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KARIN LUCIANE CARDOSO LOUKILI
AINDA FAZ SENTIDO ESCREVER CARTAS? UMA
EXPERIÊNCIA COM O ENSINO DE GÊNEROS NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
PORTO ALEGRE
2009
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
INSTITUTO DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
ÁREA: ESTUDOS DA LINGUAGEM
ESPECIALIDADE: LINGUISTICA APLICADA
LINHA DE PESQUISA: AQUISIÇÃO DE LINGUAGEM
AINDA FAZ SENTIDO ESCREVER CARTAS? UMA
EXPERIÊNCIA COM O ENSINO DE GÊNEROS NA EDUCAÇÃO
DE JOVENS E ADULTOS
KARIN LUCIANE CARDOSO LOUKILI
ORIENTADORA: DRª LUCIENE JULIANO SIMÕES
Dissertação de Mestrado em Lingüística
Aplicada, apresentada como requisito
parcial para a obtenção de tulo de
mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Letras da Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
PORTO ALEGRE
2009
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“Caminante, no hay camino,
se hace camino al andar.”
“Todo pasa y todo queda,
pero lo nuestro es pasar,
pasar haciendo caminos,
caminos sobre la mar.”
Antonio Machado – poeta espanhol
Às minhas filhas,
Yasmin Fawzia e Camila Aisha.
Com amor.
AGRADECIMENTOS
Meu reconhecimento e gratidão a todos que de alguma forma contribuíram
para a realização deste trabalho em especial à Profa. Dra. Luciene Juliano Simões, pela
orientação, atenção e paciência;
Aos professores do Programa de Pós-graduação, em especial às profs.
Margarete Schlatter, Ingrid Finger, Marília dos Santos Lima, Paulo Coimbra Guedes e
Eunice Polônia;
À minha primeira professora de Língua Portuguesa, Ana Cláudia, por sua
ajuda;
À minha amiga Lívia Cordeiro, sempre presente nas horas difíceis;
Aos colegas do grupo de pesquisa, que compartilharam comigo muitos
momentos;
À colega Maíra Gomes, pela amizade e palavras de apoio;
À Escola Municipal de Ensino Fundamental Dilza Flores Albrecht, que
acolheu minha proposta;
Aos alunos que participaram desta pesquisa;
À minha família, pelo carinho e ajuda;
Um agradecimento especial ao meu marido, Azzeddine Loukili, tão presente
nas minhas ausências.
RESUMO
Este trabalho traz os resultados de uma pesquisa-ação, de cunho qualitativo,
desenvolvida com alunos da Educação de Jovens e Adultos-EJA, em uma escola pública
da periferia de São Leopoldo/RS, região metropolitana de Porto Alegre. O
ensino/aprendizagem do gênero carta foi desenvolvido através de uma seqüência
didática, segundo modelo de Schneuwly & Dolz (2004), partindo da produção de textos
de instância privada para a pública. Com referencial teórico baseado na concepção
baktiniana de gênero e nas contribuições de outros pesquisadores voltados para essa
temática, a pesquisa foi realizada observando-se os aspectos interacionais mobilizados
pelos alunos para atingirem seus objetivos comunicativos. A apresentação do gênero
através da seqüência didática teve como propósito instrumentalizar os alunos para
produzi-lo na escola, e também fora dela, bem como de levá-los a desenvolverem
capacidades que ultrapassassem o gênero em questão e que fossem transferíveis para
outros. As tarefas propostas incluíam a leitura e escrita de “cartas pessoais”, “cartas de
leitor” e “cartas reclamatórias”. Algumas tarefas de produção escrita do gênero foram
elaboradas para um objetivo real de interação e não apenas como escrita em âmbito
escolar. Os resultados apresentados mostram que um trabalho de escrita que estabelece
relações com o cotidiano dos alunos pode ser ampliado a partir de um gênero
conhecido, conseguindo-se o aprimoramento das capacidades discursivas, além de
despertar maior interesse nas classes de jovens e adultos.
PALAVRAS-CHAVE: Gêneros textuais Educação de jovens e adultos
Produção textual.
ABSTRACT
This paper presents the results of a qualitative research, developed with
students of an Adult class, in a public school at São Leopoldo/RS. The learning/teaching
process of the genre letter was developed through a didactic sequence, according to
Schneuwly & Dolz (2004), starting from private to public instances. As theoretical
concepts, this research is based on sociointeracionism, especially with Bakhtin’s genre
of discourse theory as well as on contributions of other researchers, and was carried on
observing the interactions aspects mobilized to get students’ communicative purposes.
The genre proposed through a didactic sequence aimed to qualify the students to use the
genre at school and outside as well as to develop capacities that could be used to
produce other genres. The proposed tasks included reading and writing personal letters,
readers’ letters and complaint’ letters. Some tasks were planned for real communicative
purposes and not only as a school task. The results reveals that a writing task that has
some relation with the students daily life can be amplified from a known genre to
improve discursive capacities and also to increase the interests of adult and young
students of adult classes.
KEY WORDS: Textual genres – Adult education – Textual production.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .............................................................................................
11
2. EJA – EDUCAÇÃO PARA JOVENS E ADULTOS ....................................
14
3. PRESSUPOSTOS TÉORICOS .....................................................................
19
3.1 Bakthin e os gêneros do discurso .................................................................
19
3.2 Bronckart e os gêneros de textos .................................................................
23
3.3 Diferença entre tipos e gêneros textuais ......................................................
25
4. A CARTA ......................................................................................................
30
4.1 O gênero “carta” ..........................................................................................
30
4.2 O gêneros “carta” em contexto de ensino-aprendizagem ............................
42
5. METODOLOGIA ..........................................................................................
50
5.1 O ensino-aprendizagem do gêneros carta: delineando um projeto ..............
50
5.2.1 Geração de dados ......................................................................................
56
5.2.2 Schneuwly & Dolz: a seqüência didática ................................................. 56
5.3 A intervenção pedagógica: utilizando a seqüência didática ........................
58
5.4 Elaborando as oficinas .................................................................................
60
5.5 A escola e os participantes ...........................................................................
61
5.6 Levantamento preliminar e definição dos objetivos ....................................
62
6. OFICINAS .....................................................................................................
64
6.1 Realização das oficinas ................................................................................
64
6.1.1 A oficina 1 ................................................................................................ 64
6.1.2 A oficina 2 ................................................................................................ 66
6.1.3 A oficina 3 ................................................................................................ 68
6.1.4 A oficina 4 ................................................................................................ 68
6.1.5 A oficina 5 ................................................................................................ 69
6.1.6 A oficina 6 ................................................................................................ 70
6.1.7 A oficina 7 ................................................................................................ 70
6.1.8 A oficina 8 ................................................................................................ 71
6.1.9 A oficina 9 ................................................................................................ 72
6.1.10 A oficina 10 ............................................................................................ 72
6.1.11A oficina 11 ............................................................................................. 73
6.1.12 Encerranento das oficinas .......................................................................
73
6.2 O questionário ............................................................................................. 75
6.3 Análise dos resultados ................................................................................. 81
7. ANÁLISE DAS PRODUÇÕES .................................................................... 84
7.1 Carta pessoal ................................................................................................
84
7.1.1 Contexto de produção ...............................................................................
84
7.1.2 Conteúdo temático ....................................................................................
85
7.1.3 Estrutura composicional ........................................................................... 86
7.1.4 Estilo .........................................................................................................
86
7.2 Carta do leitor ..............................................................................................
87
7.2.1 Contexto de produção ...............................................................................
87
7.2.2 Conteúdo temático ....................................................................................
88
7.2.3 Estrutura composicional ........................................................................... 89
7.2.4 Estilo .........................................................................................................
89
7.3 Carta de pedido de esclarecimento ..............................................................
90
7.3.1 Contexto de produção ...............................................................................
91
7.3.2 Conteúdo temático ................................................................................... 91
7.3.3 Estrutura composicional ........................................................................... 92
7.3.4 Estilo .........................................................................................................
92
7.4 Cartas para coluna de Paulo Sant`Ana ........................................................ 94
7.4.1 Contexto de produção ...............................................................................
94
7.4.2 Conteúdo temático ....................................................................................
94
7.4.3 Estrutura composicional ........................................................................... 95
7.4.4 Estilo .........................................................................................................
95
7.5 Cartas reclamatórias .....................................................................................
95
7.5.1 Contexto de produção ...............................................................................
95
7.5.2 Conteúdo temático ....................................................................................
96
7.5.3 Estrutura composicional ........................................................................... 98
7.5.4 Estilo ........................................................................................................ 99
8. CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................
102
9. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .......................................................... 108
ANEXOS
1. INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem como objetivo apresentar os resultados de uma
pesquisa desenvolvida em um contexto de ensino-aprendizagem de EJA - Educação de
Jovens e Adultos, com estudantes do último estágio de aprendizagem, o equivalente a
série do ensino fundamental regular, em uma escola pública do município de São
Leopoldo/RS.
Comecei a lecionar para jovens e adultos no início do trabalho de implantação
desta modalidade de ensino em duas cidades da região metropolitana de Porto Alegre,
no Rio Grande do Sul. Na preparação das aulas, deparava-me com uma grande
dificuldade: a falta de material didático específico para esse público e a avaliação de que
os livros didáticos disponíveis traziam textos pouco interessantes para adultos. A isso se
somava o fato de que eu não tinha experiência nenhuma com adultos e nos cursos de
licenciatura ainda não se falava nesta modalidade de ensino e suas especificidades. Os
cursos de formação continuada para professores atuando especificamente com jovens e
adultos, e que hoje são amplamente oferecidos na maioria das prefeituras, ainda não
funcionavam naquele tempo e eu planejava aulas com as quais nunca ficava plenamente
satisfeita.
Apesar da frustração, lecionar para jovens e adultos era bastante desafiador.
Cada turma apresentava suas peculiaridades, sempre com heterogeneidade dentro dos
grupos e entre as diferentes turmas. Os jovens e adultos trazem consigo um currículo
de vida e essa característica chamava muito minha atenção e parecia um aspecto a ser
aproveitado em sala de aula.
Nessa época eu comecei a fazer especialização e interessei-me pelo estudo da
noção bakhtiniana de gêneros e a utilização deles como objeto de ensino. Ainda que os
Parâmetros Curriculares da Língua Portuguesa (1998) apresentassem os fundamentos
bakhtinianos como norteadores do processo institucional de ensino-aprendizagem da
língua materna, o que eu via na prática era um ensino que privilegiava mais o código
lingüístico do que seu uso. Em 2004 foi lançado no Brasil o livro que apresenta os
estudos de Dolz & Schneuwly e, ao estudar mais detalhadamente a seqüência didática
como forma de organização dos gêneros do discurso no ensino de línguas, comecei a
pensar que a elaboração de uma seqüência didática poderia servir como uma nova
abordagem pedagógica dentro do contexto de EJA.
11
Partindo do princípio de que é possível e produtivo trabalhar com gêneros, o
presente estudo procurou colocar em pratica a noção de gênero do discurso no ensino de
Língua Portuguesa através da elaboração de atividade de escrita e responder as
seguintes perguntas:
1) o ensino da escrita baseado em sequências didáticas para o trabalho com
gêneros oportuniza aprendizagens significativas por parte dos alunos de EJA?
1.1 os alunos se engajam mais nas aulas de português, com efeitos sobre
frequências às aulas e realização das tarefas propostas?
1.2 os alunos escrevem textos mais longos, bem estruturados e com propósitos
identificáveis, além do de responder à exigência do professor?
1.3 os alunos selecionam elementos relevantes de seus saberes e vivências
cotidianas para a escrita quando esta envolve interlocutores efetivos, reconhecíveis e
pertinentes para a solução de seus problemas?
2) Os subgêneros da carta permitem uma transposição didática que sirva ao
ensino das diferenças entre usos privados e públicos da escrita?
3) O trabalho em sequência, do formal e privado ao formal e público,
proporciona aprendizagens no nível dos recursos lingüísticos?
3.1) Os alunos demonstram selecionar recursos para sua escrita que se regulam
conforme o interlocutor, passando de usos mais informais para usos mais formais?
3. 2) De que modo os recursos encontrados nos textos lidos reaparecem nos
textos escritos?
3. 3) Os textos escritos revelam aprendizagens que excedem os modelos
retirados dos textos lidos?
Como a pesquisa foi desenvolvida em uma turma de EJA, preliminarmente
inicio a discussão desta pesquisa no capítulo que segue, apresentando alguns aspectos
que julgo interessante serem abordados, principalmente porque a proposta didática que
será exposta neste trabalho foi desenvolvida especialmente para um contexto específico
de ensino/aprendizagem. As peculiaridades dessa modalidade de ensino foram a
principal motivação para a pesquisa que culminou na elaboração da seqüência para o
ensino do gênero “cartas”.
A visão bakhtiniana dos gêneros do discurso norteou o desenvolvimento de
toda a pesquisa e aparecerá ao longo do trabalho. No capítulo 3 discutirei os
12
pressupostos teóricos que foram alicerces do estudo desenvolvido, a fim de relacioná-
los com a elaboração da seqüência didática. As concepções abordadas pertencem à
corrente sociointeracionista, para a qual o conhecimento sobre a língua é internalizado a
partir de atividades com a própria linguagem, tecidas nas relações sociais.
No capítulo 4, trato do nero carta especificamente, assim como seus
subgêneros. Nesse capítulo eu apresento os dados colhidos na pesquisa bibliográfica
sobre o gênero, focalizando principalmente o modo como foi utilizado em contexto de
ensino-aprendizagem.
Eu faço uma pequena narrativa dos acontecimentos que me levaram à opção de
desenvolver uma seqüência didática em uma turma de EJA, no capítulo 5, intitulado
metodologia. Também apresento os métodos utilizados para a geração de dados e os
motivos pelos quais realizei uma pesquisa-ação. Explico com mais detalhes a opção
pelo gênero textual carta e descrevo a elaboração da seqüência teoricamente embasada
em Schneuwly & Dolz, 2004, bem como a abordagem pedagógica feita a partir dela.
Também descrevo como elaborei as oficinas, a escola onde a pesquisa foi realizada e os
sujeitos participantes; comento sobre o levantamento preliminar das dificuldades e os
objetivos a serem alcançados e os parâmetros utilizados para análise das cartas.
No capítulo 6 teço alguns comentários sobre o funcionamento das oficinas, no
capítulo que segue, a análise dos dados, nas minhas considerações finais, no capítulo 8,
analiso pontos positivos da pesquisa realizada e também os aspectos em que os
resultados não foram satisfatórios.
Em consonância com o pensamento de Bakhtin e também de outros estudiosos
sociointeracionistas compreendo que o caminho apontado em relação aos gêneros do
discurso pode contribuir para a melhoria do entendimento dos mecanismos da língua em
uso. O conhecimento dos mecanismos complexos da língua materna é de suma
importância para profissionais cuja missão seja ajudar a desenvolver capacidades
lingüísticas e dar novo significado a um letramento existente, como é o caso dos
estudantes de EJA.
13
2. EJA - EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS
De acordo com a proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos
segundo segmento
1
, a LDBEN
2
nº. 9.394/96 assegura que a educação de jovens e
adultos se destina àqueles que não tiveram acesso aos estudos no ensino Fundamental e
Médio, na faixa etária dos 7 aos 17 anos. As oportunidades de ensino devem, pois, ser
oferecidas gratuitamente e considerando as condições de vida dos cidadãos, suas
peculiaridades e interesses. Apesar de a educação ser garantida na lei, a EJA não recebia
recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e
Valorização do Magistério (FUNDEF), órgão governamental instituído no mesmo ano.
Com a implementação do FUNDEB (Fundo Nacional de Desenvolvimento da
Educação Básica e de Valorização do Magistério), a EJA passou a contar com recursos,
dentro de um limite de 15% do total do orçamento a ser investido, a partir de 2006.
Apesar dos avanços, o IBGE ainda registra uma taxa de 14,4 milhões de analfabetos,
com um índice de analfabetismo funcional
3
de 16,5% no Sul e Sudeste, um índice baixo
se comparado com outras regiões do Brasil.
As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação de Jovens e Adultos
(CNE/CEB nº. 1/2000) destacam que o modelo pedagógico para essa modalidade de
ensino deve garantir, basicamente, eqüidade - para restabelecer igualdade de direitos em
face do direito à educação - e diferença - no reconhecimento das diferenças e na
valorização do mérito de cada um, dentro das especificidades de idade e saberes. Ainda
de acordo com as diretrizes, três serão as funções a serem desempenhadas por essa
modalidade de ensino: a reparadora, a equalizadora e a qualificadora.
Essa é, basicamente, a diferença entre a modalidade EJA e o antigo supletivo:
enquanto este tinha a função de substituição compensatória e suprimento, aquela deve
restituir o direito à educação através do reconhecimento da igualdade de acesso a um
bem social simbolicamente importante. Para tal, é necessário um modelo educacional
1
O segundo segmento corresponde às séries finais, de 5ª à 8ª.
2
LDBEN – Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
3
São considerados analfabetos funcionais aqueles com menos de quatro anos de estudo. Trata-se de um
conceito sugerido pela UNESCO (Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a
Cultura) para facilitar o estabelecimento de comparações válidas. Esse conceito pretende ampliar a
definição convencional, que caracteriza como analfabeta a pessoa que sabe ler e escrever um bilhete
simples. Desconsideram-se, aqui, os diferentes níveis de letramento.
14
que crie situações pedagógicas que atendam as especificidades dos alunos. A função
equalizadora garante que a educação, como bem social, seja oferecida de modo
igualitário, possibilitando o desenvolvimento de pessoas de todas as idades através da
atualização de seus conhecimentos. Sendo o próprio sentido da educação de jovens e
adultos, a função qualificadora refere-se ao caráter de incompletude do ser humano que,
pela educação permanente no âmbito escolar e não-escolar, tem potencial para atualizar-
se e atingir um grau maior de desenvolvimento.
A concepção atual de educação de jovens e adultos é a que entende a educação
como um processo de ampliação de conhecimento ao longo da vida e não apenas como
escolarização. Essa modalidade permite que todos os grupos de cidadãos -
indiferentemente de sexo, cor da pele, de meio urbano ou rural, livre ou privado de
liberdade, com necessidades especiais ou não - tenha acesso à educação planejada e
proposta a partir de diferentes encaminhamentos para os diversos ambientes de
vivências. Apesar de essas diretrizes serem fundamentais para o encaminhamento do
processo de ensino-aprendizagem, considero que essa modalidade de ensino ainda
apresenta dois aspectos que requerem maior atenção: material didático específico e
corpo docente especializado para trabalhar com adultos e jovens.
A EJA não é contemplada pelo PNLD (Plano Nacional do Livro Didático) e,
portanto, os alunos não recebem livros de forma gratuita
4
. A única iniciativa
institucional de que temos conhecimento até aqui é a da editora Ação Educativa, que em
1997 lançou a coleção Viver, Aprender para o primeiro segmento do ensino
fundamental de EJA (equivalente ao período de a séries do ensino fundamental).
Esse material foi reformulado em 2002 e somente em 2004 foi lançado o material para o
segundo segmento de ensino de EJA (equivalente às séries finais). A Ação Educativa é
uma organização não-governamental engajada na defesa dos direitos educativos. Essa
ONG elaborou o material didático, que está de acordo com os parâmetros curriculares
para a EJA. A editora Global detém os direitos de publicação, o que garante a compra
do material sem necessidade de licitação pública. Foge ao escopo deste trabalho uma
discussão mais aprofundada sobre isso, mas cabe mencionar que esses livros não são
utilizados na rede pública (ao menos não eram à época em que fiz a pesquisa) de Porto
Alegre e região metropolitana.
4
No site do Ministério da Educação consta que, a partir de 2009, o segmento de Alfabetização de Jovens
e Adultos será contemplado com livros didáticos gratuitos.
15
Por motivos econômicos, os alunos também não aceitavam sugestões de
material didático de outras editoras, por considerarem os preços muito altos. A falta de
material apropriado para público jovem e adulto é relevante principalmente quando se
pensa que boa parte da ação docente ainda é norteada pelo livro didático. De acordo
com Melo,
Normalmente as instituições formadoras de professores atuam tendo como
virtuais alunos aqueles matriculados no ‘ensino regular’, ou seja, os que estão
na faixa etária de 7 a 14 anos de idade (ensino fundamental). E os
professores, ao se depararem com uma turma de jovens e adultos em
processo de alfabetização, tendem a ficar confusos em relação à escolha da
metodologia de ensino, bem como quanto à seleção de conteúdos a serem
priorizados e terminam por seguir somente aquilo que está pronto, que é o
livro didático (MELO, 2003, p. 50).
Ainda que exista um crescimento na produção de livro didático específico para
EJA, somente em 2006 o Ministério da Educação implementou um projeto para
elaboração de um material para público jovem e adulto. O projeto foi discutido com
várias entidades representativas que atuam com EJA e o resultado foi a produção de um
material contendo 13 cadernos para uso do aluno, 13 cadernos de atividades para o
professor e um guia metodológico que visa a orientar o professor no uso do material. A
principal característica é servir de material de apoio e seu uso não requer seguir uma
seqüência pré-determinada. O tema do material é o trabalho e os conteúdos são
apresentados priorizando a interdisciplinaridade, ou seja, os conteúdos não são
segmentados em vários livros didáticos. Esse material está disponibilizado no site do
Ministério da Educação, no portal da EJA, e pode ser reproduzido livremente.
Ainda que o material apresente vários textos para leitura, as orientações
metodológicas para produção textual apresentam equívocos. Somente a título de
exemplo, reproduzo uma tarefa proposta:
Pedir aos alunos que criem um poema com anáfora e verbo fazer referindo-se
a tempo para contar quanto tempo faz que não realizam coisas que gostavam
de realizar no passado (COLEÇÃO CADERNOS DE EJA, Caderno do
Professor/ Tempo Livre e Trabalho, p. 45).
Mesmo na atividade de escrita propondo o poema como gênero textual a ser
elaborado, a produção de texto é usada apenas como mero exercício do uso da anáfora,
ou seja, não apresenta nenhum propósito comunicativo.
Ao analisar uma coleção específica para o primeiro segmento de EJA, Melo
(2003) constatou que os mesmos também apresentam problemas nas propostas de
trabalho com os textos, como tarefas de produção que não explicitam o par
enunciador/destinatário.
16
Como nosso interesse era o segundo segmento, resolvemos analisar as
atividades propostas nos dois volumes voltados para as séries finais. Encontramos os
mesmos problemas encontrados por Melo (2003). Aparecem propostas de escrita tais
como “escreva uma dissertação”, “escreva uma breve reflexão”, “faça uma
reportagem”. Ainda que as atividades apresentem um destinatário (colegas,
comunidade), as atividades são “escolarizadas”, ou seja, na vida real um aluno pode
precisar ler um texto nesses gêneros, conhecê-los, mas não precisará necessariamente
produzi-los. Concordamos com Melo (2003) quando diz que os autores de livros
didáticos devem ter clareza de que textos que os alunos devem aprender a produzir e
outros que eles devem aprender a compreender.
Além da falta de material específico, especialmente para o segmento das séries
finais de EJA, o problema da falta de preparação dos professores para o trabalho
específico com adultos. Na maioria dos cursos de licenciatura, os futuros professores
não são preparados especificamente para essa modalidade. Mais recentemente as
prefeituras deram-se conta desse problema e têm proporcionado algumas oficinas
voltadas para o estudo de propostas didáticas alternativas. Ainda assim, o grande
número de professores que trabalham com os adultos o faz em regime de extensão de
carga horária, ou seja, é um professor que trabalha em outros turnos e cumpre hora-
extra na EJA, geralmente com o objetivo de aumentar a renda. Nesses casos, não um
interesse em aprofundar os conhecimentos sobre esses alunos específicos.
Some-se a esses fatores a falta de pesquisa sobre as aprendizagens de adultos
nas diversas áreas de conhecimento. Geralmente, as pesquisas de EJA são feitas na área
de Educação. Essa modalidade de ensino ainda carece de uma discussão mais
aprofundada sobre o processo de ensino/aprendizagem de língua materna e outras
disciplinas, tendo em vista que os estudantes têm uma bagagem de conhecimento e de
vivências que lhes é peculiar e que os diferencia dos estudantes do ensino regular. Além
disso, as classes de jovens e adultos costumam apresentar muita heterogeneidade,
justamente devido às diferenças de conhecimento de mundo, o que exige do professor
maior preparo para aproveitar esse aspecto, ao invés de considerá-lo como problema. Os
alunos das etapas mais avançadas de EJA apresentam diferentes níveis de letramento, as
discrepâncias nas turmas de jovens e adultos são mais relevantes devido às experiências
que os jovens e adultos trazem de seus meios sociais, incluindo a escolarização anterior.
Essa experiência provoca “saltos” no processo de aquisição e de formulação de
hipóteses.
17
Outro aspecto relevante quanto à Educação de Jovens e Adultos diz respeito ao
histórico de interrupção do processo de escolarização. Na volta aos estudos, muitos
esperam que esse retorno seja “rápido”, que em pouco tempo eles possam recuperar o
tempo perdido. Os motivos que levaram ao afastamento da escola podem surgir
novamente, aliados a outros motivos igualmente fortes - turno das aulas, filhos
pequenos, distâncias a serem percorridas, cansaço, desemprego ou o começo de um
novo trabalho em determinadas épocas do ano - e podem interferir na freqüência e na
pontualidade... Enfim, são inúmeras dificuldades inerentes ao processo de retorno à
escola.
Apesar de a carga horária ser de 1200 horas/aula, na etapa final de EJA, o
correspondente a um ano letivo, a maioria dos alunos espera terminar em um semestre.
Apesar do desejo de continuarem estudando, alguns alunos não têm certeza de que isso
venha a ocorrer, devido aos problemas sociais e econômicos que enfrentam. Por esse
motivo não podem contar com um processo de escolarização longo, que costuma
contribuir para o maior letramento. O chamado “letramento escolar”, que prioriza
atividades como cópias, trabalhos em grupo, questionários e exercícios gramaticais
atividades raramente realizadas fora do contexto de ensino/aprendizagem – pode, a
longo prazo, contribuir para o “letramento social”. No entanto, no caso dos estudantes
da EJA, esse longo processo, que implica ficar mais tempo ESTUDANDO, pode afastá-
lo novamente da escola. A interrupção do processo de escolarização pode ser um
empecilho para que se desloquem os significados do letramento e haja um processo de
apropriação da escrita. Por esse motivo consideramos que as atividades propostas nas
classes de jovens e adultos devem priorizar o trabalho com foco no uso e não no código
lingüístico.
Essas considerações feitas aqui resultaram da minha própria experiência como
professora de adultos e motivaram minha busca de maior entendimento do processo de
aprendizagem de adultos, priorizando a elaboração de tarefas de escrita que pudessem
ajudar aos alunos a darem novos sentidos à escrita e à cultura letrada. A seguir,
apresento a fundamentação teórica que norteou esta pesquisa, que culminou na
elaboração da seqüência didática com o gênero carta.
18
3. PRESSUPOSTOS TEÓRICOS
Neste capítulo, discutirei os pressupostos teóricos que orientaram este trabalho,
a fim de relacioná-los com a elaboração da seqüência didática. As concepções
abordadas pertencem à corrente sociointeracionista, para a qual o conhecimento sobre a
língua é internalizado a partir de atividades com a própria linguagem, tecidas nas
relações sociais.
3.1 Bakhtin e os gêneros do discurso
Por considerar que a linguagem define-se por seu caráter dialógico, neste
trabalho adotamos a concepção de Bakhtin (2003, p. 262) para os gêneros discursivos:
O emprego da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos),
concretos e únicos proferidos pelos integrantes desse ou daquele campo da
atividade humana. Esses enunciados refletem as condições específicas e as
finalidades de cada referido campo, não por seu conteúdo (temático) e
pelo estilo da linguagem, ou seja, pela seleção dos recursos lexicais .
fraseológicos e gramaticais da língua mas, acima de tudo, por sua construção
composicional. Todos esses três elementos – o conteúdo temático, o estilo e a
construção composicional - estão indissoluvelmente ligados no todo do
enunciado e são igualmente determinados pela especificidade de um
determinado campo da comunicação. Evidentemente, cada enunciado
particular é individual, mas cada campo de utilização da língua elabora seus
tipos relativamente estáveis de enunciados, os quais denominamos gêneros
do discurso.
Para Bakhtin, a linguagem é interação entre indivíduos e, portanto, não deve
ser estudada apenas como um sistema, pois dessa forma torna-se estudo de apenas uma
parte do fenômeno lingüístico. Sendo assim, vista como imersa nos usos em diferentes
situações, torna-se necessária a compreensão dos elementos envolvidos, já que a palavra
é produto da interação entre locutor e ouvinte, ou seja, sempre procede de alguém e para
alguém se dirige, marcando, desse modo, o caráter dialógico da língua.
