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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS – ÁREA DE ALEMÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA ALEMÃ
SUZANA CAMPOS DE ALBUQUERQUE MELLO
A exceção e a regra de Bertolt Brecht ou a exceção como regra:
Uma leitura
São Paulo
2009
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1
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS MODERNAS – ÁREA DE ALEMÃO
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LÍNGUA E LITERATURA ALEMÃ
A exceção e a regra de Bertolt Brecht ou a exceção como regra:
Uma leitura
Suzana Campos de Albuquerque Mello
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Língua e Literatura Alemã da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo para a
obtenção do título de Mestre em Letras.
Orientadora: Profª Drª Celeste H. M. Ribeiro de Sousa
São Paulo
2009
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2
RESUMO
Com este trabalho apresentamos uma leitura do texto da peça didática Die Ausnahme
und die Regel (A exceção e a regra) do dramaturgo alemão Bertolt Brecht, escrita em
1929/1930. Trata-se de uma leitura feita de uma ótica acadêmica brasileira, que leva em
consideração aspectos do procedimento estilístico do autor, sua posição em relação ao
teatro, o contexto em que a peça foi produzida, o público a que a peça se destina, o seu
lugar dentro do conjunto das outras peças didáticas e o resgate de textos inéditos para
dois coros, bem como indicações para outras leituras e encenações. A partir destes
pressupostos, busca-se delinear ao final um possível “diálogo” que Brecht estabelece
com o jurista Carl Schmitt e com a sociedade de seu tempo.
PALAVRAS-CHAVE: Peça didática - Brecht - Estado – Exceção - Weimar
ABSTRACT
This work consists of a reading of the text of the German playwright Bertold Brecht’s
didactic play Die Ausnahme und die Regel (The exception and the rule), written in
1929/1930. This is a reading from a Brazilian academic perspective which takes into
consideration aspects of the author’s stylistic procedure, his positioning towards theater,
the context in which the play was written, the audience to whom it was produced, its
place in Brecht’s set of didactic plays and the review of unpublished texts for two
choruses, as well as indications for other readings and stagings. From these
assumptions, in the end of the work, we aim at outlining a possible “dialogue” Brecht
established with the jurist Carl Schmitt and with society in his times.
KEY WORDS: Didactic play – Brecht – State – Exception – Weimar
3
Aos que sobrevivem, apesar de......
e a meu Zázi,
Kawó Kabiesilé!
4
AGRADECIMENTOS
Gostaria de agradecer à Profª Drª Celeste Ribeiro de Sousa, orientadora deste
estudo, por ter me aceitado como sua orientanda, por todo o aprendizado ao longo do
desenvolvimento desta pesquisa, por sua paciência e por me acompanhar ao longo
destes meses de redação final.
Agradeço ao Prof. Dr. João Azenha Júnior por todo o aprendizado ao longo da
graduação, por me ajudar a colocar meus “pés no chão” e pela generosa leitura do
trabalho no Exame de qualificação; ao Prof. Dr. Jorge de Almeida por sua generosidade
de sempre, pelo aprendizado ao longo deste processo, pela atenta e precisa leitura do
trabalho no Exame de Qualificação e por ser uma voz que sempre esteve presente na
escritura desta dissertação; ao Prof. Dr. Edson de Almeida Telles, pela inspiração de sua
tese de doutorado, bem como da luta que empreende; ao Prof. Dr. João Adolfo Hansen,
por me ensinar e sempre me lembrar da possibilidade de se pensar de outra(s)
maneira(s); ao Prof. Dr. Helmut Galle pelo aprendizado e acompanhamento durante a
graduação e a iniciação científica, pelas conversas sobre “salmos” e por ser quem é:
referência fundamental nos meus caminhos pela pesquisa acadêmica.
Agradeço a toda a Área de Língua e Literatura Alemã, à Coordenadoria de
serviço e assistência social da Universidade de São Paulo (COSEAS), sem a qual não
teria levado a cabo a graduação e o mestrado; agradeço ao Instituto Goethe,
especialmente ao Prof. Dr. Wolfgang Bader e Paulo, pelo acesso irrestrito a todo o
material sobre Brecht no Brasil; agradeço à Srª . Helgrid Streidt, generosa guardiã do
espólio do dramaturgo no Bertolt-Brecht-Archiv (Arquivo de Bertolt Brecht) da
Akademie der Künste (Academia de Arte) em Berlim, por ter me fornecido todo o
material de que precisei sobre A Exceção e a Regra, parte do qual apresento neste
trabalho e à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES),
pela concessão da bolsa de mestrado que propiciou a finalização deste trabalho.
Agradeço aos queridíssimos Jayme Paez, Márcio Bueno e Alice Paez, por
fazerem parte de minha vida e por estarem sempre e incondicionalmente presentes em
todos os momentos dela. Agradeço a Valnei Andrade, pelo acompanhamento de luta e
vida e por me inspirar sempre; à Dra. Adriana de Andrade Espíndola, velha
companheira de guerra e de vida, pelas correções dos termos jurídicos que apresento
5
neste trabalho; agradeço às companheiras letradas Dani, Maira, Pri e Fabi, pelas
interlocuções literárias e por me lembrarem, ao longo deste processo, de ver o mundo;
agradeço à Eni Tolle e Oliver Tolle, por todo aprendizado, amizade e suporte ao longo
deste processo. Agradeço a Celso Frateschi, o responsável pelo meu caminho no teatro,
por ter sido o primeiro a me mostrar Brecht e, após 20 anos, por continuar a ensinar que
o homem não deve se reduzir à sua menor grandeza. Agradeço à minha família, por ser
que sou: movida pela e para as Artes, e agradeço a todos aqueles que, embora aqui não
mencionados, contribuíram direta ou indiretamente para a conclusão deste estudo.
6
SUMÁRIO
Introdução .................................................................................................................... 07
Capítulo I
As peças didáticas, segundo Brecht .........................................................................15
Capítulo II
A condição humana....................................................................................................41
Os personagens em conjunto ....................................................................................42
O comerciante ............................................................................................................52
O cule ..........................................................................................................................70
O guia...........................................................................................................................82
O juiz............................................................................................................................88
Capítulo III
A justiça ......................................................................................................................95
A canção dos tribunais...............................................................................................96
Olho por olho..............................................................................................................99
Capítulo IV
Coros desconhecidos e as anotações “silenciadas”...............................................121
Capítulo V
A exceção e a regra na República de Weimar .......................................................136
Conclusão ....................................................................................................................157
Referências bibliográficas ..........................................................................................160
Anexo ...........................................................................................................................166
7
Introdução
Na esteira de uma pesquisa levada a cabo em uma iniciação científica, de que
resultou o texto "A experimentação no teatro contemporâneo alemão"
1
, enveredo, neste
trabalho, por uma leitura crítica da peça didática Die Ausnahme und die Regel (A
exceção e a regra), do dramaturgo alemão Bertolt Brecht. As questões a serem
examinadas e discutidas são: o conceito de peça didática, a divisão de classes, a justiça,
o progresso tecnológico, a peça didática como “experimento” e o diálogo possível com
a contemporaneidade da República de Weimar.
A exceção e a regra é uma peça peculiar dentro do grupo das peças didáticas.
Bertolt Brecht, de maneira diferente do que fez com todas as outras peças didáticas,
encenadas logo após suas escrituras e enriquecidas com imediatos comentários e
modificações, “abandonada-a” por cerca de 3 anos, antes de lhe tecer comentários em
1932, 1934 e em 1936, comentários estes desassociados de encenações que, por sua vez,
só ocorrem mais tarde em 1938 e em 1947. A exceção e a regra revela-se, assim, uma
exceção no tratamento dado por Brecht a suas peças didáticas, o que realça a pertinência
da escolha do corpus, já que sobre as outras peças do mesmo grupo, escritas entre 1928
e 1930, o dramaturgo teceu comentários entrelaçados às suas encenações.
O presente trabalho também se justifica diante da relativamente escassa
bibliografia existente no Brasil sobre esta produção do mencionado dramaturgo, bem
como da ausência de um volume dedicado à tradução dos textos teóricos e aos
comentários produzidos por Brecht, relativos a este tipo de peça de teatro
2
.
Se se fizer um breve retrospecto da recepção da obra do autor no Brasil, ficam
em evidência alguns marcos importantes. Um primeiro marco é a primeira edição de
Brecht - Vida e Obra, em 1968, do crítico e diretor teatral Fernando Peixoto, que
1
Esta pesquisa foi desenvolvida no biênio 2003-2004, com bolsa FAPESP, dentro da linha de pesquisa
germanística intercultural, sob a orientação do Prof. Dr. Helmut Galle. In: Revista Pandaemonium N° 10,
2007, p. 229-250.
2
Existe em tradução para o português de Portugal um livro que reúne os escritos para teatro de B. Brecht,
mas dele não constam todos os textos sobre as peças didáticas. Ingrid Koudela apresenta também apenas
alguns desses textos em tradução para o português do Brasil no livro Brecht- um jogo de aprendizagem,
editado em São Paulo pelas editoras Edusp e Perspectiva em 1991.
8
proporcionou a ampla divulgação da vida e obra do dramaturgo.
3
Este estudo apresenta,
em ordem cronológica, comentários sobre o percurso de vida do autor entrelaçados à
escritura de seus dramas, além de fazer referências à opinião de outros críticos sobre a
produção brechtiana.
Outro marco dessa recepção é o início da tradução sistemática de suas obras em
1977. O leitor brasileiro passa a ter acesso à obra dramática de Brecht em tradução
direta do alemão para o português do Brasil, com a publicação, pela editora Civilização
Brasileira, do Teatro Completo de Brecht, em seis volumes, tendo o último volume sido
publicado em 1978
4
. A respeito desta empreitada, Margot Malnic diz:
Não se observa nenhum critério seletivo para a ordem
da publicação das peças, que parece não se orientar nem
cronologicamente, nem baseada no sucesso obtido pelas
peças no palco. Em comparação com as traduções de
Portugal, são de leitura mais acessível ao público
brasileiro e satisfatórias para fins didáticos e de
divulgação
. (MALNIC, 1980, p.36)
Embora a obra dramática de Brecht se encontre traduzida na totalidade para o
português do Brasil, pela editora Paz e Terra, ainda não há, por exemplo, como se
mencionou acima, tradução de todos os textos “teóricos”, nem dos comentários feitos
por Brecht sobre as peças didáticas.
Gostaria de citar, também como marcos da recepção de Brecht no Brasil, dois
dos mais relevantes estudos de dois dos mais importantes críticos literários brasileiros
da atualidade, que tratam da presença de Brecht em momentos distintos da história do
teatro no Brasil. O primeiro estudo, elaborado por Iná Camargo Costa, A Hora do
Teatro Épico no Brasil, de 1996, demonstra, a partir do texto de Gianfrancesco
Guarnieri, Eles não usam Black-Tie e das obras de Vianinha e Boal, que o teatro épico
de Brecht influenciou a produção dramatúrgica e o teatro brasileiro desde o final da
década de 50 até o fim dos anos 60, e discute o modo como esse processo de interação
se realizou. O segundo estudo é o ensaio “A atualidade de Brecht”, de Roberto Schwarz,
3
A esta edição somam-se mais três, uma de 1974, outra de 1979 e uma terceira de 1991, pela Editora Paz
e Terra.
4
É curioso observar que Margot Malnic afirme em seu trabalho de mestrado Aspectos da recepção de
Brecht no Brasil, defendido na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, em 1980, que a
editora tinha a intenção de chegar a oito volumes. Consultada sobre o assunto, a Ed. Civilização
Brasileira, que pertence atualmente à Ed. Record, não soube dar informações.
9
de 1998, resultado de uma palestra proferida em 1997, no teatro de Arena Eugênio
Kusnet, após a leitura dramática de A Santa Joana dos matadouros, feita pela
Companhia do Latão. Nele, Schwarz discute a atualidade do autor através do elemento
de distanciamento e mostra a necessidade de revisão e alteração deste recurso em seu
uso na atualidade.
Em 1987 vem a lume um livro organizado por Wolfgang Bader intitulado
Brecht no Brasil: experiências e influências. De acordo com Fernando Peixoto, um dos
ensaístas, por exemplo, a chegada de Brecht ao Brasil teria ocorrido em 1945 com a
encenação da peça Terror e miséria no Terceiro Reich (Furcht und Elend im Dritten
Reich), em São Paulo, por exilados no país.
5
Não é propósito deste trabalho, porém, fazer um levantamento da recepção
brasileira da obra brechtiana. Por isso, passo a comentar a escassa fortuna crítica
existente no Brasil referente às peças didáticas e, em particular, à peça A exceção e a
regra.
Quando se examinam os estudos sobre as peças didáticas no Brasil, verifica-se
que a abordagem crítica destes textos é tardia, tendo em vista que os primeiros trabalhos
sobre as peças didáticas datam de meados dos anos 80 e seguem pelos anos 90. O
primeiro estudo encontra-se na dissertação de mestrado de Silvana Garcia, de 1986,
Teatro da Militância, que trata do agit-prop, de como essa linha de práxis teatral
influenciou a obra brechtiana e como ambas influenciaram os grupos amadores de teatro
no Brasil da década de 1970. Ao discorrer sobre o tema, Garcia mostra como a proposta
do dramaturgo foi apropriada pelos grupos amadores ou pelos grupos de teatro
universitário brasileiro. A autora inicia o trabalho trazendo a história da matriz do teatro
de natureza política até chegar no agit-prop, diferenciando o soviético do alemão. Ao
apresentar o agit-prop da Alemanha, ela aborda o pequeno grupo das peças didáticas de
Brecht, acrescentando algumas informações gerais sobre cada uma delas e,
curiosamente, não o faz com A Exceção e a Regra. A referência a esta peça se dá apenas
no momento em que Garcia descreve o trabalho realizado pelos grupos amadores de
5
A propósito das atividades teatrais dos exilados de língua alemã no Brasil consulte-se a dissertação de
Mestrado de Karola Maria Augusta Zimber, intitulada Willy Keller, um tradutor alemão de literatura
brasileira, aprovada na FFLCH-USP em 1998 e desenvolvida junto ao Grupo de Pesquisa RELLIBRA
“Relações lingüísticas e literárias Brasil Alemanha”.
10
teatro da década de 70, quando diz: "A primeira montagem do grupo [Cordão] não
chegou a ser apresentada: A exceção e a regra de B. Brecht." (GARCIA, 1990, p. 141).
Outros trabalhos, datados da década de 90, foram elaborados por Ingrid
Koudela. O primeiro é Brecht: um jogo de aprendizagem, de 1991. Nele, Koudela
apresenta um histórico da crítica européia acerca das peças didáticas, traz definições de
alguns autores para este grupo de textos, principalmente de Reiner Steinweg. Traz ainda
muitos trechos escritos por Brecht sobre estas peças, faz uma pequena análise de cada
peça e, finalmente, tece relações entre a peça didática e o jogo no teatro proposto por
Viola Spolin. Nesta obra, sobre A exceção e a regra, a autora afirma que esta peça se
encontra no limite entre a peça didática e a peça de espetáculo e que Brecht
recomendava que a sua encenação fosse feita por grupos amadores. Há duas questões,
apontadas pela autora, acerca desta peça: 1- "a crítica à Vernunft (que podemos traduzir
por razão, porém mais corretamente por bom senso). A cena do julgamento deixa claro
que se trata de uma crítica ao 'bom senso' (ou senso comum)" (KOUDELA, 1991, p.
96), acepções de Vernunft, das quais discordamos; 2- a citação do prólogo como uma
das muitas formulações de Brecht sobre o princípio de estranhamento, que reitera a
opinião de outros críticos, como Schwarz, Wekwerth e Jameson. Em sua segunda obra,
Texto e Jogo - uma didática brechtiana, de 1996, a autora retoma alguns conceitos
sobre a peça didática, mas a obra descreve fundamentalmente a sua experiência com a
encenação da peça didática por diversos grupos de estudantes. Cabe anotar que um dos
textos usados por Koudela nestes experimentos é um trecho de A exceção e a regra,
quadro 7, intitulado “A água partilhada”- parte a e b”, mas a autora, contudo, não
apresenta uma análise deste texto, que serve, neste caso, como recorte para a sua
experiência com o uso dos textos didáticos junto aos grupos de estudantes. Sua terceira
obra, Brecht na Pós-modernidade, de 2001, retoma os conceitos apresentados nas obras
anteriores, também sem acrescentar informações sobre A exceção e a regra. Em
resumo, Koudela frente às peças didáticas de Brecht, tem a seguinte posição: a peça
didática só se efetiva enquanto nela se atua, o que corrobora a posição também
defendida pelo estudioso alemão Steinweg. Neste particular, discordo de ambos. Na
verdade, a peça didática A exceção e a regra não pode ser enquadrada em tal definição,
posto que não foi "colocada à prova", ou seja, não foi experimentada logo após sua
escritura e, portanto, a definição acima exige relativizações.
11
Ainda na década de 90, há a publicação de dois estudos que abordam a recepção
de Brecht no Brasil. O primeiro deles, organizado por Kathrin Sartingen, é Mosaicos de
Brecht – estudos de recepção literária, publicado em 1996
6
. Trata-se de uma coletânea
de artigos, que exploram, entre outros temas, os pressupostos teóricos da Estética da
Recepção de Iser e Jauss, Dietrich Krusche e Alois Wierlacher. Dentre os textos
apresentados no estudo, destaca-se um que trata especificamente da peça em tela,
intitulado "Brecht - Montagem de A exceção e a regra", escrito por Eliane Tejera
Lisboa
7
, e que, embora analise a peça, aborda-a apenas a partir de uma montagem
realizada em 1987 pelo grupo de teatro da Universidade Estadual de Maringá, dirigida
por Eduardo Montagnari. Neste artigo, a autora assinala, principalmente, como o grupo
retrabalha esta peça didática e como a relaciona com o Brasil, tendo em vista a
atualização do texto com o intuito de tratar o problema dos exploradores de madeira
que, naquele período, assolava a região. Nota-se, ainda, que Lisboa adota preceitos de
Koudela sobre esse grupo de peças didáticas, e que, por ter escolhido abordá-la a partir
de uma encenação específica, acaba por tratar mais da encenação e não apresenta uma
leitura aprofundada da peça didática original. Eliane Tejera Lisboa reedita o mesmo
texto, na coletânea organizada por Eduardo Montagnari, intitulado Teatro universitário
em Cena - referências e experiências,
8
não acrescentando mais informações sobre a
obra em tela.
A estes estudos, seguem-se outros trabalhos sobre o grupo das peças didáticas,
tais como, por exemplo, Experiência e engajamento, uma leitura de “A medida”, tese
de doutoramento elaborada por José Fernando Peixoto de Azevedo, defendida junto ao
Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo em 2007, que também,
curiosamente, exclui A exceção e a regra do rol das peças didáticas, quando as
enumera.
6
Mosaicos de Brecht - estudos de recepção literária é uma coletânea de textos sobre a recepção do
dramaturgo no Brasil elaborada por alunos que participaram de um curso de pós-graduação na
UNICAMP, ministrado pela organizadora do estudo.
7
Lisboa, Eliane Tejera. "Brecht - Montagem de A exceção e a Regra". In: SARTINGEN, Kathrin (org.).
Mosaicos de Brecht - estudos de recepção literária. São Paulo, Arte & Ciência, 1996, p. 116-140.
8
Lisboa, Eliane Tejera. “Brecht- Montagem de A exceção e a regra” IN: MONTAGNI, Eduardo (Org.)
Teatro universitário em Cena- referências e experiências. Maringá, Ed. UEM, 1999. p. 70-85.Nota-se
que embora o texto seja apresentado neste estudo como uma reedição do texto publicado na coletânea de
Sartingen, dele não constam três partes pertencentes à primeira publicação, a saber: “Recepção teatral”,
“Teatro de Brecht” e “A peça didática de Brecht”.
12
Um outro trabalho sobre as peças didáticas é uma dissertação de mestrado,
intitulada Experimento do Acordo - escritura sobre o aprendizado na tempestade,
elaborada por Dedé Pacheco e defendida em 2008 na Escola de Comunicação e Artes da
Universidade de São Paulo, sob a orientação de Ingrid Koudela, que embora trate das
peças didáticas no contexto da obra brechtiana e mencione A exceção e a regra como
peça pertencente a este grupo, trata especificamente da experiência cênica realizada pela
autora com o texto A peça didática de Baden-Baden - sobre o acordo. Particularmente
sobre o texto em pauta, há apenas os sumários já elaborados nos estudos de Peixoto e de
Koudela, conforme mencionado, e que, portanto, não oferecem ao leitor subsídios para
uma reflexão aprofundada acerca dos temas presentes nesta peça.
Hoje, uma série de pequenos textos on line, que ou são anúncios de
montagens realizadas, como, por exemplo, a encenação feita pelo Teatro Fábrica São
Paulo ou Teatro Coletivo e que trazem um pequeno sumário da peça, ou são pequenas
críticas ou comentários de atores que a encenaram.
9
Nenhum dos trabalhos, acima mencionados, porém, detém-se na análise minuciosa
de todos os elementos constitutivos da peça didática A exceção e a regra, tal como aqui
proposto. Visa esta análise, portanto, não só enriquecer a fortuna crítica do autor, mas,
sobretudo, a facilitar ao estudante universitário de língua portuguesa o acesso às
questões teatrais propostas por Brecht e, talvez, a construir um suporte para futuras
encenações da peça em questão.
Para a leitura crítica aqui apresentada, objetivo desta dissertação, serviu de base
o texto da edição publicada pela editora alemã Suhrkamp, no ano de 1967, que reproduz
o primeiro registro escrito da peça de 1929
10
, e que foi reeditada em 1975.
Apoiada nos textos teóricos escritos pelo dramaturgo sobre as peças didáticas e
9
Uma pequena crítica, de 2005, sobre a montagem realizada pelo Teatro Fábrica de São Paulo está
disponível em <http://www.bacante.com.br/revista/critica/a-exceca
o-e-a-regra> Acesso em 22.10.2008;
uma entrevista com um ator que a representou na cidade de Cascavel está disponível em
<http://www.cascavel.pr.gov.br/secom/detalhes.php?id0=5273
> Acesso em 22.10.2008.
10
Há uma polêmica acerca da data de elaboração desta peça didática, a qual será discutida na primeira
parte deste estudo. Adota-se, aqui, a data de 1929, tendo em vista que ela consta na primeira publicação
do texto em pauta. A análise da peça baseia-se no texto original, o que nos levou a desconsiderar as
traduções já feitas e a fazer outras.
13
no instrumental oferecido pela lingüística e pela teoria literária, analiso e interpreto as
estratégias usadas por Brecht na criação e na montagem dos elementos constitutivos da
peça em tela.
Como se sabe, Brecht emprega, no drama, o procedimento narrativo e os efeitos
de distanciamento (Verfremmdungseffekte), que visam à provocação de uma atitude
“anti-catártica” e a uma reflexão crítica por parte de quem assiste à encenação para que,
a partir desta, o espectador possa transformar a realidade em que vive.
Quando Brecht sobrepõe elementos da estrutura épica à dramática, ou seja,
quando apresenta variações dentro de uma estrutura textual conhecida, ele acaba por
criar um novo estilo, denominado por ele e por Piscator de estilo épico de representação.
Ao empregar a agudeza - que “corresponde a uma relação inesperada, artificial, entre
dois conceitos distantes, feita de modo a pôr em correspondência também inesperada
relações de objetos distantes” (HANSEN, 2006, p.70-71) - na composição da estrutura
maior, isto é, no texto dramático e em estruturas menores (poemas-canções, parábolas
bíblicas, fábulas), Brecht, de maneira engenhosa, concretiza o efeito de distanciamento
em relação ao público/leitor, uma vez que as microestruturas, nas quais também estão
assinaladas as marcas distintivas do texto narrativo ou lírico, confrontadas e
relacionadas à macroestrutura, que é o texto dramático, efetivam o gestus no texto
escrito, quer dizer, revelam determinadas atitudes do indivíduo que fala, assumidas
perante outros indivíduos. Desta forma, uma peça de Brecht apresenta diversas camadas
textuais dentro da estrutura dramática, que produzem variados sentidos e estes, por sua
vez, são ampliados e atualizados de acordo com a execução/ representação da peça,
devido à combinação e recombinação dos elementos de distanciamento, presentes no
texto escrito e os empregados na encenação. Só para ilustrar alguns elementos de
distanciamento, denominados por Brecht de Verfremmdungseffekte, que interrompem a
expectativa do público na realização da encenação, podem-se mencionar, por exemplo,
a iluminação que elimina uma quarta parede, uma vez que ilumina o público, ou a
execução das canções musicadas no palco, que leva à interrupção e, em simultâneo, ao
comentário das ações, ou também a ausência de coxia, sendo que estes elementos de
distanciamento levam ao desencadeamento da crítica racional por parte do público, que,
por sua vez, deveria levar a uma mudança de mentalidade, isto é, a uma outra visão de
mundo, a uma visão crítica do mundo capitalista, para que este público aja efetivamente
14
no sentido de transformar a realidade em que vive.
A escolha do uso deste procedimento não é aleatória; pelo contrário, vincula de
modo indelével forma e conteúdo, em prol do assunto a ser abordado, como, por
exemplo, as relações sociais dentro do conturbado período da República de Weimar, e,
ainda, este procedimento surge a partir de uma demanda, colocando-se, desta maneira, a
serviço dela. É precisamente por este motivo que o procedimento mencionado não
poderia apresentar a obra de maneira fechada, mas sim de maneira aberta, para que ela
consiga propor discussões dentro de uma sociedade em transformação.
Desta maneira, a análise e a interpretação desta peça didática de Brecht também
pressupõe o isolamento das camadas textuais que caracterizam o drama, a narrativa e a
fábula, a seleção de outras marcas textuais que indiquem os gestus socialmente
atribuídos às personagens, a descrição do uso da agudeza, procedimento empregado
pelo autor, quando apresenta variações dentro da estrutura dramática, como estratégias
configuradoras dos temas propostos em A exceção e a regra e como formas de
estabelecer um diálogo com a sociedade de seu tempo e de hoje.
Este trabalho apresenta-se dividido em 5 capítulos, a saber: I “As peças
didáticas, segundo Brecht”, em que se levantam as propostas, as intenções do autor, ao
criar este tipo de obra, II - “A condição humana”, em que se examinam as personagens
enquanto indivíduos viventes e enquanto elementos constitutivos de um tecido social
pertinente a um dado lugar e espaço temporal. O terceiro capítulo, intitulado “A
Justiça”, examina este tema enquanto prática institucionalizada pelo poder, a partir da
“Canção dos Tribunais” e do quadro 9, “Julgamento”. No quarto capítulo, intitulado
“Coros desconhecidos e as anotações silenciadas”, são tecidos comentários acerca dos
coros e de anotações, elaborados pelo autor como sugestões a serem incluídos nesta
peça, mas que não foram, porém, anexados em nenhuma versão publicada de A exceção
e a regra, ou seja, em nenhuma versão que chegou até nós. O quinto capítulo, “A
exceção e a Regra na República de Weimar”, apresenta a peça no contexto em que ela
foi produzida, levantando traços de um possível “diálogo” entre Brecht e o jurista Carl
Schmitt, um dos ideólogos do Estado Nazista.
15
CAPÍTULO I
As peças didáticas, segundo Brecht
"As peças e a forma de interpretação precisam
transformar o espectador em homem de estado"
(BRECHT, Apud KOUDELA, 1991,p.13)
16
Diz Georg Patzer que, originalmente, as peças didáticas não foram escritas para
o teatro, mas para o rádio ou para a ópera, que se encontram estreitamente ligadas à
respectiva música, são, portanto, na verdade, segundo o estudioso, libretos. (PATZER,
s.d., p. 24).
Patzer tem razão quando indica a estreita relação das peças didáticas com a
música, pois, conforme o próprio dramaturgo, a música era um dos elementos usados
para o distanciamento entre o público e a peça, mas engana-se quando generaliza a
afirmação, pelo menos, no que respeita às peças didáticas de Brecht. Na verdade,
uma peça foi escrita para o rádio com forma de libreto. Trata-se de Der Ozeanflug (O
Vôo sobre o oceano)
11
, em que o próprio subtítulo "Ein Radiolehrstück für Knaben und
Mädchen" (Uma peça didática radiofônica para meninos e meninas) já reflete sua
natureza. Trata-se de uma peça concebida e elaborada no final de 1928, quando Kurt
Weil procurava um texto para participar do Festival de Música de Baden-Baden, cujos
organizadores, entre eles o compositor Paul Hindemith, buscavam discutir o uso deste
aparato pelas massas numa época eminentemente técnica. Só mais outras 2 peças foram
publicadas em forma de libreto, mas não para o rádio: A peça didática de Baden-Baden-
sobre o acordo, sem nenhum subtítulo que a identifique como ópera, e Aquele que diz
sim, aquele que diz não, designada pelo autor como Schuloper (ópera escolar), cuja
primeira publicação ocorre na revista "Musikpflege"
12
.
As outras 3 restantes: Die Maßnahme (A medida), musicada por Hans Eisler em
1930, Die Ausnahme und die Regel (A exceção e a regra), musicada por Paul Dessau
em 1948, e Die Horatier und die Kuriatier (Os Horácios e os Curiácios), concebida no
exílio, musicada por Kurt Schwaen para a apresentação de 1958, nada têm a ver nem
com o rádio, nem com a ópera.
Bertolt Brecht não deixou nenhuma teoria ou sequer uma definição acabada do
11
O título original desta peça didática – Lindbergh - foi alterado três vezes, para obter, finalmente, em
1949, o título Der Ozeanflug, O Vôo sobre o oceano, quando Brecht exclui o nome Lindbergh devido ao
apoio que o aviador Charles Lindbergh deu aos nazistas. Cf. Hecht, Werner. et.al. Große Kommentierte
Berliner und Frankfurter Ausgabe – Stücke 3. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1988. p. 401
12
Cf. Große Kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe – Stücke 3. Frankfurt am Main,
Suhrkamp Verlag, 1988, p. 426, apenas a primeira versão, Der Jasager (Aquele que diz sim) foi publicada
na referida revista. A versão ampliada, que continha Der Neinsager (Aquele de diz não), foi publicada
pela primeira vez em Aus dem 4 Heft der Versuche. Gustav Kiepenheuer Verlag, Berlin, 1930.
17
que seja uma peça didática. O dramaturgo produziu, no entanto, alguns textos teóricos e
uma série de comentários escritos, esparsos, sobre e para as peças didáticas, que
permitem algumas sistematizações.
Do grupo de 6 peças, normalmente consideradas pela crítica literária como
didáticas, Brecht declara em 1956 o seguinte:
para evitar mal-entendidos: das pequenas peças, as
didáticas são A peça didática de Baden-Baden - sobre
o acordo (Das Badener Lehrstück vom
Einverständnis), A exceção e a regra (Die Ausnahme
umd die Regel), Aquele que diz sim, aquele que diz não
(Der Jasager umd der Neinsager), A medida (Die
Maßnahme) e Os Horácios e os Curiácios (Die
Horatier umd die Kuriatier). (BRECHT, 1967, p. 1034.
tradução nossa)
13
.
Ora, percebe-se de imediato que Brecht apenas menciona 5 títulos. De fato, o
assunto em torno desta designação não é uma questão simples. Poder-se-ia começar por
pensar, que o dramaturgo tenha tido em mente o fato de a peça Aquele que diz sim,
aquele que diz não, na verdade, corresponder à síntese do que, originalmente, constituiu
2 peças didáticas, ou seja, Brecht escreveu primeiro Aquele que diz sim, encenou-a com
os estudantes da escola Karl Marx (Karl-Marx-Schule) de Neuköln, exigiu ao final a
opinião dos atores, elaborou um protocolo dessas opiniões, e, a partir delas, reescreveu
uma outra versão, acrescentando-lhe a parte que intitulou Aquele que diz não. Esta
informação surge no seguinte trecho das anotações sobre a peça didática Aquele que diz
sim, aquele que diz não: "Fins de 1929 - junho de 1930: Elaboração e estréia da ópera
escolar Aquele que diz sim [...] entre janeiro e outubro de 1931: Gênese da segunda
parte da combinação das peças, Aquele que diz não".(HECHT, et al., 1988, p. 426,
tradução nossa)
14
.
Por outro lado, também se observa, na indicação de Brecht, a ausência da peça O
vôo sobre o oceano (Der Ozeanflug ou Der Flug der Lindberghs. Ein Radiolehrstück
für Knaben umd Mädchen), que, pelo próprio título, já nasce incluída no grupo.
13
No original: “Um Mißverständis zu vermeiden: Von den kleinen Stücken sind „Das Badener Lehrstück
vom Einverständnis“, „Die Ausnahme und die Regel“, „Der Jasager und der Neinsager“, „Die
Maßnahme“ und „Die Horatier und die Kuriatier“[….] Lehrstücke.“
14
No original: "Ende 1929 - Juni 1930: Erarbeitung und Uraufführung der Schuloper Der Jasager [...]
Zwischen Januar und Oktober 1931: Entstehung des zweiten Teils der Stückekombination, Der
Neinsager."
18
Apesar dos desencontros, pelo menos três críticos de Brecht incluem esta peça
no grupo das peças didáticas. São eles Reiner Steinweg em 1972, B. K. Tragelehn em
1978 e Werner Hecht em 1988.
As controvérsias em torno da identificação das peças didáticas continua, por
exemplo, na edição da coletânea Das Badener Lehrstück vom Einverständnis, Die
Rundköpfe und die Spitzköpfe, Die Ausnahme und die Regel- Drei Lehrstücke
(A peça
didática de Baden Baden- sobre o acordo, Os cabeças-redondas e os cabeças pontudas
e A exceção e a regra- três peças didáticas), em 1975, contendo 3 peças didáticas do
autor, em que uma delas é Die Rundköpfe und die Spitzköpfe (Os cabeças-redondas e os
cabeças-pontudas).
Entretanto, a maioria dos críticos é unânime em considerar como peças didáticas
as 6 acima enumeradas, ou seja: 1. A peça didática de Baden-Baden - sobre o acordo,
2. A exceção e a regra, 3. Aquele que diz sim, aquele que diz não, 4. A medida, 5. Os
Horácios e os Curiácios e 6. O vôo sobre o oceano. Como não nos propomos a
investigar este tipo de problema no presente trabalho, limitamo-nos a contextualizar a
peça corpus desta pesquisa e a chamar a atenção para o assunto.
Bertolt Brecht usou a designação Lehrstück (peça didática) pela primeira vez
durante o Festival acima mencionado, conforme Steinweg:
O conceito peça didática surge primeiramente dentro
do título de uma peça, "A peça didática de Baden-
Baden sobre o acordo", que estréia em julho de 1929
em Baden-Baden e, por isso, acaba empregado como
conceito para todas as peças do mesmo tipo. A teoria
embasadora destas peças começa a existir antes mesmo
que o conceito peça didática lhes seja atribuído. Isto
depreende-se das anotações simultâneas a respeito do
"Vôo de Lindbergh" [...]. (STEINWEG, 1976b, p.6,
tradução nossa)
15
15
No original: "Der Begriff Lehrstück erscheint zunächst als Titel eines Stücks, das im Juli 1929 in
Baden-Baden uraufgeführt wurde und deshalb später, als der Begriff auf alle Stücke des gleichen Typus
angewendet wurde, den Titel "Das Badener Lehrstück vom Einverständnis" bekam. Die diesen Stücken
zugrundeliegende Theorie hat bereits bestanden, bevor der Begriff Lehrstück darauf angewendet wurde.
Das ergibt sich aus den gleichzeitigen Überlegungen zum 'Lindberghflug'’[...].”
19
As 6 peças didáticas, normalmente aceitas como tal, encontram-se inseridas no
conjunto da obra brechtiana da seguinte forma panorâmica, conforme o lugar em que
foram produzidas:
Em Augsburg e München: Lenda do soldado morto(Legende vom toten
Soldaten), Baal, Os livros de devoção caseira (Die Hauspostille), Tambores da Noite
(Trommeln in der Nacht), Na selva das cidades (Im Dickicht der Städte).
Em Berlim: Um homem é um homem (Mann ist Mann), A ópera dos três vinténs
(Die Dreigroschenoper), Ascensão e queda da cidade de Mahagonny (Aufstieg und Fall
der Stadt Mahagonny), A mãe (Die Mutter), A santa joana dos matadouros (Die heilige
Johanna der Schlachthöfe) e as 5 peças didáticas: A peça didática de Baden-Baden -
sobre o acordo (Das Badener Lehrstück vom Einverständnis), A exceção e a regra (Die
Ausnahme umd die Regel), Aquele que diz sim, aquele que diz não (Der Jasager und der
Neinsager), A medida (Die Maßnahme) e O vôo sobre o oceano ou O Vôo de
Lindenbergh. Uma peça didática radiofônica para rapazes e moças. (Der Ozeanflug ou
Der Flug der Lindberghs. Ein Radiolehrstück für Knaben und Mädchen).
No exílio: A peça didática Os Horácios e os Curiácios (Die Horatier und die
Kuriatier), Poesias de Svendborg (Svendborger Gedichte), Terror e miséria do Terceiro
Reich (Furcht und Elend des Dritten Reiches), Os fuzis da senhora Carrar (Die
Gewehre der Frau Carrar), Herr Puntila und sein Knecht Matti (O senhor Puntila e seu
criado Matti), Der kaukasische Kreidekreis (O círculo de giz caucasiano), Der
aufhaltsame Aufstieg des Arturo Ui (A resistível ascensão de Arturo Ui), Der gute
Mensch von Sezuan (A boa alma de Sezuan), Mãe Coragem e seus filhos (Mutter
Courage und ihre Kinder), A vida de Galileu (Leben des Galilei).
Na Alemanha Oriental: Histórias de almanaque (Kalendergeschichten).
As peças didáticas constituem uma determinada etapa evolutiva no teatro de
Brecht. Nelas é visível o empenho do dramaturgo em torno da criação de matrizes, de
“modelos” que deveriam sustentar a criação de variantes. O texto da peça didática tem
uma estrutura tal que permite a inserção ou o apagamento de determinados trechos. O
texto é, portanto, sempre um pré-texto ou modelo de ação, um ponto de partida para
desenvolvimentos posteriores. Após as apresentações, Brecht costumava fazer
anotações sobre o funcionamento dos citados “modelos de ação”, buscando corrigir o
seu curso de acordo com o objetivo proposto, sempre com o intuito de aperfeiçoá-los.
20
Em outras palavras, cada peça didática poderia obter várias versões. Por exemplo, o
próprio Brecht, por altura da encenação da peça didática A medida, chegou a distribuir
questionários ao final da apresentação e a modificar o texto de acordo com as respostas
dadas pela audiência.
Nas peças didáticas, Brecht aprofunda a proposta, já desenvolvida em peças
anteriores, de distanciamento do espectador/leitor em relação à encenação e ao texto,
que é um distanciamento dialético, porque este distanciamento, no fundo e na verdade,
atrai o espectador para o âmago do problema que se desenrola no palco/texto. A meu
ver, para chegar ao distanciamento alcançado nas peças didáticas, Brecht lança mão, na
escritura do texto e na respectiva encenação, de uma temática que joga uma luz
particularmente intensa e focada na relação entre o indivíduo e o coletivo, o que leva a
um jogo peculiarmente contundente entre estranhamento e identificação, concretizado
pelo coletivo/público e pelo indivíduo/ator/leitor, já que uma proposta do dramaturgo
para este grupo de peças é a de que sejam encenadas pelo próprio público, a saber,
grupos de trabalhadores, estudantes e grupos de teatro amador. Além disso, outras
estratégias já cultivadas anteriormente, tais como mostrar o inesperado, escancarar
contradições, trabalhar com a ausência de um texto fixo, continuam presentes.
Se no teatro dramático/aristotélico, o palco, ao apresentar-se de forma sugestiva,
preservando as sensações, representa um processo, coloca o espectador dentro de uma
ação cênica, consome-lhe a atividade, proporciona-lhe sentimentos, considera-o como
ser imutável, que acompanha os acontecimentos de maneira linear, cujo pensamento
determina o seu ser, no teatro de Brecht, ou seja, no teatro de forma épica, o palco (o
texto, os atores, os espectadores/leitores, a própria concepção e encenação da peça), por
si só, põe em evidência o processo dramático, coloca o espectador na posição de
observador crítico, estimula-lhe a atividade intelectual, exige-lhe decisões e argumentos,
incita-o ao conhecimento, considera-o como ser mutável, passível de modificação.
Neste palco, os acontecimentos desenrolam-se em curvas, apresentam uma construção
articulada e configuram o homem como ser social que determina o próprio pensamento.
(BRECHT, 1967, p.1009-1010). A práxis desenvolvida para atingir a passagem do
teatro dramático ao épico é efetivada nas encenações feitas pelo dramaturgo, conforme
mencionado na introdução, pelos efeitos de estranhamento (Verfremmdungseffekte), ou
seja, pelo uso da música (coros e canções), pela eliminação da quarta parede, pelo uso
21
das capitulações, isto é, pelo título dado a cada cena, pelo uso de filmes, entre outros
elementos, como o emprego do gestus pelos atores, pois, segundo Brecht: "É condição
necessária para se produzir o efeito de distanciamento que, em tudo o que o ator mostre
em público, seja nítido o gesto de mostrar"
16
(BRECHT, [1964?], p.130, trad. Pais
Brandão). Espera-se que nas peças didáticas os atores/jogadores/leitores se apropriem
de determinados gestus e os utilizem, quer dizer, que saibam dispor de posturas
socialmente identificáveis que, notadamente se encontram, não só em expressões
corporais, mas também em registros verbais, a denotarem a função coletiva da
linguagem, identificada pelo coletivo.
Para construir este "ato de mostrar", o dramaturgo afirma poderem ser utilizados
três espécies de recursos para distanciar a expressão e a ação da personagem
apresentada: 1- a recorrência à terceira pessoa; 2- a recorrência ao passado; 3- a
explicitação de indicações sobre a representação dos comentários. (BRECHT, [1964?],
p.134, trad. Pais Brandão). Sendo assim, retoma-se a questão da elaboração textual, ou
seja, o gestus da escrita, que abrange teoria e práxis, tocando portanto, na forma e
conteúdo da obra brechtiana, uma vez que o procedimento utilizado pelo autor busca
evidenciar os gestus socialmente atribuídos aos personagens.
O autor reforça essa idéia em seu Pequeno Organon para o teatro (Kleines
Organon für das Theater), quando afirma:
Nós precisamos de um teatro que não possibilite apenas
sensações, idéias e impulsos, mas que permita o
respectivo domínio histórico das relações humanas, em
que as ações sejam empregadas e produzidas, e
desempenhem, de per se, um papel na modificação
desse domínio. O domínio terá de poder ser
caracterizado em sua relatividade histórica
. (BRECHT,
1967, V.16, p. 678, tradução nossa).
17
A proposta teatral de Brecht nas peças didáticas concretiza-se, a meu ver, em
dois níveis principais: na estrutura do texto, onde se observa incisivamente a inserção de
discursos narrativos e líricos na estrutura dramática, e na relação ator/público,
16
No original: Die Voraussetzung für die Hervorbringung der V-Effekts ist, dass der Schauspieler das,
was er zeigen hat, mit dem deutlichen Gestus des zeigen versieht.“ IN: GW, B 15, p. 341.
17
No original: „Wir brauchen Theater, das nicht nur Empfindung, Einblicke und Impulse ermöglicht, die
das jeweilige historische Feld der menschlichen Beziehung erlaubt, auf dem die Handlungen verwendet
und erzeugt, die bei der Veränderung des Feldes selbst eine Rolle spielen. Das Feld muß in seiner
historischen Relativität gekennzeichnet werden können.“
22
especialmente visível nas peças didáticas em geral, tendo em vista que, ao sugerir que o
espectador atue nessas peças, o dramaturgo lhe propõe um jogo entre identificação e
distanciamento. Estes dois níveis constituem núcleos de procura por uma
‘sistematização’, por um modelo, que, no fundo, se revela anti-modelo, a que Brecht se
refere ao falar de seu teatro, tendo em vista que o que o constitui é o seu caráter aberto,
que exige a combinação e recombinação dos elementos, tanto no texto como na
encenação. Penso que a tentativa de chegar à sistematização de um modelo é
parcialmente concretizada pelas peças didáticas. Essa sistematização plena do modelo
se dá, por exemplo, mais tarde com Mãe Coragem, escrita em 1939, e Antígona, escrita
entre 1948, quando Brecht chega a publicar os “Couragemodell” e “Antigonemodell”,
isto é, os “Cadernos-modelo para Coragem” e os “Cadernos-modelo para Antígona”,
que são as descrições dos processos de registro do texto e da encenação, que se iniciam
com o trabalho da elaboração do texto, passam pelos ensaios das peças e seguem ao
longo das apresentações e que, ao exigirem alterações contínuas, demandam as
respectivas anotações.
Em seu livro Das Lehrstück - Brechts Theorie einer politisch-ästhetischen
Erziehung (A peça didática - A teoria de Brecht para uma educação estética-política),
de 1972, dos mais importantes estudos sobre as peças didáticas de Brecht na Alemanha,
Reiner Steinweg, partindo da premissa brechtiana "a peça didática ensina quando nela
se atua, não quando se é espectador" (Apud STEINWEG, 1976b, p.164, tradução
nossa)
18
, defende que a peça didática só se “efetiva” como tal quando representada por
atuantes/jogadores, ou seja, sem a presença de um público e, assim, a diferencia também
da peça épica "para-ser-vista" (Schaustück). Esta "peça-épica-para-ser-vista"
caracterizar-se-ia, muito particularmente para Steinweg, como uma peça em que
haveria, de fato, uma separação entre atuantes e espectadores, ao contrário da peça
didática, que não estabeleceria tal separação.
Em 1976, Steinweg organiza um outro estudo constituído por uma coleção de
textos e comentários escritos por Brecht acerca das peças didáticas, intitulado Brechts
Modell der Lehrstück - Zeugniss, Diskussion, Erfahrungen (O modelo de Brecht para a
peça didática - testemunho, discussão, experiências), que traz, ainda, ensaios de outros
18
No original: “Das lehrstück lehrt dadurch, daß es gespielt, nicht dadurch, daß es gesehen wird.”
23
estudiosos acerca deste grupo de peças. Destes ensaios, destaco dois que se contrapõem
à tese defendida em 1972 pelo organizador do estudo. No ensaio intitulado "Die Spur
der Bretschen Lehrstück-Theorie Gedanken zur neueren Lehrstück-Interpretation" ("O
vestígio da peça didática de Brecht - Pensamentos teóricos para uma nova interpretação
da peça didática"), Werner Mittenzwei, seu autor, afirma que, embora o trabalho de
Steinweg tenha dado uma outra direção às críticas feitas até então, principalmente às do
período entre 1950 e 1960, nele encontra-se uma absolutização da idéia do pensamento
producente, isto é, Steinweg enfatiza de tal forma o nível teórico da reflexão que acaba
ignorando o fato de que a premissa brechtiana, atrás citada, pressupõe uma práxis
efetiva. Como argumento de sua crítica, ele apresenta uma citação do próprio Brecht, na
qual o dramaturgo afirma: "Um teatro sem espectadores é um nonsense" (Apud
MITTENZWEI, 1976a, p. 230, tradução nossa)
19
, o que leva Mittenzwei a acrescentar
que
a arte foi para os producentes uma solução essencial na
estética materialista, nascida das entranhas dos
processos de diferenciação do pensamento estético
marxista do início dos anos trinta. Esta diferenciação
realizou-se com base na mudança de função, de
orientação das artes e das práxis artísticas tendo em
vista o movimento revolucionário dos trabalhadores.
(MITTENZWEI, 1976a, p. 241, tradução nossa).
20
O significado do pensamento producente em Mittenzwei, certamente, é diferente
do de Steinweg, que se limita a permanecer na dialética pela dialética, em vez de
colocá-lo como instrumento a serviço de uma revolução.
No outro ensaio intitulado "Brechts Theater - Theater als Wissenschaft" ("O
Teatro de Brecht - teatro como ciência"), seus autores, Hermann Haarmann e Dagmar
Walach, seguem a mesma linha de Mittenzwei e também questionam a tese de
Steinweg, no que se refere à ênfase demasiada dada ao pensamento dialético e ao
apagamento de sua práxis. Ao criticarem Steinweg, eles afirmam que "quando a
dialética se torna objeto de si mesma - como no caso da peça didática - ela se torna
método da relação sujeito-objeto, e, com isso, aparta-se da história (da luta de classes)"
19
No original: „ Ein Theater ohne Zuschauer ist ein Nonsens”.
