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MANUELA ASSUNÇÃO SANTOS
GILBERTO FREYRE: A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA
Instituto de Letras
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro, março de 2009
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MANUELA ASSUNÇÃO SANTOS
GILBERTO FREYRE : A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA
Tese de doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade
Federal Fluminense como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em
Letras.
Área de concentração: Estudos de Literatura
Subárea: Literatura Comparada
Linha de Pesquisa: Literatura e Vida Cultural
Orientadora: Eurídice Figueiredo
Universidade Federal Fluminense
Rio de Janeiro, março de 2009
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MANUELA ASSUNÇÃO SANTOS
GILBERTO FREYRE: A EXPERIÊNCIA DA ESCRITA
Tese apresentada ao Programa da Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial para a obtenção do grau de Doutor em Letras.
16 de março 2009
BANCA EXAMINADORA
Profa Dra. Eurídice Figueiredo – Orientadora - Universidade Federal Fluminense
_____________________________________________________________________________
Profa Dra. Claudia Neiva Matos - Universidade Federal Fluminense
____________________________________________________________________________
_
Profa Dra. Carmen Lucia Negreiros Figueiredo - Universidade Estadual do Rio de Janeiro
_____________________________________________________________________________
Profa Dra. Silvina Liliana Carrizo - Universidade Federal de Juiz de Fora
_____________________________________________________________________________
Profa Dra. Matildes Demétrio dos Santos - Universidade Federal Fluminense
4
AGRADEÇO
Aos professores com quem compartilhei idéias e bibliografias durante o processo de leitura e escrita:
Lucia Helena, Lívia Reis, André Trouche, Matilde Demétrio dos Santos, Eurídice Figueiredo,
Alejandra Mailhe, Heloisa Toller e Silvina Carrizo.
Aos colegas que compartilharam questionamentos, dúvidas, debates, bibliografias, idéias e emoções
durante o período de convivência.
Especialmente às professoras Heloisa Toller, Silvina Carrizo, Carmen Lucia Negreiros Figueiredo e
Claudia Neiva, pela leitura séria e a contribuição representativa em suas críticas ao trabalho.
À professora Alejandra Mailhe, pela enorme troca de idéias, bibliografias e conhecimento em curso
efetuado no ano de 2006.
À orientadora Eurídice Figueiredo, pelas contribuições bibliográficas e pela seriedade, atenção, e
sensibilidade, no processo de acompanhamento do trabalho.
Aos professores da PUC: Karl Erik Schollhammer, Heidrun Krieger Olinto pela contribuição
bibliográfica e orientação nos primeiros esboços sobre Freyre, ainda durante a dissertação de
mestrado.
À professora Eliana Yunes e aos colegas e alunos da ONG SBS/OPJ, pelo período de convivência
profissional durante o tempo de escrita da tese.
Anna Cotteville, pela tradução
À família
Aos alunos
5
RESUMO
Pretende-se desenvolver, na presente pesquisa, uma análise sobre a importância de aspectos
formais especialmente presentes em determinados livros do antropólogo Gilberto Freyre,
como a utilização de recursos estilísticos e elementos biográficos e da narrativa oral, além da
pendência para o gênero ensaístico, ligado à influência de autores hispânicos. A partir destes
aspectos formais e da relação estabelecida pelo teórico com a literatura pretende-se abordar,
ainda, a interdisciplinaridade e a abordagem empática sobre seus objetos de estudo, que
marcam uma reflexão epistemológica específica. O objetivo desta análise da
interdisciplinaridade cimentada na literatura, presente na obra de Gilberto Freyre, é questionar
até que ponto estes recursos favorecem uma mitificação da história.
Palavras-chave: ensaio – literatura – história – memória – narrativa - autobiografia
ABSTRACT
The present research aims to develop an analysis of the importance of formal aspects
present in certain books by the anthropologist Gilberto Freyre such as his
utilization of stylistic resources, biographical elements and oral narrative , as well
as his tendency towards the essay gender, resulting from the influence of
Hispanic authors.Moreover, from the study of both these formal aspects, and
linkage with literature established by Freyre, as the theoretician, this research
intends to further explore both, the interdisciplinarity and the empathic
approach to his subjects of study. This empathic approach reveals the author´s
specific epistemological reflection. The goal of this analysis of the
interdisciplinarity treatment present in Freyre´s work, is to debate how far
such strategies favor a mystification of history.
Stylistic resources – biographical elements - literature – essay – narrative - history
2
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
,
p. 1
1. HIBRIDISMOS FORMAIS: TRANSDISCIPLINARIDADE
1.1. A BOA QUESTÃO: ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA,
p.
6
1.1.1. CASA GRANDE & SENZALA: O TEMPO, p. 6
1.1.2. DA SOCIOLOGIA À LITERATURA, p. 26
1.2. AUTOBIOGRAFIA, FICÇÃO E ENSAIO: O OUTRO AMOR,
p.
32
1.2.1. LEITURAS E VIAGENS DE FORMAÇÃO: LITERATURA, FILOSOFIA E ENSAIO, p. 32
1.2.2. OXFORD E RECIFE: TEMPO MORTO E OUTROS TEMPOS, p. 40
1.3. ANTAGONISMOS EM EQUILÍBRIO,
p. 54
1.3.1. O CORPO INSCRITO, p. 54
1.3.2. O CORPO VELADO, p. 68
2. ENTRE A ÁFRICA E A EUROPA: O ENSAIO
2.1. BRASIL E ESPANHA: O ESCRITOR
, p. 80
2.2. CIÊNCIA E LITERATURA,
p
.
95
3. CONCLUSÃO: A RECEPÇÃO, p. 113
4. REFERÊNCIAS, p. 125
3
O que o mar sim ensina ao canavial:
o avançar em linha rasteira da onda;
o espraiar-se minucioso, de líquido,
alagando cova a cova onde se alonga.
O que o canavial sim ensina ao mar:
a elocução horizontal de seu verso;
a geórgica de cordel, ininterrupta,
narrada em voz e silêncio paralelos.
2.
O que o mar não ensina ao canavial:
a veemência passional da preamar;
a mão-de-pio das ondas na areia,
moída e miúda, pilada do que pilar.
O que o canavial não ensina ao mar:
o desmedido do derramar-se da cana;
o comedimento do latifúndio do mar,
que menos lastradamente se derrama.
( MELO NETO, 1991, p. 13 )
1
INTRODUÇÃO
A mistura de elementos literários, poéticos e não-sistemáticos à análise científica
descritiva histórica e antropológica é uma importante característica que perpassa a obra de
Gilberto Freyre. Embora a obra freyreana se mantenha no campo disciplinar das ciências
sociais e da história, essa posição híbrida no panorama da produção intelectual brasileira
permite que ocupe um lugar na produção literária, na medida em que transita entre a descrição
científica e a narrativa. Para um cientista cuja obra é marcada por uma reflexão
epistemológica, que não é mais do que um exercício de aproximação e distanciamento entre
sujeito e objeto, o ensaísmo será o gênero ideal, capaz de abarcar esse híbrido: tanto de
gênero e estilo literário quanto de instrumento de produção antropológica, sociológica e
historiográfica.
A contribuição de Gilberto Freyre para a reflexão sobre a literatura no Brasil efetuou-se,
sobretudo, em seus ensaios de historiador cultural, no tríptico central de sua obra, isto é, Casa
Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos e Ordem & Progresso - obras que apontam para
tensões entre história e literatura, e que encontram no ensaio, uma forma de expressão ideal.
No entanto, além dos referidos ensaios – os mais conhecidos pelo grande público – muitas de
suas obras são marcadas pela presença de uma interdisciplinaridade que inclui a literatura e
uma vigorosa pesquisa estética.
Pretende-se desenvolver na presente pesquisa uma análise sobre a importância de
aspectos formais presentes nas referidas obras – uso de metáforas e de elementos da narrativa
oral, utilização de elementos autobiográficos, pendência para o gênero ensaístico – dentro do
projeto mais amplo do antropólogo. A partir do enfoque dos aspectos formais e dos recursos
2
estilísticos pretende-se analisar a relação peculiar que Gilberto Freyre estabelece com a
história e a antropologia; o tipo de abordagem empática sobre seus objetos de estudo, e a
metodologia interdisciplinar. O objetivo desta análise sobre a interdisciplinaridade cimentada
na literatura, presente na obra de Freyre, é questionar até que ponto estes recursos favorecem
e acentuam uma mitificação da história. O corpus privilegiado será, portanto, aquele em que
sua relação com a literatura e a escrita aparece com mais força, possibilitando reflexões sobre
as perspectivas metodológicas que ajudam a constituir uma peculiar relação com a história e
com a antropologia e que tipo de diálogo ajudam a estabelecer com a tradição, em um
contexto específico, marcado pelo positivismo.
Para tratar os temas até aqui expostos, a tese foi dividida em três capítulos. O primeiro
– HIBRIDISMOS FORMAIS: A TRANSDISCIPLINARIDADE - está dividido em três
subcapítulos. No primeiro - A boa questão: antropologia e história - pretende-se analisar de
que maneira a escrita do antropólogo o auxilia em sua metodologia, possibilitando a peculiar
abordagem da herança popular, ou mestiça, a partir de um viés histórico específico, que inclui
a chamada nouvelle histoire. A análise será realizada com o suporte teórico de Silviano
Santiago
( SANTIAGO, 1978 ), Alfredo Bosi ( BOSI, 1992 ), além de teóricos da história e da
antropologia, como Michel Vovelle
( VOVELLE, 1987 ), Peter Burke ( BURKE, 1992 ) e Ricardo
Benzaquen de Araújo ( ARAÚJO, 1994 ). Essas reflexões serão associadas a um corpus
específico: Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mucambos.
Em Autobiografia, ficção e ensaio: o outro amor - a análise volta-se para alguns
elementos que atravessam todo o projeto freyreano e que se interrelacionam, como o
ensaísmo, o estilo, a metodologia empática e, principalmente, a escrita marcadamente
autobiográfica, através de um acompanhamento da formação do escritor no exterior e de suas
leituras. Estes elementos ligam-se à pesquisa estética que marca seu projeto, possibilitando o
3
trânsito na fronteira entre a história e a representação e a interrelação entre saberes. A análise
- efetuada com o apoio teórico de Maria Lucia Garcia Pallares-Burke ( PALLARES-BURKE,
2005 ), Gilberto de Mello Kujawski ( KUJAWSKI, 2003 ) e Marisa Veloso ( VELOSO, 2003
) - visa efetuar uma reflexão sobre a importância desta inovação metodológica de Gilberto
Freyre para os estudos relativos à cultura popular. Será privilegiado, neste subcapítulo, um
corpus que incluirá, além de Casa Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos, seu diário de
adolescência: Tempo Morto e Outros Tempos ( FREYRE, 2006 ); Como e porque sou e não
sou sociólogo ( FREYRE, 1968 ); Além do apenas moderno ( FREYRE, 1993 ) e Dona Sinhá
e o Filho Padre ( FREYRE, 1971 ).
O terceiro subcapítulo – Antagonismos em equilíbrio - pretende atravessar as brechas
entre a antropologia e a literatura pelas quais Gilberto Freyre transita, ilustrando os momentos
em que o antropólogo se utiliza, experimentalmente, de recursos estéticos, sempre
aprofundando seu hibridismo não só conceitual, como formal. O corpus privilegiado, neste
subcapítulo, serão seus ensaios Casa Grande & Senzala e Sobrados & Mucambos. A noção
de mestiçagem proposta pelo antropólogo e a sua abordagem sobre os paradoxos que marcam
o nosso ´dilema de origem` será analisada com o suporte teórico de Stuart Hall
( HALL, 2003 ),
Homi K. Bhabha
( BHABHA, 1998 ), Silviano Santiago ( SANTIAGO, 1978 ), Helena Bocayuva (
BOCAYUVA, 2001 )
, Angel Rama ( RAMA, 1987 ) e Leyla Perrone- Moisés ( PERRONE-MOISES,
1997 ).
O segundo capítulo da tese ENTRE A ÁFRICA E A EUROPA: O ENSAIO - privilegia a
relação das questões tratadas no primeiro capítulo com a influência do universo ibérico na
obra de Gilberto Freyre. O primeiro subcapítulo – Brasil e Espanha: o escritor abordará as
relações de Gilberto Freyre com o mundo ibérico e determinados autores espanhóis
associados pelo antropólogo à idéia de personalismo, aventura, polêmica, empatia,
4
experiência/experimentalismo. Será aqui destacada a maneira com que Gilberto Freyre é
influenciado e, ao mesmo tempo, se apropria de alguns conceitos dos referidos autores, como
o circunstancialismo de Ortega y Gasset ou o intra-histórico de Unamuno, para chegar aos
temas locais e aos estudos tropicológicos, assim como aos temas relacionados à região e à
tradição - que são capazes de intermediar a integração do Brasil tanto com a América
espanhola, quanto com o Oriente e a África. A reflexão será efetuada com o apoio teórico de
Elide Rugai Bastos
( BASTOS, 2003 ), Regina Aída Crespo ( CRESPO, 2003 ), e o corpus
privilegiado será O Brasileiro entre os outros hispanos ( FREYRE, 1975 ); Como e porque sou e
não sou sociólogo
( FREYRE, 1968 ).
No segundo subcapítulo desta segunda parte: Ciência e Literatura, pretende-se
inquirir de que modo a abordagem metodológica que perpassa toda sua obra constitui forte
crítica a toda sociologia científica que desdenha a dimensão poética e artística das ciências
sociais, e que não se confronta com problemas de representação, metodologia ou
interpretação, no esforço sociológico de retratar uma determinada realidade. Nesse sentido,
parece haver na obra do autor de Casa Grande & Senzala um constante exercício
experimental, em que qualquer tema/objeto que aborde é posto em xeque através de uma
desconstrução que transita entre o todo e o particular, o local e o global. Pretende-se, assim,
sondar de que forma o preceito orteguiano de entranhar-se em sua própria circunstância,
através de um texto simultaneamente narrativo/poético e descritivo/científico se corporifica
no ensaio, gênero que lhe permite mesclar sua própria experiência às teorias antropológicas.
A reflexão será efetuada com o suporte teórico de Theodor Adorno ( ADORNO, 2003 ),
Liliana Weinberg ( WEINBERG, 2001 ), Enrique Rodriguez Larreta ( LARRETA, 2001 ) e
Elide Rugai Bastos ( BASTOS, 2003 ) e o corpus privilegiado será, ainda - além de Casa
5
Grande & Senzala e Sobrados & Mucambos, Como e porque sou e não sou sociólogo (
FREYRE: 1968 ).
A terceiro capítulo da tese: A RECEPÇÃO tem por objetivo, a partir da análise
efetuada em toda a tese, desenvolver uma reflexão final, em caráter conclusivo, buscando
ressaltar os aspectos mais relevantes expostos no conjunto do trabalho. Retomar pontos
desenvolvidos ao longo da explanação e relacioná-los a questões concernentes à recepção da
obra de Gilberto Freyre no Brasil e no exterior é a principal intenção deste capítulo de
fechamento.
Muitos dos livros que constituem sua obra representam menos um esforço em
construir argumentações críticas que busquem estabelecer verdades fechadas, do que textos
polissêmicos e abertos ao leitor, o que sugere interessantes reflexões sobre o impacto de suas
obras sobre os leitores e sobre a abrangência - e os limites - do papel do imaginário
constituído em sua obra. O corpus escolhido incluirá Casa Grande & Senzala, Sobrados e
Mucambos, Como e porque sou e não sou sociólogo ( FREYRE, 1968 )
, e a reflexão será
efetuada com o apoio teórico de Ricardo Benzaquen Araújo ( ARAÚJO, 1994 ), Carlos
Guilherme Mota ( MOTA, 1994 ), Cornelius Castoriadis ( CASTORIADIS, 1982 ), Alfredo
Bosi ( BOSI, 1992 ), Silviano Santiago ( SANTIAGO, 1991 )
6
1. HIBRIDISMOS FORMAIS:
TRANSDISCIPLINARIDADE
1.1 - A BOA QUESTÃO: ANTROPOLOGIA E HISTÓRIA
1.1.1 - CASA GRANDE & SENZALA: O TEMPO
Na segunda metade do século XIX, as potências colonizadoras justificam a expansão
territorial imperialista a partir de uma perspectiva cientificista, que vende ao Brasil a imagem
de povos inferiores para os quais a missão civilizadora européia torna-se urgente. O
sentimento de inferioridade, motivado pelo descompasso histórico com os modelos
privilegiados, é reforçado pela idéia do meio e da raça adversos, incorporada à imagem
negativa que encontramos no espelho oferecido pelos europeus. No Brasil, grande parte da
intelectualidade de República Velha se distribuía em pelo menos duas posições distintas,
ambas nitidamente racistas, que procuravam explicar cientificamente o preconceito étnico-
cultural e a dependência econômica e política do país.
A primeira teoria, a poligênica, associava a mestiçagem a um suposto processo de
degenerescência na espécie, senão biológica, cultural, enquanto que a segunda teoria, a
7
monogênica, apoiada no conceito de evolucionismo linear, passa a considerar a mestiçagem
dentro de um processo de branqueamento, através do qual se poderia assegurar um gradual
predomínio dos caracteres brancos sobre os negros, objetivando a erradicação gradual da
herança negra. Ambas as perspectivas avaliam de maneira profundamente negativa a herança
negra, na medida em que a primeira julga os constrangimentos que supostamente daí
derivaram como insuperáveis, enquanto a segunda aposta na sua futura eliminação. De
qualquer modo, tanto em um caso quanto no outro é a postulação da supremacia branca que
dá sentido ao argumento.
Casa Grande & Senzala foi inserido no centro deste debate por Gilberto Freyre, que
ingressava, assim, no ensaísmo brasileiro. Aplicando à interpretação do passado brasileiro e às
situações de contato étnico e cultural as formulações teóricas da moderna Antropologia,
especialmente a posição de Franz Boas - de quem fora aluno nos EUA – Gilberto Freyre deu
considerável impulso aos estudos sociais em nosso meio. Os cinco capítulos do livro
documentam a formação no Brasil de uma sociedade agrária, escravocrata e híbrida e a
contribuição étnica de portugueses, ameríndios e africanos nas várias fases de contato, da
época colonial até o Segundo Reinado. Influências do negro e do índio sobre a linguagem, as
crenças, as técnicas de trabalho, a culinária e as artes do brasileiro são apontadas em Casa
Grande & Senzala como partes do processo de aproximação cultural e de integração dos
elementos de culturas díspares postas em confronto. Deslocando o eixo da questão racial para
a questão da cultura, e por isto valorizando as contribuições do negro, do português e – em
menor escala – do índio, Freyre busca não só superar o racismo que impregnava a produção
intelectual brasileira, como tentar construir uma nova versão da identidade nacional, em que a
obsessão com a integração do País na marcha da civilização, fosse substituída por uma
8
interpretação capaz de abarcar a híbrida e singular articulação de tradições que aqui se
verificou.
Gilberto Freyre lançou mão dos ensinamentos de seus professores Franz Boas e
Giddings e propôs uma solução ao mesmo tempo culturalista, neolamarckiana e psicológica
para o impasse nacional. Autores como Boas, Malinowski, Durkheim e Mauss, em debate
com os evolucionistas, defendiam a necessidade de se entender os primitivos a partir de suas
próprias perspectivas. Segundo essa concepção de cultura, também conhecida como
relativismo cultural, os seres humanos são constituídos por sistemas de signos diferenciados,
através dos quais pensam e articulam suas experiências, suas relações com a sociedade e com
a natureza. Esse conceito de cultura provoca um descentramento sobre a noção de homem tal
como esta se configurava na perspectiva iluminista francesa do século XVIII. Como ensina
José Reginaldo Santos, em A obsessão pela cultura, a concepção universalista é uma espécie
de outro da noção etnográfica ou relativista de cultura, e com a qual mantém uma relação de
permanente tensão, desde a sua formação. Uma e outra freqüentam a antropologia e podem
ser caracterizadas através de matrizes como tradição iluminista, ligada a uma postura
profissional pretensamente rigorosa, à determinação, à regularidade, e à tradição romântica,
ligada a criatividade, singularidade, indeterminação, produzindo um vocabulário menos
especializado, mais próximo da sociedade.
( GONÇALVES, 1996, p. 159-162 )
Gilberto Freyre, mais ligado, portanto, a esta segunda tradição, arranca da teoria
antropológica não apenas os princípios e as interpretações do fenômeno da mestiçagem, mas
descobre um outro valor na aproximação e na união de raças, demonstrando o seu poder de
democratização social e de elaboração cultural. O ineditismo de Freyre está justamente na
percepção desse fenômeno, na reinterpretação do mestiço e da mestiçagem, através da qual
9
rejeita as explicações deterministas, tanto as de base biológica e racial quanto os
determinismos históricos, geográficos, econômicos e sociais.
A mais freqüente crítica que Casa Grande & Senzala costuma receber se refere ao fato
de que, no mesmo movimento em que teria afastado o racismo e admitido a relevância de
outras culturas, Freyre teria criado uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial,
ocultando a exploração, os conflitos e a discriminação que a escravidão necessariamente
implica atrás de uma fantasiosa democracia racial. De acordo com certa crítica, Gilberto
Freyre teria rejeitado a solução comunista ou qualquer forma de totalitarismo, pois teria visto
neles um risco para a sobrevivência das elites regionais, e também para a possibilidade de
apreensão das manifestações culturais do país. Freyre teria, ainda, buscado a harmonização
das desiguais classes sociais através da valorização da pobreza honesta, dos aspectos
populares da cultura e da harmonia social, o que teria feito com que traçasse um retrato
passivo dos negros, índios e mestiços, sempre satisfeitos e submissos em Casa Grande &
Senzala.
Caberia, portanto, examinar alguns pontos levantados por este tipo de crítica,
articulando-os com certas questões colocadas a partir do estabelecimento mais vigoroso do
tempo longo no campo histórico, dentro do contexto da chamada Nova História ou História
das Mentalidades, do qual Freyre parece aproximar-se.
São relativamente conhecidas as semelhanças entre a nova história associada aos
Annales e a história social, psico-história ou antropologia histórica de Gilberto Freyre. Essas
semelhanças vão desde um interesse pela cultura material - alimentação, vestimenta e
habitação - até um interesse pelas mentalidades e pela história da infância. Peter Burke, no
artigo Gilberto Freyre e a Nova História, revela que estas semelhanças de abordagem foram
reconhecidas tanto por Fevbre como por Braudel quando descobriram a obra de Freyre no fim
dos anos 30. Uma característica central da nouvelle histoire francesa foi seu foco em novos
10
objetos, tendo sido investigada a história material, por exemplo, por Fernand Braudel na
década de 60. Burke lembra como a história da família – seguindo a liderança de Georges
Duby e Philippe Ariès - foi ampliada de modo a incluir a história da vida privada, a história
do amor, a história da sexualidade, a história do corpo e das mulheres, estudados não apenas
do ponto de vista econômico e social, mas também do ponto de vista da cultura, da psicologia
histórica ou da história das mentalidades coletivas. Entretanto, como nos mostra o mesmo
autor, todos esses tópicos foram discutidos uma geração antes por Gilberto Freyre,
especialmente em seus estudos sobre o Brasil colonial. Burke compara ainda o interesse de
Freyre pela história íntima com o que os historiadores franceses Georges Duby e Philippe
Ariès chamaram histoire de la vie privée, sustentando certo vínculo com a Histoire Intime
praticada pelos irmãos Goncourt
. ( BURKE, 1997 )
Freyre introduziu, nos estudos sociológicos, um valor até então desprezado pelos
especialistas - o tempo - criando uma sociologia mouvante, como aponta Wilson Martins no
ensaio Sentido Épico e Aspectos Líricos na Obra de Gilberto Freyre
( MARTINS, 1962, p. 312 ).
O seu tempo é o tempo mental, o tempo como realidade espiritual sempre em movimento, ou
seja, em uma palavra, a durée. Como define o próprio Gilberto Freyre, em seu prefácio à
Casa Grande & Senzala:
O estudo da história íntima de um povo tem alguma coisa de introspecção proustiana;
os Goncourt já o chamavam ´roman vrai´. O arquiteto Lucio Costa, diante das casas
velhas de Sabará, São João d’El-Rei, Ouro Preto, Mariana, das velhas casas grandes de
Minas, foi a impressão que teve: ´A gente como que se encontra.. E se lembra de
cousas que a gente nunca soube, mas que estavam lá dentro de nós; não sei – Proust
devia explicar isso direito`.
Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro; a nossa
continuidade social. No estudo da sua história íntima despreza-se tudo que a história
11
política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida; mas dentro
dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. Estudando a vida doméstica
dos antepassados sentimo-nos aos poucos nos completar: é outro meio de procurar-se
o ´tempo perdido´. Outro meio de nos sentirmos nos outros – nos que viveram antes de
nós; e em cuja vida se antecipou a nossa. É um passado que se estuda tocando os
nervos; um passado que emenda com a vida de cada um; uma aventura de
sensibilidade, não apenas um esforço de pesquisa pelos arquivos (FREYRE, 2000A, p.
33-34)
A partir deste paralelo entre a chamada nova história, pregada e praticada na França a
partir da década de 60, e a história que Freyre escreveu a partir da década de 30, parecem
surgir algumas questões interessantes. Vale lembrar, primeiramente, que no período em que
Fernand Braudel escreve seu célebre artigo sobre “A longa duração” ( 1958 ), que soava, na
tradição dos Annales, como uma proclamação contra a história fatual, a obra Casa Grande &
Senzala - publicada em 1933 - sofre as mais duras críticas feitas pela esquerda brasileira,
impregnada pelo funcionalismo e pelo marxismo. A crítica brasileira mais recente vem
apresentando, no entanto, releituras da obra de Freyre, cuja percepção vem sendo facilitada,
em função das referidas mudanças teóricas e metodológicas no âmbito da história e das
ciências sociais.
Casa Grande & Senzala parece, portanto, dentro do contexto descrito, permitir uma
aproximação a questões relativas não apenas ao estabelecimento da história nova e suas
implicações, mas à especificidade destes problemas no contexto brasileiro. Parece suscitar,
principalmente, questões sobre as potencialidades tanto das teorias de cunho marxista, quanto
daquelas ligadas à história nova no sentido de possibilitar reflexões e leituras da cultura
brasileira. É, portanto, dentro desse campo de pesquisa, que serão confrontadas as críticas
12
sofridas por Freyre na década de 60 com as leituras mais recentes, sempre articulando-as a
questões relativas à nova história.
Em A história e a longa duração, Michel Vovelle levanta questões que vêm se
impondo na mesma medida em que se estabelece, gradativamente, a chamada longa duração
no campo da história. A passagem da história fatual - associada ao acontecimento explosivo -
para aquela outra constituída por um tempo longo, é situada, no projeto de Fernand Braudel,
também em referência às outras ciências humanas, na medida em que reserva a possibilidade
de contatos fortalecidos com a antropologia e a etnografia, ao mesmo tempo em que questiona
o tempo curto do sociólogo. Todas elas, como aponta Vovelle, são meios de apreender melhor
o tempo ou os tempos próprios da história. Trata-se de uma história social definida como
inconsciente, que é, para Braudel, precisamente aquela que se situa na longa duração ou
também história cultural ou das mentalidades, definida como o campo privilegiado desses
estudos no tempo longo. Dentro do contexto descrito, Vovelle questiona justamente como
lidar com o acontecimento, a partir do que considera a vitória do tempo longo e da morte de
certa história historicizante, considerada pelo autor – em 1978 – como fato consumado. O
autor, então, se pergunta: o acontecimento, combatido por Braudel teria acaso desaparecido,
por isso, do campo histórico?
Dentro da proposta de reflexão sobre Casa Grande & Senzala, caberia destacar no
texto o movimento apontado por Vovelle, que teria levado toda uma parte da escola dos
historiadores franceses do porão ao sótão, ou seja, da economia às mentalidades. Esse
movimento é o mesmo que modifica o tempo das histórias clássicas, fazendo com que a
história política, por exemplo, abandone a trama dos acontecimentos para formular os
problemas que só se concebem na duração; fazendo com que os aspectos estáveis da
civilização material se justaponham à história econômica clássica. Também a história das
13
mentalidades é apontada pelo autor como uma das mutações recentes que contribuíram, de
forma mais direta, para atrair a nova história social em direção ao tempo longo. No entanto,
mais de uma vez, o autor chama atenção para a seguinte questão:
no tempo longo da história das mentalidades, que opera nos domínios das atitudes, dos
‘comportamentos e do que alguns chamam de “inconsciente coletivo”, parece não
haver tormentas, rupturas, nem mesmo, propriamente falando, acontecimentos no
sentido tradicional, na história da família, do amor, do casal, da morte. (... ) Tal
história tolera “revoluções?” ( VOVELLE, 1987 )
A emergência das novas fontes do cotidiano, organizáveis em séries de longuíssima
duração, é apontada pelo autor ao mesmo tempo como essencial e limitada. Os Ex-votos, por
exemplo, uma série de longa duração, seria um exemplo de uma fonte ao mesmo tempo rica e
pobre. Rica na multiplicidade de suas explorações virtuais; pobre pela dificuldade de serem
datadas e por privilegiarem a continuidade, inscrevendo com atraso a inovação. A partir
dessas constatações, o autor lembra que:
Um tempo sem ruídos, silencioso, sem rupturas nem desprendimentos bruscos: tal é a
impressão que mais de uma dessas séries nos deixam, e não apenas pela imprecisão ou
porque lhes falta a nitidez que a transcrição escrita proporciona, mas como reflexo
mais direto de evoluções lentas, que se inscrevem objetivamente num tempo
desacelerado. A estabilidade dos objetos na civilização tradicional – a da casa ou da
mobília – confirma em eco ao que as representações da iconografia sugerem. O que é
válido para o documento figurado é válido, a fortiori, para o oral. ( VOVELLE, 1987 )
Após as leituras do tempo ditadas pela diversificação das fontes, o autor revela certa
impressão ambígua, concluindo:
14
O complemento, e sobretudo, o revés desse mergulho em busca das origens ou das
constantes é o questionamento não apenas do acontecimento puro e simples, mas de
toda mudança brusca, de toda ´mutação´ quente. Dessas estruturas tão bem fechadas já
não se sabe como sair e essa nova história corre o risco de ser tão estorvada pelo
movimento quanto a outra o era pelas inércias. Admitindo-se que o tema ´uma crise,
uma revolução´ remete a uma leitura mecanicista da causalidade histórica, tornou-se
tentador, para uma historiografia que não distingue entre o marxismo ´vulgar´ e o
marxismo puro e simples, desembaraçar-se definitivamente, junto com a água do
banho, do incômodo bebê da Revolução. ( VOVELLE, 1987 )
Gilberto Freyre, ao inserir nos esudos sociológicos o tempo concebido como mental,
como realidade espiritual, criando uma sociologia mouvante, parece aproximar-se dessas
estruturas bem fechadas, estorvadas pelas inércias, às quais se refere Vovelle. Ao buscar, no
plano local, a harmonização das desiguais classes sociais através da valorização da pobreza
honesta, dos aspectos populares da cultura e da harmonia social, acaba por traçar um retrato
dos negros, índios e mestiços que sugere passividade e submissão
. De fato, uma leitura atenta
de Casa Grande & Senzala revela um retrato do escravo negro marcado pela passividade.
