Download PDF
ads:
1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA BRASILEIRA
ALUÍSIO AZEVEDO: O MOVIMENTO CRIATIVO DE
CASA DE PENSÃO
MARIZETE LIAMAR GRANDO GARCIA
São Paulo
2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
MARIZETE LIAMAR GRANDO GARCIA
ALUÍSIO AZEVEDO: O MOVIMENTO CRIATIVO DE
CASA DE PENSÃO
Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura Brasileira, do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas da Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo, Como exigência para
a obtenção do título de Doutor em Letras.
Orientador: Prof. Dr. José Alcides Ribeiro
São Paulo
2009
ads:
3
Ao meu pai Rubi e à minha mãe Nilce, pelo exemplo de força e integridade e
também porque sempre acreditaram em mim.
Ao meu marido Cássio, pela cumplicidade, apoio e amor incondicional.
4
AGRADECIMENTOS
Inicialmente, agradeço ao Prof. Dr. José Alcides, orientador deste trabalho, pelo
profissionalismo, leitura e seriedade durante o desenvolvimento desta tese.
Ao Prof. Dr. Amalio Pinheiro e ao Prof. Dr. José Luiz Proença, pelas sugestões e
caminhos apontados durante o exame de qualificação.
Ao Prof. Dr. Jaime Ginzburg e à Profa. Dra. Cilaine Cunha, pelo apoio e amizade.
Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), pelo
auxílio financeiro à pesquisa.
À Profa. Ms. Maria Albany da Costa, por ter me ensinado a dar os primeiros passos
no caminho das letras e que, quinze anos depois, honra-me com a leitura minuciosa
da minha tese. Albany, você representa um marco na minha vida acadêmica, a
inspiração que me fez acreditar que o mundo pode ser bem melhor para aqueles
que lutam e vencem os obstáculos.
Aos funcionários da Biblioteca Nacional Rio de Janeiro, especialmente à Anna
Naldi, pelo auxílio durante a pesquisa documental.
Sou grata especialmente aos meus pais que, apesar de terem pouco estudo, são
dois sábios que me ensinaram a encontrar em mim a resposta para tudo. Por eles eu
me fiz forte para vencer o mundo e a ser muito mais do que o que destruiu parte das
minhas ilusões.
Aos meus irmãos, Carlos, Sidnei, Janete e Vitor, pela compreensão e carinho. Aos
cunhados Dilso, Shirley, Alice e Thaysa, pela amizade. Aos meus sobrinhos Suelen,
Luís Eduardo, Gabriel, Emmanuel, Maria Eduarda, José Felipe e João Vitor.
Ao Cássio, por entender a necessidade que eu tive de dedicar grande parte do meu
tempo à pesquisa; por sempre estar ao meu lado e sorrir, tornando a vida mais leve,
como um conto de fadas.
À família Moret e Garcia, pelo apoio.
Aos amigos Marco, Iliene, Beth e Júlio Peruzzi; Alessandro e Lígia; Nelson;
5
Elisângela; Dami, pela cumplicidade.
Agradeço a todos os meu colegas da USP, que estiverem ao meu lado em diversos
momentos dos anos dedicados a esta pesquisa.
Mais uma vez, agradeço a Deus, por tudo.
6
Já é madrugada, a luz da minha luminária te deixa inquieto, apago-a, guardo as
seqüências do romance-seriado, você continua agitado, mexe-se muitas vezes, até
que sua cabeça sai do travesseiro e caí sobre o livro Casa de Pensão... Preciso
pegar o livro... Deveria desligar o computador, mas é necessário voltar à leitura do
capítulo sete. Como falta apenas uma seqüência, irei escrever na sala e levarei o
livro e o romance-seriado comigo. Durma bem querido Cássio, pois hoje preciso
entender um pouco mais o meu Aluísio.
7
SUMÁRIO
RESUMO..................................................................................................................14
ABSTRACT ..............................................................................................................15
INTRODUÇÃO .........................................................................................................16
1 TÉCNICAS DE ROMANCE-SERIADO..................................................................28
1.1 Capítulo I – dois segmentos ............................................................................34
1.1.1 Primeira seqüência: 06 de março (1)............................................................34
1.1.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................35
1.1.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................36
1.1.2 Segunda seqüência: 07 de março (2)...........................................................36
1.1.2.1 Principais ações desta seqüência..............................................................36
1.1.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................37
1.2 Capítulo II – quatro segmentos........................................................................38
1.2.1 Primeira seqüência: 08 de março (2)............................................................38
1.2.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................38
1.2.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................39
1.2.2 Segunda seqüência: 09 de março (4)...........................................................40
1.2.2.1 Principais ações desta seqüência..............................................................40
1.2.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................41
1.2.3 Terceira seqüência: 10 de março (5) ............................................................42
1.2.3.1 Principais ações desta seqüência..............................................................42
1.2.3.2Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado .......................43
1.2.4 Quarta seqüência: 11 de março (6) ..............................................................43
8
1.2.4.1 Principais ações desta seqüência..............................................................43
1.2.4.2Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado .......................44
1.3 Capítulo III – cinco segmentos.........................................................................45
1.3.1 Primeira seqüência: 12 de março (7)............................................................45
1.3.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................46
1.3.1.2Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado .......................47
1.3.2 Segunda seqüência: 14 de março (8)...........................................................48
1.3.2.1 Principais ações desta seqüência..............................................................48
1.3.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................48
1.3.3 Terceira seqüência: 15 de março (9) ............................................................49
1.3.3.1 Principais ações desta seqüência..............................................................49
1.3.3.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................50
1.3.4 Quarta seqüência: 16 de março (10) ............................................................51
1.3.4.1 Principais ações desta seqüência..............................................................51
1.3.4.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................52
1.3.5 Quinta seqüência: 17 de março (11).............................................................53
1.3.5.1 Principais ações desta seqüência..............................................................53
1.3.5.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................53
1.4 Capítulo IV – dois segmentos..........................................................................54
1.4.1 Primeira segunda seqüência: 20 de março (12) ...........................................54
1.4.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................54
1.4.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................55
1.4.2 Segunda seqüência: 21 de março (13).........................................................56
1.4.2.1 Principais ações desta seqüência..............................................................56
1.4.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................57
9
1.5 Capítulo V – um segmento e recortes de um possível segmento extraviado ..58
1.5.1 Primeira seqüência: 22 de março (14)..........................................................58
1.5.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................58
1.5.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................59
1.5.2 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no
romance-seriado....................................................................................................60
1.5.2.1 Principais ações deste recorte ..................................................................60
1.5.2.1.1 Uma antítese de Amâncio.......................................................................60
1.5.2.1.2 A redenção do pai...................................................................................61
1.5.2.1.3 A decadência da família Coqueiro e a casa de pensão..........................61
1.5.2.1.4 A morte da mãe e o fechamento da casa de pensão .............................62
1.5.2.1.5 A segunda mãe - gancho para o próximo segmento .............................62
1.6 Capítulo VI – um segmento .............................................................................63
1.6.1 Primeira seqüência: 24 de março (15)..........................................................63
1.6.1.1 Principais ações desta seqüência..............................................................63
1.6.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................64
1.6.2 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no
romance-seriado....................................................................................................65
1.6.2.1 Apresentação dos espaços e moradores da casa de pensão ...................65
1.7 Capítulo VII – oito segmentos..........................................................................67
1.7.1 Primeira seqüência: 27 de março (16)..........................................................67
1.7.2 Segunda seqüência: 28 de março (17).........................................................69
1.7.3 Terceira seqüência: 29 de março (18) ..........................................................70
1.7.4 Quarta seqüência: 31 de março (19) ............................................................71
1.7.5 Quinta seqüência: 02 de abril (20)................................................................71
10
1.7.6 Sexta seqüência: 05 de abril (21) .................................................................72
1.7.7 Sétima seqüência: 06 de abril (22) ...............................................................74
1.7.8 Oitava seqüência: 07 de abril (23)................................................................75
1.8 Capítulo VIII – dois segmentos........................................................................75
1.8.1 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no
romance-seriado....................................................................................................76
1.8.1.1 De casa de Campos à casa de pensão de Coqueiro.................................76
1.8.2 Primeira seqüência: 11 de abril (24).............................................................78
1.8.2.1 Principais ações desta seqüência..............................................................78
1.8.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................79
1.8.3 Segunda seqüência: 12 de abril (25)............................................................79
1.8.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................80
1.9 Capítulo IX – nove segmentos.........................................................................80
1.9.1 Primeira seqüência: 12 de abril (continuação) (25) ......................................80
1.9.1.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................81
1.9.2 Segunda seqüência: 13 de abril (26)............................................................81
1.9.2.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................82
1.9.3 Terceira seqüência: 17 de abril (27) .............................................................82
1.9.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................83
1.9.4 Quarta seqüência: 19 de abril (28) ...............................................................83
1.9.4.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................84
1.9.5 Quinta seqüência: 24 de abril (29)................................................................85
1.9.5.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado .....................86
1.9.6 Sexta seqüência: 25 de abril (30) .................................................................86
1.9.6.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................87
11
1.9.7 Sétima seqüência: 26 de abril (31) ...............................................................88
1.9.7.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................88
1.9.8 Oitava seqüência: 29 de abril (32)................................................................90
1.9.8.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................91
1.9.9 Nona seqüência: 01 de maio (33).................................................................91
1.9.9.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ......................92
1.10 Capítulo X – sete segmentos.........................................................................92
1.10.1 Primeira seqüência: 01 de maio (continuação) (33) ...................................92
1.10.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado....................93
1.10.2 Segunda seqüência: 04 de maio (34) .........................................................94
1.10.2.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ....................94
1.10.3 Terceira seqüência: 09 de maio (35) ..........................................................95
1.10.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ....................96
1.10.4 Quarta seqüência: 09 de maio (36) ............................................................97
1.10.4.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado....................98
1.10.5 Quinta seqüência: 11 de maio (37)...........................................................100
1.10.5.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ..................100
1.10.6 Sexta seqüência: 13 de maio (38) ............................................................101
1.10.6.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ..................102
1.10.7 Sétima seqüência: 16 de maio (39) ..........................................................103
1.10.7.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado ..................104
1.11 Capítulo XI – um segmento .........................................................................105
1.11.1 Primeira seqüência: 22 de maio (40) ........................................................106
1.11.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado .....................106
1.12 Considerações adicionais............................................................................107
12
2 TÉCNICAS DE ROMANCE-SERIADO NA PRIMEIRA VERSÃO EM LIVRO......109
2.1 Três núcleos narrativos adicionais.................................................................110
2.1.1. Primeiro núcleo: Lúcia ...............................................................................110
2.1.2. Segundo núcleo: Coqueiro e personagens a ele agregadas .....................111
2.1.3 Terceiro núcleo: a fragmentação de Amâncio ............................................119
2.1.3.1 Último capítulo do romance Casa de Pensão: a reificação de Amâncio..122
2.2 Considerações adicionais..............................................................................126
3 DO ROMANCE-SERIADO AO LIVRO ................................................................129
3.1 Pressupostos da análise................................................................................131
3.2 A voz e o ponto de vista ................................................................................131
3.3 Ponto de vista do narrador ............................................................................133
3.4 Tipologias anunciadas no romance-seriado ..................................................134
3.5 Cronótopo......................................................................................................135
3.5.1 Espaço........................................................................................................136
3.5.2 Tempo ........................................................................................................140
3.6 Personagens..................................................................................................144
3.6.1 A construção da psicologia do protagonista ...............................................145
3.6.2 A figura feminina.........................................................................................152
3.6.3 A figura masculina ......................................................................................162
3.6.3.1 A voz do pai: o odioso Vasconcelos ........................................................162
3.6.3.2 Coqueiro ..................................................................................................163
3.6.3.3 Campos, o comerciante íntegro...............................................................165
3.6.3.4 O homem-objeto......................................................................................167
3.7 As vozes e os elos.........................................................................................168
13
4 CONTEXTO DO PROCESSO DE CRIAÇÃO......................................................171
4.1 Intertexto........................................................................................................173
4.2 A narrativa de Casa de Peno: a voz e o ponto de vista .............................174
4.3 Gênero ou a pluralidade discursiva de Casa de Pensão ...............................180
4.4 Jornalismo, literatura e o híbrido....................................................................185
4.5 Duas narrativas jornalísticas de um crime .....................................................186
4.5.1 Jornal do Comércio.....................................................................................188
4.5.2 Gazeta de Notícias .....................................................................................193
4.3.3 Construção do ponto de vista .....................................................................197
4.6 Nota Antes de principiar e o encontro de dois gêneros .................................198
4.7 Aventura, intriga e morte: das páginas policiais à Casa de Pensão ..............204
4.8 Romantismo, Naturalismo e o híbrido............................................................208
CONCLUSÃO.........................................................................................................213
REFERÊNCIAS......................................................................................................218
14
RESUMO
GARCIA, M, L, G. Aluísio Azevedo: o movimento criativo de Casa de Pensão.
Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, São
Paulo, 2009.
O objetivo deste trabalho é destacar a habilidade com a qual Aluísio Azevedo
acompanhou algumas das transformações tecnológicas ocorridas na penúltima
década do século XIX. Esta pesquisa analisa o movimento criativo de Casa de
Pensão, a partir de textos que compõem o corpus: a primeira edição no formato de
romance-seriado, publicada no periódico Folha Nova (1883) e da primeira edição
em livro, publicada por Faro & Lino Editores (1884). As transformações ocorridas no
processo criativo foram estudadas por intermédio da metodologia para a análise do
padrão narrativo do romance-seriado, sistematizada por Ribeiro (1996; 2000). De
modo complementar à apreciação dos aspectos intertextuais, consideramos a
influência do contexto do processo criação, de onde emergem vozes relacionadas à
Questão Capistrano (1876) e ao hibridismo discursivo imanente à estrutura narrativa
do romance Casa de Pensão.
Palavras-chave: padrão narrativo do romance-seriado; movimento criativo;
jornalismo e literatura; hibridismo discursivo.
15
ABSTRACT
GARCIA, M, L, G. Aluísio Azevedo: o movimento criativo de Casa de Pensão.
[Aluísio Azevedo: the creative movement of the novel Casa de Pensão]. São Paulo
(BR); 2009. [PhD Thesis Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da
Universidade de São Paulo Brazil].
The main aim of this paper is to highlight the ability with which Aluísio Azevedo led
some of technological transformations that occurred in the last nineteenth century
decade. This research analyses the Casa de Pensão creative movement based on
texts that compose the corpus: the first edition in novel-series format published in the
journal named Folha Nova (1883), and about the first edition in book format
published by Faro & Lino Editors (1884). The transformations occurred in the creative
process were studied through the methodology to analyze the novel-series narrative
pattern organized by Ribeiro (1996; 2000). In order to complement the assessment of
intertextual aspects, it was considered the influence about the context of the process
creation where the voices that were linked to Questão Capistrano (1876) came out
and about the discursive hybridism immanent to the narrative structure of Casa de
Pensão novel.
Keywords: the novel-series narrative pattern; creative movement; journalsm and
literature; discursive hybridism.
16
INTRODUÇÃO
Se é arte pertence ao público, pertence à nação, pertence ao mundo
[...]
Se é arte, pertence à crítica que a julgará, sem nunca tirar nem pôr
do seu merecimento. Forte, ela atravessará os séculos, marcando
eternamente na história a época em que veio ao mundo; fraca,
morrerá logo ao nascer, desconhecida de todos e esquecida até pelo
próprio autor (O COMBATE, 1892, p. 64).
Este estudo tem como objetivo principal situar o romance Casa de Pensão no
movimento midiático praticado por Aluísio Azevedo, a partir da análise e
interpretação do padrão narrativo presente nas duas primeiras versões do romance.
A primeira foi publicada no jornal Folha Nova, em 1883; a segunda foi lançada por
Faro & Lino Editores
1
um ano depois, isto é, em 1884. Além dos aspectos textuais,
consideramos pertinente analisar o contexto de produção e a relação dialógica do
texto literário com os aspectos midiático-culturais, a partir dos quais Casa de Pensão
teve origem e que podem ser sintetizados na Questão Capistrano (1876).
A reunião desses dois códigos semióticos significava para Aluísio uma
ferramenta de divulgação de seu trabalho, um meio de estabelecer diálogos com o
leitor, além de contribuir para a venda de seus romances. As preocupações que
giravam em torno dos efeitos que a leitura de Casa de Pensão poderia gerar sobre
os receptores podem ter impulsionado Aluísio a escrever a nota Antes de principiar
(FOLHA NOVA, 05 mar. 1883), com uma síntese do novo romance e o projeto
literário almejado com essa publicação.
O fato de Azevedo ter interrompido a publicação dos segmentos antes de seu
término pode estar relacionado ao sucesso da história e à mudança de
direcionamento do romance. Embora não tenhamos localizado o fascículo de Casa
de Pensão, no final de maio de 1883, uma semana dias depois da publicação do
último segmento do romance-seriado, o jornal O Mequetrefe informava ao público
que um suplemento seria distribuído. Portanto, o romance de Aluísio Azevedo
acompanha uma prática comum da época que consistia em vender o romance-
seriado de porta em porta como uma forma de apêndice do jornal. Nesse sentido, Sá
1
Por considerarmos a edição de Casa de Pensão lançada pela Ática, em 1977, uma boa edição em
termos de fidedignidade textual; e, para uma melhor apreciação, fizemos uma atualização ortográfica
das citações feitas na edição de 1884, de forma que, nas citações, limitar-nos-emos apenas a
informar a página da qual foi extraído o texto atualizado.
17
Pinho (O MEQUETREFE, 30 maio 1883, p. 6) informa aos leitores que: Deve ser
distribuído brevemente o primeiro fascículo da ‘Casa de Pensão’, último romance de
Aluísio Azevedo”. Na seqüência, o texto destaca que o escritor ainda estava
trabalhando no processo de composição, pois o colega do escritor informa que
“Aluísio Azevedo tem empregado o máximo esmero na elaboração desta obra, e a
‘Casa de Pensão’ vai ser talvez o primeiro estudo sério que se tenha feito entre nós,
na esfera do romance. Esta qualidade, por um lado e por outro lado, a maneira
cômoda como se pretende efetuar a venda do livro, prenunciam um bom êxito.
Esse sucesso que saia!” Esta última observação ressalta a certeza de sucesso
garantido com a publicação do romance-seriado, como uma forma de conquistar a
atenção do público, oferecendo uma amostra de Casa de Pensão.
Consciente da importância dos leitores para a concretização de seu projeto
literário, na segunda quinzena de junho de 1883 o jornal O Mequetrefe (K. LOIRO,
10 jun. 1883, p. 7) seqüência às notícias sobre o processo de produção do
romance Casa de Pensão, deixando o leitor informado que: “Acha-se distribuído o
primeiro fascículo da Casa de Pensão, romance cujo aparecimento fomos dos
primeiros a anunciar pela imprensa”, com destaque para o privilégio do jornal de
acompanhar os desdobramentos do romance. Quando o registro destaca que não
seriam feitos comentários: “Para não dar ouvidos para o errôneo paradoxo de que
pelo dedo se conhece o gigante, não antecipo nenhum juízo sobre esta obra,
baseados em apenas algumas páginas”, fica evidente que o fascículo publicou
apenas as seqüências divulgadas no jornal Folha Nova, sobretudo porque apenas
três semanas separavam a publicação da última seqüência do romance-seriado e do
suplemento. Por isso, o autor do comentário revela: “Aguardamos ocasião mais
oportuna”, o que pode ser depois da publicação do livro. “Por enquanto, para
entender os nossos honrados ócios de crítico, limitamo-nos a folheá-la de pena ao
léu”, ou seja, como um leitor qualquer.
No início de 1884, ano em que seria publicada a versão em livro, o jornal O
Mequetrefe expõe um comentário crítico sobre o autor de Casa de Pensão:
quem nunca sentiu a mão gelada da realidade entrar-lhe na alma e
arrancar de dentro, uma a uma, as ilusões, essas douradas partículas do
se não compreenderá que D. Quixote ou Philomena moram sem diagnóstico
da Policlínica Geral. O Aluísio Azevedo deve perseverar: tem imaginação,
estilo, e método de análise. Dessa massa é que fizeram os Zolas e que se
fazem os Maupassants (O MEQUETREFE, 20 fev. 1884, p. 6).
18
Exatamente um ano depois da publicação do romance-seriado, O Mequetrefe
dedica um resumo de todos os romances escritos por Aluísio Azevedo, desde Uma
Lágrima de Mulher, seu primeiro trabalho, até Casa de Pensão. Quando se refere a
este último, a informação se limita a destacar que esse romance requer um estudo
completo, rigoroso, cruel, da educação brasileira, pede uma aturada análise”. Nesse
sentido, o jornal apresenta um gancho para um julgamento estético sobre a nova
produção de Aluísio: No nosso próximo número, em artigo escrito por um dos mais
competentes críticos brasileiros, faremos à Casa de Pensão as honras e que a
julgamos com pleno direito” (O MEQUETREFE, 30 maio 1884, p. 5).
Embora não saibamos quem era o crítico mencionado acima, depois que ele
se recusou a escrever a apreciação crítica sobre Casa de Pensão, o jornal explica
que o gaúcho Júlio de Castilhos enviaria um artigo para suprir essa falha:
Em um dos passados números do Mequetrefe nos comprometemos a
publicar um artigo crítico sobre o último romance de Aluísio Azevedo, mas
fomos flauteados pelo cavalheiro a quem havíamos cometido esta tarefa.
Entretanto, cai-nos do céu queremos dizer de Porto Alegre um número da
“Federação” (órgão republicano habitualmente dirigido pelo Sr. Júlio de
Castilhos), que nos deparou precisamente o que desejamos, isto é - um
bom artigo sobre o assunto (O MEQUETREFE, 30 jun. 1884, p. 6).
Em meados de 1884, Casa de Pensão apareceu em livro, com o acréscimo
dos dez capítulos que não foram divulgados na primeira variante e a reformulação
em alguns dos trechos dos primeiros doze capítulos, publicados no jornal Folha
Nova. Logo após a aparição da segunda versão do romance, a Gazeta Literária
publicou uma apreciação sobre a estratégia escolhida por Aluísio, na qual Urbano
Duarte revelou as etapas de divulgação do romance, por considerar o percurso
criativo do romance: Casa de Pensão começou a ser publicada na ‘Folha Nova’,
depois passou a ser editada de princípio pelo senhor Filinto da Silva, saindo em
fascículos, com estampas devidas ao lápis do senhor Aurélio de Figueiredo”. Tanto
na primeira, em romance-seriado, como na segunda, à qual o tivemos acesso,
ficou “o romance interrompido, e agora o autor nos o livro em edição completa,
que se pode portanto classificar como terceiro”
2
. Destacamos que também foram
feitas pelo pintor Aurélio Figueiredo as estampas litrografadas, localizadas na
2 Gazeta Literária. Casa de Pensão. Rio de Janeiro, 10 ago. 1884 (apud MÉRIAN, 1988, p. 434).
19
primeira edição de Casa de Pensão (popular), editada por Faro & Lino RJ, em
1884.
A citação acima é apenas um exemplo de como os leitores reagiram ao
processo de produção do romance Casa de Pensão e o efeito que o corte causou
sobre alguns leitores, depois que Aluísio suspendeu a publicação em maio de 1883,
deixando os leitores ansiosos para conhecer o restante da história.
Como os testemunhos do processo de produção reconstroem a atmosfera
que acompanhou a escrita de Casa de Pensão, é possível entender um pouco do
movimento que fez parte do percurso criativo utilizado por Aluísio Azevedo no
período que parte de 06 de março a 22 de maio de 1883, com o romance-seriado,
abrangendo, assim, XII capítulos dos XXII que compôs o livro, ou seja, no segundo
semestre de 1884.
Embora nossa pesquisa tenha selecionado apenas as duas primeiras
publicações citadas, destacamos que o romance Casa de Pensão ultrapassou os
limites do Rio de Janeiro, quando foi publicado no jornal A Bagagem, em Minas
Gerais
3
(1884-1885), a partir do texto da primeira versão em livro.
Depois de apresentarmos testemunhos do processo criativo de Casa de
Pensão (1883-1884), destacamos um panorama da crítica posterior, com a
finalidade de situar o ponto de vista seguido neste estudo.
De modo quase que totalitário, a crítica de Aluísio Azevedo divide suas obras
em duas partes: a dos romances-seriados, julgada por seu caráter mercadológico ou
de entretenimento (que tem início com a primeira produção Uma Lágrima de Mulher,
e estende-se a: Girândola de amores, Condessa Vésper, Filomena Borges, A
Mortalha de Alzira e Mattos, Malta, Mata?) e a outra, a dos romances reconhecidos
pela crítica pela qualidade estética (O Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço). Além das
romances citados, acrescentamos O homem, O Coruja, Livro de Uma Sogra, que
parecem não possuírem um lugar definido pela crítica. Embora o romance Casa de
Pensão seja classificado no segundo conjunto de obras, a crítica de Aluísio não
considera o movimento de criação do discurso que parte da publicação destinada ao
jornal Folha Nova (1883) e recebe mais dez capítulos para ocupar o formato de livro
(1884), sem, contudo, excluir do conteúdo narrativo, algumas das técnicas
características do romance-seriado, o que estabelece um elo entre as duas
3 A Bagagem. Aluísio Azevedo. Casa de Pensão. Ouro Preto, 04 dez. 1884 – 08 out. 1885.
20
variantes. Nesse sentido, destacamos que Aluísio, como escritor, no romance-
seriado explora as categorias de um modo complexo e no livro preserva técnicas
características da primeira versão elaborada para o jornal.
Como nossa intenção é apresentar o caráter valorativo das etapas que
envolvem o movimento criativo de Casa de Pensão, não daremos destaque para
julgamentos que dividem a literatura de Aluísio, ora exaltando suas obras, ora
reduzindo-as, dependendo do gênero ao qual foram publicadas. Desse modo,
reproduziremos apenas o texto escrito por Alfredo Bosi por traduzir o preconceito
tido por grande parte da crítica sobre os romances-seriados:
Em Aluísio Azevedo a influência de Zola e Eça é palpável; e, quando não se
sente, é mau sinal: o romancista virou produtor de folhetins. Aliás, trata-se
de um caso raro e precoce de profissionalização literária: Aluísio Azevedo
disse Valentim Magalhães é no Brasil talvez o único escritor que ganha o
pão exclusivamente à custa de sua pena, mas note-se que apenas ganha o
pão: as letras no Brasil ainda não dão para a manteiga. Essa luta com a
pena pelo pão certamente explica o desnível entre seus romances sérios (O
Mulato, Casa de Pensão, O Cortiço) e os pastelões melodramáticos de ‘pura
inspiração industrial”, no dizer de José Veríssimo (Condessa Vésper,
Girândola de Amores, a Mortalha de Alzira...). E talvez à mesma causa se
possa atribuir o estranho abandono das letras que se lhe nota a partir dos
quarenta anos, quando entra para a carreira diplomática e se elege membro
da Academia recém-fundada (BOSI, 1994. p. 210).
Diferente da avaliação pejorativa acerca dos romances publicados em jornal,
o ponto de vista apresentado neste estudo considera que todas as etapas do
processo criativo são essenciais para a caracterização da habilidade de Aluísio
Azevedo, visualizada na atribuição de plasticidade ao discurso de Casa de Pensão,
como estratégia para atender às expectativas dos leitores e da crítica, às
transformações tecnológicas e ao ritmo de interação dos indivíduos, o que também
encontra fundamento do movimento criativo que encaminha o leitor para o romance
moderno. Nesse sentido, destacamos a valorização da mistura de gêneros e
linguagens, que em Jean-Yves Mérian (1988, p. 417) encontra esta definição
substancial de que: “os romances-folhetins não se opunham de modo absoluto aos
romances naturalistas, mas, segundo Aluísio, deviam contribuir ao progressivo
sucesso destes. A relação entre esses dois tipos de romances era de ordem
dialética, sendo o objetivo final a “aclimatação” do Naturalismo no Brasil”.
Apesar do movimento favorável à fixação do romance moderno no viés do
desenvolvimento tecnológico, não se pode deixar de citar as considerações feitas
21
por Martín-Barbero (2001, p. 323-324) de que “o que ativa essa memória não é da
ordem dos conteúdos, nem sequer dos códigos, é da ordem das matrizes culturais”,
por isso, cada variante de Casa de Pensão pode ser entendida de acordo com o
público que a lê.
Ao focalizarmos Casa de Pensão, encontramos em Araripe Júnior
apreciações críticas que lhe conferem um lugar de destaque dentre os críticos de
renome que assistiram ao aparecimento do romance, sobretudo pelas contribuições
realizadas com a percepção de uma psicologia social objetiva na caracterização dos
personagens, guiados pelos impulsos e formas advindas do meio que serve de
cenário, tendo em vista que:
Ali [Casa de Pensão] não reses, nem demonstrações. Os personagens
valem uns pelos outros; encontram-se e relacionam-se naturalmente,
impelidos pela fatalidade do meio; e não se perfilam, não se curvam, como
nos romances antigos, à maneira de serventes humildes, aplainando o
caminho do herói, desempenhando uma função no enredo, guiando
docilmente a ação a um fim preconcebido, embora com sacrifício das linhas
principais dos respectivos caracteres. [...] O que seu espírito [de Aluísio
Azevedo] abrange e apanha com mais facilidade é a ligação dos caracteres
entre si. Vide, por exemplo, com que rara felicidade ele, depois de
apresentar o estudante Amâncio de Vasconcelos no Rio de Janeiro, soube
agrupar em torno deste personagem os objetos e as pessoas que com
mais força deviam reagir sobre o seu temperamento. Duma aglutinação
nas cenas que se sucedem, que dão aos fatos descritos um encanto
indeclinável.
A vida é contagiosa. O mundo é formado por uma série de cárceres, aonde
nos é impossível escapar à influência que os detentos, de ordinário,
exercem uns sobre os outros [...] (APARIPE JR apud BOSI, 1978, p. 139).
Tanto o cenário captado pela lente do escritor, quanto os personagens,
oriundos de seres tipificados, revelam o ponto de vista de Aluísio Azevedo e o
mundo criado por intermédio da ficção. Desse modo, Casa de Pensão reúne
caracteres associados ao cotidiano assistido pelo autor, pois:
Os escritores realistas, grosso modo, podem ser vistos como alguém que
usava uma câmera, como dissemos; todavia, quando nos carregam com
eles da praça para a rua, da rua para a casa e daí para os cômodos
específicos onde vivem as personagens, fazem isso com a quantidade e a
qualidade de sugestão verbal que, por meio da leitura, traduzimos em
imagens mentais. Os cômodos, os objetos, as personagens e o próprio
movimento são parte de uma espécie de olho da mente” que pertence ao
mesmo tempo ao autor e ao leitor. Entretanto, uma câmera móvel
executando a mesma movimentação, o faz com uma rapidez que requer a
mesma rapidez do olhar, numa célere e abrupta associação de imagens,
que pouco solicita da mente. Tudo está pronto para ser visto, e o
22
imaginado. Assim, tem-se a absolutização da imediatez da imagem, que
opera de maneira totalmente diferente da imediatez da palavra
(PELLEGRINI, 2003, p. 25).
Para corroborar com as apreciações de Araripe e ressaltar as habilidades
artísticas de Aluísio Azevedo, destacamos a sucinta e esclarecedora definição
realizada por Adonias filho de que: “Em Casa de Pensão, embora limitando o espaço
social que ausculta, movimenta um dos aspectos mais típicos do urbanismo
carioca”
4
.
Sobre Casa de Pensão, Bosi escreve:
Em Casa de Pensão, a vida airada do estudante que vem do Norte para o
Rio, o ambiente pegajoso da pensãozinha onde se instala, enfim o rumor
dos jornais e da boêmia em volta do caso escandaloso em que se envolve,
formam coro, estruturalmente superior ao desenho, flácido, do protagonista,
cujas fraquezas são atribuídas desde as primeiras páginas à herança de
sangue (BOSI, 1994, p.157).
Beviláqua (1988) afirma que sobre o fundo histórico do romance Casa de
Pensão levantado por Aluísio, o autor o executou de tal forma que o leitor chega a
supor que o está folheando um romance, mas a narração de um fato real escrita
com elegância e muita habilidade:
Os caracteres são todos verdadeiros, se expondo naturalmente, sem
contradição e sem surpresas, as cenas são copiadas do natural, revivem
os cantos obscuros da sociedade fluminense, reproduzem a vida íntima
que se retrai da qualidade solar das ruas e se desabotoa na tipidez do
gineceu e das recamaras fouxeladas. (...) Aluísio sabe ver com olhos de
observador perspicaz, e descreve as observações colhidas como
verdadeiro artista (BEVILAQUA, 1888, p.178-179).
Segundo Moisés, Casa de Pensão é elaborada “a maneira dos mestres
europeus do realismo, Aluísio muda a cena do romance a fim de experimentar a
recorrência das leis hereditárias e ambientais sobre indivíduos afastados no espaço
e na classe social” (MOISÉS, 1984, p. 342).
Aderaldo Castelo (1999, p. 395), a seu turno, concorda com Raimundo
Menezes (1958) e Moisés (1884), ao ressaltar que Casa de Pensão “[...] representa
a vida pequeno burguesa, universo no qual se situam os protagonistas de um crime
passional a partir de fato verídico”, acrescentando que Aluísio “... procede conforme
4 Adonias Filho. Touro Negro (introdução), 1961, p. 3.
23
ensinamentos de Zola sobre o romance faça reportagem” (CASTELO, 1999, p.
395-396).
De modo complementar, mas igualmente importante, não podemos deixar de
citar os personagens caricatos, construídos na atmosfera criativa do romance. Nesse
sentido, constata-se que o processo de produção da obra Casa de Pensão foi lento
e surpreendente. O procedimento do escritor, adotado para a composição de seu
conjunto de textos, e o depoimento de seus colegas escritores indicam que o
percurso da obra se iniciou a partir do momento em que Aluísio desempenhou o
papel de leitor, assimilando informações sobre a Questão Capistrano.
Posteriormente, pressupomos que tenha visitado casas de pensão da cidade para
observar cenas de seu cotidiano carioca e os personagens caricatos no movimento
criativo.
A importância da linguagem visual e o movimento atribuído aos personagens
têm relação direta com a plasticidade com a qual se moldou o discurso de Casa de
Pensão, como uma reunião das habilidades do escritor. Poucos dias depois da
morte de Aluísio Azevedo, o conterrâneo e colega de moradia Coelho Neto destaca
aspectos fundamentais dos procedimentos utilizados por seu mestre:
Refletir sobre a singularidade do estilo de Aluísio Azevedo, perante seu
talento por uma diversidade de modalidades artísticas, por isso, para
escrever Casa de Pensão usou por palco sua mesa onde se baralhavam
figurinhas, desenhadas pelo próprio escritor, que eram os tipos dos seus
personagens (O IMPARCIAL, 25 jan. 1913, p. 7).
Na seqüência, Neto descreve o mundo fantástico criado por Aluísio Azevedo,
por meio do qual o autor podia ter os personagens como marionetes, “ante os olhos,
jogando com eles permanentemente, como que se cercava do mundo psicótico, que
ele deveria agitar com a vara encantadora de sua pena”.
Em Menezes (1958, p. 84-87), consta-se que Aluísio “devora a jato” O Crime
do Padre Amaro e empenha-se para seguir sua trilha: “o material humano está à sua
disposição e basta colhê-lo, nas ruas acidentadas, nas igrejas transbordantes de
beatas, nos sobrados, onde mexericos dominam... Assim, os personagens nada
mais fácil – vivem por ali em carne e osso [...]”. Em complemento, o biógrafo destaca
que “[...] para melhor guardar os tipos, apanhados no ramerrão da vida cotidiana,
como Balzac e Dostoiévsky, traça-lhes a caricatura em bonecos (aquarela, quando
24
bons, a lápis, quando maus) que se acotovelam sobre a desarrumada mesa de
trabalho. Servir-lhe-ão de valioso roteiro [...]”.
Com efeito, colocando-se em contato com o meio investigado, o autor ouvia,
observava, anotava diálogos e traçava tipos e, a partir de então, Aluísio atuava na
condição de criador, elaborava os primeiros esquemas do romance em germe para,
em seguida, desenhar seus personagens em cartolinas, dispondo-os sobre a mesa
na qual desenvolvia o seu trabalho:
desenha em cartolina os bonecos dos dois principais heróis: o estudante
Amâncio de Vasconcelos, moço de vinte anos, tipo do Norte, franzino,
amorenado [...] e a jovem Amélia Coqueiro, de cabelo denso e castanho,
bem feita de quadris e de ombros, cintura em volta enérgica [...] (MENEZES,
1958, p. 150-151).
Do mesmo modo, a propósito do método utilizado por Aluísio para a produção
de suas obras, dentre as quais destacamos Casa de Pensão, enfatizamos o ponto
de vista de Araripe Júnior, segundo o qual: Esta precedência da caricatura sobre o
romance tem, para mim, uma importância particular, porque explica desde logo o
caráter de seu talento e e a descoberto todo o eixo do seu espírito”. Desse modo,
o crítico acrescenta que a tendência direta para o concreto, localizada nessa
representação, “tem no mais alto grau o espírito de observação ligado ao mais cabal
sentimento do real e das suas quinas de expressão” (ARARIPE JR apud BOSI,
1978, p. 35).
Neste estudo, a reunião dos documentos que compõem o processo
investigativo localizados na Biblioteca Nacional RJ é fundamental para criar a
atmosfera criativa do romance Casa de Pensão. O diálogo intertextual leva-nos a
acreditar na capacidade que Aluísio Azevedo possuía para entender as mudanças
de perceptiva, advindas dos efeitos das tecnologias sobre os indivíduos. Essa
hipótese parte do pressuposto de que, em meio a tantas transformações provocadas
pelo aparecimento de um novo meio: "O artista pode corrigir as relações entre os
sentidos antes que o golpe da nova tecnologia adormeça os procedimentos
conscientes" (MCLUHAN, 1964, p. 86).
Nesse sentido, a leitura do contexto de produção de Casa de Pensão é
balizada pelo apontamento feito por McLuhan, de que os meios de comunicação
25
estão se misturando, quebrando suas fronteiras rígidas, utilizamos a definição de
meios híbridos para abranger os canais de publicação, bem como o contexto
produtivo das duas primeiras versões de Casa de Pensão, que resultam em um
gênero híbrido.
Como texto basilar para o estudo do movimento criativo de Casa de Pensão,
no processo que esmiúça a escrita do romance, adotamos categorias de análise
capazes de contemplar, metodologicamente, as peculiaridades do objeto de
pesquisa do qual nos ocupamos, em José Alcides Ribeiro (1996, p. 44-46; 2000, p.
164-179) obtivemos “um painel das técnicas estruturadoras do perfil padronizado da
convenção narrativa folhetinesca”, o qual foi elaborado pelo autor a partir da
“recepção crítica do romance folhetim francês”. Portanto, esse conjunto de técnicas
norteou a análise da história de Casa de Pensão, na versão do romance-seriado,
além de oferecer subsídios para a elaboração de hipóteses sobre a construção do
discurso híbrido do livro, resultante do método de criação da história.
Como construímos tipologias para caracterizar as técnicas composicionais, a
fim de entender como ocorreu o processo de alteração das variantes de Casa de
Pensão, realizamos uma divisão do campo do estudo. Por essas razões, adotamos
as categorias propostas por Todorov, que classifica os problemas da narrativa em
três categorias: a) Tempo (que exprime a relação entre o tempo da história e do
discurso); b) aspecto (ou a maneira como a história é percebida pelo narrador); c)
modo, ou seja, o tipo de discurso utilizado pelo narrador.
Essas três categorias são reformuladas por Genette (1995, p. 27-30) como
visão (aspecto), que se remete a questões de ponto de vista narrador; registro
(modo), abrangendo os problemas de representação e narração (distância); e voz
que designa, ao mesmo tempo, as relações entre narração e narrativa e entre
narração e história. Para as finalidades propostas neste estudo, privilegiaremos as
categorias voz e ponto de vista.
Paul Ricoeur (1990, p. 165-66) destaca que a noção da experiência fictícia do
tempo não pode prescindir dos conceitos de ponto de vista e de voz narrativa, ou
seja, o ponto de vista recai sobre a esfera da experiência à qual concerne a
personagem e a voz narrativa e é a que se dirige ao leitor, apresentando-lhe o
“mundo narrado”, que, em Casa de Pensão, é realizado na nota Antes de principiar.
Nessa perspectiva, aplicamos os conceitos apresentados por Ricoeur que liga as
noções de ponto de vista e de voz narrativa às categorias de narrador e de
26
personagem. O mundo narrado em Casa de Pensão é o mundo das personagens
referenciadas na construção dos tipos que compõem o romance e é contado por um
narrador guiado pelo autor, escritor-jornalista. Portanto, a enunciação é o discurso
do narrador, que por vezes é autor-narrador, enquanto o enunciado é o discurso da
personagem, com vozes que se remetem ao cotidiano dos leitores contemporâneos
ao lançamento das duas primeiras versões da história.
Van Dijk (1990) propõe um procedimento capaz de abranger a análise de
diferentes níveis do discurso, em diferentes sistemas semióticos, relacionados ao
jornalismo e à literatura, assim como os demais elementos relacionados ao contexto
produtivo. Nesse sentido, van Dijk (1990, p. 45) enfatiza que as dimensões textuais
dão conta das estruturas do discurso em diferentes níveis de descrição e as
relacionam com diferentes propriedades do contexto, como processos cognitivos e
as representações pronominais, que podem ser diferentes para a análise da
linguagem elaborada para a versão em jornal e em livro.
Essa intersecção de campos enfatiza o valor da linguagem brida, não
apenas para caracterizar a poética de Aluísio Azevedo e a habilidade de o autor
acompanhar as transformações tecnológicas, mas também para situar Casa de
Pensão como representação de um fenômeno sociocultural. Dito isso, retomamos o
objetivo de situar o romance Casa de Pensão no movimento midiático, com a
apresentação do movimento criativo da diegese e habilidade adquirida por Aluísio
em sua profissão de escritor.
Mais do que compreender a necessidade de dominar a técnica da escrita
industrial, Aluísio tamm procurava entender e escrever de acordo com suas
concepções artísticas, em direção ao romance moderno. Isso se explica porque,
segundo Albérès (1962, p. 38), a grande transformação ocorrida com o romance do
século XIX, como document romance”, está ligada às suas condições de
publicação. Para o autor, não é possível entender o romance realista sem
primeiramente verificar seu aspecto de retrato do cotidiano. Portanto, o maior
romance desse século é o romance-seriado, com o estudo da sociedade, em seus
aspectos pitorescos.
Levando em consideração os procedimentos apresentados, o primeiro
capítulo apresenta uma análise minuciosa do romance-seriado, a partir do conceito
basilar sistematizado por José Alcides Ribeiro (1996) e presente na obra Imprensa e
Ficção no Século XIX: Edgard Allan Poe e a Narrativa de Arthur Gordon Pym. Além
27
de propor uma metodologia de análise, Ribeiro também analisa um texto escrito por
Poe, publicado, parcialmente, no formato de romance-seriado e, posteriormente,
duplicado integralmente em livro, o que representa grande semelhança ao processo
de publicação do romance aqui cotejado. Portanto, esse conjunto de técnicas norteia
a análise da história de Casa de Pensão, na versão do romance-seriado, além de
oferecer subsídios para a elaboração de hipóteses sobre a construção do discurso
híbrido do livro, resultante do método de criação da história, o que é apresentado no
segundo capítulo desta pesquisa.
O terceiro capítulo apresenta exemplos representativos das alterações
ocorridas no conteúdo do romance-seriado quando recebe o formato de livro, ou
seja, são considerados apenas os principais textos comuns às duas vertentes. Nas
duas situações comunicativas, a apresentação da tipologia textual utilizada na
composição do enredo envolve códigos fundamentais à hermenêutica do texto e à
definição de semas que delineiam os personagens e os cenários onde ocorre o
desenvolvimento da narrativa. Encontramos em Genette (1995) e Ricoeur (1990)
noções substanciais para detectar a visão narrativa em Casa de Pensão como um
caminho para desvendar em que medida o ponto de vista dos personagens e do
narrador orienta a perspectiva narrativa nas duas versões cotejadas. A partir disso,
podemos entender a habilidade do escritor de atribuir plasticidade à linguagem
literária, em função dos meios aos quais ela se vincula, por intermédio da
publicação, concretizando o projeto daquele que despendeu esforços em dois
momentos criativos.
No quarto e último capítulo, são apresentados elementos intratextuais e
extratextuais, no intuito de caracterizar o diálogo do texto e o contexto na construção
do gênero de Casa de Pensão (1883-1884), em função da plurissignificação
discursiva. Esta etapa do estudo apresenta uma leitura da relação do tema do
romance com a Questão Capistrano (1876), a partir de notícias divulgadas pelo
Jornal do Comércio e pela Gazeta de Notícias. A reunião dos diversos códigos
semióticos localizados no romance, ligados à situação comunicativa, contribui para a
construção de um microcosmo da sociedade carioca que abrange as décadas de
1870 e 1880. Como resultado, podemos entender em que medida as notícias podem
ser cristalizadas no universo textual do romance, pelo código sociocultural
empregado na ficção.
28
1 TÉCNICAS DE ROMANCE-SERIADO
Desde pequeno, Aluísio Azevedo via o mundo com o olhar de um artista.
Pintava o cenário em que ele e seus irmãos representavam as peças criadas pelo
irmão Artur Azevedo e amava o Maranhão, assim como admirava os grandes poetas
conterrâneos. Se os projetos de estudar pintura em Roma o foram concretizados,
Aluísio viu outras possibilidades viáveis para dedicar-se à pintura do mundo, o que,
muitas vezes, fazia de forma caricata para ressaltar os defeitos que via e como os
via.
Foi também ao lado de membros de sua família que Aluísio dedicou-se à
atividade jornalística. Seguindo os passos de Artur, ele decidiu fixar-se na Corte e ali
dar continuidade às modalidades artísticas já adquiridas. Foi assim que Aluísio
começou a trabalhar como caricaturista em jornais como O Fígaro, O Mequetrefe,
Zig-Zag e A Semana Ilustrada. Depois de uma passagem pelo Maranhão, seu
retorno ao Rio de Janeiro deu início a uma carreira exemplar de folhetinista, como
um hábil escritor de romances-seriados, como grandes crônicas do cotidiano,
reveladas de modo caricato.
Sobre o gênero do romance-seriado, as produções que antecederam Casa de
Pensão, os temas e a linguagem naturalista, o crítico Araripe Jr. (apud BOSI, 1978,
p. 135) ressalta que: “Depois da brilhante estréia d’O Mulato (1881-1882), o autor
andou a satisfazer a avidez dos leitores de rodapé, escrevendo as Memórias de um
condenado e Os Mistérios da Tijuca, vazando-os, embora com muitas restrições, nos
moldes de Xavier de Montépin e de Panson du Terrail”.
O romance-seriado Memórias de um Condenado lançado em 1882, um ano
antes da primeira variante de Casa de Pensão estimulou um leitor em especial a
escrever uma carta a Aluísio, como uma espécie de crítica a algumas
particularidades do romance-seriado.
Em resposta, Aluísio compôs a epístola “A Giovani (particular)
5
”, revelando
que, embora não tivesse o hábito de responder às cartas dos leitores, o faria nesse
caso, demonstrando certa intimidade com aquele que lhe escreve: "Querido
desconhecido. A tua carta é a primeira carta anônima que respondo, das
5
Obras completas de Aluísio Azevedo. O Touro Negro. São Paulo: Martins, 1961. p. 51-54 (grifos
nossos).
29
muitíssimas que até hoje tenho recebido. E a razão disso está simplesmente no
modo asseado por que me falas”, o que pode o se tratar de um leitor qualquer,
mas de um crítico. Nossa constatação parte do pressuposto de que somente um
conhecedor de literatura teria a atitude de fazer apontamentos em uma obra que
havia obtido reconhecimento no meio literário. Além disso, a aparente confiança
conquistada de Aluísio é expressa quando o escritor se dirige ao leitor anônimo
nestes termos: "Ofereceste-me obsequiosamente para anotar o meu romance O
Mulato e eu aceito e agradeço o oferecimento, sentindo apenas não possuir um
exemplar para pô-lo à tua disposição”.
Se considerarmos a literatura como um processo que encontra no romance-
seriado uma vertente plástica, tanto pelo formato quanto pela possibilidade de
mudança de perspectiva durante a publicação dos segmentos, a crítica poderia
contribuir para o reconhecimento das obras. Nessa perspectiva, Aluísio acrescenta:
Estou reconhecido pelas palavras lisonjeiras que me dedicas e mais ainda pelo
interesse que mostras pelas minhas produções”.
Sobre o romance-seriado Memórias de um Condenado, publicado um ano
antes do primeiro surgimento de Casa de Pensão, podemos dizer que a proximidade
temporal entre a publicação dos dois romances revela particularidades dos
procedimentos utilizados por Aluísio na produção de romances-seriados, ao mesmo
tempo em que desvenda o significado desse gênero no processo criativo de suas
obras, conforme registrado na mesma carta:
Quanto ao que dizes a respeito das Memórias do condenado
6
, pesa-me
confessar-te uma coisa: - Tu tomaste muito a sério essa obra.
Que não nos ouçam os leitores do rodapé, mas impõe-me a franqueza
declarar-te que as Memórias, enquanto não aparecerem em volume, não
merecerão desvelos de ninguém.
Romance de au jour le jour, escrito para acudir às exigências de uma folha
diária, está, como facilmente se pode julgar, eivado de erros e descuidos,
que só na revisão para o volume poderão desaparecer.
Além disso, os erros tipográficos são tantos e tão constantes, que
constituem uma verdadeira calamidade. Ainda no último folhetim, eu escrevi
- belos brilhantes, e os tipógrafos disseram - velhos brilhantes; em outro
lugar falo de pedras limpas, e eles emendaram para mpidas. Isto sem
querer citar as repetidas transposições que alteram completamente o
sentido do que está escrito; as palavras incompletas, os saltos e mil outros
inimigos do estilo e da boa lógica gramatical.
6
Romance-seriado, publicado na Gazetinha – Rio de Janeiro de 1º de janeiro a 7 de junho de 1882.
30
O conteúdo a seguir expõe como Aluísio diferenciava a linguagem ligada à
produção folhetinesca daquela registrada em livro e a preocupação com o efeito
causado pela linguagem naturalista. Em resposta a alguns questionamentos feitos
por Giovani
7
, leitor do romance-seriado Memórias do Condenado – Aluísio publica o
seguinte texto:
Mas vejamos as tuas três primeiras emendas:
1.
o
) Queima como pus.
Se bem que isto não seja uma frase completamente verdadeira, tem todavia
algum fundo de verdade. certo pus venenoso, que possui propriedades
de cáustico, e queima a epiderme. Podes facilmente verificar esse fato nas
feridas venéreas. Contudo não discuto a frase, porque não reconheço nela
valor algum.
2.
o
) O abuso das frases − Que diabo! com os diabos! etc., etc.
Não me pareces nisso muito razoável, mas enfim pode ser que tenhas
razão.
3.
o
) Pedes a supressão de certo adjetivo, porque ele pode lembrar
desgostos a uma senhora, que ambos nós respeitamos.
Quanto a isso, só me resta declarar-te uma coisa: − Para poupar um
desgosto a uma senhora de minha estima, eu seria capaz de sacrificar um
dedo, quanto mais um adjetivo [destaques do autor].
Sobre a resposta dada por Aluísio, destacamos o primeiro item citado acima,
por intermédio do qual o escritor explica que a utilização do vocábulo pus” está
relacionada à linguagem naturalista que emprega termos científicos para demonstrar
particularidades de algumas das cenas retratadas nos romances; no segundo item, o
escritor responde ironicamente à crítica quanto à utilização excessiva da expressão
com os diabos!”, sobretudo porque essa é uma estrutura que aparece de modo
recorrente nas produções de Aluísio, tanto nos romances-seriados quanto nos livros;
e é com ironia que o escritor também responde ao último item.
Ao valorizar as contribuições que serviam para o aprimoramento artístico,
Aluísio finaliza a epístola de modo objetivo, com a seguinte consideração: “Creio que
te fiz a vontade; espero por conseguinte que sejas mais severo nas tuas notas.
se dizes alguma cousa sobre a concepção artística de meus trabalhos”.
Se, por um lado, Aluísio preocupava-se em seguir a nova estética Real-
Naturalista, por outro lado, tinha consciência de que os leitores ainda estavam
acostumados a ler romances românticos. O resultado desse impasse foi a adoção de
um gênero híbrido, que tanto agradaria os leitores quanto a crítica. Em Os Mistérios
da Tijuca (FOLHA NOVA, 1882-1883) – publicado em folhetim até 18 de fevereiro de
7
Aluísio Azevedo. O Touro Negro, 1961, p. 51-54 (grifos nossos).
31
1883, que seria sucedido por Casa de Pensão no mesmo jornal, a partir de 05 de
março do mesmo ano –, Aluísio enfatiza que pretende introduzir o leitor ao romance
moderno, a partir de doses de Romantismo que “vão gradativamente diminuindo
enquanto que as do Naturalismo irão se desenvolvendo; até que, um belo dia, sem
que o leitor se sinta, esteja completamente habituado ao romance de pura
observação e estudo de caracteres”. Ao empregarmos esse procedimento ao
romance Casa de Pensão, o código híbrido pode nos revelar quais eram as doses
de Romantismo e de Naturalismo dadas aos diferentes públicos. Sobre esse
aspecto, Brayner (1973), que, de certo modo, responde, indiretamente, aos
apontamentos feitos por Giovani (anônimo), enfatiza que:
O que agrada aos críticos favoráveis à cnica naturalista é a possibilidade
de um julgamento dos costumes sociais, muito dentro da linhagem eciana.
Entretanto, o aspecto descritivo e desvendador é julgado com severidade,
pois pode macular a inocência de leitores despreparados ou mocinhas
ávidas de sensações proibidas (BRAYNER, 1973, p. 26).
Conhecido em seu meio pela polêmica levantada em seus romances, entre
1882-1883, Aluísio Azevedo empenhava esforços para acostumar o leitor à leitura de
romances naturalistas. O crítico Araripe acompanhou esse processo, por isso
pergunta:
Por mais de uma vez, se lhe aprazia assanhar essa fera chamada – público,
atirando-lhe pedaços de carne crua e ensangüentada, como costumam
fazer os domadores, para mostrar mais realçadas as suas qualidades
dominadoras. A resposta a estas e outras injunções foi o aparecimento de
Casa de Pensão (ARARIPE JÚNIOR apud BOSI, 1978, p. 135).
Mas o que seria essa carne crua e ensangüentada? Será que o crítico estava
fazendo apenas uma referência à linguagem naturalista? Não, mais do que isso, a
carne crua em Casa de Pensão pode estar relacionada às informações que
referenciam um drama, quando o escritor retoma um tema que se encontra vivo na
memória de muitos dos leitores, pois apenas sete anos separavam o trágico
assassinato de Capistrano da Cunha (1876) da ficção (1883). Sobre o processo
criativo desse romance, Bosi acrescenta que:
Em Casa de Pensão, a vida airada do estudante que vem do Norte para o
Rio, o ambiente pegajoso da pensãozinha onde se instala, enfim o rumor
dos jornais e da boêmia em volta do caso escandaloso em que se envolve,
32
formam o coro, estruturalmente superior ao desenho flácido, do
protagonista, cujas franquezas são atribuídas desde as primeiras páginas à
herança do sangue (BOSI, 1994, p. 190).
Para Aluísio, o Naturalismo e a literatura não representavam apenas uma
linguagem e uma estética, mas uma atitude diante da sociedade e uma maneira de
exercer, em sua função, um combate ideológico. Nesse sentido, o sucesso da ficção
significava um sinal de respeito às idéias que nele estavam vinculadas e a garantia
de venda de sua produção artística. Suspender a publicação em folhetim e dedicar-
se à edição da versão em livro significava que os onze capítulos da primeira versão
haviam garantido que o livro também obteria sucesso e venda. Nesse aspecto, o
processo de criação de Casa de Pensão em folhetim é desenvolvido para
visibilidade social.
No contexto específico das trocas simbólicas desenvolvidas a partir de uma
dialética reiterativa entre o romance Casa de Pensão e a Questão Capistrano, os
tipos de sociedade representados nas variantes aparecem sujeitos da experiência do
espaço, ou seja, sua culminância ocorre de acordo com um corpo social,
historicamente determinado, que a realiza. Desde o momento em que os leitores se
propõem a desvendar o que de imaginário em Casa de Pensão, a sociologia da
arte se autentica pelo caráter de representação de conhecimento ligado ao contexto
carioca do século XIX. Nessa perspectiva, Francastel (1968, p. 1728) ressalta que:
“jamais o signo plástico é o duplo ou o equivalente do real, ele é um relais. Ele não
manifesta um fato ou uma idéia [], mas uma causalidade. É o testemunho de uma
conduta, não o reflexo de uma essência”.
A estrutura artística de Casa de Pensão pode ser vista pela via dupla, tanto
pela linguagem intertextual, que influencia as escolhas lingüísticas e a construção de
sentido do texto, da mesma forma que por influenciar os leitores e uma sociedade
pelo ponto de vista expresso nas entrelinhas do discurso literário. Quando Aluísio
opta por inserir, gradativamente, o Naturalismo, respeitando o hábito que o público
ainda cultivava pelos romances românticos, expressa a intenção de familiarizar o
leitor com o novo nero em plena atividade na Europa graças à produção artística
de Émile Zola, que influencia a literatura brasileira, principalmente as produções de
Aluísio Azevedo. A preocupação com a elaboração de uma obra literária representa
um sistema dialógico integrado pelo leitor e escritor. Sobre o sistema de
comunicação, o estruturalista Lotman destaca que:
33
A escolha pelo escritor de um gênero, de um estilo ou de uma tendência
artística determinados é também a escolha da linguagem na qual ele pensa
falar ao leitor [...] A transcodificação de uma linguagem noutra,
extremamente produtiva na maioria dos casos e que surge em ligação com
os problemas interdisciplinares, descobre num único objeto, tal como
parecia antes, os objetos de duas ciências ou leva à elaboração de um novo
domínio do conhecimento e de uma nova metalinguagem que lhe é própria
(LOTMAN, 1978, p. 50-51).
A leitura intratextual do romance Casa de Pensão pode identificar códigos
ligados ao gênero da publicação. No entanto, apenas os leitores contemporâneos à
publicação do romance-seriado ou aqueles que têm acesso ao conjunto de quarenta
seqüências e das notícias da Questão Capistrano poderão identificar facilmente os
códigos extratextuais, que ajudam o leitor a entender a situação comunicativa do
discurso ficcional. Quando Aluísio elaborou a nota Antes de principiar, utilizou uma
linguagem individualizada para dialogar com os leitores da publicação seriada, já, na
versão em livro, que atinge uma dimensão social mais ampla, a nota foi suprimida.
Duas publicações envolvem diferentes estâncias de leitura de mundo, porque
nem mesmo os documentos que envolvem o processo de produção das duas
versões de Casa de Pensão e os jornais da época desvendam todos os códigos
extratextuais do romance ou sua dialogia externa. No entanto, por intermédio do
texto artístico, a leitura de um microcosmo da sociedade carioca pode ser feita em
diferentes épocas, a partir da compreensão intratextual, limitada ao que o formato
em livro conseguiu absorver e cristalizar na linguagem literária.
Pertencente a um universo pouco conhecido para os leitores que somente
têm acesso à variante em livro, Casa de Pensão, no formato de romance-seriado,
contém especialidades do processo de criação do discurso ficcional, ligadas ao
gênero da publicação, periodicidade quase que diária e cortes sistemáticos. Essas
características nos levam à apresentação das principais informações ligadas a cada
uma das seqüências localizadas, ao mesmo tempo em que nos permitem aplicar
alguns dos exemplos representativos da metodologia elaborada por Ribeiro (1996;
2000). Com o resultado dessa abordagem, torna-se possível verificar as técnicas
composicionais de Casa de Pensão para o jornal, como forma de interpretar as
técnicas utilizadas por Aluísio Azevedo na primeira versão desse romance.
No período que vai do dia 06 de março a 22 de maio de 1883, o jornal Folha
Nova – RJ publica os dez primeiros capítulos e parte do décimo primeiro do romance
Casa de Pensão. No dia 30 desse mesmo mês, Pinho informa aos leitores do
34
jornal O Mequetrefe (RJ) que “Aluísio Azevedo tem empregado o máximo esmero na
elaboração desta obra, e a Casa de Peno vai ser talvez o primeiro estudo sério
que se tenha feito entre nós, na esfera do romance”. No mês seguinte, no dia 10 de
junho, O Mequetrefe, em texto assinado por K. Loiro, anuncia a publicação de um
fascículo do romance, no entanto, não tivemos acesso a essa variante, tendo em
vista que a próxima versão localizada é a em livro (popular), lançada em 1884, por
Faro & Lino Editores, cuja estrutura apresenta vinte e dois capítulos.
