Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LITERATURA PORTUGUESA
Do mito Camões ao outro Camões de
José Saramago
Flávio Garcia Vichinsky
Monografia apresentada ao Programa
de Pós-Graduação do Departamento de
Letras Clássicas e Vernáculas para
obtenção do título de Mestre na área de
Literatura Portuguesa.
Orientadora: Profa. Dra. Marcia Arruda Franco
São Paulo
-2009-
1
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Agradecimentos
Toda a minha gratidão aos meus pais, eternos incentivadores.
À professora Josefa, alvores da literatura em minha vida.
A todos os meus professores e professoras, lavradores do meu ser.
Aos meus alunos e alunas, terreno fértil onde, hoje, semeio.
A toda minha família, amigos e colaboradores, meu sincero agradecimento.
2
ads:
Passam pássaros sobre as ondas,
Passam as ondas,
Ficam as naus.
Não mais as mesmas.
Tocaram-me as sombras de Escher,
Engaioladas no livro sobre a mesa da sala.
Sangrou-me o mar da caligrafia hermética,
Luminária d’umas letras aprendizes.
Fui caravela, Marcia.
Tudo o mais fica seu
E gratidão.
3
VICHINSKY
1
, Flávio Garcia. Do mito Camões ao outro Camões de Jo
Saramago. 165 p. Dissertação (Mestrado em Letras) – USP, São Paulo, 2009
RESUMO
Este trabalho apresenta, inicialmente, alguns pressupostos da
Estética da Recepção, como fundamento para demonstrar de que forma o
histórico de recepções da obra de Luis de Camões constrói esse poeta do
século XVI como um dos ícones basilares de toda a cultura portuguesa.
Investigam-se alguns registros das primeiras recepções críticas e criativas
do século XVI, XVII e XVIII, entre elas as de Diogo do Couto, Manuel de
Faria e Sousa, Severim de Faria e Bocage. Aborda-se o percurso
recepcional de Camões no século XIX, sob a influência dos ideais
românticos de Alexandre Herculano e Almeida Garrett, situando a
contribuição deles para a postulação mítica que persegue Camões até
nossa contemporaneidade. A pesquisa mostra também que a leitura pós-
romântica aponta para uma desconstrução mítica articulada, principalmente
por Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Jorge de Sena e, em especial, José
Saramago, de cuja obra romanesca, dramática e poética serão investigados
alguns exemplos dessa proposta de leitura alternativa, a qual leva à
construção de um “outro” Camões, mais humano e menos heróico que o
outro.
Palavras-chave: Portugal; Literatura Portuguesa; Camões; José Saramago;
Estética da Recepção
1
4
ABSTRACT
This paper presents, initially, assumptions of the Aesthetics of Reception
as a mean to demonstrate how the reception’s history of the works of Luis
de Camões puts this sixteenth century poet as the one of all Portuguese
culture’s icons. It was investigate the records of the first critical and creative
receptions at the XVI, XVII and XVIII centuries, including those of Diogo do
Couto, Manuel de Faria e Souza, Severim de Faria and Bocage. It
addresses the recepcional path of Camões in the nineteenth century, under
the influence of romantic ideals of Alexandre Herculano and Almeida
Garrett, placing their contribution to the mythical postulation that pursues
Camões until the present. The research also shows that the post-romantic
reading points to a mythic deconstruction articulated in the literature, mainly
by Oliveira Martins, Fernando Pessoa, Jorge de Sena and, in particular,
José Saramago, whose novelistic, dramatic and poetic works will be
investigated as some examples of this alternative proposal of reading, which
leads to the construction an “other” Camões, more humane and less heroic.
Key words: Portugal; Portuguese Literature; Camões, José Saramago;
Aesthetics of Reception
5
SUMÁRIO
1 - INTRODUÇÃO ..............................................................................................
1
2 - REVISITANDO A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO ............................................
6
2.1. O panorama inicial: Jauss e Iser .........................................................
9
2.2. Contribuição de Stierle e Gumbrecht ..................................................
20
3 - CAMÕES: DO POETA AO MITO .................................................................
34
3.1. Os séculos XVI, XVII e XVIII ...............................................................
36
3.2. O século XIX .......................................................................................
55
4 - GARRETT E CAMÕES COMO MITO NACIONAL .......................................
63
4.1. Camões no Camões de Garrett ..........................................................
65
4.2. Os Lusíadas no drama Frei Luis de Sousa .........................................
75
5 - CAMÕES: O MITO DESFEITO .....................................................................
82
5.1. O final do século XIX ...........................................................................
82
5.2. O século XX .........................................................................................
89
6 - SARAMAGO E O OUTRO CAMÕES ...........................................................
101
6.1. Camões no romance saramaguiano ...................................................
106
6.1.1. Camões em Monte Lavre .........................................................
107
6.1.2. Camões em Mafra ....................................................................
113
6.1.3. Camões em Lisboa ..................................................................
120
6.2. Camões nos versos de Saramago .....................................................
127
6.2.1. O velho do Restelo ..................................................................
129
6.2.2. A imagem do poeta .................................................................
134
6.3. Camões no teatro saramaguiano .......................................................
139
7 - CONCLUSÃO ...............................................................................................
152
Referências ........................................................................................................
157
6
"Quantos ledores, tantas as sentenças;
c'um vento velas vêm e velas vão."
Sá de Miranda
7
8
1. INTRODUÇÃO
A consolidação da figura de Camões como elemento dos mais
relevantes na cultura portuguesa é consenso entre os historiadores, literatos
e demais estudiosos do processo de formação histórica e social desse país.
A obra do poeta e a sua biografia, bem como a mitologia que as envolvem,
transformaram-no em um dos maiores e mais conhecidos símbolos de
Portugal, o que o coloca muitas vezes, ao longo da história, na condição de
modelo de poeta e homem, sendo os seus versos, para muitos, um exemplo
de perfeição e a sua vida, um “chamado ao patriotismo” para outros tantos.
Esse processo de “modelização camoniana” é perceptível nos registros de
recepção crítica e criativa desde o século XVI até os dias atuais, mostrando
que o interesse, não apenas literário, por Camões jamais cessou: o poeta,
sucumbindo quase incógnito em 1580, não morreu de fato. Antes,
imortalizou-se no imaginário coletivo como um mito. Camões está vivo nas
artes plásticas, sendo ele, ou os personagens de sua obra, temas de
pinturas e esculturas.
2
Está vivo mesmo como um “pseudo-conhecido”
na memória lusófona: ruas, praças e até estabelecimentos de comércio em
Portugal e no mundo lusófono recebem nomes em sua homenagem.
3
Está
2
Como por exemplo a estátua no largo Camões, em Lisboa, de autoria de Vitor Bastos e a erigida pela
Câmara Municipal de Leiria, de Fernando Pereira Marques; as pinturas de João Vaz (Hotel Palace de
Buçaco), Columbano (Museu Militar de Lisboa), Desenne (Museu Grão Vasco, Viseu), Fragonard
(ilustrações para a edição de “Os Lusíadas” do Morgado de Mateus), Lima de Freitas (Museu Militar,
Lisboa) e os azulejos de Jorge Colaço, no Hotel Palace de Buçaco.
3
Eduardo Lourenço, ao discutir no seu Mitologia da Saudade a relação entre o caráter do povo português
e a elevação do poeta ao patamar de símbolo da pátria, reflete a respeito da centralidade atribuída ao
poeta e à sua obra, ao longo dos mais de quatrocentos anos de recepção: “Para os portugueses, Camões
não será apenas o maior de seus poetas – era-o já, desde o século XVII (...) – mas o seu herói nacional”.
LOURENÇO (1999), p. 57.
1
vivo e perene principalmente na literatura, onde o interesse pelo poeta e sua
obra é sabidamente inegável. É fonte de inspiração para várias gerações de
escritores, especialmente quando falamos de Os Lusíadas, marco da
literatura portuguesa, ou como diz a professora Marcia Arruda Franco, O
poema (...) [que] divide, como um curso de água, a literatura portuguesa”.
4
Vemos Camões como pólo magnetizador de toda uma cultura, mas
vemos também o seu poema épico como pedra angular de toda uma
história literária, tão repleta de contradições como o são o próprio poema e
seu autor “zarolho”.
5
Torna-se necessário recordar os diferentes registros de
recepção criativa, isto é, de obras literárias em que se percebam elementos
da obra camoniana como parte das referências culturais de seus autores.
encontramos clássicos como Bocage, Garret, Pessoa e Saramago, entre
tantos outros que, em um meio cultural imerso na mitologia formada em
torno do poeta quinhentista, revelam posicionamentos diversos entre si
frente à obra, ao mito e ao poeta Camões. Alguns desses registros são
contemporâneos ao próprio poeta, como será visto adiante, e vão revelando
diferentes posturas, desde a negação até o enaltecimento desmedido.
6
Temos, então, que a recepção de Camões e de seu épico é uma
constante ao longo do tempo histórico, mas plural em suas manifestações,
tanto que chega ao século XX sob um paradigma que revela uma leitura
crítica, pondo em questão a apologética que norteou, em certos momentos,
4
FRANCO (1998), p. 381.
5
(...) E um bêbado o Camões que fora / Rico e morreu a mendigar, zarolho, / com uma pala verde
sobre um olho! Versos de “Petiz” de Cesário Verde, que se inserem num movimento inicial de
dessacralização da figura mítica camoniana. VERDE, Cesário (2005), p.78.
6
ALVES, Hélio J. S. O camonismo: da Sinagoga à Cabala. In FRANCO, Marcia Arruda (org.) Floema
Dossiê Camões – Caderno de Teoria e história Literária. Vitória da Conquista, UESB (no prelo).
2
a projeção da figura do autor quinhentista e a recepção (ou antes,
recepções) da sua obra, principalmente aquela levada a efeito no início do
século XIX. Vêm a campo, nesse momento, questões como a assimetria na
relação entre o produtor Camões e a recepção dos seus escritos ou dos
registros de recepção dos seus escritos, realizadas por leitores de
diferentes gerações, fazendo com que surja não um, mas “vários Camões”,
tão diversos quanto diversas são as formas de recepção de sua obra.
Que sabemos de ti, se deixaste versos(...).
7
É assim que José
Saramago, em 1966, principia refletir sobre essas questões, onde podemos
reconhecer a problamática acerca da projeção mítica do poeta. Lembramos,
a despeito de tal situação, do que escreveu Hans Ulrich Gumbrecht, a
respeito desse processo:
“Trata-se de uma assimetria comunicativa na qual não se
enfrentam mais um leitor e um sujeito histórico, mas um leitor e
um texto dissociado do seu produtor. Nesse caso, cabe aos
receptores gerar, dentro do processo de atribuição de sentido,
novas situações comunicativas nas quais o lugar do produtor
evidentemente é ocupado por uma figura projetada
(historicamente mutável).”
8
Acreditando, como a professora Marcia Arruda Franco
9
, que a
compreensão de uma obra literária, a qual se mantém como objeto de
interesse para os leitores durante tanto tempo, pressupõe a existência da
mesma enquanto material vivo da realidade histórica, ou produto
7
SARAMAGO (1966), p. 33.
8
GUMBRECHT (2003), p. 17.
9
FRANCO (2001), p. 33.
3
antropológico que se mantém em diálogo com as novas gerações de
leitores, teremos como ponto de partida esse e outros pressupostos
advindos da Estética da Recepção para investigar o diálogo de diferentes
gerações com Camões e Os Lusíadas, o que tem durado mais de quatro
séculos, chegando até a leitura tão específica realizada por José Saramago,
que propõe um “outro Camões”, tão diverso daquele projetado no terceiro
centenário da sua morte, em 1880.
O nosso aparato teórico-metodológico, guiado, como dissemos,
pela Estética da Recepção de Hans Robert Jauss e dos outros membros da
Escola de Konstanz fundadores de uma pragmática que nos permitirá
investigar a evolução da leitura de Camões ao longo do tempo, através do
paradigma comunicacional, que revitaliza a figura do leitor em seu próprio
tempo –, será exposto na primeira parte deste trabalho.
A segunda parte, apoiada nesse aparato teórico-metodológico, será
destinada à investigação de alguns registros de recepção que dialogam com
Camões e Os Lusíadas, desde o século XVI até o início do século XX,
mostrando a ascensão do que denominaremos “mito” Camões. Dizemos
“alguns registros” porque é inconcebível abarcar em um trabalho como este
a totalidade dos textos que tenham relação com o poeta quinhentista e seu
épico durante esses mais de quatro séculos de diálogo. A seleção será
pautada pela relevância dos registros frente ao objetivo maior desta
pesquisa, que é demonstrar a formação desse Camões mitificado, tratando
com maior atenção a produção de Almeida Garrett e a sua contribuição para
4
esse processo que impregnou a recepção do poeta quinhentista e sua obra
ao longo do século XIX.
A última parte será destinada à investigação sobre a evolução da
leitura de Camões a partir do final do século XIX, culminando com a obra de
José Saramago, tratando esse autor como representante legítimo de um
dos períodos mais significativos da história de Portugal: o período de
transição entre a ditadura salazarista e a redemocratização, ou seja, pré e
pós-Revolução dos Cravos. O que se pretende é situar José Saramago
como um dos leitores críticos, que trazem para a literatura e para o mundo
do final do século XX e início do século XXI, um recorte mais verossímil e
menos idealizado do poeta dos quinhentos, questionando a leitura imposta
a Os Lusíadas em mais de quatrocentos anos de sua existência e
mostrando, como lembra a professora Tereza Cristina Cerdeira da Silva , a
“sua crença de que, ainda hoje, tudo o que é sólido se desfaz no ar”
10
,
mesmo se tratando de um mito tão sólido quanto uma estátua de bronze
erigida em praça pública.
Pretendemos, com isso, prestar um contributo para que se perceba a
relevância dos mecanismos de leitura histórico-social, na postulação de
uma “ficcção pública”, ou seja, de um mito cultural - como Camões e a sua
obra. Estes mecanismos podem fazer emergir um questionamento sobre o
processo de formação do mito “Camões”, uma vez que envolvem produção
e recepção de obras literárias.
10
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da, De cegos e visionários: Uma alegoria finissecular na obra de José
Saramago. in BERRINI (1999), p.295, fazendo referência ao título do livro de Marshal Berman, “Tudo o
que é sólido se desmancha no ar”.
5
2 – REVISITANDO A ESTÉTICA DA RECEPÇÃO
A identificação de Portugal com Camões, por obra conjugada dos
acontecimentos históricos e da revolução cultural romântica, é um caso
único na cultura européia”.
11
É em consonância com essas palavras de
Eduardo Lourenço, propondo a relevância dos mecanismos históricos no
estabelecimento de um status quo para Camões e sua obra, que
defendemos a opção pela nossa diretriz teórica, exposta a seguir na forma
de um breve apanhado das principais idéias surgidas entre os estudiosos
alemães nos anos 60 do século passado, os quais priorizaram o papel do
leitor na formulação de um histórico de recepções das obras literárias.
Trata-se da Estética da Recepção, da Escola de Kosntanz
12
. Através dela,
pretendemos fundamentar a postulação tão decantada do status
mítico de Camões e do seu épico, levado a efeito através dos
“acontecimentos históricos” , como pressupõe Lourenço. A fim de que sejam
fixados alguns conceitos-chave que auxiliarão o processo compreensivo
desse fenômeno, passaremos à exposição insuficientemente completa,
mas suficientemente didática de um breve histórico da Estética da
Recepção, norteado por alguns escritos de Hans Robert Jauss, Wolfgang
Iser, Karlheinz Stierle e Hans Ulrich Gumbrecht, representantes da escola
de Konstanz e, especialmente, de Luis Costa Lima, divulgador e estudioso
dessa escola no Brasil.
11
LOURENÇO (1999), p. 57.
12
Devido à grande divergência na grafia, tomaremos por paradigma o registro de Luis Costa Lima,
“Konstanz”
6
Pretendemos com isso oferecer ao leitor um breve espaço para
conhecer os elementos que serão utilizados, de forma direta ou indireta, no
decorrer das nossas considerações e análises das obras, bem como na
abordagem dos históricos recepcionais das mesmas. Além disso,
acreditamos estar contribuindo para a divulgação desse paradigma
investigativo, que considera as diferentes recepções de uma mesma obra,
no momento em que, aparentemente, “a teoria literária está em vias de
retirar-se discretamente, sem alarde e quase apressadamente”
13
, isto é, em
um momento de tantas incertezas para nós, nestes tempos ditos pós-
modernos.
A Estética do Efeito e da Recepção é como se convencionou
denominar a abordagem da crítica literária que foi inicialmente desenvolvida
por estudiosos da Universidade de Konstanz, na Alemanha, durante as
décadas de 1960 e 70. Eles defendiam, diferentemente do que propunham
os métodos de análise de texto em voga na época, que o estudo da
recepção dos textos literários deveria receber uma atenção especial. Os
métodos até então utilizados não eram suficientes para os propósitos
daqueles estudiosos, que os consideravam “desinteressantes (...) por
enfatizarem a análise de conteúdo de uma obra literária sem relacioná-la ao
momento histórico, nem tampouco refletir sobre as diferentes expectativas
do público que o recebia.”
14
Zilberman
15
relaciona essa rejeição apontando
13
GUMBRECHT (2005), p. 49.
14
SANTOS (2000), p. 36
15
ZILBERMAN (1989), p. 54
7
o posicionamento dos novos críticos de Konstanz em relação à obra de
Ernest Robert Curtius, Literatura européia e Idade Média latina, de 1948.
Segundo essa autora, ao propor uma revisão das teorias de Curtius,
no momento em que o movimento estudantil clamava por uma reforma
educacional e defendia um questionamento básico dos métodos tradicionais
e valores morais, esses pensadores assumem um posicionamento que os
coloca em contraponto com as propostas de maior influência na época: o
New Criticism norte-americano, a reflexologia histórica da Alemanha
Oriental e o estruturalismo francês, todos com ampla aceitação na
universidade alemã durante os anos 50. Assim surge um movimento em
favor de um novo paradigma comunicacional, sintetizado pela Estética da
Recepção, uma abordagem que dominou o cenário da Teoria Literária na
Alemanha durante os anos 70.
Partidário do mesmo ponto de vista adotado por Zilberman com
relação ao momento histórico, Luis Costa Lima
16
nos mostra que os dois
teóricos mais representativos no alvorecer dessa Escola foram Hans Robert
Jauss e Wolfgang Iser, apontando que ambos têm a responsabilidade de
introduzir no cenário mundial as diretrizes pioneiras do que viria a ser a
Estética da Recepção e do Efeito. Vejamos, a seguir, as propostas iniciais
que deram origem a esse processo.
16
LIMA (2002), p. 36
8
2.1. O panorama inicial: Jauss e Iser
Publicada com o título Literaturgeschichte als Provokation der
Litereturwissenschaft (A história da literatura como provocação à ciência da
Literatura) a aula inaugural do recém-nomeado professor de línguas
românicas Hans Robert Jauss, em 1967, na Universidade de Konstanz, traz
à luz a Estética da Recepção. Com ela, Jauss posiciona-se insatisfeito com
o modelo de crítica literária em voga e sugere uma alternativa: uma nova
abordagem da Literatura na qual o texto não seja focalizado como estrutura
imutável e, ao mesmo tempo, o leitor seja considerado enquanto agente-
receptor da obra literária. Inicialmente, Jauss pretendia revalorizar uma das
ciências que mais se desenvolveram na Alemanha, a História, e também
conferir maior ênfase ao texto em seu valor estético
17
.
Jauss formula a sua proposta pautada, sobretudo, em um
questionamento acerca dos conceitos de seus antecessores, principalmente
de Gadamer, seu professor e Curtius. Exemplo disso é o conceito que ele
propõe para horizonte de expectativas. Partindo da proposta de Gadamer,
para quem esse horizonte de expectativas designava o que “pode ser visto
a partir de um certo ponto de referência”
18
, Jauss incorpora as reflexões
sobre os limites onde a obra de literatura é compreendida em um momento
histórico, ou de que maneira o leitor de uma época determinada a
compreende. Isso mostra o primeiro passo direcionado a uma ruptura com a
supremacia atribuída à hermenêutica, pela qual, para ele, a interpretação do
texto limitava-se a uma visão pouco ampla da história e do mundo. Para
17
LIMA (2002), p. 13
18
SANTOS (2006), p. 53
9
Jauss, horizonte de expectativas pressupõe que cada leitor reagia de forma
diversa frente à leitura de um texto, assumindo que tal reação é
condicionada pelo momento histórico, que influencia de maneira
determinante a constituição do repertório de conhecimentos utilizado pelo
leitor, na busca de uma classificação ou “julgamento” desse texto. A
proposta inicial de Jauss, a Estética da Recepção, busca re-significar o
horizonte de expectativas, mostrando qual é o relacionamento da obra com
o público (ou os públicos) da mesma, fazendo com que esta assuma o seu
caráter histórico, através de um trabalho de recuperação de sentidos, uma
vez que, segundo Costa Lima:
(...) o conjunto de eventos da literatura é fundamentalmente
constituído pelo horizonte de expectativas da experiência
literária de leitores, críticos e autores contemporâneos e
posteriores.
19
Jauss assume uma postura que privilegia o papel do leitor e do
contexto histórico na literatura. Ele tenta superar o que via como limitação
no estruturalismo de Barthes e na teoria do reflexo marxista
20
. Considerava
o reflexologismo marxista uma abordagem ultrapassada da literatura,
intimamente ligada ao positivismo, apesar de reconhecer neste tipo de
crítica, especialmente nos escritos menos dogmáticos de marxistas como
Roger Garaudy, Karel Kosik e, principalmente, Werner Krauss pontos que
se aproximavam dos seus interesses sobre a história da literatura:
19
LIMA (2002), p. 20
20
idem, p. 14
10
Seus métodos [dos formalistas e dos marxistas] captam o fato
literário no círculo fechado de uma estética da produção e da
representação (...) a vida histórica da obra literária é
impensável sem a participação ativa de seu destinatário.
21
Na proposta de Jauss, a alteração da perspectiva pela qual
normalmente os textos literários eram interpretados seria o ponto chave, e é
que ele reforça a abordagem pautada no papel do leitor enquanto
elemento preponderante do processo de construção do sentido. O processo
interacional texto/público leitor revitaliza a História através da historiografia e
história literária e é assim que Jauss encontra nos marxistas um ponto forte:
a perspectiva histórica da literatura.
Quanto aos estruturalistas, aproveita a prática de identificação dos
elementos formais do texto. Com isso, Jauss afirma que o significado
histórico de um trabalho não é estabelecido somente pelas qualidades do
trabalho ou pelo gênio de seu autor, mas, principalmente, pela corrente de
recepções tidas por esta obra de geração para geração. Em termos de
História Literária, Jauss prevê, desta maneira, uma historiografia mediadora
da relação entre passado e presente.
Com referência aos formalistas, Jauss critica em seus trabalhos a
tendência para romper o vínculo entre a arte e o seu contexto histórico,
onde se valoriza a arte pela arte em uma organização formal situada acima
da historicidade da obra literária. A intenção era romper com tais
concepções, as quais se mostravam insuficientes para o projeto da
21
idem, p.20
11
Estética da Recepção, mas ao mesmo tempo aproveitar delas o que fosse
julgado pertinente dentro do novo paradigma comunicacional.
Para Jauss, o histórico da recepção de uma obra literária leva a uma
reflexão sobre a formação dos cânones determinados por fatores históricos.
Neste caso, significados passados são compreendidos como parte da
formação da experiência presente. Formula-se, assim, o conceito de leitor
para Jauss, fundamentado não apenas no resgate dos horizontes de
expectativas, mas também no estudo sobre o efeito gerado pelo texto,
enquanto arte, no leitor, pois ele entende que não há conhecimento sem
prazer e nem prazer sem conhecimento, sobre isso pondera Costa Lima:
(...) o prazer estético implica uma atividade de conhecimento,
embora distinta do conhecimento conceitual. O sujeito do
prazer conhece-se no outro, traz a alteridade do outro para
dentro de si, ao mesmo tempo em que se projeta nessa
alteridade.
22
Refletindo sobre o significado de uma obra de arte e entendendo que
este pode ser alcançado se for esteticamente vivenciado, Jauss formula
os conceitos de fruição compreensiva e compreensão fruidora. Por fruição
compreensiva entenda-se “o ato de o leitor apropriar-se do texto, pela
leitura, compreendendo-o e por compreensão fruidora entenda-se o ato de
entendimento do lido que causa prazer no leitor’
23
. Na primeira, o mais
importante é a compreensão, enquanto que, na segunda, o mais relevante é
o prazer obtido da leitura efetuada. Ele apresenta essa experiência estética
22
Idem, p. 47
23
SANTOS (2006), p. 46
12
como sendo composta por três atividades simultaneamente
complementares: a Poiesis, a Aisthesis e a Katharsis.
De modo bastante simplificado, podemos dizer que Poiesis
corresponde ao prazer estético de se sentir co-autor do texto, uma vez que
o leitor se insere no texto, como encarregado de atualizar as possíveis
combinações de diferentes discursos, a polifonia de vozes, as visões do
narrador e dos personagens. Aisthesis é a consciência receptora, o prazer
de renovar a percepção do mundo, a participação no jogo lúdico do texto.
Katharsis é o prazer efetivo que liberta o leitor de seu cotidiano, levando-o,
através da fruição de si no outro, à liberdade estética, ou à capacidade de
julgar e envolver-se.
Para Jauss, após estabelecer o horizonte de expectativas, o crítico,
enquanto leitor, pode então determinar o mérito de um dado trabalho pela
medida da distância entre o texto e esse horizonte previamente
estabelecido, pois acreditava que o valor de uma obra decorria da
percepção estética que a obra fosse capaz de suscitar. Isso nos leva a
entender que Jauss, resvalando no conceito de estranhamento
24
, admite
que é boa a criação que contraria a percepção usual do sujeito, ou seja,
se a leitura da obra revela ao leitor que a mesma traz elementos que
superam as suas expectativas, acrescentando-lhe conhecimento, trata-se
de uma boa obra. Por outro lado, se a leitura da obra nada acrescenta ao
que o leitor esperava da mesma, não ultrapassando o horizonte de
24
Estranhamento é a denominação que o formalista russo Vicktor Chklovski atribuiu ao efeito criado pela
obra de arte ao gerar uma certa forma de recepção que se distingue e se distancia em relação à forma
como percebemos o mundo habitualmente. (CHKLOVSKI, Vicktor. A Arte como processo. em Teoria da
Literatura I: Textos dos Formalistas Russos, Edições 70, Lisboa, 1999).
13
expectativas, então o texto é de segunda categoria, pois traz a mesma
informação que muitos outros. Entretanto, a possibilidade de uma obra
trazer elementos além da expectativa do leitor e, infelizmente, estes
elementos não provocarem prazer estético no mesmo, fazendo com que o
leitor não reconheça o mérito dessa obra. Neste caso, para além do
conhecimento a ser acrescentado, o que está provocando o descrédito do
leitor é a falta do prazer” da leitura. No entanto, isto não é um problema
para Jauss. Para ele, a primeira experiência de expectativas desfeitas
provocará uma recepção negativa que poderá desaparecer para leitores de
gerações posteriores. Em um tempo posterior, o horizonte de expectativas
pode mudar e o trabalho não mais romper com as novas e outras
expectativas. Em vez disso, ele pode ser até reconhecido e instituído como
um clássico, ou seja, como um trabalho que contribuiu para o
estabelecimento de novos horizontes de expectativas.
Enfatizando o ato de recepção e desejando incorporar a aplicação
desta e da hermenêutica na compreensão da obra literária, Jauss propõe
uma história da literatura fundada na interação mútua do texto e do leitor,
sintetizando a recepção a partir de dois aspectos básicos: o caráter estético
e o papel social da arte:
Ao reexaminarmos daqui o dilema recíproco das teorias
formalista e marxista da literatura, surgirá uma conseqüência
não tirada por nenhuma delas. Se por um lado podemos captar
a evolução literária na mudança histórica de sistema e, de
outro, a História pragmática no encadeamento processual de
14
estados da sociedade, não deve então ser possível estabelecer
uma relação entre “série literária” e a “série não literária” que
contenha relação entre história e literatura, sem obrigar a
literatura a dissipar seu caráter de arte em uma mera função de
cópia ou imitação.
25
Jauss adentra, dessa forma, na esfera da sociologia, e é o próprio
Luiz Costa Lima, um dos maiores estudiosos da Estética da Recepção no
Brasil, que aponta a fragilidade dessa fundamentação:
A formulação seria suficiente apenas se a Estética da
Recepção tivesse por meta uma sociologia do leitor (...) para
que ultrapasse essa lacuna teria sido preciso trazer o leitor
para a estrutura da obra, isto é, mostrar que o seu papel vivo e
ativo é previsto pela própria estrutura da obra.
26
É nesse momento que Wolfgang Iser vem complementar a proposta
de Jauss, partindo da abordagem histórica e trazendo para a discussão a
interação entre leitor e texto. Assim como Jauss, Iser ajudou a fundar a
Estética da Recepção com a sua aula inaugural Die Appelstruktur der Texte
(A estrutura apelativa do texto) de 1970, no entanto, o maior
reconhecimento viria com a publicação de O ato da leitura
27
, publicado,
originalmente, em 1976.
O que interessa a Iser é como e sob quais condições um texto tem
significado para o leitor. Iser considera o significado como resultado de uma
25
JAUSS, Hans Robert. A história da Literatura como provocação à ciência da Literatura. em LIMA
(2002), p. 18.
26
LIMA (2002), p. 20.
27
ISER, Wolfgang. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. São Paulo, Editora 34, 1996.
15
interação entre texto e leitor, como um efeito que é sentido pelo leitor e não
uma mensagem que precisa ser encontrada no texto. Para Iser, os textos
trazem enunciados que podem ser compreendidos pelo leitor, mesclados
com outros enunciados que exigem do leitor uma complementação de
sentido, um preenchimento de seus “vazios”, ou seja, do que eles não
relatam explicitamente.
Essa função atuante do leitor faz com que ele se questione se a sua
formulação de sentido é a adequada à leitura em questão. E é mediante
essa condição que ocorre a interação do texto com o leitor, que se
diferencia de ler o texto em busca de uma mensagem oculta, ou de uma
interpretação única e verdadeira.
Adotando o preceito de Ingarden de que o objeto estético é
constituído apenas através do ato de cognição do leitor, Iser troca o foco do
texto como um objeto para o texto em potencial, nascido dos resultados do
ato da leitura. Para examinar a interação entre o texto e o leitor, Iser olha
aquelas qualidades do texto que o fazem legível, merecedor de ser lido ou
que influenciam a sua leitura, e aquelas características subjetivas
pertinentes ao processo de leitura, essenciais para a compreensão do texto.
Para Iser é através do preenchimento dos vazios e dos brancos de
um texto que o leitor chega ao sentido do mesmo. Entenda-se por vazios e
brancos aquilo que ele chama de “indeterminação”, explicado por Costa
Lima nos seguintes termos:
16
A inderteminação que não é exclusiva do texto literário, mas
nele se acentua encarna uma condição elementar do efeito,
que, de sua parte, é motivado pela presença na cena textual de
“lugares vazios”. Estes podem ser definidos como relações
não-formuladas entre as diversas camadas do texto e suas
várias possibilidades de conexão.
