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Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Medicina Social
Nutrindo a Vitalidade
Questões contemporâneas sobre a Racionalidade Médica Chinesa e seu
desenvolvimento histórico cultural
Eduardo Frederico Alexander Amaral de Souza
Tese apresentada como requisito parcial para
obtenção do grau de Doutor em Saúde Coletiva,
Curso de Pós-graduação em Saúde Coletiva – área
de concentração em Ciências Humanas e Saúde do
Instituto de Medicina Social da Universidade do
Estado do Rio de Janeiro
Orientadora: Professora Madel T. Luz
Rio de Janeiro
Março de 2008
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i
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ/REDE SIRIUS/CBC
S729 Souza, Eduardo Frederico Alexander Amaral de.
Nutrindo a vitalidade: questões contemporâneas sobre a racionalidade
médica chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural / Eduardo Frederico
Alexander Amaral de Souza. – 2008.
224f.
Orientadora: Madel T. Luz.
Tese (doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de
Medicina Social.
1. Medicina chinesa – Teses. 2. Promoção da saúde – Teses. 3. Taoísmo – Teses. I. Luz,
Madel Therezinha. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Instituto de
Medicina Social. III. Título.
CDU
615.8
_______________________________________________________________________________
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ii
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
Instituto de Medicina Social
Aluno: Eduardo Frederico Alexander Amaral de Souza
Título da Tese: Nutrindo a Vitalidade - Questões contemporâneas sobre a
Racionalidade Médica Chinesa e seu desenvolvimento histórico cultural.
Aprovada em ________de _________________de ____________, por:
Orientadora: Profa. Madel T. Luz
Instituto de Medicina Social - UERJ
Profa. Dr. Carlos Alberto Plastino
Instituto de Medicina Social - UERJ
Prof. Dr. Joel Birman
Instituto de Medicina Social - UERJ
Prof. Dr. Charles Dalcanale Tesser
Depto. de Saúde Pública - UFSC
Dennis W. V. Linhares Barsted
Doutor em Saúde Coletiva IMS/UERJ.
iii
Dedicatória
Este trabalho é dedicado à humanidade, na esperança que possa ajudar na
construção de uma sociedade hamônica, e trazer algum benefício nos momentos difíceis.
iv
Agradecimentos
Aos meus pais Marco Antonio e Beatriz pela primordial oportunidade da vida.
À minha esposa Erika, pela incansável forca e companheirismo na realização de
muitos projetos simultâneos.
À minha filha Sofia, pela concessão de muitas horas de seu 'direito a atenção' para
que o trabalho pudesse fluir. Que possa usufruir do conhecimento.
À Professora Madel Luz pelas aulas, orientações, pelo incansável trabalho à frente do
grupo de pesquisa Racionalidades Médicas, e principalmente, por sua sabedoria e
capacidade em incentivar a criatividade e a singularidade nos projetos de seus alunos.
À Professora Livia Kohn pelas aulas, seções de orientação, apoio e desenvolvimento
conjunto do projeto de estágio doutoral na Universidade de Boston, imprescindível para
realização da obra.
À Dennis Linhares Barsted, por seu apoio contínuo durante todo trabalho.
Ao CNPq e ao IMS pelo apoio financeiro e institucional à pesquisa.
Aos Professores e companheiros do caminho, que inspiraram este trabalho com seus
ensinamentos e conversas. Donati Caleri, Juan Carlos Vairo, Carlos Tadeu, Sergio
Seixas, Lygia Franklin, Gabriel Nieto, Michael Winn, Karin Sorvik, Cai Wen Yu, Heiko
Roshcke.
À todos os alunos, especialmente ao grupo de praticantes que inspirou esta pesquisa
com sua dedicação disciplinada às práticas de saúde, Márcia Ahrends, Paulo Camacho,
Lula Buarque, Bruno Girardi, Pedro Mazzillo, Mariko Arai.
À David Capco, Michael Rinaldini, Greg and Rita Lucier, George Henderson, e Caryn
Boyd, grato as suas idéias inspiradoras e entrevistas concedidas durante o curso
Daoísmo Intensivo, ministrado pela professora Livia Kohn.
À Rafael Vasconcellos, Andrea Fuzimoto, Ayse Kulahci, Kunal Nagpal, Danae
Rigelmann pela essencial hospitalidade durante período de pesquisa de campo em San
Francisco, California.
A Karin Sorvik, por sua hospitalidade e auxílio a pesquisa.
Aos terapeutas entrevistados, por sua disponibilidade e atenção, especialmente à
Dennis Willmont, Jerry Allan Johnson, Lonny Jarret, Liu Ming e Jeff Nagel.
À Cristiana Navarro e Clarence Wang pela hospitalidade e auxílio a contatos durante
as pesquisas na Universidade de Boston.
v
À Karina Nagao, Gabriel Felzenszwalb, Frederico Coelho e Anna Elisa de Castro, por
sua hospitalidade e auxilio durante a fase de construção do projeto de pesquisa nos
Estados Unidos.
Minha sincera gratidão a todos.
vi
Resumo
Nas últimas quatro décadas a Medicina Chinesa estabeleceu raízes estáveis nos países
ocidentais. Durante o processo de aculturação, a escola de pensamento denominada Medicina
Tradicional Chinesa (ZHŌNG GUÓ YĪ, ) alcançou uma posição hegemônica nestes países
e também na República Popular da China (1949- ). Esta escola foi inicialmente concebida como
um projeto para reconstrução da Medicina Chinesa dentro do território da China continental após a
revolução de 1949. Um dos propósitos deste projeto foi construir uma síntese entre a Medicina
Clássica Chinesa (GǓ DÀI ZHŌNG YĪ ) e a ciência ocidental, adequando-se aos
valores e ideologia da China comunista. Neste processo foram excluídas ou modificadas, por
razões políticas, ideológicas ou paradigmáticas, concepções fundamentais da Medicina Clássica
que constituíam um modelo de prevenção e promoção de saúde. Em contrapartida, foram
enfatizados seus aspectos diretamente relacionados ao paradigma biomédico, essencialmente
voltados para a cura de doenças.
Neste trabalho apreendemos e analisamos as concepções, valores e pressupostos que
estruturam a proposta terapêutica da Medicina Clássica Chinesa, enfatizando os aspectos e
concepções que constituem um modelo de prevenção e promoção de saúde (YǍNG SHĒNG
), reintegrando as concepções modificadas ou excluídas dentro de seu contexto original.
Assumindo que durante seu período de formação na dinastia HÀN
(206 B.C. - 220 A.D.) a
Medicina Clássica Chinesa era um corpo de conhecimento interligado aos saberes e práticas
Daoístas, efetuamos a apreensão e análise das concepções inseridas no contexto do modelo
cosmológico Daoísta que constituiu os fundamentos para o desenvolvimento dos saberes médicos
nesta época.
Palavras-Chave: Medicina Chinesa; Promoção de Saúde; Daoísmo; Racionalidades Médicas.
vii
Abstract
In the last four decades Chinese Medicine settled stable roots on western countries. During the
acculturation process it seems that one current of its traditions named Traditional Chinese
Medicine (ZHŌNG GUÓ YĪ, ) attained a hegemonic position in these countries and also in
China. This current was conceived as a project for reconstructing Chinese Medicine in People’s
Republic of China (1949 - ). Looking for a synthesis between the Classical Chinese Medicine (GǓ
DÀI ZHŌNG YĪ ) and science, Traditional Chinese Medicine has excluded or modified
for political, ideological or paradigmatic reasons important notions of Classical Medicine such as
SHÉN , LÍNG and MÌNG , and emphasized its aspects that are more related to biomedical
paradigm, centered on the notion of curing diseases.
Our objective in this work is to apprehend and analyze the conceptions and values that
structures the therapeutic model of Classical Chinese Medicine, granting special attention to the
aspects that compose the health promotion part of the model (YǍNG SHĒNG ), and re-
integrating the above mentioned excluded or modified conceptions.
Assuming that during its formative period in HÀN dynasty (206 B.C. - 220 A.D.) Classical
Chinese Medicine was a subject completely interrelated to Daoism, it was essential to analyze the
main conceptions inside the context of the Daoist cosmological model that constituted the
foundation to medical knowledge development, constituting a research theme that is absent in the
hegemonic research agenda of contemporary Chinese Medicine.
Key Words: Chinese Medicine; Health Promotion; Daoism; Medical Rationality
viii
Sumário
Introdução Geral ........................................................................................................................... 11
I.1. A Saúde no Mundo e as Contribuições da Medicina Chinesa............................................... 11
I.2. Breve História da Medicina Chinesa...................................................................................... 12
I.3. A Medicina Chinesa no Ocidente Contemporâneo................................................................ 19
I.4. O Cenário Atual da Pesquisa em Medicina Chinesa............................................................. 21
I.5. Crítica às Diretrizes de Pesquisa........................................................................................... 26
I.6. Projeto Racionalidades Médicas: O Espaço da Pesquisa no Brasil...................................... 29
I.7. Objeto, Objetivo e sua Abordagem........................................................................................ 32
I.8. Questões Metodológicas de um Estudo Teórico sobre Tema Pouco Explorado .................. 35
I.9. Notas sobre a Grafia das Categorias Chinesas .................................................................... 43
I.10. Estrutura do Texto ............................................................................................................... 47
Capítulo 1 – A Base Ternária da Medicina Chinesa................................................................... 48
1.1. Saúde, Longevidade, Imortalidade: Evidências de uma Proposta Terapêutica Ampla........ 49
1.2. A Divisão de Funções entre os “Médicos”: FĀNG SHÌ , WŪ e YĪ . ...................... 57
1.3. A Tradição dos Imortais: Vitalidade Ilimitada........................................................................ 60
Capítulo 2 – O Nível Celeste ........................................................................................................ 69
2.1. Cosmogênese e Cosmologia Daoísta: Saúde, Auto-Conhecimento e Destino.................... 70
2.2. Desenvolvimentos Contemporâneos dos Saberes Clássicos .............................................. 80
Capítulo 3 – O Nível Humano....................................................................................................... 94
3.1. Prevenir, Guardar e Suplementar: Processos Fundamentais do Nível Humano ................. 95
3.2. A Importância da Relação entre o Homem e a Natureza na Prevenção de Desarmonias. 102
3.3. A Constituição como Fator de Desequilíbrio ...................................................................... 104
3.4. Sobre a Origem da Constituição......................................................................................... 108
3.5. O Cultivo das Virtudes na Terapêutica da Constituição ..................................................... 111
Capítulo 4: O Nível Terrestre ..................................................................................................... 118
4.1. Os Aspectos Curativos da Medicina Clássica .................................................................... 119
4.2. A Medicina Tradicional Chinesa como Exacerbação do Nível Terrestre............................ 124
Capítulo 5 – A Terapêutica nos Três Níveis: Acupuntura e Moxabustão.............................. 130
5.1. A Diversidade das Práticas Terapêuticas........................................................................... 131
5.2. A Acupuntura no Nível Terrestre ........................................................................................ 133
5.3. Níveis Humano e Celeste nos Textos Clássicos................................................................ 137
5.4. Nível Humano nos Autores Contemporâneos .................................................................... 138
5.5. Nível Celeste nos Autores Contemporâneos...................................................................... 144
Capítulo 6: A Terapêutica nos Três Níveis: Os Fármacos ...................................................... 149
6.1. Os Fármacos no Nível Terrestre ........................................................................................ 152
6.2. Os Fármacos no Nível Humano ......................................................................................... 155
6.3. Os Fármacos no Nível Celeste........................................................................................... 157
ix
Capítulo 7: A Terapêutica nos Três Níveis: As Artes Sexuais................................................ 165
7.1. Sexualidade e Saúde na Medicina Chinesa....................................................................... 166
7.2. As Artes Sexuais no Nível Terrestre................................................................................... 171
7.3. As Artes Sexuais no Nível Humano.................................................................................... 174
7.4. As Artes Sexuais no Nível Celeste..................................................................................... 177
Conclusão do Estudo ................................................................................................................. 183
1. Síntese do Modelo................................................................................................................. 183
2. Sobre a Importancia da Dimensão Doutrina Médica............................................................. 188
3. As Formas de Avaliação Terapêutica da Medicina Clássica................................................. 191
Considerações Finais................................................................................................................. 194
1. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A Via Hegemônica
................................................................................................................................................... 194
2. Sugestões para Uma Agenda de Pesquisa em Medicina Chinesa ....................................... 202
3. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A Via Contra-
Hegemônica............................................................................................................................... 207
Referências Bibliográficas......................................................................................................... 212
Anexo I – Glossário de Termos Chineses ................................................................................ 220
Anexo II – Lista de Entrevistados e Notas de Pesquisa.......................................................... 223
x
Índice de Tabelas e Figuras
Tabela 1: As Dinastias Chinesas.................................................................................................... 12
Tabela 2: Classificação das Pesquisas .......................................................................................... 22
Tabela 3: Quadro-Resumo das Racionalidades Médicas............................................................... 30
Tabela 4: As Atribuições dos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN ). ......................................... 88
Tabela 5: As Virtudes Associadas aos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN ) ........................... 89
Tabela 6: As Virtudes da Fase Metal............................................................................................ 114
Tabela 7: Padrão de Desarmonia - Umidade-Frio Acumulada no Baço-Pancrêas....................... 126
Tabela 8: Comparação entre Medicina Clássica e Contemporânea ............................................ 128
Tabela 9: O Conjunto de Cogumelos Ganoderma (LÍNG ZHĪ 靈 芝)............................................ 160
Tabela 10: Os Níveis do Orgasmo Feminino................................................................................ 181
Figura 1: Gráfico dos Níveis de Vitalidade...................................................................................... 68
Figura 2: Gráfico das 5 Fases Segundo o Diagrama HÉ TÚ 河 圖................................................ 82
Figura 3: Trajetos dos Meridianos dos Rins, Coração, Bexiga e Intestino Delgado....................... 91
Figura 4: Diagrama de Circulação do YÍNG QÌ ...................................................................... 99
Figura 5: Daoista na Prática de Guardar o Um............................................................................. 102
Figura 6: Gráfico das cinco fases em equilíbrio............................................................................ 105
Figura 7: Gráfico das Cinco Fases em Desequilíbrio ................................................................... 106
Figura 8: Um Vaso Alquímico ....................................................................................................... 163
Figura 9: Posição de Cura para o Homem I ................................................................................. 172
Figura 10: Posição de Cura para o Homem II .............................................................................. 172
Figura 11: Posição de Cura para a Mulher I ................................................................................. 173
Figura 12: Posição de Cura para a Mulher II ................................................................................ 173
Figura 13: Concentração de Força Vital nos Rins ........................................................................ 174
Figura14: O Método do Cadeado ................................................................................................. 174
Figura 15: Concentração de Força Vital no Útero. ....................................................................... 175
Figura 16: Gráfico da Expansão do Orgasmo .............................................................................. 176
Figura 17: O Gráfico das Passagens Internas.............................................................................. 179
Figura 18: Posição Preferencial para o Cultivo Dual .................................................................... 180
Introdução Geral
Introdução Geral
I.1. A Saúde no Mundo e as Contribuições da Medicina Chinesa
O campo da Saúde Coletiva parece caminhar para um consenso quanto à
importância de práticas de prevenção e promoção de saúde na resolução de seus
principais problemas. Observamos isto na “Declaração do Rio”, documento resumo
dos debates do último congresso mundial de Saúde Pública.
“Os resultados da pesquisa [sobre causas de adoecimento]
devem estar publicamente disponíveis e ser incorporados na
formulação de políticas públicas e intervenções em saúde. Estas, por
sua vez, devem ter a promoção em saúde como parte integral de seu
desenho
1, 2
Porém, o paradigma biomédico, hegemônico no campo da Saúde, foi
desenvolvido com base nas noções de doença e cura, reservando um papel
secundário para as noções de prevenção e promoção.
Na história da Medicina Chinesa, ocorreu o oposto. Durante o período de sua
construção na dinastia HÀN (206 a.C. a 220 d.C.), a chamada Medicina Clássica
Chinesa desenvolveu um modelo onde os saberes e práticas de promoção de saúde
eram articulados aos de cura de doenças. Tendo enfatizado a promoção e
prevenção desde seu período formativo, a Medicina Chinesa apresenta um legado
de séculos de experimentação e elaboração destes saberes.
Em termos gerais, estudos sobre Medicina Chinesa podem contribuir para
ampliar nossa compreensão sobre “as causas” das doenças por apresentarem uma
visão cultural exógena sobre o binômio saúde/doença. Além disto, ao apresentar
interpretações e soluções distintas para os problemas de saúde através de seu
conjunto de saberes e práticas voltadas para a promoção de saúde, a Medicina
Chinesa pode contribuir para criação de projetos inovadores, conforme as demandas
atuais do campo.
1
8
0
Congresso Brasileiro de Saúde Coletiva e 11
0
Congresso Mundial de Saúde Pública. A
Declaração do Rio foi extraída da página eletrônica da Associação Brasileira de Saúde
Coletiva – ABRASCO. www.abrasco.org.br/noticias/noticia int.php?id noticia=47
acessado
em 14/09/2006.
2
Negritos do autor.
12
I.2. Breve História da Medicina Chinesa.
A Medicina Chinesa é um vasto campo de saberes e práticas que aparenta ao
leigo um alto grau de homogeneidade. Porém, um olhar mais minucioso revela uma
considerável heterogeneidade. Em seu aspecto positivo a diversidade enriquece o
campo, mas,no negativo, é fonte de tensões e conflitos, os quais definem algumas
fronteiras internas cujo esclarecimento se faz necessário.
A elaboração foi fundamentada nas obras do sinologista e historiador Unschuld
(1985) e de Birch (2002)
3
, que apresentam o cenário de uma medicina construída no
tempo, evoluindo de saberes e práticas mais simples para mais complexas, tendo
respaldo em evidencias histórico-arqueológicas. Como as referências de tempo nos
estudos sobre a China são usualmente feitas através das dinastias, apresentamos a
seguir uma tabela com o período referente a cada uma delas:
Tabela 1: As Dinastias Chinesas.
Dinastia Período Dinastia Período
SHĀNG
1751 a 1112 AC Cinco Dinastias 907–960 DC
ZHŌU
1112 a 249 AC
SÒNG
960–1279 DC
Dinastia QÍN
221 a 206 AC
YUÁN
1271–1368 DC
HÀN
206 AC a 220 DC
MÍNG
1368-1644 DC
Seis Dinastias
220–581 DC
QĪNG
1644–1912 DC
SUÏ
581–618 DC República da
China
1912-1949DC
TÁNG
618–907 DC República Popular
da China
1949-
Fonte: Chan (1963, p. xv)
Unschuld (1985) apresenta um modelo de evolução da Medicina Chinesa em
uma escala longa de tempo que nos será bastante útil. Segundo o autor, desde os
primeiros registros da civilização chinesa na dinastia SHĀNG até o final da
3
Birch, S. é Acupunturista, Phd. pelo Center for Complementary Health Studies da
Universidade de Exeter, Inglaterra, e pesquisador pela Associação Toyohari, sociedade de
pesquisa em acupuntura.
13
dinastia ZHŌU , a Medicina Chinesa baseava-se em um paradigma
4
mágico-
ritualístico. Suas características principais eram congruentes com a própria estrutura
social, na qual não havia qualquer separação entre os campos da religião e da
medicina. Nesta sociedade os curadores eram sacerdotes, denominados WŪ ,
termo usualmente traduzido por shamans. Estes sacerdotes eram responsáveis pela
resolução dos problemas de saúde, que usualmente eram atribuídos a três fatores:
O primeiro seria da relação entre o sujeito vivo e seus antepassados mortos.
Pensava-se que os mortos influenciavam os acontecimentos do mundo dos vivos, e
uma doença poderia ser, por exemplo, a manifestação da insatisfação de um
antepassado. Havia um tipo especial de antepassado, que seria o “antepassado
primordial”, capaz de influenciar o decurso de toda a sociedade, e portanto só era
acessível pelo rei. Outro fator que poderia desencadear doenças seriam os
“demônios”, entidades malignas não encarnadas, que atacariam os homens, e por
último, uma noção que permaneceria no próximo paradigma, o ataque de um “vento”
tido como um fator climático.
Essencial para a terapêutica seria a identificação do fator principal, que
usualmente era feito por via oracular. As consultas oraculares parecem ter sido
fundamentais neste modelo, e eram feitas com a utilização de cascos de tartarugas
ou ossos de animais. Os primeiros eram atirados no fogo, e em seguida o shaman
(WŪ ) interpretava o padrão de rachaduras que surgia no casco como uma
mensagem. Caso o problema fosse relacionado a algum antepassado, a solução
estaria na conciliação entre as ações do sujeito vivo e a vontade do antepassado,
mediadas de forma ritualística. Caso se tratasse de ataques de demônios, a
terapêutica consistia num ritual de exorcismo, e caso fossem ataques de vento,
rituais para aplacá-lo.
A mudança de paradigma na medicina foi um processo que durou
aproximadamente cinco a sete séculos, desde o surgimento das primeiras
concepções distintas até a consolidação do modelo. Somente no período médio da
dinastia ZHŌU , próximo ao ano 500 a.C., evidencia-se diferenciação entre as
funções do sacerdote e do terapeuta, bem como o uso de substâncias medicinais
para a cura de enfermidades. Alguns sinais de referência à acupuntura surgem
também neste período, assim como registros de diagnose através das noções de
calor e frio, escuridão ou claridade, relacionadas a teoria YĪN -YÁNG .
4
Utilizamos o termo paradigma com o mesmo sentido conferido por Unschuld (1985), autor
do modelo.
14
Ainda neste período surgem os chamados “filósofos” que influenciam mudanças
nas crenças e valores sociais, incluindo a medicina. KǑNG FŪ ZǏ , nome
latinizado como confuncius, influenciou a medicina com as concepções de
moderação, que se num sentido restrito relacionava-se à higiene e moderação
alimentar, principalmente em relação à influência negativa que a falta de preparo dos
alimentos e do consumo de álcool poderiam ter sobre a saúde. Num sentido mais
amplo a moderação era uma forma de evidenciar a relação entre a adequação dos
atos individuais às normas sociais e a saúde. A moderação e o comedimento
aplicavam-se, por exemplo, à regularidade no sono e no trabalho, que se
desrespeitadas poderiam provocar doenças.
LǍO ZǏ , mesmo que não tenha existido de fato, teve seu nome vinculado
ao proto-Daoísmo, com a compilação do DÀO DÉ JĪNG , onde estão
explicitadas as concepções que irão formar o corpo teórico do próximo paradigma,
como DÀO , DÉ , WÚ WÉI e YĪN -YÁNG .
Ainda num período anterior a sistematização do novo paradigma, os textos de
MǍ WÁNG DŪI mostram uma primeira elaboração da teoria dos meridianos
(JĪNG MÀI ), inclusive como uma forma de explicar a dinâmica vital saudável e
enferma, do uso da moxabustão, e de fármacos. Este conjunto de textos enfocava
também as diversas práticas de YǍNG SHĒNG , nutrir a vitalidade, e ainda
continha uma sessão dedicada às práticas de exorcismo, podendo ser visto como
um texto representativo de um período de transição paradigmática.
Finalmente na dinastia HÀN , as novas concepções que vinham se
acumulando foram sistematizadas num novo paradigma e compiladas em seus dois
cânones fundamentais, HUÁNG DÌ NÈI JING
, O Livro do Imperador
Amarelo e o NAN JING , O Clássico das Dificuldades. Denominado por
Unschuld (1985) de paradigma de correspondências sistemáticas, integra todas as
concepções prévias num modelo coerente, onde a teoria dos meridianos (JĪNG MÀI
) e dos órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ) constituem o núcleo das dimensões
da morfologia e da dinâmica vital, e a teoria dos fatores patogênicos passa a ser a
principal forma de explicar o adoecimento na dimensão da doutrina médica,
substituindo as explicações do paradigma anterior baseadas na relação com os
antepassados e com ataques de demônios. Neste novo modelo os fatores
patogênicos foram divididos em externos, internos, e nem externos nem internos. Os
externos seriam os fatores climáticos, e mantinham ainda semelhanças com as
15
concepções de ventos malignos que invadem o corpo do final do paradigma anterior,
mas agora associados às qualidades dos fatores climáticos e relacionados aos
ZÀNG FǓ , órgãos e vísceras. Os internos seriam as emoções, que em
determinadas circunstâncias poderiam atacar os ZÀNG FǓ . E, por último, os
fatores intermediários se referiam aos hábitos alimentares e comportamentais, bem
como a fatores como acidentes e ataques de animais. Deve-se salientar que a
gênese das enfermidades era pensada como a interação entre a capacidade
adaptativa do ser individual com a natureza, sendo esta integração a base das
concepções cosmológicas do modelo, que tem o homem e o cosmos como um
conjunto integrado através de uma força vital única denominada QÌ . É neste
período de formação da Medicina Chinesa que a concepção de QÌ se tornou um
dos fundamentos do paradigma, assumindo a função de uma força concectiva de
todos os sistemas, internos e externos, daí o nome “correspondências sistemáticas”.
A correspondências entre os sistemas ocorreria através de suas semelhanças
qualitativas, conforme as leis do modelo WǓ XÍNG , cinco fases, que explica as
diferenciações do QÌ em sua constante alternância entre as polaridades YĪN e
YÁNG . Segundo este modelo, sistemas que estiverem na mesma fase
responderão a estímulos feitos em qualquer ponto da fase. Este pensamento resulta
na associação de elementos de qualidades semelhantes, tais como as
características quentes de XĪN , o coração com a estação do verão, e as
qualidades expansivas da emoção alegria, todos associados à fase fogo (HǓO ).
Barsted (2003, p.28) observa que o funcionamento deste modelo fundamenta-se
em uma concepção que não está explícita nos clássicos da medicina, e portanto,
não é considerada por Unschuld (1985). Analisa em sua obra os textos Daoístas de
HUÁI NÁN ZǏ , em busca deste elemento primário da doutrina. GǍN YÌNG
, estímulo ressonância, seria a concepção que explica as correspondências dos
sistemas ao propor que fenômenos da mesma qualidade partilhem o mesmo QÌ , e
portanto afetem-se mutuamente.
Pregadio (2003, p. 56) confirma estas percepções sobre a centralidade da noção
de GǍN YÌNG , como vemos no texto a seguir:
“O cosmos, o ser humano, a sociedade e o ritual são
relacionados por analogia uns aos outros, de forma que um evento ou
ação que ocorra em qualquer um destes domínios poderá ser
relevante nos outros. Isto é determinado pelo princípio da ressonância,
16
GǍN YÌNG , que traduzido literalmente seria o “impulso e a
resposta”, pelos quais as coisas pertencentes à mesma classe ou
categoria (LEI ) se influenciam. O ritual por exemplo, reestabelece a
conexão original entre os seres humanos e os deuses, e um Homem
Real (ZHĒN RÉN ) ou um Santo (SHÈNG RÉN ) beneficiam
toda comunidade humana onde vivem por seu alinhamento com as
forças que regulam o cosmos. Por outro lado, um soberano que ignore
os presságios dos céus traz calamidades e distúrbios sociais.”
Pregadio (2003, p.406) considera o HUÁI NÁN ZǏ como o texto que
mostra explicitamente as relações entre as noções cosmológicas do YĪN -YÁNG
, das WǓ XÍNG , cinco fases, e de GǍN YÌNG , estímulo ressonância,
sendo a última essencial para compreender o pensamento analógico que integra
todos os níveis do cosmos
.
Assim, ao final da dinastia HÀN , o novo paradigma já estava sistematizado e
consolidado, tornando-se a medicina hegemônica. O paradigma anterior
permaneceu sendo praticado, mas de forma subordinada como um aspecto
secundário dentro do campo médico, que agora já se definia diferenciado da religião,
mas com uma ampla intersecção. Assim, as práticas dos rituais para os
antepassados, por exemplo, parecem ter ficado no campo religioso, enquanto o
exorcismo era praticado em ambos
5
.
Denominamos a medicina estruturada neste período de Medicina Clássica
Chinesa, em contraposição a Medicina Tradicional Chinesa, que se consolidou após
a revolução comunista na República Popular da China. Tendo se estruturado na
dinastia HÀN , a Medicina Clássica permaneceu sem rupturas paradigmáticas
significativas até a formação da Medicina Tradicional Chinesa. Durante este período
de aproximadamente 17 séculos, ocorreu, segundo Unschuld (1985) e Birch (2002),
o desenvolvimento sistemático do paradigma clássico. Desenvolvia-se o mapa de
pontos de acupuntura com a inclusão de novos pontos e a elaboração de suas
funções
6
. Métodos de tratamento com acupuntura, moxabustão e ervas, e o
desenvolvimento de diversas escolas, enfatizando diferentes aspectos da prática
5
Os textos médicos de MǍ WÁNG DŪI trazem o exorcismo como um aspecto da
terapêutica, e o famoso médico SŪN SĪ MIǍO da dinastia SUÏ trabalha a noção
dos “13 pontos-fantasma”, pontos de acupuntura utilizados para prática do exorcismo
(Johnson, 2006).
6
Os textos de MǍ WÁNG DŪI descreviam os JĪNG MÀI , canais e colaterais,
mas não faziam qualquer alusão à noção de ponto de acupuntura. Interpreta-se isto como
evidência de um processo de desenvolvimento.
17
médica. Por exemplo, na dinastia SÒNG surgiu a “escola do aquecedor médio”
que pregava a primazia do tratamento sobre o Baço (PÍ ) e o estômago (WÈI ),
por considerá-los fontes de diversas enfermidades. Mais tarde, na dinastia MÍNG ,
diante de um surto epidêmico os preceitos da escola do aquecedor médio não se
mostraram suficientemente eficazes, tendo surgido outras cujas práticas centravam-
se no expurgo de fatores patogênicos, resultando num desenvolvimento deste
aspecto do corpo de saberes. Ainda durante este longo período a Medicina Clássica
Chinesa foi exportada para outros países asiáticos como o Japão, a Coréia e o
Vietnam, onde mais escolas se desenvolveram com outras especificidades.
O Declínio da Medicina Clássica se iniciou na dinastia QĪNG . Já sob influência
da cultura ocidental em expansão, os valores da cultura chinesa foram lentamente
sendo transformados pelos valores ocidentais. O final desta dinastia representou
também o fim do império e um período de aceleração no processo de modernização
da nação. O campo da medicina esteve em evidência durante este processo, pois, a
partir de 1911 a ciência ocidental passou a ser valorizada junto com todo o processo
de modernização. Por sua vez a Medicina Clássica passou a ser considerada por
dirigentes da nação como um conjunto de crenças supersticiosas (MÍ XÌN ),
chegando a ser banida a partir de 1927 no governo de JIǍNG JIÈ SHÍ
(Chiang Kai-shek) (Fruehauf, 1999; Barsted, 2003; Hsu, 1999)
A reconstrução da Medicina Chinesa teve início após a revolução comunista de
1949. Tendo recebido suporte de MÁO ZÉ DŌNG por motivos de saúde
coletiva, econômicos e políticos, teve representatividade no processo de construção
da República Popular de China, uma vez que seus dirigentes tinham como objetivo
resgatar parte da cultura tradicional criando uma síntese com a ciência e os valores
modernos. A Medicina que nasceu desta proposta de síntese foi denominada
Medicina Tradicional Chinesa. De acordo com Hsu (1999, p. 7) esta medicina é
referida por diversos termos tais como: “tradicional”; “modernizada”; “científica”;
“sistemática” e “padronizada”, que denotam de forma adequada seus valores
estruturantes, elaborados por Barsted (2003, p.11)
7
de forma mais minuciosa na
citação a seguir:
A escola “Traditional Chinese Medicine” apresenta, nas principais
obras traduzidas para línguas européias, fortes traços positivistas e
funcionalistas, marcados, entre outras coisas, por: (a) uma agregação
7
O autor preferiu não traduzir o termo “Traditional Chinese Medicine” do inglês, cuja
tradução seria “Medicina Tradicional Chinesa.”
18
ahistórica de diferentes conceitos e práticas de medicina chinesa; (b)
uma implícita preocupação com a lógica e com os critérios de
cientificidade ocidentais; (c) uma exclusão das categorias e das formas
de pensamento dos clássicos filosóficos que fundamentam a medicina
clássica chinesa; (d) a negação de vários conceitos básicos da
medicina clássica chinesa que a escola “Traditional Chinese Medicine”
atribui ao misticismo e (e) uma tendência à materialização, à
coisificação da acupuntura, p. ex. atribuir a ação da acupuntura ao
sistema nervoso e denominar certas categorias fundamentais
abstratas da medicina chinesa de “substância vitais”.
Após o movimento de construção de uma medicina parcialmente fundamentada
em concepções clássicas, e de sua instalação, em conjunto com a Medicina
Ocidental Contemporânea como as medicinas de Estado da República Popular da
China, a escola Medicina Tradicional Chinesa tornou-se hegemônica dentro do
campo da Medicina Chinesa. Como uma de suas características é a padronização,
tende suprimir a diversidade. De acordo com Fruehauf (1999, p.6), esta escola
monopolizou a prática da Medicina Chinesa na China continental e se tornou modelo
para a expansão desta Medicina no mundo. Uma breve observação na página
eletrônica de um dos grandes centros contemporâneos de produção de saberes em
Medicina Chinesa
8
evidencia o investimento em preparar uma Medicina Chinesa
“padronizada para exportação”, o que acaba contribuindo para a construção da
imagem de um campo de saberes homogêneo.
Como outra de suas características é a cientificização, tende a excluir ou
ressignificar noções fundamentais ao corpo de saberes da Medicina Clássica, tais
como SHÉN , termo que era usualmente traduzido por “espírito”, e passou a ser
quase identificado com a “mente” ou atividades mentais nas escolas de Medicina
Tradicional Chinesa. Este aspecto da ressignificação dos termos clássicos será
importante na construção deste trabalho, conforme veremos adiante. A seguir
apresentamos o desenvolvimento da Medicina Chinesa no ocidente contemporâneo.
8
Tais como Shanghai University of Traditional Chinese Medicine e Nanjing University of
Traditional Chinese Medicine, que produziram um conjunto de referências bibliográficas com
objetivo de padronizar a “internacionalização da Medicina Tradicional Chinesa (MTC) no
mundo: http://www.tcmtreatment.net/images/bookstore/s15.htm
, acessado em 07/06/2005.
19
I.3. A Medicina Chinesa no Ocidente Contemporâneo
A Aculturação da Medicina Chinesa no Ocidente é um processo em
desenvolvimento, iniciado há aproximadamente trinta anos, e aparentemente com
um longo percurso futuro. A co-existência de distintos sistemas médicos parece ter
sido comum em muitas civilizações, inclusive no próprio ocidente antes da
modernidade
9
. Porém, durante a modernidade, assistimos ao surgimento de um
estranho tipo de monopólio, com o nascimento de um novo sistema médico
apresentando características de expansão e dominação cultural congruentes com o
capitalismo, modelo civilizatório do ocidente moderno. A biomedicina, termo
atribuído a este sistema pelos pensadores das ciências sociais aplicadas à saúde,
construiu a identidade social de única medicina verdadeira, sustentando-a sem
maiores problemas desde o final do século XVIII até o final da década de 60 do
século XX
10
. (Camargo Jr. 2003; Luz, 1996; Birch, 2002)
Neste momento, um conjunto de transformações sociais de abrangência
mundial trouxe consigo o fim da modernidade. Os movimentos e revoluções sociais
do fim da década de 60 não alcançaram a totalidade dos objetivos pretendidos, mas,
contribuíram significativamente para a quebra do monopólio da biomedicina no
campo da saúde. Desde então, testemunhamos o re-surgimento de diversas culturas
de saúde e o crescimento do uso de novas práticas terapêuticas. Denominadas
Alternativas, Complementares ou Holísticas, estas práticas ganharam progressivo
espaço na sociedade civil e também em instituições e sistemas locais de saúde.
É possível caracterizar três passos desta retomada da pluralidade. Durante o
final dos anos sessenta, e toda a década de setenta do século passado,
presenciamos movimentos de contestação e ataques às estruturas sociais vigentes,
concomitantemente à “importação” de culturas alternativas. O ocidente foi invadido
por práticas artísticas, religiosas e terapêuticas das mais diversas culturas, que
trouxeram consigo diferentes visões de mundo e da humanidade
11.
O segundo passo, mais intenso durante a década de oitenta, caracterizou-se
pelo processo de mercantilização das práticas contraculturais. Neste, houve um
desvio das diretrizes originais, onde ao invés de destruir o capitalismo, a ideologia
contracultural foi transformada pelo mesmo em mais um produto de mercado. O
campo das novas práticas terapêuticas e outros que compunham o cenário
9
Ver Bates (2000).
10
Sobre a institucionalização da Biomedicina ver Camargo Jr. (2003) e Luz (1996). Sobre a
aculturação da Medicina Chinesa, Birch (2002).
11
Para maiores detalhes ver Campbell (1997), Luz (1997) e Souza (2004).
20
contracultural foram adaptados à cultura capitalista hegemônica. Apesar de ainda
hoje veicular e difundir valores anti-capitalistas, insere-se no sistema sob suas
regras, o que se manifesta numa produção contínua, prolífica e ininterrupta de
produtos de saúde em competição no mercado.
O terceiro passo é uma extensão prevista do segundo. Uma vez que as
práticas de saúde não mais participam do movimento de formação de uma
“sociedade alternativa”, elas se submetem aos instrumentos de regulação social e
de mercado. A institucionalização dos saberes e práticas “contraculturais” alcança o
nível das corporações, associações, conselhos e legislações profissionais, todos em
busca do seu espaço na sociedade, que no caso das práticas de saúde, incluem a
demanda por reconhecimento ou até inserção nos sistemas nacionais de saúde.
Esta disputa de campo, no sentido do conceito utilizado por Bourdieu (1994),
resultou em distintas configurações de possibilidades e proibições nos países
ocidentais, no que diz respeito à formação e atuação destes “novos profissionais de
saúde”. Dentre a diversidade de novas práticas, é possível notar que algumas foram
mais incorporadas às culturas ocidentais, sendo também objeto de disputa por
corporações profissionais. Neste aspecto merece destaque a Racionalidade Médica
Chinesa, através de uma de suas práticas terapêuticas mais difundidas, a
acupuntura.
Tendo sido uma prática pioneira e representativa das transformações históricas
supracitadas, a acupuntura estabeleceu fortes raízes no mundo ocidental. Além disto,
a atual ascensão da República Popular da China no cenário mundial parece
alimentar ainda mais o desenvolvimento das práticas de saúde da Racionalidade
Médica Chinesa em escala mundial, tendo a escola Medicina Tradicional Chinesa
como modelo de padronização.
21
I.4. O Cenário Atual da Pesquisa em Medicina Chinesa
O processo de “importação” de um sistema médico não aconteceu sem
conflitos. Pelo contrário, ao olharmos a história da contracultura parece que as
culturas importadas serviram como armas em um processo conflituoso de
transformação das sociedades ocidentais.
A construção do campo da Medicina Chinesa no ocidente ocorreu de forma
singular em cada nação, refletindo as distintas soluções que cada uma formulou
para temas conflituosos comuns. Destacamos como exemplo o estudo realizado por
Nascimento (1997) sobre a construção do campo da acupuntura no Brasil, pois
acreditamos que contenha os elementos centrais do conflito, que seriam: 1) Um
momento inicial de negação da Medicina Chinesa como um instrumento eficaz de
intervenção em saúde, por parte das instituições hegemônicas (Estado e Instituições
de saúde), contra a pressão exercida pelo crescimento de sua demanda pela
sociedade civil; 2) Um segundo momento de aceitação da eficácia de intervenção
conduzindo a conflitos inter e intra categorias profissionais pelo direito ao exercício
da prática; 3) O processo de institucionalização de produtos e serviços de saúde, do
ensino e formação profissional, e de associações e conselhos de regulação do
exercício da profissão.
Este último passo resultou em distintas configurações institucionais
dependendo dos diversos poderes dos atores e instituições envolvidos tais como: as
associações e conselhos profissionais; as características das leis trabalhistas e
educacionais; do sistema nacional de saúde; da história prévia da imigração de
orientais; das instituições de pesquisa, construção e legitimação do conhecimento,
etc... É no interior deste espaço de disputas que se torna relevante uma análise
sobre as formas de legitimação do conhecimento no campo e o papel exercido pela
pesquisa científica.
Segundo Patel (1987)
12
, em artigo intitulado: Problemas na avaliação de
medicinas alternativas, a aceitação das chamadas “medicinas alternativas
13
” pelas
instituições de saúde hegemônicas depende sobretudo do resultado de sua
avaliação pelos critérios científicos. Na primeira década deste século, autores como
Birch (2003)
14
e Lewith (2003)
15
consideram que o campo da acupuntura envolveu-
12
Patel, M.S. – Institut Universitaire de Médecine Sociale et Préventive, Lausanne,
Switzerland.
13
Este termo denota todos os sistemas médicos e práticas terapêuticas não biomédicas.
14
Acupunturista, Ph.D., consultor da Fundação para Estudos de Medicinas do Leste Asiático,
Amsterdam, Holanda.
22
se apenas perifericamente com a ciência no ocidente, sendo necessário um maior
empenho nas pesquisas para que se torne uma parte integrada do sistema de saúde
hegemônico. (Birch, 2003 a, p.29). Segundo os autores, estas pesquisas devem ser
capazes de “discriminar dogmas de conhecimentos verdadeiros”, a fim de “melhorar
a eficácia dos tratamentos e os cuidados aos pacientes” (Lewith, 2003, p.82), porém,
consideram insatisfatórias as pesquisas realizadas até o momento, e salientam que
a pesquisa em Medicina Chinesa é um desafio metodológico. (Birch, 2003 b, p.207).
A partir desta avaliação Birch (2003 a) sugere diversos tipos de pesquisa que
considera úteis ao campo, incluindo propostas de desenho de projetos,
colaboradores e financiamento necessários. Reproduzimos abaixo apenas os tipos:
Tabela 2: Classificação das Pesquisas
1 Estudos Gerais
1.1. Sobre a natureza da prática
(Estudos da literatura)
1.2. Demográficos (Surveys)
1.3. Resultados Clínicos
1.4. Efeitos adversos
2. Estudos Especializados
2.1. Confiabilidade e validade dos
diagnósticos e tratamentos
2.2. Desenvolvimento de ferramentas para
avaliar resultados
3. Testes Clínicos Controlados
3.1. Em Serviços de Saúde (Pragmático)
3.2. Econômicos (Pragmático)
3.3. Pesquisas de eficácia comparada
(Pragmático)
3.4. Estudos com controle de grupo
placebo para examinar efeitos
específicos (Explicativo)
4. Estudos de Laboratório
4.1. Estudos de mecanismo de ação (em
animais ou humanos)
4.2. Explorações da teoria tradicional (e.g.
Mensuração de pontos e meridianos)
A tipologia de Birch (2003 a) é um ponto de partida para a análise de alguns
casos exemplares a partir dos quais formulamos algumas questões. O primeiro,
apresentado em Kaptchuck (2000), é um teste clínico controlado de eficácia
comparada. (Item 3.3., tabela acima), apresentado no capítulo intitulado: “O encontro
científico com as medicinas do leste asiático: eficácia e eventos adversos”.
15
Pesquisador Senior e Consultor Médico do Royal South Hants Hospital, Southampton,
Grã-Bretanha.
23
“o mais sofisticado estudo (científico), até o momento, capaz de
respeitar totalmente o diagnóstico e a terapêutica da Medicina Chinesa,
e ainda utilizar um estrito e aceito protocolo metodológico duplo-cego foi
realizado em Sydney. Um grupo de 116 pacientes com “síndrome do
cólon irritável” foi aleatoriamente dividido em três grupos: a) um
tratamento placebo; b) Uma formulação herbácea padronizada da
Medicina Chinesa (MC) e c) uma prescrição individualizada de ervas,
com os componentes selecionados por um herbalista tradicional chinês.
A fórmula padronizada continha 20 ingredientes; as composições
individualizadas consistiam de ervas escolhidas de um total de 81 tipos,
a fim de ajustar-se ao padrão único de desarmonia de cada paciente. A
fim de reforçar o duplo-cego, ao invés de ter sido apresentado um
placebo com cheiro e gosto semelhante às fórmulas herbais, todos os
pacientes, depois de consultarem um herbalista chinês, que ignorava se
os pacientes iriam receber tratamento real ou falso, eram requisitados a
preencher um questionário e aguardar trinta minutos para o preparo de
suas ervas. O tempo de espera foi utilizado para evitar que os pacientes
pudessem identificar se estavam recebendo o placebo, a formula
padronizada, ou a individualizada, que levam tempo para serem
preparadas. Comparado com o grupo placebo, os pacientes nos grupos
de tratamentos ativos obtiveram melhora significativa em todas as
medidas de resultado. Fórmulas padronizadas e individualizadas foram
igualmente efetivas até o final da décima-sexta semana de tratamento.
Após a conclusão do tratamento, os pacientes foram observados durante
quatorze semanas. Ao final deste período, apenas os pacientes que
receberam fórmulas individualizadas mantiveram as melhoras obtidas.”
(Kaptchuck, 2000, p.369)
Alguns tópicos deste exemplo merecem comentários. Primeiro, o autor inicia o
texto enunciando ser um teste “capaz de respeitar totalmente a Medicina Chinesa”.
Esta afirmação merece atenção, pois, em primeiro lugar, o critério de seleção do
grupo inicial foi classificar pessoas através de uma categoria de “doença” exclusiva
da racionalidade da biomedicina (síndrome do cólon irritável). Caso expuséssemos o
mesmo grupo de pessoas em primeiro lugar ao herbalista chinês, que as teria
diagnosticado segundo a Medicina Clássica Chinesa, talvez ele não observasse
sinais comuns suficientes que pudessem enquadrar as 116 pessoas em um mesmo
grupo. Em segundo lugar, não está claro na exposição o critério utilizado para
24
mensuração dos resultados, mas podemos imaginar que o desaparecimento dos
sintomas e sinais que definem “síndrome do cólon irritável” tenha sido o critério
escolhido.
O segundo estudo exemplar, dirigido por Cho (2001) teve como objetivo a
investigação das repercussões da inserção de agulhas de acupuntura no plano
fisiológico (Biomédico). Considerado inovador por ter evidenciado a especificidade
de ação dos pontos de acupuntura, é tido como um exemplo bem sucedido de
“interdisciplinaridade” (Kim, 2000), por ter construído resultados positivos para todos
os grupos envolvidos: os acupunturistas, os neurologistas e os especialistas em
imagens (ressonância magnética). O Modelo esquemático do estudo foi o seguinte:
1- Selecionar pontos de acupuntura que, segundo os textos clássicos, teriam
efeitos sobre os olhos;
2- Estimular o ponto em um paciente, capturando imagens da atividade
cerebral durante o processo;
3- Estimular um “ponto falso” de acupuntura e capturar as imagens da
atividade cerebral;
4- Estimular a visão do paciente através de estímulos luminosos e capturar a
imagem da atividade cerebral;
5- Comparar as imagens.
O resultado obtido foi o seguinte:
a) O estímulo do ponto de acupuntura clássico provocou atividade, na área
cerebral referente as funções da visão, com intensidade semelhante ao estímulo
luminoso;
b) O estímulo do “ponto falso” não provocou atividades no cérebro;
Este conjunto de informações levou os pesquisadores a concluírem que pontos
de acupuntura podem ter ações específicas. Este estudo seria um exemplo do item
4.2 da classificação de Birch (2003 a), um estudo de laboratório, explorando as
teorias tradicionais.
Com estes dois exemplos em mãos, permitimo-nos alguns comentários a partir
de uma questão básica: Qual é a origem da necessidade de pesquisa em
acupuntura? Esta pergunta pode ter uma resposta imediata a partir da perspectiva
das ciências duras, e mesmo das instituições e sistemas de saúde, para quem as
25
questões de eficácia, terapêutica e econômica, são de importância primária.
McPherson(2000)
16
capturou com precisão este tópico:
“Durante as três últimas décadas a história da pesquisa em
acupuntura no ocidente tem sido dominada pela necessidade de
determinação da eficácia da acupuntura para tratar um grupo de
doenças e condições, através do Ensaio Clínico Randômico
Controlado (ECRC).” (McPherson, 2000, p.97)
Esta postura é bastante semelhante à proposta oficial da República Popular da
China na criação da Medicina Tradicional Chinesa. A passagem a seguir demonstra
que a importância conferida à avaliação científica continua sendo um dos
fundamentos do desenvolvimento desta medicina:
“Em 1994-95 o ministro da saúde publicou diretrizes que
buscavam padronizar o processo de pesquisa sobre o efeito do uso de
medicamentos patenteados. Em conjunto com a instituição chinesa
reguladora de drogas e alimentos, foi decretado que a pesquisa e as
patentes de fórmulas de Medicina Chinesa devem ser conduzidas
pelos padrões da pesquisa farmacêutica ocidental. Isto significa dizer,
principalmente, que o sistema tradicional de diagnose diferencial
(bianzheng) teria que ser completamente substituído pela diagnose
alopática (bianbing). De acordo com estas diretrizes, pesquisas sobre
uma fórmula constitucional de múltiplos propósitos como o “Pó para as
quatro extremidades frígidas (Sini San)”, por exemplo, deverá ser
conduzida e anunciada no contexto de uma única categoria
diagnóstica, i.e. “colecistite”. A pesquisa sobre a racionalidade da
teoria tradicional dos medicamentos são reduzidas à 10% da proposta,
enquanto a pesquisa orientada à doenças ocupa 70%. “ (Freuhauf,
1999, p. 10)
16
McPherson, H. Ph.D., Acupunturista, Diretor de pesquisa da Fundação para Medicina
Tradicional Chinesa, Reino Unido.
26
I.5. Crítica às Diretrizes de Pesquisa
De acordo com o exposto acima, parece que a Medicina Chinesa na atualidade
busca na ciência um caminho para legitimação. Porém, ao adequar-se a forma
científica de produção de conhecimento, pretere a pesquisa sobre os fundamentos
de sua racionalidade. Conforme observamos nos temas de pesquisa propostos por
Birch (2003 a), apenas um entre 12 itens interroga a “natureza da prática”, ou seja,
as concepções que fundamentam a teoria clássica. Vemos no comentário de
Fruehauf (1999, p.10) a seguir que esta tendência também ocorre na China
continental.
“Na opinião de muitos de meus professores orientados pelos
clássicos, e na minha, estamos vendo uma severa erosão dos valores
tradicionais, pelos seguintes motivos: a) devido a prioridades de
mercado, nenhum dos numerosos jornais de Medicina Tradicional
Chinesa esforça-se para publicar sobre os fundamentos filosóficos da
Medicina Chinesa. Ainda, o governo não provê recursos financeiros
para a pesquisa sobre os textos tradicionais, que eram um tópico de
especialização até 1988, e não são permitidos projetos de pós-
graduação que envolvam somente a teoria da Medicina Chinesa. “
Deste modo, salientamos a existência de uma “agenda de pesquisa”, liderada
e desenvolvida por uma parte do campo da Racionalidade Médica Chinesa, mais
próxima às instituições hegemônicas de produção de saberes Ocidentais e Chinesas,
cujo princípio diretor está baseado na tentativa de responder questões de eficácia
terapêutica relativas ao tratamento de “doenças” (McPherson, 2000; Sherman,
2004)
17
, ou de “comprovar” a possibilidade de “funcionamento” da acupuntura
através de categorias biomédicas (Cho, 2001).
Esta agenda parece não despertar interesse de outra parte do campo,
representada por terapeutas cuja prioridade é a atividade clínica, baseando o
processo de avaliação de sua intervenção terapêutica em interpretação de “sinais”
18
.
De fato, pode-se formular uma questão aos estudos exemplificados acima: Qual é
sua contribuição para a atividade clínica?
Esta questão parece estar respondida de forma implícita. A imposição dos
critérios de validação de conhecimento da biomedicina sobre a Medicina Clássica
17
Sherman, K,J. Ph.D., Departamento de Epidemiologia, Universidade de Washington,
Estados Unidos.
18
Ginzburg (1992) chama esta qualidade operativa de “paradigma indiciário”
27
Chinesa traz consigo um conjunto de conseqüências. A primeira é a classificação de
doenças como forma prioritária de diagnose; a segunda é a criação de terapêuticas
padronizadas, com fármacos e pontos de acupuntura pré-selecionados e fixos para
cada doença; e a terceira é a avaliação da terapêutica baseada na mensuração
objetiva de dados, usualmente colhidos por instrumentos de alta tecnologia (ex.
variação da carga viral). Segundo Fruehauf (1999, p. 13), este conjunto se opõe à
forma clássica, onde o terapeuta baseia-se no sistema diagnóstico clássico, de
determinação de padrões de desarmonia através da interpretação de sinais colhidos
na língua e no pulso (entre outros), prescreve tratamentos singularizados para cada
paciente e utiliza uma ampla variedade de práticas terapêuticas, tais como fármacos,
acupuntura, massagens, exercícios de circulação da força vital (QÌ GŌNG ),
dietética, práticas de emissão de QÌ , força vital do terapeuta para o paciente,
entre outras. A prescrição destas práticas é bastante flexível, variando com a
evolução do quadro de desarmonia, ou ainda em alguns sistemas de acupuntura, a
utilização dos pontos varia com a hora de aplicação em relação ao padrão de
enfermidade. Ainda, a avaliação da terapêutica é baseada na composição das
sensações de bem-estar do paciente com a variação dos sinais clínicos supracitados.
Desta forma, compreendemos que a resposta implícita à questão da
contribuição poderia ser formulada da seguinte maneira: o modelo biomédico é o
mais adequado para a criação de um corpo de saberes e práticas mais seguro
e eficaz, pois seria capaz de dar validação científica aos saberes, em
contraposição ao modelo clássico, que apresenta diversas dificuldades a esta
validação. Cabe salientar que para o terapeuta de orientação clássica, que
fundamenta a avaliação de sua prática na comparação entre as sensações de bem-
estar do cliente com a variação dos sinais clínicos, tendo portanto um modelo
próprio de avaliação, a imposição dos critérios biomédicos não parece contribuir
para uma melhor condução do processo de diagnose, seleção e aplicação adequada
de estímulos terapêuticos. (fitoterápicos, acupuntura, alimentação ou massagens).
A centralização das pesquisas em torno da categoria “doença” traz consigo
alguns problemas fundamentais. Sua reificação anula a possibilidade de apreender
uma miríade de sinais que poderiam ser interpretados como “eficácia terapêutica”,
pois a Medicina Chinesa define saúde-doença em termos da harmonia ou
desarmonia das pessoas enquanto complexos singulares, e sustenta,
prioritariamente, um modelo de avaliação de promoção da saúde. Neste,
mudanças na “forma de ondas do pulso arterial”, no “padrão emocional”, e no “brilho
28
dos olhos” são sinais positivos da condução do processo terapêutico, ignorados pelo
modelo de pesquisa focado na categoria “doença”.
Existe um padrão convencional e hegemônico de avaliação que, ao definir-se
universal, ignora os padrões internos de avaliação da Medicina Clássica, podendo
induzir uma sobrevalorização de aspectos da terapêutica imediatamente
relacionados à cura das doenças, ao mesmo tempo sub-valorizando outras
transformações positivas provocadas pela ação terapêutica, podendo em última
instância incorrer no erro de desqualificar o potencial terapêutico de uma dada
Racionalidade Médica por apreender de forma enviesada seus objetos e objetivos.
