Download PDF
ads:
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO CONSTITUCIONAL
SEGURANÇA PÚBLICA E SUA NOTA DE FUNDAMENTALIDADE
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
José Hugo de Alencar Linard Filho
Fortaleza - CE
Maio - 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
JOSÉ HUGO DE ALENCAR LINARD FILHO
SEGURANÇA PÚBLICA E SUA NOTA DE FUNDAMENTALIDADE
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito, como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Direito
Constitucional, sob a orientação do Professor Doutor
Francisco Luciano Lima Rodrigues.
Fortaleza - Ceará
2009
ads:
_________________________________________________________________________
L735s Linard Filho, José Hugo de Alencar.
Segurança pública e sua nota de fundamentalidade no ordenamento
jurídico brasileiro / José Hugo de Alencar Linard Filho. - 2009.
116 f.
Dissertação (mestrado) – Universidade de Fortaleza, 2009.
“Orientação : Prof. Dr. Francisco Luciano Lima Rodrigues.”
1. Segurança pública. 2. Ordenamento jurídico. Direitos fundamentais.
I. Título.
CDU 351.78
_________________________________________________________________________
JOSÉ HUGO DE ALENCAR LINARD FILHO
SEGURANÇA PÚBLICA E SUA NOTA DE FUNDAMENTALIDADE
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
BANCA EXAMINADORA
_____________________________________________
Prof. Dr. Francisco Luciano Lima Rodrigues
Universidade de Fortaleza
_____________________________________________
Profª. Drª. Lília Maia de Morais Sales
Universidade de Fortaleza
_____________________________________________
Profª. Drª. Maria Glaucíria Mota Brasil
Universidade Estadual do Ceará
Dissertação aprovada em: 10 (dez) de junho de 2009.
À minha esposa, Zoraia, e ao meu filho, Renan,
pelo amor e felicidade compartilhados.
Aos meus pais, Hugo e Filomena, e aos meus
irmãos, Leninha, Emmanoel e Renata, pelo apoio
fiel e amizade perene.
À minha avó, Mária, pelo exemplo de vida e por
tudo.
À memória do meu tio César Alencar, a bondade
personificada. Saudades!
AGRADECIMENTOS
O mestrado acadêmico é, para mim, a realização de um sonho. Da preparação para o
processo seletivo à defesa da dissertação, um caminho epopéico, por onde não estou trafegando
sozinho. É hora de agradecer:
Ao professor doutor Francisco Luciano Lima Rodrigues, pela atenção, valiosa orientação
e empréstimo de obras cuja leitura foi de grande proveito.
Às professoras doutoras Lília Maia de Morais Sales e Maria Glaucíria Mota Brasil, pela
disponibilidade para compor a Banca Examinadora.
A todos os professores do mestrado, especialmente aos doutores Arnaldo Vasconcelos,
José de Albuquerque Rocha, Martônio Mont’Alverne Barreto Lima, Ana Maria D’Ávila Lopes,
Francisco Humberto Cunha Filho, Newton de Menezes Albuquerque, Paulo Antonio de
Menezes Albuquerque, Gina Vidal Marcílio Pompeu e Rosendo de Freitas Amorim, pelo
estímulo à investigação científica e ensinamentos, que foram de grande significado para a
constituição desta dissertação e para o meu aperfeiçoamento crítico e ético.
Aos colegas de curso, pelos debates e aprendizado proporcionados. A Eduardo Régis
Girão de Castro Pinto, em especial, pela consideração, sempre manifestada, em discutir e
sugerir assuntos do tema que escolhi; pela contribuição na execução do subtópico 6.5.3.1 e pelo
empréstimo de material de leitura.
Aos professores João Vianney Campos de Mesquita e Núbia Maria Garcia Bastos, pelas
revisões gramatical e metodológica, respectivamente.
Aos funcionários do quadro administrativo do mestrado, pela presteza e tratamento cortês.
Aos meus parentes mais próximos, pelo estímulo e torcida de sempre; à minha tia Fabíola
Alencar, em particular, não só pelo apoio espiritual quando mais precisei conciliar as obrigações
acadêmicas com as profissionais e familiares.
7
A todos os colegas delegados de polícia civil que me foram solidários nessa jornada,
dentre os quais Francisco Lusimar Cunha de Moura, Carmen Lúcia Marques de Sousa e
Jeovânia Maria Cavalcante Holanda.
Aos meus alunos, que me motivam ao aprendizado e também me ensinam com suas
dúvidas e observações.
Às demais pessoas que, de algum modo, contribuíram para essa vitória.
Muito obrigado!
“Agora todos veem outra vez o céu mais bonito e a
terra mais fértil, por causa desse pouquinho de
música, e prolongam sua vida e perdoam a si
mesmos e a seus vizinhos, por esse pouquinho de
som.” (Bertold Brecht).
“Na verdade, um pintor não tem outros inimigos
sérios senão os seus quadros maus.” (Henri Matisse).
“A arte é um dos meios que une os homens.” (Leon
Tolstoi).
RESUMO
O ser humano e todo o seu meio de convivência devem ser protegidos, sendo a segurança
missão primária e razão de ser do Estado, ao qual impende, com a ajuda da sociedade,
concretizar os direitos humanos e fundamentais. Como desdobramento do direito humano à
segurança, que, do Estado Liberal ao Estado Democrático, foi redimensionado, figura a
segurança pública, cujo fundamento reside no superprincípio da dignidade humana e no
monopólio da coação estatal legítima, e cujo grau de importância e necessidade pode variar no
tempo e no espaço. No Brasil, quis o Constituinte de 1987-1988 que a matéria segurança
pública ganhasse assento, em capítulo próprio, no Texto Constitucional, sendo o significado
disto o objeto geral perquirido por este trabalho. Embora possa ser concebida como direito,
política pública, interesse público ou bem jurídico, segurança pública, na sua acepção
jurídico-constitucional, afigura-se mais como uma garantia do que propriamente um direito,
sobretudo em virtude da sua instrumentalidade, haja vista que, visando imediatamente aos
bens jurídicos ordem pública, incolumidade das pessoas e do patrimônio, presta-se a garantir
a fruição de direitos básicos, como vida, saúde, liberdade, propriedade e paz, servindo,
também, à democracia, razão pela qual não se tem por desarrazoado concebê-la como um
direito/garantia. Este, em virtude da sua importância (relevância) e do seu conteúdo
(substância), e de acordo com a cláusula de abertura material do catálogo de direitos e
garantias fundamentais, constante do art. 5º, § 2º, da Constituição brasileira de 1988, carrega
em si a mesma nota de fundamentalidade dos demais direitos e garantias fundamentais. Tal
status jurídico se baseia no fato de a norma consubstanciada no art. 144, caput, da Magna
Carta, possuir função dignificadora, ter natureza principiológica, servir de elemento
legitimador, ser inalienável, imprescritível e irrenunciável, além de sujeitar-se à historicidade,
dentre outros aspectos. Aliás, a natureza principiológica do direito/garantia em tela permite
que ele conviva, ainda que em constante tensão, com outros direitos fundamentais,
notadamente os de liberdade, daí que o juízo de ponderação é meio hábil a sopesar os bens
jurídicos confrontantes. Trata-se, a segurança pública, de direito/garantia exigível, sendo
possível o controle judicial das políticas públicas nesta seara.
Palavras-chave: Segurança. Segurança pública. Fundamentalidade. Direitos e garantias
fundamentais.
ABSTRACT
Human being and his environment have to be protected, and security is State`s primary
mission and reason of existence. State is obliged, with society`s aid, to concretize human and
fundamental rights. As a deployment of human right to security, which was resized from
Liberal State to Democratic State, there is public security, whose fundament lies in the super-
principle of human dignity, and in the monopoly of state legitimate coercion, whose
importance and necessity rate can vary within time and space. In Brazil, the 1987-1988
Constitution authors wanted that public security issue would be focused in a whole chapter,
within Constitution text, and its meaning is what this research investigates. Although it can be
conceived as right, public policy, public interest or legal asset, public security, within its legal
and constitutional conception, shows to be a warrant rather than a right, mainly due to its
instrumentality, as it immediately targets public order and safety of people and patrimony
legal assets. Therefore, it works as a warrant to basic rights, such as life, health, freedom,
property, and peace, serving as well to democracy, so that it is not unsuitable conceive it as a
right/warrant. Such right, due to its importance (relevance) and content (substance), and
according to fundamental rights and warrants catalog material opening clause, within 5
th
art.,
§ 2
nd
of 1988 Brazilian Constitution holds the same fundamentality of other fundamental
rights and warrants. Such legal status is based on the dignifying function, principle-based
nature, legitimating element role, inalienable character, imprescriptibly, among other aspects
of the norm in the144 art. caput of Brazilian Fundamental Law. In fact, the principle-based
nature of such right/warrant allows it to live, even often in tension, with other fundamental
rights, namely the ones for freedom, since judgment weighting is a utile mode to confronting
legal assets balancing. This research approaches to public security as an exigible
right/warrant, stating that public policies legal control is possible in this area.
Key-words: Security. Public security. Fundamentality. Fundamental rights and warrants.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................................14
1 O ESTADO VISTO TELEOLOGICAMENTE.................................................................19
2 SEGURANÇA COMO GÊNERO NO UNIVERSO DO ESTADO LIBERAL AO
ESTADO DEMOCRÁTICO E SUAS ESPÉCIES ............................................................24
2.1 Segurança como gênero.............................................................................................24
2.1.1 Segurança no Estado Liberal.........................................................................27
2.1.2 Segurança no Estado Social...........................................................................29
2.1.3 Segurança no Estado Democrático................................................................31
2.2 Segurança jurídica .....................................................................................................32
2.3 Segurança nacional....................................................................................................33
2.3.1 Segurança nacional e terrorismo....................................................................34
2.3.2 Segurança nacional e riquezas naturais.........................................................35
2.4 Segurança social........................................................................................................36
2.5 Segurança no trabalho ...............................................................................................37
2.6 Biossegurança e segurança alimentar........................................................................38
3 SEGURANÇA PÚBLICA: FUNDAMENTO, NATUREZA E DEFINIÇÃO..................42
3.1 Duplo fundamento: o monopólio da coação estatal legítima, com crítica à doutrina
da lei e da ordem, e o superprincípio da dignidade humana......................................42
3.1.1 O superprincípio da dignidade humana, com ênfase à necessidade de
autonomia individual.....................................................................................44
3.2 Natureza e definição..................................................................................................48
3.3 Segurança pública: direito, garantia, bem jurídico, interesse ou política pública? ...50
4 ORDEM PÚBLICA, PODER DE POLÍCIA, POLÍCIA E POLÍCIAMENTOS DE SEGURANÇA
PÚBLICA.............................................................................................................................55
12
4.1 Poder de polícia e polícia ..........................................................................................57
4.2 Policiamento preventivo e polícia ostensiva .............................................................59
4.3 Policiamento investigativo e polícia judiciária..........................................................60
4.4 Atividades “bombeirísticas”......................................................................................62
5 SEGURANÇA PÚBLICA: PRIMEIROS PASSOS NO BRASIL E INSERÇÃO NOS TEXTOS
CONSTITUCIONAIS...........................................................................................................65
5.1 A fase imperial, a constitucionalização do direito à segurança individual e a menção, na
Constituição de 1824, à expressão segurança interna....................................................66
5.1.1 Centralismo e participação dos Municípios na segurança pública................68
5.1.2 Polícia parcial e partidária.............................................................................72
5.1.3 Sobre a escolha e formação dos primeiros chefes de polícia ........................73
6 NOTA DE FUNDAMENTALIDADE À SEGURANÇA PÚBLICA....................................75
6.1 Segurança pública nos textos constitucionais republicanos brasileiros ....................75
6.1.1 Constituição de 1891.....................................................................................75
6.1.2 Constituição de 1934.....................................................................................76
6.1.3 Constituição de 1937.....................................................................................76
6.1.4 Constituição de 1946.....................................................................................77
6.1.5 Constituição de 1967-1969............................................................................78
6.2 Conceito de direitos fundamentais ............................................................................78
6.3 Características dos direitos fundamentais .................................................................79
6.4 A cláusula de abertura do catálogo de direitos fundamentais ...................................80
6.5 Nota de fundamentalidade à segurança pública: o art. 144, caput, da Constituição
Federal de 1988.........................................................................................................81
6.5.1 A proposta da Comissão Afonso Arinos .......................................................81
6.5.2 A estrutura do art. 144...................................................................................83
6.5.3 A nota de fundamentalidade..........................................................................84
6.5.3.1 Contribuição buscada em Jürgen Habermas...................................87
6.5.4 O porquê do status de fundamentalidade.......................................................90
13
6.6 Segurança pública e classificações dos direitos fundamentais..................................91
6.7 Tensão entre direitos fundamentais e segurança pública...........................................93
6.8 Sobre a expressão “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos” ...................95
6.8.1 Conteúdo e alcance da expressão “responsabilidade de todos” ....................97
6.8.2 O Município como corresponsável..............................................................100
6.9 Breves considerações sobre eficácia e exigibilidade do direito à segurança pública ...103
CONCLUSÃO........................................................................................................................106
REFERÊNCIAS .....................................................................................................................110
INTRODUÇÃO
A vida e os mais caros valores a ela inerentes, como liberdade, saúde e paz, devem ser
protegidos. É de se indagar, como faz Cristina Queiroz (2002, p.25): “devem os indivíduos ser
protegidos unicamente do Estado ou também pelo Estado?” Eis a velha, grave e sempre
renovada missão que se confunde com a razão de ser do Estado: a segurança. Além disto, a ele
cumpre concretizar outros direitos humanos e fundamentais
1
, com a indispensável colaboração
da sociedade. Paz, por exemplo, não se reduz à ausência de guerras, nem existirá sem justiça
social
2
, tampouco sem a solidariedade das pessoas e dos povos.
O tempo mostrou que novos conteúdos foram se acrescentando aos direitos humanos,
assim como outros desses direitos surgiram na medida em que o homem buscou outros
horizontes e aspirações para sua vida em sociedade e sua relação com o Estado, resultando nas
sucessivas gerações ou dimensões daqueles. Como desdobramento da raiz segurança, desponta
a segurança pública, cuja importância e necessidade podem variar no tempo e no espaço.
No Brasil, ante a insegurança provocada pela violência e criminalidade, que afeta a todos
indistintamente e se posta como desafio da ordem do dia aos governos e à sociedade
3
, quis o
constituinte de 1987-1988 que a segurança pública tivesse assento, em capítulo específico, no
Texto Constitucional. Qual o significado disto?
1
Convém lembrar que direitos humanos e direitos fundamentais não são expressões sinônimas. Eis o traço
distintivo a que chega Lopes (2001, p.42): “Direitos humanos são princípios que resumem a concepção de uma
convivência digna, livre e igual de todos os seres humanos, válidos para todos os povos e em todos os tempos.
Direitos fundamentais, ao contrário, são direitos jurídica e constitucionalmente garantidos e limitados especial
e temporariamente. [...] Conclui-se, então, que a expressão direitos humanos faz referência aos direitos do
homem em nível supranacional, informando a ideologia política de cada ordenamento jurídico, significando o
pré-positivo, o que está antes do estado, ao passo que os direitos fundamentais são a positivação daqueles nos
diferentes ordenamentos jurídicos, adquirindo características próprias em cada um deles.”
2
Não à toa é que a Campanha da Fraternidade, versão 2009, cujo tema é “fraternidade e segurança pública”, tem
como subtema: “a paz é fruto da justiça.”
3
Segundo a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (2008, p.17), “todas as pessoas aspiram por segurança e
estão preocupadas com o problema da falta de segurança pública que se manifesta concretamente na violência,
no trânsito, nos cárceres, no tráfico de drogas, de armas e de pessoas, nas desigualdades sociais, na fome, na
miséria, na corrupção e em muitas outras situações. Essa legítima preocupação deve nos remeter à reflexão
sobre tal questão [...].”
15
O presente estudo não objetiva discutir fatores de causa e efeito da violência e
criminalidade no Brasil, como o alto deficit social, que afeta a população economicamente
pobre e miserável, e a corrupção, que permeia poderes públicos e favorece à impunidade, nem
perquirir se o Estado (lato sensu) tem ou não garantido segurança pública a contento. O objeto
aqui é basicamente o sentido, conteúdo, fundamento e status da matéria dentro do ordenamento
jurídico brasileiro e sob contexto da teoria dos direitos e garantias fundamentais, terreno
jurídico-político-constitucional.
Afigura-se procedente dizer que, em nome ou por ocasião da segurança pública, se
cometeram e continuam se cometendo ataques contra direitos humanos no Brasil e no mundo.
Deve-se atentar, entretanto, para a noção de que ações próprias a ela, quando ou se praticadas
mediante violação a direitos que tais, e ao arrepio da lei penal, não se traduzem noutra coisa
senão numa falsa ou antissegurança pública, algo destoante na sua deontologia
4
e somente
digno de ser combatido, por subverter proteção, segurança e paz, em insegurança, medo e
vingança privada. Portanto, não pode e não deve ser tido como de segurança pública o ato de
agente que, a serviço ou a pretexto dela, o pratica em concurso com alguma transgressão penal.
5
Tal reflexão serve para dizer que não se vislumbra incompatibilidade, tampouco
intransponível, entre a verdadeira segurança pública – objeto do presente estudo – e os (demais)
direitos fundamentais, ainda que haja constante tensão entre ambos. Isto porque a missão da
primeira não é ressaltar nem sobrepujar o poder coativo do Estado, nem fazer valer a doutrina
da lei e da ordem, tampouco servir de caminho ou instrumento para ilicitudes, senão garantir
que os segundos (direitos das pessoas, coletividades e de toda a sociedade, inclusive do Estado)
sejam respeitados ou não agredidos. Nesse sentido, Souza Neto (2008, p.90) adverte que
“políticas públicas e ações policiais que desconsiderem os direitos fundamentais transgridem,
até não mais poder, a própria ordem pública que pretendem preservar.”
4
Segundo Langaro (1996, p.3), “Deontologia deriva do grego deontos (dever) e logos (tratado), isto é, a ciência
dos deveres, no âmbito de cada profissão.” Existe, pois, a deontologia da segurança pública, que trata dos
deveres dos profissionais que militam nesta seara, assim como há nas áreas forense, médica, farmacêutica,
contábil, de engenharia etc.
5
Langaro (1996, p.33), discorrendo sobre a impossibilidade de os fins justificarem os meios, adverte para o fato
de que “se o meio é mau, o ato será mau, embora seja bom o fim. Daí provém o conhecido preceito moral, de
grande significado para a vida forense: ‘Os fins não justificam os meios’, ou, se quisermos, ‘não é lícito fazer o
mal, para alcançar o bem’. Ou, então, como justificava Dom Estêvão Bettencourt: ‘O fim bom não justifica
meios maus. Mesmo que o fim seja bom, a vontade que o deseja mediante meios maus deseja algo de mau; e
esse desejo destrói ou corrompe a bondade moral da ação. Para que uma ação seja boa, é preciso que todos os
seus elementos integrantes (inclusive os meios) sejam bons; caso algum seja mau, já não há ação boa.”
16
Ainda que se possa pensar ao contrário, da segurança pública a sociedade brasileira e o
Estado não podem prescindir, máxime nos dias atuais, dado o clima de medo e insegurança
produzido pela violência e a criminalidade, que atingem pessoas, comunidades e instituições.
Eis que surgem, porque relevantes para a compreensão e relacionamento da matéria
constitucional com outras, as seguintes indagações (componentes da problematização) para as
quais aqui se busca solução: o que se entende por segurança pública? O art. 144, caput, da
Constituição da República Federativa do Brasil, que trata do assunto, carrega em si o status de
norma de direito fundamental? Em carregando, a despeito de que possa ser vista unicamente
como interesse, serviço ou política pública, segurança pública é direito, garantia ou bem jurídico
fundamental?
Ver-se-á que ela é meio, é instrumento, algo que, assim como o Estado, não encerra um
fim em si mesmo, e que só existe em razão de um objetivo primário: servir ao indivíduo e à
sociedade, isto é, dar condições para o usufruto de outros direitos. Afinal, respondendo-se
àquela indagação de Queiroz (2002, p.25), não só os indivíduos, como o meio em que eles
vivem, necessitam e têm que ser protegidos do Estado e dos próprios indivíduos, e pelo Estado.
Esta dissertação aborda as bases constitucionais da matéria enfocada, intentando
demonstrar que ela leva consigo, à luz do ordenamento jurídico brasileiro, a nota de
fundamentalidade formal e material que a torna tão vinculativa, urgente e necessária quanto
outros direitos e garantias fundamentais expressos ou implícitos, constantes do catálogo ou
dispersos no Texto Constitucional ou fora dele.
Vislumbrar essa nota de fundamentalidade importa conceber como de cunho
principiológico a norma constante do caput do art. 144 da Constituição Federal. E normas
principiológicas convivem entre si, embora tal convivência seja permeada pela inevitável tensão
já mencionada, em sede da qual o núcleo fundamental de cada princípio há que ser sempre
preservado. Daí se afirmar, como há pouco, que inexiste aquela (pseudo) incompatibilidade
entre direitos fundamentais e segurança pública.
Há pouco também foi mencionado que a segurança pública radica de uma matriz – a
segurança, ou melhor, o direito humano à segurança – cuja fundamentalidade, segundo a ordem
constitucional vigorante no Brasil, mostra-se indiscutível. E como parte do todo, possui, à
evidência, características dele. Aliás, se é parte de um todo, não deixa de ser um todo à parte.
Adiante-se que este e outros fatores, que surgirão no decorrer deste texto, a exemplo da
17
historicidade, emprestam à segurança pública a nota de fundamentalidade a que se pretende
descortinar.
Trata-se de pesquisa bibliográfica em torno do tema, tendo como técnicas o levantamento
e seleção bibliográficos e a respectiva leitura, recorrendo-se esporadicamente a observações
fruto da experiência profissional do autor. Tal pesquisa caracteriza-se como de natureza
qualitativa, na medida em que procede à análise e interpretação mediante formulações teórico-
conceituais relativas aos assuntos escolhidos, e possui fins descritivo e exploratório.
O estudo divide-se em oito partes: introdução, seis capítulos e a conclusão. O primeiro
capítulo trata da finalística estatal, ou seja, do Estado visto teleologicamente. Com tal
compreensão se tornam mais nítidos o sentido e a missão da segurança pública.
No segundo capítulo é apresentado o gênero segurança, com seu conteúdo e significado
nos três modelos de Estado de Direito – o Liberal, o Social e o Democrático – para, em seguida,
trafegar-se por algumas das suas espécies: segurança jurídica, segurança nacional, segurança
social, segurança do trabalho, biossegurança, segurança alimentar e, claro, segurança pública,
passando esta a ser objeto específico dos capítulos seguintes.
No terceiro capítulo, se adentra o que serve de fundamento à segurança pública: o Estado
como monopólio da coação legítima, de um lado e, de outra parte, o superprincípio da
dignidade humana, de onde radica a maioria dos direitos e garantias fundamentais. A essa
altura, poder-se-ia perguntar: segurança pública ou o exercício dela não é antagônico à
dignidade humana, a quem tende a afrontar? A resposta é negativa, pelo que brevemente já se
disse, e por mais razões. Com efeito, a segurança pública visa a proteger pessoas e coisas das
ameaças e lesões a direitos provocadas por quem quer que seja, do particular ao agente público,
e até por fenômeno da natureza. E certo é que limitará ou fundamentará restrição à liberdade de
quem praticar infração penal. Quem é alvo de ação policial ou de bombeiros de incêndio ou
sinistro, entretanto, não perde, porque irrenunciáveis e inalienáveis, seus direitos e garantias
constitucionais e também legais, ainda que possa haver restrição neste campo, que não significa
violação. Passo seguinte, mas no mesmo tópico, chega-se à natureza e a uma proposta de
conceito da segurança pública.
O quarto capítulo dedica-se aos bens jurídicos, atributos e institutos inseparáveis do
contexto do tema central, a saber: ordem pública, poder de polícia, polícia e tipos de
policiamento em segurança pública.
18
Na sequência (quinto capítulo), digressões sobre os primeiros passos da segurança pública
no Brasil, com ênfase à inserção dela logo no primeiro Texto Constitucional, em 1824, quando
foi chamada de segurança interna.
No sexto capítulo se intenta finalmente demonstrar a qualidade de jusfundamentalidade
presente na cabeça do art. 144 da atual Lei Fundamental brasileira. Investiga-se, basicamente,
sobre o que a vigente Magna Carta tem a dizer sobre a segurança pública, partindo-se da
cláusula de abertura material do catálogo de direitos e garantias fundamentais, inscrita no § 2º
do seu art. 5º.
Remata-se na conclusão, fazendo a epítome das reflexões aqui expendidas, seguindo-se a
relação de obras e autores que concorreram, do ponto de vista teórico e prisma empírico, para
embasar, sob o aspecto científico, este Relatório de Pesquisa para fins acadêmicos.
1 O ESTADO VISTO TELEOLOGICAMENTE
A noção de Estado como sinônimo de sociedade politicamente organizada deita raízes na
Antiguidade, destacando-se a doutrina aristotélica. Em Maquiavel (2005, p.29), quando ele
sentencia que “todos os Estados que existem e já existiram são e foram sempre repúblicas ou
principados”, a palavra Estado é empregada especificamente para dar nome ao corpo político
regulador da sociedade, iniciando-se a era do Estado moderno. Com a teoria jellinekiana é que
se passa a descrever o Estado como um fenômeno histórico caracterizado pelo exercício de um
poder político, por parte de um povo, num território determinado (MIRANDA, 1998, v.III,
p.28-29), donde só então há a identificação de seus clássicos elementos.
Estudar o Estado é deparar questões complexas e controversas, bem como trafegar num
vasto campo de interdisciplinaridade. Várias são, pois, as teorias que se ocupam da sua
conceituação, origem e formação, da sua natureza e essência, e dos seus fins e funções (ou
tarefas). Estes últimos, não dissociados dos demais aspectos, são os que mais interessam ao
presente tópico.
Kant (2002, p.24) aduz a ideia de que a natureza nada faz em vão, não sendo “perdulária
no emprego dos meios para os seus fins.” À luz do pensamento kantiano, o homem,
equipamento da natureza dotado de razão e liberdade de vontade, deve extrair de si mesmo
invenções que possam tornar sua vida mais agradável. Logo, o emprego de meios para o
alcance de fins é inerente à natureza humana. Cite-se, por exemplo, a ciência, produto do
homem. Ela objetiva algo: transmitir informações acerca do que existe, existiu ou existirá,
perquirindo, conforme a expressão de Popper (1982, p.255), a “verdade interessante”. A arte,
por sua vez, vista como um meio de comunhão entre as pessoas, presta-se a unir os homens por
uma cultura de paz ou não-violência. (TOLSTOI, 2002, p.271-272).
Assim é com o Direito, que deve existir para ser justo, pois, como obra cultural do
homem, a este deve servir. O Direito, portanto, vincula-se à sua finalidade, “porque somente
para alcançá-la é que ele foi criado.” (VASCONCELOS, 2003, p.XV). Segundo Ihering (1979,
20
p.236), “tudo o que brota sobre o solo do direito, nasceu através de sua finalidade” e em função
dela.
Com o Estado não é diferente. Na qualidade de grande mecanismo de preservação da
convivência humana, ele decorre da vida jurídica e, ao mesmo tempo, “é um conjunto de
situações de direito”, nenhuma das suas vicissitudes vindo a ser, portanto, indiferente ao
Direito. (MIRANDA, 1998, v.III, p.34). Aliás, antes de mais nada, o Estado é pessoa coletiva
de ação decorrente da vontade humana (BONAVIDES, 2004, p.111) e indispensavelmente
possui fim ou fins. Neste sentido, é a lição de Aristóteles (1991, p.1), segundo a qual
Todo Estado é uma sociedade, a esperança de um bem, seu princípio, assim como de
toda associação, pois todas as ações dos homens têm por fim aquilo que consideram
um bem. Todas as sociedades, portanto, têm como meta alguma vantagem e aquela
que é a principal e contém em si todas as outras se propõe à maior vantagem
possível. Chamamo-la Estado ou sociedade política.
Vê-se que a finalidade do Estado é nitidamente privilegiada por Aristóteles (1991, p.45),
quando ele sentencia que “não é apenas para viver juntos, mas sim para bem viver juntos que se
fez o Estado.”
Retornando a Kant (2002, p.28), tem-se que o homem é um animal que, pela tendência de
abusar da liberdade no relacionamento em sociedade com os seus semelhantes, não prescinde de
“um senhor” que ponha limite à sua vontade e garanta a liberdade de todos. Então, essa
liberdade requer regulamentação, a cargo do Estado, a quem cabe evitar anomia.
Hobbes (2000, p. 141,147-149) exprime que o fim do Estado é a paz e a defesa das
pessoas, evitando-se a guerra de todos contra todos. Sua ideia é baseada na seguinte
advertência: “se não for instituído um poder suficientemente grande para nossa segurança, cada
um confiará, e poderá legitimamente confiar, apenas em sua própria força e capacidade, como
proteção contra todos os outros.” O pensamento hobbesiano parte da hipótese de que o homem
é mau por natureza (homo homini lupus). Cumpre, de passagem, informar que a ideia de homem
como lobo de si é uma extensão do pensamento, bem anterior, de Tito Mácio Plauto (254-184
a.C.), no Asinaria II. (BARRETO; MESQUITA, 1997, p.113).
Rousseau (2006, p.20-43) concorda com a necessidade de uma ordem estatal para a
conservação e defesa dos indivíduos. Se, entretanto, no modelo proposto por Thomas Hobbes
há necessariamente uma transferência de poder das pessoas para o soberano (o Leviatã),
21
justificativa que interessaria aos regimes autoritários, na teoria rousseauniana, o próprio povo
assume o poder estatal, ideia que diretamente diz com a democracia.
Acerca da doutrina de Rousseau, e sobretudo diferenciando-a da de Hobbes, cuja
atualidade é inegável em se tratando da preocupação com a segurança, Zippelius (1997, p.168-
169) comenta:
O Estado é reconhecido como necessário e, com base nesse reconhecimento, os
indivíduos submetem-se livremente à vontade comum, para cuja formação cada um
deles contribuiu. Nesta concepção de Estado, o indivíduo surge, portanto, como
participante activo na formação da vontade estatal (cidadão activo) e
simultaneamente como súdito desta vontade estatal. Os governantes são idênticos
aos governados.
O Estado existe em função do homem em sociedade e não ao contrário. Com efeito, ele
não encerra um fim em si mesmo, diferentemente do homem, este sim, um fim em si mesmo, e
se o deixar de ser, sua dignidade terá sido violada. A própria democracia não é fim, é um meio.
Não à toa, diz-se que o Estado vive de sua justificação. (HELLER, 1968, p.260). Tais asserções
caminham em consonância com frases do tipo “o Estado existe para o indivíduo e não o oposto:
omne jus hominum causa introductum est.” (PRADO, 1996, p.64); e “os governos são
instituídos para o bem ser dos povos e não estes para o bem ser dos governos.” (BUENO, 1958,
p.19). Governo aqui quer dizer Estado-aparelho, cujas ações e prioridades variam de época para
época.
As atuações do Estado passaram e continuam passando por mutações no caminhar dos
tempos, daí avultar em importância o critério histórico – como propõe Bonavides (2004, p.113-
114) – para compreensão da finalística estatal. Esses fins não se confundem com os interesses
particulares de cada governo. Estes são passageiros e casuístas e, aqueles, duradouros. Cite-se, a
modo de exemplo, que houve um tempo em que conquistar para expandir era o objetivo
primordial do Império Romano, e a tranquilidade pública, o das leis da China.
(MONTESQUIEU, 1999, p.166). A depender do contexto de cada época, poderiam ser
considerados o segundo exemplo como um dos fins a que o Estado se propõe, e o primeiro
como um mero interesse de governo.
Rememore-se a noção de que no liberalismo vigia o Estado-governo mínimo, também
chamado Estado-polícia, cujas funções se restringiam quase que somente à vigilância da ordem
social e à proteção contra ameaças externas. (DALLARI, 2005, p.280). Correspondia à idéia de
Adam Smith, segundo a qual cada homem é o melhor juiz de seus interesses, devendo promovê-
22
los ao próprio talante. Neste caso o Estado – lembra Bluntschli (1885, p.349 apud DALLARI,
2005, p.279) – deveria “proteger e encorajar o bem dos particulares, não tutelá-los.” Tudo
porque “a constante tutela dos direitos naturais da pessoa é, por conseguinte, o fim imutável do
Estado, a missão primária que este é chamado a cumprir, e à qual não pode subtrair-se”, anota
Del Vecchio (1957, p.100).
Os desmandos e as desproporções do liberalismo, porém, fizeram surgir o Estado social e,
com este, o Estado-polícia foi substituído pelo Estado de serviço, encarregado de assegurar a
prestação dos serviços fundamentais a todos os indivíduos. (DALLARI, 2005, p.282-283). A
modernidade pós-liberal (contemporaneidade) passa a exigir maior presença do Estado na vida
social. Este é, pois, o maior responsável por promover o bem comum, devendo ter o povo como
a totalidade dos destinatários de suas prestações civilizatórias. (expressão de MÜLLER, 2003,
p.75-77).