28
Esse envolvimento com o texto é visto como um tipo de emaranhado
no qual o estranho é compreendido e assimilado. O ponto de vista de Iser é
que a atividade do leitor é a de complementar o texto em uma postura ativa
frente ao mesmo, que “a peculiaridade do texto literário (...) está em uma
oscilação singular entre o mundo dos objetos reais e a experiência do
leitor.”
29
Ao mesmo tempo, entretanto, o sujeito da leitura é obrigado a se
dividir em duas partes, uma que se encarrega da concretização do ato de
ler e outra que se funde com o autor ou, pelo menos, com a imagem
projetada. Pelo preenchimento dos “vazios”, ou seja, a partir dos sentidos
atribuídos ao texto, o leitor se reconstrói. Assim, Iser concentra o seu
interesse no efeito produzido pelo texto, ou seja, na ligação que se
estabelece entre o texto e o leitor, pois, de acordo com ele, o texto,
enquanto sistema, reserva um espaço para o leitor atualizar a mensagem
ficcional. Esse espaço é dado pelos “vazios” que se oferecem para a
ocupação do receptor: À medida em que os vazios indicam uma relação
potencial, liberam o espaço das posições denotadas pelo texto para os atos
28
LIMA (2002), p. 26
29
ISER, Wolfgang. A estrutura apelativa dos textos, 1970. em LIMA (2002), p. 27.
17
de projeção do leitor. Assim, quando tal relação se realiza, os vazios
desaparecem.
30
O texto, portanto, é considerado por Iser como algo virtual,
uma vez que tanto a sua constituição, quanto a sua presentificação,
podem ocorrer na consciência do leitor, estabelecendo-se, então, o emissor
e o receptor da comunicação.
Com isso, o texto de ficção deve ser considerado um meio de
comunicação e o ato da leitura uma relação dialógica baseada na tensão,
ou seja, no assunto que é proposto, e na argumentação, na discussão
dessa proposta. Para Iser, a atividade básica do leitor reside na constituição
de sentido estimulada pelo texto, ou seja, na conexão dos seus elementos
constitutivos, nas articulações e na necessidade de combinação,
responsável pela coesão do texto, através do preenchimento de seus
vazios, e de seus brancos. Essa é a Teoria do Efeito Estético, conduzindo, a
partir dos processos de transformação, à constituição do sentido pelo leitor,
descrevendo a ficção como uma estrutura de comunicação.
Essa teoria é demonstrada de forma interessante no ensaio O jogo
do texto
31
, no qual Iser compara o processo do ato comunicacional de leitura
à estrutura dos jogos. Nesse ensaio, ele demonstra que a relação entre o
autor e o leitor, intermediada pela produção do texto e a sua recuperação de
sentido, é antes de tudo um ato de “interconexão”, concebida como “um
processo em andamento que produz algo que antes inexistia”
32
, ou seja, um
jogo no qual está, de um lado, o texto enquanto objeto subjetivo e, do outro,
30
ISER, Wolfgang. O Jogo do Texto, em LIMA (2002), p. 116.
31
Idem, pp. 105 a 118.
32
Idem, Ibidem.
18
o leitor na tarefa de recuperar o sentido dessa representação, preenchendo
os seus vazios.
Se por um lado Jauss e Iser lançam os primeiros contributos que nos
auxiliarão a compreender as diversas nuances nas recepções de Camões e
de Os Lusíadas, por outro, faltam-nos ainda alguns elementos que possam
indicar com maior precisão a elevação destes ao patamar de ícones da
cultura portuguesa. Os dois iniciadores da Estética do Efeito e da Recepção
levam-nos a perceber que as diversas leituras do poema, realizadas ao
longo dos séculos, influenciadas por fatores extra-textuais (históricos,
políticos, sociais...), foram levadas a cabo a partir de uma constante
reformulação dos horizontes de expectativas dos leitores, geração a
geração, possibilitando o surgimento de novas interpretações, sem que isso
diminuísse o valor estético da obra, que, por isso mesmo, se fixou como
clássico. E é no ato da recepção, no preenchimento dos vazios do texto,
que ocorreram as formulações de hipóteses sobre a função intencionada
pelo poeta quinhentista e a imagem projetada desse autor, variáveis de
acordo com o contexto no qual o leitor em questão estava imerso e com o
repertório de conhecimentos acumulado e compartilhado socialmente. O
avanço nessas questões acerca da função social do poema e das suas
interpretações, bem como da mitificação ocorrida, poderá ser atingido com o
estudo das contribuições de outros dois representantes da Escola de
Konstanz: Karlheinz Stierle e Hans Ulrich Gumbrecht.
19
2.2. Contribuição de Stierle e Gumbrecht
O modelo de leitura de Iser foi produtivamente suplementado pelo
trabalho de Karlheinz Stierle, um dos mais incisivos teóricos da segunda
geração da Escola de Konstanz durante os anos 70. Stierle prossegue a
idéia de Iser de que o preenchimento dos vazios do texto ocorre com a
formação de ilusões e imagens. Aceitando que isso é essencial para o
processo de leitura, ele rotula esse nível de leitura “quase pragmático”, uma
designação que o distingue da recepção de textos não-ficcionais (“recepção
pragmática”). Stierle sugere que a leitura quase pragmática precisa ser
compreendida com uma recepção que ultrapasse o campo textual:
uma forma de recepção dos textos ficcionais que se pode
denominar de recepção quase pragmática. Na recepção quase
pragmática, o texto ficcional é ultrapassado em direção a uma
ilusão extratextual, despertada no leitor pelo texto. A ilusão
como resultado da recepção quase pragmática de textos
ficcionais é uma extratextualidade, comparável à recepção
pragmática, que, ultrapassando o texto, se volta para o próprio
campo de ação.
33
Para chegar a esse conceito, em um primeiro momento ele distingue
as diferentes possibilidades de recepção do texto ficcional. Para Iser, parece
indispensável ultrapassar a idéia de uma recepção puramente material e
baseada na facticidade do texto, para sublinhar o perfil da recepção: "a
questão da especificidade da recepção é, antes de tudo, a questão da
33
STIERLE, Karlheinz. O que significa a recepção dos textos ficcionais? em LIMA(2002), p. 133. grifos
meus.
20
especificidade de sua construção".
34
Antes de tomar o texto como uma
constante que produz uma vasta gama de recepções, ele procura revelar a
constância no outro pólo, de maneira a obter as condições de melhor
descrever a interação texto-leitor. Daí a sua distinção entre recepção
pragmática e recepção ficcional, cada uma correspondendo a um texto da
mesma ordem (texto pragmático e texto ficcional). O texto pragmático é
aquele que apresenta um estado de fato, quer dizer, uma interpretação que
oferece um modo de orientação quanto à situação dada, interpretação
chamada de "elementar" porque o texto propõe-se tornar um referencial
para a ação.
O texto pragmático deve ser "programado" para que o seu leitor
possa recebê-lo de acordo com um esquema de ação previamente
conhecido tanto pelo autor quanto pelo leitor, que participam, ambos, do
mesmo saber social. Os dois, de uma certa maneira, prevêem seus
respectivos papéis: o produtor sabe o que o receptor espera dele, e este
sabe o que o texto e o autor devem lhe oferecer. Assim, escreve Stierle,
"visando o campo da ação, o texto pragmático se orienta para um além dele
mesmo".
35
Quanto à recepção do texto ficcional, muda-se de direção, porque
não se pode afirmar que a ficção remete ao campo da ação. Como mostra
ainda Stierle,
34
idem, p 136.
35
Idem, p. 135.
21
(...) os textos ficcionais são, no sentido próprio do termo, textos
de ficção somente quando se pode contar com a possibilidade
de um desvio (do que é oferecido pelo texto), desvio, na
verdade, não submetido à correção, mas somente interpretável
ou criticável.
36
o que permite uma nova manipulação seja dos conceitos, seja das
experiências, deixando ao leitor as oportunidades de experiência não
previstas pela recepção pragmática.
Isto posto, em certo momento Stierle sente a necessidade de formular
uma terceira possibilidade de recepção: a quase pragmática, onde o leitor
restringe-se a “criação de ilusões”.
37
Em seu ensaio O que significa a
recepção dos textos ficcionais?
38
, ele toma como exemplo a figura de Dom
Quixote de Cervantes para facilitar a compreensão desse tipo de recepção:
A recepção quase pragmática de textos ficcionais encontrou na
própria literatura, através de Dom Quijote, o seu monumento.
Dom Quixote é o símbolo do leitor em que a ficção se converte
em ilusão com tal força que, por fim, se coloca no lugar da
realidade.
39
É essa a maior contribuição de Stierle: partindo dos princípios
surgidos com a Estética da Recepção, institui um estatuto dos textos e suas
respectivas formas de recepção, a partir do estoque de conhecimento do
leitor-receptor determinado pelas condições histórico-sociais do meio e da
36
Idem, p, 137. Grifos meus.
37
FRANCO(1999), p. 33
38
STIERLE, Karlheinz. O que significa a recepção dos textos ficcionais? em LIMA(2002), pp 119 – 171.
39
Idem, p. 136.
22
época em que a leitura é realizada
40
, trazendo para este trabalho a noção de
que, em algum momento, a leitura de Os Lusíadas foi realizada de forma
quase-pragmática, fazendo com que o texto assumisse um caráter
vocacional, um chamamento ao nacionalismo, como será percebido ao
estudarmos a recepção do poema nos séculos XIX e XX.
Outra contribuição teórica relevante é a de Hans Ulrich Gumbrecht,
cuja trajetória tem início precisamente no ponto onde os estudos da Estética
da Recepção atingem o seu apogeu. Aluno mais brilhante de Jauss,
Gumbrecht tornou-se professor na Universidade de Bochum com apenas 26
anos. Simpatizava com a tese de seu mestre de extrapolar o texto como
instância última de determinação do sentido para buscar a consideração de
fatores histórico-culturais capazes de permitir a reconstrução das
experiências de leitura particulares. No entanto, num certo momento, ele
sente que o que deveria ser uma conseqüência importante da Estética da
Recepção a negação definitiva da idéia de uma verdade, de uma
interpretação “autêntica” e unívoca do texto acaba por desaparecer do
horizonte central das preocupações de Jauss. Discordante desse
desaparecimento, preocupa-se em rejeitar qualquer modelo normativo em
favor da escrita de uma “história descritiva”.
Em um primeiro momento, Gumbrecht vai partir da Estética da
Recepção para a criação de uma “Ciência da Literatura fundada na Teoria
da Ação”. Entenda-se por “teoria da ação” a abordagem sociológica de A.
Schutz, a partir da qual Gumbrecht “traz o literário para o mundo da
40
(FRANCO, 1999), p. 34.
23
práxis”.
41
Para ele, a constituição de sentido (já discutida por Iser e Stierle)
se através de três etapas: Vivência, o momento em que um objeto da
percepção sobressai-se entre tantos outros. Interpretação, quando o objeto
tematizado liga-se a outros do repertório do conhecimento prévio podendo,
assim, ser reconhecido. Motivo, que leva às ações ou experiências que
estão intimamente ligadas ao motivo.
Com isso, Gumbrecht reafirma a participação do “eu” na formação de
sentido, através desse esquema de ação. No entanto ele alerta que o
sujeito pode lançar mão, e geralmente o faz, de “esquemas socialmente
predeterminados”
42
, demonstrando a preponderância do que ele mesmo
denomina “conhecimento social” na constituição de sentido, pois,
Justamente por que o homem dispõe de um conhecimento
social a constituição de sentido no mundo da realidade
cotidiana excepcionalmente é realizada como produção
individual, sendo ao invés comumente possibilitada pelo
conhecimento social é que ele consegue se orientar em um
meio ambiente ultracomplexo.
43
Nesse sentido, Gumbrecht nos motiva a considerar não apenas a
função idealizada pelo autor, mas também como se processa a constituição
de sentido ao longo do tempo histórico e como os diferentes motivos vão se
acoplando ao repertório prévio de conhecimento para gerar as novas
recepções nas novas gerações de leitores.
41
LIMA (2002), p. 132.
42
GUMBRECHT (2003), p.29.
43
GUMBRECHT, Hans Ulrich. Sobre os interesses cognitivos, terminologia básica e métodos de uma
ciência da literatura fundada na teoria da ação. em LIMA( 2002), p. 177.
24
Preocupado com a aplicação prática de tais pressupostos teóricos,
ele sugere a aplicação prática de um método denominado “pragmática
textual histórica” em contraponto com uma outra pragmática, a normativa,
esta voltada aos interesses educacionais e de transmissão de
conhecimento e aquela com os procedimentos que possibilitam, através dos
textos e dos registros de recepção a eles atribuídos, reconstituir os
esquemas de ação e de experiência de seus produtores e receptores. A
metodologia da pragmática textual histórica foi aplicada e publicada em seu
livro As funções da retórica parlamentar na Revolução Francesa, de 1978,
para a investigação acerca da recepção e do efeito dos discursos políticos
franceses do século XVIII.
Dessa forma, e tendo como retrospecto a sua formação como
medievalista, ele assumirá a importância da “materialidade da
comunicação”, pois as peculiaridades desse tipo de análise demandavam
uma consideração redobrada dos fatores comunicacionais.
É através da preocupação com a materialidade da comunicação que
surge o “segundo Gumbrecht”
44
teorizando sobre o conceito de “campo não-
hermenêutico”. Segundo ele, a emergência de sentido nesse campo se
a partir da percepção e não do entendimento. Isso o afasta do que ele
mesmo chama de “hermenêutica acadêmica”
45
, a qual ainda permanecia
fortemente atrelada às premissas filosóficas do século XV: A hermenêutica
acadêmica, portanto, é uma invenção do século XIX, cujos pressupostos
44
FRANCO (1999), p.35
45
GUMBRECHT (1998), p. 141.
25
remetem ao século XV.
”46
Aqui, Gumbrecht certamente faz alusão às
premissas de Bacon e Descartes, inauguradores, no século XVI, da Teoria
do Conhecimento
47
, centrada no racionalismo e que, ainda no século XX,
impregnava trabalhos acadêmicos como os de Heidegger, Gadamer e
Dilthey principais expoentes na sistematização da hermenêutica
clássica
48
. Acreditar na emergência de sentido a partir do par binário
expressão/interpretação, tornando o corpo e a materialidade como algo
secundário, era questionável para Gumbrecht. Nesse momento sugere a
problematização do ato interpretativo centrado no sujeito racional,
cartesiano. Gumbrecht pressupõe um sujeito não-cartesiano que utiliza a
percepção sensorial para construir o sentido. Ao afastar-se de Descartes
para quem a experiência sensível, ou o conhecimento sensível, deveria
dissociar-se do conhecimento verdadeiro, puramente intelectual e racional
Gumbrecht assume a relevância das sensações no processo
comunicacional. Ao construir o sentido, para além do semântico, abre-se a
percepção das materialidades da comunicação: de formas, ritmos, imagens,
texturas, ou seja, as “formas da expressão”.
49
Essa nova abordagem não se impõe como um substitutivo ao
paradigma comunicacional, mas como uma perspectiva alternativa,
questionadora da primazia conferida ao resgate do sentido apenas pelo
entendimento e pela razão. É ele mesmo que esclarece a posição da teoria
46
GUMBRECHT (1998), p. 139.
47
CHAUI (1996), pp. 114 a 115.
48
De acordo com GUMBRECHT (1998), p. 140.
49
Idem, p. 146
26
das materialidades da comunicação em relação a outros possíveis
construtos teóricos:
Nosso esforço para circunscrever as “materialidades da
comunicação” como um campo de pesquisa e reflexão não
questiona necessariamente a legitimidade epistemológica de
outras posições teóricas contemporâneas, nem implica
qualquer pretensão de cobrir a totalidade do espaço que as
ciências humanas tradicionalmente têm ocupado.
50
Para Gumbrecht, de modo a compreender o conceito da materialidade
da comunicação, devem ser levados em consideração três conceitos-chave
que, para ele, caracterizam a pós-modernidade: destemporalização,
destotalização e desreferencialização. O primeiro é entendido a partir do
momento em que pensamos no modelo de temporalidade que dominou a
modernidade, ou seja, o tempo como fluxo constante que caminha do
passado em direção a um futuro sempre aberto. O futuro aparece, desse
modo, como resultado previsível do passado e do presente. A
destemporalização advém de um bloqueio do futuro. Supõe-se que o futuro
surge não mais como possibilidade aberta e animadora, mas como algo a
ser temido. O presente torna-se onipresente e, mais que isso, as
possibilidades técnicas de reprodução de cenários e ambientes do passado
dotaram a atualidade de diversos passados artificiais. Desse modo, cessa a
progressão inflexível do tempo, e a cultura pós-moderna passa a se
caracterizar pela permanência de um presente infindável. A noção de
destotalização acarreta a desistência das pretensões de universalidade dos
50
GUMBRECHT (1998), p. 146.
27
conceitos e sistemas de pensamento. Toda iniciativa teórica passa a
desvelar com clareza o seu caráter necessariamente regional e limitado.
Não é mais viável construir abstrações absolutas ou determinar critérios de
validade não contingentes. Por fim, a idéia de desreferencialização consiste
na perda progressiva das certezas oferecidas pela representação de um
mundo externo e objetivo.
O sentimento ocasionado por essas três noções é o de “um mundo
sempre menos estruturado e sempre mais viscoso e flutuante. Dizendo de
outro modo: o sentimento de um mundo não mais fundado na figura central
do sujeito”
51
, premissa fundamental na concepção do “campo hermenêutico”
para Gumbrecht.
Aplicando essas noções a uma teoria das materialidades da
comunicação, Gumbrecht quer deslocar essa preocupação da
hermenêutica, focada no sujeito, para um campo não-hermenêutico, em que
o sentido passa a ser determinado pelo objeto, e não mais pelo sujeito. Para
sustentar sua proposição, ele vai buscar apoio no conceito de "acoplagem",
proposto pelo biólogo Humberto Maturana
52
, o qual estuda como ocorrem as
interações entre dois sistemas (como o ato de escrever e o formato da
máquina de escrever, o papel, o som das teclas, a posição do corpo). Essa
interação contínua, para Maturana, produz um "ritmo" que pode, para
Gumbrecht, vir a ser determinante do sentido.
51
GUMBRECHT (1998), p.138.
52
Humberto Maturana, biólogo chileno que faz parte dos propositores do pensamento sistêmico, através
do qual se percebe a natureza toda como um sistema simbiótico e interdependente.
28
Lembrando Dewey
53
, Gumbrecht diz que a interação do organismo
com o ambiente acontece sempre com a participação de algum medium e é
a partir daí que se percebe o deslocamento epistemológico proposto por
Gumbrecht, ao apresentar as noções de materialidade da comunicação e de
campo não-hermenêutico. Esses temas partem da percepção de Gumbrecht
de que as ciências humanas afastaram-se de alguns tipos de fenômenos
devido à atenção quase exclusiva aos princípios da hermenêutica. Para ele
é justo reivindicar uma revisão da centralidade da interpretação como um
paradigma privilegiado.
Ao se desprender do pensamento binário - interpretação/expressão -
na busca obstinada de um significado, uma aproximação das dimensões
corpóreas e sensoriais da experiência, daquilo que é sensível ao nosso
corpo quando experimentamos o mundo, revelando a materialidade da
superfície, dimensão da presença, desprezada pela hermenêutica. Com a
possibilidade de “tematizar o significante sem necessariamente associá-lo
ao significado”
54
, aspectos estéticos da experiência podem ser
considerados. O campo não-hermenêutico propõe uma forma de
experiência do mundo que resgata a performance do corpo, performance
esta que se em relação à materialidade, deslocando-se o interesse pela
“identificação do sentido” para as “condições em que o sentido emerge”:
No ambiente hermenêutico, a pergunta importante se refere às
condições de resgate de um sentido que se tomava por
inconteste. (…) [no campo não-hermenêutico] não mais
53
John Dewey, filósofo estadunidense que propôs um sistema filosófico no qual conjugava o estudo
científico da psicologia com a filosofia idealista alemã.
54
GUMBRECHT (1998), p. 145.
29
procuramos identificar o sentido, para logo resgatá-lo; porém,
indagamos das condições de possibilidade de emergência das
estruturas de sentido.
55
Para Gumbrecht, não se trata de dedicar a atenção apenas à
semântica e às formas dos conteúdos, deve-se considerar “os mutáveis
meios de comunicação como elementos constitutivos das estruturas, da
articulação e da circulação de sentido”.
56
Percebe-se, então, que a estrutura
dos meios de comunicação apresenta uma relevância sobre o sentido e as
suas formas, e também determina as funções dos processos comunicativos,
interferindo sobre a capacidade de representação dos indivíduos
envolvidos.
Essa noção de presença busca a possibilidade de uma descrição do
mundo que não se baseia apenas na atribuição de significado, de
interpretação, deixando mais complexo o ato interpretativo ao associar a
existência àquilo que lhe é fisicamente perceptível. Em outras palavras,
Gumbrecht mostra que as experiências marcadas predominantemente por
uma “cultura da presença” demandam um engajamento corporal que não é
necessariamente considerado quando se pensa em processos de
interpretação do significado de um fenômeno. Se a experiência acontece na
interação entre organismo e ambiente, efetivada pela materialidade do
medium, muda-se o foco da “identificação” ou “atribuição de sentidos” para
as “condições de emergência de sentidos”.
55
Idem, p. 147. Grifos meus.
56
Idem, p. 132.
30
Esse conceito revela o fato de que, quando processamos o
entendimento de uma configuração do passado, o fazemos através de uma
transferência daquilo que somos capazes de apreender a partir da nossa
presença. A materialidade, como objeto de pesquisa, expressa a
possibilidade de desenvolver significados com base nos fenômenos
materiais, privados do significado atribuído. O intento é pesquisar
elementos constitutivos para formas de comunicação, evitando-se as
interpretações prematuras. Portanto, a materialidade e o sentido
desenvolvido a partir dela são considerados inseparáveis, logo, qualquer
metodologia de pesquisa que pretenda focalizar a materialidade deve
alcançar o nível de emergência de sentido e, por silogismo aristotélico, o ato
interpretativo deve considerar as condições materiais de produção do
sentido, ou seja, o campo não-hermenêutico.
Gumbrecht, portanto, contribuirá em nossa investigação lançando luz
sobre o processo de formação dos esquemas sociais, determinantes para o
estabelecimento de horizontes de expectativas nas recepções de Os
Lusíadas. Além disso, as reflexões a respeito do campo não-hermenêutico
terão papel preponderante na compreensão de como o mito Camões foi
sedimentado - com a contribuição da sua presença na forma de estátua,
pinturas ou título de poema - e de como a leitura de autores como Oliveira
Martins, Jorge de Sena e José Saramago fizeram surgir um outro Camões,
diverso daquele celebrado pelos ideais românticos.
31
É necessário compreender que os diferentes paradigmas
recepcionais estão intimamente relacionados com as condições históricas
do momento em que acontecem, e que os horizontes de expectativa vão
sofrendo modificações de acordo com o leitor, o local e o modo como se dá
a leitura do poema em questão. Os registros de recepção serão a nossa
principal fonte de investigação, pois é somente através deles que
chegaremos a formular hipóteses a respeito de como cada leitor, em sua
época, dialoga com o texto e vincula a ele determinados atributos, que
variam de acordo com elementos não perceptíveis no âmbito puramente
hermenêutico. Interessa-nos, portanto, a abordagem via Estética da
Recepção, condicionando a nossa linha de pesquisa a um campo que
extrapola os paradigmas hermenêuticos, sem no entanto desprezá-los,
antes, fazendo dessa abordagem dita “mais tradicional” um dos objetos de
análise, não único como pretendiam as correntes literárias na passagem
do século XIX para o século XX – mas tendo reconhecida a sua relevância e
o seu lugar na emergência dos sentidos.
32
3 – CAMÕES: DO POETA AO MITO
A fim de situar como Camões e Os Lusíadas se tornaramobjetos da
paixão nacional
57
, seguimos uma abordagem histórica, contemplando
alguns exemplos poucos, se considerarmos a abrangência do universo
literário camoniano da recepção da obra e da projeção do poeta em
diferentes épocas históricas. É através da concepção do texto como um
espectro da cultura de um povo, o qual revela em seu trajeto recepcional as
marcas de uma sociedade que se transforma e se renova constantemente,
que vamos discorrer a respeito da recepção do poema, “fonte revificadora
das energias e virtudes nacionais”
58
para alguns e “um épico doutrora”
59
para outros.
Os portugueses, numa espécie de homogeneidade ideológica,
construíram a nação, a partir de Afonso Henriques, com um ideário imperial,
cuja manifestação política, militar e cultural foi a primeira e a mais
duradoura da Europa moderna
60
. Cerca de 400 anos após a coroação de
Afonso Henriques, a nação encontrou um texto que aparentemente
sintetizou sob uma forma ideal a representação da própria identidade, fixada
pelos portugueses na figura de Os Lusíadas e de Camões, autor e obra cujo
poder, instituído e agenciado desde muito cedo num nível sem igual no
57
LOURENÇO (1999), p. 57.
58
Nas palavras de Teófilo Braga, citado por Alexandre Cabral na Revista Camoniana, Vol. II, 2ª. Série, de
1979, em um ensaio intitulado “A estranha participação de Camilo Castelo Branco nas comemorações
camonianas de 1880”.
59
Imagem criada por Cesário Verde no poema “O sentimento dum ocidental”.
60
SARAIVA (1981), p. 56.
33
espaço cultural português, se fez corresponder às expectativas imperiais e
ditou os termos da auto-imagem e identidade da nação.
É assim que vamos discorrer a respeito da formação do que
chamaremos “mito” de Camões, assumindo o conceito de mito como “ficção
pública” que Karlheinz Stierle assim descreve:
Os mitos são, por excelência, ficções públicas e não projeções
subjetivas do inconsciente. E apenas como ficções públicas
podem encerrar e determinar o horizonte de uma cultura, não
só o horizonte privado de expectativa de um leitor.
61
Ressaltando que a linha deste trabalho contempla, principalmente, a
historicidade da obra literária bem como as questões materiais que
condicionam a produção e a recepção da mesma, a proposta de Stierle é
bastante apropriada para situar a formação e sedimentação desse que é
sem dúvida um dos maiores mitos do mundo lusófono. Quando assume que
os mitos não são projeções subjetivas do inconsciente” ele se posiciona
contrariamente às abordagens de caráter subjetivo, que estudavam a
recepção do texto em caráter individual, ou do efeito estético que
determinada obra pode causar sobre um indivíduo, assumidamente o “leitor
ideal”. Essa proposta de extrapolar o “horizonte privado de um leitor” nos
parece bem interessante, por acreditamos que, se a recepção de uma
determinada obra em nosso caso Os Lusíadas –, constituída através de
uma diversidade de leitores e leituras, pode revelar o “horizonte de uma
61
STIERLE, Karlheinz. O que significa a recepção de textos ficcionais? em LIMA, Luis Costa, 2002. p.
162. Grifos meus.
34
cultura”, esse mesmo horizonte poderá nos esclarecer sobre como se deu a
formação dessa “ficção pública” chamada – nesse mesmo caso – Camões.
Ao longo do tempo, com o distanciamento entre o autor e os leitores
de gerações posteriores, vai se formando o “autor projetado” que, como
foi visto, pode ser reconhecido como ficção, dentro do que estabelecem
Gumbrecht e Stierle. Se, por um lado, Gumbrecht afirma que a recepção de
um texto literário, que vai se afastando do contexto de sua produção, leva o
leitor a projetar a figura de um autor, Stierle nos leva a considerar que esse
movimento de projeção envolve esquemas de ação os quais culminarão na
formulação de uma ficção reconhecida publicamente, ou seja, o mito.
Pretendemos, nas próximas páginas, reconstruir parte do trajeto das
recepções críticas e criativas da obra camoniana que contribuíram para
produzir essa projeção e procurar entender quais as instituições envolvidas
nesse processo, seus objetivos e estratégias para atingi-los. Dessa forma,
julgamos conveniente, para um melhor entendimento, agrupar as
perspectivas recepcionais em três fases distintas, de acordo com momentos
históricos, produção cultural e outras mudanças de paradigmas de leitura
dignos de atenção. Esse trajeto compreenderá, em um primeiro momento, a
recepção entre os séculos XVI e XVIII, preâmbulo indispensável para se
compreender de que forma o poeta e seu poema chegam ao século XIX. Na
segunda parte será encontrado um esboço do que foi a recepção de
Camões e de Os Lusíadas sob a influência romântica no século XIX,
especialmente a partir da leitura do poema garrettiano Camões, dado ao
35
público em 1825. A terceira parte nos levará diretamente à leitura
saramaguiana: acompanheremos a entrada do épico no século XX através
de Fernando Pessoa e Jorge de Sena, principais influenciadores na
construção do Camões de José Saramago. Com isso pretendemos munir o
leitor com os elementos mais relevantes para se reconhecer a projeção de
Camões ao patamar de mito, condição necessária para, mais tarde,
compreender como José Saramago reage a esse processo e nos apresenta
uma nova leitura do poeta e do seu épico.
3.1. Os séculos XVI, XVII e XVIII
Nesse período inicial, séculos XVI a XVIII, a imagem que melhor
sintetiza Camões é a de “príncipe dos poetas”. O tom dominante na crítica
que se ocupa da obra camoniana é de fato de exaltação exacerbada. Os
Lusíadas são comparados a outros poemas da antiguidade clássica, para
se demonstrar a sua superioridade, e Camões é incluído no panteão dos
grandes poetas, sendo comparado a Homero e Virgílio. Alguns autores
chegam mesmo a atribuir-lhe o primeiro lugar entre os poetas épicos.
Vejamos, a seguir, um apanhado de escritos dos principais leitores de
Camões daquela época inicial, onde a abordagem biográfica sobressai,
revelando uma recepção repleta de entusiasmo.
Em grande parte, deve-se a Diogo do Couto
62
, companheiro de
Camões, a imagem que o poeta vai ter a partir dos seiscentos. De sua
62
Além de amigo pessoal, como fica claro na Década VIII e outros escritos, Diogo do Couto foi também
um dos primeiros biógrafos e comentaristas de Camões, ao lado de Pedro de Mariz e Manuel Correia.
36
composição são as cadas da Ásia, prosseguindo o trabalho iniciado por
João de Barros, o qual escreveu três das doze, cabendo a Diogo escrever
as outras nove, apesar de não ter completado a última e de ver publicadas
em vida apenas a IV, a V e a VI. Nasce com esse historiador a alcunha de
Príncipe dos poetas do seu tempo” que perseguirá Camões ao longo de
todo esse período inicial.