Obviamente, deve-se levar em conta o esforço de Freyre em ressaltar a positividade do negro
e do mestiço, contrapondo-a à negatividade que lhe impunham as teorias racistas da época. De
qualquer modo, salta aos olhos o retrato plástico, adaptável, prestativo, bom e incapaz de
rebelar-se, do negro traçado por Freyre:
À figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de
mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de
português errado, o primeiro ´padre-nosso´, a primeira ´ave-maria´, o primeiro ´vote!´
ou ´oxente´, que lhe dava na boca o primeiro pirão com carne e ´molho ferrugem´, ela
própria amolengando a comida – outros vultos de negros se sucediam na vida do
brasileiro de outrora. O vulto do muleque companheiro de brinquedo. O do negro
velho contador de histórias. O da mucama. O da cozinheira. Toda uma série de
15
contatos diversos importando em novas relações com o meio, com a vida, com o
mundo. Importando experiências que se realizavam através do escravo ou à sombra de
guia, de cúmplice, de curandeiro ou de corruptor. ( FREYRE, 2000A, p. 535-536 )
Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente
sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos dias
de calor, a menina sentada, à mourisca, na esteira de pipirí, cosendo ou fazendo renda
ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho, dando-lhe
cafuné; ou enxotando-lhe as moscas do rosto com um abano. Supria-se assim para
uma aristocracia quase analfabeta a falta de leitura. ( FREYRE, 2000A, p. 544 )
Além disso, sabe-se que ao transferir a discussão racista para o campo da cultura,
Freyre estabelece uma hierarquia cultural às etnias formadoras do Brasil. Em Casa Grande &
Senzala, o sociólogo fez a apologia do negro e de sua contribuição para a formação nacional,
conferindo-lhe o status de colonizador e civilizador, pois este seria superior ao índio e, em
alguns aspectos, até ao português. Nesse sentido realiza uma avaliação cultural das etnias em
termos de prestatividade para o projeto colonial, ignorando o que havia de resistência e luta
contra a escravidão por parte dos negros. A leitura que faz da cultura negra no período
colonial parece não levar em conta aspectos que revelem tentativas de retorno à cultura de
origem ou busca de resistência, que foi, na verdade, o que representou Palmares. Sobre os
negros fugidos, Freyre afirma, confirmando sua análise da cultura negra em termos de
prestatividade para a empresa colonial:
Tais contrastes de disposição psíquica e de adaptação talvez biológica ao clima quente
explicam em parte ter sido o negro na América portuguesa o maior e mais plástico
colaborador do branco na obra de colonização agrária; o fato de haver desempenhado
entre os indígenas uma missão civilizadora no sentido europeizante. Ação
europeizante dos negros quilombos. Escravos fugidos que propagariam entre os
indígenas, antes de qualquer missionário branco, a língua portuguesa e a religião
16
católica. Os negros fugidos, internados nas matas e nos sertões desempenharam uma
útil ação civilizadora: quase sempre elevando a cultura das populações indígenas,
raramente deixando-se achatar ou degradar por elas. Diante dos caboclos os negros
foram elementos europeizantes. Agentes de ligação com os portugueses. Com a Igreja.
Mediadores plásticos entre Europeus e indígenas. ( FREYRE, 2000A, p. 451 )
Alfredo Bosi, em Dialética da Colonização, ressalta que os vários modos da chamada
assimilação luso-africana e luso-tupi adquirem, em Casa Grande & Senzala, um relevo tal
que acabam deixando em segundo plano os aspectos estruturais de assenhoreamento e
violência que marcaram a história da colonização no Nordeste dos engenhos e quilombos.
Dentro dessa linha de reflexão, o autor questiona termos utilizados por Freyre como
assimilação quando se aplicam aos contatos entre colonizadores e colonizados, sugerindo que
os costumes africanos ou indígenas que os senhores de engenho adotaram, constituiríam, na
verdade, exemplos de desfrute - sexual e alimentar - do africano e de sua cultura por parte das
famílias das casas-grandes.
Quanto ao fato de o senhor de engenho luso-nordestino, despido de preconceitos, ter-
se misturado com as escravas, dando assim ao mundo exemplo de um convívio racial
democrático, Bosi ressalta que a libido do conquistador teria sido antes falocrática do que
democrática na medida em que se exercia quase sempre em uma só dimensão, a do contato
físico. Ao ressaltar o fato de que as escravas emprenhadas pelos fazendeiros não foram
guinadas à categoria de esposas e senhoras de engenho, Bosi questiona as fontes de pesquisa
adotadas por Freyre, que constituiriam, na verdade, exceções, servindo apenas de matéria de
anedotário e confirmando a regra geral:
Os elementos da cultura material apontados ad nauseam como exemplos de adaptação
do colonizador ao colonizado não deveriam ser chamados a provar mais do que
17
podem. Ilustram o uso e o abuso do nativo e do africano pelo português tanto no nível
do sistema econômico global quanto nos hábitos enraizados na corporeidade. ( ... )
Foi a colonização um processo de fusões e positividades no qual tudo se acabou
ajustando, carências materiais e formas simbólicas, precisões imediatas e imaginário;
ou, ao lado de uma engrenagem de peças entrosadas, se teria produzido uma dialética
de rupturas, diferenças, contrastes? ( BOSI, 1992, 26-30 )
As reivindicações de Bosi parecem ir ao encontro das questões - colocadas,
obviamente, a partir de perspectivas diversas - de Michel Vovelle, na medida em que ambas
questionam a ausência de rupturas dentro desse tempo silencioso e sem ruídos. Nesse tempo
longo da história das mentalidades, cabe perguntar novamente com Vovelle: “tal história
tolera revoluções?”. A impressão ambígua apontada por Vovelle, após as leituras do tempo
ditadas pela diversificação das fontes parece, portanto, bem próxima da que se revela através
da leitura de Casa Grande & Senzala. De fato, os questionamentos são próximos, e pode-se
dizer, cruciais, no contexto brasileiro, marcado pela exploração, pela opressão, pela violência
e pelo autoritarismo, mas igualmente pleno de informações culturais: trata-se, como se pode
ver, de uma difícil conjugação.
Silviano Santiago, em seu artigo, “Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância
étnica”, percebe bem o problema, e busca matizar e separar as questões, que, dentro desse
campo de reflexão, se colocam. O autor questiona a forma como alguns recuperam o passado
colonial brasileiro numa visão reducionista - que acaba por valorizar uma razão moderna
etnocêntrica e incapaz de manter diálogo com o outro - do que é na verdade a possível
contribuição cultural das raças indígenas e africanas no diálogo com a modernidade ocidental.
Ao rechaçar o saber antropológico, na medida em que desqualifica como equívoco ufanista
qualquer contribuição que possa advir daquele conhecimento, essa visão negaria a ele a
condição de parceiro num frutífero diálogo seu com a história.
18
Silviano aponta justamente a necessidade de se distinguir com cuidado o que é
referência positiva aos valores do passado colonial e por isso manifestação travestida do
tradicionalismo colonial e escravocrata do que é referência ao outro da razão ocidental e por
isso mesmo lugar por excelência para se exercer uma crítica radical aos desmandos totalitários
e totalizantes dela. Como bem aponta Silviano, a visão reducionista estaria correta quando
percebe o grande perigo de se incorporar à modernidade as atrocidades cometidas pela
tradição colonial e escravocrata brasileira – aproximando-se da perspectiva de Alfredo Bosi,
quando reivindica certo sentido de ruptura, de contraste, que estariam harmonizados em Casa
Grande & Senzala. A visão reducionista, por outro lado, estaria incorreta ao reafirmar o
centramento da verdade histórica na razão européia.
( SANTIAGO, 1991 )
Silviano mostra como Caio Prado Jr, por exemplo, em sua obra Formação do Brasil
Contemporâneo, ao buscar o “sentido da colonização” no Brasil acaba por incorrer em
evolucionismo teleológico, que se traduz em uma visão economicista do devir humano,
eliminando elementos constitutivos da nossa formação, como as culturas indígena e africana,
e confirmando a postura corrente dos reducionistas brasileiros, para os quais não haveria
propriamente uma contribuição positiva do não-europeu à causa da Europa ou ao sentido da
história moderna. Na análise do passado colonial brasileiro, se misturariam, portanto, duas
questões: a multiplicidade racial de que é composto e a conseqüente possibilidade de
interação de grupos étnicos diferentes, e a instituição da escravidão, atraso e violência,
tornando sub-humanos os membros dos grupos étnicos diferentes do europeu.
De fato, a obra de Freyre passa precisamente por esse dilema da cultura brasileira e
deve-se reconhecer, apesar das críticas, o quanto se opõe a um centramento europeizante. Na
verdade esse parece ser o ponto chave de Casa Grande & Senzala, residindo aí a riqueza e o
desafio que o livro impõe à crítica. Pode-se, então, reconhecer em Freyre traços da história-
19
problema, assim como nos descreve François Furet em “Da história-narrativa à história
problema” . Segundo o autor, ao renunciar à imensa indeterminação do objeto de seu saber - o
tempo - o historiador constrói seu objeto de estudo, passando a ser a boa questão, o problema
bem colocado, mais importante – e mais raro – do que a habilidade ou a paciência em trazer à
luz do dia um fato desconhecido
( FURET, s/d ). Pelo que parece, em Casa Grande & Senzala,
está colocada a boa questão.
Essa questão é análoga ao dilema apontado por Peter Burke emA Nova História, seu
passado e seu futuro”, quando lembra que nos anos 50 e 60 os historiadores econômicos e
sociais foram traídos por modelos mais ou menos deterministas de explicação histórica,
tenham eles dado primazia aos fatores econômicos - como os marxistas - à geografia - como
Braudel - ou aos movimentos da população. Hoje em dia, segundo o autor, os modelos mais
atraentes seriam aqueles que enfatizam a liberdade de escolha das pessoas comuns, sua
capacidade de explorar as inconsistências ou incoerências dos sistemas sociais e políticos,
para encontrar brechas através das quais possam se introduzir ou frestas em que consigam
sobreviver:
Os historiadores estão diante de um dilema. Se explicarem as diferenças no
comportamento social nos diferentes períodos pelas diferenças nas atitudes
conscientes ou nas convenções sociais, correm o risco da superficialidade. Por outro
lado, se explicarem as diferenças no comportamento pelas diferenças na profunda
estrutura do caráter social, correm o risco de negar a flexibilidade e a liberdade dos
atores individuais no passado. É verdade que, no primeiro fluxo de entusiasmo pela
história estrutural, a história dos acontecimentos esteve muito próxima de ser posta de
lado. De maneira similar, a descoberta da história social foi às vezes associada a um
desprezo pela história política. A oposição tradicional entre os acontecimentos e as
estruturas está sendo substituída por um interesse por seu inter-relacionamento, e
alguns historiadores estão experimentando formas narrativas de análise ou formas
20
analíticas de narrativa. O mais importante é que a oposição entre os historiadores
políticos e não políticos está se dissolvendo. ( BURKE, 1992 )
Pode-se, portanto, perceber que a crítica a Gilberto Freyre que se restringir a uma
perspectiva reducionista marxista ignorará a importância crucial do livro em trazer à tona
contribuições culturais inéditas, enquanto aquela que abordar o livro apenas por uma via
culturalista, excluindo a ausência de certo tempo de rupturas e contrastes, também correrá o
perigo de recalcar a escravidão para salientar o equilíbrio na multiplicidade racial,
compactuando com o elogio da cordialidade brasileira ou da democracia racial brasileira,
perigo do qual Freyre parece se aproximar, embora nem tanto como alguns fazem crer. É
através dessa boa questão latente em Casa Grande & Senzala, que, em 1933, Freyre impôs
um desafio à crítica brasileira, que ainda se faz presente.
Entre a via culturalista e a reducionista, Michel Vovelle propõe a definição, em
história, de uma nova dialética do tempo curto e do tempo longo, buscando uma conciliação
que se aproxima daquela explorada por Peter Burke. Depois de constatar que os caminhos da
descoberta histórica já não passam unicamente pelos caminhos do tempo longo, mas que
emerge paralelamente uma interrogação sobre a mudança em suas formas brutais ou graduais,
Vovelle lembra o novo papel que mais de um autor tem atribuído ao acontecimento,
concluindo:
É preciso redefinir, parece-me, essa dialética do tempo curto e do tempo longo, que o
pesquisador nos domínios da história social e das mentalidades deve encarar. Todavia,
uma das razões do bloqueio – provisório, sem dúvida – não seria acaso a dificuldade,
entre os diferentes domínios, de encontrar a concordância dos tempos? ( VOVELLE,
1987 )
21
Se, como bem aponta Vovelle, para a historiografia que recusa o caderno de encargos
do método marxista, a facilidade pode ser a de um tempo longo que se atolaria numa história
imóvel, ou uma etnografia cada vez menos histórica, a solução, nessa mistura dos tempos da
história, seria correlacionar, confrontar, hierarquizar:
Dessa maneira, a longa duração, esse fruto objetivo do progresso metodológico, não
será nem um engodo, nem uma máscara, mas um meio de afirmar uma consolidação
fortalecida do tempo da história. A consciência dessa ´longa duração`, noção ainda
mal dominada, mas que tentamos analisar em seus aspectos ambíguos, talvez não seja
estranha reassunção do campo histórico em sua especificidade. ( VOVELLE, 1987 )
Se trouxermos Gilberto Freyre para o “confronto de tempos” aqui exposto, podemos
lembrar que a ótica através da qual Freyre constrói Casa Grande & Senzala produz alguma
mudança no curso da nossa historiografia na medida em que passa a valorizar a produção
cultural efetuada pelos escravos, propondo uma nova abordagem de índios, negros, escravos e
trabalhadores. Se esses não são elevados à categoria de personagens de primeiro plano no
drama da formação da sociedade brasileira - já que a narrativa se dá a partir da Casa Grande -
passam a ter a sua contribuição cultural cotidiana valorizada. As revoltas quentes ou mais
violentas - que seriam um “ tempo de rupturas ou contrastes” - contra o sistema patriarcal
escravocrata, capazes de alçar os escravos a personagens protagonistas do drama da história
colonial, não chegam, no entanto, a interromper o tempo longo exposto na obra de Gilberto
Freyre.
Apesar do que foi acima exposto, Casa Grande & Senzala chegou a ser –
ironicamente - acusada como obra de inspiração marxista. Como foi visto, Freyre, avesso a
ortodoxias, não só não era um marxista como imprimira mesmo ao seu trabalho uma
22
orientação filosófica fundamentalmente anti-marxista. Mas, dentro das questões aqui
levantadas, cabe lembrar que o antimarxismo de Freyre também não é ortodoxo: ele admite
em certos casos que o materialismo histórico pode ser utilizado com proveito na análise e na
interpretação do fato social. Sua opinião a este respeito está assim expressa no Prefácio de
Casa Grande & Senzala:
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes exagerado
nas suas generalizações – principalmente em trabalhos de sectários e fanáticos [...]
temos que admitir influência considerável, embora nem sempre preponderante, da
técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades; na caracterização da
sua fisionomia moral. É uma influência sujeita à reação de outras; porém poderosa
como nenhuma na capacidade de aristocratizar ou de democratizar as sociedades; de
desenvolver tendências para a poligamia ou a monogamia; para a estratificação ou a
mobilidade ( FREYRE, 2000A, p. 18 )
De fato, é quase surpreendente a presença, ao longo das páginas de Casa Grande &
Senzala, de passagens em que o autor é levado a aplicar, ainda que de maneira implícita ou
incompleta, critérios muito próximos ao método materialista e dialético de análise e
interpretação. Entre as teses mais vigorosamente sustentadas nas páginas do livro está a de
que as influências deletérias do negro no processo de formação da sociedade brasileira foram
devidas a causas de ordem social e não de ordem étnica. O negro em sua condição de escravo
– eis a raiz de tudo:
Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a
ação do escravo e não a do negro per si, que apreciamos. Parece às vezes influência de
raça o que é influência pura e simples do escravo, do sistema social da escravidão. Da
capacidade imensa desse sistema para rebaixar moralmente senhores e escravos. O
negro aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial, deformado pela
23
escravidão. Pela escravidão e pela monocultura de que foi o instrumento. ( FREYRE,
2000A, p. 500-501 )
A ótica da narrativa de Freyre é, portanto, clara – é a partir da Casa Grande que narra
as contribuições e os dramas dos negros em sua condição de escravos. Nesse sentido, se, por
um lado, não deixa de efetuar uma crítica ao sistema escravocrata e a sua capacidade de
rebaixar moralmente senhores e escravos, por outro, não chega a realizar uma crítica mais
contundente ao sistema em questão, como se não conseguisse desvincular-se afetiva e
narrativamente de sua posição autobiográfica identificada ao senhor, ou seja, sair do foco
fechado na Casa Grande. Assim é que repete que o sistema rebaixa moralmente não apenas os
escravos, mas também os senhores. Se o antropólogo realiza aqui um deslocamento
interessante, permitido pelo fechamento de foco, ao mostrar o quanto os senhores também são
vítimas desse sistema, não podemos deixar de lembrar que essa equalização limita-se ao
“rebaixamento moral” de senhores e escravos, reforçando o argumento de que o aristocrata é
um democrata. De forma análoga, esta mesma relativização dos conceitos faz com que o autor
não ofereça o painel dos movimentos sociais que emergiram no Nordeste, como as
insurreições de 1817, 1824, 1831 e 1848, além dos levantes de negros, verificados quase a
cada ano na primeira metade do século passado. Talvez porque não fosse possível classificar a
condição dos sujeitos e personagens principais dessas insurreições. Assim é que Freyre faz
com que o mundo do trabalho surja desarticulado, quando não folclorizado, esvaziando as
polarizações entre dominantes e dominados.
A crítica efetuada acima não invalida o fato de que há, em Casa Grande & Senzala,
um foco privilegiado na esfera íntima, que, longe da esfera econômica, permite, por outro
lado, explicitar a idéia de conflito que permeia indiretamente toda a análise gilbertiana,
expressa na subjugação da esposa pelo marido, dos filhos pela mãe e pelo pai, dos escravos
24
pelos seus senhores – adultos ou crianças – dos indivíduos pelo Estado. Ricardo Benzaquen
nos mostra como, para Gilberto Freyre, o que importa na relação senhor-escravo é o
estabelecimento de uma ampla troca de experiências, capaz de aproximar antagônicas
influências culturais, sem, contudo, procurar fundi-las em uma síntese mais totalizante. Assim
é que o teórico irá ressaltar o fato de que, em Casa Grande & Senzala, da mesma maneira que
as distintas influências étnicas e culturais conseguiam combinar-se separadamente no
português, a violência e a proximidade sexual, o despotismo e a confraternização familiar
parecem também ter condições de conviver lado a lado, em um amálgama tenso, mas
equilibrado.
( ARAÚJO, 1994, p. 44-45 ).
Neste sentido, a impressão final do autor é a de que esse argumento, fundado em um
relativo louvor da ambigüidade, da particularidade e, portanto, incapaz de pensar a totalidade
a não ser que os seus componentes tenham condições de guardar ao menos parte da memória
da sua verdadeira origem, é, mais do que uma característica de uma ou outra parte isolada do
raciocínio de Gilberto, um ponto central da sua reflexão. Tomada como uma espécie de
emblema da argumentação de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, a expressão
antagonismos em equilíbrio envia-nos para uma situação na qual as divergências
estabelecidas no interior da casa-grande aproximam-se sensivelmente, mas não chegam a se
dissolver, conformando portanto uma visão altamente sincrética do todo.
( ARAÚJO, 1994, p. 57-
59 )
Dentro das reflexões pautadas na dialética do tempo longo e do temo curto, é possível
situar os termos/ conceitos utilizados por Freyre e destacados por Benzaquen – como “louvor
da ambigüidade”, “antagonismos em equilíbrio”, “sincretismo” - no limite de tensão, na borda
do enfoque cultural privilegiado por Freyre. Se entre as ambigüidades sustentadas pelos
“antagonismos em equilíbrio” de Gilberto Freyre, não estão – obviamente – incluídos o inter-
25
relacionamento entre os acontecimentos e as estruturas ( ou a dissolução da oposição entre a
história social e a história política ) não deixa de ser relevante o fato de que o limite dessa
tensão sincrética do todo é também o limite das estruturas, do tempo longo, da história íntima,
estorvada pela inércia.
O enfoque freyreano em sua trilogia de ensaios restringe a história, desenhando-a até
um limite que não chega a ultrapassar aquele da esfera cultural – da história privada. O que
parece relevante é que, nesse recorte freyreano, parece haver uma aproximação às bordas
desse desenho – aquelas que questionam a própria esfera íntima, ao tensionar seus conflitos:
suspensos e apontados para o leitor, em seu equilíbrio de antagonismos. A história econômica
parece rondar esses limites, nas entrelinhas, ali onde não está: entre o texto e o leitor. O
ensaio, não por acaso, é o gênero escolhido por Gilberto Freyre: um híbrido também no limite
entre os gêneros, capaz de abarcar as fronteiras entre as disciplinas pelas quais o autor aqui
estudado transita. Texto aberto, provocativo, não-conclusivo, ou concluído com o leitor.
26
1.1.2 - DA SOCIOLOGIA À LITERATURA
Gilberto Freyre revelou um novo método de utilização de material documentário,
utilizando técnicas de pesquisa inusitadas para a sua época. Propagandas de jornais, anúncios
de jornais, artigos e crônicas, fotografias antigas de álbuns de família, relatos de viagens, bem
como diários íntimos e livros de anotações formam o pano de fundo de um ensaísmo leve, que
beira o literário. A natureza da pesquisa de Gilberto Freyre, uma investigação eminentemente
histórica, demonstra que ele se baseia, acima de tudo, em fontes documentais de um caráter
muito peculiar para o seu tempo. Gilberto utiliza-se largamente das três visitações do Santo
Ofício até então publicadas. Ricardo Benzaquen Araújo mostra como parece realmente ter
sido dessas fontes inquisitoriais - tratadas, segundo o autor, de forma bem pouco crítica - que
Gilberto teria retirado boa parte das informações que o ajudaram a criar aquela atmosfera de
excesso e de intoxicação sexual que teria caracterizado a nossa experiência patriarcal na
época colonial
. ( ARAÚJO, 1994, p. 267-269 )
Como foi isto anteriormente, trinta anos depois a nouvelle histoire francesa fez uso de
novas fontes de modo a responder às novas questões que seus praticantes colocavam para o
passado. Como bem lembra Peter Burke, analogamente, o trabalho de Freyre recorreu a uma
amplitude de fontes, indo além do âmbito relativamente estreito de documentos usados pela
maioria de seus predecessores – como ele foi o primeiro a apontar no prefácio à primeira
edição de Casa Grande & Senzala:
Outros documentos auxiliam o estudioso da história íntima da família brasileira:
inventários; cartas de sesmaria, testamentos, correspondências da corte e ordens reais;
pastorais e relatórios de bispos; atas de sessões de ordens-terceiras, confrarias, santas-
casas como as conservadoras; os livros de assentos de batismo, óbitos e casamentos de
27
livres e escravos e os de rol de famílias e autos de processos matrimoniais que se
conservam em arquivos eclesiásticos; os estudos de genealogia de Pedro de Taques;
relatórios de juntas de higiene, documentos parlamentares, estudos e teses médicas.
Para o conhecimento da história social do Brasil não há talvez fonte de informação
mais segura que os livros de viagem de estrangeiros – os Thévet, os Expilly, os
Dabadie – e os bons e honestos da marca de Léry, Hans Staden, Koster, Saint-Hilaire,
Spix, Martius,etc. Crônicas como a de Pero Magalhães de Gandavo e a de Gabriel
Soares de Souza também nos deixam entrever flagrantes expressivos da vida íntima
nos primeiros tempos de colonização. De outras fontes de informações ou
simplesmente de sugestões, pode servir-se o estudioso da vida íntima e da moral
sexual no Brasil dos tempos de escravidão: do folclore rural nas zonas mais coloridas
pelo trabalho escravo; dos livros e cadernos Mss de modinhas e receitas de bolo; das
coleções de jornais; dos livros de etiqueta; e finalmente do romance brasileiro que nas
páginas de alguns dos seus maiores mestres recolheu muito detalhe interessante da
vida e dos costumes da antiga família patriarcal. Machado de Assis, Joaquim Manuel
de Macedo, José de Alencar, Manuel de Almeida, Raul Pompéia, Franklin Távora, etc.
( FREYRE, 2000A, p. 36-41 )
Freyre aprendera seu estilo interdisciplinar na Universidade Columbia, um centro do
movimento americano da nova história no início do século. A nova história francesa baseou
sua pretensão de novidade não apenas na descoberta de novos objetos de estudo, mas também
no desenvolvimento de novas abordagens e métodos, freqüentemente em associação com
outras disciplinas. Peter Burke, em Gilberto Freyre e a Nova História, chama atenção para o
fato de uma abordagem multidisciplinar desse tipo ter sido praticada por Freyre já nos anos
30, muito antes, portanto, dos historiadores franceses. Ele descreveu seus livros como
contribuições à sociologia e à antropologia, assim como à história social.
( BURKE, 1997 ).
Ricardo Benzaquen Araújo descreve seu trabalho como uma forma de ecletismo
multidisciplinar, na medida em que ele não apenas pregou a hibridização, mas a praticou por
toda sua vida intelectual. Além disso, é ressaltado pelo autor o fato de ele ter-se formado em
28
ciências políticas e sociais nos Estados Unidos, num momento marcado pelo repúdio aos
valores vitorianos, aos ideais de progresso, rejeitando a um só tempo a tradição da eloqüência
e a cultura francesa. A participação de Gilberto nessa revisão de valores éticos e intelectuais
que teria ocorrido nos Estados Unidos é inteiramente compatível com seus posicionamentos
em relação à pesquisa científica
. ( ARAÚJO, 1994, p. 272-280 )
Crítico da retórica jurídica do ensaísmo brasileiro da década de 20, o sociólogo
operou, portanto, uma verdadeira revolução na maneira de escrever, utilizando recursos
lingüísticos de aproximação com o leitor e tornando, assim, a leitura próxima a uma conversa
informal. A oralidade é, provavelmente, uma de suas particularidades mais ressaltadas pela
crítica, e é justamente pela ligação de Casa Grande & Senzala com a linguagem coloquial que
ela tem sido considerada desde o seu lançamento como uma obra também literária, e de
literatura moderna. Como se vê, a inclinação anti-retórica de Freyre parece tê-lo realmente
conduzido a escrever colado à linguagem mais cotidiana, o que parece fortalecer tanto seus
laços com a dimensão mais popular da língua e da sociedade brasileira, quanto sua relação
com seu objeto de estudo. Como destaca Roberto DaMatta:
escolheu falar do Brasil de uma certa perspectiva [...] e o ângulo escolhido foi
justamente aquele que mais perturba, posto que junta o biográfico e o existencial; com
o histórico, o literário e o intelectual [...] O ‘método ensaístico’ escolhido por Freyre,
obriga o autor a colocar-se ( com seu sistema de valores ) no centro mesmo da
narrativa. Aqui não se fala mais do Brasil como se o ‘Brasil’ fosse um espécime
natural. Falamos do Brasil num plano de continuidade emocional: usando a mesma
língua que todos falam e podendo sentir por dentro a problemática da sociedade e da
nação. ( DAMATTA, 1962, p. 48 )
De fato, há muito de autobiografia na obra de Gilberto Freyre. Filho do sobrado, neto
da casa-grande, viveu intensamente a tensão entre a fidelidade à sua classe senhorial e os
29
conflitos sociais de sua terra, ambivalência que se reflete em sua obra. O autor se converte, até
certo ponto, em personagem de si mesmo, mesclando ao ensaio histórico-sociológico as suas
mais íntimas memórias e transitando no eixo tênue que busca equilibrar a complexa relação
entre as dimensões intelectuais/conceitualizadas e sensíveis/vividas. A sociologia de Gilberto
Freyre é, como ele mesmo define, “uma aventura da personalidade”, sem deixar, no entanto,
de ser tão científica quanto qualquer outra.