No jornal Folha Nova, o romance é introduzido pela nota Antes de principiar,
publicada no dia 05 de março de 1883, na véspera da publicação da primeira das
quarenta seqüências do romance-seriado.
As quarenta seqüências encontradas na Biblioteca Nacional RJ
representam grande parte da publicação em jornal e possibilitam a aplicação do
procedimento proposto para a análise dessa variante, a partir de exemplos
representativos de todas as seqüências. Na análise do romance-seriado, as técnicas
da narrativa folhetinesca revelam as estratégias textuais utilizadas por Aluísio para a
composição de cada seqüência do romance, conforme pode ser observado a seguir.
Além de seguir as tendências adotadas pelo mercado editorial de sua época,
ora lançando seus romances na seção folhetim de algum jornal, ora adequando o
texto para o formato de livro, Aluísio Azevedo é considerado um dos poucos
escritores brasileiros a fazer da literatura e do jornalismo duas profissões. No
universo artístico de Azevedo, essas duas modalidades estão profundamente
associadas, seja no momento de selecionar informações, elaborar os textos, divulgar
romances-folhetins ou estruturar um livro. Essa estreita relação contribuiu para que
os discursos se fundissem, resultando em uma nova linguagem, híbrida, entre
literatura e jornalismo.
1.1 Capítulo I – dois segmentos
1.1.1 Primeira seqüência: 06 de março (01)
35
1.1.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: a marca temporal “Seriam onze horas da manhã” descreve o
momento em que Campos, o primeiro personagem a ser apresentado, desce do
almoço. Depois do tempo, é apresentado o espaço de trabalho, em que havia
grandes livros de escrituração mercantil
8
, uma escrivaninha, prensa de copiar,
dentre outros objetos.
Colunas 02 e 03 O comerciante está escrevendo uma carta, quando um rapaz
[Amâncio] o interrompe, “perguntando se podia falar com o Sr. Luiz Batista de
Campos”. O jovem de 20 anos é descrito como um tipo do Norte do Brasil,
levemente estrábico, que ostentava sua riqueza pelas jóias que usava. Os dois se
apresentam.
Coluna 04 Amâncio entrega a Campos uma carta escrita pelo pai, o Sr.
Vasconcelos, na qual este solicitava que o comerciante, que tinha sido sócio do tio
do seu irmão, ajudasse o filho a fixar-se na Corte. Essa era apenas uma das
inúmeras cartas de recomendação que Amâncio ainda precisava entregar.
Colunas 05 A casa comercial de Campos é descrita minuciosamente. No térreo,
era o armazém, no primeiro andar, o escritório e, no segundo andar, era onde o
guarda-livros morava com a mulher – Hortênsia e uma cunhada – Carlotinha.
Coluna 06 São descritos os hábitos de Campos. O final desta seqüência revela
que Campos: “nos dias de descanso dava-se todo ao Figuier, ao Flammarion
9
e ao
Júlio Verne
10
; outras vezes”, poucas, atirava-se à literatura francesa, mas os
verdadeiros mestres do romance o aborreciam com o seu estilo compacto e
cerrado”.
8
Obras do período: 1878 de Jerônimo Joaquim de Oliveira “Compêndio - Comercial - Tratado Prático
de Direito e Escrituração Mercantil”; 1880 de Ildefonso de Souza Cunha Guia teórico prático de
escrituração mercantil.
9
Os cientistas Louis Figuier e Camille Flammarion foram dois dos principais e mais renomados
divulgadores científicos da segunda metade do século XIX. Louis Figuier renunciou à carreira
científica para dedicar-se à criação do teatro científico. Autodidata, Camille Flammarion tornou-se
astrônomo e publicou a obra especializada: Tratado de Astronomia.
10
Júlio Verne foi um dos primeiros escritores a dedicar-se à escrita da moderna ficção científica, tal
como: "Cinco Semanas em um Balão" (1863), "Viagem ao Centro da Terra", "Da Terra à Lua" (1865),
"Vinte Mil Léguas Submarinas" (1869) e "A Volta ao Mundo em 80 Dias" (1872).
36
1.1.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O romance-seriado inicia-se com a frase: “seriam onze horas da manhã”. Para
Ribeiro (2000, p. 166), essa marca temporal “procura indicar logo ao leitor o
marcador do tempo ficcional em questão”, além disso, essa expressão indica a
presença de “uma voz narrativa que assume um tom bem coloquial”. Outra técnica
narrativa notada refere-se ao início “sem muitos preâmbulos, contendo referência
direta à hora da história”. Apesar de ser inserida indiretamente a referência do mês,
pressupomos que se trata de fevereiro ou março, pois fazia muito calor e, nessa
época, o período letivo já havia começado.
Enquanto o final desta seqüência apresenta a informação de que a leitura dos
grandes mestres do romance aborrecia Campos, “com o seu estilo compacto e
cerrado”, a versão em livro revela que o descontentamento está ligado aos
“rigorismos da forma”.
1.1.2 Segunda seqüência: 07 de março (2)
1.1.2.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 – O primeiro parágrafo, que marca o início desta seqüência, foi suprimido
no livro: “O fato é que era [Campos] um excelente homem. Percebiam-se-lhe os
bons desejos e as justas intenções; descobria-se o esforço que ele empregava pra
se distinguir o mais possível dos colegas grosseiros e marialões”.
Coluna 02 A vida profissional estava em harmonia com a familiar, em meio à
organização e à limpeza, o que era mantido graças à sua determinação e às
qualidades encontradas na mulher Hortênsia. Campos “sentia-se bem no meio
dessa ordem, desse método”.
Coluna 03 – Conteúdo que somente existiu no romance-seriado: “De Ponsos a
Pilatos [Campos] com uma mão atrás a outra adiante!... Diziam alguns colegas
invejosos” [...]. Não tinha mais de 36 anos de idade e era “assombroso” o modo
como Campos prosperava. um diálogo que expressa os comentários que os
vizinhos faziam a seu respeito, alguns o invejavam, outros o elogiavam.
37
Coluna 04 “E assim ia Campos. Amaldiçoado por uns, bem ausentado por outros,
ora elogiado, ora mal falado, mas sempre a caminhar, sempre a prosperar”. No livro,
esse texto é resumido da seguinte forma: “E o caso era que o Campos, ou devido à
fortuna ou ao bom tino para os negócios, prosperava sempre”. Amâncio retorna à
casa do comerciante para jantar, às quatro horas da tarde, quando o jovem não
conseguia entregar as últimas cartas, pois o calor o fatigava.
Coluna 05 Enquanto Amâncio está na sala de visitas, Hortênsia tenta convencer
Campos a não receber o maranhense, dizendo que “meter estudantes em casa é o
diabo”. Campos justifica que precisa receber o jovem para pagar os favores que
devia à família Vasconcelos, que o acolheu no Maranhão. Ele acrescenta que “ele
até parece tolo”. É acrescentada a informação de que Campos é cearense, por isso
hospitaleiro.
Coluna 06 O final desta seqüência é surpreendente. Se nas colunas anteriores,
Maria Hortênsia mostrava desaprovar a atitude do marido de acolher o jovem,
durante o jantar ela passou a se dirigir a ele com um sorriso afável nos lábios.
Enquanto isso, Amâncio observava Carlotinha: “não a perdera de vista e, com o seu
espírito perspicaz de maranhense, entrava-lhe pelos ouvidos e ia mexer-lhe a
alma [Apenas o romance-seriado apresenta a informação destacada]. Às sete
horas, o nortista vai para o hotel “Coroa de ouro”, tenta dormir, mas não consegue
deixar de ver o vulto de Hortênsia a lhe sorrir, “estendendo-lhe no ar os belos
braços, brancos e carnudos”. Ao dormir, são interrompidos os relatos sobre as duas
mulheres, que haviam mexido com Amâncio naquela noite e, assim, instaura-se um
suspense.
1.1.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A conexão estabelecida com o segmento anterior possibilita a continuidade
das descrições apresentadas. Há explicações sobre a ascensão profissional do
comerciante, sua feição pelos livros e as conquistas adquiridas pelo trabalho.
Da segunda até a quarta seqüência, é privilegiada a descrição de Luís de
Campos, comerciante português amigo da família Vasconcelos, para a qual devia
favores. No romance-seriado, diz-se que “apesar de brasileiro, Campos nunca
38
conseguiu espantar de sua casa o ar triste que a ensombrecia”, ao passo que na
publicação em livro, o comerciante recebe os atributos de brasileiro e inteligente.
Apesar de serem apresentadas com detalhes as qualidades do comerciante, a
“ausência da descrição psicológica” nos impede de realizarmos qualquer julgamento
sobre o porquê de Campos não conseguir espantar o ar triste de sua casa.
O conteúdo da terceira, quarta e quinta colunas é apresentado por meio de
diálogos. O final desta seqüência é igual ao apresentado em livro.
A técnica de priorizar a ação dos personagens com o recurso de expressão para
esse fim” (RIBEIRO, 1996, p. 45) pode ser notada na sexta coluna, quando Amâncio,
“com o seu espírito perspicaz de maranhense, entrava-lhe pelos olhos e ia mexer-lhe
a alma [de Carlotinha]”.
1.2 Capítulo II – quatro segmentos
1.2.1 Primeira seqüência: 08 de março (3)
1.2.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 – Início: Há um deslocamento espacial. Amâncio deixa o hotel para
instalar-se na casa de Campos. Nessa altura, também realiza uma reflexão sobre
suas primeiras impressões acerca do Rio de Janeiro.
Coluna 02 O aspecto infantil e os traços delicados de Amâncio camuflavam seu
lado dissimulado e fingido, como conseqüência dos castigos recebidos do pai e do
professor. E só encontrava refúgio nos braços da mãe, Ângela. Apenas o romance-
seriado contém essa informação a propósito do pai: “[...] trabalhador como um herói,
mas bruto como um burro. Amava muito o filho, mas entendia que lhe não podia dar
melhor prova de estima do que ministrando de vez em quando alguns pontapés,
quando o rapaz fazia das suas”.
Coluna 03 Aos sete anos Amâncio inicia os estudos. No início, o menino tenta
afrontar o professor Pires, mas o medo do castigo o faz disfarçar seu ódio, porque os
pais “ignorantes, viciados pelos costumes bárbaros do Brasil, atrofiados pelo hábito
39
de lidar com escravos, descobriam naquele bruto o unido professor capaz de
endireitar os filhos”.
Coluna 04 Quando tinha oito anos, um colega de classe provoca Amâncio,
ofendendo sua mãe. Esse insulto instaura grande conflito. Isso era relembrado pelo
professor, sempre que dizia ao Vasconcelos que “aquela criança lhe havia de dar
muito desgosto”.
Coluna 05 “De repente, ouve-se o estalo de uma bofetada” [no colega que o
ofendera pouco]. Depois de castigar Amâncio, Pires pede para que o garoto que
havia recebido a bofetada “aplicasse mais outras tantas palmatoadas” no colega.
Coluna 06 – Como Amâncio diz que não irá se submeter ao castigo, o professor fica
nervoso e deixa “escapar a mesma frase que pouco antes promovera tudo aquilo”.
“Amâncio recuou dois passos e soltou em cheio a mão no rosto do mestre. Depois
fugiu, a correr”. Seguindo as ordens do professor colérico, cinqüenta condiscípulos
perseguiram Amâncio até levá-lo à presença do professor. Amâncio sofreu um novo
castigo. Quando chegou em casa, o pai “deu-lhe nova sova e obrigou-o a pedir
perdão de joelhos ao professor e ao menino da bofetada”. Desde então, todo o
sentimento de justiça se transformou em ódio. Esta seqüência termina com Ângela
beijando o filho antes de dormir: “dissera-lhe, com uma lágrima nos olhos, que ele
fizera muito bem”.
1.2.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Na primeira coluna, o personagem Amâncio descreve suas primeiras
impressões acerca do Rio de Janeiro. O maranhense esperava que a cidade fosse
uma espécie de Babilônia, onde a libertinagem podia correr solta, com a exploração
da “temática dos vícios e amor selvagem”. O conteúdo em livro apresenta o espaço
comparado a Paris, que conhecia através das de feitas por Dumas e Paulo de Kock,
escritores franceses que retrataram problemas sociais por intermédio da ficção. Nas
duas versões, a cidade é vista como um lugar de se viver à vontade, com liberdade e
sem medo de escândalos.
Com a técnica de “conduzir para trás” (RIBEIRO, 1996, p. 45), o personagem
remete-se ao “mestre, um tal José Antônio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo
40
negro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício” (3ª
coluna). O vilão é descrito com “traços grosseiros e satânicos”. Esse professor falava
a berrar “como se dirigisse uma boiada”. O professor foi uma espécie de carrasco na
vida do protagonista, uma vez que seus castigos e tratamentos severos foram
grandes responsáveis por Amâncio ter se tornado um sujeito hipócrita. De acordo
com Menezes (1958, p. 55), o autor utiliza no romance-seriado o nome do antigo
professor José Antônio Pires, tão carrasco quanto o vilão ficcional. Essa analogia se
remete à técnica narrativa da “verossimilhança que nunca escorrega para o
irracional” [...] porque há “uma explicação real para a verossimilhança dos fatos”.
um “lance teatral” na classe do Pires. As bofetadas, uma dada por
Amâncio no colega e a outra no mestre, causam grande confusão. Esse episódio é
retomado pelo professor sempre que o Pires tenta alertar Vasconcelos para o
aborrecimento que o filho lhe daria, como se antecipasse o desfecho da história.
Nesta seqüência, também podemos notar a presença da técnica de
construção narrativa da “estética divergente e centrífuga”, que engloba a mudança
de Amâncio para a casa de Campos; as primeiras lembranças do Maranhão, com a
visão idealizada da mãe e desejo de vingança que sentia sempre que as imagens do
pai e do professor Pires vinham à sua mente. Apesar da multiplicidade temática,
todos esses pontos estão ligados à explicação de como se formou o caráter do
personagem. O final desta seqüência é feito durante a narração de eventos
ocorridos na infância de Amâncio, o que provoca suspense até a retomada desse
assunto no próximo seguimento.
1.2.2 Segunda seqüência: 09 de março (4)
1.2.2.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: um acoplamento de idéias, que se pela explicação dos
efeitos que o castigo provocara na vida do personagem: “Esses pequenos episódios
da infância, tão insignificantes na aparência, decretaram todavia a direção que tinha
de tomar o caráter de Amâncio”.
Coluna 02 “E Amâncio dominava-se, fazia-se sério por medo de apanhar”. “Por
essa forma foi se tornando reservado e fingido”.
41
Coluna 03 – “Tudo isso foi o esterco onde desabrochou no seu temperamento o leite
escravo que lhe deu de mamar a preta que lhe serviu de ama”. Essa referência
provoca um recuo ainda maior no tempo do romance, que passa a revelar os
momentos que antecederam e precederam o nascimento de Amâncio.
Coluna 04 A técnica narrativa de “conduzir para trás surge novamente nesta
coluna. Os castigos, somados ao fato de que sua ama de leite tinha problemas de
saúde, remetem-nos à advertência do médico: “ Esta mulher tem reuma no sangue,
dizia ele, e a criança pode vir a sofrer no futuro”. Amâncio “era muito feio de
pequeno. Um nariz disforme, uma boca sem lábios e dois rasgões no lugar dos
olhos. Não tinha um fio de cabelo e estava sempre fazendo caretas”.
Coluna 05 “Ângela adorava-o com o entusiasmo do primeiro parto”. “A avó, uma
quase analfabeta, supersticiosa e devota, permitia-lhe todas as vontades e morria de
amores por ele”. E Amâncio se aproveitava muito dessa predileção.
Coluna 06 Como um pedido de Amâncio era suficiente para que a avó
suspendesse os castigos dados aos negros, os escravos da fazenda tratavam
Amâncio como “um pequeno Deus, caprichoso e colérico. Suportavam sorrindo
todas as duas diabruras e cumpriam os seus desejos, como se eles fossem ordens
irrevogáveis” [esta última citação é suprimida da versão em livro]. aos onze anos,
fez o seu exame de português na aula do Pires [...] foi aprovado plenamente, mas
não sabia nada; quase não sabia ler”. O Lyceu, nova etapa da vida acadêmica para
Amâncio, representava ficar longe do castigo. A conclusão desta seqüência é feita
com as projeções de Amâncio: “só de se lembrar que não estava ao alcance das
garras do Pires, o coração saltava-lhe de alegria”. No livro, o Pires é classificado
como maldito e é “uma alegria nervosa” que está associada ao sentimento de
liberdade.
1.2.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A “estética divergente e centrífuga” e a “técnica narrativa de conduzir para
trás” apresentam as informações relacionadas tanto com os quatro anos que
Amâncio fora aluno do Pires, quanto ao recuo, mais ainda no tempo, que focaliza o
nascimento do protagonista e sua nova fase no Lyceu, aos quatorze anos.
42
As colunas um e dois apresentam a “fisionomia interior do personagem”, na
quatro, a fisionomia de recém-nascido é delineada com traços fixos, os defeitos
exagerados. Todas as seis colunas desta seqüência apresentam informações
importantes para o desenvolvimento narrativo e a posição ocupada por Amâncio em
diversas situações dentro da intriga. Sua debilidade infantil servirá de gancho para o
início do décimo terceiro segmento, quando é inserida a explicação do que o
prendeu por três anos na casa da avó, atrasando a conclusão dos estudos,
preenchendo lacunas deixadas na primeira seqüência. Esse “didatismo narrativo” é
característico no romance-seriado e fundamental para a compreensão dos cortes e
ganchos feitos, não apenas com as seqüências anteriores e posteriores, mas com
todos as partes que integram a diegese de Casa de Pensão.
1.2.3 Terceira seqüência: 10 de março (5)
1.2.3.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 – Início: “Vasconcelos quis festejar o exame do filho com um jantar”.
Coluna 02 Mais uma vez, há um recuo do tempo para dizer que em pequeno
era [Amâncio] muito sabido, muito esperto!”. Com pesar, Ângela refletia sobre o fato
de que não teria seu filho perto de si para sempre.
Coluna 03 – Com ar superior, Amâncio revela a um dos convidados que irá ingressar
na Marinha.
Coluna 04 “Amâncio nunca mais voltou a passear na fazenda da avó. Agora
gostava mais de ficar na cidade. Tinha namoros [...] fumava, fazia pandegas com os
colegas do Lyceu”.
Coluna 05 A liberdade encontrada quando fugia à noite parecia “lhe sorrir por um
prisma voluptuoso e romanesco”.
Coluna 06 – Seus pensamentos são embalados pelas lembranças de cenas lidas em
livros românticos e pela música que lembrava os Girondinos de Lamartine. O final
43
desta seqüência ocorre com a convicção de Amâncio de que era preciso viver
livremente outro mundo, por isso decidiu partir para o Rio de Janeiro, onde poderia
viver “aventuras inesperadas e amores, amores principalmente”.
1.2.3.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A quarta coluna retoma a informação apresentada na última coluna da
seqüência anterior, dando continuidade aos relatos sobre a trajetória acadêmica de
Amâncio. Essa correlação de informações possibilita o desenvolvimento da
seqüência anterior, ligando a aprovação de Amâncio à festa para comemorar sua
aprovação na avaliação do Pires.
O final desta seqüência é inconsistente, se comparado com os inúmeros fatos
relatados nas seis colunas que lhe integram. As lembranças tidas com a primeira
bebedeira, durante a festa oferecida por seu pai, e as outras que a precederam
fazem uma cronologia da vida boêmia que Amâncio levava no Maranhão. A voz do
narrador acrescenta que Amâncio buscava a liberdade idealizada com a vida na
Corte.
Enquanto o romance-seriado apresenta esses fatores para explicar o porquê
de sua “vinda para o Rio de Janeiro”, o livro os coloca como justificativa para
Amâncio deixar o Maranhão e “ter de seguir para o Rio de Janeiro”. O ponto final é
substituído por um ponto de exclamação para encerrar esta seqüência.
1.2.4 Quarta seqüência: 11 de março (6)
1.2.4.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 – Início: “Desde bordo principiou a gozar do efeito que a novidade de sua
viagem produziu-lhe no espírito. Amâncio está a bordo do navio que o levaria à
Corte”.
44
Coluna 02 O personagem lembra-se do sofrimento que a despedida causou em
sua mãe. No entanto, ele achava que já estava indo tarde.
Coluna 03 Ângela ficou doente nos dias que antecederam à partida do filho. “No
dia da viagem não se pode levantar da cama [...]”.
Coluna 04 – E a “lembrança do dinheiro puxou logo outros consigo; voltaram os seus
sonhos de prazer, as suas fantasias românticas”. Dos quinze anos até sua partida
tinha vivido muitos amores, mas achava que estas três mereciam ser lembradas:
a filha do Costa Lobo, a mulher de um comendador e uma viúva.
Coluna 05 – Amâncio tinha 16 anos, “estava cheio de tolice” quando a mulher de um
comendador o encaminhou. Porém, não podia deixar de reconhecer que a filha do
Costa levava vantagem pela primazia em beleza, em frescura, em novidade. “Ela às
vezes chorava”.
Coluna 06 – “Já não era assim a viúva. Muito mais séria, romântica, só falava
escolhendo termos com os olhos revirados, a voz sibilada. Amâncio custou alcançá-
la, mas depois viu-se perseguido: a viúva era muito ciumenta. Fazia cenas, afetava
crises histéricas, gostava de agatanhar, descompor, dizer impropérios. Amâncio
achava que das três era a mais inteligente, mas espirituosa, mais metida a literata”.
Coluna 07 Todo o conteúdo desta coluna está mutilado, assim como o final de
todas as outras colunas desta seqüência.
1.2.4.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Na vertente em livro, são suprimidos os detalhes sobre os primeiros amores
de Amâncio. Embora parte do documento esteja mutilada, ainda é possível ler
grande parte das informações sobre as primeiras experiências amorosas do
protagonista:
Não sabia qual das três era o melhor [amor] (...
11
) ao restaurante do Porto.
Sentaram-se ao lado um do outro; no meio do céu já brincavam com os pés,
e no dia seguinte cartearam-se.
Amâncio teria dezesseis anos, estava ainda cheio de tolice; ela o
encaminhou.
11
Parte mutilada.
45
Como foram felizes. Como foram! Com que prazer não saltava ele o muro
do quintal para ir falar-lhe à meia noite por debaixo da janela de seu quarto,
ao clarão melancólico da lua ou das estrelas.
Foi a sua primeira paixão, foi a sua primeira conquista séria, tinha saudades
dela. Mas a filhinha do Costa Lobo!!
Se a mulher do comendador levava vantagem nas salas, nas toilettes, no
luxo, a filhinha do Costa Lobo tinha a primazia em beleza, em frescura em
novidade.
Era quase criança; todos a supunham inocente. Amâncio para falar-lhe tinha
de subir por uma escada de cordas, que ela prendia à janela.
As entrevistas eram na cozinha, pela madrugada quando toda a casa
dormia. Amâncio sentava-se em um degrau do fogão, que era de barro, dos
primitivos.
Havia sempre muito sobressalto, muito susto. Ela às vezes chorava.
Uma tia da menina (...
12
).
Já não era assim a viúva. Muito mais séria, romântica, só falava escolhendo
termos, com os olhos revirados, a voz sibilada. Amâncio custou alcançá-la,
mas depois viu-se perseguido; a viúva era muito ciumenta. Fazia cenas,
afetava crises histéricas, gostava de agatanhar, descompor, dizer
impropérios.
Amâncio achava que das três era a mais inteligente, mais espirituosa, mais
metida a literata (4ª, 5ª e 6ª COLUNAS).
Os três amores são relatados em lances teatrais. Os espaços de São Luís
integram o cenário dos amores proibidos: Amâncio precisava pular um muro à meia
noite para se encontrar com a mulher de um comendador; de madrugada, subia por
uma escada de cordas até a janela da casa da filhinha do Costa Lobo; quanto à
viúva, os obstáculos eram feitos por ela, que dificultava a conquista. Todas as
aproximações são cercadas por lances teatrais, em meio a dificuldades, obstáculos,
que são recompensados pela conquista de seus amores.
uma particularidade estrutural nesta seqüência, que consiste na
distribuição do conteúdo em sete colunas, ao passo que a maioria dos segmentos
apresenta seis.
1.3 Capítulo III – cinco segmentos
1.3.1 Primeira seqüência: 12 de março (7)
12
Ibidem.
46
1.3.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 – Início: “Amâncio, graças aos esforços de Campos, matriculou-se quinze
dias depois de sua chegada”. Desde o primeiro contato com o curso de Medicina:
“Compreendia perfeitamente que nunca viria a ser um bom médico: nunca amaria
perfeitamente a sua profissão”.
Coluna 02 “Às vezes, contudo, pretendia reagir [...] disposto a ler horas
consecutivas [...]. Mal, porém, ele se agarrava aos compêndios, o pensamento,
ante pé, ia-se escapando da leitura, descia sorrateiramente ao chão e fugia pela
janela do quarto, para ganhar a rua e prender-se na primeira saia que encontrasse”.
Coluna 03 “E não haver uma academia de direito no Rio! Se houvesse! Então é
que seriam elas!” [...] “E Amâncio revoltava-se cada vez mais com a Medicina”.
Coluna 04 – “A mãe tinha toda razão. Era preciso fazer-se doutor”. Só de lembrar-se
da e, logo sentiu vontade de estar ao seu lado. “A despeito do seu
desenvolvimento do corpo, sua alma fazia-se muito pequena, muito criança e
chorava”.
Coluna 05 - “Minha querida mãe. Eis-me na grande corte! a qual me parece insípida
e acanhada porque estou longe de vocemecê”. Seguia-se uma descrição da cidade,
que ocupou duas laudas da carta.
Coluna 06 – “E a carta continuava neste teor, até encher duas folhas de papel marca
pequena. Amâncio contava à e todos os seus passos e todos os seus
desgostos [...]”. “Luiz Campos, o qual se lhe ia tornando perfeitamente
insuportável com a sua grande seriedade de mentor, a sua voz medida e discreta, os
seus gestos sóbrios, enfim, o seu todo repreensivo e pedagógico”.
O final desta seqüência ocorre com o basta que o estudante quer dar ao
controle exercido sobre ele: “– Ora adeus! dizia Amâncio consigo, furioso Não foi
para isso que vim ao Rio de Janeiro! Boas!”
47
1.3.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Nesta seqüência, há abundância de solilóquios, nos quais o protagonista
reflete sobre a impossibilidade de cursar Direito na Corte, a dificuldade de ser um
bom aluno e bom médico. Novos pensamentos interiores justificam os motivos que o
impulsionaram a ir ao Rio de Janeiro. Queria estudar Direito por admitir sua falta de
talento pelas matérias exatas e seu desapreço completo pela Medicina. Porém, se
Amâncio quisesse verdadeiramente ser um advogado, poderia ter ficado no
Maranhão.
Diferente da versão em livro, o romance-seriado apresenta repetição de
conteúdos, na coluna dois e na três, para enfatizar o descontentamento de Amâncio
por o existir academia de Direito no Rio de Janeiro: Não haver uma academia
de direito no Rio de Janeiro!(2
a
Coluna); “E não haver uma academia de direito no
Rio!" (3
a
coluna). Nas colunas dois e três os solilóquios marcam as reflexões acerca
da idéia de Amâncio ser ou não médico.
O pensamento sobre as profissões insere a técnica de “conduzir para trás”, e
novamente vem-lhe à mente a imagem do pai, que “nunca tomou a sério os artistas”.
Segundo Vasconcelos, a melhor maneira era conseguir cobres e ter à disposição os
melhores artistas. Nessa mesma concepção, Amâncio pensava que tinha dinheiro o
bastante para contratar os melhores médicos e, assim, não precisaria estudar para
ser um. No entanto, quando se lembra do quanto sua mãe desejava vê-lo formado,
“fosse como fosse”, o personagem tenta convencer-se de que era preciso ser
doutor. Em solilóquios, começa a ligar o título ao nome: Doutor Amâncio.
uma supressão temporal dos quarenta e cinco dias posteriores à chegada
de Amâncio ao Rio de Janeiro. A primeira marca temporal refere-se ao encontro
entre Amâncio e Campos; a segunda, à informação de que: “Amâncio, graças aos
esforços de Campos, matriculou-se quinze dias depois de sua chegada”; a terceira é
registrada na carta escrita à mãe, na qual Amâncio relata tudo o que lhe acontecera
no primeiro mês e meio em que estava hospedado na casa de Campos.
48
1.3.2 Segunda seqüência: 14 de março (8)
1.3.2.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “Podia estar disposto a aturar a noite aquele maçante
Campos?!...”. “Por isso ficou muito satisfeito uma man em que, passando pelo
beco do Cotovelo, deu cara a cara com o Paiva Rocha”.
Coluna 02 – “E Amâncio prosseguia: – que não achara graça nenhuma na tal corte!”
Coluna 03 Quando Amâncio viu em Paiva, um ímpeto de raiva “começou a falar
sobre dinheiro”. “– E sacudiu as algibeiras. Isso arranja-se, disse Amâncio
timidamente, com medo de humilhar o outro [...]”.
Coluna 04 – “Paiva olhou muito sério para ele, e espocou depois uma risada falsa”.
Coluna 05 “E [Paiva] fazia-se muito emprenhado nos interesses do amigo, dava-
lhe conselhos, havia de abrir-lhe os olhos, indicar-lhe o verdadeiro caminho”.
Coluna 06 – Final: “Aceitaram [o convite de Amâncio]. E os quatro rapazes seguiram
alegremente para o hotel, a rir e a conversar, como se fossem todos amigos de
muito tempo”.
1.3.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
No momento em que Amâncio reflete sobre a necessidade de deixar a casa
de Campos e viver livremente sem ser vigiado, pergunta a si mesmo [e talvez ao
leitor] se: “Podia estar disposto a aturar à noite aquele maçante Campos?!”. No
livro há apenas a exclamação.
Enquanto o protagonista mergulha em um solilóquio, é surpreendido pelo
“acaso” de encontrar Paiva [condiscípulo do Pires]. A partir disso, o espaço das ruas
do Rio de Janeiro é enfatizado como palco do diálogo, que mais parece um
monólogo, pois Amâncio não cessa de falar da desilusão sentida na Corte. Se, no
início, Paiva queria livrar-se de Amâncio, a partir do momento em que o conterrâneo
passou a falar de dinheiro, Paiva mostrou-se muito afável. Neste ponto, Amâncio
49
inicia seu processo de reificação, que culminaria em sua morte e transformação
como coisa, como marca: “O velho leu distintamente” “Amâncio de Vasconcelos”.
É o título! Disse e de Amâncio]. Eles agora batizam as mercadorias com os
nomes que estão na moda. Algum tenor!” (CP, 1977, p. 191).
1.3.3 Terceira seqüência: 15 de março (9)
1.3.3.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “Paiva pediu um gabinete particular e instalou-se aí com os
amigos”.
Coluna 02 “Este Paiva é terrível para um menu! observou o Simões em ar de
troça”. “E parecia querer provar que os seus direitos sobre o Amâncio eram muito
mais legítimos que os dos outros dois, que Amâncio lhe pertencia, era um tesouro
seu [...]”.
Coluna 03 “O almoço tornava-se alegre. João Coqueiro propôs um brinde a
Amâncio e declarou, depois de fazer-lhe muitos elogios, que estimaria imenso ser
recebido no rol de seus amigos”.
Coluna 04 “E [Coqueiro], puxando a cadeira para mais perto de Amâncio, falou-lhe
em voz baixa. Disse que no Rio de Janeiro era preciso ter um amigo sincero, não
que primasse nos menus, mas que fosse sério, que tivesse imputabilidade moral.
Que Amâncio estava defronte de duas estradas: uma que conduzia à verdadeira
felicidade e outra para a desordem, para o cio e para a completa desmoralização.
Não se deixasse levar pelos pândegos: aquilo era gente sem nada a perder”.
Coluna 05 “– Menino! disse-lhe o Paiva. vai tratando de aproveitar, porque é
isso o que se leva d’este mundo! Amâncio fazia-se fino, perigoso, e continuava a
falar expansivamente um pouco agitado pelo almoço. Coqueiro o ouvia com muita
atenção, em silêncio [...]”.
50
Coluna 06 “– E como lhe digo, explicava este aquilo não é um hotel, é uma
casa de família! Nós não temos hospedes, temos amigos! Minha mulher é quem
toma conta de tudo! [...]”.
O final instaura um suspense: “Mas a porta abriu-se com empuxão, e uma
mulher loura, gorda, vestida de seda amarela, precipitou-se no gabinete, espavorida,
a soltar gritos”.
1.3.3.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início desta seqüência apresenta continuidade com a anterior. Se, por um
lado, os espaços abertos das ruas também marcam o encontro de Simões e
Campos, colegas de Paiva da Escola Politécnica, por outro, o espaço fechado do
restaurante propicia a aproximação de Coqueiro que, ao perceber que o novo amigo
é rico, tenta ganhar sua confiança.
No livro, o termo “amigos”, que aparece na primeira coluna, é substituído por
“outros”, como se Amâncio fosse o único amigo de Paiva e os outros fossem apenas
colegas. Para acentuar o significado dessa alteração, citamos que Paiva: “parecia
querer provar que os seus direitos sobre o Amâncio eram muito mais legítimos que
os dos outros dois, que Amâncio lhe pertencia, era um tesouro seu [...]”. No livro
(CP, 1977, p. 35), esta passagem sofre alterações significativas: “E parecia querer
provar que os seus direitos sobre o comprovinciano eram muito mais legítimos que
os dos outros dois, que Amâncio lhe pertencia quase exclusivamente, como uma
fortuna que se traz no berço”. Nas duas versões, fica claro que “a situação social
insatisfatória” de Paiva poderia ser melhorada diante do compromisso que Amâncio
lhe fizera de ajudá-lo financeiramente.
Se, no romance-seriado, Amâncio apenas ouve os conselhos de Paiva: “— vai
tratando de aproveitar, porque é isso o que se leva deste mundo!”, no livro, Amâncio
expressa compartilhar desse pensamento: “— E o mais são histórias!... concluiu o
filho de Vasconcellos” (CP, 1977, p. 37).
A técnica folhetinesca de inserir “vilões da história com traços grosseiros e
satânicos”, já utilizada para caracterizar o professor Pires, também pode ser aplicada
a Coqueiro, o antagonista de Casa de Pensão. Durante o almoço pago por Amâncio,
Coqueiro: “Era o único que não estava tonto, seus olhos, pequenos e de cor incerta,
51
conservavam a mesma penetração e a mesma fixidez incisiva. Sua boca quase sem
lábios e guarnecida de bons dentes tinha o mesmo riso arqueado, indeciso e frio”. O
conteúdo em livro registra que Coqueiro estudava Amâncio de maneira dissimulada,
a seguir-lhe os gestos e tentando entender suas intenções. Por essas razões, na
variante em livro, é comparado a uma ave de rapina, acentuando a técnica da
narrativa folhetinesca.
O final desta seqüência instaura grande suspense e expectativa quanto à
continuidade da história. O corte repentino quebra o ritmo narrativo e interrompe
duas ações: a persuasão de Coqueiro sobre Amâncio e uma briga causada por
outros clientes do restaurante. Segundo Ribeiro (1998, p. 44-46), o “corte no
desenvolvimento da história” redireciona o discurso narrativo.
A técnica narrativa com os “lances teatrais” também pode sugerir a “linha de
ação quebrada dos personagens”, pois todos representam o papel que convém a
cada um durante o almoço. Em todas as colunas desta seqüência há “abundância de
diálogos”, como marca da oralidade.
1.3.4 Quarta seqüência: 16 de março (10)
1.3.4.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “Vinha perseguindo um sujeito idoso, cheio de corpo, o chapéu
atirado para a nuca; o olhar desvairado e convulso”.
Coluna 02 – “Paiva atirou-se-lhe à pista, mas o gerente do hotel meteu-se entre eles,
pedindo aquele por amor de Deus que não fizesse caso, e deixasse os dois se
esbordoarem”.
Coluna 03 “Amâncio aconselhou ao Braz que bebesse alguma cousa, e derramou-
lhe vinho no copo”.
Coluna 04 – “E Coqueiro, já de chapéu na cabeça e guarda-chuva debaixo do braço,
foi apertar-lhe a mão [de Amâncio], dizendo que folgava muito em haver travado com
ele relações, e que o esperava sem falta no domingo”.
52
Coluna 05 “– Pois que repare! Manda plantar batatas o tal Campos! Tu não és
nenhum caixeiro dele. Eu, no teu caso, nem ficava ali mais um dia! É estúpido estar
hospedado em uma casa de comércio. Olha! se quiseres mudar-te para a
república. Sempre é outra cousa morar com rapazes!”
Coluna 06 Final: “– duns cinqüenta ou sessenta. Depois te os pagarei.
Pois não! disse Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil réis”.
1.3.4.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Esta seqüência apresenta a técnica da narrativa folhetinesca com a “estrutura
sinusoidal da intriga: técnica de contar a história provocando um fluxo alterado de
tensão e distensão por meio da organização dos elementos da narrativa nas
seqüências”. Este modo de conduzir a história provoca expectativa por parte do
leitor, que nunca sabe o que virá na próxima seqüência: não se sabia se seria
retomada a conversa entre Amâncio e Coqueiro ou se a briga mereceria destaque
especial. Quando a confusão foi focalizada, percebemos que além dos “cortes com
ganchos nos finais de segmentos”, Aluísio também fazia uso da inserção de
episódios extradiegéticos para aumentar o suspense.
Na coluna 06 há um “lance teatral” que marca a representação nada civilizada
de Paiva, que começa a “derramar o resto das garrafas no açucareiro, a
emporcalhar o damasco da cortina e a cuspir dentro das chávenas”. Além disso:
“meteu no bolso um paliteiro e duas colheres”.
O final desta seqüência coincide com o final do almoço no qual Amâncio
conhece Simões e Coqueiro, ao mesmo em que tempo retoma o acordo
estabelecido entre os dois maranhenses, registrado na coluna 03 do dia 14 de
março, no qual Amâncio dispõe-se a ajudar Paiva:
Esqueceste aquilo de que falamos?... observou ele ao outro em viagem.
Amâncio já não se lembrava.
Paiva respondeu, fazendo um sinal com os dedos.
Ah! Quanto queres?
Dá cá daí uns cinqüenta ou sessenta. Depois te os pagarei.
Pois não! disse Amâncio, passando-lhe três notas de vinte mil réis”.
53
Tanto no romance-seriado quanto no livro, o “didatismo narrativo” retoma
episódios interrompidos por outras ações e torna o final um tanto quanto
inconsistente: Amâncio entrega a Paiva o valor solicitado, sem contestar ou fixar
uma data para o pagamento. Como os dois estão se dirigindo à república onde Paiva
estava hospedado, nada justifica o fato deste ter solicitado o dinheiro naquele
momento, a não ser o fato de Amâncio estar bêbado e, por isso, atenderia ao pedido
facilmente.
1.3.5 Quinta seqüência: 17 de março (11)
1.3.5.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “Amâncio chegou à república muito enfermado, quase que não
dava conta dos quatro lances de escada, que era necessário vencer para se
alcançar a sala”.
Coluna 02 “– Eu quero vomitar! Exclamou Amâncio, apressado pela agonia. Mas
não teve tempo senão para erguer a cabeça”.
Coluna 03 “– Olha! Disse ao Paiva creio que está ai sobre a mesa, por detrás do
Comte. É um frasquinho quadrado, com rolha de vidro”.
Coluna 04 – “Por todo o quarto havia um ar profundamente de desmazelo e boemia”.
Coluna 05 “Por toda a parte, pontas esmagadas de cigarro e cuspalhadas secas.
No meio do chão, com o gargalo decepado, jazia uma garrafa”.
Coluna 06 Final: “E o homem do lixo entrava e saia familiarmente, com o seu gigo
às costas. Um relógio da vizinhança bateu 6 horas”.
1.3.5.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início apresenta um novo espaço fechado, que é mencionado do início ao
final desta seqüência.
Nesta seqüência, são esmiuçadas as conseqüências da bebida sobre o corpo
54
fraco de Amâncio, que é apresentado em delírio, em meio a uma crise nervosa,
numa “contraposição entre a fraqueza e o cio”. No livro, esse aspecto é menos
enfático.
Outro aspecto importante é a apresentação de cenas características da
narrativa Naturalista, que pode ser evidenciada na sujeira do quarto de Paiva, onde
Amâncio havia vomitado, e que, no dia seguinte, ele via secar no chão, azedando o
ambiente, misturando-se ao cheiro da louça cheia de gordura sobre a pia. Apesar de
sentir-se bem entre os boêmios, nesse momento, sentiu-se mal no meio de tanta
sujeira e ela o espantava.
1.4 Capítulo IV – dois segmentos
1.4.1 Primeira segunda seqüência: 20 de março (12)
1.4.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “Amâncio reparou que estava com muita sede, mas não
descobriu a talha d’água. Afinal encontrou-a em um sótão, que ficava ao lado do
quarto, e onde só agachado se podia penetrar”.
Coluna 02 – “Amâncio não fez caso, e beijou-a, à força, pela boca e pelos olhos”.
Coluna 03 “– Oh! Ele sentia-se muito farto de ser governado, de ser vigiado a
todos os instantes! - Já era tempo de gozar um pouco de liberdade”.
Coluna 04 “Ângela retraía-se, cortava em meio as carícias do filho, como se as
recebesse de um amante, em plena ilegalidade do adultério”.
Coluna 05 “– O demoninho era levado! E assim se foi tornando mulherengo,
fraldeiro, amigo de saias. A mãe, quando ouvia da varanda as risadas da criadagem,
gritava logo por ele”.
Coluna 06 “Algumas [moças] lhe perguntavam [brincando] se ele as queria para
mulher, se queria ser seu noivo. Amâncio respondia que sim, com um arrepio. E elas
55
daí a pouco ficavam muito surpreendidas quando o demônio do menino lhes saltava
ao colo e principiava a beijar-lhes com sofreguidão o pescoço e os cabelos,
metendo-lhes a língua pelos ouvidos”.
Final: “[...] De todos os brinquedos, o que Amâncio em pequeno mais gostava
[estimava] era o de fazer casa [“fazer casa”] [...]. Uma de suas primas, filha do
protetor de Campos, ou alguma menina que estivesse passando o dia com ele,
representava de mulher; Amâncio de marido. A menina ficava debaixo da mesa e ele
andava por fora a trabalhar [“a ganhar a vida” até que se]; depois recolhia-se a casa
também [...]. “Gostava infinitamente dessa brincadeira; mas um belo dia desprendeu-
se [veio abaixo] o lençol que servia de parede, e Ângela desde então o consentiu
que o filho se divertisse a fazer casa” [Entre colchetes estão as principais alterações
verificadas no conteúdo do livro].
1.4.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Um pequeno recuo no tempo retoma o dia anterior, quando Amâncio
conheceu Coqueiro e Simões. A primeira coluna retoma os gastos excessivos,
quando Amâncio conta o dinheiro que trazia consigo, “lamentando mentalmente o
que gastara na véspera”: oitenta e cinco mil is com o almoço, 60
mil réis com o
empréstimo feito a Paiva. Depois disso, “há a dilatação dos elementos narrativos de
tempo, de lugar e de ação dos personagens no desenvolvimento da intriga do
romance”.
Há uma abundância de episódios, nesta seqüência, para explicar, com a
técnica de “conduzir para trás”, como se desenvolveu o lado libertino de Amâncio.
Quando o estudante deixa o quarto de Paiva, depara-se com uma jovem que estava
subindo as escadas, então agarra a jovem pela cintura, beijando-a à força. Esse
assédio caracteriza-se como uma repetição do hábito que ele tinha desde muito
pequeno, quando, ao perceber uma oportunidade, saltava ao colo das moças,
beijando-lhes e “metendo-lhes a língua pelos ouvidos” (coluna 06).
Na terceira coluna, enquanto toma café, Amâncio reflete sobre a necessidade
de ser livre. É então que o personagem recorda-se “do seu pobre passado de
submissão e disciplina”: Antes de entrar na escola, não podia transpor sozinho a
porta da rua ou do quintal; depois, caiu nas garras do professor Pires; na época em
56
que estava no Lyceu [onde ingressou com quatorze anos], era vigiado pelo pai,
pelos tios e tias; só na fazenda da avó, durante os meses de férias, que gozava de
alguma liberdade.
Como sofria muito com as privações e castigos, encontrava na mãe o
verdadeiro amor, por isso a amava verdadeiramente, como um Édipo, conforme
pode ser constatado na coluna quatro, deste segmento. Na cinco, são relatadas as
peripécias em momentos de luxúria, quando Amâncio assediava as empregadas,
movido pelo clima tropical: “Isso se dava quase sempre no intervalo das aulas, pelo
alto do dia, quando o calor quebrava o corpo e punha nos sentidos uma pasmaceira
voluptuosa”. Esta seqüência é encerrada com os pequenos romances que Amâncio
tinha com as primas e meninas que passavam o dia com ele, quando brincavam de
fazer casa.
1.4.2 Segunda seqüência: 21 de março (13)
1.4.2.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 “Muitos anos depois, no Lyceu [aos quinze anos], sentiu-se
incomodado por um padecimento estranho. Não disse nada à família e procurou um
homem que havia na província com grande habilidade para curar todas as moléstias,
até mesmo as produzidas pelo mau-olhado e pelo feitiço”.
Coluna 02 “E, de repente, sem dar por isso, achou-se a fazer conjeturas sobre o
amor de Hortênsia”.
Coluna 03 – “E seu espírito enfermo, começava a despi-la, peça por peça, até deixá-
la completamente nua”.
Coluna 04 – “As oito horas, quando entrou em casa, tinha já a resolução de não ficar
ali nem mais um dia. Era fazer as malas e bater quanto antes a bela plumagem!
Coluna 05 “Amâncio não sabia o que deliberar. O Coqueiro, com a sua figura de
tísico, o seu rosto chupado e quase verde, os seus olhos pequenos e penetrantes,
de uma mobilidade de olho de pássaro, com a sua boca fria, deslabiada, o seu nariz
57
agudo, o seu todo seco, egoísta, desenganado da vida, não era das coisas que mais
o atraíssem; mas quem lábia lá!? Bem podia ser que estivesse ali o que ele
procurava um cômodo limpo, confortável, um pouquinho de luxo e plena
liberdade!... [Talvez aceitasse o convite]”.
Coluna 06 “Corte sistemático”: “E tudo ali em casa de Campos o aborrecia! [...] E
quando passou pela porta da rua teve ímpetos de esbordoar o caixeiro, que estava
esse dia de plantão”.
1.4.2.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início deste segmento retoma a época em que Amâncio estava no Lyceu
(no livro não consta essa informação e, no lugar dela, o dado de que, nessa
época, ele tinha 15 anos). O leitor do romance-seriado precisaria retomar a leitura de
segmentos anteriores, para contatar que Amâncio havia ingressado no Lyceu aos
com 14 anos, no entanto, não chegaria à idade exata de 15 anos, fixada no livro.
Mesmo depois de ter sido curado da moléstia, mais tarde, Amâncio caiu “de
cama, prostrado por novo carregamento, que o ia varrendo ao cemitério”. A técnica
composicional da narrativa folhetinesca pode ser percebida pelo “didatismo
narrativo”, pois “esses foram os três anos de sezões a que se referia [na primeira
seqüência], quando encontrou-se com o Campos pela primeira vez [...]”. Com isso, o
tempo narrativo retoma a ordem cronológica, no espaço do Rio de Janeiro, durante o
café tomado depois de Amâncio sair da república de Paiva. Na medida em que
começa a pensar em Hortênsia, Amâncio não consegue controlar o fluxo de seus
pensamentos, por isso se perdia em “Cálculos infames” (coluna 03).
Como apenas Hortênsia prendia Amâncio à casa de Campos, refletiu muito e,
quando chegou à conclusão de que ela era apenas “uma pobre mulher honesta,
incapaz de cometer uma asneira”, o maranhense decidiu deixar a casa do
comerciante.
Quando chega à casa de Campos, Amâncio depara-se com um
acontecimento inesperado: Coqueiro havia enviado uma carta, na qual antecipa para
aquele dia o convite para Amâncio ir visitá-lo, o que provoca “mudanças inesperadas
nos episódios”.
A técnica folhetinesca de inserir “vilões da história com traços grosseiros e
58
satânicos” já foi utilizada para assinalar o antagonista na seqüência publicada no dia
15 de março, quando Amâncio almoçou com Coqueiro, e é retomada neste
segmento, coluna 05, apresentando mais detalhes à caracterização do personagem.
1.5 Capítulo V – um segmento e recortes de um possível segmento extraviado
1.5.1 Primeira seqüência: 22 de março (14)
1.5.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “João Coqueiro era fluminense da gema. Nascera na Rua do
Parto em uma das casas de seus pais, nos belos tempos da prosperidade”.
Coluna 02 “O casamento foi para ele [pai de Coqueiro] uma tábua de salvação. A
mulher adorava-o [...]; mas, Lourenço depois de casado, principiou a desgostá-la
[...]. Tiveram o primeiro filho Juca. Criancinha feia, sem sangue, cheia de asma.
Até aos cinco anos parecia idiota; passava os dias a babar-se debaixo da mesa de
jantar, ao pé do moleque que tomava conta dele”.
Coluna 03 “– Ele pode machucar-se, Lourenço, cair! Observava a esposa
timidamente. Pois deixa-o cair! deixa-o machucar-se! Quanto mais trambolhões
levar em pequeno, melhor depois se agüentará depois nas pernas! - Mas ele é tão
fraquito, coitadinho!”
Coluna 04 “À mesa não consentia que o filho [João Coqueiro] se sentasse senão
ao seu lado. Obrigava-o a comer bifes, dava-lhe vinho sem água [...]. Janjão chorava
mais. Isso é que o há de pôr pra diante! Gritou [No livro: Berrou] o pai
encolerizando-se”.
Coluna 05 “Quando Juca principiou a crescer, o pai levava-o a passeio, dava-lhe
charutos, obrigava-o a tomar cerveja nos cafés [...]. Juca só com a vista do mar ou a
presença de um revólver desatava a soluçar e a berrar pela mãe” [...]. E com muita
sutileza, comprou para o filho uma bela pistolinha de brinquedo, que estalava
59
fulminante”.
Coluna 06 “A mãe acabava de dava-lhe uma irmãzinha, que se ficou chamando
Amélia, e o maior encanto do rapaz [livro: menino] era tomar conta do caixãozinho
em que ela estava envolvida em panos, a enxotar as moscas que tentassem pousar
na cabeça da pequenita”.
Final: “Ele queria filhos devotos! Era o que lhe faltava! Era só! Aquele menino
parecia o seu castigo! Parecia a sua maldição!”
1.5.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Este segmento tem como primeira marca a técnica de “conduzir para trás”,
repetindo o que Genette (1995) caracteriza de analepse. Esse recurso já foi utilizado
para fazer uma retrospectiva do passado do protagonista e, agora, também é
empregado para acrescentar informações sobre a infância do antagonista, a fim de
explicar de que modo o meio pode ter influenciado sua vida, transformando-o em
criminoso e guardião da irmã. Sua mãe era rica, o pai vagabundo e o filho [Coqueiro]
tolo.
Assim como Amâncio, Coqueiro também sofria muito com o modo de educar
do pai e estes eram os vilões de seus primeiros anos de vida. No livro foi
acrescentada a informação de que o pai o obrigava a beber conhaque, além de
cerveja e vinho mencionados na romance-seriado. O pai fazia questão que João
aprendesse a atirar [“– Tu ao menos ficarás sabendo dar um tiro!”] e isso pode ter
sido um dos fatores para que, posteriormente, viesse a tornar-se assassino de
Amâncio.
Apesar de todas as colunas deste segmento estarem voltadas exclusivamente
para Coqueiro, sua voz o é notada e, no lugar dela, o personagem se expressa
pelo choro, berros e tremores. A partir da terceira coluna, “abundância de
diálogos”, que revelam o discurso machista do pai e a timidez da mãe, cujo nome
não é revelado.
Como Coqueiro era frágil e sensível, a e o consolava, da mesma forma
que Ângela confortava Amâncio. Outra semelhança entre a infância dos dois
personagens é a de que Amâncio gostava de brincar de fazer casa, Coqueiro ficava
60
entretido a vestir os seus bonecos ou a fazer de cozinheiro. Os dois viam nos pais
verdadeiros carrascos e nas mães o refúgio, o colo que os protegia dos carrascos
que tentavam fazê-los machos e não homens de caráter.
Outra técnica narrativa é a “presença de epíteto para caracterizar o
personagem” João Coqueiro. Enquanto a mãe o chama de Juca e Juquinha, o
narrador utiliza o epíteto Juca e o pai não admite que o chamem senão de João, o
nome dado em homenagem ao avô, um fidalgo bastardo. No livro, o epíteto utilizado
é Janjão.
A descrição de Lourenço, pai de Coqueiro, é feita com muito humor: ele
possuía os bigodes mais compridos do Rio de Janeiro dessa época; do que fora e
do que possuíra, apenas lhe restava, além do bigode, o bito de não fazer coisa
alguma”; nos melhores grupos, citava-se, entretanto, o seu ar distinto de fidalgo, mas
não passava de sobrinho bastardo de um conde português.
1.5.2 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no romance-
seriado
1.5.2.1 Principais ações deste recorte
1.5.2.1.1 Uma antítese de Amâncio
Contrariando a infância débil apresentada no segmento acima, Coqueiro
destacava-se no internato de Pedro II pelo fato de ser muito estudioso, paciente,
dedicado aos estudos e respeitava a autoridade dos professores. Além disso:
“Tinham-no em boa estima pelo seu espírito católico, pela docilidade de seu gênio e
pelo irrepreensível de sua conduta”. Por isso, “ninguém lhe ouvia palavra mais
áspera ou gesto menos conveniente, e às vezes entrava pela hora do recreio
grudado aos livros sem os querer deixar”.
Apesar de o pai ter feito de tudo para mudar seu filho, agora tinha muito
orgulho dele, chegando a profetizar que ali estivesse um sábio” [...]. Como mérito
de tanta dedicação, Juca tirou distinção nos primeiros exames. O pai ofereceu uma
festa modesta, diferente daquela oferecida pelo Vasconcelos ao filho Amâncio,
61
porque a doença de Lourenço e sua falta de vontade para o trabalho estavam
consumindo a herança da mulher.
1.5.2.1.2 A redenção do pai
A doença do pai de João Coqueiro deformara seu aspecto viril: “Estava
acabado; crescera-lhe o ventre, o nariz tomara uma vermelhidão gordurosa, o cabelo
encanecera totalmente, a cabeça despira-se, a pele do rosto fizera-se opada e suja”.
Como conseqüência, suas atitudes também mudaram, fazendo-o tentar
resignar-se do que fizera durante toda a sua vida. Ao ver-se doente, ia “à noite pelas
igrejas [...]. Ajoelhava-se a um canto da nave, em cima das pedras, e permanecia
longamente, a ouvir os sons lamentosos do órgão, com o rosto descansado sobre as
mãos que se cruzavam no castão da bengala”. Seu padecimento era tanto que “às
vezes chorava”.
Dia após dia, definhava: “Seu estômago irritado já não queria os alimentos
[...]. Não se lhe podia suportar o hálito”. Mas a notícia de que a sua especulação
falhara que o deixou paralisado, levando-o à morte no dia seguinte. A técnica
folhetinesca do “acaso como ponto de convergência entre alguns acontecimentos da
narração” redireciona a vida de João Coqueiro.
1.5.2.1.3 A decadência da família Coqueiro e a casa de pensão
Como foi preciso vender o melhor dos dois prédios que restavam, para saldar
as dívidas do defunto, a família Coqueiro ficou pobre. A partir disso, a viúva passou
a “tomar encomendas de costura e de engomagem”. Como a renda obtida nessas
atividades não era suficiente, a viúva de Lourenço decidiu arranjar fregueses para o
almoço e admitir hóspedes em sua residência: “Dentro de pouco tempo, o sobrado
da vva de Lourenço era a mais estimada e popular casa de pensão do Rio de
Janeiro”. E, desse modo, “o órfão prosseguiu nas suas aulas”.
Foi na casa de pensão que “Janjão se fez homem. o viram bacharelar-se e
aí se matriculou na Escola Central”. Desde a morte do pai, Amélia respeitava o irmão
como a um pai. Como a casa de pensão era uma atividade necessária para o
sustento da família, ela cresceu “no meio da egoística indiferença de vários
hóspedes [...]”, o que não a impediu de aprender a ler, a escrever e a tocar piano.
62
1.5.2.1.4 A morte da mãe e o fechamento da casa de pensão
A exploração da “temática de aspectos da vida miserável”, característica da
técnica folhetinesca, pode ser aplicada ao novo acaso que muda a vida da família
Lourenço: “Um novo desastre veio, porém, alterar todos esses planos: a viúva de
Lourenço, depois de dois meses de cama, sucumbiu a uma pneumonia”. Nessa
época:
João Coqueiro estava então no segundo ano da Politécnica; Amélia a fazer-
se mulher por um daqueles dias; parentes - não os tinham... capitais - ainda
menos...Como pois sustentar a casa de pensão? ...Oh! Era preciso despedir
os hóspedes, alugar o prédio, abandonar estudos e obter um emprego.
1.5.2.1.5 A segunda mãe
gancho para o próximo segmento
Coqueiro, moço de vinte e seis anos, destacava-se pela inteligência, no
entanto, a morte dos pais e a decadência da família obrigaram-no a abandonar os
estudos, fechar a casa de pensão e a trabalhar na estrada de ferro de Pedro II, para
conseguir pagar suas despesas e as de sua irmã Amélia. Mudaram-se para a casa
de pensão “de uma francesa, muito antiga no Brasil e que durante longo tempo se
mostrou amiga íntima da defunta”. Ela se chamava Mme. Brizard: “Estava ainda bem
disposta, apesar da idade [aproximadamente cinqüenta anos]. Gorda, mas elegante
e com uns vestígios assaz pronunciados de antigas formosuras. Tinha os olhos
azuis e os cabelos pretos, no tipo peculiar ao meio-dia da França. Carne opulenta e
quadril vigoroso”.
A francesa foi se tornando “muito caída para o romantismo” na medida em
que envelhecia, às vezes, deparava-se a ver apreciar a noite de luar; “dava-se à
leitura prolongada de poetas tristes; fazia-se mais infeliz do que era de fato, e
contava a todos a sua história - Um romance!”
A técnica de “conduzir para trás” para acrescentar a informação de que: “Aos
quinze anos saíra da família pelo braço de um diplomata russo, que a idolatrava: - ia
casada”, apesar de sofrer muitos assédios, “conservou-se pura e fiel ao marido”.
Ainda não tinha filhos quando, cinco anos depois, enviuvou.
Depois de viúva, voltou a morar com a família e, pouco depois, apareceu-lhe o
Mr. Brizard, “homem de talento, político e escritor, grande republicano. A subida de
63
Luís Felipe ao trono atirou com ele ao Brasil”. Essa segunda união deu-lhes três
filhos: duas mulheres e um homem.
Como não sabemos o nome de Mme. Brizard senão a partir do sobrenome do
segundo marido ao da referência à nacionalidade francesa, pressupomos que sua
importância dentro do romance está associada ao foto de seu marido francês ter
sido hoteleiro no Brasil, sendo que foi com ele que a madame aprendeu como
administrar uma casa de pensão, depois que ficou viúva pela segunda vez e
precisou sustentar os três filhos:
A filha mais velha representava a glória da família: unira-se a um ministro
plenipotenciário; a outra [Nini, personagem de Casa de Pensão], coitada,
não casou mal, porém com a morte do marido, e de um filhinho que lhe
ficara, tornou-se muito nervosa, histérica, e até, meio pateta; agora vivia e
mais o irmão em companhia da mãe.
De repente, ingressaram à sua casa de pensão dois hóspedes que dariam um
novo rumo à sua vida: “a proposta de João Coqueiro pareceu vantajosa a Mme.
Brizard.
Ele que trouxesse a irmã a bela Amelita, e tudo se arranjaria pelo melhor”.
1.6 Capítulo VI – um segmento
1.6.1 Primeira seqüência: 24 de março (15)
1.6.1.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: Mme. Interessava-se pelos dois hóspedes, principalmente pelo
Coqueirinho como ela tratava o rapaz [No livro: como lhe chamavam em família]”.
Coluna 02 “Lamartine estava no seu quarto, sobre o velador, encadernado com
esmero. Mas também apreciava alguns escritores brasileiros [no livro: não
desdenhava os poetas brasileiros e lia Camões]”.
64
Coluna 03 “Uma tarde, acharam-se os dois, um defronte do outro, assentados
sozinhos na varanda da sala de jantar, que dava para um lugar plantado de
bananeiras. O sol descia lentamente no horizonte por uma escadaria de fogo. As
cigarras estridulavam no fundo das matas [chácara]; a noite ia emanando”.