Diogo do Couto reencontrou Camões no ano de 1568, em
Moçambique. O poeta, pobre, preparava-se para regressar a Portugal. O
historiador escreve sobre esse encontro na década VIII, furtada em 1615 e
encontrada apenas no século XVIII, comentando também a estada do poeta
na ilha, inclusive um dos episódios mais revisitados na biografia camoniana:
o naufrágio no Rio Mecom:
Aqui em Moçambique achamos aquelle príncipe dos poetas
dos nossos tempos Luis de Camões de quem fui especial
amigo e contemporâneo nos estudos em Portugal e na India
matalotes muitos tempos de casa e meza, o qual tinha ido
aquella fortaleza em companhia de Pero Barreto Rolim quando
foi entrar naquella capitania, porque desejou elle de lhe fazer
bem, e o pòr em estado de se poder ir pera o Reyno por estar
muito pobre porque da viagem que fez à China por provedor
dos defuntos (...), vindo de se foi perder na costa do Sião,
onde se salvarão todos despidos e o Camões por dita escapou
com as suas Lusíadas como elle diz nellas e aly se lhe afogou
37
huã moça china que trazia muito fermosa com que vinha
embarcado e muito obrigado.
63
Diogo do Couto faz menção à descrição do rio Mecon, no canto X de
Os Lusíadas, quando a deusa Tétis, ao mostrar a Gama a “máquina do
mundo”, fala do naufrágio de Camões:
Este [o rio Mecon] receberá, plácido e brando,
No seu regaço o canto que molhado
Vem do naufrágio triste e miserando,
Dos procelosos baixos escapado,
Das fomes, dos perigos grandes, quando
Será o injusto mando executado
Naquela cuja lira sonorosa
Será mais afamada que ditosa.
64
A respeito do poema épico, Diogo ressalta a sua magnitude, ao
afirmar que gastou “mais de cinco mãos de papel”
65
para comentar apenas
quatro dos dez cantos da obra:
Este inverno reformou Camões suas Lusíadas e me pedio que
lhas comentasse, o que eu comecei a fazer e tendo quatro
cantos findos que me embeberão mais de sinco mãos de papel
por ser o comento muito copioso (...)
66
Com esse relato tem início a recepção crítica de Camões que põe,
tanto poeta como obra, em lugar de destaque nos alvores da sua
existência. Ainda fornece os elementos que mais tarde farão a imagem do
63
Trecho da Década VIII, na revista HALP, nº. 15 – Setembro de 2000, p. 41
64
Os Lusíadas, Canto X, 128.
65
Uma mão corresponde, hoje, a 25 folhas. À época de Diogo do Couto, 24 folhas.
66
Trecho da Década VIII, na revista HALP, nº. 15 – Setembro de 2000, p. 41.
38
“príncipe dos poetas”, que nasceu e viveu em tristeza, culminar na projeção
de um Camões mitificado. A respeito dessa primeira impressão, conclui
Diogo do Couto:
Deixei-o no reyno pobre e sem remedio e estado, que quando
morreo, o enterrou a Confraria dos Cortesãos, e o depositarão
à porta do Mosteiro de Santa Anna, de banda de fora
chãmente. (...) no Reyno correo a mesma fortuna que na
Índia; e não eh de espantar que quem naceo para triste, não
pode ser contente.
67
Com Faria e Sousa, um dos mais aguerridos defensores da
excelência de Camões e do seu poema épico, em sua edição anotada de
Os Lusíadas de 1639, vemos o poeta das tágides comparado aos clássicos
gregos: “O escrever daquele modo não é concedido a algum ser humano
(...) rastrearam-no somente Homero, Virgílio e Luis de Camões. (...)”
68
Essa leitura - realizada em um momento no qual os intelectuais e
letrados portugueses ressentiam-se do domínio espanhol
69
e, portanto,
careciam de um herói que os representasse enquanto expoente não
português, mas sobretudo ibérico - já é anunciada por Severim de Faria, em
uma época na qual a prática de comparar os poetas renascentistas com os
gregos e latinos é procedimento tópico, colocando, por exemplo, Camões
em pé de igualdade com Homero e Virgílio:
67
Idem.
68
SOUSA, Manuel de Faria e. Edição Anotada de “Os Lusíadas”. Madri, 1639.
69
Conforme José Hermano Saraiva, nesse momento de anexação“o sentimento anti-espanhol foi pouco
mais que uma atitude literária de alguns homens das camadas intelectuais e, na alma do povo, reduziu-se
a uma nostalgia calada.”. SARAIVA (1981), p. 196.
39
Mas se por veneração da Antiguidade se não conceder a
palma a este nosso poema entre todos os heróicos, ao menos
seguramente se pode julgar por igual ao melhor deles.
70
Esse entusiasmo pelo qual fazia-se comparar Camões com os
clássicos para situá-lo de maneira idiossincrática foi sobremaneira
acentuado por Antonio de Sousa Macedo, intelectual que mais tarde viria a
ser embaixador na Inglaterra. No seu livro Flores de España, excelências de
Portugal, no qual traça um paralelo entre esses dois países peninsulares e
prova a supremacia de Portugal sobre o seu vizinho através da comparação
entre a origem, a cultura, a religiosidade e as Belas Letras onde afirma de
forma enfática a superioridade de Camões:
(…) en poesia (…) dió Portugal el Principe de los poetas, Luís
de Camões, en cuyo respeto podemos mejor llamar a Homero y
Virgilio primeros Camões, que a Camões segundo Homero o
Virgilio.
71
Nesse primeiro momento em que a recepção crítica se faz por meio
de comentários às obras, o meio utilizado para demonstrar a superioridade
de Camões e, por conseqüência, de Portugal e do seu povo, geralmente se
fundamenta na demonstração de que o seu poema épico corresponde a
uma realização dos preceitos estabelecidos naquela época para este
gênero. que toda a prática das Letras era, então, condicionada a tais
preceitos, pode-se dizer que a leitura de Os Lusíadas é condicionada pelos
que regiam a epopéia, gênero rigorosamente codificado. Essa codificação,
70
Comentário de Severim de Faria sobre Os Lusíadas, citado por PIRES (1982), p. 43.
71
MACEDO, Antonio de Sousa. Flores de Espana, excelências de Portugal” citado em CAMÕES de
Esther de Lemos, editora Verbo, 1972, p. 129.
40
que remonta à Poética de Aristóteles, é desenvolvida e pormenorizada ao
longo do século XVI, sobretudo com trabalhos de italianos como
Castelvetro, Piccolomini, Escaligero, Paolo Beni e Speroni
72
, e aplicada em
tratados de comparação sobre os quais não nos deteremos por não ser
esse o intuito deste trabalho. Apenas destacamos que existiu nesse período
a preocupação de construir um arquétipo do gênero, a partir dos preceitos
de Aristóteles, de Platão e das obras épicas de autores consagrados, desde
os da Antiguidade Clássica, com Homero e Virgílio, aos modernos como
Ariosto e Tasso. Havia em Portugal uma produção abundante desses
tratados que se ocupavam do gênero épico, das suas normas e dos seus
modelos e das comparações, quase sempre a propósito de Os Lusíadas,
mas também de outros poemas épicos produzidos no século XVI.
De acordo com Maria Lucília G. Pires,
Uma grande parte das leituras d’”Os Lusíadas fazem a
exaltação do poema seguindo este caminho: demonstrar que
se trata dum poema perfeito, porque obedece perfeitamente
aos preceitos do género.
73
Nesse viés, Severim de Faria, no Vida de Luis de Camões com um
particular juizo sobre as partes que há-de ter o poema heróico e como o
Poeta as guardou todas nos seus Lusíadas e Faria e Sousa no Juizo do
Poema, incluído na sua edição comentada de Os Lusíadas, voltam a nos
interessar.
72
RODRIGUES (2006), p. 36.
73
PIRES (1982), p. 25.
41
Severim de Faria aplica-se por demonstrar que Camões, na sua
epopéia, “guardou excelentemente” todos os preceitos da arte, concluindo:
Estes e os mais preceitos da arte se vêem tão bem guardados
neste poema como a quem quer que o é notório. Pelo que
pudera bem ser que, se Aristóteles o alcançara, não gastara
tantas palavras em louvar os de Homero.
74
Sem penetrar na questão dos tratados de comparação publicados
durante essa época, devido à necessária brevidade desse apanhado crítico,
vemos um Severim de Faria sempre empenhado em exaltar as perfeições
do poema camoniano, apontando, na adequação deste aos preceitos do
gênero sugeridos por Aristóteles e Horácio, a emulação dos modelos
antigos, que faria até mesmo o próprio filósofo grego se curvar ante a
superioridade de Camões sobre Homero.
Processo idêntico, posto que é tópico nesse período, utilizará Faria e
Sousa no Juízo do Poema:
... porque o meu Poeta escreveu em toda a espécie de estilos,
e de metros, e de prosas, sendo indubitavelmente tão grande
nuns como nos outros. Espanha somente em Luis de Camões
viu juntas as glórias de Homero, Virgílio, ndaro, Horácio,
Plauto...
75
O seu juízo fundamenta-se não apenas na teorização dos preceitos
do gênero para a epopéia, partindo destes para situar Camões como um
74
FARIA, Manuel Severim de. Discursos Vários Políticos, citado em CAMÕES de Esther de Lemos,
editora Verbo, 1972, p. 128.
75
SOUSA, Manuel de Faria e. Edição Anotada de “Os Lusíadas”. Madri, 1639. Trecho citado por Esther
de Lemos (1972). p. 130.
42
escritor completamente grandioso em “toda a espécie de estilo”. O uso do
termo “meu poeta” e da referência à recepção na Espanha levam-nos a
compreender essa introdução à sua edição do poema camoniano como um
texto destinado ao público espanhol, em defesa do maior poeta português e,
sobretudo, do povo português, em uma tentativa explícita de auto-afirmação
de identidade lusitana no contexto ibérico.
Como se vê, o entusiasmo desses dois camonistas exprime-se a
partir da exploração de uma idéia central na poética da época, que é a
necessidade de adequação da obra a um paradigma. Outro aspecto que
direciona a criação poética e a atividade crítica é o princípio da imitação,
universalmente aceito e considerado a base da criação poética. Seguir os
modelos consagrados é norma fundamental da poética do tempo. nessa
época um consenso no que se refere aos grandes modelos da poesia épica:
Homero e Virgílio.
Mas, de acordo com os pressupostos aristotélicos, largamente
defendidos durante o século XVI, imitação não é repetição ou cópia. A
fidelidade aos modelos precisa incluir a invenção, a criatividade dos
imitadores. A crítica que se ocupou da obra camoniana apropriou-se dessas
idéias sobre o princípio da imitação como mais um elemento constitutivo do
discurso crítico de exaltação de Os Lusíadas.
Como foi mostrado, exalta-se a retomada dos melhores modelos,
principalmente Virgílio, mas exalta-se também a sua arte de imitar. O seu
43
trabalho é de emulação, ou seja, é visto como aperfeiçoamento em relação
à obra imitada. O próprio Faria e Sousa escreve:
Camões imitou claramente todos esses (...) destilando-os
todos, de maneira que suas obras são a verdadeira quinta
essência de quantas há desse gênero.
76
Para ele, o processo de emulação reafirma a grandiosidade do
próprio modelo imitado. Como comentarista, Faria e Sousa recorre a esse
argumento para refutar algumas das críticas negativas feitas a Os Lusíadas,
quase a justificar aquilo que no poema parece fugir aos preceitos de
imitatio, como o processo de emulação.
Quanto às críticas formuladas contra a obra de Camões, para Maria
Lucília G. Pires elas nos chegam indiretamente. A autora é de opinião que
podemos conhecê-las apenas através da refutação a elas que surgem em
textos de exaltação
77
, portanto, muitas vezes descontextualizados pelos
defensores do poeta. Por outro lado, Hélio J. S. Alves nos mostra que essa
crítica negativa, apesar de possivelmente sublimada em favor do projeto de
consolidação da identidade portuguesa, existe:
Os poetas coevos da produção d’Os Lusíadas e os críticos
posteriores do poema, portugueses num e noutro caso, foram
rejeitados como párias durante séculos. Este processo
ideológico de juízo é inerente ao que pretendo chamar
camonismo ou discurso dominante dos comentadores de
Camões. Não será por acaso que a narrativa do camonismo,
76
Idem, ibidem
77
PIRES (1982), p. 25.
44
assente na bipolaridade encómio/repúdio, surge limitada a
montante e a jusante por termos buscados ao judaísmo, os
vocábulos de sinagoga e cabala. Com tais termos se designou
aquilo que o camonismo repudiava e lançava no opróbrio.
78
Exemplo desse repúdio, denunciado em obra literária - ou num
registro de recepção criativa - é o poema “Lusitânia Transformada”, de
Fernão Álvares do Oriente. Nele o autor mostra dois pastores que, após
uma peregrinação, chegam ao Templo da Poesia, o qual encontram
inteiramente destruído. A única estátua no Templo que se encontra intocada
é a estátua de Camões. Porém, ela não está sozinha, mas cercada de
inimigos invisíveis. Ao pé da estátua um esquadrão de Bávios e Zoilos
"que com muitos tiros pretendiam danificá-la"
79
. vio foi rival de Virgílio, e
Zoilo, de Homero. Portanto, é clara a idéia de que os poetas
contemporâneos de Camões, que também pretenderam escrever uma
epopéia, atacavam o poeta com críticas, na compreensão de Fernão
Álvares.
A obediência aos preceitos do gênero como critério utilizado para a
exaltação do Poeta é também o principal instrumento ao serviço daqueles
que o censuram. Como vimos, Os Lusíadas foi um poema exaltado como
realização perfeita do preceito de gênero épico, mas fica certo que também
foi censurado por desvios às normas do mesmo gênero. Essas são as duas
posições contraditórias nesse primeiro período.
78
ALVES, Hélio J. S. O camonismo: da Sinagoga à Cabala. In FRANCO, Marcia Arruda (org.) Floema
Dossiê Camões – Caderno de Teoria e história Literária. Vitória da Conquista, UESB (no prelo).
79
ORIENTE, Fernão Álvares do, Lusitânia Transformada. Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda,
1985.
45
Julgava-se o próprio preceito e sua definição era pautada em normas
rígidas. Na ausência de consenso na definição dessa norma, as atitudes
dos comentaristas dividiam-se e, o que segundo uns constituía a emulação,
era para outros um desvio inaceitável. O resultado disso foi a apreciação
positiva ou negativa das opções feitas por Camões ao longo do processo
criativo, considerando-as como “acertos” (adequação de norma e emulação)
ou como “erro” (desvio).
Manuel Pires de Almeida, em Exame sobre o particular juízo que fez
Manuel Severim de Faria das partes que há-de ter a epopéia, não
censura aspectos que considera incorretos na preceituação do gênero
apresentada por Severim de Faria, mas também recusa os elogios feitos à
obra de Camões como realização perfeita do modelo de epopéia.
Desmerece o poema, dizendo que nenhum descobrimento marítimo, por
mais admirável que seja, dará sujeito à epopéia”, que a proposição é mui
defeituosa”, que usar deuses pagãos e atribuir-lhes poder é semear
idolatria”. Quanto ao estilo, embora reconhecendo o mérito artístico/poético,
ataca os versos em prosa que humilham e abatem notavelmente o fio do
poema”. Critica também o excesso de erudição, a falta de novidade e de
artifício de muitos dos episódios, os latinismos -“desenterrar palavras
mortas da língua latina é enterrar a poesia
80
.
A acusação de “semear idolatria” leva-nos a outro elemento da
epopéia camoniana que gerou críticas ferozes: o recurso à mitologia pagã.
80
As considerações críticas desse autor, destacadas neste parágrafo, foram retiradas de Obras de Luiz
de Camões precedidas de um ensaio biographico, publicado pela Imprensa Nacional, em Lisboa, no
ano de 1860, disponibilizadas na página eletrônica da Biblioteca Nacional de Lisboa, conforme se nas
referências bibliográficas deste trabalho.
46
A contradição entre paganismo e cristianismo, o costume renascentista de
um poeta cristão invocar deuses pagãos, escandalizava a moral cristã.
Censura-se a mitologia de Os Lusíadas em nome da fidelidade que o
autor devia às crenças cristãs, em nome da lógica do próprio poema, pois é
ao Deus dos cristãos que o herói pede auxílio e, afinal, é de divindades
pagãs que lhe vem a salvação.
Os defensores do poeta e da sua obra usam como argumento contra
tais censuras, cujo fundamento é essencialmente religioso, que a principal
função da poesia é o prazer e o elemento mitológico, na epopéia
camoniana, é ficção poética ao serviço dessa função. Em consonância com
essa defesa está André da Silva Mascarenhas, que escreve “nessas fábulas
está a deleitação da poesia e disso usam e usarão todos os poetas cristãos,
como se vê de Camões”.
81
Esse é o mais importante processo de defesa da mitologia de Os
Lusíadas contra aqueles que condenavam a sua interpretação alegórica.
Novamente em defesa de Camões agora apoiando-se nas palavras do
próprio censor, Frei Bartolomeu Ferreira, primeiro leitor e crítico do poema
Severim de Faria faz referência à necessidade de descobrir a alegoria que
se oculta na fábula e de compreender que Júpiter e os outros deuses
representam a divina Providência e os espíritos angélicos.
Faria e Sousa também usa essa mesma abordagem, associando o
aspecto religioso ao poético, mostrando como a ficção mitológica é veículo
81
AMORA (1973), p. 68.
47
eficaz da expressão de verdades religiosas, pela característica que lhe é
intrínseca de gerar prazer :
Vamos agora ao que dizem [de Camões] de que faltou à
religião por invocar e introduzir Deus aos gentílicos. Digo que
devia se dizer ao contrário: que introduziu divindades gentílicas
ao Cristianismo, fazendo-as representar a verdadeira Deidade
com elevação e agudeza nunca alcançadas por outro poeta.
82
E ao comentar os primeiros versos do episódio do concílio dos
deuses escreve ainda: Digo desta meneira: o Poeta usa destes deuses
como grande filósofo e grande poeta.”
83
Essa bipolaridade entre os que vêem na obra de Camões mais
“erros” ou mais “acertos” também se reflete em outros poemas, registros de
recepção criativa desse período. Além do exemplo citado de “Lusitânia
Transformada” de Fernão Álvares do Oriente, podemos perceber a leitura
valorativa de Camões em poemas épicos que, sem pejo, orgulham-se em
apresentar em seus versos alusão a Os Lusíadas. É o caso de Francisco Sá
de Menezes com o seu “Malaca Conquistada” composto por 12 cantos em
oitava rima, à semelhança de Camões:
Canto as armas e o grande lusitano
Que desde a ocidental extrema parte,
(...)
84
82
SOUSA, Manuel de Faria e. Edição Anotada de “Os Lusíadas”. Madri, 1639. Trecho citado por Esther
de Lemos (1972). p. 131.
83
Idem, p. 149.
84
MENEZES, Francisco de. Malaca Conquistada por o grande Afonso de Albuquerque. Lisboa,
Mathias Rodrigues, 1634. citado no ensaio crítico Disputa por um nome de Luis da Sá Fardilha na Revista
da faculdade de Letras da Universidade do Porto, II série, Volume XXI, 2004, páginas de 61 a 87
48
versos que aludem aos dois primeiros versos de “Os Lusíadas”:
As armas e os barões assinalados
Que da ocidental praia lusitana
(...)
85
É certo que a emulação dos modelos antigos, como já foi dito, era
prática absolutamente comum na poética desse período e, assim, a
proposição do poema de Menezes poderia ter como modelo o Arma
virumque cano”
86
virgiliano. No entanto, observa-se especialmente a
aproximação com o modelo camoniano através das escolhas léxicas
“grande lusitano”, “ocidental extrema parte” mais próximas de Os
Lusíadas que da Eneida. nesse primeiro dístico fica clara a vocação de
uma obra que se aproxima do épico lusitano, guardando deste não apenas
a emulação (indireta?) dos versos de Virgílio, mas sobretudo o aspecto
formal oitava rima e também o esporádico recurso dramático utilizado
por Camões, como percebemos nesse episódio onde Silveira se oferece
como escudo protetor de sua amada e ela se volta a ele:
Ela responde: Mal partir-me posso
Sem ti, que és alma que este peito animas,
Do bem, faltando tu, me desaposso,
Que em ti consiste se teu bem me estimas;
87
Lembrando o tom melancólico da fala da esposa na despedida do Restelo:
Qual em cabelo: Ó doce e amado esposo,
85
“Os Lusíadas”, Canto I, 1.
86
“Canto as armas e os varões”. Eneida, I, 1.
87
Malaca Conquistada V, 28.
49
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Porque is aventurar ao mar iroso
Essa vida que é minha e não é vossa?
88
Teatro da Maior Façanha, e Glória Portuguesa é outro exemplo de
poema épico que empresta de Camões a forma e as imagens. Publicado
em 1642 por Diogo Ferreira Figueroa, essa epopéia em seis cantos com
oitava rima toma como modelo de invocação as mesmas figuras mitológicas
usadas pelo poeta dos quinhentos:
Vós, Tágides galhardas, quanto belas
Que entre cristal da veia fina
Mais que a pedaços neve, sois estrelas,
Para que as tenha a esfera cristalina:
Vós que habitando as águas cifrais nelas,
das filhas de Mnemósine divina
Envejas de outra cópia mais perene
Que a que se bebe em águas de Hipocrene.
89
Salta aos olhos a figura das Tágides, criação poética de André
Resende, arqueólogo e humanista contemporâneo de Camões, invocadas
em Os Lusíadas como apelo ao nacionalismo, por serem habitantes de um
rio português, o Tejo, e nesse poema, tratadas com a proximidade indicada
pelo pronome possessivo: E vós, Tágides minhas, pois criado / Tendes em
mim um novo engenho ardente (Os Lusíadas, I, 4). A retomada desse
posicionamento nacionalista pode ser transposto de Camões para Figueiroa
através da idéia de que elas causam inveja às ninfas da fonte Hipocrene (na
88
Os Lusíadas, IV, 91.
89
Teatro da Maior Façanha, e Glória Portuguesa, I, 2. Grifos meus.
50
Grécia) por sua superioridade: Envejas de outra cópia mais perene / Que a
que se bebe em águas de Hipocrene.”
Também na poesia lírica, podemos ver nos cinco tomos da Fênix
Renascida
90
um grande número de registros de recepção de Camões,
quase todos tomando os seus versos líricos como modelo ou mote para
rimas e sonetos. É o Dr. Antonio Barbosa Bacelar um dos maiores
entusiastas nesse processo de modelização, tendo um grande número de
poemas com profunda inspiração camoniana publicados. É o exemplo de
“À imitação do grande Luiz de Camoens Soneto A Jacob servindo por
Rachel” no qual, apenas partindo do título, podemos perceber o tom
apologético dado através do adjetivo “grande”, além do aproveitamento do
tema camoniano presente no soneto “Sete anos de pastor Jacó servia”.
Ainda na coletânea, o poema “Pegureiro do Parnaso”, em que Diogo
Camacho fala da Fonte Hipocrene, onde queriam todos os poetas beber,
mesmo pela noite, quando o deus Apolo não permitia. Segundo ele,
Camões foi um dos que beberam da fonte, sob a luz solar:
(...) E que Camoens famoso,(...)
Poeta, inda que torto, magestoso,
Só pelo tempo quente
Na fonte mitigava sua sede ardente;
Por isso assim cantou em altos brados
As armas e os varoens assinalados.
91
90
“Fénix Renascida ou Obras Dos Melhores Engenhos Portuguezes” é uma coletânea de alguns dos
poemas portugueses de maior circulação no século XVIII compilada por Matias Pereira da Silva, nos anos
setecentos.
91
Fênix Renascida, tomo V,p. 45
51
É nos dois primeiros versos desse excerto que vemos Camacho
sintetizar o que representou Camões para o público leitor desse período
inicial. À proposta de “poeta magestoso”, associa-se o comentário “inda que
torto”, propondo a dupla interpretação que se deu ao poeta e à sua obra
nesse período, aquela orientada pelos “acertos”- identificada pelo adjetivo
“magestoso” – e a orientada pelos “erros” – identificada pelo adjetivo “torto”.
Não poderíamos concluir sem evocar um dos maiores admiradores
de Camões no final do século XVIII, Manuel Maria Barbosa du Bocage, cuja
obra é comentada por Teófilo Braga - um dos principais articuladores do
processo que elevará o poeta de Os Lusíadas ao patamar de “herói da
pátria” no século XIX - dessa forma :
O povo portuguez conhece o nome de dois poetas, Camões
e Bocage; não porque repita os seus versos, como os
gondoleiros de Veneza as estancias de Tasso, ou os romanos
as cançonetas de Salvator Rosa, porque entre nós deu-se uma
constante separação entre o escriptor e o povo, mas porque de
Camões sabe a lenda do seu amor pela patria, e de Bocage
repete uma ou outra anedota picaresca. No entanto a
aproximação instinctiva d’estes dois nomes infunde um
sentimento que leva a procurar se existe alguma verdade
n’esta relação, que, uma vez determinada, será um seguro
criterio para avaliar Bocage.
92
Como as palavras de Teófilo Braga, e pela posição intelectual que o
mesmo ocupava àquela época, pode-se inferir que o processo paralelístico
92
BRAGA (1876), pp. 27 e 27.
52
entre ambos os poetas deve ter sido bastante considerado ao longo do
século XIX. Carlos Cunha, no seu estudo sobre A Construção do discurso
da história literária na literatura portuguesa do século XIX, nos mostra como
Bocage é camonizado”
93
pela analogia que os autores românticos fizeram
da sua vida com a do poeta renascentista. As semelhanças são fundadas
na idéia do poeta pobre e perseguido pelos infortúnios, incompreendido,
vítima de uma sociedade rude, exilado e até náufrago. Fundamenta-se essa
visão com o famoso soneto do poeta árcade:
Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa no fez perdendo o Tejo
Arrostarco sacrílego gigante:
Como tu, junto ao Ganges sussurrante
Da penúria cruel no horror me vejo:
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante:
Ludibrio, como tu, da sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura:
Modelo meu tu és... Mas, oh tristeza!...
Se te imito nos transes da ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.
94
Aqui Bocage invoca Camões, comparando as suas desventuras com
as dele, no entanto, ele lamenta o fato de se equiparar ao "grande Camões"
"nos transes da ventura" e não no dom de fazer versos, assumindo que
93
CUNHA (2002), p. 393 - 394.
94
BOCAGE (1995), p. 65.
53
aquele ainda é poeta de maior valor. Essa tentativa de “apropriação pessoal
da biografia camoniana”
95
vai encontrar reflexo em Garrett, como veremos
no próximo capítulo e como nos aponta Paulo Motta Oliveira: “Ambos,
Bocage e Garrett, encontravam semelhanças entre o que Camões foi e o
que eles eram ou desejavam ser.”
96
De uma forma geral, procurou-se silenciar a voz desses que ousaram
censurar Camões nessa época. Textos inéditos, manuscritos perdidos e até
nomes de críticos conscientemente ocultados fizeram o discurso
apologético sobre a obra do poeta ofuscar essas vozes dissonantes de
censura, caracterizando a recepção crítica e criativa do período como
predominantemente positiva, o que nos leva a refletir sobre a existência de
um horizonte de expectativas que orbitava em torno do fortalecimento de
uma identidade lusitana. A postulação de Os Lusíadas e do seu autor como
legítimos representantes da superioridade portuguesa sobre as demais
nações, sobretudo a espanhola, pode ser compreendida como agente
facilitador do processo que os transformou autor e obra em mitos, ou
ficções públicas, posto que as leituras que deles se fizeram, em sua grande
maioria, pautavam-se em pressupostos idealistas da soberania portuguesa.
E não apenas durante o período da anexação espanhola, exemplificado
pela leitura dos restauracionistas, pois vemos estender-se, mesmo após
1640, esse mesmo modelo de recepção, em um crescente movimento de
identidade patriótica
97
, adentrando o século XIX e culminado com as
95
OLIVEIRA (2004), p. 254.
96
Idem, p. 255.
97
José Hermano Saraiva relaciona o patriotismo e a leitura de Os Lusíadas da seguinte forma: “Uma das
formas menos arriscadas de ser patriota era ler Os Lusíadas. ; o grande poema foi a obra mais lida em
todo o século XVII.” SARAIVA (1981), p. 216.
54
comemorações do tricentenário da morte do poeta, em 1880, período que
passaremos a tratar a seguir.
3.2. O século XIX
O século XIX, quanto a Os Lusíadas, encerra uma recepção bastante
peculiar, devida em parte a uma mudança epistemológica no que se refere
à compreensão de História e Literatura e pelas mudanças sociais advindas,
sobretudo, da Revolução Francesa. Isso faz com que esse período desde
o final do século XVIII seja um período de transição entre a crítica
apologética clássica e a “nova crítica” embasada em um novo conceito
histórico de caráter evolutivo, exposto nos trabalhos de Hegel
98
, isto é, uma
concepção progressista da história que influenciou toda uma geração de
intelectuais na Europa, representada em Portugal por Alexandre Herculano
e Almeida Garrett, dentre outros.
A crítica do século XIX introduz a idéia de “progresso literário”. Ao
adotar como método o estudo comparativo das literaturas - propondo a
ruptura com o modelo antigo, que tinha por paradigma a reprodução da
Antigüidade Clássica, através da emulação/imitação - preconiza o estudo da
literatura como forma de expressão da sociedade da qual é fruto,
contribuindo para a formação da Identidade Nacional.
Influenciados também por Schlegel, que propunha a existência de
uma ligação íntima entre as tradições poéticas de um povo e as suas
98
CHAUÍ (2003), p. 176.
55
origens e construção da nacionalidade
99
, os críticos oitocentistas investiram
na determinação das origens do seu povo, língua e literatura, determinando
os elementos remotos pelos quais seria possível expressar as
características mais tradicionais da “nação portuguesa”.
É no século XIX, entre a crítica a respeito da situação portuguesa
frente às glórias do seu passado e a tentativa de afirmar a sua identidade,
que Portugal vai se defrontar com uma realidade assustadora: a
encarnação tradicional, sacralizada e simbólica de Portugal esfuma-se (...)
na lonjura
100
, diz Eduardo Lourenço, nos lembrando o porquê:
Ao mesmo tempo em que é ocupado militarmente, em 1807, de
uma maneira até então inédita, pelas tropas francesas e
espanholas, e depois tutelado pelos chefes militares ingleses
até 1820, Portugal vê o seu rei atravessar o Atlântico e instalar-
se no Rio de Janeiro.
101
É nesse panorama que surge o movimento literário em favor de uma
regeneração nacionalista que possa contribuir para trazer de volta a
grandeza da nação, evitando, dessa forma, uma “segunda morte”
portuguesa. Embasada nos ideais liberais e tendo como um dos principais
expoentes a figura de Almeida Garrett, “essa perspectiva de regenerar a
pátria marcará de forma indelével a literatura oitocentista”.
102
É dessa forma
que Paulo Motta Oliveira aponta um dos pontos mais relevantes na
99
Idem, ibidem.
100
LOURENÇO (1999), p. 58.
101
Idem, ibidem.
102
Em seu artigoCamões e Garrett: Navegações do Restelo a Cascais”, publicado na revista Scripta, da
PUC de Minas Gerais, o professor Paulo Motta Oliveira faz importantes reflexões acerca dessa
aproximação entre Camões e o projeto liberal, especialmente nos escritos de Almeida Garrett. OLIVEIRA
(1999), pp. 177 a 184.
56
formulação do novo paradigma ao qual se submeterá a literatura crítica e
produção literária no primeiro quartel do século XIX, mas adverte que
“existirá uma outra [perspectiva], em parte dela decorrente, a consciência de
que Portugal era um país que havia uma vez morrido, e que poderia
ainda voltar a perecer.”
