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FRANCISCO PASSOS COSTA
CONFIANÇA BÁSICA E
IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO
Um diálogo possível entre Erik Erikson e Françoise Dolto
em torno da formação do psiquismo infantil e sua relação
com os transtornos mentais
Dissertação apresentada como
requisi
to parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Saúde
Pública pela Universidade Federal
de Santa Catarina-UFSC. Área de
Concentração: Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Walter Ferreira de Oliveira
Co
-
Orientador: Prof. Dr. Rafael Raffaelli
Florian
ópolis
-
SC, Maio de 2005.
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2
FRANCISCO PASSOS COSTA
CONFIANÇA BÁSICA E
IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO
Um diálogo possível entre Erik Erikson e Françoise Dolto
em torno da formação do psiquismo infantil e sua relação com os
transtornos mentais.
Dissertaçã
o apresentada como
requisito parcial para a obtenção
do grau de Mestre em Saúde
Pública pela Universidade Federal
de Santa Catarina-UFSC. Área de
Concentração: Ciências Sociais.
APROVADA EM: ____ / ____ / _____
BANCA EXAMINADORA:
_____________________
____________
Prof. Dr. Walter Ferreira de Oliveira
-
UFSC
Presidente
____________________
Prof. Dr. Rafael Raffaelli
-
UFSC
Membro
_________________________________
Profa. Dra. Maria do Rosário Stotz
UNISUL
Membro
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3
Não acredito em u
m Deus que não saiba parir
4
À
Marieta Passos, o [meu] começo de tudo...
Fátima Passos, parceira de grandes momentos. A
irmã que todo irmão mais novo gostaria de ter na
vida...
Irinéia Passos,
(in memor
iam),
a vovó daquele tipo
que contava histórias, fazia doces e protegia, às
vezes com mentiras inocentes que todo mundo
fingia acreditar...
5
Para Valéria Silva.
A mulher com quem há 17 anos tenho tido o prazer, a alegria e
a honra de
conviver. Sou
-
lhe especialmente grato, pois Valéria
foi sempre a grande Musa de todo esse processo: estimulou o
mestrado em si, inspirou o tema e, leitora atenta e
interlocutora de qualidade, esteve sempre ao meu lado ora
estimulando, ora cobrando, ora in
dicando o momento de ‘dar
um tempo’.
Com a sua prática cotidiana à frente desta família, Valéria
instaurou uma profunda divergência de opinião entre mim e
nossos filhos: eles a consideram a melhor mãe; eu, a melhor
mulher.
6
“Criança:
Alguém que fica conosco por um tempo
e desaparece para sempre no mundo dos adultos”
Jayme Murahovschi
Crianças...
que na condição de pacientes, amigos, conhecidos ou simples
transeuntes deram
-
me importantes lições de vida. E dentre
esses destaco os
meus filhos Daniel, Raquel, Gabriela, André e
Victor, que, nesta ordem, foram aparecendo, ficando,
ensinando
-
me e... fazendo o seu natural e desejável processo
de ‘desaparecimento’ no mundo adulto.
7
Agradecimentos
A leitura e releitura deste texto me trazem dois sentimentos: uma grata satisfação por ter
conseguido dizer aquilo que pretendia e, dessa forma, confirmar a assertiva de Umberto Eco,
segundo a qual ‘fazer uma dissertação é divertir-se’ e, por outro lado, um sentimento de
profunda gratidão às pessoas e instituições que, de um modo ou de outro, e em tempos
diversos, viabilizaram a sua execução.Agradecer implica correr o risco de esquecimentos
imperdoáveis, pois foram muitos os que se envolveram na caminhada. Por essa razão optei
pela menç
ão numa
ordem cronológica
de aparecimento.
Agradeço à psicóloga Enedina Martins, coordenadora da Casa da Colina-Espaço de Saúde e
de Cultura, por ter-me ‘apresentado’ a Dolto. À Selma Regina Marino, coordenadora da
Clínica Integrada de Atenção Básica à Saú
de
-CIABS, que acolheu com entusiasmo a idéia e
se dispôs a buscar uma forma de viabilizar o projeto que, necessariamente, me tomaria tempo
de trabalho. Entusiasmo e acolhimento igualmente encontrado na Enfermeira Dra.Eliane
Faria, então Secretaria Municipa
l de Saúde de Biguaçu, onde eu trabalhava
e trabalho.
Esse acolhimento, porém, não teria sido viabilizado sem a colaboração dedicada das
funcionárias da CIABS, particularmente Jussara Ribeiro Crisalt (Sara) e Krisley de Aquino
Rosa Correa. Como responsáveis pela recepção, não apenas elaboraram um criativo esquema
de compensações das faltas
para que não houvesse prejuízo por parte dos usuários
como
estiveram sempre disponíveis a remarcações de consultas quando as idas e vindas decorrentes
do mestrado me impunham a necessidade de ausências nem sempre previamente acertadas.
Estendo o meu agradecimento à população de Biguaçu e aos demais colegas de trabalho
sobretudo aqueles que compõem a Equipe de Saúde da Família pela compreensão diante
das eventuais lacunas em vista dos estudos. À médica Flávia Henrique, colega de trabalho,
pelo apoio e entusiasmo.
Nova conjuntura política, novo Secretário de Saúde: Dr. Sílvio Strobel. Novas coordenadoras
da CIABS: Enfermeiras Teresa Cristina Gaio e Maria Catarina da Rosa. Igual acolhimento, a
mesma disponibilidade em buscar formas e caminhos para continuar viabilizando o mestrado.
Meu especial agradecimento a essas pessoas.
Agradeço aos Professores do Programa de Pós-graduação em Saúde Pública, em particular
àqueles
com quem convivi diretamente em aulas, debates, conversas (Alcides Rabelo, Marcos
da Ros, Carlos Caetano, Elza Berger, Fernando Pires, Marcos Peres, Sérgio de Freitas, Sandra
Caponi); aos colegas da turma de 2001, cuja convivência permitiu-me definir melhor o
caminho, aparar arestas; aos funcionários do departamento.
Agradeço em particular à turma da disciplina Saúde Mental/2001 (Ana Lima, Ana Karina,
Antônio, Beatriz Franchine, Marise, Mariângela, Sheila, Simone Franco, Thais, Walquíria)
que ‘reconstruír
am’ o meu narcisismo, abalado após uma primeira discussão do projeto.
À Ivy, do Memorial Brasileiro de Pediatria, que me enviou parte dos Anais dos Congressos da
Sociedade Brasileira de Pediatria
.
E por fim às instituições que tornaram esta empreitada po
ssível:
A Secretaria Municipal de Saúde de Biguaçu, a Clínica Integrada de Assistência e Atenção
Básica
-CIABS/UNIVALI, à Casa da Colina-Espaço de Saúde e de Cultura, à Delegacia
Catarinense de Psicanálise, fórum privilegiado de discussão e aprendizado. Agradeço em
especial ao Programa de Pós-graduação em Saúde Pública da UFCS, que acolheu e me
permitiu viabilizar minha intenção de estudo.
8
Agradecimento especial
Ao Professor Dr. Eduardo Riaviz, de cuja discussão extrai
elementos que me permitiram
enriquecer o projeto inicial.
Agradeço em especial ao Professor Dr. Rafael Raffaelli, co
-
orientador, que mesmo tendo se envolvido mais tardiamente
com o projeto, foi responsável por significativas mudanças em
seu curso e pelo amadurecimento da abordagem
empreendida.
E muito particularmente agradeço ao Prof. Dr. Walter Ferreira
de Oliveira, orientador, pela sua sabedoria, disponibilidade,
compreensão e firmeza. Mas, sobretudo por ter sustentado o
meu desejo em desenvolver este estudo, mesmo quando
(quase
) todos em volta afirmavam ser um projeto difícil, não
empírico, comprometedor. E no fundo tinham razão. Mas
tinham a razão que a Universidade atual
pólo dinâmico de
pensamento e discussão
começa a questionar. Uma ‘nova’
razão, a razão que tem surgido
do debate vivo e apaixonado,
moveu
creio
o Professor Walter a orientar
-
me nesta
caminhada; durante a qual passou da condição de professor
para a condição de Mestre
aquele de quem se aufere
lições de vida.
9
RESUMO
Construir um diálogo acerca do pensamento de Erik Erikson e Françoise Dolto em
torno da formação do psiquismo humano e sua relação com os transtornos ou distúrbios
mentais infantis é a intenção primeira desta dissertação
.
O trabalho apresenta as matrizes de
pensamento dos dois autores sumarizadas nos conceitos de confiança básica e
imagem
inconsciente do corpo, respectivamente. Os construtos conceituais apontam para a
importância da maternagem e dos cuidados dispensados à criança na primeira infância para o
estabelecimento da personalidade, ressaltando a relevância dos processos sociais-
culturais
com os quais interagem para darem conformação ao sujeito humano. A revisão de literatura
constitui
-se a técnica básica do percurso investigativo e o cotejamento entre autores a
estratégia prioritária na construção do diálogo proposto. O encontrado através da
investigação aponta para convergência teórica entre os conceitos oferecidos pelos autores, na
medida em que ambos partem de pressupostos psicanalíticos gerais comuns e percorrem
caminhos teóricos centrados na importância da figura materna, do afeto e da qualidade dos
cuidados dispensados às crianças, sem os quais o bebê humano fica privado das condições
que lhe habilitem à consolidação de um arcabouço psíquico capaz de resistir adequadament
e
às pressões e demandas emocionais verificadas ao longo da vida, residindo a sua falta numa
provável razão do substancial incremento dos índices de transtornos mentais em crianças e
adultos, conforme observa-se nos estudos e levantamentos mais recentes, dos quais destaca-
se o Relatório da Organização Mundial de Saúde de 2001 sobre Saúde Mental no Mundo.
PALAVRAS
-CHAVE: Confiança básica. Imagem inconsciente do corpo. Psiquismo infantil.
Maternagem. Afeto. Saúde mental.
Transtorno mental infantil.
10
A
BSTRACT
To construct a dialogue concerning the thoughts of Erik Erikson and Françoise Dolto
about the formation of the human psyche and its relation to mental disturbance and disorders
of children is the first intention of this dissertation. The paper presents the thought matrix of
both authors summarized in the concepts of basic trust and unconscious image of the body
,
respectively. The conceptual constructions point to the importance of motherhood and care
given to the child in first infancy for the esta
blishment of character, highlighting the relevance
of the social-cultural processes with which they interact to give the human subject
conformation. The literature revision consists of the basic technique of investigative course
and the parallel between au
thors is the main strategy to construct the proposed dialogue. What
was found through the investigation points to theoretical convergence between the concepts
offered by the authors, as they both start from common psychoanalytical general
presuppositions and go through theoretical ways centered in the importance of the maternal
figure, the affection and the quality of the care given to children, without which the human
babe gets deprived of the conditions that will allow it the consolidation of a psychic so
lid base
capable of resisting adequately to emotional pressures and demands shown through life,
residing its lack in a probable reason of the substantial increase of mental disturbances rate in
children and adults, as can be seen in the most recent studies and surveys of which is
highlighted the World Health Organization Report of 2001 about mental health in the world.
KEYWORDS:
Basic trust. Unconscious image of the body. Children's
psyche
. Motherhood.
Afection. Mental Health. Children’s mental disturbanc
e.
11
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1.
CAPÍTULO 1: O PERCURSO METODOLÓGICO
............................................23
2.
CAPÍTULO 2: OS CONSTRUTOS CONCEITUAIS
...................................
.......39
2.1
SAÚDE E TRANSTORNO MENTAL: contornos e limitações.......................................40
2.2
MENTE X CORPO: dualidade questionável................................................................ 45
2.3 DESENVOLVIMENTO
INFANTIL SAUDÁVEL:
fa
tores pessoais e sociais
-
culturais....................................................................................50
2.3
INATISMO GENÉTICO E ONTOLÓGICO: animal humano x ser humano..............57
2.4
INATISMO ONTOLÓGICO: sou mesmo sem pensar...................
..............................58
2.5
CRIANÇA E FAMÍLIA: consolidação e desestruturação............................................64
3
.
CAPÍTULO 3
:
A FORMAÇÃO DO PSIQUISMO
:
A MENTE HUMANA E SEUS MECANISMOS INCONSCIENTES
...........74
4. CAPITULO 4: ERIK ERI
KSON
E O CONCEITO DE
CONFIANÇA BÁSICA
..........................................................86
4.1.
ERIK ERIKSON: o homem e sua obra...............................................................................87
4.2.
O CICLO VITAL: epigênese e desenvolvimento
psicossocial...........................................90
4.3
MODOS PSICOSSOCIAIS E ZONAS ERÓGENAS: formas e lugares de
manifestação da libido........................................................................................................96
4.4. MODO
INCORPORATIVO: sugar e morder. Pressupostos para os conceitos
de
confiança
e
desconfiança básicas.................................................................................108
4.5 CONFIANÇA BÁSICA: auto
-
identidade e coragem de ser..................
...........................116
4.6 ESPERANÇA: síntese harmônica da confiança e desconfiança básicas..........................117
5
.
CAPÍTULO 5: FRANÇOISE DOLTO
E O CONCEITO DE
IMAGEM
INCONSCIENTE DO CORPO
...
..................................................................................120
5.1. FRANÇOISE DOLTO: sujeito e linguagem...................................................................121
5.2. O MÉTODO E O ESTILO: ‘médica de educação’..........................................................127
5.3. TUDO É LINGUAGEM: o sujeito é sujeito da linguagem.............................................133
5.4. ANTECEDENTES DA IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO:
o desejo dos
pais sustentado na linguagem................................................................. 139
12
5.5. IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO: suporte do eu..............................................140
5.5.1.Imagem de base..................................
......................................................................142
5.5.2.Imagem funcional....................................................................................................149
5.5.3. Imagem erógena...........................................................................................
...........151
5.6. A IMAGEM DO CORPO E A MÃE: a fala materna......................................................152
5.7. TRIANGULAÇÃO: A Relação mãe
-
filho
-pai................................................................157
5.8. IMAGEM DO CORPO E SE
US DESTINOS: castrações simbolígenas.........................159
5.8.1. Castração umbilical.................................................................................................161
5.8.2.Castração oral............................................
...............................................................163
5.8.3. Castração anal.........................................................................................................165
5.8.4. castração genital......................................................................................................166
5.9. HUMANIZAÇÃO: o fruto das castrações simbolígenas...........................................168
6.
CAPÍTULO 6:
EXPLORANDO CONFLUÊNCIAS:
O DIÁLOGO POSSÍVEL
......................
.......................................................................172
6.1
CRIANÇA E MEIO SOCIAL
-
CULTURAL:
Imbricamento necessário e obrigatório.............................................................................173
6.2
SOFRIMEN
TO HUMANO/TRANSTORNO MENTAL:
ponto de partida para uma compreensão holística do ser humano....................................176
6.3.MATERNIZAÇÃO E PSIQUISMO INFANTIL:
o papel dos cuidadores......................................................................................................180
6.4.DESEJO DE SER, CORAGEM DE SER:
propulsores inconscientes da personalidade infantil coesa e equilibrada.........................186
7. CAPÍTULO 7: LAÇOS MÃE
-
FILHO E
TRANSTORNOS MENTAIS E COMPORTAMENTAIS INFAN
TIS
........189
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ANEXOS
13
INTRODUÇÃO
Esta dissertação é produto de vários anos de experiência médica com famílias e,
sobretudo, com crianças. Alguns anos de estudo e muito diálogo com pessoas, sobretudo
mulheres que
fui encontrando e de quem fui aprendendo lições de vida.
Também sintetiza cerca de dois anos de sala de aula e conversas durante o Mestrado.
Horas sem fim de leituras e apontamentos. Vários encontros e desencontros de orientação e
discussão. Muitas páginas escritas, apagadas e re-escritas. Nas horas de ‘descanso’, um curso
de formação em psicanálise, pois a caminhada mostrou-me que eu precisava saber bem mais
do que imaginava inicialmente.
Pode
-se supor a partir disso que se trata, então, de um trabalho consistente e
esclarecedor. Essa é minha intenção, mas temo decepcionar o leitor porque, além de tudo o
que disse acima, esse trabalho corrobora um pensamento de Tobar e Yalour, quando esses
autores afirmam que nos anos dedicados à orientação de teses e dissertações, puderam ver
muitos Hércules — dispostos a enfrentar bem mais do que doze tarefas — converterem-se em
lânguidos Dom Quixotes a debaterem-se com seus moinhos de vento. Certamente estive na
ponta inicial dessa sentença; torço para que o leitor não constate que o produto final confirma
a totalidade da mesma.
O tema era árido, os caminhos nem sempre muito claros. Procurei ater-me a um
projeto que me pareceu lúcido e objetivo e que o dia-a-dia foi mostrando que precisava de
muitos ajustes, tarefa para a qual contei sempre com a inestimável colaboração do meu
orientador. Reconheço e talvez seja essa a única falha que não cometi que li muito, li
tudo o que me foi sugerido e que pudesse iluminar-me o caminho. Mas as leituras nos abrem
possibilidade
s em demasia, às vezes nos confundem e nos colocam o risco de perder o norte.
Nessas horas
novamente
a orientação segura e determinada recolocava
-
me nos trilhos.
O ponto de partida: uma criança angustiada, sofrendo do sofrimento da alma. Mas
como é possível? A infância é a época da alegria. Criança não se sabe pobre/rica, criança não
se sabe bonita/feia; criança quando acorda de manhã não pergunta se o dinheiro vai ser
14
suficiente para pagar as contas. Nas suas fantasias, importa mais o uso que possa fazer dos
seus brinquedos que a qualidade ou o preço dos mesmos. Pelo menos assim eu fui e assim o
foram todos os que conviveram comigo, segundo os meus pensamentos.
Lembro
-me de vários
rachas
alucinados que disputava com os meus amigos usando
pneus velhos
como
máquinas envenenadas. Em nossa imaginação infantil, barquinhos de
papel tornavam-se potentes lanchas a percorrer as canaletas das ruas que as chuvas
convertiam em caudalosos rios e corredeiras. Os céus freqüentemente transformavam-se em
cenários para
acirradas
batalhas aéreas, disputadas por papagaios/pipas cuja hegemonia era
decidida pela qualidade do cerol e pela habilidade do
piloto,
situado em terra, mas que a
imaginação transportava para o comando de espetaculares
máquinas voadoras.
Coisas estranhas ao meu entendimento começaram a acontecer. Por que uma criança
tenta morrer? Por que fica triste até adoecer da alma e às vezes do corpo? Por que perde a
vontade de brincar? Como dizia o velho robô do seriado Perdidos no espaço que embalou
os meus sonhos infantis de ser astronauta ‘não tem registro!’. Mas estava acontecendo. Na
verdade informavam-me disso. Eu via na televisão, nos jornais, nos congressos médicos. Os
encontros de pediatria começaram a abrir espaço para discutir o assunto. Foi pelo final dos
anos oitenta que pela primeira vez ouvi falar de depressão infantil. O tema foi ganhando
espaço e a idade em que ocorriam foi perdendo anos.
Mas foi a minha vinda para Santa Catarina, em 2001, que me colocou frente-a-
frente
com a desconcertante realidade das crianças que se matam ou tentam se matar, das crianças
deprimidas. Em Blumenau, bairro de Nova Esperança — onde iniciei a minha atividade como
médico do Programa de Saúde da Família-PSF em Santa Catarina tive os meus primeiros
contatos com a brutal realidade de crianças e adolescentes suicidas. Mães e pais fora de casa
em decorrência do trabalho, creches superlotadas, cuidadores que mal têm tempo de prover os
cuidados essenciais. Quando chegam à creche encontram algumas crianças esperando
na
porta, na companhia do vigia. Os pais passaram muito cedo. ‘Pegam cedo no batente, muitas
contas pra pagar. É preciso aumentar a renda familiar’. Recolherão os filhos à tardinha, quase
15
noite. Nessa hora as crecheiras já foram embora, quase todas. Fica uma, ou duas, para
‘entregar’ as crianças.
Ansiolíticos, antidepressivos, distúrbios do sono... Pais doentes. Alcoolismo,
tabagismo precoce, outras drogas. Crianças bebendo Q’boa (água sanitária) pra morrer... Ou
pra chamar a atenção. Pais e filhos adolescentes fazendo uso da mesma medicação
‘controlada’. Em Nova Esperança pude ver uma nova forma de solidariedade entre vizinhos:
ao invés de um pouco de açúcar ou de um ovo emprestado,
empresta
-
se
o diazepam.
Município de águas Mornas: a minha segunda experiência em Santa Catarina como
médico do PSF. Outra realidade. Agricultura, colinas, águas mornas, às vezes frias nos
córregos. Nenhum caso de depressão ou tentativa de suicídio entre crianças, que eu tenha
tomado conhecimento. Quem cuida de você quando o seu pai sai? A minha mãe, ora! E
quando a sua mãe e o seu pai saem? A minha tia; eu vou pra casa da minha tia. E quando não
tem nem pai, nem mãe, nem tia, como você faz? Fico na casa da D. Júlia, aquela ali, ó!
Aponta uma casa próxima.
Algo parecido com ‘as redes societárias’ que o sociólogo Zygmunt Bauman acha
que estão acabando; ou com ‘os casulos de proteção’ que outro sociólogo de igual
importância, Anthony Giddens, considera fundamentais na infância. E por falar em Giddens,
será que tudo isso tem a ver com a perda da tal confiança básica
conceito
formulado pelo
psicanalista Erik Erikson —, que Giddens aponta como fator importante para gerar na criança
a necessária coragem de ser, baseada na confiança estabelecida entre a criança pequena e os
que cuidam
dela? Algo sobre o que refletir...
Um seminário promovido pela Casa da Colina-Espaço de Saúde e de Cultura
,
intitulado
A importância do processo de separação e socialização dos bebês, face aos adultos
que se ocupam e se responsabilizam por eles
,
colocou
-
me
em contato com a psicanalista
Françoise Dolto e do seu conceito de imagem inconsciente do corpo. Para esta psicanalista,
que se notabilizou pelo tratamento de crianças, as trocas estabelecidas entre a mãe e seu/sua
filho(a) têm início ainda na vida intra-uterina e se prolongam por toda a infância como uma
vivência relacional
que marcará o psiquismo da criança por toda a vida.
16
Pude constatar que mesmo sem o conhecimento dessa teoria eu já estivera de alguma
forma associado a ela através de um trabalho que realizara, em associação com outros
profissionais, na UTI neonatal no Hospital Barão de Lucena, no Recife, de cujo corpo clínico
fiz parte no ano de 1997. Durante essa experiência os contatos físicos entre as mães e as
crianças recém-nascidas ali internadas eram estimulados. Havia a convicção de que a
maternagem daquelas crianças algumas das quais em coma facilitava o processo de
recuperação, bem como a re-lactação e re-familiarização subseqüente à alta hospitalar.
Convicção essa partilhada por todas as pessoas envolvidas com a experiência, mesmo aquelas
que inicialmente se posicionavam de uma forma crítica.
Os conceitos de confiança básica e imagem inconsciente do corpo foram
estabelecidos a partir de duas visões inicialmente diferentes, embora consubstanciadas no
mesmo referencial teórico básico. Numa primeira leitura haveria muito pouco de comum entre
o pensamento de Erikson e Dolto, exceto pelo fato de os dois serem psicanalistas. Mas alguns
pontos cruciais e comuns aos dois chamaram-me a atenção, dentre os quais pontuo a
importância conferida à presença da mãe e dos cuidados maternos nas primeiras fases da vida
como elementos determinantes para um desenvolvimento infantil saudável.
Haveria alguma relação entre o conceito de confiança básica de Erikso
n
e imagem
inconsciente do corpo de Dolto? Poderíamos estabelecer, afinal, alguma relação entre a
qualidade dos cuidados dispensados à criança e a maneira como essa criança ou o adulto
em que se transformará se posiciona frente aos desafios no mundo? Poderia haver alguma
vinculação entre esses cuidados e possíveis transtornos psíquicos que essas crianças viessem a
desenvolver? Em 2001, em seu Relatório sobre saúde mental no mundo, a Organização
Mundial de Saúde-OMS afirmou que “A criança privada de afeto por parte dos seus
cuidadores tem mais probabilidade de manifestar transtornos mentais e comportamentais,
durante a infância ou numa fase posterior da vida” (OMS/OPAS, 2001: 2). Eu não estava
na minha convicção.
Assim formou-se o esboço do que viria a ser o meu objeto de pesquisa. Começou
assim. Mas começou. Precisava buscar a compreensão do problema do ponto de vista
17
científico. Delimitar o objeto, definir conceitos. O que estaria mesmo acontecendo? Haveria
de fato um incremento de situações de risco? O que poderia ser entendido, afinal, como
transtorno mental e comportamental? Essa expressão contemplaria toda a gama de distúrbios
ou alterações a que uma pessoa, particularmente uma criança, estaria submetida quando
afastada das condições sociais, culturais e temporais definidas como
normais
? A própria
noção de normalidade abre, de imediato, uma gama considerável de questionamentos.
No Brasil, os fóruns de discussão da problemática da saúde mental têm preferido
denominar
sofrimento psíquico
ao
conju
nto de alterações que a OMS classifica, grosso modo,
como
transtorno mental e comportamental. Mas não exclusivamente. Nesse campo a
possibilidade do consenso é muito pequena, em vista de critérios variados de classificação ou
até mesmo de diferenças culturais que pressupõe entendimentos diferenciados de algumas
condições clínicas. Sendo exatamente essa a razão de optar pela nomenclatura consagrada
pela OMS, por aceita
-
la como a mais abrangente.
Partindo, então, do conceito da OMS, o que seria um
transtorno
mental e
comportamental
numa criança? Depressão é
transtorno
menta
l e comportamental? Suicídio
ou sua tentativa podem ser considerados como tal? E autismo? E Síndrome de Down?
Esquizofrenia? Pânico? O conceito adotado pela OMS baseia-
se
segundo a própri
a
Organização
em estudos de vários autores. Não goza de unanimidade, mas é um consenso
mínimo. Por outro lado, a OMS adota uma classificação de transtornos mentais e
comportamentais
que procura levar em consideração a opinião de muitos estudiosos, em
vár
ias partes do mundo. Assim, tanto o conceito como a classificação dessa natureza de
transtorno não gozam de unanimidade e também não contemplam toda a complexidade que o
problema comporta. Mas serve como norteador. Pode ajudar.
Vamos ver também como outros profissionais vêem o problema, com o intuito de
ampliarmos o ângulo de visão, envolver outros aspectos. Vamos lançar um pouco de luz sobre
esses tais transtornos mentais e comportamentais, para que possamos, a partir de um
entendimento comum, obtermos um
a terminologia que nos possa servir como referencial.
18
Uma pergunta natural aparece: e quando a doença é na mente e compromete o
corpo? E quando é o contrário? Essa complexificação na abordagem do problema faz-
se
necessária ante a miríade de condições clínicas atualmente observadas sem que a presumível
causa possa ser localizada com precisão. Pneumonia é uma doença do corpo e esquizofrenia é
uma doença da mente, nos informam os critérios clássicos de classificação das doenças em
mentais
e
orgânicas
Mas o que fazer com a
depressão
, que compromete o estado emocional,
mas tem um substrato físico, representado pela queda nos níveis de serotonina um neuro-
transmissor
? E com a
fibromialgia
que, ao contrário, compromete o corpo, mas não parece
determinar alterações somáticas detectáveis às investigações laboratoriais? E como classificar
a
síndrome do pânico
, espécie de ‘brincadeira de mau
-
gosto’ do sistema nervoso autônomo?
Todas essas considerações nos conduzem à necessidade de alguma discussão sobre
essa separação de corpo e
mente
. Vamos refletir um pouco sobre isso que chamamos
dualidade corpo/mente e como isso se relaciona com o momento histórico e com o meio. Em
que base se assenta essa dicotomização do ser humano em corpo e mente? Sempre foi assim?
Em todas as culturas é assim? Faz sentido pensar o ser humano nessa dualidade? O que se
tem de novo sobre tudo isso?
Há uma crença generalizada de que as pessoas estão adoecendo mais, o que é
corroborado pelas estatísticas, como veremos. Um dia ouvi de um paciente: “está é todo
mundo enlouquecendo. Também pudera, com esse tanto de coisa acontecendo ao mesmo
tempo. Os pais não têm mais tempo de cuidar dos filhos. A violência não nos deixa pensar em
alternativas de lazer que não sejam sob controle e vigilância...[ E conclui:] “Acho que tudo
isso é conseqüência da loucura que tomou conta do mundo. Ninguém mais se entende, e as
crianças estão saindo como vítimas maiores nessa história toda.”. Posição algo próxima
daquela expressa por Jacques Lacan, quando em uma de suas últimas apresentações, ao ser
interpelado por uma ouvinte acerca de um paciente surtado que acabara de discutir, disse:
“Todos ao hospício! Todos ao hospício!”. E diante da insistência do ouvinte, repetiu: “Todos
ao hospício!”. Gerard Haddad, analisando e discípulo de Lacan, a propósito desse episódio,
19
assegura: “Esse era seu último diagnóstico sobre a humanidade moderna alguns meses antes
de deixa
-
la. Todos loucos.” (2003: 167).
Seria algo sobre o que pensar. Os adultos estão doentes. As crianças est
ão
adoecendo mais. Haveria alguma relação? Um estudo sobre a mente humana enquanto
psiquismo
poderia nos ajudar a entender melhor tudo isso? Estou convencido que sim.
Existem muitas maneiras de procurar uma melhor compreensão do ser humano. A
filosofi
a pode dizer algumas coisas, a religião diz outras. A sociologia pode explicar uma
parte. Mas eu escolhi buscar um maior entendimento do ser humano a partir da compreensão
dos seus processos mentais, de seu
psiquismo
em bases psicanalíticas. Ou seja, a partir do
referencial teórico criado por Sigmund Freud, para quem a diferença substancial entre um ser
humano e os demais viventes reside em nossa capacidade de
desejar
. É pelo desejo que nos
diferenciamos do restante da natureza. Desejo entendido como a capacidade inerentemente
humana de buscar satisfação pela fantasia, que não deve ser identificada como mera
necessidade ou mesmo demanda — aquilo que expresso como vontade — mas como força ou
impulso à satisfação do que fantasio como necessidade. “A concepção freudiana de desejo
refere
-se especialmente ao desejo inconsciente, ligado a signos infantis indestrutíveis. (...) É a
articulação desses sinais [signos] que constitui aquele correlativo do desejo que é a fantasia”
(Laplanche e Pontalis, 2001: 114). Por oferecer uma possibilidade de apreensão das
motivações inconscientes
dos nossos atos, exatamente aqueles que, no meu entendimento, vão
conformar a nossa mente, o nosso psiquismo, considero a psicanálise o melhor instrumento
para o estudo que pretendo encetar nesta dissertação.
Dentre os psicanalistas, volto-me em particular para Erik Erikson e Françoise Dolto.
Para Erikson a vida humana é intergeracional, e se realiza num ciclo que ele chamou de C
iclo
de Vida, entendido como o processo de desenvolvimento do ser humano que começa com a
história dos pais, tem continuidade na infância, passa pela idade adulta e termina na velhice.
Neste
Ciclo,
cada fase da vida se relaciona de forma imbricada e profunda com as outras, e
cada período da vida tem os seus desafios e suas conquistas. Na primeira infância o desafio
ocorre em torno do sentimento de
confiança básica
e de
desconfiança básica
. Tanto um como
20
o outro, bem como o equilíbrio entre eles, depende essencialmente da mãe e dos cuidados
dispensados à criança no começo da vida. Vamos ver como tudo isso se relaciona: seio,
mamilo, leite, criança, boca, ânus... Enfim, as zonas ou áreas de prazer da criança. E como a
mãe entra nesse processo. Nas palavras de Erikson: “O firme estabelecimento de padrões
duráveis para a solução do conflito nuclear da confiança básica versus a desconfiança básica
,
(...) é a primeira tarefa do ego e (...) uma tarefa para o cuidado materno.” (1976a: 220).
Dolto, por sua vez, considera a criança um ser de
linguagem.
Forma
-se na
linguagem e pela linguagem, ou seja, imersa numa cultura. Mas não entra na cultura de
qualquer maneira, o faz através da mãe. É a mãe que, num primeiro momento, sustenta o
desejo da criança de vir-a-ser e posteriormente a separa de si, afastando-se e tornando-
a
pessoa.
Sendo, portanto, avalizadora do processo de conformação do sujeito-
que
-
-
de
-
vir.
Para Dolto “a criança é herdeira simbólica do desejo dos genitores que a conceberam” (2002:
38). Nesse sentido, tem início como sujeito antes de ser como indivíduo. Todo esse processo
se inicia no desejo dos pais que se conforma e adquire sentido dentro de uma realidade
culturalmente dada —, passa pela conformação do sujeito na vida intra-uterina, tem
continuidade na infância e se conclui com a quebra do vínculo entre a mãe e seu filho. Esta
quebra por sua vez constitui um processo complexo e dinâmico que a autora denomina
castração simbolígena,
conduzida pela mãe.
Por
imagem inconsciente do corpo a autora designa todo esse processo de formação
e conformação do sujeito desejante, e propugna que a sua adequada condução cria as
condições para que a criança se desenvolva de forma coesa e equilibrada, ou seja, dotada de
uma “continuidade espaço
-
temporal que permanece e vai
-
se preenchendo desde o nascimento,
apesar das mutações de sua vida e dos deslocamentos impostos a seu corpo e, a despeito das
provas a que ele é levado a submeter
-
se.” (2002: 38).
Os dois conceitos chamaram-me a atenção por serem aqueles que, no meu
entendimento, fornecem a melhor maneira de compreender o universo mental infantil,
particularmente no que diz respeito à formação do psiquismo infantil. Foram conceitos
estabelecidos por estudiosos de um mesmo campo geral do conhecimento humano — a
21
psicanálise
mas pertencentes a escolas de orientações teóricas diferentes. Erik Erikson é
um prócer do ramo psicanalítico denominado Psicologia do Ego, enquanto Françoise Dolto,
embora sem filiação psicanalítica assumida poder-
se
dizer que é
doltoniana
situa-
se
teoricamente muito mais próxima ao ramo psicanalítico associado a Lacan, opositor assumido
dos princípios defendidos pela Psicologia do Ego. Porém, mesmo com essas diferenças e,
aliás, por causa delas decidi empreender o estudo que ora lhes apresento e cujo objetivo
maior é estabelecer o que chamei de
diál
ogo possível entre os dois autores. Mas um diálogo
estimulado e orientado à compreensão do que observo a partir da clínica em termos de
sofrimento psíquico ou sofrimento mental expressões utilizadas nos fóruns brasileiros de
saúde mental —, ou
transtorno
s mentais e comportamentais — conforme a OMS — na
população infantil.
Por fim, cumpre-me situar o tema em estudo no âmbito da saúde pública. Para esse
intento lembro a preocupação e atenção recomendada pela Organização Mundial de Saúde
que, através do Rela
tório de 2001: “
Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”,
alerta
para o vertiginoso crescimento das condições caracterizáveis como de transtornos mentais e
comportamentais
. Na Mensagem da Diretora Geral, à guisa de introdução ao documento
citado, a
Dr
a. Gro H. Brundtland lembra que apenas a
depressão
, um desses transtornos, é
hoje uma das principais causas de incapacidade, cuja incidência cresce anualmente e “a se
confirmarem as expectativas, até o ano 2020 figurará como a segunda maior causa de
incap
acidade no mundo” (OMS/OPAS, 2001: Mensagem da Diretora Geral; versão
completa). Ainda para Brundtland, “falar em saúde sem falar em saúde mental é como afinar
um instrumento e deixar algumas notas dissonantes” (Id. Ib).
Por outro lado, contrariamente à crença prevalente no senso comum, os
transtornos
mentais e comportamentais
têm
-
se tornado, segundo a OMS, bastante freqüentes na infância e
adolescência. Além disso, ressalta a Dra. Brundtland, “muitos dos transtornos freqüentemente
observados em adultos podem ter início durante a infância. Exemplo disso é a depressão, que
vem sendo identificada com crescente freqüência entre crianças” (Id. Ib.).
22
Por envolver questões complexas que contemplam aspectos individuais e coletivos
de saúde. Por integrar, enfim, o universo infantil ao universo adulto, inclusive levando em
conta aspectos econômicos e mercado de trabalho, a abordagem da saúde mental
em
particular da saúde mental infantil
converte
-se em tarefa de Estado, a demandar-lhe
providências e políticas à altura do desafio que, como denunciado pela OMS, atinge ampla
parcela da população. Por essas razões, dentre outras, creio na pertinência da discussão em
tela no âmbito da Saúde Pública. Procuro inserir o meu trabalho como uma contribuição,
dentre várias, à
discussão do tema geral
saúde mental infantil
.
23
Capítulo 1
O PERCURSO METODOLÓGI CO
Queremos propor (...) que desenvolvam projetos menos
rigorosos e mais passionais. Queremos propor a produção do
conhecimento como uma arte, ainda que se tr
ate de
conhecimento científico.
Tobar e Yalour
24
O ponto de partida das minhas preocupações para a investigação a que me propus foi a
minha observação do crescente contingente de crianças e adolescentes que passaram a
demandar cuidados médicos em vista de problemas que poderíamos genericamente enquadrar
como
sofrimento psíquico, sofrimento mental ou transtorno mental e comportamental,
para
usar os termos consagrados pela Organização Mundial de Saúde-
OMS
.
Ideação e/ou tentativas de suicídios ou mesmo suicídios consumados, depressão,
melancolia, distúrbios do sono, gastrites nervosas, dores abdominais recorrentes, alopécia,
bulimia, anorexia, ansiedade, pânico, violência gratuita, hiperatividade com ou sem déficit de
atenção, desânimo sem causa aparente, distimia, entre outros, tornaram-se temas obrigatórios
de encontros, simpósios e congressos pediátricos nos últimos anos. As publicações
especializadas, quer no âmbito da pediatria geral, quer no âmbito da pediatria psiquiátrica ou
da psicologia, també
m passaram a dedicar maior espaço a esses assuntos.
A Internet fornece milhares de acessos a artigos, revistas e livros sobre o tema.
Somente através do
portal
de busca Google (<http://
www.google.com
.>) poderemos aces
sar
atualmente mais de mil e setecentas publicações nacionais referentes ao tema
depressão
infantil”
, e mais de 65 mil referências em inglês (“chidhood depression”). Além de outros
milhares relativos a temas afins.
O Relatório de 2001 da Organização Mundial de Saúde-OMS, mencionado,
publicado em português sob a responsabilidade da Organização Pan-americana de Saúde
(OMS/OPAS, 2001
1
), trás importantes constatações acerca do aumento dos problemas
relacionados à saúde mental. A depressão, um dos distúrbios arrolados como
transtorno
mental
, tem assumido nos últimos anos uma grande importância no cenário patológico
mundial. Atualmente figura em quarto lugar entre as dez principais causas de adoecimento no
1
Resumo disponível em <http://www.psiqweb.med.br/acad/oms2.html>. O relatório completo pode ser obtido
em <
http://www.inverso.org.br/blob/67.pdf>. Nesta dissertação as menções feitas ao Relatório OMS/OPA
S
2001 estão em referência ao primeiro endereço eletrônico mencionado; quando necessário, menciono textos
extraídos do segundo endereço eletrônico e nesse caso a citação ou menção será indicada pela sentença
versão
completa.
25
mundo, ou seja: ocupa o quarto lugar como causa da carga patológica
2
mundial, com
estimativa de que até o ano 2020 venha a ocupar o segundo lugar neste rol, ficando atrás
apenas das doenças isquêmicas do coração.
O Relatório OMS/OPAS 2001 chama ainda a atenção para o aumento que se tem
verificado nesse tipo de transtorno entre crianças e adolescentes e alerta para o fato de que a
crença popular segundo a qual os transtornos mentais e comportamentais em crianças são
pouco freqüentes não encontra respaldo na realidade. Ao contrário, esses transtornos —
denun
cia a OMS “... são comuns durante a infância e a adolescência, mas tem-se dado
insuficiente atenção a essa área da saúde mental” (OMS/OPAS 2001: 4).
Esse mesmo documento menciona ainda, a título de complementação, um estudo do
Departamento de Saúde dos Estados Unidos (US-DHHS), cujo diretor geral afirma que o seu
país “está passando por uma crise na saúde mental dos lactentes, crianças e
adolescentes”.(US
-DHHS, 2001 apud OMS/OPAS 2001: 4)
3
. A Organização Mundial de
Saúde sintetiza neste estudo a preocupação que os temas ligados à esfera da saúde mental,
particularmente em crianças, têm despertado em cientistas sociais, médicos, psicólogos,
psicoterapeutas, autoridades sanitárias, enfim, os setores sociais envolvidos com a discussão
pública do assunto. A p
reocupação e as discussões em torno do tema têm crescido nos últimos
anos, embora se reconheça que a atenção devida esteja aquém da necessária.
Devo admitir, no entanto, que até a minha vinda para o Estado de Santa Catarina no
ano de 2000, posicionava-
me
frente a esses problemas mais como um observador. A minha
experiência clínica, como
pediatra
-neonatologista e a minha atuação em Equipes de Saúde da
Família como médico de família e comunidade
4
nos Estados do Piauí e Pernambuco, não me
2
A carga patológica, aferida p
elo índice AVAI (Ano de Vida Ajustado por Incapacidade), mede os
anos de vida
saudável perdidos
por uma população em vista de uma determinada patologia. É um índice estatístico e indica o
peso que determinada patologia exerce no conjunto das patologias inc
apacitantes de uma população.
3
US DHHS-United States Department of Health and Human Services. Departamento de Saúde e Serviços
Humanos dos EE.UU. é responsável pelas ações de saúde, assistência social e desenvolvimento humano. Seria
correspondente, no Bra
sil, ao Ministério da Saúde, dos Esportes e Assistência Social juntos.
4
Designação atual da especialidade médica mais diretamente engajada na Atenção Primária à Saúde, da qual o
Programa de Saúde da Família-PSF é uma das expressões. A terminologia
Medicina
de Família e Comunidade
substituiu desde abril de 2002 a antiga denominação Medicina Geral Comunitária e tornou-se especialidade
médica reconhecida pela Associação Médica Brasileira
-
AMB desde novembro de 2003 (Falk, 2004: 5
-
9).
26
colocaram em contato direto com esse tipo de problemas, muito embora nesses Estados eu
tenha desenvolvido basicamente as mesmas funções aqui desenvolvidas.
Em Santa Catarina, a minha primeira experiência profissional ocorreu na cidade de
Blumenau, mais especificamente no bairro de Nova Esperança, onde trabalhei e morei
durante três meses, como médico do Programa de Saúde da Família-PSF, atendendo a uma
população estimada em seis mil pessoas. Naquela comunidade surpreendeu-me o consumo de
medicamentos psicoativos aqueles popularmente chamados remédios controlados
,
e
mais ainda o consumo desse tipo de medicação por parte da população de faixa etária
correspondente à infância e adolescência. Além disso, atendi a três casos de tentativa de
suicídio em menores de 21 anos d
e idade, fato que me pareceu igualmente inusitado.
Tratava
-se de uma experiência nova para mim, pois na minha prática médica anterior,
desenvolvida em cidades do interior e nas capitais dos Estados nordestinos onde trabalhara
por um período de cerca de dez anos, não verifiquei a necessidade de prescrição desse tipo de
medicamentos para o público infantil. Exceto para as chamadas patologias orgânicas.
Vivenciei situação semelhante em relação aos casos de tentativas de suicídio ou de suicídios
consumados.
Uma
primeira impressão viria no sentido de ratificar o senso comum segundo o qual
povos de descendência germânica são mais propensos a transtornos emocionais em vista do
estoicismo a eles atribuído, em comparação com o modus vivendi um tanto mais despojado
do
s povos de origem latina, africana e indígena, de cuja descendência provém a maioria da
população nordestina. Condições sócio-econômicas e fatores climáticos também costumam
ser apresentados como possíveis determinantes de uma maior incidência dos distúrbios de
natureza mental, muito embora essa impressão careça de conformação estatística. Na
realidade não é possível definir com precisão um ou alguns fatores determinantes dessa
natureza de transtorno, até porque não existe uma manifestação dos mesmos. Va
riadas
condições ensejam variados tipo e modos de manifestação das patologias mentais e
emocionais ou comportamentais. É muito difícil, senão impossível, encontrar uma explicação
comum para essa diversidade de variações(OMS/OPAS, 2001: 4). Mas essa primeira impressão me
27
“contaminou” e os achados clínicos verificados em Blumenau-SC soaram em mim como uma
confirmação
dessa impressão calcada no senso comum.
Após essa experiência em Nova Esperança/Blumenau passei a trabalhar na cidade de
Águas Mornas, também no Estado de Santa Catarina, onde permaneci por cerca de um ano,
vinculado ao PSF. Nesta cidade não verifiquei a necessidade da prescrição de drogas de
notificação obrigatória para crianças e adolescentes, em vista de transtornos de
comportamento e emoc
ionais.
Exceção feita aos casos de patologias orgânicas. Também não
tomei conhecimento de nenhum caso de tentativa de suicídio ou suicídio consumado na faixa
etária correspondente à infância e adolescência. Isso poderia sugerir um volume efetivamente
meno
r de casos clínicos relacionados aos transtornos mentais e comportamentais na
população infantil? Embora eu não possa afirmar positivamente, a observação chamou-me a
atenção.
As condições climáticas, étnicas e sócio-econômicas de Águas Mornas apresentam
mu
itas semelhanças com o município de Blumenau. Em ambas as cidades a descendência é
majoritariamente de origem germânica. Blumenau tem renda per capita de 4900 e Águas
Mornas 4232 reais. A esperança de vida ao nascer é de 74,5 e 75,1 anos para Blumenau e
Ág
uas Mornas, respectivamente (IBGE, 2002). Por fim, o índice de desenvolvimento humano
municipal, calculado para o ano 2000 (IDH-
M/2000)
5
, apresenta valores próximos nos dois
municípios: 0,855 para Blumenau e 0,783 para Águas Mornas.
A minha inquietação foi tomando corpo. Como justificar as presumíveis diferenças
entre a prevalência dos transtornos mentais e comportamentais verificados entre a população
infanto
-juvenil das cidades nordestinas onde trabalhara e as populações catarinenses de Nova
Esperança em Blumenau e Águas Mornas? Haveria mesmo uma diferença significativa na
prevalência desse tipo de transtorno em crianças e adolescentes, materializada no consumo
aumentado de psicotrópicos e/ou nas tentativas de suicídio ou suicídios consumados nessas
cidad
es?
5
O Índice de Desenvolvimento Humano, adotado pela ONU, leva em conta dados econômicos (PIB corrigido
pelo poder de compra da moeda em cada região e renda per capita) e informações sobre alfabetização e taxa de
matrículas. Varia de zero a um (máximo desenvolvimento humano). Fonte:
PNUD.
28
O primeiro desafio com o qual me deparei ocorreu quando busquei informações acerca
do consumo de medicamentos psicoativos pela população infanto-juvenil de Blumenau. A
minha experiência clínica, abonada pelas informações de outros médicos e de alguns
e
nfermeiros, falava a favor de um consumo elevado. Mas não pude ter acesso a dados oficiais.
Aliás, informaram-me nos setores competentes que não dados oficiais disponíveis,
sobretudo no que diz respeito ao consumo por faixa etária, pois a liberação dos
medicamentos
nos postos de saúde o prevê um controle por idade dado, aliás, que não consta dos
receituários de medicamentos controlados, seja da medicação de notificação compulsória A e
B ou da
prescrição especial
.
6
Por essa razão, dentre outras, a ava
liação do consumo de drogas
psicoativas por faixa etária é impraticável com a base de dados atualmente disponível.
Por outro lado, a comparação entre municípios no que diz respeito aos gastos com
medicamentos, que nos permitiria inferir o consumo, é inviável, pois não um controle
nacionalmente centralizado sobre a distribuição de medicamentos, exceto em alguns
programas especiais como DST/AIDS, tuberculose, hanseníase, hipertensão e diabetes os
dois últimos ainda em fase de implantação —. Assim, um maior gasto com medicamentos de
um município em relação a outro, pode indicar maior demanda por parte da população como
uma maior disponibilidade de recursos ou mesmo um maior comprometimento no tocante à
política de distribuição de remédios por parte do ges
tor municipal de saúde.
Quanto aos diagnósticos relativos aos transtornos mentais e comportamentais em
crianças e adolescentes, os dados são pouco precisos. Primeiro, porque a base de dados do
serviço público no âmbito da atenção primária (SIAB-Sistema de Informação da Atenção
Básica) não distingue os casos relacionados aos transtornos emocionais e de humor (afetivos)
de outros transtornos mentais e comportamentais como os induzidos pelo consumo de drogas
lícitas e ilícitas, por estresse, neuróticos, psicóticos ou ainda aqueles derivados de distúrbios
orgânicos. Segundo, porque existe uma grande dificuldade por parte dos clínicos e pediatras
6
A Agência Nacional de Vigilância Sanitária preconiza três formulários
-
receitas para medicamentos psicoativos:
o formulário de notificação A (receita amarela), utilizada para prescrição de drogas com alto poder de gerar
dependência; o formulário de notificação B (receita azul), utilizado para a prescrição de medicamentos com
médio poder de gerar dependência e a receita branca especial (duas vias) utilizada para a prescrição de drogas
psicoativas
leves.
Em nenhuma dos três são solicitadas informações
sobre a idade do usuário.
29
— a quem normalmente esses pacientes recorrem em primeira mão — em diagnosticar
transtornos mentais e comportamentais em crianças, exceto em se tratando dos casos com
etiologia orgânica.
O desconhecimento por parte de alguns profissionais de saúde da vinculação de certos
sintomas aos transtornos mentais e comportamentais, ou mesmo o receio de estigmatizar o
pequeno paciente como portador de uma doença mental, estão na origem do sub-
diagnóstico
que se verifica nesse campo. Na verdade o rótulo de doente mental ou psiquiátrico —
qualquer que seja a patologia específica considerada — é reconhecido pela comunidade
médica como altamente estigmatizante (Moffatt, 1994). Por essa razão, freqüentemente se
pode encontrar um portador de transtorno mental e comportamental infantil sendo
acompanhado sob um diagnóstico menos comprometedor. De fato, não é fácil diagnosticar
uma criança
como
depressiva ou suicida
, em vista da estigmatização que sói acompanhar esse
diagnóstico/rótulo.
Pude verificar, através de levantamento feito nas fichas de produção do SIAB, em
Biguaçu
-
SC
onde trabalhei nos últimos anos que não constam, ou quase não constam,
diagnósticos ligados a esse tipo de distúrbio. De quase cinco mil atendimentos feitos pelas
Equipes de Saúde da Família daquele município, no mês de março/2005, apenas 16 casos
foram identificados como de
transtorno
ou distúrbio depressivo. Quando questionei, em
reunião das Equipes, o baixo número, os colegas médicos admitiram que, para não
comprometer
o usuário, fazem freqüentemente o que eu denomino aproximação diagnóstica,
procedimento através do qual um transtorno depressivo é registrado com
o
labilidade do
humor
, por exemplo. O que não deixa de ser verdadeiro
afinal a labilidade do humor é uma
das possíveis e freqüentes manifestações da depressão —. O gesto revela uma preocupação
legítima, mas certamente contribui para o aumento do fenômeno da sub-notificação e, dessa
forma, reduz a carga patológica em vista dos transtornos depressivos, conforme mencionado
acima.
Em termos de registro junto ao Datasus os casos de suicídio ou às tentativas de
suicídio apresentam-se sob forma menos variadas, pois todos poderiam ser arrolados na
30
classificação geral de lesões autoprovocadas voluntariamente.
7
Mesmo assim há espaço para
a sub-notificação que, nesses casos, decorre do fato de serem disponibilizadas apenas as
ocorrências que gerarem internação. A partir de dados constantes no endereço eletrônico do
Datasus (<http://www.datasus.gov.br>) verifica-se que no Estado de Santa Catarina, de
janeiro de 2000 a janeiro de 2005, foram internadas 15 pessoas com idades compreendidas
entre cinco e 19 anos por
lesõe
s autoprovocadas voluntariamente, dentre as quais poderíamos
arrolar as
tentativas de suicídio. Dessas pessoas, seis eram de Criciúma e uma residia em cada
um dos seguintes municípios: Calmon, Blumenau, Urussanga, Taió, Cocal do Sul, Morro da
Fumaça, Mirim
Doce, Correia Pinto e Papanduva.
Chama a atenção o fato de Criciúma contribuir com 40% destas internações, bem
como o não registro de casos semelhantes em outros municípios, além dos citados, sobretudo
se considerarmos que no período de 2000 a 2003 portanto dentro do período considerado
pelo Datasus um estudo efetuado por Pacheco e colegas (2003) levantou 13 casos de
suicídios consumados na faixa etária de 11 a 20 anos necropsiados no Instituto Médico Legal
de Florianópolis, provenientes da região metropolitana da Grande Florianópolis, que inclui os
municípios de Florianópolis, São José, Palhoças, Santo Amaro da Imperatriz, Biguaçu e
Águas Mornas.
Comparando as duas fontes, podemos ver que pelo levantamento de Pacheco e colegas
com base em ocorrências verificadas no IML foram registrados 13 casos de suicídios
consumados na região da Grande Florianópolis; enquanto pelos dados disponíveis no Datasus,
nenhuma internação por tentativa de suicídio ocorreu no mesmo período e área. Ora, segundo
a OMS, ocorrem no mundo entre 10 a 20 milhões de tentativas de suicídios e um milhão de
suicídios consumados por ano (OMS/OPAS 2001: Mensagem da Diretora Geral; versão
completa). Isso indica que em termos médios mundiais a relação entre suicídios consumados e
tenta
tivas é de um para 10-20; ou seja, para cada grupo de 10 a 20 pessoas que tentam o
suicídio, apenas uma efetivamente consuma o suicídio. Mesmo considerando a margem
7
Denominação adotada pela Classificação Internacional Estatística de Doenças e Problemas Correlatos, décima
edição
CID-10, ratificada pela OMS em 1990, para lesões autoprovocadas voluntariamente, dentre as quais o
suicídio ou su
as tentativas.
31
menor, seria esperado algo em torno de 130 tentativas de suicídios na região da Grande
Flor
ianópolis, no período de 2000 a 2003. Mas nenhuma internação por esse motivo, como
visto, foi registrada. Esse fato nos alerta para a possibilidade da sub
-
notificação.
Como os dados disponíveis no Datasus dizem respeito apenas aos casos que geraram
intern
ação via Sistema Único de Saúde, os resolvidos no âmbito do atendimento de
emergência ou os casos ‘tratados’ domiciliarmente, bem como os atendimentos em clínicas
privadas, não figuram nesta lista, o que afeta os dados, levando a um comprometimento da
sua
fidedignidade. Fato acrescido pela sub-notificação em vista do receio da estigmatização,
situação semelhante e até agravada àquela verificada quanto aos
distúrbios
ou
transtornos depressivos
.