20
No original: “Die Kunst für die Produzenten war eine Hauptlösung der Materialästhetik, die sich
innerhalb des Differenzierungsprozesses des marxistischen ästhetischen Denkens zu Beginn der dreißiger
Jahre herausbildete. Diese Differenzierung vollzog sich auf der Grundlage des Funktionswechsels, der
Ausrichtung der Künste und künstlerischen Praxis auf die Ziele der revolutionären Arbeiterbewegung.“
24
(HARMANN; WALACH, 1976a, p.264, tradução nossa)
21
, mostrando, assim, onde está
o "erro" de Steinweg, isto é, reafirmando que a dialética materialista é a expressão dessa
luta de classes.
Haarmann, Walach e Mittenzwei divergem de Steinweg, portanto, no que tange
ao pensamento dialético materialista, que tem como conseqüência o pensamento
producente, pois como Steinweg permanece em um patamar teórico, ainda que sua
proposição seja construída sobre uma premissa que contém a práxis teatral, nota-se que
sua compreensão das peças didáticas está voltada com exclusividade para o ensino do
marxismo e que ele não prevê o uso deste ensinamento na prática de uma transformação
efetiva da sociedade. Haarmann, Walach e Mittenzwei, por sua vez, ao fazerem a crítica
à tese de Steinweg, também enfatizam em demasia este pensamento producente, que,
para eles, seria o único responsável pela possibilidade da revolução.
Torna-se, portanto, necessário ressaltar que este debate acerca das peças
didáticas deu-se em meados dos anos 70 e que os protagonistas desta discussão
apresentam seus respectivos pontos de vista sobre a obra e o pensamento brechtiano,
notadamente, pelas lentes daquele contexto histórico, ou seja, a partir da perspectiva da
República Democrática Alemã (DDR), país que vivia sob um regime socialista, o que
talvez explique a radicalização do pensamento producente com o objetivo
revolucionário. Penso que seria difícil precisar se Brecht, a partir do pensamento
producente, de fato, objetivava uma revolução social, ou melhor, uma revolução
socialista. A princípio, o contexto de elaboração das peças didáticas, ou seja, o final dos
anos 20, que coincidia com o fim da República de Weimar e a gradual ascensão do
Nazismo, não nos permitiria tal afirmação, i.e., a de que o pensamento producente seria
um instrumento de tal revolução. Penso que Harmann e Walach, como marxistas,
pertencentes a um partido da República Democrática Alemã (DDR), buscavam reforçar
a idéia de Brecht como revolucionário e buscavam preservar essa imagem do autor,
ratificando, ainda, a necessidade de revolução socialista, que, naquele contexto, ou seja,
em 1976, deveria se estender ao resto do mundo, tendo em vista que o dramaturgo
alemão era um dos maiores representantes da literatura dos marxistas radicais da DDR.
21
No original: “Wenn nun – wie im Lehrstück – Dialektik selbst zum Gegenstand gemacht wird, wird
diese als Methode vom Subjekt-Objekt-Verhältnis und damit von der Geschichte (Klassenkampf)
getrennt.“
25
É preciso ainda observar que Brecht designava as peças didáticas como simples
Versuche, quer dizer, como "experimentos", o que admite em seu âmbito a existência de
contradições, que poderão, ou não, ser posteriormente substituídas ou mesmo
ultrapassadas e anuladas, a partir de suas encenações. Em um fragmento de 1930,
presente em um conjunto de escritos denominado Aus dem Kontext (A partir do
contexto), Brecht discorre sobre o caráter experimental dos Versuche, afirmando que
A publicação dos "Experimentos" acontece em um
momento em que certos trabalhos não devem mais ser
vivências individuais (ter caráter de obra), porém,
serem direcionados à utilização (transformação) de
determinados institutos e instituições (devem ter caráter
de experimento) e com o objetivo de esclarecer
continuamente os próprios empreendimentos
ramificados, a partir de seu contexto. (Apud
STEINWEG, 1976a, p.94, tradução nossa).
22
Como se disse no início deste capítulo, Bertolt Brecht não deixou nenhuma
teoria ou sequer uma definição acabada do que seja uma peça didática, mas produziu
alguns textos teóricos e uma série de comentários escritos, esparsos, sobre e para as
peças didáticas, que permitem algumas sistematizações.
Os textos teóricos e as anotações escritas e esparsas, sobre e para as peças
didáticas, produzidos por Brecht foram elaborados em épocas e circunstâncias diversas.
Nos fragmentos teóricos, o autor traça algumas diretrizes acerca da função, dos
destinatários e dos temas das peças didáticas, onde se pode notar uma recorrência à
questão do Estado.
Na série de anotações esparsas, sobre e para as peças didáticas, Brecht apresenta
inúmeros textos que foram elaborados, ou durante a escritura dessas peças, ou no
momento subseqüente a suas encenações, ou em momentos posteriores, quando o autor
22
No original: „Die Publikation der „Versuche“ erfolgt zu einem Zeitpunkt, wo gewisse Arbeiten nicht
mehr so sehr individuelle Erlebnisse sein (Werkcharakter haben) sollen, sondern mehr auf die Benutzung
(Umgestaltung) bestimmter Institute und Institutionen gerichtet sind (Experimentcharakter haben) und
zum Zweck, die einzelnen sehr verzweigten Unternehmungen kontinuierlich aus ihrem Zusammenhang
zu erklären“.
26
retomava suas reflexões sobre essas peças. De modo geral, elas apresentam informações
sobre o tema, sobre a maneira de representar determinada peça, ou são sugestões de
inclusão ou modificação de passagens. A seguir, apresentamos um esboço panorâmico
de tais escritos.
23
Textos teóricos
24
:
Die Große und die Kleine Pädagogik (A Grande e a Pequena pedagogia)
(1930);
Pedagogik (Pedagogia) (1930);
Theorie der Pädagogien (Teoria das pedagogias) (1930);
Über die Aufführung von Lehrstücken (Sobre a representação das peças
didáticas) (1930);
Zur Theorie des Lehrstücks (Para uma teoria da peça didática) (1934);
Anotações esparsas sobre e para as peças didáticas:
Anmerkungen zum Lehrstück Der Ozeanflug (Anotações sobre a peça didática
O Vôo sobre o oceano);
Anmerkungen zum Lehrstück Das Badener Lehrstück zum Einverständnis
(Anotações sobre a peça didática A peça de Baden-Baden – sobre o acordo);
Anmerkungen zum Lehrstück Der Jasager und der Neinsager (Anotações sobre
a peça didática Aquele que diz sim, aquele que diz não);
Anmerkungen zum Lehrstück Die Maßnahme (Anotações sobre a peça didática
A medida);
Anmerkung [zu den Lehrstücken] (Anotação [para as peças didáticas]);
Anmerkungen zum Lehrstück Die Ausnahme und die Regel (Anotações sobre a
peça didática A exceção e a regra);
23
Tanto os fragmentos teóricos, quanto as anotações esparsas sobre e para as peças didáticas podem ser
encontrados em sua totalidade no estudo de Reiner Steinweg Brechts Modell der Lehrstücke- Zeugnis,
Diskussion, Erfahrungen. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1976a, disponibilizado na biblioteca
da FFLCH-USP.
24
- As datas atribuídas às publicações dos fragmentos teóricos ou às anotações sobre e para as peças
didáticas foram estabelecidas por Reiner Steinweg em suas obras de 1972, Das Lehrstück- Brechts
Theorie einer politisch-ästhetischen Erziehung, e 1976 Brechts Modell der Lehrstücke- Zeugniss,
Diskussion, Erfahrungen. Conforme o autor, muitos deles não apresentavam data precisa e foram
classificados pelo crítico de acordo com a forma como se apresentavam, por exemplo, como manuscritos,
datilografados pelo mesmo tipo de máquina de escrever, o que poderia ser indicativo do período e/ou
lugar em que as peças estavam sendo elaboradas. No estudo de 1976, Steinweg reclassifica, por exemplo,
uma anotação, possivelmente escrita em 1934, sobre A exceção e a regra, que havia sido apresentada em
seu estudo de 1972 como tendo sido escrita em 1932.
27
Anmerkungen zum Lehrstück Die Horatier und die Kuriatier (Anotações sobre
a peça didática Os Horácios e os Curiácios).
No texto teórico Die Große und die Kleine Pädagogik (A grande e a pequena
pedagogia), Brecht afirma:
A grande pedagogia modifica totalmente o papel da
situação. Ela supera o sistema de atuantes e
espectadores. Só conhece atuantes que são ao mesmo
tempo estudiosos, a partir da lei fundamental – onde o
interesse de cada um equivale ao interesse do Estado e
o gesto compreendido determina a maneira de agir de
cada um [...]. Enquanto isso, a pequena pedagogia
realiza, durante o período de passagem para a primeira
revolução, apenas uma democratização do teatro, mas a
divisão permanece. Os atuantes são formados, na
medida do possível, a partir de amadores (os papéis
serão construídos de forma que amadores permaneçam
amadores). Os atores profissionais e todo o aparato
teatral precisam ser utilizados com o objetivo de
enfraquecer as estruturas ideológicas burguesas. As
peças e a forma de interpretação precisam transformar
o espectador em homem de estado. Por isso não devem
apelar para o sentimento do espectador, o que lhe
permitiria reagir esteticamente, mas sim para a sua
razão. Os atores devem estranhar personagens e
processos para o espectador, de forma que chamem a
sua atenção. O espectador precisa tomar partido em vez
de se identificar. (Apud KOUDELA, 1991, p.13, Trad.
KOUDELA)
Neste texto, como bem aponta Koudela (1991, p.14-16), Brecht faz notar alguns
pontos importantes sobre a peça didática: o seu uso com o objetivo de enfraquecer as
estruturas ideológicas burguesas; a busca pela transformação do
espectador/jogador/ator/leitor em homem de Estado, que ao se tornar atuante, torna-se
estudioso de suas ações, que devem ser, portanto, de interesse do Estado.
Em Theorie der Pädagogien (Teoria das pedagogias), o interesse do Estado
também está presente, quando, ao assinalar uma discussão, contemporânea à República
de Weimar, sobre a ação e a reflexão, ou melhor, sobre o papel do político e do filósofo,
o dramaturgo afirma:
Entre a verdadeira filosofia e a verdadeira política não
existe diferença. A partir desse reconhecimento,
aparece a proposta do pensador para educar os jovens
através do jogo teatral, isto é, fazer com que sejam ao
mesmo tempo atuantes e espectadores, como é
sugerido nas prescrições da pedagogia. O prazer de
28
observar apenas é nocivo ao Estado, assim como o é o
prazer da atuação apenas. Ao realizar, no jogo, ações
que são submetidas à sua própria observação, os jovens
são educados para o Estado. Esses jogos devem ser
inventados ou executados de forma que o Estado tenha
um proveito. Sobre o valor de uma frase ou de um
gesto não decide portanto a beleza, mas sim se o
Estado tem algum proveito quando os jogadores
enunciam a frase, executam o gesto e entram em ação.
O proveito que o Estado deve ter poderia ser
minimizado por cabeças estreitas, se por exemplo só
deixassem os jogadores realizar[em] as ações que lhe
parecessem socialmente úteis. Pois justamente a
representação do associal por aquele que se tornará
cidadão do Estado será útil ao Estado, principalmente
se for efetuada a partir de modelos precisos e
grandiosos. O Estado pode melhorar os impulsos
associais do homem ao solicitá-los (eles que nascem do
medo e da ignorância) de uma forma perfeita e quase
inacessível ao indivíduo sozinho. Este é o fundamento
da utilização do teatro na pedagogia.(Apud
KOUDELA, p. 15, Trad. K
OUDELA)
Além das peças serem destinadas a amadores, elas também são propostas para
jovens, mantendo, ainda, um proveito para o Estado. Com base nisto, Brecht considera
que é a partir da representação do elemento associal, do indivíduo, que o coletivo, ou
para dizer com outras palavras, o Estado, tirará proveito disso. Desta forma, pode-se
compreender a proposição apresentada pelo dramaturgo que perpassa este grupo de
peças e que gira em torno da questão da ajuda do homem ao homem.
Em Über die Aufführung von Lehrstücken (Sobre a representação das peças
didáticas), Brecht diz:
Quando vocês levarem ao palco uma peça didática,
vocês têm que atuar como alunos. O aluno, sem
exceção, sempre tenta determinar o sentido da
passagem difícil ou retê-la na memória através de um
falar enfaticamente claro. Também seus gestos são
unívocos e servem à elucidação de outras passagens e
têm de ser recuperados vez ou outra de maneira rápida e
acidental, como se se tratasse de certas ações
ritualísticas, frequentemente exercitadas. São estas
passagens que correspondem àqueles trechos de uma
fala, através dos quais são dadas determinadas
informações, fundamentalmente necessárias para a
compreensão da seqüência. Essas passagens,
inteiramente a serviço do processo geral, devem ser
representadas. Pois há partes que necessitam da arte de
representar à moda antiga. Como quando se tem que
mostrar algum comportamento típico. Pois há um certo
comportamento prático do indivíduo que também pode
29
criar situações que, por sua vez, tornam necessárias ou
possibilitam novas atitudes. Para, de alguma forma,
mostrar os gestos e as falas típicos de um homem que
quer persuadir um outro, é preciso empregar a arte de
representar.(Apud STEINWEG, 1976a, p.52, tradução
nossa)
25
Neste trecho, Brecht indica uma matriz de como a peça didática deve ser
representada, tendo em vista que, ao unir a maneira de representação dos estudantes e a
do ator antigo, indica o objetivo almejado nas encenações destas peças, que é o de
mostrar, a partir de ações típicas e conhecidas, que as relações sociais podem ser
transformadas.
Em Pädagogik (Pedagogia), Brecht diz que
Em todas as formas estatais até agora (elas são
construídas sobre as diferenças de classes), a infra-
estrutura produz a superestrutura ideológica, a cultura.
Destas, os próprios usos e costumes foram, de longe e
indubitavelmente, os resultados práticos mais
importantes. Que estes operem, a seu turno, sobre a
infra-estrutura é uma coisa que sempre foi enfatizada
pelos dialéticos. No estado novo sem classes (que, na
verdade, já não é mais um estado), é oferecida pela
primeira vez a possibilidade de determinar de modo
consciente este contexto funcional. As relações tornam-
se diretas, superestrutura e infra-estrutura constituem
uma unidade. A infra-estrutura cria costumes, os quais
passam a operar diretamente sobre a infra-estrutura, são
por ela determinados e, no fundo, tendo em vista atingir
a superestrutura ou as coisas super-estruturais.
26
(Apud
STEINWEG, 1976a, p. 52, tradução nossa, grifo nosso)
25
No original: „wenn ihr ein lehrstück aufführt, müßt ihr wie schüler spielen. durch ein betont deutliches
sprechen versucht der schüler immer wieder die schwierige stelle durchgehend ihren sinn zu ermitteln
oder für das gedächtnis festzuhalten. auch seine gesten sind deutlich und dienen der verdeutlichung.
andere stellen wiederum müssen schnell und beiläufig gebracht werden wie gewisse rituelle oft geübte
handlungen. das sind die stellen die jenen passagen einer rede entsprechen, durch die gewisse
informationen gegeben werden die für das verständnis des folgenden hauptsächlich nötig sind. diese
stellen die ganz dem gesamtprozeß dienen sind als verrichtungen zu bringen. dann gibt es teile die
schauspielkunst benötigen ähnlich der alten art. so wenn typisches verhalten gezeigt werden soll. denn es
gibt ein gewisses praktisches verhalten des menschen das ebenfalls situationen schaffen kann die dann
neue haltungen nötig machen oder ermöglichen. um etwa die typischen gesten und redesarten eines
mannes zu zeigen der einen andern überreden will muß man schauspielkunst anwenden“.
26
No original: „in allen bisherigen staatlichen Formen (sie sind auf klassenunterschieden aufbegaut)
erzeugt der unterbau den ideologischen überbau, die kultur. von diesen waren die weitaus wichtigsten,
praktischen ergebnisse zweifellos die sitten und gebräuche selber. daß diese auf den unterbau wiederum
einwirkten, wurde von den dialektikern immer betont. im neuen klassenlosen staat (der <ja> kein staat
mehr ist ) ist zum ersten mal die möglichkeit gegeben, diesen funktionellen zusammenhang bewußt zu
bestimmen, die beziehungen werden direkt, überbau und unterbau bilden eine einheit. der unterbau schafft
30
Neste excerto, o autor realça, mais uma vez, o núcleo da discussão proposta
pelas peças didáticas, ou seja, a questão do Estado e a necessidade das mudanças nas
relações sociais.
Em Zur Theorie des Lehrstücks (Para uma teoria da peça didática), Brecht busca
definir de modo mais preciso a sua intenção a respeito das peças didáticas, quando
orienta, novamente, como elas devem ser representadas:
A peça didática ensina quando nela se atua, não quando
se é espectador. Em princípio, não há necessidade de
espectadores, mas eles podem ser utilizados. A peça
didática baseia-se na expectativa de que o atuante
possa ser influenciado socialmente, levando a cabo
determinadas formas de agir, assumindo determinadas
posturas, reproduzindo determinadas falas. A imitação
de modelos altamente qualificados exerce um papel
importante, assim como a crítica a esses modelos por
meio de alternativas de atuação (improvisação) bem
pensadas. Não é necessário absolutamente que se trate
apenas da reprodução de ações e posturas valorizadas
socialmente como positivas; da reprodução de ações e
posturas associais também se pode esperar efeito
educacional. Padrões estéticos, que são válidos para a
criação de personagens da peça de espetáculo [peça-
épica-para-ser-vista], estão fora de função da peça
didática. Caracteres especialmente singulares, únicos,
não aparecem, salvo se a singularidade e a unicidade
constituírem o problema de aprendizagem. (Apud
KOUDELA, 1991, p. 16, trad. K
OUDELA)
Aqui, o dramaturgo afirma que as peças se efetivam como didáticas quando
nelas se atua e não quando a elas se assiste, embora não exclua a presença de
espectadores, e afirma que é “a imitação de modelos altamente qualificados” que põe
em ação esse modelo de aprendizagem, sendo, contudo, possível criticá-lo por meio de
improvisações. Como aponta Koudela, “a imitação não pode ficar restrita ao modelo
fornecido pelo texto” e a atualização deste só pode se realizar a partir do vínculo que o
atuante estabelece com sua própria experiência, ou melhor, com o seu cotidiano. Sendo
assim, “a aparente contradição entre imitação e crítica se dissolve, se for admitido que
gebräuche welche direkt wieder auf den unterbau einzuwirken bestimmt sind und zwar im hinblick auf
überbau oder die oberbaudinge werden.“
31
toda a imitação pressupõe também uma modificação do modelo. Nesse sentido, a
imitação já contém a crítica” (KOUDELA, 1991, p. 18).
Além disso, os textos das peças didáticas favorecem a alternância entre
identificação e estranhamento pelos atuantes/jogadores/espectadores/leitores, e embora
a regra do estranhamento também valha para a peça didática, a identificação exerce aí
um papel importante, tal como nos mostra Koudela no texto acima mencionado. O
próprio Brecht confessa: “Quando eu, mesmo com a maior boa vontade, já não sabia
mais o que fazer com a identificação, construí a peça didática.” (Apud KOUDELA,
1991,p.105, trad.KOUDELA).
Nesse sentido, quando os atuantes/jogadores/espectadores/leitores
experimentam, através das ações e das relações especulares entre opostos, “o
comportamento negativo, os ‘impulsos associais’, eles conquistam o conhecimento no
sentido de comunidade e coletivo. As ações socialmente ‘úteis’ não são propostas como
modelares em si, mas devem ser conquistadas através da representação do ‘associal’
[...]” (KOUDELA, 1991, p.37).
Aqui vale lembrar ainda a respeito deste apontamento de Brecht em relação à
forma das peças didáticas:
A forma da peça didática é árida, mas apenas para
permitir que trechos de invenção poética e de tipo atual
possam ser introduzidos. (Em Horácios e Curiácios, na
Decisão [A medida] é possível inserir livremente cenas
inteiras, e assim por diante). [...] Na peça didática é
possível uma enorme diversidade. Durante as
apresentações de A peça de Baden-Baden, o autor [ele,
Brecht] e o autor da música ficavam no palco e
interferiam constantemente. O autor do texto indicava
aos clowns, abertamente, o local para as suas
apresentações e, quando a multidão assistiu, com
grande inquietude e aversão, ao filme que mostrava
homens mortos, o autor do texto deu ao locutor a tarefa
de exclamar, no final: “Mais uma vez a observação da
representação da morte (foi) recebida com aversão – e
o filme foi repetido duas vezes.” (Apud KOUDELA,
1991, p. 17, Trad.
KOUDELA)
Além dos textos teóricos, há, ainda, inúmeras anotações sobre cada peça
didática, como se disse anteriormente. Tais anotações referem-se aos comentários,
32
redigidos pelo próprio dramaturgo, após as encenações, acerca de outras possibilidades
para cada texto e sua respectiva representação. O que Brecht postulava, por exemplo,
nas anotações sobre cada peça didática, quer dizer, sobre os Versuche (experimentos),
acabava por concretizar-se em grande parte na encenação de cada uma delas/deles,
encenações montadas e realizadas por estudantes e grupos de amadores, formados,
sobretudo, por trabalhadores.
Cabe observar que há três peças (A medida, Os Horácios e os Curiácios e A exceção
e a regra) deste pequeno grupo que apresentam particularidades, quer dizer não foram
encenadas/testadas, ou o foram em condições específicas, logo após a sua escritura.
Por exemplo, a peça A medida teve sua encenação suspensa pelo veto dos
organizadores do já mencionado Festival de Baden-Baden, porque estes não
concordavam com o modo como, nela, Brecht discutia o aparato do Partido. E as
primeiras anotações sobre A medida surgem motivadas por este controle ou por esta
censura, que leva Brecht a modificar o texto original, cuja versão vem a ser encenada
ainda nesse mesmo ano de 1930, mas em outro lugar e com outros atores, dentre eles, os
que trabalhavam com Brecht naquele período.
A peça didática Os Horácios e os Curiácios, escrita em 1934/35, também não pôde
ser encenada de imediato, porque Brecht já estava no exílio. Sua primeira encenação,
por esse motivo, só vai ocorrer muito tardiamente, em abril de 1957 em Halle, já na
Alemanha Oriental.
Não é propósito deste trabalho discorrer acerca das várias anotações redigidas
sobre todas as peças didáticas, a não ser em relação a A exceção e a regra, objeto deste
estudo.
A data de conclusão de A exceção e a regra é controversa. Conforme Jan Knopf,
A história do surgimento da obra, considerando-se as fontes,
permanece relativamente obscura; não se sabe muito bem se
Brecht começou a escrever a peça em 1930, como lembra
Elisabeth Hauptmann e afirma a primeira impressão,
justamente no período de elaboração de Die Maßnahme (A
Medida) e a transposição de Baal para uma peça didática Der
33
Böse Baal der asoziale (O malvado Baal, o associal), ou se o
texto surgiu em 1931, como é lembrado pelo próprio Brecht
[em uma de suas anotações]. (KNOPF, 1980, p.114, tradução
nossa)
27
.
Levando-se em conta a última data de 1931, a peça, embora publicada em 1937, só
recebe encenação anos mais tarde, isto é, em 1938 e 1947. Entre uma data e outra, ou
seja, entre a escrita e a primeira representação, surgem anotações em 1932, 1934 e 1936,
todas elas antes da publicação e desvinculadas das encenações, o que, de algum modo,
transforma esta peça num caso único dentro do grupo.
A exceção e a regra, a meu ver, conta com dois grandes tipos de anotações
redigidas por Brecht: "anotações informativas" e "anotações aumentativas".
As "anotações informativas" dão conta da data de escritura da peça: 1930 em uma
delas e 1931 em outra, bem como oferecem diretrizes tanto para a compreensão do
próprio conteúdo da peça, quanto para a própria encenação.
Uma das "anotações informativas", não datada pelo dramaturgo, apenas ilustra a
polêmica a respeito da data de escritura da peça, pois nela Brecht afirma que "A exceção
e a regra, uma pequena peça para escolas, é o experimento 24. Ela foi escrita em 1930.
Colaboradores: Elisabeth Huptmann e Emil Buri. Para ela, há uma música de Paul
Dessau." (Apud STEINWEG, 1976a, p. 192, tradução nossa)
28
.
Na outra "anotação informativa" redigida em 1936 e atinente à peça em pauta, há,
por exemplo, a referência a uma outra data de escritura da peça (1931) e um
direcionamento para a compreensão de um eixo temático de A exceção e a regra. Diz o
texto, que surpreendentemente termina em dois pontos:
A peça didática A exceção e a regra foi elaborada no
ano de 1931. Ela deve mostrar como a classe detentora
27
No original: “Die Entstehungsgeschichte des Werks ist aufgrund der Quellenlage relativ dunkel; es
bleibt unklar, ob Brecht das Stück bereits 1930 zu schreiben begonnen hat, wie sich Elisabeth Hauptmann
erinnert und der erste Druck behauptet, und zwar im Zusammenhang mit der Ausarbeitung der
Maßnahme und der Umgießung des Baal in ein Lehrstück (Der böse Baal, der asoziale), oder ob der Text
erst 1931 entstand, wie sich Brecht selbst erinnert (vgl. Steinweg, 31, 38, 66f und 43).
28
No original: „Die Ausnahme und die Regel“, ein kurzes Stück für Schulen, ist der 24 Versuch. Es
wurde 1930 geschrieben. Mitarbeiter: Elisabeth Hauptmann und Emil Burri. Hierzu gibt es eine Musik
von Paul Dessau“. Esta anotação foi elaborada 1956.
34
dos meios de produção impulsiona continuamente a luta
de classes, também lá onde "o proletariado", a classe
em gestação, em grande parte ainda não luta. A classe
detentora dos meios de produção age em todas as
circunstâncias, também como lhe ordena a expectativa
da resistência da classe em gestação. Recomenda-se
deixar um dos dois coros dar um exemplo da História.
Assim, hoje, o coro adequado pode apresentar o que
segue: (Apud STEINWEG, 1976a, p.161, tradução
nossa)
29
Também consta, por exemplo, das "anotações informativas" de 1934 que A
exceção e a regra enforma um tratado sobre as vantagens e desvantagens da
concorrência (Traktat über Vorteile und Nachteile der Konkurrenz).
Já as "anotações aumentativas" exibem trechos que, segundo Brecht, poderão ser
inseridos na peça em pauta. Trata-se de 4 excertos com tamanhos diferenciados. Um
deles, digamos, o primeiro (Brecht não os numera), é identificado como "Tratado sobre
as vantagens e desvantagens da concorrência". Posteriormente, este excerto recebe uma
outra versão, de estrutura e conteúdo muito próximos à primeira, pelo que esta versão
passa a ser, digamos, o segundo excerto, embora sem título. Um outro dos excertos,
considerado, digamos, o terceiro, apresenta um acontecimento, nas palavras de Brecht,
um exemplo da História, que se refere à ascensão de Hitler ao poder, recomendado para
a cena 9. O último excerto, digamos, o quarto, oferece uma série de pequenas
passagens, passíveis de ser inseridas ao longo de toda a peça.
O "Tratado sobre as vantagens e desvantagens da concorrência", considerado
como a primeira "anotação aumentativa", diz o seguinte:
I
tratado sobre as vantagens e desvantagens da concorrência
entre o que fala (para as vantagens) e o coro (para as desvantagens)
II
Vocês ouviram
29
No original: “Das Lehrstück Die Ausnahme und die Regel ist im Jahre 1931 verfasst worden. Es soll
zeigen, wie die aneignende Klasse unablässig den Kassenkampf betreibt, auch da, wo <das Proletariat>
die hervorbringende Klasse zu grossen Teilen noch nicht kämpft. Die aneignende Klasse handelt unter
allen Umständen so, wie es die Erwartung des Widerstandes der hervorbringenden Klasse ihr befiehlt. Es
empfiehlt sich, einen der beiden Chöre ein Beispiel aus der Geschichte angeben zu lassen. So kann heute
etwa der rechte Chor folgendes vortragen:“.
35
agora começa o deserto
os vigias ficam para trás,
a ligação está rompida
< da área <<administrada >> com segurança>
a área protegida acabou
saem dela os indivíduos hesitantes
sob novas leis ainda não conhecidas
<sem recursos, o indivíduo tem que mostrar,
como ele pode se ajudar>
os hábitos serão postos à prova
os costumes terão de se afirmar
tempestades de areia e marés altas testarão
sem piedade as relações das pessoas.
(Apud STEINWEG, 1976a, p.141-141, tradução nossa)
30
Conforme Steinweg, o texto supramencionado recebeu uma correção imediata, feita
no mesmo período do registro da anotação, em que as alterações referem-se,
principalmente, à maneira de representar. Diz a segunda versão, isto é, a segunda
anotação "aumentativa", também elaborada em 1934:
Sobre um comentário musical para A exceção e a
regra
(a ser apresentado: eventualmente um pequeno
coro, que durante a peça se divide em dois coros que
se contrapõem, e um condutor). Por exemplo, no
final da primeira cena, a corrida das duas caravanas
é representada no palco pelos atores (em silêncio). O
condutor e o coro tratam da questão da
concorrência. E de maneira objetiva: desta maneira,
combatendo, vencendo um ao outro, os indivíduos
desta época construíram gigantescas obras, New
York, a nova matemática, os transportes, etc. Esta
construção não era possível de modo diferente (por
ex., de maneira menos crua ou combativa)
No final da segunda cena, quando o comerciante procura os policiais.
Coro:
Vocês ouviram:
agora começa o deserto
os vigias ficam para trás,
30
No original: „I traktat über vorteile und nachteile der konkurrenz zwischen sprecher (für die vorteile)
und chor (für die nachteile) 2 habt ihr gehört/ jetzt beginnt die wüste/die wachen bleiben zurück/die
verbindung ist abgebrochen/ <aus dem <<verwaltet>> gesicherten bezirk>/ der gesicherte bezirk ist zu
ende/ aus ihm treten die vereinzelten zögernd/ unter neue gesetze noch nicht zu kennende/<ohne
hilfsmittel muss der vereinzelte zeigen/ wie er sich helfen kann>/ die gewohnheiten werden erprobt
werden/die gepflogenheiten werden sich bewähren müssen/ sandstürme und hochwässer werden die
beziehungen der menschen/ohne nachsicht prüfen.“
36
a ligação está rompida
a área protegida acabou
<agora, continuem a marchar
dentro da hierarquia habitual>
dela saem os indivíduos hesitantes
sob novas leis, ainda não conhecidas
agora continuem a marchar
dentro da hierarquia habitual
rumo aos costumes das cidades populosas
o senhor e o cule:
os hábitos terão de se afirmar
tempestades de areia e marés altas colocarão as relações das
pessoas sem <piedade à prova> piedade à prova.
31
(Apud S
TEINWEG, 1976a, p. 142-143, tradução nossa)
Desta forma, da idéia inicial do "Tratado", que não apresentava a indicação de
onde poderia ser incluído e nem por quem, nota-se tal indicação na segunda versão, que
marca que o coro deve proferi-lo no final da segunda cena, quando o comerciante
procura os policiais. Há, ainda, a supressão dois versos, presentes na primeira versão:
"<sem recursos, o indivíduo tem que mostrar,/como ele pode se ajudar>", e a inclusão
de outros dois, que são repetidos na segunda versão, que fazem referência à hierarquia
social: "<agora, continuem a marchar/ dentro da hierarquia habitual>".
Além disso, antes de apresentar a segunda versão do "Tratado", o autor menciona
um coro, que, ao longo da peça, deve se dividir em dois, com um condutor, e que tem a
função de ilustrar o combate/duelo, travado na luta da concorrência.
A terceira "anotação aumentativa", elaborada em 1936, apresenta um exemplo da
história, que deveria ser incluído na cena do julgamento, quando, ao ser perguntado pelo
juiz se sofreu prejuízos financeiros com a morte do cule, o comerciante se defende,
dizendo:
31
No original: “Über einen musikalischen Kommentar zu ‚Ausnahme und [die] Regel’ (ausführende:
eventuell kleiner chor, der sich während des stückes in zwei gegenchöre trennt und ein leiter.) beispiel:
gegen schluss der ersten scene wird auf der bühne von den spielern der wettlauf der beiden karawanen
vorgeführt (stumm). dazu behandelt leiter und chor die frage der konkurrenz. und zwar objektiv: auf
solche weise, kämpfend, einander besiegend, bauten die menschen dieser zeit riesige werke auf, newjork,
die neue mathematik, den verkehr usw. dieser aufbau war auf keine andere (zb weniger rohe oder
kriegerische) weise möglich. am schluss der zweiten scene, wenn der kaufmann den polizisten nachsieht:
chor: habt ihr gehört:/ jetzt beginnt die wüste/ die wachen bleiben zurück/ die verbindung ist
abgebrochen/ der gesicherte bezirk ist zu ende < jetzt marschiert weiter/ in der gewohnten rangordnung>
aus ihm treten die vereinzelten zögernd/ unter neue gesetze, noch nicht zu kennende/jetzt marschiert
weiter/in der gewohnten rangordnung /nach den gepflogenheiten der volkreichen städte/ der herr und der
kuli:/die gewohnheiten werden sich bewähren müssen/ sandstürme und hochwässer werden die
beziehungen der/ menschen ohne <nachsieht prüfen> nachsieht prüfen.“
37
O comerciante: eu cito os seguintes exemplos da
história de meu país. Quando Hitler, o grande estadista,
tomou o poder, reinava uma insatisfação profunda nas
baixas camadas populares, junto aos cules de meu país.
Apesar disso, não houve nenhuma rebelião. Em menos
meses do que o necessário para construir uma casa,
Hitler aniquilou o poder do cule, jogando na prisão
todos os seus líderes e suprimindo todos os seus
direitos. Assim, o fato de não terem feito uma rebelião
sangrenta não os levou a serem tratados de maneira
diferente. Sim, ele deixou até mesmo colocarem fogo
em um prédio público e o fato de os líderes das classes
mais baixas não terem incendiado o prédio não os levou
a serem tratados de maneira diferente. Ele fez isso,
porque disse: Já que eles têm fome, eles têm motivo
suficiente para se rebelar, e já que nós somos duros,
eles têm motivo suficiente para fazer uma rebelião
sangrenta. Pode ser que eles não a façam, então, não
teremos rebelião. Isso era sábio. Um ano mais tarde,
foram os outros a ficarem insatisfeitos, aqueles que lhe
tinham garantido o poder, pois as promessas a eles
feitas não foram mantidas. Contudo, antes de se
rebelarem, ele prendeu <os> seus líderes e os fuzilou e
jogou muitos deles na prisão para que uma rebelião
fosse evitada. Ele disse a si mesmo: Não têm eles fome
e não lhes fiz eu promessas? Eles têm motivo para se
rebelarem: quero tratá-los como rebeldes. Isso era
novamente sábio. Ninguém pode proceder de modo
diferente quando ele quer dominar. (Apud S
TEINWEG,
1976a, p. 162, tradução nossa)
32
A quarta "anotação aumentativa" diz respeito aos coros. As várias falas atinentes
a estes coros são reunidas e publicadas em sua totalidade, pela primeira vez, em 1976,
na revista Alternative 107, pertencente à República Democrática Alemã (DDR). No
mesmo ano, elas são parafraseadas pela segunda edição do estudo de Steinweg, Das
Lehrstück- Brechts Theorie einer politisch-ästhetischen Erziehung ( A peça didática-
Teoria brechtiana de uma educação político-estética) e, anos mais tarde, apenas alguns
trechos destes textos para os coros são reeditados no estudo Große Kommentierte
32
No original: “Der Kaufmann: Ich führe folgende beispiele aus der geschichte meines landes an. als der
große staatsmann hitler die macht ergriff, herrschte gerade eine tiefe unzufriedenheit in den unteren
volksschichten, bei den kulis meines landes. trotzdem kam es zu keinem aufruhr. in weniger monaten als
nötig sind, ein haus aufzubauen, vernichtete hitler die macht des kulis, indem er alle ihre führer ins
gefängnis warf und alle ihre rechte aufhob. so behandelte er sie nicht anders, als wenn sie einen blutigen
aufruhr gemacht hätten. ja, er ließ sogar ein öffentliches gebäude in brand setzen und behandelte die
führer der unteren schichten nicht anders, als wenn sie es in brand gesetzt hätten. dies tat er, weil er
sagte: da sie hungern, haben sie genug grund zum aufruhr und da wir hart sind, haben sie genug grund zu
einem blutigen aufruhr. es kann sein, dass sie ihn nicht durchführen, dann werden wir keinen aufruhr
haben. das war weise. ein jahr später wurden diejenigen unzufrieden, welche ihm die macht verschafft
hatten, denn die versprechungen waren ihnen nicht gehalten worden. bevor sie jedoch aufruhr machten,
ließ er <sie> ihre führer gefangen setzen und erschießen und warf viele von ihnen ins gefängnis, sodass
ein aufruhr vermieden wurde. er sagte sich: haben sie nicht hunger und wurden ihnen nicht von mir
versprechungen gemacht? sie haben grund zum aufruhr. ich will sie als aufrührer behandeln. das war
wieder weise. niemand kann anders verfahren, wenn er herrschen will.“
38
Berliner und Frankfurter Ausgabe – Stücke 3 (Grande edição comentada de Berlim e
Frankfurt – Peças 3).Embora estes textos para os coros, segundo o estudo mencionado,
tenham sido elaborados em 1934
33
e estivessem presentes na versão preparada por
Brecht para a primeira publicação da peça, esta não as manteve e só apresenta a versão
conhecida e considerada, nos dias de hoje, como definitiva, ou seja, não foram
incluídas em nenhuma edição publicada, a saber:
O texto da 1ª publicação (1937), veiculado na revista Internationale Literatur.
Deutsche Blätter. (Literatura Internacional. Folhas alemãs), na cidade de Moscou;
O texto da 2ª publicação (1938), inserido no segundo volume das Obras reunidas
(Gesammelte Werke) de Bertolt Brecht, publicadas em Londres pela editora Malik;
O texto da 3ª publicação (1950), na verdade, uma reedição no caderno 10 dos
Experimentos (Versuche) pela editora Suhrkamp.
Porém, conforme os comentadores da obra Große Kommentierte Berliner und
Frankfurter Ausgabe – Stücke 3 (Grande edição comentada de Berlim e Frankfurt –
Peças 3), Hecht et.al., até 1956, ano da morte de Brecht, as versões publicadas desta
obra apresentam insignificantes mudanças que, segundo eles, seriam apenas de caráter
estilístico
34
, não interferindo, portanto, na versão de 1937, que é a conhecida nos dias de
hoje.
Observe-se ainda o fato de que a peça foi encenada entre as publicações. Em 1938,
na Palestina, e em 1947, volta ao palco na zona de ocupação francesa, na Alemanha.
Tais encenações, porém, não contam com o acompanhamento ou a colaboração do
autor, ou seja, Brecht não redige anotações, quer dizer, não elabora os coros em função
das encenações, como fez, por exemplo, com as peças didáticas, elaboradas no final dos
anos 20.
33
Nota-se outra polêmica de datas em relação à elaboração destas passagens do coro, pois os
organizadores do estudo Große kommentierte... afirmam que elas foram feitas em 1934, Steinweg, em seu
estudo de 1972, Das Lehrstück...indica que elas foram elaboradas em 1932 e corrige esta informação no
estudo que organiza em 1976, Brechts Modell der Lehrstücke....., dizendo que a data provável seria 1936,
tendo em vista que Brecht preparava o texto para publicação, mas a revista Alternative, onde estes trechos
foram publicados na íntegra, aponta o ano 1932.
34
No original: Die Drücke zu Brechts Lebenszeit zeigen nur unerhebliche – meist kleine stilistische –
Veränderungen. p. 473
39
Em uma carta escrita em 21 de abril de 1956, respondendo ao pedido de permissão
de Paul Patera, diretor do Palco de estudantes (Studentenbühne) da Suécia, para
encenar A medida, Brecht distingue A exceção e a regra, afirmando:
A medida não foi escrita para espectadores, mas sim
para a instrução de atuantes. Por experiência,
encenações diante de público não suscitam nada a não
ser afetações morais no público, geralmente de tipo
menor. Por isso, há muito tempo não libero a peça para
apresentações. Para o ensinamento em teatros não-
profissionais, a pequena peça A exceção e a regra é
muito mais adequada. (Apud STEINWEG, 1976a, p.
197, tradução nossa)
35
A particularidade desta peça faz com que alguns críticos (Hecht, Knopf,
Mittenzwei e Müller) afirmem que ela tenha permanecido como um tipo híbrido (eine
Art Zwitter) e que, conforme Knopf, pode ser transformada de maneira relativamente
simples em uma peça de época ("Zeitstück") ou em uma parábola para os palcos
("Bühnenparabel"). Se aqui fosse empregada a classificação de Steinweg, feita a partir
da premissa de que a peça didática só se "efetiva" enquanto é representada, certamente
ela seria designada como uma episches Schaustück (peça-épica-para-ser-vista), já que
ela não foi "experimentada" e teve sua primeira encenação apenas em 1938, longe do
dramaturgo.
De posse dos textos teóricos e das anotações de Brecht para A exceção e a regra,
parte-se, neste trabalho, da proposição de que este drama épico, assim como as outras
peças didáticas, também é um “modelo de ação”, que visa ao interesse do Estado, e
35
No original: “Die Massnahme ist nicht für Zuschauer geschrieben worden, sondern für die Belehrung
der Aufführenden. Aufführungen vor Publikum rufen erfahrungsgemäß nichts als moralische Affekte für
gewöhnlich minderer Art beim Publikum hervor. Ich gebe daher das Stück seit langem nicht für
Aufführungen frei. Viel besser eignet sich das kleine Stück‚ ‚Die Ausnahme und die Regel’ für
Einstudierungen für unprofissionelle Theater.“ Torna-se necessário contextualizar esta citação. Conforme
alguns críticos, Brecht queria preservar a peça A medida, ou seja, desconfiava que o diretor sueco,
naquele momento, pudesse usá-la como propaganda anticomunista, como, de fato, após a morte de
Brecht, a usou. Por isso, o dramaturgo não autorizou a utilização da peça e sugeriu outra didática. A
citação é apresentada como diferenciadora dos dois textos, tendo em vista que, se o dramaturgo afirmou
em seus textos teóricos que as peças didáticas – e aqui entendo que ele se referia a todas - foram
elaboradas para o ensinamento de atuantes, que eram, por sua vez, trabalhadores, estudantes, ou seja,
grupos amadores –e, pelas circunstâncias, teve que sugerir outra para preservar A medida, vale enfatizar
que dentre todas, ele sugere A exceção e a regra, uma peça que não havia sido “experimentada” ou
testada por ele, em lugar de qualquer outra, que já tivesse sido colocada “à prova” pelo dramaturgo.
40
pretende-se, na leitura aqui realizada, indicar aspectos de um modo de como esse
modelo poderá funcionar. Cabe, ainda, lembrar que os excertos apresentados nesta parte
do estudo, ou seja, as passagens dos coros, publicados depois da morte do autor, servem
como acessórios à análise proposta.
41
CAPÍTULO II
A Condição Humana
"dentro dos coletivos que crescem
ocorre a desintegração do indivíduo"
(BRECHT, Apud STEINWEG, 1976a, p.96)
42
„Der kranke Mann stirbt und der starke Mann ficht“
O homem doente morre, e o homem forte luta
(BRECHT, 1967, p. 802)
36
Os personagens em conjunto
Da peça A exceção e a regra participam onze pessoas (Personen), assim
nomeadas por Brecht na primeira página do texto da peça. (nas traduções, tanto
portuguesa quanto brasileira, no entanto, a palavra Personen está traduzida por
“personagens”). Segue-se a este elenco um prólogo antecedido pelo título em
maiúsculas “ATORES” (SPIELER). Trata-se, como se vê, de um terminus que se move
entre texto escrito e espetáculo experimental, pois há a pressuposição de que as
pessoas/os atores, ao subirem ao palco, coloquem suas máscaras/personae. Mas isto é
um problema de encenação. Como na introdução deste trabalho se optou por restringir a
análise da peça ao texto escrito, parece mais coerente que, nesta dissertação, se use o
terminus “personagem”, sempre que se tratar das figuras humanas
apresentadas/representadas na peça: um comerciante, chamado Karl Langmann, um
guia e um cule, dois empregados do comerciante, dois policiais, um taberneiro, um juiz,
a mulher do cule, o guia da segunda caravana e 2 juízes adjuntos. O comerciante, o guia
e o cule fazem uma viagem à cidade de Urga em busca de petróleo, único motivo de tal
empreendimento. No meio do caminho, na Estação Han, o comerciante demite o guia
por aparente incompetência, e segue viagem apenas com o cule pelo deserto inabitado
de Jahí. O cule é, então, obrigado a assumir a tarefa do demitido, isto é, a guiar o
comerciante, embora não saiba o caminho, acumulando, assim, duas funções: a do outro
empregado e a própria. A certa altura da viagem, o comerciante mata-o, pois acredita
que o cule iria atacá-lo com uma pedra, quando, de fato, o carregador apenas se
preparava para lhe oferecer uma garrafa com água. A viúva do cule leva o comerciante a
julgamento por assassinato, mas o juiz sugere que o comerciante agiu em legítima
defesa, tendo em vista a sua classe social, ou seja, nas palavras do juiz, ele “pertencia a
uma classe social que tinha motivos para ser ameaçado ou para se sentir ameaçado”
diante de uma classe social “inferior”, à qual o cule pertencia. O juiz absolve o
comerciante e não concede indenização à mulher do cule.
36
Todas as citações que serão feitas, neste trabalho, da peça didática A Exceção e a Regra foram retiradas
da Gesammelte Werke, Vl.II. Frankfurt am Main, Suhrkamp Verlag, 1967, p.791-822, e todas contam
com a nossa tradução, exceto o prólogo.
43
Todos os personagens de A exceção e a regra surgem juntos na primeira página
da peça a declamar um texto que funciona à maneira de um prólogo e de um coro, a
anunciar uma das temáticas a serem tratadas, isto é, as aparências enganam, uma
temática já sugerida no próprio título da peça, a contornar e a dirigir o horizonte de
expectativas dos leitores, através de um processo de agudização do intelecto.
Agora vamos contar a história de uma viagem feita por
dois explorados e por um explorador. Vejam bem o
procedimento dessa gente. Estranhável conquanto não
pareça estranho. Difícil de explicar, embora tão comum.
Difícil de entender, embora seja a regra. Até o mínimo
gesto, simples na aparência, olhem desconfiados.
Perguntem se é necessário, a começar do mais comum. E,
por favor, não achem natural o que acontece e torna a
acontecer. Não se deve dizer que nada é natural. Numa
época de confusão e sangue, desordem ordenada, arbítrio
propositado, humanidade desumanizada, não se considere
nada como sendo imutável.(B
RECHT, 1967, p 793, Trad.
SCHWARZ).
37
A presença do prólogo numa peça de teatro é marca distintiva das tragédias
gregas, um texto introdutório, em geral dito por uma só pessoa, anunciando o tema a ser
tratado. Contudo, nesta peça didática de Brecht, o texto do prólogo, ao ser dito pelos
personagens, acumula para além da função introdutória, também a função de um coro.
O coro, na tragédia grega, tinha, em geral, por funções precípuas dar forma a um
personagem coletivo, que representava a polis, a opinião, a voz da população, que
emitia os seus comentários, as suas opiniões, em relação ao desenrolar da peça, ou seja,
era através do coro que os conflitos individuais ecoavam no grupo, no povo, ampliando
desta forma o alcance do raio da ação dramática. Nesta peça de Brecht, ao se
sobreporem num mesmo texto o prólogo e o coro, poder-se-ia interpretar a estratégia
brechtiana, primeiro, como uma técnica de distanciamento a apontar para a cultura da
Antigüidade clássica, depois, como um modo de colocar a voz do povo, não como
tradicionalmente moderadora da ação e dos conflitos, mas como desconstrutora do
status quo. Observe-se que, desde o começo, o comerciante é logo identificado pelo
coro como explorador e seus dois empregados como explorados.
37
No original: “Wir berichten euch sogleich/ Die Geschichte einer Reise. Ein Ausbeuter/Und zwei
Ausgebeutete unternehmen sie./Betrachtet genau das Verhalten dieser Leute:/ Findet es befremdend,
wenn auch nicht fremd/ Unerklärlich, wenn auch die Regel./Selbst die kleinste Handlung, scheinbar
einfach/Betrachtet mit Misstrauen! Untersucht, ob es nötig ist/Besonders das Übliche!/Wir bitten euch
ausdrücklich, findet/ Das immerfort Vorkommende nicht natürlich!/Denn nichts werde natürlich
genannt/In solcher Zeit blutiger Verwirrung/ Verordneter Unordnung, planmäßiger Willkür/
Entmenschter Menschheit, damit nichts/ Unveränderlich gelte.“
44
Deve-se ainda considerar no texto deste prólogo um substrato religioso evocado
pela sua estrutura que, pela leitura que apresento, se assemelha à de um salmo, um
substrato religioso que, sem dúvida, também empresta ao prólogo e, por extensão, à
peça uma aura de estranheza e de distanciamento, que se sobrepõe à já existente e a
reforça.
Mas, em simultâneo, este substrato de teor sacro instaura no texto uma tensão
irônica, que se desdobra em ambigüidade, entre os dois níveis textuais apontados: o do
estímulo à agudeza intelectual, que visa à desconstrução do status quo e o outro, de
aura solene, que remete à ideologia teológica. É como se Brecht aludisse a argumentos
de autoridade para legitimar uma revolução na maneira de percepção do mundo.
Quando discorre sobre o seu fazer poético, em seu Diário de Trabalho
38
, Brecht
declara: “Depois escrevi versos não rimados de ritmos irregulares. Comecei, creio, a
usá-los nas minhas peças. Há, porém, poemas que datam mais ou menos do tempo de O
livro de devoção caseira, os salmos, que eu costumava cantar ao violão e que servem
do mesmo jeito.” (BRECHT, 2002, p. 10-11, Trad. Guarany & Laurenio de Melo).
Embora, tradicionalmente, os salmos sejam associados aos cânticos compostos e
cantados pelos reis David e Salomão do Antigo Testamento, Robert Alter, em
Salmos”, afirma que
Embora a tradição incorporada em I e II Samuel de fato conceba
o rei Davi como poeta e guerreiro, os estudiosos desde há muito
tempo concluíram que o sobrescrito ‘um salmo de Davi’, que
encabeça muitos dos poemas, é obra de um editor tardio, como o
são as atribuições de outros salmos a Asafe, Etam, o Ezraíta, e
assim por diante. De fato, não está absolutamente claro que esses
sobrescritos se destinavam a afirmar autoria, pois a partícula
hebraica le em tais fórmulas, geralmente traduzida como “de”,
não implica necessariamente um ‘por’ autoral e poderia, pelo
contrário, indicar ‘à maneira de’, ‘segundo o padrão de’, ou às
vezes ‘para o uso de’.(ALTER, 1997, p. 264)
O estudioso também sugere que os salmos têm sua origem em uma forma
poética popular no antigo Oriente Médio, que são um veículo acessível a todos para
expressar gratidão a Deus ou para traduzir súplicas, que são um lamento poético de
sofrimento ao Senhor em tempos de “necessidade crítica” e referem-se freqüentemente
38
BRECHT, Bertolt. Diário de Trabalho. Volume I- 1938- 1941. (Org.) Werner Hecht. Tradução de
Reinaldo Guarany e José Laurenio de Melo.Rio de janeiro, Rocco, 2002.
45
a inimigos, que podem ser adversários militares reais ou vagos sorrateiros, tramando
alguma coisa contra o recitador, ou, ainda, detratores malignos que seriam levados em
triunfo caso ele sucumbisse à doença física
39
. As súplicas dividem-se em: súplicas
individuais, como as súplicas a Deus na agonia física, e as súplicas coletivas, que são
pedidos de ajuda em tempos de fome, epidemia, sítio ou exílio. Há, ainda, os salmos de
sabedoria, salmos monárquicos, salmos históricos, os cantos de peregrino e salmos de
instrução.
Afirma Alter que o equívoco crítico-formal mais difundido sobre este gênero é a
noção de que o gênero, com exceção do tipo misto ocasional, é uma entidade fixa. Alter
indica que há uma boa dose de remodelação de gênero na coleção, ainda que se possa
notar a recorrência de certas “convenções”.
Conforme o estudioso, algumas convenções presentes nos salmos são: o uso de
verbos no imperativo; o efeito de encerramento antitético; a interrupção na estrutura, no
tema e dispositivos formulares - tipo de forma verbal -, que pode alterar, por exemplo,
um salmo que se inicia como uma súplica, para um salmo de ação de graças, como é o
caso do salmo 13, exemplo dado pelo estudioso, que no último verso reconfigura a
característica de súplica para a de ação de graças. Quando os tipos são misturados, do
início ao final do poema, o procedimento empregado pelo salmista é o de um reforço
mútuo de ênfases temáticas. Há, ainda, exemplos de expansão dos limites de gênero nos
salmos, que incluem um deslocamento ou reordenação dos temas esperados. Sendo
assim, os salmos não podem ser considerados estruturas fechadas, pelo contrário, os
salmos são um ponto de partida para a inovação poética.
Em relação ao estilo, o estudioso indica que é comum o uso de imagens de
animais, frequentemente feras predadoras, usadas para representar situações de
violência. Além disso, a poesia bíblica é caracterizada por uma intensificação ou
desenvolvimento narrativo dentro de um verso, sendo que, muitas vezes, esse
movimento “horizontal” é, então, projetado para baixo em movimento de focalização
“vertical”, por meio de uma seqüência de linhas ou mesmo por meio de um poema
inteiro, tornando-a dinâmica e movendo-se em direção a algum clímax. É possível,
39
ALTER, Robert & KERMODE, Frank (orgs.). “Salmos“. In: ALTER, Robert & KERMODE, Frank (orgs.).
Guia Literário da bíblia. Trad. Raul Fiker, 1997, p. 263-282.
46
ainda, notar que há uma “simplicidade” na linguagem dos salmos, que está na
capacidade dos poetas, seguros da tradição, de recorrer à imagem arquetípica, de abusar
do poder de repetição, e quando a ocasião exige, substituir a linguagem figurada pela
asserção literal.
Em relação à estrutura, há uma predileção geral pelas chamadas estruturas
envolventes, nas quais a conclusão de alguma forma ecoa em termos ou frases inteiras
desde o princípio, o que leva alguns poemas a formas equilibradas fechadas. As duas
estruturas mais comuns de poesia sálmica são o movimento de intensificação de
imagens, conceitos e temas ao longo de uma seqüência de linhas e o movimento
narrativo – que, comumente, utiliza metáforas. Além disso, a poesia sálmica (bíblica)
apresenta paralelismos que podem ser sinonímicos, antitéticos, semânticos e
culminantes, além de apresentar repetições e/ou retomada de temas.
O prólogo, onde os personagens introduzem e mencionam pela primeira vez as
figuras que participam da história, e o epílogo, onde eles se despedem em exortação,
(abordar-se-á os dois conjuntamente) assemelham-se aos salmos pela sua estrutura
“envolvente”, pelo caráter instrutivo, pelo uso de antíteses e pelo caráter de súplica. O
caráter instrutivo aproxima-os das exortações, porque apresentam muitos verbos no
imperativo que denotam conselho ou, ainda, advertem o leitor diante da história que
irão ver/ler, para que estes possam, por si, tomar uma decisão de acordo com a sua
própria consciência, e os verbos no imperativo podem, ainda, caracterizá-los como uma
súplica.
No prólogo, por exemplo, esses verbos são betrachtet (observem) e findet
(encontrem). Há, ainda, contraposições/ antíteses feitas em cada verso, ora por um
verbo adjetivado, befremdend (estranho), seguido a uma construção sintática que o
afirma negando, wenn...nicht (quando...não), ora pela alteração morfossintática na
apresentação de um substantivo com um sufixo de negação “un”- unerklärlich
(inexplicável), unverständlich (incompreensível), que se contrapõe à construção
sintática wenn...auch (mas...também); há, ainda, a contraposição de substantivos com
significados opostos, como, por exemplo, Verordneter Unordnung (desordem
ordenada) e Entmenschter Menschheit (humanidade desumanizada).
47
Os verbos no imperativo betrachtet e findet, que traduzem aqui pedido e
instrução, direcionam o campo de expectativas do leitor para uma temática previamente
escolhida. Ao mesmo tempo em que o dramaturgo propõe um leque de reflexões e
posicionamento crítico, o faz em parâmetro pré-determinado.
As antíteses são figuras de retórica que têm por objetivo opor dois elementos
contrários entre si, a fim de se evidenciar o poder das duas partes ou das coisas em
causa, confluindo numa idéia construída a partir de extremos. As duas partes em
confronto assumem o relevo em virtude da sua junção, sem a qual perderiam toda a
ênfase. A meu ver, no texto brechtiano, elas têm como função desconstruir de forma
radical uma possível maneira automatizada de pensar o mundo (efeito de
estranhamento), e, ao fazer isso, preparar o leitor para a abertura de um novo horizonte
na apreensão do real, feita a partir da leitura do texto.
Os salmos estão presentes na obra do dramaturgo desde os tempos de Augsburg,
em que ele reuniu uma coletânea de textos sob o título Psalm im Frühjahr (Salmos de
juventude), seleta composta por dez poesias em prosa . Em 1927 é lançada a coletânea
Bertolt Brechts Hauspostille. Conforme Bach e Galle (1989, p.343) “A designação
‘Hauspostille’ [Livros de devoção caseira] remonta aos sermões coligidos de Martinho
Lutero, dedicados à edificação doméstica dos fiéis, que foram publicados como ‘Livros
de devoção caseira’ e da igreja em 1527, exatos 400 anos antes.”
40
Sendo assim, por
detrás do prólogo, ecoam as seguintes palavras do salmo 78
41
da Bíblia de Lutero:
Uma instrução de Asafe. Ouça, meu povo, minha lei; preste
atenção ao discurso de minha boca!/Eu quero abrir minha boca
para pronunciar as sentenças e as velhas histórias, que nós
ouvimos e sabemos, que nossos pais nos contaram,/ e que nós
não devemos calar diante das nossas crianças e das crianças da
geração futura, e proclamamos a glória do Senhor, seu poder e
os milagres que Ele fez./ Ele deu um testemunho em Jacó e
estabeleceu uma lei em Israel. Ele pediu para que os pais
ensinassem aos filhos, aos filhos que iam nascer, à geração
seguinte que aprendesse: / Quando se levantassem, que
40
No original: „Die Bezeichnung „Hauspostille“ geht auf Martin Luthers, zur häuslichen Erbauung der
Gläubigen gesammelte Predigten zurück, die 1527, genau 400 Jahre vor, als Kirchen – und Hauspostille
herausgegeben wurden.“ Tradução nossa.
41
A versão luterana da Bíblia que utilizo é uma edição de 1912, a mais próxima que encontrei dos
escritos de Brecht no período da República de Weimar. Todos os salmos apresentados neste trabalho são
retirados desta versão, disponível em <http://www.bibel-online.net/buch/19.psalmen/1.html
> Acesso em
04.12.2008. Die Luther-Bibel. Originalausgabe 1545 und revidierte Fassung 1912. Digitale Bibliothek,
Bd. 29. München: Directmedia Publishing 2000.
48
transmitissem às suas criaas, que colocassem confiança e
sua esperança em Deus e não se esquecessem dos feitos de
Deus e mantivessem suas preces/ e não fosse como seus pais,
um tipo rebelde e monstruoso, que quase não tinha coração e
cujo espírito não confiava em Deus/ como os filhos de
Ephraim, que temeram energicamente o arco, e que caíram em
tempos de guerra./ Eles não mantiveram a ligação com Deus e
não queriam seguir a sua Lei/ e esqueceram de seus feitos e
milagres, que Ele lhes tinha mostrado.[...]
42
(LUTERO, 1912,
tradução nossa).
A aproximação entre este salmo e o prólogo, que cria estranheza e
distanciamento, como se disse acima, dá-se pelo tom de conselho, pelo pedido de
atenção do público ao que será contado, pelo caráter instrutivo e pela menção às
“velhas histórias”, ou seja, “antigas histórias”, usadas com um dos principais pilares da
dramaturgia brechtiana
43
. Assim como apresentado no prólogo em que os personagens
pedem atenção para “a história de uma viagem feita por dois explorados e um
explorador”, assim no salmo, o salmista pede atenção ao povo para que ouça “ao
discurso de [sua] boca”, pois ele quer “pronunciar as sentenças e velhas/antigas
histórias, que nós ouvimos e sabemos, que nossos pais nos contaram [...]”. Assim como
no prólogo os personagens pedem atenção ao público para que veja “o procedimento
dessa gente”, que é “difícil de entender, embora seja a regra”, assim no salmo, o
salmista também pede atenção para o testemunho de Deus a Jacó e o estabelecimento
da Lei em Israel. Assim como no prólogo as vozes dos personagens instruem para que o
público “pergunte” e “não ache natural o que acontece e torna a acontecer” e que não
considere os fatos como imutáveis, assim no salmo o salmista instrui ao povo para que
os pais ensinem aos filhos, aos filhos que irão nascer, à geração seguinte: “que
transmit[am] às suas crianças, que colo[quem] a sua confiança e sua esperança em Deus
42
No original: “Eine Unterweisung Asaphs. Höre, mein Volk, mein Gesetz; neigt eure Ohren zu der Rede
meines Mundes!/ Ich will meinen Mund auftun zu Sprüchen und alte Geschichten aussprechen,/ die wir
gehört haben und wissen und unsre Väter uns erzählt haben,/ daß wir's nicht verhalten sollten ihren
Kindern, die hernach kommen, und verkündigten den Ruhm des HERRN und seine Macht und seine
Wunder, die er getan hat./ Er richtete ein Zeugnis auf in Jakob und gab ein Gesetz in Israel, das er unsern
Vätern gebot zu lehren ihre Kinder,/ auf daß es die Nachkommen lernten und die Kinder, die noch sollten
geboren werden; wenn sie aufkämen, daß sie es auch ihren Kinder verkündigten,/ daß sie setzten auf Gott
ihre Hoffnung und nicht vergäßen der Taten Gottes und seine Gebote hielten/ und nicht würden wie ihre
Väter, eine abtrünnige und ungehorsame Art, welchen ihr Herz nicht fest war und ihr Geist nicht treulich
hielt an Gott,/ wie die Kinder Ephraim, die geharnischt den Bogen führten, abfielen zur Zeit des Streits./
Sie hielten den Bund Gottes nicht und wollten nicht in seinem Gesetz wandeln/ und vergaßen seiner
Taten und seiner Wunder, die er ihnen erzeigt hatte[…].“
43
Cabe lembrar que em seu “Pequeno Organon para o teatro”, Brecht afirma: “E a fábula é, segundo
Aristóteles – e nesse ponto pensamos identicamente -, a alma do drama!. BRECHT. Bertolt. Estudos
sobre Teatro. (Trad. Fiama Pais de Brandão). Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2005. p. 131. No original: :
Und die Fabel ist nach Aristoteles – und wir denken gleich- die Seele des Dramas“. GW, Band 16, S. 667.
49
e não se esque[çam] dos feitos de Deus e mant[enham] suas preces, e que não fosse[m]
como seus pais, um tipo rebelde e monstruoso, que quase não tinha coração e cujo
espírito não confiava em Deus/ como os filhos de Ephraim, que temeram energicamente
o arco, e que caíram em tempos de guerra.”
Da semelhança entre o prólogo e o salmo 78, destaco o seguinte ponto: a
menção ao uso das velhas histórias como maneira de ensinamento às crianças e à nova
geração, que é dado pelo próprio título do salmo, “uma instrução” (Eine Unterweisung).
O salmista evoca de modo vago essas “velhas histórias”, que poderão ensinar às
crianças a não cometerem os erros dos seus pais, dos seus antecessores. No prólogo
brechtiano, os personagens também anunciam que uma história será contada, pedem
atenção, aconselham e instruem o leitor para o procedimento dos personagens. Esta
história, uma velha história, surge implícita no quadro nove, “Julgamento”, na imagem
do lobo bebendo água, a ser tratada no terceiro capítulo desta dissertação.
Assim como o salmo 78 alude a passar ensinamentos através de “velhas
histórias” à nova geração, para que esta não cometa os erros de seus pais, Brecht, ao
fazer o mesmo, atualiza-lhes o sentido ao historicizá-las, mostrando “os
acontecimentos históricos como acontecimentos únicos, transitórios, vinculados a
épocas determinadas. O comportamento das personagens dentro destes acontecimentos
não é pura e simplesmente, um comportamento humano e imutável, mas é revestido de
particularidades. Este comportamento apresenta, no decurso da história, formas
ultrapassadas e ultrapassáveis, e está sempre sujeito à crítica da época subseqüente.,
crítica feita segundo as perspectivas desta. Esta evolução permanente distancia-nos dos
comportamentos dos nossos predecessores”
44
.
A tensão irônica, antes mencionada, que se desdobra em ambigüidade, entre os
dois níveis textuais apontados: o do estímulo à agudeza intelectual, que visa à
desconstrução do status quo e o outro, de aura solene, mas relacionado à ideologia
44
BRECHT, Bertolt. Escritos sobre teatro. (Trad. Fiama Pais de Brandão). Rio de Janeiro, Nova
Fronteira, 2005. p. 109-110.No original: “Wir kommen hiermit zum einem Entscheidung Technikum, der
Historisierung. Der Schauspieler muß die Vorgänge sind einmalige, vorübergehende, mit bestimmten
Epochen verbundene Vorgänge. Das Verhalten der Personen in ihnen ist nicht ein schlechthin
menschliches, unwandelbares, es hat bestimmte Besonderheit, es hat durch den Gang der Geschichte
überholtes und Überholbares und ist der Kritik vom Standpunkt der jeweilig darauffolgenden Epoche aus
unterworfen. Die ständige Entwicklung entfremdet uns das Verhalten der vor uns Geborenen.“ GW. B.16,
S. 347.
50
teológica, é perceptível, por exemplo, quando se comparam os seguintes versos do
salmo e do prólogo: “Quando se levantassem, que transmitissem às suas crianças, que
colocassem confiança e sua esperança em Deus e não se esquecessem dos feitos de
Deus e mantivessem suas preces”
45
e “Observem a relação destas pessoas [...]
Observem com desconfiança”.
46
Embora o dramaturgo use a instrução e a súplica, ele
aconselha o inverso do que é pregado no salmo, ou seja, em vez de confiança, a
desconfiança. Esta instrução/súplica, que é apresentada antes da história efetivamente
se iniciar, coaduna-se com uma das principais linhas que desencadeiam o conflito do
enredo, ou seja, a desconfiança permanente do comerciante diante da iminência de um
inimigo. Ao pedir para que o leitor observe com desconfiança as relações entre as
pessoas, isto é, entre um explorador e dois explorados, o dramaturgo efetiva através da
paródia o distanciamento propício à análise crítica destas relações por parte dos leitores,
e contextualiza a “desconfiança” nas “circunstâncias dadas” no prólogo, isto é “Numa
época de confusão e sangue, desordem ordenada, arbítrio propositado, humanidade
desumanizada [...]”.
Esta instrução, quer dizer, o “observar com desconfiança” implícito no emprego
do substrato sálmico, sobreposto à camada textual dramática, faz sobressair, no prólogo
de A exceção e a regra, o cerne do teatro brechtiano, isto é, o
distanciamento/estranhamento. E muitos críticos, entre eles Schwarz, Wekwerth,
Jameson, já apontaram o prólogo desta peça como a ilustração par excellence da teoria
e práxis brechtiana.
As antíteses evocadas no prólogo, bem como o seu caráter instrutivo e de
súplica são mantidos no epílogo, conforme segue:
Assim termina,
A História de uma viagem.
Vocês viram e ouviram.
Vocês viram o que é comum, o que sempre torna a acontecer.
Mas nós pedimos a vocês:
No que não é estranho, encontrem o estranho!
45
“[…]wenn sie aufkämen, daß sie es auch ihren Kinder verkündigten,/ daß sie setzten auf Gott ihre
Hoffnung und nicht vergäßen der Taten Gottes und seine Gebote hielten[…]“ Salmo 78. IN: Die Luther-
Bibel. Originalausgabe 1545 und revidierte Fassung 1912. Digitale Bibliothek, Bd. 29
. München:
Directmedia Publishing 2000. Tradução nossa
46
“Betrachtet genau das Verhalten dieser Leute [...] Betrachtet mit Misstrauen”. BRECHT, Bertolt.
Gesammelte Werke. Frankfurt a. Main, Suhrkamp, 1967, Vol. 2, p. 794.
51
No que é comum, encontrem o inexplicável!
Com o que é normal, vocês devem se espantar.
O que á a Regra, reconheçam como abuso
E onde vocês reconhecerem o abuso,
Busquem remediar!
47
(BRECHT, 1967, p.
822, nossa tradução)
As antíteses e o caráter instrutivo e de súplica aparecem agora na retomada do
verbo findet (encontrem), assim como de sua repetição e a do verbo soll (deve, no
sentido de conselho), schafft Abhilfe (remedieis) e erkennt (reconheçam). Embora estes
verbos estejam no imperativo, são apresentados de maneira invertida à indicada no
prólogo, pois, no epílogo, os versos não começam com um verbo no imperativo, mas
partem dos fatos que os leitores/espectadores viram e ouviram para, então, poderem
apresentar o conselho que se contrapõe a esses fatos. Isso acontece nas estruturas:
was....nicht ist, findet + adjetivo (o que não é..., achem) +adjetivo ; was...ist, findet.....(o
que é, achem...)+ adjetivo com sufixo un, que o nega. Vale, ainda, indicar a recorrência
de duas frases que são Wir bitten euch (nós pedimos a vocês) e das immerfort
Vorkommende (o que sempre torna a acontecer), que são empregadas com a mesma
inversão, pois enquanto no prólogo, os personagens pedem aos leitores que não achem
natural o que sempre torna a acontecer, no epílogo, os personagens partem do que eles
leram [viram e ouviram], ou seja, daquilo “que sempre torna a acontecer” para fazerem
o pedido.
É evidente que, em semelhança à estrutura sálmica, o epílogo remete ao
prólogo, mas o que poderia parecer o fecho de um círculo, não o é. Ao contrário, este
epílogo é um reforço do prólogo e do leque de reflexões deixado em aberto a ser
realizado pelo leitor.
47
No original: “So endet/Die Geschichte einer Reise./ Ihr habt gehört und ihr habt gesehen./ Ihr saht das
Übliche, das immerfort Vorkommende./ Wir bitten euch aber:/ Was nicht fremd ist, findet befremdlich!/
Was gewöhnlich ist, findet unerklärlich! Was da üblich ist, das soll euch erstaunen./ Was die Regel ist,
das erkennt als Missbrauch/ Und wo ihr den Mißbrauch erkennt habt/ Da schafft Abhilfe!
52
O comerciante
O comerciante, personagem principal de A exceção e a regra, apresenta-se
dizendo o próprio nome -Karl Langmann-, e informa que viaja para Urga em busca de
uma concessão de petróleo. Observe-se que ele é o único que possui um nome na peça e
que o seu papel social vem antes desse nome, ou seja, ele não é simplesmente Karl
Langmann, mas o comerciante Karl Langmann. O seu nome, ou melhor, sobrenome,
embora raramente mencionado na peça, pode indicar a referência a um homem que
alcança tudo, pois a justaposição de lang (longo) a Mann (homem), sugere tal
interpretação, o que se constitui em ironia, pois, como se sabe, no final da peça, ele não
alcança realmente nada, ou seja, não concretiza seu objetivo e vê seu negócio arruinado.
O comerciante também é referido no prólogo antes dos demais personagens,
especificamente antes do seu guia e do seu cule, e é apresentado em primeiro plano no
primeiro quadro da peça, intitulado “Corrida no deserto” (Wettlauf in der Wüste),
denunciando uma regra hierárquica tradicionalmente aceita. Ele é observado em ação,
dando ordens a seus dois serviçais, tarefa que interrompe para se apresentar ao leitor. O
papel social de comerciante, poderia lhe servir apenas como atributo, como epíteto ao
nome, caso este não fosse quase que completamente apagado ao longo de toda a peça, já
que é mencionado apenas duas vezes. De fato, Karl Langmann logo é esquecido e em
seu lugar passa a predominar simplesmente a designação de comerciante, portanto, a sua
função social, acima de sua pessoa.
Neste sentido, Karl Langmann, o comerciante, é determinado por uma classe
social, a dos exploradores, que detém os meios de produção, que é regida por valores
fundamentados, principalmente, no dinheiro e em um discurso religioso.
O valor dado ao capital, ao dinheiro, é apresentado pela imagem alegórica
48
do
petróleo, que é o objetivo da viagem e emblema do progresso. E a busca do petróleo
empreendida pelo comerciante mostra que os fins justificam os meios.
Os “fins”, como a peça mostra, encontram-se na exploração do petróleo em
todos os níveis, sendo o financeiro o último deles. O petróleo em si é apenas aludido
48
Usamos a definição de HANSEN. Cf. Bibliografia.
53
como se fosse um elo, a manter juntas personagens tão díspares entre si que, por sua
vez, carregam a função dramática de mostrar/representar engrenagens matriciais da
sociedade ocidental da época e de hoje. As citações abaixo ilustram-no bem: dentro de
uma fala do cule ao guia, quando ambos tecem um aspecto do perfil do comerciante, e
nas duas canções por este entoadas:
Fala do cule ao guia sobre o comerciante:
O comerciante sempre diz que um serviço é prestado à
Humanidade quando o petróleo é retirado da terra, que
haverá estradas de ferro e que o Bem-estar irá se
espalhar. O comerciante diz que aqui haverá estradas
de ferro. Então, de que forma eu poderei viver?
(tradução nossa)
49
2ª Canção do comerciante:
O homem doente morre e o homem forte luta.
Por que deveria o solo produzir o petróleo?
Por que deveria o carregador arrastar as minhas coisas?
Para obter petróleo é preciso lutar
com o solo e com o carregador
e nessa luta é assim:
o homem doente morre e o homem forte luta.
(tradução nossa).
50
3ª Canção do comerciante:
E assim o homem subjuga
o deserto e o rio impetuoso
e subjuga-se a si próprio, o homem
e consegue o petróleo
que será usado. (tradução nossa).
51
A exploração do petróleo, objetivo máximo da vida do comerciante, porque é a
sua via para chegar à posse do dinheiro, também vem à tona dentro da argumentação/
justificação/legitimação por ele construída, como a seguir: “Quando o petróleo é
49
No original: „Der Kaufmann sagt immer, dass der Menschheit ein Dienst erwiesen wird, wenn das Öl
aus dem Boden geholt wird. Wenn das Öl aus dem Boden geholt ist, wird es hier Eisenbahnen geben und
Wohlstand sich ausbreiten. Der Kaufmann sagt, es wird hier Eisenbahnen geben. Wovon soll ich dann
leben?“
49
. GW, BII, p. 799.
50
“Der kranke Mann stirbt und der starke Mann ficht./Warum sollte der Boden das Öl hergeben?/Warum
sollte der Kuli meinen Packen schleppen?/Um Öl muß gekämpft werden/ Mit dem Boden und mit dem
Kuli/Und in diesem Kampf heißt es:/Der kranke Mann stirbt und der starke Mann ficht”. GW, BII, p. 802.
51
“So überwindet der Mensch/ Die Wüste und den reißenden Fluß/ Und überwindet sich selbst, den
Menschen/ Und gewinnt das Öl, das gebraucht wird”. GW, BII, p. 806.
54
retirado da terra, as estradas de ferro e o bem-estar irão se espalhar. Haverá pão e roupas
e Deus sabe o que mais”.
52
O petróleo como imagem do progresso surge configurado nos trechos acima na
futura construção das “estradas de ferro”, no trabalho e no lucro aí implícitos, e num
suposto “bem-estar” da Humanidade daí derivado. Se, em um plano mais amplo, o
elemento motivador da viagem do comerciante é a obtenção da concessão de petróleo,
associada ao dinheiro a ser ganho com sua comercialização, em um plano mais restrito,
no caminho que faz até Urga, o que o motiva a agir são os concorrentes, que sempre
estão “em seus calcanhares”. Desta forma, para o comerciante, a busca do petróleo
também está indelevelmente relacionada à luta que se dá no âmbito da concorrência,
que constitui um dos obstáculos a serem superados no alcance do fim, que é o petróleo.
Será de esperar que o comerciante, em sua luta pela obtenção do petróleo e do
dinheiro de sua comercialização, justificada com a promoção do bem-estar da
humanidade, atinja o grau superlativo em suas ações, pois é regra nas concorrências
(alma do capitalismo) haver sempre um primeiro e um melhor que paira
hierarquicamente acima do todo.
O comerciante, de nome esquecido, incorpora nesta peça, assim, a idéia
capitalista, é a personificação dessa idéia, um personagem tipo
53
movido pelo e para o
dinheiro. Assim como o petróleo jorra da terra com uma velocidade e uma brutalidade
incomuns, que destroem tudo ao seu redor, quando não controlados, o comerciante,
como pioneiro do progresso, também realiza a sua viagem com idêntica velocidade e
também elimina barbaramente, ao invés dos concorrentes, o seu próprio cule. A regra –
a eliminação dos seus concorrentes-, neste passo, não se realiza, e sim a exceção.
O comerciante faz referências diretas ao dinheiro, quando, por exemplo, diz ao
cule e ao guia: “Mas vocês querem passear com o meu dinheiro”
54
.Tal afirmação
52
No original: “Wenn das Öl aus dem Boden geholt ist, wird es hier Eisenbahnen geben und Wohlstand
sich ausbreiten. Es wird Brot und Kleider geben und Gott weiß was.“ GW. BII, p. 805.
53
A expressão „tipo“ é usada, aqui, na seguinte acepção: “coisa ou indivíduo que possui em grau elevado
os caracteres distintivos de uma classe, um grupo etc.; símbolo”.Cf. Dicionário Eletrônico Houaiss da
Língua Portuguesa. Versão digital1.0. Copyright 2001. Instituto Antonio Houaiss – Produzido e
distribuído por Ed. Objetiva LTDA.
54
No original: “aber ihr wollt spazierengehen für mein Geld” GW, BII, p.795.
55
reforça o objetivo de seu negócio tanto pela referência ao dinheiro, quanto pela
referência ao termo spazierengehen (passear), que descreve uma ação ociosa, o passeio,
em oposição ao trabalho, pelo qual estavam sendo pagos os dois explorados.
O explorador também faz, por meio de suas falas, referências indiretas ao
dinheiro, como, por exemplo, quando ele pergunta ao guia se ele tem idéia do preço da
viagem: “Você tem uma idéia de quanto custa a viagem?”
55
, e quando ele interrompe a
canção do cule argumentando que isso atrairia os ladrões, pois “[o dinheiro] não
pertence a você [cule], pois o que você ganha pertence a mim”
56
.
É tamanha a importância que o comerciante dá ao dinheiro que, no tribunal, ao
falar sobre uma suposta reação do cule, por ele maltratado, afirma que o cule,
certamente, lhe pagaria de volta
o que recebeu
57
. Além disso, cabe lembrar que na
viagem, o comerciante diz ao carregador: “A viagem não lhe interessa realmente, senão
apenas o seu salário”
58
. Ao dizer isto, nota-se a dialética empregada pelo autor, pois o
comerciante projeta no cule os seus próprios objetivos, ou seja, o dinheiro, pois ao dizer
que o cule se interessa pelo dinheiro, o comerciante acaba por mostrar ao leitor que é ele
mesmo quem dá valor ao capital.
A importância dada pelo comerciante ao dinheiro também está presente na
relação capital e tempo, mencionado pelo comerciante com as expressões Zeit - tempo e
Tempo -andamento/velocidade/ritmo. Por um lado, estas expressões reforçam e reiteram
a luta travada na concorrência, e por outro, sob a lente do comerciante, justificam os
meios, ou seja, suas ações. Sendo assim, é pelo e para o dinheiro que o comerciante age,
e o revólver que possui parece, a princípio, servir apenas como justificativa de um poder
que o comerciante já possui, ou seja, o poder do capital.
Investido deste poderes, o capital e um revólver, podem-se notar os meios
utilizados pelo comerciante para atingir o seu objetivo. É o comerciante quem dá as
55
No original: “Hast du eine Ahnung, was die Reise kostet?”. GW, BII, p. 795.Trad. da autora.
56
No original: „[…] das gehört dir nicht, denn was du verlie verlieren hast, das gehört mir“. GW, BII,
p.803.
57
No original: “Es war nur richtig von ihm, wenn er es mir zurückzahlen wollte”
57
. GW, BII p. 819. Grifo
meu. Em português: “Seria certo da parte dele, se ele quisesse me pagar de volta”.Grifo nosso.
58
No original: „Die Reise interessiert dich also gar nicht wirklich, sondern nur der Lohn“. GW, BII, p.
805.
56
ordens aos seus empregados e os trata de maneira a diminuí-los. Quando se refere aos
explorados, ele usa freqüentemente o substantivo Gesindel (corja, gentalha), Faultiere
(animais preguiçosos), o adjetivo fauler (preguiçoso), ou schlechte Rasse (Raça ruim)
ou seja, expressões que os diminuem, animalizando-os, para que ele faça valer a sua
“superioridade” de um homem forte. Assim, é ao atribuir ao outro a condição de animal
que o comerciante se mostra alguém inumano, ou melhor, destituído de humanidade.
Além de tratar seus explorados como animais, o comerciante quer lhes esgotar a
força de trabalho, como mostra em duas passagens da peça, na cena 1, “Corrida no
deserto” (Wettlauf in der Wüste): “Durante três dias eu forçarei meu pessoal, dois dias
com xingamentos e no terceiro com promessas. Em Urga, vamos ver se elas serão
cumpridas”
59
; ou no início da cena 2, “Fim da muito percorrida estrada” (Ende der
vielbegangenen Strasse), quando, diante da Estação Han, o comerciante afirma: “Meu
pessoal está esgotado. Além disso, eles estão irritados comigo"
60
. A maneira como age,
ou seja, os métodos utilizados pelo comerciante para esgotar a força de trabalho do seu
pessoal ocorre por meio de ameaças verbais e físicas.
Há vários momentos do texto em que o comerciante ameaça verbalmente os
explorados. Na cena 1, por exemplo, quando ele diz ao guia: “Bata [no cule], ou eu o
demito, você pode reclamar pelo seu salário”
61
, ou ainda, após demiti-lo, quando
profere: “Você tem que ficar feliz, se eu não te denunciar na agência de Urga”.
62
As ameaças físicas são freqüentes, pois após a demissão do guia, é o próprio
comerciante quem age, ora coagindo o cule com o revólver, ora espancando-o. Exemplo
disso é na cena 5, “À Margem do rio caudaloso” (Am reisenden Fluss), quando o cule
hesita na travessia do rio, momento em que o comerciante afirma: “Eu irei segurar um
revólver atrás de suas costas. Vamos apostar que você vai atravessá-lo? Ele o empurra
para diante de si [...]”
63
. A ameaça torna-se agressão real na cena 7, “A Água
Partilhada”, quando o comerciante espanca o cule, ação descrita na rubrica da parte b
59
No original: „Drei Tage treibe ich meine Leute an, zwei Tage mit Schimpfreden, am dritten mit
Versprechungen, in Urga wird man weitersehen.“ GW, BII, p. 796.
60
No original: “Meine Leute sind erschöpft. Außerdem erbittert gegen mich.”GW, BII, p.796.
61
No original: „Schlag! oder ich entlasse dich! Deinen Lohn kannst du dann einklagen.“ GW, BII, p. 796.
62
No original: “Du musst noch froh sein, wenn ich in Urga bei Stellungsvermittlung anzeige“. GW, BII,
801.
63
No original: “[...] Ich werde dir den Revolver in den Rücken halten. Wetten wir, dass du
hinüberkommst? Er stöß ihn sich her.”. GW, BII, 806.
57
desta cena: “Ele bate nele [no cule]”
64
, até chegar a assassinar o explorado na parte c
desta mesma cena.
No discurso do comerciante, vai-se evidenciando um crescendo nestas ameaças
que atingirão o clímax no assassinato do cule: o verbo schlagen (bater), usado no início
da peça, passa pela variante erschlagen (assassinar) e termina em niederschlagen
(abater, derrubar).
O comerciante também age de modo a eliminar os obstáculos que surgem em
seu caminho. Na cena 3, “A Demissão do guia na Estação Han” (Die Entlassung der
Führers auf der Station Han), o comerciante menciona esses obstáculos por meio de
uma canção.
Como se sabe, o poema-canção (Lied) no teatro de Brecht tem como funções
interromper o fluxo da ação; desautomatizar a leitura, anunciando um novo ritmo e
criando um distanciamento voltado para a reflexão crítica; comentar as ações do
personagem; e, no caso da encenação, distanciar o próprio ator do ato de representar e,
ao fazer isso, mostrar os gestus socialmente identificáveis dos personagens em questão.
Nesta peça, os poemas-canções (Lieder) são sempre antecedidos por uma rubrica “Ele
canta” (Er singt) ou “que é cantada” (gesungen). Nestes poemas-canções (Lieder), uma
vez que cantados, o autor emprega recursos narrativos e líricos sobrepostos ao texto
dramático, quando o ritmo das falas também é alterado. A canção entoada pelo
comerciante na cena 3, anteriormente citada à página, por exemplo, mostra os
obstáculos que ele tem pelo caminho. Observe-se, que neste poema-canção (Lied), os
obstáculos a serem vencidos por meio de uma luta são o cule e a terra/natureza.
A luta referida é a travada na concorrência, conforme indicado. Esta luta é
marcada em todo o discurso proferido pelo comerciante, quando emprega os verbos
marchar (marschieren) e lutar (kämpfen) e seus derivados: lutador (Kämpfer) e luta
(Kampf). O verbo marschieren é comumente usado pelo comerciante no contexto da
expedição à cidade de Urga, mas não deixa de evocar a marcha dos soldados no
contexto de guerra. Para o comerciante explorador, os explorados, nas figuras do cule e
64
No original: “Er schlägt ihn”. GW, BII, p. 810-811. .
58
do guia, não entendem o sentido da luta, da obtenção do recorde (Rekord), não são,
portanto, lutadores (Kämpfer). O comerciante refere-se à luta, explicitamente, antes de
entoar esta canção: “eu vejo que haverá uma luta”
65
, e ao falar isso, saca o revólver para
limpá-lo. Em tudo, esta situação remete para as imagens de um movimento colonizador,
portanto, imperialista.
Este movimento colonizador, imperialista, está dado também no verso que abre e
encerra esta segunda canção: “O homem doente morre, e o homem forte luta”.
O dramaturgo, por sua vez, retirou este verso de um romance de Rudyard
Kipling, A luz que se apagou
66
, que trata da luta colonialista, portanto imperialista,
empreendida pelos ingleses no deserto africano, e que traz uma epígrafe, descrita como
“Balada” (no capítulo XII): “O homem forte luta, mas o homem doente morre” (The
strong man fights, but the sick man dies)
67
. Porém Brecht reutiliza esta frase,
65
No original: “Ich sehe, es wird einen Kampf geben“. GW, BII, p. 802.
66
KIPLING, Rudyard. A Luz que se apagou. Rio de Janeiro, Ed. Delta, 1967. O título original é The
light that failed. London, Macmillan, 1982. A história trata de Dick, um pintor, que, após participar de
uma campanha de colonização na África, fica cego, conseqüência de um ferimento causado na zona de
conflito. Cabe um destaque ao último capítulo do romance: Dick, o pintor, volta à África para encontrar
seus amigos que estão em outra campanha inglesa de colonização. Como está cego, ele contrata um guia,
que tem dois camelos e uma mula, para a travessia do deserto. Dick também carrega um revólver e o usa
para coagir o guia a levá-lo com segurança pelo caminho. Ele também lhe paga pela travessia do deserto,
embora não confie que o guia irá levá-lo com segurança até o acampamento inglês.
67
No original: There were three friends that buried the fourth,/The mould in his mouth and the dust in his
eyes/And they went south and east, and north,/The strong man fights, but the sick man dies.//There were
three friends that spoke of the dead,/The strong man fights, but the sick man dies./ ‘And would he were
with us now’, they said,/The sun in our face and the wind in our eyes. Minha tradução: Havia três amigos,
que enterraram o quarto/O lodo em sua boca e poeira em seus olhos/ E eles foram para o sul, leste, e
norte/ O homem forte luta, mas o homem fraco morre/ ‘E agora ele estaria conosco’, eles disseram/ O sol
em sua face e o vento em seus olhos. Vale indicar, ainda, que Brecht utiliza esse mote em O Romance dos
Três Vinténs, escrito em 1934, em decorrência do processo jurídico – de 1930-, que fez com que ele
perdesse os direitos autorais para a filmagem de A ópera dos três vinténs. Deste processo também
resultaram o filme Kuhle Wampe oder wem gehört die Welt? (Kuhle Wampe ou a quem pertence o
mundo?), de 1931 e um ensaio sobre a arte intitulado “Um experimento sociológico” (Ein soziologisches
Experiment). No romance, cujo enredo também se passa na Inglaterra, há pelo menos três momentos em
que este mote é citado, todos dentro do contexto de guerra e das relações comerciais frente a ela: “Para
onde quer que olhemos, na natureza, nada acontece sem interesse material! Sempre que alguém diz a
outro: quero o teu bem, vamos trabalhar juntos...etc. é preciso tomar cuidado! Pois o homem é humano,
não angélico, e pensa antes de tudo em si próprio. Nada acontece por bondade! O mais forte comanda o
mais fraco, e assim será nosso trabalho com o Grupo Aaron: apesar de toda a nossa amizade, quem é o
mais forte por aqui? Então, teremos luta? Sim, senhores, será uma luta! Lutar a serviço de uma
idéia! O comerciante que pensa corretamente não teme a luta. Só o fraco a teme, e as rodas da
História passarão sobre seu corpo!”pg. 147. Outro momento é quando Mac diz para Polly: “Meu
instinto disse que sim, e as informações que tomei provaram que o instinto não me enganara. Kipling já
disse: o homem doente morre e o homem forte luta.”p. 148; e “Imediatamente Macheath depôs o
charuto e fez um pequeno discurso, dirigido principalmente ao seu amigo Bloomsbery, sublinhando o fato
de que, para os donos da Loja B., isso representava um breve período de carências, mas que sucessos
comerciais e humanos dependiam da capacidade de fazer sacrifícios no tempo oportuno. O homem
59
adaptando-a, pois embora também apresente uma oração coordenada, apresenta-a com a
conjunção “e”, tornando-a aditiva, em vez de apresentá-la como adversativa, como é o
caso da original que tem a conjunção “mas”. O dramaturgo, ainda, inverte a posição das
informações, porque coloca o homem doente em primeiro lugar e adiciona a informação
de que o homem forte luta na segunda posição. Em vez de apresentar, como no verso de
Kipling, a oposição entre as duas unidades, acentuadas pelo uso do “mas”, o autor opta
pelo uso da conjunção aditiva “e”, sem, contudo, excluir o sentido de oposição
68
,
sugerindo, ainda, causa e conseqüência da primeira oração em relação à oração aditiva.
Resumindo, enquanto Kipling, num contexto da colonização da África, apresenta o
homem morto como conseqüência da luta colonialista inglesa, na peça de Brecht, o
comerciante usa esse verso como lema de vida e como um fato, que deve ser
consumado, ou seja, um homem só é forte, porque luta e elimina o que é fraco. É na
eliminação do fraco que ele se torna é forte, ou, ainda, a luta travada pela concorrência
determina que apenas os fortes sobrevivam.
Em inusitado destaque nesta canção fica o comerciante explorador, que se
considera o homem forte.
Ainda nesta canção, observa-se que assim como o comerciante adiciona e
acumula informações, acumula também o capital. O comerciante, detentor do capital e
de um revólver, ao travar a luta, elimina os obstáculos, apresentados, conforme
indicado, na imagem da terra – uma imagem da natureza - e na figura do cule, o homem
doente. Nota-se, portanto, neste trecho, um indício de que o cule irá morrer, mas antes
de lutar com ele, o comerciante tem que lutar com a terra/a natureza, que é vencida na
travessia do rio caudaloso.
Todos estes meios ilícitos – o uso do revólver, as ameaças e agressões verbais e
físicas- empregados pelo comerciante para atingir o seu objetivo, a concessão de
enfermo morria e o forte lutava.”p. 176. IN: Romance dos três vinténs. Trad. Lya Luft. Rio de
Janeiro, Ed. Nova Fronteira, 1976.
68
Cf. Moderna Gramática Portuguesa: “Muitas vezes, graças ao significado dos lexemas envolvidos na
adição, o grupo das orações coordenadas permite-nos extrair um conteúdo suplementar de “causa”,
“conseqüência”, “oposição”, etc. Esses sentidos contextuais, importantes na mensagem global, não
interessam nem modificam a relação aditiva das unidades envolvidas: Rico e inteligente e Rico e
desonesto, ambas se unem por uma relação gramatical de adição, embora a oposição semântica existente
entre rico e desonesto apresente um sentido suplementar, como se estivesse enunciado rico mas
desonesto. O mesmo se dá se uma unidade for afirmativa e outra negativa: rico e não honesto.p. 320
60
petróleo, criam um universo de amoralidade em todas as suas ações, que se confronta
com um universo religioso, uma herança judaico-cristã, também presente em seu
discurso.
O explorador é o único personagem que profere, em vários momentos, a palavra
“Deus”: “por amor a Deus” (um Gottes willen); “graças a Deus” (Gott sei Dank), dito 3
vezes; “Deus sabe” (Gott weiß was) e “Deus das coisas” (Gott der Dinge), ou em
negativo: “O diabo que os carregue” (Der Teufel hole euch!). Sobre o comerciante cola-
se uma outra máscara, uma outra pele, que se assemelha à figura de um recitador de
salmos, especificamente de um suplicante, a evocar Deus em momentos de
“necessidade crítica”, a saber: a travessia do deserto e a falta de água. A religião a dar
cobertura de normalidade virtuosa às ações amorais e ilícitas personagem, desencadeada
no e pelo sistema capitalista. Um discurso que se quer de autoridade a legitimar um
comportamento desviante. A exceção a tomar as cores da regra.
As ações ilícitas confrontadas em várias passagens da peça com o discurso
religioso instauram a dialética, que produz o distanciamento do leitor e cria uma
ambigüidade no comportamento do personagem, quando age como ímpio, mas fala
como indivíduo temente a Deus. É com o emprego da dialética, que Brecht faz com que
o texto apresente esse jogo, que constitui um dos elementos do “modelo de ação” da
peça, ou seja, as contradições entre as falas e as ações dos personagens.
Além da tessitura social que molda o personagem, há uma tessitura psicológica
que o particulariza. O comerciante é dotado de um pioneirismo, porque, no prólogo, a
alusão que lhe é feita é a de que é explorador e Brecht usa essa expressão tanto em
relação à figura do explorador de trabalhadores, uma vez que se refere à relação entre
explorador e explorado, quanto em relação ao explorador de terras, pois a bagagem que
o cule carrega são mapas e tabelas e o intuito da viagem é a
descoberta/exploração/especulação com os preços do petróleo. Para ser o pioneiro do
progresso, imagem que remete ao movimento colonizador e imperialista, o comerciante
tem a necessidade de chegar primeiro. Esta necessidade acaba enfatizada pela
redundância no emprego do mesmo verbo, pois o comerciante utiliza inúmeras vezes o
verbo ankommen (chegar) junto ao verbo modal müssen (ter que), que dá o tom
peremptório de tal necessidade, além de conotar igualmente a renhida luta travada no
61
plano da economia capitalista, em que a concorrência é seu elemento essencial. Nesse
sentido, o comerciante é um empreendedor, que utiliza todos os meios para conseguir
(erreichen- realizar/atingir/conseguir/chegar a) realizar a viagem em menos tempo, ou
seja, ser o primeiro a chegar a Urga, atingindo o seu intuito, que é obter a concessão de
petróleo a qualquer custo.
Ao se colocar como pioneiro do progresso, o explorador age, portanto, como se
estivesse imbuído de uma missão. Aqui, usa-se o termo “missão” porque nela estão
implícitos dois fatores: missão, como dever a cumprir, e missão, como negócio. Na
“missão” como dever, há a idéia de um pioneirismo missionário, de caráter religioso,
reforçado pelas referências a Deus. Porém, o comerciante usa essa missão em nome de
um “negócio”
69
chamado progresso e de um serviço prestado à Humanidade, que
como pode ser observado em outro momento do enredo, no início da peça, em uma
conversa entre o cule e o guia, põem em questionamento o verdadeiro objetivo da
“missão”, deixando entrever que se trata de especulação financeira.
Por ser um pioneiro do progresso, o comerciante é competitivo, uma vez que é
motivado pela luta travada na concorrência, e por estar nesta competição, o comerciante
é levado a eliminar os seus inimigos e concorrentes.
Um exemplo de como esta competitividade está presente é dado no final da
cena 1, “Corrida no deserto” (Wettlauf in der Wüste), quando o comerciante canta:
“Como eu não durmo, eu mantenho vantagem,/ Como eu impulsiono, eu levo
adiante./O homem fraco fica para trás e o homem forte chega primeiro
70
.
O primeiro verso desta canção “Como eu não durmo, eu mantenho vantagem” é
retomado com variação no quadro 6, “Acampamento Noturno” (Das Nachtlager) da
seguinte maneira: “E o homem forte que dorme não é tão forte como o [homem] fraco
69
Como o texto não deixa claro o tipo de negociata a ser feita pelo comerciante em Urga, aqui, este termo
é empregado nas seguintes acepções: negotìum,ìi (< nec + otium) 'ocupação, negócio', donde 'dificuldade,
embaraço; coisa, caso'; por eufemismo designa 'coisa ou ato que não se queira nomear expressamente'. E,
ainda, se, do lat., otìum,ìi quer dizer 'paz, tranqüilidade' e tem por oposição bellum 'guerra', pode-se
estabelecer uma sinonímia entre bellum 'guerra' e negotìum,ìi .Cf. Dicionário Eletrônico Houaiss da
Língua Portuguesa. Versão digital1.0. Copyright 2001. Instituto Antonio Houaiss – Produzido e
distribuído por Ed. Objetiva LTDA.
70
No original: “Dass ich nicht schlief, hat mir den Vorsprung verschafft/ Dass ich antrieb, hat mich
vorwärts gebracht. Der schwache Mann bleibt zurück und der starke kommt an.“ GW, BII, 796.
62
que dorme”
71
. A variação acontece não só pela alteração no uso do verbo dormir
(schlafen), conjugado na 1ª pessoa do presente no verso da primeira canção, e que, na
sentença da cena 6, é transformado em adjetivo, “que dorme” (schlafende), mas também
pela maneira como esta última sentença é apresentada, dentro de um discurso direto, ou
seja, na última fala do comerciante no quadro 6, e não dentro de uma canção. Outra
variação que se nota é em relação ao lema do comerciante, presente em todos os
poemas-canções (Lieder) que entoa: “O homem doente morre e o homem forte luta”.
Nesta canção, nota-se que a referência ao homem doente é dada pelo “homem fraco”, o
que “fica para trás”, enquanto que a referência ao homem forte é dada como “o que
chega primeiro”. Destacam-se, ainda, as expressões “Vantagem” (Vorsprung) e
“Avante” (Vorwärts), que também mostram a relação entre o pioneirismo e a luta dentro
da concorrência.
O comerciante ainda menciona que impele/impulsiona, o que demonstra que ele
é determinado. Ele mesmo se traduz como alguém com “astúcia” (Schlauheit), com
“energia para dominar todas as dificuldades” (Energie bei der Überwindung aller
Schwierigkeiten) e possuidor de uma “implacabilidade com o seu pessoal”
(Unerbittlichkeit gegen [sein] Personal.)
72
, características que, de fato, são confirmadas
pelas suas ações ao longo da viagem a Urga.
A esta determinação confronta-se uma aparente amabilidade do comerciante
com seus empregados, pois, pelo movimento dialético, se pode ainda observar que o
comerciante considera os explorados também como inimigos e tem medo deles.
Observem-se as frases “Vamo-nos sentar, meu amigo
73
e “Por que você canta, [...]
meu amigo?
74
. Com a palavra “amigo”, estas frases forjam uma premeditada
proximidade afetuosa em relação ao guia, quando eles chegam à Estação Han, e em
relação ao cule, quando o comerciante está sozinho no deserto com ele. Ou seja, nos
dois casos, este momento de proximidade é criado quando o comerciante se sente
inseguro e sente que está em perigo. A intenção do comerciante, portanto, não é ser
amável, mas ele tem por objetivo, em ambos os casos, ganhar a confiança dos
71
No original: “Und der schlafende starke Mann ist nicht stärker als der schlafende schwache“. GW, BII,
p. 808.
72
GW, BII, p. 795
73
No original: „Setzen wir uns doch mein Freund“. GW, BII, p.798. Grifo nosso.
74
No original: „Warum singst du [...] mein Freund?“. GW. BII, p. 803. Grifo nosso.
63
explorados na travessia do deserto, pois uma vez que não há postos policiais naquela
região, o explorador teme que eles se rebelem contra ele. Ele chega mesmo a dizer ao
guia, demonstrando sua enorme desconfiança, que o cule ainda haveria de mostrar sua
verdadeira face em uma região desabitada, quando, de fato, é o próprio comerciante
quem faz isso.
r fim, é na cena do julgamento, que
o explorador assume que o cule não era seu amigo.
am
aturgo parece tomar
emprestada uma im m do salmo 10, cujo texto segue abaixo:
Sendo assim, apesar de o comerciante ser determinado, competitivo e do seu
pioneirismo, ele se sente inseguro, é desconfiado e age movido pelo medo. Este medo,
conforme mencionado, é de uma rebelião dos seus explorados, ilustrado em outro passo
da peça, quando o comerciante oferece tabaco ao guia e complementa: “Não faço idéia
do que vocês seriam capazes para conseguir uma tragada [de tabaco]”
75
, ou, ainda,
quando vê a aproximação entre o guia e o cule e diz para si: “Finalmente, a partir de
hoje serão dois contra um [...]”
76
A proximidade amigável deste explorador em relação a
seus empregados é, então, rapidamente descartada, quando ele se sente minimamente
ameaçado, pois antes que entre no deserto com os dois, demite o guia, e, no deserto,
coage o cule com o revólver, além de espancá-lo. Po
Em relação à desconfiança, há uma rubrica, na cena 3, que lhe sugere um
movimento gestual (físico) e mostra como o comerciante age. Depois de ter fumado
com o guia, o comerciante retira-se e o guia se senta com o cule. Os explorados
conversam sobre o caminho a ser percorrido. Neste momento, a rubrica sugere a
seguinte ação ao comerciante: “O comerciante ouviu falar. Ele vai para trás da porta
para escutar
77
. O comerciante escuta-os sem por eles ser visto, e na sua mente
obcecada, a desconfiança em relação aos dois toma corpo, levando-o a demitir o guia. O
substrato religioso do discurso também se nota aqui, quando o dr
age
Senh
or, porque você se coloca tão longe, declina em
um tempo de necessidade?/ Porque o ímpio tenta uma
maldade, o miserável tem que sofrer; eles dependem
um do outro e imaginam perfídias maldosas. Porque o
ímpio glorifica sua malícia e o avarento recusa Deus e o
75
No original: „Ich weiss es nicht, was ihr alles anstellen könntet, um diesen Rauch in den Hals zu
bekommen“. GW, BII, p. 798.
76
No original: “Schließlich sind es ab heute zwei gegen einen“. GW, BII, 800.
77
No original: “ Der Kaufmann hat sprechen h”oren. Er tritt hinter die Tür, um zu horchen”. GW, BII, p.
799.
64
blasfema/ O ímpio pensa em seu orgulho e não
pergunta por isso; em todas as suas maldades ele não
confia em Deus para nada. Enquanto ele segue com sua
ação, seus tribunais ficam longe dele; ele trata todos os
seus inimigos com arrogância/Ele fala em seu coração:
eu nunca mais ficarei doente; não haverá mais
necessidade?/ Sua boca está cheia de pragas, falsidade e
truques; sua língua serve ao esforço e ao trabalho/ Ele
está sentado e espreita nas pequenas aldeias; ele
estrangula o nativo inocente/ seus olhos espreitam o
pobre./ Ele o estrangula às escondidas como um leão
em sua cova; Ele enreda o miserável, o apanha e o
estrangula, quando ele cai em sua rede./ Ele o assassina,
empurra-o para baixo e joga o pobre no chão com
violência.
78
(LUTERO: 1912, tradução nossa)
igo, como no salmo, é assassinado com violência, quando o
comerciante atira no cule.
No texto sagrado, a vítima faz menção ao ímpio como alguém que age com
violência em uma terra estrangeira, uma vez que está longe de seus tribunais, ficando,
portanto, livre de punição, e que fica à espreita para eliminar/assassinar o mais pobre, o
miserável. No texto de Brecht, o comerciante age à semelhança do ímpio
79
do salmo,
apesar de proferir as referências a Deus, presentes apenas nas falas deste personagem. O
seu modo de agir é ambíguo, porque ele se mostra aparentemente como uma pessoa
virtuosa, mas, pelo avesso, explicitamente também desvela um lado cruel, porque no
enredo ele também é um estrangeiro naquela região, cujo objetivo na
extração/descoberta/exploração do petróleo assemelha-se ao do colonizador, e que ao
espreitar os nativos, os dois explorados, e demitir o guia, termina por, de certa forma,
eliminá-lo, pois elimina um inimigo que seria um obstáculo para o seu rumo ao
progresso. O segundo inim
78
No original: „HERR, warum trittst du so ferne, verbirgst dich zur Zeit der Not?/Weil der Gottlose
Übermut treibt, muß der Elende leiden; sie hängen sich aneinander und erdenken böse Tücke./ Denn der
Gottlose rühmt sich seines Mutwillens, und der Geizige sagt dem Herrn ab und lästert ihn./ Der Gottlose
meint in seinem Stolz, er frage nicht darnach; in allen seinen Tücken hält er Gott für nichts./ Er fährt fort
mit seinem Tun immerdar; deine Gerichte sind ferne von ihm; er handelt trotzig mit allen seinen Feinden./
Er spricht in seinem Herzen: Ich werde nimmermehr darniederliegen; es wird für und für keine Not
haben./ Sein Mund ist voll Fluchens, Falschheit und Trugs; seine Zunge richtet Mühe und Arbeit an./ Er
sitzt und lauert in den Dörfern; er erwürgt die Unschuldigen heimlich; seine Augen spähen nach dem
Armen./ Er lauert im Verborgenen wie ein Löwe in der Höhle; er lauert, daß er den Elenden erhasche, und
er hascht ihn, wenn er ihn in sein Netz zieht./ Er zerschlägt und drückt nieder und stößt zu Boden den
Armen mit Gewalt.“
79
Cf. o Dicionário Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão digital1.0. Copyright 2001.
Instituto Antonio Houaiss – Produzido e distribuído por Ed. Objetiva LTDA., a expressão “ímpio”
significa: 1. “que ou aquele que não tem fé ou que tem desprezo pela religião”; 2. “que ou aquele que não
respeita os valores comumente admitidos”; 3. “que denota ou revela impiedade”; e, principalmente,
também conota ‘que ou aquele que é desapiedado, desumano, cruel, bárbaro.”
65
A regra, o se mostrar virtuosamente, deslocada para a exceção, tendo em vista
que “o espreitar” não é uma atitude condizente com um indivíduo temente a Deus, mas,
sim, ao ímpio.
Como o comerciante é um pioneiro, ele é um perseguidor, pois literalmente
corre atrás de seu objetivo, o petróleo. Em outras palavras, ele é um perseguidor, tendo
em vista que se coloca em ação, realiza tarefas difíceis, é um empreendedor.
O espírito aguerrido do comerciante, que poderá ser uma marca de sua
personalidade empreendedora, é, porém, passível de ser lido com sinal invertido. A
aparência arrojada que, no sistema capitalista, é enaltecida como normalidade desejada,
na peça aqui examinada adquire contornos patológicos, de doença, de neurose que
chega às raias da psicose, na medida em que o comerciante interioriza uma perseguição
pessoal, que engloba inclusive seus explorados, desencadeada pelo excesso de medo,
insegurança e desconfiança, sentimentos e emoções superlativos e, em princípio, não
justificados no seio de um grupo de seres humanos em busca do mesmo petróleo,
emblema do progresso. O coro dos personagens no prólogo adverte o público no
começo da peça justamente para prestarem atenção em ambigüidades como esta.
Esta marca do caráter ambíguo do personagem (ele é saudável e é doente,
dependendo da perspectiva ideológica com que é observado) está expressa em suas
outras falas, em suas atitudes, nas rubricas que se referem a ele, e que exemplificam a
“mania de perseguição” incrustada no comerciante. Exemplo disso é quando este se
dirige ao guia, anunciando que irá denunciá-lo na agência de Urga, “se [ele] tentar uma
sabotagem”
80
, ou quando diz ao cule, estando já sozinhos no deserto: “Não ande
devagarzinho à noite. Isso não me agrada, pois eu quero ouvir os passos, quando um
homem se aproxima”
81
Esta “mania de perseguição”, que, a princípio, faz parte da luta
com seus concorrentes (Konkurrenten), porque aqueles são por ele considerados seus
inimigos, ou seja, uma ameaça constante, é transferida a todos os que o rodeiam, isto é,
ao próprio guia e ao cule.
80
No original: „wenn [er] Sabotage treib[t]“. GW, BII, p. 795.
81
No original: „Schleiche nicht so herum in der Nacht. Das passt mir nicht, ich will den Tritt hören, wenn
der Mann kommt“. GW, BII, p. 808.
66
Além da passagem em que o comerciante demonstra ter medo de uma rebelião
dos explorados, há outro momento, o da travessia do rio, em que o comerciante também
mostra medo, mas dos eventuais ladrões roubarem o dinheiro que possui. É o medo que
o impulsiona a superar este tremendo obstáculo, é o mesmo medo que desencadeia o seu
agir com violência.
O medo e o agir com violência também se fazem presentes na terceira canção,
entoada pelo comerciante no momento em que coage o cule com o revólver, no quadro
5, “À margem do rio caudaloso” (Am reissenden Fluß), e é apresentada da seguinte
maneira:
E assim [ com medo e violência] o homem subjuga
o deserto e o rio impetuoso
e subjuga-se a si próprio, o homem
e consegue o petróleo
que será usado.
82
(BRECHT, 1967, p.806, tradução nossa)
“Assim”, quer dizer, com medo e violência, o comerciante vence a natureza,
pois consegue atravessar o rio Mir, também pronome pessoal alemão declinado em
dativo que significa “a mim” e que remete o leitor tanto a um chamado da natureza que
desafia o ser humano a dominá-la, quanto o remete à imagem do rio como uma
passagem para o progresso do homem, ou o impele para si. Após vencer a natureza,
resta ao comerciante vencer o cule, que na travessia do rio tem seu braço quebrado, e se
torna, literalmente, o “homem doente”.
Apesar desta violenta atitude, motivada pelo medo, ainda de maneira dialética, o
comerciante mostra que se lê como forte, tal como revela na quarta canção que entoa,
presente na cena 6, “Acampamento noturno” (Das Nachtlager):
O homem doente morre e o homem forte luta
E isso é bom
O forte é ajudado e ao fraco, ninguém ajuda
e isso é bom
deixe cair, o que cai, lhe dê, ainda, um pontapé
Porque isso é bom
Senta-se para comer aquele que conquista a vitória
e isso está bem assim
E o cozinheiro não conta junto os mortos depois da batalha
e ele faz bem assim
82
No original: “So überwindet der Mensch/ Die Wüste und den reißenden Fluß/ Und überwindet sich
selbst, den Menschen/ Und gewinnt das Öl, das gebraucht wird”.
67
E o Deus das coisas cria, como eles são, o Senhor e
o Criado,
e isso foi bom assim
e para quem as coisas vão bem, este está bem; e para quem as coisas vão
mal,
este está mal
e isso é bom assim
83
(BRECHT, 1967, p.808-808,tradução nossa)
Neste trecho, o comerciante reforça ainda mais o lema/tema de vida, e o
intensifica por meio da retomada das imagens do homem forte, que agora são ampliadas
para “o que é ajudado”, “o que se senta para”, porque é vitorioso, aquele para quem “as
coisas vão bem”, ou seja, o “Senhor”, em oposição ao homem fraco, àquele que
“ninguém ajuda”, “àquele que cai” e ainda recebe um pontapé, àquele para quem “as
coisas vão mal”, que não se senta para comer, pois faz parte dos “mortos depois da
batalha”, ou seja, o “criado”. Observa-se explicitamente a referência ao Senhor e ao
criado, que, neste contexto, são representados respectivamente pelo próprio comerciante
e pelo explorado cule. Nota-se, ainda, que esta temática também pode ser aproximada
ao Senhor (Deus) e o seu criado (o homem), até pela ênfase dada pela menção a Deus,
aquele que cria todas as coisas, presente no verso 11. Além disso, a utilização da
anáfora por meio da sentença proferida pelo comerciante: “E isso é bom [...]”
84
reforça
e sedimenta as atitudes que favorecem o Senhor, o homem forte, o comerciante, em
detrimento do homem fraco.
Seria normal, ou melhor, faria parte da regra que os fortes vencessem e fossem
glorificados. Mas à percepção do olhar do leitor a força desanda em crueldade, atitude
de exceção.
É, ainda, nas falas do comerciante que é possível entrever a discussão em torno
de conceitos como, por exemplo, forte/fraco e doente (stark/schwach und krank) e como
ele age diante disso, pois ao pensar consigo que seria uma boa idéia dormir na tenda
83
No original: „Der kranke Mann stirbt und der starke Mann ficht/Und das ist gut so/Dem Starken wird
geholfen, dem Schwachen hilft man nicht/Und das ist gut so/Lass fallen, was fällt, gib ihm noch einen
Tritt/Denn das ist gut so/Und der Koch nach der Schlacht zählt die Toten nicht mit /Und er tut gut so/Und
der Gott der Dinge, wie sie sind, schuf Herr und/Knecht!/Und das war gut so./Und wem’s gut geht, der ist
gut; und wem’s schlecht geht,/der ist schlecht/Und das ist gut so.“
84
No original: „Und das ist gut so“. GW, BII, p. 805-806. Trad. da autora.
68
com o cule, porque ao ar livre ele poderia ficar doente, ele diz para si: “Mas qual doença
poderia ser tão perigosa quanto o Ser Humano?”
85
.
Sendo assim, se ele se considera forte, conforme os poemas-canção (Lieder) que
entoa, e considera o cule o homem doente/fraco, pode-se relacionar a doença do cule ao
fato de ele ser “humano”, ou melhor, por possuir uma atitude humanitária, uma vez que
é esta atitude, à qual o comerciante se refere ao falar do Ser Humano (Mensch), que ele
descreve como doença. O comerciante age diante disto também com desconfiança, ou
seja, com medo de ser acometido por esta doença, pois no início da fala em que a
menciona, a última da cena 6, ele afirma “Confiar é tolice”
86
, que remete o leitor
imediatamente à desconfiança marcada no prólogo.
Apesar do medo desta doença, quer dizer, da contingência de se ser humano,
verifica-se que o comerciante discorre sobre o Ser Humano e/ou a Humanidade em dois
momentos: o primeiro se dá quando convida o guia para fumar, quando diz: “Tal
viagem aproxima humanamente
87
duas pessoas”
88
; o segundo momento é quando o
comerciante fala sobre a Humanidade
89
em uma argumentação que faz ao cule no
momento da travessia do rio e a usa de modo funcional, ou seja, inserida dentro de um
discurso argumentativo para convencer o explorado a atravessar o rio.
O comerciante ainda afirma que o bem-estar da Humanidade depende da viagem
que eles empreendem e pergunta se o carregador não irá cumprir a sua obrigação, pois
“[...] os olhos de todo [aquele] país estão voltados para [ele], um pequeno homem.”
90
.
Esta expressão ao mesmo tempo em que enaltece o progresso, e, consequentemente o
capital, diminui o homem. O comerciante, representante do progresso, neste enunciado
que profere, não só diminui o homem, como também, conforme mencionado, nas
agressões verbais e físicas, às quais o cule é submetido. Neste sentido, ao apresentar o
85
No original: “Aber welche Krankheit könnte so gefährlich sein, wie der Mensch es ist?“. GW, BII, p.
809.
86
No original: “Vertrauen ist Dummnheit”. GW, BII, p. 808.
87
Aqui, a “humanidade” tem a acepção de “sentimento de bondade, benevolência, em relação aos
semelhantes, ou de compaixão, piedade, em relação aos desfavorecidos”. Cf. Houaiss eletrônico.
88
No original: “Solch eine Reise bringt zwei Leute einander menschlich näher“. GW, BII, p. 798.
89
Neste contexto, a “Humanidade” é usada na seguinte acepção “o conjunto dos seres humanos”. Cf.
Houaiss eletrônico.
90
No original: „[...] die Augen dieses ganzen Landes gerichtet sind, auf dich, einen kleinen Mann“. GW,
BII, p. 805.
69
comerciante com determinadas atitudes e comportamentos - o pioneirismo, a
determinação, a implacabilidade, a astúcia, a agressividade-, Brecht indica que no rastro
do progresso está a barbárie, a desumanização do ser humano, a falta de razão,
presentificada pelo medo do comerciante de seus inimigos.
A inversão dos valores da e na justiça, na forma de opressão ao mais fraco,
também está presente, tendo em vista a resposta do comerciante à afirmação do juiz de
que ele, o explorador, não podia saber que o cule constituía uma exceção: “Tem-se que
seguir a regra e não a exceção”
91
.
Se por um lado, o comerciante faz parte de uma classe social, que é
fundamentada por valores pautados no dinheiro e no discurso religioso vazio, e que o
fazem agir de uma maneira doentia, paranóica, tendo em vista que a sua “mania de
perseguição” faz com que ele aja de maneira violenta, tornando-o um assassino, por
outro lado, na cena do julgamento, observa-se que é justamente o fato de o comerciante
pertencer a esta classe social abastada que o inocenta, pois, nas palavras do juiz: “O
carregador pertencia a uma classe que, efetivamente, tinha um motivo para se sentir
prejudicada”
92
, que seria mais do que “pura razão” (pure Vernunft) se proteger na
partilha da água e se vingar de seu carrasco, enquanto que o comerciante, por não
pertencer à mesma classe que o cule, tinha que prever o pior e que “A razão disse a ele [
comerciante], que estava sob forte ameaça”
93
. O juiz complementa: “o acusado agiu em
legítima defesa, indiferentemente se ele foi ameaçado ou apenas se sentiu ameaçado”
94
A dialética, mais uma vez instaurada, mostra que é por pertencer a uma
determinada classe social que o comerciante age de maneira violenta e se torna um
assassino, mas, ironicamente, é justamente por pertencer a esta classe que ele é
absolvido. Desta forma, a barbárie, a desumanização do ser humano, a falta de razão,
isto é, a exceção, é concebida como regra, estabelecida, na cena 9, pela justiça.
91
No original: „Man muß sich an die Regel halten und nicht an die Ausnahme“ GW, BII, p. 819.
92
No original:“Der Träger gehörte einer Klasse an, die tatsächlich einen Grund hat, sich benachteiligt zu
fühlen[...]“.GW. BII, p. 821.
93
No original: „Die Vernunft sagt ihm, daß er aufs stärke bedroht sei“. GW, BII, p. 821.
94
No original: „Der Angeklagte hat also in berechtiger Notwehr gehandelt, gleichgültig, ob er bedroht
wurde oder nur sich fühlen musste“. GW, BII, 821.
70
Em suma: O comerciante é um personagem construído em base dialética, em que
a exceção e a regra se evidenciam em seu comportamento. Observado por uma
perspectiva cultural ocidental e capitalista, ele é um indivíduo virtuoso, um sujeito
ousado, pioneiro, determinado, focado, competitivo, usuário de um discurso religioso
automatizado (e não questionado), tendo como alvo um ideal máximo: o petróleo, o
capital, dissimulado na justificativa do bem estar da humanidade. Contudo, olhado de
fora do sistema, apenas como pessoa, é uma figura dotada de um individualismo, que
atormentada pelo medo e pela insegurança, pois que obcecada pela obtenção de lucros
máximos, torna-se uma figura doentia. Contudo, esta doença também pode ser vista de
maneira ambígua e irônica, pois o fato de ser doente, “psicótico”, o tornaria vítima de
um “sistema” estabelecido e mantido justamente por pessoas como ele, ou seja, os
detentores dos meios de produção. Apesar de “doente”, o comerciante se adéqua
perfeitamente ao seu grupo social e estabelece que pessoas como o cule são exceção.
Apesar de ter seu negócio arruinado quando assassina o cule, conforme diz na cena do
julgamento, o comerciante percebe que o indivíduo individualista – ou seja, aquele que
age como ele, que detém os meios de produção, o capital, e que pensa e age de acordo
com uma lógica pautada pela violência e pela barbárie, pode realizar tudo, até pelo fato
de ter a justiça a seu lado, uma vez que a sentença proferida o absolve de seu crime. O
comerciante faz parte do grupo social que impele o homem a superlativos, que não se
contenta com comparativos de igualdade e que vitimam exceções, ou seja, aqueles que
não pertencem ao mesmo grupo social e que não agem da mesma forma do que ele. O
que, a princípio, parecia um comportamento exemplar – a regra -, ou seja, o se mostrar
virtuoso, ter um discurso religioso, ser determinado, pioneiro, no avesso, revela-se um
comportamento doente – a exceção. Ou seja: ao mostrar o que seria a regra aceita pelos
costumes, o dramaturgo indica que esta regra, de fato, é a exceção.
O Cule
“Ja, Herr”
“Sim, senhor”.
(BRECHT 1967: 802)
Em contraposição à figura do explorador, o comerciante, há um explorado, o
cule. Do início ao fim da peça o seu nome não é revelado. Sendo assim, o que o
determina é apenas sua condição social de oprimido e sua função social de carregador.
71
O cule está inserido em uma classe social que não detém os meios de produção.
Apesar de ser um trabalhador explorado, ele não é sindicalizado, fato que também o
caracteriza. O comerciante o chama de Faultier (animal preguiçoso), e, devido a sua
função social, podemos dizer que, para o explorador, ele é um animal de carga. Por ser
um trabalhador que não é sindicalizado, o cule demonstra não ter uma idéia de coletivo.
Este fato está ilustrado na passagem em que o cule diz:
O comerciante sempre diz que um serviço é prestado à
humanidade quando o petróleo é retirado da terra, que
haverá estradas de ferro e que o bem-estar irá se
espalhar. O comerciante diz que aqui haverá estradas
de ferro. Então, de que forma eu poderei viver?
(BRECHT, 1967, p. 799, tradução nossa).
95
Neste trecho, por mais que o cule demonstre uma visão de futuro, depreende-se
que é apenas do seu futuro – o que pode caracterizá-lo como um trabalhador que não
tem idéia de coletivo-, e pelo fato de estar preocupado com a sua sobrevivência, este
explorado não se dá conta de que sua atitude imediata, o prosseguimento da viagem,
ameaça essa sobrevivência tanto a longo prazo, pois com as estradas de ferro ele não
terá mais trabalho, quanto a curto prazo, pois o petróleo, como emblema do progresso,
também personificado pelo comerciante, corrobora o fato de que trabalhadores como
ele, ou seja, não sindicalizados, sejam os primeiros a serem eliminados no primeiro
movimento desta engrenagem, ação que se concretiza no caminho ao progresso, quando
o cule é assassinado. Desta forma, o petróleo que é o motivo de vida e ação do
comerciante, para o cule será o motivo de sua morte. Observa-se, ainda nesta cena, que
quando o guia explica o objetivo da viagem, ou seja, a especulação financeira, o cule
não compreende.
Outra marca que está presente nesta classe explorada, não-sindicalizada, aqui
representada pelo cule, é a reprodução de discursos. O cule reproduz os discursos, tanto
de seu explorador, o comerciante, conforme passagem acima mencionada, como de
95
No original: “Der Kaufmann sagt immer, dass der Menschheit ein Dienst erwiesen wird, wenn das Öl
aus dem Boden geholt wird. Wenn das Öl aus dem Boden geholt ist, wird es hier Eisenbahnen geben und
Wohlstand sich ausbreiten. Der Kaufmann sagt, es wird hier Eisenbahnen geben. Wovon soll ich dann
leben?“ GW, BII, p. 799.
72
outro explorado, o guia, que embora também seja um trabalhador, é sindicalizado, ou
seja, hierarquicamente está em uma melhor posição social em relação ao cule.
Por exemplo, na passagem abaixo, pertencente ao quadro 5, o cule reproduz o
discurso do guia, que antes o havia instruído para a travessia do rio, dizendo ao
comerciante:
O que nós vemos ali é o rio Mir. Nesta época do ano,
geralmente, não é difícil atravessá-lo, mas se ele estiver
cheio, ele se torna caudaloso e é muito perigoso. Ele
está cheio.[.....] Temos que esperar oito dias, para
atravessá-lo sem perigo. Agora como está, é perigoso à
vida.
96
(BRECHT, 1967, p, 804, tradução nossa)
Neste trecho, verifica-se que o cule usa as expressões Gefahr (perigo),
gefährlich (perigoso) e lebensgefährlich (perigoso à vida/muito perigoso), o que permite
deduzir que, apesar do medo que tinha do perigo, ele era, de certo modo, ingênuo, pois
não tinha a dimensão desse mesmo perigo, hesitava diante dele, conforme é mostrado
nesta cena, e apesar do conselho do guia, para que tivesse cuidado com o comerciante
antes de entrarem no deserto, não o segue. Neste ponto e neste personagem são
confrontadas determinadas expressões e ações, pois que ao reproduzir discursos, ao
invés de com isso expor aquiescência, o cule mostra, ou não compreender o que está
dizendo, não perceber, de fato, o real perigo da situação, ou, pelas circunstâncias, não
ter escolha, ou seja, por não estar sindicalizado, ser levado a se submeter ao
comerciante.
Além de o cule fazer parte deste substrato social, há características psicológicas
que o particularizam. A maioria destas características pode decorrer de sua condição
social de explorado não-sindicalizado, quer dizer, o cule é vítima do sistema em que
está inserido, embora, como se sabe, no momento em que Brecht o constrói com estas
características, tenha como intuito colocá-las sob o olhar crítico do leitor, para que este
realize transformações em sua realidade.
96
No original: “Was wir dort sehen, ist der Fluß Mir. Zu dieser Jahreszeit ist er im allgemeinen nicht
schwierig zu überschreiten, aber wenn er Hochwasser hat, reißt er sehr stark und ist lebengefährlich. Er
hat Hochwasser. […] Man muß oft acht Tage warten, bis man ohne Gefahr hinüberkommt. Jetzt ist er
lebensgefährlich.“
73
Não há nenhuma descrição física deste personagem, embora haja muitas
indicações nas rubricas para os gestos que deve fazer: ele sempre acena com um “sim”
(nickt), movimento gestual que denuncia a sua submissão. As características
psicológicas que o marcam são a submissão, a resignação, o medo, a ingenuidade e a
esperança.
O cule é submisso, porque se sujeita a duas hierarquias, ao guia, porque este é
sindicalizado, e ao comerciante, que paga o seu salário, como ilustra sua fala na cena 1,
quando afirma, dirigindo-se ao guia: “Bata em mim, mas não com toda a sua força,
porque se eu quero chegar a Estação Han, eu não posso empregar agora toda a minha
força”
97
. Neste trecho, o cule mostra uma submissão que alcança a resignação e quando
diz isso ao guia, o faz por dois motivos, porque está indiretamente obedecendo à ordem
do comerciante – que estava ameaçando o guia de demissão caso ele não batesse no
carregador, e porque é temeroso, pois tem medo de ficar sem emprego, salário e meio de
sobrevivência, pelo fato de não ser sindicalizado e por ter medo de que sua força de
trabalho se esgote antes de chegar a Urga.
Outra passagem da peça em que o cule demonstra medo de perder seus meios de
sobrevivência é em uma fala com o guia, quando este lhe oferece a garrafa de água. Diz
ele: “Desculpe-me. Ele não deve me ouvir falando com você, e se ele me dispensar, eu
estou perdido. [...] eu tenho que suportar tudo.”
98
. E, ainda, após ter seu braço quebrado
na travessia do rio, na cena 6, “Acampamento Noturno” (Das Nachtlager), o cule
demonstra mais medo, quando arma a tenda no momento em que eles param para
acampar. Esta atitude não é uma presteza ou solicitude gratuita, mas ainda o reflexo do
medo de perder o seu emprego e não ser pago, por não ser sindicalizado. O seu medo
beira a ingenuidade, pois neste momento em que o cule preparou a tenda, cortou a
grama, apesar do braço quebrado, e informou o comerciante de que a tenda estava
pronta, o comerciante estava entoando uma canção em que reforçava as diferenças entre
o “homem forte” e o “homem doente” e a rubrica mostra que está desconfiado com o
cule pela possibilidade do explorado ter ouvido a canção. A sua ingenuidade está no
fato de que, no momento em que o comerciante está ratificando que o “homem doente”,
97
No original: “Schlag mich, aber nicht mit deiner äußersten Kraft, denn wenn ich bis zur Station Han
kommen will, darf ich meine äußerste Kraft jetzt noch nicht einsetzen”. GW, BII, p. 796.
98
No original: „Tu es lieber nicht. Er darf nicht mit mir reden hören, und wenn er nicht davon jagt, bin
ich verloren. […] ich muss alles gefallen lassen”. GW, BII, p. 801.
74
o cule, morre e o “homem forte”, o explorador, luta, o cule está preocupado com o fato
de ter feito ou não o seu trabalho direito, por ter tido o seu braço quebrado.
O fato de o cule não falar muito ainda é um traço desta submissão, confirmada
pelo enunciado proferido pelo comerciante, na cena 4, denominada “Conversa em uma
região perigosa” (Gespräch in einer Gefährlichen Gegen), quando o comerciante, ao
falar sobre o cule, diz: “Ele quase não fala. Isso é o pior.”.
99
Porém, quando fala, o cule
emprega comumente os verbos sollen (dever, no sentido de obter conselho, ou como
sinal de obediência). O verbo sollen, empregado no sentido de obter conselho, é usado
pelo cule, por exemplo, quando ele pergunta ao seu explorador se deve fazer algo,
quando pergunta ao leitor o que deve fazer antes da travessia do rio, ou, ainda, quando
discorre sobre o caminho, reproduzindo o que o guia lhe dissera, ou seja, que eles
devem esperar oito dias pela travessia do rio, e que para chegar a Urga, eles deveriam
seguir os poços de água. Há, ainda, o emprego do verbo können, usado em negação,
nicht können (não poder, não ter capacidade de), quando diz que não consegue nadar
direito, ou quando diz que não conseguiu cortar a grama para forrar o chão da tenda,
mostrando o quanto se sente incapaz.
Outra atitude corporal que se pode deduzir do cule são os olhos baixos – ainda
uma característica de submissão-, mostrada pelo viés de uma fala do comerciante na
cena 6, “Acampamento noturno” (Das Nachtlager), quando o explorador lhe diz: “E eu
desejo também olhar nos olhos de um homem, quando eu falo com ele”.
100
Estes “olhos
baixos” corroboram a caracterização do cule como um indivíduo demasiadamente
submisso. Esse gesto o prejudica, fazendo com que o explorador desconfie dele, pois
para o explorador, o “olho por olho” é uma espécie de código, de como ele age, ou seja,
uma regra, que ele espera que os outros sigam, mas que o cule, contudo, não segue,
tornando-se para o seu explorador uma exceção.
O cule usa de maneira recorrente a expressão hoffentlich (esperançosamente)
empregada no texto apenas por ele -, ou seja, apesar dos perigos da viagem, ele tem
esperança de que tudo dê certo. O fato de o cule ser esperançoso, resignado, temente e
submisso/obediente, faz com que se possa aproximá-lo da figura de um suplicante,
devido às aflições por que passa, às situações que tem de suportar ao longo de toda a
99
No original: „Er spricht auch nichts. Das ist die Schlimmsten“. GW, BII, p.804.
100
No original: “Und ich wünsche auch einem Mann in die Augen zu sehen, wenn ich mit ihm spreche”.
GW, BII. p. 808.
75
viagem e que, além e apesar dos sofrimentos, teme ao (seu) Senhor e é esperançoso,
pois acredita bastar fazer o seu trabalho de modo correto para ter seu salário e
reencontrar a sua mulher e seus filhos.
A canção entoada pelo cule na cena 4 “Conversa em uma região perigosa”
(Gespräch in einer gefährlichen Gegend) mostra o cule comentando os seus
sofrimentos, reiterando as esperança nas recompensas que supostamente estão em Urga.
Ao abrir a cena cantando, o cule é, entretanto, interrompido sistematicamente pelo
comerciante, que não compreende o motivo de sua felicidade, uma vez que, em sua
visão, a condição de vida de carregador não deveria lhe trazer motivos para cantar. A
canção é assim apresentada:
Eu vou para a cidade de Urga
Eu vou para Urga sem parar
Os ladrões não me impedem de [chegar] a Urga
O deserto não me impede de voltar a Urga
Há comida e salário em Urga
(interrupção feita pelo comerciante, a que o cule responde: Sim, Senhor. e
continua a cantar)
As estradas são fatigantes até Urga
Esperançosamente meus pés irão agüentar o caminho até Urga
Os sofrimentos são imensos até Urga
Mas em Urga há descanso e salário
(Interrupção feita pelo comerciante)
Também minha esposa me espera em Urga
Também meu pequeno filho me espera em Urga
Também....
(término da canção a pedido do comerciante e o cule responde:
Sim,Senhor).(BRECHT, 1967, p, 802-803. tradução nossa)
101
Neste excerto nota-se que há a repetição em todos os versos e estrofes do nome
da cidade, Urga, destino almejado pelo carregador, e a referência, em cada estrofe às
recompensas, ao trabalho, ao salário, à esposa e filhos.
101
No original: “Ich gehe nach der Stadt Urga/Unaufhaltsam gehe ich nach Urga./Die Räuber halten mich
nicht ab von Urga./Die Wüste hält mich nicht zurück von Urga./Essen gibt es in Urga und
Lohn/(interrupção)/DER KULI Ja, Herr. Er singt wider/Die Straßen sind beschwerlich bis
Urga/Hoffentlich halten meine Füße durch bis Urga/Die Leiden sind unermesslich bis Urga/Aber in Urga
gibt es Ausruhen und Lohn/(interrupção)/Aber in Urga gibt es Ausruhen und Lohn/Auch meine Frau
erwartet mich in Urga/Auch mein kleiner Sohn erwartet mich in Urga/Auch…../“ (término da canção a
pedido do comerciante e o cule responde: Ja, Herr).
76
Neste trecho, o cule parte do destino, Urga, mostra o panorama geográfico
maior, o deserto e o caminho pelas estradas, e volta para o destino específico.
As duas primeiras estrofes assemelham-se entre si, pois apresentam os
obstáculos para o alcance do destino da viagem, ou seja, na primeira, os “ladrões” e o
“deserto” e, na segunda, as aflições e “os sofrimentos”, e encerram o último verso da
mesma maneira, ou seja, com a descrição da “recompensa”. Nos dois casos, após a
apresentação dos obstáculos para se chegar a Urga, aos últimos versos, especialmente o
da segunda estrofe que se inicia com a conjunção “mas”, são contrapostos o descanso e
o salário.
Há a ampliação desta recompensa das primeiras duas estrofes para a terceira,
pela menção à esposa e a um filhinho, que justificam e validam o sacrifício feito pelo
cule, na travessia do deserto, bem como sua esperança em reencontrá-los.
Os elementos que compõem esta canção: a repetição da expressão Urga, alguns
paralelismos, a referência aos sofrimentos, a menção aos seus pés que “suportarão” o
caminho até lá e a referência aos ladrões e ao deserto são semelhantes aos apresentados
por um peregrino suplicante, e reforçados com a expressão “esperançosamente”
(Hoffentlich). É na transposição do Senhor Deus (Herr Gott) e do serviçal ser humano
(Knecht Mensch) para o Senhor patrão (Herr Ausbeuter) e o seu serviçal explorado
(ausgebeutende Knecht), que o dramaturgo cria uma agudeza de sentido ao leitor,
principalmente nas interrupções do comerciante, às quais o cule, dentro do discurso
direto, responde: “Sim, senhor” (Ja, Herr), isto é, assim como um peregrino suplicante,
o cule mostra que teme
102
seu Senhor patrão.
Esta agudeza, entremeada às circunstâncias dadas na peça, ou seja, o temor do
cule de perder o seu emprego e do comerciante, nesta cena, de ser alvo de bandidos, ao
mesmo tempo em que refletem em negativo o temor bíblico a Deus, ratificam o temor
ao Senhor secularizado, o comerciante.
102
Neste caso, a acepção usada para o verbo temer é: “sentir medo ou temor de; recear.”Cf. Dicionário
Eletrônico Houaiss da Língua Portuguesa. Versão digital1.0. Copyright 2001. Instituto Antonio
Houaiss – Produzido e distribuído por Ed. Objetiva LTDA.
77
Se, na primeira canção, o cule apresenta comentários acerca de sua vida e do
caminho que percorre, e demonstra confiar que tudo dará certo, na segunda, na travessia
do rio, no momento em que hesita, o cule torna-se narrador.
Esta segunda canção, entoada pelo cule, difere completamente em relação à
estrutura e função da canção anterior, uma vez que traz como objetivo distanciar
também o próprio leitor que se identifica com o cule (e – o ator- a pessoa do
personagem que representa). Na cena 5, “À margem do rio caudaloso” (Am reissenden
Fluß), o cule pergunta a si o que deve fazer e canta:
Aqui está o rio
Atravessá-lo é perigoso
À sua margem, estão dois homens
O primeiro quer atravessá-lo, o outro
Hesita. O primeiro é corajoso?
O outro é covarde? Do outro lado do rio
O primeiro tem um negócio.
O primeiro passa por cima do perigo
Ele anda sobre sua propriedade
Ele come comida fresca
Mas o outro passa por cima do perigo
ofegante no nada
Um novo perigo, o recebe,
o debilitado,
Os dois são corajosos?
Os dois são prudentes?
Ah! D rio que vencem junto
Não saem dois vencedores
Nós e: eu e você
Isso não é o mesmo
Nós conquistamos a vitória
E você me venceu.
103
(BRECHT, 1967, p.805-806, tradução nossa)
Nesta canção, o cule se distancia quase que completamente de si mesmo, quando
se torna um narrador, quando fala de si em 3ª pessoa. Quando o cule se distancia de si
mesmo, ele também faz com que o leitor se distancie da situação representada. O
distanciamento do cule, nesta canção, aponta para a diferença de classes, exemplificada
por aquele que “anda em sua propriedade” e “tem um negócio” que o espera do outro
103
No original: „Hier ist der Fluss./Ihn zu durchschwimmen, ist gefährlich./An seinem Ufer stehen zwei
Männer./Der eine durchschwimmt ihn, der andere/Zögerst. Ist der eine mutig?/ist der andere feige?
jenseits des Flusses/hat der eine ein Geschäft./Aus der Gefahr steigt der eine/Aufatmend an das eroberte
Ufer/Er betritt sein Besitztum/Er isst neues Essen/Aber der andere steigt aus der Gefahr/Keuchend ins
Nichts./Ihn empfängt, den Geschwächten/Neue Gefahr. Sind sie beide tapfer?/Sind sie beide weise?/Ach!
Aus dem gemeinsam besiegten Fluss/Steigen nicht zwei Sieger./Wir und: ich und du/Das ist nicht
dasselbe./Wir erringen den Sieg/Und du besiegst mich.“
78
lado do rio, em contraposição àquele que não está nas mesmas condições, e que
“debilitado”, ao atravessar o rio, recebe o perigo. Cabe lembrar que, para o dramaturgo,
o comportamento humano é apresentado no teatro-épico como sendo suscetível de
transformação e o homem, como dependente de determinadas condições sócio-
econômicas, condições que é capaz de modificar.
104
Portanto, ao distanciar o cule e
apresentá-lo como narrador, o dramaturgo não só distancia o ator que representa este
papel, mas distancia também o leitor, sugerindo que este, assim como cule, tenha
consciência de sua condição e seja capaz de olhá-la de maneira crítica para que possa
alterá-la.
O cule só não se distancia completamente de seu personagem, porque na última
estrofe
105
ele volta a usar o pronome pessoal “nós” (Wir), que o inclui, mas sem,
contudo, deixar de distanciar a situação. Ao retomar o “nós” (Wir), proferido também
pelo comerciante nesta mesma cena, o cule mostra uma separação entre o “eu” (Ich), o
cule, e o “você” (dich), o comerciante, delineando claramente a linha que os separa, ou
104
BRECHT, Bertolt. Estudos sobre Teatro. São Paulo, Ed. Nova Fronteira, 2005. p. 228.
105
A última estrofe foi reutilizada por Brecht no roteiro que escreveu para o filme Kuhle Wampe oder
wem gehört die Welt? (Kuhle Wampe, ou a quem pertence o mundo?), em 1931, filme que, conforme
mencionado, o autor elabora após ter perdido os direitos autorais para a filmagem de Die
Dreigroschenoper” (A ópera dos três vinténs). Kuhle Wampe oder Wem gehört die Welt? estreou em
Berlim, em 1932, mas foi censurado pela polícia. O filme trata do desemprego que assola a Alemanha
após a queda da bolsa, em 1929, da questão do suicídio dos trabalhadores pela falta de emprego, da
organização dos trabalhadores para os eventos esportivos, organização que poderia ser usada para um
movimento social que se apropriasse dos meios de produção, e, finalmente, na última cena, apresenta
uma discussão, que se inicia com o café do Brasil. Ao voltarem do evento esportivo, todos os
trabalhadores que estão no trem urbano (S-bahn) ouvem um homem, com barba, que, ao ler um jornal,
fica indignado com o fato do Brasil estar queimando café. A partir deste comentário, surge, então, uma
grande discussão, que coloca em pauta a relação do café brasileiro e a situação da Alemanha, que inclui,
notadamente, a compreensão de que tudo faz parte da política e economia mundiais. A cena pertence ao
oitavo ato e é intitulada Potilisches Gespräch in der S-Bahn (Conversa política no S-Bahn). O homem de
barba diz: „In Brasilien haben se 24 Millionen Pfund Kaffe verbrannt.“(Eles queimaram 24 milhões de
toneladas de café no Brasil.). Quando começa a discussão, ele segue: “[...] Warum haben se das
jegemacht? Weil se de Kaffeepreise hochhalten wollen“ (Porque eles fizeram isso? Porque querem o
preço do café alto), e completa: ‘Sehn Se!’ Wir müssen die hohen Preise bezahlen!”(Vejam! Nós temos
que pagar o preço alto!). Frase a que um homem, de colarinho e com um chapéu na mão responde,
gesticulando: “Wenn wa ‘ne Flotte hätten, dann hätten wa ooch Kolonien. Wenn wa Kolonien hätten,
dann hätten wa ooch Kaffee. Und wenn wa Kaffee hätten….“(Se nós tivéssemos uma armada, então nós
teríamos colônias. Se nós tivéssemos colônias, então nós teríamos café. E se nós tivéssemos café....)Ouve-
se a voz do homem de barba que pergunta qual seria, então, a valiosa opinião deste senhor de colarinho, e
este responde: “[...] machen wir doch das Gechäft!”( Façamos o negócio!). Neste momento, Kurt, um dos
protagonistas, responde ao senhor de colarinho: “Ich höre immer ‘wir’. Wer is’n das: Wir? Sie und
ich?(Eu sempre ouço ‘nós’. Então, quem é este “Nós”? Eu e o senhor?Ele olha em outra direção e
diz: “Und der Herr da?” (E o senhor aqui?) Olha para outra direção “Und die Dame da?”(e a
senhora lá?) em outra direção “Und der olle Mann da? (e aquele pobre homem ali?) e prossegue:
“Also: ‘wir’ machen das Geschäft. (Então, ‘nós’ fazemos o negócio) e, finalmente, diz ao homem de
colarinho: Mensch, das glauben Sie doch selber nicht! (Homem, nem o senhor mesmo acredita
nisso!). IN: GERSCH, Wolfgang;HECHT, Werner (Hrgs).Texte für Filme. Berlin und Weimar, Ed.
Aufbau, 1971. p 175-185.
79
seja, que o vencedor, de fato, será o comerciante. É com este jogo entre distanciamento
e identificação que Brecht faz mover, mais uma vez, o seu “modelo de ação”, não só
dentro do texto, mas principalmente diante do leitor, e, no caso desta canção, do ator
diante da situação apresentada.
A submissão mencionada não é apenas em relação às ordens, mas nota-se na
cena 7, “A água partilhada”, que o cule se submete à violenta e latente força física do
“homem forte”, do comerciante, do explorador, quando este espanca e tortura o cule
como melhor lhe convém até o ponto de assassiná-lo.
