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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA
Lacita Menezes Skalinski
EPIDEMIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA CRÍTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE
DIFERENTES ESTILOS DE PENSAMENTO
FLORIANÓPOLIS
2008
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA
CENTRO DE CIÊNCIAS DA SAÚDE
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM SAÚDE PÚBLICA
Lacita Menezes Skalinski
EPIDEMIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA CRÍTICA: CONSIDERAÇÕES SOBRE
DIFERENTES ESTILOS DE PENSAMENTO
Dissertação submetida à Universidade Federal de Santa Catarina para obtenção do
título de Mestre em Saúde Pública
Orientador: Prof. Dr. Charles Dalcanale Tesser
FLORIANÓPOLIS
2008
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Catalogação na fonte por: Onélia Silva Guimarães CRB-14/071
S626e Skalinski, Lacita Menezes
Epidemiologia e epidemiologia crítica: considerações sobre diferentes
estilos de pensamento / Lacita Menezes Skalinski; orientador Charles
Dalcanale Tesser. – Florianópolis, 2008.
141 f.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Santa Catarina,
Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública, 2008.
Inclui bibliografia
1. Epidemiologia. 2. Processo saúde-doença. 3. Métodos epidemiológicos.
I. Tesser, Charles Dalcanale. II. Universidade Federal de Santa Catarina.
Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública. III. Título.
CDU: 614
4
5
“Muitos desafios já encontraram solução na teoria, mas esse conhecimento ainda
aguarda aplicação, em particular em regiões subdesenvolvidas. Em todos os países,
problemas de saúde comunitária – como o oferecimento de serviços de Saúde
Pública ou a organização da assistência médica – exigem ação social e política
guiada pelo saber. O horizonte dos sanitaristas não se pode mais limitar à
comunidade local ou mesmo à nacional, mas deve estender-se, pois hoje somos
todos membros de uma e de outra; assim, cada um em sua comunidade, devemos
lutar por um mundo livre de doença, escassez e medo, devemos lutar para
engrandecer e passar adiante o legado entregue em nossas mãos.”
George Rosen
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AGRADECIMENTOS
À Deus, pela vida com saúde.
À minha pequena-grande família: vó, mãe e Junior, pelo apoio emocional e
financeiro, pelos carinhos, por ouvirem meus desabafos (mesmo quando não
entendiam nada) e ainda assim, por continuarem acreditando na minha capacidade
de realizar este sonho. Só vocês sabem o quanto foi difícil chegar até aqui. Amo
vocês com todo meu coração!
Ao Marcão, grande mestre, pela acolhida no mestrado, pelas ótimas opiniões e por
ter me apresentado as idéias do Fleck. Às professoras Vera Blank e Sandra Caponi,
pelo empréstimo de materiais e pelas grandes contribuições dadas a este trabalho,
desde quando ainda era um projeto de pesquisa.
À professora Rita Barata, pelas contribuições encontradas em sua produção
científica e pela disponibilidade para apreciar esta dissertação.
Ao professor Charles, por toda a atenção dispensada nesses dois anos de trabalho,
pelos conhecimentos transmitidos, pela orientação atenciosa. À Ana Cláudia, por
tolerar os atrasos do professor, quando ficava me orientando depois do horário de
trabalho.
Aos amigos do curso, pelo companheirismo nos estudos, nos trabalhos, nas viagens
e também nas noitadas pra deixar o estresse de lado e lembrarmos uns aos outros
que, embora a pressão seja grande, somos humanos e precisamos de momentos de
descontração. Com meu carinho: Carolina, Carla, Daniela, Ione, Luzilena, Léia,
Maria Cristina e Patrícia, porque toda “panelinha” merece agradecimento especial.
A todos os novos e velhos amigos, de perto e de longe, que fazem parte da minha
história e sempre compartilharam emoções... Por dividir a vida!
À Vanessa, secretária da PPGSP, pela solicitude e educação em todos os
atendimentos.
À CAPES, pelo incentivo financeiro nos 12 meses de bolsa.
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SKALINSKI, Lacita Menezes. EPIDEMIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA CRÍTICA:
CONSIDERAÇÕES SOBRE DIFERENTES ESTILOS DE PENSAMENTO 140 f.
Dissertação (Mestrado em Saúde Pública área de concentração Ciências
Humanas e Políticas Públicas de saúde) Programa de Pós-Graduação em Saúde
Pública, Universidade Federal de Santa Catarina. Orientador: Prof. Dr. Charles
Dalcanale Tesser. Florianópolis, 2008.
RESUMO
A maioria dos estudos epidemiológicos é norteada pela utilização dos conceitos e
instrumentos da clínica e da matemática, desde a ascensão da bacteriologia. Até
aquele momento, a medicina social e os estudos sobre a situação do trabalho nas
fábricas européias davam ênfase à determinação social do processo saúde-doença.
Essa centralidade da epidemiologia nos parâmetros estatísticos, atrelada aos
conceitos biologicistas das doenças, granjeou numerosas críticas de dentro do
próprio campo epidemiológico; com propostas de construção de uma chamada
epidemiologia crítica. Esta, buscava resgatar os conceitos de determinação e aplicá-
los nas análises epidemiológicas, juntamente com a utilização de uma metodologia
marxista de investigação. Esta dissertação teve como objetivo caracterizar as
diferenças existentes entre a epidemiologia crítica e a epidemiologia em geral (aqui
chamada de clássica), com apoio no referencial epistemológico de Ludwik Fleck, em
especial no conceito de estilo de pensamento. Para tal, utilizou-se uma pesquisa
bibliográfica sobre os debates teóricos a respeito, com análise de conteúdo da
literatura, da qual emergiram cinco categorias, usadas para analisar as diferenças
em foco: “conceituação do termo”, “objeto de estudo”, “risco e causalidade”,
“processo saúde-doença” e “metodologias de análise”. As categorias foram
discutidas quanto às principais distinções encontradas. Concluiu-se pela existência
de relevantes diferenças entre essas correntes da epidemiologia, a ponto de
poderem conformar distintos estilos de pensamento.
Palavras-chave: epidemiologia, processo saúde-doença, métodos epidemiológicos.
8
SKALINSKI, Lacita Menezes. EPIDEMIOLOGY AND CRITIQUE EPIDEMIOLOGY:
CONSIDERATIONS ABOUT DIFFERENT STYLES OF THOUGHT 141 p.
Dissertation (Master in Public Health area of concentration: Human Sciences and
Public Politics of heath) Post-graduation Program in Public Health, Santa Catarina
Federal University. Supervisor: Prof. Dr. Charles Dalcanale Tesser. Florianópolis,
2008.
ABSTRACT
The greater number of epidemiologic studies is developed by the concepts and
instruments from clinic and mathematics since the bacteriology’s ascension. Until that
moment, social medicine and studies about work situations in European factories had
emphasis on social determination for health-disease process. This kind of
epidemiology on statistics levels, linked to biologic concepts of diseases, brought
many critiques inside the epidemiologic’s field, with proposals to construct a critique
epidemiology. It intended to ransom the concepts of determination and apply them
into epidemiologic analysis, united with the utilization of a marxist methodology of
investigation. This dissertation objectified to characterize the differences between
critique epidemiology and epidemiology in general (here called classic epidemiology),
based on epistemological reference by Ludwik Fleck, especially on the concept of
style of thought. To this end, it was done a bibliographic research about the
theoretical discussion of epidemiology, with content’s analysis of literature, from what
emerged five categories, used to analyze the differences in focus: “conception of
epidemiology”, “object of study”, “risk and causality”, “health-disease process” and
“methodology of analysis”. It discusses them from the principal distinctions found. It
was concluded that there were relevant differences between these tendencies of
epidemiology, enough to conform distinct styles of thought.
Key-words: epidemiology, health-disease process, epidemiologic methods.
9
SUMÁRIO
PARTE I – PROJETO AMPLIADO
INTRODUÇÃO.................................................................................
11
1 A EPISTEMOLOGIA DE FLECK.....................................................
26
2 EPIDEMIOLOGIA: HISTÓRIA E FORMALIZAÇÃO....................... 49
3 CARACTERIZAÇÃO DOS ESTILOS DE PENSAMENTO EM
EPIDEMIOLOGIA............................................................................
64
CONSIDERAÇÕES FINAIS 106
REFERÊNCIAS............................................................................... 111
PARTE II – ARTIGO CIENTÍFICO
1 ARTIGO CIENTÍFICO: EPIDEMIOLOGIA E EPIDEMIOLOGIA
CRÍTICA: DOIS ESTILOS DE PENSAMENTO?..............................
119
10
PARTE I
PROJETO AMPLIADO
11
INTRODUÇÃO
O estudo sobre a saúde das populações tem sido realizado sob diversas
formas de análise, que vão da abordagem biologicista à determinação social do
processo saúde-doença. Essas formas, comumente apresentam dados numéricos
que dão mais ênfase à “situação de doença” e à magnitude de sua presença e
distribuição nas populações, em detrimento das suas “condições de saúde”.
Tipicamente, as informações estatísticas e epidemiológicas se apresentam
abordando incidências, prevalências, distribuições e probabilidades da ocorrência de
agravos em termos gerais, que na sua maioria acabam se referindo às doenças
classificadas pela nosografia biomédica. Além disso, essas abordagens também
atribuem riscos a um grupo, contemplando ou não as características individuais de
exposição a fatores e situações socialmente determinados.
Este estudo teve por motivação inicial sanar dúvidas que surgiram de uma
inquietação particular, sobre um tema pouco estudado na graduação e que pela
relação com a minha história pessoal, me permitem escrever algumas linhas em
primeira pessoa, a fim de apresentar brevemente, e em termos gerais, o trajeto
percorrido até a conclusão desta pesquisa.
Enquanto cursava graduação em Enfermagem, na disciplina de Sociologia
tive contato com obras da chamada epidemiologia crítica que me mostraram uma
explicação sobre o processo saúde-doença no âmbito coletivo e social, diferente
daquela epidemiologia mais “numérica” que até então tinha sido apresentada. O
interesse por essa “forma de pensar” acabou resultando no desenvolvimento de uma
12
pesquisa de iniciação cientifica sobre o tema, que proporcionou o esclarecimento de
alguns conceitos básicos.
O trabalho de iniciação científica foi sobre a leitura e interpretação do livro
“Epidemiologia: economia, política e saúde” (BREILH, 1991). Para a compreensão
da abordagem que o autor deu ao processo saúde-doença, tive que buscar fontes
para me apropriar da teoria e dos conceitos marxistas, além de conhecer outros
autores que discutem a determinação social. A discussão ainda superficial sobre
teorias sociológicas e do conhecimento despertou uma necessidade de continuar
pesquisando sobre o tema, que muito me interessava pela concepção ampliada de
saúde e de determinação. Isso trouxe maiores questões e dúvidas que poderiam ser
resolvidas em uma pesquisa de mestrado.
Minha aproximação ao tema, associada à maior simpatia pela área da saúde
coletiva e desejo de trabalhar na formação profissional, impulsionou a elaboração de
um projeto de pesquisa para ingresso no Programa de Pós-graduação em Saúde
Pública da UFSC. Minha idéia era estudar os fundamentos teóricos da epidemiologia
e escolhi desenvolver essa pesquisa pela linha das ciências humanas, justamente
por buscar uma relação entre a sociologia e a epidemiologia. Durante um tempo, o
projeto foi sendo moldado de forma a contemplar não somente a resolução das
minhas dúvidas, mas também realizar algum aprofundamento teórico sobre a
epistemologia e buscar formas de compreensão das ciências humanas e da
epidemiologia, bem como suas diferenças e relações, ou dificuldades de relação,
com o propósito final de compreender melhor as diferentes concepções que tanto
me intrigavam.
13
O estudo da ciência, dos fatos e dos conhecimentos científicos, da forma
como ocorrem suas transformações e como elas se propagam entre os
pesquisadores vem sendo desenvolvido ao longo das últimas décadas e marcando
correntes de pensamento diferentes da visão mais disseminada e clássica a respeito
no século XX.
Refletir sobre a concepção da ciência é muito importante, pois tematiza os
pressupostos teóricos e as configurações ideológicas embutidas que permeiam as
formas de compreensão da ciência e seus saberes. Da mesma forma, é importante
entender de que maneira os conhecimentos são difundidos entre os pesquisadores e
seus pares, bem como são transmitidos aos jovens pesquisadores e, assim,
transmitindo também interesses, idéias, métodos e conceitos.
Especificamente no campo das ciências da saúde, o entendimento do
conceito de saúde e do processo saúde-doença assumiu diversos sentidos, que
passam pelo menos pela concepção unicausal, multicausal e de determinação
social, o que interfere na busca de fontes, no delineamento das metodologias de
estudo e no resultado das pesquisas. A epidemiologia, enquanto parte da
constituição disciplinar dos saberes da medicina e da saúde pública, dá margem a
mais de uma forma de compreensão dos fenômenos de saúde-doença, que vão da
ocorrência, da causa – ou das causas de uma determinada doença em uma
população à situação geral de saúde de povos, mudando os objetos de estudo e a
forma como se traçam ações de intervenção: do restrito ao abrangente e da
prevenção ao tratamento de agravos e à promoção da saúde. Portanto, é
interessante estudar a epistemologia da epidemiologia a forma como se constrói e
se valida o conhecimento sobre a saúde dos povos para desenvolver uma visão
14
mais crítica e questionadora a respeito da produção e transmissão das idéias
científicas sobre essa grande parte da saúde coletiva.
Buscando uma definição para o termo “epistemologia”, foram encontrados
vários autores que, de acordo com a sua especificidade em seus ramos científicos,
dão diferentes explicações. Mario Bunge (1980, p.05), com uma explicação
relacionada à filosofia diz que: “A epistemologia, ou Filosofia da ciência, é o ramo da
Filosofia que estuda a investigação científica e seu produto, o conhecimento
científico”. Gayon (2006), infere que a epistemologia possui dois sentidos. No
primeiro, é um sinônimo de “teoria do conhecimento”, como uma parte da filosofia
que interroga sobre os fundamentos e limites do conhecimento. No segundo, como
“filosofia da ciência”, sendo uma reflexão sobre o saber científico constituído, que
pode ser de várias áreas, assumindo expressões como epistemologia da física, da
biologia ou da psicologia.
Para Abbagnano (1998), o significado de teoria do conhecimento apóia-se em
dois pressupostos. O primeiro, de que o conhecimento é uma categoria do espírito,
como uma forma da atividade humana ou do sujeito que prescinde os processos
cognitivos particulares de que o homem dispõe fora e dentro da ciência. O segundo
pressuposto é de que o objeto imediato do conhecimento existe apenas dentro da
consciência do sujeito que o pensa.
A epistemologia (termo utilizado em países de língua inglesa) também pode
ser chamada de gnoseologia (termo usado em países latinos), tendo como tema
específico a realidade das coisas do mundo externo, da natureza última dos objetos
científicos (EPSTEIN,1990). Compreende tanto as investigações psicológicas sobre
a produção e essência do conhecimento, quanto as investigações crítico-cognitivas
15
sobre a sua validade. Em contraposição à lógica, não considera apenas as
condições de validade das relações mútuas dos conteúdos do pensamento, mas põe
em questão a sua validade objetiva; sendo que a teoria do conhecimento é a
investigação filosófica da aptidão da razão para a verdade (BRUGGER, 1962).
Dentre os diversos autores que estudam a epistemologia da ciência, destaca-
se Thomas Kuhn, norte-americano que iniciou sua carreira como físico teórico e
aprofundou-se no estudo histórico e filosófico da ciência e da forma como ocorrem
as mudanças e transformações no conhecimento científico. No prefácio de seu livro
A estrutura das Revoluções Científicas, escrito em 1962 Kuhn (2007) faz
referência à monografia “quase desconhecida” de Ludwik Fleck, que indica como
uma antecipação às idéias que contribuíram no desenvolvimento de seus estudos. A
obra de Kuhn obteve grande repercussão tanto no meio acadêmico e epistemológico
quanto na sociedade e em outras disciplinas e áreas, trazendo uma série de
discussões sobre a natureza, a construção e o estatuto do conhecimento que
tinham sido apontadas e até certo ponto desenvolvidas por Fleck, que o antecedeu
tanto em tempo (três décadas) quanto em conteúdo.
Fleck foi um médico epistemólogo que publicou suas idéias sobre a
construção do conhecimento no início do século XX, tornando-se um referencial
teórico que permite aplicação em diversas áreas do conhecimento, a partir do
conceito de “estilo de pensamento”, precursor e inspirador do famoso conceito de
paradigma, de Kuhn. Para Fleck, um estilo de pensamento é um perceber dirigido,
um modo dinâmico de entender, ver, pensar e deliberar sobre um objeto, formado
por um conjunto de opiniões e princípios que permitem a emergência dos fatos
científicos. Membros que compartilham de um mesmo estilo de pensamento formam
16
um coletivo de pensamento, composto de vários níveis de circulação de
conhecimento, mais ou menos especializados (FLECK, 1986).
Todo estilo de pensamento busca um efeito prático relacionado à perspectiva
teórica que norteia o investigador. O método escolhido por ele no processo de busca
do conhecimento está intimamente relacionado com os valores e crenças, que
variam de acordo com a história e o meio social em que está inserido (SLONGO,
2004). O conhecimento é gerado a partir de questões existentes no senso comum,
que são investigadas e reconstruídas em círculos esotéricos (de saber
especializado) para retornar às camadas exotéricas (populares) com significados e
valores que influenciam as concepções sobre o objeto estudado. As informações
chegam a essas camadas com uma forma de entendimento mais simples e
carregada de “certezas” que não são questionadas nesses círculos, pois se tornam
dogmas.
Percebi, então, que a “forma de pensar” epidemiologia poderia ser talvez
associada a um “estilo de pensamento”. Portanto, as questões que se
transformaram em problemas de pesquisa foram: o que diferencia a epidemiologia
crítica em relação à epidemiologia em geral? Como a epidemiologia se apresenta à
luz da epistemologia de Ludwik Fleck? A epidemiologia caracteriza-se como um
único estilo de pensamento, composto de várias matizes ou comporta mais de um
estilos de pensamento? Quais seriam esses estilos de pensamento e suas
características?
Como meu interesse específico foi a epidemiologia crítica, o foco do estudo
naturalmente convergiu dela em relação à epidemiologia em geral. Seria, então, a
epidemiologia crítica um estilo de pensamento distinto? Uma resposta preliminar
17
positiva a esta questão foi esboçada por Ros (2000): partindo da categoria fleckiana
de estilo de pensamento, em análise de produção bibliográfica de duas grandes
escolas brasileiras de saúde pública brasileira, (Faculdade de Saúde Pública e
Escola Nacional de Saúde Pública) encontrou que de um total de onze estilos de
pensamento identificados havia duas epidemiologias, uma clássica e outra crítica,
sustentando e caracterizando sumariamente esta diferenciação através das
“gerações sucessivas” de dissertações e teses produzidas naquelas escolas. Este
primeira resposta inicial aguçou a necessidade de melhor entendimento dessas
correntes epidemiológicas, motivadora deste estudo.
Para encontrar as respostas às questões levantadas, o objetivo deste estudo
foi investigar se a epidemiologia crítica pode ser caracterizada como um estilo de
pensamento epidemiológico e realizar essa caracterização, esclarecendo as
diferenças percebidas entre a epidemiologia crítica e o campo epidemiológico em
geral. As idéias epistemológicas de Fleck foram tomadas como referência teórica,
partindo da pressuposição que os conceitos utilizados para explicar as formas de
construção e legitimação de uma ciência poderiam ser relacionadas com a história e
fundamentos das principais correntes da epidemiologia.
ESTRATÉGIAS METODOLÓGICAS:
Esta é uma pesquisa qualitativa, de caráter analítico-conceitual em que foi
realizado o levantamento de fontes e literatura de apoio, contemplando artigos
científicos, livros e teses sobre o tema. Os materiais de apoio foram escolhidos de
acordo com a sua importância para o entendimento da discussão e do debate sobre
18
a existência de mais de uma corrente de pensamento nessa área e suas
características, particularmente sobre a epidemiologia crítica. No vocabulário
fleckiano, trata-se da existência de mais de um estilo de pensamento em
epidemiologia, ou pelo menos de matizes nesse campo.
Segundo Abramo (1979), de acordo com o nível de interpretação, a pesquisa
pode ser classificada como identificativa e descritiva porque se pretende identificar e
caracterizar um problema de pesquisa, que é existência de pelo menos duas
diferentes vertentes de estudo em epidemiologia, as comentadas. A perspectiva
teórico-metodológica utilizada para apoiar o estudo foi de referencial materialista
histórico e dialético. Esta opção se deu em função da mesma contemplar as
relações sociais como um todo, entendendo as bases materiais de uma época
enquanto determinantes da consciência dos homens e dos modos pelos quais
organizam e explicam a sociedade. A dialética proporciona a dissolução das
dicotomias quantitativa/qualitativo, macro/micro e interioridade/exterioridade entre as
correntes de pensamento e demonstra sua pertinência e adequação, ou mesmo
superioridade, ao incorporar as verdades parciais de cada corrente, criticando e
negando suas limitações ao considerar a relação inseparável entre o mundo natural
e o social (MINAYO, 2006). Entre as principais contribuições marxistas e hegelianas
ao método dialético, que acabam se tornando seus princípios, estão o entendimento
de que cada coisa é um processo, um tornar-se, sendo que existe um
encadeamento nesses processos; tudo é movimento e transformação. Cada coisa
traz em si a sua contradição, sendo levada a transformar-se em seu contrário. Nos
processos de transformação, a quantidade se transforma em qualidade e toda
qualidade comporta limites quantitativos e vice-versa (MINAYO, 2002).
19
Para discutir a hipótese da existência de mais de um estilo de pensamento na
pesquisa epidemiológica, esclarecendo as diferenças entre esses estilos e, optou-se
por realizar um estudo bibliográfico através de artigos e livros, fazendo uma
abordagem geral do campo de debates sobre o tema. Foram selecionados livros,
capítulos de livros e artigos que mencionam, discutam, analisam ou referenciam as
questões acima mencionados, através de quatro estratégias:
a) busca de teses e livros de acesso gratuito em bibliotecas públicas;
b) análise de textos referidos por informantes-chave, quer de autoria de
epidemiologistas brasileiros ou estrangeiros, mas sabidamente envolvidos na
discussão do tema;
c) busca nas bases de dados online por descritores específicos relativos ao tema;
d) mapeamento da literatura brasileira entre 1976 e 2006, de três periódicos que
tratam da Saúde Coletiva e que publicam artigos em epidemiologia e dentro do tema
desta pesquisa, a saber:
- Revista Brasileira de Epidemiologia abril/1998 a dezembro/2006 30 números,
292 títulos de artigos, por vir se consolidando como um periódico nacional específico
da área.
- Cadernos de Saúde Pública janeiro/1985 a dezembro/2006 128 números, 3026
títulos de artigos, por concentrar a maior parte da produção epidemiológica no Brasil,
de acordo com Guimarães, Lourenço e Cosac (2001).
20
- Saúde em Debate outubro/1976 a agosto/2005 70 números, 936 títulos de
artigos, por ser palco de discussões sobre o tema do Movimento da Reforma
Sanitária Brasileira).
As teses, livros e textos recomendados pelos informantes-chave foram
escolhidos de acordo com o grau de aprofundamento e interesse despertado pela
abordagem dada ao tema da pesquisa. Seguindo essa linha de seleção, foram
encontrados livros e teses referentes à epistemologia em saúde, à história da saúde
pública e livros clássicos e mais recentes sobre epidemiologia, porém todos de
aceitação e cunho teórico bem delineado, com referenciais pertinentes.
O mapeamento dos periódicos totalizou 228 números, contendo 4254 títulos
de artigos. A seleção dos artigos interessantes para a pesquisa se deu através do
conteúdo dos títulos e leitura de resumos quando necessário. Para identificar os
artigos que se enquadravam nos interesses deste trabalho, foram escolhidos os
textos que demonstravam relações temáticas (epidemiologia, método
epidemiológico, suas correntes e seu status teórico), optando-se por trabalhar com
artigos teóricos.
Foram encontrados 63 artigos interessantes, na seguinte distribuição: 14 na
Revista Brasileira de Epidemiologia, 35 na Cadernos de Saúde Pública e 14 na
Saúde em Debate. O acesso aos títulos, resumos e artigos se deu através das
bibliotecas online e bibliotecas da UFSC, UFPR e UEM, bem como pela biblioteca
particular de professores da UFSC. Destes 63 artigos, alguns foram excluídos em
uma análise pormenorizada através da leitura dos resumos e dos artigos (3 da
Revista Brasileira de Epidemiologia, 6 da Cadernos de Saúde Pública e 2 da Saúde
em Debate) restando 52 artigos que foram analisados em seu conteúdo. Entre eles,
21
alguns foram mais contribuintes para os objetivos do estudo (aproximadamente 30
artigos) sendo mais intensamente estudados e utilizados, tanto na fundamentação
teórica quanto no delineamento das categorias de análise. Outros tantos foram
menos importantes, mas foram válidos como literatura de apoio.
A busca nas bases de dados online (|Biblioteca Cochrane, Lilacs, Scielo,
Medline) contemplou a procura por descritores específicos relativos aos objetivos
que estivessem na lista dos Descritores em Ciências da Saúde (DECS). Para
seleção desses descritores, foram utilizados aqueles indicados em artigos que se
referem à produção bibliográfica epidemiológica da América Latina e os utilizados
nos artigos obtidos ou conhecidos. Na busca, realizaram-se combinações com os
descritores “epidemiology”, “health-disease process”, “epidemiologic methods”,
“epidemiologic models”, “epidemiologic research design” e “natural history of
diseases”, que resultaram em artigos publicados em periódicos brasileiros (em sua
maioria em língua portuguesa e espanhola), versando sobre aspectos
epistemológicos da produção epidemiológica em geral, sendo que alguns deles
haviam sido selecionados pela busca entre os periódicos escolhidos. Entre os
artigos em língua inglesa, a maioria não era de acesso gratuito pelo portal de
periódicos CAPES, ficando por isso excluídos da pesquisa.
Os procedimentos foram de leitura, análise e correlação de dados obtidos.
Com base na teoria epistemológica de Ludwik Fleck para caracterização de estilo de
pensamento, foi de fundamental importância a análise de conteúdo para determinar
que aspectos seriam relevantes para a pesquisa.
No processo dinâmico de leitura e análise foram progressivamente
elaborados os critérios que definiram as categorias utilizadas para caracterização de
22
estilos de pensamento em epidemiologia, a partir de leituras e análises sucessivas,
agrupamentos provisórios e posteriormente, definitivos. As categorias emergiram de
acordo com a presença, significado e freqüência de aparecimento de termos e
temas nas leituras realizadas, a partir da visão de Fleck. Tais temas foram se
sobressaindo e apontaram para a necessidade de considerá-los critérios de análise
para a caracterização da epidemiologia crítica como estilo de pensamento. Foram as
seguintes categorias que emergiram do estudo e que organizaram a apresentação
do presente trabalho:
definição do termo epidemiologia,
objeto e objetivos de estudo,
risco e causalidade,
processo saúde-doença e
metodologias de estudo utilizadas.