Coluna 04 “– Ela estava no caso de fazê-lo feliz, porque o amava! Oh! Se o
amava! [...] Queria casar-se, porque entendia que isso era necessário à felicidade de
Coqueiro”.
Coluna 05 “– Casados, poderiam ressuscitariam a antiga casa de pensão [...]
Coqueiro abandonava o emprego e atirava-se de novo aos estudos”.
Coluna 06 “[...] à Amélia Um bom casamento! um casamentão!” Mme. Brizard
[Ah! Ela, a francesa], sabia [perfeitamente] como tudo isso se arranjava [no Brasil]”.
Final: “Meteram mãos à obra. Coqueiro deixou o emprego, tratou [contratou] um
empreiteiro para restaurar o seu velho prédio da Rua do Resende, e a casa de
pensão de Mme. Brizard, como teimosamente continuaram a tratar a mulher, surgiu
ameaçadora, escancarando para a população a sua boca de monstro”.
1.6.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Nas quatro primeiras colunas, ênfase especial à aproximação de Coqueiro
e Mme. Brizard. A “situação social insatisfatória” de Coqueiro abrigava-o a aceitar a
união com a francesa. Como fruto dessa aliança de interesses, a quinta coluna
revela que: “– Casados, poderiam ressuscitariam a antiga casa de pensão [...]”. E
assim nasce renasce a casa de pensão.
O final deste segmento apresenta a casa de pensão personificada, como um
monstro, cuja boca assustava a população. No livro, sua localização é especificada
ao Rio de Janeiro. A partir desse momento, um novo personagem é adicionado à
narrativa a casa de pensão, ao mesmo tempo em que se caracteriza como espaço
fechado, que aprisiona os seres e favorece a disseminação dos vícios.
A analogia feita à casa de pensão se remete à técnica narrativa da
“verossimilhança que nunca escorrega para o irracional” [...] porque “uma
explicação real para a verossimilhança dos fatos”. A mesma casa de pensão que
65
assustava a população, também ressuscitava o cenário da Questão Capistrano, por
isso, a casa de pensão surgia ameaçadora, “escancarando para a população a sua
boca de monstro”.
Uma particularidade especial distingue a organização estrutural deste
segmento nas duas versões de Casa de Pensão. Enquanto o romance-seriado
insere o número VI, para defini-lo como parte inicial do sexto capítulo, o livro coloca
esse texto no meio de outras informações, sem haver parágrafo em seu início. Por
outro lado, não tivemos acesso à seqüência que poderia ter registrado o conteúdo
que corresponde ao sexto capítulo do livro.
1.6.2 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no romance-
seriado
1.6.2.1 Apresentação dos espaços e moradores da casa de pensão
Amâncio chegou ao Rio de Janeiro três anos depois da união de Coqueiro e
Mme. Brizard, bem como da reabertura da casa de pensão. Nessa época, a casa da
francesa estava no seu apogeu: “de todos os lados choviam hóspedes, entre os
quais se notavam pessoas de importância”, verdadeiras celebridades.
A proprietária era admirada pela beleza. Apesar dos cinqüenta anos, ela tinha
o pescoço e os ombros admiráveis e: Quem dera a muitas novas um colo
daqueles!”. A cunhada, por sua vez, é apresentada pelo diminutivo afetivo e pelos
dotes culinários: “No Rio de Janeiro ninguém fazia espetadas de camarão tão
saborosas como as da simpática irmãzinha do João Coqueiro, a Amelita”.
Depois da apresentação de Amélia e sua cunhada, este recorte detém-se à
apresentação do interior da casa de pensão, estruturada em dois andares, com uma
boa chácara no fundo. O salão de visitas era no primeiro.
um aspecto que retoma a nota Antes de principiar lançada na véspera
da publicação da primeira seqüência do romance-seriado –, quando o escritor
antecipa que por melhor que seja o hóspede: “Os velhos móveis não lhe falam
nada”, apesar de representarem muitos para seus proprietários. Como modo de
caracterizar a preocupação com os detalhes, a descrição da mobília da casa de
66
pensão é feita de modo minucioso, o que também serve para caracterizar o cenário
que merecerá grande destaque para o desenvolvimento das principais ações
narrativas seguintes.
Depois da apresentação da casa de pensão, o emprego da técnica de
“conduzir para trás” para narrar o momento em que João Coqueiro sai do Hotel dos
Príncipes, onde havia conhecido Amâncio. Ao sair do estabelecimento, estava
“preocupado; o Simões, que caminhava à sua esquerda um pouco sacudido pelos
vinhos, em vão tentou, repetidas vezes, puxá-lo à palestra; o outro respondia apenas
por monossílabos e, na primeira esquina, despediu-se e correu logo para casa”.
Com o plano tramado, ao “chegar foi direto à mulher, dizendo-lhe em voz baixa,
antes de mais nada: Olha cá, Loló”... Mme. Brizard largou o que tinha entre as mãos
e seguiu-o atentamente até o quarto, onde o marido lhe diz em segredo:
Sabes? Disse ele, sem transição, assentando-se ao rebordo da cama. - É
preciso arranjarmos cômodo para um rapaz que há de vir por aí domingo.
Um rapaz! Mas tu sabes perfeitamente que os quartos acham-se todos
ocupados. Se tivesses prevenido... o n° 2 ainda ontem estava vazio...Mas
quem é?
Há de se arranjar, seja lá como for! Disse o Coqueiro.
Mas quem é?...insistiu Mme. Brizard.
Coqueiro justifica que o rapaz: “É um achado precioso! Ainda não dois
meses que chegou do Norte, anda às apalpadelas! Estivemos a conversar por muito
tempo: é filho único e tem a herdar uma fortuna! Ah! Não imaginas: pela morte
da avó, que é muito velha, creio que a coisa vai para além de quatrocentos
contos!...”. Enquanto isso:
Mme. Brizard escutava, sem despregar os olhos de um ponto, os s
cruzados e com uma das mãos apoiando-se no espaldar da cama.
Ora , continuou o outro gravemente. - Nós temos de pensar no futuro de
Amelinha... ela entrou nos vinte e três !... se não abrirmos os olhos...
adeus casamento!
Mas daí... perguntou a mulher, fugindo a participar da confiança que o
marido revelava naquele plano.
Daí - é que tenho um palpite! explicou ele. - Não conheces o Amâncio!...
A gente leva-o para onde quiser!... Um simplório, mas o que se pode
chamar um simplório!
Mme. Brizard fez um gesto de dúvida.
Afianço-te, volveu Coqueiro, - que, se o metermos em casa e se
conduzirmos o negócio com um certo jeito, não lhe dou três meses de
solteiro!
67
Apesar de não expressar cumplicidade nesse momento, Mme. Brizard
ajudaria o marido nesse plano. A partir de então, entra em vigor a estratégia de
arranjar um casamento para Amélia e resolver suas “situações sociais
insatisfatórias”.
1.7 Capítulo VII – oito segmentos
Neste capítulo, podemos observar, também, a ampliação do espaço e a
inserção de novos personagens à narrativa. Amâncio vai conhecer a casa de
Coqueiro e é recebido com um jantar de boas-vindas, quando, então, é apresentado
aos demais moradores, no entanto, não há a análise psicológica dos mesmos. Lúcia,
por exemplo, foi descrita em seu aspecto físico e alguns diálogos” com o
protagonista lhe atribuem traços de intelectualidade, o que se assemelha ao
conteúdo em livro. A inserção desses novos personagens, sobretudo Lúcia e Amélia,
assume um caráter importantíssimo para o desenvolvimento da intriga.
1.7.1 Primeira seqüência: 27 de março (16)
As principais ações desta seqüência são decorrentes da tentativa de Mme.
Brizard tentar convencer a cunhada de que era necessário aderir ao plano traçado
pelo irmão, o que se dá no início desta seqüência. Amélia, por sua vez, tenta
contrariar as expectativas dos dois e demonstra não querer ser guiada pelo irmão,
no entanto, essa reação da personagem não é preservada na publicação em livro.
Por outro lado, alguns trechos inseridos no livro ressaltam o desespero que a jovem
tinha em casar-se, porque não queria ficar solteirona” e, além disso, o casamento
significava uma possibilidade de adquirir uma boa posição social.
Como o respeito pelo irmão faz com que Amélia aceite participar do plano, a
partir desse ponto, o fio condutor de Casa de Pensão explora a temática dos
“aspectos da vida criminosa e miserável e da vida urbana selvagem; maniqueísmo
na contraposição entre o bem e o mal: o herói e a sociedade, a felicidade e a
desgraça, amor puro ou selvagem, ódio unilateral, a virtude, os vícios e outros; o
68
poder dado àquele que é mais forte, mais hábil, mais audaz”
13
. Essas técnicas
narrativas remetem-se à armadilha criada por Coqueiro e às possíveis
conseqüências que isso teria no desenvolvimento da intriga, pois, apesar de os
leitores do romance-seriado não terem acesso aos vinte e dois capítulos do
romance, as intenções de Coqueiro e a apresentação da casa de pensão
estabelecem relação direta com Alexandre Pereira e com os motivos que resultaram
na Questão Capistrano.
Todas as informações destacadas a seguir foram suprimidas ou alteradas no
livro, o que demonstra a tentativa de Aluísio abstrair termos característicos da
linguagem oral, uma vez que no romance-seriado:
Amélia concentrou-se e pouco depois prometeu que havia de fazer o que
pudesse para agradar a Amâncio. Aquela vida de solteira ia com efeito
a enfastiando de dia para dia.
Já não estava com idade para ser governada como uma criança.
Não sabia o que diabo queria dizer uma mulher como ela ser
diariamente tratada com pieguices e com as insuportáveis cautelas
com que em geral tratam as meninas. Não estava para isso! Com a
educação que lhe coube e com o meio em que se desenvolveu sabia
perfeitamente o que era pão e o que era queijo; por conseguinte as reservas
de Mme. Brizard e as discrições do irmão, irritavam-na
[livro: tomava
para com ela, faziam-na sorrir]
.
Na continuidade deste segmento, as reflexões de Amélia continuam a
apresentar marcas da oralidade: “Se precisavam dela, que se explicassem por
uma vez, e se não precisassem que a deixassem em paz com todos os
diabos!”. Na primeira citação, é utilizado o termo “diabo”; no final da segunda,
esta expressão de revolta: com todos os diabos! em ambos os casos, esse
substantivo foi excluído da versão em livro, embora tenha sido preservado em outras
partes do romance.
O conteúdo desta seqüência focaliza a tentativa de Mme. Brizard convencer
Amélia a aderir ao plano traçado por Coqueiro. A interrupção feita antes da chegada
13
Conforme nota explicativa de Ribeiro (1996, p.49), ressalta-se que: “adotaram-se no
desenvolvimento da análise subseqüente dos romances as noções de Pavel Medvedev/Mikhail
Bakthin e de Iuri Lotman sobre o conceito de tema. Os dois primeiros (1991, p. 132) expõem que o
tema da obra ‘é o conjunto da enunciação como um ato sócio-histórico definido’ e, em conseqüência
disso, ele é ‘inseparável da situação total da enunciação no mesmo grau em que é inseparável dos
elementos lingüísticos’. É importante lembrar que em Pavel Medvedev/Mikhail Bakthin (p. 120) toda
enunciação concreta é um ‘ato social...’, entendem que ao mesmo tempo que ela tem um material
individual complexo (articulatório, fonético, etc.), ela é parte de uma realidade social. Advertem (p.
133) que a língua e as suas formas têm um papel fundamental no processo de refração da existência
na consciência; no entanto, que a forma da enunciação, não a da língua, que desempenha o mais
importante papel na compreensão e na tomada de consciência da realidade”.
69
de Amâncio à casa de pensão estabelece um gancho com o próximo segmento.
Além disso, o corte instaura um grande suspense, pois não foi apresentada
nenhuma informação sobre como seria o encontro de Amâncio com a família de
Coqueiro e como Amélia agiria ao vê-lo.
1.7.2 Segunda seqüência: 28 de março (17)
O gancho inserido no início deste segmento retoma o momento em que
Amâncio se aproxima da casa de pensão: “Coqueiro levantou-se prontamente do
lugar onde estava e atirou-se para o corredor, com o alvoroço expansivo e alegre de
quem recebe um velho amigo, depois de longa ausência”.
O autor retoma a descrição feita na primeira seqüência do romance-seriado,
para destacar que, agora, o maranhense não tinha o mesmo tipo mal ajeitado com
que se apresentara ao Campos”, pois teve o cuidado de ir à casa de Coqueiro com
um terno de casimira, que havia comprado naquela mesma manhã, pouco antes de
conhecer a família do novo colega.
É com muito esforço que Amâncio tenta “armar bem a frase e fazendo esforço
para se mostrar homem de boa educação”. É Mme. Brizard que conduz a primeira
conversa e quase que não deixa o convidado falar, a não ser quando ela lhe faz
alguma pergunta. De modo acentuado, este segmento apresenta “abundância de
diálogos”, abstraídos, parcialmente, da versão em livro, o que confere ao texto a
mudança de ritmo.
No final desta seqüência, Amâncio apresenta seu ponto de vista sobre as
travessuras de Cezar, filho mais novo de Mme. Brizard, quando: “Cezar soltou uma
risada, e Amâncio apressou-se a declarar que detestava as crianças que não fossem
travessas. Ele não queria meninos com propósito de velhos, em velhos com modos
de criança”. Essa declaração, que sofreu modificações significativas na versão em
livro, faz referência ao tipo de liberdade que Amâncio gostaria de ter tido, se não
fosse o controle excessivo exercido sobre ele.
70
1.7.3 Terceira seqüência: 29 de março (18)
Em continuidade à ão descrita na seqüência anterior, um feito quando:
“O moleque aproxima-se com uma bandeja na mão, cheia de copos”. Depois disso,
a narrativa passa a focar o encanto que Amélia exerce sobre Amâncio e, sem saber
que estava perto da isca da armadilha criada por Coqueiro, Amâncio -se
encantado por Amélia desde o primeiro momento que a observa: “Amâncio
considerou intimamente que a achava deliciosa – um mimo!
Por mais que tentasse prestar muita atenção ao que lhe diziam os outros,
“sua imaginação libertava-se à força e ia cair de novo aos pés da insinuante
rapariga, procurando subir e enroscar-se por ela, ao modo do tênue vapor do
incenso, quando vai trepando enrolando uma coluna de mármore” (3ª coluna).
Na versão em livro, foram excluídas as informações destacadas e que se
referem ao fato de que “instintos mal-educados de Amâncio latejavam, resolviam-se-
lhe dentro, formigando num assanhamento crescente (4 ª coluna). Nesta descrição,
surge um paradoxo entre o que o protagonista queria parecer e o que realmente era,
quando se esforçava para “se mostrar homem de boa educação”, conforme
ressaltado na seqüência anterior. Então, são delineados alguns dos inúmeros
defeitos atribuídos ao protagonista, retomando a segunda seqüência do romance-
seriado, na qual consta que: “Amâncio dominava-se, fazia-se sério por medo de
apanhar”. Por isso, tornou-se reservado e fingido”.
Amâncio e Amélia trocam poucas palavras e logo Coqueiro convida o novo
amigo a conhecer a casa. Excluído da versão em livro, um episódio sugere uma
contraposição entre a liberdade e a prisão, quando Coqueiro, apontando para uma
das saídas do terreno, comenta que “isto é para quando se quiser desfrutar deste
outro lado, explicou o Coqueiro. O terraço dava com efeito para uma rua, que
passava no fundo da casa” (5
a
. coluna).
O final desta seqüência ocorre quando Coqueiro mostra a despensa a
Amâncio, com a finalidade de ressaltar que ali consumiam “Tudo de primeira, heim?!
dizia ele com entonações mercantis, a passar ao colega um punhado de feijões. – É
exato! Resmungava este, sem ver”, porque, certamente, seu pensamento ainda
estava ligado às impressões que Amélia lhe causara.
71
1.7.4 Quarta seqüência: 31 de março (19)
Duas tarjas pretas dificultam a leitura das colunas quatro e cinco, deste
segmento. A primeira coluna estabelece continuidade à última do segmento anterior,
quando Coqueiro começa a mostrar os quartos dos hóspedes. Quando passam
pelas portas, o proprietário também descreve um pouco dos moradores, com a
finalidade de mostrar que ali moravam pessoas distintas, o que se estende, também,
para as duas colunas seguintes, deixando o maranhense impaciente.
Depois de apresentada toda a casa, a última coluna registra a tentativa de
Coqueiro convencer Amâncio das vantagens que teria caso resolvesse hospedar-se
ali, pois: “Aqui ficas muito bem! Serás tratado como um filho; em breve terás toda a
intimidade com minha família [...]. E, amortecendo a voz, concluiu, com sisudez
honesta: Agora, quanto a certas visitas... isso tem paciência...”. Para enfatizar essa
recomendação, Coqueiro ressalta, cheio de escrúpulos: “– Sim! Sabes que isto é
uma casa de família e, para a boa moral...”. Amâncio, por sua vez, finge concordar:
“– Certamente! E acendeu um cigarro”.
Nesse último parágrafo, podemos verificar a técnica folhetinesca do “corte
com gancho”. A interrupção, nesse ponto, leva o escritor a estimular o leitor para a
continuidade da leitura, estabelecendo uma expectativa em relação à próxima
seqüência, pois não sabemos o que Amâncio faria depois de saber que não
encontraria ali a liberdade tão ansiada.
1.7.5 Quinta seqüência: 02 de abril (20)
Na versão em livro, este segmento corresponde ao início do Capítulo VII.
Contrariando as possíveis expectativas provocadas nos leitores, esta
seqüência é iniciada com a apresentação do jantar oferecido a Amâncio, ao qual
compareceram apenas três hóspedes “– a Lúcia, o marido e o tal gentleman de
nome difícil”. A partir de então o foco narrativo é voltado para Lúcia, que se assentou
ao lado de Amâncio.
A segunda coluna focaliza o momento em que Amâncio, envolvendo Lúcia
“em continente num olhar extenso e observador”, descreve a hóspede: de estatura
regular, costas levemente arqueadas, ombros erguidos, como por uma forte
impressão de medo: braços descaídos, cintura pouco abaixo dos seios, desenhando
72
muito a barriga, que não era pequena”. Essa tipificação – feita por intermédio da voz
do narrador revela uma marca característica do estilo de Aluísio Azevedo, que é
utilizar vocabulário rebuscado até mesmo para construir descrições grotescas.
Sem perder o foco nas ações ligadas à Lúcia, que futuramente seria amante
de Amâncio, a terceira coluna enfatiza o controle que ela exercia sobre o marido,
caracterizado como um palerma. Quando se via pressionado: “Ele, porém, não dava
resposta, e, quando a mulher insistia a muito nas suas recriminações, fechava os
olhos”, como se fugisse para dentro de si mesmo.
As três últimas colunas são utilizadas para apresentar Nini e a discussão
gerada em torno do seu caso de histerismo. Caracterizada como outra personagem
que não tem voz, sua única forma de expressão ocorre por intermédio de crises
nervosas, decorrentes do histerismo surgido com a viuvez. Esta seqüência é
encerrada com sua chegada à sala de jantar. Esse último evento evidencia a técnica
folhetinesca do “corte com gancho” e instaura novo suspense à narrativa.
1.7.6 Sexta seqüência: 05 de abril (21)
Este segmento estabelece conexão com o anterior, a partir do seguinte
excerto:
Só depois de assentada, Nini desmanchou o ar aflito que fazia, pelo esforço
de andar.
- Ah! Respirou ela, quase sem fôlego. E correu os olhos em torno de si,
abstratamente, como se despertasse de um desmaio. Ao dar com Amâncio,
ficou a tietá-lo, com a insistência que usam as crianças ao encararem
alguém pela primeira vez. Depois contraiu ligeiramente os músculos do
rosto, desviou a vista dele, vagarosamente, a tomar longos sorvos de ar.
Nini continuava a olhar para Amâncio durante algum tempo, imobilizando o
rapaz. Foi apenas depois que Mme. Brizard passou a oferecer a Amâncio os
melhores pratos que este desviou a atenção na viúva que embranquecia aos
poucos. A terceira coluna cede espaço para uma conversa sobre o Maranhão e à
seguinte são acrescentadas as informações de que “os grêmios e jornais literários
brotavam ali de toda parte, cada indivíduo era um gramático de pulso”, enquanto
isso Coqueiro fingia acompanhar Amâncio naquele entusiasmo, “mas ria-se por
dentro. O outro parecia-lhe cada vez mais tolo”.
As referências feitas ao Maranhão estabelecem um gancho com a pergunta
73
feita por Lúcia, que questiona Amâncio se “tinha algumas produções maranhenses,
que lhe pudesse emprestar. Amâncio prometeu logo fazer-lhe chegar às mãos o que
em casa tivesse de melhor a esse respeito”. Fazendo-se conhecedor de literatura,
Amâncio sugere que Lúcia leia Entre o Céu e a Terra, de Flávio Renar. O assunto
sobre literatura leva-os a citar também o folhetinista Joaquim Serra, Franco Sá, Dias
Carneiro e Fagundes Varela.
Apenas a vertente folhetinesca, 4ª coluna, registra a informação de que “Lúcia
já conhecia muito o Serra. Era louca por ele como folhetinista, tanto que fez citações
de suas obras. Amâncio não conhecia os folhetins, mas calou-se para fazer acreditar
que as conhecia”. A dissimulação do protagonista demonstra que o mesmo
mantinha-se firme no objetivo de manter as aparências, até mesmo mentindo ou
omitindo quando necessário.
Depois disso, Mme. Brizard revela que Coqueiro também escrevia versos,
mas este dizia preferir assinar com um pseudônimo. Esse assunto estendeu-se até a
última coluna, culminando com a exaltação de Coqueiro, que perdera o controle
quando chamava os escritores de pedantes: “Hoje, todos querem ser escritores;
sujeitinhos que não sabem ligar duas idéias, ignorantes e viciosos, arrogam-se, da
noite para o dia, os foros de literatos! Uma cambada!” Mme. Brizard tenta conter o
marido, ao mesmo tempo em que diz no ouvido de Amâncio que “também é só o que
lhe faz sair do sério... a literatura! É falar nisso, e fica assim!
Nesta seqüência, podemos notar a presença da técnica de construção
narrativa da “estética divergente e centrífuga”, que tem início com a chegada da
histérica Nini, tomando novo rumo com a conversa sobre o Maranhão, depois a
respeito dos escritores maranhenses, dos autores brasileiros, dos versos escritos
por Coqueiro, sendo encerrado com o descontrole deste último e a tentativa de
Mme. Brizard explicar a Amâncio as causas da exaltação do marido.
74
1.7.7 Sétima seqüência: 06 de abril (22)
O gancho estabelecido com a seqüência anterior ocorre quando Amélia
pergunta se Amâncio “tamm, escrevia... O rapaz disse que sim, sorrindo,
desculpando-se com os outros, afiançando que todo o mundo escrevia mais ou
menos”, esquecendo-se que essa empáfia havia tirado Coqueiro do controle poucos
instantes antes e, de repente, a conversa dispersa-se e os grupos passam a falar do
preço excessivo dos gêneros alimentícios e de questões sobre higiene, dentre outros
assuntos de interesse geral.
Depois de a seqüência anterior ter registrado muitas informações sobre
literatura brasileira, na terceira coluna deste segmento, Lúcia retomava a conversa
com Amâncio e cita Theóphile Gautier, Theodore de Banville e Baudelaire, após
terem falado, brevemente, de alguns escritores portugueses. Nesse momento, a
bebida fazia com que Amâncio se imaginasse mais eloqüente: “acudiam-lhe opiniões
e juízos perfeitamente armados; percebia que as suas palavras causavam bom
efeito; ia bem”.
É também na terceira coluna que ocorre um evento teatral, quase cômico,
quando: “Pereira e Nini conservavam-se um defronte do outro, igualmente
concentrados e mudos; ela, porém com os olhos muitos abertos sobre Amâncio. O
Pereira afinal ergueu-se, atravessou lentamente a sala, como um sonâmbulo, e foi
estender-se em uma cadeira preguiçosa, que ficava junto à janela”.
Foi só vibrar o piano na sala que Mme. Brizard logo sugeriu que seria melhor
mudarem-se para lá. Além de mostrar-se conhecedora de literatura, Lúcia tocou o
Guarani “com muita energia e destreza [...] Depois da música principiou a simpatizar
com ela; já gostava de a ver, misteriosa e pálida e melancólica e arrastar-se pela
casa com a languidez de uma convalescente” [4
a
e 5
a
Colunas].
O corte desta seqüência ocorre com a chegada dos hóspedes que não
estavam na casa de pensão durante o jantar. Paula Mendes e a mulher, no auge de
uma briga.
75
1.7.8 Oitava seqüência: 07 de abril (23)
A chegada do advogado retoma o assunto desenvolvido na seqüência
anterior, pois é inserido um novo personagem à narrativa. Enquanto muitos estavam
a dormir pelos cantos, o Dr. Tavares estava alegre: “Estivera em casa de um amigo,
pessoa de muita consideração, onde se reunia a mais fina sociedade”. Sem
conseguir cessar aquele entusiasmo, o Tavares orava e “vários hóspedes recolhiam-
se para os seus quartos, atravessando na ponta dos pés o corredor do fundo da
varanda, para não serem obrigados a ouvi-lo”.
Tomando como referência um excerto que não foi preservado na versão em
livro, a terceira coluna também destaca a voz do advogado que, mais calmo,
“assentou-se de novo, disse as causas que havia defendido na província: algumas
das quais, exclamava com vanglória, eram de assassinos e criminosos de tal ordem,
que, se não fosse ele, nunca obteriam o perdão de um santo!”
Enquanto isso, “Amâncio principiava a sentir-se entediado [...], quis retirar-se;
não lho consentiram”. Diante da ameaça de chuva, resolveu ficar e era mais de
uma hora quando todos se recolheram.
O Capítulo VII é encerrado na quarta coluna deste segmento, quando
Amâncio se recolhe ao quarto e Coqueiro para ele este verso: “Estamos em plena
Roma. Os Césares devassos...”.
1.8 Capítulo VIII – dois segmentos
É também na quarta coluna que se inicia o Capítulo VIII, com o seguinte
gancho: “Amâncio sentiu um grande alívio, quando se achou afinal inteiramente só; a
porta [do quarto] bem fechada e a luz do bico de gás quase apagado”.
Motivada pela técnica folhetinista de “conduzir para trás”, a quinta e a sexta
coluna apresentam um lance teatral, de modo muito mais acentuado no romance-
seriado, decorrente das lembranças que vinham à mente de Amâncio, embaladas
pelo barulho da chuva e conduzidas pelo efeito do vinho. Nesse momento, Amâncio
deixava-se guiar por pensamentos que lhe traziam imagens femininas, em
procissão:
76
Aquilo fazia lembrar a Amâncio as noites de inverno, que passara na
fazenda da avó, ouvindo cair a chuva do telhado, - as janelas fechadas, a
canja de marrecas a fumegar sobre a mesa, o vinho de caju a luzir nas
garrafas de vidro branco.
- Que bom que era! Ele gostava muito dessas ceiatas em casa da boa
velha, tinha liberdade, podia fumar seu cigarrinho desassombradamente,
a mexer com as crias da avó. Bem bom tempo!
E, sem parar ia-lhe com a imaginação construindo um pedestal, um trono no
seu entendimento.
Ela aparecia-lhe agora mais bela, radiante, cercada de um prestigio
adorável de talento e ilustração. Amâncio a respeitava instintivamente,
sentia-lhes as agulhas do espírito entrarem-lhe pela pele, e entrarem-se-lhe
pelo corpo, até (...
14
) o coração.
(...
15
) Amelinha em um tom mais duvidoso e mais delicado, aparecia
sorrindo com os seus dentes adoráveis, o seu narizinho arrebitado, os seus
olhos piscos, mas a imagem desta não se firmava, não se fixava como a
outra.
E a procissão continuava (...).
O corte desta seqüência ocorre quando as imagens se fragmentavam e
Amâncio: “Não via mais coisa alguma – adormecera”.
1.8.1 Conteúdo retirado da versão em livro e não localizado no romance-
seriado
1.8.1.1 De casa de Campos à casa de pensão de Coqueiro
uma descrição romântica do despertar de Amâncio, depois de um dia
cheio de novidades. Ao abrir a janela do quarto, um “jato de luz dourada invadiu-lhe
a alcova” (CP, 1977, p. 72). A chuva que o impedira de ir embora, havia limpado a
atmosfera, deixando aquela manhã com um frescor muito agradável. Enquanto ele
observava o vaivém dos trabalhadores, entendia naquele movimento um chamado:
“Amâncio sentiu vontade de sair e andar à toa pelas ruas. Todo ele reclamava
longos passeios ao campo, por debaixo de árvores, em companhia de amigos” (CP,
1977, p. 73).
O espírito sensual do maranhense foi aflorando quando bate na porta
uma mucamazinha, que já na véspera lhe chamara por várias vezes a
atenção durante o jantar [...].
Teria quinze anos, forte, cheia de corpo, um sorriso alvar mostrando dentes
largos e curtos, de uma brancura sem brilho.
14
Ilegível.
15
Ilegível.
77
Vinha saber se o Dr. Amâncio queria o café antes ou depois do banho.
Amâncio, em vez de responder, agarrou-lhe o braço com um agrado
violento e grosseiro. Ela pôs-se a rir aparvalhadamente
16
.
As sensações somadas à atitude atrevida de Amâncio podem ser aplicadas à
“temática dos vícios e amor selvagem”, embora seja característica do romance-
seriado. No entanto, esse acontecimento não é explorado com detalhes, ou seja,
apesar de sabermos que Amâncio foi correspondido, não sabemos o que ocorreu
entre ele e a jovem mucama.
Pressupomos que tudo que Amâncio vira e sentira naquela casa foi suficiente
para convencê-lo de mudar-se, definitivamente, para aquela casa de pensão, o que
lhe fez revelar a Campos: que afinal descobrira em casa da família de um amigo o
cômodo que procurava”. O comerciante aprovou a escolha de Amâncio, pois a casa
de pensão de Mme. Brizard era extremamente conceituada naquela época. Amâncio
agradeceu por todos os favores, despediu-se de Campos e pediu licença para
despedir-se de D. Maria Hortênsia, não perdendo a oportunidade de assediá-la,
fazendo-a refletir: “– Seria possível, pensava ela que aquele estudante lhe
quisesse fazer a corte?... Não! não seria capaz disso, e, se fosse, ela saberia
desenganá-lo! Ah! com certeza que o desenganava!” (CP, 1977, p. 74).
Ficou decidido que os dois iriam ao baile oferecido na casa do Melo. Amâncio
estava surpreso por ver Hortênsia corresponder aos seus sentimentos, por isso
torturava-se por saber que logo agora estava saindo de perto dela:
E agora é que vou deixar a casa!...pensava ele na rua .- Que tolo fui!
Abandonar a empresa, justamente quando me sorri a primeira esperança!
“Mas pedaço de asno, argumentava com seus botões - não calculaste logo
que aquela mulher mais dia menos dia, havia de escorregar? Porque diabo
então não esperaste um pouco?...”.Ora! mas que caiporismo o meu! Sair
nesta ocasião! Perder uma conquista tão boa! Agora também que remédio
lhe ei de dar? O que está feito, está feito! A este momento minhas malas
talvez tenham chegado à casa do Coqueiro! E com este nome
assaltaram-lhe logo o espírito as imagens de Lúcia e Amelinha
17
.
De um dia para o outro, Amâncio se via cercado por muitas mulheres
interessantes, o que lhe fazia lembrar do que dizia o Simões: “Quando te
começarem as aventuras, hás de ver o que vai por esta sociedade!”
16
CP, 1977, p. 73.
17
Ibidem, p. 75.
78
E Amâncio, que não conseguia reter na cabeça as palavras dos seus
professores, Amâncio, que era incapaz de guardar na memória um fato, um
algarismo, uma fórmula científica, conservava, entretanto, com toda a
inteireza aquela frase banal, pronunciada por um pândego em um almoço
de hotel, depois de meia dúzia de garrafas de vinho
18
.
A frase dita por Simões estabelece um gancho com o segmento seguinte.
1.8.2 Primeira seqüência: 11 de abril (24)
1.8.2.1 Principais ações desta seqüência
Coluna 01 Início: “O Paiva [livro: Simões] tinha toda a razão... principiavam as
aventuras! Diabo era aquela asneira de abandonar tão intempestivamente a casa do
Campos! Fora uma triste idéia, que dúvida!”
Coluna 02 – Amelinha, bem contra a sua intenção, soltou uma risada, que desfez por
instantes o ar inocente de sua fisionomia. Mas recuperou-o logo, e lembrou à
cunhada “que não podiam roubar daquele modo o tempo a seu Amâncio. As malas
já estavam no quarto. Ele tinha de arrumá-las!
Coluna 03 “Nesse momento Amâncio acabava de abrir as janelas do seu quarto,
arrastava as malas para o centro e ia tratando de abri-las. As duas apareceram”.
Coluna 04 “À proporção que se iam tirando as peças de roupa (...
19
) do baú uma
tepidez doce e confortável, que lembrava o aconchego morno da família. Cada
objeto trazia ao provinciano mil reminiscências e mil saudades de sua mãe [...]. Uma
vaga tristeza apoderou-se dele [...]. Afigurava-se-lhe que um pouco da sua infância,
um pouco de sua mãe, fugiam para sempre com aqueles perfumes que se
evaporavam [...]”.
Coluna 05 “E saiu do quarto para enxugar as lágrimas [...] Quando voltou ao
quanto já os baús estavam despejados”.
18
Ibidem.
19
Ilegível.
79
Coluna 06 “O rapaz estava muito bem provido de um tudo! Não lhe faltava nada,
dizia a velha em voz baixa. E depois de uma pausa, acrescentou mais alto, rindo: -
Podia até se casar, se quisesse!” “Falta o principal, respondeu ele. O que é acudiu
logo Amélia. – A noiva! Explicou ele, olhando intencionalmente para a rapariga”.
Final: “Não sei porque [não podia casar como uma provinciana], volveu Amâncio,
escandalizado. Na província meninas [livro: senhoras] muito bem educadas,
muito chics!”
1.8.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Além dos diálogos que se acentuam na última coluna deste segmento, a
técnica de “conduzir para trás” (RIBEIRO, 1996, p. 45) é retomada quando: “a
proporção que se iam tirando as peças de roupa (...)
20
do baú uma tepidez doce e
confortável, que lembrava o aconchego morno da família. Cada objeto trazia ao
provinciano mil reminiscências e mil saudades de sua mãe (...)
21
. Naquele momento,
Amâncio percebia que “à semelhança daquelas arcas, havia também de ir perdendo,
pouco a pouco, todas as ilusões, todos os perfumes, com que saíra da casa dos
seus pais”. Enquanto o romance-seriado apresenta riqueza de detalhes para esta
cena, demonstrando a fragmentação das lembranças que Amâncio trazia consigo do
Maranhão, o livro editado por Faro & Lino apresenta uma ilustração da retirada das
roupas do baú.
1.8.3 Segunda seqüência: 12 de abril (25)
Coluna 01 Início: “Ah! sei, sei perfeitamente! disse Mme. Brizard, para não
contrariá-lo. Sei que as há ... mas o senhor merece ainda mais!
Coluna 02 “[as provincianas] Querem sedas, carruagens, teatros e bailes toda a
noite, não se contentam com qualquer casa, não admitem menos de seis ou oito
criados, enfim todas as suas horas são poucas para cuidar nas festas”.
20
Ilegível.
21
Ilegível.
80
Coluna 03 “Amâncio declarou que as exceções não serviam de argumento. Ele
não queria dizer que as fluminenses eram todas exigentes, como não podia afiançar
que nunca viria a casar com alguma delas [livro: e o tinha a pretensão de dizer
‘desta água não beberei, deste pão não comerei!’]”
1.8.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início desta seqüência ocorre com a continuidade do que estava sendo
desenvolvido na anterior, quando Mme. Brizard tenta, embora não consiga, não
contrariar Amâncio. A conversa acaba dividindo as opiniões dos dois, à medida que
a francesa toma partido das mulheres fluminenses e Amâncio das maranhenses.
Daí, há uma continuidade com os diálogos (discursos diretos) iniciados no segmento
anterior e interrompidos quando Amélia deixa cair uma pilha de camisas.
Novamente, podemos perceber a presença da técnica folhetinesca do “acaso como
ponto de convergência entre alguns acontecimentos da narração”, causando corte
nas ações desenvolvidas até o momento.
1.9 Capítulo IX – nove segmentos
1.9.1 Primeira seqüência: 12 de abril (continuação) (25)
Coluna 04 “O baile em casa do Melo esteve bom. A casa [do Melo] prestava-se
maravilhosamente, e a noite, um pouco sombra e fresca, concorreu sob maneira
para o bom eleito da festa”.
Coluna 05 – “Até Carlotinha parecia mais expansiva”.
Coluna 06 “[...] ele empertigava-se todo com graça, cravando o olhar no alto, e a
rodar extasiado, embevecido como se fosse arrebatado em sonho por entre nuvens
cor de rosa. E [Amâncio] parecia não cansar, só parava quando a dama [Hortênsia]
o constrangia a isso”.
81
1.9.1.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O corte sistemático realizado no segmento anterior propicia o início de um
novo evento, já anunciado no diálogo entre Hortênsia e Amâncio, quando este
deixava a casa de Campos para hospedar-se na casa de pensão de Coqueiro. Na
ocasião em que se despediram, ficou combinado que se veriam novamente no baile
do Melo, apresentado nesta seqüência. No início, são apresentados muitos detalhes
sobre a casa do anfitrião, a alegria dos convidados e a empolgação de Amâncio. O
corte deste segmento explora a “temática dos vícios e amor selvagem” de Amâncio:
Seu temperamento, excessivamente lascivo, comprazia-se em sentir ligado
ao seu corpo o corpo precioso de uma mulher de estimação; deliciava-se
em beber-lhe o lito acelerado pela dança, embebedava-se com respirar-
lhe os perfumes agudos do cabelo e o infiltrante cheiro animal da carne
(CP, 1977, p. 79).
1.9.2 Segunda seqüência: 13 de abril (26)
Coluna 01 – Início: “Afinal, depois de uma valsa, infracto estonteado, atirou-se
ofegante ao canto do divã em que estava Hortênsia”.
Coluna 02 – “Hortênsia procurava uma saída; não se animava a dizer que era para
não contrariar o marido, que não gostava de a ver valsar”.
Coluna 03 Pares cruzavam-se no meio da sala do Melo, formando as marcas da
contradança, aos gemidos histéricos das rabecas; um cheiro híbrido de extratos
adoríferos das flores que se fanavam em grandes vasos japoneses e de sutil pituita
dos corpos fatigados das mulheres, espalhavam-se no ambiente cor de pérola e
penetrava a carne com a subtilidade de um veneno lento e delicioso como o fumo de
um tabaco”.
Coluna 04 – Conteúdo que somente foi registrado no romance-seriado: “Ela não
resistiu, levantou-se de um salto e entregou a cintura ao moço, que a prendeu logo
nos braços com a delicadeza langorosa de quem toma nas mãos uma imagem de
cera”.
Coluna 05 “Quando parou a música Hortênsia, caiu sobre um divã pelos braços de
Amâncio”.
82
Coluna 06 – “Foi a voz do marido que a chamou a si”.
Final: “Nessa ocasião, Amâncio encostado ao bufete, pedia que lhe servissem um
grogue à americana”.
1.9.2.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Nesta seqüência ocorrem “lances teatrais abundantes com bruscas mudanças
inesperadas nos episódios” (RIBEIRO, 1996, p. 45). No romance-seriado maiores
detalhes e suspense entre os momentos que envolvem Hortênsia e Amâncio, em
meio ao embalo de música. Os dois parecem entregues às sensações causadas
com o contato dos corpos, até que a chegada de Campos dissipa o delírio que os
envolvia. No entanto, Amâncio ignora o mau humor do comerciante.
1.9.3 Terceira seqüência: 17 de abril (27)
Coluna 01 Início: Está retemperando a filha? perguntou-lhe um sujeito
magrinho, elegante, meio calvo, a bater-lhe amigavelmente no ombro”.
Coluna 02 “Amâncio, porém, desculpava-se com a falta de tempo; fazia-se muito
ocupado, mas havia de aparecer, mais tarde, mais tarde!”
Coluna 03 “As mulheres eram o seu fraco, eram o seu cio; várias anedotas suas
a esse respeito corriam de boca em boca há vinte anos”.
Coluna 04 – “Amâncio protestava com um sorriso pretensioso”.
Coluna 05 “O Freitas deixou-se levar, sempre muito enfastiado; mas, antes de ir,
bateu no ombro de Amâncio e segredou-lhe com a sua voz pobre [livro: de
tuberculoso]: Aproveita, menino, aproveita! Não mandes nada ao bispo!”
Coluna 06 Final da festa na casa do melo: “Foi Amâncio que ajudou Hortênsia a
entrar na carruagem [...]. Logo, porém, que o cocheiro sacudiu as rédeas, ela
chegou o rosto à portinhola, e gritou para fora: - Aparece Domingo! Vá jantar
83
conosco. Adeus! [...] Adeus, minha senhora. Hei de ir [...] O animal disparou,
sacudindo as crinas ao vento fresco da manhã”.
1.9.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O “corte com gancho no final do segmento” deixa em aberto um novo
encontro entre Amâncio e Hortênsia, causando expectativa por parte dos leitores. A
despedida descrita na última coluna também pode ser descrita em “lances teatrais
abundantes com bruscas mudanças inesperadas nos epidios” e com o indício de
que Hortênsia poderia estar envolvida por Amâncio. A terceira coluna retoma tudo o
que foi dito sobre o lado conquistador do maranhense, como se esse cio não
pudesse ser desassociado de sua existência. Então, podemos entender que esse é
o motor propulsor da narrativa.
1.9.4 Quarta seqüência: 19 de abril (28)
Coluna 01 Início: “Amâncio acendeu um charuto e derreteu-se para trás com os
olhos meio cerrados”.
Coluna 02 Como poderia agora acreditar nas virtudes femininas?... Pois se até
aquela! pois se até a mãe a mulher do Campos falhara!...”.
Coluna 03 “Bem me dizia há pouco o Dr. Freitas [no baile do Melo]: – Para
conquistar as mulheres são necessárias apenas quatro coisas: ‘audácia, boas
relações, um pouco de inteligência e não ser seu marido!’”.
Coluna 04 “Dormiu mal; os sonhos não o deixaram a noite inteira. A princípio,
todavia, foram agradáveis: ternos episódios de amores fáceis que se encadeavam
confusamente, e nos quais a sensações vinham e fugiam de um modo vago e
delicioso; depois chegavam os sonhos maus, os pesadelos”.
Coluna 05 “Não podia suportar aquele homem! aquele maldito velho Vasconcelos,
que no sonho não lhe aparecia como pai, mas como um senhor mal, bruto”.
84
Coluna 06 – “Amâncio, enquanto o Lambertosa discorria sobre a dália, leu mais uma
vez o cartão. Quando levantou os olhos reparou que Nini o fixava ainda com mais
insistência. Amélia dera-se por incomodada e não veio à mesa”.
1.9.4.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Estabelecendo continuidade com a seqüência anterior, a primeira coluna
registra o momento em que Amâncio volta para casa, depois do baile na casa do
Mendes, amigo da família de Coqueiro.
Os pensamentos de Amâncio retomavam as imagens absorvidas daquela
noite, sentia-se vitorioso, como havia previsto o Dr. Freitas na coluna três. Além de
ter conseguido dançar com Hortênsia, na despedida, ela o havia convidado para um
jantar em sua casa no próximo domingo, ao qual ele aceitou de imediato. Esses
últimos acontecimentos mostravam que Hortênsia não era honesta como havia
imaginado. Desse modo, pressentia que ela: “o desejava ardentemente, que se
entregaria na primeira ocasião, fazendo loucuras, dando escândalos, que nem uma
heroína de romance!”
Os pensamentos de Amâncio, entretanto, nunca vinham sem os pesadelos,
que sempre estavam associados à voz grossa do pai, que, inconsciente, lhe
repreendia. O recuo temporal, com a técnica de “conduzir para trás”, retoma uma
das principais técnicas composicionais de Casa de Pensão, alternando os tempos
cronológico e psicológico, no vaivém dos pensamentos do protagonista. Na quarta
coluna, é descrito seu lado ludibriador, pois:
Sem saber a razão por que, todo o seu desejo, todo o seu gosto era
enganar os outros homens. Os seus semelhantes apareciam-lhe sempre na
figura antipática do seu pai e do seu professor. Nunca os conseguiu amar;
nunca compreendeu o altruísmo com que nos sacrificamos pelos outros,
não hesitaria em pregar-lhe alguma deslealdade. O mal o atraía com a
irresistibilidade de um vício antigo e inconfessável.
No romance-seriado, a citação sobre como Amâncio tinha dormido
corresponde ao início do Capítulo X, da versão em livro. A mesma voz que havia
lançado o maranhense em pesadelos é retomada na coluna cinco, quando Amâncio
se aprisionado: Queria gritar, correr, mas a língua inchava-lhe na boca e as
pernas pareciam troncos de árvores, seguras ao chão.
85
E instaurado grande suspense no final desta seqüência, quando a última
coluna registra um acontecimento inesperado Amâncio recebe um ramalhete de
flores, acompanhado de um cartão com a seguinte frase: ao Dr. Amâncio de
Vasconcelos – de uma amiga. Cheirou o pequeno pedaço de papel e pensou sentir o
perfume de Hortênsia, “que na véspera havia lhe entrado até a medula”.
1.9.5 Quinta seqüência: 24 de abril (29)
Coluna 01 Início: “O jantar correu muito frio e constrangido ao princípio; pouco se
conversava e quase ninguém tinha vontade de rir”.
Coluna 02 “– Agora temos choro!... pensou Amâncio com tédio. Nini, como se
adivinhara tal pensamento, olhou para ele e pediu-lhe perdão com um grande olhar
piedoso e infeliz”.
Coluna 03 “–Esta infeliz menina! exclamou, depois de um entroite de vinte minutos
esta infeliz menina, senhores! nada mais é do que uma imbele vítima de todos os
impulsos, que (...
22
) haver no coração terno e carinhoso da mulher! Vede como o seu
semblante é meigo e dolorido, como seus olhos falam a misteriosa linguagem do
amor, como a sua boca...”.
Coluna 04 “O Coqueiro também pediu ao advogado que se calasse”. Este
fragmento somente existiu no romance-seriado: “Não! não me calarei! berrava ele
Não me calarei, porque a causa do oprimido é a minha causa! não me calarei,
porque meu silêncio pode fazer vacilar a balança da justiça!”
Coluna 05 – “Amâncio, surpreso e contrariado, quis evitá-la, mas a enferma passou-
lhe os braços em volta do pescoço, encostou-lhe a cabeça no colo e desatou um
choro histérico”.
Coluna 06 “Olhe, disse-lhe Amâncio. dentro estão a chamando! Vá! Vá! Ela,
nem assim fez caso”.
Corte com gancho: (Uma cena de histerismo) “Correram todos par a sala de visitas;
acenderam-se os candeeiros. Nini estercia-se no chão, a gritar, esfrangalhando as
roupas e mordendo os punhos”.
22
Ilegível.
86
1.9.5.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Nesta seqüência, podemos notar a presença da “estética divergente e
centrífuga”, que engloba o desânimo de todos durante o jantar, a discussão sobre
casamento como solução para o histerismo e a crise histérica de Nini. Mais uma vez
o acaso redireciona o foco narrativo, e todos se esquecem das flores recebidas por
Amâncio pouco antes do jantar.
1.9.6 Sexta seqüência: 25 de abril (30)
Coluna 01 Início: “Coqueiro e Mme. Brizard apoderaram-se logo dela [a histérica
Nini]. Amâncio apareceu com o seu frasquinho de vinagre”.
Coluna 02 [Comentário sobre Lúcia] “Deram-lhe professores de francês, de
música, de desenho; entregaram-lhe enfiadas de romances banais do gênero de
Mistério da Tijuca e livros de maus versos; e, todavia, não lhe deram moral, nem
trataram de lhe formar o caráter”.
Coluna 03 “Pereira deixou-se seduzir, sem mesmo dar por isso. Explicaram-se
pela primeira vez no Jardim Botânico! um domingo que Lúcia passou ali com a
família”.
Coluna 04 “O velho morreu de repente, de uma congestão apanhada três dias
depois que encontrou Lúcia no jardim com um estudante da vizinhança”.
Coluna 05 Principiou então para eles [Lúcia e Pereira] um viver perfeitamente de
boêmios. Sem trates, sem dinheiro, sem futuro, sem relações constituídas [...]
sempre sobressaltados, sempre perseguidos pelos credores que iam deixando atrás
de si”.
Coluna 06 “O menino fora muito franzino e muito mole saíra ao pai, o Pereira.
Durante o seu pobre mês de vida só abriu os olhos uma vez, ao expirar”.
87
1.9.6.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Depois do relato da crise de histerismo de Nini, filha da Mme. Brizard, esta
seqüência relata o momento em que Coqueiro tenta acalmar a cunhada. Quando
tudo volta à normalidade, o foco recai sobre Lúcia e seu marido Pereira. Como
estratégica exclusiva da versão folhetinesca, Aluísio retoma a temática da literatura e
a linguagem metalingüística, para caracterizar a educação recebida por Lúcia, pois:
“deram-lhe professores de francês, de música, de desenho; entregaram-lhe enfiadas
de romances banais do nero de Mistério da Tijuca e livros de maus versos; e,
todavia, não lhe deram moral, nem trataram de lhe formar o caráter”. O contraste
entre o vasto conhecimento sobre música e literatura e a falta de educação revela
que Lúcia vivia de golpes, desprezando todo conhecimento que poderia garantir seu
sustento de maneira honesta. Sem preservar a referência do romance-seriado
citado, no livro apenas uma alusão ao gênero, por ter sido substituído por “livros
de maus versos”
23
.
Simultaneamente, a temática do “acaso” e a técnica de “conduzir para trás”
são aplicadas para explicar os motivos que levaram Lúcia à vida boêmia e
desregrada. Das experiências amorosas, a que mais lhe causou frustração foi
provocada pelo primo que, depois de seduzi-la, abandonou-a. De volta para a casa
da família, sofrendo humilhações, Lúcia decidiu dar um jeito em sua vida. O golpe
planejado por Lúcia pode ser relacionado à técnica folhetinesca que foca “a situação
social insatisfatória”, pois o casamento por interesse poderia significar mudança de
situação, embora não tenha acontecido nesse caso, pois o tio de Pereira não deixou
herança para o sobrinho. A coluna três apresenta outro acaso” para explicar o fato
de Lúcia trair o marido conforme relatado na coluna quatro considerando o fato
de Pereira não satisfazer seus desejos:
no fim de quatro dias de lua-de-mel, como ela teimasse nas suas idéias
matrimoniais, declarou ele, com toda a calma, que não lhe podia fazer a
vontade, porque desde os seus dezoito anos o haviam casado com uma
velha, uma fúria, que ele não sabia, nem queria saber, por onde andava.
Além de trair o marido com um estudante, a versão folhetinesca também
revela que Lúcia tentou, em vão, fazer aborto. Repetiremos a citação feita no último
parágrafo desta seqüência, para ressaltar o humor empregado para comparar o filho
23
Casa de pensão, 1977, p. 88.
88
ao pai: “– O menino fora muito franzino e muito mole saíra ao pai, o Pereira.
Durante o seu pobre mês de vida, só abriu os olhos uma vez, ao expirar”.
1.9.7 Sétima seqüência: 26 de abril (31)
Coluna 01 Início: “A casa de pensão do Coqueiro era a sexta que Lúcia percorria
com o suposto marido”. “Quando constou a Lúcia que Amâncio era rico e
atoleimado, uma esperança nova radiou-lhe no coração”.
Coluna 02 “E ele, embriagado de satisfação, lia e relia o bilhete, repetindo
mentalmente a todo instante: ‘Eu te amo Amâncio’”.
Coluna 03 – “Sim tudo estava a dizer que o tal bilhete era de cia!... Aquelas frases
poéticas, aquele mistério, aquela franqueza de confessar o seu amor em duas
palavras... Não tinha que ver! – era dela! Era da mulher do Pereira!
Coluna 04 – “Levantou-se, enfiou o sobretudo e saiu do quarto. O sangue não lhe
queria ficar quieto”.
Coluna 05 – “E o 8 de Lúcia, da misteriosa Lúcia. – Ela estava ali!... Fazendo o quê...
pensando nele, talvez... talvez dormindo...”.
Coluna 06 – Corte com gancho: “Hipócritas! resmungou ele. E encaminhou-se para o
segundo andar”.
1.9.7.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Esta seqüência é marcada pelo didatismo narrativo, à medida que são
retomadas questões interrompidas sem que fossem totalmente desenvolvidas. Além
disso, este segmento traz à tona registros anteriores, como gancho para novas
situações.
O suspense, causado quando Amâncio recebeu flores, que estavam
acompanhadas de um bilhete anônimo, é desvendado quando o autor revela, na
primeira coluna, que: “Quando contou a Lúcia que Amâncio era rico e atoleimado,
uma esperança nova radiou-lhe no coração. É agora!... disse. E preparou-se para
89
o combate”. Depois disso, são acrescentadas reflexões, a partir das quais Amâncio
também desvenda o mistério existente por trás do bilhete, quando o personagem
chega à conclusão de que apenas Lúcia tinha a habilidade de utilizar as palavras
daquela forma. Ao reler este bilhete, registrado na segunda coluna, não lhe restavam
dúvidas.
Não saibam nunca espíritos indiferentes, nem mesmo tu, adorado
fantasista, quem te envia estas pobres flores. Não o procures descobrir;
deixa que o meu segredo viceje e cresça na tepidez do mistério, à
semelhança das plantas melancólicas que reverdecem nas sombras
ignoradas dos rochedos. Eu te amo!
Após desvendar o mistério, Amâncio não consegue deixar de pensar em
Lúcia, o que retoma as informações apresentadas na seqüência do dia 10 de março,
quando o protagonista planejava ir para o Rio de Janeiro, onde poderia viver
“aventuras inesperadas e amores, amores principalmente”. No entanto, nessa noite,
Amâncio encontra vários empecilhos, que o impedem de aproximar-se de Lúcia.
No momento em que anda pelos corredores para tentar encontrar o quarto de
Lúcia, Amâncio flagra a saída de um casal de um dos quartos: o médico do quarto
número 11 estava recebendo visita íntima. Nesse momento, há a aplicação da
técnica da narrativa folhetinesca de “conduzir para trás”, com a retomada de
informações vinculadas ao dia em que Coqueiro lhe apresentou a casa de pensão.
No segmento registrado no dia 31 de março, Coqueiro ressalta que Amâncio não
poderia receber “certas visitas...”, acrescentando: “– Sim! Sabes que isto é uma casa
de família e, para a boa moral...”. Amâncio, por sua vez, finge concordar: “–
Certamente! E acendeu um cigarro”. Ao perceber que a regra citada pelo proprietário
não se aplicava aos demais moradores, o maranhense exprime as seguintes
palavras: “Hipócritas! resmungou ele. E encaminhou-se para o segundo andar”.
Desse modo, esse último parágrafo apresenta um gancho com o próximo segmento.
A recomendação de coqueiro também representa um gancho ao conteúdo
apresentado no Capítulo XII, do livro:
- Isto aqui é uma casa de família! Sabes perfeitamente que temos conosco
uma menina solteira, - uma virgem! o é por mim, nem por ti, nem
tampouco pela Lúcia; mas é por ela, sebo! por - minha irmã! - a quem sirvo
de pai! É por minha mulher, é por minha enteada e pelo menino, é pelos
hóspedes, enfim!...
- Pois acredita que não houve nada demais!...balbuciou Amâncio.
90
- Não, filho, tem paciência! fora o que quiseres, mas daquela porta para
dentro, não admito, nem posso admitir!...E passeando pelo quarto com as
mãos nas algibeiras: - Que diabo! Eu te preveni!...
- Ora o quê! Resmungou Amâncio , indignado com a hipocrisia do colega,
mas sem coragem para dizer o que sabia a respeito dele e dos costumes da
casa. - Não abro o exemplo!...acrescentou (CP, 1977, p. 119-120).
1.9.8 Oitava seqüência: 29 de abril (32)
Coluna 01 Início: “Subiu pela escadinha do fundo, a que ficava do lado contrário a
outra por onde, ainda há pouco, descera o médico”.
Coluna 02 “E quedava-se encostado à porta do 8, deixando-se comer aos
bocadinhos por suas idéias concupiscentes; ao passo que lhe arfava o corpo inteiro
com o resfolegar aflitivo dos pulmões”.
Coluna 03 Seu desejo, estimulado e inquieto, evocava todos os meios de saciar-
se; descobria hipóteses absurdas, inventava possibilidades que não existiam.
Amâncio pensou em Amélia, em Mme. Brizard, na mucama, e até, que horror! em
Nini!”
Coluna 04 Ao passar pelo quarto de Mendes, pensou: “- É porque a mulher está
dormindo, pensou este, lembrando-se [livro: do mau gênio de Catarina] da noite que
os viu pela primeira vez. E considerou sobre a existência ordinária que levariam ali,
aquelas criaturas tão opostas encurraladas no mesmo quarto, obrigadas a esbarrar-
se de vez em quando”.
Coluna 05 “A paciência inventou-se para consolar os tolos! Farte-se você com ela!
De conselhos estou cheia, meu amigo! Quero obras e não palavras! O Mendes não
respondeu”.
Coluna 06 – “– Arre, com os diabos! Que nem se pode dormir!”
Coluna 07 “Ó mulher! Cala essa boca do diabo! Gritou, afinal, o Mendes,
arremessando a pena e empurrando os papéis que tinha defronte de si. - Arre! Ë
muito! Arre!”
91
Final: “Ora, com um milhão de demônios! Gritou o guarda-livros, que ficava no n.° 6 -
Não é possível sossegar neste inferno! Quando não é a tosse e o gemido da direita,
é a rezinga e a briga da esquerda! Antes morar num hospital de doidos!”
1.9.8.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Este segmento estabelece conexão com o anterior, ao mesmo tempo em que
retoma as descrições feitas na seqüência do 11 de março, quando o protagonista
revela os obstáculos que cercaram os seus primeiros amores. Na medida em que
percebe que a presença do marido de Lúcia o impedia de aproximar-se, Amâncio
passa a vagar pela pensão, continuado a pensar em alternativas para satisfazer seu
desejo, quando, mais uma vez, a técnica folhetinesca do “acaso” acaba desviando
seus pensamentos e o foco narrativo.
Ao passar pelo quarto 07, Amâncio ouve o gemido do doente que se
hospedava ali, então se afasta. À porta do quarto do Mendes, ouve barulho de
papéis, o que revela que este ainda trabalhava, enquanto a mulher insistia que o
marido fosse dormir. Há um destaque especial ao impasse existente entre Mendes e
Catarina, como fruto das diferenças existentes entre o casal. Depois de muito
suportar a exasperação da mulher, Mendes manda-a calar a boca, em meio a muitas
outras palavras de baixo calão, como traço característico da linguagem oral.
A cnica narrativa do “corte com gancho” é aplicada em tom humorístico,
quando, no último parágrafo deste segmento a inserção de um novo evento: o
guarda-livros decide dar um basta aos ruídos que o impedem de dormir, chegando a
comparar a casa de pensão de Coqueiro a um hospício. O silêncio evocado com
esse “basta” também instaura um suspense quando ao que poderia ser revelado no
próximo segmento.
uma particularidade estrutural nesta seqüência, que repete a distribuição
feita em sete colunas, realizada no segmento publicado no dia 11 de março.
1.9.9 Nona seqüência: 01 de maio (33)
Coluna 01 – Mendes levantou-se, segurando a cabeça com uma das mãos, e
começou a passear agitado pelo quarto”.
92
Coluna 02 No romance-seriado esta coluna registra o final do Capítulo IX, com
este parágrafo: “Amâncio estava entre os lençóis, quando o Coqueiro percorreu
toda a casa, de robe-de-chambre e um castiçal na mão”.
1.9.9.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Esta parte final do Capítulo IX estabelece continuidade com o anterior,
apresentando as conseqüências do acúmulo de acontecimentos gerado naquela
noite em que muitos dos hóspedes não conseguiam dormir, impedindo que os outros
também dormissem. O emprego da técnica narrativa da “estética divergente e
centrífuga” revela a progressão do alvoroço e a pressão que Coqueiro sentia para
tomar providências imediatas. Desse modo, há um corte com gancho, porém, não há
suspense, porque o Capítulo X é apresentado na mesma coluna daquela que
interrompe o anterior. Destacamos que, no livro, o Capítulo XI é inserido no lugar do
X do romance-seriado, o que significa mudança estrutural da apresentação dos
capítulos.