A propósito, Del Vecchio (1957, p.65) observa que “o Estado pode e deve agir
concretamente para prover a todas as necessidades do povo, tanto físicas e econômicas como
intelectuais e morais, tendo sempre em mira o bem comum.” Daí se costuma dizer que o
objetivo precípuo do Estado é realizar o bem comum. A definição de bem comum é dada pelo
Papa João XXIII, como sendo “o conjunto de todas as condições de vida social que consistam e
favoreçam o desenvolvimento integral da pessoa humana.”
1
Consoante averba Fábio Konder
Comparato (2003, p.28)
2
, “o bem comum, hoje, tem um nome: são os direitos humanos, cujo
fundamento é, justamente, a igualdade absoluta de todos os homens, em sua comum condição
de pessoa.”
Tal se coaduna com a “fórmula política” (expressão de VERDÚ, 1984, p.838) Estado
Democrático de Direito, cuja noção exerce importante função ideológica, ao ser empregado –
explica Pérez Luño (2005, p.246) – como instrumento de legitimação para justificar realidades
políticas heterogêneas. Aliás, Heller (1968, p.245) identifica o objetivo do Estado na promoção
da cooperação social/territorial, fundada na necessidade de um status vivendi que ponha em
harmonia as oposições de interesses
3
. Para satisfação desse status vivendi não basta que o
Estado promova um mínimo vital, mas que assegure, máxime nos países periféricos ou de
modernidade tardia, um mínimo existencial compatível com a noção de dignidade humana.
1
Tal definição está na Encíclica católica Mater et Magistra.
2
Em prefácio à obra de Muller (2003, p.28).
3
Como se sabe, democracia pressupõe conflito de interesses.
23
É de se ressaltar que o Estado desenvolve o que a ordem jurídica lhe atribui, sendo amplo
e variado o conjunto de suas atribuições, de tal forma que esse conjunto é dividido em dois
grandes grupos: o das atividades instrumentais e o das atividades-fim. Enquanto este justifica a
existência do Estado, aquele consiste no aparelhamento sem o qual não haveria realização das
atividades-fim. Por outro lado, o campo das atividades-fim pode ser repartido em três grupos: o
das atividades de controle social, o da gestão administrativa e o de relacionamento com outras
Pessoas Políticas ou entidades internacionais. Tal classificação (divisão e subdivisão das
atribuições estatais) é proposta por Sudfeld (2007, p.79-84), para quem as atividades de controle
social se destinam a regular a vida em sociedade, sendo exemplos delas as atuações legiferante,
judicante e de “administração ordenadora”, enquanto as da gestão coincidem com os serviços
públicos, inclusive os sociais, como educação, saúde e assistência social.
Pelo que foi dito até agora, e como o título deste capítulo sugere, não se compreende a
razão de ser do Estado senão com suporte nos seus fins, posto que ele existe para servir à
totalidade dos destinatários do seu conjunto de ações: o povo.
2 SEGURANÇA COMO GÊNERO NO UNIVERSO DO ESTADO
LIBERAL AO ESTADO DEMOCRÁTICO E SUAS ESPÉCIES
Ao transpor a velha regra de norteamento interpretativo segundo a qual o que é especial
acha-se incluído no geral
1
, segue-se aqui o caminho epistemológico que diz: pensar
cientificamente é refletir com base em categorias (platônicas e kantianas) do conhecimento,
tratar a parte com uma prévia visão do todo, conhecer a espécie sem desconhecer o gênero e,
enfim, analisar um modo de ser sem perder de vista a noção do ser.
O título deste segmento já indica que da matriz segurança derivam as espécies que logo
mais serão comentadas. O que, no entanto, vem a ser segurança? Trata-se de algo para cujo
entendimento não basta o significado semântico do vocábulo, que neste plano significa “estado,
qualidade ou condição de seguro” (FERREIRA, 2004, p.730) ou, simplesmente, certeza,
firmeza, garantia. O contexto no qual a pergunta se insere é, basicamente, o jurídico, mais
precisamente o da Teoria Geral dos Direitos Humanos, terreno jurídico-político-constitucional.
A resposta vem a seguir.
2.1 Segurança como gênero
A preocupação com a segurança tem longo percurso histórico realizado, merecendo
destaque a Magna Charta Libertatum, outorgada na Inglaterra, por João Sem-Terra, em 1215,
que no seu art. 42 previa a liberdade de locomoção das pessoas “em paz e segurança.
(MIRANDA, 1990, p.15). Foi durante a segunda metade do século XVIII, no entanto, após a
derrocada dos regimes absolutistas e com origem no surgimento do primeiro Estado
(constitucional) de Direito (o Estado Liberal), que o direito à segurança obteve reconhecimento,
tendo como marcos legislativos importantes as Declarações norte-americana de Direitos da
Virgínia (1776) e a dos Direitos do Homem e do Cidadão, diploma francês datado de 1789.
Baseando-se na doutrina geral jusnaturalista – com a ressalva de que não se pretende no
momento remontar à pré-história dos direitos humanos, cuja raiz está na Filosofia clássica
1
Sobre o referido brocardo e outros: Falcão (2004).
25
(estóica) e no pensamento cristão da Antiguidade greco-romana, fatos que refogem ao objetivo
do presente trabalho –, vê-se que a segurança se afigura como um valor transcendente ao
ordenamento jurídico, com o realce de que a sua investigação não se confina, tão somente, ao
sistema jurídico positivo (BORGES, 2002, p.1)
2
, mas deve ser vista como um direito universal,
suprapositivo, inalienável e inerente ao homem contemporâneo. Sob a óptica do positivismo
jurídico, a segurança seria algo não anterior ao Estado e decorrente dos limites que ele impõe a
si mesmo. (BOBBIO, 1992, p.127).
Lopes (2001, p.77), discorrendo sobre a natureza ético-axiológica dos direitos do homem,
especificamente acerca de valores últimos que derivam da ideia da dignidade humana, os quais
fundamentam os direitos humanos, refere-se ao valor “segurança-autonomia”, nos seguintes
termos:
Responde ao valor ‘segurança’, sendo o valor mais próximo à idéia de dignidade
humana, expressando os direitos da pessoa considerada como indivíduo autônomo,
livre e responsável. Castán Tobeñas leciona que o conteúdo dos direitos decorrentes
desta categoria é uma ‘derivación de aquel derecho del hombre, verdaderamente
primário y básico, que es el derecho a que sea reconocida y protegida su
personalidad. Os direitos abrangidos nesta categoria são: o direito à vida e à
integridade, o direito à liberdade de consciência e pensamento, o direito à honra e à
boa reputação, as garantias processuais e a legalidade da pena, dentre outros de
natureza semelhante.
Não à toa é que Bobbio (1992, p.96) concebe segurança como direito primário. José
Afonso da Silva (2006, p.777), por sua vez, salienta que “na teoria jurídica a palavra
‘segurança’ assume o sentido geral de garantia, proteção, estabilidade de situação ou pessoa em
vários campos, dependente do adjetivo que a qualifica”. Em sentido assemelhado, Sarlet (2006,
p.8) faz alusão ao direito à segurança como uma cláusula geral, “que abrange uma série de
manifestações específicas, como é o caso da segurança jurídica, da segurança social, da
segurança pública [...].”
A segurança é, pois, gênero do qual são espécies ou corolários lógico-sistemáticos a
segurança jurídica, a nacional, a social, a do trabalho, a alimentar, a biossegurança e, claro, a
segurança pública.
3
Estas são especificações e concreções que aquela requer para sua
efetividade. Essa divisão não despreza outras em curso
4
e há entendimento doutrinário que
2
Borges (2002, p.1) direciona suas palavras para a segurança jurídica, entretanto, elas são de grande valia no
trato do princípio-pai segurança, do qual decorre a segurança jurídica. Esta é, pois, parte que traz consigo
características do todo. Daí a inspiração buscada nas referidas palavras.
3
Essa ordem não é taxativa nem implica hierarquia de espécies.
4
Há outras classificações, como a de Jean-Jacques Israel (2005), para quem segurança se divide em segurança
jurídica, física e socioeconômica.
26
sugere como segurança gênero a segurança jurídica, de onde decorreriam as demais espécies. É
o que se infere do trecho a seguir transcrito, mediante o qual Tavares (2006, p.651) sustenta que
o sentido da expressão segurança jurídica é muito mais largo do que se pode pensar, porquanto
compreende:
i) a garantia do direito adquirido, ato jurídico perfeito e coisa julgada; ii) a garantia
contra restrições legislativas dos direitos fundamentais (proporcionalidade) e, em
particular, contra a retroatividade de leis punitivas; iii) o devido processo legal e o
juiz natural; iv) a garantia contra a incidência do poder reformador da Constituição
em cláusulas essenciais; v) o direito contra a violação de direitos; vi) o direito à
efetividade dos direitos previstos e declarados solenemente; vii) o direito contra
medidas de cunho retrocessivo (redução ou supressão de posições jurídicas já
implementadas); viii) a proibição do retrocesso em matéria de implementação de
direitos fundamentais; ix) o direito à proteção da segurança pessoal, social e
coletiva; x) o direito à estabilidade máxima da ordem jurídica e da ordem
constitucional.
Nessa senda vai a concepção de segurança humana desenvolvida no contexto das
relações internacionais (CONFEDERAÇÃO..., 2008, p.24) e defendida pela Organização das
Nações Unidas-ONU, e mencionada no texto-base da 1ª Conferência Nacional de Segurança
Pública
5
(BRASIL, 1999, p.14), segundo a qual o significado da expressão transcende o da
proteção contra a violência física e o conflito armado, abrigando a noção de sobrevivência
humana digna em todas as suas dimensões. Consoante traduz Batthyány (2009, p.1),
de acordo com a definição da Comissão de Segurança Humana (da ONU), a
expressão significa proteger as liberdades vitais e as pessoas expostas a ameaças e a
certas situações, reforçando seus aspectos fortes e suas aspirações, além de criar
sistemas (políticos, sociais, ambientais, econômicos, militares e culturais) que deem
às pessoas os elementos básicos de sobrevivência, dignidade e meios de vida.
No Brasil, o valor supremo segurança, como gênero, foi considerado quando da
edificação do atual ordenamento jurídico, ou seja, quando da “decisão política fundamental” –
recorrendo-se aqui à expressão de Loewenstein (COMPARATO, 1996, p.15 apud GUERRA
FILHO, 1999, p.47) – manifestada pela “fórmula política”
6
enunciada no preâmbulo
7
da
Constituição Federal de 1988. Registrou-se o propósito da Assembleia Nacional Constituinte,
no sentido de “instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos
5
A proposta jurídico-política da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública-CONSEG é, basicamente,
“definir princípios e diretrizes orientadores da política nacional de segurança pública, com participação da
sociedade civil, trabalhadores e poder público como instrumento da gestão, visando efetivar a segurança como
direito fundamental.” (BRASIL, 2009, p.17).
6
Usando-se a expressão de Pablo Lucas Verdú (1984).
7
Malgrado o entendimento doutrinário que não confere valor jurídico – e sim político – aos preâmbulos das Constituições, para Verdú (1984, p.446),
“[...] la fórmula política sirve para interpretar el ordenamiento constitucional y, en este sentido, el Preámbulo tiene valor jurídico. [...] Es cierto que lãs
afirmaciones que abarca el Preámbulo no son, prima facie, normas. Son decisiones políticas. Empero, estas decisiones políticas condicionan lãs
disposiciones normativas del contexto constitucional, y en este sentido cabe, perfectamente, interpretarlas a la luz de esas decisiones.”
27
sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a
justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos.”
(Grifou-se).
Assim, partindo-se de que um princípio é a expressão juspositiva de um valor, o valor
supremo segurança foi duplamente reconhecido na Constituição de 1988, porquanto positivado
em forma de normas/princípio no art. 5º, que abre o catálogo de direitos e garantias individuais
e coletivos, e no art. 6º, onde compõe o rol dos direitos fundamentais sociais. Portanto,
considerando-se o ordenamento jurídico brasileiro, do gênero chamado direito a segurança,
inscrito em ambos os dispositivos da Carta Magna, é que decorrem os já referidos
desdobramentos.
Como o direito a segurança atravessou períodos históricos no Brasil e no estrangeiro, a
exemplo de outros direitos humanos, nem sempre ele teve o mesmo significado, porquanto
novos conteúdos lhe foram incorporados, na medida em que os modelos e paradigmas do
Estado de Direito foram objeto de mudanças.
2.1.1 Segurança no Estado Liberal
Liberdade era o grande lema a ser intransigentemente defendido diante do quadro de
abusos e insegurança deixado pelas monarquias absolutas de direito divino, substituídas por
uma ordem de valores políticos, sob a influência das ideias contidas no Contrato Social, de
Rousseau, pelo qual se defendia o argumento de que era mais adequado e seguro estabelecer em
um pacto as normas de convivência entre governantes e governados. (BONAVIDES, 1993,
p.68). Isso proporciona a tão almejada segurança, na medida que o Estado há que se curvar à lei
e não interferir indevidamente nas relações dos indivíduos em sociedade.
Era época do recém-nascido Estado Liberal (primeiro Estado constitucional de Direito,
também chamado Estado da Separação de Poderes), que tinha por escopo o império da lei (com
a legitimidade subsumida na legalidade), a separação de poderes, a soberania e os direitos
naturais dos indivíduos. Caracterizava-o o fato de ser individualista, abstencionista e mínimo,
não interferindo nas relações individuais privadas.
Segurança era, assim, um pressuposto da liberdade individual em face do Estado. Logo,
segurança, no liberalismo, se resumia a segurança pessoal e jurídica, de forma a proteger a
esfera individual de liberdade de cada indivíduo. Tinha-se, de um lado, o Estado com o dever de
28
se abster das ingerências abusivas que marcaram o Ancien régime e, do outro lado, o indivíduo,
que só estaria obrigado a obedecer a lei cuja elaboração resultava da vontade geral. Isso era
liberdade (ROUSSEAU, 2006, p.26) e era segurança.
Não poderia, pois, haver liberdade sem segurança, simplesmente por esta ser condição
sine qua non para aquela. Daí se ressaltar, no liberalismo, o estreito e indissociável vínculo
entre os dois valores, chegando Dallari (1985, p.33) a dizer que “os direitos relativos à
segurança coincidem, muitas vezes, com os que se referem à liberdade”. Tal entendimento é
compartilhado por Israel (2005, p.434), para quem a segurança constitui desmembramento da
liberdade individual, sendo esta, em sua acepção mais estrita, analisada como aquela.
Assim é que o art. 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, instituída pela
Assembléia Nacional de França, em 1789, assere que “o fim de toda associação política é a
conservação dos direitos naturais e imprescindíveis do homem. Esses direitos são a liberdade, a
propriedade, a segurança e a resistência à opressão.” (MIRANDA, 1990, p.57). Um pouco
antes, a Declaração de Direitos de Virgínia, de 1776, previa o seguinte:
Secção I – Todos os homens são por natureza igualmente livres e independentes e
têm certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade não podem,
por nenhuma forma, privar ou despojar a sua posterioridade, nomeadamente o gozo
da vida e da liberdade, com os meios de adquirir e possuir a propriedade e procurar e
obter felicidade e segurança.
Secção II – O governo existe e deve existir para o bem comum, a protecção e a
segurança do povo, nação ou comunidade; de todos os modos e formas de governo o
melhor é o que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança e está
mais eficazmente organizado contra o perigo de má administração; e, sempre que
qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins, a maioria da
comunidade tem o direito incontestável, inalienável e irrevogável de o reformar,
modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral.
(MIRANDA, 1990, p.31-32).
As duas declarações influenciaram politicamente o constitucionalismo de vários países
em diferentes continentes, no que concerne à constitucionalização dos direitos humanos.
No contexto do Estado Liberal, portanto, o conceito de segurança pode ser encontrado,
ainda que genericamente, no art. 8º da Constituição francesa de 1793, segundo o qual “a
segurança consiste na protecção concedida pela sociedade a cada um dos seus membros para a
conservação da sua pessoa, dos seus direitos e das suas propriedades.” (MIRANDA, 1990,
p.76). Repare-se que no dispositivo a palavra sociedade – e não Estado – é empregada de forma
a deixar transparecer o pensamento liberal que pregava a nítida separação entre sociedade e
Estado, com a valorização, em primeiro lugar, do homem-singular, titular das liberdades
29
abstratas, ou “homem da sociedade mecanicista que compõe a chamada sociedade civil.”
(BONAVIDES, 1993, p.475-476).
Segurança é, pois, na fase do Estado Liberal – este forjado na esteira do iluminismo de
cunho jusnaturalista – um direito humano de primeira geração ou dimensão, ao lado de outros
individuais ou civis e políticos, tais como vida, liberdade (inclusive liberdade de consciência e
de expressão), igualdade e propriedade; direitos, enfim, de resistência ou de oposição perante o
Estado (BONAVIDES, 1993, p.475), ou em outras palavras, “direitos que protegem o indivíduo
contra o arbítrio ou abuso do Estado.” (LOPES, 2001, p.63). Correspondia, pois, ao que Jellinek
chama de status negativus, entendido no sentido de que o homem e sua esfera individual de
liberdade estão protegidos e imunes ao jus imperii do Estado, ou melhor, às intervenções
estatais consideradas abusivas e inconstitucionais.
2.1.2 Segurança no Estado Social
Efetivamente, não há de se falar em direitos fundamentais sem a presença do Estado, da
noção de indivíduo e da consagração escrita de um texto com superioridade normativa em
relação às leis em vigência num determinado território. Uma vez alcançado, mediante
positivação, um certo nível de liberdade a que se pretendia, igualdade e justiça passaram a ser os
grandes anseios sociais, principalmente por parte dos segmentos populares não burgueses.
O Estado liberal, abstencionista, não evitou o surgimento, ao longo do tempo, no seio
social, de desproporções as mais diversas, como salários aviltantes, jornadas excessivas de
trabalho e trabalho infantil, todas fruto da desigualdade entre classes sociais. Esse estado de
coisas ensejou crescentes conflitos sociais que desestabilizaram o ordenamento liberal, tendo o
capitalismo e a burguesia como alvos principais das críticas. (BONAVIDES, 2004, p.42-43).
Os arroubos revolucionários impulsionados pelos conflitos sociais abriram caminho para
o advento de outro paradigma de Estado de Direito, então notoriamente intervencionista,
surgido, como observa Bonavides (2004, p.43), da “proposta de um modelo de estado
constitucional em que o teor social das instituições se tornava a nota mais predominante de sua
caracterização.” Tal modelo foi chamado de Estado Social, cuja gênese é comentada por Lopes
(2001, p.64):
O desenvolvimento industrial e o aparecimento de um proletariado, sujeito ao
domínio da burguesia capitalista, deram origem a novas relações intersubjetivas,
propiciando o surgimento de novos direitos fundamentais – os econômicos e sociais
30
e, paralelamente, a transformação do conteúdo dos anteriores. Este processo
de ‘socialização’ do Estado foi possível graças às novas ideologias antiliberais que
deflagraram os movimentos marxistas e a social-democracia na Alemanha,
defensoras de um Estado capaz de garantir o equilíbrio social e econômico da
sociedade. (Grifou-se).
O equilíbrio a que se refere Lopes (2001, p.64) só é possível se se proteger tanto o
indivíduo como o meio em que este se desenvolve na qualidade de ser social, aspecto que fez
reaproximar, ou “reconciliar”, como diz Bonavides (1993, p.205-206), o Estado com a
sociedade, sendo que com maior ênfase para esta, ou melhor, para os indivíduos em sociedade
foi que as normas constitucionais se voltaram. Houve, desta forma, a positivação dos direitos de
segunda geração ou dimensão, os chamados direitos de igualdade (os direitos sociais,
econômicos e culturais, entre eles o direito ao trabalho, à saúde, à educação, à cultura e ao
lazer), que correspondem à categoria do status positivus proposta por Jellinek, com arrimo na
qual, como entende Sarlet (2005, p.172), para o indivíduo está juridicamente assegurada a
possibilidade de ele se utilizar das instituições estatais e exigir do Estado determinadas ações
positivas.
Desde o segundo Estado (constitucional) de Direito ou Estado Social, a segurança como
gênero, até então compreendida como sinônimo de direito à segurança pessoal e jurídica em
face do Estado, passa a ser redimensionada de forma a agregar um novo conteúdo, isto é, uma
nova modalidade ou espécie: a segurança social, sentimento muito bem assimilado por Ubillos
(2003, p.303), quando acentua que “la posición de superioridad y la consiguiente propensión al
abuso o la arbitrariedad no es uma característica exclusiva del poder público.”
É de se ressaltar por fim que, paralela e expressamente, surge, erigido à posição de norma
constitucional, no âmbito do ordenamento jurídico da República da Alemanha, outro
desdobramento da cláusula geral de segurança: a segurança pública, com duas citações na
Constituição de Weimar, de 1919, uma delas (a do art. 123) inserida no catálogo de “Direitos e
deveres fundamentais dos alemães”, a saber:
31
Art. 123. Todos os alemães têm o direito de se reunir pacificamente e sem armas
sem declaração prévia ou autorização especial. Mas as reuniões ao ar livre podem
carecer, se assim dispuser lei do Império, de declaração prévia e ser proibidas em
caso de perigo imediato para a segurança pública.
Art. 9º. Verificando-se a necessidades de estabelecimento de regras uniformes, o
Império tem o direito de legislar sobre: 1º - O bem-estar público; 2º - A proteção da
ordem e da segurança pública. (MIRANDA, 1990, p.272-285) (Grifou-se).
2.1.3 Segurança no Estado Democrático
No afã (ou pretexto?) de assegurar direitos de igualdade e sanar mazelas sociais, como as
que surgiram durante o Estado Liberal, o intervencionismo estatal, por obra de algumas
ideologias ou de governos, ultrapassou limites e (re)invadiu, mediante abusos e preconceitos,
esferas pessoais de liberdade, tais como a liberdade de pensamento, expressão e crença das
pessoas, fazendo crer a necessidade de existir um ponto de equilíbrio entre o Estado Liberal e o
Estado Social, sentimento esse bem traduzido pelas palavras de Paul Valéry, segundo o qual “se
o Estado é forte, esmaga-nos; se é fraco, perecemos”.
Os efeitos da Segunda Grande Guerra reconduzem as sociedades à senda de respeito aos
direitos humanos, com um redesenho da moldura de Estado, cuja nova versão ganha a
qualificação de Democrático e traduz, pelo menos teoricamente, a representação de equilíbrio
entre o Estado abstencionista, protetor das liberdades individuais, e o Estado intervencionista,
promovente (ao menos teoricamente) da igualdade material mediante prestações positivas e sem
invasões injustificadas às esferas de liberdade individual.
Tem o Estado Democrático um traço de universalidade, voltado para todos os direitos
fundamentais concentrados no binômio liberdade e justiça (BONAVIDES, 2004, p.48), aspecto
que corresponde ao surgimento da terceira geração (ou dimensão) dos direitos humanos, assim
entendidos como o direito à paz
8
, ao desenvolvimento, à livre determinação dos povos, a um
meio ambiente sadio e ecologicamente equilibrado, ao patrimônio comum da humanidade e os
direitos relacionados ao progresso das ciências biológicas, como o da não-manipulação
genética.
8
Embora o professor Paulo Bonavides tenha se referido ao direito humano à paz como de 3ª geração/dimensão,
defende-o, agora, como de 5ª geração/dimensão. Eis um trecho de sua tese: “Subimos agora o derradeiro degrau
na ascensão ao patamar onde, desde já, é possível proclamar também, em regiões teóricas, o direito à paz por
direito de quinta geração. [...] A ética social da contemporaneidade cultiva a pedagogia da paz. Impulsionada do
mais alto sentimento de humanismo, ela manda abençoar os pacificadores, aqueles que se afervoram por
instaurar a concórdia sobre sobre a face da terra até convertê-la em direito universal, em direito do gênero
humano e, por conseguinte, no mais consagrado direito do contrato social.” (BONAVIDES, 2007, p.486-489).
32
Erguido sob uma nova ordem de valores voltada para a universalização dos direitos
humanos – daí a proposta da Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948, originada
da Carta das Nações Unidas – o Estado Democrático, ou terceiro Estado (constitucional) de
Direito, também chamado Estado constitucional da Democracia participativa (BONAVIDES,
2004, p.47), passa a ser o modelo perseguido pela maioria dos países ocidentais, inclusive pela
República Federativa do Brasil.
Para configuração do Estado Democrático, no entanto, a democracia deve estar presente
no dia-a-dia da sociedade e ser encarada como um projeto indivisível que exige, conforme
Boron (1994, p.8), regras certas e resultados incertos, não necessariamente favoráveis aos
interesses dominantes. Isso requer liberdade e segurança.
Segurança, então, passa a ser condição e, ao mesmo tempo, corolário do Estado
Democrático de Direito; condição sine qua non para assegurar os valores primários que
informam o ordenamento jurídico. O seu sentido lato contempla bens jurídicos, direitos e
garantias fundamentais. Segurança passa a ser algo pluridimensionado, ou seja, manifestado
pelos modos-de-ser já referidos, e também por outras modalidades, como a biossegurança e a
segurança alimentar, que serão tratadas a seguir, especialmente a segurança pública (esta em
capítulos próprios).
2.2 Segurança jurídica
À luz do moderno pensamento constitucional, um Estado Democrático de Direito é
também um Estado da segurança jurídica, sendo esta princípio basilar daquele. Sem segurança
jurídica, não há falar em proteção e exigibilidade dos direitos fundamentais, consistindo,
segundo José Afonso da Silva (2006, p.777), “na garantia de estabilidade e de certeza dos
negócios jurídicos, de sorte que as pessoas saibam de antemão que, uma vez envolvidas em
determinada relação jurídica, esta mantém-se estável, mesmo se se modificar a base legal sob a
qual se estabeleceu.” Trata-se, pois, de um princípio-garantia que se traduz “pelo direito à
estabilidade das situações jurídicas.” (ISRAEL, 2005, p.436).
Por isso é que a segurança jurídica chega a ser considerada subprincípio concretizador do
princípio estruturante do Estado de Direito (SARLET, 2006b, p.10), contemplando ela as ideias
da proteção da confiança e da proibição de retrocesso, nas palavras de Tavares (2006, p.651).
33
São desdobramentos do princípio da segurança jurídica vários direitos e garantias
constantes do art. 5º da Constituição Federal, dentre eles o direito de ninguém ser obrigado a
fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (II); a garantia do direito
adquirido, da coisa julgada e do ato jurídico perfeito (XXXVI); os princípios da legalidade e
anterioridade em matéria penal (XXXIX); a irretroatividade da lei penal mais gravosa (XL);
individualização e limitação das penas (XLV a XLVIII); restrições à extradição (LI e LII); e os
princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa (LIV e LV). Na seara
penal, institutos como o da prescrição também são manifestações do princípio da segurança
jurídica.
O constituinte brasileiro de 1988 não se referiu expressamente a tal princípio, fato que não
nega a sua existência, merecendo referência aos ensinamentos de Borges (2002, p.1-2), quando
explica:
Segurança jurídica é um atributo que convém tanto às normas jurídicas, quanto à
conduta humana, fulcrada em normas jurídico-positivas; normas asseguradoras
desse valor – e já dizê-las informadas pela segurança jurídica. Nessa região
normativa material contudo não costumam as normas positivas enunciá-la tout
court, como se assim estivesse inspirado e formulado o princípio: ‘É assegurada a
segurança jurídica’. Nesse enunciado, a segurança jurídica soaria quase como uma
vã tautologia. Noutras palavras e mais claramente: a segurança postula, para a sua
efetividade, uma especificação, uma determinação dos critérios preservadores dela
própria, no interior do ordenamento jurídico.
Vale ressaltar que a ausência de manifestação do constituinte a respeito da segurança
jurídica não ensejou embaraço nem lacuna alguma no ordenamento jurídico, uma vez que há
previsão para direitos e garantias não expressos, implícitos, portanto decorrentes do regime e
dos princípios adotados pela Constituição Federal, conforme disciplina o art. 5º, § 2º.
2.3 Segurança nacional
Segurança nacional traduz-se na defesa da Pátria, na proteção do país e nação contra
ameaças e ataques internos ou externos. Na lição de Fragoso (1983), ela se refere à nação como
um todo, à própria existência, independência e soberania do Estado. Não se confunde com a
segurança de um governo ou da ordem política e social, tampouco com a doutrina da segurança
nacional levada a cabo por governos autoritários ou pouco democráticos que, não fazendo
34
distinção entre tipos de criminalidade
9
, possibilitaram inúmeras violações aos direitos humanos,
por fatos que em nada se relacionavam com a segurança nacional.
A defesa nacional é exercida pelas forças armadas nos âmbitos interno e externo. No
plano internacional, ela pode ocorrer com o apoio de exércitos supranacionais. Segurança
nacional diz diretamente com as complexas relações entre os países, em tempo de paz ou de
guerra.
Cabe aqui dizer que, se a guerra é tão antiga quanto o homem, a paz é que se afigura
como algo moderno, que se qualificou na esteira iluminista e com Kant, segundo observação de
Lima (2004, p.145-150), o qual atribui a Kant a entronização da ideia de uma liga de nações
com o objetivo de chegar, mediante certas condições, à “paz perpétua”. Uma das condições é
um ordenamento cosmopolita ante a “liberdade bárbara” dos Estados. Acerca desta liberdade,
Kant (2002, p.32) averba a noção de que,
Mediante o emprego de todas as forças da comunidade em armamentos contra os
outros, por meio das devastações que a guerra prepara e, mais / ainda, em virtude da
necessidade de para ela se manterem permanentemente preparados, se impede o
pleno desabrochamento das disposições naturais no seu avanço; em contrapartida,
porém, também os males daí provenientes constrangem a nossa espécie a encontrar
na resistência mútua dos diversos Estados, saudável em si e nascida da sua
liberdade, uma lei de equilíbrio e um poder unificado que lhe dá força; por
conseguinte, a introduzir um estado civil mundial de pública segurança estatal,
que não é desprovido de perigos, a fim de as forças da humanidade não dormitarem,
mas que também não existe sem um princípio da igualdade das suas recíprocas
acções e reacções, a fim de não se destruírem entre si. (Grifou-se).
A atual Lei de Segurança Nacional do Brasil, a nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983,
significou um avanço se comparada à legislação anterior, datada de 1967, apesar de algumas
imperfeições, cuja abordagem será realizada, mesmo que de forma superficial, no subtópico a
seguir.
2.3.1 Segurança nacional e terrorismo
Não é só a guerra caracterizada pelas lutas armadas entre nações, ou a ameaça dela, que
desafia a paz, a segurança nacional de determinados países, o Direito e os organismos
internacionais que lidam com a segurança externa. Obviamente, a guerra perpetrada pelo
9
Feliciano (2005, p.2) expressa que “consoante a melhor doutrina, os crimes comuns vulneram interesses e bens
jurídicos do indivíduo, da família, da sociedade civil ou do Estado (personalizado internamente através dos
entes da Administração Direta e Indireta: União, Estados, Municípios, autarquias). Opõem aos crimes
políticos, que lesam ou expõem a perigo de lesão a segurança interna ou externa do Estado, ou a própria
personalidade deste.”
35
terrorismo também o faz e pode dar ensejo ao exercício do direito de autodefesa por parte do
Estado agredido. Foi o que ocorreu no caso dos atentados de 11 de setembro de 2001 contra os
Estados Unidos. Eis a redação do art. 51 da Carta das Nações Unidas de 1945:
Nada na presente Carta prejudicará o direito inerente de legítima defesa individual
ou colectiva, no caso de ocorrer um ataque armado contra um membro das Nações
Unidas, até que o Conselho de Segurança tenha tomado as medidas necessárias para
a manutenção da paz e da segurança internacionais. As medidas tomadas pelos
membros no exercício desse direito de legítima defesa serão comunicadas
imediatamente ao Conselho de Segurança e não deverão, de modo algum, atingir a
autoridade e a responsabilidade que a presente Carta atribui ao Conselho para levar a
efeito, em qualquer momento, a acção que julgar necessária à manutenção ou ao
restabelecimento da paz e da segurança internacionais. (CARTA..., 2008, on line).
Fala-se hoje em diferentes tipos de terrorismo: o político ou “de Estado”, aquele que se
insurge contra a ordem político-institucional; e o terrorismo “social”, que, não tendo um sentido
estritamente político, manifesta-se em forma de terrorismo religioso, ambiental, humanitário,
econômico, dentre outras que possam ocorrer na sociedade global pós-moderna. (FELICIANO,
2005, p.3). Todas as formas, entretanto, têm algo em comum: o apelo reivindicatório radical
acompanhado da convicção ideológica, ambos exercitados mediante imposição do medo, da
surpresa, do risco, da violência e da morte.
Fragoso (1983, p.5), constatando a imperfeição do atual art. 20 da Lei de Segurança
Nacional, propôs, no entanto sem obter êxito, uma redação nos seguintes termos:
Praticar atentado contra a vida, a integridade corporal ou a liberdade; causar
destruição e dano, através de meios capazes de provocar perigo comum ou que
conduzam à difusão de enfermidades, para a criação real ou potencial de intimidação
generalizada, com finalidade político-social. Pena: reclusão de 3 a 10 anos. § 1º -
Nas mesmas penas incorre quem pratica roubo ou extorsão, para a obtenção de
fundos destinados à manutenção de organizações políticas clandestinas ou
subversivas. § 2º - Se resulta lesão corporal grave, a pena pode ser aumentada até o
dobro; se resulta morte, pode ser a pena aumentada até o triplo.