103
Esse momento crítico pelo qual passou o país fez com que Camões e
o seu épico fossem considerados modelos de uma “dignidade nacional”.
Marco importante desse processo de canonização foi a edição de Os
Lusíadas levada a efeito pelo Morgado de Mateus em 1817. Obra
monumental, com ilustrações de artistas franceses que lembravam ao
mundo culto a “tragédia” e a “grandeza”
104
de Portugal, assim como a
célebre compilação da obra lírica camonioana, feita pelo Visconde de
Juromenha, na segunda metade do século, como bem assinala Vanda
Anastácio:
Como resultado desta renovada atribuição de uma identidade
simbólica ao poeta foram produzidas numerosas obras de arte
pintura, textos literários, música - tomando a Camões como
tema, bem como uma edição monumental da sua obra poética
publicada entre 1860 e 1869 pelo Visconde de Juromenha, um
dos membros que integrou a comissão encarregada de
localizar os restos mortais de Camões em 1854. O resultado
das pesquisas de Juromenha foi uma biografia de cerca de 300
páginas (elaborada segundo o método que Faria e Sousa
103
Idem.
104
LOURENÇO (1999), p. 58.
57
inaugurara no século XVII) e uma colecção de cerca de meio
milhar de poemas.
105
Reconstruía-se o século em que vivera Camões, atribuindo-lhe ainda
o status de “gênio” maior da poesia portuguesa. Acreditava-se que, embora
o poeta tenha vivido numa época julgada artisticamente débil devido à falta
de liberdade criativa imposta pelas rígidas regras poéticas, pelo processo
criativo trespassado pela Imitatio, pela educação jesuítica e pela contra-
reforma, ele elaborara os versos de Os Lusíadas com “originalidade” e
grande “elevação de sentimento”, pois fora capaz de representar, em um
mesmo poema, os elementos tradicionais do povo português e os da
Antigüidade Clássica.
É nesse sentido, e apontando a centralidade de Os Lusíadas no
processo de recuperação da Identidade Nacional, que Teresa Cristina
Cerdeira da Silva discorre a respeito da leitura que se fez do épico
quinhentista no século XIX:
Nascida a escrita poética de uma necessária convivência com
os feitos heróicos da nacionalidade e da maturação dessa
tradição na alma do poeta, tornar-se-ia ela própria, para um
povo ávido de manter presente a glória que se esfacelara, não
mais a ficção sonora e belicosa da História, mas a fonte de
onde a própria História se recuperaria. Se a História gerara a
ficção de modo a fazê-la “símbolo” de um tempo (...) a ficção
105
ANASTÁCIO, Vanda. Criação de um poeta nacional: Breve panorâmica das edições da Lírica
Camoniana entre 1595 e 1870. In FRANCO, Marcia Arruda (org.) Floema Dossiê Camões Caderno de
Teoria e história Literária. Vitória da Conquista, UESB (no prelo). Grifos meus.
58
se tornava ela própria a História, a partir da qual se fundaria o
imaginário da pátria.
106
Essa postura faz parte do novo projeto de literatura portuguesa
defendido por Garrett e também por Alexandre Herculano, no qual propõem
uma literatura criada a partir de elementos capazes de valorizar os tempos
históricos em busca da “regeneração” da literatura rumo à sua aplicação
educativa, de acordo com a doutrina liberal.
Comenta Alexandre Herculano a respeito das intenções dessa nova
proposta de literatura:
Enquanto assim entre nós a crítica se apoucava, um
sentimento vago de desgosto pelas antigas formas poéticas, a
influência da filosofia na literatura, a necessidade que sentia o
gênio de beber as suas inspirações num mundo de idéias mais
análogas às dos nossos tempos, e enfim, várias outras coisas
difíceis de enumerar, começaram a criar na Europa uma
poética nova, ou digamos antes, a fazer abandonar os cânones
clássicos. (...) Mas a Portugal não coube o figurar nesta lide. A
parte teórica da literatura vinte anos que é entre nós quase
nula: o movimento intelectual da Europa não passou a raia de
um país onde todas as atenções, todos os cuidados estavam
aplicados às misérias públicas e aos meios de as remover.
107
Almeida Garrett também compreende a literatura como um elemento
de base para a transformação da história do povo, e defende uma
106
SILVA (1999). Grifos meus.
107
Herculano, Alexandre. Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o trilho que ela hoje tem a seguir?
Artigo escrito para o Repositório Literário n° 1 em 1834 e citado por FIGUEIREDO (1916). Grifos meus.
59
composição que faça uso de elementos nacionais e populares. Esclarece
Garrett, na “Introdução ao Romanceiro”, publicado em 1843:
Estava corrido o primeiro quarto deste século, quando a reação
do que se chamou romantismo, por falta de melhor palavra,
chegou a Portugal. Vamos a ser nós mesmos, vamos a ver por
nós, a tirar de nós, a copiar de nossa natureza, e deixemos em
paz “Gregos, romãos e toda a outra gente.” Que se de fazer
para isso? Substituir Goethe a Horácio, Schiller a Petrarca,
Shakespeare a Racine, Byron a Virgílio, Walter Scott a Delille?
Não sei que se ganhe nisso, senão dizer mais sensaborias
com menos regra. O que é preciso é estudar as nossas
primitivas fontes poéticas, os romances em verso e as
legendas em prosa, as fábulas e crenças velhas, as
costumeiras e as supestições antigas: lê-las no mau latim
moçarabe meio suevo ou meio godo dos documentos
obsoletos, no mau português dos forais, das leis antigas e no
castelhano do mesmo tempo - que até bem tarde a literatura
das Espanhas foi quase toda uma. O tom e o espírito
verdadeiro português esse é forçoso estudá-lo no grande livro
nacional, que é o povo e as suas tradições e as suas virtudes e
os seus vícios, e as suas crenças e os seus erros. E por tudo
isso é que a poesia nacional há-de ressuscitar verdadeira e
legítima, despido, no conteúdo clássico, o sudário da
barbaridade em que foi amortalhada quando morreu, e com
que se vestia quando era viva.
108
108
Garrett, Almeida - Introdução ao Romanceiro - 1843 - citação em FIGUEIREDO (1916). Grifos meus.
60
De acordo com a proposta de regeneração da pátria, o resgate do
gênero épico teria possibilitado, do ponto de vista da leitura romântica, uma
identificação com a vocação épica peninsular. Isso tornou Os Lusíadas em
fonte documental das “crenças velhas” e das “superstições antigas” do povo
português. O paradigma de leitura que se impõe ao poema camoniano é
aquele que tenta resgatar uma certa imagem da obra e do autor como
fundadora da identidade portuguesa, como vemos nas palavras de Garrett:
“Tão sabida é a fábula e o enredo dos Lusíadas e a vida de
seu autor, que nem tenho que fazer mais explicações a esse
respeito (...)”
109
A identificação do “Peito Ilustre Lusitano” culmina no personagem
construído por Garrett no seu poema “Camões”:
Útil poderá ser à minha pátria.
Ela, e o seu amor, todo o inspiraram,
Á sua glória inteiro é consagrado.
110
O poema garrettiano, em consonância com a crítica portuguesa do
período, fundamentou a idealização do poeta como o cantor da pátria e
arauto das fatalidades inevitáveis
111.
Como anota Marcia Arruda Franco,
seguindo Eduardo Lourenço, “com Garrett, o não êxito, ou fracasso político-
econômico das Grandes Descobertas, é substituído pelo êxito poético”
112
. E
entenda-se esse êxito também encarnado na figura, agora mitificada, do
poeta Luis Vaz de Camões. Inicia-se, então, um período onde a figura do
poeta, grande e trágica, sobrepõe-se ao seu próprio poema, tornando-se
109
Garrett, Almeida (1986), p. 47. – Nota na primeira edição de Camões.
110
Idem, p. 62.
111
CABRAL (1980), p. 56.
112
FRANCO (1998), p. 381.
61
objeto de ficcionalização. O poema Camões é peça fundamental desse
processo:
“(...) o Camões de Garrett, além de reciclar a reflexão d’Os
Lusíadas sobre Portugal, promove, (...) a partir do título, a
identificação entre a obra poética e o poeta renascentista:
Camões, por assim dizer, vira livro”
113
.
Foi como livro, ou poema, que o poeta quinhentista assumiu uma
dimensão ficcional que teve extrema importância na sua postulação
definitiva como mito e paradigma patriótico.
113
FRANCO (1989), p.4. Grifos meus.
62
4 – GARRETT E CAMÕES COMO MITO NACIONAL
A perspectiva romântica de leitura do poético visível em Almeida
Garrett foi, sem dúvida, condicionada à interação do escritor com o
momento histórico em que viveu. Garrett teve no início do século XIX um
ambiente apropriado para a formulação dessas novas hipóteses literárias
apontadas anteriormente. Foi graças ao ambiente político nacional a
partida da família real, o regime absolutista, a tomada de consciência que
aflorava em certos setores da sociedade sobre a necessidade de se olhar
para dentro de Portugal, juntamente com a falência da imagem secular de
Portugal como cais de partida
114
que Garrett propõe, através da sua
produção crítica e criativa, uma nova perspectiva de leitura do passado,
buscando a recuperação da identidade portuguesa através da Literatura e
das Artes.
Nessa perspectiva, devemos lembrar que Garrett é considerado o
“fundador” do Romantismo português, publicando as obras que geralmente
são tidas como as pioneiras desse período literário: Camões, em 1825 e
Dona Branca em 1826, ambas publicadas na França. Outro aspecto a se
recordar é que foram de sua iniciativa a criação do Conservatório de Arte
Dramática, da Inspecção-Geral dos Teatros, do Panteão Nacional e do
Teatro Normal, hoje Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa, indicando que
Garrett procurou também renovar a produção dramática nacional, não
114
SILVA (1999), p. 2.
63
apenas como autor de várias peças teatrais, mas como burocrata, na
tentativa de igualar, ou antes, suplantar os modelos vigentes em outros
países da Europa.
Na verdade, a produção literária de Garrett foi bastante profícua,
tendo ele se dedicado a quase todos os gêneros literários, além dos textos
de ordem pragmática. Em praticamente todas as obras podem ser
observados elementos que apontam para essa relação do escritor com a
nova proposta de literatura e, especificamente para esta pesquisa, a sua
relação com a construção da figura mítica do poeta Camões e da
sacralização do poema, Os Lusíadas.
Evidentemente, é preciso privilegiar o poema Camões, publicado
durante o exílio em Paris, e a peça teatral Frei Luis de Sousa, de 1843,
registros permeados pela presença do Poeta quinhentista, com cuja obra
dialogam diretamente e nos permitem acompanhar a solidificação do mito
em que se foi transformando o autor e o poema. A seguir essas obras de
Garrett, abordadas como registros de recepção criativa, serão
contempladas no sentido de resgatar nelas alguns apontamentos sobre a
participação de Almeida Garrett no paradigma recepcional de Camões
durante o século XIX e na construção da imagem do poeta como herói
romântico.
64
4.1. Camões no Camões de Garrett
Teresa Sousa de Almeida escreve que Camões nunca foi um texto
inocente.”
115
De fato, o projeto garrettiano de recuperação da identidade
portuguesa encontra forma apropriada nesse poema – composto entre 1824
e 1825, longe da pátria cuja vocação principal é criar a imagem de um
herói nacional que resgate a pátria do seu sono profundo. A aparente
inocência romântica dos 3.704 versos brancos, que compõem os seus 10
cantos, é prontamente abalada ao se perceber que o Camões-personagem
está intimamente ligado a uma palavra, ou antes, a um sentimento
compartilhado por todos os portugueses: a saudade
116
.
É inicialmente pela escolha lexical que percebemos Garrett, autor que
padeceu sob o absolutismo do infante D. Miguel, valorizar a pátria através
da língua portuguesa. A palavra saudade não encontraria tradução em
outras línguas, pelo menos nas conhecidas por Garrett, como ele mesmo
deixa claro em nota, na primeira edição:
A palavra saudade é porventura o mais doce, expressivo e
delicado termo de nossa língua. A idéia, o termo por ele
representado, certo que em todos os países o sentem; mas
que haja vocábulo especial para o designar, não o sei de
nenhuma outra linguagem senão a portuguesa.
117
115
ALMEIDA (1986), p. 25.
116
A saudade, como sentimento compartilhado pelos portugueses, é um conceito muito bem discutido em
Mitologia da Saudade e Labirinto da Saudade. LOURENÇO (1999) e (2000).
117
Camões. Nota A do primeiro canto. 1ª. edição. Grifos meus.
65
A palavra, que abre o poema, indica o sentimento que
acompanhará o protagonista Camões durante toda a narrativa, o que levará
o leitor lusitano do século XIX a desenvolver certa simpatia por ele, pois
compartilham o mesmo padecimento. Para o poeta-personagem, a chegada
ao solo pátrio desperta uma mescla de saudade e nostalgia e colabora para
a construção de uma aura taciturna e melancólica, condizente com a
estética romântica. Para esse fim, logo de início, Garrett representa a
chegada de Camões-personagem, como um nobre “guerreiro”, entristecido
pelo sentimento que a pátria despertava nele:
“Pátria, alfim torno a ver-te” – E lacerando
Entre os lábios mordidos o ai sentido
Que as piedosas palavras lhe seguia
Recaiu na tristeza taciturna
De que a idéia da pátria o despertara.
118
Recaindo na “tristeza taciturna”, o Camões garrettiano mostra que
era triste no exílio e continua sendo ao retornar e perceber a pátria
dominada pelos usurpadores do poder, ou seja, a saudade que sentia no
exílio, causada pelo distanciamento da pátria, era agora substituída pela
sensação de não se reconhecer nessa mesma pátria, ou a saudade de
tempos melhores. Sentindo-se um estranho, o poeta-herói contrapõe-se aos
cortesãos, seja pelos nobres sentimentos patrióticos, pelas ações
cavalheirescas, ou pelas características físicas, como se na descrição
elaborada por Garrett:
118
Camões, I, VI. Grifos meus.
66
(...) Na tez crestada
Honrada cicatriz, que envergonhara
Adamados da corte, dá realce
Às feições nobres do gentil guerreiro.
119
Apesar da altiva e nobre figura, a melancolia é o sentimento
predominante no Camões-personagem, caracterizado como o guerreiro que
padeceu fisicamente, servindo à pátria tão querida (veja-se a cicatriz), e
sentimentalmente, pela ingratidão dessa mesma pátria e pela
impossibilidade de concretizar o amor com Natércia (para Garrett, D.
Catarina de Ataíde). A perseguição que sofre por parte do “vingativo
Conde”
120
(para Garrett, D. Antonio de Ataíde) e a falta de quem poderia lhe
valer na corte em momento tão difícil o fazem reconhecer a ingratidão e o
abandono:
(...) Só no mundo,
Que me restava? Perecer com ele [o pai],
Ou por um nobre feito despicar-me,
Vingar a afronta duma pátria ingrata.
121
No entanto, para conferir ao poeta-personagem a aura de herói
romântico, Garrett mostra que, apesar de todo o sofrimento amoroso, a
motivação que o leva a partir faz parte de uma missão maior, ou seu fado.
119
Idem. Grifos meus.
120
Camões, III, XIV.
121
Camões, III, XV. Grifos meus.
67
Assim, após o sonho místico com D. Manuel, resolve partir para a Índia. O
Amor da pátria”, escrito em letras flamejantes sobre o coração de D.
Manuel durante o sonho de Camões, é sentimento que sobrepuja o
sentimento de ingratidão e mesmo o amor do jovem poeta por Natércia, pois
é ele, esse sentimento patriótico, que justifica a partida de Camões,
fazendo-o, para Garrett, o cantor mais da pátria que do amor:
Uma só coisa – confessá-lo é força,
Mas que dizê-lo peje – acobardava
A tenção resoluta. Ir mar em fora
A terras lá tão longes, e deixá-la,
Deixá-la... e sem esp’ranças, nem ao menos
De inda a tornar a ver! ... Sabeis quem digo;
Poupai-me a dor de proferir seu nome.
Dura e ferida n’alma se travavam
Batalha, amor e pátria. Amor vencia
Quase... não triunfou...
122
Mesmo mergulhado em profunda nostalgia, Camões-personagem
aceita o seu inevitável fado, como cabe a um herói. A saudade e a
necessidade de cumprir seus deveres como patriota interagem na forma de
“doçura e sofrimento”
123
, sentimento bem conhecido pelos portugueses
nesse período. O herói romântico garrettiano nada mais é do que o eco e
122
Idem, III, XXII. Grifos meus.
123
LOURENÇO (1999), p. 59.
68
reflexo das vozes liberais que anunciavam a vinda de um novo Portugal e,
conseqüentemente, a voz do próprio Garrett, ele também poeta exilado.
Fundido ao enunciado do Camões-personagem, vemos o discurso do
sujeito poético (poderia ser chamado de narrador), no qual a saudade,
convertida por vezes em nostalgia, é também o sentimento que se faz
presente num primeiro momento. Afastado da pátria, ele anseia pelo
regresso à mesma:
À foz do Tejo – ao Tejo, ó deusa, ao Tejo
Me leva o pensamento que esvoaça
Tímido e acovardado entre os olmedos
Que as pobres águas deste Sena regam,
124
Também nos últimos versos percebemos um enunciado que insiste
em salientar a distância da pátria e a indignação pelo pouco cuidado com as
memórias gloriosas do passado português, o que poderia ser sintetizado
também pelo mesmo sentimento saudosista:
Lira da minha pátria, onde hei cantado
O lusitano – envelhecido – nome,
Antes que nesse escolho, em praia estranha,
Quebrada te abandone, este só brado
Alevanta final e derradeiro:
Nem o humilde lugar onde repoisam
124
Camões, I, I.
69
As cinzas de Camões, conhece o Luso.
125
É, portanto, através da saudade que podemos perceber o cruzamento
dessas duas enunciações complementares dentro da obra, ligadas pelo
mesmo sentimento: a voz do narrador-sujeito poético justifica e colabora
com a voz do Camões-personagem, tornado o caráter heróico mais
verossímil.
Pode-se considerar ainda, como sugere Teresa Sousa de Almeida
126
,
a voz do próprio Garrett-autor, presente nas notas e nos prefácios. Garrett
lança mão do artifício de reproduzir nas notas um texto paralelo ao poema,
paratexto que, à primeira vista, possui um cunho didático, mas é também
revelador do sentimento que muito se assemelha ao do seu Camões-
personagem, vivenciado nos anos de exílio quando, apartado daqueles a
quem amava e consciente da decadência da pátria pelas mãos dos
usurpadores do poder, viu seu poema ser publicado na clandestinidade:
Era, de mais a mais, obra de um proscrito: apenas se
anunciava aos amigos, ao ouvido. um ano depois de
publicada e mais de meia extraída a edição, é que dela se
pôde fazer aviso nas folhas públicas de Portugal.
127
O autor revela consciência daquela sua situação e da situação em
que estava a pátria. Isso é mostrado em uma das notas na segunda edição,
refletindo sobre essa mesma condição de exilado, que experimentava em
conjunto com um amigo, o Sr. J. V. Barreto Feio:
125
Camões, X, XXIII.
126
ALMEIDA (1986), p. 25.
127
Camões. Prefácio à 1ª. edição. Grifos meus.
70
(...) ambos proscritos, ambos pobres, mas ambos resignados
ao presente, sem remorsos do passado e com esperanças
largas no futuro (...)
128
É sob a influência da saudade que Garrett anseia pelo reencontro de
Portugal consigo mesmo. O autor demonstra uma saudade do passado
glorioso de sua pátria e se confessa “humilde e desconhecido poeta”
129
que,
“convocando as glórias do passado”
130
indiretamente denuncia as “misérias
do presente”
131
, como se percebe na nota que alude à cena da morte do
Camões-personagem, ocorrida no mesmo momento em que Portugal perde
a autonomia política para a Espanha:
Juntos morreremos... e expirou coa pátria
É notável coincidência, e que muito lisonjeia o meu pequenino
amor próprio, que enquanto eu, humilde e desconhecido
poeta, rabiscava estes versinhos para descrever os últimos
momentos de Camões, o Sr. Sequeira imortalizava em Paris o
seu nome e o da sua nação com o quadro magnífico que este
ano passado de 1824 expôs no Louvre, em o qual pintou a
mesma cena. Valha-nos ao menos, descaídos ou esquecidos
como estamos, que haja ainda portugueses como o Sr.
Sequeira que ressucitem, de quando em quando, o
adormecido eco de nossa antiga fama.
132
É de se notar, como dissemos, que esse mesmo sentimento
saudosista é compartilhado pela nação portuguesa num momento de
128
Camões. Nota B do primeiro canto. 2ª. edição. Grifos meus.
129
Camões. Nota D do canto X. 1ª. edição.
130
ALMEIDA (1986), p. 16.
131
Idem, ibidem.
132
Camões. Nota D do canto X. 1ª. edição. Grifos meus.
71
absoluta incerteza quanto ao seu futuro e soberania. Garrett, mesmo nas
notas e prefácios, não apresenta um texto desprovido de intencionalidades.
Na verdade o que ele faz, expondo a sua experiência como exilado de um
regime político absolutista, é compilar em seu poema, com o uso dos três
discursos que mutuamente se justificam, o que Teresa Sousa de Almeida
chama de voz da consciência nacional” que renega o presente e anseia,
saudosamente, pelo regresso das glórias passadas. Segundo a mesma
estudiosa:
A invocação da sua [de Garrett] experiência como proscrito e
desterrado, a sua sensibilidade, o seu Saber, tudo se torna,
assim, numa forma de Legitimação do seu próprio poema.
133
A legitimação que ele pretende atingir não se apenas ao fundir a
sua voz, o seu sentimento e experiências aos do poeta-personagem, ou
declará-lo como “mestre e herói”
134
, mas também ao evocar imagens
135
que
se fazem presentes no imaginário coletivo, as quais ilustram e trazem para
o mundo das materielidades a vida e a obra do poeta Camões.
A construção desse Camões-herói, cantor da pátria, resulta da fusão
entre a vida e a obra do poeta em uma coisa só. Esse novo mito também
determinou naquela época a leitura e interpretação de Os Lusíadas. Assim
vemos Almeida Garret participar do processo que fará, como diz Eduardo
Lourenço, “o Livro [Os Lusíadas] existir menos que o seu autor mitificado”
136
.
133
ALMEIDA (1986), p. 27.
134
Camões. Nota G do canto II.
135
Imagens pictóricas de fato, como a já anunciada pintura de Sequeira ou as gravuras para Os Lusíadas,
na edição do Morgado de Mateus (1817), desenhadas por Gerard, Fragonard, Visconti e Desenne.
136
LOURENÇO (1999), p. 59.
72
Tendo como apoio a biografia do poeta e demonstrando grande crença na
veracidade da maioria dos casos relatados pelos biógrafos de Camões,
Garrett afirma, ainda no prefácio da primeira edição do seu poema:
A acção do poema é a composição e publicação d“Os
Lusíadas”; os outros sucessos que ocorrem são de facto
episódicos, mas fiz por os ligar com a principal acção. Tão
sabida é a fábula ou enrêdo d“Os Lusíadas” e a vida de seu
autor, que nem tenho mais explicações que fazer a êste
respeito, nem será difícil ao leitor o distinguir no meu opúsculo
o histórico do imaginado: mas não separará decerto muita
cousa, porque das mesmas ficções que introduzi teem sua
base verdadeira as mais delas.
137
Ele considerou como fatos históricos da vida de Camões mesmo
aqueles desprovidos de qualquer documentação histórica, tidos hoje como
parte dessa “ficção pública” que, ainda no século XXI, envolve a vida do
poeta - por exemplo, a questão da presença ou não de Camões em
Macau
138
.A invocação da biografia de Camões permitiu a criação de um
personagem que se representa como o maior cantor da pátria portuguesa e
como a figura mais negligenciada por este mesmo Portugal. Um homem
que teria dedicado a sua vida à composição da mais importante obra
nacional sem obter reconhecimento ou vantagens por tal façanha, morrendo
pobre e desamparado. A vida de Camões e Os Lusíadas estão unidos no
Camões, confessa Garrett:
137
Idem, p. 43. Grifos meus.
138
RIBEIRO (2007).
73
O pensamento dominante e verdadeiro deste poema é ligar a
vida e os feitos todos de Camões como a um fado, a uma sina
com que nasceu a de imortalizar o nome português com o
seu poema. Seus amores, suas desgraças, suas viagens;
seus estudos, suas meditações; tudo tem um fim predestinado
– a composição de Os Lusíadas.
139
Com isso, Garrett reabilita uma imagem de Camões que existia
sublimada no repertório cultural dos portugueses, sedimentada pelo poema
épico e por aquilo que o circundava gravuras, esculturas, anedotas... O
Poeta fora resgatado dentro desse cadinho de informações esparsas como
o grande herói romântico, anunciador da sua ausência e da necessidade do
próprio retorno glorioso. Sobre isso escreve Eduardo Lourenço:
Graças à conversão ao romantismo do jovem Garrett, a
presença de Camões na cultura portuguesa toma um sentido
novo. Não é simplesmente uma presença entre outras, é um
sinal de mudança, uma espécie de revolução cultural que
altera profundamente os mecanismos do nosso imaginário.
140
É dessa maneira que Almeida Garrett transforma definitivamente
Camões em mito, como parte do seu projeto de regeneração patriótica,
propondo, em um momento de profunda crise de identidade em Portugal,
esse novo Camões, associando-o também ao mito da pátria portuguesa,
encarnado na tradição do surgimento e história de Portugal como uma
figura histórica nacional. Esse Camões-personagem, herói romântico, cantor
da pátria, pode ser considerado como tentativa de restaurar a essência de
139
Camões. Nota I do canto III. Grifos meus.
140
LOURENÇO (1999), p. 59. Grifos meus.
74
um país perdido, o retorno a uma pátria que foi um dia gloriosa e que
produziu um poema tão grandioso quanto o épico de Camões. É o início de
um processo de “autognose portuguesa”
141
no qual, “o êxito será não
literário, mas escorrerá pela realidade, penetrando o imaginário português
(...)”
142
4.2. Os Lusíadas no drama Frei Luis de Sousa
O projeto de Almeida Garrett havia encontrado uma forma perfeita na
reabilitação de Camões como poeta maior e sua postulação como herói
romântico. Vimos que isso foi possível graças à fusão entre a biografia do
poeta mesmo que parcialmente ficcional ao conteúdo do seu poema
épico, Os Lusíadas. Essa associação entre o autor e a obra, acrescida do
grande interesse que Camões voltava a despertar entre o público leitor do
século XIX pode ser percebida pelo sucesso editorial da epopéia
camoniana, que voltava a ser expressiva em Portugal.
Sabe-se que Os Lusíadas foi a única obra que Camões viu publicada
em vida excetuando-se três composições em rima que prefaciavam
publicações de amigos e seu horizonte recepcional imediato pode ser
reconhecido pelo acompanhamento do sucesso editorial. Desde a sua
primeira edição 1572 por Antonio Gonçalves até a Restauração, em
1640, o épico teve dez edições em português e oito em castelhano
143
, isso
num momento em que “pela sua própria natureza respeito pelas regras do
141
LOURENÇO (2000), p. 73.
142
FRANCO (1998), p. 385.
143
O histórico das edições de Os Lusíadas pode ser apreciado no trabalho de Vanda Anastácio, veja nota
seguinte.
75
gênero épico, abundância de alusões clássicas, etc. tratava-se de um
poema para uma minoria: um pequeno número de leitores seria então
(como hoje) capaz de o entender”
144
. Mesmo assim, com um restrito número
de leitores, as dezoito edições em pouco mais de meio século revelam o
sucesso editorial de um poema que se pretendia fazer representante
simbólico da cultura portuguesa em um momento delicado na história da
Nação. Esse êxito não encontrou paralelo no período após a Restauração,
que entre 1640 e 1783, Os Lusíadas tiveram apenas oito edições(!). Em
contrapartida, de 1800 até o final do século XIX, a epopéia camoniana teve
nada menos que cinqüenta e seis edições, incluindo-se a monumental
edição do Morgado de Mateus, como já foi apontado anteriormente.
Como historiador, Almeida Gerrett não era alheio a estas
informações. Ele sabia da relevância que teve o poema durante o período
de anexação castelhana, e acreditava que o culto de Os Lusíadas, a ponto
de elevá-lo à condição de texto sacralizado, seria novamente útil para o
resgate da auto-imagem de Portugal como nação. Através do seu Camões-
personagem, Garrett havia dotado Portugal com um herói-nacional. O
mesmo seria feito com Os Lusíadas, encarnando agora a condição de
“evangelho da pátria”.
A peça Frei Luis de Sousa foi representada pela primeira vez em
1843. Publicada em 1844, foi considerada por muitos a obra-prima” do
teatro romântico e uma das “obras-primas” da Literatura Portuguesa. É
144
ANASTÁCIO, Vanda. Criação de um poeta nacional: Breve panorâmica das edições da Lírica
Camoniana entre 1595 e 1870. In FRANCO, Marcia Arruda (org.) Floema Dossiê Camões – Caderno de
Teoria e história Literária. Vitória da Conquista, UESB (no prelo).
76
através dela que Garrett aponta o paradigma de leitura pelo qual Os
Lusíadas vai ser apreciado, a partir do romantismo, como um texto
sacralizado, fundamental para a pátria.
No texto Ao Conservatório Real, que acompanha a peça, o autor
define o drama como “a mais verdadeira expressão literária e artística da
civilização do século”, sobre a qual exerce, ao mesmo tempo, uma
“poderosa influência”. Ressalvando que a índole da sua composição
pertence ainda ao gênero clássico, critica o modo como em sua época se
pretende fazer o drama, com um excesso de violência e de imoralidade, e
alega ter desejado “excitar fortemente o terror e a piedade”, usando de
contenção e simplicidade.
Deve-se recordar que o projeto garrettiano de resgate da identidade
portuguesa possui um caráter didático. transparecendo nesse desejo de
excitar sentimentos piedosos, a intenção educativa pode ser percebida, de
modo geral, como uma das diretrizes de Garrett, autor dramático:
“(...) o drama é a expressão literária mais verdadeira do estado
da sociedade: a sociedade de hoje ainda se não sabe o que é,
o drama ainda se não sabe o que é: a literatura actual é a
palavra, é o verbo ainda balbuciante de uma sociedade
indefinida, e contudo influe sobre ella; é, como disse, a sua
expressão, mas reflecte a modificar os pensamentos que a
produziram.”
145
145
GARRETT (2003), p. 11 – “Ao Conservatório Real”. Grifos meus.
77
É com essa peça que Garrett pretende mostrar ao público leitor a
permanência da epopéia camoniana como fonte perene de inspiração para
os “verdadeiros portugueses”, associando-a não mais ao sentimento de
saudade, como fez com o Camões, mas a um outro sentimento muito mais
compatível com a estética romântica, sobre o qual escreve Eduardo
Lourenço:
No mais célebre dos dramas românticos, Frei Luis de Sousa,
(...) o “camonismo” do jovem Garrett, imbuído em 1825 da
consciência da desgraça nacional, mas não menos certo do
triunfo da Liberdade, aprofunda-se, para se transformar, em
1843, em sebastianismo, crença messiânica no regresso de
um salvador, simbolizado pelo jovem rei d. Sebastião. Com
Frei Luis de Sousa a expectativa perde os contornos vivos e
dramáticos dos começos do Romantismo e remete-se às
cores esmaecidas duma saudade que se confunde cada vez
mais com a melancolia e a tristeza próprias do Romantismo.