Esse fato pode ser corroborado na prática clínica diária em serviços de pronto-
atendimento. Em quase todos os casos de tentativas de suicídio envolvendo crianças e
adolescentes que atendi, fui instado pelos familiares de forma sutil ou às vezes ostensiva
a ocultar a verdadeira causa do atendimento, por vezes como pré-condição para que a
vítima fosse levada a mim para avaliação e para a necessária abordagem terapêutica. Por
vezes a família se negou até mesmo a aceitar o fato de que seu/sua filho/filha tentara suicidar-
se. A negativa dos familiares gera um certo impasse quanto ao registro diagnóstico posto que,
não havendo aquiescência da família quanto às verdadeiras causas das lesões ostentadas pela
vítima, o médico pode apenas presumir, mas a rigor não pode afirmar tratar-se de tentativa de
suicídio sem um pro
cedimento pericial correspondente, nem sempre factível ou conveniente.
Ainda a propósito da provável sub-notificação dos casos de tentativa de suicídio,
menciono as intoxicações exógenas. Diagnóstico que, na minha experiência clínica em
serviços de urgência e emergência, por vezes esconde tentativas de suicídio. De acordo com
levantamento do CEATOX/FMUSP (2005), são atendidos, em média, 54 casos de intoxicação
por água sanitária por s naquele serviço. Não é feita menção à natureza dessas
intoxicações, mas o profissional de saúde com experiência em serviço de pronto-
atendimento
sabe que a ingestão de água sanitária figura entre as formas comuns de tentativas de suicídio
32
por envenenamento, particularmente em crianças que desde muito cedo recebem informaçõe
s
acerca do perigo representado por esse produto.
Em visto do exposto, que materializa a fragilidade dos dados oficiais, seja no que diz
respeito ao consumo de drogas psicoativas, seja quanto aos casos de depressão e/ou suicídios
consumados ou tentados, considerei que a avaliação dos casos de transtorno mental e
comportamental
em crianças com base nesses dados seria pouco confiável. Restava-me a
consulta direta a prontuários médicos, a partir dos quais intentaria traçar um perfil das
ocorrências, que pudesse me levar a uma avaliação comparativa entre os municípios de
Blumenau e Águas Mornas quanto a essa natureza de distúrbio.
Pude constatar, porém, que a consulta em prontuários médicos de pacientes também
não fornece dados muito esclarecedores. A primeira dificuldade constatada foi a de
localização do próprio prontuário, pois não são poucos os documentos extraviados. Em Águas
Mornas, por exemplo, a chuva havia destruído segundo me foi informado na Secretaria
Municipal de Saúde parte importante do acervo de prontuários médicos disponíveis até o
inicio do ano 2000. Por outro lado, observei a falta de registros confiáveis. Aqui novamente
deparei
-me com a problemática da presumível sub-notificação; neste caso derivada do sub-
registro. Foi comum encontrar nos prontuários analisados histórias clínicas compatíveis com
tentativa de suicídio, mas concluídas com hipóteses diagnósticas diferentes. Fato
mencionado como prevalente e recorrente.
Em um dos prontuários por mim analisados pude ver o seguinte registro médico no
campo da ficha de atendimento destinado à história clinica: “ingesta de substância química
corrosiva”. Tratar-
se
-ia de uma tentativa de suicídio? No campo da ficha destinado à hipótese
diagnóstica o profissional médico registrou: “Intoxicação exógena”. Em outro prontuário
verifiquei um registro com três sentenças, como segue: “QP [Queixa Principal]: tiro acidental.
HDA[História da Doença Atual]: acidente enquanto limpava a arma; terceira vez. HD
[Hipótese Diagnóstica]: acidente com arma de fogo”. A tentativa de suicídio poderia ser
presumida, o que acredito tenha sido a opinião do próprio médico atendente, em vista da
menção ao fato de ter sido “a terceira vez”. Mas o médico efetivamente não mencionou esse
33
diagnóstico.
Anotações demasiadamente sumárias, inconclusivas ou até mesmo ilegíveis são
freqüentes e comprometem uma avaliação mais precisa e potencializam a dificuldade de uma
análise diagnóstica a partir da consulta aos prontuários.
Diante da dificuldade encontrada em lidar com a problemátic
a dos
transtornos mentais
e comportamentais infantis a partir de dados oficiais disponíveis abandonei a idéia de um
estudo comparativo, seja entre os achados de Santa Catarina em relação aos Estados
nordestinos onde trabalhara, seja entre a comunidade de Nova Esperança, em Blumenau e o
município de Águas Mornas. Entretanto, continuava convencido a partir da prática
ambulatorial cotidiana das diferentes intensidades na manifestação desses transtornos. O
volume de achados clínicos verificados em Nova Esperança/Blumenau em tão pouco tempo
de atividade, associado ao relato do pessoal médico e demais membros da Equipe de Saúde da
Família, ratificando a freqüência de tentativas de suicídio bem como o consumo de drogas
psicoativas pela população infanto-
juvenil
, convenceu-me da maior ocorrência de
transtornos
mentais e comportamentais na população infantil e juvenil na comunidade de Nova
Esperança/Blumenau, tanto em relação às cidades nordestinas, como em relação à cidade de
Águas Mornas.
O que poderia explicar essa diferença suposta existente? Clima, composição étnica e
aspectos sócio-econômicos, além de não darem conta da questão per se, são muito
semelhantes nos dois municípios catarinenses. Há, porém, uma grande diferença que se
verifica entre Nova Esperança/Blumenau e o município de Águas Mornas e que também se
verifica entre esta e as cidades nordestinas onde trabalhara: o estilo de vida, particularmente
no que diz respeito à inserção de sua população no mercado de trabalho.
Blumenau é uma cidade predominantemente urbana, com 55% da sua população
economicamente ativa (PEA) empregada em atividades industriais e 43% ligada às atividades
comerciais e de serviços (Prefeitura Municipal de Blumenau, 2005). As atividades
econômicas ligadas ao campo respondem por apenas 2% da PEA. Mesmo as suas
comunidades pobres, como Nova Esperança, adotam estilo de vida compatível com o do
núcleo social hegemônico. Blumenau é uma das cidades mais industrializadas do país. O seu
34
parque industrial ocupa o quinto lugar, se excetuarmos as capitais, despontando como o maior
pólo têxtil e de confecções do Brasil. Nesta cidade estão sediadas cinco das maiores empresas
do setor. Na comunidade de Nova Esperança/Blumenau, pude observar que as pessoas adultas
saem de casa para o trabalho normalmente por volta das seis horas da manhã e permanecem
envolvidas em suas atividades laborais durante todo o dia. Rotina seguida indistintamente por
homens e, sobretudo, mulheres, que constituem mão
-
de
-
obra preferencial da indústria têxtil.
No município de Águas Mornas, por outro lado, cerca de 82% da população mora no
campo, e a produção de hortifrutigranjeiros é para eles a principal atividade econômica
(Prefeitura Municipal águas Mornas, 2000). Nessa atividade, apesar do esforço familiar ser
requeri
do, não há, em princípio, a separação cotidiana dos membros da família, sendo
inclusive comum o envolvimento de crianças nas práticas laborais, segundo as suas
possibilidades. Mesmo nas eventuais separações, muito raramente isso se dá por longos
períodos,
a ponto de uma mãe ou pai sair de casa deixando os seus filhos
ainda
dormindo e
retornar quando os mesmos
já estão
novamente dormindo, o que acontece freqüentemente em
núcleos urbanos inseridos no mercado como o de Nova Esperança/Blumenau.
Feitas essas constatações, cresceu em mim a convicção de que o estilo de vida,
particularmente o afastamento das crianças de suas famílias mais especificamente de suas
mães
poderia justificar o aparecimento, nessas crianças, das condições que em futuro breve
ou tardio viessem a produzir alterações no seu processo de formação que redundassem em
transtornos mentais e comportamentais. Sobretudo se considerarmos que muitos desses
afastamentos dão-se nas primeiras fases da vida, especificamente no primeiro ano, período
que
, como veremos, constitui momento privilegiado para a formação da personalidade e do
psiquismo infantil.
Configurou
-se para mim uma hipótese plausível para o que era, até aí, a minha
principal indagação. A partir da hipótese assim formulada passei a buscar suporte na literatura
especializada. Descobri inicialmente que, na década de 1940, Anna Freud observou que
crianças afastadas de suas mães, em vista da guerra, posteriormente desenvolveram distúrbios
emocionais mais significativos que aquelas que se mantinham ao lado das mães, mesmo
35
submetidas aos horrores decorrentes do conflito bélico. Segundo Janet Sayers (1992) a
constatação feita por Anna Freud de que o afastamento das crianças de suas mães e mesmo o
comportamento dessas mães frente à guerra influenciava de modo decisivo o comportamento
e o desenvolvimento mental e emocional de sues filhos, o que levou Anna a revolucionar a
psicanálise,
ao implicar a mãe e a família no processo de formação do psiquismo infantil.
Sayers lembra que “(...) isso levou Anna [Freud] a criticar veementemente a incapacidade do
governo de atentar para esse sofrimento, ao evacuar as crianças para longe das mães.” (1992:
160). Mesmo considerando o risco físico que essas crianças corriam se permanecessem nas
áreas expostas diret
amente aos bombardeios.
Antes e depois de Anna Freud outros autores desenvolveram estudos que buscavam
enfatizar a importância dos vínculos afetivos, particularmente aqueles estabelecidos entre
mães e filhos, para o desenvolvimento infantil saudável. Mais recentemente têm-se feito
estudos que buscam aprofundar e dar eco aos trabalhos pioneiros de Melanie Klein, Anna
Freud, Donald Winnicott, Erik Erikson, Françoise Dolto, René Spitz dentre outros. A
Organização Mundial de Saúde, sintetizando a conclusão desses pesquisadores, afirma no
Relatório de 2001:
Um importante achado ocorrido no século XX e que deu forma à
compreensão atual, é a importância decisiva do relacionamento com os pais
e outros provedores de atenção durante a infância. O cuidado afetuoso,
at
ento e estável permite ao lactente e à criança pequena desenvolver
normalmente funções como a linguagem, o intelecto e a regulação
emocional. (...). A criança privada de afeto por parte de seus cuidadores tem
mais probabilidades de manifestar Transtornos Mentais e Comportamentais,
seja durante a infância ou numa fase posterior da vida. (OMS/OPAS 2001).
A minha convicção conformada a partir da observação clínica de que os laços
afetivos estabelecidos entre a criança e os seus cuidadores, em particular o vínculo entre mãe
e filho, sobretudo no primeiro ano de vida, cumpriam papel decisivo na formação e
consolidação de uma personalidade infantil saudável tomava corpo e adquiria consistência.
Mas particularmente chamaram-me a atenção as contribuições originais de Erik Erikson e
Françoise Dolto. Os conceitos de confiança básica e imagem inconsciente do corpo
estabelecidos, respectivamente, por esses dois autores, pareceram-me bastante consistentes no
36
sentido de responderem à minha inquietação quanto às possíveis inter-relações entre
transtornos mentais e comportamentais infantis e os vínculos afetivos, particularmente
aqueles estabelecidos entre mães e filhos.
Por outro lado, embora reconhecendo as diferenças existentes entre as formulações
teóricas dos dois autores, pude perceber traços comuns. Ali mesmo onde os dois pareciam tão
diferentes
pois se haviam posicionado em lados opostos na grande cisão ocorrida no seio
do movimento psicanalítico mundial em 1953
8
vislumbrei a possibilidade de um diálogo,
tendo
como fio condutor a psicopatogênese infantil, tema tão caro aos dois autores.
Assim, formulei como objetivo principal desta dissertação
discutir
os aspectos comuns
ao pensamento de Erik Erikson e Françoise Dolto no tocante à conformação do psiquismo
inf
antil, destacando os elementos relevantes para o desenvolvimento de personalidades
suscetíveis aos transtornos mentais e comportamentais.
Certamente Françoise Dolto e Erik Erikson foram antecedidos por outros psicanalistas
infantis; parte do que concluíram embasava-se em estudos anteriores, como é corrente na
Ciência. Porém, não lhes podemos negar o pioneirismo no estabelecimento de conceitos que
partiam da clínica da criança em sofrimento psíquico e a relacionava com o meio social-
cultural em que estavam inseridos, o que constitui exatamente o foco do meu maior interesse,
posto que propugno e intentarei demonstrar ao longo do estudo que a relação
estabelecida entre a criança e o seu meio social-cultural, representado pelos seus cuidadores,
contribui d
e forma decisiva para a conformação da personalidade da criança e para dotá
-
la das
condições básicas de enfrentamento dos chamados fatores estressores, que contribuirão para a
definição dos
transtornos mentais e comportamentais infantis.
Para empreender o estudo, partindo desses pressupostos, escolhi como caminho
prioritário de investigação uma pesquisa
explicativa,
entendida como “aquela cujo principal
objetivo é tornar inteligível e justificar os motivos de algum fenômeno”. (Tobar e Yalour,
8
Em 1953 divergências conceituais e metodológicas, sobretudo no tocante ao ensino de psicanálise, levaram.
Françoise Dolto, Favez-Boutonnier e Lagache a fundarem a Sociedade Francesa de Psicanálise, no que foram
seguidos por Jacques Lacan e outros. Esse gesto provocou a expulsão do grupo da Associação Internacional de
Psicanálise (IPA) e constituiu a primeira grande divisão do movimento psicanalítico mundial após a
consolidação da psicanálise de orientação freudiana (Chemouni, 1991).
37
2001: 69), e bibliográfica
por ser um “estudo sistematizado desenvolvido a partir de material
publicado em livros, revistas, jornais, (...)” (Id. Ib.: 72). Tenho por suporte também a minha
prática profissional, onde busco endosso para as idéias apresentadas e discutidas, posto que
exatamente dessa prática partiram os questionamentos e reflexões que me conduziram aos
estudos mencionados.
As pesquisas explicativas, segundo Antonio C. Gil “(...) têm como preocupação
central identificar os fatores que determinam ou contribuem para a ocorrência dos
fenômenos”.(2002: 42). O
fenômeno,
neste estudo, é representado pelos transtornos mentais e
comportamentais
infantis
e pelo
diálogo
que intento estabelecer entre os autores em torno
desses transtornos. Gil também lembra que é um tipo de pesquisa onde a possibilidade de
erros é grande em vista do seu escopo de fornecer os porquês do fenômeno observado.
Procurei minimizar essa possibilidade atendo-me à idéia geral de que uma explicação é
sempre pautada em determinados pressupostos e somente responde às indagações balizadas
por esses pressupostos.
Quanto à escolha da pesquisa
bibliográfica
como procedimento técnico, ainda
segundo Gil (2002), as fontes podem ser livros, publicações periódicas e impressos diversos.
Tobar e Yalour por sua vez, definem a “pesquisa bibliográfica [como] o estudo sistematizado
desenvolvido a partir de material publicado em livros, revistas e jornais, ou seja, materiais
acessíveis ao público em geral.” (2002: 72). Nenhum desses autores menciona a internet como
fonte de pesquisa, mas faço uso da rede mundial de computadores como fonte alternativa,
tendo apenas o cuidado de utilizar-me de bases de dados cujos responsáveis sejam idôneos.
Na presente dissertação, contudo, os livros constituem o material central.
U
tilizo
-me do cabedal teórico de autores variados. E isso também está a serviço do
que considero a melhor forma de abordar tema tão complexo. Acho pertinente ampliar o
ângulo de visão para que me seja permitido ver de forma mais completa os vários aspectos
que o tema, afinal, abarca. Não que com isso esteja buscando um ecletismo estéril, mas uma
percepção ampla o suficiente para que o tema possa ser compreendido em suas várias
nuanças, corroborando, no meu entendimento, os achados que a realidade oferece. Nesse
38
sentido, concordo com Freud quando diz, a propósito do Pequeno Hans: “(...) todo
conhecimento é um monte de retalhos, e que cada passo à frente deixa atrás um resíduo não
resolvido.” (Freud, 1996a: 94).
Cumpre mencionar ainda que Erik Erikson e Françoise Dolto, os autores por mim
utilizados como fundamentais e em torno de cujas contribuições teóricas mais relevantes
intento estabelecer o diálogo possível, jamais aceitaram enquadramento em sistemas rígidos
de pensamento. Muito embora psicanalistas com um longo e profícuo trabalho clínico e
teórico, ambos sempre se colocaram de forma aberta e atenta frente aos ensinamentos
provenientes da clínica; por isso mesmo apresentaram modificações e atualizações dos seus
conceitos chaves até bem pouco tempo antes de suas mortes, como veremos ao estudarmos os
fragmentos bibliográficos dos mesmos.
Reservo também um lugar para a minha observação clínica, a partir da qual tive a
atenção chamada para o tema em apreço e à qual retorno com freqüência em busca de
embasament
o para o que vou encontrando como resultado da pesquisa bibliográfica
empreendida. Não tenho a presunção de complementar o trabalho dos autores, também não
intento rever a teoria a partir da minha prática, mas rejubilo-me ante o fato de que muito
daquilo que acabei encontrando como resultado da pesquisa tinha sido por mim constatado
na minha prática clínica com crianças. Por vezes aventuro-me em ilações entre as minhas
observações pessoais e os construtos teóricos nos quais me baseei. Nessas oportunidade
s
ofereço ao estudo a minha contribuição, muito embora o faça fundamentado no raciocínio dos
autores.
39
Capítulo 2
OS CONSTRUTOS CONCEITUAIS
Não há (...) nem ignorância em geral nem saber em geral.
Cada forma de conhecimento reconhece
-
se num ce
rto tipo de
saber a que contrapõe um certo tipo de ignorância (...). Todo
saber é saber sobre uma certa ignorância e, vice
-
versa, toda
ignorância é ignorância de um certo saber.
Boaventura de Sousa Santos
40
2.1 SAÚDE E TRANSTORNO MENTAL: contorn
os e limitações
Conceitos são recortes no real e são elaborados com base em critérios que nem sempre
podem ser estendidos a todos. No que diz respeito particularmente à saúde mental os limites
entre as noções de saudável e não-saudável são bastante tênues e por vezes dão lugar a
divergências conceituais em vista de considerações culturais, históricas e sociais
imprescindíveis. Alterações ou atualizações conceituais bem como as mudanças nas
classificações são determinadas, em parte pelo advento de novos distúrbios, em parte pelas
modificações em nossa forma de ver e entender certos comportamentos; ou ainda pela
descoberta de novos métodos diagnósticos, que nos permitem revelar condições mórbidas
antes ocultadas.
Um conceito de saúde mental minimamente consensual precisa contemplar as
diferenças culturais que impõem entendimentos diferenciados à noção de saúde e doença, de
normal e patológico. Em cada país — e às vezes dentro de um mesmo país — grupos
diferenciados incorporam entendimentos de saúde mental por vezes dissonantes entre si. A
OMS, numa tentativa louvável de sumarizar os vários entendimentos de saúde mental,
reconhece que:
Estudiosos de diferentes culturas dão diferentes definições à saúde
mental. Os conceitos de saúde mental abrangem, entre outras
coisas,
o bem-estar subjetivo, a auto-eficácia percebida, a autonomia, a
competência, a dependência intergeracional e a auto-
realização
potencial, intelectual e emocional da pessoa. Por uma perspectiva
transcultural é quase impossível definir saúde mental de uma forma
completa. De modo geral, porém, concordamos quanto ao fato de
que saúde mental é algo mais que a ausência de transtornos mentais.
(OMS/OPAS
-
2001: 3
-
4 (versão completa).
O conceito de saúde mental da OMS me parece dotado de grande amplitude e
plasticidade. Não limita a noção de saúde mental à ausência de transtorno e, ao propor um
conceito genérico, oferece um balizamento para a compreensão da noção de transtornos, aos
quais necessariamente implicam
características históricas e culturais.
Nesta
dissertação transtorno mental ou mental e comportamental diz respeito a uma
gama de distúrbios de natureza orgânica, de conduta, do humor, derivado do uso de drogas,
hiperatividade com déficit de atenção, passando por sinais e sintomas manifestos no âmbit
o
41
físico, tais como dores abdominais recorrentes, úlceras, gastrites, anorexia/bulimia, dentre
outros. São expressões empregadas pela OMS para designar o mesmo grupo de distúrbio.
A
expressão
transtorno mental é também empregada no Relatório Final da III C
onferência
Nacional de Saúde Mental
realizada em 2001, sob a coordenação do Conselho Nacional de
Saúde
num sentido muito próximo àquele de sofrimento psíquico
ou
sofrimento mental
,
expressões igualmente utilizadas no Relatório acima mencionado (CNSM, 3ª/MS, 2001). A
OMS apresenta o que poderíamos entender como critérios gerais para identificação desse tipo
de distúrbio, como podemos ver no texto abaixo:
IDENTIFICAÇÃO DOS TRANSTORNOS MENTAIS
Entendem
-se como transtornos mentais e comportamentais as
cond
ições clinicamente significativas caracterizadas por alterações
do modo de pensar e do humor (emoções) ou por comportamentos
associados com angústia pessoal e/ou deterioração do
funcionamento (...). Os Transtornos Mentais e Comportamentais
não constituem apenas variações dentro da escala do "normal",
sendo antes, fenômenos claramente anormais ou patológicos. (...).
Para serem caracterizados como transtornos mentais, é preciso que
essas anormalidades sejam sustentadas ou recorrentes e que
resultem em certa deterioração ou perturbação do funcionamento
pessoal, em uma ou mais esferas da vida. (OMS/OPAS, 2001: 2).
A OMS, ao classificar os vários transtornos mentais e comportamentais, adota a
Codificação Internacional Estatística de Doenças e Problemas Correlatos de Saúde,
atualmente em sua décima edição CID 10 por ela mesma ratificada e que constitui o
resultado do consenso negociado entre especialistas e estudiosos de vários países membros da
Organização das Nações Unidas-ONU. No que diz respeito à população infantil, a CID 10
estabelece duas grandes categorias de transtornos mentais:
a)Transtornos do Desenvolvimento Psicológico; caracterizados por: a) deterioração
ou retardamento do desenvolvimento de funções específicas, tais como a fala e a linguagem
(
dislexias), e b) transtornos globais do desenvolvimento, como autismo e paralisia cerebral.
b)Transtornos de Comportamento e Emocionais, que incluem: a) os
transtornos
hipercinéticos
(também chamados de distúrbio de atenção e hiperatividade segundo a
42
clas
sificação adotada pelo DSM-IV, APA 1994
9
), b) os distúrbios de conduta e c) os
transtornos emocionais da infância,
dentre os quais se colocam alguns tipos de depressão
.
Há poucas dúvidas quanto aos transtornos do primeiro grupo. Porém, quanto aos
transtor
nos de comportamento e emocionais, temos tido algumas dificuldades conceituais. Os
atuais transtornos de conduta, por exemplo, até pouco tempo eram definidos como
delinqüência, expressão que hoje é reservada aos atos marginais tipificados em lei. O
alcooli
smo, antes transtorno de conduta, passou à categoria de transtorno pelo consumo de
drogas psicoativas. O homossexualismo deixou a condição de patologia, sendo hoje
majoritariamente reconhecido como prática sexual diferenciada, pelo menos nas sociedades
oci
dentais. Essas alterações na nomenclatura acompanham a evolução e as mudanças que as
sociedades vão definindo e redefinindo ao longo de suas Histórias.
A
depressão ou transtorno depressivo é outra condição clínica que ao longo dos
últimos anos vem adquirindo nova conformação e grande importância na constelação dos
transtornos mentais. Atualmente foi alçada à condição de problema de saúde pública mundial
e sua manifestação entre crianças e adolescentes é fator de crescente preocupação. Tem sido
cada vez mais difícil enquadrá-la nos atuais esquemas classificatórios, em vista da
variabilidade de manifestações com que se tem apresentado nos últimos anos. Esta realidade
coloca para os profissionais envolvidos com o tema a necessidade de uma redefinição na
class
ificação.
Reis e Figueira (2002) alertam para o fato de que o desconhecimento ou a
desconsideração da incidência de transtornos do humor dentre os quais a depressão
acometendo a população infanto-juvenil contribui para o agravamento desse tipo de
prob
lema. O reconhecimento da condição clínica compatível com um quadro depressivo
nesse segmento etário é reivindicado desde 1971 quando da realização do IV Congresso da
9
DSM/APA: Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders of The American Psychiatric Association,
atualmente na sua edição (DSM-IV) adota uma classificação e diagnósticos nem sempre semelhantes àquela
adotada pela OMS (CID-10). Nos EE.UU o DSM-IV é a classificação corrente. No Brasil os diagnósticos
consagrados pela CID-10 convivem com aqueles do DSM-IV, dependendo da orientação clínica dos
profissionais e/ou serviços que os utilizam, e até mesmo da conveniência da situação em tela.
43
União Européia de Paidopsiquiatras-
UPE
10
. Nessa oportunidade foram elaborados os
primeiros
critérios de diagnóstico da condição clínica que se denominou
Transtorno
Depressivo na Infância e Adolescência, denominação que tem sido adotada pelo DSM em
suas várias edições, inclusive naquele atualmente em vigor, o DSM
-
IV.
A partir dessa primeira tentativa da UPE tem-se buscado uma maneira de conceituar e
caracterizar os distúrbios depressivos infantis que contemple ao máximo a variabilidade de
manifestações que o transtorno tem apresentado, considerando-se as variações determinadas
pelas diferences faixas etárias, inclusive lactentes crianças com menos de dois anos de
idade
—, nos quais pode observar comportamentos sugestivos de transtornos depressivos
em curso ou com tendência à manifestação posterior.
No Relatório de 2001, a OMS menciona a
de
pressão
, ou transtorno depressivo,
como
um conjunto de alterações caracterizadas por “tristeza, perda de interesse em atividades e
diminuição da energia. (...) perda de confiança e auto-estima, sentimento injustificado de
culpa, idéias de morte e suicídio, diminuição da concentração e perturbações do sono e do
apetite. Podem estar presentes também diversos sintomas somáticos”. (OMS/OPAS, 2001: 2).
A Sociedade Paulista de Psiquiatria Clínica-SPPC, a partir de uma revisão de critérios
diagnósticos de vários
autores, apresenta uma lista de
sinais e sintomas que, quando presentes por
tempo prolongado ou recorrente, sugerem um quadro clínico compatível com
depressão infantil
:
1-
Mudanças de humor significativa
2-
Diminuição da atividade e do interesse
3-
Queda n
o rendimento escolar, perda da atenção
4-
Distúrbios do sono
5-
Aparecimento de condutas agressivas
6-
Auto
-
depreciação
7-
Perda de energia física e mental
8-
Queixas somáticas
9-
Fobia escolar
10
-
Perda ou aumento de peso [sem causa orgânica]
11
-
Cansaço
matinal
12
-
Aumento da sensibilidade (irritação ou choro fácil)
13
-
Negativismo e Pessimismo
14
-
Sentimento de rejeição
15
-
Idéias mórbidas sobre a vida
16
-
Enurese e encoprese (urinar/defecar na cama)
10
Union of Paidopsychiatrists European (UPE). Entidade que congrega as associações européias de psiquiatras
infantis. Em seus congressos são tomadas posições gerais e feitas orientações que têm caráter consultivo para o
conjunto das suas associadas. O IV congresso da UPE, aludido no texto, foi realizado em Estocolmo-Suécia. O
último deles, o sexto, ocorreu em 1979, na cidade de Madri
-
Espanha.
44
17
-
Condutas anti
-
sociais e destrutivas
18
-
Ansiedade
e hipocondria
(SPPC, 2005).
Jayme Murahovschi, doutor em pediatria, referência pediátrica no Brasil, autor
consagrado, decano da Sociedade Brasileira de Pediatria-SBP, ganhador do Prêmio Nacional
de Comunicação Médica e atual presidente do Departamento de Pediatria Ambulatorial da
SBP, caracteriza a
depressão infantil
como:
Um distúrbio recorrente, de manifestação quase diária, de duração
não inferior a duas semanas, caracterizado por insônia ou
hipersonia, alterações do apetite associadas à perda ou a
umento
significativo do peso, baixo nível de energia ou cansaço crônico,
sentimento de insuficiência ou de inutilidade, eficiência diminuída
na escola ou no lar, diminuição da atenção, da concentração ou da
capacidade de raciocinar claramente, retraimento
social, com menor
nível de atividade ou loquacidade habitual, irritabilidade ou raiva
excessiva dirigida aos pais ou cuidadores, respostas instáveis aos
elogios ou recompensas, atitudes pessimistas em relação ao futuro
ou meditação sobre acontecimentos passados, choro ou gritos,
humor negativo ao acordar que melhora em poucas horas ou
minutos, pensamentos recorrentes de morte ou suicídio. (1994:150).
A depressão se apresenta, portanto, como um tipo de transtorno mental cuja
manifestação abrange um variado leque de sintomas, traduzindo praticamente todos os tipos
de alterações que poderíamos encontrar nos transtornos mentais e comportamentais, como
definidos pelo Relatório OMS/OPAS de 2001. Exceção feita às tentativas de suicídio que a
CID
-
10
, enquadra no grupo das lesões autoprovocadas voluntariamente. Defendo, porém, a
partir de vários estudos, que também os suicídios ou as tentativas de suicídio têm uma forte
vinculação com os transtornos depressivos, conforme se pode inferir com base no trabalho de
Reis e Figueira. Esses autores, em artigo intitulado Transtorno depressivo e suicídio na
infância e adolescência (2002: 215-246) elaboraram extensa e exaustiva compilação de
publicações médicas no período de 1968 a 2000. Como conclusão, lembram a associação
en
contrada em todos os trabalhos publicados no período considerado entre tentativa ou
suicídio e transtorno depressivo. O que não implica, necessariamente, que todo depressivo
chegue ao suicídio ou tentativa ou que não possa haver suicídios não vinculados à depressão.
45
Mas os estudos compilados por Reis e Figueira estabelecem uma relação estatística
significativa entre os dois sintomas.
Pode
-se, portanto, dizer que com exceção dos distúrbios arrolados pela CID-10 como
transtorno do desenvolvimento psicológi
co
, os demais transtornos mentais e
comportamentais
infantis têm na
depressão
uma espécie de denominador comum, pois os
transtornos hipercinéticos condição clínica fortemente vinculada à depressão em lactentes
e crianças pequenas —, os distúrbios de cond
uta
, os transtornos emocionais da infância e os
suicídios
/
tentativas,
que constituem o leque dos transtornos mentais e comportamentais
infantis, apresentam, de uma forma ou de outra, vinculação com os
transtornos depressivos
, o
que torna a depressão o sint
oma
-síntese dos transtornos mentais e comportamentais em
crianças.
2.2 MENTE x CORPO: dualidade questionável
O Relatório OMS/OPAS 2001, ao se referir aos transtornos mentais ou
transtornos
mentais e comportamentais
com sentido semelhante
ora refere
-
se a quaisquer
distúrbios
que
envolvam a mente, poupando o corpo em sentido restrito (como a esquizofrenia e outras
psicoses); ora aos aspectos psicológicos do desenvolvimento humano (distúrbios da fala e da
sociabilidade, como a dislexia e o autismo); ora
a afecções que comprometem aspectos físicos
do corpo (como epilepsia e esclerose amiotrófica lateral), casos em que utiliza a denominação
orgânico;
ora a aspectos físicos e mentais (como Down e Alzheimer).
Nessa perspectiva, a esclerose lateral amiotróf
ica
-LEA, por exemplo, seria
classificada como um transtorno orgânico, pois se identifica lesões em determinadas grupos
neuro
-musculares, mas com a preservação do componente intelectual e emocional. Já a
depressão, por sua vez, seria vista como um
transtorn
o emocional, pois embora se possa
identificar alterações em termos de neuro-transmissores, não lesão perceptível de
componentes neurológicos.
Há, porém, entre os estudiosos das áreas de saúde, a convicção de que transtornos
emocionais prolongados podem levar a alterações físicas. As gastrites nervosas, por exemplo,
46
constituem uma condição clínica dessa natureza. Por outro lado, doenças mais afeitas ao
âmbito orgânico, como o câncer e a AIDS, podem desencadear quadros emocionais graves.
Vemos nessa class
ificação uma tentativa de separar as doenças em
doenças do corpo
e
doenças da mente. Em alguns casos até em doenças do corpo e da mente, mas de qualquer
forma, vendo-os como instâncias estanques. Com isso, o que se está querendo, em última
análise, é buscar formas de promover uma adequação entre a realidade humana integral,
manifesta nos consultórios — onde a vida e as pessoas se apresentam como realidades
indivisíveis
e a visão dicotômica corpo x mente consagrada pelo paradigma científico da
modernidade
.
A OMS afirma que os diagnósticos relativos aos transtornos mentais podem atingir
níveis de precisão da ordem de 70 a 90%, o mesmo verificado entre as doenças físicas. De
acordo com a OMS, dois especialistas concordariam entre si quanto a um diagnóstico de
transtorno mental, em níveis próximos ao que ocorreria se estivessem tratando de diabetes ou
hipertensão arterial. (OMS/OPAS, 2001). Porém, o mesmo documento, ao definir saúde
mental, admite uma quase impossibilidade de se chegar a um consenso. Ou seja: somos
capazes de definir com precisão o que entendemos como um transtorno mental, mas não
temos a mesma facilidade em definir a saúde mental. E a razão para isso a própria OMS
anuncia:
saúde não pode ser entendida como a mera ausência de doenças.
“Todo
diagnóstico de transtorno mental classifica síndrome ou condição, mas não
indivíduos” (Id. Ib.: 2). Nessa afirmação, vemos implícita a noção de que uma pessoa é mais
do que o somatório dos seus órgãos e sistemas, ou de um corpo e de uma
mente,
como
realida
des distintas. Por essa perspectiva, é possível que alguém seja portador de uma
“doença mental” sem que nada de
anormal
possa ser localizado em seu corpo/mente; da
mesma forma, pode estar vivenciando condições descritas no conceito de saúde mental da
OMS,
mesmo sendo portador de uma limitação física importante. Vários exemplos poderiam
ser citados, mas fiquemos com uma menção ao físico inglês Stephen W. Hawking, físico
47
renomado, cuja doença é portador de esclerose amiotrófica lateral
11
desde os 21 anos de
idade
não o tem impedido de continuar trabalhando e produzindo como físico; sendo,
inclusive, responsável pela noção atualmente mais aceita acerca dos buracos-negros. Poderia
haver alguém mais doente do que ele? Poderia haver alguém mais saudável do que
ele?
O dilema corpo e mente ou a compreensão de corpo e mente como realidades
apartadas tem sido posto em cheque em vários campos do conhecimento, inclusive na
discussão envolvendo saúde e doença. Atualmente temos nos deparado com patologias que
desafiam
a velha noção de corpo e mente como realidades distintas. Num primeiro momento
evoluímos para o conceito de patologias psicossomáticas. Por esse entendimento, buscamos
associar as patologias de um campo com as do outro, admitindo até mesmo uma relação de
c
ausa
-e-efeito, como aquela verificada entre ansiedade prolongada e distúrbios gástricos. Mas
ainda assim, pressupondo uma certa interdependência entre elas. Mantém-se a dualidade
corpo/mente
Nessa perspectiva, o que se supõe é que uma instância orgânica — no exemplo citado,
o estômago recebe influência de outra instância, supostamente localizada na “mente”.
Instâncias integradas, mas compreendidas como realidades separadas. Mas doenças como a
fibromialgia e a depressão, dentre outras, vieram questionar essa abordagem. Não se pode
localizar nessas patologias o ponto em que o problema se inicia e o percurso através do qual
os sintomas se propagariam, permitindo destarte, o estabelecimento de uma relação de causa-
e-efeito. É obvio que os defensores de uma visão biologicista dirão que alguns neuro-
transmissores estão desajustados e que esse desajuste seria o causador do transtorno
depressivo. O que não se consegue explicar adequadamente é porque o sistema regulador
perdeu o ponto de equilíbrio ou buscou um equilíbrio em desarmonia com o sujeito portador
do distúrbio. E mais ainda, porque nem sempre portadores de baixos níveis plasmáticos de
neuro
-
transmissores desenvolvem sintomas depressivos.
11
A esclerose lateral amiotrófica -ELA (ou LEA da sigla em inglês) é uma doença crônica degenerativa de
causas variadas que leva à destruição dos neurônios motores superiores que foram o trato córtico-
espinhal
lateral, e se caracteriza clinicamente pela progressiva perda das funções motoras, preservando as funções
intelectuais, sensitivas e emocionais.
48
Quanto à fibromialgia, os médicos conhecem os pontos dolorosos que, se presentes,
falam a favor da doença. O diagnóstico pode ser preciso. Imprecisos são os eventuais motivos
pelos quais esses pontos passam a apresentar maior sensibilidade álgica. Tanto em um como
no outro caso, fala-se em doenças da (falta de) felicidade. E se admite um processo
terapêutico fundado no tripé: drogas, exercícios físicos e apoio psicológico. Podemos
identificar, novamente, uma compreensão do sujeito humano bi-partido. Além da bipartição
do sujeito portador do sintoma em corpo e mente, promo
ve
-
se uma separação entre o sujeito e
o seu ambiente. Tanto o procedimento diagnóstico como a terapêutica indicada deixam
antever três instâncias bem distintas: mente, corpo, meio ambiente.
Essa compreensão do ser humano assim partido em órgãos e sistemas, corpo e mente
ou indivíduo e sociedade é o suporte dos esquemas atuais de estudo do ser humano, e de resto
de toda a realidade que nos cerca, mutatis mutandis. O mundo visto por esse prisma nos é
apresentado como o real, o verdadeiro, o cientificamente
correto.
Questionamentos a esse
modelo de abordagem podem ser mal recebidos. Formou-se ao longo dos últimos séculos
uma compreensão dos processos ocorridos na natureza que somente faz sentido e merece o
status de científico se obedecer a esses pressupostos. Como se os mesmos fossem
consubstanciais ao ser humano e não construtos historicamente dados e culturalmente
definidos.
É conveniente lembrar, porém, que a visão de mundo, das coisas e do ser humano,
assim estabelecida, é uma dentre várias, tendo se constituído como visão hegemônica ao
longo da era moderna
12
, a partir, sobretudo da contribuição dos filósofos e cientistas naturais
dos Séculos XVI a XVIII, com destaque para René Descartes e Isaac Newton que, pela
12
René Descartes (1596-1650) estabeleceu os princípios filosóficos do pensamento racionalista. Preconizava a
dualidade corpo
-mente com a total predominância da segunda. “...compreendi que [o existir] era uma substância
cuja essência ou natureza consiste apenas no pensar, (..) não depende de qualquer coisa material. De sorte que
esse eu, isto é,
mens
[a mente] pelo qual sou o que sou, é inteiramente distinta do corpo (...). (Descartes,
1983:47). Isaac Newton (1642-1727), consolidou o pensamento cartesiano ao criar um instrumental matemático
que propiciava uma abordagem lógica dos fenômenos físicos, envolvendo corpos situados na Terra ou no espaço
celestial, criando assim a noção do universo como um maquinismo cujo funcionamento poderia ser
compreendido e dominado pelo gênio humano. A partir dessa visão se eliminava qualquer possibilidade de
subjetividade, posto que
tudo
poderia ser medido e calculado. Essa compreensão do funcionamento do universo,
como sistema físico, foi extrapolada para as demais esferas da vida. O paradigma cartesiano-newto
niano
embasou a revolução científica que, a partir do Século XVII, redefiniu o pensamento ocidental e deu forma ao
que chamamos modernidade.
49
importância de suas contribuições, o utilizados como referências paradigmáticas no terreno
científico hegemônico da modernidade. A hegemonia do paradigma cartesiano-
newtoniano
porém, começa a ser abalada.
Segundo Boaventura Sousa Santos, por exemplo, os estudos pioneiros no âmbito da
Física Relativística e da Física Quântica que tomaram força no começo do Século XX, e mais
recentemente, os trabalhos de Ilya Prigogine (Nobel de Física em 1977), de Haken, Eigen,
Maturana e Varela, Thom, Jantsch, David Bohm e Geoffrey Chew, contribuíram para abalar
o
paradigma cartesiano-newtoniano e estabelecer, no âmbito das ciências naturais, uma nova
visão de mundo (2000: 47-117). Com base nessa visão desenvolvida a partir das ciências
naturais
mas que se tem estendido para todos os âmbitos do conhecimento, inclusive o das
ciências sociais tornou-se necessária uma abordagem do ser humano que o compreenda
não apenas como um ser dotado de corpo e mente, mas antes, como uma unidade corpo-
mente: simultaneamente dada e interativamente definida. Nesse sentido, “mente não é a
experiência que vivemos dentro de nossas cabeças, mente é a própria essência de estar vivos.
Tudo o que vive, vive em função de um processo mental subjacente”. (Batistella, 2004: 18).
Para Fritjof Capra, físico, PhD pela Universidade de Viena e um dos principais
responsáveis pela divulgação dessa nova visão de mundo,
Quando é adotada uma visão sistêmica da mente, torna-se óbvio que
qualquer doença tem aspectos mentais. Adoecer e curar-se são partes
integrantes da auto-organização de um organismo, e, como a mente
representa a dinâmica dessa auto-organização, os processos de adoecer e
curar
-
se são essencialmente fenômenos mentais (1982: 320).
Vendo dessa forma, podemos compreender melhor as gastrites nervosas ou os
processos que podem levar um paciente portador de câncer ao suicídio, bem como entender a
depressão e a fibromialgia, em suas complexidades, como doenças do corpo-mente ou se
preferirmos da mente, enquanto ‘essência de estarmos vivos’. Por essa perspectiva, também é
possível aceitar que Stephen Hawking não seja um doente mental, na acepção comum do
termo, embora necessite dos recursos que a cultura coloca ao seu dispor e do auxílio dos que
estão à sua volta. Tais limitações não o impedem, necessariamente, de sentir-
se
subjetivamente
auto
-eficaz, autônomo, competente e auto-realizado intelectual e
50
emocionalmente, como pessoa; assim como uma criança ou um ancião que, mesmo não
dispondo de todo o seu potencial físico, não deixam de ser pessoas completas; completude
entendida na sua relação i
ntergeracional.
Além da compreensão de mente e corpo como uma unidade, questionando dessa forma
a dicotomia corpo/mente consagrada pelo paradigma da modernidade, os novos estudos
questionam a dicotomia ser humano/natureza. O que nos faz refletir sobre a nossa condição
de exploradores e manipuladores da natureza, entendida como algo separada de s. A nova
visão de mundo, advinda dos estudos mencionados, nos mostra “o universo visto como uma
teia dinâmica de eventos inter
-
relacionados. Nenhuma (...) parte d
essa teia é [particularmente]
fundamental; todas elas decorrem das (...) outras partes do todo, e a coerência total de suas
inter
-
relações determina a estrutura da teia”. (Capra, 1982: 87).
2.3 DESENVOLVIMENTO INFANTIL SAUDÁVEL:
fatores pessoais e soc
iais
-
culturais
A compreensão do ser humano como um conjunto coeso e articulado de aspectos
físicos/biológicos e psíquicos/mentais imbricados, simultâneos e reciprocamente
determinados é uma conseqüência imediata do questionamento do paradigma cartesiano-
ne
wtoniano. Uma outra dicotomia, igualmente sedimentada, e que tem servido de base ao
entendimento de saúde adotado desde o advento da modernidade, diz respeito à separação
entre o sujeito e o meio social-cultural em que vive. Se por um lado questionamos o
entendimento de saúde mental em separado de saúde do corpo, também tem sido objeto de
questionamento a compreensão da saúde mental separando o sujeito do meio social-
cultura
em que ele está inserido. O meio social-cultural, como aqui entendemos, compreende
o
conjunto dos fatores externos ao indivíduo, incluindo o meio ambiente e a comunidade.
Nesse sentido, concordo com o poeta: é impossível ser feliz sozinho (Tom Jobim, Wave
).
Parece igualmente impossível ser saudável ou doente — sozinho. Vários autores advogam
essa interação entre o meio social-cultural e o indivíduo. Para Arnold Gesell, pediatra e
psicólogo americano, o processo de conformação do indivíduo como ser saudável se dá
51
através de um conjunto definido de aquisições, o qual denominou desenvolvimento neuro-
psíquico
-
motor
(DNPM). Gesell criou uma série de critérios avaliativos que nos ajudam a
acompanhar e entender esse processo de desenvolvimento, o que nos permite a detecção
precoce de distúrbios. O Teste de Gesell como é chamado esse conjunto de critérios
avalia o processo de desenvolvimento das crianças do nascimento até o início da idade
escolar, observando vários aspectos, em vista dos quais define faixas de normalidade relativas
a períodos nos quais uma determinada aquisição neuro-
psíqu
ico
-motora deverá se manifestar
(Murahovschi, 1994: 6). Em todo o processo de avaliação dessas aquisições o autor sugere
que a normalidade de uma criança somente pode ser adequadamente avaliada em relação às
expectativas do meio social
-
cultural em que a me
sma nasceu e vive.
Os achados de
Gesell
relativos ao desenvolvimento motor
permitem
avaliar o grau de
maturação do sistema neuro-muscular. Nesse campo, em determinada fase do
desenvolvimento, se verifica se a criança apresenta os reflexos primitivos, como o de abraçar,
da marcha, da prensa palmar etc. Também se observa, posteriormente, se a criança engatinha,
fica de pé, caminha, sobe escadas ou corre na época esperada.
O desenvolvimento da capacidade adaptativa
é avaliado pelas respostas da criança aos
e
stímulos externos, tais como o sonoro, o luminoso e o tátil. Avalia a capacidade de adaptação
vegetativa ou biológica. Em fases mais avançadas da vida, essa capacidade adaptativa será
extrapolada para os aspectos mais abrangentes e vai ser aferida por crit
érios sociais: adaptação
à escola, aos novos amigos, aos desafios que a vida impõe.
O desenvolvimento pessoal
-
social
avalia as atitudes da criança frente aos contatos com
outras pessoas; o sorriso espontâneo é uma das suas primeiras manifestações, ocorrid
a
normalmente entre o primeiro e o terceiro mês. Posteriormente o desenvolvimento da
sociabilidade nos indicará as aquisições pessoais-sociais da criança. O desenvolvimento da
linguagem,
que
tem
inicio com a lalação (os primeiros sons vocálicos: ah, ah; eh, eh; pá, pá,
emitidos por volta do segundo mês) se prolonga até o desenvolvimento completo da fala, que
com algumas variações, ocorre por volta do final do segundo ano.
52
É fácil observar pelos critérios acima que em todas as fases do DNPM as aquisições
verificadas em um determinado setor contribuem para a conformação e consolidação de
outros. Assim, a partir do inicio da deambulação diretamente afeito ao desenvolvimento
neuro
-
muscular
— e também do início da fala — ligado ao desenvolvimento da linguag
em
começa
-se a observar uma interação positiva de vários aspectos do DNPM, num movimento
de complexificação e ajuda recíproca.
O Teste de Gesell nos permite, a partir de uma avaliação conjunta de todos os fatores
mencionados, obter uma visão geral do desenvolvimento neuro-
psíquico
-motor da criança e a
identificação de possíveis anormalidades nesse desenvolvimento. Nesse sentido, nos apresenta
uma visão ecológica do desenvolvimento infantil, posto que se verifica em íntima interação
entre a própria criança e o meio no qual está inserida. O qual não apenas fornece os estímulos
para esse desenvolvimento, em termos gerais, como também direciona o percurso que o meio
define como o mais adequado, em vista do que propõe como desafio e do que espera como
resposta.
Ou seja: uma criança indígena, cuja sociabilidade pressupõe o aprendizado da caça e
a obediência a uma determinada relação com a natureza, necessitará dos estímulos que os seus
cuidadores e a sua comunidade lhe proverá, em acordo com o que se espera dessa criança, em
termos de normalidade. O que seria, necessariamente, diverso de uma criança nascida num
meio urbano tecnologizado, cuja expectativa em termos de normalidade seria outra. Por outro
lado, o meio recebe da criança uma resposta ao estímulo oferecido e, em vista dessa resposta,
se reposiciona em vista dos novos desafios.
Em um processo de mão dupla se, por um lado, a criança incorpora as marcas
significativas do meio, também impregna esse meio com as
suas
marcas pessoais. Não se
trata, porém, apenas de uma adaptação às imposições do meio, trata-se, antes de um
culturamento,
entendido como um mergulho no
caldo
de cultura no qual foi gerado, em vista
do que
marca
o meio e é marcado por ele. Noutras palavras podemos dizer que a criança no
seu processo de desenvolvimento adquire traços marcantes do seu meio e simultaneamente
deixa nesse meio os seus traços pessoais, cuja intensidade e significado dependerão de cada
criança e de cada cultura. Nada que uma criança apresente como traço pessoal deixa de ter
um
53
sentido e um significado que é concomitantemente a expressão dessa cultura nessa criança e
vice
-e-versa. Inclusive nos casos de traços ou comportamentos de negação. Como apontado
por
Norbert Elias, ao analisar o tratado de Erasmo de Rotterdam Da civilidade em criança:
“A postura, os gestos, o vestuário, as expressões faciais este comportamento ‘externo’ de
que cuida o tratado é a manifestação do homem interior, inteiro”. (Elias, 1994: 69). É assim
que compreendo. A marca externa, engendrada no processo maturacional culturalmente
definido, fala do processo ôntico (do ser), do qual o indivíduo é o representante social. Assim,
não se pode compreender um ser humano que seja conformado, enquanto pessoa, de forma
independente do meio social
-
cultural em que vi
ve.
Além de Gesell, outros autores, com base em outros referenciais, apresentaram a sua
visão particular quanto ao processo de desenvolvimento infantil e como esse processo dialoga
com o meio, no sentido de conformar uma personalidade saudável, ou não. Anna Freud, em
seu livro Infância Normal e Patológica, considerado um marco no desenvolvimento teórico e
terapêutico da psicanálise infantil, avalia a normalidade a partir de um processo de
desenvolvimento que leve em conta seqüências de interações entre os vários aspectos da
personalidade e destes com o ambiente em que a criança está inserida. A autora define
diretrizes de desenvolvimento” que podem ser entendidas como “realidades históricas que,
quando reunidas, transmitem uma imagem convincente das realizações de uma criança ou,
por outra parte, das suas falhas no desenvolvimento da personalidade” (1987: 61). O que pode
ser entendido como linhas gerais de comportamento e expectativas, definidas historicamente,
que criam para a criança uma noção coerente do que o meio quer e exige dessa criança como
realizações ou, por outro lado, indicam a essa criança que a mesma se encontra fora dessa
expectativa, fazendo-a promover um movimento de adaptação às exigências do meio ou
buscando adaptar o meio as suas necessi
dades, ou ambos.
Posição algo semelhante é assumida por Isaac Mielnik, psiquiatra e estudioso do
desenvolvimento da personalidade humana que, ao responder à pergunta: Como é a criança
‘normal’
?”, assevera:
54
Para podermos conceituar o que é “normal” devemos basear-nos no
progresso da criança, em sua evolução e desenvolvimento, (...). O que
deve interessar-nos são as seqüências características e a observação da
conduta no que se refere a COMO APARECE e O QUE SIGNIFICA
para determinada criança em particular, em determinada época e local
de sua vida e desenvolvimento (grifos do autor; 1993: 13).
Donald Winnicott, pediatra e psicanalista, discute o conceito de normalidade em
termos da capacidade da criança de empregar recursos que a natureza lhe forneceu para
d
efender
-se contra a angústia e o conflito intolerável
13
,
o que o faz empregando
sintomas,
tais
como urinar na cama, rejeitar alimentos, chorar, gritar, tudo no sentido de buscar, no outro,
eco à sua angústia.
14
A anormalidade, diz o autor, “revela-se numa limitação e numa rigidez
na capacidade infantil para empregar sintomas e uma relativa carência de relações entre os
sintomas e o que se pode esperar como auxílio.” (1964: 143). Obviamente os sintomas e o
uso adequado que a criança fará deles vão-se transformando com o tempo e definem-
se
culturalmente, o que implica numa adequação histórica das respostas representadas pelos
sintomas em vista dos conflitos a que a criança é submetida, que são, no fundo,
representações da angustia e do sofrimento intolerável a que todos os seres humanos são
submetidos. Vale ressaltar que nesse processo de interação entre a realidade exterior e a
realidade íntima e pessoal da criança estabelece
-
se um hiato, posto que o realizado jamais é da
mesma ordem da demanda interior, daquilo que é pretendido e esperado. Como resultado
possível, a criança
cria
um mundo interior e pessoal que lhe dá sustentação psíquica e lhe
permite interagir de forma saudável com a realidade externa. Ou não. (Id, Ib: 140
-147).
Na minha prática clínica tenho observado com freqüência pais mães em particular
queixosas de filhos muito agitados. “Não seria hiperatividade, doutor? perguntam
aflitas, estimulados pelas reportagens veiculadas na imprensa leiga. A pergunta de fundo é:
13
“Em psicanálise fala-se de conflito quando, no sujeito, opõem-se exigências internas contrárias”. (Laplanche e
Pontalis, 2001:89). Conflito intolerável diz respeito ao desejo da criança de ter o pai/mãe do sexo oposto como
parceiro sexual (incesto), fundamento de todos os conflitos psíquicos. Para Freud “Intrinsecamente, o desejo é
sempre o desejo do incesto”. (Nas
io, 1995: 30).
14
O termo angústia
(angst
em alemão) gera confusões semânticas porque foi traduzida para o inglês como
anxiety.
Nas traduções do inglês para o português, anxiety gerou
ansiedade
. Mas
ansiedade
e
angústia
não têm,
em psicanálise, o mesmo sentido. Para Laplanche e Pontalis angústia pode ser considerada “Reação do sujeito
sempre que se encontra numa situação traumática, isto é, submetido a um fluxo de excitações, de origem externa
ou interna, que é incapaz de dominar” (2001:26
-
27).
55
“meu filho é normal?”. Coerentemente com o que tenho mostrado até aqui, procuro observar
o comportamento da criança em termos dos estímulos oferecidos pelo meio e das respostas
esperadas por este. Os estímulos oferecidos pelo meio são comumente percebidos pela
criança como agressões à sua homeostase interna. O que pode gerar, num primeiro momento,
uma certa
ansiedade.
Num segundo momento, a criança busca ‘defender-se’ dessa ansiedade,
o que o faz procurando uma reorganização interna de suas expectativas, caso em que assume
uma cer
ta passividade; ou, por outro lado, procurando ‘reorganizar’ o ambiente segundo o seu
padrão.