A sugestão de Fragoso (1983, p.5) se justifica pelo fato de que nem a Constituição nem a
Lei de Segurança Nacional brasileiras definiram o que é terrorismo, apresentando, nos dois
casos, referência de forma vaga, fato que tem merecido crítica doutrinária.
2.3.2 Segurança nacional e riquezas naturais
Nem só as guerras e o terrorismo são as preocupações que acometem a segurança
nacional de um país. Com efeito, qualquer nação que seja detentora de vastas riquezas naturais,
notadamente grandes fontes energéticas e megadiversidade mineral, animal e vegetal, passa a
36
ser alvo de graves interesses estrangeiros, uns manifestados, outros latentes e até inconfessáveis,
constituindo, assim, verdadeira ameaça, ainda que intrínseca, à soberania.
Nesta hipótese (como potencial vítima) se inclui o Brasil, que possui na Bacia e Floresta
Amazônicas imensuráveis riquezas, todas elas importantes para a consolidação da sua soberania
e para o desenvolvimento da sua economia e ciência, haja vista o que ainda há por ser explorado
racionalmente. Sabe-se que a Floresta Amazônica, visada não só pela biopirataria, desperta
especulações no plano internacional, fato que, por si, deixa em alerta os órgãos de inteligência e
de defesa nacional e, de um modo geral, a sociedade e os poderes públicos brasileiros.
2.4 Segurança social
Com a propriedade privada, tida no liberalismo como um direito sagrado, inviolável e
absoluto, surgiu a divisão de classes: de um lado, quem detinha meios de produção; do outro, a
força de trabalho. Fatores como a Revolução Industrial, a ascensão do capitalismo, a
mecanização da mão-de-obra e a concentração demográfica em grandes centros, dentre outros,
concorreram para o crescimento da desigualdade social no mundo.
Diretamente proporcional ao crescimento da desigualdade social foi a exigência que se
fez ao Estado, agora de feição social, no sentido de acudir, amparar e assegurar meios para a
manutenção das necessidades básicas das pessoas que, não integrando as camadas
economicamente privilegiadas da população, sobretudo dos países pobres e em
desenvolvimento, viam-se, por alguma adversidade (doença, desemprego, invalidez, morte etc.),
impossibilitadas de fazê-lo.
Segurança social, também chamada de seguridade social
10
, é um sistema estatal de
proteção dos indivíduos em face das contingências que os impedem de prover, temporária ou
permanentemente, suas necessidades pessoais básicas e de suas famílias, visando assegurar
direitos relativos à saúde, à previdência e à assistência social. (MARTINS, 2004, p.44). Em
outras palavras: é um instrumento protetor para garantia do “bem-estar material, moral e
espiritual de todos os indivíduos”, com vistas a abolir “o estado de necessidade social em que se
possam encontrar.” (PASTOR, p.60 apud CORREIA; CORREIA, 2002, p.16).
10
A Constituição brasileira de 1988 se refere a “seguridade social” (arts. 194 a 204) e tal expressão é a que mais
frequentemente aparece na doutrina específica para o assunto, havendo autores que optam pela expressão
“segurança social”, que é a utilizada em Portugal.
37
Em países como o Brasil, a previdência social exige contribuição pecuniária sem a qual
segurados ou dependentes não teriam direito, nem sequer chegariam à condição de segurados ou
dependentes, a aposentadorias ou pensões para cobertura daquelas contingências decorrentes de
desemprego, gravidez, invalidez etc. Por outro lado, não se exige pagamento quando se tratam
de serviços estatais de assistência social, realizados em forma da destinação de benefícios
11
aos
hipossuficientes, e de saúde, estes consistentes na prevenção e tratamento de enfermidades.
2.5 Segurança no trabalho
Com a Revolução Industrial e a crescente utilização de máquinas na indústria,
aumentaram os casos de doenças e acidentes decorrentes do trabalho. O Tratado de Versalhes
(de 1919), ao criar a Organização Internacional do Trabalho-OIT, incluiu nas suas atribuições
zelar pela proteção do trabalhador contra doenças e acidentes que tais. Pretendia-se, pois,
eliminar, neutralizar ou reduzir os riscos à saúde do trabalhador, por intermédio de medidas
apropriadas de segurança e medicina (antes a expressão era “segurança e higiene”) do trabalho.
(SÜSSEKIND, 2004, p.256).
Entende-se por segurança do trabalho o conjunto de ações preventivas destinadas a
resguardar a higidez do trabalhador. Compete, pois, ao empregador, proporcionar ao empregado
um ambiente de trabalho em boas condições de segurança e higiene, sendo obrigação de ambos
o cumprimento das normas nessa seara, que são de ordem pública e fazem parte do chamado
Direito Tutelar do Trabalho.
12
(JORGE NETO; CAVALCANTE, 2005, p.792). Uma delas diz
respeito ao equipamento de proteção individual para determinadas atividades. Não basta o
empregador fornecê-lo. Tem que fiscalizar sua utilização e substituí-lo quando necessário. Por
outro lado, se o funcionário não o utilizar, estará incorrendo em falta grave (arts. 157 e ss. da
Consolidação das Leis do Trabalho).
A Constituição de 1988 prevê como direito fundamental social dos trabalhadores urbanos
e rurais a “redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e
segurança.” (art. 7º, XXII). A legislação infraconstitucional específica e uma série de
11
Segundo Correia (2002, p.20), “na assistência social e na saúde, em particular, destina-se (o benefício) não só
a programas de recuperação, mas também e principalmente à prevenção. A forma de intervenção, seja ela
recuperadora ou remediadora, na assistência social, dá-se por meio de: serviços, tais como assistência social,
consulta médica; prestações em dinheiro, como, por exemplo, a renda mínima ou, em sua versão mais recente,
‘alocação universal’...; utilidade – distribuição de remédios, leite etc.”
12
“É a parte do Direito do Trabalho composta de regras que podem implicar direitos e obrigações entre
empregadores e empregados, mas nas quais predominam deveres dos últimos e, excepcionalmente, dos
primeiros, perante o Estado.” (MAGANO, p. 10 apud JORGE NETO; CAVALCANTE, 2005, p.792).
38
convenções internacionais ratificadas pelo Brasil completam o ordenamento jurídico sobre a
matéria.
São órgãos de Segurança e Medicina do Trabalho nas empresas: as comissões internas de
prevenção de acidentes (CIPAs), compostas de representantes de empregadores e empregados, a
quem compete, basicamente, apontar fatores de risco nos ambientes de trabalho e solicitar
medidas a fim de evitar os acidentes, discutindo e orientando sobre a prevenção destes; e, de
acordo com o grau de risco da atividade principal e o número total de empregados da empresa,
os serviços especializados em Engenharia de Segurança e Medicina do Trabalho (SESMTs),
formados por pessoal especializado (técnico e engenheiro de segurança do trabalho; médico,
enfermeiro e auxiliar de enfermagem do trabalho), cujo objetivo é, também, voltado para a
proteção e integridade do trabalhador no ambiente profissional.
2.6 Biossegurança e segurança alimentar
Entende-se por biotecnologia, segundo a Convenção sobre Diversidade Biológica da
ONU (2008, on line), “qualquer aplicação tecnológica que utilize sistemas biológicos,
organismos vivos, ou seus derivados, para fabricar ou modificar produtos ou processos para
utilização específica.” Seu progresso revolucionou as ciências biomédicas e trouxe inúmeros
benefícios à humanidade, mas também riscos, impactos, dúvidas e perplexidades. Suscita,
ainda, graves indagações que formam ou compõem os objetos das disciplinas da Bioética e do
Biodireito, e que reinstalam o secular debate entre ciência e religião. Indagações relativas a
temas como vida (o que é?; quando começa?; quando termina?), morte, reprodução e genoma
humanos, patrimônio genético, pesquisas com células-tronco embrionárias, experiências com
seres humanos, criação de organismos transgênicos, clonagem de seres etc. A medida desse
estado de coisas é dada por Diniz (2006, p.XXIII), para quem
Os avanços tecnológicos na seara da medicina e da saúde, o anúncio de resultados
fantásticos da biologia molecular e da engenharia genética, inclusive no meio
ambiente, e as novas práticas biomédicas resultantes do descobrimento do DNA
recombinante, além de colocar em risco o futuro da humanidade, por conter, em si
mesmos, os poderes de criação e destruição da vida e da natureza, dão ensejo à
exploração econômica, ante o irresistível fascínio de desvendar os mistérios que
desafiam a argúcia da ciência, e à imposição de uma perigosa e injustificada
autoridade científica, que podem gerar resultados esteticamente desastrosos e
problemas ético-jurídicos.
E frente a ele (ao estado de coisas) a sociedade, o Estado e a ciência não podem prescindir
de segurança, daí, numa junção semântica, a biossegurança. Trata-se de um conjunto de ações
em prol da “prevenção, minimização ou eliminação de riscos inerentes às atividades de
39
pesquisa, produção, ensino, desenvolvimento tecnológico e prestação de serviços, visando à
saúde do homem, dos animais, a preservação do meio ambiente e a qualidade dos resultados.”
(TEIXEIRA; VALLE, 1996).
A Lei de Biossegurança brasileira é a nº 11.105/2005, cuja constitucionalidade, referente
ao menos em relação ao art. 5º, foi recentemente questionada junto ao Supremo Tribunal
Federal, que, em decisão plenária e por maioria, posicionou-se favorável às pesquisas com
células-tronco embrionárias.
13
Dada a relevância do tema, centrado na discussão sobre o ponto
inicial da vida humana, a Corte Suprema, antes de iniciar o julgamento, realizou, pela primeira
vez em sua história, e por iniciativa do relator do processo, o ministro Carlos Ayres Britto, uma
audiência pública para discussão do tema, ocasião em que a comunidade científica, religiosa e
outros segmentos da sociedade debateram o assunto. Com tal atitude, já que em uma audiência
pública podem ser colhidas opiniões e impressões contrárias e a favor de assuntos considerados
polêmicos e que interessam à sociedade, a decisão do Pretório Excelso ganhou em legitimidade,
já que a sociedade teve a oportunidade de ser direta e democraticamente ouvida.
Indissociável, sob determinados aspectos, da biossegurança, é outra faceta do gênero
segurança: a segurança alimentar. Comezinho é ter em mente a noção de que não há falar em
direito à vida, nem à saúde, máxime para as camadas populacionais hipossuficientes, sem o
acesso permanente e indiscriminado a uma alimentação saudável, de qualidade e em quantidade
suficiente. Este é o objeto da segurança alimentar e nutricional, cabendo ao Estado promovê-la
mediante políticas públicas e órgãos fiscalizadores.
Realizou-se na Itália, em 1996, sob os auspícios da Organização das Nações Unidas para
a Alimentação e Agricultura (FAO), a Cúpula Mundial de Alimentação. Naquela época,
segundo a Declaração de Roma Sobre a Segurança Alimentar Mundial (2008, on line), mais de
800 milhões de pessoas no mundo não dispunham de alimentos suficientes para a satisfação das
suas necessidades nutricionais básicas. O documento diz, também, que
A pobreza é a maior causa de insegurança alimentar. Um desenvolvimento
sustentável, capaz de erradicá-la, é crucial para melhorar o acesso aos alimentos.
Conflitos, terrorismo, corrupção e degradação do meio ambiente também
contribuem significativamente para a insegurança alimentar. [...] Os alimentos não
devem ser utilizados como um instrumento de pressão política ou econômica.
Reafirmamos a importância da cooperação e solidariedade internacional, bem como
da necessidade de se abster de aplicar medidas unilaterais que não estejam de acordo
13
Cientistas afirmam que tais células têm a capacidade de poder formar qualquer tecido do corpo humano e,
assim, regenerar órgãos, podendo resultar em cura para doenças como diabetes, câncer, mal de Parkinson e
mal de Alzheimer.
40
com o direito internacional e com a Carta das Nações Unidas, e que ponham em
perigo a segurança alimentar.
Foi por ocasião da mesma Cúpula que o Brasil apresentou a seguinte definição de
segurança alimentar:
Segurança Alimentar e Nutricional significa garantir, a todos, condições de acesso a
alimentos básicos de qualidade, em quantidade suficiente, de modo permanente e
sem comprometer o acesso a outras necessidades essenciais, com base em práticas
alimentares saudáveis, contribuindo, assim, para uma existência digna, em um
contexto de desenvolvimento integral da pessoa humana. (RELATÓRIO
NACIONAL BRASILEIRO..., 2008, on line).
Diversos países criaram programas de controle e análise da qualidade e quantidade de
alimentos, e uma das grandes preocupações é o uso abusivo, quiçá criminoso, de agrotóxicos, o
que põe em risco tanto os alimentos de origem vegetal e animal, como também o ar, o solo, a
água e os seres vivos em geral, principalmente o homem. Assim sendo, a relação de
proximidade da segurança alimentar não é só com os direitos à vida, saúde, segurança e
alimentação, mas também com o meio ambiente sadio e equilibrado.
Foi instituído no Brasil, pela Lei nº 11.346/2006, o Sistema Nacional de Segurança
Alimentar e Nutricional (SISAN), cabendo aos Ministérios da Saúde e da Agricultura, Pecuária
e Abastecimento, e à Agência Nacional de Vigilância Sanitária-ANVISA, importantes papéis
para garantia da segurança alimentar e nutricional. A definição retro serviu de base à redação do
art. 3º do mesmo Diploma Legal, cujo art. 4º detalha a abrangência da expressão.
14
Programas oficiais, como merenda escolar, restaurantes populares, hortas comunitárias,
transferências de renda e contra o desperdício de alimentos, no Brasil, e a recente criação de um
banco mundial de amostras de sementes de plantas alimentícias, na Noruega, afora os bancos
alimentares existentes em outros países, podem ser considerados exemplos de ações voltadas ao
direito à segurança alimentar e nutricional.
Portanto, conforme já se disse, inclusive pela própria intitulação deste capítulo, segurança
como gênero é um direito humano pluridimensionado, portanto manifestado genericamente
14
“Art. 4º A segurança alimentar e nutricional abrange: I – a ampliação das condições de acesso aos alimentos
por meio da produção, em especial da agricultura tradicional e familiar, do processamento, da industrialização,
da comercialização, incluindo-se os acordos internacionais, do abastecimento e da distribuição dos alimentos,
incluindo-se a água, bem como da geração de emprego e da redistribuição da renda; II – a conservação da
biodiversidade e a utilização sustentável dos recursos; III – a promoção da saúde, da nutrição e da alimentação
da população, incluindo-se grupos populacionais específicos e populações em situação de vulnerabilidade
social; IV – a produção de conhecimento e o acesso à informação; e VI – a implementação de políticas
públicas e estratégias sustentáveis e participativas de produção, comercialização e consumo de alimentos,
respeitando-se as múltiplas características culturais do País.”
41
através de desdobramentos que encontram nele sua matriz. Ver-se-á, no próximo capítulo, outra
espécie desse mesmo gênero: a segurança pública.
3 SEGURANÇA PÚBLICA: FUNDAMENTO, NATUREZA E
DEFINIÇÃO
Antes de se perquirir sobre natureza e definição da segurança pública, há que se abordar
qual o seu fundamento, quais suas bases teóricas, aspectos que de forma preliminar já se tratou
quando se falou sobre a finalística estatal (capítulo primeiro) e acerca do gênero segurança
(capítulo segundo), do qual deriva a multicitada espécie.
3.1 Duplo fundamento: o monopólio da coação estatal legítima, com crítica
à doutrina da lei e da ordem, e o superprincípio da dignidade humana
Não dirigido pelo instinto animal, senão por faculdades mentais que permitem acumular
conhecimentos, coube ao homem – no dizer de Kant (2002, p.24) – “a invenção do seu
vestuário, da sua proteção, da sua segurança e defesa exteriores (para a qual ela [a natureza] não
lhe deu os cornos do touro, nem as garras do leão, nem os dentes do cão, mas apenas as mãos).”
Segundo a doutrina contratualista, o uso dessas faculdades, na medida e na maneira desejadas
por parte de cada indivíduo, certamente faria imperar a lei do mais forte no seio da convivência
humana, qual ocorre entre os animais selvagens. Para Hobbes, Locke e Rousseau, o que leva as
pessoas a se organizarem em sociedade, saindo do hipotético estado de natureza para o estado
social, civil ou político, é justamente a necessidade de conservação do gênero humano.
Viu-se que ao Estado cumpre garantir, basicamente, condições de vida digna, sendo uma
delas a segurança, razão de ser e obrigação primária dele. Entendimento semelhante vale para a
segurança pública, espécie ou manifestação inconteste daquela.
A preocupação institucionalizada com a segurança pública na Era moderna vem desde o
Estado Liberal, quando na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão se fez constar, no
art. 12, que “a garantia dos direitos do homem e do cidadão carece de uma força pública; esta
força é, pois, instituída para vantagem de todos, e não para a utilidade particular daqueles a
quem é confiada.” (MIRANDA, 1990, p.59). Já pelo art. 55 da Constituição francesa de 1793,
ao Corpo Legislativo competia deliberar, dentre outras matérias, sobre a fixação anual das
43
forças de terra e mar e a respeito das medidas de segurança e de tranquilidade gerais.
(MIRANDA, 1990, p.84).
Só o Estado coage legalmente e esse monopólio legítimo da força não deixa de
fundamentar, não sozinho, a segurança pública. Por outro lado, do mesmo fundamento se utiliza
a chamada doutrina ou corrente da lei e da ordem, movimento que prega uma política criminal
radical quanto ao endurecimento incondicional do sistema penal, o que muitas vezes não
coincide com o verdadeiro sentido da segurança pública.
Criação de tipos penais, a despeito das teorias contemporâneas do Garantismo penal e do
Direito Penal mínimo; aumento das penas e endurecimento dos regimes prisionais,
sobrepujando-se a justiça retributiva em detrimento de uma justiça restaurativa, além de outras
ideias alimentadas sob o discurso do eficientismo penal são a tônica da doutrina da lei e da
ordem. Na esteira dela, segurança pública tende a se reduzir a aparelho policial repressor
desmedido: braço estatal para fazer valer o domínio do Estado sobre a vida e a morte das
pessoas.
Sob o manto da corrente de pensamento em alusão foi que crises ganharam concretude
por via de práticas ilegais caracterizadas pelo uso indiscriminado da violência por parte do
Estado, como mostra a historiografia brasileira e de outras partes do mundo. Os reflexos ou
resquícios atuais dessa corrente podem ser vislumbrados em propostas superficiais, que em nada
resolvem os problemas da segurança pública, como a liberação indiscriminada do comércio de
armas e munições, a instituição da pena de morte e a redução da menoridade penal.
Com efeito, especificamente em relação ao crescimento indiscriminado das penas, ideia
que se afigura corrente no Brasil, como fórmula para conter a criminalidade, é de se atentar que
o quantum da pena abstrata não pode importar mais do que a certeza da punição. Basta analisar,
com Foucault (1993), os furtos que ocorriam na Europa da Idade Média, quando ladrões se
infiltravam em concentrações populares e agiam exatamente por ocasião dos “espetáculos” de
execução de condenados em praça pública. Tinha-se a vã crença de que o suplício e morte
destes serviam de lição a evitar novas infrações. É um paradoxo de ontem que se repete nos dias
atuais, como diz Argüello (2007, p.1), no “desejo de vingança orquestrado pelo velho discurso
da lei e da ordem.”
44
Na senda de crítica a tal discurso, e discorrendo sobre a hipertrofia do Estado penal dos
Estados Unidos, modelo verificável também em vários outros países, Argüello (2007, p.6-23)
aduz o seguinte:
A fim de garantir a contenção das desordens geradas pela exclusão social,
desemprego em massa, imposição do trabalho precário e retração da proteção social
do Estado, utiliza-se amplamente da estratégia de criminalização das classes
potencialmente perigosas. [...] A prisão continua a ser o foco da atenção
governamental da elite política contemporânea. Como os governos só podem
prometer flexibilidade de mão-de-obra, o combate ao crime (a construção de novas
prisões, a redação de novas leis que multiplicam as infrações puníveis com prisão e
a promessa de severidade das condenações) possui um apelo simbólico e aumenta a
popularidade daqueles que as propõem e/ou executam. A ascensão do Estado
mínimo no aspecto econômico e social e do Estado máximo no campo das políticas
de segurança, as quais utilizam o ‘darwinismo social’ como estratégia de controle e
as políticas penais de emergência com base na eficiência penal, instaura um
paradoxo: pretende remediar com mais violência institucional a violência estrutural
brutalmente intensificada pela expulsão massiva de trabalhadores do mercado de
trabalho oficial.
Vasconcelos (2006, p.101) ensina que não é a coação (“ato – emprego da força,
violência”) nem a coatividade (“potência – medo, ameaça”) que asseguram a obrigatoriedade do
Direito. Neste sentido, o melhor Direito é o que dispensa o “apelo acidental à força para fazer-se
valer, consumando-se de modo silencioso e tranqüilo, por ser intrinsecamente justo.”
(VASCONCELOS, 2001, p.15). Não resta dúvida de que, inseridos no vasto universo do
Direito, estão o Estado e a segurança pública. Esta buscará fundamento não só no monopólio
estatal da coação legítima, mas também em um valor
1
corporizado ou consagrado em forma de
princípio enormemente importante para o Direito e a humanidade.
3.1.1 O superprincípio da dignidade humana, com ênfase à necessidade de
autonomia individual
As necessidades são generalizáveis (GUSTIN, 1999, p.23), diferentemente dos interesses
e desejos, que geralmente variam de indivíduo (ou grupo) para outro. Anterior à necessidade de
viver integrado em sociedade, opondo-se à condição de vida segregada, o ser humano, não
fugindo à regra dos demais entes vivos, necessita sobreviver. Daí que a segurança da
sobrevivência dos indivíduos aparece tradicionalmente como a mais fundamental de todas as
necessidades destes.
1
Vasconcelos (2006, p.101), discorrendo sobre o fundamento da norma jurídica, averba: “O que se busca, para
fundamentar a norma jurídica, é um valor, e nunca um desvalor, um conceito geral, e não excepcional” (Grifou-
se). Mutatis mutandis, tal frase serviu de inspiração à sobredita.
45
Várias são as teorias que intentam identificar e hierarquizar os diferentes tipos de
necessidades individuais e coletivas, resultando em diversidade classificatória neste jaez. Um
leque que deve ser estreitado – defende Gustin (1999, p.24) – ao ponto de se chegar apenas a
uma necessidade humana fundamental que, ao longo da história, tenha sido “o fundamento
primordial da tutela jurídica.” Gustin (1999, p.27) diz que tal necessidade, no passado e na
contemporaneidade, é a autonomia. Eis o trecho que sintetiza sua tese:
Por ser distintiva do ser humano, pode-se pressupor que a realização, ou a não
realização das necessidades, poderá afetar, positiva ou negativamente, a plenitude da
pessoa ou das coletividades humanas. Nesse sentido, e seguindo orientações de
Thomson e Añón Roig, pode-se dizer que necessidade é uma situação ou estado de
caráter não intencional e inevitável que se constitui como privação daquilo que é
básico e imprescindível e que coloca a pessoa – individual ou coletiva – em relação
direta com a noção de dano, privação ou sentimento grave, um estado de
degeneração da qualidade de vida humana e de bem-estar que se mantém até que se
obtenha uma satisfação que atue em direção reversa. Como dano, privação ou
sofrimento grave entende-se tudo aquilo que interfere, de forma direta ou indireta,
no plano de vida da pessoa ou do grupo em relação às suas atividades essenciais,
inviabilizando-as ou tornando-as insuficientes. Deve-se, portanto, garantir aos
indivíduos e aos grupos ou coletividades oportunidades que lhes permitam adquirir
capacidades afetivas de minimização de danos, privações ou sofrimentos graves e,
assim, ampliar a potencialidade de atividade criativa. Em face disso, supõe-se que a
pré-condição indispensável para que isso ocorra é desenvolver no ser humano a
condição de autonomia.
Assim entendido, pergunta-se: autonomia condiz com violência e medo? Autonomia
individual ou coletiva pode, no contexto atual, prescindir da segurança pública em países como
o Brasil? Insegurança é compatível com democracia? São indagações que permearão as
discussões daqui em diante, centradas na dignidade humana.
Manter-se seguro é, como dito, uma necessidade básica e comum ao gênero humano. O
homem, ser racional e social, ainda que se fosse propenso à vida completamente isolada de seus
semelhantes, não prescindiria de condições de segurança para a autopreservação. Cite-se, a
modo de exemplo, o personagem Robinson Crusoé
2
ante as intempéries e surpresas da natureza
no pequeno mundo de perigos em que ele, enquanto solitário (portanto isento de qualquer
agressão que pudesse partir de seus semelhantes), habitou por vários anos.
Medo, violência e insegurança são antagônicos à noção de autonomia individual e
coletiva. Estas já não resistem ao império daqueles, que impõem uma lista de interdições
comportamentais as mais diversas, verificáveis no dia-a-dia, como, por exemplo: subversão de
lares em prisões; abstenções de idas e vindas a lugares (deslocamentos, o ir e vir), de porte de
2
Personagem do romance intitulado “A vida e as estranhas aventuras de Robinson Crusoé”, do inglês Daniel
Defoe (1660-1731), publicado em 1719.
46
objetos, de relacionamentos etc. Há até quem dirija levando no automóvel a segunda bolsa que,
contendo alguma quantia em dinheiro, servirá para não frustrar nem irritar o bandido em caso
de assalto. Isto traduz, pois, sensações de medo e de previsibilidade de ocorrências delituosas,
contrariando o sentido da liberdade e da autonomia das pessoas. Para Montesquieu (1999,
p.167), “a liberdade política em um cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que provém da
convicção que cada um tem da sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo
seja tal que cada cidadão não possa temer outro.”
Continua atual a seguinte indagação de Rousseau (2006, p.13): “Quando um bandido me
ataca num canto do bosque, não só preciso forçosamente entregar-lhe minha bolsa, mas
também, caso pudesse salvá-la, estaria obrigado, em sã consciência, a entregá-la?” Ora, mais
que uma questão de ética universal (não faças a outrem aquilo que não queres que te façam), a
resposta negativa a tal pergunta significa contrariar o preceito básico dar a cada um o que é seu,
de Ulpiano, que traduz o valor justiça subjetiva. A propósito, Reale (2002, p.376) adverte: “o
seu de cada um somente logra sentido na totalidade de uma estrutura na qual se correlacionem,
deste ou daquele modo, o todo e as partes.” Portanto, uma resposta negativa àquela indagação
importaria, também, atentar contra a ordem social justa (justiça objetiva), “resultante de
exigências transpessoais imanentes ao processo do viver coletivo.” (REALE, 2002, p.376).
Injustiça, pois, é alguém surripiar o que é alheio, assim como atentar contra outros bens
individuais, coletivos ou difusos. Logo, a segurança pública existe e se fundamenta na
necessidade geral de se garantir às pessoas dignidade e autonomia sem as quais não farão elas
uso dos bens jurídicos e direitos humanos constitucional e legalmente tutelados, como vida,
liberdade (desde a de ir e vir, à liberdade de dispor da propriedade), saúde (integridade física e
mental), paz e democracia. Afinal, o homem não quer apenas viver, mas viver bem – diz o
pensamento aristolélico.
Sem autonomia não há falar em dignidade humana, porque ela está no núcleo do super-
princípio informador da construção material dos direitos fundamentais. Sarlet (2005, p.114)
observa que a concepção kantiana de dignidade parte da autonomia ética do ser humano,
considerada “como fundamento da dignidade do homem, além de sustentar que o ser humano (o
indivíduo) não pode ser tratado – nem por ele próprio – como mero objeto.”
47
O principal – não o único
3
– referencial para a constituição material de direitos
fundamentais é o princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, de positivação
relativamente recente, mas de origem remota. Identificado com a doutrina jusnaturalista, o ideal
de valor da pessoa humana remonta ao pensamento clássico estóico e à ideia cristã segundo a
qual o homem fora criado à imagem e semelhança de Deus.
Além do componente natural, elemento integrante e irrenunciável da natureza humana,
cujo núcleo reside no respeito à autodeterminação e em não ser a pessoa humana tratada como
objeto, como se pode inferir do art. 1º da Declaração Universal da ONU, de 1948, fato do qual
se pressupõe liberdade e igualdade, admite-se, na compreensão da dignidade da pessoa humana,
um componente cultural, “fruto do trabalho de diversas gerações e da humanidade em seu todo”
(SARLET, 2005, p.117), que complementa e interage com aquele.
Dignidade é expressão vaga e imprecisa, porém real, porquanto identificável se afrontada,
motivo pelo qual é chamada de “categoria axiológica aberta” (SARLET, 2005, p.115), sentido
compatível com a dinâmica do Direito e das sociedades democráticas atuais. Afirma Sarlet
(2005, p.118) que um ataque ao princípio em alusão atinge a dignidade de pessoa ou de pessoas
determinadas, nunca a dignidade em abstrato, podendo ser defendida a ideia de que existe uma
dimensão comunitária ou social da dignidade da pessoa humana, embora isto não importe dizer
que a dignidade da comunidade valha mais do que a pessoal.
Com relação ao conteúdo, pode-se garantir, na esteira de Sarlet, que o princípio da
dignidade da pessoa humana privilegia: o respeito e proteção à integridade física do indivíduo
(proibição da tortura, das penas corporais e de morte, da utilização do homem como cobaia, da
utilização de detector de mentiras em investigações etc); a oferta de condições materiais de vida
justas e adequadas ao indivíduo e sua família (direitos sociais, do trabalho e de seguridade); e a
isonomia dos seres humanos (repúdio à escravidão, às perseguições ideológicas, à
discriminação racial). Importa, ainda, na garantia de identidade, na liberdade de consciência, de
pensamento e de culto, bem como na proteção à intimidade, honra, vida privada etc.
Considerado um superprincípio fundamental, a dignidade da pessoa humana é limite e
tarefa dos poderes estatais e, por ser um valor-guia da ordem constitucional, pontifica a
3
Sarlet (2005, p.110-127) discorda da tese lusitana segundo a qual todos os direitos fundamentais radicam ou
são concreções do princípio da dignidade da pessoa humana. Ilustrando a asserção, enumera alguns exemplos
extraídos da CF/88: os incisos XVIII, XXI, XXV, XXVIII, XXIX, XXXI e XXXVIII do Art. 5º, e os XI,
XXVI e XXIX do Art. 7º.
48
hierarquia axiológico-valorativa entre os princípios constitucionais (SARLET, 2005, p.122),
constituindo-se em valor jurídico fundamental da sociedade, de forma a cumprir o papel de
referência integradora e hermenêutica no ordenamento jurídico, sendo, portanto, limite material
ao poder de reforma constitucional, com função lex generalis e capacidade normogenética.
Não à toa, pois, se considera o princípio sob escólio como fundamento de todo o sistema
dos direitos fundamentais, já que estes constituem “exigências, concretizações e
desdobramentos da dignidade da pessoa humana” (SARLET, 2005, p.125), devendo ser
interpretados tendo aquele como referencial.
3.2 Natureza e definição
A palavra natureza deriva do latim natus, do verbo nascor (ALONSO, 2005, p.417), e
possui alguns significados. Um deles diz respeito à essência ou condição própria de um ser. Na
lição de Vasconcelos (2006, p.49-50), as coisas se apresentam como essência (razão de ser) ou
como existência (modo de ser). A essência, imutável, além de condicionar o existente, que
existe em razão dela, identifica e distingue a coisa das demais. Identificando-a e a distinguindo,
chega-se a sua definição.
Em relação à segurança pública, é possível identificar traços caracterizadores que,
distinguindo-a de outros campos de atuação humana e estatal, facilitam o caminho a uma
definição. O primeiro deles diz respeito à fonte, isto é, de onde nasce a segurança pública.
Como não poderia deixar de ser, na qualidade de serviço público essencial, ela provém do
Estado, sendo função primária deste, materializada por meio de um conjunto de atividades
desenvolvidas por órgãos públicos. O segundo reside na finalidade: ela não encontra outra razão
de ser senão para assegurar certos bens jurídicos e direitos fundamentais. Essas características,
entretanto, se mostram insuficientes para distingui-la, por exemplo, da saúde pública. Logo,
quem dá o traço distintivo são os bens jurídicos e direitos fundamentais que formam o escopo
da segurança pública. Tem-se, no art. 144 da Constituição de 1988, que:
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
49
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
Basta uma interpretação literal para constatar que ordem pública, incolumidade das
pessoas (físicas e jurídicas) e incolumidade do patrimônio (público e privado) são os bens
jurídicos imediatamente visados pela segurança pública. Vida, saúde, liberdade, paz,
democracia e propriedade, os direitos. Ressalte-se que inegáveis e indissociáveis são as
correlações entre estes e aqueles: ordem pública, com os direitos à paz, à liberdade e à
democracia; o bem jurídico incolumidade das pessoas, com os direitos à vida e saúde; o bem
jurídico incolumidade do patrimônio (material e imaterial)
4
, com os direitos à propriedade
privada, ao patrimônio público e ao patrimônio imaterial.
Para José Afonso da Silva (2006, p.777-278), segurança pública “é manutenção da ordem
pública interna” e “uma atividade de vigilância, prevenção e repressão de condutas delituosas”.