146
Não é despropositadamente que Garrett inicia a peça com uma cena
em que a protagonista Madalena, sozinha, “como quem descaiu da leitura
na meditação”, repete, “maquinalmente e devagar”, dois versos do episódio
de Inês de Castro, de Os Lusíadas.
“Naquele engano d'alma ledo e cego
Que a fortuna não deixa durar muito...
147
146
LOURENÇO (1999), p. 59.
147
Os Lusíadas, III, 120.
78
Ao mostrar Madalena lendo maquinalmente esse episódio, um dos
mais trágicos de Os Lusíadas, o autor revela a sua crença de que a epopéia
de Camões era tão conhecida do público leitor, que a leitura de seus versos
se tornava mecânica, desinteressada. Mas Garrett reforça a posição do
poema quinhentista como objeto clássico na cultura portuguesa, sendo lido
por uma personagem do século XVI com o mesmo sentimento de um leitor
do século XIX: Madalena, ao ler o episódio citado, afigura-se triste,
melancólica e saudosa. Reflete sobre a perda do marido, que foi lutar ao
lado de D. Sebastião e jamais retornou. Tal índole nostálgica atrela-se à
índole de Inês de Castro, cuja história, igualmente trágica, é evocada pelos
versos lidos vagarosamente. Tudo isso encaixa-se na estética romântica,
sabidamente soturna e fúnebre. Em resumo, Garrett faz com que Madalena,
relembrando Inês de Castro, obtenha a feição do leitor romântico, ao
mesmo tempo em que denuncia a leitura pouco reflexiva de Os Lusíadas.
Pela meditação de Madalena, o poema de Camões é anunciado como obra
perene e um tanto profética, que é através dele que se anuncia o futuro
tão pouco feliz dessa personagem e D. Manuel Coutinho, logo nas primeiras
ações da peça. “Viveu-se, pode-se morrer.”
148
, diz Madalena que,
padecendo com os terrores que a perseguem em uma gradação crescente,
desabafa profeticamente inspirada pelo que lera: “...que desgraça a minha!.
Tal alusão a Os Lusíadas como “perene” lido “maquinalmente” e
“potencialmente profético” nos faz lembrar de um outro livro, tão conhecido
e sagrado como Garrett propõe que sejam os versos camonianos: a Bíblia.
148
Esta e as demais citações referem-as à primeira cena da peça Frei Luis de Sousa.
79
A leitura de Madalena introduz a segunda fala de Telmo (cena II), que
considera este livro “como não outro, tirante o respeito devido ao da
palavra de Deus”, que não conhece por não saber latim. Comparar Os
Lusíadas à Bíblia reforça o caráter sagrado que o poema de Camões
assumiu em Portugal durante o século XVI. Telmo reconhece e acata a
autoria “divina” da Bíblia, mesmo não tendo lido uma palavra ali
registrada, e utiliza esse conhecimento, adquirido provavelmente pela
tradição oral (comum na catequese católica), como termo de comparação
com o poema camoniano, obra essa que, guardado “o respeito devido”,
sofreu processo idêntico junto ao vulgo, sendo mais ouvida do que
efetivamente lida.
Esse procedimento, pelo qual Garrett aproxima Os Lusíadas e a
Bíblia, pode ser compreendido com parte de um processo de sacralização
do texto camoniano, leitura que busca em seus versos a motivação
patriótica tão necessária a Portugal. Isso complementa o projeto garrettiano
de resgate da identidade nacional, tão abalada pela redução da sua auto-
estima frente às outras nações européias na primeira metade do século XIX.
A ausência de Portugal enquanto nação, a profunda crise de identidade pela
qual passava o país, a nostalgia de um passado de glórias, a renovação na
forma de se pensar sobre Deus e religião, tudo isso abriu um espaço que,
inevitavelmente, precisaria ser preenchido e a Literatura poderia prestar a
sua contribuição nesse sentido.
80
Durante o Romantismo, a perda da visibilidade de Deus abrira espaço
para o surgimento de novos “deuses”
149
, ou, como diz Eduardo Lourenço, “a
literatura, sob a sua forma romântica, é a palavra de um Deus ausente e
a resposta a essa mesma ausência”
150
. Não é difícil entender a facilidade
com a qual, nesse período, Os Lusíadas passaram a figurar como o livro
que encarnara a condição de “evangelho da pátria”, sendo o seu autor
entronizado como um desses deuses, ou uma das estrelas fixas no novo
“firmamento literário”
151
, ainda mais contando com a contribuição de autores
prestigiados no ambiente culto português, como foi o caso aqui apresentado
de Almeida Garrett.
Apesar do espantoso sucesso editorial atingido pela epopéia
camoniana durante o século XIX obtido em parte graças ao processo de
entronização de Camões e da sacralização do poema inicia-se em alguns
segmentos intelectuais portugueses mais um processo de mudança na
leitura de Camões, em um momento descrito por Eduardo Lourenço como
de “agudo sentimento de irrealidade”, quando Camões é “reenviado para o
Céu” como “presença sublime sem utilidade, nem sequer mítica”
152
, como
veremos a seguir.
149
LOURENÇO (1999), p. 54.
150
Idem, ibidem.
151
Idem, p. 55.
152
LOURENÇO (1999), p. 62.
81
5 – CAMÕES: O MITO DESFEITO
5.1. O final do século XIX
Essa figura do herói romântico criada em torno do poeta Luís de
Camões teve grande aceitação em todo o século XIX e pode ser percebida
ainda em parte da fortuna crítica atual, que essa imagem mitificada do
poeta patriota, que representa heroicamente a pátria portuguesa, está
presente na interpretação tendenciosamente romântica da obra de Camões
que ainda ecoa em nossos dias, rastro da força persuasiva que teve essa
construção literária. A crítica mais contundente feita a essa hipótese
interpretativa vem de Oliveira Martins, integrante da Geração de 70”, que
desempenhou um papel de destaque na história da cultura portuguesa do
século XIX. Sua obra teve grande difusão e o seu pensamento repercutiu
não apenas em Portugal, como também no Brasil. Crítico das propostas
românticas, ele censurou a busca pelas tradições e recusou conferir ao
chamado “romantismo português” o papel de restaurador dos costumes
nacionais e das instituições positivistas em que se alicerçaria a liberdade.
Em seu Portugal Contemporâneo, apresenta o problema daquele discurso:
Uma das mais conspícuas [aventuras] foi decerto a tentativa de
criar uma tradição nacional portuguesa, contra os elementos de
uma história de cinco séculos, quando a duração total da nossa
história não excedia sete. Mas esses dois primeiros
afiguravam-se os puros: sendo o resto erros, desvios da
82
genuína tradição. De tal forma se obedecia à moda que lavrava
nas nações germânicas; mas, nesses países, a tradição
medieval era viva, estavam ainda de as instituições antigas;
pois na França e na Espanha se tinham constituído
absolutismos, e a Península tinha tido, para além dos
territórios europeus, vastos domínios ultramarinos.
153
E mais adiante, conclui:
Em vão, portanto, o romantismo procurava uma tradição. Não a
achava, porque as idéias filosófico-econômicas condenavam
as conhecidas; e não havendo outras a descobrir, os
românticos implantavam um gênero literário de importação da
Escócia, à Walter Scott
154
, sem conseguirem acordar no povo
lembranças desses dois séculos de Idade Média de que ele
não tinha recordações porque neles a vida da nação não tivera
caráter próprio.
Inicia-se, portanto um período em que a imagem de Os Lusíadas
sofre grave transformação, tendo a sua “sacralização” atacada por essa
nova geração inclua-se também a crítica à recepção romântica, levada a
efeito por Antero de Quental para quem o poema de Camões é uma
“prova póstuma da nacionalidade portuguesa”, sobre a qual construiu-se a
“ilusão”
155
de um destino épico. Reagindo ao exagero das comemorações do
terceiro centenário da morte de Camões encabeçadas pelo Partido
Republicano, em 1880, Oliveira Martins escreve em um artigo no Jornal do
Comércio do Porto, no dia 10 de junho do mesmo ano:
153
MARTINS (1984). Grifos meus.
154
Com referência ao romance histórico.
155
LOURENÇO (1999), p. 61.
83
No dia de hoje Camões é ao mesmo tempo uma
infinidade de tipos, para a infinidade de criaturas arrastadas
pelo entusiasmo do centenário.
Para o ateu, é ateu; para o republicano é uma espécie de
Catão. O próprio petroleiro será capaz de achar no poeta um
precursor, da mesma forma que o erudito descobre um
Camões scholar, e o reacionário se acha retratado no amor do
trono e do altar. O estouvado cria um Camões brigão; e o
pacato e honrado descrevê-lo-á homem de sereno porte,
gestos medidos, bom filho, bom esposo, bom pai, econômico,
sabendo governar a vida, e capaz de ganhar dinheiro: um
gênio! Bem diverso destes poetas de agora.
E ainda mais profundamente irônico e cáustico:
Tal é a sorte de todos os homens que o povo ergue à
altura de símbolos.
Ao lado do povo estão, porém, os que se dizem seus
intérpretes. Esses asseguram-nos hoje que o entusiasmo do
Centenário acusa, acima de tudo, como síntese, a profunda
vitalidade do nosso patriotismo.
156
Oliveira Martins, apesar de ser um admirador do poeta quinhentista,
reagia contra a hipótese do mito patriótico de Camões através de seus
méritos como poeta e de seu valor cívico como verdadeiro português
alertando que tais valores foram forçosamente atribuídos ao poeta como
156
Esse artigo foi apresentado por A. Álvaro Dória, no ensaio “Oliveira Martins e Camões”, publicado na
Revista Camoniana, 2ª. Série, Vol II, de 1979, pp. 21 a 63. Grifos meus.
84
parte de um programa de formação de identidade nacional, almejada desde
a fundação da pátria e levada a efeito pelos românticos.
De mito cultural positivo, Camões transforma-se em mito cultural
negativo na sua relação com o presente”.
157
É o que afirma Eduardo
Lourenço ao demonstrar que, em menos de meio século, o paradigma
interpretativo sofre brusca alteração, condicionando ao momento histórico e
à motivação de ordem política a leitura que se impôs ao poema épico
camoniano. Acrescenta ainda:
Evidentemente, segundo Oliveira Martins, a culpa não é do
poema, é nossa. O que o poema evoca, aquilo que diz, não
nos diz respeito. A Saudade pungente de Garrett que o
arranca ao passado para nos salvar torna-se, cinqüenta anos
depois (...) resignação e desespero (...)
158
Entra em declínio o que antes fora apoteótico. Questiona-se
conscientemente o papel de mito, de vulto tutelar de toda uma cultura, e o
culpado, sabe-se, não é o poema, tampouco o poeta, mas o que deles foi
feito. Oliveira Martins mostra ter consciência disso e assume a culpa por tal
amplificação, uma vez que faz parte do povo português:
Talvez a nossa vista amplificasse as proporções da imagem,
impressionada pelo prestígio que essa imagem exerce nas
imaginações. Talvez, mas se assim for, não nos arrependemos
dessa culpa.
159
157
LOURENÇO (1999), p. 61.
158
Idem, Ibidem.
159
MARTINS (1986), p. 98.
85
O crítico pós-romântico sabe que essa imagem foi projetada e mostra
o processo pelo qual isso aconteceu:
(...) e a imagem verdadeira do homem que foi some-se,
deixando em seu lugar a figura que o povo abstraiu da
iluminação dos próprios corações.
160
Ou como diz Jorge Fernandes da Silveira, “Camões, mas que
Camões? Camões, pobre Camões! Uma personagem entre os seus”.
161
Chega-se ao final do século XIX com algumas propostas de leitura
para Os Lusíadas que pregam, diferentemente do que aconteceu no início
do mesmo século, a negação do mito romântico em função de um olhar
muito mais realista. Exemplo disso é o que mostra Eça de Queiroz, também
da “Geração de 70”, na última cena de O crime do Padre Amaro:
- Vejam, ia dizendo o conde: vejam toda esta paz, esta
prosperidade, este contentamento... Meus senhores, não admira
realmente que sejamos a inveja da Europa!
E o homem de Estado, os dois homens de religião, todos três
em linha, junto às grades do monumento, gozavam de cabeça
alta esta certeza gloriosa da grandeza do seu país, - ali ao
daquele pedestal, sob o frio olhar de bronze do velho poeta,
ereto e nobre, com os seus largos ombros de cavaleiro forte, a
epopéia sobre o coração, a espada firme, cercado dos cronistas
e dos poetas heróicos da antiga pátria - pátria para sempre
passada, memória quase perdida!
162
160
Idem, ibidem.
161
SILVEIRA (2008), p. 22.
162
QUEIROZ (2001), p.320. Grifos meus.
86
A transfiguração da pátria em um reflexo da glória, que possivelmente
nem sequer existiu de fato, tem como emoliente a figura de Camões, mito e
símbolo desse mesmo Portugal eternamente nostálgico e, por isso mesmo,
estático. No entanto, para alguns simbolicamente representados pelo
personagem do conde a imagem que permanece é a da nação grandiosa,
“inveja da Europa”, que no poeta quinhentista e em seu épico a
valoração de um Portugal mítico e pleno de glórias. Eça de Queiroz ataca
ironicamente essa visão romântica que impregnou a recepção de Os
Lusíadas, e que permanece em parte, como o dissemos, a os dias
atuais.
O mesmo faz Cesário Verde, especialmente no poema “O Sentimento
dum Ocidental”, rebaixando o épico de Camões. Inicialmente inverte o seu
sentido com versos que mostram os portugueses partindo felizes, ao
contrário do que se em Os Lusíadas quando da partida do Restelo.
Cesário Verde escreve:
Batem os carros de aluguer, ao fundo,
Levando à via-férrea os que se vão. Felizes!
Ocorrem-me em revista, exposições, países:
Madrid, Paris, Berlim, S. Petersburgo, o mundo!
163
Além de partirem sem aparentar a triste melancolia dos personagens
camonianos, os que deixam Lisboa, e provavelmente Portugal, o fazem por
terra e não pelo mar, como no poema de Camões. Os carros de “aluguer”
levam seus passageiros “à via-férrea”. A inversão da cena épica, que
163
VERDE, Cesário. O sentimento dum ocidental. I-Ave-marias, versos 9 a 12.
87
mostra a partida do Restelo, é prenúncio do rebaixamento ao qual Cesário
vai levar Os Lusíadas nos versos seguintes. Ainda na primeira parte do
poema, Ave-marias, podemos ler:
E evoco, então, as crônicas navais:
Mouros, baixéis, heróis, tudo ressuscitado!
Luta Camões no Sul, salvando um livro a nado!
Singram soberbas naus que eu não verei jamais!
164
Aqui o sujeito poético, flanando sobre a cidade e pairando sobre o
cais, traz de volta os heróis do passado e suas aventuras, representados
pela figura de Camões que salva um livro a nado. O fato de ressucitar o
poeta nessa cena do naufrágio, tão cara aos biógrafos oitocentistas, mostra
que Cesário participou da recepção romântica de Camões e de Os
Lusíadas, mas reagiu contra ela. Passa a considerar o poeta como mais um
dos personagens que habitam as crônicas navais e o poema épico como
apenas um livro. Isso faz com que o mito seja posto em questão, além de
rebaixar a epopéia nacional à condição de crônica naval.
Na segunda parte de “O Sentimento dum Ocidental” - “Noite fechada”
- Cesário Verde mostra de modo definitivo, muito próximo do que fizera Eça
de Queiroz, a maneira como Camões passa a ser percebido a partir do final
do século XIX:
Mas, num recinto público e vulgar,
Com bancos de namoro e exíguas pimenteiras,
164
Idem, versos 21 a 24.
88
Brônzeo, monumental, de proporções guerreiras,
Um épico doutrora ascende, num pilar!
165
O poeta faz alusão ao mesmo monumento citado por Eça de Queiroz,
desvalorizando-o inicialmente quando mostra que aquele local é “vulgar”,
isto é, comum, como qualquer outro em Lisboa. Rodeado por “bancos de
namoro” mostra que o ambiente é propício para outras atividades, que não
a de reflexão sobre o próprio Camões, muito menos a leitura do seu poema.
A ornamentação com “exíguas pimenteiras” nos faz lembrar que a pimenta
era uma das especiarias trazidas da Índia. Representando as pimenteiras
minguadas dessa forma, aos pés de Camões, entendemos que todas as
grandezas das conquistas marítimas, simbolizadas pela presença de
Camões e do seu épico, também se tornaram exíguas em Portugal.
Finalmente, percebemos a representação do próprio Camões, fundido com
seu épico na forma de um monumento de bronze, erguido altivo em seu
pedestal apontando para uma única direção, aquela mesma tão apreciada
pelos românticos: o passado.
5.2. O século XX
Politicamente, o que vai marcar Portugal no século XX é o processo
de tomada, perda e retomada da democracia. Temos nesse período a
instauração da república (1910), a ascensão da ditadura militar (1926), a
retomada da democracia (1974) e, ainda, a entrada do país na Comunidade
Comum Européia, no final do século. Isto acaba por trazer novos
165
VERDE, Cesário. O Sentimento dum Ocidental. II – Noite fechada. Versos 21 a 24. Grifos meus.
89
questionamentos que ameaçaram as bases daquilo tudo que se constituiu
como mito no país.
Desde o início do século XIX, a partir das manifestações de 1820 e
1836 e da participação do vetor intelectual universitário de Coimbra, o
movimento republicano vai tomando corpo
166
, mas é apenas em 1910 que a
república se instaura definitivamente, embora enfraquecida desde o início,
como mostra o historiador esquerdista português, José Paulo Neto:
O movimento republicano português começa a tomar forma
consistente a partir de 1870 e nele confluem três componentes
diferenciados. De uma parte, a tradição de luta jacobina e
popular, que se lastreava nas manifestações radicais da
Revolução de 1820 e nos levantes de setembro de 1836
(respectivamente vintismo e setembrismo), e à qual não serão
estranhas, graças à Comuna de Paris, as sugestões do
mutualismo de Proudhon (...). De outra parte, um vetor
intelectual de extração universitária coimbrã, sobre que incidia
poderosamente a influência positivista (...). E, enfim, no
republicanismo lusitano se verifica, ainda, a presença
maçônica, que então desenvolve atividades carbonárias (às
que se atribui o regicídio de 2 de fevereiro de 1908).
167
No entanto, proclamada a república em 1910, surgem os percalços:
Na sua vida acidentada (...) a república não contentou a
nenhum dos protagonistas da cena portuguesa. Seus
percalços são um diagrama da movimentação das forças
166
NETO (1986), p. 14.
167
Idem. Grifos meus.
90
sociais e dos projetos de classe que a descompressão política
que operou pôs em confronto.
168
É justamente essa fragilidade que vai dar azo ao golpe militar de
1926, o qual abre as portas para o fascismo ao nomear em 1928 o
“eminente Professor Universitário, Dr. António de Oliveira Salazar”
169
como
ditador e principal ator de um período pouco democrático, que duraria quase
meio século.
Dentro desse panorama histórico em que, segundo Eduardo
Lourenço, “as classes políticas sucedem-se menos do que se revezam”
170
,
emerge uma nova leitura de Camões que tem como principal articulador
Fernando Pessoa, seguindo o rumo indicado por Teixeira de Pascoaes e
Antero de Quental. O poeta de Mensagem aparecerá como o “novo cantor”
desse “novo tempo que irá surgir, mesmo que análogo ao anterior”
171
, para
evocar a condição gloriosa do país em uma renovada leitura de Os
Lusíadas, ou seja, aquela direcionada pelas idéias da Renascença
Portuguesa
172
. Lutando contra o Camões romântico de Garrett, Fernando
Pessoa processa um “apagamento” da imagem mítica do poeta das tágides
através de seus poemas e, principalmente, em Mensagem, onde o realismo
de Os Lusíadas é substituído por uma complexa mistura de imagens
simbólicas que, para serem entendidas, devem passar pelo crivo de cinco
168
Idem, p. 16
169
É essa a legenda que aparece sob uma estampa de Salazar que ilustra uma das páginas de um livro
escolar dessa época: História da Pátria Portuguesa de Estefânia Cabreira e Oliveira Cabral, destinado ao
curso primário.
170
LOURENÇO (1999), p. 132.
171
OLIVEIRA (2004), p. 259.
172
Teixeira de Pascoaes escreve na revista A Águia, em 1912, dois artigos nos quais trata da idéia de
renascença. Paulo Motta Oliveira escreve sobre isso, dizendo que “a idéia da renascença, em Portugal,
evoca mais do que simplesmente o regresso às fontes originárias da vida: ele evoca o período áureo do
país...” OLIVEIRA (2004), p. 260.
91
qualidades, como o poeta anuncia em nota preliminar ao poema: simpatia,
intuição, inteligência, compreensão e a última, que pode ser descrita
pelas palavras do próprio poeta:
A quinta é menos definível. Direi talvez, falando a uns, que é
graça, falando a outros, que é a mão do Superior Incógnito,
falando a terceiros, que é o Conhecimento e a Conservação do
Santo Anjo da Guarda, entendendo cada uma destas coisas,
que são as mesmas da maneira como as entendem aqueles
que delas usam, falando ou escrevendo.
173
Estas cinco habilidades nos remetem a um universo muito menos
material que aquele do poeta quinhentista. O ato recepcional proposto por
Fernando Pessoa remete a esquemas de ação que se afastam da esfera
realista, apontando para um universo de irrealidades e loucuras, como ele
mesmo mostra na voz de D. Sebastião, a “quinta quina” de Mensagem:
Sem a loucura que é o homem
mais que a besta sadia,
cadáver adiado que procia?
174
Temos, assim, uma subversão do discurso eminentemente épico de
Camões, substituído por um outro bem menos heróico, em que a figura do
próprio poeta renascentista é apagada. Sob a ótica de Eduardo Lourenço, o
projeto pessoano assim se descreve:
Ao consumar o assassínio ritual de Camões no seu poema
hermético e messiânico Mensagem (em que aquele que
173
PESSOA (2001), p. 44.
174
IDEM, p. 51.
92
simboliza Portugal é riscado da lista dos eleitos e dos
anunciadores do novo evangelho nacional), Pessoa fez tudo o
que pôde para recriar uma nova mitologia cultural de que ele,
poeta épico de um mundo sem epopéia, seria o centro.
175
No entanto, a figura mitificada de Camões que surgira quase um
século, com o Camões de Garrett, fincara raízes mais profundas,
condicionando boa parte da recepção de Os Lusíadas a uma leitura em que
os supostos “vazios” do texto tinham sido preenchidos anteriormente, em
um processo que nem mesmo o “supra-Camões” pessoano seria capaz de
reverter completamente. A respeito da Mensagem, conclui Eduardo
Lourenço:
Vista de perto, logo nos apercebemos de que a sombra
poderosa que sobre ela [Mensagem] paira e o olhar romântico
que assim a recriou, tem o fulgor misterioso e terrível dos
mortos que a ninguém é dado matar. Não é, pois,
despropositado procurar discernir, por meio da figura romântica
de Camões, e das suas metamorfores ao longo de um século
[XIX] as luzes a as sombras de nosso destino.
176
Estaria, assim, Portugal fadado a uma interpretação única e
inequívoca da grande epopéia camoniana, menos lida que entronizada, sob
a sombra dessa imagem “estatualizada” do poeta, objeto de uma exegese
onde o prazer estético (a Poiesis de Jauss) é minimizado em favor de um
novo projeto - diferente daquele proposto por Pessoa e seus antecessores
175
LOURENÇO (1999), p. 63. Grifos meus.
176
Idem. Ibidem.
93
da geração de 70 - muito mais pragmático, que tomou corpo com o golpe
militar de 1926.
A obra de Camões, durante o salazarismo, deixa de ser o objeto
literário, que é, para ser transformada num objeto utilitário, “braço às armas
feito” lado a lado com o governo salazarista. A imagem propagandeada é a
do português forte e patriota por natureza. Esse desrespeito pela cultura é
determinado pela ação da censura, que torna os versos de Camões
“surdos” e “endurecidos”, em favor de um regime político totalitarista.
Ocorre a formulação de um esquema que reduz o poema, para a
leitura vulgar, a apenas uma entre as suas possibilidades de leitura
177
. Tal
redução
178
paralisa o poema e o transforma numa mera seleção intencional
de fatos sem vida, aos quais se o nome de “História”, problemática de
um período da realidade social portuguesa em que se aprendeu a ler
“literalmente” Camões, tal leitura parece ter acreditado piamente na
ideologia veiculada, resultante de um cruzamento dos fatos com a ficção.
O resultado imediato disso é certa estagnação, responsável pelo
silêncio, que admite apenas uma única interpretação da realidade. A cultura
portuguesa, conscientemente ou não, ainda acredita que o seu destino
de emergir grandiosamente do passado. A crença de ser o “povo eleito” faz
com que o país espere e, enquanto espera, não pense, o que resulta num
desenvolvimento aquém de suas potencialidades, representadas
177
A esse respeito, há outro estudo meu, mostrando como a instituição “escola” tem responsabilidade
nesse processo, no início do século XX: VICHINSKY, Flávio G. Os Lusíadas em primeira leitura. Anais do
congresso da ABRAPLIP. São Paulo, 2007.
178
Essa redução chega a ser uma redução literal, com a supressão e censura de alguns episódios em
favor da moral e dos bons costumes. Veja-se, por exemplo, uma adaptação feita por João de Barros (que
continua sendo editada!) na qual há a supressão total do episódio da chegada à Ilha dos Amores!
94
historicamente pelo seu passado, tido como glorioso. Como pondera
Boaventura de Sousa Santos:
Puderam dizer tudo impunemente sobre Portugal e os
portugueses e transformar o que foi dito, numa dada geração
ou conjuntura, na “realidade social” sobre a qual se pôde
discorrer na geração ou na conjuntura seguinte.
179
Desta forma, o épico camoniano, é utilizado para legitimar uma
determinada situação política. Sobre essa redução no significado de Os
Lusíadas, articulada principalmente pelo poder da ditadura salazarista em
Portugal, manifesta-se um dos escritores mais relevantes para a nova
mudança de paradigma na recepção camoniana no século XX, Jorge de
Sena:
Camões não é o pastelão patriótico-clássico que durante anos
tem sido. “Os Lusíadas” são, na verdade, um dos mais belos
poemas longos que as literaturas modernas produziram, e os
portugueses podem realmente admirá-lo como obra de arte do
mais alto nível, e impor um novo respeito internacional pelo
poema, sem que, para tal, seja necessário apelar para
sentimentos nacionais ou para a simpatia dos amigos de
Portugal.
180
O que Jorge de Sena faz é munir o leitor de Os Lusíadas da plena
consciência de outros valores e sentidos que vão além da legitimação
nacionalista e que conferem ao poema o “status” de obra de arte. É a
tentativa de desvincular a figura de Camões daquela imposta pela
179
SANTOS (2000), p. 57.
180
SENA, (1980). Grifos meus.
95
hermenêutica que caracterizou a recepção de Camões no século XVII,
mitificada nos oitocentos e, agora, utilizada como instrumento de um
sistema político notadamente totalitário. Entende-se, dessa forma, que
valorizar Os Lusíadas como expressão artística, como obra de arte, é o que
fazem tanto Jorge de Sena como os apologéticos do século XVII,
entretanto, como Sena não se pauta pelo valor da retórica na caracterização
do passado poético, aponta outras razões para tal excelência.
Até o início dos anos 80, é a imagem mítica de Camões, cunhada por
Garrett e seus companheiros, que interessa para a formação de uma
ideologia de cunho nacionalista, através da contemplação do exemplo
passado. Sobre esse processo escreve Eduardo Lourenço:
Tornou-se então claro que a consciência nacional (nos que a
podiam ter), a nossa razão de ser, a raiz de toda a esperança,
era o termos sido. E dessa ex-vida são “Os Lusíadas” a prova
de fogo. O viver nacional que fora quase sempre viver
sobressaltado, inquieto, mas confiado e confiante na sua
estrela, fiando a sua teia da força do presente, orienta-se (…)
para um futuro de antemão utópico pela mediação primordial,
obsessiva, do passado. Descontentes com o presente, mortos
como existência nacional imediata, nós começamos a sonhar
simultaneamente o futuro e o passado .
181
Progressivamente, na segunda metade do século, pode-se perceber
o questionamento dessa leitura “imposta” pelo regime salazarista.
Professores, pensadores e poetas, entre outros, arriscam-se ao colocar em
181
LOURENÇO (2000). Grifos meus.
96
xeque o sistema, assim como o mito criado em torno da figura do poeta
quinhentista, ao mesmo tempo em que questionam o próprio regime de
Salazar, como diz José Paulo Netto a respeito desse processo de
enfrentamento:
E a intelectualidade forjará novos instrumentos de
enfrentamento com o regime (como a Associação Portuguesa
dos Escritores).
182
Surgem forças que se posicionam contra a opressão do proletariado,
contra o totalitarismo do governo e, sobretudo, contra a guerra colonial e o
colonialismo. São essas as forças que levarão ao término da ditadura, com
a dita “Revolução dos Cravos”, em 1974. É nesse período de indignação e
luta contra o sistema que Jorge de Sena escreve o poemaCamões na Ilha
de Moçambique”, no qual se posiciona corajosamente contra o colonialismo
em África no século XX:
É pobre e já foi rica. Era mais pobre
quando Camões aqui passou primeiro,
cheia de livros a cabeça e lendas
e muita estúrdia de Lisboa reles.
183
Ele propõe, de forma inovadora, uma outra leitura da figura do poeta
quinhentista, através da qual o mito que cerca essa figura lendária e sua
obra é propositalmente afrontado, fazendo-o descer do pedestal de bronze
182
NETTO (1986)
183
SENA (1984), p. 67.
97
(alusão àquela estátua tematizada por Eça de Queiroz) para mostrar-se
tão humano como qualquer um de nós:
Não é de bronze, louros na cabeça,
nem no escrever parnasos, que te vejo aqui.
Mas num recanto em cócoras marinhas
soltando às ninfas que lambiam rochas
o quanto a fome e a glória da epopéia
em ti se digeriam. Pendendo para as pedras
teu membro se lembrava e estremecia
de recordar na brisa as croias mais as damas,
e versos de soneto perpassavam
junto de um cheiro a merda lá na sombra,
de onde n'alma fervia quanto nem pensavas.
184
O Camões oferecido por Jorge de Sena é aquele que desafia a
imagem celestial, fomentada desde o século XVII e imposta agora pela
ditadura, destinado a uma leitura “surda”. Trazendo Camões para o solo,
para junto do povo, Sena faz convergir a simpatia de parte da comunidade
leitora para uma obra quase abandonada, composta séculos por um
“poeta dos outros”. Sobre essa tentativa de prover Portugal com outra
imagem de Camões, diz ele no “Discurso da Guarda”, em 1978:
(...) cumprem-se trinta anos sobre a primeira vez que, de
público me ocupei de Camões, iniciando o que, sem vaidade
me permito dizê-lo, tem sido uma contínua campanha para dar
a Portugal um Camões autêntico e inteiramente diferente do
que tinham feito dele: um Camões profundo, um Camões
184
Idem. Grifos meus.