O trecho abaixo, extraído do quarto capítulo de Casa Grande & Senzala, é ilustrativo do
complexo jogo narrativo estabelecido na escrita freyrena, que mescla à descrição, relatos e
pesquisa dos fatos históricos ou antropológicos, a narrativa, a autobiografia, e a criação. Desse
modo, sua narrativa e sua escrita possibilitam ao antropólogo o trânsito na linha tênue que
equilibra a neutralidade científica e a subjetividade:
Todo brasileiro, mesmo o alvo, de cabelo louro, traz na alma, quando não na alma e no
corpo – há muita gente de jenipapo ou mancha mongólica pelo Brasil – a sombra, ou
pelo menos a pinta, do indígena ou do negro. No litoral, do Maranhão ao Rio Grande
do Sul, principalmente do negro. A influência direta, ou vaga e remota, do africano (
... ) Na ternura, na mímica excessiva, no catolicismo, na fala, no canto de ninar
menino pequeno, em tudo que é expressão sincera de vida, trazemos quase todos a
marca da influência negra. Da escrava ou da ama que nos embalou. Que nos deu de
mamar. Que nos deu de comer, ela própria amolegando na mão o bolão de comida. Da
negra velha que nos contou as primeiras histórias de bicho e mal-assombrado. Da
mulata que nos tirou o primeiro bicho de pé de uma coceira tão boa. Da que nos
iniciou no amor físico e nos transmitiu, ao ranger da cama de vento, a primeira
sensação completa de homem. Do muleque que foi o nosso primeiro companheiro de
brinquedo. ( FREYRE, 2000A, p. 441 )
Este elemento de lirismo que condiciona toda a obra gilbertiana marca sua vocação de
escritor, que o antropólogo faz questão de “revelar”, em inúmeros momentos autobiográficos:
30
O que sempre quis ser foi escritor. E escritor é hoje a palavra que me define a
condição principal na vida. De escrever é que principalmente vivo. Para escrever é que
principalmente vivo. Um malicioso diria que tenho sido professor extraordinário e
escritor ordinário. E não deixaria de ser exato na sua classificação, nem mesmo na sua
malícia. Apenas o consolo de poder apresentar-me como escritor, mesmo ordinário,
nas respostas aos inquéritos oficiais de estatística, representa para mim a realização de
um sonho que data da remota meninice. E bem sabeis o gosto que há nos sonhos de
meninice realizados pelo adulto. ( FREYRE, 1968, p. 34 )
Como aponta François Furet em Da história-narrativa à história-problema, a história
é filha da narrativa, não se define por um objeto de estudo, mas por um tipo de discurso. Ao
que parece, Freyre explora essa fronteira, em sua antropologia, implodindo não apenas as
barreiras que a vinculam à história, mas, potencializando, ao mesmo tempo, o caráter literário
dessas disciplinas. O problema colocado pela evolução recente da história, e em particular
pela utilização de procedimentos rigorosos de demonstração, como mostra o mesmo Furet,
não é saber se a história como tal pode tornar-se ciência, já que levando-se em conta a
indeterminação de seu objeto, a resposta a esta pergunta é indubitavelmente negativa. O
problema, segundo o autor, estaria em conhecer os limites no interior dos quais esses
procedimentos podem ser úteis a uma disciplina que fundamentalmente não é científica
(
FURET, s/d ) .
Se, como afirma François Furet, fazer história é contar uma história, e contar é, na
realidade, dizer “aquilo que aconteceu, restituir o caos de acontecimentos que constituem o
tecido de uma existência”, Freyre, ao utilizar-se premeditadamente da marca de sua
subjetividade, parece buscar a afirmação de um passado que não pretende reconstruir
metodicamente, mas representar textualmente, no e para o presente: para o leitor. Junto com
esse contingente de subjetividade, vai transferir para o interior de seu texto, e para sua própria
31
forma de escrever, parte da ambigüidade, do excesso e da instabilidade que, segundo ele
próprio, caracterizavam a sociabilidade da Casa-Grande.
Casa Grande & Senzala torna-se de fato presente, na medida em que privilegia a
sugestão em detrimento da conclusão, através da aproximação do tom de conversa com a
prática do ensaio. Como lembra Benzaquen, o que está em questão no que se refere ao
inacabamento de Casa Grande & Senzala não é a simples ausência de um desfecho, de uma
síntese final. Ao contrário, trata-se de uma espécie de inacabamento essencial, que se instala
na argumentação desde o seu princípio, como um trabalho que mais levanta dúvidas do que
propriamente fornece respostas.
Em seu diário, Gilberto confessa: Na verdade, não me atraem os livros completos ou
perfeitos, que não se prolongam em sugestões capazes de provocar reações da parte do
leitor; e de torná-lo um quase colaborador do autor.
( FREYRE, 1979 ). De fato, o ensaio, ao
mesmo tempo que recusa e impossibilita uma concepção sistemática e exaustiva das
questões, carrega a vantagem de atingir o coração da matéria sob exame, ferindo a corda
certa, como mostra Benzaquen Araújo
. ( ARAÚJO, 1994, p. 284-287 ). Assim, ferindo a corda
certa, impondo a boa questão, é possivel ler Casa Grande & Senzala, muito mais como um
livro que encarna e potencializa problemas, questões e contradições da sociedade brasileira,
do que um projeto que pretende apresentar soluções ou verdades acabadas.
32
1.2 – AUTOBIOGRAFIA, FICÇÃO E ENSAIO: O OUTRO AMOR
Impressão de X: parece tão sincero que deve ser falso.
Recife, 1923
( FREYRE, 2006, p. 2000 )
1.2.1 – LEITURAS E VIAGENS DE FORMAÇÃO: LITERATURA, FILOSOFIA E
ENSAIO
A contribuição de Gilberto Freyre para a reflexão sobre a literatura no Brasil efetuou-
se, sobretudo, no tríptico central de sua obra, isto é, Casa Grande & Senzala, Sobrados &
Mucambos e Ordem & Progresso. Autores como Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de
Holanda realizaram obras de interpretação, quando o ensaísmo brasileiro significava,
sobretudo, encontrar pontos de vista hermenêuticos que possibilitassem, em grandes sínteses,
a leitura do país. Seus argumentos, análises e interpretações decorrem do amplo movimento
de renovação teórica e de pesquisa, assim como a liberdade de experimentação, através da
qual buscavam desprender-se da retórica cientificista de viés evolucionista e positivista.
Os historiadores, antropólogos e sociólogos, ao se voltarem para a criação literária,
debruçavam-se nas relações e nas difíceis articulações entre história, antropologia, sociologia
e estética, empenhados em reler, sob a ótica das novas contribuições estéticas, o passado.
Trata-se de autores que apontam para tensões entre história e literatura, e que encontram, no
ensaio, uma forma de expressão ideal.
Exatamente por serem os elementos articuladores essenciais de uma relação mais intensa
entre Estética e História, é que os temas da região e da tradição, sempre presentes na obra de
33
Gilberto Freyre, serão decisivos para a história da literatura brasileira. Se o conceito de região
será traduzido, logo em seguida, pelo surgimento de toda uma ficção romanesca, o conceito
de tradição seria primordial para a leitura moderna do passado e da própria cultura popular do
país.
Na obra chamada Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, abre capítulo nomeado
Como e porque sou escritor, sem deixar de ser um tanto sociólogo com as seguintes palavras:
O que principalmente sou? Creio que escritor. Escritor literário. O sociólogo, o
antropólogo, o historiador, o cientista social, o possível pensador são em mim
ancilares do escritor. Se bom ou mau escritor é outro assunto. (FREYRE, 1968, p.
165)
Na declaração de Gilberto Freyre, nota-se uma postura contra os especialismos. De
fato, o antropólogo sempre recusou convites para entrar na Academia e detestava ser tratado
como mestre . Muito jovem, Freyre foi estudar nos Estados Unidos, primeiro no sul, depois
em Colúmbia - um dos mais importantes centros de produção de conhecimentos nas ciências
sociais - onde travou contato com as teorias que emergiam em seu tempo. Na experiência
americana, Gilberto Freyre aprimorou o seu trabalho de observação qualitativa das relações
sociais, através do trabalho de campo e do recurso à historiografia e suas fontes.
Maria Lúcia Pallares-Burke aponta Matthew Arnold, A. C. Enson, Edward Thomas,
Lafcadio Hearn, Edward Muir, George Santayana, Havelock Ellis, G. K. Chesterton, Arnold
Bennett, W.B. Yeats, Charles Lamb como alguns dos ensaístas cujas obras Freyre adquire (
ou ganha ) nesse período inicial de sua formação, ao que se somam ricas antologias de
ensaios, que, ao menos desde 1922, passam a ampliar a sua biblioteca. De acordo com a
mesma autora, a coletânea de ensaios de Lafcadio Hearn, Life and Literature, comprada por
34
Freyre em Abril de 1922, referia-se ao gênero ensaístico como tendo a aparência trivial, mas
sendo, de fato, muito mais durável e valioso que muita ficção. A estudiosa lembra ainda que
Walter Pater apresentava o ensaio como forma de escrever própria de uma mente que se
relaciona com a verdade de modo não-dogmático, a forma capaz de apreender o ambivalente,
o opaco, o inarticulado e o dissonante da experiência ( PALLARES-BURKE, 2005, p.64-66 ).
Em Columbia, entre a primavera de 1921 e a de 1922, Freyre freqüentou seis cursos de
História, dois de Lei Pública, dois de Sociologia, dois de Antropologia, um de Inglês e um de
Belas-Artes. Lúcia Pallares-Burke mostra como os dois cursos de antropologia – ministrados
por Franz Boas nas sessões de inverno e primavera do ano letivo 1921/22 - foram
aparentemente a primeira oportunidade que Freyre teve de entrar em contato com o intelectual
que tão importante seria para o desenrolar de sua trajetória. Boas achava-se então
profundamente envolvido numa luta relativamente solitária e inglória contra a política
imigratória racista que ganhava corpo nos Estados Unidos àquela época. A importância de
Giddings e Franz Boas na experiência de Freyre se confinou ao aspecto intelectual. Por meio
de Armstrong renovou contato com a poetisa Amy Lowell e com o poeta Vachel Lindsay e
também como Dorothy Scaraborough, professora de Literatura Inglesa em Columbia. (
PALLARES-BURKE, 2005, p. 78 )
Lúcia Pallares Burke salienta que, não obstante Freyre ter optado pelo mestrado em
História, seu interesse, para não dizer paixão, pela literatura inglesa ou anglo-americana
parece ter-se mantido e até mesmo se acentuado durante seu período nova-iorquino, quando,
ao que tudo indica, lia vorazmente ficção, crítica literária e biografias de figuras literárias e do
mundo da arte. A estudiosa atenta ainda para os livros de sua propriedade, que revelam seu
grande interesse literário e que inclui autores como George Moore, Thomas Hardy, Oscar
Wilde, G. K. Chesterton, James Stephens. Numa lista de autores lidos ou relidos este ano
35
registrada em seu caderno de anotações de 1921-22, dominam também livros de ou sobre
ensaístas e literatos, como Walter Pater, Shakespeare, Lafcadio Hearn, William Morris,
Tolstoi, Dostoievsky, Montaigne, Pascal, Sterne, etc. A mesma autora ressalta ainda o fato de
que, logo ao voltar ao Recife, suas encomendas aos amigos estrangeiros continuam a se
concentrar em poesia, arte e literatura e lembra que quando Freyre comenta sobre o que está
lendo com seu amigo Oliveira Lima, concentra-se em temas literários ou ensaísticos, como se
em suas leituras se deixasse levar mais pela inclinação do que pela necessidade de estudos. (
PALLARES-BURKE, 2005, p. 80-83 )
Em Paris e Oxford adquiriu muitos livros concentrados em literatura e insistentemente
admitia dever muito de suas idéias e inspiração às ideias de outros. De acordo com a
historiadora, procurando não ocultar seus mentores, em várias ocasiões Freyre afirmou que
sua formação se devia em grande parte a seus contatos no estrangeiro, não só diretamente com
grandes mestres, como Franz Boas ou Giddings, como insistia, mas também com autores,
alguns entrevistos ou ignorados. É verdade que muitos dos reconhecimentos dessa dívida
para com seus mentores foram feitos por um Freyre já maduro e famoso, como lembra a
autora de Gilberto Freyre – um vitoriano nos trópicos. Seu talento de escritor se impondo
muitas vezes ao de jornalista ou diarista fazia com que a experiência que rememorava fosse ao
mesmo tempo revelada e escondida; desse modo, muitas vezes, para produzir um efeito
dramático, Freyre, conscientemente ou não, desrespeita a cronologia, omite ou exagera
episódios. Assim é que, mesclando o vivido com o desejado ou lido, o real com o imaginário,
seu diário de adolescência e primeira mocidade, publicado em 1975 com o título Tempo morto
e outros tempos como se tivesse sido escrito nos anos 1920 – e onde se é tentado a buscar
seus dados biográficos e a linha de sua trajetória intelectual até 1930 – , foi sendo elaborado
pouco a pouco. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 91-92 )
36
Freyre aprendeu com os livros que viajar inteligentemente envolvia a leitura de
monumentos, de pessoas e dos detalhes. Lúcia Pallares Burke, depois de examinar o que resta
da biblioteca de Giberto Freyre, revela que ele valorizava os livros sem tratá-los com a
reverência que se poderia esperar de um bibliófilo. De acordo com a pesquisadora, os livros
são anotados, sublinhados e marcados de vários modos por Freyre, que se refere a seus livros
com vocabulário marcado pela intimidade: Livros velhos camaradas , meus irmãos os livros,
cada vez mais meus irmãos, meus amigos, amigos a me fazerem companhia neste meu exílio
intelectual no trópico, diz ele em várias ocasiões. A autora, a partir de anotações de Freyre em
seus livros de Baylor, aponta duas características freyreanas presentes desde cedo: sua
valorização da obra inacabada e a associação do que lê a assuntos brasileiros, mesmo quando
o tema é aparentemente muito distante deles. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 94-99 )
Como ensina a pesquisadora, de acordo com o seu diário de juventude, o filósofo
alemão Nietzsche já era sua leitura desde a adolescência; e em 1921, quando muito
provavelmente estava lendo o Humano, demasiado humano, ele confessa que, dentre as
filosofias que experimentara desde cedo, a de Nietzsche era uma das que mais o atraíam.
Pode-se, portanto, concordar com Lúcia Pallares Burke quando afirma que a crítica aos
sistemas e a defesa do perspectivismo já explicitadas por Nietzsche nessa obra para enfatizar a
necessidade de pontos de vista diferentes tenham sido entrevistas e apreciadas por Freyre e o
levado a perceber a importância das leituras esparsas que aparentemente já fazia por gosto ou
intuição. A frase que Freyre escreve, com humor, no seu caderno de anotações, parece se
relacionar ao que estava então a aprender: A verdade “é como a esposa adúltera – ora com o
esposo, ora com o amante. Flutua. Oscila entre os dois. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 106-
107 )
37
Vê-se, pois, que a clara defesa que o antropólogo faria anos mais tarde no modo de ser
perspectivista de Ortega Y Gasset – cuja influência na obra de Freyre será aprofundada
adiante – pode ser relacionada a suas leituras de Nietzsche. Como o subtítulo do livro do
filósofo alemão anunciava, esse era um livro para aqueles interessados em liberar-se de toda
tutela, a não ser de sua própria, e, para isso, é fundamental aprender a perceber o sentido de
perspectiva em todos os julgamentos de valor, como afirma Nietzsche no prefácio. Movendo-
se em muitas direções e mantendo-se indiferentes a fronteiras e normas disciplinares,
Nietzsche exemplificava sua idéia de que a investigação filosófica deve ser feita a partir de
diferentes pontos de vista. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 108 ). Em Tempo Morto e outros
tempos, percebe-se a influência do filósofo alemão:
Escrevo depois de uma conversa de café com Regis de Beaulieu e outros maurrasistas
e alguns sindicalistas à la Sorl. Eles se entendem. A iniciativa de compreensão crítica
– tão comum entre franceses – é rara nas outras inteligências nacionais. Quase todas
essas outras melancolicamente se limitam ao estudo de valores já fixos e de assuntos
como domesticados. Incapazes de reagir ao chicote do domador. ( FREYRE, 2006, p.
175 )
Compreender, no seu melhor sentido, seria apanhar a inteligência os assuntos vivos,
em movimento, em pleno vôo, agrestes, rebeldes, não querendo de modo algum perder
a liberdade; e não isso de um scholar tratar de quanto assunto, já domesticado por
outros e a espapaçar-se de maduro, exista por este mundo de meu Deus. ( FREYRE,
2006, p. 175 )
No curso de Armstrong em Baylor, muito provavelmente Freyre já tomara contato
com uma das principais características do ensaísmo reforçadas por Nietzsche nesse texto.
Como Hazlitt esclarecera, o ensaio não tenta provar que tudo é preto ou tudo é branco, pois
38
a experiência mostra que a teia da vida é composta de fios mistos, de cores variadas. É nessa
mesma linha que ganha sentido o conselho de Nietzsche, sublinhado por Freyre em seu livro,
de que, quando se considera a história, devemos jogar o jogo cauteloso dos pratos da balança
de um lado - de outro lado. É esse o caminho para o espírito livre, que como Nietzsche
enfatiza em trecho igualmente marcado por Freyre, é um conceito relativo, pois não se trata
de dizer que sua opinião é mais correta; mas que como regra...ele terá a verdade de busca,
tudo deve ser considerado material, insiste Nietzsche. Terá cultura mais elevada aquele que
for capaz de tocar um instrumento de várias cordas, dançar audaciosamente, movendo-se
igualmente bem nos domínios do conhecimento, da religião, da metafísica, da poesia, etc, diz
Nietzsche. ( PALLARES-BURKE , 2005, p. 109 )
Lúcia Pallares-Burke lembra que Havelock Ellis, um dos primeiros ingleses a se
interessar por Nietzsche e divulgar seu pensamento para o público de língua inglesa, teria
provavelmente funcionado como um incentivador da postura nietzschiana que Freyre
precocemente admirava. Desde muito cedo leitor e grande admirador de Ellis, é plausível que
Freyre se tenha deparado com muitas das referências feitas pelo autor inglês a Nietzsche
como um filósofo cujo ideal era ser um bom dançarino e cujo grande mérito era exatamente a
ausência de um sistema. Os conselhos práticos de Arnold Bennett poderiam ser vistos como
complementos aos ensinamentos nada convencionais de Nietzsche. Autor de romances de
grande popularidade no início do século XX, era também autor de livros de auto-ajuda. Na
linha de Armstrong, propõe que a literatura é útil, não como prova de cultura ou fonte de
prazer, mas porque pode afetar em profundidade nosso relacionamento com o mundo e
transformar nossa existência. Bennet é veemente ao aconselhar a busca da literatura pelo
concreto e o esquecimento das divisões entre gêneros e ramos literários nos quais os
especialistas e pedagogos dividiram por questão de conveniência. Por exemplo, oposições
39
entre a prosa e poesia ou literatura imaginativa, filosófica, histórica, científica devem ser
desconsideradas. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 110 )
A historiadora destaca em Freyre, desde cedo, as seguintes idéias em suas leituras da
juventude:
ciência e lógica são muito menos poderosas do que a modernidade supõe; desprezar os
homens simples e incultos é não perceber a riqueza; os contemporâneos de um espírito
original raramente o compreendem; a carreira acadêmica não é a mais recomendada para quem
tem uma mente imaginativa e criadora. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 113 )
Vê-se, portanto, a partir da formação de Gilberto Freyre, o quanto a influência de
autores ligados à literatura, pela filosofia ou pelo próprio ensaio, marcam seus interesses e
fontes, assim como o conflito entre a a criatividade ( personalismo ) e a obediência às regras,
que será tratado de forma mais aprofundada no segundo capítulo. Pode-se perceber, ainda, o
quanto a literatura parece cimentar este tipo de conflito, na medida em que liga disciplinas e
confllitos em todo o trajeto freyreano, permitindo a projeção de uma obra ímpar.
40
1.2.2 – OXFORD E RECIFE: TEMPO MORTO E OUTROS TEMPOS
Londres o empolgou, especialmente por sentir que estava seguindo as pegadas de
muitos de seus ídolos literários; mas foi em Oxford que Freyre encontrou um ambiente
acolhedor. Sobre a vida inglesa, Gilberto Freyre escreve a Oliveira Lima em 6 de Novembro
de 1922:
Confirma-se em mim, neste meu contacto com a vida inglesa, a simpatia que por uma
como premonição sempre senti pela Inglaterra. Este é o povo mais romântico do globo
– muito ao contrário da ideia que corre mundo do essencialmente prático como
sinônimo de indiferença às causas gentis.
Parece-me o povo de inteligência mais equilibrada, de vida mais equilibrada. Porque
não nasci inglês ou alemão ou americano – não compreendo...Mas já que sou
brasileiro vou tratar de ser o melhor possível – do my best. ( Carta de G. Freyre a O.
Lima, 6/11/1922, Oliveira Lima Papers. In: PALLARES BURKE, 2005 )
Oxford lhe pareceu um lugar idílico, onde logo se imaginou at home: estética,
emocional e intelectualmente completo. Emocionalmente, o jovem Freyre se completava com
a confraternização dos jovens, belos e sofisticados rapazes, tão própria da vida oxfordiana. O
aconchego que tivera nos Estados Unidos iria se repetir ali, mas agora, os amigos eram seus
iguais em idade e em conhecimento. Jovens do mesmo sexo, estudantes, afastados da família,
a maioria coabitando em moradias estudantis, as condições de vida dos jovens de Oxford
eram favoráveis ao desenvolvimento de relacionamentos profundos e às vezes homoeróticos.
Esse tipo de amizade sentimental, intensa e ocasionalmente erótica entre rapazes continuava,
na verdade, uma tradição oxfordiana que recuava ao menos quase um século, à época dos
fundadores do Oxford Movement que haviam transformado o tutorado de uma formalidade
41
universitária seca e livresca em veículo de afeição e interesses recíprocos entre alunos e
professores, como ensina a historiadora Maria Lúcia Pallares Burke em Gilberto Freyre: um
vitoriano dos trópicos. ( PALLARES-BURKE, 2005, P. 120-122 )
O jovem Gilberto teve ali grandes amigos e teve experiência amorosa efêmera, mas
significativa, com um rapaz, fato que muito relutou em ocultar a despeito dos conselhos que
teve em contrário. Em Oxford, como confessou - e pretendeu deixar público em Tempo Morto
e outros tempos - ele teve seu primeiro relacionamento amoroso com um jovem do mesmo
sexo – breve aventura de amor homossexual, no melhor sentido da expressão, sem canalhice
alguma. De acordo com Lúcia Pallares Burke, para Freyre, silenciar sobre isso seria, de um
lado, trair a verdade histórica e, de outro, dar a impressão de que se envergonhava dos desvios
da chamada normalidade sexual onde poderia experimentar o amor na sua plenitude e na
sua diversidade de expressão. Para a historiadora, muito da confessa anglofilia de Freyre, tão
central em seu pensamento, deve ter suas raízes, ao menos em parte, nesse drama humano
vivido em Oxford no final de 1922. Linwood Sleigh ( 1902-1965 ) foi o jovem oxfordiano -
iniciando seu terceiro ano de universidade e com seus cursos concentrados em literatura
inglesa – com quem Freyre se relacionou. O momento histórico em que esse encontro ocorreu
é a Europa do pós-guerrra e conflitos dessa natureza são propícios ao desenvolvimento de
afetos muito profundos e positivos entre as pessoas, independente do sexo e do clima de
incompreensão e suspeita que podia subjazer em certos círculos desde o julgamento e a
condenação por homossexualismo de um de seus mais famosos alunos, Oscar Wilde. (
PALLARES-BURKE, 2005, p. 123-124 )
Para que houvesse nos anos de 1920 em Oxford uma atmosfera propícia a
relacionamentos românticos entre os jovens também contribuía a proximidade da época com o
movimento de reforma que reestruturou essa universidade no período vitoriano. Os liberais
42
helenófilos queriam encontrar meios de promover as individualidades criativas que se viam
cerceadas pelos tentáculos da modernidade industrial e burocrática e empenharam-se em
encontrar meios de alargar os horizontes dessa instituição, através da reavaliação da filosofia,
da literatura e da história da Grécia clássica. Esse movimento de reforma liderado por liberais
insatisfeitos com os rumos da moderna cultura britânica industrial acabou por gerar, a
despeito de suas intenções, uma valorização e uma legitimação do amor masculino como algo
muito mais nobre e criativo do que o amor heterossexual prescrito pelos dogmas cristãos e
sancionado pelos tabus culturais. O homosssexualismo dos anos 1920 que Gilberto Freyre
encontrou era um estilo de revolta de jovens estetas requintados contra o rude
antiintelectualismo de outros jovens provenientes das elitistas public schools, muito mais
dados ao remos, esportes e bebida do que a coisas do espírito. Em Tempo Morto e Outros
Tempos, escreve Freyre, em 1923 ao visitar uma mulata prostituta recomendada pelo tio, em
Pernambuco:
Agora venho bater à casa da mulata à Travessa do Forte como um tenente em país conquistado
pelo seu Exército: o Exército da minha geração.
Grande mulata. Na verdade, um monumento do gênero. Sem exagero nenhum: escultural,
monumental. Mas também hospitalar. Clínica. Terapêutica.
Sinto-me um tanto traidor dos amigos que deixei em Oxford: tão angélicos embora tão sutis
em seus conhecimentos do mundo e de mulheres finas a ponto de um deles ter dito a um
médico, em Paris, que pertencia a um grupo, o dos estudantes de Oxford, de neuróticos-
eróticos. Essa mulata da travessa do Forte é como se fosse clínica, repousante, hospitalar para
neuróticos-eróticos. Imagino L. – se viesse de Oxford ao Recife – nos braços dessa recifense
de cor aliviado de suas aflições anglo-angélicas. ( FREYRE, 2006. p 192 )
O fato de, mais de cinquenta anos após ter vivido esse episódio, Gilberto Freyre
insistir em deixar público em seu diário de memória, revela a abertura com que Freyre tendia
43
a tratar de assuntos tabu. Sobre Walt Withman, afirma Freyre ser poeta cheio de
antagonismos e contradições e seu caráter tão compreensivelmente humano porque ilógico,
incoerente e inacabado. Freyre o descreve como alguém que não se limitou como poeta a ser
de uma classe ou de uma raça ou mesmo de um sexo. Muitos anos mais tarde, em sua
seminovela D. Sinhá e o filho padre, Freyre iria abordar o relacionamento homoerótico entre
dois jovens com grande sensibilidade e compreensão. De acordo com Freyre: Romance em
que amor e amizade até religião e sexo se confundem do começo ao fim, seus personagens,
Paulo e José Maria revelam uma dimensão da humanidade nem sempre lembrada, salientava o
autor que: são os homens, muitos deles, uns mestiços, não só na raça como no sexo, não só
nas idéias como nos sentimentos. E, como mestiços, se realizam esses homens, às vezes mais
do que os supostos puros de raça, de sexo, de classe, de idéias, de sentimentos. No período
em que Paulo, longe do jovem amigo, estudava em Paris, ele tanto se entusiasmara pela obra
de Newman e Pater que resolvera conhecer Oxford. E lá, significativamente, lembrou-se
muito de José Maria, ao ver dois inglesinhos de beca em plena efusão de amizade amorosa
que lhe pareceu, no melhor sentido da palavra, platônica. ( PALLARES-BURKE, 2005, p
131 - 137 )
No diário de 1975, tal como ele pretendia publicar, Freyre também apelou aos gregos
e descartou a visão convencional da chamada normalidade sexual. Freyre se descreve como
um experimentador que não se envergonhava dos desvios da chamada normalidade sexual...
ao contrário: lamenta quantos não os conhecem, prejudicados por um puritanismo que lhes
tem limitado a experiência do amor na sua plenitude e na sua diversidade de expressão.
Alguns anos depois de seu regresso ao Brasil, recordando o seu período inglês e mostrando ter
sido seduzido por um país onde nunca há excessos nem para a esquerda nem para a direita,
Freyre chega a afirmar categoricamente que tudo na Inglaterra é: compensação e equilíbrio.
44
Completando o horizonte de expectativas que se fora formando à medida que estudava
Carlyle, Spencer e Giddings, vários ensaístas, poetas, romancistas e artistas britânicos
chamaram a atenção de Freyre para o valor e a potencialidade das tradições culturais. No
mundo inglês, Freyre apreciou o respeito às tradições, que existia sem prejuízo, quer do
desenvolvimento das individualidades criadoras, quer das conquistas da modernidade: a sábia
combinação entre tradição e modernidade.
Durante sua permanência no estrangeiro o jovem Freyre manifestou dúvidas quanto ao
caminho a escolher, o que fazer, para onde ir. Seu retorno ao Brasil também era motivo
frequente de seu Hamlet mood, e ser ou não ser um exilado intelectual foi, aparentemente,
uma das dúvidas que muito cedo o inquietaram, já que compartilhava das reservas de seus
diletos amigos e conselheiros, Armstrong e Oliveira Lima, quanto ao seu futuro na terra de
origem. A crer em seu diário e correspondência, a pressão fora grande para que ficasse nos
Estados Unidos ou na Inglaterra. Por motivos diferentes, Armstrong e Oliveira Lima insistiam
em que Freyre permanecesse no estrangeiro. Quando, finalmente, se vê forçado a voltar da
Europa antes do desejado devido a problemas econômicos, Freyre volta ao Brasil cheio de
indecisões e incertezas. ( PALLARES-BURKE, 2005, p. 139 -145 )
Pernambuco não era o único destino que Gilberto Freyre tinha em mente ao voltar
para o Brasil em Março de 1923. Diante do iminente retorno ao pais, ocorreu-lhe a idéia de
mudar de cidade e tentar a vida numa nova região brasileira. Queixas de inveja,
incompreensão e provincianismo do seu meio são a tônica de muitas das cartas a amigos e
artigos de jornal escritos por ele nessa época. Dois artigos de A Província e um de A noite
passaram uma descompostura no jovem irreverente que se erguia como detrator da pátria no
estrangeiro, reagindo a artigos de Freyre em que se refere a Rui Barbosa como um orador
45
xaroposo e solene. Em Tempo Morto e outros tempos, Freyre relata, em 1923, o sentimento
relativo a sua volta ao Brasil:
O que sinto é que sou repelido pelo Brasil e que acabo de regressar homem, depois de
o ter deixado menino, como se me tivesse tornado um corpo estranho ao mesmo
Brasil. É incrível o número de artigos e artiguetes aparecidos nestes poucos meses
contra mim; e a insistência de quase todos eles é neste ponto: a de ser eu um estranho,
um exótico, um meteco, um desajustado, um estrangeirado. Sendo um estrangeiro
argumentam eles – é natural que eu não me sinta mais à vontade no Brasil. E se não
me sinto à vontade no Brasil, se não sei admirar Rui Barbosa na sua plenitude, se não
me ponho em harmonia com o progresso brasileiro nas suas expressões mais
modernas, antes desejo voltar aos dias coloniais – uma mentira – se isto, se mais
aquilo, por que não volto aos lugares ideais onde me encontrava, deixando o Brasil aos
brasileiros que não o abandonaram nunca por tais lugares? Este parece ser o sentido
dominante dos artiguetes que vêm aparecendo contra mim. ( FREYRE, 2006, p. 186 )
A paisagem urbana do Recife novo – que imitava as cidades européias - também
enchia Freyre de desapontamento e amargura. Freyre, que chegara ao Recife guloso de cor
local, tinha encontrado uma cidade que perdia o caráter, em processo galopante de
desfiguração de seus hábitos, arquitetura e arte.
É compreensível que bem mais tarde Freyre tenha apagado da lembrança seu empenho
em sair do Recife nos idos de 1923, pois, como lembra Lúcia Pallares Burke, a auto-imagem
criada pelo autor de Casa-grande & Senzala ao longo dos anos impunha que se acentuasse
sua permanente relutância de radicar-se fora de Pernambuco, de que fazia tempo se tornara
verdadeiro arauto.