Tomando como pressuposto teórico a noção bakhtiniana de discurso, convém
pontuar alguns conceitos, a partir das reflexões dos fenômenos envolvidos nos usos da
língua. De acordo com essa teoria, o enunciado é o elemento real da comunicação, no
qual se articulam aspectos verbais e a situação extra-verbal, ou seja, o contexto mais
amplo que constitui o conjunto das condições de vida de uma comunidade lingüística.
Dessa maneira, a linguagem está sempre ligada aos usos socialmente construídos, sendo
19
que o enunciado passa a ter sentido a partir da enunciação. O enunciado se delimita a
partir da alternância dos sujeitos na interação e, por esse motivo, é circunstancial e
relativamente acabado. Sendo responsivo e relacionando-se com outros enunciados, é
um elo da cadeia comunicativa, evidenciando um continuum dialógico.
Dentro de uma concepção mais completa de linguagem temos, então, a palavra
considerada em seu contexto, pois que “o discurso pode existir de fato na forma de
enunciações concretas de determinados falantes, sujeitos do discurso” (BAKHTIN,
2003, p. 274). Desse modo, temos então o conceito de enunciado como sendo a “real
unidade da comunicação discursiva” (ibid. p. 274), caracterizado pela exauribilidade de
objeto e de sentido, intencionalidade discursiva e formas composicionais determinadas
pela relação valorativa do enunciador com o objeto de seu discurso.
Em alguns campos da vida, essa exauribilidade é quase plena como, por
exemplo, nos pedidos, ordens, respostas em alguns campos oficiais e naqueles de
natureza padronizada, nos quais o elemento criativo está ausente. Já no campo da
criação, o objeto é inexaurível, mas, ao se tornar tema do enunciado, ganha relativa
exauribilidade. A intenção discursiva do autor vai determinar a escolha do objeto, seus
limites e sua exauribilidade semântico-objetal (BAKHTIN, 2003, p. 281).
Essa intencionalidade vai determinar também a forma do gênero, influenciando
seu estilo composicional, de acordo com a relação de valor estabelecida entre
enunciador e objeto do enunciado. Nessa interação verbal, temos a situação extraverbal
imbricada que, segundo Bakhtin, manifestar-se-á através da “relação valorativa do
falante com o objeto do seu discurso”, ao lado do conteúdo semântico (ibid., p. 289).
Dito de outro modo, para Bakhtin não enunciado absolutamente neutro: “o elemento
expressivo tem significado vário e grau vário de força, mas ele existe em toda a parte.”
Para ilustrar, podemos usar o próprio exemplo de Bakhtin: a oração “Que alegria!”
(ibid. p.290) é neutra, enquanto oração, podendo assumir tom irônico ou sarcástico, ao
invés de júbilo, dependendo da situação. A linguagem emerge como um fenômeno em
constante movimento, determinado pelas diferentes situações, envolvendo os sujeitos
participantes.
Conforme Faraco (2006), para Bakhtin o sujeito se constitui no complexo
emaranhado da heteroglossia, formando sua voz a partir de diversas outras vozes sociais
que funcionam de diferentes maneiras na nossa construção sócio-ideológica. Não existe
uma voz que seja a primeira ou a última. Os enunciados respondem ao mesmo tempo
suscitam novas respostas, num continuum de responsividade, apresentando três
20
dimensões: todo o dizer é uma resposta ao já dito; todo o dizer se orienta para a resposta
(subentende um receptor presumido, que vai condicionar meu “dizer”), todo o dizer é
internamente dialogizado (ponto de encontro das diversas vozes sociais que formam
meu dizer e que pode ser mostrado ou não; pode ser “aspeado”, ou não).
Estudar a língua sob a perspectiva sociodiscursiva exige, portanto, uma
mudança de visão, que se resume em ver a linguagem não apenas em seus aspectos
lingüísticos e, sim, pela dimensão social na qual está inserida. Portanto, o que deve ser
ensinado na escola são as diferentes práticas orais e escritas de linguagem, com seus
diversos usos e funções sociais. Na Educação de Jovens e Adultos, os alunos voltam a
estudar e se preocupam principalmente em desenvolver a capacidade de expressar-se na
modalidade escrita, o que analiso mais detalhadamente no capítulo sobre a seqüência
didática.
Na Antigüidade estudavam-se os gêneros literários com suas especificidades
artísticas, sem levar-se em conta aspectos lingüísticos. Na teoria bakhtiniana, não
foco nas propriedades formais e sim, no viés dinâmico da produção. A idéia da
relatividade em Bakhtin antecipa uma discussão que se fará posteriormente na teoria
social dos gêneros do discurso: as atividades conhecem recorrência, mas também têm
dimensões novas em cada contingência.
Outro aspecto importante dos gêneros do discurso: como tipos relativamente
estáveis do dizer no interior de uma esfera de atividade humana, eles cumprem
indispensáveis funções sociocognitivas. Pela sua estabilidade, eles o elementos
organizadores das atividades e, por isso, orientam nossa participação em determinada
esfera de atividade e, ao gerarem expectativas de como serão as ações, nos orientam
diante do novo no interior dessas ações, auxiliando-nos a tornar familiar o que é novo,
pelo reconhecimento das similaridades.
Bakhtin dividiu os gêneros em primários e secundários, sendo estes mais
complexos e originados naqueles. Os gêneros primários são os conhecidos do cotidiano
e caracterizam-se pela presença dos interlocutores no mesmo tempo e espaço, havendo
tomada de turnos. Os secundários dependem do refinamento cultural da sociedade e do
uso da língua escrita, distanciando-se, assim, da situação imediata de produção.
Para Bakhtin, a distinção entre os gêneros tem importância teórica. Afirma ele,
A diferença entre os gêneros primário e secundário (ideológicos)
5
é
extremamente grande e essencial, e é por isso mesmo que a natureza do
5
Ideológico aqui empregado no sentido de “pertencente ao campo das idéias”.
21
enunciado deve ser descoberta e definida por meio da análise de ambas as
modalidades; apenas sob essa condição a definição pode vir a ser adequada à
natureza complexa e profunda do enunciado (e abranger as suas facetas mais
importantes) (BAKHTIN, 2003, p. 264).
De acordo com Gomes (2002), a recuperação dos gêneros primários pelos
secundários explicita um aspecto importante da concepção de gênero: a organização do
discurso em níveis. São os gêneros secundários os mais trabalhados na escola, e também
é um gênero secundário o trabalhado na seqüência didática aqui apresentada, porque os
alunos tinham por objetivo melhorar a expressão escrita.
Classificar os gêneros implicaria também classificar os diversos campos da
atividade humana organizada socialmente. Levando-se em conta o grande número de
práticas sociais elaboradas e reelaboradas pelo homem podemos dimensionar a riqueza
dos gêneros existentes ou que irão surgir. Não podemos deixar de mencionar os
aspectos históricos inerentes no momento da interação social e que vão também
representar os aspectos extra-verbais que complementam os aspectos verbais na
constituição do enunciado.
Particularmente, interessa-nos a idéia de que as diferentes situações vão
suscitar diferentes formas de um gênero, no caso, a carta e seus subgêneros. Com diz o
autor,
A diversidade desses gêneros é determinada pelo fato de que eles são
diferentes em função da situação, da posição social e das relações pessoais de
reciprocidade entre os participantes da comunicação: há formas elevadas,
rigorosamente oficiais e respeitosas desses gêneros, paralelamente a formas
familiares, e, além disso, de diversos graus de familiaridade, e formas íntimas
(BAKHTIN, 2003, p. 283-284).
Para empregar livremente os gêneros é preciso saber quais são os mais
adequados à minha intenção comunicativa. Os alunos muitas vezes empregam alguns
gêneros que se restringem a esferas de comunicação mais informais e não se sentem
seguros no uso de gêneros mais elaborados, utilizados em esferas mais formais. Para
Bakhtin, não se trata de pobreza de estilo ou de vocabulário, apenas “falta de acervo
suficiente” (IBIDEM, p.285).
Nossa abordagem busca o entendimento do texto como fenômeno de interação
na sua essência, condicionado pela situação social e pelos sujeitos. Partindo do princípio
de que os textos circulam em diversos contextos apresentando-se em diferentes gêneros,
nossa abordagem em relação ao texto será o de não tratá-lo como algo inerte,
descontextualizado e sem função fora de sala de aula. Nesse caso, nossa preocupação é
não utilizá-lo apenas como pretexto para o ensino de regras do código lingüístico.
22
A seqüência didática, proposta para o ensino-aprendizagem do gênero carta, foi
elaborada de modo a levar os alunos a perceberem como os sujeitos da interação
participam da co-construção do texto, posto que o produtor tem suas escolhas
lingüísticas determinadas de acordo com o destinatário de sua produção. O gênero
escolhido foi determinante para que os alunos percebessem isso, que saber “para
quem” e “para que” escrevo é facilmente percebido quando nos propomos a escrever
cartas.
3.2 Bronckart e os gêneros de textos
Para Bronckart, a linguagem é fundamentalmente uma produção interativa,
associada às atividades sociais, sendo sua maior função a comunicativa
(BRONCKART, 1999). As ações implementadas para atingir esse objetivo são
atividades de linguagem, organizadas em discursos e textos. Os textos, por sua vez,
interagem com as atividades não-verbais (non langagières) e dão origem aos gêneros.
Disso decorre que, sendo produtos da interação social, os signos dependem do uso, e os
significados que assumem não são considerados estáveis senão temporariamente. Nesse
caso, o procedimento de análise é voltado para organização e funcionamento da
linguagem.
O texto é, para Bronckart, toda a produção verbal que veicula uma mensagem
lingüística organizada e que produz no seu destinatário um efeito de coerência que
constitui uma unidade comunicativa (tanto de produção escrita quanto oral). Todo o
texto se inscreve em um conjunto de textos ou em um nero e a esse conjunto o autor
denomina gênero de textos. De acordo com o autor, os textos são compostos por
segmentos distintos, características diferenciadas que possibilitam a identificação de
regularidades de organização e de unidades lingüísticas, resultando disso que “qualquer
espécie de texto pode ser designada em termos de gênero e que, portanto, todo exemplar
de texto observável pode ser considerado como pertencente a um determinado gênero”
(BRONCKART, 1999, p. 73).
Apesar disso, a diversidade de critérios que podemos utilizar para fazer a
classificação dos gêneros torna essa tarefa penosa: podemos definir de acordo com a
atividade humana implicada, tamanho ou natureza do suporte, efeito comunicativo,
entre outros. Outro fator que dificulta a classificação é o fato de que os gêneros estão
em constante movimento, uns surgindo, outros entrando em desuso.
23
Portanto, os textos devem ser analisados em termos de unidades lingüísticas
específicas, pois, conforme o autor:
Quaisquer que sejam os gêneros nos quais os segmentos de relato de
acontecimentos vividos, de narração, de diálogo, de argumentação, etc. se
inscrevam, esses segmentos apresentam semelhanças lingüísticas (presença
de determinados subconjuntos de tempos verbais, de pronomes, de
organizadores, etc.) e, portanto, são esses segmentos que podem ser
identificados com base em suas propriedades lingüísticas (BRONCKART,
1999, p. 75).
As formas de organização lingüístico-discursivas que são percebidas no
folhado textual
6
com o objetivo de produzir um determinado efeito discursivo são as
modalidades discursivas de narrar, relatar, argumentar, expor e descrever. As
seqüências textuais organizam as macroestruturas semânticas de forma linear para
formar o texto, com o objetivo de expressar lingüisticamente os sentidos que as
modalidades discursivas pretendem instaurar na interlocução. Essa materialidade
lingüística pode ser grafada em espaços físicos e materiais, conhecidos como suportes
textuais. Os ambientes discursivos são os lugares ou as instituições sociais onde as
formas de produção se organizam e onde ocorrem as atividades de linguagem,
chamados por Bronckart de eventos discursivos. As atividades organizam-se através dos
textos, classificados em gêneros textuais. Gêneros de discurso são os que caracterizam
determinados ambientes discursivos como, por exemplo, o discurso do judiciário, o
discurso escolar, político, familiar, entre outros.
Na elaboração da seqüência didática para o ensino-aprendizagem do gênero
carta, interessa-nos o que Bronckart chama de contexto de produção, principalmente no
que se refere ao emissor (que produz fisicamente o texto, também chamado de
“produtor”) e o receptor (que recebe concretamente o texto) em relação ao “mundo
subjetivo”, no qual os lugares sociais aparecem, originando um enunciador e um
destinatário. O aprendiz vai produzir textos sendo um enunciador desempenhando
diferentes papéis sociais a cada produção, a partir dos papéis sociais de aluno, amigo,
pai, cidadão etc.
Bronckart argumenta que uma abordagem didática ideal consistiria em iniciar o
ensino da língua pelas atividades de leitura e produção de textos para depois aplicarem-
6
Bronckart concebe a organização do texto como um folhado textual constituído de três camadas
superpostas: a infra-estrutura geral, os mecanismos de textualização e os mecanismos enunciativos. Esses
estratos sobrepõem-se em função do caráter hierárquico da organização textual. Enquanto os mecanismos
de textualização contribuem para a “visualização” da organização do conteúdo temático, baseada numa
infra-estrutura organizacional mais profunda, os mecanismos enunciativos são mais superficiais, estando
diretamente relacionados ao tipo de interação estabelecida entre o agente-produtor e os destinatários.
24
se atividades de inferência e codificação de regularidades observáveis no corpus de
textos. No entanto, o autor não considera que esse procedimento seja aplicável e afirma:
Qualquer intervenção didática implica, em primeiro lugar, a consideração da
situação de ensino de uma matéria, isto é, da história de onde ela provém,
assim como a consideração das restrições atuais do sistema escolar em que
essa situação se insere (BRONCKART, 1999, p.87).
No nosso caso, há que se considerar os conhecimentos adquiridos pelos alunos,
suas vivências anteriores dos usos dos gêneros, bem como proporcionar aos aprendizes
a oportunidade de explorar os aspectos gramaticais que considerarem relevantes para a
organização e o funcionamento do texto.
3.3 Diferenciação entre tipo e gênero textual
Na perspectiva sociointeracionista, a comunicação verbal é possível com o
uso do gênero textual. Esse posicionamento é defendido pelos autores referenciado,
entre outros que abordam a língua nos aspectos discursivos e não nos formais ou
estruturais. A distinção entre gênero e tipo textual é importante, não apenas por questões
terminológicas: dentro do contexto de ensino-aprendizagem para o qual a seqüência
didática foi elaborada, a abordagem diferenciada significou uma nova proposta de
ensino de língua materna.
Vários autores adotam a diferenciação entre tipo e gênero, entre eles Jean-
Michel Adam (1993), John Swales (1990) e Bronckart (1999). Seguindo esses autores,
Marcuschi diz que os gêneros textuais “são fenômenos históricos, profundamente
vinculados à vida cultural e social” (MARCUSCHI, 2005, p. 19). O aspecto sócio-
cultural é inerente aos gêneros, que surgem ou deixam de ser utilizados de acordo com
as demandas sócio-discursivas dos grupos sociais.
Quanto à origem, os gêneros decorrem de domínios discursivos específicos,
chamados de esferas ou instâncias, públicas ou privadas, nos quais ocorrem rotinas
comunicativas que utilizam textos como ações retóricas típicas de cada cultura. Esses
gêneros são reconhecíveis pelos seus aspectos sócio-comunicativos, pelo suporte e pelo
ambiente discursivo. Como decorrem de várias práticas comunicativas e apresentam-se
em número ilimitado, nem sempre recebem denominações uniformes e assim como
surgem, podem desaparecer. Em relação a isso, Marcuschi salienta que, em vista do
desenvolvimento de novas tecnologias, vemos crescer o número de gêneros, assim
como vemos a transmutação dos já existentes.
25
O suporte também pode gerar um novo gênero, ainda que veiculando um
mesmo texto. O autor usa como exemplo um texto científico que, publicado em uma
revista será “artigo científico” e, publicado em um jornal diário, será “artigo de
divulgação científica”. Diz Marcuschi,
é claro que distinções bastante claras quanto aos dois gêneros, mas para a
comunidade científica, sob o ponto de vista de suas classificações, um
trabalho publicado numa revista científica ou num jornal diário não tem a
mesma classificação na hierarquia de valores da produção científica, embora
seja o mesmo texto
7
(MARCUSCHI, 2005, p. 21).
Ainda que a forma e o suporte sejam importantes, são os aspectos sócio-
comunicativos que vão definir os gêneros.
Como dito anteriormente, a posição defendida por Bakhtin (2003), Bronckart
(1999) e também adotada por Marcuschi (2005) é a de que é impossível se comunicar
verbalmente a não ser através dos gêneros textuais. Diz ele:
Nesse contexto teórico, a língua é tida como uma forma de ação social e
histórica que, ao dizer, também constitui a realidade, sem, contudo, cair num
subjetivismo ou idealismo ingênuo. Fugimos também de um realismo
externalista, mas não nos situamos numa visão subjetivista. Assim, toda a
postura teórica aqui desenvolvida insere-se nos quadros da hipótese
sóciointerativa da língua. É neste contexto que os gêneros textuais se
constituem como ações sócio-discursivas para agir sobre o mundo e dizer o
mundo, constituindo-o de algum modo (MARCUSCHI, 2005, p.22).
Enquanto os gêneros existentes são inúmeros, poucos tipos textuais, que
compreendem as seqüências teoricamente definidas pela natureza lingüística de sua
composição (aspectos lexicais, sintáticos, tempos verbais, etc.) e se agrupam em seis
categorias: narração, argumentação, exposição, descrição e injunção.
Para exemplificar a diferença entre tipo e gênero, Marcuschi cita a carta
pessoal, um gênero que pode apresentar rias seqüências tipológicas que vão dar ao
texto uma coesão determinada, através da tessitura das partes. Ainda que as seqüências
textuais ocorram em todos os gêneros, é importante salientar que o gênero escolhido
serviu de maneira apropriada aos nossos propósitos de ensino-aprendizagem porque a
determinação dos diferentes subgêneros de certo modo influenciava as escolhas dos
tipos textuais. É importante mencionar que os gêneros não se caracterizam pelas
seqüências nem por formas estáveis e sim por aspectos sócio-discursivos, ou seja,
podemos ter um artigo de opinião com formato de poema, uma hibridização chamada de
intertextualidade inter-gêneros.
Para o desenvolvimento de uma seqüência didática, como o trabalho proposto
aqui, interessa-nos sobremaneira as observações de Marcuschi acerca dos gêneros nas
7
Grifo do autor.
26
modalidades das mais informais às mais formais, e a relação entre a oralidade e a
escrita. Apesar de ser um gênero apresentado na forma escrita, os alunos deveriam levar
em conta o contexto de produção e o destinatário para suas escolhas de estilo, de acordo
com os objetivos do enunciador e da natureza do tópico. Os critérios externos é que vão
determinar o gênero enquanto os tipos textuais irão fundar-se em aspectos internos
(lingüísticos e formais). Para isso, partimos de uma modalidade escrita mais informal
para a formal. Esperava-se que os alunos mobilizassem diferentes tipos textuais dentro
do gênero, adequando as escolhas lingüísticas de acordo com o uso. Para Marcuschi,
deve haver uma relação entre vários aspectos, na produção dos gêneros. São eles:
natureza da informação ou do conteúdo veiculado;
nível de linguagem (formal, informal, dialetal,
culta, etc.)
tipo de situação em que o gênero se situa (pública,
privada, corriqueira, solene, etc.)
relação entre os participantes (conhecidos,
desconhecidos, nível social, formação etc.)
natureza dos objetivos das atividades
desenvolvidas (MARCUSCHI, 2005, p. 34).
Durante as produções textuais foi interessante observar as “negociações” que
os alunos faziam na hora de escrever, principalmente nas sequências argumentativas das
cartas reclamatórias. Sobre esse aspecto falaremos mais adiante.
27
RESUMO DO CAPÍTULO
O objetivo deste capítulo foi apresentar os pressupostos teóricos que nortearam
esta pesquisa. Em suma, podemos dizer que o foco de nosso estudo está em consonância
com uma concepção sociointeracionista, para a qual a linguagem é forma de ação ou
interação. Usada para “fazer coisas” em diferentes instâncias, a linguagem resulta da
ação conjunta entre o locutor e seu destinatário. Para Bakhtin, a diversidade dos gêneros
decorre do fato de que diferem em função das situações, das posições sociais e das
relações entre os interlocutores. As formas familiares ou formais, em maior ou menor
grau, vão servir para modelar as escolhas lingüísticas dos aprendizes do gênero carta.
Nessa concepção sociointeracionista de linguagem, o conhecimento sobre a
língua é internalizado a partir de atividades com a própria linguagem, tecidas nas
relações sociais. As tarefas de produção textual deveriam propiciar ao aluno a
oportunidade de produzir textos, considerando a interlocução entre os sujeitos,
dominando a linguagem em sua dimensão discursiva (materialidade lingüística +
significado), em um contexto sócio-histórico, em diversas situações.
De acordo com essa visão, elementos como situação de produção,
interlocutores e propósito devem estar presentes no enunciado de qualquer tarefa de
produção textual. Para Bronckart, esse contexto de produção permite ao aprendiz
produzir textos a partir de diferentes papéis sociais.
Marcuschi faz uma diferenciação, chamando de “tipos de textos” a
classificação feita de acordo com a natureza dos aspectos lingüísticos (aspectos lexicais,
sintáticos, tempos verbais, etc.). Agrupam-se em seis categorias: narração,
argumentação, exposição, descrição e injunção. Essas categorias que se apresentam em
número limitado, encontram-se no interior dos gêneros, que são inúmeros.
Sendo o gênero o ponto de partida para o ensino-aprendizagem da linguagem,
Schneuwly e Dolz (2004) propõem que o aprendizado ocorra a partir de seqüências
didáticas regidas pelo princípio da legitimidade (baseadas em saberes teóricos), pelo
princípio da pertinência (de acordo com as capacidades dos alunos e em acordo com os
objetivos da escola) e pelo princípio da solidarização (tornar os saberes coerentes de
modo a fazer com que os saberes integrados formem um sentido parcialmente novo).
28
Na seqüência organizada para o ensino-aprendizagem da escrita de cartas,
foram considerados os aspectos sócio-discursivos das produções possíveis de se
realizarem nas esferas pública e privada, com o objeto de familiarizar os alunos com um
gênero utilizado em vários ambientes discursivos.
29
4 A CARTA
Este capítulo trata sobre o gênero textual escolhido para a realização da
experiência didática. Com o objetivo de conhecer mais sobre o gênero, realizei uma
pesquisa bibliográfica, buscando compreender os aspectos que o caracterizam.
Primeiramente, abordo o tema sob uma perspectiva histórica, apresentando dados de
Bazerman (2002) que colocam a carta na gênese de vários gêneros de texto da
atualidade. Embora o uso de novas formas de comunicação eletrônica leve a crer que
esse gênero vai extinguir-se futuramente, dados estatísticos encontrados comprovam
que isso ainda está longe de ocorrer.
Apresento também os eventos comunicativos que estão envolvidos na
produção das cartas e que guardam estreita relação com os seus aspectos conceituais e
descritivos. De acordo com a bibliografia encontrada, percebe-se que muitos
pesquisadores têm-se ocupado dessa temática. Particularmente, para este
estudo,procurei trabalhos de pesquisadores que tivessem abordado o tema sob a
perspectiva do ensino-aprendizagem do gênero, objetivando encontrar subsídios que
pudessem auxiliar na elaboração de minha proposta.
Juntamente com a apresentação das motivações que levaram à escolha da carta
como gênero específico para a abordagem didática e a relevância desta proposta, que
toma em consideração os aspectos do uso da linguagem,teço comentários acerca do
contexto escolar no qual a experiência foi realizada e que justificam o estudo do gênero,
mais especificamente os dois subtipos abordados: a carta pessoal e a carta de
reclamação, os quais são detalhados no capítulo seguinte.
4.1 O gênero “carta”
Bazerman (2005), em um estudo histórico sobre o gênero, informa-nos que a
carta encontra-se na gênese dos gêneros textuais que viabilizaram as interações a
distância. Essas interações, que não ocorriam face a face, resultaram no surgimento de
novos aparatos tecnológicos que tornaram possível a comunicação dissociada do aqui e
agora.
30
No antigo Oriente Próximo (WHITE 1982, apud BAZERMAN, 2005) e na
Grécia, os primeiros comandos escritos foram feitos em formas de cartas. As cartas se
caracterizavam por fornecer uma identificação de autor e a respectiva audiência. No
período mais antigo, essas mensagens eram entregues por um mensageiro, que as lia em
voz alta. O portador representava a presença da autoridade, já que as mensagens,
geralmente, eram comandos, muitas vezes escritos com outros assuntos de ordem
militar, administrativa ou política. A encenação, com a leitura em voz alta, representava
essas relações sociais, mantidas por meio da carta. Esse propósito de projeção do autor
continuou na escrita, mesmo quando as cartas deixaram de ser recitadas pelo
mensageiro.
Dos usos formais e oficiais, ou seja, da instância pública, as cartas evoluíram
para as mensagens particulares e tornaram-se comuns na Grécia Antiga e em Roma,
permitindo concretizar muitos tipos de negócios e, entre a gama de cartas comerciais e
administrativas, encontramos as cartas de recomendação e as petições. As transações
realizadas são mostradas para o leitor através das saudações, das assinaturas e do
conteúdo, que podiam trazer, de modo explícito, a natureza da relação estabelecida entre
os indivíduos que estavam interagindo através da mensagem escrita. Na medida em que
essas relações foram se expandindo, assim também ocorreu com as transações
realizadas através de diversas modalidades de cartas.
A antiga Igreja cristã também utilizava as cartas para compartilhar, entre os
seus seguidores, ensinamentos filosóficos e doutrinários. Através delas, podiam narrar
feitos grandiosos, transmitir avisos e decisões doutrinais, a distância. Ainda hoje,
existem documentos da Igreja que se originaram nas cartas papais, tais como as bulas,
súmulas, encíclicas, entre outros. Com a expansão da Igreja, as cartas tornaram-se um
meio de doutrina e administração, cuja escrita constituía uma arte cujos preceitos
vinham da ars dictaminis, um ramo especializado da retórica. (CAMARGO, 1991, apud
BAZERMAN, 2005). “Essa arte de escrever cartas enfatizou a saudação, identificando e
conferindo respeito aos papéis sociais e às posições de emissor e receptor
8
, colocando
ambos dentro de relações sociais institucionalizadas” (BAZERMAN, 2005 p. 89). O ars
dictamnis foi substituído pelo ars notaria na Renascença, que teve ligação com o
8
“Emissor” e “receptor” são termos utilizados pelo autor. Na perspectiva dialógica bakthiniana, a
comunicação discursiva ocorre entre o autor do enunciado e seu destinatário. O endereçamento é um dos
traços constitutivos do enunciado e é o que vai determinar o estilo composicional e as escolhas lexicais do
autor.
31
surgimento de profissões de tabelião e secretário, bem como se envolvendo com o
Direito e o Comércio (MURPHY, 1974, apud BAZERMAN, 2005).
De acordo com Bazerman, vários documentos seguem os princípios das cartas,
nas quais vemos saudações que marcam as posições sociais, bem como a busca de boa
vontade por parte do destinatário. Entre esses documentos, temos a Carta Magna, datada
de 1215, e a Carta de Patente, concedida pelo Rei Henrique VII a John Cabot para
explorar e colonizar novas terras, também contendo endereçamento e saudação. Mesmo
nos dias atuais, muitos documentos oficiais na Inglaterra e nos Estados Unidos contêm
formas epistolares. Mesmo posteriormente, quando as patentes se restringiram às
invenções, continuaram com o formato da carta, sendo a primeira concessão datada de
1791, “endereçada ‘To all to whom these presents shall come, Greeting’ (A todos para
quem estes documentos cheguem, Saudações)” (BAZERMAN, 2005, p. 91).
“A carta de petição, como um meio para o indivíduo manifestar interesses
pessoais para as autoridades, data do mundo clássico” (KIM 1972, apud BAZERMAN,
2000). Durante a Idade Média, as petições serviam para expressar descontentamento e
protesto. As cartas eram utilizadas também para compartilhar esses descontentamentos e
disseminar atitudes rebeldes e, em muitos casos, precederam o surgimento de
“documentos públicos mais visíveis, tais como cartazes, manifestos e panfletos
sediciosos (BAZERMAN, 2005, p. 91)”.