A despeito do respaldo de que é credor esse constitucionalista e ex-secretário de segurança
pública do Estado de São Paulo, conceber segurança pública como unicamente voltada para a
prevenção e repressão às infrações penais não encerra a questão.
Em Jean-Jacques Israel (2005, p.436), segurança pública é sinônimo de “segurança
física”, isto é, “garantia contra as agressões humanas e os desastres naturais, [...] que incumbe, a
título preventivo, a polícia administrativa das pessoas e dos bens, e mais particularmente, no
âmbito da proteção contra os delitos [...], a polícia (organicamente entendida) e a justiça.” Tal
ideia é, sem dúvida, mais ampla do que aquela, porquanto transcende a visão de segurança
pública como atividade unicamente policial e instrumento de efetivação do Direito Penal.
Conquanto em grande parte não deixe de ser isto, é, certamente, algo mais.
Finley (1988, p.129) refere-se à segurança pública como um interesse social de muita
importância. É exatamente no seio social que ela é considerada “um dos serviços estatais mais
importantes e essenciais, provavelmente pela sensação de insegurança decorrente da crescente
criminalidade nas cidades médias e grandes, influindo diretamente no sentimento de liberdade
dos cidadãos.” (SANTIN, 2004, p.24).
4
Referindo-se à acepção jurídica da palavra patrimônio, Rodrigues (2008, p.41-45) aduz que ela “começa a
partir da relação jurídica existente entre o pater, sua família e seus bens”, passa a significar bens em si e,
modernamente, é tida como “uma noção não definida em lei, susceptível de várias aplicações”, por não possuir
definição estática, “prestando-se, desta forma, a ser (dito instituto jurídico) moldado de acordo com cada
contexto.” Assim, “sabe-se, hoje, ser possível ter dentre os bens componentes de um patrimônio, coisas que
não têm, de imediato, um valor pecuniário. Algumas coisas ou direitos são incluídos no patrimônio pela sua
afetação ou finalidade a certas pessoas.”
50
Há pouco foi expresso que quem exerce a segurança pública são órgãos estatais, que
desenvolvem atividades policiais (preventivas e repressivas) e não policiais (preventivas e de
socorro). Trata-se de serviço estatal tripartido. Aliás, Santin (2004, p.119) o descreve como
“serviço primário, essencial, de relevância pública, de uso comum (uti universi), em caráter
geral, beneficiando todos os cidadãos e a população fixa ou flutuante.” Segurança pública é,
pois, um conjunto de atividades assim entendidas: manutenção da ordem pública e prevenção às
infrações penais, investigação destas e atividades de bombeiro de prevenção a sinistros e de
salvamentos.
O conceito a que chega Moreira Neto (2006, p.414) é o de que segurança pública significa
“uma atividade estatal voltada à preservação da ordem pública e, como corolário, da
incolumidade das pessoas e do patrimônio.” Complementando-o, ousa-se, neste ensaio, definir
segurança pública como o conjunto de atividades estatais, preventivas e investigativas das
infrações penais e de socorro às pessoas, que tem por objetivo salvaguardar a incolumidade
destas, o patrimônio e a ordem pública.
3.3 Segurança pública: direito, garantia, bem jurídico, interesse ou política
pública?
A distinção entre direito e garantia não parece tão fácil como se pode imaginar. Canotilho
(1999, p.372) assinala que, “rigorosamente”, as clássicas garantias são também direitos, embora
seja comum se vislumbrar nelas o “caráter instrumental de proteção dos direitos.” Dentre os
doutrinadores brasileiros, um dos primeiros (senão o pioneiro) a propor um corte
epistemológico entre as duas categorias constitucionais foi Rui Barbosa. Sobre a posição deste,
Bonavides (1993, p.444) assinala que
O entendimento de Rui sobre garantias constitucionais estava na linha mais afinada
e congruente do constitucionalismo liberal do século XIX, tanto que, ao interpretar
‘na acepção racional’ o art. 80 da primeira Constituição republicana do Brasil – a de
1891 – declarou ele que as garantias eram ‘condições de proteção à liberdade
individual’, sem as quais, em seus próprios termos, ‘a execução da lei’ ficaria
tolhida, ludibriada e anulada.
Em prédica de Miranda (1998, v.IV, p.88), “clássica e bem actual é a contraposição dos
direitos fundamentais, pela sua estrutura, pela sua natureza e pela sua função, em direitos
propriamente ditos ou direitos e liberdades, por um lado, e garantias, por outro lado.”
Perfazendo a diferenciação, esse autor escreve:
Os direitos representam só por si certos bens, as garantias destinam-se a assegurar a
fruição desses bens; [...] os direitos permitem a realização das pessoas e inserem-se
51
direta e imediatamente, por isso, nas respectivas esferas jurídicas, as garantias só
nelas se projectam pelo nexo que possuem com os direitos; na acepção
jusracionalista inicial, os direitos declaram-se, as garantias estabelecem-se.
Ou, olhando àqueles direitos em que mais clara se revela a distinção – os direitos de
liberdade:
– As liberdades são formas de manifestação da pessoa; as garantias pressupõem
modos de estruturação do Estado;
– As liberdades envolvem sempre a escolha entre o facere e o non facere ou entre
agir e não agir em relação aos correspondentes bens, têm sempre uma dupla face –
positiva e negativa; as garantias têm sempre um conteúdo positivo, de actuação do
Estado ou das próprias pessoas;
– As liberdades valem por si, as garantias têm função instrumental e derivada.
(MIRANDA, 1998, v.IV, p.88-89).
Estas citações revelam o indissociável vínculo que há, inegavelmente, entre direitos e
garantias. Lado outro, elas possibilitam tratar como uma espécie de garantia constitucional a
segurança pública. Com efeito, a finalidade desta – preservar a ordem pública e a incolumidade
das pessoas e patrimônios –, condizente com a sua situação topográfica no Texto
Constitucional, porquanto inserida no Título V, intitulado “Da defesa do Estado e das
Instituições democráticas”, para não citar outros fatores (os quais serão objeto de estudo em
capítulo próprio), a inclina para o rol dessas garantias.
Vê-se, na Constituição Federal de 1988, que o catálogo de direitos fundamentais, de
conteúdo exemplificativo, é aberto com o título “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”
(Título II). Canotilho (1999), discorrendo sobre sistema, estrutura, função, regime geral e
regime específico dos direitos fundamentais, fá-lo usando a expressão direitos, liberdades e
garantias. À mesma idéia, qual seja, a de reconhecer nota de fundamentalidade formal e
material não só a direitos, como também a certas garantias, filia-se Sarlet (2005).
Mesmo presente, portanto, em certas garantias o status de fundamentalidade que este
trabalho intenta emprestar à segurança pública, o constituinte de 1988 reportou-se a esta matéria
– e o fez expressamente – como um direito. E neste sentido é a posição mais comum em sede
doutrinária, embora não se possa falar, até agora, em grande diversidade bibliográfica sobre o
tema, que só de alguns anos para cá despertou interesse como objeto de estudo.
Eis, então, alguns autores que expressamente situam segurança pública como um direito:
Santin (2004, p.80), antes de concebê-la como um direito de caráter predominantemente difuso,
expressa que este possui características de “direito humano”. Compartilhando desse
entendimento, Alvim (2006, p.15-33) deixa estampada sua posição, a começar do título de
abalizado estudo seu sobre o assunto – “Ação civil pública e direito difuso à segurança pública”
52
–, aduzindo que tal direito (fundamental) tem as características (de difuso) traçadas pelo art. 81,
I, do Código de Defesa do Consumidor, a saber: “transindividual, de natureza indivisível, de
que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.” Souza Neto
(2008, p.86) também menciona a segurança pública como um direito fundamental.
Fala-se até em um Direito da Segurança Pública, que seria sub-ramo do Direito Público e
teria como objeto a organização constitucional e também legal da segurança pública. É o que
diz Herkenhoff (2006, p.396-397 e 412), para quem segurança pública é um direito do cidadão e
“deve ser entendida como direito da cidadania e não como instrumento ou justificativa para
subtração da cidadania.”
Viu-se há pouco, no entanto, que Canotilho (1999) se refere à segurança pública como um
bem (jurídico); mas, o que vem a ser bem jurídico, já que não raro ele é confundido com
interesse, valor e até mesmo com o próprio direito subjetivo? Figueiredo Dias (1999, p.62 apud
SMANIO, 2000, p.92), a propósito, “percebe que a noção de bem jurídico, embora fulcral do
direito penal, não pôde até o presente momento ser determinada com segurança capaz de
convertê-la em conceito fechado, e talvez jamais venha a ser.” Sem aqui mergulhar pelas
diversas teorias que lidam com minudências do assunto em busca de defini-lo, mister se faz
citar Prado (1996, p.36), o qual lista alguns conceitos extraídos da doutrina estrangeira, a saber:
Welzel considera o bem jurídico como um ‘bem vital da comunidade ou do
indivíduo, que por sua significação social é protegido juridicamente.’ Por sua vez,
Muñoz Conde conceitua os bens jurídicos como ‘os pressupostos de que a pessoa
necessita para sua auto-realização na vida social.’ No dizer de Polaino Navarrete, é o
‘bem ou valor merecedor da máxima proteção jurídica, cuja outorga é reservada às
prescrições do Direito Penal. Bens e valores mais consistentes da ordem de
convivência humana em condições de dignidade e progresso da pessoa em
sociedade.’ Rudolphi defini-os como ‘conjuntos funcionais valiosos constitutivos da
nossa vida em sociedade, na sua forma concreta de organização.’
Tal tutela, necessidade de proteção, dá-se aos níveis constitucional e infraconstitucional.
Neste último caso, à luz do princípio da ofensividade ou da intervenção penal mínima, se a
proteção puder ser efetuada satisfatoriamente via outros ramos do Direito, como o Civil e o
Administrativo, não se recomenda intervenção do Direito Penal. (SMANIO, 2000, p.93).
5
Em
Prado (1996, p.65),
A noção de bem jurídico emerge dentro de certos parâmetros gerais de natureza
constitucional, capazes de impor uma certa e necessária direção restritiva ao
legislador ordinário, quando da criação do injusto penal. A tarefa legislativa há de
estar sempre que possível vinculada a determinados critérios reitores positivados da
5
No mesmo sentido: Prado (1996).
53
Lei Maior que operam como marco de referência geral ou de previsão específica –
expressa ou implícita – de bens jurídicos e a forma de sua garantia. (Grifou-se).
Sabe-se, por comezinho, que os delitos lesam ou ameaçam bens jurídicos. Em o fazendo,
atingem vítimas imediatas e mediatas, que podem ser uma ou mais pessoas, a sociedade e o
Estado
6
(neste compreendidas as atividades de segurança pública). Se os bens jurídicos
considerados fundamentais
7
para uma sociedade em determinada época são distinguidos pelo
Direito Penal, que tipifica infrações e penas, e se a segurança pública, prevista
constitucionalmente, se destina basicamente a prevenir e apurar essas infrações, ela mais se
afigura como garantia a certos bens jurídicos (vida, integridade corporal e mental, poder de
disposição sobre bens materiais, paz e liberdade). É o que o trecho retro de Miranda (1998,
v.IV, p.88) parece traduzir: “Os direitos representam só por si certos bens, as garantias
destinam-se a assegurar a fruição desses bens.” (Grifou-se).
Tome-se, por exemplo, o bem da vida e sua relação com a segurança pública. Segundo
Canotilho (1992), o direito à vida é um “direito subjectivo de defesa [...], com os
correspondentes deveres jurídicos dos poderes públicos e dos outros indivíduos de não
agredirem o ‘bem da vida (dever de abstenção)”. Coexiste neste direito “uma dimensão
protectiva, ou seja, uma pretensão jurídica à protecção, através do Estado, do direito à vida
(dever de proteção jurídica) que obrigará este, por ex., à criação de serviços de polícia, de
um sistema prisional e de uma organização judiciária.” (Grifou-se). Na mesma senda vai
Roxin (2006, p.17-18), para quem o Estado
Deve garantir, com os instrumentos jurídico-penais, não somente as condições
individuais necessárias para uma coexistência semelhante (isto é, a proteção da vida
e do corpo, da liberdade de atuação voluntária, da propriedade etc.), mas também as
instituições estatais adequadas para este fim (uma administração da justiça eficiente,
um sistema monetário e de impostos saudáveis, uma administração livre de
corrupção etc.)... Todos estes objetos legítimos de proteção das normas que
subjazem a estas condições eu os denomino bens jurídicos. (Grifou-se).
Com base nesse raciocínio, pode-se dizer que aos direitos à vida, saúde (incolumidade
física e mental), liberdade (principalmente a de locomoção), paz, democracia e propriedade,
corresponde uma série de garantias, dentre elas a segurança pública.
De outra banda, não há que confundir o direito à (garantia da) segurança pública e o bem
jurídico do mesmo nome com as políticas governamentais na área. Bucci (2002, p.241) define
6
Sempre que ocorre uma infração penal, o Estado é vítima, nem sempre imediata ou primária.
7
Prado (1996, p.17) assinala que “somente os bens jurídicos fundamentais devem ser objeto de atenção do
legislador penal”.
54
políticas públicas como “programas de ação governamental visando a coordenar os meios à
disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente
relevantes e politicamente determinados.” Dizem elas, pois, diretamente com a escolha (decisão
política, com viés técnico-administrativo) dos meios para realização dos objetivos sociais do
governo. Políticas públicas são, no entender de Pinheiro (1990, p.44), “reformas, planejamento,
etapas, políticas de pessoas, carreiras, remuneração, condições de trabalho, eficiência.”
Respondendo-se, finalmente, à indagação que intitula este tópico, para os fins do presente
ensaio, se tem que, assim como a administração, finanças e saúde públicas, segurança pública
não deixa de ser um bem jurídico. Aliás, há quem diga se tratar, a segurança pública, do bem
jurídico imediatamente tutelado pelo serviço estatal primário que carrega o mesmo nome.
(SANTIN, 2004, p.119). Isto não a afasta de ser concebida como uma espécie de garantia
constitucional, ou mesmo como um direito/garantia a que, por força da Magna Carta, todos têm
direito. Por outro lado, não há confundi-la com a instituição estatal (aparelho de segurança
pública), nem com as maneiras ou mecanismos pelos quais ela é planejada, orçada e executada
(política pública). Em resumo: conquanto a segurança pública possa ser referida como interesse
público, política pública, bem jurídico, direito ou garantia, carrega em si características desta
última categoria, o que a torna um direito/garantia.
4 ORDEM PÚBLICA, PODER DE POLÍCIA, POLÍCIA E
POLÍCIAMENTOS DE SEGURANÇA PÚBLICA
Viu-se, no capítulo anterior, que ordem pública é um bem jurídico imediatamente visado
pela segurança pública, sendo ele necessário para a manutenção harmônica das inúmeras e
constantes relações que mantêm entre si indivíduos, coletividades, o Estado e as demais
instituições públicas e privadas, enfim, toda a sociedade.
Mesmo sob a égide da melhor fórmula política até hoje encontrada – o Estado
Democrático de Direito –, e ainda que se trate do país com os mais elevados índices de
desenvolvimento humano e de justiça sócio-econômica, o Estado – grandioso instrumento a
serviço do ser humano e da sociedade – não prescindirá da ordem pública para atingir seus fins.
Trata-se, a ordem pública, de expressão vaga, nada fácil de ser conceituada. Lazzarini
(1987, p.6) tem razão quando averba que não há “nada mais incerto em direito do que a noção
de ordem pública. Ela varia no tempo e no espaço, de um para outro país e, até mesmo, em um
determinado país de uma época para outra.”
Para Moreira Neto (2006, p.414), ordem pública “diz respeito à situação de convivência
pacífica e harmoniosa das pessoas.” Ou seja, ela “está assentada em dois elementos
universalmente reconhecidos: a ‘ausência de perturbação’ e a disposição harmônica das relações
sociais.” (SULOCKI, 2007, p.46). José Afonso da Silva (1998, p.657), por sua vez, entende por
ordem pública “uma situação de pacífica convivência social, isenta de ameaça de violência ou
de sublevação que tenha produzido ou que supostamente possa produzir, a curto prazo, a prática
de crimes.”
Souza Neto (2008, p.88-89) adverte que “o uso da noção de ‘ordem pública’ – que é um
conceito juridicamente indeterminado – abre-se a diferentes apropriações, democráticas e
autoritárias, comprometidas ou não com o respeito ao estado democrático de direito e com a
preservação da legalidade.” Acerca da noção distorcida de ordem pública, Souza Neto (2008,
p.89-90) vai além, com o seguinte comentário:
56
A noção de ordem pública já esteve no cerne dos discursos de legitimação das
ditaduras. Para o pensamento autoritário, o fundamental é que tenha lugar uma
decisão política capaz de estabelecer a ordem, de substituir o dissenso político pela
adesão, ainda que imposta pela força, a um determinado conjunto de valores,
subtraídos à esfera das divergências. Se a ordem está em confronto com a lei, a
opção dos autoritários é sempre pela ordem. Legitimidade e legalidade são
concebidas como eventualmente antagônicas, não como dimensões vinculadas de
um mesmo arcabouço jurídico-institucional: mais importante que preservar a lei é
manter a ordem, ditada pela vontade de quem teve força para tomar a decisão
soberana.
Essa orientação não é estranha à cultura das instituições policiais brasileiras. A lei é
muitas vezes entendida como um entrave à garantia da ordem pública; e os direitos
humanos, como obstáculos à atuação eficiente das autoridades policiais. Em
pesquisa realizada pela Fundação João Pinheiro, da UFMG, foram entrevistados
oficiais e praças que atuam em Belo Horizonte: 41,9% dos oficiais e 67,9% dos
praças ‘concordam totalmente’ com a afirmação de que ‘o policial militar, hoje,
encontra-se impossibilitado de realizar bem o seu trabalho, já que existem muitas
leis que garantem direitos aos criminosos’. A partir dessa cultura institucional, a
função das polícias é freqüentemente entendida como a de manter a ordem, não a de
preservar a lei. Legitimam-se, então, ações policiais truculentas, torturas e prisões
arbitrárias. Em regra, essas práticas se articulam com um olhar seletivo, que
constitui ‘inimigos da ordem’. O papel geralmente recai sobre os excluídos, em
especial sobre os negros e os moradores de favelas, que figuram como alvo principal
da persecução criminal. Trata-se da conhecida ‘reação em cadeia da exclusão
social’, que atinge parte considerável da população brasileira, reduzida à condição
de ‘subcidadania’.
Impõe-se, então, que toda e qualquer concepção de ordem pública tem que ser compatível
com os ditames constitucionais e também legais e estar em sintonia com os princípios
estruturantes democrático e republicano. Logo, o dever de preservar a ordem pública é
necessariamente o dever de respeito à legalidade e aos direitos fundamentais, sob pena de
instaurar-se um estado de exceção permanente, verificável em determinados pontos (áreas) da
grande Rio de Janeiro.
1
Ressalte-se que ordem pública e condições sócio-econômicas de vida humana dignas são
diretamente proporcionais, ou, em outras palavras, não há falar em ordem pública sem que
ocorram respeito e concretização aos direitos humanos e fundamentais, ou seja, sem que exista
a presença efetiva do Estado (democrático de direito), garantindo, com ajuda da sociedade, um
mínimo existencial para todos.
Ordem pública, pois, não é algo a ser interpretado de qualquer maneira, nem alcançado a
qualquer preço. Com base nela, isto é, no seu conceito constitucionalmente adequado – e não a
1
A grande imprensa noticia fatos assemelhados aos mostrados no filme “Tropa de Elite”, com base nos quais se
infere que, em certas áreas da grande Rio de Janeiro, não está vigorando o pleno estado de direito, haja vista o
poder paralelo exercido por grupos de traficantes armados sobre certas comunidades assentadas em favelas, a
quem são impostas regras próprias desses bandos, contra quem os órgãos policiais travam verdadeira guerra
urbana, tudo importando em abalos às liberdades individuais. Acerca do sistema de contradireito levado a cabo
pelas associações de malfeitores, vide comentário de Arnaldo Vasconcelos (2001, p.66-67), inserido no item
6.5.3.1. deste trabalho.
57
pretexto d’algum significado distorcido dela – é que, no caso da segurança pública, se autoriza o
exercício regular do poder de polícia.
4.1 Poder de polícia e polícia
Sabe-se, por comezinho que, sob a égide do Estado de Direito, as pessoas (físicas e
jurídicas) gozam de uma série de direitos constitucionalmente previstos e que devem ser
respeitados e concretizados, devendo a fruição deles, entretanto, encontrar certos limites, uma
vez que a satisfação de um desses direitos não deve importar afronta ao direito de outros
indivíduos.
2
É dado ao Estado buscar manter ou preservar a ordem pública por intermédio de órgãos
próprios, utilizando-se, para tanto, de uma importante ferramenta jurídica: o poder de polícia. A
palavra poder, aqui empregada, não significa poder político, e sim administrativo. Este caminha
junto da ordem pública, haja vista ser por ele que o Estado intervém na sociedade para, quando
necessário e autorizado, limitar ou condicionar as liberdades individuais em prol da
harmonização das relações interpessoais e sociais.
Hodiernamente, o poder de polícia é visto como atividade estatal para limitação do
exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público (DI PIETRO, 2001, p.88-
89). Poder de polícia, para Meirelles (1993, p.115), é “a faculdade de que dispõe a
Administração Pública para condicionar e restringir o uso e gozo de bens, atividades e direitos
individuais, em benefício da coletividade ou do próprio Estado.” Trata-se, pois, de mecanismo
de frenagem para que o Estado contenha eventuais abusos do direito individual. Um conceito de
poder de polícia é encontrado no Código Tributário Nacional, a saber:
Art. 78. Considera-se poder de polícia atividade da administração pública que,
limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou
abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene,
à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de
atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à
tranqüilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou
coletivos.
Segurança pública está entre os campos de atuação estatal em que mais nitidamente se
manifesta o poder de polícia. Dele se utiliza a polícia no cumprimento de seus deveres. Na
observação de Cretella Júnior (1997, p. 521), “polícia é termo genérico com que se designa a
2
Daí a importância da Hermenêutica Constitucional e dos modernos métodos de interpretação e aplicação das
normas (princípios e regras) constitucionais.
58
força organizada que protege a sociedade livrando-a de toda vis inquietativa.” A palavra polícia
origina-se do grego politeia, cuja forma latina é politia. Assim como a palavra política, a quem
é etimologicamente ligada, polícia vem de pólis (= cidade, Estado) e, no passado, significou a
constituição e o bom ordenamento do Estado. (CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 521).
O sentido da palavra polícia foi alvo de alterações ao longo do tempo, da Antiguidade à
Modernidade, até chegar ao seu significado atual: órgão do Estado incumbido de manter a
ordem e tranquilidade públicas, isto é, zelar pela segurança das pessoas, e desempenhar a fase
pré-processual da persecução penal.
Se na Idade Média a polícia significava “a boa ordem da sociedade civil sob a autoridade
do Estado” ou o direito do soberano e do senhor feudal de zelar pelo bem-estar das pessoas que
estavam sob suas ordens, na Modernidade quer dizer, genericamente, toda atividade da
administração pública dirigida a prevenir males e desordens que acometem a sociedade.
(CRETELLA JÚNIOR, 1997, p. 522). Cretella Júnior (1997, p. 532) conclui que polícia é “a
atividade concreta exercida pelo Estado para assegurar a ordem pública através de limitações
legais impostas à liberdade coletiva e individual.”
Tal definição enseja reflexão, pois falar em limitações legais à liberdade coletiva e
individual remete necessariamente ao monopólio da coação estatal que, conforme já se disse,
não é suficiente para fundamentar a segurança pública, uma vez que, dentre outras razões, a
simples presença de policiais fardados num logradouro público, sem que por parte deles haja
qualquer ato de exercício regular de poder de polícia, isto é, de coação legal, pode não só
prevenir práticas delituosas, como ensejar sensação de tranquilidade à população, tudo isto sem
necessariamente importar em ato de restrição à liberdade coletiva ou individual. Neste caso, a
presença dos policiais não deixa de ser atividade concreta de polícia e de segurança pública.
Consoante escreve Moreira Neto (2006, p. 396), “no sistema jurídico brasileiro, o
emprego do poder estatal para restringir e condicionar liberdades e direitos individuais é uma
exceção às suas correspectivas afirmações constitucionais, daí porque somente possa ser
exercido sob reserva legal (art. 5º, II, CF/88).” A relação e tensão entre segurança pública e
direitos fundamentais serão tratadas em tópico específico no capítulo seguinte.
As polícias e suas atribuições básicas estão, no Brasil, previstas constitucionalmente (art.
144 da CF/1988). São elas, no âmbito da União, a Polícia Federal, a Polícia Rodoviária Federal
59
e a Polícia Ferroviária Federal. Como órgãos policiais estaduais, existem as polícias civis e as
polícias militares.
Quanto ao objeto, clássica é a divisão, comumente encontrada na doutrina pátria, segundo
a qual o gênero polícia se divide em três espécies: administrativa, de segurança (ou vigilância) e
judiciária. A primeira tem por objeto limitações a bens jurídicos individuais em prol do êxito da
administração pública, e é dividida em subespécies, como a polícia sanitária, a das profissões, a
dos transportes, a das comunicações, a ambiental e a edilícia. Já a polícia de segurança tem por
objetivo preservar a ordem pública mediante medidas preventivas, visando a evitar que as
práticas delituosas aconteçam. A polícia judiciária, por sua vez, tem por escopo investigar as
infrações penais não evitadas, apurando-se a autoria delitiva a fim de que a ação penal possa ser
exercida.
Moreira Neto (2006, p. 416) distingue da polícia administrativa propriamente dita a
polícia administrativa da segurança pública, esta englobando os dois grandes campos de
atividades da segurança pública – a prevenção e a repressão –, merecendo que sejam feitas
algumas digressões neste jaez.
4.2 Policiamento preventivo e polícia ostensiva
Bom seria se inexistisse prática delituosa, ideia utópica no mundo dos homens. Isto faz
lembrar Beccaria (2002, p. 142), para quem é preferível prevenir o crime – preferencialmente
pelo meio mais difícil, a educação –, do que punir por ele. Daí ter que se trabalhar nas suas
causas, não somente nos efeitos. Lidando com estes, avulta em importância o policiamento
preventivo. Ele é fundamental para a seguraa pública, e mesmo se desempenhado com
esforço redobrado, pelas corporações a quem é dado fazê-lo, ainda assim o crime não deixará a
sociedade, qual uma sombra. O que dizer, como exemplo, dos crimes passionais praticados
intramuros?
A polícia preventiva visa a garantir a ordem pública, impedindo a prática de fatos
delituosos. Ela é exteriorizada de forma ostensiva e age com discricionariedade; atributo este,
aliás, mais do que necessário, porquanto seria inviável se a polícia, deparando uma quadrilha ou
bando em ação, ou deparando um confronto armado em via pública, tivesse de recorrer
(pedindo autorização) ao Poder Judiciário para só então agir a fim de evitar ou combater o
delito. Essa discricionariedade, entretanto, não há que descambar para a arbitrariedade, nem
60
desobriga o policial de deixar de agir quando preciso e prender quem quer que se encontre em
situação de flagrante delito.
O policiamento preventivo é, nas unidades da Federação brasileira, atribuição das polícias
militares, órgãos da administração direta dos Estados e do Distrito Federal, a quem cabe, por
previsão constitucional, além ou por meio daquele, a preservação da ordem pública. Isso não
importa dizer que outras instituições policiais não atuem na prevenção dos delitos, como ocorre,
por exemplo, com o trabalho da Polícia Rodoviária Federal nos trechos de rodovias federais
situados em áreas urbanas.
Sob os princípios ou valores básicos da disciplina e hierarquia militares, as polícias
militares são estruturadas, internamente, segundo o modelo do Exército brasileiro, de quem até
hoje são consideradas forças auxiliares e reserva, havendo dois círculos hierárquicos – o do
oficialato e o das praças – dentro dos quais as graduações e postos são distribuídos.
Diz-se polícia ostensiva porque os seus profissionais, neste caso, devem ser notados e
identificados pela sociedade e pelo Estado. Daí o uso obrigatório de farda, armamento, demais
equipamentos portáteis e viatura caracterizada. Tal policiamento pode ser levado a cabo sob
variadas formas, tais como: a pé, via radiopatrulhamento, em rodovias (polícia rodoviária), no
trânsito das cidades, policiamento montado, com uso cães, polícia de choque (para fazer frente a
graves distúrbios contra a ordem pública), e polícia comunitária (cuja filosofia é interagir com a
comunidade, com esta dividindo problemas e compartilhando sugestões e soluções na seara
desse tipo de policiamento).
No âmbito das estradas da União, tal policiamento – o patrulhamento ostensivo dessas
rodovias – é realizado pela Polícia Rodoviária Federal, enquanto, no âmbito das ferrovias
federais, cabe à Polícia Ferroviária Federal desempenhá-lo. São órgãos permanentes,
organizados e mantidos pela União, estruturados em carreira.
4.3 Policiamento investigativo e polícia judiciária
A criminalidade possui causas e concausas. Elas não serão aqui discutidas, pois refogem
ao objeto de estudo em tela. Ainda que elas sejam minimizadas pelos governos e sociedades, o
desafio para quem lida com seus efeitos será sempre duplo: evitá-la ao máximo possível
(missão proeminente da polícia preventiva, como dito) e dar apuração eficaz aos delitos não
evitados (mister da polícia investigativa).
61
Assim como, à luz do pensamento cristão, a fé se torna vã se desacompanhada das boas
obras, de nada ou pouco adianta alargar as penas (opção intransigente da doutrina da lei e da
ordem) se o braço apurador do Estado – a persecução penal, desde a fase policial – não chegar a
todos os lugares, a todos os casos e com a mesma qualidade. Se a alegada benevolência da lei
(mais pelo sistema recursal aberto a manobras e protelações processuais do que pelo tamanho
das penas) é caminho à impunidade, o que não é apurado, ou é mal esclarecido, com esta se
confunde. Por outro lado, em geral, a frequência com a qual as infrações ocorrem, no Brasil,
contrasta com o ritmo em que elas são elucidadas e julgadas.
“Se o Estado é o titular do direito de punir e se lhe cumpre, por outro lado, manter o
equilíbrio social profundamente afetado pelo crime, tem ele, à evidência, o dever jurídico de
reprimir as infrações penais.” (TOURINHO FILHO, 1997, p.293). Os interesses tutelados pelas
normas penais são públicos e sociais, e a repressão aos delitos constitui – diz Tourinho Filho
(1997, p.294) – dever inarredável do Estado, para atingir um dos fins essenciais para os quais
ele foi constituído: “segurança e reintegração da ordem jurídica.” A repressão legal à infração
penal começa com a apuração preliminar: primeira fase da persecutio criminis.
O sistema processual penal brasileiro é o acusatório, que tem como característica
essencial a distribuição constitucional e também legal, a agentes ou órgãos distintos, das
funções que atuam na persecução, quais sejam: as de apuração preliminar das infrações penais,
as de acusação por meio da ação penal, as de defesa técnica do réu e a de julgamento do
processo (incluindo-se a execução da pena).
A primeira fase da persecução penal – a apuração prévia do delito, primariamente
destinada a possibilitar o exercício do direito de ação penal –, integrante do processo penal lato
sensu, constitui o principal desiderato da polícia judiciária. Especificamente a esta, assim se
refere o art. 144 da Constituição Federal:
§ 1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de
bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual
ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
II – [...] reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o contrabando e o
descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos públicos nas
respectivas áreas de competência;
[...]
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
62
[...]
§ 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da união, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares.
Vê-se que a norma constitucional sugere distinção entre as funções de apuração das
infrações penais e as de polícia judiciária. As primeiras dizem respeito à investigação
propriamente dita. As outras significam obrigações da autoridade policial – o delegado de
polícia – de fornecer ao Estado-juiz as informações necessárias à instrução e julgamento dos
processos; realizar diligências requisitadas pela autoridade judiciária ou Ministério Público;
cumprir mandados judiciais de prisão e busca e apreensão; representar para que seja decretada
prisão temporária ou preventiva; representar pelo exame de insanidade mental do indiciado;
requerer quebra de sigilos bancário, fiscal, e das comunicações (das telefônicas às virtuais);
proceder à restituição de coisas apreendidas; requerer medidas protetivas e de urgência nos
casos de violência doméstica e familiar, afora tantas outras medidas previstas na legislação,
tudo a depender da necessidade do caso concreto.
O art. 4º do Código de Processo Penal prevê que “a polícia judiciária será exercida pelas
autoridades policiais no território de suas respectivas circunscrições e terá por fim a apuração
das infrações penais e da sua autoria.”
Por assumir a condição de auxiliar da Justiça Criminal é que o órgão incumbido dessas
tarefas é chamado de polícia judiciária. Vale para esta a mesma observação feita no tópico
anterior, acerca da discricionariedade com a qual desempenha suas atribuições. Ressalte-se que,
transpondo os conhecimentos técnicos, os profissionais que atuam nessa seara devem
necessariamente ser dotados de conhecimentos jurídicos. Daí a previsão constitucional expressa
de que a polícia judiciária é dirigida por delegado de polícia de carreira, autoridade pública a
quem cabe a tomada de graves decisões, em cujos requisitos obrigatórios para o ingresso na
carreira, que se dá por concurso público de provas ou de provas e títulos, insere-se o
bacharelado em Direito, podendo exigir-se, ainda, comprovação de tempo de exercício de
prática forense.
4.4 Atividades “bombeirísticas”
3
Desde a primeira Constituição do Brasil, a que foi outorgada em 1824, proclama-se “a
inviolabilidade dos Direitos Civis e Políticos dos cidadãos brasileiros”, tendo por base “a
3
Referindo-se às atividades dos corpos de bombeiros militares.
63
liberdade, a segurança individual e a propriedade”. Tal era basicamente a redação do art. 174,
cujo inciso XXXI estabelecia o seguinte: “A Constituição também garante os socorros
públicos”. (CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.103-105) (Grifou-se).
A preocupação tocante ao Estado socorrer quem esteja sob risco real ou iminente, seja ele
proveniente de ação humana ou da natureza, vem, pois, desde antanho. Como desdobramento
do dever de prestar segurança, e de proteger a vida, a incolumidade das pessoas e dos bens
públicos e privados, ante os mais variados riscos provenientes de acidentes, sinistros e
catástrofes, o Estado deve, pois, socorrer quem estiver em perigo, além de atuar na prevenção
dessas ocorrências.
Prevenir e apagar incêndios, assim como socorrer as vítimas destes eventos; prevenir
afogamentos em locais públicos e prestar socorro em casos que tais; socorrer pessoas vítimas de
abalroamentos, atropelamentos, desabamentos, terremotos, maremotos, furacões etc: eis alguns
dos misteres dos corpos de bombeiros militares, dentre os quais atividades de defesa civil.
Tais corporações, pautadas em sua maioria, no Brasil, sob princípios de hierarquia e
disciplina castrenses, integram o elenco dos órgãos de segurança pública (art. 144, V, da
Constituição Federal de 1988) e são organizados pelos respectivos Estados-Membros e pelo
Distrito Federal. No Caso do Estado do Ceará, por exemplo, a missão da corporação é detalhada
no art. 1º da Lei Estadual nº 13.438, de 07 de janeiro de 2004, a saber:
O Corpo de Bombeiros Militar do Estado do Ceará (CBMCE), órgão com
competência para atuar na defesa civil estadual e nas funções de proteção da
incolumidade e do socorro das pessoas em caso de infortúnio ou de calamidade;
exercer atividades de polícia administrativa para a prevenção e combate a incêndio,
bem como de controle de edificações e seus projetos, visando a observância de
requisitos técnicos contra incêndio e outros riscos; a proteção, busca e salvamento
de pessoas e bens, atuar no socorro médico de emergência pré-hospitalar; de
proteção e salvamento aquáticos; desenvolver pesquisas científicas em seu campo de
atuação funcional e ações educativas de prevenção de incêndio, socorro de urgência,
pânico coletivo e proteção ao meio ambiente, bem como ações de proteção e
promoção do bem-estar da coletividade e dos direitos, garantias e liberdades do
cidadão; estimular o respeito à cidadania, através de ações de natureza preventiva e
educacional; manter intercâmbio sobre os assuntos de interesse de suas atribuições
com órgãos congêneres de outras unidades da Federação, normatizar, controlar e
fiscalizar a criação e extinção de brigadas de incêndio municipal, privadas e de
voluntários e exercer outras atribuições necessárias ao cumprimento de suas
finalidades, tem a sua organização básica definida nos termos desta Lei. (CEARÁ...,
2008, on line).
A depender da legislação de cada Ente federado (Estado-Membro ou Distrito Federal),
pode-se conferir ao Corpo de Bombeiros, pois, poder de polícia administrativa para exercer com
maior eficácia suas atribuições, podendo, inclusive, inspecionar prédios públicos e privados
64
com fito de prevenir certos acidentes. Lida o corpo de bombeiros, pois, diretamente com as
comunidades, seja disseminando uma cultura preventiva contra incêndios e outros eventos
infortunosos, seja reagindo ante a ocorrência desses fenômenos.
5 SEGURANÇA PÚBLICA: PRIMEIROS PASSOS NO BRASIL
E INSERÇÃO NOS TEXTOS CONSTITUCIONAIS
A chegada da Família Real portuguesa ao Brasil, em 1808, significou mudanças no
panorama social, político e econômico nacional, tendo a transferência da sede do Reino
resultado em aumento da população e na necessidade de organização dos serviços públicos. O
Brasil passava a metrópole, um avanço. Tal evolução e a remodelação administrativa,
entretanto, não vieram isentas de problemas congênitos. Para Pontes de Miranda (1953, p.241),
“Inseriram-se nos negócios do país pessoas que não tinham na educação e no conhecimento dos
fatos o fim histórico, que o absolutismo peninsular interrompera. O Brasil-Reino era nome que
se dava, tardiamente, à coisa.”
A segurança passou ao rol das preocupações da época, menos em prol do cidadão do que
voltada para o Estado, isto é, para a unidade territorial ou integridade das fronteiras, levada a
cabo pelas forças militares. Abertura dos portos, instalação de banco, imprensa, biblioteca, e a
criação da Intendência Geral de Polícia da Corte e do Estado do Brasil (Alvará de 10 de maio de
1808), cujo intendente tinha status de Ministro de Estado, foram algumas das ações
governamentais da época. Se o Exército estava para a defesa contra o inimigo externo, a polícia
deveria estar para a manutenção da ordem e do sossego públicos.
Idêntica corporação já existia em Portugal, inspirada no modelo francês, que já naquela
época dividia o fazer policial básico em polícia ostensiva (vigilância da população e ordem
pública) e de investigação criminal (elucidação de delitos e captura de criminosos).
(FOUCAULT, 1993)
1
. A atividade dela englobava, porém, obras públicas para garantir o
abastecimento das cidades. Tinha ela cunho político. Holloway (1997, p.46-47) assim descreve
essa amplitude de atuação:
1
Foucault (1993, p.139) anota que “Todas essas vigilâncias pressupõem a organização de uma hierarquia em
parte oficial, em parte secreta (era essencialmente na polícia parisiense o ‘serviço de segurança’ que
compreendia, além dos ‘agentes ostensivos’ – inspetores e cabos – os ‘agentes secretos’ e indicadores movidos
pelo receio do castigo ou pela atração de uma recompensa)”.
66
A nova instituição baseava-se no modelo francês introduzido em Portugal em 1760.
Era responsável pelas obras públicas e por garantir o abastecimento da cidade, além
da segurança pessoal e coletiva, o que incluía a ordem pública, a vigilância da
população, a investigação dos crimes e a captura dos criminosos. [...] No ano
seguinte, em 13 de maio de 1809, D. João VI decretou a criação de uma força
policial de tempo integral, organizada militarmente e com ampla autoridade para
manter a ordem e perseguir criminosos. Era a Divisão Militar da Guarda Real da
Polícia, subordinada ao Intendente de Polícia que ocupava o cargo de
desembargador. A missão de patrulhar em tempo integral tornava-se mais eficiente
do que o antigo sistema de vigilância esporádica por guardas civis. Seus oficiais e
soldados provinham das fileiras do Exército regular.
A utilização ideológica do aparato de segurança logo se revelaria, na medida em que, por
trás do desejo de dotar o Reino Unido de uma polícia eficiente e disciplinada – “corpo
disciplinado como base de gesto eficiente”, na expressão de Foucault (1993, p.139) – em prol
dele mesmo (principalmente dele/Estado) e da sociedade, havia o latente interesse de manter a
última sob domínio, combatendo-se policialmente as ideias liberalizantes e os movimentos
considerados progressistas. Vem a lume a seguinte observação de Foucault (1993, p.173-247):
Um corpo de milícia considerável [...] para tornar mais pronta a obediência do povo,
e mais absoluta a autoridade dos magistrados, assim como para vigiar todas as
desordens, roubos e pilhagens. [...] A delinqüência [...] constitui em meio de
vigilância perpétua da população: um aparelho que permite controlar, através dos
próprios delinqüentes, todo o campo social. A delinqüência funciona como um
observatório político. Os estatísticos e os sociólogos dela se utilizaram por sua vez,
bem depois dos policiais.
Manter o domínio por meio do aparato estatal fazia parte da filosofia de vida e da
tentativa de perpetuação das monarquias absolutistas europeias. Estas – registra a historiografia
– se utilizaram das corporações policiais, sob pretexto de combater a delinquência, na
perseguição de seus objetivos.
Pode-se dizer, portanto, que antes mesmo da independência brasileira já havia
preocupação com a segurança interna, esta significando apenas atividade de polícia (vigilância,
apuração de crimes, captura de criminosos), principalmente com a chegada da Família Real,
quando foi criada a Intendência Geral de Polícia – embrião das atuais polícias federal e civis.
5.1 A fase imperial, a constitucionalização do direito à segurança individual
e a menção, na Constituição de 1824, à expressão segurança interna
O contexto do Brasil recém-autoproclamado independente de Portugal, para cuja
condição foi divisor de águas o ato de convocação da Assembléia Geral Constituinte
2
(Decreto
2
Bonavides e Andrade (1989, p.42-43 e 99) registram que “a convocação da Constituinte desfechou o golpe de
misericórdia no domínio português.” Sobre a convocação da Constituinte antes mesmo da independência:
Faoro (2001, p.322-324).
67
de 03 de junho de 1822), permite dizer que, em se tratando de defesa nacional e de segurança
pública, as maiores preocupações residiam na primeira, entendida como a blindagem do
Império e a integridade territorial, cuja importância superava até mesmo a concretização de
direitos civis e políticos. Manter o unitarismo do governo monárquico-hereditário
3
(modelo
diferente da forma escolhida pelos Estados Unidos e América espanhola) e a unidade das
fronteiras do país de tamanho continental foram dois dos objetivos embutidos na Constituição
outorgada de 1824.
Como atribuição da Assembléia Geral ficara a fixação anual, sob auspícios do Imperador,
das “forças de mar e terra ordinárias e extraordinárias” (art. 15, Inciso 11). O Texto
Constitucional reservou o Capítulo VIII, do Título V (arts. 145 a 150), para o trato “Da Força
Militar”. Ir às armas a fim de defender o Império e o território contra “inimigos internos e
externos” era dever inarredável de todo brasileiro – impôs a Carta Suprema como corolário dos
arroubos emancipacionistas outrora deflagrados pelas elites político-intelectual e
agroescravocrata.
As prioridades há instantes mencionadas, porém, não ofuscaram a preocupação com a
segurança interna. Tanto é que ela, dantes tratada em sede de ordenações e alvarás até então
disciplinadores do assunto, foi guindada ao texto da Lei Fundamental. Teria sido essa assunção
(ao topo do Ordenamento Jurídico) medida para angariar simpatia do povo e compensar o
regime de superconcentração de poderes nas mãos do imperador?
4
A resposta pode ser inferida
das palavras Bobbio (1992, p.6), para quem “os direitos não nascem todos de uma vez; Nascem
quando devem ou podem nascer; Nascem quando o aumento do poder do homem sobre o
homem [...] cria novas ameaças à liberdade do indivíduo, ou permite novos remédios para as
suas indigências.”
Lançado o prólogo da positivação do direito à segurança pública no constitucionalismo
brasileiro, antecipou-se, com traço de originalidade, uma questão interdisciplinar e
interinstitucional do século XXI. Pode-se sustentar que a segurança das pessoas recebeu, já na
Constituição de 1824, contorno de fundamentalidade formal e material, porquanto assim
3
Faoro (2001, p.321) atribui a escolha da forma de governo monárquica à corrente (elite) que dominava o
pensamento político – a “liberal temperada” – sob argumento de que a monarquia e o imperador pré-existiam à
independência e até mesmo à Constituinte. Para tal corrente, a figura do monarca significava integração e
estabilização. Contrário a este argumento: Tobias Barreto (2000, p.407), para quem o monarca não era
superior nem preexistente aos poderes políticos.
4
Para Morais Filho et al. (2003, p.169), “a Constituição de 1824 terminou por concretizar a vontade anunciada
na abertura da Constituinte: uma Constituição outorgada que, liberal em matéria de direitos individuais, se
mostraria centralizadora e autoritária na soma dos poderes que concedeu ao monarca constitucional.”
68
estabelecia o art. 179, inserido na abertura do pretensioso
5
catálogo de direitos fundamentais
(civis e políticos): “A inviolabilidade dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros, que
tem por base a liberdade, a segurança individual e a propriedade, é garantida pela Constituição
do Império [...]” (Grifou-se); um direito que, mesmo de primeira geração ou dimensão (direitos
oponíveis ao Estado, ou que exigem abstenção deste), porquanto nascido do mesmo sopro
liberal e inovador, exigia do Estado certo teor de prestação positiva: um serviço de vigilância e
policiamento para proteção das pessoas e comunidades.
6
Acerca da segurança pública, então tratada como segurança interna, a Constituição
imperial assim se referiu: “Art. 102. O imperador é o Chefe do Poder Executivo, e o exercita
pelos seus ministros de Estado. São suas principais atribuições: [...] XV – Prover a tudo que for
concernente à segurança interna e externa do Estado, na forma da Constituição.”
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.93-94) (Grifou-se).
A segurança individual foi, pois, introduzida na Constituição de 1824 como direito
fundamental expresso no pórtico do catálogo dos direitos civis e políticos dos cidadãos. Por
outro lado, o mesmo Texto Constitucional não deixou de tratar da segurança pública, à qual se
referiu como segurança interna. O que se viu, entretanto, foi o uso ideológico dos aparelhos
policiais, verdadeiros instrumentos de dominação a serviço mais do Império, e da elite
dominante, do que do povo em geral.
5.1.1 Centralismo e participação dos Municípios na segurança pública
Embora criada a Guarda Nacional em 1831, sob pretexto proeminente de garantia da
ordem
7
, cujos cargos eram de nomeação do Governo Central, o múnus na seara da segurança
pública foi, na prática e em boa parte da primeira metade do século XIX, conferido às câmaras
municipais, às quais competia a administração das cidades.
5
Para o contexto da época.
6
A expressão “segurança individual”, constante do aludido dispositivo constitucional, significava direitos
oponíveis ao Estado, ou que exigiam abstenção deste, informadores do Estado de Direito liberal, e não direitos
prestacionais. Sobre o liberalismo, Vasconcelos (2006, p.137) sentencia: “No setor econômico, domina a livre
iniciativa; no político, a idéia de constitucionalismo, que se assenta nos dogmas da garantia dos direitos e da
separação dos poderes; no campo jurídico, as noções de limite e de privaticidade; e, no social, coisa
nenhuma, por desnecessário e até impertinente: regulada cada peça, o conjunto funcionaria automática e
harmoniosamente.” (Grifou-se).
7
Faoro (2001, p.349) refere-se à Guarda Nacional como importante instrumento de dominação e de perseguição
aos reacionários.
69
Vale salientar que a Guarda Nacional foi instituída para substituir as Ordenanças (tropas
de civis mantidas e comandadas pelos senhores rurais – prova de que à Metrópole, no período
colonial, interessava o apoio privado daqueles: era o poder público utilizando-se do privado e
vice-versa, numa “transação” permeada de interesses comuns) e as milícias municipais
compostas de guardas armados a próprias expensas, organizadas em companhias e dotadas de
um comandante em cada distrito. Em paralelo, a Lei de 07 de outubro de 1833 determinou
fossem criadas, em cada distrito, guardas policiais com remuneração e efetivo fixados pelas
câmaras municipais, subordinadas às autoridades judiciárias eletivas.
A cargo das câmaras estava, de acordo com a Lei de 1º de outubro de 1828 (Regimento
das Câmaras Municipais do Império), o que dissesse respeito à polícia e economia das
povoações (art. 66). Estabelecia o art. 40 do mesmo Regimento: “Os vereadores tratarão nas
vereações dos bens e obras do Conselho (Geral da Província, previsão dos arts. 71 a 89 da Carta
Imperial), do governo econômico e policial da terra; e do que neste ramo for à prova dos seus
habitantes.” Segundo Leal (1986, p.75),
As funções administrativas das câmaras eram bastante amplas e vinham enumeradas
com minúcia. Cabia-lhes cuidar do centro urbano, estrada, pontes, prisões,
matadouros, abastecimento, iluminação, água, esgotos, saneamento, proteção
contra loucos, ébrios e animais ferozes, defesa sanitária animal e vegetal, inspeção
de escolas primárias, assistência a menores, hospitais, cemitérios, sossego público,
polícia de costumes, etc. Resumindo a lista, declarava o Art. 71 que as câmaras
deliberariam em geral sobre os meios de promover e manter a tranqüilidade,
segurança, saúde e comodidade dos habitantes, asseio, segurança, elegância e
regularidade externa dos edifícios e ruas das povoações. (Grifou-se).
A relação entre magistratura, polícia e burocracia foi formatada sem originalidade,
porquanto sob influxo do aparelho estatal português, sendo que este, por sua vez, baseado
principalmente no modelo francês. O Império herdou do período colonial o pernicioso
emaranhamento e concentração de atividades políticas, judiciais e policiais nas mesmas
autoridades, caminho aberto para arbitrariedades e favores aos interesses do Império.
Não poderia haver Câmara Municipal senão em localidades de categoria igual ou superior
à de vila
8
. Delas geralmente faziam parte um ou dois juízes ordinários (ou um juiz de fora, se
assim determinasse o imperador), três vereadores e, também na qualidade de oficiais da
Câmara, um procurador, um tesoureiro e um escrivão, eleitos como aqueles e com funções
específicas. (LEAL, 1986, p.60-61). Buscou-se, via legislação infraconstitucional, ainda que
não se tenha conseguido, superar a desorganização herdada, em que a natureza das funções, e de
8
Eis o art. 1º da Lei de 1º de outubro de 1828: “As Câmaras das cidades se comporão de nove membros, e as das
vilas de sete, e de um secretário.”
70
algumas autoridades, como dito, por vezes se confundia. Nesse sentido, Faoro (2001, p.352)
assinala que
Os oficiais da câmara, especialmente os vereadores em suas deliberações conjuntas
com o juiz, e os funcionários subordinados incumbiam-se, no limite de suas
atribuições, de todos os assuntos de ordem local, não importando que fossem de
natureza administrativa, policial ou judiciária.
Depois da abdicação de D. Pedro I, em 07 de abril de 1831, instalou-se a Regência. O
centralismo – tônica da política imperial – flexibilizou-se. Prova disto foi o Código de Processo
Criminal, de 29 de novembro de 1832, que reformou os sistemas judiciário e policial. Tal
Diploma Legal enfatizou a autonomia local, habilitando os municípios ao exercício de
atribuições policiais e judiciais. (FAORO, 2001, p.351). O juiz de paz, agente público com
atuação municipal, previsão do art. 162 da Constituição de 1824, teve seus poderes estendidos
às funções policiais, que também eram exercidas por outras autoridades. Noção geral acerca dos
aparelhos de policiamento e de persecução penal da época é dada por Leal (1986, p.192-193), a
saber:
Cada comarca tinha um juiz de direito, e nas mais populosas podia haver até três,
um dos quais seria o chefe de polícia; os juizes de direito eram nomeados pelo
Imperador. Nos termos, havia um conselho de jurados – alistados anualmente por
uma junta especial – que funcionava em dois júris: de acusação e de julgamento;
um juiz municipal e um promotor público, nomeados pelo Governo Geral, na Corte,
ou pelos presidentes, nas províncias, dentre listas tríplices organizadas pelas câmaras
municipais; um escrivão das execuções e oficiais de justiça. Em cada distrito, havia
um juiz de paz eletivo; um escrivão e, para cada quarteirão, um inspetor, nomeados
pela câmara, mediante propostas do juiz; e oficiais de justiça, nomeados pelo juiz.
Funcionavam, ainda, nas comarcas, as juntas de paz, compostas de maior ou menor
número de juízes de paz, que se reunião sob a presidência de um deles, para
conhecer dos recursos das sentenças que cada qual proferisse. As funções policiais
cabiam principalmente aos juízes de paz e, cumulativamente, aos juízes municipais e
ao juiz de direito que tivesse a investidura de chefe de polícia.
Sob a óptica centralizadora e conservadora, o Código de 1832, que inegavelmente
representou um vulto ou ensaio descentralizador – tal como o foi o Ato Adicional (Lei nº 16, de
12 de agosto de 1834, que descentralizou competências internas) – por sobrepujar prerrogativas
locais em detrimento das regionais (provinciais), foi substituído pela Lei de 03 de dezembro de
1841. Note-se que já vigorava a Lei de Interpretação ao Ato Adicional (Lei nº 105, de 12 de
maio de 1840), que o restringiu, significando retorno e reforço ao centralismo.
O art. 133 da Carta Política outorgada previra que os ministros de Estado seriam
responsáveis pelo que obrassem “contra a liberdade, segurança ou propriedade dos cidadãos.”
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.97).
71
Sobre as atribuições das câmaras municipais, dizia o art. 169 respectivo: “O exercício de
suas funções municipais, formação das suas posturas policiais, aplicação das suas rendas e todas
as suas particularidades e úteis atribuições, serão decretadas por uma Lei regulamentar.”
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.101).
No art. 179 do mesmo Diploma Constitucional, inserido no Título 8º (Das disposições
gerais e garantias dos direitos civis e políticos dos cidadãos brasileiros), tinha-se, como já
expresso, a garantia da segurança individual. Por outro lado, como mandamento constitucional,
competia ao império prover a tudo que fosse concernente à segurança interna e externa.
O Ato Adicional, que fez alterações e adições à Constituição do Império, proclamava em
seu art. 10 o seguinte: “Compete às mesmas Assembléias (Legislativas Provinciais) legislar: [...]
§ 4º Sobre a polícia e economia municipal, precedendo propostas das Câmaras.”
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.108-109).
Com a edição da Lei nº 105/1840, que interpretou alguns artigos da Reforma
Constitucional, ficou estabelecido, logo no art. 1º, que
A palavra – Municipal – do Art. 10, § 4º, do Ato Adicional, compreende ambas as
anteriores – Polícia e Economia –, e a ambas se refere a cláusula final do mesmo
artigo – precedendo Propostas das Câmaras. A palavra – Polícia – compreende a
Polícia Municipal, e Administrativa somente, e não a Polícia Judiciária.
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.I, p.115).
Foram criados, no Município da Corte e em cada Província, o cargo de chefe de polícia,
bem como os de delegados e subdelegados (quantos fossem necessários, sendo estes
subordinados àquele), todos nomeados pelo governo (na Corte) e pelos presidentes (nas
províncias), cujas funções, além das policiais, eram também judiciais. Os inspetores de
quarteirão passaram a ser nomeados pelos delegados, a quem ficaram, portanto, subordinados.
Eis outras mudanças, parte delas resultando em diminuição do poder das câmaras municipais:
fim da listra tríplice para nomeação de juízes municipais e promotores, limitação das atribuições
dos juízes de paz, extinção das juntas de paz e dos júris de acusação. Logo, os presidentes das
províncias, indicados pelo Governo Central, e não raro precursores de oligarquias, saíram
fortalecidos com a Lei de Interpretação.
Esse aumento de prerrogativas, que fortaleceu o centralismo, deu-se, inclusive, em
detrimento das assembléias provinciais (BERCOVICI, 2004, p.27-28), criadas para o lugar dos
72
conselhos gerais das províncias, e do elemento local, mediante redução dos municípios a meras
peças auxiliares do mecanismo central. (FAORO, 2001, p.352).
Apesar do centralismo, o múnus de prestar segurança interna (segurança pública) foi em
geral compartilhado com as províncias e, principalmente, com os municípios via suas câmaras
municipais. A valorização do elemento local nessa seara não se deu por diletantismo do
Governo Central, senão para facilitar a blindagem do império e a administração da unidade
territorial, estas sim, as maiores prioridades.
Pode-se dizer que a participação das municipalidades na segurança pública da época fez
antecipar mais do que um debate federativo e republicano, uma necessidade atual: a parceria das
pessoas políticas internas em prol da concretização dos direitos humanos e fundamentais.
5.1.2 Polícia parcial e partidária
A Carta de 1824 reunia paradoxos do tipo: a expressão “unânime aclamação dos povos”,
de inspiração rousseauniana e progressista, convivendo com a equiparação do imperador a uma
figura sagrada e irretorquível, resquício das monarquias absolutas de direito divino; o avanço
que foi o catálogo de direitos civis e políticos, de um lado, e de outro a personificação dos
Poderes Moderador e Executivo sobre a figura do imperador. Tais contradições, não detectáveis
ou abomináveis para o contexto da época, estenderam-se à legislação infraconstitucional. Com
efeito, ao arrepio da divisão das funções sistematizada por Montesquieu, formação da culpa e
pronúncia eram decisões processuais tomadas pelo delegado, ainda que sujeitas ao controle do
juiz municipal, de cuja apreciação cabia recurso. Essa dualidade de funções (policiais e
judiciais), bastante criticada pelos liberais, foi chamada de “policialismo judiciário” (reação ao
“judiciarismo policial” de 1832, este associado à figura do juiz de paz). (LEAL, 1986, p.184).
Essa concentração de poder, aparentemente instrumento de combate à criminalidade e à
impunidade, aliada à falta de garantias (independência, estabilidade, remuneração) dos cargos
de delegado e subdelegado e, por outro lado, à forte influência das elites dominantes,
transformaram o aparelho policial e, por assim dizer, a Lei de 03 de dezembro, em instrumento
de dominação. Afinadas, portanto, com os interesses dos governos central e das províncias, as
autoridades e agentes das estruturas policiais e judiciais tinham atuações decisivas nos pleitos
eleitorais. A propósito, Bercovici (2004, p.28) lembra que “o Presidente da Província escolhia
chefes políticos para decidir a sorte das eleições nos colégios eleitorais, manobrava postos da
73
Guarda Nacional, perseguia e afastava elementos oposicionistas ou suspeitos à situação,
removia ou nomeava autoridades policiais, etc.”
A atribuição dos delegados quanto à formação da culpa e pronúncia dos infratores
perdurou até a restrição imposta pela Lei nº 2.033, de 20 de setembro de 1871, prerrogativa que
restou inalterada em relação aos pequenos delitos (era o chamado procedimento judicialiforme
ou bifendido).
5.1.3 Sobre a escolha e formação dos primeiros chefes de polícia
A ignorância de muitos, de um lado, e a intelectualidade de poucos, de outro,
acompanharam, qual uma sombra, a relação entre governantes e governados no decorrer da
história do Brasil. Já nas primeiras décadas do século XIX a educação superior era cara e
fechada a seletas famílias, pois poucas pessoas tinham disponibilidade financeira para estudar
na Europa, principalmente em Portugal, de onde emergiu o embrião da elite político-jurídica
brasileira.
Se o Exército não importava em boa opção para os postos de sua base, cujas chances de
ascensão eram pequenas para quem não integrava o oficialato, bacharelar-se em Direito passou
a ser um achado: o caminho aberto aos cargos públicos das diversas instâncias de poder.
Enquanto não foi suprida a demanda por bacharéis, somente possível após a criação das
escolas nacionais de Direito, em 1827, os critérios para ocupação dos cargos ou postos de
direção policial eram idoneidade, respeitabilidade comunitária (cite-se, por exemplo, o juiz de
paz, cargo eletivo enquanto durou a flexibilização do centralismo), conhecimento empírico,
além de afinidade com o pensamento político dos governos central e provinciais. O
paternalismo, o “filhotismo” e o nepotismo, porém, não deixaram de incidir nas escolhas,
máxime quando o número de graduados ultrapassou a quantidade de posições a serem
ocupadas.
O pensamento constitucional e político, quiçá a interpretação do País, era obra da
intelectualidade formada pelos bacharéis. Em meados do século XIX, sete em cada dez
ministros e senadores eram graduados em Direito. Muitos desses “mandarins”, antes de
ingressar no núcleo da elite estatal (membros do Senado e do Conselho de Estado, ministros
etc), passavam algum tempo como juízes e delegados de polícia. Os cargos de chefia policial
74
eram reservados, pois, preferencialmente aos bacharéis em Direito, até mesmo pela natureza das
funções, indissociavelmente ligadas ao Processo e ao Direito Criminal.
Em suma, o processo de independência do Brasil exigiu fossem formados quadros
políticos e administrativos que o consolidassem, daí a criação dos cursos jurídicos. Na medida
em que crescia o número de bacharéis, os cargos de direção policial foram sendo ocupados por
eles, experiência que geralmente os conduzia a postos do topo da elite política.
6 NOTA DE FUNDAMENTALIDADE À SEGURANÇA PÚBLICA
Antes de se discorrer sobre o status de fundamentalidade do direito/garantia à segurança
pública, faz-se de bom alvitre, em primeiro momento, que se mostre, ainda que
superficialmente, como ele foi direta ou indiretamente tratado nas constituições brasileiras, para,
em posterior ocasião, passar-se ao que se entende por direitos fundamentais e suas
características, e aos demais tópicos e subtópicos deste capítulo.
6.1 Segurança pública nos textos constitucionais republicanos brasileiros
1
O assunto ou matéria segurança pública tomou assento em todas as constituições
brasileiras, ora com maior, ora com menor ênfase, seja expressa ou implicitamente. Viu-se que,
na Carta outorgada, de 1824 (primeira Constituição brasileira), fora referida como segurança
interna, conforme tratou o capítulo 5 deste trabalho.
Mostrar-se-á agora a incidência direta ou indireta do tema nas constituições republicanas.
Excetuam-se deste tópico comentários sobre normas ligadas à segurança pública nos períodos
(ou estados) de exceção, assim como digressões acerca dos fatores ideológicos que
influenciaram cada Texto Constitucional nos diferentes momentos do constitucionalismo
republicano brasileiro. Também não serão enfocadas análises quanto ao Poder Constituinte, no
que tange a saber em quais interregnos ele esteve ou não usurpado, nem se discutirá sobre
justiça e legitimidade das normas constitucionais aqui enumeradas. Também não serão listadas
normas sobre as Forças Armadas (outrora chamadas Forças de Terra e Mar). O objetivo único
será, pois, pinçar de cada Texto Constitucional que vigorou no Brasil as normas que, de alguma
forma, foram afetas à segurança pública.
6.1.1 Constituição de 1891
Pelo art. 34, competia privativamente ao Congresso Nacional “adotar o regime
conveniente à segurança das fronteiras” (inciso 16), “mobilizar e utilizar a guarda nacional ou
1
Subtítulo desenvolvido com base na Coleção Constituições..., 1999, v. II, III, IV, V, VI, VI-a.
76
milícia cívica, nos casos previstos pela Constituição” (inciso 20), “Legislar sobre a organização
municipal do Distrito Federal, bem como sobre a polícia [...].” (inciso 30).
Conforme o art. 72 (Declaração de Direitos): “A Constituição assegura a brasileiros e a
estrangeiros residentes no país a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à
segurança individual e à propriedade [...].”
6.1.2 Constituição de 1934
Eis a redação do art. 5º: “Compete privativamente à União: [...] V – organizar a defesa
externa, a polícia e segurança das fronteiras e as Forças Armadas; [...] XI – prover os serviços
da polícia marítima e portuária, sem prejuízo dos serviços policiais dos Estados.”
Consignou-se no art. 167: “As polícias militares são consideradas reservas do Exército e
gozarão das mesmas vantagens a este atribuídas, quando mobilizadas ou a serviço da União.”
Já o art. 57, “e”, previa como crime de responsabilidade os atos do presidente da
república, definidos em lei, que atentassem contra a “segurança interna” do País.
Tocante aos direitos e garantias individuais, inscrevera-se no art. 113: “A Constituição
assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos
concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade [...].”
6.1.3 Constituição de 1937
2
Consoante o art. 15, competia privativamente à União: “[...] IV – organizar a defesa
externa, as Forças Armadas, a polícia e a segurança das fronteiras.” Pelo art. 16, também à
União competia legislar, privativamente, sobre:
[...] V – o bem-estar, a ordem, a tranqüilidade e a segurança públicos, quando o
exigir a necessidade de uma regulamentação uniforme.
[...]
2
O preâmbulo desta Carta registrara que: “Atendendo a que, sob as instituições anteriores, não dispunha o
Estado de meios normais de preservação e de defesa da paz, da segurança e do bem-estar do povo. [...]
Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito a sua honra e a sua independência, e ao povo brasileiro,
sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e a sua
propriedade, Decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País.”
(CONSTITUIÇÕES..., 1999, v.IV, p.69-70).
77
XXVI – organização, instrução, justiça e garantias das forças policiais dos estados e
sua utilização como reserva do Exército.
No terreno dos direitos e garantias individuais, o art. 122 vigorou com a seguinte redação:
A Constituição assegura aos brasileiros residentes no País o direito à liberdade, à
segurança individual e à propriedade...
[...]
15 – Todo cidadão tem o direito de manifestar o seu pensamento, oralmente, por
escrito, impresso ou por imagens, mediante condições e nos limites prescritos em
lei.
A lei pode prescrever:
a) com o fim de garantir a paz, a ordem e a segurança pública, a censura prévia da
imprensa, do teatro, do cinematográfico, da radiodifusão, facultando à autoridade
competente proibir a circulação, a difusão ou a representação;
b) medidas para impedir as manifestações contrárias à moralidade pública e aos bons
costumes, assim como as especialmente destinadas à proteção da infância e da
juventude;
c) providências destinadas à proteção do interesse público, bem-estar do povo e
segurança do Estado.