98
dramático e dividido, um Camões subversivo e revolucionário,
em tudo um homem de nosso tempo, que poderia juntar-se ao
espírito da Revolução de 1974 (...)
185
Mas é no prosseguimento do mesmo discurso que Sena aponta para
a resistência sofrida por essa nova abordagem do poeta quinhentista,
principalmente pelos setores mais conservadores da sociedade portuguesa,
escandalizados com a sua “ousadia”:
Esse meu Camões foi longamente o riso dos eruditos e dos
doutos, de qualquer cor ou feitio; foi a indignação do
nacionalismo fascista, dentro e fora das universidades, dentro
e fora de Portugal; foi a aflição inquieta do catolicismo estreito
e tradicional, dentro e fora de Portugal; e foi a desconfiança
suspeitosa de muita gente de esquerda, a quem eu oferecia
um Camões que deveria ser o deles, quando eles preferiam
atacar ou desculpar o Camões dos outros.
186
Mesmo rejeitado, ou até ridicularizado por alguns setores intelectuais
dentro e fora de Portugal, como ele mesmo afirma, Jorge de Sena foi um
dos principais responsáveis pela reconfiguração da figura de Camões e de
Os Lusíadas no século XX. A sua vasta produção literária e acadêmica tem
influenciado as gerações de escritores pós-revolução de 1974,
principalmente no tocante a Camões, pois foi como camonista que atingiu o
relevo que ainda hoje, trinta anos de falecido, possui. “Sena vale a pena, se
a leitura não for pequena”, como escreve Jorge Fernandes da Silveira.
187
185
SENA (1980), p. 255.
186
Idem, ibidem. Grifos meus.
187
SILVEIRA, Jorge F. da. Metamorfoses + Mensagem – Os Lusíadas. In SANTOS (2006), p. 39.
99
É sem dúvida importante a atuação desse pesquisador, historiador e
poeta, certamente um dos inspiradores de José Saramago, autor adepto
das imagens criadas por Sena e, da mesma forma, basilar para a
divulgação do “novo Camões” no final do século XX e início do XXI.
Saramago adquire relevância fundamental nesse processo, em parte, pela
grande divulgação que se fez da sua obra, especialmente depois de ser
agraciado com o Prêmio Nobel. É sobre esse autor, e os mecanismos que
levam à concepção de uma leitura renovada de Camões, que passaremos a
falar mais detidamente nas próximas páginas.
100
6 – SARAMAGO E O OUTRO CAMÕES
Fixar a recepção crítica e criativa de Camões nos séculos XX e XXI é
uma tarefa que deve passar pela leitura de José Saramago,
indubitavelmente um dos escritores portugueses de maior relevância no
cenário cultural do século XX. A razão do interesse que os seus escritos
despertam não a única, mas talvez a mais importante é a sua filiação
àquilo que se chama de “nova História”, uma nova perspectiva histórica que,
segundo a proposta de Jcques Le Goff
(...) reconhece nas produções do imaginário uma das principais
expressões da realidade histórica e nomeadamente da sua
maneira de reagir perante o seu passado.
188
Sob a ótica na nova História, tudo quanto era previamente
considerado historicamente imutável deve ser considerado, agora, como
uma construção cultural, sujeita a variações, tanto no tempo quanto no
espaço, “produções do imaginário”. A base filosófica da nova História é,
portanto, a idéia que a realidade é social ou culturalmente constituída.
Nesse viés, no entrecruzamento da História com a ficção, verifica-se o
posicionamento de José Saramago frente às concepções de Le Goff e da
nova História, como mostra Miriam Rodrigues Braga:
Muito antes de a obra saramaguiana ser amplamente
divulgada (...) o meio acadêmico e a crítica revelavam
188
LE GOFF (1992), p. 49. Grifos meus.
101
grande interesse por ela, sobretudo por Saramago instituir em
seus romances a problematização das relações entre História e
Ficção.
189
Ao assumir a História como ficção, contada a partir de um ponto de
vista, Saramago começa a proceder uma “recriação” do passado através
dos seus escritos, como quem responde ao desafio lançado por Jacques Le
Goff:
E por que não, um setor literário da história-ficção na qual,
respeitando os dados de base da história – costumes,
instituições, mentalidades fosse possível recriá-la, jogando
com o acaso e com o événementiel?
190
Na verdade, a ficcionalização de um passado histórico, por vezes
inconsistente, demonstra o interesse em apontar para os leitores do mundo
pós-moderno o mundo da revolução tecnológica a possibilidade de uma
nova leitura histórica não mais centrada em diretrizes hermenêuticas, pré-
estabelecidas de acordo com interesses políticos ou ideológicos, mas em
função de uma re-aproximação com o outro lado das figuras históricas,
como é o caso de Camões. Saramago vai buscar a desmitificação daquela
figura que, como visto anteriormente, foi projetada e re-projetada através de
diferentes hipóteses interpretativas, chegando mesmo a despersonalizar-se
e desvincular-se da sua obra máxima, Os Lusíadas.
189
BRAGA, Miriam Rodrigues. A concepção de língua em Saramago. em BERRINI (1999), p. 85. Grifos
meus
190
LE GOFF (1992), p. 50.
102
Sob o efeito dessa perspectiva histórica, a obra de Saramago é
caracterizada como peça do nouveau roman, e quem nos revela as “pistas”
que apontam para isso, é Linhares Filho no ensaio “Uma Leitura de
Memorial do Convento”
191
. Segundo ele, o que caracteriza a inclusão da
narrativa saramaguiana enquanto nova literatura é a presença desses
fatores:
(...) o fantástico, possível influência do realismo mágico
hispano-americano; o chamado discurso sobre o corpo, isto é,
o erótico, conseqüência da extinção da censura; aspectos do
romance psicológico, revelando grande experiência humana do
narrador; aspectos do nouveau roman pela escrita algo caótica
com o desprezo a alguma pontuação e pelo desvio do fato do
tempo presente (anacronia) por meio do flash-back ou
analepse (retrocesso do fato) e do flash-forward ou prolepse
(antecipação do fato).
192
É notório que a História e a Literatura, tendo como substância
primordial a existência humana, devam apresentar uma certa afinidade e
aproximação e, porque não dizer, determinada “simbiose”. Vemos que a
escrita histórica impregna-se de literatura como o exemplo de Fernão
Lopes, maior representante da Historiografia Portuguesa – e a literatura, por
sua vez, encontra muitas vezes na história a matéria-prima da qual é feita. É
o caso do romance histórico e do teatro histórico que, em Portugal,
representaram a vertente literária do projeto de Regeneração, encabeçado
191
FILHO, Linhares, Uma leitura de memorial do Convento, em BERRINI (1999) pp. 169 a 191.
192
Idem, p. 171.
103
por Alexandre Herculano, entre outros expoentes do Romantismo em
Portugal. Sobre isso, reflete Linhares Filho:
Em Portugal, o romance histórico é cultivado pelo historiador
de primeira plana, Alexandre Herculano, nos dois livros d’O
Monasticon, Eurico, o presbítero (1844) e O monge de Cister
(1851); e também em O bobo (1866). Fatos históricos ainda
inspiram o escritor na composição dos contos de Lendas e
narrativas (1851). Da mesma fase romântica de Herculano e
iniciador do Romantismo Português, Almeida Garrett também
se baseia na História para escrever algumas obras como o
romance o Arco de Santana (1845 1850) e a peça Frei Luis
de Sousa (1844).
193
Classificada por muitos como pós-moderna, a produção
saramaguiana surge “recebendo uma gama de influências considerável”
194
Uma dessas influências é, sem dúvida, aquela que a liga à tradição do
romance histórico português, procurando resgatar do passado os símbolos
da identidade portuguesa, atribuindo a eles um novo significado. É assim
que ele age com o mito de Camões e com a sacralização de Os Lusíadas.
Sobre a própria obra, Saramago diz:
Em certo sentido poder-se-á mesmo dizer que, letra a letra,
palavra a palavra, página a página, livro a livro, tenho vindo,
sucessivamente, a implantar no homem que fui as
personagens que criei. Creio que, sem elas, não seria a
pessoa que hoje sou, sem elas talvez a minha vida não tivesse
193
Idem, p. 170.
194
Idem, ibidem.
104
logrado ser mais do que um esboço impreciso, uma promessa
como tantas outras que de promessa não conseguiram passar,
a existência de alguém que talvez pudesse ter sido e afinal não
tinha chegado a ser.
195
Ele assume aqui a relevância da obra na vida do autor, transformado
e moldado a partir dos personagens emergidos do seu universo ficcional.
Isso mostra que há, na leitura que Saramago faz da sua própria obra, aquilo
que Stierle chamou de leitura quase-pragmática”. Surge então a recíproca,
ou seja, relevância da pessoa do autor e da leitura que este faz do mundo
na construção dos personagens. É ele mesmo quem nos a resposta, no
mesmo discurso:
Ao pintar os meus pais e os meus avós com tintas de literatura,
transformando-os, de simples pessoas de carne e osso que
haviam sido, em personagens novamente e de outro modo
construtoras da minha vida, estava, sem o perceber, a traçar o
caminho por onde as personagens que viesse a inventar, as
outras, as efectivamente literárias, iriam fabricar e trazer-me os
materiais e as ferramentas que, finalmente, no bom e no
menos bom, no bastante e no insuficiente, no ganho e no
perdido, naquilo que é defeito mas também naquilo que é
excesso, acabariam por fazer de mim a pessoa em que hoje
me reconheço: criador dessas personagens, mas, ao mesmo
tempo, criatura delas.
196
195
Discurso proferido por Saramago na entrega do prêmio Nobel
196
Idem. Grifos meus.
105
Levantado do Chão (1980), Memorial do Convento (1982) e O Ano da
Morte de Ricardo Reis (1984), a nosso ver, formam uma tríade histórica
que, em conjunto com alguns dos poemas publicados anteriormente e a
peça de teatro Que Farei com Este Livro? (1980), em muitos pontos revela
a leitura que Saramago faz de Camões.
Os próximos capítulos, destinados à análise mais aprofundada
dessas obras as mais relevantes para a compreensão da hipótese
saramaguiana de recepção do poeta quinhentista e seu épico –, mostrarão
alguns apontamentos sobre o processo de subversão do discurso
historicamente atribuído a Camões, consolidado ao longo de quase
quinhentos anos de recepção crítica e criativa e fixado de forma tão
contundente pela proposta romântica, que quase não pode ser dissipado do
referencial crítico contemporâneo.
6.1. Camões no romance saramaguiano
Os três romances sobre os quais passaremos a tratar nas próximas
linhas já foram bastante debatidos, e de forma tão veemente que pouco nos
resta a acrescentar, a não ser o que se encontra no cerne deste trabalho,
que é a presença daquele “fantasma”, ou sombra tutelar que está em quase
tudo o que se refere a Portugal: Camões e o seu poema épico, Os
Lusíadas. Trataremos, pois, de reconhecer em Levantado do Chão,
Memorial do Convento e O Ano da Morte de Ricardo Reis, especificamente
as obras que mostram de forma mais contundente a presença do dito
106
“fantasma”, de que maneira o autor José Saramago dialoga com o mito de
Camões e tenta retirar deste o “peso” de herói da pátria, tornando-o homem
mais uma vez e fazendo do épico quinhentista nada além de um livro, tão
diversamente interpretado. Veremos que, ao fazer isso, ele subverte o
discurso tradicionalmente aceito em outro bem diferente, anti-épico, através
do uso da ironia.
Estudando essas três obras, veremos que o tratamento dispensado
ao poeta das Tágides segue a tendência prenunciada por Oliveira
Martins, Cesário Verde e, mais próximo de nós, Jorge de Sena. A tentativa
de romper com aquela perspectiva romântica, entronizada por Garrett, do
herói da pátria, arauto do evangelho nacional, repercute na leitura de José
Saramago de modo que o Camões que ele nos devolve é outro,
diametralmente oposto àquele do século XIX, com um contorno menos
mítico. É através da palavra que Saramago vai trazer Camões novamente
para o mundo, mais precisamente para Portugal. O discurso épico do poeta
quinhentista desce à terra mais uma vez, na fusão de vozes profanas dos
personagens e narradores saramaguianos, a desfilar por Monte-Lavre,
Mafra e Lisboa.
6.1.1. Camões em Monte-Lavre
Levantado do Chão é uma saga sobre três gerações de uma família
pobre de Monte-Lavre os Mau-Tempo envolvidos nos acontecimentos
que marcaram o país no período após a primeira Grande Guerra até a
107
Revolução dos Cravos, em 1974. Nesse romance, caracterizado por Maria
Alzira Seixo como “romance-político”
197
, nota-se constantemente a
presença de um fatalismo crônico que é combatido pela esperança em
tempos melhores. Disso resulta um despertar de consciências que leva à
ocupação de terras, formação de cooperativas e combate ao autoritarismo
imposto por um regime de repressão. É nele que Saramago vai se destacar
também pela elaboração de um narrador que marcará em caráter definitivo
toda a sua obra posterior. A respeito do relato desse narrador, diz Seixo:
não se [o relato] na primeira pessoa narrativa, mas
curiosamente se trata a si próprio como “o narrador”, na
terceira pessoa, o que implica desde logo em um efeito de
sobredistanciação em relação ao modo brechtiano de
implicação do leitor.
198
Seixo, ao citar Brecht
199
, faz-nos lembrar que o distanciamento entre
ator/personagem, espetáculo/público, garante a presença de uma
apreciação crítica da obra, sem que a implicação emocional acarrete uma
distorção recepcional, margeando aquilo que Stierle chamou de recepção
quase-pragmática. Para Maria Alzira Seixo, surge no Levantado o narrador
que será o arauto desse distanciamento, colocando-se, ele mesmo,
consciente da “realidade” de estar dentro do que narra, como um
personagem, à semelhança do que Saramago citou como parte do seu
processo criativo, como foi visto no discurso já mostrado.
197
SEIXO (1987), p. 40.
198
Idem, p. 39. Grifos meus.
199
Alude-se aqui o conceito de Brecht sobre o distanciamento. BRECHT (1970), p. 76.
108
No Levantado do Chão, observamos o questionamento da ideologia
do poder através da ironia na própria voz do narrador, que imobiliza e anula
o discurso épico presente em Os Lusíadas, na ressignificação de algumas
imagens:
(..).é preciso que este bicho da terra seja bicho mesmo (...), é
preciso que o homem esteja abaixo do animal (...), é preciso que
o homem se degrade para que não se respeite a si próprio nem
aos seus próximos.
200
Aqui Saramago faz emergir outro sentido dos versos camonianos,
interceptando na voz de um narrador, cujo discurso, propositalmente
contraditório, ressignifica a figura do “bicho da terra” cantado em Os
Lusíadas na última estância do canto I, quando o sujeito poético camoniano
reflete a respeito da insignificância da humanidade frente ao divino:
Onde pode acolher-se um fraco humano,
Onde terá segura a curta vida,
Que não se arme e se indigne o Céu sereno
Contra um bicho da terra tão pequeno?
201
Ao evocar tal figura, agora desprovida de metáforas, Saramago
atribui um sentido diferente daquele intencionado no épico. Para ele
interessa mostrar o sentido literal, de um bicho biológico que, enfraquecido
pela religiosidade extrema, aceita as atrocidades dos latifundiários e se
rebaixa à condição subumana.
200
SARAMAGO (1996), p. 73. Grifos meus.
201
“Os Lusíadas”, Canto I, 106.
109
José Saramago usa a ironia em função da desmitificação do discurso
camoniano. A pretensa cumplicidade do narrador saramaguiano com o
discurso do poder, o que o torna irônico, coloca a fala épica em xeque.
Vestindo a máscara camoniana, redimensiona a relação do épico com o
mundo moderno, revelando uma posição crítica a respeito da relação entre
comandante/comandado, como também o faz o orador salazarista nesta
passagem do livro:
(...)Estamos aqui reunidos, irmandados no mesmo patriótico
ideal (...), fiéis continuadores da grande gesta lusa e daqueles
nossos maiores que deram novos mundos ao mundo e
dilataram a e o império, mais dizemos que ao toque de
clarim nos reunimos como um homem em redor de Salazar
(...), o génio que consagrou a sua vida ao serviço da pátria,
contra a barbárie moscovita.
202
Aqui Saramago resgata conhecidos versos camonianos, operando
uma releitura do sentido épico:
E também as memórias gloriosas
Daqueles Reis que foram dilatando
A Fé, o Império, e as terras viciosas
De África e de Ásia andaram devastando.
(...)
E se o piedoso Enéias navegou
De Cila e de Caríbdis o mar bravo,
Os vossos, mores cousas atentando,
202
SARAMAGO (1996), p. 93. Grifos meus.
110
Novos mundos ao mundo irão mostrando.
203
Se no poema de Camões a ação descrita remete às conquistas dos
grandes heróis portugueses, característica do gênero épico, na releitura
dessacralizada de Saramago tal referência vai remeter ao discurso ultra-
nacionalista do regime de Salazar: o “patriótico ideal” que cala a voz dos
trabalhadores, fazendo-os acreditar que o seu sofrimento, aprovado e
incentivado pela igreja, os aproxima dos mesmos heróis que dilataram a
e o império”, na forma de um único corpo. Copiando as palavras de Teresa
Cristina Cerdeira da Silva, “desloca-se o discurso saramaguiano do épico
(culturalmente sagrado) para o anti-épico e desassombradamente
humano.”
204
O episódio camoniano da chegada à Ilha dos Amores esteve
presente no discurso do narrador, quando falou sobre “a festa dos abraços”
(depois da detenção dos grevistas de Monte Lavre):
(...) oh que famintos beijos na floresta, qual floresta qual
merda, abraçam-se os desgraçados uns nos outros, e
choram, parecia a ressurreição das almas, e se se
beijaram, para isso têm pouca arte (...)
205
em contraponto com
Oh, que famintos beijos na floresta,
E que mimoso choro que soava!
Que afagos tão suaves! Que ira honesta,
Que em risinhos alegres se tornava!
203
“Os Lusíadas”, I, 2 (...) II, 45.
204
SILVA (1989), p. 46.
205
SARAMAGO (1996), p. 162. Grifos meus.
111
O que mais passam na manhã e na sesta,
Que Vênus com prazeres inflamava,
Melhor é experimentá-lo que julgá-lo;
Mas julgue-o quem não pode experimentá-lo.
206
Inicialmente vemos a desconstrução do discurso camoniano,
impregnado de lirismo, pelo uso do termo desqualificador “qual floresta, qual
merda”. Não no discurso do narrador saramaguiano a “arte” dos versos
de Camões, descrevendo a aproximação entre as ninfas e os navegantes
ao chegar à Ilha dos Amores, em uma pintura renascentista. Os beijos entre
os personagens de Saramago, se é que existiram, foram rústicos, com
“pouca arte”. Além disso, ao resgatar tal episódio, o narrador desafia a
censura, presente no tempo histórico da narrativa e que foi responsável pela
supressão desses mesmos versos nas edições de Os Lusíadas publicadas
sob o regime salazarista. Na desconstrução do lirismo presente no texto
original, vemos a tentativa de escandalizar aquele Camões
monumentalmente forjado através de sucessivas leituras apologéticas.
Nesse romance o diálogo explícito de Saramago com a obra de
Camões, de modo que o autor de hoje utiliza não apenas o discurso do
poeta dos quinhentos, mas também o histórico recepcional desses versos
instituídos como referencial de toda uma cultura. Censura o caráter sagrado
que eles assumem, provocando a emergência de uma outra leitura, agora
dessacralizada.
6.1.2. Camões em Mafra
206
“Os Lusíadas”, IX, 83. Grifos meus.
112
Memorial do Convento (1982) mostra uma narrativa ambientada na
primeira metade do século XVIII. Sua repercussão foi tão bem sucedida que
chegou mesmo a inspirar o compositor italiano Corghi na produção de uma
ópera, Blimunda. Traduzido para diversas línguas, Memorial do Convento
fez com que Saramago atingisse um grau de relevância jamais conquistado
pela literatura portuguesa moderna, sendo alvo de diversos estudos, não
apenas em países lusófonos. O romance gira em torno dos personagens
Baltazar e Blimunda, mais o padre Bartolomeu Lourenço, que, envolvidos
em um contexto histórico da edificação do convento de Mafra, constroem
uma máquina voadora, a passarola. Surge, a partir daí, a questão do
tratamento histórico efetuado por Saramago. A preferência pela Nova
História pode ser percebida na medida em que o narrador vai questionando
o potencial de ficção que há em certos acontecimentos da história
portuguesa, sob a ótica do homem que vive no século XX, o que culmina na
“ficcionalidade histórica” do discurso saramaguiano na construção de um
romance histórico, ou como diz João Adolfo Hansen:
Devemos lembrar que na prática da escrita da história e do
romance histórico, como é o caso de Memorial, o passado
nunca é um a priori dado e acabado, como algo positivo a ser
reconhecido, mas uma construção ou um efeito do presente da
enunciação. Por definição, o passado é uma ausência
presentificada na metáfora do discurso. Por ser um produto ou
algo fictício, o discurso da história também é fictício. É, no
entanto, uma ficção proposta ao leitor como verdade, pois o
seu pressuposto é o de que o limite semântico dos seus
113
enunciados é determinado pelo critério da existência do
evento.
207
Isso mostra que, na construção dessa narrativa e, principalmente na
opção por um narrador interventor, Saramago demonstra o conhecimento e
a aproximação com essa nova perspectiva histórica. Partindo dessas
reflexões, adentramos naquilo que poderemos chamar de “presença de
Camões” nesse romance, lembrando do que Linhares Filho
208
propõe como
sendo “intertextualidade”, vendo como paródia de Os Lusíadas o episódio
da morte de um velho anônimo, quando da partida de alguns homens que
iriam trabalhar nas obras do convento, em Mafra:
Maldito sejas até à quinta geração, de lepra se te cubra o corpo todo,
puta vejas a tua mãe, puta a tua mulher, puta a tua filha, empalado
sejas do cu até à boca, maldito, maldito, maldito. vai andando a
récua dos homens de Arganail, acompanham-nos até fora da vila as
infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado
esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha para
refrigério e doce amparo desta cansada velhice minha, não se
acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto
respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim os levados se
afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os
olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, e então uma grande
voz se levanta, é um labrego de tanta idade que não o quiseram, e
grita subido a um valado, que é púlpito dos rústicos, Ó glória de
mandar, ó cobiça, ó rei infame, ó Pátria sem justiça, e tendo assim
207
HANSEN, João A. Experiência e expectativa em memorial do Convento, em LOPONDO (1998), p. 20.
208
FILHO, Linhares. Uma leitura de Memorial do Convento, em BERRINI (1999), p. 169.
114
clamado, veio dar-lhe um quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que
ali mesmo o deixou morto.
209
No texto de Saramago, a presença da mãe e da esposa na
despedida aos futuros trabalhadores revela a clara intenção de aproximar o
leitor do texto original de Camões:
Qual vai dizendo – Ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
(...)
Qual em cabelo: – Ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
210
Nesses versos, Camões mostra o heroísmo e sentimento patriótico
dos que partem, sobrepujando o amor conjugal ou filial, mesmo ouvindo o
clamor das esposas e das mães.
Nós outros, sem a vista levantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, neste estado,
Por nos não magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado,
Determinei de assim nos embarcarmos,
Sem o despedimento costumado,
211
Podemos resgatar esse mesmo sentimento no Camões-personagem
romântico de Almeida Garrett, para quem, na batalha entre o amor e a
pátria, a segunda triunfou levando-o a deixar o solo português.
209
SARAMAGO (2003), p. 284. Grifos meus.
210
Os Lusíadas, IV, 90 e 91. Grifos meus.
211
Os Lusíadas IV, 93. Grifos meus.
115
Diferentemente do que é historicamente atribuído ao discurso camoniano e
da leitura garrettiana desses versos, Saramago mostra os trabalhadores
sendo levados à força para trabalhar na edificação do convento. Não
heroísmo, mas opressão. Renova-se, então, a leitura que é feita desses
versos de Camões, questionando-se sobre qual é a verdadeira motivação
para essas expedições chegar às Índias, ou edificar um convento, como
se em outro trecho dessa mesma narrativa: “era como se andassem os
corregedores a prender para a tropa ou para a Índia”
212
. As palavras de
Saramago mostram expressamente que tal motivação não vinha dos
homens do povo, pois seguiam forçados:
E os homens, que nunca viram o rei, os homens que o rei
nunca viu, os homens, mesmo não o querendo vêm, entre
soldados e quadrilheiros, soltos se são de ânimo pacífico ou
se resignaram, atados como foi explicado, se rebeldes, atados
sempre se por malícia viloa mostram ir de vontade e depois
tentaram fugir, pior ainda se algum conseguiu escapar.
213
Para Saramago, a verdadeira motivação é aquela apontada pelo
Velho do Restelo, para muitos críticos a voz anti-épica do poema de
Camões. O narrador saramaguaino renova a leitura dos versos iniciais de
Camões sobre a despedida no Restelo, reforçando o que vem expresso nas
palavras do Velho:
- Ó glória de mandar, ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos Fama!
212
SARAMAGO (2003), p. 283. Grifos meus.
213
Idem, p. 285. Grifo meu.
116
Ó fraudulento gosto, que se atiça
Como aura popular, que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldades neles experimentas!
Dura inquietação d'alma e da vida
Fonte de desamparos e adultérios,
Sagaz consumidora conhecida
De fazendas, de reinos e de impérios!
Chamam-te ilustre, chamam-te subida,
Sendo digna de infames vitupérios;
Chamam-te Fama e Glória soberana,
Nomes com quem se o povo néscio engana!
214
A respeito desse mesmo personagem, diz Helena Kaufman:
(...) criado a partir da imagem de uma outra figura literária, o
velho do Restelo d’Os Lusíadas, o qual desafia o discurso
institucionalizado do século XV no exato momento da partida de
Vasco da Gama para a Índia.
215
No poema de Camões, o velho alerta para o fato de, com a partida
dos homens para o mar, as famílias ficariam desamparadas em terra,
assombradas pelo temor da morte longe de casa e, até mesmo, sujeitas à
necessidade do adultério. Mesmo assim, os homens partem motivados pela
“Glória de mandar” e pela cobiça. Saramago nesses versos a motivação
214
Os Lusíadas, IV, 96 e 96.
215
KAUFMAN (1991), p. 17.
117
não dos homens que partem, mas a de quem manda. Por isso, o seu
personagem, “labrego de tanta idade que não o quiseram”, completa
explicitamente o que muitos vêem implícito na fala do Velho do Restelo de
Camões: “ó rei infame, ó Pátria sem justiça”, complementado, mais adiante,
na voz do narrador:
Quanto pode um rei. Está sentado em seu trono, alivia-se
consoante a necessidade, na peniqueira ou no ventre das
madres, e daí, daqui ou dacolá, se o requerem os interesses do
Estado, cujo ele é, despacha ordens para que de Penamacor
venham os homens válidos, ou nem tanto, a trabalhar neste
meu convento de Mafra (...)
216
A morte do velho no texto de Saramago nos leva a ponderar a
respeito do incômodo que o discurso anti-épico, presente no episódio, teria
provocado nos leitores apologéticos, principalmente naqueles que viam em
Os Lusíadas o exemplo mais bem acabado da epopéia marítima
portuguesa. Calar a voz desse “velho de aspeito venerando” teria sido o
desejo de muitos leitores. Saramago sintetiza no poder do Estado
representado pelos soldados esse desejo de silenciar a voz
dessacralizadora: mata-se o velho, cala-se a voz que fala contra o poder e
contra o que há de sagrado no poema de Camões.
Outras referências esparsas a episódios de Os Lusíadas também vão
surgindo em outros momentos da narrativa, sobretudo quando se trata de
comparar a epopéia da descoberta do caminho marítimo para a Índia com a
216
SARAMAGO (2003), p. 284.
118
epopéia da viagem na passarola, também ela de descoberta, rumo à
aventura e ao desconhecido. Assim, toda a descrição da viagem de Lisboa
a Mafra mantém semelhanças com a viagem marítima em Os Lusíadas,
surgindo na voz do narrador comparações como estas:
(...) é como se finalmente tivessem abandonado o porto e as
suas amarras para ir descobrir os caminhos ocultos, por isso
se lhes aperta o coração tanto, quem sabe que perigos os
esperam, que adamastores
217
, que fogos de santelmo
218
, acaso
se levantam do mar, que ao longe se vê, trombas de água que
vão sugar os ares e o tornam a dar salgado.
219
Outra referência ao Adamastor surge perto do local onde vão
aterrisar e com o qual estiveram prestes a se chocar:
Na frente deles ergue-se um vulto escuro, será o adamastor
desta viagem, montes que se erguem redondos da terra, ainda
riscados de luz vermelha na cumeada.
220
O mesmo Adamastor surge em cena prévia, no momento em que
grandes ventos destroem a Igreja de madeira que tinha sido especialmente
construída para a cerimônia de sagração da primeira pedra do Convento de
Mafra. O narrador afirma que a grande tempestade ocorrida "foi como o
sopro gigantesco de Adamastor, se Adamastor soprou, quando lhe
dobravam o cabo dos seus e nossos trabalhos”
221
, demonstrando que
Saramago, desde o início do romance, tem como um dos pontos de
217
Os Lusíadas, V, 51.
218
Os Lusíadas, V, 18.
219
SARAMAGO (2003), p. 193. Grifos meus.
220
Idem, p. 195.
221
Idem, p. 82.
119
referência pôr em questão o discurso épico de Camões, banalizando os
tormentos relatados no poema ao trazê-los para a terra, em situações bem
pouco heróicas.
6.1.3. Camões em Lisboa
O ano da morte de Ricardo Reis, de 1984, é também fundamentado
na história de Portugal e tem como personagens o poeta morto, Fernando
Pessoa, e seu heterônimo vivo, Ricardo Reis. A ação se passa no ano de
1936, época da Guerra Civil Espanhola e da ascensão de Hitler, Franco,
Mussoline e Salazar, época intensa para a história mundial que, segundo
Maria Alzira Seixo,
É um prato cheio para Saramago, uma fartura de
acontecimentos a partir do qual ele está mais do que bem
servido para desencadear o seu passatampo predilecto: fazer
andar a roda da História.
222
É através do cotidiano de Ricardo Reis em Lisboa, exercendo a
profissão de médico em um consultório, cujas janelas dão para o largo onde
está a estátua de Camões, que Saramago vai construindo o seu romance.
Apresenta-nos um narrador interveniente, que na narrativa por ele tecida
a oportunidade de contestar e recriar mais uma vez a História,
empenhando-se em afirmar a autonomia do seu Ricardo Reis em relação ao
poeta de Orpheu. Sobre esse narrador, diz Eugênio Gardinalli Filho:
222
SEIXO(1987), p. 41
120
Histórico e historicizante, o narrador de Saramago é uma
presença viva defronte do leitor. Irônico, opinante, não se
furtando à discordância e à digressão, vemo-lo tecer o texto e
podemos apreender-lhe a tecedura, não apenas o tecido...