Tais categorias pareceram adequadas por permitirem uma caracterização de
vários aspectos considerados por Fleck como importantes na conformação de um
estilo de pensamento, embora obviamente não sejam absolutamente extensivos ou
abrangentes; ou seja, não esgotam as possibilidades de leituras fleckianas no
campo, dada a flexibilidade de sua conceituação. Da Ros (2000), dentre outros
quesitos, utilizou como critério para identificação de estilos de pensamento em
saúde pública no Brasil a linha de descendência dos estudos, ou seja, se
personagens esotéricos (pesquisadores) conseguissem dar seguimento teórico e
institucional às suas abordagens e produções através de orientandos ao longo do
tempo; critério desconsiderado neste estudo por razões de conveniência,
factibilidade e limitação temporal do estudo.
23
As categorias que emergiram do estudo mostraram relação com elementos
constitutivos de estilos de pensamento, a saber: um corpo de conhecimentos com
crenças e concepções determinadas; um modo de ver com disposição para um
perceber dirigido e direcionador da observação; elementos teóricos e práticos
amalgamados, orientando a maneira de ver e agir; linguagem específica e
progressiva transformação. A definição do próprio campo da epidemiologia
primeira categoria encontrada apareceu com o compartilhamento de linguagem e
concepções específicas, que circulam entre os campos eso e exotéricos, definindo
um estilo de pensamento. A delimitação e caracterização de objeto e objetivos de
estudo, da mesma forma, mostrou-se parte integrante da constituição de um estilo
de pensamento, sendo orientada pelos elementos teóricos e práticos que
determinam a maneira de ver, podendo lançar diferentes conformações ou recortes
sobre os objetos de conhecimento.
Como todo estilo de pensamento comunga em pressupostos e crenças, as
discussões sobre as noções de risco e causalidade mostraram-se centrais nos
debates teóricos epidemiológicos, bem como nas críticas da epidemiologia crítica
em relação ao campo epidemiológico em geral. Esses conceitos determinaram as
formas de conceber os problemas investigados, funcionando como pilares
conceituais articuladores entre distintas perspectivas teóricas e estilísticas e
remetendo diretamente à quinta categoria, a concepção sobre o processo saúde-
doença e sua natureza. Esta categoria remeteu à visão do processo psico, social e
historicamente determinado das abordagens, possibilitando uma visão inicial que
pode passar pela suave coerção típica das iniciações nos círculos especializados
apontada por Fleck.
24
Um estilo de pensamento científico articula-se ao redor de práticas e
formações específicas. A reprodução de modelos transmissores de crenças e
valores determina o ver formativo e dirigido típico de um estilo na utilização de
métodos comuns. Baseado nesse elemento, os todos epidemiológicos e as
diferenças entre as propostas metodológicas foram a última categoria utilizada para
análise e na organização da discussão.
Por uma questão de organização e apresentação deste trabalho frente aos
resultados do estudo, optou-se por criar uma classificação das diferentes vertentes
da epidemiologia por termos. As leituras realizadas indicaram a existência de
diferentes entendimentos sobre o termo “epidemiologia social” (BREILH, 1991). De
acordo com a sua significação, observada no decorrer nos textos lidos, optou-se por
renomeá-lo de epidemiologia crítica quando se refere à epidemiologia social
latinoamericana, de base teórica marxista, que utiliza a classificação de estratos
sociais baseada na posse dos meios de produção como variável importante,
seguindo a sugestão de Ros (2000). Quando o termo “epidemiologia social” se
refere à epidemiologia que utiliza como variáveis importantes a renda, ocupação e
escolaridade como critério para determinação de classe social, manteve-se o termo
epidemiologia social”.
Como o estudo permitiu uma suficiente diferenciação entre as propostas da
epidemiologia crítica em relação à conformação da epidemiologia em geral, julgou-
se sustentável e razoável estabelecer uma terminologia facilitadora da apresentação
destas diferenças. Por conveniência, acompanhando o estudo de Ros (2000) e à
falta de termo melhor, a epidemiologia em geral, campo disciplinar e teórico-
metodológico amplamente estabelecido e legitimado, sustentado basicamente pela
25
sua articulação com os saberes da clínica e da matemática (estatística), foi chamada
de epidemiologia clássica.
Em conformidade com e por determinação do regimento do Programa de Pós-
graduação em Saúde Pública desta universidade, no seu artigo 35, este trabalho
apresenta-se em duas partes. Na Parte 1, apresenta-se sob o título “Projeto de
pesquisa ampliado”, uma Introdução geral, incluindo apresentação, introdução e
objetivo; a Metodologia e a Fundamentação teórica, esta contendo dois subtópicos:
Epistemologia de Fleck e Epidemiologia: história e formalização. Adicionalmente,
outro tópico apresenta a discussão dos resultados do estudo, seguido das
considerações finais. Na segunda parte do trabalho, encontra-se um artigo científico
a ser submetido à Revista Ciência e Saúde Coletiva.
26
1 A EPISTEMOLOGIA DE FLECK
Ludwik Fleck foi médico, sociólogo do conhecimento e filósofo. Seu único livro
A Gênese e o Desenvolvimento de um Fato Científico (publicado em alemão em
1935 Entstehung und Entwicklung einer wissenchaftichen Tatsache, editado por
Benno Schwabe, na Basiléia) (FLECK, 1986), faz o estudo do desenvolvimento do
conceito da sífilis e da Reação de Wasserman para a história da medicina e a
investigação das conseqüências epistemológicas desse estudo. O livro, com uma
pequena tiragem (600 exemplares), não teve nenhuma repercussão, pois nenhum
judeu-polaco despertaria interesse na Alemanha nazista. O maior interesse pela
obra de Fleck por estudiosos da área ocorreu após a leitura do livro de Kuhn
(SCHÄFER; SCHNELLE, 1986).
Naquele período, as discussões sobre a teoria do conhecimento na Alemanha
giravam em torno do Círculo de Viena, que foi um grupo de cientistas que se reuniu
entre 1922 e 1936 para o desenvolvimento de um sistema chamado empirismo
lógico, também conhecido como positivismo lógico. Nesse sistema, a ciência indutiva
é racional porque indica ao cientista até que ponto suas teorias têm probabilidade de
ser verdadeiras. Assim, a justificação empírica ganhou espaço, utilizando o
verificacionismo para dar espaço ao estudo do todo científico e da teoria da
confirmação. Um de seus principais representantes, Rudolph Carnap, propôs
princípios lógicos para calcular as proporções e o grau de probabilidade e
confiabilidade conferido a uma teoria. Para eles, a ciência se desenvolve ao
converter leis e teorias estabelecidas em conseqüências lógicas das teorias mais
abrangentes e novas (KNELLER, 1980; OLIVEIRA, 1998).
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Karl Popper, contemporâneo a esse movimento, foi figura central para a sua
crítica, propondo substituir o justificacionismo indutivista pelo falseacionismo,
afirmando que a solução proposta pelo positivismo lógico para o problema da
indução não era de fato uma solução. Diferentemente do conceito deste grupo, para
Popper a ciência tem como finalidade inventar teorias que sejam refutáveis e testá-
las procurando um meio de as refutar; a ciência é um tipo de conhecimento que se
caracteriza pela mudança, como um saber que expressa o caminho mais apropriado
para se chegar à verdade. As teorias científicas tradicionais são substituídas quando
outras melhores são produzidas após uma crise, com uma pluralidade de
concepções teóricas. Essas teorias audaciosas chamadas de conjecturas
necessitam de refutações e são aceitas aquelas que sobreviveram a esse
processo; ou seja, a cientificidade estaria na capacidade de resistir à refutação
(KNELLER, 1980; ELIAS, 2000; TESSER, 2003).
A obra de Fleck foi publicada um ano após “A Lógica da Investigação
Científica”, de Karl Popper e na época do desenvolvimento e difusão do empirismo
lógico, corrente diferente das idéias de Fleck. Para Fleck, a ciência não é uma
construção formal, mas uma atividade regida por uma comunidade de
investigadores, sendo que ela pode ser compreendida por processos sociais e das
estruturas psíquicas que conformam os pensamentos coletivos.
1.1. A trajetória de Fleck:
Fleck nasceu em 11 de julho de 1896, em Lwów Galicia (território polonês
naquela época pertencente ao Império Austro-Húngaro), em uma família judia-
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polaca. Terminou seus estudos em 1914, dominando a língua alemã e o polonês,
quando se matriculou na universidade polonesa Jan Kazimierz para estudar
medicina, carreira diferente do pai, que trabalhava com pinturas. Participou do
serviço militar na Primeira Guerra Mundial e formou-se médico generalista,
descobrindo sua aptidão para a microbiologia, ramo em que desenvolveu pesquisas
e publicações. Em 1920 tornou-se assistente no Laboratório de Investigação de
Doenças Infecciosas e entre 1921 e 1923 acompanhou Rudolf Weigl (especialista
famoso em tifo) na cátedra de biologia da faculdade de medicina. Ainda em 1923,
Fleck passou a dirigir laboratórios do Hospital Geral de Lwów, permanecendo até o
ano de 1927, quando passou um período de 6 semanas em Viena realizando um
estágio; e então retornou a Lwów em 1928 para dirigir o Laboratório Bacteriológico
do hospital local. Além disso, até 1935 ele trabalhou em um laboratório privado que
fundou no ano de 1923. No período compreendido entre 1922 e 1939 Fleck publicou
37 trabalhos científicos sobre microbiologia. Foi também nesse período que Fleck
produziu seus primeiros artigos e a monografia sobre filosofia da ciência (SCHÄFER;
SCHNELLE, 1986; DA ROS, 2006).
Com a Segunda Guerra Mundial, Lwów passou a fazer parte do território
soviético. Os centros de teoria da ciência foram dissolvidos e Fleck foi nomeado
diretor do departamento de microbiologia do então Instituto de Medicina Ucraniano
(ex-Faculdade de Medicina de Lwów), além de dirigir o laboratório bacteriológico da
cidade e ser conselheiro em sorologia de um instituto materno-infantil. Após o
ataque da Alemanha nazista à União Soviética, em 1941, Fleck teve que deixar seus
compromissos e foi viver no gueto judeu com sua esposa e filho. Ali, Fleck continuou
seus trabalhos e desenvolveu uma vacina contra o tifo. Então, em 1942, foi
deportado a uma fábrica farmacêutica e em fevereiro do ano seguinte passou a
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trabalhar como enfermeiro num campo de concentração em Auschwitz, onde
sobreviveu a uma grave doença pulmonar. Em 1944, foi deportado novamente, a um
outro campo de concentração – Buchenwald, para trabalhar num laboratório de
produção de vacinas contra o tifo. Ali, Fleck e seus companheiros de prisão
produziram uma série de vacinas ineficazes sem que os guardiões percebessem e
que foram entregues em grande quantidade, sendo que as úteis foram destinadas
aos companheiros daquele campo de concentração. Fleck, sua mulher e filho (salvo
por um comunista) sobreviveram, porém os outros familiares pereceram na guerra
(SCHÄFER; SCHNELLE, 1986).
Em 11 de abril de 1945 Fleck foi libertado do campo de concentração e teve
que passar vários meses se recuperando em um hospital antes de voltar à Polônia.
Então foi à Lublin e em 1945 tornou-se diretor do departamento de microbiologia da
primeira universidade polaca pós-guerra, a Marie Curie-Sklodowska. Entre 1946 e
1957, Fleck dedicou maior parte de seu tempo e trabalho à medicina, ganhando
responsabilidades e reconhecimento junto aos órgãos de estudo da microbiologia e
imunologia na medicina. Nesse período, coordenou quase 50 trabalhos e publicou
87 trabalhos em revistas por todo o mundo, participando de congressos e ganhando
prêmios (SCHÄFER; SCHNELLE, 1986).
Em 1956, Fleck teve seu primeiro infarto e um diagnóstico de câncer nos
gânglios linfáticos, o que agravou seu estado de saúde. Embora estivesse com uma
boa posição na ciência polonesa, decidiu mudar-se junto com a esposa para a
Israel, na Palestina, para viver próximo de seu filho que estava desde o fim da
guerra. Na Palestina deu continuidade a seus trabalhos de investigação no Instituto
de Investigação Biológica de Ness-Ziona e em 1959 foi nomeado professor visitante
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na disciplina de microbiologia, na universidade de medicina de Jerusalém; mas teve
sua atuação limitada devido à dificuldade com a língua e sua situação de saúde. Em
5 de junho de 1961, Fleck sofreu mais um infarto, e faleceu aos 64 anos de idade
(SCHÄFER; SCHNELLE, 1986).
1.2. Influências e idéias epistemológicas:
A prática da medicina não foi a única ocupação de Fleck. Ele sempre dedicou
horas do seu dia à leitura de filosofia, sociologia e história da ciência, circulando
entre o clima cientifico interdisciplinar de Lwów e tendo maior contato com a escola
filosófica que se sustentou entre 1895 e 1930 aberta a discussões das quais Fleck
participava ativamente, a Sociedade dos Amigos da História da Medicina filiada à
Sociedade Polonesa de História e Filosofia da Medicina. A origem da Escola
Polonesa pode ser reportada ao fim da Primeira Guerra Mundial, quando a Polônia
passou por um período de reconstrução, com destaque dos médicos-filósofos
poloneses: Chalubinski, Biernacki, Bieganski, Kramsztyk, Szumoski e Wrzosek, os
quais tiveram grande importância para Fleck, sendo que suas idéias são
encontradas nos seus artigos e na sua monografia, embora não sejam citados
(SCHÄFER; SCHNELLE, 1986; DA ROS, 2006).
Essa influência pode ser notada na idéia da mutação científica ocorrida a
cada nova geração de pesquisadores; da formação dica instilando as formas de
pensar dos jovens; do entendimento das doenças como construções didáticas dos
médicos; da extração dos fatores psicológicos e realidade social como
determinantes das doenças; da não-regularidade no fenômeno da doença,
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considerando a individualidade das pessoas e a compreensão da ciência como uma
maneira de resolver um quebra-cabeças; do entendimento que a visão de todo
cientista vem permeada de verdades anteriores, que o podem determinar
neutralidade na observação do objeto; da importância da história no
desenvolvimento científico, de diferentes círculos de conhecimento (compatíveis ou
não) e da relação entre sujeito e objeto, além de discutir como ocorre a “coerção” de
um novo cientista (DA ROS, 2006).
Na monografia de 1935 (elaborada entre 1931-1934), Fleck explicita suas
idéias sobre os determinantes das formas de pensamento e como ocorre a
divulgação e legitimação dessas formas. Um dos principais conceitos utilizados é o
de “estilo de pensamento”; que é uma forma de entender um determinado objeto,
influenciada pela história, relações sociais, psicológicas e pela suave coerção
recebida no aprendizado, facilitando a percepção dessa idéia. Pessoas que
compartilham de um mesmo estilo de pensamento formam um “coletivo de
pensamento”, caracterizado por possuir linguagem específica, práticas, valores,
normas, interesses, objetivos e todos comuns, solidariedade inter-pares e
formação especializada.
O estilo de pensamento consiste, como qualquer estilo, em uma
determinada atitude e no tipo de atividade que o consuma. Esta
atitude tem duas partes estritamente relacionadas entre si;
disposição para um sentir seletivo e para a ação conseqüentemente
dirigida. Ela cria as expressões que lhes são adequadas: religião,
ciência, arte, costume, guerra, etc., dependendo em cada caso da
prevalência de certos motivos coletivos e dos meios coletivos
aplicados. Portanto, podemos definir o estilo de pensamento como
um perceber dirigido com a correspondente elaboração intelectiva e
objetiva do percebido. Fica caracterizado pelos traços comuns dos
problemas que interessam ao coletivo de pensamento, pelos juízos
que o pensamento coletivo considera evidentes e pelos métodos que
emprega como meio de conhecimento. O estilo de pensamento
também pode ir acompanhado pelo estilo técnico e literário do
sistema de saber (FLECK, 1986, p.145).
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De acordo com Löwy (1994, p.237): “O conceito de estilo de pensamento
tenta abranger tanto os pressupostos a partir dos quais o grupo constrói seu estoque
específico de conhecimento, quanto sua unidade conceitual e prática”. Além disso,
o estilo de pensamento constrói o corpo das práticas, métodos, ferramentas e
critérios para julgamento de resultados, define o que deve ser considerado um
problema científico e molda os fatos produzidos pelo coletivo de pensamento. A
internalização das normas, valores e aquisição de habilidades específicas ocorre
quando o indivíduo passa por um processo de socialização em um coletivo de
pensamento.
No interior de um coletivo de pensamento, existe uma relação cognoscitiva
entre objeto e sujeito, que não deve ser entendida como uma relação bilateral, pois
sofrem a influência das relações históricas, sociais e culturais que marcam
fortemente o estilo de pensamento. Um coletivo de pensamento é construído por
conexões ativas e passivas, que são, respectivamente, os pressupostos sócio-
históricos do sujeito e as percepções da realidade por eles elaboradas a respeito do
objeto. Elementos passivos e ativos não são separados, nem logicamente, nem
historicamente. No desenvolvimento do fato científico, ocorre uma troca de saberes
e de posições entre as conexões. Essas conexões são relacionadas para manter em
harmonia as idéias do estilo; e quando não são harmônicas, são descartadas ou
reinterpretadas (FLECK, 1986).
Em oposição ao empirismo/positivismo lógico do Círculo de Viena, Fleck
acreditava que os fatos não existem isoladamente, tendo uma construção histórica e
cultural desde o seu nascimento. Um fato passa a ser fato científico quando um
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estilo de pensamento elabora sua forma de explicação, compartilhada entre os
membros do coletivo de pensamento (DA ROS, 2000).
(...) podemos definir o fato científico como uma relação conceitual
conforme o estilo de pensamento que é analisado, desde o ponto de
vista da história e da psicologia - seja esta individual ou coletiva -,
mas que nunca é reconstruído em todo seu conteúdo desde esses
pontos de vista. Com isso se expressa a relação inseparável das
partes ativas e passivas do saber e o fenômeno de que o número de
ambas partes cresce paralelamente ao número dos fatos (FLECK,
1986, p.130).
Na ciência, um coletivo é constituído pela comunidade dos cientistas de um
determinado campo ou área do saber. Em um estilo de pensamento podem existir
diferenças e aproximações, que são chamadas de matizes e que ocorrem sem, no
entanto, constituírem um estilo distinto. Todavia, existem no campo científico – e fora
dele estilos de pensamento diferentes com abordagens próprias, entre os quais
pode ocorrer e ocorre, em maior ou menor grau, uma circulação intercoletiva de
idéias uma conceituação de Fleck que se refere ao compartilhamento de idéias
entre diferentes coletivos de pensamento portadores de estilos suficientemente
elaborados e distintos entre si (FLECK, 1986).
Utilizando a Gestalt como forma de demonstração, inclusive para criticar os
empiristas, Fleck elaborou sua teoria para sustentar que é impossível um “observar
neutro”, que não esteja impregnado de pressupostos que são característicos de
determinado estilo de pensamento. Esses pressupostos vão interferir diretamente na
forma como se olha para o objeto em questão. Fleck chama de “ver formativo” a
maneira com que o cientista se relaciona com seu objeto de estudo, a partir de uma
prévia iniciação teórico-prática e de experiências vivenciadas naquele estilo. O
objeto de estudo precisa ser compreendido pelo coletivo para que passe a ser
enxergado de uma forma direta, como um fato científico. A princípio, pode haver um
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“ver confuso inicial”, caótico e heterogêneo, mas à medida que os fundamentos do
estilo de pensamento são elaborados pelo indivíduo, inclusive por uma suave
coerção, permite-se a construção do fato científico de forma mais elaborada. “Assim
é como surge o fato: primeiramente, um sinal de resistência no pensar caótico
inicial, depois uma determinada coerção de pensamento e finalmente, uma forma
diretamente perceptível” (FLECK, 1986, p.141).
Os coletivos de pensamento se organizam na forma de círculos sócio-
cognitivos concêntricos, onde os núcleos centrais esotéricos são formados pelos
“super-especialistas”, os produtores de saber que publicam a ciência de revista. À
medida que se vai distanciando desses núcleos, aparecem os chamados círculos
exotéricos, compostos por uma gama de profissionais instruídos e generalistas,
produtores da ciência de manual. Mais distante do núcleo esotérico e, portanto, mais
exotérica ainda, está a ciência popular, que é a menos importante no contexto do
coletivo. A característica principal desta ciência são os livros de texto, em que se
fornece uma visão simplificada, gráfica e clara do objeto, omitindo detalhes e
concepções discutíveis nos círculos esotéricos.
É no centro esotérico que é construído o estilo de pensamento, e quanto mais
distante do centro esotérico estiver o conhecimento, mais fortemente estará
dominado por um grafismo emotivo, que confere ao saber a segurança subjetiva do
religioso e do evidente. A compreensão do fato científico também é diferente nos
círculos eso e exotéricos. À medida que se afasta do núcleo esotérico em direção à
periferia, o fato tem uma tradução mais simplificada dos “leigos formados”,
estabelecendo sempre uma relação de confiança no círculo mais esotérico dos
“iniciados” (FLECK, 1986). Assim, há transformações no saber no sentido eso-
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exotérico. Por outro lado, em sentido inverso, uma série de concepções gerais,
pressupostos cosmológicos, crenças, valores e verdades da ciência exotérica
formam e influenciam os pesquisadores esotéricos, constrangendo em parte sua
capacidade de pensar, imaginar e perceber, sustentando verdades evidentes por si
próprias que não são mais questionadas. Assim, fecha-se o circuito da circulação
intracoletiva de idéias e saberes num estilo de pensamento.
Após a instauração de um estilo de pensamento, inicia-se a fase chamada
classismo, caracterizada pela “harmonia das ilusões”, quando se busca explicar
todos os fatos através daquele estilo, desconsiderando as complicações ou
adaptando-as a essa explicação dos fenômenos. Nesse momento, para a
manutenção dessa harmonia, o coletivo exerce uma suave coerção para o ver
formativo. Isso ocorre até o momento em que se a consciência da complicação,
ou seja, dos fatos que não se encaixam e não podem ser explicados pela teoria
dominante. A consciência da complicação é importante para que surjam mudanças
no estilo de pensamento e que todo o processo se reinicie. Estilos de pensamento
são influenciados e formados a partir de protoidéias ou pré-idéias, que são esboços
das teorias vigentes e permitem ligações com as experiências do passado. Porém,
nem todo fato científico nasce de uma protoidéia, mas também da consciência de
uma complicação (FLECK, 1986).
De acordo com a teoria de Fleck, coletivos de pensamento diferentes que
possuem diferentes estilos podem apresentar aproximações divergentes na forma
de perceber um objeto. Essas diferenças caracterizam os estilos como
incomensuráveis. Assim, quanto maior a diferença entre os estilos, menor é a
circulação intercoletiva de idéias. Neste caso, criam-se outros estilos de
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pensamento, quando se realizam e compartilham outras idéias, pois muitas vezes
ocorre a perda de habilidade pelos membros de um coletivo para reconhecer
fenômenos diferentes daqueles trabalhados por seu estilo. Fleck reconhece que a
dinâmica da transformação detectada em determinada área do saber pode ser
traduzida no percurso histórico percorrido (SLONGO; DELIZOICOV, 2006). Assim,
por considerar os fatores histórico-psico-culturais na construção do conhecimento,
Fleck passou a ser conhecido como o “pai” do chamado construtivismo
sociologicamente orientado (DA ROS, 2000).
O fato científico estudado por Fleck é a reação de Wassermann, produzida
num laboratório dico para detecção da sífilis. Fleck afirma que essa reação não
foi “descoberta” apenas por um cientista, mas foi o produto de um esforço coletivo e
moldado por múltiplas interações. Ele explica que fatos científicos o validados e
não podem ser concebidos fora do grupo de pessoas que o criam e possuem. É
possível que um grupo de pensadores adote um fato científico de um outro grupo,
incomensurável a ele. Com essa apropriação, o fato adquire uma tradução
específica, diferente do significado inicial, mas não se torna imperfeita, pois
enriquece o estilo de pensamento que o assimila. Isso se caracteriza como uma
importante fonte de inovação na sociedade científica por influenciar novas
descobertas, conceitos, opiniões e hábitos (LÖWY, 1994).
Nesse estudo do processo e práticas cientificas, podem ocorrer contradições
entre rigidez e inovação, algumas vezes dificultando o sucesso da inovação; então,
a interação entre distintos mundos sociais pode ser feita pelos objetos fronteiriços.
Este termo foi adotado por sociólogos da ciência para definir entidades com periferia
difusa no uso comum, porém com núcleo rígido, compartilhado por diferentes
37
grupos. A circulação desse objeto possibilita o desenvolvimento de zonas de
interesse em diferentes mundos sociais (LÖWY, 1994).
A teoria epistemológica de Ludwik Fleck permite abordar a natureza coletiva
da investigação, o caráter histórico e a tendência à persistência das idéias
influenciadas pelo ver formativo como elementos importantes na gênese do
conhecimento (LEITE; FERRARI; DELIZOICOV, 2001). Entendendo o de estilo de
pensamento enquanto uma construção sociologicamente orientada, considera-se a
teoria fleckiana válida para análises de pensamento na saúde; pois, para Fleck, a
sífilis e outras doenças são construções coletivas dos médicos, que interagem seus
conhecimentos com aqueles fornecidos pelos pacientes e assim estabelecem sua
prática.
1.3. Kuhn e as revoluções científicas:
Como foi citado anteriormente, um autor que utilizou a obra de Fleck como
referencial importante para o desenvolvimento de suas idéias sobre a teoria do
conhecimento foi Thomas Kuhn. A análise histórica foi utilizada por Kuhn como um
instrumento de pesquisa e posicionou-o contra o positivismo gico, de cunho a-
histórico e voltado para a lógica formal na análise das teorias com desenvolvimento
observacional neutro. Assim, Kuhn propõe a idéia de que a evolução de uma ciência
madura ocorre por uma seqüência de períodos de continuidade em que se pode
adotar a idéia de desenvolvimento cumulativo, interrompidos por episódios
extraordinários que rompem com a dominação de um modelo científico até então
estabelecido, denominado paradigma (ZYLBERSTAJN, 1991). Para Kuhn (2007), a
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existência de um paradigma é mais complexa que a existência de um conjunto de
regras. Usualmente, um paradigma é entendido como um modelo ou padrão aceito e
tem assumido sentidos bem diferentes e mais simplificados que os kuhnianos.
Uma das definições de Kuhn (2007, p. 13) aponta como paradigmas as “...
realizações científicas universalmente reconhecidas que, durante algum tempo,
fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de
uma ciência”. Um paradigma tem características essenciais para a sua manutenção,
a saber: que suas realizações sejam suficientes para atrair um grupo duradouro de
partidários, afastando-os de outras formas de atividade científica e que sejam
suficientemente abertas para deixar toda a espécie de problemas passíveis de
serem resolvidos pelo mesmo grupo de praticantes.
Ainda analisando os significados do termo paradigma na leitura da Estrutura
das Revoluções Científicas, Masterman (1979) aponta 21 diferentes sentidos, nem
todos incompatíveis entre si, mas pertencentes a três grupos principais: os
paradigmas metafísicos ou metaparadigmas (relacionados ao sentido filosófico,
como princípio organizador que rege percepções, mitos, crenças); os paradigmas
sociológicos (aqueles que se referem à concretude de uma realização científica e
sua legitimação); e finalmente, os paradigmas de artefato ou construção (como um
manual, fornecedor de instrumentos de trabalho tanto para iniciantes quanto para
iniciados e praticantes esotéricos).