1.10 Capítulo X – sete segmentos
1.10.1 Primeira seqüência: 01 de maio (continuação) (33)
Coluna 02 – “O guarda-livros ao dia seguinte pela manhã mandou chamar um
carregador e disse que deixava definitivamente a casa de pensão”.
Coluna 03 “As duas [Catarina e Mme, Brizard] atracaram-se. Os hóspedes, que
estavam em casa, acudiram todos igualmente. Houve bordoada, gritos, palavrões.
Nini teve um ataque de nervos”.
Coluna 04 “Virgílio, meus senhores, o imortal Virgílio, o verdadeiro fundador da
eloqüência, diz muito acertadamente na sua Eneida, Livro IV, com referência à
desditosa Dido - Pendet que iteram narrantis ab ore! Se podemos convencer com
palavras, para que havemos de recorrer aos murros?!... [...] Coqueiro espantou-se. -
Querer trocar o gabinetesinho por um quarto do segundo andar?!...Ora, seu
Amâncio!”
93
Coluna 05 “Então, perguntou aquele [Coqueiro], o que temos? Uma
conferenciasinha. Ouve cá. E, depois de meterem-se ambos no vão de uma janela.
Amâncio principiou com acentuações de quem detesta imoralidades”.
Coluna 06 “E, Amâncio, arrebatado pelos princípios morais, que ele cultivava
teoricamente, patenteou um gesto muito convicto de quem se preocupa em extremo
com a pureza dos costumes”.
Final: “E depois de trocarem ainda algumas palavras sobre o mesmo assunto, os
dois rapazes desceram à chácara [desfecho deste episodio no livro (CP, 1977, p.
98): “os dois rapazes trocaram comovidos um enérgico aperto de mão e desceram
juntos à chácara, onde, debaixo das latadas de maracujá, os esperavam as
senhoras, palestrando em familiar camaradagem”].
1.10.1.2 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Toda a confusão foi direcionada para um novo acaso. Depois de receber um
sinal de Lúcia, Amâncio decide mudar-se para o segundo andar, deixando o guarda-
livros longe dos vizinhos ruidosos, ao mesmo tempo em que ficaria perto de Lúcia.
Na sexta seqüência, Amâncio expõe seu falso lado moralista, para manter as
aparências junto a Coqueiro, ao adverti-lo do perigo de Nini assediar outros homens
ou cair nas mãos de um “desalmado”. Sem que o outro desconfiasse, Amâncio relata
o que lhe havia acontecido na noite anterior, no momento em que foi descrita a
primeira crise nervosa de Nini, o que revela a utilização da técnica de “conduzir para
trás”. Por trás dessa conversa, estava a intenção de Amâncio justificar o porquê de
mudar-se para o segundo andar, longe de Nini, mas, na realidade, era para ficar
perto de Lúcia.
Ao ser retomado o falso moralismo de Amâncio, um gancho com a
seqüência número quatro, que apresenta a descrição da fisionomia interior do
protagonista, e ela permanece inalterada durante toda a intriga do romance, com
destaque para os motivos que tornaram Amâncio “reservado e fingido”.
No romance-seriado, instaura-se grande suspense no final do episódio que
trata da discussão sobre o histerismo de Nini. Na versão em livro, por outro lado, são
acrescentadas informações que concluem esse evento, como se não houvesse mais
nada a ser conversado sobre esse assunto.
94
1.10.2 Segunda seqüência: 04 de maio (34)
Coluna 01 “Dias depois, quando Amâncio já estava transferido para o n.° 6 do 2
o
.
andar, chegaram-lhe às mãos duas cartas; uma de sua mãe e outra de seu pai”.
Coluna 02 “Amâncio releu várias vezes o que lhe dizia Ângela, e respirou
largamente, como quem sai de um quarto apertado para um grande ar livre”.
Coluna 03 “Vasconcelos chegou tarde; encontrou enrijado e duro o coração de
seu filho”.
Coluna 04 “Não digo que te faças um santo, mas também não te afogues no
torvelinho dos prazeres que há. Goza, meu filho, por isso que és moço, mas goza
com prudência e com juízo. Diverte-te, mas evitando sempre tudo aquilo que te
possa prejudicar”.
Coluna 05 "[...] doía-lhe a consciência por não ter sido melhor filho. Agora
apareciam remorsosinhos penetrantes, como se o pobre rapaz contribuísse de
qualquer modo para a insuficiência do seu amor”.
Coluna 06 Final corte com gancho: “Foi desses elementos que Amâncio nunca
dispôs para poder amar o pai”.
1.10.2.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O discurso narrativo evidencia a supressão de alguns dias, como se não
houvesse nada mais interessante no intervalo entre a decisão de Amâncio mudar-se
para o segundo andar e o momento em que o maranhense recebe duas cartas da
família. As correspondências dos pais instauram mais uma vez o “acaso”, como
técnica capaz de redirecionar a narrativa.
A predileção pela mãe impulsiona-o a abrir a carta dela primeiro, mesmo
ficando evidente que a carta do pai era a primeira que este escrevia especialmente a
Amâncio. Na medida em que Amâncio a carta da mãe, a imagem de santa é
retomada, à qual pode ser empregada a técnica da narrativa folhetinesca de
“conduzir para trás”, com a reapresentação do significado da figura materna à vida
do protagonista.
95
Entretanto, se a carta materna o impressionou, a outra o surpreendeu, pois
desde a primeira linha pôde constatar que o pai lhe chamava carinhosamente de
“Meu filho”:
Era também a primeira vez que apanhava de seu velho pai esse tratamento
carinhoso e confortativo que é como um leite espiritual como que se
alimentam as almas das crianças. Da viva voz o Vasconcelos nunca o
tratara por tu; nunca lhe dera a beijar [...] nunca lhe aliviara enfim o coração,
quando este se achava ainda brando e maleável, para depor um beijo
fechado as sementes de ternura, que deveria mais tarde desabrochar e
produzir todos os bons sedimentos do homem.
Como poderia exigir de Amâncio que tivesse agora virtudes que não
plantaram na estação propícia? Como se haveria de colher dedicação,
heroísmo, coragem, energia, entusiasmo e honra, se de nenhuma dessas
coisas lhe inocularam em tempo o germe necessário? [em destaque
conteúdo que foi suprimido na versão em livro – CP, 1977, p. 98-99].
A presença de didatismo narrativo” e da técnica da narrativa folhetinesca de
“conduzir para trás” balizam as explicações dadas pelo narrador sobre os
sentimentos do Vasconcelos, o que faz desta seqüência um marco da
descaracterização da figura do pai carrasco. A partir de então, Amâncio chegou à
conclusão de que o pai sempre o amara disfarçadamente. Logo é revelado que, por
medo de que o filho não lhe respeitasse como deveria, Vasconcelos: “Muita vez
chorou de ternura, mas sempre às escondidas; muita vez sentiu o coração saltar
para o filho, mas conteve-se convenientemente, com receio de cair no ridículo”.
Então, são relacionados todos os elementos que faltaram à vida de Amâncio, como
justificativa para a falta de amor pelo pai, o que encerra com suspense esta
seqüência. Em complemento, o último parágrafo publica a voz do narrador, como
forma de ressaltar que Amâncio não tinha culpa de não gostar do pai, uma vez que
este nunca se deixou amar pelo filho.
1.10.3 Terceira seqüência: 09 de maio (35)
Coluna 01 Início: Depois da leitura da carta, Amâncio, pela primeira vez sentiu
vontade de escrever para o pai”. “Campos, que lhe apareceu em seguida, veio
corroborar esse desejo em vontade [...]”.
Coluna 02 “- Leia, leia e veja como está triste o pobre velho! Ah! meu amigo,
acredite que - possuir um pai é a maior fortuna que se pode ambicionar nesta vida
[livro: neste mundo]!”
96
Coluna 03 “Sempre que falar ao meu rapaz, tenha a bondade de aconselhá-lo, de
lembrar-lhe as obrigações, de dizer a responsabilidade que agora lhe assiste. Ele
está se fazendo homem e precisa formar um futuro. Sirva-lhe de pai; acompanhe-o e
proteja-o com o mesmo desvelo de que usou meu irmão para guiar a sua mocidade”.
Coluna 04 “Amâncio, que até ouvia o Campos em silêncio e com os olhos
presos a um ponto, agradeceu-lhe muito aquele interesse e jurou que todo o seu
empenho era corresponder à expectativa de seus pais e ser agradável o mais
possível aos verdadeiros amigos de sua família”.
Coluna 05 “Oh! Os estudos! Os estudos eram a aza negra de sua vida, o espectro
terrível de seus sonhos! por melhores que fossem as regalias que daí pudessem vir,
nunca seriam capazes de compensar aquela profunda tristeza, o aborrecimento
invencível, que o devoravam naquele momento”.
Coluna 06 “Todavia, desde a visita do negociante, principiou a freqüentar as aulas
com mais assiduidade e a reter mais na memória o que lia nos compêndios”.
Coluna 07 - O guarda-livros, no fim de contas era um tipo impossível: ninguém o
podia compreender tão depressa se passava de azul para o encarnado como do
encarnado para o azul [No livro: tão depressa está para o norte como para o sul]!”
Final: Ilegível.
1.10.3.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A reação surpreendente de Amâncio contradiz as revelações registradas na
seqüência anterior, por isso a narrativa toma nova direção. Nessa perspectiva,
quando Campos revela a Amâncio o conteúdo da carta que o Vasconcelos lhe
escrevera, cresce no maranhense a vontade de escrever para o pai.
Na terceira coluna tomamos conhecimento de que os favores prestados pelo
tio de Amâncio são cobrados, quando Vasconcelos solicita que Campos: “Sirva-lhe
de pai; acompanhe-o e proteja-o com o mesmo desvelo de que usou meu irmão para
guiar a sua mocidade”. A esse evento podemos aplicar a técnica do “didatismo
narrativo”, na medida em que o autor retoma uma informação registrada na primeira
seqüência do romance-seriado como justificativa para o pedido registrado na carta.
97
Na sexta coluna, são registradas informações que somente existiram no
romance-seriado, que se referem à mudança de comportamento de Amâncio. Desse
modo, a informação adicional contesta o registro feito na coluna cinco, quando é
citado que: “Os estudos! Os estudos eram a aza negra de sua vida”, tendo em vista
que na coluna seis, Amâncio: “Todavia, desde a visita do negociante, principiou a
freqüentar as aulas com mais assiduidade e a reter mais na memória o que lia nos
compêndios”.
No padrão narrativo do romance-seriado, o jantar, oferecido por Campos, para
comemorar o aniversário de casamento, caracteriza-se como um “índice energético”.
Essa técnica propicia uma estilização cronotópica, ao mesmo tempo em que registra
índices de oralidade como elementos de inversão. Esse último aspecto pode ser
evidenciado, quando, em diálogo estabelecido com o protagonista, Carlotinha [irmã
de Hortênsia] revela que Amâncio “seria muito bem recebido. Que aparecesse um
domingo sim, para jantar, alguém se interessava por essas visitas”. Em dedução,
Amâncio conclui que esse “algm” seria Hortênsia. Esse jantar também estabelece
uma quebra do fluxo narrativo, ocasionando interrupção do relato dos efeitos que a
leitura das duas cartas haviam causado em Amâncio.
Esta seqüência está organizada em sete colunas, quando grande parte dos
segmentos apresenta seis divisões.
1.10.4 Quarta seqüência: 09 de maio (36)
Coluna 01 “Pelo caminho de casa, o Coqueiro não se fartou de elogiar as boas
maneiras e a franqueza do Campos; falou respeitosamente da amabilidade de
Hortênsia, disse que lhes havia de fazer uma visita em companhia da mulher e de
Amelinha”.
Coluna 02 “A idéia de que Lúcia estava ali perto a quatro ou cinco passos, mas
inteiramente fora de seu alcance o torturava como uma injustiça clamorosa erguida
contra o seu amor”.
Coluna 03 – “Como podia levar a sério agora a casa de Mme. Brizard?”
Coluna 04 Não se pode levantar da cama no dia seguinte”. “Mas a febre
retrocedeu depois do almoço”.
98
Coluna 05 – “Amelinha revelava-se extremamente solícita. “Ele, coitado, parecia
cada vez pior. Ardiam-lhe os olhos desabridamente; o hálito queimava; não podia
suportar o cheiro do fumo e queixava-se de muita sede e comichão pelo corpo”.
Coluna 06 – “– Eu te amo! Eu te amo! dizia ele”.
Final com ganho: “Lúcia, também não deu mais palavra e, logo depois saiu muito
enfiada”.
1.10.4.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
Diferente do que ocorre na variante em livro, o início desta seqüência elucida
o diálogo interior e a reflexão do protagonista, ao mesmo tempo em que destaca o
fato de Amâncio ignorar as recomendações de Coqueiro:
E terminou dando ao colega conselhos referentes aos interesses do estudo,
ao modo como se devia conduzir na sociedade, como deveria evitar os mil
perigos da corte e a atitude que lhe convinha tomar em certas determinadas
conjunturas.
Amâncio ouvia-o distraidamente; já o aborreciam tantos conselhos.
Este solilóquio, com marcas de oralidade do romance-seriado, expressa a
vontade que Amâncio tinha de dar um basta àquelas sugestões: “– Ora bolas! todos
o queriam guiar!”
Amâncio queria viver livremente e viver aventuras e a idéia de que Lúcia
estava tão perto não o deixava dormir. O livro não preserva as impressões que
Amâncio levou do jantar oferecido por Campos, nem mesmo o repúdio que sentia
pelo anfitrião, mas conserva as intenções que o personagem tem de conquistar
Lúcia, também moradora da casa de pensão de Coqueiro.
A inquietude de Amâncio retoma a técnica narrativa que focaliza os “heróis
que atuam para conquistar uma mulher ou uma boa posição social” (RIBEIRO, 1998,
p. 44-46). Essa técnica narrativa pode ser observada, parcialmente, neste excerto
retirado da coluna dois: “A idéia de que Lúcia estava ali perto a quatro ou cinco
passos, mas inteiramente fora de seu alcance o torturava como uma injustiça
clamorosa erguida contra o seu amor [livro: o indispunha como se fosse uma
pirraça levantada com o fim único de o afligir]”. Contudo, enquanto Amâncio
pretende aventurar-se com Lúcia, ela queria dar um golpe para abandonar a
99
“situação social insatisfatória”, e esta é mais uma técnica característica no padrão
narrativo do romance-seriado.
A técnica da “utilização do acaso como ponto de convergência entre alguns
acontecimentos da narração” (RIBEIRO, 1998, p. 44-46) é utilizada na terceira
coluna, quando Amâncio flagra mais uma vez um dos hóspedes da casa de pensão
receber visita íntima, o que leva o estudante a pensar: “Como podia levar a sério
agora a casa de Mme. Brizard?”
No entanto, quando Amâncio desconfia que Lúcia podia estar tendo um caso
com o piloto, sente-se traído, apesar de tê-la tido apenas nos pensamentos. Esse
conteúdo que somente existiu no romance-seriado, coluna três, revela
particularidades dos tormentos vividos pelo protagonista: “Mas a idéia de que Lúcia
prestava atenção ao piloto o revoltava, porque Amâncio sentia as pontas de uma
traição picarem-lhe a dignidade como se entre ele e a mulher do Pereira houvesse
algum pacto inviolável”. Depois disso, Amâncio ficou doente, repetindo a reação das
heroínas românticas.
A “estética divergente e centrífuga” caracteriza-se pela exploração de uma
multiplicidade de pontos de interesse na intriga e que, de repente, passa a convergir
a um único ponto, a doença de Amâncio. Esse “acaso” possibilita estes dois
acontecimentos inesperados:
Coluna 05:
Amelinha revelava-se extremamente solícita. Andava no bico dos s, a
borboletear pelo quarto, arrumando os livros sobre a mesa, apanhando a
roupa espalhada pelo chão, acudindo a qualquer movimento do estudante,
que dormia entanguecido de baixo dos lençóis.
Coluna 06:
Mas, quando Amélia saiu e desceu ao primeiro andar, ele tomou
rapidamente as mãos da outra e cobriu-as de beijos que a febre tornava
mais ardentes e mais queimosos. “– Eu te amo! Eu te amo! dizia ele.
O último parágrafo apresenta a técnica narrativa do “corte com gancho no
final de segmento”, instaurando suspense ao texto que se revelava lentamente aos
leitores.
100
1.10.5 Quinta seqüência: 11 de maio (37)
Coluna 01 “À noite apresentou-se o Campos, a quem de passagem o Coqueiro
prevenira dos incômodos de Amâncio. Trazia um médico consigo”. “Daquela forma,
a casa em breve transformava-se num hospital!”
Coluna 02 “Depois da cena violenta da sala de visitas, a pobre criatura se quedara
mais apreensiva e mais triste”.
Coluna 03 “Amâncio desejava unicamente que o Campos procurasse descobrir
onde andava o Sabino, que agora lhe fazia muita falta”.
Coluna 04 “Mme. Brizard, o Coqueiro e Amelinha não desamparam o quarto do
doente até mais de meia-noite”.
Coluna 05 – “E todos, com grande espanto, convenceram-se de que o homem
[Paula Mendes] estava em efeito ébrio [...]”.
Coluna 06 “Pelas três horas da madrugada [Livro: por volta das quatro da
madrugada], Amâncio sentiu passarem-lhe brandamente a mão pela testa, e
despertou estremunhado”.
Final: “Um candeeiro de azeite derramava no quarto uma luz duvidosa e trêmula.
Tudo era silêncio e quietação”.
1.10.5.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A primeira coluna desta seqüência estabelece um gancho com a carta escrita
pelo pai de Amâncio, na medida em que Campos se via responsável pelo jovem
maranhense. Essa relação de responsabilidade e comprometimento também é
constatada na coluna três:
Campos agradeceu por si e pelo seu recomendado tanta delicadeza e tanta
boa vontade; recomendou que não poupassem despesas com a moléstia,
dessem ao doente do melhor e do mais caro e quando porventura
precisassem de alguma coisa mandassem imediatamente à rua Direita, que
ele lá estava prontamente para atender a qualquer reclamação.
Os excertos retirados das colunas um e dois retomam a técnica de “conduzir
101
para trás”. Além disso, esses exemplos apresentam certa carga de humor. Na
coluna 01, Catarina, que alguns dias tinha iniciado um motim de madrugada,
agora apresenta comentários maldosos sobre a casa de pensão:
Daquela forma, a casa em breve transformava-se num hospital!
Já lá tinham um tísico, que à noite não deixava ninguém dormir com o gogo;
agora era um bexiguento; amanhã seria a febre amarela e depois a lepra!
Arre! Em chegando o marido [Paulo Mendes] havia de mostrar o que faria!
A segunda coluna retoma algumas informações sobre a crise histérica que
Nini havia sofrido na sala de visitas para então informar, comicamente, como a
cunhada de Coqueiro reagia ao ouvir conversas sobre a enfermidade de Amâncio.
Embora existisse grande alvoroço “[...] Nini, que estava desde às cinco horas
estendida em uma cadeira ao canto da varanda, com um lenço amarrado na cabeça,
os escutava silenciosamente, sem mexer os olhos”.
Nas colunas quatro é cinco também há muita comicidade por trás deste
repertório semântico:
O Melinho, a pérola do n.° 9 , também aparecera; e o Piloto, quando soube,
ainda na porta da rua, que havia um bexigoso no segundo andar, fez uma
careta, benzeu-se comicamente, e voltou pelo mesmo caminho em que
viera, afetando trejeitos exagerado de medo.
O corte com ganho instaura suspense em torno do que o enfermo e Lúcia
conversariam, pois da última vez Amâncio havia dito que a amava. O último
parágrafo revela a atmosfera que os envolvia, a qual também podia refletir seus
sentimentos: Um candeeiro de azeite derramava no quarto a sua meia claridade
trêmula e duvidosa. Era tudo silêncio e quietação”.
1.10.6 Sexta seqüência: 13 de maio (38)
Coluna 01 “– Lúcia! disse ele, mal acordado, tentando passar-lhe um braço na
cintura”. “- Pchit! Fez a mulher do Pereira com o dedo nos lábios - o faça rumor”.
Coluna 02 – “– Ao menos um beijinho... pediu ele”.
Coluna 03 “Mais incomodado com a sua ausência do que com a minha moléstia...
respondeu o moço [a Lúcia], fazendo um ar infeliz”. “Lúcia sorriu e estendeu-lhe a
102
mão, que ele beijou avidamente, ficando depois a examiná-la, como se
contemplasse uma obra de arte”.
Coluna 04 “Coqueiro, que chegou logo depois, deu logo fé de que Lúcia acabava
de estar ali, mas não deixou transparecer a sua contrariedade”.
Coluna 05 Sirigaita! Gritou Coqueiro, depois de uma pausa, batendo sobre a
cômoda Bem desconfiava eu!... Acredita, Loló, que desde a chegada do Amâncio,
tive um palpite de que aquela mulher seria um estorvo para os nossos projetos!”
[em destaque conteúdo que somente existiu no romance-seriado].
Coluna 06 – “E, voltando-se nos projetos a respeito de Amâncio: Uma ocasião tão
boa para a Amelinha cativá-lo!... E lembrar-se aquele espantalho [livro: se o diabo da
intrusa] de atravessar-lhe no caminho [livro: não se metesse entre eles], justamente
no melhor da coisa! Ah! peste!”
Coluna 07 Lembra-te de que o Amâncio é um bobo [livro, p. 110: não inventou a
pólvora] e será muito capaz de deixar-se visgar por aquela lambisgóia!”. “Mme.
Brizard hesitava”.
Final: Ilegível.
1.10.6.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
A primeira técnica da narrativa folhetinesca é evidenciada no primeiro
parágrafo, quando Amâncio, pela primeira vez, tem um contato físico com Lúcia.
Segundo Ribeiro (1998, p. 44-46), esse recurso consiste no emprego de “inícios de
histórias impressionantes e sensacionalistas que provocam o interesse do leitor”. De
um lado, as colunas dois e três apresentam a técnica “de priorizar a ação dos
personagens como unidade narrativa aglutinadora para o desenvolvimento da
história”, o que pode ser destacado a partir das revelações que Lúcia faz ao
estudante, com a finalidade de alertá-lo do plano armado por Coqueiro. Por outro
lado, as três últimas colunas focalizam que os proprietários da casa de pensão
tentam encontrar uma alternativa para livrarem-se de Lúcia, no intuito de deixar o
caminho livre para Amélia. Esses dois movimentos geram tensão ao discurso
narrativo, sobretudo pelo acúmulo de acontecimentos, bem como os dois projetos
103
que têm como finalidade para fazer do casamento um trampolim para a projeção
social.
As ideologias exploradas por intermédio dos projetos matrimoniais são
componentes importantes para o desdobramento da intriga de Casa de Pensão e o
desenvolvimento da história. No entanto, enquanto os planos traçados por Coqueiro
e Lúcia estão diretamente relacionados à exploração da temática da “vida criminosa
e miserável: o poder dado àquele que é mais forte, mais hábil, mais audaz”,
Amâncio, por sua vez, representa a fraqueza e a vulnerabilidade, que se tornam
ainda mais acentuadas quando o protagonista sofre com a catapora, popularmente
conhecida como bexiga.
Tanto a conversa de Amâncio com Lúcia, quanto aquela entre Coqueiro e
Mme. Brizard apresentam “abundância de diálogos” (RIBEIRO, 1998, p. 44-46),
como forma de revelar traços de oralidade, pela reprodução direta do discurso dos
personagens.
Como o final deste segmento está ilegível, não será possível avaliar como
ocorreu seu corte na sétima coluna.
1.10.7 Sétima seqüência: 16 de maio (39)
Coluna 01 “O Pereira levanta-se da mesa do jantar e, seguindo o costume
encaminhava-se tropegamente em busca da sua preguiçosa, quando o
Coqueiro, interpondo-se-lhe no caminho, meteu-lhe na mão uma folha de papel
dobrada sobre o comprido, e disse-lhe em tom seguro e trescalado de urgências: É
uma nova continha de suas despesas” [em destaque conteúdo que somente existiu
no romance-seriado]”.
Coluna 02 A mulher leu a conta inteira, depois dobrou-a em silêncio e guardou-a
no bolso”.
Coluna 03 “- Não me amole! tartamudeou ele, sem voltar o rosto. Lúcia, que se
não podia conter, saltou-lhe ao gasganete e encheu-lhe a cara de bofetões”.
Coluna 04 “Pereira vestiu-se demoradamente, sempre abrir a boca, depois seguiu
para o primeiro andar, devagarinho, no seu passo miúdo, os braços a sacudirem
num movimento pendular, como que despregados do troco”.
104
Coluna 05 “Pereira explicou como tinha gasto o dinheiro. Não fora culpa sua
Passara por uma confeitaria na rua do Ouvidor... alguns amigos o chamaram e,
ofereceram-lhe cerveja e doces. Aceitou, mas depois os (...
24
) foram-se embora, e
ele teve de pagar”.
Coluna 06 “Amâncio, muito desvigorizado com a moléstia, sentia destecerem-se-
lhe interiormente os lúbricos impulsos, que a princípio o atraía para ela, e dera lugar
a uma simpatia tranqüila e doce, comoexperimentara ao lado de sua mãe”.
Final: Amâncio, às vezes, se fazia mais doente e mais necessitado de cuidados,
só para gozar os mimos da enfermeira”.
1.10.7.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início deste segmento retoma a temática relacionada à “vida criminosa e
miserável”, que confere a Coqueiro o poder de desviar do seu caminho Lúcia,
hóspede de sua casa de pensão. Desse modo, a estratégia elaborada por Coqueiro
lhe confere poder para pressionar Lúcia, atingindo seu marido Pereira, vulgarmente
chamado pelo narrador de palerma, e é sobre sua vagarosidade que tratam as cinco
primeiras colunas.
O fato de Lúcia ser pressionada a pagar as despesas relacionadas a sua
estadia na casa de pensão, quando não previa essa abordagem de Coqueiro,
provoca tensão à narrativa. Como ela e o marido são falidos e Pereira não se
esforça para conseguir a quantia solicitada pelo proprietário da pensão, o casal se
torna presa fácil diante de Coqueiro, que é caracterizado pela técnica narrativa que
distingue aquele que é “mais forte, mais hábil, mais audaz”.
O narrador faz uso das técnicas de “conduzir para ts” e “didatismo
narrativo” para retomar a conversa entre Amâncio e Coqueiro, quando o pensionista
cedeu seu gabinete no primeiro andar para o guarda-livros em troca de um quarto no
segundo andar. Esse acontecimento é retomado quando, na quinta coluna, Coqueiro
chega à conclusão de que a mudança repentina de Amâncio para o segundo andar
foi motivada por Lúcia, a quem Coqueiro chama de velhaca.
24
Ilegível.
105
Este segmento é permeado por “Lances teatrais abundantes com bruscas
mudanças inesperadas nos episódios: propósito de despertar o interesse do leitor
sem despertar o seu espírito crítico”. Primeiramente é apresentada uma estilização
de Pereira, que revela o porquê desse personagem ter dificuldade para tomar
qualquer tipo de atitude, o que o torna um ser vegetativo, incapaz, conferindo-lhe
inércia física e moral. Posteriormente, assistimos à atuação de Amélia, instruída para
conquistar Amâncio, que “muito desvigorizado com a moléstia, sentia destecerem-
se-lhe interiormente os lúbricos impulsos, que a princípio o atraía para ela, e dera
lugar a uma simpatia tranqüila e doce, como só experimentara ao lado de suae”.
Se, de um lado temos a fraqueza de Amâncio, do outro encontramos Amélia,
caracterizada com uma espécie de heroína nesta etapa do romance, devido ao fato
de ser descrita com “traços de pureza, honestidade e desinteresse”. A partir do
emprego desta técnica narrativa a aproximação dos dois personagens é facilitada,
pois Amâncio: Ia-se aos poucos familiarizando com aquela criatura branca e ainda
tão nova, que lhe enchia o quarto com o frescor balsâmico de sua virgindade e
rociava-lhe os sentidos com a mimalhice trafega de sua ternura”.
Ao servir canja para Amâncio, Amélia o tratava como um neném. A irmã de
Coqueiro fazia “estalinhos de língua, dizia e repetia que tudo estava muito gostoso”.
Amâncio, por sua vez: “já se fazia mais doente e mais necessitado de cuidados,
para gozar os mimos da enfermeira”. A esta última citação é aplicada a técnica
narrativa de “corte com gancho”, que estimula a curiosidade do leitor para o
desdobramento da história.
1.11 Capítulo XI – um segmento
1.11.1 Primeira seqüência: 22 de maio (40)
Coluna 01 “Dias depois, o médico declarou que Amâncio estava livre do maior
perigo”. “Logo que abandonou a cama, queixou-se de que sentia dores reumáticas
na caixa do peito e nas articulações da perna direita”.
Coluna 02 “Nunca mais lhe foi possível [a Lúcia] até fazer uma ou outra visita
noturna ao doente [Amâncio]”.
106
Coluna 03 “– Pois não percebes que toda esta gente quer fazer de ti uma
propriedade sua; que esta gente te considera um tesouro precioso e teme que lho
furtem?” “– Não! Não percebi até agora nada disso!.”... “Não seja hipócrita!... acudiu
a outra”.
Coluna 04 –Se me amasses, já mo terias dado provas. - Provas?” “Não acredito
nesse amor medroso e comodista que se arreceia a tudo [...]”.
Coluna 05 – “ Amor é o que sinto por ti, entendes?!”
Coluna 06 Se é verdade que me queres ter, arranca-me das mãos de meu
marido e leva-me para onde bem quiseres, faze de mim o que entenderes!”.
Final:
“Entretanto, acrescentou ela, logo que se convenceu de que Amâncio não queria
cair no laço E no entanto tenho de abafar todos os meus sentimentos, tenho de
calcar todos os meus desejos, porque amanhã nos separamos.
Amâncio ergueu-se, espantado.
- Como nos separamos?...interrogou ele”.
1.11.1 Técnicas básicas do padrão narrativo do romance-seriado
O início desta seqüência o estabelece continuidade com a anterior, que
focalizava a aproximação entre Amélia e Amâncio, no entanto, marca uma nova
linha de ação à narrativa. Quando Amâncio estava curado das bexigas, surge
outro imprevisto. A técnica da “utilização do acaso como ponto de convergência
entre alguns acontecimentos da narração” (RIBEIRO, 1998, p. 44-46) é empregada
para analisar esse acontecimento súbito: Logo que abandonou a cama, queixou-se
de que sentia dores reumáticas na caixa do peito e nas articulações da perna
direita”.
A apresentação da segunda enfermidade é realizada a partir da técnica
folhetinesca do “didatismo narrativo”, por retomar episódios interrompidos por outras
ações. O reumatismo sofrido por Amâncio nos remete ao fato de sua ama-de-leite
ter problemas de saúde, o que pode justificar a advertência do médico, no segmento
do dia 09 de março: “– Esta mulher tem reuma no sangue, dizia ele, e a criança pode
107
vir a sofrer no futuro”. A voz do médico é retomada pelo narrador na medida em que
se pode concluir que a previsão do doutor se confirmava. Então, o narrador aplica a
técnica folhetinesca de “conduzir para trás” (RIBEIRO, 1996, p. 45) à primeira coluna
deste segmento, com a dedução de que: Era o sangue de sua ama-de-leite que
principiava a rabear. Bem dizia outrora o médico a seu pai, quando este a
encarregou de amamentar o filho”.
Como esta seqüência é a última a que tivemos acesso, percebemos que são
inseridas novas “Situações persecutórias no desenvolvimento da intriga”. Nas cinco
colunas finais deste segmento, a voz narrativa está centralizada em Lúcia, que
procura formas para continuar perseguindo seu alvo, apesar de sentir-se acuada por
Coqueiro.
Lúcia esperou um pequeno descuido do proprietário da casa de pensão para
voltar a fazer uma visita noturna a Amâncio, no momento em que ele lia um volume
do Alencar. A oportunidade de estar diante do estudante fez com que Lúcia se
expusesse ao máximo. Primeiramente, a mulher de Pereira tenta abrir os olhos do
maranhense e denunciar o plano que Coqueiro tinha para tomar sua fortuna,
fazendo-o casar com Amelinha. Posteriormente, expressa seus sentimentos a
Amâncio.
No final desta seqüência, ocorre um “lance teatral”, atribuindo suspense à
trama de Casa de Pensão, que seria publicada na íntegra um ano depois deste
corte. Lúcia exige que o estudante lhe uma prova de amor: “Entretanto,
acrescentou ela, logo que se convenceu de que Amâncio não queria cair no laço – E
no entanto tenho de abafar todos os meus sentimentos, tenho de calcar todos os
meus desejos, porque amanhã nos separamos”.
Os últimos parágrafos evidenciam a presença da técnica folhetinesca de
“Finais de histórias com desfechos inconsistentes”, pois, diante da revelação de
Lúcia, “Amâncio ergueu-se, espantado. – Como nos separamos?...interrogou ele”.
1.12 Considerações adicionais
Na nota antes de principiar, publicada na véspera do lançamento da primeira
seqüência do romance-seriado, o próprio título Casa de Pensão desperta atenção,
108
principalmente, após ter sido associado a acontecimentos que podem estar
relacionados ao cotidiano desses estabelecimentos. De acordo com José Alcides
Ribeiro (2000, p. 166), esta é uma técnica folhetinesca de colocar tulos atraentes”
para despertar curiosidade, pela carga referencial ligada àquele nome que designa
uma residência ocupada por indivíduos, que muitas vezes não têm nenhum tipo de
ligação. A familiaridade desse título pode ter possibilitado uma correspondência com
o litígio originado em uma casa de pensão, sete anos antes da publicação do
romance-seriado homônimo.
No decorrer da narrativa, as ões fluem em função do tempo, os
personagens assumem papéis distintos dos iniciais, assim como se transferem de
espaço a partir de elementos determinantes pelo meio ou pela circunstância. É
assim que se analisa a chegada de Amâncio, sua hospedagem no Hotel Coroa de
Ouro, a temporada na casa de Campos e, por último, a mudança para a casa de
pensão. Este último espaço é o cenário das principais ões da narrativa, sobretudo
por aproximar Amâncio e Amélia e garantir intimidade a Coqueiro, que se no
direito de tentar dirigir a vida do hóspede e estimular seu envolvimento com a
“Amelinha”, a “jovem indefesa”. Tudo isso caracteriza a técnica da “regra das três
multiplicidades de tempo, de lugar e de ação: dilatação dos elementos narrativos de
tempo, de lugar e de ação dos personagens no desenvolvimento da intriga do
romance”. Como marca da oralidade, grande parte das seqüências apresenta
“abundância de diálogos”.
O conjunto de seqüências do romance-seriado revela a habilidade com que
Aluísio utilizava a técnica de “priorizar a ação dos personagens como unidade
narrativa aglutinadora para o desenvolvimento da história”, porque o corte realizado
no quadragésimo segmento instaura um mistério sobre o desenvolvimento do
discurso ficcional de Casa de Pensão. Os leitores dessa variante precisariam
aguardar a publicação da nova versão, para saberem qual das três roubaria o
coração do estudante, Hortênsia, Amélia ou Lúcia; ou, ainda, se alguém realmente o
convenceria do casamento.
109
2 TÉCNICAS DE ROMANCE-SERIADO NA PRIMEIRA VERSÃO EM LIVRO
Após a análise detalhada do processo de produção do romance-seriado,
passaremos à análise de três seqüências representativas da parte restante
publicada diretamente em livro, no ano seguinte à interrupção da publicação seriada.
Destacamos que, na publicação destinada ao jornal, a história foi interrompida no
Capítulo XI, o qual corresponde ao Capítulo XII dos XXII que totalizam a versão em
livro, lançado por Faro & Lino Editores, no ano de 1884
25
.
Como este capítulo investiga as técnicas de romance-seriado na primeira
versão em livro, será empregado o procedimento analítico realizado por José Alcides
Ribeiro (1996, p. 94 et seq.) sobre A Narrativa de Arthur G. Pym. Essa escolha se
justifica porque a parte final da obra foi concebida para ser publicada diretamente em
livro, o que coincide com o processo de publicação adotado no romance cotejado
nesta investigação e, por isso, oferece-nos parâmetros para a análise aqui
desenvolvida.
Para atingirmos o objetivo destacado, pretendemos apresentar as principais
seqüências dos núcleos representativos do conjunto que compõe a diegese, ao
mesmo tempo em que procuraremos verificar as técnicas narrativas utilizadas nos
últimos capítulos do livro. Adotamos a denominação de núcleos para a reunião de
alguns dos principais temas que envolvem o destino dos personagens principais no
desenvolvimento da intriga, no entanto, como essas ões estão relacionadas
exclusivamente aos objetivos de interesse do processo investigativo, não
realizaremos uma análise aprofundada de todos os elementos que compõem a
narrativa.
Conforme aludido acima, como esta pesquisa tem como foco a verificação da
possível variação de perspectiva em decorrência da mudança de meio de difusão de
Casa de Pensão, este processo investigativo procura descortinar os meandros da
escrita do romance, no intuito de entender a lógica da organização narrativa, assim
como as técnicas empregadas na vertente em livro. Para tanto, selecionamos
seqüências de um núcleo que continuidade ao desenvolvimento do enredo e dois
25
Ressaltamos que, como a edição de Casa de Pensão lançada pela Ática, em 1977, apresenta
fidedignidade textual quando comparada com a versão de 1884, limitar-nos-emos a informar os
números das páginas da edição do texto atualizado.
110
grandes núcleos de intriga do romance, que se detêm à focalização de conflitos de
interesses. O primeiro núcleo retoma ações interrompidas com o corte e
conseqüente interrupção da publicação do romance-seriado, com o desfecho do
romance entre Amâncio e Lúcia, a oponente de Amélia e dos planos de Coqueiro. O
segundo compreende as estratégias articuladas por Coqueiro e pelas personagens a
ele agregadas. O terceiro abrange as ações relacionadas ao personagem Amâncio e
sua reificação.
2.1 Três núcleos narrativos adicionais
2.1.1. Primeiro núcleo: Lúcia
A linha da trama que envolve os planos aplicados por cia para a conquista
de seu alvo, Amâncio, tem continuidade na versão em livro, no Capítulo XII. O
conteúdo da última seqüência foi interrompido quando Lúcia utilizava-se de diversos
artifícios para conquistar Amâncio. A continuidade de diálogos entre os amantes é
uma das marcas da técnica da narrativa do romance-seriado, conforme destacamos
a seguir: É porque não me amas, disse a ilustrada senhora, abaixando os olhos.
Se te amo, minha vida! Se te amo!... E ameigava-a, procurando beijá-la”.
Percebendo a resistência de Lúcia, Amâncio conclui que: “certas mulheres, quando
se negam, estão recuando para melhor armar o salto sobre a presa” (CASA DE
PENSÃO, 1977, p. 119).
Há um “corte no desenvolvimento da história” e “diálogos abundantes” quando
uma nova direção se aproxima ao desenvolvimento da trama. A partir do momento
em que Coqueiro revela a Amâncio que Lúcia havia mentido para fisgar o
maranhense, a mulher de Pereira revela as intenções da interesseira:
Casada o quê!...Da missa não sabes nem a metade!
Então ela não é casada com o Pereira?...
Nunca o foi! Com ele, nem com pessoa alguma! Conheço até a mulher do
Pereira, a legítima, uma velhusca, de óculos, gorda, com um olho
agachado, cheio d‘água. Mora na Rua da Pedreira (CP, 1977, p. 120).
111
A técnica de “priorizar a ação dos personagens como unidade narrativa
aglutinadora para o desenvolvimento da história” surge quando Amâncio vai ao
encontro de Lúcia, que, algum tempo depois da conversa com Coqueiro,
desmascara a interesseira. No final do Capítulo XIV, o emprego da técnica do
“didatismo narrativo”, com a retomada do jogada feita por Coqueiro, no final do
Capítulo XII, e seu êxito dois capítulos depois. Amâncio tenta até mesmo de
violência para seduzir cia, que se esquiva com o pretexto de não poder trair o
marido, no entanto, o nortista revela que sabe que ela o é casada e
desmascara sua dissimulação. A partir de então, o caminho fica livre para Amélia, ao
passo que Lúcia nunca mais tornaria a ameaçar os planos de Coqueiro e da irmã. A
partir desse desenlace, a trama direciona-se, então, para outros pontos.
2.1.2. Segundo núcleo: Coqueiro e personagens a ele agregadas
Na medida em que ocorre a dilatação do espaço, a expansão dos projetos
traçados por Coqueiro, orientados por Mme. Brizard e aplicados por Amélia. Da Rua
do Rezende, onde Amâncio teve o primeiro contato com a família de Coqueiro, a
versão em livro acrescenta dois novos espaços para a casa de pensão. A ampliação
espacial contribui para que a atividade-fim perca suas características de ambiente
público e passa a se tornar privado.
A técnica do romance-seriado do “acaso como ponto de convergência entre
alguns acontecimentos da narração” está presente em duas situações que
impulsionam a transferência de endereço dos moradores da casa de pensão. O
primeiro devia-se ao aconselhamento dado pelo médico de Amâncio de que seria
melhor mudar-se para um lugar que favorecesse o restabelecimento de sua saúde,
como Santa Teresa, por exemplo. O segundo está relacionado a um grave acidente
que envolveu a personagem Nini, quando a filha de Mme. Brizard estava indo visitar
Amâncio e, perdendo o equilíbrio no “patamar da maldita escada”, rolou vinte
degraus, partindo a cabeça em dois lugares:
Supunham, todavia, que amanhecesse morta. Foi o contrário: Nini melhorou
muito de seus antigos padecimentos e apresentou uma inesperada lucidez
de idéias, como muito não possuía. O choque fizera-lhe bem e não
menos o sangue que derramou da cabeça, afiançou o médico (CP, 1977, p.
126).
112
Como a melhora de Nini estava condicionada a distância do enfermo, um
encontro que Amâncio não pode evitar deixou Nini em tal excitação nervosa, que o
médico da histérica proibiu que a consentissem fora do quarto. Ficou presa desde
esse dia.
No final do Capítulo XIII, as orientações médicas e os conflitos latentes na
casa de pensão estabelecem grande importância para o desenvolvimento da
principal intriga do romance. Quando Amâncio pensa em mudar-se da casa de Mme.
Brizard, a irmã de Coqueiro percebe que isso significa uma ameaça aos planos
idealizados pelo irmão, o que exige dela atitudes que impeçam o egresso de
Amâncio:
Amélia não respondeu logo, mas depois, levantando a cabeça, que lhe
havia pousado no colo, exclamou entre soluços angustiados: - Não! não!
não hás de ir! peço-te que não vás!
O provinciano quis saber por quê.
Eu te amo! disse ela, escondendo de novo o rosto. Eu te amo e não
posso me separar de ti! Vejo a sua indiferença ! percebo que me detesta,
mas que hei de eu fazer?! Adoro-te, meu amor!
Ah! se eu não estivesse tão doente!...suspirou Amâncio (CP, 1977, p.
127).
O início do Capítulo XIV insere um acaso que seria decisivo para a saída de
Amâncio daquela casa de pensão: “O tísico do nº 7 dias esperava o seu
momento de morrer, estendido na cama, os olhos cravados no ar, a boca muito
aberta, porque lhe ia faltando o fôlego”
26
. Nos últimos momentos de vida, foi até o
quarto de Amâncio e acabou morrendo na frente do estudante. Depois disso,
Amâncio declarou positivamente que não estava disposto a ficar na casa de pensão
nem mais um dia, por isso, mudaram-se, no dia seguinte, para Santa Teresa. Por
outro lado, os argumentos do médico venceram os escrúpulos da francesa e Nini foi
internada na casa de saúde do Dr. Eiras.
O fato é que, depois da morte do tísico, Amâncio tinha sua saúde ainda mais
abalada, quase que não podia mexer com as pernas. Por isso, o cômodo que lhe
destinaram na nova casa era o mais espaçoso e arejado. Os cuidados também não
tinham limite: “Amélia, enfim, se derramava por todo ele, sem Amâncio dar por isso;
invadia-o sutilmente, como um bicho que entra na carne”
27
.
26
CP, 1977, p. 127.
27
Ibidem, p. 133.
113
A dilatação do espaço aproxima Amâncio e Amélia, ao mesmo tempo em que
favorece o desenlace da intriga: “A nova residência punha-os muito mais juntos,
muito mais unidos do que a da Rua do Resende. Os quartos eram pequenos,
chegados uns dos outros; havia um sótão com escadaria para a sala de jantar.
Amâncio morava aí, sozinho”
28
.
No início do Capítulo XV, verificamos a ação miraculosa do espaço sobre
Amâncio, que um dia, depois de morar em Santa Teresa, parecia ter recuperado a
saúde completamente, tanto é que naquela mesma noite teria o primeiro
envolvimento carnal com Amélia: “Amâncio, que a esperava na porta, logo que a
teve ao alcance da mão, puxou-a para dentro, e deu uma volta à fechadura”
29
. E os
proprietários da casa de pensão passaram a fechar os olhos para aquele
envolvimento porque sabiam que Amélia era hábil, apesar de inexperiente em
matéria de sexo:
Desde esse momento, a vida em casa de Mme. Brizard tornou-se para ele
uma coisa muito agradável. Ninguém mostrava desconfiar, ao menos, de
suas intimidades com Amélia, pelo seu lado parecia satisfeita com o estado
das coisas.
uma ligeira circunstância covardemente o arreceava: é que a pequena
não lhe exibira amor em quarta ou quinta edição, como dizia Paiva, mas em
comprometedoras primícias, com todos os cruentos requisitos de uma
estréia (CP, 1977, p. 139).
Aos poucos, Amélia era o meio que a família encontrava para conseguir
quantias significativas. Amâncio, a seu turno, não se sentia lesado por ser o
provedor da maioria das despesas da nova casa, pois pensava nos benefícios
tirados de tudo isso, então pensava: “Mas que valia tudo isso posto em confronto
aos gozos que lhe proporcionava a deliciosa rapariga?”
30
. Aos poucos, Amâncio
assumiu o aluguel da casa, a mensalidade da casa de saúde onde Nini fora
internada; depois pagava os fornecedores, os produtos consumidos e, até mesmo,
os acessórios domésticos comprados por Mme. Brizard. Quase que diariamente,
Amélia entregava para Amâncio as faturas. E esse era o preço que Coqueiro
cobrava pela irmã, entregue virgem àquele que tinha dinheiro para abafar todas as
pressões que Amélia fazia para forçar uma união oficial.
28
Ibidem, p. 133.
29
ibidem, p. 139.
30
Ibidem.
114
Apesar de viverem como casados, novos acontecimentos fazem do acaso” a
ocorrência de pontos fundamentais para o desenvolvimento da intriga. O primeiro
deles deveu-se à proximidade que Amâncio estava dos exames finais do primeiro
ano de Medicina. O segundo foi motivado pela técnica da “dependência da intriga
para o desenvolvimento da história”: a morte do velho Vasconcelos e a necessidade
que Amâncio via de ir ao Maranhão para consolar a mãe e cuidar do inventário
significava para Amélia o risco de seu amado não voltar à Corte. Pressionado por
Coqueiro e Campos, Amâncio desiste da viagem e se concentra no exame.
Ao saber que Amâncio recebeu uma grande fortuna de herança, Amelinha
intensifica os pedidos de presentes: “então, não procurava rodeios para lhe
arranjar as coisas. Quando precisava de um vestido, de uma jóia, de um chapéu,
dizia-lhe secamente: Deixe-me tanto, que amanhã tenho de fazer compras”
31
.
Como Amâncio reluta para não ceder às novas pressões de Amélia, que exige
que seu amante lhe compre um chalé no Bairro das Laranjeiras, Amélia cessa todos
os mimos que antes eram destinados a Amâncio. Com isso, o relacionamento passa
a ter um sentido especial para o amante, como se ele precisasse de obstáculos para
valorizar as conquistas:
Amâncio nunca lhe achou a pele tão fina, os dentes tão brancos, os olhos
tão vivos e tão formosos. O pálido e ondulante pescoço da menina jamais
lhe pareceu o misterioso: a sua garganta, macia e doce, jamais o cativara
tão despoticamente. Ele, enfim, nunca a sentira tão necessária, tão
indispensável.
E as cenas venturosas dos seus primeiros dias de amor lhe perpassaram
vertiginosamente diante dos olhos, derramando-lhe por todo o corpo um
apetite brutal que lhe fugia por entre os dedos, como um vinho precioso que
se derramava (CP, 1977, p. 142).
Depois que Amélia convenceu Amâncio de que não poderia mais ficar
naquela casa, afinal de contas não conseguia descansar porque precisava esperar
que todos fossem dormir para entrar no quarto do amante, bem com acordar mais
cedo do que todos da casa, para que a família não descobrisse aqueles encontros
noturnos, o provinciano resolveu comprar o chalé. A partir de então, há uma inversão
do sentido de propriedade, pois os amasiados passam a assumir a propriedade,
enquanto Coqueiro e Mme. Brizard tornam-se hóspedes.
A nova casa seria o espaço ideal para a concretização das aventuras dos
31
Ibidem, p. 141.
115
amantes, além de garantir lugar para Coqueiro e Mme. Brizard. Depois desta
descrição da casa, Amâncio dava toda razão à Amélia:
Daí... esclareceu Amélia - é que nessa tal casa de que lhe falei, e que
está para se vender muito em conta, há, além dos cômodos necessários
para Loe Janjão dois quartos magníficos, com entradas independentes e
comunicáveis entre si por uma pequena alcova. Ora, um dos quartos
para a sala de visitas e o outro para a sala de jantar; no caso que
arranjássemos o negócio, você ficaria com um e eu ficaria com o outro, e
dessa forma acabavam-se os sustos e as canseiras; porque durante o dia
abriam-se as do lado de fora e fechavam-se as de dentro, mas à noite
praticava-se justamente o contrário, e ficávamos nós em completa
liberdade! Compreende você agora?... (CP, 1977, p. 143).
Posteriormente, à nova conquista de Amélia no mercado matrimonial, a
técnica da dependência da intriga para o desenvolvimento da história” reaparece
quando Amélia encontra uma carta em que Amâncio declara seu amor à Hortênsia.
Amélia sente-se ameaçada de perder as regalias e pressiona o companheiro ao
casamento. Amâncio esquiva-se mais uma vez e então joga-lhe algumas verdades e
julgamentos: Ora, filha! Nós, antes de cairmos na asneira em que caímos, não
tocamos uma só vez em casamento! E, se queres que te diga com franqueza, eu até
nem supunha ser o primeiro com quem tivesses relações!...”
32
.
Por temer ser deixada, Amélia abala as estruturas da intriga ao mostrar a
Coqueiro a carta interceptada. O irmão: “abismou-se logo desde as primeiras
palavras: “Minha adorada e incompreensível Hortênsia”
33
. E acrescenta: “ Bem. Em
todo o caso, não te dês por achada! Nem uma palavra a este respeito! Precisamos
dar tempo ao tempo... podes, todavia, ficar desde tranqüila, que o que tem de ser
traz força! A justiça não se fez para os cães!...”
34
.
Mme. Brizard pensava diferente, pois a experiência possibilitava que a
francesa soubesse que Coqueiro não tinha com o que se preocupar:
Tolo! Bem que se que não conheces os homens!... Pois acredites
que o Amâncio despreze a rapariga por ter agora um capricho pela outra?...
Não sabes que a única mulher capaz de prender o homem é aquela com
quem ele convive dia e noite; aquela com quem ele se habituou; aquela que
lhe conhece as fraquezas, os ridículos, as pequeninas misérias da
intimidade?! Abandoná-la!... Digo-te mais: Hortênsia é até necessária!
Deixa que ele a persiga, que ele a conquiste à força de mil sacrifícios e de
mil sofrimentos; deixe que ele a possua, que a tenha inteira na mão! Deixa,
porque ele há de voltar, e voltar farto!... Meu amigo, paixão é fogo de palha!
32
Ibidem.
33
Ibidem, p. 159.
34
Ibidem, p. 160.
116
-não dura! Nas ocasiões de fadiga e abatimento é com o amorzinho de casa
que a gente se acha! E, fica então sabendo que, para um homem amar
deveras uma mulher, é preciso que ele se tenha desiludido com muitas
outras! Tristes de nós, se assim não fosse! Há maridos que, ao voltar de
suas correrias, apaixonam-se pelas mesmas esposas, a quem dantes se
chegavam por obrigação! (CP, 1977, p. 161-162).
Embora Coqueiro parecesse entender os conselhos da mulher, um novo
conflito favorece o emprego da técnica “do fluxo alternado de tensão”. Amâncio
resolveu mentir que não pretendia mais viajar. Amélia compreendeu o disfarce e, “no
dia seguinte, tratou de prevenir o irmão de que abrisse os olhos, se não queria ver o
senhor Amâncio escapar-lhe por entre os dedos. João Coqueiro ficou de orelha em
pé”
35
.
Coqueiro, desde a prevenção que lhe fez a irmã, não se descuidou de vigiar
os passos de Amâncio. Por isso, foi fácil descobrir que ele havia comprado um
bilhete de passagem para o Norte, o que lhe deu tempo para ir à casa do Dr. Teles
de Moura e, seguindo as orientações do advogado, surpreendeu o fugitivo antes do
embarque. Depois disso, a diegese apresenta muitas semelhanças com o desenlace
da Questão Capistrano.
A técnica utilizada para descrever “os vilões da história com traços grosseiros
e satânicos” é empregada para a apresentação do Dr. Teles:
Era um advogado velho, muito respeitado no foro; não pelo caráter, que o
não mostrava nunca, nem pela sua ciência, que a não tinha; nem tampouco
pelos seus cabelos brancos, que a estes nem ele próprio respeitava,
invertendo-lhes a cor; mas sim pela sua proverbial sagacidade, pelas suas
manhas de chicanista, pela sua terrível figura de raposa velha, pelos seus
olhinhos irrequietos e matreiros, pelo seu nariz à bico de pássaro e pela sua
boca sem lábios, donde a palavra saía seca e penetrante como uma bala
(CP, 1977, p. 170).
Embora Amâncio não tivesse a proteção familiar no Rio de Janeiro, Campos
havia se disposto a ajudar o maranhense a livrar-se das acusações. No entanto,
quando o guarda-livros estava prestes a resolver os últimos detalhes para a
contração do advogado Saldanha Marinho, um “acaso” e o “didatismo narrativo”
convertem o aliado em inimigo, abalando, completamente, a imagem do provinciano.
Coqueiro, em um gesto desesperado, envia ao comerciante a carta que havia sido
interceptada por Amélia. A partir disso, Campos perde as forças, abala-se e toma
partido do oponente de Amâncio.
35
Ibidem, p. 168.
117
Três meses depois de ter sido iniciado o processo judicial, Coqueiro chega ao
tribunal para defender a honra da irmã, no entanto, Amâncio é absolvido. Um grupo
enorme de rapazes, liderado pelo Paiva Rocha e pelo Simões, aguardava o colega à
saída do júri, para conduzi-lo em triunfo ao Hotel Paris, onde havia à sua espera um
almoço e a banda de músicos alemães.
A comemoração é contraposta pelo tema da revolta: “[...] Coqueiro se dirigia
tristemente para casa. As mãos cruzadas atrás, a cabeça baixa, as sobrancelhas
franzidas, com o ar trágico de um herói vencido”
36
. Os tormentos foram
intensificados por Mme. Brizard, que passou a culpar o marido da situação miserável
em que sua família ficou com a saída de Amâncio de perto deles.
O autor utiliza “didatismo narrativo” para justificar o julgamento feito por Mme.
Brizard, que se fundamenta na tentativa que ela teve de impedir que Coqueiro
pressionasse Amâncio a casar-se com Amélia, porque a francesa sabia muito bem
como agir para prender um homem. Depois de agir contra as orientações da
companheira, o inferno provocado com a absolvição de Amâncio foi maximizado
pelos julgamentos da mulher:
Mas, o culpado foste tu e tu! berrou de supetão Mme. Brizard, erguendo-
se da cadeira com um movimento de cólera. Se me tivesse ouvido, não
ficarias agora com essa cara de asno. «Quem tudo quer, tudo perde!» Foi
bem-feito, para que, de hoje em diante, preste mais atenção ao que te digo!
Agora pega-lhe com trapos quentes! (CP, 1977, p. 183).
Enquanto a absolvição de Amâncio calou para sempre a voz da personagem
Amélia, Coqueiro passou a ser atormentado pela idéia de ter fracassado
duplamente: Capistrano foi absolvido e a desonra de sua irmã foi ridicularizada
publicamente. Depois de pensar em uma maneira de livrar-se daquele tormento, o
antagonista “maquinalmente foi à secretária e tirou o velho revólver que fora do
pai”
37
. A ação de pegar a arma instaura a cnica de “conduzir para trás”, por se
remeter aos momentos em que Lourenço, pai de Coqueiro, forçava o filho a hábitos
e práticas que poderiam transformá-lo em um homem corajoso. Então:
Que estranhas recordações à vista daquela arma! daquela arma que na sua
infância o fizera chorar tantas e tantas vezes!... Belos tempos que não
voltam!...
[...] Ah! bem que se recordava de tudo isso!... Parecia-lhe ouvir ainda
gritar o pai, quando lhe metia à força o revólver entre os dedos. «Não! Isso
36
Ibidem, p. 183.
37
Ibidem, p. 185.
118
agora hás de ter paciência! tu, ao menos, ficarás sabendo dar um tiro!»
(CP, 1977, p. 185 - destaque nosso).
Coqueiro, como se previsse o início de uma vida miserável devido às
crescentes humilhações sofridas, viu o ódio apoderar-se de seus pensamentos e
aumentava na medida em que as provocações se intensificavam:
Três, nada menos do que três cartas anônimas, e cada qual a mais
insultuosa e mais perversa; não lhe poupavam coisa alguma: a vergonha
real da situação, o ridículo que havia de o acompanhar para sempre, a
ojeriza que o público lhe votava espontaneamente; tudo lá estava; tudo
vinha descrito com uma minuciosidade cruel, e com pequeninas
considerações ultrajantes, com o terrível cuidado de quem se vinga (CP,
1977, p. 185).
A intriga assume seu ponto máximo quando Coqueiro, atormentado pela
absolvição de Amâncio, pelos julgamentos de Mme. Brizard, pelas cartas anônimas,
também ouve insultos enquanto tenta encontrar uma solução para livrar-se dos
tormentos. Essas novas provocações são feitas por jovens que, acabando de sair da
festa da vitória de Amâncio, decidem insultar Coqueiro com estes insultos: “- Dorme,
dorme! É assim que fazem os sem-vergonhas de tua espécie! vendem a irmã e
põem-se a descansar no colchão que lhe deixou o amante!”
38
. A ira e o desejo de
vingança têm sua culminância quando "João Coqueiro presenciara tudo aquilo,
grudado a um canto da janela, mordendo os nós da mão, os olhos injetados, o
sangue a saltar-lhe nas veias”
39
. Atormentado pelas vozes que imprimiam a
felicidade de Amâncio diante de seu fracasso, Coqueiro entendeu que somente
poderia acabar com todas aquelas injúrias depois de matar Amâncio e assim o fez.
A concretização do assassinato é realizada com o emprego da técnica de
“lances teatrais abundantes”, pois as ações que motivaram o irmão de Amélia são
enfatizadas por expressões dramáticas, como se o ato fosse programado: “O
Coqueiro olhou um instante para ele, sem pestanejar; depois, sacou tranqüilamente
o revólver da algibeira e deu-lhe um tiro à queima-roupa. Amâncio soltou um ai”.
Depois de esvaziar a arma, a seqüência de tiros fez com o Coqueiro deixasse cair o
revólver: “Nisto, como se acordasse de uma vertigem, saiu a correr tropeçando em
tudo”
40
.
38
Ibidem, p. 186.
39
Ibidem, p. 187.
40
Ibidem, p. 189.
119
Um novo “acaso” faz com que Coqueiro seja pego em flagrante. Um policial
estava no hotel no momento em que o assassino de Amâncio tenta fugir: “No
primeiro andar um polícia lançou-lhe as garras aos cós das calças e o foi conduzindo
à sua frente, sem lhe dizer palavra”
41
. O assassinato fecha o Capítulo XXI e o
seguinte está centralizado no enterro do maranhense.
Ao dialogar com a ironia do destino ligada ao fato de Pereira, assassino de
Capistrano, ter sido absolvido pelas mesmas pessoas que absolveram o sedutor de
sua irmã, Júlia, a ficção mostra que muitos dos amigos de Amâncio passaram para o
lado de Coqueiro depois da morte do maranhense. Até mesmo Paiva Rocha, que
herdou todas as roupas do falecido, passou a discursar a favor do assassino de seu
conterrâneo e colegas desde os tempos do Lyceu. Portanto, Coqueiro é absolvido,
publicamente, pelo assassinato que se converteu em símbolo de restabelecimento
da honra de sua família, embora a narrativa não relate seu julgamento judicial.
2.1.3 Terceiro núcleo: a fragmentação de Amâncio
Amâncio é alvo de Amélia e de Lúcia, por isso ele permeia os interesses delas
em todas as ações e conflitos voltados para a realização de seus projetos,
relacionados ao “mercado matrimonial”. O nortista via em Hortênsia a mulher ideal.
No entanto, como a mulher do Campos não lhe esperança, o jovem entrega-se
aos prazeres encontrados ao lado de Amélia que, por sua vez, pressionara Amâncio
ao casamento. Porque a viagem de Amâncio ao Maranhão estava condicionada à
formalização do compromisso, o nortista é persuadido pelo conterrâneo Paiva Rocha
a viajar às escondidas, mas é pego por Coqueiro, que denuncia o sedutor da irmã,
não deixando alternativas ao fugitivo, porque: “o crime era inafiançável e que por
conseguinte não se podia evitar a prisão!
42
Como os motivos que levaram Amâncio ao julgamento são semelhantes
àqueles que oito anos antes da publicação do livro desencadearam no assassinato
de Capistrano, tanto na ficção como no drama intitulado Questão Capistrano, os
inquéritos dos estudantes são descritos como fatores que desencadearam grande
comoção na sociedade carioca do período. O início do relato sobre o julgamento de
41
Ibidem.
42
Ibidem, p. 175.
120
Amâncio é atraente, o que, possivelmente, tem como objetivo atrair o leitor, da
mesma forma que esse drama também foi divulgado, amplamente, pelos jornais, que
“começavam a explorá-lo”: “E o escândalo, como um líquido derramado, ia
escorrendo pelas ruas, pelos becos, penetrando por aqui e por ali, invadindo as
repartições públicas, os escritórios comerciais, as redações das folhas e as casas
particulares”
43
.
Mesmo dissolvida a casa de pensão de Mme. Brizard, a expectativa gerada
em torno do julgamento do provinciano reunia muitos dos antigos pensionistas,
dentre os quais destacamos o advogado Dr. Tavares, que, nesse momento, não se
cansava de citar o artigo 222 do Código Criminal, para justificar a inocência do
maranhense: "Amâncio nada mais fez do que desflorar mulher virgem maior de
dezessete anos, o que, perante a nossa lei, não constitui crime! Por conseguinte, a
prisão preventiva não devia ser efetuada!”
44
.
O início do Capítulo XX destaca os primeiros impactos acarretados pelo
julgamento aberto contra Amâncio. O desespero de Campos fez com que o
comerciante corresse até a Casa de Correção do Conde
45
para ajudá-lo no que
fosse preciso. No entanto, a carta que lhe foi entregue por Coqueiro fê-lo descobrir
as más invenções que o nortista hipócrita tinha sobre sua mulher: “Este surgia-lhe
agora à imaginação, como que um Satanás de mágica que deixou de fugir de
repente, pelo alçapão do teatro, com a sua túnica de bom velho peregrino”
46
. Depois
disso, Campos passou para o lado de Coqueiro, enquanto Hortênsia caiu de amores
por Amâncio. Este último fato revela uma reação surpreendente por parte da mulher
do guarda-livros, o que até parecia piada para Amâncio. Porém, esse acaso fez com
que Hortênsia passasse a sentir-se culpada pelo sofrimento do provinciano, como se
o sentimento dela estivesse vinculado à concretização de episódios lidos em
romances e ela quisesse fazer parte daquele “lance teatral”:
Amava-o agora. Seu espírito atrasado e muito brasileiro descobria nele uma
vítima de fatalidades amorosas, e esse prisma romântico emprestava ao
43
Ibidem, p. 176.
44
Ibidem, p. 177.
45
Em 1834, Aureliano de Souza e Oliveira, futuro Visconde de Sepetiba, Ministro da Justiça, mandou
lavrar a escritura da compra de uma chácara para nela construir a Casa de Correção que foi assim
construída na Rua Conde D’Eu nº. 277, atual Rua Frei Caneca. foi construído um complexo
penitenciário onde também abrigou a Casa de Detenção onde ficavam os presos que ainda não
tinham sido julgados e o Calabouço – prisão para escravos.
46
Op. Cit., p. 178
121
estudante uma irresistível simpatia de tristeza, uma deliciosa atração de
desgraça (CP, 1977, p. 179).
E a mulher de Campos, que até não sentira dificuldade em resistir às
seduções do estudante, agora, fascinada pela dramatização daquela
catástrofe que o heroificava, via-o belo, indispensável, grande na sua
situação especial, conhecido das mulheres, temido e odiado dos homens,
vivendo na curiosidade do blico, percorrendo todas as fantasias,
sobressaltando todos os corações (CP, 1977, p. 180).
Uma das características marcantes do protagonista é a “temática dos cios e
amor selvagem”. O desejo da conquista aguçava os sentimentos de Amâncio,
portanto, tudo o que era fácil lhe parecia suspeito ou sem sentido, conforme pode
ser observado no solilóquio a seguir, em que Amâncio desmistifica a personagem
Hortênsia:
E agora?... além de perder a amizade de Campos, justamente quando
mais precisava dela, havia de suportar a prosa lírica da Sra. D. Hortênsia!...
“Que estava arrependida, que o adorava, que seria capaz de tudo por lhe
dar um momento de ventura e que o esperava de braços abertos, logo que
ele se achasse em liberdade” (CP, 1977, p. 180).
A exploração da “temática de aspectos da vida miserável” é explorada no
momento em que Amâncio se encontra na Casa de Correção, sozinho, sem o apoio
da família ou de Campos: “E chorava, o infeliz, chorava como se quisesse vingar nas
lágrimas”
47
. Desafortunado, Amâncio via tudo piorar progressivamente, como se
fosse perdendo todas as ilusões; a imagem de Hortênsia se desfazia e “a vida se lhe
fazia mais escura e mais apertada entre as paredes da sua prisão”. Então, a
narrativa incorpora a técnica de “conduzir para trás” e a imagem tranqüila e doce de
sua mãe vem a sua mente: “permanecia com a mesma consoladora suavidade;
sempre aquela mesma carinhosa figura de cabelos brancos, aquele corpo fraco,
vergado e tão mesquinho que parecia pequeno demais para sustentar tamanho
amor”
48
.
uma progressão temporal no início do Capítulo XXI, com a supressão de
detalhes do período em que separava Amâncio do julgamento. Primeiro o narrador
revela que três meses depois de surpreendido em fuga o acusado foi absolvido,
depois apresenta detalhes do processo judicial que o absolveu. De modo
semelhante ao que ocorre no romance-seriado, a “estrutura sinusoidal da intriga”,
47
Ibidem, p. 180.
48
Ibidem, p. 181.
122
com a técnica de contar a história, provocando um fluxo alterado de tensão e
distensão por meio da organização dos elementos da narrativa nas seqüências,
provoca expectativa por parte do leitor e atenção diante da necessidade da
organização lógica por intermédio da leitura.
Conforme apresentado anteriormente, o momento em que Coqueiro esvazia a
arma em direção de seu alvo Amâncio é descrito como em um “lance teatral”, com
destaque para as expressões produzidas no semblante dos dois estudantes. Depois
de disparados diversos tiros à queima-roupa, Coqueiro deixa o quarto de hotel onde
estava o provinciano, como se estivesse acordado de uma perturbação:
Entretanto, Amâncio despertou com um novo gemido e levou ao peito as
mãos que se ensoparam no sangue da ferida. Olhou em torno, à procura de
alguém; mas o quarto estava abandonado.
Então, fechou novamente os olhos estremecendo, esticou o corpo e uma
palavra doce esvoaçou-lhe nos lábios entreabertos, como um fraco e
lamentoso apelo de criança: Mamãe!... E morreu (CP, 1977, p. 188).
O final do Capítulo XXI apresenta o “gancho” característico do romance-
seriado, ou seja, a morte de Amâncio instaura um novo ponto de interesse da intriga,
introduzido pelo impacto provocado pela morte do estudante que estava
descansando depois de comemorar a absolvição.
2.1.3.1 Último capítulo do romance Casa de Pensão: a reificação de Amâncio
O último capítulo de Casa de Pensão retoma as ações vinculadas às
estratégias traçadas por Coqueiro e personagens a ele agregadas, e desenvolve os
últimos pontos da intriga do romance. Nessa etapa, são acrescentadas as principais
ações ocorridas depois que Amâncio foi julgado por abuso sexual; o inquérito que o
absolveu e sua reificação.
A morte do protagonista estimulou o sobressalto da população e de
repórteres, com a formação de grandes grupos em torno do Hotel Paris. Em meio ao
tumulto surgiam inúmeros comentários sobre o acontecimento, dentre eles se
destacava a voz de Lambertosa, que relembrava da figura de Amâncio: “sempre
distinto, sempre viajado, pronto sempre a explicar as coisas cientificamente”
49
, o que
faz uma analogia ao fato de Amâncio cursar Medicina e à linguagem naturalista. A
49
Ibidem, p. 189.
123
fala do ilustre gentleman da casa de pensão da Mme. Brizard inicia a reorganização
da trama, por intermédio do “didatismo narrativo” que retoma a voz dos antigos
pensionistas que conviveram com Amâncio. Muitos dos antigos inquilinos de Mme.
Brizard também apareceram no necrotério, como se esses personagens voltassem à
cena para assistir ao desfecho da história.
Da mesma forma que ocorreu com o relato da Questão Capistrano, no
momento da morte de Amâncio, toda a população pensava na tragédia que o
vitimou. Para registrar o impacto desse drama “os jornais saíam carregados de
notícias e artigos sobre ele, esgotavam-se as edições da defesa e da acusação de
Amâncio”
50
. A técnica de “priorizar a ação dos personagens com o recurso de
expressão para esse fim” é enfatizada na medida em que se agravava a situação do
maranhense.
Hortênsia, que para Amâncio parecia ser a única mulher que poderia ser
comparada com sua mãe Ângela, passou a perder as características que lhe
conferiam integridade, como se o meio e as circunstâncias tivessem corrompendo-a.
A força que contribuiu para a ascensão do marido Campos se fragmenta na medida
em que Hortênsia se entregava à fantasia criada depois da prisão de Amâncio.
Então, “quando lhe constou o terrível desfecho daquele episódio que, na sua
fantasia rontica, tomava as proporções de um poema, caiu sem sentidos e ficou
prostrada na cama por uma febre violenta”
51
. No entanto, se por um lado Hortênsia
se converteu, progressivamente, de mulher realista à romântica, por outro lado,
indícios de que se Amâncio o tivesse morrido, dificilmente se entregaria à mulher
de Campos, ressaltando a característica romântica do personagem que associava a
figura angelical da mãe à mulher idealizada, ou seja, na medida em que Hortênsia se
tornava acessível, deixava de ser desejada.
Outra analogia estabelecida com a morte de Capistrano ocorre com a
referência feita a Saldanha Marinho, defensor do paranaense e do personagem que
o representa. Essa informação se remete à técnica narrativa da “verossimilhança
que nunca escorrega para o irracional”, ou seja, sempre “uma explicação real
para a verossimilhança dos fatos”. No entanto, no momento da morte de Amâncio, o
nome do advogado é citado indiretamente: “Por influência do advogado de Amâncio,
50
Ibidem.
51
Ibidem.
124
que era político e bem relacionado, compareceram muitos figurões e até alguns
homens do poder”
52
.
Outra característica presente neste núcleo narrativo é a retomada de espaços
percorridos pelo protagonista, que no epílogo representam lugar destinado à platéia
que assistiu ao funeral do maranhense. O sobressalto causado na cidade estabelece
analogia com o momento em que a procissão fúnebre de Capistrano foi
acompanhada por parcela significativa da população carioca. Se, por um lado, o
Jornal do Comércio e a Gazeta de Notícias registraram que, aproximadamente, duas
mil pessoas acompanharam o fúnebre cortejo de Capistrano, Casa de Pensão
registra que na morte de Amâncio:
O funeral atingiu dimensões gigantescas; parecia que se tratava da morte
de um grande benemérito da Pátria.
Veio muita gente dos arrabaldes. De todos os cantos do Rio de Janeiro
acudia povo e mais povo a ver o enterro. As ruas, os largos, por onde ele ia,
ficavam acogulados de gente; os garotos grimpavam-se aos muros,
escalavam as árvores, subiam às grades das chácaras; as janelas
regurgitavam, como num domingo de festa.
O caixão foi carregado a pulso, coberto de coroas; no cemitério ninguém se
podia mexer com a multidão que afluía. Um delírio! (CP, 1977, p. 189-190).
O diálogo com a Questão Capistrano vai além da referência ao tema, pois, o
romance também registra a repercussão do acontecimento que se tornou notícia: “E
no dia seguinte, descrições e mais descrições jornalísticas; necrológios, artigos
fúnebres, notícias biográficas e poesias dedicadas à ‘triste morte daquelas vinte
primaveras’”
53
. Da mesma forma que Alexandre Pereira foi indiciado alguns meses
depois de ter assassinado o colega da Escola Politécnica, em Casa de Pensão
existe a informação de que “o fato não caiu logo no esquecimento, porque estava
o novo processo do assassino para lhe entreter o calor, à feição de um banho-
maria”
54
. O romance destaca que a notícia causava grande agitação naqueles que
ainda lembravam do julgamento anterior, como se fosse seu desdobramento.
Embora a ficção não relate a sentença atribuída a Coqueiro, o “final da
história tem desfecho inconsistente” ironiza o desfecho dado ao assassino de
Capistrano. Enquanto o drama apresenta a inversão de perspectiva e de valores por
trás da absolvição de Alexandre Pereira, vinda das mesmas pessoas que
52
Ibidem.
53
Ibidem, p. 190.
54
Ibidem.
125
absolveram Capistrano, Casa de Pensão destaca os fatos que antecederam o
inquérito, ironizando a volatilidade do ser humano.
Apesar de ter se revoltado contra Amâncio, Campos decide escrever para a
família de Amâncio. Sem relatar o que descobrira sobre os escrúpulos do jovem
maranhense, o guarda-livros apenas escreve à Ângela para comunicá-la da prisão
do filho. Com efeito, ela resolveu seguir para a Corte, imediatamente, no primeiro
vapor. O último episódio existente no último capítulo narra a chegada da mãe de
Amâncio ao Rio de Janeiro. Pouco depois do enterro do filho, Ângela, idosa,
saltava no cais Pharoux coberta de luto, acompanhada por uma mulata, cuja voz não
é registrada, e de um senhor que ela conheceu na viagem.
O desespero da mãe à procura do filho confunde-a entre a busca na direção
da Rua Direita, de onde Campos havia endereçado a última carta e a Rua das
Laranjeiras, endereço registrado nas cartas enviadas por Amâncio.
No momento da procura, Ângela mostrava-se “sempre inquieta, a olhar para
todos os lados, como se esperasse, por um acaso feliz, descobrir Amâncio, de um
momento para outro”
55
. É foi então que o “acaso”, comumente empregado no
romance-seriado, surpreende a mãe de Amâncio. Se, por um lado, o desfecho
retoma o caráter mercantil atribuído ao símbolo criado em torno de Amâncio, quando
registrado que no momento de julgamento do maranhense “vendia-se na rua o
retrato deste em todas as posições, feitios e tamanhos; moribundo, em vida, na
escola, no passeio. E tudo ia direto para os álbuns, para as paredes e para as
coleções de raridades”
56
. Por outro lado, a morte estabelece o “didatismo narrativo
com a vendagem de produtos vinculados à imagem de Amâncio.
Na Rua Direita, Ângela, de repente, ficou imóvel quando identificou na vidraça
de um armarinho chapéus dedicados “à Amâncio de Vasconcelos”. Como não
entendia o sentido da menção feita ao filho, o senhor que estava com ela precisou
explicar que: É o título! disse. Eles agora batizam as mercadorias com os
nomes que estão na moda. Algum tenor!” Apesar de o senhor tentar convencê-la de
que o nome lido poderia ser de outra pessoa:
D. Ângela fugira-lhe outra vez do braço para correr a uma nova vidraça.
Eram agora bengalas e gravatas «à Amâncio de Vasconcelos» que lhe
prendiam a atenção.
Acabavam de entrar na Rua do Ouvidor [...]. D. Ângela aproximou-se do
retrato, correndo, e soltou logo uma exclamação:
55
Ibidem, p. 191.
56
Ibidem.
126
Mas é ele! É meu filho! o meu Amâncio!
[...] Tinha visto seu filho, representado na mesa do necrotério, com o tronco
nu, o corpo em sangue.
E por debaixo, em letras garrafais:
«Amâncio de Vasconcelos, assassinado por João Coqueiro no Hotel Paris,
em tantos de tal» (CP, 1977, p. 191-192).
A morte de Amâncio é caracterizada como um episódio que irá banalizar a
figura do estudante. Se antes somente as pessoas mais próximas tentavam extorquir
o dinheiro do nortista, a morte favorece a ampliação do conceito de alienação, como
a transferência da propriedade de Amâncio àqueles que poderiam lucrar com o
símbolo de drama. Quando vivo, Amâncio foi atraído para duas armadilhas que
pretendiam fazer dele uma pessoa reificada transformada numa coisa, numa
simples propriedade. Por intermédio do contrato matrimonial, idealizado por
Coqueiro para Amélia, e do golpe traçado por Lúcia, definiam-se os dois movimentos
para que Amâncio passasse a ser propriedade daquela que o fisgasse. Enquanto a
“situação social insatisfatória” das duas personagens está ligada à necessidade que
elas tinham de fazer de Amâncio uma propriedade que "pudesse ser dominada pelo
seu novo dono" (MESZAROS, 2006, p. 38), a síntese atribuída ao protagonista de
Casa de Pensão dialoga com a teoria extraída da transformação da noção de
trabalho, com a redução do ser humano em coisa e a perda de suas características
edificantes.
2.2 Considerações adicionais
Chegamos, então, ao final do capítulo. Julgamos pertinente destacar,
portanto, que a análise dos núcleos com o conteúdo restante da história demonstra
que o autor preservou algumas das características que norteou os segmentos
publicados no formato de romance-seriado, sobretudo pela continuidade no emprego
de algumas técnicas do romance-seriado, como: abundância de diálogos; técnica de
priorizar a ação dos personagens com o recurso de expressão para esse fim;
conduzir para trás; verossimilhança que nunca escorrega para o irracional; lances
teatrais; acaso como ponto de convergência entre alguns acontecimentos da
narração; corte com gancho entre os capítulos; didatismo narrativo, dentre outras.
Outra particularidade interessante ao desfecho da narrativa de Casa de
127
Pensão é o emprego da técnica do romance-seriado de inserir “vilões da história
com traços grosseiros e satânicos”, que se torna ainda mais enfática com a
zoomorfização. Vendo o ser humano por intermédio de uma perspectiva biológica,
os traços e atributos de alguns dos personagens recebem características
animalescas. Ao focalizarmos o antagonista, percebemos que na medida em que
Coqueiro se encaminha para o fracasso, é intensificada a utilização de
procedimentos deformadores, utilizados para reduzir o personagem a formas
animais, com simbologia ligada à fraqueza.
Como o advogado carola Teles Moura, caracterizado como uma raposa velha,
não conseguiu a vitória dos interesses do seu cliente, Coqueiro entrou em um
botequim para esconder-se dos risos e comentários cheios de escárnio por sua
derrota. Nesse momento, inicia-se o sentimento que leva Coqueiro à vertigem,
então: “uma raiva negra, um desespero surdo e profundo entraram-lhe no corpo, que
nem um bando de corvos, para lhe comer a carniça do coração”
57
.
Quando chega à sua casa, Mme. Brizard o compara a um asno, por não ter
seguido seus conselhos: “Se me tivesse ouvido, não ficarias agora com essa cara de
asno. ‘Quem tudo quer, tudo perde!’”
58
. A francesa ressalta o fato de “suas
cabeçadas”, provocadas por suas atitudes inconseqüentes iriam afetar a todos,
então acrescenta: “É preciso ser muito cavalo, para ter a fortuna nas mãos e atirá-la
pela janela fora! Agora é que eu quero ver! Anda! Vai arranjar hóspedes!
59
.
De repente, os motivos propulsores de seu tormento são retomados, para
então aflorarem de modo mais intenso e carregados de carga semântica ligada à
zoomorfização do antagonista: “Não podia sossegar um minuto era deixar-se ir
consumindo pelo sofrimento, até que a dor cansasse de doer e os tais bichos negros
do coração lhe comessem o último bocado de carniça”
60
. No momento em que
Coqueiro pensava no fato de Amâncio ter dormido meio ano com Amélia, também
ligava a popularidade do maranhense à facilidade que ele tinha para fazer novas
amizades, enquanto ele se achava um infeliz, que todos evitavam, como se fosse
um leproso, que via seu coração ser comido pelos “bichos negros” que o
contaminavam de ódio.
57
Ibidem, p. 183.
58
Ibidem.
59
Ibidem, p. 184.
60
Ibidem.
128
Enquanto se via atormentado pelo inferno instaurado em seus pensamentos,
aproximadamente dez convidados que haviam comemorado a absolvição de
Amâncio se aproximavam da casa de Coqueiro. Quando chegaram à Rua das
Laranjeiras, os estudantes começaram a gritar, em fúria: “ Estás dormindo, ó
Joãozinho dos camarões?! [...] Dorme, dorme! é assim que fazem os sem-
vergonhas de tua espécie! Vendem a irmã e põem-se a descansar no colchão que
lhe deixou o amante!”
61
. Conhecida por Amélia dos camarões, por fazer as melhores
espetadas de camarão do Rio de Janeiro, Coqueiro é motivo da ironia que o coloca
no mesmo naipe da irmã.
Os insultos se intensificam com este grito: “- Sai, parasita!”, reduzindo
Coqueiro à mesma condição de organismos que vivem à custa de um hospedeiro,
que nada mais é do que Amâncio e de seus bens. E continuam os insultos: “− Sai,
cão! Deixa a casa, que não é tua! Fora! Fora o cáften!”. Depois de comparar
Coqueiro a um ser sórdido, que vende sua irmã, como em um comércio de
meretrizes, os estudantes passam a compará-lo com um porco. Conseqüentemente,
os vizinhos não poderiam calá-los porque: “Quem mora junto ao chiqueiro sente o
fedor da lama! gritou um segundo
62
”.
Até mesmo no momento de assassinar Amâncio, Coqueiro é comparado a um
otário: “A segunda bala já não o pilhou, mas o irmão de Amélia, abstrato, pateta,
continuava a disparar os outros tiros até que a arma lhe caiu das mãos”
63
. Então, é
fechado o ciclo de entorpecimento envolvendo Coqueiro, ciclo esse que teve início
com os insultos iniciados à saída do tribunal, que, por sua vez, aplicou a Coqueiro a
pena do fracasso.
61
Ibidem.
62
Ibidem.
63
Ibidem, p. 188.
129
3 DO ROMANCE-SERIADO AO LIVRO
A plasticidade do discurso de Casa de Pensão é produto da plurissignificação
dos discursos absorvidos e sintetizados em um gênero híbrido, que se molda às
técnicas do romance-seriado e, posteriormente, recebe o formato de livro. Em menor
ou maior grau, as duas publicações refletem a dimensão histórico-cultural que a
concepção de gênero implica, em decorrência do caráter dialógico e social que o
romance absorve. No livro, a identificação das transformações diferenciais em
termos de técnicas de criação adotadas no romance-seriado, as quais nos
impulsionam à investigação do processo criativo adotado por Aluísio Azevedo na
composição de Casa de Pensão. Nessa perspectiva, partimos do pressuposto de
que a escrita das duas versões do romance é motivada pela dupla natureza que lhe
é conferida e pelos códigos semióticos que permeiam a estrutura narrativa: notícia e
referencial criativo; romance-seriado e livro; leitores e críticos; efemeridade e
permanência.
No intuito de apresentar particularidades do percurso criativo de Casa de
Pensão e, ao mesmo tempo, apresentar duas etapas de elaboração do conteúdo
narrativo, na vertente do romance-seriado e em livro, entendemos a necessidade de
aproximar a lente investigativa sobre o movimento de composição do romance
focado neste estudo. As especificidades que podem definir as estratégias utilizadas
por Aluísio Azevedo vão além do que se refere à adequação ao formato, pois são
capazes de evidenciar em que medida o escritor também tinha consciência da
necessidade de revisar o que os leitores que lhe eram contemporâneos haviam lido,
para, então, lançar a história em livro para um público mais amplo.
Além de seguir uma tendência editorial em voga no segundo meado do século
XIX, tanto no Brasil quanto na Europa, o romance publicado em periódico, na seção
folhetim, caracteriza-se como uma espécie de prova tipográfica: modificando o texto
impresso, alertando o autor sobre o possível sucesso ou fracasso que a edição em
livro alcançaria. Este último aspecto pode ser evidenciado no romance-seriado Casa
de Pensão – publicado, parcialmente, no jornal Folha Nova – RJ, entre mao e maio
de 1883 cuja suspensão ocorreu antes mesmo da apresentação do clímax, o que
nos leva a crer que o autor havia constatado o sucesso que a história atingira entre
130
os leitores e críticos e, por isso, houve a redefinição da estratégia e do momento de
publicação.
Com a divulgação dos segmentos suspensa, Aluísio pode se dedicar à
elaboração dos demais capítulos e modificar os já escritos. Para entender como
ocorreu o processo de alteração nos onze primeiros capítulos do romance-seriado,
quando foram reorganizados para anteceder o texto complementar com a hipertrofia
da intriga, apresentaremos algumas tipologias na tentativa de caracterizar as
técnicas composicionais utilizadas na escrita de Casa de Pensão. Como todo esse
discurso romanesco carrega, em menor ou maior proporção, as marcas ideológicas
de quem o construiu, esta análise procura verificar em que medida o ponto de vista
de Aluísio pode ter sido redefinido em função das mudanças de perspectivas do
texto.
Araripe Júnior havia antecipado, em 1884, por ocasião do surgimento da
versão de Casa de Pensão em livro, que o movimento criativo do romance redefiniu
a escrita do conteúdo publicado em 1883. Por acompanhar bem de perto o percurso
de produção do romance em análise, o crítico revela essas impressões acerca da
nova versão: "Amigo Aluísio Azevedo. Acabo de reler a sua Casa de Pensão. Digo
reler porque a conhecia pelos fragmentos publicados na Folha Nova, que, hoje
refundidos, castigados, formam o formoso livro que tenho diante dos olhos"
(GAZETA DE NOTÍCIAS – RJ, 1884, ago. p. 1).
A constatação de Araripe revela que no momento em que foi publicada a
segunda versão de Casa de Pensão, eram perceptíveis as alterações realizadas
pelo autor. Como as mudanças ocorridas no processo de escrita podem revelar
particularidades do movimento criativo adotado por Aluísio Azevedo, selecionamos
variantes representativas desse procedimento, as quais convivem com as unidades
estáveis, que podem deslizar no tempo e adquirir sentidos diversos, sem,
necessariamente, estarem ligados ao século XIX, afinal de contas, tanto os
sentimentos humanos como o material da ficção busca na realidade a essência para
compor o texto poético.
Ao conceber a obra literária em dois momentos criativos, Aluísio teve a
oportunidade de revisar o que já havia escrito, tanto no papel de leitor do próprio
texto, como no papel de avaliador da técnica ligada ao meio de divulgação. A
habilidade exercitada na combinação de códigos semióticos atribui plasticidade à
linguagem literária, que se molda em função dos meios aos quais ela se vincula por
131
intermédio da publicação. Por isso, as modificações realizadas configuram-se como
elementos fundamentais para a caracterização do contexto comunicativo.
3.1 Pressupostos da análise
Para a análise de Casa de Pensão, optamos pela seleção de variantes
representativas das alterações ocorridas nas versões cotejadas, sem a pretensão de
contemplar toda a diversidade presente nas duas versões que compõem o corpus
desta pesquisa. O eixo que norteia as categorias selecionadas está ligado à
linguagem híbrida, que se alterna entre a utilização de traços característicos da
estética romântica e naturalista; a dialogia entre ficção e notícias sensacionalistas
registradas por jornais cariocas de grande circulação; as representações que se
moldam em indivíduos ligados à Questão Capistrano e a outras pessoas
selecionadas pelo autor; a representação de um microcosmo da sociedade a partir
do contexto literário comum ao tempo histórico da narrativa e outro que se perpetua
pelo temas publicados no formato de livro; dentre outros aspectos apresentados no
decorrer desta avaliação.
3.2 A voz e o ponto de vista
A escolha do tema e dos objetos de estudo sobre os quais incide esta
investigação foi motivada pelo fato de se tratar de um episódio “real” que a mídia
impressa acompanhou e transformou em “acontecimento e que a ficção
reapresentou como romance. Trata-se do drama notabilizado como Questão
Capistrano e do romance de Aluísio Azevedo Casa de Pensão que retoma
alguns elementos da tragédia. O romance-seriado, divulgado no jornal Folha Nova
(1883), dialoga com esse assunto polêmico que abalou a sociedade carioca no ano
de 1876, a partir dos relatos do Jornal do Comércio e da Gazeta de Notícias.
Para entender como a presença da dialogia e da intertextualidade pode
influenciar as modificações das versões do romance, utilizamos três categorias
conceituadas por Genette (1995, p. 27-30) como visão (aspecto), que se remete a
132
questões de ponto de vista narrador; registro (modo), abrangendo os problemas de
representação e narração (distância); e voz que designa, ao mesmo tempo, às
relações entre narração e narrativa e entre narração e história. Para as finalidades
propostas neste estudo, privilegiaremos as categorias voz e ponto de vista, com a
finalidade de entender a construção do discurso a partir do olhar de quem o definiu e
delineou.
Conforme apresentado no primeiro capítulo deste estudo, a versão projetada
para o jornal corresponde a um conjunto de textos, com o registro de, praticamente,
a metade dos capítulos de Casa de Pensão. Embora não saibamos qual é o número
exato dos segmentos publicados no jornal Folha Nova (1883), devido às lacunas
constatadas durante a análise, tivemos acesso a quarenta seqüências, que
representam grande parte do conteúdo publicado em livro. A seleção de exemplos
comuns às duas publicações demonstra a preocupação do escritor de estabelecer
relações de sentido, progressão narrativa e temática, que encontram no contexto um
elemento chave para a interpretação das vozes da narrativa e o ponto de vista
impresso no discurso ficcional.
Apesar de preservar elementos característicos do padrão narrativo do
romance-seriado, a mudança de formato e a ampliação do universo de leitores
exigem a reestruturação da diegese, com a revisão das marcas próprias da narrativa
como discurso e como história. Caso contrário, se cada unidade de sentido que
integra o contexto da publicação do romance-seriado for analisada fora dele, a
interpretação poderá diferenciar-se de acordo com cada leitura e a sensibilidade ao
contexto. Ricoeur ressalta que “a polissemia das palavras” está relacionada “ao
papel seletivo dos contextos relativamente à determinação do valor atual que
adquirem as palavras numa mensagem determinada, veiculada por um locutor
preciso a um ouvinte que se encontra em uma situação particular” (RICOEUR, 1990,
p. 19).
Genette e Ricoeur apresentam elementos capazes de nos auxiliar a
responder “quem falaem Casa de Pensão, bem como conduzem ao elemento da
narrativa voz, para distinguir de modo que respeita à questão: procuramos
desvendar em que medida o ponto de vista dos personagens e do narrador orientam
a perspectiva narrativa nas duas versões cotejadas.
133
3.3 Ponto de vista do narrador
A tipologia de Casa de Pensão somente pode ser entendida diante de uma
atividade interpretativa, com base em conhecimentos prévios tais como a ideologia
do autor, os padrões estéticos e morais, as circunstâncias históricas presentes no
grupo sociocultural contemporâneo à publicação do romance-seriado. Como a
mudança de público também pode interferir no foco narrativo, e o livro traz inúmeras
alterações, selecionamos alguns exemplos representativos desse processo, no
intuito de criar uma tipologia das variantes, bem como de confrontar características
distintivas já apresentadas separadamente.
Em contato com o texto, a atividade de leitura por analogia poderá levar à
modelização
64
e à formalização, com a compreensão de um recorte feito em um
microcosmo carioca, o que se com o conhecimento perceptivo da Questão
Capistrano ou de temas que se remetem ao imaginário do leitor. A poética de Aluísio
demonstra sua habilidade para construir uma linguagem plástica que se alterna entre
o concreto e o abstrato, o real e o imaginário, um drama e uma releitura deste.
Segundo Edgard Morin (1996),
a compreensão é o conhecimento que aprende tudo aquilo de que podemos
fazer uma representação concreta, ou que podemos captar de maneira
imediata por analogia. Assim, a representação é compreensiva porque
transmite um conhecimento no próprio ato que faz surgir uma analogia do
fenômeno percebido [...] (MORIN, 1996, p. 135).
A efetividade da comunicação pelo viés do duplo requer proximidade física ou
noológica (espiritual) entre os interlocutores. Edgar Morin atribui a esses
mecanismos a denominação de identificação/projeção. No plano de Casa de
Pensão, essas construções podem ser vistas nas relações e situações estabelecidas
entre os personagens, que dialogam com fatos presentes na memória de alguns
leitores. Porém, somente o conhecimento antropossocial revelará que o romance
apresenta referencial jornalístico e histórico.
A efetividade da compreensão ocorre na medida em que: “comporta uma
projeção (de si sobre outrem) e uma identificação (de outrem consigo)” (MORIN,
1996, p. 135-136), como se o duplo movimento de sentido unisse todos os
64
Iuri Lotman define modelização como um processo pelo qual o texto utiliza diversos mecanismos
semióticos para produz um modelo do mundo específico. Cf. Lotman, I. 1978, p. 76.
134
integrantes no ato comunicativo. Portanto, esse elo de projeção identificação que
um ego alter (de personagens) se torna um alter ego com quem uma identificação
– torna possível compreender sentimentos, desejos e receios.
Nesse aspecto, compreender os conflitos que atormentam o personagem
Amâncio pode substituir o conhecimento e as explicações atreladas ao seu modelo,
inspirado, parcialmente, por Capistrano da Cunha.
Do mesmo modo que ocorre com a construção de alguns dos personagens,
em alguns momentos da narrativa, Aluísio parece projetar-se no protagonista, ao
utilizar a voz de Amâncio para expressar o sentimento de revolta guardado de seu
professor Pires, no intuito de compreender as dores do seu personagem. No
entanto, por trás dessa mimesis, revelam-se duas instâncias representativas, por um
lado a de Aluísio que se revê criança injustiçada e que, por outro lado, continua
sendo o autor.
Esta investigação procura verificar em que medida o movimento criativo
revela que: a) Aluísio utilizou técnicas narrativas diferentes nos textos focados neste
estudo; b) a supressão ou inserção de conteúdo teria significado primordial para o
estudo desses dois gêneros, principalmente na definição do romance-seriado; c) a
dialogia estabelecida entre ficção e relatos jornalísticos se alterna nas duas versões
de Casa de Pensão; d) o ponto de vista do autor e as vozes narrativas se constroem
em harmonia com o projeto criativo do autor.
3.4 Tipologias anunciadas no romance-seriado
Na tentativa de construir um quadro tipológico capaz de caracterizar as
estratégias adotadas por Aluísio, nos dois momentos de produção do discurso
ficcional de Casa de Pensão, criamos categorias representativas dos procedimentos
utilizados pelo autor. Primeiramente, destacamos que o início da história é marcado
pela chegada de Amâncio ao Rio de Janeiro e a descrição dos aspectos físicos do
personagem. Nos seis primeiros segmentos, a predominância de anacronismos
temporais, motivados pela vertigem que Amâncio sofre durante a viagem à Corte,
pela saudade que sente da mãe e de alguns de seus amores, sem deixar de
mencionar os pesadelos que a imagem do pai e do professor Pires lhe causam. É
135
por intermédio dessas lembranças que sabemos como foi a infância do protagonista
e, principalmente, como se estruturou o seu (ou a falta de) caráter.
Na seqüência 07, surgem aspectos naturalistas, na relação que o
personagem estabelece com o curso de Medicina. Por outro lado, os pensamentos
românticos sugerem a necessidade que Amâncio sentia de viver novos amores. O
contato com outros personagens estabelece a organização da trama. Amâncio
depara-se com um mundo repleto de pessoas interesseiras e que dissimulam falsos
sentimentos a fim de explorá-lo. Sua fraqueza moral o enfraquece e ele se vê em
uma casa de pensão, cercado por estranhos, sem refúgio, sem o amor materno.
Estruturas características do romance-seriado são evidenciadas com: a
presença abundante de diálogos; apresentação gradativa de detalhes sobre o
caráter dos personagens; suspense de episódio para episódio, o que motiva a
curiosidade do leitor; a apresentação de Amâncio como um anti-herói, homem
medíocre que prefere dissimular seus sentimentos para ser aceito em sociedade, e
que por isso vive em constantes conflitos: ora freqüenta festas em hotéis cariocas e
se entrega à boemia, ao consumo desregrado de bebidas alcoólicas e aos amores
proibidos, ora participa de jantares em família, tenta estudar para as provas do curso
de Medicina, mas não tem a mínima vocação para o estudo. Embora Amâncio tente
conviver em dois extremos, sua fragilidade, fraqueza e inesperiência fazem com que
o personagem passe por constantes crises e sofrimento e consome.
Como o significado do discurso de Casa de Pensão está atrelado ao contexto
de sua produção, torna-se relevante ao seu entendimento o estudo do
processamento da linguagem das duas variantes, assim como a visão que Aluísio
tinha a respeito dos leitores do romance-seriado, no intuito de entender com se
moldou o significado em um nível social da crítica na época. Para tanto, as variantes
em negrito destacam as alterações ocorridas no movimento criativo do romance.
3.5 Cronótopo
O cronótopo de Casa de Pensão é configurado por uma unicidade
indissociável. Podemos caracterizar o tempo como equivalente de histórico; e
espaço, de social. Nessa perspectiva, tempo-espaço corresponde a histórico-
social. Porém o tempo-espaço também pode ser pensado como uma refração do
136
histórico-social internalizado, como um tempo-espaço interior, psicológico,
motivado pelo fluxo da memória dos personagens principais e pelas analepses
temporais.
3.5.1 Espaço
No romance-seriado Casa de Pensão, a seqüência 03, 1ª coluna, revela o Rio
de Janeiro desejado pelo protagonista, em que seria: a primeira vista uma
Babilônia, onde ninguém se conhecia, onde cada um podia correr à vontade as
suas aventuras, sem fazer escândalo como na província”. O livro, por outro lado,
apresenta uma visão idealizada da Corte, como “um Paris de Alexandre Dumas ou
de Paulo de Kock, um Paris cheio de canções de amor, um Paris de estudantes
e costureiras, no qual podia ele à vontade correr as suas aventuras, sem fazer
escândalo como no diabo da proncia”. Nos dois textos, a cidade é vista como um
lugar de se viver livremente, com liberdade e sem receio de censura (CP, 1977,
p.18).
Com o passar dos anos e na medida em que sentia grande desejo de
aventurar-se livremente sem a censura de quem quer que fosse, o maranhense
decidiu partir para o Rio de Janeiro para entregar-se, completamente, à vida libertina
que não poderia ter na província do Maranhão. A seqüência 03 (2ª coluna) relata
que “Amâncio sentia necessidade de aventurar algumas das cenas românticas,
com que lhe havia enchido a cabeça. Todo ele reclamava amores, segredos de
alcova, loucuras de paixão”. No livro, a menção ao Romantismo é retirada e cede
espaço ao projeto de Amâncio de dar começo àquela existência que encontrara
nas páginas de mil romances. Todo ele reclamava amores perigosos, segredos de
alcova e loucuras de paixão”. Essa hipérbole utilizada pelo personagem será
explicada na seqüência 05, quando Amâncio está no paquete rumo ao Rio de
Janeiro e algumas recordações lançam-no à época em que fugia à noite para
entregar-se à boemia maranhense, inspirado nas aventuras lidas em romances
românticos.
Apesar de Amâncio chegar em casa ao amanhecer, a agitação era tanta que
não o deixava dormir. Enquanto o romance-seriado registra que o maranhense
ficava excitado pelas impressões e pelo vinho da noite” (SEQÜÊNCIA 05, 5
a
Coluna), no livro (CP, 1977, p. 25), vinho é substituído por bebedeira. Na seqüência,
137
se, por um lado, a versão em livro descreve que o personagem: “Atirava-se à rede,
com uma vertigem impotente de conceber poesias byronianas, escrever coisas no
gênero de Álvares de Azevedo, cantar orgias, extravagâncias, delírios”, por outro
lado, o romance-seriado não cita Byron, dando a entender que Amâncio pretendia
escrever poesias românticas do “gênero de Álvares de Azevedo”, limitando a
informação ao poeta brasileiro, o que se remete ao conhecimento prévio que os
leitores dos dois grupos poderiam ter da literatura romântica, inglesa e brasileira.
Nas duas variantes, menção a romances franceses: “e afinal adormecia, lendo
Mademoiselle de Maupuin, Olympia de Clèves ou Confession d’un enfant du siècle
e, mesmo não conseguindo entender bem este último livro, o conhecimento que
tinha da biografia de Musset "embriagava-se com essa leitura; ficava a sonhar
fantasias estranhas, amores céticos, viagens misteriosas, amores arriscados e
romanescos”. No livro
65
, a expressão amores impossíveis” é alterada por “paixões
indefinidas”; o qualitativo de amor “romanesco” é suprimido, o que deixa mais
evidente no romance-seriado que o imaginário criado a partir de romances
românticos pode ser relacionado ao desejo que Amâncio nutriria por Hortênsia,
esposa de Campos.
Amâncio se via no direito de ter experiências sexuais na juventude, pois,
nessa época, entendia-se que isso se devia ao instinto sexual masculino:
Desde que guarde comedimento pessoal e respeito aos costumes, às leis e
ao direito dos outros, um homem solteiro pode muito bem obter seu prazer
como o quiser; e seria bem difícil, mesmo nessa moral austera, impor-lhe
abstenção absoluta desse prazer enquanto não contrair um casamento
(FOUCAULT, 1997, p. 36).
Ainda, na quinta coluna da seqüência 05, do romance-seriado Casa de
Pensão, podemos perceber que a leitura motivava Amâncio a querer mais do que
simplesmente “as criadas da casa ou as da fazenda da avó, ou as mulatas da
vizinhança”, porque elas “já o enjoavam; era preciso arranjar amores mais finos,
mais dignos, que lhe contentassem igualmente as exigências da imaginação”. No
livro
66
, há um aprimoramento na escrita e referência à satisfação de desejos carnais:
“As criadas da casa da avó ou as mulatinhas da vizinhança o enfaravam: era
preciso descobrir amores mais finos, mais dignos, que, nem lhe contentassem a
65
CP, 1977, p. 25.
66
Ibidem.
138
carne, como igualmente lhe socorressem as ânsias da imaginação”. O imaginário
criado pela leitura de romances românticos motivou o desenvolvimento de uma das
passagens mais românticas de Casa de Pensão. Por esse tempo:
leu a Graziella e o Raphael de Lamartine. Ficou possuído de uma grande
tristeza; as lágrimas saltaram-lhe sobre as páginas do livro. Sentiu
necessidade de amar por aquele processo, mergulhar na poesia, esquecer-
se de tudo o que o cercava, para viver mentalmente
67
nas praias de
Nápoles, ou nas ilhas adoráveis da Sicília, cujos nomes sonoros e musicais
lhe chegavam ao coração como o efeito de uma saudade, amarga e doce
68
,
de uma nostalgia inefável, profunda, sem contornos, que o atraía para
outro mundo desconhecido, para uma existência, que lhe acenava de longe,
a puxá-lo com todos os tentáculos de seu mistério e da sua irresistível
melancolia.
Uma ocasião lia a Graziella, deitado ao da janela de seu quarto. A tarde
precipitava-se no crepúsculo, e enchia a natureza de tons melancólicos e
doloridos. Um italiano tocava na rua o seu realejo (SEQÜÊNCIA 05, col. 06).
Na versão em livro
69
, o último parágrafo na citação acima é condensado:
“Uma ocasião, deitado ao pé da janela de seu quarto, pensava em Graziella”.
A seqüência 24 (3ª coluna) descreve quando Amâncio instalou-se na casa de
pensão e “nesse momento Amâncio acabava de abrir as janelas do seu quarto,
arrastava as malas para o centro e ia tratando de abri-las. As duas apareceram
[Amélia e Mme. Brizard]”. Acreditamos que o quarto do pensionista era grande, afinal
de contas tinha mais de uma janela. No livro
70
, não menção às janelas e a
invasão no quarto é relatada deste modo sucinto: Nesse momento, o rapaz acabava
de abrir as malas. As duas apareceram no quarto [...]”.
Através das janelas da casa de pensão Amâncio e os colegas de
hospedagem observavam o que acontecia nas ruas e casas da vizinhança. O
segmento 33 (5ª coluna) descreve um diálogo entre os jovens:
Então, perguntou aquele, o que temos?
Uma conferenciasinha. Ouve cá.
E, depois de meterem-se ambos no vão de uma janela, Amâncio
principiou com acentuações de quem detesta imoralidades: [...].
67
A palavra “mentalmente” foi inserida na versão em livro.
68
O aspecto antitético da saudade está presente nas duas versões do romance.
69
CP, 1977, p. 25.
70
Ibidem, p. 76.
139
No livro
71
, por outro lado, uma condensação das informações que
descrevem esse episódio; o discurso direto é substituído pelo indireto: Os dois
rapazes meteram-se ambos no vão de uma janela da sala de visitas. E Amâncio
com acentuações de quem detesta imoralidades, disse ao outro, sem transição:
[...]”.
Como morar na casa de pensão confundia as esferas do público e do privado,
a seqüência 23 (5ª coluna) descreve uma situação em que o jantar se prolongou e o
advogado Tavares começou a discursar, então, como era de costume: “Enquanto ele
orava, vários hóspedes recolhiam-se para os seus quartos, atravessando na ponta
dos pés o corredor do fundo da varanda, para não serem obrigados a ouvi-lo”.
O livro
72
especifica que os hóspedes iam para os seus competentes quartos,
atravessando a varanda pelo fundo na ponta dos s, com medo da
‘caceteação’”.
A festa oferecida na casa do Melo é um modo de Amâncio aproximar-se de
Hortênsia. Como o romance-seriado apresenta fragmentos da história, as descrições
são mais ricas de detalhes; o cenário e as sensações assumem linguagem plástica.
“Os Pares cruzavam-se no meio da sala do Melo, formando as marcas da
contradança, aos gemidos histéricos das rabecas; Um cheiro híbrido de
extratos odoríferos das flores que se fanavam em grandes vasos japoneses e de
sutil pituita dos corpos fatigados das mulheres, espalhavam-se no ambiente
cor de pérola e penetrava a carne com a subtilidade de um veneno lento e delicioso
como o fumo de um tabaco” (SEQÜÊNCIA 26, 3
a
coluna).
No livro, a amada de Amâncio aparece na posição de observadora:
Hortênsia olhava para isso, enquanto, ao gemer das rabecas, cruzavam-se na
sala os pares, marcando contradanças. O aroma das flores que se fanavam em
grandes vasos japoneses, misturava-se ao cheiro das mulheres, e penetrava a
carne com a sutilidade de um veneno lento e delicioso como o fumo do charuto
73
.
É interessante o modo como ocorre o comentário sobre o passeio realizado
pelos donos da casa de pensão. No romance-seriado, o narrador exerce função de
intermediário do diálogo, que resulta na mistura do discurso direto e indireto e a
presença de três vozes:
71
Ibidem, p. 97.
72
Ibidem, p. 71.
73
Ibidem, p. 80.
140
O Campos está de passeio com a família lá para...
Não se lembrava o nome do jardim.
– Ora senhores um jardim tão falado!
– Botânico?! Ajudou o outro.
Isso Jardim Botânico! Eu ainda não fui lá, mas dizem que é muito
lindo!
- Esplendido!” (SEQÜÊNCIA 17, 2ª coluna).
O livro apresenta a narração desse episódio de maneira direta, com
supressão de marcas da oralidade: “O Campos está de passeio com a família para
o tal Jardim Botânico”
74
.
A seqüência 22, coluna e o conteúdo registrado na versão em livro
dialogam com a Questão Capistrano ao mencionar que: Vibrou então o piano na
sala. Mme. Brizard lembrou que seria melhor mudarem-se para lá. Amâncio que
não parara de conversar com Lúcia, ofereceu-lhe o braço e seguiram juntos”. No
livro
75
, essa passagem sofre algumas alterações: “Vibrou então o piano no salão de
visitas.
É melhor irmos todos para lá, alvitrou a dona da casa.
O marido e o Lambertosa aceitaram logo a idéia, e Amâncio, sem interromper a
conversa com a mulher do Pereira, a esta deu o braço e seguiu o exemplo
daqueles”.
A dialogia entre ficção e história ocorre pela coincidência de existir piano na
casa de pensão ocupada por Amâncio, assim como onde Capistrano da Cunha era
hóspede. Destacamos que dona Júlia Clara Pereira, mãe do assassino de
Capistrano, era modesta professora de piano. Na ficção, Amélia e Lúcia tocam
piano.
3.5.2 Tempo
A analepse empregada ao longo do Capítulo 1 da versão em livro se
aproxima muito da técnica do romance-seriado de “conduzir para trás” e
condensação de acontecimentos não finalizados, que o autor utiliza para mergulhar
seu leitor na ação das seqüências curtas do romance-seriado, como a carta escrita à
mãe, os amores vividos pelo protagonista, a retirada do enxoval da arca, apesar de
essas passagens sofrerem muitas modificações na variante em livro.
74
Ibidem, p. 57.
75
Ibidem, p. 69.
141
As anacronias, denominadas por Gérard Genette (1995) como analepses,
estão presentes no discurso de Casa de Pensão como recuos no tempo. O início da
narrativa apresenta a chegada de Amâncio ao Rio de Janeiro e seu primeiro contato
com Campos. Posteriormente, ocorrem recuos temporais, tais como à infância do
protagonista e aos momentos que antecederam sua partida do Maranhão. A figura
da mãe é uma espécie de atalho ou link para as melhores lembranças tidas em sua
vida, por isso, cada reminiscência da mãe traz consigo analepses que se remetem a
ela.
Silva (1983, p. 293-306) destaca que:
a analepse é um recurso de que os romancistas se servem com freqüência,
porque permite comodamente esclarecer o narratório sobre os antecedentes
de uma determinada situação [...]. A narrativa analéptica desempenha uma
função muito relevante no romance naturalista, em estreita interdependência
com a concepção positivista do mundo que rege este romance. Após a
apresentação das personagens principais, o romancista naturalista recorre
logicamente a analepses mais ou menos extensas para analisar, segundo a
ótica positivista, as forças determinantes hereditariedade, influência do
meio, constituição fisiológica e temperamental que modelam aquelas
personagens.
A dor, revolta e falta de vocação para o estudo também marcam os primeiros
anos escolares de Amâncio e estabelecem conexão com a necessidade de ser
confortado pela mãe. A cronologia marcada nos primeiros capítulos de Casa de
Pensão, tanto na versão em livro quanto no romance-seriado, é definida pelo fluxo
da consciência impulsionado pelas lembranças desse tempo, que ainda não podiam
ser apagadas devido às marcas profundas que os castigos imprimiram em Amâncio.
Antes de serem apresentadas informações sobre sua ama-de-leite e seus
primeiros dias de vida, são reveladas as experiências que o protagonista teve no
ambiente escolar:
- Aos sete anos entrou para a escola. Que horror!
O mestre, um tal José Antonio Pires, homem grosseiro, bruto, de cabelo
negro e olhos de touro, batia nas crianças por gosto, por um habito do
ofício.
Na aula falava a berrar, como se dirigisse uma boiada. Tinha as mãos
grossas, a voz dura, a catadura selvagem. Quando bebia demais ao jantar,
ficava pior. (SEQÜÊNCIA 03 - Col. 03).
Aos dez anos, depois que Amâncio havia sofrido muitos castigos, convenceu-
se de que era melhor omitir seu ponto de vista a respeito das injustiças que
142
observasse. A dissimulação do personagem pode ser observada neste excerto: É
uma menina! dizia a mãe, convicta Amancinho tem dez anos e é um anjo de
candura! (SEQÜÊNCIA 04, coluna 03).
A próxima marca temporal é realizada no relato de que “Só aos doze anos fez
o seu exame de português na aula do Pires”. Se fosse aprovado, poderia ingressar
no Lyceu: “E só de pensar n’isso, só de se lembrar que já não estava ao alcance das
garras do Pires, o coração saltava-lhe de alegria” (SEQÜÊNCIA 04, Coluna 06).
Aos vinte anos, Amâncio parte para o Rio de Janeiro, afinal de contas: “Há
muito tempo devia ter ele partido−o filho de fulano fora aos quinze anos, o de
beltrano voltara com vinte e três, e Amâncio tinha vinte. Ia tarde!” (SEQÜÊNCIA
06, Coluna 02).
A partir das informações extraídas do romance-seriado, que estabelecem
semelhanças com o sentido impresso no livro, podemos constatar que a duração
dos acontecimentos na sucessão diegética, em relação à temporalidade do
segmento diegético da chegada de Amâncio à Corte, configura-se em uma
temporalidade segunda, dando assim lugar à analepse.
No espaço do Rio de Janeiro, a marca temporal da diegese de Casa de
Pensão está delimitada e caracterizada pela indicação do calendário escolar −, pois
Amâncio chegou ao Rio quando o período de matrícula havia passado, por isso
Campos precisou ajudá-lo a conseguir matricular-se fora do prazo. Como parte da
cronologia ligada ao calendário escolar foi registrada apenas no livro, na medida em
que a hipertrofia da intriga foi desenvolvida, essa foi a fonte de onde foram extraídas
estas informações complementares:
Queria ver se era possível matricular-se esse ano na Escola de Medicina.
Não negava que se havia demorado um pouquito nos preparatórios...mas
seria dele a culpa?... Só com umas sezões [febres] que apanhara na
fazenda da avó, perdera três anos (CP, 1977, p. 14).
Afinal, graças aos esforços de Campos, conseguiu matricular-se na
academia, duas semanas depois de ter chegado ao Rio de Janeiro (CP,
1977, p. 28).
Soubera do resultado no mesmo dia da prova oral, por intermédio de um
dos professores. - Saíra aprovado plenamente. Vencera! [...].
Todavia, Amâncio, em ar feliz e pretensioso, confessava o pouco que
estudara e gabava-se de sua fortuna. - Podia dar a palavra de honra em
como mal havia tocado nos livros durante o ano. - O Coqueiro e a família
estavam ali, que dissessem!... (CP, 1977, p. 148).
143
Além disso, as cartas de Ângela repetiam-se agora desesperadamente.
“Estaria a pobre mãe com efeito em risco de vida?...”. pensava Amâncio.
Dependeria dele o salvá-la? ... E os seus interesses que havia tanto tempo
o reclamavam?... E as saudades da pátria? E os prazeres que encontraria à
volta do primeiro ano acadêmico? (CP, 1977, p. 166).
Na comparação das duas versões de Casa de Pensão, podemos constatar
que Amâncio tinha plena consciência da falta de vocação para os estudo. Na
seqüência 35, 5
a
coluna, o protagonista desabafa: “– Oh! Os estudos! Os estudos
eram a aza negra de sua vida, o espectro terrível de seus sonhos! por melhores
que fossem as regalias que daí pudessem vir, nunca seriam capazes de
compensar aquela profunda tristeza, o aborrecimento invencível, que o devoravam
naquele momento”. No livro
76
, lemos: “– Oh! Os estudos! Os estudos eram o ponto
negro de sua vida, o seu desgosto, o terrível espectro de todos os seus sonhos!
As regalias que daí viessem mais tarde, fossem elas quais fossem, nunca
poderiam compensar aquela profunda tristeza, aquele aborrecimento invencível,
que o devoravam”.
No entanto, a citação abaixo apresenta um paradoxo se comparada às
anteriores, ou seja, mesmo sem vocação para os estudos ou esforço, Amâncio
obtém êxito. A aprovação obtida no primeiro ano do curso de Medicina projeta em
Amâncio imagens da glória que teria ao ser aplaudido pelos conterrâneos:
Os prazeres, sim, que Amâncio, pelo derradeiro paquete, recebera em uma
das principais folhas diárias de sua província a seguinte notícia:
“MARANHENSE DISTINTO. Acaba de fazer brilhantemente o primeiro ano
de seu curso na Escola de Medicina na Corte o nosso talentoso
comprovinciano Amâncio da Silva Bastos e Vasconcelos, filho de pouco
falecido e sempre chorado Comendador Manoel Pedro de Vasconcelos, um
dos mais estimados negociantes que foi desta praça, enquanto não
podemos pessoalmente abraçar o digno jovem e esperançoso discípulo de
Hipócrates, apressamo-nos a enviar-lhe daqui os nossos sinceros
parabéns, faturando em S. S.a mais uma glória legítima para a nossa
Atenas, já tão rica, aliás, em talentos privilegiados!” (CP, 1977, p. 166).
Em meio a analepses longas, a narração de acontecimentos segue um ritmo
lento. O cronótopo central é Maranhão/infância-adolescência e Rio de
Janeiro/juventude desregrada. O discurso diacrônico das notícias que sintetizam a
Questão Capistrano assume caráter sincrônico no livro.
76
CP, 1977, p. 101.
144
3.6 Personagens
A diegese de Casa de Pensão é caracterizada pela referência a um
acontecimento, assistido por muitos leitores do romance-seriado, e pela construção
de uma história que carrega marcas dessa época, cujos valores são apresentados
pelos personagens e o narrador, como fruto do posicionamento ideológico do autor.
Nessa perspectiva:
Uma história descreve uma seqüência de ações e de experiências feitas por
um certo número de personagens, quer reais, quer imaginários. Esses
personagens são representados em situações que mudam ou a cuja
mudança reagem. Por sua vez, essas mudanças revelam aspectos da
situação e das personagens e engendram uma nova prova (predicament),
que apela para o pensamento, para a ação ou para ambos. A resposta a
essa prova conduz a história à sua conclusão (RICOEUR, 1995, 214).
Nos estudos realizados em Prosa de Ficção, Lúcia Miguel Pereira (1950, p.
126 apud SÜSSEKIND, 1984, p. 121) observa que, nas últimas décadas do século
XIX, portanto, na época em que Casa de Pensão surgia, coincidia com um momento
em que “se processavam experiências raciais da maior importância, onde as
condições de existência variavam dos requintes sofisticados da Corte ao primitivismo
das populações rurais, onde as relações de senhores e escravos suscitavam um
sem número de problemas”, em meio a essas transformações, “os romancistas que
se criam realistas voltavam-se de preferência para os casos de alcova, para a
análise de temperamentos doentios”.
Ao focalizar um recorte de mundo ligado a acontecimentos relacionados com
o desenvolvimento sociocultural brasileiro, Aluísio Azevedo atribui historicidade ao
texto literário, ao mesmo tempo em que registra vozes de uma época em que o
escritor testemunhara. A segmentação dos capítulos em um conjunto de seqüências
da obra resulta na fragmentação do discurso. Com a descontinuidade, o discurso de
Casa de Pensão apresenta indícios organizacionais que se remetem a questões que
vão além do universo estrutural do texto, tendo em vista que essa estratégia
narrativa articula-se a perspectivas ligadas a imagens preservadas na memória de
muitos leitores ou expectadores da Questão Capistrano, que transparecem em meio
à odisséia da vida de Amâncio de Vasconcelos.
Assim como a publicação, a descrição da personalidade do protagonista
também é apresentada de modo segmentado, a partir de analepses, suscitadas em
145
momentos em que Amâncio sente saudades de Ângela, sua mãe e protetora, o que
denota a configuração de um sujeito vulnerável a crises de ordem emocional e
perturbado quando se via sozinho. A partir da terceira seqüência do romance-
seriado, a identidade do personagem é apresentada de modo que a unidade
identitária seja dificultada entre o ser e o parecer criança doente, aluno
indisciplinado, filho fingido, neto rebelde, aventureiro, pervertido, conquistador,
oportunista, inconseqüente – constroem o perfil do personagem.
O jogo de antíteses na definição do caráter multifacetado de Amâncio
transparece no universo interno e externo do romance, na medida em que o
personagem é descrito, em meio às peripécias que o envolvem. Na primeira
seqüência a apresentação de Amâncio a partir de seus aspectos físicos. Nas
seqüências três e quatro é revelado é apresentado o perfil psicológico do
personagem.
Como o fio condutor da narrativa está profundamente ligado às ações que
envolvem os interesses de Amâncio e a sua dificuldade de vencer os obstáculos que
lhe atormentam, os demais personagens se aproveitam da fraqueza do maranhense
e tentam tirar proveito da falta de perspicácia dele. Na medida em que a hipertrofia
da intriga se desenvolve, Amâncio parece reproduzir a voz de Capistrano, ao mesmo
tempo em que mostra grande semelhança entre o espaço e os espectadores das
duas tragédias. Portanto, a relação dialógica entre ficção e a Questão Capistrano
passa por reformulação no movimento criativo de Casa de Pensão e aproxima os
personagens de seus modelos.
Brayner (1973, p. 44) destaca que: “Diferente de O Cortiço, Casa de Pensão
ainda possui um personagem principal em torno do qual se engloba a intriga”; no
entanto, é evidente a “predileção por seqüências em que um maior número de
participantes age e se entrecruza em diálogos na caracterização de tipos e
ambientes”.
3.6.1 A construção da psicologia do protagonista
Publicado em 1888, O Ateneu tem como base experiências vividas pelo
próprio autor, no Colégio interno Abílio. Em 1873, Raul Pompéia inicia uma fase
nova, deixando para trás o ambiente familiar. Na análise de O Ateneu, Brayner
(1979, p. 144-145) destaca que:
146
O recurso do romance autobiográfico em que um narrador em profundo de
frustração resolve contar uma situação de crise existencial vai ter, a partir do
final do século XIX, no Brasil, uma crescente importância. A fratura de uma
vida interior torna-se a perspectiva de análise de um sujeito atemorizado,
satírico ou melancólico [...].
Memória de adolescente ou de adulto, estará cristalizada em torno de um
desejo impossível, de uma questão insolúvel. Em volta haverá como
realidade, apenas as fantasmagorias do presente e a dor da solidão:
consciência e ação estão radicalmente separadas.
Se em O Ateneu há a imagem caricata do diretor Aristarco, em Casa de
Pensão são pintados os defeitos de José Antonio Pires, professor que Aluísio teve
nos primeiros anos de estudo. Em meio à projeção do escritor, narrador-
personagem, há uma mescla entre experiência e o discurso ficcional das duas
variantes. Embora a seqüência 03 (3ª coluna) apresente o nome completo do seu
professor “um tal José Antônio Pires” e a variante em livro exclua o primeiro nome do
mestre, limitando-se a denominá-lo como “um tal Antônio Pires”, ambas as versões
descrevem-no como “homem grosseiro, bruto, de cabelo negro e olhos de touro,
batia nas crianças por gosto, por um hábito do ofício”.
Ao retratar o método de ensino pelo viés do autoritarismo, Aluísio revela que
os dois professores se valiam da crueldade física para manter a disciplina em sala.
Menezes (1958, p. 56), estudioso da biografia de Aluísio Azevedo, ressalta que
Dona Ângela superprotegia Amâncio o filho, da mesma forma que Dona Emília, mãe
de Aluísio, pois:
não concordava, em absoluto, com tal tratamento dispensado ao filho
querido [Aluísio]: ‘fosse-o apanhar palmatórias de um brutalhão daquela
ordem! Ora isso não tinha jeito!Mas, o Vice-Cônsul [pai de Aluísio], com
outra mentalidade, costumava retrucar: ‘Que deixasse o pequeno com o
mestre!...Mais tarde ele havia de agradecer aquelas palmatoadas’. O certo é
que o aluno Aluísio ‘fora sempre tido e havido pelo pior dos meninos da
aula, pelo mais atrevido e insubordinado.
Segundo Bakhtin em Questões de Literatura e de Estética (1998, p. 417), o
romancista pode trabalhar em relações dialógicas híbridas, tanto no discurso do
narrador/testemunha quanto no dos personagens, pois:
[...] aparecer no campo da representação em qualquer atitude, pode
representar os momentos reais da sua vida ou fazer uma alusão, pode se
intrometer na conversa dos personagens, pode polemizar abertamente com
os seus inimigos literários, etc. Não se trata somente da aparição da
imagem do autor no campo da representação, trata-se também do fato que
147
o autor autêntico, formal e primeiro (o autor da imagem do autor) redunda
em novas relações com o mundo representado: elas se encontram agora
naquelas mesmas medidas exiológicas e temporais, que representam num
único plano o discurso do autor com o discurso do personagem
representado e que pode atuar junto com ele (mais exatamente: não pode
deixar de atuar) nas tuas relações dialógicas e nas combinações
híbridas.
Se o autor-criador estabelece uma relação oxióloga com o herói, evidenciada
pelas vozes dos homônimos professores Pires, dos seus alunos Aluísio e Amâncio,
ou ainda de Amâncio e Capistrano, alguns receptores imanentes conseguirão
perceber uma correspondência dialógica com os modelos projetados pela ficção. A
focalização (ou ponto de vista) permite ao autor uma construção mais livre,
privilegiada por ter sido testemunho e participante de algumas das situações
narradas. No entanto, “o mundo representado, mesmo que seja realista e verídico,
nunca pode ser cronotopicamente identificado como o mundo real representante,
onde se encontra o autor-criador dessa imagem” (BAKHTIN, 1998, p. 360).
Com a apresentação do excerto acima e a partir de estudo iniciado por
Meneses (1958), constatamos que o protagonista é, em certa medida, uma espécie
de alter ego do autor, pois, além de ser maranhense, existem outras informações e
experiências biográficas análogas, sobretudo quando se trata do ódio nutrido por
Pires e da proteção e do amor recebidos da mãe, Dona Emília, que pode ter sido o
modelo para a criação da personagem Dona Ângela, mãe de Amâncio. Apesar de
ser evidente o recorte de mundo feito por Aluísio, o discurso ficcional passa por
alterações no momento em que os onze capítulos do romance-seriado são revidados
para a publicação do livro, o que também pode resultar na alteração de ponto de
vista. Nos dois casos as mudanças são destacadas em negrito.
Enquanto a seqüência 01 (2ª coluna) destaca que o personagem é
conterrâneo do autor, descrito como um tipo do “Norte do Brasil”, de estatura
mediana, pescoço fino, cabelos crespos e olhos muito vivos e inteligentes, se bem
que constrangidos por um leve estrabismo”, a variante em livro
77
registra apenas
que se trata de um “tipo do Norte, franzino, amorenado, pescoço estreito, cabelos
crespos e olhos vivos e penetrantes, [mas não inteligentes] se bem que alterados
por um leve estrabismo”.
Quando o autor tipifica o protagonista, o faz a partir de um retrato dos efeitos
das pressões naturais e sociais, já que a visão determinista aponta o comportamento
77
CP, 1977, p. 13.
148
dos personagens como decorrente de forças que escapam a seu controle. Essas
marcas aparecem como resultado da observação, com características muito fortes e
concretas.
Depois de descrever as características físicas, que atribuem delicadeza a
Amâncio, o narrador revela o que por trás da máscara do protagonista porque:
“Ninguém, vendo aquele pequeno rosto moreno, um pouco chupado, com as
maçãs salientes, os olhos pretos, de uma vivacidade infantil, a boca estreita,
guarnecida de bons dentes, claros e bem alinhados” poderia imaginar, “que ali
estava um sonhador e um sensual daquela força” (SEQÜÊNCIA 03, coluna). No
livro
78
, a alteração de alguns sinônimos o modifica a caracterização gradual da
fisionomia do personagem, diferenciando-se apenas na descrição deformadora
escondida por trás das características singelas, na medida em que o conteúdo do
livro acentua que “[...] ninguém acreditaria que ali estivesse um sonhador, um
sensual, um louco”.
Como nada foge ao olhar do narrador, que acompanha o movimento dos
personagens, da mesma forma que o autor acompanha os bonecos de cartolina
sobre a mesa de trabalho (MENEZES, 1958), a seqüência 27 (3
a
Coluna) revela a
voz do narrador, que desvenda o protagonista, um rapaz de vinte anos: Em
questão de saias principalmente ninguém lhe levava a melhor. As mulheres
eram o seu fraco, eram o seu vício; várias anedotas suas a esse respeito corriam
de boca em boca [...]”. O livro
79
, por sua vez, não apresenta alguns dos elementos
que intensificavam o cio de Amâncio, limitando-se a revelar que: “As mulheres
eram o seu fraco, o seu cio mais acentuado; várias anedotas suas, inspiradas
neste assunto, corriam de boca [...]”.
Além das mulheres, a bebida era outro cio na vida de Amâncio. Em uma
dada ocasião, quando não suportava mais ficar debaixo das asas de Campos,
estava andando pelas ruas do Rio de Janeiro e deparou-se com Paiva, com quem
havia estudado quando era aluno do professor Pires. Nesse mesmo dia, Amâncio
sugeriu pagar-lhe um almoço para comemorarem o reencontro. Ao se aproximarem
do estabelecimento, Paiva encontra, casualmente, dois colegas da Politécnica, um
deles era Coqueiro, e todos acompanharam Amâncio no almoço, que, por sua vez,
deixa claro que i pagar a conta. A falta de limite para a bebida faz com que Paiva
78
Ibidem, p. 18-19.
79
Ibidem, p. 82.
149
provoque um escândalo, enquanto Amâncio passa muito mal. A seqüência 09 (5ª
coluna) relata que: Paiva pretendia provar o contrário, gritando e batendo
punhaladas sobre a mesa. Havia dois copos quebrados. No livro
80
, o nome de
Paiva é suprimido, como marca do discurso que condensa informações: O outro
protestava, gritando e batendo sobre a mesa. Havia já dois copos quebrados.
Segundo Luccok (1975, p. 85, apud RIBEIRO, 2000, p. 170) “[...] o caráter
reservado, que raramente deixa de se mostrar exagerado nas primeiras horas da
festa, vai-se esbatendo e, freqüentemente, as pessoas se atiram ao extremo
oposto”.
Como Amâncio extrapolou os limites da bebida, precisou ser levado para a
casa de Paiva, seu conterrâneo. Lá: Atirou-se sobre a primeira cama que
encontrou e começou a gemer [...] completamente pálido; [...] sem poder fechar
a boca e os olhos reviravam-lhe como em uma crise nervosa” (SEQÜÊNCIA 11,
coluna). Sobre esse mesmo episódio, o conteúdo em livro
81
destaca que, durante
a embriaguez, Amâncio ficou “gemendo e resbunando ao peso de uma grande
aflição. Estava mais branco do que a cal da parede; o suor escorria-lhe por todo o
corpo; respirava com dificuldade; a abrir a boca e a retorcer os olhos. Nas duas
citações, podemos visualizar Amâncio como marionete de seus vícios.
Lúcia Miguel Pereira (1975 apud SODRÉ, 1992, p. 215), destaca que: “Em
Casa de Pensão ainda um herói, que é, justamente por ser a mais estudada, a
pior personagem do romance, a que mais sofre do determinismo exagerado, por
demais evidente, que manietou tantas das figuras da ficção naturalista”.
Arrastado pelas leis da hereditariedade, pelos vícios que o consumiam e pela
educação opressora que recebera, no decorrer da narrativa o comportamento do
personagem é moldado pelos papéis que ele assume, por razões alheias à sua
vontade, pois é dominado pelos impulsos. A habilidade de utilizar a máscara social
torna-se essencial para que Amâncio seja aceito no meio em que vivia. Na
seqüência 04 (2ª coluna), há uma analepse que retoma acontecimentos ocorridos
em sua infância e que o levavam a desenvolver o autocontrole: “Amâncio dominava-
se, fazia-se sério, com medo de apanhar. Por essa forma foi se tornando
reservado e fingido. Sabia afetar seriedade, quando tinha vontade de rir [...]”. No
80
Ibidem, p. 37.
81
Ibidem, p. 40.
150
livro
82
, esse episódio é descrito com algumas diferenças, pois, por medo da
bordoada, o personagem fazia-se grave, e cada vez ia-se tornando mais
hipócrita e reservado [...]”. Se, no romance-seriado, o adjetivo “fingido” denota que
o personagem fazia com que os outros acreditassem que ele era o que sua imagem
transparecia, na versão em livro, o termo hipócrita” vai além do fingimento, pois o
personagem ressalta virtudes e sentimentos que não tem.
Em um momento de descuido, Amâncio, que sempre dissimulou seus
sentimentos, mostra-se a favor de que as crianças cometessem travessuras. Na
seqüência 17 (6ª coluna), o pensionista está na sala quando: Cezar soltou uma
risada, e Amâncio apressou-se a declarar que detestava as crianças que não
fossem travessas. Ele não queria meninos com propósito de velhos, nem
velhos com modos de criança”. No conteúdo do livro
83
, toda parte destacada é
suprimida e, em seu lugar, consta apenas que: César abaixou o rosto com uma
risada, e Amâncio declarou que a travessura era própria daquela idade!”, sem,
contudo, estender seus comentários moralistas. No entanto, essa supressão não
significa que o ponto de vista empregado na narrativa é totalmente reformulado no
livro. Ao realizar sua apreciação crítica sobre o romance Casa de Pensão, Valentim
Magalhães aplaude-o, classificando-o “profundamente moral como o Primo Basílio”
(MAGALHÃES, 1894, p. 96).
No Rio de Janeiro, a liberdade que possibilitava a Amâncio viver livremente
sem a censura do pai, acaba por deixá-lo à vontade, sem o uso da máscara no novo
meio, por isso, deixava transparecer suas virtudes e defeitos, o que o tornava um
jovem oportunista, fútil e extremamente infantil. Como sua fragilidade e riqueza eram
notadas facilmente, o maranhense acaba por tornar-se alvo de interesses. Como
fora moldado por forças biológicas e sociais, não desenvolveu seu lado espiritual e
reflexivo. Movidas pela lei da causalidade, as atitudes do personagem são gratuitas
e fundamentadas numa explicação científica presumível, na qual tanto os homens
quanto os animais estão sujeitos à mesma lei. Inserido nesse sistema, Amâncio,
caracteriza-se como um jovem sem escrúpulos ou objetivos; ao mesmo tempo em
que foge dos estudos, entrega-se às paixões inconseqüentes, à luxúria e à vaidade,
que culminam em sua morte.
82
Ibidem, p. 21.
83
Ibidem, p. 59.
151
A seqüência 19 (6ª coluna) apresenta o momento em que Amâncio chega à
casa de pensão, e Coqueiro o trata da melhor maneira possível, escondendo que,
por trás disso, a intenção de casá-lo com sua irmã Amélia. O colega da Escola
Politécnica chega a dizer que “Aqui ficas muito bem! Serás tratado como um filho;
em breve terás toda a intimidade com minha família”. O livro
84
, no entanto, omite
alguns desses detalhes, preservando apenas a informação de que: Ficas aqui
muito bem! Serás tratado como um filho”. Esse momento, descrito nas duas versões
de Casa de Pensão, assume grande proximidade com a Questão Capistrano, na
medida em que é possível ver em Coqueiro a imagem de Alexandre Pereira, que,
em 1876, convidou o colega da Escola Politécnica para ser pensionista na casa em
que morava com a mãe e a irmã.
A entrada de Amâncio à casa de pensão pode ser entendida como o
momento em que o personagem cai na armadilha criada por Coqueiro. A análise do
comportamento do personagem e das estratégias criadas para sobreviver em seu
meio caracteriza uma visão biológica do ser humano em sua inclinação para o duplo,
que se alterna de acordo com as situações e os interesses. Desse modo, tanto
Amâncio quanto os personagens a ele relacionados na intriga agem de acordo com
seus interesses, de forma análoga aos indivíduos envolvidos com Capistrano.
A caracterização dos elementos presentes em Casa de Pensão é, portanto,
esquemática e, por “referir-se à aparência física ou aos processos psíquicos de um
objeto ou personagem (ou de ambientes ou pessoas históricas etc.), podem salientar
movimentos visuais, táteis, auditivos etc" (CANDIDO, 1998, p. 13-14). Como grande
parte das ações está voltada para Amâncio, os demais personagens a ele
relacionados também são tipificados de acordo com traços concretos, moldados com
características de pessoas comuns, com todos os seus contrastes (beleza/feiúra;
bondade/maldade; rudeza/requinte, etc.).
Tanto no romance-seriado quanto no livro, a caracterização do protagonista é
realizada por meio de linguagem plástica, como se Amâncio fosse uma marionete,
que ora é lançada para dentro das aventuras de romances românticos e ora veste a
máscara criada para o convívio social. Essa plasticidade remete-nos ao fato de que
Aluísio desenhou os personagens de Casa de Pensão em cartolina, cortou-os e
depois que todos estavam dispostos sobre sua escrivaninha, deu vida e voz a eles e
84
Ibidem, p. 64.
152
ao narrador (MENEZES, 1958, p. 150-151). Mario Vargas Lloza, por sua vez,
destaca que:
O narrador é sempre um personagem inventado, um personagem, um ser
de ficção, igual aos outros, aqueles sobre os quais ele conta”, mas mais
importante que eles, porque da maneira como atua revelando-se ou
ocultando-se, demorando-se ou precipitando-se, sendo explícito ou alusivo,
falador ou contido, lascivo ou sério depende que estes nos persuadam de
sua verdade ou nos dissuadam dela e nos pareçam marionetes ou
caricaturas (LLOZA, 1997, p. 63 - tradução nossa).
Nesse mesmo sentido, as representações criadas por Aluísio Azevedo, na
tipificação dos personagens, desvendam formas de organização da sociedade
através de um microcosmo, como fragmento da realidade apreendida pelos sentidos
do escritor, que as técnicas apropriadas permitem que sejam representadas na voz
dos personagens e mediadas pelo narrador.
3.6.2 A figura feminina
Hortênsia e Ângela são as únicas mulheres que fogem à visão negativa
apresentada sobre a mulher. Embora o romance-seriado não apresente as
transformações ocorridas com Hortênsia, o desfecho da intriga a desmistifica e de
mulher idealizada passa a ser acessível. As demais personagens podem ser
qualificadas como mulher-sujeito (Mme. Brizard); mulher-objeto (Amélia); mulher-
sujeito-objeto (Lúcia), em trocas sexuais.
Nos primeiros momentos na Corte, Amâncio era atormentado pela profunda
nostalgia que a distância da mãe lhe causava. A única forma de aproximar o que
estava distante no tempo e no espaço era a lembrança de todo o carinho recebido
de Ângela, o seu anjo, e, assim, via-se mergulhado no sonho de revê-la. Se por um
lado Ângela e Hortênsia assumiam o papel de mulheres-anjo, Lúcia e Amélia eram
vistas como mulheres-diabo, pela forma como levavam Amâncio a aventuras
libidinosas.
Embora não tenhamos provas de que Aluísio lia teorias psicanalíticas, o amor
incondicional que Amâncio nutria pela mãe e o ódio sentido pelo pai é uma evidência
de que o protagonista tinha o “complexo de Édipo” e o medo da castração,
153
provocado pelas constantes censuras do pai. Exemplo disso pode ser retirado da
seqüência 12 (4ª coluna) – que se assemelha ao conteúdo do livro
85
– quando:
A própria idéia de sua mãe nunca lhe vinha havia sempre ao lado dela
alguma lembrança enfadonha e constrangedora. Quando estavam juntos,
o pai chegava sempre no melhor da intimidade. Ângela retraía-se, cortava
em meio às carícias do filho, como se as recebesse de um amante, em
plena ilegalidade do adultério. E a lembrança desses beijos furtados,
desses carinhos cheios de sobressalto, trouxeram-lhe logo a idéia as
vezes que ele ia se meter no quarto do engomado, de camaradagem com
as mulatas da casa, que aí trabalhavam conjuntamente.
Sua dependência dos carinhos maternos era alimentada pela superproteção e
cumplicidade que o amparava em momentos de sofrimento e dificuldade financeira.
Quando estava no Rio, Amâncio recebeu uma carta na qual Ângela dizia: “Se não te
chegar a mesada, ou se te vierem a faltar os recursos, escreve-me logo duas linhas,
que eu te mandarei o que precisares. Mas não convém que teu pai saiba disso...”
86
.
Hortênsia foi idealizada como uma substituta da mãe. Embora soubesse dos
riscos de se envolver com a mulher de Campos, é difícil imaginar que Amâncio
conseguiria ser mais forte que o desejo que o inclinava a ela. A seqüência 13 (2ª
coluna) mostra que: Amâncio via-se “aguilhoado pelos sentidos, perdia-se em
cálculos, em suposições; tentando penetrar todos os segredos do amor de
Hortênsia, fantasiando-se ao lado dela surpreendendo-lhe os pensamentos,
sorvendo-lhe os olhares”. O livro
87
, por sua vez, descreve que o protagonista tenta,
em vão, entender os pensamentos da amada, por isso “perdia-se em cálculos
infames, em degradantes suposições; tentando, embalde, adivinhar-lhe os
pensamentos, penetrar-lhe nos escaninhos do coração e devassar-lhe todos os
segredos do corpo”.
A seqüência 24 (4
a
e 5
a
colunas) registra o momento em que Amélia e Mme.
Brizard procuram se aproximar de Amâncio com a desculpa de ajudá-lo a organizar
o que havia trazido em sua arca:
À proporção que se iam tirando as peças de roupa [...
88
] do baú uma
tepidez doce e confortável, que lembrava o aconchego morno da
família.
85
CP, 1977, p. 43.
86
Ibidem, p. 27.
87
Ibidem, p. 45.
88
Ilegível.
154
Cada objeto trazia ao provinciano mil reminiscências e mil saudades
de sua mãe. Um perfume ideal de beijos parecia desprender-se, quando
se desdobravam os brancos lençóis de linho. Compreendia que muita
lágrima e muito soluço ficaram abafados no fundo daquelas arcas.
Uma vaga tristeza apoderou-se dele, ficou distraído, a olhar silenciosamente
para as roupas que as duas mulheres empilhavam no chão e sobre a cama.
Afigurava-se-lhe que um pouco da sua infância, um pouco de sua mãe,
fugiam para sempre com aqueles perfumes que se evaporavam. E
compreendeu, sentiu, que seu coração, à semelhança daquelas arcas,
havia também de ir perdendo, pouco a pouco, todas as ilusões, todos os
perfumes, com que saíra da casa dos seus pais, e que seus afetos, até o
próprio amor que dedicara à sua mãe, desarrumadas a primeira vez,
nunca mais possuiriam a mesma forma de inocência, a mesma tepidez
embalsamadas dos outros tempos.
A versão em livro
89
apresenta a supressão de grande parte dos textos
destacados em negrito acima e acrescenta algumas alterações, dentre as quais
destacamos estas principais: “À proporção que se iam tirando as peças de roupa,
uma tepidez embalsamada respirava dentre elas; parecia que um perfume ideal
de beijos se exalava ao [...]”. “percebia-se que muita lágrima e muito soluço
ficaram abafados no fundo daquelas arcas. Vieram ao provinciano novas e mais
vivas saudades de Ângela”. Além disso, a versão em livro apresenta o diálogo
entre a linguagem verbal e a pictórica, com a união de códigos semióticos para
atribuir movimento ao discurso de Casa de Pensão.
89
Ibidem, p. 76.
155
Figura 1: estampa litrografada pelo pintor Aurélio Figueiredo, localizada entre as páginas 48 e 49 -
primeira edição (popular) de Casa de Pensão, editada por Faro & Lino - RJ, em 1884.
156
Durante essa cena, o narrador de Casa de Pensão apresenta o diálogo entre
Amâncio e a dona da casa de pensão, no qual discutem sobre os conceitos de
mulher. No romance-seriado Amâncio defende a mulher da província, conforme
pode ser observado a seguir.
O pobre marido é quem menos as possuem por que elas nem se
lembram que o desgraçado existe!
Não é tanto assim, Mme. Brizard! Respondia Amâncio o é tanto
assim! Acredito que as mulheres em geral são exigentes, mas não
acredito que as da corte sejam menos que as da província; são a
mesma coisa, com a diferença que a provinciana é muito mais modesta
e simples nas suas aspirações. Por isso mesmo que o Rio de Janeiro é
para ela um sonho dourado, um ideal, contenta-se simplesmente com
isso; ao passo que a outra, não! Visto que a corte é comum, é o vulgar,
ela estende a sua ambição e quer Paris (SEQÜÊNCIA 25, 2
a
. coluna).
As alterações realizadas na versão em livro demonstram a preocupação do
autor quanto à representação da figura feminina:
E o pobre marido de semelhante gente, depois de arruinado e depois de
passar uma existência sem amor e sem aconchegos de família, ainda
terá de suportar as queixas e os ressentimentos de uma mulher
desiludida e blasé
90
.
Perdão! Replicou o estudante. Isso prova simplesmente que toda a
mulher, seja da província ou da Corte, apresenta sempre certa dose de
ambições. Com a diferença, porém, de que a provinciana, por isso
mesmo que o Rio de Janeiro é o seu ideal, é o seu sonho dourado,
contenta-se com ele; enquanto que a outra, visto que o supradito Rio de
Janeiro para ela nada mais é que o comum, estende naturalmente a
sua ambição – e quer Paris [...]. (CP, 1977, p. 77).
O fato de Mme. Brizard possuir pensamento próprio e defender sua opinião
quando se via inserida em uma discussão polêmica fazia com que Amâncio a visse
como um perigo. A seqüência 17 (coluna) destaca que: “Amâncio principiava a
desconfiar que Mme. Brizard não morria de amores pelo silêncio, e que talvez
estivesse ali uma dessas caceteadoras de enlouquecer um sujeito”. No livro
91
,
não consta o constrangimento que sentia pela falação de Brizard: “Amâncio
principiava que aquela francesa não era nada menos que uma formidável
‘cacete’”.
90
Blasé é uma expressão francesa que denomina o comportamento indiferente em relação às
"novidades" do mundo.
91
CP, 1977, p. 59.
157
Embora tivesse consciência de que os leitores da época estavam habituados
à leitura de romances românticos, Aluísio não deixava de apresentar um retrato da
realidade a que assistia. Segundo Araripe (1959, p. 375 apud BRAYNER 1973, p.
18): “as mulheres, brasileiras pelo menos, não querem que lhes pinte os defeitos.
Ficam muito mal acostumadas com as exibições dos tipos louros e amoráveis de
Alencar e os irrequietos e mimosos de Macedo [...]”. Por outro, o crítico ressalta “as
mulheres são de carne e osso e concentram muita maldade e leviandade”.
Mesmo tentando controlar a vontade de intrometer-se na vida do hóspede,
Mme. Brizard não conseguia respeitar algumas atitudes tomadas por Amâncio. Ele
era constantemente vigiado e não se via livre para fazer agrados com o que a mãe
havia lhe enviado do Maranhão. Na seqüência 38 (6
a
coluna), a francesa coloca-se
no direito de desaprovar o fato de Amâncio presentear hospedes da casa: “- Oh! fez
a Mme. Brizard escandalizada Isso é que não foi nada bonito! A gente aqui a
matar-se, a desfazer-se em carinhos, e ele a socar os presentes que recebe da
família no bandulho daquela bicha! Não! Isso não lhe perdôo!”. Na versão em
livro
92
, as alterações realizadas não modificam a insatisfação demonstrada pela
dona da casa de pensão.
A seqüência 29 (3
a
e 4
a
colunas) contém um relato de uma crise de histerismo
sofrida por Nini, filha de Mme. Brizard:
Esta infeliz menina! exclamou, depois de um entroite de vinte
minutos. Esta infeliz menina, senhores! nada mais é do que uma
imbele vítima de todos os impulsos, que [...
93
] haver no coração terno e
carinhoso da mulher! Vede como o seu semblante é meigo e dolorido,
como seus olhos falam a misteriosa linguagem do amor, como a sua
boca... Mme. Brizard ergueu-se para pedir ao Dr. Tavares que se deixasse
daquilo, por amor de Deus!
No livro, esse episódio ganha maior destaque. A voz do hóspede Dr. Tavares
sufoca a voz de Nini. A voz dele representa o posicionamento de um advogado em
pleno tribunal, como se Nini fosse sua cliente. Com muita veemência e linguagem
ritmada, finaliza seu discurso dizendo que Nini precisa casar-se para poder viver:
Pintou floreadamente o lamentável estado de Nini. Qualificou-a de
vítima inocente dos impenetráveis caprichos de Deus” descreveu a
dolorosa expressão do semblante da “infeliz moça”, disse que os olhos
dela falavam a misteriosa linguagem do amor, e, quando se dispunha a
dar afinal a sua esperada opinião sobre o casamento, a pobre enferma,
92
Ibidem, p. 109-110.
93
Ilegível.
158
muito vendida com o que vociferava o tagarela a seu respeito, abriu a
soluçar estrepitosamente. A francesa ergueu-se, de mau humor, para
pedir ao Dr. Tavares que se calasse, por amor de Deus!”. Doutro lado o
Coqueiro também lhe suplicava ao advogado que se calasse.
Mas o demônio do homem se não podia conter. As palavras
borbotavam-lhe da língua, como o sangue de uma facada. Fez imagens
poéticas sobre o casamento, citou nomes históricos, e jurou, à de
suas convicções, “que aquela desventurada criatura precisava de um
esposo, mais do que as flores carecem do orvalho, mais do que as
aves carecem do ar; mais do que os cérebros carecem de luz!” (CP,
1977, p. 86).
A esse respeito, Süssekind (1984, p. 126) destaca que: “Resta às histéricas
buscar os laços femininos na reprodução dos comportamentos prescritos médica e
moralmente para a mulher: o casamento e a procriação”. Como são freqüentes as
imagens de histerismo nos romance de Aluísio Azevedo, o exemplo acima retoma o
comportamento histérico de Ana Rosa, de O Mulato, que tinha constantes crises de
choro. Além disso, grande parte dos romances que retratam os costumes da
sociedade brasileira da segunda metade do século XIX descreve que à mulher
existiam dois sonhos: o matrimônio e a maternidade.
No romance Casa de Pensão, o comportamento de Amélia denota, em maior
grau da versão em livro, que a sexualidade é analógica ao dinheiro. Se, por um lado,
o romance-seriado apresenta uma Amélia reflexiva, contrária ao plano ambicioso do
irmão e da cunhada, por outro lado, o livro suprime esse fato, o que resulta na
alteração da caracterização do caráter da jovem. Na seqüência 16, coloca-se em
evidência o ponto de vista de Amélia e a revolta que sentia por ser guiada pelo
irmão, o que não é preservado na publicação em livro. Por outro lado, alguns trechos
adicionais ressaltam o medo que ela tinha de não se casar, porque “não queria ficar
solteirona” e, além disso, o casamento significava uma possibilidade de adquirir uma
boa posição social. A primeira Amélia desaparece na versão romântica da
personagem. Em uma crônica publicada no jornal O Pensador, em São Luís do
Maranhão, Aluísio apresenta uma visão positivista: “Do procedimento da mulher (...)
depende o equilíbrio social, depende o equilíbrio político, depende todo o estado
patológico e todo o desenvolvimento intelectual da humanidade” (O PENSADOR, 10
dez. 1880 apud MÉRIAN, 1988, p. 166-167).
Quando Walnice Nogueira Galvão (1981, p. 8 apud SÜSSEKIND, 1984, p.
147) destaca que: “Mulher, maior de um lado, acima da determinação anatômica;
menor, de outro, suspensa de acesso à maturidade, presa ao laço paterno, mutilada
159
nos múltiplos papéis que natureza e sociedade lhe oferecem”, podemos imaginar
Amélia atormentada pelo desejo de casar-se e acabar com a intromissão de
Coqueiro e Mme. Brizard. Essa Amélia que desenvolve um solilóquio para abafar os
conselhos da francesa revelam uma jovem reflexiva e crítica:
Aquela vida de solteira ia com efeito a enfastiando de dia para dia. Já
não estava com idade para ser governada como uma criança. Não
sabia o que diabo queria dizer uma mulher como ela ser diariamente
tratada com pieguices e com as insuportáveis cautelas com que em
geral tratam as meninas. Não estava para isso! Com a educação que
lhe coube e com o meio em que se desenvolveu sabia perfeitamente o
que era pão e o que era queijo; por conseguinte as reservas de Mme.
Brizard e as discrições do irmão, irritavam-na (SEQÜÊNCIA 16, colunas
01, 02 e 03).
Na versão em livro
94
a conversa é reformulada, os solilóquios suprimidos, o
que delineia uma Amélia submissa, que se dispõe a ouvir e aceitar que lhe guiem a
própria vida:
Ardia, com efeito por achar marido, por se tornar dona-de-casa. A posição
subordinada de menina solteira não se compadecia com a sua idade e com
as desenvolturas do seu espírito.
Graças ao meio em que se desenvolveu, sabia perfeitamente o que era
pão e o que era queijo; por conseguinte as precauções e as reservas, que
o irmão tomava para com ela, faziam-na sorrir.
Foi durante a doença de Amâncio que Amélia, cercando-o de cuidados,
começou a conquistá-lo, fazendo com que o maranhense visse nela a possibilidade
de sentir-se tão bem como se estivesse com a própria mãe. Na seqüência 39 (6
a
coluna), penúltima publicação do romance-seriado, o personagem:
Amâncio, muito desvigorizado com a moléstia, sentia destecerem-se-lhe
interiormente os lúbricos impulsos, que a princípio o atraía para ela
[Amélia], e dera lugar a uma simpatia tranqüila e doce, como
experimentara ao lado de sua mãe. Ia-se aos poucos familiarizando
com aquela criatura branca e ainda tão nova, que lhe enchia o quarto
com o frescor balsâmico de sua virgindade e rociava-lhe os sentidos com a
mimalhice trêfega de sua ternura.
Na versão em livro
95
, Amélia assume uma imagem fraterna que mexia com os
sentimentos de Amâncio. Depois que ele ficou enfermo: “sentia perfeitamente que
os lúbricos impulsos, que dantes lhe inspirava a graciosa rapariga, iam-se agora
destecendo e dissipando à luz de um novo sentimento de gratidão e respeito”.
94
CP, 1977, p. 55-56.
95
Ibidem, p. 112.
160
Com isso: A primitiva Amélia desaparecia aos poucos, para dar lugar àquela
extremosa criança, àquela irmãzinha venerável [...]”.
Se tomarmos emprestado o que José de Alencar denomina “mercado
matrimonial” para caracterizar os interesses de Amélia, Coqueiro e Mme. Brizand,
podemos dizer que para Amâncio isso significa um envolvimento puramente
circunstancial, estimulado pela liberdade recebida dos donos da casa de pensão. A
sala é penetrável os quartos são utilizados para romances libertinos. A habitação
coletiva se apossa de todo espaço da intimidade familiar. Ninguém se casa. A
instituição do casamento fica em segundo plano.
A seqüência 20 (coluna) descreve as primeiras impressões que Amâncio
tem de Lúcia. Apesar de descrevê-la de um modo que se assemelha ao grotesco, a
linguagem empregada é extremamente formal: “Ao lado dele assentou-se
gravemente a Lúcia Pereira. Amâncio envolveu-a em continente num olhar
extenso e observador [...]”. Então é descrita como uma mulher: “de estatura
regular, costas levemente arqueadas, ombros erguidos, como por uma forte
impressão de medo: braços descaídos, cintura pouco abaixo dos seios,
desenhando muito a barriga, que não era pequena”.
O conteúdo registrado no livro
96
é apresentado de modo mais direto: “E
voltou o olhar a sua direita, onde Lúcia acabava de tomar assento. Examinou-a
logo, à primeira vista, sem o dar a conhecer, e a impressão recebida não foi das
melhores [...]”. Suas características físicas a definem como uma mulher: “de estatura
regular, tinha as costas arqueadas e os ombros levemente contraídos, braços
moles, cintura pouco abaixo dos seios, desenhando muito a barriga”. É interessante
esse olhar masculino sobre o corpo de Lúcia porque a gordura e falta de postura
denotam falta de delicadeza, o que revela a visão naturalista do escritor.
Lúcia, principal rival de Amélia, é vista como uma pessoa com poucos
escrúpulos e educação, apesar de ser culta. “Deram-lhe professores de francês, de
música, de desenho; entregaram-lhe enfiadas de romances banais do gênero de
Mistério da Tijuca e livros de maus versos; e, todavia, não lhe deram moral, nem
trataram de lhe formar o caráter” (SEQÜÊNCIA 30, 2
a
coluna). O livro suprime a
menção feita ao romance-seriado Mistérios da Tijuca, publicado pouco tempo antes
de Casa de Pensão. A metalinguagem significa uma forma de Aluísio dialogar com
96
Ibidem, p. 64-65.
161
os leitores dos romances-seriados, pois o livro não o cita. Sobre a função
metalingüística, Jakobson (1970, p. 213-221) oferece a seguinte explicação:
Cada vez que o destinador e ou o destinatário acha necessário verificar se
eles utilizam bem o código, o discurso é centrado sobre o código: preenche
uma função metalingüística (ou de crítica): ‘não o estou a seguir que quer
dizer?’ pergunta o ouvinte, ou, em estilo de realce: ‘que se poderá dizer?. O
locutor, antecipando-se, inquieta-se: ‘Compreenderam o que quero dizer?
Ironicamente, o mesmo Amâncio que descrevera os defeitos de Lúcia agora
passava a desejá-la ardentemente: E nada de vir o sono [...]. Desejava Lúcia,
mas desejava que ela viesse naquele mesmo instante, que ela lhe aparecesse
ali, no silêncio daquele quarto, enquanto o palerma do marido dormia em
cima [...](SEQÜÊNCIA 31, 3
a
coluna). No entanto, parece que sempre tem alguém
atrapalhando a vida de Amâncio. Primeiro foi o pai, depois o professor Pires, agora o
palerma marido da Lúcia. A distância entre os quartos significa um obstáculo para
Amâncio chegar até Lúcia. Na versão em livro, as palavras em negrito o
suprimidas.
Na seqüência 40 (3
a
. coluna), último segmento do romance-seriado, cia
senta-se “à beira da cama de Amâncio”. Lúcia tenta seduzir o nortista sacudindo
romanticamente os cabelos, que ela trazia soltos sobre as costas, perguntou com
ímpeto: [...]” (6
a
coluna).
No livro
97
, ocorre um diálogo entre os amantes, no qual Lúcia pressiona
Amâncio a tomá-la do marido:
Eu?! Sim, tu! E, assentando-se à beira da cama, para lhe ficar mais
perto, continuou, diminuindo o tom da voz: [...].
E Lúcia, agitando romanticamente os cabelos, que ela por cálculo trazia
soltos essa noite, perguntou com ímpeto: [...] (CP, 1977, p. 115).
Como a publicação do romance-seriado foi interrompida antes de Amâncio
definir se ficaria com Amélia ou Lúcia, ou se ainda lutaria pelo amor de Hortênsia, o
final da seqüência quarenta estabelece um grande corte e instaura suspense à
intriga de Casa de Pensão.
97
Ibidem, p. 114.
162
3.6.3 A figura masculina
3.6.3.1 A voz do pai: o odioso Vasconcelos
O ódio que Amâncio sentia pelo pai pode ser exemplificado pela “voz grossa e
insociável” que lhe atormentava quando fazia algo que o pai não aprovaria. Como
era de costume, Amâncio ficava muito agitado quando freqüentava festas e, ao
voltar do baile dado na casa do Melo, não conseguindo dormir, começou a pensar
em ternos episódios de amores fáceis até lhe surgiram pesadelos com o pai. Na
seqüência 28 (5
a
. coluna), destacamos detalhes que somente estão presentes na
variante folhetinesca. Amâncio é atormentado pela voz do pai, dizendo-lhe:
Anda daí, mandrião! Basta de cama!se queres que eu te vá buscar! E
aquela voz terrível dava-lhe a todo o corpo tremor de medo. Não podia
suportar aquele homem! Aquele maldito velho Vasconcelos, que no
sonho não lhe aparecia como pai, mas como um senhor mal, bruto.
Aquela voz grossa e insociável, vultos cor de rosa, de cabelos louros,
fugiam espavoridos, para os lados e sumiam-se rapidamente, como rãs
que se atiram n’água, assustadas pela presença de um boi.
No mesmo instante achava-se a sós com a maldita voz, que se
condenava, formando nuvens negras e pesadas. Queria gritar, correr,
mas a língua inchava-lhe na boca e as pernas pareciam troncos de
árvores, seguras ao chão.
Acordou muito fatigado e aborrecido às duas horas da tarde.
Na variante em livro
98
, são suprimidos os detalhes destacados acima,
relacionados ao pesadelo que a lembrança do pai despertava em Amâncio.
Quando Amâncio recebe a primeira carta do pai, uma nova imagem se
configura. A seqüência 34 (4
a
e 5
a
colunas) relata que: Sentia certo gostinho em
merecer aqueles conselhos de amigo íntimo [...]. Agora apareciam
remorsosinhos penetrantes, como se o pobre rapaz contribuísse de qualquer
modo para a insuficiência do seu amor”. O livro
99
apresenta esta reflexão
diretamente: Desfrutava um certo gosto em merecer aquela intimidade paterna;
mas, por outro lado, doía-lhe a consciência por não ter sido melhor filho; como se o
pobre rapaz de qualquer forma contribuíra para semelhante falta”.
98
CP, 1977, p. 84-85.
99
Ibidem, p. 99.
163
3.6.3.2 Coqueiro
A habilidade que Aluísio tinha com os pincéis também pode ser vista nos
contornos traçados por sua pena. Ao retratar a sociedade como se estivesse
desenhando um quadro, a linguagem que constrói a caricatura de alguns de seus
tipos é capaz de alcançar a redução do aspecto humano ao animal e, assim, como
os aspectos físicos, a imagem moral também sofre deformação. Brayner (1979, p.
142) ressalta que o: “Sensacionístico por excelência, o artifício caricatural constrói a
maioria dos personagens, numa redução do humano, ora acentuando os aspectos
analógicos com o mundo animal, ora visando a agravar a inversão comum traço
grotesco rebaixador e concreto”.
A seqüência 09 (coluna) relata que o antagonista Coqueiro ouvia Amâncio
com muita atenção, em silêncio”. Enquanto Paiva e Amâncio estavam tontos, ele
observava os colegas, seus olhos, pequenos e de cor incerta, conservavam a
mesma penetração e a mesma fixidez incisiva. Sua boca quase sem lábios e
guarnecida de bons dentes tinha o mesmo riso arqueado, indeciso e frio”. A
descrição caricata é aprimorada no livro, o que ressalta a intensificação do discurso
naturalista de empregar características zoomorfizantes, ou seja, a animalização do
comportamento e traços humanos. Dessa forma, a citação a seguir destaca as
alterações constatadas na passagem do conteúdo para o formato de livro:
Coqueiro estudava-o de socapa, a seguir-lhe os gestos, a fariscar-lhe as
intenções. Dos quatro, era o único que não estava tonto: seus olhos,
pequenos e de cor duvidosa, conservavam a mesma penetração e a
mesma fixidez incisiva de ave de rapina; sua boca estreita, bem
guarnecida e quase sem lábios, tinha o mesmo riso arqueado, mal seguro
e frio, de quem escuta e observa (CP, 1977, CP, p. 37).
Esse mesmo comportamento observador pode ser notado na seqüência 21
(4ª coluna), quando: Coqueiro fingia acompanhá-lo [Amâncio] naquele entusiasmo,
mas ria-se por dentro”. Porque, na verdade: “O outro parecia-lhe cada vez mais
tolo”. Na versão em livro
100
, o comportamento simulado de Coqueiro é alterado pela
mudança do termo fingia para o sinônimo afetava.
Na seqüência 29 (1
a
coluna), como comportamento característico de fim de
festa: Parecia que Amâncio comunicara a todos o seu fastio e o seu cansaço.
100
CP, 1977, CP, p. 67-68.
164
Embalde tentava o Coqueiro distraí-los, lembrando fatos engraçados; ninguém
o secundava”. No livro
101
, por outro lado, a tentativa de Coqueiro animar Amâncio
foi suprimida. A seqüência 36 (1
a
coluna) também apresenta detalhes sobre o
entusiasmo de Coqueiro, enquanto Amâncio se mostra apático:
Pelo caminho de casa, o Coqueiro não se fartou de elogiar as boas
maneiras e a franqueza do Campos; falou respeitosamente da
amabilidade de Hortênsia, disse que lhes havia de fazer uma visita em
companhia da mulher e de Amelinha. E terminou dando ao colega
conselhos referentes aos interesses do estudo, ao modo como se
devia conduzir na sociedade, como deveria evitar os mil perigos da
corte e a atitude que lhe convinha tomar em certas e determinadas
conjunturas.
Amâncio ouvia-o distraidamente; já o aborreciam tantos conselhos.
– Ora bolas! todos o queriam guiar! e a insistência [...].
Nos destaques acima, o negrito enfatiza o conteúdo que apenas existiu no
romance-seriado, o sublinhado ressalta a tentativa de Coqueiro incorporar a voz
paterna, o que irritava Amâncio. No livro
102
, esse episódio não merece muito
destaque, pois consta que: Quase nada conversaram pelo caminho. Amâncio
parecia aflito por se meter na cama; uma vez, porém, recolhido ao seu novo
quartinho do segundo andar, não sentia a menor disposição para dormir [...]”.
Em continuidade, a seqüência 36 (2
a
Coluna) revela que Amâncio apresenta
certa preocupação por não se dedicar aos estudos: [...] no mesmo ponto, como
que encarecia a sua espécie de remorso pelo mau cumprimento das
obrigações”, mas, por mais que tentasse, dormia antes de conseguir assimilar uma
gina do seu manual de Medicina, ou então começava a pensar em Lúcia e
fechava o livro. Os impulsos que dominavam Amâncio também o afligiam no dia em
que: Chegaram a casa às quatro horas da manhã. Coqueiro recolheu-se logo e
o outro subiu ao quarto, sem a menor disposição para dormir”. Afinal de contas,
a idéia de que Lúcia estava ali perto a quatro ou cinco passos, mas inteiramente
fora de seu alcance o torturava como uma injustiça clamorosa erguida contra o
seu amor”. No livro
103
, por outro lado, a curta distância que separava Amâncio de
Lúcia, representava uma “pirraça levantada com o fim único de o afligir”.
Seguindo a mesma perspectiva descritiva com que foi apresentado Amâncio,
como produto do meio e das experiências, o antagonista João Coqueiro também é
focalizado em sua meninice bil. A seqüência 14 (2ª coluna) fala do amor
101
Ibidem, p. 85.
102
Ibidem, p. 103.
103
Ibidem.
165
incondicional que a mãe tinha pelo “primeiro filho – Juca. Criancinha feia, sem
sangue, cheia de asma. Até os cinco anos parecia idiota; passava os dias a babar-
se debaixo da mesa de jantar ao do moleque que tomava conta dele”. O livro
104
não apresenta alterações significativas, limitando-se a trocar o epíteto Juca por
Janjão, sangue por dessangrada, reformulando, também, a parte final, na qual
descreve que o menino: “passava os dias a babar-se debaixo da mesa de jantar, ao
pé de um moleque encarregado de vigiá-lo”.
Dando seqüência à apresentação de acontecimentos que marcaram a
infância do antagonista, o romance-seriado, seqüência 14 (5ª coluna), dá pouca
ênfase ao fato de Coqueiro brincar com armas de brinquedo, o livro
105
ressalta que o
antagonista recebera do pai “uma bela pistolinha de brinquedo, que estalava
fulminante, e depois uma outra, mais séria, que admitia carga de pólvora”. Os
termos em destaque evidenciam a ação das leis deterministas de que o homem é
produto do meio em que vive, portanto, o fato de Coqueiro brincar com armas de
fogo na infância pode tê-lo influenciado no momento em que decidiu assassinar
Amâncio à queima roupa, em uma emboscada.
3.6.3.3 Campos, o comerciante íntegro
Distante do Brasil e dos amigos, Aluísio encontrara nas cartas uma maneira
de obter informações das transformações ocorridas em seu país e um meio de lhes
solicitar favores. No dia 23 de outubro de 1903, escreve de Salto Oriental ao
“Querido Florindo”: “Fala-me tua carta das transformações que vai sofrer o Rio de
Janeiro, e a leitura que tenho feito dos jornais do Rio, confirmando tuas palavras,
produzem em mim o mais singular efeito que é possível imaginar”. As informações
apresentadas por Florindo, somadas àquelas lidas em jornais cariocas, pareceriam
corroborar as mudanças que a Corte passaria naquela época e se intensificaria nas
décadas seguintes. No entanto, mesmo com tantas evidências, Aluísio ainda
tentava encontrar argumentos que o fizesse acreditar que isso não aconteceria,
então perguntava ao amigo:
104
Ibidem, p. 47.
105
Ibidem, p. 48.
166
Será com efeito possível que o Rio de Janeiro perca o seu velho feitio
colonial português e dê em capital sadia e limpa, com avenidas
arborizadas e casas com estilo? Na mesma carta, Aluísio revela que não
tais notícias sem pensar logo no Bilac, porque aí, quando
andávamos juntos por essas ruas cor de tijuco e cheiro de vasilhame
sujo, levávamos a reconstruir platonicamente toda a cidade, arrasando
quarteirões, furando bairros, abrindo praças e até dando reviravoltas
nas casas como se elas fossem de brinquedos (destaque nosso).
E é pensando em seu amigo Bilac que antecipa: “Vou escrever uma carta ao
Olavo a esse respeito, sem falar que, a meu ver, ele é dos que mais tem contribuído
moralmente para a grande revolução estética do Rio
106
.
Logo no início do romance Casa de Pensão, quando o narrador apresenta a
primeira cena, que se dá com o encontro de Amâncio e Campos, amigo de sua
família, a descrição da residência do comerciante relembra aquelas de velho feitio
colonial português descritas acima. A seqüência 01 (5ª coluna) informa que a
“casa comercial de Luís Campos era na rua Direita. Um desses casarões do tempo
antigo cujas paredes não dão idéia da cor que possuíam e cujo ar severo e
concentrado diz ainda os rigores do velho comércio português”. No livro
107
, a
descrição da casa de Campos é alterada na parte final, e, por isso, é caracterizada
como um “desses casarões do tempo antigo, quadrados e sem gosto cujo ar
severo está a dizer no seu silêncio os rigores [...]”.
Para atingir seu objetivo de retratar fielmente a realidade, o escritor naturalista
liga as características arquitetônicas à integridade de Campos. Esse viés dá-nos a
impressão de que as escolhas são moldadas pelo meio e as sensações dele
resultantes. Apesar de o ambiente condicionar grande parte dos personagens de
Casa de Pensão, Campos foge à regra e não apresenta mudanças em seu
comportamento. Por isso, destacamos que existe uma nítida relação entre o
casarão, aos moldes daqueles “do tempo antigo, quadrados e sem gosto e a
postura conservadora de seu proprietário.
Enquanto o romance-seriado, seqüência 01 (5ª coluna) enfatiza que: “Apesar
de brasileiro, Campos nunca conseguiu espantar de sua casa o ar triste que a
ensombrecia”, o livro
108
adjetiva a nacionalidade de Campos, pois não se trata de um
cidadão qualquer, isto é, antes ser mencionado o adjetivo pátrio, insere-se
106
O Touro Negro, 1961, p. 204-205.
107
Op Cit, p. 14
108
CP, 1977, p. 14.
167
“inteligente”, que o distingue dentre todos os personagens de Casa de Pensão,
embora não seja suficiente para espantar o ar triste de sua casa.
Como se distinguia da coletividade, composta por seres medíocres e
acomodados, Campos tinha seu modo de vida, guiado por projetos capazes de fazê-
lo progredir: Amaldiçoado por uns, bem ausentado por outros, ora elogiado,
ora mal falado, mas sempre a caminhar, sempre a prosperar(SEQÜÊNCIA 02,
coluna). Os meios que o personagem encontrará para o êxito profissional não
ficam claros no livro
109
, porque: “[...] o caso era que Campos, ou devido à fortuna
ou ao bom tino para os negócios, prosperava sempre”. Diferente do livro, o
romance-seriado descreve com mais detalhes, não apenas a apresentação de
Campos, mas também de outros personagens e elementos constitutivos da narrativa
e, por isso, a variante em jornal apresenta ritmo lento e linguagem minuciosa. Isso
se deve ao fato de a linguagem naturalista valorizar a clareza, simplicidade e
exatidão das descrições, como quem desenha um quadro rico em detalhes, a fim de
impedir que não se veja o que não fora retratado. Se, por um lado, o livro apresenta
a predominância de períodos curtos, favorecendo o entendimento literal, por outro
lado, o romance-seriado apresenta especificidades direcionadas aos leitores dessa
variante, que podem ter acompanhado a Questão Capistrano e o progresso
urbanístico, que marcaram as duas últimas décadas do século XIX. Em meio a
tantas transformações, à época de Casa de Pensão, grande parte dos leitores ainda
preferia a literatura romântica, talvez, por isso, a linguagem híbrida seja menos
evidente no livro.
3.6.3.4 O homem-objeto
Tanto o escravo Sabino quanto o marido de Lúcia não têm voz. Eles
representam o silêncio daqueles que vivem à margem da sociedade. Sabino foi um
presente dado pela avó. Ele tomava conta de Amâncio no Maranhão e o
acompanhou quando este se mudou para o rio, no entanto, da mesma forma que o
dono, Sabino também se entregou à boemia carioca.
O marido de Lúcia era um ser apático, desleixado, quase um vegetal. Sempre
que tentava expressar sua opinião, sua mulher o insultava, obrigando-o a ficar
109
Ibidem, p. 16.
168
calado. Diante de insistências e provocações: “Ele, porém, não dava resposta, e,
quando a mulher insistia a muito nas suas recriminações, fechava os olhos”
(SEQÜÊNCIA 20, 3
a
Coluna). No livro
110
, é inserido o mundo subterrâneo criado pelo
personagem como saída para esquivar-se dos insultos da mulher. Dessa maneira,
“[...] quando a mulher insistia, cerrava os olhos como se fugira para dentro de si
mesmo”.
A seqüência 39 (5
a
Coluna) revela um momento em que Lúcia pressiona o
marido para saber onde ele havia gasto os cinco mil-réis que ela lhe dera no dia
anterior: “Pereira explicou como tinha gasto o dinheiro. Não fora por culpa sua
Passara por uma confeitaria na rua do Ouvidor... Alguns amigos o chamaram
e, ofereceram-lhe cerveja e doces. Aceitou, mas depois os [...
111
] foram-se
embora, e ele teve de pagar”. De forma sintética, no livro
112
consta que: “Pereira
explicou que os havia gasto contra a vontade, porque uns sujeitos o obrigaram
a pagar cerveja e doces numa confeitaria”.
3.7 As vozes e os elos
A sobreposição de vozes, entre o que Amâncio expressa e o que o narrador
formula sobre os personagens nas duas esferas do romance, instaura duas forças
discursivas. Conforme estabelece Bakhtin (1988), no que tange ao aspecto
interacional da linguagem no texto literário, o estudo do discurso dialógico possibilita
identificar posicionamentos sobre questões sociopolíticas, reproduzidas no universo
diegético ficcional. A ambivalência da voz do narrador, que se dedica,
principalmente, à descrição de Amâncio e que lhe cede espaço para expressar seu
ponto de vista, instaura a plasticidade da voz narrativa e dramaticidade às cenas.
Essas duas vozes conferem pluralidade ao discurso narrativo de Casa de Pensão,
abrindo-o, na medida em que apresenta o horizonte plural da linguagem literária. A
análise do texto e do contexto, na atmosfera e na relação comunicativa, denota que
a produção de sentido em Casa de Pensão considera a relação entre escritor e
leitor, aspectos do discurso sócio-histórico.
110
CP, 1977, p. 65.
111
Ilegível.
112
Op Cit, p. 112
169
O romance-seriado cria o cenário e apresenta as personagens, cujas vozes
podem ser relacionadas àquelas que dizem respeito à Questão Capistrano, que
ainda estão vivas na mente de muitos leitores contemporâneos à variante do jornal.
Para a composição do livro, o conteúdo passa por revisão: a nota que sumariza o
romance-seriado é retirada; há alterações de ordem gramatical e estrutural; algumas
marcas do discurso indireto livre são suprimidas. Amélia, por exemplo, que no
romance-seriado parecia reflexiva e contrária à pressão exercida pelo irmão e pela
cunhada para convencê-la a seduzir Amâncio, no livro o narrador não descreve esse
sentimento, colocando-a como um ser passivo que aceita o que lhe é imposto:
A ficção do fluxo da consciência ao usar técnicas como as do monólogo
interior, direto ou indireto, o solilóquio ou a descrição dos estados psíquicos
feita por um narrador onisciente, entre outras, o pretendeu apenas
reformar o conhecido discurso interior da ficção. Invertendo o nível da
comunicação racional e controlada de um personagem tomado como
unidade reflexiva, abre o da análise psicológica e penetra nos domínios
mais indevassados das manifestações psíquicas, na fluidez contínua das
sensações, fantasias e aspirações, a fim de desvendar os fatos da
consciência em contato com os fatos sociais, ambos de percepção
fragmentária – a atomização da realidade convoca o indivíduo a valer-se de
um enfoque cada vez mais subjetivo (BRAYNER, 1979, p.180).
Caracterizando o modo de pensar da época, a personagem do romance-
seriado parecia tentar contrariar o que é dito à sua homônima em o Jornal das
Famílias (16 jul. 1878):
“Amélia”
Um namoro velho, minhas leitoras, é muito prejudicial às moças, porque se
o namorado por qualquer circunstância deixa de casar, nenhuma outra
pessoa se anima pedi-la, se o pelo receio de uma recusa formal, ao
menos pela bem fundada suspeita de que ela possa ainda sentir algum tic-
tac de tempos passados.
Assim é que d’estas delongas resulta muitas vezes o alistamento de mais
uma praça para o batalhão das involuntárias tias!
Além de condensar parte das informações que poderiam traçar o perfil
psicológico dos personagens, a versão em livro apresenta parágrafos mais
sintéticos; capítulos são suprimidos enquanto outros se fundem. Mesmo sem
apresentar a história na íntegra, pois é interrompida antes do clímax e desfecho, o
romance-seriado desvenda os principais elementos da narrativa, tais como: tempo
psicológico (marcado por analepses) e cronológico, apresentação do espaço,
personagens e conflitos.
170
O livro apresenta três grandes núcleos ou direções da diegese. A primeira
corresponde ao conteúdo publicado no romance-seriado, com a história da vida em
casa de pensão e a construção do caráter dos personagens, delimitação do espaço
e as analepses do tempo, que são projetadas pela saudade que Amâncio sente do
Maranhão e retomam a ordem cronológica no espaço do Rio de Janeiro, na medida
em que o personagem se convence da necessidade de entregar-se à vida libertina e
ao caso com Lúcia, ao mesmo tempo em que revela sua falta de vocação para os
estudos. A segunda acrescenta novos núcleos para a história, tais como o
envolvimento de Amâncio e Lúcia e as estratégias de Coqueiro e Brizard para tirá-la
do caminho, a fim de favorecer as investidas de Amélia, até que esta consegue
seduzir o pensionista e, mesmo sem casarem e Amâncio ter certeza de que seu
verdadeiro amor é Hortênsia, vão morar em um chalé. A terceira focaliza a
surpreendente aprovação de Amâncio no primeiro ano da Escola de Medicina,
mesmo sem ter empenhado esforços para isso; depois disso, Amélia a carta de
amor que Amâncio havia escrito à Hortênsia e o medo de Amâncio fugir do
compromisso impulsiona-a a entregar a carta ao irmão, que, por sua vez, abre um
inquérito contra Amâncio. Depois de vê-lo absorvido, Coqueiro se desespera e
assassina o colega como forma de restabelecer a honra à irmã.
A versão em livro representa a conclusão do projeto que fora descrito na nota
Antes de principiar, na véspera da publicação da primeira fatia de Casa de Pensão,
ao mesmo tempo em que revela o ponto de vista do escritor naturalista sobre a
Questão Capistrano, aludida na história do romance.
171
4 CONTEXTO DO PROCESSO DE CRIAÇÃO
No universo artístico que compreende o processo criativo de Casa de
Pensão, jornalismo e literatura representam duas modalidades que estão
profundamente associadas, seja no momento de selecionar informações a partir de
notícias, na elaboração das vertentes do romance e na divulgação das mesmas.
Essa estreita relação contribuiu para que os discursos se fundissem, resultando em
uma nova linguagem, híbrida, entre literatura e jornalismo. Nesse aspecto, em Casa
de Pensão (1883-1884), o retrato pessimista e, ao mesmo tempo, revelador do
cotidiano em casas de pensão do Rio de Janeiro, apresentado no mundo do texto.
O fato de a origem de Casa de Pensão estar profundamente relacionada à
linguagem e a notícias registradas no meio jornalístico, possibilita um diálogo entre
arte e experiência, na medida em que a ficção incorpora informações lidas e
assistidas pelo autor e pelos leitores contemporâneos à obra de arte. Como
resultado, temos um limite, por mínimo que seja, “como um cristal que separa dois
ambientes; e a percepção de fronteira é testada pela consciência do escritor,
enquanto testemunha. Ele sabe que o objeto da sua escrita é a sua experiência, e é
uma experiência que ele pode atestar, empiricamente verificável: o real que
aconteceu” (BOSI, 1997, p. 12).