“[...] para compreender de fato outra racionalidade médica, é
necessário aprender a pensar como um praticante dela, um “tornar-se
nativo” que evoca novamente o relato sobre a história de Qesalid, de
Lévy-Strauss (1975a). Sendo assim, é inadequado e impróprio supor que
critérios de avaliação de eficácia internos a uma racionalidade sejam
imediatamente aplicáveis a outras – por exemplo, tornar-se o ensaio
clínico randômico controlado como modelo universal de avaliação de
eficácia” (Camargo Jr., 2004)
Inserido neste contexto, o presente trabalho será elaborado na direção oposta
ao fluxo hegemônico de desenvolvimento da Medicina Chinesa contemporânea. A
obra é essencialmente sobre o antigo. É um instrumento para apreensão das
concepções fundamentais da Medicina Clássica, para compreensão de sua
racionalidade. É uma resposta ao convite de Fruehauf (1999) para que se evite a
morte do clássico, é uma re-afirmação da visão de Barsted (2003), sobre a
qualidade da terapêutica depender de uma adequada apreensão destas categorias.
Finalmente, é uma pesquisa sobre os temas que o governo da República Popular da
China recusou-se a promover nas últimas décadas.
Partimos do pressuposto que havia na Medicina Clássica um conjunto de
saberes e práticas de saúde que constituíam um modelo de prevenção e promoção,
além da mencionada face curativa. Assim sendo, a temática central deste trabalho é
a proposta terapêutica da Medicina Clássica, com ênfase nas práticas de prevenção
e promoção. Esta temática será restrita pelo conjunto de símbolos, sentidos,
representações, saberes, crenças, valores, papéis sociais e instituições envolvidos
na práxis dos terapeutas contemporâneos que priorizam a Medicina Clássica.
29
I.6. Projeto Racionalidades Médicas: O Espaço da Pesquisa no Brasil.
Não sendo um tema prioritário nem mesmo no interior do campo da Medicina
Chinesa encontrar espaço institucional para o desenvolvimento deste tipo de
pesquisa é tarefa árdua. Porém, no Brasil, existe um espaço inaugurado pela Lilnha
de Pesquisa Racionalidades Médicas e Práticas de Saúde, onde o tema é relevante.
O projeto, iniciado e organizado pela Professora Dra. Madel Luz junto ao Instituto de
Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro no início da década de
90, é pioneiro em pesquisas sobre medicinas comparadas. A categoria
Racionalidade Médica, de importância central ao projeto, é um constructo utilizado
para facilitar a comparação e apreensão de noções, sentidos e significados relativos
a cada sistema médico estudado.
Segundo Luz (2000, p.182):
“Ao estabelecermos como indicação necessária e suficiente
para estarmos em presença de uma racionalidade médica a
existência de cinco dimensões fundamentais (morfologia, dinâmica
vital, doutrina médica, sistema de diagnose e sistema de intervenção
terapêutica) optamos pelo estudo comparativo de sistemas médicos
altamente complexos, eliminando de nosso estudo uma série de
práticas conhecidas como “terapêuticas alternativas” [...] É
racionalidade médica, segundo nosso projeto, todo constructo lógica
e empiricamente estruturado das cinco dimensões mencionadas,
tendendo a constituir-se ou pretendendo constituir-se em sistema de
proposições “verdadeiras” verificáveis de acordo com procedimentos
racionais sistemáticos, (preferencialmente os da racionalidade
científica) e de intervenções eficazes em face do adoecimento
humano.”
Na primeira fase do projeto foram identificadas e pesquisadas quatro
Racionalidades Médicas: a Biomedicina, a Homeopatia, a Medicina Ayurvédica, e a
Medicina Chinesa. Ao final, construiu-se um quadro-resumo, que se tornou um
instrumento adequado para apresentação da categoria. Reproduzimos a seguir o
quadro apresentado em Luz (1996).
30
Tabela 3: Quadro-Resumo das Racionalidades Médicas
Racionalidades
Médicas
Medicina
Ocidental
Contemporânea
Medicina
Homeopática
Medicina
Tradicional Chinesa
Medicina Ayurvédica
Cosmologia
Física Newtoniana
(Clássica) –
Implícita
Cosmologia Ocidental
Tradicional
(Alquímica) e clássica
(Newtoniana) –
implícita
Cosmogonia Taoísta
(geração do
microcosmo a partir
do macrocosmo)
Cosmogonia Védica
(geração do microcosmo
a partir do macrocosmo)
Doutrina
Médica
Teoria da
causalidade da
doença e seu
combate
Teoria da energia ou
força vital e seu
desequilíbrio nos
sujeitos individuais
Teorias do Yin-Yang,
das cinco fases, e
seu equilíbrio
(harmonia) nos
sujeitos individuais
Teoria dos cinco
elementos e das
contituições humorais
nos sujeitos individuais
Morfologia
Morfologia dos
sistemas (macro e
micro orgâmico)
Organismo Material e
força vital animadora
Teoria dos canais e
colaterais; dos pontos
de acupuntura; dos
órgãos e visceras
Teoria da densidade dos
corpos; da constituição
dos tecidos vitais; dos
orgãos e dos sentidos
Fisiologia ou
Dinâmica Vital
Fisiopatologia e
fisiologia dos
sistemas
Fisiologia energética
implícita; Fisiologia
dos sitemas;
fisiopatologia do
medicamento e do
adoecimento
Fisiologia dos sorpos
vitais; dos Zang-Fu
Dinâmica Yin/Yan No
organismo e no
ambiente
Fisiologia energética
(Circulação do prana nos
diversos "corpos"
Equilíbrio dos Tridoshas
Sistema
Diagnóstico
Semiologia:
anamnese; exame
físico e exames
complementares
Semiologia:
anamnese do
desequilíbrio
individual. Diagnóstico
e remédio da
enfermidade
individual.
Semiologia:
anamnese do
desequilíbrio
Yin/Yang
Diagnóstico do
desequilíbrio dos
sujeitos
Semiologia: Anamnese
do desequilíbrio dos
"tridosha"
Sistema de observação
dos "oito pontos"
Diagnóstico do
desequilíbrio dos sujeitos
Sistema
Terapêutico
Medicamentos,
cirurgia, higiene
Medicamento, higiene
Higiene, exercícios
(artes, meditação)
Dietética; fitoterapia;
massagens
Acupuntura,
moxabustão
Dietética
Técnicas de eliminação e
purificação
Exercícios (Yoga,
meditação)
Massagens;
Fitoterapia (vegetais,
minerais e animais)
Construída no interior do arcabouço disciplinar das Ciências Sociais, a noção
de Racionalidade Médica opera uma leitura sócio-antropológica sobre sistemas
médicos, desnaturalizando categorias como “a doença”, profundamente reificada em
nossa cultura. É a partir deste distanciamento e da estranheza do comum que se
observa a existência de outros sistemas médicos, abrindo um imenso campo de
estudos. Desta forma, observa-se o contraste existente entre as explicações sobre:
1) A relação do homem com o universo – Cosmologia;
2) O estado de saúde e a origem da doença - Doutrina Médica;
31
3) A estrutura e o modo de funcionamento do ser humano - Morfologia e
Dinâmica Vital;
4) A forma de avaliar estados de saúde e doença - Sistema Diagnóstico;
5) A ação terapêutica.
32
I.7. Objeto, Objetivo e sua Abordagem
O método escolhido para construção de objetos de pesquisa segue a proposta
de Bourdieu (1994): selecionar temas relevantes no campo, e em seguida formular
questões dirigidas aos temas. Nossa questão principal seria: “Quais são as
concepções, valores e pressupostos que estruturam a proposta terapêutica da
Medicina Clássica?”, sendo nosso objetivo principal sua apreensão e análise.
O objeto é abordado a partir de referenciais teóricos das ciências sociais
aplicadas à saúde, para os quais a relativização cultural de formas de produção e
legitimação de saberes constitui um fundamento construído ao longo das últimas
décadas do século XX, definidos por autores como Santos (1987), de forma
generalizada, e Luz (1988) que focaliza as relações da produção de conhecimento
com o campo da saúde. A simples possibilidade de formular as questões acima
requer um posicionamento teórico afim.
“Os pressupostos metafísicos, os sistemas de crenças, os
juízos de valor não estão antes nem depois da explicação científica
da natureza ou da sociedade. São parte integrante desta mesma
explicação. A ciência moderna não é a única explicação possível da
realidade e não há sequer qualquer razão científica para considerar
melhor que as explicações alternativas da metafísica, da astrologia,
da religião, da arte ou da poesia. A razão por que privilegiamos hoje
uma forma de conhecimento assente na previsão e no controlo dos
fenômenos nada tem de científico. É um juízo de valor. A explicação
científica dos fenómenos é a auto-justificação da ciência enquanto
fenómeno central da nossa contemporaneidade. A ciência é, assim,
autobiográfica.” (Santos, 1987, p.52)
As análises de Santos (1995, 2000) sobre o “legado da modernidade”, o
caminho que elevou a ciência à única forma verdadeira de apreender a realidade,
superior a todas as outras (conhecimento-regulação) e, portanto, com poder de
“colonizá-las”, de legislar sobre elas marginalizando e liquidando saberes que não
possam ser reduzidos aos seus imperativos (conhecimento-emancipação), remetem
a formação de uma epistemologia de transição.
“A essa pretensão opõe-se uma concepção solidária do
conhecimento, feito da coexistência, do diálogo e da articulação
mútua. É esta segunda forma de conhecimento que deve ser
privilegiada no período de transição que estamos a viver. Longe de
33
ser um apelo a um “vale tudo” epistemológico, esta posição exige que
os diferentes modos de conhecimento sejam avaliados em função
dos contextos e situações em que são mobilizados e dos objectivos
daqueles que os mobilizam, sem subordinação a imperativos globais
de racionalidade que ignoram o caráter situado da produção e
apropriação de todas as formas de conhecimento e das suas
consequências para pessoas e lugares com uma singularidade que
lhes é conferida pela sua história.” (Nunes, 2003, p.62)
19
Em discurso semelhante, Camargo Jr. (2004) postula, a partir do interior do
campo da saúde, a noção de uma “epistemologia em processo”, que se diferencia
da filosofia da ciência por desvincular o “conhecimento válido” do “conhecimento
científico”, completando o conjunto de autores cujas obras nos conferem
fundamentos teóricos para elaboração de nossas questões.
Assim, este trabalho é um estudo sócio-filosófico, onde abordamos as
concepções e valores estruturantes da proposta terapêutica da Medicina Clássica a
partir do olhar desta epistemologia de transição, tendo a noção de Racionalidade
Médica como instrumento operacional de análise.
Incomoda-nos o tipo de reducionismo presente na “agenda de pesquisa
científica”, que pretere ou ignora uma considerável parcela o campo de saberes da
Medicina Chinesa. Parece-nos uma hipótese plausível supor que esta redução se
deve à dificuldade de “enquadrar” a doutrina médica da Medicina Clássica em algum
formato “válido” de produção de conhecimento. Seria uma parcela do campo de
difícil “colonização”, sendo melhor evitá-la do que aumentar o já considerável grau
de dificuldade de realização de pesquisas.
Desta forma, propomos a inserção das concepções fundamentais da Medicina
Clássica de volta na “agenda de pesquisa”. Esta inserção desdobra o objetivo
central em alguns objetivos secundários conforme apresentamos a seguir:
1) Objetivo central: Apreensão e análise das concepções, valores e pressupostos
que estruturam a proposta terapêutica da Medicina Clássica Chinesa.
2) Objetivos secundários:
a. Contextualização cultural da Medicina Clássica.
19
Nunes, J.A.., Sociólogo da Universidade de Coimbra, Portugal, interligado ao grupo de
Santos, B.S.
34
b. Análise do viés de valor, de possíveis créditos ou descréditos atribuídos à
Medicina Clássica pela imposição de formas de avaliação comuns à
biomedicina como um imperativo global.
c. Apreensão e análise das concepções, valores e pressupostos que
fundamentam os critérios nativos de avaliação da terapêutica na Medicina
Clássica.
d. Análise das elaborações contemporâneas sobre os saberes clássicos,
principalmente em questões de autoridade na produção do conhecimento.
Como no Projeto Racionalidades Médicas desenvolve-se pesquisas com
abordagens multidisciplinares ou transdisciplinares, seus resultados usualmente
geram contribuições para os diversos campos que se sobrepõem compondo o
campo do pesquisador. Acreditamos que as contribuições geradas pela obra
poderão ser notadas em três segmentos superpostos. Primeiro, o objetivo central do
trabalho gera contribuições para o campo específico da Medicina Chinesa. Em
segundo lugar, consideramos que o estudo de uma Racionalidade Médica que
desenvolveu no decorrer dos séculos um sistema terapêutico que enfatiza a
promoção da saúde constitui uma contribuição para o campo da Saúde Coletiva, que
atualmente valoriza tais concepções como fatores importantes para resolução dos
problemas de saúde mundiais. Em terceiro lugar há também uma pequena
contribuição para o campo das Ciências Sociais propriamente ditas, pois a
abordagem disciplinar envolve reflexões epistemológicas, inseridas no contexto de
elaboração de novas formas sociais de avaliação e validação de saberes, como
preconiza Santos (1987) através da categoria epistemologia de transição.
35
I.8. Questões Metodológicas de um Estudo Teórico sobre Tema Pouco
Explorado
A busca de um método, de um caminho satisfatório para abordagem do objeto,
constituiu um processo delicado do processo desta pesquisa, pois procuramos
exercer o maior grau possível de rigor metodológico em um campo pouco explorado
no ocidente, com pouca experiência acumulada em termos do uso de ferramentas
de pesquisa adequadas às suas especificidades e também, do acesso a fontes
documentais concernindo o objeto.
Cansiderando tais limitações, assumimos a análise de textos como forma
prioritária de acesso ao campo de investigação. Porém, os textos irão exercer papéis
distintos e serão procurados em lugares afins com suas funções, as quais
descrevemos no próximo tópico. Optamos por incluir também uma forma secundária
de acesso através de entrevistas em profundidade com atores do campo, cuja
utilidade também será descrita posteriormente.
Para compreensão de nossas opções metodológicas é necessário expor
algumas características do campo. Pensamos que ao analisar a noção de GǍN
YÌNG , ressonância, e mostrar sua importância na estruturação da dimensão
cosmológica da Medicina Clássica Chinesa, Barsted (2003) evidenciou um caso
particular de uma diversidade de noções igualmente relevantes para uma apreensão
mais completa desta dimensão, e para a compreensão de sua influência na
formação das outras dimensões da Racionalidade Médica.
Em geral estas noções não se encontram elaboradas na literatura médica strictu
sensu, mas sim em textos Daoístas ou Proto-Daoístas, basicamente porque o
sistema cosmológico no qual se fundamenta a Medicina Chinesa é uma construção
Daoísta. Desta forma assumimos o pressuposto da impossibilidade de efetuar uma
análise adequada das noções que estruturam a totalidade da proposta terapêutica
da Medicina em questão apenas nos textos médicos clássicos.
Cabe salientar que no contexto cultural de construção do modelo clássico,
situado na dinastia HÀN , incluindo parte do período final da dinastia ZHŌU , a
medicina e o sacerdócio eram funções ainda em processo de distinção. Portanto,
não é surpresa que os cânones religiosos contenham sessões inteiras dedicadas à
medicina, sendo que, foram justamente estas, as sessões rejeitadas no projeto de
construção da Medicina Tradicional Chinesa.
36
Portanto, uma questão fundamental na escolha dos textos foi determinar sua
fidedignidade quanto à definição e elaboração das noções fundamentais da
terapêutica da Medicina Clássica. Esta tarefa não foi simples, pois o autor não
dispõe das habilidades necessárias para fazer interpretações diretas de textos
clássicos chineses, portanto, trata-se na realidade da classificação da qualidade das
traduções ou interpretações dos clássicos de acordo com padrões propostos por
acadêmicos especializados
20
. Apresentamos a seguir uma lista destes textos:
I.8.1. Traduções ou Interpretações de Clássicos Daoístas
a) DÀO DÉ JĪNG
道 德 經
É um dos pilares do Daoísmo, considerado em consenso por acadêmicos do
campo como uma coletânea. LǍO ZǏ , seu suposto autor, teria sido apenas uma
figura mítica. De acordo com Kohn (1992), uma das edições fidedignas do texto foi
feita por WÁNG BÌ
王 弼 (226-249), membro de uma elite intelectual da dinastia
HÀN
, tratando-se de uma edição comentada. O mesmo texto recebeu um
segundo comentário de HÉ SHÀNG GŌNG
河 上 公, supostamente no século III
d.C., havendo ainda uma edição anterior de YÁN ZÙN
嚴 遵, no século I d.C.
Enfatizamos os comentários de WÁNG BÌ
王 弼 e HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公, pois
neles existem referências às práticas de saúde relacionadas às concepções do DÀO
DÉ JĪNG
道 德 經. Utilizamos as interpretações de Kohn (1992) e Chan (1991) sobre
estas versões do clássico como fontes fidedignas.
b) ZHÙANG ZǏ
壯 子
Outro texto fundamental para o Daoísmo, provavelmente foi compilado na corte
do príncipe Liu An no início da dinastia HÀN onde fez parte da coletânea Daoísta
intitulada HUAI NAN ZI (139 AC), o texto de ZHÙANG ZǏ
壯 子 é também
considerado uma coletânea, escrita em parte pelo próprio. Atualmente a versão
padrão do texto provém da edição comentada de GUŌ XIÀNG
郭 象 (252-312).
Utilizamos a intepretação de Kohn (1992) como fonte fidedigna de referência ao
texto, principalmente as partes que elaboram a cosmologia.
20
Neste aspecto foi de fundamental importância a disciplina intitulada: “Intensivo de
Daoísmo” cursada junto à Universidade de Boston em regime de doutorado sanduíche em
junho de 2007. A disciplina foi ministrada pela professora Kohn, L., eminente autoridade no
campo de estudos da religião Daoísta. De igual importância foram as sessões de co-
orientação conferidas a mim pela professora durante os meses de junho e julho de 2007. A
determinação dos padrões de qualidade dos textos decorreu essencialmente da transmissão
de conhecimento desta professora.
37
c) SHÉN XIĀN ZHUÀN
O texto intitulado “Tradições dos divinos imortais” é uma coletânea de biografias
dos seres intitulados XIĀN , os imortais. Este tipo de texto recebe o nome técnico
de hagiografia, que seria uma classe especial de biografia, com um caráter
exagerado ou ficcional sobre a vida de humanos “santificados”. O autor da coletânea
foi o Daoísta GÉ HÓNG (283-343 d.C.). Tendo sido um aristocrata pertencente
a uma família de influência política e religiosa, exerceu importante papel na reunião
e compilação dos mais importantes textos Daoístas de sua época, diversos deles
ligados a escola SHÀNG QĪNG , suprema claridade, criada em parte por seus
familiares.
A importância das hagiografias se deve ao fato de conterem descrições das
práticas dos XIĀN , em sua busca por longevidade e imortalidade. Em momento
algum julgamos as narrativas no que se refere ao resultado final das práticas, a
imortalidade. De fato, esta questão não é necessária. Analisamo-as como fontes de
informações sobre as práticas, as concepções e os valores que fundamentavam o
campo da saúde naquela época, tendo os XIĀN como representações do ideal de
saúde buscado pelos praticantes e terapeutas.
Utilizamos a tradução comentada de Campany (2002) como referencia.
d) DÀO ZÀNG
O DÀO ZÀNG é a maior coletânea de textos Daoístas existente. Houve na
China o hábito periódico de tentar coletar todos os textos Daoístas já escritos na
biblioteca imperial. As coletâneas mais antigas foram perdidas, porém, chegou até o
presente o cânone compilado pelas ordens de ZHÚ DÌ (1360-1424) um
imperador da dinastia MÍNG . De acordo com o índice de Komjathy (2002) o
cânone possui 1487 textos classificados em diversos assuntos que reproduzimos
parcialmente a seguir:
1) Filosofia
2) Adivinhação e Numerologia
3) Medicina e Farmacologia
4) Artes de nutrir a vitalidade (YǍNG SHĒNG )
5) Alquimia
6) História e Geografia Sagrada
38
7) Cosmogonia e Panteão
8) Mitologia e Hagiografia
9) Liturgia
10) Regras Doutrinais
Cada um destes temas é apresentado com subclassificações e dividido por
dinastias. A importância do DÀO ZÀNG para este trabalho reside
principalmente nas sessões de Filosofia, Medicina e Farmacologia, YǍNG SHĒNG
e Alquimia, essencialmente em dois aspectos. O primeiro, por evidenciar a
inseparabilidade dos campos da medicina e do Daoísmo através da existência de
uma sessão inteira dedicada à medicina e farmacologia. E o segundo, por ser
provavelmente a mais importante fonte documental sobre concepções fundamentais
do pensamento Daoísta no período clássico. Este aspecto seria importante para que
pudéssemos comparar estas concepções com as elaborações presentes na
literatura contemporânea do campo da Medicina Chinesa. Porém, de acordo com a
professora Kohn
21
, apenas cerca de 3% do cânone está traduzido de forma confiável,
impossibilitando a análise comparativa.
Ainda, o trabalho de uma equipe de professores liderados por Schipper (2004)
no chamado “Projeto Dao Zang”, resultou na produção de uma obra que contém um
resumo de cada um dos textos do cânone. Assim, há ao menos acesso ao título,
tema e objetos de cada texto, o que torna possível ao menos indicar possíveis
direções para pesquisas futuras em questões que permanecerem em aberto.
I.8.2. Traduções ou Interpretações de Clássicos da Medicina
a) HUÁNG DÌ NÈI JING SÙ WÈN e HUÁNG DÌ NÈI JING
LÍNG SHÚ (300 a 100 AC);
O livro do Imperador Amarelo pode ser considerado o cânone fundamental da
Medicina Clássica. Utilizamos como fontes a interpretação de Unschuld (2003a), por
ser o autor mais rigoroso em critérios de filologia. Porém, o autor não apresenta uma
tradução completa do cânone, mas apenas algumas passagens. Quando foi preciso
citar alguma parte do texto recorremos às obras de Larre (1995), que apresenta a
tradução completa dos capítulos 1 e 2 do SÙ WÈN , de vital importância por
abordarem diretamente os saberes de prevenção e promoção de saúde. Quanto aos
21
Informação recebida em sessão de orientação.
39
outros capítulos recorremos a Veith (1972), uma das primeiras traduções para
línguas ocidentais no contexto acadêmico das últimas décadas
22
.
b) NAN JING (100 AC a 100 DC)
O segundo cânone compilado na dinastia HÀN , compõe com o livro do
Imperador Amarelo o conjunto de textos fundamentais da Medicina Clássica.
Utilizamos a tradução de Unschuld (2003b) como referência.
c) SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG
O SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG
23
, o “Tratado de Ervas do
Fazendeiro Divino”, é um dos mais importantes textos de farmacologia da Medicina
Clássica. A compilação que chegou até o presente foi elaborada por TÁO HÓNG
JǏNG (456-536), um eminente sábio Daoísta, a partir de pedaços de textos
anteriores datados provavelmente da dinastia HÀN . O texto exerceu papel
fundamental na estruturação do presente trabalho, pois explicita a noção do uso de
substâncias para propósitos distintos além da cura de doenças, classificando as
possibilidades de ação terapêutica na Medicina Clássica.
Utilizamos a interpretação de Unschuld (1986) como referência primária, por
ser o interprete mais rigoroso. Porém, o autor não apresenta a tradução completa do
texto e como foi necessário citar partes específicas referentes às propriedades
terapêuticas das substâncias, recorremos à tradução de Yang (2005) como um texto
de apoio. Ainda, citamos também a tradução de Jarret (2000) um autor do campo da
Medicina Chinesa contemporânea sem vínculos com a forma acadêmica de
produção, cuja obra foi parcialmente inspirada pelo SHÉN NÓNG ,
apresentando interpretações relevantes sobre suas concepções.
d) MǍ WÁNG DŪI
MǍ WÁNG DŪI é o nome de um sítio arqueológico que guarda
diversos registros que pertenceram a MǍ WÁNG , o imperador cavalo. As
tumbas do imperador foram descobertas em 1972 e no seu interior foram achados
textos de diversos tipos, dentre eles uma coletânea de medicina, que foi então
denominada de “Textos Médicos de MǍ WÁNG DŪI . Estes textos foram
22
É importante salientar que o trabalho de Larre (1995) não é considerado uma tradução
com rigor filológico, por critérios estabelecidos por Unschuld, P. em comunicação pessoal.
Larre, C. é um autor com extensa publicação no campo da Medicina Chinesa, ligado ao
Instituto Ricci de Pesquisas, uma instituição Jesuíta de pesquisas sinológicas.
23
Utilizaremos a partir daqui o nome abreviado SHÉN NÓNG , para nos referirmos ao
SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG
40
aparentemente escritos entre os séculos III e II a.C., ou seja no período de transição
entre as dinastias ZHŌU , QÍN e HÀN , e portanto antes da sistematização
completa da Medicina Clássica. Sua estrutura e conteúdo evidenciam uma medicina
em transição com elementos clássicos e pré-clássicos misturados. Sua importância
para este trabalho reside na apresentação dos diversos tipos de saberes que
constituíam um conjunto integrado e coerente da prática médica daquela época.
Utilizamos a tradução e interpretação de Harper (1998) como referência.
I.8.3. Referências Genéricas em Sinologia por Autores de Ciências Humanas
Também utilizamos como referência autores cuja obra represente análises de
concepções ou temas específicos relevantes à compreensão das concepções de
saúde da Medicina Clássica. São tidos como estudos sinológicos genéricos, alguns
centrados em Medicina ou Daoísmo. Diferente dos autores supracitados que
produziram obras baseadas na tradução ou interpretação de um ou mais textos
clássicos, este grupo de referências bibliográficas não são interpretações de um
texto específico. Citamos a seguir as obras mais relevantes e seus autores:
Livia Kohn (1992, 2001, 2005 e 2006), professora de Religiões Asiáticas,
Universidade de Boston, por seu extenso trabalho em Daoísmo e Cultura Chinesa
24
;
François Jullien (1998, 2000), Filósofo e Sinólogo da Universidade de Paris-7,
por sua análise filosófica de categorias fundamentais da Cultura Chinesa;
Catherine Despeux (1979, 1990), Professora do Instituto Nacional de Língua e
Civilizações Orientais, Paris, por seu trabalho em Daoísmo e Cultura Chinesa;
Fabrizio Pregadio (2003), Professor do Departamento de Estudos Religiosos,
Universidade de Stanford, pela compilação da primeira enciclopédia de Daoísmo em
língua ocidental.
Richard DeWoskin (1983), por seu trabalho sobre a profissão dos médicos e
sacerdotes na dinastia HÀN .
Às obras destes autores adicionamos a produção coletiva de importantes
grupos de pesquisa tais como o Center for Chinese Studies, da Universidade de
Michigan, e também destacamos a produção do periódico Philosophy East and West,
da Universidade do Hawai’i.
24
A contribuição da Professora Kohn, L. foi importante não apenas pelas obras, mas por ter
planejado e realizado junto com o autor os cursos e sessões de orientação durante a fase da
pesquisa realizada na Universidade de Boston.
41
I.8.4. Autores Contemporâneos do Campo da Medicina Chinesa.
Os grupos de textos supracitados compõem os referenciais teóricos das
ciências humanas em Sinologia, Daoísmo e Medicina Chinesa. O próximo grupo é
constituído por textos de autores contemporâneos em Medicina Chinesa cuja obra
não tem vínculo com a forma acadêmica de produção de conhecimento em Ciências
Humanas. Os textos são considerados fontes documentais para análise
comparativa das concepções estudadas nos clássicos, e também para análise da
proposta terapêutica presente no campo atual. A obra destes autores em geral é
uma re-interpretação ou uma re-atualização de concepções clássicas usualmente
adicionadas dos seus próprios saberes oriundos de sua experiência clínica. Estes
textos representam as vozes dos terapeutas do campo.
Neste sentido decidimos que seria interessante se pudéssemos agregar um
pouco de movimento a estas vozes pela inclusão de entrevistas feitas em parte com
os próprios autores e outras com terapeutas sem experiência autoral. O papel das
entrevistas foi apenas ilustrativo e comparativo e não constitui o núcleo do método
de acesso ao campo, que é de fato a análise dos textos. Porém, a importância desta
comparação residiu na possibilidade de evidenciar a existência de uma parte do
corpo de saberes da Medicina Chinesa que permaneceria oculta até o presente.
Conforme Hsu (1999) destaca em sua análise antropológica sobre a transmissão
dos saberes, a Medicina Chinesa contemporânea apresenta até o presente uma
forma “secreta” de transmissão, a chamada transmissão oral, usualmente
relacionada à relação direta entre um mestre e um discípulo. Enquanto a autora
destaca que parte do conhecimento transmitido oralmente existe também em forma
escrita, nosso objetivo foi acessar uma possível parte não-escrita do conhecimento.
Esta parte foi importante para analisar a forma de produção de conhecimento na
parte do campo que busca um retorno ao clássico.
Realizamos entrevistas em profundidade, semi-estruturadas, com o objetivo de
apreender como os terapeutas contemporâneos interpretam e utilizam em sua
prática clínica as concepções terapêuticas dos clássicos, e também como se
relacionam com os mesmos enquanto autoridade de saber. Selecionamos
terapeutas nas cidades do Rio de Janeiro, San Francisco (Califórnia), e Boston
(Masachussets). Os critérios para seleção dos terapeutas foram os seguintes: 1) Ter
atuação profissional com alguma prática terapêutica da Medicina Clássica; 2)
Preferencialmente utilizar esta prática para promoção de saúde. Incluímos em anexo
ao final uma relação dos terapeutas entrevistados.
42
I.8.5. Pesquisas em Medicina Chinesa Orientadas por Valores Biomédicos
Recorremos ainda a um outro tipo de literatura para compreensão do estado
atual das pesquisas no campo da Medicina Chinesa. Trata-se de publicações
científicas elaboradas por autores do campo da epidemiologia, biociências, fisiologia
e outras disciplinas estruturantes do paradigma biomédico, ou então por autores
expoentes da escola Medicina Tradicional Chinesa, geralmente vinculados a alguma
de suas instituições principais como as Universidades Beijing, Shanghai e Nanjing.
Este tipo de literatura é expressão do movimento de transformação da Medicina
Chinesa em um saber científico, no ocidente ou oriente. Alguns destes autores e o
resultado de seus trabalhos já foram expostos em tópico anterior. Englobamos esta
literatura em uma classe distinta, face à necessidaed de destacar que o estudo de
nosso objeto não pode ser fundamentado neste tipo de textos, representativos de
um movimento oposto, de exclusão dos saberes clássicos. Seu uso destinou-se à
ilustração por contraste dos distintos modelos e direções da pesquisa
contemporânea.
43
I.9. Notas sobre a Grafia das Categorias Chinesas
Tendo em vista nossas opções metodológicas torna-se clara a importância da
linguagem na reconstrução do contexto cultural da Medicina Clássica. A apreensão
das concepções que estruturam esta racionalidade médica tem no processo de
tradução um de seus maiores obstáculos, pois a maioria das traduções dos textos
clássicos não apresenta um adequado rigor filológico conforme as opiniões dos
Professores Kohn, L.
25
e Unschuld, P.
26
. Porém, a definição de “rigor adequado”
varia de acordo com o pesquisador e sua posição no campo
27
. Face a não
possuirmos os requisitos necessários para efetuar uma tradução rigorosa
28
, o rigor
na interpretação foi obviamente uma função transferida aos autores ocidentais
expoentes no campo. Ainda assim, ao se escrever um texto, frequentemente é
necessário optar-se pelo uso de uma entre as diversas palavras possíveis para
traduzir um termo chinês, o que nos conduz a questão do rigor na grafia do texto.
Antes de explicarmos nossas opções, façamos uma breve digressão sobre as
características da língua chinesa. Apresentamos a seguir um resumo em tópicos
relevantes para este trabalho, fundamentados na exposição minuciosa realizada por
Barsted (2003).
1) Multiplicidade de Sentidos: A língua Chinesa apresenta uma multiplicidade
de sentidos para cada palavra, e nota-se que o sentido depende do contexto de
forma mais intensa que nas línguas ocidentais. Vejamos o exemplo de Barsted
(2003, p. 54) “Estas várias possibilidades de sentido estão presentes num mesmo
ideograma. SHENG , por exemplo, pode significar: criar, gerar, viver, nascer,
crescer, engendrar, produzir, vida, seres vivos, um estado natural, vitalidade, a
duração da vida etc... Assim, a apreensão do seu sentido requer uma familiaridade
com os possíveis contextos, e depende do conhecimento prévio sobre o assunto em
pauta.”
25
Opinião transmitida em sala de aula.
26
Opinião transmitida por comunicação eletrônica.
27
Por exemplo, durante o já citado curso ministrado pela professora Kohn, L. junto a Boston
University, houve discussão sobre este rigor. A professora comunicou oralmente a opinião de
um autor expoente no campo que defende a necessidade de obter-se um doutorado em
língua chinesa clássica, outro em estudos de religião comparada, outro em religião Daoísta,
e ainda ser iniciado no sistema religioso que estuda para que pudesse elaborar uma
tradução adequada de textos clássicos Daoístas. Ao aplicarmos estes critérios para os
pesquisadores do campo, apenas o próprio autor teria todos os requisitos, e o campo seria
de fato um monólogo. Se aplicarmos estes mesmos critérios aos textos médicos chineses, o
tradutor teria que ser também um clínico, o que excluiria o próprio professor Unschuld, P.
supostamente o tradutor mais rigoroso de textos médicos.
28
Salvo estudos superficiais de língua chinesa e experiência clínica no campo.
44
2) Linguagem Sintética: A característica genérica da cultura chinesa de cultuar
o sutil e o implícito, e de sintetizar conhecimentos manifesta-se também na língua,
sendo visível na própria estrutura dos ideogramas, cujo desenho seria um símbolo
capaz de condensar sentidos e significados. Esta característica reforça a
multiplicidade de sentidos atribuídos a um único termo ou símbolo.
3) Ideogramas completos x simplificados: Como a grafia do símbolo condensa
significados, para apreendê-los em seu contexto original deve-se utilizar os símbolos
originais. Isto significa que para a análise das concepções fundamentais deve-se
considerar os ideogramas completos, evitando a forma simplificada, criada na
República Popular da China para educação em larga escala. Esta forma alterou o
desenho de diversos símbolos importantes à medicina, como por exemplo LÍNG,
cujo ideograma completo, , geralmente é interpretado como o retrato de dois
homens, sacerdotes realizando um ritual-oferenda a fim de evocar chuvas (Wieger,
1965, p.182), foi substituído por, , que representa a imagem de uma mão acima do
fogo, um caractere incomum que representa “calor”
29
.
As soluções para resolver alguns problemas gerados por estas características
são as seguintes: 1) O uso do “PinYin” em sua forma completa. Este padrão de
transliteração proposto pela República Popular da China utiliza as letras romanas
acentuadas de quatro formas, representando as tonalidades da pronúncia original
em mandarim. Assim, se quisermos grafar “TAO” termo usualmente grafado desta
forma e traduzido como “caminho”, teríamos que optar pela transliteração PinYin, na
qual se escreve DAO, e acentuá-lo de forma adequada, uma dentre as quatro
possíveis escolhas a seguir: DĀO; DÁO; DǍO e DÀO. Apenas uma destas grafias se
refere ao ideograma desejado, no caso, DÀO. Porém, esta informação, a mais
completa possível com letras romanas, ainda é insuficiente para especificar a qual
ideograma estamos nos referindo, pois existem aproximadamente 20 ideogramas
com esta mesma pronúncia, por exemplo: DÀO ; DÀO , DÀO . O primeiro, é
usualmente traduzido por “caminho”, o segundo, “ir” ou “chegar”, e o terceiro,
“lamento” ou “choro”.
Assim, a forma mais precisa para especificarmos a qual termo em chinês
estamos nos referindo é utilizar a grafia PinYin acentuada, seguida do ideograma
completo. Esta escolha nos concede as seguintes vantagens: a) a identificação
29
As informações sobre o ideograma simplificado foram colhidas no dicionário eletrônico
http://zhongwen.com/, acessado em 05/02/2008.
45
precisa do termo original em chinês e b) A visualização do ideograma completo para
efetuarmos a leitura simbólica ou a análise etimológica quando necessário.
Optamos por este método sempre que possível, concedendo algumas
exceções nos seguintes casos: a) Quando reproduzimos parte de um texto,
repetimos a mesma forma de grafia utilizada pelo autor no original; b) Quando
utilizamos nomes próprios ou nomes de lugares em chinês, os quais normalmente
não aparecem acentuados ou grafados com ideogramas no texto original
30
.
Esta opção soluciona parte do problema da grafia, ao menos sua metade mais
fácil, possibilitando saber a qual termo original estamos nos referindo. Consideramos
a parte mais difícil a escolha do termo em português para traduzir o original, pois é a
parte que não se trata apenas de grafia, mas de interpretação. De qualquer forma,
no que diz respeito à grafia, apresentamos o texto em duas possíveis formas,
adequadas de acordo com sua fluência. A primeira é a forma que prioriza o termo
original, como na frase a seguir:
“Na política, a noção de TĪAN MÌNG
天命, mandato celeste, foi um fator
fundamental na disputa pelo poder.”
Ou seja, apresentamos uma tradução logo em seguida ao termo chinês.
A segunda forma é a utilização do termo em português seguida do termo em
chinês entre parênteses, conforme exemplo a seguir:
“Todos os seres individualizados assim o são porque receberam uma parcela
(FÈN ), do DÀO
Entendemos que a primeira forma prioriza o termo original, porém em algumas
construções de frase dificulta a fluência do texto, o que é facilitado pela segunda
forma. Assim, sempre que possível optamos por uma destas duas formas,
concedendo exceções nos seguintes casos: a) Quando um termo em chinês
aparecer com alta freqüência já tendo possibilitado a interiorização de seu
significado em português, omitiu-se a grafia em português; ou b) quando citamos
textos de autores que não utilizam a grafia do termo em língua ocidental,
respeitamos o formato do autor
31
.
30
Cabe salientar que esta forma de grafia é a mais rigorosa que observamos. Em diversos
textos de publicação internacional usualmente se omite a acentuação do PinYin, e muitas
vezes apresenta-se o ideograma apenas em um glossário no início ou final do trabalho.
31
A omissão da grafia do termo em língua ocidental ocorre usualmente com noções muito
utilizadas como o DÀO .
46
Houve ainda uma última escolha a ser feita nos critérios de grafia, que diz
respeito aos termos que devem, ou não, ser grafados em chinês. A postura mais
rigorosa implicaria na grafia chinesa de todos os termos referentes à Medicina, o que
implica em custos na legibilidade do texto. Vejamos os exemplos de sentenças a
seguir:
“A partir do dedo mínimo a força vital passa para o meridiano do intestino
delgado, de onde ascende até a cabeça pela parte externa do braço. Ao chegar à
cabeça, conecta-se com o meridiano da bexiga no canto interno dos olhos”
“A partir do dedo mínimo o QÌ , força vital, passa para SHǑU TÀI YÁNG
XIǍO CHÁNG JĪNG MÀI , o meridiano do intestino delgado, de
onde ascende até a cabeça pela parte externa do braço. Ao chegar à cabeça,
conecta-se com ZÚ TÀI YÁNG PÁNG GUĀNG JĪNG MÀI , o
meridiano da bexiga, no canto interno dos olhos.”
Diante de uma situação como esta, optamos por grafar em chinês apenas os
termos que se referem às concepções relevantes ao estudo de nosso objeto.
Embora sejamos partidários da necessidade de utilizar os termos originais por
expressarem uma diversidade de sentidos que se perdem na tradução, fazê-lo para
todos os termos médicos prejudica a fluência do texto. Assim, admitimos que o
termo PÁNG GUĀNG não tem todos os seus significados ilustrados quando o
traduzimos por “bexiga”, pois a noção original incorpora funções e significados
distintos, além das funções do órgão físico como compreendido pela biomedicina.
Porém optamos por grafar apenas o termo em português (bexiga), excluindo o nome
chinês (PÁNG GUĀNG ), nos casos em que os sentidos e significados perdidos
não forem relevantes ao estudo do objeto, conforme acime exemplificado.
Aplicamos o mesmo critério ao estudo do simbolismo dos ideogramas. Pois, se
por um lado consideramos a análise do símbolo e o estudo etimológico de alguns
ideogramas como uma fonte importante para apreensão das concepções relevantes
ao nosso objeto, isto não significa que tenhamos de efetuar a análise para todos os
símbolos. Isto seria impossível, pois a própria linguagem apresenta diversos
ideogramas fonéticos, ou seja, que não expressam significado por seu desenho,
mas apenas determinam a sonoridade da fala.
47
I.10. Estrutura do Texto
Dividimos o texto em duas sessões. Na primeira, composta por quatro
capítulos, elaboramos as concepções que estruturam a proposta terapêutica da
Medicina Clássica Chinesa. No primeiro capítulo apresentamos o contexto sócio-
cultural do período formativo, e elaboramos as evidências da existência de um corpo
de saberes estruturado em três níveis com propostas terapêuticas distintas, porém
integradas. Nos três capítulos seguintes, elaboramos as concepções que
fundamentam as propostas terapêuticas em cada um destes níveis, reservando um
capítulo para cada nível.
Na segunda sessão, composta por três capítulos, ilustramos o modus operandi
destes três níveis através de três tipos de práticas terapêuticas: a acupuntura, a
farmacologia e a sexologia.
Capítulo 1 – A Base Ternária da Medicina Chinesa
Capítulo 1:
A Base Ternária da Medicina Chinesa
49
1.1. Saúde, Longevidade, Imortalidade: Evidências de uma Proposta
Terapêutica Ampla
A Medicina Clássica Chinesa pode ser vista como um conjunto de saberes e
práticas integrado e estratificado em três níveis. Esta proposição baseia-se em
evidências encontradas tanto na literatura médica stricto sensu, como na literatura
sócio-histórica, que nos mostram e às vezes até mesmo analisam os diversos
papéis sociais exercidos pelos “médicos” naquele tempo.
Para elaborar a análise utilizamos estes dois tipos de texto: Os textos médicos
contam com passagens do SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG , a mais
divulgada matéria medica chinesa, do HUÁNG DÌ NÈI JING SÙ WÈN
, e do grupo de textos de MǍ WÁNG DŪI
32
. A literatura sócio-histórica
conta com as traduções de dois textos de hagiografias
33
dos XIĀN , imortais, e
com um texto de biografias dos FĀNG SHÌ , médicos-sacerdotes. O Primeiro é
o LIÈ XIĀN CHUÁN
列 仙 傳, Série de biografias de imortais, compilado por LIÚ
XIÀNG (77-6 a.c.), traduzido e comentado por Kaltenmark (1953)
34
. O
segundo, é o SHÉN XIĀN ZHUÀN , “Tradições dos Divinos Imortais”,
compilado por GÉ HÓNG (283-343 d.C.), traduzido e comentado por Campany
(2002), e o terceiro, sobre os FĀNG SHÌ , é uma tradução de De Woskin (1983)
sobre coletânea de textos elaborada pelo próprio.
Nossa intenção é mostrar, através do registro das atividades dos XIĀN e dos
FĀNG SHÌ , que as citações dos textos médicos são congruentes com a própria
organização social da época, onde existiram grupos sociais apropriando-se do
mesmo conjunto de saberes e práticas em níveis distintos de profundidade, e
utilizando-os para objetivos também distintos, porém interligados.
32
Utilizamos traduções em língua inglesa de todos os textos. O primeiro em Jarret (2000),
nativo do campo da acupuntura, e Flaws (1998), que enquanto editor não menciona as
qualificações do tradutor. O segundo por Larre (1994), autor especializado em traduções dos
clássicos chineses, fundador do Instituto Ricci, uma instituição Jesuíta sem inserção
acadêmica. E o terceiro por Harper (1998), também especializado em tradução de clássicos.
33
O termo “hagiografia” vem do capo de estudos religiosos e significa biografia dos Santos,
ou estudos sobre as biografias dos Santos. No caso Daoísta os XIĀN , imortais, seriam os
equivalentes dos Santos no ocidente.
34
A Versão do livro que temos em mãos é de 1953, editado em Beijing, e não indica o nome
da editora. Conseguimos acesso ao livro através da supervisora de estágio doutoral, que
recebeu uma cópia do próprio autor. Max Kaltenmark é um autor da segunda geração de
Estudos Daoístas, campo das Ciências Humanas inaugurado pela chegada do DÀO ZÀNG
em Paris e Tókio, nos anos 20 do século passado.
50
Iniciando pelos textos médicos, Larre (1994, p.2) utiliza a noção de “caminho
celeste” presente no capítulo 13 do ZHÙANG ZǏ para tecer seus comentários
sobre o primeiro capítulo do SÙ WÈN
. Para o autor as noções do capítulo
devem ser apreendidas a partir do contexto Daoista, onde TĪAN , o céu, seria uma
potência que simultâneamente movimenta e ordena o cosmos, criando um DÀO ,
caminho para cada ser. A saúde dos homens dependeria fundamentalmente de seu
adequado alinhamento com os movimentos celestes. Esta noção esclarece os
argumentos do primeiro capítulo, onde é dito que os “homens da alta antiguidade”
viviam por mais de 100 anos porque “observavam o caminho”, “modelavam-se no
Yin e no Yang”, e “alcançavam a harmonia através da prática e dos números”. Para
o autor o termo “pratica” refere-se a diversidade de práticas destinadas à busca da
longevidade e ao desenvolvimento da consciência, e “número” refere-se ao processo
de compreensão sistemática e alinhamento com as forças de organização da vida.
Após expor o processo de envelhecimento e adoecimento dos homens comuns,
que não se comportam como os homens antigos, o final do capítulo destaca
novamente as glórias e virtudes dos homens da alta antiguidade. De fato, os últimos
versos do capítulo descrevem o declínio da sabedoria e da virtude do homem, e a
sua conseqüente perda de saúde e longevidade.
Pela tradução de Larre (1994, p.94), existiam na alta antiguidade os ZHĒN RÉN
, homens autênticos, que eram capazes de viver “tanto quanto o céu e a terra,
cuja longevidade não conhece fim”. Esta capacidade devia-se, tanto ao fato destes
homens terem apreendido o TĪAN , o céu, DÌ , a terra, o YÁNG , e o YĪN ;
respirarem JĪNG , as essências, e QÌ , a força vital, quanto a terem realizado a
unidade pela manutenção dos SHÉN , os espíritos, dentro de seu próprio corpo.
Com a passagem do tempo, na média antiguidade teriam surgido os ZHÌ RÉN
, homens absolutos, tidos como homens de virtude, perfeitos no caminho,
balanceados pelas 4 estações, estes homens protegiam e aumentavam sua
longevidade para conseguir alcançar o estado dos ZHĒN RÉN , os homens
autênticos.
Em seguida, teriam surgido os SHÈNG RÉN , os homens sagrados,
capazes de harmonizar TĪAN , o céu e DÌ , a terra, adaptados aos 8 ventos,
capazes de se expor aos desejos e paixões do mundo sem ser incomodados e
mantendo a serenidade. Tinham seu corpo em perfeitas condições e conseguiam
51
viver 100 anos de idade. E por último surgiram os XIÁN RÉN , homens sábios,
com características semelhantes à classe anterior, porém em função subordinada.
O texto expõe quatro tipos de homens, mostrando a cada mudança de classe o
decréscimo de sua capacidade de realização do DÀO , o caminho, e a
conseqüente perda de vitalidade e longevidade. Assim, apesar do HUÁNG DÌ NÈI
JING
não expor de forma detalhada os saberes e práticas de
longevidade, faz referência a estes, e exalta os mesmos valores que encontramos
nos cânones Daoístas: a longevidade e a imortalidade.
Segundo Engelhart (2005, p.111), desde a dinastia ZHŌU (1122 a 255 A.C.)
já havia termos precisos para longevidade (CHÁNG SHĒNG 長 生 ou SHÒU ).
Eram definidos no contexto de um conjunto de práticas cujo objetivo era dar suporte
ao desenvolvimento da força vital para possibilitar um tempo de vida apropriado
definido para a espécie humana
35
, evitando uma morte prematura (YĀO ). A
autora salienta a existência de uma clara distinção entre longevidade e imortalidade,
a última usualmente definida pelo termo CHÉNG XIĀN , traduzido por “tornar-
se imortal”, que implicava na transformação do corpo, mente e espírito para estados
supra-humanos.
Assim, no HUÁNG DÌ NÈI JING
temos explicitamente uma
classificação dos tipos de homens, e não dos saberes e práticas. É somente no
SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG que encontramos a divisão explícita
dos três níveis de atuação da terapêutica, conforme mostra a passagem abaixo:
“A classe superior de medicinas ocupa-se do processo de nutrir o
destino e corresponde ao céu [...] Se o homem quiser prolongar sua
vida sem envelhecer deve utilizá-la.
A classe média de medicinas ocupa-se do processo de nutrir a
natureza e corresponde ao homem [...] Se o homem quiser prevenir
desequilíbrios e suplementar suas deficiências deve utilizá-la.
A classe baixa de medicinas ocupa-se do tratamento de
enfermidades e corresponde à terra. Se o homem quiser remover frio,
calor e outras influências maléficas de seu corpo, se quiser remover
acúmulos e curar-se, deve utilizar as ervas listadas na classe inferior
deste manual.” (Jarret, 2000, pg xix)
35
Tempo usualmente definido como 100 ou 120 anos, dependendo do texto.
52
Vemos que o último grupo, denominado classe baixa de medicinas, ocupa-se do
tratamento de enfermidades; o segundo, a classe média, tem como objetivo prevenir
desequilíbrios e suplementar deficiências; e o primeiro, a classe alta, tem como
objetivo prolongar a vida sem envelhecer. Além de nos indicar os objetivos de cada
classe, o texto também nos indica como são seus processos principais. Trata-se
enfermidades removendo frio, calor e outras influências maléficas; previne-se
desarmonias nutrindo a natureza (YǍNG XÌNG ); e prolonga-se a vida nutrindo
o destino (YǍNG MÌNG ). A apreensão dos significados de cada um destes
processos envolve uma extensa contextualização, reservada para os próximos
capítulos deste trabalho.
É conveniente antes de prosseguirmos fazer alguns comentários sobre os
sentidos dos termos utilizados no trabalho a partir deste ponto. Quando o texto faz
referência à “classe superior de medicinas”, o termo “medicinas” foi traduzido do
original em inglês “medicines”, que significa também medicamentos ou fármacos.
Assim, por ser o SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG um texto de
farmacologia, trata-se de uma classificação das propriedades terapêuticas de
fármacos. Existiria uma classe superior, de fármacos, relacionada a TĪAN , o céu,
que teria como propriedades YǍNG MÌNG , nutrir o destino e prolongar a vida
sem envelhecer. Optamos por utilizar a partir deste ponto o termo nível celeste,
para referirmo-nos não apenas a uma classe de fármacos, mas a todo tipo de
saberes e práticas terapêuticas, cujos sentidos, objetivos e potenciais sejam
análogos a esta classe. Da mesma forma, utilizamos o termo nível humano para
fazer referência aos saberes e práticas terapêuticas voltados para YǍNG XÌNG ,
nutrir a natureza interna, prevenir desequilíbrios e suplementar deficiências. Por
último, utilizamos o termo nível terrestre para os saberes práticas voltados para o
tratamento de enfermidades e remoção de “influências maléficas” (fatores
patogênicos).
Feitos os esclarecimentos, podemos continuar com a elaboração das evidências.
Os textos sócio-históricos, contribuem para a contextualização e apreensão das
noções expressas nos textos médicos, pois, através das hagiografias e biografias,
ilustram como os saberes eram apropriados e utilizados por grupos de praticantes,
assim como sua hierarquização na sociedade.
Para tal, devemos elaborar mais um pouco as noções de FĀNG SHÌ , YĪ ,
WŪ , e XI
ĀN . Todos os termos se referem à funções sociais, menos o termo
XIĀN , que denota uma classe de seres transcendentais, que podem optar por
53
retirar-se da sociedade ou permanecer influenciando-a, mesmo sem assumir uma
posição dentro do corpo social.
FĀNG SHÌ
O termo FĀNG no contexto clássico apresentava alguns significados como:
esotérico, medicinal, espiritual, eficaz, fórmulas, entre outros, e o termo SHÌ
significava mestres, praticantes ou estudiosos. Propomos como tradução do termo
os mestres das fórmulas esotéricas. Em sua obra dedicada aos FĀNG SHÌ
DeWoskin (1983) nos mostra que formaram um grupo social influente na china
desde o século III a.C. (seis dinastias), até o século V d.C. Suas habilidades
incluíam a medicina, a adivinhação e a magia combinadas com um talento para
persuasão política. As atividades dos FĀNG SHÌ influenciavam toda a cultura,
pois também se envolviam em áreas “tecnológicas” e “acadêmicas” como a
metalurgia, a geografia e a meteorologia. Alguns FĀNG SHÌ alcançaram
posição proeminente na sociedade, patrocinados pela aristocracia, inclusive pelo
imperador.
“As graças imperiais eram conquistadas através da promessa de
contribuir com o império em três aspectos: 1) manter a vitalidade e a
juventude do imperador; 2) correção e manutenção das medidas de
padrões de tempo, espaço, peso e freqüência; 3) Percepção e
interpretação de sinais premonitórios, iluminando as obscuridades do
presente e guiando as políticas governamentais para que se
adequassem à vontade celeste e recebessem sua benção. A soma
destas contribuições ajudava o imperador na administração do império
e garantia a continuidade do patrocínio.” DeWoskin (1983, p.2)
O apogeu da influência política dos FĀNG SHÌ se deu durante o reinado do
imperador Wu da dinastia HÀN (140-86 a.C.). Neste período foi marcante sua
superioridade perante seus principais opositores, os confuncionistas ortodoxos. Os
FĀNG SHÌ lidavam com assuntos que seus opositores recusavam-se a discutir,
como MÌNG , destino, o mundo dos espíritos e outros “eventos estranhos”.
Durante este período foram reconhecidos e estimados por seu amplo saber, que era
composto por um corpo de diversas técnicas compreendidas como chaves de
acesso ao intrincado e interligado complexo da vida.
DeWoskin (1983, p.22) nos oferece uma lista destes saberes e técnicas que
descrevemos a seguir em forma resumida e classificada por similaridade de funções.
54
a) Saberes e Práticas de Saúde e Longevidade
Artes de vitalidade sexual; análise de sonhos; exorcismo (controle e remoção de
demônios); mediunidade (comunicação com espíritos); respiração fetal (técnica
de respiração para longevidade); estudos e práticas de longevidade e
rejuvenescimento; medicina (cura na tradição do Imperador Amarelo); cura por
mediunidade (tradição dos WŪ ); nutrição e dietética; fisiognomia.
b) Saberes e Práticas Divinatórias
Astrologia (leitura das posições planetárias e sua influência na terra); leitura das
influências dos eventos celestes (meteoros, estrelas cadentes, etc...); estudo dos
cantos dos pássaros; leitura dos padrões de rachaduras em bambu ou cascos de
tartaruga; leitura pelos hexagramas do YI JĪNG ; análise de sonhos.
c) Saberes e Práticas Militares e Estratégicas
Estratégia e persuasão; construção de armas; treinamento marcial e estratégia
de guerra;
d) Saberes e Práticas em Política e Burocracia
WŪ
O termo WŪ é usualmente traduzido como shaman. Era associado a uma
classe de sacerdotes-feiticeiros, certamente mais antiga que os FĀNG SHÌ ,
pois seriam os representantes da época pré-clássica, onde predominava a medicina
mágico-religiosa. Se os FĀNG SHÌ representaram um tipo de fusão de funções
médicas e religiosas, os WŪ por sua vez pertenceram a um período onde a
medicina era somente mágico-ritualística, e, portanto não havia a imagem de um
outro tipo de função social que pudesse criar o contraste sacerdote versus médico.