O art. 123, por sua vez, estabelecera que
A especificação das garantias e direitos acima enumerados não exclui outras
garantias e direitos, resultantes da forma de governo e dos princípios consignados na
Constituição. O uso desses direitos e garantias terá por limite o bem público, as
necessidades da defesa, do bem-estar, da paz e da ordem coletiva, bem como as
exigências da segurança da Nação e do Estado em nome dela constituído e
organizado nesta Constituição.
6.1.4 Constituição de 1946
Dizia o art. 183 (caput): “As polícias militares, instituídas para a segurança interna e a
manutenção da ordem nos Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, são consideradas,
como forças auxiliares, reservas do Exército.”
Competia à União, à luz do art. 5º, “superintender, em todo o território nacional, os
serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras” (VII) e, dentre outros deveres, legislar sobre
(XV) “[...] f) organização, instrução, justiça e garantias das polícias militares e condições gerais
de sua utilização pelo Governo Federal nos casos de mobilização ou de guerra.”
Ato do presidente da República que atentasse contra a Constituição Federal e a segurança
interna do País era previsto como crime de responsabilidade (art. 89, IV).
A inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança individual e à
propriedade ficara assegurada aos brasileiros e estrangeiros residentes no País (art. 141, inserido
78
na parte dos direitos e garantias individuais). Em conformidade com o § 11 do art. 141, todos
poderiam se reunir sem armas, “não intervindo a polícia senão para assegurar a ordem pública”.
6.1.5 Constituição de 1967-1969
Conforme estatuído no art. 8º, à União competia:
[...]VIII – organizar e manter a Polícia Federal com a finalidade de:
a) executar os serviços de polícia marítima, aérea e de fronteiras;
b) prevenir e reprimir o tráfico de entorpecentes e drogas afins;
c) apurar infrações penais contra a segurança nacional, a ordem política e social ou
em detrimento de bens, serviços e interesses da União, assim como outras infrações
cuja prática tenha repercussão interestadual e exija repressão uniforme, segundo se
dispuser em lei; e
d) prover a censura de diversões públicas;
[...]
XVII – legislar sobre:
[...]
v) organização, efetivos, instrução, justiça e garantias das polícias militares e
condições gerais de sua convocação, inclusive mobilização.
Art. 13, § 4º: “As polícias militares, instituídas para a manutenção da ordem pública nos
Estados, nos Territórios e no Distrito Federal, e os corpos de bombeiros militares são
considerados forças auxiliares, reserva do Exército [...]”.
Eram considerados crimes de responsabilidade os atos do presidente da República que
atentassem contra a Constituição Federal e a segurança interna do País (art. 82, IV).
A Constituição assegurava aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade (art.
153, inserido entre os direitos e garantias individuais), tendo se estabelecido, no § 27, que
“Todos podem reunir-se sem armas, não intervindo a autoridade senão para manter a
ordem.[...].” Com a Emenda nº 1, de 17 de outubro de 1969, estas normas não foram alteradas.
6.2 Conceito de direitos fundamentais
A expressão direitos fundamentais tem origem na Constituição alemã de 1848, em que
ficou estabelecido um catálogo dos “direitos fundamentais do Povo alemão.” (QUEIROZ, 2002,
p.26). A célebre Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, proclamara que
“toda a sociedade na qual a garantia dos direitos não resulte assegurada [...] não tem
79
Constituição” (art. 16). Tais direitos eram sinônimos de liberdades públicas, ou seja, diziam
respeito, unicamente, aos direitos do indivíduo em face do Estado, ou oponíveis a este.
Renove-se a indagação de Queiroz (2002, p.25): “devem os indivíduos ser protegidos
unicamente do Estado ou também pelo Estado? Já se disse que o caminhar do tempo mostrou
que novos conteúdos foram acrescentados aos direitos fundamentais, e outros com esta
qualidade surgiram, resultando nas sucessivas gerações ou dimensões dos direitos humanos.
Como salienta Queiroz (2002, p.25), referindo-se a uma democracia dos direitos fundamentais,
“a tese de Luhmann, e de certo modo de Habermas, da transformação das pretensões e
expectativas legítimas dos cidadãos em direitos, chega também ao direito constitucional.” Os
horizontes (as concepções filosóficas acerca do conteúdo dos direitos fundamentais) variaram
de época para época, de sociedade para sociedade.
Entende-se por direitos fundamentais certas posições jurídicas que, do ponto de vista do
Direito Constitucional, “são de tal sorte relevantes para a comunidade, que não podem ser
deixadas na esfera da disponibilidade absoluta do legislador ordinário.” (ALEXY, 1994, p.407
apud SARLET, 2005, p.106). Lopes (2001, p.35) define-os, numa acepção material, como
“princípios jurídica e positivamente vigentes em uma ordem constitucional que traduzem a
concepção de dignidade humana de uma sociedade e legitimam o sistema jurídico estatal.”
Direitos fundamentais são, pois, os reconhecidos como tais no tempo (época em que
vigeu o ordenamento jurídico que assim os reconhece) e no espaço (em um determinado Estado
soberano). No Brasil, como em várias partes do mundo, além dos clássicos direitos e garantias
individuais, gozam de fundamentalidade os direitos sociais, os econômicos e os culturais, além
dos difusos.
6.3 Características dos direitos fundamentais
Eis algumas características inerentes aos direitos fundamentais, segundo Lopes (2001,
p.37): a) função dignificadora (resguardo da dignidade humana), b) natureza principiológica
(normas de otimização), c) elementos legitimadores (fundamentam o sistema jurídico e o
Estado), d) normas constitucionais (possuem dimensão fundamental), e e) historicidade (não são
absolutos, imutáveis e universais, como pretendera a posição jusnaturalista).
José Afonso da Silva (2006, p.181), a exemplo de outros autores, também apresenta sua
lista de fatores que caracterizam os direitos que tais, a saber: a) historicidade – surgem (com o
80
movimento liberal-burguês do século XVIII, sob os influxos iluminista e jusnaturalista) e, no
decorrer do tempo evoluem, ampliam-se, adquirem novos contornos e conteúdos; b)
inalienabilidade – são direitos intransferíveis e inegociáveis. “Se a ordem constitucional os
confere a todos, deles não se pode desfazer, porque são indisponíveis”; c) imprescritibilidade –
são sempre exigíveis; e d) irrenunciabilidade – alguns podem até deixar de ser exercidos, mas
não se admite sejam renunciados. Poder-se-ía acrescentar outras características, como as de
direitos supralegais e multifuncionais.
De outra banda, há que se referir à condição de fundamentalidade desses direitos.
Canotilho (1992, p.509), na esteira de Robert Alexy (1994), “aponta para a especial dignidade e
proteção dos direitos num sentido formal e num sentido material.” São dois, por conseguinte, os
tipos de fundamentalidade: a formal e a material. Pela primeira, consoante mostra Sarlet (2005,
p.86-87), os direitos (e garantias) fundamentais: a) fazem parte da Constituição escrita, estando,
portanto, no topo do ordenamento jurídico; b) submetem-se aos limites formais (procedimento
agravado) e materiais (cláusulas pétreas); e c) são normas diretamente aplicáveis e que
vinculam as entidades públicas e privadas. A segunda (fundamentalidade material) traduz-se no
fato de os direitos (e garantias) fundamentais integrarem a Constituição material, esta entendida
como o conjunto de “decisões fundamentais sobre a estrutura básica do Estado e da sociedade.”
Sarlet (2005, p.87-89) lembra que:
Todas aquelas posições jurídicas concernentes às pessoas, que, do ponto de vista do
direito constitucional positivo, foram, por seu conteúdo e importância
(fundamentalidade em sentido material), integradas ao texto da Constituição e,
portanto, retiradas da esfera de disponibilidade dos poderes constituídos
(fundamentalidade formal), bem como as que, por seu conteúdo e significado,
possam lhes ser equiparados, agregando-se à Constituição material, tendo, ou não,
assento na Constituição formal (aqui considerada a abertura material do Catálogo).
Portanto, infere-se de tal conceito que somente a análise do conteúdo de um dado direito
(ou garantia) permite a verificação da sua fundamentalidade material.
6.4 A cláusula de abertura do catálogo de direitos fundamentais
Necessidades e ameaças que circundam o homem mudam com o caminhar dos tempos,
sendo necessários novos instrumentos de satisfação às primeiras e de combate às últimas.
Queiroz (2002, p.48-49) aponta que os direitos fundamentais surgem no Estado constitucional
como reação àquelas ameaças e, na esteira de Häberle, justifica uma “abertura de conteúdos,
de funções, e de formas de protecção, de modo a que todos esses direitos possam ser definidos
contra os ‘novos’ perigos que possam surgir no curso do tempo.”
81
Como não existe um numerus clausus das dimensões de tutela, assim como inexiste um
numerus clausus dos perigos (QUEIROZ, 2002, p.49), chega-se ao caráter de abertura do
catálogo de direitos e garantias fundamentais, cláusula que proporciona a identificação de novos
direitos e garantias com status de fundamentalidade, tanto na perspectiva individual, como na
coletiva, social e na difusa.
No Brasil, segundo escreve Rodrigues (2008, p.151), a ordem constitucional dos direitos e
garantias fundamentais é “pluralista, aberta e não hierárquica.” Essa cláusula de abertura está
assentada no art. 5º, § 2º, da Constituição Federal em voga, com a seguinte redação: “os direitos
e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos
princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do
Brasil seja parte.”
6.5 Nota de fundamentalidade à segurança pública: o art. 144, caput, da
Constituição Federal de 1988
O trabalho constituinte realizado no biênio 1987/1988 foi precedido de estudos e debates
acerca de assuntos importantes que certamente tomariam assento – e muitos efetivamente
vieram a tomar – na então vindoura Constituição. Segurança pública foi um desses assuntos.
6.5.1 A proposta da Comissão Afonso Arinos
Durante o governo do então presidente José Sarney, foi criada, via Decreto nº 91.450, de
18 de julho de 1985, uma Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, encarregada de
elaborar um anteprojeto para o Texto Constitucional. A comissão ganhou o nome do jurista que
a presidiu: Afonso Arinos de Melo Franco. Célio Borja (CONSTITUIÇÃO..., 1987, p.V)
3
anota
que ela fora composta por “homens e mulheres de formação acadêmica e profissional variada,
de diferentes credos religiosos e políticos, portadores de valores e experiências nem sempre
coincidentes.” O resultado foi um documento longo e abrangente, que teria se transformado,
caso tivesse sido recepcionado pelos deputados constituintes, numa Constituição ainda mais
regulamentar e prolixa do que a que veio a ser promulgada em 1988. Para Borja
(CONSTITUIÇÃO..., 1987, p.V)
4
, entretanto, tratava-se de “um repositório bastante completo
de velhas e novas aspirações da sociedade brasileira.” Em relação à segurança pública, a
proposta previa o seguinte:
3
Em apresentação à Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos..., 1987.
4
Em apresentação à Constituição Federal; anteprojeto da Comissão Afonso Arinos..., 1987.
82
Art. 416. Compete aos Estados a preservação da ordem pública, da incolumidade
das pessoas e do patrimônio, através da polícia civil, subordinada ao Poder
Executivo.
§ 1.º A polícia civil, além da função de vigilância ostensiva e preventiva que lhe
competir, será incumbida da investigação criminal.
§ 2.º A polícia civil poderá manter quadros de agentes uniformizados.
Art. 417. Os Estados poderão manter polícia militar, subordinada ao Poder
Executivo, para garantia da tranqüilidade pública, por meio de policiamento
ostensivo, quando insuficientes os agentes uniformizados da polícia civil e do Corpo
de Bombeiros.
Art. 418. Observados os princípios estabelecidos neste Capítulo, os Estados
organizarão a sua atividade policial, de modo a garantir a segurança pública,
utilizando os seus efetivos e equipamentos civis e militares.
Art. 419. Os Municípios com mais de duzentos mil habitantes poderão criar e
manter guarda municipal como auxiliar da polícia civil.
Art. 420. Na hipótese do estado de alarme, de sítio, de intervenção federal ou de
guerra, as forças policiais poderão ser convocadas ou submetidas ao comando das
Forças Armadas.
Art. 421. Compete à Polícia Federal:
I – executar os serviços da polícia marítima, aérea e de fronteiras;
II – prevenir e reprimir o tráfico de entorpecentes e drogas alucinógenas;
III – sem prejuízo de igual competência das Polícias estaduais, apurar infrações
contra instituições democráticas e a economia popular, ou em detrimento de bens,
serviços e interesses da União, assim como outras infrações cuja prática tenha
repercussão interestadual e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
IV – policiamento nas rodovias e estradas de ferro federais;
V – ação repressiva contra crimes de repercussão internacional, controle e
documentos de estrangeiros, e a expedição de passaportes;
VI – suprir a ação dos Estados para apuração de infrações penais de qualquer
natureza, por iniciativa própria e na forma da lei complementar;
VII – apurar infrações e crimes eleitorais.
Parágrafo único. A polícia federal será organizada segundo os princípios da
hierarquia e da disciplina e exercida com estrita observância da lei, que punirá
qualquer abuso de autoridade. (CONSTITUIÇÃO..., 1987, p. 259-260).
Vê-se, pela sugestão, que o único órgão policial da União seria a Polícia Federal, que
acumularia funções policiais de apuração das infrações penais, prevenção destas e de polícia
administrativa. No âmbito dos estados, à luz do citado texto, haveria necessariamente uma
corporação policial, de natureza civil, encarregada dos misteres de polícia judiciária e
preventivo-ostensiva, contando, neste caso, com segmento fardado.
Evidentemente o anteprojeto em alusão não foi o adotado, embora de alguma forma e em
alguns pontos tenha influenciado o trabalho dos constituintes. No que tange a nomenclatura,
quantidade e atribuições gerais de cada órgão policial, prevaleceu, obviamente, a opção pelo
conteúdo assentado no atual art. 144 da Constituição Federal.
83
6.5.2 A estrutura do art. 144
Abandonando a dogmática jurídica tradicional, que distinguia entre normas e princípios,
Canotilho (1999, p.1086) aduz que princípio é espécie, assim como a regra o é, de um só
gênero: a norma. Em outras palavras: as normas constitucionais (gênero) se apresentam sob a
forma de princípios e regras (espécies), que se distinguem segundo vários critérios.
Segundo Canotilho (1999, p.1086-1087), os princípios têm maior grau de abstração do
que as regras. Estas, quanto ao “grau de determinabilidade na aplicação do caso concreto”, são
aplicadas diretamente, enquanto que aqueles carecem de “mediações concretizadoras.” Os
princípios possuem caráter de fundamentalidade (papel fundamental no ordenamento jurídico) e
natureza normogenética (fundamentam e constituem a ratio das regras). “Os princípios são
‘standards’ juridicamente vinculantes radicados nas exigências de ‘justiça’ (Dworkin) ou na
‘ideia de direito’ (Larenz); as regras podem ser normas vinculativas com um conteúdo
meramente funcional.” (CANOTILHO, 1999, p.1086). Por princípio, entende Dworkin (1984,
p.90 apud QUEIROZ, 2002, p.131), “todas as medidas, independentemente de se encontrarem
ou não corporizadas em regras, que se apresentam como argumentos a favor dos direitos
fundamentais.” As regras constitucionais podem ser divididas em “jurídico-organizatórias”, que
por sua vez se subdividem nas de competência e nas de criação de órgãos (normas orgânicas), e
“jurídico-materiais”, que, por sua vez, se subdividem nas de direitos fundamentais, de garantias
institucionais, nas determinadoras de fins e tarefas do Estado e nas regras constitucionais
impositivas, conforme classificação de Canotilho (1999, p.1093-1099). O art. 144 da
Constituição Federal de 1988 é assim redigido:
A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é
exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do
patrimônio, através dos seguintes órgãos:
I – polícia federal;
II – polícia rodoviária federal;
III – polícia ferroviária federal;
IV – polícias civis;
V – polícias militares e corpos de bombeiros militares.
§ 1º. A polícia federal, instituída por lei como órgão permanente, organizado e
mantido pela União e estruturado em carreira, destina-se a:
I – apurar infrações penais contra a ordem política e social ou em detrimento de
bens, serviços e interesses da União ou de suas entidades autárquicas e empresas
públicas, assim como outras infrações cuja prática tenha repercussão interestadual
ou internacional e exija repressão uniforme, segundo se dispuser em lei;
84
II – prevenir e reprimir o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o
contrabando e o descaminho, sem prejuízo da ação fazendária e de outros órgãos
públicos nas respectivas áreas de competência;
III – exercer as funções de polícia marítima, aeroportuária e de fronteiras;
IV – exercer, com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União.
§ 2º. A polícia rodoviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela
União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento
ostensivo das rodovias federais.
§ 3º. A polícia ferroviária federal, órgão permanente, organizado e mantido pela
União e estruturado em carreira, destina-se, na forma da lei, ao patrulhamento
ostensivo das ferrovias federais.
§ 4º. Às polícias civis, dirigidas por delegados de polícia de carreira, incumbem,
ressalvada a competência da união, as funções de polícia judiciária e a apuração de
infrações penais, exceto as militares.
§ 5º. Às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem
pública; aos corpos de bombeiros militares, além das atribuições definidas em lei,
incumbe a execução de atividades de defesa civil.
§ 6º. As polícias militares e corpos de bombeiros militares, forças auxiliares e
reserva do exército, subordinam-se, juntamente com as polícias civis, aos
Governadores dos Estados, do Distrito Federal e dos Territórios.
§ 7º. A lei disciplinará a organização e o funcionamento dos órgãos responsáveis
pela segurança pública, de maneira a garantir a eficiência de suas atividades.
§ 8º. Os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de
seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei.
§ 9º. A remuneração dos servidores policiais integrantes dos órgãos relacionados
neste artigo será fixada na norma do § 4º do art. 39.
Trata-se de dispositivo constitucional híbrido ou misto, cuja cabeça possui características
de norma principiológica, porquanto definidora de um direito/garantia fundamental, que é a
segurança pública, enquanto o restante é formado de regras jurídico-organizatórias, boa parte
das quais de cunho orgânico.
6.5.3 A nota de fundamentalidade
Esgrimidas as considerações sobre conceito e características dos direitos fundamentais, e
com base no art. 5º, § 2º da Constituição Federal, por meio do qual os direitos e garantias
expressos na Carta Magna não excluem “outros decorrentes do regime e dos princípios por ela
adotados”, pode-se reconhecer o status de fundamentalidade da segurança pública – art. 144,
caput, da Constituição Federal – em virtude de um conjunto de fatores.
Por fundamentalidade entende-se a prioridade de certos escalões normativos sobre outros,
sujeitando e vinculando o Estado (nas diferentes esferas e em todos os poderes) e os particulares
(eficácia horizontal). Já foi mencionada a existência de duas fundamentalidades: a material e a
formal.
85
Tratando-se especificamente da segurança pública, vislumbra-se a fundamentalidade
formal com o simples cumular dos dois referidos dispositivos constitucionais (o art. 144, caput,
e o art. 5º, § 2º, da Constituição Federal).
Quanto à fundamentalidade material, ela se faz presente em virtude da importância
(relevância) e do conteúdo (substância) da matéria. Vale ressaltar, conforme defende Sarlet
(2005, p.106), que, na identificação dos direitos fundamentais de fora do catálogo, importa “que
se tenha sempre presente o critério da importância, atentando-se para a efetiva correspondência
com o sentido jurídico dominante, cuja avaliação dependerá, sem dúvida, da sensibilidade do
intérprete.”
Quanto ao conjunto de fatores há pouco referido, é possível asserir que o direito-garantia
em tela carrega em si os caracteres já enumerados no item 6.3 deste trabalho, possuindo, pois,
função dignificadora, natureza principiológica, característica de elemento legitimador, sendo
norma constitucional (portanto, supralegal), além de inalienável, imprescritível e irrenunciável,
e sujeitando-se à historicidade.
Com efeito, segurança pública possui perene e indissociável vínculo com o princípio da
dignidade da pessoa humana, a quem sobreleva e resguarda, na medida em que protege bens
jurídicos fundamentais e serve de meio para o gozo de direitos básicos inerentes a qualquer ser
humano, como vida, liberdade, saúde (integridade física e mental), propriedade e paz, para não
citar outros.
Foi mencionado, há pouco, que a cabeça do art. 144 da Constituição apresenta
características de norma principiológica, porquanto definidora de um direito/garantia
fundamental, que é a segurança pública. Por isso é que não se vislumbra incompatibilidade
entre segurança pública e direitos humanos, embora exista uma constante tensão entre eles (vide
tópico 6.7, adiante), haja vista que normas principiológicas convivem entre si, devendo sempre
o núcleo fundamental de cada princípio ser respeitado.
Quando se diz, com Canotilho (1999, p.1193), que segurança pública “legitima certas
restrições ao direito à liberdade e à segurança pessoal, designadamente através da instituição de
medidas privativas de liberdade”, é porque aquela age no ordenamento jurídico como elemento
legitimador das restrições previstas em lei.
86
A matéria ora comentada tem assento na Constituição da República Federativa do Brasil,
portanto, à evidência, e como já se destacou, é assunto supralegal.
Os direitos fundamentais são criações de um contexto histórico. O que é fundamental para
uma sociedade hoje pode não ser amanhã, e o que não era fundamental ontem pode, hoje, vir a
sê-lo. Com relação à historicidade, segurança pública reflete algo atual, de ingente importância
e necessidade à sociedade brasileira, das zonas urbanas às rurais; dos estados mais ricos aos
mais pobres. O Constituinte de 1988, de forma pioneira, deu-lhe assento em capítulo próprio,
destacando a necessidade da matéria.
Segurança pública é algo inalienável, porquanto impossível de ser transferida a título
gratuito ou oneroso. Essa inalienabilidade é inerente a todos os direitos e garantias
fundamentais, haja vista que estes são de todas as pessoas, “por isso não são alienáveis ou
negociáveis, já que correspondem a prerrogativas não contingentes e inalteráveis de seus
titulares e a outros tantos limites e vínculos inarredáveis para todos os poderes, tanto públicos
como privados.” (FERRAJOLI, 1999, p.38-39).
O direito à segurança pública não prescreve, isto é, não se perde com o decurso do tempo.
Aliás, o serviço de segurança pública é ininterrupto. Por outro lado, deve ser universalizado de
maneira igual, porquanto, à luz do multicitado art. 144, é “dever do Estado” e “direito de
todos.” A propósito, comenta Souza Neto (2008, p.86-87):
O administrador não pode conceder benefícios ou onerar os administrados tendo em
vista seus preconceitos e preferências; não pode estabelecer distinções que adotem
como critério a classe social, a cor da pele ou o local de moradia (CF, art. 3º, IV). O
programa constitucional nos impõe a superação da tendência atual de se conceber
parte da população como a que merece proteção – as classes médias e altas – e parte
como a que deve ser reprimida – os excluídos, os habitantes das favelas.
Não se renuncia ao direito/garantia segurança pública. Ainda que alguém, expressa ou
tacitamente se mostre capaz de não usufruir dele, não poderá optar entre ser livrado ou não de
situações de perigo caso estas venham a ocorrer, como no caso de infrações penais, acidentes de
tráfego, afogamentos etc.
Segurança pública é corolário da fórmula política Estado Democrático de Direito. Nesse
sentido, Santin (2004, p.80) observa que,
Na sua dimensão atual, o direito à segurança pública tem previsão expressa na
Constituição Federal do Brasil (preâmbulo, arts. 5º, 6º e 144) e decorre do Estado
Democrático de Direito (cidadania e dignidade da pessoa humana, art. 1º, II e III,
87
CF) e dos objetivos fundamentais da República (sociedade livre, justa e solidária e
bem de todos, art. 3º, I e IV).
Reforçando tal entendimento, Monet (2001, p.29) predica:
A democracia tem necessidade da polícia: uma sociedade livre não pode dispensar
um certo nível de ordem, ou ainda, de previsibilidade, nas trocas sociais cotidianas.
Quer se trate de limitar a extensão dos comportamentos predadores sem retroceder à
autodefesa dos séculos passados, de facilitar os deslocamentos em sociedades
marcadas pela mobilidade, de regrar as divergências pelas quais a arbitragem é
pedida ou deve ser imposta, a força do elo social e a qualidade de vida de que se
beneficia a maioria dos cidadãos das sociedades ocidentais dependem, em boa parte,
da maneira como a polícia cumpre as tarefas para as quais ela é solicitada ou que ela
própria se atribui. Não só os cidadãos esperam da polícia que ela lhes assegure um
certo nível de segurança, mas lhe pedem que o faça de tal modo que sua convicção
democrática saia reforçada.
De outra banda, como espécie do gênero segurança, segurança pública é parte que integra
e possui características do todo chamado princípio da segurança, inscrito no art. 5º caput, no art.
6º, e previsto no preâmbulo da Constituição de 1988. Segurança pública radica, pois, de uma
matriz – a segurança, ou melhor, o direito humano (e fundamental) à segurança, cuja
fundamentalidade é indiscutível. Repita-se, então, que, como parte do todo, ela possui
características dele.
Para Souza Neto (2008, p.86), a fundamentalidade da segurança pública advém do elo
entre ela e o princípio republicano, a saber:
Além de ser decorrência da titularidade veiculada no caput do art. 144 (‘a segurança
[...] direito de todos’) e de sua jusfundamentalidade, a exigência da universalização
igual da segurança pública, da não seletividade, decorre ainda do princípio
republicano. Em uma república, o Estado é res pública, coisa pública. Por isso, a
Administração, em que se incluem os órgãos policiais, deve tratar a todos os
administrados com impessoalidade, i.e., de maneira objetiva e imparcial.
Por derradeiro, acrescente-se a situação topográfica da matéria no Texto Constitucional,
algo que também merece comentário. O Capítulo III (art. 144) está localizado no Título V – Da
Defesa do Estado e das Instituições Democráticas. Ratifica-se, com isto, a importância da
segurança pública para a defesa da paz interna e da ordem pública, concorrendo ela para a
normalidade do Estado, das instituições democráticas e das relações interpessoais e
comunitárias na sociedade.
6.5.3.1 Contribuição buscada em Jürgen Habermas
Consoante aduz Habermas (2004, p.237), o direito racional fez brotar a ideia segundo a
qual os cidadãos, por vontade própria, ligam-se “a uma comunidade de jurisconsortes livres e
88
iguais”, representando tal asserção o travejamento das constituições modernas, que fazem valer
“os direitos que os cidadãos precisam reconhecer mutuamente, caso queiram regular de maneira
legítima seu convívio com os meios do direito positivo.”
Não se distanciando do pensamento de que o indivíduo só está obrigado a obedecer a lei
cuja elaboração resulte da vontade geral para a qual ele concorreu (ROUSSEAU, 2006),
Habermas (2004, p.242) salienta que “os destinatários do direito só podem ganhar autonomia
(em sentido kantiano) à medida que eles mesmos possam compreender-se como autores das leis
às quais eles mesmos estão submetidos como sujeitos privados do direito.”
Habermas (2002, p.58) entende que democracia e Estado de Direito pressupõem “a ideia
de um processo de argumentação o mais inclusivo possível [...], (que desempenha) um
importante papel para o esclarecimento [...] da ‘aceitabilidade racional’.” Baseando-se no
conceito de aceitabilidade racional, ele detalha como são constituídos os consensos
democráticos e, por conseguinte, instituídos os meios do direito positivo. Diz Habermas (2002,
p.59):
As exigências de verdade nos discursos não se deixam solucionar definitivamente;
entretanto, é somente através de argumentos que nos deixamos convencer da
verdade de afirmações problemáticas. Convincente é o que pode ser aceito como
racional. A aceitabilidade racional depende de um procedimento que não protege
‘nossos’ argumentos contra ninguém nem contra nada. O processo de argumentação
como tal deve permanecer aberto para todas as objeções relevantes e para todos os
aperfeiçoamentos das circunstâncias epistêmicas. Este tipo de prática de
argumentação a mais inclusive e contínua possível se subordina à idéia de uma
limitação cada vez maior das formas de entendimento atuais com respeito a espaços
sociais, tempos históricos e competências fatuais.
Sob a óptica habermasiana, a argumentação precisa ser a mais inclusiva possível e aberta
a todas as objeções. Por outro lado, as formas de entendimento devem ocorrer sem violência,
coação, fundamentalismo, medo etc, pois só assim será possível a formação livre dos consensos
democráticos. É neste ponto que se vislumbra a fundamentalidade da segurança pública, haja
vista o fato de que medo, insegurança e violência são, pois, antagônicos a qualquer noção de
democracia.
Montesquieu (1999, p.167) tem razão e continua atual ao dizer que “a liberdade política
em um cidadão é aquela tranqüilidade de espírito que provém da convicção que cada um tem da
sua segurança. Para ter-se essa liberdade, precisa que o Governo seja tal que cada cidadão não
possa temer outro.” Segurança pública se afigura, pois, como condição de possibilidade – não a
89
única – para a formação livre dos consensos democráticos. Nesse contexto, Habermas (2002,
p.66-67) acentua, ainda:
Contudo, [...] sabemos que uma prática não deve ser levada a sério como
argumentação, quando não satisfaz pressupostos pragmáticos determinados. As
quatro pressuposições mais importantes são: (a) publicidade e inclusão; ninguém
que à vista de uma exigência de validez controversa, possa trazer uma contribuição
relevante, deve ser excluído; (b) direitos comunicativos iguais: a todos são dadas as
mesmas chances de se expressar sobre as coisas; (c) exclusão de enganos e ilusões:
os participantes devem pretender o que dizer; e (d) não-coação: a comunicação deve
estar livre de restrições, que impedem que o melhor argumento venha à tona e
determine a saída da discussão.
Enxerga-se, uma vez mais, que onde há medo, violência e insegurança, não há
argumentação livre nem convencimento racional, e a democracia resta afetada, senão
comprometida. Modo de exemplo a ilustrar a asserção, cite-se o que ocorreu no Rio de Janeiro
durante as eleições municipais de 2008. É fato, porquanto amplamente noticiado pela grande
imprensa, que para lá foram requisitadas tropas federais, que atuaram em conjunto com órgãos
estaduais de segurança pública a fim de que, em comunidades influenciadas por traficantes e/ou
“milícias”, fossem garantidos o acesso de todo e qualquer candidato perante o eleitorado
respectivo e a liberdade de escolha por parte deste.
Medida desse estado de coisas é dada por Arnaldo Vasconcelos (2001, p.66-67), ao
discorrer sobre o que ele chama de “sistema de contradireito”, assim chamado por configurar
uma estrutura de oposição ao Estado de Direito e à sociedade, tratando-se, pois, de Estado
paralelo presente no (sub)mundo das associações de malfeitores, da seguinte maneira:
Onde quer que existam, elas podem ser identificadas por buscarem um mesmo
objetivo – o enriquecimento ilícito através da prática do crime organizado –, e por se
dedicarem a atividades semelhantes, entre as quais estão o tráfico de drogas, os
jogos de azar, o seqüestro, o tráfico de mulheres e crianças, a exploração sexual de
menores, o furto de automóveis, os assaltos, o contrabando e a lavagem de dinheiro
sujo, todas elas apontando para um mesmo desfecho: a matança profissional. Seus
nomes são conhecidos aqui e no mundo todo. Identificam-se pelo apelido tradicional
de máfia e coexistem com quaisquer regimes políticos. Entre nós, podem chamar-se
Seita Satânica, Os Dragões, Comando Vermelho ou Primeiro Comando da Capital, e
seus integrantes encontram-se tanto entre nós, livremente circulando, como
segregados nos presídios, a partir de onde dirigem com desenvoltura suas
organizações. O estigma social já não os alcança como antes, em razão do arremedo
de política assistencialista que desenvolvem nas áreas miseráveis sob sua influência,
as favelas que circundam as grandes cidades. Suas pretensões de poder, porém,
ultrapassam esses limites. Com efeito, têm essas associações pretendido negociar
com os governos federal, estadual e municipal assuntos os mais variados, como a
libertação de reféns, a transferências de prisioneiros, e até a ajuda na manutenção da
segurança pública em oportunidades em que o país recebe chefes de Estados
estrangeiros ou sedia eventos internacionais de grande vulto. Com os particulares,
especialmente com os pequenos comerciantes das suas zonas de influência,
costumam negociar a proteção pessoal deles e a segurança de seus estabelecimentos.
Esse conjunto ostensivo de ilegalidades, às vezes promovidas com estardalhaço para
90
assim testarem os limites efetivos de seu poder, formam a matéria básica de seu
sistema [...]. Aí, o que existe, em seu estado mais primário, é a força bruta, o
domínio pleno da violência. O contradireito da violência.
Entende-se, com Habermas, que o Estado de Direito é necessariamente democrático.
Logo, segurança pública vai ao encontro de se ter que garantir condições indispensáveis à
formação dos consensos democráticos e, até mesmo, das normas jurídicas, já que os
legisladores devem ser livremente escolhidos e atuar com independência, assim como o povo,
sem medo, sem violência, nem qualquer coação ilegal.
6.5.4 O porquê do status de fundamentalidade
O caráter, dimensão ou perspectiva objetiva, presente nos direitos fundamentais como
aspecto de função autônoma deles, independentemente de ser ou não a norma definidora de
direito subjetivo, aliado ao art. 5º, § 1º da CF, segundo o qual “As normas definidoras dos
direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata”, implica a concentração de esforços
no sentido de garantir e efetivar o direito à segurança pública.