Em abril de 1924 Freyre funda, em colaboração com Odilon Nestor e Annibal
Fernandes, o Centro Regionalista do Nordeste. Na mesma época assume a organização do
livro comemorativo do centenário do Diário de Pernambuco, que viria a ser publicado em
1925; em fevereiro do ano seguinte, promove como atividade do Centro Regionalista o
46
Primeiro Congresso Regionalista do Nordeste reunido no Dpto de Saúde e Assistência do
Recife; e, em Novembro de 1926, provavelmente se preparando para ocupar o cargo de
auxiliar do novo governador Estácio Coimbra, planeja como outra atividade do Centro
Regionalista o Mês da Cidade, em que a questão do urbanismo no Nordeste seria discutida.
Tais iniciativas se revelavam inícios auspiciosos para quem muito cedo dissera em público
que o saber é nada, se o não soubermos dissolver em ação. De fato, já na adolescência Freyre
expressara sua determinação de dar um sentido prático ao saber adquirido. Em discurso
proferido na solenidade de conclusão do curso secundário, em 1917, o precoce Gilberto
criticara o saber que se mantém estéril, atacando o vício da maioria dos bacharéis brasileiros.
(PALLARES-BURKE, 2005, p. 160 -166)
Em Tempo Morto e Outros Tempos, o diário de adolescência e primeira mocidade de
Gilberto Freyre, fica registrada a luta do jovem brasileiro, no exterior, para que pudesse voltar
ao Recife, além de todas as dúvidas e problemas, depois de completados os estudos na
Universidade de Colúmbia
:
Oliveira Lima advertiu-me: Não pense em fixar-se no Brasil. Escritor no Brasil? É o mesmo
que pretender alguém patinar na areia. Aqui estou há quase um ano. No Recife: nem ao
menos em São Paulo, para onde o excelente amigo deu-me cartas de apresentação para
Washingtons Luís, Carlos de Campos, Afonse de Taunay, o Padre Valoir, Rangel Pestana.
Será que ele tem razão? As vezes parece que sim. Sinto que meu ajustamento intelectual no
Brasil é quase impossível. Experimento ås vezes enorme vontade de voltar aos meus amigos
de Columbia e sobretudo aos de Oxford – de Oxford e Paris – cujas cartas venho deixando
sem resposta, decidido como estou a que esse meu intenso passado – inglês e parisiense – seja
um tempo que morra de todo – a não ser como vaga recordação sentimental. São cartas que me
seria doloroso responder: dead paper (...), mute and white, como diria Elizabeth Barreto
Browning. Minha decisão está tomada: é reintegrar-me completamente no Brasil. Atolar-me
na sua carne e no seu massapé. Pelo sentimento já me sinto restituído à infância brasileira ( ... )
47
Isto é o principal: esta recuperação sentimental. A adaptação intelectual é secundária. (
FREYRE, 2006, p. 195 )
De volta ao Recife, desde os 23 anos de idade, revê o engenho São Severino dos
Ramos onde brincou em menino, e no ano seguinte estuda muito, lê Proust, até que, em 1924
registra no diário que gostaria de escrever um livro sobre sua infância e empenhar-se no
estudo de uma rua típica do Recife:
Um estudo da vida íntima da rua. Um estudo antropológico, psicológico, sociológico
do seu conjunto: casa por casa, sala por sala, quarto por quarto, habitante por
habitante. Atitudes e relações com outras ruas. Observação, mensuração, interpretação
através de uma participação intensa de observador na vida observada. Empatia. (
FREYRE, 2006, p. 227 )
Vê-se a pretensão de ser escritor presente ainda nos anos de aprendizado de Gilberto
Freyre, assim como o método empático – que transfere o ponto de vista do observador para o
cerne mais íntimo da coisa ou da pessoa observada. Em 1925, confia ao diário o seguinte
trecho:
Que escritor pode haver sem forma? Sem plástica? Sem ritmo? Eu vou chegando a
uma forma nova em língua portuguesa, que é diferente das antigas, sem deixar de ter o
ritmo tradicional das prosas portuguesas; que exprime uma personalidade ao mesmo
tempo moderna e castiça até na pontuação; e que exprime de modo contagioso. Daí as
imitações. Hei de criar um estilo. E dentro desse estilo, que me repugna inventar,
como nas novelas e nos dramas, que escreverei? Talvez a continuação dos meus
primeiros esforços de ressurreição de um passado brasileiro mais íntimo ( l´histoire
intime...roman vrai, como diziam os Goncourt ) até esse passado tornar-se carne. Vida.
Superação de tempo. ( FREYRE, 2006, p.248 )
48
Vê-se no trecho destacado a presença do escritor, ressaltando a necessidade de estilo.
O estilo é um ponto de vista sobre a realidade, que através de determinada perspectiva mede
certa distância de afastamento ou de aproximação do mundo em relação ao observador. Nesta
gradação entre distanciamento e aproximação, Gilberto Freyre escolheu a aproximação
máxima do observador em relação ao seu objeto: o estilo intimista, que pressupõe no autor
uma relação profunda de empatia com o contorno material, social e cultural cotidiano.
Essa abordagem auxilia o antropólogo em sua tentativa de abarcar o Brasil colonizado
e dominado, e conseqüentemente, seus modos de resistência, na medida em que permite ao
estudioso uma mudança de foco capaz de abarcar aspectos não apenas da história oficial, mas
aqueles adormecidos na história íntima. É claro que quando falamos, aqui, em modos de
resistência, esses modos, a partir do foco intimista escolhido por Freyre, não incluem as
resistências que abarcam rupturas ou ameaças à sociedade patriarcal, mas apenas aquelas que
prenunciam essas rupturas e rebeliões: as resistêcias culturais. Nesse sentido, a linguagem
literária e a ampla utilização de metáforas são poderosos auxílios em seu método de
abordagem empático, que pretende transcrever a realidade em – lento - movimento, e que
precede a tematização científica, sociológica, antropológica ou histórica na obra de Gilberto
Freyre.
Em Como e porque Sou e Não Sou Sociólogo - ao relembrar sua condição híbrida de
sociólogo-antropólogo-historiador, Gilberto esclarece mais uma vez o que entende por
sociologia genética, por ele já caracterizada no prefácio a Casa Grande e Senzala: é a que
procura interpretar as épocas em seu movimento constante de mudança social, na qual o
passado está sempre tornando-se futuro, através de um rápido presente.
( FREYRE, 1968 )
O critério genético - como aponta Gilberto de Mello Kujawski, em Gilberto Freyre e
seu projeto de escritor - enxerga a realidade social como processo, inserido na fluência do
49
tempo e, auxiliada pelo critério ecológico, permite ao sociólogo captar a realidade social em
processo, ao mesmo tempo situada no tempo e no espaço, ou seja, em sua circunstância.
Assim é que a escrita literária de Gilberto Freyre liga-se ao seu empenho em captar a
realidade social em movimento, situada concretamente em sua circunstância, desde o seu
interior, a célula patriarcal. Através de uma escrita marcadamente literária e do uso de
recursos estilísticos, Gilberto Freyre consegue abarcar, em sua obra, o aspecto privado da vida
brasileira, que constitui fortemente a nossa identidade e o nosso passado, na medida em que
marcou, por quatro séculos, a nossa história, talvez mais intensamente do que a dimensão
oficial:
Mais do que a própria Igreja, considerada elemento independente da Família e do
Estado, foi a família patriarcal ou tutelar o principal elemento sociológico de unidade
brasileira. Daí nos parece aquele complexo, de todas as chaves de interpretação com
que possa um sociólogo aproximar-se do passado ou do caráter brasileiro, a capaz de
abrir maior número de portas. ( FREYRE, 1985 ).
A valorização da dimensão privada de nossa história não deixa de ser
interessante em um país em que são conhecidos os abismos entre o âmbito oficial e o privado,
em que grande parte da população sobrevive fora da oficialidade ou da legalidade. É preciso
reconhecer, no entanto, que a pesquisa efetuada por Gilberto Freyre não ousa abarcar os
tempos mais bruscos em que o oficial se choca com o âmbito privado, deixando
diplomaticamente escapar aqueles embates mais violentos, quando a esfera não-oficial busca
organizar-se - conscientemente ou não - para escapar do lugar dominado que lhe coube de
herança. Freyre parece optar – dentro do foco específico escolhido – pela fotografia dos
momentos limites da população dominada, que se traduz em cultura, abundância sexual, ou
em momentos mais radicais, como o banzo, o alcoolismo ou o suicídio citados em Casa
50
Grande & Senzalao vagamente quanto as fugas dos negros das Senzalas, vagamente
associada aos quilombos em sua obra.
Desse modo, o rigoroso conceito científico do intra-histórico de Unamuno - a tradição
de ação contínua, silenciosa e anônima que perpassa a história privilegiando um enfoque
pautado no micro - nomeia aquele substrato que se oculta sob a história visível e fornece a
Gilberto Freyre a dimensão da intra-história presente em sua obra quando elege a Casa
Grande como o centro de suas minuciosas pesquisas, ou quando adota a perspectiva intimista
no enfoque da família patriarcal brasileira, renunciando à história monumental. No prefácio à
primeira edição de seu livro pioneiro, declara o autor:
Nas casas-grandes foi até hoje onde melhor se exprimiu o caráter brasileiro: nossa
continuidade social. No estudo de sua história íntima despreza-se tudo o que a história
política e militar nos oferece de empolgante por uma quase rotina de vida: mas dentro
dessa rotina é que melhor se sente o caráter de um povo. ( FREYRE, 2000A )
Embora haja poucos registros do conceito de intra-histórico na obra de Gilberto
Freyre, Unamuno era um de seus autores espanhóis preferidos. E sua abordagem, pautada no
enfoque que busca abordar os aspectos privados, íntimos e micro-históricos, capta a
convivência relativamente pacífica entre brancos, negros e mulatos na redoma da casa-grande
e da senzala, dos sobrados e mocambos e a interpenetração de seus sentimentos e valores no
âmbito da convivência diária, na medida em que a luta de classes e as grandes tormentas
sociais são vistas por dentro, em seus momentos de relaxamento, permitindo captar e
incorporar sentimentos e vontades.
( KUJAWSKI, 2003 )
Assim, pode-se perceber que o projeto de escritor de Gilberto Freyre constitui
condição essencial e peça chave, capaz de unir sua metodologia empática e seu tipo de
51
enfoque sobre a história que buscava abordá-la de dentro pra fora, no desdobramento de suas
tensões e entrelaçamento de tempos, revelando-a quase como drama. A realidade social,
enfocada nesta perspectiva de proximidade, capaz de torná-la próxima ao drama, abarcando
elementos autobiográficos, que se misturavam a aspectos da vida privada brasileira, exigia
uma escrita literária para que o projeto se tornasse concreto, e tivesse a marca de um estilo,
mantendo a fidelidade a um ponto de vista pessoal, sem abdicar do rigor de suas pesquisas.
De fato, pode-se evocar o passado que se estuda tocando em nervos nas descrições de sua casa
paterna, onde residia um membro da elite pernambucana da virada do século XIX para o
século XX, com vínculos estreitos com o complexo Casa Grande & Senzala.
Através de seus antagonismos em equilíbrio, o sociólogo consegue chegar a uma
construção do tempo como intensidade, na medida em que estudar o passado significava
torná-lo vivo, impulsionando a compreensão do presente. Freyre rejeita qualquer concepção
racionalista, linear e progressiva do tempo e enfatiza a capacidade de algumas sociedades,
como a brasileira, de conviverem com tempos diferenciados, na medida em que as
experiências coletivas são constituídas pela densidade histórica dada pela multiplicidade de
tempos simultâneos, assim como pelo entrelaçamento e trocas entre culturas e etnias, e
processos de hibridação. Em seu método de análise, onde a distância entre intérprete e objeto
de estudo é diluída através da empatia, há, embutida, uma proposta de reorganização do saber
contra visões estreitas formuladas por superespecialistas, capaz de permitir abordagens
totalizadoras:
A tendência que se acentua, atualmente, é para a inter-relação entre saberes. Não para
um generalismo perigosamente vizinho do saber dos diletantes, mas para uma
dinâmica inter-relação de saberes especializados. Inter-relação de saberes, de
abordagem e de métodos, em face de problemas quer atuais, quer históricos, pré-
52
históricos. Inter-relação de saberes que é também reclamada pela tendência, entre
certos estudiosos do homem, de suas sociedades e de suas culturas, para estudos
socioculturais totais que sejam estudos futurológicos voltados para futuros
socioculturais possíveis ( FREYRE, 1993, p. 83 ).
Assim, as misturas de culturas, de raças, de sexos, de temporalidades, de
disciplinas são uma constante no pensamento de Gilberto Freyre, em cuja obra observa-se
uma espécie de encantamento por nossa singular capacidade de intensificar os processos de
troca e de tornar as tradições culturais permeáveis umas às outras. Sabe-se que uma das
grandes contribuições de Gilberto Freyre ao desenvolvimento das Ciências Sociais no Brasil
diz respeito às inovações metodológicas construídas e adotadas pelo autor, desde seu livro
clássico, em 1933, Casa Grande & Senzala. Assim, o antropólogo não só recorre à
pluralidade de métodos na análise e na interpretação do passado sociocultural - ancoradas
numa perspectiva antievolucionista e antipositivista e na recusa de um tempo cronológico e
linear - como concebe o tempo encravado na dimensão do vivido, na dimensão simultânea de
múltiplas temporalidades:
Tanto mais quanto, em estudos que assim se empreendam de futuros possíveis, à base
de conjunturas, está naquele presente visível que já é futuro e é ainda, no tempo social,
passado. Pois, para o analista de sociedades e de culturas, o tempo cronológico, com
suas datas fixas, é de pouco valor em comparação com o tempo social no qual os três
tempos convencionais tendem a confundir-se interpenetrando-se. E ser, assim tempo
tríbio. ( FREYRE, 1993, p. 97 ).
Como destaca Mariza Veloso ( VELOSO, 2003 ), as reflexões de Gilberto Freyre,
desenvolvidas ao longo do livro Além do Apenas Moderno
, apontam para uma questão
relevante nos tempos atuais: o perigo do presentismo - a ênfase excessiva atribuída ao
53
presente, que afasta a abordagem histórica dos fenômenos socioculturais, ignorando assim a
experiência do passado e as possibilidades de reinvenção do futuro. Nesta mesma linha de
reflexão, Gilberto Freyre defende uma orientação do cientista social moderno pautada por
uma imaginação sociológica capaz de abarcar o ilógico, o irracional e o contraditório.
54
1.3 – ANTAGONISMOS EM EQUILÍBRIO
1.3.1 - O CORPO INSCRITO
O foco na perspectiva do patriarcalismo – onde uma classe, um gênero e uma raça
detêm o poder - constitui aspecto central da abordagem freyreana, em Casa Grande &
Senzala. A imensa distância social existente entre o senhor e as outras figuras da hierarquia
social - a mulher, os filhos e os escravos - é destacada pelo autor com freqüência. Além da
referida distância social, a virilidade do português reiterada por Gilberto Freyre não seria
compartilhada, como foi visto, com os índios ou com os negros. Pode-se, portanto, concordar
com Helena Bocayuva, ao afirmar que, em Freyre, o homem branco é representante da
totalidade do gênero masculino, revestido de qualidades inerentes ao seu sexo e à sua raça,
enquanto a mulher, não importa de que raça ou etnia, teria doces disposições para a
passividade, o conformismo e o coletivismo, similares à população negra.
( BOCAYUVA, 2001,
p. 103 ).
Passividade que, aliás, lembra muito a do leitor ideal descrito por Freyre em seu diário
de adolescência:
Que os comentários do leitor não sejam sempre superiores ao texto, compreende-se:
tais leitores superiores aos autores de bons livros devem ser raros. Raríssimos. Mas
quando esses comentários são um enriquecimento às sugestões ou às provocações
vindas do autor até o leitor, parecem me realizar do modo pleno o destino de um bom
livro, que é sempre este: ser um sexo à procura do outro. Quase sempre, o sexo
masculino do autor à procura do sexo feminino, receptivo, do leitor sedentário, para
que há encontro, interpenetração, fecundação. ( FREYRE, 2006, p. 234 )
A representação do corpo tem lugar de destaque em sua argumentação sobre as
diferenças e relações de gênero, abordadas a partir de uma perspectiva que privilegia o
55
período patriarcal escravocrata e em que a exploração do corpo de sinhás, escravos e escravas
pelos senhores ganha, não por acaso, forte destaque. Mantendo uma argumentação pendular
entre os pressupostos da ordem da natureza e da cultura, Gilberto Freyre atribui as diferenças
mentais entre mulheres e homens ora a fatores biológicos, ora sociais. Assim, as grandes
diferenças de gênero são apontadas, muitas vezes, em sua narrativa, como conseqüências da
sociedade patriarcal.
A dicotomia entre o masculino e o feminino toma corpo através da escrita do
antropólogo, ou seja, transparece no aspecto formal de sua obra. Desse modo, a escrita
metafórica/ metonímica de Gilberto Freyre constitui um recurso de grande importância, que
reforça sua argumentação. Assim é que o senhor patriarcal é retratado pelo autor como o
membrum virile daquela sociedade e iaiá é basicamente útero, mãe de inúmeros filhos vivos e
mortos, velha muito antes dos 30 anos.
( FREYRE, 2000B, p. 429 ) O recurso auxilia em muito – e
constitui – sua argumentação, capaz de naturalizar as dicotomias determinadas por fatores
biológicos e sociais, sem chegar a questioná-las, o que seria possível apenas se o antropólogo
concentrasse sua análise nos aspectos econômicos. Assim, tanto em Casa Grande & Senzala
quanto em Sobrados & Mucambos esses recursos de escrita utilizados pelo mesmo autor que
ressalta o hibridismo, contraditoriamente limitam as descrições e a escrita aos aspectos
marcados pela dualidade, em que a harmonia só se realiza, de fato, entre contrastes.
Desse modo, dentro dessa restrição a que nos referimos, as figuras femininas que
exerceram o poder nas Casas-Grandes ou nos sobrados são vinculadas pelo sociólogo
pernambucano ao social, e não a fatores biológicos – e muito menos econômicos; e se Iaiá é
basicamente útero, por outro lado, comanda as inúmeras escravas na produção de bens. De
modo análogo, Freyre ressalta os fatores sociais, muitas vezes, como mais importantes que os
determinantes biológicos, tais como as diferenças entre o tamanho da massa cefálica de
56
mulheres e homens, que, segundo Freyre, não se traduziriam em inferioridade e superioridade.
Por outro lado, o antropólogo lamenta, por exemplo, que as novas intervenções femininas nas
áreas extradomésticas sejam graciosas, mas inócuas, reiterando, a seguir, a perda que
representa, para a esfera política ou do conhecimento, essa falta de mulher colaboradora com
seus pares do sexo masculino. Pondera, ainda, que as mulheres intelectualizadas eram pouco
numerosas e perdiam seus atributos femininos.
( FREYRE, 2000B, p. 114 ).
De acordo com o que foi exposto, pode-se ressaltar que sua análise permanece restrita
e cirucular, reduzida e limitada aos fatores sociais, sempre compensando os biológicos,
enquanto os fatores econômicos não são aprofundados. Em um trecho de seu diário de
adolescência, Freyre revela:
Daí me encantarem tanto como a de L.L. e a de L.S.L. que são vozes de brasileiras do
Norte que não falam gritando. Ao contrário: falam como se de certo modo cantassem.
É como devem falar as mulheres. Devem falar como se cantassem e andar como se
de certo modo – um modo doce e discreto, é claro – dançassem. Isso de falar, falando,
de andar, andando – simplesmente falando e andando - é para os homens e não para
as mulheres.
( FREYRE, 2006, p. 256 )
Percebe-se que a diferenciação exagerada entre os gêneros é naturalizada pelo autor,
assim como o sistema escravocrata. Desse modo, o antropólogo retrata o duplo padrão de
moralidade que concede ao homem da elite amplos direitos no mundo público e à mulher a
quase reclusão no mundo privado. Ao mesmo tempo, os recursos citados acima permitem um
trânsito de pesquisa vasto e abrangente que perpassa as dicotomias público/ privado,
masculino/feminino, mas que não chega a abarcar seus meandros. Assim, ao reduzir o foco
metodológico, propondo uma inquirição sobre o universo patriarcal a partir da Casa Grande e
de sua decadência, Freyre pode ampliar o foco de seu retrato do aspecto privado da história,
57
capaz de abarcar suas resistências: apenas as silenciosas, doces e discretas; o canto, a cozinha.
A dança.
De fato, mulheres brancas e negras são objeto de grande atenção na análise de Freyre,
já que, assim como os negros, possibilitam uma análise sobre aquela tensão que perpassa a
obra do escritor e através da qual oscila: a que se trava entre os fatores biológicos e as causas
sociais. O Mestre de Apipucos tematiza, por exemplo, a idade, no tocante ao casamento, ao
corpo, à dieta. Passados os 15, as mulheres eram consideradas solteironas, e sem a proteção
do marido, eram pouco mais que escravas. O antropólogo mostra como o maior temor das
iaiás não seria engordar, mas serem equiparadas às escravas, em seus atributos masculinos,
sua força e robustez de macho, atributos destinados aos escravos, constituindo, por isso,
ameaças de gênero e de classe
. ( FREYRE, 2000B, p. 116 ) De fato, negros e negras teriam os pés
grandes e largos - atributos masculinos ressaltados pelo autor - bem diversos dos
aristocráticos pés pequenos e finos e associados a predicados femininos, remetendo à retórica
que às vezes qualifica os homens da aristocracia do séc. XIX como menos sexo forte que sexo
nobre.
( FREYRE, 2000B, p. 101 )
E se o maior temor das iaiás era o de serem equiparadas, em seus atributos físicos, às
escravas, em Casa Grande & Senzala e em Sobrados & Mucambos, as culturas subordinadas
adquirem, como foi visto, predicados femininos, como se o autor considerasse a relação entre
uma cultura dominante e a inferior uma metáfora da relação entre homem e mulher:
À figura boa da ama negra que, nos tempos patriarcais, criava o menino lhe dando de
mamar, que lhe embalava a rede ou o berço, que lhe ensinava as primeiras palavras de
português errado, o primeiro ´padre-nosso`, a primeira ´ave-maria`, o primeiro ´vote!`
ou ´oxente`, que lhe dava na boca o primeiro pirão com carne e ´molho ferrugem`, ela
própria amolengando a comida – outros vultos de negros se sucediam na vida do
58
brasileiro de outrora. O vulto do muleque companheiro de brinquedo. O do negro
velho contador de histórias. O da mucama. O da cozinheira. Toda uma série de
contatos diversos importando em novas relações com o meio, com a vida, com o
mundo. Importando experiências que se realizavam através do escravo ou à sombra de
guia, de cúmplice, de curandeiro ou de corruptor. (FREYRE, 2000A, p. 535-536)
O Brasil não se limitou a recolher da África a lama de gente preta que lhe fecundou os
canaviais e os cafezais; que lhe amaciou a terra seca; que lhe completou a riqueza das
manchas de massapé. Vieram-lhe da África ‘donas de casa’ para seu colonos sem
mulher branca; técnico para as minas; artífices em ferro; negros entendidos na criação
de gado e na indústria pastoril; comerciantes de panos e de sabão; mestres, sacerdotes
e tiradores de reza maometanos (FREYRE, 2000A, p. 487)
Se a ênfase nos aspectos sociais parece muitas vezes sobrepujar as biológicas, o
argumento do aluno de Franz Boas sobre a impossibilidade de desvincular o corpo das
questões sociais retorna, de forma recorrente. Desse modo, fatores sociais operam quase que
similarmente com a categoria raça, em um país moldado pela escravidão. Essa similitude é
amplamente explorada pelo antropólogo, tanto no que concerne a negros, quanto a mulheres,
e é expressa, em sua escrita, através da utilização de elementos literários, como a metáfora e a
metonímia:
Se há hábito que faça o monge é o do escravo; e o africano foi muitas vezes obrigado a
despir sua camisola de malê, para vir de tanga, nos negreiros imundos, da África para
o Brasil. (FREYRE, 2000A)
Assim é que, em sua reflexão sobre a população negra, Gilberto Freyre destaca as
condições que lhe foram impostas pela escravatura e a conseqüente alienação de seus corpos,
fortemente explorada na escrita do autor e marcada por metonímias e metáforas, como
aquelas que definem os escravos como os pés e as mãos dos senhores. O recurso limita o
59
autor em uma descrição/ retrato dos contrastes e a violência do sistema escravocrata, como se
buscasse repetir o processo de naturalização da escravidão, na escrita. Permite, portanto, que
o autor permaneça em um lugar que – paradoxalmente – não pode ser considerado híbrido,
mas capaz de funcionar muito bem em relação a sua ânsia de síntese e representação do
Brasil:
Escravos que se tornaram os pés e as mãos dos senhores: andando por eles,
carregando-os de rede ou de palenquim. E as mãos – ou pelo menos as mãos direitas;
as dos senhores se vestirem, calçarem, se abotoarem, se limparem, se catarem, se
lavarem, tirarem os bichos dos pés. (FREYRE, 2000A, p. 429)
Os escravos vindos das áreas de cultura negra mais adiantada foram um elemento
ativo, criador, e quase que se pode acrescentar nobre na colonização do Brasil;
degradados apenas pela sua condição de escravos. Longe de terem sido apenas animais
de tração e operários de enxada, a serviço da agricultura, desempenharam papel de
função civilizadora. Foram a mão direita na formação agrária brasileira; os índios, e
sob certo ponto de vista, os portugueses, a mão esquerda. (FREYRE, 2000A, p. 429)
Desse modo, Gilberto Freyre associa diretamente a virilidade ao poder social dos
brancos, enquanto que, ao mulato, são reservadas qualidades femininas. Vale lembrar que é a
restrição ao universo doméstico da escravidão e o foco da narrativa a partir da Casa Grande/
Senhor branco que possibilita esse tipo de associação por parte do autor: Freyre não aborda
com profundidade as resistências/ enfrentamentos diretos dos escravos, como rebeliões
organizadas, guerras ou formações de quilombos. Desta forma, ao longo de Casa Grande &
Senzala e Sobrados e Mucambos, homens negros e mulheres brancas recebem os mesmos
predicados, opostos aos atribuídos aos homens brancos. Assim, mantendo a oscilação binária
já ressaltada, em muitos momentos, Gilberto Freyre se utiliza desta equiparação entre
60
mulheres e negros para questionar as atribuições sociais ou biológicas de ambos, sem levar
em conta as econômicas, como foi visto:
O conjunto de qualidades exclusivamente doces e graciosas que se supunha resultar do
( ... ) sexo era como o conjunto de qualidades passivas e dos traços inferiores dos
negros, que se atribuíam ( ... ) à base física ou biológica de raça. (FREYRE, 2000B, p.
96)
Pode-se perceber, a partir dos trechos acima, que a tensão base que perpassa os
recursos literários explorados por Gilberto Freyre é aquela estabelecida entre os fatores
biológicos e as causas sociais. O último trecho destacado acima ilustra particularmente bem a
citada tensão. Ao vincular atributos geralmente associados a mulheres - como docilidade e
graciosidade - aos negros, o autor parece puxar um mesmo tapete por que passavam mulheres
brancas da Casa Grande e negros da Senzala. Há, portanto, um questionamento sobre as
tensões entre fatores biológicos e sociais relativos a mulheres, tão forte ou maior do que
aquelas relacionadas ao escravo negro. Em ambos, a tensão entre o biológico e o social, que,
em seu limite, se aproxima – e apenas se aproxima - do econômico, é expressa através de
metáforas, que permitem ao autor, justamente, a brincadeira e a mistura dos atributos de
negros e mulheres. Essa mistura auxilia o autor a manter a dicotomia feminino/ mulher
branca/ homem e mulher negros versus homem branco.
Da fato, as marcas dadas pela origem de classe e os fatores econômicos aparecem, aqui e
ali, em Casa Grande & Senzala, tão naturalizadas – cabe aqui ressaltar – como a escravidão
retratada pelo autor:
61
Exprimiu-se nessas relações o espírito do sistema econômico que nos dividiu, como
um deus poderoso, em senhores e escravos. Dele se deriva toda a exagerada tendência
para o sadismo característico do brasileiro, nascido e criado em casa-grande,
principalmente em engenho. (FREYRE, 2000A)
A partir do trecho destacado acima, parece claro que a aproximação do texto de Freyre
ao materialismo histórico de Marx e Engels é bem mais problemática do que aquela – de fato
existente – relativa ao materialismo do grupo dos Annales. No trecho, o aspecto econômico é
metaforicamente explorado através da figura de linguagem denominada comparação: é assim
que o autor aproxima as ‘causas econômicas’ a um poderoso Deus, que teria gerado a divisão
entre senhores e escravos e que não chega a constituir, em Casa Grande & Senzala uma
divisão de classes no sentido marxista. A imagem final é a da naturalização das divisões.