A cena 7, “A água partilhada” (Das geteilte Wasser) é dividida em 3 partes, a, b
e c. Na parte a, o cule confessa que não sabe seguir o caminho, e ao fazê-lo já diz ao
Senhor patrão para que ele não bata em seu braço machucado, ou seja, ele já espera ser
punido. Nesta parte, o cule confessa que, na Estação Han, disse haver compreendido o
caminho, porque teve medo de ser demitido. O comerciante não lhe dá ouvidos, afirma
que sabe que o carregador já fizera o caminho uma vez, e ordena que ele siga, embora
ainda não o açoite.
Na parte b, o cule é torturado. O comerciante pára e pergunta pela direção que
estão seguindo, pois, pelo caminho trilhado, eles estariam seguindo para a direção Norte
em vez da Leste, onde estariam os poços de água. Nota-se que o comerciante tampouco
sabe o caminho, mas mesmo assim não só opina, como ordena, e, a partir deste
momento, começa a bater no cule para que sigam em outra direção. O cule segue na
direção indicada e o comerciante continua batendo nele, dizendo que ele ainda não
estava na direção correta, subentende-se que o explorador mostra outra direção, a qual o
cule não seguia, e faz com que ele confesse, novamente sob espancamento – neste
momento uma tortura, pois o cule está com o braço machucado-, que estava indo para
esta nova direção. Embora já se saiba desde a primeira parte da cena, que o carregador
não sabe a direção dos poços de água, o explorador pergunta novamente, e o cule, por
duas vezes, se cala, e apanha tanto, que chega a declarar o que o comerciante já sabia,
ou seja, que disse conhecer o caminho por medo de perder o emprego.
Ao perguntar, ainda uma vez, se ele realmente sabe, o cule confessa, repetindo,
assim como fez na primeira parte da cena, que não sabe. Finalmente, o comerciante pára
de surrá-lo, retira a garrafa de água do explorado e diz que a água deveria ser apenas
80
dele, mas que irá partilhá-la com o cule. O título deste quadro, conforme indicado, é “A
água partilhada”, o que chama a atenção para este ponto da cena, pois o comerciante,
quando busca se mostrar amigável com o cule e “ajudá-lo”, o faz prejudicando-o, ou
seja, a “ajuda” se dá através da violência, enquanto o tido como regra, o homem ajudar
o homem, é vertido para a exceção, porque após ser coagido, pelas sucessivas surras
dadas pelo comerciante, este partilha a água que pertencia, de fato, ao outro.
Conforme mencionado, há outros momentos da peça em que o cule é “ajudado”
pelo comerciante. O primeiro ocorre antes da travessia do rio, pois o explorador, com a
“ajuda” de um revólver, faz com que o cule atravesse o rio e o segundo acontece na
própria travessia, pois o cule quebra o braço, conseqüência desta “ajuda” dada pelo
comerciante. É nítido que esta ajuda não acontece por um sentimento humanitário, mas
sempre visa a um interesse. Nas passagens da travessia do rio, se o cule não atravessasse
ou não sobrevivesse, o comerciante não teria como carregar as suas coisas e prosseguir
viagem, e, no terceiro caso, nesta cena 7, após bater no cule e tomar a sua água, o
próprio explorador diz que não deveria ter batido no carregador na situação em que está
- ou seja, com o braço quebrado -, enunciado que indica tanto o medo do comerciante de
que o cule se rebele, quanto o fato de que, ao dar de beber ao carregador, o explorador
quer que ele se recupere para que possam prosseguir a viagem. Neste sentido, ao longo
da peça e principalmente neste quadro, “A Água partilhada”, observa-se que o cule é
considerado por seu explorador também como um objeto, sistematicamente submetido à
sua violência.
A parte c é um clímax da peça, que acontece com a morte do cule. Desta cena,
destacam-se dois pontos: o primeiro, apresentado em uma rubrica, indica o
comportamento do carregador ao oferecer a garrafa de água ao comerciante; e o
segundo, o motivo que faz com que o cule ofereça água ao comerciante.
No primeiro ponto, o carregador cala-se ao oferecer água ao comerciante. A
rubrica que lhe é sugerida neste momento é “Calado, ele oferece-lhe a garrafa.
106
, ou
seja, neste importante momento o cule não se manifesta. A meu ver, ao “calar” o
carregador nesta passagem, Brecht mostra outra contradição, porque se este explorado
agisse diferente, como faz, por exemplo, na parte a, quando disse inutilmente ao
comerciante que não sabia o caminho, possivelmente isso tamm não o salvaria,
106
No original: „Er hält ihm schweigend die Flasche hin”. GW, BII, p.812.
81
porque, conforme ilustrado na parte b, o explorador, quando quer impor a sua força o
faz, ainda que não tenha motivos para isso.
No segundo ponto, ou seja, o motivo que faz com que o cule ofereça água ao
comerciante mostra que o explorado não age por um sentimento humanitário, mas pelo
medo de ser processado.
Nesse sentido, o cule, assim como o comerciante, age também movido/motivado
por seu medo, que fornece material para a insustentável argumentação
107
do juiz contra
o explorado: “[ter] medo é uma prova de razão [...]. O senhor não podia saber que o cule
constituía uma exceção.”.
108
A exceção, ou seja, a suposta ausência de medo do cule a
tomar forma de regra legal, isto é, o medo, fundamentado pela razão, nas palavras
proferidas pelo juiz.
Nesta parte c, outra questão depreendida é o processo jurídico. É não apenas
irônico, como também contraditório que o que cause a morte do cule seja o medo do
processo, e que, mesmo depois de morto, ele seja julgado e seja considerado culpado
(pela sua própria morte!), e não o comerciante, quem, de fato, o assassina.
Quando apresenta o julgamento de um morto, penso que Brecht tanto pontua e
reforça o fato de a classe menos favorecida, os explorados, ser frequentemente
prejudicada pelo Estado, representado na peça pela Justiça, quanto abala a ideologia
teológica, que vê a morte como salvação dos homens de bem, pois, como se observa
neste caso, apesar de o cule ser bom e temer ao (seu) Senhor, como indica a primeira
canção entoada por ele, é julgado e condenado.
Apesar de, no julgamento, o cule ser considerado umNarr”, bobo/ desprovido
de razão, por não demonstrar o seu medo e, em decorrência disso uma exceção, o leitor
verifica que, de fato, o cule não é uma exceção, pois o que o impele a agir do início da
peça até o momento em que é assassinado é tão somente o medo, quer de perder o
emprego, quer de não receber salário, quer de ser processado.
Em suma: O cule não é construído de maneira dialética, como acontece com o
comerciante. Do início da peça até o momento em que é assassinado, ele age pelo medo
107
O desenvolvimento desta argumentação encontra-se na parte dedicada à análise do juiz.
108
No original: “Furcht [zu] haben, ist ein Beweis von Vernunft [...] Sie konnten nicht wissen, daß der
Kuli eine Ausnahme bildete.“ GW, BII, p. 819.
82
de não receber o seu salário. Pelo fato de não ser sindicalizado, ou seja, pelas suas
condições sociais, o cule, a princípio, não teria outra saída a não ser a de ser submisso e
obediente, como suas ações deixam claro. Porém, é justamente quando mostra que as
ações submissas e subservientes levam à eliminação, à morte, assim como a ausência de
uma idéia de coletivo, que o dramaturgo indica a necessidade de transformação dessas
ações, diante das circunstâncias dadas, o progresso, e a transformação destas ações
levaria, consequentemente à transformação da sociedade. Quando apresenta que a
exploração deste indivíduo até a sua morte sempre ocorreu e torna a acontecer, Brecht
historiciza a vitimação da classe menos favorecida e deixa entrever que este indivíduo
vitimado é o verdadeiro protagonista da História.
O Guia
“ist Menschlichkeit eine Ausnahme
“A humanidade é uma exceção”
(BRECHT, 1967, p. 820)
O guia (Führer) é o outro personagem explorado, que também não tem um nome
e é determinado pela sua condição e função social. Não há nenhuma descrição física
nem corporal de sua figura. Ele se diferencia do cule porque é sindicalizado e mostra
um comportamento questionador, indagador e contestador. Ele é perspicaz, pois observa
a mudança no tom da voz e no comportamento do comerciante na Estação Han, é um
explorado que tem idéia de coletivo, pois entrega uma garrafa de água ao cule, quando o
deixa sozinho com o comerciante na travessia do deserto; seu comportamento se divide
entre a reflexão e a ação, pois, no julgamento, age ao levar a prova que inocenta o cule,
mas, por outro lado, ao ser pressionado pelo juiz, diz que o carregador não teria motivo
para dar de beber a seu inimigo. Quando age ao levar a prova ao tribunal, o guia acaba
por ser uma exceção, pois é o único que busca mostrar que o cule é inocente, mas ao
longo do julgamento, principalmente com a pressão feita pelo juiz ao interrogá-lo, o
guia segue a regra, ou seja, o medo o leva a concordar com as afirmações do juiz em
relação ao cule.
Assim como o cule, ele pertence à classe menos favorecida, ou seja, também é
um explorado, mas pelo fato de ele ganhar mais que o cule, pode-se considerar que o
83
guia está hierarquicamente acima do outro explorado. É o comerciante quem reforça
esta hierarquia, tradicionalmente aceita, quando profere: “Sim, você é um homem
melhor, você recebe mais e não precisa carregar nada.”.
109
Em uma camada psicológica, nota-se que o guia é perspicaz, pois percebe a
mudança no tom de voz do comerciante, após eles terem passado pelo posto policial, e
teme que o explorador planeje algo contra os explorados bem como suas prováveis
maldades: “Eu temo que ele planeje algo contra nós. Ele segue muito ensimesmado.
Novos pensamentos, novas maldades“.
110
Esta passagem mostra indícios de que o guia
também tem medo do seu Senhor patrão, pois prossegue afirmando: “Eu e o cule temos
sempre que agüentar o que ele trama. Porque senão ele não nos paga o salário ou nos
demite no meio do deserto”.
111
O guia ainda se mostra perspicaz, quando observa que o cule talvez não tenha
compreendido o caminho no momento em que parte sozinho com o comerciante pelo
deserto, o que acontece de fato. Ele percebe a peculiaridade da intenção da fala do
comerciante ao dividir o tabaco, porque ao dizer “nosso tabaco” (Unser Tabak), o
explorador busca conquistar a sua confiança antes de entrarem no deserto, e o guia usa a
mesma expressão para criticar essa intenção, que é a de o comerciante fazer com que o
guia acredite em uma amizade, quando, de fato, o explorador está preocupado com uma
rebelião . O guia contesta as atitudes do comerciante, quando este resolve arrancar a
correia da bagagem, e faz isso também ao responder à indagação do explorador acerca
dos motivos que fazem com que acredite que ele “incita o pessoal” (das Personal
aufhetzt). O único motivo plausível para que o comerciante acredite que o guia é um
perigo, ou seja, que pode incitar “o pessoal” é o mesmo motivo pelo qual o guia é
questionador, indagador, ou seja, o fato de ele ser sindicalizado. Por outro lado, na peça,
este fato parece não ser preponderante, porque assim como o cule, o guia teme o seu
explorador, tem receio de que este não lhe pague o devido e do que ele pode sofrer no
deserto, submete-se às vontades do comerciante –quando bate no cule, por exemplo, e o
fato de ele ser sindicalizado não impede que ele seja demitido. Neste sentido, o fato de o
guia ser sindicalizado, por um lado, reforça o temor do comerciante por uma rebelião,
109
No original: “Ja, du bist ein besserer Mann, du verdinst mehr und brauchst nichts zu tragen.“ GW,
BII, p. 798.
110
No original: “ Ich fürchte, er plant etwas mit uns. Er geht viel herum, in Nachdenken versunken. Neue
Gedanken, neue Gemeinheiten.“ GW, BII, p. 797-798.
111
No original: “Was immer er ausheckt, ich und der Träger müssen es aushalten. Denn sonst zahlt er uns
den Lohn nicht oder jagt uns fort mitten der Wüste.“ GW, BII, p. 798.
84
mas por outro, este temor é infundado, porque como sindicalizado, o guia não se mostra
articulado, no sentido de incitar e se organizar com outro explorado, para, de fato, se
rebelar contra o seu explorador.
Pode-se dizer que o guia é mais informado que o cule, porque é ele quem fala ao
cule sobre a negociata do comerciante, afirmando que se ele segue até Urga em busca
do petróleo, é para especular e não pelas estradas de ferro e o bem-estar geral da
humanidade, embora se note, nesta mesma passagem da peça, que, assim como o cule,
ele não compreende como funciona a especulação. Ele é o único que conhece o caminho
até Urga, ensina-o ao cule e o instrui acerca da travessia do rio, instrução seguida à risca
pelo carregador.
Quando o guia questiona o motivo de sua demissão, observa-se que ele busca o
esclarecimento das situações, e, por possuir esta característica, leva a prova da inocência
do cule, o cantil de água, ao tribunal. No entanto, ele oscila entre esse comportamento
questionador, que o impele, muitas vezes, à ação, e a reflexão, pois, no início da cena 9,
“Julgamento” (Gericht), quando recebe o conselho do estalajadeiro para que deixe a
prova guardada na bolsa e não seja incluído na lista negra (schwarze Liste), ele diz quer
irá pensar (bedenken) no conselho, mas termina por entregá-la. Esta reflexão parece lhe
ser útil ao longo do julgamento, porque é possível notar uma gradativa mudança de seu
comportamento nesta cena, resultado também de sua perspicácia, onde rapidamente
compreende que a justiça não será feita. O ponto de mudança se dá quando o guia é
chamado a depor e o juiz pergunta o motivo pelo qual o cule deu de beber ao
explorador, quando o guia responde: “Ele acreditava que o comerciante tinha sede. Os
juízes riem. Aparentemente por humanidade. Os juízes riem novamente. Talvez por
tolice, pois eu acredito que ele não tinha nada contra o comerciante.”.
112
Assim, nota-se
que a mudança de posição do guia é decorrente da reação dos juízes, pois ao discorrer
sobre este motivo, o condutor parte da sede, segue para a humanidade e termina com a
tolice, alterando esses motivos em meio às risadas dos juízes.
Até este momento da reação dos juízes, observa-se que o guia ainda parece agir
de acordo com a sua honestidade e com a verdade, apesar da pressão do juiz que quer
encontrar um motivo para provar que o cule era um “homem rebelde” (aufsässiger
112
No original: “Wohl er glaubte, daß der Kaufmann Durst habe. Die Richter lächeln sich an.
Wahrscheinlich aus Menschlichkeit. Die Richter lächeln wieder. Vielleicht aus Dummheit, denn ich
glaube, er hatte gar nichts gegen den Kaufmann“. GW, BII, p. 819.
85
Mensch) e que tinha ódio do comerciante, pois, em um dos seus primeiros depoimentos,
o guia continua afirmando que o carregador suportava tudo pelo medo de perder o seu
emprego.
Porém, as circunstâncias do andamento do julgamento reforçam a ambigüidade
das atitudes do guia, que ficam entre a razão e a reflexão e é justamente esta
ambigüidade que parece favorecê-lo, pois quando o juiz lhe diz: “Responda. E não
hesite sempre em suas respostas! A verdade vem à tona de qualquer jeito”
113
, o guia
passa a relativizar o que dizia até aquele momento, e afirma que só os acompanhou até a
Estação Han. Neste sentido, ao relativizar esta última afirmação, o guia demonstra
compreender que a “verdade” será determinada pelo juiz e se ele não estiver de acordo
com ela, também poderá ser julgado e condenado.
A partir da reação dos juizes à resposta dada sobre os motivos que o cule teria
para dar de beber a seu explorador, o guia, no tribunal, apenas concorda com o que é
dito e chega até mesmo a assentir com o juiz, que afirma que não seria razoável o cule
dar de beber ao seu inimigo. Porém, na última frase que profere, dirigida ao condutor da
segunda caravana, verifica-se que o guia não concorda com o que se passou no
julgamento, pois ainda que a demonstração da prova lhe traga prejuízos, ele diz: “Eu
tinha que dizer a verdade.”.
114
Embora tenha dito a verdade, ele não consegue mantê-la pelas circunstâncias do
julgamento, ou melhor, muda de posição diante do juiz, e é essa mudança, motivada
pelo medo de ter o mesmo destino que o cule, que, ao contrário deste, o mantém vivo.
Se o cule é morto ao oferecer a água pelo medo de ser processado, o guia se mantém
vivo também pelo medo, ou seja, é o medo que faz com que ele “esteja de acordo”
(Einverständnis) com o que se passa no tribunal, uma vez que se apresenta sozinho em
defesa do cule.
Diante da sentença proferida pelo juiz, que é a forma concreta da regra, destaca-
se a resposta do guia em forma de canção, a única por ele entoada, que enforma a
exceção:
113
No original: “Antworten Sie. Und besinnen Sie sich nicht immer auf Ihre Antworten! Die Wahrheit
kommt ja doch heraus.” GW, BII, p. 815.
114
No original: „Ich mußte die Wahrheit sagen.” GW, BII, p. 820.
86
No sistema que vocês fizeram,
A humanidade é uma exceção
Quem se mostrar humano
Este será prejudicado.
Temam aquele, que
lhes parecer amigável
Segurem-no
Este quer ajudar alguém
Alguém tem sede ao seu lado: feche rápido os olhos!
Tapem os ouvidos: se alguém geme ao seu lado!
Não saia do lugar: se alguém lhe pede ajuda!
Sofre aquele que se esquece disso! Ele
dá de beber a um homem, e
quem bebe é um lobo.
115
(BRECHT, 1967, p. 820)
Ao proferir estas palavras, o guia, assim como o cule em sua segunda canção,
distancia-se de si mesmo, para observar criticamente o que se passou no julgamento,
pois ao fazer menção à fábula, acaba por apresentar a síntese do enredo. E, neste
distanciamento, é construído também o elo de ligação deste poema-canção, com o
prólogo e o epílogo, pois além de se retomar o tom de conselho e instrução, pelo uso
dos verbos Fürchtet (temam), Haltet...zurück (segurem), schließe (feche), Verstopft
(tapem), todos no imperativo, o guia também retoma a idéia de humanidade
“desumanizada”, apresentada no prólogo, que é uma resposta à regra, pronunciada
anteriormente pelo juiz. Assim como a segunda canção entoada pelo cule, esta canção
entoada pelo guia tem a função de impedir que o leitor (e também a pessoa) se
identifique com o que lê (ou representa) e transforme a realidade em que vive, pois
quando o guia mostra a humanidade pelo negativo, ou seja, que ela é a exceção, que o
homem não deve ajudar homem e que o Ser humano é um lobo, que o guia suplica pelo
que deveria ser a regra, isto é, a necessidade de humanidade, ou melhor, a ajuda do
homem pelo homem.
Nesta canção, é possível verificar que a posição do condutor como narrador é
ainda ratificada pela menção ao lobo e à água, que remetem o leitor diretamente à fábula
“O lobo e o cordeiro”, de Esopo, que será tratada no próximo capítulo deste estudo e
remete também às feras predadoras, no caso, o lobo, comparado ao comerciante. As
115
No original:In dem System,das sie gemacht haben/ist Menschlichkeit eine Ausnahme./Wer sich also
menschlich erzeigt/Der trägt den Schaden davon./Fürchtet für jeden, ihr/Der freundlich aussieht!/Haltet
ihn zurück/Der da jemand helfen will!//Neben dir durstet einer: schließe schnell deine Augen!/Verstopf
dein Ohr: neben dir stöhnt jemand!/Halte deinen Fuß zurück: man ruft dich um Hilfe!/Wehe dem! der
sich da vergisst! Er/Gibt einem Menschen zu trinken, und/Ein Wolf trinkt.“ GW, BII, 820.
87
imagens das feras predadoras eram comumente usadas nos salmos para representar a
violência. Sendo assim, ao sobrepor a referência à fábula dentro desta camada textual, o
autor, ao mesmo tempo em que amplifica a estrutura narrativa do excerto, retoma a
menção presente no salmo 78, ou seja, a de uma antiga história que será contada para
ensinar à nova geração. Brecht, ao utilizar esta fábula, historiciza-a ao trazer a questão
para a luta de classes diante do progresso e conduz o leitor a não repetir os mesmos
erros das gerações antecedentes.
Pelo fato de, nesta canção, o guia mencionar a humanidade, o sentimento
humanitário, sua figura pode ser relacionada a uma pessoa imbuída de humanidade, pois
ele divide o tabaco com o cule sem intenções, oferece-lhe uma garrafa de água para que
sobreviva à viagem no deserto e é o único que cogita a possibilidade de o cule ter
oferecido água ao seu explorador por acreditar que ele estava com sede, ou seja, por
uma atitude humanitária. Pode-se, ainda, considerá-lo como alguém que pensa no
coletivo, porque fica preocupado com o fato de o cule não ter compreendido o caminho,
teme o fato de o carregador ficar sozinho no deserto com o comerciante, chegando até
mesmo a aconselhá-lo para que tenha cuidado com o explorador e, ao chegar no
tribunal, nota-se que ele está preocupado com a viúva, pois aquele que lhe dava sustento
fora assassinado.
Em suma: O guia é, tal como o comerciante, um personagem construído em base
dialética, uma vez que permanece entre a ação e a reflexão. Se por um lado, ele é a
figura que mais demonstra a idéia de coletivo, ainda que esta seja apenas indicada por
suas intenções, observa-se que se o guia realmente tivesse esta idéia de coletivo, ele não
teria agido sozinho em defesa do cule, quando mostra a prova, a garrafa de água, no
tribunal. Embora as suas atitudes estejam pautadas entre ação e reflexão, pois quando
age, ele é uma exceção por se mostrar humanitário, e quando reflete, usa a razão e segue
a regra ao mostrar-se “de acordo” com o júri, o dramaturgo indica que o indivíduo que
permanece entre a ação e a reflexão encontra um caminho, porque sobrevive à
violência. E, ao sobreviver, este indivíduo pode articular/organizar o coletivo para
transformar a realidade em que vive, tendo em vista que sozinho, como o enredo
mostra, este indivíduo explorado não tem possibilidade de fazê-lo.
88
O Juiz
„Die Regel ist: Augen um Augen!“
“A Regra é: Olho por olho!”
(BRECHT 1967: 820)
Outro personagem importante no enredo é o juiz, que tem um papel fundamental
na cena 9, intitulada “Julgamento” (Gericht). Não há descrições físicas ou corporais
feitas a sua personagem. Há alguns traços que marcam seu comportamento e lhe
emprestam um certo perfil psicológico. É detentor de uma função social como
representante da Justiça e domina um determinado discurso e uma determinada retórica.
Analisando o juiz de uma perspectiva psicológica, verifica-se que o personagem
é uma pessoa cínica, isto é, no caso, um indivíduo que afronta ostensivamente a verdade
dos fatos testemunhados para corroborar leis e convenções estabelecidas e mantidas
socialmente pelos detentores do capital, os que detêm os meios de produção. Seu
cinismo manifesta-se em certos momentos do julgamento. Num desses momentos, o
juiz debocha da justiça ao instruir o réu a se convencer de ser inocente sem o ser. É seu
o seguinte conselho: “O Senhor não se deve fazer mais inocente do que é”
116
.
A ironia do juiz também aflora em outro momento, quando, diante da confissão
do comerciante, que parece se admitir culpado pela geração do suposto ódio que o cule
assassinado lhe devotava (havia-lhe batido uma vez; apontara-lhe uma arma às costas;
havia-o levado a quebrar um braço a seu serviço), sorrindo, comenta: “na opinião do
cule!”
117
Neste passo há um ponto de viragem no processo do julgamento. Antes deste
comentário, a condução que o juiz faz do julgamento parece impecável, imparcial,
levando o comerciante à confissão explícita de suas culpas. Mas quando o comerciante,
realmente, se confessa abertamente culpado, o juiz vira pelo avesso esta confissão e a
coloca como um juízo pertencente à opinião do defunto cule, impedido de se defender.
O sorriso com que esta declaração é proferida é o sinal que marca a ironia cínica do juiz,
isto é, a declaração de culpa impecavelmente formulada, mas de repente referida ao
queixoso e não ao réu. O comerciante percebe imediatamente o sinal, retribuindo
idêntico sorriso. Neste passo, o julgamento é totalmente invertido. O comerciante logo
116
GW, BII, p. 816. No original: „Sie dürfen sich nicht weißer waschen wollen, als Sie sind“. GW, BII, p.
816.
117
No original: “Nach Ansicht des Kulis“. GW, BII, p. 816.
89
declara: “Na realidade, eu até o retirei [da água]
118
” e, com esta declaração, o juiz
consegue colocar o comerciante no lugar de queixoso (inexplicavelmente odiado pelo
cule) e o cule em posição de réu.
Num outro momento, o juiz é irônico durante o depoimento do guia, quando este
afirma que o cule tinha na mão uma garrafa com água, que oferecia ao comerciante para
matar a sede, e não uma pedra; que lhe dera de beber e não o atacara. Além de rir, o juiz
exclama, então: “isso não pode ser verdade.”
119
E, dirigindo-se ao comerciante lhe dá a
dica para uma outra inversão do discurso – marca da ironia: “Então, ele havia de lhe dar
de beber!”
120
, ao que o comerciante, também cinicamente, reconhece: “O homem não
tinha nenhum motivo para me dar de beber.Eu não era seu amigo.”
121
Num outro momento, ainda, o juiz é irônico quando prossegue na argumentação,
ao inquirir o guia e o comerciante. É de sua lavra a seguinte inversão do discurso: “O
senhor acha que foi certo ter considerado, com razão, que o cule teria algo contra o
senhor. Pois, diante das circunstâncias, o senhor teria assassinado alguém inofensivo,
mas só porque o senhor não podia saber que ele era inofensivo.”
122
Trata-se da
aceitação e manipulação da célebre declaração de Thomas Hobbes: “o homem é o lobo
do homem”, a dar suporte à transformação progressiva do réu em queixoso.
Se partirmos do princípio de que, no nível social, um juiz, sendo o representante
do Estado, o zelador do cumprimento da Lei que interpreta, deve agir com
imparcialidade em quaisquer circunstâncias, verifica-se pelas análises acima que este
juiz está escancaradamente ao lado dos detentores dos meios de produção, expressando
desprezo explícito pelos menos favorecidos, distinguindo as pessoas segundo critérios
de classe social. São do juiz as seguintes palavras:
O carregador pertencia a uma classe que efetivamente
tinha um motivo para se sentir prejudicada. Para gente
assim como o carregador, isso não era mais do que uma
reação puramente lógica para se proteger de uma
118
No original: „In Wirklichkeit habe ich ihn herausgezogen.“ GW, BII, 816.
119
No original: „das kann nicht die Wahrheit sein.“ GW, BII, p. 818.
120
No original: „Es soll Ihnen zu trinken gegeben haben!“. GW, BII, p. 818.
121
No original: „Der Mann hatte keinen Grund, mir zu trinken zu geben“. GW, BII, 818.
122
No original: “Sie meinen, Sie haben mit Recht angenommen, der Kuli müsse etwas gegen Sie haben.
Dann hätten Sie zwar einen unter Umständen Harmlosen getötet, aber nur weil Sie nicht wissen konnten,
dass er harmlos ist.“GW, BII, p. 819.
90
divisão desfavorável na partilha da água. Aliás, deveria
parecer certo a estas pessoas, de visão limitada e
unilateral, agarradas à realidade, vingar-se de seu
torturador. [...] O comerciante não pertencia à mesma
classe do seu carregador. Dele o comerciante só teria
que esperar o pior.
123
(BRECHT, 1967, p, 817, tradução
nossa).
O discurso do juiz é caracterizado, sobretudo, pela manipulação e pela estrutura
retórica, quer dizer, pela escolha de estratégias lingüísticas de persuasão, em que se
podem observar elementos dialéticos.
A manipulação como meio de conferir credibilidade e imparcialidade, tanto a
sua pessoa, quanto ao discurso que busca construir, e, consequentemente, ao
julgamento, estão presentes nas seguintes passagens: no momento em que, assim que
abre os trabalhos, chama a viúva do cule a depor como primeira testemunha. Diz ele: “A
esposa do assassinado tem a palavra”
124
; quando pergunta aos membros da segunda
caravana: “O que vocês viram, quando vocês se aproximaram?”
125
; quando pergunta ao
comerciante: “O Senhor matou o homem?” e “Como ele atacou o senhor?”, “O senhor
tem uma explicação do motivo de seu ataque?”
126
, quando pergunta ao estalajadeiro, ao
tomar-lhe o depoimento: “Eu devo retirar as pessoas daqui? O senhor acredita que o seu
negócio será prejudicado, se o senhor disser a verdade?”
127
. Nestas passagens, pode-se
notar que o juiz chama as testemunhas para deporem, busca saber o que houve, assim
como os motivos do assassinato, e, assim, busca dar crédito ao julgamento, fazendo com
que o leitor acredite em sua imparcialidade, principalmente quando pergunta se o
estalajadeiro quer que as outras pessoas saiam de lá para que ele deponha. Neste
sentido, o juiz parece agir de acordo com os procedimentos legais, ou seja, ouve as
partes interessadas e parece buscar proteger as testemunhas.
123
No original: “Der Träger gehörte einer Klasse an, die tatsächlich einen Grund hat, sich benachteiligt zu
fühlen. Für solche Leute wie den Träger war es nichts als pure Vernunft, sich vor einer Übervorteilung
bei der Verteilung des Wassers zu schützen. Ja sogar gerecht musste es diesen Leute bei ihrem
beschränkten und einseitigen, nur an ihrem Peiniger zu rächen. […] Der Kaufmann gehörte nicht der
Klasse an, der sein Träger angehörte. Er mußte sich von ihm des Schlimmsten versehen.
124
No original: „Die Frau des Getöteten hat das Wort“. GW, BII, p. 814.
125
No original: “Was sahen Sie, als Sie näher kamen?“. GW, BII, p. 814.
126
No original, respectivamente: „Haben Sie den Mann erschossen?“; „Wie griff er Sie an?“ e „Haben Sie
eine Erklärung für den Grund seines Angriffs?“. GW, BII, p. 814.
127
No original: „Soll ich die Leute hier hinausschicken? Glauben Sie, dass Sie in Ihren Geschäft
geschädigt werden, wenn Sie die Wahrheit sagen?“ GW, BII, p. 816-817
91
Outro momento em que o juiz busca conferir credibilidade, não ao julgamento,
mas à defesa que está a construir para o comerciante, é quando lhe diz: “Apenas se o
Senhor conseguir tornar crível o seu ódio, o senhor também poderá tornar crível que
agiu em legítima defesa”
128
, ou seja, com este enunciado o juiz instrui o comerciante de
que é necessário justificar um suposto “ódio” (Haß) que o cule teria por seu explorador.
Ao conferir credibilidade ao depoimento do comerciante, a verossimilhança é reforçada
e, assim, ao justificar o assassinato, o juiz legitima a defesa.
A credibilidade e a verossimilhança da defesa inventada tamm são obtidas
através da deturpação e manipulação dos depoimentos das testemunhas, conseguidas
com inúmeras intervenções, ou seja, quando ele, ao se apropriar das falas de outros
personagens, desvirtua estas mesmas falas. Neste caso, é notável a mudança dos tempos
verbais, especialmente nos verbos modais, que passam, em suas falas, do passado dos
fatos realmente ocorridos para o conjuntivo II – tempo que denota possibilidade,
hipótese, e que mostram que o juiz não se pauta em fatos, mas em pressuposições, que
anunciam uma absolvição ao final.
A credibilidade e a verossimilhança da defesa inventada também são obtidas
através do uso e abuso da retórica. A retórica do juiz fica em evidência, quando busca
conferir credibilidade e imparcialidade para a defesa que constrói, lançando mão de
argumentos de autoridade históricos, particularmente, do mundo da guerra e da polícia.
Por exemplo, quando o juiz chama o estalajadeiro para depor, com o objetivo de saber
como o comerciante tratava seu pessoal. Até este momento, nenhuma das testemunhas
(guia e taberneiro) lhe fornecera o material necessário a seus objetivos, ou seja,
ninguém, nem mesmo o estalajadeiro, mencionara o suposto ódio do cule por seu
explorador. Diante da situação, o juiz parte da fala deste estalajadeiro em favor do cule,
acopla-a a “exemplos da História”, um recurso retórico, no caso, a uma referência à
“amizade tática” (taktische Freundlichkeit) a que se recorre em tempos de guerra,
remetendo o leitor à luta mencionada pelo comerciante antes da travessia do deserto.
Diz o juiz: “Também na guerra, pois quanto mais os [nossos] oficiais, a tropa, se
aproxima do Front, mais humano se fica. Naturalmente, tal amizade não quer dizer
128
No original: „Doch nur, wenn Sie den Haß glaubhaft machen können, können Sie auch glaubhaft
machen, daß Sie in Notwehr gehandelt haben.“ Grifos meus. GW, BII, p.816.
92
nada“.
129
Sendo assim, o uso que o juiz faz deste exemplo, um argumento de
autoridade, tem a função de desconstruir a “amabilidade”, confirmada pelas
testemunhas, por parte do explorado em relação a seu explorador. Em outras palavras, o
juiz insiste em convencer o público presente ao julgamento justamente do contrário dos
fatos, ou seja, que o cule sentia ódio pelo comerciante.
Em outro passo, quando toma o depoimento do comerciante, o juiz seleciona e
manipula a seguinte fala, também com recurso retórico: “Ele [o cule] sempre cantou,
enquanto eu caminhava, e no momento em que o ameacei com um revólver, para fazer
com que ele atravessasse o rio, eu não o ouvi mais cantar”.
130
Para o juiz, o fato do cule
ter parado de cantar significaria a existência de uma suposta “irritação” sua em relação
ao comerciante, suposição que justifica com um argumento de autoridade tirado da
História, do mundo da guerra, ao estabelecer a diferença entre um comandante e seus
oficiais. Diz ele: „[…] quando os oficiais nos dizem: Sim, vocês fazem a guerra de
vocês, mas nós a fazemos para vocês! Assim, também o cule pôde dizer ao comerciante:
Você faz o seu negócio, mas eu o faço para você!.”
131
Aqui, o juiz estabelece um
paralelismo: de um lado, está a diferença entre os generais, que decidem a guerra, e os
soldados, que combatem, de outro, a diferença entre o comerciante, que dirige a
expedição, e o cule, que lhe transporta a carga. Enfatizadas no paralelismo acabam por
ser as “circunstâncias” da guerra, que se estendem ao comerciante e ao cule e os
envolvem no deserto. O relacionamento entre os dois passa, então, a ser passível de
julgamento, conforme as normas bélicas e não segundo a verdade dos fatos.
No momento crucial do julgamento, após a apresentação da prova – a garrafa de
água-, e depois que o comerciante declara: “Aceitar que o cule não me mataria na
primeira oportunidade, seria aceitar que ele não tinha juízo”
132
, o juiz legitima a sua fala
com outro argumento de autoridade, tirado agora, do mundo policial. Diz ele:
129
No original: “Auch im Krieg ließen es sich unsere Offiziere ja angelegen sein, der Mannschaft, je
näher man an die Front kam, desto menschlicher zu begegnen. Solche Freundlichkeiten haben natürlich
nichts zu sagen .„ GW, BII, p. 817.
130
No original: “Er hatte zum Beispiel immer gesungen beim Marschieren. Von dem Augenblick an, wo
ich ihn mit dem Revolver bedrohte, um ihn über den Fluß zu bringen, habe ich ihn nicht mehr singen
hören.“ GW, BII, p. 817.
131
No original: “[...] wenn sie zu uns Offizieren sagten: Ja, ihr führt euren Krieg, aber wir führen den
euren! So konnte auch der Kuli zum Kaufmann sagen: Du machst dein Geschäft, aber ich mache das
deine.“ GW, BII, p.817
132
No original: “Anzunehmen, der Kuli würde mich nicht bei der ersten Gelegenheit niederschlagen,
hätte bedeutet anzunehmen, er habe keine Vernunft.“ GW, BII, p. 819.
93
Os nossos policiais também fazem isso. Eles atiram
133
em uma multidão, manifestantes, pessoas livres, apenas
porque eles não podem imaginar, que essas pessoas não
irão tirá-los dos cavalos e linchá-los. Estes policiais
atiram por medo. E este medo que eles têm, é uma
prova de juízo. O senhor pensou, e o senhor não podia
saber que o cule constituía uma exceção
134
.
(BRECHT, 1967, p.819, tradução nossa)
Dentro do contexto apresentado, a discussão acerca do “juízo” ganha relevo. É
fato que, por não ser sindicalizado, o cule age por medo, medo de perder o emprego, ou
de vir a sofrer um processo. Ao justificar a violência a partir do medo, que, por sua vez,
funciona como motivo natural, como razão da mesma violência, o juiz legitima, em
manipulação ostensiva, a violência. Dito de outro modo: o juiz, ao associar violência a
medo, que é um sentimento natural, deduz tortuosamente que a violência também é
natural, o que dá razão ao comerciante.
Esta legitimação da violência, bem como o final de argumentação ardilosa, são
celebrados na canção que o juiz entoa:
A Regra é: olho por olho
O bobo espera pela exceção,
que seu inimigo lhe dê de beber.
Isso aquele que tem a razão não espera.
135
(BRECHT, 1967, p. 820, tradução nossa)
Nesta canção, o juiz não só revela o tipo de justiça que aparentemente pratica,
uma justiça amparada na antiquíssima “Lei de talião”: tal crime, tal pena, como também
termina, de modo dialético, a inversão do julgamento, ao aplicar esta justiça imparcial
não ao criminoso, mas ao inocente. O que era regra tornou-se exceção.
133
Cabe lembrar que esta imagem remete à que Brecht testemunhou no 1° de maio de 1929, quando pela
janela do apartamento de um amigo, o autor viu muitos trabalhadores, que estavam fazendo uma passeata
pacífica pela data, sendo assassinados por policiais.
134
No original: “Das haben wir bei unserer Polizei mitunter. Sie schießen in eine Menge, Demonstranten,
ganz friedlich Leute, nur weil sie sich nicht vorstellen können, dass diese Leute sie nicht einfach vom
Pferd reißen und lynchen. Diese Polizisten schießen eigentlich alle aus Frucht. Und dass sie Furcht haben,
ist ein Beweis von Vernunft. Sie meinen, Sie konnten nicht wissen, dass der Kuli eine Ausnahme
bildete!“. GW, BII, p. 819.
135
No original: Die Regel ist: Auge um Auge!/Der Narr wartet auf die Ausnahme./Dass ihm sein Feind
zu trinken gibt./Das erwartet der Vernünftige nicht.
94
O bom comportamento do cule diante das atitudes do comerciante, tal como o
leitor pode apreciar do seu lócus distanciado, corresponderia à regra, à norma que rege a
ética social, enquanto o do comerciante corresponderia à delinqüência, quer dizer à
exceção. Dialeticamente torcido e deturpado pelas palavras do juiz, representante da lei,
o comportamento do comerciante passa ao estatuto de regra e o do cule ao de exceção.
A peça mostra claramente o mundo às avessas, ou melhor, o mundo capitalista, em que
as pessoas ocupam classes de superioridade e inferioridade, de mando e de submissão,
como a negação do correto, em que todos deveriam ser iguais, pelo menos perante a lei.
Arrematando: na peça pode-se observar a progressiva consolidação de duas
classes sociais em litígio: de um lado, há os detentores dos meios de produção dentro do
qual está inserido o juiz, os dois juízes adjuntos, o condutor da segunda caravana e o
comerciante, e, do outro, os que não detêm os meios de produção, submetidos à
violência do primeiro grupo, dentro do qual estão inseridos o guia, o cule e a viúva do
cule. Há, ainda, uma espécie de “entre-classe”, que não se posiciona, que ora colabora
com os explorados, uma vez que os alerta, ora colabora com os detentores dos meios de
produção, uma vez que, ao se omitir e não se posicionar claramente, termina por se
mostrar de acordo com o status quo. Esta “entre-classe” é representada pelo personagem
do estalajadeiro.Esta divisão em duas classes sociais antagônicas, já fora anunciada
aliás, no prólogo. O epílogo não supera esta divisão, pede simplesmente reflexão sobre
a inversão de valores e suas trágicas conseqüências.
95
CAPÍTULO III
A Justiça
Começarei por vos contar em brevíssimas palavras um facto notável da vida camponesa ocorrido numa
aldeia dos arredores de Florença há mais de quatrocentos anos. Permito-me pedir toda a vossa atenção
para este importante acontecimento histórico porque, ao contrário do que é corrente, a lição moral
extraível do episódio não terá de esperar o fim do relato, saltar-vos-á ao rosto não tarda. Estavam os
habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregues cada um aos seus afazeres e cuidados,
quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo
sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria
haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era
surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento.
Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os
mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a
quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes
depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de
tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o
sineiro e quem era o morto. "O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do
camponês. "Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu:
"Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está
morta."Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem
escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-
os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha
começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às
autoridades e acolher-se à protecção da justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então,
desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exacto tamanho do mundo para quem
sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria
comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos
eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até
que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em
cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força
haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi
ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia
sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de
todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo...
Suponho ter sido esta a única vez que, em qualquer parte do mundo, um sino, uma campânula de bronze
inerte, depois de tanto haver dobrado pela morte de seres humanos, chorou a morte da Justiça. Nunca
mais tornou a ouvir-se aquele fúnebre dobre da aldeia de Florença, mas a Justiça continuou e continua a
morrer todos os dias. Agora mesmo, neste instante em que vos falo, longe ou aqui ao lado, à porta da
nossa casa, alguém a está matando. De cada vez que morre, é como se afinal nunca tivesse existido para
aqueles que nela tinham confiado, para aqueles que dela esperavam o que da Justiça todos temos o
direito de esperar: justiça, simplesmente justiça. Não a que se envolve em túnicas de teatro e nos
confunde com flores de vã retórica judicialista, não a que permitiu que lhe vendassem os olhos e
viciassem os pesos da balança, não a da espada que sempre corta mais para um lado que para o outro,
mas uma justiça pedestre, uma justiça companheira quotidiana dos homens, uma justiça para quem o
justo seria o mais exacto e rigoroso sinónimo do ético, uma justiça que chegasse a ser tão indispensável
à felicidade do espírito como indispensável à vida é o alimento do corpo. Uma justiça exercida pelos
tribunais, sem dúvida, sempre que a isso os determinasse a lei, mas também, e sobretudo, uma justiça que
fosse a emanação espontânea da própria sociedade em acção, uma justiça em que se manifestasse, como
um iniludível imperativo moral, o respeito pelo direito a ser que a cada ser humano assiste.”
José Saramago
Texto lido na cerimônia de encerramento do Fórum Social Mundial 2002
96
A Canção dos Tribunais
Após a morte do cule e antes da cena do julgamento há um quadro de transição,
intitulado “A canção dos tribunais” (Lied von den Gerichten). Assim como o prólogo e
o epílogo, a canção é proferida pelos personagens enquanto o palco é montado para a
cena do julgamento. Neste quadro, a própria rubrica indica um dos efeitos de
distanciamento propostos pelo dramaturgo, isto é, a mudança de cenário que é feita
diante do espectador. Este efeito junto com a indicação de que a música deve ser
entoada pelos personagens, objetiva não só distanciar o leitor, mas também prepará-lo
para o quadro seguinte, o julgamento. Ao fazer isso, os personagens em pauta também
trazem ao espectador elementos de reflexão crítica sobre a justiça.
A canção é apresentada desta maneira:
No seguimento das hordas do bando de ladrões
Os tribunais emergem
Quando o inocente é assassinado
Os juízes juntam-se sobre ele e o condenam
Junto ao túmulo do que é assassinado
Seu direito será assassinado.
Os veredictos do tribunal
Caíram como as sombras de um punhal
Ah! A sombra de um punhal ainda não é suficientemente forte! O que
é preciso
Como comprovação da sentença?
Olhe o vôo! Para onde vão os abutres
136
?
O deserto desprovido de alimento os expulsa:
Os salões do tribunal irão alimentá-los.
Para lá voam os assassinos. Os perseguidores
estão lá em segurança. E lá
Os ladrões escondem seus roubos, enrolados
em um papel, sobre o qual está a lei.
137
(BRECHT,1967,
p.812-813,tradução nossa)
136
Cf. o dicionário Langenscheidt, a outra acepção de “Aasgeier”, que é pejorativa, é : “alguém que usa
ou explora outra pessoa”. No original: “gesp. pej; j-d, der andere Mensch ausnutzt und ausbeutet“. IN:
(Hrsg.) GÖTZ, Dieter, HAENSCH, Günther, WELLMANN, Hans. Langenscheidt- Großwörterbuch.
Deutsch als Fremdsprache. Berlin und München, Langescheidt KG, 2003.p.01.
137
No original: ”Im Troß der Räuberhorden/Ziehen die Gerichte./ Wenn der Unschuldige erschlagen
ist/Sammeln sich die Richter über ihm und verdammen ihn./ Am Grab der Erschlagenen/Wird sein Recht
erschlagen.//Die Sprüche des Gerichts/Fallen wie die Schatten der Schlachtmesser./ Ach! das
Schlachtmesser ist doch stark genug! Was braucht es/Als Begleitbrief das Urteil?// Sieh den Flug! Wohin
fliegen die Aasgeier?/ Die nahrungslose Wüste vertrieb sie:/ Die Gerichtshöfe werden ihnen Nahrung
geben./ Dorthin fliehen die Mörder. Die Verfolger/ Sind dort in Sicherheit. Und dort/ Verstecken die
Diebe ihr Diebesgut, eingewickelt/ In ein Papier, auf dem ein Gesetz steht.“
97
Nesta canção, é possível notar a apresentação e retomada de um determinado
tema ou dentro de uma mesma estrofe, ou entre uma estrofe e outra, efeito que
intensifica as imagens deste tema e o amplia. Na primeira estrofe, nota-se que este
procedimento é introduzido com o verbo erschlagen (assassinar), alterado em três
versos diferentes dentro da estrofe. Há a alteração morfológica deste vocábulo, quando
o dramaturgo atribui o particípio passado do verbo ao inocente, que “é assassinado” (ist
erschlagen), depois o usa como substantivo quando diz que os juízes se reúnem sobre o
túmulo daquele “que é assassinado” (Erschlagen), e, finalmente, que o seu direito “será
assassinado” (wird erschlagen), usado, na última estrofe, como futuro. Relacionados a
estas modulações, estão os tribunais e os juízes, que, segundo o texto, nascem no rastro
do bando de ladrões. A segunda estrofe retoma o tribunal e as sentenças aí pronunciadas
e compara-as, através do uso da conjunção “como” (wie), às sombras de um punhal de
combate (Schlachtmesser). A sombra remete o leitor à morte, conseqüência do uso do
punhal de combate. Sendo assim, a sentença/palavra proferida estabelece não só uma
relação metonímica de causa e efeito, mas também é comparada a um instrumento que
assassina. Esse punhal é retomado no terceiro verso da mesma estrofe para intensificar a
ação do tribunal, que, ao considerá-lo insuficiente, busca outro instrumento, a Lei
escrita, para ratificar a sentença. Assim, tanto a palavra dita como a escrita, proferidas
pelos tribunais, são comparadas a uma arma, um instrumento que assassina.
Na última estrofe, como se pode notar, há igualmente o uso de modelações em
torno do verbo “voar” (fliehen), que também é apresentado como o substantivo “vôo”
(Flug); em torno do substantivo “alimento” (Nahrung) e sua antítese “sem alimento”
(nahrungslose), modificada de substantivo para um adjetivo que aponta para o deserto,
e em torno de “ladrões” (Diebe) e seus “roubos” (Diebesgut), que embora tragam o
mesmo radical “Dieb”, contrapõem o agente ao objeto. Além disso, a última estrofe faz
uma referência que remete o leitor diretamente aos autores gregos: a imagem do vôo dos
abutres.
Esta imagem do vôo dos abutres pode ser encontrada, por exemplo, na Ilíada
138
,
no momento em que Heitor mata Pátroclo: “De ti, no entanto, os abutres de Tróia farão
138
HOMERO. (Trad. Carlos Alberto Nunes). Ilíada. Rio de Janeiro, Ediouro, 1996. p. 269 e 332. A parte
em que Heitor fala a Pátroclo está no Canto XVI, V. 834-836 e V; bem como a que Aquiles fala sobre
Heitor está no canto XXII.V.41-43.