Um critério que tem orientado a minha prática, com fins à definição de um diagnóstico
presuntivo, é a observação de como a criança se comporta nesse trabalho de
‘reorganização/desorganização’ do espaço e, sobretudo, que atitude assume em relação ao
adulto cuidador (pai/mãe). Tenho verificado recorrentemente que a criança que reputo como
‘normal’ certifica-se, com o olhar, sobre a aprovação tácita da mãe quanto ao que está
fazendo. Também confere com o olhar a minha aprovação ou não ao que está fazendo, muitas
vezes promovendo o que eu chamo
triangulação
entre ela, eu e o adulto cuidador. A criança
portadora de distúrbio e isso vai depender da natureza e intensidade do distúrbio — menos
freqüentemente busca essa confirmação escópica.
Também observo se a criança muda constantemente o foco de interesse. Se tem a sua
atenção chamada para coisas ou atividades que lhe pareçam mais interessantes, ou se ao
contrário
detém
-se na mesma atividade, independente de novos estímulos. Essas
observações, bem como os estímulos propostos, variam de acordo com a idade da criança. Um
‘estímulo interessante’ para uma criança de cinco meses um foco de luz, por exemplo
não é o mesmo para uma criança de três anos. Um estetoscópio deixado ao alcance de uma
criança de três a cinco anos normalmente exerce sobre ela uma atração irresistível,
provavelmente por não ser algo comum no seu dia-a-dia. O que o torna algo provocador da
necess
idade de uma ‘reorganização interna’.
Por outro lado, observo com freqüência alguma intolerância às manifestações
adaptativas da criança naquele sentido de adequar o meio às suas expectativas ou de
56
adequar
-se às expectativas do meio ou ambas tentativas às vezes desastradas, mas que
traduzem a ‘boa vontade’ da criança de responder à demanda colocada. O que muitas vezes é
uma tentativa de comunicação, de pedido de socorro, é visto como ‘mal
-
criação’ ou rebeldia.
Essa reflexão, relativa às crianças pequenas, poderia ser estendida a outras faixas
etárias, com outras referencias e outra ética. Como se posicionar, por exemplo, ante o
consumo de drogas ou a violência das chamadas crianças de rua? As condições de abandono
social, emocional e psicológico a que estão submetidas poderiam explicar tais práticas? A
vida de rua, segundo Walter Ferreira de Oliveira:
É, sem dúvida, uma vida de sofrimento. Quem vive na rua enfrenta
muitos estresses no cotidiano e muito raramente tem acesso a bens, (...)
como educação, cuidados de saúde, habitação e lazer. A grande maioria
não dispõe do conforto de uma cama ou mesmo de água potável. Para
as crianças, ausência de adultos responsáveis, zelosos e protetores.
São, em geral, vítimas da negligência, da discriminação e da violê
ncia
cometidas por outros indivíduos ou pelas instituições sociais. Apanham,
são torturados, às vezes exterminados. (2004: 31).
Diante do quadro acima exposto, julgo aceitável supor que os atos praticados por
crianças de rua que coloquem em risco a sua vida ou a dos outros, constituem gestos
‘normais’ dentro um contexto social anormal. O que nos remete ao postulado inicial de que
normalidade ou anormalidade podem ser compreendidas em relação às expectativas
sociais
-
culturais do meio em que a criança se
desenvolveu.
Vimos, portanto, que as atitudes e comportamentos que fazem supor normalidade e
anormalidade não são lugares fixos nas sociedades, nos quais podemos situar as pessoas, e as
crianças em particular. Existem razões teoricamente consistentes para se afirmar que é
obrigatória a contextualização, em termos históricos e culturais, para se definir as bases de um
desenvolvimento normal ou patológico. Para Freud, por exemplo,
(...) não pode ser traçada qualquer linha nítida entre pessoas ‘neuróticas’ e
‘normais’
quer crianças ou adultos —, (...) a nossa concepção de
‘doença’ é uma concepção puramente prática (...) vários indivíduos estão
passando constantemente da classe de pessoas saudáveis para a de pacientes
neuróticos, enquanto um número bem menor também faz a viagem oposta.
(grifos do autor; 1996a: 130).
Porém, nem todas as crianças submetidas a condições externas semelhantes
desenvolvem as mesmas características. Porque alguma coisa funciona como substrato no
57
qual as influências do meio vão agir. É da interação entre esse substrato individual, que a
criança de alguma forma traz desde o nascimento ou de antes até e o meio em que vive
que se definirá o sujeito do processo social
-
cultural.
2.4 INATISMO GENÉTICO E ONTOLÓGICO:
condição de
animal humano x condição de ser humano
O termo
inato
pode ser compreendido de várias maneiras. Em linhas gerais admite-
se
como “Oposto a adquirido. Que pertence à natureza de um ser, e não é resultado daquilo que
experimentou, fez ou percebeu desde o nascimento” (Lalande, 1996: 537). Nesse sentido é
semelhante a
natural
. Em oposição a inato
, adquirido
refere
-
se ao que é obtido pelo indivíduo
após o nascimento, a partir da interação com o meio (Id. Ib: 31).
Considerarei pelo menos duas grandes possibilidad
es de fatores inatos: os genéticos
transmitidos pelos pais no ato da concepção e os ontológicos, que dizem respeito ao
ser,
à
condição de ser humano, em sentido ontológico. Características inatas, determinadas
geneticamente, seriam a cor dos olhos, o sexo biológico, a cor da pele, o tipo de cabelo, por
exemplo. Por outro lado, as categorias fundamentais do pensamento como as noções de
tempo e espaço, noções fundamentais de estética e as noções básicas de organização e caos,
por exemplo seriam características inatas em sentido ontológico, ou seja, características
naturais da condição humana, segundo alguns autores como veremos.
Em relação às características somáticas de um indivíduo, consenso acerca do seu
inatismo genético. É reconhecida entre os biólogos a expressão: características fenotípicas
resultam da influência dos fatores genéticos em interação com o meio ambiente, expressa na
famosa fórmula F = G + MA (Wellington e Pedersoli, 1990). Com relação às
características
comportamentais
, no entanto, nem sempre houve esse consenso. O receio de se aceitar que
fatores genéticos pudessem influenciar os comportamentos residia na preocupação de que essa
aceitação conduzisse ao estigma social, com base em mitificações.
O mito da superioridade étnica, embasado na concepção de que algumas raças seriam
geneticamente superiores a outras e acalentado durante muito tempo, tornou a comunidade
58
científica avessa à aceitação de que algumas características comportamentais fossem, de fato,
condicionadas geneticamente. Mas hoje se tende a admitir que certos traços comportamentais
podem ser influenciados hereditariamente.
Atualmente um certo consenso de que fatores genéticos e ambientais contribuem
em maior ou menor parcela na determinação das características comport
amentais, posição que
a OMS reconhece quanto a alguns aspectos da saúde, ao afirmar:
A evidência científica moderna indica que os Transtornos Mentais e
Comportamentais resultam de fatores genéticos e ambientais ou,
noutras palavras, da interação da biologia com fatores sociais. (...). Já
desde antes do nascimento e por toda a vida, os genes e o meio
ambiente estão envolvidos numa série de complexas interações. Essas
interações são cruciais para o desenvolvimento e evolução dos
Transtornos Mentais e Comport
amentais. (OMS/OPAS, 2001).
Quanto às características supostamente inatas à pessoa humana, enquanto
ser
, a
questão é algo polêmica. Filio-me intelectualmente à corrente de pensamento acorde com o
princípio de que ‘alguma coisa’ é intrinsecamente humano, ou seja, é inato não apenas a uma
determinada pessoa ou grupo, mas ao conjunto dos seres da espécie, nesse sentido, sou adepto
do princípio de que existe uma natureza humana. A interação com o meio assim como
ocorre com os fatores genéticos é que irá definir a forma como se manifestará a sua maior
ou menor intensidade, mas a característica em si é inatamente humana. Assumo, porém, que
se trata de uma questão polêmica cujo ponto de partida perdeu-se no tempo e com freqüência
mescla argumentos filosóficos, sociológicos, teológicos onde a paixão e a racionalidade
científica por vezes o-se as mãos. Para os meus interesses imediatos, retomo no tópico
seguinte essa discussão a partir da era moderna e estendo-me até os dias mais recentes,
incorporando a cont
ribuição da neurobiologia.
2.5 INATISMO ONTOLÓGICO: sou, mesmo sem pensar
Nos anos finais do Século XIX e inicio do Século XX estavam em discussão nos meios
científicos ocidentais duas posições filosóficas acerca da existência ou não de fatores i
natos
aos seres humanos, ou seja, se haveria ou não algo que pudesse ser definido como uma
59
condição humana inatamente determinada. Uma dessas posições baseava-se no pensamento
de John Locke e a outra em Immanuel Kant (Vygotsky, 1991). Os seguidores de Lock
e
negavam a possibilidade de que quaisquer características humanas pudessem ser inatamente
determinadas. Defendiam a origem do pensamento a faculdade humana por excelência
a partir unicamente da estimulação ambiental. O recém-nascido constituiria uma tabula rasa
,
uma folha em branco, na qual seriam impressas todas as noções necessárias ao seu
desenvolvimento como ser pensante. Nesse sentido, para Locke, tudo seria resultado de um
aprendizado que o vivente humano empreenderia, a partir do seu nascimento, em interação
com o meio (Locke, 1983: 133
-
156).
Os seguidores de Kant, por outro lado, defendiam que algumas noções básicas, ou
categorias elementares, como “as idéias de espaço e tempo e conceitos de quantidade,
qualidade e relações originavam-se na mente humana de forma inata (...)” (Vygotsky, 1991:
2), podendo se desenvolver em maior ou menor intensidade. Essas categorias elementares
estariam previamente presentes, como potencialidades, em todos os seres humanos e não eram
resultado de um
aprendizado
.
Poderíamos dizer, em acordo com essa visão, que por mais que
estimulemos um macaco, ele jamais desenvolverá algumas categorias de pensamento, tais
como a fala e a cognição, pois lhe faltariam os elementos básicos para isso, presentes,
inatamente, no ser humano. As pesquisas no âmbito da psicologia comportamental em
animais parecem corroborar essa posição.
As divergências entre as correntes representadas por Locke e Kant persistem até hoje.
Atualmente pesquisadores de vários campos dedicam-se à compreensão dos processos
formadores da psique, do comportamento e, por conseguinte, da saúde e dos
transtornos
mentais
. Esses pesquisadores, entretanto, normalmente restringem o seu campo de pesquisa a
algum aspecto específico da mente humana. Boa parte dos estudos em psicologia e educação,
por exemplo, aborda preferencialmente os aspectos cognitivos da questão, o que não invalida
que as conclusões obtidas possam servir de base à compreensão da vida mental como um
todo, muito embora se reconheça que qualquer abordagem pode-nos oferecer, no máximo,
60
uma compreensão parcial e limitada da vida mental
entendida
como “a própria essência de
estar vivos”
como afirmado por Batistella (2004: 18).
Aprender é, enfim, uma possibilidade presente em qualquer ser vivo, mas o processo
de apreensão de conhecimentos parece previamente condicionado a determinadas categorias
gerais da espécie com a qual se trata. Em termos das noções afeitas às chamadas categorias
superiores de pensamento, como visto acima, essas categorias parecem exclusivas à espécie
humana. Chomsky
15
, mais recentemente, numa clara defesa de princípios inatistas, questiona
até mesmo a noção de “aprendizagem”. Segundo Dennis Werner, para Chomsky
Embora a criança não possua todas as capacidades cognitivas de um a
dulto,
isto não implica que essas capacidades precisam ser ‘aprendidas’, da mesma
foram que não se precisa pressupor que o crescimento dos braços ou o
desenvolvimento dos seios nas mulheres adultas precisa ser ‘aprendido’.
(Werner, 1997: 54).
Piaget, um dos autores referenciais no estudo do desenvolvimento cognitivo, adota
uma posição algo diversa. Para este autor o conhecimento precisa ser construído pela criança
na interação com o meio. “Com o crescimento, pode aumentar a capacidade biológica da
criança
de aprender diferentes conceitos, mas de qualquer forma estes conceitos precisam ser
construídos a partir de reflexões sobre a realidade”. (Id. Ib.: 54). Ainda segundo Piaget, “a
inteligência humana somente se desenvolve no indivíduo em função de interações sociais
(...)”. (Piaget apud La Taille, 1992:11). E nesse mesmo sentido volta a afirmar: “(...) não se
pode negar que desde o nascimento, o desenvolvimento intelectual é, simultaneamente, obra
da sociedade e do indivíduo”. (Id. Ib: 12). Piaget não press
upõe características inatas à pessoa,
enquanto
ser
. Porém, especificamente ao tratar da construção do senso moral na criança,
afirma:
no funcionamento das operações sensório-motoras uma busca de
coerência e de organização: ao lado da incoerência de fato, própria aos
procedimentos da inteligência elementar, devemos admitir a existência de
um
equilíbrio ideal (grifo meu), indefinível a título de estrutura, mas
implicado neste funcionamento (Piaget, 1994).
15
Avram Noam Chomsky é um dos intelectuais mais importantes da atualidade. É Professor de lingüística no
MIT. Tem-se destacado no estudo e na defesa das condições e da qualidade de vida dos povos e na preservação
do Planeta, na sua opinião cada vez mais ameaçado pela falta de diálogo entre os povos e pela ganância do
capital. Autor de mais de 30 livros e inúmeros artigos. Esteve no Brasil em 2002 para o Fórum Social Mundial,
onde proferiu palestra sob o título
Um mundo sem guerras é possível
.
61
A afirmação parece constituir uma concessão à possibilidade de que um certo
equilíbrio ideal poderia estar pressuposto na criança antes da mesma iniciar o seu processo de
‘construção de conceitos’; algo na linha das categorias elementares admitidas pelos
seguidores de Kant.
Vygotsky, cuja obra mantém profunda relação com o materialismo histórico de base
marxista, também não era partidário de princípios inatos, no sentido de que estejam prontos,
aguardando apenas o momento oportuno para manifestação. Porém, “supõe uma organização
básica do cérebro humano, resultante da evolução da espécie. Isto é, (...) não supõe um caos
inicial, mas a presença de uma estrutura básica estabelecida ao longo da história da espécie,
que cada membro dela traz consigo ao nascer”. (Vygotsky, 1991). Para o autor de
A formação
soc
ial da mente uma organização básica, inata à espécie, está presente no sujeito desde
nascimento. Cujo processo de desenvolvimento se faz na relação com o outro social. Não se
pode pressupor a assunção de um inatismo ontológico. Mas certamente se pode antever nessa
posição a possibilidade de que algo é inerente à espécie humana.
Quanto à influência dos fatores culturais, este autor advoga que eles não apenas
contribuem para conformar o psiquismo humano, mas que “a cultura torna-se parte da
natureza humana num processo histórico que, ao longo do desenvolvimento da espécie e do
indivíduo, molda o funcionamento psicológico do homem”. (Id. Ib.: 24). Nesse sentido,
Vygotsky aproxima-se da posição de Henri Wallon, para quem o ser humano é
“geneticamente social, radicalmente dependente dos outros seres para se constituir enquanto
ser da mesma espécie”.
(Wallon apud Le Taille, 1992: 92).
A partir do que expus acima, pode-se admitir um certo consenso acerca da influência
do meio na determinação do sujeito humano historicamente dado, ou seja, presente em um
determinado momento histórico, bem como se pode assumir como uma posição
cientificamente válida que traços de humanidade estejam presentes no bebê humano mesmo
antes do seu nascimento. A postura lockeana ortodoxa parece não encontrar eco no
pensamento científico hodierno. Pelo menos em termos filosóficos ou com base nos estudos
feitos a partir da psicologia experimental ou comportamental. O Professor Dennis Werner,
62
do Departamento de Antropologia Cultural da UFSC, filósofo, PhD em antropologia cultural
e ex-presidente do Human Relations Areas Files, da Universidade de Yale (EE.UU), nos
apresenta uma visão baseada em estudos neurológicos recentes. Citando Steven Pinker
16
, o
autor lembra que “possuímos 100.000 genes, mas 10 bilhões de neurônios com 10 trilhões de
interconexões. [e conclui] Obviamente não existe um gene específico para determinar cada
interconexão neuronal” (Werner, 1997: 55).
Seguindo essa linha de raciocínio, pode-se aceitar que o volume total de neu
rônios
humanos seja geneticamente definido, e, até certo ponto, que esse volume seja
aproximadamente o mesmo para todos os membros da espécie, e que não mude
significativamente ao longo da vida. O que aumenta em vista dos processos de aprendizagem
são as interconexões neuronais. Mas não se pode explicar geneticamente como as
interconexões vão se processar. Sabe-se, porém, que elas ocorrem e são responsáveis pelo
aumento da massa cerebral, verificada ao longo da vida, sobretudo nos primeiros anos. O que
pode
ria provocar o aumento dessas interconexões matrizes do processo cognitivo?
Segundo Werner (Id.Ib:55), ancorado nos estudos de Pinker, estímulos ambientais são os
responsáveis pelos processos a partir dos quais o cérebro poderia incorporar material de
crescimento, porém essa incorporação não parece seguir uma regra fixa para todos os
indivíduos humanos. Ou seja, submetidos aos mesmos estímulos, dois gêmeos univitelíneos
portanto possuidores da mesma carga genética podem desenvolver-se de formas
difer
entes tanto em termos de aquisições neuro-
psíquicos
-motoras como cognitivas ou
emocionais.
Werner chama a atenção também para o fato de que esse crescimento da massa
cerebral às custas do desenvolvimento de interconexões neuronais, embora sem definição pré-
programada, se faz privilegiando certas conexões mais ativadas. Este autor, porém, não
apresenta uma explicação para a existência dessas interconexões ou sinapses mais ativadas.
Informa apenas que
os axônios
substratos materiais dessas interconexões
crescem como
16
Steven Pinker é psicólogo e lingüista. É Professor de Harvard onde desenvolve pesquisas no campo da
lingüística envolvendo aspectos psicológicos e neurológicos. Nos seus estudos, assume posições evolucionistas e
nega a noção da mente do recém
-
nascido como uma
tabula rasa
, no sent
ido lockeano.
63
que buscando os seus destinos naturais, ou seja, um axônio do olho busca no cérebro a área
‘certa’ de conexão (não busca, por exemplo, a área da olfação), mas chegando não se liga
diretamente ao seu destino. Ocorre uma competição vencida pelas sinapses mais ativadas.
(Werner, 1997:55).
A partir da contribuição do Professor Werner resultam duas conclusões possíveis: os
estímulos provenientes do meio desempenham papel preponderante no crescimento e no
estabelecimento de interconexões neuronais; entretanto, alguma coisa parece independer dos
fatores ambientais; está pré-
programada, a exemplo da ‘escolha certa’ do axônio pela sua área
natural de conexão, ou a aparente competição de neurônios menos e mais ativados, posterior
ao nascimento. “Imagino que pesquisas futuras mostrarão uma mistura de capacidades pré-
programas e elementos ‘apreendidos’ em diferentes fases do desenvolvimento”, conclui
Werner (Id. Ib: 56). Posição que adoto como a mais consistente.
A discussão, com base nesses autores, sobre os aspectos
inatos
e
adquiridos
, na
formação dos processos cognitivos e por extensão mentais — do ser humano, reafirmam a
concepção de que o indivíduo não pode ser tomado como uma determinação isolada do seu
inatismo
, seja ele representado por fatores genéticos ou ontológicos, nem como produto do
meio,
mas como síntese de trocas constantes entre suas potencialidades inatas e o meio em
que vive.
Assim sendo, uma criança, ao nascer, traz elementos que a conformarão como ser
humano completo, mas essa conformação não segue uma programação inexorável. Elementos
da cultura vão ajudar a definir o
vir
-a-
ser
dessa criança, ora promovendo, ora inibindo, ora
determinando características que a conformarão como um ser humano total na sua
complexidade biológica, psíquica, emocional e cultural simultânea e imbricadamente
estruturada. Nessa perspectiva, se justifica entender a saúde mental ou a sua alteração,
consubstanciada nos transtornos mentais, como resultado, em parte, das influências do
ambiente em que a criança
está inserida e da forma como se verifica essa inserção.
64
2.6 CRIANÇA E FAMÍLIA: consolidação e desestruturação
Este trabalho postula, inicialmente, que a quebra dos vínculos afetivos da criança com
os seus cuidadores — particularmente a mãe nas primeiras fases da vida, poderia justificar
o incremento dos
transtornos mentais
em crianças, verificados nas últimas décadas.
Objeções levantadas a essa linha de raciocínio fazem-se no sentido de contestar esse
presumido incremento dos transtornos mentais, seja na população infantil, ou na população
em geral. Os que assim procedem costumar lembrar que houve um aumento da população
planetária e que isso seria necessariamente acompanhado do aumento de todas as taxas de
morbidade, inclusive daquelas associadas ao campo mental. Por outro lado, o
desenvolvimento de novos procedimentos diagnósticos faria crescer o número dos portadores
de distúrbios pelo aumento na descoberta desses distúrbios. E por fim, argumentam que a
maior possibilidade de comunicação nos colocaria mais facilmente em contato com dados
atualizados e precisos acerca das patologias. Esses fatores, isoladamente e em conjunto
forneceriam uma falsa impressão de que vivemos uma
epidemia
de sintomas mórbidos, em
particular daqueles associados aos
transt
ornos mentais
ou
mentais e comportamentais
.
Acerca da primeira hipótese, cumpre lembrar que nos anos de 1980 a 1992, por
exemplo, a população mundial cresceu 14%, enquanto a taxa mundial de suicídios, segundo
Pacheco e colegas (2003), sofreu um incremento
de 56,9%. As maiores taxas de suicídios, por
outro lado, ocorreram exatamente em países com taxas de crescimento vegetativo próximo a
zero (OMS/OPAS, 2001: 3). Menciono o suicídio por julgar que essa natureza de transtorno é
paradigmática em termos de saúde mental. Com relação aos transtornos depressivos, seu
incremento esteve bem acima do crescimento populacional vegetativo, ao ponto que, como
vimos, constituir hoje a quarta causa de afastamentos do trabalho nos países desenvolvidos,
com a estimativa de que venha a ocupar em futuro próximo, a segunda posição, conforme
atesta a OMS no Relatório de 2001 (OMS/OPAS, 2001).
A segunda linha de argumentação não resiste a uma observação mais atenta. Os
mecanismos e procedimentos diagnósticos, no âmbito das patologias enquadráveis como
transtornos mentais e comportamentais, particularmente os de natureza emocional, que mais
65
nos interessam no presente estudo, são essencialmente clínicos e, a rigor, pouca contribuição
receberam dos avanços tecnológicos verificados nas últimas décadas. A constatação de que
alguém se suicidou não carece de recursos diagnósticos novos. Por outro lado, não exame
laboratorial ou de imagem que diagnostique depressão, ideação ou tentativa de suicídio. Até
mesmo a enigmática fibromialgia, embora com manifestações essencialmente físicas, resiste
às tentativas de desnudamento laboratorial, tendo o seu diagnóstico definido a partir
essencialmente da avaliação clínica (Pollak e Atra, 2002: 1103).
Por fim, contraponho ao terceiro argumento a fala do Diretor do Departamento de
Saúde e Serviços Humanos dos EE.UU, segundo o qual o seu país “está passando por uma
crise na saúde mental dos lactentes, crianças e adolescentes” (Nota 3). Parece-me, na melhor
das hipóteses, questionável que os EE.UU. não tivessem 30-50 anos recursos de
comunicação que lhes permitisse conhecer e dar conhecimento ao mundo de tais achados, e
que por isso grandes contingentes populacionais padecessem de condições clínicas associadas
aos transtornos mentais, ocultados por dificuldades de comunicação. Também me parece
questionável que o Diretor do DHHS-US admita que o seu país está passando por uma
situação de
crise
e desconheça que essa situação pré-existia, havendo apenas uma ignorância
a seu respeito. É plausível, portanto, defender que esse aumento no volume e na severidade
dos
transtornos mentais e comportamentais infantis
de fato venham ocorrendo, restando
-
nos a
tarefa de buscar as possíveis explicações para o fenômeno em tela.
Dadas as condições de vida da realidade contemporânea e a importância de um
mínimo de estabilidade para que uma criança seja gestada e assistida na sua primeira infância
para que possa desenvolver-se como pessoa saudável em vista do que se espera em termos de
normalidade para essa criança, julgo pertinente a hipótese que as perturbações produzidas no
seio das famílias, mormente as que dizem respeito à saída do elemento materno do lar para o
mercado de trabalho, vêm constituindo fator estressor importante para as crianças e, nesse
sentido, propiciam o surgimento das condições que m determinando o crescimento dos
transtornos mentais e comportamentais
infantis
verificados nos últimos anos no mundo
ocidental.
66
A noção de confiança, que a criança precisa ter no meio ambiente, representado por
seus cuidadores é, a meu ver, fator basilar na constituição de uma personalidade estável,
essencial para um desenvolvimento infantil saudável, como nos alerta Anthony Giddens:
A confiança, afirmo, é um fenômeno genérico crucial do
desenvolvimento da personalidade (...) está diretamente ligada à
obtenção de um senso precoce de segurança ontológica. A confiança
estabelecida entre uma criança e os que cuidam dela instaura
“inoculação” que afasta ameaças e perigos potenciais que até mesmo as
atividades mais corriqueiras da vida cotidiana contêm. A confiança
nesse sentido é fundamental para a formação de um ‘casulo protetor’
que monta guarda em torno do eu em suas relações com a realidade
cotidiana. (2002: 11).
Durante toda a vida os seres humanos são desafiados a procurar formas de
relacionamento com a realidade cultural em que estão inseridos que lhes permitam conviver
com essa realidade de uma maneira satisfatória, advindo desse relacionamento a
caracterização do que entendemos como normalidade. Os transtornos mentais em crianças
não são exclusivos dos tempos atuais, mas o incremento verificado, a ponto de caracterizar
uma
crise,
como denunciado pelo diretor do DHHS
-EE.UU, sim. Que teria havido, então, que
explique o aumento de transtornos dessa natureza?
A busca de
um
a
causa é pretensiosa. Entretanto, algumas transformações
experienciadas pelas sociedades ocidentais, ao longo do último século, em particular na
metade final, podem ter contribuído de forma relevante para conformar o ambiente no qual os
transtornos acima referidos encontraram campo propício ou mais propício. “A ciência
moderna está mostrando, (...)
que a exposição a estressores durante o desenvolvimento inicial
está associada com hiperatividade cerebral persistente e o aumento da probabilidade de
depress
ão numa fase posterior da vida(grifos meus. Heim et al.2000 apud OMS/OPAS,
2001: 1).
Transformações de quase todos os parâmetros sociais que balizavam os
relacionamentos humanos ocorreram nas últimas cinco décadas de uma forma jamais vista.
Alvin Toffler, consultor de empresas e futurólogo americano, publicou dois livros que
mostravam como essas transformações foram-se processando e que possibilidades
projetavam, lançando luz sobre as modificações que se nos apresentavam como inexoráveis
para os anos vin
douros.
67
Em
O Choque do Futuro
(1970), o autor antecipa o modo de vida que se engendrava a
partir das condições geradas pela alta tecnologia, e antevia o
choque
cultural
que seria
experimentado pelas pessoas ante os novos padrões de produção e consumo. Em A Terceira
Onda
(1972), discute as grandes ondas revolucionárias do processo produtivo a agrícola, a
industrial e a da informática e as suas implicações nas relações interpessoais. O livro
enfatizava em particular as transformações provocadas pela revolução da informática, por ele
denominada
terceira onda. Segundo Toffler, nada do que se vivera antes poderia ser
comparado ao que se anunciava a partir do advento da chamada
sociedade da informação
.
Os processos produtivos, antes naturalmente limitados pelas condições materiais
objetivas, passam a ter como limite a própria capacidade de sonhar do ser humano, ou seja,
nenhum. O processo produtivo, com a possibilidade de máquinas fazendo máquinas, tornou
praticamente inesgotável a capacidade de produzir. Os mercados não se limitariam às
fronteiras dos países produtores, o capital industrial fixo, cederia lugar ao capital
informacional na hegemonia do processo de acumulação e no engendramento de novos
processos produtivos e relacionais.
A reação dos cientistas sociais, antropólogos e humanistas oscilou entre o descrédito,
relegando tais previsões à categoria de alarmistas, até os entusiasmados apoios. Um dos meus
Professores, em 1980, em palestra proferida na Universidade Federal do Rio de Janeiro, disse
que
seria ilusão achar que robôs poderiam substituir homens nas linhas de montagem.
Segundo esse Professor, mesmo tarefas aparentemente simples como a pintura de automóveis,
por exemplo, requeriam tamanha soma de processamentos que estariam fora do alcance
mes
mo das mais complexas máquinas robotizadas. Essa afirmação desconsiderava a assertiva
do fundador da Intel Corporation, Gordon Moore, segundo o qual a capacidade de
processamento dos computadores duplicaria a cada 18 meses. O que vimos se confirmar a
ponto
de adquirir força de lei da indústria da informática
a chamada Lei de Moore
—.
Os avanços tecnológicos vieram confirmar que Toffler não só estava correto, mas até
mesmo comedido, no antecipar dos acontecimentos. O aumento da capacidade de
processamento
e a crescente associação entre os processos informacionais puros,
68
consubstanciados em programas complexos e versáteis os
softwares
e os aparelhos
responsáveis pela sua operacionalização — os
hardwares
permitiram a construção de
‘cérebros eletrônicos’ cada vez mais rápidos e operacionais, viabilizando o processo de
robotização que viria substituir o elemento humano na execução de muitas tarefas, abrindo
possibilidades antes inimagináveis. Vivemos, então, uma revolução nos processos produtivos,
com implicações sobre as pessoas e as relações interpessoais, igualmente inimagináveis.
Como numa seqüência em cascata, os fatos foram-se precipitando e gerando novas séries que
abriam novos leques, numa seqüência exponencialmente crescente.
Essas transformações, como seria de se esperar, não se limitaram aos aspectos
materiais do processo produtivo, mas se estenderam a todos os campos da atividade humana,
provocando mudanças na forma como as pessoas passaram a encarar a vida em termos
pessoais e em sociedade. Ger
ou
-se uma sensação de aturdimento, de vertigem. Richard
Sennett em
A corrosão do caráter
(2005) alerta para o clima de incerteza que tomou conta das
pessoas, mas não aquela incerteza mais ou menos esperada em vista de situações especiais,
como as guerras, as calamidades e as crises; Sennett fala da incerteza incorporada ao dia-a-
dia
, que inviabiliza considerações de longo prazo, seja no processo produtivo que
incorporou o imediato como norma
seja nos processos sociais subjacentes. Para este autor:
O que é singular na incerteza hoje é que ela existe sem qualquer desastre
histórico iminente; ao contrário, está entremeada nas práticas cotidianas de
um vigoroso capitalismo. A instabilidade pretende ser normal. (...). Não
mais ‘longo prazo’ [como lema de vida] desorienta a ação a longo prazo,
afrouxa os laços de confiança e compromisso e divorcia a vontade do
comportamento (2005:33).
A impressão de solidez no mundo e nos processos sociais até então vigentes —
de um
certo modo ratificada pela chamada
tecn
ologia pesada
deu lugar a uma incômoda sensação
de
fluidez
, como advoga Zigmunt Bauman, para quem O mundo (...) está-
se preparando para
uma vida sob uma condição de incerteza que é permanente e irredutível. (...). Vivemos hoje
na atmosfera do ‘medo ambiente’”. (1997: 32-33), conclui, utilizando expressão cunhada por
Marcus Doel e David Clarke.
Dentre os fatores responsáveis por essa atmosfera de medo ambiente,
Bauman
menciona “o despedaçamento das redes de segurança socialmente tecidas e societariamente
69
sustentadas” (Baumann, 1997: 35) bem como “o esfacelamento das outras redes de segurança
tecidas e sustentadas pessoalmente como família, vizinhança, locais para onde uma pessoa
podia retirar-se para curar as contusões deixadas pelas escaramuças do local de trabalho”. (Id.
Ib: 35). Dessas redes de segurança, às quais alude Bauman, chama particular atenção a
família, posto ser este ambiente local privilegiado para a tecitura do desenvolvimento infantil.
Phillipe Ariès, na História Social da Criança e da F
amília
(1973), situa entre o final
do século XVII e o início do século XVIII o recolhimento da família à intimidade da casa,
criando dessa forma as condições para o início do sentimento de infância tal como o
entendemos hoje. Antes desse período estava presente nas classes sócio-
econômicas
favorecidas a noção de que a criança precisava ser protegida, mas a tarefa de cuidar delas, via
de regra, era dividida com os servos e criados, e não exclusiva e primordial dos pais. A noção
de família nuclear, representada por pai, mãe e filhos, não era prevalente. A vida social era
essencialmente coletiva.
Por volta do Século XV, a infância normalmente terminava quando as crianças
adquiriam condições mínimas de sobrevivência autônoma. Os ensinamentos que recebiam, n
o
sentido de prepará-las para a vida em comunidade, eram ministrados por pessoas mais velhas
que elas, às vezes crianças também. Ocorria algo semelhante às artes de ofício, em que às
pessoas mais velhas e, presumivelmente mais sábias, competiam os cuidados e os
ensinamentos das mais novas e inexperientes. Essa relação entre aprendizes e mestres criava
um sistema de camaradagem geralmente mais importante e intenso que as relações
estabelecidas entre as famílias biológicas, o que não implicava, necessariamente, em vínculos
afetivos sólidos ou marcados pela solidariedade. Por vezes esses cuidados e ensinamentos
eram cobrados em forma de trabalhos, e os castigos físicos eram freqüentes. “A partir do final
da Idade Média [meados do Século XV] esse sistema de camaradagem encontraria na opinião
influente uma oposição crescente, e se deterioraria gradativamente, até aparecer no final como
uma forma de desordem e de anarquia” (Ariès, 1973: 179). Em seu lugar surgiram as
organizações escolares.
70
A infância saiu das rua
s e praças para as escolas autoritárias e disciplinares. Ainda não
era dos pais a responsabilidade pelos cuidados com a educação, entendida como preparação
para a vida, em sentido amplo. Nas escolas, o ensino era destinado a tornar a criança apta a
viver em comunidade e a desempenhar as tarefas que lhe permitissem sobreviver, levando em
conta a sua classe social. Os pais tinham pouca ou nenhuma influência nesse processo. A
criança ainda
pertencia
ao mundo. O que também de um certo modo se verificava em
relação aos pais, particularmente ao pai. Pois, se a criança estava afastada do lar, entregue ao
mundo para ser educada, o pai, por sua vez, se encontrava fora do lar, envolvido com as
atividades laborais. Essa situação logicamente não favorecia o estabelecimento de uma vida
social centrada na família.
Ariès ressalta que até meados do Século XVII tanto o homem se encontrava muito
envolvido com atividades externas ao lar e “quanto mais o homem vive nas ruas ou no
meio das comunidades de trabalho (...) mais essas comunidades monopolizam não apenas o
seu tempo, mas também seu espírito, e menor é o lugar da família em sua sensibilidade”
quanto os filhos, “enviados para outras casas, como aprendizes”
.
Desse modo, “as condições
de vida quotidiana não permitiram esse entrincheiramento necessário da família.”
(Ariès,1973: 238). Cumpre ressaltar, porém que a criança estava no mundo, mas o mundo a aceitava
como “sua” e por ela se responsabilizava. Do ponto de vista da cultura havia condições de estabilidade
em vi
sta do que se cobrava e do que esperava da criança e do indivíduo.
As condições favoráveis à formação do sentimento familiar, caracterizadas pelo
entrincheiramento dentro da casa, que viabilizaram a formação da família nuclear, somente
começaram a se definir nos anos finais do Século XVI, e mais intensamente, em meados do
século XVII. Ariès refere-se a uma gravura, datada do final Século XVII, que mostra uma
família bem sucedida, representada pelo pai e pela mãe, tendo um bebê ao colo e ao seu lado
uma outra criança maior, presumivelmente um outro filho. A gravura é complementada por
uma legenda que diz: “Feliz daquele que segue a lei do céu/ E emprega a parte mais bela de
sua vida/ Em servir a seu Deus, sua família e a seu Rei” (1973: 208). A família, a esta altura,
havia
-
se tornado uma instituição basilar da sociedade, equiparando
-
se a Deus e ao Rei.
71
Mas ainda se aguardaria por todo o Século XVIII e parte do Século XIX para que a
família se consolidasse como a família nuclear, tal como hodiernamente a temos. Nesse
processo
lembra Áries irá desempenhar papel fundamental o movimento massivo de
retorno de crianças mantidas em Escolas ou sob o cuidado de amas-
de
-leite para os lares
paternos.
Neste período compreendido entre a metade final do Século XVIII e a metade
inicial do Século XIX entre as famílias das classes populares, havia se tornado prática
corrente o cuidado com os próprios filhos, mas as famílias abastadas
nobres e burgueses
continuavam deixando os seus filhos aos cuidados de amas-
de
-leite. Nesse meio termo,
pontua o autor, houve uma mudança cultural importante: os fatores de atração dos bebês aos
lares foram mais fortes e as amas é que passaram a se deslocar para as casas das famílias
abastadas, algumas das quais levando consigo os seus próprios filhos. O autor enfatiza o
imbricamento entre as noções de família e de infância e acentua o papel importante que a
segunda desempenha na conformação da primeira.
O retorno da criança aos lares foi simultaneamente associado à conformação da
família nuclear moderna que, por sua vez, passou a cumprir novos papéis dentro da estrutura
social, agora marcada pelos novos processos de trabalho, inaugurados em vista da incipiente
revolução industrial. Nesse novo cenário, o papel de provedor do homem foi associado
novamente às atividades externas ao lar, e à mulher foi reservado preponderantemente o papel
de cuidador, de dona da casa. Não tenho o interesse ou a pretensão de discutir os complexos
fatores que nortearam a definição desses papéis. Nesta dissertação limitar-
me
-ei a situar a
família a partir da sua consolidação como família nuclear que como visto em Ariès se
entre os Séculos XVII e XIX. É essa noção de família, com a sua nova conformação e os
seus novos papéis, que o Século XX ver
á surgir.
Com a intensificação dos processos produtivos, inaugurados a partir da Revolução
Industrial, o homem voltou ao mundo, ao mercado de trabalho. Por outro lado, começa a
ocorrer a incorporação da mão de obra feminina ao processo produtivo como força ativa de
trabalho. Os fatores determinantes da entrada da mulher no mercado de trabalho são
72
complexos e variados. O incremento do parque industrial nas grandes cidades, a ocorrência de
duas grandes guerras, que mobilizaram militarmente um grande contingente masculino, ou
mesmo a assunção de uma nova postura da mulher frente ao mundo podem ser mencionados
como alguns desses fatores. De qualquer modo, o pai num primeiro momento e em
seguida a mãe, mesmo que de forma ainda modesta, intensificam um movimento de retorno
ao mundo do trabalho, externo ao lar.
Com o advento da revolução da informática a terceira onda de Toffler e o
incremento dos postos de trabalho ligados ao setor de serviços, radicalizou-se a presença da
mulher no mercado. Segundo Sennett (2005), de 1960 a 1990 dobrou a participação das
mulheres na força de trabalho assalariada nos EE.UU. Enquanto “nas economias
desenvolvidas do mundo em 1990, quase 50% da força de trabalho profissional liberal e
técnica já era de mulheres, a maioria empregada em tempo integral” (2005: 66). A
incorporação maciça da mulher como força de trabalho, dentre outros fatores, produziu
significativas alterações na dinâmica familiar, notadamente no tocante aos cuidados com os
filhos. Desde o retorno das crianças aos lares, não se havia visto alteração tão profunda do
ethos
familiar.
A família nuclear, entronizada no papel de
porto
-
seguro
,
refúgio das escaramuças do
dia
-a-
dia
(Baumann, 1997) teve as suas bases abaladas até a quase total desestruturação.
Assim, a noçã
o de família
— que se imbrica com a noção de infância —
foi redefinida. Nessa
redefinição não lugar para a mulher-mãe e muito menos para a criança. A criança precisa,
então, deixar o lar e voltar ao mundo, às instituições creches, escolas de tempo int
egral,
atividades extra-escolares e outras ocupações do ‘tempo ocioso da criança’ —. A família
deixa novamente de ser o lugar preferencial e privilegiado dos cuidados infantis E não se pode
pressupor que estaríamos apenas fazendo o caminho de volta, ao devolvermos a criança ao
mundo de onde ela
afinal
veio, pois as condições agora são outras.
Quando no Século XV o processo educativo das crianças entendido como
preparação para a vida em totalidade era deixado sob a responsabilidade do coletivo
comun
itário se tinha a garantia de um lugar para essa criança dentro desse coletivo, o qual, de
73
alguma forma, se sentia responsabilizado por ela. Nessa condição o coletivo comunitário dava
suporte ao processo de formação da criança, a qual, como vimos, não chegava a se constituir
em
propriedade
dos pais, e nem era deles a tarefa de prepará-las, em todos os sentidos, para a
vida. Os cuidados infantis eram coletivamente assumidos. O
ethos
social comportava essa
forma de relação entre o todo social e o mundo infantil, tanto insisto em termos do que
oferecia à criança em termos de cuidados como em termos do que cobrava dessa criança como
partícipe do todo coletivo.
Neste novo contexto, pós-Revolução Industrial e, sobretudo, na vigência da revolução
da informática, as tendências vigentes são de desagregação. Verifica-se o esfacelamento das
redes de segurança societariamente definidas, bem como a desconstrução dos
casulos
protetores,
que criavam uma condição de na coerência dos processos existenciais, como
advoga
Giddens (2002). Não temos mais as redes culturais fornecedoras das condições
homogêneas que davam sentido e significado a esse
estar no mundo
infantil.
A partir do pressuposto que o processo de conformação do sujeito social-
cultural,
assumido como a conformação do seu psiquismo, se faz pela interação de fatores inatos
genética e ontologicamente dados com fatores ambientais, importa questionar que
contribuição essas transformações vão fornecer no sentido de engendrar as
condições
estressoras
propícias ao desenvolvimento de personalidades mais suscetíveis aos
transtornos
mentais
. Com a finalidade de apresentar algumas possíveis respostas a esse questionamento
discute
-se, em seguida, o processo de formação do aparelho psíquico à luz das teorias
freudiana
s e, particularmente, à luz das contribuições de Erik Erikson e Françoise Dolto.
CAPÍ TULO 3
A FORMAÇÃO DO
74
Capítulo 3
A FORMAÇÃO DO PSIQUISMO:
A MENTE HUMANA E SEUS MECANISMOS
INCONSCIENTES
O que a psicanálise revela (...) dos neuróticos, também
pode ser observado na vida de certas pessoas normais. A
impressão que dão é de serem perseguidas por um
destino maligno ou possuídas por algum poder
‘demoníaco’; a psicanálise, porém, sempre foi de opinião
de que seu destino é, na maior parte, arranjado po
r elas
próprias e determinado por influências infantis
primitivas.
Sigmund Freud
75
Várias possibilidades de abordagem teórica poderiam ser aventadas para intentar
compreender a criança quanto ao seu processo de desenvolvimento mental. Um dos caminh
os
contempla a compreensão da criança como uma totalidade corpo-mente, cuja construção
como sujeito se a partir da interação de fatores individuais genéticos e ontológicos
inatos
com fatores ambientais, adquiridos historicamente, os quais serão amalgamados e
conformarão aquilo que podemos chamar mente humana, que tomarei como semelhante a
psiquismo
ou
aparelho psíquico
.
Segundo Mark Solms ainda estamos longe de um consenso acerca da formação da
mente ou psiquismo humano, “mas um mero cada vez maior de neurocientistas está
chegando à mesma conclusão de Eric Kandel, da Universidade de Colúmbia e Nobel de
Medicina/Fisiologia de 2000: a psicanálise ‘ainda é a visão da mente mais intelectualmente
satisfatória e coerente’” (2004:7). Esta citação deixa claro que não se renega uma certa base
biológica da psicanálise embora o tema suscite controvérsias. Sendo essa uma das razões para
a adoção de Françoise Dolto e Erik Erikson como estofo teórico, posto que esses autores
também não renegam um certo biologismo
, como veremos adiante.
Esta dissertação não tem como intenção empreender uma análise em termos
psicanalíticos
de crianças e sua relação com a sociedade. Apenas busca, com base em
pressupostos psicanalíticos, respostas para inquietações acerca da fo
rmação da mente humana,
considerando, em consonância com Nasio
17
, que a psicanálise, enquanto forma de
compreender o funcionamento do aparelho psíquico ou mental, constitui “(...) uma imensa
resposta, uma resposta inacabada à pergunta: qual é a causa dos nossos atos? Como funciona
nossa vida psíquica?” (1995: 15). A utilização do termo
mente
como organização psíquica do
sujeito, certamente encontra respaldo em Freud e nos clássicos da psicanálise. Nasio, por
exemplo, a partir de uma releitura dos escritos de Freud, diz que a concepção freudiana da
vida mental, (...) pode formalizar-se num esquema lógico elementar.” (Nasio, 1995: 15).
Nessa perspectiva toma vida mental como semelhante a
psiquismo
. Uma associação entre
17
Juan
-
David Nasio é Professor da Universidade de Sorbone e dirige os
Séminaires Psychanalytiques de Paris
.
É autor de várias obras e um divulgador mundial do conhecimento psicanalítico.
76
psicanálise e mente se faz possível no momento em que tomamos mente em sentido amplo,
como vida psíquica ou essência de estar vivo (Batistella, 2004) ou como dinâmica de auto-
organização
(Capra, 1982).
Os pressupostos básicos da teoria psicanalítica, em geral aceitos por todas as correntes
psican
alistas, foram estabelecidos por Sigmund Freud no início do Século XX. Mais ou
menos na mesma época em que psicólogos experimentais procuravam compreender a
formação da mente humana a partir do entendimento dos processos cognitivos. Acreditavam
que, partindo das experiências com animais, acabariam demonstrando que, tal como se
houvera chegado à unidade orgânica básica a célula também assim se chegaria a uma
eventual
unidade mental básica, e dessa forma acreditavam poder compreender, in totum, os
chamado
s
processos psicológicos superiores tais como raciocínio, cognição, pensamentos,
emoções. O intento nunca foi logrado. Uma tal unidade mental básica — a partir da qual toda
a estrutura psíquica se organizasse ainda não pôde ser identificada, e os
process
os
psicológicos superiores
jamais puderam ser derivados da mera complexificação dos processos
simples
como os reflexos sensitivos motores revelados a partir da experiência com
animais (Vygotsky, 1991).
Os estudos de Freud médico e especialista em neu
rologia
também intentavam
buscar a compreensão do funcionamento da mente humana, porém seguindo percurso inverso.
Ao invés de focar os processos cognitivos, revelados a partir de observações conscientes,
buscou a compreensão dos processos mentais a partir da influência de fatores inconscientes.
Em um trabalho publicado em 1895, Projeto para uma psicologia científica, lançou os
pressupostos do que viria a se constituir nos fundamentos da teoria psicanalítica. Nesse texto,
adota um esquema consagrado pela neurofisiologia do século XIX para explicar a
circulação do impulso nervoso: o esquema do arco reflexo, que consiste, grosso modo, em
aceitar que um estímulo recebido do meio provoca um desequilíbrio energético de cargas
elétricas, em forma de potencia
l de ação
que leva a uma tensão. Essa tensão se desloca pela
fibra nervosa como corrente elétrica e provoca resposta numa extremidade efetora (um
músculo ou uma glândula, por exemplo) que, através de uma resposta específica, como
77
contração muscular ou segregação glandular, alivia a tensão provocada pela estimulação. Esta
resposta, manifesta como uma ação, representa uma descarga energética. Nesse sentido, no
arco reflexo ordinário, a tensão geradora do estímulo teria origem externa ao sistema e
levaria, em última instância, a uma alteração que poderia se exercer também externamente ao
sistema, reconduzindo ao equilíbrio energético do circuito.
O psiquismo humano pareceu a Freud regido, em linhas gerais, por principio
semelhante. Mas com duas grandes diferenças: a primeira, é que “Na vida psíquica (...) a
tensão nunca se esgota. Estamos, enquanto vivemos, em constante tensão psíquica. Esse
princípio de redução da tensão deve ser considerado como tendência e nunca como realização
efetiva” (Nasio, 1995: 17). E assim o é porque a estimulação, em se tratando do aparelho
psíquico, não está
fora
dele, mas dentro. Mesmo que a estimulação desencadeadora do
estímulo seja externa não é essa estimulação que ‘impressiona’ o psiquismo. Para que o
estímulo externo atinja a psique, segundo Freud, é necessário que se gere internamente uma
marca psíquica,
um
representante ideativo da estimulação, esta sim responsável pela
excitação do aparelho psíquico.
A outra diferença é que esse representante ideativo da estimulação, uma v
ez
carregado, tem a propriedade de continuar existindo mesmo na ausência de novas
estimulações externas. Ou seja, reproduz-se endogenamente, a ponto de não ser possível
distinguir, ou mesmo interessar saber, se a imagem endógena ou representante ideativo da
estimulação tem respaldo no mundo exterior ou é uma criação ou recriação endógena.
“Tornando assim as tentativas de reabsorver a excitação e eliminar a tensão fadadas ao
fracasso” (Id. Ib: 18).
À tensão acumulada Freud se referiu como
desprazer,
que
o aparelho psíquico tenta
em vão abolir. A hipotética eliminação dessa tensão traria o
prazer,
jamais conseguido de
forma completa, porém incessantemente buscado. O equilíbrio consiste nessa busca e não na
sua consecução. Conviver com essa tensão é desprazeroso na medida em que isso se opõe ao
prazer total, mas buscar o prazer parcial, incessantemente, não é outra coisa “senão a chama
vital de nossa atividade mental” (Nasio, 1995: 18). Para Freud, portanto, o elan vital, a fonte
78
da vida denominada por ele de libido seria a responsável por essa busca de
distensionamento do aparelho psíquico manifesta no princípio do prazer, que não deve ser
confundido com satisfação, pois como veremos adiante, Freud atualizou a sua concepção
defendendo que o
prazer psíqu
ico
por vezes pode
-
se manifestar como sofrimento do corpo.
Essa primeira aproximação das noções elementares da teoria psicanalítica, tal como
pensadas por Freud, se completa para os interesses imediatos desta dissertação com a
noção básica de
inconscie
nte
, que pressupõe o entendimento do mecanismo do recalcamento.
Os estímulos geradores de prazer seriam, em sua maioria, impedidos de se manifestar, ou seja,
seriam recalcados. Nessa primeira e elementar perspectiva o inconsciente freudiano seria
constituí
do do conjunto das imagens reapresentações ideativas que não lograram
manifestação no mundo externo. Para explicar esse mecanismo Freud criou a noção de
eu
ideal
, entendido como imagens externas à criança representadas sobretudo pela mãe ou
seus representantes parciais, como o peito, leite, fezes, voz etc que funcionariam para ela
como objetivos a serem atingidos, mas nunca alcançados porque a fantasia da criança não tem
correspondente exato no mundo real. Nessa perspectiva o recalcado seria formado não apenas
daquilo que foi impedido — por injunções externas de se manifestar, mas também daquilo
que não pôde se manifestar pela impossibilidade natural de se encontrar no mundo real algo
que se equipare à imagem ideativa formada.
Segundo Freud, então, o impulso ao prazer consiste numa busca de comparação dos
objetos que se encontram no mundo real com aquelas imagens que constituem a noção
inconsciente de prazer. Como nenhum objeto se encaixa nesta imagem, pois ela não é real,
mas produto de uma fantasia, a criança o ser humano por extensão vê-se lançado no
circuito infinito do desejo.
É importante mencionar que uma explicação sobre a teoria do desejo como essa que
expus pode ser contestada, pois o próprio Freud não foi muito preciso nas suas formu
lações
quando se referia aos bebês. Em vista disso, alguns autores intentaram completar a obra do
mestre, dentre os quais Erik Erikson e Françoise Dolto, como veremos oportunamente. Por
outro lado, estou omitindo de forma intencional algumas particularidades da teoria freudiana
79
por entender que essas particularidades dispensáveis à compreensão do conjunto são
desnecessárias ao entendimento que quero dar e a linha de raciocínio que quero seguir.
Essa primeira visão do inconsciente freudiano foi incrementada pelo próprio Freud a
partir de 1920-1923, com a introdução do conceito de
Es
, cuja tradução foi feita para o termo
em latim
Id
, forma mantida em muitas traduções das obras de Freud, embora alguns tenham
ultimamente adotado a forma aportuguesada
Isso,
ou a dupla menção
Id/Isso
, como podemos
ver em Laplanche e Pontalis (2001). O termo faz alusão às expressões corriqueiras,
associando
-se a fatos que estão além da compreensão:
Isso
é maior do que eu’;
Isso
me
domina’,
Isso
está me levando à loucura’. O I
sso
aqui aludido é essa força inconsciente que
nos move e nos funda como sujeitos desejantes.
O Isso/Id desta segunda abordagem se diferencia do
inconsciente
como definido
anteriormente porque o autor percebeu que a instância recalcante, o Eu/Ego e suas op
erações
defensivas quase sempre são igualmente inconscientes e se incorporam ao psiquismo do
sujeito a partir da sua interação com o meio. Assim o Isso/Id compreenderia tudo aquilo que
foi definido antes, ou seja, o conjunto das imagens ideativas recalcadas/não manifestas em
vista dos mecanismos inconscientes de recalcamento ou pela impossibilidade material de
realização produzidos, sobretudo, na infância, mais aqueles recalcamentos promovidos
também inconscientemente pelo Eu/Ego ao longo da vida. Essa nova noção do inconsciente o
torna continuamente dinâmico, posto que em qualquer momento da vida o sujeito está
desejando
coisas
que não podem ou não devem a partir de uma filtragem inconsciente
promovida pelo Ego — se manifestar. Nessa perspectiva, o
Isso/
Id
é um inconsciente
ampliado, “o grande reservatório da libido e, mais geralmente, da energia pulsional.”
(Laplanche e Pontalis, 2001: 220).
Assim, em termos gerais, o inconsciente freudiano é o depositário da libido que,
formado a partir do recalcamento inconsciente dos impulsos não manifestos, bem como dos
mecanismos de defesa do Eu/Ego, mantém a chama da vida e constitui a base do psiquismo,
ou, conforme Nasio, “a essência mesma do psiquismo, o psiquismo em si. (...). O inconsciente
é o psíquico em si e sua realidade essencial”. (1995: 26.). Nesse sentido, as manifestações
80
conscientes, aquelas das quais tomamos conhecimento e sobre as quais temos algum controle,
são manifestações marginais dos processos psíquicos inconscientes. Um epifenômeno, do
qual a
s forças inconscientes são o fator determinante.