É sabido que o autor, avesso a ortodoxias, não só não era marxista como imprimira
mesmo ao seu trabalho uma orientação filosófica fundamentalmente anti-marxista. Dentro das
questões aqui levantadas, caberia ressaltar que o antimarxismo de Freyre também não é
ortodoxo: ele admite e concede que o materialismo histórico pode ser utilizado com proveito
na análise e na interpretação do fato social. Sua opinião a este respeito está assim expressa no
Prefácio de Casa Grande & Senzala:
Por menos inclinados que sejamos ao materialismo histórico, tantas vezes exagerado
nas suas generalizações – principalmente em trabalhos de sectários e fanáticos [...]
temos que admitir influência considerável, embora nem sempre preponderante, da
técnica de produção econômica sobre a estrutura das sociedades; na caracterização da
sua fisionomia moral. É uma influência sujeita à reação de outras; porém poderosa
como nenhuma na capacidade de aristocratizar ou de democratizar as sociedades; de
62
desenvolver tendências para a poligamia ou a monogamia; para a estratificação ou a
mobilidade (FREYRE, 2000A, p. 18)
Em outros momentos, ao longo das páginas de Casa Grande & Senzala, é possível
perceber passagens em que o autor é levado a aplicar, de maneira implícita ou incompleta,
critérios que parecem conceder algum espaço a possíveis fatores sócio-econômicos. Entre as
teses mais vigorosamente sustentadas nas páginas do livro está a de que as influências
deletérias do negro no processo de formação da sociedade brasileira foram devidas a causas
de ordem social e não de ordem étnica. O negro em sua condição de escravo – eis a raiz de
tudo:
Sempre que consideramos a influência do negro sobre a vida íntima do brasileiro, é a
ação do escravo e não a do negro per si, que apreciamos. Parece às vezes influência de
raça o que é influência pura e simples do escravo, do sistema social da escravidão. Da
capacidade imensa desse sistema para rebaixar moralmente senhores e escravos. O
negro aparece no Brasil, através de toda nossa vida colonial, deformado pela
escravidão. Pela escravidão e pela monocultura de que foi o instrumento. (FREYRE,
2000A, p. 500-501)
É esse negro deformado pela escravidão, desapropriado de seu próprio corpo, que
Gilberto Freyre busca retratar. O recurso permite ao autor descrever a deformação do sistema,
em que os negros são reduzidos a meros instrumentos: braços e pernas do sistema. Ao mesmo
tempo, a escrita que molda as idéias do autor não é relegada a uma função instrumental, de
mero veículo de idéias: a própria forma como o autor escreve, inscreve suas idéias. Em sua
obra – e dentro de seu projeto de efetuar um retrato do Brasil escravocrata - parece haver um
esforço de aproximação entre forma e conteúdo. O autor privilegia um enfoque – a partir da
63
Casa Grande - em que a deformação acaba por tornar-se muito mais presente, já que o
conteúdo escolhido não inclui as revoltas ou rebeliões.
Dentro da complexidade que a abordagem escolhida pelo autor permite captar, ganha
relevo a relação entre sinhás e mucamas. Essa relação é explorada pelo antropólogo em suas
diversas matizes, como, por exemplo, em seus componentes sádicos, cuja origem o autor
atribui aos condicionamentos sociais. O isolamento das meninas de engenho confinadas à
esfera privada e sua conseqüente fixidez na rígida estrutura modelada pela escravidão e pelo
patriarcalismo marcaria essas relações. Assim é que a submissão e opressão vividas pelas
sinhás em relação ao marido e senhor seriam reproduzidas pelas mulheres brancas em suas
relações com as mucamas de forma ainda mais cruel do que aquela estabelecida entre
senhores e escravos. Como o corpo dos escravos, o corpo da iaiá branca é posse do senhor, e
o corpo das mucamas, posse de suas senhoras:
Sobre a criança do sexo feminino, principalmente se aguçava o sadismo pela maior
fixidez e monotonia nas relações da senhora com a escrava ( ... ). Sem contatos com o
mundo que modificassem nelas como nos rapazes o senso pervertido de relações
humanas; sem outra perspectiva que a da senzala vista da varanda da casa-grande;
conservaram as senhoras o mesmo domínio malvado sobre as mucamas que na
infância sobre as negrinhas suas companheiras de brinquedo. (FREYRE, 2000A,
p.338)
Sinhás-moças que mandavam arrancar os olhos de mucama bonita e trazê-los à
presença do marido à hora da sobremesa dentro da compoteira de doce e boiando em
sangue ainda fresco. (FREYRE, 2000A, p. 337)
Coerente com sua proposta em abarcar apenas as resistências silenciosas, o
antropólogo destaca, em sua análise da sociedade brasileira marcada pelo romantismo, o
quanto a literatura oral amaciava essas relações. Assim, o analfabetismo das mulheres de elite
64
era suprido pelas tagarelices, lendas e histórias da mitologia africana – que se misturavam aos
contos portugueses – contadas pela mucama:
Histórias de casamento, de namoros, ou outras, menos românticas, mas igualmente
sedutoras, eram as mucamas que contavam às sinhazinhas nos doces vagares dos dias
de calor, a menina sentada, a mourisca, na esteira de pipiri, cosendo ou fazendo renda
ou então deitada na rede, os cabelos soltos, a negra catando-lhe piolho, dando-lhe
cafuné; ou enxotando-lhe as moscas do rosto com um abano. Supria-se assim para
uma aristocracia quase analfabeta a falta de leitura ( FREYRE, 2000A)
Vale aqui, portanto, reforçar a análise de Helena Bocayuva, que destaca o fato de o
autor postular que a prática social modula as vozes de senhores e escravos, traduzindo suas
relações sociais para metáforas de gênero, explicitadas nas oposições alto/brando, duro/macio,
acre/doce
(BOCAYUVA, 2001, p. 110):
O mando desenvolve nos senhores vozes altas e nos servos falas brandas e até macias,
quase sempre acompanhadas de sorrisos também doces (FREYRE, 2000A, p. 601)
Como descreve o autor, a própria língua portuguesa é feminizada em contato com a cultura
africana:
E não só na linguagem infantil se abrandou desse jeito mas a linguagem em geral ( ... )
no Brasil, ao contato do senhor com o escravo, um amolecimento de resultados às vezes
delicioso para o ouvido (FREYRE, 2000A, p. 332)
Algumas palavras, ainda hoje duras ou acres quando pronunciadas pelos portugueses, se
amaciaram no Brasil por influência da boca africana. Da boca africana aliada ao clima –
outro corruptor das línguas européias, a fervura por que passaram na América tropical e
subtropical. ( ... ) A ama negra fez muitas vezes com as palavras o mesmo que com a
comida: machucou-as, tirou-lhes as espinhas, os ossos, as durezas, só deixando para a
boca do menino branco as sílabas moles. (FREYRE, 2000A, p. 331)
65
Em Freyre, a ama africana cuida da palavra como cuida da comida, e é a responsável
pela musicalidade da língua falada no Brasil, o que remete ao papel de estabilizadora de
valores, reiterando o argumento do autor de que as disposições para sentimentos
cooperativistas e de solidariedade caracterizam os negros e as mulheres.
(FREYRE, 2000A, p. 41)
Para o sociólogo, as índias, negras, mulatas e mouras seriam, do ponto de vista dos
portugueses, mais atraentes sexualmente que as brancas. Quando se entra nesse campo da
argumentação, percebe-se a importância da construção metafórica do escritor. Por conta de
determinações sociais, negras e mulatas serviram de escudo para a virtude das brancas:
Foram os corpos das negras – às vezes meninas de dez anos – que constituíram, na
arquitetura moral do patriarcalismo brasileiro, o bloco formidável que defendeu dos
ataques e afoitezas dos don juans a virtude das senhoras brancas. ( … ) manteve-se à
custa da prostituição da tão caluniada mulata ( … ). (FREYRE, 2000A, p. 450)
Às morenas – descritas pelo autor como atoleiros de carne – estaria reservado o amor
físico, além de metáforas específicas:
O europeu saltava em terra escorregando em índia nua, os padres da companhia
precisavam descer com cuidado senão atolavam o pé em carne (FREYRE, 2000A, p.
93)
As primeiras vítimas eram os muleques e animais domésticos; mais tarde é que vinha
o grande atoleiro de carne: a negra ou a mulata (FREYRE, 2000A, p. 371)
As mulatas, porque exóticas, despertariam nos homens da elite branca os desejos de
transgressões sexuais, e são destacadas pelo sociólogo como sexualmente vorazes, o que se
expressaria por condições biológicas: sua aparência de ardência sexual fora do comum. O
66
sexo da mulata, mais adstringente que o das brancas, ganha, na escrita do sociólogo
pernambucano, o mesmo predicado que o mandacaru. Assim, seria procurada pelos que
desejam colher do amor físico os extremos do gozo e não apenas o comum.
(FREYRE, 2000A, p.
602)
Leyla Perrone-Moisés nos lembra que numerosos estudos sobre o nacionalismo
demonstram que a nação é um conjunto de imagens, e que ela se constitui graças a metáforas.
Algumas metáforas utilizadas nos discursos identitários da América Latina nos permitem
captar as dificuldades da constituição de sua auto-imagem, e verificar que essa imagem
depende sempre do outro europeu, quer seja para imitá-lo, quer para rejeitá-lo. Assim que os
latino-americanos começaram a refletir sobre sua identidade, as metáforas criadas foram
conflituosas, tomando a forma de oposições que mostram, claramente, o reconhecimento da
inferioridade e dependência com relação à Europa
. ( PERRONE-MOISES, 1997 )
Assim, Freyre, em sua argumentação, dialoga com afirmações sustentadas por grande
parte dos pensadores do século XIX, sobre um suposto instinto sexual poderoso e desenfreado
do lado de baixo do Equador. Pode-se afirmar que a oscilação entre natureza e cultura
característica na escrita do sociólogo e o uso de metáforas mantêm seu texto – que permanece
na esfera ensaística - não tão distante assim da postura essencialista da época, que costuma
atribuir à categoria raça caracteres de volúpia sexual. Nem tão distante assim, na medida em
que o excesso sexual é atributo, em Freyre, principalmente, dos colonizadores portugueses e
das mulheres morenas.
De fato, não há, em Casa Grande & Senzala e em Sobrados & Mucambos menção ao
desejo sexual de mulheres brancas no interior desses casamentos. Quando este surge, em
Sobrados & Mucambos - como, por exemplo, nos relatos que descrevem como as moças de
sobrado se deixavam raptar pelos namorados - será, naturalmente, para desestabilizar aquela
67
sociedade patriarcal apoiada em um escudo de lama. ( FREYRE, 2000A: 129 ). De forma análoga,
o autor não aprofunda sua análise em direção aos fatores econômicos que sustentam essa
sociedade.
68
1.3.2 - O CORPO VELADO
Ao dialogar com afirmações sustentadas por grande parte dos pensadores do século
XIX, a oscilação entre natureza e cultura característica na escrita do sociólogo e o uso de
metáforas que ajudam a constituir um texto marcado pelo tom ensaístico impossibilitam um
distanciamento efetivo da postura essencialista de atribuir à categoria raça caracteres de
volúpia sexual. A representação do corpo tem lugar de destaque em sua argumentação sobre
as diferenças e relações de gênero, abordadas a partir de uma perspectiva que privilegia o
período patriarcal escravocrata, em que a exploração do corpo de sinhás, escravos e escravas
pelos senhores ganha, não por acaso, forte destaque.
Mantendo a citada argumentação pendular entre os pressupostos da ordem da natureza
e os da cultura, Gilberto Freyre atribui as diferenças mentais entre mulheres e homens ora a
fatores biológicos, ora sociais. Assim, as grandes diferenças de gênero são apontadas, muitas
vezes, em sua narrativa, como conseqüências da sociedade patriarcal. Assim é que o autor
aborda a diferenciação exagerada entre os gêneros, retratando o duplo padrão de moralidade
que concede ao homem da elite amplos direitos no mundo público e à mulher a quase reclusão
no mundo privado.
A mais freqüente crítica que Casa Grande & Senzala costuma receber se refere ao fato
de que, no mesmo movimento em que teria afastado o racismo e admitido a relevância de
outras culturas, Freyre teria criado uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial.
Como foi visto, para Silviano Santiago, a visão reducionista estaria correta quando percebe o
grande perigo de se incorporar à modernidade as atrocidades cometidas pela tradição colonial
e escravocrata brasileira e a visão reducionista, por outro lado, estaria incorreta ao reafirmar o
69
centramento da verdade histórica na razão européia. Na análise do passado colonial brasileiro,
se misturariam, portanto, duas questões: a multiplicidade racial de que é composto e a
conseqüente possibilidade de interação de grupos étnicos diferentes, e a instituição da
escravidão, atraso e violência, tornando sub-humanos os membros dos grupos étnicos
diferentes do grupo étnico europeu.
( SANTIAGO, 1991 ).
Gilberto Freyre, ao mesmo tempo que reafirma o centramento da verdade na razão
européia, ao hierarquizar negros, índios e europeus, é ainda capaz de incorporar à
modernidade ( parte d)as atrocidades cometidas pela tradição colonial e escravocrata
brasileira, naturalizando-as.
Como nos lembra, ainda, Leyla Perrone-Moyses, se nossa história política e
econômica pode ser contada de modo linear e nossa história cultural e literária acomoda-se
mal à simples diacronia, os melhores autores latino-americanos sempre foram, ao mesmo
tempo, depositários das velhas formas européias e exploradores ousados do possível futuro
das mesmas. Freyre, ao mesmo tempo que exclui a análise econômica linear de nossa história,
consegue hierarquizar nossar história cultural, centralizando-a, na medida em que é narrada a
partir da Casa Grande.
Assim é que pode-se concordar com Benzaquen quando este afirma que, da mesma
maneira que encontramos no livro um vigoroso elogio da confraternização entre negros e
brancos, numerosas passagens tornam explícito o gigantesco grau de violência do sistema
escravocrata. De acordo com Benzaquen, a violência e a proximidade sexual, o despotismo e
a confraternização familiar convivem lado a lado, em um amálgama tenso, mas equilibrado.
Muito presente na argumentação de Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, a expressão
antagonismos em equilíbrio envia-nos para uma situação na qual as divergências
estabelecidas no interior da casa-grande aproximam-se sensivelmente, mas não chegam a se
70
dissolver, conformando portanto uma visão altamente sincrética do todo. (ARAÚJO, 1994, p, 44-
59).
As afirmações do teórico Homi K. Bhabha também parecem ir ao encontro de
questões aqui levantadas, quando este afirma que o hibridismo não é um terceiro termo que
resolve a tensão entre duas culturas, em um jogo dialético de reconhecimento, mas uma
problemática de representação e de individuação colonial que reverte os efeitos da recusa
colonialista. Permite, assim, que outros saberes negados se infiltrem no discurso dominante e
tornem estranha a base de sua autoridade – suas regras de reconhecimento.
(BHABHA, 1998:
165)
Como foi visto, há, na obra de Freyre – destacando-se, no momento, Casa Grande &
Senzala e Sobrados & Mucambos – uma hierarquia que ordena gêneros e culturas, através de
classificações e atributos relacionados a aspectos sexuais, raciais e sociais. Nessa hierarquia,
os mulatos equilibram antagonismos, na medida em que são feminizados. Os trechos a seguir
revelam muito da violência sobre a qual Ricardo Benzaquen refere-se acima – violência que
perpassa o próprio texto de Freyre, ao narrar a escravidão doméstica a partir da perspectiva do
senhor e da Casa Grande:
A denguice do mulato, é certo que vai às vezes ao extremo da molície – certas ternuras
de moça, certos modos doces, gestos quase de mulher agradando homem, em torno do
branco socialmente dominante. Alguma coisa do adolescente diante do homem sexual
e socialmente maduro, o homem completo e triunfante que ele, adolescente, no íntimo
que exceder; que imita, exagerando-lhe os característicos de adulto – a voz grossa, a
força, a superioridade intelectual e física; e junto a quem se extrema em agrados e
festas, em desejos de intimidade. Socialmente incompleto, o mulato procura
completar-se por esse esforço doce, oleoso, um tanto feminino. (FREYRE, 2000B, p.
647)
71
Como bem aponta Helena Bocayuva, o mulato, para Gilberto Freyre, é socialmente
incompleto por ser socialmente híbrido - posto que produto da mistura de branco com preto –
e socialmente incompleto como uma mulher, pois falta-lhe o poder. Na busca pelo interesse
social de integração - com o masculino, com o poder - o mulato adquire todo um maneirismo
feminino. Assim, feminizar-se seria, para o autor, uma estratégia do oprimido, do escravo que
usa armas femininas, veladas, sinuosas, evitando o enfrentamento direto
(BOCAYUVA, 2001, p.
108-109).
O trecho destacado a seguir é ilustrativo dos dois modos de expressão pelos quais
Gilberto Freyre transita através de uma argumentação e um modo de escrita que privilegia a
dualidade em detrimento da ambigüidade. Por um lado, o modo de súplica e intimidade,
associado à vida privada, à mulher, ao escravo, ao filho e à mucama; aos aspectos biológicos:
e à fala brasileira. Por outro lado, o modo de mando ou cerimônia, associado ao pai; à língua
portuguesa, ao poder público, oficial e sócio-econômico. De acordo com Freyre, não há por
que reduzir dois sentimentos diversos numa só expressão, mas equilibrar antagonismos, de
modo que as divergências estabelecidas no interior da casa-grande aproximam-se
sensivelmente, mas não chegam a se dissolver, lembrando, mais uma vez, a violência referida
por Benzaquen:
O português do Brasil, ligando as casas-grandes às senzalas, os escravos aos senhores,
as mucamas aos sinhô-moços, enriqueceu-se de uma variedade de antagonismos que
falta ao português da Europa. Um exemplo, e dois mais expressivos, que nos ocorre, é
o caso dos pronomes. Temos no Brasil dois modos de colocar pronomes, enquanto o
português só admite um – o ´modo duro e imperativo`: diga-me, faça-me, espere-me.
Sem desprezarmos o modo português, criamos um novo, inteiramente nosso,
caracteristicamente brasileiro: me diga, me faça, me espere. Modo bom, doce, de
pedido. E servimo-nos dos dois. Ora, esses dois modos antagônicos de expressão,
conforme necessidade de mando ou cerimônia, por um lado, e de intimidade ou de
72
súplica, por outro, parecem-nos típicos das relações psicológicas que se
desenvolveram através da nossa formação patriarcal entre os senhores e os escravos;
entre as sinhá-moças e as mucamas; entre os brancos e os pretos. ´Faça-se`, é o senhor
falando; o pai; o patriarca; ´me dê` é o escravo, a mulher, o filho, a mucama.
(FREYRE, 2000A, p. 534)
Que interesse temos, pois, em reduzir duas fórmulas a uma única e em
comprimir dois sentimentos diversos numa só expressão? Interesse nenhum. A força
ou antes a potencialidade da cultura brasileira parece-nos residir toda na riqueza dos
antagonismos equilibrados; o caso dos pronomes que sirva de exemplo. Seguirmos só
o chamado ´uso português`, considerando ilegítimo o ´uso brasileiro`, seria absurdo.
Seria sufocarrmos, ou pelo menos abafarmos metade de nossa vida emotiva (...) Seria
ficarmos com um lado morto; exprimindo só metade de nós mesmos. Não que no
brasileiro subsistam, como no anglo-americano, duas metades inimigas: a branca e a
preta; o ex-senhor e os ex-escravo. De modo nenhum. Somos duas metades
confraternizantes que se vêem mutuamente enriquecendo de valores e experiências
diversas; quando nos completarmos num todo, não será com o sacrifício de um
elemento ao outro. Lars Ringbom vê grandes possibilidades de desenvolvimento na
cultura do mestiço: mas atingido o ponto em que uma metade de sua personalidade
não procure suprimir a outra. O Brasil pode-se dizer que já atingiu esse ponto: o fato
de já dizermos ´me diga`, e não apenas ´diga-me`, é dos mais significativos. Como é o
de empregarmos palavras africanas com a naturalidade com que empregamos as
portuguesas. Sem aspas nem grifo. (FREYRE, 2000A)
E se o mulato, em sua hierarquia que ordena gêneros e culturas, antagoniza
equilíbrios, à cultura indígena da Colônia será atribuído um lugar ainda menos “cômodo:
Entre culturas de interesses e tendências tão antagônicas era natural que o contato se
verificasse com desvantagem para ambas. Apenas um conjunto especialíssimo de
circunstâncias impediu, no caso do Brasil, que europeus e indígenas se extremassem
como inimigos de morte, antes se aproximassem como marido e mulher, como mestre
e discípulo, daí resultando uma degradação da cultura por processos mais sutis e em
ritmos mais lentos do que noutras partes do continente (FREYRE, 2000A, p. 159)
73
Assim, na hierarquia, pode-se dizer, evolucionista, estabelecida por Freyre, a cultura
européia é marido e mestre da cultura indígena, que, em sua época, associava-se diretamente a
questões agrárias, e, em sua obra, é ofuscada pelos atributos doces e oleosos da cultura negra:
No caso dos negros, comparados com os indígenas do Brasil, pode-se talvez atribuir
parte de sua superioridade de eficiência econômica e eugênica ao regime alimentar
mais equilibrado e rico que o dos outros, povos ainda nômades, sem agricultura
regular nem criação de gado. (...) Uma vez no Brasil, os negros tornaram-se, em certo
sentido, verdadeiros donos de terra: dominaram a cozinha. Conservaram em grande
parte a sua dieta. (FREYRE, 2000A)
Stuart Hall, ao retratar a experiência diaspórica, lembra que essas sociedades são
compostas não de um, mas de muitos povos cujas origens não são únicas, mas diversas. E se a
terra não pode ser sagrada, pois foi violada e todos que estão aqui pertenciam originalmente a
outro lugar, se nossa relação com essa história está marcada por violentas rupturas, as rotas de
nossos povos, traçadas a partir dos quatro cantos do globo são tudo, menos puras. Assim é
que esse resultado híbrido não pode mais ser facilmente desagregado em seus elementos
autênticos de origem. Para o autor, os momentos de independência e pós-colonial, nos quais
essas histórias imperiais continuam a ser vivamente retrabalhadas, são necessariamente,
portanto, momentos de luta cultural, de revisão e reapropriação. Contudo, essa reconfiguração
não pode ser representada como uma volta ao lugar onde estávamos antes.
Pode-se, portanto, concordar com o autor, quando afirma que o que esses exemplos
sugerem é que a cultura não é apenas uma viagem de redescoberta, uma viagem de retorno ou
uma arqueologia, mas uma produção. Portanto, não é uma questão do que as tradições fazem
de nós, mas daquilo que nós fazemos das nossas tradições, o que nos leva a estar sempre em
74
processo de formação cultural. E se a cultura não é uma questão de ontologia, de ser, mas de
se tornar, é necessário desconstruir o popular e a visão ingênua do que ele consiste.
De acordo com o autor a cultura popular negra é, por definição, um espaço
contraditório e um local de contestação estratégica. Mas ela nunca pode ser simplificada ou
explicada nos termos das simples oposições binárias habitualmente usadas para mapeá-la.
Assim, para o autor, na cultura popular negra, em termos etnográficos, não existiriam formas
puras. Todas essas formas são sempre produto de sincronizações parciais, de engajamentos
que atravessam fronteiras culturais, de confluências de mais de uma tradição cultural, de
negociações entre posições dominantes e subalternas, de estratégias subterrâneas de
recodificação e transcodificação, de significação crítica e do ato de significar a partir de
materiais preexistentes. Essas formas são sempre impuras, até certo ponto hibridizadas a partir
de uma base vernácula:
Esse momento essencializa as diferenças e é incapaz de compreender as estratégias
dialógicas e as formas híbridas essenciais à estética diaspórica. Um movimento para
além desse essencialismo não se constitui em estratégia crítica ou estética sem uma
política cultural, sem uma marcação da diferença. O que esse movimento burla é a
essencialização da diferença dentro das duas oposições mútuas ou/ou. O que ele faz é
deslocar-nos para um novo tipo de posição cultural. O propósito de luta deve ser
substituir o ou pela potencialidade e pela possibilidade de um e , o que significa a
lógica do acoplamento, em lugar da lógica da oposição binária. ( HALL, 2003 )
A proposta de Gilberto Freyre parece muito próxima a essa lógica do acoplamento
sugerida por Stuart Hall – ainda que esta tenha sido pensada para o caso da diáspora, que não
seria o brasileiro. Assim, como foi visto, as contradições da cultura brasileira em Freyre são
menos sublimadas ou idealizadas, do que exploradas em seus delicados matizes e difíceis
75
conciliações através dos conceitos de mestiçagem, hibridismo e dos antagonismos em
equilíbrio: nem branco ou preto, nem primitivismo ou futurismo, nem tupy or not tupy. Idéia
claramente explicitada pela conjunção aditiva que intitula alguns livros de sua obra – Casa
Grande & Senzala, Sobrados & Mucambos, Como e porque sou & não sou sociólogo, Ordem
& Progresso, Tempos mortos & outros tempos, Perfil de Euclides & outros perfis, Vida forma
& cor, Homens, Guia prático histórico & sentimental da cidade do Recife, etc.
Além disso, afirma Stuart Hall que a experiência negra é vivida dentro de políticas de
representação, e não fora delas, e que a cultura popular é uma arena profundamente mítica,
onde descobrimos e brincamos com as identificações de nós mesmos, onde somos imaginados
e representados, e é justamente por isso que é impossível reduzir o terreno do popular a
binarismos simples. Essa visão da cultura popular também parece não escapar ao olhar de
Gilberto Freyre, principalmente quando joga com elementos autobiográficos e usa e abusa de
sua abordagem empática, ambas estritamente ligadas a sua escrita marcada por recursos
estilísticos, dentre os quais, a metáfora é um dos principais, assim como a metonímia. Esse
procedimento por parte do antropólogo evita uma abordagem capaz de cristalizar a chamada
cultura popular fora das políticas de representação, conservando-a em uma redoma de pureza
mantida fora da vida, em uma história tradicionalista e ingênua, sem nenhuma relação com o
presente. Pelo contrário, a abordagem de Gilberto Freyre potencializa a cultura como
produção e não como arqueologia, e busca uma relação com o leitor – construída através de
sua escrita – capaz de estimulá-lo a uma leitura ativa, sincronizada com seu tempo e aberta ao
devir: assim como aquela estabelecida em sua leitura do passado colonial.
É sabido que a literatura teve um papel efetivo na constituição de uma consciência
nacional e, assim, na construção das próprias nações latino-americanas. Em Paradoxos do
nacionalismo literário na América Latina, Leyla Perrone-Moyses lembra que as literaturas
76
latino-americanas se distinguem das outras literaturas coloniais e pós-coloniais, na medida em
que a identidade desses países se constituiu não como a recuperação de uma identidade
originária, ou um enfrentamento em relação às metrópoles, mas como uma diferença no seio
da identidade: uma relação filial, que faz com que estas culturas mantenham uma ligação
indissolúvel com as metropolitanas. De acordo com a autora, se em muitas regiões nada
restou das culturas primitivas, e o pouco que restou foi abafado, os primeiros latino-
americanos que refletiram sobre sua identidade se encontraram numa indeterminação
constitucional, marcada pela necessidade de se desenvolver à imagem e semelhança do outro,
num lugar desprovido do passado do outro e despojado do seu próprio passado.
Como bem aponta Perrone, se as reivindicações nacionalistas nascem e vivem da
rejeição de um outro opressivo, um invasor, um colonizador, um explorador, na América
Latina, o outro, do qual desejaríamos nos libertar, estava em nós mesmos e parece impossível
querer eliminar um inimigo que, do ponto de vista da história cultural, é constitutivo de nossa
identidade. Assim, na busca da criação de culturas nacionais próprias, as jovens nações latino-
americanas encontraram-se, pois, em situações paradoxais. Se nenhuma cultura, nenhuma
literatura se constituiu ou vive sem contaminações - já que as chamadas fontes puras estão
perdidas ou soterradas há séculos, por maior que seja o nosso desejo de reencontrá-las - a
América Latina é cria da cultura européia e, em vez de rejeitar essa filiação, deve reivindicá-
la, ao mesmo tempo que deve reivindicar tudo o que culturas indígenas, africanas, e outras
mais recentemente, trouxeram à sua constituição, aproveitando o lado positivo da diversidade.
( PERRONE-MOISES, 1997 )
A mesma autora lembra que, se a imagem de uma América Latina única, pobre mas
alegre, ignorante mas vital, é a que convém, justamente, ao olhar das culturas hegemônicas,
que desejam transformar o outro em uma reserva natural e vitalizada de sua antiga cultura, o
77
grande problema é que esses lugares-comuns europeus sobre a América Latina têm uma parte
de verdade. A questão não é tanto a de nos desfazermos dessas características, que agradam
aos outros, mas de vivê-las com lucidez e não como compensação do que falta ao outro.
(PERRONE MOISÉS, 1997).
Quanto à reivindicação de culturas, o lado negativo das culturas européias – expressa
na análise do senhor e da Casa Grande efetuada por Freyre – parece bem explorado, assim
como o lado positivo da diversidade das culturas indígenas e africanas. O saldo, no equilíbrio
de antagonismos, revela certo otimismo, apenas cabível a partir de uma visão externa da
escravidão, como a que Freyre traça. Em sua obra, parece haver uma grande dificuldade – ou
falta de interesse – em aprofundar o lado negativo, que talvez não possa ser tomado como
contribuição, propriamente, das culturas indígenas e africanas.
Se as primeiras reflexões dos latino-americanos sobre sua identidade se colocavam em
termos de comparação com a Europa, no decorrer do século XX numerosos pensadores a
colocaram em termos de mestiçagem cultural. No fim do séc. XIX, certos pensadores latino-
americanos encararam a mestiçagem como possibilidade de branqueamento e melhoria de
raça. No Brasil, a aliança do branco com o índio, idealizada porque remota, era mais
facilmente admitida do que a aliança com o negro, demasiadamente presente e visivelmente
outro. No séc. XX, sobretudo depois da obra de Gilberto Freyre, Casa Grande & Senzala, a
situação inverteu-se e os intelectuais passaram a declarar suas origens negras, diversas dos
novos imigrantes europeus ou orientais, na busca de uma identidade totalmente liberada da
Europa. A mestiçagem é um fato consumado na América Latina e vários de nossos escritores
a encararam como transculturação, como uma síntese sempre provisória, em processo.
Como mostra Leyla Perrone, Oswald de Andrade, em 1928, propôs uma solução para
o problema das influências estrangeiras, que consistiria na incorporação deliberada das
78
mesmas. Em tom diverso, Octavio Paz sempre tratou a questão das influências européias em
termos de assimilação e transformação. Apesar de representar, em El laberinto de la
soldedad, o nascimento do México como o resultado da violação de uma índia por um
europeu, o parricídio – como a renúncia à influência européia - nunca pareceu, a Octavio Paz,
uma solução. A América foi encarada por Lezama Lima como um espaço gnóstico, aberto à
fecundação dos elementos hispânicos, eles mesmos resultados de inúmeras fecundações
anteriores. E para Jorge Luis Borges, como lembra a autora, nosso patrimônio é o universo.