Assis (1993) ressalta que os termos paradigma e ciência normal são
utilizados por outros autores e historiadores de epistemologia de forma bem distinta
do que foi preconizado por Kuhn, assumindo significados diferentes especialmente
em trabalhos de ciências humanas. A teoria de Kuhn é dirigida, principalmente, para
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análises de fatos em ciências naturais e de mais fácil aplicabilidade nesse ramo;
pois, segundo o autor, podem ser esclarecidos através de mecanismos lógicos e
matemáticos. De outro lado, as ciências sociais e as humanidades são mais
dificilmente reconhecidas como ciência dentro dos padrões kuhnianos por
apresentarem características próprias, como a complexidade, auto-decepção,
dificuldade em determinar o que seja um experimento e em realizar a repetibilidade.
Kuhn (2007) afirma que na ausência de um paradigma, todos os fatos que
propiciam o desenvolvimento de uma ciência parecem ser relevantes. Para que um
paradigma seja reconhecido como tal, é necessário que ele passe por uma
sucessão de fases pré-paradigmática, paradigmática, crises e revoluções
periódicas as quais caracterizam o progresso da ciência como algo mais ligado à
transformação do conhecimento do que à busca ou aproximação de uma verdade,
descrição objetiva da natureza (STENGERS, 1979). Assim, a história de uma ciência
madura pode ser vista como uma sucessão de tradições, cada qual com teoria e
métodos próprios, guiando os cientistas (comunidade científica) durante um período
de tempo e proporcionando fundamentos para a prática posterior, o que caracteriza
a ciência normal (KNELLER, 1980; EPSTEIN, 1990). Assis (1993) afirma que a
aceitação desse novo paradigma pode ser considerada um fenômeno irracional, à
medida que está muito mais relacionada com aquilo que o novo paradigma poderá
fazer no futuro do que com o que ele já fez no passado.
À medida que um indivíduo ou grupo é capaz de reunir a maioria dos
cientistas da geração seguinte, as escolas mais antigas vão gradualmente
desaparecendo, dando maior espaço à emergência do novo paradigma. Assim,
quando um paradigma pode ser considerado como vigente, os cientistas não
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precisam mais estudar os seus primeiros princípios com tanto afinco, concentrando
maior atenção nos aspectos mais esotéricos dos fenômenos relativos àquele
paradigma. Paradigmas assumem posição de status por serem a forma mais bem
sucedida na resolução de problemas graves. A ciência normal consiste na
atualização e ampliação dessas formas, diferente da sua mera reprodução. Nesse
sentido, do ponto de vista kuhniano as áreas de investigação podem parecer
minúsculas, mas é essa concentração nos detalhes mais esotéricos que permite a
evolução da ciência normal (KUHN, 2007).
A pesquisa normal permite que as idéias do paradigma se apliquem a todas
as análises, mesmo que apresentem anomalias; ou seja, dados que não podem ser
ajustados pelo profissional. À medida que essas anomalias se repetem, como
elementos estranhos não integrados à tradição paradigmática, desorientam a ciência
normal e suscitam a revolução científica, de forma que o anômalo tenha se
convertido no esperado e ajuste a teoria do paradigma, considerando assim, o novo
fato como cientifico. Quanto maior for a precisão de um paradigma, mais sensível
ele separa indicar as anomalias. O surgimento da crise paradigmática pode ser
considerado uma pré-condição para que surjam novas teorias. Conseqüentemente,
os métodos, conceitos, crenças, hábitos e linguagem utilizados pela comunidade
científica são compartilhados entre os homens que aprenderam as bases de seu
campo de estudo a partir dos modelos concretos e os estudantes, permitindo a
gênese e continuação da tradição em determinada pesquisa. Kuhn (2007) cita como
características da emergência de descobertas científicas que podem causar a
revolução:
(...) a consciência prévia da anomalia, a emergência gradual e
simultânea de um reconhecimento tanto no plano conceitual como no
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plano da observação e a conseqüente mudança das categorias e
procedimentos paradigmáticos mudanças muitas vezes
acompanhadas por resistência (p.89).
Após essa fase de mudança e legitimação de um paradigma, os cientistas
podem ocupar-se com os quebra-cabeças. Esse termo kuhniano, também usado
previamente por Fleck, refere-se a uma categoria de problemas da ciência que
suscitam habilidade e engenhosidade para resolução e têm seu mérito na motivação
que despertam no cientista, além da ampliação e precisão do conhecimento sobre o
fato. A explicação de um quebra-cabeças somente é possível após a transição de
um paradigma, ou seja, quando ele tem sua maturidade após a superação da crise e
se torna uma ciência madura (KUHN, 2007).
Para Kuhn (2007), o que caracteriza a incomensurabilidade, que distingue os
paradigmas é a diferenciação entre escolas científicas. Esta não diz respeito
exclusivo ao insucesso de algum método, mas às diferentes maneiras de ver o
mundo e nele praticar sua ciência, pois o mundo do cientista é qualitativa e
quantitativamente transformado pelas novidades dos fatos e teorias, que não são
separáveis e nem se distinguem. Kuhn define três focos para a investigação de
fatos científicos. Numa primeira classe a determinação do fato significativo em
que os fatos revelam a natureza das coisas, dos quais surgem os paradigmas de
definição precisa. Em segundo lugar a harmonização dos fatos com a teoria
relacionada aos fenômenos que podem ser comparados às predições da teoria
paradigmática (comparação entre teoria e natureza). A terceira classe, que esgota a
literatura da ciência normal, teórica e empiricamente a articulação da teoria
permite a resolução de problemas relacionados aos trabalhos empíricos, que até
então a teoria do paradigma tinha apenas chamado a atenção. Para o autor, essa é
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a mais importante das classes, pois não permite somente a previsão de
informações, mas a verificação através das experiências.
No posfácio de seu livro, Kuhn (2007) explica que o motivo que leva à
abundância de comunicações e à relativa unanimidade de julgamentos profissionais
sobre o tema da ciência que se discute é a matriz disciplinar; que é um conjunto de
convicções que formam os fundamentos da ciência normal, guiando o
funcionamento dessa ciência. Este termo foi proposto por Kuhn a partir das várias
críticas recebidas e das imprecisões do termo paradigma, buscando sintetizar um
significado ampliado deste conceito: a matriz disciplinar. Ela é composta pelos
elementos definidos como paradigmas, em diferentes momentos da descoberta
científica. Entre eles, o primeiro elemento é composto pelas generalizações
simbólicas, que o os pontos de apoio que os membros da comunidade científica
utilizam para aplicar suas técnicas. Geralmente, se assemelham às leis da natureza
e podem ser expressas de forma lógica.
O segundo elemento, chamado de modelo, é composto por crenças em
modelos. Determinam o que pode ser aceito como uma explicação de quebra-
cabeças, através do fornecimento de analogias ou metáforas permissíveis. O
terceiro elemento da matriz constitui-se de valores, geralmente mais partilhados do
que as generalizações e os modelos. Contribuem para que o cientista se sinta parte
de uma comunidade e os mais intensos valores são os que dizem respeito às
predições, podendo ser determinantes centrais do comportamento do grupo, mesmo
quando seus componentes não os utilizam da mesma maneira. O quarto elemento é
formado por exemplares. São as soluções de problemas transmitidas nas escolas
científicas que indicam aos jovens pesquisadores como devem realizar seu trabalho.
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São aprendidos por semelhança, através de manuais e exemplos de resolução de
problemas por professores, durante a iniciação na comunidade e no estilo de
pensamento, pelo que detém grande importância na introjeção de um paradigma.
Mais do que os outros elementos da matriz, são as diferenças entre os exemplares
que determinam a estrutura das comunidades científicas.
Em relação ao processo de iniciação sofrido pelos cientistas na prática da
ciência normal, Epstein (1988, p. 113) expõe que:
Uma das conseqüências psicossociais ou sociológicas da prática da
ciência normal é fornecer parâmetros inequívocos para aferir a
habilidade dos cientistas em resolver os quebra-cabeças, a partir
dos pressupostos e das regras não-problematizados dos
paradigmas. Neste ponto não difere de uma das funções sociais de
qualquer jogo esportivo, xadrez etc., regido por regras arbitrárias,
que é a de hierarquizar seus participantes segundo sua habilidade.
Ao contrário, porém, do que ocorre nos jogos, a própria prática da
ciência normal gera as anomalias. Além disso, essa função de
hierarquizar os cientistas segundo sua habilidade em resolver os
quebra-cabeças é adstrita á ciência normal.
Apesar da existência desses elementos, Kuhn não as matrizes
disciplinares como um receituário metodológico, mas como um processo
educacional. O estoque partilhado de exemplares proporciona ao neófito as
realizações científicas que orientam a prática posterior e é a crença nesse “fio
condutor”, associada à habilidade e expectativa profissional, que desencadeia nos
pesquisadores a motivação pela resolução de quebra-cabeças (OLIVA, 1994).
44
1.4. Considerações sobre as diferenças e semelhanças entre Kuhn e Fleck e
seu uso na saúde:
Atualmente, os conceitos fleckianos não são utilizados somente em pesquisas
relacionadas à história da ciência ou da reação de Wasserman, mas no estudo das
relações entre coletivos e em pesquisas sobre o ensino e prática de saúde. Essa
compreensão da contribuição fleckiana criou um coletivo de pensamento próprio de
trabalhar e conceber saúde, compreender a dinâmica de relações que determinam o
estabelecimento de normas e padrões, além da maneira como cada estilo se
sobrepõe ao outro. No Brasil, os estudos que utilizam a referência fleckiana são
restritos a um núcleo de pesquisa do Rio de Janeiro RJ (IMS/UERJ)
1
e outro em
Florianópolis SC (UFSC)
2
. Esse coletivo de pensamento, formado por
pesquisadores que usam o referencial de Fleck, tem analisado, entre outras
pesquisas, os estilos de pensamento da saúde e da educação confrontando idéias e
desmascarando os ideais hegemônicos que regem esses fatos.
Após a leitura e compreensão das suas principais obras, vale a pena salientar
algumas diferenças e semelhanças encontradas entre as idéias de Kuhn e Fleck.
Primeiramente, independente de ter ou não se apropriado das idéias de Fleck, cabe
a Kuhn o mérito de ter trazido de volta ao público as idéias fleckianas, que então
foram traduzidas, publicadas e difundidas (WINNECHE,1993 apud LIMA, 2002); pois
foi a partir daí que pôde-se investigar e comparar as obras dos dois autores e
compreender as influências sofridas por ambos no delineamento de seus
pressupostos.
1
Instituto de Medicina Social da Universidade Estadual do Rio de Janeiro
2
Universidade Federal de Santa Catarina
45
Fleck, diferentemente de Kuhn, desvia do problema da ciência madura, que
necessita um longo processo para ser legitimado enquanto um paradigma
hegemônico, permitindo que ciências recentes influenciem membros de um coletivo
de pensamento no delineamento de suas práticas e formas de pesquisa e trabalho.
Além disso, o conceito de estilo de pensamento aplica-se a todas as ciências,
inclusive as humanas, enquanto o paradigma kuhniano se aplica mais facilmente às
ciências naturais, consideradas maduras. A teoria de Fleck torna-se mais adequada
quando se pretende estudar aspectos mais amplos de grupos sociais historicamente
localizados, considerando a produção do conhecimento no senso comum, sem
tomar uma postura relativista do conhecimento científico. Fleck o status de
conhecimento científico à maior concentração de informações sobre a realidade,
considerando que ele deve ser historicizado e contextualizado sociologicamente
(CUTOLO, 2001).
De um ponto de vista temporal, enquanto a teoria de Kuhn é mais
retrospectiva e histórica, ligada ao desenvolvimento do saber ao longo do tempo; a
teoria de Fleck embora não desconsidere o processo que levou à produção do
conhecimento propõe uma ligação maior com o presente e com as questões que
influenciam, determinam e sustentam a existência dos estilos de pensamento na
atualidade e a sua prática.
Condé (2005) infere que aos olhos de Fleck, a ciência não é algo
revolucionário, mas sim evolucionário, visto como uma mutação continuada,
construída por um processo de interações ao longo do tempo, cheio de percalços,
com avanços e retrocessos, mas que não contempla uma abrupta descontinuidade.
46
Isso evita que os limites dos estilos de pensamento sejam entendidos como são os
paradigmas, herméticos e incomensuráveis. De acordo com o autor:
Revolução implica descontinuidade e, por conseguinte, para Kuhn,
incomensurabilidade entre as duas partes da descontinuidade. Essa
descontinuidade não parece confirmar-se efetivamente quando
voltamos os olhos para aspectos históricos da ciência. Entretanto,
em Kuhn, a dimensão histórico-social tem uma grande importância e,
se incomensurabilidade e história não se adaptam reciprocamente,
existe aí um grande problema para a teoria da ciência de Kuhn
(p.132).
Também Feyerabend (1979), comenta que um dos problemas da teoria
kuhniana é que na verdade, ao observarmos a história, parece mais que ambas,
ciência normal e revolucionária convivem a maior parte do tempo, apenas que
raramente a segunda se expande e ganha importância, logrando adquirir maior
visibilidade, influência e certa hegemonia, tornando-se a partir daí matriz de posterior
ciência normal.
Ao referir-se à mudança de paradigmas como algo relacionado à evolução,
Kuhn utiliza-se do termo darwinista no intuito de indicar uma mutação revolucionária
que ocorre ao longo do tempo. Mais uma vez, pode-se lembrar de Fleck, que tem
entre seus pilares a crítica ao positivismo lógico, a influência da Escola Polonesa de
Filosofia e História da Medicina, a sociologia e, finalmente, o darwinismo (CONDÉ,
2005).
Delizoicov et al. (2002) apontam que existem correspondências entre as
categorias teóricas de Fleck e Kuhn, porém, as dinâmicas que determinam o
estabelecimento dessas categorias são diferentes entre as duas teorias. Os termos
incomensurabilidade, círculos esotéricos e exotéricos são iguais nas obras dos dois
autores, porém, outros que têm denominação distinta com significados
semelhantes, a saber: comunidade científica e coletivo de pensamento, ciência
47
normal e extensão do estilo de pensamento (classismo), revolução científica e
transformação do estilo, anomalias do paradigma e complicações da teoria
dominante.
A análise fleckiana dos temas de saúde, diferentemente da kuhniana,
possibilita a compreensão da co-existência de diferentes formas de pensar, tratar,
prevenir, ensinar e promover a saúde das populações. Além disso, permite analisar
as pequenas diferenças que existem dentro de um mesmo estilo de pensamento, em
forma de matizes, termo (tema) que Kuhn o aborda. Em adição, o processo de
coerção sofrido pelos membros é analisado muito mais claramente na teoria de
Fleck, o que permite refletir sobre as amplas questões envolvidas na transmissão de
conhecimentos na área da saúde, inclusive na saúde pública, seja nas salas de aula,
nos grupos de pesquisa, nas ciências de revista, de manual ou ciência popular
dirigida para a população em geral.
Kuhn (2007) e Fleck (1986) analisam a produção do conhecimento
valorizando as dinâmicas históricas que permeiam as disciplinas e práticas,
permitindo sua aplicação em vários campos do conhecimento. No caso específico da
saúde, a contribuição dos autores serve, entre outros pontos, para analisar a
disseminação do conhecimento e a maneira como um “paradigma hegemônico” ou
um “estilo de pensamento” se inicia, se sustenta e agrega novos pesquisadores para
a sua corrente. Isso contribui para o entendimento de como ocorre a formação do
pensamento do profissional, a sua concepção do processo saúde-doença e a forma
com que os dados relativos à saúde das populações são analisados e sobre os
quais são traçadas ações voltadas para o controle, erradicação, prevenção e
promoção.
48
Fleck considera as doenças como resultado de interações multifatoriais,
através de uma abordagem integradora (DA ROS, 2000). Como a saúde é um
campo de conhecimento essencialmente amplo, transdisciplinar, prático, filosófico e
político, permite a aplicação de dados empíricos que não precisam necessariamente
ser comprovados lógica e matematicamente. Essa é uma das grandes diferenças
que torna a análise fleckiana mais próxima desse campo, ganhando maior espaço e
novos adeptos ao longo do tempo.
As boas experiências na utilização de Fleck para analisar situações relativas à
saúde trazem à tona a necessidade de continuar realizando trocas de conhecimento
nesse meio transdisciplinar da epistemologia saúde, educação, história e filosofia;
pois o caráter genérico e amplo da teoria fleckiana é especialmente valioso para o
reconhecimento das pequenas nuances que existem dentro de um estilo de
pensamento, característica comumente encontrada nas ciências da saúde, bem
como para análise comparativa de estilos distintos, também presentes no campo da
saúde em termos históricos e sociais.
49
2 EPIDEMIOLOGIA: HISTÓRIA E FORMALIZAÇÃO
O debate sobre a construção do conhecimento em ciências merece destaque
à medida que se propõe a desvendar os aspectos ideológicos que permeiam e
influenciam o avanço, estagnação ou retrocesso dessas ciências ao longo do tempo.
No caso da epidemiologia, vale observar a influência das ciências matemáticas e
biológicas que participaram de sua conformação e que, utilizando termos kuhnianos,
estabeleceram modelos e exemplares que foram seguidos e difundidos na
comunidade científica para sua formalização enquanto paradigma.
De acordo com Barata (1998), todo conhecimento tem sua origem em
problemas práticos do cotidiano, com elementos voltados para as ações, sendo o
pensamento um meio de relacionar teoria e prática nessas ações, influenciado pela
visão de mundo à medida que mescla elementos mágicos, religiosos, éticos,
estéticos e científicos. Nesse sentido, o conhecimento tem sua origem nas
necessidades humanas e quando se trata da construção do saber sobre o binômio
saúde-doença, este vem fundamentado nas preocupações com o sofrimento
causado pelos agravos. Para muitos autores, a medicina de Hipócrates é apontada
como o início dessa construção.
No entanto, existe uma tensão entre a medicina coletiva e a individual desde
a Grécia Antiga, quando se entendia um antagonismo entre as duas filhas do deus
Asclépios: Panacéia (a padroeira da medicina curativa, das práticas terapêuticas
com uso de medicamentos) e Higéia (representante da saúde como equilíbrio de
vários elementos, mais relacionado ao conceito de prevenção). De Higéia, derivou-
50
se o termo higiene, do qual Hipócrates também fez uso. Pelo fato de ele estudar a
explicar as epidemias e a distribuição das enfermidades nos ambientes, muitos
autores acreditam que ali se iniciou o raciocínio epidemiológico. No entanto, os
herdeiros de Hipócrates acabaram com essa protoepidemiologia quando deram mais
ênfase ao individualismo na ilha de Cós (ALMEIDA FILHO, 1999).
A origem da epidemiologia não pode ser isolada do nascimento das questões
de saúde pública e sua organização. Escavações na Índia que reportam à época de
2000 a.C. revelam construções que se assemelham a banheiros e esgotos que eram
drenados pelas largas ruas, por meio de canais construídos de barro. No Egito
(aproximadamente 2100-1700 a.C.), observou-se o cuidado para fazer o
escoamento da água e dejetos, o que denota preocupação para que ela fosse para
um lugar mais afastado, sistema também existente em Tróia. Na Ásia Menor, além
de retirarem água dos poços públicos, algumas casas possuíam torneiras e
descargas (ROSEN, 2006).
As enfermidades eram agrupadas pelos médicos antigos e medievais por
conjuntos de sintomas e explicadas por teorias que se referiam às desordens dos
fluidos do organismo (humoralismo) e dos estados relaxados ou constritos das
partes sólidas do corpo (solidismo). As doenças eram transmitidas muito antes de se
conhecer suas causas, tornando-se epidemias com bastante facilidade. Estudos de
múmias de aproximadamente 1000 a.C. sugerem a existência de uma epidemia de
varíola. Passagens do Velho Testamento também referem doenças que assolavam
toda a população; porém era comum acreditar nelas como punições divinas.
Por milhares de anos, se consideravam as epidemias julgamentos
divinos sobre a perversidade do ser humano. Apaziguando-se a ira
dos deuses, seriam evitadas as punições. No Egito, Sekhemet,
deusa da pestilência, provocava epidemias, se irritada, e as extinguia
51
quando acalmada. Essa teoria teúrgica da doença perdurou por
vários milênios. Mas a seu lado se desenvolveu, aos poucos, a idéia
de dever-se a pestilência a causas naturais, ligadas, em especial, a
clima e ambiente físico. Essa grande liberação do pensamento teve
lugar na Grécia e culminou durante os V e IV séculos antes de
Cristo, nas primeiras tentativas de se criar uma teoria científica,
racional, a respeito da causação de doença (ROSEN, 2006, p. 34).
A medicina foi se desenvolvendo nesses moldes até que se iniciaram os
primeiros censos, antecipando o que mais tarde seria chamado de estatísticas vitais.
Porém, as diferentes formações ideológicas do mundo ocidental não propiciaram
uma saúde coletiva, passando pelo caráter experimental, mágico e guiado pelos
fundamentos religiosos até o fim da Idade dia. Paralelamente a esse processo, a
medicina muçulmana avançou ao adotar as idéias de Galeno e Hipócrates,
alcançando seu ponto máximo no culo X ao consolidar registros de informações
demográficas, sistemas de vigilância epidemiológica e atos de higiene, mesmo
relacionando à cultura religiosa (ALMEIDA FILHO, 1999).
Paralelamente e aos poucos, essas idéias foram dando espaço à teoria
miasmática de transmissão das doenças, pensamento que se tornou hegemônico
até o aparecimento da bacteriologia. Esse estilo de pensamento, comum no século
XVII, era de que as doenças seriam transmitidas pela aspiração de partículas.
Mesmo com suas limitações, esse entendimento sobre as epidemias impulsionou a
adoção de medidas higiênicas, quando passou-se a realizar quarentenas e sepultar
cadáveres (BARATA, 1987).
No século XVII, com a compreensão dos temas população, Estado e coletivo,
ocorreram uma série de transformações relacionadas às ciências técnicas, de
trabalho, das responsabilidades do Estado e da produção do conhecimento relativo
à saúde. O corpo humano passou a ser valorizado como instrumento de trabalho e
então se iniciaram as quantificações de eventos vitais, inicialmente de nascimentos
52
e óbitos, para posteriormente analisar os padrões de adoecimento da população,
dando abertura à dimensão coletiva da saúde (BARATA, 1998). Neste processo,
Thomas Sydenham, dico de Londres, pode ser considerado uma figura
importante ao ser o precursor da ciência epidemiológica e criar uma teoria da
constituição epidêmica, de inspiração hipocrática e desenvolver o conceito de
história natural das enfermidades, resgatado no culo XX pelo ideal preventivista
(ALMEIDA FILHO, 1999).
Com o entendimento da quantificação como meio de isolar dados para
análise, desenvolveram-se métodos e técnicas que deram origem à estatística e,
nessa medida, a análise cartesiana e a comparação passaram a ser instrumentos
privilegiados na construção do conhecimento em saúde. Mas, como as doenças
eram identificadas apenas por um conjunto de sinais e sintomas que apontavam
para alguma patologia específica, ainda era impossível falar na epidemiologia
enquanto uma disciplina científica (BARATA, 1998).
O início da Saúde Pública estatal na Alemanha trouxe maior intervenção do
Estado no século XVIII, com melhorias nas condições de vida urbana, trabalho e
saneamento que foram sendo transformadas com o surgimento da medicina social.
A revolução francesa, com o desenvolvimento das indústrias, culminou no
entendimento das relações entre saúde e condições sócio-econômicas e as
epidemias passaram a ser vistas como resultado de um desajustamento social e
cultural (BARATA, 1987). Estudos relatam que nesse período, na França, pela
primeira vez se investigaram enfermidades nos animais, tratavam-se de ovinos que
estavam sendo dizimados gerando perdas na indústria têxtil (ALMEIDA FILHO,
1999).
53
A tradição francesa, no século XVIII contribuiu para a constituição de um
saber clínico naturalista, racionalizado e moderno que legitimou um projeto político
científico que não distinguia as dimensões individual e coletiva da saúde,
influenciando assim o nascimento da clínica. Almeida Filho (1999) explicita que a
estatística representou um elemento metodológico distintivo da ciência
epidemiológica, por ser um alicerce em que a raiz política mais se evidencia, que
gera dados para o planejamento de ações.
Com a ascensão do capitalismo e a revolução industrial no século XIX,
experimentos relacionados aos anos de vida ganhos e custo-benefício de vacinação
aperfeiçoaram os métodos de análise e aplicabilidade sobre as questões que
envolviam a morbidade e mortalidade dos exércitos e dos trabalhadores. Partindo
dessa perspectiva, nasceram os termos e fundamentos da estatística médica e
aritmética médica, que permitiram a integração entre a clínica e a estatística, porém
ainda sem considerar a saúde como uma questão essencialmente social e política
(CREVENNA, 1977).
Nesse mesmo período era marcante a exploração dos trabalhadores que
permaneciam nas fábricas até 16 horas por dia, em um ambiente fechado, sem
janelas, expondo crianças ao trabalho em troca de comida, no mesmo espaço em
que se alimentavam e faziam as necessidades fisiológicas. Conseqüentemente,
esses fatores favoreciam o aparecimento e alastre de doenças que acabavam
levando muitas pessoas à morte, pois não se dispunha de assistência médica.
Assim surgiu a premissa e que os seres humanos adoecem e morrem em função
das suas condições de vida, e que ao mudar as condições da sociedade, mudam
54
também os perfis das patologias. Tais estudos e constatações delinearam o
chamado Movimento Europeu de Medicina Social (ROSEN, 1979; DA ROS, 2000).
A saúde dos trabalhadores das fábricas passou a ser motivo de preocupação
e em 1833 uma comissão aprovou leis que regulamentaram o trabalho e a saúde,
entendendo que isso também era interesse do estado inglês. Dessa comissão fazia
parte Edwin Chadwick, reconhecido como precursor da saúde pública moderna, pois
tinha a convicção de que o ambiente físico e social influenciava a saúde e
reconhecia a importância da estatística na prevenção, ocorrência e controle das
doenças, da determinação da taxa de mortalidade e emprego de dinheiro na saúde
dos trabalhadores das fábricas (ROSEN, 2006). Em 1850, com a participação de
Chadwick, foi fundada a London Epidemiological Society, formada por simpatizantes
da saúde pública e dos ideais médico-sociais (ALMEIDA FILHO, 1999).
O nascimento do Movimento Europeu da Medicina Social fez emergir
questões importantes para o debate e formalização da saúde pública e análise da
situação da classe dos trabalhadores frente às péssimas condições do ambiente e
valorização do trabalho. Este movimento ocorreu paralelamente à revolução
pasteuriana, embasada na microbiologia e na comprovação dos aspectos biológicos
como causadores de doenças, o que possibilitou um relativo afastamento das
questões sociais (DA ROS, 2000).