Os direitos fundamentais não se limitam à condição de direitos subjetivos de defesa do
indivíduo em face do Poder Público. Além disto, eles “constituem decisões valorativas de
natureza jurídico-objetiva da Constituição, com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que
fornecem diretrizes para os órgãos legislativos, judiciários e executivos”, aos quais destina,
portanto, objetivos básicos e fins diretivos deão positiva. (SARLET, 2005, p.157). Sarlet
(2005, p.163-164) explica que:
Outra importante função atribuída aos direitos fundamentais e desenvolvida com
base na existência de um dever geral de efetivação atribuído ao Estado, por sua vez
agregado à perspectiva objetiva dos direitos fundamentais, diz com o
reconhecimento de deveres de proteção (Schutzpflichten) do Estado, no sentido de
que a este incumbe zelar, inclusive preventivamente, pela proteção dos direitos
fundamentais dos indivíduos não somente contra os poderes públicos, mas também
contra agressões provindas de particulares e até mesmo de outros Estados. Esta
incumbência, por sua vez, desemboca na obrigação de o Estado adotar medidas
positivas da mais diversa natureza (por exemplo, por meio de proibições,
autorizações, medidas legislativas de natureza penal, etc.), com o objetivo precípuo
de proteger de forma efetiva o exercício dos direitos fundamentais. (grifou-se).
Assim, à administração pública cabe satisfazer categorias de direitos fundamentais,
adotando ações e programas até o máximo possível para dar plena efetividade ao seu exercício.
Afim de conferir efetividade ao dever estatal para com a segurança pública, não basta a
preocupação em investir e aprimorar os órgãos de segurança pública, mas concretizar ações em
91
forma de políticas públicas sociais preventivas, cujos resultados repercutirão positivamente para
uma sociedade menos desigual, menos violenta e com menores índices de criminalidade.
Souza Neto (2008, p.81), que ressalta a segurança pública como direito fundamental, aduz
que essa constitucionalização (com jusfundamentalidade, acrescente-se):
Traz importantes consequências para a legitimação da atuação estatal na formulação
e na execução de políticas de segurança. As leis sobre segurança, nos três planos
federativos de governo, devem estar em conformidade com a Constituição Federal,
assim como as respectivas estruturas administrativas e as próprias ações concretas
das autoridades policiais. O fundamento último de uma diligência investigatória ou
de uma ação de policiamento ostensivo é o que dispõe a Constituição.
Desse status de fundamentalidade é que se impõe seja a segurança pública, assim como os
demais direitos e garantias fundamentais, limite e tarefa a todos os poderes estatais, às quatro
esferas federadas, à sociedade e a cada indivíduo que nela interage (eficácia horizontal).
De ressaltar, além da vinculatividade, a entrada da matéria (segurança pública), inscrita no
caput do art. 144 da Carta Política, no campo de proteção das cláusulas pétreas – “núcleo duro
irrevisível” da Constituição, usando-se expressão de Canotilho (1999) – e da proibição de
retrocesso, o que vem ao encontro da importância dada ao tema pelo constituinte de 1987-1988.
6.6 Segurança pública e classificações dos direitos fundamentais
Os direitos fundamentais podem ser classificados segundo seus titulares, em: a) direitos
individuais – direitos do indivíduo considerado isoladamente (uma pessoa, física ou jurídica,
nacional ou estrangeira); b) direitos coletivos – titularizados por determinado ou determinável
grupo de pessoas unidas por uma relação jurídica básica; e c) direitos difusos – os
transindividuais de natureza indivisível de um grupo indeterminado de pessoas ligadas por
circunstâncias de fato. (LOPES, 2001).
Santin (2004, p.80), não desconhecendo a relação do direito à segurança pública com cada
geração ou dimensão dos direitos humanos, considera-o um direito predominantemente de
caráter difuso, com características de direito humano (Grifou-se). Tal posição parece sustentar-
se nas características de transindividualidade, indivisibilidade
5
e de solidariedade
6
presentes no
direito à segurança pública. Compartilhando desse entendimento, conforme fora dito no item
5
A qualidade de indivisibilidade do serviço de segurança pública é referida pelo STF na Adin nº 1942 (decisão
de 05.05.1999, publicada em 22.10.1999) e, mais recentemente, no agravo de instrumento nº 582010 (decisão
de 29.03.2006, publicada em 18.04.2006).
6
Vide tópico 6.8 e subtópico 6.8.2.
92
3.3 retro, Alvim (2006, p.15-33) deixa estampada sua posição logo no título de seu abalizado
estudo sobre o assunto – Ação civil pública e direito difuso à segurança pública –, aduzindo
que tal direito (fundamental) tem as características (próprias dos direitos difusos) traçadas pelo
art. 81, I, do Código de Defesa do Consumidor, a saber: “transindividual, de natureza
indivisível, de que são titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.”
(Grifou-se).
Sarlet (2005, p.185) divide os direitos fundamentais em dois grupos: a) direitos
fundamentais como direitos de defesa; e b) direitos fundamentais como direitos a prestações.
Este subdividido em: b.1 – direitos a prestações em sentido amplo
7
(b.1.1. – direitos à proteção;
b.1.2 – direitos à participação na organização e procedimento), e b.2 – direitos a prestações em
sentido estrito.
Se considerada a segurança pública como um direito, cogitar-se-ia na inclusão dela entre
os direitos a prestações em sentido amplo, na modalidade de direito à proteção, pois,
recorrendo-se mais uma vez à lição de Sarlet (2005, p.211-212), tem-se que,
Tomando como base a formulação de Alexy, os direitos à proteção podem ser
sumariamente conceituados como posições jurídicas fundamentais que outorgam ao
indivíduo o direito de exigir do Estado que este o proteja contra ingerências de
terceiros em determinados bens pessoais. O reconhecimento de direitos à proteção
pode ser reconduzido aos desenvolvimentos decorrentes da perspectiva jurídico-
objetiva dos direitos fundamentais. Neste contexto, [...] ao Estado, em decorrência
do dever geral de efetivação dos direitos fundamentais, incumbe zelar – inclusive em
caráter preventivo – pela proteção dos direitos fundamentais dos indivíduos, não só
contra ingerências indevidas por parte dos poderes públicos, mas também contra
agressões provindas de particulares [...], dever este que, por sua vez, desemboca na
obrigação de adotar medidas positivas com vista a garantir e proteger de forma
efetiva a fruição dos direitos fundamentais. Quanto ao objeto dos direitos à proteção,
é preciso levar em conta que estes não se restringem à proteção da vida e da
integridade física, alcançando tudo que se encontra sob o âmbito de proteção dos
direitos fundamentais, como a dignidade da pessoa humana em geral, a liberdade, a
propriedade, incluindo até mesmo a proteção contra os riscos da utilização pacífica
da energia atômica. Da mesma forma, são múltiplos os modos de realização desta
proteção, que pode se dar, como já referido, por meio de normas penais, de normas
procedimentais, de atos administrativos e até mesmo por uma atuação concreta dos
poderes públicos.
Ao Estado “se impõe o dever de proteger efetivamente a vida humana, já que esta
constitui a própria razão de ser do Estado, além de pressuposto para o exercício de qualquer
direito (fundamental, ou não).” (SARLET, 2005, p.352). Segurança pública estaria inserida,
pois, nos chamados deveres de proteção do Estado.
7
Sarlet (2005, p.207) salienta que “independentemente do modelo adotado de classificação dos direitos do status
positivus, há que ter como certo o fato de que necessariamente devem ser considerados em sentido amplo, na
medida em que não se restringem [...] aos direitos sociais.”
93
6.7 Tensão entre direitos fundamentais e segurança pública
À luz do constitucionalismo moderno ocidental, o homem, na sua individualidade, é
situado acima do Estado e da coletividade. Sendo ele (indivíduo), porém, um ser que convive e
compartilha necessidades, direitos e deveres com seus semelhantes, há que existir um equilíbrio
entre os interesses individuais e os da sociedade.
A ideia segundo a qual ao Estado não é dado molestar ou de alguma forma constranger
alguém, senão em situações estritamente necessárias, vem, como já visto, desde o Estado
liberal. Com peanha neste modelo, o homem e sua esfera pessoal de liberdade passam a gozar
de proteção ante o jus imperii estatal, isto é, contra intervenções abusivas e inconstitucionais por
parte do Poder Público – tudo em nome da liberdade, legalidade e segurança.
No campo da segurança pública, a ocorrência de conflitos de direitos sucede
constantemente. Para Vizzotto (2006, p.133-154), trata-se do setor estatal onde mais se
exteriorizam o jus cogens e o jus imperii.
Sob a égide da Constituição de 1988, esta lição encontrou ampla receptividade. Não de
forma pioneira
8
, o constituinte estabeleceu no art. 5º, LXVIII: “conceder-se-á habeas corpus
sempre que alguém sofrer ou se achar ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade
de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.” O habeas corpus presta-se, pois, a garantir
direitos dos acusados em geral, relacionados com sua a liberdade de locomoção, que
compreende ir, vir e ficar, ainda que ela, estando na simples condição de direito-meio, seja ou
possa ser afetada apenas de modo reflexo, indireto ou oblíquo. (MELLO FILHO, 1986, p.459).
Em meio à tensão entre segurança pública e direitos fundamentais, o Supremo Tribunal
Federal assim se manifestou recentemente:
A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal é firme no sentido de só admitir o
trancamento de ação penal e de inquérito policial em situações excepcionais.
Situações que se reportem a conduta não-constitutiva de crime em tese, ou quando já
estiver extinta a punibilidade, ou ainda, se inocorrentes indícios mínimos da autoria.
Precedente: HC 84.232-AgR. 2. Todo inquérito policial é modalidade de
investigação que tem seu regime jurídico traçado a partir da Constituição Federal,
mecanismo que é das atividades genuinamente estatais de 'segurança pública'.
Segurança que, voltada para a preservação dos superiores bens jurídicos da ordem
pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, é constitutiva de explícito
'dever do Estado, direito e responsabilidade de todos' (art. 144, cabeça, da C.F.). O
que já patenteia a excepcionalidade de toda medida judicial que tenha por objeto o
8
No Brasil, o habeas corpus foi guindado à condição de norma constitucional com o advento da Carta de 1891,
cujo Art. 72, § 22, dizia: “Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se achar em iminente
perigo de sofrer violência ou coação por ilegalidade ou abuso de poder.” (BASTOS, 1996, p. 212).
94
trancamento de inquérito policial. Habeas corpus indeferido. BRASIL, Supremo
Tribunal Federal. HC nº 87.310-3, 1ª Turma. Acórdão de 08/08/2006, Diário da
Justiça, Brasília, DF, 17 nov. 2006.
Tal acórdão aponta para a mencionada tensão entre, de um lado, a liberdade, e de outro a
segurança pública, e ratifica a inarredabilidade desta, mesmo que seu exercício acarrete
restrição (nunca violação) a certos direitos fundamentais.
Canotilho (1999, p.1193), discorrendo sobre colisão de direitos – mais precisamente entre
direitos e bens jurídicos – exprime que “o bem ‘segurança pública’ legitima certas restrições ao
direito à liberdade e à segurança pessoal, designadamente através da instituição de medidas
privativas de liberdade”. Não discordando, Sarmento (2003, p. 75) averba a ideia de que o
interesse coletivo, em certas circunstâncias, “pode justificar uma restrição proporcional a
direitos fundamentais, como ocorre, por exemplo, quando a legislação processual penal admite
a prisão do réu ainda não condenado, cuja liberdade representa risco considerável para a
coletividade.” Para este último autor, entretanto, os casos de prisão sem condenação definitiva
devem constituir exceção, pois assim impõe a Constituição Federal.
Prado (1996, p. 68), baseado em Franco Bricola, predica a noção de que “a eventual
restrição de um bem só pode ocorrer em função da indispensável e simultânea garantia de outro
valor também de cunho constitucional ou inerente à doutrina democrática.”
Cumpre salientar que a persecução criminal não afeta somente a liberdade de ir e vir do
indivíduo, mas também sua intimidade, honra e imagem, daí a gravidade das ações de
segurança pública. A propósito, o TJRS entendeu recentemente que o fato de alguém ter sido
investigado e o Judiciário vir a arquivar o procedimento policial não enseja, por si, direito à
indenização, se o Estado-aparelho persecutor tiver agido no estrito cumprimento do dever que
lhe é imposto.
9
Fala de tal dever Giorgio del Vecchio (1957, p.65), o qual considera um dos
principais objetos da atividade executiva do Estado “a tutela de ordem interna, com o fim de
prevenir e reprimir os atentados contra o tranqüilo curso da vida social e individual.” Del
Vecchio (1957, p.107) justifica que,
Atendendo a que a vida dos indivíduos e da sociedade inteira pode ser alvo de
ameaças tanto no interior do Estado, como oriundas de fora por obra de outros
Estados, é necessária uma dupla tutela da segurança privada e pública, mediante
órgãos judiciários e de policiamento, e mediante órgãos militares, todos
possivelmente adequados e em constante eficiência para as respectivas funções.
9
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – 10ª Câmara Cível. Proc. nº 70015609746,
cujo acórdão é datado de 21.12.2006 e publicado em 09.02.2007. Disponível em: <http://www. tj.rs.gov.br>.
Acesso em: 10 dez. 2007.
95
[...]Como conseqüência imediata de sua natureza jurídica, compete ao Estado fazer
que sejam reprimidos os crimes, quando não for possível preveni-los, e que sejam
reparados os danos dolosa ou culposamente causados por quem quer que seja, tanto
a indivíduos, quanto à sociedade em geral, personificada no próprio Estado.
Conforme adverte Victoria-Amália Sulocki (2007, p.182), no entanto, “sob a roupagem
de defesa do ‘direito à segurança’, oculta-se a limitação de outros direitos fundamentais, já que
este primeiro se fundamenta numa lógica excludente e autoritária.” A isto o Estado e a
sociedade têm que estar atentos, por ser algo incompatível com o princípio democrático. O
direito-dever de segurança pública não deve, assim, afrontar as demais normas fundamentais,
sob pena de “legitimar” uma política repressiva e excludente. (SULOCKI, 2007, p.183).
Não obstante, como fora dito na introdução deste trabalho, não há incompatibilidade,
tampouco intransponível, entre a segurança pública exercitada sob o pálio do Estado
Democrático de Direito e os demais direitos fundamentais, ainda que haja a constante tensão
entre ambos, haja vista que o objetivo da primeira é justamente garantir que os segundos
(direitos das pessoas, coletividades e de toda a sociedade, inclusive do Estado) sejam
respeitados. Sendo direito/garantia fundamental, não deixa de ser, a segurança pública, um
princípio constitucional, e normas principiológicas convivem entre si, impondo-se, no entanto,
que o núcleo fundamental de cada princípio envolvido na colisão seja preservado, daí a
necessidade de um juízo de ponderação entre os bens jurídicos confrontantes.
6.8 Sobre a expressão “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”
No campo da Deontologia Geral, o caráter de obrigatoriedade de se praticar o bem é
chamado de dever, ou seja, dever “é o bem enquanto obrigatório” (LANGARO, 1996, p.19), ao
passo que o atendimento ou cumprimento ao dever se traduz em obrigação.
Segurança pública é, em primeiro lugar, um dever do Estado, daí que o art. 144 lista os
órgãos públicos que a exercem. Há, em tal dispositivo constitucional, nítida repartição de
competências administrativas (atribuições). Logo, levando-se em conta a Federação brasileira, a
palavra Estado é empregada lato sensu, envolvendo primariamente os Estados-Membros e o
Distrito Federal, secundariamente a União Federal e, terciariamente, embora autores de
indiscutível nomeada discordem
10
, os Municípios. Veja-se o que diz José Afonso da Silva
(2006, p.779-780):
10
O próprio José Afonso da Silva, que já foi secretário de segurança pública do Estado de São Paulo, é um deles.
96
Quando a Constituição atribui às polícias federais competência na matéria, logo se
vê que são atribuições em campo e questões delimitadas e devida e estritamente
enumeradas, de maneira que, afastadas essas áreas especificadas, a segurança
pública é de competência da organização policial dos Estados, na forma mesma
prevista no Art. 144, §§ 4º, 5º e 6º. Cabe, pois, aos Estados organizar a segurança
pública. Tanto é de sua responsabilidade primária o exercício dessa atividade que, se
não a cumprirem devidamente, poderá haver ocasião de intervenção federal.
(Grifou-se).
Para esse constitucionalista, o que norteia essa repartição de competências são as
peculiaridades regionais e o fortalecimento do princípio federativo. Assim sendo, a competência
remanescente confere aos Estados-Membros mais atribuições do que às demais esferas da
Federação, tanto na vigilância preventiva como no trabalho repressivo e de apuração das
infrações penais.
Paulo Bonavides (1993, p.426), na esteira de Peter Häberle, averba a noção de que “A
mudança social, ao acarretar as mudanças constitucionais tácitas decorrentes do fator tempo, só
se explica à luz de uma ‘interpretação da Constituição’ em sentido amplo.” Ora, em virtude dos
fins do Estado Democrático de Direito; do princípio federativo; da não-exclusão dos municípios
do contexto da segurança pública, haja vista a faculdade que lhes é dada no tocante à criação de
suas guardas municipais, sem falar das políticas sociais a cargo deles e que podem contribuir
nesse campo; e da extensão da dicção “responsabilidade de todos” (assunto do subtópico
seguinte), é que esses entes federados – os municípios – têm, sim, responsabilidade para com a
segurança pública (assunto do subtópico 6.8.2).
O dever direcionado ao Estado, quanto a prestar segurança pública, não se reduz a pôr em
bom funcionamento os órgãos policiais. Como se disse, a norma constitucional em apreço
encerra comando a todas as esferas da Federação, e mais: aos três poderes nelas atuantes
11
. Ao
Executivo, impende prevenir, principalmente mediante políticas públicas sociais que
desmarginalizem os indivíduos, cabendo também reprimir as infrações penais. Ao Legislativo
toca a feitura de leis que ajudem na prevenção e repressão dos delitos. Ao Judiciário é dado,
também, o dever de repressão, cabendo-lhe, ainda, o controle e a determinação de políticas
públicas que resultem em ganhos para a segurança pública.
Obviamente que o dever de prestar segurança pública pesa mais sobre o Poder Executivo,
a quem cabe a execução das políticas públicas que, livrando as pessoas de situações de risco,
garantam a paz social. Para tanto, é imprescindível a efetivação dos direitos fundamentais
sociais (educação, saúde, moradia, trabalho, lazer) e culturais (acesso às fontes da cultura, às
11
Com a ressalva de que não existe Poder Judiciário Municipal.
97
artes, participação nas manifestações culturais, acesso ao esporte). Com relação a estes,
rememore-se a lição de Tolstoi (2002, p.271-272), para com base nela se exaltar o caráter
antiviolência da arte, meio eficaz de comunhão entre as pessoas, porquanto se presta a unir os
homens por uma cultura de paz. Aliás, as atividades culturais são meio e fim a um só tempo,
isto é, representam valor em si, por potencialmente elevar as faculdades humanas, e são
ferramentas valiosas a outras finalidades, como as de natureza ocupacional. Portanto, a
efetivação dos direitos que tais contribuem para uma sociedade mais humana e inclusiva,
consequentemente, menos insegura.
12
6.8.1 Conteúdo e alcance da expressão “responsabilidade de todos”
Já se disse que o que faz ensejar uma responsabilidade é o dever, que, por sua vez,
significa a obrigação de praticar o bem. Não existe um só tipo de responsabilidade. Langaro
(1996, p.21) a divide em responsabilidade legal e responsabilidade moral. Cappelletti (1989,
p.36), por sua vez, aponta para a existência das responsabilidades política, social, e jurídica.
Qual seria, então, o tipo de responsabilidade que todos devem ter para com a segurança pública?
A historiografia registra que há aspirações, valores e direitos cuja eficácia e concretização
o Estado-aparelho, sozinho, não é capaz de proporcionar, embora seja o maior e principal
encarregado desse múnus. Paz pública, por exemplo, é algo bastante almejado por governos e
povos, mas dificilmente atingido se ficar a cargo de apenas um deles. E a segurança pública é
caminho, instrumento até ela. Eis, por oportuno, o comentário de Tércio Sampaio Ferraz Júnior
(1990, p.102):
Devemos conscientizar-nos de que os temas da segurança pública não pertencem
apenas às polícias, mas dizem respeito a todos os órgãos governamentais que se
integram, por via de medidas sociais de prevenção ao delito. A comunidade não
deve ser afastada, mas convidada a participar do planejamento e da solução das
controvérsias que respeitem a paz pública.
Falar em somatório de esforços entre Estado-governo e sociedade-comunidade é invocar a
solidariedade, que caracteriza os chamados direitos humanos de terceira dimensão, qual ocorre
com o direito ao meio ambiente sadio e equilibrado, que comprometido estaria se ficasse a
cargo de somente um dos atores (governo ou comunidade). Vislumbra-se, assim, algo em
comum entre o direito/garantia fundamental à segurança pública e o direito fundamental ao
12
Dando-se importância a isso foi que se fez opção pelas frases situadas na epígrafe deste ensaio, uma vez que
investimentos eficazes em políticas públicas, visando dar concretização aos direitos fundamentais culturais, e
também aos sociais, constituem importante saída para a problemática da violência e criminalidade.
98
meio ambiente: o somatório de responsabilidades, a cooperação, a solidariedade, a simbiose de
consciência e atitudes que devem informar a interação prática do Governo com a sociedade-
comunidade.
Afinal, a pessoa humana é (ou pelo menos deve ser) o centro das preocupações do Direito
atual. Iturraspe (2000, p.9) lembra que, “com a denominação de direitos de terceira geração – ou
de quarta – se busca uma proteção mais completa, plena ou integral, que abarque todas as
manifestações e garanta a liberdade, a segurança, a dignidade, o respeito, a privacidade e a
identidade do ser humano.”
Conforme o art. 3º da Magna Carta, são objetivos fundamentais da República Federativa
do Brasil, formar uma sociedade livre, justa e solidária. A solidariedade social aqui é situada ao
lado de outros princípios fundamentais, como cidadania e dignidade da pessoa humana (art. 1º
da Constituição Federal). Como ensina Cláudia Lima Marques (2003, p.186),
Solidariedade é vínculo recíproco em um grupo (wechselseitige Verbundenheit); é a
consciência de pertencer ao mesmo fim, à mesma causa, ao mesmo interesse, ao
mesmo grupo, apesar da independência de cada um de seus participantes
(Zusammengehörigkeitsgejühl). Solidariedade possui também sentido moral, é
relação de responsabilidade, é relação de apoio, é adesão a um objetivo, plano ou
interesse compartilhado. No meio caminho entre o interesse centrado em si
(egoísmus) e o interesse centrado no outro (altruismus) está a solidariedade, com seu
interesse voltado para o grupo.
É de José Carlos Vieira de Andrade (2003, p.274) a seguinte observação, interessante à
exposição do presente tópico:
Além de o Estado-Administração aparecer na vida social [...], as entidades privadas
passam a exercer tarefas de interesse coletivo ou determinam em termos
fundamentais os comportamentos de indivíduos em diversas áreas sociais [...]. A
área da sociedade deixa de ser (ou de poder ser vista como) o palco de actuações
individuais, à medida que se verifica a profunda diversificação e imbricação entre os
interesses das pessoas e se multiplica a actividade dos partidos e dos grupos de
interesse – sindicatos, associações patronais, igrejas, grupos económicos,
associações cívicas, profissionais, desportivas, etc.
Assim, os poderes públicos devem facilitar e estimular a participação da sociedade nos
debates em torno dos graves temas de interesse geral e que envolvem campos sensíveis de
atuação estatal, como no caso da segurança pública. Essa participação comunitária pode ocorrer
mediante campanhas, pesquisas de opinião e audiências públicas, ocasiões propícias para coleta
de sugestões, críticas, alterações e prestações de contas por parte de agentes públicos,
especialistas nos assuntos enfocados e representantes da sociedade civil. Para Santin (2003,
p.265), essa participação da sociedade na fixação e alteração das políticas criminal e de
99
segurança pública “deve ser adequada, podendo intervir o povo em todos os pontos que não
sejam sigilosos ou que não prejudiquem a execução da prevenção de crimes.”
Exemplo concreto de iniciativa extraestatal de solidariedade em prol da segurança
pública, e que assimila muito bem o sentido da expressão “responsabilidade de todos”, inscrita
no dispositivo constitucional sob comento, está na Campanha da Fraternidade 2009, idealizada
e posta em prática pela Igreja Católica, por meio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil-
CNBB. Com o tema “Fraternidade e segurança pública”, seguido do lema “A paz é fruto da
justiça”, tal campanha constitui grande chamamento aos deveres éticos, morais e cristãos,
objetivando fomentar o debate sobre a segurança pública e promover uma cultura de paz nas
pessoas, na família, na comunidade e na sociedade. Segundo a CNBB (2008, p.15), a paz
almejada com a campanha é a “paz positiva, orientada por valores humanos como a
solidariedade, a fraternidade, o respeito ao ‘outro’ e a mediação pacífica dos conflitos, e não a
paz negativa, orientada pelo uso da força das armas, a intolerância com os ‘diferentes’, e tendo
como foco os bens materiais.”
Uma sociedade menos insegura depende da solidariedade de cada um de seus membros,
diante de quem se posta o desafio de evitar ao máximo os conflitos nocivos, que podem resultar
em ações violentas e danos pessoais e sociais, impondo-se que cada cidadão trate o semelhante
como gostaria de ser tratado. Sem demérito do lado positivo que pode resultar dos conflitos em
geral, afigura-se como de grande importância para a segurança pública o incremento de formas
adequadas de resolução destes, sendo a mediação um valioso instrumento a serviço da paz
social, daí a importância da criação de centros de mediação nas comunidades e o treinamento ou
aperfeiçoamento dos profissionais de segurança pública em mediação de conflitos. Assim, além
da salutar interação dos agentes de segurança pública e população, “a mediação realizada por
esses atores contribui para a resolução dos conflitos daqueles que possuem relações
continuadas, que, quando mal administrados, podem gerar violências.” (SALES; ALENCAR,
2008, p.4).
Portanto, a responsabilidade de todos, que empresta à segurança pública uma dimensão
social, não apenas jurídica, evidentemente que longe de se traduzir numa responsabilidade
política, civil, penal, ou administrativa, importa responsabilidade jurídico-social e ético-moral
de amplo alcance, em cujo contexto estão inseridos o universo das pessoas físicas (cidadãos),
jurídicas (públicas e privadas) e políticas (Estado lato sensu, formado pelas esferas federal,
100
estadual
13
e municipal, e por todos os poderes), ou seja, os indivíduos, as comunidades e as
instituições políticas, sociais, culturais, econômicas e religiosas, todos com uma gama de
colaboração a dar para com a segurança pública, em forma de atitudes e abstenções que vão
desde o dever de não transgredir nem delinquir, ao de ser solidário à causa e exercer a
cidadania.
6.8.2 O Município como corresponsável
Guindado ao patamar de ente federado pela nova Ordem Constitucional, o município
ganhou em importância, autonomia e status no Estado Democrático (e Social) de Direito
brasileiro. Atente-se, neste sentido, ao que diz Bonavides (1993, p.275):
Não conhecemos uma única forma de união federativa contemporânea onde o
princípio da autonomia municipal tenha alcançado grau de caracterização política e
jurídica tão alto e expressivo quanto aquele que consta da definição constitucional
do novo modelo implantado no País com a Carta de 1988, a qual impõe aos
aplicadores de princípios e regras constitucionais uma visão hermenêutica muito
mais larga tocante à defesa e sustentação daquela garantia.
É notada, no País e além-mar, uma inclinação ou tendência à utilização de recursos
municipais em prol da segurança urbana, atendendo-se a uma demanda da sociedade, quando
esforços feitos no controle da criminalidade se revelaram insuficientes.
Na Espanha, a polícia preventivo-ostensiva é municipalizada. A Prefeitura de Nova
Iorque, em época de trevas, adotou medidas que se tornaram conhecidas, dados os resultados
positivos no combate ao crime. Em Bogotá, a Lei de Postura do Município impõe
comportamentos aos munícipes visando à diminuição de conflitos interpessoais. No Brasil, São
Paulo e Diadema são cidades que desempenham ações de segurança, sendo a primeira,
basicamente, por meio da Guarda Civil Metropolitana, e a segunda, mediante decisões da
administração local, voltadas, por exemplo, para a limitação de horários de bares e proibição de
estabelecimentos que tais no entorno de escolas.
No Ceará, municípios há que instituíram secretarias de segurança e cidadania. É o caso de
Juazeiro do Norte e Sobral. Afora as rondas escolares, a Guarda Municipal de Fortaleza, sem
fugir do seu mister constitucional, vez por outra realiza prisões em flagrante e conduções de
pessoas às delegacias, como nos casos de crimes ambientais. A ação do servidor municipal,
neste exemplo derradeiro, acha-se acobertada pelo que faculta a regra do art. 301 do Código de
13
Incluindo-se nesta categoria o Distrito Federal.
101
Processo Penal, segundo a qual “Qualquer do povo poderá e as autoridades policiais e seus
agentes deverão prender quem quer que seja encontrado em flagrante delito.”
Anote-se que, no Brasil, a possibilidade ou viabilidade da participação das
municipalidades nas atividades de segurança pública não é novidade introduzida pela Ordem
Constitucional inaugurada em 1988. Viu-se no capítulo 5 retro que, desde a pré-independência
brasileira, existe um papel da Pessoa Política local para com referida seara de atuação estatal.
Fábio Konder Comparato (2004)
14
, ao classificar os serviços policiais como polícia
judiciária, polícia de vigilância e polícia de defesa civil, polemiza ao defender o argumento de
que, no município, deveria concentrar-se a organização do penúltimo serviço, e critica
pontualmente a Constituição de 1988, quando a esta se refere assim: “Ela atribuiu aos
municípios, mesquinhamente, tão-só a competência para ‘constituir guardas municipais
destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações’.”
Não obstante, é de se atentar para a noção de que a Carta Política que reserva as ações de
polícia preventiva e repressiva à União, aos Estados-Membros e ao Distrito Federal é a mesma
que não veda, em virtude da expressão responsabilidade de todos, dos fins do Estado
Democrático de Direito e da envergadura emprestada às municipalidades, a possibilidade de
haver uma sensível contribuição dos Municípios para a segurança pública, sem que, para tanto,
seja necessária mudança no Texto Constitucional atinente nem invasão de competências. Na
lição de Hely Lopes Meirelles (1996, p.323):
Os serviços de segurança urbana comumente desempenhados pelos nossos
Municípios têm-se restringido à guarda de seus edifícios, à prevenção contra
incêndios e à extinção de animais nocivos, mas nada impede - e tudo aconselha - se
estendam a outros setores em que se fazem necessárias a proteção dos munícipes e a
preservação do patrimônio público e particular.
Meirelles (1996, p.323) concebe a guarda municipal como “um corpo de vigilantes
adestrados e armados para a proteção do patrimônio público e maior segurança dos munícipes,
sem qualquer incumbência de manutenção da ordem pública (atribuição da polícia militar) ou
de polícia judiciária (atribuição da polícia civil).”
No campo da vigilância preventiva e da proteção a pessoas e bens – atribuição comum a
todas as entidades estatais, nos limites de cada competência, lembra Meirelles (1996, p.324) – é
que reside a mais sensível participação das guardas municipais. Isto porque, segundo Celso
14
Em prefácio ao livro de Mariano (2004).
102
Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins (1997, p.273-274), no conceito de bens, serviços e
instalações municipais, se enquadram ruas do município, praças, prédios e até mesmo o serviço
de transporte coletivo, sendo que “não há possibilidade de se transitar numa cidade senão pelas
vias públicas, que são municipais, com o que o patrulhamento ostensivo delas é forma de
preservá-las.”
Repita-se que os fins dos Estado Democrático de Direito, a amplitude da expressão
responsabilidade de todos, a envergadura emprestada aos municípios como entes federados
autônomos, e a não-exclusão deles do cenário de agentes em prol da segurança, inclusive em
virtude da faculdade constitucional de criarem suas guardas municipais, são fatores pelos quais
se sustenta que a Pessoa Política local pode e deve promover complementarmente – e não
alternativamente – ações no campo da segurança pública.
Sabe-se que a combinação entre vigilância administrativa (guardas municipais,
fiscalização do trânsito e do meio ambiente, conselhos tutelares, vigilância sanitária, e outros) e
programas sociais eficazes (moradia, geração de emprego e renda, saúde, educação, lazer e
cultura) direcionados, sobretudo, aos grupos mais afetados pela violência (idosos, jovens e
crianças, mulheres, alcoolistas, dependentes químicos etc) contribui diretamente para a redução
da criminalidade.
Conceber o município como partícipe direto no dever de segurança pública é atender ao
Princípio de Conformidade Funcional, de hermenêutica especificamente constitucional. Não se
faz aqui apologia à invasão de competência alguma. E a ideia surge em sintonia com o Princípio
da Máxima Efetividade, ou da Interpretação Efetiva, que “assume particular relevância na
inteligência das normas consagradoras de direitos fundamentais”. (GUERRA FILHO, 1999,
p.58).
Com efeito, limitar o alcance da expressão aludida é despir de efetividade a norma do art.
144, caput, da Magna Carta. Seria desconhecer que “atualmente – revela Guerra Filho (1999,
p.58), com supedâneo em Canotilho – não mais se admite haver na Constituição normas que
sejam meras exortações morais ou declarações de princípios e promessas a serem atendidos
futuramente”. E prossegue Guerra Filho (1999, p.58), agora sobre o princípio da força
normativa da Constituição: “Esse princípio nos alerta para a circunstância de que a evolução
social determina sempre, se não uma modificação do texto constitucional, pelo menos
alterações no modo de compreendê-lo.”