Mas que relação poderíamos estabelecer entre a noção de inconsciente segundo Freud
e a mente ou psiquismo infantil? Ou ainda: que relação poderíamos estabelecer entre a
formação da mente ou psiquismo infant
il e os
transtornos mentais e comportamentais
?
Para responder a essas indagações que entender o processo de formação da
mente
humana
, que se faz em consonância com o processo de formação do ser humano como um
todo. Por isso a expressão mente como a essência de estar vivo, tomada de Batistella (2004)
assume grande relevância; nessa perspectiva, mente e corpo deixam de ser realidades
distintas. Perde o sentido falar de um corpo como algo apartado da mente; mente e corpo
conformam
-se como realidade una. Assim, a busca de uma compreensão acerca da mente
humana associa
-
se à busca da compreensão do
ser humano
como um todo.
Ou seja, que forças, que fatores guiam a criança da sua condição de completa
dependência em relação aos provedores até a situação de independência e autonomia, mesmo
relativas? Como se esse processo de desenvolvimento em sua relação com a cultura, com
os padrões socialmente definidos e aceitos como normais? Como neutralizar os fatores
estressores, sempre presentes, a ponto de definir uma personalidade estável e, por conseguinte
menos suscetível aos transtornos mentais? São perguntas que estimulam o gênio humano
desde épocas imemoriais. Respostas poderão ser buscadas com base em vários referenciais
teóricos, inclusive nos referenciais freudianos, cujos elementos basilares da formação da
mente ou do psiquismo infantil são de natureza inconsciente.
Este percurso que leva da imaturidade total do recém-nascido até sua relativa
independência e autonomia em relação aos provedores, o constitui apenas uma adequação
ou acomodação. Trata-se antes de um processo maturacional que associa dinamicamente
fatores inatamente dados com estímulos do meio, que em conjunto vão conferir estabilidade
ao sujeito na sua relação consigo mesmo e com o outro social, com quem necessita
81
estabelecer compromissos de confiança na coerência da vida cotidiana. Nesse ponto reflete
Giddens:
Até que ponto diferentes situações culturais permitem que se alcance
uma ‘fé’ na coerência da vida cotidiana pela provisão de interpre
tações
simbólicas das questões existenciais é (...) muito importante. Mas
quadros cognitivos (...) não geram essa fé sem um nível correspondente
de comprometimento emocional subjacente cujas origens, devo
ressaltar, são inconscientes. Confiança, esperanç
a
e
coragem
são
relevantes para esse comprometimento.
Como essa é alcançada em termos de desenvolvimento psicológico
do homem? O que cria um sentido de segurança ontológica que
transportará o indivíduo pelas transições, crises e circunstâncias de
alto
risco?
A confiança no fundeamento existencial da realidade num
sentido emocional, e de certa forma também no cognitivo, se funda na
crença na confiabilidade das pessoas, adquiridas nas primeiras
experiências da criança
(grifos meus; 2002: 41).
Giddens associa a fé’ na coerência da vida cotidiana às noções de
confiança,
esperança e coragem, sentimentos responsáveis pela auto-percepção de coesão do ser ou
segurança ontológica, que “transporta o indivíduo pelas transições, crises e circunstâncias de
alto risco”. A noção de segurança ontológica — que este autor vincula à confiança no
fundeamento existencial é adquirida nas primeiras experiências da criança de forma
inconsciente e ecoa com a noção de
coragem de ser
, de Paul Tillich.
Para Tillich “A coragem de ser é o ato ético no qual o homem afirma seu próprio
ser
a
despeito daqueles elementos de sua existência que entram em conflito com sua auto-
afirmação essencial.” (2001: 30). Nesse sentido, podemos compreender a coragem de ser
como os atributos psíquicos que tornam o indivíduo identificado por si mesmo e na sua
relação com os outros. É, enfim, o que permite a cada um ser e querer ser ele mesmo,
abdicando de outras condições por mais privilegiadas que sejam, inclusive resistindo aos
fatores que atentem contra a sua estabilidade emocional. Vale ressaltar que o entendimento
de coragem, como aqui é utilizada, não guarda relação direta com a noção de bravura. No
sentido que aqui queremos dar, e ainda segundo Tillich, “coragem é uma realidade ética, mas
se enraíza em toda a extensão da existência humana e basicamente na estrutura do próprio
ser” (Id. Ib: 1).
82
A questão que se coloca é, então, como esses atributos são conformados no psiquismo,
na mente da criança? Como se daria esse processo? Que momentos na vida seriam
determinantes? Que fatores poderiam se interpor à sua adequada conformação?
A fragilidade do bebê humano chama a atenção quando comparada aos outros
mamíferos. Os naturais instintos de sobrevivência, normalmente estão presentes nos seres
vivos,
não dão conta da sobrevivência do bebê humano nos primeiros momentos da vida. Um
documentário, intitulado
África
selvagem
(1993) mostra o parto de uma girafa, ocorrido em
plena marcha, na savana africana. O filhote é expelido e em seguida estimulado pela m
ãe,
com cabeçadas, para que se levante e siga com os outros animais da manada. Embaraçado e
claudicante, o filhote põe-se de pé e, entre uma queda e outra, incorpora-se ao grupo.
Impressiona a rapidez com que o recém-nascido assume uma posição de relativa
independência.
Esse tipo de amadurecimento precoce verifica-se em quase todo o reino animal, com
maior ou menor rapidez, mas nada comparado com o lento processo de amadurecimento
humano. O recém
-nascido humano nasce desprovido da coordenação motora e força muscular
que lhe permitam, por seus próprios meios, buscar o seio materno ou outra fonte qualquer de
alimento. Abandonado à sua própria sorte, seu destino seria muito provavelmente a morte.
A necessária assistência ao bebê estaria na base do seu desenvolvimento social? É
possível que a fragilidade neuro-motora do recém-nascido seja parte do processo geral de
socialização engendrado ao longo do nosso processo evolutivo e consolidado pelas culturas
nas quais nascemos e nos desenvolvemos. Nessa perspectiva, a dependência física em relação
ao outro-cuidador seria a expressão da dependência que também teríamos do outro como
partícipe do processo de formação do aparelho mental e da vida como um todo.
Mas esse processo interativo, verificado entre a criança e o meio, não se inicia apenas
após o nascimento. No meu exercício profissional, tendo acompanhado várias gravidezes e
partos, permito-me deduzir que uma criança
nasce,
enquanto
ser
óntico e social, antes do
parto. Quando uma mulher engravida, o entorno engravida com ela. A postura da
comunidade, os comentários que se fazem acerca da gravidez, denunciam este fato. Se for
83
uma moça jovem, dir-
se
-á, por exemplo, que é uma criança tendo outra; se for uma mulher de
maior idade, que é muito tarde para engravidar. Se for uma primípara, se comentarão sobre as
dores ou as delícias da gravidez; se uma mãe de muitos filhos, que mais um não fará
diferença. Se o filho é desejado, haverá festas; em caso contrário, dir-
se
-ão palavras
encorajadoras ou se fará um silêncio eloqüente. Haverá cobranças, avisos e conselhos acerca
de comidas e/ou atitudes recomendáveis ou não; ‘simpatias’ para se antever o sexo da criança,
mesmo com a revelação supostamente inequívoca da ultrassonografia; certeza, porém, que
não diz do desejo maior da mãe: fazer-se a si e ao seu concepto centro das atenções. O que
algumas vezes pressupõe falar do feto, em todos os sentidos. Afinal, quem não sabe ‘que
barriga pontuda é menino e barriga plana, menina’?
Em qualquer situação e de alguma maneira, a comunidade encontra formas de
participar da gravidez, de envolver-se com ela. Ocorre um processo de captura da gestação
pelo meio social-cultural. Isso resiste mesmo à medicalização da gravidez, o que por sua vez
não deixa de ser também uma apropriação do processo gestacional por parte da cultura, ou de
uma sub-
cultura
no caso a cultura medico-
tecnicista
. Ou seja, mesmo lançando mão
dos recursos disponibilizados pela ciência médica, uma gestação continua envolta numa aura
de mistério. É algo encantador presenciar uma mãe ouvindo pela primeira vez o bater do
coração
de seu filho, mesmo que eventualmente ela tenha
visto
isso acontecer através de
ultrassonografias. Acredito que o enlevo provocado pela audição do batimento cardíaco deve-
se ao fato de que no imaginário de todos nós coração é algo que bate. Por isso mesmo
importa mais que se ouça bater do que se veja bater. O mesmo encantamento pode tomar
conta de outras pessoas da família presentes à consulta. Não se pode negar também o
desespero por vezes gerado diante da constatação de uma gravidez indesejada, o que reafirma
o dito acerca da condição de existência do novo ser mesmo antes do seu nascimento físico.
A mãe, por sua vez, passará por um processo que a transformará em todos os sentidos.
Arredondar
á as suas formas, modificará a sua composição hormonal, sua pele, seu
metabolismo, seu humor e sua relação com as outras pessoas. A protuberância física que se
projeta para o mundo manifesta, no plano material, o anúncio que o novo ser faz da sua
84
existênc
ia. Uma gravidez constitui, nessa perspectiva, um fenômeno orgânico, psicológico,
comunitário, social e, fundamentalmente, cultural.
Por outro lado, o avanço verificado nos métodos diagnósticos por imagem permite-
nos
literalmente ver e conviver com a criança no interior do útero e flagrá-la em gestos bem
sugestivos de um processo relacional em curso: dorme, chupa o dedo e reage a estímulos
variados. Altera a sua composição hormonal em vista da composição hormonal da mãe ou, ao
contrário, induz alterações hormonais na mãe a partir da sua. atualmente entre os
tocoginecologistas a convicção de que são essas transformações hormonais sofridas pelo feto
(por exemplo: aumento da adrenalina fetal) que induzem o trabalho de parto, pelo aumento da
ocitocina mater
na.
Em meu local de trabalho, que funciona como campo de estágio para estudantes da
área de saúde, procuro mostrar, durante as consultas de pré-natal, que a criança em gestação,
sobretudo aquelas que têm algum tempo de ‘relação’ comigo, move-se dentro da barriga da
mãe em ‘busca’ do contato com a minha mão ou com a mão dos pais. Procuro ‘conversar’
com elas e estimulo pais, irmãos e outros parentes a fazerem o mesmo. Estou convencido de
que esse procedimento é percebido pela criança no útero, impressão que os familiares
parecem confirmar, posto que, com relativa freqüência, dizem que ‘ele/ela fica agitado/a
quando vem à consulta’. Por outro lado, ouço rotineiramente mães dizerem que ‘a criança na
barriga sente quando o pai chega em casa’. Não discuto se a
criança
sente quando vem à
consulta
ou
a presença do pai ou se sente a sensação que a mãe lhe transmite. Parece apenas
que ela sente algo, de algum modo proveniente do meio.
Para Erikson e Dolto, o processo relacional consubstanciado em cuidados, troca
s,
desejos, afetos, rejeição, tristeza, desespero e abandono inicia-se antes do nascimento.
Como veremos a seguir, esses dois autores conferem importância decisiva aos processos
relacionais intra-uterinos, no tocante à vida psíquica da criança, que começa, assim, a se
consolidar como
ser
antes mesmo do nascimento físico. Propugno e procurarei demonstrar,
com base nos estudos de Dolto e Erikson, que o processo de formação orgânica do novo
ser
85
-se em sintonia com seu processo mental. Ou, como tenho defendido, a conformação do ser
humano é um processo
corpo-
mente
imbricado e interdependente.
86
Capítulo 4
ERIK ERIKSON
E O CONCEITO DE
CONFIANÇA BÁSICA
Os historiadores e os filósofos reconhecem a existência (...) de um
princípio
feminino
, mas não a realidade de que os homens são gerados e
criados por mulheres. Discutem princípios de educação formal, mas
negligenciam o irrevogável despertar da consciência individual. Insistem
permanentemente em uma miragem de progresso promissora
de que a
lógica masculina conduzirá à razão, à ordem e à paz, embora cada passo na
direção dessa miragem (...) levam à guerra e a coisas piores.
Erik Erikson
87
4.1 ERIK ERIKSON: o homem e sua obra
Erik Homberger Erikson nasceu em 1902, na cidade de Frankfurt, Alemanha. Filho de
uma alemã de origem judaica e de um pai de quem se sabe apenas que era alemão e que
abandonou a esposa logo após o nascimento do filho. O pequeno Erik viveu apenas com a
mãe, Karla Abrahamsen, até a idade de três anos, quando esta se casou com Theodor
Homberger, o pediatra do garoto. Foi registrado com o nome do pai adotivo, mas adotou o
sobrenome Erikson (filho de Erik), ao obter a cidadania americana. Não se sabe se uma
homenagem ao seu pai
cujo nome não é conhecido
ou uma
auto
-
homenagem.
Erikson era um típico judeu-alemão, não apenas pela sua filiação, mas porque fora
criado numa comunidade judaica, porém ostentava traços fisionômicos tipicamente alemães.
Na escola, padecia de um duplo preconceito: entre os garotos alemãe
s era tratado como judeu,
em vista da sua filiação; entre os judeus era tratado como alemão em vista do seu aspecto
físico. Essa situação lhe causava profundo incômodo e poderia estar na raiz da sua decisão de
abandonar a pequena cidade de Karlsruhe, no sul da Alemanha, onde vivia com a família,
para uma viagem de reconhecimento por vários países da Europa, após a conclusão do
segundo grau.
Optou pela carreira artística, envolvendo-se com teatro e magistério. Como professor
tornou
-se especialista no método Montessori de ensino. Tinha especial apreço por museus,
gosto provavelmente motivado pelo seu interesse em ver o processo vital humano como um
ciclo interdependente, o que acabaria por definir a linha de investigação que seguirá por toda
a vida. Aos 25 anos de idade, juntou-se ao grupo de Sigmund Freud, em Viena que na
época era constituído de analistas e simpatizantes da psicanálise — pouco tempo após a
publicação de O Ego e o Id e Inibição, Sintoma e Angústia, obras de Freud que viriam a ter
grande influência sobre o seu trabalho. A aproximação fora promovida por um amigo, Peter
Blos
artista como Erikson e posteriormente psicanalista que o convidara para dar aulas
de teatro em uma escola experimental dirigida por Dorothy Burlinghan e Anna Freud. O
88
contato com Freud e os primeiros psicanalistas despertou o seu interesse para a nascente
ciência. Foi amigo e admirador de Anna Freud, com quem faria a sua
análise didática
18
.
Em 1933, com a ascensão de Hitler ao poder na Alemanha, mudou-
se para os EE.UU.,
o que também aconteceu com outros membros do núcleo psicanalista inicial. Em solo
americano tornou-se um dos mais conceituados terapeutas de seu tempo. Também travou
conhecimento com vários antropólogos famosos como Ruth Benedict, Margaret Mead,
Gregory Ba
teson.
“ Creo que no seria exagerado decir que estos autores tuvieron tanta
influencia em Erik, como la tuvo Sigmund sobre Anna Freud” (Boeree, 2002: 4). Erikson Foi
Professor da Universidade de Harvard, da Universidade de Yale e em seguida da
Universidade
de Berkeley, onde empreendeu os estudos que culminaram com as teorias que o
tornariam famoso em todo o mundo. A propósito da contribuição de Erikson para a teoria do
desenvolvimento humano, assim se refere George Boeree: “Me resulta difícil pensar em outr
a
persona, a no ser Jean Piaget, que haya desarrollado más um acercamiento a los estádios del
desarrollo que Erik Erikson (2002: 3).
Erikson foi um dos mais proeminentes representantes de um ramo da psicanálise
conhecido como Psicologia do Ego, hegemônica nos EE.UU por muitos anos. As origens da
psicologia do ego remontam aos trabalhos de Freud
O Ego e o Id,
de 1923
e Inibição, Sintoma
e Angústia, de 1926. E mais especificamente ao trabalho de Anna Freud O Ego e os
Mecanismos de Defesa, escrito em 1936 e que viria a desempenhar grande influência sobre a
visão de Erikson como psicanalista. Além de Anna, Heiz Hartmann
o precursor desse ramo
psicanalítico nos EE.UU
também influenciou fortemente a vida e a obra de Erikson.
A respeito da Psicologia do Ego e sua influência sobre a psicanálise americana,
menciono texto de Robert S. Wallerstein publicado em The Journal of the American
Psychoanalytic Association (JAPA)
:
A Psicologia do Ego floresceu na América no período pós 2ª Guerra
Mundial com Hartmann e seus muitos colaboradores, e por mais de duas
décadas manteve uma hegemonia monolítica na Psicanálise americana.
Dentro desses parâmetros, as concepções das psicoterapias psicanalíticas se
18
A análise a que se submete o pretendente ao exercício da profissão de psicanalista. Constitui a viga mestra da
formação. Segundo Freud somente pelo conhecimento do próprio inconsciente, obtido em análise, se poderia
chegar à prática da psicanálise, na condição de analista.
89
desenvolveram como modificações específicas da técnica psicanalítica
dirigidas às necessidades clínicas do espectro de pacientes não permeáveis
pela Psicanálise propriamente dita. (JAPA, 2002).
É importante ressaltar que nem todas as correntes psicanalíticas reconhecem a
Psicologia do Ego como ramo da psicanálise, o que é assumido por Wallerstein quando
menciona “os pacientes não permeáveis pela psicanálise propriamente dita” (grifo meu).
Ainda assim, seja pelo pragmatismo americano, que tende a buscar respostas mais imediatas,
nem sempre possíveis através de um processo psicanalítico clássico, seja pela influência de
grandes autores como Hartman que a introduziu nos EE.UU —, Anna Freud e o próprio
Erikson, a Psicologia do Ego se afirmou como a psicanálise americana até o advento de
outras visões e de outros autores como Melanie Klein, Karen Horney e Donald Winnicott. A
partir da década de 1960, o ramo ligado à Psicologia do Ego sofreu alguma retração, mas
manteve
e mantém
— uma grande influência, tendo em Erikson um dos seus baluartes.
Erikson é autor de uma extensa obra bibliográfica, composta por artigos e livros,
alguns dos quais referencias no seu ramo. Foi um psicanalista com forte inclinação ao
cultural. Posso afirmar
com Boeree
— que Erikson “ (...) está bastante más orientado hacia
la sociedade y la cultura que cualquier outro freudiano, tal y como cabia esperar de uma
persona com sus intereses antropológicos.” (2002: 4). Pesquisador criterioso, observador
atento, clínico por excelência, buscou na experiência do consultório o material do seu pensar
teórico. Convidado a acompanhar o representante do Departamento de Assuntos Indígenas do
EE.UU. numa viagem que objetivava “descobrir a origem da trágica apatia com que as
crianças sioux aceitavam silenciosamente e depois refugavam também em silêncio muitos dos
valores que lhes ensinavam”. (Erikson, 1976a: 104), empreendeu um rigoroso estudo sobre o
modo de vida infantil dos índios sioux. O mesmo tipo de trabalho foi posteriormente
estendido aos índios yurok, o que lhe permitiu construir uma explicação acerca do
desenvolv
imento humano da infância à senectude, com base nos fatores ambientais e
culturais, em várias sociedades e, a partir disso, estabelecer os critérios teóricos que lhe
permitiram definir o ciclo de vida humano, para além das diferenças circunstancialmente
90
da
das, o que se constitui, talvez, em sua mais importante obra teórica. Erik Erikson morreu
em 1994, deixando inédita a sua última obra O Ciclo de Vida Completo, escrito em
colaboração com a sua esposa Joan M. Erikson.
4.2 O CICLO VITAL: epigênese e desenv
olvimento humano
Os estudos de Erikson sobre o desenvolvimento humano adotam o
princípio
epigenético
, segundo o qual o progresso de um estágio —
ou fase
do desenvolvimento está
relacionado ao sucesso ou fracasso dos estágios anteriores. O princípio epige
nético
remonta a
Aristóteles, que observou experimentalmente 20 ovos de galinha, abrindo-os sucessivamente,
do momento da postura à eclosão para ver se neles já havia pequenas partes em miniatura que
cresciam com o tempo “ou se o embrião tornava-se galinha em etapas sucessivas nas quais as
diferentes partes seriam diferenciadas uma após outra (a teoria da epigênese)” (Werner, 1997:
13). As observações do filósofo grego foram estendidas, por extrapolação, a qualquer
processo de desenvolvimento em que se supõe avançar-se de um estado de menor para um
estado de maior complexidade. Lembro que a teoria da
epigênese
não advoga o
amadurecimento de caracteres pré-
formados
visão assumida pela teoria da pré-
formação
atualmente desacreditada nos meios científicos; defende que o desenvolvimento de um
indivíduo dá-se em graus, em que cada etapa posterior se define e se conforma a partir da
etapa anterior. Assim, não pressupõe uma linha inexorável de desenvolvimento, mas uma
seqüência na qual, em termos gerais, pode-
se
assumir que os processos presentes se
relacionam com os pregressos e futuros de forma interdependente.
Erikson, ao utilizar
-
se do
princípio epigenético
como ocorre em geral com os que o
admitem
não postula uma posição de ‘tudo ou nada’; mas um
melhor
momento. Como
exemplo poderíamos tomar o desenvolvimento de um embrião. Na seqüência de
desenvolvimento fetal, cada órgão ou sistema tem o seu
momentum
adequado de
aparecimento e desenvolvimento acelerado. O órgão continua crescendo e se especializando
ao
longo de toda a gestação e até mesmo após esta como vimos com o sistema nervoso
humano
mas se não surge no momento mais oportuno, fica permanentemente
91
comprometido. “Se um órgão surge com êxito” — diz Erikson apoiado em Stockard
“pode
depois ficar aleijado ou atrofiado, mas sua natureza ou sua existência real não podem ser
destruídas pela interrupção do crescimento” (1976a: 58).
Seguindo, então, esse princípio, e com base em sua experiência clínica e nas suas viagens
de estudos, Erikson estabelece oito estágios do desenvolvimento humano A cada um deles
definido em relação a uma determinada fase ou idade associa um
conflito
ou
crise
psicossocial e um sentimento ou força psicossocial que deriva da solução adequada desse
conflito, como veremos a
seguir:
a)
Período de bebê: que se estende, em termos de idade cronológica, do nascimento até o
primeiro ano de vida. Neste estágio emerge a
esperança
como força ou virtude
psicossocial do conflito entre a
confiança básica
e a
desconfiança básica;
b)
Infância inicial ou primeira infância: compreende o segundo e o terceiro ano, no qual
emerge a
vontade
como força psicossocial derivada do conflito entre
autonomia
e
vergonha/dúvida
;
c)
Idade pré-escolar ou idade do brincar: varia do terceiro ao sexto ano de vida, faz
emergir o
propósito
como resultado do conflito entre
iniciativa
e
culpa;
d)
Idade escolar: dos sete aos 12 anos. Neste estágio emerge a
competência
como
resultado do conflito entre
diligência
(
indústria
no texto de 1976a)
e
inferioridade
;
e)
Adolescência: compreende o período dos 13 aos 19-20 anos. Na adolescência se
opõem a
identidade
e a confusão de identidade (
ou
de papéis segundo a edição de
1976a
)
, de cuja antítese emerge a
fidelidade
;
f)
Adulto jovem: período que se inicia por volta dos 20 anos e se estende até por volta
dos 30 anos. Os limites neste estágio não são tão precisos quanto nos estágios
anteriores, o que é verdade não somente pra o ciclo de vida de Erikson. De um modo
geral não precisão cronológica quanto ao que se denomina ‘adulto jovem’. Em
ter
mos de conflito psicossocial se confrontam
intimidade
e
isolamento
, donde emerge
como virtude ou força psicossocial o sentimento de amor
;
92
g)
Idade adulta ou adulta média: compreende o período que vai dos 30-40 aos 50-
60
anos, com limites ainda mais imprecisos, este estágio se caracteriza pelo confronto
entre
generatividade
e
estagnação
, do qual deriva, como síntese, a noção de
cuidado;
h)
Velhice: o último estágio
19
, acima dos 60 anos, o qual tem na
sabedoria
a força
psicossocial que emerge do conflito entre
integ
ridade
versus
desespero
.
(Erikson,1976a; 1976b; 1998; Boeree, 2005).
Não posso concluir a apresentação do
ciclo de vida
de Erikson sem um esclarecimento
prestado pelo próprio autor acerca de uma incompreensão rotineiramente presente quando se
menciona as características sintônicas as virtudes ou forças psicossociais e as
distônicas, antagônicas a estas:
Um dos principais usos incorretos do esquema aqui apresentado é uma
conotação dominante dada ao sentimento de confiança e a todos os outros
sentimentos
“positivos” a serem postulados, como
realizações
, adquiridas
de uma vez para sempre numa determinada fase. De fato, alguns autores
(...) omitem (...) todos os potenciais “negativos”, a desconfiança básica,
etc., que não permanecem como réplicas dinâmicas dos potenciais
positivos durante a vida inteira, mas são igualmente necessários à vida
psicossocial. Uma criança desprovida da capacidade de desconfiar seria tão
incapaz de viver quanto uma que confia.
O que uma criança adquire numa determinada fase é uma certa proporção
entre o positivo e o negativo, a qual, se o equilíbrio pender para o positivo,
ajudá
-
la
-á a enfrentar crises posteriores com uma predisposição para acudir
às fontes de vitalidade”. (1976b: 107).
Ao apresentar o ciclo de vida humano, compreendendo os oito estágios do
desenvolvimento psicossocial, tal como descritos por Erik Erikson originalmente em 1950, e
posteriormente revisto e aprofundado em publicações diversas, intentei mostrar de forma
sucinta a idéia básica do autor, que focalizo como um dos pontos importantes de meu estudo:
a inserção da criança num ciclo de vida cujo processo de desenvolvimento segue uma lógica
de dependência intergeracional e social-cultural, portanto ética. Mas o próprio Erikson
reconhece, numa publicação póstuma, de 1998, que três desses estágios m importância
crucial, pois encerram as bases nas quais o processo de desenvolvimento infantil irá assentar-
se: Em suas palavras:
19
Um nono estágio, denominado gero
transcendência
, foi formulado por Erik e sua esposa Joan Erikson.
Apresentado por esta após a morte do marido, o nono estágio como que ‘coroa’ o ciclo de vida que segundo Joan
termina mesmo com a morte.
93
(...)
esperança
,
fidelidade
,
cuidado (...) afirmamos, estão entre as forças
psicossoci
ais que emergem das lutas entre as tendências sintônicas e
distônicas em três estágios cruciais da vida: a esperança, a partir da
antítese entre
confiança básica vs desconfiança básica
, no período de bebê;
a fidelidade, a partir da identidade vs. confusão de identidade, na
adolescência, e o cuidado, a partir da generatividade vs. auto-
absorção
na
idade adulta. (1998: 51).
Quando apresentou o seu ciclo de vida, dentro do qual situou o conceito de
confiança
básica,
Erikson havia concluído os seus estudos com base em vários anos de trabalho clínico
na Europa, seja como psicanalista, seja como professor da Escola de Dorothy Burlinghan,
bem como nos EE.UU, onde associou as funções de Professor e terapeuta. Também relevante
foi a sua experiência junto aos índios
sioux e yurok.
Erikson buscou compreender o universo infantil a partir de uma compreensão dos
fatores subjetivos das crianças, mas em associação com o coletivo, com o meio e com a
cultura onde essas crianças se desenvolviam. Para Erikson a compreensão que se procurava
obter acerca dos processos mentais, sobretudo da relação saúde-doença esbarrava em alguns
obstáculos. Algumas perguntas continuavam sem resposta, pelo menos sem a resposta que
julgava coerente:
perguntas muito simples que são extremamente embaraçosas porque a
controvérsia que continuamente suscitam conduz apenas a um permanente
fracasso (...). Em psicopatologia, essas indagações se têm referido sempre à
localização e à causa de um distúrbio neurótico. Tem um começo visível?
Reside no corpo ou na mente, no indivíduo ou na sociedade a que ele
pertence?
(1976a: 19).
A discussão que o autor faz em seguida mostra o porquê da sua insatisfação com as
respostas até então apresentadas. Erikson achava que as ‘novas’ respostas dadas
contemplavam mais uma preocupação semântica com os vários fatores envolvidos na gênese
dos problemas
psico e somático, psico e pessoal e interpessoal
do que um entendimento
realmente novo. Percebia decepcionado, que as novas definições não pressupunham
entendimentos novos
, mas apenas velhos entendimentos apresentados sob novos conceitos:
(...) essas novas definições nada mais são do que modos diferentes de
combinar conceitos distintos, como psique e soma, indivíduo e grupo.
Agora dizemos “e” em vez de “ou”, mas conservamos pelo menos o
pressuposto semântico de que mente é uma coisa separada do corpo, e que
uma sociedade é uma “coisa” separada do indivíduo (Id. Ib.: 19
).
94
Ainda como reflexão acerca dessa compreensão do ser humano dividido entre corpo e
mente, indivíduo e so
ciedade
o autor pontua que a busca incessante dos homens por uma
enfermidade
que localize e justifique os seus problemas é que deu a medicina o status de
ciência e lhe conferiu prestigio. Ou seja, quando nomeia a medicina se apropria da realidade
que o nome encerra, mas concomitantemente limita a sua compreensão na medida em que a
separa do todo. Nesse sentido, a tentativa de compreender as neuroses — o transtorno
mental
da época
como enfermidades, ao invés de clarear o lugar ocupado pela neurose, tem lev
ado
a um encobrimento das enfermidades até então bem localizadas e estabelecidas. Assim é que
“as afecções do coração, do estômago, parecem adquirir nova configuração quando tomadas
em relação aos sintomas neuróticos, ou pelo menos a sintomas de uma perturbação central e
não de uma ocorrência periférica em partes afetadas isoladas” (1976a: 20). Erikson acaba por
concluir que a compreensão dos distúrbios neuróticos, inclusive nas suas inter-relações com
as enfermidades somáticas, somente se fará a partir da compreensão daquilo que chama
ansiedade humana, entendida como um processo engendrado pelas pessoas nas relações que
estabelecem entre si e delas com o meio e as condições em que vivem. Concluindo esse
raciocínio diz:
A esse respeito pouco (se) pode dizer que não exprima o todo — pois o
ser humano, em todas as épocas, desde o primeiro ponta-
in utero até o
último suspiro, está organizado em agrupamentos geográfica e
historicamente coerentes: família, classe, comunidade, nação. Assim, um
ser humano é em qualquer época um organismo, um ego e um membro de
uma sociedade, e está envolvido nos três processos de organização (...).
Parece imediatamente evidente que não ansiedade sem tensão somática;
mas também (...) que não há ansiedade individual que não reflita uma
preocupação latente em relação ao grupo imediato ou ao grupo maior (Id.
Ib. 20; 30).
Erikson faz ainda uma última consideração, antes de adentrar a discussão do processo
de formação do psiquismo infantil/humano, ao lembrar que não se trata de desconstruir duas
dicotomias
corpo/mente, indivíduo/sociedade para construir uma tricotomia’
corpo/mente/social, o que continuaria sendo uma clivagem; trata-se antes de entender os três
elementos “como três aspectos do mesmo processo, isto é, a vida humana” (1976a: 32).
Consistindo exatamente nessa abordagem interdependente o
preconceito
da abordagem
psicanalítica, segundo a sua opinião e visão. É interessante atentar para o termo ‘preconceito’,
95
utilizado pelo autor, que dessa forma reconhece que a sua visão, a visão obtida a partir do seu
método de estudo, é apenas mais uma, carregado dos mesmos vícios pertinentes a quaisquer
processos investigativos, tendo talvez como única virtude especial o reconhecimento
prévio dessa limitação.
Erikson inicia o seu estudo pontuando que a abordagem de crianças se diferencia
qualitativamente da abordagem adulta, pois “o que na criança ainda está livre para a expressão
múltipla e o aperfeiçoamento, no adulto se tem transformado em uma característica fixa” (Id.
Ib.:
53). Para Erikson, uma criança não é um adulto pequeno; tem as suas especificidades. O
autor presta homenagem ao gênio criativo de Freud como formulador da “primeira teoria
coerente que levou em consideração de modo sistemático as tragédias e as comédias que se
centralizam nos orifícios do corpo” (Erikson, 1976a: 53), segundo a qual, durante as
sucessivas etapas da infância algumas zonas do corpo, dotadas ora de orifícios, ora de
saliências, proporcionam satisfação especial, por serem dotadas de uma
energia
que procura
o prazer,
denominada
libido.
O termo, derivado do latim, tem originalmente o mesmo sentido
de
vontade
ou
desejo
e não foi criado por Freud, mas adquiriu com ele uma significação nova,
sobretudo por tê
-lo estendido à criança, consistindo nisso,
uma grande ousadia.
Freud “criou essa teoria abrindo caminho por entre a hipocrisia e a negligência
artificial de sua época” (Erikson,1976a.: 53). De fato, mostrava-se bastante ousado e corajoso
assumir em plena vigência de uma moral vitoriana que a criança nascia dotada de desejos, de
uma sexualidade, inicialmente associada à preservação da vida, mas que logo se dissociava da
noção de necessidade, convertendo-se em satisfação gratuita, sem vinculação obrigatória com
a idéia da sobrevivência. Residindo ni
sso
a gratuidade da sua satisfação, impulsionada
apenas pelo desejo o seu principal diferencial em relação aos demais seres vivos,
propugno.
Mas Freud assumiu esta ousadia e asseverou: “a sexualidade genital madura é o
produto final de um desenvolvimento sexual infantil” (Freud apud Erikson, 1976a: 53).
Erikson adota esse pressuposto e dele parte. Mesmo antes do nascimento, a partir mesmo do
seu primeiro pontapé in utero, a criança inicia um crescimento físico que se em íntima
96
relação com a mãe. Íntima, nesta acepção, diz respeito, inclusive, aos seus mecanismos de
formação e conformação de órgãos. Após o nascimento, o recém-nascido “em vez das trocas
químicas no ventre, passou a receber os cuidados maternos de acordo com o sistema de
educação de sua sociedade” (Id. Ib.: 59). O novo ser passa a desenvolver ao invés de novos
órgãos, novas habilidades, novas aquisições neuro-
ps
íquico
-motoras, como descrito por
Arnold Gesell — o pediatra e psicólogo que estabeleceu os critérios para avaliação do
desenvolvimento neuro
-
psíquico
-
motor de crianças (vide secção 2.3).
Esse processo de desenvolvimento insisto dá-se em duas vias. A sociedade, a
cultura, representada pelos cuidadores, sejam eles pais, babás, irmãos mais velhos, enfim
quaisquer elementos que o meio dispõe para o trabalho de preparação da criança para a vida,
têm papel determinante na forma como o desenvolvimento ocorrerá. Mas a criança também
influi sobre a vida dos adultos e, por extensão, da comunidade, do meio social. “Os bebês
controlam e educam suas famílias tanto quanto elas o controlam. (...) e qualquer que seja a
seqüência predeterminada relativa ao desenvolvimento, devem ser consideradas como uma
série de ‘potencialidades para padrões variáveis de regulação mútua’” (Erikson,1976a: 62).
4.3. MODOS PSICOSSEXUAIS E ZONAS
ERÓGENAS:
formas e lugares de manifestação da libido
Erik Erikson procurou, a partir da contribuição de Freud, estabelecer a sua própria
linha de raciocínio para compreender o que poderíamos chamar o percurso da pulsão
,
entendida como “processo dinâmico que consiste numa pressão ou força (carga energética,
fator de motricidade) que faz o organismo tender para um objetivo”. (Laphanche e Pontalis,
2001: 394). Lembro ao leitor que o conceito de pulsão em psicanálise, margem a muita
controvérsia, sobretudo quando tomado como sinônimo de
instinto
, confusão gerada em parte
pelas traduções de obras freudianas feitas diretamente do inglês, que não possui ou não
adotou
um termo específico para o termo alemão
Trieb/Pulsão
(no sentido de impelir).
Mas, ainda segundo Laplanche e Pontalis, Freud adota acepções distintas para os dois termos.
97
“Qu
ando Freud fala de
Instinkt,
qualifica um comportamento animal fixado por
hereditariedade, característico da espécie” (Id. Ib: 394)
.
O próprio Freud foi esculpindo o conceito de pulsão ao longo do tempo. em 1905,
nos
Tres ensaios sobre a teoria da sexu
alidade,
introduz o termo, sempre mantendo o caráter
dual do conceito. Inspirado, como o próprio Freud admitiu, num pensamento do filósofo
alemão Schiler, segundo o qual a fábrica do mundo era movida pela fome e pelo amor, o
criador da psicanálise defendeu a existência de duas manifestações pulsionais: as pulsões do
Eu
ou de
autoconservação
, responsáveis pelos impulsos de preservação da vida, e as pulsões
sexuais
, responsáveis pelo busca da satisfação A partir dessa idéia me parece legítimo
relacionar
Insti
nto
com pulsões de autoconservação e
Pulsões
com pulsões sexuais, mas o
Freud não fez essa associação, talvez por reservar o termo pulsão à energia humana,
diferentemente do animal que ostenta apenas o instinto. Em 1915, em um ensaio intitulado
Pulsões e destinos das pulsões, Freud reconheceu que o Eu também poderia ser
libidinizado
,
mudando assim o enfoque da dualidade pulsional: as pulsões do Eu também seriam sexuais,
no sentido de que não estariam apenas a serviço da preservação da vida. E a pulsão pass
a a ser
definida em termos de pulsões do Eu e pulsões objetais. Nesse texto, completa o leque de
componentes da pulsão que passa, assim, a ter quatro elementos: fonte, objeto, meta
presentes desde 1905
e
pressão
ou
força
, assumida então como o quarto
componente.
Em 1920 em Além do principio do prazer, Freud promove uma revisão do conceito e,
sem negar as definições anteriores, incorpora novas concepções ao apresentar a pulsão em
termos de pulsões vida próxima á sua primeira noção de pulsão sexual
e
pulsões de
morte
muitas vezes tomada como sinônimo de pulsões de destruição. Essa sua última
formulação nunca chegou a ser totalmente aceita pelos seus seguidores e mesmo Freud
reconhece que a noção de pulsão — como a energia ou força motriz da existência humana em
sentido mais profundo
necessita de contínua reavaliação. (Laplanche e Pontalis, 2001: 394
-
420). Em 1932, sete anos antes de sua morte e bastante combalido pelo câncer e pelo
crescimento do movimento nazista anti-semita, Freud publica um texto intitulado
Novas
98
conferências introdutórias sobre psicanálise, no qual eu encontro o que me parece ser a sua
visão definitiva sobre a pulsão:
É meu intento mostrar-lhes, hoje, também a área da teoria da libido ou
teoria dos instintos [pulsões], onde tem havido, igualmente numerosos
desenvolvimentos recentes. Não proclamarei que nela tenhamos feito
grandes avanços, (...). Não. Esta é uma região na qual estamos lutando com
afinco no sentido de encontrar nosso rumo e fazer descobertas.
A teoria dos instintos [pulsões] é, por assim dizer, a nossa mitologia. Os
instintos [pulsões] são entidades míticas, magníficas em sua
indeterminação. (Freud, 1996c: 97
-
98).
Trabalhando com um conceito tão amplo e tão complexo, não tenho como não cometer
imprecisões e, dessa forma, correr o natural risco de expor-me às críticas e objeções. Mas
preciso do conceito para dar sentido ao que venho tentando mostrar, por isso na presente
pesquisa ater-
me
-ei a um conceito de pulsão tal como apresentado acima, segundo Laplanche
e
Pontalis, e cuja gênese foi esboçada em linhas gerais no capítulo 3. Essa noção simplificada
de pulsão nos habilitará para compreender os ensinamentos de Erikson, nos limites deste
trabalho.
Como vimos no capítulo citado, a carga energética pulsional, definida a partir das
marcas psíquicas guardadas no inconsciente, geradas pelo recalcamento ou em vista dos
mecanismos defesa do Eu, tende a uma manifestação nunca totalmente realizada, mas em
constante busca de realização, advindo dessa busca a sensação de p
razer. No corpo o local por
onde a pulsão se
satisfaz
são as zonas erógenas, mas como essa satisfação nunca é plena, diz-
se que a pulsão bordeja, circula em torno das zonas erógenas, advindo desse bordejamento a
sensação de prazer parcial que sentimos. A pulsão, nesse sentido, se satisfaz no percurso e
não no atingimento da meta. E, importa ressaltar, a satisfação da pulsão se faz em relação ao
inconsciente e não necessariamente ao corpo. O prazer, nesse sentido, é prazer do aparelho
psíquico, cuja conformação e estruturação pode determinar “prazeres” em consonância ou em
dissonância com o corpo onde afinal se manifesta.
A forma como esse percurso é feito pode ser variada e a representação didática que se
pode fazer desse movimento é igualmente variado. Erik Erikson apresentou o seu modo
particular de conceber tal fato, o que foi feito baseado no que este autor chamou de
encontros
decisivos,
entendidos como situações estatisticamente significativas onde “(...) a seqüência
99
aproximada de etapas nas quais, de acordo com o conhecimento clínico comum, tanto a
excitabilidade nervosa, como a coordenação dos órgãos erógenos e a reatividade seletiva das
pessoas significativas no meio ambiente tendem a produzir encontros decisivos”
(Id. Ib.: 64
).
É importante ressaltar que para Erikson uma situação que definiria um
encontro
decisivo
pressupõe a existência desses três elementos: a excitabilidade nervosa, a
coordenação dos órgãos erógenos e a reatividade seletiva das pessoas significativas no meio
-
ambiente
. E como contra-exemplo menciona uma experiência realizada por Gesell em que
este autor observa uma criança colocada em frente a um espelho, cuja imagem produz na
mesma uma série de reações, dentre as quais uma ereção peniana, Erikson ressalta que esse
tipo de reação, embora significativa para a história pessoal da criança, não pode ser tomada
como experiência
normativa
em termos psíquicos
,
posto que “em uma situação dada, pode
ocorrer, pode não ocorrer” (1976a: 63). Somente a partir de um processo de análise, onde se
bus
caria entender o significado que esse gesto teve para o inconsciente da criança, é que se
poderia definir se o gesto foi ou não significativo em termos de estruturação do aparelho
psíquico. E nisso se levaria necessariamente em conta o gesto físico em si e
a significação que
o gesto teve diante de pessoas significativas para a criança.
Vemos que uma das condições colocadas por Erikson para que uma situação defina
um
encontrro decisivo é que o gesto precisa ser significado pelas pessoas, em particular pela
m
ãe
— se se tratar de crianças pequenas — para que adquira sentido. Ou seja, o encontro não
é um fato unicamente social, ou biológico. Tem elementos do social, do biológico, mas para
caracterizar
-se como
decisivo
precisa incluir um tipo particular de reativ
idade
das
pessoas
significativas
envolvidas na experiência. São esses encontros decisivos que servirão de base à
elaboração do esquema em que Erikson mostra as
zonas
e
modos
de manifestação da libido
infantil e, por conseguinte, dos determinantes do desenvolvimento psicossexual e
psicossocial da criança:
O primeiro desses encontros sucede quando o recém-nascido, agora
privado da sua simbiose com o corpo da mãe, é levado ao seio. Sua
capacidade congênita e mais ou menos coordenada de incorporar pela boca
encontra a capacidade mais ou menos coordenada e a intenção do seio, da
mãe e da sociedade de alimentá-lo e de o acolher com satisfação (1976a:
64).
100
Entendo que o que vemos aqui é o gesto fundador do ciclo do prazer-
desprazer.
A
criança faminta percebe a fome como
falta
. Ela não tem ainda a percepção clara de onde a
sensação de fome provém. Poderíamos, numa concessão imaginativa, supor que todas as
células da criança sentem fome, aqui assumida como falta de energia para o seu
funcionamento adequado. A vida no sentido físico, mas também ontológico porque não se
separam
— entra em declínio
.
Ainda como imagem é aceitável supor que as células do
sistema nervoso podem até captar essa necessidade de maneira precoce, porque se sabe que
nelas o metabolismo é mais intenso, pois “até os quatro anos de idade, o metabolismo do
cérebro pode representar até 50% do metabolismo do corpo” (Werner, 1997: 76), mas em
termos gerais a fome como
falta
provém do corpo em totalidade. Instado por esta condição a
criança vai ao peito e sacia-se. A sensação de saciedade novamente como imagem é
percebida pelas cavidades orais-
nasais
— num primeiro momento — porém transmitida como
sensação a todo o corpo. Novamente, mas em sentido inverso, posso supor que as células do
todo
-
corpo
se
satisfazem, devolvendo ao
corpo
-
ser
a sua sensação de plenitude.
A sensação de saciedade, percebida difusamente como sensação de
vida
-
voltando
, não
tem como ser transmitida de cada célula individual a um centro processador, supostamente
situado no cérebr
o. Até porque tal centro — mesmo suposto operante — é débil nas primeiras
horas de vida. O resultado possível disso é uma sensação fantasiosa
20
de
estar
-bem. Mas se o
cérebro não pode processar essas informações, quem ou o que produz a sensação de
saciedad
e, traduzida como sensação de
estar
-
bem
? Existiria alguma ‘memória’ celular,
distribuída por todo o corpo, capaz de processar isso tudo? Discutir em profundidade essa
questão está fora do meu objetivo imediato, mas ofereço como suposição que essa integraçã
o
é feita ao nível do aparelho psíquico da criança, este sim já habilitado, posto que o material do
que é formado —sensações, imagens, sonhos
21
está disponível já na vida intra
-
útero
.
20
“A fantasia [nesse sentido] está na mais estreita relação com o desejo; [pois] sabe-se que para Freud o desejo
tem a sua origem e o seu modelo na vivência da satisfação: O primeiro desejo (...) parece ter sido um
investimento alucinatório da recordação da satisfação” (Laplanche e Pontalis, 2001: 172).
21
Im
agens ultrassonográficas intra-útero mostram bebês sorrindo, chupando o dedo, aparentemente vivenciando
sensações. “Recentemente, descobriu
-
se que até os bebês no útero têm sono
R
EM
(movimento rápido dos olhos)
e sonham (..)” (WIKIPEDIA, 2005).
101
Quando novas situações engendram as condições caracterizadas por novas sensações
de
fome
-
falta,
novos impulsos levam à fonte do prazer. Porém, desta vez, ao invés de uma
falta,
difusamente distribuída
,
o psiquismo do pequeno ser busca
aquela
sensação que supôs
satisfeita na vez anterior. Mas
aquela
sensação é um representante ideativo, não existe como
realidade concreta. Assim, o que obtém como resposta à sua busca não é igual às suas
fantasias. Instala-se o
desejo
, como aquilo que se inaugura na lacuna, na hiância entre o que
de fato obteve e o que fantasiou. A criança como ser total, corpo-
mente
está, dessa forma,
lançada no circuito da vida, na condição de ser desejante, que o marcará durante toda a sua
existência. E até mesmo depois dela, pois a transcendência seja artística, intelectual ou
mesmo espiritual — constitui, no meu entendimento, expressão do desejo de continuar sendo
,
para além da morte, ou da vida se preferirmos.
Esse circuito envolve a fonte de satisfação
mãe
-
peito
-
leite
, que por sua vez es
inserida numa realidade culturalmente dada. Isso constitui o que julgo ser a base para o
segundo
encontro decisivo, expressão que vou utilizar em relação ao que Erikson denominou
primeiro encontro decisivo, visto acima. O segundo encontro é da mãe, como portadora da
realidade
mãe
-
peito
-
leite,
com a cultura. Para Erikson, as motivações da mãe, baseadas em
seu amor-doação, tem forte vinculação com a certeza de que possa ser igualmente amada pelo
seu meio, “do amor-próprio que acompanha o ato de amamentar e da resposta do recém-
nascido” (Erikson, 1976a: 64). Ou seja, enquanto a criança fantasia a
mãe
-
peito
-
leite
como a
fonte de sua vitalidade (no sentido daquilo que lhe a vida), a
mãe
-
ser
-
social
-
inserida
-
numa
-
cultura
de alguma forma também fantasia o seu gesto como promovedor e provido de
um sentido que não é, em si, real, mas sustentado na cultura na qual o conjunto
mãe
-
bebê
está
inserido.
A fantasia da mãe de que é uma provedora, de que é uma esposa
se o for
, de que
é amada, etc, é toda fundamentada numa ideação, conformada culturalmente e marcada no seu
inconsciente
como representação ideativa. O que pode ser colocado em cheque pelo simples
fato do bebê chorar muito ou nascer doente, por exemplo, o que expõe essa
mãe
-
ser
-
cultural
102
como faltante em relação à imagem que construiu de si mesmo como mãe. Um exemplo
corriqu
eiro que ilustra os mecanismos simbólicos psiquicamente influenciados, envolvendo a
díade mãe-bebê, é a hipogalactia verificada em situações de tensão, dores ou ansiedade por
parte da mãe. A simples falta de sucção dificulta a ‘descida do leite’ (lactogênese). Nesse
contexto aparecem o caldo de cana, a cerveja preta preferencialmente obtidos em locais
pouco acessíveis e em horas impróprias que se sabe ineficazes como estimuladores da
lactogênese (Murahovschi, 1994: 8-18), mas excelentes indicadores dos
cuidados
que essa
mãe possa estar demandando.
Quanto ao gesto da criança no sentido de buscar a sua satisfação os fatores
culturais têm, naturalmente um peso menor, quando se trata de uma avaliação tendo como
referencial a própria criança. Não desconheço a sua condição de ser cultural, e isso foi e será
ratificado ao longo de toda a discussão. Mas o bebê não sabe disso. Desse ponto de vista ele é
o que Freud denominou um perverso’, um ser centrado em si mesmo, cuja única razão de
existir
dele e dos o
utros
é a satisfação do seu prazer. Para o bebê, o mundo como
realidade externo não tem sentido, e sua única ‘tarefa’ de vida é buscar no “mundo” que
nesse momento inicial é a
mãe
-
peito
-
leite
a sua satisfação. Mas esse
mundo
-
mãe
-
peito
não
é percebido pela criança como apartado de si mesmo. Essa noção de separação não pode
existir, ainda, porque a criança não reconhece um não-Eu, externo a ela. Certamente não
reconhece também um Eu. Não qualquer possibilidade ou necessidade dessa natureza de
questio
namento para que a vida se faça ou não se faça. Apenas a fome lhe comunica,
difusamente, que a vida se esvai e por instinto nesse momento instinto de preservação
animal
busca o seio. Nessa busca utiliza zonas ou órgãos específicos do corpo dotadas de
uma energia especial que busca o prazer, a energia libidinal (Erikson, 1976a: 64). Dentre
esses órgãos ou zonas destaca-se, nesses primeiros momentos, a boca, que constitui “(...) o
foco de um primeiro e geral modo de aproximação, a saber, a
incorporação
(Erikson, 1976:
64), que se inicia na boca e depois se estende para outros focos de sensibilidade.
No percurso da pulsão energia libidinal a boca, como zona erógena ou de
prazer, será bordejada pela energia pulsional, mas não ‘preenchida’ por ela, ou s
eja, não terá a
103
satisfação completa, mas sempre parcial, o que irá promover a estimulação das
marcas
ideativas
no psiquismo da criança, nas próximas vezes em que as mesmas tensões exógenas
aparecerem. Porém, mais relevante que essa possível associação entre estimulações externas/
exógenas e as marcas psíquicas, é a possibilidade, freqüentemente verificada, de que o
psiquismo desencadeie uma estimulação a partir de suas próprias fontes internas ou fantasias.
Por essa razão, entre outras, freqüentemente assi
sto a mães angustiadas em vista de um
‘presumível leite fraco, que não alimenta o seu filho’. Interrogada sobre as razões que lhe
levam a essa conclusão, as mães — sobretudo as mais inexperientes — dizem que seus filhos
choram tão logo lhes seja retirado o
peito. Uma avaliação da curva estato
-
ponderal, ou mesmo
a constatação de plenitude gástrica mostram claramente que não se trata de fome. Pelo menos
não de fome de leite. O que a criança está demandando é a própria mãe, como ser portador
das condições que lhe dão garantia da sua integridade, que a criança sente a mãe como
parte de si mesma. Nesse sentido, a criança pede
mais
mãe
e não necessariamente mais leite.
Mãe
entendida aqui como aquela fantasia extremamente investida de conteúdo libidinal que,
emb
ora jamais alcançada plenamente, é buscada de forma incessante.
Nessa perspectiva fala-se de sexualidade, de prazer sexual que, no sentido
psicanalítico, não está a serviço da satisfação de uma necessidade orgânica, mas na busca da
satisfação de uma fantasia, por isso mesmo jamais obtido em plenitude. Por outro lado,
também não pode ser reduzida à idéia de genitalidade, no sentido do contato de órgãos
sexuais
stricto sensu. Em psicanálise
Chamamos sexual a toda conduta que, partindo de uma região erógena do
corpo (boca, ânus, olhos, voz, pele etc), e apoiando-se numa fantasia,
proporciona um certo tipo de prazer. (...) dito prazer sexual; distinto,
portanto, do prazer funcional, representado pelas necessidades orgânicas
(Nasio, 1995: 33
-
34).
Classicament
e a psicanalista divide didaticamente a sexualidade humana em duas
grandes fases: uma
pré
-
genital,
que vigora durante a infância e outra genital, após a
adolescência. O período correspondente à adolescência foi designado por Freud como fase de
latência
. Na infância, por sua vez, o desenvolvimento da sexualidade passa por três fases,
cada uma das quais caracterizada pela forte libidinização de uma zona ou órgão vital do
104
corpo, que lhes confere designação Desde Freud essas fases e as zonas em relação às quais
elas são nomeadas, são a fase oral,
fase anal e fase fálica. Cada uma dessas
zonas
-
fases
,
entretanto, pode ser entendida como abrangendo uma região mais ampla do corpo e se
envolve diretamente com alguma função do corpo com a qual guarda relação direta de
dependência recíproca
.
Com o intuito de contemplar a região toda mais a função somática
com que se relaciona, Erikson prefere falar de estágios ao invés de fases ou zonas.
Dessa forma, o autor designa a clássica fase oral por
estágio
oral
-respiratório e
s
ensório;
a fase anal é denominada
estágio
anal
-uretral e muscular, enquanto a fase fálica
passa a se chamar estágio infantil-genital e lo
comotor.
É importante mencionar que o
desenvolvimento desses
estágios
designados de estágios psicossexuais
faz
-
se
de forma
epigenética e mantêm relação com os estágios do desenvolvimento psicossocial, vistos
quando estudamos o ciclo de vida.
Posso, então, com base no que foi dito, proceder à interligação entre o
desenvolvimento psicossexual da criança, conformado a partir do percurso da energia
libidinal, referenciada aos estágios ou zonas erógenas, com o seu desenvolvimento
psicossocial, referenciado ao meio social em que vive, e muito particularmente, aos seus
cuidadores ou
provedores de atenção
, conforme expr
essão consagrada pela OMS.