Os WŪ permanecem presentes e ativos na época da criação da medicina
clássica e dos FĀNG SHÌ . Se comparados a estes, parecem ser um tipo “puro”,
pois tratam da saúde através de oráculos, rituais, exorcismos e comunicação com os
espíritos, evitando o aspecto racional dos FĀNG SHÌ expressos em suas
fórmulas e técnicas (FĀNG ), e também na própria tradição naturalista do
imperador amarelo, o HUÁNG DÌ NÈI JING .
55
Parece-nos, ainda, que no período de florescimento dos FĀNG SHÌ , ser um
WŪ poderia conferir um componente negativo no status social, pois eram também
associados à magia-negra, tornando-se marginais na sociedade, em contraste com
os FĀNG SHÌ .
YĪ
Em sua obra sobre os textos médicos de MǍ WÁNG DŪI , Harper (1998)
traduz o termo YĪ por médico. A tradução está relacionada com o contexto social
do período entre os séculos IV e I a.C. quando houve uma grande proliferação
literária em medicina. O autor atribui esta emergência literária à classe dos YĪ . O
termo em si provém da dinastia SHĀNG onde era utilizado com o sentido de
exorcismo/exorcista. Porém, no período clássico foi associado a um novo tipo de
conhecimento, baseado em textos e elaborados racionalmente, que inaugurava um
novo tipo de saber e reformulava os campos profissionais, instaurando também uma
nova classe médica, que criava e reproduzia os saberes contidos nos mesmos.
“A literatura oculta certamente tomou elementos das tradições
orais shamânica e popular, mas também mudou a percepção da magia
entre as elites da época, conectando-a com a filosofia natural. A
medicina era praticada por outros além dos médicos (YĪ ). Alguns
participavam do mesmo grupo de textos-base. Astrólogos praticavam a
iatromancia, [avaliação de desarmonias através das posição
planetárias e outras formas divinatórias] [...] A dietética macrobiótica
era uma dentre as muitas especialidades dos Fang-shi. A fertilização
cruzada entre a medicina e a filosofia natural levou à assimilação da
teoria do Yin/Yang e das cinco fases. Tradições médicas eram
transmitidas em forma oral por shamans, coletores de ervas, donas-
de-casa e enfermeiras. Sem dúvida o material dos textos de
Mawangdui deve ser atribuído à estas fontes em última instância.
Porém, a formação da disciplina da medicina baseada em literatura
médica foi uma obra dos YĪ , médicos. No século IV a.c., estes
médicos estavam transmitindo uma forma escrita de medicina.”
(Harper, 1998. p.44)
O autor salienta ainda a relação entre os WŪ e os YĪ durante todo o
período do século IV a.c. até o final da dinastia HÀN (séc II d.c.). Pois, apesar de
existirem contrastes registrados entre seus métodos, encontra-se diversas vezes o
termo W
Ū YĪ , denotando shaman-médico. Isto significa que apesar de algumas
56
vezes a diferenciação ser pejorativa, tanto pacientes como praticantes recebiam e
praticavam simultaneamente os dois conjuntos de saberes.
Os textos de MǍ WÁNG DŪI nos oferecem uma visão do conjunto de
saberes e práticas que eram utilizados pelos YĪ :
Fármacos (vegetais, minerais e animais);
Moxabustão (no sistema de meridianos);
Exercícios para cultivar o QÌ ; (DÀO YǏN )
Dietética (incluindo a arte do jejum);
Gestação e Parto
Sexologia (HÉ YĪN YÁNG 合 陰 陽).
Exorcismo
57
1.2. A Divisão de Funções entre os “Médicos”: FĀNG SHÌ , WŪ e YĪ .
Os saberes e práticas destas três categorias profissionais nos mostram o que
seria o campo da saúde antes e durante a dinastia HÀN . Teríamos os WŪ , um
tipo representativo dos períodos antigos, especializado nas artes ritualísticas do
exorcismo; os YĪ um tipo representativo do surgimento da medicina racional-
natural mas ainda com amplo diálogo com as artes arcaicas do exorcismo; e
finalmente os FĀNG SHÌ , que observando a lista de “disciplinas” que
estudavam, podemos notar que contém tanto os saberes e práticas dos WŪ
quanto dos YĪ . Assim, em termos da análise do conhecimento disponível na
época, podemos ter os FĀNG SHÌ como modelo adequado de representação,
sendo importante salientar alguns de seus aspectos:
a) Não há evidências, no período, da existência de uma categoria
profissional cuja atividade única fosse a cura de doentes ou doenças.
Se tomarmos como exemplo a biografia de Hua To (De Woskin, 1983, p.140),
um dos mais famosos FĀNG SHÌ da história chinesa, veremos que entre seus
méritos constam a cura de diversas doenças como diarréias, dores de cabeça e
retenção de feto, através de fármacos, acupuntura e moxabustão. Hua To envolvia-
se também em situações mais graves, que envolviam cirurgias onde retirava os
órgãos do paciente, purificava-os com fitoterápicos e depois os recolocava no lugar,
denotando uma atividade extremamente centrada na cura, que poderíamos
classificar como nível terrestre. Porém, mesmo com reconhecimento por suas
capacidades de cura, Hua To era tido como sábio por ter compreendido a “arte de
nutrir a natureza”, tendo ele mesmo atingido a idade de cem anos com o vigor de um
jovem. Dentre as práticas que ensinava estava o DÀO YǏN , especialmente o
método chamado de “cinco animais” reconhecido por seu potencial de cultivo da
longevidade e prevenção de enfermidades.
Ao observarmos o conjunto dos saberes e práticas, veremos que a “cura na
tradição do imperador amarelo”, i.e. estudos e práticas relacionados ao texto
HUÁNG DÌ NÈI JING , representativo da medicina natural-racional, era
apenas um aspecto do conjunto de saberes. Mesmo se tomarmos os YĪ como
exemplo, não haveria uma classe profissional exclusivamente dedicada ao tipo de
saberes compilados no HUÁNG DÌ NÈI JING
. Assim, faz-se necessário
uma redefinição dos termos “médico” e “medicina”, pois, no que diz respeito a
cultura deste período, ou interpretamos que a medicina é algo muito mais amplo do
58
que as definições contemporâneas baseadas na cura de doenças, ou definimos o
campo médico por imposição da noção de médico presente em nossa cultura, o que
excluiria o exorcismo e a astrologia da categoria “práticas de saúde”. Porém, se
optássemos por este último caminho, concluiríamos que não havia médicos em tal
época.
b) A totalidade dos saberes e práticas compunha um conjunto coerente e
interligado de atividades de saúde.
Aprofundando a análise dos saberes e práticas dos FĀNG SHÌ e dos textos
de MǍ WÁNG DŪI , é possível notar descrições de processos que
corresponderiam aos três níveis de apreensão dos saberes e práticas propostos no
SHÉN NÓNG . Ou seja, existe uma conexão entre as concepções de remover
influências maléficas, nutrir a natureza (YǍNG XÌNG ) e nutrir o destino (YǍNG
MÌNG ).
Vejamos incialmente o exemplo da coletânea de MǍ WÁNG DŪI . Se
tomarmos os textos que compõem a obra observaremos no primeiro volume os
seguintes títulos:
1) O Cânone para cauterização dos onze canais do pé e da mão (ZÚ BÌ SHÍ YĪ
MÀI JǏU JING )- (Um tratado de moxabustão)
2) O Modelo dos canais (MÀI FÁ ) - Um tratado de dinâmica vital
3) Os Sinais de morte dos canais (YĪN YÁNG MÁI SÍ HÒU
) - Um
sistema de diagnose através do modelo de canais.
4) Receitas para 52 enfermidades (WǓ SHÍ ÈR BÌNG FĀNG ) – Um
tratado de práticas terapêuticas que incluem moxabustão e uso de fármacos, entre
outras.
O que temos neste conjunto? Um modelo de dinâmica vital (2), um sistema
diagnóstico (3) seguido de uma lista de enfermidades (4) e um sistema terapêutico
(1). Neste grupo o termo BÌNG é utilizado como enfermidade, e consta no texto
uma explicação para a necessidade de criação e utilização do modelo de canais:
facilitar a identificação das diferentes enfermidades. Neste sentido temos um grupo
de textos centrados na remoção de influências maléficas, ou cura de enfermidades.
O próximo grupo de textos intitulados: Eliminando grãos e alimentando-se do
sopro vital (QUÈ GǓ SHÍ QÌ ) e Desenhos de guiar e esticar (DÀO YǏN TÚ
59
), tratam do processo de substituição da alimentação ordinária (GǓ ) pelo
consumo de algumas ervas e práticas de respiração, que seriam suficientes para
nutrir o corpo e aumentar a vitalidade, sendo necessária a prática conjunta do DÀO
YǏN , exercícios corporais baseados em alongamentos e condução do sopro
vital pelo sistema de canais, para evitar enfermidades e cultivar a vitalidade. Estas
práticas seriam então representativas do processo de nutrir a natureza, que visam
prevenir desequilíbrios e suplementar deficiências, segundo o SHÉN NÓNG .
Há ainda outros grupos, que incluem textos como:Receitas para nutrir a vida
(YǍNG SHĒNG FĀNG ) e Harmonização do Yin e do Yang (HÉ YĪN YÁNG
), que também apresentam receitas alimentares e introduzem o tema do
cultivo da sexualidade, práticas sexuais que teriam como objetivo nutrir a vida,
rejuvenescimento e longevidade, características do processo de nutrir destino
(YǍNG MÌNG ).
É necessário ainda um breve comentário sobre o Livro de geração do feto (TĀI
CHǍN SHŪ ), um tratado sobre concepção, gestação e parto, composto de
práticas para assegurar a saúde da mãe e da criança, mostrando uma continuidade
entre as práticas de sexualidade e a saúde das gerações descendentes.
Assim, temos na coletânea de MǍ WÁNG DŪI práticas voltadas para os
três níveis descritos no SHÉN NÓNG , evidenciando o conjunto, uma totalidade
conectada utilizada pelos YĪ e pelos F
ĀNG SHÌ para atuar na saúde de
forma ampla. Encontramos uma parcela consistente dos saberes e práticas dos
FĀNG SHÌ nos textos de MǍ WÁNG DŪI . Nota-se a ausência das
diversas práticas divinatórias, dos saberes estratégico-marciais, e dos técnico-
burocráticos. Destes ausentes, notamos uma relação mais íntima entre as práticas
divinatórias e os processos indicados no SHÉN NÓNG , principalmente com o
nível celeste, relacionado à nutrição o destino e ao prolongamento da vida. Porém, a
apresentação adequada desta relação requer uma análise prévia da noção de MÌNG
, que será apresentada no próximo capítulo, intitulado: “O Nível Ceste”.
Dedicaremos, primeiramente, espaço à outra noção componente do nível celeste,
mais adequada para o contexto de apresentação dos níveis de saberes e práticas.
60
1.3. A Tradição dos Imortais: Vitalidade Ilimitada
XIĀN
“Nós humanos morremos, como todas as outras formas do
misterioso fenômeno chamado vida. Ocorre que somos programados
para morrer, célula por célula, apesar da razão não ser mais clara para
os microbiologistas do que para qualquer outra pessoa.” (Campany,
2002, p.3)
Durante o decorrer de sua história a humanidade desenvolveu diversos métodos
para lidar com a morte. Um deles é a tentativa de adiá-la, adotada primariamente
pelo grupo social chamado XIĀN
36
. Podemos chamá-lo de grupo social, pois
vários de seus componentes participavam da vida coletiva, mesmo que de forma
marginal. Do ponto de vista do conhecimento, os XIĀN podem ser considerados
como detentores de conhecimentos e habilidades mais elevadas, tendo
desenvolvido ao máximo os mesmos saberes e artes característicos dos FĀNG SHÌ
. Tendo os XIĀN como mestres, os FĀNG SHÌ aproveitavam-se desta
relação para receber vantagens sociais. Freqüentemente declaravam estar em
contato com algum XIĀN , recebendo ensinamentos destes. Tal contato
aumentava o prestígio do FĀNG SHÌ .
A maioria dos XIĀN apresentava características eremíticas, aparecendo em
público apenas em circunstâncias raras. Segundo suas hagiografias, seus saberes e
habilidades permitiam que vivessem com recursos mínimos, em ambiente natural. O
próprio ideograma XIĀN , composto pelo radical RÉN , homem, seguido de
SHÀN , montanha, faz referência a esta característica. Seriam eles os “homens
que vivem retirados em montanhas”, sendo a montanha tanto seu lugar de morada,
acima dos domínios da sociedade, como também um símbolo de elevação espiritual.
Campany (2002, p.85) desenvolve uma análise um pouco mais elaborada desta
relação dos XIĀN com a sociedade. Para o autor, os XIĀN viviam na borda
externa e superior da sociedade, mas não se faziam invisíveis para esta. Tendo num
passado longínquo assumido cargos oficiais de estado, teriam se tornado eremitas
num tempo mais recente, devido à perda da pureza das sociedades arcaicas.
Mesmo tendo reduzido sua relação com a sociedade, os XIĀN continuaram a
36
A apresentação das hagiografias dos imortais assim como uma elaborada análise de sua
participação na história e cultura chinesa encontram-se em Campany (2002). To live as long
as heaven and earth: a translations and study of Ge Hong’s traditions of divine transcendents.
61
prestar alguns serviços sociais, como a realização de curas miraculosas, distribuição
de bens a populações carentes e outros tipos de atividades que os colocavam numa
posição de seres sagrados. Vejamos a seguir algumas destas “biografias dos
imortais”.
PÉNG ZǓ
“Peng Zu (Progenitor Peng) tinha como sobrenome Jian. […] Ele
foi descendente direto de Zhuan Xu
37
. Ao final da dinastia Yin
38
ele
estava com 767 anos de idade, porém, não apresentava sinais de
envelhecimento físico. Desde jovem amava a tranqüilidade e não se
sentia compelido a servir em sociedade. Não buscava fama ou
promoção, nem usava roupas elaboradas. Ocupava-se apenas de
nutrir a vida e regular seu corpo. O Rei ao saber de sua longevidade
buscou contratá-lo, mas, ele sempre negou. Peng Zu era mestre nas
artes de suplementar a essência (a) e estirar e guiar (b). Ele também
ingeria Canela, Mica e Chifres de veado (c). Sempre apresentava uma
aparência jovem, mas, era por natureza sério e reservado, e até seu
fim nunca afirmou possuir um caminho. Também não desempenhava
ações estranhas, ou se envolvia com fantasmas e espíritos. Apenas
mantinha sua tranqüilidade. Quando jovem saía como andarilho
retornando à casa esporadicamente. Ninguém sabia para onde ia, e
aqueles que tentavam observá-lo nunca conseguiam vê-lo. Ele
possuía carruagens e cavalos, mas nunca os usava. Algumas vezes
saía por centenas de dias, outras vezes por algumas semanas. Jamais
carregava consigo nenhuma provisão. Porém quando retornava para
casa, seus hábitos alimentares e indumentários não eram diferentes
de pessoas ordinárias. Com freqüência selava sua respiração e
respirava internamente (d). Do nascer do sol ao meio-dia ele iria
sentar-se, massagear seus olhos, corpo e membros, lamber seus
lábios e engolir saliva, ingerindo força vital (QÌ ) dezenas de vezes
(e). Apenas após estas práticas levantava-se, movia-se e conversava.
Se houvesse qualquer doença, fadiga ou desconforto em seu corpo
ele praticava guiar e estirar (f), e cessava sua respiração para atacar o
que estivesse lhe perturbando. Também fixava seu coração por turnos
37
Uma Deidade celeste da Mitologia Chinesa.
38
Outro nome para a dinastia SHĀNG , sucedida pelos ZHŌU em aproximadamente
1020 a.C.
62
em diferentes partes do corpo, na cabeça e na face, nos nove orifícios
e nas cinco vísceras, nos quatro membros e mesmo em seus cabelos
(g). Ele fixava seu coração em cada uma destas localidades e sentia
sua respiração circular por todo seu corpo, iniciando pelas narinas e
terminando nas pontas dos dez dedos. Então, muito rapidamente seu
corpo retornava à harmonia.
O Rei pessoalmente o chamou para perguntar sobre sua
prosperidade. Peng Zu nada respondeu. O Rei então trouxe milhares
de peças de joalheria, ouro e outros valores. Peng Zu aceitou tudo e
deu em benefício aos destituídos, nada guardando para si.
Certa vez houve uma mulher do harém que era conhecida por ter
alcançado o Dao desde sua juventude, e possuía métodos esotéricos
para nutrir seu corpo. Ela tinha 270 anos de idade, mas aparentava 15
ou 16. O Rei ofereceu presentes a ela, incluindo ouro e jade. Então
ordenou que procurasse por Peng Zu e perguntasse por seu caminho.
Quando chegou, prostrou-se diante de Peng Zu e perguntou por seu
método de extensão dos anos de vida. Ele então respondeu:
Se alguém quiser elevar sua forma, ascender aos céus e ser
promovido à um cargo imortal, deve utilizar ouro e cinabre (h). Este é o
método pelo qual o primeiro soberano e a grande mônada ascenderam
aos céus em plena luz do dia. Este caminho é o mais alto de todos,
não é algo que possa ser praticado por lordes ou reis. O próximo é o
caminho pelo qual durante o ato sexual-afetivo nutre-se a essência e
os espíritos (i), e também ingere-se ervas (j). Por estes métodos pode-
se obter vida longa, mas não garantem o exorcismo dos fantasmas,
caminhar no vazio ou viajar voando. E, se alguém nunca aprender o
caminho do acasalamento, mesmo que faça a ingestão de ervas, estas
não mostrarão nenhum benefício. Se cultivar as artes sexuais pode-se
gradualmente progredir e eventualmente alcançar o objetivo, contanto
que não se fale sobre o assunto. Por que isto deveria provocar
espanto ou dúvida? [...] Agora, em respeito aos imortais, existem
alguns que ascendem seu corpo às nuvens, voando sem asas; outros
dirigem carruagens puxadas por dragões e chegam às portas do céu.
Alguns se transformam em animais ou pássaros e perambulam pelas
nuvens; outros viajam pelos rios e mares embaixo d’água ou voam
sobre montanhas. Alguns ingerem a força vital primal, outros raízes,
63
cogumelos e ervas. Alguns andam entre os humanos irreconhecíveis,
outros se escondem e nunca são vistos. Em suas faces podem crescer
estruturas ósseas estranhas e em seus corpos, pelos estranhos.
Muitos preferem viver como eremitas, não tendo intercurso com
pessoas ordinárias. Porém, mesmo que estes tipos tenham
longevidade indefinida, eles se abstêm de sentimentos humanos e se
distanciam da honra e do prazer. [...] Eles perderam sua identidade
verdadeira, trocando-a por uma força vital estranha. Com meu coração
estúpido eu não posso desejar este tipo de coisa. Aqueles que entram
no caminho devem ser capazes de comer alimentos saborosos, usar
roupas decentes, ter sexo e trabalho. Seus ossos e tendões são
firmes, sua face lisa, o tempo passa e eles não envelhecem
fisicamente. Estendem seus anos de vida e permanecem no mundo
por muito tempo (k). Frio, calor, secura e umidade não podem causar-
lhes dano. Fantasmas, espíritos e fadas não ousam atacá-los Armas e
criaturas venenosas não se aproximam deles (l). Raiva, alegria, falhas
ou fama não podem amarra-los, assim, são estes que são dignos de
estima.” (Campany, 2002, p.172)
A hagiografia de PÉNG ZǓ
39
é um dos casos mais ilustrativos do conjunto
de saberes e práticas, e também dos valores que eram cultivados pela sociedade
chinesa. Vejamos nas passagens marcadas os tópicos de maior interesse:
1) No trecho (k): “Aqueles que entram no caminho devem ser capazes de comer
alimentos saborosos, usar roupas decentes, ter sexo e trabalho. Seus ossos e
tendões são firmes, sua face lisa, o tempo passa e eles não envelhecem fisicamente.
Estendem seus anos de vida e permanecem no mundo por muito tempo”.
Temos uma passagem que mostra os ideais de saúde e espiritualidade que eram
cultivados naquela sociedade: uma vida longa, com corpo saudável e jovem, que
fosse simultâneamente um sinal de harmonia e desenvolvimento espiritual.
2) No trecho (l): “Frio, calor, secura e umidade não podem causar-lhes dano.
Fantasmas, espíritos e fadas não ousam atacá-los Armas e criaturas venenosas não
se aproximam deles”.
39
Cabe salientar que a historicidade de PÉNG ZǓ não é relevante na argumentação,
mas sim a de GÉ HÓNG (283-343 d.C.), o compilador das hagiografias. Pois este,
tendo sido um influente aristocrata, historiógrafo e praticante Daoísta, selecionou o texto de
PÉNG ZǓ como uma ilustração das noções a valores de saúde de sua época.
64
Temos a descrição de outra característica desta saúde ideal: uma alta imunidade
à fatores patogênicos, naturais ou espirituais.
3) Os trechos de (a) até (e) nos mostram as práticas cotidianas de cultivo da
longevidade:
As “artes de suplementar a essência” (a) referem-se às artes sexuais; e “estirar e
guiar” (b), tradução literal de DÀO YǏN , são práticas corporais de circulação de
. Ambas as práticas constam tanto na lista dos FĀNG SHÌ como nos
textos de MǍ WÁNG DŪI .
“Ele também ingeria Canela, Mica e chifres de veado” (c) . Estes são itens
comuns nos manuais de farmacologia da Medicina Chinesa, todos utilizados até os
dias atuais.
“Ele com freqüência selava sua respiração e respirava internamente (d).” Esta é
a chamada prática de respiração fetal, presente na lista de saberes dos FĀNG SHÌ
, que tem como objetivo um tipo de “retorno ao útero”, pois o praticante deve
cessar sua respiração de ar, e passar a se alimentar de um tipo de força vital (QÌ )
que surge espontaneamente de dentro do corpo.
“Do nascer do sol ao meio-dia ele iria sentar-se, massagear seus olhos, corpo e
membros, lamber seus lábios e engolir saliva, ingerindo força vital (QI) dezenas de
vezes” (e). O trecho refere-se a práticas de auto-massagem e ingestão de saliva que
são comuns em diversos tipos de exercícios de QÌ GŌNG e TÀI JÍ QUÀN
até os dias atuais.
Em termos gerais, estes itens nos mostram que as práticas básicas de um
imortal eram as mesmas de um FĀNG SHÌ , e estavam também presentes no
manual médico de MǍ WÁNG DŪI , mostrando-nos assim uma continuidade
entre os grupos sociais.
Além disto, mostra-nos que alguns fármacos hoje difundidos e utilizados
principalmente para fins de recuperação da saúde no campo contemporâneo da
Medicina Chinesa, eram utilizados no passado como parte do conjunto de saberes e
práticas de cultivo da longevidade e busca da imortalidade.
4) Os itens (f) e (g): “Se houvesse qualquer doença, fadiga ou desconforto em
seu corpo ele praticava “guiar e estirar” (f), e cessava sua respiração para atacar o
que estivesse lhe perturbando. Ele também fixava seu coração por turnos em
65
diferentes partes do corpo, na cabeça e na face, nos nove orifícios e nas cinco
vísceras, nos quatro membros e mesmo em seus cabelos (g).”
Nos mostram as atividades de recuperação da saúde, que eram utilizadas pelo
imortal quando adoecia. Mais um exemplo de utilização da mesma prática com
objetivos diferentes, pois aqui, o DÀO YǏN é tido como elemento de
recuperação da saúde, e não apenas de cultivo da vitalidade.
“Fixar o coração” é um tipo de prática em que se busca sentir a pulsação do
sistema circulatório em determinadas partes do corpo. Segundo a explicação dos
praticantes contemporâneos de QÌ GŌNG
40
, esta sensação só pode ocorrer
quando os canais de circulação do QÌ estiverem liberados, portanto, representa
um método e um sinal positivo de circulação de QÌ .
5) Os itens (h), (i) e (j): “Se alguém quiser elevar sua forma, ascender aos céus e
ser promovido à um cargo imortal, deve utilizar ouro e cinabre (h). Este é o método
pelo qual o primeiro soberano e a grande mônada ascenderam aos céus em plena
luz do dia. Este caminho é o mais alto de todos, não é algo que possa ser praticado
por lordes ou reis. O próximo é o caminho pelo qual durante o ato sexual-afetivo
nutre-se a essência e os espíritos (i), e também ingere-se ervas (j).”
Estes tópicos nos mostram alguns caminhos para o desenvolvimento espiritual
ligada à busca pela imortalidade. Temos em primeiro lugar a ingestão de ouro e
cinabre, um outro exemplo claro de ligação entre os dois extremos do contínuo de
saúde, pois se no passado a ingestão de cinabre foi um dos métodos prediletos para
“ascender aos céus”, hoje o cinabre é utilizado em diversas fórmulas da farmacopéia
da Medicina Chinesa, sendo especialmente receitado para disfunções ligadas aos
excessos emocionais e mente inquieta (Distúrbios do SHÉN ).
Em segundo lugar aparece novamente a utilização das artes sexuais, agora em
conjunto com o consumo de ervas, como opção para a busca da imortalidade.
Deste modo temos o grupo dos XIĀN , imortais, como a imagem ideal do
homem realizado, tendo percorrido e dominado os três níveis dos saberes e práticas,
que conduzem da recuperação da saúde à imortalidade. Os XIĀN seriam o ideal
que os FĀNG SHÌ deveriam buscar, o limite superior do desenvolvimento do
conhecimento. O imortal consegue curar a si mesmo, manter sua saúde, e estender
sua vida indefinidamente, utilizando para isto um mesmo conjunto de saberes e
40
Informação colhida em experiência pessoal no campo.
66
práticas, apreendido em diferentes níveis de profundidade. Na hagiografia de PÉNG
ZǓ há um trecho que explicita esta estratificação na apreensão dos saberes.
“Pela quantidade de força vital que as pessoas comuns recebem
em sua concepção, mesmo que não pratiquem nenhuma arte
esotérica, deveriam em média, viver por 120 anos, apenas através de
uma nutrição adequada. Se não alcançarem este ponto, é porque
receberam algum tipo de injúria. Então, se alcançarem um
entendimento mínimo do caminho, podem chegar a 240 anos de vida.
Se compreenderem mais um pouco, podem alcançar 480 anos. Se
aplicarem os princípios ao máximo, podem até evitar a morte.” [...]
(Campany, 2002, p.177)
Além de explicitar a estratificação, este trecho faz referências ao tempo médio de
vida do corpo humano saudável. Devemos analisar mais esta noção, para
construirmos a partir dela uma outra forma de definir os limites entre os níveis dos
saberes. A questão fundamental não é questionar o número 120 em termos
quantitativos, mas sim a existência de um tempo de vida determinado para o corpo
humano saudável. Segundo Campany (2002, p.47), os Daoístas desenvolveram a
noção de que existia alguma força reguladora no cosmos que determinava a
quantidade de força-vital que um organismo recebia durante sua concepção
41
.
Chamavam-na de SĪ MÌNG , o diretor de alocação de tempo de vida. O SĪ
MÌNG determinava o tempo de vida de cada ser através de quantidade de
força vital que era concedida ao corpo, sendo este máximo de 120 anos para os
seres humanos.
Supondo então que um ser receba uma quantidade de força vital em sua
concepção que o permita viver por X anos, e a partir daí construímos as seguintes
questões:
a) Como poderia este ser viver menos do que os anos que lhe foram
concedidos?
O Próprio PÉNG ZǓ responde a esta pergunta: “se não alcançarem este
ponto, é porque receberam algum tipo de injúria.”, ou seja, as enfermidades que
porventura ocorrerem durante a vida desgastam o estoque inicial de força vital,
fazendo com que o ser viva menos do que poderia. Isto nos mostra que a
quantidade máxima de anos é um valor potencial, que será alcançado pela
realização de uma vida saudável.
41
Há divergências quanto ao momento que determina a recepção desta força-vital primordial,
considerando-se ou a concepção, ou o nascimento.
67
b) Como poderia o mesmo ser viver os X anos que lhe foram concedidos?
PÉNG ZǓ responde: “Mesmo que não pratiquem nenhuma arte esotérica,
deveriam viver em média 120 anos apenas através de uma nutrição adequada.”
Para realizar o máximo do potencial concedido, deve-se evitar as injúrias e
enfermidades, e para isto entramos no campo da manutenção da saúde, que para
PÉNG ZǓ é embasado primariamente na nutrição. Devemos salientar que
“nutrição” não deve ser compreendida apenas como alimentação, mas como todo
processo de suplementar a falta de , por alimentação propriamente dita, mas
também por fármacos, e outras práticas do conjunto descrito anteriormente.
c) Como poderia o mesmo ser viver mais do que os X anos que lhe foram
concedidos?
“Se alcançarem um entendimento mínimo do caminho, poderão chegar a 240
anos”, diz PÉNG ZǓ . Então, a partir destas condições, podemos definir um
XIĀN , imortal, como aquele que através de uma profunda apreensão dos
“conhecimentos do caminho” (DÀO ) conseguem estender o tempo de vida de seu
corpo para além do limite que lhe foi concedido no momento da concepção. Quanto
mais profundo o mergulho no conhecimento, por mais tempo seria possível
prolongar a vida.
Assim, podemos definir o nível mais básico como o conjunto de saberes e
práticas aplicados à recuperação da saúde, que tem por objetivo conduzir os sujeitos
enfermos de volta à harmonia, permitindo que vivam plenamente o potencial de
tempo de vida que lhes foi concedido.
Esta noção é a mesma que está ilustrada no SHÉN NÓNG como a classe
terrestre de medicina ou classe baixa de medicina, aquela que “ocupa-se do
tratamento de enfermidades e corresponde a terra.” O que não está expresso neste
clássico, é a relação dos níveis da medicina com a noção de tempo de vida
concedido, mas ao analisarmos as duas fontes, vemos que a passagem do texto
pode ser compreendida como uma síntese do cenário exposto nas biografias dos
FĀNG SHÌ e nas hagiografias dos XIĀN . Ambas as fontes convergem para
o mesmo ponto: uma medicina estratificada em três níveis contínuos e integrados.
Desta forma, o segundo nível do SHÉN NÓNG , a classe média,
correspondente ao homem, “ocupa-se do processo de nutrir a natureza”, “prevenir
desequilíbrios e “suplementar suas deficiências”. Seria o nível de “nutrição” que
68
PÉNG ZǓ afirma ser o suficiente para que se viva plenamente o potencial de
vida concedido.
Então, o terceiro nível do SHÉN NÓNG , a classe alta, correspondente ao
céu, ocupa-se do processo de “nutrir o destino” e “prolongar a vida sem envelhecer”.
Seria o nível no qual pode-se viver 240 anos, ou seja, prolongar o tempo de vida
para além do potencial concedido, que se faz através de uma “compreensão do
caminho (DÀO )”. Compreensão esta que está intimamente ligada à noção de
MÌNG , destino, exposta e analisada em capítulo posterior.Apresentamos a seguir
um gráfico que sintetiza as noções apresentadas:
Figura 1: Gráfico dos Níveis de Vitalidade
A linha amarela (A) representa o caminho humano, que pela devida nutrição,
alncança o potencial máximo de vida. A linha laranja (B) representa alguém que
recebeu injúrias, tendo diminuído seu nível de vitalidade, permitindo que alcance
apenas metade do potencial de vida. A linha azul (C) representa a função do nível
terrestre da medicina, de conduzir de volta ao nível harmônico de vitalidade através
da cura das enfermidades. Por último, a linha violeta (D) representa o nível celeste,
através do qual se aumenta o nível de vitalidade para além do inicial, permitindo
ultrapassar o tempo de vida máximo.
Tempo de vida
Nível de
Vitalidade
60
anos
100%
D
C
B
A
120
anos
Capítulo 2 – O Nível Celeste
Capítulo 2:
O Nível Celeste
70
2.1. Cosmogênese e Cosmologia Daoísta: Saúde, Auto-Conhecimento e
Destino
A apreensão das noções do nível celeste clama por uma revisão
pormenorizada de alguns tópicos da história e da cultura chinesa. Ao iniciar a
análise da noção de MÌNG , mandato celeste, deparamo-nos com um universo
que se estende para muito além do campo da medicina. A noção exerce um papel
fundamental não apenas na medicina, mas também nos campos da política e da
religião. De fato, diversas noções fundamentais do chamado nível celeste
apresentam esta característica pervasiva aos três campos, como YǍNG SHĒNG
,nutrir a vitalidade; WÚ WÉI , a ação sem limites; XÌNG , a natureza interna;
DÀO , o caminho; DÉ , a virtude, e SHÉN , o espírito, entre outras.
Na política, a noção de TĪAN MÌNG
天命, mandato celeste, durante as dinastias
SHANG (1766 a 1122 a.c.) e ZHŌU (1122 a 255 a.c.), foi um fator fundamental
na disputa pelo poder. A história da transição dinástica gravita em torno da
autoridade do imperador, que deveria ser conferida por TĪAN
天, céu, para ser
autêntica. Neste sentido, o termo significa ser destinado a governar, o que justifica a
autoridade de WÁNG
, o imperador, por ser considerado um mediador da vontade
celeste, entendido como um princípio transpessoal, governante do cosmos. A
história se desenvolve em torno da queda do imperador dos SHANG , que a partir
de certo momento assume características tirânicas, o que faz com que os ZHŌU ,
liderados pelo Rei Wu (WÁNG WǓ ), filho do recém falecido líder espiritual de
seu povo, Rei Wen (WÁNG WÉN ), entendam que o mandato celeste (TĪAN
MÌNG ) havia sido revogado dos Shang e concedido à eles. Esta história, por
sua vez, é a base de vários poemas do YÌ JĪNG, um cânone da antiguidade
chinesa, tido como um livro oracular. De fato, várias passagens do livro mostram
WÁNG WǓ consultando o oráculo para confirmar se havia de fato recebido o
mandato celeste, e também para saber se havia chegado a hora de tomar o poder
através da força.
“Quando o Rei Wu estava em sua câmara de luto na capital
militar de Feng, no início do período de três anos de isolamento pela
morte de seus nobres parentes, ele recebeu um grande presságio, um
eclipse solar, que indicava que havia de fato recebido o mandato para
tomar o poder dos Shang. Porém ele estava aprisionado pelas leis do
ritual de luto, e precisava desesperadamente saber se era o momento
71
correto de agir. Ele perguntou ao oráculo sobre a continuidade de seu
ritual de luto de três anos, ou se devia lançar-se as águas da grande
correnteza e liberar suas tropas sobre os campos de Meng. A
tartaruga numinosa deu-lhe uma resposta clara: “Talvez continuar em
luto? Armadilha! O caminho se fecha.” O Rei então saiu de sua
câmara e realizou um anúncio ritualístico da guerra no altar da terra,
ordenando seu líder militar, o Duque de Zhou, a colocar os exércitos
em marcha. Eles carregaram o corpo do Rei Wen, líder espiritual da
nação Zhou para a batalha adentro, agitando-o para invocar o poder
celestial. Todas estas ações – fazer guerra contra um soberano legal,
quebrar a prescrição ritualística de luto, e literalmente carregar um
cadáver para uma batalha ao invés de sua tábua ancestral foram
profundamente chocantes. Atos que só poderiam ser concretizados
com a absoluta certeza, baseada na resposta oracular, que os céus
haviam de fato conferido o mandato para a renovação dos tempos[...]”
(Karcher, 2003, p.115)
Desta forma, efetuamos a análise das noções fundamentais em seu contexto
cultural, para em seguida particularizar seu sentido no campo médico. Para tal nos
fundamentamos em mais dois textos de vital importância na cultura Chinesa, O DÀO
DÉ JĪNG e o ZHÙANG ZǏ , pois a partir deles nos aproximamos das
noções de DÀO , o caminho; WÚ WÉI , a ação sem limites; MÌNG , o
mandato celeste; DÉ , a virtude; e XÌNG , a natureza interna.
O DÀO DÉ JĪNG tal como o recebemos foi compilado por WÁNG BÌ
(226-249), membro de uma elite intelectual da dinastia HÀN , representante da
escola filosófica XUÁN XUÉ , Conhecimento Misterioso, na qual buscava-se
estudar os princípios profundos, obscuros e misteriosos subjacentes ao mundo
manifesto. As noções trabalhadas a seguir incorporam também os comentários de
HÉ SHÀNG GŌNG e YÁN ZÙN . GUŌ XIÀNG (252-312) realizou
função equivalente com o texto de ZHÙANG ZǏ .
42
Para estes sábios, o DÀO tem dois aspectos, um transcendente (O DÀO
que não pode ser falado), e um imanente (O DÀO que pode ser falado). O
primeiro representa a origem do mundo manifesto, o não ser, o prolífico vazio
42
Detalhes sobre a transmissão e traduções dos textos, sobre os comentaristas posteriores,
bem como análise das categorias encontra-se em Kohn (1992, p.59).
72
primordial (WÚ JÍ ), que dá origem a todas as formas. Infinito, inefável,
incalculável. A partir desta origem, o DÀO engendra o mundo das formas, a
manifestação, e assume seu aspecto imanente, presente em toda a criação como
sustentador do mundo. O Mundo manifesto é tido como a superfície do DÀO .
Segundo esta tradição, o homem sábio não deve conceder privilégios à origem ou à
manifestação, pois o DÀO transcende esta dualidade. Porém, fala-se em distintos
níveis de realidade, onde o interior imanifesto, teria um caráter mais poderoso e
eterno do que o exterior manifesto, em constante mutação.
De fato, os fenômenos externos são vistos como os rastros das
operações internas do Dao. Ao mesmo tempo, o mundo dos
fenômenos é claramente ordenado porque é suportado pelo Dao.
Todos os seres têm a sua parte, e assim, seu destino é determinado.
(Kohn, 1992, p. 60)
Assim, no DÀO DÉ JĪNG
道 德 經, O DÀO engendra o mundo manifesto e
confere a ele uma ordem, um caminho natural para cada ser individualizado. Estas
idéias reaparecem mais elaboradas por GUŌ XIÀNG
郭 象, que pensa os seres
humanos como “o DÀO em sua forma microcósmica”. Todos os seres
individualizados assim o são porque receberam uma parcela (FÈN ), do DÀO ,
que determina XÌNG
性,sua natureza interna. XÌNG seria uma forma de ser
espontânea, uma estrutura psico-fisiológica conferida durante o nascimento
43
que
não pode ser modificada durante o percurso da vida. XÌNG
reside além dos
desejos pessoais, e pode ser acessada via intuição. Para GUŌ XIÀNG
郭 象
qualquer tentativa de modificar ou negar a natureza interna levaria ao sofrimento,
enquanto qualquer ação de acordo com sua natureza interna conduziria à satisfação
e ao contentamento.
O ideograma XÌNG é composto pelo radical XĪN , coração, e pelo termo
SHĒNG , que mostra a imagem de uma planta brotando do solo, fazendo alusão
ao processo de produção de uma vida. SHĒNG pode ser traduzido como “dar a
vida”, crescer, nascer, produzir a vida, viver. O ideograma completo faz referência ao
estado de XĪN , coração, no momento do nascimento, antes de ter recebido
43
Há discordância entre os autores do campo sobre o momento de definição da natureza
interna e do destino, se seriam conferidos durante a concepção do ser ou durante o
nascimento.
73
influências externas, significando o estado e as propensões inatas do ser
individualizado antes de sua interação com o mundo
44
.
A natureza interna tem sua contraparte na noção de MÌNG
, mandato celete,
que pode ser entendida como um conjunto de ações que o ser individual deve
realizar no mundo para alcançar um estado de completude e satisfação com a vida.
MÌNG
representa as circunstâncias externas da vida que podem servir como
espaço para a atualização da natureza interna. Neste modelo o homem alcança a
auto-realização ao fazer no mundo aquilo para o que foi destinado, atualizando os
potenciais que lhe foram conferidos pelo DÀO .
O ideograma MÌNG , comumente traduzido por “destino” é constituído por
três partes: a primeira, o triângulo superior, simboliza as três forças primordiais,
constituintes do cosmos, a saber: o céu, o homem e a terra. Estas três forças estão
articuladas, engendradas (formando um triângulo). A segunda parte, o quadrado
inferior esquerdo, representa uma boca, ou, a ação de anunciar, falar. Estas duas
partes em conjunto significam um acordo (três forças anunciando sua articulação). A
terceira parte, o desenho no canto inferior direito é o selo do céu, representação do
selo que o imperador colocava em seus mandatos para validar seu comando
enquanto “representante do céu na terra”. Assim, o ideograma completo pode ser
compreendido etimologicamente como “acordo com o céu”
45
. Consideramos o termo
“mandato celeste” sua tradução mais acurada
46
.
Neste contexto, TĪAN
, o céu, representa um princípio superior que ordena e
regula o cosmos, conforme percebemos nos movimentos harmoniosos das esferas
celestes. TĪAN
seria a parte masculina do DÀO imanente que apresenta as
características de criar e ordenar, complementares a DÌ
, terra, parte feminina do
DÀO imanente, com características de dar suporte à existência, nutrir. Assim,
acordo com o céu significa acordo com o princípio ordenador do cosmos. MÌNG
expressa um tipo de “pacto” supostamente existente na relação entre qualquer
individualidade e este princípio. Realizar o seu mandato celeste significa agir no
mundo a partir de sua natureza interna, e negar o envolvimento em circunstâncias e
ações que a contrariem. Isto define a noção de WÚ WÉI
無 為, não ação, que de fato
refere-se a este tipo de ação espontânea. É considerada uma “ação sem esforço”
44
Interpretação baseada em Wieger (1965, p205) e Willmont (1999, p.6)
45
Interpretação baseada em Jarret (2000, p.29), e Wieger (1965, p.47)
46
É mais comum encontrarmos o termo MÌNG traduzido por “destino”. Evitamos esta
tradução por conotar “fatalidade”, ou “predestinação”, sentidos comuns atribuídos à palavra,
mas deveras superficiais para a apreensão da categoria original.
74
porque surge da natureza interna e é recebida de forma harmônica no ambiente
externo. Não poderia ser diferente, pois a ação espontânea é aquela que respeita
MÌNG
, o contrato existente entre o interior e o exterior, entre o ser individualizado
e sua manifestação no mundo.
“Assim, a Não-Ação é definida como ação em verdadeira
harmonia e acordo com as coisas [do mundo]. As pessoas se auto-
realizam ao fazerem exatamente aquilo para que são mais adequadas,
e nada mais.” (Kohn, 1992, p. 74)
“O mestre nada faz, e ainda assim nada deixa de ser feito. Um
homem ordinário está sempre fazendo, e, no entanto, sempre há muito
ainda por fazer.”
47
Finalizando o primeiro agrupamento de noções, temos, ainda, DÉ ,
comumente traduzido por virtude. O ideograma contém à esquerda o símbolo de um
homem caminhando, significando movimento ou ação. A segunda parte inteira
significa “perfeitamente correto”. Decompondo-o, mostra XĪN , o coração, abaixo,
e acima a imagem de um olho observando por diversos ângulos e não encontrando
nenhum desvio. Assim, o ideograma mostra uma ação que é realizada por um
coração sem desvios, íntegro. Podemos apreender DÉ pela sua relação com
DÀO e WÚ WÉI , pois enquanto o último fala de um modo de ação no
mundo, que é eficaz por harmonizar-se com o todo, DÉ fala do poder de
influência desta ação, ou seja, um tipo de emanação do DÀO , passível de ser
transmitida. O sábio ou o imperador emanam DÉ , a virtude/poder do DÀO
através de WÚ WÉI , influenciando e transformando positivamente o mundo ao
seu redor.
Até então as noções apresentadas enfatizam o aspecto cosmológico da
relação entre a totalidade do cosmos com os seres individualizados. Porém,
principalmente na versão comentada por HÉ SHÀNG GŌNG
48
, são
enfatizadas as relações sociais, onde a harmonização dos seres individuais com o
cosmos através da prática do YǍNG XÌNG , cultivo da natureza interna, tem um
47
Parte do verso 38 do DÀO DÉ JĪNG traduzido por Stephen Mitchell em
http://www.edepot.com/taoism.html
, acessado em 17/11/2007.
48
Na obra intitulada “Two Visions of the Way: A Study of the Wang Pi and the Ho-Shang
Kung Commentaries on the Lao-Tzu”, Chan (1992) analisa as diferenças e ênfases
conferidas ao DÀO DÉ JĪNG pelos comentaristas HÉ SHÀNG GŌNG 河 上 公 e
WÁNG BÌ 王 弼.
75
papel análogo e complementar na harmonização da sociedade. Assim, todas as
práticas de auto-cultivo são consideradas essenciais para harmonizar o indivíduo, e,
por extensão, a sociedade. Para ele, a criação da ordem política é estruturalmente
isomórfica ao auto-cultivo. A política e a filosofia, assim como a magia e a moral, são
interconectadas em seu pensamento, ao contrário de nossa cultura, onde são tidos
como campos claramente distintos (Robinet 1977, p. 30). A lógica subjacente
baseia-se no axioma do DÀO (imanente) como função ordenadora da
manifestação, que conduz cada ser em contato com XÌNG a colocar-se na
sociedade de forma espontânea (WÚ WÉI ). Assim, os movimentos na
sociedade seriam reflexos da ordem do DÀO , onde todos os seres
individualizados teriam espaço para realizar seu mandato celeste (MÌNG ),
alcançando satisfação pessoal e contentamento, enquanto a sociedade alcançaria o
grau mais elevado de harmonia, TÀI PÍNG
太 平, a paz suprema
49
.
Notamos então que o DÀO DÉ JĪNG
道 德 經 pode ser abordado por diversos
ângulos. O tema mais aparente é o da recuperação da ordem social perdida, com
diversos conselhos sobre a arte de governar. Poderia desta forma, ser interpretado
como um livro de ciência política. Porém, também é um dos livros centrais para os
místicos Daoístas, sendo recitado até hoje em monastérios, como uma ferramenta
para cultivar estados de consciência refinados, o que o torna um livro místico-
religioso. E principalmente na versão de HÉ SHÀNG GŌNG , mas também
no ZHÙANG ZǏ , temos a relação com as práticas de auto-cultivo, ou YǍNG
SHĒNG , cultivo da vitalidade, inserindo-se assim no campo da saúde. A multi-
dimensionalidade dos cânones mostra um aspecto da cultura chinesa, na qual,
definitivamente, não é possível encontrar objetos em compartimentos.
“O sistema de He Shang Gong é baseado no axioma da
existência ser suportada pelo Dao. Ele também se inscreve na teoria
médica do corpo humano, primeiramente documentada na dinastia
Han, e posteriormente integrada à cosmologia e técnicas de meditação
Daoístas. A Medicina Clássica Chinesa define como Qi, força vital, a
parcela fundamental que os seres apreendem do Dao. Todos os seres
ao nascer são dotados com uma força cósmica, sendo que existem
diferentes qualidades de Qi.”(Kohn, 1992, p. 69)
49
A Noção de TÀI PÍNG 太 平, paz suprema, como um estado social que reflete a ordem
cósmica foi compartilhada por Daoístas e Confuncionistas no final da dinastia HÀN .
Maiores detalhes em Kaltenmark (1979).
76
Nos comentários de HÉ SHÀNG GŌNG observamos uma conexão
essencial entre a teoria cosmo-social Daoísta e a Medicina Chinesa. Fala-se dos
JĪNG SHÉN , divindades orgânicas como forças cósmicas que animam o corpo
físico e residem em esferas de influência localizadas nos cinco órgãos (ZÁNG ): o
coração, os rins, o fígado, os pulmões, e o baço. A adequada nutrição destes
espíritos é um requisito para a realização do DÀO , o que conduz a uma
característica peculiar do Daoísmo: considerar a boa saúde como condição para
realização espiritual, que, uma vez alcançada, implica não somente na obtenção de
sabedoria e estados refinados de consciência, como também em longevidade ou
mesmo imortalidade.
“Aquele que for capaz de nutrir os espíritos internos não irá
morrer. Por espíritos eu me refiro aos espíritos das cinco esferas. A
alma no fígado, a alma material nos pulmões, o espírito no coração, a
intenção consciente no baço e a essência junto com a vontade nos
rins. Quando estas cinco esferas se exaurirem ou ferirem, os cinco
espíritos irão fugir.” (Kohn, 1992, p.68)
50
Esta passagem do clássico mostra a idéia da necessidade da saúde do corpo
para que a consciência se desenvolva, na linguagem do cânone, “se as esferas se
ferirem, os espíritos irão embora”. Também temos aqui uma primeira referência aos
espíritos orgânicos (JĪNG SHÉN ), sem nenhuma elaboração sobre suas
funções. Os termos originais seriam HÚN , para a alma que reside no fígado; PÒ
, para a alma material que reside nos pulmões; SHÉN , para o espírito no
coração; YÌ , para a intenção no baço; e ZHÌ , para a vontade nos rins.
Antes de nos aprofundarmos nos significados destas noções, faz-se
necessária, ainda, a apresentação de outras categorias fundamentais da cosmologia
daoísta. Para tal apresentamos a seguir um verso do DÀO DÉ JĪNG
道 德 經.
O Dao engendra o Um
O Um engendra o Dois
O Dois engendra o Três,
O Três é a origem de todas as coisas.
51
50
Esta passagem é uma tradução do DÀO DÉ JĪNG compilado por HÉ SHÀNG
GŌNG 河 上 公 presente no Cânone Daoísta da dinastia MÌNG (1368 A 1643 d.C.). Texto
DZ682, fascículo 363, capítulo 6;1,5ª.
51
Parte do verso 42 do DÀO DÉ JĪNG traduzido por Stephen Mitchell em
http://www.edepot.com/taoism.html
, acessado em 17/11/2007.
77
O capítulo 42 do cânone explicita a fórmula de criação do universo, que
posteriormente é desdobrada em significados e esquemas cosmológicos no campo
da Alquimia Daoísta. Este desenvolvimento nos conduz a mais um conjunto de
noções que fundamentam simultaneamente as visões do cosmos (macrocosmos) e
do homem (microcosmos). Girardot (1983) concebe uma análise deste esquema
cosmológico, onde mostra que o termo DÀO no primeiro verso refere-se ao DÀO
transcendente, à fonte da criação, que permanece em eterna relação com o
universo criado, sendo porém, imanifesto. Esta face do DÀO é denominada de
WÚ JÍ , o supremo misterioso, inefável. Desta fonte emerge espontaneamente
HÙN DÙN , o “ovo cósmico”, uma espécie de caos primordial, onde os
aspectos da tríade que sustenta o cosmos se encontram presentes, porém
misturados. Este passo seria o “um” do DÀO DÉ JĪNG
道 德 經. A seguir, inicia-se o
processo de separação, “o dois”, onde teríamos a diferenciação, ou polarização do
caos primordial em YĪN , o princípio obscuro, e YÁNG , o princípio luminoso.
Estes dois princípios agora separados permanecem imersos na presença da mistura
inicial neutra, mediadora entre os dois pólos, Assim, com os três, aspectos, o YĪN ,
o YÁNG e o YUÁN , primordial, denotando algo que estava presente antes da
polarização de YĪN e YÁNG , temos as condições necessárias e suficientes
para a geração e organização do mundo fenomênico, o mundo dos “dez mil seres”,
espaço onde as miríades de formas interagem na dança cósmica.
Portanto, no ponto de vista da Cosmologia Daoísta, qualquer processo de
criação envolve a interação de três forças primordiais, e no caso do próprio universo
fenomênico, a parte YĪN , obscura, seria a parte que se condensa até formar sua
base material, JĪNG ; a parte YÁNG , luminosa, seria a parte que ascende
formando seus aspectos etéreos e luminosos, como a consciência, SHÉN ; e a
parte intermediária, que conecta a matéria e a consciência, é a força vital, QÌ .
Winn (2001)
52
nos confere outras imagens desta cosmologia, quando apresenta a
noção de decaimento do elemento neutro. Para o autor haveria uma imensa
quantidade de YUÁN QÌ no HÙN DÙN , o ovo cósmico, um tipo de força
vital neutra e indiferenciada. O surgimento do YĪN e do YÁNG aconteceria a
partir do “sacrifício” do próprio elemento neutro (YUÁN ), que se partiria em dois,
52
Winn, M. é um professor de Alquimia Daoísta Contemporânea no ocidente, com atividade
de expressão internacional. Seus escritos, não publicados em meios acadêmicos, são
considerados aqui como fontes documentais.
78
diminuindo à medida que o universo se desdobra. Vejamos a seguir uma análise
pormenorizada dos três aspectos, já divididos em JĪNG , QÌ e SHÉN .
JĪNG
O ideograma JĪNG é composto por três partes. A primeira, o radical à
esquerda, MǏ , é a imagem de grãos de arroz, usada aqui com um sentido
genérico de semente, algo que contém a essência da vida em estado potencial. À
direita temos o ideograma QĪNG , composto de duas partes. Acima, o ideograma
SHĒNG , traduzido como vida, mostra a imagem de plantas crescendo, e abaixo,
o ideograma DĀN , mostra um pote alquímico contendo cinabre. O cinabre
refinado por processo alquímico (WÀI DĀN ), era tido como uma substância
com alto poder de regeneração corporal, garantindo a longevidade para seu usuário.
O ideograma composto JĪNG , nos traz imagens de armazenamento, geração, e
desenvolvimento da vida, especificamente da corporal. JĪNG , como a face
obscura (YĪN ) do cosmos refere-se ao poder que cria e sustenta a matéria, no
nível macrocósmico, e a força que cria e sustenta o corpo humano, no nível
microcósmico. O termo JĪNG é usualmente traduzido por “essência”.
SHÉN
O ideograma SHÉN é composto por dois elementos. À esquerda, no radical,
temos a imagem da abóbada celeste contendo as estrelas, o sol e a lua. À direita
temos a imagem de duas mãos que vem do céu para baixo, e retornam. A primeira
parte simboliza o poder organizador presente em TĪAN , céu, que faz com que as
esferas celestes sigam seu curso característico. O símbolo indica também conexões
com a astrologia, segundo a qual a vontade do poder organizador seria revelada aos
homens por sinais emitidos pelos corpos celestes. A segunda parte mostra a
extensão desta força para baixo, ou seja, do poder organizador em direção a terra,
tido como símbolo do mundo material. Eyssalet (2003) retrata SHÉN como um
poder criativo, mas sempre relacionado ao processo de criação de ordem a partir de
algo indiferenciado. SHÉN seria a ordem necessária para criação de formas e
seres a partir da matéria primordial indiferenciada (JĪNG ). Winn (2001) usa o
termo SHÉN associado à consciência ou autoconsciência.
79
O ideograma QÌ é composto por MǏ , arroz, o mesmo da base do
ideograma JĪNG , só que agora o arroz está sendo processado em um recipiente,
de onde emanam vapores. A semente processada nos confere a imagem da fonte
da vida, agora ativada, e os vapores trazem a imagem de vento ou sopro, que
emanam da semente, o sopro, ou força vital. Esta força, emanando da matéria, sobe
em direção ao céu. Em termos técnicos, o JĪNG contém O QÌ , que por sua vez
conecta o JĪNG ao SHÉN , podendo até ser convertido em SHÉN .
Os diferentes tipos de QÌ podem ser compreendidos como qualidades da
força vital que foram evoluindo a partir do YUÁN QÌ , a força vital original
indiferenciada. O termo YUÁN pode ser traduzido como origem, primórdio ou
princípio. YUÁN QÌ seria então a força vital presente na origem do cosmos, ou
no nível microcósmico, no momento da concepção de um ser
individualizado.Também seria a parcela de QÌ que os seres absorvem do DÀO
no momento de sua concepção, conforme o esquema de HÉ SHÀNG GŌNG
.
80
2.2. Desenvolvimentos Contemporâneos dos Saberes Clássicos
As noções fundamentais e as práticas associadas à uma medicina que valoriza
YǍNG SHĒNG , o cultivo da vida, e HÉ , a harmonização dos seres
individuais com o cosmos e com a sociedade já estavam claramente desenvolvidas
na dinastia HÀN
漢. Porém, as referências a estas noções que encontramos em
textos clássicos como o HUÁNG DÌ NÈI JING , são feitas de forma
condensada, às vezes evasiva, ou pouco explicativa para o leitor.
Por exemplo, o capítulo 23 do SÙ WÈN informa sobre a localização de
cada um dos espíritos dos órgãos no corpo, exatamente como a citação de HÉ
SHÀNG GŌNG . No capítulo 8 aparecem algumas referências às funções
psíquicas dos ZÀNG FǓ , órgãos e vísceras, mas sem menção direta aos
espíritos dos órgãos. Selecionamos na passagem a seguir apenas as referências a
estas funções, que poderiam ser associadas aos espíritos dos órgãos:
“O coração é o imperador, abriga o espírito [SHÉN ] [...] O
pulmão [...] é como um primeiro-ministro, que ajuda o monarca a
governar [...] O fígado [...] é como um general, a cargo do
planejamento [...] A vesícula biliar é como um juiz, que julga o certo o
errado [...] O centro do tórax [pericárdio] governa a alegria.” (Veith,
1972, p.133)
Este estilo de texto parece ter sido intencionalmente escolhido para funcionar
junto com a tradição oral, onde a função do mestre transmissor da linhagem seria
desdobrar o símbolo para seus alunos em uma diversidade de significados que
estariam ali condensados. Desta forma, não sabemos até o presente momento, se
os desenvolvimentos literários recentes elaborados pelos autores ocidentais são
novos no plano do pensamento e desenvolvimento das idéias, ou se eles inovam
apenas no plano da escrita.
É notável que parte da produção recente de conhecimento em Medicina Chinesa
no ocidente evidencia uma valorização da Medicina Clássica Chinesa, apresentando
interpretações das noções fundamentais que tem resultado numa produção literária
inovadora. Neste tipo de obra os autores desenvolvem as noções dos WǓ JĪNG
SHÉN , os cinco espíritos dos órgãos, das funções psíquicas dos ZÀNG FǓ
, órgãos e vísceras, e dos SHÉN XUÈ WÈI , espíritos dos pontos de
acupuntura com um grau de elaboração não encontrado nos clássicos ou na
81
literatura chinesa contemporânea
53,
54
, Estas obras tem em comum a elaboração da
noção de SHÉN como funções psíquicas dos ZÀNG FǓ e dos pontos de
acupuntura. Além disto, desenvolvem explicações sobre o modo como as noções se
infundem nas outras dimensões da racionalidade médica, saindo da cosmologia e da
doutrina médica, para entrar na dinâmica vital, morfologia, diagnose e terapêutica.
Eyssalet (2003, p.141) salienta que no capítulo 47 do LÍNG SHÚ está
registrada a relação entre os JĪNG SHÉN , os espíritos dos órgãos, XÌNG , a
natureza interna e MÌNG , o destino. Porém, as explicações sobre o modo
operacional desta relação não estão desenvolvidas. Em termos de Racionalidade
Médica, a explicação do modo como o modelo cosmológico se inscreve na dinâmica
vital não está explícita.
Autores contemporâneos como Jarret (2000), têm como ponto de partida
algumas concepções clássicas como a primazia do SHÉN , considerando que os
outros quatro espíritos, HÚN , PÒ , YÌ e ZHÌ , seriam suas partes
especializadas que se alojariam nos outros quatro ZÀNG , órgãos, cumprindo
funções específicas. Jarret (2000) e Dechar (2006) desenvolvem suas interpretações
a partir da análise etimológica dos ideogramas clássicos e da relação existente entre
o modelo cosmológico das cinco fases, baseado no diagrama de HÉ TÚ
55
,
onde as fases aparecem dispostas da seguinte forma:
53
Expressão literária da escola Medicina Tradicional Chinesa.
54
Estas elaborações estão presentes principalmente nas obras de Worsley (1990, 1991),
Yuen (2005), Jarret (2000, 2003), Willmont (1999), Kaatz (2005) e Dechar (2006).
55
A criação do Diagrama HÉ TÚ é atribuída ao imperador mitológico FU XI . O
diagrama é um instrumento essencial para a elaboração da cosmologia no YÌ JĪNG .
Para aprofundamento na questão ver Barsted (2003, p.200).
82
Figura 2: Gráfico das 5 fases fundamentado no diagrama HÉ TÚ 河 圖.
Neste modelo, as cinco fases são vistas como uma espécie de mapeamento do
processo de criação e reabsorção do cosmos, onde temos SHǓI , a água, como a
fase primordial, mais próxima do WÚ JÍ , a fonte da criação; HǓO , o fogo,
seria o a fase de nascimento da consciência, poder de organização relacionado à
SHÉN ; MÙ , madeira, seria o processo de distinção das formas no mundo; JĪN1
, metal, seria ao mesmo tempo o processo de materialização do cosmos, e o início
do retorno ao WÚ JÍ , à unidade primordial. Por último, TǓ , a terra é
considerada o eixo da criação, recebendo a posição central entre as outras fases,
representa o equilíbrio entre o processo de criação e dissolução das formas.
A partir disto desenvolvem a noção de YǍNG MÌNG , nutrir o destino,
presente no SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG , explicando como a
relação de um ser individual com seu mandato celeste (MÌNG ), no sentido de um
“contrato celeste” entre o ser individual e o cosmos define a disposição geral para a
saúde ou para a doença. Em termos da dinâmica vital humana, no momento da
concepção de um novo ser individualizado, o SHÉN macrocósmico, tido como a
emanação do poder criativo e configurativo do céu (TĪAN ), imprime em JĪNG , a
matéria indiferenciada, no caso o embrião (ovo) recém-formado (ou o corpo recém
nascido) os potenciais singulares que definem XÌNG sua natureza interna e MÌNG
as ações a realizar no mundo para desenvolvê-los. Este potencial permanece
oculto nas profundezas do corpo físico e do inconsciente psíquico, que tem um
endereço certo na dimensão da dinâmica vital.
Em todo o campo da Medicina Chinesa considera-se que o sistema SHÈN ,
rins, armazena JĪNG
, a essência, associada aos fluidos do corpo humano
5
Terra
1
Agua
2
Fogo
4
Metal
3
Madeira
Fonte:
Jarret (2000, p. 125)
83
(esperma, sangue menstrual e mais recentemente, hormônios em geral). Porém,
neste nível de interpretação, o sistema dos rins (SHÈN ) armazena as
potencialidades do ser. Estas se relacionam diretamente com a força vital original
(YUÁN QÌ ), que determina a vitalidade, longevidade e expressão da
singularidade contida na essência (JĪNG ). Nesta interpretação, o esperma
aparece apenas como mais um tipo de semente, de potencial para gerar vida no
interior do grande reservatório de potenciais. Por sua vez, a fase água, representa
agora não somente os líquidos e fluidez, mas apresenta também os significados de
escuro, desconhecido, indiferenciado, e inconsciente. É nas profundezas das águas,
do inconsciente, também apresentado como a matéria do corpo humano,
especialmente os rins, que o ser humano encontrará seus potenciais e sua fonte
primária de vitalidade.
Este processo encontra-se mapeado no meridiano do sistema SHÈN , rins, a
partir de seu percurso e de alguns pontos de acupuntura como o MÌNG MĒN , o
portão do destino, ponto a partir do qual a força vital (QÌ ) da coluna vertebral se
interioriza e nutre o órgão propriamente dito.
Assim, a negação de MÌNG , com o envolvimento em atividades na vida
cotidiana que são contrárias à natureza interna (XÌNG ) e a manifestação de seus
potenciais, implica, em termos de dinâmica vital, na impossibilidade de acessar
YUÁN QÌ , a fonte primária de vitalidade, conduzindo à separação do YĪN e
do YÁNG , e formando a base para todos os tipos de desequilíbrios posteriores. A
fonte primaria só pode ser acessada se o contrato (MÌNG ) for honrado.
O SHÉN , assim como os outros quatro JĪNG SHÉN também assume
suas funções psicofisiológicas. Após ter inscrito nas profundezas do JĪNG os
potenciais do novo ser, o SHÉN se instala em XĪN , coração, e constitui com
ZHÌ , vontade, instalado nos rins o primeiro par complementar de órgãos e
espíritos.
O SHÉN e o XĪN são, respectivamente, o espírito e o órgão
correspondentes à fase fogo, que representa o poder de nomear, significando o ato
de dar identidade às coisas no mundo, mas principalmente, a si-mesmo. A fase fogo
representa o alvorecer da autoconsciência. Na dinâmica vital, a ativação de SHÉN
ocorre quando a criança manifesta seu primeiro sorriso, que seria um sinal deste
alvorecer.
84
Assim, o SHÉN que reside em XĪN é tido como uma individualização do
SHÉN macrocósmico, que guarda as características singulares da natureza
interna do ser individualizado, tendo como função guiar e comandar o
desenvolvimento da vida na direção ideal para o mesmo. Porém, o SHÉN
individualizado não nasce com consciência total de XÌNG e MÌNG , de fato, a
autoconsciência e a consciência do mandato celeste são processos de
desenvolvimento que ocorrem a partir do momento que o homem direciona sua
vontade para o auto-conhecimento. Na linguagem alquímica e médica, este
processo é nomeado de “levar o fogo para baixo da água”, que significa direcionar a
consciência para o inconsciente, por ser nas profundezas da água, que a mémoria
do mandato (MÌNG ) reside, aguardando ser ativada por SHÉN . O fogo,
símbolo da consciência, é a função que ativa os potenciais ocultos nas profundezas
do inconsciente/corpo, transformando assim o potencial vital armazenado na fonte
primária em potência vital pronta para ser utilizada em ações no mundo. O resultado
deste processo de interação fogo-água, entre a essência (JĪNG ) e a consciência
(SHÉN ), é o desenvolvimento da consciência de si, de sua natureza interna e do
caminho de vida, e a disponibilização de energia vital para trilhar este caminho. Em
termos de dinâmica vital, esta interação é feita pelo entrecruzamento dos meridianos
dos rins e do coração.
Neste contexto, se o termo SHÉN toma o sentido de consciência de sua
própria natureza interna, o termo ZHÌ , usualmente traduzido como vontade, é
interpretado por Yuen (2005, p. 27) como vontade de viver ou vontade de
incorporar. Neste contexto, a vontade de viver é um “espírito” que seria ativado a
partir do contato consciente com um propósito para viver, dado pelo
desenvolvimento dos potenciais no mundo, o cumprimento de MÌNG , mandato
celeste. ZHÌ seria o sentido de propósito que mantém a vontade de estar vivo em
um corpo, mas sozinho seria incapaz de distinguir entre uma infinidade de possíveis
propósitos para a vida. ZHÌ necessita da interação com SHÉN , que confere um
senso de veracidade ou realidade ao impulso à vida.
Estas interpretações ampliam também os significados das qualidades da força
vital (QÌ ). Por exemplo, o YUÁN QÌ é tido como o tipo de QÌ que
impulsiona o ser na direção da realização de seus potenciais, justamente por
representar a expressão original dos potenciais conferidos ao ser no momento da
concepção. Jarret (2000, p.33), baseado em Porkert (1982), desdobra também os
85
sentidos do ZHĒN QÌ . O termo ZHĒN pode ser traduzido como correto,
autêntico, genuíno ou real e, neste contexto, o ZHĒN QÌ seria a vitalidade
decorrente da realização dos potenciais e do cumprimento de MÌNG , destino, ou
seja, uma vitalidade autêntica, sendo o resultado da realização, enquanto o YUÁN
seria o impulso à realização. Segundo os autores, o ZHĒN QÌ teria o
papel de “sustentar a integridade individual e proteger o ser de ataques e
perturbações exógenos e endógenos”. Interpretado desta forma o ZHĒN QÌ
assume uma função análoga à função imunológica na biomedicina, porém, mais
uma vez com características estendidas. Primeiro, protege o ser não somente de
ataques exógenos, mas também endógenos. Lembrando que os principais “fatores
patogênicos” endógenos são os excessos emocionais, ZHĒN QÌ seria também
uma capacidade de re-organizar emoções intensas de forma que não causassem
dano interior. Segundo, ZHĒN QÌ , sendo conseqüência do processo de
reconhecimento de XÌNG , a natureza interna e cumprimento de MÌNG ,
mandato celeste, relaciona a “capacidade imunológica” ao auto-conhecimento,
desenvolvimento de potenciais no mundo e sentimentos de auto-realização.
O próximo passo na evolução da vida dentro deste contexto seria representado
pela fase madeira, tendo HÚN , o espírito celeste, como o nível de consciência
relacionado, instalado no fígado (GĀN ).
Conforme citações do HUÁNG DÌ NÈI JING , HÚN estaria
relacionado à função de planejamento. Porém, de acordo com Jarret (2000, p 235),
sua atuação mais específica, ligada ao nível celeste, seria a capacidade de planejar
o desdobramento da vida de acordo com o desenvolvimento dos potenciais, pois,
SHÉN e ZHÌ sendo respectivamente a consciência dos potenciais verdadeiros
e a vontade de viver, não teriam por si mesmos a capacidade de determinar o “como
fazer”. HÚN representaria a capacidade de desdobrar no mundo uma espécie de
plano contido em uma semente. Yuen (2005, p. 28) nos traz a seguinte imagem:
“Uma vez determinado o propósito, o sentido de sua vida, você
começa a programar os tipos de experiência que lhe permitirão realizar
de forma profunda este sentido. Isto significa que você começa a
armazenar o sangue, que passa a ser programado como um disco de
computador. [...] O HÚN programa o conjunto de eventos na vida
que irão desdobrar o tema [do destino]. “
86
Dechar (2006, p.199), em concordância com os autores acima, adiciona que
HÚN estaria ligado às funções da imaginação e do sonho, tendo o dever de
“achar o caminho verdadeiro” a ser trilhado na vida.
O próximo passo é representado por PÒ , o espírito material, que desde o
princípio da gestação teria a função de “formar o corpo”. Segundo Jarret (2000, p.
260) e Yuen (2005, p.26), PÒ seria a parte de SHÉN responsável pela
formação e manutenção do corpo físico. Seria responsável pela capacidade de
“agarrar a vida”, perceptível na forma com que
FÈI , os pulmões, residência de PÒ
, capturam o ar para extrair-lhe o princípio vital (QÌ ). Jarret (2000, p. 260)
estende as interpretações das funções de PÒ para a capacidade de distinguir e
apropriar-se do necessário para a manutenção da vida corpórea, e num sentido mais
específico, para a realização do mandato (MÌNG ). Seria a capacidade de
perceber e capturar o que é essencial à vida, e de renunciar ou suportar a perda do
que não for necessário para o desenvolvimento do plano proposto por HÚN . O
autor amplia também a interpretação de JĪN , a fase metal, através das imagens
dos metais e especialmente do ouro como aquilo que desperta na consciência
humana o sentido de valor, beleza e qualidade, PÒ , como o “espírito” desta fase,
seria a parcela da consciência humana responsável pela atribuição de valor às
pessoas, objetos e relações no decorrer da vida.
A última etapa é reservada ao YÌ , intenção, parte de SHÉN associada a
TǓ , fase terra. O ideograma YÌ é composto por uma parte superior que
significa a pronúncia de um som, colocado sobre o radical XĪN , coração. Jarret
(2000, p. 280) interpreta YÌ como a capacidade de estabelecer no mundo (o som
pronunciado), as intenções que residem no coração. Sendo o espírito relacionado à
fase terra, Dechar (2006, p.216) interpreta as funções de YÌ como as capacidades
de sustentar uma intenção, definir o pensamento com clareza, e memorizar. As duas
primeiras estão relacionadas às funções da fase terra (TǓ ) como o poder de criar
e manter as formas. A terra é considerada a força que sustenta todas as formas, e a
intenção, um tipo de poder criador de formas, visível em um pensamento organizado.
A memória, outro atributo da terra (TǓ ) seria a própria definição de forma, como
algo que se mantém por si mesmo. TǓ seria aquilo que contém e suporta o
processo de criação do DÀO . Jarret (2000, p.217) estende ainda mais os
atributos de YÌ quando lhe confere a função de “manter a integridade individual”.
87
Este aspecto é associado à posição da fase terra (TǓ ) no modelo cosmológico
das cinco fases, onde é considerado o eixo. Seria aquilo que mantém coeso e
integrado os dois pares de forças opostas representados: o fogo com a água (HǓO
- SHǓI ), e a madeira com o metal (MÙ -JĪN )l. Somente pela força coesiva
do eixo que estas forças encontram um balanceamento adequado. Assim, segundo
o autor, XÌN , a integridade seria uma função psíquica associada à SHÙ , a
reciprocidade, conjunto responsável por regular a distribuição da força vital entre o
ser individualizado e o mundo, de forma que garanta tanto a subsistência da
individualidade (XÌN , integridade), como um conjunto de trocas adequadas e
balanceadas com o mundo (SHÙ , reciprocidade).
Temos então um modelo que nos apresenta os órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ
) como a residência dos espíritos orgânicos (JĪNG SHÉN ), algo que é
claro nos clássicos, porém, aqui são descritos como funções da consciência humana,
apresentando para cada nível atribuições específicas, tanto em capacidade cognitiva
como em poder organizativo, conforme resumo apresentado nas tabelas a seguir:
88
Tabela 4: As Atribuições dos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN ).
JĪNG SHÉN
Sentido Apresentado
nos Clássicos
Sentido Ampliado nos Textos Contemporâneos
SHÉN
Consciência e
comando (Metáfora do
imperador)
Consciência da natureza interna (auto-conhecimento) e do
destino (potenciais e ações a realizar em vida);
Comando equivale a capacidade de direcionar o
desenvolvimento da vida em ressonância com a natureza
interna (XÌNG ) e com o mandato celeste (MÌNG ).
ZHÌ
Vontade, ambição Vontade de viver usualmente relacionada com o sentido de
ter um propósito de vida;
Vontade de incorporar
HÚN
Planejamento Planejamento do desenrolar da trama da vida de acordo
com o tema do propósito de vida;
Imaginação.
Comandar os instintos
de sobrevivência;
Formar o corpo físico.
Atribuição de valor ao conjunto de objetos e relações
estabelecidas na vida;
Tomar posse de bens materiais ou relacionais que tenham
valor para sustentar o desenrolar da trama da vida de
acordo com o propósito ou expurgar os que não tenham;
Percepção de qualidade e beleza.
Intenção Intenção, com sentido de manifestar a vontade no mundo,
criando forma a partir do tema do propósito de vida;
Capacidade de integrar as experiências da vida à
personalidade.
Memória.
89
Tabela 5: As Virtudes Associadas aos Espíritos Orgânicos (JĪNG SHÉN )
JĪNG SHÉN
Virtude Associada Poder de Regulação
SHÉN LǏ
Propriedade
Capacidade de perceber a adequação de suas ações
em relação ao contexto social e à trama da vida.
ZHÌ ZHÌ
Sabedoria-Prudência
Regular a quantidade de força vital (QÌ ) investida em
determinada área da vida cujo desdobramento seja
desconhecido.
Capacidade de permanecer com a mente serena
perante a emoção de medo decorrente do
enfrentamento do desconhecido.
HÚN RÉN
Benevolência
Capacidade de incluir o outro no desenrolar de seu
plano de vida, abrindo espaço para o desenvolvimento
simultâneo de seu plano.
, Retidão
Regular os ganhos e perdas durante o desenrolar da
vida;
Balancear acúmulos e eliminações.
XÌN , Integridade;
SHÙ , Reciprocidade.
Capacidade de distribuição e troca de força vital (QÌ )
entre o eu e o outro (reciprocidade), de forma que
garanta a integridade de ambos.
90
Assim, podemos ver que o desdobramento dos sentidos e significados dos
cinco espíritos orgânicos (WǓ JĪNG SHÉN ), bem como suas funções
psicofísicas têm sido feito pelos autores contemporâneos a partir de sua re-inserção
dentro do contexto formado pelas noções clássicas fundamentais presentes nos
cânones Daoístas e Médicos, movimento em direção oposta ao realizado pela
medicina de Estado da República Popular da China.
Neste contexto, a teoria dos espíritos orgânicos (JĪNG SHÉN ) nos
fornece um tipo de mapa da psicodinâmica humana em relação às noções
fundamentais de natureza interna (XÌNG ) e mandato celeste (MÌNG ),
configurando uma “teoria da psicodinâmica do destino”. Pelo caráter integrado desta
psicodinâmica com o corpo físico, o modelo nos confere métodos para leitura de
sinais indicativos da qualidade destas forças residentes no ser individual, o
equivalente a uma diagnose da relação do ser com seu mandato celeste (MÌNG ),
e também um locus físico para ação terapêutica sobre estas forças. Como o corpo
humano é considerado um microcosmos, a ação terapêutica sobre este corpo que
atinja estas forças fundamentais repercute na sociedade e na natureza
(macrocosmos), re-organizando o macro a partir do micro conforme o pensamento
de GUŌ XIÀNG
郭 象 e HÉ SHÀNG GŌNG 河 上.
Os espaços mais diretamente relacionados à natureza interna (XÌNG ) e ao
mandato celeste (MÌNG ) são, obviamente, os reservados ao XĪN , coração e ao
SHÈN , rins. O modelo de dinâmica vital mostra como estas forças cósmicas
atuam dentro do corpo individual. Segundo o sistema de passagem de energia vital
entre os meridianos, se iniciarmos com o do coração veremos o QÌ , a força vital,
descendendo do coração para as mãos pelo interior do braço (parte superior
esquerda
56
). A partir do dedo mínimo a força vital passa para o meridiano do
intestino delgado, de onde ascende até a cabeça pela parte externa do braço. Ao
chegar à cabeça, conecta-se com o meridiano da bexiga no canto interno dos olhos,
ponto de acupuntura JĪNG MÍNG (B1) (parte superior direita). A partir deste
ponto a força vital desce pela cabeça e pelas costas até chegar ao dedo mínimo dos
pés, percorrendo o meridiano da bexiga. No trajeto, penetra nos rins. (parte inferior
direita). Do dedo mínimo vai para a sola dos pés no meridiano dos rins, e ascende
pela parte frontal do corpo até penetrar novamente o coração, seu ponto de partida,
e terminar no tórax, ao lado do osso esterno (parte inferior esquerda).
56
Apresentamos uma figura na página seguinte para ajudar na visualização desta descrição.
91
Figura 3: Trajetos dos Meridianos dos Rins, Coração, Bexiga e Intestino Delgado.
92
Este trajeto mostra que existe uma dinâmica natural de mistura da essência
(JĪNG ) dos rins com a consciência (SHÉN ) do coração a partir da circulação da
força vital (QÌ ). Além disto, como o ponto da bexiga JĪNG MÍNG
57
se localiza
no canto interno dos olhos, é um ponto que confere à eles o brilho, MÍNG , dado
pela interação de SHÉN e JĪNG . Um brilho que seria um sinal resultante do
reconhecimento da natureza interna (XÌNG ) e da manifestação do mandato
(MÌNG ). Este modelo de dinâmica vital, explica como se poderia avaliar a
qualidade da relação do indivíduo com estes princípios, ou seja, uma avaliação do
seu estado de saúde no ponto original onde se define saúde ou doença, constituindo
assim uma prática da dimensão diagnóstica da racionalidade médica, adequada ao
nível celeste.
A relação entre o brilho dos olhos e a conquista de um estado de super-saúde
pode ser observada também nos hagiografias dos imortais, conforme passagem a
seguir:
“She Zheng era nativo de Ba Oriental. Ele falava sobre eventos
do tempo do primeiro imperador Qin como se os tivesse testemunhado.
Nos últimos anos da dinastia Han ele e vários de seus discípulos
foram para a área de Wu. Ele sempre mantinha seus olhos fechados.
Mesmo quando andava, nunca os abria. Nenhum dos seus discípulos
que o seguiram por décadas, jamais o viu abrir seus olhos. Mas, um
deles implorou para que os abrisse, então Zheng abriu os olhos para o
discípulo, e, no momento que os abriu, escutaram um som como um
trovão, e um brilho como um raio tomou a sala. Todos os discípulos
caíram no chão, inconscientes, e passou um tempo longo antes que
pudessem levantar novamente. Então Zheng fechou seus olhos
novamente. She Zheng realizou o seu caminho sem que ninguém
notasse alguma dieta especial ou outras práticas visíveis. Mas, para
todos os seus discípulos ele transmitiu métodos de circulação de Qi,
as artes sexuais, e a ingestão de um elixir menor feito de pedras. É
dito que Li Babai se referia a She Zheng como um “rapaz de
quatrocentos anos” (Campany, 2002, p. 332)
57
Ao traduzir o nome do ponto, temos JĪNG como olho, e MÍNG ,, brilho, assim o termo
completo seria “o brilho dos olhos”. Um aspecto notável é que os ideogramas para o nome
do ponto são homófonos à JĪNG , essência, e MĪNG ,, mandato celeste.
93
Analisaremos as práticas terapêuticas do nível celeste de forma mais
minuciosa em capítulos posteriores, dedicados à exposição do modo como cada
prática é utilizada nos três níveis de apreensão. No capítulo seguinte abordaremos
as noções do nível humano da Medicina Chinesa. Do ponto de vista do nível celeste,
o cenário do próximo capítulo torna-se pertinente a partir do momento que o brilho
dos olhos diminui, ou seja, quando o ser humano perde o contato com sua natureza
interna (XÌNG ), haveria um decréscimo de vitalidade e autenticidade, tornando
necessária a utilização de outro conjunto de saberes e práticas.
Capítulo 3 – O Nível Humano
Capítulo 3:
O Nível Humano
95
O nível humano da Medicina Chinesa aparenta maior visibilidade na literatura e
no espaço da prática do que o anterior, pois algumas de suas noções como prevenir
desequilíbrios e suplementar deficiências são encontradas com bastante freqüência.
As ações de prevenir, guardar e suplementar constituem seus fundamentos, estando
conectadas a outra noção básica: YǍNG XÌNG , nutrir a natureza. Desta forma
apresentamos este capítulo em dois tópicos. No primeiro apresentamos o mais
simples e aparente: os saberes e práticas de prevenir, guardar e suplementar. A
seguir elaboramos a análise das concepções no contexto da relação entre os níveis
celeste e humano, explorando uma dimensão incomum de sentidos e significados.
3.1. Prevenir, Guardar e Suplementar: Processos Fundamentais do Nível
Humano
Guardar (SHǑU
) e suplementar () podem ser compreendidos como duas
formas complementares de prevenção. A noção de guardar os três tesouros (SĀN
CÁI ) compreende um conjunto de saberes e práticas voltados à preservação
de três elementos fundamentais para a saúde: JĪNG , essência, QÌ , força vital,
e SHÉN , consciência.
JĪNG
No capítulo anterior apresentamos JĪNG , a essência, em seus aspectos
macrocósmicos. Para a compreensão de sua importância para a saúde é necessário
um aprofundamento sobre suas funções dentro do pequeno universo do corpo
humano.
Para a Medicina Chinesa, JĪNG refere-se a uma espécie de reservatório de
vitalidade, podendo transformar-se em QÌ quando necessário. Maciocia (1996)
refere-se ao JĪNG como fluido, e ao QÌ como uma “energia”, denotando algo
menos substancial que o JĪNG . A abundância dos fluidos essenciais determina o
nível geral de vitalidade do organismo, pois JĪNG está intimamente relacionado à
YUAN QÌ , a força vital original, fundamento da vitalidade do organismo, de onde
todas as outras formas de QÌ presentes nos ZÀNG FǓ 贓 腑, órgãos e vísceras,
se originam. O sistema SHÈN , rins, é responsável pelo armazenamento do JĪNG
, que constitui também a base para seu funcionamento, pois o SHÈN QÌ , a
vitalidade dos rins, depende de um estoque adequado de JĪNG .
96
Existem duas formas principais de JĪNG . A primeira chamada XĪAN TĪAN
JĪNG 先 天 , essência pré-celestial, refere-se a um tipo de aporte básico de
essência que cada ser recebe no momento da concepção e durante sua estadia no
útero materno. Assim, a partir do nascimento, o ser agora individualizado perde seu
acesso às fontes de XĪAN TĪAN JĪNG 先 天 , que constitui então a parte
irrecuperável de SHÈN JĪNG , essência dos rins. Por sua vez, HÒU TIĀN JĪNG
後 天 精 refere-se ao produto final do processo de assimilação de alimentos e ar. É
a essência adquirida através da alimentação e da respiração durante o transcurso
da vida. A qualidade do HÒU TIĀN JĪNG 後 天 精 depende da qualidade dos
alimentos e do funcionamento dos sistemas PÍ , baço-pâncreas, WÈI ,
estômago, e FÈI , pulmões, responsáveis pelos processos digestivo e respiratório.
Assim, SHÈN JĪNG é constituída por uma parcela irrecuperável, XĪAN TĪAN
JĪNG 先 天 , e outra recuperável, HÒU TIĀN JĪNG 後 天 , sendo que uma vez
desgastada, a parte irrecuperável não pode ser substituída pela essência que
provêm dos alimentos, o que faz com que o produto total seja algo destinado a
diminuir com o tempo. O aporte de JĪNG é diminuído com o envelhecimento, e
portanto, vários sinais deste estão associados à esta diminuição da essência.
“A energia do rim de uma menina torna-se abundante aos 7 anos.
Seus dentes de leite são substituídos e o cabelo cresce. Na idade de
14 anos, o orvalho do Céu chega (menstruação), o Vaso Diretor
começa a fluir, o Vaso Penetrador floresce, os períodos tornam-se
regulares e ela está pronta para conceber. Na idade dos 21 anos, a
essência (JĪNG ) dos rins (SHÈN ) alcança seu pico, o dente siso
se revela. Na idade dos 28 anos, os tendões e os ossos tornam-se
mais fortes, o cabelo cresce mais e o organismo se fortalece e floresce.
Na idade dos 35 anos, os meridianos do Yang brilhante começam a se
debilitar, o aspecto perde o vigor e o cabelo começa a cair. Na idade
dos 42, os meridianos dos três Yang estão debilitados, a face
escurece e o cabelo começa a ficar grisalho. Na idade dos 49, o Vaso
Diretor se esvazia, o Vaso penetrador se vai, o orvalho do céu seca, a
passagem da terra (útero) não se abre mais, e se estabelecem a
debilidade e a infertilidade.” (Maciocia, 1996, p.54)
Desta forma, JĪNG é algo a ser protegido e guardado (SHǑU
), pois seu
desgaste reduz o aporte geral de QÌ no organismo, fazendo-se notar em sintomas
97
relacionados ao funcionamento do sistema dos rins (SHÈN ) tais como: função
sexual debilitada, impotência, debilidade nos joelhos, espermatorréia, zumbido,
surdez; e outros vinculados ao cérebro, tais como perda de memória e concentração,
face ao JĪNG alimentar a medula óssea, e o cérebro ser considerado um “mar de
medula”. O JĪNG então forneceria os recursos para a base material do cérebro e
dos ossos, estando também relacionado ao aparecimento de sintomas nos ossos
tais como perda de dentes e deterioração óssea em adultos. Como o sistema dos
rins (SHÈN ) rege os cabelos, o desgaste do JĪNG também pode ser notado
pelo embranquecimento prematuro destes.
Logo, a idéia fundamental é que um bom aporte de HÒU TIĀN JĪNG 後 天 精,
obtido principalmente pelo processo adequado de alimentação, protege o XĪAN TĪAN
JĪNG 先 天 de desgastes desnecessários, ao manter um nível adequado de
material para gerar o QÌ do organismo. É neste contexto que a sexualidade se
apresenta como um dos principais fatores vinculados ao desgaste do JĪNG , e,
portanto, se relaciona diretamente com o nível geral de QÌ .
Para melhor compreensão, basta lembrar que um dos significados de JĪNG é
esperma (Wieger, 1960, p.471), tido como uma essência refinada do organismo
masculino. Deste modo, o status da “indulgência sexual” como um fator etiológico é
explicado por este mecanismo: O esperma masculino, se não é o próprio JĪNG , é
um líquido cheio de JĪNG , ou uma forma externalizada da essência, e sua
emissão durante o ato sexual consome uma quantidade desta essência, obrigando o
organismo a reconstruí-la para manter o mesmo nível de matéria-base para geração
de QÌ . Este processo de reposição do JĪNG é algo que requer um alto grau de
elaboração, para que se possa extrair mais essência dos alimentos e do ar. “A
essência, JĪNG , é reabastecida somente com dificuldade. O QÌ pode ser
facilmente reabastecido dia após dia.” (Maciocia, 1996, p. 54).
Assim, deve-se proteger JĪNG de exposição aos seus principais fatores de
desgaste que seriam: o excesso de atividade mental e/ou física, e a atividade sexual.
A proteção aqui estaria baseada na noção de
repouso adequado, tal como descrita
na passagem abaixo:
“Se, todavia, um indivíduo trabalha arduamente por um período
muito prolongado sem repouso adequado, então o organismo não tem
como restaurar o Qi rapidamente: antes de restaurar o Qi consumido a
98
pessoa estará trabalhando novamente, consumindo mais Qi. Quando
a pessoa trabalha além da capacidade do Qi para se recompor a fim
de atender à demanda, então o organismo será forçado a depauperar
a essência para enfrentar a demanda de seu dia-a-dia.” (Maciocia,
1996, p.172)
O mecanismo da proteção por repouso é o mesmo no caso da atividade sexual,
com a diferença que nesta, o JĪNG seria diretamente consumido durante a
ejaculação.
“As essências sexuais tanto no homem como na mulher são
manifestações externas da essência do rim. Por esta razão a perda
das essências sexuais leva à perda temporária da essência do rim.
Sob condições normais, todavia, esta perda é rapidamente recuperada
e a atividade sexual normal não provoca patologias. Somente quando
há excesso desta atividade é que ocorre a perda da essência causada
pelo sexo, uma vez que o organismo não tem tempo de se recuperar e
restaurar a essência.” (Maciocia, 1996, p.174)
Assim, o conjunto de saberes e práticas voltados para a proteção do JĪNG
está relacionado, por um lado, às práticas de restrições de excessos de atividades
físicas, mentais ou sexuais
58
, e por outro, a todo o sistema de nutrição e fármacos,
onde busca-se adequar os alimentos e as ervas às características singulares dos
seres para que possam extrair de forma mais eficiente seu HÒU TIĀN JĪNG 後 天
, repondo a parte desgastada.
Uma vez obtida a reserva de JĪNG , essência, e garantida sua adequada
proteção, o corpo humano apresenta em sua dinâmica vital um processo
denominado HUÀ , metamorfose, cuja importância foi destacada por Linhares
Barsted (2003, p.66):
“HUÀ tem o sentido de transformação de uma coisa em outra
coisa (X se transforma em Y). [...] Ao contrário da ação que é
58
O tema da relação entre saúde e sexualidade constitui um vasto campo para pesquisas e
apresenta uma importante função dentro da cultura chinesa em geral. Reservamos um
capítulo no final desta tese para aprofundar questões que poderiam ser elaboradas aqui, tais
como a relação entre a sexualidade feminina e a saúde, e para aprofundar também o tema
do uso da sexualidade como prática de saúde e longevidade, em oposição aos métodos
restritivos.
99
necessariamente momentânea, mesmo quando se prolonga, HUÀ
seria uma transformação que se estende no tempo, gerando, por esta
continuidade, efeitos. Seria da continuidade da transformação que viria
seu efeito. O termo HUÀ é empregado na alquimia Daoísta onde,
por meio de continuadas práticas, se atingiria a transformação
desejada. É comum ver-se o termo “metamorfose” usado para traduzir
HUÀ .”
HUÀ seria então uma forma espontânea de transformação de um elemento
em outro. Neste caso, do JĪNG , essência, em QÌ , força-vital (JĪNG HUÀ
). Teríamos então uma situação onde a força vital abundante teria que ser
também protegida. Porém, diferentemente de JĪNG , a força-vital teria o
movimento como uma de suas principais características, e assim, proteger o QÌ
seria de fato garantir seu movimento harmônico. Neste contexto a estagnação é tida
como o principal fator de adoecimento, e as práticas teriam como objetivo, evitá-la.
A teoria dos JĪNG MÀI 經 眿
, sistema de meridianos, constitui o conjunto de
explicações na dimensão da dinâmica vital sobre a forma adequada de circulação de
no corpo humano. De acordo com esta visão, o QÌ tem espaços e direções
preferenciais para sua circulação, sendo a saúde e a harmonia o resultado da
circulação adequada. Vejamos exemplo nas ilustrações a seguir:
Figura 4: Diagrama de Circulação do YÍNG QÌ .
100
O diagrama mostra a circulação do YÍNG QÌ , força vital nutritiva,
relacionando sua concentração em um determinado meridiano com o tempo no
decurso de um dia. O gráfico mostra o inicio do circuito no meridiano dos pulmões
59
,
passando para o do intestino grosso em seguida. A cada par de horas YÍNG QÌ
deve seguir para um próximo meridiano, para garantir a adequada circulação por
todo o corpo.
Garantida a adequada circulação de QÌ , o corpo humano apresentaria
mecanismos naturais para o próximo passo que seria o armazenamento de força
vital. Segundo o modelo do sistema de meridianos uma das relações existentes
entre os chamados QÍ JĪNG BĀ MÀI
, vasos maravilhosos, e os JĪNG
ZHÈNG
, canais principais, é de armazenamento e circulação, respectivamente.
Matsumoto (1986, p.11) destaca uma passagem do NAN JING que ilustra esta
relação: “quando os doze meridianos [ordinários] estiverem repletos, o excesso é
encaminhado para os oito vasos maravilhosos”. No gráfico acima esta relação está
explicitada no momento de passagem do QÌ entre o meridiano do Fígado e dos
pulmões, pois, ao sair do fígado e completar uma volta no circuito, o QÌ passaria
pelos vasos maravilhosos RÈN MÀI
, vaso da concepção, e DŪ MÀI , vaso
governador, onde o excedente seria armazenado antes de seguir para uma próxima
volta.
Se este mecanismo funcionar, o QÌ não será desgastado e melhor, poderá ser
acumulado para que possa ocorrer a próxima metamorfose, do QÌ em SHÉN .
(QÌ HUÀ SHÉN ). Portanto, o conjunto de práticas associadas a esta fase
objetiva principalmente garantir a circulação, sendo que as diversas formas de QÌ
GŌNG
, DÀO YǏN , e massagens parecem adequadas para cumprir este
propósito.
59
Legenda do gráfico: P- Pulmões; IG – Intestino Grosso; E – Estômago; Bço – Baço; C –
Coração; ID – Intestino Delgado; B – Bexiga; R – Rins; Per – Pericárdio; TA – Triplo
Aquecedor; VB – Vesícula Biliar; F - Fígado
101
SHÉN
Segundo o modelo Daoísta (Pregadio,2003, p.562) a relação entre JĪNG , QÌ
e SHÉN é de mútua geração através dos processos de metamorfose. Ora
SHÉN é tido como uma força sutil ou mesmo uma forma de consciência que cria
ordem no mundo material através de seu poder de comando sobre o QÌ , a força
vital, ora é caracterizado como um produto do QÌ . Esta geração bidirecional
representa movimentos que ocorrem de forma perpétua e simultânea no cosmos, a
coagulação e a dissolução. A coagulação seria a parte do processo no qual as
formas materiais nascem de WÚ JÍ , criadas e organizadas por SHÉN , tido
como uma função do DÀO . A dissolução seria a parte do processo onde as
formas materiais criadas, presentes no “mundo dos dez mil seres”, retornam à fonte
da criação. O modelo de proteção dos três tesouros representa implicitamente a fase
de dissolução, quando os elementos vão se metamorfoseando de baixo para cima,
ou seja de JĪNG para QÌ e deste para SHÉN . Neste caso, SHÉN é
considerado um produto a ser extraído das forças potenciais que residem dentro da
matéria, criando uma conexão entre esta e a fonte inefável (WÚ JÍ ).
Do ponto de vista da doutrina médica, significa dizer que o ponto mais alto desta
parte do sistema de prevenção depende das proteções prévias do corpo físico e da
força-vital, um trabalho que vai do mais denso para o mais sutil. A saúde é
determinada em última instância pela capacidade de manter a consciência em
estado de serenidade para que a organização da vida aconteça de forma
espontânea através de SHÉN . Porém, esta serenidade só pode ser alcançada e
guardada se cumpridas as etapas anteriores
60
.
Uma vez alcançado algum grau de ativação do SHÉN , desta capacidade de
organização espontânea que estaria relacionada à consciência estabilizada em uma
mente serena, deve-se protege-lo de seus elementos perturbadores, as emoções
(QÍNG
), tidas como os fatores patológicos internos em todos os níveis da
Medicina Chinesa. Nesta doutrina as emoções
61
causam agitação na mente, que por
sua vez impossibilita o SHÉN de permanecer no corpo. Quando o SHÉN se
60
Esta estrutura de pensamento pode ser reconhecida na prática do QÌ GŌNG , onde
busca-se trabalhar com diversos tipos de exercícios de fortalecimento do corpo e circulação
da força vital antes de sentar-se para meditação.
61
Referimo-nos aqui ao aspecto patológico das emoções, que normalmente é compreendido
como o excesso ou a estagnação de uma delas.
102
ausenta, a capacidade de organização da vida e de percepção acurada do mundo
diminui, criando espaço para o surgimento de desarmonias.
Assim, as práticas de proteção do SHÉN estão baseadas em processos
meditativos onde se busca cultivar a serenidade da mente e o aumento do poder de
concentração. Uma das mais divulgadas para isto é conhecida como “guardar o um”
SHǑU YI
(Kohn, 2005, p.203). Apresentamos uma representação artística
da prática na figura abaixo:
Figura 5: Daoista na Prática de Guardar o Um
Busca-se manter o foco da atenção por longos
perído no ponto do corpo abaixo do umbigo, o
chamado campo de cinabre inferior (DĀN TIÁN
). (Kohn, 2005, p.207).
3.2. A Importância da Relação entre o Homem e a Natureza na Prevenção de
Desarmonias
O capítulo 2 do HUÁNG DÌ NÈI JING é inteiramente dedicado ao que
consideramos ser um aspecto mais elaborado da doutrina da circulação do QÌ .
Até o momento analisamos as noções de prevenção de desarmonias como práticas
restritas ao complexo corpo-mente do homem. Neste capitulo do clássico a idéia
fundamental é a relação existente entre a circulação do QÌ no planeta no decorrer
das estações climáticas e a circulação no interior do corpo humano. Cada estação
do ano é dotada com uma determinada qualidade de QÌ que permite ao homem
realizar algumas ações. Vejamos o exemplo para o verão:
“Os três meses de verão são denominados: fazer prosperar o
desenvolvimento da flor. O Qi do céu e da terra se entrelaça, e os dez
mil seres florescem e dão frutos. À noite deve-se ir para cama,
levantando-se na aurora. Não permita ser conquistado pelo sol. Exerça
a vontade, mas sem violência. Assista o brilho, a beleza e a força que
103
por sua vez cumprem sua promessa. Deve-se assistir o fluxo de Qi,
que gosta de ir para o exterior. Isto corresponde ao Qi do verão. É o
caminho que mantém o crescimento da vida. Ir ao contrário desta
corrente traz injúrias ao coração. Causando febre intermitente no
outono. Através de um suprimento insuficiente para a colheita, a
enfermidade piora no inverno.” (Larre, 1994, p.110)
Vejamos agora o contraste com os meses de inverno:
“Os três meses de inverno são denominados: fechamento e
armazenamento. A água congela-se e a terra se parte. Não há
influência do Yang. Deve-se ir para a cama cedo e levantar-se tarde.
Deve-se fazer tudo de acordo com a luz do sol. Exerça sua vontade
como se estivesse enterrado e escondido. Tome conta apenas de si-
mesmo, como se estivesse fixado em si. Evite o frio e busque o calor.
Não deixe nada escapar pelas camadas da pele por medo de perder o
Qi. Isto corresponde ao Qi do inverno. É o caminho que mantém o
armazenamento na vida. Ir ao contrário desta corrente traz injúrias aos
rins, causando impotência e deficiência na primavera, pois haverá
suprimento insuficiente para produção da vida.” (Larre, 1994, p. 118)
Observamos nas passagens algumas regras de comportamento tais como: um
tempo de sono mais curto no verão e mais longo no inverno; uma atitude de
interação com o mundo no verão e de reclusão no inverno; e um apoio ao
crescimento expressão dos seres no verão e ao armazenamento da força vital no
inverno. O perigo relacionado ao verão seria uma perda de QÌ por excesso de
atividades, enquanto que no inverno, a incapacidade de armazená-lo. O desrespeito
a esta direção natural do fluxo do QÌ conduz a desarmonias nos órgãos
associados as estações pelo modelo das cinco fases: o coração e o verão associam-
se à fase fogo, e os rins e o inverno à fase água. Neste modelo a circulação de QÌ
não se dá apenas no ciclo diário como apresentamos acima, mas no anual, e o
homem deve facilitar o processo adequando suas atividades ao movimento do QÌ .
Vejamos o que nos dizem os versos finais do capítulo:
“As quatro estações do Yin e do Yang são o início e o fim dos
dez mil seres. O Baú da vida e da morte. Ir contra o fluxo é uma
catástrofe que destrói a vida. Seguir o fluxo é prevenir doenças. Isto é
obter o caminho.
104
O caminho. Os sábios o praticam e os tolos o admiram. Quem
seguir o Yin e o Yang viverá. Quem se contrapor morrerá. Quem
seguir mantém a boa ordem. Quem se opor cria desordem. Quem for
contra o movimento natural irá causar correntes contrárias. Isto é a
definição de obstrução interna.
Esta é a razão pela qual os sábios não aguardavam o
aparecimento da doença, mas cuidavam antes de seu aparecimento.
Eles não esperavam a desordem chegar, mas cuidavam para que não
surgisse.
Esperar o desenvolvimento da doença antes de remediá-lo,
esperar a desordem tomar forma antes de cuidá-la é o mesmo que
esperar ficar com sede para depois cavar o poço, ou esperar a batalha
ocorrer para depois forjar as armas. Não é tarde demais?” (Larre, 1994,
p. 136)
Algumas passagens destes versos merecem considerações. Primeiro,
permanece relevante a idéia de obstrução do fluxo de QÌ como principal fator de
desarmonia, porém, explica-se a origem da obstrução pela relação inadequada do
homem com o fluxo de QÌ no planeta. A desordem aqui não está embasada na
negação de XÌNG ou MÌNG , mas num plano mais denso, de interação com as
forças climáticas da natureza. Segundo, os versos explicitam e exaltam a
superioridade das práticas de prevenção em relação às de cura. Em nossa
compreensão o primeiro tópico nos mostra mais um aspecto do conjunto variado de
saberes e práticas voltadas à manutenção da harmonia e vitalidade, enquanto o
segundo evidencia novamente a importância conferida a estes processos no
contexto da Medicina Clássica Chinesa. A seguir continuamos a explorar as noções
de prevenção como aparecem no SHÉN NÓNG .
3.3. A Constituição como Fator de Desequilíbrio
O texto do SHÉN NÓNG relaciona as noções de BÙ XŪ 虛, suplementar
deficiências e prevenir desequilíbrios/enfermidades (YÙ FÁNG JÍ BÌNG )
com o processo YǍNG XÌNG , nutrir a natureza. Uma investigação sobre este
processo nos conduz a noção de QÌ ZHÌ , constituição. Comum encontrá-la em
Racionalidades Médicas vitalistas como as Medicinas Ayurvédica, Homeopática e
Chinesa, constitui-se em geral de um sistema de classificação tipológica que
105
usualmente relaciona padrões de tendências ao adoecimento com os tipos
constitucionais.
Na Medicina Chinesa o sistema de tipologia mais comum está associado às
cinco fases, existindo cinco tipos básicos de constituição. Em distintos modelos
estes tipos poderiam se desdobrar em 6, 8, 10, 12 ou 25. Aqui não nos importa suas
diferenças de critérios de classificação, mas sim suas semelhanças, pois todos são
baseados na idéia dos tipos apresentarem características comuns que os conduzem
a certas deficiências e tendências ao desequilíbrio.
A forma mais comum de explicar a idéia é através do modelo dos cinco
elementos, agora exposto no arranjo do céu posterior.
Figura 6: Gráfico das cinco fases em equilíbrio
Neste arranjo, a fluidez da força vital no corpo humano dependeria do sistema de
geração e controle das cinco fases (ciclos SHĒNG e KÈ ). Se o sistema
mantém seu funcionamento harmônico, através da passagem de QÌ de uma fase
a outra, representada pelo círculo grande conectando os pequenos, e do controle à
passagem excessiva, representado pelas setas no interior do círculo, o flui e
distribui-se de forma equânime entre as fases. Neste contexto a constituição seria
uma tendência a fixar o QÌ em determinada fase. Esta fixação provocaria um
desequilíbrio, com excesso de QÌ numa fase e deficiência em outra, conforme
exemplo hipotético do gráfico abaixo:
Metal
Fogo
Madeira
Água
Terra
106
Figura 7: Gráfico das Cinco Fases em Desequilíbrio
Neste exemplo representamos a distribuição de QÌ de um sujeito com tipo
constitucional madeira. A tendência a fixar o QÌ na fase madeira é representada
pelo aumento do círculo verde. Esta fixação ocorre simultaneamente com uma
alimentação excessiva da fase madeira pela fase água, diminuído a vitalidade nesta
última. Como a fase madeira tende a reter o QÌ , a fase fogo, que recebe a força
vital diretamente da madeira, tenderia também a estar com excesso de. Por
sua vez, a fase terra, controlada pela madeira, tenderia a deficiência, pois teria seu
crescimento excessivamente limitado pela força da fase madeira.
Assim, a deficiência a ser suplementada seria uma decorrência do desequilíbrio
provocado pela constituição, tida como uma tendência natural à fixação. Um
determinado tipo, com sua tendência natural a fixar a energia em uma fase, cria
deficiência em outra. Convém salientar que a dimensão diagnóstica da
Racionalidade Médica Chinesa apresenta um conjunto de práticas voltadas para a
identificação da constituição, e de seus decorrentes desequilíbrios antes que estes
venham a se manifestar em sintomas de enfermidade ou sofrimento. A terapêutica
da constituição se daria então em dois momentos. No primeiro, o processo de
suplementar a deficiência acontece antes que o desequilíbrio do QÌ se manifeste
Metal
Fogo
Madeira
Água
Terra
107
em uma determinada enfermidade. Ao suplementá-la induz-se simultaneamente a
circulação adequada da força vital, assegurando o estado de saúde. Uma segunda
situação do uso terapêutico da noção de constituição ocorreria qunado já houvesse
uma diversidade de sinais e sintomas mostrando desarmonia conjunta de diversos
ZÀNG FǓ , órgãos e vísceras. Neste caso, o conhecimento da constituição é
utilizado como um fator hierarquizante, priorizando as áreas a serem tratadas.
Sendo uma espécie de forma fundamental de entrada em condições desarmônicas,
o retorno à harmonia nestas situações será feito através desta porta preferencial,
significando que os órgãos constitucionais recebem prioridade no tratamento, sendo
considerados como a “raiz” da desarmonia, enquanto outros órgãos seriam
considerados como decorrências ou “caule”, na linguagem nativa. Vejamos o
exemplo a seguir:
Os doze oficiais [os órgãos e vísceras] podem ser concebidos
como uma família de funções inter-relacionadas. Assim, enquanto
cada membro da família executar seu trabalho de forma eficiente, a
harmonia na casa é mantida. Entretanto, quando um membro da
família falha em suas funções, o balanço do qual depende a paz
familiar é comprometido. A tare fa do terapeuta é determinar que oficial
parou de trabalhar primeiro, sendo a raiz das desarmonias e dos
sintomas. Qualquer outro sinal clínico é compreendido como uma
compensação secundária pela falha e fraqueza do oficial constitucional
no cumprimento de suas funções. (Jarret, 2000, p. 141)
108
3.4. Sobre a Origem da Constituição
Os sentidos mais comuns atribuídos à noção de constituição encontrados nos
clássicos ou mesmo nos autores contemporâneos mostram-na como algo fixo e
imutável que acompanha ou mesmo determina características de grupos de sujeitos.
Por exemplo, um sujeito de tipo constitucional metal apresenta as seguintes
características, segundo o LÍNG SHÚ 靈 樞:
O homem tipo metal [...] comporta-se como um homem do oeste.
Este tipo de homem tem o rosto quadrado. Parece ser de pele branca.
Sua cabeça é pequena. As costas e os ombros são pequenos, assim
como o abdômen. Pés e mãos são também pequenos. O osso do
calcanhar parece saliente no exterior. Os ossos são leves. O corpo é
limpo. Impaciente por natureza, é ao mesmo tempo calmo e impetuoso.
Sabe assumir suas responsabilidades. Suas capacidades se afirmam
no outono e no inverno. Não suporta a primavera e o verão. Os
acessos de calor da primavera e do verão provocam-lhe a doença [...]
Ele parece ser inflexível por natureza. (Wong, 1995, p. 448)
Um tipo constitucional é formado por um conjunto de características físicas e
psicológicas associadas à certas fraquezas, tidas como tendências ao desequilíbrio.
Neste contexto a constituição é imutável durante a vida, e constitui por si mesma a
origem das desarmonias, pois seria uma tendência natural ao desequilíbrio, inerente
ao próprio sujeito e determinante de suas características.
Ao determinar características fixas a constituição induz ao desequilíbrio e às
suas conseqüentes deficiências, que deverão ser suplementadas pelos recursos
terapêuticos do nível humano da medicina. Isto significa que ao analisarmos a noção
limitada dentro do conjunto de noções associadas deste nível, teríamos um cenário
de inevitabilidade da desarmonia, pois a constituição seria sua causa primária e os
processos de suplementar deveriam ser feitos de forma constante, a fim de evitar os
desequilíbrios.
Porém, a contextualização desta noção dentro do sistema de três níveis amplia
seus sentidos e significados, principalmente nas relações que guarda com as
noções do nível celeste. As relações entre XÌNG , natureza interna e constituição
109
são explicadas pelo pensador Daoísta LIÚ YĪ MÍNG
62
. O termo QÌ ZHÌ
é utilizado para distinguir entre influências condicionadas que formam um
temperamento adquirido e ZHĒNXÌNG , a verdadeira natureza individual.
Wieger (1965, p.295) traduz ZHÌ como “o ato de fixar ou estabelecer o valor de
algo”, e por extensão tem os significados de “qualidade” ou “caráter”. O termo
completo QÌ ZHÌ , poder ser entendido como o ato de determinação de uma
qualidade fixa à força vital. Segundo LIÚ YĪ MÍNG 一 明 a constituição é um
condicionamento das cinco fases, pertence ao reino do céu posterior e é uma
criação humana que conduz à desarmonia. Em contrapartida ZHĒNXÌNG
pertence ao reino do céu anterior, sendo um benefício para os humanos, pois os
reconecta com as forças celestes através de MÌNG , o mandato celeste.
A contextualização destas noções no campo da prática terapêutica aparece nas
obras dos autores contemporâneos Ross (2003) e Jarret (2000). Inicialmente Ross
(2003) apresenta a constituição de forma sucinta, não somente como um conjunto
de características que conduzem à desarmonia, mas como um tema de vida a ser
desenvolvido, relacionado a um conjunto de forças que deve conduzir à realização
de ações no seu transcurso. Este passo aproxima as noções de constituição com as
de MÌNG , destino e XÌNG , natureza interna, tal como vimos no capítulo anterior.
Jarret (2000) apresenta um aprofundamento na mesma direção, elaborando a
noção no contexto de sua relação com as do nível celeste, e para uma adequada
compreensão desta passagem do nível celeste ao nível humano que o autor intitula
de queda, faremos a seguir uma digressão sobre algumas noções complementares.