103
Consoante exprime Falcão (2004, p.247), “interpreta-se para o social, uma vez que se
interpreta para a convivência, que se faz no contexto sistêmico”, sendo que “interpretações
acarretadoras de um custo social muito elevado tendem a ser pouco aceitas pelo grupo,
decorrendo dessa ilegitimidade uma provável perda de eficácia da norma.” Assim, empregar à
dicção responsabilidade de todos o sentido há pouco exposto é não fazer dessa interpretação um
custo social que também compromete a eficácia na norma.
6.9 Breves considerações sobre eficácia e exigibilidade do direito à
segurança pública
Como decorrência da fundamentalidade em apreço, impunha-se dar efetividade à norma
do art. 144 da Constituição Federal. Não se pode dizer que concreções a tal dispositivo
constitucional não tenham sido dadas, bastando citar, para comprovar a assertiva, a existência,
em contínua atividade, dos órgãos enumerados no mesmo dispositivo, além de toda uma
legislação voltada para os propósitos dessa norma. Há, também, afora as secretarias estaduais e
municipais de Segurança Pública, a Secretaria Nacional – a SENASP – encarregada, dentre
outras coisas, de desenvolver e coordenar programas (políticas públicas) aplicáveis em todo o
Território brasileiro.
Embora não afastada a hipótese de alguém demandar judicialmente o Estado e,
individualmente, lhe cobrar segurança pública, aumentam situações em que a sociedade e a
comunidade o fazem por meio do Ministério Público. Este, cumprindo seus graves deveres
constitucionais, se utiliza de valioso instrumento: a ação civil pública. Vê-se, com efeito, a
possibilidade de controle judicial da segurança pública, objetivando, basicamente, que haja
suprimento e eficiência no serviço de prevenção e repressão ao crime e de salvaguarda de
pessoas e patrimônios.
Somente no Ceará e no corrente ano, conforme divulgação via imprensa escrita
15
e
televisiva, no que tange à atuação dos Ministérios Públicos Federal e Estadual, é válido apontar
as seguintes ações civis públicas, todas elas tendo por objeto a segurança pública: pedido de
aumento de efetivo policial; pedido de treinamento de policiais; pedido de interdição e de
construção de cadeias públicas, bem como de adoção de políticas públicas no sentido de
garantir o cumprimento de medidas sócio-educativas impostas a adolescentes infratores.
15
Apenas para citar um dos casos recentes, o Diário do Nordeste (Fortaleza), edição de 31.05.2007, publicou
matéria segundo a qual o Ministério Público ajuizou ação civil pública em face do Estado do Ceará, na
Comarca de Aquiraz, cobrando aumento do efetivo de policiais militares no município e que a delegacia de
Polícia Civil passasse a funcionar em horário integral e ininterrupto.
104
No campo da responsabilidade civil do Estado, há decisões judiciais reconhecendo que a
ausência ou deficiência do serviço essencial de segurança pública enseja o dever de indenizar
por danos decorrentes de ilícitos penais que deveriam ter sido evitados e não o foram. Citem-se,
a for de exemplo, as seguintes decisões:
EMENTA: REMESSA NECESSÁRIA E RECURSO VOLUNTÁRIO
CONSTITUCIONAL E PROCESSUAL – RESPONSABILIDADE CIVIL DO
ESTADO POR OMISSÃO NO FORNECIMENTO DE
SEGURANÇA PÚBLICA
PRELIMINAR DE INÉPCIA DA INICIAL – TRANSFERÊNCIA PARA O
MÉRITO – NULIDADE DA SENTENÇA POR CONTER PEDIDO
INDETERMINADO – REJEIÇÃO – LEGITIMIDADE DE PARTE – PRESENÇA
DOS REQUISITOS DANO E NEXO DE CAUSALIDADE ATRIBUÍVEIS AO
ESTADO –
DEFICIÊNCIA DO SERVIÇO – AUSÊNCIA DE EXCLUDENTES –
PRECEDENTE DESSA CORTE – CONHECIMENTO E IMPROVIMENTO DO
RECURSO E DA REMESSA.
I – Não configura-se inepta exordial que contém pedido determinado, máxime
quando decorre de conjunto narrativo que demonstra as razões do inconformismo.
II – É parte legítima genitora da vítima de homicídio que pleiteia indenização em
juízo, pois tal situação constitui uma exceção à regra de que o titular seja o próprio
sujeito que sofreu o dano.
III – Constatada a
deficiência do serviço público em prestar segurança pública,
inclusive pela desativação do Posto Policial, é cabível a responsabilização.
IV – Não se configura caso fortuito ou força maior chacina que perpetua-se por dois
dias à espera de aparato policial.
V – Precedentes desta corte.
VI – Remessa Necessária e Recurso Voluntário conhecidos e negados. (RIO
GRANDE DO NORTE..., 2008, on line).
PROCESSUAL CIVIL. REMESSA NECESSÁRIA. APELAÇÃO.
RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO. PRELIMINAR DE CARÊNCIA DE
AÇÃO POR ILEGITIMIDADE ATIVA AD CAUSAM. TRANSFERÊNCIA PARA
O MÉRITO. PRELIMINAR DE NULIDADE DO PROCESSO POR
CERCEAMENTO DE DEFESA. SUPRESSÃO DA FASE CONCILIATÓRIA.
REJEITADA. PRELIMINAR DE NULIDADE DA SENTENÇA. FALTA DE
FUNDAMENTAÇÃO. NÃO ACOLHIMENTO.
DEFICIÊNCIA DE SERVIÇO
PÚBLICO. RESPONSABILIDADE DO ESTADO CONFIGURADA. DANOS
MATERIAIS E MORAIS. CONDENAÇÃO. DECISÃO MANTIDA.
1. Saber se a esposa da vítima, pela dor sofrida pela morte desta nas circunstâncias
retratadas nos autos, onde imputa a culpa à desídia da Administração na prestação de
serviço essencial que lhe incumbe, no caso,
segurança pública, é efetivamente
matéria pertinente ao mérito da questão, impondo-se, assim, a sua análise quando da
apreciação do meritum causae.
2. Restando configurada a situação retratada no artigo 330, inciso I, do Código de
Processo Civil, não se há de falar em nulidade pelo julgamento antecipado da lide.
3. Tendo o magistrado a quo justificado satisfatoriamente o valor da indenização,
ficando bem delineados os caminhos por ele percorridos para fixar o quantum
indenizatório, não prospera a alegação de nulidade da sentença por falta de
fundamentação.
4. No mérito, constatada a
deficiência de serviço público essencial que incumbe ao
Estado, sendo inclusive desativado Posto Policial, há de ser mantida a condenação.
5. Remessa Necessária e Apelação conhecidas e improvidas.
105
(Apelação Cível nº 00.2779-0, 2ª Câmara Cível, Relatora Desembargadora JUDITE
NUNES, DOE de 29.05.02).
CONSTITUCIONAL. RESPONSABILIDADE OBJETIVA DO ESTADO.
ARTIGO 37, § 6º, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. DANOS CAUSADOS
POR TERCEIROS EM IMÓVEL RURAL. DESCUMPRIMENTO DE ORDEM
JUDICIAL. INDENIZAÇÃO. ILEGITIMIDADE DE PARTE. DENUNCIAÇÃO
DA LIDE. [....] Caracteriza-se a responsabilidade civil objetiva do Poder Público em
decorrência de danos causados, por invasores, em propriedade particular, quando o
Estado se omite no cumprimento de ordem judicial para envio de força policial ao
imóvel invadido. (RE nº 283.989/PR, 1ª Turma, Rel. Min. Ilmar Galvão, DJ de 13-
09-2002, p. 85).
Se parece difícil imaginar que em algum município brasileiro não haja, por menor e mais
vulnerável que seja, serviço de segurança pública, fácil muitas vezes é constatar deficiências na
prestação desse serviço estatal essencial. Primeiro, porque a ele antecede o dilema necessidade
da população versus disponibilidade material (financeiro-orçamentária) do Estado, que não
raras vezes invoca a cláusula da reserva do possível para justificar sua não-atuação a contento
ou suas omissões. Segundo, pelo fato de a efetividade da segurança pública depender, em
grande parte, da satisfação prévia de outros direitos fundamentais, como os sociais (educação,
saúde, moradia, trabalho, lazer) e os culturais (acesso às fontes da cultura, às artes, participação
nas manifestações culturais, acesso ao esporte) e pressupor um nível de vida da população mais
humano e igualitário. Terceiro, por constante e necessariamente depender, o êxito da segurança
pública, da solidariedade de cada membro da sociedade, aos pés de quem se posta o desafio de
ser mais tolerante com o semelhante, de quem deve aceitar as diferenças, bem como de evitar
conflitos nocivos, mediante respeito mutuo.
CONCLUSÃO
Por imprescindível à vida humana em sociedade, o valor segurança se confunde com a
razão de ser do Estado, de quem é condição e corolário ao mesmo tempo, e com estribo no
pensamento contratualista se torna paradigma do Estado liberal.
Na medida em que os demais modelos de Estado de Direito – o Social e o Democrático –
respectivamente sucederam o Estado Liberal, cada um com seus fatos geradores e
características, o direito humano à segurança foi se redimensionando, isto é, sendo acrescido em
significado e alcance.
O direito humano à segurança é matriz ou gênero do qual, em virtude da capacidade
normogenética dos princípios constitucionais, decorrem espécies. Dentre elas está a segurança
pública, fundamentada na própria existência do Estado (monopólio da coação legítima) e no
superprincípio da dignidade da pessoa humana, onde radica a maioria dos direitos e garantias
materialmente fundamentais.
A matéria segurança pública esteve e continua presente na história constitucional
brasileira, ora contendo mais, ora menos ênfase (referências contingentes), seja de forma
expressa ou implícita. Na primeira Constituição (a imperial outorgada de 1824), foi referida
expressamente como “segurança interna”; no atual Texto Constitucional (1988), o é pela
primeira vez em capítulo próprio e de maneira mais detalhada.
A história também permite aferir que o aparelho de segurança pública no Brasil imperial
esteve a reboque de sua utilização ideológica, parcial e político-partidária, como instrumento de
dominação e de manutenção de status quo. Segurança pública atravessa, pois, períodos
históricos, até ser pensada, por obra do constituinte de 1988, sob a fórmula política do Estado
Democrático de Direito.
A segurança pública de outrora, eivada de reducionismo e de preconceito contra
segmentos marginalizados da população, passa a ser concebida, à luz da Ordem Constitucional
de hoje, como segurança pública serviço obrigatório, indivisível, gratuito e ininterrupto,
107
significando, segundo conceito proposto no capítulo 3, o conjunto de atividades estatais,
preventivas e investigativas das infrações penais e de socorro às pessoas, que tem por objetivo
salvaguardar a incolumidade destas, o patrimônio e a ordem pública.
As concepções de ordem pública e de segurança pública devem estar constitucionalmente
adequadas, isto é, compatíveis com os ditames constitucionais e em sintonia com os princípios
estruturantes democrático e republicano, e com os princípios gerais da dignidade da pessoa
humana, da igualdade e da legalidade. Logo, o dever de preservar a ordem pública é
necessariamente o dever de respeito à legalidade e aos direitos fundamentais.
Não obstante possa ser vista como política pública, interesse público, bem jurídico, direito
ou garantia, segurança pública, em sua acepção jurídica, carrega em si características de uma
garantia constitucional, podendo ser concebida como um direito-meio ou direito-garantia,
sobretudo em virtude do seu caráter de instrumentalidade, já que visa a garantir o usufruto de
direitos humanos e fundamentais, notadamente os direitos à vida, saúde (incolumidade física e
psíquica), liberdade (ir, vir, permanecer), propriedade (patrimônios público e privado, material e
imaterial), à paz e à democracia. Aliás, sendo a insegurança, o medo e a violência antagônicos à
democracia, indubitavelmente a esta serve a segurança pública.
A estrutura do art. 144 da Constituição Federal se apresenta mista ou híbrida, porquanto a
cabeça do dispositivo possui características de norma principiológica definidora de um
direito/garantia fundamental, que é a segurança pública, enquanto o restante (incisos e
parágrafos) é formado de regras jurídico-organizatórias, boa parte das quais de cunho orgânico.
Por ser norma/princípio é que a constante tensão entre segurança pública e direitos de
liberdade pode ser transposta por meio de juízo de ponderação entre os bens jurídicos
confrontantes nos dois polos.
A expressão “dever do Estado, direito e responsabilidade de todos”, presente na cabeça do
multicitado art. 144, pode ser assim entendida: o dever estatal é jurídico-social, e a palavra
Estado é empregada no sentido lato, comportando todas as esferas federadas, com ênfase para
os Estados-Membros, o Distrito Federal e a União Federal, detentoras de deveres para com a
segurança pública. A participação dos municípios nas atividades de segurança pública não é
novidade introduzida pela Constituição de 1988, pois, desde a pré-independência brasileira
existe um papel do poder local para com referida seara de atuação estatal. Trata-se, a segurança
pública, do direito de todos, inclusive do Estado. Quanto ao tipo de responsabilidade de que
108
trata a expressão responsabilidade de todos, tem-se que ela é jurídico-social e ético-moral, de
amplo alcance, cujo traço marcante é a solidariedade de todos.
Partindo-se da relevância (importância) e do conteúdo (substância) da matéria segurança
pública, e da cláusula de abertura material do catálogo de direitos e garantias fundamentais da
Constituição Federal de 1988 (art. 5º, § 2º), que representa o caráter de não exaustividade desses
direitos e garantias, torna-se possível defender o argumento que confere status de
fundamentalidade ao aludido art. 144, caput, sobretudo pelos seguintes fatores (características
comuns aos demais direitos e garantias fundamentais
1
): a) função dignificadora – a segurança
pública possui perene e indissociável vínculo com a dignidade da pessoa humana, a quem
resguarda, na medida em que protege bens jurídicos fundamentais e serve de meio para o gozo
de direitos básicos inerentes a qualquer ser humano; b) natureza principiológica – o art. 144,
caput, é norma definidora de um direito/garantia fundamental: a segurança pública; c) serve de
elemento legitimador – tal direito/garantia legitima certas restrições à liberdade individual e
coletiva; d) é norma constitucional, portanto, supralegal; e) a matéria sujeita-se à historicidade,
ou seja, é fruto de um contexto histórico; f) segurança pública é algo inalienável, impossível de
ser transferida a título gratuito ou oneroso; g) é imprescritível – não se perde com o decurso do
tempo; e h) é irrenunciável – ninguém poderá optar entre ser livrado ou não de situações de
perigo concreto ou iminente.
Além dessas características, destaquem-se outros fatores que apontam para a nota de
fundamentalidade sob comento: i) como espécie do gênero segurança, segurança pública é
parte que integra e possui características do todo chamado segurança (art. 5º caput, do art. 6º e
preâmbulo da Constituição de 1988). Segurança pública é, pois, subprincípio do princípio da
segurança, cuja fundamentalidade é indiscutível. Repita-se, então, que, como parte do todo, ela
possui características dele. De outra banda, (j) segurança pública concorre para o processo de
formação dos consensos democráticos e, até mesmo, das normas jurídicas, sendo, como há
pouco mencionado, instrumento em favor da democracia. Acrescente-se (k) a situação
topográfica da matéria no Texto Constitucional, exatamente no Título “Da Defesa do Estado e
das Instituições Democráticas”, o que reforça a importância da segurança pública para o Estado
Democrático de Direito brasileiro.
1
Levam-se em conta características dos direitos (e garantias) fundamentais apontadas por José Afonso da Silva
(2006, p.181) e Ana Maria D’Ávila Lopes (2001, p.37).
109
Segurança pública é direito/garantia fundamental exigível perante o Poder Judiciário, e
passíveis de controle judicial são as políticas públicas naquela seara. Embora não afastada a
hipótese de alguém demandar judicialmente o Estado e, individualmente, cobrar-lhe segurança
pública, têm aumentado situações em que a coletividade e a sociedade o fazem por meio do
Ministério Público, que se utiliza da ação civil pública para buscar suprimento e eficiência no
serviço de prevenção e repressão ao crime e de salvaguarda de pessoas e patrimônios.
A efetividade da segurança pública depende, em grande parte, da satisfação prévia de
outros direitos fundamentais, como os sociais (educação, saúde, moradia, trabalho, lazer) e os
culturais (acesso às fontes da cultura, às artes, participação nas manifestações culturais e acesso
ao esporte), verdadeiras condições para que exista um nível de vida da população mais humano
e igualitário.
REFERÊNCIAS
ALEXY, Robert. Theorie der grundrechte. 2. ed. Frankfurt: Suhrkanp, 1994.
ALONSO, Felix Ruiz. Dignidade da pessoa e inviolabilidade da vida. In: VELLOSO, Carlos
Mário da Silva; ROSAS, Roberto; AMARAL, Antonio Carlos Rodrigues do (Coord.).
Princípios constitucionais fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ives Gandra
da Silva Martins. São Paulo: Lex, 2005.
ALVIM, J. E. Carreira. Direito na doutrina. Curitiba: Juruá, 2006. v. 5.
ANDRADE, José Carlos Vieira de. Os direitos, liberdades e garantias no âmbito das relações
entre particulares. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais
e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
ARGÜELLO, Katie Silene Cáceres. Do Estado social ao Estado penal: invertendo o
discurso da ordem. Disponível em: <http://www.cirino.com.br/artigos/Artigo%20Katie.pdf>.
Acesso em: 24 abr. 2008.
ARISTÓTELES. A Política. Tradução de Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes,
1991.
BARRETO, José Anchieta E.; MESQUITA, Vianney. A escrita acadêmica – acertos e
desacertos. Fortaleza: UFC/Casa José de Alencar, 1997.
BARRETO, Tobias. Estudos de direito. Campinas: Bookseller, 2000.
BASTOS, Celso Ribeiro; MARTINS, Ives Gandra. Comentários à Constituição do Brasil.
São Paulo: Saraiva, 1997. v. 5.
BATTHYÁNY, Karina. Obstáculos à segurança humana: análise dos informes nacionais do Observatório da
Cidadania 2004. Disponível em: http://www.socialwatch.org/es/informeImpreso/pdfs/tematicosa2004_bra.pdf.
Acesso em: 30 jul. 2009.
BECCARIA, Cesare. Dos delitos e das penas. Tradução de Vicente Sabino Júnior. São
Paulo: CD, 2002.
BERCOVICI, Gilberto. Dilemas do Estado Federal brasileiro. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004.
BLUNTSCHLI, M. Le droit public général. Paris: Libr. Guillaumin, 1885.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução de Carlos Nelson Coutinho. Rio de
Janeiro: Campus, 1992.
111
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
__________. O direito à paz como direito fundamental de quinta geração. In: RODRIGUES,
Francisco Luciano Lima. Estudos de Direito Constitucional e Urbanístico: em homenagem
à Profª. Magnólia Guerra. São Paulo: RCS, 2007.
__________. Teoria do Estado. 5. ed. São Paulo: Malheiros, 2004.
__________; ANDRADE, Paes de. História constitucional do Brasil. Brasília: OAB, 1989.
BORGES, José Souto Maior. O princípio da segurança jurídica na criação e aplicação do
tributo. Revista Diálogo Jurídico, Salvador, n. 13, abr.-maio 2002. Disponível em:
<http://www.direitopublico.com.br/form_revista.asp?busca=SOUTO%MAIOR%BORGES>.
Acesso em: 01 mar. 2008.
BUCCI, Maria Paula Dallari. Direito administrativo e políticas públicas. São Paulo:
Saraiva, 2002.
BUENO, José Antonio Pimenta. Direito público brasileiro e análise da Constituição do
Império. São Paulo: Livraria dos Advogados, 1958.
BRASIL. Constituição Federal. Anteprojeto da Comissão Afonso Arinos; índice analítico
comparativo. Rio de Janeiro: Forense, 1987.
BRASIL. Ministério da Justiça. 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública: Texto-
base. 2009.
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional. 5. ed. Coimbra: Almedina,
1992.
__________. Direito constitucional e teoria da constituição. 3. ed. Coimbra: Almedina,
1999.
CAPPELLETTI, Mauro. Juízes irresponsáveis?. Tradução de Carlos Alberto A. de Oliveira.
Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1989.
CARTA DAS NAÇÕES UNIDAS. Disponível em: <
http://www.gddc.pt/direitos-
humanos/textos-internacionais-dh/tidhuniversais/onu-carta.html
>. Acesso em: 02 mar. 2008.
CEARÁ. Diário Oficial do Estado. Série 2, ano VII, n.5, ed. 09 jan. 2004, p.2. Disponível em:
<http://imagens.seplag.ce.gov.br/pdf/20040109/do20040109p01.pdf#page=2>. Acesso em: 27
set. 2008.
COMPARATO, Fábio Konder. Direito público: estudos e pareceres. São Paulo: Saraiva, 1996.
CONFEDERAÇÃO NACIONAL DOS BISPOS DO BRASIL. Campanha da Fraternidade
2009: texto-base. Brasília: CNBB, 2008.
CONSTITUIÇÕES brasileiras. Brasília: Senado Federal e Ministério da Ciência e
Tecnologia, 1999, v. II, III, IV, V, VI, VI-a.
112
CONVENÇÃO SOBRE DIVERSIDADE BIOLÓGICA. Disponível em: <http:www.onu-
brasil.org.br/doc_cdb1.php>. Acesso em: 28 mar. 2008.
CORREIA, Marcus Orione Gonçalves; CORREIA, Érica Paula Barcha. Curso de direito da
seguridade social. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
CRETELLA JÚNIOR, José. Curso de direito administrativo. 15. ed. Rio de Janeiro:
Forense, 1997.
DALLARI, Dalmo de Abreu. O que são direitos da pessoa. 5. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985.
__________. Elementos de teoria geral do Estado. 19. ed. São Paulo: Saraiva, 1995.
DECLARAÇÃO DE ROMA SOBRE A SEGURANÇA ALIMENTAR MUNDIAL.
Disponível em: <http://www.direitoshumanos.usp.br/counter/FAO/texto_2.html>. Acesso em:
29 mar. 2008.
DEL VECCHIO, Giorgio. Teoria do Estado. Tradução de Antonio Pinto de Carvalho. São
Paulo: Saraiva, 1957.
DIAS, Jorge de Figueiredo. Questões fundamentais do direito penal revisitadas. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito administrativo. 13. ed. São Paulo: Atlas, 2001.
DINIZ, Maria Helena. O estado atual do biodireito. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
FALCÃO, Raimundo Bezerra. Hermenêutica. São Paulo: Malheiros, 2004.
FAORO, Raymundo. Os donos do poder: formação do patronato político brasileiro. 3. ed.
São Paulo: Globo, 2001.
FELICIANO, Guilherme Guimarães. Terrorismo: contornos jurídicos para o Direito Penal.
Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 782, 24 ago. 2005. Disponível em:
<http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=7189>. Acesso em: 03 mar. 2008.
FERRAJOLI, Luigi. Derechos y garantias: la ley del más débil. Madrid: Trotta, 1999.
FERRAZ JR., Tércio Sampaio. Interpretação e estudos da Constituição de 1988. São
Paulo: Atlas, 1990.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Miniaurélio: o minidicionário da Língua
Portuguesa. 6. ed. Curitiba: Positivo, 2004.
FINLEY, Moses I. Democracia antiga e moderna. Tradução de Waldéa Barcelos e Sandra
Bedran. Rio de Janeiro: Graal, 1988.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. 10. ed. Tradução de Ligia M.
Pondé Vassallo. Petrópolis: Vozes, 1993.
FRAGOSO, Heleno Cláudio. A nova Lei de Segurança Nacional. 1983. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/revista/Rev_58/panteao/HelenoClaudioFragoso.pdf>.
Acesso em: 05 mar. 2008.
113
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. São
Paulo: Celso Bastos, 1999.
GUSTIN, Miracy Barbosa de Sousa. Das necessidades humanas aos direitos: ensaio de
Sociologia e Filosofia do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1999.
HABERMAS, Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Tradução de
Lucia Aragão. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002.
__________. A inclusão do outro: estudos de teoria política. Tradução de George Sperber,
Paulo Astor Soethe, Milton Camargo Mota. 2. ed. São Paulo: Loyola, 2004.
HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Motta. São Paulo:
Mestre Jou, 1968.
HERKENHOFF, João Baptista. Introdução ao direito: abertura para o mundo do Direito,
síntese de princípios fundamentais. Rio de Janeiro: Thex, 2006.
HOBBES, Thomas. Leviatã. Tradução de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da
Silva. São Paulo: Nova Cultural, 2000.
HOLLOWAY, Thomas H. Polícia no Rio de Janeiro: repressão e resistência numa cidade do
século XIX. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1997.
IHERING, Rudolf Von. A finalidade do direito. Tradução de José Antonio Faria Correa. Rio
de Janeiro: Editora Rio, 1979. v. I.
ISRAEL, Jean-Jacques. Direito das liberdades fundamentais. Tradução de Carlos Souza.
Barueri (SP): Manole, 2005.
ITURRASPE, Jorge Mosset. Violación de la confiabilidad en el negocio de la información
comercial. In: WEINGARTEN, Célia; GHERSI, Carlos Alberto (Diretores). Daños –
globalización, Estado, Economia. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2000.
JORGE NETO, Francisco Ferreira; CAVALCANTE, Jouberto de Quadros Pessoa. Direito do
trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2005. 2. v.
KANT, Immanuel. A paz perpétua e outros opúsculos. Lisboa: Edições 70, 2002.
LANGARO, Luiz Lima. Curso de deontologia jurídica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1996.
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto. 5. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1986.
LIMA, Martônio Mont’Alverne Barreto. Terrorismo: o desafio da construção da democracia.
Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, Fortaleza, v. 5, n. 5, p. 145-150, 2004.
LOPES, Ana Maria D’Ávila. Os direitos fundamentais como limites ao poder de legislar.
Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2001.
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos. Estado de Derecho y Constitución. 9.
ed. Madrid: Tecnos, 2005.
MAGANO, Octavio Bueno. Manual de direito do trabalho. 2. ed. São Paulo: LTr, 1992. v. 4.
114
MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. Tradução de Pietro Nassetti. 32. ed. São Paulo: Martin
Claret, 2005.
MARIANO, Benedito Domingos. Por um novo modelo de polícia no Brasil: a inclusão dos
Municípios no sistema de segurança pública. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2004.
MARQUES, Cláudia Lima. Solidariedade na doença e na morte: sobre a necessidade de
“ações afirmativas” em contratos de planos de saúde e de planos funerários frente ao
consumidor idoso. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais
e direito privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
MARTINS, Sérgio Pinto. Direito da seguridade social. 21. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
MEIRELLES, Hely Lopes. Direito administrativo brasileiro. 18. ed. São Paulo: Malheiros, 1993.
__________. Direito municipal brasileiro. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 1996
MELLO FILHO, José Celso. Constituição Federal anotada. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1986.
MIRANDA, F. C. Pontes de. Comentários à Constituição de 1946. 2. ed. São Paulo: Max
Limonad, 1953. v. I.
MIRANDA, Jorge (Org. e Trad.). Textos históricos do direito constitucional. 2. ed. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
__________. Manual de direito constitucional. 2. ed. Coimbra: Coimbra Editora, 1998. v. IV.
MONET, Jean-Claude. Polícias e sociedades na Europa. Tradução de Mary Amazonas Leite
de Barros. São Paulo: USP, 2001.
MONTESQUIEU, Charles de Secondat. O espírito das leis. Tradução de Pedro Vieira Mota.
6. ed. São Paulo: Saraiva, 1999.
MORAES FILHO, José Filomeno de et al. Teoria da Constituição: estudos sobre o lugar da
política no Direito Constitucional. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2003.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo. Curso de direito administrativo. 14. ed. Rio de
Janeiro: Forense, 2006.
MÜLLER, Friedrich. Quem é o povo? A questão fundamental da democracia. Tradução de
Peter Naumann. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 2003.
PINHEIRO, Paulo Sérgio. Notas sobre o futuro da violência na cidade democrática. Revista
USP, São Paulo, n.5, p.43-46, mar.-mai. 1990. Disponível em:
<http://www.usp.br/revistausp/05/07-paulo.pdf>. Acesso em: 31 jul. 2009.
POPPER, Karl R. Conjecturas e refutações: o progresso do conhecimento científico. 2. ed.
Tradução de Sérgio Bath. Brasília: Universidade de Brasília, 1982.
PRADO, Luiz Regis. Bem jurídico-penal e Constituição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
QUEIROZ, Cristina M. M. Direitos fundamentais (teoria geral). Coimbra: Coimbra
Editora, 2002.
115
REALE, Miguel. Lições preliminares de direito. 27. ed. São Paulo: Saraiva, 2002.
RELATÓRIO NACIONAL BRASILEIRO. Cúpula Mundial de Alimentação, Roma, 1996.
Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dts/relatoriobras-CMA96.doc>. Acesso em: 29 mar. 2008.
RIO GRANDE DO NORTE. Tribunal de Justiça. Apelação cível nº 2000.003043-0, da 2ª
Câmara Cível. Natal, RN, 21 de junho de 2005. Disponível em:
<http://www2.tjrn.jus.br/cjosg/pcjoDecisao.jsp?OrdemCodigo=0>. Acesso em: 26 out. 2008.
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul – 10ª Câmara Cível. Proc.
nº 70015609746, cujo acórdão é datado de 21.12.2006 e publicado em 09.02.2007. Disponível
em: <http://www. tj.rs.gov.br>. Acesso em: 10 dez. 2007.
RODRIGUES, Francisco Luciano Lima. Patrimônio cultural: a propriedade dos bens
culturais no Estado Democrático de Direito. Fortaleza: Universidade de Fortaleza, 2008.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. O contrato social. Tradução de Antonio de Pádua Danesi. 4. ed.
São Paulo: Martins Fontes, 2006.
ROXIN, Claus. A proteção de bens jurídicos como função do Direito Penal. Organização e
Tradução de André Luís Callegari e Nereu José Giacomolli. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2006.
SALES, Lilia Maia de Morais; ALENCAR, Emanoela Cardoso Onofre de. Polícia
comunitária e mediação de conflitos sociais: uma proposta inovadora para a segurança
pública. In: VIII ENCONTRO DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA DA
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA-UNIFOR. Fortaleza, v.1, n.1, 2008.
SANTIN, Valter Foleto. Controje judicial da segurança pública: eficiência do serviço na
prevenção e repressão ao crime. São Paulo: RT, 2004.
SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 5. ed. Porto Alegre:
Livraria do Advogado, 2005.
__________. A eficácia do direito fundamental à segurança jurídica: dignidade da pessoa
humana, direitos fundamentais e proibição de retrocesso social no Direito Constitucional
brasileiro. Revista de Direito Constitucional e Internacional, Rio de Janeiro, IBDC/RT,
ano 14, n. 57, p. 5-48, out.- dez. 2006.
SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal. Rio de Janeiro:
Lúmen Juris, 2003.
SILVA, José Afonso da. A dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia.
Revista de Direito Administrativo, Rio de Janeiro: Renovar, n. 122, abr.- jul. 1998.
__________. Curso de Direito Constitucional positivo. 27. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Tutela penal dos interesses difusos. São Paulo: Atlas, 2000.
SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. Parâmetros para a conceituação constitucionalmente
adequada da segurança pública. In: FOLMANN, Melissa; ANNONI, Daniele (Coord.).
Direitos humanos: os 60 anos da Declaração Universal da ONU. Curitiba: Juruá, 2008.
116
SULOCKI, Victoria-Amália de Barros Carvalho G. de. Segurança pública e democracia:
aspectos constitucionais das políticas públicas de segurança. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007.
SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de direito público. 4. ed. São Paulo: Malheiros, 2007.
SÜSSEKIND, Arnaldo. Direito constitucional do trabalho. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004.
TAVARES, André Ramos. Curso de direito constitucional. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2006.
TEIXEIRA, Pedro; VALLE, Silvio (Org.). Biossegurança: uma abordagem multidisciplinar.
Rio de Janeiro: Fiocruz, 1996.
TOLSTOI, Leon. O que é arte?. Tradução de Bete Torii. São Paulo: Ediouro, 2002.
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. 18. ed. Saraiva: São Paulo, 1997.
v. I.
UBILLOS, Juan Maria Bilbao. Em qué medida vinculam a los particulares los derechos
fundamentales? In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). Constituição, direitos fundamentais e
Direito Privado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003.
VASCONCELOS, Arnaldo. Direito e força: uma visão pluridimensional da coação jurídica.
São Paulo: Dialética, 2001.
__________. Teoria pura do direito: repasse crítico de seus principais fundamentos. Rio de
Janeiro: Forense, 2003.
__________. Teoria da Norma Jurídica. 6. ed. São Paulo: Malheiros, 2006.
VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de derecho político. Madrid: Tecnos, 1984. v. IV.
VIZZOTTO, Vinicius Diniz. Restrição de direitos fundamentais e segurança pública: uma
análise penal-constitucional. Revista de Direito Constitucional e Internacional, Rio de
Janeiro: IBDC/RT, ano 14, n. 57, p. 133-154, out.- dez. 2006.
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. Tradução de Karin Praefke-Aires Coutinho.
3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo