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Durante aproximadamente uma década depois dessa publicação, muitas críticas e
muitas adesões à nova definição de morte ganharam força. Aliado da redefinição da morte
é o debate sobre experimentação envolvendo sujeitos humanos publicado em edição
temática do periódico da Academia Americana de Artes e Ciências (Daedalus, 1969).
Nessa publicação temática, dois artigos se destacam por trazerem um debate mais direto
sobre a então recém-definida morte cerebral. O primeiro, assinado por Hans Jonas, um dos
atores da “elite cultural” identificada por Rado (1987), critica a intenção explícita da nova
definição de morte em prover o carente campo dos transplantes.
Na medida em que se trata de uma mera questão de quando é permitido interromper o
prolongamento artificial de certas funções (como o batimento cardíaco) tradicionalmente
identificadas como sinais de vida, eu não vejo nada de nefasto na noção de “morte cerebral”. (...)
Mas um objetivo inquietantemente contraditório se combina ao propósito na busca por uma nova
definição da morte: a permissão não de desligar o respirador [artificial] mas, ao contrário, de mantê-
lo ligado e, dessa forma, manter o corpo num estado do que teria sido a “vida”, na velha definição
(mas que é apenas um “simulacro” de vida, na nova) – de maneira a conseguir os órgãos e tecidos
em condições ideais, o que poderia ser previamente visto como vivissecsão
21
. (Jonas, 1969, p. 244).
O segundo artigo tem autoria de Beecher que, ao contrário de Jonas, defende
abertamente a servidão da morte cerebral aos transplantes de órgãos, tese apresentada de
maneira mais comedida no relatório do Ad Hoc Committee... (1968).
No campo do transplante de órgãos há duas grandes barreiras para o progresso: o fenômeno da
rejeição imunológica e a grande escassez de material para doação. Até o momento, o fenômeno da
rejeição está, de todas as maneiras, além do nosso controle, mas está a alcance do nosso poder dar
um grande passo à frente em atenuar a escassez de material para doação. Esse desejo requer
cooperação prioritária daqueles envolvidos, a concordância da sociedade e, finalmente, a aprovação
da legislação. O ponto crucial é a concordância de que a morte cerebral é de fato a morte, ainda
que o coração continue a pulsar
22
. (Beecher, 1969, p. 291, grifos nossos).
Nessa defesa sem meias palavras, Beecher equivale a morte cerebral à morte, ponto
polêmico do debate que destrincharemos no capítulo seguinte, onde as derivações da
definição de morte serão discutidas. A publicação da Daedalus inaugura um movimento –
21
As long as it is merely a question of when it is permitted to cease the artificial prolongation of certain
functions (like heartbeat) traditionally regarded as signs of life, I do not see anything ominous in the notion
of “brain death”. (…) But a disquietingly contradictory purpose is combined with this purpose in the quest
for a new definition of death: Permission not to turn off the respirator, but, on the contrary, to keep it on and
thereby maintain the body in a state of what would have been “life” by the older definition (but is only a
“simulacrum” of life by the new) – so as to get at his organs and tissues under the ideal conditions of what
would previously have been “vivisection”.
22
In the field of transplantation there are two great barriers to progress: the immunological rejection
phenomenon and the great shortages of donor material. At the present time, the rejection phenomenon is
beyond our control in any satisfactory sense, but it is within our power to take a giant step forward in
relieving the shortages of donor material. This will require the prior concurrence of those involved, the
agreement of society, and, finally, approval in law. The crucial point is agreement that brain death is death
indeed, even though the heart continues to beat.