É necessário primeiro um esclarecimento sobre os significados das noções de
eu presentes no campo, sendo que para este propósito duas serão suficientes. A
primeira é expressa pelo termo ZÌ . Segundo Wieger (1965, p. 325) o ideograma
mostra a imagem de um nariz
63
, denotando as características singulares de uma
pessoa. Confere o sentido de self. A apreensão do termo requer uma comparação
com seu oposto complementar, JǏ , conforme nos apresenta Kohn (2004, p.25):
“Aquilo que sobra quando JǏ , o eu organizado, é dissolvido ou
cultivado é um outro tipo de self, o ZÌ . Este termo indica um ser
62
LIÚ YĪ MÍNG , filósofo Daoísta do final do século XVIII. Seu extenso trabalho foi
centrado na explicação da linguagem esotérica dos textos de Alquimia Daoísta. As traduções
dos textos com seus comentários estão em Cleary (2003).
63
Imagem desconfigurada pelas alterações na forma de escrever o ideograma ocorridas nas
mudanças da língua chinesa.
110
interno individual e espontâneo, de posse das qualidades conferidas a
ele pela natureza. Assim como o corpo, o self espontâneo é cósmico.
É um caminho de espontaneidade [...] o caminho proposto pela
natureza ou céu antes do desenvolvimento da consciência do ego e
dos desejos por objetos. [...] O nariz é a parte mais protusa da face e
caracteriza uma pessoa. [...] ainda assim, apesar de caracterizá-lo o
nariz não pode ser visto ou conhecido sem o auxílio de um espelho. É
um equipamento que recebemos da natureza, algo que sentimos e
usamos, mas não podemos mudar a forma ou controlar. [...] Aquilo
dentro de uma pessoa que não é artificialmente construído ou
controlado.”
O ideograma JǏ representa fios sendo entrelaçados em um tear. Segundo
Kohn (2004, p.24) a imagem refere-se a uma estrutura organizada, algo que pode
ser controlado, fabricado. JǏ , traduzido pela autora como “corpo do eu”, é uma
construção humana, constituída de todos os gostos e desgostos, paixões e desejos,
necessidades e emoções que um eu individual desenvolve em relação aos objetos
do mundo. Conota um self organizado, orientado aos objetos.
O termo ZÌ é encontrado no ZHÙANG ZǏ como ZÌ RÁN ,
significando ”o eu espontâneo”
64
. Jarret (2000) traduz o termo como “atualização
espontânea do sentido de eu”, destacando sua compreensão de ZÌ RÁN como
um processo, no qual o controle ou o ajuste de JǏ , o eu construído, permitiria a
emersão de ZÌ , um “eu” espontâneo capaz de conferir sentido de realidade à
existência e “conectar” a individualidade com o resto do cosmos. As semelhanças
dos sentidos de ZÌ com XÌNG , a natureza interna são tantas que podemos
considerá-los sinônimos. Porém em Jarret (2000) parece haver uma tendência a
considerar ZÌ RÁN como um processo cujo resultado final seria o
reconhecimento e expressão de XÌNG , natureza interna. Assim, a constituição
seria justamente a falha deste processo, que conduz o sujeito à inevitável “queda”
de sua natureza interna, ou de seu self verdadeiro para identificação com JǏ , um
sentido de eu que passa a ser fixo, e portanto, fonte de desarmonia. Segundo o
autor a perda da natureza original, e da capacidade de atualização espontânea do
self, ZÌ RÁN , são processos inevitáveis da vida humana pois são o próprio
64
RÁN é considerado um advérbio, não tendo sentido fora do composto.
111
processo de geração e reabsorção do cosmos conduzido pelo DÀO , ocorrendo no
interior do microcosmos do ser humano.
A forma como a queda ocorre pode ser resumida nos seguintes passos:
1) Perde-se a consciência de XÌNG , natureza interna e a capacidade de sua
atualização, ZÌ RÁN . Na falta destes, a produção do ZHĒN QÌ , o tipo de
vitalidade que potencializa a auto-organização é diminuída, bem como a sensação
de satisfação com a vida, que seria relacionada à atualização de XÌNG no mundo,
ou seja, o cumprimento de MÌNG , o mandato celeste.
2) A emergência de JǏ , um sentido de eu fixo, conduz à QÌ ZHÌ , um
temperamento ou constituição adquirida que fixa a força vital em uma determinada
área do complexo corpo-mente, tido como unidade psicofísica, em detrimento de
outras. Este desequilíbrio na distribuição irá inevitavelmente criar problemas na
dimensão material, quando um determinado órgão hiper-funcional obstruir o trabalho
de outro que esteja hipo-funcional;
3) Finalmente, este estado de desarmonia interna deixa o homem incapaz de
adaptar-se às mudanças no ambiente, pois perde seu ZHĒN QÌ , tornando-se
cada vez mais vulnerável às influências patogênicas.
3.5. O Cultivo das Virtudes na Terapêutica da Constituição
Em sua obra Jarret (2000) aborda ainda um outro aspecto da noção de
constituição, que termina se desdobrando numa prática terapêutica. A idéia
fundamental é a constituição como fixação, vício ou hábito, agora aplicada à forma
como o homem atribui sentido ao mundo e aos eventos em sua vida. Segundo o
autor, a concepção Daoísta de mundo expressa por LIÚ YĪ MÍNG sugere
que os eventos da vida humana não têm nenhum significado intrínseco. É papel do
homem, enquanto ser dotado de autoconsciência, criar os significados e atribuí-los
aos eventos. Neste contexto, a forma como se atribui sentido à vida seria um fator
importante para a determinação da harmonia vital. Em estados harmônicos o
homem seria capaz de alternar os sentidos atribuídos a um mesmo evento, pois
cada um teria origem em um nível distinto de sua consciência, relativos aos já
citados WǓ JĪNG SHÉN . Por sua vez, em estados desarmônicos o homem
perderia esta maleabilidade, fixando-se numa forma única de conferir sentido ao
mundo. A constituição torna-se, então, a fixação de um modo de interpretar a vida.
112
Neste modelo a atribuição de sentidos é concomitante com a criação e fixação
de emoções, tidas como fatores geradores de desarmonia em qualquer nível da
Medicina Chinesa. Vejamos a seguir um exemplo do autor:
Considere um jovem menino sentado à mesa com seus pais.
Antes do evento a seguir este garoto, funcionando num estado
balanceado em grande parte governado por seus potenciais
primordiais, era considerado um rapaz receptivo e inspirado. Ele era o
tesouro da família. Em determinado momento seu pai se levanta e
batendo seu punho contra a mesa diz: -“Eu tive o bastante”. O pai
então sai pela porta e o incidente culmina no divórcio dos pais. Isto
certamente seria traumático em qualquer criança. Porém os
significados atribuídos ao evento bem como as subseqüentes
somatizações de patologias serão singulares para cada indivíduo
dependendo das variáveis constitucionais. No cenário descrito, a
criança cuja constituição é metal será inundada por tristeza e
melancolia quando seu pai socar a mesa. Sua interpretação do evento
pode conduzi-lo a acreditar que nada na vida que tenha valor pode ser
mantido, e que se tivesse sido suficientemente valorizado por seu pai,
ele não teria deixado a casa. A busca por resgatar seu valor interno
passa a ser então uma motivação inconsciente presente em todos os
aspectos de sua vida. (Jarret, 2000, p. 155)
Neste cenário hipotético o autor busca salientar dois aspectos: o primeiro seria o
resultado final do evento, que estabelece a queda de um estado harmônico a partir
de uma fixação na forma de atribuir sentido a vida relacionadas à fase metal, que
tem a atribuição de valor como uma de suas funções específicas, relacionadas ao
, o espírito desta fase. Segundo, o autor mostra o processo de perda de DÉ ,
virtudes, também associadas à mesma fase. No início, o jovem rapaz era receptivo
e inspirado, virtudes associadas a fase metal, porém, depois do evento, inundado
pelas emoções de tristeza e melancolia, estas virtudes são perdidas.
Ao relacionar a queda com a fixação de emoções e perdas de virtudes o autor
apresenta um modelo explicativo do que ocorre na dinâmica vital quando se perde o
contato com XÌNG , a natureza interna. Parte-se do princípio que no estado de
saúde original o ser humano emana DÉ , virtudes, havendo um conjunto delas
associado à cada fase. A perda de XÌNG ocorre simultaneamente a um conjunto
de eventos que implicam na fixação dos sentidos atribuídos a uma passagem da
113
vida; na desestabilização da mente a partir da experiência de emoções intensas; e
na perda das virtudes tidas como uma expressão natural do estado de saúde. Este
conjunto de eventos mantém o sujeito separado de sua natureza original, mas
também constitui os fundamentos para um tipo de terapêutica que tem como objetivo
fazer o sujeito retornar ao estado de saúde plena. Se a queda implica numa perda
de virtudes, então a reconquista destas virtudes será o caminho de retorno.
Neste contexto a noção de DÉ , virtude, significa um tipo de poder positivo
associado a cada fase que é perdido a partir de uma confusão interna, e de uma
subseqüente intoxicação causada pelas emoções negativas (QÍNG ). Para
recuperar DÉ é necessário um trabalho sobre estas emoções desestabilizantes.
No caso da fase metal, a principal virtude associada seria YÌ . Traduzido como
retidão ou justiça, ganha outros significados dentro do contexto da estrutura psíquica
representada pelos WǓ JĪNG SHÉN . No capítulo anterior vimos que à fase
metal e ao PÒ são atribuídos as capacidades de valorizar e capturar coisas
necessárias à vida, como também desprender-se do desnecessário. Esta dinâmica
estaria relacionada ao órgão e a víscera da fase metal: pulmões (FÈI ) e intestino
grosso (DÀ CHÁNG ). O primeiro seria responsável pela captura do essencial
para a vida, tido como um correspondente psíquico do que os pulmões fazem ao
extrair o QÌ , a força vital do ar. Por se constituir num grande reservatório de
celeste, o ar é considerado o bem mais valioso para a vida humana, e os pulmões
são responsáveis por perceber sua qualidade e captura-lo. Em contrapartida, o
intestino grosso seria a víscera responsável por expelir o desnecessário para a vida,
e manter o necessário. E, esta dinâmica um equivalente psíquico de suas funções
fisiológicas de expelir as impurezas nas fezes e ao mesmo tempo reter a água e
minerais necessários à vida. Neste contexto YÌ estaria associada à forma de
resposta da consciência individual aos ganhos e perdas no decorrer da vida. Seria a
capacidade de reconhecer que as perdas e ganhos são parte de um tipo de justiça
divina, onde TĪAN , o céu, enquanto potência organizativa, é responsável por
conceder aos seres individualizados o necessário e suficiente para a realização de
seu MÌNG , mandato celeste. A tradução do termo como “justiça” ganha novas
matizes, aproximando-se de um tipo de justiça divina, ou da capacidade de perceber
uma ordem no balanço entre as perdas e ganhos.
Assim, o desenvolvimento das virtudes estaria relacionado à capacidade de
organizar as emoções negativas associadas a cada fase. Assume-se que no estado
114
de saúde há a capacidade de sentir qualquer emoção, sem ser afetado por seu
movimento de forma negativa. Portanto, diante de uma perda seria saudável sentir
YŌU , a tristeza, porém, sob ação da virtude YĪ , a retidão, este sentimento seria
organizado e o funcionamento psíquico harmonizado. A emergência da constituição
com a perda da virtude relaciona-se ao fenômeno de acumulação e fixação da
emoção. Quando o sentimento da tristeza passa a ser habitual a qualquer evento na
vida, que passa a ser vivida como se algo de valor estivesse prestes a ser perdido a
cada dia. Esta intoxicação de tristeza sobre tristeza cria problemas em diversos
aspectos. O primeiro está diretamente relacionado à somatização. Considera-se que
a intoxicação emocional tende a “se cristalizar” no corpo, convertendo-se em um dos
fatores climáticos geradores de desarmonia. No caso, a tristeza converter-se-ia em
secura, danificando os órgãos relacionados à fase metal.
Assim, a terapêutica neste contexto consiste em desenvolver as virtudes (DÉ )
associadas a cada órgão e víscera, conferindo ao sujeito um poder de organização
emocional concomitante ao retorno para o estado mais elevado de saúde, quando re
atualiza a espontaneidade do eu, ZÌ RÁN . Para melhor ilustração,
apresentamos a seguir um quadro de exemplos do desenvolvimento das virtudes da
fase metal.
Tabela 6: As Virtudes da Fase Metal
Desarmonia por
Excesso
Virtude Desarmonia por falta
1 Ganhos Retidão Perdas
2 Acúmulos Balanço Faltas
3 Materialismo Não-Apego Ascetismo
4 Vaidade Auto-valoração Auto-depreciação
A partir da tabela acima explica-se as desarmonias geradas pela falta das
virtudes através da fixação excessiva de uma determinada emoção. Vejamos os
exemplos a seguir relacionados com as linhas da tabela:
1 e 2) Supomos um sujeito que tenha sofrido uma experiência de perda
acompanhada de tristeza intensa. Ao fixar a emoção afasta-se da virtude da retidão
em direção a um tema de vida associado a perdas e melancolias, listado na coluna
direita da tabela. Cria-se um sistema de crenças sobre a vida baseado em
115
sentenças do tipo: “tudo que eu possuir me será tirado”, ou “eu sempre perco o que
valorizo”.
Diante do mesmo evento, e também na tentativa de evitar a dor e a tristeza, é
possível que crie um comportamento disfuncional oposto, listado na coluna esquerda
da tabela. Baseia-se em crenças como: ”Eu me apossarei de tudo e nunca perderei
nada”. Esta postura de acúmulo conduziria o sujeito a guardar e acumular tudo que
tenha um mínimo de valor na vida, sem nunca desprender-se de nada. Perderia a
capacidade de esvaziar-se, movimento necessário para o balanceamento e a
abertura receptiva para o novo, virtudes associadas à fase metal.
3) Não-apego seria um termo com significados semelhantes à YĪ , retidão.
Aqui é definido como o ponto de equilíbrio entre duas posturas disfuncionais: o
ascetismo, listado na coluna da direita, seria um comportamento habitual de evitar
possuir qualquer coisa. É tido como uma forma de evitar a dor e a tristeza por
antecipação, baseado em crenças internalizadas como: “Não há nada na vida que
tenha valor suficiente para ser possuído”. Negando-se a possuir evita-se perder. Por
outro lado o materialismo seria uma forma de reação às perdas do passado,
estabelecendo apego em relação a qualquer coisa que possa ter valor, usualmente
bens materiais. As crenças internalizadas podem ser como: ”Guardarei tudo que
tiver valor, pois assim nunca faltará”.
4) Ainda em relação às virtudes da fase metal listadas na tabela temos neste
item a questão da auto-valoração. A adequada atribuição de valor a si mesmo é
necessária para conduzir a própria vida em suas relações. Se esta função for
desbalanceada por excesso, cria-se um padrão de vaidade, com crenças
internalizadas como: “Eu tenho mais valor do que o resto”. Ou, no caso da falta, um
padrão de auto-depreciação com crenças do tipo: “Eu não tenho nada de valor a
apresentar para o mundo”
65
.
No contexto geral do desenvolvimento das virtudes enquanto terapêutica, uma
questão importante específica ao desenvolvimento de YĪ é a descoberta do valor
da vida. Jarret (2000, p.256) nos traz uma imagem elucidativa desta questão através
do sistema de correlação das cinco fases. Segundo o autor, a estação do outono é
relacionada à fase metal. Nesta estação as cores das árvores tornam-se muito belas,
durante um processo que é uma pequena morte. Em curtos instantes de tempo, uma
bela folha mudando de cor irá cair no chão anunciando a sua morte e a hibernação
65
Parece que este aspecto do psiquismo relacionado à fase metal guarda semelhanças, em
linhas gerais, com a noção de narcisismo na teoria psicanalítica.
116
da árvore. Esta cena, da intensa beleza da vida simultânea à presença da morte é a
sensação sobre a qual YĪ se desenvolve, conferindo a capacidade de apreciar a
beleza da vida material e lamentar sua morte ao mesmo tempo. Quando esta
sensação é evitada ou experimentada de forma parcial em um de seus dois
aspectos, perde-se YĪ . Por um lado, guarda-se tudo que tenha beleza, valor, e
que possa resistir à passagem do tempo, e por outro, negando-se a apreciar a
beleza da vida no presente por medo da dor inevitável que provirá da passagem
daquele momento, como por exemplo evitar olhar a beleza da árvore no outono.
É desta forma que se define os temas de vida relacionados a cada tipo
constitucional, onde cada um deles teria uma tarefa definida a realizar, para poder
retornar à saúde no contato com sua natureza interna. Estas tarefas envolvem a
transformação de hábitos comportamentais, relacionados às emoções, em virtudes.
No caso da fase metal, deve-se transformar as sensações fixadas de tristeza e
lamento em YĪ , retidão. Este processo refina a consciência individual para a
atribuição de valor à vida e suas formas. O desenvolvimento de YĪ confere ao ser
o poder de atribuir valor ao que é essencial para si em cada momento de sua vida,
para que consiga gozar as experiências necessárias que o conduzirão à auto
realização. Porém, deve ficar claro que para alcançar esta meta é necessário o
desenvolvimento das virtudes relacionadas a todas as cinco fases, desdobrando-se
no conjunto de doze órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ). A virtude relacionada à
constituição seria a de maior importância, pois afetaria positivamente o
desenvolvimento de todas as outras.
Como nosso objetivo neste capítulo foi facilitar a apreensão das noções
fundamentais do nível humano da Medicina Chinesa, não consideramos necessário
expor em detalhes o mesmo processo para as outras fases. Os exemplos citados
acima são suficientes para descrevê-las. As noções deste nível se relacionam
diretamente com as do nível celeste principalmente através da metáfora da queda,
representando a perda de um estado pleno de saúde. Nesta relação parte das
terapêuticas do nível humano podem ser pensadas como estratégias de retorno à
plenitude da saúde, onde o processo de nutrir XÌNG , a natureza interna, seria sua
forma exemplar. A constituição é pensada como a porta de saída e também de
retorno a este estado, e as práticas de desenvolvimento das virtudes e
suplementação das deficiências geradas pela fixação constitucional seriam as
principais práticas terapêuticas voltadas para a realização deste processo.
117
Por oua vez, as relações com as noções fundamentais do nível terrestre
parecem mais evidentes nas práticas de guardar e proteger. Estas, em geral,
descrevem métodos para evitar uma perda maior de vitalidade concomitante a um
aumento do grau de desarmonia. A estratégia parece ser evitar uma outra queda, do
nível da deficiência constitucional para uma enfermidade. Convém ressaltar que esta
forma de apreender os sentidos da noção de constituição nos parece mais evidente
no campo da Medicina Chinesa atual. Compreendemos que isto se deve à sua
semelhança com a forma de pensar a prevenção como evitamento de doenças,
presente no campo da Biomedicina e nas escolas de Medicina Chinesa que buscam
aproximar-se do pensamento biomédico.
Aproveitamos esta semelhança para apresentar no próximo capítulo as noções
fundamentais do nível terrestre da Medicina Chinesa, que por representar seu
aspecto curativo, aproxima-se ainda mais da Biomedicina.
Capítulo 4: O Nível Terrestre
Capítulo 4:
Nível Terrestre
119
4.1. Os Aspectos Curativos da Medicina Clássica
A classe baixa de medicinas ocupa-se do tratamento de
enfermidades e corresponde à terra. Se o homem quiser remover frio,
calor e outras influências maléficas de seu corpo, se quiser remover
acúmulos e curar-se, deve utilizar as ervas listadas na classe inferior
deste manual.” (Jarret, 2000, pg xix)
Pela citação acima, e evidente no SHÉN NÓNG que a cura de
enfermidades é uma das três partes fundamentais da Medicina Chinesa.
Apresentamos a seguir os sentidos, significados e valores atribuídos aos processos
de cura, fundamentos do nível terrestre. Iniciamos a apresentação com a análise
destes significados no HUÁNG DÌ NÈI JING , para em seguida
apresentarmos a teoria da Medicina Tradicional Chinesa, considerando-a um
desenvolvimento mais sistematizado da Medicina Clássica.
Como vimos anteriormente, a formação da Medicina Clássica Chinesa
representou uma transformação na forma de explicar a origem do adoecimento em
relação ao modelo anterior, baseado nas relações dos vivos com seus antepassados
mortos, nos ataques de demônios e de ventos malignos. O novo modelo manteve
apenas a noção de ventos, mas desenvolveu a idéia incluindo outros fatores
climáticos como agentes patogênicos, classificando-os através da concepção das
WǓ XÍNG , cinco fases.
Segundo Unschuld (2003a, p.96) no HUÁNG DÌ NÈI JING a saúde
humana depende da circulação de QÌ , força vital no sistema dos JĪNG MÀI ,
rede de canais, associada a uma exposição balanceada aos fatores climáticos. A
patologia é explicada de duas formas. A primeira através de qualquer fator YĪN ou
YÁNG que se conecta ao seu correspondente no corpo humano provocando
desarmonia. O segundo pelo ataque dos fatores climáticos, calor, frio, umidade e
secura, tendo o vento como seu líder. A passagem a seguir do capítulo 29 do SÙ
WÈN demonstra estes aspectos.
“Quando se é invadido por um vento ladrão ou um mal depletivo,
o yang o recebe. Quando alimentos e bebidas são consumidos sem
restrição, ou quando a vigília e o sono acontecem em tempo impróprio,
os condutos yin o recebem. Quando os condutos yang recebem, eles
penetram nos seis palácios [FǓ , vísceras], quando os condutos yin
recebem, eles penetram nos seis depósitos [ZÀNG , órgãos] [...]
120
Quando penetra nos seis palácios, então o corpo torna-se quente e
deita-se em hora imprópria. Quando penetra nos depósitos, distenções
e bloqueios acontecem, e na parte inferior do corpo causa descarga de
alimentos não digeridos. [...] ” (Unschuld, 2003a, p. 97)
Vemos no mesmo verso a idéia de um fator patogênico externo, o “vento ladrão”
que ataca o corpo a partir do exterior, sendo por isto recebido pela parte YÁNG
do sistema de canais e conduzem às vísceras (FǓ ), YÁNG em relação aos
órgãos (ZÀNG ). Por outro lado temos a alimentação imprópria e o sono
desregulado como um fator patogênico relacionado ao hábito, que gera problemas
na parte YĪN do sistema de canais e nos órgãos. Há fundamentalmente uma
classificação YĪN -YÁNG de tipos de fatores de desarmonia, que não são
necessariamente um ataque externo, e este tipo de fator cria uma desarmonia na
parte do sistema ao qual é análogo. Porém, o resultado final do ataque de vento,
após ter percorrido os canais YÁNG e se instalado nas vísceras, foi a geração de
calor, tendo como conseqüência a insônia. “Deita-se em hora imprópria”. Assim, por
vezes o “deitar-se em hora imprópria” é considerado um fator patogênico, um hábito
desregulado que gera uma desarmonia YĪN , e por outras, o resultado final do
ataque de um fator patogênico YÁNG . Isto exemplifica um pensamento não linear,
em que os fatores patogênicos ora são tidos como um estímulo que desencadeia um
processo de desarmonia, ora como a própria enfermidade, como o “calor alojado nas
vísceras”. Unschuld (2003a, p.182) elabora este caráter dual na passagem a seguir:
“Os agentes naturais como vento, frio, e umidade, o Yin e Yang
Qi, assim como os alimentos e o “Qi perverso” em geral, são
frequentemente nomeados como as causas das doenças. Os canais
são o teatro onde tudo ocorre. Ainda assim, eles são associados com
doenças específicas, e podem mesmo “desenvolver doenças”, mas,
em sua maior parte os autores do Su Wen não deixam dúvida quanto
à sua percepção das doenças como entidades que penetram no
organismo, podem mover-se pelo sistema de canais, devendo ser
localizadas e eliminadas.”
A descrição do fator patogênico como uma doença-entidade que deve ser
combatida e eliminada é bastante semelhante à noção de doença na Biomedicina.
Segundo Camargo Jr. (1997, p.55) para esta racionalidade “as doenças são coisas,
de existência concreta, fixa e imutável, de lugar para lugar e de pessoa para pessoa”,
que uma vez identificadas também devem ser combatidas e eliminadas.
121
Observamos no HUÁNG DÌ NÈI JING a existência de um imaginário
bélico, semelhante ao que se encontra nos fundamentos da biomedicina. De fato, se
ponderarmos quantitativamente os temas dos capítulos do HUÁNG DÌ NÈI JING
, é possível que encontremos mais capítulos sobre tratamento de
enfermidades, ilustrando o contexto bélico, do que sobre outros temas. Em nossa
percepção a maior parte do clássico refere-se às noções de enfermidade e cura,
tratando-as de forma explícita e detalhada, enquanto uma parte menor é dedicada
às noções de manutenção da harmonia e cultivo da vitalidade.
Apesar do peso conferido à cura, autores como Unschuld (2003, p.182)
reconhecem a impossibilidade de reduzir o modelo de explicação do adoecimento
aos fatores patogênicos e seus efeitos. Há no clássico um conjunto de explicações
sobre as forças que ampliam a resistência aos fatores patogênicos e à instalação
das desarmonias. Freqüentemente este conjunto é exposto de forma menos
explícita, pois enquanto para o combate à doença explica-se detalhes das técnicas,
para a manutenção da harmonia são feitas alusões aos potenciais dos “homens da
antiguidade”, na maioria dos casos sem explicar de forma clara os métodos para
fazê-lo. A maior parte destas concepções foi elaborada nos capítulos anteriores,
porém, consideramos relevante adicionar a visão de Unschuld (2003a) sobre o tema.
O autor destaca alguns fatores que aumentariam a resistência aos ataques de
fatores patogênicos. Um deles é a adequação aos ciclos das estações, que favorece
a circulação de QÌ , força vital. Este tema apresenta algumas variações, como por
exemplo a influência dos ciclos lunares na intensidade da resistência aos fatores
patogêncios, ou a queda desta em determinados anos do período de vida individual.
Durante tais ocasiões, a sugestão para manter a saúde é evitar a exposição aos
fatores patogênicos. Esta noção fica muito clara quando observamos a relação da
pele com estes fatores. Segundo a teoria clássica a pele é o lugar de concentração
do WÈI QÌ , uma especialização da força vital cuja função principal é evitar a
penetração dos agentes externos, ou seja uma espécie de barreira defensiva. Assim,
um dos métodos de prevenir a entrada dos fatores patogênicos é evitar a exposição
ao vento quando a pele está suando, usualmente após exercício físico. A explicação
da eficácia deste método ilustra de forma exemplar o imaginário do “combate”. Ao
suar, a pele ficaria “aberta” e portanto mais exposta a ataques, diminuindo as
capacidades defensivas do WÈI QÌ . Portanto, quando suas defesas estão
expostas, sem capacidade operacional, a melhor opção é não entrar em luta. Evitar
o inimigo.
122
Segundo Unschuld (2003a, p.182), a segunda forma de fortalecimento das
defesas estaria especialmente relacionada ao comedimento, e supostamente a
questões de conduta moral. “Eram conceituadas normas de comportamento
específicas baseadas na moral da normalidade versus excessos, que seriam
capazes de prevenir a intrusão de um destes agentes”. Os excessos alimentares e
sexuais eram tidos como os principais fatores de desgaste das forças defensivas.
Quanto à questão da conduta moral o autor cita sua tradução de passagens do
capítulo 3 do SÙ WÈN : “Nem todos precisam temer os ataques dos ventos.
Pessoas que conduzem suas vidas com claridade e pureza não serão afetadas”. E
supõe que os termos “claridade” e “pureza” refiram-se a manutenção de um
comportamento moral adequado
66
. Unschuld (2003a, p.187).
Em sua análise do HUÁNG DÌ NÈI JING o autor não elabora os
temas que associamos ao nível celeste. A única passagem que faz referência às
influências que as ações na vida possam exercer sobre a saúde é a citada logo
acima, onde expressa sua dúvida quanto à adequação de sua interpretação. Quanto
às questões do nível humano, relaciona a conduta virtuosa ao comedimento, a evitar
os excessos, não apresentando a noção de DÉ como um modelo de
desenvolvimento do psiquismo. Pensamos que a posição do autor é bastante
precisa, pois reflete de fato o peso quantitativo e o grau de elaboração dos
conteúdos que os autores do clássico conferiram aos saberes e práticas curativas, e
talvez, a relevância conferida ao comedimento como um controle das ações, ao
invés do desenvolvimento interno, seja um reflexo da influência dos valores
confuncionistas presentes na elaboração do texto. Ainda, pensamos que sua
hesitação sobre a interpretação de termos obscuros e pouco elaborados reforça
nossa suposição sobre a necessidade da análise dos textos Daoístas para sua
adequada apreensão, pois são nestes que as noções referentes aos níveis celeste e
humano da Medicina são primários, e elaborados de forma mais minuciosa. Visto
deste ângulo o HUÁNG DÌ NÈI JING seria principalmente um texto do
nível terrestre, primariamente voltado para os processos de cura, os quais explica e
explicita, e secundariamente um texto dos níveis celeste e humano, cujas passagens
são quase sempre obscuras e em menor quantidade. Em nossa percepção o
HUÁNG DÌ NÈI JING reconhece os saberes e práticas de manutenção
66
A interpretação é uma suposição, pois logo a seguir o autor assume suas próprias dúvidas
em relação ao que estariam querendo dizer os autores do SÙ WÈN : “Entretanto
imunidade contra os ventos não é diminuída apenas por comportamentos considerados
imorais, se for mesmo este o significado de “falta de pureza””.(Uschuld, 2003a, p.187)
123
da saúde e cultivo da vitalidade, mas concentra-se na necessidade da prática
curativa, olhando para um homem já distanciado dos estados mais plenos de saúde.
As emoções como fatores patogênicos
No cenário do HUÁNG DÌ NÈI JING o corpo e a mente são tidos
como uma unidade. Desta forma, são apresentadas explicações sobre o papel da
mente e principalmente das emoções como fatores patogênicos. Vejamos a
passagem a seguir, tradução do capítulo 5 do SÙ WÈN :
“O Céu tem as quatro estações e os cinco agentes [fases]. É
através [das quatro estações] que se gera o nascimento, crescimento,
recolhimento e armazenamento. E através [dos cinco agentes] que se
gera o frio, o calor de verão, a secura, a umidade e o vento. O homem
tem os cinco depósitos [ZÀNG , órgãos], eles transformam os cinco
Qi gerando alegria, raiva, tristeza, ansiedade e medo. O fato é que
alegria e raiva danificam o Qi. Frio e calor de verão danificam a
aparência física. Raiva violenta danifica o Yin. Alegria violenta danifica
o Yang. Se não houver restrição da alegria e da raiva, se o frio e o
calor de verão excederem a norma, não mais existirá um fundamento
sólido para a vida.” (Unschuld, 2003a, p. 228)
O texto associa as cinco emoções às cinco fases, e destaca seu caráter danoso,
se vivenciadas em intensidade “violenta”, fora da norma. A origem das emoções é
explicada como uma transformação natural do QÌ no interior dos órgãos. Segundo
Unschuld (2003a, p.229) percebe-se que a emergência das emoções como um
deslocamento excessivo de QÌ , e a subversão do fluxo de QÌ pelas emoções,
compõem um conjunto circular de causa e efeito. Ou seja, não há no texto uma
referência à origem das emoções violentas como uma perda de DÉ , tida como
uma função do psiquismo capaz de organizar a vida afetiva interior e concectá-la
adeqüadamente com os acontecimentos do mundo, conforme as concepções
expostas por Jarret (2000) elaboradas em capítulos anteriores. O modelo do
HUÁNG DÌ NÈI JING confere uma explicação dos efeitos das emoções
no corpo, permitindo a elaboração de terapêuticas adequadas para anular seus
efeitos danosos. Unschuld (2003a, p.230) porém, salienta que o texto não descreve
rigorosamente os procedimentos. Não identifica se a recomendação terapêutica
seria buscar a causa da severidade emocional, ou apenas focar nos efeitos que
provoca sobre o QÌ , desconsiderando a emoção em si. É descrito em detalhes
124
apenas um procedimento terapêutico para o tratamento dos danos emocionais. A
técnica é baseada no modelo da WǓ XÍNG , cinco fases, onde busca-se
despertar uma outra emoção capaz de anular a emoção excessiva seguindo o ciclo
de controle das cinco fases. Assim, no caso do excesso de raiva, emoção associada
à fase madeira, o despertar da tristeza, emoção associada à fase metal, seria capaz
de controlar a raiva, pois no ciclo de controle das cinco fases, o metal controla a
madeira.
Nesta abordagem as emoções são como eventos ou entidades que não
apresentam nenhum significado em termos do desenvolvimento de DÉ , as
virtudes, como no nível humano. Pensamos que isto demonstra mais uma vez o
caráter pragmático do texto, priorizando a anulação do fator patogênico,
característica do nível terrestre, ao invés de buscar transformações mais profundas
na vitalidade e no psiquismo humano como uma forma de garantir a saúde,
características dos níveis humano e celeste.
4.2. A Medicina Tradicional Chinesa como Exacerbação do Nível Terrestre
Como vimos no breve histórico da Medicina Chinesa apresentado no início deste
trabalho, o paradigma da Medicina Clássica permaneceu inalterado desde a dinastia
HÀN até a formação da escola Medicina Tradicional Chinesa. Isto significa que o
modelo de explicação do adoecimento, parte de sua doutrina médica, bem como as
outras dimensões da racionalidade permaneceram com suas concepções
fundamentais inalteradas. Porém, durante este longo período houve uma intensa
elaboração e sistematização dos saberes e práticas em todas as dimensões da
Racionalidade. Por exemplo, os modelos denominados “Identificação dos padrões
de acordo com os quatro níveis” e “Identificação dos padrões de acordo com os seis
estágios” são desenvolvimentos na dimensão da diagnose que descrevem em
detalhes os sinais e sintomas que surgem da penetração dos fatores patogênicos.
Por estes modelos é possível identificar o estado da batalha entre o fator patogênico
e as defesas do organismo, bem como identificar seu local de residência para
eliminá-lo.
Portanto, na formação da Medicina Tradicional Chinesa houve o esforço de
resgatar os modelos clássicos adicionados das elaborações processadas durante os
séculos seguintes, e a tentativa de unificá-los com o modelo biomédico, formando
um novo corpo de saberes determinado (com conflitos) entre estes dois pólos.
125
Em sua proximidade com a Medicina Clássica, manteve parte de seus saberes e
valores. Segundo Chen
67
(2004, p.3), a saúde humana é determinada pela
adaptação do homem ao ambiente e pela relação do QÌ , a força vital dos seres
com os fatores patogênicos que os circundam. Na relação entre o QÌ e o fator
patogênico, a autora considera a vitalidade como o principal determinante da saúde,
tendo os patogênicos um papel secundário. E finalmente, explicita que os chamados
“fatores patogênicos internos”, as emoções, tem papel proeminente no processo de
adoecimento, pois são eles que mais desgastam a vitalidade. Percebe-se que a
autora enfatiza o valor da vitalidade conforme encontramos em capítulos do HUÁNG
DÌ NÈI JING .
Quanto aos fatores patogênicos, são classificados em três tipos:
1) Os Fatores Externos: São os seis fatores ambientais: vento, frio, calor de
verão, fogo, umidade e secura, adicionados pelo fator “patógenos
epidêmicos”.
2) Os Fatores Internos: As sete emoções: raiva, melancolia, tristeza, alegria,
ansiedade, medo e terror.
3) Os Fatores nem internos nem externos: Alimentação imprópria, fadiga,
indulgência sexual, injúrias traumáticas e picadas de animais.
Quanto aos fatores externos, percebemos que a autora apresenta um
desenvolvimento posterior ao período HÀN , a diferenciação entre fogo e calor de
verão, e ainda, adiciona os “patógenos epidêmicos”, que consideramos ser uma
influência da Biomedicina. Quanto aos internos, percebe-se também uma
diferenciação entre tristeza/melancolia e medo/terror, aumentando as cinco emoções
para sete. A última categoria permanece essencialmente a mesma, com destaque
para a alimentação, a fadiga (hábitos de sono) e a sexualidade.
Temos assim uma sistematização dos fatores encontrados nos clássicos, sem
alterações fundamentais. Todavia, consideramos que uma mudança significativa do
período clássico para a Medicina Tradicional Chinesa é a ênfase que a última
confere aos BIÀN ZHÈNG , “padrões de desarmonia”. Segundo Chen (2004,
p.3) o procedimento diagnóstico adequado deve resultar na identificação do estado
da vitalidade do sujeito e do “nome da doença”.
67
Chen, P. é médica treinada em Medicina Tradicional Chinesa e Biomedicina. Sua obra é
referência no ensino de Medicina Tradicional Chinesa para estudantes ocidentais e também
para os primeiros anos de Universidades Chinesas.
126
O padrão de desarmonia resulta da organização da diversidade de sinais e
sintomas apresentados por um paciente enfermo em um quadro condensado
coerente capaz de explicar os fatores patogênicos envolvidos, os órgãos e canais
afetados e a relação destes com a vitalidade do sujeito, orientando a seleção do
procedimento terapêutico. Adequado.
Vejamos na tabela a seguir um exemplo, apresentado por Chen (2004, p.183)
Tabela 7: Padrão de Desarmonia - Umidade-Frio Acumulada no Baço-Pancrêas
Sintomas apresentados Patogenia do Sistema
Distenção e e plenitude na parte superior
do abdômen, falta de apetite e fezes
amolecidas
Disfunções do Baço Pâncreas em sua
capacidade de transformação e
transporte dos alimentos
Náuseas a vômitos Reversão do Qi do estômago
Peso no corpo inteiro e na cabeça Umidade-frio obstruindo a circulação de
Qi e de sangue
Edema e urina escassa Retenção dos fluidos corporais
Leucorréia com descarga vaginal clara Eliminação de umidade-frio por via baixa
Saburra da língua branca e gordurosa Vaporização da umidade turva
Pulso encharcado
68
e lento Grande quantidade de umidade retida no
corpo.
68
Tradução do termo inglês soggy.
127
Assim, se por um lado há o reconhecimento do valor do QÌ como
determinante da saúde, por outro há ênfase num tipo particular de classificação de
enfermidades. Um repertório que diversifica as enfermidades, representando um tipo
de evolução da produção de conhecimento sobre as doenças em relação ao período
clássico. Porém, se o exposto até o momento representasse a totalidade do quadro
atual da Medicina Tradicional Chinesa, talvez nem pudéssemos afirmar que houve
uma mudança de paradigma em relação ao período clássico, ao menos no nível
terrestre.
Um quadro mais completo deve incluir a análise do outro pólo de
desenvolvimento desta medicina, que são seus aspectos de integração com a
Biomedicina. O texto de Chen (2004) não ilustra adequadamente este aspecto pois é
dedicado à elaboração e explicação das concepções baseadas na Racionalidade
Médica Chinesa. É Freuhauf (1999) quem faz uma análise dos aspectos biomédicos
da nova Medicina Chinesa. Segundo o autor o que ocorre no cenário atual é uma
hierarquização de saberes que tende a destruir os aspectos clássicos da Medicina.
Destaca-se por exemplo, a necessidade de incorporar o sistema diagnóstico da
Biomedicina como referencial imprescindível à prática terapêutica. É neste aspecto
que o sistema de identificação por padrões de desarmonia torna-se relevante, por
ser o que mais se aproxima da noção de doença na Biomedicina. O BIÀN ZHÈNG
, identificação dos padrões de desarmonia, torna-se uma ponte para o BIÀN BÌNG
, identificação das doenças. Uma espécie de via de comunicação entre as duas
racionalidades. O autor salienta que esta comunicação seria de fato uma dominação,
que tende a impor os valores da racionalidade biomédica sobre os valores clássicos,
conforme descreve na tabela a seguir
69
:
69
Tabela traduzida, adaptada e resumida de Fruehauf (1999, p.13), com os aspectos
relevantes ao tema aqui exposto.
128
Tabela 8: Comparação entre Medicina Clássica e Contemporânea
Medicina Clássica Chinesa Medicina Tradicional Chinesa
O médico é um aspirante ao “caminho da
medicina”, um processo que requer a
atualização de seu caminho individual
através do trabalho para tornar-se um ser
auto-realizado (ZHĒN RÉN ):
Ferramentas principais: QÌ GŌNG ,
meditação, música, caligrafia, pintura, poesia,
jornadas ritualísticas
O médico é parte de uma profissão definida
legalmente
Ferramentas principais: cursos e testes
mandatórios em questões de
responsabilidade legal
Diagnose clínica baseada na experiência
“subjetiva” dos sentidos
Diagnose clínica baseada em dados
instrumentais objetivos fornecidos por
diagnose biomédica prévia.
Avaliação da terapêutica baseada na
sensação subjetiva de bem-estar do paciente
adicionada das informações colhidas pelo
médico a partir dos sinais de língua e pulso,
entre outros.
Resultado da Terapia avaliado por dados
instrumentais (Ex. Carga viral no sangue)
A diagnose enfatiza o BIÀN ZHÈNG ,
padrão de desarmonia
A diagnose enfatiza BIÀN BÌNG , as
categorias de doenças biomédicas.
Treinamento do médico é integral Treinamento especializado por categorias
biomédicas. (Medicina Interna, Ginecologia,
Oncologia, etc...
Notamos pelas informações deste quadro, que parece haver neste processo de
incorporação da Biomedicina uma reprodução de aspectos de sua racionalidade
decorrentes da centralização da noção de doença e seu combate, como por
exemplo, a especialização do médico em categorias definidas pela doença, além
dos aspectos associados ao modelo científico de validação de conhecimento, como
a quantificação e a objetividade.
E neste sentido que consideramos a Medicina Tradicional Chinesa como uma
exacerbação do nível terrestre da Medicina Clássica, pois existe esta força,
aparentemente crescente em seu campo, que tende a eliminar os aspectos de
129
desenvolvimento e manutenção da vitalidade relacionados aos níveis celestes e
humanos, com o objetivo de construir uma medicina voltada exclusivamente para a
cura de enfermidades, com base na racionalidade biomédica.
Com estas observações concluímos o processo de exposição, análise e
apreensão das noções fundamentais que compõem os três níveis de saberes e
práticas da Medicina Chinesa.
Capítulo 5 – A Terapêutica nos Três Níveis: Acupuntura e Moxabustão
Capítulo 5:
A Terapêutica nos Três Níveis: Acupuntura
e Moxabustão
131
5.1. A Diversidade das Práticas Terapêuticas
Viemos até o presente apresentando as concepções fundamentais e os valores
que estruturam os três níveis da doutrina medica da Medicina Clássica. Dedicamos
os próximos capítulos à ilustração e análise de exemplos de praticas terapêuticas,
da forma como são operadas em cada um dos níveis. Para tal, selecionamos três
tipos de práticas dentre o conjunto diversificado que compõe a dimensão terapêutica
da Medicina Clássica: a acupuntura, a farmacologia e as artes sexuais.
A escolha dos exemplos foi fundamentada no conjunto amplo de terapêuticas,
representado pelas práticas dos FĀNG SHÌ do período clássico, havendo aqui
um pressuposto que deve ser explicitado.
Se observarmos o conjunto composto pelas praticas terapêuticas da Medicina
Tradicional Chinesa, conforme praticados nas instituições médicas no sentido
restrito, como os hospitais da Republica Popular da China ou a maioria das clínicas
ocidentais, encontraremos as seguintes terapias: a) a acupuntura e moxabustao; b)
os fármacos; c) a dietética; d) as massagens (podendo incluir as práticas de
transmissão de QÌ ; e) QÌ GŌNG , exercício de cultivo e circulação da força
vital.
Este conjunto pode ser considerado uma parte restrita das artes dos FĀNG SHÌ
, que representam em nossa compreensão, as práticas médicas no sentido
restrito, cumprindo função delimitadora entre estas e as ritualísticas, religiosas ou
artísticas.
Conforme apresentamos em capítulo anterior, estas fronteiras não eram bem
definidas nos tempos clássicos, existindo ainda hoje uma parcela do campo que
considera necessária a utilização de um conjunto mais amplo de praticas
terapêuticas para alcançar os resultados desejados nos três níveis da medicina.
Apresentamos a seguir uma lista destas práticas, construída a partir de duas
fontes contemporâneas. A primeira, a obra de Kohn (2005) intitulada Saúde e
longevidade: o caminho chinês, onde a autora apresenta o conjunto de práticas
utilizadas atualmente no campo amplo da saúde, com um breve histórico para cada
exemplo. A segunda o artigo de Winn (2001), seguido de comunicação pessoal,
representando a visão de um Daoista contemporâneo sobre a integração do
conjunto de práticas. Cabe lembrar que para um Daoísta, a medicina no sentido
restrito é um segmento da totalidade de seu conjunto de saberes.
132
1- NÈI DĀN GŌNG - Traduzido por Alquimia Interna, seria um conjunto de
saberes e práticas que integram cosmologia, meditação e liturgia. Pode ser
considerada como o núcleo do desenvolvimento das técnicas de meditação,
sendo as mais básicas utilizadas com fim terapêutico nos níveis terrestre e
humano da medicina;
2- QÌ GŌNG , DÀO YǏN , Artes Marciais e Danças - São artes de YǍNG
SHĒNG , cultivo da vitalidade, que enfatizam o desenvolvimento do corpo;
3- YÌ JĪNG , Astrologia, Cosmologia – É considerado o ramo oracular do
sistema Daoísta;
4- Terapias Corporais - Acupuntura, Massagens e Transmissão de QÌ e
Moxabustão;
5- FÁNG ZHŌNG SHÙ - As artes sexuais;
6- FĒNG SHUǏ – Sistemas de “arquitetura” que buscam harmonizar a força
vital entre o ser humano e seu ambiente;
7- WÀI DĀN - Traduzido por Alquimia Externa, é o conjunto de saberes e
práticas relacionados com a transformação e uso de substâncias para o cultivo
da vitalidade. Na classificação Daoísta a Dietética é parte deste ramo;
8- Artes - Música, Caligrafia, Pintura, Escultura, Mitologia e Contos.
Sendo uma das práticas terapêuticas mais divulgadas da Medicina Chinesa, a
acupuntura se apresenta como uma opção terapêutica disponível em qualquer
metrópole do mundo ocidental. A fama conquistada vem chamando atenção de
setores da sociedade interessados em seus potenciais terapêuticos. Porém, os
questionamentos das instituições de saúde e da sociedade civil sobre estes
potenciais geralmente conduzem à formulação de questões que tendem a reduzir os
sentidos e os objetivos atribuídos a prática. Tanto o pesquisador em clínica, quanto
o gestor de saúde, bem como o paciente em busca de tratamento usualmente
formulam em primeiro lugar uma questão de eficácia terapêutica fundamentada no
modelo biomédico, como por exemplo: - “Acupuntura cura dores lombares? Em
quantas sessões?”
Como em nossa sociedade a eficácia terapêutica é sempre associada ao poder
de cura em relação a alguma enfermidade, é óbvio que os objetivos e sentidos da
prática mais assimilados pelas culturas contemporâneas também o serão. Nosso
interesse a seguir é expor e analisar os aspectos menos divulgados da acupuntura,
133
relacionados aos níveis humano e celeste da Medicina Chinesa. Para tal, iniciamos
com uma exposição sobre os fundamentos da acupuntura no nível terrestre, o mais
divulgado, para podermos em seguida efetuar comparações com os outros dois.
5.2. A Acupuntura no Nível Terrestre
A utilização da acupuntura e da moxabustão como práticas terapêuticas
fundamenta-se na noção de estimulação do QÌ , força vital. Como já vimos
anteriormente, os fatores que prejudicam o QÌ são diversos, mas qualquer
desarmonia na força vital irá mostrar-se através de um problema de circulação nos
meridianos (JĪNG MÀI ), a rede de canais por onde circula. Esta rede conecta o
interior do corpo com o ambiente externo, conduzindo a força vital (QÌ ) dos
órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ), para o exterior em um sentido, e no outro,
conduzindo a força vital (QÌ ) do ambiente externo para o interior do corpo. Assim,
os meridianos (JĪNG MÀI ) seriam os condutores dos estímulos provocados no
corpo, e no caso da acupuntura, estes estímulos teriam duas modalidades básicas:
1) tonificar a força vital (QÌ ) nos espaços em que estiver deficiente; e 2) Sedar ou
purgar a força vital (QÌ ) nas áreas em que estiver em excesso, sendo que,
usualmente, o excesso é tido como acúmulo de XIÉ QÌ , a força vital alterada
por fatores patogênicos. A moxabustão por sua vez, consiste na queima de
determinadas ervas
70
, a distância do corpo, sobre a pele com algum elemento
protetor, sobre a agulha de acupuntura, ou ainda diretamente sobre a pele sem
proteção. O calor emitido pela queima teria prioritariamente propriedades
tonificantes.
A utilização da acupuntura como uma forma de remover fatores patogênicos e
tonificar a deficiência de vitalidade está descrita com clareza nos capítulos 50 a 55
do SÙ WÈN , entre outros. Está explícito nos clássicos a acupuntura como uma
forma de trabalhar a cura de enfermidades ou a recuperação da harmonia, definindo
assim o nível terrestre desta prática terapêutica. Porém, parece-nos que a escola
Medicina Tradicional Chinesa enfatizou o desenvolvimento deste aspecto da
terapêutica, e por isto selecionamos em seu corpo de saberes a noção de padrões
de desarmonia (BIÀN ZHÈNG ) como um modelo adequado para
exemplificarmos os fundamentos do uso da acupuntura para a cura de enfermidades
e resgate da harmonia.
70
A erva mais utilizada é a artemísia. Folium Artemisiae Argyii,
134
Maciocia (1996) em sua obra intitulada: “Os Fundamentos da Medicina Chinesa”
nos apresenta a partir do capítulo 20 a teoria da identificação de padrões de acordo
com os órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ). Selecionamos dois exemplos, um para
um padrão de excesso, e outro de deficiência.
A prática consiste basicamente na apreensão dos diversos sinais e sintomas
apresentados em uma situação de enfermidade e na organização desta
multiplicidade em um padrão coerente que evidencie o núcleo da disfunção em
determinado conjunto de órgãos e vísceras.
Exemplo 1
Suponhamos que um paciente demonstre as seguintes manifestações: tosse,
febre, prurido na garganta, secreção nasal com muco claro e aquoso, espirro,
aversão ao frio, cefaléia occipital e dores generalizadas. O exame da língua mostra
uma saburra branca e fina, e o pulso está flutuante, principalmente na região frontal.
Neste conjunto de sintomas, a tosse e o espirro nos remetem imediatamente a
disfunções do pulmão. A tosse é interpretada como uma incapacidade dos pulmões
(FÈI ) em fazer descender o QÌ , algo que seria o correto de sua dinâmica vital,
enquanto o espirro está ligado à perda da capacidade de dispersão do, sendo
também uma resposta a um fator patogênico penetrando pelos orifícios nasais.
Quando a função descendente do pulmão é interrompida, os líquidos que deveriam
ser enviados para baixo começam a se acumular e voltar em contra corrente, saindo
pelos orifícios nasais como secreção. O pulso “flutuante” indica que a força vital (QÌ
) está predominante no exterior do corpo, “em combate” com algum fator
patogênico. Os outros sinais nos remetem à natureza deste fator: o fato da secreção
nasal ser clara e aquosa evidencia a presença de frio. (caso fosse amarela ou
esverdeada, seria calor). Da mesma forma que a aversão ao frio, as dores no corpo
são tidas como uma paralisação da circulação da força vital (QÌ ) causada pelo
fator patogênico frio. Assim, os sinais e sintomas remetem a uma disfunção dos
pulmões (FÈI ), associada a presença de um fator patogênico chamado vento-frio.
Este quadro recebe o nome de “Invasão do pulmão por vento-frio.“
Uma vez identificado o padrão, o passo seguinte consistiria em elaborar os
princípios de tratamento. Neste caso visando dispersar o fator patogênico (vento-
frio), liberar a força vital (QÌ ), presa no exterior em combate com o fator
patogênico, e estimular o pulmão (FÈI ) em sua função descendente.
135
Em seguida, seleciona-se os pontos de acupuntura que seriam capazes de
executar estas funções: Maciocia (1996, p.308) sugere os pontos LIÈ QŪE (P7);
FĒNG MÉN (B12); e FĒNG FǓ (VG16). O primeiro teria as funções de
dispersar o vento-frio, libertar o QÌ preso no exterior e estimular o pulmão em
suas funções descendentes; o segundo, tem a função de expelir o vento e libertar a
força vital (QÌ ) do exterior; e o terceiro, expele o vento e acalma a cefaléia. O
autor sugere utilizar todos os pontos em método de sedação, pois o objetivo
principal seria dispersar o fator patogênico.
Exemplo 2
O paciente mostra algumas das seguintes manifestações: Dores lombares,
joelhos debilitados, impotência, ejaculação precoce, apatia, urina clara e abundante,
inchaço nas pernas, infertilidade feminina. A língua apresenta uma cor pálida, está
edemaciada e úmida. O pulso está profundo e debilitado.
Como no exemplo anterior, o conjunto de sintomas está relacionado a um único
órgão, neste caso os rins (SHÈN ), a origem de toda vitalidade do organismo. A
apatia é definida como uma baixa geral de vitalidade, de disposição para viver.
Segundo a dinâmica vital da Medicina Chinesa, o sistema SHÈN rege a região
lombar e a força dos joelhos. Dores e fraqueza nestas regiões são usualmente
associadas. SHÈN também armazena a essência (JĪNG ), tida aqui como os
fluidos sexuais. A ausência destes ou de sua adequada circulação e ativação pela
parte YÁNG dos rins (SHÈN ) resulta em disfunções sexuais e problemas na
reprodução. Esta tipo de vitalidade seria responsável por transformar os fluidos da
parte inferior do corpo. A impossibilidade desta função resulta em acúmulo de fluidos
nas pernas (edemas) e urina clara e abundante. O acúmulo de fluidos se manifesta
na língua, que se torna edemaciada e úmida. A cor pálida indica ausência de calor.
O pulso profundo indica ausência de YANGQÌ , a força vital masculina, pois esta
se dirige para a superfície do corpo. A debilidade geral pode ser percebida na
debilidade do pulso. O conjunto de sinais e sintomas compõem o padrão conhecido
por “Deficiência de YÁNG no rins”.
Maciocia (1996, p.334) sugere como estratégia de tratamento tonificar e aquecer
os rins. Para tal deveria-se usar os seguintes pontos, todos com método de
tonificação: SHÈN SHÚ (B23), pois tonifica o YÁNG dos rins; MÌNG MÉN
(VG4), pois fortalece o fogo do portão da vitalidade, aquecendo os rins; GUĀN
YUÁN (VC4), fortalece o YÁNG dos rins e o YUÁN QÌ ; FÙ LIŪ
136
(R7), tonifica o YÁNG dos rins; ZHÌ SHÌ (B52), tonifica o aspecto mental dos
rins, a força de vontade.
Estes dois exemplos ilustram adequadamente o funcionamento do sistema no
nível terrestre. Primeiro, temos vários sintomas manifestos, ou seja, há uma
enfermidade instalada, uma desarmonia explícita. Seleciona-se na dimensão da
doutrina médica um conjunto de explicações para estas desarmonias que possam
operar uma terapêutica efetiva. Neste caso, seriam os já citados seis fatores
externos, as sete emoções (fatores internos), ou os fatores nem internos nem
externos. No primeiro exemplo, o fator externo “vento-frio” seria o principal fator
patogênico. No segundo, não foi designado claramente, mas poderia ser associado
ao excesso de trabalho ou de atividade sexual, falta de repouso ou alimentação
inadequada, entre outros. Estes fatores impedem o funcionamento adequado dos
sistemas de órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ), causando desarmonias na
dinâmica vital. Ao identificar os padrões de desarmonia e suas causas (método
diagnóstico), seleciona-se os pontos de acupuntura e os procedimentos necessários
para dispersar o fator patogênico ou tonificar a deficiência de QÌ .
É possível argumentar que a tonificação como suplementação de deficiência
seria um pratica do nível intermediário. Em nosso entendimento isto seria verdadeiro
somente se existisse associação à noção de constituição, ou seja se estivéssemos
trabalhando em um cenário com a enfermidade ainda não manifesta, ou se o evento
da desarmonia estivesse sendo tratado como parte da manifestação de um sujeito
com uma constituição singular. Isto não é o que acontece com o tratamento de
padrões, pois trata-se de enfermidades já manifestas, que são vistas como eventos
genéricos, independentes das singularidades constitucionais, não havendo
necessidade desta noção para operar a terapêutica. Aproxima-se neste sentido da
noção de doença da racionalidade biomédica.
137
5.3. Níveis Humano e Celeste nos Textos Clássicos
É possível encontrar referências em textos do campo Daoísta, ou em textos
específicos de acupuntura sobre a prática de acupuntura preventiva, feita durante
estados harmônicos de saúde com o objetivo de evitar o surgimento de
enfermidades. A maioria das prescrições consiste em aplicações de moxabustão em
pontos de acupuntura
71
. Cai
72
(1999, p. 164) considera que o já citado Daoísta GÉ
HÓNG tenha sido o primeiro a publicar técnicas preventivas para enfermidades
infantis. Consistem no uso da moxabustão em pontos que estão a ½ polegada acima,
abaixo e aos lados do umbigo, e logo após, no ponto uma polegada abaixo de JĪU
WĚI (VC15), 30 cones de moxa em cada ponto. Esta técnica seria capaz de
evitar a maioria das enfermidades infantis.
O autor cita ainda passagens do “Grande compendio de acupuntura e
moxabustão”, compilado na dinastia MÍNG . Numa delas descreve técnica que
consiste em utilizar moxabustão no umbigo em determinadas épocas de cada
estação climática. O resultado seria: “Os vários Qi perversos não entrarão e
nenhuma das cem enfermidades irá invadir”. Temos aqui uma técnica baseada na
idéia de seguir o movimento das estações climáticas aliada à prática da moxabustão,
que tem como resultado a imunidade às doenças.
Existem descrições de práticas semelhantes com o objetivo de nutrir a vitalidade
e prolongar a vida, YǍNG SHĒNG , que seria um tipo de prática do nível
celeste. Os principais pontos utilizados para este propósito são os seguintes: SHÉN
QŪE (VC8); QÌ HǍI (VC6); GUĀN YUÁN1 (VC4); ZÚ SĀN LǏ
(E36); e ZHŌNG WǍN (VC12). Com exceção dos dois últimos, todos os
pontos estão relacionados com a ativação do YUÁN QÌ , a força-vital original.
Cai (1999, p.166) cita passagens do texto QĪAN JĪN FĀNG
, prescrições que
valem milhares de peças de ouro, onde o ponto QÌ HǍI é descrito como o
comandante que permite ao QÌ visitar as cinco vísceras. Sendo o mar da
vitalidade original (YUÁN QÌ ), este ponto de acupuntura seria capaz de nutrir
71
O uso da moxabustão como forma de estimular a força vital (QÌ ) no sistema de
meridianos aparece nos primeiros textos médicos de MǍ WÁNG DŪI . No decorrer
do desenvolvimento da Medicina Chinesa esteve sempre intimamente relacionada a
acupuntura, principalmente como uma forma alternativa de tonificar os pontos, sendo em
diversas ocasiões usada em conjunto com a agulha.
72
Cai, Liu Zheng é um médico chinês contemporâneo que vive em Chengdu, Província de
Sichuan. Liu é um defensor da hipótese da Medicina Chinesa ser majoritariamente um ramo
dos saberes Daoístas. Em sua obra: “A Study of Daoist Acupuncture”, o autor busca
esclarecer as bases Daoístas nas teorias da Medicina Chinesa.
138
as cinco vísceras. O autor cita ainda uma passagem da biografia de um estadista e
calígrafo da dinastia TÁNG chamado Liu Gong Quan, que seria capaz de ter
filhos aos 80 anos de idade. Quando questionado sobre suas práticas, Liu teria
respondido: “Eu apenas mantenho o Qi Hai constantemente morno”, referindo-se ao
resultado da moxabustão freqüente no ponto. O autor ainda acrescenta comentários
sobre o ponto GUĀN YUÁN1 (VC4), em que afirma que a moxabustão regular
neste ponto e no QÌ HǍI deve ser praticada “mesmo que se esteja livre
doenças”, e seria capaz de conceder 100 anos de vida ao praticante, apesar de “não
ser capaz de torná-lo imortal”, avaliando o potencial da prática dentro dos valores
Daoístas de longevidade e imortalidade.
5.4. Nível Humano nos Autores Contemporâneos
A interpretação da Medicina Chinesa feita pelos autores contemporâneos citados
em capítulos anteriores criou espaço para práticas aparentemente novas no campo
da acupuntura. O aspecto fundamental da inovação em relação à Medicina
Tradicional Chinesa, e mesmo aos textos médicos clássicos, é a importância
conferida aos SHÉN XUÈ WÈI , os chamados espíritos dos pontos de
acupuntura. Jarret (2003), Willmont (1999), Kaatz (2005) e Yuen (2005) enfatizam a
capacidade de ação dos pontos de acupuntura sobre os aspectos psíquicos do ser
humano. O SHÉN do XUÈ WÈI seria sua capacidade organizativa sutil,
possível de ser estimulada através da acupuntura. Este estímulo seria capaz de dar
suporte e induzir o desenvolvimento de DÉ , as virtudes associadas a cada parte
do sistema de órgãos e vísceras (ZÀNG FǓ ), conduzindo o ser de volta à
XÌNG , sua natureza original.
A atribuição de funções sutis aos pontos de acupuntura baseia-se na
interpretação dos ideogramas que compõem seu nome, nos atributos e virtudes
associadas a fase do meridiano onde se encontra o ponto, e nas funções do órgão
(ZÀNG ) ou da víscera (FǓ ) associados ao mesmo meridiano. Os autores
crêem, implícita ou explicitamente, que o nome conferido ao ponto guarda os
sentidos de suas funções, sendo que em diversos casos estes sentidos são
apreendidos após uma série de associações entre o nome do ponto e sua posição
dentro do sistema WǓ XÍNG , cinco fases e dos ZÀNG FǓ , órgãos e
vísceras.
Antes de iniciarmos a exposição deste aspecto da acupuntura convém mais uma
vez retornarmos aos clássicos. Em sua interpretação do capítulo 8 do LÍNG SHÚ
139
, intitulado BĚN SHÉN , enraizado no espírito, Larre (1995, p.xvii) evidencia
SHÉN como um aspecto fundamental da terapêutica pelas agulhas. Em suas
palavras:
“Seu título, Ben Shen, nos lembra que a puntura com uma agulha
é efetiva somente quando realizada pelas mãos de um acupunturista
cujo espírito possa percorrer todo o caminho, até o coração daquilo
que anima, até os espíritos do paciente.”
O autor alicerça a passagem acima na tradução das linhas 2 e 3 do mesmo
capítulo: “Para cada inserção de agulha, o método é, acima de tudo, não perder o
enraizamento nos espíritos”, pretendendo enfatizar o aspecto de SHÉN como
organizador da força vital (QÌ ), vista como um “sopro” guiado pelos SHÉN .
Porém, o clássico não descreve como a consciência (SHÉN ) do acupunturista
afetaria a força vital (QÌ ) do paciente, e, nada diz sobre o aspecto da consciência
trabalhado pelos pontos de acupuntura (SHÉN XUÈ WÈI ). Para elucidar
como os autores contemporâneos elaboram o assunto, selecionamos como exemplo
alguns pontos de acupuntura, e comparamos as funções atribuídas a estes em
textos clássicos
73
, para em seguida expor uma interpretação contemporânea.
Ponto 1:
Nome: JĪNG QÚ
Atribuições em Deadman (2001, p.86):
Tradução do nome: Escoadouro do canal.
Ações do ponto: Faz descender a força vital dos pulmões (FEIQÌ ); alivia a
tosse e a falta de ar.
Atribuições em Jarret (2003, p.581):
Tradução do nome: Escoadouro do meridiano.
Ações do ponto: a) Intensifica as qualidades essenciais do metal, tais como
Inspiração, receptividade e conexão com o sentido de valor; b) Promove a pureza
nos pulmões pelo expurgo do que não for essencial para a continuidade da vida; c)
Reconecta com o valor das experiências passadas.
73
Escolhemos como referência de textos clássicos a obra de Deadman (2001), pois os
autores deixam claro que expõem apenas as funções descritas nos clássicos de acupuntura
como o “Systematic classic of acupuncture and moxibustion” ou o “Great compendium of
acupuncture and moxibustion” ,sem propor modificações ou adições. (Deadman, 2001, p.8)
140
Para atribuir estas funções ao ponto o autor fez as seguintes associações: a)
Intensificar as qualidades essênciais do metal: é devido à posição do ponto dentro
do sistema das cinco fases. JĪNG QÚ é o ponto da fase metal dentro de um
meridiano da fase metal, portanto, estaria em ressonância com as características de
um “metal puro”, que manifesta-se no ser humano como as virtudes descritas acima;
b) Pureza é um atributo da mesma fase, e também, expurgar o impuro é uma função
desta fase, principalmente do intestino grosso (DÀ CHÁNG ). Porém, o
segundo ideograma, QÚ , traduzido como sarjeta ou escoadouro, faz referência a
um sistema de drenagem de impurezas, fazendo com que o autor associe esta
imagem como uma das funções do ponto. c) Por último, A conexão com as
experiências passadas se deve ao ideograma JĪNG , que pode ser traduzido como
canal, meridiano ou livro canônico. O autor associa aqui as possíveis traduções do
ideograma, afirmando que um canal/meridiano é prioritariamente um sistema de
transmissão, enquanto um cânone seria também um método de coletar, elaborar e
transmitir as experiências do passado, que tenham provado seu valor na passagem
do tempo.
Ampliando mais as funções do ponto, o autor cita a possibilidade do
desenvolvimento da virtude por um método de crono-acupuntura. Pensa-se que
durante a passagem das estações climáticas o planeta armazena as qualidades da
força vital (QÌ ) daquela estação, e estas se apresentam com maior intensidade
nos equinócios e solstícios. O ponto de maior concentração de força vital (QÌ )
com características metálicas seria o equinócio de outono, o clímax da estação
associada a fase metal. Assim, a proposta terapêutica é estimular o ponto desta
fase , do meridiano associado à mesma, no dia de maior intensidade de força vital
metálica disponível no ambiente, e na hora de maior concentração no meridiano, no
caso dos pulmões de 3 a 5 horas da manhã. Ao fazê-lo seria possível transmitir a
força vital (QÌ ) do planeta ao ser humano, induzindo com intensidade o
desenvolvimento das virtudes associadas ao metal, concomitantemente à
transformação das emoções de tristeza e melancolia.
Ponto 2:
Nome:TĪAN FǓ
Atribuições em Deadman (2001, p.78)
Tradução do nome: Palácio Celestial
141
Ações do ponto: Limpa o calor dos pulmões e faz descender a força vital (QÌ );
Esfria o sangue e faz parar sangramento; Acalma a alma corpórea (PÒ ).
O autor esclarece em seus comentários que o termo “acalmar alma corpórea”
refere-se a “diversas desordens psico-emocionais” caracterizadas por tristeza e
lamento, desorientação e perda de memória, assim como sonolência e insônia.
Destaca ainda que o ponto também é indicado para “Fala fantasma de Cadáver
flutuante
74
”, interpretando o termo como um tipo de fala delirante que ocorre nos
estágios finais da turbeculose pulmonar.
Atribuições em Jarret (2003, p.576):
Tradução do nome: Palácio Celestial
Ações do ponto: Capacita o reconhecimento do valor de nossos potenciais
internos inspirados pelo céu.
A interpretação da função principal do ponto é feita pelas seguintes associações:
a) Do nome do ponto, o ideograma refere-se a um edifício onde se guarda registros,
portanto TĪAN FǓ seria o espaço onde se armazena os registros celestes; com
b) A categoria do ponto, pois pertence a uma determinada categoria denominada
“Janela do céu”. O autor infere que todos os pontos vinculados a esta teriam uma
conexão especial com um dos aspectos de SHÉN , a consciência organizativa,
pois seu espaço de residência original seria TĪAN , o céu. Portanto, as “janelas
para o céu” seriam instrumentos para visibilidade e contato com estes aspectos; e c)
Com as características da fase metal.
Através destes três fundamentos o autor constrói o cenário no qual as funções
do ponto podem ser úteis, conforme vemos na passagem a seguir:
“Uma vez que a inspiração e o auto-valor são comprometidos, a
patologia do elemento metal nos conduz a achar o que há de pior em
nós mesmos e nos outros. A capacidade dos pulmões de se conectar
com valores essenciais torna-se distorcida em perfeccionismo e
desdém por qualquer pessoa ou coisa que se considere suja ou
desonrada. [...] Auto-valor baseia-se na capacidade de reconhecer,
respeitar e valorizar os tesouros que achamos em nossas profundezas
[plantados por TĪAN , o céu] [...] O Ponto Palácio celestial pode
74
Do inglês: “Floating corpse ghost talk”.
142
restaurar a habilidade de reconhecer o que há de melhor em nós
mesmos e nos outros.” (Jarret, 2003, p.577)
Assim, vemos que os clássicos assumem a possibilidade de ação sobre os
aspectos de SHÉN através dos pontos de acupuntura, porém, descrevem a ação
a partir de sintomas que indicariam distúrbios em tais aspectos, como tristeza e
lamento. Jarret (2003) por sua vez, descreve a capacidade do ponto de restaurar as
virtudes associadas, auxiliando o desenvolvimento do tema da vida pessoal.
Vejamos a seguir um exemplo de caso da experiência clínica do autor. (Jarret, 2000,
p.274).
As queixas da paciente eram de inabilidade em ter uma relação afetiva
recompensante, e incapacidade de parar de fumar. Seu maior desejo era conseguir
achar um parceiro com quem pudesse construir uma relação significativa.
De acordo com o sistema do autor, deve-se observar detalhadamente diversos
aspectos do paciente para colher dicas sobre sua constituição.
Quanto a sua aparência pessoal, a paciente era uma mulher muito atraente, que
poderia mesmo ser uma top-model. Mantinha uma aparência imaculada e utilizava
apenas roupas e jóias de alta qualidade.
Quanto aos seus padrões emocionais e comportamentais em relacionamentos,
frequentemente entrava neles sem observar as faltas aparentes do parceiro. Sempre
pensava que sua beleza e valor seriam fortes o suficiente para provocar mudanças
no outro. Utilizava as relações para testar seu valor através de mudança do outro.
Quando em relações mais duradouras, apegava-se tanto ao parceiro, que ao menor
sinal de retirada por parte dele, sentia-se rejeitada. Por outro lado, antes inicia-las
costumava mostrar-se indisponível salientando pequenas falhas dos pretendentes
como se fossem grandes problemas. Começou a fumar aos 16 anos durante a
separação dos pais, e apesar de ter tentado parar por diversas vezes, não
conseguiu. Lembra-se de ter escutado do pai em diversas ocasiões a seguinte frase:
-“Com sua beleza e com meu dinheiro nós vamos ter sucesso”, e uma vez durante
sessão falou ao terapeuta: -“ Não preciso dele. Vou mostrar que posso ser bem
sucedida com minha beleza e com meu dinheiro.”
O autor analisa o conjunto de informações acima da seguinte forma: a) Nota que
a aparência externa mostra as qualidades metálicas de beleza e perfeccionismo,
havendo também uma concomitante dureza interna. Percebe um problema na
função de atribuição de valor, que sendo muito rígida e fantasiosa, projeta falhas
inexistentes nos outros. Por outro lado, usa as relações para testar e comprovar seu
143
próprio valor ao exigir mudanças dos outros, e interpreta o fim da relação como uma
falta de auto-valor. A história pregressa mostra que a questão do valor foi um tema
familiar recorrente, e o hábito de fumar é interpretado como uma forma de evitar os
sentimentos de perda e depreciação associados aos pulmões. Este conjunto de
informações levou o autor a concluir que a constituição da paciente era metal.
Durante o tratamento declarou a paciente algumas de suas observações e
interpretações sobre os sentimentos e comportamentos dela. Propôs-se a ajudá-la a
lidar com os aspectos auto-depreciativos através da acupuntura. Selecionou como
pontos principais do tratamento JĪNG QÚ (P8); TĪAN FǓ (P3) e SHĀNG
YÁNG (IG1). As funções dos dois primeiros pontos, descritas acima, são
adequadas para o problema apresentado. Enquanto o terceiro ponto seria
semelhante ao primeiro, pois também é um ponto de fase metal no meridiano do
intestino grosso (DÀ CHÁNG ), víscera associada a mesma fase. O autor
reporta que no decorrer do tratamento a paciente parou de fumar e conseguiu sentir-
se mais satisfeita com suas relações afetivas.
Este caso ilustra de forma exemplar o cenário de um tratamento de acupuntura
no nível humano, conforme o sistema terapêutico proposto por autores ocidentais.
Primeiro, o paciente não traz queixas que poderiam ser classificadas como doenças
ou enfermidades do ponto de vista de uma medicina terrestre, focada na cura.
Porém, há algo desconfortante, e hábitos que conduzem à enfermidade, sinais de
um padrão constitucional. O terapeuta faz então um diagnóstico constitucional e usa
a acupuntura para dar suporte ao desenvolvimento das virtudes do paciente,
conduzindo-o a um estado de saúde mais pleno.
144
5.5. Nível Celeste nos Autores Contemporâneos
As diferenças entre a forma encontrada nos clássicos do uso da acupuntura no
nível celeste, e as encontradas nos autores contemporâneos, são semelhantes à
descrita acima para o nível humano. Parece-nos que os autores clássicos
descrevem as ações dos pontos enfatizando seus resultados, como por exemplo,
“permite alcançar 100 anos de idade” ou “nenhuma enfermidade ocorrerá”. Por outro
lado, os autores contemporâneos descrevem o processo que culmina no
resultado através da análise das categorias subjacentes. Assim, as noções mais
importantes para uma acupuntura no nível celeste são XÌNG , a natureza interna,
MÌNG , mandato celeste, SHÉN , a consciência organizativa, e LÍNG , a
potência de realização, sendo esta última a única ainda não descrita em capítulos
anteriores, merecendo a elaboração a seguir.
Segundo Wieger (1965, p.182) o ideograma LÍNG mostra a imagem de
shamans realizando uma dança ritualística para fazer chover, tendo por extensão os
significados de poder supernatural, transcendente ou maravilhoso. LÍNG denota
uma potência de realização no mundo, o fazer chover, que é adquirida por seres
humanos através de uma troca, a dança oferecida a TĪAN , o céu.
Jarret (2000, p.54) interpreta LÍNG como a potência espiritual que emana da
essência (JĪNG ) a partir de uma seqüência de transformações alquímicas que
conduzem à realização do mandato celeste. Estas transformações envolvem a
ascensão da essência (JĪNG ) concentrada nos rins (SHÈN ) para o tórax, onde
reside XĪN , o coração. Nesta área a essência se transforma em LÍNG , que se
mistura a SHÉN , a consciência organizativa presente no coração, conferindo a
este um poder de provocar mudanças no mundo. LÍNG guarda semelhanças com
, a virtude, no sentido de ser um poder que emana a partir da manifestação de
MÌNG , o mandato celeste. Ainda segundo o autor, LÍNG é uma potência
criativa capaz de estabelecer uma ambiência adequada para a ocorrência de
determinado evento, o que significa que não é um poder de comando direto ao
mundo. Entende-se que do mesmo modo como TĪAN , o céu, não pode forçar o
homem a cumprir seu mandato, o homem não pode forçá-lo a modificar o mundo
através de comandos. A posição do shaman ao realizar o ritual seria como a de um
mensageiro, alegando ter cumprido sua parte no contrato, e portanto requisitando
aos céus que cumpra a sua. O evento acontece sem ser diretamente realizado.
145
Neste sentido LÍNG seria a potência de WÚ WÉI , a não-ação. Desta forma
o autor atribui ao desenvolvimento de LÍNG uma certa capacidade de “produzir” ,
no transcurso da vida, eventos sincrônicos que sejam relevantes para o
cumprimento do mandato.
Desta forma autores como Jarret (2003), Willmont (1999) e Kaatz (2005)
entendem que a acupuntura como uma terapêutica do nível celeste seria capaz de
promover o desenvolvimento destas forças, que apresentaria os seguintes
resultados: 1) Ao desenvolver SHÉN enquanto autoconsciência capaz de
promover organização espontânea, capacita-se a percepção da própria natureza
interna (XÌNG ), e portanto, ao alinhamento com MÌNG , o mandato celeste; 2)
Ao desenvolver LÍNG , desenvolve-se a potencia para realizar MÌNG , o
mandato celeste através de WÚ WÉI , a não ação.
Para o desenvolvimento desta terapêutica os autores pressupõem que os pontos
de acupuntura que apresentam em seu nome os ideogramas SHÉN , LÍNG ou
MÌNG teriam a capacidade de desenvolver estas forças, e também que alguns
outros pontos dos meridianos dos rins e do coração seriam capazes de acelerar a
interação natural da essência (JĪNG ) com a consciência (SHÉN ). Vejamos a
seguir alguns exemplos.
Ponto 3:
LÍNG XŪ , R24
Atribuições em Deadman (2001, p.360):
Tradução do nome: Ruínas do espírito
75
.
Ações do ponto: Relaxa o tórax; Faz descender a força vital (QÌ ) em rebeldia
nos pulmões e no estômago; Beneficia os seios.
Atribuições em Jarret (2003, p.454):
Tradução do nome: Cemitério do espírito.
Ações do ponto: Ressucita LÍNG , intensificando a potência para realização de
MÌNG , o mandato celeste; Desenvolve o sentimento de ser uma potência efetiva
de transformação no mundo.
75
O autor traduz LÍNG por “espírito”, da mesma forma que o faz com SHÉN .
146
Para atribuir estas funções ao ponto o autor faz as seguintes associações: 1) O
termo XŪ no nome do ponto, mostra a imagem de dois homens olhando a terra
em todas as direções a partir de uma montanha, e seus olhos não conseguem
enxergar sinais de vida. Este tipo de local de terra improdutiva era usualmente
escolhido para abrigar cemitérios. Na clínica, o termo homófono XŪ , o mesmo
ideograma sem o radical TǓ , é usado com o sentido de deficiência ou exaustão.
O nome do ponto indica que a exaustão de LÍNG , a potência de realização, está
associada às sensações de uma vida estéril ou improdutiva. O tratamento do ponto
seria capaz de induzir a resolução destes sentimentos pela “resurreição” da potência
(LÍNG ).
Ainda, o autor considera que a posição do ponto no tórax, onde o meridiano dos
rins penetra no coração, evidencia a chegada da essência (JĪNG ) presente no
meridiano dos rins, na residência da consciência (SHÉN ).
Ponto 4:
SHÉN FĒNG , R23
Atribuições em Deadman (2001, p.359):
Tradução do nome: O selo de espírito.
Ações do ponto: Relaxa o tórax; Faz descender a força vital (QÌ ) em rebeldia
nos pulmões e no estômago; Beneficia os seios.
Atribuições em Jarret (2003, p.452):
Tradução do nome: Selo do espírito.
Ações do ponto: Desbloqueia a expressão de SHÉN no coração; Afirma as
ações no mundo que surgem espontaneamente do coração, sem a necessidade de
confirmação externa.
O ideograma FĒNG no nome do ponto representa uma árvore sobre um
túmulo, representando a possessão do imperador sobre um pedaço de terra. Ainda,
a parte esquerda do ideograma representa um pequeno monte onde residem
deidades da terra, que deveriam estar sempre expostas às influências celestes.
Desta forma o autor interpreta que o nome do ponto sugere uma afirmação da
autoridade de SHÉN no coração individual, garantindo sua conexão com o céu
(TĪAN ). Esta conexão confere ao ser uma sensação de autoridade sobre sua
própria vida, e a percepção da veracidade dos caminhos a seguir ou ações a serem
147
realizadas. Esta sensação dispensa avaliação de terceiros, por ser uma relação
direta do sujeito individualizado com o céu (TĪAN ).
Se as diferenças de interpretação das funções dos pontos entre os dois autores
supracitados parecem significativas, Willmont (1999) contribui para ampliá-las ainda
mais. Em sua obra intitulada: “Os doze pontos-espírito da acupuntura: Para uma
terapêutica além dos sintomas e da prevenção
76
”, o autor contemporâneo
desenvolve um modelo onde interpreta as funções dos 12 pontos que apresentam o
ideograma SHÉN em seu nome como um conjunto integrado que se refere à
estágios de desenvolvimento da consciência (SHÉN ) no contexto do ser
individualizado.
O autor considera que SHÉN , a consciência teria quatro fases de
desenvolvimento, existindo 4 grupos de 3 pontos que propiciariam suporte à
evolução em cada fase.
A primeira fase é denominada “princípio”, e refere-se ao período da vida infantil
logo após a perda do contato com XÌNG , sua natureza interna. As funções dos
pontos deste grupo estariam relacionadas com a contenção e elaboração das
emoções resultantes da perda deste contato, e com a reconstituição do contato com
um propósito para a vida. A segunda fase é denominada “instalação”, e seus pontos
referem-se ao processo de planejamento e elaboração de caminhos de vida a partir
do contato com a natureza interna (XÌNG ). A terceira fase, denominada
“estabelecimento” contribui para o processo de manutenção do contato com a
natureza interna (XÌNG ) e da autenticidade de suas ações no mundo, enquanto a
quarta e última fase, denominada “contato” seria de re-estabelecimento do contato
entre o SHÉN enquanto consciência individualizada, com o SHÉN cósmico
residente nos céus (TĪAN ). Deste contato resultaria a potência transformativa
(LÍNG ).
Vejamos na passagem a seguir as funções que o autor atribui ao ponto SHÉN
FĒNG (R23), classificado como um ponto da fase de instalação:
“Inaugura o centro da vida espiritual de forma segura dentro de
um corpo físico pelo estabelecimento da autoridade de Shen. Isto
confere à pessoa a capacidade de ser governada por seu próprio
senso de autonomia. Traz a essência para o espírito [SHÉN ],
76
Tradução do original em inglês: The twelve spiritpoints of acupuncture: beyond
symptomatic and preventive healing.
148
nutrindo-o e fortalecendo sua autoridade. Através das funções de
Shen Feng (R23), a pessoa estende suas fronteiras internas para o
mundo externo, permitindo o contato com seu senso de identidade
autêntica, mesmo diante das pressões que a vida cotidiana oferece. [...]
Ajuda a revelar a natureza interna enterrada sob camadas de ilusões
construídas durante anos de ações, pensamentos e sentimentos
habituais e incoscientes. [...]“ (Willmont, 1999, p.10)
Em sua obra o autor elabora de forma minuciosa as funções de cada um dos
pontos-espírito, baseando suas interpretações nas associações que faz entre os
nomes dos pontos e as categorias fundamentais do nível celeste. Muitos detalhes
poderiam ainda ser elaborados sobre os outros pontos, ou mesmo relativos a
técnicas de inserção desenvolvidas para induzir transformações na consciência a
partir dos pontos de acupuntura.
Consideramos porém, que os exemplos acima transmitem uma imagem
adequada de um modelo contemporâneo de prática de acupuntura no nível celeste,
onde acredita-se que a terapêutica das agulhas poderia ser feita em sujeitos
saudáveis do ponto de vista de uma medicina curativa, centrada na noção de
doença ou enfermidade. Amplia-se o poder das agulhas para a promoção do auto-
conhecimento, e para dar suporte ao desenvolvimento de uma vida satisfatória,
conduzindo a auto-realização.
Capítulo 6: A Terapêutica nos Três Níveis: Os Fármacos
Capítulo 6:
A Terapêutica nos Três Níveis: Os
Fármacos
150
A Mitologia Chinesa tem em SHÉN NÓNG , o fazendeiro divino, um dos
grandes heróis civilizatórios da China. De acordo com seus mitos, numa época em
que os homens frequentemente sofriam de intoxicação pelo uso de alimentos não
preparados, que incluíam grama e carne de moluscos, o fazendeiro divino teria
surgido para ensiná-los a reconhecer a fertilidade do solo e semear grãos,
inaugurando a agricultura. Ainda, o grande herói teria ingerido diversos tipos de
ervas e substâncias para determinar seu sabor, suas propriedades e sua toxicidade,
passando o conhecimento para os homens. Em algumas versões do mito, o
fazendeiro é possuidor de um estômago transparente, que o permitia testemunhar
diretamente os efeitos das substâncias em seu corpo. Em diversas versões o
fazendeiro morre ao final de seus experimentos, envenenado pelo processo. Um
final típico da estrutura do mito do herói, onde sua morte causa a redenção da
sociedade, que teria recebido e guardado seu valoroso conhecimento. (Birrel, 1999,
p.47; Unschuld, 1986b, p.11)
De todo o conjunto de praticas terapêuticas da Medicina Chinesa é nos fármacos
que observamos com maior facilidade os três níveis da terapêutica. Não somente
pelo óbvio, da estrutura em níveis ter sido descrita no SHÉN NÓNG , um
tratado de farmacologia, mas também porque a literatura referente as praticas dos
XIĀN , imortais, é repleta de exemplos do preparo e uso de diversas substancias
para fins de longevidade e imortalidade.
Os fármacos exerceram papel fundamental na história chinesa da conquista da
imortalidade. Segundo Kohn (1993, p.308) GÉ HÓNG em seu BÀO PǓ ZǏ
posiciona-se de forma extremista ao considerar o consumo de um elixir como a
única forma de alcançar a verdadeira imortalidade:
“Através de exercícios respiratórios, ginásticas, e da ingestão de
ervas e plantas medicinais é possível estender seus anos de vida,
mas não será possível evitar a morte ao final. Somente ao tomar o
elixir divino se alcança a vida sem fim, tão longa quanto a do céu e da
terra.”
GÉ HÓNG posiciona-se no campo como um alquimista em defesa de sua
arte, e ao fazê-lo de forma radical, entra em conflito com diversas correntes do
Daoísmo e da sociedade Chinesa. Campany (2002, p.82) mostra que GÉ HÓNG
era contra: a) O caminho que busca a longevidade e a imortalidade através de
sacrifícios ritualísticos; b) Os literatos Confuncionistas que ignoravam ou criticavam
151
a busca pela imortalidade; c) Os partidários do naturalismo de ZHÙANG ZǏ que
pregavam o abandono aos apegos da vida material, inclusive do corpo; d) Os
Daoístas restritos às práticas de “preceitos”, que considerava apenas um conjunto
de regras comportamentais ou “fala ornamental”.
Apesar de seus opositores, GÉ HÓNG exerce importância fundamental no
desenvolvimento dos saberes relativos ao uso de substâncias para saúde,
longevidade e imortalidade. Mais do que ter influenciado o campo Daoísta com sua
obra, pode-se considerar que tenha influenciado o próprio conteúdo do SHÉN
NÓNG .
Engelhart (2005, p. 114) salienta que uma das compilações do SHÉN NÓNG
foi feita por TÁO HÓNG JǏNG por volta do ano 500 d.C. TÁO teria
elaborado sua obra com base em fragmentos de versões anteriores da dinastia HÀN
, as quais teria adicionado seu próprio conhecimento. Ocorre que TÁO foi o
primeiro patriarca da escola Daoísta SHÀNG QĪNG , suprema claridade, e teria
desenvolvido seus conhecimentos na região de MÁO SHĀN 茅 山, onde estudou
filologia, medicina e alquimia. O detalhe interessante é que MÁO SHĀN era
área de residência da família GÉ , da qual TÁO era parente.
Desta forma o autor da versão do SHÉN NÓNG que teria chegado até o
presente recebeu seus conhecimentos da família de GÉ HÓNG , e este fato
pode elucidar alguns aspectos da estrutura do texto.
Engelhart (2005, p.114) cita que TÁO era enfático no que diz respeito à
relação entre a saúde e o desenvolvimento espiritual ligado a longevidade e
imortalidade. “Uma vez que TÁO via a saúde como pré-requisito básico para
qualquer realização religiosa avançada, não é surpreendente que tenha buscado
estudar de forma profunda a medicina e a farmacologia, e que tenha se engajado
em diversos experimentos alquímicos”.
A autora elabora esta interpretação fundamentada em citações do próprio TÁO
, em uma de suas obras, um dos textos principais da escola SHÀNG QĪNG ,
denominado “Declarações dos aperfeiçoados”
77
77
Texto número 1016 do Cânone Daoísta.
152
“Quem quiser estudar o Dao [caminho] da longevidade deve
antes de tudo curar suas doenças. Sem esta cura primária, mesmo
que se pratique assiduamente a absorção e movimentação de Qi, não
é possível receber nenhum benefício.”
Assim, o SHÉN NÓNG foi um texto elaborado por um alquimista-médico,
alguém com conhecimentos em WÀI DĀN , elixir externo, termo utilizado para
as práticas de preparo alquímico de substâncias, que constitui uma sessão inteira do
DÀO ZÀNG , o Cânone Daoísta. E, se o texto foi escrito tendo implícitos os
valores de TÁO , a estruturação em três níveis é explicada como um caminho
exemplar, da cura de doenças à imortalidade. Segundo este ponto de vista, o
objetivo da sessão de cura do texto, a classe inferior de medicinas, seria desde o
princípio uma etapa de preparo para a busca da longevidade e imortalidade.
Assim, desenvolvemos o texto a seguir com a intenção de ilustrar as etapas
deste caminho, da cura à imortalidade, através do uso de fármacos e elixires.
6.1. Os Fármacos no Nível Terrestre
O SHÉN NÓNG atribui à classe inferior de medicinas as seguintes
propriedades: principalmente tratam doenças, são tóxicas, e por isto não devem ser
consumidas por longos períodos de tempo. (Yang, 2005, p. iv.). As substâncias da
classe inferior teriam um poder de ação sobre fatores patogênicos, porém, sua
toxicidade impediria seu uso prolongado. “Quando tratar doenças com substâncias
tóxicas, deve-se utilizar uma quantidade equivalente a um grão de sorgo. Uma vez
curada a doença, deve-se parar o uso”. O texto sugere desde o início, que se
combine substâncias para obter sinergismo na composição de uma fórmula, e expõe
a teoria dos cinco sabores das ervas : “as substâncias tem cinco sabores: azedo,
salgado, doce, amargo e picante”. Mais ainda, traz subclassificações internas dos
tipos de substâncias de acordo com as características das desarmonias. “para tratar
frio, use substâncias quentes, para tratar calor, use substâncias frias. Para
estagnação de alimentos, prescreva substâncias que os precipitem e expulsem”.
Ao analisarmos um tratado de farmacologia contemporâneo, encontraremos
fundamentos bastante semelhantes. Vejamos as descrições a seguir de um mesmo
fármaco nos dois textos:
153
Exemplo de Fitoterápico 1:
Descrição no SHÉN NÓNG
(Yang, 2005, p.69).
Nome: DÀ HUÁNG (Radix et Rhizoma Rhei)
É amargo, frio e tóxico. Sua função principal é quebrar as estagnações de
sangue, calor e frio. Quebra conglomerados (cálculos), acumulações e estagnações
de alimentos. Faz com que o estômago e os intestinos eliminem o envelhecido e
deixem entrar o novo. Permite o fluxo livre de água e grãos. Regula o centro de
transformação alimentar, e aquieta e harmoniza as cinco vísceras. Cresce nas
montanhas e nos vales.
Descrição na Matéria Médica contemporânea (Bensky, 2003, p.115)
Nome: DÀ HUÁNG (Radix et Rhizoma Rhei)
Tradução do nome: Grande amarelo
Equivalente ocidental: Raiz e rizoma de ruibarbo
Categoria: Ervas que drenam por via baixa
Propriedades: Amargo e frio.
Canais que penetra: Coração, Intestino Grosso, Fígado e Estômago.
Ações e indicações: Drena calor e purga acumulações: para febre alta, suor,
sede, constipação, distenção abdominal e dores. Delírios acompanhados de saburra
amarela na língua e pulso cheio; Drena calor-umidade: Drena também pelas fezes
[...], especialmente no caso de disenterias. [...]; Revigora o sangue e dispersa
estagnação sanguínea: Para amenorréia, massas abdominais imóveis ou dor fixa
devido à estagnação de sangue.
Percebemos que as principais propriedades da erva são as mesmas nos dois
textos. Seu sabor e sua temperatura: amargo e frio; Suas principais funções: quebrar
estagnações sanguíneas e alimentares, limpar calor e alimentos estagnados nos
intestino. Quanto as diferenças, percebemos que o texto contemporâneo não
destaca a questão da toxicidade, e nada diz a respeito da classificação em três
níveis. Em compensação descreve com maior precisão os locais onde a substância
age dentro do sistema de meridianos (JĪNG MÀI ) e órgãos e vísceras (ZÀNG
FǓ ), que parece ter sido um desenvolvimento posterior da teoria das
substâncias, e por último enuncia de forma explícita a subcategoria: ervas que
drenam por via baixa.
154
A consideração mais importante a tecer é sobre a permanência dos fundamentos
que permitem descrever as funções do fármaco, baseados no modelo dos cinco
sabores (WǓ WÈI ). Segundo este, cada sabor estaria associado a uma das
cinco fases (WǓ XÍNG ), o que confere algumas de suas propriedades, pois o
sabor estimula o movimento da força vital (QÌ ). Além do sabor, a questão da
temperatura também confere propriedades à substância. Esta forma de descrever as
ações da substância é congruente com os fundamentos da Racionalidade Médica
Chinesa.
Através do exemplo utilizado no capítulo anterior, descrevemos a seguir o modo
de seleção e uso de fármacos para uma situação de enfermidade. Repetimos aquela
onde o paciente mostra as seguintes manifestações
78
: Tosse, febre, prurido na
garganta, secreção nasal com muco claro e aquoso, espirro, aversão ao frio, cefaléia
occipital e dores generalizadas. O exame da língua mostra uma saburra branca e
fina, e o pulso está flutuante, principalmente na região frontal. Sabendo que segundo
a classificação por padrões de desarmonia esta situação é denominada “Invasão do
pulmão por vento-frio”, encontramos no tratado de clínica de Maciocia (2005, p. 758)
a recomendação do uso da fórmula MÁ HUÁNG TĀNG , que é composta por:
MÁ HUÁNG , GUÌ ZHĪ , XÌNG RÉN , e GĀN CǍO .
Bensky (2003, p.28) descreve MÁ HUÁNG como picante, levemente
amarga e morna. Penetra nos canais dos pulmões e bexiga, onde exerce as
seguintes funções: “libera o exterior e dispersa o frio, facilita o movimento do Qi dos
pulmões e controla a respiração ofegante, promove a diurese.” Pertence à
subcategoria: “ervas mornas que dispersam o exterior”.
Uma das propriedades do sabor picante seria dispersar, por isto a ação da erva
na dispersão da força vital (QÌ ) presa no exterior, em combate com fator
patogênico. Ainda, como o fator patogênico é frio, a erva selecionada apresenta
características mornas, de forma a eliminá-lo.
A próxima erva, GUÌ ZHĪ , da mesma subcategoria, é descrita com as
seguintes propriedades: picante, doce e morna, penetra nos canais do coração,
pulmões e bexiga exercendo as seguintes funções: “ajusta o Qi defensivo e o
nutritivo, aquece os canais e dispersa o frio, facilita o fluxo de Qi no tórax”. (Bensky
2003, p.29)
78
Ver capítulo anterior.
155
Da mesma classe que a anterior, esta erva reforça as funções de dispersar o frio,
o fator patogênico.
A próxima, XÌNG RÉN , pertence à categoria: “ervas que aliviam a tosse e a
dificuldade respiratória”. É descrita como “amarga, levemente morna, e levemente
tóxica”. Penetra nos canais do Intestino Grosso e dos Pulmões, onde exerce as
seguintes funções: “cessa a tosse e acalma a respiração, lubrifica e desbloqueia os
intestinos”. (Bensky 2003, p.198). Sua ação principal dentro do quadro descrito é
parar a tosse, estimulando os pulmões a retificar sua força vital (QÌ ).
Por último, GĀN CǍO , pertence à categoria: “ervas que tonificam o QÌ ”.
É descrita como doce, neutra e morna. Penetra todos os 12 canais e tem como
ações: “Tonificar o baço-pâncreas, lubrificar os pulmões e acalmar a tosse, limpar a
toxicidade do calor, e moderar e harmonizar as características das outras ervas”.
Dentro da formula sua principal função é a de moderação dos componentes
anteriores. Uma função auxiliar. (Bensky, 2003, p.323)
Assim, vemos que a composição da fórmula funciona de forma análoga aos
pontos de acupuntura para o tratamento de padrões de desarmonia. Primeiro
determina-se uma estratégia de tratamento com base na análise da desarmonia da
dinâmica vital. Conforme vimos, a estratégia para este caso seria: dispersar o fator
patogênico (vento-frio); liberar a força vital (QÌ ) presa no exterior em combate com
o fator patogênico; e estimular o pulmão (FÈI ) em sua função descendente. Uma
vez determinada a estratégia seleciona-se os agentes capazes de provocar os
estímulos necessários, buscando compor uma conjunto sinérgico de elementos.
Neste caso, os agentes devem estimular prioritariamente os pulmões. O mesmo
modelo aplica-se à acupuntura e aos fármacos, e ambos poderiam ser utilizados
simultaneamente nesta situação.
6.2. Os Fármacos no Nível Humano
Segundo o pensamento de TÁO , uma vez tratadas as enfermidades seria
possível concentrar as ações no cultivo da vitalidade e sua conseqüente longevidade.
Vejamos como o texto descreve as substâncias deste nível.
“[As substâncias], principalmente nutrem a personalidade e correspondem a
humanidade. Podem ser tóxicas ou não, e por isto deve-se ponderar antes de utiliza-
las. Se quiser controlar as enfermidades, suplementar as deficiências e preencher as
exaustões, deve-se basear nesta classe intermediária”. (Yang, 2005, p.x). O autor
comenta que a passagem “nutrem a personalidade” refere-se à crença dos antigos
156
no poder de cultivo das virtudes humanas através destas substâncias, consolidando
a versão de Jarret (2000), onde o cultivo das virtudes seria um dos aspectos da
terapêutica deste nível.
Vejamos como o texto as descreve:
RÒU CÓNG RÓNG (Yang, 2005, p. 43)
“É salgada. Trata principalmente as cinco exaustões e os sete
danos. Suplementa o centro, elimina calor, frio e dores no pênis, nutre
as cinco vísceras, fortalece o Yin, a essência e o Qi. Em mulheres
possibilita a concepção e trata estagnações. O uso prolongado pode
tornar o corpo leve. “
MÀI MÉN DŌNG (Yang, 2005, p. 42)
“É doce e balanceada. Trata principalmente Qi preso no coração
e no abdômen, danos por excessos alimentares, problemas no
estômago e exaustão na rede de meridianos. Trata a prostração e
respiração curta. O uso prolongado pode tornar o corpo leve, prevenir
o envelhecimento e eliminar a fome.”
Vemos que as substâncias seriam capazes de tratar condições de desarmonia,
mas principalmente as deficiências, ou seja, teriam a capacidade de nutrir a
vitalidade, uma das características da classe intermediária. Expõe-se também o
resultado do uso prolongado, que pode ser compreendido como sinais de sucesso
do processo de nutrição: tornar o corpo leve, prevenir o envelhecimento e eliminar a
fome. Porém não aparece de forma explícita as virtudes cultivadas.
Ao observarmos a descrição das mesmas substâncias numa matéria médica
contemporânea (Bensky, 2003), veremos algumas diferenças. Primeiro, não há
classificação em três níveis, porém, é possível observar que diversas sustâncias do
nível humano e celeste são encontradas na seção denominada “ervas tonificantes”.
Segundo Bensky (2003, p.313), estas substâncias são utilizadas para “suplementar
uma área ou processo corporal que esteja debilitado, e também fortalecer as
defesas do corpo contra doenças”. Não há sugestão sobre uso prolongado das
ervas, fora do contexto de enfermidade por deficiência. Ainda, um exame mais
detalhado de suas propriedades demosntra atribuições por demais assemelhadas.
RÒU CÓNG RÓNG é salgada, doce e morna, penetra nos rins e intestino
grosso tonificando-os e resolvendo problemas de impotência, incontinência urinária,
e infertilidade (Bensky, 2003 p. 339), ou seja, teria ações semelhantes sobre o
157
sistema reprodutivo, quer masculino ou feminino. Porém, não existem referências
sobre “tornar o corpo leve”, como resultante do desenvolvimento da força vital (QÌ )
através do uso prolongado da substância. Parece-nos que o texto contemporâneo
trata sobre os aspetos curativos das substâncias, como se as apreendesse apenas a
partir do nível terrestre, através de um olhar voltado para cura.
Por este motivo, a apreensão da extensão dos significados de sentenças como
“tornar o corpo leve” ou “eliminar a fome” é possível somente dentro do contexto
Daoísta no qual foram criadas, mais especificamente dentro do contexto da Alquimia
Daoísta (WÀI DĀN ). Quanto ao uso dos fármacos para a terapêutica no nível
humano, conclui-se que o fundamento é a utilização prolongada da classe média de
substâncias em sujeitos que tenham alcançado previamente um estado de equilíbrio
razoável. O principal resultado desta prática seria a longevidade, estando implícito o
processo de desenvolvimento das virtudes.
6.3. Os Fármacos no Nível Celeste
Iniciando nossas observações pelo SHÉN NÓNG , vemos que as ervas da
classe superior “são atóxicas, e consumí-las em grandes quantidades por longos
períodos de tempo não causa dano algum. Se quiser tornar seu corpo leve,
aumentar seu Qi, prevenir o envelhecimento e prolongar a vida, deve-se utiliza-las”
(Yang, 2005, p.iv). O autor salienta que a expressão original utilizada para o termo
“prevenir o envelhecimento” é composta pelos ideogramas que significam
literalmente “não envelhecer”. Comenta ainda que “tornar seu corpo leve” não
significava apenas leveza e flexibilidade corporal, mas a aquisição de habilidades
sobrenaturais como voar ou andar longas distâncias sem exaurir-se. Nas palavras
do autor:
“Estas referências ressaltam que foram principalmente os
Daoístas que criaram as primeiras matérias médicas. Neste caso, seu
interesse primário não era o tratamento de doenças, mas a aquisição
de diversos poderes extraordinários pela ingestão de elixires.” (Yang,
2005, p.ix)
Um exame das práticas dos imortais por suas hagiografias confirma a
interpretação do autor. Na hagiografia de SHĚN JIÀN (Campany, 2002, p.333)
um imortal (XIĀN ) cujas especialidades eram a prática do DÀO YǏN e da
dietética macrobiótica, conta-se que em determinada circunstancia ele teria decidido
fazer uma viagem longa e pediu a um de seus empregados que cuidasse dos outros
158
e de seus animais. Ao sair entregou ao encarregado algumas pílulas medicinais,
uma para cada pessoa e animal, e disse: “dê a cada um deles uma pílula e não se
preocupe mais em alimentá-los”. Ao partir o encarregado deu as pílulas aos
empregados e animais. Porém, pensou que SHĚN JIÀN havia negligenciado
seus deveres e decidiu dar alguma comida e água. Quando os empregados
cheiraram a comida, tiveram ânsia de vômito e a rejeitaram. Os animais viravam a
face na direção oposta. Passaram 100 dias e todos estavam com o corpo radiante, e
o encarregado surpreso. Três anos depois, quando SHĚN JIÀN retornou, deu
a todos outra pílula medicinal, e voltaram a se alimentar normalmente. SHĚN JIÀN
por sua vez, nunca mais ingeriu alimentos comuns e foi visto levitando e
viajando em vôo durante 300 anos, tendo desaparecido completamente depois.
Vemos na hagiografia que as “pílulas medicinais” eram utilizadas com o
propósito de “eliminar a fome”, uma das supostas características da erva MÀI MÉN
DŌNG , citada acima.
Fora do contexto hagiográfico, eliminar a fome era tido pelos praticantes das
artes da longevidade como um meio para alcançar diversos fins tais como: a)
“sobreviver em tempos difíceis”, ou seja, em situações de escassez de alimentos; b)
preparação para permanência em retiros de meditação durante longos períodos de
tempo, usualmente em montanhas ou cavernas; c) purificação para realização de
rituais ou, em ultima instancia, como um dos métodos de transformação corporais
necessárias para tornar-se um XIĀN , imortal.
Schipper (2004, p.860) destaca que o texto intitulado “Artes secretas dos divinos
imortais para nutrir a vitalidade”
79
, parte do Cânone Daoísta, contém “receitas para
sobrevivência em tempos de escassez”, segundo as quais através de uma
combinação de arroz, feijão e sementes de gergelim seria possível alcançar efeitos
como “cessar a fome por 7 dias”. Caso não se ingerisse nada mais durante o
período, uma segunda dose seria capaz de “cessar a fome por 49 dias”, e num
terceiro ciclo, a fome cessaria por 100 dias. Para retornar a uma dieta normal, “o
adepto deveria ingerir três caixas de sementes de girassol, em sopa”. Isto nos diz
que o Cânone (DÀO ZÀNG ) apresenta fórmulas para alcançar efeitos
semelhantes aos descritos nas hagiografias.
Ainda quanto aos diversos usos da eliminação da fome, Arthur (2006, p.91) cita
que o termo genérico para sua denominação é BÌ GǓ , que tem como tradução
79
Cânone Daoísta, livro 948, f.599.
159
literal “evitar os grãos”, apresentando sentidos e significados variáveis de acordo
com o contexto. Quando utilizado no contexto ritualístico, como método de
preparação para execução de ritual, BÌ GǓ significa evitar o consumo de
carnes, álcool, cebollinha, alho-poró, cebola, alho e gengibre. No contexto da busca
da longevidade e imortalidade, BÌ GǓ envolve períodos de jejum onde se troca
a ingestão de comida por força vital (QÌ ) pura, a ser retirado do ar pela respiração.
Parece ter existido dois estágios desta prática: nos jejuns de longo prazo BÌ GǓ
consistia em limitar a ingestão de comida a pequenas porções, enquanto
utilizava-se uma variedade de decocções, que incluíam ervas capazes de suprimir a
fome, em conjunto com a ingestão de força vital (QÌ ) pela respiração, para
substituir a absorção pelo alimento. Em um segundo estágio, um tipo mais austero,
mas frequentemente mais curto, parava-se com toda ingestão alimentar e praticava-
se apenas a absorção direta de força vital (QÌ ) pela respiração.
Assim, vemos que “eliminar fome” é um dos efeitos da utilização de substâncias
do nível celeste, que se encontra dentro do contexto das transformações
necessárias para a obtenção da longevidade e imortalidade. É dentro deste contexto
que podemos apreender os significados e os objetivos do uso de fármacos neste
nível.
Para aprofundarmos nossa compreensão do contexto e da extensão da
influência da Alquimia Daoísta (WÀI DĀN ) no SHÉN NÓNG , e mesmo na
farmacologia contemporânea, examinamos a seguir as propriedades de quatro
substâncias, adequadas à ilustração do cenário. As substâncias são: LÍNG ZHĪ ,
os cogumelos ganoderma; o HUÁNG JĪNG , essência amarela; DĀN SHĀ ,
o cinabre; e por último SHUǏ YÍN, , “água de prata”, o mercúrio.
Os LÍNG ZHĪ , cogumelos ganoderma, aparecem no SHÉN NÓNG
como um grupo, e sua relevância deve-se ao fato de serem as únicas substâncias
com descrição detalhada de ação sobre os WǓ JĪNG SHÉN
, os espíritos
dos órgãos, e sobre algumas de suas virtudes associadas. Os cogumelos são
citados em grupo, associados por sua cor às WǓ XÍNG , cinco fases. O
primeiro, QĪNG ZHĪ , é descrito como azedo e balanceado. “Faz os olhos
brilharem, suplementa o Qi do fígado, aquieta a essência e a alma etérea. Cultiva a
humanidade e a compaixão. O uso prolongado torna o corpo leve, previne a
senilidade e prolonga a vida, tornado o usuário imortal”. A tradução de Yang (2005,
p.17) não descreve os ideogramas utilizados, mas observa-se que há uma
160
associação entre diversas propriedades da fase madeira, como a cor verde-azulada
(QĪNG ), o fígado, os olhos, a alma etérea, que supomos ser uma tradução de
HÚN , o espírito associado ao fígado, e as virtudes de humanidade e compaixão,
que são termos usualmente utilizados para traduzir RÉN , a virtude associada à
fase madeira.
Apresentamos a seguir uma tabela com a descrição destas propriedades para o
conjunto de cogumelos:
Tabela 9: O Conjunto de Cogumelos Ganoderma (LÍNG ZHĪ 靈 芝)
Nomes Fase/Órgão/
Sabor
relacionados
Efeitos relacionados ao órgão/fase Virtudes cultivadas
QĪNG ZHĪ 青芝
(Ganoderma viridis)
LÓNG ZHĪ 龍芝
(Ganoderma
dragão)
Madeira
Fígado
Azedo
Atuar sobre os olhos, aquietar a
alma etérea
Humanidade e
compaixão
CHÌ ZHĪ 赤芝
(Ganoderma
Rubra)
Fogo
Coração
Amargo
Suplementar a força vital (QÌ ) do
coração; Tornar a inteligência
aguda e beneficiar a memória
Não há referência
HUÁNG ZHĪ 黃芝
JĪN ZHĪ 金芝
(Ganoderma áurea)
Terra
Baço
Pâncreas
Doce
Suplementar a força vital (QÌ ) do
Baço-pâncreas
Lealdade,
honestidade e
gentileza.
BÁI ZHĪ 白芝
(Ganoderma alba)
Metal
Pulmões
Picante
Suplementar a força vital (QÌ )
dos pulmões; libera o nariz.
Bravura e ousadia
HĒI ZHĪ 黑芝
(Ganoderma nigra)
Água
Rins
Salgado
Suplementar a força vital (QI) dos
pulmões, abrir a passagem das
águas, tornar a audição aguda
Não há referência
Este grupo de substâncias apresenta algumas funções que atribuímos ao nível
humano, como o desenvolvimento das virtudes, e também outras vinculadas ao nível
161
celeste, como evitar o envelhecimento, e a imortalidade. Achamos conveniente
descrevê-las aqui como exemplo de terapêutica simultânea aos dois níveis, e
também com objetivo de complementar a análise do nível anterior. A seguir
examinaremos algumas substâncias que ilustram com maior clareza o contexto da
terapêutica no nível celeste em suas relações com a alquimia.
“Essência amarela” é a tradução literal de HUÁNG JĪNG , planta que no
ocidente é denominada de selo de salomão ou polygonatum. Apresenta ainda os
nomes alternativos YÙ ZHÚ , bambu de jade, e WĒI RUÍ , nome com o
qual aparece no SHÉN NÓNG , descrita com as seguintes propriedades: “é
doce e balanceada. Trata principalmente golpes de vento com calor fulminante e
paralisia. [...] O uso prolongado pode remover sinais escuros da face, e torna-la
brilhante. Torna o corpo leve e previne o envelhecimento”. (Yang 2005, p.20). Uma
outra descrição encontrada no texto Daoísta chamado “Os talismãs dos cinco
tesouros numinosos”, traduzido por Campany (2002, p. 26), diz o seguinte:
“De todas as ervas e árvores, somente a essência amarela é
longeva. Quando as pneumas [QÌ ] do triplo yang ascendem aos
palácios da grande pureza, suas essências são refinadas em
maravilha mística e transformadas em pura harmonia. Então fluem
radiantes pelas nove sessões do céu e da terra e se espalham no
espaço. Acumulam-se nas montanhas através das nuvens, e de
acordo com as pneumas da região transformam-se em plantas selo de
salomão. [...] Suas flores contém nove virtudes, aumentam a
longevidade e os méritos. Seus brotos são tesouros numinosos, e ao
ingeri-los torna-se um imortal transcendente. Suas raízes são tesouros
celestiais, [...] Se colher um pouco delas, pulverizá-las e consumir o
pó, obterá a transcendência por vôo.”
Ao examinarmos as características da substância no tratado de farmacologia
contemporânea encontramos sua descrição como de sabor doce e levemente fria,
capacidade de penetração nos pulmões e no estômago, lubrificando-os. Extingue o
vento e libera os espasmos musculares. (Bensky,2003, p.362). Assim, verificamos
no SHÉN NÓNG propriedades curativas semelhantes às descritas no tratado
contemporâneo, e algumas das propriedades de longevidade e imortalidade do nível
celeste descritas no texto Daoísta. Este último porém, descreve não somente as
propriedades da planta, como também sua origem celestial, e ainda, os métodos de
162
preparo necessários para alcançar os efeitos desejados
80
. Pensamos que o exemplo
da polygonatum posiciona o SHÉN NÓNG como um intermediário entre o
campo da terapêutica terrestre e os saberes e práticas de Alquímia (WÀI DĀN ),
como se fosse um texto voltado para a aplicação de parte da Alquimia na terapêutica.
Este caráter mediador do SHÉN NÓNG é bastante aparente quando se
trata de DĀN SHĀ , o cinabre, uma das substâncias mais comentadas nas
hagiografias dos XIĀN , imortais. Cinabre é um composto de enxofre e mercúrio.
O mercúrio é tido pela Biomedicina como um metal de alta toxicidade, logo,
recomendar sua ingestão seria equivalente a causar envenenamento. O cinabre
consta em matéria médicas contemporâneas. Benksy (2003, p. 400) o descreve
como “doce, frio e tóxico, capaz de sedar o coração e acamar o espírito”. Ainda, o
autor comenta: “Não deve ser utilizado em grandes quantidades ou por longos
períodos. Para prevenir envenenamento por mercúrio, não o aqueça.” O composto é
utilizado até hoje em pequenas doses, em fórmulas usualmente relacionadas com
tratamento de distúrbios psico-emocionais (distúrbios do SHÉN ). A utilização do
cinabre é proibida em alguns países ocidentais onde a Medicina Chinesa é praticada.
Em nossa compreensão, uma das possíveis explicações para a insistência do
uso do cinabre na Medicina Chinesa é a importância que teve na alquimia no
passado e que permanece influenciando o campo da medicina mesmo no nível
terrestre. Por exemplo, na hagiografia de SHĚN WÉN TÀI (Campany, 2002,
p.333) diz-se que teria conseguido uma forma de “reverter os anos” baseada na
formulação de um elixir e no uso de talismãs. O Elixir, chamado de “Divina primavera
vermelha” deveria ser preparado combinando cinabre com hematita e cozinhando-os
em suco de bambu. O produto resultante, chamado primavera vermelha, deveria
então ser vaporizado e misturado com a “solução mística” um código para o
mercúrio.
Na visão de GÉ HÓNG , a aquisição dos estados mais elevados de XIĀN
imortalidade é alcançado através dos elixires. Segundo Campany (2002, p.39), GÉ
HÓNG descreve diversos elixires em seus textos. Um deles, chamado “Flor de
cinabre” é feito da seguinte forma:
80
Esta parte não foi traduzida por Campany (2002, p.26), tendo apenas colocado uma
referência que a seqüência do texto descreve o método de preparo.
163
“O ingrediente principal é o cinabre. O vaso alquímico é
preenchido com “lama seis-um” e com “preto e amarelo”. O
aquecimento é feito em quatro ciclos de nove dias, aproximando
progressivamente o vaso do fogo. Se o elixir não se formar após esta
série de aquecimento, o produto da sublimação deve ser misturado
com magnetita e gordura de dragão, e aquecido por mais trinta e seis
dias. Para testar o sucesso do processo, o adepto deve utilizar
pequenas quantidades do produto sobre mercúrio ou sobre chumbo,
que deve se transformar em ouro. Se ouro não se formar, o
procedimento falhou, ou porque o vaso não estava totalmente selado,
ou porque alguma regra de pureza ritual foi quebrada. “
“Lama seis-um” e “preto e amarelo” são códigos para subcompostos baseados
em mercúrio, ouro, chumbo e no próprio cinabre. Temos nesta descrição um
exemplo típico de linguagem alquímica. Repleta de obscuros códigos interligados e
imagens de transformações de metais, que dependem tanto da “pureza” do operador
durante o “ritual” de produção do elixir, quanto do seu conhecimento e experiência, e
também de um aparato tecnológico externo, que inclui os vasos alquímicos,
conforme vemos na figura abaixo:
Figura 8: Um Vaso Alquímico
Representação de um Vaso Alquímico (à esquerda), e pedaços de DĀN SHĀ ,
cinabre (à direita), prontos para serem transformados em SHUǏ YÍN, , mercúrio.
164
Nosso objetivo com esta exposição é evidenciar o uso do cinabre e do mercúrio
como elementos fundamentais para a busca da longevidade e imortalidade era
originalmente parte de um contexto alquímico, onde o nível de elaboração dos
saberes e práticas era bem mais complexo do que aparece no SHÉN NÓNG .
Neste, simplesmente são citadas as características de ambos, incluindo as
habilidades supranaturais que seriam capazes de conferir ao usuário, sem ao menos
fazer alusões à complexidade necessária para seu preparo. Podemos, então,
compreender o uso do cinabre no nível terrestre como um fragmento das práticas
alquímicas dos Daoístas, e o SHÉN NÓNG como um material intermediário.
Ainda, se por um lado a busca pela imortalidade através do elixir de cinabre é
algo impensável nos dias atuais, por outro, existem diversas práticas que poderiam
ser interpretadas como uma versão fragmentada da busca por esta substância ideal,
e continuam sendo utilizadas. As decocções de fórmulas de ervas, o PÁO ZHÌ ,
preparo prévio das substâncias, que tem como objetivo modificar as propriedades
das substâncias, cozinhando-as no mel, no vinho, vinagre ou no sal, adequando-as
para o consumo
81
, são práticas da Medicina Chinesa contemporânea, no nível
terrestre, que podem ser vistas como uma “pequena alquimia”.
Do ponto de vista da nutrição da vitalidade e da busca por longevidade, as
decocções e extratos alcoólicos das mesmas ervas citadas no SHÉN NÓNG
continuam sendo utilizadas até o presente com os mesmos objetivos.
81
Sobre as técnicas de preparo de substâncias ver Siounneau (1995).
Capítulo 7: A Terapêutica nos Três Níveis: As Artes Sexuais
Capítulo 7:
A Terapêutica nos Três Níveis: As Artes
Sexuais
166
7.1. Sexualidade e Saúde na Medicina Chinesa
O termo FÁNG ZHŌNG SHÙ 房 中 術
, “artes do interior do quarto”, refere-se ao
conjunto de saberes e práticas relacionados à sexualidade humana. O assunto
permeia diversos aspectos da cultura Chinesa, e assume grande importância nos
campos do Taoísmo e da Medicina, definindo dois extremos de um grupo social que
se apropria da sexualidade enquanto um saber-fazer. As perspectivas que se abrem
ao estudarmos a sexualidade na cultura chinesa são diversas, pois como postula
Wile (1992, p.72), “Os chineses fizeram do sexo uma arte, um yoga, uma terapia e
uma meditação” Esta pluralidade da sexualidade na cultura é algo bastante distinto
do ocidente, abrindo um campo de estudos com grandes potenciais
A importância da sexualidade na saúde aparece nos textos médicos de MǍ
WÁNG DŪI (Harper, 1998), compondo um conjunto de assuntos
interdependentes com a Farmacologia, a Moxabustão, o DÀO YǏN , a Dietética
(Macrobiótica; Fórmulas para jejum e tônicos alimentares), Cuidados de gestação e
parto e Fórmulas para exorcismo.
Estes textos apresentam dois aspectos interessantes. Primeiro em relação à
própria história da Medicina Chinesa, pois, como são os registros médicos mais
antigos, evidenciam que as práticas sexuais foram utilizadas enquanto terapêutica
antes da acupuntura, visto que esta não fazia parte ainda da lista de terapêuticas
utilizadas. O segundo, diz respeito à história da sexualidade no ocidente, pois ao
que parece, as relações entre saúde e sexualidade foram exploradas pela primeira
vez apenas no século XIX
82,
83
.
No que diz respeito à sexualidade enquanto terapêutica, as noções
fundamentais são as mesmas nos três níveis, porém, a intensidade e os objetivos
das práticas variam de acordo com o nível. A noção de JĪNG , essência, apresenta
grande proeminência, pois relaciona diretamente sexualidade e saúde, e explica a
relevância da indulgência sexual como um fator patogênico, conforme vimos em
capítulo anterior.
Por se considerar o ato sexual como uma situação com alto potencial de
desgaste da essência, foram criadas diversas práticas para sua proteção. Assim, o
82
Refiro-me à obra de Sigmund Freud.
83
Cabe aqui um breve comentário, pois parece-me que a própria existência de tratados
clássicos sobre sexualidade na china são um contra-exemplo ao argumento de Foucault
(1988), em história da sexualidade: vontade de saber, que situa o início da formação de
discursos e construção de saberes racionais sobre sexualidade no século XVIII. Se assim o
foi no ocidente, a história do oriente parece distinta.
167
campo de saberes médicos apresenta uma interface com o da sexualidade-saber,
num primeiro momento através das noções de regulação da atividade sexual em
termos quantitativos, conforme vemos na passagem abaixo presente no SÙ NǓ
JĪNG 素 女 經, um dos textos clássicos das artes sexuais:
Os homens diferem em relação à força e fraqueza, velhice ou
juventude. Cada um deve agir de acordo com a força de seu Qi nunca
forçar o orgasmo. Forçar o orgasmo traz injúrias. Assim, um rapaz
forte de quinze anos pode ejacular duas vezes ao dia, e um fraco [da
mesma idade] uma vez ao dia. Um homem forte de vinte anos pode
ejacular duas vezes ao dia e um fraco, uma vez. Homens fortes de
trinta podem ejacular uma vez ao dia, e os fracos uma vez a cada dois
dias. Homens fortes de quarenta podem ejacular uma vez a cada três
dias, os fracos, uma vez a cada quatro dias. Homens fortes de
cinqüenta, uma vez a cada cinco dias, os fracos, uma vez a cada dez
dias. Homens fortes de sessenta podem ejacular uma vez a cada dez
dias, e os fracos a cada vinte dias. Homens fortes de setenta podem
ejacular uma vez a cada trinta dias, e os fracos não devem ejacular
mais.
O método de Su Nu permite homens de vinte anos a ejacular
uma vez a cada quatro dias, de trinta anos uma vez a cada oito dias,
de quarenta anos uma vez a cada dezesseis dias, e de cinqüenta anos
uma vez a cada vinte e um dias. Os que chegaram aos sessenta
devem parar totalmente e travar o seu Jing. Mas, se eles ainda forem
bastante fortes podem ejacular uma vez por mês. Homens cujo Qi seja
excepcionalmente forte não devem se reprimir por muito tempo na
refreada da ejaculação, caso o façam irão desenvolver carbúnculos e
úlceras. [...] (Wile,1992, p.92)
Temos então a noção de regulação quantitativa exposta numa espécie de tabela,
com duas variáveis: a idade, e a condição de saúde no momento do ato sexual. No
campo da medicina esta regulação se torna uma prescrição terapêutica, como pré-
condição para recuperação de enfermidades, principalmente aquelas diretamente
relacionadas ao sistema dos rins (SHÈN ), e ao nível geral de vitalidade do
organismo.
Num segundo momento, o próprio ato sexual, adornado com um conjunto de
técnicas, apresenta-se também como prescrição terapêutica. Porém, antes de
168
abordarmos este tópico faz-se adequada uma pequena digressão, pois até o
presente momento apresentamos a questão da sexualidade enfatizando o ponto de
vista masculino. É conveniente questionarmos como fica a questão da perda de
essência (JĪNG ) para as mulheres, antes da apresentação da utilização do ato
sexual como terapia.
A questão mais óbvia seria: se a perda de essência (JĪNG ) se dá na
ejaculação, algo que não ocorre usualmente com as mulheres durante o ato sexual,
como então poderia este ato desgastá-la? A resposta a esta pergunta apresenta-se
de duas formas.
A primeira, apresentada por Maciocia (1996, p.174), mostra-nos uma visão que
associa o orgasmo ao desgaste da essência (JĪNG ), igualando assim as
condições sexuais do homem e da mulher, pois o homem a desgastaria pela
ejaculação durante o orgasmo, e a mulher o faria pelo próprio orgasmo em si,
independente da perda de fluidos sexuais. Assim, o autor aponta que se deve contar
apenas os encontros sexuais que conduzem ao orgasmo como lesivos à essência
(JĪNG ), tanto para o homem como para a mulher. As atividades sexuais que não
alcançam o nível orgástico não são consideradas fator patológico neste modelo.
Esta interpretação nos conduz à imagem do próprio prazer como algo lesivo à
saúde, o que nos parece contraditório com a visão dos textos clássicos das artes
sexuais e, mais ainda, com o que ocorre no campo do Daoísmo contemporâneo
84
.
Vejamos o que nos diz o primeiro verso do SÙ NǓ JĪNG 素 女 經.
Toda a debilidade no homem deve-se à violação do Dao, do
intercurso entre o Yin e o Yang. Mulheres são superiores aos
homens da mesma forma que a água é superior ao fogo. Este
conhecimento é como a habilidade de misturar os cinco sabores
em um pote para fazer uma deliciosa sopa. Aqueles que conhecem
o Dao do Yin e do Yang podem realizar plenamente os cinco
prazeres. Aqueles que não conhecem irão morrer antes de seu tempo
sem sequer terem conhecido esta alegria. Como você poderia olhar
84
Os motivos da existência destas distintas apropriações do campo sexual pode com certeza
ser explicada por transformações sócio-culturais. Porém, tal empreendimento constitui um
objeto de pesquisa por si, amplo e interessante, e por isto iremos evitar nos aprofundar aqui
para não desviarmos de nosso objeto. Apenas como indicação provocativa para futuras
pesquisas colocamos a seguir uma sentença de Maciocia (1996, p. 176): “A Medicina
Chinesa também considera a abstinência como uma causa de patologia, embora isto nunca
seja mencionado na China moderna.[...]
169
para este assunto e não tratá-lo com extrema importância?
85
(Wile,
1992, p.85)
Notamos então que SÙ NǓ JĪNG enfatiza os aspectos da saúde: “toda a
debilidade no homem deve-se à violação do intercurso entre o YĪN e o YÁNG ”,
mas também do prazer relacionado ao ato sexual. Wile (1992) em suas notas afirma
que os cinco prazeres são relacionados aos cinco sentidos, algo a ser desenvolvido
em nome da saúde, longevidade e alegria: “aqueles que não conhecem irão morrer
antes de seu tempo sem sequer terem conhecido esta alegria”.
Os textos mais antigos, como o próprio SÙ NǓ JĪNG , afirmam
simultaneamente a importância da proteção da essência (JĪNG ) e a relação
positiva entre prazer e saúde, sendo que o segredo para a união destes dois
aspectos reside na mulher: “mulheres são superiores aos homens da mesma forma
que a água é superior ao fogo”. Os sentidos associados a esta frase constituem a
diferença entre a apreensão dos saberes e artes sexuais nos clássicos Daoístas e
no campo do Daoísmo contemporâneo em relação à posição da Medicina Chinesa
contemporânea, baseando os argumentos em dois tópicos: o primeiro, diz respeito
ao local de concentração da essência (JĪNG ) nas mulheres, e o segundo faz
distinções entre tipos de orgasmo
86
.
Despeux (2003) e Chia (1986) mostram a visão Daoísta da dinâmica vital da
essência (JĪNG ), afirmando que sua maior concentração não se encontra nem
nos fluidos sexuais e nem no sangue propriamente dito, mas num tipo de sangue
muito especial, o sangue menstrual. Os autores afirmam que os Daoístas
observavam que durante o processo de gestação e amamentação a mulher cessa
sua menstruação, e explicavam o fato pela existência de um processo de
deslocamento da essência feminina (JĪNG ), que durante o parto é utilizada para
formar a essência pré-natal do feto (XĪAN TĪAN JĪNG 先 天 ), e após o parto é
convertida em leite para amamentação. Isto explicaria porque a mulher só volta a
mestruar ao final da lactação, quando a essência (JĪNG ) já não estaria mais
85
A tradução do Inglês e os grifos são meus.
86
Parece-nos que Maciocia (1996, p.175) esteve ao menos parcialmente consciente da
distância que existe entre as apreensões, pois procurou adicionar em seu texto algumas
características específicas dos sexos. Primeiro, reconhece que a atividade sexual excessiva
afetaria mais aos homens do que às mulheres, explicando em termos da dinâmica da
essência JĪNG , que na mulher está mais ligada ao sangue do que aos fluidos sexuais.
Portanto, afirma que a mulher recupera o JĪNG perdido mais rápido que o homem. E mais,
expõe a gestação e parto como um fator importante de desgaste para as mulheres.
170
sendo convertida em leite. Nesta visão, o fluxo menstrual é um aporte de sangue
repleto de essênia (JĪNG ), reservada para suprir as necessidades de geração e
sustentação de um novo organismo. Quando a fertilização não ocorre, esta reserva
seria então descartada na menstruação.
Diante deste processo os maiores fatores de desgaste da essência feminina
(JĪNG ) estariam: 1) Na menstruação, onde a reserva inicial para a geração de um
novo corpo é descartada; 2) Na gestação, onde a essência materna (JĪNG ),
incluindo a reserva inicial é transferida para o feto; e 3) Na amamentação, onde a
essência (JĪNG ) é convertida em leite para o processo de amamentação.
A segunda questão diz respeito ao orgasmo em si, com ou sem perda de fluidos,
pois este poderia ser uma fonte de desgaste de JĪNG QÌ , a força vital (QÌ )
associada à essência (JĪNG ), mesmo que nenhum YÈ , fluido corporal,
carregado de essência (JĪNG ) tenha sido expelido durante o ato sexual. Esta
questão é respondida da seguinte forma por Daoístas contemporâneos como Chia
(1986) e Chang (2001), em concordância com o SÙ NǓ JĪNG 素 女 經:
Existiriam basicamente dois tipos de orgasmo: um deles dotado de característica
YÁNG , masculina, teria a qualidade de externalizar a força vital (QÌ ) e a
essência (JĪNG ) reservadas no interior do corpo para os órgãos sexuais, e então
expeli-los. Este é o orgasmo comum masculino. Por sua vez haveria um segundo
tipo, de natureza YĪN , feminina, onde a força vital (QÌ ) e a essência (JĪNG )
teriam a tendência a mover-se para o interior do corpo durante o orgasmo, o que as
manteriam guardadas e intactas. Este segundo tipo de orgasmo ocorreria mais
facilmente nas mulheres, por serem de natureza YĪN . Esta explicação desdobra-
se na dimensão da morfologia, pois, o fato dos órgãos sexuais femininos serem
alojados dentro do corpo (YĪN ) direcionaria naturalmente a força vital (QÌ ) e a
essência (JĪNG ) para dentro, ao contrário dos homens que apresentam o órgão
sexual projetado para fora (YÁNG
).
Neste cenário a mulher ocupa posição distinta do homem. Como sua essência
(JĪNG ) não se concentra nos fluidos corporais produzidos durante o ato sexual, e
por ter tendência natural a alcançar um orgasmo do tipo interno, a mulher poderia ter
atividades sexuais orgásticas sem nenhum desgaste da essência, (JĪNG ) ou de
sua força vital associada (JĪNG QÌ ). Logo, a superioridade da mulher mostra-se
em sua natureza sexual, onde prazer e saúde são aliados, ao contrário do homem,
171
que inicia sua jornada sexual com estes elementos dissociados, tendo nas FÁNG
ZHŌNG SHÙ 房 中 術, as artes sexuais, e principalmente na mulher, as fontes de
saber que poderão uni-los novamente
87
.
7.2. As Artes Sexuais no Nível Terrestre
Após esta digressão podemos retornar ao tema da sexualidade enquanto
prescrição terapêutica. No nível terrestre, onde a sexualidade assume papel curativo,
a fórmula básica estaria associando a regulação quantitativa à utilização de posturas
durante o ato sexual. A primeira tem como propósito garantir que a essência (JĪNG
) não será mais desgastada, dando ao corpo o tempo necessário para sua
recuperação, enquanto as posturas servem para direcionar o fluxo de força vital (QÌ
) no interior do corpo durante o ato sexual, para estimular determinado sistema. É
exatamente o mesmo princípio das posturas do QÌ GŌNG aparecendo aqui no
contexto do ato sexual.
Convém salientar mais uma vez que a prescrição terapêutica é orientada pelo
sexo. Isto significa que a tabela de restrições quantitativas é direcionada
principalmente ao homem, enquanto as mulheres poderiam engajar-se no prazer
sexual com um grau de restrições muito menor, em termos quantitativos.
Logo, para melhor esclarecer a técnica, devemos observar os contextos
masculino e feminino. Para o primeiro o processo de recuperação da essência (JĪNG
), e de alguma possível enfermidade ou desarmonia implica em: 1) Restringir
quantitativamente o ato sexual onde ocorre ejaculação; 2) Engajar-se no ato sexual
utilizando a postura adequada para estimular o fluxo de QÌ para o órgão enfermo,
terminando o ato sexual sem ejacular. (O que para a maioria dos homens implica na
ausência de orgasmo). Como as restrições de quantidade são para o ato sexual
seguido de ejaculação, se o homem respeitar o modelo acima, o ato sexual cotidiano,
mesmo que diário, transforma-se em processo terapêutico. Por sua vez, no contexto
feminino onde a ocorrência do orgasmo não aparece como fator de desgaste do
JĪNG , a terapêutica está centrada na utilização de posições. As posições também
variam de acordo com o sexo, onde mais uma vez aparece a superioridade do
87
Devemos notar que os clássicos apresentam distintas soluções diante deste problema.
Basicamente, parte-se da superioridade de mulher, porém, a resposta a esta superioridade
nem sempre resulta numa postura de aprendizagem por parte do homem, tal como acontece
no SÙ NǓ JĪNG 素 女 經, onde a mulher instrui o imperador. Mas, alguns textos clássicos
são tomados por metáforas militares, onde a mulher é tida como um “inimigo poderoso”. Os
motivos e as repercussões desta variação constituem um objeto extenso demais para ser
tratado aqui.
172
feminino no campo sexual, pois, segundo Chang (2001, p.133), nas posturas
desenhadas para a cura do homem, a mulher também recebe benefícios, enquanto
nas posturas desenhadas para a cura da mulher, o homem não receberia benefícios.
Vejamos a seguir algumas destas fórmulas curativas:
Posições de Cura para o Homem
Figura 9: Posição de Cura para o Homem I
Posição para Fraquezas nos ossos, ossos quebrados, doenças da medula óssea e
artrite: A mulher deita-se sobre seu lado esquerdo com sua perna esquerda dobrada
para trás. A direita fica reta. O Homem pode deitar-se de lado ou obliquamente.
Nesta posição fazer cinco seqüências de nove, cinco vezes ao dia, por dez dias
seguidos. (Chang, 2001, p.129)
Figura 10: Posição de Cura
para o Homem II
Para problemas no sangue,
incluindo pressão sanguínea:
Nesta posição o homem deita-
se de costas, relaxado. A
mulher fica com a face voltada
para ele e apoiada nos joelhos.
A mulher não deve se mexer.
O homem deve fazer
movimentos verticais. Nesta
posição fazer sete rodadas de nove movimentos, por no máximo sete vezes ao dia,
por dez dias. (Chang, 2001, p.130)
173
Posições de Cura para a mulher
Figura 11: Posição de Cura para a
Mulher I
Para o estômago, pâncreas e
problemas digestivos: A mulher
deita-se de costas com suas
pernas cruzadas na cintura do
homem e seus braços em torno
dele. O homem fica sobre suas
mãos e joelhos e a penetração
deve ser pela metade. A mulher
gira sua pelve nas direções horária e anti-horária, por quanto tempo desejar. (Chang,
2001, p.136)
Figura 12: Posição de Cura para a Mulher II
Para bloqueios nos meridianos, dores de cabeça, problemas de circulação
sanguínea, e menstruais: Nesta posição o homem deita-se de costas relaxado. A
mulher está de joelhos e apoiada em um de seus cotovelos, tombada para um dos
lados do homem. Segurando seu pênis com uma das mãos e sua cabeça com outra,
ela permite a penetração até a metade. A mulher então gira sua pelve nesta posição
por quanto tempo desejar. (Chang, 2001, p.139)
174
7.3. As Artes Sexuais no Nível Humano
Os próximos passos no campo das artes sexuais, atribuídos ao nível humano,
enfatizam as noções de longevidade e aumento de vitalidade. Neste contexto não se
descarta o nível anterior. As práticas de proteção da essência (JĪNG ) continuam
em vigência, enfatizando a idéia de que não seria possível expandir a vitalidade num
cenário de desperdício. Porém, ocorrem transformações nos sentidos e objetivos
das práticas, procurando fortalecer a aliança entre prazer, saúde e vitalidade.
Observamos, por exemplo, que as posturas passam a incluir técnicas de circulação
e concentração de força vital (QÌ ).
Figura 13: Concentração de Força Vital nos Rins
Na técnica resumida na imagem acima, os parceiros devem guiar a força vital (QÌ )
para os rins, não mais para curar alguma enfermidade, mas para concentrar e
ampliar sua vitalidade. (Chia, 1986, p.232).
Todavia, percebemos que o princípio fundamental do cultivo da vitalidade pelo
ato sexual é a manutenção de estados de prazer e excitação por períodos
prolongados de tempo, garantindo simultaneamente a proteção da essência (JĪNG
). Para tal, o conjunto de técnicas volta-se mais uma vez para o homem, pois é
quem determina a duração do ato sexual, que usualmente termina quando ocorre a
ejaculação.
Figura14: O Método do Cadeado
Neste processo o homem
deve “aprender a ser mulher” em
termos da dinâmica vital do
prazer, desenvolvendo a
capacidade de alcançar
orgasmos do tipo YĪN ,
interiorizando a força vital (QÌ ) e a essência (JĪNG ), ao invés de exteriorizá-los
175
pela ejaculação. Para tal, utilizam-se diversas técnicas, como a do “cadeado”, que
consiste em pressionar o ponto de acupuntura HǓI YĪN (VC-1), momentos
antes do início do processo de ejaculação, a fim de mantê-las dentro do corpo e
ampliar o tempo do contato sexual. (Chia, 1984, p.120).
Além desta, o autor descreve outras técnicas como pressionar os glúteos, bater
os dentes, e direcionar a força vital (QÌ ) para o interior do corpo através da
intenção.
Existem práticas semelhantes para a mulher, porém, seu foco de trabalho não é
na contenção para posterior internalização, mas no fortalecimento e circulação da
vitalidade gerada. Para tal, utilizam-se massagens na região genital, exercícios dos
músculos do ânus, e técnicas de respiração para concentração de força vital (QÌ ).
Figura 15: Concentração de Força Vital no Útero.
A mulher direciona e armazena o Qi em seu útero. (Chia, 1986, p.123)
176
Uma vez conciliados o prazer e a preservação da essência (JĪNG ), o casal
poderia expandir o tempo do ato sexual, a fim de alcançar níveis cada vez maiores
de prazer e vitalidade. Chang (2001, p.117) chama este processo de
desenvolvimento do orgasmo superior, contrapondo-se ao orgasmo ordinário.
Vejamos a representação gráfica abaixo:
Figura 16: Gráfico da Expansão do Orgasmo
O Gráfico ilustra o processo de desenvolvimento do orgasmo superior, a partir do
orgasmo comum. As noções fundamentais são: 1) O Orgasmo masculino comum
normalmente ocorre antes do feminino, deixando portanto um processo incompleto
para a mulher; 2) Ao sustentar o orgasmo por tempo maior, o homem oferece
oportunidade para o processo natural do orgasmo superior feminino; 3) O Homem
experimenta também níveis de prazer e vitalidade muito superiores ao comum,
porém, ainda mais oscilantes do que a mulher. (Chang, 2001, p.117)
Orgasmo
Masculino
Superior
Orgasmo
Feminino
Superior
Orgasmo
Masculino
Comum
Orgasmo
Feminino
Incompleto
177
7.4. As Artes Sexuais no Nível Celeste
O desenvolvimento do orgasmo superior é um processo contínuo que compõe
simultâneamente conjuntos de técnicas destinados à longevidade e à imortalidade.
Para o primeiro, o orgasmo superior é ponto culminante do conjunto, algo que o
homem saudável deve alcançar com a finalidade de ampliar sua vitalidade e
alcançar o tempo máximo de vida que lhe foi destinado no momento de sua
concepção. Para o contexto das práticas de imortalidade, o orgasmo superior é o
início de outro agrupamento de técnicas em busca de uma transformação radical no
corpo e na consciência. No campo Daoísta estas transformações poderiam ampliar o
tempo de vida para além do máximo destinado na concepção, abrindo a porta para
“o reino dos imortais”. O SÙ NǓ JĪNG 素 女 經 nos mostra esta continuidade:
“Um ato sem emissão fortalece o Qi. Dois atos promovem
acuidade auditiva e visual. Três atos fazem desaparecer todas as
doenças. Quatro atos fazem apaziguar os cinco espíritos. Cinco atos
fazem o pulso ficar cheio e relaxado. Seis atos fortalecem a cintura e
as costas. Sete atos fortalecem os glúteos e coxas. Oito atos tornam o
corpo inteiro radiante. Nove atos sem emissão, consegue-se
longevidade ilimitada. Com dez atos entra-se no reino dos imortais.”
(Wile, 1992, p.92)
Assim, quanto mais se prolonga o prazer-vitalidade do ato sexual, mais se
aproxima do outro pólo do contínuo da saúde, a imortalidade. Neste contexto as
artes sexuais aparecem como parte do NÈI DĀN , alquimia interna, um termo
genérico que designa um conjunto de saberes e práticas cujo objetivo é promover
uma transformação radical no corpo e na consciência humana.
Antes de iniciarmos a descrição deste processo, convém salientar algumas
características do contexto, pois, as práticas alquímicas estão inseridas no campo
religioso, mais especificamente, Daoísta. Sendo este um representante fundamental
das religiões chinesas, significa que houve na China um padrão de relação entre
religião e sexualidade distinto do ocidente. Basicamente, durante toda a história do
Daoísmo, o cultivo adequado da força sexual humana foi considerado um fator
determinante para o desenvolvimento no caminho espiritual rumo a XIĀN ,
imortalidade. Apesar do significado de “cultivo adequado” apresentar variações de
acordo com as contingências históricas e com as diferentes linhagens, há
concordância quanto à necessidade de um engajamento consciente com a força
sexual para que haja evolução no caminho espiritual.
178
A concordância baseia-se na noção de JĪNG , essência, como força motriz do
desenvolvimento de SHÉN
, consciência. Ainda, se para a medicina a essência
(JĪNG ) é algo que se desgasta com o envelhecimento, para a alquimia o corpo
envelhece porque a essência foi desgastada. A fórmula se inverte de maneira sutil,
mas muito significativa, pois para os alquimistas, a essência (JĪNG ) pode ser
concentrada, armazenada e mesmo reproduzida, concedendo ao corpo poderes
regenerativos que poderiam sustentá-lo em vida indefinidamente.
As discordâncias baseiam-se no papel da sexualidade neste processo. Discute-
se especialmente se o engajamento no ato sexual pode ser compatível com o
desenvolvimento no caminho do NÈI DĀN 內 丹. Separadas pela geografia e pelo
tempo, a postura que enfatiza as vantagens do trabalho com um parceiro concentra-
se no sul da China, sendo mais comum nos tempos antigos. Opõe-se à que nega o
engajamento no ato sexual, mais comum no norte e nas dinastias mais recentes.
Com base nestas diferenças surgiram conjuntos de práticas voltadas para o
cultivo solitário, e outras para o cultivo com parceiro durante o ato sexual, ambas
buscando os mesmos resultados no que se refere à essência (JĪNG ) e as
transformações rumo à imortalidade (XIĀN ).
Segundo Kohn (2003, p.211), para ambos os sexos o primeiro estágio baseia-se
no selo completo da essência (JĪNG ). Deve-se evitar completamente qualquer
perda, o que para as mulheres, significa obter a capacidade de parar sua
menstruação. Será necessário manter a essência presente no fluido menstrual
dentro de seu corpo a fim de passar para o próximo estágio de transformação. Para
os homens, o selo já iniciado pela diminuição da ejaculação nos estágios anteriores
deve completar-se, cessando-a totalmente. As denominações alegóricas destes
processos são respectivamente “decapitar o dragão vermelho” e “domar o tigre
branco”.
Uma vez que a essência tenha sido selada, deverá ser utilizada para as
transformações regenerativas do corpo físico e para o desenvolvimento da
consciência. No primeiro caso, por exemplo, o praticante pode realizar o processo
chamado de DǍO JĪNG BǓ NǍO, reverter a essência para nutrir a
medula, que se baseia numa conexão entre a essência (JĪNG ) e a qualidade dos
ossos, mas principalmente da medula óssea, sendo que a área de maior
concentração de medula seria o próprio cérebro, chamado de “mar de medula”. O
praticante deve ser capaz de conduzir a essência (JĪNG ) de volta para os ossos,
179
fazendo com que a medula seja reconstruída, parte inicial do processo de
rejuvenescimento do corpo. Este processo está ilustrado na figura abaixo:
Figura 17: O Gráfico das
Passagens Internas
A ilustração intitulada NÈI JĪNG
內 經 圖, o gráfico das
passagens internas, mostra o
ambiente interno do corpo humano,
com representações alegóricas
para os elementos morfológicos.
Um dos processos representados
na figura é o DǍO JĪNG BǓ NǍO
導 精 補 腦, reversão da essência
para nutrir a medula. A essência é
representada pelas águas na parte
inferior que devem ascender pela
impulsão dada pelos homens
girando a roda d’água. Esta, é
uma representação do osso sacro,
e o caminho por onde as águas
sobem seria a coluna vertebral,
chegando no alto da cabeça,
representada por um conjunto de
montanhas. (Pregadio, 2003,
p.767; Kohn, 2005, p.36)
180
Por sua vez, o cultivo dual está baseado na harmonização do feminino e do
masculino durante o ato sexual (HÉ YĪN YÁNG 陽), processo iniciado na fase
anterior com objetivos de alcançar a longevidade. Agora, os objetivos seriam a
nutrição completa do corpo físico, como também a “imersão no uno”, processo pelo
qual os parceiros se fundiriam em êxtase com o cosmos, considerado um alto grau
de desenvolvimento da consciência. Para tal, as posturas do ato sexual mudam para
refletir a dinâmica da vitalidade ressonante com o processo que se busca. A figura a
seguir mostra a postura mais utilizada para este nível.
Figura 18: Posição Preferencial para o Cultivo Dual
Representação de posição utilizada para o cultivo sexual no nível celeste. A mulher
deve estar por cima do homem, e ambos devem ter suas cabeças orientadas para o
céu e sua coluna ereta. Nota-se também o processo de movimentação da essência
para a região da cabeça, representado pelas linhas no interior do corpo.
181
Cabe notar que a evolução do trabalho dual pode ser mapeada pelas
transformações do orgasmo no corpo feminino, conforme tabela a seguir:
Tabela 10: Os Níveis do Orgasmo Feminino
Nível Órgãos Energizados Resposta Observável
1 Pulmões A mulher suspira, respira profundamente e
produz saliva.
2 Coração A mulher estende a língua para o homem.
(Língua = Abertura do Coração)
3 Baço-Pâncreas e
Estômago
A mulher agarra e aperta o homem
4 Rins e Bexiga Espasmos e secreções vaginais
5 Ossos As juntas se soltam e ela tem impulso de morder
o homem.
6 Fígado e Nervos A mulher ondula como uma cobra e tenta
envolver os braços e pernas do homem
7 Sangue O sangue ferve
8 Músculos Os músculos relaxam totalmente. O impulso de
morder aumenta
9 Todo o corpo Colapsa em uma “pequena morte”. Abertura
completa.
Evolução do Orgasmo Feminino. O Orgasmo é dividido em nove etapas. Em cada
uma delas a força vital sexualizada (JĪNG QÌ ) se concentra em uma
determinada região do corpo, provocando efeitos específicos.
182
Assim, notamos que nas artes do interior do quarto (FÁNG ZHŌNG SHÙ
) encontra-se a mesma estrutura em três níveis observada nas outras práticas
terapêuticas.
A forma de atuação no nível terrestre está fundamentada no processo de
recuperação da essência (JĪNG ) associado a posições sexuais para promover a
cura de enfermidades. No nível humano, busca-se nutrir os órgãos com a vitalidade
gerada pela força sexual, e cultivar a relação entre o prazer e a saúde para alcançar
o tempo máximo de vida potencial. No nível celeste, deve-se aumentar
indefinidamente a quantidade de essência (JĪNG ) com a finalidade de sustentar
as transformações no corpo e na mente induzidas pela prática, que incluem a
expansão da consciência e a extensão do tempo de vida.
Conclusão do Estudo
Conclusão do Estudo
1. Síntese do Modelo
Após a apresentação e análise das concepções que estruturam a proposta
terapêutica da Medicina Clássica, consideramos conveniente elaborar uma síntese
do modelo. Respeitando a imagem de sua estrutura, apresentamos a seguir um
resumo das concepções terapêuticas nos três níveis de saberes e práticas
abordados. Para cada um elaboramos os seguintes temas: a) O Grau de
desenvolvimento da vitalidade, que ilustra uma avaliação genérica do estado de
vitalidade alcançado em relação ao tempo de vida concedido ao sujeito individual
pelas condições de concepção e nascimento; b) As concepções fundamentais da
prática terapêutical; c) Objetivos das práticas terapêuticas; e d) Principais fatores de
adoecimento.
1) Nível celeste
Grau de desenvolvimento de vitalidade:
Imortalidade: um estado de vitalidade e saúde em plenitude, a partir do qual
busca-se estender o tempo de vida para além do máximo determinado pelas
condições de concepção e nascimento.
Concepções fundamentais da prática terapêutica:
MÌNG , mandato celeste; XÌNG , natureza interna; ZÌ RÁN ,
espontaneidade de transformação do self; WÚ WÉI , não ação; DÉ , virtudes.
Objetivos das práticas terapêuticas
Induzir e sustentar o processo de auto-conhecimento (reconhecimento de
XÌNG , a natureza interna); Induzir o desenvolvimento dos potenciais singulares de
cada ser e harmoniza-lo com a sociedade (desenvolvimento de MÌNG , o mandato
celeste); Sustentar indefinidamente o desenvolvimento do QÌ , a força vital.
Principais fatores de adoecimento.
A doença é resultado da ignorância de XÌNG , a natureza original, e da
negação ao desenvolvimento de MÌNG , o mandato celeste. Estes fatores
conduzem à desconexão do ser com sua fonte primária de vitalidade e causa
sentimentos de insatisfação com a vida.
184
2) Nível humano
Grau de desenvolvimento de vitalidade:
Longevidade: Capacidade de gozar a totalidade dos anos de vida determinada
pelas condições de concepção e nascimento.
Concepções fundamentais da prática terapêutica:
Proteger e guardar (SHǑU
); suplementar (); QÌ ZHÌ , constituição;
JǏ , o sentido de eu fixo que impede a espontaneidade; DÉ , as virtudes e XÌNG
, a natureza interna.
Objetivos das práticas terapêuticas
a) Proteger e guardar os três tesouros: Proteger o JĪNG , a essência, através
da conduta sexual adequada; garantir adequada circulação de QÌ , a força vital
nos canais; Proteger SHÉN , a consciência, através da harmonização das
emoções;
b) Suplementar as deficiências de vitalidade causadas por QÌ ZHÌ , os
padrões constitucionais;
c) Retomar o processo de reconhecimento de XÌNG , a natureza interna
através do desenvolvimento de DÉ , as virtudes, como um método para dissolver
os padrões constitucionais.
Principais fatores de adoecimento.
QÌ ZHÌ , a constituição, seria o principal fator, pois geraria excessos e
faltas de força vital (QÌ ), nos diversos sistemas que compõem a dinâmica vital
humana, prejudicando sua circulação.
Outros fatores seriam problemas gerais na circulação de força vital (QÌ ),
especificamente entre eles, o problema da desarmonia entre o ser individualizado e
o ambiente, relacionado a variação das estações climáticas; A perda da quietude
mental; e a perda da essência, usualmente relacionada à conduta sexual.
185
3) Nível terrestre
Grau de desenvolvimento de vitalidade:
Recuperação da saúde: Vitalidade abaixo do nível necessário para viver a
totalidade do tempo determinado pelas condições de concepção e nascimento
Concepções fundamentais da prática terapêutica:
Padrões de desarmonia e fatores patogênicos
Objetivos das práticas terapêuticas
Tratar enfermidades; remover fatores patogênicos, harmonizar os padrões de
desarmonia.
Principais fatores de adoecimento.
a) Os seis fatores ambientais: vento, frio, calor de verão, fogo, umidade e
secura, complementados pelo fator “patógenos epidêmicos”.
b) As sete emoções: raiva, melancolia, tristeza, alegria, ansiedade, medo e
terror.
c) Alimentação imprópria, fadiga, indulgência sexual, injúrias traumáticas e
picadas de animais.
A partir desta síntese destacamos novamente algumas questões já citadas no
texto, refinando sua elaboração e tecendo algumas considerações.
Primeiro, destacamos uma característica do modelo que denominamos
integração estratificada. Em nossa percepção, na Medicina Clássica existe um
nivelamento de saberes e práticas que formam de fato um corpo único e inseparável,
cujas partes são adequadas para lidar com questões de saúde distintas, porém inter-
relacionadas. O que distingue os níveis, e portanto as questões e problemas
relevantes, é o grau de desenvolvimento da vitalidade.
Os limites do cenário são dados por um lado pela morte, e por outro pela
imortalidade, sendo a primeira uma das poucas certezas sobre o futuro de um ser
humano, e a segunda, um objetivo ideal. Qualquer condição de saúde-doença estará
compreendida entre estes dois extremos. Mais, além de conferir os limites, a morte e
a imortalidade determinam também a direção comum da ação terapêutica, ou seja,
não importa em que posição do contínuo uma determinada ação terapêutica esteja
186
classificada, o terapeuta tem como missão primária
88
afastar o sujeito da morte
impulsionando-o em direção à imortalidade.
Próximos da morte estão os saberes e práticas do nível terrestre, e próximos
da imortalidade, os do nível celeste. As mudanças de um nível para outro
representam quedas ou incrementos do padrão geral de vitalidade. Assim, ao
utilizarmos o termo integrado, queremos dizer que há uma comunicação e um
movimento entre os níveis. Visto de cima para baixo, um problema com o
desenvolvimento da vitalidade no nível celeste implica numa queda e no surgimento
de problemas que requerem intervenção a partir do conjunto de saberes e práticas
do nível humano. Se estes novos problemas não forem solucionados, ocorre uma
nova queda de vitalidade, para um novo cenário que necessita dos saberes e
práticas do nível terrestre.
O movimento também pode ser observado na direção oposta. A proposta do
modelo geral de cuidados em saúde seria iniciar com a cura de enfermidades e a
restauração da harmonia (nível terrestre), que uma vez obtida cede lugar às práticas
de manutenção desta harmonia e proteção do fluxo natural da vitalidade (nível
humano), entrando em seguida na fase de desenvolvimento da vitalidade por tempo
indefinido (nível celeste).
Seguindo esta direção de incremento de vitalidade, apresentamos a seguir
algumas situações hipotéticas que ilustram possíveis problemas abordados em cada
nível:
1) Em um quarto de enfermaria de um hospital há uma pessoa internada.
Apresenta tosse incessante e elimina catarro com sangue pela boca. Sua
temperatura é de 40º C.
2) O local é uma sala de consultório, um sujeito entra e diz: “Estou com dores
na região lombar da coluna, tenho tido insônia. Já fiz diversos exames não foi
constatada nenhuma doença. Gostaria de mudar esta situação para uma de maior
bem-estar.”
3) Ainda em uma sala de consultório uma outra pessoa entra e diz: “tenho boa
saúde e também um bom trabalho, mesmo assim não me sinto satisfeito com o que
tenho, com o que venho fazendo. A vida está desinteressante. O que devo fazer da
minha vida?”
88
Salvo em condições especiais em que a função parece reverter para acompanhar o
processo de morte, o que consideramos função secundária. Ocorre quando o terapeuta se vê
impossibilitado de cumprir a primária.
187
No primeiro exemplo temos uma situação de enfermidade, onde o conjunto de
sinais e sintomas indica que a morte pode sobrevir caso não haja intervenção em
curto prazo. Um terapeuta nesta situação iria utilizar os saberes e práticas do nível
terrestre, com os seguintes objetivos: 1) suprimir sintomas que possam causar
lesões morfológicas ou funcionais, como a febre alta; e 2) eliminar os fatores
geradores dos sintomas
89
. A estratégia terapêutica segundo a Racionalidade
Chinesa poderia ser “expurgar a fleuma-calor dos pulmões”. Neste cenário, terapia
significa o poder de reverter e controlar sintomas, buscando restaurar um estado de
equilíbrio funcional onde a vida possa continuar sem a necessidade premente de
intervenção.
Na segunda situação temos o exemplo de um sujeito no limite entre a
harmonia e a desarmonia, apresentando os primeiros sinais de queda em direção a
um possível estado de enfermidade. Seria adequado utilizar os saberes e práticas
do nível humano, para “acalmar o SHÉN ”, harmonizando as emoções que
poderiam estar relacionadas à insônia, e “suplementar a força vital (QÌ ) dos rins”,
cuja falta estaria se manifestando como dores lombares.
No terceiro cenário, o sujeito está em busca de um “algo a mais” na vida, que
poderia ser alcançado com ajuda dos saberes e práticas adequados ao nível celeste.
O “algo a mais” seria interpretado como uma busca por mais vitalidade e pela
satisfação com a vida recebida pela consciência de XÌNG , a natureza interna, e
pelo desenvolvimento de MÌNG , o mandato celeste, resultando na construção de
uma vida longa e plena.
Assim, vemos na Medicina Clássica um modelo de saúde Amplo,
Estratificado e Integrado: a) Amplo porque pretende resolver problemas de saúde
desde o tratamento de enfermidades até a auto-realização, constituindo uma
proposta de intervenção na vida e não apenas de intervenção na doença; b)
Estratificado porque apresenta subconjuntos de saberes e práticas adequados a
intervenções em distintas situações de saúde ou enfermidade; e c) Integrado porque
os subconjuntos representam as possibilidades de variação da vitalidade humana,
mas são de fato partes constituintes de um corpo único de saberes e práticas.
89
Se o terapeuta for da Racionalidade Biomédica, provavelmente estaria envolto no
paradigma mecanicista, buscando identificar uma doença e combater sua causa. Para as
racionalidades do paradigma clássico, uma situação desta frequentemente envolveria “ações
purgativas”, onde buscaria-se “limpar o corpo” do excesso de fator de desequilíbrio, tido
frequentemente como um fator natural presente no corpo humano e no ambiente, como por
exemplo, umidade ou calor. Uma vez purgado o fator, provavelmente o terapeuta iria realizar
procedimentos de re-harmonização.
188
2. Sobre a Importancia da Dimensão Doutrina Médica
Ao abordar a fórmula “terapia é combater doenças” como uma construção
histórica os estudos fundamentados na noção de Racionalidades Médicas
evidenciaram novas formas do que pode ser considerado um ato terapêutico. Nossa
observação passa principalmente pelas conexões entre as dimensões da
Racionalidade. Queremos evidenciar em especial as relações existentes entre as
dimensões doutrina médica e terapêutica.
Considerando a doutrina médica como o conjunto de explicações sobre os
fatores que conduzem os seres em direção à morte ou à vida, a definição do que é
terapia é uma conseqüência da definição destes fatores. Para cada fator
considerado podemos notar um encadeamento de explicações que permeiam as
dimensões da Racionalidade, respondendo a questões específicas em cada
dimensão conforme o resumo abaixo:
1) Doutrina Médica: Quais fatores conduzem em direção à morte?; Quais fatores
mantém e ampliam a saúde?
2) Dinâmica Vital e Morfologia: Como funciona o ser humano saudável?; Que
mudanças ocorrem no estado de doença/desarmonia?
3) Sistema Diagnóstico: Como seria possível identificar e avaliar os fatores que
estariam conduzindo o ser à morte ou à saúde, e que estariam provocando as
alterações na dinâmica vital e na morfologia?
4) Terapêutica: Como recuperar, manter ou ampliar o estado de saúde?
Ao aplicarmos estas questões a duas das situações hipotéticas descritas acima,
teremos um exemplo para aprofundamento da análise. Selecionamos
propositalmente uma situação apropriada para o nível terrestre e outra para o nível
celeste, com intuito de evidenciar suas diferenças por contraste.
Situação 1: Internação Hospitalar – Leitura a partir do nível terrestre
Doutrina Médica: O que conduz à doença?
Fleuma-Calor instalada nos pulmões causando um padrão de desarmonia dos
pulmões (sistema FÈI ), cujos sinais indicativos principais são: Tosse incessante,
hemoptise e febre alta.
Morfologia e Dinâmica Vital: Como esta alterada dinâmica vital?
189
O fator patogênico calor penetrou na camada defensiva externa (WÈI QÌ ) e
se aprofundou até o nível do sangue (XUÈ ) associando-se com a fleuma no órgão.
O calor no sangue provoca sangramento nasal. A invasão dos pulmões por calor
provoca febre, e o conjunto impede o funcionamento correto das funções de
descendência da força vital (QÌ ) sob a égide dos pulmões, gerando a tosse.
Sistema Diagnóstico: Como identificar os fatores?
A tosse com expectoração amarela é sinal de fleuma-calor nos pulmões. O
sangramento indica calor no nível do sangue, a tosse é sinal da força vital (QÌ ) do
pulmão fluindo em direção incorreta.
A análise da língua: vermelha, aumentada e com saburra amarela e pegajosa,
indica presença de calor e fleuma. A análise do pulso, Deslizante-Rápido confirma a
indicação. A rapidez do pulso é um sinal de calor, e a qualidade deslizante de fleuma.
Terapêutica: Como recuperar o estado de saúde?
Seleção e administração de fármacos e utilização de pontos de acupuntura que
expurguem a fleuma e o calor alojado nos pulmões, e promovam a correção da
direção do fluxo de força vital (QÌ ), de acordo com critérios analisados nos
capítulos anteriores.
Situação 2: Questionamento sobre satisfação com a vida – Leitura a partir do
nível celeste.
Doutrina Médica: O que conduz à doença?
Uma conexão fraca com XÌNG , sua natureza interna, conduziu a escolha de
ações e percursos na vida que o afastaram da realização de MÌNG , seu mandato
celeste, causando sentimentos genéricos de insatisfação e falta de interesse pela
vida.
Morfologia e Dinâmica Vital: Como está alterada a dinâmica vital?
A desconexão e incompreensão de XÌNG , a natureza interna, e a negação do
desenvolvimento de potenciais singulares através de MÌNG , o mandato celeste,
afasta o sujeito da fonte de vitalidade reservada no sistema dos rins (SHÈN ),
diminuindo a vitalidade geral e o interesse pela vida. Esta situação é chamada de
“quebra do eixo fogo-água”, em que o fogo do coração (XĪN ), símbolo da
consciência e da capacidade de compreensão, não consegue penetrar na água dos
rins (SHÈN ), símbolo do reservatório de potenciais inconscientes.
190
Sistema Diagnóstico: Como identificar os fatores?
A queixa do paciente traz sentimentos genéricos de insatisfação com a vida
mesmo tendo conquistado posições na sociedade que deveriam conduzi-lo a
satisfação segundo o senso comum. Isto pode ser um indicativo do processo
supracitado de “quebra do eixo fogo-água”. Para confirmar o diagnóstico poderiam
ser observados principalmente o pulso e a qualidade do brilho no canto interno dos
olhos, na região do ponto de acupuntura JĪNG MÍNG (B1).
Terapêutica: Como recuperar o estado de saúde?
Seleção de procedimentos de acupuntura e meditação (NÈI GŌNG1 ) que
recuperem o eixo fogo-água, promovendo a capacidade de perceber seus potenciais
internos e planejar seu desenvolvimento no mundo.
Exemplos: RÁN GǓ (R2) e SHÀO HǍI (C3), são respectivamente o
ponto de qualidade fogo do meridiano dos rins e o ponto de qualidade água do
meridiano do coração. Segundo Jarret (2003) o uso conjunto destes pontos é capaz
de promover a comunicação fogo-água, ou seja, a conscientização dos potenciais;
SHÉN FĒNG (R23) segundo Willmont (1999, p.10), teria a capacidade de
“permitir o contato com o senso de identidade autêntica” e “ajudar a revelar a
natureza interna”; o mesmo ponto segundo Kaatz (2005, p.530) teria a capacidade
de “aumentar a presença e revelar aquilo que estamos buscando”.
Temos então duas situações distintas que merecem algumas considerações. O
primeiro cenário, uma situação comum de enfermidade, enfatiza a presença de um
fator patogênico invasor como o principal fator de adoecimento, descrevendo como
este fator modifica a dinâmica vital, como pode ser identificado e resolvido. Trata-se
de uma situação onde a evidência de uma desarmonia-enfermidade não seria
negada por nenhuma Racionalidade Médica. Já o segundo exemplo mostra uma
situação distinta, pois, para aceitarmos que existe ali uma desarmonia, é necessário,
sobretudo, uma redefinição na dimensão da doutrina médica. Uma nova definição
que inclua as noções de auto-conhecimento, desenvolvimento de potenciais, auto-
realização e organização social como fatores de saúde ou doença, temas do nível
celeste da Medicina Clássica Chinesa.
Em nossa percepção existe entre a doutrina médica e a terapêutica uma relação
ambivalente de criação e limitação. A criação ocorre quando se define as condições
não saudáveis, e quais fatores contribuem para seu surgimento, pois, a partir desta
definição surge a expectativa da existência de uma terapêutica capaz de intervir na
191
direção da saúde. A limitação por sua vez, aparece pelo mesmo conjunto de
definições, mas ao contrário, pela negação do caráter enfermo de alguma situação,
ou do potencial patogênico de algum fator.
Assim, são os fatores da doutrina médica que determinam a extensão das
práticas terapêuticas de uma racionalidade, e no caso da Medicina Clássica em
relação à Medicina Tradicional Chinesa ou à Biomedicina, ocorre uma ampliação
dos fatores relevantes na dimensão doutrina médica, que por sua vez amplia as
definições e as possibilidades da terapêutica.
3. As Formas de Avaliação Terapêutica da Medicina Clássica
As definições da doutrina médica repercutem sobre a avaliação da terapêutica.
Elaboramos a seguir esta questão pelo contraste entre a Medicina Clássica e a
Biomedicina, e após, entre os níveis internos da Medicina Clássica.
Existem diferenças fundamentais de caráter paradigmático entre a Medicina
Clássica e a Biomedicina. Estruturada por valores científicos, a última avalia seus
resultados pela mensuração de dados “objetivos” usualmente quantificados e
gerados por instrumental tecnológico. Por sua vez, a Medicina Clássica avalia seus
resultados pela comparação entre as sensações do paciente e a variação dos dados
sensoriais observados pelo terapeuta, principalmente pelo exame da língua e do
pulso, critérios que se aplicam ao tratamento de enfermidades no nível terrestre
90
.
Por sua vez, se a orientação geral é a mesma para todos os níveis da Medicina
Clássica, existem variações sutis a cada nível que requerem alguns comentários.
Por exemplo, a doutrina médica do nível celeste define a desconexão com a
natureza interna (XÌNG ) como um “fator patogênico”, no sentido de ser a primeira
“queda” de vitalidade em direção à enfermidade. Para o nível celeste esta falta de
contato e a conseqüente negação do desenvolvimento de potenciais (MÌNG ) é o
principal fator determinante de saúde ou doença, podendo ser considerado como a
origem das enfermidades. Assim, pela inter-relação entre as dimensões da
Racionalidade Médica, se considerarmos a desconexão como uma enfermidade em
si, a primeira de uma série, teremos uma elaboração nas outras dimensões que
explicam os fatores que formaram este estado de doença, o que ele modifica na
dinâmica vital, como identificá-lo, como proceder a terapêutica, e por último, como
avaliar seu resultado.
90
Cabe salientar que a Medicina Tradicional Chinesa, sendo um projeto de síntese, utiliza
ambas as formas em suas avaliações.
192
Ao examinarmos as formas de avaliação do resultado terapêutico para a
situação hipotética do nível celeste, encontramos alguns métodos possíveis que
elaboramos a seguir, todos fundamentados nas regras da Racionalidade.
1) O primeiro método de avaliação, um dos mais divulgados, e o único que
encontramos em texto, é a já citada observação do brilho dos olhos. Consiste em
avaliar a variação do brilho dos olhos no ponto de acupuntura JĪNG MÍNG (B1),
cujo nome, “brilho dos olhos” evidencia sua propriedade. Este ponto seria uma
abertura para o exterior da qualidade da força vital (QÌ ) dos canais do coração e
dos rins, os mais diretamente relacionados à natureza interna (XÌNG ) e ao
mandato celeste (MÌNG ).
91
2) O segundo método de avaliação proposto
92
é observar a variação da
qualidade do pulso na posição posterior da artéria radial do braço esquerdo. Esta
posição é atribuída ao sistema dos rins (SHÈN ), e a lógica que fundamenta o
método é a relação entre este sistema e o cumprimento de MÌNG , o mandato
celeste, com a conseqüente satisfação e prazer em estar vivo. A idéia é que um
sujeito com as queixas apresentadas deve apresentar sinais sutis de desarmonia no
sistema dos rins (SHÈN ) que poderiam ser observados no pulso.
3) A avaliação da coluna vertebral é o terceiro método proposto. A explicação
fundamenta-se na relação entre a coluna e a força vital autêntica (ZHĒN QÌ ),
pois sua capacidade de ficar ereta, apenas com curvas suaves, seria um reflexo da
qualidade desta força, que, por sua vez, seria um resultado da realização da
natureza interna (XÌNG ) e do mandato celeste (MÌNG )
93
.
4) A qualidade do prazer em estar vivo que o sujeito demonstra por suas
palavras é o quarto método proposto, que segundo as explicações da racionalidade,
seria um resultado direto do cumprimento de MÌNG , o mandato celeste.
Desta forma, um terapeuta atuando segundo os princípios do nível celeste da
Medicina Clássica utilizaria os métodos acima para avaliar se sua ação está
91
Lembramos que explicações mais detalhadas sobre a fundamentação deste método
encontram-se em capítulo anterior intitulado: “O Nível Celeste”.
92
Este segundo método e todos os outros decorrem de exemplos citados pelos terapeutas
entrevistados quando questionados sobre como avaliar aquela situação hipotética. Não
encontramos nenhum destes métodos descritos na literatura pesquisada.
93
A relação entre a forma da coluna vertebral e o ZHĒN QÌ foi encontrada na obra de
Diepersloot (1997), intitulada: Warriors of Stillness Vol. I: Meditative Traditions in the Chinese
Martial Arts. O autor escreve a partir do campo das artes marciais e do QÌ GŌNG , e
não relaciona a força vital autêntica (ZHĒN QÌ ) com a natureza interna (XÌNG ) ou
com o mandato celeste (MÌNG ).
193
provocando os efeitos desejados, de facilitar o sujeito a entrar em contato com XÌNG
, sua natureza interna, o que o colocaria novamente num estado mais refinado de
saúde. Em relação aos outros níveis da Medicina Clássica, estes métodos não
seriam apropriados para colher os sinais e fazer as interpretações necessárias para
determinar a terapêutica. Desta forma, temos um método geral, de observar a
variação de sinais e contrastar com os sentimentos do paciente, que é o mesmo
para todos os níveis da Medicina Clássica. Porém, os sinais observados variam de
acordo com o nível.
Considerações Finais
Considerações Finais
1. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A
Via Hegemônica
O desenvolvimento da Medicina Chinesa no mundo contemporâneo segue por
duas vias em freqüente oposição. A primeira é o caminho hegemônico, representado
pela Medicina Tradicional Chinesa, e o segundo é o movimento de reconstrução da
Medicina Clássica, contra hegemônico.
Por ser desde sua concepção um projeto voltado para a cientificização dos
saberes clássicos, a Medicina Tradicional Chinesa é um exemplo emblemático dos
problemas decorrentes de tal caminho, pois trata-se sobretudo de um conflito
paradigmático. O paradigma clássico, fundamentado na cosmologia Daoísta, é
caracterizado por valores aos quais a ciência se opôs frontalmente desde sua
concepção. Para o Daoísmo a vida é um fenômeno que não pode ser definido de
forma precisa, pois sempre haverá nela um aspecto misterioso (XUÁN
) que
desafia a apreensão intelectual. A partir desta concepção, a construção do
conhecimento sobre a vida é vista como um processo de exploração multi-
dimensional de sua complexidade, que exige uma transformação do próprio sujeito a
partir da interação com seu “objeto”, a força da vida (QÌ ), para que o
conhecimento seja apreendido e elaborado. Neste sentido a Medicina constitui um
caminho (DÀO ), onde o conhecido e o conhecedor estão em processo contínuo
de transformação mútua. Em tal paradigma, as formas mais adequadas de registrar
informações são o símbolo e o mito, sobretudo por se constituírem em formas de
comunicação capazes de correlacionar múltiplos níveis de significados, e o
instrumento mais adequado para apreendê-los é a consciência humana, refinada a
partir do próprio processo de comunicação.
Estas características são o opositivas ao paradigma científico, que busca definir
conceitos da forma mais simples e precisa possível, eliminando as ambigüidades, e
vê o mistério com viés negativo, como algo que carrega uma imprevisibilidade que
desafia o controle. A vida para o paradigma científico newtoniano, é mais um objeto
independente do observador, pronto para ser analisado por instrumentos
tecnológicos neutros, que não sofram da mesma incapacidade objetiva que
apresenta a consciência humana.
195
Assim, para aplicar a ciência em seu paradigma newtoniano sobre a Medicina
Clássica Chinesa, foi necessário eliminar ou invalidar a própria forma de construção
e validação do conhecimento, o que durante a fase mais dura do projeto da Medicina
Tradicional Chinesa chegou a eliminar ou transfigurar concepções fundamentais da
Medicina Clássica, como o SHÉN , ou mesmo o QÌ , privilegiando àquelas que
poderiam ser estudadas a partir da forma legítima de construção de conhecimento,
como os ZÀNG FǓ , órgãos e vísceras.
Retornamos então à questão colocada na introdução deste trabalho sobre o uso
da noção de epistemologia de transição na abordagem ao objeto, pois
compreendemos que a opção do caminho hegemônico de desenvolvimento da
Medicina Chinesa é um exemplo de colonização, segundo definição de Santos
(1995, 2000). O projeto da Medicina Tradicional Chinesa desde o início aceitou o
“poder legislativo” da ciência de definir conhecimentos válidos e verdadeiros,
marginalizando ou eliminando os falsos, tendo portanto se submetido à ciência
enquanto um conhecimento-regulação. Em nossa compreensão este foi o pacto
mais profundo que caracterizou as bases da corrente hegemônica de
desenvolvimento da Medicina Chinesa na atualidade, configurando um caso onde a
construção e utilização de uma epistemologia de transição é necessária e urgente.
Esta urgência não pode ser vista apenas como um clamor de uma minoria
contra-hegemônica movida pela paixão, pois existem evidências de que a
colonização não foi capaz de criar uma Medicina mais eficaz, nem mesmo quando
os parâmetros para avaliação de eficácia são determinados pelo próprio colonizador.
Isto é ilustrado pelo exemplo de Kaptchuck (2000, p.369) apresentado na introdução,
de um experimento no qual foi possível comparar uma terapêutica padronizada,
onde todos os pacientes que foram diagnosticados com síndrome do cólon irritável
receberam a mesma medicação, com uma terapêutica singularizada, na qual a
composição da fórmula foi adequada a cada sujeito de acordo com o padrão de
desarmonia apresentado, segundo critérios de diagnose da Medicina Chinesa. Ao
final do experimento, em uma condição onde o método (ensaio clínico randômico
controlado), a definição de enfermidade (síndrome do cólon irritável) e os
parâmetros para avaliação de eficácia foram determinados pela Racionalidade
Biomédica, o resultado foi favorável à prática terapêutica que respeitou valores
internos da Racionalidade Médica Chinesa, como a singularização do composto de
fármacos a partir dos critérios diagnósticos da própria Racionalidade, em oposição à
prática que incorporou valores externos, como a padronização dos fármacos a
partir das definições do sistema diagnóstico biomédico.
196
“Fórmulas padronizadas e individualizadas foram igualmente
efetivas até o final da décima-sexta semana de tratamento. Após a
conclusão do tratamento, os pacientes foram observados durante
quatorze semanas. Ao final deste período, apenas os pacientes que
receberam fórmulas individualizadas mantiveram as melhoras obtidas.”
(Kaptchuck, 2000, p.369)
Este exemplo evidencia a incerteza quanto as possibilidades da ciência e da
biomedicina contribuírem para o aperfeiçoamento da terapêutica na Medicina
Chinesa, desafiando as pretensões de um projeto que teria como pressuposto
implícito a obviedade da ciência ser um fator de evolução e aperfeiçoamento no
desenvolvimento desta Medicina. Em concordância com Santos (1987, p.52)
pensamos ser este pressuposto uma auto-avaliação da ciência, um juízo de valor
sobre a melhor forma de compreender a realidade que levou à exclusão e
marginalização de outros, tendo resultado neste caso numa deterioração da eficácia
dos saberes e práticas originais.
Nesta situação específica, os saberes que foram excluídos pela imposição dos
métodos e concepções científicas como um imperativo global, compõem parte de
um conjunto encadeado de explicações nas seis dimensões da Racionalidade
Médica, parecendo haver uma espécie de coerência interna entre estas dimensões
que quando alterada pode resultar numa perda para a terapêutica.
Em uma análise mais minuciosa, parece-nos que a primeira imposição ocorre na
dimensão cosmológica, pela negação das concepções que explicam a estrutura do
universo e do homem. Um segundo passo é a negação da doutrina médica, no caso,
os fatores patogênicos ou condições de desarmonia que possam manifestar o
conjunto de sintomas. Esta negação desencadeia um efeito cascata nas outras
dimensões até a terapêutica. Para uma melhor explicação destas considerações
apresentamos a seguir uma interpretação das duas Racionalidades Médicas sobre a
situação.
Segundo a Biomedicina (Tierney Jr., 1996, p.553)
94
, um quadro de síndrome do
cólon irritável é caracterizado por: 1) dores abdominais; 2) alterações na freqüência
de evacuação e na consistência das fezes; 3) distensão e gases abdominais 4)
algum grau de ansiedade ou depressão. Os quadros mais freqüentes são de
predominância de diarréias, sendo possível também existir quadros de predomínio
de constipação, ou ambos os sintomas alternados. Segundo o autor esta é uma
94
Os autores desta obra, uma referência em diagnose biomédica, são professores de
biomedicina da Universidade da Califórnia, São Francisco.
197
síndrome idiopática, ou seja, de causas obscuras ou desconhecidas, usualmente
atribuídas a “stress” emocional ou a uma alteração espontânea da motilidade
intestinal. Na dimensão terapêutica, o autor sugere que a melhor ação é “explicar ao
paciente que trata-se de uma situação crônica que o acompanhará durante toda a
vida” (Tierney Jr., 1996, p.554).
Para a Medicina Chinesa (Maciocia, 2005, p.775) os sintomas que caracterizam
a síndrome do cólon irritável podem ser manifestações de diversos padrões de
desarmonia. Nos casos de excesso mostram a presença ou invasão de fatores
patogênicos como a umidade-calor, o frio, ou a umidade. Nos casos de deficiência
(Maciocia, 2005, p. 622) os sintomas seriam resultado da relação entre os órgãos e
vísceras, como por exemplo a “deficiência do Qi do Baço”, a “deficiência do Yang
dos rins”, ou o “Qi do fígado invadindo o Baço”.
A singularização da terapêutica na Racionalidade Chinesa ocorre a partir da
identificação destes fatores ou padrões segundo métodos de sua dimensão
diagnóstica. Por exemplo, se o paciente apresentar fezes amolecidas ou diarréia
com odor repulsivo, queimação no ânus e dor abdominal que não melhora após a
evacuação, em conjunto com a língua vermelha com saburra amarela e o pulso
deslizante e rápido, caracteriza-se o padrão chamado “Umidade-calor nos intestinos”.
Se apresentar fezes amolecidas em alternância com constipação, flatulência,
irritabilidade, distenção e dores abdominais, em conjunto com língua de cor normal e
pulso em corda, caracteriza-se o padrão “QÌ do fígado invadindo o Baço”.
Cada uma das seis situações é identificada por um conjunto de sinais que
caracterizam o fator patogênico invasor ou a qualidade da vitalidade e da relação
entre os órgãos e vísceras. Como por exemplo, a presença de odor fétido e de
saburra amarela e pegajosa são sinais de calor-umidade, enquanto o excesso de
gases e a distenção abdominal indicam problemas na relação entre o Baço e o
Fígado.
Assim, ao negar concepções da doutrina médica como “calor” ou “umidade”, ou a
premissa dos sintomas manifestados poderem ser expressões da vitalidade e da
relação entre outros órgãos, nega-se também as explicações da dinâmica vital sobre
a forma com que a relação entre o Baço e o Fígado afetaria os intestinos, e exclui-se
da diagnose a investigação de sinais que possam identificar estes padrões, como as
características da língua, do pulso, e o odor, o que conduz inevitavelmente a escolha
de um procedimento terapêutico padronizado, para um grupo de sintomas gerais,
que não constituem um quadro suficientemente elaborado para a escolha da
198
terapêutica mais adequada à situação, de acordo com a estruturação lógica da
própria Racionalidade.
Ao abordar a Medicina Chinesa de forma regulatória, a ciência, representada
pela Biomedicina, valida apenas parte da dimensão terapêutica, criando por vezes
um conjunto de explicações próprias para o fenômeno terapêutico, fundamentadas
em suas concepções, como atribuir a ação da acupuntura à “estímulos nervosos”. A
negação das concepções que estruturam as dimensões da Racionalidade Médica
Chinesa, e do encadeamento lógico entre estas concepções que fundamentam a
escolha e a prática terapêutica, em conjunto com a imposição de concepções da
Racionalidade Biomédica, causa uma transfiguração da Racionalidade original que
não garante um aperfeiçoamento terapêutico. Esta experiência mostra que a
cientização da Medicina Chinesa feita com a imposição de imperativos globais de
uma epistemé própria, pode de fato danificar seu potencial terapêutico.
Pensamos ainda que estes prejuízos potenciais não são os únicos e nem os
mais relevantes, pois, até o momento, elaboramos a análise a partir de um
experimento contextualizado no nível terrestre da medicina, centrado na cura de
enfermidades. Seguindo o mesmo padrão de análise, procuramos, a seguir,
identificar que transformações podem ocorrer nos outros níveis da medicina como
decorrência de processos de cientização semelhantes.
Iniciando com exemplos do nível humano, ilustramos práticas terapêuticas
centradas na noção de guardar o QÌ , ou seja, garantir que a circulação da força
vital seja harmônica, associada à noção de constituição (QÌ ZHÌ ). Na Medicina
Chinesa (Guillaume, 1996, p.45) a dor é considerada como um bloqueio na
circulação de QÌ , força vital ou de XUÈ , sangue. Uma situação clínica
hipotética que apresente como queixas principais: dores lombares ocasionais e
cansaço freqüente; cujo exame clínico evidencie um pulso deficiente na região
posterior esquerda além de uma mancha escura na região inferior e interior dos
olhos, pode ser interpretada como um bloqueio na circulação de força vital (QÌ ) na
região lombar associada à deficiência nos rins (SHÈN ). O conjunto de sinais
aponta para uma deficiência no sistema citado. Como terapêutica, seria possível
aplicar métodos de tonificação dos rins (SHÈN ) com fármacos, acupuntura e
moxabustão, acompanhados de exercícios de QÌ GŌNG para promover a
circulação da força vital (QÌ ) e garantir que as dores ocasionais não retornem.
199
Nesta situação, do ponto de vista da biomedicina, não há enfermidade instalada,
e portanto não há necessidade de intervenção terapêutica, nem métodos para
avaliação de seus resultados. Na Medicina Chinesa, o resultado terapêutico poderia
ser avaliado pela alteração das qualidades do pulso e pela mudança da cor ao redor
dos olhos, associada ao relato do paciente de maior disposição e vitalidade. O
acompanhamento do sujeito por um período maior de tempo poderia revelar que sua
constituição (QÌ ZHÌ ) é predominantemente de fase água, o que resultaria na
indicação de práticas terapêuticas de proteção da essência (JĪNG ), como as artes
sexuais e a continuidade das práticas de QÌ GŌNG e acupuntura para
assegurar a estabilidade da força vital (QÌ ) nos rins. A Ausência dos sinais de
deficiência do pulso e da coloração no entorno dos olhos seria uma forma de avaliar
o resultado positivo do conjunto de práticas.
Aprofundando mais este exemplo hipotético, imaginemos que a queixa do
paciente fosse apenas de uma sensação de falta de propósito na vida, e o exame
clínico tivesse revelado somente uma leve mudança no brilho dos olhos. Para um
terapeuta atuando no nível celeste da medicina, estes sinais indicam um
enfraquecimento do contato com a natureza interna (XÌNG ), e o início da
desconexão com a fonte de YUÁN QÌ , a vitalidade original, constituindo a base
para fixação constitucional e o decorrente desenvolvimento de diversas
enfermidades. Na terapêutica, poderiam ser utilizadas práticas de QÌ GŌNG ,
meditações, e mesmo acupuntura nos pontos cujo nome recebam os termos SHÉN
, LÍNG , ou MÌNG , associados aos sistemas dos rins (SHÈN ) e do coração
(XĪN ). A avaliação de resultados poderia ser através da observação da mudança
do brilho nos olhos em conjunto com mudanças nas direções de vida que fizessem o
paciente sentir-se vivendo a partir de um propósito verdadeiro.
Retornando à nossa questão, o que poderia ocorrer se impuséssemos as
concepções de outras racionalidades para lidar com situações como esta, numa
tentativa de torná-las científicas? Em nossa percepção, a principal contribuição do
nível celeste da doutrina médica é relacionar o auto-conhecimento e o
desenvolvimento de potenciais com a saúde, num modelo elaborado e estruturado
nas seis dimensões da Racionalidade Médica. A eliminação das noções de natureza
interna (XÌNG ) e mandato celeste (MÌNG ) da doutrina médica implica primeiro,
na negação do auto-conhecimento e do desenvolvimento de potenciais como fatores
determinantes de saúde ou doença. A partir deste passo, invalida-se ou despreza-se
as explicações da dinâmica vital e os métodos da dimensão diagnóstica de
200
avaliação dos estados de saúde. Pois, qual seria a utilidade do método sutil de
avaliar o brilho dos olhos se não considerarmos a insatisfação com a vida como uma
desarmonia em estágio potencial?
Consideramos que o resultado final de tal negação, num cenário de danos
mínimos, pode ser a apropriação de práticas terapêuticas com menor potencial de
uso, quando comparadas a seu cenário original. Ou seja, pode-se utilizar o QÌ
GŌNG como um tipo de ginástica que conduz ao bem estar, criando-se novas
explicações fundamentadas em concepções biomédicas para explicar sua ação e
avaliar seu resultado, como por exemplo o aumento da circulação sanguínea e a
diminuição da pressão arterial, sem jamais apropriar-se do potencial máximo da
prática associada ao desenvolvimento de potenciais, cuja aplicação requer do
terapeuta a conquista de uma maestria na prática (GŌNG ) dentro do contexto
original.
Retornando ao exemplo da situação hipotética do nível humano, podemos
questionar o que ocorreria se negadas as propriedades de tonificação dos fármacos
e a teoria que explica seu trofismo por determinados órgãos? Ou seja, que uma
determinada erva teria a capacidade de penetrar nos rins e tonificá-los? Mais, o que
aconteceria ao excluir as explicações da dinâmica vital que relacionam a falta de
vitalidade do sistema dos rins (SHÈN ) com as ocasionais dores na região lombar?
Queremos salientar o risco deste tipo de intervenção eliminar a possibilidade de
atuação terapêutica em situações semelhantes a este exemplo hipotético. É
conveniente destacar também, que pelos parâmetros da Biomedicina, a avaliação
científica do efeito dos fármacos é usualmente feita através de experimentos que
avaliam sua capacidade de combater microorganismos in vitro, ou de provocar
motilidade em certos órgãos de animais, (Fruehauf, 1999, p.13), ou seja, negando as
concepções da farmacologia da Medicina Clássica Chinesa.
Ainda quanto à questão de imposição de concepções externas, consideramos
também um cenário de danos máximos, onde a negação das concepções
estruturantes da Racionalidade Médica poderia eliminar uma parcela considerável
das possibilidades terapêuticas da Medicina Clássica, ou seja, poderia haver uma
negação da dimensão terapêutica decorente da não explicação científica de suas
concepções e fundamentos, e de fato, consideramos que isto já vem ocorrendo
desde a formação da Medicina Tradicional Chinesa com seu caráter híbrido.
Pensamos que o clamor do movimento contra-hegemônico de retorno aos
clássicos repousa, sobretudo, numa tentativa de resgate e preservação do potencial
201
terapêutico máximo da Medicina Chinesa, que tem sofrido transfigurações desde o
início do projeto de cientização. Este reproduziu alguns valores da Biomedicina
dentro da Medicina Clássica tais como a ênfase no tratamento de enfermidades,
negando as concepções e mesmo as terapêuticas do nível celeste, reduzindo de
forma considerável os potenciais de um projeto de promoção de saúde.
202
2. Sugestões para Uma Agenda de Pesquisa em Medicina Chinesa
Fundamentados no cenário descrito torna-se conveniente questionar as
possibilidades positivas de interação entre a Ciência, a Biomedicina e a Medicina
Clássica Chinesa, devendo para tal retomar a noção de epistemologia de transição.
Segundo Nunes (2003, p. 62), a proposta para um período de transição
paradigmática não é um “vale-tudo epistemológico”, mas um cenário de concepção
solidária do conhecimento, que exige a avaliação dos diferentes modos de
conhecimento em função dos contextos em que são mobilizados, respeitando a
singularidade conferida por sua história. Em tal cenário deve-se considerar o
contexto onde os conhecimentos são mobilizados, e os objetivos de quem os
mobiliza, sem subordinação a imperativos globais.
Compreendemos que o conhecimento da Racionalidade Médica Chinesa é
mobilizado principalmente por uma parcela do campo de orientação clássica,
caracterizada pelo pragmatismo, e por importar-se sobretudo com a práxis da
terapêutica, e por outra parcela de orientação científica, biomédica, ou mista, que
depende parcialmente da validação científica para integrar terapêuticas exógenas
em seu sistema. Isto nos remete à uma importante questão: por que a ciência ou a
Biomedicina se interessariam por mobilizar os conhecimentos da Medicina Clássica?
Cientes das múltiplas dimensões de respostas à esta questão, gostaríamos de
destacar uma, que foi explicitada no exemplo da análise da síndrome do cólon
irritável exposta acima. A Biomedicina mobiliza os saberes da Medicina Clássica
porque compreende de forma mais ou menos consciente que a dimensão
terapêutica de sua racionalidade é deficiente. Isto pode ser observado na situação
acima, conforme a sugestão de Tierney Jr. ( 1996, p.554) de “explicar ao paciente
que se trata de uma situação crônica que o acompanhará durante toda a vida”, mas
que representa características gerais da dimensão terapêutica desta Racionalidade
Médica, construída desde seus primórdios com orientação exclusiva ao combate de
doenças em detrimento à terapêutica do sujeito
95
e à promoção e proteção da saúde.
Propomos aqui uma análise das intenções dos atores do campo conforme seus
discursos, pois percebemos que se a ciência e a Biomedicina justificam sua
abordagem à Medicina Chinesa através da necessidade de “garantir a segurança ou
eficácia da prática” ou “provar sua eficácia terapêutica”, deve-se salientar que estas
necessidades não parecem partir dos terapeutas de orientação clássica nem dos
95
Conforme obras de Luz (1988, 1996) ,Sayd (1998) e Camargo Jr. (2003).
203
usuários da sociedade civil. Em nosso entendimento a necessidade de tornar
científica a Medicina Chinesa é de uma parcela do campo que pretende se apropriar
de suas práticas terapêuticas, pois tem necessidade de reconstruir sua própria
dimensão terapêutica, e para tal precisa submeter o conhecimento abordado a seus
imperativos.
Desta forma, queremos propor a inversão do discurso, pois, parece-nos que são
Biomedicina e a Ciência que precisam da Medicina Clássica para reformular sua
própria Racionalidade e aperfeiçoar seu sistema terapêutico, mais do que a
Medicina Clássica precisa da Ciência ou da Biomedicina para atuar de forma segura
e eficaz. O exemplo de Kaptchuck (2000, p.369) mostra que a Biomedicina foi
procurar na Fitoterapia Chinesa uma forma de atuar numa condição de saúde para a
qual não apresentava proposta terapêutica eficaz. Esta condição de desarmonia leve,
que estaria no limite entre os níveis terrestre e humano segundo a Medicina Clássica,
representa um exemplo entre as diversas impossibilidades terapêuticas da
Racionalidade Biomédica
96
.
A partir desta inversão formulamos uma nova questão: se a Biomedicina e a
Ciência mobilizam os saberes da Medicina Clássica Chinesa, como seria possível
abordá-los a partir de uma concepção solidária de construção do conhecimento, que
possa trazer benefícios à ambas as partes?
Consideramos que o primeiro passo está fundamentado na noção de
epistemologia em processo, proposta por Camargo Jr. (2004), que pressupõe a
desvinculação entre “conhecimento válido” e “conhecimento científico”, ou seja, é
preciso sobretudo considerar suas concepções da Medicina Clássica como um
conhecimento válido, mesmo que não científico. Este tratamento seria uma forma de
respeitar o contexto e a singularidade histórica do conhecimento, conforme a
proposta de Santos (1995, 2000) e Nunes (2003).
Assim, sugerimos para o benefício de ambas as partes, que a ciência aborde a
Medicina Chinesa validando suas concepções e adaptando seus métodos ao
contexto sempre que possível. Ilustramos a seguir alguns exemplos criados a partir
desta diretriz:
96
Não queremos dizer com isto que a Medicina Clássica Chinesa é onipotente, capaz de
resolver qualquer problema de saúde. Isto não seria verdadeiro, havendo de fato inúmeras
situações onde a utilização de práticas de sua dimensão terapêutica seria menos adequada
do que as terapêuticas da biomedicina. Queremos apenas salientar que as deficiências da
Biomedicina são quase sempre ocultas no discurso elaborado por seus defensores.
204
Suponhamos que num determinado projeto de pesquisa exista necessidade de
avaliar o resultado terapêutico da prática de acupuntura para prevenção de saúde.
Vimos que até o momento, a maioria das pesquisas estatísticas em acupuntura são
projetadas a partir da formulação: “A acupuntura é eficaz no tratamento da doença
Y?” Como vimos, esta formulação impõe a concepção de doença e de eficácia de
uma racionalidade sobre a outra, e não responde às questões de prevenção. Ainda,
se pensarmos o desenho da pesquisa em termos de prevenção conforme o modelo
biomédico, provavelmente iríamos formular a questão da seguinte forma: “a
acupuntura é capaz de diminuir os riscos da doença X?” Esta formulação implica na
imposição de um modelo de prevenção centrado nas categorias “doença” e “risco”,
que deveria ser testado pela avaliação de uma terapêutica voltada exclusivamente
para a prevenção da doença X, o que não existe na Medicina Clássica.
Como poderíamos desenhar o projeto respeitando ao máximo as concepções
originais? Deveríamos sobretudo nos perguntar como a Medicina Chinesa pensa a
prevenção. A resposta pode ser resumida da seguinte forma: Ao proteger a essência
(JĪNG ) e a serenidade da mente, promover a circulação da força vital (QÌ ), e
suplementar as deficiências de vitalidade a partir de um tratamento constitucional, os
níveis de vitalidade, imunidade, e a capacidade de adaptação (ZHĒN QÌ ) irão
crescer, e não ocorrerá nenhuma desarmonia ou enfermidade. Ou seja, não existe a
concepção de um tratamento com uma terapêutica específica para prevenção de
uma doença específica.
Assim, um possível desenho de pesquisa poderia fundamentar-se na utilização
de um conjunto de práticas terapêuticas no nível humano em uma determinada
população, como por exemplo: QÌ GŌNG , acupuntura e fitoterápicos,
singularizados para cada pessoa do conjunto, e na conseqüente avaliação da
ocorrência de qualquer enfermidade neste grupo, em comparação com a
quantificação da ocorrência de enfermidades em um grupo semelhante que não será
exposto à qualquer prática de prevenção. Este modelo respeitaria as proposições da
Medicina Clássica, que define prevenção e promoção como um processo ativo de
cultivo da vitalidade (YǍNG SHĒNG ), que pode ser compreendido como a
maximização das funções fisiológicas e psicológicas, em contraposição à concepção
biomédica de saúde como ausência de doenças. Também respeita a noção de
maximização deste processo através do uso conjunto de diversas práticas
terapêuticas em contraposição aos testes que propõem isolar o efeito de uma
determinada prática. E ainda, sua avaliação final não é pelo parâmetro doença, mas
205
pela ocorrência de qualquer processo de desarmonia, respeitando a concepção do
adoecimento como resultante de uma “queda” na vitalidade.
Assim, mesmo que as concepções de essência (JĪNG ), vitalidade (QÌ ),
serenidade mental (expressão da força de SHÉN ) ou constituição (QÌ ZHÌ )
não possam ser avaliadas de forma científica, talvez fosse possível avaliar de forma
estatística o resultado na saúde de uma terapêutica orientada por estas concepções,
o que poderia se constituir numa contribuição para o campo da saúde coletiva, por
exemplo, ao criar parâmetros para calcular a quantidade de recursos financeiros que
estariam sendo economizados no tratamento das enfermidades evitadas,
mensurados pela diferença com o grupo que não tenha recebido o conjunto de
terapias.
Criamos este exemplo com o intuito de ilustrar o uso da solidariedade e do
respeito ao contexto do conhecimento mobilizado. Assumimos que por não termos a
qualificação necessária para desenvolver integralmente tal projeto de pesquisa,
pode ser que haja complicações imprevistas em sua realização. Mas, nossa
contribuição é para o exercício do pensar, em busca de possíveis caminhos para a
pesquisa solidária, pois sabemos da existência de inúmeras dificuldades para a
realização deste tipo de projeto.
Em termos gerais, as características da Medicina Chinesa, tais como a
singularização da terapêutica, o uso de diversas práticas simultâneas, a
subjetividade da avaliação e o caráter sutil de suas concepções constituem
obstáculos para a abordagem científica, sendo que nossa sugestão principal seria
evitar o abrandamento destas dificuldades pela eliminação ou deformação das
concepções originais.
Percebemos que existem outras linhas de pesquisa que respeitam esta direção,
e que atuam na classe de “Explorações da teoria tradicional” conforme tipologia de
Birch (2003 a). Um trabalho deste tipo foi desenvolvido por Motoyama (1986)
97
com
objetivo de mensurar correntes elétricas possivelmente associadas ao sistema de
meridianos. Seu objetivo foi de fato criar um instrumento de avaliação quantitativa do
fluxo de força vital (QÌ ), baseado na pressuposição de que este poderia ser
equivalente ao fluxo de correntes elétricas. Mesmo podendo haver problemas nesta
pressuposição, o autor respeitou as concepções da dimensão da dinâmica vital ao
97
Motoyama, H, PhD. É fundador e diretor do Califórnia Institute for Human Sciences, e
representante do conselho de pesquisas em Medicina Oriental do Japão.
206
realizar o estudo, como o sistema de meridianos, tendo criado ao final um
instrumento supostamente capaz de mensurar as diferenças de fluxo de força vital
(QÌ ) nos meridianos. Poderia este instrumento ser utilizado como uma forma de
avaliação da circulação desta força? Como uma forma de avaliar o processo de
prevenção denominado “guardar o QÌ ”?
Finalizando, parece-nos que à medida que nos encaminhamos em direção as
concepções do nível celeste, as dificuldades de interação aumentam. Será possível
criar alguma forma que satisfaça simultaneamente as condições da Ciência e da
Medicina Clássica para avaliar se uma terapêutica foi eficaz no suporte ao
desenvolvimento do mandato celeste (MÌNG ) de um sujeito? Haveria
possibilidade de criar instrumentos para mensurar o “brilho nos olhos”, ou seria isto
um processo irredutível, acessível exclusivamente por um observador humano com
percepção refinada?
207
3. Perspectivas Contemporâneas de Desenvolvimento da Medicina Chinesa: A
Via Contra-Hegemônica
Uma vez elaboradas as questões relevantes ao caminho hegemônico de
desenvolvimento da Medicina Chinesa, prosseguimos na parte final desta obra com
uma análise da situação da via contra-hegemônica. Conforme afirmamos no tópico
anterior, pensamos que o movimento de reconstrução da Medicina Clássica
representa uma tentativa de atualizar e proteger os potenciais máximos do sistema
terapêutico. Este projeto é impulsionado por uma parcela minoritária de terapeutas e
autores do campo que apresentam uma forte identificação com os valores e crenças
da Medicina Clássica tais como: 1) Crer que o potencial terapêutico máximo só pode
ser despertado dentro de um contexto semelhante ao clássico, que buscam re-
atualizar; 2) Para re-atualização deste contexto seria necessária a re-inserção da
Medicina como um ramo dos saberes Daoístas, tendo sua cosmologia como uma
matriz original capaz de conectar todos os ramos; 3) O terapeuta deve explorar
alguns destes ramos (QÌ GŌNG , FĒNG SHUǏ , pintura, caligrafia,
sexologia, etc...) para potencializar sua capacidade de apreensão; 4) O terapeuta
deve ser simultaneamente um intermediário do sagrado e um técnico habilidoso; 5)
A Medicina é vista como um caminho de desenvolvimento pessoal do terapeuta em
busca da auto-realização; 6) Valoriza-se o treinamento individualizado
principalmente na relação mestre-discípulo e na criação de uma cultura de linhagem
na transmissão do conhecimento; 7) A transmissão do conhecimento deve ter uma
parcela oral, pode ter uma parcela de transmissão de QÌ , diretamente do mestre
para o discípulo, e a interpretação dos clássicos deve ser situacional a partir das
múltiplas camadas de significados contidos em seus símbolos.
Usualmente as questões relevantes para esta parcela do campo são bastante
distintas da parcela hegemônica. Por exemplo, como dissemos anteriormente, a
avaliação do resultado terapêutico não é uma questão relevante, visto que seu
método, baseado na análise de sinais comparados ao relato dos pacientes, parece
satisfazer as partes envolvidas. De forma geral, não há questionamentos quanto às
concepções e propostas que fundamentam a prática, parecendo que as experiências
e observações empíricas do cotidiano são suficientes para garantir a validade das
concepções.
As questões relevantes que decidimos elaborar aqui, referem-se à autoridade no
campo para validação de conhecimentos reconstruídos ou mesmo criados de forma
inovadora. Notamos a relevância desta questão a partir do estudo das obras
208
contemporâneas de autores ocidentais do campo, pois ao compará-las com obras
das coleções da Medicina Tradicional Chinesa elaboradas pelas grandes
universidades da República Popular, nota-se que as primeiras são mais próximas
dos valores e concepções da Medicina Clássica. Esta observação nos conduziu à
formulação de questões como: “De onde veio o conhecimento apresentado por
autores contemporâneos como Jarret (2003), Willmont (1999) e Kaatz (2005), no
que diz respeito a teoria dos WǓ JĪNG SHÉN , os cinco espíritos orgânicos,
e da função psíquica dos pontos de acupuntura?” Esta questão fundamenta-se nas
observações feitas nos capítulos deste trabalho, onde salientamos que as
interpretações destes autores apresentam camadas de significados para as funções
dos pontos e para a função psíquica dos órgãos, que ultrapassam em muito os
significados diretos apresentados nos clássicos médicos.
Para investigar esta questão, formulamos algumas hipóteses: a) Receberam o
conhecimento por transmissão oral; b) Tiveram acesso a algum texto clássico que
elabora as concepções de forma mais detalhada; c) Trata-se de um processo de
criação e interpretação autoral baseado em experiência pessoal, sem relação com
alguma linhagem de transmissão, oral ou escrita.
A investigação não resultou em respostas conclusivas, mas no direcionamento
de novas investigações que podem contribuir para um mapeamento do
desenvolvimento do conhecimento nesta parte do campo.
Nosso primeiro movimento foi investigar se as informações poderiam ser
encontradas nos clássicos, o que resultou em respostas pouco conclusivas,
principalmente porque em estimativa feita por Kohn, apenas 10% do DÀO ZÀNG
, o Cânone Daoísta, está traduzido para línguas ocidentais, e apenas 3%, são
traduções com rigor filológico de nível acadêmico. Assim, é possível haver parte
desta teoria elaborada de forma mais minuciosa em alguma parte desta coleção,
porém, os autores contemporâneos também não teriam tido acesso a estes textos,
salvo se tiverem efetuado uma tradução própria do cânone original.
A transmissão oral foi uma hipótese bastante considerada, pois, segundo Hsu
(1999, p.2) em seu estudo antropológico sobre a transmissão de conhecimentos,
constitui até o presente uma forma relevante. A autora destaca que este tipo de
transmissão pessoal, as vezes secreta, existe de forma concomitante à padronizada,
baseada em textos escritos e aberta ao publico. Ainda, Hsu (1999, p2) afirma que o
conhecimento transmitido de forma oral pode estar escrito em algum texto, mas a
forma de recebê-lo altera ou amplia seu conteúdo.
209
A relação observada no presente através de pesquisa de campo, entre a
transmissão textual pública e a oral, mostra características do sistema de
transmissão que remontam aos tempos clássicos. Campany (2002, p.49) mostra que
GÉ HÓNG era enfático ao afirmar que o conhecimento da Alquimia (WÀI DĀN
) só poderia ser completo, e portanto gerar os resultados desejados de
longevidade e imortalidade, se o adepto fosse portador do conhecimento oral que
completaria ou revelaria uma espécie de código para interpretação do conhecimento
escrito, atribuindo as falhas no processo à falta desta parcela do conhecimento.
Assim, questionamos se as camadas de interpretação adicionadas pelos autores
contemporâneos seriam somente o ato de tornar público e textual pela primeira vez
uma parcela do conhecimento que até o presente teria sido apenas transmitida de
forma oral, ou, se o desdobramento do conhecimento é um ato criativo dos autores.
Citamos um outro exemplo para elucidar melhor a questão. Ao examinarmos as
funções do ponto NÈI GUĀN (PC6), o portão interior, de acordo com a
tradução de fontes clássicas em Deadman (2001, p.377) encontraremos: “liberar as
tensões no tórax; regular o coração e acalmar o espírito; harmonizar o estômago e
limpar o calor”. Ao observarmos as funções do mesmo ponto em Jarret (2003, p.469)
encontramos: “capacitar o pericárdio a regular as fronteiras para o interior do
coração de acordo com o princípio da não ação (WÚ WÉI ); regular a abertura
do coração para a intimidade; acalmar a inquietude resultante de sentimentos de
traição da intimidade”. Kaatz (2005, p.273) atribui ao ponto a função de “conferir ao
coração a sensação de segurança necessária para garantir a harmonia em seus
relacionamentos.” Assim, a questão formulada de outra forma seria: “Os antigos
Chineses que colocaram o nome neste ponto utilizavam-no com as mesmas funções
propostas por Jarret (2003) e Kaatz (2005)?”
Esta questão é um exemplo particular que pode ser generalizado para todas as
interpretações sobre os cinco espíritos orgânicos (WǓ JĪNG SHÉN ) e as
funções psíquicas dos ponto de acupuntura (SHÉN XUÈ WÈI ) presentes na
literatura contemporânea. Consideramos que a melhor resposta até o presente seria
apenas ilustrar os fatores que poderiam pesar a favor das duas direções.
Encontramos os seguintes fatores a favor de uma resposta negativa:
a) Alguns de nossos autores entrevistados assumiram que as interpretações são
criações autorais, não tendo sido recebidas de seus mestres ou professores por
transmissão oral. Porém, consideram legítimas suas interpretações, pois seriam
210
fundamentadas no potencial simbólico dos ideogramas, enquanto formas de
condensar significados em múltiplas dimensões, associadas ao estudo das
concepções clássicas excluídas da parcela hegemônica do campo. Este processo é
tido como uma forma legítima de recuperar uma parcela do conhecimento que teria
sido perdida, atualizando-a no contexto contemporâneo.
b) A história da acupuntura mostra que o desenvolvimento da função dos pontos
foi um processo gradual subseqüente à teoria dos meridianos. (Deadman 2001;
Birch 2002), indicando a possibilidade de estarem realmente sendo criados novos
usos para os pontos, ampliando sua utilização.
A favor da resposta positiva apresentamos os seguintes fatores:
a) Um de nossos autores entrevistados garantiu ter recebido de seus mestres os
significados dos espíritos orgânicos (WǓ JĪNG SHÉN ) enquanto aprendiz
na China, na década de 90. Afirmou que alguns de seus colegas universitários
sabiam sobre as funções psíquicas dos pontos, apesar do conhecimento não ser
parte do curriculum da universidade. Ainda, admitiu a possibilidade de seus colegas
chineses terem recebido este conhecimento de textos ocidentais.
b) Se observarmos o termo NÈI GUĀN , usualmente traduzido como “portão
interno”, veremos que não há nele referências a calor, tórax ou estômago. O efeito
sobre estes órgãos pode ser explicado através do trajeto do meridiano, mas não
pelo nome. A interpretação do significado de NÈI GUĀN como uma espécie de
“porta ao coração”, e, portanto, uma proteção da intimidade, é fundamentada no
nome do ponto e na extensão das funções do Pericárdio, órgão responsável por
proteger o coração. Em termos gerais, os símbolos que compõem os nomes dos
pontos formam um padrão coerente de significados capaz de relacionar as
dimensões cosmológica, psíquica e corporal (Fruehauf, 2002 a,b). Esta coerência
confere um peso de responsabilidade em relação à escolha dos nomes dos pontos.
Seria possível supor que os Chineses não sabiam dos significados que pretendiam
condensar no símbolo ao escolherem o nome dos pontos?
Diante deste cenário, pensamos que o objeto de pesquisa mais apropriado para
elucidar a relação existente entre as interpretações contemporâneas e os
significados e funções atribuídos aos órgãos e pontos de acupuntura é o DÀO ZÀNG
. O cânone é imenso e pouco explorado, sendo provável que suas seção de
Medicina, Cultivo da vitalidade (YǍNG SHĒNG ), Farmacologia e Alquimia
tenham muito a contribuir para a atualização dos saberes clássicos. Se ainda não é
211
possível ter acesso a traduções de qualidade para línguas ocidentais, graças ao
trabalho conduzido por Schipper (2004) é possível ao menos investigar os textos
que elaboram os temas supracitados, para a seleção de um conjunto de textos a
serem traduzidos.
212
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Anexo I - Glossário de Termos Chineses
Anexo I – Glossário de Termos Chineses
BIÀN BÌNG - Identificação de doenças.
BIÀN ZHÈNG 辨 證 – Identificação de padrões de desarmonia.
CHÁNG SHĒNG Longevidade
DÀO DÉ JĪNG – Um dos principais textos do Cânone Daoísta.
DÀO YǏN – “Guiar e esticar”. Práticas corporais de circulação da força vital (QÌ
).
DÀO ZÀNG – O Cânone Daoísta.
DÀO – O Caminho. Concepção fundamental do Daoísmo. Refere-se à totalidade
do processo de criação e dissolução do cosmos.
– Virtude. Poder que emana dos seres que conduzem suas vidas de acordo
com sua natureza interna (XÌNG ) e seu mandato celeste (MÌNG ).
– Terra. Contraparte de TĪAN , o céu. Refere-se aos aspectos densos do
cosmos, a matéria, a nutrição e o suporte ao desenvolvimento dos seres.
FĀNG SHÌ – Os Mestres das Fórmulas Esotéricas. Médicos-sacerdotes
estabelecidos na dinastia HÀN .
FÁNG ZHŌNG SHÙ – “Técnicas do interior do quarto”. Os saberes, práticas
e artes sexuais.
FĒNG SHUǏ – Sistemas de “arquitetura” que buscam harmonizar a força vital
entre o sujeito e seu ambiente;
GÉ HÓNG – Sábio Daoísta e Alquimista, colecionador e autor de diversas
obras Daoístas.
GUŌ
XIÀNG (252-312) - Comentarista do ZHÙANG ZǏ . Elaborou as
noções de natureza interna (XÌNG ) e mandato celeste (MÌNG ) e suas relações
com a saúde e a ordem universal.
HÉ SHÀNG GŌNG - Comentarista do DÀO DÉ JĪNG que enfatizou
seus aspectos de cultivo da vitalidade.
HUÁNG DÌ NÈI JING LÍNG SHÚ – O Eixo Espiritual do Cânone do
Imperador Amarelo. Livro fundamental da Medicina Clássica Chinesa.
HUÁNG DÌ NÈI JING SÙ WÈN – As Questões Fundamentais do
Cânone do Imperador Amarelo. Livro fundamental da Medicina Clássica Chinesa.
JǏ – Eu. A parcela do “eu” constituída por desejos e paixões e orientada por
objetos do mundo. Contrapõe-se a ZÌ .
JĪNG SHÉN - Consciência Orgânica, Espíritos dos Órgãos. Refere-se ao
conjunto de capacidades cognitivas e funções psíquicas exercidas pelos aspectos
sutis que residem em cada um dos 5 órgãos. Os termos originais seriam HÚN ,
para a alma que reside no fígado; PÒ , para a alma material que reside nos
pulmões; SHÉN , para o espírito no coração; YÌ , para a intenção no baço; e Z
, para a vontade nos rins.
221
JĪNG – Essência. A força que suporta a vida material no cosmos
LÍNG – Potência de realização no mundo. O ideograma mostra a imagem de
shamans realizando uma dança ritualística para fazer chover, tendo por extensão os
significados de poder supernatural, transcendente ou maravilhoso. Denota uma
potência, o fazer chover, que é adquirida por seres que desenvolvem seu mandato
celeste.
LIÚ YĪ MÍNG – Sábio Daoísta comentarista de textos de Alquimia Interna
MǍ WÁNG DŪI – Conjunto de textos médicos do período de transição entre
a medicina mágico ritualística e a clássica.
MÌNG - Mandato Celeste. Acordo existente entre o ser individualizado e a força
ordenadora do cosmos, segundo o qual cada ser deve realizar um conjunto de
ações em sua vida para desenvolver sua vitalidade e organizar a sociedade
simultaneamente.
NAN JING – O Livro das Dificuldades. Texto fundamental da Medicina Clássica
Chinesa.
NÈI DĀN GŌNG – Habilidade do Elixir Interno. Alquimia Interna. Um
conjunto de saberes e práticas que integra cosmologia, meditação e liturgia. Pode
ser considerada como o núcleo do desenvolvimento das técnicas de meditação,
sendo as mais básicas utilizadas como terapêuticas nos níveis terrestre e humano
da medicina.
QÌ GŌNG – Habilidade com a força vital. Qualquer prática que tenha como
objetivo desenvolver a força vital (QÌ ).
QÌ ZHÌ - Constituição. Fixação da força vital em uma das cinco fases em
detrimento de outras.
- A Força Vital
SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG - O Tratado de Ervas do Fazendeiro
Divino. Um dos mais importantes textos de farmacologia da Medicina Clássica.
SHÉN XIĀN ZHUÀN - “Tradições dos divinos imortais”, livro compilado por
GÉ HÓNG (283-343 d.C.) contendo hagiografias dos imortais.
SHÉN - O poder criador das formas e ordenador da vida. Consciência.
Autoconsciência.
SHǑU YI – “Guardar o Um”. Prática de meditação para desenvolver a
concentração.
SHÒU - Longevidade
TÁO HÓNG JǏNG – Sábio Daoísta, autor do SHÉN NÓNG BĚN CǍO JĪNG
, primeiro patriarca da escola Daoísta SHÀNG QĪNG , suprema
claridade.
TĪAN MÌNG 天命 - Mandato Celeste
TĪAN - O Céu. Refere-se ao espaço dos aspectos sutis do cosmos, incluindo
SHÉN , o poder criativo e ordenador.
WÀI DĀN – Elixir Externo, Alquimia Externa. Termo utilizado para designar o
conjunto de saberes e práticas voltado para a produção de substâncias ou elixires a
partir de substâncias vegetais, animais ou minerais.
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WÁNG BÌ (226-249) - Membro de uma elite intelectual da dinastia HÀN ,
comentarista do DÀO DÉ JĪNG .
WÚ JÍ - Supremo Misterioso, inefável. Fonte do cosmos.
WÚ WÉI - Ação sem Limites. Usualmente traduzido por “não-ação”, refere-se a
um tipo de ação no mundo que é espontânea e tem resultado efetivo na
transformação da vida e do mundo.
WŪ Shamans. Sacerdotes da época pré-clássica, representantes de uma
Medicina mágico-ritualística.
XIĀN – Imortais. Título conferido aos seres humanos que alcançam o
desenvolvimento máximo nas artes do cultivo da vitalidade (YǍNG SHĒNG ).
XÌNG - Natureza Interna. Conjunto de qualidades e potenciais conferidos a cada
ser individualizado no momento de sua concepção que determina sua identidade.
YÁN ZÙN – Comentarista do DÀO DÉ JĪNG .
YǍNG MÌNG – Nutrir a Realização do Mandato Celeste. Processo
complementar a YǍNG XÌNG no qual os seres transformam seus potenciais
em potência, agindo no mundo de acordo com sua natureza interna a fim de
alcançar a auto-realização.
YǍNG SHĒNG – Nutrir a Vitalidade.
YǍNG XÌNG – Nutrir a natureza interna. Processo pelo qual os seres
desenvolvem a consciência de suas características e potenciais singulares, etapa
necessária para a auto-realização e manutenção de estados elevados de vitalidade.
YÁNG – O lado luminoso de uma montanha. O sutil, o masculino.
YĪ – Médicos. Classe de profissionais que contribuiu para o desenvolvimento da
Medicina Clássica Chinesa a partir da dinastia HÀN .
YĪN – O lado obscuro de uma montanha. O denso, o feminino.
YUÁN QÌ – Parcela de força vital conferida aos seres individuais no momento
de sua concepção.
YUÁN – Primordial; original.
ZHĒN QÌ - Vitalidade decorrente da realização dos potenciais e do
cumprimento do mandato celeste (MÌNG ). Confere capacidade adaptativa e
imunológica.
ZHĒN RÉN - Homens Autênticos. Suposto potencial máximo do ser humano
em relação ao desenvolvimento de vitalidade e consciência.
ZHÙANG ZǏ – Sábio Daoísta, autor do clássico intitulado por seu próprio nome.
– Eu. Termo encontrado no ZHÙANG ZǏ como ZÌ RÁN ,
significando ”o eu espontâneo”. Em contraposição à JǏ , ZÌ seria o sentido de
“eu” autêntico, relacionado à natureza interna (XÌNG ) de cada ser.
223
Anexo II - Lista de Entrevistados e Notas de Pesquisa
Anexo II – Lista de Entrevistados e Notas de Pesquisa
Nota de Pesquisa I: O terapeuta abaixo, foi entrevistado na área de Boston,
Massachusets. Foi introduzidos por terceiros, colegas ou professores.
Dennis Willmont, L.Ac.
Phone: 1 781 837 3455
496 Pine Street, Marshfield, MA 02050
Nota: O terapeuta é um autor contemporâneo em Medicina Chinesa. Elabora
em suas obras o tema das consciências orgânicas e função psíquica dos pontos de
acupuntura. Esteve bastante aberto à entrevista e concedeu importante contribuição.
Nota de Pesquisa II: Os terapeutas abaixo, também da área de San Francisco,
mas fora de Chinatown foram introduzidos por terceiros, colegas ou professores.
Liu Ming
Phone: 1-510-444-0733
2633 Telegraph Avenue #305 – Oakland, CA.
Nota: Liu Ming se intitula um “Daoísta Americano”. Em relato auto-biográfico
disse ter sido “adotado”por uma família de Daoístas Chineses cuja linhagem teria
sido estabelecida na dinastia HÀN , e chegado sem interrupções até o presente.
Liu não é um acupunturista, mas um Sacerdote Daoísta especializado em práticas
de Astrologia e QÌ GŌNG . Sua contribuição à pesquisa foi significativa.
Dr. Jerry Allan Johnson
Phone: 1-831.646.9399
Pacific Grove, CA
Nota: O terapeuta exibiu um curriculum extensivo tanto em Daoísmo quanto
em Medicina Chinesa. Tem formação acadêmica nas Universidades Chinesas e
também por relação mestre discípulo. Concedeu contribuições importantes para a
pesquisa.
Nota de Pesquisa III: A procura por praticantes médicos Chineses na área de
San Francisco – Chinatown sem um intermediário que pudesse introduzir-me
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mostrou-se um caminho ineficiente. A maioria dos Chineses em Chinatown alegou
desconhecer as questões propostas, ou mesmo desconhecimento da língua inglesa.
Segue abaixo lista de terapeutas contactados sem proceder a entrevista.
Dra. Yong Yi Wu
Phone: 1-415-362-7276
835 Clay Street # 102 – San Francisco, CA.
Research Fellow at Guang Zhou Hospital
Nota: A Dra. Young se mostrou bastante receptiva à entrevista, porém alegou
não possuir suficiente domínio da língua inglesa para compreender as questões
colocadas. Seu tradutor não estava disponível durante o período que estivemos em
contato.
Sharon Sasaki, L.Ac.
Phone: 1-415-781-7850
870 Market Street – San Francisco, CA.
Nota: A terapeuta foi bastante receptiva no primeiro telefonema. Perguntou-me
sobre o tema da entrevista. Quando expus as noções de espíritos orgânicos (WǓ
JĪNG SHÉN ) e da possibilidade de tratamento de questões psíquicas,
alegou nada saber sobre o assunto.
Dr. Su
Phone: 1-415-392-1935
889 Washington Street, San Francisco, CA.
Nota: A entrevista não ocorreu por falta de domínio da lingua inglesa por parte
do terapeuta
Jing Wei Huang, L.Ac.
Phone: 1-415-989-0603
15 Wentworth Street – San Francisco, CA.
Nota: O terapeuta atraiu atenção pelo seu anúncio, clamando especialização
em dores de pescoço e da coluna lombar, tendo-se graduado pela universidade de
Guangzhou, China. Quando entrevistado disse-me que não compreendia minhas
questões e que gostaria de me tratar com acupuntura para que pudesse
compreender seu funcionamento.
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