Teríamos, assim, para os três primeiros estágios, a seguinte caracterização: Período de
bebê (primeiro ano), no qual se verifica o confronto entre confiança básica e
desconfiança
básica
, produzindo como característica sintônica a noção de
esperança
. Nesse período
domina o
estágio
oral
-respiratório sensório, tendo o modo incorporativo como modalidade
psicossexual dominante. No período da primeira infância ou infância inicial, confrontam-
se
autonomia
e
vergonha/dúvida
, tendo como resultado sintônico a
vontade
. Neste período
dominam o
estágio
anal
-uretral, muscular e os modos retentivo-
eliminatório.
Na idade do
brincar confrontam-
se
iniciativa
e
culpa
, de onde resulta como síntese a noção de
propósito
.
Neste período dominam o
estágio
infanto
-
genital locomotor
e os
modos intrusivo
-
inclusivo
.
105
O quadro abaixo resume essas informações, acrescentando o que o autor chama de
raio de relações significativas, ou seja, a constelação de pessoas que em cada período
constituem os chamados cuidador
es ou
provedores de atenção
:
Quadro 1. Estágios Psicossexuais e Desenvolvimento Psicossocial Infantil
Períodos
Estágios e
Modos
Psicossexuais
Crises
Psicossociais
Forças ou
Virtudes
Básicas
Raio de
Relações
Significativas
Período de
Bebê
(0
-
12 meses)
Oral
-
Respiratório
-
Sensorial.
Modo Incorporativo
Confiança
Básica
X
Desconfiança
Básica
Esperança
Pessoa Maternal
Infância Inicial
(2
-
3 anos)
Anal
-
Uretral
-
Muscular.
Modo Retentivo-
Eliminativo.
Autonomia
X
Vergonha e
Dúvida
Vontade
Pessoas P
arentais
(Pai e Mãe)
22
Idade do
Brincar
(3
-
6 anos)
Infantil
-
Genital.
-
Locomotor
Modo Intrusivo-
Inclusivo.
Iniciativa
X
Culpa
Propósito
Família Básica
(Nuclear)
Fonte: Erikson, 1989: 32
-
33; Boeree, 2005: 6
-
7).
Para cada período existe um estágio ou zona erógena e uma modalidade
psicossexual dominante. Neste período considerado, os demais modos funcionam como
modos
auxiliares.
Segundo Erikson:
(...),
a teoria da pré-genitalidade afirma que cada uma das zonas
libidinais durante o “seu” estágio é dominada tanto prazerosamente
quanto intencionalmente por um modo configurado primário de
funcionamento. A boca primariamente
incorpora,
mesmo que possa
ej
etar conteúdo ou fechar-se para a matéria a ser recebida. O ânus e a
uretra
retêm
e
eliminam
enquanto o falo é
intrusivo
e a vagina
inclui
(1998: 35).
Em algumas situações os modos auxiliares “podem chegar a um ponto de quase
predomínio por causa de uma falta ou perda do controle interior da regulação mútua com as
fontes de alimento e de prazer oral” (Erikson, 1976a: 65). É o que ocorre, por exemplo,
quando a mãe, por receio de mordida nos casos em que ocorreu a odontogênese
promove a retirada hab
itual do mamilo:
22
Alguns textos sobre Erikson e seu Ciclo de Vida colocam o
pai
nesse componente do raio de relações
significativas
. Entretanto assumo a designação pessoas parentais, entendidas como pai e mãe, por reconhecê-
la
como uma melhor tradução de
parents,
do texto original. Presumo que a tradução de pessoas parentais por
pai
pretenda ‘completar’ o pensamento de Erikson, situando o pai como uma figura de relevo, mas a meu ver, não
reflete o pensamen
to do autor, pois mesmo no seu mais recente livro, de 1998, mantém o termo
parents..
106
Nestes casos, o maquinismo oral, em vez de favorecer a sucção moderada,
pode desenvolver prematuramente o reflexo de morder. Nosso material
clínico sugere geralmente que essa situação é o modelo de uma das
perturbações mais radicais nas re
lações interpessoais (Erikson, 1976a: 67).
O que acentuamos aqui é um exemplo da relação que existe entre o desenvolvimento
psicossexual
definido a partir dos
estágios
ou
zonas
erógenas
e dos
modos
ou
modalidades
psicossexuais
com o desenvolvimento ps
icossocial
definido a partir da relação entre a
criança e o meio. Ou seja, uma perturbação ocorrida em uma zona erógena em vista de um
comportamento da criança em relação à mãe e vice-e-versa, leva a uma perturbação no modo
ou
modalidade psicossexual, que por sua vez, ocasiona uma ‘perturbação’ interpessoal,
segundo o autor.
A compreensão do comportamento ou atitudes da criança como categorias
interrelacionadas aos modos psicossexuais constituem, no meu entendimento, a grande
contribuição de Erikson para buscar um entendimento do ser humano que não seja balizado
pelas dicotomias corpo-mente ou mente-sociedade, ou ainda pela tricotomia como o autor
menciona
corpo-
mente
-sociedade. Mas sim como partes de um complexo integrado no
qual se imbricam fatores psicossexuais e psicossociais. Por isso um gesto aparentemente
físico
-corporal como de amamentar pode envolver múltiplos fatores, pois englobam
elementos determinantes do psiquismo dos vários atores envolvidos.
A criança suga o peito-leite, mas está em busca da sensação fantasiada no seu
primeiro contato com o seio, portanto envolta num gesto que junta na mesma cena a obtenção
do alimento — necessidade orgânica — e a busca da satisfação sexual — fantasia em estreita
relação com o desejo. Neste gesto, põem-se em contato instâncias do mundo objetivo-
material:
peito
-
leite
-
dentes
e instâncias do mundo psíquico: a fantasia do
peito
-
leite primevo
.
A mãe, por sua vez, se insere na cena com elementos igualmente materiais: os
mesmos da criança; mas também com as suas fantasias sociais, igualmente assentadas em
elementos pulsionais, ideativos. A quebra dessa harmonia, ou se preferirmos, a quebra da
homeostase físico-
psico
-social tem como conseqüência direta uma alteração em todo o
circuito pulsional; logo, as alterações ocorridas nem de longe se restringem ao âmbito do
107
puramente físico ou do puramente social, mas permeiam a totalidade do conjunto corpo-
mente/psiquismo
-sociedade.
Convém esclarecer que não estou supondo que tudo isso se faça unicamente por uma
retirada
ocasional e fortuita do mamilo em vista de uma mordida. Como Erikson pontua,
trata
-se de um gesto repetido, e mesmo assim, somente adquire sentido quando em relação à
cultura, ao meio psicossocial no qual a ade
mãe
-
bebê
se insere. Para Erikson, cada cul
tura
engendra condições de desenvolvimento, envolvendo aspectos biológicos, psíquicos, sociais,
morais e éticos que parecem formar um todo coerente, conforme expressa: “(...) de fato, as
culturas homogêneas dispõem de meios que permitem equilibrar na vida posterior os mesmos
desejos, temores e raivas que provocaram na infância. Então o que é bom para a criança, (...),
depende do que deve vir a ser, e onde” (1976a: 65).
Isso implica que não se deve considerar aprioristicamente bom ou ruim nenhum gesto
ou comportamento, exceto quando analisado em relação à cultura e às expectativas dessa
cultura. Como exemplo, posso citar, apoiado no autor, o sistema educacional —
no sentido de
preparação para a vida em comunidade das duas tribos indígenas por ele analisadas. Os
Sioux, tribo das pradarias norte-americanas, desenvolveram a sua sociabilidade
profundamente interligada com a caça ao búfalo fonte de alimento, de agasalho e até
mesmo provedor de simbologias ético-morais (fortaleza, vigor, bravura etc) em vista do
que se compreende que a criança sioux, do sexo masculino em particular, seja educada no
sentido de desenvolver traços de comportamento caracterizados pela bravura, pela intrepidez
e, até mesmo, por algum grau de ‘dureza’ emocional, que seria compensada em termos
morais com o ‘respeito’ ao animal abatido.
Os Yurok, habitantes da costa oeste norte
-americana, na embocadura do rio do mesmo
nome, viviam e se organizavam socialmente em torno da pesca do salmão. Nesse contexto, é
sensato supor, e Erikson de fato o constatou, que os traços de personalidade preferidos, sejam
masculinos ou femininos, tendam mais à tranqüilidade, à reflexão e à atenção, afinal não se
espera de um pescador gestos intrépidos, muito menos grandes bravuras. Talvez a maior
virtude, neste caso, seja a capacidade de permanecer horas a fio esperando a sua presa
108
provedora simbólicas e das condições de sobrevivência para os Yurok, como o é o búfalo para
os Sioux. O sistema educacional buscaria, neste contexto, outros valores e outras virtu
des
tais como a resignação, a perseverança, o gesto sutil entre outros.
Ainda com relação aos Sioux e como demonstração de uma diferença comportamental
justificada em vista das expectativas culturais, trago à apreciação o que Erikson observou
nesta tribo quanto ao salutar hábito da amamentação. Esse povo privava os seus recém-
nascidos do leite materno nos primeiros dias de vida, por julgar que o primeiro leite o
colostro
era prejudicial às crianças. A esse respeito o autor apresenta os motivos ou raz
ões
que o sistema cultural da tribo apresentava para justificar tal gesto, certamente considerado
inadequado pelos padrões da cultura branca. Às mulheres índias não parecia justo permitir
que o recém-nascido sofresse no esforço da busca de um leite escasso, como freqüentemente
ocorre nos primeiros dias pós-
parto
e, além disso, ‘fraco’ — impressão presumivelmente
adquirida a partir da comparação visual entre o leite maduro e o colostro. “Em vez disso, com
a aprovação plena de toda a comunidade, os parentes e amigos preparavam o primeiro
alimento do bebê com frutas e demais ingredientes selecionados entre os melhores
disponíveis, oferecido por uma mulher igualmente especial dentro da comunidade” (Erikson,
1976: 124). Dessa forma, a primeira refeição adquiria
uma conotação de
rito de iniciação
.
4.4. MODO INCORPORATIVO: sugar e morder. Pressupostos para os
conceitos de
confiança e desconfiança
básicas
O processo de apreensão do mundo por parte da criança dá-se através do corpo, mais
especificamente pelas
zona
s erógenas e dos modos psicossexuais descritos, porém isso é feito
de forma mediatizada pelo psiquismo. O
encontro decisivo
entre a capacidade inata da criança
de incorporar e a disposição do meio de fornecer-lhe o que deve ser incorporado garantirá a
sua
sobrevivência e, simultaneamente inaugurará o seu processo de humanização, na medida
em que o gesto de amamentar não se restringe a um ato provedor apenas de condições
materiais de subsistência, mas também está investido de toda uma significação cultural,
da
qual faz parte como elemento integrante.
109
Através da cavidade oral-nasal a criança
incorpora
o que lhe é colocado ao alcance,
em particular o leite e seus odores. E também incorpora pelos olhos o que se apresente em seu
campo visual. Incorpora os sons que lhe chegam aos ouvidos. O reflexo de prensa palmar e
plantar podem ser vistos como uma espécie de
incorporação
em termos musculares, enquanto
o ‘reflexo de abraçar’ ou reflexo de Moro, como uma
incorporação
pelo corpo como um todo.
Essa capacidade
inco
rporativa
da criança está a serviço da vida, da sobrevivência,
sobretudo nos primeiros meses, e se faz de forma interligada com o seu processo de
construção de marcas psíquicas, que vão simultaneamente conformar a sua mente ou
psiquismo. Ou seja: a criança nasce dotada da capacidade de incorporar, como forma de obter
aquilo de que precisa para sobreviver, e enquanto incorpora alimentos, odores, imagens, sons
define a sua inserção na vida. Assim, do gesto incorporativo primevo
a sucção
a criança
avança
incorporando o mundo, em sentido simbólico. E da mesma forma que fantasiou a
mãe
-
peito
-
leite
, fantasia, ou seja, cria representações ideativas de tudo quanto lhe é colocado
ao alcance, e vai conformando, com isso, a sua ‘visão’ de mundo, que tem assento na
realidade, mas é ‘passada a limpo’ no seu psiquismo.
A forma como essa realidade é ‘registrada’ no inconsciente da criança — o que
representa a
sua
realidade frente ao mundo — vai depender da forma como se estabelece essa
‘comunicação’ entre a realidade e as marcas psíquicas ou representações ideativas dela. Cada
criança define representações ideativas próprias; marcas psíquicas específicas, que vão
defini
-la como gente, como ser único, como sujeito. Como e porque cada criança conforma
uma identidade ontológica é assumo sem constrangimento um daqueles mistérios que
provavelmente nos acompanharão por toda a vida. O que posso afirmar, porém, com base na
minha experiência pessoal e a partir dos estudos empreendidos, é que a forma como se a
relação entre a criança e os seus provedores de atenção, sobretudo nas primeiras fases da
vida, exerce grande influência nesse processo. O que veremos a seguir é a mitologia’ no
sentido platônico
23
de Erikson a respeito da questão.
23
Mitologia, nesta acepção, é uma forma “de exposição de uma idéia ou de uma doutrina (...) voluntariamente
poética e narrativa, onde a imaginação ganha asas e mistura as suas fantasias com as verdades subjacentes.”
(Lalande, 2001: 689). Foi um recurso largamente utilizado por Platão, daí o adjetivo.
110
Enfoquei todo o ciclo de vida,
seg
undo Erikson, para situar o contexto geral da
produção teórica do autor. Na verdade, buscar uma compreensão da contribuição eriksoniana,
a partir do entendimento de desenvolvimento psicossocial como um todo, é imprescindível
para compreendermos a sua teorização, que tem como pano de fundo o desenvolvimento
epigenético, o que significa a assunção de uma dependência intergeracional. Nesse sentido
pressupõe
-se um compromisso ético que perpasse a comunidade humana em sentido
transversal
todos os seres humanos numa determinada época —, bem como vertical os
seres humanos de todas as épocas.
Mas neste momento, estou particularmente interessado no conceito eriksoniano de
confiança básica, e por isso dirijo a minha atenção à fase pré-genital, focando
especificam
ente o primeiro período, que o autor denomina
oral
-
sensorial
(1976a) ou
período
de bebê (1998), correspondente ao primeiro ano de vida, durante o qual se definem as bases
para uma compreensão desse sentimento, bem como da desconfiança básica como seu
cont
raponto. Estando esse processo vinculado à forma como se o
desenvolvimento
psicossexual
, que diz respeito à criança e às suas fantasias em torno do elemento
mãe
-
peito
-
leite,
centrado nas zonas e modos erógenos; e
psicossocial
, definido a partir da forma como a
mãe
ser cutltural traduz, a partir das suas próprias fantasias e desejos, as experiências
vividas pelo filho. E, sobretudo, como se dá a interação entre o desenvolvimento
psicossexual
e
psicossocial
da criança.
Como visto anteriormente, o
está
gio oral-
respiratório
-
sensório
é dominado por dois
modos de incorporação; o primeiro deles é o de
sugar
, que constitui uma característica inata
da criança já detectada inclusive na vida intra-
uterina.
24
. O segundo refere-se ao ato de
morder, incorporar mordendo. O modo incorporativo por sucção, para Erikson, “constitui a
primeira modalidade social aprendida na vida [e mais] aprendida em relação à pessoa
materna, o ‘outro primal’ do primeiro espelhamento narcísico e apego amoroso” (1998: 36).
24
Através de estudos experimentais o cientista Wilder Penfield mapeou o cérebro humano, relacionando as
várias partes do corpo com a área do córtex cerebral a elas relacionadas. O resultado do experimento,
denominado
homúnculo de Penfield, mostra que a área cortical correspondente à região da boca e dos lábios é
proporcionalmente a maior, conforme pode ser visto no anexo 2. Essa maior inervação poderia explicar, do
ponto de vista fisiológico, a tendência instintiva da criança à sucção.
111
Esse
modo de inc
orporação
inaugura a vida relacional da criança, lança-a no mundo das
relações sociais, pois o ato de sugar compreende uma relação baseada no buscar e no receber.
Inicia
-se uma fase de ‘negociação’ através da qual “a mãe lhe permite desenvolver e
coordenar
seus meios de obter, à medida que ela desenvolve e coordena seus meios de dar”.
(1976a: 67).
O gesto da amamentação carrega em si uma forte carga libidinal, que parte das
zonas
erógenas
envolvidas, mas que se estende para além delas. Para conformar essa carga libidinal
participam mãe e filho. Para Erikson “a boca e o mamilo parecem ser meros centros de uma
aura geral de calor e mutualidade, dos quais desfrutam, e aos quais respondem com relaxação,
não esses órgãos focais, mas também ambos os organismos totais” (1976a: 67). Essa
situação, porém, não é inexoravelmente verificável. Vários fatores se lhe interpõem, ora
facilitando
-a, ora dificultando-a. Fatores esses que podem ser de ordem pessoal relativos à
criança e à mãe ou da ordem do ambiente, do meio social. Seja num caso, seja noutro, a
quebra dessa ‘aura libidinal’ é percebido pela criança como um desequilíbrio que lhe atinge o
psiquismo e pode determinar a formação de marcas psíquicas identificadas como más. Nessa
perspectiva, a opinião de Erikson faz eco com o que disse Freud em 1920 no ensaio Além do
princípio do prazer
:
A impressão que dão é de serem perseguidas [os neuróticos e certas pessoas
normais] por um destino maligno ou possuidas por algum poder
‘demoníaco’; a psicanálise, porém, s
empre foi de opinião de que seu destino
é, na maior parte, arranjado por elas próprias e determinado por influências
infantis primitivas. (Freud, 1996b: 32).
Podemos supor, por exemplo, que a quebra disso que Erikson denominou aura geral
de calor e mutualidade” poderia, em determinadas situações, promover ao invés da geração de
fantasias eróticas associadas ao prazer, levar a criança a registrar como marcas psíquicas
associadas ao ato de mamar, imagens ideativas de não
-
prazer. Nesse movimento “descobrirá
o
seu polegar e amaldiçoará o mundo” (1976a: 68).
A mãe, por sua vez, também tem o seu circuito libidinal perturbado. Entretanto, tem
como vantagem em relação ao filho a maior experiência, em vista do que poderá ressignificar
o gesto. Pode não consegui-
lo
, mas possui em princípio condições para isso. Se essa
112
possível compreensão cognitiva vai permitir, de fato, uma ressignificação da quebra do
circuito libidinal, e viabilizar uma inscrição prazerosa no inconsciente materno, é algo que
cada pessoa, cada psiquismo irá determinar. De qualquer forma, esta “aura” constitui para
Erikson um importante momento em termos do equilíbrio e reciprocidade prazerosa vivida
por mãe e filho, e sua quebra constitui um risco potencial a tudo isso.
Erikson lembra, porém, que métodos para remediar essa situação. “Não podemos
nos dar ao luxo de negligenciar a nossa inventividade terapêutica” (Erickson, 1976: 68),
referindo
-se à nossa capacidade de prover condições para sanar distúrbios. Seja através de
bicos artificiais, quando essa quebra for motivada por falta de leite ou por problemas
mamilares, seja adotando-se outras vias de satisfação não-orais, tais como o aconchego, o
toque carinhoso, que promove a
incorporação
por via sensitiva através da zona erógena
representada
pela pele, ou através de sons, de odores etc. Tudo isso, porém, não responde
satisfatoriamente à necessidade de estimulação da
zona
e do
modo
dominante neste estágio,
representado pela cavidade oral-nasal. Ou seja: O equilíbrio psicossexual do qual derivará o
equilíbrio psicossocial, cujas bases se assentam nesse momento na zona erógena oral-
nasal
e
no modo incorporativo de sucção, só ocorrerá de forma adequada se se verificarem as
condições propícias à realização desse gesto.
O corolário imediato disso é que, para o autor, somente a amamentação, realizada em
condições adequadas para mãe e filho, proporcionaria as condições necessárias ao
desenvolvimento saudável do aparelho psíquico infantil. Nesse momento outros
modos
psicossesxuais
e outras zonas er
ógenas
podem e devem ser ativadas, mas na condição de
zonas
e modos auxiliares. A assunção de
modos
ou formas alternativas de se promover esse
encontro, bem como o privilégio de
modos
e
zonas
auxiliares, alçados à condição de
dominantes, levariam a distúrb
ios.
Como condição adequada faz-se mister dizer — se entende aquela capaz de
proporcionar e deixar fluir a aura geral de calor e mutualidade, dos quais desfrutam, e aos
quais respondem com relaxação, não esses órgãos focais, mas também ambos os
113
orga
nismos totais”, como dito antes. Consistindo nisso uma primeira e imprescindível
condição para que se conforme o sentimento de
confiança básica
. Mas não a única.
O segundo modo incorporativo,
denominado
incorporativo 2, diz respeito ao ato de
morder, e ainda ocorre em relação à cavidade oral-
nasal
como zona erógena. O gesto de
morder inicia-se antes da erupção dentária, e pode até mesmo ser entendido como motivado
por ela. É provavelmente o incômodo causado pelo crescimento do germe dentário que leva a
c
riança ao ato de morder ou, mais especificamente, ‘prender com as gengivas’.
Associadas ao gesto de morder/prender com as gengivas, rias outras manifestações
se definem nesta fase cronologicamente situada no segundo semestre de vida todas
vinculadas
ao modo incorporativo. Os olhos, antes espectadores passivos, agora se convertem
em órgãos perscrutadores. Buscam as cenas, os objetos, distinguem claramente áreas de
interesse, mudam de foco com freqüência. “Os órgãos da audição, de modo análogo,
aprende
m a discernir os sons significativos, a localizá
-
los e a guiar uma mudança adequada de
posição (levantar e girar a cabeça, levantar e girar o tronco)” (Erikson, 1976a: 68). Os
membros
braços/mãos e pernas iniciam o seu processo de ‘tomar o mundo em sua
s
mãos’, pelo menos o mundo que está ao seu alcance. Mas esse alcance já começa a se
ampliar, pois nesta fase a criança pode estar iniciando o movimento de engatinhar, ou
deslocar-se rolando sobre o próprio corpo. Em associação com esse modo
incorporativo
2
,
desenham
-
se as
modalidades psicossociais
de
tomar
e agarrar-
se
às coisas.
Chamo a atenção para o imbricamento, sempre presente, entre a
modalidade
psicossexual
representada pelas zonas e modos de incorporação e a
modalidade
psicossocial, representada pelos gestos e comportamentos sociais: investigação manual, busca
ocular e auditiva do mundo, definição de um espaço ao seu redor. É um período de risco de
acidentes, pelo envolvimento com objetos e situações nem sempre inofensivas. Algumas
crianças sentam, o que lhes permite adquirir um novo referencial do mundo. Poderíamos
falar do início de uma sociabilidade ativa. É um momento de grandes descobertas, e também
de muitas decepções, em vista das crescentes dificuldades encontradas.
114
Um mundo se oferece como possibilidade até então inexistente, mas simultaneamente,
impõe limites à sua consecução. Neste momento, de novo a mãe exerce papel preponderante.
É ela quem irá balizar os limites do possível e do impossível. Seja com os olhos, seja com a
fala. São comums, nesta fase, as manifestações verbais colocando as barreiras, estimulando
conquistas. A própria criança começa a esboçar uma fala; entende ordens simples e é
capaz de executar comandos. Nesse momento a criança é ousada, mas é igualmente
desc
onfiada. Pode até cair da cama, mas não pularia; adquiriu a noção de medo, que se
manifesta explicitamente nos gestos de estranhamento, ainda como esboço. O mundo não é
essencialmente ‘bom’ não me oferece, afinal, tudo aquilo que demando algum grau
de
desconfiança começa a se instalar.
Essa fase ou estágio tem dois momentos distintos, apesar de constituírem um modo
incorporativo 2
quais sejam: no primeiro momento, os dentes ainda não irromperam, só
iniciaram o seu crescimento. Porém, a partir de um certo momento, variável de criança para
criança, esses dentes, antes causadores de um leve incômodo, iniciam o seu processo de
erupção. Instala-se o que eu chamaria o segundo momento do modo incorporativo 2. Os
dentes irrompendo, “furam vindo de dentro, na mesma cavidade oral que até então constituía
a sede principal do prazer
(1976a: 71). Esse momento, conquanto guarde relação com o
anterior, é de natureza qualitativa diferenciada. O incômodo, antes prenunciado, agora se
manifesta em toda a sua intensidade. A criança manifesta uma curiosa junção de vontade de
morder
para aliviar a dor e o prurido que o processo inflamatório de erupção dentária causa
com a impossibilidade de fazê
-
lo porque isso também provoca dor. Na prática clínica vê
-
se
com freqüência bebês tentando morder objetos e recuando ante o incômodo causado. Em
conseqüência a criança retira o objeto da boca e balança a cabeça de forma rápida e irritada.
Por vezes, arremessa o objeto para longe, de forma agressiva; o que pode ser traduzi
do,
psicossocialmente, como um desagravo à agressão sofrida.
A criança também não pode morder tudo que gostaria. Recebe proibições, em vista do
seu bem-
estar
quando se trata de objeto inconveniente ao morder ou em vista do outro
social, quando o que deseja morder seja socialmente proibido, como o braço de um
115
amiguinho, por exemplo. Nesta fase da vida, a criança habitualmente simpática e meiga dos
primeiros meses, converte-
se numa pessoinha irritadiça, pouco sociável, chorosa. Inicia
-
se um
período de inapetência. A capacidade de ‘estranhar’ se manifesta em plenitude. Como
elemento complicador, esse é, via de regra, o período em que costuma ocorrer o desmame, nas
sociedades ocidentais modernas. Procurando ver a situação a partir dos referenciais da
crianç
a, é possível pressupor quão relevante é o conflito que se instala. Por uma razão
desconhecida
para a criança — a sede privilegiada do prazer a boca agora se
apresenta como local de dor e incômodo. Verifica-se uma total incoerência entre o que antes
estava registrado no psiquismo como
representação ideativa
de prazer e os novos sentimentos
que se impõem a partir da experiência dolorosa.
A criança busca sentido’ para tudo isso na única âncora que ainda mantém alguma
coerência entre as suas fantasias e a realidade: a mãe, o ser identificado desde o início como a
fonte dessas fantasias. É sensato supor que faltando também o apoio deste elemento, o
conflito se torne ainda mais intolerável. São infindáveis as formas possíveis de administração
dessa situação pela criança. Cada uma, em vista de fatores variados, desenvolverá formas
diferenciadas para conviver e sobreviver a isso tudo. Este é um momento crucial no
desenvolvimento psicossexual da criança, com repercussões no desenvolvimento psicossocial,
da mesma magnitude. Nessa época, segundo Erikson, as noções de bom e de mau entram na
vida da criança.
Nosso trabalho clínico mostra que esse momento (...) pode ser a origem de
uma nociva perda de unidade, em que a raiva por causa dos dentes que
mordem, a raiva contra a mãe que se afasta e a raiva motivada pela própria
raiva impotente (...) conduz a uma efetiva experiência de confusão sádica e
masoquista que deixa a impressão geral de que, em outro tempo, o
indivíduo destruiu a própria unidade com a matriz materna. Esta primeira
catástrofe na relação do indivíduo com ele mesmo e com o mundo é
provavelmente a contribuição ontogenética à idéia do ‘paraíso perdido’(...).
Devemos compreender que a profundidade tanto quanto a universalidade
deste tema acentuam a importância de que a unidade inicial deve ser
profunda e satisfatória e de que se deve expor a criança ao inevitável
“mau” (sic) na natureza humana de forma suave e tranqüilizadora, e sem
agravamentos evitáveis. (grifo do autor; 1976a: 70).
Por esta razão mesma, o desmame bem como outras modificações dos hábitos
naturais da criança pequena devem ser conduzidas de forma a não significar para a criança a
perda súbita do seio, nem a perda da presença confortadora da mãe, ou mesmo do ambiente
116
ao qual esteja habituada. Pois, acentua Erikson, “uma perda drástica do habitual amor
materno, sem uma substituição suficiente neste momento pode levar (...) a uma aguda
depressão (...) ou a um desgosto moderado, mas crônico, que pode transmitir por toda a vida
um tono depres
sivo”.
25
(1976a: 71). Com a possibilidade — propugno de vir a se
constituir em algum daqueles fatores estressores que a OMS julga implicado na
determinação de eventuais transtornos mentais e comportamentais que podem atingir a
pessoa na infância ou em out
ra fase qualquer da vida.
4.5. CONFIANÇA BÁSICA: auto
-
identidade e coragem de ser
.
Erikson defende que é da boa condução da relação entre as
motivações
internas
que poderemos chamar
pulsionais
— e o sentido que a criança aprendeu a dar a elas, a partir
da relação estabelecida com a mãe ou outro provedor — que se define a noção de
confiança básica e/ou o sentimento contrário a isso, a desconfiança básica. O autor
menciona explicitamente que
A primeira demonstração de confiança social da criança pequena é a
facilidade de sua alimentação, a profundez de seu sono e a relaxação de
seus intestinos. A experiência de uma regulação mútua de suas capacidades
progressivamente mais receptivas com as técnicas maternas de dar
alimento ajuda gradualmente a criança a compensar o desconforto causado
pela imaturidade da homeostase com que nasceu. (...). As formas de
conforto e as pessoas a elas associadas se tornam tão familiares como o
corrosivo mal-estar intestinal. A primeira realização social da criança,
então, é a
sua voluntária disposição de deixar a mãe de lado sem demasiada
ansiedade ou raiva, por ela se ter convertido em uma certeza interior, assim
como em uma predizibilidade exterior. (1976a: 227).
A esse sentimento de confiança social, que o autor identifica como “um estado geral
de confiança”, que implica que a criança aprendeu a confiar na uniformidade e continuidade
dos provedores, bem como na sua capacidade de regular ou conviver com os seus
órgãos, e, além disso, que “é capaz de se considerar digna de confiança para que os
provedores não precisem ficar em guarda com receio de uma mordida” (Id. Ib.: 228),
Erikson denominou confiança básica, que cria na criança a base para um sentimento de
25
Esse tono depressivo foi denominado por René Spitz como depressão anaclítica, expressão criada por ele para
designar perturbações infantis que lembram as manifestações da depressão em adultos, e que aparecem em
crianças privadas
total ou parcialmente
do contato com suas mães. ( Spitz, 1993: 200
-
212).
117
identidade que mais tarde combinará um sentimento de ser ‘aceitável’, de ser ela mesma
(Id. Ib.: 229). Sentimento que poderemos identificar com Giddens — como o de
coragem
de ser
, tal como apresentado por Paul Tillich. (Giddens, 2001: 41
-
42).
O contra-ponto desse sentimento foi denominado desconfiança básica, e não deve ser
entendido, conforme o próprio Erikson, como algo completamente negativo e indesejável. O
autor chega mesmo a admitir que algum grau de desconfiança é saudável, posto que habilita a
criança a enfrentar o mundo de forma realista. O não desejável é o excesso, ou como
podemos dizer, a condução inadequada desses dois sentimentos.
4.5. ESPERANÇA: síntese harmônica da confiança e desconfiança básicas
Com Erikson acompanhamos o percurso da energia pulsional que através de zonas ou
órgãos específicos do corpo da criança,
define
marcas ideativas, imagens representativas
associadas ao prazer que, em conjunto, constituem uma visão possível do próprio psiquismo
ou da mente da criança. Porém, nesse percurso, realizado como modalidade psicossexual,
entendid
a como a maneira própria de cada ser efetuar a sua apreensão e registro psíquico da
realidade
define-se, simultânea e imbricadamente, com as modalidades psicossociais que
vão conformar a personalidade. Nos dois processos tomam parte fatores inatos e do m
eio,
dentre os quais destaca
-
se, nesses primeiros meses da vida, a mãe, o
outro
de cuja homeostase
a criança participou desde os primórdios da vida, numa relação que envolvia ritmos, humores,
emoções e partilha orgânica.
Aceita
-se sem questionamentos que a mãe fornece proteínas, sais minerais, oxigênio,
energia e tudo o mais que irá conformar a vida orgânica do novo
ser
. O que Erikson defende
coerente com uma visão não dicotômica da realidade corpo-
mente
é que os processos
mentais/psíquicos que constituem o
ser
conformam-se em absoluta conjunção com os
processos orgânicos ou biológicos, numa relação que não é apenas de paralelismo, de
dependência ou de causa
-e-
efeito, mas como uma
única coisa
.
Devo reconhecer que me faltam palavras para dizer dessa totalidade, posto que a
linguagem
que é um produto da cultura encontra-se atravessada pelas idéias duais com
118
as quais temos vivido e convivido nos últimos séculos. Por isso, no momento em que busco
traduzir em palavras a idéia de simultaneidade dos processos biológicos, mentais e culturais
inevitavelmente flagro
-me estabelecendo uma temporalidade e/ou uma precedência entre eles.
Mas a crítica de Erikson que assumo como verdadeira e que faz eco com as novas
concepções que têm surgido como crítica da visão dicotômica da modernidade, anuncia uma
nova visão do mundo, das pessoas e dos processos bio-
psíquico
-culturais, que passam a ser
vistos como realidade
una,
como simultaneidade reciprocamente determinadas.
Nessa perspectiva, como a mãe se constitui em via através da qual se conforma o
corpo físico — em relativa homeostase com o seu próprio corpo — e por acreditar no
enunciado do parágrafo anterior, assumo como corolário em acordo ao defendido por
Erikson
que a mãe é o ser naturalmente habilitado à função de provedor de atenção
preferencial
, tal como o foi de subsistência orgânica, na vida intra-uterina e nos primeiros
meses de vida da criança. Ou seja: na condição fetal a criança teve na mãe a sua provedora de
matéria orgânica e dos demais elementos que conformaram o ente vivo gerado em seu ventre.
Ente vivo como ser total. Ao parir, a mãe continua na condição privilegiada de fornecedora
do melhor e mais adequado elemento para a continuação do desenvolvimento orgânico do
filho: o leite materno. O que afirmo, em consonância com Erikson, é que também os outros
elementos que entrarão na constituição do sujeito humano chegam à criança através da mãe,
preferencialmente. Particularmente no período da primeira infância, correspondente ao
primeiro ano de vida. Período no qual predominam as etapas do desenvolvimento
psicossexual
associadas à zona oral-
nasal
e os modos incorporativos 1 e 2. Advindo disso o
papel privilegiado do elemento materno na conformação do sujeito saudável, pois nesse
período se geram na criança “as fontes do ‘sentimento básico de confiança’ e do ‘sentimento
básico de desconfiança’ que continuam sendo a origem autogênica da esperança primordial e
da condenação por toda a vida” (1976a: 71
).
Não é possível saber previamente se uma criança na relação com o seu meio
cultural
definiu em seu psiquismo as condições para equacionar, de forma sintônica os
sentimentos de
confiança
e
desconfiança básicas que lhe faculte sair desse primeiro conflito
119
psicossocial animado pelo sentimento de
esperan
ça,
que irá permear toda a sua existência.
Sobre uma parte dos fatores contribuintes nesse processo sequer temos ingerência aqueles
com os quais a criança nasce. A outra parte é constituída de elementos complexos com
múltiplas determinações. Porém, partilho com Erikson a premissa de que a qualidade da
relação estabelecida entre os provedores de atenção, particularmente a mãe, nas primeiras
fases da vida, desempenha papel decisivo. Ou seja, para Erikson, com o que concordo:
O firme estabelecimento de padrões duráveis para a solução do conflito
nuclear da confiança básica versus a desconfiança básica, (...), é a primeira
tarefa do ego e, (...) uma tarefa para o cuidado materno. Mas (...) não
parece depender de quantidades de alimentos oferecidos ou de
demon
stração de amor, mas antes da qualidade da relação materna. As
mães criam em seus filhos um sentimento de confiança por meio daquele
tipo de tratamento que em sua qualidade combina o cuidado sensível das
necessidades individuais da criança e um firme sentimento de
fidedignidade pessoal dentro do arcabouço do estilo de vida de sua cultura.
Isso cria na criança a base para um sentimento de identidade (...), de ser ela
mesma (...). (grifo do autor; Erickson, 1976a: 229).
Com essas palavras concluo o raciocínio. O que está em jogo no processo de
formação do psiquismo infantil, naquilo que ele depende da mãe ou de outros provedores de
atenção, está menos na quantidade — seja de alimentos ou até mesmo de amor, como
manifestações externas de afeto do que na qualidade das relações. Tudo isso dado em
relação à cultura, porque a estabilidade do aparelho mental/psíquico que lhe facultará
transitar com coragem de ser por entre as tensões da vida cotidiana, mantendo e confiança
na coerência dos processos existencia
is
de forma a manter-se estável ante os fatores
estressores diversos somente poderá ser aferida se tomada em relação ao sistema cultural
em que a criança está inserida.
120
Capítulo 5
FRANÇOISE DOLTO
E O CONCEITO DE
IMAGEM INCONSCIENTE DO CORP
O.
... a comunicação interpsíquica produz efeitos, tenha
-
se consciência
disso ou não, cada vez mais cedo, já na vida fetal, mas principalmente
depois do nascimento, entre o bebê e seu meio...
Françoise Dolto
121
5.1 FRANÇOISE DOLTO: sujeito e lingua
gem
Françoise Marette (o sobrenome Dolto foi incorporado após o casamento com Boris
Dolto, em 1942) em termos de inserção familiar, segue uma trejetória diversa de Erikson.
Nasceu no seio de uma família francesa aristocrática, de linhagem militar, católica
,
conservadora. Dos epítetos familiares clássicos, o único com o qual não seria pertinente
classificar a sua família é o de patriarcal, embora estivesse longe de um matriarcado.
Aparentemente em sua família se equilibravam uma expectativa de domínio masculino com
uma sistemática recusa desse papel por parte do pai, provavelmente por sentir inferiorizado
em vista da linhagem nobre de sua esposa.
Em várias ocasiões, seu pai colocou-se ao seu lado em situações controversas, nunca
emitindo um parecer que afrontasse a esposa, mas apoiando tacitamente Françoise em várias
de suas ‘loucuras’ como a de ser médica, por exemplo. Escolha que a sua mãe boicotou o
quanto pôde. A medicina não seria aos olhos de sua mãe uma profissão para moças.
Não preciso mencionar que a oposição e a revolta materna foram ainda maiores quando
Françoise decidiu seguir a profissão de psicanalista.
Françoise nasceu em 1908 e foi a quarta de sete filhos. Criada sob rígido controle,
dentro de uma lógica familiar severa, gostava de mencionar que até os 25 anos de idade
jamais fizera uma refeição fora de casa.
Aos seis meses de vida, após a demissão de uma babá que cuidara dela desde o
nascimento, Françoise entrou em profundo desânimo e contraiu pneumonia. “Foi mamãe que
me salvou, conse
rvando
-me junto dela a noite inteira... apertada contra o seu peito” (Nasio,
1995: 241). O espectro da morte povoaria a vida da pequena Françoise de forma bastante
intensa. Ainda na infância, aos sete anos, perdeu um tio militar por quem era ‘apaixonada’.
A
própria Françoise diria mais tarde que se tornara “viúva de guerra ao sete anos” (Dolto, 1989).
O episódio da morte de sua irJaqueline, então com 20 anos, quando Françoise
tinha 12, teve enorme relevância em sua vida. Portadora de câncer ósseo, de um certo modo o
destino da moça estava selado. Mas na véspera de fazer a sua primeira comunhão, Françoise
fora instada pela mãe a ‘pedir a Deus pela vida da irmã’. ‘Deus, atende sempre a um pedido
122
de uma garota boa, na sua primeira comunhão’— teria dito sua mãe. A morte da irmã pesou
nos ombros da pequena Françoise como uma falha imperdoável. Ou Deus não a considerara
digna da graça pedida, ou o seu pedido não fora feito com a devida intensidade. Esse luto
material, moral e psicológico marcou a vida da criança e da mulher. E somente pôde ser
ressignificado em sua vida aos 25 anos exatamente através da psicanálise. “Eu nunca teria me
tornado psicanalista sem esse luto...” (apud Nasio, 1995: 242).
Dolto tornou-se analisanda e discípula de René Laforgue, um dos fundadores do
movimento psicanalista francês, que a convenceu a tornar-se psicanalista, ela que na infância
desejara ser ‘médica de educação’. Em 1939 ano da morte de Sigmund Freud concluiu
o curso de medicina, mas envolvida com a psicanálise, intitulou a sua tese (espécie de
trabalho de conclusão de curso) de
Psicanálise e Pediatria,
cuja leitura atenta talvez indique o
que a pequena Françoise queria dizer ao manifestar o desejo de tornar-se ‘médica de
educação’. A tese é na verdade um estudo de casos’ com base numa visão médica, mas
permeada de interpretações psicanalíticas. Na primeira parta que denomina
teórica
apresenta uma breve discussão sobre os conceitos psicanalíticos básicos. Nisso chama a
atenção pela linguagem simples e direta que utiliza. Na segunda parte que denomina
clínica
Dolto apresenta e discute os casos clínicos por ela tratados no hospital de
Bretonneau, para o qual fora contratada em 1936, ainda durante a graduação.
Ao lado de Édouard Pichon, por quem fora convidada para trabalhar como assistente
de psicoterapia, no Departamento de Pediatria, dedicou-se ao atendimento de crianças com
distúrbios emocionais ou psiquiátricos com manifestações orgânicas e vice-e-versa, e ali
inauguraria o que viria a ser a sua marca registrada: a escuta atenciosa e criteriosa do
outro
-
que
-
sofre
. Logo Dolto entenderia que parte das doenças somáticas daquelas crianças tinha
assento em um transtorno psíquico e vice-e-versa, cuja abordagem precisaria ser buscada em
procedimentos afeitos à psicanálise. O resultado dessa inquietação foi o estabelecimento de
um método de investigação que revolucionou a abordagem psicanalítica
com
crianças.
Nessa época o mundo psicanalítico infantil se debatia entre as teses de Anna Freud e
Melanie Klein. Dolto, alheia a esta contenda até porque atuava em Paris, e o eixo da
123
discussão era Viena e Londres — foi delineando o seu método psicanalítico próprio, e
afirmando
-
se como a grande figura da psicanálise infantil; ao tempo em que forma com Lacan
“uma dupla extraordinária (...) participando juntos das mesmas cisões e fundações de novos
grupos” (Dolto, 1989). A ponto de Élisabete Roudinesco provavelmente a maior biógrafa
‘não
-autorizada’ de Lacan declarar que Françoise Dolto “(...) fue, al lado de Jacques
Lacan,
la segunda gran figura del freudismo francês”. [acrescentando em seguida que Dolto
viria a converter-se] “(...) em la fundadora em Francia del terreno del psicoanalisis del nino”
(Roudinesco, 1994: 241; 242). Roudinesco certamente não desconhece a condiçã
o de Eugénie
Solkonicka como pioneira da psicanálise infantil na França. Ao apontar Dolto como a
fundadora da psicanálise infantil naquele país, estava — presumo — referindo-se à sua
importância no cenário psicanalítico francês e mundial, ou aludindo ao fato de que Françoise
Dolto foi a primeira psicanalista que abordou a criança como sujeito portador de desejos
próprios, portanto como um ser autônomo e não uma caricatura de adulto, a ponto de instituir
“o pagamento simbólico: ela pede à própria criança par
a trazer uma pedra, uma moedinha, um
brinquedo, como prova de seu interesse em continuar o seu tratamento, como um adulto paga
a sua sessão” (Colonel & Mezamat, 1983b).
Em 1969 apresentou — sem se identificar para o público — um programa de rádio
Doutor
X’ no qual respondia, ao vivo, a perguntas de ouvintes acerca de temas variados,
particularmente os de natureza psicológica, envolvendo transtornos infantis, com enfoque
psicanalítico. O programa transmitido pela rádio Europe 1 adquiriu repercussão
rapidamente e grande audiência. Em 1976 o conteúdo dessas entrevistas foi publicado em
livro
S.O.S. psychoanalyst! cujos direitos autorais Dolto destinou a atividades
filantrópicas. Neste mesmo ano, voltou a fazer programa de rádio, agora como a fam
osa
Françoise Dolto. O programa veiculado pela rádio France Inter, teve o mesmo formato do
anterior: perguntas e respostas. Intitulado Lorsque l’enfant paraît (Quando surge a criança),
permaneceu no ar 18 meses e se converteu em um líder de audiência na França. Nesta época
Dolto não mais fazia psicanálise clínica, mas ainda ‘tinha tempo e disposição para ouvir as
crianças’.
124
Em 1979 iniciou a sua última grande obra ao criar a ‘Maison Verte’ (Casa Verde). A
Casa Verde
— cujo nome deriva da cor com que fora
pintada
constituiu
-se em uma grande
experiência com crianças, inspiradora de experiências similares em várias partes do mundo
26
.
A respeito desta experiência Philippe Béague, dirá:
Françoise Dolto adquire a certeza de que é preciso, o mais rapidamente
possível, instituir uma prevenção dos distúrbios precoces, baseada nos
conhecimentos trazidos pela psicanálise. Ela põe em prática esta idéia, com
algumas pessoas, inventando a
Maison Verte.
Aparentemente, como qualquer ão de prevenção, (..) não mostra nada de
espetacular, entretanto é uma invenção grandiosa. É um lugar de lazer para
as crianças pequenas, com seus pais, uma espécie de jardim público com
um teto onde acontecem coisas que não acontecem em nenhum jardim
público das grandes cidades (Colonel e
Mezamat, 1983a).
Para concluir esta breve apresentação biográfica, resta
-
me pontuar o universo de Dolto
em relação ao universo de outro gigante da psicanálise, Lacan; de quem foi contemporânea e
colega de ‘brigas e cisões institucionais’. Além de um grande respeito mútuo, houve entre
Dolto e Lacan muita afinidade teórica. O primeiro contato intelectual entre os dois pode ser
situado em 1936, quando Lacan apresentou perante o congresso psicanalítico de Marienbad o
seu artigo O estádio do espelho. Na platéia, ainda como aluna de medicina, Dolto pareceu
impressionada com as idéias expostas e fez detalhadas anotações, que acabaram por se
constituir no único registro escrito deste artigo original, pois Lacan o destruiu em
represália ao fato de ter sido interrompido pelo presidente do congresso Ernest Jones não
permitindo que o texto fosse publicado nos anais do congresso.
Dois anos mais tarde, em 1938, ocorreria um segundo encontro intelectual’ entre o
dois, em torno do artigo A família, que segundo o próprio Lacan retoma o essencial do artigo
de 36 (Lacan, 1998: 186). Porém, o encontro definitivo’, aquele que selaria a afinidade
‘teórica’ entre os dois autores, aconteceu em 1953. Nesse ano Lacan publicou o artigo
Função
e campo da fala e da linguagem em ps
icanálise,
texto
que considera o escrito fundador do seu
ensino. Neste artigo, Lacan partindo da teoria lingüística de Ferdinand Saussure
apresenta as suas formulações sobre o inconsciente e a linguagem, cuja conclusão foi
sumarizada no seu famoso axio
ma
o inconsciente é estruturado como uma linguagem (Lacan,
26
No Brasil existem algumas experiências semelhantes. Em Florianópolis, a Casa da Colina-
Es
paço de Saúde e
125
1998). Muito embora se faça necessário destacar que nem sempre a opinião de Lacan e Dolto
sobre a concepção de linguagem sejam acordes, como veremos adiante.
Lacan tornou
-
se provavelmente o maior teórico da psicanálise, depois de Freud, e isso,
de um certo modo embaçou parte do brilho de muitos daqueles que com ele conviveram. As
pessoas em torno de Lacan ou eram convertidos em discípulos ou em adversários. Dolto foi
uma das poucas exceções a essa regra. Mantiveram uma longa relação de amizade. Dolto foi
uma das raras mulheres que teve acesso ao restrito grupo de amigos de Lacan, na sua quase
totalidade constituído de homens. “Françoise tuvo derecho pues, (...), a la expressión de uma
fraternidad habitualmente reservada a los hombres. (...). Así que fue, como Jenny Aubry, uma
verdadeira amiga.” (Roudinesco, 1994: 353).
Mas nem sempre concordaram em tudo. Dolto freqüentemente lhe fazia críticas; às
vezes quanto a alguns traços pessoais de Lacan, cujo comportamento algo infantil, segundo
Dolto,
servía para disimular uma especie de vacio; se havia percatado que Lacan se
parecía a um niño nascisista e caprichoso al que le habia faltado, em su
primera infancia, algo esencial. Por eso se dirigía a él como a los niños de
su consulta. Le hablaba como a um niño no para infantilizarlo, sino par
restituir al adulto demasiado infantil em que se había convertido la infancia
real de la que había sido privado (Dolto apud Roudinesco, 1994: 356).
Em outras situações, porém, manifestava expressa discordância quanto a algumas
posições teóricas, como ao classificar de “abusiva” a denominação lacaniana de estádio do
espelho
àquilo que para ela representava apenas uma
experiência
narcísica
do espelho (Dolto,
2002a: 120
-1
21).
As suas primeiras experiências com crianças utilizando o que chamava de
fala
verdadeira,
indicando uma ênfase na linguagem como expressão do sujeito, entendido
como
sujeito de desejo, que viria a fundamentar toda a sua construção teórica, remontam ao
seu trabalho no hospital de Bretonneau, portanto bem antes da publicação do texto fundador
do
lacanismo
(Função e campo da fala e da linguage em psicanálise, de 1953). Portanto,
embora reconheça pontos de convergência entre os dois, creio que o posicionamento mais
de Cultura, coordenada pela psicóloga Enedina Martins, desenvolve experiência baseada nos princípios
doltonianos e inspirada na
Casa Verde
. Funciona na rua Cachoeira, 156
-
Rio Tavares.
126
conveniente acerca da relação entre Françoise Dolto e Jacques Lacan talvez seja o indicado
pelo próprio Lacan: “Tu no necesitas comprender lo que yo cuento, puesto que, sin teorizar,
dices lo mismo que yo” (Lacan apud Roudinesco. 1994: 354). Fica claro, na assertiva
lacaniana, aquele narcisismo aluidido acima. Mas para além disso, o essencial é a idéia
transmitida de que entre os dois havia semelhanças de entendimento, em muitos aspectos. E
algumas divergência de fundo em outros.
Dentre as divergências mais profundas, menciono a noção de maturação instintiva
,
aceita por Dolto e rechaçada por Lacan, assim como um “(...) cierto biologismo freudiano
[aceito e usado por Dolto em suas formulações e] justamente aquel cuya critica efectuaba
Lacan (...)” (Id. Ib.: 355). Porém, esse mesmo Lacan que rechaçava qualquer posição que
apontasse uma linha
maturacional
ou
biologicista,
diria a Dolto — após uma intervenção sua
durante um congresso em Roma: “una voz divina se habia hecho escuchar por su boca”
(
Roudinesco, 1994: 355) Mas a fala de Dolto, que tanto impressionara Lacan, fora exatamente
uma defesa eloqüente do
biologismo
e da maturação instintiva que ele rechaçava.
Dolto,
pontua Roudinesco, “Havia evocado largamente la relacion carnal del niño com la madre y
subrayaddo que el papel del psicoanalista, (...) era comprender más allá de su lenguage
tomado del mundo de los adultos, para devolverle el lenguage de su edad de desarollo real.”
(1994: 355). Ou seja: Lacan não poupava elogios a Dolto, mas parte do que elogiava nela
estava eivado daquilo que teoricamente contestava.
Há, enfim, quem veja em Lacan, o teórico e em Dolto, a clínica. Essas duas posições
certamente não seriam aceitas por nenhum deles. Lacan nunca se satisfez com o epíteto de
teórico.
Teorizava, é verdade, mas com base na clínica. Por outro lado, as contribuições
originais de Dolto a colocam em de igualdade em relação aos grandes teóricos da
psicanálise, muito embora se evoque e até mesmo se ressalte a sua condição de clínica
exc
epcional.
127
5.2 O MÉTODO E O ESTILO: ‘médica de educação’
A marca e o diferencial de Françoise Dolto na abordagem terapêutica de crianças foi o
seu método, desenvolvido a partir da sua experiência clínica no hospital de Bretonneau. “As
crianças difíceis, fóbicas, insones, enuréticas, desajustadas e com problemas escolares
compunham a sua clientela” (Ledoux, 1991: 11). Era a época da Guerra, as condições
materiais na França ocupada eram as piores possíveis. Muito pouco podia ser feito em termos
convencionais, seja em termos de tratamento psiquiátrico medicamentoso faltavam
recursos
seja em termos de uma abordagem terapêutica ortodoxa. Não havia tempo nem
profissionais treinados e disponíveis para atender a demanda.
Por essa razão ou mesmo pela sua vocação para ‘médica de educação’— atividade
imaginada por Dolto ainda na infância dedicou-se à atividade terapêutica com base em
princípios teóricos psicanalíticos, porém utilizando-se de uma técnica muito pouco usual à
época: “Uma consulta especial uma vez por semana agrupava as crianças anormais,
retardadas, as que apresentavam distúrbios nervosos ou de caráter: consulta hoje muito
conhecida dos pais e, sobretudo, dos professores (...)”. (Dolto, 1988: 131). O que se fazia
nessas consultas era em sín
tese
ouvir as crianças difíceis, problemáticas, desajustadas,
falar com elas, e, sobretudo, deixá-las falar. Elas falavam sem amarras, sem que o
profissional que lhes ouvia, partisse do pressuposto de que suas palavras eram desprovidas de
sentido. Dolto
escutava as crianças. Animava-lhe a certeza de que aquele indivíduo, que ali se
apresentava como
em falta em relação ao seu potencial de corpo —
escondia um sujeito de
desejos, cuja plenitude como ser humano, era às vezes eclipsado pelo corpo
-
em
-
sofrime
nto.
Além de escutar a criança, Dolto se propõe a escutá-la em sua língua
comprender
más allá de su lenguage tomado del mundo de los adultos, para devolverle el lenguage de su
edad de desarollo real.” (Roudinesco, 1994: 355) utilizando as mesmas palavras da
criança, os mesmos referenciais culturais, as mesmas imagens que povoam o seu universo.
“El método que invento consistia em rechazar la técnica de juego y de la interpretación de los
dibujos em favor de uma apropriación por el terapeuta del linguagje infantil” (Id. Ib.: 352).
É
importante pontuar o que significava esse rechaçamento ao qual alude Roudinesco, pois se
128
sabe que Dolto utilizava largamente a técnica do desenho e da cerâmica. A diferença
fundamental residia na não interpretação. Dolto utilizava o desenho e a cerâmica, mas
perguntava à própria criança o que o seu desenho queria dizer, ou ainda, o que a criança
queria dizer com o desenho, que, nessa perspectiva tinha o papel de ‘associação livre infantil’.