Pode-se concordar com a autora sobre o aspecto inclusivo, acolhedor e pacífico dessas
metáforas identitárias latino-americanas. No entanto, de acordo com a autora, esse aspecto
convive paradoxalmente com a presença da memória de uma violência: de uma invasão – um
estupro – que marca, na questão de nossas origens, uma tensão base em nossa relação com o
Velho Mundo: o colonizador. Ao abordar esse dilema de origem, Gilberto Freyre é inclusivo a
ponto de não excluir o europeu através da pecha de invasor. Essa questão, como foi visto, é
explorada não apenas através dos temas abordados, como também em sua metodologia
interdisciplinar, e na abordagem empática sobre seu objeto de estudo popular, permeada por
elementos autobiográficos e literários, que beiram, muitas vezes, o dramático: da Casa
Grande. Quanto à Senzala, seu retrato limita-se ao pitoresco, repetindo a velha metáfora
inclusiva e pacificadora que marca o ensaísmo latino-americano. Parece válido questionar,
portanto, se essas metáforas não vêm sendo delineadas hierarquicamente e de cima para
baixo, naturalizando a agressividade e a violência como atributos de um invasor que nunca
encontrou resistência alguma. Em Freyre, a negação da resistência violenta– a falta de uma
análise dos pontos negativos ou não-contributivos para o europeu e o branco da Casa Grande
– por parte da cultura negra e africana parece trazer um passado oligárquico a fim de abafar as
resistências vivas no período em que a obra foi escrita e publicada.
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Desse modo, Gilberto Freyre parece equilibrar-se em antagonismos que constituem a
linha tênue e paradoxal entre os aspectos inclusivos e pacíficos das metáforas identitárias
latino-americanas e a violência dramática – na Casa Grande - que constituem esse passado.
80
2. ENTRE A ÁFRICA E A EUROPA: O ENSAIO
2.1. BRASIL E ESPANHA: O ESCRITOR
( ... ) E nada mais natural que, dessa minha identificação, em fase ainda tão plástica da
vida, resultasse que a muita leitura de místicos, de dramaturgos, de ensaístas, de poetas
espanhóis, e o muito convívio com artes e artistas ibéricos, me levasse a um modo de
ser escritor – quando comecei a ser, senão escritor, arremedo de escritor –
decisivamente orientado por tal identificação com os espanhóis e seus descendentes e
continuadores, tanto quanto com os portugueses e seus outros descendentes de
continuadores, além dos brasileiros. ( FREYRE, 1968, p.177 )
( ... ) Até que ponto , no meu caso, haverá um ensaísta e agora também um
seminovelista, que, além de descritivo, seja epifânico? Ignoro. Sei que não me
contentaria nunca – se dependesse de mim - de ser simplesmente descritivo no que
escrevo. Nem simplesmente descritivo nem apenas expositor de conhecimento ou de
saberes adquiridos de livros ou de mestres ou de estudo somente linear deste ou
daquele objeto. E sim um tanto mais do que isto. Sugestivo. Evocativo. Interpretativo.
Provocante. Epifânico. ( FREYRE, 1968, p. 189 )
A mistura de elementos humanísticos, literários, poéticos e não-sistemáticos à análise
científica descritiva, histórica e antropológica é uma importante característica que perpassa a
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obra de Gilberto Freyre. Em algumas de suas obras o antropólogo sugere que métodos
descritivos sejam mesclados aos compreensivos, no estudo do homem hispânico. No prefácio
de Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, Freyre procurava justificar sua condição híbrida
e contraditória de escritor/cientista, que dificultaria qualquer tentativa de classificar um
profissional múltiplo, na medida em que historiador, antropólogo, escritor e sociólogo se
entrecruzam em sua obra e em sua identidade profissional e autobiográfica:
Mas o que principalmente sou creio que é escritor. Escritor – que me perdoem os
literatos a pretensão e os beletristas a audácia – literário. E ao lado do sociólogo
reconheço haver em mim um anti-sociólogo. ( ... ) Nas páginas que se seguem não
procuro explicar tais contradições: apenas constatá-las. Aceito-as em vez de me
envergonhar delas. Aceito sua coexistência. (FREYRE, 1968, p.18)
Reúnem-se aqui notas um tanto desconexas sobre o como e porquê da minha, aliás,
incerta condição de sociólogo: tão incerta, para uns tantos sociólogos, como, para
outros, críticos de belas letras, a de escritor literário: condição que também procuro
considerar. ( ... ) Ao tentar explicar-me como possível sociólogo, não poderei deixar
de referir-me ao que, ao lado dessa minha discutida condição, há, bem ou mal, de
antropólogo, de historiador e, talvez, de pensador, tornando ainda mais difícil a
classificação que se pretenda fazer de homem tão desajeitadamente orquestra. Tão
múltiplo sem que tal multiplicidade signifique mérito ou virtude superior. (FREYRE,
1968, p. 20 )
Como nos lembra a estudiosa Regina Aída Crespo, sua posição híbrida no
panorama de nossa produção intelectual permite que ocupe comodamente um lugar na
produção literária brasileira, pois movimenta-se entre as difíceis artes de narrar e descrever.
Por outro lado, pode-se ainda concordar com a autora, quando afirma que a obra freyriana
nunca teve um caráter deliberadamente ficcional, já que se manteve sempre no âmbito da
história e das ciências sociais.
( CRESPO, 2003, p. 182 ) De fato, em Como e Porque Sou e
82
Não Sou Sociólogo, embora Freyre se coloque como escritor – através de uma argumentação
extremamente perspicaz e digressiva – essa função parece funcionar muito mais como defesa
a sua peculiar condição de antropólogo/sociólogo ou historiador. Assim, todo o texto é
construído a partir de uma negação que termina por reforçar seu lugar peculiar de sociólogo,
buscando responder às críticas ou evitar rótulos, através de um deslocamento contínuo de seu
lugar profissional/biográfico. Através dessa trapaça salutar, o escritor toma corpo, mas nunca
em detrimento do cientista:
O que principalmente sou? Creio que escritor. Escritor literário. O sociólogo, o
antropólogo, o historiador, o cientista social, o possível pensador são em mim
ancilares do escritor. Se bom ou mau escritor é outro assunto. ( ... ) Numa como
tentativa de oferecer, a esse respeito, um depoimento ou uma confissão de possível
interesse sociológico, procurarei fixar aqui algumas das orientações que considero
essenciais à afirmação de um escritor como escritor; e que se baseia até certo ponto na
minha própria experiência. Sobre elas, por outro lado, se apóia minha esperança de ser
escritor, sem ser, exatamente, beletrista. ( ... ) Ser alguém escritor é desenvolver uma
atividade que nada tem de burocrática. É uma atividade mais da aventura que de
rotina. A sociologia da atividade do escritor está ainda por fazer. É uma sociologia
difícil de ser traçada, tão diferente tende a ser o escritor de outros homens, quer dos
das chamadas profissões liberais, quer dos que vivem de ofícios ou de artes. Ele é um
pouco de tudo isso sem pertencer especificamente a nenhum desses grupos
profissionais. É inseguro. Sabe-se de companhias de seguros que têm segurado por
altas somas mãos de pianistas. Mas não mãos de escritor. ( FREYRE, 1968, p. 165 )
Ninguém estranha, entre nós, que um indivíduo, mesmo sem ser novo Alencar, mas
apenas por escrever arremedos de romances, se diga romancista. Dizer-se alguém
romancista é hoje quase tão natural, em língua portuguesa, como dizer-se alguém
botânico ou químico, agrônomo ou urbanista. ( ... ) O mesmo não é certo, do indivíduo
que em língua portuguêsa se diga sociólogo. O título é pomposo. É pretensioso. É
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majestoso. É quase o mesmo do que dizer-se alguém filósofo. (FREYRE, 1968, p. 41)
Dada certa simpatia da minha parte, pelo anti-sociologismo de Unamuno – serei
sociólogo? Terei o direito a considerar-me sociólogo ortodoxo? Ou serei Sociólogo
apenas pela metade, a outra metade sendo constituída pelo que há em mim de
antropólogo ou de historiador ou de pequeno filósofo ou de inveterado escritor? ( ... )
Já houve – repito – quem dissesse humoristicamente de mim que sou antes saciólogo
do que sociólogo. A caricatura não é de todo má. ( FREYRE, 1968, p. 67 )
Dizer-se romancista é natural; dizer-se sociólogo é majestoso. O sociólogo – chamado
por alguns saciógrafo, e extremamente criticado e polêmico – defende, com perspicácia, seus
talentos naturais de escritor, mas, de modo algum, o título majestoso. No entanto, não deixa
de enumerar detalhada - e como que digressivamente - as honrarias acadêmicas
proporcionadas ao antropólogo, historiador ou sociólogo ao longo de sua carreira. Defende-se
oleosamente, sem nunca colocar-se em um lugar fixo, monumentalizado: cristalizado.
O estilo, muito presente em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo – livro em que trava,
a meu ver, um jogo textual de deslocamentos autobiográficos - cumpre um papel vital em sua
obra. De fato, em suas obras de antropologia, estende-se poeticamente na arte de descrever,
enquanto o historiador prolonga a narrativa, roçando as fronteiras entre as disciplinas. Para
um cientista cuja obra é marcada pelo experimentalismo estilístico – que não é mais do que
um exercício de aproximação e distanciamento entre sujeito e objeto, marcando uma pesquisa
metodológica - o ensaísmo será o gênero ideal, capaz de abarcar esse brido: tanto de gênero
e estilos literários quanto de instrumento de produção científica antropológica, sociológica e
historiográfica. O interesse por autores espanhóis liga-se, igualmente, a esse exercício
científico e experimental, que marca toda a sua obra, e que encontra no ensaio o gênero ideal.
Em Como e porque sou e não sou sociólgo, o historiador/antropólogo/escritor afirma:
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( ... ) Não sou escritor – se é que sou escritor – fácil de ser classificado; e nisto talvez
seja caricaturescamente ibérico. O estilo que, segundo alguns críticos, caracteriza os
mesmos trabalhos, reconheço não ser modelo de estilo científico – admitindo-se que
fosse estilo antes científico que literário, que eu procurasse atingir. Mesmo porque o
ideal, em trabalhos puramente científicos, parece ser a quase ausência de um estilo.
Confesso-me anárquico, um tanto personalista, um tanto impuro, um tanto
contraditório, um tanto desordenado e, nestes defeitos, uma caricatura daqueles
escritores ibéricos ainda hoje inclassificáveis, um deles o Unamuno de quem há pouco
se comemorou o centenário. ( ... ) A verdade, porém, é que, no meu caso, o que venho
procurando ser é escritor que, como escritor, se serve da sua formação ou do seu saber
– se é que existe – científico – o antropológico, principalmente – em vez de pretender
ser principalmente antropólogo ou sociólogo ou historiador, ou pensador, por assim
dizer, institucional. O caso – essa condição híbrida, flexível, e um tanto anárquica – de
vários hispanos. ( FREYRE, 1968, p. 179 )
O interesse de Gilberto Freyre por autores espanhóis - associados à idéia de
personalismo, aventura, polêmica, empatia, experiência/experimentalismo - opõe-se
claramente à hegemonia francesa, associada, por sua vez, ao beletrismo. Em Como e porque
sou e não sou sociólogo, o antropólogo afirma:
Sou escritor acreditando pertencer principalmente à tradição ibérica de escritor – à
qual, aliás, já me filiou o Professor Fernand Braudel, do Colégio de França,
especificando tratar-se de escritor brasileiro, segundo ele, mais à maneira espanhola
que à portuguesa. Não falta, a essa tradição, no meu caso como no de uns poucos
outros – um Santayana ou um Cela, por exemplo – o colorido de alguma influência
inglesa e um pouco da francesa e até da alemã. Mas sob a predominância das
constantes ibéricas. ( ... ) São aliás, duas tradições em alguns pontos, afins, a ibérica e
a anglo-saxônica, como tradições ou constantes de expressão literária ou, mais
especificamente, de expressão literária através do ensaio. Através, também, do drama,
da própria novela e da própria poesia. ( ... ) Divergem as duas tradições da francesa em
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serem mais livres do que a predominantemente francesa daquelas convenções, para
alguns de nós, excessivamente acadêmicas, de correção de frase, de preocupação de
medida no dizer, de elegância de palavra, ( ... ) (FREYRE, 1968, p.167)
Regina Aída Crespo lembra o quanto é possível encontrar, na obra de Freyre – além da
influência de diversos autores espanhóis de chamada geração de 98 - a presença de uma série
de traços orteguianos, como o perspectivismo e o circunstancialismo, que estimularam
Gilberto Freyre em sua decisão de enveredar por temas inusitados ou mesmo marginalizados
no panorama das ciências sociais que então se praticavam no Brasil.
(CRESPO, 2003, p. 182-185).
Como explica o próprio Freyre:
O autor é dos que pensam que a sociologia, para ser constantemente germinal ou
criadora, precisa de considerar-se a si própria, não filosofia do que deve ser ou ciência
do que é; e sim, como diria Ortega, do que está sendo. E o que está sendo é susceptível
de mudar de forma – inclusive de forma sociológica – de função e até de processo, e
não apenas de substância – matéria extra-sociológica – sob diferentes pressões,
contínuas ou descontínuas, de espaço e, sobretudo, de tempo. (FREYRE, 1968, p. 31)
Que haverá de afim entre um antropólogo do tipo de um Lawrence de Arábia ou,
antes, de um Robert Redfield, ou um historiador social do tipo de um Marc Block ou
um sociólogo do tipo de um Simmel e um escritor que escreva romances do tipo dos
de Tolstoi e dos de Proust e, entre nós, dos de Machado de Assis e Raul Pompéia?
Creio que aquela empatia que consiste na capacidade de ver-se um indivíduo em
outros e de ver outros em si mesmo, em uma perspectiva tanto de dentro para fora
como de fora para dentro. O que Ortega Y Gasset chama de ´perspectivismo´, só é
possível à base dessa empatia, tão característica dos espanhóis mais castiçamente
espanhóis em seu modo de ser, quer escritores, como foi o remoto Ramon Lulio e em
nossos dias o não sei se diga moderno Miguel de Unamuno, sem nos olvidarmos de
Cervantes; quer pintores ( ... ) (FREYRE, 1968, p. 116)
86
A influência do pensamento de Ortega y Gasset é evidente em Freyre, que não deixa de
lembrá-la diversas vezes. O núcleo do pensamento orteguiano está em sua metafísica, que
começa por dissolver totalmente a idéia de “coisa” e centra-se na intuição da “vida humana”
como realidade radical. A conhecida fórmula “eu sou eu e minha circunstância” não passa da
expressão analítica daquela realidade radical, a vida humana, e constitui um princípio-chave
que já consta do primeiro livro de Ortega Meditações do Quixote. A primeira página do livro
de Ortega abre-se com ese vocativo: Leitor... e exprime sincera vontade de aproximação com
o leitor, com cada leitor em particular, nota constante da obra inteira de Ortega. Afirma
explicitamente nunca ter escrito “para a humanidade” , pois não queria dirigir-se a um público
vago e abstrato, só se sentindo à vontade perante um público definido. Escrever sempre foi
para ele um modo de conversar, e conversar só é possível face a face com a pessoa, a pessoa “
de carne e osso”, como dizia Unamuno. Semelhante atitude constrasta com o distanciamento
olímpico do professor universitário europeu cioso de seu status acadêmico.
Em Ortega fica patente, portanto, desde o início, que pretende estabelecer com o leitor
um vínculo pessoal de amizade, reiterando o mesmo tipo de convivência que unia, na Grécia,
o mestre com seus discípulos. Ao chamar para junto de si o leitor, buscando com ele
conversar em regime de absoluta sinceridade, Ortega inicia uma reforma do modo de fazer
filosofia e a tentativa de conversão dos “ infiéis”, dirigindo-se aos compatriotas que, naquele
tempo, tinham perdido toda a comunicação viva com a filosofia.
Do tema amizade com o leitor, Ortega passa ao tema do amor na filosofia. Em seu texto,
o amor, unindo coisa com coisa, desempenha as mesmas funções da razão, de onde se conclui
que o amor precede a razão: é bússola; e a razão é a trajetória rumo ao ponto indicado – a
cabeça segue o coração. No entanto, de nada vale a razão ligar coisa a coisa nenhuma numa
estrutura grandiosa ( como os grandes sistemas ideológicos ) se quem executa a ligação
87
permanece excluído dela. Pensar, portanto, é para Unamuno “ cirunstancializar” , chegar ao
universal a partir da circunstância. Ao vincular filosofia e amor, Ortega coloca-se na tradição
de Platão e de Santo Agostinho. Nessa linha de pensamento, é o amor que explica a diferença
entre o compreender e o mero saber, a erudição. Ortega sustenta que a filosofia é o contrário
do mero saber, da notícia ou da erudição.
Para Ortega, portanto, não há nem primazia do objeto sobre o sujeito ( realismo ), nem
prioridade do sujeito sobre o objeto ( idealismo ). Eu e minha circunstância, sujeito e objeto,
somos dados simultaneamente, num ato de coexistência: e “ se não a salvo ( a circunstância )
não me salvo eu”. Para Ortega, portanto, que influenciou Gilberto Freyre, a realidade não é
nem a coisa “ em si”, nem o eu “em si”, mas a convivência dinâmica entre o eu e as coisas
que integram a sua circunstância. Ocorre que toda circunstância está inserida numa
perspectiva. Para Ortega, toda e qualquer realidade nos aparece em dada perspectiva, não
existindo nenhuma realidade sem ela: e todas as perspectivas são igualmente verdadeiras.
(KUJAWSKI, 1994, p. 28 – 44 )
De acordo com a socióloga Elide Rugai Bastos
(BASTOS, 2002), em Ortega, a discussão
sobre a especificidade dos povos mediterrâneos face aos germânicos e até mesmo aos latinos
desenvolve-se em várias ramificações e ancora a tese central de seu pensamento – a
circunstância – expressa primeiramente em seu livro Meditaciones Del Quijote. Quando, de
modo análogo, Gilberto Freyre destaca o não europeísmo da sociedade ibérica, está afirmando
a especificidade da sociedade brasileira e a singularidade da formação nacional. Além disso, a
autora nos traz a importante informação de que Ortega, em suas obras, é simultaneamente
expositor e narrador: personagem de si mesmo em textos que entrecruzam descrição e
narração, experiência vivida e reconstituição do passado. Esse estilo, de acordo com a autora,
aproxima-se, e muito, do freyreano, descrito acima
. (BASTOS, 2002, p. 812 – 815)
88
Vale destacar, ilustrativamente, alguns trechos do próprio Freyre, que abordam as
influências apontadas pelas autoras e sua relação com os temas que aqui interessam – o texto
híbrido entre a poética e a ciência, marcado por experimentalismo de estilo: o perspectivismo,
que lhe permite questionar constantemente os fundamentos da ciência da antropologia, através
de um mergulho em sua metodologia – o meta-método. Para esses propósitos, a relação que
parte do regional para o global é um ponto de vista privilegiado:
( ... ) São métodos a que, em arte de pintura, um espanhol fixado em Paris, Pablo
Picasso, vem dando, com arrojo ibérico, a mais vigorosa expressão moderna; e
levando para essa arte aquele sentido profundamente hispânico de interpretação
literária ou filosófica ou sociológica ou religiosa da vida, segundo o qual a realidade,
seja ela qual for, exige do seu intérprete que a considere, tanto quanto possível,
simultaneamente, isto é, através de várias perspectivas, e não apenas de uma só; ou da
convencionalmente isto ou aquilo: histórica ou ficcionista, realista ou impressionista,
expressionista ou cubista, sociológica ou psicológica. ( FREYRE, 1968, p. 178 )
Se a duplicação ou multiplicação de perspectiva nos estudos antropológicos, entre
modernos povos não-europeus, importa na revolução ´no plano das ciências humanas´,
a que se refere o Professor Claude Lévi-Strauss, não será, talvez, exagero dizer-se da
mesma revolução, que teve senão o seu começo, um dos seus começos, no Brasil. Foi
no Brasil que primeiro se realizaram, com grandes deficiências, é certo, nos seus
arrojos experimentais, mas de modo, mesmo assim, válido para estudos noutros países
e noutras áreas. E arrojos antropológicos e, ao mesmo tempo, historicológicos, que
importaram na tomada de consciência, por uma civilização de novo tipo – civilização
ao mesmo tempo civilizada e primitiva nos principais elementos de sua composição –
de se encontrar apta para alguma coisa de mais importante que a simples auto-
determinação no setor somente político: a auto-análise, no plano social ou
sociocultural. E também a auto-interpretação, com qualquer coisa de humanístico, o
historiador tornando-se então parente do próprio filósofo e do próprio poeta – no
sentido de criador – das modernas concepções de Ruth Benedict e de Roberto
89
Redfield, além do historiador configurado por Kroeber e por Evans-Pritchard.
(FREYRE, 1968, p. 97)
Freyre, ao explorar a variedade ibérica portuguesa, construiu o cenário particular das
relações étnico-culturais no Brasil, marcadas por referências indígenas e africanas, mescladas
ao modelo hegemônico europeu. Sua apropriação do circunstancialismo de Ortega y Gasset
ajuda-o a questionar tanto a hegemonia européia, quanto aquela que marca a cultura
cosmopolita do sul do Brasil.
Assim é que o autor de Casa Grande & Senzala nunca exclui o global de seu local,
através de seu já citado experimentalismo – que se distancia do academicismo, afirmando um
tipo de pesquisa mesclada à criação. Desse modo, desdobramentos e deslocamentos textuais e
metodológicos marcam sua capacidade em depreender do local, o global, e vice-versa, através
de uma espécie de desconstrução minimalista, efetuando uma singular apropriação do outro.
Assim, é a partir do circunstancialismo de Ortega y Gasset e da apropriação de
elementos dos antigos colonizadores que Gilberto Freyre chega ao local, aos estudos
tropicológicos, e à defesa de temas relacionados à região e à tradição:
Ao escrever o estudo intitulado Casa-Grande&Senzala, procurou o seu autor ( ... )
desdobrar-se em personalidades complementares da sua e que a auxiliassem na
percepção de uma realidade múltipla e complexa. Levou esse desdobramento de
personalidade ao extremo arriscado, perigoso, mesmo, de, desdobrando sua
personalidade de origem étnico-cultural e de formação sócio-cultural, além de
principalmente européias, principalmente senhoris, procurar sentir-se, também, em
seus antecedentes e no seu próprio ethos, não só senhoril como servil; não só europeu
como não-europeu; ou especificamente indígena, mouro, judeu, negro, africano, e,
mais do que isto: mulher, menino, escravo, oprimido, explorado, abusado, no seu
ethos e no seu status, por patriarcas e por senhores. Daí ser Casa Grande & Senzala
90
um livro múltiplo em suas perspectivas; contraditório, até, no seu perspectivismo;
passível da acusação de negrófilo ( FREYRE, 1968, p. 117 )
( ... ) Venho desde aqueles dias firmando-me nos valores espanhóis, e não apenas nos
portugueses, dessa cultura global que cedo, felizmente, descobri ser tão minha, assim
global – minha e dos brasileiros – quanto dos espanhóis da Espanha ou dos hispano-
americanos do México ou da Colômbia ou do Equador ou de qualquer país outrora
colônia só da Espanha; tão minha e dos brasileiros de um Brasil, colônia outrora da
Espanha e não apenas de Portugal, quanto a portuguesa, inseparável, como cultura, da
Espanhola. ( FREYRE, 1968, p. 176 )
Desse modo, inúmeras vezes, Gilberto Freyre afirma a influência do pensamento ibérico
em sua formação, cujo traço principal de seu perfil intelectual é o ajustamento da palavra à
personalidade e não o contrário. Esse personalismo é associado por Freyre ao perfil de um
escritor mais de campo do que de gabinete, assim como ao ensaísmo e a certa
interdisciplinaridade que se opõe tanto à suposta assepsia do beletrismo francês quanto ao
modelo cartesiano e positivista:
Para Unamuno saber era em grande parte intuir; e o saber sociológico lhe parecia a
negação desse saber, em grande parte intuído; e tolerante, por isto mesmo, até de
contradições ( ... ) Preocupado com essa verdade em constante movimento –
movimento, entre extremos com tendências a estáticos – parecia-lhe duvidosa a
verdade que qualquer ciência do homem pretendesse reduzir a esquema rígido e a
exatidão matematicamente apolínea: a dos sociólogos positivistas, por exemplo. (
FREYRE, 1968, p. 66 )
Desse modo, o ibérico é associado, por Gilberto Freyre, a uma atividade de aventura,
em que a palavra deve ser ajustada à personalidade - autobiográfica - sem submissão às
convenções literárias. Ao mesclar a capacidade ao mesmo tempo analítica e lírica de
91
dramatizar, analisar e interpretar a vida - através de perspectivas empáticas e simultâneas da
mesma realidade e da mistura de tempos, metodologias e disciplinas, inclusive a autobiografia
- Freyre reafirma tanto sua aproximação a autores ibéricos, quanto seu afastamento do
chamado beletrismo:
O hispano é escritor, sendo principalmente pessoa ou principalmente homem: um
homem que ajusta a palavra à sua personalidade em vez de ajustar a personalidade a
qualquer conjunto de convenções de arte literária tidas por essenciais à consagração de
um homem especificamente de letras. É o exemplo, para todos nós, supremo, de
Cervantes e de Camões, de Gil Vicente, de Fernão Mendes Pinto, depois de ter sido o
de Lulio: Ramon de Lulio. ( FREYRE, 1968, p. 168 )
Em 1975, Gilberto Freyre decidiu reunir e publicar seus ensaios sobre temas hispano-
americanos. Em O Brasileiro Entre os Outros Hispanos: Afinidades, Contrastes e Possíveis
Futuros nas suas Inter-relações, mais que buscar contrastes, o autor se preocupou em
confirmar as afinidades existentes entre os hispanos, incluindo os brasileiros entre eles. Como
ensina Regina Aída Crespo, o interesse de Freyre pelo universo cultural ibérico se manifestou
muito antes da publicação dessa coletânea. Gilberto Freyre já vinha reivindicando há muitos
anos um lugar próprio para o Brasil no universo cultural hispânico. A autora nos lembra que
Freyre tomara consciência de sua condição de hispano quando ainda era estudante em
Columbia e nessa época teria se sentido capaz de enfrentar as vigorosas culturas modernas,
como a anglo-saxônica, a francesa e a alemã, falando-lhes de igual para igual. Além disso,
durante sua pós-graduação em Nova York, Freyre teria se aproximado da comunidade de
estudantes de origem hispânica:
92
( ... ) viver nos Estados Unidos provavelmente o levou a examinar com redobrada
atenção a cultura ibérica, buscando-lhe um lugar de maior relevância frente aos
Estados Unidos e à Europa ocidental, em termos históricos e políticos, além de
artísticos e intelectuais. Tal cultura, espalhada pelo mundo por meio do arrojado
projeto colonizador de espanhóis e portugueses, ganharia importância na obra do
brasileiro, seja como uma tradição a reverenciar e desenvolver, seja como uma
estratégia de influência social, política e cultural a estimular. ( CRESPO, 2002, p. 188-
192 )
Em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, livro, como revela o próprio
autor, marcadamente autobiográfico, Freyre esclarece:
Durante os dias mais plásticos de minha formação universitária, nos Estados Unidos e
na Europa – em Oxford e em Paris, além de freqüentar museus antropológicos, fui a
conferências e ouvi grandes mestres ingleses e da Sorbonne – todas essas influências
atuaram no sentido de favorecer em meus estudos sociológicos e para-sociológicos
tendências para a introspecção, para a auto-análise e para a análise empática –
empatia: palavra que me gabo de ter introduzido na língua portuguesa – da gente com
a qual passara a sentir-me tão particularmente identificado que, além do Brasil
miscigenado e do Portugal semitizado pelo mouro e pelo judeu, também a Espanha,
em grande parte moçárabe – tão árabe como européia – começou a existir para minha
curiosidade antropológica e sociológica, como parte intensa do meu próprio ser; e
susceptível de introspecção e não apenas de observação. Nisto segui o espanhol Vives:
o Vives que Dilthey consideraria o principal fundador da Antropologia moderna. (
FREYRE, 1968, p. 47 )
A mesma Aída Crespo nos lembra o quanto o autor defendeu enfaticamente a
necessidade de uma aproximação entre o Brasil e o universo hispânico no prefácio à segunda
edição em espanhol de Interpretação do Brasil, publicada em 1964, no México. Com essa
perspectiva integradora, igualmente presente em O brasileiro entre os outros hispanos, Freyre
buscou uma compreensão do brasileiro a partir de sua inserção ibérica do continente, ao lado
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de outros povos de origem similar, ressaltando sempre a dicotomia dos processos de
colonização que acabaram por opor os ibéricos católicos – relacionados a um específico
tempo hispanotropical e a um suposto ócio - aos nórdicos protestantes, associado pelo autor
ao industrialismo burguês e à ética do trabalho.
Como mostra a autora, sua preocupação era estudar o homem situado nos trópicos e
para isso recorreu ao conceito de homem hispânico, no qual englobou tanto o português
quanto o espanhol, criadores, em terras tropicais, de civilizações diferentes das que outros
europeus estabeleceram nas mesmas áreas. Freyre concebeu, então, a Hispanotropicalização -
confraternização étnica e cultural do homem hispânico com os povos tropicais – e os estudos
tropicológicos especificamente para a análise dessas novas culturas e populações que, junto
com Portugal e Espanha, conformariam um amplo universo, ao qual denominou complexo
hispânico. Dentro dessa nova área de estudos, a lusotropicologia representava a
especialização no estudo sistemático do processo ecológico-social de integração de
portugueses, descendentes de portugueses e continuadores de portugueses em ambientes
tropicais. A mesma definição se aplicava à hispanotropicologia, em relação aos espanhóis.
(CRESPO, 2003, p. 188-191).
Em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo, o autor esclarece:
Assim se justificaria a denominada Hispanotropicologia e, dentro dela, a chamada
Lusotropicologia, que representam contribuição brasileira não de todo insignificante
para o possível desenvolvimento de modernas sistemáticas de análise e de
interpretação antropológicas de um fenômeno – o da crescente consolidação, em áreas
tropicais, de culturas e até civilizações do tipo hispanotropical, em geral, lusotropical,
em particular – cuja importância também crescente e cuja especificidade, aliás
evidente, justificam tal sistematização. Só antropólogos de vistas demasiadamente
curtas deixam de enxergar aquela expansão - a de um tipo moderno de cultura mista
ou Simbiótica – eurotropical – e a sua especificidade. (FREYRE, 1968, p. 87)
94
Em sua pesquisa, Espanha e Portugal ocupam um lugar privilegiado, na medida em
que são capazes de intermediar a integração do Brasil, buscada em sua pesquisa, tanto com a
América espanhola, quanto com Oriente e a África – dentro e fora da Espanha -, que, de certa
forma, o reconduzem ao Brasil. Ao criar os estudos tropicológicos, com o objetivo de
pesquisar o desenvolvimento da cultura hispânica em regiões tropicais, Freyre procurou
valorizar a miscigenação étnica e a interpenetração cultural da cultura ibérica frente às
culturas européias dominantes e à hegemonia norte-americana.