98
bom repasto”, e no canto em que Aquiles mata Heitor: “Dedicassem-lhe os deuses a
mesma afeição que lhe voto,/ e logo abutres e cães, insepulto, comer o haveriam, [...]”,
na tragédia de Eurípides, Troianas
139
, quando Andrômaca chora pelos corpos dos
mortos na guerra de Tróia : “E ensangüentados junto à deusa Palas estão os corpos/ dos
mortos, dispostos ao abutre para que os leve: concluiu o jogo servil de Tróia.”, e em três
tragédias de Sófocles: Ájax, Electra e Antígona. Em Ájax
140
, esta imagem é apresentada
no momento em que, ao cometer suicídio, o herói Ájax evoca Zeus, e pede para que um
mensageiro levante seu corpo, pois se o inimigo chegasse, ele se transformaria em
“pasto de cães e aves rapaces”; em Electra
141
, no momento em que ela pede a Orestes
para que mate Egisto e que atire o corpo distante de seus olhos, e o deixe “aos abutres,
coveiros […]”; e a imagem dos abutres está, ainda, em Antígona
142
, quando ao
conversar com Ismênia sobre o destino do corpo do irmão, Antígona diz que Creonte
ordenou que o corpo de Polínices ficasse insepulto, “à mercê das aves de rapina”.
Como se sabe, tanto no poema épico de Homero, quanto nas tragédias gregas
citadas, o destino do corpo insepulto aos abutres era considerado desonra para o herói,
que não tinha seu valor reconhecido em um sepultamento digno pelas honras obtidas
por meio de suas batalhas. Nas obras mencionadas, os corpos serviam de alimento aos
abutres. Neste poema-canção de Brecht, os abutres são definidos como os próprios
assassinos, pelo uso do verbo “voar” (fliehen), empregado para os substantivos
“abutres” e “assassinos”. Vale lembrar que o substantivo “Aasgeier”, em alemão,
também conota “aquele que explora alguém”.
143
No texto brechtiano, nota-se também que os assassinos-abutres, de maneira
diferente dos textos gregos, não encontram alimento no deserto e voam até os tribunais,
que lhes darão este alimento, e que estes assassinos também são referidos como os
“perseguidores”, que encontram segurança nos tribunais. A menção, aqui, ao
“perseguidor” remete o leitor ao personagem do comerciante, que é um perseguidor em
139
EURÍPIDES. (Trad. e introdução Christian Werner)Duas Tragédias gregas: Hécuba e Troianas. São
Paulo, Martins Fontes, 2004, p. 107.Vs557-559.
140
SÓFOCLES. (Trad. Trajano Vieira) “Ájax”. IN: ALMEIDA, GUILHERME DE E VIEIRA,
TRAJANO - Três Tragédias Gregas. São Paulo, Perspectiva. 1997, p. 209.V829-830.
141
SÓFOCLES. (Trad. Mário da Gama Cury) “Electra”. IN: Sófocles/Electra- Eurípides/As Troianas.
Rio de Janeiro, Civilização brasileira, 1965, p. 69.
142
SÓFOCLES. (Trad. Antônio Manuel Couto Viana). “Antígona”. IN: Antígona -Ájax-Édipo Rei.
Lisboa, Editorial Verbo, s.d..p. 12.
143
Cf. Langescheidet Wörterbuch, 2003, pg.1.
99
pelo menos dois sentidos, pois além de estar no encalço do petróleo, emblema do
progresso, persegue o homem que lhe carrega a bagagem. O leitor também sabe que ele
é um assassino, porque atirou no cule, por ele explorado. Nesse sentido, o “alimento”
dado pelos tribunais a esses assassinos/abutres/perseguidores é a segurança, uma
segurança de sobrevivência, porque ao mesmo tempo em que os tribunais escondem
seus roubos atrás da Lei escrita, eles perpetuam a injustiça e a sobrevivência desses
assassinos/abutres/perseguidores.
Observe-se, ainda pela imagem dos abutres, que o autor faz uma forte referência
à tradição grega, talvez para mostrar que os não heróis são, desde tempos remotos,
excluídos da história. Esta tradição grega se sobrepõe no poema, não só pelo fato dele
ser entoado por um coro de personagens, que representa a voz do povo, mas,
principalmente, pelo fato deste coro predizer o que irá acontecer na cena seguinte, pois
discorre sobre um inocente (Unschuldige) que foi assassinado, que os juízes irão
condená-lo, e, com isso, o seu direito também será assassinado. Além disso, o coro
afirma que os assassinos ficarão impunes, quando diz que os ladrões irão se esconder
sob o papel onde a lei é lavrada. Ao comparar as sentenças dos tribunais às sombras de
um punhal de combate, e, adiante, dizer que os assassinos encontram refúgio nos
tribunais, o coro também termina por igualar os juízes aos assassinos, pois os primeiros
assassinam com a palavra (proferida pelas sentenças e ratificada pela lei escrita) e os
segundos assassinam pelas próprias ações – exploração, espancamento -, que são
legitimadas pelos tribunais.
A “Canção dos tribunais” (Lied von den Gerichten), assim, ao delinear o tipo de
justiça que o leitor vai encontrar no quadro 9, “Julgamento” (Gericht), uma justiça que
assassina o direito do inocente e que acoberta o assassino, assemelha-se à voz do povo
que deve servir de sábio guia ao indivíduo (a voz do povo substitui a voz de Deus).
“Olho por Olho”
O quadro “Julgamento” é a peça dentro da peça, é o quadro mais independente
dentre todos os apresentados, onde há um clímax (o segundo dentro do enredo), dado
100
pelo surgimento da prova – a garrafa de água - e pela referência à fábula de Esopo, que
é a síntese desta peça didática.
Alguns pontos que refletem o proceder da justiça na peça foram tratados quando
se discorreu sobre os personagens, especialmente o guia e o juiz. Outros pontos também
são de relevância para se entender como a justiça é apresentada nesta peça. Cinco são os
pontos destacados e discutidos nesta parte do trabalho: 1- o argumento de defesa do
juiz; 2- estado de necessidade X Estado de Emergência ; 3- a regra e a racionalidade; 4-
a fábula; 5- a sentença e a (in) justiça social.
O argumento de defesa
O primeiro ponto, o argumento utilizado pelo juiz para justificar a ação do
comerciante, conforme indicado, é a legítima defesa. O leitor já tem conhecimento dos
fatos: um comerciante atira em um cule, pois supõe que este vá atacá-lo com uma pedra.
O cule, por sua vez, ia lhe oferecer água por medo de ser processado caso o
encontrassem com uma garrafa cheia de água e o seu patrão morrendo de sede no
deserto. As “circunstâncias” também são conhecidas e dadas no enredo: o assassinato
acontece em uma região desabitada e sem postos policiais, ou seja, em uma região que,
pelo que a peça deixa entrever, de uma “terra sem lei” e portanto também sem
jurisdição, sem identificação específica, que pode ser considerada o mundo de um modo
geral. Sabe-se também que o comerciante não estava morrendo de sede, ou seja, embora
tivesse dito ao cule: “Nossa garrafa está vazia”
144
, o comerciante bebe, escondido do
cule, a água de sua garrafa, enquanto o criado arma a tenda. Ao fazer isso, o
comerciante pega seu revólver, o coloca em seu colo e diz que a qualquer aproximação
do cule, ele irá atirar. Outro dado das “circunstâncias dadas” é que o cule está com o
braço quebrado e foi açoitado na cena em que acaba por ser assassinado, portanto, não
teria condições, ainda que quisesse, de atirar uma pedra no comerciante e assassiná-lo.
Retome-se, então, o argumento do juiz: a legítima defesa. A formulação deste
argumento ocorre após o representante da justiça, ouvir o depoimento do condutor da
144
No original: “Unsere Flasche ist leer”. GW, BII, p. 811.
101
segunda caravana e após o comerciante afirmar que assassinou o cule, porque este o
atacou inesperadamente. Sendo assim, antes de apurar os fatos e as circunstâncias,
apresentados anteriormente, o representante da justiça pauta-se nas afirmações das
testemunhas, e, principalmente, na afirmação do acusado – a de que fora atacado pelo
cule. Sem jamais colocar esta afirmação em dúvida, o juiz busca os motivos de tal
ataque, e, ao interrogar o guia, já insinua que o cule era rebelde, ou seja, desde o início
julga de forma negativa o explorado, o inocente, a vítima do assassinato.
Em um primeiro momento, o juiz não consegue justificar o ataque, portanto, a
formulação de legítima defesa sucede também quando as possibilidades do juiz de
encontrar motivos para o ataque, a princípio, se esgotam.
Face ao fato de o juiz brechtiano basear sua argumentação no conceito da
legítima defesa, conceito este pertencente à Jurisprudência
145
, faço valer a idéia de que
o dramaturgo, ao fazê-lo, busca introduzir uma discussão (estritamente necessária no
período em que a peça foi escrita) junto ao leitor acerca do procedimento da Justiça, e,
em conseqüência, do Estado - a República de Weimar -, que, na peça em tela, a
representa.
Partirei, portanto, de algumas considerações acerca da legítima defesa vista sob a
lente da Jurisprudência, percorro o caminho do juiz brechtiano, ou seja, busco indicar
como o juiz usa este argumento na peça e o relaciona ao estado de necessidade, quando,
ao fazê-lo, transfere a discussão para o Estado, e a retomarei no quinto ponto a ser
discutido, ou seja, a sentença proferida pelo juiz relacionada à (in)justiça social.
Entende-se por legítima defesa a reação de quem, usando moderadamente dos
meios necessários, repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem.
Além disso, a legítima defesa prevê a exclusão de ilicitude da conduta humana, quando
o agente se defende, ou seja, "não há crime quando o agente pratica o fato: em legítima
defesa"
146
.
145
Jurisprudência é empregada aqui como Ciência do Direito.
146
Cabe lembrar que me pauto pelo direito penal brasileiro, mas no tocante à legítima defesa, o direito
penal brasileiro se assemelha ao alemão.
Disponível em < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=989
> Acesso em 27.03.2009.
102
Ao alegar legítima defesa, o juiz de Brecht, de antemão, exclui o crime, ou seja,
justifica a “ilícita” ação do comerciante. Para o Direito, a legítima defesa só pode ser
configurada como tal diante de uma agressão atual ou iminente. Neste sentido, ela pode
decorrer de um estado de necessidade
No sentido penal, [...] o estado de necessidade,
revelador de uma necessidade urgente, constitui-se
perigo atual e iminente, em virtude do qual não pode a
pessoa fugir à prática do mal, ou do fato criminoso, pois
com ela evita o sacrifício de direito [sacrifício à vida]
seu ou alheio, que não lhe era razoável sacrificar. O
estado de necessidade, pois, no conceito penal, será
constituído em frente do perigo atual, que não foi
provocado pela pessoa, e o dever de evitar o sacrifício
do direito, mesmo pela prática de fato defeso. Quando
evidenciado, é excludente da sanção legal.
147
Nota-se que a legítima defesa é mencionada pelo juiz após o testemunho do
condutor da segunda caravana, um dos primeiros a depor, quando este condutor afirma
o que viu, “o comerciante tinha apenas um pouco de água em sua garrafa e o carregador
estava morto na areia.”
148
Portanto, o juiz parte apenas desta circunstância maior, o
estado de necessidade, configurado pela falta de água no deserto, para alegar a legítima
defesa, mas como a peça deixa claro, o cule, de fato, não atacou o comerciante.
É a partir do surgimento da prova, levada pelo guia ao tribunal, que esta
argumentação começa a desmoronar, pois se torna claro que a pedra era uma garrafa de
água, e por isso a intenção do cule era a de oferecer água ao comerciante. Neste
momento da revelação da prova, o juiz e o comerciante passam a usar verbos no
conjuntivo II, que indicam hipótese, suposição. O uso desta forma verbal sugere que há
a manutenção do argumento da legítima defesa, mas estipulada, para o Direito, como
legítima defesa putativa
149
, que é uma ação “ilícita” que se legitima, pois que suposta na
147
Cf. De PLACIDO E SILVA. IN: Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro, Ed. Forense, 2000. 17ª edição.
p. 323.
148
No original: “Der Kaufmann hatte nur noch ganz wenig Wasser in der Flasche, und sein Träger lag
erschossen im Sand.“GW, BII, p. 814.
149
Legítima defesa putativa: (do lat. putare, “acreditar”, “imaginar”) é um conceito do direito penal,
precisamente da doutrina universal do direito penal. Como o conceito diz, não existe legítima defesa. O
perpetrador age equivocadamente, ou seja, a hipótese da ação de legítima defesa é dada por uma um
ataque que se presume.No original: Putativnotwehr (von lat.
putare, „glauben“, „meinen“) ist ein Begriff
aus dem Strafrecht, genauer der allgemeinen Strafrechtslehre. Wie der Begriff sagt, liegt hier gerade keine
Notwehr vor. Der Täter geht lediglich irrig davon aus, dass die tatsächlichen Voraussetzungen der
Not
wehr bei dem vermeintlichen Angriff gegeben seien. Disponível em <
http://de.wikipedia.org/wiki/Putativnotwehr
> Acesso em 14.03.2009.
103
boa fé, ou seja, o perpetrador assassinou o perpetrado, pois supostamente seria atacado
por ele, ou melhor, em um estado de necessidade, o agente ataca a vítima para se salvar.
Cabe indicar que, ainda que o crime, o assassinato, fosse anulado com o argumento de
legítima defesa, o assassino poderia ser punido pelo meio utilizado para revidar ao
“suposto” ataque, pois a legítima defesa só se configura pelo uso moderado dos meios
necessários para reagir a algum ataque.
O leitor sabe que o meio utilizado pelo comerciante para a “suposta” reação ao
ataque do cule foi um revólver, que já estava preparado para atirar, uma vez que fora
deixado no colo do explorador, quando este bebia, escondido do cule, a água de sua
garrafa, isto é, já havia a intenção do comerciante em matar o cule. Neste sentido, o juiz
não levou em consideração a prévia intenção do comerciante, a de atirar no cule em
qualquer momento. Ainda assim, ainda que fosse alegada a legítima defesa, o
perpetrador, o comerciante, poderia ser indiciado pelo meio utilizado para se defender
do cule, o revólver, pois ainda que a suposta intenção tivesse sido a de se defender, este
ato defeso não teria necessariamente que ter como conseqüência a morte do cule.
Porém, este argumento de legítima defesa, alegado pelo juiz, encontra respaldo nas
circunstâncias dadas, ou seja, no estado de necessidade, isto é, o comerciante teria
matado o cule para se salvar – para não morrer de sede no deserto.
Nem um ponto, ou seja, a apuração da intenção do comerciante, nem o outro, ou
seja, a questão de que o crime, ou, como quer o juiz de Brecht, a legítima defesa, foi
cometido em um estado de necessidade aparente, isto é, também putativo foram
apurados, pois o leitor também sabe que, embora o assassino e o assassinado estivessem
perdidos em um deserto inabitado e, em tese, lutassem pela água para suas
sobrevivências, ambos tinham acesso à água, tanto o comerciante, que bebia escondido
do explorado, quanto o cule, que trazia uma garrafa de reserva, que lhe fora dada pelo
guia.
Desta forma, ao apresentar na fala do juiz um argumento ineficaz, pois que
insustentável pelas próprias ações decorridas no enredo, conhecidas pelo leitor, e pelo
104
fato deste argumento ser fundamentado em uma circunstância hipotética, faço valer a
idéia de que o dramaturgo, ao introduzir uma discussão sobre a Justiça, representante do
Estado, a coloca diante do problema da luta de classes, uma vez que o assassino e
assassinado são, respectivamente, um explorador e um explorado. Em outras palavras:
Brecht teve como intuito apontar para o papel do Estado frente à luta de classes.
Estado de necessidade versus Estado de emergência
Como se verificou na descrição do juiz, este representante da Justiça e do Estado
age com a retórica, ou seja, manipula o discurso para persuadir o seu auditório. O
primeiro recurso do juiz é a busca dos motivos do suposto ataque ao comerciante, mas
como o juiz não os encontra no depoimento do condutor da segunda caravana e do guia,
o juiz parte para o segundo recurso, o argumento de legítima defesa.
Dentro deste segundo recurso da argumentação, o juiz apresenta como premissa
o ódio (Haß) do cule pelo comerciante e instrui o explorador de que ele teria que tornar
crível este ódio para que pudessem acreditar que ele agiu em legítima defesa. Essa
instrução acaba por levar o comerciante a confessar que bateu no cule e que o coagiu a
atravessar o rio com um revólver. A partir desta declaração, o juiz afirma que “após a
demissão do guia, [o comerciante] deu motivo ao cule para odiá-lo”
150
e busca recolher
os depoimentos do guia e do estalajadeiro que confirmem e comprovem que o suposto
ódio era antecedente ao espancamento e à coação. Como o juiz não encontra tais
motivos, uma vez que o guia e o estalajadeiro dizem que o cule não o odiava e que o
comerciante tratava bem o seu pessoal, o juiz recorre aos “exemplos da história” para
fundamentar a sua argumentação.
Conforme indicado, há três exemplos da história utilizados pelo juiz: 1-o de uma
“amizade tática” entre os oficiais e seus comandantes, quando estão em guerra; 2- o
questionamento dos oficiais acerca da guerra que empreendem, ou seja, que é uma
guerra entre os (co)mandantes e não dos próprios oficiais; 3- a ação dos policiais diante
150
No original: “Nach der Entlassung des Führers gaben Sie dem Kuli Anlaß, Si zu hassen“. GW. BII, p.
816.
105
de uma manifestação pacífica, quando estes atiram em uma multidão de manifestantes
por pressuporem que a multidão irá arrastá-los de seus cavalos e linchá-los.
Ao comparar as atitudes do comerciante às atitudes tomadas em tempos de
guerra, como mostram estes exemplos da História, o juiz não só ratifica as
circunstâncias da situação vivida entre o comerciante e o cule no deserto como um
estado de necessidade e a iguala à guerra, mas também termina por transferir estas
circunstâncias, a princípio pertencentes ao direito penal, ou melhor, aos indivíduos
envolvidos em conflitos, para o direito público, para o nível coletivo, portanto Estatal.
Ao recorrer aos exemplos da guerra, o juiz brechtiano desloca esta discussão
para o Estado na medida em que equipara o estado de necessidade, vivenciado pelos
personagens desta peça, ao estado de emergência, que o Estado pode vivenciar. O
estado de emergência
constitui-se pela declaração emanada do poder público,
pondo o país ou nação em situação de vigilância ou de
defesa contra as ameaças de perturbações ou contra as
perturbações ou atentados à sua integridade política ou
territorial. Era medida acauteladora e de ordem política,
para que pudessem os poderes públicos usar de meios
rigorosos capazes e eficientes de debelar a perturbação,
o atentado, ou para evitar a ameaça iminente de
perturbação ou de atentado às instituições políticas ou
ao território nacional. Por ele o presidente da república
assumia os poderes excepcionais, utilizáveis na altura
da ameaça, do atentado ou da agressão. Dela podia
decorrer o estado de guerra, a fim de que, em
conseqüência, pudessem ser mobilizadas e utilizadas as
forças armadas na defesa do país, seja por perturbação
interna ou por ataque externo.
151
Do estado de emergência decorre o estado de guerra, que se caracteriza pelo
conjunto de atos e medidas tomadas pelo governo de um país soberano, a fim de se
contrapor às violências ou ameaças de violência de um país estrangeiro.
O último exemplo dado pelo juiz da peça brechtiana, o de policiais atirando em
manifestantes, ilustra as ações e medidas tomadas pelo Estado para conter a perturbação
151
Cf. De PLACIDO E SILVA. IN: Vocabulário jurídico. Rio de Janeiro, ed. Forense, 2000. 17ª edição.
p. 322
106
interna, ou seja, ilustra um estado de emergência e estado de guerra. A referência à
perturbação externa, ou seja, a reação às ameaças e violência de um país estrangeiro, do
inimigo, está nos exemplos da guerra propriamente dita, quando o juiz discorre sobre os
oficiais em combate.
Ao utilizar estes exemplos como recursos argumentativos, o juiz de Brecht deixa
entrever que assim como acontece em um estado de necessidade, em que os atos e
medidas do indivíduo visam à sua legítima defesa, acontece tamm em um estado de
emergência, quando o presidente da República se apropria de poderes excepcionais – da
força armada e da violência, bem entendido - para garantir a ordem e defender a nação.
Nota-se que, nos dois casos, apesar de conceitos legais distintos, sob as lentes da justiça,
a ação não é ilícita, o que torna o crime excludente, devido às circunstâncias de
necessidade e emergência . Neste sentido, a exceção usada pelo representante da Justiça,
no caso da peça, para excluir o crime não é aleatória, pois coloca em evidência a
discussão sobre o Estado (a República de Weimar), caracterizada como os exemplos do
juiz de Brecht indicam, como um Estado de Exceção. Neste,
a exceção não está inserida para além do ordenamento,
senão no seu interior. Pois o estado de exceção é uma
zona de indiferença entre o caos e o estado de
normalidade, zona de indiferença não obstante
capturada pelo direito. De sorte que não é a exceção
que se subtrai à norma, mas ela que, suspendendo-se,
dá lugar à exceção – apenas desse modo ela se constitui
como regra, mantendo-se em relação com a exceção.
152
Além destes exemplos, o leitor já registrou outras imagens que remetem a um
Estado de Exceção: a tortura feita pelo comerciante ao cule, a coação do comerciante ao
cule, que o obriga, com um revólver, a atravessar o rio e, ainda, a referência à “lista
negra” (schwarze Liste), citada pelo estalajadeiro no início do julgamento.
Outro momento da peça, que pode ser aproximado ao Estado de exceção é
indicado pelo juiz com a referência às “circunstâncias dadas”, ou seja, pelo fato deles
estarem em uma região desabitada, sem policiais ou juízes, ou seja, em uma “terra sem
152
Appud AGAMBEN. Homo Sacer – O poder soberano e a vida nua. Trad. Henrique Burgo, Ed.
UFMG, Belo Horizonte, 2004. p. 27 e 26. IN: SCHMITT, Carl. Teologia Política. Apresentação de Eros
Roberto Grau. Belo Horizonte, Ed. del Rey, 2006. p. xi.
107
lei”. Quando se considera o Estado de Exceção, uma das primeiras medidas do
usurpador do poder é a de alterar as leis, para que ele não só possa governar
autoritariamente, ou seja, de forma ditatorial, mas também como uma maneira de se
auto-preservar, i.e., para que não seja condenado posteriormente pelos seus violentos
atos, cometidos durante este período de exceção, isentando-se, portanto, da culpa.
Sendo assim, tanto a ausência de jurisdição no caso da peça, quanto às leis
estabelecidas em um Estado de Exceção geram um problema para a Doutrina do
Jurídica, tendo em vista que os dois casos estão situados em uma zona de
indeterminação, e requerem que a justiça constitua um Tribunal de exceção
153
para
julgar as questões envolvidas.
O tribunal constituído em A exceção e a regra demonstra não só se utilizar deste
estado de exceção, a falta de jurisdição territorial, como age em favor e em nome do
Estado de Exceção. Isto sucede por meio da busca do juiz aos princípios da lei, ou
melhor, a busca de um fundamento para decidir sobre o caso. Para tanto, o juiz
brechtiano se pauta no código Hamurabi: “A regra é olho por olho”, que, por sua vez, é
considerado um dos primeiros registros de normas de conduta e traz valores que
fundamentaram, em um determinado momento da história, a norma jurídica.
Os valores, conforme a Jurisprudência aponta e o dramaturgo explicita, não são
imutáveis, mas se validam pela permanência histórica e pelo uso que a sociedade faz
deles. No julgamento feito na peça, considerado aqui como um tribunal de exceção -
uma vez que é o próprio juiz quem diz que não havia postos policiais e/ ou juízes -,
como não há uma norma prevista para julgar o caso, o representante da Justiça busca
justificar a sua decisão dentro destes princípios e valores que “fundaram” a norma. Ao
resgatar um valor estabelecido como regra, o “olho por olho”, o dramaturgo se apropria
de uma prática jurídica, aplica-a na cena do julgamento e, com isso, ao mesmo tempo
em que aprofunda a discussão sobre o Estado frente à luta de classes, mostra que o
153
O tribunal de exceção é aquele estabelecido post factum. Ele cria normas, que não estavam
anteriormente estabelecidas pelo judiciário para julgar casos onde a lei não vigorava, ou podem ser
formados dentro de um Estado de Exceção. A História fornece como um exemplo próximo a nossa
contemporaneidade, os tribunais de Nuremberg, que, até os dias de hoje, são questionados por grande
parte da Jurisprudência, que considera não ser admissível o julgamento de atos passados com normas
diferentes das estabelecidas no momento em que estes atos aconteceram.
108
Tribunal de exceção, ilustrado na peça, ratifica a barbárie, legitimando-a por meio da
legalidade.
A Racionalidade e a Regra
Ainda na cena do julgamento é introduzida uma discussão acerca da
racionalidade. A razão é mencionada pela primeira vez na voz do comerciante, após o
surgimento da prova e como uma maneira de se defender, quando afirma: “Aceitar que
o cule não me mataria na primeira oportunidade, seria aceitar que ele não tinha
nenhuma razão.”
154
O juiz se apropria desta menção e a ratifica no momento em que
cita o terceiro exemplo da história, ou seja, quando discorre sobre a reação dos policias
diante de manifestantes pacíficos, que “atiram em todos por medo. E o medo é uma
prova de razão”
155
, e completa: “O senhor não podia saber que o cule constituía uma
exceção”.
A esta afirmação, o comerciante diz: “Tem-se que seguir a regra e não a
exceção”. A razão, nesta passagem da peça, ainda é ratificada pelo guia, que mostra
aparentemente “estar de acordo” (Einverständnis), e diz não ser razoável (vernünftigen)
o cule ter dado de beber a seu carrasco. O juiz, então, profere:
A regra é olho por olho!
O bobo espera pela exceção
quem dá de beber a seu inimigo
Isso aquele que tem a razão não espera
156
Neste sentido, a racionalidade e a regra são indissociáveis nesta canção proferida
pelo juiz, pois é a regra que estabelece quem tem a “razão” e quem é desprovido dela,
ou seja, quem é “bobo”, e é a regra que ainda indica que aquele que age com a razão
deve fazê-lo pelo “olho por olho”, em outras palavras, com violência.
154
No original: “Anzunehmen, der Kuli würde mich nicht bei der ersten Gelegenheit niederschlagen,
hätte bedeutet anzunehmen, er habe keine Vernunft“. GW, BII, p.819.
155
No original: “Die Polizisten schießen eigentlich alle aus Furcht. Und dass sie Furcht haben, ist ein
Beweis von Vernunft.“GW, BII, 819; „Sie konnten nicht wissen, dass der Kuli eine Ausnahme bildete!“;
e „Man muß sich an die Regel halten und nicht die Ausnahme“. GW, BII, 819.
156
No original: “Die Regel ist Auge um Auge!/ Der Narr wartet auf die Ausnahme./ Daß ihm sein Feind
zu trinken gibt/ Das erwartet der Vernünftige nicht“ GW, BII, p. 820.
109
Se a regra estipula o que é a razão, ou delineia o que é ser racional, o seu
representante Estatal, o juiz, faz jus a ela, pois no pronunciamento da regra, o “olho por
olho”, o juiz também age com violência, conforme “A Canção dos Tribunais” havia
previsto, pois as palavras que emprega são como “sombras de um punhal de combate”,
que assassina o direito do inocente.
A citação de Brecht do “olho por olho” não é contingente, pois, além de remeter
o leitor ao código Hamurabi, ela está presente em três passagens do Antigo Testamento:
Êxodo 21:24, Levítico 24:20; Deuterônimo 19:21.
No Êxodo, o capítulo 21 é intitulado como “As leis acerca dos servos e dos
homicidas”
157
, e discorre sobre as leis de como o proprietário deve agir com o seu
servo. A menção ao “olho por olho” está em um trecho, uma subdivisão deste capítulo,
denominado “As leis acerca dos que amaldiçoam os pais ou ferem qualquer pessoa”,
dentro da qual destaco o seguinte verso “Se alguém ferir a seu servo ou sua serva com
vara, e morrerem debaixo da sua mão, certamente será castigado”.(vs. 20).
No Levítico, o capítulo é intitulado como: “A Lei acerca das lâmpadas”
158
, e o
verso está presente na passagem que traz como subtítulo: ‘A pena do pecado da
blasfêmia’. Este trecho menciona o exemplo de um estrangeiro egípcio, que blasfemou
o nome do Senhor, e Ele diz a Moisés: “E quem matar a alguém certamente morrerá./
Mas quem matar um animal o restituirá: vida por vida./ Quando também alguém
desfigurar o seu próximo, como ele fez, assim lhe será feito”.
No Deuterônimo, a referência ao “olho por olho” é dada em um capítulo
intitulado “A quem pertence os privilégios das cidades de refúgio”
159
e a menção está
na subdivisão desta parte “Acerca dos limites e das testemunhas”, que aborda o falso
testemunho: “quando se levantar testemunha falsa contra alguém, para testificar contra
ele acerca de transgressão,/ Então, aqueles dois homens, que tiverem a demanda, se
apresentarão perante o Senhor, diante dos sacerdotes e dos juízes que houver naqueles
dias./ E os juízes bem inquirirão; e eis que, sendo a testemunha falsa testemunha, que
157
IN: A Bíblia Sagrada. Trad. ALMEIDA, José Ferreira de. São Paulo, Ed. Sociedade Bíblica do Brasil,
1995. p.70. (versão da bíblia luterana)
158
Idem, ibidem, p. 116.
159
Idem, ibidem. p. 180.
110
testificou falsidade contra seu irmão/ far-lhe-eis como cuidou fazer a seu irmão; e,
assim, tirarás o mal do meio de ti,/ para que os que ficarem o ouçam e temam, e nunca
mais tornem a fazer tal mal no meio de ti.”
Estas três passagens ecoam no que se passa ao longo da viagem para Urga, isto
é, nos maus tratos do comerciante em relação ao cule até este ser assassinado; no que se
passa no julgamento: a blasfêmia proferida por um estrangeiro, o falso testemunho e a
cidade, onde o ímpio se refugia. Nas passagens do Antigo Testamento, Deus intervém
fazendo a justiça divina. Porém, ao apresentar a regra, o “olho por olho”, na boca de um
juiz terreno, que a usa para absolver um assassino, um ímpio, o dramaturgo parodia
estas passagens bíblicas, quando ironiza e inverte o sentido do contexto original desta
expressão, desmontando, assim, o mito de justiça. Ao mostrar que a justiça terrena é
injusta, ele termina por revelar que a divina também não existe.
Retomando-se o que Brecht diz acerca da peça didática ser feita para o
desmantelamento de ideologias (Ideologiezertrümmerung), quando apresenta na boca de
um juiz terreno uma “regra” divina, o dramaturgo não só ilustra um ponto da ideologia
teológica, a nivelação da justiça divina com a terrena, mas, ao fazê-lo, a desmantela. Ao
desmantelar a ideologia teológica o dramaturgo faz mover, mais uma vez, o “modelo de
ação” da peça didática.
Quando o juiz brechtiano estabelece a regra, pautado por sua razão, que
determina quem é provido de razão – os que agem pela violência, pelo “olho por olho”-,
e quem é desprovido de razão, quem não age e nem reage por meio da violência, a
exceção -, faço valer a idéia de que, desta forma, o dramaturgo estabelece um diálogo
com os racionalistas da República de Weimar, e direciona este diálogo para o jurista
Carl Schmitt, que propõe um Estado Total pautado no decisionismo, proposição
apresentada em sua obra de 1922, Teologia Política. (Buscar-se-á desenvolver melhor
esta relação entre as idéias de Schmitt e esta peça didática de Brecht na parte do
trabalho que irá tratar de A exceção e a regra na República de Weimar).
111
A Fábula
Assim como é feito no salmo 78, em que há a menção às velhas/antigas histórias
que serão contadas para a nova geração, para que esta não cometa os erros dos seus pais,
Brecht também faz uma menção, nesta peça didática, a uma antiga história, uma vez que
apresenta uma imagem que remete a ela: “Ele dá de beber a um homem e quem bebe é
um lobo”. Com esta imagem, o leitor é conduzido à fábula de Esopo “O lobo e o
cordeiro”. Antes de discorrer sobre esta fábula de Esopo, cabe lembrar que ela é aludida
dentro de uma canção, entoada pelo guia, que remete o leitor ao prólogo e ao epílogo,
tendo em vista o mesmo caráter instrutivo, apresentado pelo uso de verbos no
imperativo e pelo distanciamento dado pela pessoa que representa o guia, pois ele se
distancia do próprio personagem e assume uma voz que pertenceria, de fato, ao coro,
que avalia comentando e instrui o leitor a uma determinada atitude, assim como
acontece nas canções do prólogo e epílogo.
A fábula de Esopo acerca de “O lobo e o cordeiro” é assim apresentada:
Ao ver um cordeiro à beira de um riacho, o lobo quis
devorá-lo, mas era preciso ter uma boa razão. Apesar de
estar na parte superior do riacho, acusou-o de sujar sua
água o que o impedia de matar a sede.
O cordeiro se defendeu:
-Eu bebo com a ponta dos lábios e, mesmo, como eu ia
sujar a água se ela está vindo aí de cima, onde tu estás?
Como ficou sem saber o que dizer, o lobo replicou:
- Sim, mas no ano passado insultaste meu pai.
O carneiro respondeu:
- Eu nem era nascido.....
- O lobo não se calou:
- Podes te defender como quiseres que não deixarei de
te devorar.
Quando alguém está disposto a nos prejudicar de nada
adianta nos defendermos.
160
160
In: ESOPO. Fábulas. Trad. Antônio Carlos Vianna. Porto Alegre, Ed. L & PM Pocket, 2008. p. 156-
157. Apresentamos também a versão de La Fontaine da fábula: “Na límpida corrente de um ribeiro/ Mata
a sede um cordeiro./ Chega um lobo em jejum que a fome atiça/A farejar carniça – “Ousas turvar-me as
águas, malcriado?”/( Uiva o lobo irritado) - /Cordeiro “Rogo, Senhor, a Vossa Majestade,/ E com toda a
humildade,/Que não se zangue com seu pobre servo;/Pois, respeitoso, observo/Que embaixo e no declive
estou bebendo, -/“Turvas (retruca o bárbaro animal):/Demais, falaste mal,/Há seis meses, de mim”.
/Cordeiro “Não é verdade;/Conto só três de idade;/Não tinha inda nascido”./Lobo “Pois então/Falou um
teu irmão”/ Cordeiro “Não o tenho”//Lobo “Foi um dos teus parentes,/ Que me tem entre dentes; e eu
vingo-me de vós – cães e pastores, /Que sois tão faladores”. //Disse, e sobre o cordeiro se despenha /E o
conduz para a brenha,/Onde o como do mato no recesso,/Sem forma de processo.- //Qual a razão do mais
forte predomina/este fábula ensina.
160
IN: PINHEIRO CHAGAS, Manuel (org.). Fábulas de La Fontaine.
Trad. Barão de Paranapiacaba et.alli. São Paulo, Logos, s.d., vol. I. p. 107- 111.
112
A função da fábula nas peças de Brecht é dada pelo próprio autor, que afirma,
em seu “Pequeno Organon para o Teatro”: “E a fábula é, segundo Aristóteles – e nesse
ponto pensamos identicamente -, a alma do drama!” (BRECHT, 2005, p, 131, Trad. Pais
de Brandão)
161
.
A fábula como alma, como núcleo do drama, aparece nesta peça didática,
tomando-se dois termos da teoria literária, como marcadora de um “tempo narrado” (o
cule dando de beber ao comerciante e sendo assassinado por ele, na cena 7) inserido no
“tempo da narrativa” (a referência à própria fábula, mencionada na canção entoada pelo
guia, na cena 9, a cena do julgamento). Desta forma, a fábula, uma outra camada
textual, que constitui um outro gênero literário, é internalizada no tecido do drama,
conferindo-lhe traços épicos, tendo em vista o seu caráter narrativo, ao mesmo tempo
em que sintetiza o enredo e plasma o problema da luta de classes em sua relatividade
histórica, dentro da qual também o progresso está inserido.
No final do enredo, a fábula ilustra exatamente a mesma ação que foi
apresentada no meio deste, ou seja, a imagem do cule (cordeiro), dando de beber ao
comerciante (lobo) e sendo morto por ele.
A referência a esta fábula não é aleatória, uma vez que o leitor, ao ver a imagem
do lobo que devora o cordeiro, a reconfigura dentro do contexto do enredo, ou seja, a
relaciona à violência praticada pelo comerciante-explorador quando o cule-explorado
lhe oferecera a água. Nota-se na fábula de Esopo que o lobo queria devorar o cordeiro e
que buscava apenas uma justificativa para tal ação. Tal violência é retomada na “moral”
desta fábula, que adverte ser inútil se defender do lobo, uma fera predadora e munida de
artifícios, dentre eles a astúcia – também mencionada pelo comerciante, quando fala de
si-, pois, desde o início, já queria prejudicar o cordeiro. Em outras palavras: o
comerciante age de maneira premeditada.
O comerciante da peça age, ainda, como o lobo da fábula, pois no momento
anterior à travessia do deserto já prevê uma luta entre ele e o cule, e na cena em que o
161
No original: Und die Fabel ist nach Aristoteles – und wir denken gleich- die Seele des Dramas“. GW,
Band 16, S. 667.
113
assassina, deixa o revólver em seu colo e afirma que a qualquer movimento do cule, ele
irá atirar. É, ainda, na parte a e b da cena 7, que se pode notar a maneira violenta como
o explorador age, pois apesar de o cule dizer que não sabia o caminho para Urga e ter o
braço machucado, o comerciante o espanca e o tortura, até, finalmente, assassiná-lo. Ao
apresentar a imagem do lobo e da água na canção entoada pelo guia, que replica a regra,
apresentando a humanidade, o sentimento humanitário, como exceção o autor, mais uma
vez, de maneira dialética, instrui o leitor para que inverta a exceção em regra, ou seja, o
instrui para que use a humanidade – o sentimento humanitário-, em vez da violência.
Pode-se, ainda, relacionar o lobo da fábula com o juiz, porque desde o início o
representante da Justiça já está disposto a prejudicar o cule, quando alega legítima
defesa por parte do comerciante.
Neste sentido, como núcleo e alma deste drama épico, a fábula, ao mesmo tempo
em que é usada pelo autor como maneira de transmitir às gerações futuras a maneira de
agir de seus antecessores, evitando que essas gerações ajam como eles, ela é
historicizada por Brecht, uma vez que é contextualizada dentro da questão da luta de
classes, pois o comerciante-explorador é a personificação do lobo, que sempre age com
astúcia e violência, e o cule-explorado, a do cordeiro, aquele que é submetido a esta
violência.
A sentença do juiz e a (in)justiça social
A sentença proferida pelo juiz é clara: o tribunal reconhece que o cule se
aproximou do comerciante com uma garrafa de água e não com uma pedra. Apesar
disso, conforme o juiz, é mais certo acreditar, “[...] que o cule queria assassinar o seu
Senhor com a garrafa de água do que lhe dar de beber [...]”.
162
A partir do
reconhecimento da prova de inocência, que na sentença é transformada em arma
assassina, o juiz tece comentários acerca dos motivos que fazem com que ele acredite
que o cule queria matar o comerciante:
O carregador pertencia a uma classe que efetivamente
tinha um motivo para se sentir prejudicada. Para gente
assim como o carregador, isso não era mais do que uma
162
No original: “[...] daß der Kuli nicht mit einem Stein, sondern mit einer Wasserflasche erschlagen
wollte, als ihm zu trinken geben.[…]“ GW, BII, p. 821.
114
reação puramente lógica para se proteger de uma
divisão desfavorável na partilha da água. Aliás, deveria
parecer certo a estas pessoas, de visão limitada e
unilateral, agarradas à realidade, vingar-se de seu
torturador. No dia do ajuste de contas, elas só teriam a
ganhar. O comerciante não pertencia à mesma classe do
seu carregador. Dele o comerciante só teria que esperar
o pior. O comerciante não podia acreditar em um ato de
camaradagem por parte do carregador, torturado de
maneira confessa pelo explorador. A razão disse a ele,
que ele estava sob forte ameaça. A desabitada região o
enchia de preocupação. A ausência de polícia e
tribunais tornava possível ao empregado arrancar-lhe à
força sua parte de água, e até o encorajava a isso. O
acusado agiu em legítima defesa, ou em caso de ter sido
realmente ameaçado, ou no caso de ter se sentido
ameaçado. Conforme as circunstâncias dadas, ele tinha
que se sentir ameaçado. Assim, o acusado é absolvido e
a queixa da esposa do morto é rejeitada.
163
(BRECHT,
1967, p.821, tradução nossa)
Conforme mencionado, observa-se que a justificativa dada pelo juiz é a
diferença de classes. Ao estabelecer esta diferença, dada pelo nivelamento das “razões”
do comerciante e do cule, ou seja, a violência, o juiz termina por mostrar que usa
medidas diferentes para cada uma das classes. Em relação à classe explorada, ele afirma
que não seria mais do que “pura razão” o cule se proteger na partilha de água e se vingar
do seu carrasco. Apenas com esta afirmação, o juiz desconstrói todo o seu juízo,
anteriormente argumentado, sobre o fato de o cule não ter razão, pois, em um momento
anterior, que também mostra a medida dada à razão do explorador, o juiz criado por
Brecht diz ao comerciante que, ao agir por medo, ele demonstrou “uma prova de razão”
e que o explorador não podia saber “que o cule era uma exceção”. Ora, se o cule já fora
determinado como uma exceção, pelo fato de não agir pelo medo, por que, agora, ele é
considerado como quem tem razão, ou seja, como quem age por meio da violência?
Naquele passo da peça, o juiz havia usado o conceito de razão para dar cobertura à
ilícita ação do comerciante, e agora, na sentença, o usa para incriminar o cule. Nota-se,
163
No original: “Der Träger gehörte einer Klasse an, die tatsächlich einen Grund hat, sich benachteiligt zu
fühlen. Für solche Leute wie den Träger war es nichts als pure Vernunft, sich vor einer Übervorteilung
bei der Verteilung des Wassers zu schützen. Ja sogar gerecht musste es diesen Leute bei ihrem
beschränkten und einseitigen, nur an ihrem Peiniger zu rächen. An dem Tag der Abrechnung hatten sie
doch nur zu gewinnen. Der Kaufmann gehörte nicht der Klasse an, der sein Träger angehörte. Er mußte
sich von ihm des Schlimmsten versehen. Der Kaufmann konnte nicht an einen Akt der Kameradschaft bei
dem von ihm zugestandenermaßen gequälten Träger glauben. Die Vernunft sagte ihm, dass er aufs
stärkste bedroht sei. Die Menschleere der Gegend mußte ihn mit Besorgnis erfüllen. Die Abwesenheit
von Polizei und Gerichten machte es seinem Angestellten möglich, seinen Teil vom Trinkwasser zu
erpressen und ermutigte ihn. Der Angeklagte hat also in berechtigter Notwehr gehandelt, gleichgültig, ob
er bedroht wurde oder nur sich bedroht fühlen mußte. Den gegebenen Umständen gemäß mußte er sich
bedroht fühlen. Der Angeklagte wird also freigesprochen, die Frau des Toten mit ihrer Klage
abgewiesen.“
115
portanto, que esta razão é usada com objetivos e medidas diferentes; no primeiro caso,
para proteger aqueles que detêm os meios de produção, e, no segundo, para prejudicar o
explorado. Estas diferentes medidas são usadas por aquele que detém o poder de
decisão, ou seja, o juiz. Este fato sugere ao leitor que o próprio conceito de razão está
em juízo, e que cabe a ele (leitor), julgar a arbitrária decisão tomada pelo juiz em favor
do explorador.
Outra questão em relação à sentença proferida é a de que ela, de fato, é apenas
uma ratificação da “tese” apresentada pelo juiz desde o início do julgamento e prevista
pelo coro que canta a “Canção dos Tribunais”, ou seja, a de que o comerciante é
inocente, porque agiu em legítima defesa e de que o cule é culpado. Permanece, então o
problema da diferença de classes. Esta já fora referida pelo comerciante, ao longo do
enredo, quando, por exemplo, ele diz ao guia: “Não é comum que eu me sente com você
e que você se sente com o cule. Estas são as diferenças sobre as quais o mundo é
construído.”
164
O uso da voz passiva no presente, reduzindo ao mínimo a ação
transformadora do verbo, reforça a idéia de estaticidade, de uma estrutura que ainda é
mantida a partir destas diferenças de classe, onde há costumes que são automaticamente
seguidos, mantendo inquestionável essa divisão, tal como no exemplo dos indivíduos de
uma classe que não se sentam com os de outra. A diferença é mais acentuada quando o
comerciante diz que o guia é “um homem melhor” pelo fato de ganhar mais e não ter
que “carregar” nada. Esta diferença de classes é retomada pelo juiz, ao indagar o guia
no tribunal. Declara ele: “Se se considera isso [que o cule odiava o comerciante] é
perfeitamente natural. É compreensível que um homem mal-remunerado, forçado com
violência a ficar em perigo, prejudicado em sua saúde para dar vantagem a um outro e
que arrisque a sua vida para isto, que o odeie.”
165
. Sendo assim, em vez de se manter
imparcial, atitude que seria condizente com um representante da Justiça e do Estado,
que teria que tratar e julgar os homens como iguais, o juiz da peça brechtiana mostra,
mais uma vez, que está a serviço dos que detêm os meios de produção.
164
No original: “Ich setze mich nicht mit dir für gewöhnlich und du setzt dich nicht mit einem Träger.
Das sind Unterschiede, auf denen die Welt aufgebaut ist.“ GW, BII, p. 798.
165
No original: „Wenn man sich überlegt, ist es eigentlich selbstverständlich.Es ist ja begreiflich, dass ein
Mann, der schlecht entlohnt, mit Gewalt in Gefahren getrieben wird und für den Vorteil eines anderen
sogar Schaden an seiner Gesundheit nimmt, für fast nichts sein Leben riskiert, dann diesen anderen haßt.“
GW, BII, p. 816.
116
A postura do juiz, representante do Estado, frente à luta de classes,
exemplificada na peça não só pela luta entre explorador e explorados, mas também pela
cisão da classe trabalhadora entre sindicalizados e não-sindicalizados, remonta, ainda, à
questão indivíduo versus coletivo, em que o Estado tem um papel fundamental.
Para discorrer sobre esta relação entre o indivíduo versus o coletivo, retome-se,
então, um motivo presente em todas as peças didáticas: O homem ajuda o homem? E
ainda um outro, o "Estar de acordo" (Einverständnis), também presente em todas as
peças didáticas. Faço valer a idéia de que estes motivos servem à configuração do
debate acerca do papel do Estado na sociedade, "onde o interesse de cada um equivale
ao interesse do Estado e o gesto [social] compreendido determina a maneira de agir de
cada um [...]" (Apud KOUDELA, 1991, p13, Trad. KOUDELA). Dito de outro modo:
o Estado anula ou deveria anular o indivíduo diferenciado em favor do indivíduo
equalizado através do respeito a normas estabelecidas, ou aos costumes seguidos pelo
grupo? Esta questão, ainda que de maneira pontualmente referencial e constituída em
sua relatividade histórica perpassa pelo pacto social de Rousseau, e é apresentada nas
peças didáticas de Brecht, como o "Estar de acordo" (Einverständnis).
Preconiza o autor d’O contrato social que é a vontade do soberano, a soma da
vontade de todas as individualidades, ou seja, a vontade geral, que constitui o Estado
como uma unidade. O Estado, assim, não está fundado na submissão a um poder
qualquer, mediante um contrato com este poder, ou mediante um contrato de
dominação, mas se dá pelo pacto social. Este, conforme Rousseau, tem como finalidade
“encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a força comum, a
pessoa e os bens de cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, obedeça
somente a si mesmo e continue tão livre como antes”
166
e é efetivado pelos seguintes
termos: “Cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema
direção da vontade; e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível
do todo”.
167
166
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. – Capítulo VI – “O pacto social”. Porto Alegre, Ed. L
& PM Pocket, 2007, p. 33.
167
Idem.ibidem, p. 34.
117
O dramaturgo, novamente com o emprego da dialética, coloca o “Estar de
acordo” (Einverständnis), ou melhor, o pacto social, à prova nas peças didáticas pelas
atitudes “associais” diante de um coletivo, e, ao fazer isso, ele termina por questionar o
papel do Estado diante das relações sociais. Além de colocar essas forças em
movimento, Brecht as contextualiza em situações-limite, ou seja, em “situações de
necessidade crítica”, como, por exemplo, o acidente dos aviadores em A Peça de Baden-
Baden - sobre o acordo; a busca pelo remédio em Aquele que diz sim, Aquele que diz
não; e o risco do fracasso da revolução em A Medida.