Freqüentemente as suas sessões psicanalíticas eram acompanhadas por observadores
(alunos, médicos, psicanalistas); a todos interessava ouvir aquela mulher que sabia conversar
com crianças. Os diálogos nem sempre eram compreendidos pela audiência; algumas vezes
poderiam parecer inúteis, absurdos, sem sentido. E de fato o eram, afinal o inconsciente
que é onde Dolto pretendia chegar — não obedece a uma lógica racional, adulta. Dolto
evitava uma linguagem lógica, que agredisse ou ferisse a inteligência da criança, que ainda
não é lógica: “queremos falar ao seu inconsciente que jamais é ‘lógico’ em pessoa alguma
— e é por isso que empregamos a linguagem simbólica e afetiva, que é dela e a afeta
diretamente”. (Dolto, 1988 132-
133).
A autora reuniu 17 casos que constituíram o campo empírico de investigação que
embasou a sua tese de medicina. Com isso “queria provar que o tratamento serviu para ajudar
a criança a resolver com êxito o seu complexo de castração e a liquidar o seu complexo de
Édipo e não em virtude de ‘uma influência pessoal sugestiva’” (grifo da autora; Id.Ib.: 131).
Com esta frase final grifada, Dolto provavelmente, queria marcar uma posição de diferença
em relação ao pensamento e à abordagem terapêutica de Melanie Klein, para quem “A tarefa
do analista é aceder às fantasias e desejos mais profundamente recalcados e tentar fazer com
que o paciente se conscientize deles” (Ledoux, 1991: 204). Esta postura encontra em Dolto
forte objeção, porque, para além das diferenças teóricas, criticava em Klein a sua forte
tendência à interpretação. Dolto, contrariamente, não sentia essa necessidade ou mais ainda,
não via utilidade terapêutica nela. O que importava “era a comunicação de inconsciente para
inconsciente” (Id. Ib.: 208) e isso não necessariamente precisava ser interpretado, ou
convert
ido para uma linguagem consciente por uma razão simples: não é no consciente que o
distúrbio se conforma, logo não havia vantagem terapêutica em se fazer aflorar para o âmbito
do consciente o conteúdo inconsciente; ele precisava ser atingido enquanto incon
sciente
129
mesmo. Daí o uso da escuta livre e das palavras afetivas e simbolicamente ‘carregadas’.
Trata
-se, portanto, “antes de mais nada, de um trabalho de comunicação da verdade
inconsciente do sujeito. (...) Um trabalho a partir do que a criança diz (...)” (Ledoux, 1991:
152
-
153). A abordagem do caso Frédéric/Armand ilustra o método, como veremos.
Dolto, numa aparente contradição, costumava dizer que não havia diferença entre o
tratamento psicanalítico de adultos e de crianças. “Na verdade, para a Sra Dolto, não existia
psicanálise de criança. O que existia (...) era o psicanalista que praticava psicanálise
com
crianças”. (grifo do autor; Nasio, 1995: 250). A compreensão desse princípio poderá ser
alcançada se entendermos a mensagem profunda embutida, qual seja: crianças e adultos
definem os seus traumas psíquicos que irão dar corpo aos distúrbios no nível
inconsciente, mas o inconsciente não tem idade. Não a rigor nenhuma diferença
entre as fantasias de um velho e de uma criança, exceto talvez pelo conteúdo dessas fantasias;
mas o material do que são constituídas é o mesmo. Nessa perspectiva, não importa a idade;
importa buscar uma forma de chegar ao inconsciente.
Dolto preconiza a escuta e a fala comprometida. Nisso não se lhe pode atribu
ir
pioneirismo. Desde Freud após o abandono da técnica hipnótica o escutar constituiu o
método por excelência da psicanálise. Escopo presumido do método da livre associação de
idéias,
preconizada por Freud. Em Dolto, entretanto, duas coisas se avultam
como
importantes e, nisso, é pioneira: uma atitude no escutar caracterizada pelo respeito ao desejo
do outro, mas um respeito comprometido. Para Dolto não é verdade que o psicanalista é
um
ausente,
alguém que deva permanecer distante da cena traumática entendida como a(s)
experiência(s) real(is) ou fantasiada(s) do sujeito. Mas até mesmo se envolvendo
emocionalmente com o drama do analisando; mas não um envolvimento externo, no sentido
corretivo ou interpretador. O envolvimento que Dolto buscava era de
in
consciente para
inconsciente.
Para a autora, “O essencial é escutar, tentando estar sempre presente (...)”
por
outro lado, “um analista não é alguém que sabe, mas que é capaz de ouvir o outro, de se
identificar, (...) com a criança ou com a mãe, para descobrir (...) o que cada um sente” (Dolto,
1990: 151; 210). É necessário haver, por parte do analista, uma disposição de escuta. É
130
preciso situar-se na posição do sujeito que supostamente sabe, mas que sabe não saber nada
da verdade inconsciente do sujeito. Nesse sentido, “ajuda o paciente a ser seu próprio
analista (...) através da linguagem que esclarece o sentir e o dizer do analisando, associando-
os a acontecimentos históricos vividos ou fantasiados” (Ledoux, 1991: 210). A menção ao
analista como sujeito que supostamente sabe, faz eco com o ensino de Lacan nesse mesmo
sentido (Lacan, 1985: 218
-230).
Como mencionado anteriormente, Dolto costumava ‘cobrar’ da própria criança um
pagamento simbólico pelas sessões. Isso, para a autora, selava o compromisso ético entre os
dois
analista e analisando e marcava uma posição de aceitação por parte da criança do
trabalho que estava sendo feito. Dolto jamais aceitou que uma criança fosse submetida a uma
terapia de forma enganada, bem como rechaçava os títulos carinhosos, como o de tia.
Normalmente se apresentava à criança como a doutora ou a médica que iria ajudar
a
senhorita
ou o rapaz a livrar-se da sua doença e anunciava sem rodeios o distúrbio em
questão
se a criança quisesse ser ajudada completava. Ao longo do processo
terapêutico, se a criança passasse a tratá-la por você, então, Dolto passava a referir-se à
criança também como você.
A criança não precisa e nem é bom que tenha a sua privacidade invadida. Deve-
se ir até onde a criança permitir. Isso cria as condições para que se estabeleça uma relação de
confiança que facilite o processo de transferência e o acesso ao inconsciente: escopo final de
todo o processo analítico. Esse respeito à privacidade infantil deve-se manifestar em todas as
ocasiões. Dolto lembra que despir uma criança, sobretudo na frente de outras pessoas, sem
que ela seja comunicada do que vai acontecer e das razões para isso, constitui violência que
deve ser evitada. Bem como compungi-la a falar, com perguntas insistentes,
afastá
-
las de seus
pais ou mesmo de seus brinquedos sem uma negociação e aceitação prévias.
Juan
-David Nasio, amigo e discípulo, participou de várias de suas sessões analíticas.
Na condição de observador, descreveu o que chamou de “gestação do ato analítico” em
131
Françoise Dolto
27
. Nasio o apresenta em quatro tempos: no primeiro tempo “ela se apoiava
nos sinais observados no comportamento gestual do paciente”. Aqui observa tudo: a forma
como anda, como respira, expressões faciais, brincadeiras, desenhos, os sons que emitia, as
histórias que contava, a relação com amigos e familiares.
Num segundo tempo, com base no material colhido no primeiro, Dolto se comportava
como se não tivesse entendido tudo. Assumia, em alguns momentos, uma posição de
perplexidade e “entrava numa fase de
tateamento”
, durante o qual se comportava como se
tivesse buscando entender. “Súbito, num dado momento, F. Dolto parecia
isolar
-
se
mentalmente,
e fazer o que chamo ‘o silêncio em si’, ou seja, subtrair-se dos ecos do seu
próprio eu”. Nesse estado, Dolto sintoniza o inconsciente da criança. Descobre no fundo
“uma outra criança”, aquela do inconsciente, diferente da que está no consultório, que traz as
marcas que definem o seu sofrimento atual. “Se ampliarmos a cena [diz Nasio] aparece
rão
outros personagens que, à maneira de uma roda fantasística, giravam em torno da criança
inconsciente”. Por que a cena traumática é normalmente povoada de coisas, lugares e pessoas.
A percepção da criança assim efetuada é, para Nasio, a percepção da i
magem
inconsciente do corpo da criança”, que será apresentada e discutida posteriormente, mas que
pode ser tomada nesse momento como o próprio inconsciente da criança. Porém, na criança
psiquicamente enferma esta imagem inconsciente do seu corpo necessita reparos; está para
ser consertada. E pode ser atingida se o psicanalista põe em jogo o seu próprio
inconsciente, pois como vimos anteriormente, a única comunicação verdadeira advoga
Dolto
é de inconsciente a inconsciente. Na cnica psicanalítica, desde Freud, isso é
possível se o psicanalista se implica no processo terapêutico, o que em última instância
constitui a relação transferencial existente entre analista e analisando. É por essa razão
pontuo
que o analista não pode se situar na condição de ausente emocional, mas envolver-
se; sem que esse envolvimento, essa identificação com o sofrimento do outro, signifique
“sentir pena ou piedade”, ou se sinta comprometido a resolver o problema do outro.
27
O relato que segue foi feito com base no depoimento de
Nasio, publicado sob o título
Um testemunho sobre a
clínica de Françoise Dolto
(Nasio, 1995: 247
-
258). Todas as passagens mencionadas entre aspas fazem alusão
ao citado texto.
132
Colocar o seu desejo em jogo na relação transferencial, pressupõe abrir-se à
possibilidade de uma comunicação de inconsciente a inconsciente como referido o que
justifica a necessidade da análise prévia dita didática do analista. O que viabiliza o
estabelecimento de uma relação entre iguais: única forma eticamente justificável de situar o
‘sujeito que supostamente sabe’ ante o sujeito que supostamente não sabe. E isso fica ainda
mais evidente e necessário quando se considera que o lugar do analisando neste caso é
ocupado por uma criança.
No terceiro momento de seu processo, Dolto “ao mesmo tempo em que realizava o
processo silencioso de identificação com a criança inconsciente, também podia assumir o
papel de cada personagem da constelação fantasística. E tudo isso sem jamais perder o cont
ato
com a criança da sessão e com os analistas presentes”.
No quarto momento o momento culminante do ato analítico ocorre a
irrupção
da interpretação.
É o momento em que “o analista anuncia à criança da sessão o que a criança
inconsciente precisa ouvi
r ou dizer”. Não se trata apenas de uma interpretação comunicado ao
cognitivo da criança. É preciso haver comunicação inconsciente. “Ela transmitia a uma a
criança da sessão
aquilo que fora beber na outra
a criança inconsciente”.
Nasio não faz nenhum esforço para ocultar o seu entusiasmo diante de Françoise
Dolto. De fato a considerava uma pessoa iluminada, opinião que compartilhava com muitas
outras pessoas, como pode ser atestado pelo depoimento de Élisabeth Roudinesco, para quem
Dolto era
una mujer fuera de lo común [a quem atribui a invenção de] un habla
inolvidable que hizo de ella uma narradora popular capaz de interpretar la
lengua de la infancia a la manera de um etnologo que hubiera escogido no
sólo observar los ritos de su tribu de elección, sino compartir suas alegrías y
sus sofirmientos.
(1994: 352
).
Dolto não se restringiu aos limites do consultório. Aliás, o próprio consultório perdeu
as suas características peculiares. As suas sessões terapêuticas freqüentemente contavam com
grandes p
latéias. Pessoas desejosas de verem e ouvirem aquela mulher ‘que sabia falar com as
crianças’. Dolto por sua vez tinha grande apreço em divulgar as suas descobertas. As
inúmeras palestras que proferiu e os programas de rádio que apresentou dão testemunho d
isso.
133
Dolto sabia intuitivamente que parte do que ensinava não poderia ser feito através dos livros,
porque se baseava em um tipo de comunicação na qual a fala exercia papel preponderante. E
disso se deu conta Winnicott quando, na condição de presidente de uma comissão da IPA
(Associação Internacional de Psicanálise), interrogara Dolto a propósito do pedido de filiação
da recém
-
fundada Sociedade Psicanalítica de Paris
— afinal negada —
. Winnicott opinou que
“achava interessante e inovador o seu trabalho, mas censurava-a pela transferência selvagem
que ela despertava e concluiu, no final das contas, que Françoise ‘tinha intuição demais e
método de menos para ser didata’” (Ledoux, 1991: 13). Com esse parecer Winnicott negou à
Dolto a condição de instrutora de novos psicanalistas, no âmbito da IPA, o que não a impediu
de continuar ‘ensinando’ psicanálise a várias gerações de novos analistas.
Dolto jamais se converteu numa celebridade acadêmica, mas ocupou um lugar
privilegiado como grande divulgadora da cultura psicanalítica. Gostava de ‘ensinar’ como se
ouvir crianças. Isso talvez explique, afinal, o que a pequena Françoise queria dizer quando,
ainda criança, manifestava o desejo de ser
médica de educação.
5.3 TUDO É LINGUAGEM: o sujeito é sujeito da linguagem
Ouvir Françoise Dolto dizer que é preciso escutar a criança pode nos remeter à idéia
de que a autora não faria a abordagem terapêutica de um bebê, ou de uma criança cujo
processo de fala pudesse estar comprometido. Mas Dolto sustentou “que a linguagem ex
istia
com ou sem as palavras” (Ledoux, 1991: 13). Tudo é linguagem afirmaria . Mas o seu
tudo é linguagem, assevera Gerard Guilleraul, “vem reafirmar (...) a importância e a primazia
da palavra, mas até mesmo em suas incidências corporais, (...) por mais jovem que seja. É
também corporalmente, carnalmente, que tudo adquire sentido no homem, tudo adquire
sentido de linguagem”. (Dolto, 2002a: XIII). Nesse sentido a linguagem existe como
expressão de vida. Onde há vida, há linguagem. Os exemplos mencionado
s a seguir ilustram a
noção doltoniana de linguagem.
A autora fora procurada por um pai, cuja filha recém-
nascida negava
-
se a comer desde
que fora afastada de sua mãe, que permanecia internada em vista de complicações puerperais.
134
A criança definhava e apresentava complicações decorrentes da falta de alimentos. Várias
alternativas haviam sido buscadas, vários familiares haviam-se envolvido na tentativa de
resolver o impasse. Dolto ouviu atentamente o relato e sugeriu que o pai pegasse uma roupa
suja da e, no hospital, e a colocasse enrolada no pescoço da criança. Tomada essa
providencia, o bebê iniciou um processo de recuperação das forças e logo em seguida passou
a alimentar-se normalmente. Essa criança precisava segundo a autora ser reconhecida
no
cheiro da mãe. Por ter sido afastada muito precocemente da mãe, esta criança não tivera a
oportunidade de reconhecer os seus odores e em reconhecendo-os, reconhecer-se. A criança
precisava ser informada que “seu interior existia, e que havia nele um desejo relativo à sua
necessidade”. (Colonel e Mezamat, 1983). A propósito dos odores e do seu significado
humanizante voltarei a falar quando da discussão sobre a construção das
imagens do corpo.
Um outro caso clínico que trago à apreciação é o do garoto Frédéric/Armand. Trata-
se
de uma criança que fora abandonado pelos pais e admitido em um orfanato — onde recebeu o
nome Armand e permameceu até a idade de 11 meses —, até ser adotado. A família que o
adotou renomeou-lhe como Frédéric. Ao longo da sua infância, o garoto apresentou alguns
distúrbios de desenvolvimento, vindo a apresentar sérios problemas somáticos, cognitvos,
emocionais e uma acentuada hipoacusia, parcialmente corrigida através de um aparelho de
surdez. Aos sete anos de vida, o garoto foi levado à Dolto em vista desses problemas. O
tratamento a que foi submetido revelou
-
se eficaz quanto a vários desses distúrbios.
Uma certa aparência psicótica, que ostentava no início, desapareceu e a criança
lentamente se recuperou e adaptou-se a sua faixa etária em muitos aspectos do seu
desenvolvimento. Mas se mantinha incapaz de escrever, e apresentava uma renitente recusa
às atividades de leitura. Freqüentemente desenhava o que parecia a letra ‘A’ em todos os
lugares. Perguntado por Dolto, durante uma sessão, se se tratava de um ‘A’, respondeu
afirmativamente, pronunciando a resposta aspirando’, como se suspirasse, enquanto no geral
falava emitindo um som expirando. Dolto certificou de que não havia na sua atual família
qualquer pessoa ou coisa que pudesse ter relação com este ‘A’. Em contato com o pessoal do
orfanato onde residira até os 11 meses, Dolto soube do seu primeiro nome. Isso foi
135
comunicado à criança, porém nenhuma alteração foi obtida em relação a sua dificuldade com
leitura ou escrita. Para Dolto essa ‘interpretação’ e a conseqüente comunicação da presumível
causa de seu problema não o ajudou em nada. A interpretação não traz nenhum resultado
diz a autora numa alusão ao ato de tornar consciente ou em trazer ao nível cognitivo uma
‘verdade’ incons
ciente.
Um dia a criança estava no consultório, desenhando, quando Dolto teve uma idéia:
como se não se dirigisse a ninguém, ou como se chamasse alguém que não se sabe onde está,
começou a chamar por Armand, mas fazendo-o como se o chamasse com uma
voz
sem
lugar’,
com uma voz inconsciente
:
Armand...! Armand...! Armand...! As testemunhas presentes à minha
consulta viram-me a chamar por um Armand que eu não sabia onde estava.
Eu não olhava para Frédéric. E nisso permaneci algum tempo. As pessoas
presentes
relatam que viram o garoto aguçar os ouvidos e se comportar
como se também procurasse algo ou alguém. Também não me olhava. Em
determinado momento, os nossos olhares se encontram e lhe disse: ‘Armand
era o teu nome quando você foi adotado’. Houve um brilho especial em seu
olhar. Houve um processo completamente inconsciente. Ele precisava ouvir
esse nome, mas não chamado com a minha voz normal, mas com uma voz
sem lugar, uma voz em off, chamando-o de fora da cena. Isso estabeleceu a
comunicação com o inconsc
iente da criança, que se curou. (2002a: 35
-
37).
Numa outra oportunidade, Dolto menciona o caso de uma criança de 14 meses,
morador de um internato que apresentava um comportamento depressivo e quase autista.
Chamada a atendê
-
lo, ela falou à criança nos seguintes termos:
Talvez você queira morrer, não é? (...). Bem, veja só, por mim eu não o
impediria de morrer, mas você sabe muito bem que, no orfanato, não vai ser
possível (...); prefiro, se você quiser, que você me explique porque você
quer morrer. Então, depois que tiver falado, talvez você seja capaz de
viver.” (apud Ledoux, 1991: 74
-
75).
Esses exemplos ilustram a compreensão que a autora tem de fala e escuta, que diz do
sujeito que se conformou no inconsciente através da linguagem, uma linguagem que é tudo e
que humaniza a criança. Uma fala verdadeira, com palavras que façam “sentido quando
proferidas pelo amor que as tornou sensatas” (Dolto apud Id. Ib.: 75). A autora sempre
defendeu a idéia de que era preciso falar com os bebês, falar-lhes a verdade. “Toda criança
tem o entendimento da fala, quando quem fala com ela, fala com autenticidade querendo
comunicar algo que ao seu ver é verdadeiro” (Dolto apud Id. Ib.: 75).
136
É essa linguagem que humaniza e acompanha a criança mesmo antes do seu
nascimento e continua depois dele. Dolto imagina uma triangulação na linguagem,
envolvendo a mãe, o outro da linguagem
que pode ser o pai
e a própria criança.
Esse “pai” pode ter sido a parteira (...). Sua palavra deve, pois, se manifestar
pelo fazer da criança, que dessa forma sustenta sua realidade existencial,
haurida nessa primeira transação da linguagem quando do seu nascimento.
Eis como podemos entender que tudo é linguagem, e que a linguagem, em
palavras é o que de mais germinativo, mais fecundante, no coração e na
simbólica do ser humano que acaba de nascer. Ele pode se desenvolver
num corpo (...) se estiver relacionado com uma voz (...), associada a de sua
mãe. (grifo da autora; Dolto, 2002b: 20).
Perguntada especificamente sobre a possibilidade de fazer psicanálise em crianças que
ainda não têm linguagem, a autora respondeu: “...elas não m a linguagem verbal (...) mas
têm uma linguagem, (..).” (Dolto, 2002b: 113). Não há sujeito sem linguagem da mesma forma
que não há linguagem sem sujeito. O que precisamos levar em conta é que em cada momento
histórico da vida do sujeito, a linguagem adquire uma marca preferencial, ou seja, existe uma
historificação
da linguagem. No útero a única linguagem disponível à criança são os
movimentos, mas com eles se c
omunica.
As palavras, porém, mesmo quando proferidas para e com crianças pequenas ou bebês,
ou até na vida intra-uterina, têm muita importância. Para Dolto, elas manifestam um estado
emocional, uma energia que se transmite à criança e que pode existir até mesmo em silêncio.
É necessário e importante falar às crianças, mas falar palavras verdadeiras, entendidas como
aquelas que expressam uma verdade para nós. Nesse sentido, a autora defende na verdade
uma postura diante da criança marcada pela coerência e c
ompromisso ético. Para a autora
As palavras são aquelas que nos exprime a nós mesmos, de verdade, não
palavras “ao seu alcance”, mas palavras do vocabulário que o claras para
nós. [Por outro lado], (...) sessões de análise que se passam em total
silê
ncio. (...) sessões de silêncio completo, um silêncio verbal, com uma
enorme energia de comunicação”(2002b: 113). [E em seguida completa:]
“É no nível de inconsciente para inconsciente. A forma de olhar é
linguagem. É uma forma de linguagem interpsíquica.” (Dolto, 2002b:
114).
A relação que Françoise Dolto propõe estabelecer com a criança é uma relação
fundada no compromisso ético, no respeito à pessoa do outro, como sujeito. Isso vai demarcar
o seu diferencial terapêutico e teórico. O outro é outro do desejo. A criança precisa ser
acolhida no desejo do outro e sentir no outro acolhimento ao seu próprio desejo. No feto o
137
desejo se articula com o desejo de
vir
-a-
ser,
ou seja: com o desejo de incorporar matéria e
tornar
-se vivente. Na criança pequena o desejo é essencialmente o desejo de ser
.
É, antes de
saber, porque foi fundado no desejo que se articula na linguagem. Torna-
se
ser
numa relação
social permeada pela linguagem. “O ser humano é um ser de ‘filiação linguageira’, um ser de
linguagem, pertencente a uma linhagem. Inscreve-se num mundo transgeracional”. (grifo do
autor; Nasio, 1995: 208). Não existe outro, que não seja outro da linguagem.
Nessa perspectiva poderíamos inferir que aluma ligação entre as teses de Dolto e
aquelas defendidas por Jacques Lacan, conforme vimos no início deste capítulo. Mas as
convergências param aí, até porque para Lacan “o homem é escravo da linguagem” e, por
outro lado, “a linguagem preexiste ao sujeito” (Ledoux, 1991: 217; 220), a linguagem o tem
;
enquanto para Dolto, o homem é dotado de linguagem. Não prescinde dela, na verdade
afirma
-se como sujeito por ela que de certa forma o humaniza mas ainda assim, “nunca
é completamente um joguete, mas tem um desejo próprio que manifesta desde muito cedo”
(Id. Ib.: 217). Por ter um desejo próprio é
sujeito.
Em Dolto poderemos dizer sujeito da
linguagem;
Em Lacan,
sujeito na linguagem
.
São diferenças semânticas sutis, porém revelam diferenças conceituais profundas. O
sujeito de Lacan é causado passa a existir a partir de duas operações:
alienação
e
separação
. Pela
alienação
o sujeito entra no campo do outro, representado pela linguagem.
Isto é, se inscreve no campo do outro, o que equivale a dizer, se aliena à linguagem. Por um
lado precisa disso para se humanizar, para não se perder numa existência egóica, petrificada.
Mas se permanecer alienado, perde a sua identidade. Por isso vem a segunda operação que lhe
causa, que faz existir o sujeito: a
separação
, através da qual o sujeito nasce como sujeito
propriamente dito. Por esta operação o sujeito busca um lugar onde identifica uma falta no
outro, para onde o sujeito acorre na ilusão de que possua aquilo que falta ao outro.
Mas isso que falta ao outro para ser completo não está, segundo Lacan, em nenhum
lugar. Por isso qu
ando o sujeito se apresenta como um obturador da falta do outro, na verdade
intenta obturar uma falta com outra falta. Nessa perspectiva lacaniana o desejo é o desejo de
obturar o furo/falta no outro, mas obturá-lo com um
não
-
ser,
porque o sujeito não tem, de
138
fato, o que falta ao outro, embora suponha ter, e em vista dessa suposição se apresente como
obturador. Como conseqüência, desse encontro de duas faltas se supõe estar preenchido o
lugar do sujeito. Por essa razão diz Lacan o sujeito é barrado/divi
dido
, é um
falta
-
ser
.
É, enfim, desprovido daquilo que diga respeito de si. Dolto jamais aceitou essa condição de
sujeito em Lacan. “Para Lacan” [dizia ela] “o sujeito é um furo: ele tinha medo desse abismo,
(...). Agarrava
-
se às bordas” (Dolto, 1990: 127)
.
O sujeito doltoniano também depende do outro. É o outro que o centra e lhe
sentido, é através do outro que exerce a sua função simbólica. Mas não é barrado, não é um
furo. Adquire consistência no desejo de
vir
-a-
ser
. Para a autora, enfim,
Desde os primeiros dias está ligado à mãe pelo olfato e pela voz, que lhe
permitem encontrar-se. É o outro que é o detentor da identidade do sujeito,
pois é através do outro, isto é da mãe-nutriz, que o bebê reconhece e se
conhece (...). Sem o outro a função simbólica da criança se exerceria no
vazio, que é exatamente o outro que sentido ao experimentado e ao
percebido: o outro humaniza.
(Dolto apud Nasio, 1995: 212).
E nisso reside a fundamental diferença entre os dois. Lacan encontrava ‘o furo’ no
lugar em que procurava o sujeito. Françoise Dolto identificava o sujeito como ‘o desejo de
viver’, nesse sentido, ancorado na
transcendência
como sua substância maior.
Uma certa identificação conceitual poderia ser presumida entre Dolto e Lacan, tendo
em vista sobretudo a famosa afirmação de Lacan de que Dolto, mesmo sem teorizar, fazia o
mesmo que ele. O ponto de partida pode ser semelhante, mas os pontos de chegada são
díspares. Em Lacan, desde o início, o fundamento colocado é o da impossibilidade de
obturação do furo; enquanto em Dolto a relação visceral, construída “através das referências
carnais e pela comunicação da linguagem” (Id. Ib: 212) permite à criança antever uma
possibilidade real de obturação do furo. A diferença, a meu ver, é que enquanto uma visão
a lacaniana lança o sujeito humano numa existência desprovida de sentido e radicalmente
niilista, a visão doltoniana permite a construção de um sentimento configurado nos termos da
coragem de ser,
como enunciado por Paul Tillich (2001: 3).
139
5.4 ANTEC
EDENTES DA IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO:
o desejo dos pais sustentado na linguagem
Para Dolto, desde a concepção o feto inicia a sua vida de relações. Na verdade até
mesmo antes dela. Pois a concepção deve ser vista como parte da história de vida da criança.
“O investimento narcísico da criança deve ser entendido como uma herança do excedente
energético e emocional do encontro simbólico de duas pessoas (...) que trocam uma libido na
conjunção genital, na concepção do filho” (Ledoux, 1991: 110).
As
impressões emocionais vividas pela mãe deixam marcas no corpo e no psiquismo
da criança. Dolto admite a hipótese do aparecimento de um distúrbio orgânico na criança em
gestação em vista de uma perturbação emocional materna. “Assim, uma criança pode ficar
surda ou muda por sua mãe ter vivido um drama na época em que se construíram os aparelhos
da linguagem e da fala” (Ledoux, 1991: 110.) Por outro lado, a maneira como o bebê é
acolhido no ventre da mãe tem efeitos inibitórios ou promovedores. Desde o útero advoga
Dolto
a criança conforma um corpo-mente, imerso na linguagem. “O sujeito ganha corpo
(...) apoiado nas emoções de seu círculo mais imediato, através de trocas substanciais e sutis”
(Dolto apud Nasio,1995: 220).
As
trocas substanciais alimentos, água, sais minerais, oxigênio etc — dizem
respeito ao mundo das necessidades, da materialidade dos alimentos e dos excrementos,
vinculada às quais se define o esquema corporal, que chamaremos neste primeiro momento
de corpo físico. Enquanto as trocas su
tis
dizem respeito aos vínculos emocionais e afetivos
que se estabelecem entre a criança e a mãe; dizem respeito à comunicação, ao desejo, ao
olfato, à audição e à visão. Estão em relação ao que Dolto denomina imagem do corpo
,
conformada inconscientemente
e que especifica cada um. Tem a ver com a sua história, com a
sua identidade específica. “É a encarnarão simbólica do sujeito desejante” (Dolto, 2002:
contra
-
capa).
Após o nascimento, essa comunicação continua, assim como continua o trabalho de
formação do sujeito. O sentir da mãe, a sua alegria ou tristeza impregnam a vida do bebê. Ao
nascer, “as projeções e sentimentos parentais são acolhidos pelo recém-nascido e marcam o
140
seu narcisismo” (Dolto apud Nasio, 1995: 110). A autora estabelece uma relação entre que
chama de imagem do corpo e as zonas erógenas em referência as quais se forma, porém,
“mais do que uma integração sensório-motora ou de uma elaboração psíquica a partir do
fisiológico, trata-se de uma memória inconsciente da vivência relacional, de uma encarnação
inconsciente do Eu em crescimento” (Id. Ib.: 84). Nesse sentido, a imagem do corpo aparece
como mediadora das três instâncias psíquicas (Isso, Eu e Supereu).
28
5.5 IMAGEM INCONSCIENTE DO CORPO: suporte do
Eu
A noção de imagem do corpo desig
nada
inconsciente
em vista dos mecanismos
inconscientes implicados na sua formação surgiu a partir da clínica doltoniana e constitui-
se no cerne de sua elaboração teórica. Não seria impróprio até mesmo considerá-la como a
sua noção-chave, a base de toda a sua clínica. Em auxílio dessa posição recorro ao
depoimento de Nasio, que ao descrever o percurso seguido por Dolto em seu processo
analítico, propugna pela existência de uma imagem do corpo que, do inconsciente, fala à
criança da sessão. Para Dolto a
im
agem inconsciente do corpo está próxima à noção de
Isso/Id, mas um Isso/Id relacional, isto é vinculado ao narcisismo primordial que tem
vinculação com o desejo dos pais, antes do nascimento e também com a constituição e
estruturação do Eu, após o nascimento e, nesse sentido, já mediado pelas injunções do
Supereu, cuja principal fonte alimentadora inicial é a própria mãe castradora, como veremos
ao discutirmos as castrações simbolígenas. Assim, posso dizer que o inconsciente da criança,
aqui tomado como o psiquismo ou vida mental estrutura-se, segundo a autora, como
imagem
inconsciente do corpo.
O conceito foi sendo esculpido ao longo de mais de 25 anos, e certamente continuará
sendo atualizado e aperfeiçoado, como sói acontecer na psicanálise e na ciência em geral. O
primeiro artigo sobre o tema foi publicado em 1957, nele a autora esboça o que veio a tomar
28
Conceitos psicanalíticos tais como os utilizados nesta dissertação podem não gozar de consenso até
mesmo entre psicanalistas de escolas diferentes. Por isso, quando os utilizar, procurarei defini-los previamente,
em relação ao contexto e/ou autor, quando o citado conceito demandar uma explicação para além da usual, ou
quando p
restar
-
se à confusão em vista de entendimentos diversos.
141
corpo e se consolidar como uma teoria completa somente em 1984, com a publicação do livro
A imagem inconsciente do corpo (2002b). Dolto lembra que a ima
gem inconsciente do corpo,
encarnação simbólica do sujeito desejante, deve ser compreendida como diferente do
esquema corporal. Pois, enquanto este diz respeito ao indivíduo como representante da
espécie, e guarda uma certa semelhança geral com todos os
es
quemas corporais dos demais
seres humanos nesse sentido não sendo suficiente para dar substância e individualidade ao
sujeito
—, “a imagem inconsciente do corpo é específica de cada um: ela está ligada ao sujeito e a
sua história. (...), ela é eminenteme
nte inconsciente”
(2002a: contra
-
capa).
Por
esquema corporal, então, designa-se o corpo, o conjunto das funções orgânicas e
biológicas, que especifica o indivíduo enquanto ser vivo. O esquema corporal independe da
época, do lugar e das condições em que vive, tem existência em si; a sua evolução é
geneticamente definida e somente pode ser alterado se sofrer danos à sua estrutura. O
esquema corporal
é o lugar das necessidades.
Dolto não advoga como poderia parecer em um primeiro momento que os dois
processo: formação do esquema corporal definido em vista do que chamou de
trocas
substanciais
—, e imagem do corpo definido a partir das trocas sutis se façam de
maneira estanques e independentes. A discussão que a autora faz, mostrando a íntima
assoc
iação entre os dois processos, demonstra o caráter simultâneo e interdependente dos
mesmos. O que Dolto quer acentuar é que são processos marcados por determinantes
diferentes.
Enquanto o esquema corporal segue uma lógica material e mais ou menos
determin
ada por fatores genéticos comuns grosso modo a todos os seres humanos, a
imagem do corpo, diferentemente, é própria de cada indivíduo, está ligada ao sujeito e a sua
história. É libidinal, ou seja, investida de desejos, forma-se pelo desejo, na relação com o
outro. É nesse sentido, que Dolto a define como a encarnação simbólica inconsciente do
sujeito desejante; é o lugar do desejo.
A
imagem do corpo conclui a autora é a síntese
viva de nossas experiências emocionais: inter-humanas, repetitivamente vividas através das
sensações erógenas eletivas, arcaicas ou atuais”. (2002a: 14). Deve ser entendida como um
142
construto da criança, que a produz como referência identificatória, advindo disso, como
conseqüência imediata, a sua vinculação e dependência da linguagem, o que equivale a dizer,
da cultura, do outro. A imagem inconsciente do corpo constitui-se pela articulação dinâmica
de três componentes: uma imagem de base, uma imagem funcional e uma imagem erógena,
cujas conformações e articulações para a definição da
imagem do corpo
veremos em seguida.
5.5.1 Imagem de base
A
imagem de base está relacionada ao que Dolto denomina narcisismo primordial
29
. Na
verdade, é fundamentalmente referida a ele e constitutiva dele. O narcisismo primordial
pré
-
existe ao nascimento e mesmo à concepção da criança. Remonta aos genitores enquanto
sujeitos de desejos. A idéia da concepção da criança, mesmo que de forma inconsciente,
funda
-se numa ética do desejo. Uma vez concebida passa a ser depositária, herdeira simbólica
dos
desejos dos genitores.
A partir da concepção, esse patrimônio herdado pelos pais vai-se articular com uma
nova ética, a saber: “(...) o gozo de aumentar, todos os dias, sua massa carnal
(Dolto, 2002a:
38).
É uma ética adicional, vampírica, no sentido de obter, de tomar da mãe/do mundo aquilo
de que precisa para se constituir e viabilizar como
ser.
Este narcisismo primordial acentua
Dolto
constitui, de certa forma, uma intuição vivenciada de estar-
no
-mundo (...) é o que
o sentido da identidade social simbólica”.(Id. Ibid: 39). Temos, portanto, a conformação
de um ser que se inicia a partir do desejo de seus pais, que por sua vez se inserem numa ética
desejante socialmente aceita e esperada; comunica-se com o meio, de forma real (adição de
massa corporal a partir da placenta), e simbólica (gravidez social da mãe), e realiza-se no ato
do nascimento. É importante lembrar que o desejo a que se refere a autora é o desejo
simbólico presumido na ética desejante dos pais. A criança não ‘sabe’ o que acontece
u com os
29
O
narcisismo
pode ser entendido como o sentimento que sustenta o desejo de existir. Narcisismo primordial é
definido por Dolto “como o desejo de viver”, pré-existente à sua concepção. Neste sentido, está relacionado ao
desejo dos pais e à ética desejante na qual foi concebido”. (2002a: 38) Em Freud distinguem-se duas concepções
de narcisismo: o primário, que teria relação com o amor dos pais pelo filho, representaria “uma reprodução do
narcisismo dos pais, que atribuem ao filho todas as perfeições e projetam no filho todos os sonhos a que eles
mesmos tiveram de renunciar” (Nasio, 1997: 48-49); e o secundário, “que corresponde ao narcisismo do Eu” (Id.
143
pais em relação à sua concepção, mas incorpora a ética desejante cultural e simbolicamente
definida, a partir da linguagem, cuja expressão corpórea, é o gozo de aumentar a sua massa
o seu corpo
a partir do que lhe é oferecido pelo meio, atravé
s da mãe.
A imagem de base é o que permite à criança sentir-se em uma ‘mesmice de
ser’, ou seja, em uma continuidade narcísica ou em uma continuidade
espaço
-temporal que permanece e vai-se preenchendo desde o nascimento,
apesar das mutações de sua vida e dos deslocamentos impostos a seu
corpo, e a despeito das provas a que ele é levado a submeter-
se.
É dessa
mesmice, intensa ou tenuemente perene, que vem a noção de existência, o
sentimento de existir de um ser humano...” (grifos meus. 2002a: 38).
Aqui se insere a importância do nome da criança; nomear constitui uma espécie de
certificado de
perenidade existencial
. Podemos dizer que o ato de dar nome a uma criança é o
primeiro ato social-cultural de separação, o correspondente simbólico da secção do cordão
umbilical; o recém
-
nascido é
outro
.
A autora alerta, pois, para a inconveniência dos apelidos
e das trocas do nome da criança por formas nominais “carinhosas” como fofinho, docinho,
bebê, etc. Existem muitos “fofinhos” e “bebês” no ambiente e este nome não designa o
sujeito, não o qualifica como ser na relação com o outro da linguagem. Disso deriva a
importância de a criança ser tratada preferencialmente pelo seu nome, sobretudo pela mãe. Ao
chamá
-lo pelo nome, a mãe o individualiza do todo, o seu nome é a sua marca no mundo.
“Desde o nascimento, o nome — ligado ao corpo e à presença do outro contribui de forma
determinante para a estruturação das
imagens do corpo
(
Dolto, 2002a
: 35).
A propósito, apresento como ilustração um caso por mim conduzido, como
pediatra.
Trata
-se de uma criança do sexo masculino, primeiro filho, nascido de parto cesareano, a
termo, boa vitalidade (Apgar 8/9), com três quilos e 900 gramas, 52 centímetros. Na primeira
consulta, após 20 dias de nascido, pesou quatro quilos e 400 gramas; um ganho ponderal
dentro das expectativas para uma criança naquela idade. Apresentava desenvolvimento neuro-
psiquico
-motor dentro das expectativas (conforme os padrões de Gesell). Alimentava-
se
exclusivamente de leite materno.
Na segunda consulta, re
alizada quando a criança tinha um mês e nove dias, apresentou o
peso de seis quilos, cerca de meio quilo (10%) acima do peso máximo esperado para esta
Ib.) e representa um retorno ao Eu do investimento libidinal dos objetos. As concepções de Dolto, de uma certa
144
idade. A mãe, uma mulher de 25 anos, mostrava-se dedicada e cuidadosa durante a consulta e
no trato com a criança. Fazia-se acompanhar do pai da criança, o que, aliás, ocorrera durante
todo o pré-natal, também realizado sob os meus cuidados. O único alimento oferecido à
criança continuava sendo o leite materno. Na terceira consulta, quando tinha dois meses e
7
dias, pesou 7950 gramas, correspondente a um quilo ou 15% acima do peso máximo esperado
para a idade.
Os exames básicos nada revelaram de anormal. Solicitei exames mais específicos e fiz
novas recomendações sobre a dieta, tomando inclusive a precaução
de orientar a mãe para que
obtivesse garantias de que uma outra pessoa não estivesse alimentando a criança sem o seu
conhecimento. Isso foi assumido com receptividade, até porque nesta terceira consulta
estavam presentes a mãe e o pai da criança, além das duas avós. Todos já muito apreensivos
com o ganho ponderal excessivo.
Os novos exames não apresentaram nenhuma anormalidade. A criança continuava o
aumento estato-ponderal (altura e peso) acima da expectativa. Os demais aspectos do exame
clínico, inclusive os testes de vitalidade, mostravam-se normal, exceto claro pelas
limitações associadas ao excesso de peso. Era uma criança macrossômica, ou seja, todas as
suas medidas estavam fora do padrão. Diante desse quadro a encaminhei ao Hospital Infantil
Joana
de Gusmão referência pediátrica na região para uma abordagem diagnóstica de
maior complexidade, em vista da possibilidade de um distúrbio metabólico grave.
A criança passou a ser acompanhada por uma equipe multi-especializada (pediatra,
endocrinologi
sta, nutricionista etc). Foram realizados todos os exames laboratoriais
disponíveis em Florianópolis para a abordagem de casos semelhantes. Todos absolutamente
dentro dos padrões de normalidade. A criança me foi “devolvida” para acompanhamento
ambulatorial
, com um diagnóstico de
obesidade sem causa aparente
.
Na sua quarta consulta, com três meses e sete dias, pesava 10.050 gramas. E na quinta,
aos quatro meses e um dia, ostentava 11 quilos e 500 gramas, o equivalente a três quilos e
meio ou 35% acima do peso máximo esperado. Nesse momento poderia ser classificada
forma, se fundamentam em Freud, mas não são iguais.
145
como portadora de obesidade grave. Com seis meses e cinco dias de vida pesava 14 quilos e
250 gramas (peso esperado para uma criança de dois anos). Continuava alimentando-
se
exclusivamente com leite materno. Aos sete meses, pesando 14 quilos e 300 gramas, o
equivalente a um peso 43% (ou 4,3 quilos) acima do peso máximo esperado, decidimos
introduzir frutas em sua dieta, as quais foram bem aceitas e passaram a dividir com o leite
materno o seu pro
vimento alimentar. Aos nove meses de vida, e há dois meses com uma dieta
que alternava leite materno e frutas, a criança chegou aos 15 quilos e 400 gramas, peso
esperado para crianças de três anos. (Na tabela de acompanhamento do crescimento,
da
Carteira da Criança, em anexo, consta um peso de 16 quilos, e 74,5 centímetros de estatura.
Mas essas medidas não foram consideradas por não terem sido feitas com os cuidados
necessários quanto à ausência de roupas).
Desde a primeira consulta, chamou-me a atenção o nome do bebê:
Vultuoso
. Nome que
guarda íntima relação com vultoso, com o qual é freqüentemente confundido Considerei a
possibilidade de a criança ter recebido/estar recebendo da mãe e/ou do pai, ao nomeá-lo, uma
ordem simbólica de aumentar o seu tamanho para, dessa forma, encontrar lugar no amor do
outro materno. Chamou-me igualmente a atenção o fato de Vultuoso ser sobrenome do pai, e
de não figurar no nome da criança, nenhum sobrenome da mãe. Resolvi, então, fazer uma
abordagem da criança com base nos pr
essupostos psicanalíticos, em acordo com Dolto.
Numa perspectiva doltoniana, com base na formação de sua imagem de base, supus que
a criança, tendo de conquistar um lugar no amor materno, ameaçado por um pai que também
disputava esse amor, ‘decidiu’, inconscientemente, atender ao chamado da mãe para que se
assemelhasse ao concorrente; não encontrando forma melhor do que se tornando igualmente
vultuoso/vultoso.
Pontuo também o nome da mãe: S. Cândido, que além de não ter
contribuído na nomeação do filho, apr
esenta
-
se cândida
ante um pai que além de
vultuoso/vultoso
era também
custódio.
Estava armado o cenário possível para um
amarramento ao significante paterno, cuja única saída vislumbrada inconscientemente
pela criança seria pela via do assemelhamento a este pai. Daí a ordem inconsciente de
aumentar a sua massa corporal.
146
A via da cura/terapêutica dar-
se
-ia, nesta perspectiva, pela ressignificação do nome
vultuoso,
que precisaria deixar de ser ordem de aumento estato-
ponderal.
O meu primeiro
gesto na direção da cura foi explicar, sucintamente e de uma maneira que pudesse ser mais ou
menos entendida pela mãe e pelo pai, mas dirigindo-me à criança essa história toda.Solicitei
que a mãe o trouxesse para consultas semanais, durante as quais conversava com a cr
iança,
sobretudo lhe dizendo que ele não precisava ‘ser vultoso’ porque tinha esse nome, e que a
sua mãe o amava mesmo sendo ele um garotinho pequenino. Aliás, o amava especialmente
por isso. O lugar ocupado pelo pai no amor de sua mãe era outro. Pedi à mãe que fizesse o
mesmo e que, preferencialmente, o tratassem como Guilherme. Forneci aos familiares,
particularmente à mãe e ao pai, as informações que me pareceram suficientes para que os
mesmos pudessem acompanhar e tomar parte ativa no processo terapêutico. Mesmo sem uma
compreensão cognitiva completa dos elementos envolvidos na questão, pude perceber um
grande interesse dos pais nessa proposta de trabalho.
Nas duas consultas mensais seguintes o ganho ponderal foi bem menor. Na consulta de
10 meses apresentou ganho de 400 e na seguinte apenas 100 gramas. Na terceira consulta
realizada após o início do processo terapêutico, um mês e sete dias após a última a criança
havia
perdido
200 gramas. Continuava alimentando-se de leite materno e frutas. Com um an
o
e um mês, mantinha-se com os mesmos 15 quilos e 300 gramas. A queda ponderal continuou
nos meses subseqüentes. A família mudou-se de município e eu deixei de acompanha-lo com
regularidade. Mas esporadicamente ainda vem ao Posto para consulta de rotina.
Na última vez em que estivemos juntos, quando tinha um ano e seis meses, o encontrei
em pé, ao lado da mãe, olhando atentamente para mim que passava no corredor. Eu não o
havia reconhecido. A mãe me chamou a atenção: Oh, doutor, esse é o Vultuoso! Ele riu. O
peguei nos braços e o parabenizei pelo fato dele ter decidido normalizar o seu peso.
Esse relato não pretende ‘provar’ a teorização doltoniana acerca da importância do
nome, mas o apresento como um resultado que pode ter sido obtido a partir de uma
ab
ordagem terapêutica inspirada em Dolto. Para mim foi de especial relevância conduzir esse
processo terapêutico ressignificando o seu próprio nome diante da sua imagem de base.
147
Acredito que até aquele momento a imagem de base da criança, pressupondo atender a um
desejo da mãe, que ao chamá-lo projetava, no seu íntimo, uma imagem vultosa se
expressava no esquema corporal aumentando a sua massa. Dessa forma, o inconsciente da
criança atendia a uma demanda inconsciente da mãe.
A formação da imagem de base inicia-se na vida fetal, está associada ao desejo de
sobrevivência, e de incorporação material. Continua a se formar após o nascimento, em
estágios, de forma inconsciente e em íntima relação com a mãe. Esse processo de
conformação da imagem de base, após
o nascimento, ocorre em articulação com determinadas
zonas erógenas. A primeira imagem de base a se formar está associada à zona erógena
respiratória
-
olfativa
-
auditiva
(associada ao cavum cavidade oral-
nasal
e ao tórax). Em
seguida, forma
-
se a
imagem
de base oral
, que inclui toda a anterior mais a região representada
pela cavidade oral, faringo-laringea, e a parte inicial do tubo digestivo. A terceira imagem de
base
a aparecer é a a
nal,
constituída pelas anteriores, mais a parte inferior do tubo diges
tivo,
além da bacia, nádegas e períneo. Cada estágio da imagem de base associa ao atual os
componentes anteriormente definidos, relacionando-os num todo articulado e coerente, o que
deixa antever a assunção de um processo evolutivo de natureza epigenética.
Posso afirmar com base na autora que esse todo articulado e coerente não é
naturalmente dado, não é conseqüência inexorável do surgimento e amadurecimento
espontâneo dessas zonas erógenas
. Essa
arquitetura relacional
para usar uma expressão de
Dolt
o
centrada nos buracos e nas áreas de prazer boca, nariz, olhos, ouvidos pele, por
exemplo
somente se fará se a
mãe
-
alimentadora
falar com a criança enquanto cuida dela.
A concepção de Dolto acerca da conformação das imagens de base guarda relação c
om
as zonas e estágios da teoria da pré-genitalidade de Erikson, com o acréscimo, em Dolto, do
componente respiratório-olfativo, que tem primazia em relação ao componente oral. Para
Dolto, após o nascimento, a placenta como fonte de trocas gasosas é substituída pelos
pulmões, pela árvore brônquica; por onde agora o ar “significante cósmico”— entra no
corpo. “A imagem respiratória é a mais arcaica das imagens do corpo, porque o ar que
respiramos é a nossa placenta comum a todos” (Ledoux, 1991: 88). Nisso residem na
148
minha opinião as motivações ‘teóricas’ da sua crença na transcendência do ser humano,
tantas vezes claramente manifesta.
Uma criança alterna momentos de repouso pulsão de morte com momentos de
desejo
pulsão de vida
30
e não melhor lugar para se opor o conflito existente entre essas
pulsões do que, segundo a autora, ao nível do narcisismo primordial e da imagem de base
.
“Quando uma e (ou o meio) trata o lactente como um pacote, como um objeto de cuidados,
sem falar com a pessoa d
o bebê [diz a autora] prevalecem as pulsões de morte” (Dolto, 2002a:
40). Quando isso ocorre de forma recorrente determina alterações que vão conformar uma
ausência do desejo de viver, levando a criança a adotar um tono depressivo. Algo na linha do
que Spitz denominou
depressão anaclítica
.(vide nota 25).
Nesses estágios de formação da imagem de base, segundo Dolto, é de fundamental
importância para a estabilidade existencial no sentido mesmo de existir como ser humano
a fala da mãe-alimentadora. É através dela que se conforma e se articula o todo coerente
que vem a constituir a arquitetura relacional, entendida no duplo sentido de relação
harmônica e coesa das várias zonas e estágios erógenos da imagem de base e da relação
consistente do indivíduo com o meio. Nesse ponto articula-se a imagem de base com o
narcisismo primordial
que, como vimos, está fundado no componente desejante dos pais.
“Qualquer ameaça à integridade da imagem de base é sentida como mortal” (Nasio,
1995: 222). As agressões e as ameaças à imagem de base geram representações
fantasmáticas
31
, caracterizadas “como um estado fóbico, meio específico de defesa contra um
perigo sentido (...) [que fará a criança reagir] àquilo que põe em perigo a sua imagem de base,
...” (Dolto, 2002a; 39). Ess
a reação normalmente se manifesta na
zona ou estágio erógeno
que
está relacionado ao componente específico daquela imagem de base agredida ou ameaçada,
naquele momento. Isso pode justificar os estados de auto-agressão somática — como as
30
A noção de
pulsão
em Freud é das mais complexas (vide Laplanche e Pontalis, 2002: 394-420 e a discussão
feita no capítulo IV, pp.88-89), mas para o nosso interesse, neste momento, vamos aceitar com Dolto que
pulsão de morte é representada por tudo aquilo que amortece o desejo de viver em relação com o mundo
exterior, como o sono, por exemplo; enquanto a pulsão de vida existe a serviço do desejo. A relação harmônica
entre esses dois elementos polares está na base da saúde do
ser.
31
Pode ser tomado, em linhas gerais, como equivalente à fantasia, porém designando mais “determinada
formação imaginária e não o mundo das fantasias, a atividade imaginativa em geral” (Laplanche e Pontalis,
2001: 169).
149
doenças respiratóri
as de cunho alérgico
auto
-
imune
, responsáveis por grande número de
óbitos em crianças no mundo todo. “Em 1990 as doenças respiratórias alérgicas foram
responsáveis pela morte de mais de quatro mlhões de crianças em todo o mundo” (Unicef,
1992). Ainda segundo o Unicef a busca por remédios que possam aliviar os sintomas de uma
doença respiratória constitui a principal causa de procura por serviços de saúde. [As mães]
“Geralmente pedem remédio para tratar os sintomas de seus filhos: tosse, resfriado, dor d
e
garganta ou falta de apetite. E nem sempre compreendem que talvez não exista uma ‘cura’”
(Id. Ib). Lembro, a propósito, Agnes, a criança anorética em vista de uma agressão sofrida a
sua
imagem de base respiratória olfativa.
5.5.2 Imagem funcional
O segundo componente da imagem do corpo é a imagem funcional. Diferente da
imagem de base, que apresentava uma dimensão estática, a imagem funcional é estênica,
dinâmica; não se localiza em nenhum lugar específico, embora seja mediatizada por
necessidades ou demandas localizadas em algum lugar erógeno, onde a falta (provocadora do
desejo) se faça sentir. “É graças à imagem funcional objetivada na relação com o outro
que
as pulsões de vida podem, após serem subjetivadas no desejo, tender a manifestar-se para
a
lcançar prazer (...)” (Dolto, 2002a: 43).
A
imagem funcional se manifesta como tensão no corpo do sujeito desejante como um
todo, embora guarde relação com
zonas
ou lugares erógenos. Isso é mais verdade ainda em
se tratando de um bebê, no qual a capacidade de localização é, em princípio, menor. Citemos,
a título de exemplificação, o ato de defecar ou urinar, que é em si, uma necessidade orgânica,
mas que veicula tensão de desejo. A criança não a sentirá localizada em nenhum lugar
especifico
32
, mas como um desejo do sujeito. O prazer que sentirá com a realização do ato
defecatório ou miccional será, destarte, um prazer vivenciado pela totalidade do corpo,
embora manifestado em relação a algum lugar ou
zona erógena
específica.
150
A criança vai, então, associando
dinamicidade prazerosa às várias
zonas erógenas
de seu
corpo. Podemos dizer que, associada à imagem de base, estática e existente per se, forma-se a
imagem funcional, inicialmente ligada a determinadas zonas e a determinados objetos, mas
secundariamente transferida por deslocamento para outras zonas ou para o próprio corpo
como um todo. Esse processo de transferência pode ser modulado pela linguagem. De
maneira que a criança vai sendo capaz de substituir, por exemplo, o ato de defecar pelo ato de
vocalizar,
por sentir na relação com a
mãe
-
que
-
lhe
-
fala
, ou no meio, que esse gesto é mais
bem aceito do que aquele. Promove, dessa forma, uma transferência do prazer da zona
erógena anal e do ato defecatório para o ato de vocalização. Deve-se compreender que a
elab
oração da imagem funcional realiza, com respeito ao acionamento das zonas erógenas,
um enriquecimento de possibilidades relacionais com o outro”. (Dolto, 2002a:43).
Assim, um gesto inicialmente associado ao prazer exclusivo da criança, consumado em
relaç
ão a uma determinada zona erógena, é estendido pela fala ao outro que articula um
prazer vivido simultaneamente pela criança e pelo meio. Em continuidade, essa interação gera
uma relação negociada entre a criança e o seu cuidador: a mãe. Julgo possível ide
ntificar
nessa dinâmica relacional algo semelhante à interação dos modos psicossexuais e às
modalidade psicossociais
a eles associadas, conforme Erikson (capítulo V).
A esse respeito a autora lembra que “A o, por exemplo, que é, a princípio é
zona
eró
gena
de preensão oral, mais tarde de expulsão anal, deve integrar-se em uma imagem
funcional braquial, dando à criança a liberdade esqueleto-muscular que lhe permite chegar a
seus objetivos” (Dolto, 2002a: 43). Ou seja, em cada momento haverá zonas, lugares ou
órgãos que, naquele momento, estão em ‘exercício funcional dominante’como é o caso da
zona oral e anal do exemplo. Nesse determinado momento a mão, cuja funcionalidade em
relação à imagem do corpo ainda não está definida, ou não tem lugar, funciona como auxiliar
das zonas dominantes. Porém, mais tarde, essa mesma mão adquirirá funcionalidade ativa e
32
A pesquisa dos chamados
reflexos primitivos
Babinsky, plantar, palmar, aquileu, de Moro, etc
nos
permite inferir que a criança tem uma menor capacidade de localização do agente causador de um es
tímulo,
associada a um incompleto processo de mielinização das fibras neuronais. (Dangelo e Fattini, 1988: 52
-
88).
151
será articulada à imagem do corpo de maneira coerente. E novamente é possível estabelecer
alguma relação disso com as noções de modos dominantes e auxiliar
es de Erikson.
Dolto admite a possibilidade de ocorrência de um distúrbio da imagem funcional em
vista de um atraso ou permanência de uma zona ou órgão no ‘passado’ do processo de
formação da imagem funcional. E menciona, a título de exemplo, o caso da ‘menina de boca
de mão’. Trata-se de uma criança que não consegue segurar nada com as mãos, embora tenha
grande habilidade com a boca, a ponto de escrever e desenhar usando esta região do corpo.
Após o processo de análise, a autora intuiu que a criança havia fixado a sua imagem de base
na boca, sem uma articulação funcional com a imagem do corpo como um todo. “Pegue com
sua mão de boca” [disse Dolto à criança] “como que fintando a imagem tátil não articulada”
(Dolto, 2002a: 43). Tratava-se, portanto, de uma fragmentação da imagem do corpo que o
processo terapêutico psicanalítico permitiu reintegrar em torno a uma imagem funcional coesa
e articulada. Essa maneira de ver as coisas guarda relação com a idéia de Erikson de que a
troca de modos dominantes em determinados periodos por modos auxiliares, elevados à
condição de dominantes, levaria a distúrbios (p. 103).
5.5.3 Imagem erógena
O terceiro componente da imagem do corpo é o que o articula com o outro. É o que abre
o corpo ao prazer compartilhado. Associa-
se
a uma determinada imagem funcional, posto que
guarda estreita relação com zonas e lugares erógenos, mas não se restringe ao sujeito, é
essencialmente relacional. É o lugar onde se realiza o prazer na relação com o outro. “Sua
representação é referida a círculos, formas ovais, côncavas, bolas, palpos, traços e buracos,
imaginados como dotados de intenções emissoras ativas ou receptoras passivas, com fins
agradáveis ou desagradáveis”. (Dolto, 2002a: 44). Essa característica relacional da
imagem do
corpo
, representada neste terceiro componente, nos transmite a idéia de que a imagem do
corpo não se realiza nele mesmo, nem se esgota em sua articulação interna. Lança —
ao invés
disso
uma ponte ao outro do desejo. A noção subjacente no meu entendimento é
clar
a: o todo articulado e coerente, somente se realiza em plenitude em relação ao outro. O
15
2
processo se inicia no outro da linguagem, representado pela mãe-alimentadora, se articula
internamente e se projeta de volta ao outro do desejo. Tem, nesse sentido,
com
eço
e
fim
, no
outro do desejo e se articula na linguagem. E é sempre um fim entre aspas, porque na verdade
é um ciclo. Nesse sentido define o que a autora denomina Imagem dinâmica
,
entendida como
o
todo
-
síntese
. A própria imagem inconsciente do corpo,
dina
micamente articulada como
mostrado acima, “é síntese viva, em constante devir destas três imagens (...) ligadas entre si
através de pulsões de vida”
(Dolto, 2002a: 44).
O que vimos até aqui poderia ser denominado como uma genealogia do psiquismo
infantil
segundo Dolto. A noção que o conceito de imagem inconsciente do corpo sumariza,
diz respeito aos processos psíquicos que conformam o corpo-mente da criança. Mas em
relação ao outro, mais radicalmente ainda, em dependência ao outro. Existe como potência
des
de a concepção, mas é o outro que lhe confere status de realidade existencial. Nesse
sentido, o ser é um ser de desejo, seu e do outro. É gerado numa lógica desejante, conforma
-
se
— incorporando matéria — animado pelo desejo de vir-a-ser. Nascido, afirma o
seu desejo de
viver, incorporando o ar, significante cósmico, da ‘placenta de todos nós’; constrói uma
imagem de seu
corpo
-
no
-
mundo
em relação às suas zonas erógenas, que se articulam entre si
e com o outro.
5.6 A IMAGEM DO CORPO E A MÃE: a fala materna
A imagem do corpo guarda relação com a mãe desde a concepção. Relação simbólica,
que evolui após o nascimento na mesma lógica desejante na qual foi estruturada. Assim, sua
evolução se faz pela busca do prazer, motivado pelo desejo, através da apreensão do seu
objeto. “Mas o desejo encontra, em sua busca, obstáculos a sua realização, seja porque o
sujeito não tem desejo suficiente, seja porque o objeto está ausente, ou ainda porque o objeto
é proibido.” (Dolto, 2002a: 49). Em vista do jogo de presença-
aus
ência do objeto de
satisfação do desejo que se instituiu esta ou aquela zona como erógena. Nessa perspectiva, o
mamilo ausente, após ter estado na condição de veículo do prazer, é que institui a boca como
153
zona erógena, ou seja, como zona de percepção da falta. O mesmo ocorrerá com outras
zonas
e lugares erógenos
do corpo.
É a mãe segundo Dolto que irá fazer a substituição do objeto parcial de prazer
mamilo, fezes, pele pela palavra. A palavra vai, assim, substituir o objeto parcial de
desejo por um significante, um objeto simbólico que nomeia e dá sentido àquilo que a criança
perdeu. Mas esse sentido não é dado de per se, é a mãe que lhe confere sentido, pois serve de
referência simbólica. Nessa transição entre o objeto parcial presente no corpo da mãe o
mamilo, por exemplo e as palavras, às vezes se fazem necessários objetos transicionais
33
.
São objetos que se apresentam como representantes da mãe especialmente do peito nos
momentos em que, pela falta do objeto parcial, se instala o sentimento de solidão da criança.
Normalmente é uma coisa que a criança vincula de alguma forma aos seus referenciais antes
instituídos. Pode ser um brinquedo, um pedaço de pano. Podem ser fonemas, músicas, sons,
odores, imagens para as quais a criança deslocou a
relação passada com mãe ou outros adultos
tutelares. São objetos investidos de afeto, capazes de presentificar a mãe nos momentos de
ausência desta.
A substituição ou investidura de palavras na função de objetos transicionais é, segundo
Dolto, recomendável e permite ampliar as possibilidades de exploração da criança. Esclareço:
os objetos materiais, conquanto providos de investimento afetivo conferido pela mãe, que
os qualifica como presentificadores da mãe ausente — apresentam, porém, limitações de duas
naturezas: primeiro nem sempre são viáveis; a condução consigo de objetos materiais pode ser
difícil e, às vezes, inconveniente; mas é a segunda limitação que de fato importa. O objeto
material é necessariamente mais limitado nas suas possibilidades representativas, mesmo
considerando que o objeto é apenas um estímulo e que de fato o verdadeiro objeto de desejo
esteja marcado como representante ideativo. Mesmo assim, as suas possibilidades são
menores que os objetos simbólicos representados nas palavras. Nesse sentido, os
objetos
transicionais
materiais
poderiam ser dispensados se houvessem suficientes palavras
33
O conceito foi originalmente estabelecido por Winnicott, e adotado pela quase totalidade dos que fazem
sicanálise com crianças. Tem originalmente o mesmo sentido empregado por Dolto. Por outro lado, o conceito
de
objeto parcial
, utilizado por Dolto com freqüência, foi cunhado originalmente por Melanie Klein.
154
proferidas pela mãe. Ou se a mãe “renova o estoque de palavras” colocadas à disposição do(a)
filho(a). Isso é particularmente importante por ocasião do desmame. A criança privada do
peito precisa receber da mãe palavras que substituirão o peito negado:
É a palavra que, em virtude da sua função simbólica, acarreta mutações de
nível do desejo: da satisfação erótica parcial à relação de amor que é
comu
nicação de sujeito para sujeito ou, antes, do pré-sujeito (lactente) ao
sujeito que é a mãe, objeto total para seu bebê, a quem ela serve de
referência em relação ao mundo e a ele mesmo.(Dolto, 2002a: 50).
Por outro lado,
como o desejo transborda sempre a necessidade, os elos de percepção sutis
do cavum, da audição, da visão, mais tarde do anus, da vagina, do nis
[áreas dotadas de excitabilidade nervosa, segundo Erikson] tornam-se zonas
erógenas, por um lado em conseqüência do seu contato com um objeto
parcial de apaziguamento em relação à mãe (...), por outro, da ausência
mediada pela linguagem, (...) na falta do objeto parcial. Daí a importância
primordial, eminente, da mãe, objeto total e sujeito que se expressa por uma
linguagem gestual, mímica, auditiva e verbal, em intercomunicação com
seu filho (enquanto este elabora as suas imagens de base, funcional e
erógena). É a mãe que, através da palavra, falando ao filho do que ele
gostaria, mas que ela não pode lhe dar, lhe mediatiza a ausência de um
objet
o ou a não satisfação de uma demanda de prazer parcial. (Id. Ib: 49).
É também pela palavra da mãe que a criança aprenderá a discriminar as coisas das
pessoas. No inicio, quando se machucar, a criança considerará mau” o agente desse
machucado, seja ele um objeto ou uma pessoa. Houve um atentado à sua homeostase, mas se
a criança aprendeu a autoconsolar-se pelas palavras da mãe, transferirá para si própria a ação
maternizadora confortante que somente a mãe podia realizar para ela. Para Dolto uma criança
solitária, mas suficientemente
abastecida
de palavras maternas, “presentifica sua mãe através
de suas lalações, acreditando repetir os fonemas que ouviu dela e assim, engodado, não se
sente mais sozinho, mas ele mesmo, para ela e com ela”. (Id, Ib, 26).
É importante esclarecer que nisso não está implícito, necessariamente, nenhum atributo
mágico associado à mãe. A relação de
um
-
com
-a-
mãe,
vivenciada inicialmente no útero, no
qual esta criança foi plasmada em íntimo e total contato com a mãe, é que habilita a continuar
sendo, mesmo após o nascimento, uma díade, um ele-ela para o filho. Não há porém,
impossibilidade de uma criança vir a constituir um outro relacional com que venha a ter
vinculação semelhante. Dolto admite que isso é possível e relativamente fre
qüente. Neste caso
é preciso que esta outra instância tutelar ou provedor de atenção tenha com a criança uma
relação de continuidade e coerência para que a criança constitua novos laços.
155
Uma relação definida nestes termos, diria Dolto, “é vital pois cria a memória de um ‘ele
mesmo
-o outro’, primeiro fator de segurança narcísica. Ela é representante do
ser
‘ele-
ela’.
Essa presença humana vital é mediadora das percepções e instauradora de sentido e de
humanização” (apud Nasio, 1995: 211). Em cada momento da
vida da criança e em cada etapa
da construção de uma imagem do corpo (de base, funcional e erógena), bem como na relação
com a imagem dinâmica desejo de ser, a criança tem um outro da fala, um outro da
linguagem que lhe individualiza e o define como sujeito, sujeito de desejo, sustentado na
linguagem. Esse outro da linguagem nas primeiras fases da vida é a mãe, ou uma outra pessoa
que assuma a sua condição, e que mantenha com a criança uma relação de perenidade e
coerência, e, sobretudo, que introduza a c
riança no mundo da linguagem.
A propósito deste papel estruturante da imagem do corpo na primeira infância,
notadamente da imagem de base, menciono um filme-documentário sobre a vida de Dolto
(Colonel e Mezamat, 1983), no qual a autora fala de uma experiência com crianças de uma
creche hospitalar, dirigida por um médico chamado Ribadeau Dumas. Dolto diz que a
experiência em tela lhe fora referenciada porque ali ocorriam “experiências loucas com as
crianças”. Tais experiências consistiam em fazer com que cada criança internada fosse
submetida durante cinco minutos de manhã e cinco minutos à tarde a uma ‘sessão de
conversa’ na qual fosse dito às crianças através de palavras amáveis coisas como: “O seu
irmão, seu pai e sua mãe são bonzinhos, gostam de você e virão vê-lo logo que puderem; no
momento você está aqui e não pode ser visitado, mas logo será; você ficará bom logo”
.
A
‘conversa’ toda girava em torno dos nomes da criança, dos pais, dos irmãos. Durante o tempo
em que desenvolviam esse trabalho, as auxiliares não faziam mais nada. Não “cuidavam” das
crianças durante esses cinco minutos, “contados no relógio”. E isso era difícil porque, diz
Dolto, “sempre se quer fazer alguma coisa”. O resultado dessa “experiência louca” foi a
redução significativa do índice de mortalidade entre as crianças, bem como diminuição de
156
tempo de internação. Vários outros casos ilustram o valor que a autora confere à palavra dita,
embora não negligencie outras manifestações da linguagem.
34
Na minha experiência clínica, costumo ser interpelado por mães com a queixa de que a
criança ‘troca o dia pela noite’. Esclareço a estas mães angustiadas que durante o dia, a fala da
própria mãe conforta a criança, que continuamente checa' se a mãe ainda está ali. Os demais
barulhos também presentificam a mãe, pois mesmo os ruídos incidentais são captados em
referência à mãe, que é para a criança pequena aquilo que lhe diz da sua própria existência. À
noite, a ausência de ruídos, o silêncio, pode dar à criança uma sensação de ‘vazio’, o que lhe
leva a cobrar a presença física da mãe, sobretudo se também não lhe pode sentir o cheiro.
Costumo orientar as mães no sentido de apenas falar com seus filhos, evitando dar-lhes de
mamar, para que as palavras e não o seio assumam o papel de objeto trans
icional
. Os
resultados costumam ser satisfatórios.
Por fim e cotejando os dois autores direi que, se para Erikson o estabelecimento
de padrões duráveis para a solução do conflito entre
confiança
e desconfiança básicas, de
forma a gerar na criança um sentimento de
esperança
na simples existência, era a primeira
tarefa do ego, e
uma tarefa para o cuidado materno
; para Dolto, a assistência da mãe ao filho,
por meio de percepções sutis e palavras constitui troca re-asseguradora e “prova de uma
relação humana durável para além das feridas da imagem funcional ou da ameaça à
imagem
de base
” (2002a: 51). Ainda para Dolto
A psicanálise permitiu descobrir o que são as trocas, sutis mantenedoras do
narcisismo indispensável ao reencontro da saúde afetiva, que fundam
entam
o prognóstico psicossocial do futuro de determinada criança em particular,
nascidas de determinados pais. (...) Como se vê, o narcisismo que, no início
da vida, parece estar associado à euforia de uma boa saúde, está de fato,
desde o nascimento, cruzado com a relação sutil linguageira, criadora do
sentido humano, originado na mãe e alimentada por ela relação que não
pode ser, no inicio da vida, por muito tempo interrompida, sem perigo. (Id.
Ib: 52)
34
Em 1994, junto com a Dra. Edsalva Nunes, psicóloga, iniciamos um trabalho de
dial
ogação
com as crianças
internadas na UTI neonatal do Hospital Barão de Lucena, no Recife-PE. O primeiro gesto nesse sentido
consistiu da aposição do nome do recém-nascido no seu berço-leito e na recomendação de que se evitasse tratá-
lo por “RN de mãe tal”. Médicos(as), enfermeiros(as) e auxiliares foram orientados(as) a conversar com as
crianças. A diretora da UTI, Dra Gisele Lima, também adepta da experiência, permitiu que estimulássemos as
mães a terem um contato maior com os seus filhos. Não fizemos avaliação quantitativa dos resultados, mas a
primeira impressão nos estimulou a manter e intensificar a experiência.
157
Nesse sentido durante a vida intra-
uterina
a mãe sustentou o narcisismo
primordial da criança, a partir do seu próprio narcisismo, e lhe propiciou as condições para a
sua formação como sujeito de desejo desejo de incorporar “vampiricamente” matéria para
a sua conformação. Depois sustentou o seu desejo de
vir
-a-
ser
no mundo, estabelecendo “o
vaso comunicante” imaginário, que associado aos fantasmas da simbiose primeira, garantiram
o
Eu
-
minha
-
Mamãe
-o-
mundo
reencontrado. E num terceiro momento sustentou, pela palavra,
a conformação de sua imagem do corpo. Em síntese: “a imagem do corpo é, portanto,
elaborada como uma
rede de segurança linguageira
com a mãe”. (Dolto, 2002a: 122).
5.7 TRIANGULAÇÃO: a relação mãe
-
filho
-
pai
Durante todo esse processo, a criança e o outro estão imersos na linguagem. Linguage
m
que o define como sujeito eu sou e marca o outro você é. Para Dolto é a linguagem
que articula o desejo que o funda como sujeito e que o humaniza. E vem da mãe e do pai.
Segundo Ledoux, Dolto “insiste na necessidade do
continuum
do clima afetivo d
o
triângulo
homem
-
mulher
-
criança
, fonte da autoconfiança. É numa estabilidade de relações
que a criança se constrói e é pela fala que ela é introduzida no mundo humanizado”. (Ledoux,
1991: 59). Para Dolto, até os seis meses de vida, a presença da mãe na vida da criança é
fundamental. O mundo da criança pequena “é mediatizado por uma pessoa. Para que um
bebê se estruture de maneira sadia, parecia indispensável a Dolto a presença de uma mesma
pessoa (...). Ela justificou essa tese de uma mesma pessoa-
nutri
z pelo fato de que durante a
oralidade invasiva, o lactente precisa ter certeza de que não comeu ou excretou essa pessoa
maternal” (Id. Ib.: 59).
A tríade mãe-
filho
-pai está na base do processo de humanização da criança.
Inicialmente, na fase de vida em que conforma a sua imagem de base, a criança não se sente
uma outra em relação à mãe. Na verdade percebe-
se
em continuidade com ela. Assim é, e
assim deve ser. Quando cola a sua boca no mamilo da mãe, não no bebê noção de que seu
corpo e o corpo da mãe são duas coisas diferentes. Quem presenciou uma amamentação
dada em condições ideais sem pressa, em ambiente adequado sabe do que Dolto estava
158
falando ao anunciar que a criança poderia sentir que teria devorado a própria mãe, caso esta
desapareça de repente. A relação é de total incorporação. A criança não apenas suga o peito.
Via de regra, suga um e manipula o outro, ou agarra partes do corpo da mãe, finca o em
algum lugar. Freqüentemente vejo crianças tentando invadir narinas, ouvidos, bocas com
os
seus dedinhos. Caso tenha a atenção chamada, normalmente a criança volta-se para o
ambiente, mas mantém-se em sucção; mexe a cabeça, estica o pescoço. Enfim, comporta-
se
como de fato se sente: o peito e a própria mãe são extensões do seu corpo.
Essa relação ‘antropofágica’ e a palavra diz do que de fato ocorre, pois a criança ao
mamar “deglute a mãe” — é quebrada pela figura do pai, o outro do desejo da mãe. O pai,
nesse sentido, “tem uma função
separadora
e
dinamogênica
. A relação dual deve ser marca
da
pela lei do pai (...), apontando à criança que a mãe não lhe pertence e apontando à mãe que o
filho não é produto dela”. (grifos do autor. Násio, 1995: 215)
.
O pai instala-se entre a mãe o
filho, quebra o vínculo narcísico dos dois ao se interpor entre eles. A mãe, ao aquiescer às
demandas do pai, faz uma “não-resposta aos apelos da criança; e, dessa forma, adota um
comportamento estruturante. Há, pois, um além do outro materno e, por conseguinte, um além
da ade... [mãe-filho]”. (Id. Ib.: 214). A título de complementação, digo que o
pai
é o
outro
da linguagem. Pode ser, ou não, o pai biológico. Pode até nem ser
pai,
mas será o outro da
cisão da díade mãe-filho. Nesse sentido esse papel é também humanizante, pois da mesma
forma que a criança precisou sair da sua relação de
um
-
com
-a-
mãe
da vida intra-
uterina,
através da inspiração do primeiro alento cósmico, a que foi levado pela secção do cordão
umbilical, mas sustentado pelo seu desejo de ser, assim também precisa provocar o segundo
nascimento, agora em relação ao corpo exterior da mãe, em relação à qual conformou a sua
imagem do corpo, mas cuja interação precisa ser cindida para continuar o seu processo de
humanização: papel materno, mas desempenhando em relação ao pai.
Françoise Dolto lembra um importante papel da mãe: dar sentido ao outro, qualificá-
lo
como seu ‘representante’. A mãe é auto-significada na relação com o filho, mas o pai — ou o
outro
necessita desse aval materno.
159
5.8 IMAGENS DO CORPO E SEUS DESTINOS: castrações simbolígenas
A noção de castração em psicanálise, muito embora tenha um sentido simbólico, guarda
relação com o termo utilizado em sentido literal, posto que faz referência à suposta perda do
pênis por parte da menina que imaginariamente supõe tê-lo possuído em época passad
a
da sua vida. Essa suposta perda do pênis configura o que Freud denominou Complexo de
Castração,
“centrado na fantasia de castração, que proporciona uma resposta ao enigma que a
diferença anatômica dos sexos (presença/ausência do pênis) coloca para a cria
nça”.
(Laplanche e Pontalis, 2002: 73).
Menina e menino se inserem no complexo de castração de maneira diferente: o menino
teme a castração, que lhe seria imposta pelo pai, em vista das suas atividades sexuais,
especificamente representadas pela descoberta que o prazer de manipular o seu órgão genital
lhe confere; mas fundamentalmente pelo desejo que a criança do sexo masculino alimenta de
ter a sua mãe como parceira sexual. Por esse temor se instaura no menino a angústia de
castração
. Na menina, a ausência do pênis é sentida como um dano pelo qual ela passou.
Nesse sentido, não conduz à angústia, mas à necessidade da negação, compensação ou
reparação
. Assim, busca o pai como aquele que lhe pode dar o que ‘perdeu’. Tanto no
menino como na menina o complexo de castração tem função
interditória
e
normativa.
No
menino, a interdição ao gozo com a mãe; na menina, a interdição ao conluio com o pai,
através do qual lhe seria possível obter um pênis ou um filho, seu substituto simbólico. Por
outro lado, o temor de perder o pênis ou a tentativa de obtê-lo organizam a vida das pessoas,
residindo nisso a sua função normativa. Nessa perspectiva, o complexo de castração “é
relacionado com o primado do pênis nos dois sexos” (Id. Ib.). Segundo Nasio, “a experiência
d
a castração é incessantemente renovada ao longo de toda a existência”. (Nasio, 1997: 13).
O complexo de castração apresenta estreita relação com o complexo de Édipo,
entendido como “o conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em
relação aos pais” (Laplanche e Pontalis, 2002: 77). Para Freud, o complexo de Édipo tem o
seu apogeu entre três e cinco anos de vida da criança, quando, em termos do seu processo de
desenvolvimento das zonas erógenas, está vivendo a fase fálica.
160
Para Dolto, no entanto, a castração tem um sentido algo diferente. Permanece sendo um
ato de privação de um desejo, imposto pelo outro, mas não se define somente em relação ao
Édipo
35
. Marcando a diferença em relação ao conceito clássico de castração, Dolto refere-se a
elas como castrações simbolígenas ou simboligênicas, definidas como:
um processo que se realiza em um ser humano, quando outro ser humano
lhe significa que a realização do seu desejo, sob a forma que gostaria de lhe
conceder, é proibida pela Lei
36
. Esse significado passa pela linguagem, seja
gestual, mímica ou verbal. (Dolto, 2002a: 62).
Sumarizando: castração é privação, é interdito e seu objetivo é humanizar. Ou seja:
tornar a criança ser total, para quem o corpo da mãe e o seu são indivisíveis um sujeito
da linguagem, inserido em um sistema cultural, para o qual a existência deixa de ser toda-
plena
condição suposta existente na vida intra-
útero
onde não havia hiato entre a
necessidade
e o
desejo,
posto que aquilo do que precisava para se conformar como
vivente
não passava pela mediação de nenhuma zona erógena especifica. Isto é, não havia limitação
ao gozo no sentido do gozo de incorporar matéria. O sujeito não sofria limitação, não era
barrado
no sentido lacaniano
, ou
castrado
para usa
r a expressão preferida por Dolto.
Na mitologia doltoniana, imbricada com o esquema corporal,
conforma
-se uma
imagem
do corpo
, inconsciente e que lhe dá sentido como sujeito desejante, iniciando-se com a secção
do cordão umbilical no parto. Para cada estágio de conformação da imagem do corpo, Dolto
apresenta uma
castração
, que significará, naquele momento, um ato seccional, interditório e
humanizante. Ao final do processo, se as
castrações
foram adequadamente conduzidas,
35
Em síntese, o amor que o filho(a) nutre pelo genitor do sexo oposto. “Desempenha papel fundamental na
estrutura da personalidade e na orientação do desejo humano” (Laplanche e Pontalis, 2002: 77). O nome foi
tomado à peça Édipo-Rei, de Sófocles, na qual Édipo mata Laio e casa-se com Jocasta, sem saber que se
tratavam de seus pais. Para Freud os complexos de Édipo e de castração ocupam o centr
o das psicopatologias.
36
A Lei, às vezes denominada Lei do Pai, refere-se ao interdito paterno de que a criança não pode ter a mãe
como seu objeto de desejo. É um interdito simbólico e normativo. A Lei do Pai inaugura, em sentido simbólico,
a entrada na cultura, a parti do que o sujeito, para não perder o seu pênis, renuncia a um tipo de gozo proibido e
se habilita aos outros gozos. Dessa forma livra-se da castração física, mas concede com a castração simbólica
que o limita — ‘com a mãe, não’ — embora lhe abra outras possibilidades. É a expressão simbólica da limitação
à realização plena do desejo
161
teremos o sujeito autônomo, estruturado, coeso e
coerente
consigo mesmo e com o outro
cultural.
5.8.1 Castração umbilical
Para a autora o processo de castração inicia-se na secção do cordão umbilical, no
nascimento. É o primeiro gesto de limitação imposto pelo outro à criança, antes em
homeo
stase com o
corpo
-
um
-
com
-o-
seu
da mãe. É o gesto fundador do ser humano como
indivíduo. Na vida intra
-
uterina não existe
esquema corporal
, porque a criança não tem noção
de um corpo, embora exista a imagem do corpo primordial derivada do narcisismo
pr
imordial
e a criança não tem a noção de objeto parcial porque se realiza, como
ser
, sem
necessidade de localizar o ponto ou os pontos de prazer. A criança
É;
o seu prazer — de estar
vivo
É
. A necessidade e o desejo coincidem.
Lançado no mundo, a sua primeira tarefa existencial é respirar. O seu chamado à vida é
feito pela necessidade imperiosa de obter por conta própria aquilo que antes lhe era oferecido
passivamente. O ‘sopro da vida’, nesse sentido, provém de dentro’; é mais uma ‘busca de
vida’. A secção do cordão umbilical insere-se como uma primeira castração, um primeiro
interdito. É o interdito fundador da vida, como realidade existencial externa ao útero. Se não
for respondido adequadamente pela criança, efetivamente conduz à morte.
No ato inaugural da respiração, a criança ser de desejo é chamada a confirmar o
seu
desejo de ser. Somente ela pode fazê-lo. Executado esse salto para a vida que é um
gesto necessariamente individual — realizado a partir de uma necessidade imperiosa de
respirar
-
para
-viver, aí sim começam os gestos relacionais. Advogo a partir disso, que o
primeiro gesto existencial da criança, aquele que inaugura o seu
estar
-
no
-
mundo
, é o ato de
respirar. É ele que marca a sua individualidade. O que pode ser conduzido de forma m
ais
ou menos
traumática.
No que diz respeito à secção do cordão umbilical, tem-se dado pouca importância a este
gesto que como ressaltado acima constitui-se no gesto fundador da individualidade. A
secção intempestiva do cordão umbilical, feita no momento seguinte à expulsão fetal, leva a
uma respiração agônica, normalmente acompanhada de choro. Mas se a criança, ainda com o
162
cordão umbilical íntegro, portanto ainda respirando através dele, for suavemente massageada
na região dorsal, quase sempre inicia o processo respiratório sem choro ou agonia
37
, exceto
nos casos de recém-nascidos com baixa vitalidade, nos quais os procedimentos ativos de
estimulação se façam necessários. Esse comportamento ante o recém-nascido, que é seguido
via de regra pela colocação da criança nos braços da mãe para um primeiro contato
externo entre os dois, constitui elemento importante da técnica do chamado
parto
humanizado
, que tem sido objeto de interesse crescente em todo o mundo.
A título de complementação, trago à discussão um tema que não vi abordado nas obra
de Dolto ou qualquer outro autor a que tenha tido acesso, mas que julgo relevante para a
discussão em tela. Trata-se da amniorrexe, ou seja: a ruptura da bolsa amniótica ou bolsa das
águas, que no meu entendimento, constitui uma importante castração, na medida em que
impõe ao bebê uma limitação à qual ele não estava submetido antes: a sensação de peso
;
sensação ausente ou quase ausente enquanto vige a integridade da bolsa amniótica.
Imerso em fluidos, um corpo tem o seu peso diminuído de um valor correspondente ao
peso daquele fluido que estaria no lugar ocupado pelo corpo princípio de Arquimedes ou
empuxo
. Por outro lado, sabe-se que o corpo de um recém-nascido tem cerca de 95% de
água, e que o liquido amniótico tem densidade praticamente igual à da água. Assim, é como
se um objeto feito de água flutuasse dentro de um recipiente com água. O resultado natural é a
falta de sensação de peso por parte desse corpo. Quando a bolsa amniótica é rompida, quebra-
se esse equilíbrio e o recém-nascido passa a ter a percepção de seu próprio peso. É um
aterrisamento, uma chegada na terra. Que constitui, ao meu ver, a primeira imposição de uma
limitação, portanto, uma forma de castração. Ocorrida ainda no interior do útero.
Ou seja, com
as demais condições que conformam a homeostase mãe-bebê ainda presentes. É como se a
natureza promovesse um
nascimento aos poucos
.
37
O risco da poliglobulia excesso de hemácias, represadas no feto em vista do inicio da dequitação
eventualmente provocada pelo retardamento da secção do cordão umbilical, é evitado se elevarmos a criança a
um nível superior ao da placenta. Por outro lado, não estou preconizando demora no processo, apenas calma e
delicadeza. Prática abonada por vários autores, dentre os quais o próprio Dr. Frédérick Laboyer, um dos
pioneiros dos partos humanizados (1982).
163
Dentro do útero não esquema corporal, porque não noção de limite físico. A
‘satisfação’ do feto lhe chega de uma forma totalizante, na medida em que se faz através do
cordão umbilical, sem a localização dessa satisfação, que se espraia por todo o corpo, sem
ponto de chegada definido. O
ser
-
criança,
na vida intra-uterina, é
todo
imagem do corpo.
existe como realidade psíquica. Advogo, a partir da consideração acima, que a ruptura da
bolsa de água constitui a primeira castração, manifesta como uma espécie de ‘chamada ao
mundo’, deste ser
um
-
com
-o-
universo
, que agora faz a sua primeira aproximação com o
esquem
a corporal pela imposição ao seu corpo da noção de peso. Nessa perspectiva o
rompimento da bolsa amniótica constituiria um primeiro aviso das mudanças que estão
prestes a ocorrer.
38
5.8.2 Castração oral
Essa castração é representada pelo desmame. Embora corporificada no desmame, deve
ser entendida como castração de toda zona erógena oral, o que compreende, lábios, mucosa
oral, faringe-laringe, porção proximal do tubo digestivo, além da zona respiratória-
olfativa.
Esta castração, quando sensatamente dada, resulta no desejo e na possibilidade de falar, e,
portanto na descoberta de novos meios de comunicação” (Dolto, 2002a: 79)
Sensatamente
refere
-se à forma como se processa, no sentido de tempo (progressivamente) e na adequada
condução pela fala e pelos gestos, de forma que o gozo oral, antes centrado no binômio
mamilo
-
boca
, possa ser transferido para outros objetos que a criança põe na boca, os quais,
nomeados pela mãe, introduzem a criança na linguagem. Assim, “o efeito simbolígeno da
castração oral é, portanto, a introdução da criança enquanto separada da presença
absolutamente necessária de sua mãe, na relação com o outro. (Dolto, 2002a: 82). Essa
castração representa “a separação da criança de uma parte dela mesma: o leite” (Nasio, 1995:
218). O leite
materno, nessa perspectiva é um objeto partilhado. A criança não o vê como uma
38
A bolsa das águas ou saco amniótico normalmente é rompida próximo ao parto e, via-
de
-regra, o seu
rompimento desencadeia a fase expulsiva do trabalho de parto. Pode-se retardar o parto mesmo com a bolsa
romp
ida, nos casos de prematuridade. Mas esse não é o procedimento de rotina, até porque uma bolsa amniótica
rota expõe a criança a riscos, que aumentam com o tempo de rompimento (Rosemberg & Thilo, 1995: 41
-
42).
164
coisa da mãe que ele toma, mas como uma coisa dele que está na mãe. Retirar o leite ou
proibi
-lo, fá-
lo
-á buscar substitutos: o dedo, objetos ou palavras que, proferidas pela mãe, vão
ocupar o lugar do mamilo e ressignificar o desejo. Quebra uma relação baseada no corpo-a-
corpo e instala-se uma relação simbólica mediada pela palavra. Para Dolto, a linguagem é
preexistente ao nascimento, mas “é somente após o desmame (...) que a assimilação da língua
materna passa a ser feita” (Nasio, 1995: 28).
Esse momento é crucial porque o “circuito curto” do prazer, representado — segundo a
autora
pela relação mucosa-mucosa, corpo-a-corpo, precisa ser substituído pelo “circuito
longo”, que é circuito da fala comunicante. Mas o circuito longo o é direto, é um circuito
simbólico, estabelecido numa relação sujeito-sujeito; pode-se dizer, estabelecido a partir de
sensações sutis, com maiores possibilidades, mas não imediatos. Assim, “o prazer dado é
sentido como uma invenção, uma descoberta, uma criação a dois para uma conjunção
através do corpo dos psiquismos da mãe e de seu lactente”. (Dolto, 2002a: 67). É crucial
porque é um momento de redefinição da fonte do prazer. O desmame precisa ser conduzido
de forma a ser percebido/sentido pela criança como uma modificação do valor simbólico,
antes direto via mucosa do bebe-leite materno-mamilo, além dos odores e sabores que
permeiam a cena completa. A nova via — representada pela fala comunican
te
— deve
significar, para o psiquismo da criança
uma modificação do valor simbólico, sempre novo, da presença
materna, e não de um desaparecimento do objeto-mãe”. (...) Em
contrapartida, se o objeto desaparece (...) a castração não é mais nem
valorizadora
do desejo, nem portadora de vida conhecida, nem abertura para
um chamado da comunicação inter-humana. É, após um curto tempo de
espera, um esgotamento do desejo e uma parada da dinâmica do desejo, a
mutilação da imagem do corpo que se desenvolveu na relação do lactente
com a sua mãe; (...). (Id. Ib. 67).
Dolto associa a angústia do oitavo mês, correspondente ao nascimento dos dentes
39
, à
condução inadequada do desmame. Está associada à falta de mediação entre os objetos e o
39
Na edição mais recente, de 2002, na página 68, a autora faz alusão à odontogênese. Mas por um erro
presumivelmente gráfico o texto fica comprometido, pois a palavra ‘dentes’ que deveria se seguir a ‘nascimento’
foi omitida. O sentido e o cotejamento com edições anteriores, porém, permite
-
me a comple
mentação.
165
desejo da criança. “É um sentimento de impotência que provém da falta de mediação pela
mãe.” (Dolto, 2002a: 68). Por isso, tal como em Erik Erikson, o momento do desmame é
crucial na relação mãe-bebê, no que diz respeito à conformação de uma estrutura psíquica
equilibrada que permita à criança estabelecer uma relação com o mundo humanizar-
se
de forma adequada. E novamente, tal como em Erikson, um processo ocorrido na fase oral,
que tem no elemento materno o seu estofo fundamental.
5.8.3 Castração anal
A castração anal constitui o processo seguinte e tem, segundo a autora, duas acepções: o
sentido de autonomia determinada pela motricidade, através da qual a criança se torna
“autônoma” do adulto que promove a sua deambulação passiva. Nesse sentido se assemelha a
um ‘desmame’; um ‘desmame’ dos cuidados com o corpo. Cuidados esses que dizem respeito
ao asseio com relação aos excrementos da criança e cuidados relativos à deambulação. A
criança precisa ter a liberdade de ir ao mundo. É de fato uma época de riscos, mas o maior
risco é ficar presa às figuras parentais ou aos cuidadores. As contusões e escoriações
inauguram no âmbito do espaço familiar os desafios que hão de vir na vida social
-
cultural.
A outra acepção refere-se à proibição da criança auto-
impingir
-se algum mal. Consiste,
pois,
no impedimento de que ela própria se submeta a riscos que ela não gostaria que um
outro lhe fizesse. Esse processo se faz através de um “comércio relacional”. E, como nos
demais, constitui-se em um processo de mão-dupla: enquanto castram a criança de suas
possibilidades, os pais castram a si dos seus cuidados excessivos. A castração pressupõe a
assunção da criança como sujeito, mesmo que esse sujeito tenha limitações definidas pelo
meio. Assim, quando os pais castram a criança dos riscos inerentes ao seu a
madurecimento,
mas não efetuam a sua própria castração em termos de cuidados, prejudicam a sua
humanização, ao considerá-la um objeto a ser adestrado, o que também precisa ser
mediatizado pela palavra. Segundo Dolto, “os seres humanos, qualquer que seja a sua idade,
são capazes de dar essa castração aos mais jovens, tanto pelo exemplo como pela palavra”
(2002a: 87).
166
Nas duas acepções, precisamos recorrer ao meio, ao outro, para compreendê-las e
aceitá
-las em sua totalidade. Que sentido teria a castração anal numa tribo indígena, em cujo
seio, os cuidados com as crianças sejam compartilhados por todos e cujos revezes, também,
fossem aceitos pelo coletivo; em comparação com um aglomerado urbano, moderno, onde a
responsabilidade do cuidado freqüentemente não se estende para além da família nuclear? As
possibilidades e limites da castração anal, portanto, somente podem ser situadas em referência
a um sistema cultural que lhe dê significado.
Os aspectos relacionais tornam-se particularmente importantes nesta fase. Pode-
se
mesmo afirmar que aqui se inaugura a vida social da criança. Iniciam-se os primeiros passos,
que coincidem com um relativo domínio da fala. Se a castração anterior foi bem sucedida,
representa um lançar-se ao mundo, num processo efetivado objetivamente pelo corpo
agente visível da deambulação mas mediatizado pela palavra. A palavra da criança e dos
adultos tutelares modulam o caminhar. A minha observação de crianças nesta fase da vida
corrobora plenamente o que a autora indica como condução adequada da castração anal. A
criança vai ao mundo, mas mantém um laço simbólico com o outro-tutelar, representado
sobretudo pelo olhar e pela audição: ‘Vai!’...’Vem!’... ‘Cuidado!’... ‘Muito bem!’... ‘Caiu,
mas não precisa chorar!’. São expressões que confirmam para um observador o processo
linguageiro que acompanha a deambulação infantil, ocorrida nesta fase.
5.8.4 Castração genital
A castração genital constitui
-
se no último dos processos de castração simbolígena. Dolto
a analisa em dois tempos: o primeir
o, denominado
castração genital primária ou genital não-
edipiana,
refere-se à descoberta da diferença sexual entre meninas e meninos. A castração
edipiana não genital pode fracassar como ação simbolígena em conseqüência da falta de
informações, das broncas, adiamentos que acompanham respostas ou reações dos adultos a
respeito do que a criança levanta a respeito do que ela observou, ouviu dizer, sentiu
”.
(Dolto
2002a: 151).
167
Esta
castração primária
ou
não edipiana
reveste
-se de uma importância especial por
que
é primeira vez em que a criança se depara com uma Lei que não é imposta pelos adultos
tutelares, mas uma lei natural. A descoberta da diferença anatômica constitui-se, assim, na
sua primeira descoberta pessoal, o que em alguns casos pode trazer transtornos, mas que
quase sempre traz valorização, fortalecimento do sujeito, particularmente quando o processo
de descoberta do sexo é acompanhado das explicações pertinentes.
A criança adquire a constatação dessa diferença através da observação direta de si no
espelho
e do outro, como espelho de si. É a experiência do espelho que à criança a
certeza de que a sua imagem do corpo, conquanto lhe assegure estabilidade e coerência
internas, o lhe confere um lugar na relação com o outro. haverá o encontro das
diferenças sexuais anatomicamente definidas: realidades existenciais díspares embora
complementares, posto que relativas a um mesmo ser. Essa noção de complementaridade
constitui um entendimento novo em relação à visão freudiana clássica, que pontua a diferença
como
existente
ou
inexistente
relativamente ao órgão sexual masculino e o
inexistente
como gerador de angústia. Mas para Dolto a descoberta da diferença é geradora de um
conflito duplamente sentido, e não necessariamente na linha do eu tenho, o outro não tem,
mas algo próximo ao
sou diferente do outro
.
40
Esse ‘encontro’, por vezes conflitivo, define uma marca, uma ‘ferida’. “Esta ferida
irremediável da experiência do espelho pode ser denominada de buraco simbólico, do qual
decorre, para todos nós, a inadaptação da imagem do corpo e do esquema corporal(Dolto,
2002a: 124). A repetição da experiência do espelho “vacina” a criança com o primeiro estupor
que ela teve, e assegura pelo testemunho escópico é e continua sendo única que não
será despedaçável; a sua integridade de se manter, independente das variações e
vicissitudes do meio. O sujeito descobre na sua relação com o outro
40
Na análise do Pequeno Hans (Freud, 1996a ), texto considerado “determinante na descoberta do complexo de
castração” (Laplanche e Pontalis, 2002: 73), Freud interpreta como
mentirosa
uma fala do garoto, segundo a qual
“o pipi de Hanna [sua pequena irmã] era tão bonito”. Na verdade, ele quis dizer estranho”— sentencia Freud
(1996a: 28
).
Ora, em todo o texto Freud chama a atenção para a confiabilidade das palavras do Pequeno Hans
porque o garoto não estaria ainda submetido aos ditames dos preconceitos e amarras sociais. Mas nessa
passagem teria
mentido.
Presumo que a convicção de que Freud, para alem do gênio criativo que foi, estava
submetido aos limites culturais do seu tempo e de sua cultura, levou Dolto a considerar a questão da
168
(...) que ele é autêntico em sua imagem do corpo inconsciente que,
associada ou não ao esquema corporal, (...), lhe permite discriminar a
diferença entre um encontro na presença ou na ausência, entre um fantasma
e um fato.(...). Ela ‘se’ vê, mas todo o seu desejo de se comunicar com o
outro é frustrado ali. O espelho permite à criança se observar como se fosse
u
m outro que ele nunca encontra. (grifo da autora; Dolto, 2002a: 124.).
O segundo tempo da castração genital é a edipiana. É uma castração diferente por que se
verifica no âmbito consciente. A criança, pela experiência do espelho, promoveu um encontro
entr
e a imagem do corpo e o esquema corporal. Na verdade quedou-se frente ao seu
esquema
corporal
com uma imagem do corpo conformada ao longo da sua história, de forma
inconsciente. Esse encontro a torna consciente de que é um sujeito. A criança assume a sua
condição sexual no mundo: o seu projeto de vida é agora indissociavelmente ligado ao sexo a
que pertence. Pelas castrações anteriores, a criança ia adquirindo potencialidades ligadas a sua
existência como indivíduo, dono de um corpo sobre o qual cada vez mais adquiria controle e
poder e com o qual lançava-se no mundo como sujeito gozante. Pela castração genital
edipiana, a criança conquista as insígnias do seu sexo simbólico, com as quais se lançará no
mundo, agora não com as potencialidade físicas, mas também com as potencialidades
psíquicas. Adquire consciência de si. Em termos cronológicos isso corre por volta dos cinco a
sete anos de idade.
5.9 HUMANIZAÇÃO: o fruto das castrações simbolígenas
O fruto das castrações sofridas pela criança é o seu processo de humanização, n
o
sentido de tornar-se ser humano, sujeito de um processo histórico do qual é parte integrante.
Pela castração oral (desmame do corpo
-a-
corpo alimentador) a criança adquire a possibilidade
de chegar a uma linguagem que seja socialmente compartilhada, e não apenas compreensível
pela sua mãe. A criança adquire, enfim, a possibilidade de uma independência em relação à
mãe, que vai se intensificar no processo deambulatório associado à castração anal, o qual
complementarida
de entre os sexos e não apenas uma relação de existência/inexistência. Daí postulo a sua
noção de castração centrada e conduzida a parti de referenciais femininos/maternos.
169
permite à criança efetuar as suas próprias experiências exploratórias, que lhe conferirá
autonomia, embora a lance em um mundo de riscos, mas também de possibilidades.
A castração genital, no seu primeiro tempo, confronta a criança com o diferente de si.
Podemos aceitá
-
la como o coroamen
to do processo de humanização e socialização da criança,
que agora sai de si e se confronta com o outro. Não pode se perder nesse confronto especular,
e não o faz se tiver definido uma imagem do corpo que lhe assegure a unidade e a
autocoerência. No segundo tempo, a menina ou menino, já identificado no seu sexo, se
prepara para a vida genital. Será a primeira vez que um processo consciente comanda uma
transformação da
imagem do corpo
.
Quando adequadamente conduzida, a castração genital favorece a adaptação
da criança
às situações sociais, representadas pela conquista da linguagem, pelo conhecimento das regras
de todos os jogos, enfim a preparação da menina ou do menino para uma vida genital futura,
esperada como um promessa e preparada pelo prazer de adquirir conhecimentos e poderes,
técnicas, curiosidades e prazeres
.”
(Dolto, 2002a: 60).
O processo de castração simbolígena constitui a meu ver algo semelhante ao
processo gestacional, mas com sentido inverso. Na gestação a criança vai de uma condição de
nada
-
ser,
sustentada unicamente na ética desejante dos pais, e se estrutura como
ser
-
de
-
desejo,
que na vida intra-uterina se traduz como desejo de incorporar matéria e aumentar a
sua massa carnal,
às expensas da placenta, na condição de
uno
-
com
-o-
universo
.
Universo que
na vida intra-uterina é a própria mãe. Nesse momento a mãe simboliza e mediatiza para a
criança a realidade universal na qual está sendo gerada. A criança não se percebe como
em
partes
, porque a sua única realidade ‘sensível’ advém do gozo de incorporar matéria,
difusamente distribuído. Nesse sentido, é toda
imagem inconsciente do corpo.
O momento do nascimento se interpõe como um divisor de águas. O
ser
-
todo
-
com
-o-
universo,
‘in totum’ um
ser
-
de
-
desejo
depara-se com a angústia mortal primitiva
representada pela falta do alento vital e tem de afirmar o seu
desejo
-
de
-
ser.
Este momento
tem como aviso prévio da nova condição que irá enfrentar o rompimento da bolsa das águas
170
que lhe comunica a sensação de peso e, por conseguinte, um primeiro encontro com a
entidade corpo, ainda como uma vaga noção.
Nascido, inicia-se o processo de formação ou de diferenciação da sua imagem do
corpo,
agora não mais como totalidade indefinida, mas associada a determinadas áreas
corporais, dotadas das condições para que o estímulo que vem do meio possa passar para o
psiquismo da criança. Essas áreas ou
zonas erógenas
constituem, assim, o elo de comunicação
sutil entre o ‘mundo mental’ e o ‘mundo social’, ou utilizando os termos de Erikson, o mundo
psicossexual
e o mu
ndo
psicossocial. Enquanto conforma a sua imagem de base, associada às
zonas erógenas, a criança vai fazendo a interação entre elas através da sua imagem funcional,
bem como de si em relação ao outro através da imagem erógena, as quais devem ser
entendidas
quando assim explicadas como um recurso didático, pois em realidade,
conformam
-se, simultânea e imbricadamente, num todo coeso, inter-relacionado e dinâmico.
As castrações, iniciando na umbilical — ou na amniótica, defendo e terminando na
genital, vão oferecendo interditos e limitando o espaço do gozo, do prazer. Por isso mesmo
tiram a criança da sua condição de
uno
-
com
-o-
universo
e alocam-na na terra, na cultura, em
um processo conduzido exatamente por aquele
ser
em associação ao qual teve a sua con
dição
existencial estruturada: a mãe, que por isso mesmo habilita-se a oferecer as castrações, os
interditos, sem o risco de um rompimento
ser
-a-
ser com o filho.
A cada interdito oferecido a criança substitui um prazer parcial por um prazer
simbólico sustentado na linguagem, que passa a ser, a partir do nascimento, o estruturante do
ser
-
no
-
mundo
no qual a criança será transformada. A partir da linguagem também um
processo conduzido pela mãe nas primeiras fases da vida a criança se estruturará como
indi
víduo
e como ser social, em um processo que continuará sendo preponderantemente
inconsciente e que nunca terá fim, mas somente terá sentido, continuidade e coesão se
adequadamente operado nestas primeiras fases da vida. Uma tarefa para o cuidado/castração
materna.
No final do processo de castração, quando define a sua condição de
ser
-
sexual,
estará
apto a assumir o seu próprio projeto humano, cuja presença no mundo é agora representado
171
pelo seu corpo biológico ou esquema corporal. A sua imagem do corpo foi
completamente
recalcada e constitui o Isso/Id inconsciente como depositários das marcas psíquicas ou da
energia libidinal
que
dará sentido à sua vida mental que é a própria essência de estar vivo
,
para usar a expressão de Batistella.
CAPÍTULO 6
172
Capítulo 6
EXPLORANDO CONFLUÊNCIAS:
O DIÁLOGO POSSÍVEL
É preciso falar ao bebê na sua linguagem. A linguagem anterior às
palavras. Antes da Babel, da grande confusão. A linguagem do paraíso
perdido. (...). É preciso falar por gestos,
por mímica, como a um
estrangeiro? É preciso ir mais longe, retroceder ainda mais. É preciso
reencontrar a língua universal. É preciso falar de amor. (...). Isso mesmo!
Falar de amor! Não é essa a língua que toda a natureza fala?
Frédérick Leboyer
173
Nos dois últimos capítulos procurei apreender o essencial da contribuição teórica de
Erik Erikson e Françoise Dolto, particularmente quanto à definição dos conceitos de
confiança básica e imagem inconsciente do corpo, que inscreveram Erikson e Dolto en
tre
aqueles que contribuíram para o engrandecimento do conhecimento científico humano. O
texto pontua aspectos relevantes do ambiente, das motivações e das possíveis influências que
cada autor recebeu bem como as linhas gerais de raciocínio que seguiram na elaboração dos
seus construtos teóricos.
Erikson e Dolto, conquanto partindo de uma base psicanalítica comum assentada na
contribuição freudiana mais geral —, percorreram caminhos metodológicos díspares. Esses
autores representam escolas cujos princípios teóricos gerais nem sempre convergem. Erikson
figura entre as estrelas da Psicologia do Ego, escola psicanalítica hegemônica nos EE.UU.
Françoise Dolto destaca-se no plano teórico com uma linha de pensamento muito pouco
associável a qualquer outra autor, muito embora não seja difícil estabelecer uma certa
proximidade com o pensamento de Lacan, proximidade essa freqüentemente admitida pelo
próprio Lacan como vimos na apresentação da autora.
Um possível diálogo entre eles será buscado, portanto, nos aspectos comuns da
abordagem e/ou do percurso teórico, bem como naquilo que presumo ser o âmago das suas
teorizações e a essência dos respectivos modos de pensar.
6.1
CRIANÇA E MEIO SOCIAL
-
CULTURAL:
imbricamento necessário e obrigatório
Em Erikson e Dolto, no meu entendimento mais do que em quaisquer outros
psicanalistas, a formação do psiquismo humano é compreendida incluindo-se os
fatores
ambientais
, representados pelos aspectos sociais-
culturais
nos quais a criança nasce e se
desenvolve
e os fatores i
natos
, que irão definir o modo particular como cada criança
promoverá a interação dos fatores ambientais e pessoais.
Para Dolto o nascimento da criança é apenas mais uma etapa certamente
determinante
do processo de formação de um novo
ser,
que como tal começa bem antes.
174
Começa no desejo dos pais, no desejo de um pelo outro, sustentado na cultura. A criança vai-
se definindo, como
ser
, numa mesmice de ser, em uma continuidade narcísica (...)”. (Dolto,
1984: 38). Isto é, o narcisismo da criança, que pode ser tomado como a sua noção intuitiva de
coesão interna é parte de um todo, tem continuidade no meio, na cultura. É disso que advém a
noção de existência dirá Dolto. Essa continuidade narcísica é assumidamente histórica,
preexiste à concepção, funda
-
se,
como dito, no desejo dos pais. “É nesse sentido que a criança
é herdeira simbólica do desejo dos genitores que a conceberam (Id. Ib.: 38). Em outras
palavras, a existência da criança está intimamente associada à realidade ética na medida
em que relacio
nal
vivida na experiência de desejo dos pais. A criança vem ao mundo como
ser desejante, mas nasce ou é gerada na lógica desejante, que precede o seu nascimento,
pois é no desejo segundo a psicanálise que se assenta a essência da vida dos seres
hu
manos.
O desejo funda o sujeito e o amarra ao outro, através da linguagem; o que equivale a
dizer, através de uma cultura. Uma criança, portanto, testemunho da existência no
indivíduo daquilo que o faz sujeito, que o faz gente, no sentido psicanalítico. Assim, a criança
e o desejo dos pais estão em um
continuum
existencial simbólico, interligados e mutuamente
determinados e que somente faz sentido em relação a uma determinada realidade social-
cultural.