95
2.2 - CIÊNCIA E LITERATURA
No meio de tamanha confusão explica-se que, para alguns, eu não seja, nem tenha
direito a pretender ser sociólogo. Mas a esses pode-se muito bem perguntar: que é
sociólogo: Pois não se conhece até agora resposta exata a essa pergunta. ( FREYRE,
1968, p. 56 )
Pois o ensaio em sua expressão mais vigorosa – Pascal, Vives, Bacon, Montaigne,
Newman, Carlyle, Emerson, Unamuno – é, pelas convenções do sexo literário,
considerado expressão masculina de criatividade, enquanto a forma poemática, a
novelesca, a teatral seriam expressões femininas. Pura convenção. Pois nem Santayana
na sua novela, nem Bertrand Russel, nos seus contos, nem Gilberto Amado nos seus
versos e nas suas novelas, nenhum deles perdeu o sexo literário masculino de ensaísta-
pensador, ao adotar excepcional, mas sempre potentemente, formas
convencionalmente consideradas femininas de arte ou de expressão literária. Não digo
que esteja na categoria intelectual dos bi-sexuais citados, mas são exemplos, os deles,
que servem de justificativa ao que porventura se encontre de beletrismo num livro de
escritor de sexo predominantemente masculino como parece ser, pelo que nele é mais
´forte e feio´, do que belo ou gracioso, Casa Grande & Senzala. ( FREYRE, 1968, p.
142 )
O esforço não só de análise, como de representação de um ambiente social e suas
contradições, faz com que, em todo seu percurso intelectual, Gilberto Freyre mergulhe em
uma luta metodológica – travada a partir da idéia de perspectivismo e empatia – que explora
as brechas entre sujeito e objeto de estudo. Assim é que, dentro deste experimentalismo
metodológico, com repercussões em todos os níveis de sua obra, o antropólogo desenvolve,
em seu diálogo com o saber da época, forte crítica a toda sociologia científica que desdenha a
dimensão poética e artística das ciências sociais, e que não se confronta com problemas de
96
representação, metodologia ou interpretação, no esforço sociológico de retratar uma
determinada realidade. É ilustrativo deste experimentalismo metodológico presente em toda
sua obra, o seguinte trecho de Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo:
Uma sociologia dos tempos sociais que terá que ser também uma sociologia de
perspectivas diversas combinadas, quanto possível, numa perspectiva geral. Assim se
realizaria a sugestão de Georges Poulet no sentido de caminhar-se, através de uma
literatura e de uma sociologia que se preocupassem com o Homem diversamente
situado no espaço e no tempo, pra uma totalidade de perspectivas, semelhante à que,
em pinturas cubistas, permite ao pintor procurar apresentar, de uma só vez, todos
aqueles aspectos de um objeto que, de ordinário, só poderiam ser vistos cada um de
uma vez e de ângulos diferentes. ( FREYRE, 1968, p. 76 )
Não por acaso, o antropólogo encontra no ensaio uma forma de expressão ideal, que lhe
permite transitar nas brechas entre a ciência e a literatura, ao mesmo tempo em que lhe
possibilita a continuidade do exercício experimental que aponta para questões/tensões
metodológicas. Nesse exercício travado em sua obra, e possibilitado pelo gênero ensaístico,
está incluída ainda a possibilidade de explorar o inacabamento, em textos construídos menos a
partir de assertivas lógicas, do que de dúvidas e processos de reflexões e digressões abertos ao
devir, além de questionamento constante do lugar da ciência e das divisões disciplinares
através de um exercício de deslocamento contínuo de perspectivas. Esse deslocamento
permite ao autor questionar conceitos pautados em dualidades, tais como: sujeito e objeto de
estudo/ empatia e neutralidade/ metrópole e colônia/ ciência e arte, etc.
Como afirma Adorno, em seu Ensaio como forma, ao se rebelar esteticamente contra o
método mesquinho, cuja única preocupação é não deixar escapar nada, o ensaio obedece a um
motivo da crítica epistemológica:
97
A concepção romântica do fragmento como uma composição não consumada, mas sim
levada através de auto-reflexão até o infinito, defende esse motivo antiidealista no
próprio seio do idealismo. O ensaio também não deve, em seu próprio modo de
exposição, agir como se tivesse deduzido o objeto, não deixando nada para ser dito. É
inerente à forma do ensaio sua própria relativização: ele precisa se estruturar como se
pudesse, a qualquer momento, ser interrompido. ( ADORNO, 2001, p. 35 )
De acordo com o teórico, a descontinuidade seria essencial ao ensaio, pois seu assunto é
sempre um conflito em suspenso, no qual o ideal utópico de acertar na mosca se mescla à
consciência da própria falibilidade e transitoriedade, característica de uma intenção tateante.
Max Bense, próximo a essa linha de reflexão, explica por que o ensaio se diferenciaria de um
tratado:
Assim se diferencia, portanto, um ensaio de um tratado. Escreve ensaisticamente quem
compõe experimentando; quem vira e revira o seu objeto, quem o questiona e o
apalpa, quem o prova e o submete à reflexão; quem o ataca de diversos lados e reúne
no olhar de seu espírito aquilo que vê, pondo em palavras o que o objeto permite
vislumbrar sob as condições geradas pelo ato de escrever. ( BENSE, 1947, p. 418 )
Vê-se, assim, o quanto o gênero ensaístico irá ao encontro de questões que perpassam
a obra de Gilberto Freyre. De acordo com Enrique Larreta, sua atitude de ser e não ser em
relação às ciências sociais parte da tradição ibérica, estabelecendo a conexão entre as
categorias das ciências humanas e as tradições culturais das quais faz parte e constituindo
forte elemento na representação de um trauma de origem vivido numa sociedade atualmente
existente da qual se é parte; um mundo no qual a civilização chegou como sifilização
(
LARRETA, 2001, p. 94 – 96 ).
Nessa direção, Gilberto Freyre afirma, na introdução de seu Como e
Porque Sou e Não Sou Sociólogo:
98
Procurando definir seu estilo de ser sociólogo – um estilo que me torna o de um anti-
sociólogo aos olhos de vários outros sociólogos – não aborda o autor matéria fácil.
Primeiro porque a sociologia, atualmente, ainda mais que há quarenta ou há cinqüenta
anos, atravessa um período crítico de indefinição e até de contradição e de confusão de
objetivos e de métodos. Segundo, porque tem sido sempre característico do anarquista
filosófico que, desde jovem, o autor tende a ser, criar o seu próprio ritmo ou o seu
próprio estilo, tanto sociológico como até, filosófico, de ser ou, como diria o espanhol,
de estar sendo quanto tem sido. Daí ser e não ser sociólogo. Daí ser, também – ou
procurar ser – historiador social. ( FREYRE, 1968, p. 25 )
Nesse sentido, ao questionar, revirar e apalpar a ciência da sociologia e sua
epistemologia, atravessa brechas análogas àquelas que constituem as complexas relações entre
colônia e metrópole, sempre ligadas às relações históricas e temporais – marcadas por seu
conceito de tempo tríbio. Através de uma espécie de minimalismo desconstrutivista, que
parece ser o eixo do seu método de pesquisa, qualquer tema/objeto que aborde é posto em
xeque através de uma desconstrução que transita entre o todo e o particular, o local e o
global. Incluídas nessa pesquisa estão dualidades tais como: sujeito e objeto/ metrópole e
colônia/ protestante anglo-saxão e católico ibérico/ industrialismo burguês e patriarcalismo
aristocrático/ Novo Mundo e Velho Mundo/ erudito e popular/ autor e leitor. Na medida em
que não se fixa nem no local nem no global, mas parece sempre preferir as brechas, por
exemplo, as metodológicas, que lhe permitem justamente a possibilidade de não cristalizar
conceitos, categorias ou disciplinas, mas exibir suas tensões, essas dualidades são exploradas
em todos os seus matizes:
99
Como eterno aprendiz de Sociologia – e é já notório o meu repúdio tanto a cátedras
permanentes de professor como ao título de mestre – tenho procurado viver
intensamente, empaticamente, profundamente, os meus assuntos, vivendo tanto entre a
plebe – e entre a plebe não como turista mas comendo as suas comidas mais grosseiras
e, quando jovem, amando suas mulheres mais rústicas, dormindo nos seus mucambos,
dançando suas danças, bebendo suas cachaças – como entre elites: elites mundanas e
elites intelectuais. (FREYRE, 1968, p. 54)
Compreende-se que haja quem me considere apenas sociógrafo. Sociógrafo, sim,
sociólogo, não. Há quem vá além e reconheça ironicamente em mim um saciólogo:
nunca um sociólogo. ( ... ) Explica-se: não há hoje um conceito absoluto do que seja
sociólogo. Há muitas e contraditórias concepções do que seja sociologia e do que seja
sociólogo. (FREYRE, 1968, p. 55)
Ao introduzir os conceitos em processo, sempre questionando seus lugares fixos através
de um texto em que os aspectos formais - o como e não apenas o porque - o de grande
importância, por permitirem justamente o experimentalismo que lida com conceitos abertos e
em processo, o ensaio representará a forma ideal para o texto freyreano. De acordo com
Adorno, é mera superstição da ciência propedêutica pensar os conceitos como intrinsecamente
indeterminados, como algo que precisa de definição para ser determinado:
A ciência necessita da concepção do conceito como uma tabula rasa para consolidar a
sua pretensão de autoridade, para mostrar-se como o único poder capaz de sentar-se à
mesa. Na verdade, todos os conceitos já estão implicitamente concretizados pela
linguagem em que se encontram. O ensaio parte dessas significações e, por ser ele
próprio essencialmente linguagem, leva-as adiante; ele gostaria de auxiliar o
relacionamento da linguagem com os conceitos, acolhendo-os na reflexão tal como já
se encontram inconscientemente denominados na linguagem. (ADORNO, 2001, p. 29)
100
O caráter incompleto, aberto, permanentemente retomado do trabalho de Gilberto
Freyre, que inclui o tratamento biográfico, perspectivista, narrativo e poético das fontes
históricas ou empíricas, em seu esforço de representação da experiência, provoca uma espécie
de inversão, em que o documento passa a ser intensificado esteticamente como
acontecimento: em sua dimensão vivida.
Na generalização de Gide de, em literatura, ser a ficção, história que poderia ter
acontecido, e a história, ficção que aconteceu, e na sua confissão de, como escritor
sempre autobiográfico, apresentar os fatos de tal modo que eles se conformem, assim
apresentados, mais com a realidade do que com ela os mesmos fatos se conformam, ou
se conformaram, na vida real, encontro afirmativas de um método com o qual, até
certo ponto, coincide, dentro dos seus limites, o meu, de ensaísta, e agora
seminovelista. Ensaísta e seminovelista quase sempre historiador ou antropólogo ou
sociólogo na sua ciência ou no seu saber e, não raro, ibericamente autobiográfico na
sua expressão literária. Não foi outro o método do grande Fernão Mendes Pinto ( ... )
ou o método de Vives. ( FREYRE, 1968, p. 178 )
O escritor Gilberto Freyre, muitas vezes, chegava a afirmações impossíveis de se
comprovar histórica, antropológica ou sociologicamente. O próprio Gilberto Freyre reflete
sobre a questão, em Como e Porque Sou e Não Sou Sociólogo:
Claro que é perigoso para a ciência do Homem da especialidade do cientista recorrer
ele a métodos poéticos de conhecimento, juntando-os aos científicos. Perigosíssimo
até. Pode resultar em obras monstruosas como estudos científicos; ou válidas apenas
como criações poéticas ou realizações literárias como algumas das páginas de Andrew
Lang, várias das de Spengler e como, entre nós, não poucas das que nos deixou o
admirável Euclides da Cunha. Mas pobre da Antropologia ou da Sociologia ou da
História Social cultivada apenas por pedestres que não consigam enriquecê-la abrindo
perspectivas sobre os fatos que só a imaginação científica mais vizinha da poética
consegue abrir e, através de símbolos tornar esses fatos significativos em vez de
101
apenas descritivos. ( ... ) Em antropólogos-sociólogos dessa espécie – antropólogos-
sociólogos em quem a criatividade se afirma tanto científica como poeticamente –
pode-se concordar com os Professores Kardiner e Preble que seus erros são fáceis de
ser corrigidos por cientistas sociais mais rigorosos como cientistas, e menos poéticos.
Os quais são mais numerosos do que aqueles: aquelas raras expressões, como
sociólogos-poetas ou como antropólogos-poetas de um vigor híbrido quase sempre
possível apenas em indivíduos de gênio. ( FREYRE, 1968, p. 81 )
( ... ) Daí alguns críticos irem ao extremo de me considerarem por vezes romanesco:
outra caracterização que não me desagrada de todo, sabido como é que entre o método
com que um antropólogo-sociólogo ou de um sociólogo-historiador da espécie de Max
Weber, de Dilthey, de Malinowski, de Margaret Mead ou de Trevelyan lida com seus
objetos de estudo e o do romancista do tipo de Defoe, Proust, de Joyce ( até Ulysses ),
de Tolstoi, de Valle Inclan, de Unamuno, de Machado de Assis – o que se especializa
em romances romanescamente biográficos ou em biografias em profundidade – há
vários pontos de coincidência: precisamente aqueles que importam em acrescentar o
antropólogo ou o historiador-sociólogo quase tanto quanto o romancista, alguma coisa
de empático – de imaginativamente empático – às suas tentativas de compreensão ou
apreensão da realidade por eles considerada, umas, tentativas – as do antropólogo-
sociólogo – condicionadas pelo conhecimento objetivo dessa própria realidade nas
áreas alcançadas, ou susceptíveis de ser alcançadas, por esse conhecimento, outras,
pela verossimilhança dentro da qual se tem que necessariamente mover o romancista
daquele tipo. Esse modo de conhecimento, alguns o têm chamado de psicológico,
outros, de poético, pelo que há nele de criação, no sentido germânico, da parte de
quem assim procura reconstruir uma realidade e interpretá-la. ( FREYRE, 1968, p. 64-
65 )
Atravessando esta mesma tensão, o ensaio, como lembra Adorno, abandona o cortejo
real em direção às origens, sem que, no entanto, desapareça completamente a idéia de
imediatidade, postulada pelo próprio sentido da mediação:
( ... ) Mas o ensaio não pode, contudo, nem dispensar os conceitos universais – mesmo
a linguagem que não fetichiza o conceito é incapaz de dispensá-los –, nem proceder
102
com eles de maneira arbitrária. A exposição é, por isso, mais importante para o ensaio
do que para os procedimentos que, separando os métodos do objeto, são indiferentes à
exposição de seus conteúdos objetivados. O como da expressão deve salvar a precisão
sacrificada pela renúncia à delimitação do objeto, sem todavia abandonar a coisa ao
arbítrio de significados conceituais decretados de maneira definitiva. Nisso, Benjamin
foi o mestre insuperável. Essa precisão não pode, entretanto, permanecer atomística. O
ensaio exige, ainda mais que o procedimento definidor, a interação recíproca de seus
conceitos no processo da experiência intelectual. Nessa experiência, os conceitos não
formam um continuum de operações, o pensamento não avança em um sentido único;
em vez disso, os vários momentos se entrelaçam como num tapete. Da densidade
dessa tessitura depende a fecundidade dos pensamentos. O pensador, na verdade, nem
sequer pensa, mas sim faz de si mesmo o palco da experiência intelectual, sem
desemaranhá-la. Embora o pensamento tradicional também se alimente dos impulsos
dessa experiência, ele acaba eliminando, em virtude de sua forma, a memória desse
processo. O ensaio, contudo, elege essa experiência como modelo, sem entretanto,
como forma refletida, simplesmente imitá-la; ele a submete à mediação através de sua
própria organização conceitual; o ensaio procede, por assim dizer, metodicamente sem
método. ( ADORNO, 2001, p. 30 )
Dentro dessa mesma linha reflexiva, Gilberto Freyre, em Como e Porque Sou e Não Sou
Sociólogo, expõe seus conceitos de meta-método e miscigenação metodológica:
( ... ) Mas importando essa pluralidade de métodos num como método coordenador de
vários métodos que seria a criação de uma abordagem nova; uma espécie de meta-
método; e até um repúdio a métodos convencionais como métodos específicos ou
puros. Uma miscigenação metodológica tal que se revelaria criação de nova forma de
abordagem nova; uma espécie de meta-método; e até um repúdio a métodos
convencionais como métodos específicos ou puros. Uma miscigenação metodológica
tal que se revelaria criação de nova forma de abordagem de tais ou quais assuntos: e
na qual fosse tal a projeção do criador de novo método sob a forma de combinação de
métodos, que ele pudesse dizer desse meta-método: c´est moi. Ou: o método sou eu . (
FREYRE, 1968, p. 37 )
103
Como lembra Enrique Larreta, ( LARRETA, 2001, p. 98, 99 ) o ensaio considera que o
conhecimento objetivo do passado social e do status presente, incluindo sua composição
étnica, é fundamental para diluir falsas representações e preconceitos de caráter ideológico
encoberto em conceitos supostamente científicos, como aqueles que condenam à inferioridade
povos que vivem nos trópicos e que marcam o pensamento positivista:
No entanto, quanto mais energicamente o ensaio suspende o conceito de algo
primordial, recusando-se a desfiar a cultura a partir da natureza, tanto mais
radicalmente ele reconhece a essência natural da própria cultura. Nela se perpetua, até
hoje, a cega conexão natural, o mito; e o ensaio reflete justamente sobre isso: a relação
entre natureza e cultura é o seu verdadeiro tema. Não por acaso, em vez de reduzi-los,
o ensaio mergulha nos fenômenos culturais como numa segunda natureza, numa
segunda imediatidade, para suspender dialeticamente, com sua tenacidade, essa ilusão.
( ADORNO, 2001, p. 39 )
Ao mesmo tempo em que Gilberto Freyre se opõe ao pensamento positivista, na medida
em que explora e problematiza a ilusão de objetividade e neutralidade científica da sociologia
e da antropologia - que no mesmo movimento em que instaura cientificamente seu objeto de
estudo, o exclui ideologicamente, em nome de uma pretensa neutralidade – não consegue, em
muitos momentos, escapar à certa leitura essencializadora. Como já foi visto, Freyre
hierarquiza as contribuições culturais em termos de prestatividade, mantendo a dualidade
senhor branco x mulher branca/ escravos (as). De forma similar, na medida em que não rompe
completamente com o plano narrativo, mantém-se na esfera mítica, o que faz com que trace
uma sociedade que é, muitas vezes, retratada principalmente em seus aspectos idílicos. Desse
modo, a mulher morena, depositária de atributos sexuais, é retratada e explorada sempre a
partir desse velho enfoque mitificado - um olhar externo, que, nesse sentido, seria
104
incompatível com as idéias aqui expostas e constantemente anunciadas por Freyre de
relativização, perspectivismo e rompimento de dualidades.
Nesse ponto da reflexão parece, portanto, interessante questionar até que ponto o
rompimento da dualidade cartesiana e o exercício perspectivista e experimental pregado por
Freyre em Como e porque sou e não sou sociólogo, mantêm-se, em sua obra, limitados. Essa
limitação estaria associada à utilização excessiva da primeira pessoa ( elementos
autobiográficos ) em sua obra, que fazem, do ponto de vista aqui defendido, com que o
“perspectivismo” defendido pelo autor efetue-se, de fato, limitado, apenas, ao âmbito da Casa
Grande. Na medida em que o autor não consegue sair de uma análise que não seja pautada na
relação dualista aristocracia/ povo, torna-se difícil perceber o perspectivismo pregado por
Freyre, impossibilitando um real rompimento das dualidades, que parecem manter-se. Apesar
do esforço de Freyre, e da riqueza de matizes possibilitadas pelo já citado fechamento de foco
no âmbito da Casa Grande, este fechamento parece limitar, na prática de sua obra, o
perspectivismo anunciado e ensaiado.
Assim é que a escrita de Freyre não se apresenta como mero veículo de idéias: como foi
visto, ela informa muito sobre as idéias do autor, quando suas metáforas e metonímias
constituem uma argumentação pendular entre as causas biológicas e sociais/culturais
mantendo as explicações econômicas em segundo plano. Nesse sentido, parece haver na obra
do autor de Casa Grande & Senzala um constante exercício experimental - marcado pela
escritura - de tentativa de aproximação entre forma e conteúdo, no qual o ensaio é peça
fundamental. Para Adorno, o ensaio se aproxima de uma autonomia estética, embora se
diferencie da arte tanto por seu meio específico, os conceitos, quanto por sua pretensão à
verdade desprovida de aparência estética:
105
Também aqui, como em todos os outros momentos, a tendência geral positivista, que
contrapõe rigidamente ao sujeito qualquer objeto possível como sendo um objeto de
pesquisa, não vai além da mera separação entre forma e conteúdo: como seria
possível, afinal, falar do estético de modo não estético, sem qualquer proximidade com
o objeto, e não sucumbir à vulgaridade intelectual nem se desviar do próprio assunto?
Na prática positivista, o conteúdo, uma vez fixado conforme o modelo da sentença
protocolar, deveria ser indiferente à sua forma de exposição, que por sua vez seria
convencional e alheia às exigências do assunto. ( ADORNO, 2001, p. 18 )
Assim é que Adorno nos ensina que para o instinto do purismo científico, qualquer
impulso expressivo presente na exposição ameaça uma objetividade que supostamente
afloraria após a eliminação do sujeito, colocando também em risco a própria integridade do
objeto, que seria tanto mais sólida quanto menos contasse com o apoio da forma, ainda que
esta tenha como norma justamente apresentar o objeto de modo puro e sem adendos. Desse
modo, na alergia contra as formas, consideradas como atributos meramente acidentais, o
espírito científico acadêmico aproxima-se do espírito dogmático. Esse tipo de questão será
amplamente revirada e apalpada por Gilberto Freyre, levando-o, em suas reflexões
epistemológicas, a atravessar experimentalmente e de modos diversos tanto as relações entre
sujeito e objetos de estudo, quanto a percepção de sua própria maneira de intervir em sua
obra, que como foi visto, privilegia o sujeito e sua autobiografia, o que faz com que sua lógica
plural, embora exista de fato, permaneça limitada. Não por acaso, portanto, o interesse de
Freyre pelos escritores ibéricos, cujos trabalhos vão ao encontro de questões que atravessam
mais fortemente sua obra:
Do psicólogo inglês, tão admirador dos místicos espanhóis, Havelock Ellis, é outra
observação, perspicaz sobre o escritor ibérico: a de que é um escritor que, de
ordinário, se tem afirmado mais na idade madura do que na mocidade. Isto por ser
106
essencialmente – deve-se acrescentar a Ellis – um escritor autobiográfico. Nunca um
inventor de personagens ou de mitos – o que faz que não seja um escritor de ficção no
sentido vulgar de ficcionismo – tudo nele tende a ter por base sua própria e
personalíssima experiência: a vida por ele pessoalmente experimentada, vivida, vista,
ouvida, amada, sofrida, apalpada, sentida, observada. A vida por ele apreendida em
todos os seus contrastes: desde os mais sórdidos aos quase angélicos; dos plebeus aos
fidalgos; dos sensuais aos religiosos. Daí um misticismo de certos escritores ibéricos –
Santa Tereza, entre eles - a que não falta sensualidade. Sensualidade sublimada, é
claro. ( ... ) Daí ser um escritor a quem não faltam incorreções na composição das
frases; descuidos na gramática; plebeísmos – inclusive obscenos – os mais
inacadêmicos e os menos de salão, na caracterização de fatos vivos e até em
movimento; ou na redução desses fatos a símbolos também vivos e atuantes. ( ... )
Essa predisposição vem fazendo do escritor mais tipicamente ibérico, desde Ramon
Lulio e de Fernão Mendes Pinto, desde Fernão Lopes e do próprio Camões, desde
Lope de Vega e de Gil Vicente, desde Juan de la Cruz e de Santa Tereza, um intérprete
de vida, sentida, sofrida, experimentada, interpretada, nos seus contrastes, através de
uma mais ou menos intensa participação do escritor nessa mesma vida. Participação
que vem fazendo dele aquilo que, em moderna linguagem sociológica, se chama um
observador empático ou um analista participante. ( FREYRE, 1968, p. 174-175 )
Daí a questão narrativa ser tão relevante, principalmente em Casa Grande & Senzala,
assim como a radicalização deste processo, através da utilização de elementos
autobiográficos, mesclados a documentos históricos, antropológicos e à mais pura novela.
Sobre o assunto, os seguintes trechos da Introdução de Como e Porque Sou e Não Sou
Sociólogoo ilustrativos:
É para surpreenderem – ou procurarem surpreender – intimidades nessas relações
entre pessoas e sociedades, pessoas e culturas, que sociólogos assim biográficos vêm
praticando aquelas técnicas mais ou menos sutis de observação de tais inter-relações
que já foram qualificadas como ´sublimated voyorismo´. O professor Berger chega a
admitir haver futuros sociólogos desse tipo nos meninos que, através de buracos de
fechadura, procuram ver suas tias solteiras quando nuas e a sós nos banheiros. ( ... )
107
Num dos capítulos deste Como e porque sou e não sou sociólogo, o autor recorda
autobiograficamente aventuras de experiência ou de vivência desse tipo, associadas a
algumas das suas tentativas de análise psico-social deste ou daquele objeto-sujeito de
estudo: aventuras a que vem se dedicando desde a sua mocidade de ´voyeur
sublimado´. E que, como aventuras de estudo em parte científico, têm sido também
aventuras um tanto artísticas ou literárias de tentativa de compreensão do
comportamento humano por meios empáticos ou intuitivos e até poéticos ou
novelescos, complementares ou predecessores dos científicos. (FREYRE, 1968, p. 29)
As páginas que se seguem, o autor admite, desde logo, serem, várias delas,
prejudicadas por um personalismo por vezes petulante e até vizinho do que um crítico
mais severo possa considerar tendência à autoglorificação. Essa autoglorificação,
através de exageros em reclamar o autor para si, e para o Brasil, antecipações em
estudos sociais – filosóficos, históricos e antropológicos – e até em técnicas
novelísticas – quando melhor seria que ele deixasse o cuidado de reconhecê-las
exclusivamente a pensadores, cientistas sociais e críticos literários e de idéias,
estrangeiros. (FREYRE, 1968, p. 36)
De acordo com Adorno, o ensaio absorve conceitos, experiências externas e teorias, só
que a sua relação com elas não é uma relação de ponto de vista. Assim, o ensaio devoraria as
teorias que lhe são próximas e liquidaria a opinião, incluindo aquela que ele toma como ponto
de partida, sendo, por isso, a forma crítica par excellence. E enquanto crítica imanente de
configurações espirituais e confrontação daquilo que elas são com o seu conceito, o ensaio é
crítica da ideologia:
( ... ) Quando o ensaio é acusado de falta de ponto de vista e de relativismo, porque
não reconhece nenhum ponto de vista externo a si mesmo, o que está em jogo é
justamente aquela concepção de verdade como algo pronto e acabado, como uma
hierarquia de conceitos, concepção destruída por Hegel, que não gostava de pontos de
vista: aqui o ensaio toca o seu extremo, a filosofia do saber absoluto. Ele gostaria de
108
poder curar o pensamento de sua arbitrariedade, ao incorporá-la de modo reflexionante
ao próprio procedimento, em vez de mascará-la como imediatidade. ( ADORNO,
2001, p. 38 )
Vê-se que as reflexões e provocações de Gilberto Freyre passam exatamente pelo
âmbito de questões estabelecidas pelo gênero ensaístico. De fato, a não recusa da forma é um
traço marcante da obra de Gilberto Freyre, que explora não apenas o porque, mas
principalmente o como:
( ...) A verdade novelesca pode, com efeito, senão coincidir de modo exato, coexistir,
de modo iluminante, com a verdade histórica ou com a verdade sociológica ou com a
verdade psicológica. Uma pode intensificar ou ampliar as outras. Na expressão de
qualquer dessas verdades, ou de várias delas, a um tempo, pode definir-se um
indivíduo como escritor. ( FREYRE, 1968, p. 183)
Sou dos que pensam que o escritor, para ser autenticamente escritor, precisa de pensar,
sentir e escrever sem subordinação a qualquer força econômica ou politicamente
dominante ou a moda ideológica ou a convenção social ou a terrorismo jornalístico ( ...
) O escritor que se acovarda diante dessas forças corre o risco de tornar-se escriturário
em vez de escritor; intelectuário em vez de intelectual. Corre o risco de tornar-se um
equivalente das prostitutas avelhantadas: aquelas que tudo passam a fazer para agradar
os jovens, para ganhar popularidade, para dar prazer aos poderosos de qualquer
espécie. ( FREYRE, 1968, p. 188 )
Para Max Bense, o ensaio é a forma da categoria crítica de nosso espírito, pois
quem critica precisa necessariamente experimentar:
( ... ) precisa criar condições sob as quais um objeto pode tornar-se novamente visível,
de um modo diferente do que é pensado por um autor; e sobretudo é preciso pôr à
prova e experimentar os pontos fracos do objeto; exatamente este é o sentido das sutis
109
variações experimentadas pelo objeto nas mãos de seu crítico (BENSE, 1947, p. 420)
Pode-se, a partir das reflexões acima, concluir que Gilberto Freyre não hesitava entre o
escritor e o cientista, mas transitava entre o escritor & cientista - mais uma das dualidades
que busca desconstruir:
Considero-me, é certo, antes escritor do que sociólogo e mesmo antropólogo. Minha
formação universitária foi sistematicamente, em seu período de estudo pós-graduados,
a do cientista social; e é essa formação sistemática que tem estado a serviço da minha
vocação maior, que já era então, e vem sendo, na vida prática, e profissionalmente, a
de escritor, sem que por este motivo repudie, nos momentos justos, aqueles meus
estudos sistemáticos e os graus universitários que a eles correspondem. (FREYRE,
1968, p. 56)
Quanto a escrever literariamente sobre assuntos antropológicos e sociológicos, não
parece ser pecado nefando senão aos olhos dos que, não podendo correr o mesmo risco
– o de serem a um tempo cientistas e escritores – glorificam, num evidente esforço de
compensação à própria impotência literária, o cientista que se exprime
cacograficamente; e exaltam nele o tipo ortodoxo ou a expressão única de cientista.
No que parece haver certo excesso de cientificismo disfarçado em zelo por Ciência
com C maiúsculo: a mesma a que repugnaria – segundo tais cientificistas – qualquer
amor, mesmo crítico, da parte de um cientista social, à gente ou à terra por ele
considerada pátria; e cujo estudo importe naquela preocupação do analista com essa
terra e com essa gente que entre os russos de outrora chegou a ser quase uma mística,
sem daí ter resultado uma sociologia ou para-sociologia que por ser animada desse
amor deve ser hoje considerada essencialmente anti-científica. O caso, entre nós,
brasileiros, de obras sociológicas, ou para-sociológicas, como a de José Bonifácio, a
de Joaquim Nabuco, a de Euclydes da Cunha, a de João Ribeiro, a de Sylvio Romero,
a de Oliveira Lima, a de Alberto Torres, a de Oliveira Viana, a de Pontes de Miranda,
a de Gilberto Amado. (FREYRE, 1968)
110
Na reflexão sobre a trajetória pessoal e intelectual de Gilberto Freyre, pode-se observar
que o trânsito na fronteira entre relato, teoria e biografia é uma constante. Como foi visto, o
ensaio lhe permite mesclar sua própria experiência – a autobiografia - às teorias
antropológicas, através de um texto simultaneamente narrativo/poético e descritivo/científico.
Esse procedimento provocou, não por acaso, muitas polêmicas entre os leitores, que chegaram
a ver e a criticar em Freyre o que definiam como um certo olhar nostálgico e sentimental,
presente em suas análises do passado colonial, patriarcal e escravista do Brasil. De fato, é
possível perceber que, na medida em que o sociólogo permanece vinculado a sua origem
aristocrática – afirmada inúmeras vezes em sua obra – acaba por carregar, em sua trajetória
antropológica, uma marca excessiva do sujeito sobre os objetos de estudo:
Em conferência autobiográfica na Sociedade Hans Staden, de São Paulo, comecei a
responder à pergunta - ´por que se tornou sociólogo? ´ - por uma recordação de
infância: a de que aos seis anos fugi de casa para conhecer o mundo, voltando à casa
vencido pela saudade ( ... ) Desde então venho repetindo essa fuga e repetindo esse
regresso. Fugindo do Brasil pela atração de quanto seja diferente do Brasil e voltando
ao Brasil pela sedução do familiar. De modo que minhas tentativas de estudo de temas
sociais vêm alternando entre essas duas atrações. Tornei-me um tanto sociólogo, por
um lado, pela curiosidade em torno do que é social no mundo, por outro, pelo interesse
do que é social em mim próprio: na minha família, na minha casa, no meu passado. (
FREYRE, 1968, p.43 )
Fez de Casa Grande o símbolo de todo um status ou de toda uma posição – a de
dominação – na ecologia social e mesmo na física daquele Brasil patriarcal; e de
senzala, o símbolo de outro status e de outra posição na mesma ecologia: a de
subordinação, a de submissão. E do & entre as duas realidades, o símbolo de uma
interpenetração que concorreu fortemente, dinamicamente, interativamente, para dar à
sociedade e à cultura desenvolvidas no Brasil suas formas mais características de
111
desenvolvimento e não apenas de estabilidade. De dinâmica democratizante como
corretivo à estabelecida hierarquia. (FREYRE, 1968, p. 120)
Para Adorno, o ensaio não segue as regras do jogo da ciência e da teoria organizadas,
segundo as quais, a ordem das coisas seria o mesmo que a ordem das idéias; ele não almeja
uma construção fechada, dedutiva ou indutiva, mas se revolta contra a doutrina platônica
segundo a qual o mutável, o transitório e o efêmero não seriam dignos de filosofia:
O ensaio recua, assustado, diante da violência do dogma, que atribui dignidade
ontológica ao resultado da abstração, ao conceito invariável no tempo, por oposição ao
individual nele subsumido. (...) Assim como é difícil pensar no meramente factual sem
o conceito, porque pensá-lo significa sempre já concebê-lo, tampouco é possível
pensar o mais puro dos conceitos sem alguma referência à facticidade. Mesmo as
criações da fantasia, supostamente liberadas do espaço e do tempo, remetem à
existência individual, ainda que por derivação. É por isso que o ensaio não se deixa
intimidar pelo depravado pensamento profundo, que contrapõe verdade e história
como opostos irreconciliáveis. (ADORNO, 2001, p. 26)
Assim, como ensina o teórico, o ensaio não quer procurar o eterno no transitório,
nem destilá-lo a partir deste, mas sim eternizar o transitório. A sua fraqueza testemunha o
excesso de intenção sobre a coisa e, com isso, aquela utopia bloqueada pela divisão do mundo
entre o eterno e o transitório. Desse modo, no ensaio enfático, o pensamento se
desembaraçaria da idéia tradicional de verdade. Vemos aqui, mais uma vez, o quanto o
antropólogo leitor não apenas de Ortega e Unamuno, mas também de Nietzsche, busca romper
essas dualidades platônicas, entre forma e conteúdo, sem subjugar nenhuma das duas, através
de sua sociologia genética:
112
As épocas são para o sociólogo que as considera sob critério genético um constante
processo de mudança social – ou sócio-cultural – em que o passado está sempre
tornando-se futuro, através de um rápido presente. Vem crescendo, desde os
nominalistas, o número de pensadores para que a realidade não é, como era para os
pensadores ortodoxamente aristotélicos, coisa que pudesse ser considerada completa,
independente do tempo; e sim processo em conexão com o tempo: o tempo social. (...)
O que, aplicado à sociologia, tornaria a tarefa principal do sociólogo o estudo menos
de instituições e de formas de convivência em si, e como que paradas no tempo – em
algum tempo sociologicamente ideal – que dessas instituições e dessas formas em sua
constante transformação dentro do tempo: (FREYRE, 1968, p. 74)
Através do existencial, susceptível de ser estudado nesse desenvolvimento, é que se
procuraria o essencial no Homem. A captura se não do tempo perdido inteiro, de parte
considerável dele, - perdido por indivíduo representativo de um grupo ou por todo um
grupo típico – concorreria para esse encontro do essencial no existencial. Porque seria
a captura, por indivíduo superior, capaz de influir sobre grande número de indivíduos,
ou por um grupo inteiro, daquela autenticidade no existir que parece confundir-se com
a própria essência desse existir; e que só é possível de ser encontrada pelo indivíduo
ou pelo grupo que reconquista parte considerável do seu passado mais íntimo, mais
profundo para o presente e para o futuro desse indivíduo superior – ou desse grupo
típico: aquele passado básico que Proust chamaria de ´soubassement´, de ´gisement
profond´, de ´terrains resistants sur lesquels on s´appuie´. (FREYRE, 1968, p. 75)
Pode-se perceber, portanto, que embora o autor de Casa Grande & Senzala busque
romper as dualidades, na medida em que sua análise restringe-se e parte da dualidade
aristocracia/ povo, o autor não chega a sair da lógica cartesiana. Embora isso não invalide
toda a importância do universo patriarcal apresentado e retratado pelo autor, caberia aqui
questionar o fato de que o excesso autobiográfico que pretendia deslocar perspectivas acaba
por restringi-las, confirmando aquela visão idílica do Brasil, efetuada a partir de um retrato
constituído sempre a partir de um olhar estrangeiro, o olhar da Casa Grande.
113
4. CONCLUSÃO: A RECEPÇÃO
O objeto de estudo que escolhi me atraiu porque parecia tratar-se de uma obra
provocativa e diferente de tudo que já havia lido. Parecia literatura, mas não era só isso,
parecia sociologia, mas não era apenas isso. Parecia principalmente história. História e
literatura: ensaio. A história privada e material abordada por Freyre tornou a leitura e o
trabalho efetuado sobre as obras do autor um ato de prazer, que incluiu receitas de doces,
guias de viagens, considerações sobre moda e arquitetura. Dentro desse âmbito de fontes,
procurei focar a análise na discussão crítica, já extensa, sobre Freyre, que inclui investigações
sobre o divórcio e as conciliações entre a história íntima e seu tempo longo e a econômica,
com suas rupturas. Essa análise ligou-se ao objetivo mais amplo da tese: explorar, na obra de
Gilberto Freyre, a importância dos recursos literários: nas fontes, na narrativa da história, na
escrita, em sua formação e na abordagem interdisciplinar.
É indiscutível a singularidade presente na obra do autor, por sua inovação no modo de
abordar assuntos tão familiares e contemporâneos, ainda que privilegiem tempos passados. Na
obra do autor de Casa Grande & Senzala o tempo é, de fato, o senhor, e o autor permite que
atravessemos tempos outros que nos fazem – irônica, e talvez infelizmente – lembrar, ainda,
do presente. Mas Freyre, acima de tudo, confunde o leitor. Sua obra nos apresenta perguntas e
deixa essa marca, a principal: sua obra, a meu ver, é um enorme ponto de interrogação sem
respostas, sem soluções.
Isso não invalida a importância enorme de um livro – Casa Grande & Senzala cujos
cinco capítulos desdobram a formação, no Brasil, de uma sociedade agrária, escravocrata e
híbrida e a contribuição étnica de portugueses, ameríndios e africanos nas várias fases de
114
contato da época colonial. Impossível negar completamente alguma contribuição do
historiador ao deslocar o eixo da questão racial para a questão da cultura, em seu esforço de
superação do racismo que impregnava a produção intelectual brasileira. Do mesmo modo, a
obra torna-se viva, por sua interpretação capaz de valorizar a híbrida e singular articulação de
tradições que aqui se verificou, em detrimento da obsessão com o progresso e com a razão, e
com a integração do País na marcha da civilização.
Freyre, em uma época em que as questões raciais estão sendo tratadas pela ciência,
dirige-se, no caminho inverso, à literatura, onde encontra os meios para afirmar a
singularidade brasileira, resgatando certo traço romântico e posicionando-se contra o
cientificismo e a obsessão com o progresso e a razão que impregnavam a sociologia. O
mestiço surge então em Casa Grande & Senzala, em um passado colonial cuja afirmação da
singularidade e a positividade das articulações culturais reforçam seu posicionamento avesso
a uma absorção completa do país na marcha da civilização e do progresso. Nesse sentido,
tornam-se cruciais, tanto a figura que traça do mestiço, quanto o caráter literário de que é
constituído Casa Grande & Senzala.
De forma similar, pode-se perceber e aqui destacar, em Casa Grande & Senzala, as
contradições da cultura brasileira sublimadas ou conciliadas através da imagem do mestiço,
enquanto a idéia dos antagonismos em equilíbrio pode, por outro lado, ajudar a entender os
difíceis meandros dessa conciliação – ligada aos conceitos de sincretismo e mestiçagem. No
entanto, esse difícil equilíbrio de contradições – bem expressos na conjunção aditiva que
intitula o livro, equilibrando a Casa Grande & a Senzala, apesar dos antagonismos – parece
explodir na relação polêmica que o livro estabelece com os leitores e a crítica.
Se uma expressiva parcela da crítica costuma classificá-lo exatamente na posição
inversa a que se costuma colocar o movimento modernista, pelo perfil tradicional,
115
aristocrático e conservador que a caracterizaria, contrapondo a sua obra, pelo regionalismo, às
demandas modernizantes do modernismo paulista, algumas releituras mais recentes vêm
iluminando outros aspectos da obra. De acordo com o que foi exposto, a mais frequente crítica
que Casa Grande & Senzala costuma receber refere-se ao fato de que, no mesmo movimento
em que teria afastado o racismo e admitido a relevância de outras culturas, Freyre teria criado
uma imagem quase idílica da nossa sociedade colonial, ocultando a exploração, os conflitos e
a discriminação inerentes ao sistema escravocrata, através de uma fantasiosa democracia
racial. O apego a essa idéia de harmonia se justificaria pelo momento histórico em que se
inicia a trajetória intelectual de Gilberto Freyre no Brasil, época em que o ideário marxista da
luta de classes ganhava força, o que teria feito com que o sociólogo sentisse a necessidade de
explicar a sociedade sem recorrer ao recurso do conflito e da violência, utilizando-se de uma
teoria considerada como uma terceira via: nem o marxismo, considerado por ele destruidor,
nem o bacharelismo.
Parece interessante trazer a esta conclusão um exemplo de crítica marxista, com o
objetivo de uma última aproximação, objetivando abrir, ainda, novos focos de leitura da
complexa obra freyreana, através de seus críticos. Para Carlos Guilherme Motta, por exemplo,
em Freyre, as noções de nacionalidade, raça e cultura estão na base de uma concepção de
cultura que ajudará a difundir uma nova imagem da História do Brasil, em que – nesse
desvelamento – ficam habilmente eclipsadas as contradições de classe, e mesmo de raça. De
acordo com a reflexão efetuada até o momento, é possível concordar com Motta, quando este
afirma que em Freyre a noção de interpretação cultural é relativizada pela abordagem
psicológica e pela funcional, sem chegar a substituir o determinismo de raça pelo de cultura.
(MOTTA, 1994, p. 53-59).
116
De fato, como foi visto na terceira parte do primeiro capítulo, embora haja um
deslocamento do conceito de raça, assim como era concebido no século XIX, para o de
cultura, Gilberto Freyre mantém uma análise cultural em que suas contribuições para o
projeto colonial são hierarquizadas e o senhor branco está no andar mais alto desta hierarquia,
seguindo-se o negro e o índio. Além disso, sua argumentação hesita entre os fatores
biológicos e os sociais, mantendo-se em um limite não tão afastado assim da postura
naturalista, que se utiliza de critérios raciais para explciar os fenômenos que muitas vezes, são
mais ligados a fatores econômicos ou sociais. Essa distância mantida pelo autor em relação às
causas econômicas, por outro lado, permite que os aspectos culturais sejam explorados de
forma mais incisiva pelo autor.
O historiador Carlos Guilherme Motta destaca ainda o fato de que o relevo dado ao
regionalismo por Freyre é efetuado no contexto de transição em que foi produzido, quando as
diversas oligarquias regionais viram contestado seu poderio pelos revolucionários de 1930,
portadores de um projeto nacional. Assim é que obras como Casa Grande & Senzala
indicariam os esforços de compreensão da realidade brasileira realizados por uma elite
aristocratizante que vinha perdendo seu poder. Para Carlos Guilherme Motta:
À perda de força social e política corresponde uma revisão, à busca do tempo perdido.
Uma volta às raízes. E, posto que o contexto é de crise, resulta o desnudamento da vida
íntima da família patriarcal, o despeito do tom valorativo, em geral positivo, emprestado
à ação do senhoriato colonizador, ação que se prolonga, no eixo do tempo, na Colônia
até o sec. XX, na figura de seus sucessores, representantes das oligarquias. ( MOTTA,
1994, p. 58 )
Sobre essa crítica específica, pode-se concluir que se o relevo dado ao regionalismo
por Freyre relaciona-se, de fato, a um contexto específico, seria um pouco afobado relacionar
117
este relevo a uma simples afirmação nostálgica em tom valorativo, já que o principal assunto
da obra freyreana é a degradação do senhor e da estrutura da Casa Grande, cuja tensão que
precede a decadência é minuciosamente apresentada pelo autor até o seu
relaxamento/mudança em Sobrados & Mucambos e Ordem & Progresso. Isso não nos impede
de concordar parcialmente com Motta em relação ao traço nostálgico que se delineia no
quadro geral da obra de Freyre, ao abordar o passado e a cultura popular. Esse tom nostálgico,
que marca um texto de crise, parece relacionar-se à empatia e ao hibridismo – entre a
literatura e a história – que marcam sua narrativa da história.
O mesmo Motta afirma que obras como essa, de alta interpretação do Brasil,
produzidas pela vertente ensaística, na verdade encobrem, sob fórmulas regionalistas e/ ou
universalistas, o problema real que é o das relações de dominação no Brasil. Para o
historiador, o que está em pauta, antes de tudo, é saber até que ponto fórmulas regionalistas
estreitas ou, em contrapartida, universais demasiado genéricas, encobrem a história das
relações de dominação, em que mitos como o da democracia racial e do luso-tropicalismo
servem ao fortalecimento de um sistema ideológico no qual se perpetua a noção de cultura
brasileira.
Aqui, podemos, ainda, confrontando os historiadores em questão, perguntar se há, de
fato, na obra de Freyre essa ruptura entre regionalismo/ universalismo e as relações de
dominação. O principal tema do livro Casa Grande & Senzala é o das relões de poder/
dominação: aquelas que ocorrem na Casa Grande. As relações domésticas de dominação.
Quanto à ruptura, como foi apresentado no segundo capítulo, o regionalismo e o
universalismo estão interrelacionados em Freyre, quando transita do local ao global, do
regional ao universal, com o justo objetivo de encarar um problema real: a importância de que
118
a cultura seja perpetuada e representada, em uma história marcada pelas atrocidades
cometidas no período colonial e escravocrata.
O livro de Gilberto Freyre sofre, portanto, vinte anos depois de sua publicação – em
1933 - as mais duras críticas pela esquerda brasileira. Nesse período, as idéias de Freyre
foram vistas como conservadoras e superadas, e nos anos 60, cresceu seu prestígio
internacional na mesma proporção de seu isolamento por setores da intelectualidade
brasileira. Dentro do contexto descrito, Casa Grande & Senzala parece, portanto, abrir uma
interessante possibilidade de reflexão, na medida em que possibilita confrontar críticas de
perspectivas diversas, abrindo novas questões e possibilidades de leituras para a cultura
brasileira. É nesse sentido que parece interessante articular Casa Grande & Senzala com as
questões propostas por Cornelius Castoriadis, em A Instituição imaginária da sociedade,
especificamente no que se refere a sua crítica ao marxismo e a sua concepção de imaginário.
Castoriadis indaga se realmente pode-se partir do pressuposto de que o simbolismo
institucional determina o conteúdo da vida social. De acordo com o autor, o simbolismo - nem
senhor da sociedade, nem escravo flexível da funcionalidade - determina aspectos da vida da
sociedade estando, ao mesmo tempo, cheio de interstícios e de graus de liberdade.
(CASTORIADIS, 1982, p. 152)
A relação, no entanto, entre o simbolismo institucional e o conteúdo da vida social –
embora não se dê em termos de determinação completa – existe e acredita-se aqui que há um
efeito real na sociedade, embora a determinação não seja completa. Pode-se, nesse ponto da
reflexão, trazer para o debate a contribuição do crítico Alfredo Bosi, que em Dialética da
Colonização, questiona termos utilizados por Freyre como “assimilação” quando se aplicam
aos contatos entre colonizadores e colonizados, propondo que os costumes africanos ou
indígenas que os senhores de engenho adotaram seriam, na verdade, exemplos de “desfrute” -
119
sexual e alimentar - do africano e de sua cultura por parte das famílias das casas-grandes. O
autor, a seguir, conclui:
Foi a colonização um processo de fusões e positividades no qual tudo se acabou
ajustando, carências materiais e formas simbólicas, precisões imediatas e imaginário;
ou, ao lado de uma engrenagem de peças entrosadas, se teria produzido uma dialética
de rupturas, diferenças, contrastes? (...) Quando se lêem as palavras de Marx sobre o
papel da religião nas sociedades oprimidas, capta-se melhor o movimento de certos
grupos sociais para a expressão imaginária de seus desejos: ´alma de um mundo sem
alma, espírito das situações sem espírito`. Assim, o labor simbólico de uma sociedade
pode revelar o negativo do trabalho forçado e a procura de formas novas e mais livres
de existência. Os ritos populares, a música e a imaginária sacra produzidas nos tempos
coloniais nos dão signos ou acenos dessa condição anelada. Há casos de transplantes
bem logrados, encontros afortunados, e há casos de acordes dissonantes que revelam
contrastes mal resolvidos, superposições que não colam. De empatias e antipatias se
fez a história colonial. Com a sua habitual perspicácia Alphonse Dupront nos alertou
para os impasses de uma linguagem entre histórica e etnológica que se vale de termos
latos como aculturação, assimilação, encontro de culturas, capazes de exprimir ( ou
encobrir ) relações de sentidos opostos: “Há encontros que matam. Falaremos
igualmente, a propósito deles, com uma espécie de humor negro, de trocas de cultura?
De resto, os antropólogos responderiam: há assimilação. Mas não é esta também uma
forma de humor negro? E como embusteiros da vida que somos, agrupemos sob a
mesma insígnia verbal os processos de morte e os processos de vida? ( BOSI, 1992, p.
23-30 )
Pode-se propor um confronto entre a perspectiva marxista de Bosi segundo a qual o
labor simbólico de uma sociedade pode revelar o negativo do trabalho forçado e a procura
de formas novas e mais livres de existência com aquela que desenvolve Castoriadis, ao
criticar a idéia de que as formações originárias de uma sociedade se fixam como império
independente nas nuvens porque a sociedade considerada não consegue resolver seus
120
problemas na realidade. Castoriadis procura trazer uma noção abrangente ao conceber o
papel do imaginário, situado, para o teórico, tanto na raiz da alienação como da criação na
história, na medida em que esta última pressupõe, tanto quanto a alienação, a capacidade de
dar-se àquilo que não é:
Quando afirmamos, no caso da instituição que o imaginário só representa um papel
porque há problemas “reais” que os homens não conseguem resolver, esquecemos
pois, por um lado, que os homens só chegam precisamente a resolver esses problemas
reais, na medida em que se apresentam, porque são capazes do imaginário; e por outro
lado, que esses problemas só podem ser problemas, só se constituem como estes
problemas que tal época ou tal sociedade se propõem a resolver, em função de uma
imaginária central da época ou da sociedade considerada. ( CASTORIADIS, 1982, p.
162 )
Gilberto Freyre parece aproximar-se da perspectiva de Castoriadis, já que desvincula
as contribuições culturais dos escravos negros e mestiços de sua condição degradante – e,
portanto, da idéia de penúria - impossibilitando, ao mesmo tempo, qualquer leitura da troca de
culturas que abarque algum sentido de confronto ou ruptura.
Aqui podemos trazer, mais uma vez, a reflexão de Silviano Santiago, que, em seu
artigo, Oswald de Andrade ou: elogio da tolerância étnica, afirma que a visão reducionista
estaria correta quando percebe o grande perigo de se incorporar à modernidade as atrocidades
cometidas pela tradição colonial e escravocrata brasileira – aproximando-se da perspectiva de
Alfredo Bosi, quando reivindica certo sentido de ruptura, de contraste, que estariam
harmonizados em Casa Grande & Senzala. A visão reducionista, por outro lado, estaria
incorreta ao reafirmar o centramento da verdade histórica na razão européia
. (SANTIAGO, 1991).
Assim como Bosi, o crítico Carlos Guilherme Motta irá reivindicar este sentido de
ruptura presente na reflexão de Santiago que, de acordo com o historiador, é abafado na obra
121
de Freyre. O historiador destaca ainda a grande quantidade de textos de crise ( Retrato do
Brasil, Raízes do Brasil, Conceito de Civilização brasileira ) diante do abalo que a sociedade
experimentava nos anos próximos a 1930. De acordo com Motta, não se trata apenas da
reconstrução do passado, ou do possível avanço positivo da ciência histórica; está-se, mais do
que isso, em presença de textos de crise, de documentos que registram a trepidação da ordem
social em que as oligarquias pontificavam nas diferentes regiões. (MOTTA, 1994, P. 61-63)
De acordo com o historiador, parece claro que, ao rude golpe sofrido em 1930 por
setores dominantes, a resposta se daria também no nível interpretativo, por autores que
buscarão refazer as trilhas dos estamentos dominantes na formulação do Brasil. Assim, ao
tentar mostrar que o aristocrata é um democrata, Freyre eliminaria as possibilidades de
caracterização efetiva do senhoriato dominante. Desse modo, a relativização dos conceitos faz
com que o autor não ofereça o painel, ou delineamento geral dos movimentos sociais que
emergiram no Nordeste, como as insurreições de 1817, 1824, 1831 e 1848, além dos levantes
de negros, verificados quase a cada ano na primeira metade do século XIX, fazendo com que
o mundo do trabalho surja desarticulado, quando não folclorizado.
Para o historiador, quando Freyre se aproxima de explicações para a dinâmica dos
relacionamentos entre dominados e dominantes, intervém uma tal quantidade de problemas
ligados a status ou tutelagem familiar que o objeto evanesce. Nesse ponto, Motta, no entanto,
não leva em conta o fato de que o “objeto” de estudo de Freyre é a Casa Grande, portanto, não
há nada que tenha evanescido, apenas a própria Casa Grande, cuja decadência é narrada em
seus corredores e matizes, no primeiro livro de sua trilogia, que desembocará em Ordem &
Progresso.
Dentro desta mesma linha crítica, ao relativizar a definição do sistema ( feudal ou
capitalista? ), ao esvaziar as polarizações entre dominantes e dominados, ficariam eliminadas,
122
em seu discurso, as contradições reais do processo histórico-social, as classes e os estamentos
em seus dinamismos específicos e seus conflitos e desajustamentos no sistema social global.
Para o autor, formulações como essa tendem a vincular o conhecimento que se tem das
esferas populares à ótica do senhoriato, ótica que adquire foros de verdadeira ciência social. (
MOTTA, 1994, p. 64 – 69 ). De fato, a narrativa da história apresentada por Freyre tem seu
foco centrado na Casa Grande, o que dificulta, como foi visto, suas ambições perspectivistas,
mantendo o vínculo cômodo entre a cultura popular e a cultura aristocrática – que o auxiliará
no desenho narrativo de um tempo longo: e tenso; dentro do difícil equilíbrio de
antagonismos.
Aqui, Motta irá, mais uma vez, auxiliar em nossa leitura de Gilberto Freyre ao realçar
dois pontos que são os principais motivos de sua obra ter se destacado tanto e ser, ainda hoje,
lida, pesquisada e discutida. O primeiro ponto é o fato de tratar-se, de fato, como foi visto, de
um texto de crise e ser justamente esse um de seus aspectos mais interessantes. O leitor é
convidado a assistir como um voyeur ao drama da Casa Grande, desde o sadismo da narrativa
a partir da ótica senhorial, até os tensos limites de difíceis equilíbrios que marcam a
decadência do período: tudo isso sem sair da Casa ( Grande ). O segundo ponto forte e
positivo da obra de Freyre reside justamente no fato – também ressaltado por Motta – de que é
esse tenso equilíbrio de antagonismos, cujo eixo principal é a dualidade aristocracia/ povo que
permite ao antropólogo explorar amplamente as matizes das mais íntimas relações de poder,
no âmbito da Casa Grande.
Nesse ponto, pode-se chamar a sutileza de raciocínio de Silviano Santiago, quando,
em seu delicado esforço em considerar ambas as perspectivas, lembra que Caio Prado Jr, por
exemplo, em sua obra Formação do Brasil Contemporâneo, ao buscar o sentido da
colonização no Brasil, acaba por incorrer em uma visão economicista do devir humano,
123
confirmando a postura corrente dos reducionistas brasileiros, para os quais não há
propriamente uma contribuição positiva do não-europeu à causa da Europa ou ao sentido da
história moderna. Portanto, se por um lado Freyre tenta se opor a um centramento
europeizante, deve-se mais uma vez reafirmar que essa contribuição acaba por restringir-se a
um certo centramento na razão européia, na medida em que ele estabelece uma hierarquia
entre as culturas, estabelecida a partir de uma análise que privilegia a contribuição do negro
para o projeto europeu.
Aqui, a boa questão parece ser a seguinte: contribuição para quem? Desse modo, pode-
se concluir que “a falta de contribuição positiva do não-europeu à casa do europeu” – visão
economicista questionada por Silviano Santiago – parece a mais positiva para o não-europeu:
principalmente porque resiste em contribuir ‘para’ o projeto europeu. Cabe aqui deixar a
questão presente e aberta em Casa Grande & Senzala: e se falássemos em projeto “não
europeu”, mas brasileiro, assim como aquele concebido por Freyre, que destaca a
singularidade de trocas específicas que aqui se deram? Deve-se, portanto, destacar o fato de
que o esforço de Freyre em abarcar as trocas culturais que aqui se deram está inserido em um
projeto – marcado pela nostalgia dos textos de crise – de representação do Brasil. Como foi
visto, as metonímias que se sucedem no texto freyreano, relacionando parte e todo, serão um
dos recursos utilizados para reforçar esse retrato.
Outro recurso aqui destacado foi a utilização, pelo autor de Casa Grande & Senzala,
da sugestão, privilegiada em detrimento da conclusão, através da aproximação do tom de
conversa com a prática do ensaio, que impossibilita uma concepção sistemática e exaustiva
das questões. O inacabamento essencial, que se instala na argumentação desde o seu
princípio, como um trabalho que mais levanta dúvidas do que propriamente fornece respostas,
liga-se à atração de Gilberto Freyre por livros sugestivos, capazes de transformar os leitores
124
em colaboradores do autor. Desse modo, Freyre parece equilibrar-se em uma linha tênue que,
se por um lado distancia-se de uma perspectiva reducionista marxista com o objetivo de
abarcar as contribuições culturais, por outro lado, acaba por recorrer ao elogio da cordialidade
brasileira.
Cabe aqui, lembrar, mais uma vez, com Ricardo Benzaquen Araújo, que a idéia de
conflito permeia indiretamente toda a análise gilbertiana
. (ARAÚJO, 1994, p. 44-59). Retornamos,
portanto, à questão que Casa Grande & Senzala impõe, através de seus antagonismos em
equilíbrio, bem expressos na conjunção aditiva que intitula o livro. E se Benzaquem ressalta
aspectos que de certa forma esclarecem as questões aqui colocadas, não se deve deixar de
reconhecer, como foi visto acima, o incômodo quase sádico que esse delicado e tenso
equilíbrio – cujos impulsos violentos parecem residir apenas na Casa Grande, e por isso
nunca apontam para rupturas ou mudanças – impõe ao leitor. Nesse sentido, é curioso, o fato
de esse mesmo leitor deparar-se, na última página do livro, com um único trecho em que há a
presença de certa busca de ruptura na Senzala por parte dos escravos negros – o suicídio,
seguido pela violenta enumeração das doenças, que em ritmo envolvente, parece testar tanto
os limites do leitor quanto aqueles que se estabelecem entre o texto científico e o literário. A
ruptura, ausente no decorrer de Casa Grande & Senzala, parece, portanto, direcionar-se à
morte, no limite da ficção, e ao leitor, no limite da obra.
125
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