Segundo Bazerman, os modernos instrumentos financeiros também têm suas
origens nas cartas. As letras de câmbio do séc. XIII tinham a forma de correspondência
comercial. Esses instrumentos monetários, com marcas simbólicas de valor, foram a
base da circulação monetária estabelecida no norte da Itália no séc. XII, e as
transferências monetárias feitas através das cartas de fundos de um cliente para outro
fizeram surgir a conta corrente. O primeiro dinheiro de papel na Inglaterra, em 1665, era
uma ordem de pagamento, e o nome carta de crédito sugere relação com a
correspondência, embora não haja evidências históricas. Cédulas e notas
desenvolveram-se nos Estados Unidos por causa da falta de moedas de ouro e prata e
tinham a forma típica das cartas, tendo uma data na parte superior e assinaturas na parte
inferior (HICKCOX, 1969, apud BAZERMAN,2005). O formato sofreu transformações
ao longo do tempo, com o endereçamento sendo feito para qualquer usuário, porém, até
hoje, tanto o dólar americano quanto as notas britânicas trazem traços residuais das
cartas.
32
Além desses, vários outros tipos de escrita surgiram com a imprensa e têm
conexão com as cartas, tais como o jornal, a revista científica e o romance. De acordo
com a pesquisa de Bazerman, os jornais teriam como fontes os relatos diários romanos,
cartazes e panfletos renascentistas. As newsletters, que eram boletins informativos
produzidos no séc. XV, perto das escolas de Direito, e enviados às províncias, também
tiveram seu papel nesses periódicos. Os jornais vão surgir na Inglaterra na primeira
metade do séc. XVII, com origens nesses periódicos. As revistas científicas são
publicações que tiveram origem na antiga correspondência trocada entre os estudiosos,
com objetivo de compartilharem suas descobertas. Somente no séc. XVIII os artigos
perderam o antigo formato de cartas. Outro gênero que tem sua origem nas cartas é o
romance. Apesar das origens complexas, ao menos em relação ao romance epistolar,
podemos afirmar que seja uma das formas de ficção cuja origem está na tradição de
escrever cartas.
no final do séc. XIX, com o grande desenvolvimento das empresas, surgiu
também a necessidade de comunicação entre pessoas dentro desse novo panorama de
negócios nacionais. São desse período os “relatórios de ações” que colocavam os
acionistas a par dos negócios. Esses primeiros documentos eram feitos sob a forma de
carta e, ainda hoje, apesar de o relatório de grandes companhias ser extenso, costuma vir
precedido de uma carta do presidente aos acionistas. Isso demonstra como as situações
comunicativas vão dando origem aos vários gêneros, que vão se adaptando conforme as
necessidades. A carta comercial é um exemplo. Com a necessidade cada vez mais
crescente de manutenção dos dados gerados, vemos surgirem os relatórios,
memorandos, circulares, entre outros.
Essas transformações da escrita refletem também as transformações das
relações baseadas apenas em julgamentos pessoais e confiabilidade. Assuntos oficiais e
particulares deixaram de ser tratados na mesma correspondência. Esse processo é
exemplificado por Bazerman, que examinou alguns papéis de Thomas Edison e
encontrou cartas que Charles Batchelor recebia regularmente de Alfred O. Tate, em
1884. Nessas cartas, Alfred passava informações sobre agentes contratados e sobre as
cidades do Canadá, que estava percorrendo em busca de locais para futuras centrais de
força elétrica. Com o passar do tempo, as cartas, que eram escritas com papel dos hotéis
por onde passava, e que continham relatórios legais e assuntos particulares, foram
adquirindo novos aspectos à medida que Alfred começou a usar formas pré-impressas
para escrever sobre aspectos legais dos contratos. Os comentários feitos tornaram-se
33
mais limitados e garantindo uma maior uniformidade de informações e regularidade dos
procedimentos de arquivamento (BAZERMAN, 2005, p.98).
À luz das evidências encontradas por Bazerman de que as cartas deram
surgimento a tantos outros gêneros textuais, podemos especular acerca de um
paralelismo entre essa filogênese enunciativa e a construção ontogenética protagonizada
por cada aluno. O processo de apropriação do gênero poderia servir como estratégia
nessa construção que é individual, mas acontece no coletivo. Usando um gênero textual,
a escrita não é relevada à posição de mero instrumento, mantendo seu caráter interativo
e dialógico. Para os alunos que voltam a estudar, essa ressignificação do letramento
passa pela escola, onde, historicamente, são difundidos os conhecimentos e que tem
como uma de suas funções a de ampliar as práticas sociais comunicativas e a
competência lingüística dos alunos, sem deixar que a escrita se manifeste como
expressão do sujeito.
Em muitas ocasiões, ao falar sobre a realização desta pesquisa, ouvi
comentários sobre o fato de que a carta está em desuso e, portanto, seria irrelevante
elaborar uma seqüência didática para o ensino desse gênero. Essa idéia equivocada
talvez advenha da confusão que muitas pessoas fazem entre o gênero e o suporte. Em
relação à carta, podemos dizer que é um gênero, com vários subgêneros, que pode ser
enviada de modo tradicional, através do correio, ou por meio eletrônico, e-mail, que
seria um suporte. Nesse caso o ambiente virtual não constitui um domínio discursivo,
apenas um domínio de produção e processamento virtual. O aspecto central a ser
observado é a relação que se estabelece com a linguagem em uso que, no caso do e-
mail, agrega traços da oralidade e da escrita.
O ambiente de e-mail
9
(correio eletrônico) constitui um ambiente virtual de
comunicação através do qual podemos enviar e receber correspondência, entre elas, as
cartas. Esse meio de comunicação facilita pela rapidez, pelo baixo custo e, através dele,
a correspondência pode ser arquivada, reenviada, copiada, enfim, sua versatilidade
facilita a vida moderna e temos também a vantagem de anexar imagens e links. No
entanto, as cartas enviadas por correio eletrônico têm o mesmo formato das cartas
enviadas por correio convencional e se diferenciam do e-mail, gênero textual, que se
9
Marcuschi, entre outros autores que estudam gêneros emergentes, fazem uma diferenciação entre e-mail
como sinônimo de correio eletrônico e e-mail como gênero textual. Observe-se que o termo e-mail está,
inclusive, dicionarizado. Em nosso trabalho utilizamos o termo para designar o suporte de veiculação de
cartas.
34
caracteriza pela “informalidade, a inobservância de algumas regras ortográficas, a
objetividade, e a ausência de pré-seqüências” (PAIVA, apud MARCUSCHI, 2005, p.
77).
O fenômeno da “transmutação”, já notado por Bakhtin (2003), ocorre quando
um gênero é assimilado por outro dando origem a um novo. O gênero “e-mail” é
caracterizado por uma velocidade e espontaneidade no processo de produção que o
diferencia das outras produções de texto que exigem uma maior reflexão. Crystal (2001,
apud Paiva, 2005) refere-se ao e-mail como uma troca conversacional breve e rápida.
Segundo Paiva, o gênero e-mail caracteriza-se por agregar características do
memorando, da carta, do bilhete da conversação face a face e da interação telefônica. A
autora diz que,
Do memorando, toma de empréstimo semelhanças de forma que é
automaticamente gerada pelo software; do bilhete, a informalidade e a
predominância de um ou poucos tópicos, da carta, as fórmulas de aberturas e
fechamentos. Dos neros orais herda a rapidez, a objetividade e a
possibilidade de se estabelecer “diálogo”. Da conversa face a face, temos um
formato que guarda alguma semelhança com a tomada de turno e a interação
telefônica, além de limitações contextuais também semelhantes, mas com a
possibilidade de colocar em contato pessoas que se encontram
geograficamente distantes. (PAIVA, 2005, p. 85)
Apesar de guardar semelhança com a carta, a pesquisadora ressalta que a
maioria dos e-mails o apresenta aberturas ou fechamentos, alguns só apresentam
aberturas, outros, apenas fechamentos, com variações entre agradecimentos ou mesmo
perguntas e pedidos explícitos de feedback.
Foge ao escopo desta pesquisa a análise mais detalhada das características
desse gênero emergente, mas convém salientar que ele se diferencia da carta por seus
aspectos interacionais peculiares, tais como o uso da tecnologia no envio das
mensagens, organização retórica diferenciada, léxico específico, possibilidade de uso de
sinais não-verbais (emoticons)
10
entre outros. Com essa breve análise pretendemos
destacar que esses aspectos vão ser determinantes para a caracterização do gênero.
Apesar de muito em voga, o e-mail ainda é inacessível à maioria da população. Na
pesquisa de Haeser (2005), da qual falamos mais detalhadamente adiante, ainda neste
capítulo, encontramos dados fornecidos por Flávio José Cardozo Jr., o então editor de
opinião do Diário Catarinense, responsável direto pelo setor de cartas do leitor do
referido jornal. De acordo com ele, o correio convencional é o meio utilizado pelas
pessoas mais humildes para o envio de cartas. Essa também é a escolha dos
10
Emoticons são “carinhas” produzidas a partir de caracteres e utilizadas para expressar emoções.
35
aposentados, que representam um grande número de leitores do DC. Nesse caso,
podemos levantar a hipótese de que pessoas mais velhas tenham essa preferência pela
falta de familiaridade com as novas tecnologias.
Silva (2002) também ressalta, acerca dos gêneros epistolares numa sociedade
tecnologicamente complexa, que
Embora muitos venham sugerindo que a carta pessoal é um gênero que
parece estar em franca extinção ou declínio na cultura ocidental, em face do
advento de várias formas de comunicação mediadas pela tecnologia
eletrônica como, por exemplo, o telefone, o correio eletrônico, chats, etc.
(conf. Yates, 1999, entre outros), não se pode negar que a carta pessoal como
os demais gêneros epistolares encontram-se ainda em uso na nossa cultura,
cuja difusão dá-se tanto na forma postada, como ainda naquela que remonta à
sua origem, a entregue em mãos por terceiros, situação possível para as cartas
pessoais. Nesse quadro, o que não se pode perder de vista é que as práticas
comunicativas epistolares se conjugam e se ambientam em um mesmo
contexto sócio-histórico e cultural em que se efetivam as interações mediadas
por uma avançada tecnologia de comunicação que, sem sombra de dúvida,
vêm se expandindo e facilitando as interações sociais.Apesar do crescimento
da tecnologia, não chega a 10% o contingente de pessoas que têm acesso a
ela (cf.Union Postal Universal).
11
Apesar de não muito conhecido, existe um serviço oferecido pela Empresa
Brasileira de Correios e Telégrafos, chamado de “carta social”, que permite a postagem
de cartas a um custo de R$ 0,01. Esse serviço está disponível para pessoas físicas e a
postagem não deve passar de 10g. Isso possibilita que pessoas de baixa renda possam
enviar correspondência a um custo simbólico. A escrita de cartas também é promovida
pela UPU (Universal Postal Union) através da Letter Writting Competition, uma
competição anual que ocorre desde 1971, com apoio da Unesco, com o intuito de
divulgar a escrita entre os jovens. Para o ano de 2009, o tema será: “Escreva uma carta a
alguém para explicar-lhe como as condições de trabalho decentes podem levar a uma
vida melhor.”
12
Os dados que ora apresentamos desmentem a crença de que a escrita de cartas
está em desuso, embora o incremento das tecnologias de comunicação acenem neste
sentido. Marcuschi (2005) afirma “não são propriamente as tecnologias per se que
11
Dados de 2002, segundo http://www.upu.int/statistics/en/index.shml. Atualmente, calcula-se que o
número de usuários de Internet seja de 1 bilhão, sendo que, destes, apenas 8% encontram-se na América
Latina, em 2007. (Fonte: http://www.internetworlstats.com/)
12
Ver:
http://www.upu.int/letter_writting/po/38th_international_letter_writting_competition_for_young_people_
2009_po.pdf. Não encontramos dados sobre critérios de avaliação das cartas. À luz dos aspectos
sociodiscursivos que consideramos relevantes, a proposta não está bem elaborada, pois não apresenta os
elementos que garantem o processo interlocutivo.
36
originam os gêneros e sim a intensidade dos usos dessas tecnologias e suas
interferências nas atividades comunicativas diárias”. Ainda que não caia em total
desuso, seguramente o gênero sofretransmutações constantes. Por enquanto, segundo
Silva (2002), “continuamos convivendo com práticas comunicativas que fomentam a
história das trocas epistolares e incrementam as relações sociais entre os homens”,
opinião que vem ratificar a de Bazerman (2002), para quem ainda há muito a ser
investigado sobre o gênero.
Souto Maior (2001) apresenta-nos um estudo sobre características específicas
do gênero carta, de acordo com os diversos contextos em que a mesma é usada.
Adotando os critérios contextual, lingüístico e funcional, a autora descreve a carta em
sua variedade, estrutura e uso. Os interlocutores e as relações entre eles estabelecem o
contexto de produção, o critério lingüístico apresenta os aspectos textuais, enquanto o
funcional leva em conta os objetivos da escrita da carta.
De acordo com essa autora (op. cit., p.11), “a carta se constitui em um gênero
com subgêneros”, que conservam alguns elementos estruturais, porém podem ser
agrupadas em determinadas categorias, em consonância com as finalidades do texto.
Souto Maior as denomina de acordo com o domínio discursivo aos quais pertencem. As
cartas cujos domínios discursivos são comerciais (bancos, lojas comerciais) são
denominadas ‘cartas de resposta e de comunicado’; as de âmbito institucional
(Universidades, escolas, livros) são ‘cartas de programa’, circulares’, ‘respostas’ e ‘de
apresentação’; as jornalísticas (jornais, revistas, periódicos) são carta do leitor, do
editor, aos leitores, aberta, propaganda, boas vindas; as do âmbito jurídico (Fórum) são
as ‘cartas de intimação’; publicitárias (editoras, lista telefônica) são ‘cartas de convite’,
‘respostas’, ‘confirmações’, ‘de agradecimento ou pedido; as religiosas (de Igrejas) são
as ‘cartas de convite’ ou ‘de comunicado’; saúde (Clínicas) são ‘carta de programa’, ‘de
comunicado’.
Em seu trabalho, a autora examina fatores pragmáticos, discursivos e sócio-
cognitivos que delimitam as particularidades do gênero carta pessoal, que surgiu por
volta do séc. XVII, passando a fazer parte das atividades de escrita na esfera privada,
com a finalidade de manter ou construir relacionamentos de âmbito pessoal. Ao
contrário das cartas de esfera pública (carta-ofício, circular, memorando, entre outras),
que tendem a veicularem-se em sentido de mão-única, as cartas pessoais pressupõem a
resposta, sendo os participantes ora remetentes, ora destinatários, o que confere ao
gênero uma dinamicidade diferente.
37
A pesquisadora afirma que,
o funcionamento do nero carta pessoal é constituído por movimentos
essencialmente dialógicos que atravessam as práticas comunicativas e se
refletem no processo de textualização da escrita, o que confere a esse gênero
o seu efeito de tipicidade (SILVA, 2002, p.195).
Para Souto Maior (2000, apud Souto Maior, 2004), a função comunicativa, a
forma e o suporte vão influenciar de modo particular a evolução do gênero e contribuem
para aumento das variedades do gênero carta, em face de sua heterogeneidade tipológica
(vários tipos textuais no mesmo gênero) e pela intertextualidade inter-gêneros (um
gênero com função de outro) (MARCUSCHI, 2005, p. 31). Desse modo, com Souto
Maior (2004, p. 45), pode-se dizer que a carta é um gênero epistolar que contém
variedades, formando uma constelação, podendo agregar várias seqüências tipológicas
(MARCUSCHI, 2005, p. 27) e, enquanto unidade funcional da língua, vem marcada por
situações características, como a ausência de contato imediato entre emissor e receptor
(PAREDES SILVA, 1988, p.119).
Encontramos uma classificação em Silveira (2002, p. 106, apud SOUTO
MAIOR 2004, p. 46), que divide o nero em dois blocos o das cartas pessoais e das
comerciais - conforme as características apresentadas. Silveira ressalta que as cartas
pessoais são marcadas por estratégias que visam a garantir a proximidade, afetividade e
envolvimento, enquanto as cartas profissionais priorizam a informatividade
13
com atos
de fala expressivos, através do uso de estratégias argumentativas para influenciar o
interlocutor.
Souto Maior (2004, p. 47) ressalta que o gênero carta “está situado em
contextos comunicativos bem definidos, mas diversificados, o que possibilita uma
enorme variedade na sua forma estrutural”, não obstante o fato de encontrarmos marcas
lingüísticas estereotipadas, como as saudações, no caso das cartas (Prezado cliente,
Querida amiga, entre outras). De acordo com Paredes Silva (1988, p. 76), a estrutura
fixa da carta comporta a seção de contato, o núcleo e a seção de despedida, sendo esses
os elementos que organizam a seqüência e contribuem para a unidade interna do texto.
Silva (2002) ressalta que um dos aspectos que distinguem a carta pessoal da
carta pública define-se com base nos usos da linguagem das esferas pública e privada.
Afirma a autora que,
De um lado, no contexto das atividades sociais de âmbito privado,
inscrevem-se nas práticas comunicativas da carta pessoal; e, de outro, no
13
Grifos da autora.
38
contexto das atividades sociais de âmbito público, encontram-se as práticas
comunicativas de cada um dos gêneros que seguem: carta ofício; carta aberta;
a carta circular; memorando; carta de referência; carta à redação (opinião
sobre matérias publicadas no jornal ou revista, solicitação de
aconselhamento); a carta comercial; a carta de cobrança. Aponto aqui tão-
somente as que regularmente se encontram no cotidiano da sociedade
(SILVA, 2002, p.68).
Quadro 1: Quadro de distinção entre as cartas, proposta por Silva, 2002
CARTAS
PRIVADA PÚBLICA
carta pessoal ofício
Carta íntima (de amor) memorando
carta circular
carta à redação
carta comercial
carta de cobrança
carta aberta
(SILVA, 2002, p. 68)
Essa distinção é importante porque as cartas da esfera pública são produzidas
em diferentes espaços institucionais e demandam do autor a mobilização de diferentes
recursos a fim de engendrar o processo interativo.
Na esfera pública, as interlocuções serão direcionadas para informar, fazer o
outro conhecer algo, fazer o outro agir, conhecer algo, ou exercer controle, cumprindo
uma norma ou lei ou empreendendo uma ação não-verbal. As funções discursivas
refletem as diferentes funções sociais. Ao lado da ideacional (proposicional e
informacional) temos a lógica (argumentativa) marcada pela linguagem direcionada
para a opinião, a persuasão e o convencimento. Geralmente não troca dos papéis
interlocutivos e as relações interativas caracterizam-se pelo trajeto comunicativo de mão
única, com os lugares sociais marcadamente assinalados, que vão imprimir um caráter
simétrico ou assimétrico à interação como, por exemplo, patrão X empregado; cidadão
comum X autoridade pública; chefias X chefias, autoridades públicas X autoridades
públicas.
Silva (2002) pesquisou o funcionamento sociocomunicativo do gênero carta
pessoal, analisando os fatores que contribuem para torná-la uma produção de linguagem
39
que apresenta uma forma particular de interação. Partindo da premissa de que a carta
pessoal é uma produção de linguagem, socialmente situada, que engendra uma forma de
interação particular, marcadamente dialógica pela dinâmica de interação entre o
remetente e o destinatário, a pesquisadora analisa um corpus de 108 cartas, nas quais
explicitamente encontravam-se indícios de comunicação contínua entre os
correspondentes.
Para Silva (2002), a carta pessoal é um gênero textual que circula no domínio
privado e que apresenta aspectos distintos, visando socialmente à construção e
consolidação de relacionamentos entre sujeitos representando diferentes papéis: filho,
pai, mãe, irmão, compadre, comadre, amigo, namorado, marido, esposa e parente. Esses
lugares sociais são notadamente explícitos, discursiva e enunciativamente, pelos
interlocutores, na abertura, no curso e fechamento da carta. A seguir, mostramos quadro
que exemplifica isso:
Quadro 2: Quadro com exemplos de lugares sociais representados
Ex. 1: Estimada irmã, cunhado e sobrinhos
Ex. 2: Um beijo a todos de sua cunhada que lhes quer muito bem
Ex. 3: Estimada mãe e irmã
Ex. 4: Madrinha Marlene
Ex. 5: Para senhora um abração de sua filha que pede benção
Ex. 6: Um abraço ao Dito e a você benção de sua mãe
Ex. 7: Oi colega como vai?
Ex. 8: Oi, Flávia!
Ex. 9: Minha querida amiga
Ex. 10:
Um beijo de sua tia que tiamo muito e que ti adora muito
(SILVA, 2002, p. 99)
Na carta pessoal são trazidos à interlocução discursos do dia-a-dia, deixando
entrever o modo como os participantes da carta comportam-se em relação aos eventos
que compartilham à luz dos propósitos comunicativos que os orientam e das
representações que possuem dos parceiros com quem interagem” (SILVA, 2002, p.
101). Há sempre a possibilidade de inversão de papéis, sendo o remetente o participante
40
engajado no papel de produzir o texto que, na leitura do destinatário, terá (ou não)
completado o circuito comunicativo. Esse esquema de participação confere um caráter
assimétrico entre os participantes
14
, nesse caso circunstancial, que a carta pessoal
sempre pressupõe uma resposta.
A autora concluiu que movimentos dialógicos perpassam a carta pessoal no
processo de escrita. Sua pesquisa enfatizou de modo particular esse subgênero porque,
de acordo com autora, a carta pessoal é ainda pouco estudada e os trabalhos existentes
apenas utilizam textos desse gênero para constituir corpora de pesquisa centrados na
verificação de elementos de natureza lingüística, como ocorre nos estudos de Pinto
(1986, apud, Silva, 2002) e Paredes Silva (1988).
Com Wilson (2001), destacamos que as cartas de reclamação distinguem-se das
outras, predominantemente, por apresentarem enunciadores no papel social de
consumidores e reclamantes, num contexto interacional não-familiar e impessoal, no
qual expressões de afeto não são recomendáveis. O enunciador lança mão de seqüências
predominantemente argumentativas para convencer o destinatário de que a reclamação
faz sentido. O conteúdo informacional concentra-se na exposição de um problema,
utilizando também, de modo complementar, a estrutura narrativa para relatar o
problema, a estrutura descritiva para descrevê-lo, sendo o conteúdo constituído pela
reclamação. A pseudo-neutralidade, para usar o termo cunhado por Wilson (2001, p.
95), representada pelo apagamento ou economia afetiva, não é sem propósito. Segundo
a autora,
a despersonalização, associada à formalidade, desloca o foco do afeto para a
informação ao mesmo tempo que reduz o ato de imposição e o grau de ofensa
caso uma emoção de cunho negativo venha a se manifestar. A opção por uma
atitude de confrontação expressa uma clareza pragmática, padronizada, típica
do discurso empresarial, de cartas comerciais de caráter convencional.
14
Desconsiderando-se aqui os fatores sociais e pessoais que determinam assimetrias, bem como do
controle sobre a produção da escrita. Como exemplo de uma mesma interação que abrange assimetria e
simetria, de acordo com os aspetos relacionados, a autora cita participantes do evento comunicativo da
carta ofício, que podem ocupar posições sociais diferentes ou semelhantes (chefia X chefia; chefia X
empregado), caracterizando a assimetria ou simetria, determinada, nesse caso, pelas posições sociais. Sob
o ponto de vista do controle da escrita, o caráter é assimétrico, que ao destinatário cabe a leitura e a
adoção de uma medida, que pode ser uma contra-resposta escrita, bem como a assunção de procedimento
prático.esse caráter assimétrico, sob o ponto de vista de controle da escrita, ocorre mesmo entre
interagentes com mesmas posições sociais.
41
4.2 O gênero “carta” em contexto de ensino-aprendizagem
Muitos pesquisadores abordaram o nero carta sob a perspectiva do ensino-
apendizagem. Um dos exemplos é o trabalho de pesquisa realizado por Cunha (2005),
que encontrou uma relação entre o estudo da escrita de cartas e o exame vestibular
realizado em Campinas. A produção de uma carta é uma das propostas do vestibular da
UNICAMP (Universidade Estadual de Campinas), mais de 20 anos. A prova
consiste em redigir um texto, a partir de recortes temáticos. O candidato deve escolher
entre redigir um texto de cunho dissertativo, uma narrativa ou uma carta, cujo tema deve
ser o mesmo abordado na coletânea de textos oferecida para a leitura preliminar, e que é
válida para as três propostas de redação.
No exame de 2008, por exemplo, o recorte temático tratava das campanhas
nacionais de saúde pública, que visam ao combate ao tabagismo, ao uso do álcool e
drogas, bem como ao combate do mosquito da dengue ou dos vírus da AIDS e da gripe.
A partir desse recorte, o candidato deveria enviar uma carta para o Ministério da Saúde,
argumentando sobre a manutenção de alguma dessas campanhas, ressaltando seus
aspectos positivos. A expectativa da banca responsável pela correção das redações é de
que o candidato seja capaz de argumentar de maneira convincente em relação à
continuidade de alguma das campanhas. Como a proposta do exame é a escrita de uma
carta, espera-se que o candidato apresente tanto a imagem do autor quanto a do
destinatário, que poderia vir representado como lugar institucional de Ministro da
Saúde, ou particularizada, na figura do então ministro da saúde, José Gomes Temporão.
Exames, como o vestibular, costumam exercer uma influência nos processos de
ensino-aprendizagem, conhecida, em Lingüística Aplicada, como efeito retroativo”. A
influência do exame na prática de ensino de turmas de Ensino Médio foi observada por
Cunha (2005). Em sua pesquisa, a autora analisou um corpus de textos produzidos por
alunos de ano de Ensino Médio, no qual encontrou um conjunto de cartas. Essa
situação se explicava pelo fato de que os textos eram provenientes de uma escola
localizada na região de Campinas
15
e por ser esse um tipo de texto
16
solicitado no
vestibular da UNICAMP. A partir dessa situação, a pesquisadora analisou como essa
proposta de vestibular influenciava os exercícios nas aulas de redação no Ensino Médio.
15
Cidade onde se localiza a UNICAMP.
16
Tipo textual é a nomenclatura utilizada para nomear os gêneros discursivos propostos no exame
vestibular da UNICAMP (cf. Abaurre, Abaurre e Furlan, 1993, apud Cunha, 2005).
42
Em seu estágio, ela propôs aos alunos a produção de cartas argumentativas. Para a
autora, a situação comunicativa estabelecida com o interlocutor facilita a aquisição do
texto argumentativo. De acordo com ela,
A carta argumentativa parecia trilhar um caminho oposto ao das dissertações.
Além de oferecer a possibilidade de argumentação, de posicionamento
explícito no texto, de apelo à ideologia, emoção como dito
anteriormente, postura tão comum ao universo de adolescente e jovens ela
dirige-se a um interlocutor específico, tornando claro para o autor da carta o
ato de comunicação que se estabelece via texto (CUNHA, 2005, p.17).
A pesquisadora concluiu que um fator importante ao se trabalhar com gênero
discursivo em sala de aula é perceber que o mesmo sofre um desdobramento, já que está
inserido num contexto de ensino-aprendizagem, como diz Dolz e Schneuwly (2004, p.
81),
Pelo fato de que o gênero funciona em um outro lugar social, diferente
daquele que foi originado, ele sofre, forçosamente, uma transformação. Ele
não tem mais o mesmo sentido; ele é principalmente, sempre – nós acabamos
de dizê-lo nero a aprender, embora permaneça gênero para comunicar. É
o desdobramento, do qual falamos mais acima, que constitui o fator de
complexificação principal dos neros na escola e de sua relação particular
com as práticas de linguagem.
Cristóvão et al. (2006) apresenta um modelo didático de carta de pedido de
conselho. Primeiramente os autores fazem a apresentação desse subgênero como sendo
o tipo de correspondência encontrada em revistas na seção de perguntas e respostas,
para a qual os leitores escrevem com intuito de obter orientações e conselhos sobre
situações que os afligem. Baseados em observações de perfis de alunos de série,
feitas pelo professor regente da turma, os pesquisadores fazem umas descrição do
gênero e elaboram um modelo didático para o ensino em língua inglesa.
Ao analisarem as cartas, Cristóvão et al. (2006) tinha por objetivo apontar as
possíveis capacidades de linguagem que poderiam ser desenvolvidas na aula de língua
inglesa. A partir de exposição de seus elementos constitutivos, os pesquisadores passam
a explorar o gênero como objeto de ensino em três planos: o da ação de linguagem, o
plano discursivo e o de propriedades lingüístico-discursivas (Bronckart & Dolz, 1999,
apud Cristóvão et al., 2006).
Os autores concluem afirmando que
Acreditamos que a opção por organizar o ensino em torno de gêneros textuais
pode propiciar uma ação social efetiva, aproximando o professor das
necessidades específicas dos alunos. Para isso, o professor pode servir-se das
análises de gêneros textuais disseminados, como a apresentada neste artigo.
Com base nesse modelo, professores de língua inglesa podem partir para a
elaboração de conjuntos de atividades as quais os pesquisadores do grupo de
didática de línguas da Universidade de Genebra denominam “seqüências
didáticas” (Dolz & Schneuwly, 1998), que são um instrumental constituído
por um conjunto de atividades voltadas para os objetivos estabelecidos no
43
projeto pedagógico. Em nossa opinião, por meio do ensino das características
típicas de cartas de pedidos de conselho ora descritas, o aprendiz pode ter
melhores condições para lidar com a compreensão e produção de textos desse
gênero de forma mais consciente, crítica e eficaz (CRISTÓVÃO ET ALLI,
2006, p.74).
Melo (2006) verificou aspectos referentes ao conteúdo temático e à construção
composicional de cartas produzidas por alunos de ensino fundamental da Educação de
Jovens e Adultos de uma escola municipal de Teresina, no estado do Piauí. Além dos
aspectos acima citados, a pesquisadora analisou como o livro didático e a proposta
curricular trata o ensino de gêneros textuais. Melo verificou que os usos que os alunos
fazem dos elementos do gênero não estão necessariamente atrelados às séries cursadas.
Embora não fosse objeto da pesquisa, dados anteriores, encontrados nos trabalhos de
Melo (2003 e 2005, apud, Melo, 2006) dão pistas de que as experiências de letramento é
que têm relação com os usos dos alunos.
Outro achado da pesquisadora revela que a apropriação de elementos da
construção composicional ocorre de modo mais acelerado para alguns alunos e que, na
prática, o trabalho escolar com o gênero deve ser mais sistemático no que diz respeito
aos aspectos discursivos/enunciativos. Os dados também revelaram que as propostas
curriculares já apresentavam uma tendência teórico-metodológica voltada para uma
visão sociointeracionista de linguagem. Por outro lado, os livros didáticos,
principalmente os voltados para as séries finais de EJA, apresentavam problemas, dado
esse creditado à falta de política de avaliação de livro didático destinado à EJA.
Marra (2006) investigou quais os gêneros discursivos circulavam socialmente
em turmas de EJA e verificou a aplicabilidade dos mesmos como objetos de ensino. Os
resultados revelaram que não existem gêneros específicos para serem estudados por essa
modalidade de ensino; o professor deve saber é quais competências e habilidades
pretende desenvolver ou ampliar. Segundo as considerações tecidas pela pesquisadora,
a definição de objetivos claros é de extrema importância, haja vista que não
basta restringir o ensino ao cotidiano do aluno, mas deve-se, sobremaneira,
criar novas situações de linguagem para que o educando possa ampliar suas
competências e transitar adequadamente por entre as diversas esferas sociais.
A escolha do gênero deve considerar os objetivos, o lugar social e os papéis
dos participantes nos processos de interlocução (MARRA, 2006, p. 22).
Um dado importante revelado pela pesquisa é o de que a carta era citada como
uma das práticas de escrita dos alunos. No entanto, eles não consideravam que essa
prática tivesse relação com o desenvolvimento de habilidade ou capacidades de leitura e
escrita. Em vista disso, muitos alunos voltam à escola carregando mitos relacionados ao
Ensino de Língua Materna. Diz a pesquisadora,
44
Noutros termos, os alunos desconsideram que ao produzirem uma lista de
compras, escreverem um bilhete ou um diário estaria desenvolvendo
habilidades ou capacidades de leitura e escrita. O que percebemos com certa
facilidade é que em nossa sociedade privilegiam-se algumas práticas (ou
alguns gêneros) em detrimento de outras. Assim, o aluno vai à escola
portando diversos mitos relacionados à Língua Materna e demonstra grande
estranhamento quando exposto às práticas reais de uso da língua (MARRA,
2006, p. 51).
Concordamos com a conclusão da pesquisadora no que diz respeito ao privilégio
de que gozam algumas práticas de linguagem, e com o fato de que os alunos esperam
vê-las predominar no processo de ensino-aprendizagem. Na minha prática de sala de
aula, muitas vezes os alunos questionavam quando eram expostos à leitura de textos
não-literários. Manuais, gráficos, demonstrativos e contratos não são considerados
“leitura” e os alunos consideram-se suficientemente familiarizados com esses textos,
não necessitando “estudar” para aprender a interpretá-los. Marra constata,
Percebemos a título de exemplificação, que a leitura de notas fiscais é
realizada por poucos alunos, mesmo sendo algo extremamente comum em
nosso dia-a-dia. Evidencia-se também que outras práticas habituais não são
executadas rotineiramente. Manuais de Instruções e Bulas são postos de lado,
na maior parte das vezes (MARRA, 2006, p. 52).
Contraditoriamente, quando questionados sobre suas dificuldades de leitura/escrita, os
alunos mencionaram problemas na produção de cartas, bilhetes ou mesmo em relação à
leitura de cartazes, listas de compras, entre outros, conforme os dados da pesquisa.
Baseada nas informações obtidas por meio de questionários, junto aos alunos de
duas instituições municipais e uma federal, a pesquisadora descreve uma proposta de
agrupamento didático para ser aplicada nas séries finais de EJA, sem deixar de salientar
que qualquer proposta dessa natureza deve sempre ser adaptada à realidade dos alunos.
Para testar a aplicabilidade do ensino baseado em gêneros discursivos, a pesquisadora
elaborou uma seqüência didática, que iniciava com uma oficina sobre o gênero Receita.
Ao iniciar seu trabalho com os alunos, a pesquisadora considerou que o agrupamento
elaborado por Dolz & Schneuwly, bem como os apresentados pelos PCNs – Parâmetros
Curriculares Nacionais – por ser destinado a alunos do ensino regular, deveria ser
adaptado às turmas de EJA.
Durante o trabalho com o gênero Receita, a pesquisadora pôde perceber o
desinteresse dos alunos. Interessante notar que a opção pelo trabalho com as seqüências
permite ao professor contornar os problemas encontrados e readaptar o trabalho. Nesse
caso específico, a seqüência foi adaptada, adequando os objetivos a serem atingidos nas
produções finais às expectativas dos alunos em relação ao gênero textual proposto. A
pesquisadora desenvolveu então uma seqüência que incluía discussões sobre nutrição,
45
economia doméstica, substituições alimentares, medidas e equivalências, envolvendo as
demais disciplinas no projeto. Diz a pesquisadora,
Graças à opção pelo trabalho com seqüências didáticas foi possível contornar
os problemas identificados. Isso porque “as seqüências didáticas apresentam
uma grande variedade de atividades que devem ser selecionadas, adaptadas e
transformadas em função da necessidade dos alunos, dos momentos
escolhidos para o trabalho(...)”(Dolz, Noverraz e Schneuwly, 2004, p. 111,
apud Marra, 2006, p. 74).
Numa análise pouco apurada, os resultados da aplicação da primeira seqüência
com o gênero Receita poderiam levar a crer que, de fato, os estudantes jovens e adultos
necessitariam de uma nova proposta curricular. A respeito disso a pesquisadora diz,
Diante das análises das oficinas iniciais, questionamos se a elaboração de
uma nova proposta, pressupondo que o ensino deve ser diferenciado para a
EJA, não seria uma nova forma de exclusão ou até mesmo uma forma de
desrespeito às pluralidades culturais existentes, afinal uma proposta que
contemple apenas competências e habilidades do mercado de trabalho seria
reduzir o ensino a uma categoria meramente profissionalizante, negando ao
aluno a oportunidade de transitar por outras esferas sociais (MARRA, 2006,
p. 75).
A pesquisadora chegou a um questionamento importante, que também nos
ocorreu: pressupor que o ensino deva ser diferenciado para EJA não seria uma nova
forma de exclusão ou mesmo de desrespeito às pluralidades culturais existentes?
Concordamos que não se trata de propor um currículo diferenciado ou mesmo de
privilegiar alguns gêneros textuais. Pode-se trabalhar um mesmo gênero em diferentes
séries ou modalidades de ensino, desde que a proposta esteja adequada às competências
a serem desenvolvidas.
A pesquisadora conclui dizendo que,
O sucesso na realização das atividades demonstrou que não existem gêneros
específicos para grupos de alunos específicos, afinal, as habilidades
lingüísticas são as mesmas, independente de idade. Dentro desta perspectiva,
elaborar uma proposta somente para alunos da EJA nos pareceu excludente,
como se atestássemos a incapacidade dos alunos em desenvolverem as
habilidades e competências requeridas dos alunos do ensino regular
(MARRA, 2006, p. 82).
Haeser (2005) apresenta-nos uma proposta de ensino-aprendizagem de leitura no
Ensino Médio, a partir do gênero “carta do leitor”, escolhido por ser “passível de ser
abordada com alunos de Ensino Médio”. (HAESER, 2005, p. 100). Para tal, a
pesquisadora procurou o Jornal de Santa Catarina para obter maiores informações sobre
o gênero. Aqui, novamente, temos dados que contradizem a idéia de que a carta é um
gênero em desuso. Segundo Haeser, e de acordo com dados fornecidos pelo jornal, é
grande o número de correspondências recebidas. O envio eletrônico predomina sobre o
envio pelo correio, sendo que esse dado está atrelado ao perfil socioeconômico do leitor.
46
Carta do leitor também é o objeto de pesquisa de Silva ( 2002), que analisou as
cartas enviadas a diferentes jornais (Jornal da Paraíba e Jornal do Comércio) que
pertencem a diferentes contextos de práticas de letramento: o primeiro oriundo de
Campina Grande, onde as práticas de letramento são mais reduzidas; o outro, oriundo de
Recife, cidade com práticas de letramento mais presentes. A partir da análise das cartas
enviadas e de questionários respondidos pelos alunos, a pesquisadora introduziu uma
oficina de produção escrita de cartas, tarefa levada a cabo por estudantes de série de
uma escola da rede pública de Campina Grande. Uma das conclusões a que chegou a
pesquisadora é que
a introdução da carta do leitor como objeto de ensino/aprendizagem da
produção escrita na escola, a partir do estudo de uma das subclasses (a das
cartas críticas), favoreceu o desenvolvimento da postura crítica dos alunos,
mediante o uso que fizeram das capacidades de sustentação e refutação de
pontos de vista sobre diferentes assuntos sociais (SILVA, 2002, p.110).
O subgênero carta de solicitação foi utilizado na experiência pedagógica
realizada por Cunha (2004), que procurava comprovar a hipótese de que é viável e
necessário o trabalho com gêneros mais complexos logo nas primeiras séries do ensino
fundamental, mostrando a importância do ensino sistematizado do tipo argumentativo já
nessa fase. Com base nas diretrizes dos PCNs (Parâmetros Curriculares Nacionais da
Língua Portuguesa), a pesquisadora conduziu uma experiência com alunos do anos
do ciclo do fundamental, o equivalente à antiga série primária. Após um período
de observação, no qual pôde constatar a predominância do tipo narrativo e algumas
ocorrências de produção do tipo descritivo, a pesquisadora elaborou uma proposta de
trabalho com o gênero carta de solicitação, para introduzir o tipo argumentativo, até
então desconhecido pelos alunos.
Cunha introduziu a atividade partindo da produção de carta pessoal, para traçar
um paralelo com a carta de solicitação. A primeira produção de carta de solicitação
tinha por objetivo reivindicar melhorias na escola, e após uma breve discussão sobre a
carta, os alunos concluíram que o destinatário deveria ser a diretora da escola. Na
segunda proposta, o objetivo da pesquisadora era verificar a intuição dos alunos quanto
aos aspectos mais formais do gênero. Para tal, estabeleceu um destinatário social e
espacialmente mais distante: o Governador do Distrito Federal, para o qual os alunos
deveriam fazer as reivindicações, que eram arroladas oralmente e relacionadas no
quadro pela professora, sempre no início das atividades.
Ainda que algumas produções textuais apresentassem traços do discurso
persuasivo, mais apelativo e emocional, em todas elas (22, no total) a pesquisadora
47
verificou a predominância do tipo argumentativo. Tomando por base os aspectos
estruturadores dos gêneros, propostos por Bakhtin, quais sejam o conteúdo, as formas
de organização textual e escolha dos recursos lingüísticos, Cunha analisou os textos
produzidos e verificou que, em relação a esses aspectos a proposta foi realizada
satisfatoriamente. Os problemas verificados foram as marcas de oralidade, fato
justificável considerando-se a faixa etária e inexperiência com produção de textos mais
elaborados. Apesar disso, a experiência mostra que não razões científicas ou mesmo
pedagógicas para trabalhar com o tipo argumentativo apenas nas séries finais do ensino
fundamental.
Souto Maior (2004) realizou seu estudo com o objetivo de analisar como o
gênero carta é abordado em livros didáticos de português. A pesquisadora descreve o
modo como o gênero é apresentado nas coleções, analisa as propostas de produção
escrita, procurando verificar se as atividades estão voltadas para práticas reais da
sociedade ou apenas para objetivos escolares. Além disso, propõe alternativas para o
ensino-aprendizagem do gênero. Observando um corpus de 20 atividades apresentadas
em quatro coleções de livros didáticos de a séries do Ensino Fundamental,
adotados em grandes escolas particulares e públicas da rede de ensino de Campina
Grande, na Paraíba, a autora analisa as condições de produção, observando aspectos
como intencionalidade da proposta, interlocutores definidos implícita ou explicitamente,
lugar social e conteúdo temático.
Objetivando aproximar a situação de escrita de natureza escolar à realização
social da carta em práticas efetivas de uso, a pesquisadora propõe uma adaptação em
uma das atividades propostas, alterando a produção de carta-resposta para carta-aberta.
A funcionalidade da carta-resposta se destina a oferecer um feedback sobre compra e
venda de produtos, fornecer dados pessoais e/ou sugestões sobre produtos ou
atendimentos. A proposta do livro é uma resposta a uma reclamação e a pesquisadora
ressalta que há diferença entre carta-resposta e carta pessoal que contenha uma resposta.
Após uma discussão preliminar sobre o texto Recado ao senhor 903, de Rubem
Braga, e tendo por base textos complementares sobre Leis Federais e conteúdos de
filosofia que versam a respeito de ética e cidadania, é solicitada a elaboração de uma
carta aberta aos inquilinos, com o objetivo de esclarecer sobre direitos e deveres de
quem mora em condomínios. O aluno é convidado a lembrar-se de que acaba de receber
uma carta de um vizinho reclamando do barulho. A proposta da pesquisadora apresenta
48
as quatro categorias de condições de produção: objetivo de produção, interlocutores
definidos, lugar de produção e conteúdo temático.
Souto Maior concluiu que o ensino desse gênero não contempla todas as
condições de produção da carta e não define as práticas sociais de possível circulação do
texto, atingindo, desse modo, objetivos meramente escolares. Ao sugerir uma proposta
alternativa, a pesquisadora teve por objetivo demonstrar que, com um planejamento
sistemático voltado à realidade do aluno é “possível estimular a produção de um gênero
que, de fato, venha a ter uma circulação social, aproveitando as diversas situações
cotidianas como motivação para uma prática escrita, além de contribuir para a interação
comunicativa com diversos leitores” (SOUTO MAIOR, 2004, p. 101).
Gomes (2002) analisou a construção do gênero carta por crianças da
alfabetização a série do ensino fundamental, observando a influência imediata que a
exposição a um modelo exercia na formulação do esquema textual. Com base em um
corpus de 208 textos escritos por 104 sujeitos, ele analisou os dados obtidos e concluiu
que as crianças de alfabetização, sem influencia de um modelo, elaboram um esquema
incipiente de carta, na qual identificam o interlocutor e realizam um propósito (função).
As crianças de e séries elaboram um esquema mais completo. A partir do modelo,
as crianças de alfabetização identificam o interlocutor, emitem opinião, apresentam
sugestões e sinalizam o “despedir-se” e “identificar-se”. As de série identificam o
interlocutor, emitem opiniões, apresentam sugestões, despedem-se e identificam-se.
as crianças da série, além de apresentarem todos os dados do esquema, ainda situam-
se no tempo e no espaço. O pesquisador concluiu ainda que as produções com modelo
geravam movimentos de recuo (com inibições de função, por exemplo, o “despedir-se”).
Além disso, uma tendência com o avançar das séries, a um espaço maior do
interlocutor, através de referenciais verbais, pronominais ou adverbiais de 2ª pessoa.
Essas pesquisas que tiveram como tema o estudo do gênero e, de modo
particular, as que se ocuparam do mesmo no contexto escolar, foram importantes para
uma maior compreensão dos processos que ocorreram na aplicação da seqüência que eu
elaborei. É sobre ela que passo a tecer considerações, justificando a escolha desse
gênero para ensino-aprendizagem nas turmas de EJA.
49
5. METODOLOGIA
Neste capítulo farei uma pequena narrativa dos acontecimentos que me levaram
à opção de desenvolver uma seqüência didática em uma turma de EJA, bem como
apresento os métodos utilizados para a geração de dados e os motivos pelos quais
realizei uma pesquisa-ação. Explico com mais detalhes a opção pelo gênero textual
carta e descrevo a elaboração da seqüência teoricamente embasada em Schneuwly &
Dolz (2004).
5.1 O ensino-aprendizagem do gênero carta: delineando um projeto
Como professora de turmas de jovens e adultos, pude observar que os alunos
dessa modalidade de ensino tinham maior resistência quando eram solicitadas
atividades de produção escrita. Sendo a atividade válida ou não, a verdade é que os
alunos do ensino regular admitem com maior facilidade o fato de que as atividades
solicitadas devem ser feitas”. Nas turmas de EJA, os alunos deixam transparecer seu
desagrado e até mesmo saem da sala de aula durante as atividades.
Quando comecei a lecionar, via com grande inquietação o fato de que muitos
professores não se preocupavam com a adaptação das tarefas para um público mais
velho, trazendo, muitas vezes, tarefas apropriadas para crianças. Além disso, mais
especificamente no caso da produção textual, não me agradavam os planejamentos
elaborados, no qual constavam conteúdos programáticos que privilegiavam o uso de
tipos textuais, não trazendo uma abordagem prática na qual se estudassem os gêneros
textuais que usamos cotidianamente.
Quando eu procurava saber o motivo que levava os alunos a não gostarem de
escrever, muitos diziam que tinham vergonha dos erros; outros, que as atividades de
escrita eram desnecessárias. Outros ainda falavam que não gostavam porque receavam
que a leitura dos textos fosse feita por outras pessoas. De acordo com eles, muitos
professores traziam propostas de escrita de exames vestibulares
17
, consideradas muito
difíceis.
17
No Rio Grande do Sul, há predominância do tipo dissertativo nas provas de exames vestibulares.
50
Para contornar tal situação, eu sempre solicitava que os alunos escrevessem uma
carta de apresentação para mim. Essa proposta era sempre aceita, mediante a promessa
de que somente eu seria a leitora do texto. Os estudantes podiam escrever o que
quisessem, mas eu sempre fazia algumas solicitações como, por exemplo, eles deveriam
escrever sobre o que faziam, se trabalhavam ou apenas estudavam, se eram casados ou
não, enfim, perguntas que pudessem me auxiliar no traçado de um “perfilda turma.
Geralmente, os textos apresentavam-se longos, numa demonstração clara de que eles
não só gostavam de escrever, como também tinham necessidade de se fazerem conhecer
pelo professor. Muitas vezes eles deixavam cartas para mim, mesmo quando eu não as
solicitava, demonstrando que percebiam que eu de fato lia os textos. De acordo com
Simões, o interesse dos professores faz diferença. Diz ela,
Em nossa atividade responsiva, sejamos leitores interessados, que se dirigem
ao autor, e não principalmente ou, muito menos, somente à sua gramática,
(SIMÕES, 2008, p. 201).
Como vimos no início deste trabalho, um dos objetivos a serem alcançados na
EJA é a melhoria da capacidade de produção em língua escrita. Nesse sentido, o
engajamento dos alunos nesta atividade sempre me pareceu extremamente significativo.
Analisando suas características à luz dos aspectos teóricos discutidos ao longo da
especialização e do mestrado, as razões para o sucesso da atividade ficaram evidentes
para mim como professora. Simões diz que o diálogo com o leitor é que constitui a
escrita como prática social e é isso que precisa ser transformado em proposta didática,
(SIMÕES, 2008).
Abaixo, exemplifico com dois textos:
CARTA 1 – ALUNA Fábia Sandrine
Como sou!
Bom eu me chamo F., tenho 15 anos e moro aqui na Feitoria Cohab, estudo no Dilza Flores e adoro os
professores da escola. Agora eu vou falar de mim eu sou uma pessoa que adora rir, brincar e eu amo fazer
fulia principalmente na escola, do lado dos meus amigos, mais tudo na hora certa tudo tem seu tempo sou
uma pessoa legal aseito brincadeiras que não acabe me maguando, eu tinha pavor de estudo preferia
correr rua do que ir para a escola mais de pois que eu me mudei pra prefiro ir a escola eu vi que sem o
estudo eu não séria nada, minha matéria preferida é matemática e física. Até que eu gosto um pouco de
português mas sou pescima eu troco as letras ou fico em dúvida tem coisas que se eu falo rápido eu erro e
se eu soletro ou falo devagar eu acerto as vezes falo errado mais escrevo certo assim sou eu.
51
CARTA 2 – ALUNA Liane
Querida Karin
Agora na volta das férias queria te dizer que eu estava com muita saudade de todos. Tem sido muito
difício continuar os estudos mais parar é pior. Em casa o serviço da gente não tem muita graça aqui eu me
encontro com as amigas e aprendo. A Dienifer arrumou um serviço e ta fazendo informática no centro.
Agora ela me ajudando fica mais fácil ela sempre quer comprar umas coisinhas pra ela e o meu dinheiro
não da pra tudo. O pai dela resolveu ajudar a pagar o curso de computador pra ela. Ele pegou um serviço
e ela ta contente por que ele disse que vai tirar um tênis novo pra ela no fim do mês. Ele podendo ele
ajuda. Ela ta vendo se arruma o ensino médio no Rio Branco, por que aqui em Viamão ela vai chegar
atrasada na aula por causa da hora que ela solta do serviço. Mandou um beijo pra “sora do coração”.tua
encomenda da avon deixei lá no cafezinho. beijão
D.
Podemos notar que o primeiro texto traz as características da aluna, que ela
considera serem relevantes de serem comentadas. É um primeiro texto, o que eu chamo
de “carta de apresentação”. O segundo texto apresenta mais as características da carta,
com o cabeçalho e a despedida. A aluna quer contar sobre sua vida, propósito e
interlocutor aparecem explícitos, configurando uma prática social efetiva com uso da
escrita.
A interpretação que os alunos deram para a atividade solicitada, ou seja, a escrita
desse texto inicial fez com que eu refletisse sobre essa atividade de maneira mais detida,
inclusive porque se repetiu em mais de um município/contexto de ensino (Viamão e São
Leopoldo). Quando eu questionava sobre a motivação que os levavam a escrever as
cartas, muitos diziam gostar por causa das “respostas”, fazendo referência aos
“pequenos bilhetes” que eu escrevia quando entregava os textos. Nesses “bilhetes”, nas
pequenas respostas, eles podiam perceber que “de fato alguém havia lido”, não era uma
mera atividade. O interlocutor real fazia a diferença, funcionando como uma motivação.
Tendo “um leitor potencial”, os alunos mobilizavam suas escolhas em termos de “o que
dizer” e “como dizer”.
Apesar da interlocução estabelecida e da relevância do fato, não me ocorreu que
isso poderia servir para uma abordagem mais específica, que os textos pudessem servir
de referência para minhas aulas, ajudando a identificar o que poderia ser visto em
termos de análise lingüística. Por causa da minha falta de experiência, o conhecimento
teórico adquirido durante a graduação parecia não fazer muito sentido. Na verdade não
me sentia segura como professora no ensino fundamental regular, mas minha
52
insatisfação cresceu ao ver que meu despreparo para ensinar era ainda maior quando me
via diante das turmas heterogêneas da EJA. Na época em que eu estudei na faculdade, a
modalidade de ensino de EJA ainda não existia e não era oferecida como opção de
estágio, tampouco se estudava sobre suas peculiaridades. Somente durante a
especialização, a abordagem teórica conhecida, aliada aos novos conhecimentos
adquiridos, passou a fazer algum sentido porque eu atuava como professora. Estudar
mais profundamente a concepção sociointeracionista de linguagem dos autores que
citei ao longo deste trabalho e, de modo especial, conhecer a seqüência didática
apresentada pelos autores Schneuwly & Dolz foram fundamentais para aliar o que havia
aprendido à minha prática de ensino.
Na pesquisa bibliográfica que realizei, pude perceber que o meu trabalho poderia
apresentar uma abordagem diferenciada. O gênero textual apresentado fazia parte do
repertório dos alunos, a escrita de carta era uma prática social de letramento que fazia
sentido para eles e por esse motivo considerei importante utilizá-la para o planejamento
da proposta de produção textual. E aqui, novamente cito Simões,
As atividades escolares de produção textual e leitura não podem voltar as
costas para os gêneros relevantes a essas práticas de que os alunos já
participam, sob pena de perder a oportunidade de trazer para a sala de aula
um conhecimento da ordem do vivido que é precioso para a compreensão do
uso da linguagem como prática social plena (SIMÕES, 2008, p. 202).
A proposta então pretendeu ir ao encontro do que sugere a Proposta Curricular para o
segmento de EJA. Essa proposta curricular está em consonância com os Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCNs), respeitando as especificidades dos alunos da Educação
de Jovens e Adultos. O objetivo era justamente contrapor a idéia de que os conteúdos
devam ser ensinados porque um dia eles serão úteis, “o sentido e o significado da
aprendizagem precisam estar evidenciados durante toda a escolaridade” ( p. 301).
De acordo com a Proposta Curricular para a Educação de Jovens e Adultos – 2º
segmento, o objetivo apresentado para a Língua Portuguesa é a capacitação do aluno
para utilizar a linguagem nas diferentes instâncias de atuação,
No processo de ensino e aprendizagem, espera-se que o aluno amplie o
domínio ativo do discurso nas diversas situações comunicativas, sobretudo
nas instâncias públicas de uso da linguagem, de modo a possibilitar sua
inserção efetiva no mundo da escrita, ampliando suas possibilidades de
aprendizagem dos conteúdos escolares e, principalmente, suas possibilidades
de participação social no exercício da cidadania (p. 18).
E, também,
Os conteúdos devem ser selecionados em nome de um trabalho que vise,
principalmente, proporcionar experiências com o uso e a reflexão da
linguagem em situações comunicativas. Isso significa que nenhum tipo de
53
conteúdo tem o fim em si mesmo, pois o mais importante é transformá-lo,
por meio da ação sobre ele, em um instrumento para o aluno. Para que isso
aconteça, é decisivo vincular o que fazer ao como fazer
18
(p.22).
Tendo em mente os objetivos a serem alcançados e a concepção de linguagem
para ancorar a proposta de intervenção didática, elaborei uma seqüência didática para o
ensino-aprendizagem do gênero “carta pessoal” como proposta inicial na direção de
subgêneros mais complexos, como a “carta do leitor” e a “carta de reclamação”.
A partir desse interesse, comecei a pensar em algo que levasse os alunos levasse
a desenvolverem o interesse pela escrita, pois a maioria dos alunos de EJA demonstra
ser essa uma das dificuldades encontradas na vida prática. A necessidade de diversificar
as práticas de letramento é uma das razões que levam esses alunos a voltarem para os
bancos escolares. Questionados sobre suas dificuldades, os alunos relatavam problemas
para exercerem plenamente a sua cidadania nas práticas sócio-culturais que envolviam a
escrita, seja no preenchimento de fichas de pedido de emprego, escrita de cartas de
apresentação e manifestação de opinião.
Num estudo que analisou as mudanças na concepção de escrita de jovens e
adultos não escolarizados e com baixo letramento Terzi & Scavassa (2005) concluíram
que práticas variadas de letramento, em curtos espaços de tempo, trazem resultados
bastante positivos. As pesquisadoras estudaram os alfabetizandos no seu processo de
familiarização com a escrita ao mesmo tempo em que eram alfabetizados, num período
“de imersão” de 5 meses, num processo de letramento crítico, diferente do natural, no
qual as práticas são oferecidas paulatinamente na comunidade a partir de um fator
gerador, enquanto nos cursos elas são apresentadas com fins pedagógicos.
Os tópicos da análise feita pelas pesquisadoras baseavam-se na relevância
atribuída pelos alunos às práticas de letramento. Elas puderam perceber três tipos de
relevância: escrita como meio de resolver problemas de trabalho, escrita como meio de
evitar discriminação e como meio de satisfação pessoal, e escrita como meio de
participação social. Concluem elas dizendo que,
(...) a escrita como meio de maior participação na família, na comunidade e
na igreja, mostra o cidadão em busca de aceitação social e respeito.
Considerando-se essas diferentes relevâncias, podemos, então, afirmar que o
desenvolvimento do letramento é fortemente influenciado pela construção da
cidadania, ao mesmo tempo em que a influencia (TERZI &SCAVASSA,
2005).