Erik Erikson, por sua vez, buscou compreender a criança enquanto ser inserido numa
cultura. Não apenas no sentido de que essa cultura o conforme após o nascimento, ou que lhe
instrumente ou habilite com os recursos necessários ao seu desenvolvimento. Para este autor,
estamos todos inseridos em um ciclo de vida, cuja concretização plena depende do seu
antecessor, que é inter-geracional. Assim, a criança de três anos, por exemplo, não independe
daquela de seis meses, assim como o adulto utiliza-se do estofo que foi lançado na infância.
Todas as fases do des
envolvimento humano guardam entre si relação de interdependência, em
vista da qual pode
-
se dizer que o todo tende a ser
ou não
coerente.
Erikson vincula as clássicas fases do desenvolvimento do aparelho psíquico fase
oral, anal e genital — ao seu processo de socialização/humanização. Destarte, enquanto
175
conforma o corpo físico e organiza as suas energias pulsionais, a criança vai adquirindo traços
de personalidade que vão definir comportamentos fundamentais no seu processo de inserção
no mundo, o qual é também influenciado pela criança, posto que muito do modo de existência
da comunidade adulta define-se a partir da relação estabelecida com a criança. Conclusão a
que chegou após uma longa experiência como analista de crianças e adultos e após
convivên
cia com duas tribos indígenas americanas. Erikson ressaltou, a partir da sua
experiência com os Sioux e Yurok, que
Um dos aspectos mais surpreendentes (...) foi a convergência entre as
razões dadas pelos índios para seus antigos métodos de criação de filhos e
o raciocínio psicanalítico através do qual passaríamos a considerar os
mesmos dados como relevantes e interdependentes. O treinamento em tais
grupos, logo concluímos, é o método através do qual a maneira básica do
grupo de organizar a experiência (seu etos de grupo, como viemos a
chamá
-lo) é transmitida para as experiências corporais iniciais do bebê e,
através delas, para o início do seu ego.
A reconstrução comparativa dos antigos sistemas de criação dos
filhos [nestas tribos] esclareceu muito do que Spitz chamou de ‘diálogo’
entre a prontidão desenvolvimental da criança e o padrão de atendimento
materno proporcionado à criança por uma comunidade. (1998: 25).
O autor demonstrou que os sentimentos tão caros e tão requeridos dos adultos
ontologicamen
te afirmados, como
coragem
(de
ser
), força de vontade, autoconfiança, auto-
estima, autonomia etc. são sedimentados, em geral, nos primeiros meses de vida. Também
neste autor vê-se o corpo-
mente
sendo plasmado como um todo integrado. É no exato
momento em que ocorre o ato ‘físico’ do andar, por exemplo, com a sua gama de fenômenos
relacionais adjacentes, que se conforma o sentimento de autonomia e
vergonha
, de modo
inconsciente. Não necessariamente como conseqüência um do outro, mas como realidades
simultâne
as.
Vemos, portanto, que Erikson e Dolto vêem a infância como partícipe do ciclo vital
humano numa condição de igualdade em termos de importância e significado com as
demais fases e não apenas como uma espécie de apêndice da fase adulta da vida. Nesse
sentido, a forma como uma pessoa chegará à idade adulta ou à velhice guarda relação com a
forma como foi gerada, o que, por sua vez irá influenciar a forma como envelhecerá num
ciclo infinito e interdependente.
176
6.2 SOFRIMENTO HUMANO/TRANSTORNO MENTAL:
ponto de partida para uma compreensão holística do ser humano
Na
secção 4.2 apresentei o ponto de partida das motivações eriksonianas na busca de um
entendimento novo sobre o ser humano. O autor lembra que algumas perguntas, embora muito
simples, são extremamente embaraçosas porque suscitam contínuas controvérsias. Erikson
refere
-se, por exemplo, à localização dos distúrbios neuróticos, e interroga: estaria no corpo
ou na mente; estaria no indivíduo ou na sociedade?
Dolto, por sua vez, teve a sua aten
ção mobilizada pelas “crianças anormais, retardadas,
as que apresentavam distúrbios nervosos ou de caráter” (1988: 131). E, como Erikson,
buscava as causas mais profundas desses distúrbios, buscava “o âmago das representações
imaginativas do paciente, da sua afetividade, do seu comportamento interior e do seu
simbolismo” (Id. Ib.: 132.) Mas o simbolismo ao qual a criança lança mão não falam por si,
não dizem das motivações inconscientes sem uma contextualização. “É necessário o
contexto” (Id. Ib.), assume D
olto.
Os
distúrbios neuróticos, conforme descreveu Erikson, ou as crianças do Hospital
Bretonneau, atendidas por Dolto, desempenhavam, na época e na condição em que cada autor
se situa, papel semelhante ao desempenhado atualmente pelos transtornos mentais, grosso
modo, ou pela
depressão
em particular, como o seu representante mais importante, conforme
definido pela OMS. Atualmente o interesse
particularmente em termos de saúde pública
não está nas
histéricas
de Freud, muito menos nos
neuróticos
de Erikson ou no outro que
sofre
, de Dolto. Hodiernamente não são essas condições clínicas que enchem os consultórios e
sobrecarregam os planos de aposentadoria, mas os depressivos, os portadores de síndrome do
pânico e os suicidas
metáforas
do nosso tempo
p
ara usar uma expressão consagrada por
Susan Sontag
41
. Portanto, poderíamos fazer as mesmas perguntas, quanto às suas possíveis
causas e localização. Seriam problemas da mente (stricto sensu)? Do corpo? Estariam
vinculadas às condições sociais ou seriam dec
orrentes de suscetibilidades pessoais?
41
Susan Sontag, autora de
AIDS e suas metáforas
(1989) e
A doença como metáfora
(1984), dentre outros livros,
cunhou a expressão aqui utilizada em relação à aids, à tuberculose e ao
câncer
doença da qual morreria em
177
Erikson mostra-se decepcionado ao perceber que as respostas apresentadas, muito
embora contemplassem semanticamente as várias categorias envolvidas corpo, mente e
sociedade
de fato não as integravam num todo coerente; apenas as justapunham, de forma
que o discurso aparentemente novo somente rebuscava velhas noções. Em lugar das antigas
respostas, este autor ousa propor uma nova, que — no seu entendimento — contemplava num
todo harmônico e coerente os elementos envolvidos. Não no sentido de substituir algumas
dicotomias por outras, ou mais ainda, de substituir as dicotomias corpo/mente e
mente/sociedade por uma tricotomia corpo/mente/sociedade mas de integrá-las como
aspectos do mesmo processo, que em síntese é a
própria
vida humana
.
A chave dessa integração, segundo Erikson, estaria no entendimento dos processos
vitais humanos a partir do seu referencial psíquico. Ao definir o que chamou de modos ou
modalidades psicossexuais em relação aos aspectos psicossociai
s
a elas correlacionados, o
autor amarra no concreto das pulsões que dizem do que de mais humano na vida o
processo de humanização da criança-ser humano. E isso se faz simultaneamente ao seu
desenvolvimento psicossocial. Assim, o autor integra e articula o processo de
desenvolvimento humano nas duas esferas do
ser:
a esfera circunscrita ao íntimo das
motivações eróticas que viabilizam a vida individual com a esfera das motivações
sociais e culturais que viabilizam a convivência coletiva.
Somos seres geneticamente sociais, porque o nosso
elan
vital es desde a
concepção
impregnado em nosso corpo-
mente
-
em
-
formação.
Erikson não limita nem
esgota o processo de humanização em uma etapa da vida. Ao contrário, estabelece um
ciclo
vital
do nascimento à morte. E adota o princípio epigenético, segundo o qual cada etapa se
constrói em relação à anterior. Assim, das primeiras fases da vida da criança permeada
pelo conflito básico entre desconfiança e
confiança
advirá o sentimento de
esperança
que
ani
mará o
ser
em busca da continuidade existencial. Por esse motivo situo no sentimento de
confiança básica o início de um processo que inoculará lembrando Giddens
fé,
esperança e coragem na coerência e continuidade dos processos vitais, de forma a criar
um
2004
—, e sua utilização associada aos transtornos mentais e comportamentais é uma inferência de minha
178
sentido de segurança ontológica de ser que guiará o indivíduo pelas transições, crises e
circunstâncias de alto risco. Todo esse processo faz-se simultaneamente na
criança e
no
meio.
Naquela porque em relação ao prazer inconsciente que diz da sua individualidade mais
absoluta; neste porque somente faz sentido e pode-se realizar de fato se em relação ao meio
social
-
cultural em que a criança nasce e vive.
Françoise Dolto também empreende uma busca de resposta, resposta para o sofrimento
humano, e mais especificamente, para o sofrimento infantil. Marcou a sua vida pela escuta do
outro
-
que
-
sofre
e que tinha algo a dizer. Assim como Erikson, rechaçava as respostas por
demais prontas. Daí a sua crítica a Melanie Klein, alguém para quem tudo estava
“dema
siado teorizado e demasiado construído”.
(Roudinesco, 1994: 351).
Dolto também articula no concreto do gozo mediatizado pelas zonas erógenas a
formação do inconsciente ou Isso
42
o pólo pulsional da personalidade que poderá ser
tomado como semelhante à
i
magem inconsciente do corpo.
Esta autora acentua que a imagem do corpo “é um Isso [pólo pulsional] relacional,
tomado em um corpo situado no espaço, autonomizado
43
enquanto massa espacial, um
‘Isso’ do qual uma parte constitui um pré-‘Eu’: O de uma criança capaz de sobreviver
temporariamente separada do corpo do outro” (2002a: 28). Assim, “as pulsões que emanam
do substrato biológico estruturado sob a forma de esquema corporal, podem passar para a
expressão no fantasma [fantasia], (...) através da imagem do corpo”.(Id. Ib.: 28). Conclui a
autora
: “Se o lugar, fonte das pulsões, é o esquema corporal, o lugar da sua representação é
a imagem do corpo
” (grifos da autora; 2002a: 28).
Dessa forma, a autora amarra a imagem do corpo lugar das represent
ações
ideativas, da fantasia — ao esquema corporal — lugar-fonte das pulsões. “Entretanto, a
elaboração desta imagem do corpo pode ser estudada na criança, ao longo da estruturação
do seu esquema corporal. Nessa perspectiva, a imagem do corpo — expressão da vida
responsabilida
de.
42
Para uma melhor compreensão do Isso/Id, ver capítulo 3.
43
Autonomizado é um neologismo que indica um processo de autonomia conduzida por uma outra pessoa.
Adquire sentido quando utilizado em relação a uma criança cuja autonomia é promovida pela mãe através de um
processo de castrações/interditos que redundará na sua humanização, como visto nas secções 5.8 e 5.9.
179
inconsciente da criança faz laço com o esquema corporal lugar de manifestação das
pulsões, através das
zonas erógenas
. Para Dolto, é no início da vida que se constitui a
imagem
inconsciente do corpo, em referência às experiências olfativas, visuais, auditivas, táteis
que têm valor de comunicação à distância com os outros: Inicialmente a mãe e em seguida as
outras pessoas do meio social
-
cultural.
Porém, não havendo um outro relacional; não havendo, portanto, testemunho humano,
em face de uma nova experiência sensorial vivida pela criança, esta se esgotaria no
esquema
corporal.
Nesse sentido não faria marca inconsciente, não impressionaria no sentido de
marcar
a imagem do corpo. Ou seja: para fazer marca psíquica inconsciente, o que imp
lica
construir o seu psiquismo, não basta a estimulação, a experiência sensorial vivida, é preciso
que essa experiência seja significada pelo outro materno.
Mas a autora lembra que essa experiência pode ser recoberta pela
lembrança
de uma
relação simbólic
a já conhecida. Assume aqui o valor que confere às relações linguageiras com
a mãe — o outro relacional primevo — nas primeiras fases da vida. O que a autora mostra é o
imbricamento entre psiquismo, aqui representado pela imagem do corpo, e o meio social-
c
ultural; imbricamento esse mediatizado pelas
zonas erógenas
, como em Erikson.
“É esta trama de relações que permitirá à criança estruturar-se como ser humano. Mais
tarde, as relações humanas assim introjetadas, permitirão a relação narcísica consigo mesma
(narcisismo secundário)” (Dolto, 2002a: 29). Ou seja: A partir da incorporação de imagens do
mundo exterior de coisas ou de pessoas desde que mediatizadas pela fala da mãe, a
criança estabelece a sua visão de mundo e, em um segundo momento, a sua visão de si
mesma. Construirá o seu narcisismo, que se converterá em seu passaporte por assim dizer
para uma relação coesa e coerente consigo mesma e com o meio.
Assim, tanto em Dolto, como em Erikson, a busca por um entendimento acerca das
causas e da localização do sofrimento humano levou-os ao entendimento do processo
relacional que funda o ser humano, ou que o humaniza. O
ser
-
que
-a-
de
-
vir
é necessária e
obrigatoriamente conformado a partir de um processo individual posto que fundado no
180
prazer especifico de cada um e social-cultural, posto que se dá através da interação com o
sujeito
-
que
-
fala
, e fala de um lugar culturalmente definido.
6.3
MATERNIZAÇÃO E PSIQUISMO INFANTIL:
o papel dos cuidadores
Dentre as críticas que se faz a Freud e à psicanálise em geral, avulta-se como de
grande relevância o papel secundário a que relegaram a mulher e a mãe no que diz respeito à
formação do aparelho psíquico humano. Ocorrendo o mesmo para com toda a primeira
infância. O que não implica dizer que é um papel
não
-
importante
. A mulher cumpre, a rigor,
papel fundamental na mitologia freudiana; mas não se pode negar que esse papel é
desempenhado a partir de um lugar passivo em termos de determinação na formação do
psiquismo infantil.
44
Por outro lado, embora tenha buscado compreender a genealogia da
libido e nessa busca tenha necessariamente passado pelas fases pré-edipianas do
desenvolvimento infantil, ainda assim Freud advoga que a experiência psíquica mais
relevante, na infância, diz respeito à formação do
complexo
de castração e do complexo de
Édipo
, fenômenos fundamentais para a formação do aparelho psíquico, ocorridos em torno
dos três a cinco anos de idade. Para os freudianos em geral, o complexo de Édipo é
(...) o principal eixo de referência da psicopatologia; (...). A antropologia
psicanalítica procura encontrar a estrutura triangular do complexo de Édipo,
afirmando a sua universalidade nas culturas mais diversas, e não apenas
naquelas em que predomina a família conjugal”.(Laplanche e Pontalis,
2001: 77).
A
inda segundo Laplanche e Pontalis:
a predominância do complexo de Édipo, tal como Freud sempre a sustentou
recusando-se a colocar no mesmo plano, do ponto de vista estrutural e
etiológico, as relações edipiana e pre-
edipianas
— , é comprovada nas
funçõe
s fundamentais que ele lhe atribui: a) escolha do objeto de amor, (...);
b) acesso à genitalidade, [pois] A organização genital supõe o primado do
44
Na análise do Pequeno Hans (Freud, 1996a) que subsidiou Freud em grande parte da sua formulação teórica
acerca do psiquismo infantil, todo o processo psicanalítico é feito entre o pai da criança, a criança e Freud. A
mãe desempenha um papel importante, mas somente como causa de desejo. Em nenhum momento da análise,
Freud procurou conversar com a mãe ou saber que sentimentos ou percepções ela tinha da fobia do garoto ou do
processo analítico a que o mesmo estava sendo submetido. Isso não me parece estranho, levando-se em conta a
época em que Freud formulou os seus conceitos primeiros anos do Século XX. Final de uma época (era
vitoriana) caracterizada por forte conservadorismo e que Freud, apesar da sua abertura mental e da sua
disposição de desalojar preconceitos, enfrentava uma importante batalha: dar conhecimento ao mundo que
uma criança era, desde a mais tenra idade, animado por desejos.
181
falo, e dificilmente se pode considerar (...) esse primado sem que a crise
edipiana esteja resolvida pela via da identificação(...); c) efeitos sobre a
estruturação da personalidade, sobre a constituição das diferentes instâncias
[da personalidade]. (2001: 79)
Freud reconhece a existência de um período anterior ao Édipo. Aliás, é de sua autoria
o estabelecimento das fases oral, anal e genital anteriores ao Édipo —, mas o seu
reconhecimento
não implica que ele atribua a essas fases qualquer importância na
determinação do psiquismo humano. Mas “quando se diferencia, e até mesmo se contrapõe o
pré
-edipiano ao Édipo, pretende-se ir além do reconhecimento deste simples fato” (laplanche
e Pontalis, 2001: 79). O que se pretende, do ponto de vista de uma formulação teórica, é o
reconhecimento da existência e dos efeitos de uma relação complexa, do tipo dual, entre mãe
e filho e das possíveis repercussões dessa relação nas estruturas psicopatológicas, para além
da relação triangular estabelecida no Édipo. “Numerosos autores sustentam que existe uma
relação [desse tipo], que precede à estrutura triangular do Édipo”. (Id. I
b: 79).
Em 1931, em um texto dedicado ao estudo da sexualidade feminina, Freud volta a
abordar uma possível estrutura pré-
edipiana;
admite (...) ter demorado em reconhecer todo o
alcance da ligação primitiva com a mãe e ter sido
surpreendido
pelo que
as
psicanalistas
, sobretudo,
descobriram da fase pré-
edipiana
na menina (grifos meus; Freud, 1996c). Mas apesar desta
concessão
— algo tardia e restrita à menina — Freud jamais abandonou a sua posição
primitiva, declarando que “mesmo admitindo-se essa ligação primitiva com a mãe, não
considera necessário invocar um outro eixo de referência, externo ao complexo Édipo, para
explicar as estruturas psicopatológicas”. (Freud, 1996c).
A dificuldade de compreender a ligação primitiva com a mãe e a sua importância pa
ra
a conformação do psiquismo infantil e humano, Freud debita ao fato de as mulheres que
foram por ele analisadas terem conseguido se agarrar justamente à ligação paterna em que se
haviam refugiado da fase primitiva, pré-edipiana. (Freud, 1996c). Também reconhece que
as
psicanalistas
conseguiram perceber esses fatos com maior facilidade e clareza. Fazia alusão,
decerto, às mulheres que haviam abraçado a psicanálise como profissão, dentre as quais, Anna
Freud, Karen Horney, Helene Deutsch e Melanie Klein, que à época cada uma ao seu
modo
iniciavam um movimento de descoberta da importância do elemento materno e das
182
fases pré
-
edipianas da vida infantil. Freud iria incorrer numa segunda injustiça, ao esquecer
os
psicanalistas, que iniciavam teorizações igualmente relevantes acerca do período pré-
edipiano
e da importância do elemento materno na conformação do psiquismo infantil, dentre os quais
Winnicott, Spitz e Erikson para citar alguns dos mais conhecidos.
A Erikson soava estranho imaginar que todo o período pré-edipiano não tivesse
relevância na formação do psiquismo infantil, e como corolário de suas investigações
algumas das quais baseadas em conceitos antes desenvolvidos por Winnicott e Spitz
chegou ao conceito original de confiança básica, para cuja conformação como vimos a
mãe desempenha papel preponderante, tanto no que diz respeito à fase de formação do
sentimento de confiança básica associada à noção de segurança que a mãe transmite a
criança pequena como com relação à formação do sentimento de desconfiança básica
associada
ao desmame que, se bem conduzida, conformará um sujeito dotado do
sentimento de
esperança
, como resultado do equilíbrio entre os dois sentimentos antagônicos,
mas, afinal, necessários e, de alguma forma, complemen
tares.
Como vimos, tanto os modos psicossexuais que mediatizam a relação do psiquismo
infantil com o mundo exterior através das zonas erógenas — como as
modalidades
psicossociais
que definem a relação da criança com o meio social-cultural no período de
bebê
têm no elemento materno o seu condutor e fiador privilegiado. Por isso, Erikson advoga que a
situação ótima implica na disposição do recém-nascido de obter o que deseja: o leite-
peito
-
mãe; e na disposição da mãe de conceder
-
lhe o que ele deseja.
Mas
Erikson postula, ainda, que esse processo, para desempenhar adequadamente a
sua função de elemento significativo no processo de humanização da criança — e não
somente fornecedor de alimento —, presume a existência de uma ‘aura geral de calor e
mutualidade
da qual desfrutem mãe e filho’. Nesse sentido, não se trata apenas de ‘oferecer o
peito’. Importa mais o conjunto de fatores implicados nesse gesto de amamentar, que pode,
inclusive, como vimos na tradição Sioux, substituir o peito num primeiro momento, de
sde que
as condições presentes na cultura signifiquem este gesto como adequados, pois assim, mãe e
filho sentir-
se
-ão partícipes de um processo social-cultural acolhedor e coerente. Coerência
183
que no fundo conforma a condição simbólica caracterizada pelo autor como ‘aura geral de
calor e mutualidade’.
Seguindo o mesmo raciocínio, Erikson lembra o delicado momento do desmame,
gesto que em si incorpora o modo psicossexual incorporativo modalidade prender e
morder
em associação com a modalidade psicossoc
ial
de incorporação do mundo (em
sentido simbólico). Nesse momento, em particular, o autor lembra que a perda súbita do seio
associada à perda da presença confortadora da mãe pode conduzir a sérios distúrbios. Exceto
se a cultura tiver gerado formas adequa
das e coerentes de substituição.
A condição de ser plasmador do vivente humano em totalidade presumida como
corpo
, através das trocas substanciais; e
mente
, através das trocas sutis na vida intra-
uterina e depois a condição de ser fiador dos processos
psicossexuais
e
psicossociais
que vão
conformar a vida mental em associação com a vida social-cultural da criança, pós-
parto,
confere à mãe o status de ser provedor de atenção preferencial e privilegiado. Mas não apenas
seguindo uma tendência instintiva. Para Erikson, a mutualidade da relação mãe-bebê não se
justifica apenas “por uma busca instintiva de contato, na cria, e uma provisão instintiva de
contato no genitor que completa a função adaptativa daquela (1976a: 85). Pois, segundo este
autor, “a experiência amplamente documentada conta de que apenas os instintos naturais
de sobrevivência não seriam suficientes para prover a necessária regulação mútua entre
genitor e cria, no ser humano. [e completa] Como animal o homem não é nada.” (Id. Ib.: 85).
Em
síntese, posso afirmar, com base em Erikson, que o firme estabelecimento de padrões
duráveis para a solução do conflito nuclear da confiança versus a desconfiança básicas, na
simples existência, é a primeira tarefa do ego e, portanto, antes de tudo, uma tarefa para o
cuidado materno”
. (1976a: 229).
Dolto, cujo nome permaneceu fora de toda essa polêmica acerca do olvido freudiano
ao período pré-edipiano, somente viria a se incorporar à cena psicanalítica a partir de 1939, o
ano de sua formatura em Medicina e, coincidentemente, o ano de morte de Freud. Dolto era
freudiana, sem dúvida. Como dissemos na secção em que a apresentamos (secção 5.1.) a sua
tese de formatura apresenta e discute, à luz do conhecimento psicanalítico, vários casos
184
clínicos de crianças por ela tratadas. Na primeira parte a autora faz uma apresentação dos
principais conceitos psicanalíticos, todos baseados em princípios freudianos. Mas desde o
começo, Dolto marca uma posição de independência conceitual e clínica.
Essa independência vai se refletir na grande importância que dará ao processo de
desenvolvimento do psiquismo infantil em períodos pré-edipianos e até mesmo no período
intra
-uterino e, sobretudo, na elevação do elemento materno à condição de protagonista nesse
processo. Dolto foi pioneira de um movimento que somente tomaria corpo bem mais tarde,
após o descobrimento e o uso de recursos de investigação intra-útero, que consiste em
considerar relevantes a participação dos pais, particularmente da mãe, nos processos
gestacionais
para além daqueles restritos ao âmbito físico. Em Dolto, a relação carnal
ocorrida entre a criança e a sua mãe se estende como parte integrante de todo o processo de
formação da base psíquica do que virá a ser a mente
e a vida por extensão
da criança.
Ao
adotar a linguagem como elemento culturalizador por excelência —
e não apenas a
linguagem falada Dolto compreendeu que a criança, ao vir ao mundo, já o faz envolta em
um manto cultural no qual os seus pais estão. E mais: o próprio gesto de conceber a cr
iança
atende a um imperativo culturalmente definido. É no desejo dos pais, que antecede o seu
nascimento, que se funda a vida do
ser
-
que
-a-
de
-
vir.
Mas o desejo dos pais não cumpre, como
nos animais, apenas a um imperativo biológico, instintivo. O desejo humano é mediatizado
pelo discurso, pela linguagem, pela cultura. Por isso, o ser humano é um ser da linguagem,
desde a concepção.
Dolto assume aqui o valor que confere às relações linguageiras da criança com a mãe
o outro relacional primevo nas primeiras fases da vida, como forma de tornar esse
processo de humanização tolerável para a criança, pois a humanização constitui um processo
de clivagem da sua simbiose com a mãe. Nesse sentido, a mãe, que plasmou a criança em seu
ventre e que garantiu o seu
es
tar
-
no
-
mundo,
tanto do ponto de vista físico como do ponto de
vista psíquico, é também a principal responsável pela sua transformação de
ser
-
uno
-
com
-o-
universo
(em simbiose com a mãe —
a rigor o
seu
universo) em
ser
-
na
-
cultura
. Processo esse
constituído de
interditos
que a autora denomina
castrações simbolígenas.
185
Assim, a cada interdito ou castração que a mãe vai oferecendo durante esse processo,
deve corresponder um conjunto de palavras que re-signifique a falta imposta; de modo a
permitir à criança construir um
estoque
de palavras objetos transicionais
45
sutis que
permitam à criança presentificá-la nas suas ausências, e, dessa forma, tornar tolerável os seus
momentos de solidão.
Dolto menciona a título de exemplo um encontro desagradável do
corpo
/esquema corporal da criança com um objeto material como um tropeção numa mesa
que faria essa criança projetar sobre o objeto as suas fantasias negativamente carregadas,
esperando desse objeto um consolo como aquele que teria da mãe em vista de uma sit
uação
similar vivida com esta. Porque segundo a autora a criança não distingue objetos entre
si ou objetos de pessoas, nas primeiras fases da vida. Entretanto, se essa experiência tiver sido
anteriormente significada pela mãe em termos de palavras, a criança encontrará em suas
imagens registradas ao nível da imagem do corpo, a condição de recorrer às suas próprias
simbolizações e auto-
maternar
-se. A recorrência de encontros e desencontros com as ‘massas’
que são pessoas e as ‘massas’ que são objetos, vai conformando no psiquismo da criança a
noção de que ela e o mundo num primeiro momento e de que ela e a mãe num
segundo momento não são uma única coisa. Essa clivagem entre a criança e o mundo
inicial, e depois
entre a criança e a mãe
constitui um
a primeira tarefa para o cuidado materno.
A partir dessas experiências repetidamente vividas, e suas respectivas falas maternas,
dando sentido cultural às experiências vividas, a criança vai definindo relações entre si e os
objetos, e entre si e as pessoas. Vai, dessa forma, incorporando o mundo das coisas e das
pessoas e fazendo as diferenças. Em algum momento — não igual para todas as crianças, mas
situado nos primeiros meses de vida
a criança institui
outros que não a sua mãe como aptos
a desempenhar a tarefa de maternização diante dos encontros desagradáveis. Mas
45
Os conceitos de objeto transicional e fenômeno transicional foram primitivamente estabelecidos por
Winnicott “para designar a área intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o erotismo oral e
a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa primária e a projeção do que foi introjetado, (...)”
(Winnicott,1975: 14). O conceito foi assumido por Dolto que o estendeu para as palavras, as quais designou
objetos transicionais sutis
”.
186
primeiramente necessita que esses
outros
sejam ‘autorizados’ pela mãe; sejam significados no
papel de
outro
pela mãe
inicialmente o único
não
-
eu
reconhecido pela criança.
Como em Erikson, o ser materno é mediador tanto do processo subjetivo de formação
do psiquismo, na medida em que é e
fornece
objetos de gozo através das zonas erógenas
como o é do processo de humanização, efetuado através das castrações. Dessa forma, a
mãe lança uma ponte que vai permitir a passagem do
ser
-
todo
-
com
-o-
universo
plasmado em
seu útero para a condição de ser-
na
-
cultura
após as castrações. Em síntese, através de um
processo,
in totum, conduzido pela mãe, o
ser
-
todo
-
desejo
é transformado em
ser
-
humanizado. Nesse sentido posso asseverar, com base em Dolto, que o processo de
humanização
semelhante ao processo de definição do Ego para Erikson é também uma
tarefa essencialmente materna. Assim, concluo com base nos autores que tanto a construção
da
imagem inconsciente do corpo como os sentimentos que conformarão a noção de
confiança básica dependem preponderantemente da
qualidade
da relação estabelecida entre a
mãe
como provedor privilegiado de atenção e cuidados
e seu/sua filho/filha.
6.4 DESEJO DE SER, CO
RAGEM DE SER:
propulsores inconscientes da personalidade infantil coesa e equilibrada
O ser humano eriksoniano está sempre antepondo um sentimento sintônico dito
positivo
a um sentimento distônico dito negativo, de cuja antítese emerge como sínte
se
uma
força
ou virtude psicossocial. Particularmente nos primeiros meses de vida
denominado pelo autor
período de bebê
sobressai
-
se
como
virtude psicossocial
em vista do
conflito nuclear entre
confiança
e desconfiança básicas, o sentimento de
esperanç
a,
que está
na origem da coragem de ser, expressão tomada de Tillich que poderia resumir o que Erikson
anuncia como um “estado geral de confiança [que] implica não só que o indivíduo aprendeu a
confiar na uniformidade e continuidade dos provedores externos, mas também que pode
confiar em si mesmo” (...).” (1976a: 228). Nesse sentido, concordo com Giddens quando este
autor vincula a
coragem de ser
com a noção de
confiança
básica,
e estabelece uma relação de
187
reciprocidade entre as duas.
Ambas
fundamentadas
na forma como se estabelecem as
relações entre a criança e os seus cuidadores, nas primeiras fases da vida:
A confiança no fundeamento existencial da realidade (...) se funda na crença
na confiabilidade das pessoas, adquiridas nas primeiras experiências da
criança através da atenção amorosa das primeiras pessoas a cuidarem da
criança. O que Erik Erikson, ecoando D.W. Winnicott, chama de confiança
básica. (...). A experiência da confiança básica é o núcleo daquela
‘esperança’ (...) que Tillich chama de ‘cora
gem de ser’.
Liga de maneira decisiva a auto-identidade à apreciação dos outros (...) e,
[nesse sentido], pode ser vista como uma espécie de inoculação emocional
contra ansiedades existenciais uma proteção contra ameaças e perigos
futuros que permite que o indivíduo mantenha a esperança e a coragem
diante de quaisquer circunstâncias debilitantes que venha a encontrar mais
tarde. (Giddens, 2002: 41; 43).
Em Françoise Dolto sobressai-se a noção de desejo de ser, articulado através de uma
imagem do corpo,
c
onformada inconscientemente, e que para a autora representa
A síntese viva de (..) experiências emocionais: inter-
humanas,
repetitivamente vividas através das sensações erógenas eletivas (...). Ela
pode ser considerada como a encarnação simbólica inconsciente do sujeito
desejante e, isto, antes mesmo que o indivíduo (...) seja capaz de designar
-
se
a si mesmo pelo pronome pessoal Eu... (2002a: 14
-
15).
Dolto afirma que “a visão do mundo da criancinha é conforme a sua imagem do
corpo.
.. e depende dela” (2002a: 26). Nesse sentido, podemos inferir que a imagem do corpo
lugar do desejo justifica e consistência ao indivíduo como ser desejante no mundo.
Desde antes do nascimento pelo desejo de incorporar matéria e aumentar a sua massa carnal.
A partir do parto, a
criança
-
toda
-
desejo
, cuja realidade existencial se confunde com a sua
imagem do corpo
— vale dizer com o seu psiquismo — é chamada a exercer o seu
desejo
-
de
-
ser pela inalação inicial, sob pena de perecer como ser biológico e, por conseguinte, como s
er
total. A criança é, então, lançada no mundo, na cultura e, conduzida pela mãe, receberá as
castrações
interditos humanizantes associado aos quais desenvolverá capacidades
relacionais que no fundo são manifestações do desejo de se converter em um ser
“autonomizado” e coeso, na sua relação consigo mesmo
pela
imagem funcional
e com o
outro/meio
pela imagem erógena
.
Através de um processo mediatizado pela mãe e
sustentado na linguagem. Ao final do processo de castrações, o ser-
de
-desejo (
passiva
mente
desejante) ter-
se
convertido em sujeito-
de
-desejo. Apto a prosseguir na construção do seu
188
projeto de homem/mulher, enfrentando as delícias e os desafios que a condição de sujeito lhe
faculta e impõe.
Assim, os sintomas psíquicos, quaisquer que seja
m, comprometem em maior ou menor
intensidade a liberdade de viver entendida miticamente como aquela experiência plena
vivida no útero que funciona como ideal buscado, embora jamais alcançado —, e fazem
aflorar no esquema corporal a linguagem inconsciente
da
imagem do corpo,
do psiquismo.
Esses sintomas são também meios de expressar o sofrimento de um ser humano
atingido em seu narcisismo, ligado ao cruzamento da imagem do corpo com o esquema
corporal, o qual apoiado — de castração em castração — a uma ética inconsciente, assegura a
continuidade das estruturas psíquica e sexual. Esta continuidade das estruturas psíquicas e
sexuais é a condição da articulação do sujeito que enquanto inconsciente, não é nem
temporal nem espacial com o esquema corporal, que participa do Eu, e que representa o
sujeito no mundo, e pelo qual o sujeito se objetiva em seus comportamentos (Dolto, 2002a:
310). Dessa forma, posso afirmar com base na autora, que a criança cuja conformação da sua
imagem do corpo
foi feita de forma adequada, constituiu-se como sujeito capaz de suportar as
castrações/interditos que necessariamente se seguem para que o seu processo de humanização
se faça, em harmonia com o meio cultural e com as expectativas do seu
ser no mundo.
Concluo, com base no trabalho de ambos os autores, que da adequada conformação do
psiquismo da criança — consubstanciado na sua imagem inconsciente do corpo em
associação com as castrações que lhe vão humanizar, segundo Dolto; e no sentimento de
confiança básica, adequadamente balanceado com o sentimento de desconfiança básica
,
segundo Erikson, define-se um sujeito apto a desempenhar na vida o papel que se lhe impõe,
por si mesmo, e em relação às expectativas do meio social-cultural no qual se desenvolve.
Nesse sentido, o ser humano, que tem início como
ser
-
de
-
desejo
no corpo-
um
-
com
-o-
universo
, na vida intra-uterina, se afirma posteriormente como portador de um
desejo
-
de
-
ser
de
corpo
-humanizado na vida social-cultural, que vai se concretizar no cotidiano como
coragem de ser,
tal
como definido por Tillich (vide capítulo 3).
189
Capítulo 7
LAÇOS MÃE-FILHO(A) E TRANSTORNOS
MENTAIS E COMPORTAMENTAIS INFANTIS
Quando a vida está mais dura,
mais vida, ninguém como a mãe
pra agüentar a gente.
Mário de Andrade
190
Uma questão a retomar diz respeito às eventuais influências que a desagregação
familiar
notadamente aquela representada pela saída do elemento materno para o mercado
de trabalho poderia ter tido no desenvolvimento de personalidade mais propensas aos
transtornos mentais e comportamentais. O estudo da formação do psiquismo infantil, feito
com base nos dois autores escolhidos, permitem concluir pela existência dessa vinculação, em
vista da importância da mãe na conformação do que Erik Erikson denominou
confiança
básica
e Françoise Dolto,
imagem inconsciente do corpo
.
É possível afirmar, com base nesses autores, que as crianças afastadas de suas mães
por tempo prolongado, nas primeiras fases do desenvolvimento, apresentam maiores
possibilidades de desenvolver condições de vida mental que lhes torne mais sensíveis aos
fatores estressores do meio. Isso implicaria, por fim, no desenvolvimento de personalidades
mais propensas aos
transtornos mentais
.
No mesmo sentido, acredito ter reunido argumentos suficientes para apresentar uma
primeira resposta à preocupação exposta no inicio da pesquisa e que na verdade foi seu
ponto de partida: o número relativamente maior de crianças portadoras de
transtornos mentais
e comportamentais de Nova Esperança/Blumenau em relação à cidade de Águas Mornas,
consubstanciado no alto consumo de drogas psicoativas e/ou distúrbios depressivos e
tentativas de suicídios, poderia ter relação com as condições de vida verificadas nos mesmos,
quais sejam: uma situação de relativo ‘abandono’ psicológico e emocional por parte dos pais
da comunidade de Nova Esperança/Blumenau em vista das condições de trabalho e emprego a
que estão submetidas. Diferentemente do que ocorre no município de Águas Mornas, onde,
também em vista das relações de trabalho, não se verifica essa situação de abandono,
conforme mostrado no primeiro capítulo.
Reconheço que a confirmação dessa hipótese é uma tarefa de difícil execução,
particularmente dentro dos limites temporais de um curso de Mestrado. Teria que me
defrontar com inúmeras variáveis e observá-las por um tempo longo. Mas acredito que os
dados estatísticos disponíveis, particularmente aqueles arrolados no Relatório sobre saúde
mental no mundo da OMS (OMS/OPAS, 2001), conformam um
corpus
empírico da maior
191
relevância. Parto, portanto, desses dados e intento construir uma explicação possível, acerca
das possíveis causas do aumento significativo que se tem verificado na incidência de
transtornos mentais e comportamentais na população mundial, particularmente na população
infantil
. O que julgo residir pelo menos em parte na falta das condições adequadas ao
desenvolvimento nas crianças do sentimento de confiança básica, tomando Erik Erikson
como referencia, ou a consolidação da imagem inconsciente do corpo, se nos basearmos em
F
rançoise Dolto.
Em ambas as formulações, as quais julgo consistentes e suficientes para uma adequada
compreensão do processo de formação do psiquismo infantil, dá
-
se relevância às condições de
afeto e cuidados que se têm tornado progressivamente mais raras em vista do processo de
trabalho engendrado a partir, sobretudo, do advento das modernas relações de mercado, que
não propiciam e nem mesmo toleram as condições familiares, de bairros, comunitárias e
societárias que permitam à criança criar sentimentos de fé e esperança na coerência dos
processos vitais e existenciais, cuja falta, posso asseverar, em acordo com a OMS,
gera
crianças com mais probabilidade de desenvolver transtornos mentais e comportamentais na
infância ou numa fase posterior da vida,
confo
rme vimos no primeiro capitulo desta
dissertação.
192
CONCLUSÃO
A psicanálise diz das motivações inconscientes que estão no fundamento do sujeito.
Sujeito de desejos, condição que nos torna gente. Assumo e parto do princípio de que parcela
impo
rtante da nossa condição de
ser
assenta-se em bases inconscientes, que por sua vez se
definem, em termos dos seus traços gerais, nas primeiras fases da vida, compreendendo
inclusive o período de gestação. Com isso não advogo a imutabilidade de traços
compo
rtamentais ou um determinismo inexorável, mas tão somente a contribuição importante
diria mesmo decisiva que esses fatores inconscientes desempenham em toda a nossa
vida. Procurar compreendê
-los é, a meu ver, procurar compreender-
nos.
A criança é um ser em formação. É consenso científico e fato aceito pelo senso
comum
que condições adequadas propiciam desenvolvimentos infantis mais satisfatórios.
O que nem sempre parece tão claro é o que poderíamos definir, sem controvérsias, como
condições adequad
as
e em que termos exatamente uma coisa deva ocorrer como
conseqüência da outra. Não parece haver caminhos fáceis para definições dessa natureza.
Rigorosamente falando talvez nunca venhamos a estabelecer com precisão uma relação desse
tipo; ou seja, talvez jamais venhamos a saber por que algumas pessoas desenvolvem certas
características comportamentais ou de personalidade e outras aparentemente submetidas às
mesmas condições não o fazem.
Recentemente foi incorporada ao rol de termos técnicos, no âmbito da psicologia, a
palavra resiliência,
derivada do inglês
resilient
usada comumente na mecânica
onde
tem
o mesmo sentido que lhe foi dada no âmbito humano: elasticidade, capacidade de voltar à
condição original quando submetida a uma tensão, resistência aos fatores de estresse que uma
estrutura pode suportar. Na mecânica, certas propriedades específicas da composição atômica
e/ou molecular do material lhe conferem essa característica. De um ser humano dito
resiliente
se espera uma maior capacidade de resistir aos fatores estressores sem
deformar
significativamente a sua personalidade, ou uma certa imunidade psicológica quando
submetido às agressões perpetradas por outros seres humanos ou em vista das adversidades do
193
meio ambiente. A continuar a comparação, haveremos de nos perguntar: que características
intrínsecas do
material
de que seja formado tornará um sujeito mais ou menos resiliente?
Essa talvez seja uma pergunta que poderíamos responder se as tentativas dos
psicólogos experimentais do início do século passado houvessem logrado êxito na descoberta
de uma presumível unidade mental básica, conforme tencionavam, que desse conta da
‘composição’ da mente humana. Mas como foi mostrado no capítulo 3, esse intento fracassou.
Desse modo continuamos sem uma definição precisa acerca dos fatores que conformam um
sujeito saudável. E até mesmo a própria noção de
saudável
passa por constantes adaptações e
correções. Em cada tempo e em cada lugar a cultura define os parâmetros que nortearão os
critérios de normalidad
e.
Em nosso tempo atual vivemos um período de grande perturbação. O sujeito humano
não tem conseguido absorver as tensões que as escaramuças do dia-a-dia têm oferecido.
Particularmente no que diz respeito à saúde mental, é muito difícil olhar para o panor
ama
mundial e não ser tomado de alguma apreensão, sobretudo se atentarmos para a saúde mental
infantil. O relatório da OMS/OPAS de 2001 sobre esse tema, intitulado Saúde Mental, Nova
Concepção, Nova Esperança, que me serviu de base para a conceituação efetuada no início
desta dissertação, delineia um quadro que inspira reflexões.
Assiste
-se ao deflagrar de uma ‘onda’ de transtornos mentais e comportamentais em
crianças, cujos fatores determinantes eu procurei localizar na desagregação dos laços
estabelecid
os entre a criança pequena e os seus provedores de atenção, com destaque para a
figura materna. Conclusão a que cheguei em parte pela assunção que a própria OMS faz
baseada em vários estudos de que os fatores estressores a que uma criança é submetida,
sobretudo nas primeiras fases da vida, podem definir condições que lhe exponha a maiores
riscos quanto à sua saúde mental presente e futura (OMS/OPAS, 2001), e em parte pelos
estudos empreendidos acerca da formação do psiquismo infantil, com base em refere
nciais
psicanalíticos, mormente em Erik Erikson e Françoise Dolto.
Confiança básica, como definida por Erikson, e Imagem inconsciente do corpo
,
conforme Dolto, fornecem um instrumental de análise que nos habilita a uma melhor
194
compreensão do fenômeno social-cultural representado pelos transtornos mentais e
comportamentais
particularment
e
aqueles que incidem sobre a população infantil e sua
vinculação com a formação do psiquismo. Os conceitos mencionados permitem uma
compreensão do universo mental infantil, levando-se em conta os vários aspectos envolvidos
no problema, em particular a inequívoca, inescapável e necessária vinculação entre a criança e
o seu meio social-
cultural, no qual se insere
dentre outros
a relação estabelecida com os
provedores de atenção, especialmente a mãe. Erik Erikson e Françoise Dolto conferem à
qualidade da relação estabelecida entre a mãe e o/a seu/sua filho/a, sobretudo nos primeiros
meses de vida, papel determinante para a conformação de uma estrutura mental que dote a
cr
iança das condições necessárias ao seu desenvolvimento, de modo a lhe permitir transitar
por entre as condições de riscos existenciais — sempre presentes — de maneira coesa,
coerente e equilibrada, tolerando e até mesmo aceitando, sem grandes perturbações,
os fatores
estressores como co
-
partícipes da vida.
Creio ter encontrado nestes dois autores uma explicação possível para o entendimento
desses transtornos, situando
-os como epifenômenos de um fenômeno básico anterior: o estado
de abandono emocional a que nossas crianças estão submetidas em vista das condições
impostas pelas circunstâncias das relações humanas vigentes no nosso tempo, notadamente
aquelas vinculadas às relações de trabalho. Circunstâncias essas que inviabilizam que mãe
possa ser mãe e pai possa ser pai, para propiciar à criança a chance de ser filho/a, com tudo
que essa condição demanda e implica.
Não pretendo com isso acorrentar papéis, defender uma volta das mulheres aos lares.
Ao contrário, creio na crescente responsabilização do casal no tocante aos cuidados com os
filhos e na certeza de que condições de vida mais humanas permitem uma melhor convivência
e administração da rotina familiar e, por conseguinte, dos cuidados com os filhos. Defendo,
porém que é chegado o momento de uma reflexão profunda acerca dos estilos e condições de
vida a que todos nós estamos submetidos.
Tenho efetuado inúmeras leituras algumas das quais arroladas na bibliografia
que denunciam esse esfacelamento dos laços sociais, em vista de uma crescente exigência do
195
mercado, alçado à condição de árbitro supremo do jogo da vida. Observo com apreensão
que para esse mercado e seus processos de reprodução, a criança ocupa um
não
-
lugar
.
Nessa perspectiva quebra-se a noção de
ciclo
intergeracional
(Erikson) ou de
conti
nuidade
narcísica
(Dolto) como condição ética necessária a um continuum existencial do ser humano,
tanto no sentido individual coesão interna —, como no sentido coletivo coerência nos
processos comunitários —, que consubstanciam as condições propícias à conformação de
aparelhos psíquicos que favoreçam a saúde mental infantil e, por extensão, humana.
O documento da OMS não deixa dúvidas sobre a gravidade da situação. Mas esse
mesmo documento aponta possíveis saídas, e não por acaso intitula-
se
Saúde mental: nova
concepção, nova esperança. A OMS, ao discutir a questão da saúde mental e ao ressaltar que
falar em saúde sem falar em saúde mental é como afinar um instrumento e deixar algumas
notas dissonantes (vide Introdução), um grande passo no sentido de buscar o
enfrentamento dessa problemática. E reconhece que é uma tarefa afeita à saúde pública. O
Relatório sintetiza a preocupação que amplos setores da sociedade, incluindo sociedade civil
organizada, autoridades sanitárias, políticos e setores acadêmicos têm demonstrado com
relação à saúde mental. Para a OMS:
Os vínculos essenciais entre fatores biológicos, psicológicos e sociais no
desenvolvimento e progressão dos transtornos mentais e comportamentais
constituem a base de uma mensagem de esperança para os milhões que
sofrem (...).
Esta mensagem é um chamado à ação visando reduzir a carga [patológica]
estimada em 450 milhões de pessoas com transtornos mentais e
comportamentais. De uma perspectiva da saúde pública muita coisa se pode
fazer para reduzir a
carga dos transtornos mentais, [tais como]:
Formular políticas destinadas a melhorar a saúde mental das
populações;
Assegurar acessos universais a serviços apropriados e
econômicos, inclusive serviços de promoção da saúde mental e de
prevenção;
Garanti
r a atenção e a proteção adequada dos direitos
humanos dos pacientes institucionalizados com transtornos mentais mais
graves;
Avaliar e monitorizar a saúde mental das comunidades,
inclusive as populações vulneráveis tais como mulheres, crianças e pessoas
idosas;
196
Promover estilos de vida saudáveis e reduzir os fatores de
risco aos transtornos mentais e comportamentais tais como: ambientes
familiares instáveis, sevícias e inquietação civil;
Apoiar uma vida familiar estável, a coesão social e o
desenvolvime
nto humano;
Fortalecer a pesquisa sobre as causas dos transtornos mentais
e comportamentais, o desenvolvimento de tratamentos eficazes e a
monitorização e avaliação dos sistemas de saúde mental.
(OMS/OPAS, 2001: 16 Relatório
completo).
Em termos de Brasil, a discussão acerca da saúde mental vem ocorrendo no bojo das
discussões sobre a Reforma Psiquiátrica e em sintonia com a discussão da Reforma Sanitária.
Em 2001, no mesmo ano em que a OMS lançou o seu Relatório, ocorreu em Brasília, nos dia
s
11
-15 de dezembro, a III Conferência Nacional de Saúde Mental, organizada pelo Conselho
Nacional de Saúde-CNS. Dentre as propostas aprovadas para subsidiar as ações do Poder
Público quanto à elaboração de uma Política Nacional de Saúde Mental, estão algu
mas
vinculadas especificamente à saúde mental de crianças e adolescentes, que, pela importância
do debate que encetou e pela conveniência para o tema discutido nesta dissertação, fiz constar
em anexo (anexo IV).
Não pretendo — e nem poderia — imputar toda a gama de problemas que uma
formação social complexa engendra a alguns poucos fatores. Ao contrário, propugno pela
apreciação do maior número possível de variáveis. Mas sei também que a construção
científica
qualquer que seja o entendimento que se tenha dessa construção é
necessariamente parcial. Concordo com Freud quando diz, a propósito da busca de
conhecimento, que “cada passo à frente deixa atrás um resíduo não resolvido” (Freud, 1996a:
94). Nesse sentido, busco a compreensão do real, consubstanciado nos transtornos mentais e
comportamentais
infantis, a partir da contribuição de dois autores, aparentemente dissonantes
embora se baseiem num referencial comum —, e o faço com a intenção mesma de buscar
uma aproximação. Visualizei nas contribuições de Erik Erikson e Françoise Dolto a
possibilidade de um diálogo, que se torna possível, a meu ver, em vista da escolha que os dois
197
fizeram do elemento norteador de suas teorizações: a qualidade do afeto dispensado às
crianças nas fases iniciais do seu desen
volvimento, cujo agente preferencial é a mãe.
198
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206
Anexos
207
Anexo 1
Excertos do Cartão da Criança
Carteirinha de vacinação de G.M.V.
208
209
210
211
Anexo 3
CONCLUSÕES DA III CONFERÊNCIA NACIONAL DE SAÚDE MENTAL
ITEM 12 DO RELATÓRIO FINAL: ATENÇÃO À CRIANÇA E AO ADOLESCENTE
Orientação geral:
Elaboração e execução de ações no campo da saúde mental
infanto
-juvenil devem compor
obrigatoriamente as políticas públicas de saúde mental respeitando as diretrizes do processo
da reforma psiquiátrica brasileira e os principio do estatuto da criança e do adolescente-
eca.
Estas políticas devem ser intersetoriais e inclusivas com base territorial e de acordo com a
realidade sócio-cultural de cada município. Nessa perspectiva é fundamental a criação e o
fortalecimento de uma rede de atenção integral à criança e adolescente e a reavaliação dos
serviços existentes em relação à criança e adolescente. Foram aprovadas também as seguintes
propostas:
1.
Constituir uma agenda específica para criança e adolescente no campo da saúde mental,
elegendo esta temática como foco fundamental do ano 2002.
2.
Propor que a III Conferência Nacional Saúde Mental referende as propostas aprovadas
pela pré
-
conferência para infância e adolescência realizadas nos dias 3 e 4 de abril 2001.
3.
Criar a política de atenção à saúde mental da criança e adolescente mediante a
implementação de Centros de Apoio Psico-
Sociais
-CAPS infantil e outros serviços e garantir
que Ministério da Saúde normatize a criação dos CAPS tendo como fundamento os princípios
da reforma psiquiátrica e do ECA.
4.
As diretrizes da reforma psiquiátrica encarnada nos CAPS podem assumir d
iferentes
configurações concretas de serviços de base territorial de acordo com as possibilidades,
disponibilidades e particularidades de cada município brasileiro.
5.
Exigir que a rede substitutiva inclua a atenção à criança e ao adolescente nos diferentes
s
erviços.
6.
A rede de atenção integral à criança e adolescente deve garantir acessibilidade, fluxo e
priorização de casos de maior gravidade dentro de um enfoque multiprofissional.
212
7.
Implantar em todos os Estados e municípios oficinas para crianças e adolescentes em
consonância com as políticas de atendimento em saúde mental na perspectiva da construção
de cidadania.
8.
Os CAPS infanto-juvenis ou outros dispositivos de base territorial devem ter como uma
das suas prioridades de ação os projetos de desinstitucionalização de crianças e adolescentes
internadas em manicômios ou abrigos públicos, filantrópicos ou privados.
9.
Garantir o direito da criança e do adolescente portador de sofrimento mental e/ou usuário
de drogas de ser atendido em serviços substitutivos específicos. As internações, quando
necessárias, devem realizar-se em serviços 24 horas ou hospitais gerais, no setor de pediatria
com a presença de acompanhante.
10.
Garantir que a criança e adolescente com problemas escolares, uma vez esgotados os
recursos no âmbito da ação escolar, tenham direito ao atendimento junto com os seus
familiares na rede básica de saúde.
11.
Criar runs intersetoriais nacional/estadual/municipal para tratar de questões referentes
ao campo da infância e adolescência. Esses fóruns deverão ser coordenados conjuntamente
pelo Conselho Nacional de Saúde-CNS e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e
do Adolescente
-
CONANDA.
12.
Construir e fortalecer espaços coletivos intersetoriais como instâncias de discussão da
política de atenção à saúde mental da criança e adolescente, assegurando interlocução com a
educação, Conselhos Municipais de Saúde, Juizado, Promotoria, Conselhos Tutelares e Rede
Nacional dos Direitos Humanos.
13.
Garantir que as comissões de saúde mental em nível municipal atuem de forma
intersetorial nos Conselhos Municipais de Assistência Social, CONANDA e outros.
14.
Realizar um censo nacional, operacionalizado pelos municípios para o mapeamento dos
serviços existentes, contemplando o perfil clínico, social e epidemiológico da clientela
inf
anto
-juvenil que não m sendo atendida nos serviços de saúde mental público,
filantrópicos e contratados e instituições de assistência social e judiciária.
213
15.
Estabelecer condições para a construção de um indicativo populacional como critério para
a criação de serviços substitutivos destinados ao atendimento de crianças e adolescentes,
especialmente nos municípios onde houver assistência total de serviços e naqueles em que as
crianças e adolescentes que suportam dores, deficiência mental e transtornos psíquicos são
assistidos pelo modelo asilar.
16.
Promover por meio dos serviços territoriais a qualificação no campo da Saúde mental de
equipes das maternidades para garantir o cuidado precoce do RN com danos neurológicos e
atenção à gestante e à parturiente sempre
que se fizer necessário.
17.
Estabelecer mecanismos de referência e contra-referência efetivos entre as equipes de
maternidades e outros serviços especializados no atendimento e às crianças portadoras de
patologias congênitas e outros transtornos decorrentes
de etiologia diversas (paralisia cerebral,
etc) visando à intervenção precoce para a criança e seus familiares.
18.
Garantir nas três esferas governamentais o cumprimento da lei sobre a comercialização de
bebidas alcoólicas e tabaco para crianças e adolescente
s.
Brasília, 11
-
15 de dezembro de 2001.
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