O estudo de John Snow (SNOW, 1999), escrito originalmente em 1854, foi
marcante para a epidemiologia no entendimento da distribuição dos determinantes
através de um estudo transversal, que analisou a exposição à água e a ocorrência
de cólera nas regiões abastecidas por diferentes companhias distribuidoras de água,
muito antes da descoberta da bactéria por Pasteur.
55
As epidemias sempre existiram na história da humanidade, mas tiveram suas
proporções aumentadas nos momentos de transição entre o modo de produção
feudal e o capitalista e nos momentos de crise social. As formas de combate às
epidemias refletiram o conhecimento que possuíam sobre os fenômenos e a forma
de ação do Estado no período histórico de ocorrência (BARATA, 1987).
Com o desenvolvimento da patologia e da microbiologia no século XIX,
ocorreu um deslocamento da busca da produção social das enfermidades, para a
consideração da relação microorganismo-homem como causa mais importante no
mecanismo de transmissão das doenças. As epidemias passaram a ser combatidas
com a adoção de hábitos higiênicos e os métodos de vigilância foram aprimorados
para controlar as doenças em seu estágio inicial. Este entendimento, associado aos
critérios de Hill
3
consolidados no fim do século XIX e o crescimento e
aprimoramentro dos laboratórios no início do culo XX, possibilitou a consolidação
da epidemiologia em uma linha eminentemente biologicista, assumindo, assim, um
caráter derivado da patologia e da clínica. Nota-se nesse período o desenvolvimento
de pesquisas sobre as doenças transmissíveis motivadas pelo interesse econômico,
o que deu lugar aos estudos empíricos investigando indivíduos ou pequenos grupos,
mas vendo superficialmente os fenômenos sem explicá-los o que favoreceu o
aparecimento dos estudos epidemiológicos descritivos (CREVENNA, 1977;
BARATA, 1987).
Aproximadamente na década de 1930, surgiu a necessidade de uma
explicação mais ampla dos fenômenos em saúde-doença, dando espaço à
causalidade múltipla e início da teoria ecológica, que junto do desenvolvimento das
3
Critérios de Hill estão resumidos no tópico da categoria “risco e causalidade” do capítulo 3.
56
análises estatísticas e da computação, permitiram o estudo de grandes grupos
populacionais. Esses estudos tiveram como característica marcante a parte analítica
e o desenho experimental, com pesquisas sobre doenças crônico-degenerativas que
até então não eram muito enfocadas; porém, com forte tendência a deixar variáveis
sociais em segundo plano, pela construção de modelos a partir da análise
matemática e sem ter um marco teórico relevante desde o início da pesquisa
(CREVENNA, 1977).
O reconhecimento da epidemiologia foi acontecendo à medida que esse
conhecimento começou a ganhar suas marcas próprias, influenciadas pelo empiro-
endutivismo e causalismo, características das ciências naturais. Assim se constituiu
a passagem pelo limiar de cientificidade com a delimitação do objeto,
estabelecimento de proposições verdadeiras, sistematização de métodos e reflexão
sobre os modelos de causalidade (BARATA, 1998).
A epidemiologia passou a ser influenciada por essas duas vertentes – social e
biologicista com tendência mais forte para o objetivismo e quantificação;
especialmente a partir da segunda metade do século XX, período marcado pelo
desenvolvimento tecnológico, tornando hegemônica essa visão voltada para a
redução dos fenômenos do processo saúde-doença associada, muitas vezes, aos
padrões de custo-benefício e cobertura alcançada (SKALINSKI; PRAXEDES, 2003).
A publicação de MacMahon, Pugh e Ipsen na década de 1960 pode ser
considerada um dos primeiros materiais que instituem a epidemiologia como
disciplina científica, uma vez que apresenta a sistematização de estratégias e
desenhos de pesquisa baseados na observação.
57
Daí a importância muitas vezes exagerada, que os epidemiologistas
concedem aos “métodos”, chegando, com freqüência, a recusar à
epidemiologia qualquer conteúdo teórico, reduzindo-a a um conjunto
de estratégias, técnicas e modos de raciocinar aplicáveis a objetos
pertencentes a outras ciências, e nesse movimento, negando
qualquer possibilidade de considerá-la como ciência (BARATA,
1998, p.22).
Para Barata (1998), esse modo de raciocinar, muito baseado no conceito de
risco como determinante de agravos á saúde é derivado de uma concepção
empiricista, individualista e positivista. A sua associação com o aprimoramento das
técnicas quantitativas (bioestatística e informática) completa o estabelecimento das
metodologias epidemiológicas nesse estilo de raciocínio.
O processo de formalização da epidemiologia deu-se por pressupostos
matemáticos e da lógica formal; o que acabou excluindo características que
necessitavam de outras abordagens para sua explicação (BARATA, 1998). Para
Almeida Filho (1999), a estatística representou um elemento metodológico distinto,
servindo como alicerce para a sustentação da epidemiologia e garantindo
neutralidade metodológica.
Utilizando-se de categorias filosóficas e do materialismo histórico e dialético
como marco teórico, uma outra corrente na epidemiologia surgiu na década de 1970,
contestando os limites a que a epidemiologia estava sujeita quando analisada sob o
ponto de vista do positivismo e da clínica, resgatando princípios da medicina social
da Europa. Essa corrente tinha as variáveis sociais como determinantes do processo
saúde-doença e baseados na formação cio-econômica, dando origem a estudos
descritivos e explicativos, com uma compreensão global do problema (CREVENNA,
1977). Pensando o método como um instrumento de construção da ciência, essa
vertente epidemiológica era questionadora da hegemonia biomédica e apoiada na
medicina social, tendo como objetivos (BARATA, 1998):
58
(...) compreender e explicar o processo saúde-doença em
populações humanas, tomando a dimensão social como estruturante
do real; e pensar o método como etapa de construção de uma
ciência, ou seja, em íntima conexão com a teoria do objeto, indo
além, na discussão metodológica, da descrição de estratégias e
técnicas para produzir realmente uma teoria (p.24).
(...) buscar elementos que permitam a construção de sua
metodologia nas ciências biológicas, cujos objetos encontram-se
subsumidos pelo objeto epidemiológico, mas também nas ciências
sociais às quais seu objeto se encontra subsumido (p.25).
Breilh (1991) esclarece que a visão biomédica dos fenômenos é influenciada
por um viés teórico positivista e por grandes entidades financeiras, como a fundação
Rockfeller e a Carnegie, cuja política dificulta a construção de um saber que
contemple o caráter sócio-estrutural do processo saúde-doença.
A fundação Carnegie financiou, em 1910, a investigação de Flexner
(FLEXNER, 1910) sobre o ensino da medicina nos Estados Unidos, propagando a
medicina positivista ou unicausal. Este relatório estabeleceu como padrão o modelo
da Johns Hopkins University, da qual o encarregado pelo relatório era um professor
Abraham Flexner, que defendia o ensino por especialidades com base diagnóstica
física e biológica, não contemplando as relações econômicas e sociais que vinham
embutidas nesse modelo. Tal modelo de educação médica tornou-se hegemônico
inicialmente nos Estados Unidos, se propagando rapidamente para o Canadá e
América Central. No Brasil, esse modelo foi introduzido mais fortemente a partir do
Golpe Militar em 1964. O modelo flexneriano reforçava a separação entre individual
e coletivo, privado e público, biológico e social, curativo e preventivo (ALMEIDA
FILHO, 1999).
59
A participação da Johns Hopkins University também é notada no processo de
institucionalização da epidemiologia enquanto disciplina científica, junto com a
London School of Hygiene, na primeira metade do século XX, quando criam
cátedras que incorporam o uso de técnicas da bioestatística nos estudos, o que
embasou os procedimentos de generalização dos resultados. A disciplina de
Epidemiologia teve como primeiro professor Wade Hampton Frost, investigador que
utilizava técnicas estatísticas para avaliar determinantes genéticos e sociais das
doenças transmissíveis (BARATA, 1998; ALMEIDA FILHO, 1999).
A Epidemiologia, enquanto disciplina científica, apresenta um
conjunto de enunciados organizados segundo o modelo científico,
isto é, formulações claras, objetivas, articuladas, racionais,
possuidoras de conteúdo empírico capaz de ser submetido à
verificação; dispõe de um conjunto de métodos de observação que
funcionam como regras de construção de suas verdades, muito
embora careçam de maior formalização; começa a utilizar recursos
técnicos no sentido de tornar suas análises mais rigorosas e de dar
maior fundamentação a seu processo inferencial (BARATA, 1998,
p.21).
Na década de 1960, com a publicação de MacMahon, Pugh e Ipsen (1965),
toda a atenção da epidemiologia voltou-se para a construção e sistematização dos
métodos, deixando de lado a discussão teórica, voltada para a delimitação do objeto
a ser pesquisado. Assim tornaram-se hegemônicos os métodos analíticos,
suprimindo aqueles trabalhos que utilizavam métodos descritivos e a determinação
passou a sobressair-se sobre a distribuição do processo saúde-doença. A década
seguinte foi marcada pela publicação da obra de Susser, que apresentou o modelo
ecológico e trouxe a multicausalidade para a pesquisa, com a hierarquização das
variáveis, destacando as análises estratificadas e o papel do pesquisador na
condução da coleta, análise e interpretação dos dados (BARATA, 1998).
60
A priorização dos aspectos biológicos e metodológicos em detrimento das
reflexões teóricas trouxe à epidemiologia uma caracterização de método,
diferentemente da idéia da epidemiologia como uma ciência, com um objeto próprio
e delimitado. Para Almeida Filho (1989) a delimitação de um objeto é fundamental
na constituição de uma ciência e a epidemiologia apresenta dois possíveis objetos: a
dimensão coletiva e noção de doença ou agravo. Porém, entende que a excessiva
generalidade permitida pela formulação do objeto acaba esvaziando o conteúdo da
epidemiologia, reduzindo-a a uma função matemática.
Almeida Filho (2000a) diz que os indivíduos, isolados ou agregados são a
matéria-prima da epidemiologia e o eixo que estrutura à pesquisa é o tipo de
unidade de observação e análise (de agregado ou individualizado). No caso
agregado, representam uma base geográfica e temporal, que constituem a
população no sentido mais estrito, que vai além da soma dos indivíduos para formar
o coletivo, mas composta também do aspecto social e cultural. Considerando esses
critérios, propõe a classificação dos estudos epidemiológicos em dois eixos
complementares, o posicionamento do investigador e a dimensão temporal. No que
se refere à cientificidade, a epidemiologia tem um caráter atrasado em sua
constituição como um campo de saber autônomo, ausência de um debate teórico na
fase de consolidação e a emergência de um processo interno de desvalorização
epistemológica da própria disciplina, restando ainda a dúvida na identificação do seu
objeto e relacionando a sua cientificidade aos problemas da práxis.
A epidemiologia tem passado por diversas questões que dizem respeito às
suas bases epistemológicas e os pressupostos teóricos que as influenciam. A
diversidade de denominações como epidemiologia crítica, clínica, clássica e social
61
indicam que existem compreensões diversas neste campo do saber e também faz a
discussão sobre a sua formalização como método ou uma ciência com objetos bem
definidos (AYRES, 1993).
De acordo com Pereira (2002), a epidemiologia atualmente apresenta várias
subdivisões, feitas de acordo com área de conhecimento, que surgiram à medida
que problemas próprios dessas áreas passaram a ser prioritários. Uma dessas
subdivisões é a epidemiologia das doenças infecciosas e enfermidades carenciais,
relativa à ocorrência e distribuição de doenças agudas e busca de seus agentes
etiológicos. Uma outra vertente, classificada como epidemiologia das doenças
crônico degenerativas e outros danos à saúde, diz respeito à compreensão de tais
doenças, além de anomalias congênitas, acidentes, hábitos de vida que determinam
situações relacionadas ao fumo, níveis de glicemia, fadiga profissional, peso ao
nascer, violência, uso de drogas e outros fenômenos quando não um agente
etiológico específico. Essa denominação cresceu muito devido à redução da
mortalidade por doenças infecciosas e carenciais, além da mudança no perfil
populacional, permitindo uma outra subdivisão pelas doenças, como epidemiologia
do câncer, das doenças cardiovasculares e outras de incidência relevante. A terceira
área apontada é a epidemiologia dos serviços de saúde, que comporta os estudos
voltados para a qualidade assistencial, cobertura populacional e avaliação de
impacto de ações pela análise dos indicadores. Além destas, ainda podem existir
outras subdivisões, que comportam estudos separados por grupos de possíveis
causas: epidemiologia ocupacional, ambiental; por grupos de risco: crianças,
adolescentes, idosos; por locais de prática: epidemiologia hospitalar e comunitária; e
também outros critérios que podem definir o que o autor chama de epidemiologia
social, clínica, nutricional, farmacológica, molecular e comportamental.
62
Essas diferentes formas de pensar e dividir a epidemiologia remetem a Fleck
e a possibilidade de co-existência de diferentes estilos de pensamento atualmente.
Da Ros (2000) identifica e descreve em sua tese onze diferentes estilos em saúde
pública. Desses, dois se referem à epidemiologia: a clássica e a crítica, vinculando o
segundo às idéias defendidas pelo movimento europeu da medicina social e à
construção do socialismo na Europa entre 1830-1850. Esta ciência, que antes era
chamada de epidemiologia social, passou a ser chamada de crítica por seus
investigadores marxistas, porque o termo epidemiologia se referia ao coletivo e
porque algumas escolas adotavam o termo para identificar estudos de costumes,
hábitos e estilo de vida. Segundo Breilh (1991), um outro motivo que levou tal
ciência a ser chamada de epidemiologia crítica foi o fato de se construir sobre a
crítica da sociedade capitalista e suas repercussões sobre o campo sanitário.
Assim como Da Ros (2000), muitos autores indicam a existência de mais de
um tipo de epidemiologia. Schramm e Castiel (1992) defendem a idéia de que essa
multiplicidade dificultaria a visão global dos fatos, estando tal dificuldade relacionada
ao crescimento interno do saber epidemiológico em vários modelos e à emergência
de novos problemas que devem coexistir com os antigos.
Fazendo uso do termo paradigma, Melo Filho (2003) se refere à
epidemiologia crítica como um paradigma ou candidato a paradigma, com forte
influência da filosofia marxista que pretende contribuir, à sua maneira, com a
emancipação das classes exploradas pelo capitalismo. Ao citar a produção de
autores como Breilh e Laurell, o autor afirma que esta proposta de epidemiologia
não está motivada por uma questão de natureza ética, nem pelo fato das classes em
questão apresentarem o pior perfil saúde-doença, mas por possuir:
63
(...) cunho eminentemente econômico-político, que se encontra
vinculado ao princípio marxista que afirma ser a liberdade do
proletariado uma condição que implica, conseqüentemente, a
emancipação de todas as outras classes sociais, de todos os
oprimidos (p.40).
A observação de diferentes concepções sobre a epidemiologia,
historicamente, bem como sobre a participação da clínica e da matemática no seu
desenvolvimento demonstra a existência de estilos de pensamento distintos. A
discussão sobre esses estilos apresenta-se no capítulo seguinte, dividido por
categorias que marcaram as principais diferenças encontradas.
64
3 CARACTERIZAÇÃO DOS ESTILOS DE PENSAMENTO EM EPIDEMIOLOGIA
Neste momento do trabalho busca-se identificar semelhanças e diferenças
entre os dois estilos de pensamento encontrados. Ao final da discussão sobre cada
categoria, apresenta-se um quadro que resume as diferenças mais marcantes entre
os dois estilos, que serão discutidas conjuntamente no intuito de justificar as
relações existentes entre elas e influências dos pressupostos teóricos e ideológicos
sobre suas concepções.
3.1. Definição do termo:
Buscando uma definição para o termo epidemiologia, depara-se com várias
linhas de pensamento, que vão da determinação meramente biológica à
determinação social, além dos diferentes fatores que são considerados ao estudar
os fenômenos que dizem respeito ao processo saúde-doença.
No início do século XX as expressões “doença de massa” e populações
humanas” estavam presentes na maioria das definições da epidemiologia,
diferentemente da simplificada definição de “ciência das epidemias” do culo XIX
após a ascensão da bacteriologia. Mesmo assim, os termos conceituais nunca foram
uma grande preocupação para os epidemiologistas, especialmente a partir da
década de 1960, quando a preocupação com as relações estatísticas e com os
métodos de análise passaram a ser o foco de estudo (ALMEIDA FILHO, 2002).
65
Estudos relatam que o termo epidemiologia foi empregado pela primeira vez
na segunda metade do século XVI em um trabalho sobre uma peste na Espanha,
por Angelerio (NÁJERA, 1988 apud ALMEIDA FILHO, 1999).
Frost (1941 apud CZERESNIA, 1997) aponta que a epidemiologia é o estudo
das doenças como fenômenos em massa e a unidade de estudo epidemiológico
como agregação de indivíduos que compõem uma população. Além disso,
recomenda que a disciplina deve estar relacionada com o campo do conhecimento
da bacteriologia, protozoologia e imunologia. Com forte influência deste estilo, a
epidemiologia caracterizou-se como o estudo de doenças específicas.
MacMahon, Pugh e Ipsen (1965), autores de uma das obras clássicas na
área, definem o termo como o estudo da distribuição da enfermidade e dos
determinantes da sua prevalência no homem.
No estudo da medicina preventiva, Leavell e Clark (1976) definem a
epidemiologia como um “... campo da ciência que trata dos vários fatores e
condições que determinam a ocorrência e distribuição de saúde, doença, defeito,
incapacidade e morte entre grupos de indivíduos” (p. 38) e atribuem onze diferentes
usos
4
a essa ciência, fortemente caracterizados pelo modelo clínico. Esse
entendimento da ciência epidemiológica e também dos níveis de prevenção ainda é
4
Usos específicos dos princípios e métodos epidemiológicos, segundo Leavell e Clark (1976, p.62-
66): 1. estudar as variações temporais na ocorrência e na distribuição; 2. fazer um diagnóstico
comunitário da presença, natureza e distribuição da saúde e da doença; 3. auxiliar na busca das
causas de saúde e doença; 4. estimar os riscos e as possibilidades do indivíduo; 5. ajudar a
completar o quadro clínico; 6. auxiliar no esclarecimento das síndromes clínicas; 7. resolver
problemas de administração; 8. determinar os detalhes, a importância e as interações de todos os
agentes, hospedeiros e fatores ambientais; 9. detectar os estágios pré-clínicos, subclínicos e
incipientes da doença, através de investigação de massa; 10. estudar as atitudes sociais, o
comportamento social e os problemas de educação sanitária; 11. aperfeiçoar a prática da medicina
(epidemiologia clínica).
66
ensinado nas universidades e tem grande repercussão no estudo e ensino da
medicina preventiva.
Com um conceito mais amplo, porém um tanto ousado, Rouquayrol e
Goldbaum (1999) publicam que:
A epidemiologia é o eixo da saúde pública. Proporciona as bases
para avaliação das medidas de profilaxia, fornece pistas para
diagnose de doenças transmissíveis e não-transmissíveis e enseja a
verificação da consistência de hipóteses de causalidade. Além disso,
estuda a distribuição da morbidade e da mortalidade a fim de traçar o
perfil de saúde-doença nas coletividades humanas; realiza testes de
eficácia e de inocuidade de vacinas; desenvolve a vigilância
epidemiológica; analisa os fatores ambientais e sócio-econômicos
que possam ter alguma influência na eclosão de doenças e nas
condições de saúde; constitui um dos elos de ligação
comunidade/governo, estimulando a prática da cidadania através do
controle, pela sociedade, dos serviços de saúde (p.15).
Pereira (2002, p.3) define a epidemiologia como “(...) ramo das ciências da
saúde que estuda, na população, a ocorrência, a distribuição e os fatores
determinantes dos eventos relacionados com a saúde”. Este autor cita um estudo
sobre as definições da epidemiologia, que foi realizado com a literatura anglo-
saxônica de publicações entre 1927-1976, quando foram descritas 23 diferentes
definições para o termo. A pesquisa separou as freqüências de palavras, sendo que
foram encontradas doença 21 vezes; comunidade, população ou grupo – 17
vezes; distribuição 9 vezes; causa, fator, determinação ou etiologia 8 vezes;
ecologia – 8 vezes; prevenção ou controle – 3 vezes. Imagina-se que se esta
pesquisa fosse repetida atualmente, os termos seriam mais freqüentes, porém
poucos significados diferentes seriam citados.
Um dos livros mais conhecidos no mundo atualmente sobre epidemiologia
social, “Social Epidemiology”, inicia-se com as palavras de Susser, que define a
epidemiologia como o estudo da distribuição e dos determinantes de estados de
67
saúde nas populações. Porém, os autores do capítulo inicial acrescentam a sua
definição para a epidemiologia social: que deve estar focada em fenômenos sociais
específicos, como a estratificação sócio-econômica, redes de suporte social,
discriminação, demandas de trabalho e controle, suspeitando que a maioria das
doenças é resultado ou sofre o efeito das relações do “mundo social”. O progresso
das pesquisas nesse estilo é possível com hipóteses que possam ser claramente
confirmadas ou refutadas, com um entendimento da seqüência temporal e
plausibilidade biológica, articulação teórica e conceitos específicos que guiem a
investigação (BERKMAN; KAWACHI, 2000).
Com uma visão mais voltada para as questões epistemológicas e de
complexidade, Castellanos (1997) explica que a epidemiologia é uma disciplina
básica do campo da saúde pública, que tem como objeto de estudo os fenômenos
de saúde de populações e em populações, distintas entre si e com diferentes
objetivos
5
.
Na linha da epidemiologia crítica, Jaime Breilh (1991) explica a epidemiologia
como “... um conjunto de conceitos, métodos e formas de atuação prática que se
aplicam ao conhecimento e transformação do processo saúde-doença em sua
dimensão coletiva e social” (p.40). O autor afirma que o poder hegemônico na saúde
prioriza as ciências físicas e biológicas, realizando estudos minuciosos dos
processos individuais. Nessa perspectiva, a somatória desses problemas individuais
caracterizaria o fenômeno epidemiológico, ou seja, o fenômeno coletivo.
Percebe-se que os entendimentos de epidemiologia são orientados por
concepções intimamente relacionadas ao processo saúde-doença, de
5
Essas diferentes concepções serão melhor explicadas na categoria “objeto e objetivos de estudo”.
68
fundamentação clínica ou social. Esses entendimentos passam a nortear a direção e
abordagem dada às investigações, e conseqüentemente, os resultados encontrados
e seus usos.
Epi. clássica Epi. Crítica
Definição Estudo da distribuição de
agravos e seus
determinantes em uma
população definida.
Estudo e intervenção
sobre as iniqüidades em
saúde de determinação
social.
3.2. Objeto e objetivos de estudo:
Para o reconhecimento de uma disciplina como ciência, é preciso que ela
tenha um objeto próprio. Buscando seu objeto, a epidemiologia encontra-se numa
relação conflituosa entre a sua autonomia ou subordinação à clínica. Essa
discussão, associada às respostas progressivas que a epidemiologia às
perguntas da clínica – como um instrumento de legitimação – também leva ao
questionamento sobre a sua caracterização enquanto método ou ciência. Ao discutir
o objeto epidemiológico, é necessário entender também como os epidemiologistas
lidam com a cientificidade da disciplina. Cada autor identifica um objeto de acordo
com as suas concepções e pressupostos teóricos, e isso rege o estilo de pesquisa
que será realizado.
Miettinen, um dos autores mais famosos da epidemiologia clássica, diz que
“(...) a relação de uma medida de ocorrência a um determinante, ou uma série de
determinantes, é denominada de relação ou função de ocorrência. Tais relações são
em geral o objeto da pesquisa epidemiológica” (MIETTINEN, 1985, p.6 apud
ALMEIDA FILHO, 2002, p.208). A crítica atribuída por Almeida Filho (2002) ao
69
modelo de Miettinen reside na excessiva generalidade dada à epidemiologia,
manifestando simplesmente a sistematização de operações lógicas desenvolvidas
no limite da fundamentação positivista.
A progressiva influência da clínica fez com que a epidemiologia clássica
passasse a negar os conhecimentos científicos que não venham acumulados pelo
seu referencial empírico. Assim, a explicação epidemiológica resumiu-se à
associação probabilística entre a condição fisiopatológica do corpo e algum fator
externo (AYRES, 1993).
É assim que vemos, também, o conjunto mais expressivo do
pensamento epidemiológico perseguir essa consistência, com
diversas nuances de comprometimento, até a posição extrema de
completa subordinação do objeto epidemiológico à normatividade
científica dos saberes clínicos, fazendo a epidemiologia se parecer
como um simples procedimento de quantificação (AYRES, 1993, p.
58).
Almeida Filho (1989) explica que a investigação epidemiológica tem como
tema a causa das doenças em populações. A epidemiologia passou a associar o
conceito de doença da clínica ao universo populacional, quando ocorreu uma
naturalização dos eventos relacionados à saúde, mostrando subordinação à clínica e
assumindo uma epidemiologia com o mesmo nome epidemiologia clínica, que
fortaleceu o entendimento do objeto de estudo como doença coletiva, tratando do
risco e seus fatores. “O objeto epidemiológico tem sido construído obedecendo uma
lógica conjuntista, pseudo-probabilística, monótona, que não faz justiça à riqueza e
complexidade dos fenômenos de saúde” (ALMEIDA FILHO, 2000b, p.7).
O objeto da epidemiologia é ontologicamente distinto do da clínica e
epistemologicamente distinguível. Embora eles guardem relação, o objeto da clínica
é essencialmente qualitativo, destacando diferenças em processos de doenças nos
70
corpos individuais, enquanto o objeto epidemiológico é quantitativo, expressando
relações numéricas entre eventos e fenômenos (AYRES, 1993).
O objeto da epidemiologia situa-se além das categorias de
saúde/doença em populações humanas, tomadas enquanto fatos
biológicos, clínicos ou sociais, constituindo-se sob a forma de
relações entre tais termos modelados através de um código
altamente estruturado a matemática, em uma tradução
probabilística (ALMEIDA FILHO, 1992, p.47).
Concentrando-se em um objeto diferente e utilizando-se de um modelo que
recorre à história social da doença, a linha crítica acentua a historicidade dos
fenômenos e o caráter econômico e político de suas determinações e tem como
tema de investigação epidemiológica a “distribuição desigual de doenças entre os
diferentes grupos da sociedade” (ALMEIDA FILHO, 1989).
Castellanos (1997) também diferencia duas epidemiologias, que ele chama de
“epidemiologia de populações” e “epidemiologia nas populações” e atribui a elas
diferentes objetos de transformação. A epidemiologia nas populações estuda a
associações entre riscos e problemas de saúde de indivíduos, tendo como objeto de
transformação a freqüência de doenças específicas em populações específicas.
Está vinculada ao pensamento clínico, reforçada pelas concepções mecanicistas e
teorias etiologistas, que no âmbito da saúde pública se traduzem em estratégias de
intervenção individuais, preventivas e curativas, dirigidas a enfermos ou pessoas
com maior risco de adoecer. Nota-se que esse estilo de entendimento se aproxima
dos conceitos da epidemiologia clássica expostos neste trabalho.
a epidemiologia de populações estuda a situação de saúde das
populações e tem como objetos de transformação as iniqüidades sociais, abordando
os perfis de problemas coletivos humanos; incluindo também os estudos de doenças
específicas para controle e prevenção; com a diferença de que aponta para
71
explicações gerais de saúde-doença, desde os primórdios relacionada às decisões
do Estado sobre políticas de saúde. Esta epidemiologia, de teor mais social e
político, se assemelha em características à epidemiologia crítica.