Se pensarmos a partir dessa ótica, chegaremos à concluo de que Aluísio
assumiu o plano da memória ao retomar um acontecimento assistido por ele e por
muitos leitores que lhe eram contemporâneos. Ao analisar as notícias transmitidas
pela imprensa, podemos detectar algumas das informações absorvidas pela ficção,
bem como delinear a trama criada pelo autor, com a finalidade de retratar a
sociedade assistida no movimento do cotidiano carioca desse período. Da mesma
forma, os leitores, dependendo da proximidade que tiveram da Questão Capistrano,
puderam identificar em que momentos o ficcionista “mentiu”, ou seja, quando a
ficção insere informações ligadas às notícias e quando a narrativa apresenta
elementos criados pelo autor.
Por outro lado, por mais que o romancista inclua na ficção fatos que dialogam
com registros jornalísticos, pressupomos que esses episódios passam pelo viés
interpretativo do autor, por intermédio do qual se torna possível filtrar o conteúdo a
172
ser romanceado. Depois desse procedimento, ainda que o quantum do real histórico
seja cogitado, o modo de trabalhar, que é essencial à criação literária, é ficcional.
Nessa perspectiva, podemos dizer que Aluísio não teria mentido, mas criado:
O romancista não mente nunca, porque ele efetivamente mexe com
representações da imaginação que podem, ou não, ter um conteúdo
empírico historicamente atestado. Mesmo que maciçamente seja
documentado o fato que ele está contando, o regime do texto no seu
conjunto é de ficção (BOSI, 1997, p. 13).
Em continuidade aos apontamentos realizados por Alfredo Bosi (1997, p. 14),
no entanto, sem descartar outras especulações sobre esse teórico [entre a
separação de ficção e não-ficção], parece-nos pertinente dizer: “que ao fazer
discurso histórico ou memorialista, a consciência autoral sabe que há momentos que
são puras transcrições jornalísticas do acontecimento e momentos em que opera
toda uma fenomenologia do desejo e em que entram elementos imaginários”.
Portanto, é válido observar que é nessa fronteira que ocorre o hibridismo discursivo
e se efetiva a construção discursiva de Casa de Pensão.
Ao apresentarmos a Questão Capistrano, em um conjunto de “transcrições
jornalísticas”, a partir das publicações do Jornal do Comércio e da Gazeta de
Notícias, também podemos constatar nesses registros noticiosos elementos
característicos de apresentações literárias, como se a reportagem tivesse em sua
essência características semelhantes às das crônicas, porque ambas brotam do
cotidiano.
Como a produção artística de Aluísio Azevedo estava inserida no mercado
editorial do jornal e livro, o autor declarava-se atento aos temas que poderia
encontrar na atmosfera do meio jornalístico, levando em consideração o interesse do
público, a exemplo das notícias sobre a morte de Capistrano. Essa escolha pelo
noticioso poderia significar ao autor um vôo maior, tanto no que tange ao aspecto
social quanto político. Outra justificativa pode estar relacionada ao fato de a notícia
representar novidade para o período, ou seja, ela está ligada ao que a opinião
pública da época define como informação nova, no sentido de atualidade. Atento às
perspectivas que moviam o interesse do público e as transformações da mídia,
Aluísio também se mostra atento para acompanhar o momento em que os jornais e
a literatura dialogavam cada vez mais próximos, por isso, Aluísio recolhe o material
dos jornais e cria Casa de Pensão.
173
Com o projeto literário traçado, o Jornal do comércio e a Gazeta de Notícias
podem ser classificados como sistemas semióticos modelizantes por conferirem
parâmetros interpretativos aos leitores do período, dentre os quais poderia se inserir
Aluísio Azevedo, que chegou ao Rio de Janeiro no mesmo ano da Questão
Capistrano.
Apesar de termos consciência das inúmeras possibilidades de explorar as
informações jornalísticas, ressaltamos que o objetivo apresentado neste estudo nos
limita à focalização do eixo que une as notícias ao contexto do processo criativo de
Casa de Pensão, no intuito de perceber de que modo Aluísio entendia as mudanças
de perceptiva, advindas dos efeitos das tecnologias sobre os indivíduos. Por isso, o
diálogo intertextual torna-se essencial para apresentar os conflitos do romance, ao
mesmo tempo em que registra os conflitos socioculturais do período.
A partir dessa contextualização basilar, podemos pressupor que Casa de
Pensão é a materialidade de um acontecimento, transformado em texto na medida
em que o distanciamento temporal concede ao escritor condições de construir, por
intermédio da ficção, um horizonte capaz de fundir linguagens vinculadas a meios de
produção distintos.
Com o material em mãos, ao escritor é dada a tarefa de organizar as
palavras, os acontecimentos assistidos, lidos ou ouvidos (atrás de uma porta ou de
uma parede). Então, para produzir cada vertente do texto, ele escolhe um modo,
constrói c enár i o, di spõe seus per sonagens nos espaços t raçados e el abor a as
falas ligadas à temática, à vida em casa de pensão. Depois de tudo isso, surgem as
tipologias, agrupadas ao mote arquitetado.
4.1 Intertexto
Dando seqüência à apresentação do contexto produtivo de Casa de Pensão,
esta etapa apresenta elementos intratextuais e extratextuais, no intuito de
caracterizar o ponto de vista do autor e o gênero de Casa de Pensão, em função da
plurissignificação discursiva. O romance-seriado, publicado no jornal Folha Nova
(1883), é a primeira versão do romance estudado, conforme pode ser verificado na
174
nota Antes de principiar, considerada como nota introdutória ao romance, por
apresentar particularidades sobre a publicação, em função das expectativas dos
leitores e das vozes inerentes à temática abordada. Suprimido da variante em livro, o
conteúdo da nota sumariza a diegese e cria um horizonte de leitura para o blico
que, a partir do dia seguinte a essa publicação, passaria a ter acesso aos
segmentos que compõem o romance-seriado, os quais representam doze dos vinte
e dois capítulos do livro.
No movimento criativo de Casa de Pensão, escrever sobre o gênero ou a
pluralidade de vozes discursivas que compõem a trama do romance requer uma
análise prévia sobre a origem do referencial que está associado ao seu pano de
fundo. Como este estudo se detém ao contexto que abrange as décadas de 70 e 80
do século XIX, procuramos focar a Questão Capistrano, enquanto relato noticioso,
para, posteriormente, concebê-la como elemento essencial para a construção de um
texto ficcional plurissignificante. Nesse caso, como o processo criador abrange o
período de 1883 a 1884, com o registro de dois momentos criativos, consideramos
que o ponto de vista de Aluísio se alterna entre o literário e o informativo, entre o
gênero do romance-seriado e do livro, a partir dos modos de ver, ligados à visão
conceitual de um microcosmo da sociedade carioca.
Como nosso estudo analisa duas vertentes de Casa de Pensão, uma delas
publicada em romance-seriado e a outra em formato de livro, acrescentadas, ainda,
as notícias sobre a Questão Capistrano, faz-se necessário analisar alguns aspectos
característicos dos textos jornalísticos, para delinear o diálogo da notícia com a
ficção. Nessa perspectiva, encontramos em van Dijk elementos úteis para uma
leitura da notícia enquanto discurso.
4.2 A narrativa de Casa de Pensão: a voz e o ponto de vista
Este estudo contempla o conceito de narrativa que Genette (1995, p. 24) diz
ser o mais difundido: “sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios, que constituem
o objeto desse discurso, e as suas diversas relações de encadeamento, de
oposição, de repetição, etc”. Aplicando essa noção de narrativa ao romance em
análise e ao referencial jornalístico nele marcado, se tomarmos por base analítica as
175
duas categorias que podem ser consideradas como constitutivas da estrutura
narrativa dos onze primeiros capítulos do romance-seriado, que correspondem aos
doze primeiros do livro, a história real e a releitura da história real no texto fictício,
devemos considerar que: a) apesar de a história real estar explicita nas duas
variantes, variações significativas de texto para texto; b) a variação não se refere
apenas ao âmbito da apresentação, mas também no modo como os fatos são
inseridos na trama; as escolhas textuais representam o modo como Aluísio textualiza
a representação do mundo e o modo como expressa a sua identidade e a identidade
do outro; c) essas escolhas textuais são estratégias ideológicas que revelam, não
apenas o posicionamento do autor relativamente à história real, mas também as
estratégias que usa para posicionar, de modo particular, os seus leitores e a
exigência dos críticos. A nota introdutória à Casa de Pensão cede espaço para a voz
de um “narrador confiável”, cheio de boas intenções, que explica de modo
pedagógico os motivos que o levaram à escrita desse romance-seriado. Direcionado
ao leitor de romance-seriado, esse texto foi suprimido na versão em livro.
Como uma das intenções de Azevedo e da escola Realista-Naturalista era
criar tipos que denunciassem a sociedade como um tecido adoecido, na parte final
da nota introdutória, lançada no jornal Folha Nova na véspera da publicação da
primeira seqüência do romance-seriado, Aluísio alerta o público leitor de que: “se
descobrir em alguns dos meus folhetins qualquer cena de sua vida, queira de
antemão perdoar-me semelhante coisa, porque em tal fato não haverá intenção de
ofensa ou maldade”, porque “os males reais podem ser combatidos pela própria
realidade”. Esse paratexto que apresenta a modelização (ou modelo de mundo,
segundo Lotman, 1978) de Casa de Pensão, aponta para a organização do material
narrativo do romance-seriado e caracteriza a voz narrativa.
Os pressupostos apresentados por Aluísio Azevedo enfatizam que: “O papel
de uma narração não é apenas informar sobre acontecimentos, mas mostrá-los de
modo a prender nosso interesse” (CABRAL; MINCHILLO, 1991, p. 11). O empenho
do escritor em caracterizar personagens e espaços conhecidos pelos leitores
contemporâneos à publicação de Casa de Pensão pode dar vida aos seres fictícios
dentro de seu universo narrativo:
Uma caracterização bem-feita é aquela que torna viva a presença das
personagens na imaginação do leitor. [...] A caracterização de uma
personagem pode ser feita pela descrição dos aspectos físicos, psicológicos
176
e sociais, ou por suas ações. De qualquer modo, é necessário selecionar as
características que sejam significativas para a unidade do texto, para a
obtenção do sentido geral da narração.
A definição realizada por Genette
113
sobre os tipos de narrador nos leva a crer
que em Casa de Pensão um narrador heterodiegético, ou seja, aquele que narra
em terceira pessoa e, interagindo com os outros, tomará parte do corpo do romance,
em que o autor sabe dar a devida importância a cada um dos personagens. No
entanto, há um filtro narrativo entre a voz do narrador e do escritor que se torna mais
evidente na variante em livro. O narrador de Casa de Pensão utiliza a nota para
revelar a alma da diegese. Sua voz revela os propósitos, as denúncias e o ponto de
vista assumido. Esses aspectos também podem caracterizar o perfil dos leitores
potenciais e a capacidade que eles têm de interpretar o romance-seriado.
Podem ser encontradas analogias entre a nota Antes de principiar, na qual se
encontra o ponto de vista de Aluísio, e aquela definida por Flaubert: "Depois da
falência de todos os ideais, de todas as utopias, a tendência agora é manter-se
dentro do campo dos fatos, e de nada mais do que de fatos". Como a ficção tem o
poder de transpor para o texto literário, dramas extraídos do cotidiano, Aluísio
antecipa o fio basilar de seu novo romance e pormenores que irão culminar o conflito
central da diegese.
Nesse sentido, a nota que antecede a publicação do romance-seriado Casa
de Pensão, apresentando o posicionamento de Aluísio Azevedo pelo viés do texto
literário, como um modelo de mundo. Criada pelo autor-emissor e direcionada ao
receptor-leitor, contemporâneo à publicação dessa variante, a mensagem é o meio
que o autor encontra para expor os motivos que o impulsionara à retomada de um
tema polêmico, por isso prevê que os propósitos almejados com a escrita do
romance somente serão efetivos se houver aceitação de um determinado número de
convenções. Segundo Aguiar e Silva:
Em relação ao emissor, o código literário constitui um programa, isto é, uma
série de instruções e de operações ordenadas que lhe possibilitam praticar
uma determinada escrita e produzir uma peculiar modalidade de textos, nos
quais e através dos quais organiza de modo específico um modelo do
mundo. Em relação ao receptor, o código representa também um programa
que lhe permite ler, isto é, reconhecer e interpretar o texto literário como
texto literário. (SILVA, 1983, p. 246).
113
Cf. AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de (1983, p. 761-762).
177
Sob o ponto de vista de Michael Riffaterre (1979, p. 7), “o fenômeno literário
não é apenas o texto, mas também o seu leitor e o conjunto das reações possíveis
do leitor ao texto enunciado e enunciação. [] O texto é um código limitativo e
prescritivo”.
No diálogo proposto pelo escritor de Casa de Pensão apresenta-se um painel
temático familiar aos leitores da época, com a união dos códigos jornalístico e
literário, Romantismo e Naturalismo, que resulta em um gênero híbrido em meio ao
movimento criativo do romance. A tentativa de normalização da metalinguagem
literária – pela nota que debate questões tratadas nos microcosmos das folhas
diárias expõe o pressuposto na lógica do código literário organizado para aquele
momento e visando aos propósitos fixados por intermédio da ficção.
Para entender um pouco mais do efeito que esse drama causou na população
carioca daquele período, retomamos a carta escrita no dia 27 de maio de 1883 e
publicada no dia 02 de junho, sob o tulo Casa de Pensão, na qual Araripe Júnior
indaga ao escritor: “se lhe aprazia assanhar essa fera chamada público, atirando-
lhe pedaços de carne crua e ensangüentada, como costumam fazer os domadores,
para mostrar mais realçadas as suas qualidades dominadoras”. Segundo o crítico: “A
resposta a estas e outras injunções foi o aparecimento de Casa de Pensão
(ARARIPE JR apud BOSI, 1978, p. 135).
Essa preocupação do crítico traz à tona o fato de que a notoriedade
conquistada por Aluísio o colocava em evidência tanto perante a crítica quanto
perante os leitores, sobretudo aqueles que acompanhavam seus romances-seriados.
Por isso, o sucesso adquirido na variante para o jornal poderia garantir à publicação
uma dimensão maior, em livro, garantindo ampla circulação e retorno financeiro
significativo. O movimento criativo das versões do romance analisado estabelece
relações com o apontamento de Bakhtin, no qual o semioticista russo enfatiza as
alterações que um discurso pode apresentar, pois: “Na conversa mais desenvolta,
moldamos nossa fala às formas precisas de gêneros, às vezes padronizados e
estereotipados, às vezes mais maleáveis, mais plásticos e mais criativos” (BAKHTIN,
1992, p. 301).
O gênero de Casa de Pensão se caracteriza pelo seu conteúdo temático, a
referência à Questão Capistrano, as estruturas composicionais específicas, em
jornal e em livro e pelos recursos lingüísticos utilizados pelo autor. Apesar de o eixo
178
narrativo ser o mesmo nas duas variantes, o estilo do autor sofre interferência
dessas duas esferas comunicativas, caracterizando-as nas publicações.
Aplicamos as definições de Genette (1995), relacionados às versões de Casa
de Pensão, nos seguintes aspectos da realidade narrativa: “história” refere-se ao
significado atribuído ao conteúdo narrativo; “narrativa” designa o enunciado
narrativo, o discurso oral ou escrito que assume a relação de um acontecimento ou
de uma série de acontecimentos”, também concebido como o discurso ou texto
narrativo que apresenta “a sucessão de acontecimentos, reais ou fictícios” contado
por alguém; “narração” caracteriza-se como “a instância produtiva da enunciação”
que imprime uma voz (a do narrador), que se distancia dos acontecimentos para
narrá-los, estabelecendo uma relação temporal entre eles. Se, por um lado, Todorov
propõe diferenciar a “narrativa como discurso” e a “narrativa como história”, por outro
lado, Genette emprega o termo diegese com esse duplo sentido (GENETTE, 1995,
p. 23-25).
Como a metodologia proposta por van Dijk (1990) abrange a análise de
diferentes níveis do discurso, em diferentes sistemas semióticos, utilizamos esse
procedimento para o estudo de documentos relacionados ao jornalismo e à literatura
e demais elementos relacionados ao contexto produtivo de Casa de Pensão.
Sobre o discurso jornalístico, Vivaldi (1979, p. 353) observa que a reportagem
[que compõe o pano de fundo do romance focado] apresenta a informação com
maior liberdade de exposição na ordem do trabalho; define-a como um texto no qual
se tem um relato informativo e também um relato narrativo mais ou menos noticioso,
tendo, portanto, aspectos duplamente pertencentes à técnica informativa e à
narrativa, como crônica do cotidiano.
Sendo assim, o que ocorre com a referência noticiosa quando o discurso se
torna texto? No discurso oral, nas transcrições de falas da população que
permearam a Questão Capistrano, isso se resolve no assunto ostensivo do discurso,
pois aquela era uma realidade comum aos interlocutores do romance-seriado. Como
os registros extraídos de jornais da época conferem a referência última desse
discurso, há uma ruptura com a linguagem cotidiana e as técnicas jornalísticas
sistematizam as informações.
Em Casa de Pensão, ficção publicada sete anos depois da morte de
Capistrano, a realidade se metamorfisa em favor de que a literatura opera sobre um
fato. No entanto,
“o ter-sido é problemático, na medida exata em que não é
179
observável, quer se trate do ter-sido acontecimento, quer se trate do ter-sido do
testemunho. A passadidade de uma observação no passado não é ela própria
observável, mas memorável” (RICOEUR, 1995, 274).
Em continuidade, Ricoeur acrescenta que as construções da história são
representações que pretendem reconstruir, objetivamente, o passado que ficou para
trás, representando-o por intermédio da ficção. Nessa perspectiva, Casa de Pensão,
pode ser caracterizada como uma narrativa historiográfica, na medida em que as
categorias de representância ou lugar-tenência permitem que a ficção procure
reconstruir a história, atribuindo-lhe significância. Ricoeur (1995) ressalta que a
ficção representa a vida cotidiana. Nesse contexto, às práticas cotidianas, a ficção
tem a função de revelar características implícitas, expostas explicitamente pelo viés
da narrativa. Se, por um lado, é a narrativa que nos comunica os acontecimentos
que descreve, por outro lado, também informa o meio que a traz à tona, ou seja, o
conhecimento direto ou indireto, por intermédio do discurso da narrativa. Quando
Aluísio se apresenta e expõe seu plano composicional, também imprime o ponto de
vista assumido ao recontar um fato retirado do cotidiano, por isso deixa explícitas
essas marcas autorais:
Amanhã o leitor encontrará neste canto mal aproveitado da ‘Folha Nova’ o
primeiro folhetim do meu novo trabalho Casa de Pensão. Além disso: Não
o qualifico de romance, porque tal não é o caráter que lhe tenciono imprimir.
Não tenho igualmente a pretensão de fazer dele um livro acientífico (sic),
nem o pouco realizar uma obra de arte. Apenas me proponho estudar
uma das faces mais características e mais antipáticas de nossa sociedade
a vida em casa de pensão
114
.
O posicionamento do autor parece essencial para o estabelecimento de um
diálogo com os leitores e uma oportunidade de expor as motivações que o levaram à
escrita desse romance. Por trás dessa nota, a preocupação de Aluísio em
expressar que a leitura de Casa de Pensão é uma atividade necessária para que a
produção artística cumpra sua missão, pela representação de um drama histórico.
No entanto, o excerto acima nos alerta para o que Genette (1995) caracteriza como
dificuldade em se respeitar a autonomia do processo de produção do discurso
narrativo, ou em reconhecer a sua especificidade, correndo o risco de se restringir a
instância narrativa àquela exposta pelo autor, ou seja, ao que Aluísio escreve na
114
Nota Antes de principiar. Folha Nova – RJ, 05 de março, 1883.
180
nota Antes de principiar. Genette destaca essa possível identificação entre autor e
narrador em narrativas de cunho histórico e em “biografias reais”, o que nos motiva a
tentar identificar essa aproximação nos textos que compõem o corpus deste
trabalho, como uma forma de entender a relação do escritor com seu público.
4.3 Gênero ou a pluralidade discursiva de Casa de Pensão
Quando Mikhail Bakhtin (1992) enfatiza o caráter social dos fatos de
linguagem, concebe o enunciado como o produto da interação social, que tanto pode
consistir-se em uma situação material concreta, como pelo contexto mais amplo que
constitui o conjunto das condições de vida de uma dada comunidade lingüística. Se
aplicarmos o conceito de Bakhtin ao contexto criativo de Casa de Pensão, podemos
entender que o discurso ficcional revela modos de interação social, que pode
encontrar na Questão Capistrano um de seus registros materiais mais importantes.
Quando aplicamos esses conceitos bakhtinianos para caracterizar o
enunciado de Casa de Pensão, como o produto da interação social, podemos dizer
que os elementos derivados dos gêneros de discursos primários, também
classificados como livres, são aquelas informações registradas pelos jornais, na
medida em que transmitem o cotidiano dos espectadores nas entrelinhas da
Questão Capistrano. O impacto que esse acontecimento provocou em suas vidas
pode ser medido pela informação registrada por jornais de grande circulação, de
que, aproximadamente, duas mil pessoas acompanharam o enterro de Capistrano.
Nessa fração da população carioca, possivelmente existiam pessoas que mantinham
uma relação imediata com as situações nas quais o discurso jornalístico era
produzido e, portanto, o discurso noticioso imprime essas vozes, ao mesmo tempo
em que registra o ponto de vista do periódico. No plano de Casa de Pensão, os
gêneros de discursos secundários caracterizam-se pela linguagem verbal que
recupera e registra os discursos primários e, a partir disso, a escrita perde sua
relação direta com a Questão Capistrano e adquire a característica de linguagem
referencial, que transcende os limites do tempo e do espaço, pela literatura.
Para compreendermos o nível referencial contido no romance estudado,
precisamos analisar as marcas de tempo espaço, ou seja, o cronótopo narrativo de
181
Casa de Pensão. Essas características composicionais cronológicas podem ser
encontradas quando a narrativa registra os espaços abertos que compreendem ruas
do Rio de Janeiro, largos e o Jardim Botânico, o cais Pharoux; espaços fechados de
estabelecimentos de ensino no Rio de Janeiro e no Maranhão, restaurantes, hotéis,
lojas; o tempo que se remete ao calendário escolar. O diálogo entre ficção e o
acontecimento tem em comum a apresentação dos espaços e o tempo que marca a
rotina de Capistrano, estudante da Escola Politécnica e modelo de Amâncio.
Se observarmos a diversidade das atividades exercidas pelos diversos grupos
que acompanharam a Questão Capistrano e a publicação de Casa de Pensão,
poderemos citar a língua e a linguagem registradas nas produções literárias, no
formato de romance-seriado (1883) e em livro (1884); as notícias transmitidas pelo
Jornal do Comércio (1876) e pela Gazeta de Notícias (1876); as peças jurídicas
descritas pelos periódicos; a língua usada no cotidiano carioca da segunda metade
do século, dentre outros.
No Brasil, os dois primeiros recenseamentos foram realizados em 1872 e
1890 (IBGE, 2007). Em decorrência da proximidade temporal da Questão Capistrano
(1876) com o censo realizado em 1872, optamos pelas informações nele registradas,
para caracterizar quais eram as principais atividades da população carioca desse
período, no intuito de entender o perfil dos leitores da época. Em 1872, a população
carioca era de 274.972 habitantes (em 1890, esse número seria praticamente
duplicado, chegando a 522.651). Nessa época, grande parte dos trabalhadores
masculinos pertencia à classe operária, enquanto a feminina se destacava no ramo
da costura. Quando analisamos o número de leitores existentes no Brasil de 1872,
deparamo-nos com a falta de informação sobre a população alfabetizada, pois
apenas o registro de que 84,4% da população brasileira eram analfabetos, de um
total de, aproximadamente, 10 milhões de habitantes. Destacamos esse registro
devido ao fato de que em algumas cenas de Casa de Pensão a personagem Amélia
aparece cosendo, enquanto seu irmão Coqueiro trabalhou na estrada de ferro Pedro
II, depois que os pais morreram.
O fato de a crônica ser um ponto de encontro entre o texto literário e o
jornalístico confere à mistura de gêneros a possibilidade de atingir outro grupo de
leitores em uma época que o analfabetismo era expressivo. Nesse aspecto, Susana
enfatiza que “Martí parecia consciente de que o jornalismo permitia aos escritores o
que não lhe deparava o mercado dos livros: a democratização da escritura. É dizer,
182
acesso a maior quantidade de público através de um instrumento no qual podiam
trabalhar não só as elites, senão as classes médias” (ROTKER, 1991, p. 120).
Amalio Pinheiro, Doutor em Comunicação e Semiótica, destaca que:
A mobilidade em mosaico do jornalismo impresso aproveitou-se, neste
continente, de uma sorte de montagem sintática das culturas em ritmo
rápido”, aptas para incorporar os agregados metonímicos provenientes dos
mais diversos códigos e linguagens. Trata-se de processos de produção e
recepção desdobrados, em interações múltiplas, pelo caráter migrante,
mestiço e solar da sociedade. (AMALIO PINHEIRO, 2004, p. 13).
Nesse aspecto, as relações de hibridismo, como base de produção material
da América Latina podem ser caracterizadas como modos de apresentar o mundo
em transformação por intermédio de textos, cujos gêneros se ligam à literatura, do
mesmo modo em que encontram em notícias transmitidas pelos jornais um
panorama dos principais temas relacionados à organização da sociedade da
América Latina, assim da Hispânica nas últimas décadas do século XIX. Os estudos
vinculados a esse período revelam que os principais escritores e jornalistas tinham a
preocupação de registrar essa tendência. Rotker, por exemplo, encontra nas
crônicas de José Martin provas de que muitos dos escritores da América Latina
sempre se aproveitaram desse meio híbrido.
Martín-Barbero (2001, p. 229) destaca que o século XIX foi cenário de um
novo nacionalismo, no qual a cultura nacional sintetizaria a particularidade cultural e
a generalidade política em expressões de diferentes culturas étnicas e regionais. O
autor acredita que analisar o espaço cultural significa focalizar o lugar onde se
articula o sentido que a sociedade atribui aos seus processos políticos e
econômicos.
No Brasil, Aluísio Azevedo acompanha esse movimento por retirar de notícias
do cotidiano a matéria-prima para a composição de seus romances-seriados e, até
mesmo, seus romances elaborados diretamente em formato de livro. Desse modo,
Aluísio se encaixa na tese de que os grandes escritores nasceram da escritura para
a crônica. A partir disso podemos confirmar que Aluísio acompanhou essa regra, ou
seja, o hibridismo era uma condição necessária.
A reflexão sobre a necessidade de acompanhar o ritmo da modernidade, que
era percebida por Aluísio Azevedo, instaura: “O questionamento que as novas
tecnologias produzem acerca das identidades culturais, opera assim, sobre
183
diferentes registros, que precisam ser distinguidos” (BARBERO, 2001, p. 266).
Nesses dois movimentos conflitantes:
Um é o desafio que se impõe às tentativas de fuga para o passado, à velha
tentação idealista de postular uma identidade cujo sentido se acharia na
origem ou, de todo modo, lá atrás por debaixo, fora do processo e da
dinâmica da história e da atualidade. Outro é o sentido assumido pelas
novas tecnologias como ponto culminante da “operação antropológica”, isto
é, a reativação da lógica evolucionista que reduz, agora radicalmente e sem
fissuras, o outro ao atrasado, que converte o que resta de identidade nas
culturas diversas em mera identidade reflexa não tem valor senão para
valorizar pelo contraste, a identidade da cultura hegemônica e negativa: o
que nos constitui é o que nos falta, o que nos constitui é a carência. E o de
que carecemos, o que mais nos faltaria hoje seria isto: a tecnologia
produzida pelos países centrais, esta que nos vai permitir afinal dar o salto
definitivo para a modernidade (MARTIN-BARBERO, 2001, p. 266).
Na época de Aluísio, a indústria cultural e o mercado editorial pareciam andar
no mesmo ritmo. Por isso, cada esfera de atividade artística de Casa de Pensão
possui particularidades relacionadas à linguagem do meio de publicação sem, no
entanto, deixar de destacar as semelhanças, – que se justificam pela estreita relação
entre essas duas atividades no séc. XIX. Por esse aspecto, as duas variantes de
Casa de Pensão estão em um liame propício para o desenvolvimento de um gênero
híbrido, ou seja, a partir de dois discursos, vozes emergem das esferas externa e
interna do texto, ao mesmo tempo em que revela marcas do processo que transita
do Romantismo para o Naturalismo, em uma comunhão que Aluísio Azevedo
encontrava para satisfazer leitores e críticos, ao mesmo tempo em que procurava se
adequar às evoluções tecnológicas.
No contexto específico das trocas simbólicas desenvolvidas a partir de uma
dialética reiterativa entre o romance Casa de Pensão e a Questão Capistrano, os
tipos de sociedade representados nas variantes aparecem sujeitos da experiência
do espaço, ou seja, sua culminância ocorre de acordo com um corpo social,
historicamente determinado, que a realiza. Desde o momento em que os leitores se
propõem a desvendar o que de imaginário em Casa de Pensão, a sociologia da
arte se autentica pelo caráter de representação de conhecimento ligado ao contexto
carioca do século XIX.
A estrutura artística de Casa de Pensão pode ser vista pela via dupla, tanto
pela linguagem intertextual, que influencia as escolhas lingüísticas e a construção de
sentido do texto, da mesma forma que pode influenciar os leitores e uma sociedade
184
pelo ponto de vista expresso nas entrelinhas do discurso literário. Quando Aluísio
opta por inserir, gradativamente, o Naturalismo, respeitando o bito que o público
ainda cultivava pelos romances românticos, expressa a intenção de familiarizar o
leitor com o novo gênero em plena atividade na Europa graças à produção artística
de Émile Zola, que influencia a literatura brasileira, principalmente as produções de
Aluísio Azevedo. A preocupação com a elaboração de uma obra literária representa
um sistema dialógico integrado pelo leitor e escritor. Sobre o sistema de
comunicação, o estruturalista Lootman destaca que:
A escolha pelo escritor de um gênero, de um estilo ou de uma tendência
artística determinados é também a escolha da linguagem na qual ele pensa
falar ao leitor [...] A transcodificação de uma linguagem noutra,
extremamente produtiva na maioria dos casos e que surge em ligação com
os problemas interdisciplinares, descobre num único objeto, tal como
parecia antes, os objetos de duas ciências ou leva à elaboração de um novo
domínio do conhecimento e de uma nova metalinguagem que lhe é própria
(LOTMAN, 1978, p. 50-51).
A leitura intratextual do romance Casa de Pensão pode identificar códigos
ligados ao gênero da publicação. No entanto, apenas os leitores contemporâneos à
publicação do romance-seriado, ou aqueles que têm acesso ao conjunto de
quarenta seqüências e das notícias da Questão Capistrano poderão identificar
facilmente os códigos extratextuais, que ajudam o leitor a entender a situação
comunicativa do discurso ficcional. Quando Aluísio elaborou a nota Antes de
principiar, utilizou uma linguagem individualizada para dialogar com os leitores da
publicação seriada, enquanto na versão em livro, que atinge uma dimensão social
mais ampla, a nota foi suprimida.
Como ocorre na interpretação, os diferentes processos de produção o
estratégicos e variáveis. O fato de Aluísio utilizar informações de diferentes níveis e
fontes pode estar vinculado ao processo de formulação efetiva de significados e
modelos que o autor deseja transmitir para seus leitores (GARGUREVICH, 1982,
p.155).
Duas publicações envolvem diferentes estâncias de leitura de mundo, porque
nem mesmo os documentos que envolvem o processo de produção das duas
versões de Casa de Pensão e os jornais da época desvendam todos os códigos
extratextuais do romance ou sua dialogia externa. No entanto, por intermédio do
texto artístico, a leitura de um microcosmo da sociedade carioca pode ser feita em
185
diferentes épocas, a partir da compreensão intratextual, limitada ao que o formato
em livro conseguiu absorver e cristalizar na linguagem literária.
4.4 Jornalismo, literatura e o híbrido
Gargurevich apresenta na obra Géneros periodísticos uma visão ampla sobre
os gêneros jornalísticos, a partir dos cinco gêneros principais: nota informativa;
entrevistas; crônicas; reportagens; gêneros gráficos; exemplificativos. Na seqüência,
também o tratados outros gêneros, tais como: coluna, artigo, testemunho,
resenha, crítica, polêmica, campanha, folhetim. Considerando a diversidade de
gêneros jornalísticos e a proximidade que eles têm com a literatura, possíveis
combinações podem caracterizar formas jornalístico-literárias. Se, por um lado, o
estilo jornalístico se caracteriza, principalmente, pelo seu objetivo de transmitir
informação e não necessariamente o prazer estético, que é o caso da literatura, por
outro lado, o “Novo jornalismo” utiliza a informação com refinadas técnicas literárias,
capazes de transformar uma “notícia” em obra de arte (GARGUREVICH, 1982, p.
12).
Ao aplicarmos as definições de Gargurevich (1982) ao contexto que envolveu
o processo de produção de Casa de Pensão, a Questão Capistrano (1876) situa-se
na esfera jornalística, como registro de um acontecimento que, por ter atingido
grande repercussão, foi noticiado com proeminência por dois dos mais
representativos periódicos cariocas da década de 70 do século XIX. Embora não
saibamos como os jornalistas interpretaram a Questão Capistrano e os contextos
que permearam as notícias, ou, ainda, como essas interpretações garantiram o
sucesso do discurso informativo, a microanálise, à qual se dedica esta etapa da
pesquisa, pode levantar hipóteses sobre o processo de produção textual dessas
notícias, a partir do momento em que desvenda vozes que reaparecem em Casa de
Pensão. No entanto, não temos a pretensão de reconstruir uma imagem da
realidade, que poderia resultar em um panorama concreto ou deformado, por isso,
os acontecimentos que envolveram a sociedade carioca em fins do século XIX,
registrados em narrativas jornalísticas, representam pontos de vistas sobre um fato,
186
por meio do qual se torna possível construir, de maneira representativa, o universo
social daquele período e em diálogo com a diegese que lhe serviu de ensejo.
Como o livro reflete dimensões sociais e ideológicas da construção da notícia,
o texto informativo configura-se como pano de fundo da ficção, enquanto o romance-
seriado referencia diretamente o drama na nota que introduz as seqüências
publicadas no jornal Folha Nova - RJ. Para entendermos esse processo, os
procedimentos devem considerar os elos comuns entre as notícias e o desfecho do
romance, além de outros aspectos pertinentes para o estudo do processo de criação
utilizado por Aluísio Azevedo.
Ao aproximar literatura e jornalismo, Aluísio apresenta Casa de Pensão como
um “momento do encontro dos meios, é um momento de liberdade e libertação do
entorpecimento e do transe que eles impõem aos nossos sentidos” (MCLUHAN,
1964, p. 75). Desse modo, procuramos revelar que o hibridismo discursivo configura-
se como uma linguagem capaz de fundir gêneros estanques, o que nos possibilita
lançar um novo olhar para o contexto do processo de criação de Casa de Pensão.
4.5 Duas narrativas jornalísticas de um crime
Esta pesquisa elege dois jornais de grande circulação para a análise das
notícias sobre a Questão Capistrano, sendo: o Jornal do Comércio, um dos mais
tradicionais periódicos cariocas e a Gazeta de Notícias, cuja fundação ocorreu um
ano antes da ocorrência do assassinato de Capistrano. Apontamentos realizados por
Sodré (1966, p. 127) revelam que, desde 1827, o Jornal do Comércio era o único
jornal respeitável por sua consolidada reputação de conservador, destacando-se,
principalmente, pela ênfase dada aos assuntos políticos e à abrangência nacional e
internacional das notícias. Sodré (1966, p. 257) também destaca que, em 1875, foi
fundada a Gazeta de Notícias, causando impacto, naquele momento, pelo estilo
“barato, popular, liberal, vendido a quarenta réis o exemplar”. Considerando as
especificidades ligadas ao perfil de cada jornal, pressupomos que os leitores dos
dois perdicos poderiam compartilhar do posicionamento de cada um dos jornais.
Por essas razões, apresentaremos uma cronologia dos acontecimentos relativos ao
assassinato de Capistrano da Cunha, publicada pelo Jornal do Comércio e pela
187
Gazeta de Notícias, ambos jornais cariocas, no mês de novembro de 1876. Além
disso, o entendimento do modo como o conjunto de notícias foi transmitido permite-
nos construir grandes narrativas de um acontecimento, o que estabelece
correspondência com a crônica e com o método utilizado por Aluísio, como leitor e
escritor de narrativas do cotidiano; ao mesmo tempo, Casa de Pensão sintetiza
aspectos da cultura brasileira do seu período:
Escrevendo com os olhos sobre a realidade, atento ao acontecimento
imediato, Aluísio Azevedo não despreza como nenhum outro romancista
de sua época a matéria ficcional que se oferece. É sobre essa matéria
ficcional, resultante do complexo cultural brasileiro, que se debruça para
erguer a melhor parte de sua obra novelística
115
.
Do mesmo modo que a nota que introduz o romance-seriado Casa de Pensão
se dirige diretamente ao leitor, van Dijk (1990, p. 122) destaca que o discurso
jornalístico, assim como qualquer outro texto informativo, possui uma relação com o
contexto comunicativo. Desse modo, os leitores, enquanto participantes no processo
de comunicação, fazem parte, mesmo que indiretamente, do discurso jornalístico.
Assim como o Jornal do Comércio, a Gazeta de Notícias também não se dirige
diretamente aos leitores com a menção a um “vós”, mas ambos contam com um
“ele”, Capistrano, muitas vezes citado sem o sobrenome da Cunha, o que sugere
certa popularidade do estudante, gerada pela repercussão do episódio. Apesar
disso, a Gazeta de Notícias, no dia 20 de novembro, refere-se a eles”, “aos nossos
leitores”, para definir o direcionamento dado pelo jornal, ao mesmo tempo em que se
configura como um dlogo com os receptores.
No contexto comunicativo, é em Capistrano que estão centralizadas as
informações noticiosas, mesmo quando são descritas as manifestações da
população que acompanhava o desfecho da trama que o vitimou. Também estão
ligadas ao “ele” as vozes dos “eles”, que se referem aos operadores do discurso,
envolvidos no processo aberto por Alexandre Pereira, com a finalidade de restituir a
dignidade de sua irmã, Júlia.
Como as notícias transmitidas pelos dois jornais que compõem o corpus
deste estudo não são assinadas, torna-se difícil identificar a autoria das notícias que,
segundo van Dijk, poderiam ser caracterizadas como “identificações secundárias de
115
Adonias Filho (introdução ao Touro Negro, 1961, p. 3).
188
uma voz institucional” (VAN DIJK, 1990, p. 113), apesar de o jornalista representar
um ser social e o processo de produção de notícias não ser inseparável do contexto
em que são produzidas.
Sobre a produção das notícias, van Dijk (1990, p. 256) destaca que “a
reconstrução e a reprodução dos acontecimentos informativos no processo da
escritura jornalística incluem tanto formas altamente complexas do processamento
do texto como estratégias e representações cognitivas subjacentes a estes
processos”. Por outro lado, a compreensão da notícia está relacionada com os
efeitos que o contato com o texto provocara sobre os leitores. Nessa perspectiva:
As estruturas das informações jornalísticas condicionam em muitos níveis
aos leitores para que desenvolvam esses marcos interpretativos e não os
alternativos, que utilizam outros objetivos, normas, valores e ideologias para
proporcionar contrainterpretações dos acontecimentos informativos (VAN
DIJK, 1990, p. 259).
A partir dos pressupostos teóricos de van Dijk, realizamos uma leitura de
como foram elaboradas as notícias sobre o julgamento e o assassinato de
Capistrano da Cunha, a partir de exemplos representativos, com a finalidade de
verificar de que maneira o discurso da notícia foi construído. Ressaltamos que, nesta
pesquisa, a interpretação dos títulos e demais particularidades dos discursos
jornalísticos transmitidos está diretamente relacionada aos conceitos de Genette
(1995), os quais se referem à focalização e ao ponto de vista. De modo semelhante
ao que ocorre com o romance Casa de Pensão, os jornais analisados, enquanto
organizações institucionais de ampla circulação, possibilitam a abrangência dos
desdobramentos de cada notícia, como forma de apresentar recortes de mundo, sob
a perspectiva textual.
4.5.1 Jornal do Comércio
No dia 18 de novembro de 1876, o Jornal do Comércio apresenta uma notícia
intitulada “Júri”. Como o título sugere apenas que a informação ali registrada está
relacionada a um julgamento, os leitores precisariam encontrar no texto detalhes
sobre a temática anunciada.
189
A notícia relacionada ao tema “Júri” apresenta um relato descritivo e rico em
detalhes do julgamento de Capistrano. Nela, o apresentados todos os integrantes
do conselho. De acordo com os relatos apresentados, depois da acusação alegar
que Júlia Pereira sofreu agressões físicas e violência sexual, Capistrano defende-se
dizendo que:
não praticara tais violências; que a contusão nos lábios que a ofendida
apresentou fora devida a um soco que o irmão dela quis dar nele acusado,
e que ela metendo-se de permeio recebeu em cheio. Disse que mais atribui
o processo ao ódio que lhe vota a mãe da ofendida.
Como resultado das revelações feitas por Capistrano e a defesa apresentada
pelos advogados o Sr. Dr. Busch Varella e os outros patronos do u, os Srs. Dr.
Duque-Estrada Teixeira e conselheiro Saldanha Marinho: “O conselho respondeu
negativamente aos quesitos, e à idéia das respostas foi unanimemente absolvido”.
Quando saíram do tribunal, Capistrano e os seus advogados foram “saudados e
acompanhados com vivas por grande parte do povo”. Depois do julgamento, o juiz
apelou da sentença.
Pressupomos que representantes do Jornal do Comércio entrevistaram
pessoas que acompanharam essa audiência ou acompanharam esse momento,
pois, de acordo com relatos presentes no mesmo jornal, ao meio-dia, fora necessário
pausar a sessão, em conseqüência dos “sussurros produzidos pela grande afluência
do povo que queria lugar no recinto do tribunal já de todo cheio”.
No dia seguinte, ou seja, no dia 19 de novembro de 1876, o Jornal do
Comércio registrava na 8
a
coluna, o título “Processo Capistrano”, cujo tema
representa um resumo do texto da notícia, pois, de um dia para o outro, Capistrano
deixou de ser anônimo. Busch Varella, um dos advogados do acusado, relata que,
depois de retornar do tribunal do júri: “fui agradavelmente surpreendido pela
esplendida manifestação com que imerecidamente me vitoriou a briosa mocidade
acadêmica, que à frente de mais de duas mil pessoas se dirigiu à minha
residência” (destaque nosso). Como resposta à gratidão manifestada pelos
estudantes, o advogado registra que: “Debalde tentaria traduzir, em palavras a
gratidão profunda de que me sinto penhorado, a linguagem convencional é pálida e
frouxa para exprimir sentimento que irrompem espontâneos do íntimo da alma,
190
limito-me a registrar no coração”. Porém, essa publicação é um modo de apresentar
um diálogo do advogado com a população que lhe demonstrou gratidão.
Se observarmos as características estruturais da notícia, a organização
temática obedece a regras que consistem em chamar para o tulo um resumo da
notícia e para o primeiro parágrafo, a síntese do texto, na medida em que apresenta
as informações mais importantes, sob o ponto de vista do autor-jornalista (como voz
do jornal); em seguida são relacionados os demais elementos, organizados
cronologicamente. Para entendermos como foi apresentada a segunda notícia,
citamos o relato datado de 20 de novembro de 1876, intitulado “assassinato”,
também importante porque os detalhes nele registrados contêm informações
homólogas às do romance Casa de Pensão, ao mesmo tempo em que retoma a
primeira notícia dada sobre o inquérito de Capistrano da Cunha.
Este parágrafo resume a notícia a ser apresentada, ao mesmo tempo em que
situa os leitores que estão tendo o primeiro contato com a Questão Capistrano:
“Teve ontem lúgubre desfecho um drama começado no recesso da vida íntima e que
ultimamente foi trazido a público perante o tribunal do júri”.
As variações de ponto de vista, que de informativo passa a inserir marcas do
gênero narrativo, comuns à linguagem literária, podem sugerir a mudança de
focalização. Jogando com o duplo sentido da palavra modo, Genette (1995)
apresenta a noção de modo dominante para caracterizar as alterações detectadas
de maneira significativa no decorrer do discurso, que passa a apresentar mais
informações que nos primeiros dias, compreendendo o conjunto de notícias.
Apresentando características composicionais de um texto ficcional, a narrativa
descrita no segundo dia do desenrolar do drama apresenta espaço, tempo,
personagens, clímax e desfecho. Nos dois últimos parágrafos, podemos detectar o
ponto de vista moralizador impresso pelo Jornal do Comércio, como desfecho de um
episódio, que alerta para os perigos existentes por trás de uma vida desregrada e
inconseqüente:
Não poderemos terminar tão dolorosa narração sem lamentar esses dois
malfadados moços, que, colegas, vivendo na mesma academia, em vez de
amigos, se tornaram irreconciliáveis inimigos. As reflexões tristes que acaso
desperta seriam talvez mal exibidas nesta ocasião.
Sirva, ao menos, este tremendo exemplo pra conter alguma vez os intentos
da mocidade que, generosa, mas exaltada, não mede, nem o pode fazer
sempre, porque tudo nessa quadra da vida é espontâneo, o alcance de
seus atos (JC, 20 nov. 1876, destaque nosso).
191
Em 21 novembro, o Jornal do Comércio lança o título “ASSASSINATO
CAPISTRANO” (em caixa alta), seguido de 100 linhas organizadas
cronologicamente. Essa notícia expõe os efeitos que esse caso provocou naqueles
que acompanharam o desenrolar do drama, descritos a partir da comoção causada
pelo velório de Capistrano, sem deixar de informar o andamento da investigação
sobre o crime.
Nesse mesmo dia, o Jornal do Comércio relata que: “Ontem, logo depois do
meio dia, algumas ruas das mais centrais, e com especialidade a da Quitanda [onde
Capistrano foi assassinado], (...
116
) de povo”. Se no início a multidão, possivelmente
formada por curiosos, movia-se lentamente, “foi depois formado, pouco a pouco,
compactos grupos”. Na seqüência, acrescentam-se estas informações, que se
confundem com um texto literário, pela linguagem empregada: “Esperavam todos o
anunciado sabimento (sic), e, como era natural, e comentava-se à meia voz a tão
lamentável ocorrência da véspera, triste desfecho de um drama íntimo”. A linguagem
alegórica e antitética descreve o impacto que essa morte causou sobre o destino de
dois jovens: “para quem o futuro tanto deveria sorrir, arremessou um no túmulo e o
outro no cárcere”.
Com o passar das horas, e na medida em que se espalhava a notícia desse
homicídio, a população se aglomerava em torno do falecido, então: “era quase
impossível o trânsito pela rua da Quitanda”.
Os mesmos advogados que defenderam Capistrano no tribunal, também
ajudaram a carregar seu caixão: “Carregaram a princípio o caixão os Srs.
conselheiro Saldanha Marinho, Drs. Duque-Estrada Teixeira, Busch Varela, Pinto
Júnior e os Srs. Matos Cruz e Nunes de Sá”; e, depois, os estudantes e amigos do
finado, “que assim foram a pé e de chapéu na mão até o largo de Valdetaro”.
Considerando a notícia divulgada no dia 21 de novembro, não podemos
afirmar se “contagia-se o coração de quantos viram o fúnebre cortejo, e não poucos
olhos se umedeceram de lágrimas”, ou se está contagiado o coração daquele que
descreveu esse momento emocionante. Nossa hipótese fundamenta-se neste
excerto, que estabelece continuidade com o anterior:
Era na verdade uma cena bem comovente aquele féretro, rodeado de
mancebos, que, trajados de preto e com a tristeza estampada no rosto iam
levar à última morada o companheiro de todos os dias, tanto nas árduas
lidas do estudo, como nos descuidosos prazeres da mocidade.
116
Ilegível.
192
Essa linguagem antitética une dois extremos pelo pesar: de um lado, estava a
lembrança dos dias felizes que a juventude, o companheirismo e a riqueza haviam
proporcionado a Capistrano e, do outro, a posição trajada de preto acompanhava os
últimos momentos fúnebres, que logo os separariam para sempre.
Quando o cortejo atingiu o “largo do Valdetaro foi o caixão posto em um carro,
que seguiu a passo até o cemitério de S. João Batista, aonde chegou até as “5 1,4
horas”
117
, sempre acompanhados pelo mesmo crescido número de estudantes e
amigos do finado”.
À medida que chegavam à porta do cemitério “o conselheiro Saldanha
Marinho e uma comissão de estudantes pegaram de novo nas argolas do caixão e
carregaram-no até a sepultura, a cuja beira os Drs. Duque-Estrada Teixeira e
Ferreira de Menezes pronunciaram algumas palavras repassadas de saudade”. A
comoção envolvia todos os que participaram do velório e, possivelmente, também
motivou o autor deste relato a utilizar uma linguagem revestida de metáforas, para
descrever aqueles que estavam: “Pagando assim o último tributo de amizade ao
desditoso colega, que a mão da fatalidade acabava de lazer tombar o túmulo tão
inesperadamente antecipando-se à da terrível enfermidade que o tinha de roubar
talvez em bem pouco tempo”, como se a fatalidade estivesse, de alguma forma,
ligada à vida de Capistrano.
A partir desse ponto, um gancho que estabelece conexão com as notícias
apresentadas no dia anterior, como se fosse um segundo tema dentro do primeiro,
que noticiou o velório de Capistrano: “Em aditamento às notícias que demos ontem,
temos agora o depoimento de mais duas testemunhas e o resultado do exame feito
no cadáver pelos médicos da polícia”. Depois o jornal (JC, 21 nov. 1876) transcreve
o depoimento de Manuel José Pinto, caixeiro da casa de molhados n. 128, da rua da
Quitanda, em que Capistrano tentou refugiar-se quando foi ferido pelo primeiro tiro, e
quem declarou ter visto Alexandre Pereira com um revólver: “Capistrano deu então
um grito, pedindo socorro, e, correndo, entrou no mencionado armazém, onde o
acusado deu-lhe mais dois tiros”. Posteriormente, são apresentados os outros
depoentes e o resultado da autópsia que, além de esclarecer que “a causa imediata
da morte fora um ferimento penetrante do coração, pulmão esquerdo e hemorragia
consecutiva, sendo encontrada uma bala cônica de revolver na cavidade do
117
Possivelmente seja 5h15.
193
pericárdio”, também foi constatado que o “pulmão direito de Capistrano achava-se
atrofiado e com tubérculos milhares”.
Para entendermos a proximidade dos jornalistas com a tragédia noticiada,
destacamos que o Jornal do Comércio, publicado no dia 22 de novembro de 1876,
registra que dentre as pessoas que assistiram à necropsia de Capistrano estavam:
[...] os Drs. Carlos Frederico, S. G.
118
”, o fundador e redator da Gazeta de Notícias
“Ferreira de Araújo e alguns estudantes de medicina”.
Depois do triste desfecho, o Jornal do Comércio
traz estas informações
adicionais:
Os alunos da Escola Politécnica resolveram tomar luto por sete dias pelo
infeliz e desastroso fim do seu colega. O Sr. Visconde do Rio Branco, diretor
da mesma escola, acompanhando-os no pesar, mandou que os trabalhos
escolares fossem suspensos durante dois dias (JC, 22 nov. 1876).
4.5.2 Gazeta de Notícias
Em 20 de novembro de 1876, a Gazeta de Notícias anuncia “O
ACONTECIMENTO DO DIA”, em 123 dramáticas linhas.
Quando o primeiro parágrafo apresenta um resumo da Questão Capistrano, a
gazeta deixa transparecer que, desde o primeiro momento, as informações
direcionavam-se para a construção de uma narrativa do drama, empregando, para
isso, linguagem poética, repleta de alegorias e metáforas, e que, possivelmente,
poderia ser confundida com um trecho retirado de um romance, seguindo a
tendência fixada pelo Jornal do Comércio. Nesse sentido, aquele periódico destaca
que: “A população da nossa cidade foi ontem sobressaltada por um triste
acontecimento, terrível desenlace de um drama, que pouco todos presenciamos e
que além de duas famílias, veio encher de luto a mocidade acadêmica, roubando-lhe
um de seus membros” (GN, 20 nov. 1876).
O parágrafo seguinte também enfatiza a idéia de totalidade, para caracterizar
a abrangência que esse drama teve em meio à população carioca, no ano de 1876:
“Está ainda na memória de todos o processo Capistrano, causa primeira do terrível
caso que vamos narrar aos nossos leitores”. Como muitos leitores acompanharam o
drama e o ponto de vista do jornal não conseguiria abranger todas as
118
Somente foi possível ler as iniciais do nome.
194
particularidades, o autor desse texto justifica a eventual omissão de algum detalhe
importante, pois o texto foi escrito “conforme as informações que nos foi possível
obter”.
Nos parágrafos seguintes, são apresentadas informações muito parecidas
daquelas noticiadas pelo Jornal do Comércio do mesmo dia. Vejamos a marca
temporal no exemplo a seguir.
Jornal do Comércio:
Às dez horas da manhã, na rua da Quitanda, o estudante da Escola
Politécnica João Capistrano da Cunha, que ts dias o ri absolveu da
acusação de ter violentado D. Júlia foi assassinado com dois tiros de
revolver por Alexandre Pereira, irmão de D. Júlia (JC, 20 nov. 1876).
Gazeta de Notícias:
Ontem, cerca de 10 horas da manhã, encontraram-se na rua da Quitanda
Antônio Alexandre Pereira e João Capistrano da Cunha. O que se passou
entre eles, ou se mesmo se chegaram a falar, não o podemos afirmar,
porque nada nos consta a tal respeito (GN, 20 nov. 1876).
Na seqüência, o modo como as informações são apresentadas revela o estilo
da Gazeta de Notícias (20 nov. 1876), como se houvesse um tratamento da
linguagem sob a perspectiva de um escritor que domina tanto a linguagem literária e
seus elementos constitutivos, quanto os níveis descritivos da notícia:
O que é porém infelizmente certo é que Alexandre Pereira, desfechou
alguns tiros de revolver sobre Capistrano, o qual entrou agitado e
precipitadamente pelo armazém no. 128 da rua da Quitanda, indo refugiar-
se em um pequeno compartimento que ali existe, tendo sempre perseguido
por Alexandre que ainda da porta do pequeno gabinete disparou dois tiros
sobre ele, saindo em seguida do armazém e indo colocar-se no passeio do
lado oposto do estabelecimento, carregando de novo a arma que tinha em
seu poder.
Capistrano, ferido mortalmente, chegou cambaleando à porta do armazém e
caiu. A esse tempo já Alexandre Pereira havia sido preso por César Augusto
de Abreu Mascarenhas, que segurando-o pelas costas, pediu a Antonio
Pereira Barbedo, dono do armazém que lhe tirasse o revolver, o que obteve
facilmente, visto Alexandre Pereira não oferecer a maior resistência [...].
Nesse momento, uma interrupção no relato do homicídio para o
comentário do autor dessa notícia, como se entrasse em cena a voz do narrador,
195
elaborada nos seguintes termos: “Esse acontecimento, como era natural, atraiu
extraordinária concorrência, a qual não se demorava em fazer os mais
extraordinários comentários”. Posteriormente, é dada continuidade à apresentação
dos eventos que envolveram a morte de Capistrano da Cunha.
O Jornal do Comércio cita que Alexandre Pereira utilizou um revólver para
matar Capistrano e a Gazeta de Notícias descreve que o revólver utilizado pelo
“preso era novo, com a marca P. Lavanit, de seis tiros e conservava ainda uma
carga, tendo três cápsulas de tiros disparadas. Foram também encontradas em
poder dele dezessete cargas iguais a do revolver”. Essa menção à arma de fogo
estabelece uma aproximação com o romance-seriado Casa de Pensão, uma vez que
o personagem Coqueiro recebeu uma “pistolinha” de presente na infância; e a
vertente em livro descreve que Amâncio teve uma morte semelhante à de
Capistrano.
Ao ser interrogado pelo Sr. Dr. Torquato Couto, o acusado respondeu o
seguinte: “Chama-se Antônio Alexandre Pereira, filho de Alexandre Pereira,
falecido e de Júlia Clara Pereira, ter 23 anos de idade, ser solteiro, estudante da
escola Politécnica, natural da Bahia e morador na travessa do Meirelles n. 2, em
Santa Tereza”.
Sem subterfúgios, Alexandre:
Declarou que foi ele quem desfechou os tiros sobre João Capistrano da
Cunha, não se recordando de quantos tiros disparou em desafronta da
honra de sua família que foi ofendida por Capistrano na pessoa de sua irmã,
e que, se bem se recorda, praticou o ato de que é acusado, na rua da
Quitanda, e que no estado de agitação em que se acha não pode mais
responder a coisa alguma (GN, 20 nov. 1876).
Depois de acrescentar mais alguns detalhes sobre o futuro julgamento do
acusado, esse parágrafo encerra a notícia desse dia 20: “São estas, por enquanto,
as informações que temos acerca de tão lamentável acontecimento, a respeito do
qual iremos informando os nossos leitores”.
196
As notícias do dia 21 de novembro de 1876 estabelecem continuidade ao
relato da Questão Capistrano, com a inserção de seu desdobramento: “Ontem à
tarde foi levado à sua última morada, no cemitério de S. João Batista, o cadáver do
estudante João Capistrano da Cunha, vítima de lamentável desgraça que já
noticiamos e que consternou toda cidade”.
Nos dois jornais não menção à família de Capistrano, talvez porque
naquela época era impossível sair de Campo Largo – PR e chegar ao Rio de Janeiro
RJ em um dia. Por esse motivo, os amigos e advogados do estudante eram as
pessoas mais próximas e foram eles os que mais demonstravam padecer com a
perda. Carregaram o “caixão à mão, pegando nas argolas os Sr. conselheiro
Saldanha Marinho, Drs. Bush Varela, Duque Estrada Teixeira, Pinto Júnior, Macedo
B (...) (juiz de direito em Campo Largo, onde residia o finado) e o Sr. Mattos Cruz”.
As ruas na cidade do Rio de Janeiro são destacadas começando por aquela onde
o estudante foi abordado por Pereira e seguindo por outras localizadas no centro da
cidade: “ruas da Quitanda, Ouvidor, Largo São Francisco, rua do Teatro, Rocio,
Visconde do Rio Branco, Lavradio, Arcos, Mangueiras, Lapa, Catete, Botafogo”.
Quando o cortejo chegou ao cemitério, sobre o caixão seus colegas e amigos
colocaram “duas coroas de saudades, em cujas fitas se lia Eterna saudade do
nosso colega e uma senhora, da rua da Quitanda [talvez vizinha do local onde
Capistrano foi baleado], colocou também sobre o caixão uma coroa de saudades
naturais”.
O momento mais comovente do funeral ocorreu quando, junto à sepultura, “o
Sr. conselheiro Saldanha Marinho duas vezes tentou falar, mas a emoção
embriagava-lhe a voz”. Unida a esse momento, uma parcela da população carioca
comparecia de modo massivo ao espetáculo propiciado pelo desfecho dramático da
Questão Capistrano:
Por todas as ruas aglomerava-se o povo para ver passar o fúnebre cortejo,
composto de cerca de 2000 pessoas
119
de diversas classes da sociedade,
destacando-se entre todas a mocidade acadêmica, mais que finalizada pelo
triste fim de seu companheiro de estudos (GN, 20 nov. 1876).
No mesmo jornal, duas colunas depois da notícia acima, podiam ser lidas as
seguintes informações: “Ontem à tarde distribuiu-se um folheto com o título A
119
Mesmo número estimado pelo Jornal do Comércio do dia posterior ao crime.
197
honra das famílias -, que se ocupa com o desastroso acontecimento que enlutou
esta cidade a morte do estudante Capistrano”. Esse dado revela que, mais do que
noticiar um drama, a Gazeta de Notícias também elaborou um folheto destinado às
famílias envolvidas direta ou indiretamente com esse episódio dramático e aos
leitores que teriam acesso a esse texto pelo jornal.
4.3.3 Construção do ponto de vista
Ao fixar “marcos interpretativos”, o jornal é capaz de guiar o leitor à recepção
do texto, graças ao horizonte criado por intermédio do discurso jornalístico. No
entanto, como a retórica do estilo jornalístico está relacionada ao modo como cada
jornal informa o público sobre o desenrolar da Questão Capistrano, o prolongamento
desse episódio e a comoção causada por seu desfecho também podem ter
provocado mudança de perspectiva por parte dos jornalistas. Considerando isso,
destacamos os apontamentos de Genette (1995, p. 163), ao dizer que: “A narrativa
de acontecimentos, porém, qualquer que seja o seu modo, é sempre narrativa, isto
é, não-verbal em verbal: a sua mimese nunca será mais que uma ilusão de mimese,
como toda a ilusão dependendo de uma relação eminentemente variável entre o
emissor e o receptor”.
Quando Gargurevich (1982, p. 11) apresenta especificidades sobre os
gêneros que se ligam à notícia, o autor evidencia que os gêneros jornalísticos são
“formas que buscam o jornalista para expressar-se, devendo fazê-lo de modo
diferente, segundo a circunstância da notícia, seu interesse e, sobretudo, o objetivo
de sua publicação”.
Seguindo a linha de raciocínio estabelecida a partir da leitura dos conceitos
citados de Genette (1995) e Gargurevich (1982), podemos dizer que, em um
primeiro momento, o Jornal do Comércio apresentou as notícias como se estivesse
apenas transcrevendo o que foi visto ou relatado. Em um segundo momento, ocorre
mudança de ponto de vista, aprimoramento estrutural e de linguagem, como se o
próprio jornalista, ao acompanhar o sobressalto que a morte do estudante causou
sobre a população carioca do período, compartilhasse a dor assistida. A Gazeta de
Notícias, por outro lado, assumiu o posicionamento de porta-voz das dores dos
198
leitores, desde o primeiro dia em que foi lançada a primeira notícia, como se
estivesse apresentando uma narrativa da informação.
Em momentos e proporções diferentes, ambos os jornais utilizam linguagem
plástica, retórica característica do texto poético, que transforma a notícia em história
de um acontecimento e se delineia na medida em que esse tema adquire
proporções significativas e culmina com o assassinato do estudante da Escola
Politécnica.
4.6 A nota Antes de principiar e o encontro de dois gêneros
Em 1883, o escritor Aluísio Azevedo anuncia seu novo romance Casa de
Pensão, que passaria a ser publicado no jornal Folha Nova, a partir do início de
março daquele ano. Como a finalidade do escritor era explicitar o que havia de ruim
no cotidiano das casas de pensão, apresentou aos leitores contemporâneos à
publicação do romance-seriado a nota Antes de principiar (AP), vista como uma
apresentação sumária da diegese. Esse paratexto delineia: tema, ponto de vista,
espaço, gênero e objetivo.
No tempo histórico da narrativa, o autor tinha consciência de que muitos
leitores ainda estavam habitados à leitura de romances românticos. No entanto,
motivado pela visão naturalista, Azevedo ressalta que pretendia: “[...] rasgar aos
olhos do leitor a parede de uma dessas velhas casas de pensionistas e expor sua
nudez fria e profundamente comovedora os dramas secretos que ali dentro se
consomem, terríveis e obscuros, como a luta dos monstros no fundo do oceano”.
Se, por um lado, o autor diz querer revelar o que vira ou ouvira, a fim de que o
leitor pudesse conceber sua narrativa como descrição de uma realidade, na qual arte
e natureza se fundem em nome de uma verdade e se tornam literatura, por outro
lado, usa a metáfora “rasgar os olhos” que se assemelha ao ato de abrir as cortinas
de um palco. Além disso, impulsionado pelo desejo de verdade, o autor descreve
uma fábula que sugere fantasias e imaginações românticas, mediadas pelos
princípios básicos do maniqueísmo. Jean-Yves Mérian (1988), estudioso da obra de
Aluísio Azevedo, defende a tese de que:
199
[...] o caráter híbrido que ressaltamos a propósito dos folhetins no plano
estético, encontra-se também no plano das intenções do autor. Seus
folhetins o são romances de tese, mas o autor desenvolve neles teses
sociais e políticas claras ao mesmo tempo em que, por outro lado, faz
descrições de cenas irreais e fantásticas (MÉRIAN, 1988, p. 494).
Aluísio se propõe a revelar “toda a hediondez dessa existência artificial e
hipócrita que corrompe nossa sociedade, como uma moléstia secreta e
inconfessável corrompe o organismo humano”. Portanto, pautado no
posicionamento naturalista de apresentar a sociedade como uma organização
adoecida, o escritor destaca: “Desejo patentear ao leitor todo o mal, todo o
desmantelamento, todo o desequilíbrio e toda a miséria”.
Então, perguntamos-nos se o crime cometido por Alexandre Pereira e o
comportamento da mãe e da irmã são referenciais explicativos do “que podem
resultar a uma família, sempre que ela comete a imprudência de introduzir no seio
pessoas”, como Capistrano da Cunha, “que não são solidárias de sua dignidade,
que não são responsáveis pela sua honra, que não se acham ligadas, nem pelo
parentesco, nem pelo amor, nem pelo respeito”. Por isso, seduzir a filha da
proprietária assumiria o aspecto de aventura, e que, por conseguinte, os hóspedes
“nunca poderão compreender essa religião do lar, que nos conduz a todos os
heroísmos, essa vigilância carinhosa e venerada com que cercamos os entes fracos
confiados a nossa guarda”. Essa visão positivista evoca o leitor a zelar da instituição
sagrada chamada família contra possíveis pensionistas oportunistas.
Para Lewis (apud MCLUHAN, 1964, p. 85), o ponto de vista privilegiado
mostra que "o artista está sempre empenhado em escrever a minuciosa história do
futuro, porque ele é a única pessoa consciente da natureza presente!". Em Casa de
Pensão ele evoca os leitores à análise da realidade, como se buscasse acordá-los
do entorpecimento provocado pela ingenuidade de não se refletir sobre as relações
efêmeras e o perigo de inserir um estranho no convívio familiar.
Embora não esteja explícita a referência à família Pereira, os sete anos que
separam a Questão Capistrano da publicação do romance-seriado Casa de Peno
são um período curto, o que possibilitava o encontro de ficção e história. Júlia, por
exemplo, poderia ler, aos trinta anos, o drama vivido aos vinte e três, quando se
envolveu com Capistrano. Ao ler algumas das seqüências folhetinescas, poderia se
imaginar como referência da personagem Amélia. E, dessa forma, muitos outros
leitores poderiam reconhecer alguma familiaridade nas representações.
200
Prevendo essas possibilidades e esses efeitos, o autor exime-se,
antecipadamente, na parte final da nota introdutória, com o seguinte apelo:
Agora resta-me apenas pedir ao leitor que, se por ventura se reconhecer em
alguns dos tipos, ou se descobrir em alguns dos meus folhetins qualquer
cena de sua vida, queira de antemão perdoar-me semelhante coisa, porque
em tal fato não haverá intenção de ofensa ou maldade, porque os males
reais só podem ser combatidos pela própria realidade (AP).
A esse respeito, inserimos a constatação realizada por Lúcia Miguel Pereira
(1975, p. 126-127 apud SODRÉ, 1992, p. 216) de que Casa de Pensão é um livro
“cujos métodos constatam, um pouco paradoxalmente, com as simetrias, os
métodos rígidos, os esquemas estabelecidos e rigorosos de sua construção. Surge
dele algo que tem vida própria e que ganha os nítidos contornos da realidade”.
Por ter sido direcionada para uma “sociedade de leitores” específica,
pertencente ao contexto produtivo da obra, a nota foi suprimida na versão em livro.
Essa estratégia instaura o duplo horizonte: o primeiro caracteriza-se como interno ou
literário, implicado pelos efeitos que a obra produz em seus leitores, receptores,
enquanto o segundo é o “mundivivencional” (ISER, 1979, p. 50), ou seja, um
universo restrito ao leitor-testemunho da Questão Capistrano, inserida nas
entrelinhas do pano de fundo de Casa de Pensão. Portanto, leitor da nota: “É em
torno dessa verdadeira calamidade que se propõe girar o meu novo livro. Ele
pretende bater o mal e encher o abismo da Casa de Pensão com algumas cem
páginas de oitavo francês”. Mesmo sabendo que: “Talvez seja até irrisório tentar
entupir um abismo com papel, mas em todo o caso a intenção é legítima”. Portanto,
a visão naturalista de Aluísio lhe fazia crer que “os males reais”, testemunhados ou
lidos em relatos jornalísticos “só podem ser combatidos com a própria realidade”, ou
seja, buscando em acontecimentos o material para compor seu novo romance-
seriado.
Hans Robert Jauss
120
destaca a dimensão comunicativa da obra literária ao
reinterpretar a noção de fusão de horizontes de Gadamer
121
. Segundo Jauss, cada
participante do ato comunicativo da literatura, o escritor e seu público histórico,
possui um horizonte existencial em que repousam valores, regras sociais e
120
Cf. JAUSS, Hans Robert (1994).
121
Horizonte de expectativa é um conceito originário de Husserl, foi posteriormente reelaborado por
Gadamer, e refere-se ao sistema de referências forjadas pelas tradições culturais anteriores.
201
artísticas. O escritor, no papel de criador, produz sua obra, admitindo ou opondo-se
ao seu horizonte existencial.
Em Casa de Pensão, o pano de fundo reproduz um drama que fora anunciado
no “Jornal do Comércio” e na “Gazeta de Notícias”, no ano de 1876, ano em que
Aluísio Azevedo chegou ao Rio de Janeiro, e apenas sete anos antes da
apresentação do romance-seriado. Nesse pequeno intervalo de tempo, ainda era
possível conservar a lembrança dos detalhes do drama. Segundo Gadamer (1997),
leitores contemporâneos à obra e leitores de diferentes épocas apresentam
diferentes horizontes que, em contato com o texto, interagem com o conjunto de
valores proposto e a consciência histórica dos receptores. Na medida em que o
discurso suscita posições contrárias às dos leitores, a obra artística conseguirá
questioná-los e agirá sobre a sociedade e a história.
Nos exemplos abaixo, apresentamos fragmentos de três documentos: os dois
primeiros têm como fonte o Jornal do Comércio e a Gazeta de Notícias, com
registros da Questão Capistrano; o terceiro corresponde ao romance Casa de
Pensão
122
, em formato de livro, com recortes de notícias sobre o julgamento e
assassinato de Amâncio. Esse corpus está ligado pela dialogia discursiva,
evidenciada pela apresentação dos motivos que levaram Capistrano e Amâncio ao
tribunal, bem como o impacto que suas mortes causaram sobre os que se
compadeceram de suas dores. Além de aproximar as vozes dos dois estudantes,
fazendo uma comparação entre Amâncio e seu modelo, ilustramos a presença do
discurso híbrido em Casa de Pensão, manifestado na semelhança entre as duas
linguagens, a jornalística e a literária. Ressaltamos, ainda, que, como o desfecho da
história foi apresentado apenas na vertente em livro, o diálogo intertextual não
contempla o romance-seriado.
122
Embora tenhamos como ponto de referência o romance-seriado, estes exemplos foram extraídos
da parte final do livro, porque a variante publicada no jornal Folha Nova contempla apenas doze dos
vinte e dois capítulos que integram o livro.
202
Quadro 01 – Fragmentos dos dois julgamentos e os assassinatos de
Capistrano e Amâncio
Os estudantes formigavam assanhados como se acabassem de ganhar uma
vitó
ria. O nome do [...] era repetido com transporte; um grupo enorme de rapazes
[...] aguardava o colega à saída do júri, para o conduzir em triunfo ao Hotel Paris,
onde havia à sua espera um almoço e a banda de músicos alemães.
CP,
1977,
p. 181
Disse [...] no tribunal que não praticara tais violências; que a contusão nos lábios
que a ofendida apresentou fora devida a um soco que o irmão dela quis dar nele
acusado, e que ela metendo-se de permeio recebeu em cheio.
J.C
18/11,
1876
ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e dos
foguetes. [...] carregado em triunfo nos ombros dos colegas, entrou no hotel ao
som do grande hino, chorando de emoção e agitando freneticamente o seu velho
chapéu de feltro, desabado e boêmio.
CP, p.
182-
183
Ao meio dia suspendeu o presidente do tribunal a sessão em conseqüência
sussurros produzidos pela grande afluência do povo que queria lugar no recinto
do tribunal já de todo cheio.
J.C
18/11
A população da nossa cidade foi ontem sobressaltada por um triste
acontecimento, terrível desenlace de um drama, que pouco todos
presenciamos e que além de duas famílias, veio encher de luto a mocidade
acadêmica, roubando-lhe um de seus membros.
G.N
20/11,
1876
Esperavam todos o anunciado sabimento, e, como era natural, e comentava-se à
meia voz a tão lamentável ocorrência da véspera, triste desfecho de um drama
íntimo, que marcaria para sempre dois moços, para quem o futuro tanto deveria
sorrir, arremessou um no túmulo e o outro no cárcere.
J.C
21/11
A cidade inteira abalou-se, demoveu-se, para deixar passar aquela estranha
procissão de um magro cadáver de vinte anos.
CP, p.
189
Era na verdade uma cena bem comovente aquele féretro, rodeado de
mancebos, que, trajados de preto e com a tristeza estampada no rosto iam levar
à última morada o companheiro de todos os dias, tanto nas árduas lidas do
estudo, como nos descuidosos da mocidade.
J.C
21/11
Pagando assim o último tributo de amizade ao desditoso colega, que a mão da
fatalidade acabava de lazer tombar o túmulo tão inesperadamente antecipando-
se à da terrível enfermidade que o tinha de roubar talvez em bem pouco tempo.
J.C
21/11
O funeral atingiu dimensões gigantescas; parecia que se tratava da morte de um
grande benemérito da Pátria.
CP, p.
189
O caixão foi carregado a pulso, coberto de coroas; no cemitério ninguém se
podia mexer com a multidão que afluía. Um delírio!
CP, p.
190
Sobre o caixão [...] deposto seus colegas e amigos duas coroas de saudades,
em cujas fitas se lia Eterna saudade do nosso colega e uma senhora, da
rua da Quitanda, colocou também sobre o caixão uma coroa de saudades
naturais.
G.N
21/11
203
Nos exemplos acima, o livro caracteriza-se como agente produtor de
conhecimento, na medida em que Casa de Pensão descreve acontecimentos, mas
não é produtor de consciência, por isso o livro apenas estabelece índices relacionais
com a Questão Capistrano. Segundo Mcluhan (1964, p. 68), de todas as grandes
uniões híbridas que geram furiosa liberação de energia e mudança, nenhuma supera
o encontro entre as culturas letradas e as culturas orais.
Quando confrontamos os textos informativos da Questão Capistrano e o
desenrolar da diegese com o assassinato de Amâncio, podemos evidenciar que este
último apresenta marcas do gênero e estilo que são próprios do texto jornalístico,
pela presença de textos condensados de informações. No entanto, não podemos
deixar de citar o grau de proximidade entre as duas linguagens, na medida em que
esses registros jornalísticos apresentam alegorias e metáforas, caracterização de
personagens, espaço, tempo, com elementos constitutivos do texto ficcional.
Se por um lado o registro jornalístico, que imprimiu os efeitos e a comoção
que a morte de Capistrano provocou sobre a comunidade acadêmica da Escola
Politécnica, descreve que os colegas estavam: “Pagando assim o último tributo de
amizade ao desditoso colega, que a mão da fatalidade acabava de fazer tombar o
túmulo tão inesperadamente [...]”. (JC, 21 nov. 1876). Por outro lado, o livro destaca
que, após a morte de Amâncio: “A cidade inteira abalou-se, demoveu-se, para deixar
passar aquela estranha procissão de um magro cadáver de vinte anos”
123
. A morte
do protagonista que poderia ter sido o herói de Casa de Pensão, se os vícios não
o tivessem arrastado para a devassidão –, é característica do romance Naturalista; o
que mais interessa é o caráter banal da existência comum. Segundo as leis
externas, todos são determinados e regidos pelo meio, no ciclo vida-morte.
Em continuidade ao conteúdo do livro, o enterro do maranhense é
apresentado como uma verdadeira apoteose: “o caixão foi carregado a pulso,
coberto de coroas; no cemitério ninguém se podia mexer com a multidão que afluía.
Um delírio!”.
O diálogo entre as linguagens literária e jornalística apresenta indícios de que
o texto noticioso encorpou tipologias características do texto literário, e a diegese de
Casa de Pensão, por sua vez, preservou traços da técnica jornalística. Essa
simbiose se liga pelo eixo temático, que pode perpassar vários gêneros, e pela
123
CP, 1977, p. 189-190.
204
linguagem híbrida, oriunda de influências recebidas dos meios jornalístico e literário,
como crônicas do cotidiano.
A relação intertextual utilizada por Aluísio configura-se como um
procedimento capaz de reativar estruturas relacionais. As vozes discursivas de Casa
de Pensão estabelecem unidades de sentido para aqueles que acompanharam,
direta ou indiretamente a morte de Capistrano. Para confirmar as dimensões e os
efeitos desse acontecimento, Menezes (1958, p. 147) ressalta que: “[...] o carioca da
época não fala de outra coisa, não discute outro assunto, não se preocupa senão
com os dois processos criminais, apesar de rotineiros, em que se misturam a honra
de uma moça e o homicídio do seu sedutor”.
Menezes (1958, p. 329-332), biógrafo de Aluísio Azevedo, acrescenta que
Aluísio chegou ao Rio de Janeiro em 1876, aos 19 anos de idade, e pôde
acompanhar, nos principais jornais cariocas, o desdobramento do drama,
popularmente conhecido por Questão Capistrano. O fato de ter testemunhado esse
episódio lhe permitia utilizar informações ainda vivas em sua memória para a
composição de um romance. Reconhecido em seu meio pela polêmica suscitada em
suas produções, Aluísio encontrou nas notícias a matéria criativa, compartilhando o
método utilizado por jornalistas e repórteres, como uma forma de acompanhar o
desenvolvimento midiático.
Assim como o discurso apresentado pelos jornais de grande circulação na
década de 70 do século XIX, Aluísio, escritor-jornalista, desenvolveu seu estilo
ímpar, rico de alegorias e representações imagéticas, a partir de sua visão de mundo
e em defesa de suas crenças. Nessa perspectiva, o jornalismo é algo muito mais
que a técnica, as fórmulas, o trabalho e a habilidade (VIVALDI, 1979).
4.7 Aventura, intriga e morte: das páginas policiais à Casa de Pensão
A Questão Capistrano tem início em 1876, quando o paranaense Capistrano
da Cunha prefere não ceder às pressões de Alexandre, por isso tenta fugir do Rio de
Janeiro e do casamento com Júlia. Não encontrando outra saída, Alexandre presta
queixa contra Capistrano, que por sua vez contrata três advogados para a sua
defesa. Para esquivar-se da acusação, diz ao tribunal que não praticara nenhum tipo
205
de violência contra Júlia, esclarecendo “que a contusão nos lábios que a ofendida
apresentou fora devida a um soco que o irmão dela quis dar nele acusado, e que ela
metendo-se de permeio recebeu em cheio” (JC, 18 nov. 1876).
Nessa época, os jornais favoreceram a divulgação do julgamento, e a
dimensão desse assunto era tão grande, que se formaram partidos no tribunal: o
público não conseguia conter a emoção, então se formava certo alvoroço. “Ao meio
dia suspendeu o presidente do tribunal a sessão em conseqüência dos sussurros
produzidos pela grande afluência do povo que queria lugar no recinto do tribunal já
de todo cheio” (JC, 18 nov. 1876). Na versão em livro, esse episódio é transcrito da
seguinte forma: “já ninguém se entendia com o estardalhaço das vozes, da música e
dos foguetes”, principalmente quando tudo levava a crer que Amâncio seria
absolvido. Por fim, declarada a inocência, Amâncio foi carregado “em triunfo nos
ombros dos colegas, entrou no hotel ao som do grande hino, chorando de emoção e
agitando freneticamente o seu velho chapéu de feltro, desabado e boêmio”
124
.
Tanto nos relatos apresentados pelos jornais quanto no desfecho da intriga do
romance, o julgamento e a absolvição dos estudantes geraram grande expectativa e
comoção de parcela significativa da sociedade carioca. No livro, depois da sentença
favorável a Amâncio:
Os estudantes formigavam assanhados como se acabassem de ganhar
uma vitória. O nome do nortista [Amâncio] era repetido com transporte; um
grupo enorme de rapazes, capitaneado pelo Paiva Rocha [seu conterrâneo]
e pelo Simões [amigo do antagonista Coqueiro], aguardava o colega à saída
do júri, para o conduzir em triunfo ao Hotel Paris, onde havia à sua espera
um almoço e a banda de músicos alemães (CP, 1977, p. 181).
Embora houvesse grande festa em torno de Amâncio, na qual os estudantes
da escola Politécnica e de Medicina comemoravam a absolvição do colega, por outro
lado, Coqueiro via-se fracassado. Depois de sair do tribunal, ele isolou-se na casa
de pensão, atormentado pela idéia de ter perdido a batalha, e envergonhado por não
ter honrado a irmã. Nesses momentos, vinham-lhe em mente pensamentos
dolorosos, afinal: Que faria agora de uma irmã prostituída, e de uma mulher
desesperada?!...”
125
. Foi então, que movido por um impulso, decidiu pegar o revólver
que foi do seu pai, primeiro pensou em dar cabo à própria vida, ridícula. Mas, antes
124
CP, 1977, p. 181.
125
Ibidem, p. 184.
206
que tal delírio se concretizasse, ouviu vozes de estudantes que, ao retornar da festa
comemorativa pela vitória de Amâncio, resolveram insultar Coqueiro e Amélia. “João
Coqueiro presenciara tudo aquilo, grupado a um canto da janela, mordendo os nós
da mão, os olhos injetados, o sangue a saltar-lhe nas veias. [...] Se Amâncio
estivesse ali, naquela ocasião, por Deus, que o estrangulava!”
126
. Deixando-se guiar
pela ira, foi ao Hotel Paris e assassinou Amâncio à queima-roupa, até deixar a arma
vazia.
Se esse mesmo desfecho for analisado sob a perspectiva dos relatos
jornalísticos, podemos encontrar semelhança no posicionamento dos irmãos que
processaram os jovens que se envolveram com Amélia e Júlia. Em 1884, a ficção
dialoga com o caso jurídico ocorrido em 1876, quando Capistrano foi absolvido.
Portanto, assim como Coqueiro, Alexandre Pereira não poderia aceitar esse final à
desonra da irmã. Essa revolta se deve ao fato de que, na sociedade brasileira desse
período, o corpo feminino estava sob cuidado e responsabilidade de seus genitores.
Como Júlia e a personagem Amélia não tinham pai, o desfloramento sofrido ia além
do limite de seus corpos, pois atingia seus responsáveis, isto é, Alexandre Pereira e
João Coqueiro. Nesse ano de 1876, encontrava-se ainda em vigência o Código
Criminal de 1830, no qual constava que as ofensas sexuais eram consideradas
"crime contra a segurança da honra e honestidade das famílias", mantendo-se sob o
capítulo dos “crimes contra a segurança da honra e honestidade das famílias e do
ultraje público ao pudor” no Código Penal dos Estados Unidos do Brasil, publicado
em 1980, ano da Proclamação da República. Por outro lado, apesar de a lei
estabelecer subsídios para assegurar a honra das famílias, o comportamento do
agressor poderia ser considerado, assim como possibilitou a Capistrano e Amâncio a
absolvição:
[] ao ser julgado um crime de defloramento, estupro ou atentado ao pudor,
resultante da quebra de uma norma jurídica sexual, emergiam os valores
sociais mais amplos da sociedade, pois eram também na quebra de outras
normas morais e sociais que se determinava a absolvição e condenação do
réu. Ou seja, a conduta total do indivíduo é que iria, ou não, redimi-lo de um
crime; não estava em pauta apenas o que havia sido feito, mas aquilo que o
acusado e a ofendida eram, poderiam ser ou seriam (ESTEVES, 1989, p.
41).
126
Ibidem, p. 187.
207
O paralelo entre ficção e realidade e o eixo temático comum evidenciam que o
recorte final de Casa de Pensão parafraseia com o drama ocorrido em 1876, sem,
com isso, representar uma cópia deste. Essa hipótese se fundamenta em dois
argumentos. Em primeiro lugar, destaca-se que a literatura naturalista, difundida pelo
mestre Zola (1995, p. 10), estabelece que: “Cada romance descreve a mecânica
humana em funcionamento”. Em segundo lugar, ao analisar o drama supracitado,
Aluísio teve a oportunidade de observar os efeitos que esse acontecimento causou
naqueles que o acompanharam, além de ter a oportunidade de tomar notas e,
talvez, “entrevistar” protagonistas e testemunhas desse drama.
Da mesma forma que, para escrever Germinal, Zola morou em cortiços e
observou o comportamento de trabalhadores de uma mina de carvão por meses, a
fim de conhecer certos tipos de pessoas e seus comportamentos para, depois,
escrever seu romance, Aluísio hospedou-se em casas de pensão e observou como
era o cotidiano nesses ambientes. Azevedo infiltrava-se em ambientes propícios
para anotar informações, diálogos e costumes de pessoas que iria pincelar em suas
personagens, uma vez que ele “sabe dizer o que viu” (DUARTE, 1884, p. 314).
A partir desses exemplos, podemos levantar uma hipótese sobre as intenções
do escritor naturalista: apresentar o mecanismo da vida em casa de pensão,
permeada por vícios, jogo de interesse, falsidade e intriga. A nota Antes de principiar
(1883) revela que Azevedo tinha plena consciência dos efeitos que a ficção poderia
causar na mente dos leitores, que, a exemplo dele, leram ou acompanharam o
desenrolar do drama íntimo apresentado por jornais cariocas de grande circulação.
O contexto do processo de criação confere a Aluísio a possibilidade de atribuir
dupla natureza do modelo artístico. Isso é realizado quando o romance-seriado e,
posteriormente, o livro, ao reproduzir um acontecimento particular, passam a
espelhar uma imagem do mundo. Nesse sentido, Casa de Pensão configura-se
como retrato de um microcosmo da sociedade carioca, ao mesmo tempo em que
representa dramas que abalavam, de um modo geral, a sociedade contemporânea à
ficção. Portanto, ao retratar o destino trágico de Amâncio, a diegese apresenta uma
narração sobre a tragédia do mundo em seu conjunto (LOTMAN, 1978, p. 358).
Seguindo o percurso de produção, concebemos essa história como um
romance de crítica social. A estratégia de verossimilhança adotada por Aluísio
Azevedo é semelhante àquela utilizada em reportagens, o que se justifica pela
escolha do pano de fundo ou pela descrição de hábitos e costumes. Por essas
208
razões, os personagens referenciam pessoas envolvidas em um drama, em uma
construção mimética. Ao utilizar a palavra verdade, Aluísio elabora retratos fiéis do
cotidiano com o realismo do cenário e das situações. O estilo híbrido empregado no
plano estético do romance encontra-se tamm no plano das intenções do autor.
Aluísio desenvolve em Casa de Pensão uma tese de caráter sociopolítico ao mesmo
tempo em que faz descrições de cenas irreais e fantásticas.
Enquanto diferentes leitores, em diferentes momentos, possuem expectativas
diversas, uma pequena parcela de leitores tem a possibilidade de associar
expectativa e experncia na recepção do romance. Nesse aspecto, a ficção tem o
poder de cristalizar acontecimentos, como um registro histórico, sob o ponto de vista
de quem o contou. E, assim, a sociedade carioca, retratada na ficção, identificou o
tempo histórico da narrativa graças às vozes vindas da memória. Contudo, a
distância temporal do fato que inspirou o romance não impede que essas vozes
possam ser ouvidas nas entrelinhas da ficção, ou seja, à medida que os leitores de
diferentes épocas têm acesso a informações sobre a origem do romance e ao
processo criativo da obra, o horizonte do texto também se abrirá ao contexto.
Nos dois episódios, as leituras de cenas do cotidiano seguem a ordem
apresentada por Jobim (1992, p. 48), em que o jornal, que chega primeiro, pode
recolher e dramatizar os fragmentos da realidade, e o livro, que chega depois, é uma
segunda operação de tiragem e de transformação do material semi-acabado do
jornal. Nesse sentido, numa classificação clássica dos gêneros, o jornalismo deveria
entrar entre a épica e o drama, entre a narração dos fatos e a ação entre os homens
(LIMA, 1990, p. 58).
4.8 Romantismo, Naturalismo e o híbrido
As inúmeras transformações ocorridas na cada de 1880, época em que
Aluísio consolidou-se como escritor, não foram suficientes para romper
completamente com a tradição romântica e, dessa forma, constrói-se o “hibridismo”
da obra aluisiana, refletindo, concomitantemente, o passado ainda latente e o novo
que se impõe. De um lado, estava o passado, balizado pela teoria econômica
escravista colonial e ligado a uma dimensão romântica idealizadora e conservadora;
209
do outro lado, o presente, impulsionado pela teoria econômica liberal, com os ideais
de democracia que dominou parte da Europa, no século XVIII, e associado ao
cientificismo, sob a bandeira do Naturalismo. Apesar das mudanças, a estrutura
sociocultural continuou pautada pelo ranço do autoritarismo e resistente à
renovação. A literatura brasileira, por sua vez, vivia dois dilemas antagônicos, por
um lado procurava conservar o Romantismo para agradar os leitores, por outro, via-
se impulsionada a introduzir o Naturalismo para atender às exigências da crítica.
Diante desse impasse, construiu-se o duplo horizonte literário em torno de
romances publicados no início da década de oitenta do século XIX. A linguagem
“híbrida”, otimizada por Aluísio Azevedo, reflete a harmonia entre Romantismo e
Realismo na base estrutural da Literatura Brasileira, desse período. Casa de
Pensão, por exemplo, fixa um momento de transição e definição de novas
perspectivas para o discurso literário. Desse modo, embora exista o caráter
antagônico do Romantismo e do Naturalismo, ambos podem conviver no interior do
mesmo enunciado romanesco, apesar de que um aponte para o passado e outro
para o futuro, um aponte para dentro do texto e ou outro para dentro da vida.
É com o status de verdade, declarado na nota Antes de principiar (1883), no
sentido positivista da história, que se levanta a ficção em análise. Ao inserir registros
jornalísticos e uma perspectiva histórica no romance, tendo em vista os propósitos
da ficção, Aluísio Azevedo demonstra habilidade de armazenar, em Casa de
Pensão, índices do passado, caracterizando-os como um episódio de nossa história,
extraído do cotidiano carioca, que passava por grandes transformações, na década
que antecedia à Proclamação da República.
O desenvolvimento social e tecnológico crescente no final do século XIX
revela que: “O caminho de Aluísio Azevedo para o romance da coletividade é a
ampliação da imaginação da vida orgânica no sentido de maior complexidade de
organismos”. Destacamos, também, que o autor acompanha essa evolução na
medida em que não apresenta apenas “o homem contra os preconceitos do meio
e da hereditariedade de O Mulato, O Homem, O Coruja”, pois: “A pequena
comunidade de Casa de Pensão prenuncia a comunidade de O Cortiço” (BRAYNER,
1973, p. 41).
Ao realizar um retrato de mundo graças à reunião de modalidades artísticas
combinadas em Casa de Pensão, o sucesso do romance-seriado compartilha do
sucesso adquirido pelo drama narrado pelo Jornal do Comércio e pela Gazeta de
210
Notícias; a dimensão desse acontecimento é ampliada com o aparecimento da
versão em livro, em função dos propósitos comunicativos do autor com seus
interlocutores, com o intuito de atingir um público mais amplo, especializado, sem
deixar de citar o retorno financeiro.
Segundo Sod (1992, p. 192), no contexto sociocultural no qual se
desenvolveu o Naturalismo: “Os acontecimentos artísticos são marcados pelo
público e não pelo autor; pela aceitação e não pela invenção”. Ao assistir as
mudanças ocorridas no Brasil do século XIX, Aluísio preocupou-se em focar alguns
microcosmos que retratassem os efeitos dessas transformações, como quem olha
pelo buraco de uma fechadura, ou ouve diálogos do povo. Ao infiltrar-se nos
espaços, que seriam transformados em cenário, e convivendo com pessoas, que,
posteriormente, poderiam ser tipificadas em seus romances, o escritor conseguia
entender os temas que eram de interesse do público e que acontecimentos
poderiam ser romanceados.
Em continuidade, Sodré (1992, p. 215-216) destaca que Casa de Pensão não
é apenas “um de seus melhores romances, mas é aquele que traz a marca
inconfundível do processo naturalista”. Essa constatação parte do pressuposto de
que Aluísio Azevedo seguiu a método utilizado por Zola, ao mergulhar no recorte de
mundo com o qual iria dialogar na ficção e, além disso, foi autêntico ao enfocar
temas nacionais.
Também não podemos deixar de citar que, como o percurso criativo de Casa
de Pensão apresenta traços de maleabilidade do gênero, é possível constatar que o
âmbito textual absorve marcas de uma dimensão intertextual, produzindo relações
intragenéricas e/ou intergenéricas. Como conseqüência da linguagem dialógica,
expressa em Casa de Pensão: o romance se remete a textos de gêneros diferentes,
primários ou secundários, relacionados à Questão Capistrano, com os quais interage
intertextualmente. Como exemplo de relação intergenérica (textos que não
pertencem ao mesmo gênero), no processo intradiscursivo do romance focado neste
estudo, podemos citar os diversos textos publicados no Jornal do Comércio e na
Gazeta de Notícias, que descrevem os pormenores do julgamento, da absolvição e
do posterior assassinato de Capistrano da Cunha, como registro da comoção que
esse drama causou na população carioca do período.
A mistura de gêneros adotada como recurso literário no processo
composicional do romance Casa de Pensão é marca do hibridismo discursivo, do
211
Romantismo ao Naturalismo, como característica da poética em transitoriedade,
apontando a plasticidade da escrita de Aluísio Azevedo. Se, por um lado o autor
preocupa-se em manter os leitores conquistados, por outro, também se
preocupava com a crítica do período.
Da mesma forma que o escritor pôde escolher pelo híbrido na definição de
modo narrativo, também lhe foi dada a opção de moldar os personagens a partir da
dupla natureza que representam. A natureza ambígua carrega vozes que se
remetem ao jornalismo e se misturam à literatura; o gênero transita entre o
Romantismo e o Naturalismo. De um lado os personagens são descritos através da
lente naturalista; na luta pela sobrevivência; na vitória dos mais fortes e aptos; nos
aspectos doentios da sociedade carioca retratada no romance; no mercado
matrimonial, entre outros. Por outro lado, o personagem Amâncio é guiado pelas
fantasias românticas; na imagem que o protagonista faz da mãe, um anjo; na
idealização de Hortênsia, que apenas é desejada enquanto é incessível; na
reminiscência ao byronismo da entrega aos vícios, à bebida e ao sexo; no
nacionalismo latente na figura do maranhense Amâncio, o autor faz exaltação à
Pátria, o Maranhão, dentre outros aspectos. Essas escolhas contribuem para a
caracterização dos personagens, que incorporam traços expressivos, que, por sua
vez, são incorporados aos demais elementos narrativos. Portanto:
A personagem é um ser fictício, expressão que soa como um paradoxo.
De fato, como pode uma ficção ser? Como pode existir o que não existe?
No entanto, a criação literária repousa sobre este paradoxo, e o problema
da verossimilhança no romance depende desta possibilidade de um ser
fictício, isto é, algo que, sendo uma criação de fantasia, comunica a
impressão da mais lídima verdade existencial. Podemos dizer, portanto, que
o romance se baseia, antes de mais nada, num certo tipo de relação entre o
ser vivo e o ser fictício, manifestada através da personagem, que é a
concretização deste
127
.
Como a natureza híbrida cerca diversos campos composicionais, é difícil
classificar cada elemento por seu mote de origem, ou diferenciá-los entre si. Por
esses aspectos, Casa de Pensão de Aluísio Azevedo é uma obra de caráter híbrido,
de forma inovadora e valor inquestionável, representando um fenômeno cultural que
une texto e contexto e atribui historicidade a um texto literário.
127
CANDIDO, Antonio. A personagem do romance. In: CANDIDO, Antonio (Org.). A Personagem de
Ficção, cit. p. 55.
212
Considerado por muitos críticos como papa do Naturalismo brasileiro, Aluísio
foi um escritor profissional que, segundo Ramalho Ortigão, fez da literatura seu
“ganha pão”, sem garantir a manteiga. Se no teatro e na poesia não obteve êxito,
seu primeiro talento artístico, as artes plásticas, conferiu-lhe a possibilidade de pintar
quadros da sociedade maranhense e carioca. Pintor, ficcionista de peso, homem do
jornal no Maranhão, sua terra natal; da caricatura e do romance-seriado em
periódicos cariocas, consideramos que Aluísio fixou-se na história da Literatura
Brasileira como um dos principais expoentes do seu tempo por seguir a tipologia do
romance moderno do século XIX. O universo representativo do romance permite
que, mais de um século transcorrido desde a aparição do romance-seriado Casa de
Pensão, seja possível visualizar na diegese desse romance um verdadeiro quadro
da sociedade brasileira, vista pela lente de um jornalista literato.
213
CONCLUSÃO
As duas variantes do romance analisado têm como eixo temático a vida em
casa de pensão, caracterizada pelo comportamento de tipos que representam seus
habitantes. Tanto no recorte dos primeiros onze capítulos do romance-seriado,
quanto em sua formatação em doze capítulos e a hipertrofia da intriga, que totaliza
vinte e dois capítulos na versão em livro, as diferenças estruturais e de repertório
semântico representam elementos que nos conduzem à constatação da habilidade
que Aluísio possuía para entender a mudança de perspectiva que se vinculava ao
gênero de publicação. Se ultrapassarmos os limites do romance-seriado e focarmos
a narração do inquérito na versão em livro, constataremos que as analepses
centram-se no personagem Amâncio, do mesmo modo que o discurso noticioso
centrou-se em Capistrano, que é indiciado por Alexandre Pereira, sob a acusação de
abuso sexual.
Enquanto a técnica narrativa do romance-seriado de “conduzir para trás”
(RIBEIRO, 1996, p. 45) pode ser constatada nos primeiros segmentos de Casa de
Pensão, os primeiros capítulos do livro apresentam grandes analepses (GENETTE,
1995). Nas duas variantes, esse descompasso do ritmo narrativo é guiado pelo fluxo
de consciência de Amâncio, por meio do qual são narrados pormenores de
acontecimentos que marcaram a infância do personagem. No desenvolvimento
narrativo, os recuos temporais desaparecem à medida que as ações de Amâncio se
direcionam ao espaço do Rio de Janeiro. No entanto, o cronótopo de Casa de
Pensão preserva os fatores responsáveis pela formação do caráter de Amâncio, de
suas atitudes hipócritas e dissimuladas, que explicam a propensão que o
protagonista tinha para a transgressão às normas sociais.
Embora o narrador seja onisciente nas duas variantes, apenas no romance-
seriado ele apresenta, com riqueza de detalhes: os amores que Amâncio teve na
adolescência, os quais indicam a inclinação que o protagonista tinha para aventurar-
se em amores proibidos; o fato de Coqueiro ter ganhado uma pistolinha do pai na
infância aponta para a familiaridade que o antagonista tinha com armas de fogo; a
tentativa de Amélia libertar-se do projeto matrimonial idealizado para ela também
pode ver evidenciada no romance-seriado. Nesses dois últimos exemplos, pode ser
214
identificado o cruzamento de vozes das personagens e seus modelos:
Coqueiro/Pereira e Amélia/Júlia, ao passo que o discurso narrativo é conduzido pelo
narrador, por intermédio do discurso indireto livre.
As descrições ricas em detalhes e os finais das seqüências com gancho
instauram unidades de ação a cada segmento narrativo, conferindo suspense e
expectativa quanto à continuidade da história. O corte repentino quebra o ritmo
narrativo e interrompe as ações. Nesse discurso que sofre mutações e se aprimora
na versão em livro, a técnica narrativa com os “lances teatrais” revela dois modos de
representação, nos quais os personagens m suas linhas de ações quebradas e se
reformulam por intermédio de diálogos, como marca da oralidade, o que é mais
enfático no romance-seriado.
Tanto no romance-seriado quanto no livro, o “didatismo narrativo” retoma
episódios interrompidos por outras ações e, assim, os núcleos são desenvolvidos em
meio a técnicas comuns às duas versões, porém, apenas no livro, as soluções são
reveladas na medida em que a narrativa se encaminha para a intriga.
A narrativa apresenta a casa de pensão personificada, como um monstro, que
assusta a população e assiste à doença de Amâncio. Limitados ao espaço fechado,
os hóspedes têm suas vidas aprisionadas e a disseminação dos vícios torna-se
oportuna. Essa analogia feita à casa de pensão remete à técnica narrativa da
“verossimilhança que nunca escorrega para o irracional [...]”, porque a mesma casa
de pensão que assustava a população, também ressuscitava o cenário da Questão
Capistrano. No livro, a dilatação do espaço transfere os personagens para Santa
Teresa, onde a saúde de Amâncio é restabelecida. Depois desse acontecimento, o
romance de Amélia e Amâncio concretiza-se, e a irmã de Coqueiro pressiona o
maranhense para mudarem-se para um chalé, justificando que a disposição dos
quartos, com ligações internas, daria mais liberdade para os amasiados em seus
encontros noturnos.
A organização estrutural dos segmentos é reformulada e os capítulos sofrem
alterações de ordem organizacional. Os onze capítulos do romance-seriado são
revidados para a publicação do livro e compreendem os doze primeiros capítulos do
livro.
Veiculada à poética do escritor, nas duas variantes, a caracterização dos
personagens é realizada por intermédio de linguagem plástica. Como se Aluísio
visualizasse Amâncio e os personagens a ele relacionados sobre sua escrivaninha;
215
o escritor atribui movimento às ações, ora lançando-os para dentro das aventuras de
romances românticos, ora atribuindo-lhes máscaras criadas à atuação em sociedade
e obtenção de seus propósitos. Ao lado das peripécias que envolvem os
personagens, com maior visibilidade estão aqueles para os quais a voz não é dada,
como sinal de preconceito ou símbolo de franqueza, que reduz os seres. O escravo
Sabino e Pereira, marido de Lúcia, e a histérica Nini, por exemplo, vivem no subsolo
narrativo e têm suas vidas limitadas ao que outros façam por elas.
A descrição caricata é aprimorada no livro, destacando o emprego da técnica
narrativa do romance-seriado, da descrição do vilão com traços grosseiros e
satânicos, o que ressalta o diálogo dos gêneros e a intensificação do discurso
naturalista. Na medida em que o desfecho revela os vencedores e perdedores, a
sensação de fracasso estimula o emprego de características zoomorfizantes à
descrição de Coqueiro, antagonista do romance.
A análise dos núcleos narrativos não publicados no romance-seriado
evidencia que o autor preservou grande parte das técnicas utilizadas na versão
destinada para o jornal, o que demonstra um diálogo das duas versões e com o
contexto criativo.
Nas duas etapas criativas, a ficção retrata um microcosmo da sociedade
carioca, representado por personagens inspiradas no drama, a fim de mostrar “a
mecânica humana em funcionamento”. As duas etapas de publicação caracterizam-
se como documentos para a compreensão do processo criativo. Enquanto a primeira
versão revela o que impulsionou o escritor a definir os elementos ligados ao
romance, na descrição dos personagens, espaço, tempo, enredo e apresentação do
tema, a segunda mostra que por trás do texto há um escritor-revisor, preocupado em
preparar o livro para atingir ampla circulação.
Na organização textual, o narrador onisciente revela os pensamentos dos
personagens e as ações deles resultantes. Amâncio de Vasconcelos é o fio condutor
da narrativa e ao mesmo tempo assume o papel de vítima dos próprios erros,
evidenciando que em sua voz muito de Capistrano. A intercessão de linguagens,
jornalística e literária, no romance-seriado e em livro, evidencia uma das
características do processo criativo de Aluísio Azevedo, que denota sua habilidade
de atender às exigências do mercado editorial, ao mesmo tempo em que revela sua
sensibilidade para entender o impacto que o romance moderno poderia provocar
sobre os indivíduos.
216
Susana Rotker (1991) optou pelo estudo das crônicas de José Martí (1853-95)
pelo fato de encontrar, nesse gênero, um modo de entender a escritura do escritor
cubano. Assim como cada autor, cada época tem sua linguagem, Martí e os
modernistas de seu grupo criaram uma nova prosa na América Hispânica. Nessa
perspectiva, ao definir a representatividade de temas ligados ao texto derivado de
notícias, Rotker (1991, p. 252) destaca que: “A crônica, como o jornalismo, não
inventa os feitos que retrata; mas sua maneira de reproduzir a realidade é outra”.
Contemporâneo de Martí, Aluísio Azevedo (1857-1913) esteve presente no
espaço concreto da cidade do Rio de Janeiro, nas décadas de 1870-1880, por essa
razão lhe foi possível conferir à narrativa de Casa de Pensão laços que estabelecem
essa relação por intermédio do texto. O lugar ocupado por Aluísio favoreceu essa
participação, do mesmo modo que pode contribuir para o registro dos modos de agir
e de pensar da população responsável por algumas das vozes presentes no
discurso ficcional, caracterizadas pela presença do aspecto popular na cultura,
contribuindo, assim, para a potencialidade do social em Casa de Pensão. A partir
dessa constatação, podemos pressupor que os dois modos de representar e
apresentar o romance são formas de acompanhar o movimento midiático, ao mesmo
tempo em que procura atingir as expectativas dos leitores e críticos.
Atento às transformações decorrentes do efeito da tecnologia sobre os
indivíduos, Aluísio Azevedo encontrou, nas notícias da Questão Capistrano (1876),
uma oportunidade de dialogar com valores e posicionamentos dos leitores, em
função do efeito que o drama causou sobre aqueles que acompanharam o
desenrolar desse episódio, a partir das descrições apresentadas pelo Jornal do
Comércio e pela Gazeta de Notícias. Por um lado, encontramos, no romance-
seriado, a nota Antes de principiar, na qual Aluísio se dirige ao blico
contemporâneo a essa publicação, expondo os motivos e objetivos que o levaram à
criação desse romance, do mesmo modo em que pede desculpas se os efeitos
provocados com a leitura desagradar os que o lêem. Por outro lado, a versão em
livro representa a conclusão do projeto que fora descrito na nota Antes de principiar,
na véspera da publicação da primeira fatia de Casa de Pensão, ao mesmo tempo
em que revela o ponto de vista do escritor naturalista sobre a Questão Capistrano,
aludida na história do romance.
Como aspectos culturais apresentados no mecanismo que traduz
plasticidade às duas versões de Casa de Pensão, esses textos compreendem
217
sistemas de signos, como síntese de unidades mínimas de um recorte cultural, cuja
organização interna definida, preserva seus traços distintivos, embora possam gerar
novos significados. Nesse aspecto, “cultura é memória, ela relaciona-se
necessariamente com a experiência histórica passada. [...] A própria existência da
cultura pressupõe a construção dum sistema de regras para a tradução da
experiência imediata em texto” (LOTMAN; USPENSKI, 1981, p. 41).
De acordo com Martín-Barbero:
O folhetim [francês] fala do popular-urbano: sujo e violento, o que
geograficamente se estende desde o subúrbio até a penitenciária, passando
pelos hospícios e as casas de prostituição. (...) Além de divórcios e
adultérios, incestos e abortos, mães solteiras e operárias seduzidas por
patrões, dos quais se vingam cruel e fatalmente. Existe moralismo, mas
também ligação entre a repressão sexual e as condições sociais de vida. O
universo operário que aparece é o de um proletariado sem consciência
de classe – mas quantos romances tinham, antes, tematizado esse universo
de miséria, do medo e da luta pela sobrevivência? (MARTÍN-BARBERO,
2001, p. 199).
Seguindo a tendência do romance-seriado francês, Aluísio desnuda
comportamentos pretensiosos, movidos pelo jogo de interesses que movem os seres
humanos. Os vícios arrancam Amâncio do aconchego da mãe e o arremessam para
duas arapucas matrimonias; o sexo é a moeda de troca utilizada por Amélia, enquanto
o casamento não se concretiza, por fim, sua virgindade é perdida e Amâncio é
assassinado por Coqueiro, que, por ironia do narrador, torna-se herói depois de ter
honrado a irmã.
O movimento criativo de Casa de Pensão revela a habilidade de Alsio
Azevedo de se destacar na ptica de uma tendência em voga no século XIX. Ao unir
jornalismo e literatura para escrever uma espécie de crônica do cotidiano, o escritor
revela grande capacidade criativa de conferir plasticidade à linguagem utilizada no
romance cotejado neste estudo.
218
REFERÊNCIAS
A CIGARRA. Fantasio. Rio de Janeiro, 01 ago. 1895. p. 2.
A BAGAGEM. Casa de pensão. Bagagem Minas Gerais, 04 dez. 1884 08 out.
1885.
AGUIAR E SILVA, Vitor Manuel de. Teoria da literatura. 5 ed. Coimbra: Livraria
Almedina, 1983. V. 1.
ALBÉRÈS, René Marill. Histoire du roman moderne. Paris: Éditions Albin Michel,
1962.
ARARIPE JR. Obra crítica de Araripe Júnior. V. I (1868 – 1887). Rio de Janeiro:
Casa de Rui Barbosa - Centro de Pesquisa, 1958.
_______. Obra crítica de Araripe Júnior. V. II (1888 1894). Rio de Janeiro: Casa
de Rui Barbosa - Centro de Pesquisa, 1960.
AZEVEDO, Aluísio. Casa de pensão. Folha Nova: Rio de Janeiro, 08 mar. 1883 – 22
maio 1883.
_______. Casa de pensão (Ed. Popular). Rio de Janeiro: Faro & Lino, 1884.
_______. Casa de pensão. Rio de Janeiro. São Paulo: Ática, 1977.
_______. Fora de horas. In: Demônios. Rio de Janeiro: Granier, 1894. p. 130.
_______. Filomena Borges. Gazeta de Notícias: Rio de Janeiro, 11 out. 1883 16
fev. 1884.
_______. Girândola de amores (romance-seriado: Mistérios da Tijuca) Rio de
Janeiro: F. Briguiet, 1939.
_______. Mistério da Tijuca. Folha Nova: Rio de Janeiro, 23 nov. 1882 18 fev.
1883.
219
_______. O homem. Rio de Janeiro: Adolfo de Castro Silva, 1887, p. 1.
_______. O touro negro. São Paulo: Martins Editora: 1961.
BAKHTIN, MIKHAIL MIKHAILOVITCH. Gêneros do discurso. In: Estética da criação
verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
_______. Questões de literatura e de estética (A teoria do romance). 4 ed. São
Paulo: Editora da UNESP, 1998.
BEVILAQUA, Clóvis. Epochas e Individualidades: estudos literários. 2 ed. Rio de
Janeiro: Garnier, 1988.
BILAC, Olavo. Crônica livre. Gazeta de Notícias. Rio de Janeiro, 17 out. 1893.
BOSI, Alfredo. Araripe Júnior: Teoria, Crítica e História Literária. Rio de Janeiro:
Livros Técnicos e Científicos; São Paulo: Edusp, 1978. p. 139.
_______. As fronteiras da Literatura. In: Flávio Aguiar et al. Gêneros de fronteira.
São Paulo: Xamã, 1997.
_______. História concisa da literatura brasileira. São Paulo: Cultrix, 1994.
BRAYNER, Sonia. A metáfora do corpo no romance naturalista. Rio de Janeiro:
São José, 1973.
_______. Labirinto do espaço romanesco. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1979.
BRUNETIÈRE, Ferdinand. Le roman naturaliste. Paris: Calman-levy, 1883.
CABRAL, Isabel Cristina Martelli; MINCHILLO, Carlos Alberto Cortez. A Narração:
teoria e prática. São Paulo: Atual, 1991. p. 27-28.
CASTELLO, José Aderaldo. A literatura brasileira: origens e unidade (1500-1960).
V. I. São Paulo: Edusp - Editora da Universidade de São Paulo, 1999.
CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. São Paulo: Editora Nacional, 1965.
220
CANDIDO, Antonio. A personagem de ficção. 8 ed. São Paulo: Perspectiva, 1998.
DANTAS, Paulo. Aluísio Azevedo. O romancista do povo. São Paulo:
Melhoramentos, 1954.
DIJK, Teun A. Van. La noticia como discurso: comprensión, estructura y
producción de la información. Barcelona: Paidós, 1990.
DOSTOIEVSKI, Fiodor Mikhailovitch. Memórias do subsolo. Tradução Boris
Schnaiderman. São Paulo: Paulicéia, 1992.
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas perdidas: os populares e o cotidiano do amor
no Rio de Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
FILHO, Mello Barreto; LIMA, Hermeto. História da polícia do Rio de Janeiro. V. 3.
Rio de Janeiro: A Noite, 1942. p.128.
FONSECA, Gardin. Biografia do jornalismo carioca. Rio de Janeiro: Quaresma,
1941.
FOUCAULT. A mulher os rapazes: História da sexualidade. V. 3. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1997.
FRANCASTEL, Pierre. 1968. Esthétique et Ethnologie. In: J. Poirier (ed.), Ethnologie
Générale. Encyclopédie de la pléiade (vol. XXIV). Paris: Gallimard. pp. 1706-1729.
GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método. Petrópolis, Vozes, 1997.
GARGUREVICH, Juan. Gêneros periodisticos. Quito: Belén, 1982.
GAZETA LITERÁRIA. Casa de pensão. Rio de Janeiro, 10 ago. 1884 n.16, p.313-
315.
GAZETA DE NOTÍCIAS. Notas à margem: da Casa de pensão. Rio de Janeiro, 3, 5,
12 e 13 jul. 1884, p. 1.
GAZETA DE NOTÍCIAS. O acontecimento do dia (Questão Capistrano). Rio de
Janeiro, 20 nov. 1876. p. 1.
221
______. João Capistrano. Rio de Janeiro, 21 nov. 1876. p. 1.
GENETTE, Gérard. Discurso da narrativa. Tradução Fernando Cabral. Lisboa:
Veja, 1995.
GRANDO, Marizete Liamar. O Processo de produção ficcional do romance Casa
de pensão. São Paulo. 2004. Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) -
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas - Universidade de São Paulo
FFLCH/USP.
IBGE. Censos demográficos 1872 e 1890. Dados extraídos de: Estatísticas do
século XIX. Disponível em:
http://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/monografias/visualiza_colecao_digital.php?ti
tulo=Recenseamento%20Geral%20do%20Brasil%201872%20-
%20Imp%C3%A9rio%20do%20Brazil&link=Imperio%20do%20Brazil. Acesso em:
12 fev. 2007.
ISER, Wolfgang. A interação do texto com o leitor. In: JAUSS et al. A literatura e o
leitor: textos de estética da recepção. Coordenação e tradução Luiz Costa Lima -
coleção Literatura e teoria literária. V. 36. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p 50.
JAKOBSON, Roman. Essais de Linguistique Générale. Paris: Les Éditions de
minuit, 1970.
JAUSS, Hans Robert. A História da literatura como provocação à teoria literária.
Tradução Sergio Tellaroli. São Paulo: Ática, 1994.
JOBIM, Danton. Espírito do Jornalismo. São Paulo: Edusp: Com-Arte, 1992.
JORNAL DAS FAMÍLIAS. Tomo 16, jul. 1878, p. 211-216. Disponível em:
<http://www.caminhosdoromance.iel.unicamp.br/biblioteca/0212/index.htm>. Acesso
em: 25 jul. 2008.
JORNAL DO COMÉRCIO. Jury. Rio de Janeiro, 18 nov. 1876. p. 3.
JORNAL DO COMÉRCIO. Processo Capistrano. Rio de Janeiro, 19 nov. 1876, p.
2.
222
JORNAL DO COMÉRCIO. Assassinato. Rio de Janeiro, 20 nov. 1876, p.1.
JORNAL DO COMÉRCIO. Assassinato Capistrano. Rio de Janeiro, 21 nov. 1876,
p. 3.
JORNAL DO COMÉRCIO. Questão Capistrano. Rio de Janeiro, 22 nov. 1876. p. 2.
JÚNIOR, Raimundo Magalhães. Olavo Bilac e sua época. Rio de Janeiro:
Americana, 1975. p. 146-156.
LIMA, Alceu Amoroso. O jornalismo como gênero literário. São Paulo: Com Arte,
Edusp, 1990.
LLOZA, Mario Vargas. Cartas a um novelista. Barcelona: Editorial Ariel S.A., 1997.
p. 63.
LOTMAN, Iuri. A estrutura do texto artístico. Editora Estampa: Lisboa, 1978.
_______. La semiosfera. Tradução Desidério Navarro. Madrid: Ediciones Cátedra,
1996.
LOTMAN, Iuri e Bóris USPENSKII. Sobre o Mecanismo Semiótico da Cultura. In:
Ensaios de semiótica soviética. Lisboa: Livros Horizontes, 1981.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e
hegemonia. 2. ed. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2001.
MACLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.
São Paulo: Cultrix, 1964.
MAGALHÃES JÚNIOR, Raymundo. Olavo Bilac e sua época. Rio de Janeiro:
Editora Americana, 1974.
MAGALHÃES, Valentim (1889). Escritores e Escritos (perfis literários e esboços
críticos). Rio de Janeiro: Domingos de Magalhães editor, 1894.
MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo, uma vida de romance. São Paulo:
Livraria Martins, 1958.
223
MÉRIAN, Jean-Yves. Aluísio Azevedo, vida e obra (1857-1913): O verdadeiro
Brasil do século XIX. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1988.
MOISÉS, Massaud. Historia da literatura brasileira: romantismo, realismo,
parnasianismo. V. 2. São Paulo: Cultrix/Edusp, 1984.
MONTELLO, Josué. Aluísio Azevedo e a polêmica d’O Mulato. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1975.
_______. Aluísio Azevedo: uma vida de romance. São Paulo: Martins Fontes, 1957.
MESZAROS, Istvan. A Teoria da Alienação. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006,
p. 38.
MEYER, Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
MORIN, Edgar. Método 3 - o conhecimento do conhecimento. Lisboa: Publicações
Europa – América, 1996.
NETO, Coelho. A conquista. Porto: Chardron, 1913.
_______. O meu dia. Porto: Chardron, 1922, p. 105-106.
NOVIDADES. Eloy, o heroy [Artur Azevedo]. Do palanque. Rio de Janeiro, 3 out.
1887.
PELLEGRINI, Tânia. Narrativa verbal e narrativa visual: possíveis aproximações. In:
______ et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Editora Senac, 2003.
O COMBATE. 12 de março de 1892. In: Azevedo, Aluísio. O touro negro. São
Paulo: Martins Editora: 1961. p. 64.
O IMPARCIAL. Aluísio Azevedo: O que nos diz Coelho Neto. Rio de Janeiro, 25
jan. 1913. p. 07.
O MEQUETREFE. Casa de pensão. Sá Pinho. Rio de Janeiro, 30 maio 1883. p.6.
_______. Casa de pensão. k. Loiro. Rio de Janeiro, 10 jun. 1883. p. 07.
224
_______. Casa de pensão. Rio de Janeiro, 20 fev. 1884. p. 6.
_______. Casa de pensão. Rio de Janeiro, 30 maio 1884. p. 5.
_______. Casa de pensão. Rio de Janeiro, 30 jun.1884. p. 6.
PONTES, Elói. A vida inquieta de Raul Pompéia. Rio de Janeiro: Olympio, 1935. p.
240-245.
PINHEIRO, Amalio. Jornal: cidade e cultura. In: Manuscritica 12: Revista de Crítica
Genética. São Paulo: Editora Annablume, 2004.
RIBEIRO, José Alcides. Ficção brasileira e imprensa: um fenômeno inicial de
linguagens em interface. In: Fragmentos de Cultura. Goiânia, Editora da
Universidade Católica de Goiás, v.10, n.1, p. 163-180, jan./fev. 2000.
______. Imprensa e ficção no século XIX. Edgar Allan Poe e a Narrativa de Arthur
Gordon Pym. São Paulo: Editora UNESP, 1996.
RICOEUR, Paul. Interpretação e ideologias. Rio de Janeiro: Francisco Alves,
1990.
RICOEUR, P. Mundo do texto e Mundo do leitor. In: Tempo e Narrativa Vol. III,
Campinas, editora Papirus, 1995.
RIO, João do. O movimento literário. Rio de Janeiro: Garnier, 1905. p. 10.
Michael Riffaterre. La Production du Texte, Seuil, Paris, 1979. p. 7ss.
Rotker, Susana: Fundación de una escritura. Las crónicas de José Martí. Cuba:
Casa de las Américas, 1991.
SODRÉ, N. W. História da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1966.
SODRÉ, Nelson Werneck. O Naturalismo no Brasil. Belo Horizonte: Oficina de
Livros, 1992.
225
SUPLEMENTO LITERÁRIO DE A MANHÃ. Autores & Livros (dedicado a Aluísio
Azevedo). N. 11. Rio de Janeiro, 5 abr. 1942. p. 167-182.
SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? Rio de Janeiro: Achiamé, 1984.
TERROU, F. & ALBERT, P. História da imprensa. São Paulo: Martins Fontes,
1990.
TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. Lisboa: Edições 70, 1978.
VERÍSSIMO, José. José Veríssimo. Teoria, crítica e história literária. Rio de
Janeiro: Livros Técnicos e Científicos; São Paulo, 1977.
VIVALDI, Gonzalo Martin. Géneros periodísticos. Madrid: Paraninfo, 1979.
ZOLA, Emile. Do romance. Tradução Plínio Augusto Coelho. São Paulo:
Imaginário/Edusp, 1995.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo