Huarochirí, no empenho dos religiosos em destruir os ídolos indígenas e seus cultos
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, acusando-
se tal procedimento violento
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de “extirpação de idolatria”.
Apesar desse cenário, o período compreendido entre 1613 a 1758 favorece o
desenvolvimento de uma literatura em língua indígena, a consolidação da República de índios,
cristalização do “catolicismo andino”, resistência e valorização da língua (Rescaniere, op. cit.,
runasimi, isto é, língua do ser humano, da gente, do homem, opõe-se à supaysimi que significa língua do diabo ou
inimigo do homem. É interessante observar a situação de convívio no Tahuantinsuyo (correspondendo às quatro
províncias ou regiões do Império: Chinchaysuyu, Kintisuyu, Kollasuyu e Antisuyu) das línguas e dialetos dos povos
anteriores aos Incas e que, naquele momento, estavam submetidos ao Império, cf. Bendezú (1986).
Valendo-se da situação política desfavorável para alguns grupos indígenas, os espanhóis entram num cenário com
parte da população a seu favor, o que facilitou a dominação. Entretanto, a mesma situação de domínio repete-se sob a
ideologia da cruz e espada. Os sacerdotes proíbem qualquer manifestação religiosa indígena considerando-nas
subversivas e demoníacas. A palavra taqi, utilizada para designar os cantos e danças foi proibida por considerar-se
suspeita de idolatria (Bendezú, 1986, p.41), e também a palavra supay, cujo aparecimento e repetição constituem e
atravessam uma ampla gama de formações discursivas produzidas sobre os nativos e seus cultos, justificando,
portanto, uma prática e uma ação de domínio e exploração que ganham novo significado na América, o qual já estava
presente no imaginário do homem medieval que lutara contra o domínio muçulmano na reconquista, perpetuando-se
com novas significações nos discursos gerados pelos jesuítas e pela administração colonial.
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O argumento dos sacerdotes para proceder a destruição dos ídolos é que a resistência ao culto das idolatrias era a
dissimulação dos índios para manter suas práticas “diabólicas”, regadas à “bebedeira” e “superstição”:
“En fazer las fiestas de los ìdolos referidos con tanta solemnidad de danças y cantos, han ussado de un
artificio diabólico que ha sido hazerlas en la fiesta de Corpus Cristi, en la fiesta de la adoración del pueblo, en
las pascuas y días más solemnes, dando a entender a su cura que se holgavan por la fiesta de la iglesia. Y assí
haviendo hecho en sus cassas, o en el campo los sacrificios, bienen a los vayles y borracheras a la plaça del
pueblo, y en los tales días, vestidos de plumas, y otras cossas// todas de suprestición como pellejos de leones,
de rapozas, alcones muertos e las cabeças, hojas de plata colgadas del vestido y las indias con muchos
atamborcillos en las manos tocándolos con maças de palo, o plata, y allí en la plaça beben públicamente,
vaylan y hazen muchas cosas, lo qual como se ha dicho, se entendía hazía por buena fin, y que no era más que
simple borrachera quando más; y esto suele durar dos, tres, y quatro y más días, y a estas fiestas precedían
ayunos, vigilias y otras abstinencias.” (Ávila, 1966, p.258).
Como forma de resistência, os índios fizeram imagens de Nossa Senhora e Ecce Homo, as quais eram veneradas
como Chaupiñamoca, a deusa feminina irmã de Pariacaca e a de Huaysuay. Logicamente, os adjetivos empregados
em referência aos índios como “idólatras”, “bêbados” e cegos na fé cristã, bem como a necessidade de salvá-los,
justificam-se pela quantidade de prata utilizada nas cerimônias descritas ao longo das páginas do relato. Ainda para
um panorama da diferença entre a orientação da política religiosa entre Espanha e Portugal no Novo Mundo e a
violência com que os espanhóis se destacam neste aspecto com relação aos portugueses, consultar: VAINFAS,
Ronaldo (1995) A Heresia dos Índios. Catolicismo e rebeldia no Brasil colonial. São Paulo, Companhia das Letras.
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Os métodos violentos empregados para tanto podem ser constatados na seguinte passagem da obra Dioses y
Hombres de Huarochirí, na qual um huaca chamado Atahuanca, que era guardado por um feitiçeiro e ficava num
penhasco muito alto e de difícil acesso, mobiliza o padre que “...apeóse el padre, cogiendo la cruz que llevaban para
poner donde estava la huaca, se la echó a cuestas, y subió de este modo más de un quarto de légua. Viendo esto, los
indios se animaron y subieron contentos y dando gritos...” (Ávila, 1966, p.265), e chegaram àquilo que o sacerdote
designa como “capela”, onde estava enterrado um ídolo de pedra sob várias lápides de pedras maiores e louça,
untados com sangue e oferendas, bem como outras pedras menores: “Todo se truxo al pueblo y en mitad de la plaza
se quemó y hizo pedazos y estos se echaron al río desde una profundidad, más de una legua del pueblo sin que los
indios lo supiesen, donde estará en perpetuo olvido.” (idem, idem). De sorte que todos os ídolos sagrados foram com
violência eliminados e substituídos pelos símbolos cristãos, consolidando-se a dominação a partir da sobreposição
dos elementos cristãos sobre os indìgenas: “Hizóse de ella lo que de las demás, y pusierónse en su lugar cruzes.”
(ibidem, p.266)