Esses dois estilos percebidos não são excludentes. Pelo contrário, podem ser
complementares, pois as intervenções de saúde pública são planejadas por uma
combinação de estratégias a serem desenvolvidas sobre indivíduos e populações,
em caráter curativo, preventivo e promocional. No entanto, o predomínio de um dos
dois enfoques determina o caráter dado à estratégia de intervenção, sobretudo no
campo da epidemiologia, que se reflete na adoção de modelos teóricos, na natureza
das investigações e na forma de modelar matematicamente as relações entre
ocorrência e causa (CASTELLANOS, 1997).
A quantificação, como significado padronizado da epidemiologia, trata de
subsidiar as relações de ocorrência do objeto clínico (qualitativo) – a doença. Porém,
no que se refere ao objeto epidemiológico, Almeida Filho (1992) aponta que não
haveria diferença se ao invés da doença, o objeto primitivo passasse a ser a saúde,
configurando o que chama de “epidemiologia da saúde”, com teor revolucionário e
de significado positivo. O autor acrescenta que o objeto epidemiológico deve
funcionar como ponte, mediando a relação entre a clínica e as ciências sociais,
suportando o desafio de integrar o individual e o coletivo.
A clínica dedica-se ao estudo de indivíduos, a epidemiologia se propõe a
estudar coletivos, na maior parte das vezes entendendo o coletivo como uma
somatória de vários indivíduos. A participação das entidades nosológicas como
objeto de estudo fortalece a ligação entre a epidemiologia e a clínica, sendo esse um
dos fatores que explica sua hegemonia, como uma espécie de instrumento de
72
verificação. Entende-se que enquanto a epidemiologia continuar guardando tão
íntima relação com a clínica, assumindo inclusive, por vezes, os mesmos objetos;
mais ela será entendida como um método. À medida que passar a ser citada como
um campo de conhecimento de objeto próprio, sua caracterização como ciência
ganhará maior espaço e suas investigações permitirão um resultado mais
comprometido com o caráter social das determinações.
Epi. Clássica Epi. Crítica
Objeto e objetivos -Doentes em populações.
- Relação entre variáveis
que representam
determinantes de saúde
e variáveis que
representam o estado de
saúde-doença.
Distribuição desigual de
doenças entre diferentes
grupos da sociedade.
3.3. Risco e causalidade:
Na análise de conteúdo da literatura selecionada para a pesquisa, risco e
causalidade foram dois temas que apareceram com grande freqüência e significado
para a proposta deste estudo. No entanto, ao aprofundar as leituras, percebeu-se
que, em sua grande maioria, as discussões sobre o risco traziam embutidas
questões de causalidade e associação causal. Por esse motivo, decidiu-se agrupar
as duas categorias em uma só.
A epidemiologia em saúde coletiva no Brasil tem norteado suas ações
assumindo o risco como noção fundamental. Do ponto de vista epidemiológico, a
noção de risco apareceu no contexto das doenças transmissíveis após a concepção
73
de que identificar microorganismos não era suficiente para explicar a dinâmica das
doenças; e amadureceu após a Segunda Guerra com o estudo das doenças não
transmissíveis e a avaliação de riscos através da experimentação. A racionalidade
tecnocrática do mundo s-guerra trouxe a superação das explicações naturalistas
por associações causais traduzidas no conceito de risco e as ações de proteção e
recuperação da saúde passaram a estar voltadas para a gestão de riscos. Em sua
maioria, os métodos utilizados para avaliar o risco impõem artifícios para sua
operacionalização, que acabam criando representações reduzidas da realidade, à
medida que tentam estudar um fator isolado dos demais (AYRES, 1997;
CZERESNIA, 2004).
Atualmente, Carvalho (2006, p.9) afirma que “... com a sofisticação da análise
estatística e o emprego da informática, a epidemiologia dos fatores de risco adquire
quase exclusividade como produção científica da área [epidemiologia] e chega
mesmo a defini-la”.
A quantificação probabilística do risco é derivada de um tratamento conceitual
e metodológico dado à causalidade no estudo dos agravos não-transmissíveis e
crônico-degenerativos, que utiliza e aprimora os recursos matemáticos como
instrumentos de legitimação. A redução do risco a uma medida de associação
estatística tem sido objeto de estudo de muitos autores que criticam o seu
entendimento enquanto uma relação entre causa e efeito: alega-se que ao substituir
a identificação da causa pela estimativa do risco, a epidemiologia constrói sua
identidade sobre um conceito que não tem autonomia (CZERESNIA;
ALBUQUERQUE,1998).
74
A fragilidade desse conceito pode ser encontrada, por exemplo, nos critérios
de Hill que determinam ou não o caráter causal de uma associação, em que as
evidências empíricas sobre os fenômenos biológicos, além de associações
estatísticas, conduzem à busca das explicações sobre a freqüência populacional
alcançada (AYRES, 2002). A respeito desta afirmação, Rouquayrol e Almeida Filho
(1999, p.146) reiteram que:
Na análise epidemiológica, as variáveis independentes serão
consideradas fatores de risco se puderem ser associadas a
doenças, contanto que essas associações sejam julgadas válidas à
luz dos critérios epidemiológicos. Quando, após reiteradas
validações da associação entre o fator de exposição e a doença,
não subsistirem mais dúvidas quanto à sua contribuição na
causação, o dito fator passará a ser reconhecido como fator de
risco.
Ao analisar o risco, tende-se a desconsiderar a individualidade, pois os
indivíduos não são homogêneos. Como alternativa para contornar esse viés, a
epidemiologia compara grupos por meio de uma distribuição homogênea de
heterogeneidades individuais. Czeresnia e Albuquerque (1998) apontam que seria
necessário analisar a forma como os modelos de risco se inserem na significação
das doenças e qual a sua influência sobre as formas sociais de lidar com essas
relações, principalmente por desviarem a ênfase das ações coletivas para a
responsabilidade do indivíduo por comportamentos isolados.
Sob a perspectiva populacional, o risco de adoecer de um indivíduo não pode
ser considerado isoladamente do risco da população a que ele pertence, não
porque indivíduos estão distribuídos em sociedades e populações. Os
comportamentos sociais e situações existenciais não estão distribuídos
casualmente, eles são socialmente determinados e geralmente se associam entre si;
fazendo os sujeitos estarem expostos a situações e/ou aderirem a comportamentos
75
de risco em detrimento de comportamentos e situações mais saudáveis. Essas
“escolhas” e situações são determinadas pelo meio social, que influencia
comportamentos ao moldar normas, reforçar padrões sociais, promover ou não
oportunidades existenciais e de aquisição de hábitos (BERKMAN; KAWACHI, 2000).
A respeito dessa visão mais “comportamental” dada à identificação dos
fatores de risco, e sobre a diferenciação dos conceitos de prevenção e promoção,
Caponi (2003) explica que ocorreu um certo deslocamento das ações preventivas e
terapêuticas para a vigilância de condutas e populações de risco, identificadas
através de critérios médicos e sociais. Segundo a autora, a crítica a esse modelo
reside na idéia de periculosidade do risco, que norteia as políticas de saúde e seu
suporte teórico, justificando assim ações baseadas em parâmetros claramente
estabelecidos.
Assim, a identidade da epidemiologia não tem sido uma preocupação
importante para a maioria dos cientistas da área, que se restringem à prática da
ciência normal (conforme o termo kuhniano), deixando de lado as contradições
encontradas nas investigações. A historicidade e as práticas sociais que determinam
a mediação teórica e metodológica vão sendo obscurecidas pelo objeto central das
investigações: a busca da explicação causal (AYRES, 2002).
De acordo com Czeresnia (1997), assumir uma causa ou um conjunto de
causas para uma doença é uma escolha influenciada por um determinado
referencial conceitual. Adotando os conceitos da microbiologia como causa das
enfermidades, a epidemiologia ganhou uma concepção diferente da teoria da
constituição epidêmica, que resgatava uma abordagem globalizante, relacionada às
causas cósmicas e telúricas. Nota-se que os conceitos apoiados no referencial
76
biológico sustentam-se atualmente, e não m sua legitimidade abalada. Para
Almeida Filho (2000a), ao criticar o determinismo epidemiológico que tem entre suas
características as metáforas causais, é necessário rever as bases lógicas e
históricas que proporcionam a emergência desse determinismo.
Existe mais de uma forma de entender o significado da causalidade. Uma
delas explica que o termo “causalidade” diz respeito à conexão entre duas coisas,
sendo que a segunda é previsível a partir da primeira (ABBAGNANO, 1982 apud
MELO FILHO, 2003). rias correntes teóricas compartilham dessa definição,
diferenciando-se apenas na natureza da “conexão” que pode ter caráter dedutivo e
racional (a causa é razão de seu efeito), ou indutivo e empírico (o efeito é previsível
pelo que de constante e uniforme em uma relação de sucessão). Embora a
gênese da primeira concepção de causa seja discutida por Platão, é Aristóteles que
se aprofunda na discussão das categorias causais (MELO FILHO, 2003).
Para Aristóteles existem quatro categorias causais que se relacionam para
explicar a existência de um objeto (ou efeito): a causa material (do que ele é feito), a
causa formal (como ele é produzido), a causa eficiente (o que causa o fenômeno, o
que transforma a potência em ato) e causa final (qual a finalidade). É da teoria
aristotélica que partem a maioria das formulações posteriores sobre causalidade,
diferindo tanto hierarquicamente quanto sofrendo alterações conceituais (MELO
FILHO, 2003).
As variações tratam de combinações que levam em conta, além da
necessidade, a formalidade, a eficiência e a finalidade. Aristóteles
prioriza a causa formalis. Descartes, Hobbes e Leibniz, introduzindo
Deus no sistema racional, conjugam a causa efficiens, a causa
formalis e a causa finalis. Mesmo admitindo Deus em sistema
filosófico, Espinosa rejeita a causa finalis (MELO FILHO, 2003,
p.105).
77
Conforme Melo Filho (2003), na ciência moderna, com Hegel e Marx
aparecem novas concepções sobre causalidade. Para Hegel, a causalidade dialética
faz com que a causa (tese) tenha como seu contrário o efeito (antítese) e ambas se
misturem produzindo a substância causal (síntese). para Marx, Deus é
substituído por uma contradição interna que impele a mudança, explicado por um
sistema lógico alicerçado nas leis históricas, deslocando a causa final da vontade
divina para a história. Ou então, desloca a causa final de Deus para a vontade do
burguês, enquanto a causa eficiente passa a ser o trabalhador, pois ocorre a
transformação da natureza através do gasto da energia humana. Por outro lado, o
positivismo de Comte entende que é inútil expor as causas geradoras (finais e
formais) dos fenômenos, posto que prefere analisar as circunstâncias de produção e
vinculá-las por relações de sucessão e similitude, enfatizando assim a causa
eficiente (MELO FILHO, 2003).
Também na modernidade, a causa eficiente teve seu significado retraduzido
para “condição necessária e suficiente”, passando a ser base de inferência para o
conhecimento científico e referência para as demais categorias (AYRES, 2002).
Melo Filho (2003) afirma que a epidemiologia tradicional
6
, adota uma concepção de
causalidade mais empírica, enquanto a epidemiologia social
7
vincula-se a uma
concepção mais racional.
Ao fim da década de 1940, com a descoberta da associação entre o fumo e
as doenças, os epidemiologistas passaram a definir critérios para as inferências
causais, que fortaleceram a idéia de subordinação da epidemiologia às ciências
6
Neste trabalho chamada de clássica, por apresentar semelhanças com o modelo proposto para o
estudo.
7
Neste trabalho chamada de crítica, por apresentar semelhanças com o modelo proposto para o
estudo.
78
médicas. Na mesma década iniciaram os estudos sobre fatores de risco para a
doença coronariana, associando estilo de vida e condições de saúde e fundando,
assim, um paradigma que está presente em estudos desenvolvidos ahoje. Essa
modalidade, muito utilizada nas investigações epidemiológicas sobre doenças
crônicas, aprofundou-se no conhecimento de determinantes, substituindo e
concorrendo com os laboratórios que até então eram os grandes produtores do
conhecimento sobre as causas.
A formulação da teoria da multicausalidade, postulando a idéia da
existência de causas necessárias, causas suficientes e causas que
não são classificáveis nem como necessárias nem como suficientes
(Susser, 1973), embora raramente traduzida claramente em termos
biológicos, facilitou a convivência dos achados epidemiológicos com
as teorias da causalidade biológicas geradas a partir do laboratório
(PENNA, 2006, p.142).
Em um primeiro momento, a causalidade da epidemiologia orientou as ações
de saúde pública, mas com o aprofundamento dos estudos etiológicos e maior
valorização dos aspectos metodológicos e quantitativos, passou a se destacar no
meio acadêmico, demarcando uma separação entre duas epidemiologias: uma
acadêmica e outra ligada à saúde pública. A epidemiologia acadêmica estaria mais
voltada para a valorização dos métodos quantitativos nas pesquisas, enquanto a
epidemiologia da saúde pública concentrava-se na possibilidade de prevenção de
doenças e formulação de políticas de combate (GREENLAND, 1987 apud PENNA,
2006), mostrando tendências diferenciadas que participam de um mesmo estilo.
Entendendo a ciência epidemiológica clássica como uma sistematização do
raciocínio indutivo, John Stuart Mill elaborou as regras para as inferências científicas
da epidemiologia que testam as associações de relações entre comportamentos de
variáveis e causas. Austin Bradford Hill também discutiu o problema da natureza
79
causal, elaborando critérios que indicam ou não uma associação causal
8
entre fator
de exposição (risco) e efeito; usando como questão central de estudo a efetividade,
e não a natureza do vínculo causal. Através de nove critérios
9
, pode-se perceber a
forma como o empiroindutivismo influencia a objetividade epidemiológica e como os
métodos matemáticos são fundamentais pela sua capacidade de isolar os elementos
do fato, possibilitando ao pesquisador tratar abstratamente os fatos da experiência
(AYRES, 2002).
De acordo com Melo Filho (2003) pode-se relacionar três teorias sobre o
processo saúde-doença em que estão implícitas as concepções de causalidade: a
teoria social da doença, a teoria miasmática e a teoria infecciosa. Virchow, ao
conceber que as causas de doenças são muito mais sociais do que físicas e Engels,
ao referir-se aos miasmas que acometiam a classe trabalhadora inglesa, resgatam a
importância da causa formal e final. Isso ocorre paralelamente aos estudos de Mill e
John Snow, que com a teoria infecciosa trouxeram a valorização da causa eficiente.
Uma das conclusões do estudo de Snow é que, apesar de a
epidemia atingir todas as classes sociais, se adoece e se morre
mais entre os proletários e os miseráveis, todavia daí não se pode
deduzir que no seu projeto de causalidade se encontra uma
formulação que contemple a causa formalis dos revolucionários
alemães. Embora, de certa forma, questione a condição de
suficiência da causa do cólera, em sua idéia reguladora somente se
8
Associação causal aquela existente entre dois tipos de eventos, quando se observa uma troca de
freqüência na qualidade de um pela alteração do outro (MACMAHON; PUGH; IPSEN,1965).
9
1. Força de associação: a incidência deve ser maior em indivíduos expostos do que em não-
expostos, é representada pelo risco relativo. 2. Consistência: resultados devem ser confirmados em
diferentes pesquisas, com métodos e populações também diferentes. 3. Especificidade: a exposição
ao fator pode ser separada de outras exposições, e ainda assim, deve produzir incidência. 4.
Temporalidade: a exposição ao fator tem que preceder o efeito e ser compatível com o período de
incubação ou latência. 5. Gradiente biológico (dose-resposta): deve haver relação entre a intensidade
da exposição e a ocorrência. 6. Plausibilidade biológica: os fatos novos devem enquadrar-se no
conhecimento existente sobre a matéria. 7. Coerência: A interpretação não pode gerar conflitos com
aquilo que se sabe sobre a história natural e biológica da doença. 8. Evidência experimental
: o
efeito pode ser testado (critério raramente possível com seres humanos). 9. Analogia: devem haver
outras situações sobre a mesma relação na literatura que permitam estabelecer causalidade
(ROTHMAN; GREENLAND, 1998).
80
encontra a busca da “causa específica” o seja, da “causa
verdadeira” (...) (MELO FILHO, 2003, p.122).
Ao estudar a história natural das doenças, Arouca (1976) aponta que na
medicina científica a idéia de causalidade apareceu associada à lei de produção de
fenômenos e no estudo das epidemias associada à idéia de individualidade própria
de cada doença, em lugar e tempo distintos. O desenvolvimento da clínica e a
anatomia patológica, bem como a toxicologia e a determinação de doenças por
microorganismos específicos potencializaram esse estilo de pensamento no século
XIX, com traços nítidos do positivismo, e uma visão unicausalista da determinação,
com exceção dos trabalhos da medicina social na Europa que apontavam para a
visão multicausal (AROUCA, 1976).
Então, a etiologia das doenças passou a ser interpretada mediante dois
conceitos básicos: o da multicausalidade e da variedade de fenômenos de reação
diante de distintos agentes etiológicos (CID, 1972 apud AROUCA, 1976).
Para Czeresnia e Albuquerque (1998) a conceituação, a operacionalização
metodológica, a identificação da causa e a intervenção sobre elao questões
importantes da epidemiologia. Especialmente após a identificação dos
microorganismos responsáveis pelas doenças transmissíveis, a causalidade ganhou
mais legitimidade na disciplina; quando se deslocou para uma quantificação
probabilística, atribuindo uma rede de ltiplas causas à fatores de risco. O estudo
de cofatores na abordagem multicausal aumentou a compreensão da variabilidade
na expressão de doenças.
Nesse sentido, do ponto de vista da bioestatística, a busca epidemiológica da
causa assume discriminações entre fatores não-associados e associados que
81
compõem um conjunto de conhecimentos que orienta as práticas de prevenção, com
um mecanismo reducionista por conservar a linearidade e homogeneidade das
categorias. A discussão sobre a influência dos fenômenos sociais como uma dessas
categorias se encerra num conjunto de fatores ligados aos indivíduos, representados
pelo status econômico, renda, ocupação, comportamentos e históricos familiares.
Assim, Arouca (1976) explica que existe uma nomeação do social sem um
mecanismo explicativo, que ele chama de afirmação-negação, transformando o
social em mito, por produzir deformações nos conceitos, tornando-os alienados e
despolitizados à medida que se resumem aos atributos e condutas de indivíduos.
Barata (1985) diz que a causalidade é determinada pelas condições concretas
da existência e pela capacidade intelectiva do homem, revestida de historicidade e
sofrendo grande transformação com as descobertas bacteriológicas que liberaram a
medicina das causações sociais; mesmo após a transição da formulação unicausal
para a multicausal. O entendimento mecanicista da multicausalidade como
associação de fatores do agente, do hospedeiro e do meio ambiente, simplifica o
processo de causação, uma vez que tendo como única diferença a admissão de
outras causas que não o agente etiológico, se reduz à unicausalidade. Ao agregar
fatores psíquicos ao conceito de multicausalidade e definir o homem como ser bio-
psico-social, esse social aparece como atributo do homem e não como essência
humana. O modelo proposto por MacMahon, Pugh e Ipsen (1965) chamado “rede de
causalidade” admitia as relações de múltiplos fatores, mas afirmava que seu
conhecimento nem sempre era necessário, bastando identificar o componente mais
frágil para adotar medidas de controle, assumindo assim um ponto de vista
positivista.
82
O modelo mais acabado da multicausalidade é o ecológico. Neste modelo, os
fatores se apresentam num sistema fechado, onde a sobrevivência de agentes e
hospedeiros depende e é alterada pelo ambiente. Nas inter-relações entre os
fatores, estes alteram uns aos outros e são colocados num mesmo plano a -
histórico e atemporal, reduzindo a vida humana à condição animal e as
determinações sociais também se reduzem a fatores do ambiente, perdendo seu
potencial crítico. Essa abordagem reduzida ao naturalismo permite a classificação
do homem por critérios também naturais, como idade, sexo, raça e rompe com a
idéia de sujeito social e seus produtos culturais (BARATA, 1985).
Seguindo esse entendimento, San Martin (1986) diz que saúde e enfermidade
são manifestações da relação ecológica entre o homem, seu ambiente e um agente
causal. Além disso, recomenda que todo estudo sobre saúde e doença deva analisar
esses fatores minuciosamente. Para o autor, a etiologia de toda enfermidade é
constituída pelos fenômenos dessa tríade, que estão sempre presentes, mesmo
quando apresentam diferentes graus de importância.
A etiologia da enfermidade é sempre uma combinação de múltiplas
causas. Nada acontece em patologia devido a uma única causa,
nem mesmo nas enfermidades infecciosas que são tão específicas.
No ambiente externo, tudo está tão inter-relacionado que os fatores
etiológicos nunca atuam isoladamente. De maneira que é melhor
falar de influências causais ou etiológicas ao nos referirmos aos
fatores exógenos e endógenos que podem intervir na aparição da
enfermidade como fatores predisponentes, provocadores ou
mantenedores (SAN MARTIN, 1986, p.13).
Primeiramente, os estados de saúde e doença são influenciados pela herança
biológica e pelo genótipo. Após o nascimento, o indivíduo passa a sofrer alterações
provocadas pelo mundo externo, de ordem física ou psíquica e está sujeito aos
riscos e tensões do ambiente que ganham importância crescente à medida que se
socializa. Para superar essas influências, ele depende da constituição herdada ou
83
adquirida e dos auxílios da ciência, ganhos com a ampliação da medicina, cultura e
saneamento (SAN MARTIN, 1986). Esse processo de adaptação ou não ao
ambiente e a resistência aos seus fatores lembra o princípio darwinista de
sobrevivência do mais apto, principalmente ao inferir que “... a morte ocorre mais
tarde nos indivíduos que tenham desenvolvido uma constituição sã...” (p.17) e
explicar a pobreza como “imperfeição” da organização social e “... incapacidade para
obter os elementos vegetativos mínimos...” (p.17); e assim “... a medicina necessita
obrigatoriamente de ampliar suas funções...” (p. 18).
Ao esconder as diferenças de classe que determinam o aparecimento de
diferentes causas, limita-se a atuação frente aos problemas de saúde, que é
realizada somente no âmbito ecológico, sem abordar a organização social.
Criticando o modelo ecológico e assumindo a determinação social como fator
principal da causalidade, a discussão do modelo crítico, iniciado no fim da década de
1960 com potencial transformador, não se tornou hegemônico por não interessar
aos grupos dominantes (BARATA, 1985). Esse modelo contra-hegemônico confronta
as teorias mais empíricas de causalidade, assumindo um caráter mais racional,
utilizando-se do materialismo histórico-dialético como referencial principal (MELO
FILHO, 2003).
Para Breilh (1991) as condições reais de reprodução da enfermidade e sua
distribuição dinâmica e diferenciada guardam uma relação dialética, por isso existe
uma correspondência entre as categorias empregadas para definição das causas de
doenças e as utilizadas para expressar a sua distribuição na população. Além disso,
entende que os fatores predisponentes às doenças estão subsumidos a
determinantes sociais, participando do movimento dialético entre biológico e social,
84
do particular ao geral, do micro ao macro (BREILH, 2006). Isso fez com que o autor
empregasse o termo “determinação” ao invés de causalidade, pois o termo tem
significado mais amplo, e relacionando à terminologia aristotélica, corresponde às
causas formais, finais e eficientes (MELO FILHO, 2003).
O enfoque epidemiológico clássico fracionou a realidade pela dicotomização
do social e do biológico, isolando fatores que determinam o processo saúde-doença
nas relações causais estabelecidas por associação estatística, diferentemente da
visão mais totalizadora da determinação, proposta pela epidemiologia crítica. Nesta,
o saúde-doença é visto como uma unidade de caráter duplo biológico e social; e é
reconhecida a especificidade de cada um desses elementos. Ao mesmo tempo, é
analisada a relação entre eles; permitindo, assim, o alcance das formulações
teóricas e categorias que dão à análise um estatuto científico e o entendimento de
como o padrão social do desgaste biológico gera a doença (BREILH, 1997;
LAURELL, 1983).
O processo saúde-doença é determinado pelo modo como o homem
se apropria da natureza em um dado momento, apropriação que se
realiza por meio de processo de trabalho baseado em determinado
desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de
produção (LAURELL, 1983, p.157).
Breilh (1991, 2006) não rejeita os dados fornecidos pela estatística, mas os
entende como instrumentos auxiliares para o conhecimento das expressões
determinadas por variações qualitativas, se concentra nas categorias em que são
distribuídos esses dados, principalmente quando se utilizam do termo “classe social”
relacionado às condições sócio-econômicas, sugerindo o emprego das categorias
marxistas para classificação de classes. Esse tema merece um tópico separado,
uma vez que outros autores também discutem o emprego desses conceitos, que
será melhor abordado na categoria “metodologias de estudo”.
85
Epi.clássica Epi. crítica
termo utilizado Causa determinação
argumento Indutivo dedutivo
caráter de análise Empírico racional
destaque às causas
aristotélicas
Eficientes Formais, finais e
eficientes
regulada por leis probabilísticas e
matemáticas
leis históricas e sociais
risco Noção central, remete à
associação causal
Noção menos valorizada
nesse estilo, predomina
o fluxo de determinação
3.4. Concepção de processo saúde-doença:
Muitos autores foram encontrados com diferentes visões e concepções sobre
o “social” e sua influência no aparecimento do processo saúde-doença, que vão do
entendimento biologicista às relações de produção na sociedade. Esse debate
intensificou-se a partir da cada de 1960, junto com a discussão da epidemiologia
crítica e as evidências que mostraram limitações da concepção meramente biológica
da doença, o que sustentou e sustenta o crescimento do conhecimento médico
clínico.
O modelo de Leavell e Clark (1976), criado na década de 1940 considera que
o processo saúde-doença é determinado pelo estado de equilíbrio entre os fatores
relativos ao agente, hospedeiro e meio ambiente, cabendo a epidemiologia estudar
essa interação, suas causas e efeitos. Embora afirmem que a saúde é algo mais do
que a ausência de doença, recomendam estudos cuidadosos e estatisticamente
controlados para a sua definição, uma vez que saúde normalidade são atributos
relativos. O processo de evolução de uma doença é suscetível de interrupção,
86
quando pode-se efetuar prevenção
10
alterando um ou mais dos três elementos.
Nesse modelo, o social pode aparecer como traços característicos do hospedeiro
(renda, grau de instrução, ocupação, nutrição); ou no ambiente pelas condições que
favorecem ou não o desenvolvimento do processo mórbido, bem como do agente.
A relação entre a tríade agente, hospedeiro e ambiente reduz a dimensão da
organização social aos fatores causais e a utilização do termo social mitifica essa
dimensão com naturalização, despolitização e esvaziamento teórico do processo
saúde-doença (AROUCA, 2003).