Estas atitudes “associais”, o emprego da dialética dentro das falas dos
personagens - desdobrada no jogo de contradições entre essas falas e as ações dos
personagens – e o jogo entre identificação e estranhamento, quer do leitor, quer do
público, quer do ator, também fazem mover o “modelo de ação” das peças didáticas.
Em A exceção e a regra isto não é diferente, pois a questão da ajuda do homem
pelo homem é apresentada na travessia do deserto, em uma situação de “necessidade
crítica”, em que o cule e o comerciante correm o risco de morrerem de sede por estarem
perdidos no deserto. Em relação às outras peças didáticas, há, em A exceção e a regra,
contudo, duas diferenças dentro desta circunstância de “necessidade crítica”: uma das
partes, o explorador, submete a outra, o explorado, à sua vontade, pois é detentor do
capital e pode demiti-lo a qualquer momento. Além deste fato, o mesmo explorador tem
um revólver, ou seja, mesmo que a submissão não se desse por meio do capital, ela se
daria, como se dá na travessia do rio, pela violência, ou seja, ao explorado não é dada
nenhuma escolha para “estar [ou não] de acordo”. Sendo assim, a questão acerca do
Estado, do pacto social e do acordo, inseridos nesta peça didática por meio de uma
circunstância de “necessidade crítica”, reconfigura-se, pois a ela é acrescentada a
discussão sobre a luta de classes e o progresso.
Mas uma pergunta que se faz é: Será que a máxima da ajuda do homem pelo
homem, no caso desta peça, não se tornaria inválida pelas próprias circunstâncias em
que o autor apresenta seus personagens? Em outras palavras, sem objetivar, porém, uma
aproximação ao raciocínio do juiz, mas visando ao levantamento das circunstâncias, às
quais o autor se refere inúmeras vezes no texto: será que algum indivíduo, que tem um
braço quebrado por causa de seu explorador e que, ainda nestas condições, é
118
barbaramente espancado por ele, lhe ofereceria água em um momento de necessidade?
Como se deixa entrever pelo texto, nem o comerciante estava morrendo de sede, uma
vez que bebia, escondido do cule, a água de sua própria garrafa, nem o cule ofereceu a
água por achar que ele, o seu explorador, estava com sede. Desta forma, qual a função
da apresentação de tal máxima, que sequer chega a se concretizar?
Considero que, quando o autor a apresenta tem em mente trazer à discussão e ao
debate tanto a relação entre ajuda e violência (presente em todas as peças didáticas),
tendo em vista que o comerciante quebra o braço do cule ao “ajudá-lo” na travessia do
rio e o “ajuda” também ao oferecer a garrafa de água, retirada do próprio cule, após tê-
lo espancado, quanto busca ilustrar o papel do Estado em relação ao coletivo, figurado
no juiz, representante da justiça, quando ele pergunta, na cena do julgamento, pelos
motivos que o cule teria para dar de beber a seu inimigo. O emprego da expressão
“inimigo” (Feind) pelo juiz, remete o leitor, novamente, ao estado de guerra, porque ao
comparar a situação no deserto a um estado de guerra, o juiz também termina por
comparar o cule, que representa os explorados, a classe social mais baixa, a um inimigo
do Estado. Como inimigo do Estado, o cule deveria ser, portanto, eliminado.
Nos exemplos da História, dados pelo juiz, o medo, que é a causa, e a violência,
a sua conseqüência, ilustram de maneira clara o modus operandi do Estado, referimo-
nos à República de Weimar, contexto da escritura da peça. Causa e conseqüência são
fundamentadas pela razão – aqui, no sentido de justiça e lei moral - do Estado,
mostrando, assim, que ela não só admite esta situação, como a legitima. Pelo fato dos
exemplos serem proferidos por um juiz, que os usa para a defesa do perpetrador, o
acordo, ou melhor, o pacto social, fica sob suspeita, porque se verifica que, de fato,
quem usa a força física por ter um revólver, ou seja, o explorador e os policiais, não só
não se submete ao todo, à vontade geral, como faz com que o coletivo, ou seja, a
vontade geral, se submeta à violência que emprega.
Na peça, esta situação ainda traz um outro dado, o fato de o explorador, o que
tem o revólver, ser aquele que detém, ainda, o capital. É a partir deste dado que se
mostra, mais uma vez, o posicionamento do Estado frente às relações sociais,
estabelecidas na peça de maneira hierárquica, pois em vez de cumprir seu papel
mediador entre indivíduo versus coletivo, o Estado assume, porém, outra posição, isto é,
119
a de ratificar estas relações hierárquicas, como deixa clara a sentença proferida pelo
juiz, representante estatal, quando diz, que embora se reconheça que o cule trazia uma
pedra, é atribuída ao carregador a intenção de matar o seu explorador, justificada pela
diferença de classes. Desta maneira, o discurso do juiz, ou melhor, do Estado,
demonstra “estar de acordo” (Einverständnis) com o do detentor do capital, o
comerciante, porque também considera que o “mundo é construído” sobre estas
diferenças de classe.
O que faz mover estas forças, ou seja, o que leva o explorado e o explorador até
esta situação limite é, portanto, o capital, pois o comerciante, pela sua necessidade
individual de chegar primeiro a Urga, objetiva realizar o seu negócio; e o cule, pela sua
necessidade individual de manter seu trabalho, aceita entrar no deserto com o seu
explorador, para guiá-lo por um caminho que não conhece. O capital, portanto,
metamorfoseado por estas duas necessidades individuais, os leva a uma “estado de
necessidade” comum, a sede no deserto. Como é ele também que faz mover as
engrenagens do progresso, considero que ao apresentar a relação destes personagens
dentro destas circunstâncias, o autor propõe uma revisão do “acordo”
168
, ou seja, uma
revisão da relação entre indivíduo e coletivo, cujo objetivo é suscitar a reflexão do leitor
para os seus gestos diante de um novo contexto social, onde o progresso está inserido,
exigindo, portanto, novas maneiras de agir dentro destas relações, uma vez que
progresso já mostrou como age, ou seja, sua engrenagem é um rolo compressor que
elimina as camadas sociais mais baixas.
Vale indicar, ainda, que se as necessidades dos grupos sociais envolvidos,
figuradas nas necessidades dos indivíduos que os representam na peça, respectivamente
o comerciante e o cule, levam estes protagonistas a uma necessidade comum, esta
resulta na barbárie, legitimada pelo Estado com e por meio destas mesmas diferenças de
168
O que afirmo como “revisão do ‘acordo’” poderia gerar polêmica, pois por um lado, nota-se que, nas
peças didáticas, Brecht pontua ainda que de maneira referencial a questão de “cada um, ao unir-se a
todos, obedeça somente a si mesmo e continue tão livre como antes”, mas por outro, torna-se claro que o
dramaturgo é crítico em relação a “encontrar uma forma de associação que defenda e proteja, com toda a
força comum, a pessoa e os bens de cada associado [...]”Grifos meus. Neste trabalho, seria inviável
abordar a filosofia de Rousseau, especificamente suas reflexões apresentadas em O Contrato Social, e
relacioná-las com as propostas de Brecht para as peças didáticas, bem como à leitura apresentada neste
estudo de A exceção e a regra. Se, neste momento, indico a questão do pacto social é por uma questão
metodológica, ou seja, porque ele atravessa a discussão sugerida pelo dramaturgo sobre o Estado e é a
ponte para o diálogo entre Brecht e Carl Schmitt, do qual trataremos adiante.
120
classe, ou seja, a sentença proferida, dada pelo representante da justiça e do Estado,
reafirma a injustiça social.
121
CAPÍTULO 4
Coros desconhecidos e as anotações "silenciadas"
“Coro da direita - Nos lugares, onde o caos domina
o homem torna-se o lobo do homem
Coro da esquerda- Para nós, nenhum animal é tão devorador
quanto o homem que é protegido pela polícia.”
(BRECHT, [1934?])
122
Até a data de sua morte, em 1956, Brecht não havia publicado o texto dos dois coros
a que se refere em algumas "anotações informativas" e "aumentativas" atinentes à peça
em tela, de tal forma que esta permanece até os dias de hoje tal como na primeira versão
impressa em 1931.
Refere-se Brecht a dois novos coros, passíveis de inserção no original de A
exceção e a regra, nas “anotações informativas” e nas “anotações aumentativas”, tal
como foi apresentado no capítulo sobre as “As peças didáticas, segundo Brecht”. Das
“anotações informativas”, podem-se recolher três tipos de indicações. De uma delas,
conhece-se a seguinte citação: “Recomenda-se deixar um dos dois coros dar um
exemplo da História. Assim, hoje, o coro adequado pode apresentar o que
segue:"(Apud STEINWEG, 1976a, p.161, tradução nosso, grifo nosso)
169
. Como se
observa, esta anotação termina em dois pontos, ou seja, ou o autor a interrompe e não
lhe dá seguimento por algum motivo que se desconhece, ou trata-se de uma anotação de
que se conhece apenas um pedaço, tendo-se perdido o restante nos escritos esparsos do
autor. Fato é que o crítico Steinweg apenas registra esta citação em sua obra de 1976a
sem lhe fazer comentários. De uma outra anotação, conhece-se a citação, abaixo
transcrita :
Sobre um comentário musical para A exceção e a regra
(a ser apresentado: eventual
mente um pequeno coro,
que durante a peça se divide em dois coros que se
contrapõem, e um condutor). Por exemplo, no final da
primeira cena, a corrida das duas caravanas é
representada no palco pelos atores (em silêncio). O
condutor e o coro tratam da questão da concorrência. E
de maneira objetiva: desta maneira, combatendo,
vencendo um ao outro, os indivíduos desta época
construíram gigantescas obras, New York, a nova
matemática, os transportes, etc. Esta construção não era
possível de modo diferente (por ex., de maneira menos
crua ou combativa). (Apud STEINWEG, 1976a, p. 142-
143, tradução nossa, grifo nosso).
170
169
No original: “[…] Es empfiehlt sich, einen der beiden Chöre ein Beispiel aus der Geschichte angeben
zu lassen. So kann heute etwa der rechte Chor folgendes vortragen:“
170
No original: “Über einen musikalischen Kommentar zu ‚Ausnahme und [die] Regel’ (ausführende:
eventuell kleiner chor, der sich während des stückes in zwei gegenchöre trennt und ein leiter.) beispiel:
gegen schluss der ersten scene wird auf der bühne von den spielern der wettlauf der beiden karawanen
vorgeführt (stumm). dazu behandelt leiter und chor die frage der konkurrenz. und zwar objektiv: auf
solche weise, kämpfend, einander besiegend, bauten die menschen dieser zeit riesige werke auf, newjork,
die neue mathematik, den verkehr usw. dieser aufbau war auf keine andere (zb weniger rohe oder
kriegerische) weise möglich. „
123
As palavras de Brecht dão a entender que estes coros seriam subdivisões de um
pequeno coro e que deveriam ser contrapostos. Na citação acima, Brecht também aponta
para uma questão enunciada e desenvolvida ao longo da peça: a luta da concorrência
travada em prol do progresso.
De uma terceira "anotação", acerca dos novos coros, intitulada "Sobre Coros"
171
,
temos a seguinte citação:
Em princípio, devem se juntar diferentes pessoas de
uma peça para um coro, quando a expressão do
interesse comum (sobre o qual também pressuposto)
deve ser conferida. O indivíduo pode, então, ficar em pé
em muitos coros diferentes, ou seja, sempre junto a
outras pessoas. Busca-se manter projetado sob o palco,
e em comparação, os clássicos e grandes grupos de
interesse. Assim, as classes podem renunciar à
ordenação dividida dos coros e se contentar com a
acústica. Os coros de tais grupos são colocados juntos,
de acordo com o conceito de classe, por meio de uma
música comum, sem que percam seu lugar.Os coros não
devem ficar imóveis. Não deve haver dois grupos
imóveis: um, no início, pode ser instruído e, até o final,
ser o que instrui. Os coros devem crescer, mas podem
se transformar e diminuir. Também é possível,
naturalmente, estabelecer, desde o início, dois coros
principais que dão os comentários no palco acerca dos
processos da classe que domina e dos da classe que é
dominada. As pessoas que representam são igualmente
retiradas destes coros. Isto é bom, para dar a marca
pessoal de sua classe, da mesma maneira como os coros
a marcam. (Apud HECHT et.al, 1993, p.675-676,
tradução nossa).
172
171
Os organizadores de Große Kommentierte... apresentam esta anotação como datada de 1940, mas
indicam que esta datação é incerta, pois a anotação corresponde a uma versão elaborada pelo autor em
1934 para A exceção e a regra, que o autor retomou em 1936. Sendo assim, esta anotação, possivelmente,
corresponde a este período. No original: „Vgl.zu 660 , i f. Vgl. dazu Brechts 1934 hergestellte Fassung
von Die Ausnahme und die Regel mit zwei einander gegenübergestellten Chören (Band 3, Kommentar),
die er aber 1936 wieder rückgängig macht. Der vorliegende Text ist möglicherweise bereits zu dieser Zeit
entstanden.“ IN: Bertolt Brecht - Große Kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe. Schriften
2.Band 22. Suhrkamp Verlag, Frankfurt am Main, 1993.p. 1104.
172
No original: “Prinzipiell werden sich verschiedene Personen eines Stückes dann zu einem Chor
zusammenschließen, wenn bestimmten gemeinsamen Interessen (darunter auch vermeintlichen) Ausdruck
verliehen werden soll. Die einzelne Person kann dann in sehr verschiedenen Chören stehen, d.h. mit
immer anderen Personen zusammen. Will man die großen klassischen Interessengruppen demgegenüber
auf die Bühne projiziert erhalten, nämlich die Klassen, so kann man verzichten auf die räumliche
Zusammenfassung der Chöre und sich mit der akustischen begnügen. Es treten dann aus solchen
Gruppen, die klassenmäßig zusammengestellt sind, rein durch gemeinsamen Gesang, ohne ihren Platz zu
verlassen, Chöre zusammen. Die Chöre sollten nicht starr sein. Es sollte nicht zwei starre Gruppen geben:
eine von allem Anfang an belehrende und eine zum Ende belehrte. Die Chöre sollten wachsen und
schrumpfen und sich umwandeln können. Natürlich ist es auch möglich, von Anfang an zwei Grundchöre
124
Neste trecho, Brecht chama a atenção para a existência de dois grupos sociais,
representantes de duas classes que se opõem: a classe dominante e a classe dominada.
Neste sentido, Brecht inova a tradição grega, que atribuía ao coro a expressão do senso
comum, ou a voz do povo. A partir desta anotação, o coro passa a dar voz a classes
sociais.
O texto dos coros aparece publicado pela primeira vez, em 1976, na Revista
Alternative, editada na então República Democrática Alemã, tal como segue:
Bertolt Brecht: Texto para os coros
173
para A exceção e a regra
As passagens do coro, escritas em 1932, que até agora não foram publicadas,
foram usadas, pela primeira vez, como parte integrante da peça em Terni.
O condutor do coro da esquerda fala o prólogo;
No final [do prólogo], o condutor do coro da direita fala:
s confirmamos
A verdade dos processos. Mas
Nós avistamos dentro deles um incidente infeliz
Dentro da história da extração do petróleo
Pelos pioneiros do ocidente
Nós nos referimos ao que está atrás das coisas:
A conquista da terra
Pela geração dos homens.
Cena 1, depois de “Leider haben auch meine Konkurrenten dasselbe Tempo
erreicht“ (Infelizmente, meus concorrentes conseguiram realizar no mesmo
tempo):
O coro da direita:
Avante,comerciante! Nossas cidades são erguidas
Dentro da grande concorrência! O petróleo
fornecido é barato e em quantidade abundante
Para a cabana mais pobre em competição!
Na luta, a civilização é melhorada. Ao rápido vence o mais rápido
Então, avante!
Ao astuto vence o mais astuto
Então, avante! Aquele
que traz a maior
utilidade
recebe salário
Então, avante!
zu etablieren, welche die Kommentare der beherrschten und der herrschenden Klasse zu den Vorgänge
auf der Bühne geben. In diesen Fall ist es gut, den Personen Kennzeichen ihrer Klasse zu verleihen,
dieselben, welche die Chöre markieren.
173
Este trecho é um adendo informativo dos redatores da revista Alternative , antes do texto dos coros.
Terni é uma cidade italiana. No original:
“Die bisher unveröffentlichten Chorpassagen, 1932 geschrieben,
wurden in Terni erstmals als Bestandteile des Stücks benutzt.“ IN: Alternative, 1976.
125
Coro da esquerda:
Ah! ele corre muito rápido
Devagar, cule! Suas cidades são grandes
Mas não são boas. O petróleo ilumina a fome
na cabana permeável (= uma cabana pobre). A competência agrava a
brutalidade. O carregador esperto
anda devagar. Ele luta
Contra a pressa que o assassina. Cada passo
Que ele pode economizar, é um ganho.
As competições de seu explorador
Não são as suas. O mais útil
Tem o pior salário.
Final da cena 2:
O coro da direita: Vocês ouviram: a
segurança
deve ser suprimida? A ordem ficou atrás deles?
O coro da esquerda: Você ouviu, comerciante:
você chega
com seu carregador em uma região deserta?
Como será para você? Você se portará bem com ele? Ele te ama?
Ele tem um motivo para te amar? Quando a areia estiver contra vocês: O teu
acompanhante estará com você?
Quando a larga estrada terminar, para onde vocês vão?
O coro da direita:
Onde a cidade termina,
ali termina a ordem.
Sem a violência
Não há segurança
apenas o porrete
torna o homem civilizado
Em tempos de desordem
Nos lugares, onde o caos domina
o homem torna-se o lobo do homem
O Coro da esquerda:
Nas cidades desta época,
Nenhuma ordem existe:
O porrete
mantém segurança
Nenhum deserto é tão assustador como as cidades são para nós
Para nós, nenhum animal é tão devorador quanto o homem que
é protegido pela polícia.
Cena 3, pressupostamente depois de “Keiner versteht das” (Ninguém
entende isso):
O coro da esquerda:
Nós ouvimos, que quando o petróleo é descoberto, [ele] é escondido.
Aquele que cobre o buraco de onde [o petróleo] vem, recebe suborno. Assim
As vítimas morrem por miles
Mas o petróleo não vem.
Cena 3, depois de “( Der Kaufmann und der Kuli gehen hinaus. Der Wirt
und der Führer sehen ihnen nach)“ (O comerciante e o cule seguem pelo
deserto. O estalajadeiro e o guia os observam):
Inserção: (Ambos os coros chamam os que estão saindo)
126
O coro da direita: Faça o que você quiser, comerciante, mas
Traga as mercadorias!
Traga o petróleo, que é necessário!
Lute pelo petróleo, pioneiro!
O coro da esquerda:
Você ouviu, cule! É um luta!
Se você não lutar,
você não irá escapar!
Lute pela sua vida, cule!
Cena 5, o coro da esquerda canta a canção do “Ich und wir” (Eu e nós), o
coro da direita canta a canção final do comerciante.
Cena 6 - Canção do comerciante: o coro da direita canta o refrão.
Inserção depois da linha 4:
O coro da esquerda: O homem forte luta, e o homem fraco morre.
E isso é ruim.
O homem morre de fome. O trigo estraga.
E isso é ruim assim.
Inserção depois da linha 10:
O coro da esquerda:
Levante o que caiu ali, e pergunte a ele o que sofreu!
Então isso é muito ruim.
E pergunte ao que foi vencido, por que ele lutou!
Talvez isso seja ruim assim,
E se um é muito fraco, então, levante e ande junto com ele!
Então, isso é ruim assim.
No final da canção:
O coro da esquerda: E o senhor criou Deus,
e o senhor criou o criado
E isso é ruim assim.
não deixe as coisas, como elas são,
Pois as coisas são ruins.
Elas são ruins, elas são ruins assim!
Cena 7ª, novo título: NO FINAL DA ESTRADA;
No final:
O coro da direita: Ele é ignorante, se fosse ciente
Encontraria o caminho!
O coro da esquerda: Ele é ignorante, se fosse ciente
Ele seguiria o caminho por si mesmo!
O coro da direita:Ele não aprendeu nada, se ele tivesse aprendido,
Ele saberia
O coro da esquerda: Vocês não ensinaram nada a ele.
se ele fosse
instruído
Ele saberia, o que é o petróleo!
Cena 7b, título adicional: A ÁGUA PARTILHADA
No final:
O coro da direita: Olhem, ele divide a água com ele!
Na necessidade, ele divide a última água com seu criado!
Na camaradagem.
O coro da esquerda: Ele divide! Ele tem medo!
Pensem: Este, para quem você deve carregar as bagagens,
127
Divide com você!
Cena 7c, pressupostamente depois de “[...]machen sie mir den Prozeß” ([...]
eles me processam):
O coro da esquerda: Atenção! Nós confessamos, por sua causa nós estamos
em grande perturbação.
Nós tememos por você, você parece amigável.
Ao seu lado, alguém tem sede; feche rápido seus olhos!
Tape seu ouvido, alguém geme ao seu lado!,
Pedem ajuda a você, contenha seus passos!
Ah! Ele não nos ouve! Ele se esquece!
Ele é humano! Ele está perdido!
Ele dá de beber a um homem e quem bebe é um lobo!
Cena 7c, no final:
O coro da direita: O petróleo exige uma vítima.
Passa por cima do que tropeça
Força o que não se pode deter.
O coro da esquerda: Vocês viram, o que aconteceu.
Vocês ouviram, o que é dito.
As palavras pertencem
às ações.
Cena 8, o coro da esquerda canta a Canção dos Tribunais.
Cena 9, pressupostamente depois de “Ich werde deinen Rat bedenken” (Eu
pensarei no seu conselho):
O coro da direita: Ouçam, como ele retém a verdade!
Ele esconde, que o cule foi espancado
E tinha um motivo para matar
Porque ele se cala?
O coro da esquerda: Ele se cala, porque ele pode não receber mais trabalho.
Ele se cala, porque ele sabe,
que o cule não matou.
Cena 9, depois do pronunciamento da sentença:
O coro da direita (levanta):
A justiça é proferida. A sentença parece forte
Mas o petróleo tem de ser extraído
E as malas têm de ser carregadas
O homem não nasceu
Para ser feliz.
Gostaria apenas
de ter esquecido o processo.
O coro da esquerda levanta e fala o epílogo. (Tradução nossa).
174
Os textos destes dois novos coros, propostos por Brecht, aparecem, neste mesmo
ano, sumarizados, na segunda edição do estudo crítico de Steinweg, intitulado Das
Lehrstück - Brechts Theorie einer politisch-ästhetischen Erziehung
175
(A peça didática -
174
O original encontra-se no anexo deste estudo.
175
Stuttgart, Verlag J.B. Metzlersche Verlagsbuchhandlung und Carl Ernst Poeschel Verlag, 1976b. 1ª
edição 1972.
128
Teoria brechtiana de uma educação político-estética). A menção ao texto destes dois
coros, bem como a transcrição de apenas alguns trechos deste texto, encontra-se ainda
no estudo Große Kommentierte Berliner und Frankfurter Ausgabe – Stücke 3 (Grande
edição comentada de Berlim e Frankfurt – Peças 3), de 1988, organizado por Hecht,
Knopf, Mittenzwei e Müller.
Analisando a proposta de Brecht, podemos observar os seguintes pontos, sem,
porém, exaurir a questão, que se abre em múltiplas possibilidades de combinações: o
dramaturgo dá indicações para a intercalação de 25 novos trechos, ao longo de todo o
texto original. Acerca destas novas inserções, Brecht refere-se de modo ambíguo à
possibilidade de serem enunciadas através do canto ou simplesmente da fala, já que, em
alguns casos, através das rubricas, o autor é preciso e em outros casos não, o que leva a
pressupor que, nestes últimos, a fala permaneça. Há rubricas que distinguem entre um
coro da esquerda e um coro da direita. Na proposta de Brecht, o prólogo deixa de ser
entoado por um grupo e passa a ser falado por um condutor da esquerda. Ainda nesta
proposta, Brecht apresenta uma espécie de "contra-prólogo", falado por um condutor da
direita, como resposta ao prólogo. Neste texto que o dramaturgo dedica aos dois coros,
observa-se a ausência de três canções, presentes no texto original. São elas: a canção do
comerciante, ao final da cena 1; a canção do comerciante, na cena 3; e a canção do cule
na cena 4. Apesar da falta de menção a estas três canções, deve-se considerar sua
manutenção, pois Brecht se refere às inovações como "inserções".
Para ilustrar duas possibilidades de experimentação, entre outras possíveis, com
estes novos coros, selecionaram-se os quatro trechos que passaram a completar a cena 2,
e recortou-se a canção do comerciante na cena 6.
Na versão com os coros, a cena 2 continua, conforme as indicações de Brecht, da
seguinte forma:
Marcações da autora:
rubricas com as indicações de onde os
excertos devem ser inseridos (em preto)
coro da esquerda (em vermelho)
coro da direita (em azul)
129
O coro da direita: Vocês ouviram: a
segurança
deve ser suprimida? A ordem ficou atrás deles?
O coro da esquerda: Você ouviu, comerciante:
você chega
com seu carregador em uma região deserta?
Como será para você? Você se portará bem com ele? Ele te ama?
Ele tem um motivo para te amar? Quando a areia estiver contra vocês: O teu
acompanhante estará com você?
Quando a larga estrada terminar, para onde vocês vão?
O coro da direita:
Onde a cidade termina,
ali termina a ordem.
Sem a violência
Não há segurança
apenas o porrete
torna o homem civilizado
Em tempos de desordem
Nos lugares, onde o caos domina
o homem torna-se o lobo do homem
O Coro da esquerda:
Nas cidades desta época,
Nenhuma ordem existe:
O porrete
mantém segurança
Nenhum deserto é tão assustador como as cidades são para nós
Para nós, nenhum animal é tão devorador como o homem que
é protegido pela polícia.
Este acréscimo repercute na seguinte fala do juiz, por ocasião do julgamento:
“[...] A ausência de polícia e tribunais tornava possível ao empregado arrancar-lhe à
força sua parte de água, e até o encorajava a isso.[...]”.
176
Esta frase mostra a suma importância que o juiz atribui à existência da polícia e
dos tribunais para a manutenção da ordem. O acréscimo na versão dos coros deve ser
observado de duas perspectivas: a do coro da direita e a do coro da esquerda,
respectivamente. No primeiro trecho inserido, enquanto o coro da direita se refere à
necessidade de segurança, denunciando a fragilidade do comerciante diante de uma
região destituída de leis, o coro da esquerda como que “acua” o comerciante, intimando-
o a se colocar no espaço que lhe pertence, para que o cule o consiga “ler” com clareza e
tomar decisões acertadas. Os dois trechos subseqüentes, ou seja, o terceiro e o quarto,
176
No original: „Die Abwesenheit von Polizei und Gerichten machte es seinem Angestellten möglich,
seinen Teil von Trinkwasser zu erpressen und ermutigte ihn“. GW, BII, p. 821.
130
fazem referência à zona de indiferença, ou de exceção, isto é, a uma zona onde a lei
existe, mas está suspensa, onde falta jurisdição, uma zona delimitada pelo fim das
cidades e, com ele, o fim da “ordem”, decorrente da ausência de policiais. Enquanto o
coro da direita se refere à civilização como um produto conseguido através da violência,
o coro da esquerda coloca em dúvida essa mesma civilização produzida pela violência
policial. Enquanto o coro da direita se refere a uma “terra sem lei” e determina o modo
de agir da classe dominante, fundamentado em uma doutrina teológico-política, por sua
vez, legitimada pela máxima de Hobbes “O homem é o lobo do homem”
177
, que remete
o leitor a um Estado autoritário, o coro da esquerda refere-se à cidade, isto é, à “terra
[considerada] com lei”, que, na verdade, abriga a desordem, tendo em vista a proteção
exclusiva à classe dominante e a completa desproteção da classe dominada. Se não há
mais delimitação entre caos e normalidade, estabelece-se uma zona de indiferença,
capturada pelo direito, onde a violência impera e onde o Estado autoritário se
estabelece. A versão com os dois coros sugeridos por Brecht aprofunda, assim, a
discussão em torno dos conceitos de Estado e de Justiça.
À canção do comerciante na cena 6 aplica-se a indicação de Brecht, que atribui
ao coro da direita (em azul) a enunciação do refrão. Desta forma, à fala do comerciante
(em preto) segue-se um coro que responde confirmando o que o comerciante enuncia.
Nesta canção, podem ser feitas, ainda, três inserções do coro da esquerda (em
vermelho). Depois da primeira parte da fala do comerciante, corroborada pelo canto do
coro da direita, começa uma segunda parte dessa mesma fala, mas, agora, questionada
pelo contra-discurso do coro da esquerda. Trata-se de um esquema que se repete até o
final da canção, tal como indicado abaixo:
O homem doente morre e o homem forte luta
E isso é bom
O forte é ajudado e ao fraco, ninguém ajuda
E isso é bom
O homem forte luta, e o homem fraco morre
E isso é ruim assim
O homem morre de fome e o trigo estraga,
177
Seria inviável abordar as idéias de Hobbes sobre o Estado natural e o Estado político neste trabalho,
mas pelo fato de o dramaturgo tê-lo citado de maneira explícita, faço valer a idéia de que, ao indicar a
citação, Brecht aponta, mais uma vez, para a questão do Estado Autoritário. Cabe, ainda, lembrar que
Hobbes foi uma referência fundamental na concepção do pensamento de Carl Schmitt sobre o Estado
Total.
131
E isso é ruim assim
deixe cair, o que cai, lhe dê, ainda, um pontapé
Porque isso é bom
Senta-se para comer aquele que conquista a vitória
e isso está bem assim
E o cozinheiro não conta junto os mortos depois da batalha
e ele faz bem assim
Levante-se o que caiu ali, e pergunte a ele
o que ele sofreu
então isso é muito ruim
E pergunte ao que foi vencido, por que
ele lutou!
Talvez isso seja ruim assim
E se um é muito fraco, então,
levante e ande junto com ele
Então, isso é ruim assim.
E o Deus das coisas cria, como eles são, o Senhor e
o Criado,
e isso foi bom assim
e para quem as coisas vão bem, este está bem;
e para quem as coisas vão mal,
este está mal
e isso é bom assim
E o senhor criou Deus,
E o senhor criou o criado
E isso é ruim assim
não deixe as coisas como elas são,
Pois as coisas são ruins
Elas são ruins, elas são ruins assim
É evidente a preponderância do coro da esquerda sobre o coro da direita, ainda
que apoiado no efeito repetitivo do refrão e da fala do comerciante. Enquanto a fala do
comerciante e as vozes do coro da direita se apresentam fragmentadas, a fala do coro da
esquerda apresenta-se de modo monolítico, com que ilustrando o provérbio “a união faz
a força”. Apesar de o dramaturgo ter deixado a atribuição desta canção ao comerciante,
ou seja, na voz de um personagem, ele fragmenta esta voz ao multiplicá-la com as
inserções do coro da direita e do coro da esquerda. O efeito gerado não é apenas o maior
distanciamento do leitor, do público ou do ator que representa a peça, para uma reflexão
crítica da situação apresentada, mas também o da alteração do ritmo desta canção. Esta
alteração no ritmo ocorre tanto pela inserção da voz do coro da direita, que, assim como
o comerciante, segue cantando, embora apenas o refrão, como pela voz do coro da
esquerda, que replica alguns comentários feitos ora pelo comerciante, ora pelo coro da
direita, falando e não cantando. Quando o ritmo é alterado, como acontece ao longo de
todos os novos textos para estes coros, ele sugere ao leitor a configuração da
dissonância embutida na luta, referida pelo comerciante antes de entrar no deserto com
o cule.
132
Embora a luta não se apresente, de fato, na versão original da peça, tendo em
vista a sistemática submissão do cule à violência empreendida pelo comerciante-
explorador, ela se configura, como estes novos textos dos coros deixam claro, em um
nível discursivo, e ocorre, do início até o final da peça, por meio do duelo entre os dois
grupos. Outro dado fornecido, principalmente aos olhos do leitor – difícil precisar se
seria nítido na encenação –, é a disposição apresentada destes dois grupos. Quando o
autor os apresenta como discurso e contra-discurso, ou seja, como direita e esquerda,
direita e esquerda, ou, ainda, o inverso, esquerda e direita, esquerda e direita, o leitor é
remetido imediatamente à marcha de soldados em guerra, que fora referida pelo juiz, na
cena do julgamento, quando o representante da Justiça compara a situação vivida pelo
cule e pelo comerciante no deserto à de soldados em guerra.
Outro ponto relevante a ser indicado sobre esta versão da canção do comerciante
aqui remontada, é em relação ao tratamento de seu tema. Como se pôde observar na
parte em que se tratou dela em separado, ou seja, na descrição do comerciante, ela era
usada para reforçar o lema/tema de vida do comerciante “O homem forte luta e o
homem fraco morre”, e intensificar a diferença, por meio da retomada das imagens entre
o homem forte, “o que é ajudado”, “o que se senta para”, porque é vitorioso, aquele para
quem “as coisas vão bem”, ou seja, o “Senhor”, e o homem fraco, aquele que “ninguém
ajuda”, “aquele que cai” e ainda recebe um pontapé, aquele para quem “as coisas vão
mal”, que não se senta para comer, pois faz parte dos “mortos depois da batalha”, ou
seja, o “criado”. Nesta versão com os novos trechos, observa-se que o reforço e a
intensificação do tema/lema do comerciante se mantém não só no tratamento dado a
este assunto, mas também na forma como ele é apresentado, uma vez que a todas as
afirmações do comerciante, indicadas, a meu ver, como costumes sedimentados e que
devem ser seguidos, há um coro da direita, que “está de acordo” (Einverständins) com
elas. Ou seja, este grupo, o coro da direita, ao responder às afirmações do comerciante,
ratificando que “isso é bom assim”, molda e solidifica a submissão de um grupo ao seu
Senhor, no caso, o comerciante, considerado o mais forte
A estas afirmações, há o revide, contido nas réplicas do coro da esquerda.
Observa-se que, assim como acontece no prólogo e no epílogo, elas apresentam verbos
no imperativo, como, por exemplo, “levante” (Heb auf ), “pergunte” (frag), “levante e
133
ande com ele” (Steht auf und geh mit) e “não deixe as coisas [...]”(Laß die Dinge nicht).
Conforme mencionado em outra parte deste estudo, estes verbos no imperativo podem
indicar tanto um conselho como uma instrução. Considera-se que, neste contexto, a
função que eles têm é a de instruir o leitor, o público ou ainda os atores que proferem
estas falas. Ao mesmo tempo em que estas falas respondem ao coro da direita e/ou ao
comerciante, elas instruem e apontam à humanidade, o sentimento humanitário. A
instrução não é dada somente pelo caráter didático da peça, mas está explicitamente
referida em outro destes novos trechos, também dito pelo coro da esquerda : “Vocês não
ensinaram nada a ele/ se ele fosse instruído
/ Ele saberia o que é o petróleo” (grifo
nosso).
Além dos coros que emprestam à versão original um aprofundamento das
questões da Justiça e do Estado, bem como uma maior fragmentação das vozes, um
maior distanciamento do leitor e um ritmo menos linear, há ainda as “anotações
silenciadas” que também podem contribuir para a interpretação desta peça didática.
Dentre elas, selecionou-se por seu escopo produtivo a anotação abaixo:
O comerciante: eu cito os seguintes exemplos da
história de meu país. Quando Hitler, o grande estadista,
tomou o poder, reinava uma insatisfação profunda nas
baixas camadas populares, junto aos cules de meu país.
Apesar disso, não houve nenhuma rebelião. Em menos
meses do que o necessário para construir uma casa,
Hitler aniquilou o poder do cule, jogando na prisão
todos os seus líderes e suprimindo todos os seus
direitos. Assim, o fato de não terem feito uma rebelião
sangrenta não os levou a serem tratados de maneira
diferente. Sim, ele deixou até mesmo colocarem fogo
em um prédio público e o fato de os líderes das classes
mais baixas não terem incendiado o prédio não os levou
a serem tratados de maneira diferente. Ele fez isso,
porque disse: Já que eles têm fome, eles têm motivo
suficiente para se rebelar, e já que nós somos duros,
eles têm motivo suficiente para fazer uma rebelião
sangrenta. Pode ser que eles não a façam, então, não
teremos rebelião. Isso era sábio. Um ano mais tarde,
foram os outros a ficarem insatisfeitos, aqueles que lhe
tinham garantido o poder, pois as promessas a eles
feitas não foram mantidas. Contudo, antes de se
rebelarem, ele prendeu <os> seus líderes e os fuzilou e
jogou muitos deles na prisão para que uma rebelião
fosse evitada. Ele disse a si mesmo: Não têm eles fome
e não lhes fiz eu promessas? Eles têm motivo para se
rebelarem: quero tratá-los como rebeldes. Isso era
novamente sábio. Ninguém pode proceder de modo
diferente quando ele quer dominar. (B
RECHT, Apud
134
STEINWEG, 1976a, p.162, tradução nossa).
178
Ao descrever este exemplo que deveria ser usado como defesa, na cena do
julgamento, o comerciante mostra que seria sábio seguir uma atitude como a do
estadista-ditador Hitler, isto é, a de eliminar os considerados rebeldes, em outras
palavras, eliminar o inimigo.
Ao proferir este exemplo, o comerciante termina por equiparar a sua classe, a
que detém os meios de produção a um ditador, que age em nome de um Estado
autoritário. Esta equiparação é feita pela maneira de agir dos dois, que ocorre por meio
da violência. Enquanto a classe que detém os meios de produção elimina o seu
“inimigo”, ou seja, as classes sociais mais baixas, e passa a comandar o Estado de
Direito, cujo comando é exercido pelo controle da Justiça – como a peça deixa entrever
- o ditador, que age em nome de um Estado autoritário, também elimina tudo e todos,
isto é, aqueles que o detentor do “poder de decisão” determina serem seus inimigos.
Como o exemplo dado, o ditador tamm elimina as camadas mais baixas, e as
considera como inimigas do Estado. Com isso, nota-se que, tanto em um Estado
Autoritário, quanto em um Estado de Direito, comandado pelos detentores dos meios de
produção que controlam a Justiça, a violência empregada é a que constitui um Estado
Econômico.
Sendo assim, a conseqüência do modus operandi deste Estado Econômico, isto
é, a eliminação da classe social mais baixa, considerada historicamente como inimiga,
está inserida no próprio “modelo” de sabedoria, fornecido pelo comerciante, ou seja, a
178
No original: “Der Kaufmann: Ich führe folgende beispiele aus der geschichte meines landes an. als der
große staatsmann hitler die macht ergriff, herrschte gerade eine tiefe unzufriedenheit in den unteren
volksschichten, bei den kulis meines landes. trotzdem kam es zu keinem aufruhr. in weniger monaten als
nötig sind, ein haus aufzubauen, vernichtete hitler die macht des kulis, indem er alle ihre führer ins
gefängnis warf und alle ihre rechte aufhob. so behandelte er sie nicht anders, als wenn sie einen blutigen
aufruhr gemacht hätten. ja, er ließ sogar ein öffentliches gebäude in brand setzen und behandelte die
führer der unteren schichten nicht anders, als wenn sie es in brand gesetzt hätten. dies tat er, weil er
sagte: da sie hungern, haben sie genug grund zum aufruhr und da wir hart sind, haben sie genug grund zu
einem blutigen aufruhr. es kann sein, dass sie ihn nicht durchführen, dann werden wir keinen aufruhr
haben. das war weise. ein jahr später wurden diejenigen unzufrieden, welche ihm die macht verschafft
hatten, denn die versprechungen waren ihnen nicht gehalten worden. bevor sie jedoch aufruhr machten,
ließ er <sie> ihre führer gefangen setzen und erschießen und warf viele von ihnen ins gefängnis, sodass
ein aufruhr vermieden wurde. er sagte sich: haben sie nicht hunger und wurden ihnen nicht von mir
versprechungen gemacht? sie haben grund zum aufruhr. ich will sie als aufrührer behandeln. das war
wieder weise. niemand kann anders verfahren, wenn er herrschen will.“
135
violência de um Estado autoritário. A conseqüência histórica do resultado deste modo
de funcionamento do capital foi ilustrada por este exemplo, dado pelo comerciante.
Em resumo, as anotações de Brecht para esta peça didática “não testada”
estimulam o alargamento do escopo de possibilidades em torno da discussão de
determinados temas, em particular o da justiça e o do Estado, possibilidades essas que
poderão ser objeto de um outro trabalho e que estabelecem uma ponte para o próximo
capítulo deste estudo.
136
CAPÍTULO 5
A exceção e a regra na República de Weimar
“Soberano é quem decide sobre o Estado de Exceção [???]”
(SCHMITT, 2006, p.07)
137
“Schmitt/ Einverständnis Haß Verdächtigung.”
179
(“Schmitt / acordo ódio suspeita”).
Walter Benjamin
A frase em epígrafe foi escrita por Walter Benjamin e encontra-se no seu diário
de trabalho (BENJAMIN, 1977, p.1372). Trata-se de uma anotação sobre uma conversa
que tivera com Bertolt Brecht em 21 de abril de 1930. É sabido que Benjamin, em sua
obra Origem do drama barroco alemão, publicada em 1925, refere-se ao conceito de
Estado de exceção, tal como Carl Schmitt o define. Um estudo intitulado “Teologia e
Mitologia política- Um retrato de Carl Schmitt”, do estudioso português António Bento,
declara Schmitt como fonte bibliográfica de Benjamin. Consta que Walter Benjamin
escrevera uma carta a este jurista, agradecendo-lhe as reflexões ensejadas pela leitura de
seu ensaio “A ditadura”. A existência da carta é até certa data polêmica, uma vez que
não se encontra no primeiro livro de correspondências de Benjamin, organizado por
Adorno, mas depois é nele incluída por intermédio de Jacob Taubes, que a envia para
Rolf Tiedemann, editor da obra do filósofo. Sabe-se também que a “discussão” feita por
Benjamin em torno deste conceito se estende até o seu último trabalho, Teses sobre o
conceito de história, dentro do qual apresenta uma referência ao Estado de exceção na
tese 8.
A frase em epígrafe testemunha, portanto, que Bertolt Brecht também conhece a
obra de Carl Schmitt. Carl Schmitt é um importante jurista e professor de direito,
contemporâneo de Brecht, que oferece explicação para as arbitrariedades cometidas pela
República de Weimar, legitimando-as. Nascido em Plettenberg a 11 de julho de 1888,
morre a 7 de abril de 1985. Leciona direito na faculdade de Greifswald, na Universidade
de Bonn, na de Berlim e na Universidade de Colônia. Escreve várias obras, entre elas:
Die Diktatur (A ditadura), Politisches Teologie (Teologia política), Der Begriff des
Politischen (O conceito do político), Der Hüter der Verfassung (O guardião da
constituição), Legalität und Legitimität (Legalidade e legitimidade). A avaliar pelas
palavras anotadas por Benjamin para assinalar seu diálogo com Brecht, nenhum dos
dois parece concordar com as teorias do professor. A peça A exceção e a regra pode,
179
Indicamos que esta “pista” nos foi dada pelo estudo de Müller-Schöll, que discute especificamente a
peça Aquele que diz sim, aquele que diz não, e que nós a seguimos, assim como a relação entre Schmitt e
Brecht, ou seja, o contrato social de Rousseau, como ponto de partida para apresentar uma leitura própria
desta relação com as das peças didáticas.
138
desta perspectiva, ser vista como um contraponto às teses de Schmitt e uma proposta de
reflexão sobre elas.
O conceito de Einverständnis (“Estar de acordo”), por exemplo, perpassa a
teoria desenvolvida por Carl Schmitt sobre o Estado Total. É fato que a República de
Weimar é proclamada em meio a muitos conflitos políticos e econômicos. Esta
República tem a sua Constituição promulgada em agosto de 1919. É principalmente o
bicefalismo do Executivo que introduz uma forma particular de regime parlamentar: um
presidente do Reich, eleito por sufrágio universal para sete anos de governo, com
poderes amplos, podendo notadamente submeter a um referendo popular as leis votadas
pelo Reichtag (Parlamento alemão), caso ele as desaprove. Em situações de crise, o
presidente poderá, por decretos, tomar as medidas necessárias para a manutenção de
segurança e da ordem pública, e este poder lhe é outorgado por lei, pelo artigo 48 da
referida Constituição, que prevê:
Se um Land (Estado federativo) não executar as
obrigações que lhe incumbe a Constituição ou as leis, o
presidente do Reich pode obrigá-lo a isso com a ajuda
da força armada.
No caso em que, no Reich alemão, a segurança e ordem
públicas forem sensivelmente ameaçadas ou
perturbadas, o presidente do Reich pode tomar as
medidas necessárias para o restabelecimento da
segurança e ordem públicas, empregando, se for o caso,
a força armada. Com esse objetivo, pode suspender no
todo ou em parte os direitos fundamentais reconhecidos
nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.
O Reichtag deve ser informado sem demora de todas as
medidas tomadas com respeito ao item 1 ou 2 desse
artigo. A pedido do Reichtag, essas medidas são
anuladas.
No caso de perigo iminente, o governo de um Land
pode aplicar as medidas previstas no item 2. Elas são
suspensas por solicitação do Reichtag ou do presidente
do Reich. (KLEIN, 1995, p. 93).
180
180
Em alemão: „Wenn ein Land, die ihm nach der Reichsverfassung oder den Reichsgesetzen
obliegenden Pflichten nicht erfüllt, kann der Reichspräsident es dazu mit Hilfe der bewaffneten Macht
anhalten.
Der Reichspräsident kann, wenn im Deutschen Reiche die öffentliche Sicherheit und Ordnung erheblich
gestört oder gefährdet wird, die zur Wiederherstellung der öffentlichen Sicherheit und Ordnung nötigen
Maßnahmen treffen, erforderlichenfalls mit Hilfe der bewaffneten Macht einschreiten. Zu diesem Zwecke
darf er vorübergehend die in den Artikeln 114, 115, 117, 118, 123, 124 und 153 festgesetzten
Grundrechte ganz oder zum Teil außer Kraft setzen. Von allen gemäß Abs. 1 oder Abs. 2 dieses Artikels
getroffenen Maßnahmen hat der Reichspräsident unverglich dem Reichstag Kenntnis zu geben. Die
Maßnahmen sind auf Verlangen des Reichstags außer Kraft zu setzen. Bei Gefahr im Verzuge kann die
Landesregierung für ihr Gebiet einstweilige Maßnahmen der in Abs. 2 bezeichneten Art treffen. Die
139
Este artigo junto com o artigo 53, que prevê a nomeação e a destituição do
chanceler e dos ministros pelo presidente do Reich, põe ao alcance do presidente do
Reich um direito que, na prática, ele pode exercer de maneira ilimitada.
É, sobretudo, com base nestes artigos da Constituição da República de Weimar
que Carl Schmitt desenvolve suas idéias acerca do Direito Público. Das obras que
arrolamos, a primeira, datada de 1921, é A ditadura. O ponto central que destacamos
deste estudo está no terceiro capítulo, “A transição à ditadura soberana na teoria do
Estado do século XVIII”. Nele, o jurista desconstrói, ou melhor, tenta desconstruir, as
idéias contidas n’O contrato social de Rousseau, e, para isto, parte das idéias de
Montesquieu. Nas palavras de Schmitt, Montesquieu designava o exercício imediato da
onipotência estatal como despotismo - refere-se sobretudo ao papel dos comissários na
monarquia francesa -, e o que era denominado como despotismo pelos iluministas, na
Alemanha dos anos 20, seria chamado ditadura. O jurista indica que, na situação ideal
de uma divisão correta dos poderes, assim como Montesquieu descreve, não há uma
ditadura, mas um Estado de exceção, no qual o legislativo dá poderes ao executivo
durante um breve e restrito tempo, para deter cidadãos suspeitos. Este Estado de
exceção tem como pressuposto uma conspiração contra o Estado em seu interior ou fora
dele com seu inimigo exterior. (SCHMITT, 1985, p.142).
Para Schmitt, o ponto que une Montesquieu e Rousseau é a lei, que, para o
iluminismo, deveria ser uma norma válida para todos e não se referir a casos singulares,
sendo que, o que rege a noção de lei é a vontade geral, idéia que foi repetida com
freqüência na Revolução Francesa. O caráter geral da lei, então, deve incidir no ponto
em que esta não conhece nenhuma individualidade e rege, sem exceção, uma lei natural.
Schmitt aponta que esta noção de lei procede da filosofia cartesiana e que, na política
francesa, teve uma grande importância no século XVIII, apesar de “politizar um
conceito de lei metafísico e científico-natural”. (SCHMITT, 1985, p.144).
Maßnahmen sind auf Verlangen des Reichspräsidenten oder des Reichstags außer Kraft zu setzen. Das
Nähere bestimmt ein Reichsgesetz“.
Disponível em: <http://www.dhm.de/lemo/html/weimar/verfassung/index.html>Acesso em 01.03.2008.
140
Para o jurista Schmitt, a vontade geral é o conceito essencial da construção
filosófica-política de Rousseau. O autor d’O contrato social, afirma que é a vontade do
soberano, isto é, a soma da vontade de todas as individualidades, a vontade geral, que
constitui o Estado como uma unidade. O Estado, assim, não está fundado na submissão
a um poder qualquer, mediante um contrato com este poder, ou mediante um contrato de
dominação, mas se dá pelo pacto social.
Schmitt reconhece que o exposto n’O contrato social tem validade moral, mas
não jurídica e enumera vários motivos da não-validade do contrato e do pacto, dos quais
indicaremos três, relevantes para esta dissertação. O primeiro deles, conforme indicado,
é o caráter abstrato do contrato, tendo em vista que este se baseia em um conceito
“metafísico-científico-natural” de lei do século XVIII e lhe falta o dictamen rationis,
uma lei da razão, que deve responder exatamente à lei da natureza. (Apud SCHMITT,
1985, p.164). Por isso, ele não tem validade jurídica. O segundo motivo questiona o
próprio conceito de vontade geral, pois se a vontade geral é essencial por ser a vontade
da totalidade, esta, constituída por individualidades, pode estar errada, pois os homens
individuais podem equivocar-se sobre a sua própria vontade verdadeira, uma vez que
esta pode estar dominada pelas paixões e, por isso, não ser livre. O terceiro motivo
parte da proposição de Rousseau de que o povo, ou seja, os governados por oposição ao
governo, é bom por natureza em todas as circunstâncias e, para Schmitt, isso transforma
as construções abstratas de Rousseau em uma ideologia revolucionária, que foi
apropriada pela Revolução Francesa, em outras palavras, “serviu para justificar uma
ditadura e transmitiu a fórmula para o despotismo da liberdade.(SCHMITT, 1985, p.
164). Conforme o jurista indica, em Rousseau, não há nenhuma vinculação do soberano
à lei, e, tampouco, foi estabelecido um “contrato” concreto.
Em Politisches Theologie (Teologia política), Schmitt dá continuidade à
discussão sobre as proposições de Rousseau acerca da vontade geral e do soberano. Ele
abre esta discussão com a seguinte frase: “Soberano é aquele quem decide sobre o
Estado de exceção”(SCHMITT, 2006, p. 07). A partir dela, diz que não quer discutir o
conceito de soberania em si, mas a aplicação deste, e, por isso, o apresenta junto à idéia
do Estado de exceção, que estaria dentro de um sistema lógico-jurídico no que diz
respeito à decisão, ao poder de decidir no caso de um conflito em que consiste o
interesse do Estado, a segurança e a ordem públicas. Ele afirma que um poder supremo,
141
ou seja, maior, irresistível, que funciona com a segurança do direito natural, não existe
na realidade política; o poder não prova nada ao direito, “a bem dizer pelo motivo banal
que Rousseau formulou em concordância com sua época: ‘La force est une pruissance
physique; le pistolet que le brigand tient est aussi une pruissance (Apud SCHMITT,
2006, p.18) e que, se a vontade geral for idêntica à vontade do soberano, perde-se o
elemento decisionista e personalista do conceito de soberania.
A exceção ocorre quando uma norma jurídica sistemática, em um caso concreto,
ou melhor, em extrema necessidade, suspender a si mesma. “A tendência jurídico-
estatal de regular o Estado de exceção de forma mais aprofundada significa a tentativa
de descrever, precisamente, o caso no qual o direito suspende a si mesmo.” (SCHMITT
,
2006, p. 14). Ela também requer, de quem decide, um posicionamento que pode e deve,
em caso de extrema necessidade e/ou emergência, romper com o “acordo”, ou seja,
romper com a promessa de vinculação dos direitos naturais gerais.
É por este motivo que Schmitt considera Bodin o fundador da teoria do Estado
moderno, pelo fato dele ter respondido à seguinte questão: Até que ponto o soberano -
entenda-se aqui aquele que governa os demais indivíduos - se submete às leis e se
obriga diante das corporações? Bodin responde que “[as] promessas são vinculantes,
porque a força obrigacional de uma promessa repousa no Direito Natural, porém, no
caso de necessidade, cessa a vinculação segundo os princípios naturais gerais, [e] frente
às corporações ou ao povo, o governante está obrigado somente enquanto o
cumprimento de sua promessa for de interesse do povo, mas não se vincula si la
necessité est urgente” (Apud SCHMITT,
2006, p. 09).
Para Schmitt, Bodin confere à explicação das relações entre governante e
corporações/classes um sentido alternativo, remetendo, assim, ao estado de necessidade
e, para o jurista, esse é o ponto principal de sua definição tendo em vista que a partir
dela a soberania é entendida como poder indivisível - não de um coletivo, como
apresenta Rousseau, mas de um indivíduo - e que, assim, ele resolveu o problema sobre
a questão do poder no Estado, uma vez que ela insere a decisão no conceito de
soberania.
142
Um outro conceito importante para Schmitt é o conceito do político. Este,
conforme o autor, está pressuposto ao conceito do Estado. Sendo, assim, ele é
referencialmente indicado antes de se apresentar o que Schmitt propõe em O Guardião
da Constituição. Para o jurista, “a distinção especificamente política a que podem
reportar-se as ações e os motivos políticos é a discriminação entre amigo e inimigo”.
(SCHMITT, 1992, p. 43).
Em O guardião da constituição, Schmitt acrescenta que a Constituição é o
contrato que se faz entre quem governa e quem é governado, e afirma que quem deve
guardá-la é o soberano, ou seja, o presidente do Reich, (a noção de Reich nunca
desapareceu da noção de República!) não só pelo fato desta determiná-lo como o
detentor de amplos poderes, mas também pelo fato dele ter sido eleito pelo povo. Nesse
sentido, o contrato, agora, tem validade, porque está fundamentado na lei, que, ao
mesmo tempo em que indica aquele que terá o poder de decisão confere total
legitimidade, através da legalidade, às suas ilimitadas ações.
Conforme Schmitt, o Estado de exceção tem uma existência legal e legítima na
República de Weimar, porém o artigo 48 da Constituição não estabelece o que os
Länder (Estados da federação) especificamente devem executar. Esta ambigüidade daria
margem para que o Reich, no que diz respeito à segurança e ordem públicas, se
considerasse ameaçado quando bem o entendesse. Resta saber qual(is) o(s) caso(s)
concreto(s) que o efetiva(m).
Conforme o jurista, em qualquer Estado moderno, a relação do Estado com a
economia compõe um objeto de questões de política interna atual, e quanto mais este
tiver conotações industriais, tanto mais as questões econômicas ocupam o centro da
política externa e interna. O jurista cita, como exemplo, uma lei estatal “contra o abuso
de posições econômicas de poder” (como o decreto anticartel de 2 de novembro de
1923) e ratifica que, com isso, reconhece-se o conceito e a existência de um poder
econômico com base no Estado e na lei.(SCHMITT, 2007, p. 119).
O Estado neutro do
século XIX estava passando a ser um Estado potencialmente total no início do século
XX, e, para Schmitt, o que mais chama atenção é a mudança que ocorre na esfera
econômica, pois se parte do princípio de que a economia financeira pública, tanto em
relação às anteriores dimensões do período que antecede a guerra, quanto a atual relação
143
com a economia livre e privada, ou seja, não pública, atinge proporções que alteram a
estrutura de todas as esferas da vida pública, e que não são apenas as questões
diretamente financeiras e econômicas as alcançadas por esta mudança.
Ao contextualizar o Estado moderno na República de Weimar, o jurista faz uma
avaliação da situação do Reich e o caracteriza através de três conceitos: policracia,
pluralismo e federalismo. O último é a justaposição e cooperação existentes dentro de
uma organização federal de uma maioria de Estados sobre base estatal, isto é, uma
pluralidade de formas estatais sobre base estatal; o pluralismo designa uma maioria de
complexos sociais de poder, solidamente organizados e que se estendem pelo Estado, ou
seja, tanto pelas várias áreas da vida estatal, como pelas fronteiras dos Estados e pelas
corporações territoriais autônomas, esses complexos de poder como tais se apoderam da
volição estatal, sem deixar de ser um produto apenas social (não-estatal). Por fim, a
policracia constitui-se numa maioria de detentores da economia pública, juridicamente
autônomos, em cuja vontade estatal se encontra um limite. (SCHMITT, 2007, p.105).
É sobretudo contra o caráter pluralístico da República de Weimar que Schmitt se
posiciona, pois este possibilita a criação e ação de muitos partidos políticos, que, para
ele, enfraquecem o Estado. Este, por sua vez, estava passando, simultaneamente a este
processo, a ser um Estado econômico. Para ele, a prática do artigo 48
é especialmente significativa para a estrutura atual [na
República de Weimar] da situação constitucional,
porque era obrigada a se mover em território
econômico e financeiro, pois o desenvolvimento rumo
ao Estado Econômico se encontrou com o
desenvolvimento simultâneo do parlamento rumo a um
cenário do sistema pluralista e é aí mesmo que se têm
fundamentadas tanto a causa da perturbação de cunho
jurídico-constitucional quanto a necessidade por
remédios e movimentos contrários. (SCHMITT, 2007,
p.170).
Neste sentido, ao mesmo tempo em que o jurista identifica uma doença no
Estado, ou seja, o caráter pluralista da República, ele prescreve o remédio, isto é, o
artigo 48, e constata que o seu uso é uma praxe que conta 10 anos, “um constante
exercício suportado por uma rígida convicção jurídica”. (SCHMITT, 2007, p.175).
144
De maneira prática, o uso do artigo ao longo da República de Weimar se dá em
dois casos: 1. quando o presidente, usando de seu poder, promulga decretos
substitutivos de leis, conforme o segundo parágrafo do artigo – o que o torna um
legislador; e 2. quando ocorre a aplicação dos poderes extraordinários sobre situações
de emergência e perigos de cunho econômico e financeiro, dentro de um Estado
econômico. Vale lembrar que o poder na promulgação dos decretos também se dá
dentro deste âmbito:
o direito econômico-financeiro de baixar decretos
substitutivos de leis da atual praxe do artigo 48
permanece [...] de acordo com a ordem existente e,
diante de um pluralismo inconstitucional, procura
salvar o Estado legiferante constitucional, cuja
corporação legislativa está pluralisticamente
dividida.(SCHMITT, 2007, p.122)
181
Nesse sentido, quando se considera o artigo 48 da Constituição da República de
Weimar como a baliza fundamental das proposições desenvolvidas por Carl Schmitt e
se remonta o que ele observa em Teologia política, isto é, que os conceitos concisos da
teoria do Estado moderno são conceitos teológicos secularizados; que o Estado de
exceção tem um significado análogo para a jurisprudência, como o milagre para a
teologia, e que este institui uma exceção por meio de uma intervenção direta
concretamente nos casos que envolvem a economia e as finanças, bem entendido -, ou
seja, por intermédio de um soberano, no caso, o presidente do Reich, que é
analogamente um representante do soberano divino, pode-se, então, concluir, seguindo
o pensamento de Schmitt, que o Deus secularizado se manifesta milagrosamente em um
elemento concreto, o capital, tendo em vista que é a ele que o seu comissário terreno, ou
seja, o soberano do Estado econômico se submete e a quem delega poderes ilimitados
para que aja em seu nome.
Portanto, quando se retomam as palavras que assinalam a conversa entre
Benjamin e Brecht sobre Schmitt, ou seja, “acordo, ódio e suspeita”, há que colocar em
paralelo o “acordo” defendido por Schmitt e o “acordo” proposto por Brecht em A
exceção e a regra. Para Schmitt, o “acordo” pressupõe que todos se submetam àquele
soberano, “quem decide sobre o Estado de Exceção”, e a única suspeita que recairia
181
Lembramos que Schmitt quer mostrar, de acordo com a Constituição, a não-validade da formação dos
partidos políticos.
145
sobre este acordo, seria o seu rompimento por parte de quem se submete, fato que
requer, consequentemente, conforme o conceito político do jurista, a eliminação do
inimigo.
É o rompimento do acordo em caso de necessidade/emergência por parte do
soberano, proposição apresentada por Schmitt em Teologia política, que Brecht focaliza
nas peças didáticas, em particular em A exceção e a regra. É intuito do dramaturgo:
a representação do associal por aquele que se tornará cidadão do
Estado, [pois esta] será útil ao Estado, principalmente se for
efetuada a partir de modelos precisos e grandiosos. O Estado
pode melhorar os impulsos associais do homem ao solicitá-los
(eles que nascem do medo e da ignorância) de uma forma
perfeita e quase inacessível ao indivíduo sozinho.".(Apud
KOUDELA, 1991, p. 15).
Na primeira peça didática Der Ozeanflug (O vôo sobre o oceano), que relata a
história do primeiro aviador que atravessa o oceano, fazendo o trajeto de Nova Iorque à
Europa, Brecht busca apresentar a luta do homem com a natureza e ao fazê-lo, o
dramaturgo inclui a questão do progresso, ou seja, o desenvolvimento tecnológico,
figurado pelo rádio e pelo avião. A luta com a natureza se dá por dois lados: enquanto
ele voa, ele luta contra o seu avião e contra o que é primitivo, portanto luta contra si
mesmo e contra a natureza. (BRECHT, 1990, p.174-175). Além de lutar contra a sua
própria natureza, esta também se apresenta de maneira concreta: o nevoeiro, a nevasca,
sendo que o seu domínio busca atingir o progresso. Nesta peça, há referência à relação
entre indivíduo e o coletivo a partir do momento em que o aviador
182
diz que não está
sozinho, pois junto ao indivíduo que conduz o avião estão os sete homens que o
construíram. Porém, ainda não há a referência ao acordo e o destaque, assim como
apresenta Brecht, é à necessidade do domínio pelo homem de sua própria natureza.
Na segunda peça didática, Das Badener Lehrstück vom Einverständnis (A peça
didática de Baden-Baden - sobre o acordo), o enredo se inicia com o relatório do vôo
182
Indica-se que a primeira versão do texto foi escrita com um protagonista, o aviador Lindbergh, mas
que devido ao seu apoio ao nazismo, Brecht incluiu, posteriormente, uma nota no final da peça, instruindo
que se retirasse o nome dele e deixasse como “os aviadores”. Isto faz com que em algumas vezes, a fala
de “os aviadores” seja proferida pelo coro, tendo em vista as marcas de 1ª pessoa do plural, e na maior
parte da peça por um ator, pela marca de 1ª pessoa do singular.
146
feito no final de O vôo sobre o oceano, com pequenas alterações, que ainda mantêm a
referência ao progresso com o trecho “ergueu-se a nossa / Ingenuidade de aço”.
(BRECHT, 1990, p.191). Há aqui a presença de um coro que relata a queda do avião e
se dirige aos quatro aviadores acidentados – um aviador e três mecânicos -, pedindo
para que eles deixem de voar, pois não é necessário que se tornem mais velozes, já que
atingiram um ponto suficientemente alto. Os aviadores acidentados pedem ajuda, água e
travesseiro, e o coro e a multidão fazem um inquérito para saber se o homem ajuda o
homem. É com este inquérito que Brecht inaugura, nas peças didáticas escritas neste
período, a proposição acerca da ajuda do homem pelo homem, em que “o acordo” está
implícito e, assim, busca discutir a bondade humana defendida por Rousseau e
questionada por Schmitt, que garantiria o acordo para alcançar a vontade geral. Na peça,
três clowns desmontam um personagem, cujo nome é Schmitt. Certamente o uso do
nome não é uma coincidência, uma vez que este personagem representa alegoricamente
o “corpo político”- sendo que este, através do seu poder de decisão, aceita ser ajudado
pelos clowns, pois sente dor em seu corpo (está doente) e acaba sendo desmontado por
eles.
A partir do desmonte do personagem Schmitt, Brecht exemplifica que o homem
não ajuda o homem e, dialeticamente, mostra que a ajuda e a violência constituem um
todo que é preciso transformar. Neste sentido, não há como deixar de relacionar esta
“ajuda” com um Estado autoritário, que age de modo violento, proposto pelo jurista,
como remédio para um Estado doente (pluralístico). O coro resolve não ajudar os
aviadores, uma vez que o progresso, ou melhor, a viagem dos aviadores, não tornou a
vida de todos melhor, ou seja, “nem por isso o pão ficou mais barato”. (BRECHT, 1990,
p.194). Sendo assim, o travesseiro é rasgado e a água é jogada fora. Os três mecânicos
acidentados decidem, então, reduzir-se às suas menores grandezas, isto é, aceitam
morrer.
O único que não aceita morrer, ou seja, que “não está de acordo” é o aviador,
que tem o seu avião desapropriado e, após este fato, o seu rosto fica irreconhecível. O
líder do coro diz que o homem tinha um cargo e, mesmo usurpado, arrancou o que
precisava deles e negou o que eles necessitavam. Por isso, seu rosto se extingue com seu
cargo, e eles dizem que o que o tornava homem era este cargo. O homem e o cargo
referidos são o aviador e, neste caso, a figura do progresso, obtido por meio da
147
usurpação, retirando dos outros o que necessitam e negando-lhes o que eles mais
precisam. O progresso, personificado pelo aviador, pode ser comparado ainda à figura
do soberano apresentado pelo jurista Schmitt, ou seja, aquele que decide sobre o
coletivo e não está de acordo com ele. Como não aceita morrer, o aviador é expulso, e
no final, o coro pede para que os mecânicos transformem não apenas uma das leis da
terra, mas sim a lei fundamental, com a qual tudo será transformado, o mundo e a
humanidade, i.e., a desordem das classes sociais, pois a humanidade se divide em duas:
ignorância e exploração. Os três mecânicos concordam com a transformação e o coro
pede para que eles abandonem tudo o que conquistaram, inclusive a si mesmos.
183
Na primeira versão da terceira peça, Der Jasager und der Neinsager, (Aquele
que diz sim, aquele que diz não), quer dizer, em Aquele que diz sim, Brecht trata de um
menino, cuja mãe está doente, infectada por uma epidemia que toma conta da cidade. O
menino segue com um grupo e com seu professor em busca do remédio para salvar a
cidade da epidemia. No caminho, o menino fica doente e o grupo decide, em comum
acordo, que ele deve morrer. O professor instrui o menino para que responda conforme
a necessidade; e o menino, então, responde que aceita morrer. O professor diz para o
grupo que o menino assentiu e eles atendem a sua última vontade que é a de que o
joguem no vale, pois ele não quer morrer sozinho.
Após a apresentação da peça em uma escola e a partir dos comentários dos
alunos que a representaram, Brecht escreve Aquele que diz não, que apresenta como
versão final do texto, ao lado de Aquele que diz sim. A segunda história é quase igual à
primeira, porém o dramaturgo a altera no que diz respeito ao objetivo da viagem, que
passa a ser os estudos. O menino quer acompanhar a viagem porque sua mãe está doente
e ele quer aproveitar a expedição para buscar remédio e instruções para curá-la, mas no
meio do caminho é ele quem fica doente. No momento em que o indagam se ele quer
seguir o grande costume, o menino responde que não e argumenta que ele acompanhava
a viagem para buscar um remédio para sua mãe, mas agora ele é quem está doente e
que, por isso, deve-se introduzir um novo costume, o de refletir diante de cada situação.
Com esta resposta, o grupo o leva de volta para a cidade.
183
Não pretendemos aprofundar neste estudo a análise desta peça, pois ela não é o objeto de nossa
pesquisa. Buscamos, apenas, indicar alguns pontos que fazem referência a Rousseau e Schmitt. Müller-
Schöll, cf. bibliografia, discute melhor este texto.
148
As referências ao cumprimento do acordo encontram-se ao longo de toda a peça
em Aquele que diz sim, que segue o grande costume, tendo em vista que o menino aceita
a morte para o bem geral, de acordo com a “vontade geral”, embora, de fato, tenha
recebido instruções do professor para que respondesse/decidisse de acordo com a
extrema necessidade. Em Aquele que diz não a ênfase é dada à liberdade de escolha do
indivíduo, que decide voltar, que sugere uma nova maneira de refletir diante de cada
situação e que decide sobre o seu destino. Assim, Brecht contrapõe a “decisão”
preconizada pelo jurista Schmitt que diz respeito ao soberano que decide sobre um
coletivo.
Em Die Massnahme (A medida), uma peça didática que coloca as questões do
partido comunista em discussão, o enredo trata da história de quatro agitadores que
saem de Moscou e têm como destino a cidade de Muken. Lá irão propagar as idéias do
partido e ajudar o partido chinês nas fábricas. No início da peça, eles dizem ao coro de
controle que conseguiram cumprir a missão, mas que tiveram que matar um camarada.
A partir deste fato, o coro de controle pede para que eles contem o que houve para que
possa decidir se foi a ação correta. Os agitadores, dentre eles um de nome Karl
Schmitt
184
, de Berlim, passam, então, a encenar o que se passou. No caminho para a
cidade chinesa, eles encontram um jovem camarada, cujo coração bate pela revolução.
Os agitadores precisam de um guia e o jovem camarada se oferece para ajudá-los, pois
diz que o homem deve ajudar o homem, que ele é pela liberdade e que acredita na
humanidade; diz ainda que se juntou às fileiras do partido porque acredita que ele pode
lutar contra a ignorância, contra a exploração e pela sociedade sem classes. Os quatro
agitadores relatam que o jovem camarada estava de acordo com a maneira de
trabalharem e que eles seguiram para falar com o diretor do partido. Este assente à
participação do jovem camarada e pergunta se todos estão de acordo em se anular, usar
máscaras, tendo em vista que a tarefa é ilegal e pergunta se estão dispostos a morrer.
184
Também aqui, o nome de Schmitt – apresentado junto ao de Marx - não é usado aleatoriamente, tendo
em vista que o jurista, em O guardião da constituição, quando critica o caráter pluralístico do Reich,
afirma que a idéia de um partido, presumida nas constituições civis e de Estado de direito até o Estado
atual, ou seja, a República de Weimar, segue o Estado constitucional liberal, ou seja, é “um produto
baseado em livre propaganda, não se tornando, então, um complexo sólido, constante, permanente e
minuciosamente organizado. Tanto a ‘liberdade’ quanto a ‘propaganda’ proíbem,conforme a idéia nelas
contida, toda a pressão social ou econômica, permitindo, como motivação apenas a livre persuasão de
pessoas social e economicamente livres, mental e intelectualmente autônomas e capazes de proferir um
juízo próprio.” (SCHMITT, 2007, p. 121).
149
Eles concordam. O diretor do partido diz que, agora, eles são folhas em branco sobre as
quais a revolução escreve as suas instruções.
Eles seguem a viagem e o jovem camarada recebe três tarefas: a de convencer os
cules que sobem o rio com uma canoa cheia de arroz para fazer propagandas entre eles,
para que lutem por sapatos que lhes possibilitem trabalhar melhor; a de distribuir
panfletos na porta de uma fábrica e para que entregue uma carta a um comerciante de
arroz, para que os empregados consigam armas em uma luta contra os ingleses. O jovem
camarada “falha” nas três tarefas, por causa do compadecimento que sente, ou, ainda,
pela sua humanidade e por acreditar, conforme afirmara, que o homem deve ajudar o
homem. Os agitadores decidem matar o jovem camarada e argumentam que só com a
violência é possível transformar esse mundo assassino, e dizem ainda que eles fazem
aquilo unicamente pela inabalável vontade de transformar o mundo. O jovem camarada
aceita morrer, ou seja, cumpre o acordo, e como o menino de Aquele que diz sim, aquele
que diz não, morre com a ajuda de seus companheiros.
Desta forma, nota-se que as peças didáticas A peça didática de Baden-Baden –
sobre o acordo, Aquele que diz sim, aquele que diz não e A medida trazem, além da
questão do indivíduo versus o coletivo, a questão da ajuda versus violência, o “estar de
acordo” (Einverständnis).
Em A exceção e a regra, há três pontos centrais a examinar: a relação entre
indivíduo e coletivo, o Einverständnis (o ”estar de acordo”) e a relação entre ajuda e
violência, em outras palavras, três questões que também apontam para Schmitt.
Nesta peça, porém, o “estar de acordo” (Einverständins) é marcado justamente
pela sua ausência, pela sua suspensão. Enquanto o jurista Schmitt, em suas reflexões,
insere a exceção dentro da norma, que ao suspender a si mesma, deixa entrever a
exceção, Brecht, pelo “modelo de ação” de sua peça didática, mostra através do
proceder do juiz - que tem o poder de decisão e alega um suposto ódio (Haß)
alimentado pelo cule em relação a seu explorador -, que a exceção (o cule) está inserida
na norma (“A regra é olho por olho”), apenas e tão somente pela sua exclusão, através
do assassinato.
150
Enquanto o jurista Schmitt cria um sistema a partir de uma construção teórico-
filosófica, que fundamenta e justifica a violência e o Estado autoritário, o dramaturgo
mostra que, dentro deste sistema o indivíduo está inserido por meio de sua
exclusão/eliminação, determinada e efetuada por aquele que tem o poder de decisão (no
caso da peça, o juiz, mas para Schmitt, o soberano).
Como Brecht mostra não é qualquer indivíduo o excluído, mas sim, o indivíduo
e/ou a classe que não detém os meios de produção, ainda que se submeta
sistematicamente, como cule faz ao longo da peça, à violência daquele que detém o
capital, o soberano. Em outras palavras, o fato deste indivíduo se submeter ao soberano
e à violência empregada por ele, não garante a preservação de sua vida. Pelo contrário,
sendo o acordo suspenso por este soberano, que justifica a suspensão apelando para uma
“necessidade urgente”- necessidade econômica, conforme Schmitt aponta -, ao
indivíduo que se submete, não resta escolha, ou melhor acordo, ao qual ele teria a
possibilidade de assentir ou não.
Além disso, quando este soberano aplica o conceito do político proposto por
Schmitt, ele não só determina quem é seu inimigo, mas com seus poderes ilimitados,
elimina este inimigo, com a ajuda da força armada. Esta eliminação é prefigurada na
peça pela eliminação do inimigo histórico do soberano - o comerciante, representante da
classe que detém os meios de produção-, que assassina com um revólver o cule, o
representante das classes sociais mais baixas.
Outro ponto em que Brecht se contrapõe a Schmitt diz respeito ao Estado
econômico. Schmitt considera o Estado econômico uma espécie de mola propulsora
para a aplicação do artigo 48, dado o poder que lhe confere na promulgação dos
decretos também dentro do âmbito econômico. Em outras palavras: trata-se do Estado
de emergência econômica, que justifica um Estado de Exceção, o qual para preservar as
classes que detém os meios de produção lança mão de “os fins justificam os meios”. E é
justamente dentro deste âmbito que o uso do artigo 48 se torna uma praxe dentro da
República de Weimar. Lembro que é o mesmo artigo que concede poderes ilimitados ao
soberano, ao presidente do Reich, para “manter a ordem” com a ajuda da força armada.
Já para Brecht, o Estado de emergência econômica (progresso, concorrência, violência)
reduz o ser humano à sua menor grandeza até eliminá-lo, não só nas classes sociais mais
151
baixas, deserdadas de seus bens materiais, mas também nas classes que detém os meios
de produção, destituídas de seus bens morais.
Schmitt defende que “todo o direito é ‘direito situacional’. O soberano [aquele
que decide] cria e garante a situação como um todo na sua completude. Ele tem o
monopólio da última decisão. [...] O Estado de exceção revela o mais claramente
possível a essência da autoridade estatal. Nisso, a decisão distingue-se da norma jurídica
e (para formular paradoxalmente), a autoridade comprova que, para criar direito, ela não
precisa de razão”. (SCHMITT, 2006, p.16, grifo nosso). Brecht, na peça, ao mostrar o
juiz, aquele que decide no tribunal, aquele que é dotado de razão, aquele que a partir da
regra estabelece quem tem ou não razão, ilustra que a razão utilizada pelo juiz tem duas
medidas, ou seja, uma para classe dominante e outra para a classe dominada, o que
indica ao leitor que o próprio conceito de razão está em juízo. Ao fazer isso, Brecht não
só dialoga com os racionalistas da República de Weimar, mas também discute com
Schmitt a idéia de que a decisão distingue-se da norma-jurídica. Para Brecht , para criar
o direito, a norma-jurídica precisaria da razão, para embasar a decisão..
Torna-se evidente, que quando Brecht apresenta um juiz que se pauta no “direito
situacional”, ou seja, que “cria e garante a situação como um todo na sua completude,
[pois] ele tem o monopólio da última decisão”, o dramaturgo busca, dialeticamente,
inverter, ou melhor, transferir o poder de decisão para a classe trabalhadora, os
explorados representados na peça, para que ela possa decidir sobre o seu destino, uma
vez que cabe a ela, diante de cada situação, criar e garantir essa mesma situação,
adquirindo e mantendo o seu monopólio de decisão.
Ainda dentro desta discussão não são menos importantes a exceção e a regra
apontadas por Brecht, ou seja, a humanidade e a desumanidade. E podemos lê-las à luz
de Schmitt, quando este trata apenas do conceito de exceção:
A exceção [a humanidade] é mais interessante que o
caso normal [a desumanidade]. O que é normal nada
prova, a exceção [humanidade] comprova tudo; ela não
somente confirma a regra [a desumanidade] , mas esta
vive da exceção [a humanidade]. Na exceção
[humanidade], a força da vida real transpõe a crosta
mecânica fixada na repetição.[...] ‘A exceção [a
152
humanidade] explica o geral e a si mesma. (SCHMITT,
2006, p. 15).
Outra imagem que também pode traduzir um diálogo entre Brecht e Schmitt é a
do comerciante. Assim como o presidente do Reich, descrito no artigo 48 da
Constituição de Weimar, o comerciante também porta uma arma e tem o respaldo da
justiça através da lei para defendê-lo e legitimar as suas ações.
Ao discutir o Estado de exceção com Schmitt através da peça, o dramaturgo tem
como motivo essencial o registrado no procedimento do uso da fábula, ou seja,
inscrever o passado no presente para que este seja transformado e, ao fazê-lo, termina
por projetar o Estado de exceção na República de Weimar. Esta projeção está ilustrada
no epílogo da peça,
Assim termina,
A História de uma viagem.
Vocês viram e ouviram.
Vocês viram o que é comum, o que sempre torna a acontecer.
Mas nós pedimos a vocês:
No que não é estranho, encontrem o estranho!
No que é comum, encontrem o inexplicável!
Com o que é normal, vocês devem se espantar.
O que á a Regra, reconheçam como abuso
E onde vocês reconhecerem o abuso,
Busquem remediar!
(BRECHT, 1967, p. 822, tradução nossa).
185
Quando o dramaturgo pede ao leitor e ao público atenção à Regra, e para que
este a reconheça como abuso, ele se contrapõe à idéia de Schmitt, que considera a
exceção como regra. O emprego do verbo “remediar”, neste excerto que encerra a peça
de modo aberto, não é usado de maneira aleatória, tendo em vista que remete o leitor à
mesma expressão usada por Schmitt quando requer “remédios” e movimentos
contrários para curar um Estado pluralístico, considerado pelo jurista como doente.
Schmitt, por sua vez, responde tardiamente a esse diálogo, pois ao escrever a
segunda Teologia política, em 1969, faz uma menção a Brecht. No posfácio, intitulado
“Sobre a situação atual do problema: A legitimidade da Modernidade”, ao criticar os
185
No original: “So endet/Die Geschichte einer Reise./ Ihr habt gehört und ihr habt gesehen./ Ihr saht das
Übliche, das immerfort Vorkommende./ Wir bitten euch aber:/ Was nicht fremd ist, findet befremdlich!/
Was gewöhnlich ist, findet unerklärlich! Was da üblich ist, das soll euch erstaunen./ Was die Regel ist,
das erkennt als Missbrauch/ Und wo ihr den Mißbrauch erkennt habt/ Da schafft Abhilfe!“
153
iluministas e a Revolução francesa, o jurista afirma que, para aqueles, a “legalidade era
uma nova forma de legitimidade racional superior e mais válida; [que] ela era uma
mensagem da deusa da razão, no Novo frente ao Velho. Entrementes, experiências
políticas e popular-pedagógicas, esclarecimentos intermediados por Bertolt Brecht,
contribuíram para que a legalidade seja entendida apenas como discurso de gângster”.
(SCHMITT, 2006, p.142).Quando se observam as palavras usadas por Schmitt em
relação a Brecht – “experiências políticas” e “popular-pedagógicas”-, percebe-se que ele
sabia exatamente sobre o que estava falando, embora não o quisesse reconhecer e/ou o
quisesse disfarçar, utilizando sua magnífica retórica, reduzindo a discussão proposta por
Brecht sobre o Estado a um “discurso de gângster”. Faço, contudo, um complemento
informativo, ao qual Schmitt parece não ter observado. A figura do “gângster”, nas
peças do dramaturgo, bem como a do assassino-explorador, como em A Exceção e a
regra, sempre esteve “protegida pela polícia”, ou seja, respaldada pelas leis e pelos
juízes, ou seja, por essa justiça prescrita por Schmitt.
Um ponto pertinente a ser retomado nesta última parte do estudo é a discussão
empreendida por Steinweg, Mittenzwei e outros acerca do objetivo das peças didáticas,
bem como o uso que delas foi feito na República de Weimar. Não tenho o intuito de
resolver esta questão, mas busco problematizá-la e participar, a partir da minha
perspectiva, relativizada historicamente, da discussão acerca desta questão.
Em 1976, período em que as peças didáticas voltam a ser um objeto de discussão
na Alemanha, Werner Mittenzwei, Hermann Haarmann e Dagmar Walach, contrapõem-
se à tese apresentada e defendida por Steinweg, em seu estudo de 1972, que, ao se
embasar em um pressuposto brechtiano, afirma: "a peça didática ensina quando nela se
atua, não quando se é espectador" (Apud STEINWEG, 1976a, p.164)
186
. A
contraposição feita pelos críticos deve-se à ênfase dada por Steinweg ao caráter de
"dialética pela dialética" que este grupo de peças teria. Para os críticos mencionados, as
peças didáticas têm traços da arte producente, elaborada no final da República de
Weimar, portanto teriam o objetivo de servir a uma revolução social, isto é, socialista,
ou seja, ratificam que por trás desta arte producente e do pensamento dialético há uma
práxis efetiva com um alvo definido, a revolução.
186
No original: “Das lehrstück lehrt dadurch, daß es gespielt, nicht dadurch, daß es gesehen wird.”
154
Por um lado, a crítica à tese defendida por Steinweg é pertinente pelo fato de
que, quando se retoma o que Brecht disse neste pressuposto e o completamos, "A peça
didática ensina quando nela se atua, não quando se é espectador. Em princípio, não há
necessidade de espectadores, mas eles podem ser utilizados". (Apud KOUDELA, 1991, p.
16), nota-se que Steinweg não deu atenção à segunda oração, à oração subordinada,
fundamental em Brecht, sobre o fato de os espectadores poderem ser utilizados. Torna-
se claro o intuito de Brecht ao sugerir que as peças sejam representadas por atuantes -
amadores, estudantes, trabalhadores-, e é um fato que ele conseguiu aplicar esta
indicação, por exemplo, em Aquele que diz sim, aquele que diz não. Contudo, acredito
que é necessário fazer como o autor, isto é, relativizar esta sugestão de que "a peça
didática [só] ensina enquanto nela se atua, não quando se é espectador", até porque A
Medida, por exemplo, foi representada por um coro de trabalhadores e pelos atores que
trabalhavam com o dramaturgo em 1930, ou seja, não só por "atuantes", tendo sido além
disso encenada para um público. Se se aplicar a tese de Steinweg a A exceção e a regra,
a peça será excluída do elenco de peças didáticas, porque ela é a única daquele período
que não foi encenada logo após a sua escritura, em outras palavras, é um experimento
que não foi "colocado à prova". Trata-se, todavia, de uma exclusão que o próprio Brecht
não faz. Em 1931, Brecht indica esta peça como Lehrstück e ratifica este apontamento
em um nota de 1956, ou seja, no ano de sua morte, como já foi indicado no capítulo
sobre as peças didáticas.
Por outro lado, torna-se necessário também relativizar a "leitura" feita por
Mittenzwei, Haarmann e Walach, ou seja, a de que as peças didáticas foram elaboradas
visando a uma revolução. O próprio contexto histórico dentro do qual elas foram
produzidas já mostrou que, ainda que houvesse movimentos sociais suficientemente
articulados - o que não havia na República de Weimar, entre 1928 e 1931 - para a
idealizada revolução, o Estado fechava o cerco a qualquer corrente que não estivesse
alinhada ao Estado econômico, e, como a História mostra, o cerco foi fechado
completamente em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder. Sendo assim, por que
Brecht, que sempre estava a par das questões de seu tempo, proporia os experimentos
das peças didáticas como estímulos a uma revolução de esquerda no final de uma
conturbada República, que já se ressentia com as ações do Estado econômico que, por
sua vez, evoluía para um Estado de guerra?
155
Mittenzwei acerta ao relacionar as peças didáticas à arte producente feita no
final da década de 20 e início da década de 30. Uma exemplar reflexão sobre esta arte
producente, que seria uma ramificação decorrente “dos processos de diferenciação do
pensamento estético marxista do início dos anos trinta" (MITTENZWEI, 1976a, p. 241,
tradução nossa)
187
, é um ensaio de Walter Benjamin, escrito em 1934, "O autor como
produtor." Nele, Benjamin afirma que "um escritor que não ensina os outros escritores
não ensina" (BENJAMIN,1987, p.132), e aponta para a necessidade deste
comportamento pedagógico por parte do escritor. Afirma, ainda, que o caráter modelar
da produção é decisivo, pois não só deve orientar outros produtores em sua produção,
mas também precisa colocar à disposição deles um aparelho mais perfeito. Pois quanto
melhor for este aparelho, mais conduzirá consumidores à esfera de produção, isto é,
maior será a sua capacidade de transformar em colaboradores os leitores ou
espectadores. Como modelo desse gênero, Benjamin indica o dramaturgo Brecht. O
modelo a que Benjamin se refere foca a interrupção, que "não se destina a provocar uma
excitação, e sim a exercer uma função organizadora. Ela imobiliza os acontecimentos e
com isso obriga o espectador a tomar uma posição quanto à ação, e o ator, a tomar uma
posição quanto ao seu papel." (BENJAMIN, 1987, p. 133). Não é, tampouco, de
maneira despropositada que Benjamin, neste ensaio, cite uma anotação que Brecht
apresenta no prefácio da publicação de primeiros experimentos com as peças didáticas:
"A publicação dos 'experimentos' acontece em um momento em que certos trabalhos
não devem mais ser vivências individuais (ter caráter de obra), porém, serem
direcionados à utilização (transformação) de determinados institutos e instituições
(devem ter caráter de experimento)[...]" (Apud STEINWEG,
1976a, p. 94, tradução
nossa).
188
Como na obra de Brecht a ação e a reflexão estão indissociavelmente unidas, o
dramaturgo, assim como indica Benjamin, reflete sobre a sua posição dentro do
processo produtivo - o de ensinar e de aprender - e coloca em prática o que ensina.
187
No original: “Die Kunst für die Produzenten war eine Hauptlösung der Materialästhetik, die sich
innerhalb des Differenzierungsprozesses des marxistischen ästhetischen Denkens zu Beginn der dreißiger
Jahre herausbildete. Diese Differenzierung vollzog sich auf der Grundlage des Funktionswechsels, der
Ausrichtung der Künste und künstlerischen Praxis auf die Ziele der revolutionären Arbeiterbewegung“.
188
No original: „Die Publikation der „Versuche“ erfolgt zu einem Zeitpunkt, wo gewisse Arbeiten nicht
mehr so sehr individuelle Erlebnisse sein (Werkcharakter haben) sollen, sondern mehr auf die Benutzung
(Umgestaltung) bestimmter Institute und Institutionen gerichtet sind (Experimentcharakter haben) […]“.
156
Diante do conturbado contexto histórico/político do final da República de Weimar, a
única maneira de o dramaturgo agir passa por seu posicionamento frente àquele
contexto. Neste sentido, ele age na medida em que se posiciona com e por meio de seus
escritos e suas peças didáticas em favor da classe trabalhadora e contra um prenunciado
Estado de Exceção. Posicionar-se, portanto, diante das situações historicamente
apresentadas é um comportamento que insere a ação e a reflexão, ou seja, é a partir
deste posicionamento que o leitor ou espectador pode efetivar uma ação concreta para a
transformação da realidade em que vive, pois o não posicionamento diante daquele
contexto histórico/político, ou de qualquer outro, ou seja, se submeter à sistemática
violência, como A exceção e a regra mostra, não garante que se preserve a vida, ou seja,
a sobrevivência diante destas circunstâncias dadas.
157
CONCLUSÃO
Conforme proposto neste estudo, buscou-se apresentar uma análise minuciosa da
peça A exceção e a regra.
No primeiro capítulo, intitulado “As peças didáticas, segundo Brecht”, tentou-se
sistematizar e classificar toda uma série de informações esparsas sobre as peças
didáticas em geral e, em particular, aquelas atinentes a A exceção e a regra, bem como
foram pela primeira vez traduzidos para o português do Brasil todos os textos arrolados
destas informações. Além disso, retomaram-se alguns pressupostos do teatro épico de
Brecht, tais como os Verfremmdungseffekte (efeitos de distanciamento), bem como se
resgataram alguns textos teóricos do autor, onde constam indicações acerca da função
das peças didáticas, indicações acerca do público a que se destinam, e tamm se
contextualizou a peça dentro da obra do autor, assim como dentro do grupo de peças
didáticas.
No segundo capítulo, com o título “A condição humana”, ao analisar os
personagens da peça, enveredou-se pelo exame das camadas textuais que compõem este
drama épico. Conforme indicado, Brecht sobrepõe ao prólogo e ao epílogo, parte
estrutural de uma tragédia grega, uma camada textual sálmica, que remete o leitor à
ideologia teológica, e observou-se que a sobreposição de diferentes estruturas textuais
ao texto dramático constitui um dos elementos que fazem mover o “modelo de ação” da
peça didática. Neste capítulo, foi mostrado que as canções entoadas pelos personagens,
ao mesmo tempo em que fragmentam as unidades de ação do texto dramático,
propiciando consequentemente o distanciamento crítico do leitor, expõem os gestus
socialmente dados pelos personagens. A maneira como as canções são apresentadas na
peça, conforme analisado, fornece uma maior fragmentação ao texto, e,
consequentemente, à encenação, pois há canções que são entoadas pelos personagens,
que comentam as ações apresentadas, e outras usadas com o objetivo de distanciar o
ator que representa a cena, ou seja, personagens que estabelecem um jogo entre
identificação e estranhamento, outro elemento que faz mover o “modelo de ação” da
peça didática. Ainda neste capítulo, foi mostrado o emprego da agudeza pelo autor, pois
Brecht, ao relacionar de maneira inesperada e artificial dois conceitos distantes, de
158
modo a colocar em correspondência também inesperada relações de objetos distantes,
põe em evidência um terceiro elemento que faz mover o “modelo de ação” da peça
didática, isto é, a contraposição entre as ações e falas dos personagens. Fica
demonstrado com este procedimento o gestus
189
na escrita da peça. É justamente com o
emprego desta linguagem gestual que Brecht consegue revelar as atitudes do indivíduo
que fala perante os outros indivíduos, ou seja, quando mostra um comerciante com um
discurso de suplicante, mas que age como ímpio; ou, ainda, quando apresenta o
verdadeiro suplicante, o cule, que é julgado e considerado culpado depois de morto, ou
seja, que este não obtém a salvação divina após sua morte; ou, ainda, quando o
dramaturgo mostra um juiz que, por meio da justiça, ratifica a injustiça social.
No terceiro capítulo, intitulado “A justiça”, também se tornou patente o
procedimento brechtiano empregado nas peças didáticas, qual seja, um quadro que é a
peça dentro da peça, e que apresenta, ainda, uma outra camada textual, tecida na forma
de fábula. Nesta parte do estudo, o foco foi dado à justiça e ao Estado, este último,
referido inúmeras vezes pelo autor em seus textos teóricos sobre as peças didáticas.
Fica, assim, claro que a discussão sobre o Estado é constitutiva e essencial das peças
didáticas, e, como se observou, ela também está presente em A exceção e a regra.
No quarto capítulo, com o título “Os coros desconhecidos e as anotações
“silenciadas”, foram resgatados os textos originais dos novos coros, por muito tempo
não localizados, bem como anotações praticamente inexploradas, e apresentadas as
respectivas traduções, por mim elaboradas. Tentou-se experimentar as sugestões do
dramaturgo, a partir de alguns trechos destes coros. Quando Brecht afirma que “A
forma da peça didática é árida, mas apenas para permitir que trechos de invenção
poética e de tipo atual possam ser introduzidos” (Apud KOUDELA, 1991, p. 17), tem-
se, portanto, mais um elemento caracterizador da peça didática e que está presente
também em A exceção e a regra, em outras palavras, o caráter aberto da obra. Este
elemento também faz mover o “modelo de ação” das peças didáticas. Cabe, ainda, uma
observação: como forma e conteúdo estão indelevelmente ligados no teatro épico, o
189
Cabe lembrar que Brecht diferencia gestus e gesticulação (gestikulieren) na seguinte anotação: “[...]
ao falar de gestus não nos referimos à gesticulação (gestikulieren); não se trata de movimentos das mãos
no intuito de frisar ou explicitar a fala, mas sim de atitudes gerais. Uma linguagem é gestual (gestisch)
quando se fundamenta no gestus, quando revela determinadas atitudes do indivíduo que fala, assumidas
perante outros indivíduos [...]”.IN: KOUDELA, Brecht: um jogo de aprendizagem. São Paulo, Ed.
Perspectiva, 1991, p.101.
159
procedimento brechtiano empregado nas peças didáticas, ao mesmo tempo em que
coloca os temas a serem discutidos, quer dizer, a luta de classes, o progresso, a condição
humana diante deste progresso, “o estar de acordo” (Einverständnis), a justiça, a
teologia política, o Estado, a ajuda do homem pelo homem, a razão/a regra, a exceção, o
papel do Estado frente à luta de classes, a humanidade e a desumanidade, o dramaturgo
reconfigura sistematicamente estes temas no texto escrito. Naturalmente, a encenação
propiciaria uma ampliação destas reconfigurações, devido às possibilidades cênicas,
mas como me detive no texto escrito, só posso falar sobre ele. Neste sentido, as
possibilidades de “leitura” desta peça didática são muitas, mas enveredei pelo caminho
do Estado, pelo fato dele ter se mostrado o mais produtivo, por trazer questões
referentes à sua época, que, contudo, ainda estão presentes na nossa contemporaneidade.
No quinto e último capítulo, buscou-se dar contorno a um possível diálogo entre
Bertolt Brecht e os seus contemporâneos, entre os quais, Carl Schmitt. O fato de as
peças didáticas terem um destinatário determinado pelo autor, ou seja, os amadores,
estudantes, trabalhadores, mostra que elas dialogam com as questões de seu tempo, pois
dentro daquele Estado econômico, em um pólo da discussão estava Schmitt, defendendo
um Estado Total, um Estado de Exceção, e Brecht estava no outro pólo da discussão,
buscando combater esta proposta de Schmitt e, dentro disso, defender a justiça social.
A exceção e a regra, embora não tenha sido encenada logo após a sua escritura,
ou seja, não tenha sido “colocada à prova” no final da década de 20 e início da década
de 30, não deixa de pertencer ao rol das peças didáticas. Este fato se fundamenta nos
elementos que a compõem, e que, portanto, a tornam um “modelo de ação”. Este estudo,
além de apresentar uma análise minuciosa da peça, a reconduz ao rol de peças didáticas.
Ousa-se usar o termo “reconduzir”, pois ao longo deste estudo, observou-se que A
exceção e a regra, na crítica brasileira, estava sendo obliterada em vários estudos
críticos. Espera-se, assim, ter contribuído para a fortuna crítica do autor, e,
principalmente, para que esta peça retome o seu lugar dentro da crítica literária
brasileira.
Kawó-Kabiesilé
160
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2001. Instituto Antonio Houaiss – Produzido e distribuído por Ed. Objetiva LTDA.
166
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