223
No Ano da Morte de Ricardo Reis, Saramago propõe, desde o
primeiro parágrafo, a reformulação do discurso camoniano. Ao iniciar o
romance com uma subversão dos versos de Os Lusíadas, Saramago
aponta para a atual situação de Portugal frente ao contexto histórico
contemporâneo, no qual a terra do Luso não é mais a mesma que aquela
cantada em 1572. A respeito disso, escreve Beatriz Berrini:
A frase inaugural do romance é uma paráfrase camoniana:
“Aqui o mar acaba e a terra principia”. Saramago retoma o
verso da estância 20, Canto III, d”Os Lusíadas”, criação imortal
do poeta quinhentista: “Aqui, onde a terra se acaba e o mar
começa”. A leitura de Saramago, como sempre, inverte a
matriz camoniana, que no século XVI privilegiava a aventura
dos descobrimentos, estando Portugal voltado para os
horizontes marítimos, até então indevassados. No mundo
contemporâneo, não mais pertence aos portugueses a
iniciativa das descobertas agora interplanetárias.
224
O romance tem princípio com a chegada do poeta heterônimo
pessoano a Portugal, recém-chegado do Brasil. A frase de abertura,
construída sobre o verso camoniano, mostra a intencionalidade de subverter
o épico, fazendo com que o tema camoniano a saída de Portugal para o
223
No ensaio O ano da morte de Ricardo Reis: da irrupção heteronímica à contextualização crítica
efetuada por José Saramago, publicado em LOPONDO(1998), p. 56.
224
BERRINI, Beatriz. O ano da morte de Ricardo Reis – sugestões do texto. In BERRINI (1999), p. 71
121
mundo seja visto através de uma imagem especular a chegada de Reis
a Portugal. O texto de Saramago é concluído com mais outra referência ao
mesmo verso: “aqui onde o mar se acabou e a terra espera”. Sobre esse
desfecho, Beatriz Berrrini considera:
“A terra espera” diz o narrador na clausura do romance. A
terra continua a esperar...Quem irá desvendar os mistérios do
mar sem fundo, que continuam a assombrar o ser humano?
225
Essa é uma possibilidade, mas, em se tratando de Saramago, é
impossível não reconhecer a intenção crítica de releitura do verso
camoniano, reconstruindo-o de modo a mostrar que Portugal não é o
mesmo de Os Lusíadas, ou seja, a época das aventuras e descobrimentos
marítimos deu lugar a um Portugal em permanente expectativa (“a terra
espera”). Essa leitura renovada mostra a crença de que a identidade
portuguesa sofreu uma paralisação, atando-se nostalgicamente aos tempos
de heroísmo e glória cantados no épico de Camões. Sendo assim, revela
Saramago, o poema quinhentista não pode mais ser lido como o tem sido
pela historiografia literária. Para Fátima Bueno, a reformulação do verso
camoniano, no final do romance, representa esse mesmo chamado a uma
leitura diferenciada do passado português, e portanto, de Camões:
Ele [o narrador] parece propor uma nova solução para os
problemas da pátria, não mais voltada para o mar ou às glórias
passadas. José Saramago, com a frase final de O Ano da
Morte, explicita, mesmo que apenas tímida e
embrionariamente, que é na terra que deve ser buscada uma
225
Idem, p. 72
122
saída para os portugueses. O “mar sem fim” de Mensagem e o
sonho do Quinto Império devem ser deixados de lado. A nova
era proposta por José Saramago em seus romances inclui um
revisitar o passado, mas com os pés no presente e sem os
sonhos visionários de intelectuais e poetas, que, como
Fernando Pessoa, acreditaram que o renascimento português
se daria pelo regresso real ou mítico à nação imperial e
guerreira que sucumbiu nas areias de Alcácer-Quibir.
226
É relevante, também, a ressignificação da figura do Poeta exemplar
do Renascentismo, nas palavras de Saramago, dentro desse romance. A
seguir, há uma outra referência a Os Lusíadas, mas desta vez destacando a
imagem que o próprio Camões pintou de si nos versos finais do épico:
Para servir-vos, braço às armas feito;
Para cantar-vos, mente às Musas dada.
227
Saramago refere-se a essa imagem quando faz Ricardo Reis refletir a
respeito dele próprio, como poeta e médico em seu consultório, cuja janela,
como se disse, para a estátua de Camões. Nas palavras do
heterônimo pessoano, Saramago emula o tópico presente em Os Lusíadas.
Dizendo: “Mente, como a sua, às musas dada, porém, braço não mais do
que às seringas feito”
228
, Ricardo Reis põe-se em nível de comparação com
Camões poeta “mente às musas dada” mas não com o herói patriótico,
ele é apenas um médico que escreve poesia. Vemos a leitura que
Saramago faz de Camões passar por Fernando Pessoa. Ele parece
226
BUENO (2002), p. 89. Grifos meus.
227
“Os Lusíadas”, Canto X, 155.
228
SARAMAGO (1984), p. 124.
123
reconhecer o processo de “apagamento” do Camões-herói garrettiano,
levado a efeito pelo poeta de Mensagem.
Outra citação de Os Lusíadas aparece na menção ao Adamastor.
Fica patente que, ao descrever a estátua do gigante no Alto de Santa
Catarina, Saramago utiliza as mesmas imagens presentes nos versos
camonianos virando-as ao contrário, ou pelo avesso.
(...) o vulto protetor do Adamastor (...) , este rosto carregado, a
barba esquálida, os olhos encovados, a postura nem medonha
nem má, é puro sofrimento amoroso que atormenta o
estupendo gigante.
229
Em Os Lusíadas temos:
Não acabava, quando uma figura
Se nos mostra no ar, robusta e válida,
De disforme e grandíssima estatura;
O rosto carregado, a barba esquálida,
Os olhos encovados, e a postura
Medonha e má e a cor terrena e pálida;
Cheios de terra e crespos os cabelos,
A boca negra, os dentes amarelos.
230
Saramago, nesse romance, opta por uma interpretação menos feroz
do Gigante que aterrorizava o sul da África e tantas provações colocava aos
navegantes. No épico, o gigante tem a função de revelar o espírito
aventureiro e desbravador dos portugueses, através da sua postura
229
Idem, p. 263.
230
“Os Lusíadas”, Canto V, 39.
124
ameaçadora. É essa vocação que a leitura realizada até princípios do
século XX atribui ao monstro. Mais uma vez questionando essa recepção,
fortemente influenciada pela obra de Garrett, Saramago apresenta um
Adamastor que pouco tem de ameaçador e, ainda, o sobrepõe ao tom de
voz “horrendo e grosso”
231
do monstro do épico, evocando o drama amoroso
de Adamastor: “a postura nem medonha nem má, é puro sofrimento
amoroso”. Sobre essa dessacralização, escreve Beatriz Berrini:
A figura disforme e gigantesca do Adamastor, que n”Os
Lusíadas” é descrita de forma feroz, com isso alcançando o
poeta engrandecer o feito dos portugueses nos finais dos
quatrocentos, capazes de vencê-lo e transformar assim o Cabo
das Tormentas em Cabo da Boa Esperança, essa figura faz-se
mais humana no texto de Saramago, despertando antes a
piedade que não o medo.
232
Em suma, nos três romances elementos que apontam
claramente para uma intencionalidade de recriação anti-épica, ou
desmitificadora, do mesmo discurso camoniano. Com isso, Saramago
mostra que não leu o poema, mas o recriou por meio de um olhar crítico
e renovado.
Encontramos, nesses romances, a função de subverter a recepção
historicamente institucionalizada dos escritos de Camões: A Levantado do
Chão cabe o papel de pioneiro na representação daquilo que é na obra
saramaguiana o eco dos que não têm voz, ou seja, os personagens
231
Idem, V, 40.
232
BERRINI, Beatriz. O ano da morte de Ricardo Reis – sugestões do texto. In BERRINI (1999), p. 73.
Grifos meus.
125
marginalizados pela história oficial. Segue-se o Memorial do Convento, no
qual a busca por uma re-escrita da história ganha contornos que
desmitificam o épico de Camões por meio de paródias repletas de ironia.
Em O ano da morte de Ricardo Reis, referências diretas ao poeta dos
quinhentos, acerca da relação entre os personagens e a estátua da Praça
Camões, deixando à mostra um “Camões de Saramago”.
A figura mítica de Camões e a leitura sacralizada de Os Lusíadas são
ressignificadas nesses três romances. Tal ruptura com a hipótese de leitura
de Camões e do seu épico, disseminada desde Garrett, revela a existência
de uma outra proposta recepcional, sugerida por Saramago e que não foi
fundada com a sua obra romanesca. É antigo tal propósito. As questões
relativas à configuração de um “novo Camões” aparecem na produção
poética saramaguiana, que remonta à década de 1960 e, mais
detalhadamente, na peça de teatro Que Farei com este Livro?, de 1980, os
quais serão apresentados a seguir.
6.2. Camões nos versos de Saramago
Como pôde ser visto em capítulo anterior, a nova leitura de Camões
na época pós Revolução do Cravos foi possível devido às tendências
democráticas e socialistas, no bojo do movimento originado pelas reações
culturais anti-salazaristas. Ao subvalorizar o Camões-herói, algumas das
obras literárias portuguesas do século XX com destaque para as de Jorge
126
de Sena, Maria Gabriela Llansol, Luzia Neto Jorge e, como foco deste
trabalho, as de Saramago assumem uma grande liberdade crítica e a
exposição de problemas e desigualdades sociais.
Vimos que nos três romances históricos de Saramago mencionados,
a partir de Levantado do Chão, são revelados os mecanismos através dos
quais o discurso épico de Camões será posto em xeque por uma sinfonia de
vozes, as dos muitos personagens e narradores criados pelo romancista. A
origem primária desse discurso, no entanto, pode ser percebida desde Os
Poemas Possíveis (1966), onde indícios de uma leitura diferente daquela
historicamente institucionalizada de Os Lusíadas e da lírica camoniana.
Esboça-se dessa forma um percurso a ser desvelado, ou seja, o percurso
criativo pelo qual Saramago formulou ou reformulou a figura histórica de
Camões e o valor da obra desse poeta.
É, portanto, através da poesia escrita entre as décadas de 60 e 70,
que Saramago revela pela primeira vez a compreensão de um Camões
incompreendido, ou seja, aquele que não deixa de ser um homem “de carne
e osso”
233
, como qualquer outro. Não é divino o Camões nos poemas de
Saramago, é antes, e possivelmente, o embrião do Camões humanista do
século XVI que ganhará voz no teatro de Saramago, em 1980.
A leitura que será levada a efeito adiante tem por objetivo fixar a
ruptura de Saramago com a hermenêutica camoniana romântica e
focalizará os poemas que fazem referência direta ao poeta: “Fala do Velho
233
Alusão ao verso de Camões “um homem sou só, de carne e osso” da canção “Já a roxa manhã clara”
CAMÕES (2001), p. 202.
127
do Restelo ao Astronauta”, “Epitáfio para Luis de Camões” e Poema para
Luis de Camões”.
Devemos lembrar que uma das primeiras incursões de Saramago
pelo mundo da literatura foi realizada através da poesia. Veremos, então,
que é inicialmente pela linguagem poética que Saramago, com um
posicionamento crítico frente ao mito camoniano, vai subvertendo o discurso
entronizado de Camões e do seu épico a ponto de dessacralizá-lo enquanto
objeto emblemático e, dessa forma, revelar o que há, como diz João Adolfo
Hansen
234
, de mundano nesse mito.
Os Poemas Possíveis e Provavelmente Alegria nos apresentam um
problema inicial: a sua reedição na década de 80. Os Poemas Possíveis foi
reeditado em 1982 e o Provavelmente Alegria em 1985, sendo que ambos
sofreram alterações, justificadas pelo autor nos prefácios desses livros, que
se apresentam como obras “revistas e emendadas”
235
em sua segunda
edição. A nota de abertura da segunda edição de Os Poemas Possíveis
pondera que a decisão de re-editar esses poemas revistos gerou a polêmica
de serem ou não “outros” poemas, diversos daqueles constantes na
primeira edição:
Poesia do dia passado, da hora tarda, poesia não futurante. E
contra isso não haveria remédio. Salvo tentar trazê-la até o seu
autor de hoje, por cima de dezasseis anos e dezasseis
séculos. Assim foi feito (...), mas nenhum poema foi retirado,
234
Veja-se o artigo de João Adolfo Hansen na página eletrônica “A Sibila”, disponível em
http://www.sibila.com.br/mapa12maquinadomundo.html
235
Veja-se a ficha catalográfica de cada livro.
128
nenhum acrescentado. É então outro livro? É ainda o mesmo?
(...) O romancista de hoje resolveu raspar com unha seca e
irônica o poeta de ontem.
236
Mesmo fazendo parte de uma fase inicial, quando o romancista ainda
se fechava no poeta, esses poemas revelam uma estreita relação com o
que viria a ser a sua massiva produção narrativa, mesmo assim, essa
reedição nos causa um problema inicial, de modo que, na leitura realizada a
seguir, contemplaremos as duas edições dos poemas, permitindo perceber
se, e até que ponto, a leitura que Saramago faz de Camões alterou-se em
vinte e poucos anos, entre uma e outra edição.
6.2.1. O velho do Restelo
No poema Fala do velho do Restelo ao astronauta,
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
236
SARAMAGO (1982), p. 13.
129
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
237
Saramago recria no século XX a figura contestadora do “velho de
aspeito venerando”, que, agora, se dirige a um astronauta e não mais aos
nautas de Vasco da Gama. Opta por colocar na voz do velho o discurso
contra o expansionismo espacial, ou a “vã cobiça”, que cega e desvia o
olhar para longe das questões mais urgentes e danosas, como por exemplo,
a fome, a miséria e as condições precárias de saúde do povo na Terra
globalizada. Os dois primeiros versos, repontuados entre uma e outra
edição, apontam para isso: Aqui, na Terra, a fome continua, / A miséria, o
luto, e outra vez a fome.
238
- Aqui na terra a fome continua / A miséria e o
luto e outra vez a fome.
239
A crítica de Saramago se constrói na medida em que vai
aproximando o contexto contemporâneo daquele em que viveu Camões,
evidenciando a preferência pelo discurso anti-épico. No primeiro verso
vemos o pronome “aqui” indicando o distanciamento entre o eu-lírico e o
astronauta, representante de um poder que, por vezes, prefere a conquista
do desconhecido em detrimento do bem estar comum. O verbo continuar”
no presente do indicativo é uma forma de ligar o passado remoto ao
presente, mostrando que a voz do velho, levantada contra os desmandos,
não cessa de denunciar os perigos que levaram ao fracasso das Grandes
237
SARAMAGO (1981) 2ª. ed. p. 70.
238
SARAMAGO (1985) 2ª. ed.
239
SARAMAGO (1966) 1ª. ed.
130
Descobertas. Perigos que “continuam”, ampliados à escala mundial, na era
da globalização.
Alguns versos do célebre episódio no canto IV de Os Lusíadas são
citados por Saramago nesse poema. Exemplo disso é a imagem do fogo
que, em Camões recebe um tratamento tópico, que resgata a sua origem
mitológica de ser trazido à Terra por Prometeu e transformado em armas
pelos homens:
Trouxe o filho de Jápeto do céu
O fogo que ajuntou ao peito humano,
Fogo que o mundo em armas acendeu,
Em mortes, em desonras (grande engano!)
240
A arma de fogo é alegorizada por Saramago na figura do napalm,
substância química inflamável utilizada como arma pelos Estados Unidos da
América do Norte quando das guerras do Vietnam e da Coréia. O verso
“Acendemos cigarros em fogos de napalm” traz a mesma crítica dos versos
de Camões, ou seja, o ser humano, cobiçoso pela glória e fama, “continua”
transformando a dádiva (fogo celeste) em arma e, ao acender num fogo
bélico os cigarros, minimiza o seu efeito devastador, revelando o descaso
para com as conseqüências desastrosas da “glória de mandar”, como, por
exemplo, a indignação (ou “indigna ação”) para com a cena das meninas
coreanas correndo semi-nuas, com os corpos dilacerados pelo napalm no
ataque estadunidense, que aparecem na fotografia divulgada pelo mundo
afora. O verso seguinte no poema de Saramago, “E dizemos amor sem
240
“Os Lusíadas”, Canto IV, 103.
131
saber o que seja”, completa o sentido do anterior. O que está não pode
ser mudado, mas fica o alerta do velho que, “meneando três vezes a
cabeça”, questiona a ganância desmedida:
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme.
241
A tripla repetição da palavra “fome” encontra-se como projeção da
ação descrita por Camões na estrofe 94 do canto IV de Os Lusíadas:
Mas um velho de aspeito venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Posto em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
242
O velho do Restelo de Saramago também está descontente com a
situação do povo português, no entanto transcende os limites do país,
denunciando uma situação caótica mundial. O verso Mas o mundo,
astronauta, é boa mesa” revela uma maior abrangência espacial em relação
ao primeiro verso, Aqui na Terra, a fome continua”. A gradação de “Terra”
para mundo” sugere o direcionamento para o aspecto humanístico. A
palavra “mundo” é usada no seu sentido humano, em oposição à palavra
“Terra”, que designa o aspecto físico e geográfico. Além disso, a palavra
241
SARAMAGO (1985). Grifos meus.
242
Os Lusíadas, IV, 94. Grifos meus.
132
“Terra” do primeiro verso bem poderia ter relação com as “terras” que
fizeram de Portugal a nação portentosa de Os Lusíadas:
Não tem cidades mil, terra infinita,
Se terras e riqueza mais desejas?
243
A opção de Saramago por iniciar o discurso do velho falando da Terra
e depois do mundo adquire uma abrangência maior que aquela mostrada
nas palavras do Velho do Restelo, em Os Lusíadas. No épico de Camões, o
Velho se dirige aos navegantes a respeito da condição portuguesa e no
poema do século XX, o velho de Saramago fala ao astronauta a respeito da
condição mundial. Ambas condições, a lusa no século XVI e a mundial no
século XX, são de precariedade, pela cobiça daqueles que mandam. Ao
trazer para o século XX o discurso anti-expansionista e anti-épico do Velho
do Restelo, agora sob a perspectiva de um mundo globalizado, Saramago
expõe uma proposta de leitura de Os Lusíadas não mais nacionalista. O
velho de Saramago é a voz de alerta para o mundo.
6.2.2. A imagem do poeta
No Poema para Luiz de Camões,
Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
243
Os Lusíadas, IV, 100.
133
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.
Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.
244
versos que abrem o livro Provavelmente Alegria de 1970 (segunda edição
revista em 1985) são formados a partir de uma proposta de linguagem até
certo ponto hermética, que se alonga nos demais poemas desse livro e
sobre a qual se manifesta José Rodrigues Paiva:
244
SARAMAGO (1985), p. 50.
134
Fortemente imagéticos e cromáticos, esses textos têm como
ponto fundamental, o elemento onírico e, portanto, não
obedecem a uma lógica realista, antes privilegiam a
transgressão surrealista, na invenção de situações fantásticas
só compreensíveis num mundo de sonhos e de símbolos.
245
Tal linguagem, mais tarde será reconhecida como “um dos recursos
mais expressivos no romance de Saramago”
246
e não deixa de revelar na
leitura do escritor a busca pelo “novo Camões”. Nesse poema vemos um
sujeito que se dirige a Camões, exaltando-o pelo recorte humanista em
detrimento da perspectiva ufanista que marcou a leitura tradicionalmente
realizada até então:
1 Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
2 Quem pudera dizer-te estas grandezas,
3 Que eu não falo do mar, e o céu é nada
4 Se nos olhos me cabe.
5 A terra basta onde o caminho pára,
6 Na figura do corpo está a escala do mundo.
247
Logo no primeiro verso, encontramos a afirmação de uma identidade
reconhecida entre os dois poetas, perceptível nas palavras “amigo” e
“convívio” intensificadas pelo pronome possessivo “meu”, conferindo a
dimensão de uma proximidade íntima e de apropriação. No entanto, o poeta
contemporâneo não se importa com as descrições dos feitos heróicos
daqueles conquistadores ancestrais ou com o que de épico na biografia
245
PAIVA, José Rodrigues. Sobre a poesia de José Saramago. in BERRINI (1999), p. 236.
246
Idem, ibidem.
247
SARAMAGO (1985), p. 50. Numeração e grifos meus.
135
camoniana (versos 3, 4 e 5), mas sim com o que é mundano” (no sentido
de ser do mundo sensível) na obra do seu “amigo”. Veja-se a figura
construída no sexto verso, que remete ao famoso Homem Virtuviano de Da
Vinci, gravura tomada como ícone do Humanismo, a qual representa o
mundo (macrocosmo) tomando como medida a forma do corpo humano
(microcosmo). Com isso vemos o que Saramago realmente deseja destacar
na obra de Camões que, em seu Os Lusíadas, em opção clara pelo
antropocentrismo, mostra o continente europeu na forma humana. Essa
representação do continente, sobretudo na forma do corpo feminino, foi
amplamente divulgada em cartas geográficas (cartas ginecomórficas) que
circulavam àquela época.
248
Saramago revela-se nesse poema como quem presume conhecer a
intenção do poeta quinhentista, compreendendo o código camoniano
existente em Os Lusíadas: E sei (...) / As veredas mais fundas da palavra /
(...) / São as terras da alma.”, “(...) última razão, que se esconde / sob a
névoa confusa do discurso.” E para mostrar que a figura de Camões foi
construída historicamente através dos versos épicos, quase parodiando a
segunda estrofe do poema camoniano: E também sei da luz e da
memória / Das correntes do Sangue o desafio / Por cima da fronteira e da
diferença.
249
Essa mesma imagem é a que culmina em uma “estátua
248
No canto III, quando Gama, antes de narrar a história das glórias de Portugal, explica a geografia da
Europa, são utilizados elementos antropomórficos. Vejam-se os versos da estrofe 14 Da terra um braço
vem ao mar, que, cheio, / De esforço, nações várias sujeitou; e da estrofe 17 Eis que se descobre a
nobre Espanha / Como cabeça ali da Europa toda,”. O livro de Sebastião Tavares Pinho, Decalogia
Camoniana, traz um capítulo intitulado “A descrição camoniana da Europa e a cartografia ginecomórfica”.
PINHO (2007), p. 133.
249
“E também as memórias gloriosas / Daqueles Reis que foram dilatando / A Fé, o Império e as terras
viciosas / De África e de Ásia andaram devastando,” (Os Lusíadas, I, 2)
136
jazente” que repousa, “não morta, não gelada” e sim “devolvida à vida
inesperada”, aquela vida por assim dizer “descoberta”, ou ainda inventada.
Com isso, Saramago critica o que se fez de Camões, quando os seus
versos foram manipulados para a formação de um mito imposto aos
portugueses como símbolo patriótico, como “labaredas verticais”, “ateadas
nas frontes como espadas”, para que pudessem se sentir “levantados”, ou
altivos e orgulhosos. No entanto, estavam sendo, sem o saber,
escravizados, com “as mãos presas” e havia nos olhos uma “lágrima
comum” dentro do “caos” que “devagar se ordenou entre as estrelas”.
Proposta semelhante aparece em outro poema de 1966, do livro
Poemas Possíveis: “Epitáfio para Luis de Camões”. Nele Saramago
demonstra uma compreensão lúcida do que foi feito com Camões:
Que sabemos de ti, se versos só deixaste,
Que lembrança ficou no mundo em que viveste?
Do nascer ao morrer encheste os dias todos,
Ou roubaram-te a vida os versos que fizeste?
250
Que sabemos de ti, se só deixaste versos,
Que lembrança ficou no mundo que tiveste?
Do nascer ao morrer ganhaste os dias todos,
Ou perderam-te a vida os versos que fizeste?
251
Nas duas edições o poema tem início com a perguntaQue sabemos
de ti (...)?”. Entram aqui questões como a autenticidade de relatos histórico-
biográficos, mito e, principalmente, projeção do autor pela interpretação
250
SARAMAGO (1966) 1ª. ed. p. 28.
251
SARAMAGO (1981) 2ª. ed. p. 33.
137
sempre questionável dos poemas. Como se pretende conhecer Camões
sendo a biografia do poeta tão questionável a ponto de não termos fixada,
por exemplo, data e local precisos para o seu nascimento, ou onde estão de
fato os restos mortais dele?
252
A resposta vem logo a seguir, na
continuidade do primeiro verso: “(...) se deixaste versos,” (ou “se versos
deixaste,” na primeira edição). Para Saramago a questão não é traçar
uma biografia de Camões a partir dos versos, mas sobretudo, censurar
aqueles que assim tentaram fazer, como, por exemplo, a vertente biográfica
do século XVIII.
“Encher os dias”, ou “ganhar os dias” significa, em última análise,
viver. Saramago questiona perguntando diretamente ao poeta, se Camões
realmente “viveu” ou se a vida que teve é apenas aquela inferida da leitura
de seus versos. Talvez seja devido a tal pergunta que Saramago altera o
segundo verso, que passa de Que lembrança ficou no mundo em que
viveste? da primeira edição para Que lembrança ficou no mundo que
tiveste?”, na segunda. Seria despropositado indagar se ele “realmente
viveu”. No último verso, vemos que a obra camoniana “rouba” a vida do
poeta. Roubar significa manter consigo alguma coisa. Saramago altera o
verbo “roubar” para “perder” na segunda edição “(...) perderam-te a vida
os versos que fizeste?” querendo mostrar que nem mesmo a obra pode
carregar consigo a vida “perdida” do poeta quinhentista, mesmo sendo obra
canonizada pelos diferentes públicos leitores.
252
ANASTÁCIO, Vanda. Criação de um poeta nacional: Breve panorâmica das edições da Lírica
Camoniana entre 1595 e 1870. In FRANCO, Marcia Arruda (org.) Floema Dossiê Camões Caderno de
Teoria e história Literária. Vitória da Conquista, UESB (no prelo).
138
Esse primeiro esboço de recepção criativa da figura e da obra de
Camões, surgida na década de 1960, tende a uma nova leitura que
aparecia, como vimos, em Oliveira Martins, Cesário Verde, Fernando
Pessoa e Jorge de Sena. Os poemas de Saramago nos permitem perceber
uma preocupação com a reformulação da figura camoniana, ou a revelação
de um “outro” Camões, mais verossímil no século XX.
Essa é uma preocupação constante na representação outra que
Saramago faz de Camões, ao questioná-lo como mito nacional, e, além
disso, propor-lhe uma nova leitura. Vemos isso claramente em uma obra
onde Camões ganha voz e atitudes, a peça de teatro Que Farei com este
Livro?
6.3. Camões no teatro saramaguiano
A peça de José Saramago, Que farei com este livro? está centrada
na ação de Camões no período entre Abril de 1570 e Março de 1572,
quando o poeta regressa do exílio na Índia e vai tentar obter em Lisboa,
junto à Corte portuguesa, o mecenato necessário para a publicação de Os
Lusíadas.
Homenageando os 400 anos da morte de Camões, Saramago
recupera a saga da publicação de Os Lusíadas, dialogando com o Camões
de Almeida Garrett e construindo um outro Camões, bem diverso daquele
herói romântico, elevado ao status de mito a partir de 1825. Diferentemente
do personagem garrettiano, o protagonista da peça teatral de Saramago é
um homem indeciso, fraco e sem rumo, como se na quarta cena, quando
139
Camões surge pela primeira vez, após o diálogo de Diogo do Couto e Ana
de Sá. A mãe, Ana, abre a porta sem que o filho, Camões, tenha batido. Ele
diz: Quando será, minha mãe, que me dareis tempo de abrir a porta?
253
vemos um Camões introduzido por uma interrogação e por uma
incapacidade de agir por conta própria, o que acontecerá ao longo de toda a
obra: dúvida e imobilidade. Outro momento que prova a intenção de criar
esse “novo” Camões acontece na sexta cena, quando o poeta reencontra a
ex-amente, Francisca de Aragão e ela toma a atitude inicial, como revela o
comentário:
(Nem um, nem outro sabem que mais dizer. A insustentável
tensão é quebrada por Francisca de Aragão que corre para
Luis de Camões e se abraça a ele.)
254
Note-se que as duas ações, “correr” e “abraçar”, têm como sujeito
Francisca de Aragão, enquanto Camões permanece como um objeto
imóvel. Nessa cena, Saramago não escreve que eles se abraçam, em um
gesto recíproco, mas apenas ela, Francisca, age. Essa é uma primeira
perspectiva pela qual o autor do século XX vai tentar ir de um extremo o
mito heróico – a outro – o homem fraco, da mesma forma que já o tinha feito
Jorge de Sena, por exemplo. Encontramos também na última cena a
mesma atitude de apatia e imobilidade, quando o livro impresso chega até
as mãos do poeta:
SERVENTE: Senhor Luis de Camões, agora mesmo ia eu a
vossa casa. Mas que vos encontrei, aqui tendes o que vos
253
SARAMAGO (1998), p. 31.
254
Idem, p. 43. Grifos meus.
140
manda o mestre Antonio Gonçalves. É o primeiro que
acabámos. (Retira-se.)
LUIS DE CAMÕES: (Segurando o livro com as duas mãos.)
Que farei com este livro? (Pausa. Abre o livro, estende
ligeiramente os braços, olha em frente.) Que fareis com este
livro? (Pausa.)
255
É o livro impresso que chega até as mão de Luis de Camões e não o
contrário. A ação fica por conta do servente de Antonio Gonçalves e ao
poeta, mais uma vez, cabe a imobilidade e o questionamento. Em uma
palavra, a passividade.
Mas Saramago não pretende apenas apresentar este “outro
Camões”. A sua opção é por apresentar também uma releitura da História,
resgatando elementos que possam dar margem à reflexão sobre
semelhanças existentes entre os séculos XVI e XX. É por isso que ele
conduz o fio narrativo de Que farei com este livro? por um universo de
opressão, marcado historicamente pela monarquia e igreja,
metaforicamente representados pela névoa e peste, ou nas palavras de
Seixo:
(...) a peste e o nevoeiro (figurando, respectivamente, a
ambiência criada pela inquisição e a mentalidade confusa do
jovem rei D. Sebastião) são motivos alusivos recorrentes desse
argumento negativo...
256
255
Idem, p. 92.
256
SEIXO (1987), p. 35
141
Essa opção tem por fonte, sem dúvida, alguns relatos históricos, mas
também o próprio épico, sendo ele compreendido como
documento/monumento
257
, do qual é considerada a condição de produção.
Para isso, Saramago parece se valer daquilo que vem escrito no alvará de
publicação, que começa por Eu el Rey faço saber aos que este Alvará
virem (...) e termina Gaspar de Seixas o fiz em Lisboa, a xxiiij: de
Setembro, de M.D.LXXI. Jorge da Costa o fiz escrever.” O alvará de D.
Sebastião é expedido por um de seus secretários, que fala em seu nome,
ou seja, o rei está materialmente ausente no contexto de publicação do
poema. Além disso vê-se, àquela época, a presença opressora do Estado
Monárquico, mostrando através da própria existência de um alvará de
publicação a intervenção em todas as questões, inclusive e principalmente
nas culturais. Isso tudo em conjunto com o Clero, como se em outro
trecho do mesmo alvará, “(...) e antes de se imprimir será vista e examinada
na mesa do conselho geral do santo ofício da Inquisição (...) e também na
licença do Santo Ofício da Inquisição, assinada pelo frei Bartolomeu
Ferreira, onde se lê, de início, Vi por mandado da santa e geral inquisição
estes dez Cantos dos Lusíadas de Luis de Camões”, palavras que mostram
a presença da censura eclesiástica. Mais à frente, no texto da mesma
licença, justifica-se o parecer favorável, não achei neles coisa alguma
escandalosa, nem contrária á e aos bons costumes (...) E por isso me
pareceu digno de imprimir (...)”, ou seja, o texto pode-se imprimir porque se
ajusta aos interesses da igreja e do Estado. Podemos ponderar, com a
257
LE GOFF (1992).
142
leitura desses dois registros, a respeito da soberania que o clero, como
instituição, e o Estado, representado por muitos e carente da presença de
um rei, detinham sobre os produtos culturais no século XVI. Nesse sentido,
o de denunciar uma presença opressora no ambiente do século XVI, vem a
opção de Saramago por introduzir na peça a leitura completa da dita
licença
258
, valorizando-a como texto histórico.
Ao lembrar das lições da Estética da Recepção, nos mostrando que o
texto pode ter tantos sentidos quantos forem os seus leitores, pode-se dizer
que temos aqui a leitura diferenciada (socialista?) que Saramago faz do
texto camoniano, apontando a tensão entre ricos e pobres, por um lado as
classes abastadas da alta nobreza e do clero e, por outro, o povo sofrido
que, se não morre na guerra, em defesa do Império, sucumbe à peste ou à
fome. O professor Francisco Maciel Silveira afirma que Saramago é
consciente da polissemia do texto camoniano, atribuindo ao personagem
Damião de Góis, no primeiro quadro do segundo ato, um papel fundamental
para compreendê-la:
Via Damião de Góis, propôs o Sr. José Saramago o mote para
ler o seu texto, Humberto-ecoando que a obra, depois de
aberta, admite distintas leitura, interpretação e valoração,
conforme os olhos de quem o ler.
259
Vincula-se claramente a isso a lição sociológica de Saramago: os
diversos sentidos que se atribuem ao texto literário dependem sempre da
258
No momento em que o Frei Bartolomeu entrega a licença de publicação do poema a Camões, na
íntegra o seu conteúdo. SARAMAGO (1998), p. 74.
259
SILVEIRA, Francisco Maciel. A edição de “Os Lusíadas” segundo o olhar (aquilino) de Saramago. in
LOPONDO (1998), p. 200.
143
ideologia de quem o lê. Estamos, pois, novamente frente à pergunta
saramaguiana: o que se fez dos versos de Camões? Ou seja, a questão da
mitificação do poeta como herói da pátria contra a busca por aquilo que fará
o poeta descer até o mesmo chão que pisamos, ou tornar-se novamente
homem.
Mostrar as inúmeras dificuldades que Camões teve de enfrentar para
publicar Os Lusíadas é um pretexto eficaz para revelar por que Portugal, às
vésperas de Alcácer Quibir, parecia uma “barca sem leme nem mastro”
260
,
navegando sob denso nevoeiro. Envolvido numa rede de influências
políticas em que se destacam as personalidades de D. Catarina de
Áustria, do cardeal D. Henrique e dos irmãos Luís e Martim Gonçalves da
Câmara O rei D. Sebastião não tem voz nesta peça de Saramago, entra
em cena uma única vez, e sem fala, no quinto quadro do primeiro ato. O
soldado Diogo do Couto descreve o rei como “uma criança de dezasseis
anos” que “gosta de caçar e montear, arrenega do governo do reino, reza
mais do que a rei convém” e “tem medo (...) do casamento”
261
. Com tal
governante e com os conselheiros que o rodeiam, o povo lusitano vive em
“confusão” pior que a da Índia, à mercê dos interesses expansionistas da
Coroa e daqueles que usufruem das benesses do Império (a nobreza e o
clero). Saramago, certamente, inspira-se nos versos do próprio Camões ao
desenhar esse D. Sebastião impopular, também caracterizado por António
Sérgio no seu estudo “Camões Panfletário (Camões e D. Sebastião)”:
260
SARAMAGO (1998), p. 33, fazendo referência à redondilha de Camões “Corre sem vela e sem leme /
o tempo desordenado, / dum grande vento levado; / o que perigo não teme / é de pouco exprimentado. /
As rédeas trazem na mão / os que rédeas não tiveram: / vendo quando mal fizeram / a cobiça e ambição /
disfarçados se acolheram.” in CAMÕES, Luis de. Lírica. São Paulo, Cultrix, 2001.
261
Idem, p. 62
144
“antipático demente que nos arrastou a Alcácer Quibir”
262
. Dentre os versos
utilizados como prováveis admoestações a el-rei, os que mais se destacam
são aqueles do canto IX, quando Vênus decide premiar os navegantes com
os refrigérios da Ilha dos Amores e vai encontrar Amor preparando uma
guerra aos homens, acusando-os de amar o que não deviam:
Via Actéon na caça tão austero,
De cego na alegria bruta, insana,
Que, por seguir um feio animal fero,
Foge da gente e bela forma humana;
E por castigo quer, doce e severo,
Mostrar-lhe a fermosura de Diana.
(E guarde-se não seja inda comido
Desses cães que agora ama, e consumido).
E vê do mundo todo os principais
Que nenhum no bem público imagina;
Vê neles que não têm amor a mais
Que a si somente, e a quem Filáucia ensina;
Vê que esses que freqüentam os reais
Paços, por verdadeira e sã doutrina
Vendem adulação, que mal consente
Mondar-se o novo trigo florecente.
263
262
SERGIO (1977), p. 31.O ensaio citado de António Sérgio, assim como O Desejado, publicado
anteriormente, mostram de maneira magistral a relação entre D. Sebastião, o povo, o clero e a corte.
263
Os Lusíadas, IX, 26 e 27.
145
Camões também se dirige a D. Sebastião, da mesma forma, nos
versos da Dedicatória e do Epílogo de Os Lusíadas:
E, enquanto eu estes canto - e a vós não posso,
Sublime Rei, que não me atrevo a tanto - ,
Tomai as rédeas vós do Reino vosso:
Dareis matéria a nunca ouvido canto.
Comecem a sentir o peso grosso
(Que pelo mundo todo faça espanto)
De exércitos e feitos singulares,
De África as terras e do Oriente os mares.
(...)
De Formião, filósofo elegante,
Vereis como Anibal escarnecia,
Quando das artes bélicas, diante
Dele, com larga voz tratava e lia.
A disciplina militar prestante
Não se aprende, Senhor, na fantasia,
Sonhando, imaginando ou estudando,
Senão vendo, tratando e pelejando.
264
Parece ser desses versos Saramago retira o material para esculpir o
D. Sebastião descrito por Diogo do Couto, quando, no quarto quadro,
Camões pergunta: “E el-rei? Como é el-rei? Quando parti para a Índia,
ainda ele não era nascido.”
265
Responde Diogo do Couto:
264
Os Lusíadas, I, 15 e X, 153. Grifos meus.
265
SARAMAGO (1998), p. 34.
146
DIOGO DO COUTO: El-rei...El-rei é uma criança de dezasseis
anos. Gosta de caçar e montear, arrenega do governo do
reino, reza mais do que convém. Mas é corajoso. Diz-se que só
tem medo de uma coisa, do casamento. Falar-lhe em casar é o
mesmo que falar-lhe da morte. É robusto de corpo, louro.
tens el-rei. Ah, é verdade. Descai-lhe o beiço.
266
semelhança da descrição com os versos de Camões quando
alude à imagem de Actéon - o caçador grego criado pelo centauro Quíron
que, amando mais os seus cães do que as mulheres, é transformado por
Diana em um veado e passa a ser perseguido por eles para mostrar a
simpatia pela caça e desprezo pelas mulheres. A ironia saramaguiana nos
remete ainda a uma certa ridicularização da condição física do rei – “descai-
lhe o beiço” e até mesmo da sua condição sexual, em outro quadro da
peça, quando conversam os irmãos Câmara, um confessor e outro,
secretário do rei:
MARTIM DA CÂMARA: Vejo que vos aproximais de mim. E
como não ousareis dar os passos que faltam, dir-vos-ei eu que
não é casar ou não casar el-rei que vos preocupa.
LUÍS DA CÂMARA: Que é, então?
MARTIM DA CÂMARA: Terei de ser eu a declarar as palavras
que a vossa ngua recusa, padre Luís Gonçalves da Câmara?
Rainha de Portugal, haveremos talvez, não creio que ela
filhos que de el-rei possam ser. (Pausa) Perdoai se vos
escandalizei.
267
266
Idem, ibidem.
267
Idem, p. 16.
147
Além da imagem pouco simpática e caricata de el-rei, Saramago
extrai dos mesmos versos elementos que nortearão a relação entre D.
Sebastião e os que o cercam. Vejam-se os versos “Vê que esses que
freqüentam os reais / Paços, por verdadeira e doutrina / Vendem
adulação, que mal consente / Mondar-se o novo trigo florescente”. Essa
adulação pode ser percebida no quinto quadro do primeiro ato, quando dois
fidalgos discutem por conta da “pragmática sobre o luxo” determinada por
D. Sebastião, um frade apressa-se em aconselhá-los, defendendo a decisão
real:
FRADE: Senhores, questionar sobre tal matéria não é para
gente de razão e bom nascimento. Olhai antes que alegre está
o céu por ver que segue a nobreza de Portugal o santíssimo
exemplo da Igreja. Ricas e poderosas são as nossas ordens
em terras, pessoas e outros bens, e contudo vede como nós,
servos de Deus, vestimos pobremente. Que é melhor para a
alma? Trajar o corpo sedas e cetins, ou alargar domínios, os
vossos e os do reino?
3° FIDALGO: Tendes razão.
4° FIDALGO: Boa razão tendes.
FRADE: Ora pois, e não torneis a enfadar-vos, que com os
enfados da nobreza sofre a fazenda de el-rei e entristece a
Igreja.
268
268
Idem, pp. 67 a 68.
148
O povo, como mostrado, sofria com as leis impostas em favor do
expansionismo. Além das fontes históricas, Saramago pode ter encontrado,
mais uma vez material para tal constatação nos versos de Camões:
Vê que aqueles que devem à pobreza
Amor divino, e ao povo caridade,
Amam somente mandos e riqueza,
Simulando justiça e integridade;
Da feia tirania e de aspereza
Fazem direito e vã severidade;
Leis em favor do Rei se estabelecem,
As em favor do povo só perecem”
269
.
Quanto a isso, pela voz de Diogo do Couto, fica dito que a Índia foi
“uma doença de Portugal”.
270
Camões, que lá trabalhou honestamente, de lá
retornou “sem riqueza nem esperança de a ter, e com a saúde perdida”.
271
Isso, como visto em capítulo anterior, está dito na década VIII de Diogo
do Couto, a qual, em conjunto com os versos da epopéia, Saramago tem
como uma das fontes documentais para criar o seu texto.
Compreende-se, pois, que quando a mãe analfabeta pede a Camões
que leia “uma passagem mais clara” de Os Lusíadas, que lhe chegue mais
facilmente ao entendimento, o poeta logo escolha a fala do Velho do
Restelo. Se, por um lado, era previsível que o discurso do velho, contrário à
expansão portuguesa no ultramar, agradaria a pobre mãe, que tanto sofrera
com a permanência do filho no Oriente ao longo de dezessete anos.
269
Os Lusíadas, Canto IX, 28.
270
SARAMAGO (1998), p. 49.
271
Idem, p. 83.
149
Também é possível, por outro lado, que Camões, depois de todas as
misérias que experimentou em suas viagens, tenha alterado a sua posição
de adesão ao expansionismo português tal como a podemos ver no
discurso do Velho de “aspeito venerando”:
E ponde na cobiça um freio duro
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania, infame e urgente,
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Melhor é merecê-los, sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.
272
Em Que farei com este livro? Saramago mostra Camões fazendo
“obra de remendão”
273
em seu livro, isto é, o poeta “corrije” o que escreveu
quando esteve fora de Portugal, adequando a matéria ao contexto que
encontrou ao regressar. Passa a considerar D. Sebastião de ...temor da
maura lança, / Maravilha fatal da nossa idade”, “Poderoso rei, cujo alto
império / O Sol, logo em nascendo, primeiro” a um Senhor” que tenta
aprender “a disciplina militar prestante”, “sonhando, imaginando ou
estudando”, quando deveria fazê-lo “tratando e pelejando”
274
.
Ao mostrar o Camões da peça vendo mudar a sua própria percepção
da realidade portuguesa desde que retorna até a publicação do poema,
Saramago propõe uma leitura, na qual aproxima o contexto histórico da
272
“Os Lusíadas”, Canto IX, 93.
273
SARAMAGO (1998), p. 32.
274
Os termos destacados referem-se aos versos da dedicatória e do epílogo de Os Lusíadas, Canto I, 6 e
Canto X, 153.
150
produção camoniana do contemporâneo. E o faz mostrando o perigo de
uma leitura inocente ou conduzida por ideologias manipuladoras que
transformaram, ao longo dos anos, Camões e a sua obra em mitos de
Portugal. É exatamente essa condição de mito que Saramago vem
dessacralizar quando nos um Camões fraco, hesitante e confuso, mas
não um mártir. Um Camões humano que, como qualquer um de nós,
aprende com os exemplos de outras pessoas, sofre transformações na
busca pelos seus ideais e quando consegue atingir os seus objetivos se
questiona: E agora, que farei?
151
7 – CONCLUSÃO
Quem foi, de fato, Camões? Indagação que notulo deste trabalho
se infere. “Quantos ledores, tantas as sentenças”, nos responde de
Miranda, em tom profético. Camões e a sua obra se tornaram, ao longo do
tempo, objetos metafóricos, “sentenças tantas” para “tantos ledores”. É isso
que se viu ao percorrer as linhas deste trabalho que teve, desde o seu título,
o intuito de mostrar ao público leitor de Camões do século XXI que não
uma forma de receber o poeta e a sua grande epopéia, mas inúmeras.
Tantas quantas forem os leitores e as épocas. O Camões de hoje não será
o de amanhã, assim como o de ontem não é o de agora.
Ao percorrer momentos chave dos mais de quatrocentos anos de
recepção de Os Lusíadas, regressamos ao passado histórico para
compreender como e quando o homem Camões transformou-se no mito
patriótico e, da mesma forma, como o seu livro se transformou no
“evangelho da pátria”. Constatou-se, neste trabalho, que foram diversas as
correntes recepcionais, de forma a gerar nos públicos leitores de épocas
subseqüentes um encadeamento de representações da obra e da figura do
autor quinhentista, culminando com o Camões garrettiano, herói romântico e
exemplo de bom português.
Foi mostrado que o período romântico transformou sobremaneira a
representação de mundo na cultura européia, de modo que os seus reflexos
estão presentes entre nós ainda hoje. Como diz Eduardo Lourenço Se não
152
foi o Romantismo que inventou a Literatura, modificou por completo a sua
noção”
275
, ainda dizemos mais: sobretudo a portuguesa, via o projeto de
renovação literária levado por Garrett e Herculano. Os paradigmas ali
surgidos impregnaram da tal forma a cultura lusófona que torna-se
dificultoso o trabalho de quem se atreve a com eles romper.
Mostramos neste trabalho que o mito criado em torno de Camões e
sua obra tem sido atacado pela competência de autores pós-românticos,
desde Oliveira Martins, passando por Fernando Pessoa, Jorge de Sena, até
chegar a José Saramago, em cuja profícua produção literária revela-se um
“outro” Camões, homem cansado de ser estátua, consciente de que sua voz
“enrouquecida” ainda não atinge os ouvidos “surdos e endurecidos” de
forma satisfatória.
O poema que lemos hoje evoca imagens e situações que nada são
além de reflexos das representações realizadas em anos e anos de
leitura. O imaginário coletivo do povo lusófono principalmente português
é saturado de informações acerca do épico e de seu autor. A Estética da
Recepção nos auxiliou a compreender como se deu esse processo. Como
vimos, é certo que as impressões mais marcantes na leitura que se faz,
ainda hoje, é aquela surgida com o movimento romântico, em parte devida
ao impacto que o próprio movimento provocou na cultura ocidental, mas
agumas instituições também têm a devida responsabilidade na formação
desse imaginário, principalmente a escola e o governo militar. Coube à
escola cristalizar a imagem do poema como paradigma de arte, língua e
275
LOURENÇO (1999), p. 54.
153
documentação histórica, assim como coube à proposta “pedagogizante” do
governo militar, ampliando o que se fazia desde o século XIX, assentar a
imagem do poeta quinhentista como exemplo de patriota.
O que os autores pós-românticos fazem é uma tentativa de
dessacralizar tanto o poeta como a obra, devolvendo-os ao lugar ao qual
pertencem, o universo literário. José Saramago, como co-leitor desse novo
Camões, posiciona-se contrário à leitura utilitária que se fez do poeta, mas
compreende que a ficção se funde, de forma inevitável, com a história. Ele
sabe que é improdutivo dissociar a obra de um contexto histórico, isolando-
a em uma tentativa de leitura imparcial. O que ele faz em suas obras, e em
especial nas estudadas aqui, é mostrar que existem outras possibilidades
interpretativas, diversas daquelas já apresentadas.
Os personagens e narradores saramaguianos são arautos de uma
nova recepção do épico camoniano, subvertendo o discurso apologético em
nome de um resgate do que há de mundano no poeta quinhentista.
Contrariamente ao que fez Almeida Garrett, em 1825, Saramago propõe um
“outro” Camões que rompe com a tradição recepcional. O Camões
garrettiano é a síntese de um mito que vem se projetando desde a
contemporaneidade do poeta, o de Saramago é aquele que interrompe essa
projeção.
Saramago e Garrett aproximam-se, enquanto leitores, mas afastam-
se como autores. Ao ler a obra de Camões, Garrett se vale de elementos
extra-textuais, como documentos, relatos e tantos outros registros a respeito
do poeta. Saramago procede da mesma forma e isso se revela na obra dos
154
dois escritores. No entanto, Garrett molda um personagem que sintetiza o
seu passado recepcional e Saramago questiona tal paradigma interpretativo
e propõe uma cisão com o passado, recriando um Camões-personagem
que rompe o vínculo com as leituras instituídas pela tradição da história
literária e aponta para novas possibilidades interpretativas não apenas da
literatura, como também da história. Saramago, assim como Garrett, leu
Camões pelo prisma histórico, mas o fez de forma diversa do poeta
precursor do Romantismo em Portugal.
Ao final deste trabalho, podemos dizer que, além do exposto acima,
também foi possível mostrar a projeção de leitor a escritor, a partir de uma
contemplação do processo receptivo. Ler é mais que atribuir significados a
um texto. É antes um ato de complementação dos enunciados ali presentes,
considerando-os enquanto material aberto e pleno de possibilidades. É o
caso de evocar, neste final, a questão levantada por Carlos Reis
276
quanto à
formação de José Saramago como escritor, à qual este responde que é
necessário desdobrar-se e assistir-se, enquanto pessoa que se informa, lê e
adquire conhecimentos para a formação da pessoa que, sem que ele
soubesse, seria escritor.
Após tudo o que foi exposto, acreditamos ser interessante terminar
este trabalho sob essa mesma perspectiva, ou seja, invocando a nossa
formação como leitores. Formação esta que nunca está totalmente
concluída, mas sempre em aprimoramento. É preciso estarmos atentos para
a formulação de novos questionamentos que nos levem a uma melhor e
276
REIS, Carlos (1998), p. 101.
155
mais independente tomada de opiniões. Deixemos falar o criador desse
“outro” Camões, Saramago:
Não se sabe tudo, nunca se saberá tudo, mas horas que
somos capazes de acreditar que sim, talvez porque nesse
momento nada mais nos podia caber na alma, na consciência,
na mente, naquilo que se queria chamar ao que nos vai
fazendo mais ou menos humanos.
277
277
SARAMAGO (2007), p. 15.
156
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Teresa Sousa de. Camões de Almeida Garrett. Lisboa, Editorial
Comunicações, 1986.
AMORA, António Soares, A crítica feita a “Os Lusíadas” no decurso da
história literária. in “Actas da I Reunião Internacional de Camonistas”,
Lisboa, 1973.
BENJAMIN, Walter. O narrador. In: Textos escolhidos. Coleção Os
Pensadores. São Paulo, Abril Cultural, 1983.
_________________. Teses sobre filosofia da história. In: KHOTE, Flávio
R. (Org.) Walter Benjamin. Coleção Grandes Cientistas Sociais. São
Paulo, Ática, 1981.
BERRINI, Beatriz (org.) José Saramago uma homenagem. São Paulo,
EDUC FAPESP, 1999.
BOCAGE, Manuel Maria Barbosa Du. Sonetos Completos. São Paulo, Ed.
Núcleo, 1995.
BUENO, Aparecida de Fátima. O poeta e o labirinto. Viçosa, Ed. Da
Universidade Federal de Viçosa, 2002.
BUENO, Francisco da Silveira. Literatura luso-brasileira. São Paulo,
Saraiva, 2002.
BRAGA, Teófilo. História da literatura portuguesa. Lisboa, Imp. Nacional /
Casa da Moeda, 1984.
157
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre Teatro. Buenos Aires, Ediciones Nueva
Visión, 1976.
CABRAL, Alexandre. Notas Oitocentistas II - Luís de Camões: Poeta do
povo e da Pátria. Lisboa, Livros Horizonte, 1980.
_________________. A estranha participação de Camilo Castelo
Branco nas comemorações camonianas de 1880. em Revista
Camoniana – 2ª. Série, vol. II, São Paulo, USP, 1979.
CAMÕES, Luís de. Os Lusiadas. 2ª. Ed. São Paulo: Cultrix, 1972.
_________________. Lírica. (Seleção, prefácio e notas de Massaud
Moisés). São Paulo, Cultrix, 2001.
CARLSON, Marvin A. Teorias do Teatro Estudo histórico-crítico, dos
gregos à modernidade. São Paulo, Ed. Unesp, 2002.
CUNHA, Carlos M. Ferreira da. A Construção do Discurso da História
Literária na Literatura Portuguesa do Século XIX. Braga, Univ. do
Minho, 2002.
DÓRIA, A. Álvaro. Oliveira Martina e Camões. em Revista Camoniana
2ª. Série, vol. II, São Paulo, USP, 1979.
FIGUEIREDO, Fidelino de. História da Crítica Literária em Portugal da
renascença à atualidade. Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1916.
FIGUEIROA, Diogo F. Theatro da mayor façanha, e gloria portugueza.
Porto, Empreza Ed. de Obras Clássicas e Ilustradas, 1879
158
FRANCO, Marcia Arruda Franco. Algumas questões teóricas e
metodológicas da Escola de Constança, revista Com Textos,
Mariana, no. 9, p. 32-37, 1999.
_________________. de Miranda - um Poeta no Século XX. Braga,
Angelus Novus, 2001.
_________________. O “emprego indiano” em dois sonhos épicos.
Separatas dos Anais do I Congresso Internacional de Estudos
Camonianos, Rio de Janeiro, UERJ/SBLL, 1998. pp. 391 a 387.
_________________. (org.) Dossiê Camões. Caderno de Teroria e
História Literária. Vitória da Conquista, Ed. Uesb, (no prelo)
GARRETT, Almeida. Frei Luis de Sousa coleção obras primas de cada
autor. São Paulo, Martin Claret, 2003.
GOTTARDI, Ana Maria. Jorge de Sena: Uma leitura da tradição. São
Paulo, Arte & Ciência, 2001.
GUMBRECHT, H. Ulrich. As Funções da retórica Parlamentar na
Revolução Francesa. Belo Horizonte, Ed. UFMG, 2003.
_________________. Corpo e Forma. Rio de Janeiro. UERJ, 1998.
_________________. O Campo não-hermenêutico ou a Materialidade da
Comunicação. Rio de Janeiro: UERJ, Cardenos do Mestrado, n. 5,
1993.
_________________. Hans Ulrich. Sobre os interesses cognitivos,
terminologia básica e métodos de uma ciência da literatura
159
fundada na teoria da ação. In: LIMA, Luis Costa, seleção, tradução e
introdução. A literatura e o leitor. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
HERCULANO, Alexandre. Qual é o estado da nossa literatura? Qual é o
trilho que ela hoje tem a seguir? citado em NEVES, Lucia M. B. P.
Literatura história e política em Portugal (1820 1856). Rio de
Janeiro, EDUERJ, 2007.
KAUFMAN, Helena Irena. Ficção histórica portuguesa do pós-
revolução. Madison, The University of Wisconsin, 1991.
Le GOFF, Jacques. História e Memória. Ed. UNICAMP, Campinas, 1992.
LIMA, Luis Costa, seleção, tradução e introdução. A literatura e o leitor.
Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.
LLANSOL, Maria Gabriela. Um Falcão no punho. 2. ed. Lisboa, Relógio
D’Água, 1988.
LOPONDO, Lilian (org). Saramago Segundo Terceiros. São Paulo,
Humanitas, 1998.
LOURENÇO, Eduardo. Mitologia da saudade. São Paulo, Companhia das
Letras, 1999.
________________. O labirinto da Saudade. Lisboa, Gradiva, 2000.
LUKÁCS, Georg. Teoria do Romance. São Paulo, Editora 34, 2000.
MARTINS, Antonio Coimbra (org). História e Antologia da Literatura
Portuguesa séc. XVI. Série HALP, nº. 15. Lisboa, Fund. Calouste
Gulbenkian, setembro de 2000.
160
MARTINS, Oliveira. Portugal nos mares. Lisboa, Ulmeiro, 1984.
________________. Camões: Os Lusíadas e a Renascença em
Portugal. Lisboa, Guimarães Editores, 1986.
MORGANTI, Bianca Faneli. A mitologia n’”Os Lusíadas”. Dissertação de
Mestrado, UNICAMP, 2004.
NETTO, José Paulo. Portugal: do Facismo à Revolução. Porto Alegre,
Mercado Aberto, 1986.
OLIVEIRA, Paulo M. A construção da crítica literária. em NEVES, Lucia
M. B. P. Literatura história e política em Portugal (1820 1856). Rio
de Janeiro, EDUERJ, 2007.
________________. Camões e Garrett: Navegações do Restelo a
Cascai. Revista Scripta, nº. 5, Belo Horizonte, PUC Minas, 1999. pp.
173 – 184.
________________. Fernando Pessoa e o fantasma de Camões. Revista
Voz Lusíada, nº. 21, Academia Lusíada de Ciências, Letras e Artes. São
Paulo, Casa de Portugal, 2004.
ORIENTE, Fernão A. Lusitânia Transformada. Lisboa, Imprensa Nacional,
1985.
PASCOAES, Teixeira de. Camões e a cantiga popular. A Águia, 2ª. Série.
Porto, v. 3, nº. 18, p.177-178, junho de 1913.
PINHO, Sebastião Tavares de. Decalogia Camoniana. Coimbra, Centro
Interuniversitário de Estudos Camonianos, 2007.
161
PIRES, Maria Lucília G. A Crítica Camoniana no Século XVI. Bertrand,
Amadora 1982.
REIS, Carlos. Diálogos com José Saramago. Lisboa. Editorial Caminho,
1998.
RIBEIRO, Eduardo. Camões em Macau uma certeza histórica. Macau,
COD, 2007.
RODRIGUES, Marina Machado. Camões e os poetas do século XVI. Rio
de Janeiro, UERJ, 2006.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Crítica da razão indolente: contra o
desperdício da experiência. Porto, Edições Afrontamento, 2000.
SARAIVA, José Hermano. História Concisa de Portugal. Sintra, Europa-
América, 1981. 7ª. ed.
SARAIVA, J. A. & LOPES, Oscar. História da Literatura Portuguesa.
Porto, Ed. Porto, 2008. 17ª. ed.
SARAMAGO, José. Jangada de Pedra. São Paulo, Companhia das Letras,
2006.
________________. Levantado do Chão. Lisboa, Editorial CAMINHO,
1994. 10ª. edição.
________________. Memorial do Convento. Rio de Janeiro, Bertand
Brasil, 2003. 28ª. edição.
________________. O ano da Morte de Ricardo Reis. São Paulo,
Companhia das Letras, 1988.
162
________________. O Evangelho segundo Jesus Cristo. São Paulo,
Companhia das Letras, 1991.
________________. Os Poemas Possíveis. Lisboa,Editorial CAMINHO,
1966. 1ª edição.
________________. Os Poemas Possíveis. Lisboa, Editorial CAMINHO,
1981. 3ª edição.
________________. Pequenas memórias. São Paulo, Companhia das
Letras, 2006.
________________. Provavelmente Alegria, Lisboa, Editorial CAMINHO,
1970, 1ª edição.
________________. Provavelmente Alegria, Lisboa, Editorial CAMINHO,
1985, 3ª edição.
________________. Que farei com este livro? São Paulo, Companhia das
Letras, 1998.
SEIXO, Maria Alzira. O essencial sobre José Saramago. Lisboa, Imprensa
Nacional, 1987.
SENA, Jorge de. A estrutura de "Os Lusíadas" e outros estudos
camonianos e de poesia peninsular do séc. XVI. Lisboa, Portugália,
1970.
________________. A estrutura de “Os Lusíadas” - Vol. I. Lisboa,
Edições 70, 1980.
________________. Trinta Anos de Poesia. Lisboa, Edições 70, 1984.
163
SÉRGIO, António. Em torno das idéias políticas de Camões. Lisboa,
Livraria Sá da Costa Editora, 1977.
SILVA, Márcio Seligmann (org.). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo,
FAPESP, 1999.
SILVA, Matias Pereira da. Fênix renascida ou obras poéticas dos
melhores engenhos portuguezes. Lisboa, Offic. dos Herd. de Antonio
Pedrozo Galram, 1746. disponível na Biblioteca Nacional Digital
<http://purl.pt/261/2/>
SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da. José Saramago: entre a história e a
ficção, Lisboa, Dom Quixote, 1989.
___________________. De viagens e viajantes: Camões, Garrett e
Saramago. Artigo publicado na página eletrônica do CESP Centro de
Estudos Portugueses da Faculdade de Letras da UFMG, datado de
1999 e acessado através do endereço eletrônico
<http://www.letras.ufmg.br/cesp> em 08/2008.
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. O Tejo é um rio controverso. Rio de
Janeiro, 7 letras, 2008.
SOUZA, Manuel de Faria e. Edição Anotada de “Os Lusíadas”. Madri,
1639. Cópia digitalizada disponível em <http://pacweb.bn.pt/bnd.htm>
UNIVERSIDADE DE LISBOA, Revista da Faculdade de Letras da
Universidade de Lisboa - III série, nº. 11, 1967.
VERDE, Cesário. Melhores poemas - Seleção e prefácio de Leyla
Perrone Moisés. São Paulo, Global editora, 2005.
164
VIRGILIO. As Georgicas de Virgilio. São Paulo, Ed. Companhia nacional,
1938.
ZILBERMAN, Regina. Estética da Recepção e História da Literatura. São
Paulo, Ática, 1989.
165
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo