão tcheco Jan Amos Komensky,
mais conhecido como Comenius, além de propor a tese de um saber universal, ou Pansofia,
postula também uma ngua filosófica, a Panglotia, isto é, ―a criação de um idioma universal,
de terminologia precisa, que sirva também como língua científica.‖ (COVELLO, 1999,
p.100). Entre os numerosos pensadores que se debruçaram sobre tal questão, podemos citar
Descartes, que ―em 1629 considera a construção de uma língua universal regular, tendo
apenas um tipo de declinação e de conjugações‖
78
(LO JACOMO, 1981, p.25) e o filósofo
e matemático alemão Leibniz.
Leibniz que, atribuindo uma importância primordial a tal problema, em 1678 estilizou
uma Língua Generalis, ―na qual, após decompor a realidade cognoscível em ideias simples e
atribuir a tais ideias primitivas um número, propunha transcrever os números com consoantes
e as unidades decimais com vogais (...).‖ (COUTURAT,1903, apud ECO, 2002, p. 325).
Interessante é a língua artificial proposta em 1817 por Jean- François Sudre,
denominada Solresol, revelando-se um tipo de linguagem musical, cromática e gestual ao
mesmo tempo. Além de poder ser cantada, tocada ou falada, cada nota é representada por uma
cor, um algarismo ou um gesto.
76
No original: ―[…] interlanguage grammars.‖
77
No original: ―[...] with a view to the establishing of a norm for interlanguages.‖
78
No original: ―[...] en 1629, envisage la construction d‟une langue universelle régulière, n‟ayant qu‟um seul
type de déclinaisons et de conjugaisons”.
68
As palavras mais comuns têm três notas: doredo é tempo, doremi é dia,
dorefa é semana, doresol é mês, dorelá é ano e doresi é século. As de quatro
notas são classificadas pela inicial: conceitos ligados ao ser humano,
família, economia e toucador, mi boas e más ações, etc.
(SANTIAGO, 1992, p.38)
Essas línguas filosóficas inventadas, que consideravam imperfeitas as línguas naturais,
visavam à economia e à simplicidade lógica. São chamadas línguas a priori, ao contrário das
línguas a posteriori
79
que proliferaram no século XIX.
80
Ao século XVIII, a preocupação era prover os sábios do mundo de um
meio de comunicação. A partir do século XIX, o comércio e o trabalho
internacionalmente organizados começaram a apresentar também suas
necessidades cada vez maiores de uma interlíngua, dado o impulso recebido
pelos meios de comunicação e transporte. A partir daí, surgiram centenas de
projetos de línguas, algumas inteiramente artificiais, outras o resultado da
regularização de idiomas naturais. Assim, surgiram Lingualumina, Spokil,
Soresol, Timerio, Bopal, Parla, Volapük, Esperanto, Idiom Neutral, Dil,
Balta, Spelin, Weltparl, Mundolingue, Latino sine flexione, Occidental,
Novial
81
, Interlingua, dentre os mais conhecidos. (PASSINI, 2008, p. 46)
Do ponto de vista dos estudos da linguagem, em linhas gerais, pode-se dizer que, na
primeira metade do culo XIX floresciam na Europa as pesquisas históricas da chamada
gramática comparativa. Na Alemanha, Franz Bopp publicava, em 1816, o ―Sistema de
conjugação do sânscrito em comparação com o grego, latim, persa e germânico‖.
na segunda metade do século, sob a influência do pensamento darwinista, os
estudos histórico-comparativos sinalizavam uma orientação naturalista, sobretudo a partir de
1861, com a publicação da obra de A. Schleicher ―Compêndio de gramática comparativa das
línguas indo-europeias‖, que considerava a língua como um organismo vivo, cujo
desenvolvimento é ―como um de uma planta com suas leis fixas de nascimento, crescimento e
morte.‖ (BORBA, 1991, p.310).
Em 1878, a publicação do primeiro número da revista Morphologische Untersuchunge
(Investigações morfológicas), fundada por K. Osthoff e K. Brugmann, marca a data inicial do
chamado movimento neogramático. O grupo dos neogramáticos tinha como objetivo
79
Línguas construídas cujas gramáticas e léxicos derivam de uma ou mais línguas naturais.
80
Segundo Eco (2002, p.383) ocorre uma nova Babel de línguas internacionais‖, e o autor cita o registro de
trinta e oito projetos de língua exemplificados por Louis Couturat e Leopold Leau em Historire de la langue
universelle (1903).
81
Novial é o nome do projeto de língua criado pelo linguista Otto Jespersen, em 1928.
69
questionar os pressupostos tradicionais da prática histórico-comparativa e estabelecer uma
nova orientação teórica e metodológica para a interpretação da mudança linguística.
Em suma, para finalizar essas breves considerações sobre o cenário linguístico do
século XIX, transcrevemos o pensamento de Faraco:
O século XIX nos deixou, por exemplo, o delineamento claro da língua
como uma realidade com história (sob mutação permanente no eixo do
tempo); reorganizou nossa percepção da diversidade (demonstrando
sistematicamente a existência de uma rede de relações ‗genéticas‘ entre
várias línguas diferentes); deu forma ao senso de sistema (exercitando
perspectivas biologizantes, psicologizantes e sociologizantes, bem como
lançando as condições para o grande corte sistêmico saussuriano).
(FARACO, 2004, p.45)
Nesse contexto linguístico e histórico, foi publicado o projeto de língua denominado
Volapük ou Volapuque (1879), elaborado pelo clérigo alemão Johann Martin Schleyer, para
uso internacional. Segundo Passini (2008, p.46), ―o Volapuque
82
chegou a reunir milhares de
adeptos e a possuir um volume apreciável de literatura e de periódicos, editados em vários
países.‖ Apesar de seu aparente sucesso, o projeto do Volapuque fracassou, devido a falhas
do próprio idioma e à falta de consenso entre os reformistas, sob a censura autoritária de
Schleyer, que se comportava como ―proprietário‖ da língua. Enquanto isso, no leste europeu,
com total desconhecimento da existência do Volapuque, outra língua internacional estava
sendo planejada, e oito anos depois do aparecimento da língua de Schleyer, surgiu a
internacia lingvo (1887) - língua internacional - posteriormente conhecida como Esperanto.
4.4 BREVE HISTÓRICO DO ESPERANTO E DO MOVIMENTO ESPERANTISTA
O Esperanto foi idealizado e construído pelo médico, poeta e humanista judeu polonês
Lejzer Ludwik Zamenhof (ou Lazarus Ludwig Zamenhof) - durante a sua adolescência e
juventude - e publicado em 1887, em Varsóvia. Tendo recebido o nome Lejzer (Lazarus) ao
nascer, mais tarde, em Varsóvia, Lazarus Zamenhof adotou o nome não judaico Ludwig,
para poder viver mais tranquilamente entre cristãos‖,
83
informa Boulton (1962, p.23).
82
Para um estudo mais aprofundado do Volapuque leia-se o capítulo Interlínguas‖. In: Bilinguismo: Utopia ou
Solução? (PASSINI, 2008, p. 46).
83
No original: ― […] en Varsovio, Lazaro Zamenhof alprenis la nejudan nomon Ludoviko, por vivi pli trankvile
inter kristanoj.”
70
Zamenhof nasceu na pequena cidade de Bialystok, que pertencera ao Grão-ducado da
Lituânia e fazia então parte da zona da Polônia ocupada e administrada pelo Império Russo,
época que o historiador Hobsbawm denominou era dos impérios, ―um mundo em processo de
transformação revolucionária‖.(HOBSBAWM, 2005, p.11)
Os poloneses, divididos entre a Rússia, a Alemanha e a Áustria, sonhavam com a
instauração de uma Polônia independente. Tal sonho era, porém, sufocado pela intensificação
das tensões nacionais e sociais, ―sobretudo com a tentativa de o governo czarista aumentar seu
controle político por meio de uma política sistemática de russificação pela educação a partir
do ano 1880.‖ (HOBSBAWM, 2005, p.407)
O menino Zamenhof fora criado em um contexto social de hostilidade e preconceito,
onde mal se suportavam judeus, poloneses, alemães e russos, pois cada agrupamento zelava
por sua própria língua e costumes, desprezando e detestando a língua e a cultura do vizinho. A
vivência em tal cenário de incompreensão multilingue gerou em Zamenhof a ideia fixa de
criar uma ngua comum a todos, que unisse os povos, acima das diferenças étnicas, raciais,
políticas, ideológicas ou religiosas. Para o jovem, essa segunda língua auxiliar seria um
recurso de pacificação e união.
Filho de um professor de nguas, Zamenhof tornou-se poliglota, aprendendo, além do
russo - sua língua nativa -, o polonês, o alemão, o iídiche, o francês, o inglês, o latim e o
grego. Embora não tivesse feito cursos de fonética, linguística histórica ou filologia
comparada, usou de sua intuição e sensibilidade para lidar com os problemas de linguagem.
Para ilustrar essa capacidade de Zamenhof, transcrevemos abaixo trecho de uma carta sua a
N. Borokovo, sobre a história do Esperanto:
Certo dia, quando eu estava na sexta ou sétima série ginasial, acasionalmente
voltei a atenção para uma placa Ŝvejcarskaya (portaria), que eu já tinha visto
muitas vezes, e depois para o cartaz Konditorskaya (bomboneria). Aquele
sufixo skaja começou a interessar-me e mostrava-me que as terminações
ofereciam a possibilidade de fazerem-se de uma palavra outras palavras, que
não precisavam ser separadamente aprendidas. Esse pensamento me
absorveu completamente e subitamente comecei a sentir a terra sob os pés.
Sobre os terríveis e enormes dicionários caía um raio de luz, e eles
começaram rapidamente a diminuir ante meus olhos. (PRIVAT, 1969,
p.50)
84
De fato, por meio do uso de prefixos e sufixos, o léxico do Esperanto apresenta uma
grande economia e produtividade: em vez de aprender novas palavras, a partir de um
84
Tradução de Alberto Bonfim.
71
determinado número de bases (ou raízes) e afixos o usuário automaticamente cria o vocábulo
relacionado como, por exemplo, com a raiz kuraĝ- do adjetivo kuraĝa (corajoso), podem-se
formar palavras como kuraĝo (coragem), kuraĝi (ter coragem), kuraĝe (corajosamente),
malkuraĝa (medroso, covarde), malkuraĝo (covardia), malkuraĝulo (o covarde), nekuraĝa
(tímido), senkuraĝeco (desânimo, desalento), senkuraĝigi (desanimar), kuraĝigi (animar,
encorajar), kuraĝiga (animador), kuraĝiĝi (animar-se), etc.
Por meio de seus estudos linguísticos, Zamenhof investigou e comparou a estrutura
gramatical e lexical dos idiomas conhecidos, na busca de material para construir seu projeto
de língua internacional. Aos dezenove anos de idade, apresentou a um grupo de colegas de
classe a primeira versão do que ele chamou de lingwe universala‖, uma espécie de rascunho
do que seria a futura lingvo internacia (língua internacional).
Pouco tempo depois, por exigência do pai, teve que suspender as pesquisas linguísticas
para dedicar-se ao curso de Medicina, em Moscou. Mais tarde retomou seu trabalho com mais
entusiasmo e devotamento, quando descobriu que o pai, temendo problemas com a censura do
regime czarista, havia queimado todos os seus manuscritos feitos na adolescência.
Durante seis anos trabalhou em sua pesquisa, testando o projeto por meio de traduções
de autores de vários países, escrevendo poemas na língua que projetava.
Foi bem modesto o nascimento do idioma. Graças à ajuda financeira de seu futuro
sogro, o médico Zamenhof publicou o Unua Libro (Primeiro Livro) em julho de 1887, com o
pseudônimo Doktoro Esperanto (―O doutor que tem esperança‖). Era uma pequena brochura,
de quarenta ginas, em Russo, língua oficial do império, e que foi enviada para a imprensa,
alguns clubes e conhecidos. Depois se seguiram edições do Unua Libro em polonês, francês,
alemão, inglês, hebreu e ídiche. Todas traziam uma introdução, textos na língua internacional,
incluindo a oração cristã Pai Nosso‖, trechos da Bíbilia, uma carta, versos, uma gramática
completa com dezesseis regras e um pequeno vocabulário constituído de novecentas raízes.
Na segunda página, o autor já renunciava a todos os direitos autorais, pois ―uma língua
internacional como cada uma das nacionais é propriedade comum.‖ (PRIVAT, 1969, p.76).
Foi favorável a reação do público leitor ao Unua Libro: muitas cartas chegaram com
pedidos de esclarecimentos, críticas e elogios. Conforme Boulton (1962, p.57), foram tantas
as perguntas, que ao autor seria impossível responder a cada missivista.
Para melhor esclarecer os seus leitores, Zamenhof decidiu publicar, em Varsóvia, um
suplemento, o Dua Libro (Segundo Livro), em 1888, onde se podia ler a seguinte afirmação
que comprova a sua intuição linguística: ―Tudo o que é aperfeiçoável será aperfeiçoado pelos
72
conselhos do mundo. Eu não quero ser o criador da língua, mas apenas o seu iniciador.‖
(PRIVAT, 1969, p.128).
Quando Zamenhof delega poderes aos ―conselhos do mundo‖ para aperfeiçoar o
Esperanto, ele antecipa o pensamento de Ferdinand de Saussure, que considera a língua como
uma instituição de domínio de uma sociedade: ―Quem cria uma língua, a tem sob domínio
enquanto ela não entra em circulação; mas desde o momento em que ela cumpre sua missão e
se torna posse de todos, foge-lhe ao controle.” (SAUSSURE, 1975, p.91).
Valendo-se de expressões comuns ao pensamento dos gramáticos e filólogos do
século XIX, Zamenhof esclarece sua visão linguística: ―Tudo o mais deve ser criado pela
sociedade humana e pela vida, tal como vemos em todas as línguas vivas. (...) A língua
internacional deve viver, crescer e progredir segundo as mesmas leis que regeram a
elaboração de todas as línguas vivas.‖ (PRIVAT, 1969, p.128)
A atribuição de controlar o desenvolvimento da língua e sua utilização em todo o
mundo cabe à Academia de Esperanto, entidade da Associação Universal de Esperanto
(Universala Esperanto Asocio - UEA), órgão central do movimento esperantista
internacional, cuja sede fica, atualmente, em Rotterdam, na Holanda.
Ao se proclamar iniciador e não criador da língua, ―ao contrário de outros autores de
projetos, ele soube reconhecer malgrado sua condição de linguista amador e a própria
limitação da ciência da época o caráter social e evolutivo da língua‖, conforme afirma
Passini (2008, p.63).
Zamenhof tinha consciência de que a língua em uso estaria sujeita a uma natural
evolução, mas, preocupado com possíveis reformas na estrutura básica do idioma, que não
faltavam pessoas e grupos interessados em aperfeiçoar a língua, decidiu publicar, pela editora
Hachette, em 1905, um libreto intitulado Fundamento de Esperanto. Por uma Declaração
aceita por unanimidade no Congresso Universal, na cidade francesa Boulogne-sur-Mer, em
1905, tal livro foi proclamado ―base intocável do Esperanto, na qual ninguém tem o direito de
fazer qualquer tipo de mudança‖.
O Fundamento consiste de quatro partes. Primeira, Antaŭparolo, na qual
Zamenhof esclarece por que a obra é a condição absoluta para a unidade da
língua. Segunda, a Gramatiko (gramática) da língua, na qual as 16 regras são
concisamente apresentadas. Terceira, o Ekzercaro (um conjunto de
exercícios), cuidadosamente graduado, que complementa a gramática e
mostra sua aplicação. Quarta, o Universala Vortaro (dicionário universal),
73
que contém as 1800 primeiras raízes esperantas, com tradução em cinco
línguas. (AULD, 1988, p.59)
85
Desse modo, a língua tem possibilidade de evoluir, sem, todavia, correr o risco de
destruição de seu fundamento básico, isto é, as dezesseis regras gramaticias (Gramatiko), o
léxico inicial (Universala vortaro) e a indicação de uso da ngua, instanciado pelo
exemplário (Ekzercaro).
É importante ressaltar que, nessa época, as chamadas línguas nacionais, ―eram com
grande frequência artefatos, uma vez que deviam ser compiladas, padronizadas,
homogeneizadas e modernizadas para uso contemporâneo e literário, extraídas do quebra-
cabeça dos dialetos locais e regionais (HOBSBAWM, 2005, p.210). Como afirma o autor
citado, o século XIX foi a época das grandes ―autoridades‖ que estabeleceram o vocabulário e
―corrigiram‖ o uso de seu idioma.‖(HOBSBAWM, 2005, p.210) Sendo assim, não é de se
admirar que leitores pertencentes a culturas letradas demonstrassem interesse pela nova língua
internacional.
antes do início de 1888, Zamenhof foi surpreendido com muitas promessas de
aprendizagem da língua. Em dezembro de 1888, com a decadência do Volapuque, aderiu ao
Esperanto o clube volapuquista de Nuremberg, Alemanha, tornando-se o primeiro clube de
Esperanto do mundo. Em setembro de 1889, ele fundou a primeira revista de Esperanto, La
Esperantisto. (AULD, 1988, 61) No fim de 1891, a revista - na época sob a direção de
Zamenhof - teria sido fechada por falta de recursos financeiros, mas foi salva pela ajuda do
alemão W. Trompeter. A censura do czar, porém, ao proibir a revista na Rússia, fez com que
La Esperantisto perdesse três quartos de seus assinantes e por isso Zamenhof foi obrigado a
cancelar a sua publicação.
Apesar das dificuldades impostas pela censura, principalmente nos territórios sob
domínio russo, a ideia da língua internacional florescia: formavam-se associações, editavam-
se jornais e revistas. em outubro de 1889 surgiu a primeira lista de endereços com mil
nomes de pessoas de diversos países que haviam aderido à nova língua; muitas se
correspondiam na língua do Esperanto, que, em breve, passou a ser conhecida apenas como
Esperanto. No ano de 1891 já havia trinta e três manuais de Esperanto em doze
línguas.(LINS, 1988, p. 22).
85
No original : ―La Fundamento konsistas el kvar partoj. Unue, Antaŭparolo, em kiu Zamenhof klarigas, kial la
verko estas absoluta kondiĉo por La unueco de la lingvo. Due, la Gramatiko de la lingvo, em kiu La 16 reguloj
estas koncize presentitaj. Trie, Ekzercaro, zorge gradigita, kiu kompletigas la gramatikon kaj montras ĝian
aplikon. Kvare, Universala Vortaro, kiu entenas la 1800 unuajn esperantajn radikojn, kun traduko em kvin
lingvoj.”
74
Em 1895 a língua já tinha oito anos de uso. Outras publicações surgiram como, por
exemplo, a revista Lingvo Internacia (Língua internacional), editada por esperantistas suecos.
Em 1898 o francês Louis de Beaufront lançou a revista L‟Espérantiste, iniciando-se então um
numeroso e ativo movimento esperantista francês. Um fator importante foi o engajamento da
editora Hachette, em 1901, que possibilitou a publicação de livros em Esperanto com a
consequente distribuição internacional dessas obras. Ela também publicou, desde 1906, um
periódico literário mensal, La Revuo. Também foi criada na França uma editora própria Presa
Esperantista Societo (Sociedade esperantista de imprensa), em concorrência com a Hachette.
Efetivamente, em junho de 1905, havia vinte e sete revistas, das quais duas eram editadas
na América: uma, no Chile e outra, no México. Nesse mesmo ano existiam cinco
sociedades de Esperanto no Japão.
Nessa época estavam oficialmente registrados três mil seiscentos e dois
esperantistas; foram publicados quarenta e sete manuais e dicionários, em dezenove nguas;
foram publicadas doze obras literárias, não apenas traduzidas, mas originalmente escritas, das
quais a principal foi a tradução de Hamlet feita pelo próprio Zamenhof. (AULD, 1988, p. 62)
Além disso, foi comprovada a utilização prática do Esperanto falado. Auld (1988,
p.62) informa-nos que, naquele ano, dois suecos viajaram com êxito pela Rússia, Turquia,
Romênia, Áustria, Hungria e Alemanha, comunicando-se em Esperanto com esperantistas
locais.
Em 1905 ocorreu o primeiro Congresso de Esperanto, na cidade francesa de Boulogne-
sur-mer, um marco histórico do movimento esperantista que se concretizava então. Zamenhof
viajou com a esposa até Paris onde foi recebido com honras: ―o governo municipal o recebeu
na sede da Prefeitura. O ministro da Educação o tornou membro da Legião de Honra. No alto
da Torre Eiffel almoçou com os cientistas mais famosos da França.‖(PRIVAT, 1969, p.92)
Tais homenagens ocorreram quando o governo francês ainda era oficialmente pacifista. Mais
tarde a onda de nacionalismo chauvinista sufocaria qualquer movimento com tendência de
internacionalismo como o esperantista.
É válido, todavia, registrar o relato de quem participou desse primeiro congresso
internacional no balneário francês Boulogne-sur-mer, sobretudo do sentimento de alegria de
Zamenhof por ver seu sonho começar a ser concretizado:
75
Mas a verdadeira alegria o esperava em Bolonha. Ali encontraria irmãos de
todos os países. Ali se acharia no ―círculo familiar‖
86
. Por todas as ruas
daquela cidadezinha praieira tremulavam bandeiras verdes com a estrela da
esperança. Nas proximidades do teatro, onde os esperantistas se reuniriam,
se ouvia a língua internacional. Ingleses com capuz de flanela, franceses
com fraques solenes, poloneses, russos, holandeses em vestuário de viagem,
atraentes espanholas com chales coloridos, se encontravam na praça e
conversavam em conjunto. Compreendiam-se. Fluentes e fáceis saíam as
palavras, dos lábios aos ouvidos, de suecos a italianos. Caíram, caíram as
barreiras entre os povos. (PRIVAT, 1969, p.93)
Nesse primeiro congresso, Zamenhof propôs uma Declaração (unanimemente aceita)
que definia oficialmente o esperantismo como:
Um esforço para propagar em todo o mundo o uso de uma língua humana
neutra, que, sem se impor à vida interna dos povos e de modo algum
objetivando anular as línguas nacionais existentes, proporcione aos homens
das diferentes nações a possibilidade de comunicar-se entre si; que sirva de
língua pacificadora de instituições públicas nos países em que as diversas
raças se entrechocam por causa dos idiomas; e que sirva de veículo para as
obras de igual interesse para todos os povos. (PRIVAT, 1969, 114)
Em 1907, no congresso realizado em Cambridge, na Inglaterra, foram celebrados com
sucesso os vinte anos de existência da língua, com a presença de mil e quinhentos
esperantistas, que, segundo Privat (1969, p. 120, se tinham tornado um verdadeiro povo.
Depois do congresso de Cambridge, os congressistas foram recebidos no palácio municipal de
Guidhall pelas autoridades de Londres, onde Zamenhof pôde discursar a favor da paz. O
pacifismo internacional de Zamenhof, todavia, começava a incomodar os nacionalistas
ferrenhos, que depois o acusariam de perigoso internacionalista (danĝera internaciulo).
Na França, o movimento tendia para uma utilização prática do Esperanto nas relações
internacionais do mundo capitalista, distanciando-se do pioneirismo idealista dos esperantistas
russos, por exemplo. Os franceses reconheciam no Esperanto ―o fruto legítimo de sua
comum no progresso da civilização e na soberania da razão‖.
87
(LINS, 1988, p.31). Esse
pensamento fez com que o Esperanto fosse respeitado na Europa ocidental. Cumpre, lembrar,
contudo, que Zamenhof não apenas estabeleceu o fundamento do ideal de compreensão
linguística entre os povos mas também o da aplicação prática da língua.
86
A expressão ―círculo familiar‖ (ronda familio), frequente nos textos de Zamenhof, resume o ideal do
Esperanto: tornar a humanidade uma grande família. Também se encontra na letra de La Espero (A Esperança:
o hino do Esperanto).
87
No original: [...] la legitiman frukton de ilia komuna fido en la progreso de la civilizo kaj en la suverereneco
de la racio.”
76
De acordo com Lins (1988, p.36), enquanto os esperantistas franceses enfatizavam a
utilidade do Esperanto para o comércio, turismo e ciência, desde 1905 filiavam-se ao
movimento muitas pessoas que viam o Esperanto como um instrumento adequado para sua
luta política, a saber, socialistas, anarquistas, pacifistas e outros. No segundo Congresso de
Esperanto, em Genebra, em 1906, acontecia o primeiro encontro de esperantistas
―vermelhos‖ (ruĝuloj). Em 1907, surgiu a Internacia Socia Revuo (Revista social
internacional) e em um congresso anarquista internacional foram tomadas resoluções
favoráveis ao Esperanto. Em 1908, nos Estados Unidos, em Chicago, foi publicada a primeira
tradução esperanta do Manifesto Comunista de Marx e Engels.
88
Em termos de expansão internacional, além das fronteiras europeias, a primeira cidade
brasileira a figurar na lista de endereços (Adresaroj) de Zamenhof foi Porto Alegre, no Rio
Grande do Sul, inscrita sob o mero 3846 no Adresaro XVII (1895-1897). Em março de
1906, foi fundado o primeiro grupo de Esperanto do Brasil, em Campinas, São Paulo.
Ainda em 1906, o governo brasileiro reconheceu oficialmente o Esperanto como uma
língua clara para ser usada no serviço de telégrafo do país. O Brasil foi, portanto, o primeiro
país a adotar essa medida vinte anos antes da mesma recomendação feita pela União
Universal de Telegrafia.
Em 1907, fundou-se a Liga Esperantista Brasileira (Brazila Ligo Esperantista ) que, a
partir de 1949, passou a ser chamada de Liga Brasileira de Esperanto (Brazila Esperanto-
Ligo). Ela foi reconhecida pelo CNPq como fomentadora de cultura e está agora cadastrada
no Diretório de Instituições do CNPq - Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico, do Ministério da Ciência e Tecnologia. Esse cadastro utiliza a Plataforma Lattes,
a mesma plataforma utilizada para registro de Instituições que promovem pesquisas
científicas, como Universidades, por exemplo, e registro de pesquisadores.
Nos anos 1907/1908, o Esperanto atravessou uma grave crise na Europa. Em Paris, a
diretoria dos ―Delegados para a escolha de uma língua internacional‖ (associação fundada
pelo logicista Louis Couturat) convocou a reunião de um comitê de doze linguistas
89
de
diversos países para a escolha de uma língua internacional que fosse oficialmente aceita. Foi
enviado como representante do Esperanto, o francês Louis de Beaufront. Este, todavia, traiu a
confiança de Zamenhof, pois, em vez de defender o Esperanto, pleiteou por mudanças em sua
estrutura, apresentando um projeto de um Esperanto reformado que se denominou ―Ido‖
88
Manifesto de la Komunista Partio. Karolo Marks kaj Frederiko Engels. Trad. Arturo Baker. Chicago: 1908.
(LINS, 1988, p.41)
89
Entre outros, por exemplo, Jespersen e Baudouin de Courtenay.
77
(termo que, em Esperanto, significa descendente). Apesar da onda de indignação que foi
gerada dentro do movimento, um grupo de esperantistas aceitou tal proposta; a maioria,
porém, permaneceu fiel ao Esperanto. Apesar de os chamados ―idistas‖ terem incomodado o
progresso do Esperanto durante duas cadas, o Ido extinguiu-se vitimado por sua própria
doença: o eterno reformismo.
Fruto da crise do Ido foi a fundação da primeira organização de esperantistas:
Associação Universal de Esperanto (Universala Esperanto Asocio - UEA), em março de
1908, pelo suíço Hector Hodler. ―O esperantismo era para ele ao invés de um movimento
puramente linguístico principalmente um movimento social, construtivo e
progressista.‖
90
(LINS, 1988, p.42) Assim, inaugurou-se um novo período na história do
Esperanto que tinha como objetivo prático o uso efetivo da língua; findou o tempo de
discussões linguísticas, de preocupação apenas com a propaganda da língua.
A Associação Universal de Esperanto (UEA), que atualmente possui associações
nacionais em noventa e três países, é uma organização internacional prestadora de serviços
aos usuários de Esperanto. Na maioria das grandes cidades do mundo há um delegado
esperantista disponível para prestar ajuda na língua internacional sobre o assunto de sua
competência ou especialidade. As tiragens dos livros didáticos e as estatísticas das
associações locais indicam que o número de pessoas com algum conhecimento da língua
esteja em centenas de milhares ou até milhões
91
.
O funcionamento da UEA muito contribuiu para o fato de que o Esperanto
tenha sobrevivido à Primeira Guerra Mundial. Seu escritório central era na
neutra Suíça, e por isso os funcionários puderam intermediar informações e
dinheiro que fosse barrado por outra via. O número de pedidos de ajuda e os
serviços realizados eram impressionantes. As correspondências tratadas
(chegadas e enviadas) somaram-se a mais de 175 000 durante a guerra!
(AULD, 1988, p. 69)
92
90
No original: Esperantismo estis por li diference de pure lingva movado “precipe socia, konstrua kaj
progresema movado”.”
91
É difícil exemplificar com o número exato de usuários, pois a grande maioria não se cadastra em nenhuma
associação e todo dia surgem novas pessoas interessadas em aprender a língua. Pode-se dizer que muitos
dirigentes do movimento esperantista fazem um cálculo aproximado de dois milhões de falantes.
92
No original: ― La funkciado de UEA multe kontribuis al la fakto, ke esperanto travivis la Unuan Mondmiliton.
Ĝia centra oficejo estis en neŭtrala Svislando, kaj tial la oficistoj povis peradi informojn kaj transpagi monon,
kiuj estis alivoje batitaj. La nombro de la helpopetoj kaj la plenumitaj servoj estas konsterna. La traktitaj
korespondaĵoj (alvenintaj kaj forsenditaj) sumiĝis je pli ol 175000 dum la daŭro de la milito!”
78
Em 2001, a UEA contabilizava associados de 119 países do mundo. Em 2008, a
Universala Esperanto Asocio celebrou o seu centenário de nascimento e teve como
recompensa ao seu trabalho a sua indicação ao Prêmio Nobel da Paz.
A história do movimento esperantista é um objeto de estudo complexo, pois ela
abrange fatos ocorridos mais ou menos no mundo inteiro. Alguns governos encorajaram o
Esperanto, outros perseguiram os esperantistas. No entanto, nem mesmo duas guerras
mundiais conseguiram silenciar o movimento cuja ―ideia interna‖ (interna ideo) continua
sendo ―fraternidade e justiça entre todos os povos‖ (frateco kaj justeco inter ĉiuj popoloj).
Embora a neutralidade política fosse o princípio fundamental da UEA e dos
esperantistas, não se pôde impedir o crescente interesse pelo Esperanto como meio de
comunicação da classe operária mundial, atendendo à convocação do Manifesto Comunista:
―Trabalhadores do mundo, uni-vos!‖ Assim surgiram associações esperantistas que
representavam movimentos de trabalhadores socialistas, social-democratas, anarquistas e
similares, como informa Auld (1988, p.70).
Apesar do apoio dado ao Esperanto pelo governo soviético de então, cumpre lembrar
que Marx era contra a fraternidade entre os povos‖, uma vez que tal ―expressão burguesa‖
escondia o antagonismo de classes e desviava a atenção da prioridade da luta de classes. Ao
contrário, na verdade, apenas o proletariado seria capaz de conseguir essa união por meio da
revolução. Em outras palavras, o sonhado internacionalismo não poderia ser possível antes da
revolução, segundo relata Lins (1988, p.321). Por isso, mais tarde, Stalin proibiu o movimento
e perseguiu os esperantistas soviéticos.
Auld (1988, p.71) observa que o Esperanto foi considerado ―língua de judeu‖, ―língua
comunista‖ ou ―língua cosmopolita‖, tendo sido também proibido em outros governos
ditatoriais como a Alemanha nazista, a Espanha franquista e outros, não somente por abrir
uma janela às influências exteriores mas também por implicar ideias sobre paz e fraternidade
entre os homens .
Após as duas guerras mundiais, tanto a Liga das Nações quanto a Organização das
Nações Unidas (ONU) ocuparam-se do problema de uma língua internacional, por terem
vivenciado as dificuldades das diferenças linguísticas e os consequentes custos advindos
dessas diferenças.
Relatórios feitos por inspetores da ONU testemunham a complexidade e o alto custo
da prestação de serviços multilingues como, por exemplo, a constatação de que 11 % do
orçamento da UNESCO são absorvidos por tais serviços. Para o mesmo propósito são gastos
ainda 23% na Organização Intergovernamental Consultiva da Navegação Marítima, 26% na
79
Organização da Aviação Civil Internacional, 22,8% na União Internacional das
Telecomunicações
93
. Com relação às instituições europeias, ―no Parlamento Europeu e no
Comitê Econômico e Social, o custo do plurilinguismo não estaria longe dos três quartos do
orçamento mínimo, explica um euro-deputado.
94
Conforme informações de Piron:
95
A União Europeia emprega cerca de 3000 tradutores e 700 intérpetes-
funcionários, além de 2500 intérpretes independentes. Em 1989, ela gastou
para seus serviços linguísticos 1,4 bilhões de ECUs (como era então
chamado o Euro) ou seja, cerca de 1, 6 bilhões de dólares. Ainda na União
Europeia, cada palavra escrita fica em 36 centavos de dólar; esse custo
dobrou em dez anos. Ora, lá se traduzem 3.600 000 palavras por dia. A
tradução de documentos (abstraindo-se a interpretação oral utilizada nas
reuniões) absorve então quotidianamente 1,2 milhões de dólares. [grifo do
autor]. (PIRON, 2002, p.33)
Assim, consciente dos problemas advindos do exercício do multilinguismo, a
Conferência Geral da UNESCO em sua 23ª sessão, realizada em Sofia, no dia 08 de
novembro de 1985, aprovou com unanimidade a seguinte resolução, abaixo transcrita.
A Conferência Geral Considerando que, em sua sessão de 1954, ocorrida
em Montevidéu, através da Resolução IV.1.4.4222-4224 constatou os
resultados obtidos pela língua internacional esperanto no campo dos
intercâmbios intelectuais em vel internacional, bem como para a
compreensão recíproca entre os povos do mundo e reconheceu que tais
resultados estão de acordo com os objetivos e ideais da UNESCO,
Lembrando que, desde então, o esperanto atingiu um considerável progresso
como instrumento de compreensão entre povos e culturas de diferentes
países, alcançando a maioria das regiões do mundo, assim como abrangendo
a maioria das atividades humanas, Reconhecendo as grandes possibilidades
que o esperanto oferece para a compreensão internacional e para a
comunicação entre os inúmeros povos de diferentes nacionalidades,
Constatando a importantíssima contribuição do movimento esperantista para
a divulgação de informações sobre as atividades desenvolvidas pela
UNESCO, assim como a sua participação em muitas dessas atividades,
Ciente sobre o fato de que em 1987 ocorrerão os festejos do centenário de
existência do esperanto, 1.Congratula-se com o movimento esperantista por
ocasião de seu centenário de existência; 2. Solicita ao Sr. Diretor-Geral
acompanhar atentamente a evolução do esperanto como solução para a
melhoria da compreensão entre diferentes nações e culturas; 3.Convida os
Estados-Membros a aderir às comemorações do centenário do esperanto
93
Relatório ―Incidências do emprego de novas línguas nos organismos das Nações Unidas‖. (PIRON, 2002,
p.38)
94
Jean E. Humblet, Le problème des langues dans les organizations internacionales‖. Revue internationale
des sciences sociales, Paris, v.36, n.1, p.155-156, 1984. (PIRON, 2002, p. 38)
95
Baseado em Roman Rollnick, Word mountains are costing us a fortune‖. The European, 20-22 decembrode
1991. p. 6.
80
através da realização de eventos, emissão de declarações, edição de selos
comemorativos e atividades semelhantes, bem como estimular a criação de
programas de estudos sobre o problema linguístico e sobre o esperanto em
suas escolas e instituições de ensino superior; 4.Recomenda às organizações
internacionais não-governamentais a aderir aos festejos do centenário do
esperanto e estudar a possibilidade de utilizar o esperanto entre seus
membros como veículo para difusão de toda espécie de informação,
inclusive aquelas ligadas às atividades da UNESCO. (AULD, 1988, p.78)
96
Mais de cem conferências e encontros internacionais acontecem todos os anos em
Esperanto - sem tradutores ou intérpretes. Todo ano cerca de 1500 a 3000 falantes de
Esperanto reúnem-se no tradicional Congresso Universal de Esperanto (Universala
Kongreso). Conforme relata Auld (1988, p. 65), em 1987 aconteceu um ―fenômeno único: o
72º Congresso Universal, foco do Ano do Jubileu do Esperanto, reuniu em Varsóvia, quase
6000 pessoas de mais de 70 países.‖
97
Em 1996, no 81° Congresso Universal de Esperanto, ocorrido em Praga, República
Tcheca, foi elaborado um documento denominado Manifesto de Praga (Do Movimento em
favor da língua internacional Esperanto).
98
Trata-se de um resumo dos princípios e objetivos
do movimento esperantista organizado, que enfatiza a democracia linguística e a preservação
da diversidade das línguas, postulando os seguintes ―princípios considerados essenciais para
uma ordem linguística justa e eficiente‖: (1) democracia; (2) educação transnacional; (3)
eficácia pedagógica; (4) multilinguismo; (5) direitos linguísticos; (6) diversidade linguística;
96
No original: Konsiderante, ke ĝi en sia sesio de 1954, okazinta en Montevideo, per la rezolucio IV.1.422-
4224 notis la rezultojn, atingitajn pere de la internacia lingvo Esperanto sur la kampo de internaciaj intelektaj
interŝanghoj kaj reciproka kompreniĝo inter la popoloj de la mondo, kaj agnoskis, ke tiuj kongruas kun la celoj
kaj idealoj de Unesko,
Memorigante, ke Esperanto intertempe faris konsiderindan progreson kiel ilo de kompreniĝo inter popoloj kaj
kulturoj de malsamaj landoj, penetrante en la plimulton de la regionoj de la mondo kaj la plimulton de la homaj
agadoj,
Agnoskante la grandajn eblecojn, kiujn Esperanto prezentas por la internacia kompreniĝo kaj la komunikado
inter popoloj de malsamaj naciecoj,
Notante la tre gravan kontribuon de la Esperanto-movado, kaj precipe de la Universala Esperanto-Asocio, al la
disvastigado de informoj pri la agado de Unesko, same kiel ĝian partoprenon en tiu agado,
Konscia pri la fakto, ke en 1987 oni festos la centjariĝon de la ekzisto de Esperanto,
1. Gratulas la Esperanto-movadon okaze de ĝia centa datreveno ;
2. Petas la Ĝeneralan Direktoron daŭre sekvi kun atento la evoluon de Esperanto kiel rimedo por plibonigi la
komprenon inter malsamaj nacioj kaj kulturoj ;
3. Invitas la Ŝtatojn-Membrojn marki la centjariĝon de Esperanto per konvenaj aranĝoj, deklaroj, eldono de
specialaj poŝtmarkoj kaj simile, kaj instigi al la enkonduko de studprogramo pri la lingvo-problemo kaj pri
Esperanto en siaj lernejoj kaj siaj institucioj de supera edukado ;
4. Rekomendas al la internaciaj neregistaraj organizaĵoj aliĝi al la festado de la centjariĝo de Esperanto kaj
pristudi la eblecon utiligi Esperanton kiel rimedon por disvastigi inter siaj membroj ĉiajn informojn, inkluzive de
tiuj pri la agado de Unesko.”
97
No original: ―Unika fenomeno: la 72ª Universala Kongreso, fokuso de la Jubilea Jaro de Esperanto,
kunvenigis preskaŭ sesmil homojn el pli ol 70 landoj.”
98
O texto integral do Manifesto de Praga pode ser lido no Anexo II, p.368-370.
81
(7) emancipação humana. Do item relativo à eficácia pedagógica, destacamos a referência
aos diversos estudos que relatam os efeitos propedêuticos do Esperanto na aprendizagem de
outras línguas.
Nos últimos anos, o Congresso Universal de Esperanto foi realizado em Adelaide
(1997), Montpellier (1998), Berlim (1999), Tel-Aviv (2000), Zagreb (2001), Fortaleza,
99
(2002), Gotemburgo, Suécia (2003), Pequim (2004), Vilnius, na Lituânia (2005), Florença
(2006), Yokohama (2007), Rotterdam (2008)
100
.
No 89º Congresso Universal de Esperanto, que ocorreu em Pequim, em 2004, com
2031 participantes de 51 países, foi discutido o tema "Igualdade linguística nas relações
internacionais". A declaração final do congresso, aprovada em assembleia e publicada no
quadro do encerramento solene, convocou todos os países a introduzir o ensino de Esperanto
em seus sistemas pedagógicos. Naquele mesmo ano, no Brasil, com 397 participantes,
ocorreu em Maceió, o ―39º Congresso Brasileiro de Esperanto e o 24º Congresso da
Juventude Esperantista Brasileira‖, cujo tema foi ―Esperanto na escola‖.
Em 2007, no período de 4 de 11 de agosto, ocorreu em Yokohama, no Japão, o 92º
Congresso Universal, cujo tema foi: ―O Ocidente no Oriente: aceitação e resistência‖, com um
total de 1900 participantes de 57 países. Nesse mesmo ano, no Brasil, o 42º Congresso
Brasileiro de Esperanto realizou-se na cidade do Rio de Janeiro (de 08 a 13 de julho de 2007)
com o tema: ―Cem anos de movimento esperantista no Brasil; estratégias para o futuro‖, com
a praticipação de cerca de 500 congressistas.
Em 2008, proclamado pela Assembleia Geral da ONU o Ano Internacional das
Línguas, foi realizado em Rotterdam, na Holanda, no período de 19 a 26 de julho, o 93º
Congresso Universal, cujo tema foi ―Línguas: tesouro da humanidade‖, em consonância com
as comemorações feitas em todo o mundo. No Brasil, em Fortaleza, ocorreu no período de 12
a 16 de julho, o 43º Congresso Brasileiro de Esperanto com o tema ―Criança: que solo!‖
Ainda em abril de 2008, foi lançado, na China, com mais de cem mil verbetes, distribuídos
em 1.200 páginas, o primeiro Dicionário Chinês Esperanto, organizado pelo esperantista
Wang Chongfang.
Neste ano de 2009, ocorreu na Polônia, o 94º Congresso Universal de Esperanto (94-a
Universala Kongreso de Esperanto), cujo tema foi Criar uma ponte de paz entre os povos:
Zamenhof hoje‖, no período de 25 de julho a de agosto, quando o mundo esperantista
99
Em 2002, ocorreu no Brasil um congresso mundial de Esperanto pela segunda vez, em Fortaleza, com cerca
de 1500 participantes de 56 países; o primeiro congresso intenacional aconteceu em Brasília, em 1981.
100
Vide Anexo III, p. 371-373.
82
comemorou o 150º aniversário de nascimento de Zamenhof, em Bialystok, sua cidade natal.
Também ocorreu, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais, o 44º Congresso Brasileiro de
Esperanto, juntamente com o 29º Congresso Brasileiro da Juventude Esperantista, com o tema
―Juventude e Esperanto: bases para o futuro‖.
Com relação aos cursos oficiais de Esperanto nos meios universitários, cumpre-nos
informar que existem sessenta e três universidades em vinte e três países que tratam o idioma
como objeto digno de estudo: Áustria (3), Bélgica (1), Brasil (4), Bulgária (1), República
Checa (2),China (18), Alemanha (5), Espanha (2), Hungria ( 2), Israel (1), Itália (1), Japão (2),
República da Coreia (2), Costa Rica (2), Lituânia (3) México (1), Holanda (1), Polônia (3),
Rússia (4), República Eslovaca), Suécia (1), Estados Unidos (5), Uzbesquistão (1).
O Esperanto é, pois, ensinado em muitas associações, escolas e universidades do
mundo.
101
No Brasil, cursos nas associações de Esperanto e também em escolas e
universidades como a Pontificia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas) ; a
Universidade de São Paulo (USP), na Escola de Comunicações e Artes, com seu grupo de
pesquisa científica com duas áreas que se intercomunicam: a Cibernética Pedagógica e o
Esperanto; além de cursos de extensão universitária nas universidades de Brasília (UNB) e
Ceará (UFCE). Atualmente o projeto de lei 27 de 21/02/2008, de autoria do Senador
Cristovam Buarque, propõe a inclusão facultativa da disciplina Esperanto no ensino médio
das escolas oficiais do Brasil.
Digna de nota é a Fazenda-Escola Bona Espero (Boa Esperança), uma instituição
educacional filantrópica esperantista, situada no Alto Paraíso de Goiás, estado de Goiás.
cinquenta e dois anos, o Esperanto é o meio de comunicação comum entre alunos e
voluntários esperantistas estrangeiros que passam temporadas trabalhando nessa fazenda-
escola.
102
Muitas e variadas são as associações e clubes organizados por falantes de Esperanto
para contatos profissionais, religiosos, culturais, artísticos como, por exemplo, associações de
médicos, escritores, ferroviários, cientistas, músicos, escoteiros, cegos, jogadores de xadrez,
budistas, xintoístas, católicos, espíritas, quakers, protestantes, mórmons, bahais e outros. Elas
editam seus próprios periódicos, organizam conferências e contribuem para a expansão da
língua no uso profissional e temático. A Academia Internacional de Ciências de San
Marino
103
facilita a colaboração na esfera universitária. Obras originais e traduzidas são
101
Vide foto do ensino na África, no Anexo VI, p. 383-385.
102
Vide fotos da fazenda-escola Bona Espero, no Anexo VI, p. 383.
103
Vide http://ais-sanmarino.org
83
lançadas regularmente em campos como Astronomia, Informática, Botânica, Entomologia,
Química, Direito, Interlinguística, Literatura e Filosofia.
104
Durante todos esses cento e vinte e dois anos de existência da língua, floresceu uma
rica literatura em Esperanto com centenas de obras originais e traduzidas. Em 1993, essa
tradição literária foi reconhecida pelo Clube Internacional PEN de Escritores, que aceitou a
filial de Esperanto em seu 60º Congresso, em setembro de 1993. mais de 50 000 títulos de
caráter literário, científico e religioso escritos em Esperanto. Pode-se ler sobre qualquer
assunto: literatura, psicanálise, política, filosofia, sociologia, linguística, história, humor,
comportamento, moda, turismo, astrologia, esoterismo, educação, engenharia, televisão,
cinema, artes, etc.
No âmbito da literatura religiosa, destacamos, por exemplo, a Bíblia, o Corão, o
Bhagavad-Gita, o Livro dos Espíritos. Apontamos também obras de autores consagrados da
literatura universal como a Divina Comédia, Hamlet, Dom Quixote, e muitos outros. Podemos
também ler em Esperanto obras de Maupassant, Baudelaire, Sartre, Goethe, Marx e Engels,
Nietzche, Garcia Lorca, Chekov, Kipling, Lewis Carroll, Andersen, etc. Entre as traduções
literárias editadas nos últimos tempos em Esperanto estão O Velho e o Mar de Hemingway, O
Senhor dos Anéis de Tolkien, Cem Anos de Solidão de García Márquez.. Quanto aos autores
de língua portuguesa traduzidos, citamos, por exemplo, José Saramago, Machado de Assis,
Carlos Drummond de Andrade, Jorge Amado, Ziraldo, Paulo Coelho e muitos outros entre
poloneses, alemães, franceses, italianos, ingleses, russos, chineses, coreanos, vietnamitas,
japoneses.
Os autores em Esperanto mais notáveis na atualidade incluem os romancistas Trevor
Steele (Austrália), István Nemere (Hungria) e Spomenka Stimec (Croácia); os poetas William
Auld (Escócia), Mihail Gishpling (Rússia/Israel) e Abel Montagut (Catalunha); e os ensaístas
e tradutores Probal Dashgupta (Índia), Fernando de Diego (Venezuela) e Kurisu Kei (Japão).
William Auld foi indicado ao Prêmio Nobel de Literatura em 1999 e em 2000 por suas
contribuições à poesia.
Além de emissoras de rádio na Polônia, Áustria, China, Estônia, Hungria, Itália, no
Brasil, no Vaticano e em Cuba, que transmitem regularmente em Esperanto, a internet é o
meio mais ativo de divulgação da língua, com canais de tv, centenas de listas de discussão em
Esperanto, comunidades no Orkut, Ipernity, participando ativamente também na comunidade
virtual chamada Second Life (―Segunda vida‖) ou Dua vivo, em Esperanto; são inúmeros
104
Vide fotos de alguns livros, no Anexo III, p. 371-373.
84
também os clipes musicais
105
e vídeos no Youtube. Ao utilizar, no dia de maio de 2008, a
conhecida ferramenta de busca Google
106
, verificamos 36 000 000 de links que tratam do
Esperanto. No dia 15 de janeiro de 2009, obtivemos os seguintes resultados:
―aproximadamente 51.100. 000 para Esperanto (0,15 segundos)‖.
107
O uso prático do Esperanto é ainda comprovado pelo Serviço de Passaporte (Pasporta
Servo), uma rede de hospedagem com pernoite gratuito para falantes de Esperanto em viagem.
Atualmente no livro que traz a lista atualizada (2008), 1225 (um mil duzentos e vinte e
cinco) endereços de hospedeiros em 90 (noventa) países. Para inscrever-se como hóspede,
basta que se compre a lista, que é atualizada anualmente.
Além disso, é interessante notar que existem cerca de mil falantes nativos de
Esperanto que falam a língua fluentemente. Utilizando-nos do Serviço de Passaporte, tivemos
a oportunidade de comprovar pessoalmente esse fenômeno, em Brugge (Bélgica), em julho de
2008, quando fomos hóspedes de Bart Demeyre, um esperantista belga cujo filho Thomas -
então com 09 anos idade - é falante nativo de Esperanto.
108
Como o pai tem contatos
frequentes com esperantistas do mundo inteiro, o uso do Esperanto permite ao filho não
conhecer mas também usufruir de uma cultura internacional, sem preconceitos. Casais
falantes de línguas diferentes também optam por falar somente Esperanto em casa: esse é
outro motivo que os leva a ensinar Esperanto aos filhos ainda bebês.
4.5 ASPECTOS LINGUÍSTICOS DO ESPERANTO
Descrever uma língua planejada como o Esperanto não é mais fácil do que fazer a
descrição de uma língua étnica. Há dezenas de obras de estudiosos na Europa, América, Ásia
e Oceania, que se dedicam ao assunto, especialmente no chamado campo da Interlinguística e
da Esperantologia.
Neste trabalho fazemos uma descrição resumida do Esperanto sob o ponto de vista de
sua estrutura e funcionamento. Por meio dessa breve exposição, poderá ser constatado que a
língua internacional, iniciada pelo Dr. Zamenhof, tem todas as características inerentes às
línguas ditas naturais, até mesmo sob o enfoque gerativista, isto é, de acordo com os
105
Da música erudita ao rap, encontramos o Esperanto em todos os gêneros musicais.
106
Aliás, já existe um sítio do google totalmente em Esperanto: www.com/intl/eo/
107
Disponível em: http://www.google.com.br/search?hl=pt-BR&q=ESPERANTO&meta=&aq=f&oq=
108
Vide foto, no Anexo IV, p. 374-375.
85
princípios da chamada gramática universal chomskyana, tendo florescido e se enriquecido
nestes cento e vinte e dois anos de funcionamento. Em uma entrevista, o linguista holandês
Marc van Oostendorp afirma:
Claro, eu demonstrei que o Esperanto tem uma gramática - e que ela,
planejada para ser o mais lógica possível, fez evoluir durante sua história
características à primeira vista ilógicas. Mas essas características estão de
acordo com os princípios da gramática universal - isto é, as regras que
segundo o conceito de Chomsky valem universalmente para todas as línguas.
Portanto, numa forma mais abstrata, também essas características são
lógicas.
109
Instrumento de comunicação também utilizado por poetas, romancistas, filósofos,
cientistas, jornalistas, cineastas, o Esperanto não tem a intenção de ser a língua ―universal‖
dos primeiros filósofos. Trata-se da única língua no mundo cuja primeira e principal função é
o uso internacional como uma segunda língua auxiliar. Conforme Auld (1988, p. 31), para que
o Esperanto cumprisse seu único papel, era necessário que tivesse determinadas qualidades
entre outras: máxima internacionalidade, regularidade gramatical, facilidade de aquisição, alta
flexibilidade, estabilidade. A internacionalidade é facilitada por sua neutralidade política: não
é idioma de nenhum país e está disponível para -lo de todos os povos, sem a pretensão de
substituir nenhuma língua nacional. A facilidade de aprendizagem decorre de sua
regularidade; suas regras gramaticais não apresentam exceções, a pronúncia é regular e a
ortografia é fonética, havendo correspondência biunívoca entre grafema e fonema.
Além disso, a possibilidade de justaposição de segmentos mórficos sem alomorfia
permite que o usuário da língua compreenda e seja compreendido com mais facilidade.
Evidencia-se a aglutinação no clássico exemplo de Zamenhof: Mi ne sci,as kie mi las,is
mi,a,n baston, o, n; ĉu vi ĝi,n vid,is? (Eu não sei onde deixei minha bengala; você a viu?) Por
meio de uma chave em sua língua, o estrangeiro pode facilmente compreender a frase, pois os
elementos estão claramente segmentados, a saber, em português: mi - eu; ne- não; sci
raiz do verbo scii - saber; -as morfema de tempo presente; kie- onde; las- raiz do verbo lasi -
deixar; -is - morfema de tempo passado; mia- pronome possessivo de primeira pessoa
(derivado do pronome mi seguido do morfema marcador de adjetivo a); baston- raiz do
substantivo bastono -bengala ; -o morfema marcador de substantivo; -n morfema
característico de acusativo; ĉu- partícula interrogativa; vi pronome pessoal equivalente a
109
Entrevista com Marc van Oostendorp. In: Revista Esperanto, UEA, n. 1097, p. 18, dez. 1997. Disponível em
português em < http://www.aleph.com.br/kce/artigo07.htm> Acessado em 23 Jun. 2005
86
você; ĝi pronome pessoal de terceira pessoa neutro, -n marca de acusativo ; vid- raiz do
verbo vidi ver; is - morfema de tempo passado.
O escritor João Guimarães Rosa assim descreveu o Esperanto, em 1929 (mantivemos a
ortografia da época): Fructo do raciocinio e da intelligencia humana, verdadeiro producto de
linguistica experimental, destinando-se a ser a lingua internacional auxiliar, o esperanto devia
ser, como realmente é, logico, perfeito e facilmente manejavel‖.
110
Como o define Wells (1978, p. 11), o Esperanto é considerado língua única também
do ponto de vista sociológico: ―única porque falada e usada em uma comunidade linguística
que se encontra dispersa pelo vasto mundo, mas é uma comunidade coesa, que sente lealdade
para com essa língua e os valores expressos nela.‖
111
A comunidade esperantista, que se reúne em encontros reais e também virtuais na
Internet, ou participa de simpósios, seminários, congressos, atividades culturais, artísticas,
112
religiosas e festivas de lazer e turismo, lembra-nos as chamadas ―comunidades de prática‖
(community of practice), assim definidas por Eckert; McConnell-Ginet (1992, p. 464): "[...]
um grupo de pessoas que se unem empenhadas em um trabalho conjunto. Maneiras de fazer
coisas, modo de falar, crenças, valores, relações de poder em suma: práticas emergem ao
longo desse mútuo empreendimento.‖
113
Para que uma comunidade de prática exista, é necessário que seus membros se
empenhem em estabelecer uma interação regular uns com os outros. Desse modo, por suas
características, é válido aplicar esse conceito de ‗comunidades de prática‘ ao contexto
sociolinguístico do mundo do Esperanto também chamado Esperantujo ou Esperantio. A
principal diferença entre ‗comunidades de prática‘ e simplesmente ‗comunidades de fala‘ é
que a primeira define-se principalmente pelo sentido de ―fazer‖, com o objetivo de reforçar a
meta comum dos membros do grupo, que é utilizar e divulgar o Esperanto.
4.5.1 Apresentação da gramática do Esperanto
110
Artigo publicado no jornal Minas Gerais, em 31/07/1929: ―A estructura logica do Esperanto algumas
justificações um pouco de philologia comparada‖. Vide artigo integral, no Anexo V, p. 376.
111
No original: ―[…] unika, ĉar parolata kaj uzata de lingvokomunumo lokiĝanta dise tra la vasta mondo, sed de
lingvokomunumo kohera kaj sentanta lojalecon al tiu lingvo kaj al la valoroj esprimiĝantaj en ĝi”.
112
Vide fotos, no Anexo VI, p. 383, Anexo VII, p.386.
113
No original: ―[…] an aggregate of people who come together around mutual engagement in an endeavor.
Ways of doing things, ways of talking, beliefs, values, power relations in short practices- emerge in the course
of this mutual endeavor.”
87
Sem a pretensão de fazer um estudo profundo da gramática do Esperanto, nosso
objetivo nesta seção é contextualizar esta pesquisa, apresentando em linhas gerais as
características da língua em questão. Iniciamos com a apresentação das dezesseis regras da
chamada Gramática plena do Esperanto (Plena gramatiko de Esperanto)
114
:
A) Alfabeto
Aa, Bb, Cc, Ĉ,ĉ, Dd, Ee, Ff, Gg, Ĝĝ, Hh, Ĥĥ, Ii, Jj, Ĵĵ, Kk, Ll, Mm, Nn, Oo, Pp, Rr, Ss, Ŝŝ, Tt,
Uu, Ŭŭ, Vv, Zz.
Observação: As impressoras que não possuem as letras especiais ĉ, ĝ, ĥ, ĵ, ŝ, ŭ podem
substituí-las por ch, gh, hh, jh, sh, uh.
115
Chave de pronúncia de determinados grafemas (o nome das letras - com exeção das vogais -
termina em o )
116
:
c [tso] , ĉ [tcho], g [go], ĝ [djo], h [ho h aspirado fraco], ĥ [ho h aspirado forte], j [yo], ĵ
[jo], r [ro como o [r] intervocálico em português], s [so], ŝ [cho], ŭ [wo], z [zo].
B) Regras
(1) Não existe artigo indefinido; apenas um artigo definido (la), igual para todos os sexos,
casos e números.
Observação: O uso do artigo é tal qual em outras línguas. As pessoas para quem o uso do
artigo apresenta dificuldades podem nos primeiros tempos deixar de usá-lo.
(2) Os substantivos têm a terminação -o. Para formar-se o plural, acrescenta-se a terminação -j
. Existem apenas dois casos: nominativo e acusativo; o último forma-se pela adição de -n ao
nominativo. Os demais casos são expressos por preposições (o genitivo por de, o dativo por
al, o ablativo por per, ou outras preposições de acordo com o sentido).
(3) O adjetivo termina em a. O caso e o número são como os do substantivo. Forma-se o
comparativo por meio da palavra pli (mais); o superlativo por meio de plej (o mais). Com o
comparativo emprega-se a conjunção ol (que, do que).
(4) Os numerais cardinais são invariáveis: unu (1), du (2), tri (3), kvar (4), kvin (5), ses (6),
sep (7), ok (8), naŭ (9), dek (10), cent (100), mil (1000). As dezenas e as centenas formam-se
por justaposição de numerais. Os numerais ordinais são formados pelo acréscimo da
terminação de adjetivo -a ao cardinal. Os multiplicativos formam-se pelo acréscimo do sufixo
114
A ―Gramática plena do Esperanto‖ (Plena gramatiko de Esperanto) foi por nós traduzida do livro
Fundamenta Krestomatio de la lingvo Esperanto / Crestomatia fundamental da língua Esperanto (ZAMENHOF,
1954, p.239-241) Ver texto original, no Anexo VIII, p. 388-391.
115
Em mensagens na Internet, atualmente, é comum o uso da letra x no lugar do h sugerido por Zamenhof:
cx, gx, hx, jx, sx, ux, embora haja programas de computador que atualizam o teclado com as letras
supersignadas ĉ, ĝ, ĥ, ĵ, ŝ, ŭ.
116
A inserção dessa chave de pronúncia visa a facilitar a leitura desta tese.
88
-obl; os fracionários são formados pela adição de -on (ao cardinal); os numerais coletivos
formam-se pela adição de -op (ao cardinal). Marcam-se os numerais distributivos por meio do
vocábulo po (à razão de). Além disso, podem ser usados numerais substantivos e adverbiais.
(5) Pronomes pessoais: mi (eu), vi (você), li (ele), ŝi (ela), ĝi (ele, ela, para coisas ou animais),
si (se), ni (nós), vi (vocês), ili (eles, elas), oni (a gente). Os pronomes possessivos formam-se
pelo acréscimo da terminação a de adjetivo aos pronomes pessoais. A declinação é como a
do substantivo.
(6) O verbo não sofre alteração de pessoa nem de número.
Formas do verbo: o tempo presente recebe a terminação -as; o tempo passado, -is; o tempo
futuro, -os; o modo condicional, -us; o modo imperativo, -u; o modo não definido (infinitivo),
-i. Particípios (com sentido adjetivo ou adverbial): ativo presente, -ant; ativo passado, -int;
ativo futuro, -ont; passivo apresente, -at; passivo passado, -it; passivo futuro, ot. Todas as
formas da passiva são formadas com a ajuda da respectiva forma do verbo esti (ser) e o
particípio passivo do verbo necessário (bezonata); a preposição da passiva é de.
A forma passiva é obtida por meio de uma forma correspondente do verbo esti (ser) mais um
particípio passivo do verbo exigido; a preposição com a voz passiva é de (por). Ex.: Ŝi estas
amata de ĉiuj. (Ela é amada por todos.)
(7) Os advérbios terminam em -e. Os seus graus de comparação são como os dos adjetivo.
(8) Todas as preposições regem o nominativo.
(9) Toda palavra é lida como está escrita.
(10) O acento é sempre sobre o penúltima sílaba.
(11) As palavras compostas são formadas pela simples reunião das palavras (a palavra
principal deve ficar no fim); as terminações gramaticais são consideradas como palavras
autônomas.
(12) Junto a outra negativa na sentença, abandona-se o advérbio ne (não).
(13) Para indicar direção, as palavras recebem a terminação de acusativo.
(14) Cada preposição tem um sentido definido e constante; se, porém, houver dúvida quanto à
escolha de alguma, faz-se uso da preposição je, a qual não possui significado próprio. No
lugar da preposição je , pode-se usar também o acusativo sem preposição.
(15) As chamadas palavras estrangeiras, isto é, aquelas que a maioria das línguas tirou de uma
fonte, são usadas sem alteração em Esperanto, recebendo apenas a ortografia desta língua,
mas, com diversas palavras de uma mesma raiz, é melhor empregar sem alteração somente a
palavra básica e, a partir desta última, formar as demais, de conformidade com as regras do
Esperanto.
89
(16) A vogal final do substantivo e a do artigo podem ser suprimidas e substituídas por um
apóstrofo.
117
4.5.2. Aspectos da estrutura lexical do Esperanto
Quando surgiu em 1887, o léxico do Esperanto continha cerca de 900 radicais ou
bases para a formação de palavras. Em 1905, o Universala Vortaro (Dicionário universal)
trazia em torno de 2 600 radicais. Segundo Wells:
Após a homologação desse ‗intocável‘ conjunto de radicais fundamentais, o
vocabulário cresceu e renovou-se por meio dos mesmos procedimentos de
neologização e arcaismização que se encontram em todas as línguas. O
―Plena Vortaro‖ (dicionário pleno) de 1954 contém 7. 866 radicais, enquanto
o PIV -―Plena ilustrita vortaro‖ apresenta cerca de 16.000.(WELLS, 1978,
p.55)
118
A edição de 2005 do PIV (Plena Ilustrita Vortaro de Esperanto: Dicionário de
Esperanto ilustrado completo) contém cerca de 16.780 radicais de entrada e 46.890 unidades
léxicas ou itens lexicais. Esses números evidenciam a expansão internacional do léxico da
língua. São comuns os empréstimos como ĝinzo (jeans), roko (ing. rock and roll) ou
rokmuziko, hamburgaĵo (hambúrguer), kafo (café), kakao (cacau), alkoholo (álcool),
krokodilo, filmo, telegrafo, telefono.
Os dicionários atualizam-se, estocando as raízes esperantizadas das novas palavras
disponíveis em outras línguas e culturas. Atualmente a quantidade de informação da
humanidade multiplica-se com espantosa rapidez na área da informática, ecologia, economia,
linguística, etc. Em virtude da comunicação globalizada, o Esperanto incorpora palavras como
komputilo (computador), softvaro (software) interreto (internet), fakso (fax), televido
(televisão), poŝtelefono (telefone celular), lingvistiko (linguística), paradigmo, sintagmo,
morfemo etc. Em suma, a ngua está apta a veicular os avanços da ciência e da tecnologia,
tanto quanto as novidades no terreno da arte, da religião, do esporte, do comportamento em
geral. Conforme Passini (2008, p. 126), o papel do dicionarista do Esperanto é apenas o de
registrar as novas raízes que vão surgindo.
117
A regra 16 é fundamental para a poesia. Os substantivos apostrofados passam a ter a última sílaba acentuada
(a qual era a penúltima da palavra completa, sem a supressão da vogal final). Ex.: a palavra doloro (dor),
paroxítona, passa a ser lida como dolor‘, oxítona.
118
No original: Depost la sankciado de tiu „netuŝeblakerna radikaro, la vortprovizo kreskis kaj renoviĝis per
la samaj procedoj de neologismad kaj arkaismiĝo kiunj oni trovas en ĉiuj lingvoj. La Plena Vortaro de 1954
entenas 7866 radikojn, dum PIV (…) ampleksas ĉirkaŭ 16000.”
90
Zamenhof colheu a maioria das raízes no latim e nas línguas neolatinas (cerca de
60%), principalmente no francês; em grande parte também se serviu do alemão e do inglês
(30%); em menor quantidade (10%) são as raízes originadas nas línguas eslavas,
principalmente a russa e a polonesa. Etimologicamente, portanto, poder-se-ia dizer que o
léxico do Esperanto é semelhante ao das línguas indo-europeias, enquanto sua estrutura
gramatical aproxima-o das línguas orientais, como o turco, classificadas como aglutinantes.
(WARINGHIEN, 2001, p.64-65)
Como língua de estrutura aglutinante, a combinação de seus morfemas não gera
alomorfias, isto é, não promove alterações fonológicas nos constituintes mórficos como
costuma ocorrer nos processos flexionais de línguas como a latina ou a portuguesa. Tais
afirmações baseiam-se na seguinte declaração de Zamenhof:
Procedi a um desmembramento [grifo do autor] pleno das ideias em
vocábulos autônomos, de modo que toda a língua, em vez de vocábulos em
diversas formas gramaticais, consiste unicamente apenas de termos
imutáveis. [...] Cada vocábulo encontra-se sempre e somente em uma forma
constante, a saber, na forma em que ela está impressa no dicionário. E as
diversas formas gramaticais, as relações recíprocas entre as palavras, etc.
são expressas pela combinação de vocábulos imutáveis.(ZAMENHOF,
1954, p.234)
119
Convém esclarecer que tais ―vocábulos imutáveis‖ são os radicais (também
denominados raízes ou bases). A imutabilidade formal é, portanto, uma característica dos
morfemas do Esperanto.
Com relação à divisão dos morfemas, podem-se teoricamente distinguir raízes
(radikoj), afixos (afiksoj) e desinências (finaĵoj) em Esperanto. É digno de nota, porém, o fato
de que podem funcionar como bases para a formação de novas palavras não raízes mas
também afixos (prefixos e sufixos) além de outros tipos vocabulares como numerais,
preposições e até interjeições
120
. Por exemplo, podemos formar palavras a partir de uma
preposição como kun (com): o advérbio kune (juntamente), o substantivo kunulo (o
companheiro); em kunulo identificamos o sufixo ul (indivíduo) que, por sua vez pode ser
base do nome substantivo ulo (o indivíduo); mais alguns exemplos: de interjeições como ve!
(ai!) ou adiaŭ (adeus!) temos o substantivo veo (lamento, queixa) e o verbo adiaŭi (despedir-
119
No original: […] Mi aranĝis plenan dismembrigon de la ideoj en memstarajn vortojn, tiel ke la tuta lingvo,
anstataŭ vortoj en diversaj gramatikaj formoj, konsistas sole nur el senŝanĝaj vortoj. (…) Ĉiu vorto sin trovas
ĉiam kaj sole en unu konstanta formo, nome en tiu formo, en kiu ĝi estas presita en la vortaro. Kaj la diversaj
formoj gramatikaj, la reciprokaj rilatoj inte la vortoj k. t. p. estas esprimataj per la kunigo de senŝanĝaj vortoj.”
120
Câmara Jr. (1978, p. 147) considera a interjeição como uma palavra-frase em Português.
91
se), e assim por diante. Desse modo, em termos de Zamenhof (1988, p.31)
121
, ―expressões do
tipo ‗esta palavra não tem essas formas ou não permite esta conexão de ideias‘numa língua
artificial não são possíveis.‖
Um aluno iniciante de Esperanto, ao examinar um dicionário como o PIV (2005), por
exemplo, surpreende-se com o fato de que seus verbetes não são palavras no sentido
tradicional do termo, mas raízes marcadas com o morfema categórico da classe de palavras da
qual prototipicamente fazem parte. Assim, por exemplo, encontrará:
lern/i aprender (a raiz lern vem seguida do morfema marcador de infinitivo i, tratando-se,
portanto, de um verbo potencial); a seguir, por exemplo, vêm palavras como o verbo lernadi
(aprender continuadamente; o sufixo ad denota ação continuada ou repetida); o substantivo
lernado (aprendizagem); o substantivo lernejo (escola; o sufixo -ej denota ―lugar definido por
algo ou caracterizado por algo‖
122
, ex.: preĝejo - igreja, templo (preĝi rezar); kongresejo
(lugar onde ocorre um congresso), malsanulejo - hospital ). Este último item lexical
(malsanulejo) é um dos 85 vocábulos possíveis a partir da raiz san- , base do adjetivo sana
(são, sadio); mal - san- ul- ej -o mal: prefixo (ideia contrária): adjetivo malsana - doente;
ul- (indivíduo); malsanulo (o indivíduo doente); ej- (lugar): malsanulejo ‗lugar para onde
vão pessoas doentes‘, ou seja, hospital.
Os morfemas raízes apresentam-se, portanto, como substantivos, adjetivos, verbos ou
advérbios potenciais, distribuídos em classes prototipicamente substantivas, adjetivas ou
verbais.
No Quadro 4, apresentamos pequena amostra de alguns morfemas lexicais, a serem
complementados no Quadro 6:
QUADRO 4 - Morfemas raízes
Raízes
substantivas
Libr
Martel
Mon
Pan
Knab
Raízes
adjetivas
Bon
Bel
Grand
Fort
Ruĝ
Raízes
verbais
Stud
Labor
Parol
Am
Kur
121
No ensaio ―Essência e futuro da ideia de uma língua internacional‖, escrito por Zamenhof (sob o pseudônimo
Unuel) e lido em forma ligeiramente modificada por Louis de Beaufront no Congresso da Associação Francesa
para o Progresso das Ciências (Paris, 1900). Tradução de Itacir Luchtemberg.
122
Segundo o PIV (2005).
92
Sun
Pac
Milit
Arb
Hund
Bird
Stel
Ĉeval
Vir
Ŝton
Blank
Verd
Inteligent
Rapid
Plen
Sek
Simpl
Riĉ
Mild
Diligent
Est
Skrib
Danc
Dorm
Lav
Aĉet
Hav
Lud
Leg
Amuz
QUADRO 5 - Morfemas marcadores de classes de palavras
Substantivo
Adjetivo
Advérbio
Verbo
-o
-a
-e
Infinitivo. -i
Presente -as
Pretérito -is
Futuro -os
Condicional -us
Imperativo -u
QUADRO 6 - Amostra de itens lexicais
Itens lexicais
substantivos
Libro (livro)
Martelo (martelo)
Mono (dinheiro)
Pano (pão)
Knabo (menino)
Suno (sol)
Paco (paz)
Milito (guerra)
Arbo (árvore)
Hundo (cão)
Itens lexicais
adjetivos
Bona (bom)
Bela (belo)
Granda (grande)
Forta (forte)
Ruĝa (forte)
Blanka (branco)
Verda (verde)
Inteligenta (inteligente)
Rapida (rápido)
Plena (cheio)
Itens lexicais
verbos
Studi (estudar)
Labori (trabalhar)
Paroli (falar)
Ami (amar)
Kisi (beijar)
Esti (ser, estar, haver)
Skribi (escrever)
Danci (dançar)
Dormi (dormir)
Lavi (lavar)
93
Birdo (pássaro)
Stelo (estrela)
Ĉevalo (cavalo)
Viro (homem)
Ŝtono (pedra)
Seka (seco)
Simpla (simples)
Riĉa (rico)
Milda (suave)
Diligenta (diligente,
aplicado)
Aĉeti (comparar)
Havi (ter)
Ludi (brincar)
Legi (ler)
Amuzi (divertir)
Esses morfemas têm dupla função: além de marcadores de classes de palavras, são
também formadores de novas palavras. A função dos morfemas marcadores de classes de
palavras -o, -a, -i, -e é dar status de palavras às raízes ex.: stelo (estrela); rapida (rápido);
dormi (dormir), explicitando-lhes a classe gramatical. Podem também formar novas palavras,
combinando-se com palavras formadas, por exemplo: stela (estelar), rapide (rapidamente);
dormo (sono). Os advérbios são, em geral, formados pela combinação do adjetivo com o
morfema -e. Por exemplo: rapide (rapidamente), de rapida (rápido); milde (suavemente), de
milda (suave); simple (simplesmente), de simpla (simples), etc. Além desses também uma
classe de morfemas adverbiais indivisíveis autônomos como, por exemplo: tie (aí), ĉi tie
(aqui), nun (agora), hodiaŭ (hoje), morgaŭ (amanhã), hieraŭ (ontem), etc.
Os morfemas categoriais podem ainda formar palavras pela combinação com
preposições, advérbios, numerais; por exemplo: ne (não) - nei (negar;); nea- (negativo); jes
(sim), jesi (afirmar); per (por meio de ) peri (intermediar).
Conforme Passini (2008, p.127), ―[...] ao aprender uma nova raiz, o usuário do
Esperanto adquire concomitantemente dezenas de palavras que de imediato passam a fazer
parte de seu léxico passivo e ativo.‖ Ao aprender, por exemplo, uma raiz como frat/(o)
(irmão), automaticamente já se saberá fratino (irmã), frata (fraterno, fraternal), frate (de modo
fraterno, fraternalmente), fratina (de irmã), fratine (de modo fraterno ‗de irmã‘), além de
outros itens lexicais formados a partir da combinação com prefixos ou sufixos ou preposições,
a saber: frateco (fraternidade; sufixo ec: qualidade ou estado); interfratiĝo (confraternização;
preposição inter (entre), sufixo : fazer-se, tornar-se); kunfrataro (confraria; preposição kun
(com), sufixo -ar: coletivo); gefratoj (irmão(s) e irmã(s); prefixo ge- : reunião dos dois sexos);
bofrato (cunhado; prefixo bo-: parentesco resultante de casamento).
Os afixos também podem funcionar como raízes e combinar-se com os morfemas
classificatórios, dando origem a palavras autônomas como, por exemplo: dos sufixos -et, aĵ, -
ul, -ind, -ig, -, obtêm-se, respectivamente, os vocábulos eta (adjetivo: pequeno/a), aĵo
(substantivo: coisa); ulo (substantivo: indivíduo masculino; ulino: substantivo: indivíduo
94
feminino); inda (adjetivo: digno/a), igi (verbo: tornar); iĝi (verbo: tornar-se), etc. Assim
pode-se dizer dometo casinha ou eta domo casa pequena; beligi (embelezar) ou igi bela
(tornar belo), e assim por diante.
Também preposições e advérbios podem funcionar como prefixos como nos exemplos
a seguir; preposições como el (de dentro), en (dentro), sur (sobre) seguidas dos verbos iri (ir)
e meti (pôr, colocar): eliri - sair, ‗ir de dentro‘; eniri - entrar, ‗ir para dentro‘; surmeti - vestir,
‗colocar sobre si‘; advérbios como for (longe, fora) foriri - ir embora; pli (mais): plifortigi
(pli-fort-ig-i)- fortalecer, ‗tornar mais forte‘; tro (demais, excessivamente): trouzi abusar,
‗usar demais‘.
É possível ainda a combinação de preposições e advérbios com afixos e até formações
com justaposição apenas de afixos como nos exemplos a seguir: forigi (eliminar, afastar):
advérbio for (fora) + sufixo -ig (causar) + morfema marcador de infinitivo -i; estraro
(diretoria): sufixo estr (dirigente) + sufixo ar (coletivo) + morfema marcador de
substantivo o; eksiĝi (demitir-se): prefixo eks- (ex-, ‗que foi‘), sufixo - (tornar-se).+ -i .
Nos termos de Piron (2002, p.224)
123
, ―a gama de nuanças que o esperanto permite
introduzir na expressão da afetividade, com meios de uma espantosa simplicidade, é bem mais
extensa do que aquela que oferece a maioria das línguas.‖ Por isso interessava-lhe anotar as
estratégias discursivas que seus pacientes utilizavam, quando ele praticava psicoterapia em
Esperanto. Revela-nos esse escritor:
Numa sessão com uma jovem norueguesa um pouco paranoica , eu assim
notei quatro modulações interessantes da raiz rigard- , ―olhar‖. Eu as cito
aqui na forma que ela utilizou, no passado, que termina em esperanto por is
: ŝi rigardetis, ―ela entreolhava‖, ―ela olhava com o canto do olho‖; li
rigardadis, ―ele olhava longamente‖, ele manteve o olhar‖; li rigardegis, ―ele
olhou, com os olhos escancarados‖(compare li kriis, ―ele gritou‖, li kriegis,
―ele urrou‖); li rigardaĉis, ―ele olhou com um olhar mau‖. (...) a diferença
entre li rigardis e li rigardaĉis é a mesma que entre ―ele riu‖ e ―ele riu com
escárnio‖. (PIRON, 2002, p.224)
4.5.3 Processos de formação de palavras em Esperanto
A formação de palavras em Esperanto foi formulada na regra nº 11:
As palavras compostas são formadas pela simples junção dos elementos que
as constituem. A palavra fundamental deve sempre estar no fim. As
123
Claude Piron (1931-2008), membro honorário da UEA, tradutor na ONU (1956-1961), escritor, pedagogo e
psicoterapeuta belga, foi um dos mais importantes e populares intelectuais esperantistas da atualidade.
95
terminações gramaticais são consideradas como palavras.(ZAMENHOF,
1991, P.54)
124
De acordo com Kalocsay e Waringhien (1980, p. 392-393), na composição vocabular,
a palavra principal fica no fim da construção, fixando a característica gramatical e o sentido
principal da palavra composta. Esse morfema lexical que normalmente fica à direita da
palavra denomina-se elemento principal (ĉefelemento), ou cleo. O morfema antecedente,
dito elemento secundário (flankelementoj), serve para caracterizar, para especificar o núcleo,
por isso chamado de especificador.
Por exemplo: no vocábulo vaporŝipo (navio a vapor), o núcleo é ŝipo (navio); o
especificador é vapor. A relação entre os dois é expressa pela preposição per (por meio de),
isto é, ŝipo (kiu funkcias) per vaporo: navio (que funciona) a vapor. No item lexical dormo-
ĉambro (quarto de dormir), o núcleo é ĉambro; ele substantiviza o especificador, atribuindo-
lhe o sentido principal de lugar. A relação entre os dois elementos é expressa pela preposição
por (para): ĉambro por dormo (quarto para o sono, para dormir).
No composto varmenergio (energio de varmo: energia de calor), a relação é expressa
pela preposição de: energio de varmo. Aqui o núcleo energio que substantiviza o elemento
especificador varmo. Cumpre lembrar que a palavra prototípica é o adjetivo varma (quente);
portanto há que se ter cuidado ao calcular o sentido da palavra composta varmenergio (não se
trata de ―energia quente‖, mas de ―energia de calor‖).
Com base nesse uso linguístico, os autores Waringhien e Kalocsay (1980, p.393)
postularam as seguintes regras por eles denominadas regras de efeito vocabular (reguloj de
vortefiko):
(1) O elemento substantivo nuclear substantiviza o elemento especificador antecedente .
Ex: homkoro (homo-koro)
125
: koro de homo (coração de homem, coração humano);
varmenergio (varmo-energio): energio de varmo (energia de calor);
skribmaŝino (skribo-maŝino): maŝino por skribo (máquina para a escrita, máquina de
escrever).
(2) O elemento adjetivo nuclear substantiviza o elemento especificador antecedente.
A relação entre os dois elementos é expressa por meio da preposição de sentido indefinido je,
a qual pode ser substituída por outra preposição mais precisa.
Ex.: herbriĉa (herbo-riæa): riĉa je herbo (rica em erva);
124
No original: Les mots composés s‟obtiennent par la simple réunion des éléments qui les forment, écrits
ensemble, mais separés par de petits traits. Le mot fundamental doit toujours être à la fin. Les terminaisons
grammaticales sont considérées comme des mots.”
125
Na composição, é comum a supressão da vogal final do especificador antecedente: hom<o>-koro.
96
varmplena (varmo-plena): plena je varmo (cheia de calor);
servpreta (servo-preta): preta por servo (pronto para o serviço);
florsimila (floro-simila): simila al floro (semelhante a flor);
komunutila (komuno-utila): utila al komuno (útil à comunidade).
(3) O elemento verbal nuclear pode afetar o seu elemento especificador por duas maneiras:
por adverbialização ou por adjetivação; por exemplo:
a) por adverbialização: martelbati (bati per martelo: bati martele, isto é, bater com martelo);
pafmurdi (murdi per pafo: murdi pafe, i. e., assassinar com arma de fogo);
b) por adjetivação, tornando-o seu adjetivo predicativo com sentido de resultado. Ex.: ruĝpentri
(pentri ruĝa : pintar de vermelho); sanigi ( igi sana: tornar são, curar,) ; purigi (igi pura:
tornar limpo, limpar).
René de Saussure, esperantólogo e interlinguista suíço, irmão de Ferdinand de
Saussure, propôs os princípios de necessidade e de suficiência - aprovados pela Academia de
Esperanto em 1913 para guiar a construção de palavras em Esperanto:
PRINCÍPIO DE NECESSIDADE: para construir palavras compostas,
juntam-se todas as palavras simples que o NECESSÁRIAS para evocar
claramente a ideia expressa de tal palavra composta (sem ou com ajuda do
contexto).
PRINCÍPIO DE SUFICIÊNCIA: na palavra construída devem-se evitar os
pleonasmos INÚTEIS e as ideias estranhas à ideia a ser
expressa.(SAUSSURE, 1985, p. 11-12)
126
É importante observar que nem todos os elementos sintaticamente inter-relacionados
podem transformar-se em palavra composta. Há que se ater aos princípios da necessidade e da
suficiência, postulados por René de Saussure. Um sintagma como blua okulo (olho azul),
constituído de adjetivo + substantivo, deve permanecer como tal, com as palavras assim
separadas. Uma hipotética palavra como o nome substantivo *bluokulo é totalmente
desnecessária e teria um significado como okulo de bluo(―olho do azul‖), que o núcleo
substantivo substantiviza o especificador. O mesmo ocorre, por exemplo, com os hipotéticos
*belfloro, *belreĝino. O primeiro item hipotético, *belfloro, teria um significado como floro
de belo (‗flor do belo‘) que não é o mesmo que o de bela floro (flor bonita); o mesmo ocorre
126
No original: PRINCIPO DE NECESO. Por konstrui vorton kunmetitan, oni kunigas ĉiujn vortojn simplajn,
kiuj estas NECESAJ por klare elvoki la ideon esprimotan de tiu kunmetita vorto (sen aŭ kun helpo de kunteksto).
PRINCIPO DE SUFIĈO. En la vorto konstruata oni devas eviti la NEUTILAJN pleonasmojn kaj la ideojn
FREMDAJN je la ideo esprimota.”
97
com *belreĝino que teria o sentido de reĝino de belo (‗rainha do belo)‘, que não expressa o
mesmo que bela reĝino (bela rainha ou rainha bonita).
Em Esperanto é muito frequente a lexicalização de sintagmas preposicionais, isto é, a
sintetização dessas construções, dando origem a palavras compostas. Dos sintagmas
primitivos restam os elementos mais importantes. Tais sintagmas podem funcionar como
adjetivos ou advérbios, podendo, portanto, dar origem a vocábulos adjetivos ou a advérbios. A
preposição pode ser suprimida ou não, de acordo com as exigências do sentido. Exemplos:
(1) adjetivação: de blua okulo (de olho azul) [de blua okulo] + a bluokula (adjetivo);
ex.: bluokula knabino ( knabino (karakterizita) de blua okulo: menina caracterizada por olho
azul);
de granda kuraĝo (de grande coragem) [de granda kuraøo ] + a grandkuraĝa
(adjetivo); ex.: grandkuraĝa viro;
dum unu tago (durante um dia ) → [unu tago] + a unutaga (adjetivo);
(2) adverbialização: laŭ mia opinio (na minha opinião)→ [ mia opinio] + e→ miaopinie
(advérbio);
sen fortoj (sem forças) → [sen fortoj] + e senforte (advérbio);
en mia hejmo (em minha casa) → [mia hejmo] + e miahejme (advérbio).
Esse processo recorrente de lexicalização (sintetização) de construções sintáticas
usuais do Esperanto, a partir de sintagmas preposicionais como os vistos acima, aponta uma
tendência do Esperanto para a síntese; em contraste com línguas como a portuguesa, por
exemplo.
A produtividade lexical do Esperanto é sem limites; o usuário fica totalmente à
vontade para criar um novo vocábulo que não vai causar estranhamento no seu ouvinte ou
leitor. uma disponibilidade imediata, automática, da palavra de que o falante necessita, o
que não acontece com as línguas nacionais.
4.5.4 O sistema verbal do Esperanto
O sistema verbal do Esperanto é econômico e simples: constitui-se de apenas verbos
regulares, em uma única conjugação.
Como o verbo não apresenta morfema número-pessoais, a pessoa e o número
representam-se por meio dos pronomes pessoais, a saber: mi eu; ci
127
tu; vi você; li ele;
127
No estágio atual da língua, o pronome ci (tu) não é usado como forma de tratamento na modalidade oral;
também é raro na escrita (é mais encontrado na poesia), tendo sido substituído por vi (você (s) ).
98
ŝi ela; ĝi ele, ela (neutro
128
); ni nós; vi vós, vocês; ili eles, elas. Também é de uso
comum o pronome de pessoa oni, equivalente ao pronome francês on; ao português: se.
Ex.: Oni laboras. (Trabalha-se; a gente trabalha.)
Assim, por exemplo, o verbo labori (trabalhar), raiz labor + morfema infinitivo i, no
presente apresenta apenas a forma laboras; no pretérito, laboris; no futuro, laboros; no
condicional, laborus; no imperativo, laboru.
QUADRO 7 - Paradigma verbal do Esperanto
Pronomes
Pessoais
Paradigma Verbal do Esperanto
mi, ci, vi, li, ŝi,
ĝi, ni vi, ili
laboras
trabalho, trabalhas, trabalha...
ou
estou, estás, está trabalhando...
laboris
trabalhei, trabalhaste...
trabalhara,trabalharas...
trabalhava, trabalhavas...
laboros
trabalharei, trabalharás...
laborus
trabalharia, trabalharias...
trabalhasse, trabalhasses...
laboru
trabalha, trabalhe, trabalhemos,
trabalhai, trabalhem
Verbos que expressam fenômenos da natureza são impessoais. Ex.: Pluvas (chove);
ventas (venta); neĝas (neva). O verbo esti (ser, estar, haver) pode ser empregado tanto pessoal
quanto impessoalmente: La viro estas bela kaj alta. (O homem é bonito e alto). La knaboj
estas malsanaj. (Os meninos estão doentes.) Estas matene. (É de manhã.)
Estas necese fari tion. necessário fazer aquilo). Sen regalo ne estas balo. (Sem regalo não
há baile.)
O tempo pretérito em Esperanto (marcado morfologicamente por -is ) é neutro quanto
à aspectualidade, ou seja, pode-se chamá-lo de pretérito aoristo
129
, podendo ser traduzido, em
128
O pronome ĝi (neutro), terceira pessoa do singular, equivale ao pronome it em Inglês.
99
Português, como o pretérito perfeito, o imperfeito ou o mais que perfeito do indicativo,
dependendo do contexto.
Em grego, aoristo significa ―algo não definido‖, isto é, algo que ocorreu, sem
indicação de sentido aspectual, isto é, sem denotar se tal situação é concluída ou em
desenvolvimento. É o chamado tempo da narrativa que, com a ajuda de recursos linguísticos
do contexto, pode expressar os aspectos imperfectivo e / ou perfectivo.
Observemos as formas verbais revenis e renkontis, no enunciado abaixo:
(20) La filo de la reĝo, kiu revenis de ĉaso, ŝin renkontis (...) (ZAMENHOF, 1991, p. 105)
(O filho do rei, que voltava da caça, encontrou-a (...) ).
Dada a leitura perfectiva de ação terminada, finda, traduzimos renkontis pelo pretérito
perfeito do indicativo em Português: encontrou; por outro lado, forma verbal revenis,
configurando uma cena descritiva, promove uma leitura imperfectiva, mais bem traduzida
pelo nosso pretérito imperfeito do indicativo: voltava, estava voltando.
No enunciado a seguir,
(21) Kiam vi vidis nin en la salono, li jam antaŭe diris al mi la veron.(…) (ZAMENHOF,
1991, p. 109)
(Quando vo nos viu no salão, ele tinha anteriormente dito a mim a verdade.),
encontramos dois verbos: o primeiro, vidis (viu), pode ser lido, em Português, como pretérito
perfeito; o segundo, diris, como pretérito mais que perfeito do indicativo (tinha dito, dissera).
Os advérbios jam (já) e antaŭe (anteriormente) promovem a leitura de diris como ação
concluída antes de outra ação também concluída no passado.
De acordo com os Aktoj de la Akademio de Esperanto 1963-1967‖ (Atos da
Academia de Esperanto), Resolução 2, ―Todas as outras relações temporais como, por
exemplo, o pretérito anterior, o futuro anterior, etc. são expressos por meio de advérbios,
conjunções, ou simplesmente pelo contexto.‖(AKTOJ, 1968)
130
Com relação ao momento da enunciação, o tempo futuro, indicado pelo morfema -os,
mostra que a ação ou estado ainda não começou, indicando uma relação de posterioridade
entre o momento de referência presente e o momento do acontecimento. O morfema de futuro
129
De acordo com Kalocsay (1966, p. 66), o aoristo como tempo verbal especial existe no sânscrito e no grego.
O latim usava, em lugar do aoristo, o presente perfeito. A famosa frase de Júlio César: veni, vidi, vici é tradução
do aoristo grego. No russo não há aoristo: deve-se sempre indicar se se trata de imperfeito ou perfeito.
130
- Ĉiuj aliaj temporilatoj, kiel ekzemple la antaŭpreterito, la antaŭfuturo, ktp., estas esprimataj per
adverboj, konjunkcioj, aŭ simple per la kunteksto.
100
-os também é neutro quanto ao aspecto. ―O futuro sempre é incerto, mas o falante pensa ou
acredita que tal realmente acontecerá‖.
131
(WENNERGREN, 2005, p.381)
Exemplos:
(22) Mi estos feliĉa. (Eu serei feliz.)
(23) Mia fratino vojaĝos morgaŭ. (Minha irmã viajará amanhã.)
De acordo com Benveniste (1985, p.85), ―a temporalidade é produzida na e pela
enunciação. Da enunciação procede a instauração da categoria do presente, e da categoria do
presente nasce a categoria do tempo.‖ Na instância do discurso, no diálogo entre o locutor
(eu) e o alocutário (tu), instaura-se o espaço ―aqui‖ e o tempo ―agora‖. Por definição,
portanto, o tempo verbal presente coincide com o momento da enunciação.
Assim, com referência ao meu momento de agora (hoje, dia 16 de outubro de 2007),
posso enunciar (a) ou (b) em Esperanto ou Português:
(24) Mi tajpas mian tekston nun.
(Digito /ou estou digitando/ o meu texto agora.)
É importante notar que posso dizer:
(25) Mi legas nun interesan romanon.
(Eu leio /ou estou lendo/ um romance interessante agora), sem estar referindo- me ao
momento da enunciação da sentença, sem estar de fato com o livro na mão. Isso significa que
o tempo presente tem uma conotação aspectual de imperfectividade: no exemplo dado,
comecei a ler o romance, mas ainda não terminei de lê-lo.―O que é única e necessariamente
inerente no presente é esse começo-não-acabamento, i.e., a imperfectividade.‖
132
(KALOCSAY, 1966, p. 43)
Como imperfectivo, o tempo presente pode ser usado quando se quiser expressar
repetição, por exemplo:
(26) Ŝi vojaĝas ĉiusabate.
(Ela viaja todo sábado.)
Kalocsay (1966, p.44) apresenta outros usos do tempo presente, como o presente
gnômico, o presente declarativo, o presente histórico e o presente de citação. O presente dito
gnômico ocorre nas expressões de provérbios, que tratam de ―assuntos geralmente válidos,
que costumeiramente se repetem‖
133
como em Afabla vorto pli atingas ol forto (Uma palavra
131
No original: ―[…] la estonteco ĉiam estas necerta, sed OS-verbo montras, ke la parolanto pensas, ke la afero
vere okazos”.
132
No original: ― Tio, kio estas sole kaj nepre inherenta em la prezenco, estas la komenciteco-nefiniteco, t.e. la
imperfekteco.”
133
No original: ―[...] ĝenerale validaj, kutime ripetiĝantaj aferoj.‖
101
amável atinge mais do que a força); Altan arbon batas la fulmo (O raio golpeia uma árvore
alta), etc.
Também usa-se o presente nas declarações que (supostamente) têm validade para
sempre como nas definições, postulados científicos, decretos, leis, etc como no exemplo de
Zamenhof:
(27) Ĉiuj prepozicioj per si mem postulas ĉiam nur la nominativon. (ZAMENHOF, 1991, p.
115)
(Todas as preposições por si mesmas exigem sempre apenas o nominativo.)
Tal uso é denominado presente declarativo (também presente administrativo para alguns).
Nos termos de Fiorin (1999, 22) ―o tempo é pura construção do enunciador, que
presentifica o passado, torna o futuro presente, etc‖. Em Esperanto também não é diferente.
Kalocsay (1966, p. 44), argumenta que o chamado presente histórico nada mais é do
que um presente aoristo (aspectualmente indefinido), no sentido de que ele tem a função
discursiva de substituir o pretérito para dar mais vida à narração, como neste exemplo:
(28) Li kuras surstrate, perdas la monujon, rimarkas tion, kuras returne kaj trovas ĝin rande
de la trotuaro.
(Ele corre pela rua, perde a carteira de dinheiro, nota isso, corre de volta e encontra-a na beira
da calçada.)
O presente de citação também tem a função discursiva de presentificar uma situação
pretérita, quando um autor é citado no presente, em discurso direto ou indireto: Horaco
kantas: Carpe diem!” (Horácio canta:“Carpe diem!”) Enquanto o pretérito apresenta um
registro simples e neutro, ―por meio do presente como que se faz reviver a coisa citada para o
tempo da citação.‖
134
(KALOCSAY, 1966, p.44)
Com relação aos modos, convém destacar a simplicidade do sistema verbal do
Esperanto:
A bem dizer, o Esperanto não tem o modo indicativo, cujas formas são
características nos idiomas nacionais, pois as terminações as, is e os são de
tempos, não importando a que modo correspondam nesses idiomas. Qualquer
delas, com efeito, serve, aplicada adequadamente, para se exprimir forma
dos modos ―indicativo‖ e ―subjuntivo‖ das demais línguas. [grifo do autor]
(LORENZ, 1996. p.164)
134
No original: ―Per tia prezenco oni kvazaŭ revivigas la citaĵon por la tempo de la citado.‖
102
Em Esperanto, pois, não um morfema específico para expressar o modo subjuntivo
(como em Português), valendo-se ora dos tempos presente, passado ou futuro, ora do modo
imperativo, ora do chamado condicional.
Exemplo da forma verbal no futuro:
(29) [...] kiam mi finos mian laboron, mi serĉos mian horloĝon, sed mi timas, ke mi ĝin jam ne
trovos. (ZAMENHOF, 1991, p. 103)
( [...] quando eu terminar meu trabalho, procurarei meu relógio, mas receio que já não o
encontre.)
As três formas verbais finos, serĉos e trovos são marcados pelo morfema os que
denota simplesmente tempo futuro em Esperanto. No entanto, na leitura portuguesa,
traduzimos a forma finos pelo futuro do subjuntivo (‗quando eu terminar‘) e a forma trovos
pelo presente do subjuntivo em Português (‗encontre‘). Nesse exemplo, somente o verbo
serĉos denota futuro do modo ―realis‖, aqui traduzido como futuro do presente (procurarei).
O morfema us tem o valor tanto do chamado futuro do pretérito do indicativo quanto
do pretérito imperfeito do subjuntivo, em Português, como, por exemplo em:
(30) Se mi estus sana, mi estus feliĉa. (ZAMENHOF, 1991, p. 103)
(Se eu estivesse com saúde, seria feliz.)
Usa-se também a forma verbal terminada em us em expressões de polidez para
suavizar o pedido ou o desejo:
(31) Mi dezirus aĉeti kelkajn aferojn. (Eu gostaria de comprar algumas coisas.)
Em Esperanto não um morfema específico para indicar o tempo denominado futuro
do pretérito em Português; este é traduzido como tempo futuro, marcado pelo sufixo os. Por
exemplo, observemos a sentença (32) abaixo. Em Português, a forma verbal cairia denota
realmente um futuro‖ no ―pretérito‖. Por outro lado, a forma verbal falos, denota apenas
tempo futuro, pois ―o futuro da oração subordinada indica posterioridade temporal com
relação ao tempo da oração principal‖ (KALOCSAY, 1966, p.156):
(32) Petro vidis, ke la fratino falos kaj tenis ŝin.
(Pedro viu que a irmã cairia e segurou- a . Literalmente, falos = cairá)
O modo imperativo é expresso por meio do morfema -u para expressar ordem, pedido,
exortação ou desejo como nos seguintes enunciados:
(33) Rakontu al mi vian malfeliĉon (...) (ZAMENHOF, 1991, p. 133)
(Conte-me sua desgraça, [...] )
(34):Mi volas ke vi tien iru”, diris la patrino, ―kaj iru tuj‖! (ZAMENHOF, 1991, p. 101)
(Eu quero que você vá para lá, disse a mãe, e vá logo!)
103
Nas orações subordinadas, o modo imperativo é usado se a oração principal expressar
vontade, ordem, pedido, exortação, desejo, necessidade, dever, permissão, proibição, etc,
sendo traduzido pela forma verbal subjuntiva em Português:
(35) Ŝi petas, ke Johano estu atenta.
(Ela pede que João esteja atento.)
Quanto aos particípios ativos e passivos (com sentido adjetivo ou adverbial) que
Zamenhof apresentou na regra referente aos verbos, nossa proposta é discuti-los em separado,
porque, para nós, os particípios pertencem a uma classe verbo-nominal, peculiar da língua.
Remontamos a Dionísio de Trácia (fim do séc. II a.C), quando esse gramático alexandrino
―fez a primeira descrição gramatical sistemática do mundo ocidental‖
135
, nos termos de Lyons
(1970, p.13), e reconheceu o particípio como classe gramatical separada, porque ele
‗participa‘ das características verbais e das nominais.
RESUMO
Neste capítulo apresentamos uma introdução aos conceitos de interlíngua e
interlinguística. Traçamos um esboço do cenário linguístico do século XIX e fazemos breve
histórico do Esperanto e do movimento esperantista nacional e internacional. De modo geral,
mostramos os aspectos linguísticos do Esperanto, sua gramática, estrutura lexical e processos
de formação de palavras.
135
No original: La grammaire de Denys de Thrace (fin du 11e sciècle av. J.-C.) est la première description
grammaticale systématique et complète du monde occidental.”
104
5 A QUESTÃO DOS PARTICÍPIOS
Para melhor compreender o papel dos particípios em Esperanto, é necessário discutir o
seu estatuto linguístico no âmbito das classes de palavras. Sob a ótica dos pressupostos
teóricos do funcionalismo linguístico norte-americano, as categorias linguísticas não são
discretas ou binárias, mas distribuem-se numa escala gradiente, num continuum. Dentro dessa
abordagem, cabe a definição de particípio postulada por Waringhien e Kalocsay (1980,
p.132): ―o particípio é essencialmente uma forma de transição entre o verbo e o adjetivo.‖
[grifo nosso]
136
O particípio em Esperanto é, pois, uma classe sui generis: exerce funções
próprias do adjetivo, do advérbio e até do substantivo, sem perder a característica da
verbalidade (qualidade verbal).
Os particípios, com sentido adjetivo terminados em a (ou com sentido adverbial,
terminados em e; ou com valor substantivo, terminados em o), apresentam uma raiz
deverbal, seguida de morfemas oriundos do presente, pretérito ou futuro, além dos sufixos
participiais ativo -nt ou passivo -t, que são exclusivos da classe dos particípios:
QUADRO 8 - Particípios ativos e passivos
Particípios
Presente
Passado
Futuro
Ativo
-ant
-int
-ont
Passivo
-at
-it
-ot
Exemplos de particípios ativos de valor adjetivo (doravante chamados por nós de particípios-
adjetivos):
legantaj knaboj meninos que leem / que estão lendo; meninos ―lendo‖;
legintaj knaboj meninos que leram; meninos ―lidos‖;
136
No original: ―[...] la participo estas esence transira formo inter la verbo kaj la adjektivo‖.
105
legontaj knaboj meninos que estão prestes a ler, com a intenção de ler; que ainda vão ler.
Os particípios-adjetivos (ou adjetivos participiais) podem ser também desdobrados em
Esperanto em formas perifrásticas com o pronome relativos kiu, kiuj (que). Assim, por
exemplo:
legantaj knaboj knaboj, kiuj legas (meninos que leem); legintaj knaboj knaboj, kiuj legis
(meninos que leram), etc.
QUADRO 9 - Estrutura do particípio-adjetivo presente ativo
Morfema raiz
do verbo legi
(ler)
Morfema
derivado do
tempo presente
-as
Morfema de
particípio
ativo
Morfema
marcador de
adjetivo
leg
a
nt
a
LEG-A-NT-A (que lê, que está lendo)
O particípio-adjetivo e o particípio-substantivo aceitam o morfema de número plural: -
j. Ex.: knaboj legantanj meninos que leem; la legantoj os leitores.
Tanto o particípio-adjetivo quanto o particípio-advérbio regem o morfema de caso acusativo,
marcado por n.
Exemplo de particípio-adjetivo:
( 36 ) La knaboj estis legantaj esperantan libron.
(Os meninos estavam lendo um livro em Esperanto.)
O SN esperantan libron está no caso acusativo, argumento exigido pelo particípio-adjetivo:
legantaj.
Exemplo de particípio-advérbio regente de acusativo:
(37) Legante
137
esperantan libron, la knaboj ne min vidis.
(Lendo um livro em Esperanto, os meninos não me viram.)
O SN esperantan libron está no caso acusativo, exigido pelo particípio-advérbio:
legante (lendo, enquanto os meninos liam, ou porque liam). O particípio-advérbio mantém a
função de adjunto adverbial; denota uma circunstância de tempo ou causa.
137
Em Esperanto, o particípio-advérbio refere-se sempre ao sujeito da oração principal. Aqui também não o
problema da ambiguidade como em português: Eu vi o menino lendo. Em Esperanto: Legante mi vidis la knabon.
O sujeito de legante é o mesmo da oração principal: mi (eu); o objeto direto é knabon: (menino).
106
É interessante observar que ao gerúndio em Português ora corresponde em Esperanto o
particípio-adjetivo, ora o particípio-advérbio:
(38) Eu vi os meninos lendo um livro em Esperanto.
(39) Lendo um livro, o menino não me viu.
No exemplo (38), lendo é traduzido em Esperanto por particípio-adjetivo:
(40) Mi vidis la knabojn legantaj esperantan libron.
(Eu vi os meninos lendo um livro de Esperanto) Os meninos é que liam, estavam lendo.
Sintaticamente, legantaj é tradicionalmente considerado predicativo do objeto direto knabojn
(este último, no caso acusativo).
No exemplo (39), lendo é traduzido por particípio-advérbio:
(41) Legante libron la knabo ne min vidis. (Lendo um livro, o menino não me viu.) O
particípio-advérbio refere-se unicamente ao sujeito da oração principal; no exemplo em
questão, trata-se de la knabo (o menino).
QUADRO 10 - Estrutura do particípio-adjetivo passado ativo
Morfema raiz
do verbo pasi
(passar)
Morfema
derivado do
tempo passado
-is
Morfema de
particípio
ativo
Morfema
marcador de
adjetivo
pas
i
nt
a
PAS-I-NT-A (que passou)
Exemplo: Pasinta jaro ano passado, que passou; mortinta birdo pássaro que
morreu, pássaro morto.
QUADRO 11 - Estrutura do particípio-adjetivo futuro ativo
Morfema raiz
do verbo veni
(vir)
Morfema
derivado
do tempo futuro
-os
Morfema de
particípio
ativo
Morfema
marcador de
adjetivo
ven
o
nt
a
107
VEN-O-NT-A (que virá)
Exemplos: Venonta jaro ano vindouro, que está por vir.
Homoj pagontaj - pessoas que estão para pagar, têm a intenção de pagar, que vão pagar.
Comparem-se o uso dos particípios-adjetivos presente e pretérito, respectivamente:
Homoj pagantaj pessoas pagantes, que pagam, que estão pagando.
Homoj pagintaj - pessoas que pagaram.
QUADRO 12 - Estrutura do particípio-adjetivo presente passivo
Morfema raiz
do verbo legi
(ler)
Morfema
derivado do
tempo presente
Morfema de
particípio
passivo
Morfema
marcador de
adjetivo
leg
a
t
a
LEG-A-T-A (que é lida; que está sendo lida)
Exemplos: legata letero carta que é lida ou que está sendo lida; lavata hundo cão
que é lavado ou que está sendo lavado.
QUADRO 13 - Estrutura do particípio-adjetivo passado passivo
Morfema raiz
do verbo legi
(ler)
Morfema
derivado do
tempo passado
Morfema de
particípio
passivo
Morfema
marcador de
adjetivo
leg
i
t
a
LEG-I-T-A (que foi lida)
Exemplos: legitaj leteroj cartas lidas, que foram lidas; domo konstruita - casa
construída, que foi construída.
QUADRO 14 - Estrutura do particípio-adjetivo futuro passivo
Morfema raiz
do verbo legi
(ler)
Morfema
derivado do
tempo futuro
Morfema de
particípio
passivo
Morfema
marcador de
adjetivo
108
leg
o
t
a
LEG-O-T-A (que está para ser lida; que vai ser lida)
Exemplo: legotaj leteroj cartas que estão para ser lidas; que vão ser lidas; domo vendota
casa para ser vendida.
Qualquer particípio (ativo ou passivo) pode ser combinado com o verbo esti (ser,
estar) no presente (estas), pretérito (estis) ou futuro (estos). O contexto definirá o sentido
adequado, indicando qual a melhor tradução do verbo esti em Português.
Abaixo apresentamos alguns exemplos com as respectivas glosas.
Exemplos de construções de particípios-adjetivos ativos (presente, pretérito, futuro),
com o verbo esti no presente:
a) estas + part. anta - Mi estas vojaĝanta - Estou na situação daquele que viaja ou está
viajando; estado presente durante a viagem.
b) estas + part. inta - Mi estas vojaĝinta - Estou na situação daquele que viajou; logo, eu
viajei;
estado presente depois de ter viajado.
c) estas + part.
onta - Mi estas vojaĝonta Estou na situação daquele tem a intenção de
viajar; estado presente antes de viajar.
Exemplos de construções com o verbo esti no pretérito e no futuro: + particípio-
adjetivo presente -anta:
a) Mi estis vojaĝanta - Eu estive / estava na situação daquele que está viajando.
Estado passado: viajando.
b) Mi estos vojaĝanta Eu estarei na situação daquele que está viajando.
Estado futuro: viajando.
Exemplos de construções com o verbo esti no pretérito e no futuro: + particípio-
adjetivo passado -inta:
a) Mi estis vojaĝinta - Eu estive na situação daquele que viajou; logo, já tinha viajado.
Estado passado: já viajado.
b) Mi estos vojaĝinta Eu estarei na situação daquele que viajou; logo, terei viajado.Estado
futuro: já viajado.
109
Exemplos de construções com o verbo esti no pretérito e no futuro: + particípio futuro
-onta :
a) Mi estis vojaĝonta Eu estive na situação daquele que terá a intenção de viajar, estava para
viajar. Estado passado: para viajar.
c) Mi estos vojaĝonta Eu estarei na situação daquele que terá a intenção de viajar.
Estado futuro: para viajar.
Como foi visto acima, além dos particípios-adjetivos e particípios-advérbios, em
Esperanto é comum o uso de particípios-substantivos, caracterizados morfologicamente como
substantivos, com morfema desinencial o. Os particípios-substantivos indicam o agente
humano, a pessoa que pratica a ação.
(42) Ĉiuj vojaĝontoj atendas malpacience la aviadilojn. Todos os viajantes (os que vão
viajar) esperam impacientes os aviões.
vojaĝonto - o viajante, o que vai viajar; o que tem a intenção de viajar; vojaĝinto - o viajante,
o que já viajou; vojaĝanto - o viajante, o que viaja, o que está viajando.
Exemplos de particípios-substantivos passivos:
amato o que é amado; dungato - o que é empregado; kaptito- o que foi capturado; vizitoto-
o que está para ser visitado; punoto - o que está para ser punido.
Muitos linguistas divergem quanto à definição do particípio. Para alguns, o particípio é
apenas uma forma verbal, para outros, é somente um adjetivo. As gramáticas do Português
classificam-no como forma nominal do verbo. Para Câmara, por exemplo:
Particípios - Formas verbais, comuns às línguas indo-europeias em geral,
em que a natureza de adjetivo se complementa de uma significação
dinâmica, que faz delas uma forma verbal, enquanto servem de adjunto a
um substantivo.(...) Em latim havia três tipos de particípios correspondentes
aos três tempos verbais de presente, pretérito e futuro. Na morfologia
portuguesa, dentro do paradigma verbal ficou o particípio pretérito, que
por isso a nova Nomenclatura Gramatical apenas denomina ‗particípio‘.
[grifos nossos] (CÃMARA, 1978, p.187-188)
Nota-se que Câmara define o particípio como forma verbal, graças à característica
semântica do dinamismo acrescentado à sua natureza adjetiva, em função de adjunto de um
substantivo.
As definições de Dubois e de Lyons abaixo são semelhantes: ambas mencionam a
forma de origem (derivação de uma raiz verbal) e a função: o emprego como adjetivo:
―Chamam-se particípios as formas derivadas das raízes verbais e empregadas como
110
adjetivos.‖
138
(DUBOIS, 1973, p.362). Para Lyons (1970, p. 193), ―particípio é uma palavra
que é derivada de um verbo e que é empregada como um adjetivo.‖
139
Segundo Cresswell e Hartley (1967, p.110), o particípio em Esperanto trata-se de um
adjetivo: ―Note-se que essa forma permanece um adjetivo descrevendo um substantivo,
embora diferindo de um adjetivo comum por sugerir ideia de ação. [...] Aqui também os
autores supracitados fazem referência ao caráter dinâmico do adjetivo, apesar de não o
classificarem como verbo.
Referindo-se também ao Esperanto, Auld (1988, p.42) descarta qualquer verbalidade
do particípio, rejeitando, por isso, a hipótese de tempos compostos naquela língua. Reforça
seu argumento ao lembrar que, para Zamenhof, os particípios têm sentido de adjetivo ou de
advérbio. Também Lorenz (1966, p.247) refere-se à ―ausência de verbo ―auxiliar‖, com a
consequente inexistência de tempos ditos ―compostos‖ em Esperanto‖.
Para Auld (1988, p.42), ―Quando se usa est-
140
com um adjetivo que tem um afixo
participial, esse adjetivo permanece como adjetivo e, como todos os adjetivos, descreve o
estado do substantivo (do sujeito) descrito no momento.‖
141
Ele argumenta que, numa frase
como La lago estas forlasita, malgrandiĝanta sondata (O lago está abandonado,
(está) diminuindo ou está sendo explorado por sonda), o único verbo é estas e os particípios
forlasita (abandonado), malgrandiĝanta (diminuindo), sondata (sondado) são adjetivos que
descrevem o estado atual do sujeito. Do mesmo modo, particípios adverbiais são advérbios e
indicam como, onde, quando, por que a ação expressa pelo verbo acontece.
Atanasov (1983, p. 49) também rejeita o conceito de ―formas complexas‖: o verbo esti
(ser, estar) + particípio não representa uma forma verbal composta. O particípio tem a mesma
função de um adjetivo predicativo como a forma negritada no exemplo:
(43) La domo estas bela kaj ankaŭ vendota. (A casa é bonita e também está para ser
vendida.) Vendota é particípio com valor de adjetivo, na função de predicativo do sujeito.
Em um estudo sobre os particípios em Esperanto, cujo título é Apartaj mondoj: verboj
kaj participoj (―Mundos à parte: verbos e particípios‖), Mattos (1999) considera que verbos e
particípios ―são mundos à parte‖. Também descartando a existência de tempos compostos em
Esperanto, o autor supracitado afirma:
138
No original: ―On appelle participes des formes dérivées des racines verbales et employées comme adjectifs.‖
139
Na edição francesal: […] un participe est un mot qui est derive d‟un verbe et qui est employé comme un
adjective”.
140
Est- raiz do verbo est : ser, estar, haver.
141
Kiam oni uzas est kun adjektivo havanta participan afikson, tiu adjektivo restas adjektivo kaj, kiel ĉiuj
adjektivoj, priskribas la staton de la substantivo (do subjekto) en la momento priskribata.
111
Consideremos, porém, que as formas verbais compostas da ativa e toda a
passiva absolutamente não existem em Esperanto, uma vez que os particípios
ativos e passivos são simples predicativos, porque eles são apenas adjetivos
e indicam unicamente o estado passivo ou ativo do ser que o respectivo
substantivo manifesta: para mim, a expressão voz passiva significa apenas o
aparecimento conjunto do verbo esti e dos particípios, os quais são
verdadeiramente adjetivos passivos dos substantivos que ocupam a função
de objeto direto do verbo respectivo. [grifos nossos] (MATTOS, 1999, p.59-
60)
142
É muito simples o sistema verbal do Esperanto. Quanto a isso, divergem, porém, as
análises e interpretações dos gramáticos e interlinguistas. Muitas vezes ocorrem problemas de
classificação das predicações esperantas nas gramáticas e manuais destinados ao ensino da
língua. O que pode parecer complicado advém das traduções das construções esperantas feitas
por meio de formas verbais consideradas compostas em línguas estrangeiras. Os tradutores e
autores de manuais deixam-se influenciar pelas taxonomias de suas línguas maternas.
Os morfemas participiais correlacionam-se com os sufixos temporais próprios da
classe dos verbos: presente (-as), passado (-is) e futuro (-os). Assim, o particípio combina sua
raiz com os morfemas -a ; -i ; -o (que expressam uma temporalidade interna, aspectual,
própria do particípio), como, por exemplo, o particípio-advérbio oriundo do verbo aĉeti
(comprar): aĉetante (comprando), aĉetinte (tendo comprado), aĉetonte (para comprar). Por
meio do significado da raiz verbal, o particípio herda o dinamismo semântico do verbo, o que
o faz distinguir-se dos adjetivos prototípicos.
Segundo Waringhien e Kalocsay (1980, p.161): o particípio (sem o verbo esti - ser, estar)
pode ser usado com valor verbal: ―como predicativo em oração atributiva após verbos de sensação:
Mi vidis virtulon forlasita, kaj liajn infanojn petantaj panojn.
143
; como adjunto [adverbial] exprimindo
modo, causa, concessão, condição ou suposição, e caracterizado pela terminação e: Promenante sur
la strato mi falis.
144
145
Ainda de acordo com os autores supracitados, o particípio pode ser usado com valor
adjetivo, como epíteto (adjunto adnominal), adquirindo, pois, todas as características do
142
No original: Ni tamen konsideru, ke la kunmetitaj verboformoj de la aktivo kaj la tuta pasivo tute ne ekzistas
en Esperanto, ĉar aktivaj kaj pasivaj participoj estas simplaj predikativoj pro tio, ke ili estas nur adjektivoj, kaj
indikas sole nur la aktivan pasivan staton de la estaĵo, kiun la responda substantivo manifestas: por mi, la
esprimo pasiva voĉo signifas nur la kunaperon de la verbo esti kaj de la participoj, kiuj estas vere pasivaj
adjektivoj de la substantivoj, kiuj okupas la funkcion de rektaj objektoj de la responda verbo.‖
143
Os autores usam exemplos de Zamenhof: Mi vidis virtulon forlasita, kaj liajn infanojn petantaj panojn.( Eu vi
um homem virtuoso abandonado e seus filhos pedindo pães.)
144
Promenante sur la strato mi falis. (Caminhando na rua, eu caí.)
145
No original: […] a) kiel objektan predikativon en atribua agpropozicio, post verboj de sensado: mi vidis
virtulon forlasita, kaj liajn infanojn petantaj panon. b) kiel adjekton esprimantan la manieron, kaŭzon,
koncedon, kondiĉon aŭ supozon, kaj karakterizitan per la finaĵo e: promenante sur la strato mi falis.‖
112
adjetivo: ―[...] a única diferença é a significação: o particípio mostra sempre uma ação mais
ou menos longa, mas naturalmente momentânea, enquanto o adjetivo da mesma raiz mostra
qualidade consistente: ĉarma junulino (moça encantadora); ĉies orelojn ĉarmanta kanto (uma
canção que encanta aos ouvidos de todos).‖ (WARINGHIEN; KALOCSAY,1980, p.161)
É interessante observar que, na tradução portuguesa ĉarma e ĉarmanta m o mesmo
sentido, a saber: encantador (a), que encanta; ĉarma junulino: moça que encanta; ĉarmanta
kanto: canção que encanta. Todavia, na expressão ĉarmanta fluto encontrada no dicionário
PIV (2005, p.204): (flauta encantada - que, em português, tem dois sentidos, passivo e ativo, a
saber: ao mesmo tempo a flauta foi encantada, está encantada, enfeitiçada; e também encanta,
enfeitiça) o significado do particípio-adjetivo ĉarmanta denota característica própria da flauta,
mostrando a ―qualidade consistente‖ própria dos adjetivos prototípicos, de que falam os
autores acima. Tal característica exemplifica e reforça a visão de continuum adequada para a
definição de particípio.
Sintaticamente, o particípio comporta-se como o verbo do qual é derivado, podendo
exigir o complemento acusativo. Comparemos as predicações (a) e (b), verbal e nominal,
respectivamente:
a) Predicação verbal:
(44) Li manĝis pomon. (Ele comeu uma maçã.) O morfema -n é a marca do acusativo, objeto
direto: pomo + n .
b) Predicação nominal:
(45) Li estas manĝinta pomon. (Ele comeu uma maçã; ou seja, ele está na situação posterior
ao evento ―comer uma maçã‖.) A predicação nominal constituída do verbo esti (ser, estar) no
presente estas + -inta denota o estado presente depois de o sujeito ter praticado a ação.
Do mesmo modo, o particípio-advérbio presente ativo manĝante, por exemplo, exige o
argumento acusativo pomon:
(46) Manĝante pomon, li aŭskultis belan muzikon. (Comendo uma maçã / ou enquando
estava comendo uma maçã, ele ouvia uma bela música.) Manĝante (particípio-advérbio), isto
é, no estado ―de estar comendo.‖
Quanto ao particípio-substantivo, pode-se dizer que exerce as funções próprias de um
nome substantivo como, por exemplo manĝinto (―aquele que comeu‖), no papel de sujeito da
oração:
(47) Poste la manĝinto ekdormis. (Depois ―aquele que comeu‖ [a maçã] adormeceu.)
Manĝinto (particípio-substantivo passado ativo), isto é, ―o que comeu‖.
113
Correlacionando-se com os nomes, o particípio seleciona os morfemas desinenciais
classificatórios: -o (substantivo); -a (adjetivo); -e (advérbio). Como nome, o particípio exerce
as funções sintáticas tradicionais do substantivo, do adjetivo ou do advérbio (isto é, pode ser
sujeito, objeto, adjunto adnominal, predicativo, adjunto adverbial, etc). Em concordância com
o substantivo plural, o partícípio-adjetivo recebe o morfema de número, como ilustra o
exemplo de Lorenz (1966, p.74):
(48) Ho! Du birdetoj mortintaj pro la varmo!
(Oh, dois passarinhos que morreram com o frio/mortos pelo frio!)
O partícípio-adjetivo também pode ser empregado na função de acusativo:
(49) Li vidas nenion memorigantan pri homo, pri vivo. (N 18, p.9)
( Ele não vê nada que faça lembrar o ser humano, a vida).
Por todos esses motivos, afirmamos que o particípio em Esperanto é uma classe de
palavras heterogênea, especial: não é somente adjetivo como querem alguns linguistas como
Mattos (1999), tampouco é apenas verbo como postula a maioria, que enquadra o particípio
em um paradigma conjugacional, admitindo a existência de ―formas complexas‖ ou ―tempos
compostos‖ em Esperanto.
A definição de Waringhien e Kalocsay que afirma ser o particípio essencialmente uma
forma de transição entre o verbo e o adjetivo já avança linguisticamente, no sentido de
destacar a gradiência das entidades linguísticas e que as formas não se congelam em
categorias estanques. Percebe-se como que uma volta à antiga classificação do alexandrino
Dionísio de Trácia de que tratamos acima.
Com relação às primeiras tentativas de agrupar as palavras em classes, de acordo com
Lyons (1970, p. 12-13), a distinção explícita entre substantivos e verbos pode ser atribuída a
Platão (429-347 a. C). Cumpre notar que essa distinção era feita em termos lógicos (como
partes constituintes de uma proposição). Platão reunia em uma mesma classe o que os
gramáticos atuais chamam de verbos e adjetivos.
Enquanto os substantivos assumiam, em uma frase, a função de sujeito do predicado,
os verbos eram os termos que podiam exprimir a ão ou a qualidade representada pelo
predicado.
Posteriormente, os gramáticos gregos abandonaram essa classificação de Platão e
identificaram os adjetivos junto com os substantivos, na classe dos nomes. A famosa
gramática de Dionísio de Trácia reconheceu a classe dos particípios uma vez que ―participam‖
das características verbais e das nominais. Dionísio identificou também as classes dos
advérbios, pronomes e preposições, além das classes de palavras reconhecidas pelos
114
estoicos (nome, verbo, conjunção, artigo). Desse modo, a essa época haviam sido
reconhecidas as seguintes classes de palavras: nome (incluindo aqui os substantivos e os
adjetivos), verbo, conjunção, artigo, particípio, advérbio, pronome e preposição. [grifo nosso]
Como se pode notar, o particípio era considerado uma classe à parte.
Em Esperanto, os particípios ativos e passivos podem participar das classes dos
substantivos, adjetivos e advérbios que teriam, assim, uma natureza participial; podendo-se
também falar de particípios de natureza substantiva, adjetiva ou adverbial. Aqui se percebe de
modo claro o equívoco das abordagens que postulam oposições dicotômicas radicais, ao
contrário das teorias funcionalistas que dão conta da noção de continuum ou gradiência que
existe entre os componentes das classes de palavras e categorias gramaticais.
Do nosso ponto de vista, o particípio em Esperanto é uma classe heterogênea, com
características ao mesmo tempo verbais e nominais; trata-se, portanto, de uma forma verbo-
nominal. Como o termo explicita, concordamos que ele participa das classes do verbo e do
nome.
O particípio-adjetivo exerce as funções do adjetivo: adjunto adnominal ou predicativo
do sujeito ou do objeto, podendo também reger o objeto direto, argumento do verbo como já
foi visto acima. Vejamos mais alguns enunciados para exemplificar essas funções:
(50) Li ekaŭdis pordon fermata kun singardo. (WARINGHIEN, 2001, p.28)
(Ele começou a ouvir uma porta (sendo) fechada com precaução.) Fermata: particípio-
adjetivo, presente, passivo, na função de predicativo do objeto direto pordon (porta).
(51) Ŝi staris antaŭ fermita pordo. (Ela estava (em pé) diante de uma porta fechada.) Fermita
é particípio-adjetivo passado, passivo, na função de adjunto adnominal de pordo (porta).
(52) La pordoj estas fermitaj. (As portas estão fechadas.) Fermitaj exerce a função de
predicativo do sujeito la pordoj (as portas).
É importante assinalar que os particípios têm seu valor verbal explicitado sobretudo
quando regem acusativo como, por exemplo, os enunciados (53) e (54), com o acusativo
(pordon, porta) regido por particípios (adjetivo e advérbio respectivamente):
(53) La pordisto estis fermanta la pordon. (O porteiro estava fechando a porta.)
Fermanta: particípio-adjetivo: no estado ―de estar fechando‖.
(54) Ferminte la pordon, li eliris.(Depois de ter fechado a porta, ele saiu.)
Ferminte : particípio-advérbio: circunstância de tempo ―depois de ter fechado‖.
115
Qualquer particípio-adjetivo (ativo ou passivo) com função predicativa pode ser
combinado com o verbo esti (ser, estar) no presente (estas), pretérito (estis) ou futuro (estos);
no condicional (estus), imperativo (estu) ou infinitivo (esti).
Assim:
De acordo com os itens (3) e (4) da Resolução que consta nos Atos da
Academia de Esperanto 1963-1967 (Aktoj de la Akademio de Esperanto
1963-1967)
146
: 3.Os seis particípios, usados quer junto de substantivo (ou
respectivo pronome) quer junto do verbo esti, mostram em que tipo de fase
da ação encontra-se o sujeito, ou objeto: ou começada e não terminada (ant-,
at-), ou terminada e realizada / cumprida (int-, it-), ou ainda não começada,
mas pretendida ou previsível (ont-, ot-).4.Consequentemente, as formas
estas, estis, estos, estus, estu, esti ata‖ insistem sobre a duração ou
repetição da ação; e as formas estas, estis, estos, estus, estu, esti ita
insistem sobre o resultado da ação. As formas com ―–ita‖ podem também
mostrar anterioridade temporal se na frase houver essa indicação relacionada
à parte.
147
5.1 PARTICÍPIOS-ADJETIVOS NAS NARRATIVAS DOS CORPORA C1 E C2
Dedicamos esta seção a transcrever alguns enunciados que exemplificam o uso de
particípios-adjetivos colhidos nas narrativas constituintes dos corpora C1 e C2.
a) com anta (presente ativo)
(55) Kvankam mi ankoraŭ ne kredis, ke tiu alta kaj elegante vestita juna damo, fumanta
cigaredon, kun belstatura korpo kaj ore blonda hararo, estas mia najbarineto [...] (N9, p.200)
(Embora ainda não acreditasse que aquela jovem dama alta e elegantemente vestida, fumando
um cigarro, com um corpo de bela estatura e cabeleira louro-dourada fosse minha pequena
vizinha [...]
O particípio-adjetivo fumanta em fumanta cigaredon equivale à oração adjetiva ―que
fumava‖, ―estava fumando‖.
b) com inta (passado ativo) :
(56) La episkopo jam delonge uzis ĉiutage la saman manieron de akceptado, kaj kelkaj
malfeliĉuloj, venintaj eble de malproksime en la urbon pro urĝaj aferoj [...] (N3, p.44)
146
Aktoj de la Akademio de Esperanto 1963-1967. Paris: SAT, 1968.
147
- La ses participoj, uzataj aŭ apud substantivo (resp. pronomo) apud la verbo “esti”, montras, en
kia fazo de la ago troviĝas la subjekto, respektive la objekto: komencita kaj ne finita (-ant, -at), finita
kaj plenumita (-int, -it), ankoraŭ ne komencita sed intencata aŭ atendebla (-ont, -ot).
- Sekve la formoj “estas, estis, estos, estus, estu, esti -ata” insistas pri la daŭro ripetiĝo de la ago; kaj la
formoj “estas, estis, estos, estus, estu, esti -ita” insistas pri la rezulto de la ago.La formoj kun -ita” povas
ankaŭ montri la antaŭtempecon en la okazo, se en la frazo estas tiurilata aparta indiko.
116
(O bispo desde muito tempo usava diariamente a mesma maneira de receber, e alguns
infelizes, vindos talvez de longe até a cidade por motivos urgentes, [...]
O particípio-adjetivo venintaj equivale à oração adjetiva ―que tinham vindo‖.
Alguns exemplos de particípios-advérbios:
a) com ante (presente ativo):
(57)―Tiel dirante, Kisuke metis manon ĉe sia brusto.” (N12, p.8)
(Assim dizendo, Kisuke pôs a mão no peito.)
b) com inte (passado ativo):
(58) ―Tiel dirinte, Kisuke fermis sian buŝon‖ (N12, p.9)
(Tendo dito assim, Kisuke fechou a boca.)
O tradutor japonês da narrativa doze (N12) soube bem usar o contraste aspectual imperfectivo
/perfectivo, respectivamente, -ante /-inte (dirante-dizendo /dirinte-tendo dito) nos enunciados
(57) e (58) acima.
Seguem abaixo alguns exemplos de enunciados com particípios-substantivos:
a) com anto (presente ativo):
(59) –Ĉu jam venas vizitantoj?... –li demandis kun ĉagreno Vitalon, sin vestante kun lia
helpo. (N3, p.44)
(-Já vieram os visitantes?... perguntou com amargura ao Vital, vestindo-se com sua ajuda.)
O particípio-substantivo (presente ativo) vizitantoj têm o sentido de ―os que visitam ou estão
visitando‖; ―os visitantes‖.
b) com into (passado ativo):
(60) Ni trapasis la batallinion de la ribelintoj kaj la soldatoj komencis pafi kontraŭ grupo da
vilaĝanoj. (N5, p.103)
(Atravessamos a linha de batalha dos rebeldes e os soldados começaram a atirar contra um
grupo de aldeões.)
O particípio-substantivo (passado ativo) ribelintoj expressa o sentido de ―os que se
rebelaram‖, ―os rebeldes‖.
c) com ato (presente passivo)
(61) Kelkaj el konatoj mortis [...] (N9, p.198)
(Alguns conhecidos morreram.)
O particípio-substantivo (presente passivo) konatoj denota o sentido ―os que são conhecidos‖.
d) com ito (passado passivo) e into (passado ativo):
(62)Tiutempe la kondamnitoj al fora insulo estis kompreneble la personoj, kies identeco kun
la farintoj de grava krimo estis pruvita. (N12, p.5)
117
(Naquele tempo os condenados [os que foram condenados] a uma ilha distante eram
naturalmente as pessoas cuja identidade com os que fizeram crimes graves tinha sido
provada.)
Em (62) identificamos dois particípios-substantivos, a saber, kondamnitoj, os que foram
condenados (passado passivo) e farintoj, os que fizeram (passado ativo).
5.2 A PREDICAÇÃO EM ESPERANTO
Predicação diz respeito a codificação linguística de um estado de coisas e em
Esperanto uma situação pode ser codificada verbal ou nominalmente, por meio de um
predicado cujo núcleo é um verbo, um nome adjetivo ou substantivo (ou pronome) ou um
particípio ativo ou passivo (cuja natureza é verbo-nominal).
A predicação constitui, pois, o resultado da aplicação de um certo número de
termos que designam um predicado (que designa propriedades ou relações).
A construção de uma oração requer, portanto, antes de mais nada, um
predicado, representado basicamente pela categoria verbo, ou, ainda, pela
categoria adjetivo (construído com um verbo de ligação) (NEVES, 2000,
p.25)
Enquanto o particípio ativo apresenta a ação ou estado como descrição do sujeito
ativo do predicado nominal, o particípio passivo apresenta a ação ou estado como descrição
do sujeito passivo do predicado nominal.
a) Predicação verbal: o verbo é o núcleo do predicado como, por exemplo, o verbo legas (lê)
no SV legas la kutiman ĵurnalon (lê o jornal costumeiro):
(63) Dumnokte la instruisto legas la kutiman ĵurnalon. (Durante a noite, o professor /está
lendo o jornal costumeiro.) O verbo legi (ler) rege o caso acusativo, marcado por n: la
kutiman ĵurnalon (o adjetivo concorda em número e caso com o substantivo; concorda no
plural, marcado por -j, la kutimajn ĵurnalojn : ‗os jornais costumeiros‘.)
b) Predicação nominal: um substantivo ou adjetivo, quer seja particípio ou não, é o cleo do
predicado. Por exemplo:
(64) Mia frato estas inteligenta ( Meu irmão é inteligente); inteligenta: nome adjetivo.
118
(65) Mia frato estas instruisto
148
(Meu irmão é professor); instru-ist-o: nome substantivo
(instru-: raiz de instrui: ensinar; ist- sufixo que denota ofício, profissão; -o morfema
categorial marcador de substantivo).
(66)Vi estas lernanto.(Você é um aluno; isto é, você é aquele que aprende); lern-ant-o:
particípio- substantivo (lern-: raiz de lerni: aprender; sufixo ant- particípio presente ativo; -o
morfema categorial de substantivo).
(67) Mia frato estas instruanta persono (Meu irmão é uma pessoa que ensina); instru-ant-a:
particípio-adjetivo; (instru-: raiz de instrui: ensinar); -ant-particípio presente ativo; -a
morfema categorial de adjetivo).
(68) Mia frato estas instruanta. Este enunciado pode ser assim compreendido:
a) Meu irmão está ensinando. b) Meu irmão é quem [aquele que] ensina.
Em português o verbo esti pode ser lido como ser ou estar, dependendo da intenção do
usuário e de outros fatores discursivos.
O particípio-adjetivo, presente ativo, na função de predicativo, é geralmente traduzido
pelo gerúndio em Português. Vimos acima que o particípio com função adjetiva também é
equivalente a uma oração adjetiva: portanto, instruanta pode ser interpretado como:
(a) ensinando ou b) que ensina.
Observemos o enunciado abaixo:
(69) Nun li estas instruanta Esperanton.
(Agora ele está ensinando Esperanto; ou é quem ensina Esperanto).
O particípio-adjetivo presente instruanta, núcleo do predicado nominal, tem, ao
mesmo tempo, a função de predicativo do sujeito, própria de adjetivo e a função verbal de
reger o acusativo (Esperanton), que o particípio ‗participa‘ da natureza do verbo instrui,
que, por sua vez, também rege acusativo. Essas características especiais dos particípios em
Esperanto são argumentos para justificarmos sua natureza verbo-nominal, e identificá-los
como membros de uma classe lexical à parte.
Quanto à predicação passiva, isto é, se a intenção do usuário da frase (69) é pôr em
foco o SN objeto direto Esperanton, enunciando-o sob forma nominativa de sujeito passivo,
será usada a voz passiva, com o particípio presente passivo como núcleo do predicado
nominal:
(70) Esperanto estas instruata de li.
148
uma distinção entre os sufixos anto e isto (indicador de ofício , profissão): (a) Mia frato estas
instruanto meu irmão é o que está ensinando. (b) Mia frato estas instruisto meu irmão é instrutor; professor
até o ensino médio.
119
(O Esperanto é ensinado por ele; está sendo ensinado por ele.) O agente da voz passiva é
formado pela preposição de + pronome li.
Parece que uma tendência de os usuários preferirem predicações verbais, mais
simples em vez das predicações nominais como, por exemplo: (a) li kantas (ele está cantando;
ele canta), em vez de li estas kantanta; ou (b) li kantis (ele cantou, cantava ou cantara) em
lugar de li estas kantinta. Conforme afirma Auld (1988, p. 41), ―No caso em que uma
definição mais precisa for desejável, prefere-se que se indique isso por diversos advérbios
(jam (já), post (depois), pli frue (mais cedo), etc).‖
149
No Fundamento de Esperanto,
Zamenhof (1991, p.109) já havia sinalizado essa possibilidade quando oferece duas opções: a
forma verbal diris (disse) e o particípio precedido do verbo esti, a saber, estis dirinta : ―[...] li
jam antaŭe diris al mi la veron (aŭ li estis dirinta al mi la veron).‖ (ele já anteriormente disse
a mim a verdade (ou ele tinha dito a verdade a mim) ).
Interlinguistas como Kalocsay e Waringhien (1980, p.135), que muito influenciaram
os estudos da língua, complicaram a simplicidade estrutural dos seus tempos verbais, ao
postularem o que denominam tempos complexos, ―que indicam precisamente as nuances
temporais‖
150
. Por meio dos seis particípios ativos e passivos, combinados com o verbo esti
no presente, passado e futuro, criaram tempos complexos imperfeitos, perfeitos e futuros,
ativos e passivos. Desse modo, os autores supracitados confundiram tempo com aspecto
verbal.
Não obstante, para esses estudiosos, tais ―formas complexas‖ tornariam ―pesada‖ a
escrita, além de serem raras no uso da língua. O próprio Zamenhof aconselhava que tais
construções deveriam ser usadas apenas quando o sentido o exigisse por motivo de clareza.
O papel dos particípios-adjetivos é expressar semanticamente uma ação, evento ou
processo - seu caráter verbal - codificados linguisticamente como nome e, ao mesmo tempo,
promover o estabelecimento de um estado (sua função nominal). Parece-nos que há uma razão
discursivo-pragmática para o uso dessas formas verbo-nominais: a intenção de o falante
realçar o estado ou condição do sujeito (ou objeto) da predicação; o verbo esti mostra o tempo
desse estado.
Exemplifiquemos com duas sentenças que aparentemente se correlacionam
semanticamente, mas que apresentam formas cujas funções atendem à intenção do usuário:
(71) La instruisto legis la kutiman ĵurnalon. (O professor leu / lia o jornal costumeiro.)
149
No original: En la okazo, ke iu pli preciza difino estas dezirinda, oni prefere tion indiku per diversaj
adverboj (Jam, poste, pli frue ktp).”
150
No original: ―[…] kiuj precize indikas la temponuancojn‖.
120
Predicação verbal: ênfase na ação do sujeito; legis: leu / lia.
(72) La instruisto estas leginta la kutiman ĵurnalon. (O professor leu o jornal costumeiro; é [a
pessoa] que leu.)
A predicação é nominal; a ênfase é dada ao predicativo participial leginta, no estado
presente (estas) do sujeito que leu (leginta): o professor é ‗aquele que leu‘; ou está ‗no estado
de quem leu‘.
O particípio-adjetivo pretérito ativo leginta, além de exercer a função de predicativo
do sujeito, rege o acusativo kutiman ĵurnalon.
É importante esclarecer que, se a intenção do usuário é enunciar uma sentença com
uma forma verbal com sentido equivalente ao do pretérito mais que perfeito em Português, é
comum em Esperanto o uso da forma verbal pretérita combinada com advérbios como jam
(já), antaŭe (anteriormente) como o exemplo a seguir:
(73) Hieraŭ la instruisto jam antaŭe legis la kutiman ĵurnalon. (Ontem o professor tinha
lido anteriormente o jornal costumeiro.) Essas predicações nucleadas por formas verbais são
de uso frequente, dada a sua simplicidade e consequente facilidade para o falante
internacional de Esperanto.
O que pode ter causado uma série de equívocos é o fato de a sentença enunciada acima
poder ser construída por meio de predicação nominal com verbo esti seguido de particípio-
adjetivo:
(74) Hieraŭ la instruisto jam estis leginta la kutiman ĵurnalon. (Ontem o professor era
‗aquele que leu‘, ou seja, o que em português traduz-se como ―já tinha lido‖ o jornal
costumeiro.) Muitos viram aqui uma forma complexa ou tempo composto à semelhança da
tradução na sua língua vernácula. autores que chegam a traduzir erroneamente a forma
estas leginta’ como ‗tem lido‘ (pretérito perfeito composto em Português), em vez da
simples forma verbal pretérita ‗leu‘, literalmente: ‗é quem leu‘, a pessoa que leu.
Kalocsay (1966, p. 154) defende a teoria de tempos compostos em Esperanto e
justifica a ideia da unidade do complexo verbal passivo em sua função―conjugacional‖[sic].
Para ele, ―tal bloco unitário significa que o verbo auxiliar e o particípio estão estruturalmente
fundidos, portanto nem a negação nem o advérbio podem relacionar-se a um deles sem se
relacionar ao mesmo tempo ao outro.‖
151
No entanto, o mesmo autor apresenta
contraexemplos, que negam essa unidade:
(75) La letero hieraŭ estis jam skribita. (A carta estava escrita ontem.)
151
No original: Tiu unublokeco signifas, ke helpverbo kaj participo estas strukture kunfanditaj, sekve nek neo,
nek adverbo povas rilati al unu el ili, ne rilatante samtempe ankaŭ al la alia.‖
121
(76) Ĉi tiuj bulkoj estis ĵusbakitaj nur antaŭhieraŭ. (Estes pães acabaram de ser assados
somente anteontem; ou seja estavam frescos apenas anteontem.)
(77) La pordo estis nefermita. - A porta estava ‗não fechada’.
Como os advérbios jam (jam skribita) ĵus (prefixado: ĵusbakitaj) e a negação ne
(nefermita) se referem somente ao particípio, Kalocsay admite, então, que ―o complexo verbal
passivo perde sua função conjugacional de expressar ação e torna-se uma voz passiva de
estado de expressão adjetiva
152
(KALOCSAY, 1966, p.154) Nesses casos específicos, o
autor em questão abandona a ideia de tempo composto e admite a existência de esti seguido
de um adjetivo predicativo. Ainda, segundo o mesmo autor, também o zeugma com o adjetivo
pode adjetivar o particípio. [grifos nossos] Transcrevemos seu exemplo:
(78) La fiŝo estis freŝa, kaptita nur antaŭ kvaronhoro. (O peixe estava fresco, apanhado
apenas um quarto de hora (quinze minutos). Nesse contexto, o particípio kaptita
(apanhado) é considerado adjetivo pelo autor.
RESUMO
Discutimos, neste capítulo, o estatuto linguístico dos particípios no âmbito das classes
de palavras das línguas em geral e em Esperanto em particular. Destacamos a função
aspectual dos particípios na construção da predicação esperanta.
152
No original: ―[...] la pasiva verbokomplekso perdas sian konjugacian, agespriman funkcion kaj faras
adjektiv-esprima statpasivo”.
6 O ASPECTO EM ESPERANTO: ANÁLISE QUALITATIVA E ESTUDO DE
FREQUÊNCIA
Como foi visto anteriormente, identificamos o aspecto em Esperanto como a
representação discursivo-gramatical da temporalidade interna do verbo ou do particípio.
Refere-se, portanto, à duração ou fases do desenvolvimento do processo ou situação
codificados como verbo ou nome verbal (particípio).
Orientada pelos pressupostos teóricos funcionalistas dos estudos linguísticos da
corrente norte-americana, nossa abordagem fundamenta-se nas teorias do aspecto e
Aktionsart, sobretudo nos postulados de Castilho (1968; 2002) ,Comrie (1976), Bybee (1985)
e Bertinetto (2001).
Como também já foi dito neste trabalho, apesar de Zamenhof não ter criado uma teoria
sintática da língua
153
, esta oferece variados recursos gramaticais e lexicais para que o usuário
possa representar a categoria de aspecto, tendo em vista suas necessidades comunicativas.
Na literatura pesquisada, observamos que os estudos sobre aspecto limitam-se ao
âmbito verbal, com raras exceções. Não obstante, para dar conta da aspectualidade em
Esperanto, propomos ampliar o campo de análise, tendo como objeto não só os verbos
prototípicos mas também as formas verbo-nominais participiais, pois, conforme Dubois
(1973, p.53), é por meio da categoria de aspecto que o falante faz uma representação da
situação ou processo expressos pelo verbo ou pelo nome de ação.
Embora não haja exemplificação por parte dos autores supramencionados,
entendemos que ―nome de ação‖ pode abranger nomes deverbais adjetivos, advérbios e até
substantivos, como ocorre com os particípios em Esperanto.
153
A simplicidade e economia da gramática do Esperanto foi enriquecida com a língua posta em prática no
Ekzercaro (Conjunto de exercícios). Tal contexto já sinaliza as possibilidades criativas da língua então nascente.
123
Comrie (1976, p. 40) também observa que, em algumas nguas, claras distinções
aspectuais em nomes e transcreve exemplos de Seuren (1974, p.4) como thieving (significado
imperfectivo / o furtar, o roubar) em oposição a theft (significado perfectivo / o furto, o
roubo).
Também Travaglia (1985, p. 141), em seu estudo sobre o aspecto verbal no Português,
aponta para uma pesquisa da aspectualidade nos nomes, apresentando distinções aspectuais
―começado ou não acabado‖ versus ―acabado‖, nos adjetivos em Português como, por
exemplo, respectivamente, nascente / nascido; corrente / corrido; constituinte / constituído,
etc.
6.1 A DISTINÇÃO ASPECTUAL ENTRE PARTICÍPIOS TERMINADOS EM ATA E
ITA
Já foi visto que as limitações recíprocas das classes semânticas vendlerianas podem ser
avaliadas na base dos traços postulados por Bertinetto: durativo], [±dinâmico],
homogêneo], conforme Tabela 1 na p. 40 desta tese. Aplicando esses traços aos verbos do
Esperanto, podemos fazer a classificação a seguir.
Verbos das classes semânticas denominadas estados e atividades têm em comum os
traços [+durativo] e [+ homogêneo]:
Estados: ami (amar), koni (conhecer), scii (saber), havi (ter), adori (adorar), timi (temer), senti
(sentir), envii (invejar), admiri (admirar), voli (querer), memori (lembrar),etc.
Atividades: akompani (acompanhar), aŭdi (ouvir), flari (cheirar), treni (arrastar), luli (ninar),
rigardi (olhar) protekti (proteger), vidi (ver), etc.
Essas classes aspectuais lexicais interagem com a gramática na medida que tendem a
restringir o uso do particípio-adjetivo passado passivo it(a), dando origem a predicações
atélicas. Combinam-se então com o sufixo participial at(a) que é mais adequado à noção de
continuidade, própria de estados e atividades. Recordemos que o traço homogeneidade refere-
se à falta de uma fronteira interna, inerente à situação e o traço duração diz respeito ao fato de
levar alguma quantidade de tempo físico para a situação ocorrer. Assim é muito mais comum
e frequente o uso de formas como amata (amado), konata (conhecido), akompanata
(acompanhado), aŭdata (ouvido), memorata (lembrado),etc.
Assim, por meio do conhecimento das classes semânticas dos verbos e
consequentemente dos particípios derivados, pode-se prever o comportamento linguístico não
124
de predicados verbais mas também dos predicados nominais, classificados em télicos ou
atélicos.
Exemplifiquemos com as seguintes frases:
(79) Ŝi estas amata. Ela é amada; está sendo amada; situação acontecendo [no tempo
presente].
(80) Ŝi estis amata. Ela era (ou foi) amada; estava sendo amada; situação acontecendo [no
tempo passado].
(81) Ŝi estos amata. Ela será amada; estará sendo amada; situação acontecendo [no tempo
futuro].
O usuário do Esperanto, tendo conhecimento das classes semânticas verbais, ou seja,
do significado (ou Aktionsart) dos verbos e o valor dos operadores aspectuais como ita e
ata, faz sua escolha discursivamente condicionada. Isso explica o emprego raro de formas
como amita, por exemplo, embora na literatura se encontre um ou outro exemplo, como no
romance Marta, traduzido por Zamenhof: ―la nomo de la homo amita kaj perdita.‖ (o nome da
pessoa que foi amada e perdida) (WARINGHIEN, 1989, p.194). Waringhien (1989, p.194, em
nota de rodapé) discute a falta de clareza do particípio amita: ‗homo amita seria ―pessoa que
ela não ama mais ou que ela amou e ainda ama? Somente o contexto nos mostra que se trata
da segunda significação. Com verbos de tal classe, -ita pode, na verdade, significar apenas
pretérito.‖
154
Outro exemplo bastante discutido é o de Zamenhof (1991, p. 106):
(82) Mono havata estas pli grava ol mono havita.
(Dinheiro que se tem é mais importante do que dinheiro que se teve / ou que não se tem
mais.)
Aqui o autor, por necessidade discursiva e valendo-se da plasticidade da língua, instaura o
contraste havata / havita, para melhor contemplar o sentido intencionado. Ao comentar o
enunciado em questão, Kalocsay (1966, p.55) esclarece que o particípio em ita revela uma
ambiguidade em verbos como havi (que tendem a selecionar naturalmente ata ), produzindo
dois sentidos: havita = que se teve (sentido positivo) / havita = que não se tem mais (sentido
negativo). Por esse motivo, o autor supracitado afirma que com tais verbos como ami, havi,
o particípio em ita não é proibido, porém não é recomendável.
154
No original: ―[…] ĉu homo, kiun ŝi ne plu amas, kiun ŝi ne plu amas, kiun ŝi amis kaj ankoraŭ amas?
Nur la ĉirkaŭteksto montras al ni, ke temas pri la dua signifo. Kun tiaklasaj verboj, -ita povas vere signifi nur
pasintecon”
125
O linguista brasileiro Mattos (1999, p.65) escreve em resumo: ....-ITA = NE PLU
....-ATA ( ita = não mais ata )‖. [grifo do autor] Não são, pois, comumente usadas as formas
havita ou amita porque se trata da negação da situação: a) Ŝi estas amita é, portanto,
diferente de b) Ŝi estas amata. Observemos o contraste entre (a) e (b):
a) Ŝi estas amata. Ela é, no presente, a que está sendo amada; ou seja, ela é amada; situação
acontecendo [no presente].
b) Ŝi estas amita. Ela é, no presente, a que foi amada no passado; isto é, ela foi amada;
situação acontecida [no passado]; portanto ela não é mais amada no presente.
Já foi mencionado aqui que, no Fundamento de Esperanto, na versão francesa feita por
Zamenhof, encontramos dois exemplos que estabelecem distinções claras entre o uso de ata
e ita: a) Ŝi estas amata de ĉiuj (Ela é amada por todos) e b) La pordo estas fermita. (A porta
está fechada).
a) Ŝi estas amata de ĉiuj - (Ela é amada por todos) - ―particípio presente: amata: a coisa se
faz (fr. la chose se fait); e b) La pordo estas fermita (A porta está fechada) ―particípio
passado: fermita: a coisa está feita (fr. la chose a été faite). (ZAMENHOF, 1991, p.53-54;
p.59-60).‖
É clara a distinção entre o sentido de -ata e -ita pela explicação em francês dada por
Zamenhof: com o emprego de -ata: la chose se fait, isto é, ―a coisa se faz; está acontecendo‖;
com o emprego de -ita: la chose a été faite, ou seja, ―a coisa foi feita; está feita‖.
Núcleos de predicados télicos, os verbos das classes semânticas denominadas
achievements e accomplishments têm em comum os traços [- homogêneo] e [+ dinâmico]. O
que os diferencia é o traço durativo]; os accomplishments são [+ durativo], ao passo que os
achievements são [- durativo].
Exemplos de achievements: perdi (perder), trovi (achar), kapti (capturar), savi (salvar),
marki (marcar), doni (dar), forgesi (esquecer), atingi (atingir, alcançar), etc.
Os achievements selecionam it(a); o motivo dessa restrição são as propriedades
semânticas dessa classe verbal, isto é, os traços [-durativo] e [-homogêneo], ou seja,
descontínuos e pontuais, daí os particípios-adjetivos: perdita (perdido); trovita (achado);
kaptita (capturado), savita (salvo), markita (marcado), donita (dado), forgesita (esquecido),
atingita (atingido); a visão aspectual é perfectiva .
Vejamos a seguir alguns exemplos de accomplishments: desegni (desenhar), legi (ler),
konstrui (construir), skribi (escrever), porti (levar), vendi (vender), etc. Esses verbos
(accomplishments) podem combinar-se com at(a) ou it(a) devido às suas propriedades
semânticas [+durativo] e [-homogêneo]: desegnita, desegnata (desenhado); legita, legata
126
(lido); konstruita, konstruata (construído); skribita, skribata (escrito); portita, portata
(levado); vendita, vendata(vendido) etc.
O sufixo -at(a) corresponde ao traço [+durativo]; ao tempo interno de desenvolvimento da
situação, também chamado aspecto imperfectivo; situação em curso: acontecendo ou
événementiel
155
como diz Lo Jacomo (1981, p. 230).
O sufixo -it(a) corresponde ao traços [-durativo] e [-homogêneo]; ao término da situação:
acontecido; visão perfectiva; ―tempo após o desenvolvimento.‖
156
(MATTOS, 1999, p.64).
Transcrevemos exemplos que ilustram uma boa distinção feita por Mattos (ibidem, p. 63):
(83)―Li ne portis la libron, kiam mi trovis lin sur la vojo al la lernejo: ne portata libro! [grifo
nosso]
(Ele não levava o livro quando eu o encontrei a caminho da escola: o livro não estava sendo
levado!)
(84) Li ne portis la libron, kaj devis reiri hejmen por kunpreni ĝin: ne portita libro!(grifo
nosso)
(Ele não levou o livro, e teve que voltar para casa para pegá-lo: o livro não foi levado!)
O tipo oracional cria contextos favoráveis à leitura imperfectiva ou perfectiva. Em (83)
a oração subordinada temporal kiam mi trovis lin sur la vojo al la lernejo (quando eu o
encontrei a caminho da escola) favorece a aspectualidade imperfectiva: ne portata libro (o
livro não estava sendo levado.) Em termos de Ilari (2004, p.19), ocorre aqui um esquema de
incidência, pelo qual se correlacionam dois fatos; o primeiro com leitura aspectual
imperfectiva cursiva, representando uma ação que se inicia antes do encontro: li ne portis la
libron (ele não levava o livro). Por outro lado, em (84), a oração coordenada é constituída de
predicado cujo núcleo expressa a visão perfectiva da situação, representada como um todo
indivisível: li ne portis la libron (ele não levou o livro); daí ne portita libro (o livro foi não
levado).
Na abordagem de Rothstein (2004, p. 196), o papel do aspecto lexical é central. As
classes lexicais restringem quais tipos de descrição de evento os predicados verbais podem
expressar e como os predicados podem mudar de uma classe para outra. Essa teoria pode ser
aplicada também ao Esperanto.
Por exemplo, um verbo da classe dos achievements, que é geralmente cleo de uma
predicação télica, pode mudar de classe, provocando uma destelicização
157
do predicado,
155
Evénementiel é neologismo da língua francesa, usado pelo autor para expressar um adjetivo relativo a
acontecimentos; ―a coisa se faz; está acontecendo‖.
156
No original: ―[...] la tempo post la disvolviĝo.‖
127
tornando-o atélico. Em outras palavras, pode-se fazer a predição de como verbos de classes
verbais particulares interagem com argumentos e modificadores.
Vamos ilustrar essa argumentação aproveitando algumas reflexões feitas em
Esperanto, extraídas de Mattos, seguidas da tradução em Português abaixo:
Krome la lingvo estas tiel plastika, ke la solvo de crucvorto estas trovata
iom post iom ĝis la lasta linio ... kaj la faruno estas perdata, se nur estas ia
malgranda truo en ĝia sako... kvankam tiuj du verboj estas konsiderataj sen
daŭro. [grifos nossos]
Além disso, a língua é de tal maneira plástica, que a solução de uma palavra-
cruzada é encontrada pouco a pouco até a última linha... e a farinha é
perdida, se houver apenas um pequeno furo em seu saco... embora esses
dois verbos sejam considerados sem duração. (MATTOS, 1999, p.70)
Os verbos trovi e perdi (que deram origem aos particípios-adjetivos trovata e perdata)
pertencem à classe semântica dos achievements (o que sancionaria o sufixo ita: trovita e
perdita), mas o contexto semântico permitiu a mudança da classe. Também concorreu a
construção adverbial iom post iom (pouco a pouco) que seleciona verbos e particípios que têm
o traço semântico [+durativo]; consequentemente, a possibilidade de trovata e perdata em vez
de trovita e perdita, promovendo o que Bertinetto (2001) denomina de ‗paradoxo do
imperfectivo‘.
Ocorreu, então, a suspensão da telicidade ou destelicização do verbo (afetando
consequentemente o particípio), fenômeno também considerado por muitos como coerção
aspectual, ou seja, o verbo muda de classe aspectual por exigência discursiva, como se pode
ver também neste exemplo do corpus desta pesquisa:
(85) La solvo de ĉi tiu problemo baldaŭ estis trovata. (N 20, p.20)
(A solução deste problema em breve era [estava sendo] encontrada.)
O predicado nominal atélico, cujo núcleo é o particípio-adjetivo passivo presente
trovata, exemplifica uma visão aspectual imperfectiva.
Por outro lado, enunciados como (85) não são muito frequentes; em geral, o particípio
passado passivo da classe achievement mantém suas características semânticas prototípicas
como núcleo de predicado nominal télico, denotando aspecto perfectivo. Vejam-se nos
enunciados (86) e (87) os particípios trovita e forgesita, respectivamente:
(86) [...] Se ŝi estas najbaro, certe ŝi konus la mastron de la domo. Se jes, ĉu ne vi estas
trovita ?
158
( N11, p.178)
157
O termo destelicização foi criado por Bertinetto (2001).
158
Tradução literal: estas trovita: ―está encontrado‖; é o que foi encontrado.
128
(Sendo uma vizinha
159
, com certeza conheceria o dono da casa. Em caso afirmativo, você foi
encontrado, não é?)
(87) Ŝajne, ĝi estis forgesita loko kvieta kien la rifuĝantoj ankoraŭ ne altrudis. (N11, p.172 )
(Aparentemente, era um lugar esquecido, calmo, ao qual os refugiados ainda não impuseram
sua presença.)
Cumpre-nos ainda observar que, no mesmo enunciado (87) acima, o particípio-
substantivo rifuĝantoj que só tem uma tradução em português (refugiados), contém o sufixo
ant(o) próprio do particípio-substantivo ativo presente, com o seguinte significado: rifuĝantoj
são ―aqueles que estão se refugiando‖, em oposição a rifuĝintoj , com o sufixo int(o),
próprio do particípio-substantivo ativo passado, com o significado: ―aqueles que se
refugiaram‖. O sufixo participial presente ant, bem como at, funcionam como operadores
aspectuais em nomes substantivos que expressam imperfectividade, ao passo que o sufixo
participial passado int, bem como it promovem a expressão da perfectividade.
Nossa proposta, neste trabalho, é que o aspecto é um recurso existente em Esperanto e
não se limita aos verbos; pode ser expresso por particípios (especialmente adjetivos e
advérbios). Como foi demonstrado, em Esperanto uma oposição aspectual gramatical
entre o perfectivo e o imperfectivo. Essa oposição é morfologicamente indicada pelos
morfemas de particípio passado passivo it e presente at. O morfema de particípio passado
passivo it denota perfectividade e resultatividade (ação concluída); o morfema de particípio
presente passivo at expressa imperfectividade (ação iniciada - não concluída); o morfema de
particípio futuro ot apresenta perfectividade potencial.
Observe-se a diferença aspectual entre estas legita e estas legata:
(88) La ĵurnalo estas legita. (O jornal está lido.) aspecto perfectivo.
(89) La ĵurnalo estas legata. (O jornal é /ou está sendo/ lido) aspecto imperfectivo.
Compreende-se melhor a diferença entre at e it, atentando-se para a oposição semântica em
Português entre ser e estar: é lido vs. está lido.
Lo Jacomo (1981, p.230) explica a diferença entre at e it, postulando traços que
derivam de dois eixos de campos semânticos diferentes: eixo da ação, do acontecimento (ou
événementiel) e eixo da qualidade, traço qualificativo: ―De fato, podem-se interpretar esses
particípios passivos do Esperanto com a ajuda dos traços semânticos événementiel e
―qualificativo‖, que atravessam toda a estrutura do Esperanto.‖ (LO JACOMO, 1981, p.230)
159
Tradução literal da narrativa coreana: Se ŝi estas najbaro / Se ela é uma vizinha).
129
O autor destaca, porém, a importância da noção de continuum, que tais significados
événementiel e qualificativo não são bem demarcados.
Segundo Lo Jacomo (1981, p.230), at expressa um sentido événementiel, isto é de
acontecimento; ex.: La pordo estas fermata. (A porta é fechada /es sendo/ fechada.)
Significa que se fala da ação, do acontecimento. Para o autor supracitado, it é qualificativo;
―interessa o estado que é resultado da ação‖; ex.: La pordo estas fermita. (A porta está
fechada.)
Lo Jacomo baseou sua hipótese na distinção feita por Zamenhof, na versão francesa da
gramática do Esperanto (ZAMENHOF, 1991, p.54).
O operador aspectual it expressa, portanto, perfectividade, denotando cumprimento
de uma ação ou uma ão que gerou um resultado (valor aspectual perfectivo resultativo),
como mostra o enunciado a seguir:
(90) La fiŝo estis kaptita, sendita al la vendejo, vendita kaj portita al kuirejo, kie la servistino
ĝin distranĉis per granda tranĉilo. (N19, p.10)
(O peixe foi capturado, enviado à peixaria, vendido e levado a uma cozinha, onde a
empregada o retalhou com uma faca grande.)
Todos esses particípios passivos - kaptita, sendita, vendita, portita - são núcleos de
predicados nominais télicos, coordenados, na voz passiva; com a função sintática de
predicativo do sujeito.
Concordamos com Mattos (1999, p.60) quando este afirma que a voz passiva em
Esperanto é constituída de particípios passivos (em -it, -at, -ot), que podem aparecer junto
com o verbo esti (ser, estar), sem constituir uma forma verbal composta.
6.2 A POLÊMICA QUESTÃO ata vs. ita
Antes de aprofundar mais um pouco a questão polêmica ata vs. ita, é necessário
fazer uma distinção entre os sentidos dos sufixos participiais pretéritos -int vs.-it. O particípio
passado ativo (em int) sempre mostra uma ação que ocorreu antes de outra (valor temporal);
enquanto o particípio passado passivo (em it) denota cumprimento de uma ação ou uma ação
que gerou um resultado (valor aspectual perfectivo resultativo). Assim:
(91) Tiam li estis eltrovinta la veron. (Naquela ocasião ele tinha descoberto a verdade.) O
descobrimento da verdade ocorreu necessariamente antes daquele tempo referido.
(92) Tiam la vero estis eltrovita. Nesse caso há duas leituras possíveis:
130
(a) Naquela ocasião a verdade foi descoberta. O descobrimento da verdade realizou-se
exatamente naquela ocasião.
(b) Naquela ocasião a verdade tinha sido descoberta. O descobrimento da verdade realizou-
se antes daquele tempo, de acordo com o contexto.
Para Waringhien (1989, p.192-193) o qual admite a existência de tempos compostos
em Esperanto o grupo [sic] estis ita (voz passiva) não corresponde sistematicamente ao
grupo estis inta (voz ativa).
Entre outros exemplos, vejamos o clássico enunciado de Zamenhof, discutido por
todos os gramáticos e interlinguistas estudiosos do Esperanto:
(93) Mia onklo ne mortis per natura morto, sed li tamen ne mortigis sin mem kaj ankaŭ estis
mortigita de neniu; unu tagon, promenante apud la reloj de fervojo, li falis sub la radojn de
veturanta vagonaro kaj mortiĝis. (ZAMENHOF, 1991, p. 130)
(Meu tio não morreu de morte natural; ele, todavia, não se suicidou e também não foi morto
por ninguém; um dia, passeando junto aos trilhos da ferrovia, caiu sob as rodas de um trem
em movimento e morreu.).
À predicação nominal passiva kaj ankaŭ estis mortigita de neniu (e também não foi
morto por ninguém) corresponde predicação verbal ativa: kaj ankaŭ neniu mortigis lin (e
também ninguém o matou.) A forma ―verbal composta‖ estis mortigita (foi morto) não
corresponde à forma ativa estis mortiginta (tinha matado), a qual denota anterioridade
temporal. Não há, pois, simetria entre as ―formas complexas‖ estis -inta e estis -ita. Na
verdade, são às formas verbais (simples) que correspondem as passivas como, por exemplo,
(95) e (96) em relação a (94):
(94) Li kaptis birdon.(Ele capturou um pássaro.)
(95) La birdo estis kaptita de li. (O pássaro foi capturado por ele.).
(96) La birdo estas kaptita. (O pássaro está preso.)
Tal assimetria entre as formas ativa e passiva incomodou (e ainda incomoda) alguns
teóricos do Esperanto.
Ainda segundo Waringhien (1980, p.193), o grupo estis inta pode ser destinado à
expressão da anterioridade temporal (= mais que perfeito em Português) sem nenhum
incômodo‖
160
, como ocorre, por exemplo, no enunciado que colhemos na N5 (p.102):
(97) ―Li ne findiris, ĉar post niaj dorsoj jam estis kolektiĝintaj kelke da homoj.‖
(Ele não não terminou de dizer, pois às nossas costas algumas pessoas já se tinham reunido.)
160
No original: ―[…] la grupo estis –inta povas esti destinita al la esprimo de la antaŭpasinteco (=
pluskvamperfekto) sen ia ĝeno.”
131
O desejo de criar uma simetria plena deu origem ao uso linguístico reformado que se
denomina tempismo ou atismo, ou seja, o uso de particípios em ata em contextos onde o
adequado (pelo uso na literatura) seria o particípio em ita. As formas em ita ficariam
reservadas apenas para expressar anterioridade temporal (no sentido de pretérito mais que
perfeito).
Para os atistas seriam aceitáveis frases como: * Mi estis naskata en Majo, em vez de
Mi estis naskita en Majo (Nasci em maio), uma vez que a forma em it(a) denotaria apenas
anterioridade temporal e seria compreendida assim: Mi estis naskita en Majo: Eu tinha
nascido em maio.
A contraparte do atismo denomina-se aspectismo, ou seja, a corrente da maioria que
usa o particípio it(a) em seu sentido aspectual, e não no sentido de tempo pretérito mais que
perfeito. Muita polêmica foi gerada em torno do uso de atistas e itistas, plicas e tréplicas
calorosas, até que a Academia de Esperanto consagrou oficialmente em Aktoj de la Akademio
III / Atos da Academia (1989, p.75) o uso normal itista ou aspectista que é, aliás, o uso de
Zamenhof em suas obras:
Consequentemente, as formas estas, estis, estos estus, estu, esti ata
insistem sobre a duração ou repetição da ão; e as formas estas, estis,
estos estus, estu, esti itainsistem sobre o resultado da ação. As formas
com ―–ita‖ podem também mostrar anterioridade temporal se na frase
houver essa indicação relacionada à parte.
161
Convém ressaltar, porém, que, em determinados contextos, o particípio em it(a)
também pode denotar tempo anterior, conforme exemplo de Zamenhof (1991, p.109):
(98) Kiam via domo estis konstruata, mia domo estis jam longe konstruita.
(Quando sua casa estava sendo construída, minha casa tinha sido construída muito
tempo.) Estis jam longe konstruita (tinha sido muito tempo construída) é temporalmente
anterior em comparação com estis konstruata (estava sendo / era construída); as expressões
adverbiais jam (já) longe (durante muito tempo) reforçam a distinção.
161
- Sekve la formoj “estas, estis, estos, estus, estu, esti -ata insistas pri la daŭro ripetiĝo de la ago; kaj la
formoj “estas, estis, estos, estus, estu, esti -ita” insistas pri la rezulto de la ago. La formoj kun -ita” povas
ankaŭ montri la antaŭtempecon en la okazo, se en la frazo estas tiurilata aparta indiko.
132
6.3 ESCOLAS ATISTAS vs ITISTAS
Com o objetivo de trazer maiores esclarecimentos sobre a questão ata vs. ita,
desenvolvemos um pouco mais esse assunto. Formaram-se então duas ―escolas‖ de teóricos: a
dos ―atistas‖ (ou tempistas) e a dos ―itistas‖ (ou aspectistas). A diferença entre elas estava no
conceito sobre a significação e o uso correto dos morfemas participiais ata e ita.
Retomando, por exemplo, parte do enunciado de Zamenhof, supracitado, podemos ver as
diferentes leituras da mesma frase:
(99) La domo estis konstruita.
Para os ―atistas‖ (ou tempistas) traduz-se como ―a casa tinha sido construída‖, (estis
ita com valor temporal de pretérito mais que perfeito.) Por outro lado, para os ―itistas‖ (ou
aspectistas) a mesma frase significa que ―a casa foi construída‖, que a ação foi plenamente
realizada no passado; por isso preferiam ser chamados de aspectistas, dada a sua leitura
aspectual perfectiva de ita.
Os itistas (ou aspectistas) apresentam uma visão aspectual desses morfemas. Para eles,
-ata exprime uma ação em sua duração, começada e não terminada, e -ita denota uma ação
completamente realizada, tendo atingido o resultado visado. Esses teóricos (autores
representantes das línguas inglesa, tcheca, francesa, alemã, espanhola, húngara, italiana,
japonesa, holandesa, sérvia e croata), fundamentados no uso da ngua, exemplificado por
Zamenhof em Ekzercaro (coletânea de exercícios), publicaram um conjunto de artigos sob o
título La Zamenhofa Esperanto Simpozio pri ata/-ita
162
(O Esperanto de Zamenhof
Simpósio sobre -ita e ata).
Como réplica a esse livro, foi publicado o libreto: Esperanto Moderna lingvo
163
,
para justificar o assim chamado tempismo ou atismo e criticar o aspectismo ou itismo na
conjugação passiva do Esperanto. De acordo com a abordagem dos atistas, a introdução dos
aspectos na conjugação está em desacordo com a regra da Gramática Fundamental do
Esperanto, segundo a qual os particípios passivos são definidos somente quanto ao tempo
presente, passado e futuro. Segundo o atista Vilborg, o atismo baseia-se em conclusões
lógicas tiradas do texto dessa regra, que trata apenas do tempo verbal (daí a corrente
162
La Zamenhofa Esperanto Simpozio pri ata/-ita. Artikoloj de H.A. de Hoog, D. B. Gregor, K. Kalocsay, S.
la Colla, I. Lapenna, T.Nakamura,T. Pumpr, J. Régulo, R. Schwartz, E. Sonnenfeld, G. Waringhien. Eld.
“Stafeto”, La Laguna, Tenerife, Kanariaj Insuloj, 1961.
163
Esperanto Moderna lingvo. Artikoloj de Vilho Setälä, Ebbe Vilborg, C. Støp-Bowitz. Eld. ―Fondumo
Esperanto‖Helsinki, 1965.
133
denominada tempismo), ao passo que o itismo (ou aspectismo) é empírico, baseado no uso
normal de Zamenhof e de outros autores.
Fazendo uma crítica ao aspectismo (também denominado simposiismo, devido ao
simpósio supramencionado), assim se expressa o esperantista e cientista matemático
norueguês Reiersøl:
Os simposiistas argumentam que o simposiismo é preferível pelo fato de que
muitas línguas expressam os aspectos por meio das formas verbais. Isso faz
com que os esperantistas acreditem que eles podem usar as formas verbais
de acordo com a sua língua materna, causando diversidade no uso das
formas verbais em Esperanto conforme a língua materna do falante.
(REIERSØL: 1990, p 67 )
164
Na opinião desse mesmo autor (op. cit., p.69-70), os sistemas verbais das línguas
nacionais são extremamente complicados e difíceis para serem utilizados como modelo para o
Esperanto. Para o progresso da língua internacional, o seu sistema de aspectos deve ser muito
mais facilmente aprendido e, por conseguinte, bem diferente dos sistemas aspectuais da
maioria das línguas étnicas.
Acreditamos que a discussão entre tempismo e aspectismo em Esperanto deixa de ser
pertinente, quando se sabe que o aspecto é um tipo de ―tempo‖
165
, ou seja, a oposição
principal é entre o tempo externo, enunciativo, dêitico (tradicionalmente denominado tempo
gramatical ou tense, em Inglês, e o tempo interno, simbólico, não dêitico (denominado
aspecto). Na verdade o foco da discussão continua sendo o tempo, sob o ponto de vista de sua
codificação linguística.
6.4 TIPOS DE ASPECTO EM ESPERANTO
Os esperantólogos Kalocsay e Waringhien informam que
[...] para não afugentar os falantes de línguas europeias ocidentais, Zamenhof
não quis introduzir em Esperanto um sistema morfológico do aspecto sabe-
se que até 1887 havia um imperfeito terminado em es, ao qual ele
164
No original: ― La simpoziistoj argumentas ke la simpoziismo estas preferinda pro tio ke tiel multaj lingvoj
esprimas aspektojn pere de la verbaj formoj. Tio igas esperantistojn kredi ke ili povas uzi la verbajn formojn laŭ
sai propra gepatra lingvo. Tio kaŭzas diversecon en la uso de verbaj formoj en Esperanto laŭ la gepatraj lingvoj
de la parolantoj.”
165
No sentido de TEMPO proposto por Travaglia (1985, p.53); vide seção 3.2.2 desta tese.
134
renunciou exatamente antes de publicar a língua [...]. (KALOCSAY;
WARINGHIEN, 1980, p.134)
166
Apesar dessa informação, os autores supracitados (KALOCSAY; WARINGHIEN,
1980, p.139-142) identificaram cinco tipos de distinções aspectuais em Esperanto, a saber:
incoativo, momentâneo, durativo, iterativo e perfectivo, destacando ainda que [...] a expressão
dos diversos aspectos é um tanto irregular e o uso às vezes não fixo.‖
167
(KALOCSAY;
WARINGHIEN, 1980, p.134).
Os autores supramencionados identificaram, portanto, valores aspectuais relacionados
à imperfectividade e à perfectividade como incoação
168
, pontualidade inicial ou momentânea,
duração, repetição, completamento da ação.
Em nosso trabalho, identificamos três aspectos gramaticais básicos em Esperanto:
imperfectivo, perfectivo e prospectivo; também identificamos o aspecto iterativo, ou seja, a
codificação da face quantitativa dos aspectos (sobretudo perfectivo e imperfectivo). Em
virtude da variedade dos estados de coisas representados pela predicação verbal, os subtipos
desses aspectos podem combinar-se. Desse modo propomos uma subdivisão flexível,
podendo-se identificar em uma mesma predicação mais de uma combinação de aspectos, ou
seja, não uma oposição rígida entre eles. Dado o exposto, podemos afirmar que tanto o
aspecto imperfectivo quanto o perfectivo apresentam subtipos, a saber:
I) aspecto imperfectivo: cursivo, durativo, inceptivo, terminativo.
II) aspecto perfectivo: pontual, resultativo, completivo.
que se levar em conta ainda o chamado aspecto iterativo que representa a quantificação
dos aspectos perfectivo e imperfectivo.
Sob o enfoque do funcionalismo linguístico, entendemos que a função primordial de
uma língua é servir de instrumento de interação social. Nessa abordagem, as estruturas das
expressões linguísticas são configurações de funções que satisfazem necessidades discursivas
do usuário. O estudo dessas construções linguísticas envolve, portanto, a investigação dos
seus contextos de uso específico.
Em nossa pesquisa, tomamos como base a hipótese da composicionalidade semântica
que orienta a definição de Castilho (2002, p. 83)
169
: ―o aspecto verbal é uma propriedade da
166
No original: ―[…] por ne fortimigi la okcident-eŭropajn lingvanojn, Zamenhof ne volis enmeti en Esperanton
morfologian sistemon de la aspekto oni scias, ke ĝis 1887 enestis unu imperfekto, finiĝanta per es, kiun li
rezignis ĵus antaŭ la publikigo de la lingvo.”
167
No original: ―[...] la esprimmaniero de la diversaj aspektoj estas iom neregula kaj la uzado fojfoje ne fiksita.‖
168
Ato ou efeito de incoar, começar (Dic. eletrônico Houaiss da língua portuguesa 1.0.).
169
Definição que repetimos por conveniência.
135
predicação que consiste em representar os graus do desenvolvimento do estado de coisas
codificado, ou, por outras palavras, as fases que ele pode compreender.‖ [grifo do autor]
Neste trabalho partimos do pressuposto de que a aspectualidade é configurada em
Esperanto por meio da interação de operadores aspectuais diversos (recursos lexicais,
gramaticais e discursivos). que se levar em conta, portanto, os seguites elementos: (a) a
acionalidade ou Aktionsart do item lexical verbal; (b) a interação dessa Aktionsart com os
sufixos gramaticais, com os derivacionais e também com o auxiliar nas perífrases; (c) a
interação dessa estrutura básica com os argumentos e adjuntos adverbiais aspectualizadores
que constituem a predicação; (d) o modo de organização do discurso ou tipo textual.
Visamos, desse modo, explicitar as estratégias de que se utiliza o usuário da língua
internacional para codificar o aspecto.
Para configurar os aspectos gramaticais em Esperanto, apresentamos os seus
operadores aspectuais nos quadros 15, 16 e 17 a seguir.
QUADRO 15 - Aspectos gramaticais em Esperanto: operadores aspectuais (1)
Operadores
aspectuais (1)
Sufixos flexionais
ASPECTOS GRAMATICAIS
IMPERFECTIVO
PERFECTIVO
PROSPECTIVO
Participial ativo
-ant
-int
-ont
Participial passivo
-at
-it
-ot
Temporal presente
-as
Como foi mencionado, o Esperanto conhece três tempos verbais: presente (-as),
passado (-is) e futuro (-os); e três aspectos, expressos essencialmente pelos particípios ativos e
passivos (formas verbo-nominais): imperfectivo (-ant, -at), perfectivo (-int,-it ) e prospectivo
(-ont, -ot).
136
Cumpre destacar que o sufixo de tempo presente (-as) tem um viés fortemente
aspectual imperfectivo. Como foi visto neste trabalho, o presente indica uma ação ou série
de ações começadas e ainda não terminadas, havendo, portanto, certa duração inerente ao
presente. Este é mais bem definido como aspecto de caráter imperfectivo do que propriamente
tempo, denotando ação começada-não terminada.
Por outro lado, o tempo pretérito (marcado morfologicamente por -is ) é neutro quanto
à aspectualidade, podendo-se chamá-lo de pretérito aoristo, pois é indefinido quanto ao
aspecto. Dependendo do contexto, pode-se fazer uma leitura aspectual perfectiva ou
imperfectiva da forma verbal pretérita (terminada em is). O tempo futuro (marcado por -os)
também é neutro quanto ao aspecto.
QUADRO 16 - Aspecto imperfectivo: operadores aspectuais (2)
Operadores
aspectuais (2)
Afixos
derivacionais
IMPERFECTIVO
Inceptivo
Durativo
Terminativo
Sufixo
-ad
Prefixos
ek-
fin-
ĝis-
6.4.1 Aspecto imperfectivo
A predicação do aspecto imperfectivo distingue as seguintes fases aspectuais: uma fase
inicial (aspecto inceptivo), uma fase em desenvolvimento (aspectos cursivo e durativo) ou
uma fase final do estado de coisas (aspecto terminativo).
Com relação à sua função discursiva, o aspecto imperfectivo caracteriza-se também
por ser ―altamente recursivo nas estruturas de fundo das narrativas, entendendo-se por isso as
informações que compõem a moldura do evento central.‖(CASTILHO, 2002, p. 96)
137
6.4.1.1 Aspecto imperfectivo inceptivo
O aspecto imperfectivo inceptivo assinala o momento inicial de uma duração. Em
Esperanto tem essa função (além de outras) o prefixo ek- Segundo se em Zamenhof (1991,
p. 105), ek indica uma ação que começa ou que é momentânea; ex.: kanti cantar, ekkanti
começar a cantar; krii gritar, ekkrii- exclamar‖.
170
O operador prefixal ek- expressa, pois,
dois sentidos aspectuais, a saber: inceptividade e pontualidade, dependendo do contexto e da
classe semântica (Aktionsart) do verbo a que se adiciona.
Segundo o dicionário PIV (2005), o prefixo ek- denota que ―o processo inicia-se
subitamente, em momento preciso, com ou sem possibilidade de duração subsequente‖. Essa
definição engloba os dois sentidos apresentados por Zamenhof, isto é, inceptividade e
pontualidade. Esta última pertence ao âmbito da perfectividade que é estudada na seção
seguinte: todo pontual é perfectivo, embora nem todo perfectivo seja pontual.
Tais propriedades semânticas de ek- podem ser demonstradas por meio de exemplos
colhidos no corpus desta pesquisa. Em N3 (narrativa original de autor russo), encontramos a
forma verbal ekĝemis com os dois sentidos aspectuais de ek- cada um em uma sentença
diferente: ekĝemis (começou a gemer) aspecto imperfectivo inceptivo e ekĝemis (deu um
gemido, gemeu) aspecto perfectivo pontual.
(100) Ho, mi laciĝis ...ekĝemis la episkopo leviĝante de la seĝo kaj zorge premante la katon
al la brusto.
(Oh, cansei-me ...gemeu o bispo, levantando-se da poltrona e cuidadosamente apertando o
gato ao peito.)
(101) Li laŭte ekĝemis kaj vokis per malkontenta , ĉagrena voĉo:
-Vitalo! Vitalo!...
(Ele começou a gemer alto e chamou com uma voz descontente, amargurada:
- Vital! Vital! [...])
A seguir apresentamos mais exemplos de enunciados com o emprego de ek- para
promover o aspecto imperfectivo inceptivo:
(102) La junulino ekridegis pro la historio […]. (N7, p.248)
(A jovem pôs-se a gargalhar com a história [...]
Nesse contexto, a forma verbal ek-rid-eg-is (formada pela justaposição do prefixo ek-,
verbo rid (-i) rir, sufixo aumentativo eg, sufixo de pretérito is) leva-nos a uma leitura
170
No original: [...] ek indique une action qui commence ou qui est momentanée; ex. kanti chanter ekkanti
commencer à chanter; krii crier ekkrii s‟écrier.”
138
aspectual inceptivo-imperfectiva. O sufixo aumentativo -eg pode justapor-se tanto a nomes
quanto a verbos, por exemplo: domo (casa), domego (casarão); ridi (rir); ridegi (dar
gargalhada, isto é, dar risada forte, ruidosa e prolongada).
(103) Kaj la kaldroneto kun la sanktmanĝaĵo denove gaje ekbolis sur la fajro![...] (N18, p,
11)
(E o pequeno caldeirão com a santa ceia começou a ferver de novo alegremente no fogo.)
O prefixo ek- combinado com verbo de Aktionsart atélica boli (ferver); ekboli (entrar
em ebulição), denota início de ação que continua a durar (no passado: ekbolis); o advérbio
aspectualizador denove (novamente) opera como quantificador do aspecto, acrescentando-lhe
a noção iterativa: aspecto imperfectivo inceptivo, iterativo.
(104) - Oni ekremis la boaton ĉirkaŭ la horo de vesperkrepusko [...] (N12, p.5)
(- Começavam a remar o barco por volta da hora do crepúsculo.)
Marca-se o início da ação durativa por meio do emprego de ek-: aspecto imperfectivo
inceptivo.
(105) La ventego ekfajfas terure kaj ĉesigas liajn pensojn. (N18, p.09)
(O vendaval começa a assobiar terrivelmente e paralisa seus pensamentos.)
O operador aspectual inceptivo ek- promove o sentido aspectual inceptivo de ekfajfas
(começa a assobiar). A atelicidade do verbo fajfi (assobiar) combinada com o sufixo de tempo
presente as assegura a imperfectividade da forma verbal ekfajfas. Assim, temos o aspecto
imperfectivo inceptivo: ekfajfas - começa a assobiar.
(106) Inácio ektremis, kiam li aŭdis la kriojn de la advokathelpanto, ricevis la teleron al li
donitan kaj ekmanĝis sub tempesto da finomoj [...] (N13, p. 41)
(―Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe
apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes [...]‖ ) (ASSIS: 2004, p.
107)
O prefixo ek- é responsável por nuances aspectuais diferentes em ektremis e ekmanĝis.
Em ektremis (estremeceu), indica uma ação momentânea, numa visão aspectual perfectivo-
pontual; em ekmanĝis, dada a classe semântica de atividade (atélica) do verbo manĝi (comer),
o operador aspectual ek- denota início de ação duradoura, ou seja, exprime o aspecto
imperfectivo inceptivo.
Por outro lado, de acordo com Lorenz (1996, p.57): o prefixo ek- pode também
expressar ação menos intensa, à semelhança do que se obtém com o sufixo et
171
: grati
171
O sufixo et expressa o grau diminutivo; ex.: domo (casa) dometo (casinha); ridi (rir) rideti (sorrir).
139
arranhar, ekgrati arranhar de leve; frapi bater, ekfrapi bater de leve; tuŝi tocar, ektuŝi tocar de
leve, roçar.‖
(107) S-ino Severina tuŝis lian piedon, kvazaŭ ŝi petus, ke li finu.(N13, p. 41)
(D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse.). (ASSIS, 2004, p.107 )
Aqui, na versão em Esperanto da narrativa de Machado de Assis, o tradutor brasileiro
não combinou o ek- com a forma verbal tuŝis que daria ektuŝis como o fariam os autores de
línguas eslavas, por exemplo. No enunciado machadiano, não há indicação para tanto: não diz
―roçou-lhe o pé‖, ou ―tocou-lhe levemente no pé‖.
É digna de nota, pois, a polissemia instaurada por ek-; o sentido aspectual é
construído na interação discursiva, levando-se em conta também a Aktionsart do verbo.
Cumpre lembrar ainda o emprego autônomo desse prefixo como interjeição: Ek! - com o
sentido de ―Comecemos!‖ Vamos!‖
6.4.1.2 Aspecto imperfectivo cursivo
O aspecto imperfectivo cursivo exprime a ação ou processo em desenvolvimento, em
pleno curso, não fazendo referência ao seu ponto inicial ou final, nem destacando sua duração.
São os seguintes operadores aspectuais da imperfectividade cursiva:
Uso do sufixo temporal presente as:
(108) Nur virino malriĉa restis tie... Ŝi ploras kaj ne volas foriri.( N3, p.46)
(-Só ficou uma mulher pobre lá... Está chorando e não quer ir embora.)
Ŝi ploras - presente com leitura imperfectiva: ela está chorando.
(109) Vere mi sentas kapdoloron...(N3, p.44)
(Na verdade estou sentindo dor de cabeça...)
Mi sentas - uso do presente com valor aspectual imperfectivo: estou sentindo.
Uso dos sufixos participiais presente ativo ant e presente passivo at:
(1) Particípio-adjetivo presente ativo (anta):
(110) (...) sed Anna Aleksejevna ĉiam balancis la kapon kaj estis diranta al la edzo:
- Demetrio, kiel tio okazis?‖ (N16, p. 6)
(Mas Anna Aleksejevna sempre balançava a cabeça e dizia ao marido:
- Demétrio, como aconteceu aquilo?)
Nesse enunciado o tradutor russo usa o particípio-adjetivo presente ativo diranta com
valor aspectual imperfectivo: Anna Aleksejevna estis diranta (homo): Anna Aleksejevna era a
pessoa que estava dizendo [...] ou que dizia.
140
(2) Particípio-advérbio presente ativo (ante):
(111) Miaj lernejaj amikoj promenante kun sia familio fondita antaŭ kvar - kvin jaroj
salutas min afable [...] (N9, p.198)
(Meus amigos de escola, passeando com a família fundada quatro cinco anos,
cumprimentam-me afáveis [...]. )
No enunciado acima, verifica-se o uso do particípio-advérbio presente ativo
promenante com valor aspectual imperfectivo cursivo.
A forma participial promenante equivale ao gerúndio em Português (passeando), na
forma de oração adverbial temporal reduzida; promenante: enquanto passeiam. Em Esperanto
o sujeito do particípio-advérbio tem que ser idêntico ao da oração principal.
(3) Particípio-adjetivo presente passivo: ata:
(112) La stansoldato staris hele lumigata, kaj li sentis teruran varmegon [...] (N19, p.11)
(O soldado de estanho ficou de pé, (sendo) claramente iluminado, e sentiu um calor intenso
terrível.)
O particípio-adjetivo presente passivo em ata, lumigata (iluminado), denota que o
evento lumigi (iluminar) está em curso, expressando o aspecto imperfectivo cursivo. O
argumento sujeito paciente la stansoldato (o soldado de estanho) sofre a ação da luz do fogo
naquele momento. O sufixo ata funciona, pois, como événementiel, segundo a definição de
Lo Jacomo (1981, p. 230) já anteriormente comentada. Essa aspectualidade cursiva é expressa
também pelo sufixo ate, que constitui o particípio passivo adverbial conforme exemplos
abaixo.
4) Particípio-advérbio presente passivo: ate:
(113)[...] kaj nur antaŭ nelonge ŝi fine eksuspektis lian intencon, cetere tre flatate (N2, p.91)
( […] e somente há pouco tempo ela finalmente suspeitou da intenção dele, aliás muito
lisonjeada.)
O particípio-advérbio presente passivo flatate tem valor aspectual imperfectivo
cursivo. A forma participial passiva adverbial flatate, equivale ao adjetivo português
lisonjeada.
141
6.4.1.3 Aspecto imperfectivo durativo
O sufixo ad
172
: foi criado especialmente para expressar o sentido de duração em
Esperanto, conforme se em Zamenhof (op. cit., p.94), no Ekzercaro § 13: ad denota
duração de uma ação: por exemplo: pafo (tiro), pafado (tiroteio)‖.
Segundo o PIV (2005), entre outros valores, -ad significa: (a) ―continuação
prolongada ou repetição da ação expressa pela raiz‖, ex.: parolo(conversa) parolado
(discurso, palestra, conferência), dezirado (desejo contínuo), putrado (putrefação); (b) ―para
apresentar a ação em seu desenvolvimento ou insistir sobre sua duração ou repetição‖:
marteladi - martelar durante longo tempo; vizitadi (visitar regularmente ou frequentemente).
Citando exemplos de Zamenhof, o dicionário PIV (2005) alude à semelhança entre as
formas verbais com -ad e o chamado tempo imperfeito das línguas latinas:
(114) Karolino ĉiam obeadis la ordonojn de sia patrino, sed hodiaŭ ŝi ne obeis. (Carolina
sempre obedecia às ordens de sua mãe, mas hoje ela não obedeceu.)
(115) Mi saltadis la tutan tagon de loko al loko. (ZAMENHOF, 1991, p.131)
(Eu saltava de lugar em lugar o dia inteiro).
(116) Dum en unu ĉambro la gastoj dancadis, en la dua ĉambro estis preparata la
vespermanĝo. (ZAMENHOF, 2006, p.13-14)
(Enquanto em um aposento os hóspedes dançavam, no segundo, o jantar estava sendo
preparado.)
Conforme opinião de Kalocsay e Waringhien (1980, p.141), nos primeiros tempos do
Esperanto, sob a influência das línguas eslavas, o aspecto durativo (com o sufixo ad) era
muito usado, mesmo com o verbo combinado com advérbios com sentido de duração ou
iteração, como ĉiam (sempre) ou ofte (frequentemente); ex.: Mi ĉiam vidadis (Eu sempre via);
Li ofte aŭdadis (Ele ouvia frequentemente). Segundo os autores supracitados, esse sufixo seria
menos usado pelos usuários de sua época, sendo desnecessário principalmente se coocorresse
com advérbios como os acima mencionados. No entanto, em nossa tese refutamos tal
afirmação, comprovando, com exemplos de autores contemporâneos, o uso frequente de
verbos com sufixo ad, com ou sem os advérbios aspectualizadores
173
de duração ou iteração.
172
O sufixo ad é comumente usado para formar substantivos com sentido de ação, que pode ser prolongada ou
repetida; por exemplo, de legi (ler) forma-se legado (leitura); de babili (tagarelar) forma-se babilado (bate-
papo), etc.
173
Encontramos em Ilari (1992, p. 153) a expressão ―advérbios aspectualizadores‖ .
142
É interessante observar, por exemplo, que na narrativa Brakoj (N13)
174
, 21 (vinte e uma)
formas verbais com sufixo aspectual ad com sentido durativo, iterativo ou habitual. Para
ilustrar, transcrevemos alguns enunciados vertidos em Esperanto dessa narrativa machadiana
(com as formas verbais em negrito):
(117) Inácio malrapide manĝadis, sen kuraĝo levi la okulojn de sur la telero [...] (N 13, p.42)
(―Inácio ia comendo devagarinho, não ousando levantar os olhos do prato.‖) (ASSIS, 2004, p.
108)
O sufixo ad enfatiza a duração, promovendo o aspecto imperfectivo durativo.
(118) Tamen, kulpis S-ino Severina, kiu havadis ilin tiel nudaj, ĉiam. Ŝi portadis mallongajn
manikojn ĉe ĉiuj hejmaj roboj [...] (N13, p.42)
Aspecto imperfectivo durativo com sentido habitual.
(―Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus constantemente. Usava
mangas curtas em todos os vestidos de casa [...]‖(ASSIS, 2004, p. 108)
(119) (...) Ŝajne ĉi-hejme ĉio dormadas! (N13, p.46)
(―- [...] Parece que cá em casa anda tudo dormindo!‖) (ASSIS, 2004, p. 110)
Aspecto imperfectivo durativo.
(120) Mi forkuros, li surstrate ripetadis, kiel en la unuaj tagoj.(N13, p.48)
( - Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.‖) (ASSIS, Machado de,
2004, p. 111)
Alia-se aqui a Aktionsart do verbo ripeti (repetir), de sentido iterativo, ao sufixo ad
promovendo o aspecto imperfectivo durativo iterativo.
(121) La ekscitiĝo de Inácio kreskadis, kaj li ne povis kvietiĝi, nek kompreni. (N13, p.49)
Aspecto imperfectivo durativo de valor progressivo, devido a Aktionsart do verbo crescer.
( ―A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se.‖)
(ASSIS, Machado de, 2004, p. p.111)
O sufixo ad pode coocorrer com qualquer forma verbal. Seguem abaixo mais
exemplos colhidos em outras narrativas de nosso corpus:
(122) Ankoraŭ tiel juna kiel vi, kial vi ŝteladas? (N11, p. 175)
(Ainda tão jovem, por que você continua a roubar?)
(123) Mi preferas serĉi mian perditan fratinon ol ŝteladi. (N11, p. 176)
(Prefiro procurar minha irmã perdida a andar roubando.)
(124) [...] Ŝi vortgalope babilas, babiladas‖. (N4, p.63)
174
Uns braços (Assis, Machado de, 2004) In: La divenistino kaj aliaj rakontoj. Traduko: Paulo Sérgio Viana.
São Paulo: Oportuno, 2005. (A cartomante e outros contos. Tradução de Paulo Sérgio Viana.)
143
Nesse enunciado extraído de narrativa original em Esperanto, escrita por autor
húngaro, vê-se um interessante exemplo de efeito de sentido no contraste entre duas formas
verbais de mesma raiz babil- (de babili, tagarelar), no tempo presente: babilas / babiladas
(esta última com o sufixo ad ):
(Ŝi vortgalope babilas: Ela tagarela velozmente [de galope]; babiladas: tagarela
continuamente.) Em ambas as formas verbais, identificamos o aspecto imperfectivo, todavia a
imperfectividade durativa é explicitada enfaticamente em babiladas (tagarela continuamente),
pela presença do morfema -ad.
(125) Mi metis la razilon apud mi kaj rigardadis la vizaĝon de mia frato jam senviva kun la
okuloj duonfermitaj. (N12, p.14).
( Pus o barbeador perto de mim e fiquei olhando o rosto de meu irmão sem vida, com os
olhos meio fechados.)
O tradutor japonês de N12 narrativa original japonesa - teve a intenção de expressar
a imperfectividade durativa em rigardadis (fiquei olhando, contemplei) que tem um efeito de
sentido distinto da forma verbal perfectiva sem o uso do sufixo ad: rigardis (olhei).
6.4.1.4 Aspecto imperfectivo terminativo
O aspecto imperfectivo terminativo indica a fase final de uma situação durativa e
pode ser inferido do emprego de fin- (raiz do verbo fini terminar) e de ĝis (preposição até)
como prefixos.
Em português Castilho (2002, p.101) exemplifica o aspecto terminativo com as
perífrases acabar de, cessar de, deixar, terminar de + infinitivo.
Com relação a cessar de+ infinitivo, cumpre-nos assinalar que os autores Kalocsay e
Waringhien (1980, p.143) apresentam o ―aspecto cessativo‖ em Esperanto, formado pela
perífrase cesi+infinitivo: ―ação que termina, cessa, sem se considerar se é perfeitamente
cumprida ou não.‖
175
Exemplo: ĉesi skribi parar de escrever. No entanto não consideramos
esse ―aspecto cessativo‖ como terminativo, uma vez que entendemos que houve uma
interrupção da situação, e não a codificação da sua fase final.
Operador aspectual terminativo: prefixo fin-
Foram raros os exemplos encontrados nos corpora :
(126) Li ne findiris, ĉar post niaj dorsoj jam estis kolektinĝintaj kelke da homoj. (N5, p.102)
175
No original: ―[…] ago, kiu finiĝas, ĉesas, sen konsidero de tio, ĉu ĝi estas perfekte plenumita aŭ ne”.
144
(Ele não não terminou de dizer, pois às nossas costas algumas pessoas já se tinham reunido.)
(127) ‗Sunfloro‟ unue fintrinkis sian laktan kafon kaj ŝaltis transistoran ricevilon. ( N6, p.38)
(O ‗Girassol‘ primeiramente terminou de tomar seu café com leite e ligou um transistor
receptor.)
(128) La somero kuris rapide, per grandaj saltoj. Sekvis sin aromoj kaj koloroj, finfloradis
plantoj, formiĝadis fruktoj. (N6, p.37)
(O verão corria depressa, por grandes saltos. Seguiam-se aromas e cores, plantas terminavam
de florescer, formavam-se frutos.) Na forma verbal finfloradis, coocorrem dois operadores
aspectuais justapostos fin- e - ad (fin-flor-ad-is). O sufixo aspectualizador imperfectivo
durativo -ad sinaliza a duração do processo enquanto o prefixo fin- aponta para o fim desse
processo.
Operador apectual: prefixo ĝis-
Kalocsay (1966, p.146-147) destaca a função da preposição ĝis (até) como prefixo
com o sentido contrário de ek- (começo) . Por exemplo:
(129) Ili ekludis ŝakpartion matene kaj ĝisludis ĝin vespere.
(Eles começaram a jogar uma partida de xadrez de manhã e terminaram de jogar à noite.). Do
verbo ludi (jogar), formaram-se as formas verbais ekludi (começar a jogar) e ĝisludi
[vespere]) (jogar até [a noite] ).
(130) Per tia ridinda malgrasa sumeto, eĉ plej ŝpareme, li apenaŭ povos ĝisvivi la finon de l‟
monato. (N2, p.91)
(Com aquela quantiazinha ridícula de magra, mesmo do modo mais econômico, ele mal
poderia viver até o fim do mês.)
No seguinte exemplo de Zamenhof, vê-se o prefixo fin- justaposto ao nome substantivo
traduko [tradução]:
(131) Mi havas la intencon komenci (post la fintraduko de la Biblio) longan serion da
artikoloj. (PIV, p.336)
(Tenho a intenção de começar (após o término da tradução da Bíblia) uma longa série de
artigos.)
6.4.2 Aspecto perfectivo
Em geral, o aspecto perfectivo considera a situação como uma totalidade única, sem
explicitar as suas fases. Esse aspecto ocorre geralmente nas estruturas de figura das narrativas,
tendo como valor discursivo a apresentação do evento central. Além do sentido de totalidade,
145
ressaltamos as noções aspectuais de pontualidade, resultatividade e completamento que
caracterizam os tipos de perfectivo em Esperanto.
A seguir, o Quadro 17 mostra os afixos que funcionam como operadores aspectuais de
perfectização:
QUADRO 17 - Aspectos perfectivo: operadores aspectuais de perfectização
Operadores
aspectuais
PERFECTIVO
Sufixo
participial
Resultativo
Completivo
Pontual
-it
Prefixos
el-
tra-
ek-
Como ocorre na língua portuguesa
176
, em Esperanto, também, a aspectualidade
perfectiva depende da classe semântica do verbo (Aktionsart), dos operadores aspectuais e do
contexto linguístico. O aspecto perfectivo pode expressar o resultado de uma ação concluída
(aspecto perfectivo resultativo), o completamento de uma ação (aspecto perfectivo
completivo), a sua momentaneidade ou pontualidade (aspecto perfectivo pontual),
dependendo da interação entre os operadores aspectuais lexicais, gramaticais e discursivos.
Um exemplo preliminar dessas propriedades é o enunciado (131), extraído de uma
narrativa traduzida de autor dinamarquês:
(132) Sed subite unu el la knabetoj ĵetis la stansoldato en la fornon, ne dirante la kaŭzon;
sendube la koboldo en la skatoleto estis kulpa pri tio. (N 19, p.10)
(Mas de repente um dos garotinhos jogou o soldado de estanho dentro do forno, sem nem
mesmo dizer o motivo; sem dúvida o duende na caixinha era o culpado daquilo.)
Nesse enunciado, o verbo ĵetis (jogou, lançou) constitui o núcleo de uma predicação télica
(subite unu el la knabetoj ĵetis la stansoldato en la fornon), configurando a aspectualidade
176
Veja-se estudo de Castilho (2002).
146
perfectiva pontual (ou momentânea). A instantaneidade (ou pontualidade) é reforçada pelo
emprego do advérbio subite (subitamente, de repente). Essa predicação perfectiva apresenta-
se no plano da figura, em contraste com o fundo, que expressa o comentário do narrador por
meio de expressões imperfectivas como o particípio-advérbio presente ativo dirante (dizendo)
e estis (era) no contexto: ne dirante la kaŭzon; sendube la koboldo en la skatoleto estis
kulpa pri tio.
Pode-se dizer que o aspecto perfectivo expressa-se gramaticalmente em Esperanto
pelos sufixos participiais int (passado ativo) e it (passado passivo) este último com
sentido resultativo; e por prefixos perfectizadores como ek-, el-, tra- .
Não há um morfema derivacional específico que expresse apenas o aspecto perfectivo.
Mesmo do ponto de vista gramatical, autores como Kalocsay e Waringhien (1980, p.142),
postulam que esse aspecto pode apenas ser expresso por meio dos chamados ―tempos
perfeitos.‖
177
Um dos recursos mais antigos é a utilização do prefixo ek- na função de perfectizador
como o demonstram os enunciados abaixo:
(133) [...] kaj senpeze kiel elfino ŝi flugis en la fornon al la stansoldato, ekflamiĝis kaj
malaperis.
(N19, p. 11)
( [...] e levemente como uma sílfide, ela voou para dentro do forno em direção ao soldado,
incendiou-se e desapareceu.)
Nesse enunciado, identificamos o aspecto pontual perfectivo: ekflamiĝis (incendiou-se,
pegou fogo); o prefixo ek- marca o início instantâneo do processo de incendiar-se (flamiĝis
forma verbal formada de flamo: chama; - (tornar-se) i: tornar-se chama, inflamar-se), que
começa e termina ao mesmo tempo. O verbo malaperis (desapareceu), que representa o outro
processo coordenado, quase simultâneo, denota aspecto perfectivo pontual, devido a
Aktionsart de achievement (malaperi - desaparecer).
(134) Li ekvidis tablo-horloĝon starantan iom fore kaj ĝuste tiam, kiam li etendis sian brakon
por preni ĝin, ies forta brako ekkaptis la malantaŭon de lia kolo. (N11, p.174)
(Ele avistou um relógio de mesa situado um pouco longe e exatamente quando ele estendia o
braço para pegá-lo, um braço forte de alguém agarrou a parte posterior de seu pescoço.)
177
Os autores Kalocsay e Waringhien (1980, p.135) postulam a existência de “tempos complexos” imperfeitos,
perfeitos e preditos” em Esperanto, formados pelo verbo “auxiliar” esti + particípio; ex.: estos kaptanta; estas
kaptinta; estis kaptonta, respectivamente; etc.
147
As formas verbais com o operador ek-, ekvidis e ekkaptis, denotam ação súbita,
momentânea, pontual, ou seja, aspecto perfectivo pontual.
(135) La viro eksaltis je timo. (N11, p.178)
(O homem deu um salto de medo.)
No contexto eksaltis je timo (deu um salto de medo), a forma verbal eksaltis denota
aspecto perfectivo pontual; ek- combinado com o verbo salti (saltar) da classe semântica dos
achievements, enfatiza a noção aspectual de momentaneidade, pontualidade.
Convém observar que, dependendo do contexto linguístico, formas verbais como eksaltis
podem ter uma leitura perfectiva pontual (deu um salto) ou imperfectiva com o sentido
inceptivo (começou a saltar). Exemplificando: um enunciado como La blanka kato eksaltis
pode ser lido como ‗o gato branco começou a saltar‘, com sentido aspectual imperfectivo
inceptivo, distinto de eksaltis je timo ‗deu um salto de medo‘.
(136) Novaĵo! Ŝi ekkriis. (N8, p.286)
(- ―Que novidade‖!, ela exclamou ).
Em ekkriis
178
o prefixo ek- combinado com o verbo krii (gritar) funciona como
indicador de uma ação instantânea, ou aspecto perfectivo pontual. Para dar continuidade à
ação de gritar, o usuário pode usar a perífrase komencis krii (começou a gritar).
(137) Rezonante tiel, Ŝobe ekrimarkis, ke Kisuke estas la ĝusta persono[...]). (N12, p.11)
(Refletindo assim, Ŝobe apercebeu-se de que Kisuke era a pessoa certa [...] )
O prefixo ek- combinando com o verbo rimarki, da classe semântica achievement,
(notar, reparar) enfatiza a aspectualidade perfectivo-pontual da situação que começa e termina
ao mesmo tempo, naquele exato momento. Tal possibilidade aspectual do Esperanto vem
confirmar a afirmação de Bybee (1985, p.21): ―Os aspectos perfectivos (inceptivo, pontual e
completivo) veem a situação como uma entidade delimitada (bounded), e frequentemente
põem ênfase em seu começo ou fim.‖
179
No entanto, segundo informam Kalocsay e Waringhien (1980, p.141), o uso do prefixo
ek- nesse sentido momentâneo, pontual (bastante frequente no começo da língua) foi
desaparecendo aos poucos. Conforme os autores supracitados, geralmente a instantaneidade é
compreendida por meio do contexto, e o prefixo ek-, quando ainda empregado no sentido
pontual, serve apenas para acentuar o começo abruto.
Exemplos:
178
Nos dicionários de Esperanto-Português é comum a tradução ekkrii-exclamar.
179
No original: The perfective aspects (inceptive, punctual and completive) view the situation as a bounded
entity and often put an emphasis on its beginning or end.‖
148
(138) La aŭtomobilo ekhaltis.
(O automóvel parou subitamente.) Halti: parar; ekhalti: parar de repente, subitamente.
O enunciado (136) também pode ser expresso sem o prefixo ek-, reescrito como:
(139) Subite la aŭtomobilo haltis.
(O automóvel parou subitamente).
O verbo halti (parar), da classe semântica dos achievements, no contexto, determinado
pelo advérbio aspectualizador pontual subite, favorece a ocorrência do aspecto perfectivo
pontual.
(140) Fulmo ekbrilis (Um relâmpago faiscou, brilhou subitamente).
No enunciado (138), a instantaneidade é inferida pelo contexto, isto é, mais pelas
propriedades semânticas do SN sujeito fulmo (relâmpago) do que pelo prefixo ek- em
ekbrilis.
Por outro lado, na forma verbal ekbrilis, o prefixo ek- pode expressar a possibilidade
de duração subsequente:
(141) Ekbrilis la suno (O sol começou a brilhar)
Nesse contexto, o prefixo ek- confere o sentido aspectual inceptivo à sentença, devido
ao sentido de brilho de longa duração do SN sujeito la suno (o sol). Não obstante, é possível
ao usuário construir também uma leitura com sentido de instantaneidade, a saber: subite
ekbrilis la suno (de repente o sol brilhou). Confirma-se, pois, o postulado de que o aspecto é
uma propriedade da predicação.
A ideia de ação abrupta, súbita e momentânea pode ser verificada também quando ek-
se justapõe a nomes substantivos, como, por exemplo, os itens lexicais puŝo (empurrão), bato
(golpe, pancada) e krioj (gritos):
(142) Ĉiu ekpuŝo, ĉiu ekbato estis akompanata de laŭtaj ekkrioj de la turmentantoj (N3,
p.51)
(Cada empurrão, cada pancada era acompanhada pelos altos gritos dos torturadores.)
Outro recurso também antigo de perfectização é o uso da preposição el- no papel de
prefixo. Na função de preposição, o vocábulo el é plurissignificativo; denota os seguintes
sentidos: de; dentre; movimento de dentro de um lugar ou situação; passagem de um estado a
outro; extração; separação de uma parte do seio de um todo; constituição, material.
Ex.: La krajono falis el mia mano (O lápis caiu de minha mão); peco el la Biblio (trecho
[extraído] da Bíblia); el du malbonoj pli malgrandan elektu (dentre dois males escolha o
menor); tablo el ligno (mesa de madeira), etc
149
Como prefixo, el- é morfema de significação aspectual perfectiva que denota
cumprimento cabal da ação; ex.: lerni (aprender), ellerni (aprender tudo totalmente); trinki
(beber), eltrinki (beber tudo); uzi (usar), eluzi (gastar, no sentido de usar até o fim como no
enunciado: Li eluzas siajn ŝuojn kun stranga rapideco (Eles gastam seus sapatos com
estranha rapidez); ĉerpi (tirar), elĉerpi(tirar tudo,esgotar); labori (trabalhar), ellabori
(trabalhar até a perfeição) pagi (pagar) elpagi (pagar tudo, completamente).
Apresentamos abaixo alguns enunciados que exemplificam o uso aspectual
perfectizador de el-, colhidos nos corpora desta pesquisa:
Operador apectual: prefixo el-
(143) (...) sed konvenas klarigi ke ŝi ne kutimis fari tion pro koketeco, sed tial, ke ŝi jam
eluzis ĉiujn longmanikajn robojn. (N13, p.42 )
―(...) mas é justo explicar que ela os não trazia assim por faceira, senão porque gastara
todos os vestidos de mangas compridas.‖ (ASSIS 2004, p.108)
O verbo uzi (usar) antecedido do prefixo el- (eluzi) exprime o sentido aspectual completivo
de usar até ficar gasto.
(144) Subite silentiĝis la elektra razilo. Ŝajnas, ke la energio de la piloj elĉerpiĝis. Li
malfermis la kovrilon de la razilo kaj elbatis nigrajn malpuraĵojn. (N10, p.28)
(Subitamente silenciou o barbeador elétrico. Parece que a energia das pilhas se esgotara. Ele
abriu a capa do aparelho e bateu tirando a negra sujeira.)
O verbo ĉerpi tirar (retirar um líquido, por exemplo) antecedido do prefixo el- (elĉerpi),
recebe o sentido aspectual completivo de tirar completamente, esgotar; elĉerpiĝis - esgotar-se.
Por outro lado, a forma verbal elbatis (elbatis nigrajn malpuraĵojn) é formada pelo verbo bati
(bater) antecedido do prefixo el-, conservando o sentido próprio da preposição el, isto é,
movimento de dentro para fora; tirar de dentro batendo. Por extensão metafórica denota
também o aspecto perfectivo completivo, no sentido de tirar (batendo) completamente a
sujeira.
Por outro lado, o morfema el- não pode ser sempre usado como prefixo perfectivo
porque pode haver confusão entre seus sentidos próprios como preposição e o valor aspectual,
comprometendo a clareza em alguns casos. Por isso são usados também outros morfemas
como a preposição tra que significa de um extremo ao outro, através de, por entre, de lado a
lado. Servindo de prefixo aspectual, atribui o sentido perfectivo ao verbo, isto é, do início de
um lugar (ou tempo) até o seu fim; por exemplo: legi: ler; tralegi: ler do princípio ao fim.
Exemplo:
150
(145) Lernolibron oni ne devas tralegi, sed tralerni (Manual didático não se deve [apenas] ler
até o fim, mas deve-se aprender completamente.) (ZAMENHOF, 1991, p 118).
Com relação ao prefixo tra- , é necessário observar que este não denota apenas o
simples aspecto perfectivo, mas que uma ação se refere a algo considerado em toda a sua
amplitude. Disso se infere que ‗esse algo‘ deva já existir antes da ação. Desse modo, a
significação aspectual perfectiva de tra- é modificada por um sentido acessório que prejudica
a pura expressão da perfectividade aspectual como em li tralegis la libron (ele leu o livro
todo, do início até o fim).
Dado o exposto, pode-se concordar com Kalocsay e Waringhien quando afirmam que
o aspecto perfectivo não é denotado por afixos lexicais de uma maneira regular e frequente. À
guisa de ilustração apresentamos mais dois exemplos de uso aspectual do prefixo tra- :
Operador aspectual: prefixo tra-
(146) La ideo fulme trakuris en lia kapo. (N10, p.29 )
(A ideia atravessou como um raio em sua cabeça; isto é, de ponta a ponta, completamente).
(147) Je la imago de tiu iluzio li traserĉis la teron. (N11, p. 173)
imagem dessa ilusão ele procurou por toda a terra; isto é, de ponta a ponta,
completamente).
A preposição tra indica que um movimento começa em um extremo e atinge o outro
extremo (espacial ou temporal). Como prefixo, enfatiza o sentido aspectual perfectizador de
completamento.
De modo geral, no que se refere ao uso dos operadores participiais perfectizadores,
transcrevemos abaixo outros exemplos encontrados nos corpora desta pesquisa:
Particípio-adjetivo passado ativo: inta:
(148) Klime estas perdinta la vojon, la blovegoj estas kovrintaj ĉion: valojn, montetojn,
vojojn, kampojn. (N18, p. 8)
(Klime perdeu o caminho, os tufões cobriram tudo: vales, morros, estradas, campos.)
Esse enunciado tem a mesma explicação dada anteriormente para o exemplo (45) Li estas
manĝinta pomon. (Ele comeu uma maçã; ou seja, ele está na situação posterior ao evento
―comer uma maçã‖.) A predicação nominal constituída do verbo esti (ser, estar) no presente
estas + -inta denota o estado presente depois de o sujeito ter praticado a ação.
Portanto, no enunciado (148) Klime estas perdinta la vojon (Klime perdeu o caminho),
isto é, ele está na situação posterior ao fato de ter perdido o caminho; ou seja, o caminho foi
perdido, e Klime está perdido. O mesmo ocorre com la blovegoj estas kovrintaj ĉion (os
tufões cobriram tudo), isto é, os tufões são os que cobriram tudo.
151
Particípio-advérbio passado ativo: inte:
(149) -Ĉu li ankoraŭ ne venis? Demandas ŝi timeme, trarigardinte la ĉambron. (N18, p. 8)
( - Ele ainda não chegou? Pergunta ela temerosa depois de ter olhado por toda a sala.)
Observa-se em trarigardinte o reforço enfático trazido pelo prefixo perfectizador tra- (―do
começo ao fim, de ponta a ponta‖).
Particípio-adjetivo passado passivo: ita:
(150) Li ne foriris; li sin sentis kaptita kaj alkroĉita de la brakoj de S-rino Severina. (N13,
p.45)
(―Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de Dona Severina.‖(ASSIS,
Machado de, 2004, p 109)
O sufixo de particípio-adjetivo passado passivo ita funciona como operador
aspectual perfectivo resultativo. O estado presente é resultado de uma pressuposta ação
passada. Nota-se uma relação entre a voz passiva e a aspectualidade resultativa. Assim, o
enunciado (150), li sin sentis kaptita kaj alkroĉita de la brakoj de S-rino Severina, configura
o resultado da ação la brakoj de S-rino Severina kaptis kaj alkroĉis lin (os braços de Dona
Severina agarraram-no e acorrentaram-no); o personagem Inácio (de Machado de Assis) está,
pois, ―agarrado e acorrentado pelos braços de Dona Severina‖.
(151) La monto estas ĉie dezerta, blanka, terura. Kvazaŭ mortinto, kaŝita per blanka kovrilo.
(N18, p.9)
(Em toda a parte o monte estava deserto, branco, terrível. Como um defunto, coberto por uma
capa branca.)
O aspecto perfectivo resultativo é expresso por -ita em kaŝita per blanka kovrilo
(coberto por uma capa branca) . Ocorre o mesmo com o particípio passivo adverbial marcado
por ite a seguir.
Particípio-advérbio passado passivo: ite:
(152) Ŝi laŭrajdadis la Korson de Simla, tien kaj reen, je troto, kvazaŭ forlasite, portante
grizan sunĉapelon kiu une ŝirmis sian frunton [...] (N17, p.10)
(Ela cavalgava pela Alameda de Simla, trotando para e para cá, como se [fora]
abandonada, usando um chapéu de sol que não protegia sua fronte [...] )
(153) Pensas li pri Klime, kaj premite ĝemas, ĉar ne pro bono estas ĉi tiu prokrasto.
(N18, p.7)
(Ele pensa em Klime e geme apertado, pois não se deve essa demora a coisa boa.
(154) La vilhara apaĉo grumblas kortuŝite, kovras per sia mantelo la piedojn de dormanto
[...] (N4, p.66)
152
(O malandro cabeludo resmunga comovido, cobre com sua capa os pés do adormecido.)
O particípio-advérbio passado passivo kortuŝite, comovido,com o coração tocado‖ (kor-tuŝ-
it-e), é formado de koro - coração; tuŝi - tocar; particípio-advérbio passado passivo - ite). O
particípio-substantivo presente ativo dormanto é lido como aquele-que-estava dormindo ou
aquele que dormia (adormecido).
6.4.3 Aspecto prospectivo
A ação apresenta-se como não começada, mas pretendida. Mostra-se o estado antes do
começo da ação, frequentemente com uma nuance de intencionalidade. ―Isso significa que a
ação, do começo até o fim, existe figuradamente como potencial.‖
180
(KALOCSAY, 1966, p.
151)
Segundo Comrie, a língua inglesa apresenta expressões de sentido prospectivo
181
, isto
é, formas em que um estado se relaciona com uma situação subsequente, por exemplo, ―onde
alguém está no estado a ponto de fazer algo‖(where someone is in a state of being about to
do something.) (COMRIE, 1976, p.64)
Bybee (1985, p.149) relaciona o aspecto prospectivo de Comrie com o inceptivo em
algumas línguas como o Iatmul: ―uma construção inceptiva glosada como to be about to (estar
a ponto de ) é formada com o verbo ―to go‖ (verbo ir).‖
182
O Esperanto também tem morfemas de sentido prospectivo, que Kalocsay (1966,
p.151) denomina grau predito: o sufixo de particípio futuro ativo ont e o passivo ot. O
sufixo de particípio-adjetivo ativo futuro onta é usado para descrever uma ação que ainda
não começou, mas que pode estar prestes a começar ou que seu sujeito manifesta a intenção
de realizá-la como, por exemplo em La fantomo estas aperonta. (O fantasma está para
aparecer.)
O sufixo de particípio passivo futuro ot apresenta perfectividade potencial como no
enunciado: Tiu domo estas vendota. (Aquela casa está para ser vendida.)
De acordo com Travaglia (1985, p. 61- p.62), quanto às noções aspectuais, existem
―fases da situação do ponto de vista de sua realização‖; a primeira delas é ―a fase em que a
situação ainda não começou‖. [...] ―A situação é apresentada como algo ainda por fazer, por
180
No original: ―Tio signifas: la ago, dekomence ĝisfine, ekzistas image kiel potenciala.‖
181
O termo prospectivo tem origem no latim tardio, prospectivus, a, um 'relativo a perspectiva', isto é, 'visão de
olhos lançada ao futuro' , conforme o Dicionário eletrônico Houaiss da língua portuguesa.
182
No original: ― […] an Inceptive construction, glossed “to be about to” is formed with the verb “to go”.”
153
ocorrer, por começar, embora haja ou tenha havido intenção‖ ou ―certeza‖ de ela se realizar‖.
Quando se admitem fases da situação, trata-se do aspecto imperfectivo. Em Português a
primeira fase pode ser expressa por enunciados como ―a cozinha está por arrumar‖ e até
mesmo por adjetivos como mostra esse autor (TRAVAGLIA, 1985, p. 141), ao tratar do
aspecto em nomes adjetivos terminados nos sufixos -nte e em particípios (de valor adjetivo),
conforme as colunas abaixo transcritas de Travaglia (1985, p.141):
― não-começado começado ou não-acabado acabado
constituível constituinte constituído (...)‖
Exemplos de aspecto prospectivo:
(a) Particípio-adjetivo futuro ativo : onta:
(155) Li estis skribonta la mesaĝon, sed devis subite foriri.
(Ele ia escrever a mensagem [estava a ponto de escrevê-la], mas teve que sair de repente.)
Skribonta : que ia escrever; tinha a intenção de escrever.
(156) Mi ne informis ilin pri tio, kion mi estis montronta al ili. ( N14, p. 21)
(Não os informei sobre o que eu ia mostrar-lhes / estava para mostrar-lhes.)
Montronta: que ia mostrar; que tinha a intenção de mostrar.
(b)Particípio-advérbio futuro ativo : onte:
(157) Elironte, li fermis la fenestron de la oficejo.
(Estando para sair, ele fechou a janela do escritório.)
Elironte : quando estava para sair, estando para sair, com a intenção de sair.
(c) Particípio-adjetivo futuro passivo ota:
(158) Sur la komputilekrano estis aro da legotaj mesaĝoj.
(Na tela do computador havia uma coleção de mensagens a serem lidas.)
Legotaj: (que estavam) para ser lidas.
(159) Tiam, mia domo estis (ankoraŭ) konstruota. (LORENZ, 1996, p. 84)
(Naquele tempo minha casa (ainda) estava para ser construída.)
Konstruota: (que estava) para ser construída.
(d) Particípio-advérbio futuro passivo ote:
(160) Punote, la knabo malaperis. (LORENZ, 1966, p. 86)
(Prestes a ser punido, o menino desapareceu.)
Punote: Prestes a ser punido, devendo ser punido; equivalente a uma oração adverbial
reduzida causal.
154
6.5 RELAÇÃO ENTRE ASPECTO E VOZ EM ESPERANTO
Para melhor compreensão das estratégias gramaticais usadas para a expressão do
aspecto, convém apresentar uma breve descrição da categoria de voz em Esperanto. Segundo
Comrie (1976, p.84), em muitas línguas indo-europeias inter-relação entre aspecto e voz
(ativa versus passiva). Tal ocorre também em Esperanto, basta lembrar o papel dos particípios
passivos terminados em -ata e -ita.
Sabe-se que voz é a categoria gramatical que determina o modo como o sujeito de
uma sentença se relaciona à ação do verbo.‖(TRASK, 2004, p.306)
Em Esperanto identificam-se as vozes ativa, passiva, medial e factitiva.
(1) Voz ativa: ação realizada pelo sujeito
(161) Petro konstruis domon.(Pedro construiu uma casa)
(2) Voz passiva: ação sofrida pelo sujeito:
(162) La domo estis konstruita de Petro. (A casa foi construída por Pedro.)
(3)Voz medial: o sujeito pratica a ação sobre si mesmo; exprime uma ação intransitiva por
meio de verbos de raiz transitiva:
(163) La leciono komenciĝis. (A lição começou, iniciou-se; foi iniciada.)
Em Esperanto, o sufixo - torna intransitivos os verbos transitivos como, por
exemplo as distinções entre: entre komenci (dar começo) e komenciĝi (iniciar-se); fini (pôr
término, terminar) e finiĝi (chegar a termo); veki - acordar, tirar do sono; vekiĝi- acordar, tirar-
se do sono, despertar por si mesmo.
Na voz ativa, emprega-se o verbo komenci sem o sufixo -, operador da voz medial,
como no seguinte enunciado:
(164) La instruisto komencis la lecionon. (O professor começou a aula.)
A voz medial é intermediária entre a ativa e a passiva. Para Câmara (1978, p. 164-
165), ―a noção gramatical, que carreia a voz medial, é a de uma integração do sujeito na ação
que dele parte [...]‖
ainda certa correlação entre a voz medial (intransitiva por natureza) e a voz ativa
com pronome reflexivo, que o objeto da voz medial é o seu próprio sujeito. A diferença
entre as duas formas é que a voz medial exprime uma ão involuntária, enquanto a reflexiva
denota uma ação consciente, voluntária. Comparem-se os enunciados abaixo:
(165) La infano rulas sin sur la tapiŝo. (A criança rola [―rola-se‖] no tapete.) Ação voluntária:
voz ativa (reflexiva).
155
(166) La ŝtonoj ruliĝis. (As pedras rolaram) Ação involuntária: voz medial.
(167) Ĉiutage mia filo vekiĝas malfrue. (Todo dia meu filho acorda tarde.) Ação involuntária:
voz medial; vekiĝi: despertar, sair do sono.
(168) Hieraŭ mi vekis lin. (Ontem eu o acordei.) Ação voluntária: voz ativa; veki: tirar do
sono.
No enunciado (163), construiu-se a reflexividade por meio da combinação do verbo
ruli (rolar) com o pronome sin (se): rulas sin (ou sin rulas): ―rola-se‖, na língua portuguesa
usa-se apenas o verbo rolar sem o pronome reflexivo, em qualquer sentido, quer como
transitivo ou intransitivo.
Também foi dito acima que as vozes passiva e medial têm certa similaridade. A
diferença entre elas é que a passiva faz subentender um agente (expresso ou não pelo
chamado agente da passiva):
e) Voz passiva:
(169) La ŝtonoj estas rulataj (de iu) (As pedras são roladas (por alguém) ).
Ao contrário, na voz medial não há um agente implícito, já que o sujeito gramatical e o agente
são idênticos.
f) Voz medial:
(170) La ŝtonoj ruliĝas (per si mem). (As pedras rolam (por si mesmas).)
Se for necessário, na voz medial, usa-se um adjunto adverbial de instrumento iniciado pela
preposição per:
(171) En Esperanto la adverbo finiĝas per -e. (Em Esperanto, o advérbio termina em -e.)
(g) Voz factitiva (ou causativa)
―O sentido fundamental da voz factitiva é fazer com que alguém ou algo faça ou sofra uma
ação.‖
183
(Kalocsay;Waringhien, op. cit.,164) [grifos dos autores]
A voz factitiva é expressa pelo sufixo ig (sentido de fazer ou mandar).
Exemplos:
(172) Mi farigis belan robon. (Mandei fazer um belo vestido.)
O verbo fari (fazer) combinado com o sufixo ig origem à forma verbal causativa farigi
(mandar fazer).
(173) Paŭlo konstruigis grandan domon per fama arkitekto. (Paulo mandou construir uma
casa grande por meio de um famoso arquiteto.) Uso do sufixo causativo ig: konstrui-
construir; konstruigi fazer construir, mandar construir.
183
No original: ―La fundamenta senco de la faktitivo estas: ke iu aŭ io faru aŭ suferu agon.‖
156
6.6 ANÁLISE DAS FUNÇÕES ASPECTUAIS DOS AFIXOS EK- E -
Passemos agora ao problema das funções aspectuais do prefixo ek- e do sufixo
indicativo de voz medial -iĝ. Pode-se dizer que em Esperanto duas formas distintas com
função aspectual muito semelhante: trata-se dos morfemas ek- e -iĝ. O sufixo - exprime a
noção incoativa de ‗passagem de um estado a outro‘, função similar ao do prefixo ek-, que
denota a noção inceptiva de ‗ação incipiente‘. Como informa Lorenz (1996, p.62), ―estas duas
noções, certas vezes, se confundem sendo, pois, natural que então se possam concretizar com
- ou com -ek-.‖ Assim, por exemplo, é facultativo o uso de ek- ou - nas seguintes formas
verbais: stariĝi ou ekstari (levantar-se); sidiĝi ou eksidi (sentar-se); genuiĝi ou ekgenui
(ajoelhar-se); sciiĝi ou ekscii (informar-se, tomar conhecimento); koleriĝi ou ekkoleri
(encolerizar-se), timiĝi ou ektimi (assustar-se ); estiĝi ou ekesti (começar a existir, formar-se,
etc), e ainda outros.
Às vezes, porém, percebe-se uma diferença semântica sutil entre o uso de ek- e -
como, por exemplo, entre timiĝi e ektimi: em timiĝi (timi- temer, recear; timiĝi: passagem para
o ‗estado de ficar assustado‘; assustar-se) a ênfase é em ficar assustado, ao passo que em
ektimi (situação repentina de ‗assustar-se‘) destaca-se a instantaneidade da situação ‗assustar-
se‘.
Entre a forma em - e a forma em ek- existe apenas uma diferença de
nuance. A forma em - mostra a mudança de estado, portanto, aquela ação
que gera o novo estado: mi sidiĝas (eu me sento: eu faço um movimento
cujo resultado é o assento). A forma em ek mostra o instante, o ponto do
tempo, no qual o novo estado começa: mi eksidas: mi komencas sidi (eu
adoto a postura de sentar, começo a sentar-me). Por isso não se usa
geralmente eksidi em vez de sidiĝi, se se quer realmente chamar a atenção
não ao fato de que ―se adota a postura de sentar‖ (eksidi), mas ao fato de que
―se move para sentar (sidiĝi). (KALOCSAY;WARINGHIEN, 1980, 140)
184
Pode-se dizer, portanto, que um condicionamento semântico-discursivo quanto ao
uso de ek- ou - no sentido aspectual inceptivo (ou incoativo), determinado pela intenção
comunicativa do usuário da língua.
184
No original: Inter la -formo kaŝanĝon laŭ ties daŭro, do tiun agon, kiu rezultigas la novan staton (mi
sidiĝas: mi faras movon, kies rezulto estas la sido). La ek-formo montras la momenton, la tempopunkton, en kiu
la nova stato komenciĝas (mi eksidas: mi komencas sidi). Tial oni ne uzas ĝenerale eksidi ne al tio, ke oni
komencas la sidadon, sed al tio, ke oni moviĝas por sidi.”
157
Cumpre-nos acrescentar ainda que o sufixo - tem também o papel de expressar a voz
medial em Esperanto. Esta função está provocando o desaparecimento da função aspectual
incoativa. Nos termos de Kalocsay e Waringhien, ―esse recurso de expressão é especialmente
interessante pelo fato de que nele a significação do sufixo - modificou-se profundamente,
tanto que mal se reconhece o sentido original.‖
185
(KALOCSAY; WARINGUIEN, 1980, p.
139)
Com os verbos transitivos, - perdeu o sentido ingressivo ou inceptivo; passando a
funcionar apenas como voz medial: perdi, perder; perdiĝis, perdeu-se; foi perdido. Dado o
esvaziamento dessa função, identifica-se a tendência para a expressão do aspecto inceptivo
apenas pelo operador ek-, dando como resultado a possibilidade do uso dos dois afixos na
mesma palavra: ek..... Assim, por exemplo: ruli (verbo transitivo: rolar, fazer rolar;); ekruli
(verbo transitivo: começar a rolar, a fazer rolar); ruliĝi (verbo intransitivo: rolar, rodar,
balancear-se): ekruliĝi (verbo intransitivo: começar a rolar, começar a mover-se). Sendo
assim, ruliĝi não tem o mesmo sentido de ekruli (começar a rolar), mas,
aproximadamente,‗ser rolado‘(esti rulata).
Exemplifiquemos com os seguintes enunciados:
(174) La knabo rulas la pilkon. (O menino rola a bola / faz a bola rolar.) - Voz ativa.
(175) La knabo ekrulas la pilkon.(O menino começa a rolar a bola.) - Voz ativa.
(176) La pilko ruliĝis sub la tablon. (A bola rolou para debaixo da mesa.) - Voz medial.
(177) La ŝtonojn ekruliĝis pro la pluvego. (As pedras começaram a rolar por causa da
tempestade.) Voz medial.
Outros exemplos de uso de ambos os afixos ek- e - no mesmo vocábulo: ekinteresiĝi
(começar a interessar-se), ekmoviĝi (começar a mover-se), etc. Convém assinalar que, com os
verbos intransitivos, onde não existe o efeito apassivador de -, este, naturalmente, conservou
seu significado original inceptivo: sidiĝi (sentar-se), stariĝi (levantar-se).
6.7 ASPECTO ITERATIVO
Enquanto as distinções aspectuais, ditas qualitativas, sobretudo perfectivas e
imperfectivas, determinam a organização temporal interna de um estado de coisas na
predicação, a frequência, em termos de ocorrência, de determinadas estratégias de expressão
aspectuais não modifica não modifica a estrutura interna de um estado-de-coisas: ―apenas
185
No original: Ĉi tiu esprimrimedo estas speciale interesa pro tio, ke en ĝi la signifo de la sufiksoido
profunde modifiĝis, tiel ke oni apenaŭ rekonas plu la originan sencon.”
158
especifica quantas vezes um estado-de-coisas com uma dada estrutura interna ocorre/ ocorreu/
ocorrerá.‖(NEVES, 2001, p.93).
Do ponto de vista da face quantitativa do aspecto, identificamos com Castilho (2002,
p.87), o semelfactivo (ocorrência singular) em oposição ao iterativo, que expressa ocorrência
múltipla, habitual ou reiterada. A iteração deve-se a interrupções na duração de uma situação,
o que cria a ideia de repetição. Travaglia (1985, p.58) estabelece uma distinção entre duração
contínua e descontínua. Enquanto a primeira apresenta a situação sem nenhuma interrupção
no seu tempo de desenvolvimento, a segunda mostra a situação ―como sofrendo interrupções
na sua duração.‖ Essa duração descontínua da situação é vista linguisticamente como aspecto
iterativo.
O aspecto iterativo representa, portanto, uma quantificação dos aspectos imperfectivo
ou perfectivo; é geralmente expresso, em Esperanto, por meio de recursos morfossintáticos e
discursivos como o uso de advérbos e sintagmas adverbiais quantificadores; perífrase com o
verbo kutimi (costumar) + infinitivo; afixos re- , -ad; tipo oracional e pelo modo de
organização do discurso ou tipo textual.
O prefixo re- contribui para expressar o sentido de que a referida ação ocorre uma vez
mais; por exemplo:
(178) Mi per tiu mono senŝuldigis min nur por tuj reŝuldiĝi. (N12, p. 9)
(Com aquele dinheiro eu ficava livre das dívidas apenas para logo endividar-me de novo.)
Nessa sentença a aspectualidade é apenas iterativa, sem atualização da (im)/perfectividade,
que o verbo reŝuldiĝi, no infinitivo, é uma forma aspectualmente neutra quanto à
(im)/perfectividade.
A aspectualidade iterativa, denotando uma série de ações repetidas, também pode
derivar da interação entre o verbo e seus adjuntos adverbiais quantificadores tais como: ripete
(repetidamente), plurfoje (várias vezes), ĉiutage (diariamente), ĉiam (sempre), ofte
(frequentemente), etc. Por exemplo, veja-se o enunciado extraído da narrativa traduzida do
japonês:
(179) [...] kaj kiam mi ree rigardis mian fraton, li estis mortinta.
( [...] e quando novamente olhei meu irmão, ele estava morto.) (N12, p.14)
O advérbio ree (novamente, de novo), formado pela adição do morfema categórico adverbial -
e ao prefixo re, permite a leitura aspectual perfectiva iterativa, ao criar a oposição semântica
entre o sentido aspectual semelfactivo rigardis (olhei uma vez) e o repetitivo ree rigardis
(olhei de novo).
159
Uma estratégia discursiva é a repetição, seja do verbo, do advérbio ou do prefixo re- ,
considerando então como forma livre, com autonomia sintático-semântica: re kaj rediri (dizer
e redizer) , re kaj reveni (voltar e voltar novamente), etc.
Quando a repetição se torna inconsciente e automática, configura-se o hábito,
podendo-se postular o aspecto habitual
186
, que é um subtipo do iterativo.
A seguir ilustramos um pouco mais o aspecto iterativo por meio de enunciados
colhidos nas narrativas que compõem os corpora C1 e C2 desta pesquisa.
(1) Aspecto imperfectivo iterativo:
(180) Ĉiu ekpuŝo, ĉiu ekbato estis akompanata de laŭtaj ekkrioj de la turmentantoj.‖ (N3,
p.51)
(Cada empurrão, cada pancada era acompanhada pelos altos gritos dos atormentadores.)
O particípio-adjetivo presente passivo akompanata apresenta valor aspectual
imperfectivo cursivo. O SN sujeito da voz passiva ĉiu ekpuŝo, ĉiu ekbato é quantificado pelo
determinante ĉiu (cada, todo), tendo escopo sobre o segundo estis akompanata de laŭtaj
ekkrioj de la turmentantoj. Nos termos de Castilho (2002, p.109), ―SNs quantificados afetam
o núcleo do SV, que passa a expressar a repetição do estado de coisas.‖ No caso em tela, o
SV iterativo tem como núcleo o particípio passivo akompanata.
(181) (...) li ĉiutage [...] finis kaj rekomencis sian rondiron en la kadro de la administracia
regularo. (N2, p.91)
([...] todo dia [...] ele [o funcionário] terminava e recomeçava sua caminhada em círculos no
quadro do regimento administrativo.)
O advérbio aspectualizador ĉiutage (todo dia, diariamene) promove a leitura iterativa
(habitual) de finis (terminava) e de rekomencis (recomeçava). Esta última forma verbal
(rekomencis) explicita a iteração por meio do prefixo re-.
(2) Aspecto perfectivo iterativo:
(182) La ruĝa invitkarto kun oritaj vortoj estis trifoje malfermita kaj trifoje remetita sur la
skribtablon. (N10, p.24)
(O cartão de convite vermelho com palavras douradas foi três vezes aberto e três vezes
recolocado sobre a escrivaninha.)
Os particípios perfectivos resultativos malfermita e remetita passam a denotar
aspectualidade iterativa por meio da interação com o advérbio quantificador repetido trifoje e
por meio do prefixo re- em remetita.
186
A habitualidade é uma noção aspectual para linguistas como Comrie (1976) e Bybee (1985), entre outros.
160
(183) Paŭlino iris a la dormoĉambro, senvestiĝis, lavis sin, surmetis noktoĉemizon, brosis la
hararon centfoje, laŭ la rutino de pluraj jaroj. (N1, p.140)
(Paulina foi para o quarto, despiu-se, lavou-se, vestiu a camisola, escovou a cabeleira cem
vezes, conforme a rotina de vários anos.)
Em brosis la hararon centfoje, laŭ la rutino de pluraj jaroj, identificamos o aspecto
perfectivo iterativo com sentido habitual. A aspectualidade iterativa do predicado brosis la
hararon centfoje (escovou a cabeleira cem vezes) decorre da interação entre o Aktionsart da
forma verbal brosi (escovar), que contém em si a ideia de repetição, e o advérbio
quantificador centfoje (cem vezes); a noção adicional de habitualidade provém da construção
adverbial conformativa: laŭ la rutino de pluraj jaroj (conforme a rotina de vários anos), que
tem como núcleo o nome substantivo rutino (rotina).
(184) Finfine ŝi reprenis la noktoveston kaj enlitiĝis. (N1, p. 141)
(Finalmente ela pegou de novo a camisola e deitou-se.)
Em reprenis la noktoveston (pegou de novo a camisola), ocorre o aspecto perfectivo
iterativo. A iteração deve-se ao prefixo re-: uma vez mais.
6.8 ESTUDO DE FREQUÊNCIA
Assumindo a hipótese da composicionalidade que orienta a definição de Castilho
(2002, p. 83) de que ―o aspecto verbal é uma propriedade da predicação‖, partimos do
pressuposto de que a função aspectual é configurada em Esperanto por meio de estratégias
discursivo-gramaticais em interação com o valor semântico (acionalidade) ou Aktionsart da
forma verbal ou participial.
Encontramos em nossos corpora a expressão da função aspectual por meio dos
seguintes operadores gramaticais:
a) sufixos flexionais: temporal (tempo presente: -as) e participiais (particípios ativos: -ant, -
int, -ont; passivos: -at, -it, -ot );
b) afixos derivacionais (-ad, ek-, re-, el-, tra-, fin-, ĝis-).
A seguir, fazemos a análise quantitativa dos dados, a qual se circunscreve à contagem
e tratamento dos dados em termos percentuais. A partir desse tipo de análise, pretendemos
identificar tendências que nos possam auxiliar na interpretação dos dados na análise
qualitativa.
Iniciamos a análise quantitativa com as tabelas que demonstram a ocorrência de
sufixos participiais imperfectizadores (Tabela 2) e perfectizadores (Tabela 3), a seguir:
161
TABELA 2 - Ocorrência de sufixos participiais imperfectizadores
(funções adjetiva e adverbial)
Narrativa
-anta
-ante
-ata
-ate
Total
N1
5
12
1
0
18
N2
7
9
2
1
19
N3
2
42
4
0
48
N4
6
6
4
0
16
N5
4
3
1
0
8
N6
5
1
0
0
6
N7
1
2
0
0
3
N8
0
7
5
0
12
N9
7
17
2
0
26
N10
0
5
0
0
5
N11
6
25
1
1
33
N12
10
14
4
0
28
N13
6
13
5
0
24
N14
1
6
1
1
9
N15
5
5
3
1
14
N16
16
11
7
0
34
N17
0
8
1
0
9
N18
1
2
2
0
5
N19
2
3
2
0
7
N20
0
3
4
0
7
Total
84
194
49
4
331
%
25
59
15
1
100
162
GRÁFICO 1 - Estratégia de imperfectização
Em um universo de 331 sufixos aspectualizadores imperfectizadores participiais ativos e
passivos, nas funções adjetiva e adverbial, o Gráfico (1) mostra a ocorrência de 59% do sufixo
participial presente ativo adverbial ante, o que demonstra uma estratégia comum de se
expressar gramaticalmente a imperfectividade em Esperanto por meio da função adverbial do
particípio presente ativo.
Sabe-se que o aspecto imperfectivo a situação como em curso, quer em um sentido
durativo, continuativo ou habitual. Nesse sentido, a ação apresenta-se como começada, mas
não terminada. Essa noção aspectual é expressa gramaticalmente por meio do emprego do
sufixo temporal presente as e dos sufixos de particípio presente ativo ant ou de particípio
presente passivo at. Nossos corpora revelam (ver Tabela 2) que o sufixo participial
imperfectivo ant é mais frequente na função adverbial (-ante) do que na adjetiva (-anta), esta
com ocorrência de apenas 25 % em relação àquela, com 59 %. Um dado interessante para
posteriores pesquisas é que, com relação ao sufixo imperfectizador adjetivo anta, identificamos
sua maior ocorrência (ocorre 16 vezes) em N16, narrativa original em ngua russa, traduzida
em Esperanto por autor russo.
O nosso ponto de vista é o de que a baixa ocorrência (25 % ) em geral do particípio
adjetivo (marcado por -anta) é compensada pela frequência de 59 % do particípio adverbial
(terminado em ante). Convém destacar que as incidências maiores do operador ante são
Estratégia de imperfectização
Anta
Ante
Ata
Ate
163
nas narrativas N3 (russa) com 42 ocorrências, N11 (coreana) com 25 ocorrências e N9
(croata) com 17 ocorrências.
Em suma, na predicação esperanta, uma das estratégias comuns para a construção da
imperfectividade é o uso do particípio presente ativo, na função adverbial ante, equivalente a
uma oração reduzida de gerúndio em português como, por exemplo:
(185) Miaj lernejaj amikoj promenante kun sia familio fondita antaŭ kvar - kvin jaroj salutas
min afable [...] (N9, p.198)
(Meus amigos de escola, passeando com a família estabelecida há quatro cinco anos,
cumprimentam-me afáveis [...])
Nesse enunciado, verifica-se o uso do particípio-advérbio presente ativo promenante
com valor aspectual imperfectivo cursivo. A forma participial promenante (que em português
tem o sentido de ―enquanto passeiam‖, ―passeando‖) introduz uma informação nova,
característica do plano discursivo de fundo em contraste com a figura expressa pela
predicação da oração principal salutas min afable (cumprimentam-me com delicadeza).
Comparando-se os sufixos participiais ativos e passivos, verifica-se o índice
insignificante de frequência do sufixo participial presente passivo em ate: 1 % em relação a
59% de frequência do sufixo participial presente ativo (adverbial) ante. Também é
pequena a ocorrência do sufixo participial presente passivo em função adjetiva ata (15 % ),
quando comparada à do sufixo -anta (25 % ). Os resultados apontam uma preferência pelo
uso dos sufixos participiais ativos nas narrativas estudadas, em detrimento dos passivos,
como recursos de aspectualização imperfectiva.
TABELA 3 - Ocorrência de sufixos participiais perfectizadores
Narrativa
-inta
-inte
-ita
-ite
Total
N1
4
1
8
1
14
N2
0
6
7
0
13
N3
7
16
10
2
35
N4
1
2
9
1
13
N5
3
1
8
0
12
N6
0
1
17
1
19
N7
0
1
3
0
4
164
N8
5
0
1
0
6
N9
5
2
11
0
18
N10
0
0
11
0
11
N11
4
0
16
0
20
N12
0
1
8
3
12
N13
1
3
19
1
24
N14
4
0
12
1
17
N15
3
0
15
2
20
N16
1
2
16
1
20
N17
10
0
4
1
15
N18
8
1
7
1
17
N19
3
0
11
0
14
N20
6
0
9
0
15
Total
65
37
202
15
319
%
20
12
63
5
100
GRÁFICO 2 - Estratégia de perfectização
O Gráfico 2 mostra que, em um universo de 319 sufixos aspectualizadores
perfectizadores participiais ativos e passivos, nas funções adjetiva e adverbial, a
perfectividade é fortemente expressa pela forma adjetiva do sufixo participial passado passivo
ita, a saber, 63% em relação a 20% do ativo inta. Aqui a forma adverbial é de baixa
Estratégia de perfectização
inta
inte
ita
ite
165
frequência: 11% de ocorrência do sufixo participial passado ativo em função adverbial -inte e
5% de ocorrência do sufixo participial passado passivo em função adverbial ite. É oportuno
observar que se verifica uma inversão quanto às estratégias de uso da aspectualização, quando
comparamos as tabelas 1 e 2. A primeira indica como recurso de imperfectização a
recorrência do uso da forma participial presente ativa adverbial ante; ao passo que a segunda
aponta para a frequência do sufixo participial passado passivo, em função adjetiva, -ita como
estratégia comum de perfectização.
Especificamente com relação às ocorrências de ata e ita, de um total de 251 sufixos
adjetivos participiais passivos ata e -ita, destacamos a ocorrência de 80% de ita, em
comparação a 20% de ata. Os dados da Tabela 4 vêm confirmar a preferência de o usuário
internacional do Esperanto construir a perfectização por meio do uso de particípios passados
passivos em função adjetiva ita. Esse dado é importante na medida que revela a tendência do
uso de ita na função aspectual perfectizadora, contrariando os teóricos denominados
tempistas que, durante um longo período de tempo, lutaram a favor da aceitação oficial da
forma participial terminada em -ata, atribuindo-lhe o mesmo valor que hoje verificamos no
uso da forma participial em ita. Veja-se a Tabela 4:
TABELA 4 - Ocorrência dos sufixos participiais passivos: -ata / -ita
Função adjetiva
Narrativa
-ata
-ita
Total
N1
1
8
9
N2
2
7
9
N3
4
10
14
N4
4
9
13
N5
1
8
9
N6
0
17
17
N7
0
3
3
N8
5
1
6
N9
2
11
13
N10
0
11
11
N11
1
16
17
N12
4
8
12
166
N13
5
19
24
N14
1
12
13
N15
3
15
18
N16
7
16
23
N17
1
4
5
N18
2
7
9
N19
2
11
13
N20
4
9
13
Total
49
202
251
%
20
80
100
Como foi dito neste trabalho, o aspecto perfectivo considera a situação como uma
entidade delimitada, completada, terminada, perfeitamente cumprida, enquanto o imperfectivo
é a estratégia para o usuário fazer uma ―referência explícita à constituição temporal interna de
uma situação‖
187
(COMRIE, 1976, p. 21).
Em nossa pesquisa, consideramos a hipótese do caráter verbo-nominal do aspecto em
Esperanto, ou seja, debruçamo-nos não sobre os verbos mas também sobre os adjetivos e
advérbios participiais. Assim, analisamos os particípios-adjetivos tanto na função de adjuntos
adnominais quanto na de predicativos, apoiando-nos no estudo do linguista francês Lo
Jacomo (1981, p. 230), para quem o operador aspectual -ita é qualificativo: interessa o estado
que é resultado da ação.
Na predicação nominal, normalmente o particípio-adjetivo pode ocorrer após o verbo
esti (ser, estar), conforme mostra a Tabela 5:
TABELA 5 - Ocorrências de verbo esti + particípio-adjetivo
Narrativas
-anta
-inta
-onta
-ata
-ita
-ota
Total
N1
0
2
0
1
3
1
7
N2
0
0
0
1
1
0
2
N3
0
2
0
5
2
0
9
N4
1
2
0
0
0
0
3
187
No original: [...] explicit reference to internal temporal constituency of the situation.”
167
N5
0
3
1
1
1
0
6
N6
0
0
1
0
4
0
5
N7
0
0
0
1
2
0
3
N8
1
4
0
2
0
0
7
N9
0
2
0
1
3
0
6
N10
0
0
0
0
5
0
5
N11
1
0
0
0
1
0
2
N12
0
0
0
4
5
0
9
N13
0
0
0
2
3
0
5
N14
0
4
1
1
12
0
18
N15
0
0
0
0
2
0
2
N16
14
1
0
5
8
0
28
N17
0
9
0
0
1
0
10
N18
0
7
0
0
2
0
9
N19
0
3
0
1
9
0
13
N20
0
4
0
3
3
0
10
Total
17
43
3
28
67
1
159
%
10
27
2
18
42
1
100
Essas construções, constituídas de particípio-adjetivo - cuja função é tradicionalmente
conhecida como predicativo - são menos frequentes no uso da língua. Nos corpora estudados,
do total de 407 particípios-adjetivos, apenas 159 enquadram-se nesse perfil. São essas
construções nominais que até então a maioria dos gramáticos e alguns interlinguistas têm
considerado como ―tempos compostos‖ ou ―tempos complexos‖ do Esperanto.
Cumpre-nos notar ainda que, também nesse contexto, o emprego do operador
aspectual perfectivo ita supera a do imperfectivo ata, conforme o Gráfico 3, com
ocorrências de 41 % e 18 % respectivamente, no universo de 159 particípios-adjetivos na
função predicativa:
168
GRÁFICO 3 - Verbo esti + particípio
Com relação à ocorrência dos sufixos participiais ativos adverbiais, observe-se a Tabela 6:
TABELA 6 - Ocorrência de sufixos participiais ativos - Função adverbial
Narrativa
-ante
-inte
-onte
Total
N1
12
1
0
13
N2
9
6
0
15
N3
42
16
0
58
N4
6
2
0
8
N5
3
1
0
4
N6
1
1
0
2
N7
2
1
0
3
N8
7
0
0
7
N9
17
2
0
19
N10
5
0
0
5
N11
25
0
0
25
N12
14
1
0
15
Verbo esti + particípio
anta
inta
onta
ata
ita
ota
169
N13
13
3
0
16
N14
6
0
0
6
N15
5
0
0
5
N16
11
2
0
13
N17
8
0
0
8
N18
2
1
0
3
N19
3
0
0
3
N20
3
0
0
3
Total
194
37
0
231
%
84
16
0
100
Em um universo de 231 sufixos participiais ativos adverbiais -ante, -inte, -onte,
destacamos a ocorrência de 84 % de -ante, 16 % de -inte e nenhuma ocorrência de -onte. A
Tabela (6) vem, reiterar, portanto, a preferência pelo uso do particípio presente ativo (-ante),
em função adverbial, como recurso de aspectualização imperfectiva.
Por outro lado, com relação à ocorrência dos sufixos participiais passivos adverbiais, a
Tabela 7 aponta para a preferência de ite para a perfectização:
TABELA 7 - Ocorrência de sufixos participiais passivos
Função adverbial
Narrativa
-ate
-ite
-ote
Total
N1
0
1
0
1
N2
1
0
0
1
N3
0
2
0
2
N4
0
1
0
1
N5
0
0
0
0
N6
0
1
0
1
N7
0
0
0
0
N8
0
0
0
0
N9
0
0
0
0
170
N10
0
0
0
0
N11
1
0
0
1
N12
0
3
0
3
N13
0
1
0
1
N14
1
1
0
2
N15
1
2
0
3
N16
0
1
0
1
N17
0
1
0
1
N18
0
1
0
1
N19
0
0
0
0
N20
0
0
0
0
Total
4
15
0
19
%
21
79
0
100
Em um universo de 19 sufixos adverbiais participiais passivos -ate, -ite, -ote,
destacamos a ocorrência de 79% de -ite, 21 % de -ate e nenhuma ocorrência de -ote. É
interessante notar que os dados expressam uma similaridade de comportamento entre os
aspectualizadores participiais passivos adverbiais e adjetivos. De um total de 253 sufixos
adjetivos participiais passivos ata, -ita, -ota, verificamos a ocorrência de 80 % de ita, 20 %
de ata e 1 % de ota. Principalmente entre ita
188
(com 80% de ocorrências) e ite (com 79
%). Tal constatação vem reforçar a preferência pela perfectizacão gramatical por meio de
sufixos de particípios passados passivos ita ou ite, em função adjetiva e adverbial
respectivamente.
Com relação aos operadores aspectuais prospectivos, verificou-se, em um âmbito
muito restrito de sete (7) operadores aspectuais prospectivos, a existência de 71 % de
ocorrências de sufixos de particípio futuro ativo, em função adjetiva onta contra 29 % do
futuro passivo ota. Na função adverbial (ativo: -onte; passivo: -ote) não consta nenhuma
ocorrência de operador aspectual prospectivo nos corpora pesquisados. Esses dados indicam
que o aspecto prospectivo é feito por meio do uso do sufixo de particípio futuro ativo, em
função adjetiva onta,conforme mostra a Tabela 8:
188
Ver Tabela 4.
171
TABELA 8 - Ocorrência de sufixos participiais aspectuais prospectivos
Narrativas
-onta
-ota
-onte
-ote
Total
N1
0
1
0
0
1
N2
0
0
0
0
0
N3
0
0
0
0
0
N4
1
0
0
0
1
N5
1
0
0
0
1
N6
0
0
0
0
0
N7
1
1
0
0
2
N8
0
0
0
0
0
N9
0
0
0
0
0
N10
0
0
0
0
0
N11
0
0
0
0
0
N12
0
0
0
0
0
N13
0
0
0
0
0
N14
1
0
0
0
1
N15
0
0
0
0
0
N16
0
0
0
0
0
N17
0
0
0
0
0
N18
0
0
0
0
0
N19
0
0
0
0
0
N20
1
0
0
0
1
Total
5
2
0
0
7
%
71
29
0
0
100
Quanto aos particípios com função de substantivo, a Tabela 9 mostra a seguinte
ocorrência de sufixos participiais ativos e passivos (no presente, passado e futuro):
TABELA 9 - Ocorrência de sufixos participiais substantivos ativos e passivos
Narrativas
-anto
-into
-onto
-ato
-ito
-oto
Total
172
N1
0
3
0
0
2
0
5
N2
1
3
0
0
1
0
5
N3
13
4
0
0
1
0
18
N4
6
0
0
0
0
0
6
N5
1
1
0
0
0
0
2
N6
3
0
0
0
0
0
3
N7
0
2
0
3
0
0
5
N8
0
0
1
1
0
0
2
N9
0
5
1
2
0
0
8
N10
0
0
0
3
0
0
3
N11
4
0
0
0
0
0
4
N12
0
1
0
0
2
0
3
N13
0
0
0
0
0
0
0
N14
0
0
0
2
0
0
2
N15
0
0
0
0
0
0
0
N16
2
1
0
0
1
0
4
N17
0
0
0
0
0
0
0
N18
2
1
0
0
0
0
3
N19
1
0
0
0
0
0
1
N20
0
0
0
2
0
0
2
Total
33
21
2
13
7
0
76
%
43
27
3
17
10
0
100
Em um universo de 76 sufixos participiais ativos e passivos, com função de
substantivo, destacamos a ocorrência de 43 % de -anto, seguida da ocorrência de 27 % de
into. Os dados apontam a preferência de emprego de nomes substantivos participiais ativos,
na forma do presente (-anto), comparando-se com os passivos (17% terminados em ato). Em
suma, destaca-se o operador aspectual participial presente ativo anto, representando a
nominalização da ação por meio do agente, daquele ‗que age‘ ou ‗está agindo‘. Cumpre-nos
ressaltar que, nos corpora pesquisados, é mais frequente o uso do particípio-substantivo ativo
presente (43% em -anto) do que o emprego do particípio-substantivo ativo passado (27 %
terminados em into); tais formas referem-se geralmente a pessoas.
Exemplificação:
173
(186) Ĉiutage, ĉiutage sen interrompo atakas min diversaj vizitantoj. ( N3, p.44)
(Todo dia, todo dia sem interrupção, atacam-me diversos visitantes.)
Nesse enunciado ocorre o particípio-substantivo ativo presente vizitantoj , isto é, os que
visitam sempre.
(187) Tiutempe, la kondamnitoj al fora insula estis kompreneble la personoj, kies identeco
kun la farintoj de grava krimo estis pruvita. (N12, p.5)
(Naquele tempo os condenados à ilha distante eram certamente as pessoas cuja identidade
com os que fizeram crime grave tinha sido provada.)
O enunciado acima apresenta dois particípios-substantivos: kondamnitoj e farintoj. O
primeiro é pretérito passivo (kondamnitoj: os que foram condenados); o segundo é pretérito
ativo (farintoj: os que fizeram).
Dentre os operadores aspectuais derivacionais, o prefixo ek- é um dos mais frequentes
no uso da língua, tanto no seu valor de operador aspectual inceptivo quanto pontual. Nos
corpora desta tese, de um total de 151 ocorrências de ek-, notamos sua incidência maior na
narrativa N3, de autor russo, escrita diretamente em Esperanto, com 22 ocorrências e na
narrativa N18, tradução do búlgaro, com 16 ocorrências.
Convém ressaltar ainda que tanto em C1 (narrativas originais) quanto em C2
(narrativas traduzidas) verifica-se a incidência maior de uso de ek- em narrativas cujos
autores (ou tradutores) são falantes de línguas eslavas. Em C1, observamos maior ocorrência
de ek- em narrativa de autores de línguas eslavas, a saber russo (N3, com 32% de ocorrências)
e croata (N9, com 14 % de ocorrências); com este último coincide o número de ocorrência em
autor de língua francesa (N2, com 14% de ocorrências), conforme mostra a Tabela 10 abaixo:
TABELA 10 - Ocorrência do operador ek- em C1
Ek
N1
N2
N3
N4
N5
N6
N7
N8
N9
N10
Total
Total
2
9
22
7
3
2
6
1
9
7
68
%
3
14
32
10
4
3
9
1
14
10
100
Em C2, verificamos a ocorrência maior de ek- também em narrativa de autor de línguas
eslava, a saber, 19 % em N18 (búlgaro); como em C1, os dados revelam uma grande semelhança de
uso de ek- em narrativa de autor de língua eslava e autor de língua neolatina, a saber, 14 % em N16
(russo) e 16 % em N13 (português brasileiro), confome mostra a Tabela 11:
174
TABELA 11 - Ocorrência do operador ek- em C2
Ek
N11
N12
N13
N14
N15
N16
N17
N18
N19
N20
Total
Total
8
8
13
8
7
12
4
16
1
6
83
%
10
10
16
10
8
14
5
19
1
7
100
Visando apresentar uma pequena amostragem comparativa da ocorrência de uso do
operador aspectual ek- com sentido inceptivo e ek- com sentido pontual, selecionamos quatro
narrativas que têm maior incidência do uso de ek- : duas originais (N3 e N9, autores russo e
francês, respectivamente) e duas traduzidas (N13 e N18, autores búlgaro e brasileiro,
respectivamente). Veja-se a Tabela 12:
TABELA 12 - Ocorrência dos operador ek-(1) e ek- (2) em 04 narrativas dos corpora
Narrativas
Ek- (1)
inceptivo
Ek- (2)
pontual
Total
N3
9
13
22
N9
03
06
9
N18
9
7
16
N13
4
9
13
Total
25
35
60
%
42
58
100
A Tabela 12 aponta uma maior incidência do uso do operador aspectual ek- no sentido
pontual, com 58 % de ocorrências, enquanto o ek- no sentido inceptivo apresenta 42 % de
incidência. Por outro lado, quando se compara o uso de aspectualizadores inceptivos nas 04
narrativas escolhidas acima, evidencia-se uma preferência pelo uso de ek- com 89 % de
ocorrência, em vez da perífrase inceptiva komenci+infinitivo, conforme demonstra a Tabela
13:
175
TABELA 13 - Aspectualizadores inceptivos
Narrativas
Ek- (1)
inceptivo
Perífrase:
Komenci+infinitivo
Total
N3
9
0
9
N9
03
1
4
N18
9
1
10
N13
4
1
5
Total
25
3
28
%
89
11
100
Com relação aos operadores derivacionais perfectizadores, os dados apontam uma
preferência pelo uso do operador prefixal tra- como estratégia de perfectizacão derivacional,
em um universo de 15 ocorrências de afixos derivacionais aspectualizadores perfectivos tra-
(73 %) e el- (27 %), conforme mostra a Tabela 14:
TABELA 14 - Operadores derivacionais perfectizadores
Narrativa
tra-
el-
Total
N1
0
1
1
N2
0
0
0
N3
0
0
0
N4
0
0
0
N5
1
0
1
N6
0
0
0
N7
0
0
0
N8
0
0
0
N9
0
0
0
N10
0
1
1
N11
0
0
0
N12
1
0
1
N13
1
2
3
176
N14
1
0
1
N15
1
0
1
N16
2
0
2
N17
3
0
3
N18
0
0
0
N19
1
0
1
N20
0
0
0
Total
11
4
15
%
73
27
100
Os resultados encontrados em nossa análise apontam algumas tendências quanto ao
uso dos operadores aspectuais gramaticais em Esperanto.
Os dados dos corpora C1 e C2 levam-nos a concluir que o uso da forma verbal no
tempo presente (em as) é o recurso mais comum e geral para o usuário internacional
expressar o aspecto imperfectivo; outras tendências são o uso do particípio presente ativo
(em ant ) em detrimento do passivo (em at ); o emprego do particípio presente ativo, na
função adverbial, marcado pelo sufixo ante. Tal recurso destaca-se no plano discursivo de
fundo, configurando, sobretudo, sequências textuais descritivas. Apontamos ainda o emprego
do sufixo ad como estratégia de imperfectização durativa e iterativa; a preferência pelo
operador ek- em vez da perífrase komenci + infinitivo para codificar o imperfectivo
inceptivo.
Quanto às estratégias gramaticais de perfectizacão, a análise aponta o emprego
preferencial do particípio passado passivo em função adjetiva (por meio do sufixo participial
ita), com sentido resultativo; evidencia-se ainda a grande recorrência do prefixo ek- para
expressar o aspecto perfectivo pontual.
Convém, todavia, lembrar a relevância da interação dos diversos fatores
composicionais que configuram a aspectualidade, essa propriedade da predicação. O aspecto
perfectivo depende, em geral, da interação entre operadores morfossintáticos como advérbios
e sintagmas adverbiais aspectualizadores e a Aktionsart ou acionalidade do verbo.
Com referência ao uso de operadores lexicais que apresentam mais de um significado
como os prefixos tra-, el-, ek- , cumpre observar a grande recorrência de ek- para expressar o
aspecto perfectivo pontual, sobretudo nas narrativas escritas (ou traduzidas) por usuários de
línguas eslavas. Por outro lado, também para a expressão do aspecto imperfectivo inceptivo,
177
constata-se a preferência pelo operador ek- em vez da perífrase komenci+ infinitivo. Trata-se,
pois, de interessante característica semântica do Esperanto, digna de posteriores pesquisas no
campo da interlinguística.
Quanto ao aspecto prospectivo, os dados revelam sua pouca frequência de uso, pois
em âmbito muito restrito de apenas sete operadores aspectuais prospectivos, foi verificada a
ocorrência de 71% de particípio futuro ativo, em função adjetiva (em onta) contra 29 % do
particípio futuro passivo (em ota).
RESUMO
Neste capítulo procedemos à análise qualitativa e ao estudo de frequência dos dados,
buscando a validação das hipóteses formuladas. Também propomos uma tipologia aspectual
esperanta.
Encontramos em nossos corpora a função aspectual expressa por meio dos seguintes
operadores aspectuais gramaticais:
a) sufixos flexionais: temporal (tempo presente: -as) e participiais (particípios ativos: -ant, -
int, -ont; passivos: -at, -it, -ot );
b) afixos derivacionais (-ad, ek-, re-, el-, tra-, fin-, ĝis-).
Esses resultados encontrados em nossa análise apontam algumas tendências quanto ao
uso dos operadores gramaticais aspectuais em Esperanto, a saber:
a) para a expressão do aspecto imperfectivo: o uso da forma verbal no tempo presente;); o
uso do particípio presente ativo (em ant ) em detrimento do passivo (em at ); o emprego
do particípio presente ativo, na função adverbial (em ante ); o emprego do sufixo ad como
estratégia de imperfectização durativa e iterativa; a preferência pelo operador ek- em vez da
perífrase komenci + infinitivo para codificar o imperfectivo inceptivo;
b) para a expressão do aspecto perfectivo: o emprego do particípio passado passivo em
função adjetiva (por meio do sufixo ita), com sentido resultativo; a grande recorrência do
prefixo ek- para expressar o aspecto perfectivo pontual;
c) para a expresão do aspecto prospectivo: o uso do particípio futuro ativo em função
adjetiva (por meio do sufixo onta). Ficou evidenciada também a baixa frequência do aspecto
prospectivo segundo os dados dos corpora analisados.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os corpora examinados nesta tese atestam a ocorrência de diferentes recursos de
aspectualização em Esperanto, corroborando a nossa hipótese geral de que o aspecto está
presente e funciona no uso dessa língua internacional. A escolha de dez narrativas originais e
dez vertidas para o Esperanto foi motivada não pelo desejo de trabalhar com um corpus
variado e amplo como também pela oportunidade de pesquisar a possibilidade de diferenças
de uso das estratégias aspectuais entre usuários de diversas línguas maternas.
Nossa pesquisa encontrou também outros operadores gramaticais aspectuais além
daqueles sobre os quais foi feito um estudo de frequência, a saber:
a) advérbios e sintagmas adverbiais aspectualizadores;
b) perífrases verbais;
c) argumentos do verbo;
d) tipo oracional.
Cumpre destacar ainda estratégias linguístico-discursivas identificadas nas narrativas
dos corpora como, por exemplo: (i) a repetição de afixos, raízes, verbos ou advérbios; (ii) o
tipo textual (narrativo e / ou descritivo).
Todos esses fatores devem ser levados em conta para uma leitura aspectual de
sentenças em narrativas do Esperanto. A seguir, exemplificamos a aspectualidade motivada
por perífrase, padrão sentencial e contexto discursivo.
7.1 EXPRESSÃO DO ASPECTO PELAS PERÍFRASES VERBAIS
Convém esclarecer que, neste trabalho, o termo perífrase denota uma sequência
constituída de um verbo conjugado em um determinado tempo ou modo seguido de uma
forma verbal no infinitivo, a saber: komenci + infinitivo, daŭri + infinitivo, etc. As perífrases
são operadores aspectuais de que o usuário do Esperanto pode também servir-se para
expressar a aspectualidade. A mais frequente nos corpora é a que expressa inceptividade,
formada pela combinação do verbo komenci seguida do infinitivo do verbo principal.
Exemplificação:
(1) Aspecto imperfectivo inceptivo: komenci + infinitivo (começar + infinitivo)
(188) Kisuke kun tre humila dankemo komencis rakonti mallaŭte. (N12, p.12)
(Kisuke, humildemente agradecido, começou a contar em voz baixa.)
O verbo komencis (começou) na perífrase komencis rakonti, promove a aspectualidade
imperfectiva inceptiva do evento rakonti (contar); komencis rakonti.
(189) La ĉapelisto komencis montri al la kamparano kelkajn ĉapelojn [...] (N7, p.248)
(O chapeleiro começou a mostrar ao camponês alguns chapéus.)
(190) Mia edzo komencis amuziĝi [...] (N 8, p.286)
(Meu marido começou a divertir-se.)
(2) Aspecto imperfectivo durativo: daŭri + infinitivo (durar/ ter continuidade + infinitivo)
(191) Kaj li daŭrigis klarigi al mi la bildojn. (N5, p. p.101)
(E ele continuou a me explicar as gravuras.)
O verbo daŭrigis da perífrase daŭrigis klarigi (continuou a explicar) expressa o
aspecto imperfectivo durativo. O sufixo ig, de significado causativo, torna transitivo o verbo
daŭri: daŭrigi: ―fazer ter continuidade, continuar‖ o esclarecimento a alguém.
(3) Aspecto imperfectivo com sentido iterativo habitual
(192) En la boato la krimulo kaj parenco kutimas maldormi la tutan nokton, flustrante al si
reciproke la personajn travivaĵojn. (N12, p.5-6)
(No barco, o criminoso e um parente têm o costume de ficar sem dormir a noite inteira,
sussurrando-se reciprocamente as experiências da vida pessoal.)
Na perífrase kutimas maldormi (costumam ficar sem dormir), o valor aspectual
imperfectivo iterativo habitual é calculado por meio do próprio significado do verbo kutimi
(ter o costume, ter hábito, costumar).
7.2 OPERADORES ASPECTUAIS ORACIONAIS
O tipo oracional é também recurso de aspectualização em Esperanto. Nos textos
narrativos pesquisados, encontramos exemplos de três padrões sentenciais: (i) orações
subordinadas adverbiais temporais; (ii) as orações coordenadas alternativas; (ii) orações
coordenadas aditivas em polissíndeto.
(i) Orações subordinadas adverbiais temporais
179
180
Conectivos: dum (enquanto), kiam (quando)
(193) La patrino parolis pri abomenaj malpuraĵoj, dum la haŭto parolis per fulmo kaj
parfumo‖. (N1, p. 140)
(A mãe falava de impurezas abomináveis, enquanto a pele falava por meio de lampejo e
perfume.)
A oração adverbial temporal iniciada pelo conectivo dum (enquanto) expressa
simultaneidade, duração, promovendo a leitura aspectual imperfectiva durativa do enunciado.
(194) Tuj kiam la kataĉo malaperis sub la seĝo, Kubrik forsaltis de la mastro. (N3, p. 48)
(Logo que o desprezível gato desaparecia sob a cadeira, Kubrik pulava fora do dono).
A oração adverbial temporal iniciada pelo conectivo kiam (quando), reforçado pelo
advérbio pontual tuj (logo), estabelece o contexto de habitualidade (implicando o sentido de
―todas as vezes que‖), expressando no enunciado o aspecto imperfectivo iterativo de sentido
habitual.
(195) - Kiam li estis ebria, ŝi kaŝis sin supre kaj ploregis [...] (N16, p.4)
(Quando ele estava embriagado, ela se escondia em cima e chorava demais [...]).
O operador kiam (quando) também tem o mesmo valor quantitativo de ―todas as vezes
que‖, promovendo a leitura aspectual iterativa habitual de todo o enunciado, a saber:
kiam li estis ebria (ii) kaj ploregis o aspecto iterativo habitual é imperfectivo devido a
Aktionsart atélica dos verbos esti (estar) e ploregi (chorar demais);
ŝi kaŝis sin supre o aspecto iterativo é perfectivo devido a Aktionsart télica do verbo kaŝi
(esconder) da classe semântica dos achievements.
(196) -Kiam mi venis al Luganoviĉoj la servistoj afable ridetis, la infano kriis, ke venis oĉjo
Paŭlo kaj ĵetis sin sur mian kolon. (N16, p.8)
(Quando eu chegava aos Luganovitch, os empregados sorriam afáveis, as crianças gritavam
que tiozinho Paulo tinha chegado e se jogavam no meu pescoço.)
Também aqui podemos fazer uma leitura aspectual iterativa dos predicados cujos
núcleos são os verbos venis (chegava), ridetis (sorriam), kriis (gritavam) e ĵetis (jogavam),
graças ao operador kiam (quando, todas as vezes que).
Identificamos a perfectividade iterativa nos verbos veni (chegar), na oração iniciada por kiam,
e ĵeti (jogar), devido às suas caracerísticas semânticas de achievement. Os demais verbos,
rideti (sorrir) e krii (gritar), de natureza atélica, configuram a imperfectividade iterativa.
(197) Bruliginte la cigaron, li fiksis la kubutojn sur la tablon kaj ekparolis al S-ino Severina
pri tridek mil aferoj tute seninteresaj al nia Inácio; sed dum li parolis, li ne insultis ĉi tiun,
kiu povis libere fantazii. (N13, p. 43 )
181
(―Aceso o charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que
não interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto ele falava, não o descompunha e ele
podia devanear à larga.‖) (ASSIS, 2004, p. 108)
A oração (...) sed dum li parolis (‗mas enquanto ele falava‘), denota a ação de duração
simultânea àquelas apresentadas na oração principal (li ne insultis ĉi tiun: ‗não o
descompunha‘) e na subordinada adjetiva (kiu povis libere fantazii), todas com leitura
imperfectiva durativa, cursiva.
(198) Kiam la princino duonan horon pli malfrue en la parko promenadis, venis renkonte al
ŝi juna viro en ĉasistvesto. (N20, p.20)
(Quando a princesa passeava meia hora mais tarde no parque, veio ao seu encontro um
homem jovem em roupas de caça.)
Usando os termos de Ilari (2004, p.19), ocorre aqui um esquema de incidência, por
meio do qual são colocados em relação dois fatos: o encontro do jovem com a princesa,
representado como um todo indivisível e localizado: venis renkonte al ŝi (veio ao seu
encontro), com leitura aspectual perfectiva, e o passeio da princesa: kiam promenadis (quando
passeava), representado como uma ação durativa que se inicia antes da vinda do jovem,
codificada pelo operador ad com leitura aspectual imperfectiva durativa cursiva.
Em termos de planos discursivos, a oração subordinada adverbial temporal, com o verbo no
aspecto imperfectivo promenadis (passeava), configura o cenário de fundo (background),
descritivo, onde acontece a ação de figura (foreground) principal, perfectiva: venis (veio) .
ii) Orações coordenadas alternativas
Conectivos: jen … jen ... (ora...ora...)
(199) Jen ŝi malaperas, jen ŝi surprize reaperas. (N15, p. p. 110)
(Ora ela desaparece, ora ela reaparece de surpresa.)
A correlação alternativa jen.... jen (ora...ora...), em predicações com o verbo no
presente gera o sentido sentido aspectual iterativo; o prefixo re- ( em reaperas, reaparece,
aparece de novo) reforça essa noção aspectual. Identificamos também a perfectividade
pontual devido à classe aspectual lexical de achievement dos verbos aperi, malaperi, reaperi
(aparecer, desaparecer, reaparecer, respectivamente).
(iii) Orações coordenadas aditivas em polissíndeto
Conectivos: kaj … kaj ... kaj ... kaj...(e... e... e... e...)
182
(200) La ventego lin batas sur la dorson, kaj ĝi ploras post li, kaj fajfas, kaj bruas, kvazaŭ
koboldoj sur feina dancejo (...) kaj Klime iras antaŭen, antaŭen kaj la dezerto fariĝas pli kaj
pli senfina kaj tombosimila. (N18, p.9)
(A ventania bate em suas costas, e ela chora atrás dele, e assobia, e faz barulho, como duendes
em um baile de fadas [...] e Klime segue adiante, adiante, e o deserto torna-se mais e mais
sem fim e parecido com um túmulo.)
A repetição da conjunção aditiva kaj (e), adicionando orações em sequência, com os
verbos no tempo presente, aponta para uma leitura imperfectiva cursiva da predicação: kaj ĝi
ploras, kaj fajfas, kaj bruas kaj Klime iras antaŭen antaŭen kaj la dezerto fariĝas pli kaj pli
senfina...(e ela chora, e assobia, e faz barulho e Klime segue adiante e o deserto torna-se mais
e mais sem fim [...] ) O predicado da oração principal lin batas sur la dorson (bate em suas
costas) instaura a imperfectividade iterativa devido às propriedades semânticas do SN sujeito
la ventego (a ventania): ―vento impetuoso e contínuo‖. Seria diferente, por exemplo, se fosse
um SN sujeito como la ŝtelisto (o ladrão) em la ŝtelisto batas la virinon kaj forkuras (o
ladrão bate na mulher e foge); a predicação batas la virinon apresenta um sentido aspectual
perfectivo. Em la ventego lin batas sur la dorson ocorre a aspectualidade imperfectiva, com a
recategorização do verbo bati (bater).
7.3 ARGUMENTOS DO VERBO
Na abordagem composicional do aspecto é preciso considerar, portanto, a função dos
argumentos e dos adjuntos da sentença. ―Traços semânticos dos argumentos externo e interno,
bem como sua figuração no singular ou no plural, interferem na constituição do significado
aspectual.‖(Castilho, 2002, p.95). Demonstramos pelo enunciado (195) que esse postulado de
Castilho também se verifica em Esperanto. A seguir ilustramos com mais exemplos colhidos
nas narrativas dos corpora:
(201) Kaj kiel minace kaj terure fajfas ekstere la ventego! Ĝi frapas la fenestron, frapas la
pordon, dislevas la fojnon (feno) de l‟tegmento (...) Sed ne, Klime ne venas, kaj la ventego
kantas ekstere. (N18, p.6)
(E como a ventania assobia ameaçadora e terrível fora! Ela golpeia a janela, golpeia a
porta, levanta e espalha o feno do telhado [...] Mas não, Klime não chega, e a ventania canta
lá fora.)
foi dito que as características semânticas do argumento (SN) sujeito ventego
(ventania) afetam a aspectualidade do predicado. No enunciado em estudo, o sujeito ventego
183
destaca com vigor o sentido iterativo de ‗golpear‘, ‗bater repetidamente‘da forma verbal
frapas, repetida no tempo presente, expressando aspecto imperfectivo iterativo. As formas
verbais no tempo presente fajfas (assobia) e kantas (canta) denotam aspecto imperfectivo
cursivo, independentemente da classe semântica do argumento.
(202) [...] la du knaboj flanke kuris kaj kunfrapis la manojn! (N19, p.8)
(Os dois meninos corriam ao lado e batiam palmas!)
No SV kunfrapis la manojn (batiam com as mãos), o verbo kunfrapis, composto pela
preposição kun (com) + frapi (golpear, bater) seguido do SN objeto direto no plural la
manojn, denota uma quantificação da situação, expressando o sentido aspectual imperfectivo
iterativo.
(203) La okuloj, ŝajne rigardantaj la perspektivon, monteto verde ornamita de la printempo,
povis vidi nenion, krom manĝaĵojn; farun-kuko, riz-kuko, rizaĵo, malvarma vermiĉelo,
porkaĵo-supo ktp., sinsekve trakuris antaŭ liaj okuloj. (N11, p.173)
(Os olhos, parecendo que olhavam a perspectiva, uma colina verde enfeitada pela primavera,
não conseguiam ver nada a não ser comida; um bolo de farinha, um bolo de arroz; uma
comida de arroz, um macarrão frio, uma sopa de carne de porco, etc atravessaram
sucessivamente diante de seus olhos.)
A predicação sinsekve trakuris antaŭ liaj okuloj (atravessaram sucessivamente diante
de seus olhos) tem como escopo cada constituinte do SN sujeito composto, expressando a
repetição do estado de coisas, denotando o sentido aspectual iterativo. Assim podemos ler
que: farun-kuko trakuris (um bolo de farinha atravessou); riz-kuko trakuris (um bolo de arroz
atravessou); rizaĵo trakuris (uma comida de arroz atravessou); malvarma vermiĉelo trakuris
(um macarrão frio atravessou); porkaĵo-supo trakuris (uma sopa de carne de porco
atravessou), etc.
O SV sinsekve trakuris antaŭ liaj okuloj (atravessaram sucessivamente diante de seus
olhos) é constituído pelo verbo trakuri formado pelo verbo kuri (correr) no tempo passado
(kuris), antecedido do prefixo tra- (de lado a lado, através de) e determinado pelo advérbio
sinsekve (sucessivamente).
7.4 ADVÉRBIOS E SINTAGMAS ADVERBIAIS ASPECTUALIZADORES
Quanto aos advérbios e sintagmas adverbiais pudemos verificar sua importância na
construção da aspectualidade em Esperanto. Selecionamos e distribuímos alguns operadores
aspectuais adverbiais exemplificados no quadro abaixo.
184
QUADRO 18 - Operadores aspectuais adverbiais
Advérbios e sintagmas adverbiais aspectualizadores
Durativos
Iterativos
Iterativos
(habituais)
Pontuais
dume
(nesse ínterim)
daŭre
(continuamente)
plu
(mais,
continuadamente)
pli kaj pli
(mais e mais)
senĉese (sem
parar)
ree
(de novo)
ripete
(repetidamente)
plurfoje
(várias vezes)
centfoje
(cem vezes)
kelkfoje
(algumas vezes)
kutime
(costumeiramente)
ĉiam
(sempre)
ordinare
(comumente)
ofte
(frequentemente)
tage
(diariamente)
laŭ la rutino de
pluraj jaroj
(conforme a rotina
de vários anos)
ĉiujare ( todos os
anos )
vespere
(à noite)
vintre
(no inverno)
subite (subitamente)
rapide (rapidamente)
salte (de um salto)
tuj (logo)
fulme (como um raio)
ĵus (agora mesmo)
ĝuste en tiu momento
(exatamente naquele
momento)
Exemplificação:
(1) Advérbios de duração:
(204) Dume mia koro suferis. (N7, 245)
(Nesse ínterim meu coração sofria.)
(205) La patro daŭre ridetis. (N6, p.40)
(O pai sorria continuamente/continuava a sorrir.)
185
(2) Advérbio de iteração:
(206) Li ree rigardis en la korton kun atento.(N11, p.175)
(Ele olhou o pátio de novo com atenção.)
(3) Advérbios de iteração (sentido habitual):
(207) Serĉante laboron mi vagadis de loko al loko. Kie ajn mi trovis ĝin, tie mi ĉiam
laboregis.( N12, p.9)
(Procurando um trabalho, eu vagava de lugar em lugar. Onde quer que eu o encontrasse, ali
sempre trabalhava demais.)
(208) Somere mi ial ofte rememoris vin [...] (N16, p.7)
(No verão eu, por algum motivo, frequentemente me lembrava de você.)
(4) Advérbios pontuais
(209) Subite silentiĝis la elektra razilo. (N10, p.28 )
(Subitamente silenciou o barbeador elétrico.)
(210) Li tuj bremsis ĝin per mano por ke ĝi ne falu sur la teron. (N10 p.24)
(Ele logo aparou- o (o = cartão de convite) com a mão para que não caísse no chão.)
Além de advérbios, podem-se construir sintagmas adverbiais aspectualizadores,
segundo a criatividade e/ou necessidade comunicativa do usuário. Selecionamos abaixo
alguns exemplos extraídos das narrativas exploradas nesta pesquisa:
(1) Sintagmas adverbiais de duração
inter la tagmanĝo kaj la komenco de la posttagmezaj lecionoj
(entre o almoço e o começo das aulas da tarde)
senĉese (sem cessar)
pli kaj pli (mais e mais)
dum kelkaj minutoj (durante alguns minutos)
de kvin semajnoj (há cinco semanas)
dum momento (durante um momento)
(2) Sintagmas adverbiais de iteração
triafoje (três vezes)
plurfoje (várias vezes)
denove (de novo)
centfoje (cem vezes)
186
kiom da fojoj (quantas vezes)
de tempo al tempo (de tempo em tempo)
kelkfoje denove (algumas vezes de novo)
kelkfoje (algumas vezes)
trifoje (três vezes)
fojfoje (às vezes)
tien kaj reen ( para lá e para cá)
dufoje (duas vezes)
tri-aŭ kvarfoje (três ou quatro vezes)
unufoje, dekfoje, centfoje (uma vez, dez vezes, cem vezes)
(3) Sintagmas adverbiais iterativos de sentido habitual
ĉiutage (diaramente)
laŭ la rutino de pluraj jaroj ( conforme a rotina de vários anos )
nur dum noktoj (apenas durante as noites)
dumvintre (no inverno)
kiel ofte alifoje (como frequentemente outras vezes )
ofte, post sunsubiro (frequentemente, depois do pôr-do-sol)
ĉiutage matene ( todos os dias de mnhã )
ĉiujare ( todos os anos )
ĉiufoje (todas as vezes )
ĉiuvespere ( todas as noites )
kiel kutime (como de costume )
ĉiu matene post kafo-lakto (toda manhã após o café-com -leite)
posttagmeze (depois do meio-dia)
ĉiufoje (todas as vezes)
ne pli ol trifoje en la tago ( não mais do que três vezes por dia)
dum manĝoj (durante os almoços )
de mateno ĝis vespero (de manhã até a noite)
de la komenco ĝis la fino de la semajno (do começo ao fim da semana)
ĉiam pli ofte (sempre mais frequentemente)
(4) Sintagmas adverbiais de pontualidade
187
ĝuste en tiu momento (exatamente naquele momento)
tre rapide (muito rapidamente)
kiel pilko krevanta vitron (como uma bola quebrando uma vidraça)
Exemplificação:
a) Aspecto imperfectivo durativo (sentido progressivo)
(211) Baldaŭ komencis pluvi, la gutoj falis pli kaj pli dense, kvazaŭ rivere [...] (N19, p.8)
(Logo começou a chover, as gotas caíam cada vez mais densamente, como um rio [...] )
O sintagma adverbial de iteração pli kaj pli (mais e mais) é estratégia discursiva para
expressão do sentido de duração progressiva. Nesse enunciado identificamos também o
aspecto inceptivo expresso por meio da perífrase komencis pluvi (começou a chover).
b) Aspecto imperfectivo durativo iterativo
(212) Katjo restis senparola pri tiom da feliĉo kaj nur kisis senĉese la manon de
Katarino.(N20, p.22)
(Cátia ficou muda de tanta felicidade e só beijava sem parar a mão de Catarina.)
O sintagma adverbial senĉese (sem parar) configura a imperfectividade iterativa.
(213) Vitalo ĉiutage ie kaptadis la kataĉon kaj ofte liveris la plezuron al la mastro.
( N3, p.48 )
(Vital diariamente pegava o gato desprezível em algum lugar e levava frequentemente prazer
ao seu superior.)
Nesse enunciado identificamos duas predicações iterativas: ĉiutage ie kaptadis la
kataĉon e ofte liveris la plezuron al la mastro, ambas promovidas pelos aspectualizadores
adverbiais ĉiutage (diariamente) e ofte (frequentemente).
c)Aspecto perfectivo pontual
(214) Ĝuste en tiu momento en lia kapon venis flanka penso kiu plaĉis al li pli ol la teda
raporto pri vizitantoj. (N3, p.45)
(Nesse exato momento veio-lhe à cabeça uma ideia que lhe agradou mais do que o relato
tedioso sobre os visitantes.)
O emprego do sintagma adverbial ĝuste en tiu momento (nesse exato momento)
reforça a aspectualidade perfectivo-pontual do enunciado.
(215)Tiam kiel ofte alifoje, preterpasis la butikon Bojko, volis eniri, sed vidinte, ke mi ne
estas sola, nur kapsalutis kaj foriris. ( N5, p.102)
188
(Então, como frequentemente outras vezes, Bojko passou pela loja, quis entrar, mas tendo
visto que eu não estava sozinho, apenas cumprimentou com a cabeça e foi embora.)
Neste exemplo a perfectividade pontual é inferida pelo contexto: uma sequência de
ações pontuais, a saber, preterpasis la butikon (passou pela loja); volis eniri (quis entrar); sed
vidinte, ke mi ne estas sola (mas tendo visto que eu não estava sozinho); nur kapsalutis
(apenas fez um cumprimento de cabeça); kaj foriris (e foi embora). A aspectualidade habitual
é configurada pelo sintagma adverbial kiel ofte alifoje (como frequentemente outras vezes).
Convém observar que a oração subordinada ke mi ne estas sola (que eu não estava
sozinho) contém uma forma verbal no presente: estas (está), mas com leitura de pretérito
imperfeito em português: estava. O uso dos tempos verbais em orações subordinadas, isto é,
sua concordância com o tempo da oração principal, foi pouco explorado e discutido em
Esperanto.
Em orações subordinadas com a conjunção ke (que), por exemplo, pode ser difícil
escolher a forma verbal. É normal, todavia, o uso do presente para indicar que a ação da
subordinada é simultânea com a ação passada da oração principal. Kalocsay (1966, p. 165)
informa que tal sistema denomina-se "sistema em concordância com o presente" e que ele é
comum às línguas que têm somente uma forma de pretérito, como geralmente ocorre com as
eslavas e o Esperanto. Por outro lado, as línguas que têm várias formas de pretérito usam o
―sistema em concordância com o imperfeito‖, como as latinas e as germânicas.
7.5 ASPECTUALIDADE E MODO DE ORGANIZAÇÃO DISCURSIVA
Em termos de Marcuschi (2005, p.23), os tipos textuais são ―constructos teóricos
definidos por propriedades linguísticas intrínsecas‖, abrangendo basicamente a narração, a
descrição, a argumentação, a exposição, a injunção e o diálogo. A identificação da
aspectualidade muitas vezes é propiciada pelo tipo textual ou modo de organização do
discurso; por outro lado, por necessidades discursivas, os enunciadores utilizam-se de
estratégias de aspectualização para configurar determinado tipo de texto narrativo ou
descritivo.
Como os corpora desta pesquisa constituem-se basicamente de textos narrativos (nos
quais também se identifica o modo de organização descritiva), valemo-nos de enunciados que
podem aduzir evidências ao nosso propósito, sem a pretensão de uma análise mais profunda.
As predicações imperfectivas iterativas, por exemplo, são recorrentes em narrativas de
eventos habituais como as seguintes, promovidas pelo operador afixal ad :
189
(216) En la urbeto, kien li veturis per aŭtobuso ĉiutage matene, li plenumis laboron de
Herkulo: li levadis kaj enbatadis en la teron pezajn, tridekkvinkilogramajn trotuarplatojn.
(N6, p.37)
(No vilarejo, aonde ele ia de ônibus toda manhã, ele executava um trabalho de Hércules:
levantava e marretava na terra uns blocos de calçada pesados, trinta e cinco quilos.)
(217) Ŝi frumatene malaperadis for el la hejmo. (N15, p.110)
(Ela sumia da casa de manhã cedo.)
O mesmo sentido iterativo ocorre no enunciado (213), por meio da interação
entre particípio presente ativo na função adjetiva forveturanta (viajando) e o advérbio
aspectualizador ofte (frequentemente):
(218) En la lastaj jaroj Anna Aleksejevna estis pli ofte forveturanta jen al la patrino, jen al la
fratino
(Nos últimos anos Anna Aleksejevna estava viajando mais frequentemente ora para a casa da
mãe, ora para a irmã [...] ) (N16, p.9)
A aspectualidade imperfectiva é recorrente nos planos descritivos como mostram os
enunciados (214), (215), (216), (217), pela atuação do operador afixal ad :
(219) Li daŭrigis, sin turnante al S-ino Severina, kiu edzinece kunvivadis kun li de
jaroj. (N13, p.41)
( ―[...] [ele] continuou, voltando-se para D. Severina, senhora que vivia com ele
maritalmente, há anos.‖ ) (ASSIS, Machado de, 2004, p 107)
A oração de predicação imperfectiva kiu edzinece kunvivadis kun li de jaroj (que vivia
com ele maritalmente, anos) é constituinte do plano discursivo do fundo, que tem a função
de introduzir um comentário do narrador.
(220) Neptuno estis magra, malhela, kun muzelo akra, kun okuloj timigaj. Ĝia hararo havis
koloron de profunda krepusko: nigre-grizan. Digne ĝi akceptadis manĝaĵojn, ĝi dankis nur
per apenaŭa vosto-svingo.(N6, p.35)
(Netuno era magro, escuro, com um focinho agudo, com olhos amedrontadores. Seus pelos
tinham a cor do crepúsculo profundo: de cinza para preto. Ele recebia aceitava comida com
dignidade, agradecia só com um balanço do rabo.)
(221) Malgrasa, longstatura junulo vagadas de strato al strato. Kelkfoje li rifuĝas sub volbon
de iu pordego, kuntiras sur si la someran pelton, ekdormas kaj sonĝas pri hejtita ĉambro,
kuirita manĝaĵo, mola lito [... ] (N4, p.61)
(Um jovem alto e magro vai vagando de rua em rua. Às vezes refugia-se debaixo da abóbada
de algum portão, puxa para si a colcha de peles de verão, adormece e sonha com um quarto
190
aquecido, comida cozida, uma cama macia [... ])
(222) Li paŝadis en la ĉambro. La termomentro indikis 20 gradojn, kio rimarkigas, ke oni ne
bezonas eĉ maldikan lanveston sur si en la bankeda salono de la hotelo. (N10, p.25)
(Ele caminhava dentro do quarto. O termômetro indicava 20 graus, o que mostrava que não
seria necessário usar nem mesmo uma roupa de fina no corpo, no salão de banquetes do
hotel.)
Outra estratégia comum e recorrente de imperfectização para compor o plano
discursivo do fundo descritivo é o uso do particípio presente ativo na função adverbial
(operador sufixal ante como exemplificam os enunciados abaixo:
(223) Ne longe antaŭ ol li pasis kelkajn paŝojn, la sorto tentis lin, malfermetante la pordon
de la enirejo. (N11, p.174)
(Pouco depois de ter dado alguns passos, a sorte o tentou, abrindo a porta de entrada.)
(224) En la boato la krimulo kaj parenco kutimas maldormi la tutan nokton, flustrante al si
reciproke la personajn travivaĵojn. (N12, p.5-6)
(No barco, o criminoso e um parente têm o costume de ficar sem dormir a noite inteira,
sussurrando-se reciprocamente as experiências da vida pessoal.)
(225) - Ha, mia karulo! ... li diris afable prenante la katon kaj karesante. (N3, p. 47)
(-Oh, meu querido!... disse afável, pegando e acariciando o gato.)
Com relação ao plano discursivo da figura, o enunciado (221) apresenta orações que
representam uma sequência de ações perfectivas pontuais constitutivas da narrativa: kisis -
beijei; premis - apertei; disiĝis - separamos; sidiĝis - sentei; ploris - chorei. A pontualidade
também se deve a Aktionsart de formas verbais como premis, disiĝis e sidiĝis.
(226) Mi kisis ŝin lastfoje, premis ŝian manon, kaj ni disiĝis por ĉiam. La trajno jam
ekveturis. Mi sidiĝis en najbara kupeo, kiu estis malplena, kaj ĝis la sekva stacio tie sidis kaj
ploris. Poste mi piediris al Sofjino. (N16, p.10)
(Beijei-a pela última vez, apertei-lhe as mãos, e nos separamos para sempre. O trem já dava
a partida. Sentei-me no vagão ao lado, que estava vazio, e até a próxima estação lá fiquei
sentado e chorei. Depois voltei a pé para Sofiino... )
No continuum discursivo dos planos de figura-fundo, encontramos orações que
instanciam a aspectualidade inceptiva tanto por meio do prefixo ek- (ekloĝis - passei a morar)
quanto por meio da perífrase komencis manĝi (comecei a comer), ampliando as informações
relativas ao evento narrado:
191
(227) Iom post iom mi ekloĝis malsupre, komencis manĝi en la kuirejo por servistoj kaj el la
antaŭa lukso ĉe mi restis nur la servistaro, kiu servis ankoraŭ al mia patro, kaj maldungi ĝin
estus por mi tre dolore. (N 16, p.5)
(Pouco a pouco passei a morar embaixo, comecei a comer na cozinha de serviço, e do
antigo luxo restaram os serventes, que serviam ainda a meu pai, e dispensá-los seria muito
doloroso.)
Dado o exposto, voltamos a asseverar que a análise das construções esperantas
demonstra a importância do emprego dos particípios ativos e passivos para a construção da
aspectualidade perfectiva, imperfectiva ou prospectiva, confirmando-se, assim, a nossa
segunda hipótese que considera o caráter verbo-nominal do aspecto em Esperanto.
Comprovou-se também que a ocorrência da predicação aspectual em Esperanto atende
às necessidades pragmáticas do usuário da ngua, o qual se utiliza de estratégias de
aspectualização para configurar determinado tipo textual, atendendo ao continuum discursivo
dos planos de figura e fundo.
Tendo-se o cuidado de observar a relevância da interação entre os diversos fatores
composicionais que configuram a aspectualidade, podem-se apontar algumas tendências
quanto ao uso dos operadores aspectuais em Esperanto, expostas a seguir.
Para a expressão do aspecto imperfectivo, são altamente recorrentes o uso da forma
verbal no tempo presente e o emprego do particípio presente ativo, na função adverbial (em
ante), ressaltando-se ainda uma preferência pelo particípio presente ativo em lugar do
passivo. Aponta-se também o emprego do sufixo ad como estratégia de imperfectização não
só durativa mas também iterativa; a preferência pelo operador ek- em vez da perífrase
komenci + infinitivo para codificar o imperfectivo inceptivo.
Nossos corpora revelam (ver Tabela 2) que o sufixo participial imperfectivo ant é
mais frequente na função adverbial (-ante) do que na adjetiva (-anta). Um dado interessante
para posteriores pesquisas é que, com relação ao sufixo imperfectizador adjetivo anta,
identificamos sua maior ocorrência em narrativa original em língua russa, traduzida em
Esperanto por autor russo.
O nosso ponto de vista é o de que a baixa ocorrência do particípio adjetivo (marcado
por -anta) é compensada pela grande frequência do particípio adverbial (terminado em ante).
Convém destacar que as incidências maiores do operador ante são nas narrativas russa,
croata coreana.
Quanto à codificação do aspecto perfectivo, destaca-se a grande frequência de uso do
particípio passado passivo em função adjetiva (por meio do sufixo ita), com sentido
192
resultativo; aponta-se também a recorrência do prefixo ek- para expressar o aspecto
perfectivo pontual. Apesar da baixa frequência nos dados do corpora, o aspecto prospectivo
identifica-se pelo emprego do operador participial onta.
No que se refere ao chamado aspecto iterativo (isto é, a estratégia de quantificação do
aspecto perfectivo e do imperfectivo), as narrativas estudadas apontam o uso de vários
recursos discursivo-gramaticais em interação com o valor semântico (acionalidade) ou
Aktionsart do verbo. Esses recursos incluem, por exemplo, a flexão de tempo presente as
como estratégia de imperfectização iterativa, o emprego de determinados argumentos e de
adjuntos adverbiais quantificadores, o uso de operadores afixais lexicais como o prefixo re- e
o sufixo ad, a repetição de afixos e advérbios, o papel do contexto discursivo como um
todo, isto é, o tipo textual narrativo ou descritivo.
Em virtude dos argumentos apresentados, pode-se afirmar que a língua internacional
Esperanto dispõe de recursos lexicais e gramaticais que codificam os aspectos imperfectivo,
perfectivo e prospectivo em uso no idioma. O imperfectivo apresenta os seguintes subtipos:
cursivo, durativo, inceptivo e terminativo; e o perfectivo subdivide-se em pontual, resultativo
e completivo. Tanto o imperfectivo quanto o perfectivo podem ser analisados do ponto de
vista quantitativo, dando origem ao dito aspecto iterativo, o qual representa a quantificação
desses dois aspectos gerais. Embora menos usado, o aspecto prospectivo pode ser
identificado, sobretudo, pelo uso do operador onta.
Cumpre destacar que esta pesquisa desvendou o caráter prototípico da aspectualidade
esperanta, isto é, a função semântica aspectual dos particípios, especialmente no que se refere
à riqueza conceitual do contraste entre ata / ita.
Apesar da complexidade do tema abordado, foi possível sua investigação, à luz dos
conceitos funcionalistas, tendo-se como pressuposto o caráter composicional do aspecto, o
qual se manifesta como uma propriedade da predicação. Reiteramos, portanto, que a função
aspectual é configurada em Esperanto por meio de estratégias discursivo-gramaticais em
interação com o valor semântico (acionalidade) ou Aktionsart da forma verbal ou participial.
Desse modo, comprovamos a exequibilidade do uso de ferramentas de análise
linguística para o Esperanto, da mesma forma que as usadas para pesquisar as línguas ditas
naturais.
Esperamos que este trabalho possa contribuir de algum modo com futuras pesquisas
linguísticas sobre aspecto e Aktionsart, sobretudo com aquelas que se propuserem a abordar
fenômenos concernentes ao Esperanto, que, como língua auxiliar internacional, funciona
193
como instrumento de comunicação e veículo de transmissão de cultura para milhões de
usuários, habitantes de cerca de cento e vinte países.
194
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Disponível em: http://manybooks.net/pages/zamenhof2000620006/13.html Acesso em: 26 de
março 2008.
___________. Essência e futuro da ideia de uma língua internacional. Trad. Itacir
Luchtemberg. Goiânia: Zamenhof Editores, 1988.
____________. Fundamenta krestomatio de la lingvo Esperanto. 17 ed. Rickmansworth:
The Esperanto Publishing Company Limited, 1954.
___________.Fundamento de Esperanto. 10 ed. Pizo, Italujo: Edistudio, 1991.
200
REFERÊNCIA DAS NARRATIVAS DE C1 e C2
N1- Lernantino. In: BOULTON, Marjorie. Okuloj; novelaro. La Laguna: J. Régulo,
1967.
N2- La viro sub la lito. In: SCHWARTZ, Raymond. Vole... Novele aŭ Kvindek jaroj da
noveloj (1920-1970). 2-a eldono. Prozo ridetanta. Kopenhago, 1971.
N3- Venĝo. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta novelarto. La
Laguna: J. Régulo, 1964.
N4- La metropolo malsatas. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la
esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, 1964.
N5- Kamarado bojko. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta
novelarto. La Laguna: J. Régulo, 1964.
N6- La nokto de Neptuno. In: SOKALÓWNA, Barbara. Viro en nigra mantelo kaj
aliaj rakontoj. Varsovio: Pola Esperanto-Asocio, 1984.
N7- La junulino, la ĉapelo kaj mi. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la
esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, 1964.
N8- Vivo kaj morto de Wiederboren. IN: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj;
la esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, 1964.
N9- Mensog‘ ni ĉiutaga. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta
novelarto. La Laguna: J. Régulo, 1964.
N10- Kaprico pro invitkarto. In: MIKRONOVELOJ. Speciala premio. Pekino: Ĉina
Esperanto Eldonejo, 1991.
N11- Homo kun koro. In: KOREAJ ESEOJ NOVELOJ KAJ POPOLRAKONTOJ
(1932-1967). Tradukis Hajpin Li. Seulo: Korea Esperanto Asocio; Libera biblioteko,
1987.
201
N12- La takase-barko. In: Rakontoj de Oogaj. Tradukis el La japana lingvo Teruo
Mikami, Miyamoto Masao, Kikunobu Matuba, Nozima Yasutarô. Tokio: Japana
Esperanto-Instituto.
N13- Brakoj. In: ASSIS, Machado de. La divenistino kaj aliaj rakontoj. [Uns braços].
Tradukis Paulo Sérgio Viana. São Paulo: Oportuno, 2005. In: ASSIS, Machado de.
Contos escolhidos. Texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2004.)
N14- Savita. In: MAUPASSANT, Guy de. Sinjoro Jokasto kaj aliaj noveloj. Tradukis
Daniel Luez. Chapecó: Fonto, 1987.
N15- Miriel. In: SFEROJ 5 Sciencfikcio kaj fantasto. Tradukis Wojciech
Usakiewicz. Barcelona: Grupo Nifo, 1987.
N16- Pri la amo. In: ĈEĤOV, Anton. RUSAJ AMNOVELOJ. Serio Rusa literature;
vol.7. Tradukis Aleksander Korĵenkov. Jekaterinburg: Sezonoj, 2000.
N17- La aliulo. In: KIPLING, Rudyard. La zodiakidoj kaj aliaj trakontoj. Tradukis
Katelina Halo. Chapecó: Fonto, 1997.
N18- En Pirin. In: VAZOV, Ivan Minĉev. Bulgaraj rakontoj. 3-a eldono. Tradukis At.
D. Atanasov. Berlin kaj Dresden: Esperanto-Verlag Ellersiek & Borel G. M. B.H.,
1923.
N19- La brava stansoldato. In: Fabeloj de Andersen. Tradukis F. Skeel- Giörling.
Berlin kaj Dresden: Esperanto-Verlag Ellersiek & Borel G. M. B.H., 1923.
N20- Katarino kaj Katio. In: HERCZEG, Ferenc. Hungaraj rakontoj. Tradukis A.
Pananjott. Berlin kaj Dresden: Esperanto-Verlag Ellersiek & Borel G. M. B.H., 1925.
202
9. ANEXOS
203
ANEXO I
Narrativas escritas em esperanto e traduzidas em português
N1 - Lernantino. In: BOULTON, Marjorie. Okuloj; novelaro. La Laguna: J. Régulo, p.
136-141, 1967.
204
205
Uma aprendiz
Paulina fez as tarefas de escola no canto da mesa, na cozinha. A mãe,
preparando umas empadas para o jantar, acabou com sua massa, fazendo tortinhas com
uma geleia colorida e brilhante de framboesa.
Paulina tinha que desenhar o mapa da Escandinávia e colocar as capitais e rios.
Ela estava alegre, porque tinha que desenhar um mapa; uma tarefa escrita exige uma
atenção completa; mas sobre o mapa Paulina pôde sonhar um pouco. Sua nuca, seus
seios que crescem, sua boca lembravam-se trêmulas de Ralph. Entre o almoço e o
começo das aulas da tarde, eles escondiam-se num canto distante do pátio, detrás de uns
arbustos, e, como experiência, com um pouco de medo, acariciavam-se um ao outro.
Ralph tinha muitas espinhas, e seu cabelo não andava muito arrumado; mas ele era
admirável, admirável. Ele não queria ensinar, nem corrigir, nem consertá-la. Não queria
fazer nada para ela virar uma boa menina; ele queria tocá-la, e o seu toque eram
faíscas de atrito, relâmpagos negros, amargo vinho, água doce do mar e aquelas estrelas
níveas que ela viu certa vez no microscópio.
A compota de framboesa estava bonita de tirar o fôlego; grandes rubis nas
rodelas de massa. Naquilo ela nunca havia reparado antes.
Paulina começou a desenhar as bordas da Escandinávia com um lápis azul. A
maioria de nós conhece o mar onde ele circunda a terra, precisamos imaginar o azul
sem bordas. Noruega e Suécia: um cavalo selvagem de crina espumante de fiordes. Ele
tinha até olhos azuis, o grande lago,Vanern. Uma cabeça de bicho sacudida
estranhamente, entre os oceanos Atlântico e Ártico. Hoje era uma cabeça estranhamente
passional de um cavalo, sobre o papel. Um garanhão do mar, ou talvez a cabeça de uma
serpente vasta, ancestral, que se enodoava entorno ao globo terrestre, de cabeça e
pescoço que se levantam até o Oceano Ártico... e a Finlândia, o peito volumoso...
Paulina olhava com cuidado o mapa impresso, para localizar bem as cidades
principais. Seus lábios estavam secos, pareciam corroídos; o cheirinho de um suor de
garoto ficou em suas narinas; ela colocou Oslo bem na cabeça do cavalo enquanto seus
músculos do ventre se estiravam congelados de desejo.
―Enquanto você não estiver escrevendo, querida, talvez nós possamos
conversar‖, disse a mãe.
‗E... sim?‖
―Fico alegre que você sempre chegue pontualmente em casa.‖
206
Algo alarmou Paulina, alguma intuição: a hora de dizer a verdade aos Outros
incompreendidos já havia passado.
―Seria um pecado, não comer tortas quentinhas, mamãe. Com o que você
recheou desta vez? Não fale sobre nada, que importe; você agora está em movimento
subterrâneo; um erro pode traí-la.
―Carne com batatas, e um molho bom. Você vai gostar. Você deve comer umas
três.‖
―Devo mesmo.‖ Aqui Estocolmo e Malmö no queixo embaraçado.
―Ainda assim eu espero, que você não ame seu lar só pela dispensa.‖
―Ah não.‖
Paulina percebia que sua mãe queria lhe dizer algo, estava um pouco
incomodada, mas ela não queria acudir, até tinha medo de acudir.
―Dizem, que algumas garotas da sua classe já têm, por assim dizer, namorados.‖
―É?‖
Talvez você não saiba, com você essas garotas não vão falar de coisas assim;
elas sabem que você mora numa boa casa e que, portanto, essas bobagens não lhe
interessam. Quando eu era garota, algumas colegiais, meninas estúpidas, quiseram me
mostrar imagens... você entende, imagens imundas, porque queriam me chocar, queriam
me provar que elas sabiam de tudo, mas eu vim de uma boa casa, então me recusei a
olhar. Mas você sabe, Paulina, quem nem todas as garotas têm uma boa casa.‖
―Não.‖
―A Senhora Bruno me falou de algumas das suas colegas... Elas passeiam com
rapazes, mesmo de uniforme da escola, até de mãos dadas. E são iguaizinhas a você...
quatorze, talvez quinze anos... Em todo caso, jovem demais para essas bobagens.‖
―Não sabia nada delas.‖ Um beijo relembrado assim atingiu-a na nuca, que
Paulina precisou calar-se firme para não espasmar num gritinho. ―Não sei muito sobre
as colegas, fora Mariinha e Silvia, e elas só gostam de selos postais e bordado.‖
O mapa estava quase pronto. Ela tinha que fazer uma tarefa de matemática,
queria falar quanto fosse possível mais formal e secamente. Sem interesse. Mas a mãe
queria insistentemente falar com ela.
―Não, eu já esperava que você não conhecesse desses tipos. Só temia, que
viessem impressioná-la com conversas feias. Eu sei que você nunca quis ouvir esse tipo
de conversas.‖
207
Paulina lembrou-se das perguntas de Ralph. Com certeza, aquela conversa o
foi feia; ela ficou feliz de responder a verdade, a tudo que ele perguntava; isso na
verdade é até bonito, pois ela sabia que ele iria rir dela, ele queria mesmo saber sobre
uma garota.
―Não.‖
―Eu bem sei que você não quer nada de passear com rapazes, mas por causa
desses comentários, senti que talvez devesse falar com você. Sem dúvida você sabe que
homens e rapazes têm um apetite, que nós não sentimos. Algo de bestial encontra-se
nesses homens, até nos melhores. Claro que uma esposa tem que aturar isso, pois a
caridade é lei da convivência cristã, mas infelizmente muitas jovens não entendem sobre
os outros perigos. Porque elas mesmas, na atual época perdida, não sabem se dominar
muito bem...‖
Paulina, com um autodomínio enorme, conseguiu fingir um bocejozinho.
―Desculpe!‖
―...algo pode acontecer. Eles parecem mesmo uns bichos. Mas você mora numa
boa casa, uma família refinada. Não quero incomodá-la muito, Paulina, falando dessas
coisas; eu sei que você os abomina, mas sinto o dever de avisá-la corretamente. Se
ACONTECER ALGO com uma garota imprudente, ela pode pegar as mais terríveis,
vergonhosas doenças, ou pode até ter uma criança.‖
Paulina ficava calada e olhava seu mapa. A mãe como se recolhesse suas
palavras com dor e embaraço. A filha desejava que ela se calasse, ou ao menos deixasse
do assunto. Paulina queria pensar sozinha em suas memórias dos sentidos, que tanto
embelezavam os objetos quotidianos. Mas a boca da mãe entortava-se de náusea.
―Você de entender, Paulina, os homens são bichos, todos. E os contatos na
vida conjugal são demasiado brutos. A gente não poderia tolerá-los, sem amor
espiritual. Mas algumas mulheres são impuras. Você nunca há de fazer algo impuro, não
é, Paulina? Você sabe, se começa a fazer uma coisa, o homem quer fazer tudo... Você
nunca se há de vulgarizar, não é?‖
―Não, mamãe.‖ Paulina lambia seus lábios, que estavam secos da conversa
estressante; o gesto fazia estremecê-la com uma lembrança dourada: a boca quente de
Ralph. A garota já sabia que isso não era vulgarização. Ela também se lembrou de como
quando empurrou a mão de Ralph, que lhe pareceu por um momento pedir demais, ele
disse ―Desculpe, isso desagradou? Não vou fazer mais.‖ Mas por que ela protestava?
208
Ela agora se sentia como perdida na náusea obtusa de sua mãe, nos eufemismos, ela
sentia necessidade de um saber real. A e falava de impurezas abomináveis, enquanto
a pele falava por relâmpago e perfume.
Será absolutamente impossível, em qualquer momento, pedir conselhos à
mamãe. Ela não entenderá o milagre daquelas carícias, o novo vermelho da geleia, a
beleza do mapa.
Paulina de fato desejou muito pedir os conselhos de alguém. Queria dividir sua
alegria, seu sentimento de vida nova, de um súbito ressignificar. Mas ela ainda queria
receber as regras do novo jogo, que ela ainda não entendia completamente. No entanto,
Os Outros mostraram sua alteridade. Eles não poderiam ajudar, ela teria que achar
sozinha sua própria via.
A mãe viu iniciar-se o sofrimento nos olhos dela.
―Então, Paulina, não quero remoer essas infâmias, mas desejo que você com
certeza saiba de tudo que uma menina deve saber.‖
Paulina fez o outro dever de casa, jantou, ajudou a mãe a lavar a louça, tricotou
um pouquinho enquanto escutava um programa de rádio. Muita vez os nervos do ventre
telegrafavam, os lábios beijados sapecavam de novo.
―Boa noite, papai. Boa noite, mamãe.‖ Dois beijos frios, obedientes. Paulina foi
para o quarto, despiu-se, lavou-se, vestiu uma camisola, escovou a cabeleira cem vezes,
segunda a rotina de vários anos. De alguma forma Ralph estava presente, muito belo e
nobre debaixo das suas espinhas. Ela pensou em rever, tocar novamente... Mas agora ela
teria que esconder com cuidado, porque os Outros odeiam esse paraíso.
Paulina abriu a cortina e desligou a lâmpada. A luz da lua inundou o quarto:
glacialmente prateada, luar metalicamente espinhoso, cujos raios luminosos quase lhe
doíam.
Um estranho desejo nasceu na jovem. Trancou com cuidado a porta. Parou
diante da janela, com o queixo sobre o punho direito e olhou demoradamente para a lua.
Sim, ela dançará para Ralph, com Ralph com a santa, reveladora luz nos olhos, jovem
Ralph, que deseja tanto saber sobre as garotas. Pois Ralph estava ainda com Paulina. Ela
farejava-o em seu cabelo, sentia suas mãos nos seus seios, seus pés nos seus pés, sua
face quente e um pouco áspera na face, ele estava vivamente presente.
―Ralph, Ralph...‖ ela sussurrou para a lua.
Paulina tirou com cuidado a camisola e ficou nua ao luar. Levantou os braços
acima da cabeça, mostrou à lua as mamas volumosas, a cratera vulcânica do umbigo, os
209
fêmures, começou a dançar. Ela zumbiu uma melodia folclórica. Dançou a um ritmo
muito lento, suavemente, luxuosamente banhada pela admirável luz, que parecia
repurificar-lhe a carne após a lição de impurezas da mãe. Vendo seu corpo a mover-se
no espelho escuro, ela entendeu que uma mulher nua é bela, não precisa envergonhar-se.
No espelho, por causa da fraqueza da lua, ela parecia uma figura mitológica de outro
mundo. Mas ela não se admirava, porque Ralph ficara com ela. Dançou no calorzinho
voluptuoso da noite: os raios de lua tocavam o corpo inteiro, ela cedeu a eles como uma
nadadora ao mar, aceitando uma nova atmosfera. Ela ouvia uma música não audível
para o casal maduro no quarto vizinho, música que eles ou esqueceram, ou nunca
ouviram, e ela dançava ao ritmo dessa música ancestral.
Finalmente ela pegou de novo a camisola e deitou-se. O travesseiro tornou-se a
face de Ralph, o cobertor estirado, os braços dele. Um vasto garanhão emaranhado
erguia a cabeça entre o Oceano Atlântico e Ártico; relinchava, o luar fez-se em
oceânicas ondas, as ondas em luz que banha.
Paulina adormeceu.
210
N2 - La viro sub la lito. In: SCHWARTZ, Raymond. Vole... Novele aŭ Kvindek jaroj da
noveloj. Prozo ridetanta 2-a eldono, p. 91-96,1970... Kopenhago, 1971.
211
212
O homem embaixo da cama
Eusèpe Bernouille era um honesto funcionário da administração estatal. A
utilidade e propósito exato daquela administração é que ninguém conhecia. Mas, a bem
da verdade, isso nunca incomodou nem preocupou Bernouille, pois ele não era curioso.
Igualzinho a um pequeno ponteiro de relógio que faz regularmente tique-taque,
ele todo dia e não mais depressa do que o ponteiro pequeno terminava e recomeçava
sua caminhada em círculos no âmbito do regimento administrativo. Nem mais, nem
menos. Setecentos francos de salário bastavam, uma vez todo mês, para retesar a mola
daquele aparelho semelhante a um relógio, que era ele.
Infelizmente isto não do ponto de vista financeiro infelizmente Eusèpe
Bernouille havia duas semanas que loucamente se apaixonara, e seu coração de 45 anos
preenchia-o completamente a senhorita Thérèse, a vendedora de flores da esquina. E
essa expressão figurada tanto mais tem de conveniente, quanto a dita senhorita tinha de
grande e pesada. Mas, ao contrário do que diz um conhecido provérbio, nem mesmo
para as coisas do amor Bernouille era de nenhum modo criativo. Para aproximar-se de
sua gorda musa ele simplesmente... ia todos os dias à butique dela comprar um buquê!
Nunca os mil e cem artifícios conhecidos dos românticos despertaram-lhe a fantasia,
nem os truques maliciosos dos sentimentais alunos de ginásio.
No começo a senhorita Thérèse mal o percebia, mas pouco a pouco passou a
conceder ao cliente fiel um afável sorriso, embora apenas comercial, e somente
pouco tempo ela finalmente suspeitou de sua intenção, aliás muito lisonjeada. Agora
Bernouille sentia confuso que estava tocando seu objetivo. Mais alguns buquês e a
atmosfera serria favorável para um cortejo às abertas. Ele solenemente sabia que estava
diante do momento fatal. Duplamente fatal, pois agora ele muito objetivamente
constatava que a compra quotidiana de buquês cavava um fosso profundo em seu
modesto orçamento. E era exatamente esse cuidado, que gerou a pesada melancolia,
com que ele hoje à noite arrastou-se para casa, após o costumeiro jantar num restaurante
barato.
Chegando a seu quarto, ele rapidamente pendurou o chapéu e o casaco, e
gravemente depôs sobre a mesa a soma restante do salário mensal. A situação se
mostrava de crise maior. De qualquer maneira ele agrupou as parcas notas, seu olhar
consternado não conseguia contar mais do que 35 francos! Com aquela quantiazinha
ridícula de magra, mesmo do modo mais econômico, ele mal poderia viver até o fim do
213
mês.) E era claro como a luz do sol, que até mais além teria que passar sem os buquês
da senhorita Thérèse. Tal ele entendeu perfeitamente, e ao mesmo tempo compreendeu
o cruel significado daquela privação. Sem poder freá-la, saiu-lhe sua última esperança
do coração enganado, feito uma enguia ensaboada da mão de uma criança.
Pela primeira vez em sua vida Bernouille não quis inclinar-se diante do destino.
―Onde encontrarei dinheiro?‖ obstinadamente tramava em sua cabeça enquanto se
despia. ―Onde?‖ Decidido ele examinara todos os objetos em seu quarto de homem
solteiro; não poderia vender algum ou outro? Infelizmente, ele possuía os móveis
mais necessários. As paredes, enfeitavam-nas não pinturas artísticas de mestres
famosos, mas apenas modestas fotografias, lembranças de família. Ali estavam seus
pais, vestidos em modas antigas, - seu tio Jules com uma cara metida a sargento, - uma
foto de grupo, onde aparecia ele próprio em meio a seus colegas de escola (trinta anos
atrás!). Nas prateleiras dormiam livros empoeirados, que nenhum sebo compraria. Na
chaminé um despertador de lhama olhava com estrábica ternura para dois vasos de feira.
No criado da cama jazia uma pistola antiga, que herdou do avô pré-napoleônico.
Bernouille deitou-se com suor na testa, pois se encontrava diante de um passo
fatal, como nunca ele dera até agora: Tinha que pegar dinheiro emprestado. Mas de
quem? Em fila ele citou, diante de seu tribunal interior, cada colega, escriturários sem
riquezas, dos quais certamente nenhum disporia de umas centenas de francos livres.
Torturado, Bernouille virou e revirou debaixo dos lençóis muito quentes. E, como
buscando uma salvação, seu olhar pensativo fixou-se no espelho do armário que fica ao
lado de sua cama de ferro, junto da parede oposta. Mas naquela imagem espelhada de
sempre, hoje algo incomodava. Bernouille despertou de suas meditações e viu! No
espelho ele viu... Não! Seria? Sim!
Não cabia dúvida, - debaixo da cama de Bernouille alguém estava escondido.
Gelado de medo Bernouille sentou-se na cama. Hesitou sobre o que fazer. Um
segundo. Depois, sempre instintivamente tomou da pistola pré-napoleônica sobre a
cabeceira da cama. E agora, vendo no espelho sua própria imagem, a si mesmo de
pijama, mortalmente pálido, com uma pistola na mão trêmula, acordou para a
incredibilidade do fato. Um homem embaixo da cama? Não faz sentido! Não teria ele
mesmo jogado alguma roupa debaixo da cama? Ou a faxineira que veio durante o dia
limpar o quarto...?
214
Neste momento alguma coisa debaixo da cama espirrou. Não era mais possível a
dúvida! Sob a cama de Bernouille alguém se escondia. Como última reação de forças
que se desmaiavam, Bernouille de um salto saiu da cama e gemeu ordenando:
―Ei, você ...debaixo da cama, saia!... Venha! Ou... senão eu atiro!‖
Em aviso puxou o cão da arma.
Lentamente rastejou debaixo da cama um homem de meia idade, com jeito de
deboche. Bernouille recuou de costas até o canto mais distante. Mas era preciso manter
a superioridade:
―Ha! ha! ha!‖ ele enrouquecia, e cada ―ha‖ seguinte saía numa gama mais
alta do que o último, ―O que você estava fazendo debaixo da minha cama?‖
―Espirrando‖ arrogantemente respondeu o homem.
―Hã? E o que estava procurando aqui?‖
―Se você absolutamente não consegue entender, eu vou explicar - mas cuidado
com sua pistola, você pode danificar seu espelho,‖ caçoou o estranho.
Bernouille lembrou que a pistola não estava carregada. Por isso segurou-a mais
firme e ameaçadoramente. O homem continuava tranquilo: ―Visitava seu ninho para
coletar possíveis objetos de valor, pois este é o meu ofício. Mas nem bem entrei e ouvi
seus passos na escada, sem ter uma saída livre me escondi debaixo da cama. Além
disso, visivelmente eu errei. A coleta aqui não vale o peido de um coelho.‖
―E qual era sua intenção debaixo da minha cama?‖ perguntou Bernouille, não
por curiosidade, decerto que não, pois que ele não sabia o que resolver, e, no entanto,
sentia muito bem que não podia ficar sem palavras e sem ação contra aquele homem.
―Queria esperar até você dormir para retirar-me sem fazer barulho nem
cerimônia, mas você me percebeu, - além disso, você possui um imponente revólver,
então faça de mim o que quiser, sou seu prisioneiro.‖
―Iremos à delegacia!‖ pelo menos pareceu essa a Bernouille a única solução
possível, embora ele não soubesse de que jeito iria se vestir sem largar da pistola.
―Senhor,‖ subitamente falou o homem estranho, olhando fixamente uma
fotografia na parede, e agora explorando interrogativo o rosto daquele temeroso
Bernouille, ―senhor, é você mesmo nessa foto?‖
Bernouille não reparou na estranheza da pergunta e murmurou:
―Sim, por quê?‖
―Será possível?‖ surpreendeu-se o outro, ―se for verdade, então somos colegas!‖
Bernouille não pôde responder e o homem continuou:
215
―Onde se encontra você na foto?‖
―Ao lado do professor, à sua direita.‖
―Bernouille!‖ exclamou o homem com alegria, ―Meu Deus, você é Eusèpe
Bernouille!‖ e penetrantemente a explorar seu rosto disse mais: ―Sim, é verdade, agora
o reconheço! E você, não se lembra mais de mim? Não? Olhe, na foto estou ao seu
lado!‖
―Ééééé‖ agora por sua vez espantava-se Bernouille ―Sim, você é Robert
Lagrange! Lagrange, meu colega de escola!‖ e esquecendo o papel de seu oponente
estendeu-lhe a mão, dizendo:
―Mas é possível? Lagrange? O que você virou depois dos nossos anos de
escola?‖
―É‖ respondeu este, ―não posso dizer que sinto orgulho de minha carreira... E
você, o que você...‖
Sorrindo Bernouille o interrompeu: ―Permita primeiro, que eu vista umas roupas.
Pois sente-se. Ah, diabos, você pode dizer que me trouxe alguma emoção! Lagrange!
Robert Lagrange! Vo foi o primeiro da classe, sim, lembro-me bem, era o aluno
preferido de todo professor. O Senhor Pommier todo dia nos pregava: Mirem-se em
Lagrange! Façam como ele! Ah! Estranho reencontro!‖
Tendo-se rapidamente vestido pegou no armário uma garrafa selada, trouxe
também dois copos e sentou-se ao lado de Lagrange...
Duas horas depois Bernouille conhecia a aventurosa vida de seu colega da
escola, que prosperava com facilidade graças aos engenhosos roubos em todas as partes
do mundo, e em troca Lagrange ficou sabendo cada detalhe da modesta existência do
escriturário de administração Bernouille; ouviu até sobre a senhorita Thérèse e sobre as
finanças difíceis daquele que um dia foi seu amigo. Então ele respondeu de imediato:
―Do que você está precisando, Eusèpe? Ficaria muito contente, se eu pudesse
ajudar.‖
Bernouille, hesitante, não respondeu.
―Sim, entendo,‖ Lagrange constatou com angústia, ―você não quer do meu
dinheiro. Ele não é limpo...‖
―Amigo querido,‖ Bernouille se desculpava, não se aflija, mas efetivamente,
preconceito... princípios... Não! Você é muito querido, tem muito bom coração, mas eu
não posso aceitar.
E não falaram mais nisso.
216
Tendo acabado de beber já a segunda garrafa, despediram-se amistosos.
―Então, não vai mandar me prender?‖ Lagrange perguntou.
―Você está livre. e... melhore!‖ disse Bernouille sem muita esperança quanto
à última proposta. Com uma vela iluminava para seu amigo a escada até Lagrange
atingir a rua. Aí, lentamente, Bernouille voltou ao seu quarto. Era estranho para ele.
Ainda com dúvida balançou a cabeça.
―Ei!‖- de repente falou consigo mesmo, ―o que é isso?‖
Em cima da cama estava uma nota amassada de mil francos.
―Lagrange dos diabos,‖ logo entendeu, ―quis de toda forma deixar dinheiro para
mim. Mas... Não posso aceitar! Dinheiro de ladrão! Não! Nunca!‖
Mas Lagrange estava longe. Aparentemente para sempre. Que fazer daquele
dinheiro? O administrador Bernouille estava agora diante do mais conflituoso problema
de toda sua carreira. Hesitou sofregamente. De um lado, a senhorita Thérèse em meio a
inumeráveis buquês, que, graças àquele dinheiro, poderia comprar todo dia, amanhã,
depois de amanhã, até o êxito final de seu namoro... Mas de outro lado, sua consciência.
Ela não deixava dúvida. ―Dinheiro adquirido injustamente, se não se pode devolver ao
proprietário de direito, deve-se sempre encaminhar a um destino religioso.‖ ressoava em
eco aos seus ouvidos o que decorara nos anos de escola.
Bernouille passou a noite inteira torturado por sua mente cansada. Enfim os
primeiros raios da manhã que se erguia trouxeram sábia inspiração.
―Por que o?‖ triunfava, ―por que não? Este dinheiro, vou dedicá-lo à igreja.
Todo dia, até o cabo dos mil francos, levarei ao altar da Santa Virgem o mais lindo
buquê... da butique de senhorita Thérèse!‖
E Bernouille adormeceu em paz.
217
N3 - Venĝo. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta novelarto.
La Laguna: J. Régulo, p. 41-52, 1964.
218
219
220
Vingança
Sua Excelência Reverendíssima Episcopal acordou cedo, como sempre, com dor
de cabeça e um peso inexplicável pelo corpo todo. Já era um velho e o sono não lhe era
reparador como antes. Tendo feito o sinal da cruz, olhou para o relógio de ouro de
bolso, que estava na cabeceira ao lado e começou a tocar um sininho pequeno de prata.
Estendeu a orelha e esperou por um tempo longo. Ao redor havia um silêncio, somente
ali não muito distante ouvia-se um som de igreja monótono, invasivo. Uma sensação
desagradável de solidão e abandono apertou de repente seu coração. Ele começou a
gemer alto e chamou com uma voz descontente, amargurada:
-Vital, Vital!
A porta se abriu sem fazer barulho, e a figura alta e magra de um jovem monge
servente surgiu no quarto. Fechou a porta atrás de si e, após reverenciar respeitosamente
o homem deitado, parou em uma pose humilde, baixadas as mãos ao longo do corpo e
inclinada a cabeça.
-Levante a cortina da janela!... disse a ordem episcopal.
Eu lhe toquei a campainha, você ficou surdo? resmungou, fechando os olhos
sonolentos da luz clara, que fluiu de repente pela janela para o quarto. Oh Senhor,
Senhor!... não posso mesmo confiar em ninguém... E se eu ficasse doente de uma hora
para outra, se de repente sentisse a proximidade do meu fim?... O que seria então?...
Morreria sem a ajuda de ninguém? Ah, por que você fica aí parado feito um ídolo?
221
-Perdoe, Reverendíssimo respondeu o servente e novamente reverenciando o
seu senhor, com um rosto pálido e uma expressão de indiferença.
-Esperei por muito tempo atrás da porta, mas tocaram a campainha... Fui fechar
a porta de entrada...
O bispo franziu a testa, como a lembrar-se de algo que há muito tempo o
aborrecia.
- vieram os visitantes?... perguntou com amargura ao Vital, vestindo-se com
sua ajuda.
- Sim... Acabam de chegar à recepção dois padres, uma velha vestida como uma
pobre...
- Quando, Vital, terminará isto? Todo dia, todo dia, ininterruptamente atacam-
me diversos visitantes... Quando vou trabalhar?...Sim, além desses visitantes enjoados
tenho muitas preocupações, trabalho. Eu adoraria trabalhar um pouco de manhã, mas
eles me atormentam até o meio dia com seus pedidos, relatos... e depois disso eu
estou cansado e sem poder trabalhar.
Vital ajudou-o junto à pia. Ele lavou-se demoradamente com água fria, suspirou,
gemeu e espirrou a água para todos os lados. Afinal, cansado, sentou-se ali ao lado e
enxugando o rosto virou-se para o monge:
- Agora saia... Prepare um chá, vou rezar um pouco. Ooh! Meu Deus, meu
Deus!... Ora, saia! Mas mal o monge fechava a porta para sair, o bispo mandou parar:
- Espere! Antes à recepção e pergunte aos que estão esperando do que
então eles estão precisando. Sim... diga-lhes ainda depois de hesitar um pouco e com
uma voz carinhosa que voltem amanhã... que estou um pouco doente... Na verdade
estou sentindo dor de cabeça.... Claro que eu não sou uma máquina, também preciso de
repouso... Eles que esperem um pouco... até amanhã, se precisarem de alguma coisa de
mim. Sim, querido, vá, faça assim, por favor...
O servente reverenciou silencioso e saiu sem se espantar com o estranho pedido.
O bispo tempos tinha a mesma maneira de receber, e alguns infelizes,
vindos talvez de longe até a cidade por motivos urgentes, tinham que pousar muito
tempo na cidade e fazer visitas todos os dias antes que recebessem uma audiência.
O chá era como de costume preparado num quarto confortável de hóspedes. O
bispo preferia bebê-lo sozinho, e fora Vital normalmente ninguém estava ali nessa hora.
Agora se sentando em uma poltrona macia, ainda não tivera tempo de olhar o correio da
222
manhã, quando Vital apareceu feito uma sombra diante da mesa com reverências
respeitosas costumeiras e uma expressão de indiferença.
- Então, foram embora?... Disse a eles?... perguntou o bispo com uma nítida
intranquilidade.
- Eu disse... Os padres foram, mas a velha... ela que pela terceira vez está
tentando uma audiência.
- Sim?
- Ela não se vai. Está chorando e pedindo, que o senhor a ouça pessoalmente...
- Quem é ela?
- É uma viúva pobre...
- Está pedindo ajuda?
- Não diz nada, chora e... ainda estão esperando Sua Reverendíssima um
general, o tesoureiro do monastério, Padre Parmjen...
Mas o Reverendíssimo já nem ouvia mais o monge. Nesse exato momento veio-
lhe à cabeça uma ideia que lhe agradou mais do que o relato tedioso sobre os visitantes.
Temendo que o pensamento se perdesse com a mesma rapidez com que surgiu, o bispo
franziu a testa e sacudiu a mão:
- E onde está Kubrik, esqueci-me completamente dele, você lhe deu de comer
hoje?
- Está cochilando na minha cama, Reverendíssimo. Já o alimentei como de
costume.
- Pois bem, muito bem! o bispo respirou mais leve. Observe para ele não ir
muito longe, para não o ferirem... Bom!... Saia, vou olhar as cartas.
Vital já se virava para a porta, quando o bispo mandou parar outra vez:
- Vá, por favor, de novo à recepção e diga que por causa da minha saúde eu não
posso receber ninguém hoje, que venham amanhã... Espere, aonde você vai correndo?
Antes escute o que se manda e aja depois... Veja só, com a sua pressa estúpida eu
esqueci o que mais eu queria dizer... Traga Kubrik, é isso que eu queria dizer. Depois
ache o Padre Parmjen no monastério e faça-o vir...
- Padre Parmjen está na recepção...
- Por que você não disse logo?
- Eu disse...
- Se você disser, eu ouço... Você sempre tenta se justificar!... Ora vá, faça
direito... Não se esqueça do Kubrik e do Padre Parmjen!
223
Padre Parmjen, o tesoureiro do monastério, era um monge gordo, de baixa
estatura e bonachão, sempre a cara sorridente. Além dele, o bispo parecia não gostar de
ninguém de seu monastério.
Padre Parmjen mal teve tempo de fazer o sinal da cruz habitual diante das
imagens e reverência ante o bispo, quando este já falou:
- Agradeço-lhe por não se esquecer de mim, um velho que está doente... Outra
vez me dói a cabeça e...
- Isso acontece, Reverendíssimo, graça ao tempo ruim... interrompeu-o Padre
Parmjen, beijando sua mão, mas logo parou de falar considerando que alguns
dias - fazia um tempo bom...
- Talvez, talvez! respondeu o bispo, não notando a confusão do outro. Já nem
queria sair da cama hoje... E dizem que a recepção está cheia de visitas aborrecidas
outra vez! Se eu tivesse forças...
- Todos já saíram, Reverendíssimo, só...
- Oh, glória a Deus... Quando eu me estiver recomposto...
- Só ficou uma mulher pobre lá... Está chorando e não quer ir embora.
- Hm... Pois ela...
A porta abriu-se e entrou Vital com um gato branco, gordo, peludo, siberiano,
entre os braços. Os olhos do superior logo brilharam e, esquecido de toda sua doença,
ele saltou vigorosamente da poltrona.
Este gato foi dado ao bispo havia dois anos pela Madre Antonina, superiora do
convento. Ele ligou-se de afeição ao belo animal.
- Oh, meu querido!... disse afável, pegando e acariciando o gato.
- Quer, Kubrik? Comer? colocou para o gato um pedaço grande de bolo mole,
mas Kubrik não deu atenção. Apertando-se ao peito do dono o gato fechou os olhos e
murmurou contente.
- Ah, você gosta, se eu te acaricio!... Você gosta, seu atrevido! o velho falava
acariciando com a mão grossa as costas e as orelhas do bicho. Eu também gosto de
você no meu colo ronronando tão mansinho... também gosto! e virando-se para o
Padre Parmjen, que igualmente se inclinava sobre o gato, e com expressão algo irônica
de seu rosto sorridente, a balançar a cabeça, olhava ora para ele, ora para o bicho. O
bispo de repente disse: - Não me recrimine, padre!... Eu o amo, eu amo... Pode ser um
pecado, mas...
224
- Pecado nenhum, Reverendíssimo disse o padre tesoureiro ao contrário... até
nas Escrituras está escrito: ―Bem-aventurado o homem... que aos bichos...‖ Se em seu
amor houvesse algum pecado, as Escrituras não o chamariam ―bem-aventurado‖...
O bispo em aprovação e alegria balançou a cabeça e contente olhou o hóspede.
- Amo... sussurrou. E sempre penso com tristeza: quem irá acariciá-lo
quando eu estiver morto?
- Afaste, Reverendíssimo, tais pensamentos tristes! O senhor ainda vai viver...
Para a felicidade de sua paróquia, pelo bem da Igreja o senhor deve viver muito...
- Nem todo mundo pensa assim, Padre Parmjen... Tenho, eu sei, na paróquia,
também no monastério muitos invejosos, inimigos... que impacientemente esperam
minha morte.... E que mal lhes fiz eu? Que lhes de lucrar a minha morte?... Sim, eu
morrerei, mas alguém sabe quem será meu sucessor?... Heh, eu sei, pressinto que depois
vão se lamentar por mim...
O bispo tirou do bolso um lenço e limpou os olhos.
- E eis que, considerando tudo isso e antevendo o fim em breve, penso muito,
muito em Kubrik... às vezes pela noite inteira eu não durmo, verdade! Ninguém vai
defendê-lo, ninguém vai acariciá-lo, ó meu Deus! O coitado não tem menos inimigos do
que eu mesmo e, além disso, meus inimigos são naturalmente seus inimigos... E
Dalmácio é o primeiro... Nem bem eu vou morrer, ele logo o matará...
- Eu e também Vital, nunca, Reverendíssimo, permitiremos tamanha
desumanidade...
- No Vital eu não confio muito... Ele finge...
- E eu?... com ardor exclamou Padre Parmjen, endireitando-se diante do bispo.
- O senhor, talvez...
A conversa foi interrompida por Vital que entrou segurando alto nas mãos um
pobre gato amarelo-avermelhado que a tentar sair das mãos ossudas do monge, debatia-
se e miava em agudo protesto.
- Ah, ladrão gritou o bispo, e seu rosto triste iluminou-se de um sorriso alegre.
-Vital, jogue-o e feche a porta, ou ele vai embora correndo...
- Ele não vai fugir! este respondeu confiante, contente de malícia a jogar o
gato feio ao meio da sala e sem desviar dele seu olhar.
O gato feioso às vezes espirrava e ajustando com a língua a pelagem amassada
dirigia-se devagar para baixo da poltrona.
225
Kubrik, logo que entrou Vital, levantou as orelhas e olhou o bicho como
inimigo.
O gato trazido por Vital pertencia ao Padre Dalmácio, e Sua Reverendíssima
Excelência acompanhava sempre com prazer a luta entre os gatos e se alegrava com a
superioridade de Kubrik sobre o miserável e sempre faminto bichano. Vital diariamente
capturava o gato desprezível em algum lugar e levava frequentemente prazer ao seu
superior. Logo que o desprezível gato desaparecia sob a cadeira, Kubrik pulava fora do
dono.Vital logo tirou a poltrona, para que nada atrapalhasse Sua Excelência
Reverendíssima de assistir à luta. Todos fizeram silêncio, olhando fixamente os bichos.
O superior nem respirava.
Durante algum tempo os inimigos, parecendo não reparar um no outro, puseram-
se em ordem. Quando isso estava entediando o bispo ele levemente e
imperceptivelmente empurrou Kubrik com o pé e sussurrou:
- Kubrik, bate nele, esse sem vergonha!
Kubrik deu um grande salto para frente e parou a dois passos do bichi feio. Este
logo levantou as orelhas, encolheu-se, encurvou o rabo e retirou-se. Kubrik deu mais
um passo adiante. O bicho estendeu, como por defesa, uma pata, e deu um miado. Os
olhos dos bichos arderam feito carvões em brasa, as costas se curvaram como arcos.
Agora Kubrik, sem medo, pulou no feioso e subitamente bateu-lhe com todas as forças
na cabeça. O golpe foi tão forte e inesperado que o feioso se desvirou e sibilou alto
sacudindo no ar cada uma das quatro patas. Kubrik parecia esperar justamente por isso.
Valendo-se do momento ele apanhou o oponente pela garganta com os dentes e
arrastou-o da quina para mais perto dos que olhavam. Iniciou-se uma batalha longa e
cruel. O feioso se defendia como podia, arranhando o ofensor, o qual, instigado por
Vital, atacava-o sem parar ora de um lado, ora de outro. Os bichos, engatados, rolaram
pela sala com murmúrios e miados altos. Mas não muito tempo depois era de se
perceber que o feioso se cansava e perdia forças, enquanto Kubrik ainda tinha uma
energia inesgotável. Somente quando o enfraquecido, liberto dos agudos dentes do forte
escondeu-se desonrado sob a poltrona e não mostrava qualquer desejo de continuar a
batalha, o vencedor ajeitando-se voltou para o dono.
O bispo estendeu-lhe as mãos. Vital diligentemente devolveu-o aos braços do
dono.
- Eu lhe agradeço, muito obrigado... riu ainda a acariciar Kubrik. Você me
deixou alegre, meu velho... e voltando-se para o Padre Parmjen, disse ainda: - Agora o
226
Padre Dalmácio tratará seu gato por toda uma semana e bem... os dois bem que
merecem... Rarrarrá...
Vital colheu do soalho flocos de pêlo de gato e sem dó arremessou o vencido.
- Oh, cansei-me!... gemeu o bispo, levantando-se da poltrona e cuidadosamente
apertando o gato junto ao peito. Vou descansar um pouco na cama e o senhor, Padre
Parmjen, pegue a correspondência da mesa e leve à secretaria, para organizarem tudo...
Não tenho mais forças...
Passou-se um ano. Kubrik engordou e inchou mais e por isso perdeu o vigor e
ficou preguiçoso. Engordou também o dono. Como antes, com a desculpa da doença de
sempre, ele evitava seu trabalho. Como antes, Kubrik prazerosamente dedicava seu
tempo livre à exploração das despensas dos monges. Como antes, ele comia
impunemente creme e salsichas, que o diabo alguma vez punha ali para desviar os pios
velhinhos. Todos sabiam quem era o culpado, mas calavam-se e só vez por outra
resmungavam de tristeza. Somente o Padre Dalmácio destemido como antes lhe batia a
cada encontro, como pudesse.
Uma noite o bispo morreu de apoplexia, não deixando qualquer testamento do
que era seu. A cerimônia de enterro, a organização da habitação e espólio ficaram ao
encargo do Padre Parmjen com ajuda do diligente Vital. Quando chegaram os parentes
do morto, ficaram surpresos ao não encontrarem nenhum kopek nem qualquer coisa de
valor. Todos sabiam que o defunto era rico e avarento, mas os padres Parmjen e Vital
juravam que ele não tinha lucros e não gostava do dinheiro amaldiçoado, distribuindo-o
aos pobres. Eles, como se combinados antes, em resposta às perguntas de parentes sobre
herança, mostravam sempre o Kubrik, elogiando sua inteligência esperteza na luta de
gatos e enxugavam os olhos secos com suas largas mangas lembrando-se do amor
paternal do finado bispo pelo bichano. Todavia nem os elogios nem as lágrimas
adiantaram nenhum dos parentes quis saber do gato. Dividiram aquele espólio
miserável que lhes deixaram e partiram. Kubrik ficou só, sem a estima de ninguém, sem
o cuidado de ninguém.
Vital não o alimentava, mas sempre lhe batia, para que não entrasse nos
quartos. Aparecer nas despensas agora era perigoso, pois logo que ele aparecia, batiam-
lhe sem dó, a vingar-se de seus antigos pecados. O gato vagava pelo monastério, magro,
maltrapilho, miando alto de fome e dor das pancadas.
Um novo bispo custou a vir e alguns monges, sentindo-se livres, pouco a pouco
sem forças para resistir as tentações do diabo que agia agora com arrogância tal qual se
227
tivesse mudado para o santo lugar. Sempre às noites, quando o portão do monastério era
trancado, farreava-se e até cantavam-se cantos laicos e pecaminosos. Os mais velhos e
sábios aliás não participavam dessas indecências e passavam o tempo em diversões
prudentes. Às vezes, reunidos no quarto modesto do Padre Dalmácio eles se lembravam
do morto e de sua bondade... para com o gato.
Vital, normalmente chegando com Kubrik entre os braços, começava as
diversões. Impiedosamente atormentando o gato infeliz com beliscões e empurrões
inesperados, ele, satirizando os gestos e jeito de falar do morto, fingia acariciar o bicho.
Os presentes gargalhavam de prazer e quanto mais alto e comovente fosse seu miado,
mais lhes crescia a alegria. Afinal o gato perdia a paciência e mordia ou arranhava a
mão do algoz, que o devia largar.
começava uma cena nova, mais vigorosa e mais alegre, onde participavam
todos os presentes. O gato corria pela sala feito um louco, buscando uma saída ou algum
esconderijo, mas a porta e as janelas eram antes cuidadosamente fechadas e não era
possível encontrar nenhum refúgio. Os monges sem pena empurravam o bicho com os
pés, batiam-lhe e o arrastavam pelo rabo através do quarto, se ele tentasse esconder-se
sob o armário. Cada empurrão, cada pancada era acompanhada por altos gritos dos
torturadores:
- Você se lembra, maldito, das minhas salsichas?
- Já se esqueceu da primeira vez em que comeu meu creme?
- Quantas vezes por sua culpa, gato sem-vergonha, tive que ouvir calado! Agora
tome!...
- Maldita criatura!... Quantas vezes quis te matar!...
Com a chegada do novo bispo cessou a farra, e também o tormento do muito
sofrido Kubrik. A atenção de todos voltara-se para o recém-chegado, e cada monge
mirava-se em fingir diante dele e batalhar pela sua simpatia e favor. O gato, pouco a
pouco foram esquecendo completamente. De dia ele não tinha coragem de passar perto
do quarto de algum monge, e durante a noite, a miar alto e de maneira comovente ele
vagava entorno ao quarto do bispo, onde há pouco gozara ainda de uma vida tão feliz.
Uma vez a descer para o jardim o bispo reparou Kubrik na escada. Seu aspecto
estranho miserável e selvagem, seu miado sem coragem o surpreenderam.
- Veja, um gato selvagem disse em tom de reprimenda ao Vital, que o
acompanhava. Não quero mais vê-lo, ele é perigoso!
228
Vital logo o apanhou sem dó, correu detrás dos arbustos e o jogou por sobre a
cerca do jardim.
Pela manhã encontrou-o sem vida junto à porta de entrada.
229
N4- La metropolo malsatas. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la
esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, p.59 -66,1964.
230
A Metrópole tem fome
Um vento afiado assobia nas ruas estreitas miseravelmente iluminadas, fazendo
girar pontiagudos flocos de neve lança-os nos rostos dos que correm para casa. Um
jovem magro, de estatura alta vai vagando de rua em rua. Longas horas assim, à toa. Às
vezes refugia-se debaixo da abóbada de algum portão, puxa para si a colcha de peles de
verão, adormece e sonha com um quarto aquecido, comida cozida, uma cama macia...
231
Uma carruagem passa fazendo barulho... Passos do policial de serviço ecoam no
silêncio... Ele se levanta e continua a vagar.
A fome não o tormenta mais do que os pensamentos. O retorcer do estômago às
vezes se acalma por um arroto, que lhe enche a boca com sabor de raiz. Bendito arroto,
a despertar a ilusão da comida. Como remastigar feito um boi. A raiz ele achou no lodo
da feira. Talvez o amanhã traga com sorte um alho que lhe desperte a ilusão de gostosas
linguicinhas. Mas e se não achar nem uma cenoura podre?... Afinal por que vive ele? E
para quê dessa maneira? Órfão e abandonado ele é. Os pais repousam no túmulo. Os
parentes... Ele não os conhece... Meio ano atrás ele veio a de sua aldeia distante até a
capital para estudar na universidade. Por longos meses ele se sustenta com esforço, mas
há semanas até o último recurso a sorte lhe tomou. A família, cujo filho ele ensinava em
troca da comida de todo dia, não precisa mais dele, pois o menino morreu. Desde então
ele sente que essa cidade grande está ávida pela sua vida... A metrópole tem fome...
Um pensamento de suicídio estremece-lhe o coração. Não pela primeira vez,
mas sempre resta um tanto de esperança que consegue expulsar a tentação de chamar a
morte... Passos decididos rumo ao grande rio... Caminhar... caminhar... longo pisar
monótono pelas ruas afora, bulevares, passagens para a ponte, cujos contornos escuros
se desenham na distância... Se a metrópole está com fome é preciso contentá-la.
Nalguma ruazinha adjacente fecha-se uma janelinha. Uma voz sonora, atraente
de menina o faz parar.
-Ô menino bonito, entra!
Ele vira a cabeça para a janela, olha a menina. Ela tem olhos de fogo, mariposa
noturna colorida. Num sorrisinho irônico curvam-se os lábios dele. Diverte-se com o
pensamento que ela possa supor uma carteira cheia de dinheiro em seu bolso... Pela
janela aberta ouve-se estalar o chamado de madeiras queimando no forno. Ar quente,
misturado ao odor de perfume e um lampião acariciam, cutucam-lhe os sentidos. Seria
bom entrar, aquecer-se junto ao forno, sentir as carícias de mãos bem gordinhas, ouvir
um riso sonoro e... e... enganá-la, rir dos seus presentes como todo seu sofrimento ri-se
da vida.
Ali perto estava a maçaneta da porta principal. precisava pegá-la e apertar
para abrir o paraíso terrestre ou... o inferno moral... e ele segurando nela, mas aquele
latão glacial -lo recair em consciência... A metrópole tem fome da sua honestidade...
Sem palavras ele vira-se e sai para continuar sua última caminhada.
232
-Não gosta de mim? Na rua aí dizem que eu sou a mais linda, a mais jovem...
Vem, entre aqui se quiser.
-Não dá... estou sem... é... e também nem comi nada... se tivesse dinheiro, aí pelo
menos podia esperar amanhecer debaixo de um teto, mas assim... não dá...
-Bem, boa caminhada então!
A garota fecha ruidosamente a janela e ele segue andando, passa alguns prédios,
quando a voz dela novamente se abre e sua voz o chama de volta.
-Ei, moço! Volte aqui!... Acabo de lembrar que deixei há pouco um potezinho de
água no fogão para chá. É o bastante para duas xícaras. Venha... beba, depois você pode
ir embora... Ora, venha, eu ofereço de coração...
Ele se vira, como se obedecesse inconscientemente corre até a porta, mas aquela
maçaneta o para novamente... Ele não é nenhum mendigo. Poderia aceitar qualquer
coisa de uma pessoa, que é evitada por qualquer homem de bons sentimentos? Não!
Como o haviam de julgar seus colegas, cavalheiros de decência, virtude e moral? Que
poderia ele dizer de si mesmo? Não perderia a própria estima? ... Eis que a metrópole
agora tem fome da sua dignidade humana ... Lágrimas surgem-lhe nos olhos.
A garota observa-o com dó, que fica de sem movimento. Aquelas lágrimas
lhe evocam um sentimento desconhecido ... De uma vez ela fecha a janela, corre até a
rua, agarra-se ao braço do jovem já indo embora e puxa, trazendo-o de volta consigo
para casa. Sua fala e conduta não se parecem com os de uma garota de rua, mas em
tudo refletia-se o coração puro da mulher eterna.
-Venha, venha, eu lhe peço! E saiba também que eu gostaria muito de arrumar
um emprego para você. Trabalhar não é vergonha, nem mesmo se o empregador é
alguém como eu. Mas saiba também que isso é um assunto longo e para contar e
explicar tudo eu preciso de tempo... Qual é a sua profissão?
-Estudante de Direito.
-Estudante de Direito? ...Sim!... Pois veja, justamente eu tenho um negócio, que
só um homem instruído pode resolver... é... e saiba também que... bom, venha, venha...
Ela conversa, conversa, mente e puxa consigo o jovem, o conduz a um quarto
agradavelmente aquecido, o faz sentar no sofá. Ele se sente como se uma monstruosa
mão invisível o empurrasse para e para a seu bel-prazer. Talvez a metrópole... Ele
se assenta rígido, algo admirado, algo nauseado.
A garota hábil e rapidamente arranja o chá, cobre a mesa de uma toalha branca,
põe pratos,talheres, carne e pão diante dele e finalmente olhos nos olhos, sentando-se
233
oferece sua modesta regalia... Ela sente uma sincera alegria interior. Ah, que bom seria
ter um homem tão honesto na casa. Sorriu ante tal pensamento e para distrair seu
convidado e espantar o incômodo ela conversa e conversa mais, galopando nas palavras.
-Pois, saiba querido, eu tenho um amante. Ele é em patifezinho trapaceiro, mas
eu o amo muito e, veja só, vendo você eu me lembrei dele. É, sim, dele! Meu Deus, se
ele também tivesse às vezes a mesma sorte! Mas isso é impossível! Ele é robusto,
teimoso, oportunista, pois, veja querido, no inverno ele fica sempre jogando carteado
ou bilhar com meu dinheiro e ele ganha muito! Ou nas corridas de cavalos ele arrisca
umas coroas e se o garoto do estábulo o enganar, ele sabe se vingar... pois veja
querido, ele vive disso. E no verão ele é um artista do jardim popular. Um verdadeiro
artista! Ele faz malabarismos com ogivas de marfim, enfia uma espada no estômago, é,
sim, até o fundo do estômago. Brrr...! Ele come palha ou feno para depois devolver no
lugar uma fita de papel ou de seda daí a pouco, ele diz anedotas engraçadas e o estimado
público gosta muito dele... sim... até um excelentíssimo senhor lhe sempre cigarros
egípcios... pois veja bem querido, que é um verdadeiro artista e... Ora, tome mais um
pouco dessa carne defumada...! e pensei que você fosse na verdade um senhor que não
saberia artes semelhantes e então... Puxa, beba mais uma xícara de chá...! e veja bem,
querido, que ele me ama e eu também ... sim... eu também o amo... O que quero dizer?...
Sim! Veja bem, querido, que no quarto vizinho mora uma garota, a Zozo. É uma
prostituta muito feia. Ela vende-se a qualquer um... A bem da verdade eu também,
mas... a gente tem que viver de qualquer modo, não é...? Uma menina abominável, essa
Zozo. Veja bem, querido, que ela se maquia. A maquiagem lhe cobre da espessura de
um dedo as bochechas e lábios... é... eu também me maquio para o... para o...Ah, como
sou distraída! Espere!...! Aqui tem bolinhos, biscoitos! Tome, querido...! Ela se maquia
para esconder a idade. está nos quarenta, é sim, mas, veja bem, querido, que apesar
de tudo eu amo essa infeliz da Zozo, pois ela é que me apresentou ao Vladimir. Assim
se chama meu noivo... Porque ele é meu noivo... Assim é mais honesto, não é? E veja
bem, querido, veja bem...
Como se estivesse meio adormecido o jovem vai ouvindo a estranha conversa.
Ele sente que à alma dessa garota não falta delicadeza. Quem sabe um dia ela também
veio cheia de ambições honestas para a capital, mas depois a metrópole a engoliu... A
metrópole fala pela boca dela... Refugiar-se, refugiar-se...! Subitamente ele se levanta
para partir... Uma gratidão profunda, misturada à compaixão ele sente, mas as palavras
234
param na sua garganta, embora o instigasse a necessidade de agradecer. O que fazer?
Como agradecer? Afinal veio uma ideia.
Tendo tomado do chapéu, ele anda até a garota, pega-lhe a mão e beija-a. É
como se um fluxo elétrico fizesse cócegas no seu coração. Ela enrubesce. O beijo feriu
seu coração com brasas. Longamente ela olha para diante e não percebe que seu
hóspede sai tropeçando pelo corredor obscurecido.
Uma decisão súbita fá-la correr atrás dele, tentar novamente reconduzi-lo ao
quarto, conversar, contar fantasias, centrifugar bagatelas sem importância junto com
pensamentos de um ideal elevado. O jovem, qual sonâmbulo, a segue e sem resistir
obedece-lhe. A voz dela ressoa como o canto de uma babá, o calor de quarto relembra
um lar que ficou no tempo e o paulatino sono vence o jovem miserável. A garota suspira
um beijo delicado na sua testa, cobre-o com seu travesseiro grande de penugem, põe
lenha na fogueira e desparafusando o pavio da lâmpada senta-se à cabeceira do
adormecido... Quão docemente repousa esse rapaz quase congelado!
A porta se abre. Uma cabeça coberta de penugens escuras se mostra na fresta.
Depois de um momento uma voz baixa, rouca de aguardente e uma vida de aventuras
repreende a garota pelo seu hóspede.
-Ora, não se irrite, Vladizinho! Eu lhe peço, não se irrite! Você sabe, querido...
você sabe bem... você...
-Nem no inferno os diabos aquecem como você! Estou roubando lenha e carvão?
Eia! Que delicadeza, até o travesseiro grande você cobriu sobre as roupas sujas dele?!
Expulse esse porco bêbado! Se ele quer dormir, poderá grunhir feliz no travesseiro da
neve das ruas. Ora! Ei!
-Não o acorde, Vladizinho, não o acorde! Veja só, é um estudante miserável e
saiba que ele não comeu hoje nada além disso... além do que eu lhe dei e saiba que ele
não tem moradia, talvez teria se congelado durante a noite e talvez até... e veja bem,
querido...
A cabeça coberta de penugem castanha se inclina sobre o que dorme e a voz
baixa se amolece de súbita emoção.
-Hm! Estudante miserável... e ele não comeu?... e ele não tem moradia? ... Hm!
Estudante miserável...
A garota, aduladora, aperta sua cabeça contra a dele e em sua voz treme uma
súplica.
235
-Vladizinho, tenho que lhe dizer... tenho que lhe contar... aconteceu algo, algo...
mas prometa, que não vai se irritar... você não ficará nervoso...
-Desembuche logo!
-Ele beijou minha mão... não ria...! Ele beijou minha mão e desse jeito ninguém
antes havia beijado minha mão... nunca com tanto respeito e gratidão... Vladizinho, ele
beijou como a de uma verdadeira senhora se beija e nunca ninguém... ninguém...
-Ora, eu também beijo suas mãos e nada... Ele beijou sua mão e por que
chorar?... Não chore, sua bobinha... Oh, minha pequena gansa...
O adormecido tosse a seco, enfia profundamente a cabeça sob o travesseiro e
arranca indignamente do pilantra a emoção que ele mal soubera dissimular.
-Olhe, ele está tossindo! Você ouve? Não seria de se espantar, se ele se resfriasse
neste quarto. Não economize a lenha, ainda mais dela no sótão do dono da casa. Não
está vendo como lhe pende a cabeça? Coloque esse travesseiro debaixo dela! Pois... um
estudante miserável ... é ...e não tem moradia... e beijou a mão da Lonya... da minha
Lonya... pobre estudantezinho...
O malandro cabeludo resmunga comovido, cobre com sua capa os pés do
adormecido, entope até arder o forno e senta-se no sofá.
A garota também se coloca onde estava antes e enquanto eles furtivamente
olham um para o outro as almas simples se enchem de algum calor sagrado que lhes
acaricia os corações. Eles ficam despertos e sentem algo estranho, que os eleva acima
do pântano de todos os dias. Um silêncio, um silêncio longo, solene... Às vezes ouve-se
um murmúrio de sono, à meia voz.
-Pobre estudante... sem comer... sem moradia... e beijou a mão da Lonya.. Ele
beijou a mão da Lonya...
***
E a metrópole insaciável assim o engoliu.
236
N5- Kamarado Bojko. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta
novelarto. La Laguna: J. Régulo, p. 97-104, 1964.
237
238
Camarada Bojko
Era chamado Bojko.
E era um camarada de boa qualidade eis do que quero certificá-los, embora sua
maneira de pensar não seguisse o caminho de um homem comum, são.
Frequentemente tinha ideias fixas.
Também era um bom esperantista só o acusativo é que às vezes ele errava.
Só essa palavra é que eu não agrado dizia.
A palavra que o desagradava era ―devaneio‖
-Por que ―devaneio‖? – repetia ele.- Mais certo seria ―desvaneio‖!
Alegrava-me que Bojko fosse um esperantista dado a refletir. Ele quer
aperfeiçoar-se. Mas depois constatei que não é assim; isso era sua ideia fixa. Ele em
geral se comportava de maneira estranha. Para mim esse ponto de seu pensamento era
totalmente obscuro. Durante a conversa ele às vezes voltava novamente à mesma
palavra. Evidente era que ela ocupava demais o seu cérebro.
-―Devaneio‖ nem soa bem ele repetia no lugar mais inadequado, rompendo a
linha da conversa. E eis que se encontra no dicionário.
Ele não sossegou até me mostrar a palavra nalgum dicionário velho.
-Verdade consenti tem razão. Diga ―esvaneio‖. ―Desvaneça‖, isso significa:
―saia de seus sonhos‖.
Por um momento ele pareceu ter entendido, mas depois repetia insistentemente:
239
-A mim não me gosta ―devaneio‖!
Sujeito insistente. Será que lhe falta alguma coisa?
A primeira vez nos encontramos ao acaso pela rua. Trocamos algumas palavras
de amizade e depois de um momento nos despedimos. Eu estava num humor sereno, ele
pareceu também ser bem-humorado. Despedindo-nos, ele sorriu largamente e seu único
dente de ouro no canto da boca brilhou de modo afável.
Alguns passos depois, eu parei, virei-me para ele e olhei. Ele também se virou.
Então estendi-lhe a mão, rindo.
Ele, no entanto, voltou-se para mim e seu rosto estava vermelho.
-Por que você fez isso? Quer zombar de mim?
-O que você disse? espantei-me chateado. O que eu fiz?
-Ora, você fez assim! ele às vezes virava a o junto à cabeça e seus dedos
estavam estendidos separados, apontando para o alto.
Eu entendi. Realmente, um gesto semelhante é feito para apontar que alguém é
louco.
-Não, eu apenas o cumprimentei. disse eu.
Ele saiu.
Agora eu sei por certo, que algo lhe falta. Ele com certeza é um maníaco. Talvez
até acometeu-lhe uma espécie de loucura quiçá uma loucura tranquila, mas ainda
assim uma loucura.
Passou um longo tempo, em que não nos encontramos.
Sentava-me às vezes no jardim da cidade, meu banco encontrava-se bem ao lado
da banca de jornais, de maneira que podia observá-la.
O muro externo da tendinha estava cheio de gazetas búlgaras e estrangeiras de
diversas cores. Meu olhar passava indiferente entre os títulos: ―Iljustrovana Sedmica‖,
―A Tribuna Ilustrada‖... ―Berliner Illustrierte Zeitung‖... ―A. I. Z.‖ ... O que é isso?
Parece um jornal alemão. Mas na capa desse jornal havia uma foto que apresentava o
navio quebrador de geleiras russo ―Maligin‖.
Eu adoro o vasto país russo, onde hoje cento e sessenta milhões de pessoas
vivem livremente, onde trabalhadores e aldeões pobres hoje de mãos dadas criam seu
futuro brilhante, em que o martelo desce pesado para forjar, do ferro quente, foices o
país dos comitês de trabalhadores e camponeses.
Levantei-me diante da banca e comecei a folhear e a olhar os jornais. A língua
alemã eu não conheço, mas me esforcei para ler as imagens sem o texto. E eis
240
fotografada uma grande fábrica e diante dela uma multidão de trabalhadores. Guardas
de pé diante das portas a procurar os trabalhadores que passaram. Seria uma greve?
Já na outra página uma reunião. Milhares de trabalhadores e trabalhadoras aqui
estão fazendo sem dúvida uma declaração solene batalhar até o último homem contra
a injustiça da ordem social capitalista, pelo pão e pela liberdade!
E olha aqui as ruínas da catástrofe numa mineradora de carvão. Pereceram
centenas de vidas de trabalhadores. Eu olho os rostos das mulheres e crianças
fotografadas, que em lástima ajoelham-se sobre o túmulo profundo de seus queridos
maridos e pais... Aquelas caras atormentadas falam mais eloquentemente do que todo
tipo de palavras, falam da inexprimível angústia que rasga o coração, da miséria sem
esperança, quem será agora o seu companheiro de sempre?...
Fotos, fotos da vida dos trabalhadores. Por que não aprendi alemão? É tão
difícil... Mas será verdade? Na penúltima página do belo jornal leio letras em esperanto:
―Festival distrital de ginástica de Brandenburgo‖. Então, o esperanto chegou até lá.
Leio, e as fotos são agora muito mais claras para mim do que antes. Eis um homem,
agredido por policiais americanos. Os delinquentes arrancaram toda a pele das costas do
camarada fotografado. Mas aguente, meu irmão. Saiba que por aqui também as mãos
não são mais moles... é até sorte sua continuar vivo.
De repente alguém tocou meu cotovelo. Era o Bojko.
Ele me olha com os olhos brilhantes.
-Olha só, Bojko! mostro-lhe a primeira página da gazeta.
-O incomparável heroísmo dos marinheiros russos... ele traduziu para mim.
-Você entende alemão? me espantei.
-Um pouco.
E ele continuou a me explicar as fotos. De repente ele disse:
-Quero ir para a Rússia.
-Por quê?
bonito. Sonho com isso sempre. Fico mais feliz do que nunca quando vejo
fotos de lá. Até quando faltam nas bancas outros jornais, olho as gazetas de língua
russa... aí um sopro me toca do único país de trabalhadores.
Ele me falou longamente sobre a Rússia. Éramos amigos novamente nossos
sentimentos pela Rússia nos reconciliaram.
-Diga algo sobre a guerra! olhou Bojko de repente para mim.
-Que guerra? Dizer o quê?
241
-Você esqueceu? Já estão se preparando contra a União Soviética. Todos.
-Eu não vou lutar eu disse. Por causa do pé. Você já viu que eu manco.
-Mas eu irei disse Bojko. E não hei de lutar contra meus camaradas. Vou
guerrear...
Ele o terminou de dizer, pois às nossas costas algumas pessoas se tinham
reunido.
Curiosos vieram ver o que estávamos olhando. Falávamos em esperanto, mas
talvez alguém pudesse entender mesmo assim. Era perigoso. No dia seguinte Bojko veio
até à loja em que trabalho. Ele queria conversar.
-Só um pouco disse sobre a Rússia.
Trouxe consigo cartões postais recebidos de camaradas russos. Sonhamos juntos
por um longo tempo.
Desde então ele sempre me procurou. Meu chefe ficou curioso sobre o que
conversávamos.
Ele está me ensinando esperanto menti.
Um dia de outono chegou meu primo de Vidin. Conversamos intimamente sobre
diversos assuntos, sobre conhecidos, sobre parentes e sobre tudo mais. Na loja
estávamos sós. Então, como frequentemente outras vezes, Bojko passou pela loja, quis
entrar, mas tendo visto que não estava sozinho, apenas cumprimentou com a cabeça e
foi embora.
Meu primo ficou surpreso:
-Bojko! Como é que ele...
-Você o conhece? Ele é meu camarada. Um bom sujeito, mas um pouco
estranho.
-Ele ainda está assim? Que pena! Sujeito muito bom, mesmo.
Meu primo também fora antes oficial na estação ferroviária de Vidin. Era
bastante velho, burguês e preguiçoso, mas eu gostava dele pelo seu bom coração.
-Você o conhece? voltei a perguntar. Diga-me o que você sabe dele.
-Ele era um dos foguistas mais inteligentes. Gosto dele, embora tivesse uma
cabeça de fogo. Ele era muito jovem e todo mundo lhe perdoava os erros. Mas seu
maior pecado era ser corajoso demais. Diria até mesmo: descabeçado, estupidamente
corajoso.
242
Isso aconteceu durante os dias terríveis da rebelião popular. O tumulto passou
feito uma onda durante alguns dias pelo país para então extinguir-se pouco a pouco. Na
minha região a rebelião atravessou um momento de crise.
Eu estava na máquina número 108. Comigo, como foguista, vinha Bojko. A
composição estava cheia de soldados. Atravessamos a linha de batalha dos rebeldes e os
soldados começaram a atirar contra um grupo de aldeões. Começou uma batalha
ardente. Ficou bem claro, no entanto, que a resistência dos aldeões não iria durar muito
tempo. Era tudo em vão. A última batalha estava para acontecer...
Neste momento de cima da locomotiva ouviu-se um forte grito: ―Camaradas!
Continuem a lutar! A ajuda está a caminho!‖ Era a voz de Bojko. O trem teve que
retirar-se, pois efetivamente dali a poucos minutos ameaçava-nos uma nova tropa
armada.
Nós seguimos depressa e sem parar até Vidin.
Nem bem a composição parou, cercaram-nos alguns soldados. Um oficial
comandou: Atirem nestes para matar! Você aqui para baixo!
Levantei-me diante da escadinha.
-Espere, o que você quer?
-A voz saiu da máquina! disse abruptamente o oficial. Quem de vocês foi
que gritou?
Juntaram-se homens. Examinaram a situação. Eu, com medo, perdi a cabeça. A
suspeita, no entanto, caiu sobre o foguista. Sabiam que eu não tinha culpa, mas ninguém
disse que Bojko era esquerdista. Todos os colegas o amavam muito para traí-lo.
-Foi de dentro da máquina! insistiu o oficial. Levem este jovem para fora!
Apontou para Bojko.
Nenhum de nós acreditava que ele voltasse vivo. Mas bateram nele com muita
crueldade. depois de semanas ele pôde sair da cama. Mas desde então ele ficou
muito estranho. Desde então ele fica sempre falando sobre o mesmo assunto. Parece que
seu cérebro foi lesionado.
Agora eu sabia sobre Bojko.
E com calor tomava-lhe da mão, quando no dia seguinte ele me perguntou
novamente:
-Você vai lutar contra os camaradas? Eu vou lutar, mas não contra eles, e, sim,
contra os inimigos dos vermelhos. E os trabalhadores vencerão com certeza, não é?
E eles poderiam não vencer?
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N6 - La nokto de Neptuno. In: SOKALÓWNA, Barbara. Viro en nigra mantelo kaj
aliaj rakontoj. Varsovio: Pola Esperanto-Asocio, p. 36-46, 1984.
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247
A noite de Netuno
Netuno. Por que justamente Netuno? Simples: Netuno era um tipo de televisor,
popular naquele vilarejo. O nome ainda assim soava morno, e o cão que o recebeu tinha
um gênio ruim.
-Não se pode confiar nele avisava o dono. Os convidados para o verão
olhavam o bicho curiosos.
-É capaz de morder, inesperadamente.
Preferível não chegar perto de sua casinha, a menos que leve um pão, ou alguma
outra coisa de comer.
Netuno era magro, escuro, com um focinho agudo, com olhos amedrontadores.
Seus pelos tinham a cor do crepúsculo profundo: de cinza para preto. Ele aceitava
comida com dignidade, agradecia com um balanço do rabo. Muitas vezes, depois de
o sol se pôr, ele puxava impaciente sua corrente e, tendo-se libertado ele mesmo, corria
até uma vereda, que divide dois mundos: o de casa e o da floresta.
Parou por um instante na areia dura.
Seus músculos tremelicavam. Suas narinas captavam sopros aromáticos, da
floresta. Daí a um instante farejava algum rastro na mata, sumia entre pinheiros e
carvalhos. Antes do cair da escuridão da noite, o cão voltava ao pátio, rondava-o com
atenção. Todo som, ou cheiro suspeito provocava logo um forte latido de alarme de
Netuno. Em suma, ele era um bom cão de chácara, preenchendo honestamente seu dever
de guardião da casa. Ajudavam-no duas cadelas: Fúlgea e Bolinha. Fúlgea o nome foi
tomado emprestado a uma marca de aparelhos de rádio, também muito popular por ali
cativava as pessoas com sua obediência, olhar doce, e um ―colar‖ branco de penugem,
que enfeitava sua pelagem escura. A cadela ocupava uma casinha separada, junto ao
estábulo é que ela ficava; a de Netuno encontrava-se junto do armazém. a Bolinha é
que não vivia numa casinha. Elegante, cor de mel, a pequinesa era ainda novinha e
gozava de todos os privilégios da sua idade de filhote: dormia na casa, distraía-se
espantando galinhas e adorava Dario fervorosamente, o filho de treze anos dos donos.
Bolinha acompanhava o menino assim que ele chegava da escola, ao longo de todas as
tarefas de casa e do campo. Dario gostava muito da cachorrinha. A maior alegria para os
dois era passear de charrete. Bolinha se aprumava orgulhosa no assento da frente, ao
lado de seu ídolo. Dario fazia acelerar o cavalo, estalando o chicote. A charrete saltitava
na vereda esburacada, ao sol brilhavam a cauda cor de mel de Bolinha e a cabeça loira
248
de Dario. Seus cabelos densos, lisos, meio longos, cortados na moda, formavam como
uma auréola em torno à cabeça.
-Meu girassol suspirava a mãe.
Dario era caçula, o único que ficou na fazenda. Estevito, o penúltimo, serviu no
exército e pouco tempo meteu-se num cargo bem tedioso. Ocupava a função de
cozinheiro. Cozinheiro do regimento, um posto aparentemente privilegiado, revelou-se,
no entanto, uma falta de sorte para ele. Os quatro mais velhos - três rapazes e uma moça
- os levou a capital mais próxima. Eles se ardiam por automóveis, por uma vida
urbana, confortável, bons cargos e divertimentos. Os pais não impediram que os filhos
escolhessem tal modo de vida, embora não aprovassem a escolha.
-Onde há muita gente há mau cheiro dizia sempre a mãe. E o pai adicionava:
-Eu não conseguiria viver numa cidade grande. Iria sufocar. Nem do vilarejo eu
gosto.
No vilarejo, aonde ele ia de ônibus toda manhã, ele executava um trabalho de
Hércules: levantava e marretava na terra uns blocos de calçada pesados, trinta e cinco
quilos.
-Eu sou pavimentador com orgulho ele falava. Tinha orgulho também, e muito
mais, de sua casa construída por suas próprias mãos, a primeira do vilarejo - uma casa
com banheiro e aquecimento central; e de sua pequena, muito bem organizada fazenda.
A terra devorava-lhe todo o tempo livre do trabalho com pavimentos, sugava-lhe
todas as forças. Mas ele vivia desperto e alegre, sempre repetindo contente:
-Eu é que sou o dono na minha própria casa, e aqui ninguém me manda.
O verão corria depressa, aos grandes saltos. Seguiam-se aromas e cores, plantas
terminavam de florescer, formavam-se frutos. Somente o homem é que trabalhava sem
nenhuma mudança, todo dia, no mesmo ritmo intenso.
Veio o tempo de colheita, o apogeu do verão. Eram fins de julho. O sol
brilhava desde a manhã, as matas amarelavam de secura, os grãos nas espigas
endureciam, estavam prontos. Sua folga de duas semanas ele dedicou-a, como todo ano,
aos trabalhos de colheita. O centeio bonito, maduro esperava. Alugou uma ceifadeira
no círculo agrícola do vilarejo. Começou a trabalhar com ajuda de Dario, depois vieram
outros filhos, um seguido de outro, por dois dias: Adão, Valdemar, João. Cada um
procurava obter uns dias de folga para participar dos trabalhos culminantes da colheita.
No terceiro dia, pela tardinha, a ceifadeira deu defeito. Um mecânico do círculo agrícola
achou o defeito bastante grave.
249
-Isso demora disse volte depois de amanhã.
De noite, na cozinha de verão, uma grande adega, o único lugar da casa intocado
pelo forte calor, reuniu-se a família inteira, pois naquela noite chegou Vaninha, a única
filha, esbelta, loiro-escura, silenciosa e moderada; contrariamente aos irmãos, loiro-
claros, robustos, ruidosos, passionais. Os pais com orgulho e amor consideravam seu
quinteto. Todos estavam tão cheios de vida e em bela forma. Aos quatro mais velhos a
cidade não tirara ainda a pele fresca, nem o apetite. Iguais ao Dario, o mais novo, eles
comiam alegres e fartamente, grandes porções de ovos mexidos com linguiça. Todos os
cinco de faces rosadas, seus olhos brilhavam iguais aos olhos do pai.
-Estevito está tão pálido disse então a mãe e ainda um ano...
Todos conheciam bem a estranha aventura de Estevito, mas novamente eles
comentaram em finos detalhes sobre o acontecimento. A mãe tornou a contar sua visita
ao regimento da artilharia de Estevito, sua conversa com o oficial, sobre o encontro com
o próprio Estevito.
-Ele não podia fazer diferente. ela concluiu ele estava defendendo um colega
mais jovem e mais fraco. por isso foi que ele bateu tão forte no seu chefe com a
escumadeira. Aquele sargento malvado foi até degredado. Mas o Estevinho teve que ser
levado para o hospital. E agora... Uma prisão não é um sanatório.
-Ano que vem ele estará em casa!
-Ele volta, com certeza. Não se amargure, mamãe.
-Ele aguenta. Vai ficar livre.
-Vai fazer a colheita conosco! todos mais uma vez repetiram as frases de
consolo.
O ―Girassol‖primeiramente terminou seu café com leite e ligou um transistor
receptor. Uma voz de mulher anunciava para breve uma mudança no tempo... Nas
regiões centrais do país, a partir da noite de amanhã com possibilidade de chuvas
abundantes...
-Depois de amanhã devo estar esperando para receber a ceifadeira disse o pai.
-Para os diabos, todos! Nós não podemos esperar. O trigo ainda nem tocado foi.
bom para a foice. E feixes de centeio aos montes no campo. Nós temos foices. Ora,
será que vocês não se esqueceram como se segura uma foice?
A resposta a essa pergunta foram gargalhadas durante uma hora, de quatro
jovens gargantas de garotos.
250
De fato, provaram ao pai que não haviam esquecido. No dia seguinte, desde as
quatro da manhã, todos juntos, eles desbastaram o trigo. Em silêncio, furiosamente com
pressa, como se lutassem com um inimigo mortalmente perigoso. Crescia o número de
feixes, amarrados pelas mãos da mãe e da irmã. Dario conduzia uma charrete cheia ao
armazém. Bolinha acompanhava a charrete a cada vez, sem laço.
O dia estava particularmente sufocador. Netuno e Fúlgea escondidos em suas
casinhas. Os hóspedes de verão buscavam frescor num ribeirão próximo. Duas senhoras
voltaram, entretanto, ao meio dia, na hora da entrega de mercadorias na venda, e
compraram um pão fresco para os apanhadores.
- Tem algo como se fosse um álcool no ar reparou uma mulher mais jovem
estou sentindo uma vertigem.
Foi uma vertigem o que certamente sentiu Netuno. De tarde, debulharam as
espigas. Fazendo um barulho infernal, a máquina de debulhar, instalada diante do
armazém, sacudiu-lhe as paredes de madeira, do mesmo modo que as da casinha do cão.
Isto durou por longas horas. O corpo do o tremia, a corrente apertava, incômoda, seu
pescoço. Afinal, perto do crepúsculo a febril atividade humana cessou. Todos os
trabalhos estavam acabados. No campo restavam aveia e cevada, ainda ruins para
colheita. O armazém se encheu. A máquina de debulhar repousava, bem protegida
contra a provável chuva.
-Bem, ajudantes, quem sabe alguém ainda volte para o campo, vocês são mesmo
uns bons agricultores meio que brincando propunha o pai, durante o jantar. Reinou um
silêncio. Toda a família comeu tranquila, como se nada tivesse sido dito. Depois de um
momento, Adão, o filho mais velho, começou a falar lentamente, cuidadoso, com um
sorrisinho de consentimento:
-Nós somos motoristas, Valdinho e eu, o Joãozinho com um gesto apontava
o terceiro urbano Joãozinho é mecânico de automóveis, Estevito também. Ele vai
querer voltar? Eu não penso isso. O senhor entende, papai... O senhor mesmo é que
pagou nossos estudos, querendo que tivéssemos uma boa profissão.
- E vocês aprenderam muito bem, para a minha infelicidade.
O pai sorria continuamente.
-Motoristas e mecânicos também podem trabalhar aqui disse isso firme, com
convicção. Algum freio se soltara. Agora todos os quatro jovens ao mesmo tempo
protestavam em voz alta.
-Ah, não, papai!
251
-Nós não queremos ser escravos feito o senhor!
-Eu, escravo? o pai espantou-se.
-É sim, um escravo!
-Escravo do sol, da chuva!
-Escravo da terra, do tempo!
-Nós vivemos livres.
-Livres repetiu em galhofa o pai Obedecer a chefes, diretores, outros
escroques, inspirar ar poluído, empurrar-se em bondes, tal é a sua liberdade!
Vaninha poderia voltar meteu-se a mãe. Na cidadezinha abriram uma fábrica
de cosméticos. Vaninha, você até concluiu a escola. Papai vai terminar de construir o
seu andar. Ah, você tem um rapaz por aqui, o Nicolau.
-Não o vi nem ontem, nem hoje respondeu Vaninha ele não veio. Talvez não
esteja mais me esperando. Vou viajar para o exterior. Para a Dinamarca. Já em
setembro. Minha firma está me mandando, pelo ano todo. Uma ocasião dessas. Não vou
abandonar.
A mãe suspirou e olhou para a filha. Delicada, uma verdadeira donzela da
cidade. Ela também foi esbelta, mas os anos do trabalho pesado engrossaram sua figura,
o rosto, até a voz.
-Dario fica conosco, não é Dario? o pai sorriu para o protegido. Dario ficou
vermelho. Respondeu baixinho:
-Não, papai. Eu quero ser motorista.
Os pais trocaram olhares: meio orgulhosos, meio amargurados.
-Vão dormir, meninos o pai pesadamente levantou-se da mesa agora pode
chover.
Não choveu, porém. A noite foi quente, sem ventos e sem estrelas. A
eletricidade que antecede o temporal, chamada de ―álcool‖ pela convidada, ficou no ar.
Os apanhadores, esgotados, se afundaram num sono de pedra. As visitas, após banhar-se
o dia todo de água e de sol, também dormiam profundamente. Ninguém poderia impedir
aquilo que aconteceria.
Netuno, liberto de sua corrente, não se sentia encolhido como sempre.
Extremamente incitado, ele correu pelo pátio, colérico a farejar. Despertava-se um
instinto atávico. Os nervos do cão exigiam um ataque, uma agressão.
Entre o armazém e a cerca havia uma grande gaiola para coelhos. Soalho não
havia. Estacas de madeira que havia eram densas, fortemente cravejadas na terra.
252
Netuno usou primeiro a força de seus músculos. Jogou-se algumas vezes contra as
estacas. Não cediam. Os coelhos, de repente acordados, com medo, comprimiram-se em
um canto da gaiola. Eram uns dez. Dois machos, duas fêmeas prenhas e um punhadinho
de filhotes. O cheiro dos bichinhos macios, angustiados era delicioso. O cão, com as
patas dianteiras, começou a cavar a terra. Trabalhava com a mesma obstinação, com que
durante o dia trabalharam os apanhadores.
Uma visitante, a mais jovem, uma das duas que ao meio dia trouxe pão para a
família que colhia, acordou de uma vez. Chegou até a janela aberta. O ar sufocante era
absorvido por alguma coisa pesada e estranha.
-Que cheiro horrível A senhora mais velha sentou-se na cama.
-Desculpe, eu a acordei?
-Não, já não dormia bastante tempo. Ouvi gemidos, fracos, como se algum
passarinho gritasse. E, além disso... algum cachorro uivou. Fúlgea, acho. Aconteceu
algo.
-Vou sair, vou olhar. a mais jovem deixou o quarto. Subindo numa escadinha
de frente da casa ela de ver o jardim e uma parte do pátio. Não percebeu nada de
inquietante. O ar era mais puro ali. Reinava o silêncio. Netuno inclinou a cabeça por
cima de sua pélvis. Ela o chamou. O cão não lhe prestou atenção. Bebeu a água, e
imóvel olhou a floresta. Ela voltou, deixando a porta principal aberta.
-Vamos fechar a janela propôs. Podemos abrir a porta que dá para o corredor.
Da floresta vinha um ar fresco.
-Você não viu nada?
-Nada. Tudo quieto... Netuno está guardando o pátio.
-Aconteceu alguma coisa ruim, tenho certeza.
-Você está fantasiando, como sempre.
-Eu nunca fantasiei coisa alguma indignou-se a senhora mais velha. Daí a um
momento elas dormiram de novo.
A obra do assassinato estava terminada. Netuno com certeza se fartara do
sangue das vítimas trucidadas, com sua própria força. Com alguma surpresa o cão
percebia o silêncio antes do amanhecer. Em suas orelhas ressoavam ainda os ganidos
dos coelhos aterrorizados e os uivos de protesto de Fúlgea. Ele não gostava de Fúlgea e
os lamentos da fêmea fizeram incitá-lo mais. Mais forte ele mordia, tanto mais
furiosamente ele destroçava. Agora o cão não queria mais matar, nem comer. Ficava
253
diante da gaiola, tranquilo, qual um vencedor depois de uma batalha, a sorver o odor
dos cadáveres.
Assim encontrou-o o dono, que antes do nascer do sol saiu da casa. Dario
acompanhava o pai. O fedor dos corpos dos coelhos seguiu-se logo de seus coelhos
amados imóveis, maculados de sangue. Dario soltou um grito. O pai pegou o cão pela
nuca, sacudiu-o com força e jogou contra a terra. O bicho perdeu a consciência. O
homem bateu-lhe na nuca, com uma estaca de ferro. Um golpe bastou. A morte levou
Netuno no momento exato do nascer do sol. O dono, murmurando blasfêmias, cavou a
sepultura para o cão. Dario ajudou o pai e chorou alto, como uma criança.
O dia, tão sufocante como o outro, passou sem grandes nervos. O final dos
trabalhos de colheita não exigia um sacrifício tão grande, nem tanta pressa, como
ontem. Ninguém então reclamou quando Dario declarou sua vontade de ir ajudar na
colheita um amigo que morava no vilarejo vizinho. Todos sabiam que o ―girassol‖
escapava para evitar o almoço familiar com torta de coelhos, preparada pela mãe. O
menino saiu, Bolinha alegre saltava-lhe às pernas.
Nem no crime nem na morte de Netuno se falou pela manhã. Depois, ninguém
mais mencionou o nome do cão. Só a visitante idosa, uma daquelas duas que se
levantaram de noite, repetiu algumas vezes à mulher mais jovem:
-Tenho certeza de que ele preferiria deitar-se na floresta.
Mudaram Fúlgea para a casinha que foi de Netuno. A cadela parecia estar
orgulhosa disso, algum tanto de orgulho podia-se ler em seus olhos. um tanto. O
olhar de Fúlgea expressava antes de tudo uma fidelidade sem limites.
À tarde Vaninha saiu para a cidade. Antes do anoitecer, os filhos mais velhos,
todos os três, tomaram banho, vestiram-se elegantemente e foram a um café no vilarejo,
para encontrar outros jovens. Os pais descansaram na escadinha, diante da casa,
conversando com uma hóspede, aquela que primeiro se levantou de noite. Era a hora
antes do crepúsculo, o dia reluzia ainda, os contornos das árvores muito claramente se
desenhavam. Vieram Dario com a Bolinha. O menino afirmou não ter fome.
-Eu comi bem. Só quero dormir disse e sumiu no interior da casa.
Bolinha ficou numa posição elegante e olhou as pessoas. A dona pegou uma fita
vermelha do bolso de seu avental. Chamou a cachorrinha e amarrou a fita em seu
pescoço. O bichinho cor de mel transformou-se em fúria. Latiu, saltou, rodou a cabeça,
com movimentos impetuosos esfregou o pescoço contra o tronco de uma cerejeira. As
pessoas riram daquele ataque de fúria. Enfim, a dona tornou a chamar a cachorra.
254
Bolinha veio, levantou a cabeça. Ela olhava a mulher desconfiada e sem muita amizade.
Livre da fita, ela correu até a porta da casa, com certeza para achar Dario e esconder-se
com ele.
-Você também quer ficar livre! riu-se o dono. O que afinal é liberdade? Eu
me sinto livre aqui. Na minha casa e na minha terra. E meus filhos correm daqui. Por
liberdade!
O sol descia devagar e brilhava vermelho entre os galhos de pinheiros.
-Vão voltar de noite outra vez. nervosa dizia a mãe. Para que ficar naquele
botequim? Boas moças ali não vão. Só prostitutas.
-Prostitutas? espantou-se a visita. De verdade?
-É, de verdade. São duas. Nasceram aqui. No inverno elas trabalham na cidade, e
no verão vêm para cá, não para a colheita, mas para vender-se aos hóspedes e aos
meninos do vilarejo. Peste!
-Nossos meninos o pai disse isso sério e com certo orgulho nunca vão às
prostitutas, nem sequer as olham.
-Vão se casar sabe-se com quem... com estranhas. Vão se apaixonar. Para o
amor não há remédio, como para a chuva.
-Você também se casou com um estranho. De outro vilarejo. Um estranho, era
eu. E safado, por dizer. Pois eu batia nalguns jovens. Sempre vencia. Defendia minha
honra. Direto da prisão fui para sua casa. Lembra-se? Seu pai jurou nunca dar você para
mim. Nunca! Foi por isso mesmo que viemos para cá, procurar pela sorte. Também nós
éramos desconhecidos, aqui, nós dois. Compramos a fazenda daqueles dois velhinhos...
Você não teve medo do estranho. Bom, quem sabe você hoje até se lamente? ele ria,
alto, largo.
A mãe sorria. Reinava o silêncio. O casal relembrava talvez sua juventude, tão
tempestuosa, e já distante.
-Um dia ficaremos velhos constatou o homem nossas forças vão nos faltar. E
nenhum deles quer ficar aqui.
-Todos vão sair, todos concordou a mulher. O que fazer?
-Vou deixar minha terra para o estado. Me torno pen-sio-nis-ta! Pensionista do
estado. - o pai disse isso tranquilamente. Ele era homem acostumado a achar a solução
certa bem depressa.
-Guardo para mim só a casa acrescentou.
-Nem só a casa reclamou a esposa o jardim também.
255
-Sim, claro, é, a casa fica no jardim
-Seria bom disse a mulher deixar também uma parte do campo, aquela detrás
do jardim. Onde cresce a cevada.
-Por que essa parte? E por que deixar? o pai olhou algo desconfiado para a
esposa.
-Ah, o chão ali é tão bom...
-O chão é bom em todo lugar. Quase todo lugar.
-Eu quero deixar este campo. Na voz da dona soava uma decisão colérica, o
tom, que o marido conhecia. Melhor não discordar dela nessas horas.
-Bem, talvez... ele dizia cuidadoso mas, diga, por quê? Tudo isso não é
necessário. É um pedaço grande de terra.
-Eu gosto destes campos. Está ali... a margem da minha fronteira. Meus limites.
Depois do trabalho eu descanso nela.
-Fronteira interessava-se a visitante até agora calada. Por que você descansa
justo ali?
-Vou-lhe dizer. a dona sorriu. Estava outra vez tranquila e serena. Os matos
crescem ali. Muitos matos selvagens, flores do campo, diversos arbustozinhos. O sol se
põe, como agora, e todos exalam. Toda a vegetação, até a menor, desprende seu aroma;
todas têm o seu próprio, especial.
-Incrível sussurrou a visitante. existem lugares assim, eu sei...
-Senhora, quem sabe a senhora compraria estes campos? propôs de súbito o
dono. Depois da fronteira. A parte desde o jardim até a cerca ficaria conosco. Talvez
suas crianças gostassem de ter uma fração? Hoje as pessoas migram assim, do campo
para a cidade, da cidade para o campo. Nós teríamos vizinhos simpáticos. Eu os ajudaria
a construir uma casinha. Ela seria lá, no bosque.
-Que ideia excelente! a visita exclamou entusiasmada, e logo resignada disse
ainda:
-Meus filhos gostam do campo, sim, mas só para veraneio. O marido... não gosta
nem um pouco.
-Ainda tempo, ainda não estamos vendendo nossa terra a dona levantou-se.
Vou para lá, para minha fronteira. Quer ir comigo? virou-se para a visita. A senhora
de idade levantou-se também, leve, jovial.
-Sim, sim! Vamos.
Ventou um forte vento súbito, impetuosamente, caíram primeiras gotas.
256
-Finalmente! sorriu o pai. O passeio até o limite da cerca mostrou-se
impossível. O casal e a hóspede de verão voltaram. Ficaram diante da porta aberta e
avidamente inspiraram ares úmidos. O jardim, os campos, a floresta e todo o mundo
exterior desapareceram detrás de uma densa cortina de chuva.
257
N7- La junulino, la ĉapelo kaj mi. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la
esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, p.243-250, 1964.
258
259
A jovem, o chapéu e eu
Nossa árvore localizava-se muito oportunamente, como se marcasse o limite
entre a calçada e a praça da escola. Não existia nenhuma barreira, mas nós
respeitávamos o limite. Quase sempre o respeitávamos.
Passavam pessoas, nós cumprimentávamos os conhecidos, alguns paravam em
sua pressa para falar um minuto com alguém dentre nós. Além disso, aquela árvore
ficava de tal modo localizada, que o inspetor da escola o podia perceber os estudos
secretos da tarefa para a próxima lição. E junto àquela oportuna árvore era o local onde
ficava minha classe entre as lições.
Com frequência eu traduzia trechos do Le Petit Chose para meus camaradas, que
não se interessavam nada pelo estudo da ngua francesa. Tal fez-me estudar o francês
com mais afinco em casa, porque eu gostava de impressionar os outros com minha
tradução fluente e explicações gramaticais. Às vezes até as garotas ajuntavam-se perto
da árvore além disso, elas sempre passeiam em grupos de moças e eu me alegrava
orgulhoso quando constatava que elas sempre chegavam enquanto eu estava fazendo
alguma interpretação.
Tanto mais diligente a cada noite eu estudava a gramática francesa e decorava
palavras francesas.
Nem por interesse em minha pessoa as jovens moças ajuntavam-se na nossa
árvore, e os sorrisinhos charmosos, que sempre foram a recompensa, não expressavam
admiração, espanto espanto, que alguém estudasse mesmo o francês em casa, e
gratidão, uma sincera gratidão por um útil socorro no momento exato.
Mas o meu coração se acalentava.
Tinha coragem de olhar aquelas garotas com olhos que não demonstravam
qualquer interesse: outros interesses, mais elevados, eu tinha. De mulheres eu falava
com palavras, que deveriam levar a supor outros mais elevados interesses, também a
esse respeito.
Nesse ínterim meu coração sofria.
Pois eu não tinha coragem realmente não tinha coragem de falar como queria
com uma garota. Em segredo desejei aquelas coleguinhas encantadoras, esperei em vão
por uma carícia ou mesmo uma palavra de amor. Eu não ousava sequer acariciar ou
até de brincadeira, cortejar. Invejava meus colegas que sem mais brincavam com elas,
260
tocavam-nas, à noite passeavam com elas, roubavam-lhes beijos. Ardia em dor meu
coração, por falta do doce arder de lábios macios.
Eu afetava uma orgulhosa falta de interesse.
Mas aos meus colegas de classe eu dava a supor, como se por acaso, algo de
heroico, com alguma palavra que parecesse displicente. De alguma forma conseguia dar
a impressão de ter alguma mulher. Só não ostentava, fanfarrão - como os outros, minhas
conquistas por aí. Eu me calava.
Ainda assim, num dia de grande ventania, resolvi passar uma impressão de
vitorioso. Arranjei rapidamente uma mentirinha sobre alguma aventura. Contei que, no
caminho da escola, vira uma jovem desconhecida, que vinha ao meu encontro. De
repente o vendaval arrancou seu chapéu e girou-o pela rua afora, por sobre as casas -
para longe. Acenei para a garota e corri para recuperar o chapéu. Depressa o encontrei
junto a uma lixeira e trouxe-o para a mulher. Ela agradeceu, abraçou-me ligeiramente e
seguiu seu caminho.
Um acontecido dramático. Mas os colegas não queriam acreditar na minha
estória. Espantei-me, pois a mim toda a estória parecia muito plausível. Estava, pois,
visível que eles não queriam crer que a mulher me abraçara. No restante eles
acreditavam, mas não na verdadeira pérola! Insisti pela veracidade de minha mentira,
até que os colegas enfim pediram que lhes mostrasse a tal mulher. E assim prometi
fazer.
Eis uma situação difícil. A cidade não era grande, quase todos conheciam uns
aos outros, e um forasteiro era logo percebido. O fato de que a estranha procurada fosse
uma jovem encantadora não poderia tornar a situação mais fácil para mim. Mas eu bem
que menti para exibir-me, e merecia sim aquele difícil problema.
Resolvi persistir. Tive alguns dias desagradáveis. Não me ocupava o bastante
com Le Petit Chose. Sofria também dos estudos das outras matérias da escola. Quando
se ajuntavam, como de costume, os colegas para escutar minha tradução, perceberam
pela primeira vez que eu não interpretava tão fluente e elegantemente. Disse que, nas
últimas noites, andara ocupado e não tivera tempo o bastante para consagrar-me aos
trabalhos de escola. As garotas olhavam-me com olhos curiosos, do que gostei muito
e os rapazes começaram a se intrigar, seria então possível que o caso do chapéu andava
a desenrolar-se?...
Meu problema, no entanto, não estava resolvido. ―Où est la femme?‖ diziam
os colegas, usando da única frase francesa que sabiam de cor. ―Où est la femme?‖
261
Que fazer? Eu tinha que achar alguma jovem que se pudesse passar pela minha
encantadora desconhecida! Mas onde e como?
Passou uma semana.
Uma noite fiz uma visita a meus tios. Minha tia me recebeu com uma afabilidade
extraordinária. Costumava visitá-los de tempos em tempos, porque eles ficavam muito
tempo sozinhos, mas logo naquela noite eles esperavam com certeza algum convidado,
pois minha tia estava com um vestido lindo.
―Venha, querido João‖, ela disse, ―nós convidamos hoje à noite três jovens, que
você vai adorar conhecer‖.
Mas ela me conduziu até o salão, onde estavam sentados um jovem senhor e
duas moças, além do meu tio. Minha tia pôs-me sentado ao lado da garota mais bonita.
Meu coração começou a bater furioso dentro do meu peito. Está aí minha grande
chance! Meu tio com muitas palavras explicou em detalhes quem eram os três
desconhecidos, por que vieram, de onde vinham, o que queriam fazer na cidade. Eu
aparentemente não fui ouvinte dos mais atentos. Pensava febrilmente em meu problema.
Entretanto fisgou-me o que dizia meu tio da chegada dos jovens. Acabavam de chegar!
Então ainda quase ninguém na cidade os havia visto! E meu tio disse que iriam ficar por
uma semana eles até ficariam na casa de meus tios! Parecia que desta vez a sorte
quisera jogar a meu favor!
Passei uma noite muito agradável. Conversei alegre e solto com os jovens, que
eram todos muito simpáticos, e minha tia sorria feito mel a escorrer, sabendo que ela (e
seu marido) propiciavam tanta diversão e prazer aos quatro jovens.
Elaborei um plano estratégico. Aproximei minha cadeira mais junto ao sofá
onde assentava minha vítima, Loca. Escolhi um momento em que os outros debatiam
fervorosos comecei a contar-lhe uma estória muito divertida, embora ela também
escutasse a conversa dos demais. Mas ela gentil e educadamente escutou minha estória.
Ei-la: Um camponês queria vir à cidade vender pintinhos. A esposa pediu-lhe
que também ele comprasse um chapéu novo. Além disso, seria melhor que fosse ela a
viajar, para não esquecer nada, e ela cuidaria muito melhor do dinheiro. O marido
consentiu, educado. Para saber o tamanho do chapéu que devia comprar, a esposa mediu
a cabeça de seu marido com um arame, e meteu o arame na carteira. Mas-ai!- Na manhã
seguinte o marido sentiu forte dor de dente, e teve que vir o camponês mesmo até a
cidade. Vendeu os pintos, depois foi à chapelaria. O chapeleiro perguntou-lhe o que
desejava, e o camponês disse que desejava um chapéu novo. O chapeleiro começou a
262
mostrar ao camponês alguns chapéus, mas de repente este último saiu apressado. O
chapeleiro perguntou se ele não queria mais comprar chapéu nenhum. Respondeu o
camponês que ele perdera o arame que a mulher lhe havia posto na carteira e aquele
arame era a medida da sua cabeça. Então ele já nem sabia, de que tamanho era o chapéu
que ele tinha que comprar!
A jovem pôs-se a gargalhar com a história, tanto que os outros se interromperam
em sua conversa para saber o que havia de tão divertido. Isso não me agradou nada, pois
eu planejava ir de uma estória de chapéus a outra a minha. E então a curiosidade dos
outros arruinou meu plano, pois tive que repetir a estória, para todos se divertirem. O
resultado foi que começaram todos a contar anedotas.
Minha única chance estava perdida.
E ela não tornou a voltar. Tentei algumas vezes falar com a bela jovem ao meu
lado, mas é um negócio estranho, que por algum motivo é mais difícil falar com uma
menina bonita, do que com uma menos bonita...
Sussurrei uma cantiga, enquanto ia para casa naquela noite. Não atingira meu
objetivo, mas fiz amizade com uma bela garota. Terei a chance de passear com ela pelas
ruas de maneira que todos me vejam! Estava contente, apesar de tudo. E de volta a
meu quarto estudei fervorosamente as aventuras do Petit Chose nas ruas de Paris.
Junto à nossa árvore traduzi no dia seguinte como de costume e novamente
minha tradução fluiu sem hesitar, com elegância. Mas agora as meninas da sala também
sabiam do chapéu, que eu heroicamente salvei, graças ao qual sua jovem dona me
abraçou...
Mas as meninas também se recusavam a crer. Para elas a jovem desconhecida
existia na minha fantasia! Isso me provocou forte angústia, mas o dei nada a
perceber. Fiz minha tradução com muito carinho nenhum inspetor viu, pois a árvore
ficava num local muito oportuno.
E num local muito oportuno ficava a árvore. uma das garotas alertou a outra
sobre uma menina linda, que chegava pela calçada. Logo os olhos de todos voltaram-se
para aquela beleza - ninguém se interessava mais pelo Daniel dos cartazes de teatro.
Também minha atuação parou quando vi quem era a bela. Era Loca! Era então
assim que meus ardis também teriam que naufragar?
Daqui a pouco está aqui na nossa árvore! Pronto, já me viu. Está sorrindo.
Docemente. Cumprimento. Ela está vindo até o grupo. Apertando minha mão.
―Obrigada pela ótima noite de ontem!‖
263
Senti-me como se crescesse. Meus ombros alargando-se terrivelmente.
Os olhos de todos me olhando. O herói.
―É sua classe?‖ Loca perguntou. Disse que sim.
―Estamos estudando em segredo as aventuras do Petit Chose‖, expliquei.
―E você traduz para os outros, não é?‖
―É ...― Por modéstia calei-me. Uma das meninas começou a explicar que eu era o
expert na aula de francês. Não me agradou a situação.
Mas a situação tornou-se ainda mais desagradável quando a garota perguntou,
muito amável: ―Você é de fora aqui na cidade, não é?‖
Tive medo da resposta. Mas Loca só respondeu que acabava de chegar.
―...mas ainda sim conhece o nosso João?‖ A pergunta estava mais doce do
que sacarina.
―Sim, nós já nos conhecíamos. Na verdade um episódio acerca de um chapéu foi
o começo ...``
Loca ficou muito surpresa com a reação em todos os rostos. E na surpresa de
Loca só quem reparou fui eu.
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N8- Vivo kaj morto de Wiederboren. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj;
la esperanta novelarto. La Laguna: J. Régulo, 283-290, 1964.
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266
Vida e morte de Wiederboren
Desejei aquela criança durante anos. E quando seus olhos auriverdes abriram-se
à luz sem calor do sol de uma manhã de fevereiro, pensamos que ele era uma beleza.
não somos mais jovens, e em pensamento aceleramos o desenvolvimento de
sua vida, como se pudéssemos através do desejo apressar seu crescimento: por outro
lado, devido a considerações sobre educação, não quisemos encará-lo como um
prodígio, e superestimar seus primeiros sucessos. Mas meu coração de mãe ia ao êxtase
quando ele, aos dois anos, começou a sujar folhas de papel com guache (com uma
preferência evidente pela água); mas meu marido, com mais virilidade, disse: ―Ora, não
vá crer agora que você deu à luz a um pintor, e lave as mãos dele‖.
O caso das tintas, no entanto, prosseguiu. Nosso pequeno não perdia o
entusiasmo, dia após dia: ao contrário! Pincéus!‖, pedia toda manhã depois do café
com leite, e ficava quieto pelo menos uma hora inteira, até que viesse troteando a mim
com folhas nas mãozinhas vermelhas, verdes e amarelas:
―Olha, mamãe, o que eu pintei: isto é um peixe, isso é um ca´inho, aquilo uma
casinha...‖
Quando ele me mostrou orgulhoso uma mancha azul com apêndices vermelhos
atravessadas por faixas de cor indefinida, dizendo que era um velho pescador, não
resisti à tentação: emoldurei a gravura e a pendurei no nosso salão. Efetivamente, em
meio a uma mobília moderna, aquela mancha colorida alegre não era sem seu mérito.
Meu marido também, depois de resmungar um pouco sobre mães de coração mole,
aceitou o fato.
O bom Deus, ou o acaso, trouxe a nós, naquela noite, minha amiga Júlia. Júlia e seu
marido estavam preparando uma casa nova. Ela estava inspecionando a nossa com um
olho crítico.
―Que novidade!‖, ela exclamou.
―O quê?‖, eu disse.
―A pintura. Essa pintura. Onde você capturou?‖
Ora, Júlia é uma pessoa muito equilibrada e mãe admiravelmente justa. Ela
jamais teria emoldurado... Que vergonha!
―Na Alemanha‖, cuspi rapidamente, lançando ao meu marido um olhar de
súplica. Meu marido sentiu pena de mim, e logo veio me auxiliar:
―Foi sim, na nossa última viagem à Alemanha‖.
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―E quem é o pintor?‖
Atirei, depois de uma imperceptível hesitação, uma paráfrase do nome do meu
filho:
―Wiederboren‖.
―Ah‖, disse Júlia, que é muito competente, segundo ela, no assunto arte
moderna. ―Eu conheço‖.
Claro que ela conhecia Wiederboren. Naquele mesmo instante ele estava no seu
joelho esquerdo e de cara fechada mastigava um chocolate.
Meu marido começou a se divertir:
―Essa pintura pertence à Nova Escola Alemã. Ela representa um velho pescador.
Está vendo? Ela contém sensações... veja bem, sensações...‖
Agora eu é que ajudava:
―Essa escola, iniciada por Wiederboren, visa retratar não só um sentimento
suprarreal do pintor, mas o sentimento do objeto retratado. Um velho pescador sente...
Bem, o vermelho é a exteriorização de sua alegria pela vitória na luta de todos os dias
com o elemento azul, e esse marrom ... Bom, ele indica que ele... não sente mais fome
porque.... ele comeu o peixe.‖.
―Mas como você comprou, quanto pagou...?‖
―Ah, nem muito caro... Ele ainda o é muito conhecido. Você sabe, ele era...
um pequeno camponês. Às vezes sentava-se à beira da rua e desenhava numa pedra com
um pedacinho de carvão. Assim ao acaso passou... hum... Pablo Picasso‖.
―Ah!‖, disse Júlia, arrebatada, sem reconhecer a velha estoriazinha.
―E Picasso levou-o até Paris, e o ajudou‖, concluiu meu marido. Mas eu
estava montada em um leão:
―A princípio ele viveu anos pesados. Imagine: num barraco gelado, sem
dinheiro, lutando por seu novo conceito de arte. Felizmente durante aquele período
inspirou-o uma vendedora de flores, seu único apoio moral. Eles também discutiam às
vezes. Mas depois ela morreu. Febre tísica.‖ Terminei, agradecendo Murger em
pensamento.
―Oh!‖ comoveu-se Júlia. ―E agora?‖
―Agora ele está começando a ficar conhecido. Eu acho que ele tem um grande
futuro diante de si. Creio que comprando seu quadro fizemos até boa operação
financeira. O valor de suas obras subirá rapidamente‖, esclareci, procurando apagar
justamente uma delas da minha saia.
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―Eu gostaria muito de ter um quadro dele em minha casa nova‖, interpôs o
marido de Júlia, atraído pela minha última frase.
―É difícil...‖
―Por quê?‖
―Hum... a fronteira... vosabe?... Exportação de bens artísticos... burocracia...
liberações...‖
―Mas vocês, como conseguiram?‖
―Contrabando‖.
―Oh, não seria possível para nós também...‖
―Nós vamos ver‖.
Júlia saiu com seu marido. Na saia dela também jazia uma obra-prima dos
dedinhos de chocolate.
Efetivamente, nós ―vimos‖, e, no dia da festa de Júlia, ela recebeu, em uma
digna moldura, uma obra com a clara tabuleta: Wiederboren 1961. Meu filho a havia
batizado: ―cavalo gande com moço em cima‖, e a Júlia nós explicamos que as máculas
de rosa-acinzentado mostram os sentimentos confusos do cavalo por seu dono, e o verde
muito aquoso é o conteúdo da alma que cavalga.
Alguns dias depois, Júlia telefonou:
―Escute, querida. Um amigo meu deseja comprar uma obra de Wiederboren.
Seria possível ...você me faria um favor pessoal...‖
Assim começaram a vender-se as obras de Wiederboren. Abrimos uma caderneta
de poupança para o nosso filho: eis que ele aos três anos já começava a trabalhar por seu
futuro. Meu marido desaprovou. Mas eu disse: ―Onde engodo? As pessoas desejam
esse tipo de pinturas: e isso elas recebem. Estão pagando? Ora, o dinheiro pertence ao
autor. Nós não tocamos nem um centavo: onde está o enganado? Acaso você pensa que
os atuais grandes nomes da pintura agem de outra forma?‖
Depois de algum tempo, recebemos a visita do senhor Domenico Drake, crítico
de arte.
―Posso fotografar seus Wiederborens? Hã? Só têm esse? Não têm mais?‖
Sim, nós tínhamos um estoque inteiro. Nosso pequenino toda manhã roubava
nossos melhores papeis de carta, ou um livro novo, ou caixa de sapatos. Me custava
salvar as paredes dos afrescos de Wiederboren.
―Mas esse alemão é um verdadeiro talento!‖, dizia Domenico Drake. ―Vocês não
me dariam mais indicações...‖
269
Tornamos a contar a estoriazinha de Giotto, o romance de Murger, até
adicionamos detalhes da vida de Van Gogh e de Modigliani. Explicamos os objetivos da
Escola Wiederboreniana.
Um culto artigo com fotos apareceu numa revista especializada. Não faltavam
imagens sobre Wiederboren: tratava-se de um jovem sem gravata de vinte e cinco
vinte e sete anos.
Esse artigo não era o único. A demanda por trabalhos de Wiederboren cresceu.
Alugamos um salão e organizamos uma exposição. Todas as obras foram vendidas.
Começamos a aumentar os preços. Tanto mais aumentou a demanda. Já os jornais
diários publicavam entrevistas com Wiederboren e fotos dele, das quais nenhuma se
parecia com a outra. A idade variava entre vinte e quarenta, e ele aparentava ora
moreno, ora loiro, de preferência com barba, mas às vezes sem ela.
E, por último - mas nem por isso menos grave, a cadernetinha de poupança do
nosso filho atingia cifras-recorde. Vimos-nos obrigados a gerir um capital considerável,
o negócio tornou-se arriscado. Como pode um garoto de três, quatro anos tornar-se um
acionista, sem receber uma herança? Quais eram as fontes de renda que permitissem
isso? Sim, uma porcentagem sobre as vendas de pinturas de Wiederboren... mas
bastariam para explicar...?
Certa manhã, meu marido me confrontou:
―Eis aqui a terceira carta de um mercador de quadros alemão que
insistentemente me pede o endereço de Wiederboren. Que fazemos nós agora?‖
Ademais, Wiederboren começava a mudar seu estilo. Em vez de largas listras e
máculas, e de cores incertas, começavam a aparecer marionetes, árvores, casas. ―Que
faremos agora?‖ repetia meu marido desesperado.
Assim nós decidimos matar Wiederboren. Lançamos ao público a novidade. Ele
dizíamos enfim famoso e agnóstico, tornou-se rico e começou uma vida desregrada.
Mulheres não faltavam. Tampouco maridos traídos. Um destes atacou-o e bateu-lhe
furiosamente. Ele morreu em consequência dessas pancadas. (A bem dizer, meu marido
preferia uma síncope: mais na moda, achava ele. Mas eu escolhi uma vingança amorosa:
mais romântico, eu dizia.)
Obituários apareceram nas gazetas e revistas: vinham recontando a vida curta de
Wiederboren, lamentavam que tão alto gênio não pudesse dar outras obras-primas,
conjecturavam sobre a evolução de sua arte, sua Escola, se ele continuasse vivo. Um
jornal diário publicou até mesmo um clichê sobre um enterro. Outro, uma entrevista
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com uma vendedora de flores de seus primeiros anos: aparentemente ela não morrera de
febre tísica, mas tornou-se uma condessa italiana. Pouco a pouco, porém, a morte de
Wiederboren começou a perder interesse para os jornalistas, e quando o Tour de France
começou, pensamos que finalmente nos livraríamos de Wiederboren, de suas pinturas,
da chuva de dinheiro que se tornara embaraçosa...
Só uma coisa nós não calculamos.
Com a morte de Wiederboren, o valor de suas obras decuplicou.
N9- Mensog‘ ni ĉiutaga. In: ROSSETTI, Reto; SZILÁGYI. 33 Rakontoj; la esperanta
novelarto. La Laguna: J. Régulo, p.195-201, 1964.
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272
Mentira nossa de cada dia
Um apito de locomotiva breve, ensurdecedor, e a composição partiu. O vagão
em que me encontrava estava lotado, aparentemente não menos do que os outros de que
consistia nosso trem. Maletas, bagagens e embrulhos jaziam por toda parte sobre o
soalho ensebado, incomodando-nos a cada movimento, pois até para os passageiros
havia muito pouco espaço no sufoco de cabinas e corredores estreitos.
fora começava a anoitecer, e na escuridão do vagão moviam-se passageiros
que procuravam sua bagagem surrada ou algum companheiro perdido de viagem. Ali
diante de uma quina de corredor discutia-se abrir ou fechar a janela, pois uma corrente
de ar poderá causar desagradáveis dores de dente - pelo menos é o que tentava provar
alguma voz convincente de mulher. Ao meu lado um casal acabava de contar seus
numerosos embrulhinhos e sacolinhas.
Consegui arranjar um lugar relativamente oportuno para ficar de perto da
janela, com as costas apoiadas na porta de uma cabina. O trem já disparava e eu
observava como ao longe sumia uma escadaria com pessoas se despedindo, debaixo de
273
luz forte de lâmpada elétrica que se acende. As pessoas na escadaria ainda acenavam
para viajantes de partida que nem mais olhavam nem podiam distinguir quem os
saudava.
―Então, meu querido, acaba-se o terceiro dia de festa, e amanhã voltamos de
manhã cedo ao trabalho. Até que você passou bem‖, eu dizia para mim mesmo, fitando
melancolicamente sumir a silhueta noturna de uma cidadezinha onde por anos vivi. Nela
tive amigos e conhecia todo o mundo. Com a pequena cidade provinciana dos arredores
pitorescos ligam-me as mais caras lembranças de minha meninice e juventude quando
eu desfrutava o tempo livre e despreocupado dos verões, onde senti o segredo do
primeiro amor dos tempos de ginásio. mais de quatro anos que deixei a cidade junto
com meus pais. Embora me tentasse até mais cedo o desejo de rever a cidade, não fiz
isso. Por quê? Eu mesmo não sei. Talvez por falta de tempo, ocupações ou algum
sentimento hesitante da falta de coragem.
Durante três dias eu absorvi sedento em meu cérebro e coração cada amigo, casa
ou acontecimento que me liga à minha juventude. Mas o passar do tempo fez muito
mesmo para o período curto de quatro anos. Alguns conhecidos morreram, novas
pessoas vieram para a cidade. Ainda assim muita coisa mudou. Meus amigos de escola,
passeando com sua família estabelecida quatro, cinco anos cumprimentam-me
afáveis, mas mesmo assim muito diferentes, mais sérios, mais adultos do que eu jamais
podia supor. Amigos com quem joguei bola ou de quem sorrateiramente copiei tarefa de
matemática enquanto o professor ―severamente‖ passeava pela classe, não têm mais
tempo para a conversa com os amigos.Por que eles estão assim? O ser humano não
pode continuar a ser toda a vida uma criança sincera? Por que meus amigos vestiram a
máscara para esconder o alegre bom-humor de sua juventude? Por quê? Onde está a
causa?‖... Tais pensamentos e perguntas voavam na minha cabeça desde o primeiro
dia de volta à cidade. Meditando sobre isso, no meu interior de repente cresceu uma
pergunta atormentada: ―Será que eu também estou igual? Será que eu durante esse
tempo mudei ou o passar do tempo não me tocou? De no corredor entupido do
vagão meditei sobre isso, buscando a causa e a resposta, enquanto em minha
consciência cada vez mais apareciam como que fantasmas noturnos da tumba das
recordações, dois encontros que me deram a resposta justa. Dois acontecimentos, duas
pessoas que encontrei deram-me a resposta, não-dita, mas mesmo assim audível.
Meu velho professor do tempo de grupo escolar, que eu não vi durante seis anos,
surpreendeu-se muito quando fui visitá-lo. Já todo envelhecido e fraco por causa de uma
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doença pouco superada, ele repousava em seu jardim, sentado numa poltrona. O
jardim que era exemplarmente bem-cuidado agora aparentava muita tristeza. O
professor ficou profundamente comovido com a minha visita, pois seu vizinho o
visita e para discutir com ele sobre filatelia, embora ambos já há tempos não colecionem
selos postais. Ele estava muito alegre com minha atenção e feliz porque o estava
visitando.
Amigável foi nossa conversa em que revivemos memórias do tempo do grupo
escolar. Durante muito tempo ele falou de seus alunos, sua vida no magistério, a baixa
aposentadoria e outros seus problemas.
Poderia eu a ele, que com lágrimas nos olhos agora se despedia de mim,
responder sinceramente à pergunta sobre o estado de meus estudos e sobre a minha
consolidação pessoal, interior? Poderia eu desiludi-lo e destruir sua boa opinião sobre
mim, que ele ainda tinha quando eu era seu aluno? Embora com uma íntima reprovação,
mesmo assim menti ao meu professor, criando em sua opinião a imagem imaginada de
mim mais claro, mais valoroso...
Sim, detrás dos trilhos de ferro na cidadela provinciana ficou o velho professor
aposentado, que com lágrimas nos olhos disse: ―Até a vista!‖ sem sequer supor que ele
guarda de mim uma imagem falsa.
Uma região pitoresca, no verão, lugar de banhos agradáveis ao lado do rio que
corre por perto, velho parque da cidade, tudo isso ao turista que chega ao acaso um
encanto, mas mortalmente tediosos são os momentos quando a pessoa deseja algo mais,
algo para satisfazer suas necessidades intelectuais. então essa cidadela provinciana
resta-lhe nada mais que meditar ou casar-se.
Além do cinema, alguns bares, onde bêbados cantam sobre pernas finas de
meninas, não existem outras diversões. O único lugar onde se podia distrair com o canto
de alguma cantora de quinta categoria e dançar um ―samba‖ exótico ou uma valsa
vienense era o hotel da cidade, cheio de gente bebendo cerveja quente. O ar parado
vivia cheio da fumaça turbulenta de cigarros. Aquela era minha última noite na
cidadezinha e, entrando no salão do hotel, olhei ao redor na esperança de em algum
lugar achar um assento vazio. Mas tudo estava ocupado e, quando eu desistindo
queria sair, ouvi que uma voz feminina me chamava: ―Venha até a mim! Aqui tem um
assento livre!‖
Na cabeça rodavam memórias, pessoas e acontecimentos, mas não conseguia
adivinhar qual das minhas conhecidas devia ser essa senhorita charmosa, que acenando
275
com a mão me chamava à sua mesa: ―Então, vizinho, não me conhece mais? Esqueceu-
se de mim completamente?‖ Pouco depois da palavra ―vizinho‖ subitamente eu entendi,
que diante de mim encontrava-se minha vizinha que não via há quase cinco anos,
quando ela ainda era uma garotinha da terceira classe do ginásio e quando eu nem
queria responder ao seu tranquilo e modesto ―boa noite‖. De fato, passaram anos e o
fluir do tempo fez com que agora, diante de mim estivesse sentada uma jovem
encantadora, que com sincera alegria dizia ―Olá, Zeliko!‖. Embora ainda não acreditasse
que aquela jovem dama alta e elegantemente vestida, fumando um cigarro, com um
corpo de bela estatura e cabeleira louro-dourada fosse minha pequena vizinha que no
verão corria descalça no jardim, então me pus à mesa e começamos a conversar.
Por muito tempo e com detalhes tive que contar de minhas viagens no
estrangeiro e ela então disse: ―Sim, e obrigada pela saudação no cartão postal, que você
me mandou três anos do exterior. Até hoje eu ainda o guardo, mas naqueles dias eu
era a mais feliz que havia e o mostrava orgulhosa a todos, dizendo que você ainda se
lembrava da sua amiguinha‖.
Ela olhava-me ininterruptamente, e eu falava, mentia e inventava os detalhes
mais interessantes, para satisfazer sua grande curiosidade. Agora me conscientizei
que se tratava de meu prestígio aos olhos dela, que se tratava de manter uma imagem
imaginária do homem que conhece o estrangeiro como o seu próprio bolso. Continuei a
narrativa com a esperança de que na opinião de alguém eu aparentasse uma pessoa
séria, e não um estudante pobre e um oficial de baixo grau.
De no vagão cheio eu agora meditava sobre a jovem que me acompanhou até
a estação e acenando se despediu. Olhava-a enquanto as rodas do vagão estalavam nos
trilhos cruzados que passavam, pensei e fiquei triste. As saudações de uma jovem
encantadora não podiam ser dirigidas a mim, mas sim a um ―eu‖ inexistente, que
conhece o mundo como seu próprio bolso, que não conhece apertos materiais e para
quem não existem problemas.
Embora tivesse um pouco de vergonha e me reprovasse pela criação desse outro
―eu‖, no fundo de meu coração eu estava contente, pois eu sabia se eu não tivesse
mentido nem que fosse um pouquinho só, com certeza ninguém me teria acompanhado
até a estação.
Sumiam as últimas casas do subúrbio diante das quais sentavam seus donos
despreocupados, falando do dia de trabalho amanhã.
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No vagão imperava a escuridão. Senti-me avermelhar pelas mentiras criadas e eu
sabia que em algum lugar da cidade, que já não podia ver, meu professor doente,
aposentado e a esbelta, jovem vizinha têm de mim uma imagem totalmente errônea,
mais valorizada e significativa do que eu de fato mereço. ―Por que menti? Era
necessário? Tais pequena mentiras diárias estavam realmente ligadas ao ser humano?
Será que não se podem evitar?‖
Pensamentos, relembranças e impressões caoticamente circulavam na minha
consciência e de repente uma voz cansada, sonolenta, talvez até um pouco embriagada
pediu: ―Mostre seu bilhete, por favor!‖
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N10 - Kaprico pro invitkarto. In: MIKRONOVELOJ. Speciala premio. Pekino: Ĉina
Esperanto Eldonejo, p.24-29, 1991.
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Capricho por um cartão de convite
O cartão de convite vermelho com palavras douradas foi três vezes aberto e três
vezes recolocado na escrivaninha. Na última vez ele deslizou até a borda da mesa por
causa da cobertura de vidro.
Ele logo o aparou com a mão para que não caísse no chão. Mas seu olhar dirigia-
se à parede buscava com dificuldade tirar os olhos do convite.
Ainda assim este continuava no canto dos seus olhos. No cartão havia palavras
impressas em amarelo-ouro: ...Privilegie com sua presença o banquete de nossa editora,
às cinco da tarde, no 9° andar do hotel A.
Decidiu não ir ao banquete, quando acabava de receber o convite. Sim, ele não
iria de jeito nenhum desta vez.
Não teria nada mais do que bolos secos, frutas, coca-cola. E ademais no
banquete ele teria que apertar as mãos sem parar, comunicando o suor da palma de
algum desconhecido a outro desconhecido. Depois ele como sempre diria algumas
palavras, que ele dissera em outro lugar uns dez ou quinze dias, entrementes a
câmera se dirigiria a ele e ele, esperto, mostraria um sorriso ao brilhar da câmera. Ele
tem tal costume de beber, que não se embriagaria nunca, apesar de misturar vinho
moscatel, champanhe e aguardente.
Ainda assim, sentia-se enjoado e um pouco cansado.
É necessário parar com essas comunicações que encurtam a minha vida, ele
disse a si mesmo indignado. Ele entendia claramente o que devia fazer ou não. Não
haveria de estar presente no banquete.
Seu corpo inteiro esquentava-se, quando pensava com afinco num poema.
Parecia normal, quando se aquietava. alguns dias que não escrevia poemas, então no
momento presente estava sóbrio.
Caminhava no quarto. O termômetro indicava 20 graus, o que mostrava que não
seria necessário usar nem mesmo uma roupa de fina no corpo, no salão de banquetes
do hotel. Vou usar gravata? E se me vestir de jaqueta europeia? A gravata cor de
castanha com manchas brancas e a gravata com linhas oblíquas vermelhas e pretas, que
combinariam melhor com o fundo da jaqueta? Será uma humilhação ir de bicicleta,
melhor, de ônibus. Mas isso exigiria adiantar em uma hora a saída.
Ergueu seu braço para olhar o relógio de pulso, e a beira da roupa empurrou o
cartão para o chão. Acendeu um cigarro, inclinou-se para adiante, levantou o cartão e o
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queimou no isqueiro. A cinza caía no soalho de cimento e ele a varria para um canto. O
brilho dourado escureceu, o vermelho atraente também se cobriu de cinzas. É preciso
fazer isso. Estava muito contente com sua firmeza.
Sem dúvida, sem o convite ele ainda poderia entrar no banquete, pois com
certeza haveria um conhecido ou amigo que receberia os convidados à porta. Aquelas
palavras douradas e o pedaço vermelho de papel são uma forma e um símbolo. Seu
nome em suas cinzas carregam mesmo alguma força atrativa, que não pode faltar...
E se chovesse? A água da chuva poderia lavar muitos desejos secretos. Que
chova logo. Ele com certeza não sairia por causa da chuva, porque a sombrinha foi
emprestada a um amigo, e na sua capa de chuva falta o capuz.
Quem bate à porta? Ele está consternado. Uma visita? Não seja o fato. Com
certeza não poderia sair, se a visita vier de longe. Ainda assim isso poderia mesmo virar
pretexto para uma gentil recusa ao convite. Ninguém vem, o telefone toca. Algum
redator da editora chamando? Será que quer confirmar minha presença? Se for, não
poderá recusar o convite... mas ele perdeu um pouco as esperanças, pois no telefone era
um amigo do escritório comercial, para informá-lo da chegada da televisão colorida que
foi encomendada. A editora não telefonou para ele será falta de educação recusar o
convite? Contemplava a tempestade e sentia uma dorzinha no estômago. Sempre sentia
antes a dor do lado esquerdo, mas desta vez era à direita. Se a dor ficar mais forte, terá
que se deitar e nenhuma comida poderá comer, nem fria, nem gordurosa... Ai! Ele
achou que de repente enfraquecia. Consolou-se, que poderia usar a doença como
desculpa por não comparecer ao banquete. Mas não estava contente por isso. Vendo as
cinzas ele riu de si mesmo. Ele sabia o que ele realmente esperava. As cinzas o
espelhavam seu verdadeiro desejo. A verdade é um anseio por um guardanapo, faca,
garfo e um encontro com ela... Ele enganava-se até a si mesmo. O remorso roía seu
coração.
Preparou para si um copo de chá, pretendendo meter-se no trabalho. Mas não se
assentou. Foi à janela e viu seu rosto no vidro de uma janela aberta. Achou que devia
raspar o bigode. Os bigodes crescem depressa durante sua inspiração plena, mas a
raspagem é inoportuna, até esquecida com o calor da inspiração...
Tomou do barbeador elétrico. Ao toque de botão as lâminas começaram a girar
sob a rede de metal.
Talvez não fosse preciso queimar o convite. O anfitrião é uma grande editora e
dizia-se que muito solene era o banquete, ao qual viriam alguns diretores. Se eu não
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comparecer ao banquete nem por motivo de chuva, nem de visita de longe, nem de dor
do estômago, vão me tomar por orgulhoso e demasiado arrogante, mas não por antis-
social. E se levantaria outra queixa, por que você recusou este convite, se antes pôde
comparecer ao banquete de outra editora?
Subitamente silenciou o barbeador elétrico. Parece que a energia das pilhas se
esgotara. Abriu a capa do barbeador e bateu tirando a negra sujeira. Ele se conhecia
cada vez mais de fato, ele deseja, até muito, ir ao banquete, porque, na verdade, ele
sempre se preparou para ir ao tal banquete, mas não para começar o trabalho! Até se
defendeu, que deveria comparecer para demonstrar sua fidelidade e facilidade de
acesso... Que hipócrita! Cem por cento de engano tanto a si quanto ao outro!
Relaxou. É estranho, que nem sentisse vergonha de sua descoberta.
Sentiu um frio no corpo e uma cólera no coração. Jogou o barbeador com força
no canto da parede. Ele quase se enganou a esse respeito. Havia uma mão invisível, que
o conduzia a uma feliz rota até a morte. Mas você não tem forças para resistir. Sim.
Não!
Ele conseguiu estancar os vazamentos que, ondulando num canto escuro do
coração, tentavam-no. Ele pode resistir-lhes. Ele, um jovem poeta, não andará sobre
essa via apesar de sua espantosa atualidade. Adeus, ondas do mar negro-esmaltadas sob
a luz do sol...
Imóvel ele permanecia sentado e fumava com força. Tinha que trabalhar, pois
havia muito tempo até o anoitecer.
Tocou o telefone. Desta vez era mesmo o redator da editora, que se desculpando
sem parar, avisou-lhe que o banquete não ocorreria por causa... Aparentemente
desinteressado, ele interrompeu a fala do interlocutor dizendo, que teria muito serviço
esta noite.
Mas ele sentia um lamento em sua própria voz.
No gancho do aparelho pareceu-lhe ouvir que o banquete seria no dia seguinte à
noite...
Com a cabeça baixa, ele olhou fixamente seus sapatos de couro, onde se
acumulava a poeira. Tinha que encerá-los, mas nem reparara nisso antes.
Uma nuvem deslizava devagar ao largo da janela. Será de se propor que se
façam cartões de convite brancos; eles com certeza serão mais bonitos. A ideia
atravessou como um raio o interior da sua cabeça. Bom, ele tinha que se sentar e
trabalhar.
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N11 - Homo kun koro. In: KOREAJ ESEOJ NOVELOJ KAJ POPOLRAKONTOJ
(1932-1967). Tradukis Hajpin Li. Seulo: Korea Esperanto Asocio; Libera biblioteko, p.
172-179, 1987.
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Um homem de coração
Era a região mais alta e isolada do distrito C... mas havia ali o elegante corredor
de um bairro habitacional.
À primeira vista parecia um fim de linha perdido, mas ao entrar, encontra-se ali
uma saída... junto ao muro de pedra erguia-se uma construção metade europeia, metade
coreana com que se alinhavam em fila muitas outras casas de tijolinhos belamente
construídas. Não eram absolutamente visíveis aquelas casinhas de tábuas, construídas
provisoriamente por refugiados, em toda parte, onde houvesse espaço. Aparentemente,
era um lugar esquecido, calmo, ao qual os refugiados ainda não impuseram sua
presença. A quietude uma sensação de paz ao indivíduo, mas ao mesmo tempo faz
sentir algo de abominável.
Era possível contar os passantes, e a sombra sob os telhados, estampada por um
sol de tarde no fim da primavera parecia bastante tranquila.
Não faz muito tempo, alguma mulher de saia de veludo passou com sua filhinha
e agora um homem, por volta dos 30 anos, atravessa.
Então, justamente ali ao lado da cabine de telefone, um cão urina, levantando a
pata de trás.
O Sr. Cão, ao ver aquele homem que se aproxima de roupas amarrotadas e
sapatos de lona, pareceu desconfiado e pôs-se em guarda.
Quando o homem vai-se embora, o Sr. cão, retirando-se com sua cintura gorda,
acendeu seus olhos, provocativo. ―Au!‖...
O homem, que agora andava indiferente com suas pupilas sem foco, virou
preguiçosamente a cabeça, como se despertando de seu meio sono com o latido
repentino do cão.
―Au!‖
Recuando depressa mais uns passos para trás, Sr. o cão latiu e desviou os olhos
da reação do homem.
Mas nos olhos grandes do homem não se via nenhuma reação.
―Até mesmo você, criatura sem valor, insulta um sujeito!‖ Mas pelo visto,
nenhum pensamento assim o ocupava e ele sequer quis apanhar uma pedrinha para
jogar nele.
Olhando a figura do homem sem reação, o cão correu dali, sem nada fazer.
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O homem adiante empurrava seus passos inertes, passo a passo, feito antes,
como quem dissesse que não se pode ficar no mesmo lugar sem se mover, por isso ele
queira ou não queira tem que se mexer.
Os olhos, parecendo que olhavam a perspectiva, uma colina verde enfeitada pela
primavera, não conseguiam ver nada a não ser comida; um bolo de farinha, um bolo de
arroz; uma comida de arroz, um macarrão frio, uma sopa de carne de porco, etc,
atravessaram sucessivamente diante de seus olhos
De repente em sua cabeça relampejou a ilusão de que um saco de dinheiro,
cheio, caíra do céu.
À imagem dessa ilusão ele procurou por toda a terra. Mas nada se achava, além
dum reflexo ofuscante do brilho do sol.
Neste momento, ele ainda não tinha consciência que a sorte o destinara a
meter a mão nas posses dos outros, dali a um minuto.
Pouco depois de ter dado alguns passos, a sorte o tentou, abrindo a porta de
entrada.
Era uma porta de fundos numa parede de cimento de uma casa da esquina. O
homem, inconsciente, parou diante da porta meio aberta. Diante de seus olhos dispunha-
se uma mobília bem espalhada, no hall assoalhado e sobretudo saltaram-lhe aos olhos as
colheres de prata que brilhavam sob o sol.
Objetos jaziam espalhados, mas não se via ninguém. Um silêncio reinava. Um
momento, na cara pálida do homem, correu sangue e ele logo olhou ao redor, se alguém
passava.
Não havia nem cachorro.
Olhou o pátio de novo, com atenção, mas não havia ninguém. Nos olhos sem
foco acendeu-se a luz de uma meta, e ele entrou no círculo do roubo.
Até o hall, onde estavam os objetos desejados, eram alguns passos, mas o
homem sentiu o fluir de um tempo infinitamente longo. Vieram-lhe à mente visões de
sua irmã mais nova, sua única parente de sangue, sobre cuja vida ou morte ele nem
sabia. E, ao mesmo tempo, imaginou que a família daqui está de mudança e devem estar
na parte da frente da casa... Juízo necessário a um ato assim.
As mãos do homem já estavam sobre o objeto. Sem barulho, ele o apanhou junto
com o papel que lhe servia de forro, e conseguiu colocá-lo no peito. Avistou um
relógio de mesa situado um pouco longe e, exatamente quando ele estendia o braço para
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pegá-lo, um braço forte de alguém agarrou a parte posterior de seu pescoço. Ele se
sentiu inclinar.
―Ei, o que está fazendo, oh, sem-vergonha?‖
O magro pescoço do homem encolheu feito um pintinho.
―Senhor...senhor.. queira perdoar...‖
―Devolva o que você roubou‖ o dono da casa de corpo forte, pelos seus 40 anos,
ordenou-lhe em voz alta.
O homem respirando com dificuldade deu o objeto que estava no peito.
―Mais?‖
―Nada mais, senhor.‖
O dono da casa, apertando-lhe firme o pescoço fitou-o de modo penetrante.
Tremendo frente à ameaça do murro que logo lhe havia de chegar à bochecha pelo
punho forte, novamente relampejou em sua cabeça a imagem de sua irmã. Mais uma vez
desejou a liberdade e honradez de que dispunha há alguns instantes, quando procurava a
vagar pela irmã, o estômago vazio, fantasiando comidas.
―Você já é ladrão costumeiro? Não roubou a casa vizinha, faz alguns dias?‖
―Não senhor, nunca antes roubei na minha vida.‖
O homem suplicava com expressão de choro. Olhando-lhe o rosto, o dono da
casa largou o seu pescoço.
―Ainda tão jovem, por que você continua a roubar?‖
―Me desculpe senhor, a fome...‖
―Se você tem fome, trabalhe. Quem quiser comer precisa suar.‖
―Está muito difícil encontrar trabalho...‖
―É preguiça sua. Se você tiver a intenção de trabalhar mesmo, vai achar em todo
lugar.‖
Aí o dono da casa olhou ao seu redor e disse em voz baixa, mudando de
expressão: ―Não fique com medo. Na verdade eu vivo da mesma ocupação que você.‖
―...‖
―Quero dizer que sou penetra de cerca-furada, que nem você.‖
O homem não entendeu de imediato o que ele disse.
―A verdade é que não sou o dono desta casa. Estou aqui para roubar.‖
O homem espantou-se dessas palavras.
―Está me dizendo, senhor, que também é ladrão?‖
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―Chhh... Não fale tão alto! Fingindo ser uma mudança, estou é roubando uma
propriedade inteira.‖
―E o que vai fazer quando o dono da casa vier?‖
―Os membros desta família foram a um vilarejo para uma festa e a casa está
completamente vazia.‖
Assim sendo, a figura gorda e algo rude daquele homem parecia agora a de um
vagabundo. Mas então, ao fim do corredor, ele viu que uma mulher e um rapaz de uns
onze anos carregavam objetos. ―Quem são essa mulher e esse garoto?‖
―Minha mulher e meu filho. Se eu levar as coisas com uma mulher e um filho,
ninguém vai pensar que estou roubando. Não é?‖
O homem espantou-se, sentiu um certo medo.
―Não seria um pouco demais, senhor?‖
―Se você vai roubar, roube em grande quantidade. Não é uma vergonha por
algumas colheres?... Agora não me trate mais de ‗senhor‘, mas de chefe. Entendido?‖
―A mim não convém um roubo assim‖
―Então, aprenda comigo. A partir de hoje, você é meu subordinado.‖
―Senhor... não, chefe! Me deixe ir, por favor. Prefiro procurar pela minha irmã
perdida a andar roubando.‖
―Então você quer me trair? Bem...‖
Diante da ameaça o homem intimidou-se.
―Che...chefe, eu lhe obedeço!‖
―Então corra com as coisas para dentro da camionete. Tem olhos demais aqui!‖
―Aquilo é uma camionete?‖
―Por que não? Espere um pouco...‖
O chefe, tirando algumas notas de cem huans do bolso, deu-os ao homem.
―Uma gorjeta para você.‖
―Chefe, está mesmo dando isso para mim?‖
―Sim, pegue. Vendendo essas coisas, consigo fácil mais do que 10.000 huans. Aí
lhe darei sua porção outra vez.‖
O homem empurrando o dinheiro para dentro do bolso, carregou depressa os
objetos. Ele suava de medo que alguém o perseguisse, mas não se apercebia do suor.
Trazendo o último objeto dos pertences, soltou aos plenos pulmões um suspiro
de liberdade.
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―Senhor, digo, chefe. carregamos tudo. Vamos sair antes que alguém venha.‖
A despeito de sua pressa, o chefe acendia tranquilo um cigarro.
―Ei, traga a cesta velha e a vassoura da cozinha.‖ ―Chefe, para que você quer
isso?‖
―Você não entende mesmo. Uma carga de mudanças deve conter essas coisas
sem valor. Não esqueça a vassoura!‖
A tranquilidade do chefe perturbava um tanto aquele homem, mas trouxe os
objetos depressa, conforme a ordem.
―Chefe, vamos logo.‖
―Hum, obrigado! Fume um cigarro.‖
―Chefe, o que vai fazer se alguém vier?‖
Justo nesse momento uma mulher com uma criança nas costas entraram pela
porta dos fundos. O homem deu um salto de medo.
―Chefe, vem vindo alguém, depressa!‖
―Esconda-se. Deixe tudo comigo.‖
Sem nem esperar acabar de falar, o homem escondeu-se na cozinha... Quem
seria? Sendo uma vizinha, com certeza conheceria o dono da casa. Se for, você foi
encontrado, não é?
O homem procurando para onde correr, prestou atenção à conversa do chefe
com a mulher.
Perdera as primeiras palavras, mas era claramente audível a parte posterior da
conversa.
Mulher: ―É mesmo uma pena que vocês se mudem, convivendo como nosso
vizinho durante tantos anos. Por causa da criança não pude mais ajudar...‖
Chefe: ―Obrigado. Agradecemos sua afabilidade, que você nos dedicou durante
muitos anos. Venha nos visitar, por favor, quando passar por nós. Não é tão longe
daqui.‖
Mulher: ―Vou visitar com certeza. Onde está a mãe de Jong-Sik?
Chefe: ―Na porta da frente.‖
Mulher: ―Vou falar com ela.‖
O homem sentiu um ardor em suas pálpebras. Sim, ele não é um ladrão, mas o
dono desta casa. Com a cabeça inclinada, aproximou-se do mestre.
―Chefe, digo, mestre. Eu ouvi tudo da cozinha.‖
―Foi? Ha ha ha...‖
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Foi quase com prazer que riu o dono da casa, mas o homem devolveu-lhe o
dinheiro recebido, com um rosto sério.
―Devolvo-lhe isto.‖
―Não, isso é seu. É recompensa do seu trabalho, conquistada com seu suor. Meta
no bolso. Quero dar até mais, mas no momento, tenho só isso...‖
Tomando calorosamente da mão estendida do homem, o dono da casa quis
partir.
―Senhor... o homem olhava o dono da casa com os olhos aquecidos.
O dono da casa, transparecendo um sorriso sutil pela borda dos lábios, disse:
―É brincadeira, essa coisa de ‗chefe‘. Compreendo que você não é o tipo de
sujeito que age por mal. Tenho esperança de que você não se desencoraje e se deixe
derrotar pelas circunstâncias infelizes, mas se torne um vencedor inflexível, com
coragem e justiça.‖
Finalmente, o dono da casa partiu junto com sua esposa e filho, entrando na
camionete.
Lá atrás os vizinhos, o homem despediu-se deles com emoção inesquecível.
Diante dos olhos do homem estendia-se um claro céu, muito que não lhe
aparecia um céu azul.
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N12 - La takase-barko. In: Rakontoj de Oogaj. Tradukis el La japana lingvo Teruo
Mikami, Miyamoto Masao, Kikunobu Matuba, Nozima Yasutarô. Tokio: Japana
Esperanto-Instituto, p.5-15.
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O barco de Takase
O barco do Takase é uma embarcação que navega para cima e para baixo o rio
Takase, em Kyoto. Na época de Takegawa, se condenassem em Kyoto um criminoso ao
exílio numa ilha distante, eram chamados seus parentes para que pudessem dar-lhe
adeus. Daí, pelo rio Takase era preciso transportar o culpado até Osaka. Quem então o
acompanhava era um dos suboficiais do magistrado de Kyoto. O suboficial por
convenção permitia ao chefe dos familiares do criminoso acompanhá-lo na mesma
embarcação até Osaka. Isto não estava oficialmente permitido por Sua Alteza, mas era
tolerado à guisa de ―desleixo‖ ou liberação tácita.
Naquele tempo, os condenados a uma ilha distante eram obviamente as pessoas
cuja identidade com o praticante de algum crime grave tinha sido provada. Mas tal não
significa que a maioria consistisse do tipo do bandido maldoso, capaz de matar uma
pessoa ou atear fogo a uma casa para roubá-la. A maior parte dos criminosos do barco
do Takase eram os que se envolviam nalgum crime, como se diz, por mau
comportamento. Para citar um exemplo do mais banal: o homem que, desejando
cumprir - como diziam na época - o ―assassinato recíproco‖, em que um casal se mata
por razões amorosas, - e matava a mulher, mas lhe sobrevivia.
O barco do Takase carregava o criminoso dessa ou daquela espécie. Começavam
a remar o barco por volta da hora do crepúsculo, que anunciavam os grandes sinos dos
templos, ele segue na direção do oriente, fitando de ambas bordas as fileiras de casas
escurecidas da cidade de Kyoto, cruza o rio Kamo e continua descendo. No barco, o
criminoso e um parente costumam ficar sem dormir a noite inteira, sussurrando-se
reciprocamente as experiências pessoais.Trata-se sempre - e sempre - de lamentos pelas
coisas que não voltam nunca mais. O suboficial de escolta, que ouve ao lado, tem a
oportunidade de aprender em minúcias de detalhes sobre as circunstâncias miseráveis
dos familiares e parentes que produziram o criminoso. É a circunstância de cuja imagem
nem sequer em sonho poderia o oficial imaginar, ao escutar a confissão formal na
delegacia do fórum magistral ou folheando as páginas dum livro de confissões, à mesa
do escritório.
Quantos sejam suboficiais, tantos são os caracteres. Uns têm o coração tão frio,
que ao escoltar o criminoso no barco, quase tapam os ouvidos para não ouvir o que
os entedia. Outros compartilham a dor de um estranho, tão comovidos, que, embora
não exprimam em seus rostos pela dignidade de seu cargo, mudos e em segredo sentem-
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se feridos no coração. Às vezes, quando o criminoso e o parente em circunstâncias
extremamente lamentáveis navegam sob a guia do oficial sensível e de coração mole,
acontece deste tentar em vão reter as lágrimas, que deslizam.
Por isso a escolta no barco do Takase era tão detestada, uma tarefa desagradável
a todo suboficial da magistratura.
Quando foi que isto aconteceu? Pode ter sido em algum ano de Kansei, quando o
poder administrativo ainda jazia nas mãos de Shirakawa-Rakuo em Edo. Certo dia de
primavera por volta do crepúsculo, quando o grande sino ressonante do Templo
Chion`in vibrava o ar com pétalas cadentes das flores de sakura conduziam ao barco
do Takase um criminoso de uma espécie incomum, de um tipo talvez nunca encontrado
antes.
Tinha o nome de Kisuke, com seus trinta anos de idade, sem domicílio fixo. Ele
não tinha um parente para ser chamado até o cárcere. Ele então estava só, ao entrar
no barco.
Shobe Haneda, o suboficial designado para escoltá-lo, subiu com ele no barco:
fora informado que Kisuke fora acusado de fratricídio. Ora, apesar disso, pelo que
Shobe observava no caminho da prisão até o embarque do comportamento do
descarnado e pálido Kisuke, reparou que ele parecia espantosamente sereno,
surpreendentemente gentil, e a respeitá-lo como a um oficial do magistrado, sempre se
esforçando para ser-lhe obediente. E, ainda assim, não afetava maneiras de quem
procura adular a autoridade sob uma máscara de subserviência, como em geral sucede
com criminosos.
Shobe achou isso estranho. Por isso, mesmo depois do embarque ele velou sobre
Kisuke não como oficial, mas colou-se a ele com a maior atenção, a cada gesto ou
movimento.
Naquele dia o vento parou depois do pôr-do-sol, e já era noite. As nuvens
esparsas lançavam um véu no firmamento inteiro e acariciavam o contorno da lua, a
morna atmosfera do verão que começava a chegar parecia evaporar da terra em suas
duas bordas como também do fundo do leito do rio. Desde quando o barco deixara o
bairro inferior em Kyoto e cruzara o Rio Kamo, a redondeza fez-se subitamente quieta,
e ouvia-se nada além do murmurar da proa cavando as águas.
Dormir no barco à noite era permitido até para o criminoso. Apesar disso,
Kisuke não queria nem se deitar. Ficava mudo, levantando os olhos para a lua, cuja
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clareza aumentava ou diminuía ao passar das densas nuvens. Em sua testa a claridade,
em seus olhos cintilava a luz.
Shobe olhava Kisuke não diretamente no rosto, mas seus olhos ficavam atados a
ele para observar fixamente. Em seu coração repetia ―Estranho! Estranho!‖ , pois o
rosto de Kisuke em cada traço se assemelhava tão agradável como se quisesse assobiar
ou sussurrar uma cantiga, se apenas não houvesse o incômodo de estar diante do oficial.
Shobe absorveu-se em pensamentos. Não se lembrava quantas vezes dirigira até
então o barco do Takase. Mas todo criminoso que ele conduziu era em substância a
mesma coisa: tinham aqueles traços miseráveis, de quem todos os olhares queriam
desviar-se de compaixão. Ainda assim, o que acontecera a este homem? Ele parecia
navegar num barco de passeio. Seu crime era fratricídio, diziam. Imagine que seu irmão
era um facínora e ele o matou por uma razão sempre justificável, mas mesmo assim o
sentimento humano não poderia deixá-lo tão sereno. Seria este homem de pele pálida e
franzino aquele tipo raro de canalha, desprovido de qualquer sentimento de
humanidade? Tal não parecia. Seria então um lunático? o, isso ele não poderia ser,
pois não demonstrava nada de inconsequente na fala nem na conduta. O que é afinal
esse homem? Quanto mais Shobe meditava, mais enigmático ficava o comportamento
de Kisuke.
―Kisuke!‖ - Shobe falou com ele, não podendo segurar-se ―O que você está
pensando?‖
―Senhor!‖ - respondeu Kisuke com olhos vagos e confusos, incomodado como
se esperasse alguma reprimenda do oficial. Acertando sua posição no assento e
furtivamente percrustando-lhe o humor.
Shobe então sentiu a necessidade de primeiro explicar sua pergunta abrupta e
desculpar-se por pedir resposta para uma pergunta sua não de oficial, mas pessoal e
particular. Assim, disse: ―Faço-lhe esta pergunta sem nenhum motivo importante ou
especial. Mas, para falar a verdade, fiquei curioso sobre como você pensa, rumando
para a ilha. Até hoje neste barco mandei muitos homens para a ilha. Eles tiveram as
mais diversas vivências em seu passado, mas cada um deles lamentava enormemente o
exílio naquela ilha, e sempre acontecia de eles lamentarem a noite inteira com o parente
que vinha despedir-se e embarcavam com eles. Mas estou vendo pela sua conduta que o
exílio na ilha não o aflige nem um pouco. Assim queria perguntar-lhe, como você está
se sentindo a seu próprio respeito.‖
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―Senhor,‖ Kisuke começou a sorrir radiante, do fundo de meu coração lhe
agradeço por suas palavras afáveis dirigidas a mim! O exílio na ilha é certamente uma
amargura para todos os outros. Eu posso facilmente concordar com isso no lugar deles.
Mas isso porque eles vivem mais ou menos confortáveis na sociedade. Eu sei que Kyoto
é uma cidade muito boa, mas naquela cidade formidável eu já vivi uma vida de grandes
sofrimentos, como não se poderia viver em outro lugar. Por misericórdia de Sua Alteza,
me deixaram vivo e agora me fazem o favor de levar-me até à ilha. Por mais severa que
seja a vida naquela ilha a ilha não seria um lugar habitado por abominações
monstruosas. Até hoje não estive em nenhum lugar que fosse minimamente bom para
mim. E agora recebo a permissão de sair, de estar na ilha. Então posso viver fixo num
lugar que me é permitido, e este é o maior favor de toda minha vida. Sobre minha
condição posso dizer que não sou homem robusto, como o senhor pode ver, mas
também nunca andei gravemente doente. Por isso creio que mesmo depois de chegar à
ilha nunca hei de perder minha saúde, por mais penoso que seja o meu trabalho. E
afinal, para me mandar para a ilha, deram-me moedas no valor de duzentos vinténs, que
eu agora trago aqui comigo.‖ Assim dizendo, Kisuke pôs a mão no peito. Dar a soma de
duzentos vinténs a todo condenado à ilha distante, tal prescrevia a lei daquele tempo.
―Me envergonho de ter que lhe confessar minha desgraça,‖ continuou Kisuke,
- ―mas os duzentos vinténs são o primeiro dinheiro que pude carregar comigo por algum
tempo. Procurando um trabalho, eu vagava de lugar em lugar. Onde quer que eu o
encontrasse, ali sempre trabalhava demais. E recebia o pagamento, mas o que a mão
direita recebia, a mão esquerda tinha que dar nas mãos de outro. E se me sobrava
um tanto de dinheiro para contar, com que comprar o de comer, significa que estava
vivendo no meu maior luxo: de ordinário, com aquele dinheiro eu quitava as dívidas
apenas para logo endividar-me de novo.
Mas depois da minha prisão tudo isso mudou: deram-me de comer
caridosamente, embora eu não trabalhasse. isso me deixou envergonhado perante
Sua Alteza, como se estivesse levando uma vida de desonestidade todos os dias. E se
ainda continuo a comer o que Sua Alteza assim me provê, posso guardar os duzentos
vinténs sem gastos. Agora, pela primeira vez em minha vida, possuo o dinheiro como
meu próprio. Antes de chegar à ilha, não posso supor em que trabalho me ocuparei, mas
é com prazer que espero o dia em que usarei estas moedas como o capital de meu
trabalho na ilha.‖ Tendo dito assim, Kisuke fechou a boca.
297
―Hum, entendo!‖ murmurou Shobe. Mas que tudo que ele acabava de ouvir
superava todas as suas imaginações, não pôde continuar sua conversa e mudo, refletiu.
Shobe está quase na entrada da velhice. Já fez nascer de sua mulher quatro
crianças. Além deles, sua velha mãe ainda é viva. Então a família consiste de sete
pessoas para sustentar. Por isso mesmo, ele mesmo precisa viver normalmente em tal
frugalidade que o tratariam de avarento: ele não prepara para si nem um quimono além
da roupa que tem que usar por seu ofício, e talvez alguma coisa tão simples como um
pijama. Mas para sua infelicidade ele casara-se com a filha de um comerciante mais
bem situado. Embora de sua parte à esposa não falte a boa-intenção de viver nos limites
de seu salário de arroz que recebe o marido, por costume dos mimos de uma família
rica, ela não consegue esticar o laço de sua bolsinha de dinheiro a tal ponto de contentar
o marido com sua governança. Assim o mês chega ao final, quase sempre sem dinheiro.
Então ela traz dinheiro da casa de seus pais e inteira o déficit escondido de seu marido,
pois ela sabe que ele odeia as dívidas como à mais asquerosa lagarta. Tal não se deu, no
entanto, sem que o marido um dia notasse. O coração de Shobe já sem isso pesa porque
a família recebe da casa dos pais dela os presentes em toda ocasião das ―cinco festas das
estações‖, e seus filhos ganham da casa de seus pais roupas novas em toda ocasião das
―festas de sete, cinco e três anos‖. Não é preciso dizer que sua testa se franze se ele
nota que o ―rombo‖ no orçamento é tampado com o dinheiro da casa dos pais dela. Eis a
única razão que às vezes traz uma turbulência à vida normalmente pacífica da família de
Shobe.
Shobe, que escutou o narrado por Kisuke, agora comparava sua vida à de
Kisuke. Kisuke disse que mesmo se ele trabalhasse e ganhasse dinheiro, logo ele o
perdia, passando-o de uma mão à outra daí para a mão dos outros. Com certeza é uma
vida de extremos e digna de pena. Mas a observar sua própria vida, Shobe se pergunta
que diferença pode existir entre ele e Kisuke. Não é mesmo verdade o fato que ele vive
da mesma maneira, passando o salário de arroz que recebe de Sua Alteza, de uma mão à
outra às mãos dos outros? A diferença entre ambos está na importância, diferente nas
casas decimais. E, contudo, Shobe não dispõe nem de um bocadinho de dinheiro de
sobra que equivalha os vinténs ora entesourados por Kisuke.
Ora, se calcularmos com uma transmuta das casas decimais, facilmente vemos
que não é sem motivo a alegria de Kisuke, o qual enxerga até os duzentos vinténs como
dinheiro poupado. Isso até Shobe pode entender em seu lugar. Mas o que resta
298
ininteligível, por mais que ele recalcule trocando a casa decimal, é o fato de que Kisuke
não tem anseios e já se encontra contente em seu estado atual.
Kisuke sofria procurando meios de vida na sociedade. E quando ele apenas o
encontrava, trabalhava sem dó e se contentava já com quanto podia ―adoçar a boca‖. Por
isso, desde que foi preso, surpreendeu-lhe que a comida tão difícil de conseguir
vinha até ele sem trabalho ou como se caísse do céu, e sentiu o maior contentamento de
sua vida. jaz a abissal diferença que Shobe percebeu haver entre ele e Kisuke, apesar
de igualar em cálculos suas casas decimais. Shobe mantém a família viva com um soldo
de arroz: os montantes cobrem aproximadamente os gastos, embora o sem déficit
nalgumas ocasiões. Mas é um caixa regulável, ou mais ou menos suficiente para o
sustento. E mesmo assim, ele quase nunca ficava contente com isso. De costume passa
os dias sem pensar especificamente a este respeito, se levava uma vida feliz ou não. Mas
no fundo do coração latejava o receio da sua vida: que fazer se ele fosse despedido de
uma hora à outra, que fazer se ele caísse gravemente doente etc? E este medo eleva a
cabeça acima da soleira de sua consciência, principalmente na ocasião em que ele repara
o ―buraco‖ do orçamento precisando ser coberto com o dinheiro da casa de seus sogros.
Então, afinal, Shobe se pergunta em que consiste essa diferença abissal entre ele
e Kisuke? Se por uma observação superficial responde-se que é Kisuke que não tem
dependentes, como os que ele tem, a pergunta já se esvazia. Mas essa é uma resposta
falsa, pois mesmo se ele fosse um solitário como Kisuke, não tinha nenhuma certeza de
poder manter-se como ele. Pensou que o caroço da questão jazia num lugar mais
profundo.
Shobe continuou imaginando a imagem de uma vida humana, tal como ela é.
Quando se tem uma doença, pensa-se: ―Se ao menos tivesse minha saúde!‖. Se falta-nos
a comida de todo dia, pensamos: ―Ai se eu pudesse ganhar meu arroz de
sobrevivência!‖. Se falta um dinheiro guardado para ocasiões de necessidade: ―Se ao
menos alguma poupança eu tivesse!‖. E tendo a poupança, pensamos: ―Se tivesse um
pouco mais de dinheiro guardado!‖. Assim prolongando-se o avançar dos desejos
humanos, a gente não sabe o limite, onde se deve parar. Assim refletindo, Shobe
apercebeu-se de que Kisuke era a pessoa certa, que por si mesmo valia como exemplo
diante de seus olhos, que a gente podia sim parar com isso!
Outra vez Shobe olhou Kisuke, com olhos de admiração. Então sentiu-se
como a ver uma gloriosa coroa cingir de luz a cabeça de Kisuke, que olhava para cima,
para o céu.
299
―Kisuke-san!‖ – Shobe tornou a falar-lhe, olhando-lhe o rosto. Desta vez tratava-
o de -san‖ mas não de plena consciência. Mal deslizava-lhe a respeitosa partícula da
boca e retornava-lhe pela orelha, e apercebeu-se de que aquele tratamento não era
conveniente. Mas retratar a palavra dita ele não podia.
―Sim, senhor‖, respondeu Kisuke, que a seu turno exprimia um olhar inquieto
por ter sido nomeado ―san‖, e temeroso olhou o rosto de Shobe.
Shobe segurou-se na situação algo embaraçosa e disse: ―Permita que lhe faça
mais algumas perguntas. Você é mandado para a ilha por ter tirado a vida de um
homem, conforme ouvi. Não quer então me contar os detalhes?‖
―Sim senhor, tudo bem.‖ Kisuke, humildemente agradecido, começou a contar
em voz baixa: ―Tenho vergonha de ter feito uma coisa tão terrível por minha
conduta. Ao evocar novamente esses fatos, ainda não posso entender como isso foi
acontecer. Estava num sonho completo quando aconteceu. Meus pais morreram de uma
epidemia quando ainda era criança. Eu e meu irmão mais novo sobramos, sozinhos. No
começo os vizinhos nos davam esmolas, apiedados como de uns cachorrinhos nascidos
ao lado de casa. Nós os ajudávamos com tarefas e assim crescemos sem morrer de fome
ou frio. Quando nos tornamos maiorezinhos o bastante e procuramos por trabalho,
sempre cuidamos para o separarmo-nos, e trabalhávamos em cada lugar ajudando um
ao outro. Num dia de outono do ano passado, entramos na tecelagem de Nishijin e
fomos indicados para o aparelho de tecelagem chamado sorabiki. Mas pouco depois
meu irmão ficou doente e incapaz para continuar trabalhando. Naquele tempo
morávamos numa cabanazinha ao lado de Kitayama, indo todos os dias à tecelagem
através da ponte do rio Kamiya. Depois do anoitecer quando eu voltava para casa com
algo para comer com meu irmão, ele sempre esperava com impaciência e exprimia sua
lástima, por eu ter de trabalhar só. Um dia, quando em casa cheguei como de costume,
achei meu irmão jogado de bruços na cama, com manchas de sangue jorrado em volta.
Fiquei consternado. Jogando longe a cumbuca de comida de bambu trançado, corri até
ele e perguntei ―Que houve? O que houve?‖. Nisso, meu irmão ergueu seu rosto pálido
como a morte, manchado de sangue das bochechas até o queixo, olhou-me, mas não
pôde emitir a voz. Cada respiração dele murmurava de uma ferida em corte da garganta,
que percebi. Tal é para mim um completo enigma, e gritei: ´O quê, você cuspiu
sangue?` Queria aproximar-me dele, quando ele levantou-se um pouco apoiado em sua
mão direita. Sua mão esquerda apertando com força debaixo do queixo. Dentre os dedos
daquela mão pendia uma massa de sangue negro. Fazendo sinal com os olhos para que
300
não o tocasse, esforçou-se por dizer algo a mim. Ele quase não podia falar, mas disse:
´Perdoe. Não me culpe. Minha ferida é sem volta. Com minha morte antes da hora
queria lhe deixar uma vida de menos preocupações. Cortei minha garganta pensando
que morrer assim fosse fácil. Mas o corte deixa passar o ar e morrer não consegui.
Mais a fundo com toda minha força empurrei a lâmina, que acabou escorregando de
lado. Parece que na goela a lâmina ficou sem brecha. Se você puxá-la com habilidade,
cortando, poderei morrer. Palavrear será indigno. -me sua mão para arrancá-la, eu
imploro!` Meu irmão então levantou a mão esquerda de sua garganta e sua respiração
passava levemente por ali. Eu fiquei estatelado e mudo. Sem palavras olhei para dentro
da ferida rasgada em sua garganta. Parecia que ele primeiro tomara da lâmina na mão
direita e cortou a garganta atravessada, mas como não bastou para matá-lo, empurrou o
aparelho de modo a perfurar. Vi então o barbeador de duas polegadas saindo de modo a
tapar o corte. Depois desta constatação vi-lhe o rosto sem esperança. Ele também me
olhava fixamente. ´Espere um momento`, eu disse enfim, enquanto faço vir o médico!`
Então ele lançou-me um olhar de cólera e disse, ´Para que servirá o médico! Ai, esta
dor! Arranque logo de mim esta lâmina, eu imploro!` Com a mente confusa feito um
labirinto, só olhava fixo o rosto dele. Mas é um milagre, pois naquele momento extremo
nossos olhos falavam por si mesmos. ´Depressa, ande!` - diziam-me seus olhos com
um olhar furioso. Senti uma vertigem como se várias rodas girassem na minha cabeça.
Não podia fazer nada além de olhar fixamente em seu rosto. A expressão de cólera em
seus olhos se intensificava cada vez mais, até finalmente tornar-se na expressão de um
grande ódio, como a querer vingar-se. Enquanto o olhava, finalmente cedi, era preciso
cumprir seu desejo. ―Não adianta mais! Vou arrancar de você a lâmina agora!‖ disse a
ele. Assim, a expressão de seus olhos mudou de imediato: ela fez-se clara e muito feliz.
Me assegurei que deveria arrancar a lâmina reto e num puxão, e de joelhos avancei
meu corpo até ele. Ele largou da mão direita e deitou-se no cotovelo do braço esquerdo,
com cuja mão ele apertava a garganta. Minha mão apanhou o cabo e arrancou a lâmina
em minha direção. Justo então, na entrada abriu-se a porta e entrou a velha vizinha. A
ela eu pedira que desse remédios e outras coisas ao meu irmão durante minha ausência.
a confusa escuridão do crepúsculo pairava no interior da habitação, e não me era
claro quanto do ocorrido ela havia visto. Oh!‖ ouviu-se dela o grito: ela logo correu
deixando a porta sem fechar atrás de si. Pois quando puxei o barbeador, tomei cuidado
para que a puxada fosse breve e reta, mas pela reação ao puxão de minha mão reparei
que a lâmina estava cortando carne fresca. A mina do barbeador arrancada ficara ao
301
lado da garganta. Então provavelmente terei cortado a carne ao lado. Com o barbeador
na mão me demorei ali em delírios enquanto isso a velha entrou e correu. depois
que ela saiu, voltou-me a plena consciência, e quando novamente olhei meu irmão, ele
estava morto. Do rasgo da ferida fluía um sangue abundante. Pus o barbeador perto de
mim e fiquei olhando o rosto de meu irmão sem vida com os olhos meio fechados.
No final, os chefes de grupos de vizinhos vieram e levaram-me para o escritório.
Assim Kisuke contou, sentado inclinando-se para adiante e olhando Shobe de
baixo, e agora quando terminou seu conto, deixou os olhos caírem sobre seu joelho.
O conto de Kisuke era ordenado. Podia-se dizer, que seu conto era ordenado até
demais. Mas isso provém em parte do fato de que durante o semestre passado ele re-
evocara para si os acontecimentos, e em parte, de que ele tinha que repetir de cor as
mesmas palavras com grande atenção a cada vez que o inquiriam no escritório e quando
o interrogaram na casa do magistrado.
Shobe escutou-o como se assistisse ao drama de uma vida diante de seus olhos.
Mas no meio do conto tomou-lhe uma dúvida, e a dúvida continuou inevitável até
depois que o conto terminara: isso poderia ser um fratricídio, poderia isso ser um
homicídio? O irmão de Kisuke pediu-lhe para arrancar o barbeador a fim de ajudá-lo a
acabar com sua vida; Kisuke arrancou o barbeador e seu irmão morreu. Sim, ele matou
o irmão. Mas deixasse-o vivo aquele irmão, e ele de modo igual morreria logo. O irmão
desejava abreviar para si a última hora porque ele não podia suportar a agonia.
Kisuke não podia mais tolerar a visão do irmão agonizante. Para salvar o irmão da
agonia, Kisuke terminou-lhe a vida. Seria isto somente um crime? Inútil dizer que o
homicídio é um crime. Mas trata-se de salvar um homem da agonia... Eis a dúvida de
Shobe, inexpugnável.
Shobe ruminou o caso de diversas maneiras e afinal nasceu em sua cabeça a
ideia de que enfim ele teria que se confiar ao julgamento daqueles que eram superiores a
ele. Que ele devia obedecer à Autorität. Decidiu que o julgamento do magistrado
fosse também o seu. E ainda resta algo insolúvel, e ele não pode resistir à tentação, de ir
um dia perguntar ao magistrado a respeito.
Sob a lua de primavera da noite tardia, o barco do Takase com os dois homens
silentes sai deslizando sobre a superfície das negras águas.
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N13- Brakoj. In: ASSIS, Machado de. La divenistino. Kaj aliaj rakontoj. Esperantigis
Paulo Sérgio Viana. São Paulo: Oportuno, P.41-55, 2005. (ASSIS, Machado. Contos
escolhidos. Texto integral. São Paulo: Martin Claret, 2004.)
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Uns braços
Inácio estremeceu, ouvindo os gritos do solicitador, recebeu o prato que este lhe
apresentava e tratou de comer, debaixo de uma trovoada de nomes, malandro, cabeça de
vento, estúpido, maluco.
Onde anda que nunca ouve o que lhe digo? Hei de contar tudo a seu pai, para
que lhe sacuda a preguiça do corpo com uma boa vara de marmelo, ou um pau; sim,
ainda pode apanhar, não pense que não. Estúpido! Maluco!
Olhe que fora é isto mesmo que você aqui, continuou, voltando-se para
D. Severina, senhora que vivia com ele maritalmente, anos. Confunde-me os papéis
todos, erra as casas, vai a um escrivão em vez de ir a outro, troca os advogados: é o
diabo! É o tal sono pesado e contínuo. De manhã é o que se vê; primeiro que acorde é
preciso quebrar-lhe os ossos... Deixe; amanhã hei de acordá-lo a pau de vassoura!
310
D. Severina tocou-lhe no pé, como pedindo que acabasse. Borges espeitorou
ainda alguns impropérios, e ficou em paz com Deus e os homens.
Não digo que ficou em paz com os meninos, porque o nosso Inácio não era
propriamente menino. Tinha quinze anos feitos e bem feitos. Cabeça inculta, mas bela,
olhos de rapaz que sonha, que adivinha, que indaga, que quer saber e não acaba de saber
nada. Tudo isso posto sobre um corpo não destituído de graça, ainda que mal vestido. O
pai é barbeiro na Cidade Nova, e pô-lo de agente, escrevente, ou que quer que era, do
solicitador Borges, com esperança de vê-lo no foro, porque lhe parecia que os
procuradores de causas ganhavam muito. Passava-se isto na Rua da Lapa, em 1870.
Durante alguns minutos não se ouviu mais que o tinir dos talheres e o ruído da
mastigação. Borges abarrotava-se de alface e vaca; interrompia-se para virgular a oração
com um golpe de vinho e continuava logo calado. Inácio ia comendo devagarinho, não
ousando levantar os olhos do prato, nem para colocá-los onde eles estavam no momento
em que o terrível Borges o descompôs. Verdade é que seria agora muito arriscado.
Nunca ele pôs os olhos nos braços de D. Severina que se não esquecesse de si e de tudo.
Também a culpa era antes de D. Severina em trazê-los assim nus,
constantemente. Usava mangas curtas em todos os vestidos de casa, meio palmo abaixo
do ombro; dali em diante ficavam-lhe os braços à mostra. Na verdade, eram belos e
cheios, em harmonia com a dona, que era antes grossa que fina, e não perdiam a cor
nem a maciez por viverem ao ar; mas é justo explicar que ela os não trazia assim por
faceira, senão porque gastara todos os vestidos de mangas compridas. De pé, era
muito vistosa; andando, tinha meneios engraçados; ele, entretanto, quase que a via à
mesa, onde, além dos braços, mal poderia mirar-lhe o busto. Não se pode dizer que era
bonita; mas também o era feia. Nenhum adorno; o próprio penteado consta de mui
pouco; alisou os cabelos, apanhou-os, atou-os e fixou-os no alto da cabeça com o pente
de tartaruga que a e lhe deixou. Ao pescoço, um lenço escuro, nas orelhas, nada.
Tudo isso com vinte e sete anos floridos e sólidos.
Acabaram de jantar. Borges, vindo o café, tirou quatro charutos da algibeira,
comparou-os, apertou-os entre os dedos, escolheu um e guardou os restantes. Aceso o
charuto, fincou os cotovelos na mesa e falou a D. Severina de trinta mil cousas que não
interessavam nada ao nosso Inácio; mas enquanto falava, não o descompunha e ele
podia devanear à larga.
Inácio demorou o café o mais que pôde. Entre um e outro gole alisava a toalha,
arrancava dos dedos pedacinhos de pele imaginários ou passava os olhos pelos quadros
311
da sala de jantar, que eram dous, um S. Pedro e um S. João, registros trazidos de festas
encaixilhados em casa. que disfarçasse com S. João, cuja cabeça moça alegra as
imaginações católicas, mas com o austero S. Pedro era demais. A única defesa do moço
Inácio é que ele não via nem um nem outro; passava os olhos por ali como por nada.
Via os braços de D. Severina, ou porque sorrateiramente olhasse para eles, ou
porque andasse com eles impressos na memória.
Homem, você não acaba mais? Bradou de repente o solicitador.
Não havia remédio; Inácio bebeu a última gota, fria, e retirou-se, como de
costume, para o seu quarto, nos fundos da casa. Entrando, fez um gesto de zanga e
desespero e foi depois encostar-se a uma das duas janelas que davam para o mar. Cinco
minutos depois, a vista das águas próximas e das montanhas ao longe restituía-lhe o
sentimento confuso, vago, inquieto, que lhe doía e fazia bem, alguma cousa que deve
sentir a planta, quando abotoa a primeira flor. Tinha vontade de ir embora e de ficar.
Havia cinco semanas que ali morava, e a vida era sempre a mesma, sair de manhã com o
Borges, andar por audiências e cartórios, correndo, levando papéis ao selo, ao
distribuidor, aos escrivães, aos oficiais de justiça. Voltava à tarde jantava e recolhia-se
ao quarto, até a hora da ceia; ceava e ia dormir. Borges não lhe dava intimidade na
família, que se compunha apenas de D. Severina, nem Inácio a via mais de três vezes
por dia, durante as refeições. Cinco semanas de solidão, de trabalho sem gosto, longe da
mãe e das irmãs; cinco semanas de silêncio, porque ele falava uma ou outra vez na
rua; em casa, nada.
"Deixe estar, pensou ele um dia fujo daqui e não volto mais."
Não foi; sentiu-se agarrado e acorrentado pelos braços de D. Severina. Nunca
vira outros tão bonitos e tão frescos. A educação que tivera não lhe permitia encará-los
logo abertamente, parece até que a princípio afastava os olhos, vexado. Encarou-os
pouco a pouco, ao ver que eles não tinham outras mangas, e assim os foi descobrindo,
mirando e amando. No fim de três semanas eram eles, moralmente falando, as suas
tendas de repouso.
Aguentava toda a trabalheira de fora toda a melancolia da solidão e do silêncio,
toda a grosseria do patrão, pela única paga de ver, três vezes por dia, o famoso par de
braços.
Naquele dia, enquanto a noite ia caindo e Inácio estirava-se na rede (não tinha ali
outra cama), D. Severina, na sala da frente, recapitulava o episódio do jantar e, pela
primeira vez, desconfiou alguma cousa Rejeitou a ideia logo, uma criança! Mas
312
ideias que são da família das moscas teimosas: por mais que a gente as sacuda, elas
tornam e pousam. Criança? Tinha quinze anos; e ela advertiu que entre o nariz e a boca
do rapaz havia um princípio de rascunho de buço. Que admira que começasse a amar? E
não era ela bonita? Esta outra ideia não foi rejeitada, antes afagada e beijada. E recordou
então os modos dele, os esquecimentos, as distrações, e mais um incidente, e mais
outro, tudo eram sintomas, e concluiu que sim.
Que é que você tem? Disse-lhe o solicitador, estirado no canapé, ao cabo de
alguns minutos de pausa.
Não tenho nada.
Nada? Parece que em casa anda tudo dormindo! Deixem estar, que eu sei
de um bom remédio para tirar o sono aos dorminhocos . . .
E foi por ali, no mesmo tom zangado, fuzilando ameaças, mas realmente incapaz
de as cumprir, pois era antes grosseiro que mau. D. Severina interrompia-o que não, que
era engano, não estava dormindo, estava pensando na comadre Fortunata. Não a
visitavam desde o Natal; por que não iriam uma daquelas noites? Borges redarguia
que andava cansado, trabalhava como um negro, não estava para visitas de parola, e
descompôs a comadre, descompôs o compadre, descompôs o afilhado, que não ia ao
colégio, com dez anos! Ele, Borges, com dez anos, sabia ler, escrever e contar, não
muito bem, é certo, mas sabia. Dez anos! Havia de ter um bonito fim: vadio, e o
covado e meio nas costas. A tarimba é que viria ensiná-lo.
D. Severina apaziguava-o com desculpas, a pobreza da comadre, o caiporismo
do compadre, e fazia-lhe carinhos, a medo, que eles podiam irritá-lo mais. A noite caíra
de todo; ela ouviu o tlic do lampião do gás da rua, que acabavam de acender, e viu o
clarão dele nas janelas da casa fronteira. Borges, cansado do dia, pois era realmente um
trabalhador de primeira ordem, foi fechando os olhos e pegando no sono, e deixou-a
na sala, às escuras, consigo e com a descoberta que acaba de fazer.
Tudo parecia dizer à dama que era verdade; mas essa verdade, desfeita a
impressão do assombro, trouxe-lhe uma complicação moral que ela conheceu pelos
efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-
se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador, e ele que mandasse embora o fedelho.
Mas que era tudo? Aqui estacou: realmente, não havia mais que suposição, coincidência
e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as
atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a ideia de estar
enganada. Daí a pouco, (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem
313
fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar
bem a realidade das cousas.
nessa noite, D. Severina mirava por baixo dos olhos os gestos de Inácio; não
chegou a achar nada, porque o tempo do chá era curto e o rapazinho não tirou os olhos
da xícara. No dia seguinte pôde observar melhor, e nos outros otimamente. Percebeu
que sim, que era amada e temida, amor adolescente e virgem, retido pelos liames sociais
e por um sentimento de inferioridade que o impedia de reconhecer-se a si mesmo. D.
Severina compreendeu que não havia recear nenhum desacato, e concluiu que o melhor
era não dizer nada ao solicitador; poupava-lhe um desgosto, e outro à pobre criança.
se persuadia bem que ele era criança, e assentou de o tratar tão secamente como até ali,
ou ainda mais. E assim fez; Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou
falava áspero, quase tanto como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom
da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar geralmente esquivo,
tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas
tudo isso era curto.
Vou-me embora, repetia ele na rua como nos primeiros dias.
Chegava a casa e não se ia embora. Os braços de D. Severina fechavam- lhe um
parêntesis no meio do longo e fastidioso período da vida que levava, e essa oração
intercalada trazia uma ideia original e profunda, inventada pelo céu unicamente para ele.
Deixava-se estar e ia andando. Afinal, porém, teve de sair, e para nunca mais; eis aqui
como e por que.
D. Severina tratava-o desde alguns dias com benignidade. A rudeza da voz
parecia acabada, e havia mais do que brandura, havia desvelo e carinho. Um dia
recomendava-lhe que não apanhasse ar, outro que não bebesse água fria depois do café
quente, conselhos, lembranças, cuidados de amiga e mãe, que lhe lançaram na alma
ainda maior inquietação e confusão. Inácio chegou ao extremo de confiança de rir um
dia à mesa, cousa que jamais fizera; e o solicitador não o tratou mal dessa vez, porque
era ele que contava um caso engraçado, e ninguém pune a outro pelo aplauso que
recebe. Foi então que D. Severina viu que a boca do mocinho, graciosa estando calada,
não o era menos quando ria.
A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem
entender-se. Não estava bem em parte nenhuma. Acordava de noite, pensando em D.
Severina. Na rua, trocava de esquinas, errava as portas, muito mais que dantes, e não via
mulher, ao longe ou ao perto, que lha não trouxesse à memória. Ao entrar no corredor
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da casa, voltando do trabalho, sentia sempre algum alvoroço, às vezes grande, quando
dava com ela no topo da escada, olhando através das grades de pau da cancela, como
tendo acudido a ver quem era.
Um domingo, nunca ele esqueceu esse domingo, estava no quarto, à
janela, virado para o mar, que lhe falava a mesma linguagem obscura e nova de D.
Severina. Divertia-se em olhar para as gaivotas, que faziam grandes giros no ar, ou
pairavam em cima d'água, ou avoaçavam somente. O dia estava lindíssimo. Não era
um domingo cristão; era um imenso domingo universal.
Inácio passava-os todos ali no quarto ou à janela, ou relendo um dos três folhetos
que trouxera consigo, contos de outros tempos, comprados a tostão, debaixo do
passadiço do Largo do Paço. Eram duas horas da tarde. Estava cansado, dormira mal à
noite, depois de haver andado muito na véspera; estirou-se na rede, pegou em um dos
folhetos, a Princesa Magalona, e começou a ler. Nunca pôde entender por que é que
todas as heroínas dessas velhas histórias tinham a mesma cara e talhe de D. Severina,
mas a verdade é que os tinham. Ao cabo de meia hora, deixou cair o folheto e pôs os
olhos na parede, donde, cinco minutos depois, viu sair a dama dos seus cuidados. O
natural era que se espantasse; mas não se espantou. Embora com as pálpebras cerradas
viu-a desprender-se de todo, parar, sorrir e andar para a rede. Era ela mesma, eram os
seus mesmos braços.
É certo, porém, que D. Severina, tanto não podia sair da parede, dado que
houvesse ali porta ou rasgão, que estava justamente na sala da frente ouvindo os passos
do solicitador que descia as escadas. Ouviu-o descer; foi à janela vê-lo sair e se
recolheu quando ele se perdeu ao longe, no caminho da Rua das Mangueiras. Então
entrou e foi sentar-se no canapé. Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca;
levantando-se, foi pegar na jarra que estava em cima do aparador e deixou-a no mesmo
lugar; depois caminhou até à porta, deteve-se e voltou, ao que parece, sem plano.
Sentou-se outra vez cinco ou dez minutos. De repente, lembrou-se que Inácio comera
pouco ao almoço e tinha o ar abatido, e advertiu que podia estar doente; podia ser até
que estivesse muito mal.
Saiu da sala, atravessou rasgadamente o corredor e foi até o quarto do mocinho,
cuja porta achou escancarada. D. Severina parou, espiou, deu com ele na rede,
dormindo, com o braço para fora e o folheto caído no chão. A cabeça inclinava-se um
pouco do lado da porta, deixando ver os olhos fechados, os cabelos revoltos e um
grande ar de riso e de beatitude.
315
D. Severina sentiu bater-lhe o coração com veemência e recuou. Sonhara de
noite com ele; pode ser que ele estivesse sonhando com ela. Desde madrugada que a
figura do mocinho andava-lhe diante dos olhos como uma tentação diabólica. Recuou
ainda, depois voltou, olhou dous, três, cinco minutos, ou mais. Parece que o sono dava à
adolescência de Inácio uma expressão mais acentuada, quase feminina, quase pueril.
―Uma criança!" disse ela a si mesma, naquela língua sem palavras que todos trazemos
conosco. E esta ideia abateu-lhe o alvoroço do sangue e dissipou-lhe em parte a
turvação dos sentidos.
"Uma criança!"
E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído;
mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que
acordado, e uma dessas ideias corrigia ou corrompia a outra. De repente estremeceu e
recuou assustada: ouvira um ruído ao pé, na saleta do engomado; foi ver, era um gato
que deitara uma tigela ao chão. Voltando devagarinho a espiá-lo, viu que dormia
profundamente. Tinha o sono duro a criança! O rumor que a abalara tanto, não o fez
sequer mudar de posição. E ela continuou a vê-lo dormir, dormir e talvez sonhar.
Que não possamos ver os sonhos uns dos outros! D. Severina ter-se-ia visto a si
mesma na imaginação do rapaz; ter-se-ia visto diante da rede, risonha e parada; depois
inclinar-se, pegar-lhe nas mãos, levá-las ao peito, cruzando ali os braços, os famosos
braços. Inácio, namorado deles, ainda assim ouvia as palavras dela, que eram lindas
cálidas, principalmente novas, ou, pelo menos, pertenciam a algum idioma que ele
não conhecia, posto que o entendesse. Duas três e quatro vezes a figura esvaía-se, para
tornar logo, vindo do mar ou de outra parte, entre gaivotas, ou atravessando o corredor
com toda a graça robusta de que era capaz. E tornando, inclinava-se, pegava-lhe outra
vez das mãos e cruzava ao peito os braços, até que inclinando-se, ainda mais, muito
mais, abrochou os lábios e deixou-lhe um beijo na boca.
Aqui o sonho coincidiu com a realidade, e as mesmas bocas uniram-se na
imaginação e fora dela. A diferença é que a visão não recuou, e a pessoa real tão
depressa cumprira o gesto, como fugiu até à porta, vexada e medrosa. Dali passou à sala
da frente, aturdida do que fizera, sem olhar fixamente para nada. Afiava o ouvido, ia até
o fim do corredor, a ver se escutava algum rumor que lhe dissesse que ele acordara, e
depois de muito tempo é que o medo foi passando. Na verdade, a criança tinha o sono
duro; nada lhe abria os olhos, nem os fracassos contíguos, nem os beijos de verdade.
Mas, se o medo foi passando, o vexame ficou e cresceu. D. Severina não acabava de
316
crer que fizesse aquilo; parece que embrulhara os seus desejos na ideia de que era uma
criança namorada que ali estava sem consciência nem imputação; e, meia mãe, meia
amiga, inclinara-se e beijara-o. Fosse como fosse, estava confusa, irritada, aborrecida
mal consigo e mal com ele. O medo de que ele podia estar fingindo que dormia
apontou-lhe na alma e deu- lhe um calafrio.
Mas a verdade é que dormiu ainda muito, e acordou para jantar. Sentou-se à
mesa lépido. Conquanto achasse D. Severina calada e severa e o solicitador tão ríspido
como nos outros dias, nem a rispidez de um, nem a severidade da outra podiam dissipar-
lhe a visão graciosa que ainda trazia consigo, ou amortecer-lhe a sensação do beijo. Não
reparou que D. Severina tinha um xale que lhe cobria os braços; reparou depois, na
segunda-feira e na terça-feira, também, e até sábado, que foi o dia em que Borges
mandou dizer ao pai que não podia ficar com ele; e não o fez zangado, porque o tratou
relativamente bem e ainda lhe disse à saída:
Quando precisar de mim para alguma cousa, procure-me.
Sim, senhor. A Sra. D. Severina. . .
Está para o quarto, com muita dor de cabeça. Venha amanhã ou depois
despedir-se dela.
Inácio saiu sem entender nada. Não entendia a despedida, nem a completa
mudança de D. Severina, em relação a ele, nem o xale, nem nada. Estava tão bem!
Falava-lhe com tanta amizade! Como é que, de repente. . . Tanto pensou que acabou
supondo de sua parte algum olhar indiscreto, alguma distração que a ofendera, não era
outra cousa; e daqui a cara fechada e o xale que cobria os braços tão bonitos... Não
importa; levava consigo o sabor do sonho. E através dos anos, por meio de outros
amores, mais efetivos e longos, nenhuma sensação achou nunca igual à daquele
domingo, na Rua da Lapa, quando ele tinha quinze anos. Ele mesmo exclama às vezes,
sem saber que se engana:
E foi um sonho! Um simples sonho!
317
N14 - Savita. In: MAUPASSANT, Guy de. Sinjoro Jokasto kaj aliaj noveloj. El la
franca tradukis Daniel Luez. Chapecó SC : Fonto, P. 17-22, 1987.
318
319
Salva
Ela entrou como uma bola estourando uma vidraça, a pequena marquesa de
Rennedon, e começou a rir antes de falar, a rir até às lágrimas, como fizera um mês atrás
contando a sua amiga que havia enganado o marquês para vingar-se, só para vingar-se, e
só uma vez, porque ele era mesmo muito burro e ciumento.
A pequena baronesa de Grangerie jogara em seu sofá o livro que lia, e olhava
Annette com curiosidade, rindo-se já por ela mesma.
Afinal perguntou-lhe:
-O que você fez afinal?
-Ah, querida... querida... é engraçado demais... engraçado demais... imagine só...
estou salva! salva!
-Como, salva?
-É sim, salva!
-Do quê?
-Do meu marido, querida. Salva! Liberta! Livre! Livre!
-Como assim livre, de quê?
-De quê? O divórcio! Estou com o divórcio na mão!
320
-Você está divorciada?
-Não, ainda não. Como você é tola! Não se divorcia em três horas! Mas eu tenho
provas provas provas de que ele me engana ... um fato recente ... imagine!... eu
tenho!
-Ah, me conte isso! Então ele a enganava?
-Sim... quer dizer, não... sim e não... não sei. Enfim, eu tenho as provas e isso é
que é o essencial.
-Como você fez?
-Como eu fiz?... está, fui hábil, extremamente hábil. Fazia três meses que ele
tornou-se odioso, brutal, grosseiro, despótico, ignóbil afinal. Eu me disse: isso não pode
continuar, preciso do divórcio! Mas como? Não foi nada fácil. Tentei fazer com que ele
me batesse. Ele não quis. Contrariava-me da manhã à noite, me forçava a sair quando eu
não queria, a ficar em casa quando queria almoçar na cidade; tornava-me a vida
insuportável de um extremo ao outro da semana, mas não me batia. tratei de saber se
ele tinha uma amante. Sim, ele tinha uma, mas tomava mil precauções para ir à casa
dela. Eram impossíveis de se apanhar juntos. Então, adivinha o que eu fiz?
-Não posso adivinhar.
-Ah! Não vai adivinhar nunca. Pedi a meu irmão que me arranjasse uma foto
dessa moça.
-Da amante de seu marido?
-Sim. Isso custou quinze luízes a Jacques, o preço de uma noite, de sete horas até
meia noite, jantar incluído, três luízes a hora. Ele conseguiu a fotografia sem pagar.
-Me parece que teria conseguido por menos usando de uma esperteza qualquer e
sem... sem... sem ser obrigado a levar junto o original.
-Oh! Ela é bonita. Isso não desagradou ao Jacques. E, além disso, eu precisava
de detalhes físicos de sua cintura, seus seios, sua cor, mil coisas enfim.
-Não estou entendendo.
-Você verá. Quando descobri tudo o que queria saber, fui até um... como se diz?
Até um homem de negócios... você sabe... desses homens que fazem negócios de toda...
de toda natureza... Agentes de... de... de publicidade e de cumplicidade... desses
homens... Você entende afinal.
-Sim, mais ou menos. E você lhe disse...
-Eu lhe disse, mostrando-lhe a fotografia de Clarisse (ela se chama Clarisse):
―Senhor, preciso de uma camareira que se pareça com isto. Quero-a bela, elegante, fina,
321
limpa. Pagarei a ela o que for preciso. Se me custar dez mil francos, pouco importa. Não
vou precisar por mais do que três meses.‖
Ele parecia muito espantado, o homem. Perguntou: ―A senhora quer que seja
irrepreensível?‖
Fiquei vermelha, e balbuciei: ―-Claro, no tocante à decência.‖
Ele continuou: -E de acordo com os bons costumes?...‖ Não ousei responder.
fiz um gesto de cabeça que queria dizer: não. Aí, de repente, compreendi que ele
tinha uma suspeita terrível, e exclamei, perdendo a cabeça: Oh senhor... é para o meu
marido... que está me enganando... me enganando na cidade... e eu quero... quero que
me engane em minha casa... e quero... o senhor entende... para surpreendê-lo...‖
Então o homem começou a rir. E entendi que ele por si me havia dado sua
estima. Achava-me até muito forte. Poderia até apostar que naquele momento tinha
vontade de apertar-me a mão.
Disse-me: ―Em oito dias, senhora, terei o seu negócio. E mudaremos de sujeito,
se preciso. Garanto o sucesso. A senhora pagará depois de tudo dar certo. Então esta
fotografia representa a amante do senhor seu marido?‖ – ―Sim senhor.‖
-―Bela figura, uma falsa magra. E qual é o perfume?‖ Não entendi, repeti:
―Como, qual perfume?‖ Ele sorriu. ―Sim, senhora, o perfume é essencial para seduzir
um homem, pois isso lhe traz relembranças inconscientes que o dispõem à ação, o
perfume estabelece confusões obscuras em sua mente, embaralha-o e irrita-o
recordando-lhe seus prazeres. Seria preciso tratar de saber também o que o senhor seu
marido costuma comer quando ele janta com essa dama. A senhora poderia servir-lhe os
mesmos pratos na noite em que o apanhará. Ah, nós o pegamos, senhora, nós o
pegamos.‖
Fui-me embora encantada. Havia mesmo encontrado um homem muito
inteligente.
II
-Três dias mais tarde, vi chegar em minha casa uma moça alta, morena, muito
bonita, de ar modesto e autoconfiante ao mesmo tempo, um ar singular de esperteza. Foi
muito decente comigo. Como não sabia bem quem era, chamava-a ―senhorita‖: então
ela me disse: ―Oh! A senhora pode me chamar simplesmente de Rosa.‖ Começamos a
conversar.
-Então Rosa, você sabe por que veio aqui?
-Faço uma ideia, senhora.
322
-Muito bem, minha filha... e isso não a... não a incomoda o bastante?
-Oh senhora, esse é o oitavo divórcio que eu faço, já estou acostumada.
-Perfeito então. Você precisa de muito tempo para conseguir?
-Oh! senhora, isso depende inteiramente do temperamento do senhor. Quando
tiver visto o senhor cinco minutos cara a cara, poderei responder à senhora com
exatidão.
-Já o verá daqui a pouco, minha criança. Mas deixo-a prevenida de que não é
nada bonito.
-Não é problema, senhora. separei homens muito feios. Mas devo perguntar à
senhora se já se informou do perfume.
-Sim, minha boa Rosa, - a verbena.
-Que bom, senhora, gosto muito desse cheiro! Senhora, pode dizer-me também
se a amante do senhor usa roupas íntimas de seda?
-Não, minha criança: cambraia com rendas.
-Oh! Então trata-se de uma pessoa bem refinada. A roupa de seda começa a se
tornar muito comum.
-É bem verdade mesmo o que você está dizendo!
-Pois bem, senhora, vou me ocupar do meu serviço.
Ela tomou seu serviço, de fato, imediatamente, como se nunca tivesse feito nada
além daquilo a sua vida inteira.
Uma hora mais tarde meu marido voltava. Rosa sequer ergueu os olhos para ele,
mas ele ergueu os olhos para ela, sim. Ela já exalava verbena a plenas narinas. Ao cabo
de cinco minutos ela saiu.
Ele tão logo perguntou-me:
-Que é essa menina que está aí?
-Ora... Minha camareira nova.
-Onde a encontrou?
-Foi a baronesa de Grangerie que ma deu, com as melhores recomendações.
-Hum! Ela é bem bonita!
-Acha mesmo?
-Mas sim... Para uma camareira.
Eu estava eufórica. Sentia que ele já estava mordendo a isca.
Na mesma noite, Rosa me dizia: ―Posso agora prometer à senhora que isto não
durará quinze dias. O senhor é muito fácil!‖
323
-Ah! Você já tentou?
-Não senhora, mas isso se vê ao primeiro golpe de olho. lhe apetece me beijar
quando me passa do lado.
-Ele não lhe disse nada?
-Não senhora, me perguntou meu nome... para poder ouvir o som da minha
voz.
-Muito bem, minha boa Rosa. Vá o mais rápido que puder.
-Senhora não tema nada. vou resistir o tempo necessário para não me
depreciar.
Ao cabo de oito dias meu marido quase não saía mais. Via-o rodear a tarde
inteira pela casa, e o que havia de mais significativo no seu caso, é que não me impedia
mais de sair.
E eu ficava fora o dia inteiro... para... para deixá-lo livre. No nono dia, quando
Rose me despia, ela disse-me com ar tímido:
-Está feito, senhora, desde hoje pela manhã.
Fiquei um tanto surpresa, até um quase nada emocionada, não pela coisa, mas
antes pela maneira com que ela me disse. Balbuciei: -E... e... correu tudo bem?...
-Oh, muito bem, senhora. havia três dias que me pressionava, mas eu não
queria ir rápido demais. A senhora me avisará o momento em que deseja o flagrante
delito.
-Sim, minha filha. Pronto!... Façamos na quinta feira.
-Fica sendo na quinta, senhora. Não vou ceder mais nada até lá para manter o
senhor bem desperto.
-Tem certeza de não falhar?
-Oh sim, senhora, toda certeza. Vou atiçar o senhor ao máximo, de maneira a
fazê-lo agir justamente na hora em que a senhora me designar.
-Digamos cinco horas, minha boa Rosa.
-Combinado às cinco horas, senhora, e em que lugar?
-Mas ora... No meu quarto!
-Seja. No quarto da senhora.
Então, minha cara, você entende o que eu fiz. Fui primeiro chamar papai e
mamãe, depois meu tio de Orvelin, o presidente, depois o Sr. Raplet, o juiz, amigo de
meu marido. Não os informei sobre o que eu ia mostrar-lhes. Fi-los entrar todos na
ponta dos pés até a porta de meu quarto. Esperei pelas cinco horas em ponto...
324
Oh! Como meu coração batia. Fizera subir também o porteiro para ter uma
testemunha a mais! E aí... e aí, no momento em que o pêndulo começa a soar, eu abro a
porta toda... Ah! ah! ah! estava em cheio... em cheio... minha querida... Oh! que
cara! Que cara! Se você pudesse ver a cara dele! E ele se virou... o imbecil! Ah como
estava engraçado... Eu ria, eu ria... E papai que ficou nervoso, que queria bater no meu
marido... E o porteiro, um bom servidor, que o ajudava a vestir-se... na nossa frente... na
nossa frente... Abotoava os suspensórios... era uma comédia!...
Quanto à Rosa, perfeita! Absolutamente perfeita... Ela chorava... Ela chorava
muito bem. É uma menina preciosa... Se um dia você precisar, não se esqueça!
E eis-me aqui... Vim imediatamente lhe contar a coisa... imediatamente. Estou
livre. Viva o divórcio!...
Ela começou a dançar no meio do salão, enquanto a pequena baronesa,
sonhadora e contrariada, murmurava:
-Por que você não me convidou para ver isso?
325
N15 - Miriel. In: SFEROJ 5 Sciencfikcio kaj fantasto. Komplilado: Miguelo
Gutierrez Aduriz. Floranes Grupo Nifo, P.109-114, 1987.
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327
Miriel
Um dia reparei Kaja em companhia de uma garota para mim desconhecida. Ela
era bastante alta e magra, tão magra que quase raquítica; tinha a pele cor de mel escuro,
silhueta de menino e cabelos cortados muito curto. Aparentava ter quatorze, mas seus
seios eram de todo achatados.
Observei as duas meninas por certo tempo, que andavam pela relva como a
dançar, e demonstravam grande interesse uma pela outra. Elas não me viam, ou
fingiam que não viam. De longe elas pareciam frágeis borboletas da primavera.
Naquela noite, ao jantar, tentando dar à minha voz um tom ao mais possível
indiferente, perguntei a minha irmã:
-Está de colega nova, Kaja?
Ela me olhou com atenção de cima do prato de ovo mexido, seus olhos
brilharam por um momento.
328
-Colega? ela perguntou, após certo longo instante, com uma elevação artificial
na voz.
-É, sim continuei sem titubeio. Vi vocês hoje. E como Kaja continuava
calada, fixando-me sem parar umas pupilas dilatadas, eu disse ainda com tom relaxado:
-Ela me parece um pouco... diferente.
Kaja finalmente baixou as pálpebras. Sorriu tão discretamente, que eu podia crer
que apenas apertava os lábios.
que ela... sussurro - não é daqui informou Kaja friamente. Quero dizer:
não é do nosso mundo.
Capturei-lhe o olhar perscrutador. Mesmo assim me calei, ela se levantou e
andou até a porta. Na soleira, ela se virou: -Seu nome é Miriel.
O que significa: não é do nosso mundo:
-Dizem que veio do céu: ou se preferir, das estrelas. Não é sabido por quanto
tempo ela vai ficar aqui. Isso não depende dela.
-De quem então?
Sacudir de ombros. Sorriso.
Dentes desnudos, como os de um bichinho selvagem.
Ela é ―diferente‖. Mas serão poucas as meninas diferentes no mundo? Dizem
que ela faz coisas que nenhum de nós pode. Mas quem já viu?
À relva, na floresta, em uma cidadezinha.
Às vezes com uma serpente enroscada em torno de um braço nu, ou talvez até do
pescoço. Às vezes nas costas de um lobo ou raposa. Ora ela some, ora reaparece de
surpresa.
Mais ainda, as meninas acham que Miriel é um menino.
Eh... estórias de donzelas adolescentes.
Acabavam de começar as férias, mas ambos tínhamos que ficar em casa, minha
irmã menos velha, quase mea, e eu. Ela sumia da casa de manhã cedo nem tenho
certeza se tomava o desjejum eu saía ao gramado, ou mais distante à beira d´água, e
por muitas horas permanecia deitado com um livro sem lê-lo. O sol raiava entre as
folhas acima da minha cabeça, uma erva quente de verão ressoava milhares de vozes
como que viva, um ser misterioso, quase um organismo desconhecido.
Todo dia eu via Miriel, seu corpo longo, quase diáfano, tão de leve a se mexer,
como se logo depois fosse pairar, como se não tivesse peso nenhum. Usava calções
329
longos e uma blusa debaixo da qual parecia não ter nada; olhei suas pernas esguias e
cabelos cor de cobre escuros, só os olhos é que não pude ver.
Todo dia eu via também Kaja.
Junto a Miriel ela estava totalmente mudada, seu rosto irradiava uma luz interior,
que eu percebia nela pela primeira vez. Em casa cada vez mais frequente ouvia-se seu
canto, à noite disso eu sei ficava muito tempo sentada à janela aberta, e um ar
pesado de aromas preenchia toda a casa. Ao passar por mim sorria de canto da boca,
enigmática, e desviava um pouco a cabeça. Com espanto constatei que se tornara uma
outra, que eu não conhecia. Um ente estranho.
Tudo mudou. Miriel, muitíssimos meninos e meninas rodeavam essa estranha
Miriel. Miriel sabia de tudo, Miriel sabia o que nenhum de nós jamais saberia. Tocava
melhor o violão e nadava melhor, montava a cavalo e escalava as árvores mais altas, os
galhos mais finos, esculpia madeira e adivinhava pensamentos dos outros, ela era um
oráculo para tudo. Seu riso soava por toda a cidadezinha, sua silhueta elástica, de
planta-bicho sediava toques, apalpadelas, lábios, sorrisos, gestos e palavras: o que é ela?
menino ou menina, ou algo totalmente diverso? E onde se sumia enquanto todos
dormíamos, sufocados em sonhos com ela, com seu outro mundo.
À noite Miriel costumava acompanhar Kaja. Uma noite atingiu-me o sopro
cálido de beijos, mãos que se afundam em cabeleira, brilho de chamas na bochecha,
olhos que brilham no escuro e ela que some tão de repente, qual nunca estivesse ali,
mera sombra de folhas tímidas, uma noite idílica e besta pesada como se enorme fosse,
sufocante.
Miriel, meu único... meu lindo. Miriel, Miriel...
-Você chamou quem, Kaja? perguntei afobado. Miriel é o quê?
Ela calou-se, mas de sua pele elevou-se um aroma estimulante algo conhecido
meu, só que de outro jeito, diferente... O cheiro de um homem.
O quarto de Kaja, aonde entrei sem avisar certa manhã, vazio, mas com lençóis
amarrotados e espalhados pela cama...
E o meu quarto, minha cama...
Afinal não pude mais me conter.
-Convide... seus amigos disse eu talvez lento demais aqui para casa, vocês
não o me atrapalhar.E se Miriel é alguém... tão interessante como tenho ouvido, eu
também gostaria...
Ressoou um silêncio. Kaja sorriu sem certeza, mas eu vi que tremiam suas mãos.
330
Ainda assim, na noite seguinte olhei de perto um rosto quieto, frio, com traços
demasiado agudos para uma menina e delicado demais para um menino, olhos
castanhos e uma penugem que mal se via sobre umas bochechas arredondadas.
-Ao que dizem você não é daqui arrisquei não muito sabiamente, mas a
resposta foi um riso incontido, olhos que de repente se revelaram dourados, apontou
para o céu, e eu ouvi:
-Já faz um pouco de tempo...
Kaja estava sentada com as pálpebras baixadas, imóvel, mas eu adivinhei a
pensar, que sob a mesa sua coxa tocava a coxa de nossa visitante, quase ouviam-se
faíscas a saltar entre elas. Senti um arrepio na pele.
-E onde... você mora?
Sorrisinho. Dentes brancos, desnudos.
-Kaja, você sabe tomei forças que temos um quarto vago... como é que se
diz... para hóspedes... Então...
Kaja ficou vermelha, mas eu não me lembrava mais de Kaja. Eu somente via
estes braços longos e cabelos cor-de-cobre escuros, onde há um vento... O que é ela? Ou
talvez o que é ele?
-Veja, não sei se vale a pena, é só mais uma, duas noites no máximo. Eu logo...
E um sorriso. Tenho que voltar Ouvia-se novamente um rumor baixinho ou talvez
apenas um suspiro.
-Não importa, não importa. Levantei-me de um salto. Kaja me olhou
atentamente, mas talvez isso só me pareceu. Já era tarde...
-Mas eu não devo mesmo dormir...
Ao sair percebi os olhos castanhos-ouro fixos em mim.
A coxa geladinha de alguém tocou-me a coxa, e outra vez apoderou-se de mim
aquele odor... Eu me sacudi.
Sonhei, que abraçava uma mulher. Não, uma mulher não. uma garota jovem,
talvez dessas que pela primeira vez... Quem sabe igual à minha irmã?
Sussurrei:
-Quem é você?
Os seios elas os tinha achatados, mas muito quentes, ombros arredondados de
menina... e eu já sabia que ela não era, que ela não podia ser um garoto.
De manhã encontrei o quarto vazio, e com lençóis esparramados pela cama, e
somente o cheiro no ar... e Miriel, Miriel sumira.
331
-Ele não está aqui ouvi em todos os cantos o sussurro de Kaja
-Ela não está aqui eu repetia em pensamento.
Saí da casa, procurei por ela em toda parte, mas em lugar nenhum achei,
passavam por mim rostos idílicos de crianças que de repente se haviam transformado
em meninas e meninos, em homens e mulheres, em todos traços havia rastros dela,
Miriel, dele, Miriel.
Sombra duma borboleta sob o céu côncavo, vastas, alvas asas feito as de uma
pipa, que junto com Kaja eu empinava na infância.
-Ele voou para longe, parece que ele tinha que voar para longe. Foi o que
disse Kaja. Mas eu ouvi ainda: Meu primeiro garoto. Nunca desse jeito...
O que ela é perguntei. E de onde?
Mas pensei: Minha primeira garota. Nunca antes alguém...
A erva estava muito aquecida pelo sol, o vento trazia um cheiro frio de peixe, da
água.
Deitamo-nos de costas, cada qual aprofundado em seu próprio silêncio.
Em qualquer lugar ao longe, longe passavam sombras de seres humanos, que
talvez não fossem mais humanos.
332
N16 - Pri la amo. In: ĈEĤOV, Anton; BUNIN, Ivan; NABOKOV. Rusaj amnoveloj.
Kompilis kaj traduktis el la rusa. Grigori Arosev; Aleksander Korĵenkov. Jekaterinburg;
Sezonoj, P. 4-10, 2000.
333
334
Sobre o amor
Dia seguinte, no café da manhã, deram bolinhos muito gostosos, caranguejos e
costelas de carneiro. Enquanto comíamos, o cozinheiro Nicanor subiu para perguntar o
que os convidados desejavam comer no almoço. Era um homem de estatura mediana,
rosto cheio e olhos pequenos, e seus pelos do bigode pareciam não raspados, mas
arrancados a pinça.
Alyohin contou que a bela Pelágea amou esse cozinheiro. Por ser ele beberrão e
ter caráter violento, não queria casar-se com ele e contentava-se com o simples
concubinato. Mas ele era muito pio e seu credo religioso não lhe permitia simplesmente
ajuntar-se; exigiu que ela se casasse com ele, sem isso não desejaria viver com ela.
Quando estava bêbado, insultava-a e até batia nela. Quando ele estava embriagado, ela
se escondia em cima e chorava muito, e então Alyohin e os empregados não saíam da
casa para poder, se necessário, defendê-la.
Começaram a falar de amor.
Como nasce o amor? dizia Alyohin Por que Pelágea não foi gostar de outro
homem, mais apropriado para ela com suas qualidades espirituais e externas, mas foi
gostar logo do Nicanor, o focinhudo (aqui todos o chamamos de ´focinhudo`)? no
amor o que importam são os problemas da felicidade pessoal nada disso é sabido, mas
335
tudo isso se pode tratar de toda forma. Até agora sobre o amor é dita uma verdade
irrefutável. Qual seja que ―este mistério é grande‖, mas tudo o mais que se escreveu e
disse sobre o amor não foi a resposta, mas a formulação das perguntas, que sempre
ficam sem resposta. A explicação que parece caber nalgum caso concreto, não presta
para dezenas de outros casos. Para mim é melhor esclarecer cada caso em particular,
sem tentar generalizar. Cumpre, como dizem os médicos, personalizar cada caso à parte.
-Certíssimo, - concordou Burkin.
Nós, russos honestos, temos inclinação para essas perguntas que ficam sem
resposta. De costume fazem poesia do amor, enfeitam-no com rosas e rouxinóis, mas
nós, russos, ornamentamos nosso amor com essas perguntas fatais, nisso escolhendo as
menos interessantes. Quando ainda era estudante em Moscou, tinha uma companheira,
uma dama encantadora, que em meus braços pensava em quanto dinheiro lhe daria
no mês e quanto estava custando a libra do boi. Iguais somos nós que, amando, não
paramos de nos perguntar: será que isto é honesto ou errado, sábio ou tolo, aonde leva
este amor e assim por diante. Eu não sei se isso é bom ou não, mas sei que isso
atrapalha, irrita, não satisfaz.
Parecia que ele queria contar alguma coisa. Rapazes urbanos em especial
frequentam banhos e restaurantes públicos para poder falar, e às vezes eles contam aos
atendentes do banho e garçons estórias muito interessantes; nos vilarejos costumam
contar os segredos da alma a seus convidados. Agora atrás da janela eram visíveis o
céu cinzento e árvores, molhadas da chuva. Com este tempo não se podia sair para lugar
nenhum, e não sobrou nenhum programa além de contar e escutar.
muito tempo que moro e me mantenho em Sofiino, disse Alyohin, -
depois dos estudos da universidade. Fui educado para evitar trabalho e, pelo meu
caráter, gosto de trabalhar no escritório, mas, quando vim para cá, a fazenda tinha
grandes dívidas, porque meu pai endividou-se em parte por gastar muito com meus
estudos. Resolvi não sair daqui e trabalhar até o pagamento total da dívida. Confesso
que depois dessa decisão comecei a trabalhar com certo rancor. A terra aqui não
muitos retornos, e para que a agricultura não prejuízos é preciso usar do serviço de
agregados ou empregados, que são quase a mesma coisa, ou senão levar sozinho a
própria lida, à maneira dos camponeses então, trabalhar com as próprias mãos na terra
junto com a família. Meio-termo não existe. Mas na altura não pensei nessas sutilezas.
Não deixei livre nenhum pedacinho de terra, chamei todos os camponeses dos vilarejos
vizinhos, o trabalho ferveu como louco, eu mesmo também capinei, semeei, rocei e
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assim sem prazer fazia beiços, feito um gato da roça comendo pepino na horta. O corpo
me doía e eu adormecia andando. No princípio me parecia que essa vida de trabalhos
poderia conciliá-la facilmente com meus hábitos culturais. Achava que para isso bastava
manter na vida a conhecida orden costumeira. Morava aqui em cima, nos quartos de
frente e arranjei para que depois do desjejum e do almoço me servissem café com
licores e antes do sono lia a revista Vestnik Jevropy‖. Mas às vezes vinha nosso
sacerdote, Padre Ivan, e numa visita bebia todos os meus licores, e as ―Vestnik Jevropy‖
eram dadas às seguidoras do padre, pois no verão, sobretudo no tempo de colheita, eu
não conseguia nem chegar até a cama e dormia num trenó da cocheira ou nalgum abrigo
de jardineiro na floresta poderia se tratar de leitura? Pouco a pouco passei a morar
embaixo, comecei a comer na cozinha de serviço, e do antigo luxo restaram os
serventes, que serviam ainda a meu pai, e dispensá-los seria muito doloroso.
Logo me elegeram juiz de paz. Tinha que vir à cidade às vezes e participar de
reuniões dos juízes e sessões do juiz distrital. Isso me distraía. Vivendo dois, três meses
aqui sem sair, principalmente no inverno, finalmente começa-se a ambicionar um manto
negro. E no juizado distrital havia mantos, e uniformes, e fraques. havia juristas,
homens de instrução geral, e eu podia conversar com eles. Era um verdadeiro luxo
depois de dormir num trenó e depois da cozinha de serviço sentar-me num sofá, em
roupas limpas e sapatos leves, de corrente no peito!
Na cidade me recebiam calorosamente, e com prazer me relacionava com as
pessoas. Entre todos os conhecimentos o mais firme e a bem dizer o mais agradável para
mim era frequentar Luganovitch, vice-presidente do juizado distrital. Vocês dois o
conhecem: um indivíduo formidável. Isso aconteceu logo após o famoso caso dos
incendiários: o processo durou dois dias, estávamos exaustos. Luganovitch dirigiu-me o
olhar e disse:
-Então aí está. Venha almoçar na minha casa.
Foi surpreendente, pois com Luganovitch eu pouco conversava, oficialmente,
e nunca havia estado em sua casa. Num minuto passei em meu quarto de hotel para me
trocar, e fui para o almoço. Assim tive ocasião de conhecer Anna Alekseyevna, a esposa
de Luganovitch. Nessa ocasião, ela era ainda muito jovem, não mais que vinte e dois
anos, e há um semestre tivera seu primeiro filho. Isso aconteceu muito tempo, e
agora mal poderia dizer o que havia nela de realmente incomum, de que logo gostei
nela, mas aí no almoço para mim tudo estava irrefutavelmente claro: via uma mulher
jovem, linda, bondosa, inteligente, encantadora: uma mulher como nunca havia antes
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encontrado. Logo senti nela alguém próximo, como se aquele rosto e aqueles sábios
olhos afáveis tivesse eu visto na infância, no álbum que ficava na cômoda de minha
mãe.
No caso do incêndio foram acusados quatro judeus, supondo-se que fosse um
bando, mas eu achei que tal era sem embasamento. Durante o almoço eu estava muito
emotivo, sentia-me pesado e não me lembro mais do que falei, mas Anna Alekseyevna
sempre balançava a cabeça e dizia ao marido:
-Demetrio, como aconteceu aquilo?
O bom homem Luganovitch era um daqueles homens de alma simples, que
acreditam firmemente que se um homem é julgado, significa que ele é culpado e que
duvidar da justeza do veredicto se pode na forma oficial, no papel mas nunca
durante o almoço e nem numa conversa privada.
-Decerto nem você nem eu incendiamos nada disse suavemente por isso é
que não estão nos julgando nem encarcerando.
Ambos, marido e mulher, insistiram para que eu comesse e bebesse. A julgar por
alguns detalhezinhos por exemplo, por como eles faziam juntos o café e como em
meias palavras se entendiam mutuamente concluí que eles conviviam em plena
concórdia, muito bem e que estavam felizes com a visita. Depois do almoço tocaram
piano a quatro mãos, depois anoiteceu e eu voltei para casa. Isso aconteceu no início da
primavera. Depois passei em Sofiino todo o verão, sem viajar para lugar nenhum, e não
tinha tempo nem de pensar na cidade, mas a lembrança da mulher loira e esguia ficou
em mim todos os dias. Eu pensava não nela, mas em minha alma como se estivesse na
leve sombra dela.
No final do outono na cidade ocorreu um espetáculo com fins beneficentes. Vim
ao camarote do governador (me convidaram durante um intervalo) e vi que ao lado da
esposa do governador estava sentada Anna Alekseyevna, e outra vez experimentei a
impressão fulminante, irresistível, da beleza e dos amáveis olhos carinhosos e o mesmo
sentimento de proximidade.
Sentamo-nos um pouco juntos e depois passeamos no salão de caminhadas.
-Você emagreceu ela disse. Esteve doente?
-É, sim. Meu peito anda resfriado e eu durmo mal com o tempo chuvoso.
-Está com ar de fraqueza. Na primavera, quando veio almoçar, estava mais jovial
e robusto. No dia você estava entusiasmado e falava muito. Você era muito interessante
e confesso que até me senti um pouco atraída por você. No verão eu sempre por algum
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motivo me lembrava de você e hoje, enquanto me preparava para o teatro, pareceu-me
que iria vê-lo.
Ela riu.
-Mas hoje você está tão debilitado, - repetiu Isso o envelhece.
No dia seguinte tomei o desjejum na casa de Luganovitch; depois da refeição
saíram para sua mansão para lá dar ordens de organização para o inverno. Eu os
acompanhei. Junto com eles voltei à cidade e à meia noite tomei chá em seu ambiente
familiar sossegado, com a chaminé queimando e a jovem mãe sempre saía para ver se
sua filha dormia. Depois então sempre os visitava, quando vinha à cidade.
Acostumaram-se comigo, e eu com eles. De costume eu chegava sem avisar, como
alguém de casa.
-Quem chegou? ouvia-se num quarto longe a voz estirada, que me parecia
mesmo linda.
-Paulo Konstantinovitch, - respondia a camareira ou a governanta.
Anna Alekseyevna saía com uma expressão cheia de cuidados e sempre
perguntava:
Por que ficou tanto tempo sem vir me ver? Aconteceu algo?
Seu rosto, a mão nobre que me estendia, seu vestido de casa, cabelos, voz e
passos sempre me davam a impressão de algo novo, grave e incomum na minha vida.
Conversamos longamente e calamo-nos longamente, cada um pensando em suas coisas,
ou ela tocava piano para mim. Se em casa não estivesse nenhum dos donos, eu ficava e
esperava, conversava com a governanta, brincava com a criança ou lia um jornal,
deitado no sofá do gabinete, e quando Anna Alekseyevna voltava, ia encontrá-la no
vestíbulo, tomava suas compras, e por que fosse, sempre carregava aquelas compras
com o amor e o triunfo de uma criança.
Aconteceu conforme o provérbio: ―vivia tranquila a camponesa até comprar um
porquinho‖. Eles também viviam despreocupados antes da amizade comigo. Se eu
ficasse muito tempo sem vir à cidade, significava que estava doente ou acontecera algo
de ruim, e ficavam muito preocupados. Inquietavam-se ante o fato de que eu, um sujeito
culto que conhece línguas estrangeiras, em vez de me ocupar com ciência ou literatura,
debatia-me feito um peixe numa rede, trabalhando muito e ficando sem um tostão no
bolso. A eles parecia que estava sofrendo e que eu falava, ria e comia para esconder
meu sofrimento, e até em minutos alegres quando estava bem, sentia em mim seus
olhares a explorar. Comoviam-me em especial quando efetivamente eu tinha problemas,
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espremido por algum dos credores ou sem dinheiro que chegasse para a prestação
urgente e os esposos sussurravam-se junto à janela, depois vinham a mim com
expressão séria e diziam:
-Paulo Konstantinovitch, se você presentemente está precisando de dinheiro, eu
e minha esposa pedimos que não tenha vergonha de tomar do nosso dinheiro
emprestado.
Suas orelhas vermelhas de emoção. Aconteceu também que, após semelhante
cochicho à janela, me viessem com as orelhas avermelhadas dizer:
-Eu e minha mulher insistimos para que aceite este presente.
E me davam umas abotoaduras, cigarreira ou lanterna. E eu em retorno mandava
da aldeia aves de caça, manteiga e flores. A bem dizer, eles eram bastante ricos. Nos
primeiros tempos eu sempre peguei dinheiro emprestado sem escolher muito, pegava
em todo lugar onde desse, mas nada no mundo me obrigaria a pegar com eles. Mas para
que tenho que contar isso!
Eu era infeliz. Em casa, no campo e na garagem eu pensava nela, me esforçava
para entender o segredo daquela mulher jovem, linda e inteligente, que se casou com um
homem desinteressante, quase um velho (o marido tinha mais de quarenta anos), deu a
luz a filhos dele, fazia força para entender qual seria o segredo daquele homem morno,
bom homem, simplório, que raciocinava com uma prudência que passava de aborrecida,
nos bailes e noitadas ficava junto das pessoas importantes, fraco, inútil sujeito com um
ar de indiferença, como se o tivessem chamado ali para vender, mas que ainda assim
acreditava em seu direito de ser feliz, ter filhos dela, e sempre custei a compreender por
que foi ele quem a encontrou, e não eu, e ainda por que era preciso esse erro terrível na
nossa vida.
Mas vindo à cidade, a cada vez via nos olhos dela que ela esperava por mim, e
ela mesma me confessava que ainda aquela manhã teve uma sensação especial, que
adivinhava pontualmente as minhas visitas. Costumávamos nos falar e silenciar por
muito tempo, mas não confessávamos nosso amor um ao outro, e com timidez e ciúmes,
o escondíamos. Temíamos tudo que pudesse revelar nosso segredo a nós mesmos. Eu
amava terna e profundamente, mas refletia, perguntava-me a que nos levaria talvez o
nosso amor, se teríamos força para combatê-lo, a mim parecia-me impossível a ideia de
que minha amada quieta e triste súbita e abruptamente pusesse fim ao feliz decorrer da
vida de seu marido, de seus filhos e de toda a casa onde tanto me amavam e confiavam
em mim. Tal seria honesto? Ela me seguiria, mas para onde? Para onde poderia levá-la?
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Seria outra coisa se eu tivesse uma vida bonita e interessante, se, por exemplo, eu
lutasse pela libertação da pátria ou se fosse um cientista, artista, pintor famoso, mas
agora eu teria que desencaminhá-la de uma situação rotineira para outra situação
igualmente rotineira, senão mais ainda. Nossa felicidade duraria? Que lhe aconteceria
se eu adoecesse, morresse ou se nós simplesmente deixássemos de nos amar?
Evidente que ela também refletia de igual maneira. Pensava no marido, nas
crianças, em sua mãe que amava seu marido como a um filho. Se ela se abandonasse ao
sentimento, seria obrigada a mentir ou dizer a verdade, e no estado dela as duas opções
eram igualmente medonhas e desconfortáveis. Atormentava-a também a questão: o
amor dela iria me fazer feliz, ou dificultar minha vida, - que sem isso era pesada e
cheia de toda sorte de infelicidades? A ela parecia que ela não era bastante jovem
para mim, nem bastante trabalhadora e enérgica para começar vida nova, e sempre
conversava com o marido sobre eu ter que desposar uma moça digna e sábia, que fosse
boa dona e casa e ajudante, mas logo dizia que em nossa cidade difícil era existir tal
jovem.
Entrementes passaram anos. Anna Alekseyevna tinha dois filhos. Quando
chegava a Luganovitch os empregados sorriam amigáveis, as crianças gritavam que
chegou tio Paulo e se atiravam no meu pescoço. Todos ficavam felizes, sem entender o
que se estava passando em minha alma, e achavam que eu também estava contente.
Todos me tinham por uma pessoa nobre. E os adultos e as crianças sentiam que no
quarto pisava uma pessoa nobre, e isso dava a suas relações comigo um charme
especial, como se em minha presença suas vidas fossem puras e belas. Eu e Anna
Alekseyevna juntos visitávamos o teatro, íamos sempre a pé. Sentávamo-nos lado a lado
nas poltronas, nossos ombros tocavam-se, em silêncio tomava o binóculo em suas mãos
e nesse momento sentia que ela estava próxima a mim, que ela era minha, que não
podíamos ficar um sem o outro, mas ao sair do teatro, por algum um estranho mal-
entendido, toda vez nos despedíamos e apartávamo-nos feito desconhecidos. Na cidade
se falava de sabe-Deus-o-quê, mas nessas conversas não havia uma só palavra de
verdade.
Nos últimos anos Anna Alekseyevna estava viajando mais frequentemente, ora
para a casa da mãe, ora para a irmã. Já às vezes estava de mau humor, às vezes
consciência lhe vinha da vida que tinha descontente, desperdiçada e então não queria
saber de ver nem o marido, nem as crianças. Já se tratava por problemas com os nervos.
341
Nós quase sempre ficávamos em silêncio, e na presença dos outros ela sentia-se
incitada contra mim, quando eu falava de qualquer coisa, discordava de mim, e quando
eu discutia com alguém, apoiava meu adversário. Quando sem querer deixava cair algo,
dizia friamente:
-Meus parabéns.
Se indo com ela ao teatro eu me esquecia de trazer os binóculos, dizia:
-Já tinha certeza de que você ia esquecer.
Feliz ou infelizmente, em nossas vidas não existe nada que não acabe, cedo ou
tarde. Chegou o tempo da separação, pois Luganovitch fora promovido a presidente do
juizado num dos gabinetes ocidentais. Tiveram que vender móveis, cavalos, mansão.
Quando depois da visita voltávamos da mansão e olhamos, para uma última vez poder
ver o jardim e o verde telhado, todos ficaram tristes e eu entendi que não era o
momento de dizer adeus à mansão. Estava decidido que em fins de agosto eu diria adeus
a Anna Alekseyevna, que partia para a Crimeia, mandada pelos médicos, e dali a algum
tempo Luganovitch com as crianças partiriam para o seu gabinete ocidental.
Despedimo-nos de Anna Alekseyevna em grande multidão. Quando ela
acenava com o marido e crianças, e até o apito do trem restava apenas um momento,
corri para dentro de seu vagão para colocar num suporte para bagagens um de seus
cestos que ela quase esquecia, e era preciso dizer adeus. Quando no vagão nossos
olhares se encontraram, as forças da alma deixaram-nos aos dois, dei-lhe um abraço,
apertei o rosto dela em meu peito, e os olhos se molharam. Beijando seu rosto, ombros e
mãos molhadas ai que infelizes que somos! confessei lhe o meu amor, e com uma
aguda dor no coração entendi o quão desnecessário, mesquinho e falso era tudo aquilo
que nos impedia de amar. Entendi que quando se ama, nas reflexões sobre esse amor é
preciso apoiar-se em algo superior, mais importante do que felicidade ou infelicidade,
pecado ou virtude em seus sentidos comuns, ou então é melhor nem refletir a respeito.
Beijei-a pela última vez, apertei-lhe as mãos, e nos separamos para sempre. O
trem dava a partida. Sentei-me no vagão ao lado, que estava vazio, e até a próxima
estação lá fiquei sentado e chorei. Depois voltei a pé para Sofiino...
Durante a narrativa de Alyohin a chuva parou e o sol surgiu. Burkin e Ivan
Ivanovitch vieram para a sacada, de onde pareciam belíssimos o jardim e o rio agora
como um espelho a rebrilhar sob os raios do sol. Gozaram daquela visão e ao mesmo
tempo lamentaram que aquele homem de olhos bons e sábios, que de coração tão limpo
lhes contava, efetivamente debatia-se numa grande fazenda, feito um peixe numa rede,
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mas não se ocupava de ciências ou outra coisa que lhe tornasse a vida mais agradável.
Pensavam também em quão fúnebre rosto era o que tinha aquela jovem dama, enquanto
diziam-se ‗adeus‘ naquele vagão e beijavam-se os rostos e ombros. Ambos a viram na
cidade, e Burkin até a conhecera e achava-a muito bonita.
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N17- La aliulo. In: KIPLING, Rudyard. La Zodiakidoj kaj aliaj rakontoj. El la angla
tradukis Katelina Halo. Chapecó SC : Fonto, P.9-13, 1997.
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345
O Outro
Na Terra doente, sob um Céu cinzento
Enquanto a chuva apodrecia os bosques,
Cavalgava o Defunto pela escuridão do outono
Para rever a incomparável.
(Velha Balada)
Muito tempo atrás, nos anos de setenta, antes que construíssem Escritórios
Públicos em Simla e a ampla estrada ao redor de Jakko não passava de um desenho
arquivado em alguma barraca do Departamento de Obras Públicas, os pais de Miss
Gaurey fizeram-na casar-se com o Coronel Schreiderling. Ele não havia de ter mais do
que trinta e cinco anos a mais do que ela, e como vivia com duzentas rupias por mês e
tinha seu próprio dinheiro, estava muito bem de vida. Ele era de boa família, e sofria de
problemas de pulmão no calor. No verão, por causa do forte calor, ameaçava-lhe a
apoplexia, que, no entanto, nunca chegou a matá-lo.
Compreenda, não estou criticando Schreiderling. Era um bom marido pelos seus
critérios, e seu humor o traía quando estava sob cuidados, isto é, uns dezessete dias
por mês. Era quase generoso com a mulher em assuntos de dinheiro e isso para ele era
uma concessão. Ainda assim a Sra. Schreiderling não era feliz. Casaram-se quando ela
ainda não tinha nem vinte, tendo dado todo seu pobre coração a outro homem. Esqueci
o nome dele, mas vamos chamá-lo o Outro. Ele não tinha dinheiro nem futuro. Nem
bonito ele era, e acho que estava no Comissariado ou no Transporte. Mas apesar de tudo
isso, ela o amava muito; e havia uma espécie de compromisso entre eles quando
Schreiderling apareceu e disse à Sra. Gaurey que desejava casar-se com sua filha. Então
o outro compromisso foi rompido, lavado dali pelas lágrimas da Sra. Gaurey, que a
senhora governava a casa a choramingar por cada desobediência à sua autoridade e falta
de reverência que recebia em sua velhice. A filha não parecia com a e. Ela nunca
chorou. Nem mesmo na cerimônia de casamento.
O Outro suportou sua perda calado, e foi transferido para uma estação da pior
que pôde achar. Talvez o clima o consolasse. Sofria de febre intermitente e aquilo deve
-lo distraído de seu outro problema. Andava fraco do coração também. De ambos os
jeitos. Uma das válvulas foi afetada, e a febre agravou o problema. Isso se revelou mais
tarde. Então passaram-se muitos meses e a Senhora Schreiderling começou a ficar
doente. Não definhou como nos livros de estórias, mas parece que pegava todo tipo de
enfermidade que havia na Colônia, das simples febres para pior. Nunca aparentava
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melhor do que o ordinário em seus melhores dias, e a doença a enfeava. Scheiderling foi
quem disse. Ele se orgulhava de dizer o que pensava.
Quando ela deixou de ser bonita, ele deixou-a para ocupar-se com pequenas
coisas e retornou aos covis de suas aventuras primeiras . Ela cavalgava pela Alameda de
Simla, trotando para e para cá, como se abandonada, usando um chapéu de sol que
não protegia sua fronte e sentada numa sela ruim. A generosidade de Schreiderling
terminava no cavalo. Ele dizia que qualquer sela servia para uma mulher nervosa como
a Sra. Schreiderling. Ela nunca era chamada para dançar, pois não dançava bem; e era
tão tola e desinteressante, que muito raro recebia cartões de visita. Schreiderling dizia
que se ele soubesse que ela iria se tornar tamanho espantalho depois do casamento, não
teria nunca se casado com ela. Sempre orgulhando-se de dizer o que pensa, o velho
Schreiderling.
Ele a deixou em Simla em certo agosto, e desceu para o regimento. Nessa altura
ela chegou a rejuvenescer, embora nunca recuperasse sua beleza. Fiquei sabendo no
Clube que o Outro ia vir para cima, muito doente mesmo, numa última esperança de
cura. A febre e as válvulas do coração quase o mataram. Ela também soubera disso, e
sabia do que a mim não me interessou saber quando ele estava para chegar. Suponho
que tenha escrito para lhe contar. Eles não se viram desde um mês antes do casamento.
E agora vem a parte desagradável da história. Uma visita de última hora me segurou no
Hotel Dovedell até o amanhecer certa noite. A Senhora Schreiderling troteou para cima
e para baixo na alameda por toda aquela tarde de chuva. Enquanto eu subia pela
rodovia, passou por mim um carro de aluguel e meu pônei, cansado de tanto ficar de pé,
começou a galopar. Bem ao lado da estrada que leva ao escritório de aluguel de carros a
Sra. Schreiderling, ensopada da cabeça aos pés, estava esperando o carro. Porque tal
carro não me interessasse, dirigi-me para o caminho morro acima, e justo então ela se
pôs a berrar. Voltei logo e vi, sob as luzes do escritório de veículos, a Sra. Schreiderling
ajoelhada, na estrada molhada, sobre o assento traseiro do carro que acabava de chegar,
gritando horrivelmente. À minha chegada, ela caiu de cara na terra.
Sentado no assento de trás, muito reto e firme, com uma mão na cortina de pano
e água da chuva entornando-lhe do chapéu e do bigode, estava morto o Outro. A rude
subida de sessenta milhas de colina foi demais para sua válvula, suponho. O condutor
disse ―Este Sahib morreu duas paradas depois de Solon. Dali, amarrei-o com uma
corda senão ele ia cair no meio do caminho, e então vim para Simla. Sahib me dará
gorjeta? Ele -apontando para o Outro - devia me dar uma rupia.‖ O Outro assentado
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com um sorriso no rosto, como se gostando da anedota de sua chegada, e a Sra.
Schreiderling, na lama, começava a gemer. Não havia ninguém além de nós quatro no
escritório e estava chovendo pesado. Primeiro era levar a Sra. Schreiderling para casa, e
depois evitar que seu nome se misturasse no negócio. O motorista recebeu cinco rupias
para achar um riquixá no bazar para a Sra. Schreiderling. Ele deveria contar ao
proprietário do carro em seguida sobre o Outro, e o patrão deveria despachar as coisas
como melhor parecesse.
Levaram a Sra. Schreiderling para a guarita, fora da chuva, e por três quartos de
hora nós dois esperamos pelo riquixá. O Outro foi deixado exatamente como chegou. A
Sra. Schreiderling queria fazer tudo menos chorar; talvez o choro a tivesse ajudado.
Tentou gritar assim que os sentidos voltaram, e então começou a rezar pela alma do
Outro. Não fosse tão honesta ela haveria de rezar pela sua própria alma também. Esperei
para ouvi-la fazer isso, mas ela não o fez. Então tentei tirar um pouco da lama de sua
roupa. Afinal, o riquixá chegou e consegui despedi-la, meio que à força. Foi um negócio
terrível do começo ao fim, mas principalmente quando o riquiteve que se espremer
entre a parede e o carro, e ela viu pela luz do lampião aquela mão magra, amarela
agarrada à cortina.
Ela foi levada para casa ao mesmo tempo que todo mundo estava saindo para um
baile na Loja do Vice-Rei - ―Peterhof‖ naquela época e o médico achou que ela caíra
de seu cavalo, que a apanhei por detrás de Jakko, e que eu merecia mesmo muito crédito
pela prontidão com que lhe prestei socorro. Ela não morreu homens como
Schreiderling casam-se com mulheres que não morrem fácil. Elas vivem e ficam feias.
Ela nunca contou, desde o casamento, sobre seu único encontro com o Outro, e
quando o resfriado e a tosse que se seguiram à exposição àquela noite permitiram que
saísse, nunca em palavra ou gesto aludiu a ter-me encontrado no escritório. Quiçá não
tenha nunca sabido. Ela costumava trotar pela alameda acima e abaixo, numa sela
espantosamente ruim, parecendo esperar encontrar alguém ali na esquina a cada minuto.
Dois anos depois ela foi para Casa, e morreu em Bournemouth, eu acho.
Schreiderling, quando se embebedava no refeitório, falava com ironia
sentimental de ―minha pobre querida esposa‖. Sempre foi importante a transparência
para o nosso Schreiderling.
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N18- En Pirin. In: VAZOV, Ivan Minĉev. Bulgaraj rakontoj. Tradukis At. D.
Atanasov. 3 ed. Berlin: Ellersiek & Borel, P. 5-11, 1923.
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350
Em Pirin
Belo é nosso Monte Pirin.
Que altos topos, cobertos durante todo o ano de neve, que verdes os vales, que
imponentes florestas de pinhais, que encantadoras suas belezas!
No verão, nas largas pastagens dali deslizam castanhos rebanhos, mugem gordas
vacas, relincham cavalos de crinas brilhantes, deixados soltos, e o kaval
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de algum
pastor sopra nalgum canto, faz soar vales e florestas e alegra o mundo inteiro...
E riachos claros, frios, alegremente saltam das íngremes rochas, entortam-se
pelos perfumados vales, e doce, docemente murmuram, como se cantassem algo... Se
você subir até lá, no topo das neves, onde elas penetram o céu, veao longe outros
vales e montes, e os lagos Struma e Vardar, e bonitas visões da Macedônia, e ao sul os
cumes de Sveta Gora. Atrás deles o mar branco (Egeu), e se você olhar para cima
você verá Deus!...
Belo! Belo é esse Irin-Pirin! Mas estamos indo para de visita no inverno,
quando medonhos são seus vendavais de frio, suas nevascas e estrondos. Elas ressoam
como o inferno e entulham de escombros veredas e vales com grossas pilhas de neve.
Então parece ser um reino de tumbas. E alcateias famintas andam sobre a neve espessa e
seus olhos brilham no escuro da noite. Ai do viajante que se perdesse à noite naquele
monte e em semelhante vendaval.
Bem, - pode-se dizer em uma noite dessas (era precisamente a véspera do
Natal) no vilarejo montês de R., a família do avô Lazko esperava impaciente por Klime.
Pois Klime, filho de Lazko, tinha ido naquele dia negociar e comprar roupas
para a mãe, para a jovem esposa e para seu filhinho de dois anos, e tinha que voltar à
noite, mas já estava tudo escurecendo, anoitecia, e ainda ele não chegava.
E como a ventania assobia ameaçadora e terrível lá fora! Ela bate a janela, bate a
porta, levanta e espalha o feno do telhado... como assaltantes que atacassem a choupana
querendo entrar.
E os corações dos familiares se dobram de medo e inquietude. A esposa escuta
atenta a cada batida na janela, se não é o Klime.
Mas não, Klime não chega, e o vendaval canta fora. Mas que escuro que está,
meu Deus!
189
Kaval instrumento de sopro de música nacional búlgara.
351
A criança, sentada ao lado da chaminé, onde ferve o caldeirãozinho com a ceia
de Natal, sente medo do barulho e começa a chorar de tempos em tempo.
-Sossegue, meu amor, sossegue! Papai vem e vai trazer sapatinhos
vermelhos para você tranquiliza a mãe.
Ela se cala ante essas palavras, vira para sua mãe os seus olhinhos, cheios de
alegria e lágrimas, e pergunta:
-Papai? `patinho?
-Sapatinhos, sapatinhos, Glaucinho, olha, papai está chegando...
E aponta, mostrando a porta, que range com o vento.
E ela geme.
Geme também o avô Lazko num canto, inclinado sob o peso dos anos e de maus
pensamentos. Ele pensa em Klime, e geme apertado, pois não se deve a coisa boa essa
demora. O monte está cheio de bichos selvagens, a noite está horrível, o sopro não
cessa... Não foi no ano passado que os lobos comeram o empregado de Goran ali
mesmo ao lado do vilarejo, e os montes de neve cobriram três homens?... Sanguessugas
também não faltam naqueles lugares... maldito sangue turco! E o avô Lazko engole seus
medos e não ousa começar a gemer alto, para não espantar a nora e a criança, que estão
chorando.
-Por que vocês estão choramingando? ralha ele, aparentemente descontente,
mas em seu peito quase que uma pedra e eis, eis... que começa ele também a chorar
alto...
A porta empurrou-se e abriu.
Todos estremeceram.
Entrou a avó Lazkovica; ela voltava da igreja, aonde tinha ido acender uma
velinha junto à imagem de Santa Mina, para esta favorecer Klime.
- Ele ainda não chegou? Pergunta ela temerosa depois de ter olhado por toda a
sala.
No lugar de uma resposta a nora começou a chorar.
- Deus querido onde ficou o meu menino? geme a avó e anda até à imagem,
onde arde a santa luzinha.
E ela torna a fazer o sinal da cruz.
E o caldeirãozinho com o cozido de Natal ferve alegremente acima do fogo. Mas
esquecido.
Meia noite aproximava-se. Ninguém fecha as pálpebras.
352
O fogo começa a apagar: o caldeirãozinho silencia.
O portão do pátio está sempre aberto em frente ao campo, pois a casa fica no fim
do vilarejo.
O vendaval fora sibila, como latissem lobos ali. E tremores frios percorrem as
peles de todos.
Deus, ó Deus, mas que noite de Natal!
Klime perdeu o caminho, os tufões cobriram tudo: vales, morros,
estradas, campos. Ele saiu ontem com tempo bom do vilarejo, mas e agora?... Por horas
inteiras ele vagava no Monte Pirin e não sabe onde se encontra, para onde está indo, o
que encontrará. Ele entendia uma coisa: que longe, longe está de seu vilarejo, em
desertos montanhosos ignorados, no império dos animais selvagens e da morte. A noite
está clara por causa da neve, mas ao seu redor nada há de cultivado, nenhum sinal de
seres humanos, de vida ele vê: nem uma choupana, nem uma aldeia, nem um foguinho
luzente, onde se pudesse refugiar. Sua aldeia fica num vale: mesmo se estivesse
próxima, não a veria. O monte em toda parte estava deserto, branco, terrível. Como um
defunto, coberto por uma branca capa. Mas aonde ele está indo? Ele segue a direção
reta, para não congelar... A ventania golpeia-lhe as costas, e ela chora atrás dele, e
assobia, e faz barulho, como duendes em um baile de fadas (...) e Klime segue adiante,
adiante, e o deserto torna-se mais e mais sem fim e parecido com um túmulo. Ele sabe
que seus familiares estão esperando por ele agora e ficando preocupados... Deus, será
que ele ficará vivo e tornará a -los? Mas quem pode sair com vida deste abismo? Ele
sente que está endurecendo, que em breve vai cair e perecer nalguma avalanche, e
ninguém saberá onde ficou sepultado. E a esposa, e Glaucinho!... O vendaval começa a
assobiar terrivelmente e paralisa seus pensamentos.
De repente ele divisou dentre o crepúsculo muitas sombras negras, que
caminhavam silentes na neve. O que é isto? Lobos? É uma alcateia inteira e eles chegam
pelo lado direito; latem... Ele dispara a correr muito. O grupo faminto o segue depressa
com latidos selvagens... Por quanto tempo correu ele não se lembra, diante dele sempre
a nudez, sempre o deserto, sempre o campo de neve. então Klime que à frente
começa a mover-se algo, pontos de luz brilham e vêm ao seu encontro: A alcateia teria
enviado alguns animais para pará-lo em seu caminho... Klime viu terrível e inevitável a
morte... Então tornou a disparar feito um louco para a esquerda, em nova direção, para
alguma escarpa abaixo, e atrás dele os lobos... Duas vezes ele embaralhou-se em sua
echarpe, que rastejava, e caiu. Encontrando-se no vale, Klime com alegria viu, que
353
estava entrando nalguma aldeia... Que tipo seria? Muçulmana? Cristã? nem pensou,
pois a alcateia o perseguia até aqui. Corria atrás de seus calcanhares... Ele empurrou-se
por um portão, que parecia fechada pelo vendaval e correu para a janela, que estava
acesa. E os lobos também correndo atrás dele. Klime empurrou com energia a porta e
entrou numa casa desconhecida. Gemeu: estava vendo uma casa búlgara, cristã, e a
figura de santo, e diante dela a sacra candeia... a chama cintilava escura e se extinguia.
Do negrume saíram algumas pessoas. Olhou ao redor espantado. Onde se encontrava?
Subitamente Klime toma conhecimento que está em sua própria casa.
O Todo-Poderoso havia guiado seu vagar até a sua aldeia, quando ele pensava
que ia numa direção completamente diferente.
-Pai! Mulher! Levantem-se! gritou ele depondo o saco com as roupas de Natal.
Eles gritaram
todos como loucos e o abraçaram.
-Meu filho, onde você se perdeu nessa tormenta? - sussurra o velho inconsciente,
chorando como criança.
-A tormenta é grande, mas Deus é maior, pai. Mas vistam-se, para irmos à igreja.
Não estão ouvindo? O sino de madeira está tocando.
Neste mesmo instante a um silêncio do vento, ouviu-se o sino de madeira. Cristo
nasceu.
Logo a família feliz saiu e dirigiu-se ao divino altar.
E o pequeno caldeirão com a santa ceia começou a ferver de novo alegremente
no fogo!...
354
N19 - La brava stansoldato. In: Fabeloj de Andersen. Tradukis F.Skeel-Giörling.
Berlin& Dresden: Ellersiek & Borel, P.5-11, 1923.
355
356
O bravo soldado de estanho
Era uma vez vinte e cinco soldados de estanho que eram todos irmãos, pois
descendiam de uma velha colher de estanho. A arma, eles seguravam com o braço, o
rosto olhava direto para diante. Vermelho e azul, muito bonito era o uniforme. As
primeiras palavras que ouviram neste mundo, ao ser retirada a cobertura da caixinha
onde repousavam, foram: soldados de estanho! Um menininho gritou-as e bateu palmas;
ganhara de presente os soldados porque era seu aniversário, e agora estava colocando-
os de em cima da mesa. Todos os soldados tinham o mesmo aspecto, somente um
tinha uma pequena diferença dos outros: tinha um só, porque fora derretido por
último e não restava estanho suficiente; mas ainda assim ele parava tão firme sobre
um só pé quanto os outros sobre dois, e foi justamente ele que se tornou famoso.
Sobre a mesa onde estavam, encontravam-se muitos e diversos brinquedos, mas
o mais notável era um lindo palácio de papel. Pelas janelinhas podiam-se olhar os salões
lá dentro. Cá fora cresciam arvorezinhas em torno a um espelhinho que representava um
lago, uns cisnes de cera nadavam nele e refletiam-se. Tudo era encantador, mas a mais
charmosa era uma pequena donzela que havia na porta aberta do palácio, também ela
feita de papel, mas que tinha uma bonita saia pequenina do mais claro tecido e uma
357
fitinha azul bem como um casaco cingindo os ombros; no meio do casaco havia
costurada uma pérola dourado-brilhante, que era tão grande quanto seu rosto. A pequena
donzela estendia seus braços para cima, porque era uma bailarina, e um ela o erguia
tão alto, que o soldado de estanho não pôde vê-lo e achou que ela tinha um pé, igual
a ele.
―Com certeza, é a esposa perfeita para mim!‖ pensou o soldado de estanho, ―mas
ela é nobre demais, vive num palácio. Eu tenho uma caixinha, e dentro dela vivem
vinte e cinco, o tem nem um lugar decente para ela! Ainda assim, quero conhecê-la!‖
E assim ele se deitou, todo de comprido, detrás de uma caixa de rapé que havia na mesa,
de onde podia olhar bem a nobre donzelazinha, que ficava sempre sobre um só, sem
se desequilibrar.
Quando anoiteceu, colocaram os demais soldados de estanho na caixinha, e os
moradores da casa deitaram-se para dormir. Logo os brinquedos começaram a brincar,
receber visitas, guerrear e preparar um baile. Os soldados de estanho estalavam na
caixinha, pois queriam brincar com os outros, mas não podiam tirar a tampa. O
quebrador de nozes dava cambalhotas, e o giz de cera fazia travessuras sobre o quadro.
Havia tanto barulho, que o canário acordou e começou a conversar, o que ele fazia até
em versos. Os únicos dois que não se moviam nem um pouco de seu lugar eram o
soldado de estanho e a bailarina. Ela parada em prumo sobre a ponta do pé, com os dois
braços estendidos, ele igualmente firme sobre um pé, sem parar de olhá-la por um
minuto sequer.
Agora, no relógio soavam as doze, e claque! Abria-se a tampa da caixa de rapé,
mas não havia rapé dentro dela, nenhum, mas um duende negro; essa era a graça do
brinquedo.
―Soldado de estanho!‖ disse o duende, ―Poupe seus olhos, não os gaste tanto
assim!‖ Mas o soldado de estanho fingia que não ouvia nada.
―Bom, espere só até amanhã!‖ disse o duende.
Quando amanheceu e as crianças se levantaram da cama, o soldado de estanho
tina sido posto no parapeito da janela, e se era o duende ou um vento que passou
ninguém sabe, mas de repente a janela abriu-se e o soldado caiu do terceiro andar. Era
uma velocidade terrível, ele ficou com os pés apontando para cima e parado sobre o
capacete, com a baioneta fincada entre as pedras da calçada.
A empregada e o menininho vieram logo procurá-lo, e embora eles quase
pisassem nele, não o perceberam. Se o soldado de estanho tivesse gritado: estou aqui! -
358
com certeza o teriam achado, mas o lhe pareceu apropriado gritar tão alto, porque ele
estava de uniforme.
Logo começou a chover, as gotas caíam cada vez mais densamente, como um
rio. Quando terminou a tempestade chegaram dois garotos de rua.
―Olhe!‖ disse um deles, ―Ali tem um soldado de estanho! Ele deve andar de
barco!‖ E dum jornal velho fizeram um barquinho, colocaram nele o soldado de
estanho, e eis que ele agora navegava entre as águas de chuva da canaleta. Os dois
meninos corriam ao lado e batiam palmas! Meu Deus, que ondas havia naquela
canaleta! E que correnteza! Com certeza, que está chovendo muito! O barquinho de
papel balançava com força e às vezes se inclinava tanto, que o soldado de estanho era
chacoalhado, mas ficava firme, não mudava a expressão, olhava sempre adiante e
segurava a arma com o braço.
De uma vez, o barquinho nadou para baixo da boca de lobo de algum cano
d`água, onde ficou tão escuro como se estivesse dentro da sua caixinha.
―Para onde estarei indo?‖ pensou; ―Com certeza isto é culpa do duende! Ah, se
ao menos a donzela estivesse aqui no barquinho, não me incomodava que estivesse três
vezes mais escuro!‖
Naquele instante veio uma ratazana, que morava debaixo da boca de lobo.
―Você tem passaporte?‖ perguntou o rato. ―Mostre seu passaporte!‖
Mas o soldado de estanho ficou calado e mais firme segurou a arma. O
barquinho depressa navegou para longe e atrás dele correndo o rato. Uh! Como rangia
os dentes, e gritava para as gradezinhas e palhas:
―Segurem-no! Peguem-no! Ele não pagou o imposto de aduana! Nem apresentou
passaporte!‖
Mas a correnteza ia ficando mais forte, o soldado de estanho já podia ver a clara
luz à sua frente, onde terminava a galeria, mas ele podia ouvir também o rumor de um
mugido, que poderia muito bem intimidar um bravo homem, imaginem só: onde
termina a galeria, a água da chuva entornava-se num grande canal, o que era tão
perigoso para ele como para nós seria navegar numa grande queda d´água.
Agora já estava tão próximo, que ele não podia parar. O barquinho deu um salto,
o soldado de estanho manteve-se tão rígido quanto pôde, ninguém poderia dizer que ele
sequer piscava os olhos. Três ou quatro vezes o barquinho revirou-se, e estava cheio de
água até a borda, com certeza que ia afundar a água já chegava ao pescoço do soldado,
cada vez mais fundo o barquinho afundava, e o papel se desenrolava. Agora então a
359
água subia acima da cabeça do soldado, então ele pensou na linda bailarina, que nunca
mais ele tornaria a ver, e nos ouvidos do soldado de chumbo ressoava o versinho:
Fora, fora, soldado!
Para longe, para a morte!
Agora o papel se rasgou em pedaços, e o soldado caiu, - mas logo um peixe bem
grande o engoliu.
Oh! Que escuro aqui dentro! Era muito pior do que no esgoto da calçada, e tão
estreito! Mas o soldado de estanho ficou firme, e deitou-se com a arma no braço.
O peixe nadava em círculos, movendo-se assustadoramente. Depois ficou
imóvel, um brilho igual a um relâmpago o atravessou, e brilhou tudo tão claro, e alguém
gritou alto: ―Um soldado de estanho!‖ O peixe foi capturado, enviado à peixaria,
vendido e levado a uma cozinha, onde a empregada o retalhou com uma faca grande.
Com dois dedos, ela pegou o soldado ao redor do corpo e levou-o até o quarto,
onde todos puderam ver aquele personagem admirável que viajara no estômago de um
peixe. Mas o soldado de estanho não sentia nenhum orgulho. Puseram-no nalguma mesa
e veja que coisas impressionantes podem acontecer neste mundo o soldado se viu
no mesmo aposento onde estava antes; viu as mesmas crianças e os brinquedos em cima
da mesa, o lindo palácio com a bailarina encantadora. Ela estava ainda sobre um e
mantinha o outro bem alto no ar, também muito firme. Isso comoveu o soldado. Teria
chorado lágrimas de estanho, se lhe fosse permitido. Olhou-a, e ela olhava para ele, mas
não disseram nada.
Mas de repente um dos menininhos jogou o soldado de estanho dentro do forno,
sem nem dizer por quê, com certeza o duende da caixinha é que era o culpado daquilo.
O soldado de estanho ficou de pé, claramente iluminado, e sentiu um calor
terrível, mas se ele provinha do fogo ou do amor, ele não sabia. As cores ele as perdeu
todas. Ninguém poderia dizer se tal se dera na viagem ou por causa da dor. Ele olhou a
donzela, ela olhou para ele, e ele sentiu que estava derretendo, mas ainda ficou firme
com a arma no braço. alguma porta se abriu, o vento soprou a bailarina e leve como
uma sílfide ela voou até o forno, ao soldado de estanho, inflamou-se e desapareceu.
Logo o soldado derreteu e transformou-se numa bolinha, e quando, no dia seguinte, a
empregada tirava a cinza, encontrou-o na forma de um coraçãozinho de estanho, mas da
bailarina restara só a pérola dourada, e ela tornou-se toda negra nas chamas.
360
N20- Katarino kaj Katjo. In: HERCZEG, Ferenc. Hungaraj rakontoj. Tradukis A.
Panajott. Berlin & Dresden: Ellersiek & Borel, P.19-26, 1925.
361
362
363
Catarina e Cátia
Em uma manhã ensolarada de primavera aconteceu, quando a princesa Catarina
enfiou sua cabeça loira para fora das cortinas do leito, que Cátia ajoelhou-se com duas
luvas longas de seda no tapete do leito. A princesa com espanto olhou-a por algum
tempo.
―Que queres fazer, Cátia?‖
―As meias, Alteza.‖
―Criatura, sabes que não sou macaco para calçar luvas nos pés...‖
agora é que Cátia percebeu seu erro desagradável. Enrubesceu a fundo, e de
repente deixou cair a cabeça na borda do leito e começou a chorar amargamente.
A princesa, intimidada por esse derramar repentino de lágrimas, tentou acalmá-
la.
―Ora, não chores, queridinha. Se te agrada tanto posso calçar também as luvas.‖
Embora Cátia fizesse todos os serviços de camareira da princesa, não se podia
considerá-la uma serviçal. Ela efetivamente ocupava um posto de absoluta exceção na
grande corte real. Dez anos atrás ela veio até a corte, quando seu pai, um pobre mineiro,
encontrou a morte dentro da mina junto com trinta companheiros. A notícia dessa
infelicidade já até na corte real provocara muito luto e compaixão, e a pequena princesa
Catarina, seguindo a voz de seu bom coração, tomou-a então dentre as órfãs dos
mineiros para sua companheira de jogos. Da companheira fez-se mais tarde uma
camareira, e a camareira cumpria seu dever com extremada exatidão, até este momento,
em que ela quis mesmo enfiar os lindos pezinhos da princesa em luvas.
A partir desse dia começaram a aparecer em Cátia estranhíssimos sintomas de
distração. Bastará citar um entre tantos. A princesa quis então descer ao parque e
mandou voltar Cátia da escadaria para buscar-lhe sua sombrinha japonesa. Sua Alteza
esperou aí um quarto inteirinho de hora na escadaria, aos pés de um Hércules em pedra-
sabão quase não o bastante decentemente vestido. Afinal tornou-se-lhe tediosa a
companhia do semideus, e saiu à procura de Cátia. Encontrou-a na sacada do salão
branco, onde com o rosto muito vermelho e atenta ao sul ela olhava e ao mesmo tempo
com a sombrinha japonesa fazia sinais em direção à velha floresta de faia, que fechava o
parque naquele flanco.
Quando a princesa pousou tranquila a mão em seu ombro, ela apavorada até a
morte tremeu e como sempre chorou. E a cada pergunta da princesa respondia um
novo jorro de lágrimas.
364
A solução desse problema não tardou a ser achada. Quando a princesa passeava
meia hora mais tarde no parque, veio ao seu encontro um homem jovem em roupas de
caça. A princesa se assustara de que um estranho circulasse pelo jardim, mais ainda
se espantou quando este, o chapéu na mão, avançou seus passos rumo a ela e pálido
feito giz balbuciou:
―Alteza! Alteza!‖
―Que desejais?‖
Das falas confusas daquele estranho ela pôde descobrir que chamava-se Sandor
Farkas, que era um ―praticante nas florestas‖ a serviço do príncipe, e que amava Cátia e
Cátia também o amava, e por isso espiara sua Alteza durante seu passeio matinal, para
vir pedir-lhe a mão de Cátia...
Quando a princesa contou esse caso depois a Cátia, fez-lhe uma reprimenda:
―Por que não me disseste nada a respeito?‖
―Ele quis que eu também contasse, mas eu disse que preferia morrer...‖
―E se não te eu liberar?‖
―Ai, Alteza. assim eu morro logo de uma vez!‖
E Cátia começou fiel a seu novo costume a chorar copiosamente. Também
da princesa as lágrimas chegavam perto. Esmagavam-lhe o coração verdadeiros
cuidados maternos.
―Ele é ao menos sujeito de valor, esse... Como é mesmo o nome?‖
―Oh, Alteza, então não lhe olhaste a face?‖
―É, tens razão, Cátia, que deve ser um bravo homem... tem uns olhos azuis tão
sinceros, a testa tão alta, é, sim, que muito bem o olhei.‖
Durante a ceia ela conduziu a conversa com receio quanto ao casamento de
Cátia, mas que a proposta feita por ela foi tão favoravelmente aceita, em instância
mais elevada, correu felicíssima até a sua camareira.
―Cátia, minha amada Cátia! Vais poder receber o teu Sandor! Falei com papai,
está tudo em ordem. Papai conhece-o e diz que é um bravo homenzinho... Seu pai foi
até condecorado no exército... Quanto aos enxovais de dote deixa que eu mesma me
ocupe!‖
Cátia ficou muda de tanta felicidade e beijava sem parar a mão de Catarina.
Depois conversaram no salãozinho ainda por muito tempo depois da meia noite. As
mpadas no lustre elas apagaram e na tela de vidro do espelho veneziano brilhavam
as rosas elétricas, cujo brilho suave através das cortinas em renda de bilros criava a mais
365
íntima meia-luz. Catarina, envolvida num vestido de dormir branco, deitava-se num
divã baixo, e Cátia sentada no grosso tapete que havia a seus pés.
― Dize então, Cátia, se é verdade que o amas assim tão forte?‖
―Ai, demais!‖
―Conta-me, como se sente uma pessoa que está enamorada?‖
―Oh, meu Deus, é tão espantoso... Sentes que precisas estar sempre pensando
nele, e então percebes a toda hora uma sutil vertigem na cabeça... E à noite não
consegues mais dormir... É uma felicidade tão triste, que quase queres chorar estando
contente...‖
―E quando foi que entraste em contato com ele? Como ele começou? Quero
saber tudo! Conta!‖
Cátia contou tudo. Numa excursão pela floresta ele se conheceram, depois ela o
viu no baile dos oficiais da floresta, mais tarde iriam se encontrar no jardim ou na
floresta...
―Escreveste um ao outro?‖
―Claro, todo o tempo!‖
―Cartas de amor?‖
A princesa pensou um pouco a respeito: depois disse baixinho: ―Cátia, agora te
quero perguntar algo de muito importante, mas não vais exagerar... conta, o...
beijaste?‖
Cátia cerrou muda a mão de Catarina contra seus lábios. A princesa inclinou-se
com olhos brilhantes até ela, que estava abaixo.
―Hás de contar-me tudo! Já o beijaste?‖
A doce escuridão deu a Cátia coragem. Ela confessou tudo. Beijaram-se os dois
uma vez, dez vezes, cem vezes quem poderia contar! No jardim, na floresta...
As duas garotas ainda ficaram muito tempo juntas, mudas e imóveis apertadas
uma à outra. As rosas coloridas do espelho brilhavam cheias de segredo, sem poder
penetrar a escuridão. Cátia estava quase embriagada de sua felicidade, e Catarina sentia
algo, como um doce, melancólico presságio.
Dois anos disso se passaram.
O senhor caçador-chefe Sandor Farkas enfurecera-se o dia inteiro lá fora com os
ladrões de madeira, e quando agora voltava para casa, estava, como dizia ele, cansado
como um cão e faminto como um lobo. Cátia, que entrementes tornara-se lindamente
redonda, vinha de casa até ele num vestido novo e limpo.
366
―Que elegante estás hoje‖ dizia Sandor, beijando seu branco pescoço.
Cátia recebia as intimidades de seu marido com um nobre recato.
―Sua Alteza, a princesa, esteve aqui hoje‖, ela disse depois.
―Raios!‖ ele se surpreendeu. ―Era por isso então tanto enfeite?‖
―Ela queria beijar seu afilhado mais uma vez e dar-me adeus. Pensa tu, ela
beijou-me também a mim!‖
―É mesmo uma pena eu não estar aqui. Se gosta tanto de beijar quem sabe,
talvez até para mim sobrasse algum...‖
Cátia, que foi educada na corte, escutava seu esposo com leal indignação.
―Tu és mesmo um tipinho sem nenhum decoro‖
O caçador-chefe jogava-se num grande sofá e sentava Cátia em seus joelhos com
um só puxão.
―E por que então disse nossa Alteza ‗adeus‘?‖
Cátia largou-se de sua postura de nobre e sentou-se confortavelmente nos
joelhos de seu marido.
―Na semana próxima ela parte em diligência para o retiro... Lá acontecerá a festa
de noivado com o príncipe Fridoleno...‖
―Ela ficou afinal com o príncipe! um semestre falavam que o noivado
tinha sido rompido...‖
―Boataria sem razão! Como assim rompido? Problemas houve, que foi preciso
resolver.‖
A pequena mulher voltou a querer conversar e contou o quanto sabia.
―O príncipe tinha uma amante, uma cantora. Ano passado prometeu a seus pais
que romperia com ela e viria então aqui, pedir a mão de princesa Catarina... Mas em
casa ele tornou a refletir e voltou para sua cantora... Ocorreram então cenas furiosas
entre o príncipe e seu pai, mas o bom Fridoleno obstinou-se e o quis saber nada de
sua noiva. Os dois palácios, portanto, resolveram adiar o casamento por tempo
indefinido, até que o príncipe se cansasse de sua amante... Tal parece ser agora a
ocasião...‖
―E nossa princesa conhece esta história toda?‖
―Todo o caso, se até mesmo eu o conheço, e os jornais também escreveram a
respeito...‖
―E ainda, apesar disso, aceita ela o príncipe?‖
367
―Amiguinho, tu és mesmo um tanto abobado! Então tu crês que entre príncipes
também caminhe a vida, que primeiro se enamorem e depois casem? Príncipe Fridoleno
é de sangue real e mantém parentesco com quatro grandes potências...‖
O caçador-chefe refletiu um pouco.
―Com que se parece o príncipe Fridoleno?‖
―Ano passado um número de grandes senhores caçaram aqui... Havia um entre
eles, loiro tão nanico, de ar extremamente boçal, que sempre acendia um cigarro atrás
do outro... Sua cabeça movia-se de maneira tão ridícula, como se tivesse uma corda...‖
―Sim, sim, esse é ele!‖ disse Cátia.
―E é a esse que dão nossa princesa, aquela flor de roseira?‖
Cátia não respondeu.
―O que disse a princesa ao nosso pequenino?‖ perguntou depois Sandor.
―Quando ela o beijou, seus olhos estavam cheios de lágrimas. Ela disse: ‗Nem
sequer meu afilhado vou tornar a ver!‖ Quis alegrá-la e falei de seu novo retiro... ‗Sim, a
cidade é bonita‘, disse a princesa, ‗só muito nebulosa e -me um pavor medonho a
névoa!‘ –‗Dá-me um medo horrível‘...
A pequena mulher apertou-se mais junto de seu marido, e em seu rosto brilhava
a tranquila alegria pelo fato, de que ela não viera ao mundo como princesa.
368
ANEXO II
Manifesto de Praga
(Do movimento em favor da língua internacional esperanto)
O documento que abaixo transcrevemos, em tradução, foi emitido no quadro das
realizações do 81° Congresso Universal de Esperanto, em Praga, República Tcheca,
1996. É um magistral resumo dos princípios e objetivos do movimento esperantista
organizado, em perfeita consonância com os ideais lançados pelo fundador da causa,
Lázaro Luís Zamenhof.
Todos os que se dedicam ao estudo e à divulgação da Língua Internacional Neutra
devem lê-lo, estudá-lo, debatê-lo, com vistas a adquirirem profunda conscientização
sobre o assunto e, consequentemente, melhor direcionarem seus talentos e esforços na
perseguição e concretização dos objetivos da causa a que servem.
O texto original em Esperanto se encontra no número de setembro / 1996 da revista
Esperanto, órgão oficial da Associação Universal de Esperanto (Rotterdam).
"Nós, membros do movimento mundial pelo incremento do Esperanto, dirigimos este
manifesto a todos os governos, organizações internacionais e homens de boa vontade,
declaramos nossa intenção de, com vontade firme, prosseguir no trabalho em favor dos
objetivos aqui expressos, e convidamos cada indivíduo, cada organização a aderirem ao
nosso empenho.
Lançada em 1887, como um projeto de língua auxiliar para a comunicação
internacional, e,
tendo evoluído na direção de uma língua com plena vitalidade e riqueza de nuances, o
Esperanto mais de um século funciona no sentido de reunir os homens acima das
barreiras linguísticas e culturais. Nesse período, os objetivos daqueles que o falam não
perderam importância nem atualidade. É certo que nem o uso mundial de algumas
línguas nacionais, nem os progressos na tecnologia da comunicação, nem as descobertas
de novos métodos para o ensino de línguas concretizarão os seguintes princípios, por
nós considerados essenciais para uma ordem linguística justa e eficiente:
1. Democracia. Um sistema de comunicações que tão flagrantemente privilegia alguns
369
indivíduos, exigindo que outros invistam anos seguidos em esforços que lhes
possibilitam atingir um grau inferior de capacidade, é fundamentalmente
antidemocrático.
Afirmamos que a desigualdade linguística acarreta a desigualdade de comunicação em
todos os níveis, inclusive o internacional. Somos um movimento pela comunicação
democrática.
2. Educação transnacional. Toda ngua étnica está ligada a uma cultura definida e a
uma
nação ou conjunto de nações. Por exemplo, o colegial que estuda o inglês aprende a
respeito da cultura, da geografia e da política dos países anglófonos, principalmente os
Estados Unidos e a Inglaterra. O colegial que estuda o Esperanto aprende sobre o
mundo sem fronteiras, no qual cada país se apresenta como um lar.
Afirmamos que a educação por intermédio de qualquer língua étnica está ligada a uma
certa
perspectiva a respeito do mundo. Somos um movimento pela educação transnacional.
3. Eficácia pedagógica. Dentre os que estudam uma língua estrangeira só uma pequena
porcentagem a domina. A posse completa do Esperanto é possível até mesmo por
intermédio do estudo sem mestre. Diversos estudos relatam seus efeitos propedêuticos
na aprendizagem de outras línguas. O Esperanto também é recomendado como
elemento essencial em cursos para a conscientização linguística de alunos.
Afirmamos que a dificuldade das línguas étnicas sempre se levantará como um
obstáculo para muitos alunos, os quais, todavia, se beneficiariam com o conhecimento
de uma segunda língua. Somos um movimento por um ensino de línguas eficiente.
4. Multilinguismo. A comunidade esperantista é uma das poucas comunidades
linguísticas de âmbito mundial cujos membros são, sem exceção, bilíngues ou
multilíngues. Cada um deles aceitou a tarefa de aprender pelo menos uma língua
estrangeira até ao nível do uso oral. Em muitos casos isso leva ao conhecimento e ao
apreço de muitas línguas e, geralmente, a um mais vasto horizonte pessoal.
Afirmamos que os falantes de todas as línguas, grandes ou pequenas, devem dispor de
uma
chance concreta para possuírem uma segunda língua aum alto nível de comunicação.
Somos um movimento pela oferta dessa chance.
5. Direitos linguísticos. A desigual divisão do poder entre as línguas é a receita para
uma
370
permanente insegurança ou manifesta opressão linguística em grande parte da
população mundial. Na comunidade esperantista, os falantes das grandes ou pequenas
línguas, oficiais ou não oficiais, reúnem-se num terreno neutro graças a um recíproco
desejo de entendimento. Tal equilíbrio entre os direitos e as responsabilidades
linguísticas abre um precedente para avaliar e fazer evoluir outras soluções para a
desigualdade linguística e os conflitos dela resultantes.
Afirmamos que as amplas diferenças de poder entre as línguas minam as garantias,
expressas em tantos documentos internacionais, de um tratamento igualitário
independentemente da língua que se fale. Somos um movimento pelos direitos
linguísticos.
6. Diversidade linguística. Os governos das nações inclinam-se a considerar a grande
diversidade de línguas no mundo como um obstáculo à comunicação e ao progresso.
Para a
comunidade esperantista, todavia, a diversidade linguística se mostra como uma
constante e
indispensável fonte de riqueza. Consequentemente, cada língua assim como cada
espécie vivente vale por si mesma e é, por isso digna de proteção e apoio.
Afirmamos que a política de comunicação e de progresso, sem estar baseada no respeito
e no apoio a todas as línguas, condena à extinção a maioria das línguas do mundo.
Somos um
movimento pela diversidade linguística.
7. Emancipação humana. Toda língua liberta e aprisiona os seus falantes, dando-lhes o
poder de se comunicar entre si, ao mesmo tempo em que lhes impede a comunicação
com os outros. Planejado como um instrumento universal de comunicação, o Esperanto
é um dos grandes projetos de emancipação humana em funcionamento - projeto
destinado a possibilitar que cada homem participe individualmente na comunidade
mundial, mantendo firmes as raízes de sua identidade local, linguística e cultural, sem,
todavia, estar por elas limitado. Afirmamos que o uso exclusivo de línguas nacionais
inevitavelmente cria barreiras às liberdades de autoexpressão, comunicação e
associação. Somos um movimento pela emancipação humana."
Praga, 27 de Julho de 1996.
Disponível em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2008/12/435022.shtml>
Acessado em 03/05/2009
371
ANEXO III
Fotos de livros (1)
(Livraria do 93º Congresso Universal de Esperanto em Rotterdam Holanda 2008)
372
Fotos de livros (2)
(Livraria do 93º Congresso Universal de Esperanto em Rotterdam Holanda 2008)
373
Fotos de livros (3)
(Livraria do 93º Congresso Universal de Esperanto em Rotterdam Holanda 2008)
374
ANEXO IV (1)
Foto de falante nativo de esperanto
Thomas Demeyre (9 anos de idade)
Brügges Bélgica 2008
375
ANEXO IV (2)
Thomas e seu pai Bart Demeyre (Brügges Bélgica 2008)
Membros do Pasporta servo,―serviço de passaporte‖: rede internacional de hospedagem
gratuita a esperantistas
376
ANEXO V
Dois artigos de João Guimarães Rosa
1) A ESTRUCTURA LOGICA DO ESPERANTO - ALGUMAS JUSTIFICAÇÕES -
UM POUCO DE PHILOLOGIA COMPARADA
Artigo de João Guimarães Rosa publicado no ―Minas Gerais‖ de 31 de julho de 1929
(segundo a ortografia da época). Guimarães Rosa estava com 21 anos.
Tentando-se localizar precisamente o esperanto entre as 1.500 linguas e variedades
dialectaes existentes no globo, constituirá elle, certamente, um ramo novo, enxertado no
tronco da grande familia indo-européa.
Conforme a classificação racional, que leva apenas a estructura, podemos denominal-o
lingua analytica; segundo a classificação natural, bem mais objectiva, é elle um idioma
do typo composto, polysyllabico ou agglutinante.
Fructo do raciocinio e da intelligencia humana, verdadeiro producto de linguistica
experimental, destinando-se a ser a lingua internacional aŭiliar, o esperanto devia ser,
como realmente é, lógico, perfeito e facilmente manejavel.
Há, entretanto, uma série de argumentos, á primeira vista irreplicaveis, que põem em
cheque a sua perfeição e exequibilidade. De tão serias accusações, eis as principaes:
a) o esperanto é uma lingua artificial;
b) uma lingua hybrida;
c) um idioma agglutinante;
d) uma lingua de accentuação fixa na penultima syllaba, alterando os
caracteristicos phonicos de radicaes internacionaes;
por tudo isso, dizem os esperantophobos, o idioma de Zamenhof deve ser vetado nas
suas aspirações a lingua medianeira cosmopolita, pois, si bem que isento das taras que
pesam sobre as linguas naturaes, vivas ou mortas, resente-se, todavia, de defeitos
congenitos muitissimo mais graves.
Passemos em revista cada um desses quesitos.
I - Lingua artificial
São 4 os processos de adaptação phonetica admittidos pelos modernos linguistas:
adaptação physiologica, baseada nas mudanças de alimentação, clima e costumes, que
affectam o apparelho vocal; adaptação psychologica, fundamentada nas disposições
psychicas e nas preferencias collectivas das raças; adaptação historica, baseada na
influencia exercida pelas linguas umas sobre as outras; adaptação intellectual, que se
esteia na interferencia deliberada e consciente.
377
O esperanto pode ser considerado um idioma completamente evoluido, na formação
do qual influiu directamente o processo de adaptação intellectual.
Na sua evolução, as linguas têm um periodo pregrammatical, irregular, cahotico,
babelico, no decorrer do qual se fazem sentir com grande intensidade as influencias de
clima, costumes e temperamento; é então que as formas dialectaes se disputam a
hegemonia, produzindo as mais variadas mutações, que constituirão, ulteriormente, as
arestas e as irregularidades da lingua.
Depois intervêm o raciocinio, a intelligencia, a actuação consciente, controlando as
tendencias evolutivas desordenadas. Fixa-se deliberadamente a morphologia dos
vocabulos, organiza-se a syntaxe, e a lingua progride dahi por deante norteada por
regras mais ou menos racionaes, codificadas na grammatica.
Conforme A. Sechehaye, ―os factores pregrammaticaes são productos da vida affectiva,
os factores grammaticaes são os da vida intellectual‖.
Assim, os classicos e os grammaticos, desenvolvendo, corrigindo, polindo, limando,
mutilando, às vezes, fazem tarefa puramente artistica, e todo idioma nacional possue,
em maior ou menor dose, o elemento artificial.
O sanscrito, identificado por Schleicher, no seu Compendium, como a lingua mãe
aryana ou indo-européa, foi, sem duvida, na opinião accorde dos philologos e
historiadores, uma lingua artificial, compilada e fixada á custa dos archaicos dialectos
védicos, pelos grammaticos hindustanicos, dos quaes Panini foi o mais importante (IV
seculo a. Christo).
Nota-se nas linguas modernas, e este phenomeno pode ser perfeitamente observado no
Brasil, a divergencia de certas formas grammaticaes, na linguagem falada e escripta.
É que na conversação predominam as tendencias instinctivas, ao passo que na
linguagem escripta são melhor obedecidos modelos e regras anteriormente fixadas; em
outras palavras, a linguagem escripta é actualmente artificial, contrapondo-se ao
desenvolvimento natural da lingua.
No esperanto não existem palavras inventadas a esmo, mas todos seus radicaes foram
colhidos, em selecção rigorosa, dos ramos mais importantes da familia indo-européa.
Os das raizes componentes do seu vocabulario são genuinamente latinos; o restante
deriva dos grupos germanicos e balto-slavo, através do allemão, inglez e russo,
contribuindo este ultimo com exiguo contingente.
É bem relativa portanto a artificialidade da ―internacia lingvo‖.
II - Lingua hybrida
Não obstante possuir cada uma o seu nucleo caracteristico, patrimonio primitivo, as
linguas evoluem entremesclando-se, assimilando-se reciprocamente, alterando a
phonetica e a syntaxe por influencias mutuas; não raro a propria medulla da lingua
resente-se de pureza, contaminada intensamente, mau grado a vigilancia xenophoba dos
378
puristas, tão subtis são os disfarces que velam os vocabulos ―penetras‖ e as expressões
de contrabando.
É a adaptação historica de Van Ginnenken.
Foi enorme, profunda, a influencia latina soffrida pela lingua ingleza através do francez;
podemos constatal-a examinando um trecho qualquer da literatura desse idioma, que
póde tambem, com razão, ser chamado hybrido.
E o que aconteceu ao inglez, deu-se, menos intensamente, é certo, com o allemão e com
as linguas letto-slavas.
Tambem a linguagem scientifica, nutrindo-se do latim classico e do grego antigo,
invade continuamente os idiomas modernos: si tal endosmose não altera em quasi nada
as neo-romanas, filhas do latim e netas do grego, imagine-se o quanto contribue para
heterogenizar a seiva das slavas e germanicas essa exumação de idiomas fosseis.
As linguas não tem fronteiras, e nunca se approximaram tanto os povos da terra como
agora.
Nos centros cosmopolitas, nos portos de mar onde resoam e se misturam os idiomas
mais diversos, brotam interessantissimos argots, hybridos de feições características,
com syntaxe propria e tentativas embrionarias de literatura.
Espalhados por todos os paizes do mundo, mantendo inalterada a lingua-mãe semitica, e
conhecendo geralmente muitas outras, os Israelitas, que são quasi sem excepção
eximios polyglotas, crearam pouco a pouco o seu jargon, mescla heterogenea, cujo
estudo é muito util sob o ponto de vista philologico.
Portanto, a hybridização das linguas parece ser uma tendencia evolutiva natural, e o
Esperanto póde ser considerado o precipitado, scientificamente previsto, da reacção das
linguas occidentaes em mistura intima.
III - Lingua Agglutinante
se foi o tempo em que se consideravam os typos de linguas - isolante ou
monosyllabico (chinez) mongolico, etc, agglutinante (hungaro, finlandez, etc.) e
flexional (indo-européas), como etapas diversas da evolução dos idiomas.
Hoje, nenhum linguista ou philologo admitte mais isso.
Pelo contrario, a flexão tende a perder terreno em certas linguas da Europa; por
exemplo, nas linguas do ramo germanico occidental (Westgermanisch), como o
hollandez e principalmente o inglez, onde os monossilabos abundam, póde-se observar
uma curiosa passagem do estado inflectido ao estado isolante.
Portanto, esta objecção não deve ser levada em conta, e o Esperanto, como lingua
agglutinante, gosa da vantagem de restringir o numero de radicaes, utilizando copioso
contingente de affixos.
379
IV - Acentuação Fixa
No Esperanto, todas as palavras têm como tonica accentuada a penultima syllaba, sendo
a ultima sempre baryphonica; assim certos radicaes têm muitas vezes o accento
deslocado ao passar para a lingua aŭiliar.
Ex.: angelus, torna-se angêlo , etc.
Esta regra immutavel de pronuncia é taxada de antinatural e rebarbativa.
É erronea, todavia, essa affirmação.
Primeiramente, não existe uma correspondencia exacta das syllabas accentuadas dos
radicaes, mesmo em linguas filhas do mesmo tronco; ex.: o francez diz politique, ao
passo que nós accentuamos politica.
Quanto mais remoto é o parentesco, maiores são as divergencias; o russo pronuncia
geográfia, quando latinos e ou monosyllabico chinez, mongolico, grafi(...).
A deslocação do accento nos radicaes póde ser observada sob um aspecto interessante
nos dialetos Kashmawa e Amahuaka, da familia Pano, falados no alto Purús e no alto
Juruá, nos quaes ella ocorre quasi systematicamente.
Alem disso, ha linguas vivas, naturaes e nacionaes, onde a accentuação das palavras
obedece á mesma regra fixa.
Assim, em polonez, a penultima syllaba (tal qual como no Esperanto), é sempre a
tonica, e quando se trata de um radical importado, com a accentuação diversa, desloca-
se a tonica com maxima semcerimonia, isto é, nacionaliza-se a palavra.
Em finlandez o accento tonico recae invariavelmente sobre a primeira syllaba.
Essa regra de accentuação, plenamente justificada, traz dupla vantagem ao Esperanto -
grande vacilidade e elegante cadencia rythmica.
Depois desta tentativa de defesa, cumpre-nos citar dois argumentos pro-Esperanto.
O primeiro é a solução pratica do problema da escripta phonetica. Na lingua de
Zamenhof, cada som corresponde a uma só letra e cada letra figura um unico som.
O segundo é a reconciliação da grammatica com a logica, pois, embora ambas
reconheçam a lingua apenas como expressão do pensamento, andavam ha muito
divorciadas nos idiomas da terra.
380
2) A ESTHETICA DO IDIOMA DE ZAMENHOF
Artigo de João Guimarães Rosa publicado pelo jornal ―O Estado de Minas‖, no dia 23
de julho de 1929 com a ortografia da época.
Na época, Guimarães Rosa tinha 21 anos.
A linguagem nasceu de um instincto; manejada com virtuosidade, tornou-se uma arte.
Todavia os idiomas prestam-se diversamente à expressão da eloquencia e da literatura.
Cada lingua se adapta às caracteristicas colletivas de ordem esthetica do povo que a
fala.
Ha - as rudes, pesadas, eriçadas de consoantes, abundantes em monosyllabos, cheias de
choques consonantaes, aspirações fortes e attritos de vogaes, tonalizadas nos sons
vocalicos anteriores (e, o, u) a custo deizando-se esculpir pelo artista, como as linguas
septentrionaes da Europa, que tão bem condizem com a frieza, a tenacidade e a energia
dos scandinavos, batavos, britannicos e tentões.
Outras, quaes as neolatinas, são claras, cantantes, clangorosas, ligeiras, ricas de matizes,
capazes de expressar todos os lampejos do pensamento humano, linguas feitas para os
madrigaes e declarações de amor, nascidas sob rosaes e laranjeiras, entre o céo azul e a
espuma prateada do Mediterraneo ...
O bulgaro sôa duro e metallico como aço; o russo e o servio são suaves; o francez prima
pela sobria elegancia; o alto allemão é gutural e de sons energicos; o finlandez é
delicado, e o italiano dulcissimo.
Certamente a mais doce lingua falada pelos homens foi o dialecto jonico.
O dr. Zamenhof, creador do esperanto, alem de polyglotta era tambem um poeta. Não
lhe bastava que a nova lingua tivesse tronco robusto e raizes bem fixadas - ella ficaria
imperfeita sem a corôa de flores a variegar-lhe o verdor das frondes. Por isso, ao lançar
as bases do idioma internacional, elle agiu principalmente como artista.
Sob esse ponto de vista, tentemos analysar, superficialmente, a ―helpa lingua‖
Em esperanto, as letras apparecem na proporção de 45% de vogaes para 57% de
consoantes, em media, como acontece nas linguas mais doces e sonoras taes como o
portuguez, o hespanhol e o italiano. As linguas do grupo germanico exigem muito maior
percentagem de consoantes.
No inglez, allemão e francez o E predomina visivelmente, no italiano o I ou o A; no
portuguez e no esperanto o mesmo acontece ao A; o que se patentea pelo exame de
qualquer trecho escripto nessas linguas.
O esperanto é, portanto, como o portuguez, uma lingua em A, o que lhe confere
agradavel sonoridade, pois o A é a articulação primitiva, som normal e básico da voz
humana, vogal cheia, clara e musical, predominante aos rumores e ruidos da natureza.
381
Sendo a penultima syllaba das palavras a tonica accentuada, e a ultima sempre a
baryphonica, resulta disso elegante cadencia rythmica, que relembra a harmonia dos
antigos dialectos da Hellade.
O esperanto tem as terminações de seus pluraes em diphtongos, sendo muito mais doces
que as das linguas europeas, excepção feita do italiano, que usam consoantes para
marcar os mesmos: inglez, portuguez, francez e hespanhol - S; allemão - (...) r, (...) n;
suéco - (...) r; hungaro - (...) k; polonez - ch, w; estoniano - d; finlandez - t.
Principalmente suaves são as terminações do accusativo plural (OJN, AJN), que se
pronunciam como ÓIN, ÁIN dos duaes gregos, bem como as terminações verbaes, de
grande fluencia.
A aspiração guttural forte HH aliás rara, não enfeia a lingua, assim como a belleza do
castelhano não é alterada pelo J.
Vogaes modificadas (UMLANTE) não existem, bem como certas nuances vocalicas
difficeis de ser bem distinguidas.
Entretanto, não são apenas phonologicas as vantagens do esperanto.
A conservação da desinencia para o accusativo, rejeitada pela maioria das linguas
ocidentaes, é no esperanto um factor de clareza e precisão, permittindo as mais variadas
inversões, exigidas frequentemente pela euphonia ou pela elegancia da phrase. Além
disso, possue o esperanto um accusativo de direcção, que evita certas amphibologias
comuns aos idiomas dos povos civilizados.
A abundancia dos affixos, ultrapassada talvez pela do finlandez lingua uralo-altaica,
agglutinante permitte a expressão das mais delicadas nuances do pensamento; além
disso, cada suffixo constitue um radical independente, podendo ser usado isoladamente,
o que dá á lingua um colorido proprio caracteristico.
Os adverbios derivados constituem em esperanto uma classe illimitada de palavras, e
nesse ponto o idioma de Zamenhof avantaja-se admiravelmente ás linguas nacionaes,
onde ha deficiencia delles.
(Beaufront). É outrossim surprehendente o effeito artistico produzido pela forma breve
dos mesmos.
Outra incomparavel riqueza do esperanto é outorgada pelos 3 participios activos e 3
passivos, susceptiveis de tornar as formas substantiva, adjectiva e adverbial. Somente
atravez da literatura da ―internacia lingua‖ é possivel comprehender-se o maravilhoso
recurso que constitue esse thezouro idiomatico.
Como no allemão as palavras compostas forjam-se ilimitadamente.
A suppressão da vogal da cauda dos substantivos é privilegio do estylo poetico, allias
emprezadissimo, pois não faltam poetas cultores do esperanto.
382
E é essa lingua, de grande simplicidade e rara belleza, que está naturalmente
predestinada a vehicular e divulgar as obras literarias no futuro.
Graças a ella, poderemos nós brasileiros apreciar, com seu sabor natural, as ―dumi‖
ukranianas, as ―randa‖ lithuanias, as ―runol‖ finlandezas, as ―Heder‖ allemães e os ―hai-
kai‖ japonezes.
Disponível em: http://www.kke.org.br/dossie/guimaraes_rosa_e_o_esperanto
Acessado em 03/05/2009.
383
ANEXO VI
Fotos de atividades educativas (1)
Fazenda-escola Bona Espero (Alto Paraíso de Goiás)
Comunidade usária da língua internacional esperanto
384
Fotos de atividades educativas (2) Ensino de esperanto na África
385
Fotos de atividades educativas (3)
Foto e texto de atividade educativa: relato em Esperanto, feito pelo voluntário Prof.
Joahn Derks (em janeiro de 2009) sobre o ensino da ngua internacional em Burundi,
África.
386
ANEXO VII
Fotos de atividades culturais e artísticas
Congresso Universal de Esperanto Rotterdam 2008
387
388
ANEXO VIII
Regras da gramática do Esperanto
Gramatiko
A) ALFABETO
A a, B b, C c, Ĉ ĉ, D d, E e, F f, G g, Ĝ ĝ, H h, Ĥ ĥ, I i, J j, Ĵ ĵ, K k, L l, M m, N n, O o,
P p, R r, S s, Ŝ ŝ, T t, U u, Ŭ ŭ (uzata en diftongoj), V v, Z z.
Rimarko 1: La litero ŭ estas uzata nur post vokaloj.
Rimarko 2: Presejoj, kiuj ne posedas la literojn ĉ, ĝ, ĥ, ĵ, ŝ, ŭ, povas anstataŭ ili uzi ch,
gh, hh, jh, sh, u.
B) PARTOJ DE PAROLO
1. Artikolo nedifinita ne ekzistas; ekzistas nur artikolo difinita, la, egala por ĉiuj genroj,
kazoj kaj nombroj.
Rimarko. La uzado de la artikolo estas tia sama, kiel en la Germana, Franca kaj aliaj
lingvoj. La personoj, por kiuj la uzado de la artikolo prezentas malfacilaĵon, povas tute
ĝin ne uzi.
2. Substantivoj estas formataj per aldono de o al la radiko. Por la formado de la pluralo
oni aldonas la finiĝon j al la singularo. Kazoj ekzistas nur du: nominativo kaj akuzativo.
La radiko kun aldonita o estas la nominativo, la akuzativo aldonas n post la o. La ceteraj
kazoj estas esprimataj per helpo de prepozicioj: la genitivo per de, la dativo per al, la
instrumentalo (ablativo) per per, aliaj prepozicioj laŭ la senco. Ekz. radiko patr, la
patr|o, al la patr|o, de la patr|o, la patr|o|n, por la patr|o, kun la patr|o, la patr|o|j, la
patr|o|j|n, per la patr|o|j, por la patr|o|j.
3. Adjektivoj estas formataj per aldono de a al la radiko. Kazoj kaj nombroj kiel ĉe
substantivoj. La komparativo estas farata per la vorto pli, la superlativo per plej. Post la
komparativo la vorto ―que‖ (France), ―than‖ (Angle), ―als‖ (Germane), ―чѣмъ‖ (Ruse),
―niż‖ (Pole) tradukiĝas per ol, kaj post la superlativo la vorto ―de‖ (France) tradukiĝas
per el. Ekz. pli blank|a ol neĝ|o; mi hav|as la plej bel|a|n patr|in|o|n el ĉiu|j; mi hav|as
la plej bon|a|n patr|in|o|n.
389
4. La bazaj numeraloj (ne deklinaciataj) estas: unu (1), du (2), tri (3), kvar (4), kvin (5),
ses (6), sep (7), ok (8), naŭ (9), dek (10), cent (100), mil (1000). La dekoj kaj centoj
estas formataj per simpla kunigo de la numeraloj. Por la ordaj numeraloj oni aldonas la
adjektivan finiĝon a; por la multiplikaj la sufikson obl; por la frakciaj on; por la
kolektivaj op; por la distribuaj la vorton po. Krom tio povas esti uzataj numeraloj
substantivaj kaj adverbaj. Ekz. kvin|cent tri|dek tri (533); kvar|a, unu|a, du|a; unu|o,
cent|o; sep|e, unu|e, du|e; tri|obl|a; kvar|on|o, du|on|o; du|op|e, kvar|op|e; po kvin.
5. La pronomoj personaj estas: mi, vi, li, ŝi, ĝi (por bestoj aĵoj), si, ni, ili, oni
(senpersona plurala pronomo). Pronomoj posedaj estas formataj per aldono de la
adjektiva finiĝo a. La deklinacio de la pronomoj estas kiel ĉe substantivoj. Ekz. mi|n,
mi|a, la vi|a|j.
6. Verbo ne estas ŝanĝata laŭ personoj nek nombroj; ekz. mi far|as, la patr|o far|as, ili
far|as.
Verbaj formoj:
o a) La tempo prezenca finiĝas per as; ekz. mi far|as.
o b) La tempo preterita per is: vi far|is, li far|is.
o c) La tempo futura per os: ili far|os.
o ĉ) La modo kondicionala per us: ŝi far|us.
o d) La modo imperativa per u: far|u, ni far|u.
o e) La modo infinitiva per i: far|i.
Participoj (kaj gerundioj):
Estas du formoj de participo en la internacia lingvo, la deklinaciebla adjektiva, kaj la
nedeklinaciebla aŭ adverba.
o f) La participo aktiva prezenca finiĝas per ant: far|ant|a, far|ant|e.
o g) La participo aktiva preterita per int: far|int|a, far|int|e.
o ĝ) La participo aktiva futura per ont: far|ont|a, far|ont|e.
o h) La participo pasiva prezenca per at: far|at|a, far|at|e.
o ĥ) La participo pasiva preterita per it: far|it|a, far|it|e.
o i) La participo pasiva futura per ot: far|ot|a, far|ot|e.
390
Ĉiuj formoj de la pasivo estas formataj per helpo de responda formo de la verbo est kaj
prezenca preterita participo pasiva de la bezonata verbo, la prepozicio ĉe la pasivo
estas de. Ekz. ŝi est|as am|at|a de ĉiu|j (participo prezenca: la afero fariĝas); la pord|o
est|as ferm|it|a (participo preterita: la afero jam estas farita).
7. Adverboj estas formataj per aldono de e al la radiko. Gradoj de komparado estas la
samaj kiel ĉe adjektivoj. Ekz. mi|a frat|o pli bon|e kant|as ol mi.
8. Ĉiuj prepozicioj per si mem postulas la nominativon.
C) ĜENERALAJ REGULOJ
9. Ĉiu vorto estas legata, kiel ĝi estas skribita. Ne estas neelparolataj literoj.
10. La akcento estas ĉiam sur la antaŭlasta silabo.
11. Vortoj kunmetitaj estas formataj per simpla kunigo de la vortoj (radikoj) (la ĉefa
vorto staras en la fino); ili estas kune skribitaj kiel unu vorto, sed, en elementaj verkoj,
disigitaj per streketoj (|)(1). La gramatikaj finiĝoj estas rigardataj ankkiel memstaraj
vortoj. Ekz. vapor|ŝip|o estas formita de: vapor, ŝip kaj o (finiĝo de la substantivo).
1. En leteroj kaj verkoj destinitaj por personoj jam povosciantaj la internacian lingvon,
la streketoj inter la partoj de la vortoj ne estas uzataj. Ili celas ebligi al ĉiuj facile trovi
en la vortaro la ĝustan sencon de ĉiu el la elementoj de la vorto kaj tiel ricevi ĝian
plenan signifon, sen ia ajn antaŭa studo de la gramatiko.
12. Se en frazo estas alia nea vorto, la vorto ne estas forlasata. Ekz. mi neniam vid|is, mi
nenio|n vid|is.
13. En frazoj respondantaj al la demando ―kien‖, la vortoj ricevas la finiĝon de la
akuzativo. Ekz. kie vi est|as?, tie (en tiu loko); kie|n vi ir|as?, tie|n (al tiu loko), mi ir|as
Pariz|o|n, London|o|n, Varsovi|o|n, dom|o|n.
14. Ĉiu prepozicio havas en Esperanto difinitan kaj konstantan signifon, kiu fiksas ĝian
uzon; sed se ni devas uzi ian prepozicion kaj la rekta senco ne montras al ni, kiun
prepozicion ni devas preni, tiam ni uzas la prepozicion je, kiu ne havas memstaran
signifon; ekz. ĝoj|i je tio, rid|i je tio, enu|o je la patr|uj|o, mal|san|a je la okul|o|j.
La klareco neniel suferas pro tio, ĉar en ĉiuj lingvoj oni uzas en tiaj okazoj iun ajn
prepozicion, se nur la uzado donis al ĝi sankcion; en la internacia lingvo ĉiam estas
uzata en similaj okazoj nur la prepozicio je.
391
Anstataŭ la prepozicio je oni povas ankaŭ uzi la akuzativon sen prepozicio, se oni timas
nenian dusencaĵon.
15. La tiel nomataj vortoj ―fremdaj‖, t.e. tiuj, kiujn la plimulto de la lingvoj prenis el
unu fremda fonto, estas uzataj en la lingvo internacia sen ŝanĝo, ricevante nur la
ortografion kaj la gramatikajn finiĝojn de tiu ĉi lingvo. Tia estas la regulo koncerne la
bazajn vortojn, sed ĉe diversaj vortoj de unu radiko estas pli bone uzi senŝanĝe nur la
vorton bazan kaj formi la ceterajn derivaĵojn el tiu ĉi lasta laŭ la reguloj de la lingvo
internacia. Ekz. tragedi|o, sed tragedi|a; teatr|o, sed teatr|a (ne: teatrical|a), k.t.p.
16. La finiĝo o de substantivoj kaj la a de la artikolo povas esti iafoje forlasataj kaj
anstataŭataj de apostrofo pro belsoneco. Ekz. Ŝiller‟ (Schiller) anstataŭ Ŝiller|o; de l‟
mond|o anstataŭ de la mond|o; dom‟ anstataŭ dom|o.
Disponível em: http://bertilow.com/pmeg/aldonoj/fundamenta_gramatiko.html
Acessado em 03/05/2009.
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