A partir da década de 1960, na América Latina foram desenvolvidos alguns
estudos (de epidemiologia crítica) que diziam respeito às condições sanitárias do
país, em que o “social” era entendido como elemento desencadeante ou
condicionante da distribuição das doenças. Aos poucos, esses trabalhos foram
demonstrando preocupação com o tratamento dado ao social, buscando uma
epidemiologia que o apreendesse em sua totalidade. Assim, o social perdeu um
pouco de seu valor como um dos fatores causais da doença para ser um campo
onde a doença atinge um significado específico; sob a forma de relações sociais de
produção responsáveis pela posição de segmentos populacionais na estrutura social
(MARSIGLIA; BARATA; SPINELLI, 1985).
O estado sanitário passou a ser visto como expressão de evolução
das condições de vida das classes sociais num dado período. E as
condições de vida da população, por sua vez, como reflexo das
condições mais gerais de produção nessa sociedade (MARSIGLIA;
BARATA; SPINELLI, 1985, p.138).
10
Para Leavell e Clark (1976), a medicina preventiva esta dividida em três níveis: prevenção primária
(promoção da saúde e proteção específica); prevenção secundária (diagnóstico e tratamento
precoce, prevenção de invalidez) e prevenção terciária (reabilitação). Essa não é a concepção de
prevenção e promoção utilizada neste trabalho.Entende-se por promoção um conceito amplo,
baseado no fortalecimento da capacidade individual e coletiva para lidar com a multiplicidade dos
condicionantes da saúde, através de estratégias integradas e intersetoriais (BUSS, 2003).
87
A produção latino-americana sobre desigualdades sociais em saúde
relacionou as condições de saúde e doença aos indicadores sócio-econômicos pelo
conceito de classe social e utilizando uma abordagem materialista histórica. Esse
movimento foi diminuído a partir da década de 1980 como efeito da globalização
econômica, deixando de lado as preocupações com as conseqüências da pobreza
sobre a saúde das populações. No Brasil, os primeiros trabalhos nesse estilo foram
produzidos a partir da década de 1970, incorporando o conceito de classe social na
relação com o aparecimento de doenças. Esses estudos utilizavam a ocupação e
posse dos meios de produção como fator para classificação das classes,
assumidamente recorrendo às correntes leninista e marxista de explicação das
relações sociais
11
(BARATA, 2006).
Para Marsiglia, Barata e Spinelli (1985), a determinação social e o
aparecimento de doenças não estão relacionados linearmente e devem ser
analisadas em dois planos. Primeiramente, considerando a forma com que as
condições políticas, econômicas e sociais interferem no processo epidêmico e, em
seguida, observando como a sociedade adota medidas práticas de controle e
intervenção sobre esse processo.
Os perfis patológicos de diferentes grupos sociais em uma mesma sociedade
são diferentes em relação ao tipo de doença e freqüência e mudam de acordo com o
momento histórico. A análise histórica também mostra que os conceitos de saúde e
doença da sociedade capitalista condicionam como necessidades de saúde da
população em geral aquelas que são as necessidades de uma classe dominante;
por ter como referência a biologia individual, o que não contempla o caráter social do
11
Metodologias de estratificação social serão mais bem abordadas na categoria “metodologias de
estudo”.
88
processo (LAURELL, 1983). A autora analisa a literatura epidemiológica hegemônica
e observa que:
(...) se lida essencialmente com dois conceitos que, no fundo, não
são discrepantes. O primeiro é o conceito médico-clínico, que
entende a doença como um processo biológico do indivíduo; o
segundo é o conceito ecológico, que vê a doença como resultado do
desequilíbrio na interação entre hóspede e seu ambiente. Este
conceito coincide com o primeiro, que, uma vez estabelecido o
desequilíbrio, a doença se identifica da mesma forma como no
primeiro caso (p.150).
Laurell (1983) sustenta a idéia de que o processo saúde-doença é um
processo biológico, porém explica que ele é dotado de historicidade e o se esgota
na determinação social. Entende que o próprio processo biológico humano também
é social, na medida em que não é possível padronizar a “normalidade biológica”
humana separadamente de seu contexto histórico. Também entendendo o processo
saúde-doença como um resultado das possibilidades normativas dos indivíduos em
relação ao mundo social e biológico, Paim (1997) sustenta que as relações com os
diferentes agentes sociais do espaço social determinam diferentes riscos de
adoecimento e morte.
Almeida Filho (2000b) adicionalmente, argumenta que a epidemiologia não
tem sido capaz de produzir um referencial teórico eficaz sobre a saúde como um dos
pólos do processo saúde-doença, uma vez que concentra-se na noção de doença,
embasada pelos referencias da clínica. Para o autor, o máximo que a epidemiologia
chegou, influenciada pela clínica, foi a definir saúde como um atributo do grupo de
não-doentes, entre expostos e não-expostos a fatores de risco. Portanto, ao
contrário dessa idéia, a saúde não pode ser entendida simplesmente como
“ausência de doença”. Existem, é claro, dificuldades para mensurar o grau de saúde
89
dos indivíduos e populações, e assim avaliar, que se trata de uma percepção
subjetiva de um processo complexo e dinâmico.
A complexidade do processo saúde-doença, assim como a definição do termo
epidemiologia, mostra que os pressupostos teóricos e ideológicos dos autores
determinam as suas concepções. A determinação social, como fator importante
nesse processo, aponta para uma forma completa de compreender a dinâmica de
determinação da situação de saúde, que contempla as micro e macro-relações que
interferem diretamente na forma de entendimento da população sobre a sua
situação de saúde e na forma como o Estado provém as condições de assistência.
Epi. Clássica Epi. crítica
Conceito de processo
saúde-doença
Multicausal ou ecológico. Histórico e social.
O processo biológico é
social e dotado de
historicidade.
3.5. Metodologias de estudos epidemiológicos:
A análise sobre as metodologias de estudo se apresenta como última
categoria deste capítulo por ter sido entendida como a categoria mais importante de
diferenciação entre estilos de pensamento, que além de abarcar todas as outras
categorias em sua concepção o que determina a escolha do todo – traz
embutida questões relativas à relação entre epidemiologia e ciências humanas, e
diferentes entendimentos da variável classe social, que apontam para
incongruências de pensamento, frisando que se tratam de diferentes estilos.
90
Discutindo o que deve ser adotado como verdadeiro por ser efetivamente
verdadeiro, a metafísica e depois a física iniciaram o debate para estabelecer a
legitimidade do saber. A discussão sobre o estatuto cognitivo da epidemiologia, sua
legitimidade e adequação aos pressupostos formais que determinam a consciência
social, encerra também critérios de validação para determinar o que se entende por
normal ou anormal nas questões sobre a saúde e doença das populações. Além
disso, a discussão consiste em apontar quais os processos sociais que estabelecem
as analogias e objetos modelos da epidemiologia (SAMAJA, 1998).
Samaja (1998) afirma que o limite mais significativo dos modelos
epidemiológicos foi a lógica das categorias de conjunto como um agregado de
elementos independentes. Os paradigmas de dedução (aplicação de um
conhecimento sobre a totalidade do conjunto ou um subconjunto) e indução
(generalização do que sabe sobre um subconjunto a todo o objeto) foram a base
para pensar que a avaliação das situações de saúde poderia ser efetuada mediante
a aplicação de taxas e correlações. Para o autor, diferentemente do que se pensa,
não foi a hegemonia da medicina clínica, mas a própria inspiração na gica
conjuntivista que limitou o desenvolvimento da epidemiologia, adquirindo como
modelo o estudo de Durkheim sobre as taxas de suicídio e reduzindo a
compreensão da saúde como fenômeno social.
Efetivamente, se entendemos por objeto-modelo a conceitualização
de um campo da realidade mediante a seleção de um conjunto de
variáveis, é necessário reconhecer que a epidemiologia parece
carecer de variáveis próprias. Se, em relação às variáveis
contextuais, ela lança mão das variáveis da sociologia ou da
antropologia, em relação ao campo da saúde, conforma-se com
taxas. O mais alto nível de teorização alcançado com a utilização
destas taxas, ao menos na prática dominante deste campo, consiste
em aproveitar a polissemia encerrada na palavra metafórica ‘risco’
(SAMAJA, 1998, p.30).
91
Do ponto de vista do paradigma dialético, no entanto, é possível pensar a
complexidade sem lançar mão de uma redução de um nível a outro; uma
epidemiologia baseada em processos normativos, de conteúdo semiótico e
comunicacional; menos limitada pelos elementos nosológicos que computam casos
e calculam taxas, com forte tendência a priorizar processos particulares em
detrimento dos processos socioculturais (SAMAJA, 1998).
Crevenna (1977) considera como um problema da epidemiologia o caráter
muito pragmático da metodologia, partindo de certos indicadores para chegar aos
estudos descritivos. Nas investigações exploratórias o processo é inverso, quando
se parte de características ou variáveis para então construir os indicadores, com
pressupostos filosóficos que sustentem as definições e hipóteses do problema
estudado.
Os dois conceitos centrais da definição da epidemiologia população e
doença vêm sendo abordados e compreendidos por diferentes pontos de vista, do
campo das ciências sociais às biológicas e estatísticas. De acordo com Penna
(2006), quando a epidemiologia pretende orientar uma política de saúde pública, tem
a necessidade da interface com as ciências sociais.
A relação entre filosofia e epidemiologia tem se mostrado muito turbulenta,
pois possui adeptos apaixonados e críticos dos dois lados, dificultando assim a
abordagem que permite a aplicação de idéias filosóficas nas tarefas centrais da
epidemiologia, compreendendo três fases tomadas de empréstimo da medicina,
cumulativas e progressivamente mais complexas: filosofia e medicina, filosofia na
medicina e filosofia da medicina (WEED, 1998).
92
Analogamente, a evolução dos estudos filosóficos aplicados à
epidemiologia envolve filosofia e epidemiologia, sendo as duas
atividades praticamente independentes e os conceitos filosóficos
utilizados para identificar problemas relativos ao pensamento
epidemiológico. Em segundo lugar, uma filosofia na
epidemiologia, na qual os mesmos problemas são examinados
analiticamente de pontos de vista filosóficos específicos. Finalmente,
há uma filosofia da epidemiologia e seus produtos, em que tem lugar
uma síntese geral de problemas identificados e examinados nas
duas fases anteriores (WEED, 1998, p.38).
De acordo com Weed (1998), habitualmente a epidemiologia permanece na
segunda fase filosofia na epidemiologia pois os cientistas têm conseguido
empregar os conceitos filosóficos na análise dos problemas identificados; problemas
esses que emergem na ontologia, na epistemologia e na ética.
A necessidade de expandir horizontes, produzir novas práticas na
epidemiologia e conquistar maior legitimidade diante de outros campos científicos
surgiu da fragilidade e inadequação de teorias e métodos, demonstrada por uma
preocupação com a humanização da ciência e com a reflexão sobre o seu alcance
social. O campo científico da epidemiologia embasou-se no método, entendido como
um instrumento de investigação e utilizando-se de uma lógica empirista e indutivista.
Czeresnia (1993) defende a introdução do pensamento popperiano em
epidemiologia como tentativa de estimular um racionalismo mais crítico, porém sem
alterar a lógica e as características fundamentais do método, rompendo com a
formalidade empirista para buscar estudos mais enxutos. Assim, os cientistas
assumiriam os riscos na delimitação de seus problemas e a produção do
conhecimento tomaria o caminho dialógico com uma perspectiva emancipatória. A
autora também salienta a necessidade de pensar a produção do conhecimento em
bases mais cooperativas, integrando métodos e bases teóricas, pois ao definir
claramente o objeto de estudo, é possível escolher a melhor estratégia metodológica
93
para apreender esse objeto, incluindo maior integração com as ciências sociais, o
que redefiniria esse objeto epidemiológico como um objeto social.
A epidemiologia acompanhou as épocas de transição das ciências em geral,
produzindo um novo quadro epistêmico de complexidade que permitiu a integração
entre ciências naturais e humanas no entendimento do processo saúde-doença.
Schramm e Castiel (1992) apontam que uma das funções da epidemiologia crítica
está em denunciar as tendenciosidades de equalizar variáveis econômicas e sociais
ao mesmo nível das variáveis de pessoa e lugar, inibindo a dimensão histórica da
determinação do processo saúde-doença. os estudos de modelagem matemática
têm seu valor quando é possível atuar sobre as variáveis intervenientes do
processo. Porém, a utilização exclusiva da matemática permite que o processo
saúde-doença no espaço público seja isento de significados que remetam às
contradições e à pluralidade (AYRES, 2002).
Para Minayo (2006), a relação entre epidemiologia e ciências sociais se dá a
partir de três modelos de explicação do processo saúde-doença: o organicista, o
social e o ecossistêmico. O primeiro diz respeito à existência independente entre
saúde e doença, priorizando a teoria microbiana para superar todas as ideologias
políticas e interpretações sociais. O segundo, articula saúde, doença e as condições
de vida, sob o olhar do marxismo e seu viés estrutural, expressando seu maior vigor
na temática do trabalho e do ambiente. Minayo (2000) lembra que a produção e
institucionalização dessa articulação no Brasil iniciou na década de 1960, com
reflexões voltadas para a produção dos fenômenos saúde-doença, intervenção e
regulação do Estado na produção das políticas sociais e na análise e compreensão
da prestação de serviços de prevenção, recuperação e reabilitação, agregando
94
representantes de diversas classes em um movimento, com forte inspiração
socialista, que se opunha ao modelo ditado pelo militarismo da época
12
.
Na segunda metade da década de 1980, inclusive com a decadência do
socialismo no mundo, a produção em saúde coletiva passou a dirigir-se para uma
visão mais pluralista, que não só incluía a contribuição marxista, mas também de
outras correntes teóricas. Para a autora, “essa corrente está em declínio, junto a
crise do marxismo na sociedade ocidental e no pensamento sociológico” (MINAYO,
2006, p.66). Isso ocorreu pela falta de consistência do seu arcabouço, que é muito
mais político do que científico e margens para a crítica da totalização da
determinação social na produção de saúde-doença, levando pouco em conta as
relações microssociológicas e questões de subjetividade que tornam mais
complexas as expressões do processo no terreno da prática. O terceiro modelo
apontado se desenvolve a partir da teoria quadrangular de Lalonde e da Carta de
Ottawa, e tem sua explicação na abordagem ecossistêmica da saúde, influenciada
também pelos movimentos ambientalista e feminista, tentando combinar a
epidemiologia das enfermidades com condições sociais e variáveis ambientais.
Na análise de Luz (2000), a epidemiologia tem passado por momentos de
endurecimento e flexibilização em relação à incorporação de métodos e referenciais
teóricos das ciências humanas em suas pesquisas, podendo-se dizer que ainda não
existe um pensamento unitário a respeito, uma vez que os núcleos duros
quantitativistas tendem a hierarquizar as abordagens das disciplinas das ciências
12
Esse movimento apareceu vinculado ao Movimento Sanitarista, de inspiração marxista que
influenciou a elaboração dos capítulos da Constituição de 1988 relativos à saúde. Por um lado, a
corrente teórica marxista contribuiu para o engajamento político e desenvolvimento de uma visão
crítica dos sanitaristas e intelectuais da área. De outro, causou certo estreitamento teórico que não
permitiu explicar questões de desigualdade étnica e de gênero (MINAYO, 2000).
95
humanas; enquanto a utilização desses métodos cresce na direção da epidemiologia
social e crítica incorporando conceitos e métodos da antropologia, sociologia e
geografia. De acordo com Penna (2006), as ciências sociais problematizam as
exposições relevantes e discutem a determinação das doenças visando colaborar
com a eliminação dos riscos e incorporando a discussão da determinação social na
disciplina.
Minayo e Sanches (1993) fazem uma reflexão sobre a relação entre
qualitativo e quantitativo nas pesquisas em saúde, afirmando que nenhuma das
duas abordagens é boa o suficiente para possibilitar a compreensão completa da
realidade. Do ponto de vista quantitativo, quanto mais complexo for o fenômeno sob
investigação, maior deverá ser o esforço para atingir a quantificação adequada; deve
abarcar grandes aglomerados de dados, classificá-los e torná-los inteligíveis através
de variáveis. na abordagem qualitativa, é preciso ter cuidado para utilizá-la
somente em fenômenos específicos e delimitáveis, capazes de serem abragidos
intensamente, uma vez que diz respeito à subjetividade e ao simbolismo, muitas
vezes analisados pelas palavras de informantes ou entrevistados.
Um dos maiores problemas encontrados nessa relação, é que o entendimento
do que é científico para as ciências humanas difere do mesmo entendimento para as
disciplinas do campo biomédico. Esse segundo entendimento, hegemônico nas
pesquisas epidemiológicas, tende a considerar as afirmações das ciências humanas
com maior ou menor rigor, de acordo com seu modelo de investigação. O modelo de
explicação dos fenômenos de saúde-doença mais ligado ao referencial das ciências
humanas e sociais possibilita a compreensão e interpretação do trajeto social de
96
uma epidemia, contribuindo para a objetivação de uma abordagem de natureza
sócio-econômica e cultural (LUZ, 2000).
Rouquayrol e Almeida Filho (1999) afirmam que não existe um “método
epidemiológico”, mas uma variante da metodologia científica desenvolvida para
aplicação na investigação do processo saúde-doença em populações; e o método
epidemiológico passa a ter existência concreta quando produz os componentes
empíricos dos problemas epidemiológicos, fundamentados nos seus respectivos
componentes teóricos.
MacMahon, Pugh e Ipsen (1965) definem claramente o que entendem por
uma metodologia adequada para estratificar classes em estudos epidemiológicos.
Para eles, a idade é uma das variáveis mais importantes a serem observadas em
estudos descritivos, pois as variações que ocorrem na freqüência e no risco das
doenças são maiores em função da idade do que em associação a qualquer outra
variável. Em seguida, apontam sexo e grupo étnico como variáveis importantes. Por
grupo étnico, entendem-se todas as características sociais que definem
comportamentos e situações propícias ao desenvolvimento de doenças, como raça,
local de nascimento, religião e características familiares. Em um capítulo específico,
são explicadas “outras características”, abordadas porque estão facilmente
disponíveis, mas “não porque representam, necessariamente, os tipos ideais de
informação epidemiológica” (p.115), entre elas: ocupação (com medição da situação
econômico-social, efeitos das diferentes condições do trabalho e identificação de
riscos pela exposição a certas situações do trabalho); renda e local de residência.
Em síntese, esses são os indicadores mais utilizados para medir a classe
social e se justificam pela relação que guardam entre si. “A educação acesso a
97
determinada ocupação e, portanto, a um nível de renda. O nível de estudos se
relaciona com o nível cultural e, portanto, pode afetar as condutas e as práticas em
relação aos estilos de vida e ao apoio social” (BORRELL, 1997, p. 180).
A utilização dessas variáveis empírico-indutivas para definir separações na
estratificação social representa uma grande parcela da epidemiologia mundial que
se intitula “epidemiologia social”, realizando estudos que analisam a exposição a
fatores de risco e o aparecimento de doenças de acordo com a renda, grau
acadêmico, raça/cor e ocupação. Entende-se que embora esse modelo de estudo
utilize variáveis sócio-econômicas importantes para suas análises e por esse ponto
de vista mereça uma denominação diferente; essa forma de pesquisar o processo
saúde-doença utiliza os pressupostos da epidemiologia clássica, que não chegam a
caracterizá-la como um estilo de pensamento distinto.
Diferentemente dessa abordagem, o estilo de pensamento crítico, também
chamado de social (e por isso muitas vezes confundido com o estilo acima citado),
apresenta notáveis diferenças em relação ao estilo clássico, ao apoiar-se,
principalmente, nas condições de trabalho como variáveis importantes. Este estilo
entende que um grupo epidemiológico o pode ser separado conforme padrões de
renda por não refletir a qualidade de vida de cada indivíduo, da qual o salário é
apenas uma expressão parcial.
Breilh (s.d.) explica que a metodologia de investigação epidemiológica
inspirada nos conceitos marxistas estratifica classes sociais pela separação de
grupos que se diferenciam entre si, considerando quatro grandes relações,
inspiradas nos ideais leninistas: que lugar a pessoa ocupa em determinado sistema
de produção, pelas relações em que se encontra frente aos meios de produção
98
(relações fixadas e consagradas por lei), pelo papel que desempenha na
organização do trabalho e pelo modo e proporção que recebe da riqueza que
produz. Segundo este autor, essa categorização permite conhecer a dinâmica das
relações sociais que determinam não somente a situação de saúde, mas também
condições de vida e relações com a sociedade em geral que refletem a qualidade
de vida.
Assim, Breilh (s.d.) utiliza-se da ocupação como forma de classificar os
grupos: operário (trabalhador produtivo com contrato permanente de mais de três
meses em empresas onde dez ou mais funcionários); artesão ou pequeno
industrial (trabalhador dono de uma unidade produtiva de pequeno porte); semi-
assalariado (trabalhador sem contrato que realiza serviços não-fundamentais na
produção); empregado público (de empresas estatais ou semi-estatais); empregado
de empresa privada (técnicos-administrativos de empresas que não estejam
diretamente ligados à produção); comerciante menor (aquele que desenvolve suas
atividades através da compra de produtos elaborados ou semi-elaborado para
posterior venda, em local estável); profissional independente (aquele com alta
formação universitária ou técnica que presta serviços como fonte de subsistência);
pequeno trabalhador agrícola (cuja subsistência vem da participação no trabalho de
uma cooperativa); administrador de sua própria empresa (dono de fábrica ou
empresa com dois ou mais funcionários); desempregado (que se encontra sem
trabalho há mais de uma semana).
A metodologia utilizando essas categorias vem sendo utilizada pelo Centro de
Estudos e Assessoria em Saúde (CEAS) no Equador na análise de saúde de
trabalhadores que se expõem aos riscos característicos de sua ocupação no
99
processo produtivo e tem como objetivo principal elaborar ações de combate a
essas situações de iniqüidade; não somente realizar um diagnóstico populacional
(BREILH, 1997). Além disso, os pesquisadores dessa linha também se utilizam dos
conceitos marxistas de burguesia, proletariado, classe média, pequena burguesia,
subproletariado e lumpenproletariado, em que as classes citadas anteriormente são
contempladas.
É importante lembrar que a metodologia utilizada pela epidemiologia crítica
não menospreza a utilização da estatística. Pelo contrário, utiliza-se dos métodos
quantitativos em associação aos qualitativos para evidenciar as iniqüidades em
saúde e superar a descrição empírica, através de método interpretativo dialético,
permitindo que sejam realizadas pesquisas com grandes grupos, uma vez que o
caráter social dos perfis patológicos é observado mais claramente nas coletividades
do que em indivíduos (BREILH, 1997). A metodologia de análise proposta por
Laurell (1983) também busca contemplar os fenômenos de determinação social e
recomenda que os grupos sejam separados primeiramente em função de suas
características sociais, para depois contemplar as características biológicas. A
autora também sugere que a metodologia esteja pautada em elementos teóricos do
materialismo histórico, por permitirem conhecer a proposição geral e aprofundar a
compreensão da problemática e determinação do processo saúde-doença.
Sob a metodologia materialista histórica, a operacionalização das divisões em
classe utilizando a classificação hierárquica, que contempla a posse de meios de
produção e do poder e participação na riqueza que essa posse acarreta, possibilita a
observação das desigualdades na situação de saúde desses diferentes grupos.
Barata (2006) afirma que esse conceito não corresponde a apenas mais um
100
indicador, mas significa a totalização de um conjunto de variáveis sócio-econômicas
integradas que determinam o processo saúde-doença.
Segundo Solla (1990, 1996), a aplicação dos conceitos marxistas em
epidemiologia veio para ampliar e complexificar a abordagem da causalidade
biológica empregada no estudo do processo saúde-doença, possibilitando que esse
processo possa ser abordado enquanto fenômeno social. A exposição da realidade
a partir da inserção de indivíduos na produção expõe as relações de dominação e
subordinação existentes nas estruturas de classe, partindo do conhecimento
empírico para submetê-la a uma elaboração teórica que a estabelece como
concreto, ou seja, como fato científico. Porém, os principais problemas apontados
nesse tipo de análise dizem respeito à necessidade de muitas variáveis e grandes
amostras para a construção das classes, dificuldade para determinação da inserção
de segmentos afastados da produção (desempregados, donas de casa, estudantes)
e para classificar um mesmo indivíduo que possua duas ou mais inserções distintas
de produção.
Além da discussão sobre as classes sociais, a relação quantitativo-qualitativo
tem sido alvo dos debates teóricos em epidemiologia. Para Samaja (1998), a
epidemiologia necessita passar por uma revisão epistemológica que a torne apta
para rever seus conceitos, incluindo o campo de significação que comporta as
situações críticas que demonstram as conseqüências da estruturação social na
significação estatística; a então atribuída ao acaso. Deve-se buscar integração
entre as abordagens qualitativas e quantitativas, sem pensá-las como contraditórias,
mas complementares (MINAYO; SANCHES, 1993). Ambas dispõem de um grande
arsenal metodológico e técnico para fornecimento de dados sobre a realidade das
101
populações que não podem ser subutilizados. Trata-se, simplesmente, de definir o
alcance e o objeto que cada abordagem pode abarcar.
3.6.1.Tipos de estudo:
Os tipos de estudo epidemiológico podem ser divididos em dois grandes
grupos: os experimentais (ensaios clínicos e ensaios de comunidade) e
observacionais (transversal, coorte, caso-controle, ecológico) (BLOCH; COUTINHO,
2006; ROTHMAN; GREENLAND, 1998). Neste momento, vale explicar
resumidamente quais são as principais características de cada um desses tipos de
estudo e indicar vantagens e desvantagens de cada um, para buscar semelhanças e
diferenças nas metodologias utilizadas, a fim de identificar diferentes matizes de
estilos de pensamento.
Os estudos transversais (ou seccionais) utilizam habitualmente o indivíduo
como unidade de análise. A cada pessoa é atribuído um grupo sócio-econômico ou
classe social para posteriormente comparar indicadores de saúde entre os diferentes
grupos. Esses estudos medem e descrevem a freqüência de doenças, identificam e
apontam características de fatores de risco; através da escolha de participantes por
amostra aleatória dentro de uma população definida, quando são observados uma
única vez e afere-se exposição e doença simultaneamente, indicando sempre
prevalência. Entre as vantagens desse tipo de estudo estão o baixo custo, a rapidez
para obtenção de uma resposta e a menor complexidade, por se tratarem de
pesquisas simples. Por outro lado, como limitações apresentam a impossibilidade de
estabelecimento de uma relação causa-efeito ao longo do tempo (causalidade
reversa), não permite medir a incidência, com baixa prevalência a necessidade
de uma amostra muito grande, o fato de não ser adequado para o estudo de
102
doenças agudas, além de sofrer viés de seleção e de informação (BORRELL, 1997;
ROTHMAN; GREENLAND, 1998).
Os estudos de coorte (ou longitudinais) permitem analisar a evolução
temporal de diferentes grupos sócio-econômicos e seus eventos de morbidade e
mortalidade, através de uma coorte fixa (grupos definidos no início do
acompanhamento) ou dinâmica (pessoas podem sair ou entrar no decorrer do
estudo, calculando a relação pessoa-tempo). Como vantagens desse tipo de estudo,
indicam-se a possibilidade de reconhecer uma seqüência temporal entre exposição
e doença, a inexistência do viés numerador-denominador, a possibilidade de estudar
casos de mobilidade social
13
e estabelecer estimativas diretas de diferentes
medidas. Como desvantagens, estão o alto custo, o longo prazo para obtenção de
resultados, a contra-indicação para estudo de doenças raras e as perdas de
indivíduos estudados pelo longo tempo de acompanhamento por desistência,
migração e morte (BORRELL, 1997, ROTHMAN; GREENLAND, 1998).
A respeito dos estudos de caso-controle, pode-se dizer que eles são
pesquisas realizadas com um grupo de pessoas portadoras de uma doença (casos)
e outro com pessoas que não possuem essa condição (controles), no intuito de
identificar características que ocorrem em maior ou menor freqüência entre casos do
13
Uma perspectiva em estudo na epidemiologia social pode se relacionar aos estudos de coorte, por
contemplar a análise do desenvolvimento do curso de vida; em investigações com indivíduos que
cresceram com um nível de vida e então mudaram para um status mais alto ou mais baixo. Embora
questões como o risco cumulativo e períodos de latência possam ser importantes, ainda faltam
métodos para lidar com elas; pois a exposição aos fatores pode ocorrer na infância e influenciar na
vulnerabilidade da idade adulta. A avaliação da exposição no ambiente ou comunidade leva a um
entendimento de determinantes sociais de saúde além da soma de medidas individuais. Além disso,
importantes questões podem surgir do ambiente e o desenvolvimento da pesquisa mostra que as
análises em mais diferentes situações (individuais e grupos) oferecem dados mais valiosos. Os
adeptos da epidemiologia social estão utilizando termos e métodos das ciências sociais para
contribuir em suas análises de natureza multidisciplinar, e para identificar como a estrutura social
interfere na saúde das populações (BERKMAN; KAWACHI, 2000).
103
que entre controles. As vantagens dessa modalidade de estudo concentram-se no
fato de ser o melhor delineamento para doenças raras, permite o estudo de doenças
com um longo período e o estudo simultâneo de muitos fatores de risco, são
relativamente baratos e o necessidade de acompanhamento dos participantes.
Entre as desvantagens, estão a difícil seleção do grupo controle, a interferência do
viés de memória, além de não medirem prevalência nem incidência (RODRIGUES;
WERNECK, 2002; ROTHMAN; GREENLAND, 1998).
Estudos ecológicos utilizam áreas geográficas como unidade definidora das
populações de análise e comparam indicadores de saúde e sócio-econômicos em
diferentes áreas, procurando relações entre esses indicadores. Baseiam-se em
dados secundários referentes a essas grandes populações e usam como variáveis
as medidas agregadas, ambientais e globais. As vantagens desse tipo de estudo
estão no baixo custo, execução rápida, fácil acesso aos dados (de censos ou
sistemas de informação), boa estimativa sobre os efeitos de uma exposição quando
ela varia pouco na área escolhida, além de serem relevantes para questões políticas
e de planejamento sanitário. Como desvantagens, os dados podem apresentar
erros, pois pode haver problemas na coleta de informação e critérios diagnósticos;
os dados estão agregados por critérios administrativos, o que torna as áreas
heterogêneas; não fornecem estimativas e pode existir; além da possibilidade de
ocorrer a falácia ecológica
14
, decomposta em viés de especificação (produzido pela
14
A análise ecológica oferece acesso ao estudo dos ambientes, mas é criticada por não apresentar
correspondências entre os níveis individuais de associação e níveis de grupo para as mesmas
variáveis. Por exemplo: dentro de determinados países, fumantes têm mais chance de morrer
prematuramente do que não-fumantes. No entanto, países com alta prevalência de fumantes (como
Japão ou França) não necessariamente têm alta taxa de mortalidade prematura por fumo. Isso não
significa que fumar não predispõe à morte prematura, mas que o estudo de cada caso tem que ser
claro sobre o vel apropriado de análise e medida; e cuidadoso ao passar de um nível a outro. A
“falácia ecológica” consiste em entender que porque certa correspondência entre duas
variáveis quando medidas em um nível agregado (macro), a mesma relação ocorre no nível individual
(micro) (MACINTYRE; ELLAWAY, 2000).
104
existência de um fator de confusão que não foi considerado) e viés de agregação
(pelo estabelecimento de inferências de indivíduos a partir de observações
agrupadas) (BORRELL, 1997; ROTHMAN, GREENLAND, 1998).
Entre os estudos experimentais, os ensaios clínicos são utilizados com certas
restrições, uma vez que algumas situações não podem ser pesquisadas por razões
éticas; porém, são vistos como “padrão ouro” entre todos os métodos, pois são
considerados os de mais forte evidência científica. Esse tipo de estudo consiste na
seleção de uma população doente, dividida em grupos que serão expostos ou não,
por um período de tempo, a fatores que possam intervir na cura dessas doenças.
Então, é realizada uma comparação entre os indivíduos que permaneceram doentes
ou ficaram sadios entre os expostos e os não expostos ao fator que está sendo
testado. Para evitar viés, os indivíduos não sabem a que grupo pertencem; no caso
dos estudos duplos-cegos, nem os pesquisadores sabem. As vantagens desse tipo
de estudo indicam-se por o haver dificuldades na formação de um grupo controle,
o tratamento, procedimentos e cronologia dos eventos são definidos e uniformizados
anteriormente, a interpretação dos resultados é simples e representa uma opção
para intervenção posterior. Nas desvantagens incluem-se a necessidade de uma
população cooperativa que evite perdas, a impossibilidade de ajustar o tratamento
de acordo com as necessidades individuais, ale de ser um tipo de estudo caro e que
suscita uma avaliação profunda sobre as questões éticas envolvidas
(ESCOSTEGUY, 2002; ROTHMAN; GREENLAND, 1998).
Estudos transversais, de coorte, de caso-controle e ecológicos utilizam-se dos
métodos propostos pela epidemiologia clássica e compartilham idéias entre si, como
o uso das técnicas estatísticas para atribuir fatores de risco à populações e de
105
metodologia de estratificação social baseada em padrões de renda, cor, idade,
ocupação. Assim, são selecionadas categorias de referência para cada variável,
geralmente a mais prevalente ou de menor risco e então se verifica a associação
causal através de sua significância estatística.
O estilo crítico também se utiliza dos métodos matemáticos, mas com um
instrumento de comprovação de iniqüidades que afetam as populações, para então
traçar formas de combate aos fatores determinantes dos agravos, sejam eles
biológicos ou sociais. A epidemiologia crítica permite a análise em todos esses tipos
de estudo. O que difere fundamentalmente é a escolha de variáveis e os
pressupostos teóricos que influenciam a visão do investigador.
Parafraseando Barbosa (1985), a epidemiologia vai além de um instrumento
de análise, ela tem um potencial transformador por possibilitar uma visão abrangente
dos problemas de saúde. Com a profundidade alcançada na busca de causas para
os problemas e sobre os dados encontrados, é possível estabelecer relações entre
saúde (com seu conceito ampliado) e outros campos do conhecimento; além de
planejar, executar e avaliar ações políticas e sociais voltadas para a promoção da
saúde.
Epi. clássica Epi. crítica
fundamentação positivista marxista
características
priorizadas
individuais coletivas
entendimento de classe
social
renda e escolaridade inserção no sistema
produtivo
106
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
A epidemiologia é uma ciência que transita entre conceitos e fundamentos de
ciências biológicas e humanas, com diferentes objetos e metodologias, causando
certo estranhamento aos olhos de pesquisadores que não fazem parte dos círculos
esotéricos que abordam o tema.
De acordo com Almeida Filho (1999), a epidemiologia teve sua emergência
em três eixos fundamentais: a clínica, a estatística e a medicina social. A
participação de cada um desses eixos na história e desenvolvimento da
epidemiologia enquanto ciência trouxe diferentes concepções que se refletiram em
diferentes formas de análise do processo saúde-doença.
O movimento crítico da epidemiologia, nascido nas décadas de 1970 e 1980,
fazendo referência importante ao Movimento da Medicina Social do século XIX,
centra suas argumentações sobre a definição da disciplina e seu objeto de estudo,
especialmente no que se refere ao coletivo humano e aos fatos sociais. Esse
movimento critica a “biologização” dos aspectos sociais e define o processo saúde-
doença como resultado da organização da sociedade, a qual pode ser melhor
analisada com base no referencial teórico das ciências sociais, particularmente do
marxismo. A utilização das ciências sociais em conjunto com a epidemiologia
problematiza as exposições relevantes e discute a determinação das doenças
visando colaborar com a eliminação dos riscos, tentando incorporar a discussão da
determinação social na disciplina (PENNA, 2006).
107
Neste estudo constatou-se a existência de dois estilos de pensamento em
epidemiologia. Ao longo da leitura e análise de materiais para este trabalho, foi
possível perceber que existe uma circulação de idéias entre os dois estilos, que
permite a ambos agregar fundamentos estatísticos, porém com finalidades
diferentes, em contextos e a partir de pressupostos teórico-epistemológicos distintos,
o que induz a considerá-los distintos. A utilização dada aos elementos matemáticos
é diferente por esses estilos estarem embasados em metodologias de análise que
contemplam diferentes fatores e vêm a mudar substancialmente o entendimento e a
definição da epidemiologia e seu objeto, do risco, da causalidade e do processo
saúde-doença em um movimento dinâmico e dialético.
A relação entre a epidemiologia crítica e a epidemiologia clássica talvez possa
ser vista em analogia ao exemplo, também analógico, dado por Fleck (1986, p.171)
para compreender a relação entre ciência de revista e de manual. O coletivo de
pensamento científico seria como um exército em marcha, composto por uma
vanguarda, um corpo principal e por último, uma retaguarda. A vanguarda, os
batedores do exército, são os círculos mais esotéricos, são mais rápidos e mais
críticos. O corpo principal do exército marcha lentamente, a comunidade oficial; e
por último a mais ou menos desorganizada retaguarda. Entre a ciência de revista (a
vanguarda) e a ciência de manual (o corpo principal), sempre uma certa
distância. A vanguarda explora o terreno e os problemas com mais criatividade e
pode em alguma medida questionar direções e lugares do corpo principal. O corpo
principal avança mais lentamente, demora anos e décadas para mudar sua posição.
Seu caminho não coincide com as propostas das vanguardas, ele ajusta sua marcha
conforme os informes avançados (da ciência de revista), mas com uma certa
independência. Além disso, para esse avanço, deve-se transformar as trilhas
108
sinuosas dos esotéricos em largas avenidas, tem-se que aplanar o terreno. Com
isso, o entorno sofre uma mudança significativa aconverter-se em guarnição da
tropa principal. Isso tudo é de natureza eminentemente social e tem importantes
conseqüências teóricas. Talvez a relação entre a epidemiologia crítica e a clássica
possa se entendida nestes termos, em que a epidemiologia crítica seja uma vertente
de batedores críticos questionadores dos limites e de várias pressuposições,
métodos e direções da epidemiologia clássica. A epidemiologia crítica parece
encontrar falhas nas estratégias adotadas para guiar o corpo principal, a partir de
valores, teorias e perspectivas específicas, inclusive políticas, mas não consegue
mudar a sua conformação. Esse processo levaria anos para mudar de posição e
precisa estar munido de uma grande quantidade de soldados que estejam prontos
para lutar pela causa em que acreditam.
As categorias utilizadas neste estudo mostraram diferenças entre
epidemiologia clássica e crítica que se colocam como elementos importantes para a
caracterização das incomensurabilidades entre os estilos de pensamento. A
conceituação do termo, bem como o objeto de estudo apresentaram diferentes
concepções sobre a utilidade da epidemiologia, enquanto “método de estudo sobre
doenças” ou “instrumento de intervenção sobre as iniqüidades em saúde”. Risco e
causalidade, que de início pareceram ser duas categorias separadas, aos poucos
foram se mostrando muito semelhantes ao separar conceitos de “causa” e
“determinação”, que suscitam a utilização maior ou menor de conceitos
bioestatísticos ou sociais. A metodologia de estudo, categoria que pode ser
apontada como um grande “divisor de águas”, veio para mostrar que, em síntese, a
epidemiologia é um grande campo do conhecimento que possibilita diferentes
abordagens; e estas estão influenciadas pelos pressupostos teóricos adotados pelo
109
investigador. O quadro abaixo sintetiza essas diferenças, através de um compilado
das categorias analisadas.
Categoria Epidemiologia clássica Epidemiologia crítica
Definição Estudo da distribuição de
agravos e seus
determinantes em uma
população definida.
Estudo e intervenção
sobre as iniqüidades em
saúde de determinação
social.
Objeto e objetivos de
estudo
Relação entre variáveis
que representam
determinantes de saúde e
variáveis que representam
o estado de saúde-
doença.
Distribuição desigual de
doenças em diferentes
classes sociais.
Risco e causalidade Utiliza os conceitos de
risco e causa para análise
empírica, regulada por leis
probabilísticas e
matemáticas.
Utiliza os conceitos de
vulnerabilidade e
determinação para análise
empírica e racional,
regulada por leis
históricas e sociais.
Processo saúde-doença Multicausal e ecológico. Determinado histórica e
socialmente.
Metodologias de estudo Positivista, indutiva,
prioriza características
individuais para escolha
de variáveis, determina
classe social pela renda e
escolaridade.
Marxista, dedutiva,
prioriza características
sociais para escolha de
variáveis, determina
classe social pela
inserção no sistema
produtivo.
Esta leitura fleckiana sobre as diferenças entre duas formas de entender a
epidemiologia, para compreender a formação de uma ciência e as mudanças
ocorridas ao longo de seu desenvolvimento, possibilitou a resolução de muitas
dúvidas que geraram o problema de pesquisa a ser investigado. É importante frisar
que esse processo de investigação não buscou apontar uma “epidemiologia boa” e
uma “epidemiologia má”. Porém, como Fleck explica, não existe um observar livre; o
objeto não é puro, assim como o sujeito não é neutro. Sem dúvida, minha leitura
sobre o problema de pesquisa veio influenciada pelas crenças e valores que me
110
foram passados na “suave coerção” que sofri ao ser iniciada no estilo de
pensamento da determinação social.
Uma das grandes dúvidas epistemológicas que se relacionam à epidemiologia
diz respeito à sua conceituação enquanto método ou ciência. Este estudo apontou
para a hipótese de que essa separação também ocorre em função dos diferentes
estilos. Alguns autores da epidemiologia clássica, como Miettinen, chegam a afirmar
que a epidemiologia é um método. Observa-se que quanto mais o delineamento do
estudo valor e utilidade clínicos aos critérios que definem categorias de análise,
mais ele tende a considerar a epidemiologia um método para alcançar resultados de
diagnóstico e efetividade terapêutica sobre indivíduos. Ao contrário, à medida que se
propõe a obter uma visão mais ampliada sobre a saúde das populações,
contemplando os aspectos cio-econômicos (independente de como trata a classe
social), começa-se a entender a epidemiologia enquanto uma ciência.
Ousadamente, alguns estudos, como o de Almeida Filho (2000), consideram a
epidemiologia a “ciência da saúde” propondo mudanças na abordagem dada à
ciência que aentão se dedicava ao estudo dos agravos. Mas a compreensão
sobre a forma com que ocorre essa diferenciação tão importante, com certeza, gera
um novo problema de pesquisa, que ainda não me cabe responder.
111
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118
PARTE II
ARTIGO CIENTÍFICO
119
Epidemiologia e epidemiologia crítica: dois estilos de pensamento?
Epidemiology and critique epidemiology: two styles of thought?
Lacita Menezes Skalinski
Charles Dalcanale Tesser
Resumo: A proposta de uma epidemiologia crítica ou social emergiu de críticas e discussões
internas ao campo epidemiológico. Este estudo objetivou caracterizar diferenças entre a
epidemiologia crítica e a epidemiologia em geral, aqui chamada clássica, com apoio no
conceito de estilo de pensamento de Ludwik Fleck. Através de pesquisa bibliográfica sobre o
tema, realizou-se análise de conteúdo da qual emergiram categorias analisadoras das
diferenças em foco: “definição de epidemiologia”, “objeto e objetivos de estudo”, “risco e
causalidade”, “processo saúde-doença” e “metodologias de análise”. Através destas,
sistematizou-se as diferenças encontradas, que revelaram, além de críticas a limites
conceituais e metodológicos da epidemiologia clássica na abordagem do social e da
causalidade (risco), significativas diferenças nas propostas da epidemiologia crítica; dentre as
quais destacam-se a incorporação de conceitos sociológicos marxistas para abordagem do
social e sua aplicação na transformação social do processo saúde-doença, tendo como objeto a
distribuição desigual de doenças entre os diferentes grupos da sociedade e valorizando a
determinação social desse processo. Concluiu-se pela existência de relevantes diferenças na
epidemiologia crítica, a ponto de poder ser considerada um distinto estilo de pensamento.
Palavras-chave: epidemiologia, processo saúde-doença, métodos epidemiológicos.
Abstract: The critique or social epidemiology proposal emerged of critique and internal
discussions inside the field epidemiologist. This study objectified to characterize differences
between the critique epidemiology and the general epidemiology, named here classic, with
support in the concept of style of thought of Ludwik Fleck. Through bibliographical research,
it as realized the analyzes of content, from what emerged analyzers categories of the
differences in focus: “definition of epidemiology”, “object and objectives of study”, “risk and
causality”, “health-disease process” and “methodologies of analysis”. Through these, were
codified the differences found, which showed, in addition to the critique conceptual and
methodological limitations of epidemiology in the classical approach to social and causation,
significant differences epidemiology criticism's proposals, among which stand out the
incorporation Marxist sociological approach’s concepts in the social and implement them in
the social transformation of the health-disease, with the object the unequal distribution of
diseases among different groups in society and enhancing the social determination of that
process. It was concluded about the existence of considerable differences in critique
epidemiology, enough to be considered as a distinct style of thought.
Key-words: epidemiology, health-disease process, epidemiologic methods.
120
Introdução
No campo das ciências da saúde, o entendimento do processo-saúde doença assumiu
diversos sentidos, que passam pela concepção unicausal, multicausal e de determinação social
do mesmo. A epidemiologia, enquanto parte da constituição disciplinar dos saberes da
medicina e da saúde pública, margem a mais de uma forma de compreensão dos
fenômenos de saúde-doença, que vão da ocorrência, da causa ou das causas de uma
determinada doença em uma população à situação geral de saúde de povos, mudando os
objetos de estudo e a forma como se traçam ações de intervenção: do restrito ao abrangente e
da prevenção ao tratamento de agravos e à promoção da saúde.
O estudo da construção do conhecimento em saúde e suas características é importante
para esclarecer as diferenças perceptíveis entre essas formas de abordagens epidemiológicas.
Ludwik Fleck
(1)
foi um médico epistemólogo que publicou suas idéias no início do século
XX, tornando-se um referencial teórico aplicável em diversas áreas do conhecimento, a partir
do conceito de “estilo de pensamento”, precursor e inspirador do famoso conceito de
paradigma, de Thomas Kuhn
(2).
Para Fleck
(1)
, um estilo de pensamento é um perceber
dirigido, um modo dinâmico de entender, ver, pensar, deliberar e agir sobre um objeto,
formado por um conjunto de opiniões e princípios que permitem a emergência dos fatos
científicos. Todo estilo busca um efeito prático relacionado à perspectiva teórica que norteia o
investigador. Os seus métodos de construção do conhecimento estão intimamente
relacionados com valores e crenças que variam de acordo com a história e o meio social em
que o estilo está inserido.
O conhecimento científico é gerado a partir de questões existentes no senso comum,
que são investigadas e reconstruídas em círculos esotéricos (de saber especializado) para
retornar às camadas exotéricas (populares) com significados transformados que influenciam
as concepções sobre o objeto estudado. Os saberes chegam a essas camadas de forma mais
121
simplificada e carregada de “certezas” que não são questionadas, com certo caráter
dogmático
(1)
.
A maior parte da produção científica em epidemiologia tem como características
fundamentais o apoio na clínica, abordando com menos ênfase os aspectos de determinação
social. Todavia, pesquisadores latino-americanos sobre desigualdades sociais em saúde
começaram a enfatizar e realizar, no fim da década de 1970, análises epidemiológicas
relacionando as condições de saúde e doença aos indicadores sócio-econômicos, utilizando o
conceito de classe social. A metodologia utilizada era de uma abordagem materialista
histórica e denominavam esses estudos de “epidemiologia crítica” ou social”. Os trabalhos
utilizavam a ocupação e posse dos meios de produção como fator para classificação de
estratos sociais, assumidamente recorrendo às correntes leninista e marxista de explicação das
relações sociais
(3)
.
A argumentação da epidemiologia crítica sobre os estudos epidemiológicos em geral
(orientados pelos conceitos da clínica) dirige-se pesadamente à desconsideração da influência
e determinação da estrutura social na distribuição e caracterização do processo saúde-doença
em diferentes sociedades e classes sociais. Esta corrente tem como princípio a luta pela saúde
da população, com um caráter político que transcende o estudo da distribuição e busca da
causa de doenças específicas. Entende que o fato epidemiológico não é somente um efeito de
certas causas, mas o produto de um complexo processo de determinação, explicada por leis
dialéticas, causais, funcionais e estatísticas
(4)
.
O objetivo deste estudo foi investigar se esta auto-denominada epidemiologia crítica
pode ser caracterizada como um estilo de pensamento epidemiológico e realizar essa
caracterização, esclarecendo as diferenças percebidas entre ela e o campo epidemiológico em
geral. As idéias epistemológicas de Fleck foram tomadas como referência teórica, partindo da
pressuposição que os conceitos utilizados para explicar as formas de construção e legitimação
122
de uma ciência poderiam ser relacionadas com a história e os fundamentos das principais
correntes da epidemiologia.
Métodos
Foi realizado um estudo bibliográfico, fazendo uma abordagem geral do campo de
debates sobre o tema investigado. Foram selecionados livros, capítulos de livros e artigos que
mencionam e discutem a questão, e buscados artigos em bancos de dados abertos on line
através de descritores (epidemiology”, “health-disease process”, “epidemiologic methods”,
“epidemiologic models”, “epidemiologic research design” e natural history of diseases”).
Foi também realizada uma busca retrospectiva de 30 anos em três periódicos brasileiros até
2006: Cadernos de Saúde Pública (por concentrar a maior parte da produção epidemiológica
no Brasil, de acordo com Guimarães et al.
(5)
), Revista Brasileira de Epidemiologia (que vem
se consolidando como um periódico nacional específico da área) e Saúde em Debate (por ser
palco de discussões sobre o tema no movimento da reforma sanitária brasileira), num total de
4254 artigos. A seleção dos artigos ocorreu através do conteúdo dos títulos e leitura de
resumos quando necessário. Foram escolhidos os textos que demonstravam relações temáticas
(epidemiologia, método epidemiológico, suas correntes e seu status teórico), optando-se por
trabalhar com artigos teóricos, resultando em 63 artigos.
Com base na visão epistemológica de Ludwik Fleck sobre estilos de pensamento,
realizou-se uma análise de conteúdo do material para determinar que aspectos seriam
relevantes. Nesse processo foram progressivamente elaborados critérios, de acordo com a
presença, significado e freqüência de aparecimento de temas, em leituras e análises
sucessivas, agrupamentos provisórios e posteriormente, definitivos, que definiram categorias
utilizadas para caracterização de estilos de pensamento em epidemiologia: definição do termo
123
epidemiologia, objeto e objetivo de estudo, risco e causalidade, concepção de processo saúde-
doença e metodologias utilizadas.
As categorias foram consideradas suficientemente adequadas por permitirem uma
caracterização de vários aspectos importantes na conformação de um estilo de pensamento,
embora obviamente não sejam absolutamente extensivos ou abrangentes; ou seja, não
esgotam as possibilidades de leituras fleckianas do campo. A definição de epidemiologia
primeira categoria apareceu com o compartilhamento de linguagem especializada e
concepções específicas, essenciais para a constituição de um estilo de pensamento. A
delimitação e caracterização de objeto e objetivos de estudo, da mesma forma, é parte
integrante de um estilo de pensamento, sendo orientada pelos elementos teóricos e práticos
que determinam a maneira de ver, podendo lançar diferentes conformações ou recortes sobre
os objetos de conhecimento.
Como todo estilo de pensamento comunga de pressupostos e crenças, as discussões
sobre as noções de risco e causalidade mostraram-se centrais nos debates, bem como nas
críticas ao campo epidemiológico geral feitas pela epidemiologia crítica. Risco e causalidade
foram dois temas que apareceram com grande freqüência e significado na análise realizada e,
em sua grande maioria, as discussões sobre o risco trouxeram embutidas questões de
causalidade e associação causal. As concepções sobre esses temas influenciam as formas de
conceber os problemas investigados, funcionam como pilares conceituais de distintas
perspectivas teóricas apoiados diretamente na quinta categoria, a concepção de processo
saúde-doença e sua natureza. Essa concepção (psico-social e historicamente determinada)
subjaz ao processo de aprendizagem da epidemiologia e seu posterior exercício, que é
inculcada nos neófitos através de suave coerção típica das iniciações nos círculos
especializados, apontada por Fleck
(1)
. Ela influencia fortemente o tipo e o conteúdo de saber
produzido pela epidemiologia.
124
Um estilo de pensamento científico articula-se ao redor de práticas e formações
específicas. A reprodução de modelos transmissores de crenças e valores determina o ver
formativo e dirigido típico de um estilo na utilização de métodos comuns. Baseado nesse
elemento, os métodos epidemiológicos e as diferenças entre as propostas metodológicas
foram a última categoria utilizada para análise e na organização da discussão.
As leituras realizadas indicaram a existência de diferentes entendimentos sobre o
termo “epidemiologia social”
(4)
. De acordo com a significação observada, optou-se por
renomeá-lo de epidemiologia crítica, quando se refere à epidemiologia social latino-
americana, de base teórica marxista, que utiliza a classificação de estratos sociais baseada na
posse dos meios de produção como variável importante. Por conveniência, a epidemiologia
em geral, campo disciplinar e teórico-metodológico amplamente estabelecido e legitimado,
foi chamada de epidemiologia clássica.
Definição de “epidemiologia”
Ao se procurar uma definição para o termo epidemiologia, depara-se com várias linhas
de pensamento. No início do século XX as expressões “doença de massa” e “populações
humanas” estavam presentes na maioria das definições da epidemiologia, diferentemente da
simplificada definição de “ciência das epidemias” do século XIX após a ascensão da
bacteriologia
(6)
.
MacMahon et al.
(7)
, definem o termo como o estudo da distribuição da enfermidade e
dos determinantes da sua prevalência no homem. No estudo da medicina preventiva, Leavell e
Clark
(8)
definem a epidemiologia como um “campo da ciência que trata dos vários fatores e
condições que determinam a ocorrência e distribuição de saúde, doença, defeito, incapacidade
e morte entre grupos de indivíduos” e atribuem diferentes usos a essa ciência, fortemente
caracterizados pelo modelo clínico.
125
Há razoável convergência entre a maioria dos autores clássicos recentes sobre a
definição de epidemiologia, podendo ela ser sintetizada através do dicionário de Last
(9)
como
sendo o estudo da distribuição e dos determinantes dos estados ou eventos relacionados à
saúde em populações específicas, e sua aplicação no controle de problemas de saúde, ou, de
forma mais ampliada, como uma ciência que estuda o processo saúde-doença em
coletividades humanas, analisando a distribuição e os fatores determinantes das enfermidades,
danos à saúde e eventos associados à saúde coletiva, propondo medidas específicas de
prevenção, controle ou erradicação de doenças, e construindo indicadores que sirvam de
suporte ao planejamento, administração e avaliação das ações de rotina
(10)
.