Norteada pelo interesse em desenvolver um trabalho com a escrita, que pudesse
ressignificar a relação dos alunos com a cultura letrada, elaborei a seqüência didática
18
Grifo no original.
54
para ir ao encontro dos interesses de meus alunos e despertar uma maior motivação
relacionada com as atividades propostas. Tornar acessível ao aluno o maior número
possível de textos que circulam socialmente, como postulam os PCNs, é relevante se
os textos forem explorados em sua plenitude e de acordo com interesses reais, a partir
de necessidades verdadeiras. Como eu não poderia contemplar toda a gama de gêneros
textuais relacionados com práticas de leitura e escrita com as quais os alunos se
deparam no cotidiano, escolhi o gênero epistolar para meu experimento didático, porque
ele permite explorar os diferentes tipos textuais
19
, além de proporcionar aos alunos a
experimentação de uma escrita com uma função social, partindo de uma necessidade
deles. Ocupo-me, a seguir, de relatar essa experiência.
5.2 Natureza da pesquisa: optando pela pesquisa-ação
A pesquisa-ação foi a vertente pela qual optamos na realização deste trabalho.
Como seu foco não enfatiza quantificações e se caracteriza pela intervenção na prática,
essa metodologia permite ao professor colocar-se como pesquisador interessado em
averiguar e refletir sobre os problemas de sua prática, visando a uma mudança. Segundo
Thiollent (1985), três aspectos devem ser considerados nesse tipo de pesquisa: a
resolução dos problemas, a tomada de consciência e a produção de conhecimento. De
acordo com o autor, na pesquisa-ação existe uma ação problemática por parte das
pessoas ou grupos implicados nos problemas sob observação e que merecem
investigação a ser elaborada e conduzida.
Para o trabalho de investigação e ação, os dados reunidos foram os seguintes:
questionário, notas de campo, estudos de cartas e a produção de cartas dos alunos. Além
disso, a observação participante foi fundamental em diversos momentos, o que
culminou em uma interação efetiva com os alunos que compunham a situação
investigada e que trato com maiores detalhes na análise dos dados, mais adiante. Tendo
em vista uma transformação social, norteando-se na pesquisa-ação, esta investigação de
caráter qualitativo caracterizou-se como uma intervenção nas atividades de ensino de
escrita na escola, através da prática de leitura e de produção do gênero carta.
19
Tipo textual é uma seqüência teoricamente definida pela natureza lingüística de sua composição e são
basicamente seis: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção. (MARCUSCHI, 2005, p. 22)
55
5.2.1 Geração de dados
Para esta pesquisa os dados foram gerados a partir das anotações do diário de
campo. A partir do plano de aula, eu desenvolvia as atividades ao mesmo tempo em que
fazia gravações e anotações sobre o que ocorria na sala de aula. Os dados do diário de
campo eram então transcritos no final do dia, na volta da aula, de modo que eu pudesse
obter uma descrição detalhada do que havia acontecido de fato e para poder confrontar
com o que previra no plano de aula. Além disso, eu anotava observações sobre os
acontecimentos e readaptava o planejamento da aula seguinte, com base nas anotações
sobre o andamento das aulas. Deixei para analisar as gravações no final do
desenvolvimento da seqüência e não pude utilizar melhor esse material pela baixa
qualidade da gravação.
Além disso, analisei toda a documentação da EJA disponibilizada pela escola.
Apesar de ter lecionado na escola na qual realizei a pesquisa, não havia mais o vínculo
empregatício, mas eu participei das reuniões e de todo o processo avaliativo do final do
ano. Tive acesso a toda a documentação da turma na qual desenvolvi a pesquisa. Outros
dados que serviram para a análise dos resultados foram o questionário respondido pelos
alunos e entrevistas.
5.2.2 Schneuwly & Dolz: a seqüência didática
Teoricamente, interessa-nos a tese de que, para Schneuwly, o gênero é um
instrumento. Diz ele:
visivelmente um sujeito, o locutor-enunciador, que age discursivamente
(falar/escrever), numa situação definida por uma série de parâmetros, com a
ajuda de um instrumento que aqui é um nero, um instrumento semiótico
complexo, isto é, uma forma de linguagem prescritiva, que permite, a um
tempo, a produção e a compreensão de textos (SCHNEUWLY, 2004, p. 26-
27).
Para Schneuwly, e de acordo com a concepção bakhtiniana, o gênero é
escolhido a partir dos parâmetros da situação que guiam a ação; ou seja, percebe-se
claramente uma relação meio-fim, que é a estrutura de base da atividade mediada. Posto
de outra forma, isso significa que, em uma ação de linguagem, o gênero é o instrumento
mediador utilizado para atingir determinado fim.
As ações de linguagem definem os gêneros que funcionarão como instrumento,
ao mesmo tempo em que as ações são concebidas a partir da disponibilidade dos
56
gêneros. Diz Schneuwly: “os gêneros prefiguram as ações de linguagem possíveis: a
existência do romance, seu conhecimento, senão seu controle pelo menos parcial, é a
condição necessária da ação discursiva “escrever um romance”, assim como o
conhecimento e o controle do machado são condições necessárias da ação de ‘cortar
uma árvore’” (SCHNEUWLY, 2004, p. 28).
A partir desses pressupostos podemos pensar em como esse instrumento
mediador, que é o gênero, pode-se transformar em atividades de ensino-aprendizagem.
Para Bakhtin, que, embora não se tenha debruçado sobre questões de ensino, reflete
sobre a aprendizagem da língua, o papel dos gêneros discursivos no aprendizado é o
ponto de partida, pois,
Esses gêneros do discurso nos são dados quase da mesma forma que nos é
dada a língua materna, a qual dominamos livremente até começarmos o
estudo teórico da gramática. A língua materna – sua composição vocabular e
sua estrutura gramatical – não chega ao nosso conhecimento a partir de
dicionários e gramáticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos
ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as
pessoas que nos rodeiam. Nós assimilamos as formas da língua somente nas
formas das enunciações e justamente com essas formas. As formas da língua
e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros do discurso, chegam à
nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente
vinculadas (BAKHTIN, 2003, p. 282-283).
Para o trabalho com os gêneros, Schneuwly e Dolz propõem a elaboração de
seqüências didáticas - módulos de ensino organizados de modo a ensinar de maneira
sistematizada determinadas práticas de linguagem, que são as aquisições acumuladas
pelos grupos sociais ao longo da história.
As capacidades de linguagem são mobilizadas para a produção de um gênero
numa situação específica, e o ensino, na proposta dos autores, organiza-se com base
nesse pressuposto. Para isso, o aprendiz deve adaptar-se às características do contexto,
mobilizar modelos discursivos, dominar operações psicolingüísticas e unidades
lingüísticas (capacidades lingüístico-discursivas) (Schneuwly, 2004).
Para atingir esse desenvolvimento, são propostas intervenções (estratégias de
ensino) de modo a levar os alunos a atingirem a melhoria nos usos de determinado
gênero. Essas estratégias devem ser regidas pelo princípio da legitimidade, ou seja,
devem ser baseadas em saberes teóricos ou elaborados por especialistas. Além disso,
devem ser pertinentes, de acordo com as capacidades dos alunos e de acordo com as
finalidades e objetivos da escola. Tornar coerentes os saberes em função dos objetivos,
nos quais os saberes integrados formam um sentido parcialmente novo, está relacionado
57
com o terceiro princípio que deve reger a elaboração dos modelos didáticos, a
solidarização.
Podemos perceber que, com base nesses princípios, a elaboração da seqüência
deve levar os alunos a agirem como sujeitos na ação de linguagem, sem deixarmos de
nos lembrar que essa meta é atingida através de transformações do gênero de referência
em objeto de ensino-aprendizagem. Para Schneuwly e Dolz, um modelo didático
apresenta duas grandes características: “constitui uma síntese com objetivo prático,
destinada a orientar as intervenções dos professores” e “evidencia as dimensões
ensináveis, com base nas quais diversas seqüências didáticas podem ser concebidas”
(2004, p. 82).
Essas características podem ser percebidas na seqüência didática elaborada
para o ensino-aprendizagem do gênero carta. Em algumas produções o gênero foi
apresentado como uma prática de linguagem autêntica. Ainda assim, a carta foi
apresentada em uma progressão, de acordo com as possibilidades dos aprendizes,
visando ao desenvolvimento da linguagem nos diversificados desdobramentos do
gênero referido, em diferentes níveis de complexidade. Além disso, o procedimento
didático foi constantemente avaliado para orientar as intervenções e refletir sobre o
processo de ensino-aprendizagem. Na próxima seção, apresento o contexto no qual a
intervenção didática foi realizada e os participantes.
5.3. A intervenção pedagógica: utilizando a seqüência didática
O trabalho de intervenção que vai aqui descrito pretendeu aproximar o ensino
do nero a uma prática de uso da linguagem, objetivando a melhoria da produção
textual nas práticas de letramento. A apresentação do gênero através da seqüência
didática teve como propósito instrumentalizar os alunos para produzi-lo na escola, e
também fora dela, bem como de levá-los a desenvolverem capacidades que ultrapassem
o gênero e que fossem transferíveis para outros gêneros. Ainda, na esteira dessa
exposição, julgo oportuno ressaltar que, assim como salientaram Schneuwly e Dolz, o
gênero apresentado, mesmo quando aproximado de situações reais de comunicação,
visava à aprendizagem, tornando-se assim uma variação, um “gênero a aprender” (2004,
p. 81).
Como dito anteriormente, a idéia de elaborar uma seqüência didática surgiu
como resultado de uma interação de linguagem espontânea que ocorreu entre mim e os
58
alunos. Ao escreverem seus primeiros textos, os alunos davam sinais de que tinham
algum conhecimento prévio de como elaborar um texto de cunho pessoal, com um
destinatário específico. A esses textos iniciais eu chamei de “carta pessoal”, ainda que
alguns não se apresentassem em sua forma característica. No entanto, isso não
descaracterizava o texto e sua intencionalidade, pois Marcuschi (2005, p.30) afirma que,
em relação aos gêneros,
Não podemos defini-los mediante certas propriedades que lhe devam ser
necessárias e suficientes. Assim, um nero pode não ter uma determinada
propriedade e ainda continuar sendo aquele gênero. Por exemplo, uma carta
pessoal ainda é uma carta, mesmo que a autora tenha esquecido de assinar o
nome no final e só tenha dito no início: “querida mamãe”.
Na minha pesquisa bibliográfica para esta dissertação, encontrei vários
trabalhos anteriores sobre os processos de ensino-aprendizagem de gêneros discursivos
e, em concordância com esses estudos, assumo alguns princípios que nortearam minha
análise.
Primeiramente, acredito que os alunos já tinham alguma representação do
gênero. Silva (2002) apresenta a noção de gênero como modelo sociocognitivo, que
surge das práticas comunicativas construídas em contextos socialmente situados. Dito
de outro modo, os sujeitos não “engendram” os gêneros a cada nova interação: estes são
acionados a partir do conhecimento que cada um possui do funcionamento textual,
lingüístico, discursivo, semântico-temático e interacional dos gêneros com os quais
tiveram contato, sejam como produtores, ouvintes ou leitores. De acordo com Silva,
baseada em Marcuschi (2000), “ao que tudo indica, existe um saber social comum pelo
qual os falantes se orientam em suas decisões acerca do gênero de texto que estão
produzindo ou devem produzir em cada contexto comunicativo” (SILVA, 2002, P.43).
Não pretendendo ignorar essa “biografia” das interações vividas anteriormente,
e acreditando que o conhecimento de mundo dos meus alunos poderia propiciar uma
situação de ensino-aprendizagem interessante, resolvi aproveitar essas produções
textuais como início da análise, fazendo um levantamento dos problemas apresentados e
questionando quais os aspectos lingüísticos poderiam ser abordados durante o trabalho.
A minha idéia era fazer avançar a produção dos alunos ao longo de um contínuo da
esfera privada para a pública, aprimorando a expressão escrita, saindo do “tom
confessional” que a atividade estava assumindo. Essa prática não é incomum, como
ressalta Guedes (2006, p. 39) “do mesmo modo, a mais recente prática de fazer o aluno
desabafar por escrito, expor os seus problemas numa correspondência privada com o
professor em nada ajuda o aprendizado de português”. Embora a intenção inicial fosse
59
traçar o perfil dos alunos, logo essa escrita assumiu um caráter de correspondência
pessoal. Concordo com Guedes quando diz que,
O pedagógico, diferentemente do psicológico, está no âmbito do público: se
escrever tem, de fato, um valor terapêutico, não é por isso que o professor de
português vai incentivar seu aluno a escrever um diário, cartas, bilhetes,
desabafos; pode fazê-lo para o desenvolvimento do seu artesanato da escrita.
Não é com esses textos, no entanto, que vai encaminhar o trabalho em sala de
aula, mas com textos produzidos para a instância pública da sala de aula, para
serem dados a uma leitura pública, avaliados segundo critérios de
conhecimento público, analisados e discutidos com finalidade de melhorar-
lhes a qualidade e expandir os recursos expressivos de seu autor (GUEDES,
2006, p. 40).
Para fazer transitar os textos do privado para o público, aproveitei a situação de
comunicação criada para elaborar o trabalho com a seqüência didática. Nesse particular,
minha atividade partiu da proposta por Schneuwly & Dolz (2004), pois esses autores
sugerem que o trabalho com os gêneros seja organizado em seqüências didáticas a partir
de uma situação inicial provocada pelo professor, segundo eles, da seguinte maneira,
Após uma apresentação da situação na qual é descrita de maneira
detalhada a tarefa de expressão oral ou escrita que os alunos deverão
realizar, estes elaboram um primeiro texto inicial, oral ou escrito, que
corresponde ao gênero trabalhado; é a primeira produção (DOLZ,
NOVERRAZ & SCHNEUWLY, 2004, p. 98).
Na proposta que ora apresento, a escolha do gênero deu-se em função das
práticas de linguagem dos alunos, ou seja, eles já escreviam cartas, ainda que não
dominassem as maneiras mais complexas, adequadas a diferentes situações de
comunicação na esfera pública. A seguir, apresento em maiores detalhes a proposta de
ensino-aprendizagem do gênero textual carta através de seqüências didáticas, conforme
proposta de Schneuwly & Dolz (2004).
5.4 Elaborando as oficinas
O trabalho de elaboração das oficinas foi realizado no primeiro semestre de
2007. Trabalhei como professora de Língua Portuguesa na escola em que fiz a pesquisa
e pude observar as turmas. Isso me deu a oportunidade de perceber que o formato das
oficinas poderia auxiliar no processo de avaliação. Foi durante o primeiro semestre que
decidi desenvolver a seqüência com o gênero carta.
A seqüência didática apresenta-se em módulos de carta pessoal, carta do leitor
e cartas reclamatórias. Cada oficina organiza-se em 3 etapas distintas. A primeira etapa
60
é a de levantamento dos conhecimentos prévios e de discussão sobre os textos
apresentados para leitura. Nessa primeira parte, os alunos leram vários textos que
apresentavam o subgênero. As discussões nessa etapa visavam a levar os alunos a
conhecerem os elementos do contexto de produção. Neste momento sempre havia a
retomada da oficina anterior, reorganizando as informações novas que pudessem ajudar
na interpretação das novas informações, principalmente para “situar” os alunos ausentes
na oficina anterior. Numa segunda etapa, os alunos faziam o exercício de produção
textual referente ao texto solicitado. Na terceira etapa, os alunos realizavam exercícios
gramaticais e de reescrita.
Depois de elaborar a seqüência didática, procurei a escola para apresentar a
proposta de trabalho. A seguir, apresento o contexto escolar no qual o trabalho foi
realizado.
5.5 A escola e os participantes
A pesquisa foi realizada em uma turma de formandos de EJA, freqüentando a
etapa V
20
, no período noturno, em uma escola da região metropolitana da cidade Porto
Alegre. Optei por fazer a pesquisa nessa escola porque havia trabalhado lá como
professora de Língua Portuguesa no primeiro semestre do mesmo ano. Apesar de
conhecer a maioria dos alunos de todas as etapas, a assiduidade foi um fator decisivo
para minha escolha da turma. Minha preocupação na escolha da turma baseava-se no
fato de que a seqüência didática foi aplicada no final do ano e os alunos costumam faltar
muito nessa época, que a modalidade de ensino de EJA é marcada pela sazonalidade.
Geralmente os cursos são freqüentados por jovens e adultos trabalhadores e também
muitos desempregados. O final de ano costuma apresentar maior índice de empregos, já
que surgem vagas temporárias, com a proximidade das festas de final de ano. Os jovens
e adultos trabalhadores também são afetados pela maior demanda em fábricas e no
comércio local, o que acaba refletindo na falta às aulas e nos atrasos. Como o meu
tempo seria limitado, corria o risco de não conseguir produções textuais suficientes para
a pesquisa.
Apresentei a proposta de pesquisa para todos os professores em uma reunião
que ocorre semanalmente, às segundas-feiras. Como trabalhei com a turma no segundo
20
Etapa V equivale a 8ª série do Ensino Fundamental regular.
61
semestre, precisei ocupar períodos de outras disciplinas, que isonomia de carga
horária e o tempo destinado à disciplina de Língua Portuguesa – dois períodos semanais
não era suficiente para o número de oficinas que eu havia planejado. Além disso, o
período final do ano costuma ser marcado pela realização de vários eventos que
poderiam interferir no andamento dos trabalhos.
Todos os professores concordaram em ceder seus períodos e ficou arranjado
que eu desenvolveria o projeto das oficinas nos períodos de Língua Portuguesa e
também durante outros períodos. Como são dois períodos para cada disciplina, no dia
em que havia Língua Portuguesa, eu necessariamente utilizava também o horário de
Educação Física, totalizando 4 períodos de aula. Para poder terminar a pesquisa no final
de novembro, utilizei ainda mais um dia da semana, nos horários de diferentes
disciplinas.
Para que os alunos não perdessem os períodos de aula de outras disciplinas do
currículo, além das atividades das oficinas eles ainda tiveram que realizar atividades das
outras áreas de conhecimento, a distância. A maior dúvida era quanto à aceitação da
proposta por parte dos alunos, principalmente porque eu utilizaria os períodos de
Educação Física, que costuma ter bastante aceitação na escola, mesmo entre os mais
velhos. Ficou decidido que os alunos não seriam obrigados a participar da proposta,
podendo trocar de turma
21
, se desejassem. Apesar dessa desconfiança, a adesão ao
projeto foi total, não havendo nenhum pedido de troca. Como os estudantes haviam sido
meus alunos no semestre anterior e sabiam que eu estava realizando uma pesquisa, de
certo modo sentiram-se privilegiados por poderem participar, que apenas uma turma
teria essa aula diferenciada.
5.6 Levantamento preliminar e definição dos objetivos
Na elaboração do modelo didático para o ensino-aprendizagem do gênero
escolhido, foram considerados os aspectos referentes aos conhecimentos anteriores dos
alunos sobre cartas, bem como as capacidades observadas dos aprendizes e os objetivos
de ensino da seqüência.
Como mencionei, os alunos haviam vivenciado situações de uso do gênero,
dadas suas experiências de vida e conhecimento de mundo, visto que são todos jovens e
21
Ver, em Anexo A, a autorização para a pesquisa.
62
adultos que passaram pela escola, estão inseridos no mercado de trabalho ou visando
inserção. O fato de terem sido meus alunos facilitou o trabalho porque não precisei
observar a turma e pude começar imediatamente as oficinas, já que conhecia suas
capacidades e havia feito o levantamento das dificuldades a serem vencidas. O objetivo
de ensino era o aprimoramento do letramento inicial, partindo de uma experiência com
texto de cunho pessoal para o de esfera pública, visando também à melhoria dos
aspectos lingüísticos que apresentassem problemas para os alunos. A principal
dificuldade apresentada era, do ponto de vista do uso dos recursos lingüísticos, a
ocorrência de problemas de construção frasal, com frases fragmentadas ou siamesas
22
,
decorrentes dos problemas de pontuação dos textos, principalmente o uso inadequado
de vírgula e ponto final.
22
As frases siamesas caracterizam-se por apresentar idéias ligadas incorretamente, ou seja, frases
distintas, que possuem enunciado completo, são apresentadas como uma só, por não haver elemento de
ligação entre elas, como sinais de pontuação ou conectivos. Ex: a frase siamesa Letícia estava ansiosa
teria que fazer uma cirurgia em breve, pode ser corrigida com sinais de pontuação, Letícia estava
ansiosa; teria que fazer uma cirurgia em breve, ou com conectivos coordenativos, como teria que fazer
uma cirurgia em breve, Letícia estava ansiosa, ou com conectivos subordinativos Letícia estava ansiosa
porque teria que fazer uma cirurgia em breve.
As frases fragmentadas caracterizam-se pela pontuação de oração subordinada, ou uma simples
locução, como se fosse uma oração completa. Ex: Eu estava tentando arranjar dinheiro. Quando vi na
calçada uma nota de cinqüenta reais. A possibilidade de correção é transformar a segunda oração em
uma oração subordinada, usando a vírgula como recurso de pontuação. Frases fragmentadas podem ser
utilizadas como recurso estilístico em textos literários (GUEDES & MORENO, 1997).
63
6 OFICINAS
Neste capítulo eu faço o relato sobre a realização das oficinas, com base nas
anotações de diário de campo realizadas durante as aulas. Apresento também as
alterações feitas na seqüência elaborada inicialmente e que foram feitas a partir das
observações de sala de aula que foram sendo registradas no diário de campo.
A seqüência didática foi elaborada para ser aplicada em 12 encontros,
totalizando aproximadamente 40 horas/aula. O trabalho foi realizado em 11 oficinas e o
12º encontro foi reservado para uma atividade de interação entre os alunos e dona Maria
de Lourdes, autora de um livro no qual foram publicadas cartas enviadas por ela a
jornais da cidade de Porto Alegre, e que havia sido lançado na Feira do Livro em
novembro de 2007.
6.1 Realização das Oficinas
A seguir faço o relato da realização das oficinas. Embora houvesse um
planejamento inicial, nem todas as oficinas ocorreram como estava previsto. O que, de
fato ocorreu, descrevo no que segue.
6.1.1 Oficina 1
Na Oficina 1, o objetivo era trazer para o âmbito escolar, a discussão sobre
situações do cotidiano nas quais os alunos tivessem sentido a importância de saber ler e
escrever. Comecei a aula esclarecendo que iria fazer gravações e anotações para poder
recuperar os dados posteriormente. Encaminhei a atividade da noite começando com
perguntas sobre letramento, apenas oralmente, depois em outra aula realizei um
questionário. Alguns alunos comentaram que haviam assistido ao filme Central do
Brasil. No planejamento, eu havia pensado em encaminhar a discussão preliminar,
assistir ao filme, interromper antes da finalização e solicitar a produção inicial para aula
seguinte. Nesse caso, os alunos poderiam discutir diferentes finais para o filme e
64
diferentes cartas a serem enviadas. Como a maioria dos alunos conhecia o filme não
fazia sentido interrompê-lo; além disso, prolongar a discussão poderia desmotivá-los.
Decidi modificar o planejamento porque havia pensado na possibilidade de precisar de
um plano B. Encaminhei uma breve introdução e depois assistimos ao filme todo.
Na breve conversa introdutória, esclareci que filme não era exatamente sobre
cartas, mas sobre mudanças pessoais, espécie de on the road movie, um gênero de filme
no qual o/os protagonista(s) sofrem transformações vivenciadas com o desenrolar dos
acontecimentos, que ocorrem geralmente durante uma jornada ou viagem. Apesar de a
temática ser outra, o filme suscitava questões interessantes de serem abordadas, e que
tinham relação com o nosso contexto, como o analfabetismo, o letramento e a escrita.
Com as perguntas os alunos começaram a falar sobre a importância de saber ler e
escrever. O aluno bio comentou que uma pessoa que não sabe ler, não sabe a hora de
tomar remédios, por exemplo. O aluno Adão comentou que, mesmo sabendo ler e
escrever sentia dificuldades para escrever carta de apresentação nas entrevistas de
emprego. A aluna Elisabete comentou que uma vizinha estava tendo problemas no
serviço por não “saber ler e escrever direito”. A amiga de Elisabete recebe muitas
ligações telefônicas na casa da família na qual trabalha como doméstica, mas não
consegue anotar os recados. Após as considerações iniciais, demos início à sessão com
o filme Central do Brasil
23
, no qual uma mulher ganha dinheiro escrevendo cartas para
pessoas analfabetas, em uma estação de trem.
Depois de assistirmos ao filme, fizemos uma discussão sobre as passagens mais
relevantes. Essa atividade objetivava conhecer os pontos de vista dos alunos sobre
letramento, sobre a importância de saber ler e escrever em situações diversas, sobre
como essa habilidade conferia certo “poder” à mulher escrevedora e como ela pôde
manipular muitas situações de acordo com seus interesses. A maioria dos alunos
comentou sobre o final, quando a personagem Dora modifica o teor da carta que está
lendo.
Após a discussão, solicitei aos alunos que pensassem sobre as relações que
poderíamos estabelecer entre o filme e as nossas vidas, sobre as nossas mudanças
pessoais e transformações, sobre o crescimento pessoal de cada um no retorno à escola.
Para a atividade de escrita pedi que eles imaginassem uma situação comunicativa para o
envio de uma carta pessoal. Com essa atividade preliminar, meu objetivo era ativar os
23
Filme Central do Brasil, direção de Walter Salles, 1998.
65
conhecimentos prévios, atualizando o repertório dos alunos, através do esclarecimento
das dúvidas e da discussão sobre o que eles desconheciam sobre o assunto.
Para a atividade de produção textual, os alunos deveriam escrever uma carta
colocando-se no “lugar social” de um dos personagens do filme: ou como a Dora
(escrevedora), ou Josué (o menino), ou a amiga da Dora, ou eles mesmos, mandando
uma carta para a Dora ou o Josué, como se fossem amigos dela ou dele. Além disso,
eles poderiam imaginar a situação num outro tempo/espaço, ou seja, imaginar o Josué
mais velho, escrevendo à Dora sobre sua vida. De que modo ele escreveria? E se fosse
adolescente? Essa situação imaginada, esse “planejamento”, deveria acompanhar a
carta, identificando destinatário, produtor do texto e o lugar social. Esta parte inicial da
atividade está em consonância com a mobilização do produtor do texto em relação às
representações do contexto de produção. Essa atividade visava principalmente a
familiarizar os alunos com a etapa de planejamento da escrita, considerando a situação,
os possíveis leitores, o tema a ser tratado, a situação de circulação do texto e as
estratégias textuais a serem utilizadas para atingirem os objetivos.
Ainda que a atividade o representasse um contexto real, foi interessante ver
que os alunos demonstravam entender que os diferentes papéis sociais e os diferentes
contextos imaginados iriam fazer diferença na produção da carta. Além disso, a
atividade não saía do âmbito da carta pessoal, mas sem repetir a atividade de trocas de
cartas entre professora e alunos.
Durante a aula os alunos assistiram ao filme e realizamos as discussões. No
final da aula, depois da conversa preliminar, encaminhei a atividade escrita a ser
realizada. As atividades de escrita da carta pessoal foram realizadas em casa. Dos 22
alunos que assistiram ao filme, 11 alunos realizaram a produção textual e 2 alunos
reescreveram. A oficina teve a duração de 4 horas/aula.
6.1.2 Oficina 2
Na oficina 2, solicitei que os alunos fizessem um comentário sobre o filme,
pois estavam presentes dois alunos que não haviam participado da aula anterior.
Retomamos a discussão sobre a importância de saber ler e escrever. Os alunos
responderam a um questionário (Anexo B) sobre as atividades cotidianas de leitura e
escrita que eles costumam empreender.
66
Novamente comentamos sobre o letramento. A aluna Fábia foi a mais
participativa. Os alunos disseram haver entendido que, mesmo sabendo decodificar o
código escrito, mesmo sabendo ler, podiam ter dificuldades para entender certos textos.
Após, os alunos leram um texto publicado no jornal Folha de São Paulo, uma resenha
de um livro sobre cartas de guerra. A maioria dos alunos não conhecia o jornal, cujo
formato broad sheet chamou a atenção. Analisamos o contexto da reportagem, tentando
identificar o tema. Encaminhei perguntas sobre os textos e distribui dicionários para que
os alunos pudessem pesquisar sobre palavras desconhecidas. Logo procuraram resenha,
mas não encontraram kamikaze, war letters e compilação. Também vimos outros
exemplos de cartas pessoais. Essa oficina foi planejada para duas horas/aula, mas eu
pude aprofundar a discussão sobre os textos (ver Anexo C), pois fiquei com os alunos
durante os 4 períodos.
Com as cartas do Henfil
24
, eu tive que contextualizar a produção para os
alunos, já que eles não conheciam o autor e os mais jovens queriam detalhes do período
da ditadura, durante a qual o escritor submeteu-se a um exílio voluntário nos Estados
Unidos, de onde escrevia a seus amigos, outros escritores. Falamos sobre a música de
Elis Regina, também pouco conhecida pelos alunos mais jovens. Anotei em meu diário
de campo que os alunos mais velho lembraram do verso a volta do irmão do Henfil”,
embora não lembrassem que o nome da música era O bêbado e a equilibrista, que traz
um verso falando sobre a “volta do irmão do Henfil”, Betinho, “o da campanha contra a
fome”
25
, nas palavras do aluno Adão. Comentei sobre o fato de Henfil e seus irmãos
serem hemofílicos e sobre os tratamentos que ele fazia nos Estados Unidos, sobre as
notícias do irmão, Betinho, exilado político no Canadá. Comentei sobre o fato de que
anos atrás não se exigiam exames médicos dos doadores de sangue e, por esse motivo,
os irmãos Souza acabaram contaminados com o vírus da AIDS, falecendo poucos anos
mais tarde, por complicações relacionadas à doença.
A aluna Fábia comentou que ele provavelmente mandaria e-mails ou teria um
blog. Elisabete, uma aluna de mais idade perguntou o que era blog e Fábia explicou que
era uma espécie de diário publicado na Internet. Todo o contexto trazido para a aula
despertou a curiosidade, tanto dos mais jovens, que queriam entender os acontecimentos
24
Ver Anexo D
25
Referência à campanha “Ação pela Cidadania contra a Fome e a Miséria”, coordenada por Herbert de
Souza, o Betinho, falecido em 1997.
67
da época, quanto dos mais velhos. Todos percebiam que de algum modo faziam
comentários pertinentes.
Como a maioria dos alunos não havia escrito a carta solicitada na oficina 1,
novamente eu expliquei sobre o procedimento para a confecção da carta e solicitei que
os alunos explicitassem o contexto de produção imaginado; ou seja, eles deveriam dizer
quem era o destinatário, o autor, e a intenção, com dados relacionados à época de escrita
da carta. Esclareci que através do contexto de produção que fosse explicitado é que eu
poderia avaliar se as escolhas lingüísticas estavam adequadas. A oficina durou 4
horas/aula.
6.1.3 Oficina 3
Começamos a aula retomando os comentários da aula anterior, relembrando a
carta do Henfil e a resenha. Comentei sobre as outras cartas pessoais (ver anexo C) e
recolhi os questionários preenchidos. A respeito dos outros textos (Anexo E), os alunos
perguntaram sobre as “expressões surradas” e a coerência de tratamento. Os alunos
disseram que escreviam usando tanto pronome “tu” quanto o pronome “você”,
indiscriminadamente. Expliquei que, dependendo da ocasião e do destinatário, não
havia problema. Nesse momento passamos a verificar alguns exemplos no quadro,
fazendo trocas de pronome e concordância verbal. Quando escrevi o exemplo “você
deverá comparecer à reunião”, surgiu a pergunta sobre o uso do acento grave. Não vou
detalhar as explicações sobre as dúvidas de gramática dos alunos, mas gostaria de
salientar que a abordagem de aspectos lingüísticos era um tópico aberto do meu
planejamento. Queria abordar as dúvidas gramaticais quando elas fossem aparecendo e
de acordo com os interesses dos alunos. Os alunos levaram textos e exercícios (Anexo
F) para fazerem em casa. A oficina teve a duração de 4 horas/aula.
6.1.4. Oficina 4
Começamos a aula retomando as explicações sobre coerência de tratamento e
uso do acento grave. Trouxe alguns exercícios para os alunos e escrevi no quadro. Com
o tempo aprendi a respeitar essa necessidade que os alunos da EJA têm de copiar do
quadro e de usar o caderno. Parece que sem o quadro e o giz não aula. Os alunos
também apresentam dificuldade em anotar coisas que consideram importantes e acham
68
que somente o que o professor escreve no quadro deve ser anotado. Acredito que isso se
deve ao fato de que eles escrevem mais lentamente e temem perder algum detalhe
explicado. Os exemplos também não podem ser “ditados”, eles necessitam “enxergar” o
que está sendo falado, o que não se aplica aos filmes: como não são rápidos na leitura,
os alunos não gostam de cópias legendadas.
Considerei importante comentar sobre essas características que pude observar
em todas as turmas de dois contextos de ensino-aprendizagem de EJA diferentes, onde
trabalhei como professora. Parece lógico que, ao planejar conteúdos e atividades
escolares, os professores devam ter em mente a turma para a qual estão preparando as
tarefas. Não basta saber “esse é o conteúdo que deve ser ensinado em tal série ou
etapa”: no que diz respeito à EJA, podemos ter uma turma toda de adultos, como
também uma turma em que a maioria seja jovem. No entanto, pareceu-me importante
destacar como algumas atividades tradicionais ainda estão entre as preferidas dos
alunos.
Além do acento grave, os alunos esclareceram dúvidas sobre aspectos
gramaticais como as conjunções subordinativas. Expliquei a eles que as dúvidas seriam
esclarecidas quando fossem surgindo ao longo das oficinas e que não nos estenderíamos
muito, mas que os exemplos dados eram suficientemente esclarecedores. Como os
alunos conseguiram fazer os exercícios, considerei que o planejamento conseguiria dar
conta dos aspectos sintáticos relevantes para o propósito de escrita das cartas. A Oficina
4 teve a duração de 4 períodos.
6.1.5 Oficina 5
Começamos a aula distribuindo o material para os alunos ausentes na oficina
anterior. Logo passamos para retomada dos conteúdos vistos e exercícios. Corrigimos o
que havia sido feito e refizemos alguns para relembrar e dar oportunidade de aprender
aos alunos ausentes. Após o intervalo, recolhi exercícios para corrigir e devolvi tarefas
feitas em casa. Em seguida, distribui fotocópias com exemplos de “cartas do leitor” (ver
anexo G ). Encaminhei as perguntas sobre revistas e jornais que os alunos costumavam
ler e perguntei se haviam escrito para algum jornal. Durante a leitura os alunos
deveriam tentar identificar a revista, o autor dos enunciados (quem escreveu a carta:
homem, mulher, adolescente, adulto/jovem) os destinatários (quem é o público que a
revista na qual a carta foi publicada), analisar o conteúdo das cartas e contexto de
69
produção, o nível de linguagem (menos/mais formal). Apesar de não terem o hábito de
ler revistas, os alunos conheciam as publicações, haviam visto ou lido em algum
lugar, e não demonstraram muita dificuldade em identificar revistas e contextos de
publicação.
No meu diário de campo, anotei comentários: “Tá na cara que é Veja”, disse
Lucilene para Fábia que respondeu, “eu conheço a revista, bem assim que aparece na
“carta do leitor”. Kéterly, que estava sentada bem em frente à minha mesa disse: “essa
aqui é adolescente”. Todos os alunos identificaram com maior facilidade as cartas
enviadas para as revistas Veja, Capricho e Placar. Para aula seguinte combinamos que
os alunos escreveriam para as revistas. Eles poderiam escolher para qual revista
escrever. O aluno Adão, perguntou se eu não iria fazer como a personagem Dora, do
filme Central do Brasil, que não enviava as cartas. Todos riram, mas a pergunta fez
com que eu refletisse sobre a importância da tarefa não ser apenas um mero “exercício
escolar”. Combinamos que o envio das cartas seria feito. A Oficina 5 teve a duração de
4 horas/aula.
6.1.6 Oficina 6
Na Oficina 6 os alunos escreveram as cartas para enviar para as revistas. Eu
trouxe revistas para os alunos para que eles escolhessem uma matéria da revista para
fazer o comentário. Os alunos realizaram a tarefa em duplas ou grupos pequenos. A
tarefa ocupou os dois primeiros períodos de aula. Os alunos aproveitaram para
esclarecer dúvidas, solicitando atendimento individual, ou chamando para
esclarecimentos sobre as cartas que estavam sendo redigidas. Nos outros dois períodos,
nós analisamos as cartas pessoais que os alunos haviam escrito. Para essa atividade eu
utilizei o retroprojetor e todos os alunos puderam ler e fazer comentários. Realizamos a
oficina em 4 horas/aula.
6.1.7 Oficina 7
Começamos a aula retomando os textos analisados na aula anterior, com
auxílio do retroprojetor. Comentei com os alunos que havia enviado as cartas para a
revista Veja, utilizando o e-mail por causa do fechamento da edição, o que ocorre às
quartas-feiras (em anexo H, cópia do e-mail e mensagem recebida da revista Veja). Com
70
auxílio do retroprojetor eu também fiz a análise das “cartas do leitor”. Os alunos
perceberam mais os erros ortográficos. Disse aos alunos que não havia enviado 2 cartas
porque elas não comentavam sobre as notícias publicadas e não se encaixavam no perfil
de comentário das “cartas do leitor”.
Na Oficina 7, ocupei-me de outros tópicos gramaticais, tais como colocação
pronominal e pontuação, cujas fotocópias dos exercícios os alunos haviam levado na
aula anterior. A principal dúvida era sobre o uso da vírgula antes da conjunção “e” e
separando adjuntos adverbiais. Como os alunos não estudaram sintaxe, a aula foi
basicamente sobre os conceitos de sujeito, predicado e adjuntos adverbiais. Fizemos
exercícios no quadro, utilizando fragmentos de textos sem pontuação para serem
pontuados pelos alunos. A Oficina 7 teve a duração de 4 períodos.
6.1.8 Oficina 8
Compareceram à aula desse dia apenas 8 alunos e por esse motivo eu decidi
não corrigir os exercícios, que teria que fazer isso novamente na aula seguinte, para
que os alunos ausentes pudessem corrigir. Decidi começar a proposta de escrita das
cartas reclamatórias e expliquei aos alunos sobre a dificuldade em conseguir cartas
reclamatórias originais. Apesar dos meus esforços junto a diversas empresas, não obtive
nenhuma carta. A reclamação é tratada como um assunto confidencial porque, de certo
modo, expõe negativamente a empresa envolvida na reclamação. Então, falei aos alunos
que nós iríamos começar com uma carta reclamatória enviada para a coluna de Paulo
Sant’Ana (ver anexo L), cronista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre. Apenas o aluno
Paulo havia lido algo escrito por Sant’Ana
26
. Utilizando lâmina e retroprojetor, li o
texto da carta para os alunos (Anexo I) , fazendo comentários sobre o uso das vírgulas e
sobre o teor da reclamação.
Na carta, o autor reclamava sobre as ambulâncias que fazem o transporte de
doentes da cidade de Alegrete para Porto Alegre. Os alunos comentaram sobre casos de
transportes de doentes na cidade de São Leopoldo também. Realizamos a leitura de um
outro exemplo de carta reclamatória (anexo J). Expliquei para os alunos que esse tipo de
26
A maioria dos alunos lê apenas o jornal local (VS- jornal Vale dos Sinos), que circula nas cidades
região do vale do Rio dos Sinos (cidades de São Leopoldo, Sapucaia do Sul, Esteio, Portão e Capela de
Santana).
71
carta apresenta variações nas argumentações utilizadas para convencer a empresa de que
o cliente está no pleno exercício do seu direito de consumidor.
Apresentei aos alunos o código de defesa do consumidor e fizemos a leitura de
alguns artigos (anexo K). Em seguida, utilizando ainda o retroprojetor e lâmina, li um
texto sobre um recall da empresa Kibon( anexo L). Os alunos perguntaram o que era
recall. O aluno Paulo explicou, usando o exemplo dos recalls de empresas que fabricam
automóveis, e os alunos entenderam do que se tratava. A aluna Kéterly lembrou-se do
recall da empresa Mattel, fabricante da boneca Polly. Utilizando os textos de apoio,
solicitei aos alunos que escrevessem para a Kibon, pedindo informações sobre o caso,
sobre providências a serem tomadas sobre reações alérgicas após o consumo do tal
sorvete. Os alunos organizaram-se em grupos de 4 alunos. Para escreverem as cartas, os
alunos utilizaram como modelo as cartas lidas na aula. Foi interessante observar as
escolhas que os alunos fizeram para escrever as cartas, mas tratarei disso com maiores
detalhes no capítulo da análise dos textos produzidos. A oficina 8 teve a duração de
pouco mais de dois períodos.
6.1.9 Oficina 9
Como muitos alunos faltaram na aula anterior, a oficina 9 foi praticamente uma
retomada do que havia sido feito na oficina 8. Nós lemos novamente os textos
utilizando lâmina e retroprojetor e as sugestões para reescrita iam sendo anotadas no
texto original. Além de retomarem as tarefas de escrita das cartas para Paulo Sant’Ana e
para a empresa Kibon, alguns alunos ocuparam-se com a tarefa de reescrita. Alguns
alunos reescreveram as “cartas do leitor”. Com o trabalho de escrita e reescrita a oficina
9 teve a duração de 4 períodos.
6.1.10 Oficina 10
No dia da oficina 10 todos os alunos estavam presentes. Como o andamento
das oficinas estava adiantado, poderia encaminha a finalização dos trabalhos. Quando
planejei as oficinas, não sabia ainda quais os professores que liberariam os períodos, e
por esse motivo muitas oficinas previam a utilização de apenas duas horas/aula. Como
pude ocupar mais tempo com os alunos, não realizei nenhuma modificação no
planejamento inicial desta aula, apenas fui apresentando os conteúdos e textos das cartas
72
conforme o rendimento dos trabalhos. Como o conteúdo estava organizado em oficinas,
permitia uma maior flexibilidade de organização do trabalho, podendo ser inclusive
reduzido ou expandido. Comentarei mais a respeito das “vantagens” e “desvantagens”
nas minhas considerações finais. Como última tarefa, os alunos deveriam escrever uma
carta reclamatória, escolhendo entre 4 sugestões dadas (anexo M). As sugestões
surgiram após conversa com alunos sobre o que mais provoca transtorno aos
consumidores. Várias possibilidades de carta foram sugeridas, mas as mais votadas
foram as sobre situações vivenciadas por eles como, por exemplo, reclamatórias junto
a empresas de telefonia, TV a cabo e lojas.
Os alunos escreveram as cartas e alguns trataram de colocar em dia textos
atrasados ou exercícios de reescrita. O tempo também foi ocupado com atendimento
individual, cada aluno solicitando esclarecimentos sobre textos, aspectos gramaticais,
principalmente sobre colocação pronominal e pontuação. Uma aluna disse que gostaria
de escrever para o Paulo Sant’Ana para comentar sobre uma crônica que havíamos lido
no primeiro semestre de 2007(anexo M). Ela havia gostado e queria escrever sobre o
assunto. Apesar de não ser essa a tarefa, concordei porque a aluna havia apresentado
outros textos de “carta reclamatória” Os alunos enviaram os textos para a redação do
jornal Zero Hora, mas os textos não foram publicados. A oficina 9 teve a duração de 4
horas/aula.
6.1.11 Oficina 11
Na 11ª oficina eu encerrei o trabalho com a proposta didática da seqüência com
as cartas. Comecei a aula retomando o que havia sido visto no dia anterior. Retomamos
a leitura das cartas reclamatórias que eu havia trazido como exemplo e analisamos as
escolhas lexicais feitas. Alguns alunos que finalizaram a tarefa leram as suas cartas
reclamatórias e os que não haviam terminado, concluíram seus textos. Alguns alunos
solicitaram ajuda para esclarecerem dúvidas sobre a reescrita das cartas reclamatórias e
de outras tarefas solicitadas anteriormente. A oficina 11 teve a duração de 2 horas/aula.
6.1.12 Encerramento das Oficinas
No 12º encontro realizamos uma festa de encerramento. Como havia planejado
a seqüência para 12 encontros não houve problemas, ainda estava dentro do cronograma
73
de aulas. No mesmo período em que eu estava trabalhando com a escrita de cartas com
os alunos, acontecia em Porto Alegre a Feira do Livro, na qual uma senhora estava
lançando um livro justamente com essa temática.
Convidamos a escritora para nosso encontro, e o convite foi aceito. Como dona
Maria de Lourdes mora em Porto Alegre, no dia da confraternização eu fui buscá-la em
casa. Dona Maria de Lourdes trouxe um livro para ser sorteado entre os alunos. O
supervisor da escola fez o sorteio e a aluna Olinda, a mais velha da turma, ganhou o
livro. Dona Maria de Lourdes, que ensina artesanato como voluntária, falou para os
alunos que o SENAC oferece oficinas gratuitamente, bastando apresentar um
requerimento e disponibilizando o espaço físico. Ela trouxe também as cartas que ela
recebeu ao longo dos anos e os alunos se interessaram pelas respostas enviadas pelo
gabinete do presidente Lula. A escritora conversou muito com os alunos sobre
cidadania, sobre cartas, sobre a escrita e de como a escrita pode funcionar como elo,
principalmente entre cidadãos que compartilham da mesma realidade. Nosso encontro
foi muito proveitoso na opinião dos alunos.
6.2 O questionário
Abaixo, apresentamos os quadros com o resultado do questionário sobre o
entendimento dos alunos a respeito do letramento. A amostragem não é significativa
para apresentar um perfil da clientela dos cursos de EJA, apresentando aspectos de uma
turma específica, no caso a que participou da pesquisa-ação, e a análise é apenas
qualitativa. O questionário foi antecedido de uma discussão sobre letramento e
alfabetização. Convém salientar que os termos “letramento” e “alfabetização” não são
desconhecidos dos estudantes por causa da própria condição de aluno de EJA, neste
contexto especificamente, pois eles participam de seminários, palestras, oficinas e
seminários nos quais essas palavras são mencionadas. Para que os alunos respondessem
ao questionário, atualizamos o entendimento do que era ser alfabetizado/letrado, para
que todos pudessem entender a atividade. Grosso modo, podemos dizer que os alunos
entendem a alfabetização como o processo de aprendizagem de código escrito, um meio
para o letramento, que estaria relacionado com as práticas sociais que envolvem a
leitura e a escrita.
Dos alunos que participaram da pesquisa-ação, 12 responderam ao
questionário, que buscava principalmente saber em quais práticas sociais de leitura e de
74
escrita os alunos se envolviam e que relação elas tinham com o seu maior ou menor
grau de letramento. Alguns alunos citaram mais de uma atividade ou situação nas
respostas, por isso nem sempre há a relação resposta/nº de alunos.
Como os alunos entendiam que possuíam diferentes graus de letramentos em
relação a outras pessoas perguntamos “Em quais atividades que você acredita que seu
grau de letramento foi útil para auxiliar alguém?” Para essa pergunta obtivemos diversas
respostas, que variaram entre “ajudar na leitura de cartas, placas de ônibus, mensagens
de celular, até atividade de leitura em práticas sociais específicas, como no serviço a
“leitura de relatório”. Os alunos também acham que o grau de letramento deles serve
para “ajudar os filhos com lição de casa”, “ler histórias” ou ainda “ajudar colegas de
escola”. Na tabela abaixo relacionamos o número de alunos e as atividades nas quais se
envolvem para ajudar:
Atividade
Nº de alunos
Leitura de carta/jornais/placas e/ou letreiros de ônibus
5
Leitura de relatório de serviço 1
Ajuda aos colegas de escola
4
Leitura de histórias para filhos/sobrinhos 2
Os resultados mostram que, mesmo que o letramento dos alunos seja limitado
para algumas atividades, segundo opinião deles como veremos mais adiante, os alunos
se consideram aptos para realizar algumas atividades comunicativas cotidianas. Convém
destacar que não fizemos distinção entre práticas de leitura e escrita. Entendemos que
essas atividades são complementares, de manifestações distintas da língua e que
envolvem diferentes habilidades, porém a intenção não era estratificar as manifestações
e sim identificar as atividades nas quais os alunos se envolviam.
Além de saber quais as atividades em que os alunos acreditavam que o
letramento deles era mais avançado e que os habilitava para auxiliar os outros,
perguntamos também “Você costuma utilizar suas experiências de leitura e escrita para
ajudar os outros?”. O objetivo era saber se a leitura e a escrita “para terceiros” era uma
prática social freqüente. Na tabela abaixo temos as atividades e o número de alunos que
se envolvem nelas:
75
Ajudo nas atividades/ a
quem
Nº de
alunos
Ajudo na leitura ou escrita a
parentes/filhos
4
Lê a Bíblia –para familiares 2
Ajuda na leitura ou
escrita/no serviço
1
Ajuda com temas de casa/
aos filhos
4
Não ajudo 1
Ajudo na leitura em paradas
de ônibus/ estranhos ou
parentes
1
Podemos percebemos que as atividades de leitura e escrita fazem parte do
cotidiano dos alunos e geralmente servem para interação com familiares menos letrados
ou analfabetos.
Para saber de quais praticas sociais da cultura letrada os alunos se sentem
excluídos, perguntamos “Em que situações cotidianas você considera que seu grau de
letramento não é suficiente?”. As atividades citadas aparecem na tabela a seguir:
Situações Nº de alunos que
citaram essas atividades
Preencher fichas na busca de
emprego
1
Ler textos mais complexos
(textos da disciplina de
História)
4
Elaborar/ preencher
currículos;
ler/escrever/preencher
documentos
2
Entender vocabulário mais 2
76
complexo e de pouco uso
(em conversas, TV,
rádio,leitura)
Pedir/arrumar emprego 2
Ler bem, mas escrever mal 1
Como podemos inferir das respostas, as situações cotidianas da cultura letrada
que mais dizem respeito à turma estão as relacionadas com o mundo do trabalho e/ou da
escola. Especificamente neste caso os alunos citaram a dificuldade na leitura dos textos
da disciplina História.
Complementando a pergunta anterior perguntamos “Quais atividades de leitura
e escrita são complexas para você?”. A pergunta tinha por objetivo saber
especificamente as atividades de leitura ou escrita que apresentavam dificuldade.
Abaixo a tabela apresenta o resultado:
Atividades (leitura ou escrita) Nº de alunos
Ler laudos/receitas médicas e bulas
3
Leituras na disciplina de História 3
Leitura em geral 1
Leitura de textos jurídicos 3
Leitura de textos com palavras em inglês 1
Leitura de manuais 2
Leituras na disciplina de Língua Portuguesa
2
Leitura na disciplina de Ciências 1
Leitura de legenda de filmes 1
As respostas não deixam dúvidas de que a prática social de cultura letrada na
qual os alunos mais sentem dificuldade é a leitura. Interessante notar o fato de que parte
dos alunos remetem as dificuldades de leitura aos conteúdos escolares, um aspecto que
mostra a dificuldade de apropriar-se das estruturas dos diversos gêneros discursivos,
sejam enunciados de questões ou compreensão dos textos trabalhados. Podemos inferir
que cotidianamente eles mais lêem que escrevem. Isso não quer dizer que as atividades
de escrita os deixem confortáveis ou que eles escrevam com desenvoltura e sim que as
77
atividades de escrita nas quais os alunos se envolvem não apresentam dificuldades
porque não são complexas. Como a maioria dos alunos desempenha atividade
profissional nas quais a escrita não é muito solicitada, essa prática não é cotidiana. A
dificuldade aparece justamente nas situações cotidianas nas quais os alunos se envolvem
para modificar tal situação, ou seja, no momento de busca de novas posições no
mercado de trabalho.
Para descobrir como os alunos resolvem suas dificuldades, procuramos saber
que tipo de ajuda eles buscam, perguntando: “Você solicita ajuda para essas atividades
complexas? De quem?”
Solicita ajuda de quem/ utiliza-se de que: Nº de
alunos
Qualquer pessoa com mais entendimento/pessoa que
“terminou os estudos”
2
Dicionário 1
Não solicito 1
Solicito ajuda de irmãos/filhos/marido 5
Podemos perceber pelas respostas que os alunos procuram sanar suas dúvidas e
sentem-se à vontade para fazê-lo com pessoas próximas que tenham maior letramento.
Apesar disso, os alunos consideram que o aprimoramento das habilidades de leitura e
escrita pode melhorar a qualidade de algumas práticas sociais nas quais se envolvem.
Podemos inferir isso pelas respostas dadas a pergunta: “Quais atividades poderiam
melhorar se a qualidade de sua leitura e de sua escrita se tornasse mais sofisticada?” Na
tabela abaixo apresento relacionada atividades o número de alunos que as mencionaram:
Atividades que melhorariam de
alunos
Entendimento de textos, melhoria da qualidade de leitura 5
Falar “chique”, melhorar vocabulário, poder falar com pessoas simples ou
intelectuais
2
Arrumar/melhorar no emprego 2
Melhorar na escola 3
78
Novamente percebemos que uma preocupação com a leitura, com o
entendimento do que lêem. Os alunos percebem que o fato de saberem decodificar o
código escrito, ou seja, serem alfabetizados, não basta para as práticas sociais que
exigem um nível mais complexo de compreensão leitora.
Muitas vezes os alunos comentam que, apesar de ser importante, somente o
estudo não basta para ser bem sucedido. Para saber qual a opinião dos alunos sobre essa
questão, perguntamos se eles conheciam alguém que não fosse alfabetizado ou que
fosse pouco letrado e mesmo assim tivesse um papel social importante. Esperava que os
alunos citassem pessoas conhecidas ou famosas, como jogadores de futebol ou algum
artista, mas eles citaram pessoas próximas. As respostas foram as seguintes:
Pessoas com pouco letramento ou
analfabetas
Nº de alunos que citaram
Tio/marido/vizinha
Avô bilíngüe (fala espanhol) e é
analfabeto
4
Silvio Santos 1
Conheço (mas não citou quem) 3
Não conheço ninguém, mas sei que existe 4
Ao mesmo tempo em que consideram importante aprender a ler e escrever
melhor, os alunos acham que nem sempre isso tem relação com o “ser bem sucedido”
economicamente falando. Para explicar tal fato, os alunos responderam a pergunta: “se
saber ler e escrever são atividades importantes, como você explicaria o fato de que
algumas pessoas trabalham, ganham dinheiro e melhoram de emprego sem saber ler ou
escrever, ou lendo e escrevendo muito pouco?”. Para tal pergunta, as respostas foram as
seguintes:
Como as pessoas têm êxito/são bem sucedidas/têm sucesso
econômico
de alunos que
responderam
Pessoas que têm habilidades específicas/conhecimento
empírico/experiência específica
4
São bons trabalhadores 2
São inteligentes 1
Tem força de vontade para trabalhar 1
79
Tem negócio próprio ou muita sorte 1
São pessoas atentas/espertas/com interesse/ aprendem fácil 3
Na discussão anterior ao questionário, os alunos mencionaram que muitas
pessoas são bem sucedidas e não estudaram muito. O caso mais citado é o do Presidente
da República, que gosta de mencionar o fato de não ter estudado muito. Curiosamente,
ele não apareceu nas respostas escritas. Com o objetivo de descobrir as motivações dos
alunos para estudar, perguntamos “se o grau de letramento não é tão importante para ser
‘bem sucedido’, qual sua motivação para estudar?”. Para tal pergunta, as respostas
foram as seguintes:
Motivos citados Nº de alunos
Maior grau de escolaridade tem preferência em recrutamentos 1
Pessoas que não estudam não acham ou não melhoram no emprego
5
Desejo de maior projeção social ou no trabalho 1
Desejo de ter a profissão de mecânico 1
Desejo de ter a profissão de engenheira 1
Desejo de dar exemplo aos filhos 1
Desejo de concluir o ensino fundamental 1
O estudo é uma “válvula de escape” 1
Não respondeu 1
Mesmo tendo conhecimento de que algumas pessoas conseguem significativa
inserção social, as justificativas apresentadas mostram que os alunos entendem que a
nossa sociedade privilegia as práticas pautadas na escrita. Tais conceitos estão
extremamente enraizados nesse grupo de alunos, para o qual o aprimoramento das
habilidades é uma maneira de minimizar a exclusão social. Uma das razões conhecidas
para o abandono escolar é a necessidade de ingressar no mercado de trabalho, o mesmo
mercado que, a partir de suas exigências cada vez maiores força o retorno à escola. A
qualificação profissional crescente e a competitividade fazem com que os alunos vejam
a importância da escolaridade, da aquisição de novos conhecimentos e habilidades.
80
6.3 Análise dos resultados
Para a análise das produções textuais, utilizei somente os textos dos alunos que
fizeram as “cartas pessoais”, “cartas do leitor” e ao menos uma das cartas do tipo
“reclamatórias”, sendo uma delas de “pedido de esclarecimento” e uma dirigida a Paulo
Sant’Ana, colunista do jornal Zero Hora, de Porto Alegre, cuja coluna é utilizada por
seus leitores para fazerem reclamações, solicitarem ou oferecerem esclarecimentos.
Geralmente, essas reclamações têm âmbito mais amplo e refletem não apenas a
insatisfação do indivíduo que escreve como também podem representar a de um grupo
de cidadãos. Muitas vezes as cartas reclamatórias trazem reclamações relacionadas a
serviços públicos deficientes, em geral no setor de saúde e segurança pública. A coluna
também é o meio utilizado para veiculação de respostas às cartas enviadas por leitores.
As cartas não foram produzidas em todas as oficinas. Algumas aulas foram
utilizadas para reescrita dos textos, para leitura conjunta e análise dos aspectos
lingüísticos estudados ou para explicações de aspectos gramaticais ou exercícios. A
única atividade de escrita feita a distância foi a primeira, na qual os alunos deveriam
imaginar uma situação comunicativa e escrever a carta como se fosse um dos
personagens do filme Central do Brasil
27
, Dora, Josué ou a amiga, ou para um dos
personagens. Todos os outros textos foram produzidos na sala de aula para que eu
pudesse garantir a autenticidade dos mesmos. Uma leitura preliminar era feita a
distância; ou seja, durante a oficina eu distribuía os textos que seriam lidos ou os
exercícios que seriam feitos na aula seguinte. Com isso, garantia que os alunos
infrequentes tivessem acesso ao material e agilizava o andamento dos trabalhos. A
distribuição antecipada do material visava também a facilitar a leitura de sala de aula,
pois se esperava que os alunos lessem o material em casa e trouxessem as dúvidas para
discussão durante a oficina. Os exercícios gramaticais eram feitos a distância e somente
explicações e correções eram realizadas durante a aula. O tempo da oficina foi
distribuído de modo a priorizar a leitura/releitura dos textos e a escrita/reescrita das
cartas.
Como não existe a relação oficina/carta produzida, optei por descrever no
capítulo anterior o desenvolvimento das oficinas, particularmente porque fui realizando
modificações no planejamento inicial, a partir das observações realizadas e do que eu ia
27
Filme Central do Brasil, de Walter Salles, 1998.
81
anotando no diário de campo. No quadro abaixo, relaciono os alunos e o total de
produções textuais/cartas escritas e reescritas por cada aluno.
Tabela 1
Aluno/a
Aulas
assistidas/
oficinas
Carta pessoal
Escrita/reescrita
Carta de
Leitor
Escrita/reescrita
Carta de
pedido de
esclarecimento
Escrita/reescrita
Carta
reclamatória
Escrita/reescrita
Carta a Paulo
Sant’Ana
Escrita/reescrita
Adão 10/11 S/N S/S S/N S/S N
Ariana 10/11 S/N S/S S/S S/N S/S
Daiane 7/11 N S/S S/N S/N N
Débora 7/11 S/N S/N S/N S/S S/S
Elaine 9/11 S/N S/N S/S S/S S/S
Elisabete
10/11 S/N S/N S/S N S/S
Fábia 11/11 S/N N S/N S/N S/S
Fábio 8/11 N N S/N N S/N
Felipe
8/11
N N S/S S/S S/S
Francele 6/11 S/N S/S S/S S/N S/N
Ivone 9/11 N S/N S/S S/S S/S
Kátia 7/11
N N S/S N N
Keterly 10/11
S/N S/N N N N
Luana 11/11 N S/N N S/N S/N
Luciane 9/11 S/N S/N S/S S/S S/S
Lucilene 9/11 S/S S/N S/S S/S S/S
Olinda 8/11 S/S S/N S/S S/S S/N
Régis 9/11 N N N N S/S
S – Sim N- Não
No capítulo que segue, farei uma análise das cartas buscando constatar o grau
de compreensão do gênero a partir dos elementos constituintes do gênero trabalhado nas
produções de texto propostas nas oficinas. De acordo com Bakhtin (1997), os elementos
estruturadores são: conteúdo temático, estrutura composicional e recursos estilísticos
(estilo). Além dos elementos estruturadores, também é analisado o contexto de
82
produção que deu origem ao texto e que mobilizaram as escolhas lingüísticas dos
alunos. Com esta análise buscava as respostas para as perguntas com as quais iniciei
este trabalho e que agora reproduzo:
1) o ensino da escrita baseado em sequências didáticas para o trabalho com
gêneros oportuniza aprendizagens significativas por parte dos alunos de EJA?
1.1 os alunos se engajam mais nas aulas de português, com efeitos sobre
frequências às aulas e realização das tarefas propostas?
1.2 os alunos escrevem textos mais longos, bem estruturados e com propósitos
identificáveis, além do de responder à exigência do professor?
1.3 os alunos selecionam elementos relevantes de seus saberes e vivências
cotidianas para a escrita quando esta envolve interlocutores efetivos, reconhecíveis e
pertinentes para a solução de seus problemas?
2) Os subgêneros da carta permitem uma transposição didática que sirva ao
ensino das diferenças entre usos privados e públicos da escrita?
3) O trabalho em sequência, do formal e privado ao formal e público,
proporciona aprendizagens no nível dos recursos lingüísticos?
3.1) Os alunos demonstram selecionar recursos para sua escrita que se regulam
conforme o interlocutor, passando de usos mais informais para usos mais formais?
3. 2) De que modo os recursos encontrados nos textos lidos reaparecem nos
textos escritos?
3. 3) Os textos escritos revelam aprendizagens que excedem os modelos
retirados dos textos lidos?
83
7. ANÁLISE DAS PRODUÇÕES
A seguir analisamos as cartas produzidas pelos alunos
7.1 Carta pessoal
A atividade de escrita de carta pessoal foi precedida pela leitura de textos deste
gênero, como as cartas de Henfil, Clarice Lispector e outras de correspondência pessoal.
Nesta atividade preliminar, os alunos deveriam observar o contexto de produção, os
interlocutores, o nível de linguagem e estilo. A atividade era orientada por perguntas
relacionadas ao texto, tais como “quem escreve”, “o que”, “para quem” e “como”. A
atividade de leitura visava a levar os alunos a perceberem que a escrita segue um roteiro
para alcançar um propósito comunicativo, objetivo que é levado a cabo quando os
elementos constitutivos são mobilizados adequadamente. Nos tópicos a seguir vão
relacionados os elementos analisados nas produções escritas.
7.1.1 Contexto de produção
Em relação ao contexto de produção, foram analisados os propósitos da carta
pessoal, a situacionalidade, ou seja, tempo e espaço de produção, a interlocução e o
propósito comunicacional. A primeira carta solicitada foi realizada a distância e não
representa uma situação real de comunicação. A idéia era fazer com que os alunos
imaginassem uma situação de comunicação entre os personagens do filme Central do
Brasil ou entre eles e um dos personagens.
A situação comunicativa deveria vir escrita à parte, para que eu pudesse avaliar
as escolhas lingüísticas feitas pelos alunos. Dos alunos que escreveram a carta pessoal,
5 alunas optaram por escrever para a personagem Dora, sendo que 3 optaram por
assumirem o papel de enunciadoras, e 2 alunas escreveram para Dora, assumindo o
papel de Josué. As alunas que escolheram escrever para a Dora são adultas. Dois alunos
escreveram para Josué. Essas escolhas demonstram que, nas cartas pessoais
predominância da simetria dos papéis sociais representados pelos
enunciadores/destinatários.
A atividade de escrita deveria vir acompanhada de um texto no qual estaria
explicitado o contexto de produção imaginado, ou seja, quem escrevia para quem, onde,
quando e com que propósito. A partir deste planejamento, os alunos poderiam elaborar
84
de maneira mais apropriada os textos para atingirem os seus propósitos comunicativos.
Vejamos o exemplo a seguir:
Oi ! Josué como vc está, estou com saudades, como está seus irmãos, eles estão trabalhando e estudando? Espero que
vc não tenha parado de estudar, vc não anda com mal companias, né? Espero que vc não esteja fumando, bebendo e
roubando. Você sabe que isso o leva nada. Tudo que pega fácil vai fácil. Leva até leva, mais você sabe pra onde
leva a cadeia. Você não é louco de entrar nessa roubada. Há, como vão as gatinhas por aí? Tem várias ou poucas,
espero que vc seja ligeiro que nem eu, estou ficando com duas gatinhas, uma de cada colégio. Estou trabalhando
numa mecânica perto da minha casa, e a noite estudo. Uma das gatinhas, eu fico a noite no colégio, onde eu estudo,
outra de manhã quando vou para trabalhar.
Você está trabalhando? Ou estudando? Espero lhe ver no fim do ano. Vou ajuntar um dinheiro bom e ir para sua
casa. Mas por enquanto fiquemos na saudade,
Abraços de seu amigão,
Adão
Nesta carta percebe-se que a situação comunicativa não está definida em
relação a tempo e espaço, pois o texto não traz indícios de quando a carta foi escrita,
nem onde. A intimidade com o interlocutor Josué estabelece o caráter simétrico da
interlocução, com função social interpessoal em contexto privado.
7.1.2 Conteúdo temático
O conteúdo é o que podemos dizer por meio do gênero. Na carta pessoal, o
conteúdo dos textos girou em torno de assuntos mais triviais, sentimentos íntimos,
confidências, lembranças de momentos passados. Partindo do pressuposto de que os
interagentes conheciam-se, a prática comunicativa tinha como objetivo consolidar o
relacionamento.
Houve entendimento por maior parte dos alunos quanto às escolhas lingüísticas
apropriadas para interagir com os interlocutores escolhidos, com a maioria dos
enunciadores usando a linguagem informal. Podemos destacar o uso do primeiro nome
do interlocutor, a quem os enunciadores se dirigem de modo íntimo, com expressões
como “querida Dora”, “Oi Josué”, e encerramentos de evento com expressões “beijos”,
“beijos e abraços” “beijos da sua amiga do coração”. Essas rotinas comunicativas
sugerem relacionamento íntimo, não hierarquizado. Mesmo quando o aluno-autor do
texto escrevia assumindo o papel enunciador de Josué escrevendo para a Dora, ou o
papel de Dora escrevendo para Josué, o caráter de simetria e informalidade conferia
status semelhantes aos interagentes. O discurso que se constrói nessa simetria aparece
como amistoso, entre pessoas que se conhecem, que confiam uma na outra,
85
confidenciam-se, são confiantes na compreensão responsiva dos interlocutores. Isso
transparece no uso de expressões como: “estou com saudades”, “como vai você?”. Nos
recortes acima, podemos observar que o enunciador escolhido pelos autores das cartas
constitui seu interlocutor como alguém que interage com ele, compartilhando um
mundo de conhecimentos.
7.1.3 Estrutura composicional
Quanto à estrutura composicional, a maioria das cartas pessoais apresentou a
estrutura típica dos “gêneros epistolares”, com abertura usando o vocativo e a saudação
seguidos do corpo da carta, encerramento/despedida, seguido do nome do remetente. A
maioria das cartas não apresentou local e data.
7.1.4 Estilo
Na concepção de Bakhtin (1997), o estilo diz respeito às configurações
específicas das unidades de linguagem, que são as marcas da posição enunciativa do
enunciador, as seqüências textuais e os tipos discursivos que formam a estrutura. A
concepção do destinatário, como o enunciador o imagina ou percebe, é vai determinar o
estilo do enunciado. Entretanto, para Bakhtin, nem todos os gêneros são igualmente
propícios ao estilo próprio, sendo os menos favoráveis os que requerem uma forma
padronizada e que deixam pouco espaço para inserção de elementos de estilo individual.
A escolha dos recursos estilísticos a serem utilizados e que definirão o estilo
levará em conta o destinatário e seu grau de informatividade, seus conhecimentos
especializados na área de determinada comunicação cultural, suas opiniões, convicções,
preconceitos (do ponto de vista do enunciador), seu status social, idade, etc.
Na carta abaixo, podemos perceber que este aspecto apresentou problema.
Vejamos:
São Leopoldo, 05 de novembro de 2007.
Dora
Estou escrevendo para falar a respeito da sua solidão, da vida que você leva escutando todo o tipo de reclamação
de pessoas irritadas por vários motivos ou sentindo saudade.
Eu acho que você não deveria se preocupar somente com isso e sim tentar achar um caminho melhor para seguir.
Uma pessoa que vive sozinha fica estressada, angustiada e sente falta de carinho e atenção, por isso eu te aconselho a
tentar formar uma família, pois onde tem mais de um é muito melhor do que viver só. o se apegue somente com
problemas do passado, tente vencê-los fazendo de sua vida adulta diferente de quando era criança.
Tente dar um pouco de atenção a si própria e se arrumar um pouco mais e se amar; pois se a pessoa gosta de si
mesma é fácil ser feliz e arrumar uma pessoa para amar. Sem mais nada a dizer agradeço a atenção,
86
Com carinho de Luciane.
Um beijo
Podemos perceber que não houve um planejamento do texto a ser produzido. A
estrutura composicional é típica do gênero, mas o conteúdo temático não corresponde a
uma prática comunicativa com objetivo de consolidar um relacionamento, o que
demonstra que a aluna não conseguiu se colocar na posição de “amiga” da personagem
Dora. Além disso, o estilo adequado ao gênero proposto remete a uma maior
informalidade marcada por traços denotadores de intimidade entre enunciador e
destinatário, o que não ocorre no fechamento formal “sem mais nada a dizer, agradeço a
atenção”.
7.2 Carta do leitor
Como atividade preparativa para a escrita da carta do leitor os alunos leram
cartas enviadas para as seções “carta do leitorde várias revistas. Os alunos tiveram a
oportunidade de escolher para qual revista gostariam de escrever. Para esta tarefa eu
trouxe as revistas publicadas da semana, para que os alunos pudessem ler à vontade
durante a aula e escolher o texto para fazer o comentário. Como esta tarefa tinha
destinatários reais - os leitores da seção de “cartas do leitor” da revista escolhida - os
alunos resolveram fazer a tarefa em grupos para poderem ler e trocar idéias antes de
produzirem o texto.
A maioria dos alunos optou por escrever para a revista Veja, de 21 de
novembro de 2007. As cartas produzidas pelos alunos foram reescritas após a primeira
versão, foram digitadas por mim e enviadas para a revista. A resposta recebida e que
confirma o envio (anexo) foi mostrada para os alunos. Infelizmente nenhuma carta foi
publicada.
7.2.1 Contexto de produção
O propósito da carta do leitor é fazer um comentário sobre algum texto lido,
tendo como interlocutores simétricos os editores e o público leitor da revista. A
situacionalidade pode ou não aparecer marcada pela apresentação do tempo/espaço de
produção (local e data). Mesmo quando não está explícita, a situacionalidade pode ser
87
inferida pela referência ao texto motivador, no título utilizado para a maioria das cartas
do leitor, ou mesmo pelo conteúdo da carta.
7.2.2 Conteúdo temático
Na carta abaixo, o aspecto que apresentou problemas foi o conteúdo temático.
A maioria das cartas apresentava relação ao texto lido, porém houve desvios, como os
observados na carta acima, devido à interpretação errônea dos dados do texto
motivador.
As alunas Kéterly e Luana escreveram a respeito do texto “A logística do
atraso” (Revista Veja). O exercício da leitura do texto não ativou nenhum conhecimento
prévio das alunas sobre o tema, ainda que houvesse uma pequena explicação sobre o
termo “logística” logo no começo. Mesmo assim, as alunas solicitaram ajuda para a
leitura, pois não achavam as palavras “contêiner” e “ranking” no dicionário. Ainda que
eu tenha dado explicações a respeito do texto, a falta de conhecimentos prévios fica
evidente no texto produzido:
A logística do atraso
Fiquei indignada por saber o alto valor do dólar e também por saber que o Brasil está em 61º lugar e mesmo assim
demora 9,2 dias o transporte. O Brasil está muito atrasado mesmo assim demora 9,2 dias o transporte.
O Brasil está muito atrasado, que vergonha está perdendo até para o Peru, que é o mais baixo em tudo. Em
Cingapura se consegue vender muito mais que no Brasil. Enquanto no Brasil demora duas semanas e o lar custa
909 em dólares em Cinga Pura leva 3 dias e o dólar é mais barato custa 311 dólares. Isso sim é uma vergonha,
Por favor, né!!
Kéterly e Luana
Anexo B 11
A maioria das cartas trazia elogios às matérias publicadas, mas notamos traços
de autoria no texto abaixo, no qual a aluna escreve a carta com objetivo de dar opinar
sobre um assunto lido. Vejamos:
“O sofrimento desnecessário execuções com injeções letais suspensas pela justiça americana”
Fiquei indiguinada ao ler a reportagem, pois sou contra (não concordo) com a pena de morte. Creio que tirar a vida de
alguém seja qual for o método usado, não é algo muito “humano” de se fazer.
Por mais que essas pessoas estão no corredor da morte, por justa causa. Tirar a vida dessas pessoas não será a melhor
forma de fazer o mundo ir pra frente.
Creio que devem existir outros meios dessas pessoas pagarem pelos seus atos.
Pois como seres humanos falhos não somos ninguém para condenar outra pessoa. Estaremos sendo mais sujos de
quem cometeu o crime.
Acredito que para alguns criminosos com um pouco de consciência estar no corredor da morte já é um sofrimento, já
é um castigo.
Acredito na justiça divina.
Francele
Anexo B 12
Essa carta apresenta a fragmentação das orações, um dos problemas de
construção frasal encontrados nos textos dos alunos, e que foi um dos conteúdos
estudados durante a seqüência. A separação da oração “por mais que essas pessoas...” e
“pois como seres humanos...” serviu para um exercício de reescritura em conjunto,
principalmente abordando os problemas de uso da vírgula e de fragmentação das
orações. Apesar desses pontuais problemas, a aluna argumenta com propriedade a cerca
do conteúdo temático, apresentando várias marcas lingüísticas denotadoras deste
aspecto opinativo, tais como “fiquei indignada”, “sou contra”, “não concordo”, “creio
que”, “acredito que”.
7.2.3 Estrutura composicional
As cartas produzidas apresentavam sempre uma apropriação da estrutura
composicional apresentada na revista, devido à exposição aos exemplos mostrados nas
tarefas de leitura do gênero. Os alunos seguiram o modelo e não escreveram as cartas
com a estrutura típica. Podemos perceber isso na organização do texto, com o título da
matéria do jornal servindo de título para o comentário da carta. Todas as cartas não
apresentavam abertura, nem fechamento/despedida. Os textos concisos, como o das
cartas que aparecem publicadas, mostram que os alunos não perceberam que vocativos e
fechamentos são eliminados na edição das cartas.
7.2.4 Estilo
As marcas lingüísticas introdutórias, comuns nas cartas do leitor da referida
revista, “fiquei indignada”, e a conclusão “por favor, né?”, são exemplos de que as
alunas seguiram o estilo de algumas cartas lidas na atividade preparatória. Outras
aberturas como “gostaria de parabenizá-los”, também aparecem. Pode-se dizer, em
relação ao gênero proposto para escrita carta do leitor -, que fica a meio caminho
dentro do continuum bakhtiniano primário-secundário. Mesmo com caráter simétrico
entre os interlocutores a linguagem é mais clara e objetiva, sem intimidades, ainda que
informal. Quanto ao estilo, podemos na maioria das cartas não ocorreram desvios em
relação às opções lingüísticas, que os enunciadores transitavam por um caminho que
89
não permitia grandes inovações e inventividade, o que garante o sucesso maior na
proposta de escrita, levando o aluno a ter a segurança necessária para investidas mais
ousadas no aspecto da autoria. No entanto, um dos textos apresentava a estrutura
composicional típica, com corpo do texto mais longo, abertura, porém os desvios da
norma culta comprometeram o estilo. Vejamos
São Leopoldo 21 de novembro de 2007.
Venho por meio desta carta agradecer a vocês da revista Veja, o quanto para nós é importante ler as notícias as quais
são publicadas, nos mostrando como nossos governantes agem com o povo.
Nós brasileiro temos direito de lutar contra os erros governamentais, porque foi com os nossos votos que eles estão
lá, não pensamos que cada governo que entra nos causa muitas dificuldades para vivermos sendo que nós das classes
mais baixa, média ou alta tem o direito de reclamar e impedir o que nos causa tanto aborrecimento em nosso país.
A cada troca de presidente em nosso país vai cada vez pior, porque moramos no Brasil, onde as pessoas lutam e
tentam sobreviver como podem, sem que os governantes cumpram o que prometem a nós.
Se fizermos um impitimam não muda em nada muda o ser humano que ocupa o cargo de presidente, não a
dignidade de cada um.
Desde já agradeço o publicado, sou estudante do projeto EJA e gostaria que minha carta também fosse publicada.
Sou E. J. P. tenho 46 anos estudo à noite.
1ª versão
Para a tarefa de reescritura da carta, eu utilizei o retroprojetor, para que todos
os alunos pudessem fazer a leitura e opinarem sobre as alterações que poderiam tornar o
texto melhor. Abaixo, reproduzo a segunda versão da carta:
Vimos agradecer à revista VEJA porque, para s é importante ler notícias que mostrem como nossos governantes
agem com o povo. Nós temos o direito de lutar contra os erros governamentais, pois foi com o nosso voto que eles
se elegeram. Nós temos o direito de reclamar e impedir o que nos causa tanto aborrecimento em nosso país.
Infelizmente, o impeachment muda a pessoa que ocupa o cargo, mas não altera a ética dos políticos. Graças à
imprensa, podemos saber o que ocorre no nosso país. Damos vivas à liberdade de expressão!(Elisabete,46 anos,
estudante de EJA, à noite)(Sempre vigilante)
2ª versão
7.3 Carta de pedido de esclarecimento
Para esta atividade, eu selecionei um texto publicado no jornal Zero Hora, em
24 de outubro de 2007. O texto publicado referia-se ao recall da empresa Unilever do
Brasil, proprietária da marca de sorvetes Kibon. O recall estava ocorrendo por ter sido
disponibilizado para o comércio um sorvete cuja embalagem não mencionava no rótulo
que continha glúten na composição.
90
Como atividade preparatória para a escrita da carta à Kibon, nós também lemos
alguns artigos do Código de Defesa do Consumidor, principalmente os relacionados ao
direito do consumidor de exigir ressarcimento por danos causados por produto (cap. III
e IV do código).
7.3.1 Contexto de produção
Os alunos deveriam escrever uma carta para a Kibon, com o propósito de
solicitar informações sobre os procedimentos a serem tomados por eles, em caso de
danos causados pela falta de informação a respeito da presença de glúten no produto
Cornetto, o que pode levar pessoas alérgicas a ingerirem o sorvete, causando uma série
de danos à saúde. Para a tarefa de escrita só havia o texto do jornal e nenhuma carta
produzida para ser analisada pelos alunos. O objetivo era observar a progressão dos
alunos em relação à autoria, à mobilização dos conteúdos aprendidos, a partir da
apropriação das cartas lidas anteriormente, assim como à ampliação do repertório
lingüístico. O interlocutor deveria ser a empresa Kibon, representada pelas pessoas
responsáveis por atendimento ao consumidor e esperava-se que os alunos utilizassem
maiores traços de formalidade, mais apropriados à instância pública.
7.3.2 Conteúdo temático
Quanto ao aspecto temático, os alunos entenderam o que significava um recall
de uma empresa e a relação que existia entre o produto lançado com uma embalagem
equivocada e os danos que isso poderia provocar em determinadas pessoas.
Prezados senhores,
Venho por meio desta carta informar aos senhores que os produtos da marca Kibon não estão sendo vendido em meu
estabelecimento por irregularidades nas embalagens. As embalagens dos seus produtos não continham a informação
adequada ao consumidor, pois não informavam a quantidade de glúten. Se não tomarem as devidas providências,
terei que procurar os serviços do PROCON. Peço atenciosamente que olhem seus produtos ou terão que se
responsabilizar por perdas e danos ao consumidor pois tenho recebido muitas reclamações de clientes.
Desde já agradeço,
E. J. P. (última versão)
Podemos perceber que traços de autoria no desenvolvimento do conteúdo
temático, quando o aluno estabelece uma interlocução entre um suposto comerciante e a
empresa.
91
Outro exemplo, com a aluna citando a chamada para um número 0800, o que
mostra mobilização dos conhecimentos prévios no propósito comunicativo estabelecido.
Vejamos o exemplo:
São Leopoldo, 28 de novembro de 2007.
À Unilever do Brasil
Prezados senhores,
Escrevo esta carta pedindo maiores informações sobre o produto em questão Cornetto Chococo.
Nos casos de tratamento médico e até mesmo internação hospitalar, os gastos serão ressarcidos? Serão necessários
meios legais para obter meus direitos? Após o recolhimento do produto no mercado serão punidos os culpados pela
falha?
Por favor, aguardo resposta, tentei contato inúmeras vezes pelo fone 08007079933 sem sucesso.
Antecipo agradecimentos,
L. S.
7.3.3 Estrutura composicional
Quanto à estrutura composicional, podemos dizer que houve um progresso
desde as primeiras produções dos alunos. No módulo “carta de esclarecimento”, a
maioria dos textos dos alunos apresentava os principais aspectos tais como local e
data, abertura com saudação, despedida e nome do remetente.
São Leopoldo, 22 de novembro de 2007.
Prezados senhores,
De acordo com a reportagem do dia 24/10/07, a embalagem do sorvete Cornetto Chococo apresenta o rótulo de “não
contém glúten”. Tenho recebido muitas reclamações no meu mercado, de clientes que foram lesados, e gostaria que
os senhores fizessem um desconto na próxima venda do produto.
Certo de sua compreensão, desde já agradeço,
J.R
7.3.4 Estilo
A “carta de pedido de esclarecimento” permitiu que os alunos escolhessem um
estilo de abordagem, entre mais, ou menos postulatório. Sendo que as concepções do
destinatário vão determinar o estilo do enunciado, nesse caso específico, o setor de
atendimento ao consumidor de uma grande empresa multinacional, vemos que o espaço
para inserção de elementos de individualidade mostrava-se restrito, mas podemos
perceber traços de autoria em todas as cartas. Podemos perceber os traços de
formalidade nas aberturas e nos fechamentos, com apresentação pessoal do remetente
(Eu, fulano de tal..), denotando o distanciamento entre o enunciador e o destinatário,
adjetivação formal na saudação e no uso de pronome de tratamento (V.Sas.) ao longo do
92
texto, assim como agradecimento formal (atenciosamente, grato, etc.).Vejamos um
exemplo:
À Unilever do Brasil
Prezados senhores,
Eu, A. G. S. de Lima, residente à rua Heitor Vila Lobos, Quadra 12, casa 10, São Leopoldo, venho por meio desta
solicitar a vossas senhorias providencias, pois um familiar adquiriu o produto Cornetto, Chococo e não sabia que o
produto continha glúten. Passou muito mal, teve febre, diarréia, enjôo e alergias. Gostaria de saber que providências
podemos tomar. Gostaria de saber que tipo de ressarcimento a empresa poderia fornecer dentro da lei em vigor no
Brasil, já que estamos tendo gastos com transportes, alimentação, medicamentos e exames clínicos.
Informo que estou no aguardo de resposta, por escrito, dentro de 10 dias úteis a contar do recebimento desta, pois a
omissão por parte de vossas senhorias acarretará em abertura de reclamação junto ao PROCON.
Certo de que meu pedido será aceito por vossas senhorias,
Atenciosamente,
A.
Abaixo temos a carta escrita por L. R., em primeira versão:
São Leopoldo, 27 de novembro de 2007.
À Unilever Brasil
Prezados Senhores,
Venho, por meio desta, pedir mais orientações para saber sobre as reações ao glúten, pois minha filha que gosta
muito de sorvete está mal com diarréia enjôo por ter consumido o produto com informações erradas.
Desde já agradeço sua atenção e espero ansiosamente uma resposta imediata.
Atenciosamente,
L. R. 1ª versão
Os alunos consideraram que o texto ficaria melhor se mencionasse que a
embalagem é que continha a informação errada, e também que a carta deveria
mencionar o produto sobre o qual ela estava reclamando. Com a ajuda dos colegas,
foram feitas as seguintes modificações:
São Leopoldo, 27 de novembro de 2007
À Unilever Brasil
Prezados Senhores,
Venho, por meio desta, pedir mais orientações para saber sobre as reações ao glúten, pois minha filha que gosta
muito de sorvete está apresentando sintomas como diarréia e enjôo depois de ter consumido o produto Cornetto
Chococo. O produto traz uma embalagem afirmando que não contém glúten.
Por gentileza, solicito informações sobre providências a serem tomadas.
Desde já agradeço sua atenção e espero uma resposta imediata.
Atenciosamente,
L. R. 2ª versão
93
7.4 Cartas para a coluna de Paulo Sant’Ana
No jornal Zero Hora, um colunista consagrou-se como sendo um dos que mais
recebe e publica cartas nas quais os leitores reclamam sobre os mais diversos
problemas. Como atividade preliminar para a escrita da carta, lemos alguns textos
publicados na coluna de Paulo Sant’Ana, que eram cartas de leitores
7.4.1 Contexto de produção
A tarefa proposta era a de que os alunos escolhessem um tema, que fosse
suficientemente relevante para suscitar a publicação do texto, e escrevessem a carta para
o colunista. Como o texto utilizado na tarefa preliminar de leitura do nero tratava dos
problemas da área da saúde, a maioria dos alunos optou por esse conteúdo temático,
que o Posto de Saúde do bairro também apresenta problemas. Vejamos um exemplo:
Prezado Paulo Santana,
Venho por meio desta carta lhe informar que os problemas de saúde pública continuam a mesma coisa, não
mudaram em nada. Pessoas amanhecem em frente ao posto de saúde para marcar consulta, às vezes vendem fichas
para outras pessoas. Os responsáveis por esse posto dizem que não adianta falar, reclamar, ou até chamar a polícia
ou repórteres é que eles não admitem demoraram para conseguir as tais consultas. Eles os responsáveis pelo posto
tentaram fazer com que as pessoas viessem marcar as consulta o dia todo, mas se chegavam e não tinham mais
fichas para médicos nenhum e teriam que retornar no mêoras na fila para pegar ficha e não conseguem seguinte,
sendo que alguns teriam que dormir ali para conseguir as tais fichas , não é justo as pessoas que não tem condições
de ter médicos à disposição do SUS amanhecer em um posto para consultar especialista. Paulo Santana sei que esse
não é o seu meio de comunicação mas é a você que recorremos para ajudar esse povo tão sofrido na saúde pública.
Desde já agradeço sua atenção
1ª versão
7.4.2 Conteúdo temático
No exemplo acima vemos que o conteúdo temático é relevante, estando de
acordo com o que o aluno já conhece sobre o tema e está relacionado com o lido na fase
preparatória da tarefa, mas a coerência textual fica comprometida por problemas de
apresentação do contexto de produção. Neste caso foram feitas modificações e o texto,
em segunda versão, apresenta-se da seguinte forma:
Prezado Paulo Santana,
Venho por meio desta carta informar-lhe que os problemas na saúde pública continuam a mesma coisa, não
mudaram em nada. Pessoas amanhecem em frente ao posto de saúde da Feitoria, em São Leopoldo, para marcar
consultas e, às vezes, vendem as fichas para outras pessoas .Os responsáveis por esse posto dizem que não adianta
falar e reclamar ou até chamar a polícia. As pessoas ficam horas na fila para pegar ficha e não conseguem e então
tem de voltar no dia seguinte. Os responsáveis pelo posto tentaram fazer com as pessoas viessem marcar as
94
consultas o dia todo, mas se chegam depois não há mais fichas para médico nenhum. Não é justo que as pessoas que
não tem condições de ir a um médico particular tenham que amanhecer nas filas para marcar consulta.
2ª versão
Vemos nessa segunda versão que os alunos conseguiram perceber que
precisavam “situar” o interlocutor para que o entendimento sobre o problema ocorresse
de modo satisfatório. Nessa carta aparece mencionado qual o posto de saúde e onde
ele se localiza.
Em segunda versão, temos também um texto que não apresenta muitos
elementos esclarecedores do contexto, que façam com que o interlocutor obtenha
informação suficiente da situação de modo a solidarizar-se com o enunciador. Vejamos
o exemplo:
Prezado Paulo Sant’Ana
Estou escrevendo-lhe para falar sobre um posto de saúde no município de São Leopoldo porque acho uma falta de
consideração com as pessoas que freqüentam grandes filas em postos de saúde.
Isso já vem acontecendo há anos nada ainda foi feito para melhorar.
Parabéns pelo teu trabalho e por todos os dias lutar conosco através de suas colunas.
2ª versão
7.4.3 Estrutura composicional
Quanto à estrutura composicional, algumas cartas apresentaram a omissão de
cabeçalho com local e data, mas havia a presença do vocativo. Este fato pode ter
ocorrido por causa do texto utilizado na tarefa de leitura preliminar, pois local e data
costumam aparecer no final do texto, quando Paulo Sant’Ana fornece os dados de
identificação do leitor que manda a carta.
7.4.4 Estilo
As cartas apresentavam traços de formalidade, marcantes do distanciamento
entre enunciador e destinatário, o que demonstra que os alunos percebiam a relação de
assimetria entre os interlocutores. Pode-se notar a adjetivação formal na saudação
(prezado), uso do pronome oblíquo (lhe). Os fechamentos/despedidas apropriados. Os
textos ainda apresentaram problemas de pontuação e de alternância de usos de
pronomes de 2ª pessoa e 3ª pessoa (teu, suas). Abaixo, temos um dos exemplos:
São Leopoldo, 27 de novembro de 2007.
95
Prezado Sant’Ana
Estou escrevendo-lhe para comunicar que a UBAM (Unidade Básica de Atendimento Médico) de nossa
comunidade está apresentando problemas de atendimento médico em geral. Comunico que para conseguir ficha para
qualquer situação é impossível. Para conseguir ficha é preciso madrugar na fila e para muitas pessoas é impossível
isso porque necessita de alguém para conseguir ficha, também comunico o atendimento dos médicos é ruim
muitas reclamações de pessoas que também necessitam da carteirinha do SUS muita gente não tem ou o carrega
junto e quando precisa ir ao posto de saúde não são atendidos por falta da carteira. Isso também tem prejudicado
muitas pessoas por não ter a carteira.
Nossa comunidade precisa de alguém que nos ajude a resolver esse problema.
Agradecemos pela sua atenção,
A., F., F., K.
2ª versão
7.5 Cartas reclamatórias
A última tarefa de escrita proposta foi a das “cartas reclamatórias”. Os alunos
poderiam escolher sobre o que reclamar. A turma chegou a um consenso de que as
reclamações geralmente acontecem em relação a produtos comprados e não entregues
ou que apresentam defeitos. Todos conheciam um caso para relatar. Outra situação
comum que constatamos foi em relação a empresas de telefonia, por cobrança indevida
ou cobrança por ligações não feitas. Havia ainda o caso de reclamações a empresas de
TV a cabo.
Baseada no levantamento inicial, eu fui em busca de textos que pudessem
servir de exemplo para a carta. Havia a dificuldade de obter cartas reclamatórias
originais, pois as empresas não costumam liberar dados sobre correspondência recebida,
seja em forma de carta ou e-mail. Os exemplos são de cartas disponibilizadas na
Internet. Como a estrutura composicional não iria apresentar grandes variações, a
intenção era analisar conteúdo temático e a abordagem, juntamente com as marcas
lingüísticas.
7.5.1 Contexto de produção
Os alunos deveriam escrever uma carta reclamatória para uma empresa de
telefonia, de TV a cabo ou ainda para uma loja reclamando sobre um produto.
Vejamos os exemplos:
Prezados senhores,
Venho comunicar que no dia 15 de novembro foi comprada uma assinatura de TV a cabo e, ao passar uma semana
minha TV não pega os devidos canais. Sendo que a mensalidade está em dia, solicito que a empresa tome as devidas
96
providências.
Obrigada pela atenção
L.L. e F. S.
7.5.2 Conteúdo temático
Quanto ao conteúdo temático, algumas cartas mencionavam o assunto no
cabeçalho, que é uma das formas composicionais que facilita o direcionamento das
correspondências dentro das empresas. Na maioria delas a apresentação da
reclamatória já na introdução do texto, seguido de argumentos. Vejamos um exemplo:
São Leopoldo, 28 de novembro de 2007.
Assunto: Mensalidades pagas e canais não disponíveis
Prezados Senhores,
Venho, por meio desta, pedir uma análise para saber porque os canais de TV a cabo, que comprei no dia 8 de julho de
2007, não estão disponíveis duas semanas, mesmo estando com as mensalidades em dia. Quando comprei me
falaram que eu estava fazendo uma ótima compra, pois haveria canais de diversão, filmes internacionais, desenhos e
outros.
Agora consigo assistir canais de esportes e minha filha, que gosta muito de desenho, fica me perguntando quando
vou arrumar. Por isso peço que o problema venha a ser resolvido o mais rápido possível, caso contrário serei obrigada
a anular a assinatura, pois o combinado não foi ficar com meia dúzia de canais.
Desde já agradeço,
L. R
Em outro caso, a reclamatória para loja e não para prestadora de
serviço.Podemos perceber que a situacionalidade (tempo/espaço de enunciação)
presente garante a interlocução. Vejamos:
São Leopoldo 25 de novembro de 2007.
A.G. S. de L.
Rua Heitor Vila Lobos,10
São Leopoldo – RS
À Benoit Ltda.
Rua 1º de março, 1324
Prezados senhores,
No dia 10 de outubro, dirigi-me ao seu estabelecimento, com a intenção de adquirir uma televisão de 42
polegadas. Após escolher o modelo que me interessa, fui informado de que ao comprar a televisão ganhava um
DVD. Assinei a nota de encomenda e paguei à vista o valor de 4.999 reais (quatro mil, novecentos e noventa e
97
nove reais) no dia 15 de outubro. Foi-me entregue a TV encomendada mas não veio o meu prêmio (DVD).
Perante o ocorrido, aceitei a TV, mas reclamei que o prêmio não veio junto e solicitei que me fosse entregue o
mais depressa possível. Na loja falaram que iam me entregar o mais depressa possível, o mais tardar, até o final
do mês, mas continuo à espera.
Como é evidente o atraso na resolução do problema, tem trazido diversos transtornos à minha família. Por isso
venho exigir que o DVD seja entregue sem falta, dentro dos próximos 5 dias, caso contrário acarretará abertura
de reclamação junto ao PROCON.
Sem outro assunto de momento
A. G. S. de L.
No caso do conteúdo temático, a abordagem foi criativa, demonstrando
conhecimento sobre a dinâmica do comércio que, para incrementar as vendas, costuma
oferecer brindes para os consumidores. O direito de consumidor a ser respeitado é
conhecido pelo consumidor, que menciona o órgão de defesa, o PROCON. Ocorre
incoerência quanto ao valor pago pela TV e isto não foi alterado na 2ª versão da carta.
7.5.3 Estrutura composicional
Embora tendo sido apresentada ao longo das oficinas, alguns alunos
continuavam escrevendo as cartas sem localização espaço-temporal (local e data). Na
carta acima, por exemplo, o enunciador não “situa” o destinatário, prejudicando assim o
objetivo comunicativo.
Em outros casos ocorria a apropriação da estrutura composicional dos textos-
base. Abaixo, temos uma carta que apresenta outro tipo de estrutura composicional
típica. Vejamos os exemplos:
São Leopoldo, 29 de novembro de 2007.
Assunto: esclarecimento sobre TV a cabo.
Prezados Senhores,
No dia 24 de novembro, dirigi-me ao estabelecimento BIG-São Leopoldo para fazer a assinatura da TV a cabo
(SKY). Após fazer o acordo que me agradou, assinei o contrato, mas, após duas semanas, percebi que estava sendo
privada de ver alguns canais, mesmo tendo a mensalidade em dia.
Perante tal fato, solicito esclarecimento,
Desde já muito obrigado.
F.B. de O
São Leopoldo, 28 de novembro de 2007
Assunto: Conta de telefone com valor excedido
Prezados senhores,
Venho pela presente comunicar-lhes que, no dia 19 de outubro do ano corrente, recebi uma conta de telefone com
98
98
valores exorbitantes relativo a chamadas que tenho certeza de não havê-las feitos. Por isso, pedi a companhia um
relatório detalhado da conta.
Sendo que até o momento não obtive nenhuma resposta, continuo aguardando com urgência um contato, evitando
assim os meios legais.
Sem mais, agradeço.
Atenciosamente,
I.S da R
7.5.4 Estilo
Ainda que o estilo presente em gêneros mais formais permita pouca variação,
podem-se notar traços de autoria nos textos produzidos. Houve a escolha por uma
linguagem mais objetiva e clara, denotadora do distanciamento entre enunciador e
destinatário. escolhas lexicais mais cuidadosas, com o uso de um vocabulário
ausente no discurso cotidiano (exorbitante, averiguar, verificar, etc.).
Vejamos um exemplo:
São Leopoldo, 29 de novembro de 2007.
E. M. da S. F.
Rua Mali, 14, Bairro Feitoria-Cohab
Prezado Senhores,
No dia 12 de outubro comprei a assinatura de diversos canais de TV a cabo e até agora não recebi. O atraso tem
trazido diversos transtornos à minha família. Por isso exijo que este problema seja resolvido, pois pago as
mensalidades em dia. Espero que esteja resolvido imediatamente, caso contrário tomarei providências, estou no
aguardo de resposta por escrito dentro de 10 (dez) dias úteis.
Estou certa de que meu pedido será aceito
E. M. da S. F.
No caso acima, percebemos o discurso menos mitigado, no qual o caráter
assimétrico entre consumidor/enunciador e empresa prestadora de serviço/destinatário é
marcado pela exigência do cumprimento do contrato firmado entre as partes, com a
argumentação de que o contratante “paga as mensalidades em dia”. Vejamos outro
exemplo:
São Leopoldo, 28 de novembro de 2007.
À Brasil Telecom,
99
Eu, D. L., residente nesta cidade na rua Rodolfo Müller, Q 97, casa 13 B, venho por meio desta solicitar a vossas
senhorias providências referente à conta telefônica de nº 357505 dos dois últimos meses pois a soma está muito
elevada.
Queria saber detalhes desta fatura telefônica, acredito que tenha algo de errado. pedi detalhes da fatura e até agora
não fui atendida.
Informo que estou no aguardo da resposta por escrito dentro de dez dias úteis.
Certa de que serei atendida, agradeço desde já,
D. L.
No caso acima, escolha lexical mais formalizada, marcada notadamente por
palavras como “providências” “vossas senhorias”, “soma” e “fatura”; também temos o
caráter modalizador, marcado pelo tempo verbal do pretérito perfeito do indicativo do
verbo querer, “queria”. Vemos que o texto produzido está de acordo com o contexto de
produção.
Vejamos outro exemplo:
São Leopoldo, 28 de novembro de 2007.
Prezados senhores:
Eu, D. G. residente na Rua Pontes de Miranda, casa 18, nesta cidade, venho por meio desta solicitar aos senhores o
esclarecimento referente à soma avultada da minha conta telefônica, pois nela constatei que foram feitas ligações para
telefones celulares. Nos dois últimos meses eu não utilizei o telefone, pois estava viajando.
Aguardo resposta dentro de 10 (dez) dias úteis a contar do recebimento desta.
Certa de seu pronto atendimento, antecipadamente agradece,
D. G.
Podemos perceber no texto acima a busca pela formalidade de estilo no
vocabulário, com os exemplos “soma avultada”, “constatei”, “utilizei”
‘antecipadamente”.
Nas cartas escritas pelos alunos podemos notar que houve um progresso no
entendimento de que o contexto de produção deve estar bem delineado para que o
propósito comunicativo seja atingido. Pode-se perceber que houve ampliação dos
conhecimentos através das leituras propostas nas atividades preliminares e utilização
destes conhecimentos no desenvolvimento do conteúdo temático, bem como a
mobilização dos conhecimentos prévios. Houve progresso também no aprendizado da
estrutura composicional e, ainda que as cartas apresentassem paráfrases do texto-base,
houve progresso no quanto ao uso dos recursos lingüísticos apropriados à instância
100
pública. Os problemas de pontuação observados na sondagem inicial continuaram
presentes.
101
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo da realização deste trabalho posso dizer que alguns aspectosDepois
de passado algum tempo algumas coisas tornaram-se mais claras para mim. Apesar de
ter ficado satisfeita com o resultado geral, não posso deixar de tecer alguns comentários
sobre as situações que ficaram aquém das minhas expectativas. É sobre os acertos e
erros que pretendo discorrer neste capítulo.
Nas tarefas de leitura organizadas para o módulo “cartas do leitor”, o problema
maior foi ter apresentado as revistas sem uma seleção prévia dos textos a serem lidos.
Por esse motivo os alunos perdiam tempo procurando o que comentar, porque eles
tinham que ler primeiramente as notícias para ativar conhecimentos prévios. Como a
tarefa foi realizada em duplas ou em grupos, ficou ainda mais difícil a seleção, porque
alguns alunos não entravam em acordo em relação ao texto a ser comentado. Além
disso, a leitura não garantia a ativação de conhecimentos prévios e o esclarecimento
sobre o texto era necessário. No entanto, comentei vários textos que não foram
utilizados posteriormente. Alguns textos eram muito complexos e nem sempre o
problema era em relação ao léxico. Para garantir a autenticidade dos textos
produzidos eu solicitava que o exercício de escrita fosse realizado em sala de aula. Por
questão de tempo, a escolha prévia dos textos teria facilitado o trabalho
Um aspecto positivo em relação às tarefas de leitura é que foi proporcionada
aos alunos uma grande variedade de textos para serem lidos, exemplificando os
subgêneros da carta, todos comentados e discutidos amplamente, com o objetivo de
levar os estudantes a realizarem as inferências relevantes à atividade. Nesse caso,
considero que o trabalho com a seqüência didática foi bem mais abrangente do que eu
supunha a princípio, que o exercício de escrita implicava um período de leitura e
estudo do gênero. Nos momentos de preparação das atividades escritas fizemos
discussões sobre diversos assuntos que propiciaram aprendizagens bem mais amplas,
como no caso de escritores que os alunos não conheciam e que foram comentados,
aspectos das suas vidas, momentos políticos específicos. Também quero destacar a
atividade de leitura de artigos do código de defesa do consumidor, que serviu de
introdução para o trabalho com as cartas reclamatórias.
102
Quanto aos aspectos de realização de uma escrita como prática social, acredito
que a seqüência didática atingiu os objetivos propostos. Os alunos escreveram textos de
acordo com seus contextos sociais, dentro de uma perspectiva real de comunicação.
Apesar disso, ainda que não fossem os aspectos mais relevantes da aprendizagem na
seqüência didática, pude constatar que os conteúdos lingüísticos que apresentavam
problemas, como as frases fragmentadas, persistiram mesmo depois de realizações
coletivas de escrita ou de reescrita.
Como comentado ao longo desta dissertação, um dos problemas da EJA é a
infreqüência dos alunos. Acredito que foi um fator positivo o fato de ter elaborado a
seqüência em módulos menores, tratando dos subgêneros, o que permitia um
movimento de retomada dos conteúdos a cada nova aula. Isso não só servia como
reforço, mas também permitia aos alunos o resgate, pelos ausentes, do que não havia
sido visto. Como entrada de alunos novos em qualquer época, e também a troca
de etapas durante todo o período letivo, uma seqüência organizada em módulos menores
facilita o trabalho de organização das aulas.
Um fator, desconsiderado por mim, e bastante relevante para a realização da
pesquisa, foi o cansaço. Como o trabalho foi feito no período noturno, eu tive o cuidado
de reescrever os dados coletados no meu diário de campo, como eu havia sido orientada
a fazer, sempre que chegava da aula com os alunos. No entanto, esse trabalho tomava
muito tempo e eu muitas vezes precisava reelaborar as aulas do dia seguinte. O cansaço,
somado à falta de experiência como pesquisadora, fizeram com que eu não fosse tão
cuidadosa em relação aos dados coletados nas gravações e, como não transcrevi
imediatamente o que havia gravado, não percebi a baixa qualidade do material coletado.
Eu ressalto aqui, no entanto, que o fato de sempre repensar as tarefas e reelaborá-las
quando foi preciso, foi positivo: ter sempre “um plano B” faz diferença quando não se
sabe quantos alunos vieram, se vai ou não ter jogo na TV...
Essa falha foi compensada com os dados registrados no meu diário de campo e
pelos questionários respondidos pelos alunos. Através das respostas deles podemos
perceber qual a percepção da turma em relação ao processo de ensino-aprendizagem e
os reflexos disso no seu letramento. O que não podia ser ouvido nas gravações podia ser
recuperado através das anotações feitas. Acredito que dois fatores contribuíram para que
eu pudesse relatar essa experiência: eu conhecia bem o ambiente em que realizei a
pesquisa e havia sido professora dos alunos que participaram do projeto. Sempre no
início do semestre letivo eu peço que os alunos preencham um questionário com o
103
objetivo de organizar um perfil das turmas. Além de aspectos pessoais como, estado
civil, filhos, emprego, lugar onde trabalham, procuro descobrir aspectos culturais que
podem influenciar na elaboração das tarefas. Esse questionário preliminar me ajuda a
conhecer melhor cada turma para poder adaptar as atividades. Solicitar trabalhos
digitados quando a maioria não tem computador, organizar uma festa de Halloween
para uma turma de evangélicos, planejar conteúdos novos para as sextas-feiras (muitos
alunos não vêm à escola às sextas-feiras por motivos religiosos) são propostas que
podem, por exemplo, transformar uma aula em problema. Por isso, sempre solicito a
carta de apresentação dos alunos, que proporciona um maior conhecimento, não dos
estudantes, mas da comunidade onde a escola está inserida.
Apesar disso, acho que faltou um “segundo olhar”. Se fosse realizar a pesquisa
hoje, levaria comigo alguém como observador. Como tive que fazer o papel de
professora e pesquisadora ao mesmo tempo, acho que muitas vezes a minha análise
pode ter ficado comprometida. Talvez a observação de outro pesquisador pudesse
ajudar, que não pude ver o e ouvir tudo o que se passou e posso ter visto e ouvido
mais o que me interessava.
Relutei em apresentar a proposta da seqüência porque considerava que ela seria
grande desastre. O fato de ter demorado no planejamento das oficinas aumentou ainda
mais a minha desconfiança, principalmente porque a pesquisa coincidiu com o final do
semestre e do ano letivo. A proposta da oficina era ousada, levando-se em conta o fato
de que os alunos deveriam produzir os textos em sala de aula. Escrever exige disposição
e fazer essa atividade à noite é extremamente cansativo. Além disso, a seqüência previa
várias tarefas de escrita o que poderia levar os alunos a abandonarem as aulas. A
motivação é o que os leva para a sala de aula. O conselho tutelar não vai chamar os pais
para obrigá-los a irem à escola. Como eu utilizaria períodos de aula de outros
professores isso implicava também a realização de tarefas a distância das outras
disciplinas; ou seja, mais trabalho a ser feito. Eu achava que era uma boa idéia a
seqüência didática, no meu ponto de vista relevante sob muitos aspectos, mas, e os
alunos, achariam o mesmo?
Se por um lado não posso ter todos os depoimentos das entrevistas realizadas
nas gravações, por outro as produções escritas realizadas mostram que os alunos
participaram das atividades com interesse. Enfim, foi positivo, dentro daquele contexto
específico, naquele momento. Concluo com isso que, tanto o gênero a ser trabalhado,
quanto as tarefas elaboradas a partir dele, devem estar de acordo com o contexto onde
104
serão utilizadas. Devem ser como respostas a perguntas do momento presente e esse é o
aspecto mais problemático nessa modalidade de ensino.
Para elaborar um plano de conteúdos para o ensino de EJA é preciso que se
conheçam as especificidades das turmas de jovens e adultos, assim como as
especificidades do contexto socioeconômico e cultural no qual a turma está inserida. O
trabalho de planejamento não é simples, nem é pouco. No entanto, no caso específico de
São Leopoldo, as aulas são ministradas apenas por professores no sistema de extensão
de carga horária, para o qual os professores contam apenas com 2 horas de
planejamento por semana, para elaborar aulas, corrigir trabalhos, provas, etc. Se os
professores trabalham em regime de extensão de carga horária à noite isso implica dizer
que esse professor trabalha em outro turno, no ensino regular, ou seja, tem dois tipos
de planejamento, trabalhos diferentes a serem elaborados, provas diferentes, etc. Os
conteúdos no ensino regular não precisam de “filtragem”: tudo para ser
ensinado/aprendido. Na EJA o professor deve repensar o que para ser
ensinado/aprendido, partindo de um conhecimento de mundo que os alunos já trazem na
bagagem.
Acredito que pude realizar o trabalho porque ele foi feito como parte de uma
pesquisa. Eu tive que solicitar afastamento das aulas para elaborar todo o projeto e
ministrar as oficinas. O planejamento e as correções levaram muito mais do que as duas
horas semanais que os professores têm para fazer esse trabalho. Além disso, eu realizei
as oficinas em apenas uma turma e isso significa que o trabalho seria bem maior se eu
tivesse produções textuais de 7 turmas
28
para corrigir.
Como solução para esse problema, sugeri que fizéssemos as oficinas como
parte de um projeto, que funcionaria às segundas-feiras na escola, durante o período em
que os professores estão em reunião. Todas as escolas têm opção de elaborar projetos de
acordo com o seu interesse. O professor é remunerado de acordo com a carga horária
dedicada ao projeto. As aulas funcionariam em módulos e os alunos freqüentariam de
acordo com seus interesses. A participação nos projetos da escola não é obrigatória e
cabe aos professores fazerem a divulgação dos cursos e convidarem os alunos para
participar. O projeto foi aprovado pela escola, mas não foi realizado porque eu era a
única professora disponível na escola para trabalhar às segundas-feiras à noite, que
28
Com o sistema de isonomia de carga horária, adotado em São Leopoldo, todas as disciplinas m dois
períodos semanais. Nesse caso, o professor deve dar aulas para 7 turmas semanalmente. Como um dos
dias da semana é reservado para reuniões, o professor deve ainda elaborar tarefas a distância, que são
feitas pelos alunos para compensar a aula das segundas-feiras.
105
não estava mais no quadro de professores, porém eu não pude organizar as atividades
por causa de outros compromissos.
A escola deu total apoio para a realização da pesquisa e os alunos estavam
muito envolvidos com o trabalho. Esperava que houvesse maior resistência por parte
dos alunos, principalmente porque eles muitas vezes acham que as aulas de Língua
Portuguesa devem ser restritas aos exercícios de gramática. Por isso, gostaria de ter
testado o projeto com outras turmas, para poder comparar os resultados e experimentar
outros gêneros para escrita.
A pesquisa realizada mostra que o a introdução de uma prática de uso de cartas
favoreceu o desenvolvimento de uma escrita funcional, levando os alunos a
compreenderem melhor os aspectos envolvidos nas diferentes possibilidades de uso de
um gênero constitutivo de uma prática social. A utilização da seqüência possibilitou que
os conteúdos fossem abordados em módulos, o que permitiu identificar as dificuldades
dos alunos quanto à apreensão das características lingüístico-discursivas envolvidas na
escrita das cartas. A organização das oficinas em módulos foi uma maneira interessante
de abordagem pedagógica, porque permitia avanços e retomadas de conteúdos,
permitindo o acompanhamento das tarefas até pelos alunos menos assíduos.
A situação concreta de comunicação em que se apoiou o trabalho permitiu que
os alunos conhecessem as dificuldades da tarefa e desenvolvessem a autoria no processo
de produção, buscando soluções que atendessem às novas situações comunicativas que
eram apresentadas. Além disso, o trabalho estava focado na produção textual, mas, de
forma mais ampla podemos dizer que a seqüência didática permitiu também a
ampliação do repertório lingüístico e cultural dos alunos, através das variadas leituras
feitas como preparação para a escrita das cartas.
Podemos destacar também que houve um diálogo com outros gêneros e outras
linguagens, já que utilizamos diversos suportes, que utilizamos para o trabalho
computador, revistas, livros, vídeo, proporcionando outras possibilidades de
aprendizagem. O trabalho de escrita, seguido das revisões e refacções serviram para
fazer com os alunos percebessem que o texto não é fruto de inspiração e tampouco
depende de um dom especial; que planejar a escrita faz parte do processo de produção
do texto, pensar o que se quer dizer e a melhor maneira de fazê-lo; que reescrever pode
tornar mais claro, enfim, que escrever se ensina e se aprende. A introdução das cartas
como objeto de ensino-aprendizagem de produção escrita favoreceu o posicionamento
crítico dos alunos, mediante o uso que fizeram das capacidades de sustentação e
106
refutação de pontos de vista sobre os diferentes assuntos abordados durante as
discussões que antecediam as produções, como também durante a escrita.
Para finalizar, entendemos que o conhecimento de um gênero deve ser visto
sob a perspectiva das condições de produção, de seus domínios comunicativos e dos
aspectos formais implicados. Desse modo, o trabalho didático de ensino deve ser
elaborado de modo a considerar esses aspectos, para possibilitar que os alunos
percebam que a escrita vai ser moldada de acordo com eles. O trabalho de intervenção
didática foi elaborado com esse objetivo. Também procurou proporcionar aos alunos
acesso a práticas reais de comunicação, não-escolarizadas, trabalho no qual a escrita não
fosse apenas uma atividade da aula de Língua Portuguesa e sim uma ressignificação do
letramento, que os conhecimentos adquiridos servissem para enfrentar novos problemas
e atuar no mundo, enfim, que alunos jovens e adultos pudessem exercitar de modo mais
pleno a cidadania.
107
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