Um dos livros mais conhecidos atualmente sobre epidemiologia social, “Social
Epidemiology”
(11)
, inicia-se com as palavras de Susser, que define a epidemiologia como o
estudo da distribuição e dos determinantes de estados de saúde nas populações. Porém, os
autores do capítulo inicial acrescentam a sua definição para a epidemiologia social: que deve
estar focada em fenômenos sociais específicos, como a estratificação sócio-econômica, redes
de suporte social, discriminação, demandas de trabalho e controle, suspeitando que a maioria
das doenças é resultado ou sofre o efeito das relações do “mundo social”
(11)
.
Na linha da epidemiologia crítica, Jaime Breilh
(4)
, participante do movimento latino-
americano de medicina social, explica a epidemiologia como “um conjunto de conceitos,
métodos e formas de atuação prática que se aplicam ao conhecimento e transformação do
processo saúde-doença em sua dimensão coletiva e social”. O autor afirma que o poder
hegemônico na saúde prioriza as ciências físicas e biológicas, realizando estudos minuciosos
dos processos individuais. Nessa perspectiva, a somatória desses problemas individuais
caracterizaria o fenômeno epidemiológico, ou seja, o fenômeno coletivo.
Percebe-se que os entendimentos de epidemiologia são orientados por concepções
intimamente relacionadas ao processo saúde-doença, de fundamentação clínica ou social.
126
Esses entendimentos passam a nortear a direção e abordagem dada às investigações, e
conseqüentemente, os resultados encontrados e seus usos.
Objeto e objetivo de estudo
Para a Associação Internacional de Epidemiologia, a Epidemiologia tem como objeto
o “estudo de fatores que determinam a freqüência e a distribuição das doenças nas
coletividades humanas”
(12).
Mas diferenças relevantes sobre o tema entre os
epidemiologistas.
Miettinen
(13)
diz que “a relação de uma medida de ocorrência a um determinante, ou
uma série de determinantes, é denominada de relação ou função de ocorrência. Tais relações
são em geral o objeto da pesquisa epidemiológica”. A crítica atribuída por Almeida Filho
(6)
ao
modelo de Miettinen reside na excessiva generalidade dada à epidemiologia, manifestando
simplesmente a sistematização de operações lógicas desenvolvidas no limite da
fundamentação positivista. A epidemiologia passou a associar o conceito de doença da clínica
ao universo populacional, quando ocorreu uma naturalização dos eventos relacionados à
saúde, mostrando subordinação à clínica e assumindo uma epidemiologia com o mesmo
nome, epidemiologia clínica, que fortaleceu o entendimento do objeto de estudo como doença
coletiva, tratando do risco e seus fatores
(14,15)
.
O objeto da epidemiologia é ontologicamente distinto do da clínica e
epistemologicamente distinguível. Embora eles guardem relação, o objeto da clínica é
essencialmente qualitativo, destacando diferenças em processos de doenças nos corpos
individuais, enquanto o objeto epidemiológico é quantitativo, expressando relações numéricas
entre eventos e fenômenos. A clínica dedica-se ao estudo de indivíduos, já a epidemiologia se
propõe a estudar coletivos, na maior parte das vezes entendendo o coletivo como uma
somatória de vários indivíduos. A participação das entidades nosológicas como objeto de
127
estudo fortalece a ligação entre a epidemiologia e a clínica, sendo esse um dos fatores que
explica sua hegemonia, como uma espécie de instrumento de verificação
(16)
.
Concentrando-se em um objeto diferente e utilizando-se de um modelo que recorre à
história social da doença, a linha crítica acentua a historicidade dos fenômenos e o caráter
econômico e político de suas determinações e tem como tema de investigação epidemiológica
a “distribuição desigual de doenças entre os diferentes grupos da sociedade”
(14)
.
Castellanos
(17)
diferencia duas epidemiologias, que ele chama de “epidemiologia de
populações” e “epidemiologia nas populações” e atribui a elas diferentes objetos de
transformação. A epidemiologia nas populações estuda a associações entre riscos e problemas
de saúde de indivíduos, tendo como objeto de transformação a freqüência de doenças
específicas em populações específicas. Está vinculada ao pensamento clínico, reforçada pelas
concepções mecanicistas e teorias etiologistas, que no âmbito da saúde pública se traduzem
em estratégias de intervenção individuais, preventivas e curativas, dirigidas a enfermos ou
pessoas com maior risco de adoecer.
a epidemiologia de populações estuda a situação de saúde das populações e tem
como objetos de transformação as iniqüidades sociais, abordando os perfis de problemas
coletivos humanos; incluindo também os estudos de doenças específicas para controle e
prevenção; com a diferença de que aponta para explicações gerais de saúde-doença, desde os
primórdios relacionada às decisões do Estado sobre políticas de saúde.
Embora não sejam mutuamente excludentes e sim complementares, entende-se que
enquanto a epidemiologia continuar guardando tão íntima relação com a clínica mais ela será
entendida como um método. À medida que passar a ser citada como um campo de
conhecimento de objeto próprio, sua caracterização como ciência ganhará maior espaço e suas
investigações permitirão um resultado mais comprometido com o caráter social das
determinações.
128
Risco e causalidade
A noção de risco, desenvolvida pela epidemiologia, é um dos componentes envolvidos
na discussão da causalidade, com crescente importância na saúde pública e tratada sob
enfoques distintos quanto à sua utilização, relevância e significado.
Segundo Barata
(18)
, a causalidade é revestida de historicidade e sofreu grande
transformação com as descobertas bacteriológicas, que afastaram, de certo modo, a medicina
das causações sociais e ambientais, fomentando a idéia da chamada unicausalidade. A seguir,
a consideração de outros fatores expandiu esta idéia para a chamada multicausalidade. Dentro
desta, foi proposto o modelo ecológico, em que os fatores se apresentam num sistema
fechado, onde a sobrevivência de agentes e hospedeiros depende do e é alterada pelo
ambiente. Nas inter-relações entre os fatores, estes alteram uns aos outros e são colocados
num mesmo plano a-histórico e atemporal, em que as determinações sociais se reduzem a
fatores do ambiente, perdendo seu potencial crítico. Ao se agregar fatores psíquicos ao
conceito de multicausalidade e se definir o homem como ser bio-psico-social, esse social
apareceu apenas como atributo do homem e não como essência humana. Essa abordagem
permitiu a classificação do homem por critérios também naturais, como idade, sexo e raça e
rompeu com a idéia de sujeito social e seus produtos culturais.
O modelo proposto por MacMahon et al.
(7)
chamado “rede de causalidade” admitia as
relações de múltiplos fatores, mas afirmava que seu conhecimento nem sempre era necessário,
bastando identificar o componente mais frágil para adotar medidas de controle, assumindo
assim uma perspectiva reducionista. Mesmo após a transição da formulação unicausal para a
multicausal, o comum entendimento da multicausalidade como associação de fatores do
agente etiológico, do hospedeiro e do meio ambiente simplificou o processo de causação, uma
129
vez que sua diferença é a admissão de outras causas que não o agente etiológico, reduzindo-se
assim à unicausalidade multiplicada.
Ao fim da década de 1940, com a descoberta da associação entre o fumo e as doenças,
os epidemiologistas passaram a definir critérios para as inferências causais, que fortaleceram a
idéia de subordinação da epidemiologia às ciências médicas. Na mesma década iniciaram os
estudos sobre fatores de risco para a doença coronariana, associando estilo de vida e
condições de saúde e fundando, assim, um paradigma que está presente em estudos
desenvolvidos até hoje. Essa modalidade aprofundou-se no estudo dos fatores de risco que
passaram a ser protagonistas do processo de busca de causas, especialmente nas doenças
crônicas.
Do ponto de vista da bioestatística, a busca epidemiológica da causa assume
discriminações entre fatores não-associados e associados que compõem um conjunto de
conhecimentos que orienta as práticas de prevenção, em um mecanismo reducionista que
conserva a linearidade e homogeneidade das categorias. A discussão sobre a influência dos
fenômenos sociais como uma dessas categorias se encerra num conjunto de fatores ligados
aos indivíduos, representados pelo status econômico, renda, ocupação, comportamentos e
históricos familiares.
A quantificação probabilística do risco é derivada de um tratamento dado à
causalidade, que utiliza e aprimora os recursos matemáticos como instrumentos de
legitimação. A redução do risco a uma medida de associação estatística tem sido objeto de
estudo de muitos autores que criticam o seu entendimento enquanto uma relação entre causa e
efeito: alega-se que ao substituir a identificação da causa pela estimativa do risco, a
epidemiologia constrói sua identidade sobre um conceito que não tem autonomia
(19)
. A
fragilidade desse conceito pode ser encontrada, por exemplo, nos critérios de Hill sobre o
caráter causal de uma associação, em que as evidências empíricas sobre os fenômenos
130
biológicos, além de associações estatísticas, conduzem à busca das explicações sobre a
freqüência populacional alcançada
(20)
. Para Almeida Filho
(21)
, ao criticar o determinismo
epidemiológico que tem entre suas características as metáforas causais, é necessário rever as
bases lógicas e históricas que proporcionam a emergência desse determinismo.
Sob a perspectiva populacional, o risco de adoecer de um indivíduo não pode ser
considerado isoladamente do risco da população a que ele pertence. Os comportamentos
sociais e situações existenciais não estão distribuídos casualmente, eles são socialmente
determinados e geralmente se associam entre si, fazendo os sujeitos serem expostos a
situações e/ou aderirem a comportamentos de risco em detrimento de comportamentos e
situações mais saudáveis. Essas escolhas” e situações são determinadas e ou condicionadas
pelo meio social, que influencia comportamentos ao moldar normas, reforçar padrões sociais,
promover ou não oportunidades existenciais e de aquisição de hábitos
(11)
.
Ao esconder as diferenças de classe social que determinam o aparecimento de
diferentes causas, a epidemiologia clássica limita a sua atuação frente aos problemas de saúde,
que é realizada somente no âmbito ecológico, sem abordar a organização social. Criticando o
modelo ecológico e assumindo a determinação social como fator principal da causalidade, a
discussão do modelo crítico, iniciado no fim da década de 1960, com potencial transformador
e sem interessar aos grupos dominantes, não se tornou hegemônico
(18)
. Essa corrente
confrontou as teorias mais empíricas de causalidade, assumindo um caráter mais racional,
utilizando-se do materialismo histórico-dialético como referencial principal
(22)
.
Para Breilh
(4)
, as condições reais de reprodução da enfermidade e sua distribuição
dinâmica e diferenciada guardam uma relação dialética. uma correspondência relativa
entre as formas de exposição aos riscos (e os estilos de vida) e a relação do sujeito com os
meios de produção. Além disso, os fatores predisponentes às doenças estão subsumidos a
determinantes sociais, participando do movimento dialético entre biológico e social, particular
131
e geral, micro e macro
(23)
. Isso fez com que o autor empregasse o termo “determinação” ao
invés de causalidade, pois o termo tem significado mais amplo, e relacionando à terminologia
aristotélica, corresponde às causas formais, finais e eficientes
(22)
.
O enfoque epidemiológico clássico fracionou a realidade pela dicotomização do social
e do biológico, isolando fatores que determinam o processo saúde-doença nas relações causais
estabelecidas por associação estatística, diferentemente da visão mais totalizadora da
determinação, proposta pela epidemiologia crítica. Nesta, o processo saúde-doença é visto
como uma unidade de caráter duplo, biológico e social, e é reconhecida a especificidade de
cada um desses elementos. Ao mesmo tempo, é analisada a relação entre eles, permitindo,
assim, o alcance das formulações teóricas e categorias que dão à análise um estatuto científico
e um entendimento de como o padrão social do desgaste biológico gera a doença
(24,25)
.
Concepção de processo saúde-doença
A epidemiologia clássica ancora-se na biologia (via definições das doenças e sua
etiopatogenia) e nas estatísticas (risco) para a explicação do processo saúde-doença. O modelo
de Leavell e Clark
(8)
considera que o processo saúde-doença é determinado pelo estado de
equilíbrio entre os fatores relativos ao agente, hospedeiro e meio ambiente. Embora afirmem
que a saúde é algo mais do que a ausência de doença, recomendam estudos cuidadosos e
estatisticamente controlados para a sua definição, uma vez que saúde e normalidade são
atributos relativos. O processo de evolução de uma doença é suscetível de interrupção, quando
se pode efetuar prevenção alterando um ou mais dos três elementos. Nesse modelo, o social
pode aparecer como traços característicos do hospedeiro (renda, grau de instrução, ocupação,
nutrição); ou no ambiente pelas condições que favorecem ou não o desenvolvimento do
processo mórbido, bem como do agente.
132
A relação entre a tríade agente, hospedeiro e ambiente reduz a dimensão da
organização social aos fatores causais e a utilização do termo social mitifica essa dimensão
com naturalização, despolitização e esvaziamento teórico do processo saúde-doença
(26)
.
A partir da década de 1960, na América Latina foram desenvolvidos alguns estudos
(de epidemiologia crítica) que diziam respeito às condições sanitárias do país, em que o
“social” era entendido como elemento desencadeante ou condicionante da distribuição das
doenças. Aos poucos, esses trabalhos foram demonstrando preocupação com o tratamento
dado ao social, buscando uma epidemiologia que o apreendesse em sua totalidade. Assim, o
social perdeu um pouco de seu valor como um dos fatores causais da doença para ser um
campo onde a doença atinge um significado específico; sob a forma de relações sociais de
produção responsáveis pela posição de segmentos populacionais na estrutura social
(27)
.
Os perfis patológicos de diferentes grupos sociais em uma mesma sociedade são
diferentes em relação ao tipo de doença e freqüência e mudam de acordo com o momento
histórico. Segundo Laurell
(25)
a análise histórica também mostra que os conceitos de saúde e
doença da sociedade capitalista condicionam como necessidades de saúde da população em
geral aquelas que são as necessidades de uma classe dominante; por ter como referência a
biologia individual, o que não contempla o caráter social do processo. A autora analisa a
literatura epidemiológica hegemônica e observa que “se lida essencialmente com dois
conceitos que, no fundo, não são discrepantes. O primeiro é o conceito médico-clínico, que
entende a doença como um processo biológico do indivíduo; o segundo é o conceito
ecológico, que a doença como resultado do desequilíbrio na interação entre hóspede e seu
ambiente. Este conceito coincide com o primeiro, que, uma vez estabelecido o
desequilíbrio, a doença se identifica da mesma forma como no primeiro caso” . Sustenta a
idéia de que o processo saúde-doença é um processo biológico, porém explica que ele é
dotado de historicidade e não se esgota na determinação social. Entende que o próprio
133
processo biológico humano também é social, na medida em que não é possível padronizar a
“normalidade biológica” humana separadamente de seu contexto histórico.
Almeida Filho
(15)
, adicionalmente, argumenta que a epidemiologia não tem sido capaz
de produzir um referencial teórico eficaz sobre a saúde, como um dos pólos do processo
saúde-doença, uma vez que se concentra na noção de doença, embasada pelos referencias da
clínica. Para o autor, o máximo que a epidemiologia chegou, influenciada pela clínica, foi a
definir saúde como um atributo do grupo de o-doentes, entre expostos e não-expostos a
fatores de risco. Portanto, ao contrário dessa idéia, a saúde não pode ser entendida
simplesmente como ausência de doença”. Existem, é claro, dificuldades para mensurar o
grau de saúde dos indivíduos e populações, e assim avaliar, que se trata de uma percepção
subjetiva e de um processo complexo e dinâmico.
A complexidade do processo saúde-doença mostra que os pressupostos teóricos e
ideológicos dos autores determinam as suas concepções. A determinação social, como fator
importante nesse processo, aponta para uma forma mais abrangente de compreender a
dinâmica de determinação da situação de saúde, que contempla as micro e macro-relações que
interferem diretamente na forma de entendimento da população sobre a sua situação de saúde
e na forma como o Estado provém as condições de assistência.
Metodologias de estudos epidemiológicos
Na análise de Luz
(28)
, a epidemiologia tem passado por momentos de endurecimento e
flexibilização em relação à incorporação de métodos e referenciais teóricos das ciências
humanas em suas pesquisas, podendo-se dizer que ainda não existe um pensamento unitário a
respeito. A utilização de métodos das ciências humanas cresce na epidemiologia social e
crítica, incorporando conceitos e métodos da antropologia, sociologia e geografia, enquanto
134
os núcleos duros quantitativistas tendem a hierarquizar as abordagens das disciplinas das
ciências humanas submetendo-as aos seus métodos.
MacMahon et al.
(7)
definem claramente o que entendem por uma metodologia
adequada para estratificar classes em estudos epidemiológicos. Para eles, a idade é uma das
variáveis mais importantes a serem observadas em estudos descritivos, pois as variações que
ocorrem na freqüência e no risco das doenças são maiores em função da idade do que em
associação a qualquer outra variável. Em seguida, apontam sexo e grupo étnico como
variáveis importantes. Por grupo étnico, entendem-se todas as características sociais que
definem comportamentos e situações propícias ao desenvolvimento de doenças, como raça,
local de nascimento, religião e características familiares. Em um capítulo específico, são
explicadas “outras características”, abordadas porque estão facilmente disponíveis, mas “não
porque representam, necessariamente, os tipos ideais de informação epidemiológica”, entre
elas: ocupação (com medição da situação econômico-social, efeitos das diferentes condições
do trabalho e identificação de riscos pela exposição a certas situações do trabalho); renda e
local de residência. Em síntese, esses são os indicadores mais utilizados para medir a classe
social e se justificam pela relação que guardam entre si. “A educação dá acesso a determinada
ocupação e, portanto, a um nível de renda. O nível de estudos se relaciona com o nível
cultural e, portanto, pode afetar as condutas e as práticas em relação aos estilos de vida e ao
apoio social”
(29)
.
A utilização dessas variáveis empírico-indutivas para definir separações na
estratificação social representa uma grande parcela da epidemiologia mundial que se intitula
“epidemiologia social”, com estudos que analisam a exposição a fatores de risco e o
aparecimento de doenças de acordo com a renda, grau acadêmico, raça/cor e ocupação.
Entende-se que embora esse modelo de estudo utilize variáveis sócio-econômicas importantes
para suas análises e por esse ponto de vista mereça uma denominação diferente; essa forma de
135
pesquisar o processo saúde-doença utiliza os pressupostos da epidemiologia clássica, que não
chegam a caracterizá-la como um estilo de pensamento distinto.
Diferentemente dessa abordagem, o estilo de pensamento crítico, também chamado de
social (o que tem gerado confusão), apresenta notáveis diferenças em relação ao estilo
clássico, ao apoiar-se, principalmente, nas condições de trabalho como variáveis importantes.
Este estilo entende que um grupo epidemiológico não pode ser separado conforme padrões de
renda por não refletir a qualidade de vida de cada indivíduo, da qual o salário é apenas uma
expressão parcial.
Breilh
(30)
explica que a metodologia de investigação epidemiológica inspirada nos
conceitos marxistas estratifica classes sociais pela separação de grupos que se diferenciam
entre si, considerando quatro grandes relações, inspiradas nos ideais leninistas: que lugar a
pessoa ocupa em determinado sistema de produção, pelas relações em que se encontra frente
aos meios de produção (relações fixadas e consagradas por lei), pelo papel que desempenha
na organização do trabalho e pelo modo e proporção que recebe da riqueza que produz.
Segundo este autor, essa categorização permite conhecer a dinâmica das relações
sociais que determinam não somente a situação de saúde, mas também condições de vida e
relações com a sociedade em geral – que refletem a qualidade de vida.
A metodologia utilizando essas categorias vem sendo utilizada pelo Centro de Estudos
e Assessoria em Saúde (CEAS) no Equador na análise de saúde de trabalhadores que se
expõem aos riscos característicos de sua ocupação no processo produtivo e tem como objetivo
principal elaborar ações de combate a essas situações de iniqüidade; não somente realizar um
diagnóstico populacional
(24)
.
É importante lembrar que a metodologia utilizada pela epidemiologia crítica não
menospreza a utilização da estatística. Pelo contrário, utiliza-se dos métodos quantitativos em
associação aos qualitativos para evidenciar as iniqüidades em saúde e superar a descrição
136
empírica, através de método interpretativo dialético, permitindo que sejam realizadas
pesquisas com grandes grupos, uma vez que o caráter social dos perfis patológicos é
observado mais claramente nas coletividades do que em indivíduos
(24)
. A metodologia de
análise proposta por Laurell
(25)
também busca contemplar os fenômenos de determinação
social e recomenda que os grupos sejam separados primeiramente em função de suas
características sociais, para depois contemplar as características biológicas. A autora também
sugere que a metodologia esteja pautada em elementos teóricos do materialismo histórico, por
permitirem conhecer e aprofundar a compreensão da problemática e determinação do
processo saúde-doença.
Segundo Solla
(31,32)
, a aplicação dos conceitos marxistas em epidemiologia veio para
superar a causalidade biológica empregada no estudo do processo saúde-doença,
possibilitando que esse processo possa ser abordado enquanto fenômeno social. A exposição
da realidade a partir da inserção de indivíduos na produção expõe as relações de dominação e
subordinação existentes nas estruturas de classe, partindo do conhecimento empírico para
submetê-la a uma elaboração teórica que a estabelece como concreto, ou seja, como fato
científico.
Além da discussão sobre as classes sociais, a relação quantitativo-qualitativo tem sido
alvo dos debates teóricos em epidemiologia. Para Samaja
(33)
, a epidemiologia necessita passar
por uma revisão epistemológica que a torne apta para rever seus conceitos, incluindo o campo
de significação que comporta as situações críticas que demonstram as conseqüências da
estruturação social na significação estatística; até então atribuída ao acaso. Deve-se buscar
integração entre as abordagens qualitativas e quantitativas, sem pensá-las como contraditórias,
mas complementares
(34)
. Ambas dispõem de um grande arsenal metodológico e técnico para
fornecimento de dados sobre a realidade das populações que não podem ser subutilizados.
Trata-se, simplesmente, de definir o alcance e o objeto que cada abordagem pode abarcar.
137
As características sinteticamente discutidas acima podem ser esquematizadas como no
quadro 1.
QUADRO 1 – SÍNTESE DAS DIFERENÇAS ENTRE
EPIDEMIOLOGIA CRÍTICA E CLÁSSICA
Categoria Epidemiologia clássica Epidemiologia crítica
Definição Estudo da distribuição de
agravos e seus determinantes
em uma população definida.
Estudo e intervenção sobre as
iniqüidades em saúde de
determinação social.
Objeto e objetivos de estudo Relação entre variáveis que
representam determinantes
de saúde e variáveis que
representam o estado de
saúde-doença.
Distribuição desigual de
doenças em diferentes
classes sociais.
Risco e causalidade Utiliza o conceito risco e
causa para análise empírica,
regulada por leis
probabilísticas e
matemáticas.
Utiliza os conceitos de
vulnerabilidade e
determinação para análise
empírica e racional, regulada
por leis históricas e sociais.
Processo saúde-doença Multicausal e ecológico. Determinado histórica e
socialmente.
Metodologias de estudo Positivista, indutiva, prioriza
características individuais
para escolha de variáveis,
determina classe social pela
renda e escolaridade.
Marxista, dedutiva, prioriza
características sociais para
escolha de variáveis,
determina classe social pela
inserção no sistema
produtivo.
Parafraseando Barbosa
(35)
, a epidemiologia vai além de um instrumento de análise, ela
tem um potencial transformador por possibilitar uma visão abrangente dos problemas de
saúde. Com a profundidade alcançada na busca de causas para os problemas e na análise dos
dados encontrados é possível estabelecer relações entre saúde (com seu conceito ampliado) e
outros campos do conhecimento; além de planejar, executar e avaliar ações políticas e sociais
voltadas para a promoção da saúde.
Considerações finais
Neste estudo constatamos diferenças significativas entre dois estilos de pensamento
em epidemiologia. Foi possível perceber que existe uma circulação de idéias entre os dois
138
estilos, que permite a ambos agregar fundamentos estatísticos, porém com finalidades
diferentes, em contextos e a partir de pressupostos teórico-epistemológicos próprios, o que
induz a considerá-los distintos. A utilização dada aos elementos matemáticos é diferente por
estarem embasados em metodologias que contemplam diferentes abordagens, as quais vêm a
mudar substancialmente o entendimento da epidemiologia e seu objeto, do risco, da
causalidade e do processo saúde-doença em um movimento dinâmico e dialético.
A relação entre a epidemiologia crítica e a epidemiologia clássica talvez possa ser
vista em analogia ao exemplo, também analógico, dado por Fleck
(1)
para compreender a
relação entre ciência de revista e de manual. O coletivo de pensamento científico seria como
um exército em marcha, composto por uma vanguarda, um corpo principal e por último, uma
retaguarda. A vanguarda, os batedores do exército, são os círculos mais esotéricos, são mais
rápidos e mais críticos. O corpo principal do exército marcha lentamente, a comunidade
oficial. Entre a vanguarda e o corpo principal sempre há certa distância. A vanguarda explora
o terreno e os problemas com mais criatividade e pode em alguma medida questionar direções
e lugares do corpo principal. O corpo principal avança mais lentamente, demora anos e
décadas para mudar sua posição. Seu caminho não coincide com as propostas das vanguardas,
ele ajusta sua marcha com certa independência. Além disso, para esse avanço, deve-se
transformar as trilhas sinuosas dos esotéricos em largas avenidas, tem-se que aplanar o
terreno. Com isso, o entorno sofre uma mudança significativa até converter-se em guarnição
da tropa principal. Isso tudo é de natureza eminentemente social e tem importantes
conseqüências teóricas.
Talvez a relação entre a epidemiologia crítica e a clássica possa ser entendida nestes
termos, em que a epidemiologia crítica seja uma vertente de batedores críticos questionadores
dos limites e de várias pressuposições, métodos e direções da epidemiologia clássica. A
primeira parece encontrar falhas nas estratégias adotadas para guiar o corpo principal, a partir
139
de valores, teorias e perspectivas específicas, inclusive e particularmente políticas e éticas,
mas não tem conseguido mudar a sua conformação de forma substancial. Para essa mudança
precisar-se-ia de uma grande legitimação e socialização das propostas da epidemiologia
crítica no corpo principal da epidemiologia, de modo que a primeira pudesse constituir-se em
força intelectual e sócio-científica relevante a oferecer possibilidade concreta de
redirecionamento para o corpo principal do exército, fornecendo valores ético-políticos e
conceituais formadores de “soldados” que estejam prontos para lutar pela causa em que ela
acredita.
Embora seja claro que a complexidade do processo saúde-doença num coletivo não
seja completamente elucidada ou determinada pela estrutura social nas visões marxistas,
havendo aspectos e forças de outras ordens não abrangidos por essas leituras, parece evidente
que a consideração e inserção forte da estrutura social e suas relações na teoria e metodologia
epidemiológica são um enriquecimento inequívoco para a epidemiologia, com sua perspectiva
ética de luta pela emancipação e contra as iniqüidades em saúde.
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