Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE FEDERAL DE PELOTAS
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais
Dissertação
“Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”:
Sobre afecção na etnografia dos processos de feitura da pessoa
de religião no Batuque, em Pelotas/RS
Marília Floôr Kosby
Pelotas, 2009
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
2
MARÍLIA FLOÔR KOSBY
“SE EU MORRER HOJE, AMANHÃ EU MELHORO”
Sobre afecção na etnografia dos processos de feitura da pessoa de religião no
Batuque, em Pelotas/RS
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de Pelotas,
como requisito parcial à obtenção do
título de Mestre em Ciências Sociais.
Orientadora: Profª. Drª. Flávia Rieth
Pelotas, 2009
ads:
3
Banca examinadora:
Profª. Drª. Flávia Rieth
Prof. Dr. Marcio Goldman
Prof. Dr. Mário Maia
Prof. Dr. Rogério Reus Gonçalves da Rosa
4
Para Dedé Kosby (1927-1993) e Ivone Floor, minhas avós.
5
Agradecimentos
Por certo, e felizmente, este trabalho não poderia ter sido escrito sem
que eu pudesse ter contado com a presença de outras pessoas muito
importantes na caminhada que o construiu. Familiares, amigos, colegas de
trabalho, pessoas de religião, companheiros que muitas vezes precisaram se
descolar dessas posições para melhor visualizar as demandas que este
investimento carregou. Assumo, assim, os riscos que possa ter negligenciado e
os erros que possivelmente cometi, isentando essas pessoas das
conseqüências dos cuidados que não tive.
Duas presenças se fizeram especiais, a de Flávia Rieth, e a de Viviane
Dutra: a primeira, me apresentou a antropologia, a segunda, o Batuque. Mas
muito mais que isso, ambas aceitaram, quando foi preciso, experimentar o que
puderam do pensamento uma da outra, aprendendo junto comigo – e me
orientando - sobre os chãos onde eu me movimentava. Agradeço pela
dedicação das duas, sem deixar de lamentar os momentos em que as
preocupei.
A presença do amigo e colega Edgar Barbosa Neto foi também muito
importante por aquilo que compartilhamos, das experiências e leituras aos
caros e necessários silêncios. Junto dele, o Prof. Marcio Goldman, pelo
respeito para com as pessoas com as quais estudamos e pelas orientações
etnográficas, foi alguém de significativa presença na tomada de perspectiva
deste trabalho.
Agradeço, portanto, aos meus pais, ao meu irmão e aos familiares que
estiveram do meu lado. Aos grandes amigos, que aprenderam a viver algumas
situações junto comigo, sem que isso enfraquecesse o carinho e o respeito
mútuo que nutrimos. Por fim, agradeço ao pessoal das terreiras com as quais
pesquisei, e peço desculpas sinceras pelas possíveis imprecisões.
6
“... da morte, apenas
Nascemos, imensamente.
(Vinícius de Moraes)
7
Resumo
Kosby, Marília Floôr. Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”: Sobre
afecção na etnografia dos processos de feitura da pessoa de religião no
Batuque, em Pelotas/RS. 2009. 120f. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal de Pelotas,
Pelotas.
Esta dissertação de mestrado se trata de um trabalho etnográfico sobre
situações de afecção relacionadas à etnografia dos processos de feitura da
“pessoa de religião” no Batuque, religião de matriz africana que se desenvolveu
no Rio Grande do Sul. A pesquisa foi realizada em terreiras na cidade de
Pelotas/RS, entre os anos de 2006 e 2008, e descreve processos em que a
antropóloga esteve afetada pelas mesmas forças que afetaram os nativos com
os quais pesquisava. A feitura da “pessoa de religião” é conjunto de processos
- entre eles os ritualísticos - pelos quais passa alguém que se inicia na religião
de culto aos orixás, e que configuram a construção de uma pessoa múltipla,
estruturada pelo assentamento dos seus orixás. No período pelo qual o iniciado
passa pelos rituais iniciáticos, enquanto filho-de-santo, e de obrigação, depois
de “pronto”, muitos são os perigos que a vida oferece, por se tratar de um
processo de aprendizagem, em que se está aprendendo a viver como “pessoa
de religião”. Entre estes riscos está o de ser enfeitiçado, processo vivenciado
pela autora e descrito nesta dissertação.
Palavras-chave: religiões de matriz africana – Batuque – afecção – etnografia –
orixá
8
Abstract
Kosby, Marília Floôr. Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”: Sobre
afecção na etnografia dos processos de feitura da pessoa de religião no
Batuque, em Pelotas/RS. 2009. 120f. Dissertação (Mestrado) - Programa de
Pós-Graduação em Ciências Sociais. Universidade Federal de Pelotas,
Pelotas.
This master dissertation is an ethnographic work about cases of affection
related to the ethnography of the processes of making the "pessoa de religião"
in Batuque, an African matrix religion developed in Rio Grande do Sul. The
survey was conducted in terreiras in the city of Pelotas/RS, between 2006 and
2008, and describes cases in which the anthropologist was affected by the
same forces that affected the natives with whom she researched. The making of
the "pessoa de religião" is a set of processes – including the ritualistic ones – by
which someone who gets started into the religion of worship to orixás passes,
and that shapes the construction of a multiple person, structured by the
assentamento of his orixás. In the period during which the iniciado goes through
the initiatory rituals, while filho de santo, and of obligations, after "pronto", life
offers many dangers, since it is an apprenticeship process, in which he is
learning to live as a "pessoa de religião". Among the risks, there is the one to be
bewitched, process experienced by the author and described in this
dissertation.
Keywords: African matrix religions – Batuque – affection – ethnography – orixá
9
Sumário
Introdução .......................................................................................................8
Capítulo I
O campo, os agentes, a experiência .....................................................12
Considerações teóricas e metodológicas ..............................................24
Sobre “eu”: entre pessoas e não-pessoas, lugares e não-lugares .......31
Capítulo II: “Nós podemos começar as coisas na morte”: a Cabinda e as
encruzilhadas ...................................................................................................43
“É cada um no seu lugar”: mas e quando os territórios se sobrepõem no
tempo? ..................................................................................................50
“Eu preciso morrer, eu tenho que morrer”: desterritorializações,
recomeços, infinitudes ...........................................................................60
Capítulo III: “E o recado está dado”: sobre dom e feitura e os processos de
iniciação no Batuque, em Pelotas ....................................................................70
Capítulo IV: “Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”
O evento ................................................................................................85
As explicações e as terapêuticas ..........................................................90
O feitiço, o egun e o alívio .....................................................................94
Entre lembrar e ter que esquecer, saber e não pensar: aprendendo a
viver como pessoa de religião ...............................................................99
Conclusão .....................................................................................................110
Referências ...................................................................................................115
10
Introdução
Comecei a pesquisar com religiões de matriz
1
africana em Pelotas/RS e
região em 2006, trabalho que resultou em minha monografia de graduação em
Ciências Sociais: Nós cultuamos todas as doçuras: a contribuição negra para
a tradição doceira de Pelotas. Tratou-se de um trabalho etnográfico que
descreveu o encontro entre os doces de Pelotas bens que estavam sendo
inventariados pelo Inventário Nacional de Referências Culturais - produção de
doces tradicionais pelotenses e as religiões de culto aos orixás na cidade e
região, mais especificamente o Batuque ou Nação.
Desde então, percorri uma trajetória de pesquisa com o Batuque, a
Umbanda e outras modalidades de religiões desse tipo, que envolveu a
elaboração de alguns artigos para as disciplinas que cursei para o Mestrado
em Ciências Sociais. O investimento teórico e empírico despendido nessa
trajetória, bem como algumas subversões dele, subsidiam o trabalho de
construção desta dissertação, cujo objetivo principal é descrever como a
constatação de que eu estaria enfeitiçada levou-me à possível iminência de me
iniciar no Batuque. A dissertação que se segue não será uma soma dos
resultados dos trabalhos anteriores, pelo contrário, mostrar-se-á como a
desconstrução de alguns objetivos calcados em premissas metodológicas que
se apóiam em idéias como a de um devido distanciamento entre etnógrafo e
nativo, ou seja, de uma ilusória e mensurável objetividade que faz do saber
nativo apenas objeto do conhecimento científico.
O primeiro capítulo deste trabalho é dividido em três partes. A primeira
delas trata de anunciar o universo da pesquisa, seus agentes e as experiências
que o recortaram. Antes de mais nada, creio ser importante deixar claro
nessa introdução que menos do que um grupo de pessoas delimitado por um
sistema religioso fechado em si, ou um conjunto de elementos dogmáticos
hermeticamente organizados, minhas perspectivas acompanham o
pensamento, as filosofias do pessoal de religião
2
, seu modo de viver e
1
Matriz no sentido geracional e transformacional.
2
Durante o desenvolvimento do trabalho serão observadas as categorias pessoa de religião
(no singular), pessoal de religião (no coletivo) ou mesmo o predicativo de religião. Tais
11
aprender a viver, resultante, a partir dos conceitos de Félix Guattari, segundo
Márcio Goldman,
de um criativo processo de reterritorialização, efetuado a partir da
brutal desterritorialização de milhões de pessoas em um dos
movimentos que deram origem ao capitalismo, a saber, a exploração
das Américas com a utilização do trabalho escravo. Frente a essa
experiência mortal, articularam-se agenciamentos que combinaram,
por um lado, dimensões de diferentes pensamentos de origem
africana com partes dos imaginários religiosos cristão e ameríndio, e,
por outro, formas de organização social tornadas inviáveis pela
escravização com todas aquelas que podiam ser utilizadas, dando
origem a novas formas cognitivas, perceptivas, afetivas e
organizacionais. Tratou-se, assim, de uma recomposição, em novas
bases, de territórios existenciais aparentemente perdidos, do
desenvolvimento de subjetividades ligadas a uma resistência às
forças dominantes que nunca deixaram de tentar a eliminação e/ou a
captura dessa fascinante experiência histórica. (2005b)
Dentro do que se convencionou chamar de religiões afro-brasileiras, o
Batuque, ou a Nação, como também é conhecida no Rio Grande do Sul a
religião de culto aos orixás como forças smicas da natureza, comunga de
alguns aspectos que de certa forma permitem alocá-lo dentre tantas outras
experiências marcadas pela presença de africanos e seus descendentes no
Brasil - o que não exclui estes territórios africanos de existência em outros
países da América Latina, como Cuba, Uruguai, Peru, Colômbia e mesmo a
Argentina.
Na etapa seguinte, trago algumas considerações teóricas que sustentam
minhas opções metodológicas, tais como o conceito de cultura que considero e
a concepção que tenho de trabalho etnográfico. Encerro então o primeiro
capítulo discorrendo sobre o processo de escrita da etnografia e sua
simultaneidade com o trabalho de campo, abordando esses assuntos a partir
da noção de “afecção” sugerida por Jeanne Favret-Saada e defendida por
outros autores também discutidos aqui.
Na seqüência, o segundo capítulo, intitulado “Nós podemos começar as
coisas na morte”: a Cabinda
3
e as encruzilhadas parte do conceito de
denominações são utilizadas por pais-de-santo, filhos-de-santo, clientes das terreiras e demais
pessoas que vivem de alguma forma, e em diferentes graus, de acordo com alguns
pressupostos afro-religiosos brasileiros, para apontar a si mesmas e aos outros que participam
desse modo de vida.
3
Apesar de ter tido contato com casas de outras nações, como je e Jêje com Ijexá, e de as
diferenças e semelhanças entre as diversas nações de Batuque não serem a tônica deste
12
encruzilhada, apresentado por José Carlos Gomes dos Anjos, para pensar
como o pessoal de religião pensa suas operações de transformação, suas
determinações de tempo, como começos e iniciações. Tomando as
encruzilhadas como não-lugares chega-se ao conceito de desterritorialização
como operador dos devires que contemplam a potência transformacional das
religiões de matriz africana, bem como de um ethos afro-brasileiro pautado no
nomadismo. Pensando as desterritorializações como começos, não como
pontos de partida, passa-se a percorrer a zona dos segredos e as “questões
inquestionáveis” a respeito do que acontece enquanto se está morto,
acompanhados do silêncio quanto à possessão. Essas abordagens abrem
caminho à articulação dos temas da “morte” e da “loucura” como
desterritorializações totais - com as experiências que acompanham o “entrar
para a religião” de alguns interlocutores. Este capítulo é a versão revisada de
um ensaio com o mesmo tulo, elaborado como conclusão do curso Rituais,
jogos, performances, simbolismos (Etnografias afro-brasileiras), no Programa
de Pós-Graduação em Antropologia Social, do Museu Nacional/UFRJ.
O capítulo “E está dado o recado”: sobre dom e feitura e os processos
de iniciação no Batuque, em Pelotas tratará de algumas teorias antropológicas
que se dedicaram a pensar os processos iniciatórios nas religiões de matriz
africana. Preocupando-me com a não polarização e não essencialização das
concepções de dom e iniciação, caras à literatura antropológica sobre tal tema
- e seguidamente expostas como pólos antagônicos - apresento a idéia de que
o processo criativo da cultura na experiência afro-religiosa do Batuque se a
partir da dialética entre algo que é dado e o que é feito, uma coisa supondo a
outra, como se de toda feitura sobrasse algo que já estivesse dado, e ao
mesmo tempo, como se toda descoberta de um dom supusesse que algo deve
ser feito com este. Para o desenvolvimento desta discussão, além dos dados
etnográficos, busco arcabouços nas teorias de Roy Wagner sobre a invenção
trabalho - mesmo que em muitos momentos a comparação entre nações e até mesmo entre
religiões de matriz africana seja fundamental - a ênfase dos interlocutores em se alocarem no
território Cabinda como uma nação com peculiaridades muito significativas em relação às
outras (sendo a recíproca verdadeira) e o fato de ter aprofundado minha experiência de campo
nestas casas, fez
com que eu optasse igualmente por adotar a nação de Cabinda como
universo de pesquisa.
13
da cultura” e nos trabalhos de Claude Lévi-Strauss, Véronique Boyer e Roger
Sansi-Roca para pensar os termos iniciação, não-iniciação e dom.
Por último, no quarto capítulo tem-se a etnografia “Se eu morrer hoje,
amanhã eu melhoro, que traz a descrição da experiência de enfeitiçamento
pela qual passei em meio às pesquisas com religiões de matriz africana,
percorrendo desde a sensação de desordem (cujo ápice foi a sensação de que
morrendo eu teria alívio com relação ao desconforto que sentia, que me
levou a procurar ajuda de diversas terapias, passando pelo diagnóstico de que
o que ocorrera fora um feitiço contra mim bem como as controvérsias desta
conclusão entre os próprios batuqueiros até o trabalho para me desenfeitiçar
e as situações posteriores de iminência de ter que passar por rituais de
sacrifício em troca da proteção que eu então passaria a exigir de meu orixá.
Outra consideração importante é a que tange à maneira como o trabalho
foi escrito; contendo notas de rodapé bastante extensas, nas quais, ao longo
da leitura da dissertação, o leitor vai tendo acesso a informações etnográficas
que extrapolam os eventos descritos, é possível não hierarquizar
temporalmente os dados colocados de maneira a coexistirem no espaço e no
tempo, conforme forem acessados.
14
Capítulo I
O campo, os agentes, a experiência
A estrutura de minha dissertação de mestrado passou a ser pensada
sistematicamente a partir de um evento ocorrido na festa de comemoraçāo de
meu aniversário, programada para acontecer na passagem do dia 30 para o dia
31 de janeiro do ano de 2008, quando, numa mudança brusca de
comportamento, passei a importunar alguns convidados, o que culminou na
agressão física de dois amigos. Apesar de não lembrar, de maneira muito
ordenada, o que aconteceu, a partir dos relatos de quem estava presente e das
poucas recordações que consegui organizar, fiz um diário de campo sobre a
festa e outros fatos desdobrados dela, tanto anteriores quanto posteriores.
Desde a semana que seguiu o aniversário até o diagnóstico de que eu estaria
enfeitiçada, passando pelas várias explicações e conseqüentes diversas
terapias buscadas, no diário registrei as angustiantes sensações físicas, morais
e psicológicas e as percepções de que algo se transformara em mim. A busca
por terapias começou no momento em que assumi a hipótese, mantida em
segredo, sobre a “perda de controle”: a de que eu haveria passado por um
processo de possessão por algum tipo de divindade ou entidade referente às
religiões de matriz africana com as quais estudava – o Batuque, como culto aos
orixás
4
, e a Umbanda, aos caboclos, pretos-velhos e exus, entre outros; ambas
religiões vivenciadas num sentido de complementaridade mútua.
A proposta desta pesquisa configura-se então em descrever o processo
4
Nas terreiras de Nação do universo empírico deste trabalho, são cultuados os
seguintes orixás: Bará, Ogum, Iansã (que também é Oiá, a Iansã jovem), Xangô, Odé, Otim,
Obá, Ossaim, Xapanã, Oxum, Iemanjá e Oxalá. Além disso, como cada orixá destes éltiplo,
eles se desdobram em muitos outros conforme a combinação que se faz com outros orixás, por
exemplo: Bará Lodê (combinação de Bará com Iansã ou Obá), Ogum Avagã (Ogum com Oiá
Timboá, que é a Oiá combinada com Bará Léba [Elégba] ou Ogum Avagã, neste último caso a
Oiá recebe o nome de Oiá Dirã). Isso ocorre tanto para os orixás de cada filho-de-santo, os de
cabeça, quanto para os assentamentos em pedras, estes se dão no sentido dos orixás mais
gerais para os seus desdobramentos.
Em Pelotas e outras cidades do Rio Grande do Sul, ao contrário do que se encontra na
literatura sobre religiões de matriz africana em outras partes do Brasil, o termo “terreira” é
utilizado no feminino, sendo referido tanto às “casas de religião”, templos onde se praticam tais
religiões, quanto às cerimônias periódicas de uma religião específica, a Umbanda.
Respectivamente, pode-se ouvir frases do tipo “Fui ao Batuque na terreira do Sandro” ou hoje
tem terreira no Paulo”.
15
pelo qual descobri que estava enfeitiçada e como isso me colocou em uma
posição de possível iniciação religiosa iminente; a partir do que deve ser feito
quando alguém faz um feitiço para outrem e as condições que o tornam eficaz.
A aceitação efetiva de que o incidente ocorrido na festa de aniversário tinha
relação com meu encontro com as religiões com as quais estudava veio da
percepção disso por parte de minha orientadora, professora Flávia,
estranhando-me, levada pela perplexidade que o relato do evento lhe causara,
e logo sugerindo que eu começasse o diário de campo. Até então com receio
de sustentar a assunção de que havia “me envolvido demais” com meu campo
recorri à psicoterapia, mesas espíritas de tratamento de obsessões, orações
e velas, mantras, explicações biomédicas para comportamento agressivo
devido à ingestão de bebida alcoólica, todas insuficientes frente à presente
mas ofuscada percepção de que se tratava de um processo ligado à minhas
relações com o campo afro-religioso. Somente quando caminhar pelos
corredores passou a dar a impressão de que meu corpo fosse feito de
pequenas pecinhas prestes a se esparramarem, ou quando tomar banho
passou a ser quase uma dor, pois eu sentia que junto com a água se
espalhava também meu corpo, ou quando caminhar sem parar e sem
obstáculos aliviava a sensação de que algo em mim estava trancado e
precisava fluir, precisava de movimento, percebi que era em vão tentar manter
“em segredo” o que acontecia.
A necessidade de tais terapias era anunciada por meu desconforto com
a sensação de estar hipersensível a tudo que me rodeava, de estar ligada a
sons, cores, movimentos, de ser tocada por tudo, de estar me sentido virada
pelo avesso. No entanto, o único tratamento que pareceu amenizar de forma
mais eficaz este mal-estar no mundo foi o dispensado por Diamantino
D`Oxalá
5
, que diagnosticou meu enfeitiçamento, procedendo contra isso com
um ritual de limpeza de egun e a fixação de uma segurança com o orixá Bará.
Trago esta ligeira descrição na tentativa de situar, de forma pouco
delineada, mas suficientemente territorializável, a experiência na qual e a partir
da qual pensei a metodologia que sustenta essa pesquisa. Pode parecer
estranho e temporalmente invertido começar a pensar uma metodologia depois
5
Os nomes dos interlocutores de religião serão fictícios a pedido de alguns deles. Apenas
serão mantidos os nomes dos orixás de quem são filhos.
16
de encerrado o trabalho de campo, porém, foi o próprio tempo, aqui tomado
enquanto uma relação, e não apenas uma instância mensurável, quem
recortou o universo de meu trabalho:
Pois é apenas com o tempo, e com um tempo não mensurável
pelos parâmetros quantitativos mais usuais, que os etnógrafos
podem ser afetados pelas complexas situações com que se
deparam – que envolve também, é claro, a própria percepção
desses afetos ou desse processo de ser afetado por aqueles com
quem os etnógrafos se deparam. (Goldman, 2005a)
Desta forma, apesar de apontar suas limitações e assumir um caminho
diverso, não descartarei o trabalho de campo sistematizado em entrevistas com
roteiro pré-estruturado ou as observações participantes com foco previamente
planejado. Ao contrário, durante os dois anos em que estive praticamente
mergulhada no campo, estes métodos me foram de suma importância para não
apenas coletar dados mais genéricos, mas principalmente para que, hoje, a
experiência que descrevo nessa dissertação possa contribuir para uma visão
do trabalho etnográfico diferente daquela promulgada pelas metodologias mais
clássicas – dado que o que trago é uma dobra dos caminhos propostos,
propiciada justamente pela aposta feita no risco de ver meu projeto de
conhecimento se desfazer, deixando de lado sua onipresença (Favret-Saada,
2005). Quero dizer com isso, que ao mesmo tempo em que as entrevistas, os
registros fotográficos e as observações serviram para responder muitos de
meus questionamentos, suas próprias limitações frente a um objeto no qual o
conhecimento é tão menos cartesiano quanto mais próximo se está dele, como
acontece com as religiões de matriz africana, permitiram-me atribuir estatuto
epistemológico às situações que escapavam à formulação de questões, ou à
busca de significações. E essa estratégia de conhecimento parece constituir-se
no que Márcio Goldman (2006), partido de Malinowski, denomina construção
de uma “teoria etnográfica”, um esforço epistemológico que seja orientado pelo
foco nas teorias construídas pelas pessoas com quem se estuda no campo
acerca dos fenômenos que se quer estudar.
Tal como Jeanne Favret-Saada que, frente à recusa de seus
interlocutores em falar sobre a feitiçaria, e a propostas destes de que ela
participasse do sistema, aceitou ocupar o mesmo lugar que os nativos - tive
que optar por conhecer as religiões que estudava da mesma forma com que os
17
iniciados (e aspirantes a tal status) a conheciam: sem perguntar, sem
sistematizar a apreensão do conhecimento. Porém com uma condição: eu não
passaria pelos rituais de iniciação, o que permitiria minha circulação pelas
diferentes casas onde pesquisei, visto que, além da iniciação não ter sido uma
exigência dos interlocutores, a escolha de uma mãe-de-santo me renderia a
fidelidade a seus fundamentos e a restrita participação em rituais em outras
casas. Mas tais escolhas não se deram sem que eu não precisasse mudar
junto com minha metodologia, devendo adotar então uma etiqueta própria para
esse processo que, segundo o professor rcio Goldman, acerca do
candomblé de Ilhéus, pode ser chamado de “catar folhas”, uma aprendizagem
que se no acompanhamento das atividades mais cotidianas, em que os
saberes são dispostos de forma aleatória e de acordo com as necessidades
que requer cada situação. Assim, não uma cartilha que distribua
cronologicamente em ordem crescente de complexidade o que se deve
aprender sobre os fundamentos do Batuque (ou das demais religiões de matriz
africana); cada código é modulado conforme a situação, o que está baseado na
jurisprudência, nas situações anteriores. Isso permite perceber, ainda seguindo
o raciocínio do professor rcio, que as forças de mudança estão dentro do
próprio sistema religioso, atualizando virtualidades que estão adormecidas,
mas que correspondem às necessidades de se manterem no mundo
contemporâneo – haja vista a diversidade que permeia a constituição do campo
afro-religioso.
De meados de setembro de 2006 a 28 de janeiro de 2008, realizei treze
entrevistas semi-estruturadas junto a quinze pessoas iniciadas no Batuque, em
Pelotas, quatorze delas pertencentes à nação Cabinda e uma de je; sendo
que, além dessas quinze pessoas, foram entrevistados preliminarmente outros
3 iniciados, de nação Jêje, no município de Arroio Grande (localizado ao sul de
Pelotas), entrevistas estas que marcaram meu ingresso na pesquisa com
religiões de matriz africana
6
. Posteriormente, entrevistei uma pessoa também
6
O que acontece na quase totalidade das casas de religião que se fizeram objeto de
minhas pesquisas, desde minha monografia de graduação, é o seguinte: existem, dentro de
uma mesma casa, diferentes espaços de cultos onde se realizam cerimônias e rituais de
diferentes religiões, mas cultuadas pelas mesmas pessoas, que não ao mesmo tempo. Algo
semelhante ao que em Porto Alegre, segundo Norton Corrêa (2006 [1992]), se chama de Linha
Cruzada, o que também foi descrito por Jo Carlos Gomes dos Anjos, em No território da
Linha Cruzada (2006); não uso este termo para designar as modalidades de culto aqui
18
de Jêje, em Rio Grande. Além das entrevistas, outro método de coleta
sistemática de dados de que me vali durante esses dois anos de pesquisa foi a
observação participante: em onze batuques
7
, uma levantação e cinco rituais de
sacrifício incluindo aqui ritos iniciáticos e obrigações de reforço da iniciação,
bem como um corte para exus. Os batuques se distribuíram em sete casas
verificadas,que a mesma não se encontra entre as categorias de auto-definição, sendo mais
comum que os interlocutores se definam como “pessoas de religião e seus templos como
“casas de religião” (expressões que englobariam as referências ao Batuque e à Umbanda).Por
exemplo, na casa de Roberta D’Iemanjá existe o salão dos Batuques, onde se localiza o
quarto-de-santo, que é o local onde ficam assentados os alcutás, pedras sagradas que
representam a materialidade de cada um dos doze orixás que cada filho-de-santo pronto
possui, além dos da própria mãe-de-santo. Além dos alcutás, é freqüente a presença de
imagens de santos católicos, que são “mera representação de algo que se singulariza mais
propriamente no acutá [grifo do autor]” (Anjos, 2006, p 79). É nesse salão que se realizam as
festas, os sacrifícios de animais e todos os demais rituais de culto aos orixás, exceto o orixá
Bará Lodê, que tem seu assentamento em uma casinha localizada na frente da casa. Lodê é
uma qualidade do Bará, o protetor do terreno, é o orixá tempestuoso, que deve ficar na rua.
Além do grande salão e do quarto-de-santo, destinados aos rituais do Batuque, existe na casa
de Roberta a terreira, um cômodo espaçoso onde fica o congá, espécie de altar onde, além de
algumas plantas litúrgicas e medicinais, cigarros, rosas e copos com cachaça, dispõem-se
imagens de santos católicos, de caboclos e de algumas sereias (indígenas), pretos velhos
(escravos ou ex-escravos), crianças (São Cosme e Damião) e ciganos, que seriam os espíritos
cultuados pelo que alguns autores designam como umbanda branca ou pura, ou seja, a
umbanda que trabalha com espíritos de luz”, espíritos evoluídos que se manifestam para
fazer o bem, o que exclui exus e pombagiras – essa noção de evolução espiritual também é um
elemento kardecista da umbanda. No entanto, na casa de Roberta, nunca ouvi falar dessa
separação, pois umbanda é um termo que abrange o culto das entidades que não são
cultuadas no batuque: a discriminação sendo feita apenas nas denominações povo de exu,
caboclos, povo cigano, pretos-velhos, cosmes. No entanto, nos dias de terreira um dia por
semana – na casa de Roberta, na corrente as manifestações dos espíritos “no mundo” seguem
a ordem cronológica de caboclos, pretos velhos e exus, raramente acontecendo de
incorporarem as demais entidades, o que acontece normalmente nas festas destinadas às
próprias (casamentos ciganos, festas de Cosme e Damião etc.). Num outro cômodo bem
pequeno e separado dos demais, encontra-se o quarto dos exus, com as paredes internas e a
porta pintadas de vermelho. Nele ficam dispostas imagens com rostos distorcidos, corpos com
chifres, caudas e tridentes, mulheres de dorso nu, corpos disformes. Neste quarto predominam
as velas vermelhas e pretas, charutos, cachaça e rosas também vermelhas.
7
Batuques são as festas realizadas após os rituais de sacrifício. Em Pelotas, nas casas de
nação Cabinda com as quais estudei, durante a rotina de reclusão após um corte, que se for de
quatro-pés dura em média oito dias, são realizadas três festas: o batuque de quatro-pés, que
ocorre um ou dois dias após o sacrifício das aves e animais de quatro patas; três ou quatro
dias depois, o batuque do peixe, celebrado na noite do dia em que se sacrificam peixes vivos
ao amanhecer, para Iemanjá; e por fim, encerrando o ciclo de festas, o batuque dos doces ou
terminação, no qual são ofertados muitos doces no quarto-de-santo, para os convidados e
principalmente para as crianças. Geralmente são festas muito opulentas, com grande fartura de
comida e muitos convidados de outras casas-de-santo, o excluindo a presença de pessoas
que não são de religião. Porém, pode acontecer de, não havendo recurso econômico para
realizar todas as festas, fazer-se apenas a terminação; quando isso acontece, raramente o
convidadas pessoas de fora do círculo mais familiar da terreira. Outra ocasião em que se faz
apenas o batuque de doces é no caso da festa de aniversário de aprontamento de algum filho-
de-santo ou de assentamento do orixá do dono da casa – estas festas são às vezes chamadas
de quinzenas de doces. Geralmente um pai ou mãe de santo passa por tais rotinas de
sacrifícios uma vez por ano, dado o dispêndio de axé para com os filhos e serviços religiosos;
alguém que não tem filhos-de-santo nem terreira própria pode ter um intervalo de dois a três
anos, em média, entre um chão e outro.
19
diferentes, sendo que nas terreiras de Anarolino Do Bará, Roberta D’Iemanjá e
Diamantino D’Oxalá a pesquisa de campo se deu de forma mais intensa. Nas
casas de Diamantino, Anarolino e Roberta pude observar, além dos batuques -
que são as festas de caráter mais aberto ao público de clientes e não-iniciados
- os rituais de sacrifício animal que contemplam o processo de feitura dos
orixás pessoais e alimentação das demais divindades cultuadas em cada casa
(geralmente doze orixás para cada iniciado pronto
8
), ocasiões estas de
assistência bem mais restrita.
Somado a isso, nas casas de Roberta D’Iemanjá e Diamantino D’Oxalá,
as pesquisas se desenrolaram de modo que aos poucos fosse se dando o
corte com o projeto de pesquisa pré-estabelecido: na casa de Diamantino
sempre houve espaço para a conversa descontraída e o convívio menos
formal, entre um jogo de búzios e a fabricação de uma guia, ou entre fotos que
eu revelava e as entrevistas que felizmente eram substituídas por longas
conversas acompanhadas pelo chimarrão e pelo assumido compromisso de
fazer do conhecimento que me apresentava um instrumento contra as visões
estereotipadas e discriminatórias dirigidas ao pessoal de religião, seja por
outras religiões, seja por algumas áreas acadêmicas. Sempre deixando muito
claro que seu saber - aquilo que eu precisava mostrar que queria só saber - era
da sua vida o vivível e não o meramente representável: Eu te ensino tudo: as
comidas que a gente faz para cada entidade e para cada orixá. Te ensino que
animais a gente sacrifica para os exus... Te ensino tudo. Só não te ensino a
fazer o Irôco, por uma questão de proteção.” (Diamantino D’Oxalá).
Roberta nunca quis conceder entrevista, deixava avisado que se
pensasse em ir para fazer perguntas eu nem precisava ir ao Reino de Iemanjá
e Oxalá. Contudo, foi na casa dela que passei madrugadas adentro na cozinha
dos serões, depois das matanças, acompanhando e participando das
conversas mais variadas possíveis, em meio ao capricho com que eram
preparadas as comidas dos santos, o cuidado com que Diamantino (o mesmo,
Diamantino D’Oxalá) mostrava como se deve cortar cada ave, ou como se
8
A pessoa de religião se apronta quando assenta todo o Orumalé, os doze orixás do panteão
do Batuque. Mas isso não encerra o processo de construção dessa pessoa de religião, depois
do apronte, muitos outros axés vão sendo ganhos conforme a maturidade do seu orixá pessoal,
o que segue o cumprimento de tabus e rituais de sacrifício e oferendas. Dentre esses axés
estão o de búzios (Ifá), de faca (Obé), de fala, e assim sucessivamente.
20
separam as inhalas
9
de cada animal. Foi também Roberta quem confirmou
minha cabeça quando eu quis saber qual era meu juntó, os três orixás que
respondem respectivamente pela minha cabeça, meu peito e minhas pernas
10
.
Com o povo de Roberta D’Iemanjá, do Reino de Iemanjá e Oxalá, do Centro
Espírita Umbandista Cacique Mãe Iara e Cabocla Jurema, e ainda a falange de
exus liderada pelo Exu Abana-abana, o convívio estreito se deu nas mais
diversas circunstâncias, todas elas em âmbito religioso, a princípio. Portanto,
mesmo que meu foco de investigação fossem os orixás, a pesquisa com o
povo da casa de Roberta impôs-me o contato com toda uma cosmovisão que
eu havia recortado e separado, sem notar a princípio que tal arbitrariedade
impossibilitava perceber um aspecto fundamental desta pesquisa: como as
pessoas de religião manipulam suas relações consigo mesmos, entre si, com
os deuses e as entidades, com a natureza e com a sociedade mais
abrangente, sem que isso implique na centralização de um indivíduo como
instância separada das demais, só se ligando a uma esfera do real quando se
desvinculando de outra. Ou seja, como a noção de pessoa humana
folheada”
11
(Goldman, 1984), ou esparramada, deve ser encarada, enquanto
9
Inhalas são patas, asas, ceras e outras partes dos corpos de animais depositadas no
quarto-de-santo no dia da “matança”. No caso dos pombos, são separados a ponta do
pescoço, a ponta das asas, o coração, a moela, os ovários, os testículos, o fígado e os pés
sem o couro e sem as unhas (estes são oferecidos crus). Já dos galináceos, as inhalas
divididas são: a moela, a ponta das asas e do pescoço, o fígado, o coração, os testículos do
galo e os ovários das galinhas crus e os pés, sem couro e sem unhas. Mas essas
especificidades podem variar de casa para casa, e até mesmo de orixá para orixá.
10
O fato de saber de quais orixás alguém é filho pode dizer muito a respeito das características
pessoais desta pessoa, associação que não é enunciada sempre ou constantemente fundida
em tal individuo como uma personalidade individual psicologizada o que iria de encontro à
própria noção de pessoa múltipla compartilhada pelas “pessoas de religião” mas os
estereótipos de cada orixá em seus filhos geralmente é evocado quando de uma situação de
crise ou ainda para explicar determinadas reações particulares.
11
Em A possessão e a construção ritual da pessoa no candomblé, Marcio Goldman destaca o
lugar da discussão acerca das noções de pessoa nas pesquisas com o Candomblé evoco tal
discussão aqui, pois, para afirmar que acompanho as perspectivas do autor quanto a noção de
pessoa a ser levada em conta nos estudos com religiões de matriz africana. Considerando a
idéia de que o individualismo” moderno não seria universal nem mesmo nas sociedades
ocidentais, com as quais mais foi vinculado, Goldman adota a concepção de pessoa humana
apresentada como “folheada” (expressão de Françoise Héritier); assim, seguindo a noção de
identidade como um tipo de foco virtual a partir do qual fazemos as referências para explicar
determinadas coisas (Levi-Strauss, 1977), a noção de pessoa pensada no Candomblé também
seria a de uma pessoa formada pela “coexistência de uma série de componentes materiais e
imateriais”. Em trabalho posterior, no artigo Formas do Saber e Modos do Ser: Observações
sobre multiplicidade e ontologia no Candomb, publicado em 2005, Goldman aponta o texto “A
Concepção Africana de Personalidade”, de Roger Bastide, como uma grande obra sobre
“ontologia africana”. Neste texto Bastide apresenta a concepção africana de Ser como
possuindo uma escala de graus de existência. Ao contrário da filosofia pós-Kant, que não
21
fator estrutural norteador nas análises dos rituais (e das experiências do
cotidiano) das religiões de matriz africana.
Isso não quer dizer que nas outras casas, além da de Roberta, esse
contato houvesse sido barrado, ao contrário, era eu quem resistia a essa
abordagem, visto que meu projeto inicial tinha como foco a relação entre as
categorias sensíveis do mel e do dendê e a classificação dos orixás do panteão
africano. Portanto, foi nos momentos em que me afastava de meu
planejamento inicial, quando Roberta pedia para que eu acompanhasse e
fotografasse os rituais da umbanda ou as cerimônias de nação, que minha
experiência com esse campo religioso transbordou os limites da racionalidade
científica, pois eu realmente não me preocupava tanto em aprender cada
detalhe, mas em ser solícita com os que me convidavam a participar. E isso
fica claro quando Goldman (2005b) cita Bastide, ao tratar do aprendizado no
candomblé e sua relação com a pesquisa etnográfica: “a participação não é um
categoria do pensamento, mas uma categoria da ação (Bastide, 1978, p. 273),
uma categoria pragmática.”
Seja na longa espera pelo ônibus que nos levaria a passar noite e
madrugada no leito de uma cascata por ocasião da terreira de encerramento
dos trabalhos de 2007, ou ainda na assistência das terreiras quinzenais da
Umbanda; seja na abordagem incompreensível do Exu que queria fotos na sua
festa de aniversário, ou na espera pela limpeza de fim de ano
12
, meu contato
com Roberta e seu povo exigia-me a desterritorialização do lugar que eu havia
reservado à minha posição de etnógrafa, e a constante construção de novos
territórios de existência em meio às pesquisas. Entre eu ser chamada de
Marília, fui “a fotógrafa”, a “amiga da Vitória”, a “guriazinha”, a Marília Do Ogum
(que não era a outra Marília da casa, a de Obá). Todas elas sem se excluírem
e sem serem excluídas pelo meu nome próprio, mas atualizadas suas
permite pensar em estágios intermediários entre o Ser e o Não-Ser, na ontologia do candomblé
é pensada e construída uma continuidade entre os humanos não-iniciados (tangenciando o
Não-Ser) e o Ser pleno dos orixás. Nas palavras de Goldman: “[...] caminho a ser percorrido
pelos que, ingressando no culto, passam pelos rituais e aceitam as obrigações. Caminho, claro,
cheio de idas e vindas, de perigos, que se acentuam ao longo do percurso. Pois se o estrito
cumprimento das prescrições permite a passagem em um sentido, sua não observância, as
faltas e equívocos, ameaçam todo o sistema de entropia”.
12
Limpeza de fim de ano é um ritual feito geralmente em dezembro ou janeiro, no qual o
passados no corpo da pessoa os axés (comidas ou objetos simbólicos) de cada um dos doze
orixás do Batuque para que estes o limpem de energias carregadas, pesadas.
22
intensidades nessas denominações.
Contudo, se houve uma relação de campo a partir da qual eu possa
dizer que este projeto se edifica, essa foi a que estabeleci com Vitória
D’Iemanjá, com quem percorri de certa forma o itinerário de uma filha-de-santo
do Batuque, pronta e prestes a se tornar mãe-de-santo. Vitória é filha-de-santo
de Roberta D’Iemanjá e afilhada de Diamantino D’Oxalá na religião, e a partir
dela fui apresentada a estes e às demais pessoas que se fizeram minhas
interlocutoras. A maioria dos rituais dos quais participei também foram
acompanhados por ela e durante um certo tempo, esse acompanhamento
mútuo refletia sua tentativa de evitar que eu entendesse mal” o que se
passava, bem como meu esforço em conhecer o que ela tinha a me dizer sobre
o que acontecia em determinados momentos.
Sendo assim, o anúncio de que algo se transformara no campo,
requerendo transformações metodológicas, se deu quando minha principal
interlocutora, com quem eu vinha convivendo desde a primeira entrevista que
fiz em Pelotas e com quem conversava cotidianamente sobre minhas dúvidas
em relação ao Batuque e à Umbanda, declarou-me que nossas pessoas (eu
pesquisadora/ela iniciada) deveriam ser desvinculadas no que tangia ao meu
método de pesquisa:
Marília, a partir de hoje nós seremos amigas, não
conversaremos mais sobre religião. E tenho um conselho pra te
dar: tu não viste nada, não conheces ninguém, não foste na casa
de ninguém. Te faz de boba. Ninguém merece a confiança de
ninguém. A partir de hoje a gente não vai mais conversar sobre
religião. Tu não vais mais me perguntar nada sobre religião porque
eu não vou te responder. A partir de agora eu vou responder,
quando eu souber, para o Rodrigo, porque eu vou ser mãe-de-
santo dele. (Vitória D’Iemanjá)
Perguntei qual a razão deste corte e ela respondeu que queria evitar me
dar informações erradas, e que muitas coisas que eu perguntava ela não sabia
me responder, pois eu pensava muito nas coisas ela enfatizava a cobrança
que seu orixá lhe fazia com relação aos ensinamentos equivocados. Eu
circulava de maneira mais intensiva por três casas de Nação e, conhecendo a
capacidade imanente de transformação e atualização destas religiões - mesmo
que as três casas fossem de Cabinda, as dúvidas e as experiências que eu
apresentava para Vitória eram de fato muitas vezes distantes daquelas que ela
vivenciava minhas perguntas nem sempre se encaixavam nas respostas que
23
ela tinha para me dar. Nem sempre as respostas podiam ser dadas. Ela estava
em vias de ser escolhida pela primeira vez para ter um filho-de-santo, havia
completado um ano de aprontamento e agora era o seu axé de mãe-de-santo,
o mesmo axé de sua Mãe Iemanjá Bomi, vertido da Iemanjá de Roberta, que
se espalharia com os fundamentos que passaria a transmitir. “Uma extrema
responsabilidade”, segundo ela, que não se sentia ainda segura com a nova
posição. Sendo assim, tratou logo de independentizar-me. Eu poderia continuar
assistindo todos os rituais que quisesse, porém sem fazer uma pergunta
sequer, sem vincular-me à sua pessoa.
Com Rodrigo, de certa forma, eu havia estabelecido uma relação de
afinidade, de cumplicidade até, eu diria, pois quando das observações dos
serões, dos cortes, ou das festas mesmo, percebi que ocupávamos posições
muito parecidas observávamos, ajudávamos quando necessário, mas nunca
participamos efetivamente dos rituais, senão do que ocorria entre eles e a
curiosidade, as dúvidas, eram divididas: “quem descobrir primeiro conta para o
outro”. Rodrigo começou a fazer perguntas tanto para mim quanto para Vitória,
assim como eu fazia. O que nenhum de nós dois havia notado até então era
que existia, ou deveria existir, um significativo intervalo entre Rodrigo e eu: eu
não tinha pretensões de me iniciar, e Vitória confirmava e sempre reforçava tal
condição, por isso fornecia toda a informação que conseguisse me dar quando
eu solicitava, desde que a entrevistei
13
. Eu circulava por outras casas, seja
fazendo entrevistas, seja observando rituais, seja quando convidada pelos
pais-de-santo a fotografar os batuques, e isso me colocava em contato com
diferentes fundamentos, ou melhor, com diferentes maneiras de atualizar
saberes, com diferentes fontes de axé.
O “não saber responder” de Vitória está menos conectado ao quanto ela
sabe do que a existência de minhas perguntas; as respostas existem e para
cada pessoa elas existem de uma maneira pessoal, é como se as perguntas só
13
No dia mesmo em que fomos apresentadas, fez questão de dizer que estava se
dispondo a compartilhar seu conhecimento religioso comigo porque considerava importante
que se construísse para além dos muros dos templos um saber “sério e desmistificador” sobre
as religiões de matriz africana, o que corresponderia ao oposto do que fazem as igrejas
neopentecostais, as quais investem massivamente contra tais cultos. Um bom tempo depois
me contou que tal confiança só veio a se estabelecer de maneira mais sólida quando os búzios
confirmaram a boa fé de minhas intenções.
24
pudessem ser possíveis depois de experimentadas as respostas. Os
fundamentos não se oferecem como respostas, mas como efeitos às
necessidades situacionais. E isso não descarta, pelo contrário, reforça, a idéia
de que é preciso circular, intercambiar favores, estabelecer laços de afinidade
com outras terreiras, como o apadrinhamento, por exemplo. Mas esse trânsito
é controlado pelo pai ou mãe-de-santo de cada um, pois o orixá deste está
sendo feito, criado, com base nos fundamentos e nos conhecimentos que o
filho-de-santo recebe daquele, com as características que ele lhe atribuirá
dentro das possibilidades que cada santo abarca; a responsabilidade sobre o
santo que passa a ser feito é, até o aprontamento, do pai-de-santo do iniciado,
e este depende do que lhe será ensinado ensinar na religião não é fazer
alguém aprender, mas permitir que se veja, permitir que se ouça, aquilo que se
consegue mostrar e, sobretudo, deixar que se pratique, se participe dos rituais -
práticas que se estruturam naquilo que Lévi-Strauss chamou de
“abastardamento do pensamento” -, e o conhecimento se solidifique nessa
impossibilidade de pensá-lo. Assim, no espaço ritualístico das religiões afro-
brasileiras, falar também é agir, transcende a possibilidade lingüística de
representar. Resta agir, ou melhor, o resta nada além do agir ou não agir,
viver o abstrato, e não pensar o abstrato, como pretende o saber científico
ocidental.
Digo que foi a relação com Vitória a que alicerça este projeto porque foi
a partir do estabelecimento das regras de convivência descritas acima que
optei definitivamente por estar “no lugar do nativo”. Apostei meu projeto no fato
de que tornar-me “apenas amiga” de Vitória não empobreceria minha outra
situação, a de pesquisadora, apenas me desterritorializaria dela o que abre
margem para a possibilidade de que Vitória também ocupasse o lugar de
antropóloga
14
. Assim, mantivemo-nos amigas, e eu não fiz mais nenhuma
pergunta, seja quando assistíamos aos rituais juntas, seja quando a ocasião de
nos encontrarmos nada tivesse a ver com sua rotina religiosa. Como éramos
amigas, e eu sempre fizera anotações no diário de campo acerca das
conversas que tínhamos sobre religião, em nada mudei minha estratégia,
14
Sobre a perspectiva simétrica de tomar a antropologia como “prática de sentido em
continuidade epistêmica com as práticas sobre as quais discorre”, ver: Viveiros de Castro,
Eduardo (2002). O Nativo Relativo.
25
apenas respeitando a advertência de não perguntar sobre o que ouvia. E
assim, parafraseando Goldman no que tange ao Candomblé, por ser o Batuque
antes “um modo de vida” do que apenas uma religião separada dos outros
campos que compõem a realidade, continuamos, Vitória e eu, a conversar
cotidianamente sobre religião; porém, agora, quem ditava a pauta sobre o que
seria falado sobre o tema ou não era ela, não mais meu esquema de
sistematização de aprendizagem. E o método de fazer registros no diário,
conseqüentemente, foi se tornando cada vez mais esparso, à medida que tratar
de religiões de matriz africana desvinculou-se das experiências de campo
programadas como tais; as informações eram espalhadas, eu filtrava as que
coincidiam com meu objeto previamente definido. Mas e as outras, as que
estavam entre essas que eu selecionava? O que eu fazia com essas
comunicações aparentemente descartadas, ou inicialmente não absorvidas
pelo recorte inicial?
Somadas todas as relações de campo descritas acima com todas
aquelas distribuídas na impossibilidade de serem descritas, e ainda os eventos
que envolveram as escolhas metodológicas que fiz, posso dizer de meu
processo de pesquisa etnográfica o mesmo que Gisele Binon Cossard
descreve de uma jovem que se inicia no candomblé:
“[...] não é bom aprender depressa demais, uma vez que tudo o que se
faz no candomblé pode acarretar, em caso de erro, consequências
extremamente nefastas para si e para os outros. Se alguém toma
iniciativas cedo demais, pode provocar o descontentamento das
divindades, devido a conhecimentos mal assimilados e utilizados sem
discernimento. As divindades podem, então, desencadear catástrofes,
que chegam à loucura e até mesmo a morte. ‘O Tempo não gosta do que
se faz sem ele’, dizem as mais antigas. É preciso, portanto, ter muita
paciência e perseverança, pois assim serão criadas amizades e, em
troca de longas horas de trabalho, serão adquiridos conhecimentos
preciosos, ao se prestar atenção nas conversas, e serão aprendidos as
diferentes cantigas e passos de dança ao se comparecer a todas as
festas. À medida que o tempo passa, a noviça adquire mais segurança.
O conhecimento do ritual entranha-se lentamente nela. Gestos e
palavras, danças e melodias acabam por se tornar automatismos
indissociáveis” (Cossard 1970: 226-227 apud Goldman 2005).
Evitar realizar qualquer ritual iniciático e, portanto, não territorializar-me
enquanto filha-de-santo, além de corresponder às minhas escolhas pessoais,
permitiu que continuasse pesquisando em outras casas de religião e
entrevistando outras pessoas. Mas com o tempo, essa inicial vantagem de
circular e poder observar os rituais em diferentes casas e conversar com várias
26
pessoas, mostrou-se obsoleta e perigosa. A partir de setembro de 2007, após
um curto afastamento do campo, passei a sentir certa repulsa em relação a
este, o cheiro de podre dos quartos-de-santo nas noites de batuques de quatro-
pés causava-me um incômodo que variava do nojo à raiva, o que não me
permitia suportar muito tempo de observação nas festas; essa irritação e
impaciência se transpunha também para os outros rituais, inclusive os da
Umbanda, mas foram percebidas quando da leitura posterior dos diários de
campo, no qual figuravam dentre as escassas anotações que fiz durante este
período. Outros fatores que me afastaram das observações foram um acidente
e um roubo. Somente retornei ao campo efetivamente, em janeiro de 2008,
mas com o plano realizar entrevistas semi-estruturadas com pessoas de
religião a fim de escrever um artigo acerca das imbricações entre as noções de
pessoa e sensibilidade nas diferentes formas de possessão envolvidas pelas
religiões praticadas por meus interlocutores. Nessas entrevistas os principais
assuntos abordados diziam respeito às sensações de estar incorporado (na
Umbanda), ou de perceber a aproximação de seu orixá pessoal (no Batuque),
ou ainda de notar que se está “tocado”, enfeitiçado. Concluí quatro entrevistas,
a última foi realizada dia 28 de janeiro, mas os planos de escrever o artigo não
se concretizaram como havia sido planejado, tornando-se este a primeira
versão do capítulo etnográfico desta dissertação.
Considerações teóricas e metodológicas
Certamente mesmo antes de Malinowski ter ocultado alguns de seus
diários de campo das pesquisas realizadas entre 1914-1915 e 1917-1918, nos
quais relatava impressões “irreveláveis” a respeito dos nativos da Nova Guiné e
das Ilhas Trobriand intimidades, desejos, repulsas, sentimentos e opiniões
nem um pouco cabíveis para a noção de ciência que o pesquisador polonês
pretendia atribuir à antropologia
15
mais precisamente, desde que o homem e
suas relações, suas sociedades, passaram a ser vistos como objetos da
15
Noção esta que condizia com um ideal de rigor científico para a afirmação de uma disciplina
considerada ainda jovem no início do século XX, uma ciência objetiva, quase cartográfica,
tendo como parâmetro metodológico as ciências físicas e biológicas.
27
observação participante de um sujeito pesquisador (método consagrado por
Malinowski) que os antropólogos têm em sua pauta de temas mais discutidos e
delicados a questão do distanciamento pontual e da familiaridade necessária
entre o etnógrafo e os “seus” nativos.
E isso se configurou, no discurso acadêmico, primeiramente na atenção
dada à presença do pesquisador no campo e os impactos que esta incursão
traria para as sociedades ditas tradicionais, que submeteriam suas vidas
cotidianas ao olhar perspicazmente treinado de um sujeito branco,
ocidentalizado, e mais, a uma comunidade científica e política muitas vezes
interessada em levar luzes e progresso a todo canto do mundo que não
houvesse ainda sido tocado pelo seu saber secular e libertador, comprometido
com o fim das desigualdades de um mundo pós-colonialismo, que se
globalizava. Comprometimento que, quando radicalizado, criou a tão forte e
ingenuamente defendida idéia relativista de que seríamos nós, humanos, todos
iguais por natureza, isso bastando para que o profissional etnógrafo devesse
concentrar-se em descrever as diferenças que culturalmente (ao contrário de
naturalmente) iam se configurando em cada sociedade, tornando-as diversas
entre si e em relação à dele. Isso em se tratando de natureza humana, é bom
lembrar, pois também abordagens que utilizam o termo “natureza” no
sentido não-humano da palavra, tomando a cultura como “instrumento e
resultado de um processo de adaptação ao meio ambiente” (Viveiros de
Castro, 2002; 2006), noção que vem acompanhada de uma polarização entre
as categorias natureza e cultura.
Segundo Viveiros de Castro (2002), na tradição antropológica francesa,
a natureza humana é tida como um substrato universal das variações culturais,
visível a partir do cancelamento das diferenças, um “máximo denominador
comum” das culturas, criador de um sujeito constante que emite significados
variáveis, “uma substância auto-semelhante situada em algum lugar natural
privilegiado (o cérebro, por exemplo)”, uma limitação que determina os seres
humanos a não serem outra coisa que não seres humanos. Mas isso tudo
numa tradição que toma a relação entre as variações culturais como o filtro
para observarmos que temos todos uma mesma natureza, que temos culturas
diferentes, mas desenroladas de estruturas universais de pensamento não
por acaso a teoria estruturalista de Lévi-Strauss voltou-se para a dimensão
28
inconsciente dos fenômenos sociais. Assim como Lévi-Strauss, os americanos
também estiveram concentrados no par natureza/cultura, seja quando
preocupados com a padronização afetiva e cognitiva dos indivíduos, seja
buscando constantes psicológicas transculturais (Idem, 2006 [2002]).
É um pouco o esforço de Boas, que, no final do século XIX concluiu Um
ano entre os esquimós (1887) lamentando o fim de sua estada entre os nativos
e revelando, não sem uma dose de surpresa, a familiaridade entre suas
virtudes e as do povo com quem pesquisou. Embora buscando as
particularidades culturais de cada sociedade, e “apesar das diferenças” no
modo singular de viver dos esquimós em relação à sociedade americana, é nas
semelhanças, ou nos “universais psicológicos” que Boas encontra essa
natureza humana.
Depois de muitas pequenas aventuras, e depois de uma relação longa e
íntima com os esquimós, foi com um sentimento de tristeza e pesar que me
separei de meus amigos árticos. Eu tinha visto que eles desfrutavam a vida,
e uma vida dura, como nós; que a natureza também é bela para eles; que
os sentimentos de amizade também estão arraigados nos seus corações;
que apesar de levar uma vida rude, o esquimó é um homem como nós; que
seus sentimentos, suas virtudes e suas deficiências o baseados na
natureza humana, como os nossos. (In: Stocking Jr, 2004 p. 80)
Mesmo assim, nota-se que a preocupação está voltada para uma
comparação que busca certa equiparação entre a vida dos esquimós e a
cultura do etnógrafo, sendo esta última a forma a modelar a primeira rumo à
descoberta de sua civilidade, se não evidente a um primeiro olhar, revelável no
contato familiar cotidiano, o que é possível graças a uma natureza comum. Não
se pensava ainda na possibilidade de que o trabalho de campo transformaria,
ou melhor, perturbaria (em um bom sentido do termo), além da vida dos
nativos, sobretudo a do antropólogo. A noção que se parecia ter do objetivo do
trabalho etnográfico nos idos da consolidação da etnografia colada à
observação participante e do teórico antropólogo ao técnico etnógrafo - pode
ter seu esboço vislumbrado quando Malinowski, na célebre introdução de Os
Argonautas do Pacífico Ocidental (1984 [1922]), afirma que
a etnologia trouxe leis e ordem àquilo que parecia caótico e anômalo.
Transformou o extraordinário, inexplicável e primitivo mundo dos
“selvagens” numa série de comunidades bem organizadas, regidas por leis,
agindo e pensando de acordo com princípios coerentes (p. 23)
A cultura como um todo integrado e coerente, regulando o
29
comportamento dos indivíduos e alocando personalidades sociais e coletivos
específicos e, ao mesmo tempo, organizando a função das instituições sociais
de suprirem as necessidades básicas dos organismos individuais e garantindo
então a sobrevivência do corpo social, foi assim pensada pela tradição
estrutural-funcionalista britânica como o objeto da antropologia, social portanto.
O problema da disciplina, então seja o formulado pela escola
americana, até a contemporânea hermenêutica, passando pela noção
“utilitarista” de Malinowski, e pelos sistemas de diferença de Lévi-Strauss
(Viveiros de Castro, 2002) deveria ser preenchido com os significados
particulares que o etnógrafo encontra em campo e que viriam a relativizar seus
conceitos, ou seja, os únicos conceitos objetivamente elaborados para
responderem questões postas pela cultura do cientista. É já sabido enfadonho
dizer que esse “poder” de elaborar conceitos se designa a uma ciência
ocidentalizada - para não essencializar o termo ocidental”, uma entidade
onipotente, calçada na legitimidade de um determinado Estado moderno
democrático e suas formas de conhecimento “legitimadoras”.
16
Porém, para tornar as idéias aqui expostas mais claras, torna-se
interessante expor que o próprio conceito de cultura - como forma extra-
somática de organização dos coletivos humanos (para Malinowski e outros),
como comportamento adquirido pelos indivíduos (para Boas), e mesmo como
uma teia de significados (para Geertz e seus companheiros) ou como opositor
civil ao domínio do estado de natureza (para Lévi-Strauss) –, ele mesmo, é um
conceito reacionário, porque separa algo de uma semiótica que é totalmente
vivida, na visão de Guattari, ou seja, ao se reificar a cultura em um conceito
que abarque determinados aspectos da vida em sociedade, está-se reduzindo
uma instância que permeia tudo o que é vivenciado, tudo o que é real, aquilo
que mostra o que possui sentido e o que não o possui na existência das coisas
16
Em Jamais fomos modernos (1994), Bruno Latour discute a crise do conceito de
modernidade e todos os adjetivos que o seguem temporalmente (pré-moderno, pós-moderno,
etc.) , bem como demais classes de palavras que a ele se colam, propondo a antropologia
simétrica como meio para descrever o mundo que se tem como moderno e que, portanto, criou
coisas tidas como modernas - como a própria antropologia - e mesmo assim não consegue
atingir o ideal de modernidade que propõe. Essa discussão permeará meu trabalho, por ser
este de inspiração simétrica, mas deter-me de maneira esmiuçada neste ponto, aqui, desviaria
o curso das idéias que exponho para tornar compreensível a etnografia apresentada. Isso não
quer dizer que não voltaremos a evocar (e citar) Latour e outros teóricos ligados à antropologia
simétrica.
30
e dos seres, do cosmo
É uma maneira de separar atividades semióticas (atividades de
orientação no mundo social e cósmico) em esferas, às quais os homens são
remetidos. Tais atividades, assim isoladas, são padronizadas, instituídas
potencial ou realmente e capitalizadas para o modo de semiotização
dominante ou seja, simplesmente cortadas de suas realidades políticas.
[...] A cultura enquanto esfera autônoma existe a nível dos mercados de
poder, dos mercados econômicos, e não a nível da produção, da criação e
do consumo real. (In: Guattari & Rolnik, 1986)
A própria noção de natureza como limite cartografável, seja humana ou
não-humana, contornando a cultura que tanto ocupou o pensamento
antropológico, se dissolve então, ou não mais se coloca como um dos dois
pólos de uma relação. Melhor, como observa Viveiros de Castro (2002), ganha
um sentido matemático, “de ponto para o qual tende uma série ou uma
relação”, indicando as capacidades virtuais dos seres humanos.
No entanto, a compreensão da antropologia como uma ciência voltada
para o distante (crenças, rituais, etc.), sem se preocupar com o próprio sentido
que o pensamento científico para o mundo, um aparato “moderno” para
registrar leis, detendo-se a regularidades, traduzindo significados e os
colocando numa função de “querer dizer algo” correspondente às categorias ou
conceitos básicos da disciplina, reduzindo as possibilidades criativas dos
coletivos a particularidades enquadráveis num arcabouço teórico que é
logicamente limitado, é uma estrutura que se mantém no pensamento
antropológico até a contemporaneidade, embora tendo sofrido atualizações e
lapidações. Para Roberto Cardoso de Oliveira (2006 [1994]), pesquisador de
inspiração hermenêutica, por exemplo, o encontro etnográfico” seria uma
“fusão de horizontes”, em que nativo e pesquisador devem se ouvir como
“iguais”, sem que com isso o etnógrafo precise ter receio de contaminar o
discurso do outro com o seu. Nessa perspectiva, olhar e ouvir se
complementam no objetivo de eliminar todos os “ruídos que sejam
insignificantes”, ou seja, que não façam nenhum sentido no corpus teórico de
sua disciplina ou do paradigma no interior do qual o pesquisador é treinado.
Um dos grandes entraves dessa tendência metodológica bastante vigente,
ultimamente, diga-se de passagem - que busca na observação participante
captar o “excedente de significado” é que o olhar do pesquisador é tão
“disciplinado” que o que espera ver no campo é no máximo a modificação
31
daquilo que já foi em análises anteriores o que está descrito na bibliografia.
Não se está, assim, preparado para o que por vir, para o que a tradição do
nativo aponta como cultura. Ou seja, se “cultura, sociedade e natureza dão na
mesma” e nenhuma das grandes tradições teóricas da antropologia
conseguiu por si instituir um objeto próprio da disciplina -, como aponta
Viveiros de Castro (idem), a cultura como objeto da antropologia não existe, ou
melhor, sua existência estará submetida às atualizações que sua noção recebe
e que variam no tempo e no espaço; isso porque, para Viveiros, “a matéria
privilegiada da antropologia” é a socialidade humana, as relações sociais nas
quais o que chamamos de cultura se atualiza. E se elas variam, “‘cultura’ é o
nome que a antropologia dá à variação relacional” (idem). E dizer que os
conceitos dos nativos têm relação com os do antropólogo significa levar em
consideração que são relativos uns aos outros, o que não anula diferenças ou
sobrepõe teorias nativas e científicas, mas sim os coloca em ressonância,
atribuindo o mesmo estatuto filosófico a ambas.
Visto isso, chego ao ponto em que pretendo apontar que raciocínio
metodológico guia as linhas de minha etnografia. No parágrafo acima trago
Viveiros de Castro não apenas para encerrar a discussão teórica que inicio
sobre a concepção de cultura que me acompanha ou sobre qual seria o objeto
da antropologia que pratico. Desenvolvo as idéias desse autor para anunciar
que o texto construído nesse trabalho de pesquisa é a tentativa de fazer o que
ele chamou de “ficção antropológica”, uma ficção controlada pela experiência,
experiência de uma imaginação; a experiência etnográfica de permitir que o
campo problemático e não o contextual
17
seja um mundo composto a partir
dos objetos do pensamento nativo, pensamento este que experimentarei a
partir do meu, é lógico. Isto é, como de certa forma já foi dito, aceitar que o que
tanto se chamou de objeto, ou mesmo o que Geertz nomeou de “ponto de vista
do nativo”, não existe antes de um pensamento creditá-los tais status. Volto
então a reforçar que, portanto, meu objeto neste estudo é o que esteve por vir,
os conceitos que foram tomando forma e matéria a partir da decisão de
17
Em A Interpretação das Culturas, Cliffort Geertz afirma que a interpretação antropológica não
deve jamais ser desvinculada da ocasião, do lugar, das pessoas específicas que compõem o
cenário do acontecimento descrito, sob o risco de tornar-se vazia. A interpretação do
antropólogo, para o autor, consiste, portanto, em “traçar a curva de um discurso social; fixá-lo
em uma forma inspecionável. [...] tentar salvar o ‘dito’ num tal discurso da sua possibilidade de
extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (1973 [2008], p. 13-15)
32
descrever as relações que estabeleci com o ponto de vista dos nativos acerca
do nosso encontro: eu, uma antropóloga em formação e meus mundos
possíveis, e eles, o pessoal de religião e seus mundos possíveis.
Cabe aqui como recurso elucidativo citar um trecho do artigo O nativo
relativo, no qual Viveiros expõe o que significou, em suas pesquisas com povos
indígenas brasileiros, “tomar as idéias indígenas como conceitos”:
A noção de conceito supõe uma imagem do pensamento como
atividade distinta da cognição, e como outra coisa que um sistema de
representações. O que me interessa no pensamento nativo americano,
assim, não é nem o saber local e suas representações, mais ou menos
verdadeiras sobre o real [...], nem a cognição indígena [...] Nem
representações, individuais, ou coletivas, racionais ou (‘aparentemente’)
irracionais, que exprimiriam parcialmente estados de coisas anteriores e
exteriores a elas; nem categorias e processos cognitivos, universais ou
particulares, inatos ou adquiridos, que manifestariam propriedades de uma
coisa do mundo, seja ela a mente ou a sociedade. Meu objeto são os
conceitos indígenas, os mundos que eles constituem (mundos que assim os
exprimem), o fundo virtual de onde eles procedem e que eles pressupõem.
Os conceitos, ou seja, as idéias e os problemas da ‘razão’ indígena, não
suas categorias do ‘entendimento’. (Viveiros de Castro, 2002, pp. 124-125)
Estudar com religiões americanas de matriz africana - assim como de
certa maneira o estudo com povos indígenas – foi, durante algum tempo,
dentro da antropologia investigar porções ainda selvagens de coletivos
humanos, revirar o homem pelo seu lado irracional, buscando (e “encontrando”)
atributos primitivos ou patológicos da mente humana, ou mesmo deficiências
cognitivas de algumas raças
18
. Sintetizando, e ampliando ao mesmo tempo,
pode-se dizer desses estudos o que Lévi-Strauss (2003 [1955], p. 238) disse
dos estudos dos mitos em etnologia religiosa, que seriam vistos de forma
estéril e enfadonha como “devaneios da consciência coletiva”, ou seja, “formas
grosseiras de especulação filosófica”. E se as opções metodológicas de que
me valho, acredito, são construções feitas a partir da desconstrução de tais
teorias tidas como “etnocêntricas” - no jargão da disciplina o são por
considerarem que atribuir estatuto epistemológico às idéias do pessoal de
religião é um esforço de diminuir os intervalos entre as diferenças culturais com
as quais o trabalho etnográfico se preocupa, sem, portanto, desconsiderar a
continuidade que os aloca e sentido. Por isso a adoção da simetria, e o
18
Márcio Goldman faz um interessante levantamento dessas teorias em A possessão e a
construção ritual da pessoa no candomblé, dissertação de mestrado defendida no Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional/UFRJ.
33
por pretensão ao sonho relativista de cromatizar o mundo, onde tudo perde a
diferença e as cores com que se pinta o real é que se diversificam, criando
um imenso intervalo entre aquilo que é diferente.
Portanto, se, ao que me parece, a fórmula metodológica pela qual optei
para desenvolver esse trabalho já ganha uma aparência delineável e apresenta
um fundo teórico mais geral com as páginas acima. A seguir este capítulo se
desdobrará sobre aspectos mais específicos das orientações que estruturaram
a etnografia a que me propus. Voltarei, então, ao que muito sucintamente tratei
no primeiro parágrafo, e que diz respeito à clássica discussão sobre o
antropólogo enquanto “autor” e “personagem”
19
do texto etnográfico; faço isso
para pontuar como coaduno com Viveiros de Castro a idéia de construir uma
ficção etnográfica. o é, por isso, em vão, que dou os primeiros passos a
partir da obra de Malinowski.
Sobre “eu”: entre pessoas e não-pessoas, lugares e não-
lugares
Pelas lentes da sua câmera fotográfica, Malinowski deixou registrado
não apenas os rituais, cerimônias e outros aspectos da vida social nos
arquipélagos da Nova Guiné Melanésia, descritos com esmerado objetivismo
em Os Argonautas, depois de um longo período mergulhado em tais
sociedades. Mais que isso, o que ficou gravado pelo olhar do nativo voltado
para a câmera, foi a presença do pesquisador, do antropólogo que “esteve lá”.
Era isso o que estava em jogo fazer um retrato dos outros a partir de “ter
estado lá” e, quando voltados para as desventuras de Malinowski, foi sobre
isso que os teóricos da antropologia refletiram, em sua grande maioria, até a
contemporaneidade: como separar o que é de fato aspecto da cultura dos
nativos e o que são as inferências, teóricas ou não, do antropólogo. Pensar na
representação do processo da pesquisa no texto etnográfico foi (e é) muitas
vezes o mesmo que descrever o que o pesquisador observava a partir de sua
19
Embora não compartilhe da maneira como Clifford Geertz embasa seus argumentos sobre o
caráter literário do texto etnográfico, utilizo aqui as categorias polarizadas por ele, para logo em
seguida fazer o contraponto de minhas idéias com relação as suas. Geertz dedicou um livro à
discussão desse tema Obras e Vidas: O antropólogo como autor (2002) -, e de tal obra
extraio as principais proposições do antropólogo americano.
34
participação na vida dos selvagens (dos outros, para ser mais atual), descrever
como ele agia frente à experiência da vida dos primitivos”, já que, em se
tratando do trabalho de campo em si, todas as formas verbais não passivas
provinham da sua pessoa e faziam parte de um arcabouço metodológico
transposto para o texto pela simples presença de um profissional formado
teoricamente para estar em campo e descrever o contexto para o qual dirigia
suas análises.
Quando muito, ao tornarem-se pungentes tais questões, a saída foi
abordar o trabalho do etnógrafo e o texto etnográfico a partir da criação literária
de um autor “testemunha ocular”, como observou Geertz (2005 [2002]), o que
deslizava para outro problema, conforme ele, o da sustentação de um “eu
convincente” que acompanhe a abordagem do tipo “eu-testemunho”. Mas a
própria reflexão de Geertz, em Testemunha ocular: os filhos de Malinowski,
surge a partir da discussão sobre Diário no sentido estrito da palavra (1967),
publicação das páginas que serviram como espécie de confessionário ao
intelectual preocupado com a objetividade de seu saber, e ao mesmo tempo
não cego com relação ao caos e às tormentas que o isolamento entre os “seus
outros” lhe causara.
Então, o que se lia nas páginas de seu diário publicado apenas em
1967? O que era aquilo que Malinowski preferiu não juntar à sua etnografia?
Desabafos, posicionamentos, momentos de reflexão acerca de sua própria
condição humana e sua vocação, sobre o real valor de estar lá “entre os
bárbaros” enquanto uma guerra provocava atrocidades aos seus iguais... Não
se sabe e pouco importa saber se para Malinowski os registros que resultaram
na publicação de Um diário no estrito sentido da palavra surgiram de
momentos críticos em que o isolamento e o estranhamento ocasionados pelo
método que propunha – não só observar, mas participar da vida nativa como os
nativos fizeram-no expor todo o martírio a que se prestava em nome de seus
projetos científicos, ou se tais apontamentos seriam dados para uma reflexão
posterior. O que se sabe, e o que importa aqui, é que no momento em que
Malinowski pensou a elaboração e publicação de Os Argonautas, os diários
ocultados não cabiam como material para sua obra etnográfica de precisão
quase “anatômica”, usando o termo de Geertz.
E é o mesmo Geertz quem mais explicitamente afirmará que o problema
35
colocado é de ordem literária. Isso porque para ele, primeiramente, o
antropólogo não faz outra coisa senão escrever, ou melhor, escrever seria o
trabalho antropológico – tudo o que se observa, se analisa e se registra não o é
se não for fixado na descrição etnográfica (Geertz, 2008 [1973], p. 14). O que
permite a Geertz acreditar, como hermeneuta, que exista um “discurso social
bruto”, de domínio dos nativos e minimamente acessível ao antropólogo, de
cujo tal discurso não é o ator, o que pressupõe uma essência cultural por trás
dos significados que o antropólogo consegue representar na etnografia. É
como se as coisas ditas pelos nativos quisessem dizer outra coisa que não
aquilo que eles pensam e dizem que elas são. Contrariamente a essas
asserções, prefiro, assim, acompanhar o raciocínio de Viveiros de Castro, vindo
a criticar essa corrente de pensamento, ao mesmo tempo em que expõe alguns
pressupostos da mesma:
O antropólogo tem usualmente uma vantagem epistemológica sobre o
nativo. O discurso do primeiro não se acha situado no mesmo plano que o
discurso do segundo: o sentido que o antropólogo estabelece depende do
sentido do nativo, mas é ele quem detém o sentido desse sentido ele
quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza,
justifica e significa esse sentido. A matriz relacional do discurso
antropológico é hilemórfica: o sentido do antropólogo é forma; o do nativo,
matéria. De fato, como diria Geertz, somos todos nativos; mas de direito,
uns sempre são mais nativos que os outros. (Viveiros de Castro, 2002, p.
115)
Segundo, porque considera que a legitimidade da escrita dos etnógrafos
é diretamente proporcional à sua “capacidade de nos convencer de que o que
eles dizem resulta de haverem realmente penetrado numa outra forma de vida
(ou, se preferir, de terem sido penetrados por ela) de realmente haverem, de
um modo ou de outro, ‘estado lá’” (Geertz, 2005 [2002], p. 15). Para o
americano, então, como já foi dito, tudo é uma questão de convencer o leitor de
que aquele “eu” criado entre o diário de campo e a descrição de sua
observação participante, de fato representa o que é viver como os nativos; para
Malinowski também era essa a preocupação. Não por acaso, mas porque para
ambos quem escreve “sobre eles”, tendo estado com eles (e os absorvido com
sua “sensibilidade”, além de com a capacidade de análise objetiva
20
), é alguém
20
Segundo Geertz, a estratégia literária de Malinowski para dar conta do que era escrever uma
descrição a partir do método que ele defendia, a “observação participante”, foi desdobrar-se
enquanto personagem, tentando discriminar aquilo que no campo era captado por sua
sensibilidade e o que era apreendido por sua capacidade de análise. Para isso, ora se
36
que confessa e testemunha. Porque é também a literatura etnográfica, nesse
ponto de vista, uma escrita “biográfica”.
O grande dilema, então, de se ser uma “testemunha ocular” é
justamente ter-se como tal, e é o que coloca Geertz na encruzilhada da autoria,
da representação fidedigna, de escrever sobre “eu” para falar da vida deles,
sem que “eu” sature a descrição deles com o que é de mim... Como provar que
estou sendo sincero (a respeito de quê)? Há uma verdade anterior à
experiência? Se houver um parâmetro de sinceridade, creio, não será a palavra
“eu” por si que o corromperá. Enfim, a única solução que para sair do
enredo da teia problemática de Geertz é não tomá-la como problema.
No entanto, algo da circular questão de Geertz, pode ser útil, enquanto
contraponto, para sustentarmos a argumentação metodológica a que se propõe
este trabalho. Como o próprio autor menciona amarrado, é claro, às suas
noções de escrita e de objetivo da antropologia – “‘Eu’ é mais difícil de escrever
do que de ler”
21
. Pode ser que Geertz tenha razão e todo o dilema literário do
antropólogo se resuma às dimensões do pronome (e da pessoa) “eu”, do
quanto de alteridade ele é capaz de representar, que para o autor americano
a experiência etnográfica e, portanto, a escrita é algo pessoal, uma
experiência de conhecimento do eu por intermédio do outro. Talvez ele esteja
certo, nos limites de sua perspectiva, quanto à dificuldade de escrever “eu”
para descrever o ponto de vista do outro.
Mas não é apenas por questões de limites teóricos que os antropólogos
se posicionam tal como Geertz - e também não foi somente por recurso de
contra-argumentação que me detive ao problema dos lugares de quem escreve
e sobre quem se escreve para puxar o fio do raciocínio metodológico que
mostrava como um sujeito cosmopolita, com perspicaz capacidade de adaptação e
sensibilidade que os permitiam ser capaz de “ver como os selvagens vêem, pensar como os
selvagens pensam, falar como eles falam e, vez por outra, até sentir o que eles sentem e até
acreditar no que acreditam”; ora aparecia como o “investigador completo”, objetivo, minucioso
desapaixonado (Geertz, 2005 [2002], p. 107). Ainda no mesmo estudo, Geertz veria nesses
personagens a fusão da sensibilidade perceptiva do poeta com a capacidade abstrativa do
cientista, romance e ciência embaralhados na construção da etnografia. No entanto, o autor se
desloca dessa discussão para ater-se improficuamente a questionar se de fato, na realidade”,
ou seja, fora dos textos, esses personagens correspondiam à pessoa de Malinowski.
21
Para ser mais precisa, Geertz faz uma citação de Roland Barthes, extraída de:
R. Barthes, “Délibération”, in S. Sotang (org), A Barthes Reader, nova York, p. 479 – 495.
37
apresento. Conforme Edgar Barbosa Neto
22
(2006), tradicionalmente, as
etnografias são escritas de forma a não levarem em conta o contexto de
enunciação, os enunciados “são ditos, mas procedem de lugar nenhum, e
ninguém, rigorosamente falando, os diz”, assim como são indefinidos os
sujeitos de quem se fala. O que pareceria ser uma solução para o problema
que Geertz define como um dos dilemas da abordagem “eu-testemunho”,
aparece no texto O quem das coisas: sobre Les mots, La mort, Les sorts”, de
Barbosa Neto, como um “impasse enunciativo” das etnografias tais como são
pensadas desde que a experiência etnográfica é a experiência do autor-
pesquisador.
Em O quem das coisas, o autor discute a obra Les mots, La mort, Les
sorts, de Jeanne Favret-Saada (1977), enquanto uma crítica à etnografia
nesses moldes, aponta o livro como uma proposta de subverter o problema da
criação etnográfica enquanto problema de representação. Segundo Barbosa
Neto, em sua obra sobre a feitiçaria no Bocage francês, a autora, que escreve
o texto na primeira pessoa, deixa claro, ao começar o primeiro capítulo falando
de “uma antropóloga” e dirigindo-se a si mesma como “ela”, que sua etnografia
pode ser escrita porque o lugar de antropóloga de um não se sabe quem
que fala o se sabe de onde, ou seja, de uma não-pessoa” passou a ser
ocupado por um enunciador não diferenciado dos outros envolvidos no sistema
da feitiçaria. Da mesma forma que não abre mão de escrever “eu” afirmando
que foi a experiência deste enquanto pessoa que lhe subsidiou o texto, a
despersonalização anunciada pelos indefinidos “ela” e uma” aponta que
aquele “eu” está no “não-lugar” tradicionalmente relegado aos nativos, isto é, o
lugar de sobre quem se fala. Sendo a feitiçaria, conforme Favret-Saada, um
fato empírico restrito à fala, não outra coisa a se descrever que não sejam
as palavras enunciadas - não como veículos de informação, mas como coisas
que agem por si (idem). Senão como ouvinte, falante, enfeitiçada,
desenfeitiçadora, não houve espaço para a antropóloga como observadora ou
como alguém que interpreta e representa a feitiçaria, já que
A feitiçaria, portanto, não é observável, tanto quanto não é dizível. Ou
melhor, se pode vê-la ao dizê-la, e dizê-la é, de algum modo, fazê-la.
22
Edgar é professor da Universidade Federal de Pelotas e realiza sua pesquisa de doutorado
em Antropologia Social também com religiões de matriz africana em Pelotas, tendo nossos
campos se cruzado em diversos momentos.
38
Em outras palavras, não pode haver observação porque, nesse sistema de
lugares que é a feitiçaria, não há lugar para o que não tem lugar. [...] Em um
tal contexto, o etnógrafo só pode ser um falante como qualquer outro,
sujeito às mesmas forças e constrições. Mantendo-se etnógrafo,
preservando a sua posição de observador, de atopos, não haveria
etnografia para escrever. (ibidem. Grifos do autor)
Assim, deixando de lado a posição de antropóloga, que seria
discriminada das pessoas com quem conviveu e com quem pesquisou, a
autora precisou atribuir estatuto epistemológico” ao que os camponeses com
quem pesquisou diziam ser a experiência de estar enfeitiçada, para que fosse
possível chegar a experimentar o que não era possível sequer de se imaginar
quando colocada enquanto etnógrafa (observadora/entrevistadora). Da mesma
forma seria impossível experimentar tal pensamento se os critérios para tal fim
fossem calcados em concepções do que é observável, representável ou
enquadrado como crença pelo estoque conceitual que a antropóloga trazia da
sua disciplina:
...agitada pelas “sensações, percepções e pelos pensamentos” de quem
ocupa um lugar no sistema da feitiçaria. Se afirmo que é preciso aceitar
ocupá-lo, em vez de imaginar-se lá, é pela simples razão de que o que ali
se passa é literalmente inimaginável, sobretudo para um etnógrafo,
habituado a trabalhar com representações: quando se está em um tal lugar,
é-se bombardeado por intensidades especificas (chamemo-las de afetos),
que geralmente não são significáveis. Esse lugar e as intensidades que lhes
são ligadas têm então que ser experimentados: é a única maneira de
aproximá-los. (Favret-Saada, 1990)
“Afecção”, portanto, segundo Barbosa Neto, seria o nome dado por
Favret-Saada a essa experiência que foge à representação e que é tanto de
texto quanto de campo, bem como da relação entre ambos. Isso se torna ainda
mais compreensível se olharmos para a etnografia e o trabalho de campo tal
como os defende Marcio Goldman (2006, p. 31), pautado na teoria
estruturalista de que “cada sociedade atualiza virtualidades humanas
universais e, portanto, potencialmente presentes em outras sociedades [...] ele
[o nativo] é o que eu sou parcial e incompletamente (e vice-versa, é claro)”.
Para Goldman, ter a etnografia e o campo como devires implica deixar de vê-
los como observação de comportamentos e conceitos, assunção do ponto de
vista do nativo ou transformação substancial em nativo, para seguir
39
... o movimento pelo qual um sujeito sai de sua própria condição por meio
de uma relação de afetos que consegue estabelecer com uma condição
outra. Esses afetos não têm absolutamente o sentido de emoções ou
sentimentos, mas simplesmente daquilo que afeta, que atinge, modifica: um
devir cavalo, por exemplo, não significa que eu me torne um cavalo ou que
eu me identifique psicologicamente com o animal: significa que “o que
acontece ao cavalo pode acontecer a mim”
23
(idem)
Sendo assim, escrever “eu” passa a não ser algo tão reducionista ou
autoritário, pois o que se tem ao escrever não é o relato de uma experiência
pessoal e individual que possa ser restrita à pessoa “eu”, esta apenas atualiza
uma potencialidade na pessoa do antropólogo, que o desterritorializa desta
posição, sem que isso incorra em uma essencialização em outra posição que
devenha. A essa experiência simultânea de campo e texto de que nos fala
Favret-Saada pode-se atribuir o status de devir, no sentido do conceito
cunhado por Deleuze e Guattari e proposto por Goldman, porque
Devir o é atingir uma forma (identificação, imitação, Mimese), mas
encontrar a zona de vizinhança, de indiscernibilidade ou de indiferenciação
tal que o seja possível distinguir-se de uma mulher, de um animal ou
de uma molécula: não imprecisos nem gerais, mas imprevistos, não-
preexistentes, tanto menos determinados numa forma quanto se
singularizam numa população. (Deleuze, 2008 [1997], p. 11)
Assim, pode-se apontar como se chega a dizer que o que está em jogo
é a construção de uma “ficção antropológica” e assim não responder ao
problema literário de que falou Geertz anteriormente, mas subvertê-lo. Porque,
para Deleuze (2008 [1997]), a escrita é um processo em constante
inacabamento, escrever o é expressar algo que foi vivido, pois ultrapassa o
que é vivível, o que é previsto; ela o está separada do devir, pois “está
sempre em vias de fazer-se”. Justamente como ultrapassa o vivível, a literatura
transborda a pessoalidade eu” esvazia-se enquanto pronome definido,
implicando isso não em uma substancial, porém potencial, impessoalidade:
[A literatura] só se instala descobrindo sobre as aparentes pessoas a
potência de um impessoal, que de modo algum é uma generalidade, mas
uma singularidade no mais alto grau: um homem, uma mulher, um animal,
um ventre, uma criança... [...] os personagens literários estão perfeitamente
individuados, e não são imprecisos nem gerais; mas todos os seus traços
individuais os elevam a uma visão que os arrasta num indefinido como um
devir potente demais para eles. (idem, p. 13)
A referência às análises de Edgar Neto e Favret-Saada vêm somar-se à
concepção que Deleuze tem de literatura, para afirmar que - embora se esteja
23
Grifo do autor: referência a GUATTARI, Félix. 1986. Les Années d’Hiver. Paris: Barrault.
40
descrevendo intensidades e não informações não significa que escrever se
faça de puras abstrações, de imaginações inventadas ao acaso; pelo contrário,
Deleuze reforça que a escrita não está desvinculada de ouvir e ver, porém,
essas audições e visões, muitas delas tornadas possíveis pela linguagem,
“não são um assunto privado, mas formam as figuras de uma história e de uma
geografia incessantemente reinventadas”.
Portanto, se, para Geertz, escrever uma etnografia é descrever as
interpretações que o antropólogo fez de uma cultura, de uma sociedade, de um
modo de vida, levando em consideração o contato entre pesquisador e alguns
pesquisados passando a credibilidade de que realmente houve uma relação
intersubjetiva entre eles -, se tomarmos a perspectiva que Deleuze tem sobre o
conceito de “encontro”, novamente se esvaem os dilemas de Geertz, Cardoso
de Oliveira e outros autores focados nas relações em âmbito pessoal. E
paralelo a isso, reforça-se a idéia de afecção como uma maneira de participar
tendo em vista que o principal meio metodológico é o estabelecimento e a
aceitação dos dados provindos de uma comunicação involuntária. Para
Deleuze (1988), não encontramos com pessoas, mas com coisas, com obras,
com o que é externo àquilo que delimita a noção kantiana de pessoa. Sobre
esse conceito dentro da filosofia de Deleuze, François Zourabichvili (2004),
escreve uma interessante passagem:
Encuentro es el nombre de una relación absolutamente exterior donde el
pensamiento entra en relación con lo que no depende de él. [...] Se trate de
pensar o de vivir, lo que es en juego es siempre el encuentro, el
acontecimiento, o sea, la relación en tanto exterior a sus términos.
(Zourabichvili, 2004, p. 34)
Essa compreensão talvez permita entender porque nos diários de
Favret-Saada e Malinowski - como a própria autora faz referência aparece a
principal diferença entre os métodos de ambos, de um lado participar sendo
afetado, de outro observar participando. Embora, o primeiro não exclua o
segundo, e este não impeça aquele. E aqui reside o desembaraço da questão
clássica sobre familiaridade e estranhamento, de qual seria a métrica
adequada para ambas as ações: se o segundo dedicou ao espaço do diário de
campo um recanto de familiaridade no qual pôde expurgar todo o
estranhamento que tinha frente aos nativos de cujas vidas participou para
41
poder observá-las
24
, nos diários da primeira a distância não aparece incrustada
nas declarações íntimas ou asserções subjetivas, pois embora não tivesse bem
noção de que resultado teria tal método, a continuidade entre os âmbitos íntimo
e o sistema da feitiçaria se estabeleceu quando ela aceitou ocupar um lugar
nesse sistema e ser atravessada pelas intensidades arrastadas pelas
concepções, sentimentos, pensamentos, palavras dos nativos.
Novamente, os antropólogos da representação alongam o intervalo entre
as diferenças culturais e crucificam o “eu” (ou são por ele crucificados), Favret-
Saada estabelece uma continuidade sem ponto de chegada ou partida, mas
formada por curtos intervalos que se atualizam em singularidades, sendo “eu”
virtualmente múltiplas delas. Aqui pode ser esclarecedora a citação deleuziana,
extraída de Diferença e Repetição, feita por José Carlos Gomes dos Anjos
(2006) para mostrar os contrastes entre o pensamento afro-brasileiro, calcado
na diferença, e aquele pensamento firmado sobre a representação, na forma
como pensam a individualidade:
Para a representação, é preciso que toda a individualidade seja pessoa (Eu)
e que toda singularidade seja individual. Logo, onde se pára de dizer Eu,
pára também a individuação; e onde pára a individuação, pára também toda
a singularidade possível. “[De outro modo, o pensamento da diferença
trabalha]” um mundo de individuações impessoais e de singularidades pré-
individuais, é este o mundo do Se ou do eles, que não se reduz a
banalidade cotidiana, mas que ao contrário, é o mundo em que se elaboram
os encontros e as ressonâncias, última face de Dionísio. (1988 apud Anjos,
2006, p. 76)
Essa passagem ajuda a compreender porque Favret-Saada (2005)
reforça que decidir deixar-se afetar pelo que afeta as pessoas com quem se
estuda não é um caso de conhecer algo por empatia não se trata de tentar
imaginar como é estar no lugar do outro e como são as coisas que ele sente e
pensa (porque efetivamente está-se no lugar do outro), nem se trata de
conhecer os afetos do outro por identificação. Ao contrário do que se pode
levar a crer, também não é uma questão de se ter mais “sensibilidade”
perceptiva do que o normal, mas sim de aceitar uma comunicação do que não
se sabe o que é e ainda assim suscita-nos réplicas ou silêncios. Aceitar que a
matéria do conhecimento nem sempre é racionalmente compreensível, nem
sempre é observável ou capaz de ser dita por um etnógrafo e pode não ser
24
Favret-Saada, 2005, p. 158.
42
comunicada intencionalmente, aceitar que se está sendo afetado pelas
mesmas forças que atingem o outro, por se estar no mesmo lugar que ele, é
estar direcionado para “uma variedade particular da experiência humana ser
enfeitiçada, por exemplo”. O que não descarta as singularidades, que
abarcadas por essa experiência particular o são individuações, mas as
anunciam, não afirmadas na pessoalidade, mas pessoalmente alocadas pelas
singularidades possíveis pela intensidade que afeta. É o que parece dizer a
autora quando descreve como percebia estar afetada pelos afetos que
afetavam um dos camponeses com quem esteve tratando de feitiçaria:
[...] o que me é comunicado é somente a intensidade de que o outro está
afetado (em termos cnicos, falar-se-ia de um quantum de afeto ou de uma
carga energética). As imagens que, para ele e somente para ele, são
associadas a essa intensidade escapam a esse tipo de comunicação. Da
minha parte, encaixo essa carga energética de modo meu, pessoal: tenho,
digamos, um distúrbio provisório de percepção, uma quase alucinação, ou
uma modificação nas dimensões, ou ainda, estou submersa num
sentimento de pânico, ou de angústia maciça. Não é necessário (e, aliás,
não é freqüente) que esse seja o caso do meu parceiro: ele pode, por
exemplo, estar completamente inafetado na aparência. (Favret-Saada,
2005, p. 159)
Antes que se instale o obscurantismo e nos tirem o foco as abstrações,
antes que as experiências descritas por Jeanne Favret-Saada levem a crer que
deixar-se afetar seja uma modalidade de conhecimento restrita a determinadas
experiências, trago um pouco do material empírico, que ressoando com tais
discussões teóricas, construiu a problemática dessa dissertação e as possíveis
maneiras de respondê-la. Embora, assim como Jeanne Favret-Saada, eu tenha
sido enfeitiçada durante o processo de pesquisa com pessoas de religião
(envolvidas de diversas formas com religiões de matriz africana, em
Pelotas/RS), não serão as semelhanças entre o sistema que ela descreve e a
vivência que tive que irão nortear minhas descrições. Primeiro porque deixar-
me afetar e aceitar isso enquanto material epistemológico não foi uma
inspiração brotada da obra da autora, embora tal decisão tenha implicado em
nós duas efeitos muito semelhantes. Segundo porque não olharei para a
feitiçaria como um sistema fechado de lugares (não que não o seja), que
junto com meus interlocutores (pais-de-santo, e outros iniciados no Batuque)
esse foco não se deteve como uma questão encerrada em si. Estar enfeitiçada
foi estar sendo afetada pelo que afeta as pessoas que, por um motivo ou
outros, encontram-se na iminência de passarem por rituais de sacrifício que
43
selam um compromisso de obrigações com seu orixá pessoal e com um pai ou
mãe-de-santo que irão acompanhá-las nessa jornada ininterrupta e vitalícia de
obrigações, cuja negligência encontra-se sob a pena, entre outras, de se estar
vulnerável a feitiços. E se posso dizer que fui afetada, o faço menos pelos
“sintomas” de estar enfeitiçada do que por ter aceito participar de um processo
de apreensão de conhecimento não-sistemático, não ensinado, e em cuja fala,
assim como na feitiçaria de Favret-Saada, a palavra tem força porque não é
signo. Aceitei isso porque estive no lugar das pessoas com quem estudava em
algumas terreiras de Pelotas, o lugar de quem aprende a viver como aprendem
essas pessoas. Nas palavras do professor Marcio Goldman:
[...] Nenhuma forma de aprendizagem em uma religião desse tipo pode
representar apreensão passiva, mas apenas uma vivência que modifica
todos os elementos do processo, seja a matéria que é transformada na
medida em que é “transmitida” e “assimilada”, seja os agentes envolvidos
no sistema, que, como vimos, vão se transformando ao longo do tempo.
Tudo de passa aqui, pois, segundo a fórmula de Guimarães Rosa (1967:
443)
25
: “viver – não é? – é muito perigoso. Porque ainda não se sabe.
Porque aprender-a-viver é que é viver mesmo.” (Goldman, 2005, p. 12
nota minha)
De alguma forma isso se deixa ver não apenas nos processos de
possível iniciação religiosa que descreverei nesse trabalho, mas se cola
também ao meu processo de formação como antropóloga. Em 2006, eu dava
os primeiros passos em uma pesquisa etnográfica: orientada pela professora
Flávia Rieth, mal havia começado meu primeiro diário de campo e uma
inquietação ética me perturbava constantemente
26
. Ainda envolta na assepsia
dos jalecos brancos do trabalho com enfermagem psiquiátrica, toda vez que eu
e Flávia conversávamos sobre alguma situação do campo sem que isso
implicasse em estarmos tecnicamente “analisando dados” empíricos, sentia-me
como se estivesse ferindo um compromisso ético de respeito para com meus
“objetos”. Foi o que aconteceu certa vez quando saímos da casa de uma
senhora que acabávamos de entrevistar: havíamos passado por algumas
situações embaraçosas durante a visita, as quais se tornaram motivos de risos
entre nós ao conversarmos no carro logo que nos despedimos da entrevistada.
25
Rosa, João Guimarães. 1967. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympo
Editora.
26
Minha mais significativa experiência “informante/pesquisadora”, até então, havia sido no ano
de 2005, em um hospital psiquiátrico integrando uma equipe de estudantes de enfermagem
que “analisava” as histórias de vida contadas pelos pacientes durante sessões de terapia
recreativa, a partir de pressupostos principalmente freudianos.
44
Não deixei de considerar a comicidade do que acontecera e de participar da
brincadeira, mas ao mesmo tempo não me contive em perguntar à Flávia se o
que acabávamos de fazer o se “enquadrava” em um tipo de atitude antiética
para uma relação etnógrafos/interlocutores como seria a de um profissional
da saúde com seus pacientes. Acompanhada de um silêncio meu ainda a
processá-la, a resposta veio rápida e curta: “essa é uma relação como outra
qualquer”.
Na época tomei a frase de minha orientadora como uma maneira
simples de me tranqüilizar sem precisar adentrar em discussões teóricas
complexas demais para uma neófita, o que de fato, mesmo sem compreendê-
la, acontecia, sempre que eu a evocava ao sentir-me assombrada pelo
fantasma da neutralidade científica que então se disfarçava atrás da cara
simpática de um outro, conhecido por relativismo cultural. Hoje, não muito
tempo depois, minhas preocupações são bem mais o contrário do que eram, e
a frase de Flávia antes circular e enigmática agora é tão atual e clara
quanto uma velha nota de diário que a gente não sabe bem porque registrou,
mas algo, que não se sabe o que é, diz que um dia fará total sentido.
45
Capítulo II
“Nós podemos começar as coisas na morte”: a Cabinda e as
encruzilhadas
Segundo Norton Corrêa (2006), “chamam-se 'lados' os grupos tribais
africanos aos quais o filiado [no Batuque do Rio Grande do Sul] atribui sua
origem étnica, e as diferenças entre estas nações estão principalmente no
andamento dos ritmos dos tambores, alimentos rituais e letras e melodias de
alguns dos cânticos dirigidos aos orixás. O autor ainda enumera quais seriam
essas diferentes nações no Rio Grande do Sul, sendo que as mesmas podem
vir a se misturar em algumas casas – os grifos serão meus: Oió, Jexá (ou Ijexá,
em Pelotas e região), Jêjo (ou Jêje, em Pelotas e região), Nagô, Cambini ou
Cambina (Cabinda, em Pelotas e região), Oiá e Maçambique.
No entanto, e em oposição ao que Corrêa expõe em seus dados, nas
casas com as quais pesquisei em Pelotas, o termo 'lado' ou 'nação' é utilizado
geralmente para se referir muito menos a uma origem étnica dos iniciados do
que a um território existencial no qual se alocam, além da matriz africana da
religião em geral - e seus particulares agenciamentos com elementos de outras
matrizes culturais -, os fundamentos, rituais e mitologia que desdobram sua
dinâmica numa ancestralidade não apenas africana, mas local.
Enfatizo isso porque, durante o processo dessa pesquisa, muitas vezes
ao se referirem a descrições mais específicas ou ao responderem questões
mais pontuais a respeito de rituais do Batuque ou concepções acerca de
algumas categorias, os interlocutores iniciavam suas exposições com
expressões do tipo: “vou falar de como é na minha nação, pois é dela que
eu sei”, ou “eu conheço a minha nação, não posso falar da dos outros”. A
insistência em demarcar as fronteiras de seu discurso de acordo com os
fundamentos de sua nação parece motivada justamente pelas semelhanças
existentes entre os diferentes lados e a fluidez dos limites que encerram tais
fundamentos como sendo de uma nação ou outra, o que diz respeito à própria
cosmovisão do Batuque, na qual as transformações, manutenções e
diferenciações seguem a lógica de uma jurisprudência capaz de ser
46
manipulada
27
, movimentando-se, portanto, no sentido favorável à dinâmica da
criatividade e da contingência, em detrimento de cristalizações e dogmatismos.
As diferenciações podem se dar entre as casas de religião também, não
tendo que ser nenhuma igual a outra, ou seguindo normas pré-estabelecidas
por um corpo religioso superior unificador
28
- o que não quer dizer que
caminhem no sentido de uma individuação ou autonomia desligadas de
qualquer matriz. Pelo contrário, o que parece possibilitar que cada casa siga
sua dinâmica própria sem deixar de ser reconhecida pelas outras e por si
mesma como uma casa de religião é, entre outros fatores, o constante trânsito
de pessoas de outras casas ou nações, atualizando e ultrapassando as
diferenças no chamado leva e traz feito por aqueles, iniciados ou não, que
circulam pelas festas nas mais diversas casas, ou que sempre dão um jeito de
serem convidados para os rituais e celebrações mais privados
29
. também
aqueles fofoqueiros que não vêm do ambiente de outras terreiras, estando
muitas vezes dentro da própria família-de-santo. Considerados demandeiros,
pessoas que provocam brigas ou estão sempre “metidas em confusão”, eles
costumam circular por diferentes pais-de-santo, por serem expulsos ou se
desfiliarem das terreiras às quais se vinculavam.
Ouve-se falar pejorativamente nas “cabeças em que todo mundo pôs
a mão”, pois a cada troca de casa o filho-de-santo deve lavar a cabeça pelo
novo pai ou mãe-de-santo, começando novamente a rotina de assentamento
30
27
Em Formas do Saber e Modos do Ser: Observações Sobre Multiplicidade e Ontologia no
Candomblé (2005), Márcio Goldman
pensa a relação entre normas e sua efetivação no
Candomblé, e demais religiões desse tipo, como se tratando de “uma espécie de
construtivismo generalizado e, sem dúvida, um fiel poderia subscrever a proposição iluminista
segundo a qual são os humanos que fazem os deuses se, contudo, é claro, nela enxergar
nenhuma ilusão ou ideologia. Pois se tudo é feito, sempre se pode fazer alguma coisa/;
negociar com os deuses quando suas exigências são rigorosas demais; postergar ou
simplificar uma iniciação reclamada pelo orixá [...] Tudo isso, e muito mais, é possível, desde
que se tenha a força, a ousadia e o saber necessários para fazê-lo, pois é evidente que
riscos e que a prova final está na aceitação ou na recusa por parte das divindades e neste
último caso as conseqüências costumam ser muito graves”.
28
É certo que em Pelotas também existem associações de cultos africanistas e federações que
primam pela manutenção de uma certa regularidade no transcorrer dos rituais, mas isso não
chega a ferir o princípio de autonomia das terreiras e seus pais-de-santo.
29
O que acontece freqüentemente é de pessoas de diferentes nações presenciarem os
batuques nas casas de nações diversas das suas, por serem convidadas a prestigiarem a festa
dos orixás da casa anfitriã, dançam as rezas dos orixás, batem cabeça, participam da festa,
mas há sempre uma expectativa em relação aos rituais da outra casa, em saber se portar,
aprender as diferenças e reconhecer as semelhanças – que são muitas – da outra nação.
30
O primeiro passo que se deve dar quando da decisão de se iniciar no Batuque
é
jogar os
búzios para confirmar seu orixá de cabeça, depois o juntó (orixá da cabeça mais o do peito e o
47
dos seus orixás via o axé do orixá do pai ou mãe atual. O sentido pejorativo se
refere claramente não apenas a falhas morais atribuídas ao caráter da pessoa
do filho-de-santo, mas à tendência de que a pessoa deve firmar a cabeça no
santo: se o axé é um fluxo constante de força vital, que recebe cortes em
diferentes intensidades
31
, e o assentamento dos santos (que são uns desses
múltiplos cortes) se sob as peculiaridades do cuidado de um pai ou mãe-de-
santo, não se deve mudar repentinamente o curso que vinham tomando esses
cortes de acordo com a jurisprudência dos pais-de-santo, pois assentar os
orixás é antes de tudo controlar a força que eles são, canalizá-la.
A pessoa de religião, ao “entrar para” a religião, se está construindo
como tal e é bom que siga o fluxo do axé
32
(que está em tudo, inclusive no
conhecimento, no saber) que orienta essa edificação tão complexa. E ser
atravessado por esses fluxos é também estar aprendendo a reconhecê-los, é
estar alimentando o orixá, criando-o e sendo recriado por ele. O orixá “é como
uma criança, a gente vai acostumando o santo conforme vai fazendo as
obrigações para ele” (Diamantino D’Oxalá) e, além disso, também se pode
dizer sobre o mesmo santo que:
das pernas). Depois disso faz-se a lavagem com mieró (banho com ervas litúrgicas), depois o
aribibó (corte de aves, na cabeça), que é como um batismo, para então chegar no corte de
quatro pés, até o aprontamento (assentamento de todo o panteão de orixás, o Orumalé), e
ultrapassará este, sendo realizado para toda a vida o que não exclui a realização das outras
obrigações, pelo contrário, quanto mais tempo na religião, mais obrigação se tem, mais o ori
precisa de atenção. O assentamento do santo na cabeça do iniciado é acompanhado do seu
assentamento no alcutá - assentamento do orixá numa pedra, atualização material do ori
pessoal do iniciado, bem como dos demais onze orixás, que a partir do assentamento do
pessoal já podem ir sendo assentados nas pedras respectivas. Assentar quer dizer derramar
sobre a pedra lavada com mieró, o axorô (sangue) do animal de quatro patas correspondente
ao orixá a ser atualizado, bem como do número de aves a serem sacrificadas, correspondente
ao mesmo, e o casal de pombos também correspondente. É no jogo de búzios que se
descobre como será a pedra do orixá pessoal, sendo imprescindível que ela esteja “viva”;
Vitória D’Iemanjá tentou mostrar-me qual a diferença de uma pedra viva para uma morta,
fazendo com que eu tocasse em ambas e sentisse a variação de temperatura entre elas: a viva
estaria mais fria do que a morta – embora não sendo as categorias fria ou quente que
determinassem isso. O “sentir a pedra” era um saber que Vitória tinha e que ela não poderia
me explicar.
31
Goldman, 2005b.
32
Axé quer dizer força, energia, tudo o que tem vida, portanto, sentido, tem axé. Então dizem:
‘Ah, vocês idolatram todos os deuses’. Nós dividimos deus em forma de natureza, em forma de
orixá. Na verdade é um deus só. Tu entendeste? que se eu quiser falar com deus em forma
de Iansã, eu vejo o vento. [Nessa situação] Para mim, deus está no vento. (Diamantino
D’Oxalá)
48
Tu cuidas deles, tu zelas por eles, e eles zelam por ti. Tu
crias aquele vínculo único e direto, tu cuidas, tu crias e tu tens o teu
retorno [...] Porque na religião, quando tu entras, tu nasces pra ela,
tu estás nascendo dentro dela. É uma porta, depois que tu
entras... Tu dizes às pessoas que se lava a cabeça e sai, mas não é
assim. Tu manifestaste, tu exercitaste teu orixá em cima de ti. E
exercitando teu orixá em cima de ti, a manifestação da força dele vai
ser sempre, porque ele sempre vai ser por ti, mesmo tu errado ou
não, mas ele vai te corrigir os erros. Mesmo que eu esteja errado em
um certo e determinado assunto, ele vai fazer com que eu saia bem
deste assunto, mas adiante ele vai me corrigir, me
mostrar que
eu
que estava errado, mas é uma conta minha e dele. (Salvador
D’Iansã)
Todas essas descrições acima apontam para que se tenha uma
dimensão mais ampla, porém não por isso desarticulada, de como se dá o jogo
de relações que permite que as religiões de matriz africana se perpetuem e se
atualizem sem que se perca de vista a matriz filosófica que atualiza sua
dinâmica. Desde a feitura do santo (e pelo santo) até as diversificações e
manutenções de semelhanças entre casas e nações, o princípio de que as
coisas e os seres se transformam mutuamente, transformando a própria
relação que os liga, está sempre presente e saber controlar esses constantes
agenciamentos é fator importantíssimo na construção e manutenção da pessoa
de religião. O orixá que é feito, na própria feitura transforma o filho que também
o faz, assim como quem circula muito leva e traz, aprende muito, conhece
muito, reconhece as semelhanças e aponta as diferenças entre as terreiras
(reforçando-as), corre muitos riscos, como me disse certa vez Dona Joaquina
D’Oiá: “É bom mesmo [fazer a limpeza de fim de ano e botar a segurança
33
],
ainda mais tu, que ouves muita coisa por aí, levas e trazes essa papelada para
cima e para baixo”. O que, é claro, diz respeito ao estatuto da fala nessas
religiões e sua relação com os processos de aprendizagem não sistematizados
que elas apresentam para a construção da pessoa o que já foi discutido no
capítulo I.
Esse ligeiro sobrevôo no pensamento afro-religioso e algumas de suas
maneiras de construir e pensar as diferenças (e de se construir e se pensar a
partir delas) se faz necessário para tornar mais claras as motivações que
levaram à escolha de tratar, neste capítulo, “a Cabinda” e não “o Batuque”, sem
33
Neste caso, segurança é um conjunto de fios de linha coloridos, das cores dos orixás que
regem o ano-novo, feito no fim de cada ano, lavado com ervas e amarrado no pulso ou
esquerdo de quem faz a limpeza de fim de ano.
49
que, por estar falando de uma nação específica, eu deixe de estar falando da
religião. Não quero dizer com isso que uma parte falaria pelo todo, e sim que
se falo de uma matriz africana, no sentido geracional e transformacional, estou
tratando de um pensamento, de uma filosofia que se pauta pela diferença e
pela pluralidade
34
. Tentarei, portanto, trazer para o texto como essas pessoas
de religião se pensam como tais a partir desses princípios basta lembrar da
referência que faço, no primeiro capítulo, à noção africana de personalidade
apresentada por Roger Bastide, na qual a pessoa tende à particularização
conforme se aproxima da categoria Ser e se afasta do Não-Ser
35
.
Embora sem querer me ater a outras discussões também significativas,
como o tema da racialidade, creio que a reflexão de José Carlos Gomes dos
Anjos
36
sobre a questão das nações e as raças, e a perspectiva de uma matriz
africana para tais religiões, compreende bem o que pretendo explicitar neste
capítulo. Ao pensar em raça como um percurso nômade, não-essencializado,
Anjos aproxima o conceito afro-brasileiro de encruzilhada com a elaboração
filosófica de intensidades feita por Deleuze, ou seja, nos terreiros, as raças e
nações (Cabinda, Jeje, Oyó...) são transformados em um patrimônio simbólico
em que a racialidade é vivenciada, assim como toda diferença, a partir de
gradientes de intensidade – não necessariamente essencialidades.
Pai Diamantino D’Oxalá, por exemplo, se refere aos negros como
“criadores da religião”: “Vê se os negros não foram inteligentes?”. Ao mesmo
tempo, especifica seu 'lado', a Cabinda, dentre muitos outros aspectos que
serão discutidos adiante, como sendo a nação que está “sob a bandeira do Pai
João Carlos” (João Carlos Flores de Oxalá-Tanabi). Este seria descendente, no
santo, de Waldemar do Xangô Kamucá, que haveria trazido os fundamentos
que norteariam as práticas das casas desta nação. Isso, de certa forma, dilui as
fronteiras espaciais, justamente onde as demarca, que fazer referência ao
contexto local afirma a presença africana na região pelotense. Mas isso o
34
A dinâmica transformacional interna de cada casa como potência da própria religião não
exclui a incorporação de fundamentos relacionados a diversas nações, o que vem a constituir o
caráter múltiplo do Batuque. Toda nação é Batuque, mas o Batuque não pode ser uma nação
apenas, fechada em si, indivisível e una.
35
Roger Bastide apresenta a concepção africana de personalidade como que pontuada por
graus de existência, que seguiria uma escala do Não-Ser das pessoas não iniciadas ao Ser
pleno dos orixás: “Existe-se mais ou existe-se menos, de acordo com a participação que se
tem com o deus.” (Bastide, 1973. p. 371).
36
(
Anjos, 2006.)
50
nos diz nada de tão significativo quanto o que expõe a citação seguinte, feita
pelo mesmo pai-de-santo:
A bandeira da nossa nação está de um jeito que todo mundo
mete a mão e faz o que quer. Pai João Carlos, que era meu avô no
santo, via um santo que ainda não estava pronto e mandava embora.
Quando ele via na casa de alguém fazerem um fundamento errado,
ele virava as costas e ia embora com todo mundo, e o dono da casa
ficava sozinho no salão. (...) Teve um pai-de-santo que teimou com
Pai João Carlos que daria fala para um Bará: a mulher rodou
[vomitou] e ele fechou a terreira por vergonha. (Diamantino)
As acusações de “deturpação” de algumas práticas que assegurariam
as peculiaridades dos fundamentos da Cabinda e a conseqüente tentativa
fracassada de centralização em uma figura de autoridade do passado
37
que, de
certa forma, essencializaria uma nação a partir da genealogia, oferecem outra
possibilidade de se pensar a perspectiva do pessoal de religião sobre as
intensidades que ao se atualizarem, territorializam a própria religião em
múltiplos agenciamentos. Essa alternativa seria o modelo rizoma, sugerido por
Deleuze e Guattari, no primeiro Platô:
Não se trata de tal ou qual lugar sobre a terra, nem de tal
momento na história, ainda menos de tal ou qual categoria do
espírito. Trata-se do modelo que não pára de se erigir e de se
entranhar, e do processo que não pára de se alongar, de romper-se
e de retomar [...] Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio
pelo qual ele cresce e transborda. (1980 [1995], p.32)
Visto isso, especifico a Cabinda neste capítulo por ser a nação pela qual
os interlocutores com quem estudei se singularizam - sem perder de vista que
o fazem em meio a um “ethos religioso afro-brasileiro”
38
compartilhado - e não
por qualquer tentativa de situar purezas ou cristalizações em contraste com as
características de outras nações. No entanto, o motivo principal pelo qual decidi
me referir à Cabinda é a especificidade do caminho pelo qual essa
singularização ocorre, o qual se apresenta como uma entrada para tratar de
temas caros à antropologia das religiões de matriz africana, bem como ao
próprio Batuque.
37
Na bibliografia etnográfica com a qual tive contato, sobre o Batuque no Rio Grande do Sul,
poucas referências existem sobre a Cabinda. Segundo Norton Corrêa, os fundamentos da
Cabinda teriam sido repassados a Waldemar por um africano, chamado Gululu, que morava
em Porto Alegre. No entanto, entre os interlocutores com quem pesquisei em Pelotas, não
referências a este.
38
Anjos, 2008.
51
Quando os interlocutores dizem “[Cabinda é] a nação que começa onde
as outras terminam ou “a gente pode começar as coisas na morte estão
territorializando a Cabinda justamente no não-lugar, na desterritorialização
total, no grau zero do sentido. Essa equivalência dos conceitos fica clara
quando, ao saber que eu estava pensando em escrever sobre o ba
39
e o
segredo da possessão, Roberta D’Iemanjá alerta-me sobre os perigos de se
pensar ou falar naquilo que seria “o fim total”, “a destruição total, de estar
entrando em “um terreno onde eu poderia me perder, não achar caminho para
sair, nunca mais me encontrar”.
Por isso o conceito de encruzilhada é um conceito chave nesse capítulo,
tendo sua relação com a negatividade, a morte
40
, a ocupação e tantos outros
processos operados por desterritorializações.
Em No Território da Linha Cruzada: A Cosmopolítica afro-brasileira, José
Carlos Gomes dos Anjos aponta no ethos religioso afro-brasileiro um encontro
entre a noção de encruzilhada e o conceito de desterritorialização “como um
fenômeno no qual dois territórios
41
se sobrepõem no tempo”. A encruzilhada
pode ser vista como um não-lugar, por onde circulam energias nômades, não
fixas e não territorializadas. Na cosmovisão afro-brasileira, a
encruzilhada é
onde as diferenças se cruzam em caminhos plurais, sem se fundirem, onde o
processo de subjetivação é um puro processo; as diferenças subsistem.
Assim, é no mínimo instigante dizer que só se pode falar dos
fundamentos de sua nação por não conhecer a nação dos outros, e quando se
39
O balé, que seria um buraco no solo situado nos fundos das terreiras, é a moradia dos eguns
dos orixás dos ancestrais do pai ou mãe-de-santo chefe da casa, e onde se fazem oferendas
de comidas e sacrifícios aos eguns dos parentes de santo mais próximos à família em questão
- o que o exclui que as homenagens sejam também rendidas aos eguns genéricos
(CORRÊA, 2006). Embora as referências bibliográficas (Oro, 2002) associem muito a Cabinda
com o assentamento do balé, em nenhuma das casas com que pesquisei havia algum, as
justificativas variam entre a pouca idade das terreiras, e o fato de não haver eguns da casa” e
o dispêndio financeiro que compreende sacrificar o grande número de animais que o egun de
um ancestral requer.
40
Norton Corrêa divide o livro O Batuque do Rio grande do Sul em quatro partes: Os Vivos, Os
Mortos, Os Deuses, e A Cosmovisão Batuqueira. Na parte dedicada aos mortos, o autor
começa descrevendo o aressum (ritual fúnebre), as causas que a morte pode ter segundo os
“batuqueiros” e o enterro, para então chegar aos eguns (no que se transforma a pessoa que
morre, assim como seu orixá) e os rituais que os envolvem diretamente, e enfim na sua morada
dentro das terreiras, o balé.
41
O autor aponta para a necessidade de desvinculação da referência estritamente empírica
para se discutir território como um conjunto de arranjos simbólicos de determinados grupos
sociais, que interagem com níveis mais complexos de realidades, porém sem formar um todo
completo, pois as identidades se produzem simultaneamente em diferentes locais.
52
apresentam tais especificidades elas estão alocadas exatamente no lugar onde
nada é, onde tudo está por vir, onde não ponto final ou chegada, mas um
puro processo, uma passagem. Na etapa seguinte deste capítulo tratarei dos
processos de desterritorialização que acompanham a construção da pessoa de
religião, bem como a sua presença em alguns operadores transformacionais
relacionados à cosmovisão afro-religiosa tratada aqui. A encruzilhada como
começo, a morte não vista como um fim, habitada pelos eguns, entre eles os
espíritos sem controle e sem doutrina, e os outros tantos tipos doutrinados
como os exus (espíritos mediadores, o povo do chão
42
são “os mortos que não
morreram”); os casos de iniciação por feitiçaria ou por aproximação da morte
por doenças; e o grande intervalo entre homens e deuses, ayê e orum,
apresentado pelo mito da criação do mundo, o alguns exemplos de
operações cosmológicas feitas por um pensamento que privilegia os meios, os
entres, como motores criativos de uma vida que está em constante recriação.
Recriações que nascem do intervalo, em que se cruzam e se separam
territórios, do não-lugar que atualiza a existência dos próprios sentidos que
toma.
“É cada um no seu lugar”: mas e quando os territórios se
sobrepõem no tempo?
O ensaio que foi a primeira versão deste capítulo começava com a
42
Povo do chão é uma denominação dada por alguns umbandistas ou batuqueiros,
enfim, pelo pessoal de religião, para as entidades também chamadas de exus. Em uma festa
de aniversário do Exu de Roberta D’Iemanjá, pude presenciar essas entidades comendo: os
pratos com as comidas, bifes e ovos de codorna, são dispostos no chão, tendo os exus
incorporados que abaixarem-se para buscá-las. A entidade do meio, os espíritos entre o bem e
o mal, nem das trevas nem de luz, pombagiras e exus são os espíritos formadores das
falanges cultuados na linha de exus da Umbanda, ou na Quimbanda, religião na qual é
cultuado apenas o povo do chão. Na mesma linha delas estão os espíritos masculinos da
mesma ordem, entre eles Pilintra, Exu Tiriri, Exu Capa Preta, Exu Tata Caveira, Exu-cobra,
etc. Dizer que são da mesma linha significa dizer que são espíritos que se manifestam nos
aparelhos dos cavalos de Umbanda, ou estabelecem relações com estes, com os mesmos
objetivos e respondendo a aspirações muito semelhantes. Aparelho é a denominação dada
pelos umbandistas e entidades cultuadas na Umbanda ao corpo físico das pessoas.
Seguidamente pode-se ouvir a entidade que incorpora em alguém referir-se a este como “meu
aparelho”. Em geral aparelho quer dizer corpo, pois pode ser o corpo da pessoa com quem a
entidade incorporada conversa.
53
seguinte questão: onde, quando, como alocar categorias como as de morte e
vida, vivo e morto, em um pensamento que reconhece e cria categorias sem
outra maior substância senão a de se fazerem reais a fim de serem
ultrapassadas? Melhor: se, como disse Vitória sobre os eguns e os seres
humanos, “é cada um no seu lugar”, o que aconteceria quando esses lugares
se sobrepusessem no tempo, ou mesmo quando essa sobreposição se
aproximasse? E depois disso? A resposta é: não se sabe, nunca se soube e
não se deve saber. É necessário não saber tanto quanto é impossível saber,
haja visto o conceito de encruzilhada sugerido acima. O mesmo se aconselha
quanto à ocupação pelo orixá, que é diferente da incorporação pelas entidades
cultuadas na Umbanda
43
. Seres humanos e deuses também têm como uma
das condições de sua existência o dever de estarem cada um no seu lugar,
desde que o mundo se dividiu em dois, o dos homens (ayê) e o dos orixás
(orum).
Mais ainda, por recomendação da preta-velha
44
de uma amiga mãe-de-
santo com quem estudo tais questionamentos detiveram-se à sua criação, e
assim, a recusa em pensá-los enquanto questões possíveis de serem
respondidas percorreu as zonas dos tão falados “segredos” da religião,
marcados menos por uma proibição de serem divulgados do que pela
impossibilidade de serem expostos sistematicamente. Portanto, seguindo as
orientações dos amigos de religião, estarei aqui percorrendo os arredores
desses segredos para tentar descrever como a Cabinda trata seus “começos” a
partir das encruzilhadas, por onde se cruzam as linhas, os destinos em si. O
que parece apontar para uma ênfase nos processos, muito mais que nas
classificações:
43
Conforme descreve uma mãe-de-santo,
q
uando alguém incorpora, empresta seu corpo à
entidade, mas sua consciência continua de certa forma com alguma percepção do que
acontece ao redor - Vitória D’Iemanjá contou certa vez que enxerga as pessoas quando está
incorporada de sua pombagira, mas que tem vergonha de olhá-las nos olhos, afirma também
que o transe vai se tornando cada vez mais inconsciente com o tempo de iniciação da pessoa.
Segundo Salvador D’Iansã isso ocorre também porque para as entidades da umbanda tem
coisas que se vê, tem coisas que não se vê, e quando o assunto é muito sério eles tiram da
mente da gente.”. Não relatos que descrevam como é a ocupação pelo orixá, o que se
afirma é que o cavalo-de-santo encaixa o orixá e não sabe o que acontece durante a
possessão, ao contrário das incorporações, que podem ser anunciadas, como diz Salvador:
“meu Exu mesmo, ele me um soco no peito, que eu sei que ele está perto de mim, e vai
chegar.”
44
Pretos-velhos são entidades cultuadas na Umbanda, são espíritos de escravos e ex-
escravos africanos que viveram no Brasil.
54
... é uma das nações mais caras, que mais usa sangue, e ela
começa quando todas as outras terminam (...) Na nossa Nação, nós
começamos... Vamos supor, se tiver uma obrigação dentro de um
cemitério nós podemos fazer, entendeu? As outras em ritos de
morte e coisas assim, nós não. Então se diz que a nação de Cabinda
começa aonde terminam as outras, que as outras terminam na morte
e nós podemos começar as coisas na morte... a nação de Cabinda,
ela é a que tem mais detalhes do que as outras, é na que mais se
usa bichos, tem mais carnificina.Quem for da Cabinda vai sempre
ser da Cabinda, se a raiz começou na Cabinda, vai morrer na
Cabinda, por isso que tem muitas pessoas que saem por alguma
desavença da casa de seu pai-de-santo, e saem a rolar e penar na
vida, porque elas não respeitam os seus orixás. Quer dizer, a pessoa
quer sair, e o Orixá não aceita, então quem é de Cabinda, vai morrer
sempre na Cabinda. A Cabinda aceita as outras nações, e as outras
não comportam a Cabinda por que ela é muito complexa, ela tem
várias complexidades que têm que ser cumpridas, não podem ser
corrompidas ou abortadas, têm que ser praticadas, têm que ser
feitas. Não que ela seja melhor que as outras, mas quando ela, lá no
início de seus fundamentos, foi feita assim, os orixás foram
acostumados assim, e eles te cobram isso. (Salvador D’Iansã)
O questionamento com o qual principiaria tal ensaio vinha de uma
frase proferida por uma mãe-de-santo ao tentar descrever o que aconteceria
durante a ocupação
45
de um cavalo-de-santo, contrastando com o que ocorre
na incorporação na Umbanda: “Quando o filho se ocupa é como se ele tivesse
morrido para dar espaço ao seu pai na terra. Não apenas esta enigmática
afirmação contribuiu para a formulação de minha problemática, mas as
diversas vezes em que a palavra “morte”, ou verbos e adjetivos relacionados,
apareceram como pontos de partida para descrições. Porém, é crucial levar a
sério a expressão “é como se”, o que aponta para uma comparação, para uma
aproximação no tratamento que devem receber as situações da ocupação e da
morte a mãe-de-santo não quis dizer que o cavalo-de-santo morre, mas que
não há lugar para os deuses e os homens existirem ao mesmo tempo, num
mesmo território, e que então um deve se desterritorializar para que o outro o
ocupe.
Cria-se então, ou melhor, reforça-se, um grande intervalo vazio entre a
desterritorialização e a reterritorialização um processo que é um puro
45
Estar ocupado, no Batuque do Rio Grande do Sul, é estar em transe de possessão pelo ori
pessoal, o orixá pai, o dono da cabeça do cavalo-de-santo.
55
processo, sendo a subjetivação também um processo desse tipo. É aqui que se
cruzam ambas operações, a do transe e a da morte, sem se fundirem, sem
poderem ser a mesma coisa, mas operando ambas como um cruzamento de
caminhos: dos seres humanos e dos deuses, dos seres humanos que morrem
e dos seres humanos que renascem. Dizer dessas encruzilhadas que elas o
vazias não quer dizer que não sejam habitadas, mas que elas têm sentido e
significado quando se está fora delas, ou para quem está fora delas. Elas são
habitadas por energias nômades.
No Batuque do Rio Grande do Sul, ao menos nas casas que visitei, a
proibição de se falar para as pessoas que elas se ocupam, pois ninguém deve
saber como recebe seu orixá. Salvador, pai-de-santo, enfatiza
que
“a gente vai
morrer sem saber se se ocupa”.
Toda a estrutura do transe é direcionada a
evitar que o cavalo-de-santo perceba o corte abrupto após a possessão. Antes
de o orixá ir embora, e em continuidade com este, vem o orixá de axêro:
Na nação de Cabinda, que é a que eu pertenço, que eu vou falar por
ela, tu recebes o santo por inteiro, por isso que tem o axêro, que é
aquele momento que a pessoa começa a entender, que o cérebro da
pessoa começa a assimilar o que está se passando e deixa a
informação no corpo da pessoa até o orixá ir embora, quando o Orixá
vai embora, a pessoa volta e não fica espantada.(Salvador D’Iansã)
O orixá de axêro fala, conversa, mas pronuncia as frases ao contrário
se quer dizer para alguém beber sua gasosa diz: bota pra fora fireca” e
apresenta um comportamento infantil, brinca e tem voz de criança, mas
continua sendo o orixá. É nessa fase que se devolvem as meias e os óculos
retirados dos cavalos-de-santo quando do início da ocupação. É uma ponte na
passagem de orixá para filho-de-santo, uma ponte necessária para que o corte
entre um estado e outro não seja percebido; o axêro interage com o meio, traz
à consciência pequenos fragmentos de percepção do ambiente, que vão aos
poucos se colando novamente aos momentos anteriores ao transe, como se
tudo fosse uma continuidade – exceto a lembrança do que ocorreu com o orixá
no mundo. apenas um momento, entre o axêro e a desocupação em que o
cavalo-de-santo pára, fica sentado com o corpo tremendo e um alá (um pano
branco) lhe cobrindo o rosto, até que alguém chegue e estale os dedos perto
de seus ouvidos, ou bata palmas de maneira a despertá-lo de repente. Então, o
56
filho-de-santo volta à consciência, a fisionomia é a sua, não sinal de
qualquer cansaço o que pode não ocorrer quando das primeiras
experiências, quando o orixá nasce
46
, por exemplo, e o tempo entre o axêro e a
volta do filho-de-santo é maior, ficando este com o corpo aparentemente
bastante fadigado.
Segundo a maioria das pessoas com quem conversei, não poder falar
sobre a possessão, não poder se ver ocupado (nem em foto, nem em espelhos
ou gravações
47
), assim como zelar para que o cavalo-de-santo não perceba
que esteve “ocupado”, é um segredo que teria como motivação evitar que a
vaidade crie comparações entre as pessoas que se ocupam e as que não são
cavalo-de-santo, ou que se comente que o orixá de um era mais bonito do que
o outro:
E dentro da nossa Nação de Cabinda, as pessoas que
se ocupam, não sabem que se ocupam, porque depois
daquela ocupação, que tem três estágios: a chegada,
quebrando pra ficar no corpo de seu cavalo, cavalo-de-santo
como se diz, e o axêro. O axêro é assim, Marília: a pessoa
tudo, sabe tudo que está se passando, mas pro cérebro, a
pessoa não entende, quando vai embora é que se dá conta
que passou, esse que é o grande segredo de nossa religião, o
axêro. Por quê disso? Para não haver a vaidade na religião.
Um exemplo: Marília é de Iansã, eu sou de mãe Iansã, nós os
dois nos ocupamos, no meio de um assunto eu digo: "O que
tu queres, Marília? Hoje a minha Iansã chegou mais bonita que
a tua". Isso daí se chama vaidade, então, para não haver esta
vaidade dentro da religião, lá, quando a religião começou,
pelos escravos, nos primórdios lá da África, toda esta função,
se abortou isto daí. Se tirou isso daí. Não pode saber. Dizem
que a pessoa fica em total inconsciência, em transe, e o orixá
toma de uma vez só, todo [o cavalo-de-santo]; por isso se
quebra o santo: estás vendo a chegada, ele entrou, tu
quebras, para ele ficar... não com menos força, o é isso,
mas para ele poder se locomover, se quebra o santo. O axêro
é o mesmo orixá, um pouco com menos força. Menos força,
mas é o mesmo orixá. (Salvador D’Iansã)
Acrescido a isso, o que se percebe no desenrolar do discurso do pai-de-
santo acima é que o não falar sobre a ocupação circunda mais precisamente o
não pensar sobre o processo da ocupação. Ou melhor, não pensar sobre a
desocupação, pois na ocupação quem está é o santo, portanto, ninguém além
46
A primeira ocupação de um filho-de-santo é o nascimento de seu orixá de cabeça.
47
Quando os batuques e cortes (obrigações de sacrifício) são realizados dentro de casa - nas
terreiras que o separam o salão da religião da residência do pai ou mãe-de-santo -, os
espelhos são cobertos com lençóis brancos para que os cavalos-de-santo não enxerguem seu
pai (orixá) dançando ou comendo. O mesmo procedimento ocorre com filmagens e fotografias,
que devem se encerrar quando da chegada do primeiro orixá.
57
dele pode pensá-la enquanto experiência vivida. Restaria ao cavalo-de-santo
ficar tentando inutilmente saber onde foi parar enquanto seu orixá estava na
terra.
Descrições aproximadas aparecem quando Vitória tenta me explicar que
quando eu (que não sou de religião) falo em morte não estou alocando essa
categoria como ela o faria: “É tudo uma continuidade. Morte não é fim,
nascimento é recomeço”. Fala-se e pensa-se no que a morte não é, mas o
se deve porque não se sabe pensar ou falar sobre como ela é. Como tudo
o que se faz na religião, sobre o que parece não ter sentido não se deve
pensar, se houver alguma positividade ela estará por vir.
Outras descrições, como a do soro, podem apontar para o que seriam
algumas das sensações dessa desterritorialização, da desocupação de um
território para que este seja ocupado pela atualização de uma virtualidade. O
soro o é o transe em si, é apenas um ritual para que o filho-de-santo sinta a
aproximação da força do orixá, explica Adriana Da Oxum. Nem todos os pais-
de-santo têm essa prática, mas o de Adriana costuma fazer essa aproximação.
É um procedimento no qual durante o batuque ou outra cerimônia com
tambores, alguém chega por trás do filho-de-santo, enquanto todos dançam, e
cobre seu rosto com um alá até que ele sufoque, e o orixá se aproxime “para
salvá-lo”, então o cavalo-de-santo dança freneticamente em frente aos
tambores, com os olhos fechados e parecendo não perceber o que acontece à
sua volta.
Salvador relata uma sensação parecida acerca do soro e afirma que
este é feito quando o orixá está muito próximo de seu filho em um batuque:
O soro é uma força, é assim, tu começas a rodar,
mesmo que tu não queiras, aquela força começa a te rodar,
rodar, rodar, rodar, rodar, e parece que vai abrir um buraco no
chão, assim, sabe, e tu começas a rodar, e sentir um calor, um
calor, um calor, entendeu, e tem momentos que tu te
apagas, assim, entendeu, mas isso é o normal. É normal, é
sinal que a vibração de teu Orixá está perto de ti. (Salvador
D’Iansã)
A mesma sensação é descrita por Vandré Da Oxum, neto do pai-de-
santo de Adriana: “Parece que tu vais rodar até cavar um buraco e ficar no
fundo”. Essas descrições tratam não apenas de processos de
58
desterritorialização, mas principalmente, com respeito ao que pretendo
abordar, trazem à discussão alguns mecanismos nos quais se podem ver
processos iniciatórios, começos. Tanto a morte não é fim como o soro é
aplicado em pessoas das quais o orixá ainda não nasceu, ou seja, aquelas que
nunca se ocuparam, ou que estão próximas a se tornarem aptas para tal
experiência.
Segundo Vitória, dizer que na Cabinda as coisas podem começar na
morte se deve ao fato de o maior difusor da nação no Rio Grande do Sul,
Waldemar do Xangô Kamucá, ser cultuado como um ancestral, respondendo
então, por isso, no cemitério. Mas não só isso, e ela afirma que este é apenas
um viés para o qual podemos olhar perante as múltiplas linhas que compõem o
fundamento do cemitério, traços de mitologia, cosmologia, ritual e improviso e
manipulações acerca do que a vida apresenta como caminho ou obstáculo. Ao
me aproximar do problema do balé, do cemitério e dos eguns, a questão
desfocada pelo conselho da preta-velha, e os construtos que a impulsionaram,
ganham o estatuto de inquestionáveis.
São temas sobre os quais pouco se fala - pois falar é agir e, no caso
do balé, isso fica mais claro: agir seria mexer com os eguns, com os quais é
preciso muita cautela, conhecimento, e sobre os quais se evita até mesmo
pensar, a não ser pelas pessoas preparadas e nos momentos rituais certos.
Portanto, dado o mal-estar das pessoas com quem pesquisei em falar sobre o
assunto e sua escolha para que eu não expusesse
48
as conversas mantidas no
campo, trarei aqui alguns dados sobre tais temas recolhidos por outros
pesquisadores e estudiosos sobre o Batuque, dos quais mantive conhecimento
a partir de levantamento bibliográfico. E as reflexões que trago de meu campo
são impressões que os interlocutores com quem estudo trouxeram ao lê-los,
aliadas à leitura que fizeram da primeira versão deste capítulo, que, como já foi
dito anteriormente, trazia questões “inquestionáveis”.
48
Ao mostrar para uma amiga e interlocutora a etnografia que havia construído sobre os eguns
e a noção de morte entre as pessoas de religião com quem estudei em Pelotas, fui
aconselhada a não expor tais dados sob o perigo de ela, enquanto mãe e filha-de-santo, sofrer
cobranças
de seu orixá, e mesmo de sua mãe-de-santo, pois ambas são “o mesmo axé”. Isso
porque ler, ouvir ou falar sobre estes assuntos causa incômodos na relação filho/orixá, e
inclusive eu, que não tenho meu ori assentado, correria o risco de sofrer alguma
instabilidade de saúde, principalmente ligada a sofrimentos psicológicos.
Em outra ocasião
posterior, Vitória não leu as passagens do texto que tratavam de eguns, pois não se pensa nele
dentro de casa, está-se assim chamando-os.
59
Assim como se pode ver em praticamente toda bibliografia sobre
religiões de matriz africana, no que tange aos dados etnográficos referentes ao
Batuque, os eguns a princípio são tidos como espíritos perigosos, eles são as
almas de pessoas que já morreram, mas ainda não se convenceram disso e,
portanto, se “encostam nos vivos em busca da vida que perderam, podem
estar em qualquer lugar desde que este não esteja protegido contra eles. Os
eguns o mais perigosos quanto mais próximo o parentesco de religião com
os vivos dos quais se aproximam, isso porque o que os move não é geralmente
a maldade, mas um saudosismo da situação em que compartilhavam suas
vidas com as pessoas mais queridas; e por serem ainda imaturos e não se
controlarem dentro de sua condição de espíritos de mortos, pois há uma
mudança brusca de lugar quando se passa de um estado ao outro
49
. São tidos
como cegos e tolos, ao que lhes é atribuída a possibilidade de aceitarem
barganhas muito baixas, seja quando se quer afastá-los de alguém no qual se
encostaram, seja quando, no caso de feitiçaria, se quer aproximá-los de uma
pessoa (CORRÊA, 2006).
Seguindo ainda as narrativas que Corrêa traz, por exemplo, a pessoa
que tem encostado em si um egun fica fraca e doente, sua vida “não anda” -
se estiver debilitada, mais fácil de ser tomada pelo espírito e dependendo
da gravidade do estado de saúde da pessoa, pode-se tomar como medida uma
limpeza de egun para afastá-lo e depois trocar a vida de um animal pela vida
da pessoa, ou seja, oferece-se um animal em sacrifício para que o egun
“sugue” a vida deste ao invés de querer tomar a humana; troca que é aceita
geralmente de forma fácil por parte do espírito, mesmo que algumas vezes
tenha-se que sacrificar até mesmo um boi, sendo mais comum as aves.
No caso da feitiçaria, mesmo que pouco se fale sobre o assunto, muitas
vezes ouvi pessoas de religião falarem ter medo de que se faça feitiço com
algum de seus fios de cabelo, fotografias ou peças de roupa, o que consistiria
em atrair o egun por meio destes pertences pessoais da vítima
50
. Segundo
49
Os eguns são considerados perigosos quando estão na encruzilhada entre a recente morte e
o posterior possível doutrinamento espiritual como entidades, entre outras possibilidades.
50
Além de os eguns enviados por feitiçaria atrapalharem a vida da pessoa, muitos estados de
sofrimento psicológico, como os chamados “surtos psicóticos”, são atribuídos às vezes por
encostos, o que freqüentemente chocou perspectivas na equipe de enfermagem com a qual
trabalhei em um hospital psiquiátrico de Pelotas durante cerca de um ano: assim como a
afirmação de que “a loucura é uma doença social” muitas vezes ouvi em reunião o professor
60
Norton, “chamar um egun é simples: basta ir no cemitério, à noite, ou no balé
da casa e, em voz alta oferecer a barganha para algum em especial; ou para o
primeiro que vier (2006, p. 146).
Mesmo que se fale em passagem abrupta de um estado (vivo) ao outro
(morto), ou que Vitória, ao aconselhar que não se fale o nome de pessoas que
morreram, enfatize que “é cada um no seu lugar”, estas categorias não são
tão fixas como parecem, ou melhor, não significam uma mútua exclusão. Na
religião, depois que se morre os caminhos são muitos, mas o estágio inicial,
aquele em que se é um “recém-morto” é igual para todos os espíritos. Depois
de ultrapassado esse estágio de confusão e desterritorialização, ou melhor,
quando ultrapassado, os espíritos são doutrinados por outros, os chefes das
falanges da Umbanda
51
, que por sua vez são escravos dos orixás, enviados
por estes para servirem aos humanos em troca de benefícios materiais.
Quando alguém de religião morre, seu orixá pode tanto tomar o mesmo seu
destino, quanto continuar sendo cultuado por sua família-de-santo, que é o que
se chama egun de orixá.
Os rituais fúnebres que acompanham velório e enterro dos filhos-de-
santo, tanto quanto o luto e as cerimônias em homenagem aos eguns
realizadas anualmente
52
, bem como a observação de que o desligamento” do
egun com relação à vida das outras pessoas e ao seu estado passado se
aos poucos, havendo com o tempo a diminuição da periculosidade desses
espíritos (junto de seu doutrinamento ou não), acompanham o que Vitória diz
ao conversarmos sobre as possibilidades de renascer ritualisticamente quando
se “vai para o chão”
53
o chão faz parte do estabelecimento de continuidade
coordenador da equipe se questionar por não encontrar “o limite entre o que é de ordem
psicológica e o que é espiritual” cadas trabalhando com pacientes psiquiátricos, o
professor e enfermeiro reconhecia de certa forma, mas sem saber muito como proceder, as
limitações do que seria não ouvir as descrições dos mesmos sobre feitiçaria, encostos,
obsessores (o termo obsessor é mais utilizado pela terminologia espírita e kardecista, melhor
compartilhada por médicos e religiosos).
51
Ou da Quimbanda, religião em que só se cultuam exus.
52
Tais rituais são minuciosamente descritos em CORRÊA, 2006, p. 134-174.
53
Ir para o chão é oferecer sacrifício à cabeça, cortar aves e/ou animais de quatro patas para o
orixá pessoal de quem se inicia, ou, se é iniciado, quando se faz qualquer sacrifício de
sangue na cabeça. O chão em si são os dias que se seguem ao sacrifício de sangue à cabeça,
quando a pessoa fica literalmente sem poder sair do chão, sem poder subir em cadeiras ou
escadas; deve dormir em um colchão colocado sobre o chão do quarto-de-santo, no mesmo
nível em que estão seus alcutás. Os mesmos são arriados (tirados das prateleiras situadas
atrás das cortinas que revestem as paredes do quarto-de-santo) toda vez que a pessoa faz
61
entre uma vida e outra, mesmo que esta seja mantida pela criação de
sucessivos intervalos, de onde brota o que está por vir. É importante frisar que
quando se diz “uma vida e outra” não se quer dizer que a primeira seja anulada
pela segunda, e que o iniciado seja então uma pessoa completamente nova; o
mesmo se pode dizer do batizado: mesmo que filho (neófito) e pai (orixá)
nasçam juntos, sabe-se que já existiam antes – o segundo, virtualmente - e que
o que aconteceu foi um corte na continuidade, que se mantém, dando início a
uma existência de outra natureza: a de pessoa de religião.
E é partindo desta encruzilhada de linhas infinitas em continuidade cujos
cruzamentos não encerram categorias fechadas ou pontos finais, mas etapas
ultrapassáveis, que descrevo agora a situação em que se transformou meu
campo de pesquisa etnográfica a partir do momento em que se deu a
apresentação da segunda versão deste artigo para Vitória D’Iemanjá – na
mesma noite em que tratei dos ingredientes de um serviço para a cabeça”,
recomendado pela preta-velha de Roberta D’Iemanjá, por eu andar pensando
demais em morte:
Vitória e aprova o uso das referências bibliográficas
e a supressão de seu nome verdadeiro, pois não aceitaria,
nem sua mãe (orixá), comungar com opiniões que relegam os
eguns generalizadamente à esfera da maldade e do perigo.
Concorda que a passagem pela morte exige uma preparação,
que compreende um corte abrupto, mas me propõe a seguinte
questão: “Será que ninguém está preparado para essa
passagem?” Ela mesma responde: “Eu não posso falar de
mal dos eguns porque eles estão nos ajudando”. Completa
o argumento explicando que a expressão “é cada um no seu
lugar” se refere aos eguns genéricos, mas mais
especificamente ao cemitério, lugar povoado de espíritos dos
quais não se conhece a procedência. Isso porque diz termos
todos nós uma ligação muito próxima com a morte e dá o
exemplo do exu, entidade da umbanda cruzada, “que é um
morto e ao mesmo tempo tem vida a partir de mim, porque é
ele ali, vivo no meu corpo.” (Diário de campo)
algum tipo de sacrifício na cabeça, o tempo do chão é o tempo em que o orixá está “comendo”.
Nesse período, por isso, o iniciado não se pode ver no espelho, assim como nos momentos de
ocupação, que no Batuque a pessoa não pode ver seu orixá no seu próprio corpo – nem por
fotografia.
Sobre o ritual de ir para o chão ver ANJOS, 1995
.
62
“Eu preciso morrer, eu tenho que morrer”: desterritorializações,
recomeços, infinitudes
Eu era uma suicida, Marília, passava os meus dias
pensando em uma forma de morrer. Até que um dia eu
cheguei na casa da Roberta que ainda era minha vizinha e
disse ‘eu preciso morrer, eu tenho que morrer’, daí ela me
borrifou umas coisas e eu parei, passou naquele momento.
Depois eu entrei [na religião]. (Vitória D’Iemanjá)
No ano de 2003, conheci o pai Abelardo, como cliente,
e fiquei dois anos na volta dele como cliente e amigo. E me
despertou o interesse pela religião. E após a perda de minha
mãe, em 1999, tinha tudo, mas não tinha paz e a religião me
deu esta paz novamente. E depois destes dois anos para
entender o que era a Nação de Cabinda, que é a força dos
Orixás pelo elemento, seja o mar, a terra, o sol, eu resolvi me
batizar na religião [...] E comecei a me chamar Salvador
D'Iansã, não mais Salvador Benites. (Salvador D’Iansã)
Com a doença, estive muito doente, e ela salvou a
minha vida [a Umbanda]. Foi, foi, foi, que tive que ir para lá,
para me desenvolver. Foi aonde eu fui parar na Umbanda, foi
por causa da doença, senão nem tinha... [...] A caminhada
para a Nação? Porque tinha as cobranças, e eu não sabia o
que era, porque tinha que entrar para a Nação e a santa
estava cobrando. A gente sempre sente, adoece, sente tudo
no corpo, a vida da gente não vai pra frente, sempre tem uma
coisa, tem outra, tem uma coisa, tem outra, e eu fui parar na
Nação. [...] Entrei quando estava doente, estava mesmo, tinha
uma dor nas coxas, nos pés e eu me curei na Umbanda,
através de um serviço, senão, não dava, tantos dicos, coisa
séria. (Joaquina D’Oiá)
Eu sou diabética, então, às vezes eu ainda fico doente.
Mesmo quando eu ainda estava na barriga da minha mãe, ela
fez serviço para mim na religião. Ela não era de religião.
Depois, diziam que eu tinha o anjo da guarda fraco, eu era
uma criança, que enquanto eu dormia o meu anjo podia
escapar. Comecei, então, na Umbanda, mas com dez anos de
idade fiz o meu primeiro bori. (Damiana Da Oxum)
Não, a minha mãe ia para se benzer. me levou
um dia para me benzer e eu não queria ir e era uma briga
eu entrar na casa da mulher. Aí eu saí de lá e disse assim para
a minha mãe: “Ah, essa coisa do diabo. Por que tu me
trouxeste aqui? Essa coisa do satanás.” que aí eu me senti
bem, eu andava ruim. Andava com muita sonolência,
desmaiava, não tinha ânimo nenhum. Aí eu passei a semana
maravilhosamente bem. ela disse assim: “Ah vamos te
benzer de novo”. E eu disse: “Ah, eu não gosto muito dessas
coisas, mas vamos”. Eu andava de carro, eu cheguei lá, me
benzi e me senti bem. na terceira ela disse: “Onde tu vais?”
e eu: “Já vou , me senti tão bem né?”. eu fui a terceira
semana, fui indo. [...] eu entrei para a corrente, aí eu me
desenvolvi na Umbanda. chegou um certo dia que a
63
Umbanda não me segurou porque tem que ter uma casa muito
grande, que eu fui para a Nação. Acabei indo para a Nação.
Também contra a vontade com aquele monte de sangue.
(Diamantino D’Oxalá)
Percebendo que muitos relatos de pessoas que decidiram “entrar para a
religião” vêm acompanhados da aproximação com algumas experiências que
anunciam processos de possíveis necessários recomeços, como doenças
graves e sofrimentos psicológicos, pode-se pensar os (re)começos como
passagens por desterritorializações e reterritorializações. Em ambos os casos a
principal idéia que leva a tais categorias é a carência de sentido de estar vivo,
ou de continuar ocupando a mesma vida que se ocupa. Isso aparece no caso
mais radical, de suicídio, e mesmo nas descrições de desânimo, fraqueza,
tristeza, assim como na loucura como ponto radical, em que a
desterritorialização é total e não viria acompanhada de uma reterritorialização.
Nas palavras de Roberta D’Iemanjá, é perigoso pensar no balé e no que
acontece durante a ocupação porque pensar isso é pensar na “destruição
total”, no “fim total”, o que leva as pessoas a enlouquecerem, nunca mais se
acharem”, justamente porque ambas as instituições carregam a ausência de
subjetivação. E essa ausência não significa outra coisa, não representa outra
coisa que não seja a ação dessa ausência de subjetivação se levarmos em
conta que o pensamento afro-religioso brasileiro não segue um modelo
hilemórfico de linguagem, ou seja, um modelo em aqui as palavras significam,
representam, outras coisas, inclusive as ações. No modelo de linguagem afro-
brasileiro, as palavras agem, não são apenas signo, mas agentes.
O que é preciso ficar claro é que essas experiências de desejo
54
de
recomeçar, de nascer de novo”, se agenciam com necessidades não de
finalizações, de morrer como forma de dar fim à vida, mas com processos de
criação de intervalos no continuum que é a existência, embora muitas dessas
constatações venham à tona em momentos de radical desconforto, por isso os
relatos mostram as iniciações ocorrendo muitas vezes pela Umbanda, que
54
Desejo no sentido deleuzeano do termo. Em oposição ao conceito psicanalítico, Gilles
Deleuze (1988) propõe um conceito construtivista de desejo, no qual desejar é construir um
agenciamento, pondo em jogo múltiplos fatores. Para o autor, não desejamos um conjunto,
mas em um conjunto, ao desejarmos algo, na verdade estamos desejando essa coisa ao
mesmo tempo que desejamos o contexto que criamos em torno dela. Desejar, para Deleuze, é
construir, é agenciar, uma região, um conjunto.
64
oferece recursos de cura mais imediatos
55
. A decorrente “ida para a Nação”
reforça a idéia de que não necessariamente haja uma relação de causa e efeito
para as situações em que a relação com as desterritorializações aparece. Por
exemplo, mesmo que alguém tenha feito um feitiço, deve haver a
vulnerabilidade de se ser atingido por ele, e tal vulnerabilidade é comum aos
seres humanos, todos somos vulneráveis, mas alguns nos protegemos mais
que os outros. O que se percebe é que a aproximação com a vida dos eguns -
mesmo aqueles que são doutrinados pela Umbanda, como exus, pretos-velhos,
caboclos revela a ausência de fronteiras fixas e essencializadas entre a vida
dos mortos e a vida dos vivos, as quais devem ser atualizadas e recriadas, por
meio das obrigações religiosas, para que a própria vida mantenha um sentido.
O risco é o de tocar no mundo dos mortos no lugar errado e na hora
errada, criando relações com forças negativas (sem sentido), pois as
encruzilhadas se nos apresentam para serem ultrapassadas apenas
56
. E se
participar é uma categoria da ação, não do pensamento (Bastide, 1953 apud
Goldman, 2005a), então pouco importa saber se existe crença em espíritos e
energias cósmicas, e se disso, conseqüentemente, depende a atualização do
Batuque como religião iniciática (não de conversão), pois os mortos e os
deuses participam do mundo dos vivos tanto quanto a recíproca é verdadeira.
55
Na Umbanda, os orixás, tais como são concebidos no Batuque, não participam diretamente
das relações entre devotos e entidades, eles não interferem nos trabalhos realizados em prol
da resolução dos problemas de quem procura a Umbanda como religião. O que não quer dizer
que o filho-de-santo deixe de ter a proteção de seu orixá pai quando trata dos rituais da
Umbanda. Os cultos não se misturam, mas se relacionam. Na casa de Roberta D’Iemanjá, por
exemplo, o que se poderia chamar de território cosmoreligioso da Umbanda -
que envolve as
fronteiras físicas, mas muito mais os arranjos simbólicos que estabelecem essas fronteiras é
denominado “Centro Espírita Umbandista Cacique Mãe Iara e Cabocla Jurema”, o território
do Batuque recebe o nome de “Reino de Iemanjá e Oxalá”. O que não quer dizer que um
comece onde termina o outro, existe como que uma continuidade entre o culto das entidades e
o culto das divindades. Mesmo que os rituais da Umbanda e do Batuque sejam espaço e
temporalmente separados, é da noção de pessoa que esta cosmovisão traz que se pode extrair
elementos para a compreensão de como o pessoal de religião administra uma identidade que
não é substancializada, mas que se pauta por intensidades.
56
Mesmo os exus, que moram nas encruzilhadas das ruas, ou mesmo o orixá Bará, que as co-
habita, conseguem tal feito por serem eles a própria força da transformação, e manterem
relação privilegiada no trânsito entre vivos e mortos, e entre esses e os deuses. Se os exus
estão “sempre no meio” é porque o movimento que fazem é de constante ida e volta, subida e
descida, segundo Edgar Barbosa Neto. O nomadismo os mantém no mesmo lugar sem que
percam o sentido do movimento ou se desterritorializem totalmente. Bará também, abre e fecha
os caminhos, guarda as portas e as chaves, possibilita a abertura do canal de comunicação
com os orixás, ao mesmo tempo que sua presença pode vir a interromper tal fluxo. Os Barás
são os primeiros a serem alimentados e os primeiros a serem despachados para que os rituais
fluam, andem.
65
Cada participação supõe a existência de outra, simultaneamente.
Um exemplo disso é a equivalência dada aos estágios de maior ou
menor desenvolvimento nos fundamentos da religião, os quais estariam
diretamente ligados à convivência com as forças compartilhadas com os
mortos e a necessidade de criar limites entre eles e nós: Roberta afirmou que
eu já estaria em um estágio em que a segurança é uma proteção menor do que
o risco que corro [de ser enfeitiçada, enlouquecer, adoecer, e ou tudo isso
junto] (Diário de campo).
Porém, é com o tempo, com a experiência, com o corpo, que a pessoa
de religião aprende a reconhecer que algo não vai bem, que se está
enfeitiçado, ou que alguém lhe botou olho
57
e que, portanto deve se proteger,
fazer algo para
acabar com os desconfortos:
Quando alguma coisa não está boa, começo a me sentir muito
tonto. Às vezes nem precisa ser feitiço, pode ser um olho ou
inveja, entendeu, aí tu vais nos búzios e vês. E se Oxalá
Orumilá te responde sim, entendeu, é sinal que tu estás com
olho, o Bará vai fechar teus caminhos, aí tu vai ter que fazer
tua limpeza, para as coisas voltarem a fluir. (Salvador D’Iansã)
Porque a gente sente algumas coisas diferentes para o corpo
da gente, ou alguém da família sente, ou que a casa não
está no andamento que deve estar. a gente sente que tem
alguma coisa por trás do pano, por isso que a gente sente, por
isso, que a gente sente, sente mesmo [...] Não andar é não
chegar freguês na tua porta. Estás em casa e não aparece
viva alma para passar uma vela, para pedir uma mão de corte,
uma mão de benzer, uma mão de benzedeira. Então quer
dizer que alguma coisa está acontecendo, alguém sapecou
alguma coisa ou está com o serviço contrário do meu. Às
vezes, nem é por nada, a que aquilo arrasa a tua pessoa.
Ah! Não, às vezes até o próprio olho mesmo estraga a pessoa.
Estraga mesmo, deixa pior que feitiço. E vai na casa, ver o que
a pessoa faz, tem aquele alcance, se a pessoa é muito
agradável, vai no batuque, e chama Fulano, chama Cicrano
para a tua volta, aquilo ali basta. Ah! basta pra te destruir
a pessoa. Quanta gente que atendo aí está assim! Se sente
assim, se sente assado, é isso, é olho... E tudo tem uma
ciência, todo serviço, tem que ter uma maneira de fazer, de ser
respeitado, e gosto que respeitem meu serviço também.
(Joaquina D’Oiá)
Em muitos casos a feitura do santo se torna necessária justamente
porque não se tem conhecimento ou não se sabe o que fazer com a situação
57
Botar olho é invejar, desejando ou não o mal da pessoa invejada.
66
dada por um feitiço, por exemplo. O que abala a saúde da pessoa e a obriga a
aprender a respeitar os sinais que o corpo emite desde dores, tonturas, até
assombrações e sensação de loucura. Sinais estes que muitas vezes, para
serem suportados, exigem a atualização da força que o orixá é. Pode-se
perceber tal aprendizado também como uma atualização de algo que existia
potencialmente na pessoa, como a vidência, por exemplo, tão importante para
o jogo de búzios e de cartas, enfim, para os jogos divinatórios que guiam os
passos a serem dados na religião sem que deixem de ser também a
confirmação daquilo que quem joga já intuía:
[Sobre as cartas e a vidência] Ah, sente! Isso eu sinto até de
botar carta. Eu posso botar uma mão de carta para ti que se tu
tens problema de estômago ou de cabeça, até abrir o baralho
ali, eu estou jogando e estou sentindo. Se eu te pergunto, “tu
sentes isso, tu sentes aquilo?” Tu vais me dizer e eu sinto
mesmo, ou grave ou mais leve a pessoa sente, sente mesmo,
não adianta dizer que não. Nem todos, mas eu, graças a Deus,
sinto. Mas todos não sentem. [...] Na hora certa, se a pessoa
está mal mesmo, não adianta porque ali alguém não soube
jogar, agora se a pessoa sabe jogar e tem alcance, tem
vidência, a pessoa sente bem direitinho, sabe mesmo.
(Joaquina D’Oiá)
[sobre os búzios] Mas o búzio não entra na Umbanda. Ah!
Não, na Nação é conforme a caída do búzio. A caída do zio
é que diz quem vai e vem. Tem que saber a caída dele, saber
a caída pra ele responder, pra ele dar respostas. Se tu tens
alcance, largas a caída ali e o que tu dizes é. Eu mesmo às
vezes estou sacudindo os búzios e estou dizendo as coisas
para as pessoas, não preciso daquilo ali, eu digo e é certeiro.
Tanto búzio quanto cartas. É, vai da vidência da pessoa, do
alcance da cabeça da pessoa. Vai do grau de alcance das
pessoas, porque tem gente que senta na beira da mesa e diz
tudo. [...] eu conheço aqui em Pelotas um rapaz bem novinho,
mas ele jogava búzio que era um espetáculo, ele dizia tudo,
dizia até o que tu tem dentro da tua casa, por incrível que
pareça, se era um armário, um guarda-roupa, uma cama,
aquela mesa tem tantas cadeiras, esse canto aqui ali, tinha um
alcance maravilhoso, ele tinha, mas não era do zio, era
da própria mente dele. Ele mesmo tinha aquele alcance, tinha
Umbanda e tinha Nação e era do Bará. (Joaquina D’Oiá)
No entanto, essa relação entre o que está dado e o que deve ser feito
não se esgota em polarizações como as de dom versus iniciação. Para o
pessoal de religião, tudo que existe no mundo já está dado, seja atual ou
virtualmente, como mostra o oráculo dos búzios. Ao mesmo tempo, para todas
as situações dadas algo a ser feito, desde que se tenha a capacidade de
67
perceber o que acontece e o conhecimento legítimo dos modos de fazer
eficazes. E esse tipo de relação não se restringe aos seres humanos e suas
iniciações na religião ou não, o orixá da cabeça do neófito se atualiza desde os
primeiros passos deste em direção à iniciação ritualizada, sempre seguindo a
noção de que tudo que é dado exige uma feitura, e de que para tudo que se faz
é preciso um dom, que para ser aproveitado como dom também passa por
processos de atualizações e feituras, e assim infinitamente...
58
Um exemplo disso é o ritual de dar fala ao santo, o que se faz sem
tempo de iniciação determinado, que é a experncia do santo na terra que
dirá aos mais experientes se ele já está pronto para poder falar, além da
confirmação dos búzios. Diamantino descreve o ritual de dar a fala, enfatizando
o papel de pai João Carlos D’Oxalá como referência para seus fundamentos:
Quando ia dar fala para os santos, fazia uma mesa
com as frentes [comidas] de Bará a Oxalá, e um copo de suco
com o fel da galinha, e dava um pouco para cada um comer.
Se o santo rodasse [vomitasse] é porque ainda não estava
pronto para falar. (Fonte: Diário de campo - grifos meus)
Como já foi dito, um orixá não nasce pronto, ele é um deus que deve ser
criado, acostumado, ensinado, feito. Cada pessoa tem um orixá seu,
específico, pessoal, individual, que está na sua cabeça, e que seria seu
protetor, a energia que responde por seus atos e pensamentos “nas horas boas
e nas horas ruins”, seu orixá pai tem um nome genérico, um específico e outro
próprio.
No entanto, apesar de os zios confirmarem o orixá e o juntó de
cada pessoa, pode acontecer de o pai-de-santo ter que mudar essa
combinação, por tornar-se uma relação em que o pai (orixá) não consegue ter
domínio sobre o filho, nem este consegue se harmonizar com aquele: “tem
muitas vezes que tu nasces com determinado orixá, mas devido ao percurso
que a tua vida tomou, ele não consegue te segurar, ele te passa para outro”.
(Salvador D’Iansã). Ao mesmo tempo, existe o orixá genérico - aquela força
cósmica já descrita - que é muitas vezes representado nos mitos e que carrega
as características pessoais que marcam a personalidade de seus filhos, o que
58
Uma vez questionado sobre quem poderia dar fala para um orixá, Florêncio D’Ogum
respondeu-me taxativo: “Na religião ninguém dá aquilo que não tem”.
68
permite a alguns pais-de-santo terem idéia da filiação de algumas pessoas,
por seu comportamento e forma de reagir às situações impostas, antes mesmo
de jogar os búzios.
Assim como o neófito “nasce para a religião”, a feitura do orixá começa
quando da iniciação de seu filho, com o assentamento tanto do santo na
cabeça quanto no alcutá, com o aribibó, o bori e demais rituais que marcam
essa passagem. Mas o santo nasce mesmo, se diz que ele nasceu
depois que o filho se ocupa pela primeira vez. Geralmente isso é esperado que
aconteça durante uma ida para o chão, logo em seguida do corte de quatro-pés
na cabeça, sendo o filho-de-santo pronto
59
. Mas isso não pode ser visto
como regra, pelo contrário, é uma das várias situações em que o nascimento
do santo pode acontecer, cito como algo previsível simplesmente porque é a
situação que se afasta da imprevisibilidade
60
. Primeiramente, as pessoas mais
experientes conseguem perceber quando o orixá se aproxima, pois a
fisionomia do cavalo-de-santo muda; depois, com sua consciência totalmente
arrebatada, já em transe, é o orixá quem dança no salão ou procede nos
rituais, mas conforme a experiência do santo porque o pai-de-santo ensina o
orixá a dançar e a se apresentar “no mundo”, e esse aprendizado se ele
estando ocupando seu filho. Um pai-de-santo relata o nascimento da Oiá de
uma filha, enquanto faziam um serviço na beira da praia. Falou para o orixá
que ela deveria vir na sua casa na noite seguinte, inventou uma desculpa para
que a filha fosse no quarto-de-santo ajudá-lo em outro serviço. Ela foi, e a
santa veio. E ele a ensinou a dançar:
Tão burrinha ela veio. eu disse pra ela não vir no
batuque ainda, mas nós fomos num batuque em casa de Oiá e
quando tocou para Oiá ela veio. Veio bem direitinho. (Fonte:
Diário de Campo)
A ocupação, tal como foi discutida anteriormente, compõe o complexo
ritualístico de construção da pessoa de religião
61
, ao mesmo tempo que marca
a preparação do orixá dessa pessoa para “vir à terra”, para tocar o mundo dos
homens. Orixá e filho-de-santo são dialética e infinitamente preparados para
59
O filho-de-santo pronto é aquele que já assentou todo o Orumalé.
60
Um pai-de-santo relata que muitos orixás nascem a partir do soro, ou seja, ocupam seu filho
pela primeira vez sendo chamados a socorrê-los do sufocamento, mas os filhos que passam
por esse ritual não o sabem relatar, a não ser quando o soro não decorre em ocupação.
61
Sobre a possessão e a construção ritual da pessoa no Candomblé, ver: Goldman, 1984.
69
não co-habitarem um mesmo lugar ao mesmo tempo - o que é impossível
acontecer na cosmovisão que a Cabinda apresenta embora o primeiro more
na cabeça do segundo e este empreste seu corpo para o deus ocupar
62
. Mas
os territórios se sobrepõem quando o orixá “encaixa”, e imediatamente o deus
se reterritorializa no corpo do cavalo-de-santo, ao se “quebrar o santo para ele
ficar”. E quanto ao filho-de-santo, “não interessa”, “não se pensa nisso”, “não
se sabe”, nunca poder falar nem pensar sobre o que acontece durante a
possessão faz-se continuidade do mesmo ritual. Se alguém resolver contar
como foi ter estado ocupado por seu orixá, é porque de fato não se ocupou (ou
desocupou). Vitória contou-me de um casal de filhos-de-santo de seu padrinho
que revelou a este saberem que se ocupavam, perguntei o que teria acontecido
a eles, se teriam enlouquecido ou se Diamantino teria lhes retaliado. Ela
respondeu que a pessoa enlouquece se alguém a revela que ela se ocupa,
e que Diamantino não fez nada com relação aos filhos-de-santo, “só deixou de
acreditar naqueles santos ali [os orixás das cabeças dos filhos]”.
Os limites do pensamento com relação à experiência vivida são
impostos ao ponto de não se diferenciarem do ritual: não se pode falar nem
pensar sobre o que não se viveu ainda mais quando as palavras têm força,
quando falar é agir - quem vive a ocupação é o orixá, o filho sede-lhe o lugar
sobre a terra. Mesmo que o princípio de que uma relação altera a outra aponte
para uma transformação em ambos. A concretude do orixá, sua existência, e a
do filho-de-santo, dependem disso, da separação entre os seus mundos, da
interdição dos homens em viverem o mundo dos orixás, em tocarem-no com
suas “mãos sujas” e com suas palavras
63
. Se a eficácia de um ritual está no
seu “fracasso”
64
, este é o fracasso ritual da possessão na Cabinda: o intervalo
entre a existência humana e a dos deuses deve ser constantemente reafirmado
para que tudo fique “no seu lugar” e os deuses assegurem sua plenitude frente
62
Quando alguém se ocupa, ninguém se dirige direta ou indiretamente ao corpo ocupado como
sendo o corpo do Beltrano D’Oxalá, por exemplo, pois quem está ali é o orixá dele “por inteiro”,
e é com este que as pessoas se relacionam.
63
A vaidade que impedia os homens de ficarem em silêncio quanto aos orixás dos outros e os
seus, é também um conector entre o mundo dos deuses e o do seres humanos e que precisa
ser ritualmente suprimido.
64
“... o ritual representa um abastardamento do pensamento submetido às servidões da vida.
Ele reconduz ou, antes, tenta em vão reconduzir as exigências do primeiro a um valor limite
que ele não pode jamais atingir, senão o próprio pensamento se aboliria. Essa tentativa
desesperada, sempre voltada ao fracasso para restabelecer a continuidade de um vivido...”
(Levi-Strauss,1971, pp.603 apud Dos Anjos, 2006)
70
aos homens. Os deuses são existências totais, ao contrário dos homens, que
podem existir gradualmente. Por isso, ainda que o santo seja feito, ensinado,
acostumado pelos homens, ele é pai (ou mãe) do filho antes mesmo de
nascer, e é chamado de pai (ou mãe) pelo pai ou mãe-de-santo que o assenta.
Toda atualização do santo requer a virtualização de uma parte do filho, em
casos radicais como a possessão, uma desterritorialização. Aos poucos o Ser
do filho vai se tornando menos o que não era para se constituir naquilo que
está por vir do axé do pai.
Não é o mesmo de que fala Anjos ao não diferenciar a incorporação da
ocupação como o fazem os religiosos com quem pesquisei, possivelmente
porque seu universo empírico é diferente daquele com o qual me deparei:
[Na incorporação] A diferença é carregada para dentro
do sujeito a ponto deste não poder mais se suportar como tal...
Trata-se de uma experiência radical de alteridade: o “outro”
introduzido no “mesmo”. Que essa operação tenha a ver com
território, a linguagem émica o diz na expressão de “se ocupar”
o santo, o exu, o caboclo “se ocupa” da pessoa, faz de seu
corpo um território no qual pode cavalgar o corpo é o
“cavalo-de-santo”, o terreiro é o lugar de sobreposição de
territórios. (Anjos, 2006, p.21)
Embora a descrição do termo “se ocupar” seja bastante coerente com
as descrições que trago sobre a ocupação, ele não é empregado pelos meus
interlocutores quando estes relatam a incorporação pelo seu exu ou caboclo.
Da mesma forma, jamais se diz que alguém incorporou seu orixá. Incorporar é
ceder o corpo à entidade; já ocupar-se é ceder o lugar que se ocupa ao orixá, o
que é muito mais que o corpo, pois os territórios alocam existências totais.
Ainda mais quando a existência se espalha junto com o axé, que é a parcela de
força (e existência) que os homens conseguem partilhar com os deuses:
Ah, tu tem mais segurança, tu sente que tem uma
força que te pára quando tu estás errado, tem aquela força que
te impulsiona quando tu estás certo, aquela força que te
empurra a vencer, a tu quereres mudar, a tu ajustares a tua
vida, e aquela força essempre ali para te dar manutenção,
ela te dá manutenção na tua vida, se estás errado tu acertas, e
se estás certo tu continuas. Entendeu? Claro que nunca se
esquecendo que sempre tem as tuas obrigações, os ritos para
continuar a seguir.
E ela [Mãe Iansã] é meu tudo, é o meu pão que eu como, a
roupa que eu visto, é a minha paz, eu tiro é a minha vida
mundana. Assim, o namoro, o sexo, a bebida, e tiro para o
71
bem dela. Por que é a vida da gente, é o sexo... E os orixás
não fazem isto, então neste momento, ela esta comigo, mas
sou eu, Salvador Benites, não tem nada a ver com a religião,
mas tudo fluí normalmente. (Salvador D’Iansã)
Foi onde eu fui parar, mas não posso me queixar,
estou aqui até hoje, e de resto está tudo bem, graças a deus!
Quem está na volta se sente bem que o axé vai se espalhando
porque tem axé que não resolve nada. Tanto que a gente
muda os filhos, tanto os de nascimento quanto os de religião.
Aquele que cumpre, porque se não cumpre não muda nada.
Cumprir é ter que dar uma oferenda pra um orixá, se tem que
matar, se tem que ir para o chão, se cumprir tudo direitinho
com eles, a pessoa tem tudo, fazendo bem feito tem tudo, tem
tudo mesmo, não fazendo bem feito. Mas tendo a pessoa
vai melhorar 100% a vida, fazendo direitinho com eles melhora
a vida da pessoa. (Joaquina D’Oiá)
Eu era uma suicida, Marília, passava os meus dias
pensando em uma forma de morrer. Até que um dia eu
cheguei na casa da Roberta que ainda era minha vizinha e
disse ‘eu preciso morrer, eu tenho que morrer’, daí ela me
borrifou umas coisas e eu parei, passou naquele momento.
Depois eu entrei [na religião]. (Vitória D’Iemanjá)
72
Capítulo III
“E o recado esdado”: sobre dom e feitura e os processos de
iniciação no Batuque, em Pelotas
Claude Lévi-Strauss, em O Suplício do Papai Noel, percorre a ascensão
do rito natalino de culto ao Papai Noel na França, relacionando-o a ritos de
passagem e iniciação presentes em outras sociedades, isso porque a crença e
a divinização do personagem natalino seriam práticas que excluiriam as
crianças da sociedade dos adultos e adolescentes mas não apenas isso. O
caráter ritualístico é empregado por Lévi-Strauss após este encontrar muitos
elementos recíprocos no “resultado de uma negociação muito onerosa entre
duas gerações” (Lévi-Strauss, 1952 [2005, p. 26]), que seria tanto a crença no
Papai Noel quanto alguns ritos indígenas de iniciação na vida adulta. Esta
cartografia de certos mitos e algumas de suas versões, empreendimento
metodológico caro ao autor francês, levou-o a concluir que na estrutura
constitutiva de tais mitos encontra-se a divisão não apenas entre dois grupos
etários e a manutenção da ordem hierárquica destes, e sim - por derivarem de
uma sociologia iniciática -, a distinção entre mortos e vivos (e a sua
complementaridade) como sendo a mesma operação feita para não-iniciados e
iniciados. Para Lévi-Strauss, a operação classificatória se no sentido de
equivaler os lugares dos não-iniciados, dos mortos e dos outros; isso porque,
segundo o autor, em todos os ritos iniciáticos, ou toda vez que a sociedade se
divide em dois grupos, o status de “outros” é creditado a quem não está
completamente integrado ao grupo, sendo a morte o extremo tradicional
relegado à alteridade radical, “visto que o fato de ser outro é a primeira imagem
aproximada que podemos construir a respeito da morte”. (idem, p.43).
Para Lévi-Strauss, as categorias vivo e morto, iniciados e não-iniciados,
se complementam na alteridade que representam um para o outro na estrutura
dos rituais de iniciação:
A “não-iniciação” não é apenas um estado de privação definido pela
ignorância, pela ilusão ou por outras conotações negativas. A relação
entre iniciados e não-iniciados tem um conteúdo positivo. É uma
relação complementar entre dois grupos, sendo que um representa
os mortos e, o outro, os vivos. Durante o ritual, aliás, é comum que os
papéis se invertam várias vezes, pois a dualidade engendra uma
reciprocidade de perspectivas que, como espelhos colocados frente a
73
frente, pode se repetir ao infinito: se os não-iniciados são os mortos,
eles também o super-iniciados; e se, como também ocorre com
freqüência, são os iniciados que personificam os fantasmas dos
mortos para assustar os neófitos, é a estes que caberá, num estágio
posterior do ritual, dispersá-los e impedir que retornem. (ibidem, p.
30)
Embora até aqui o pensamento de Lévi-Strauss pareça estar rumando
para uma clássica perspectiva dualista, é o olhar multidimensional dado pelo
autor à complementaridade das categorias que assumirá a tônica das
proposições deste capítulo mesmo que tal empreendimento aqui radicalize o
tratamento que Lévi-Strauss à alteridade dos opostos, tomando as
categorias abordadas como criativas do próprio cruzamento que as relaciona e
constitui, dialética e irresoluvelmente. Esta última proposta é norteada pela
concepção de Roy Wagner de cultura como invenção, sendo esta última noção,
para o autor, o aspecto crucial pelo qual todas as culturas operam, já que todos
os seres humanos seriam antropólogos, pois criadores da compreensão de
uma cultura, portanto, criadores da cultura. Wagner quer dizer com isso que
reconhecer contextos “básicos” ou “primários”, ou mesmo elementos simbólicos
que representem o “inato” em uma cultura, seria uma ilusão, mesmo que uma
ilusão necessária para própria criação cultural. Isso porque a própria idéia de
cultura como invenção aponta para criação de algo a partir daquilo que é dado
pelo contexto, pela experiência, numa constante “feitura” de regras e leis, que
obviamente, nunca se esgotam nem no que foi dado, nem no que é feito a
partir daí. E aqui, é claro, pensa-se numa invenção, e na cultura, como tudo
aquilo que se é capaz de comunicar com sendo cultura. As construções
culturais do pessoal de religião acerca de seus processos de formação
enquanto pessoa de religião, portanto, serão tomadas a partir desta
perspectiva, que privilegia o dado e o feito, como termos pragmáticos
ambíguos e criativos, ao invés de dom” e “iniciação” como construtos
contraditórios e explicativos.
Mesmo que Lévi-Strauss enfraqueça as oposições e reverta suas
correlações, o que ainda aparece com mais ênfase na descrição acima são as
classes em suas polaridades, se não essencializadas por suas posições
complementares, pelo menos substancializadas em seus significados. Mas isso
não é tudo, na concepção do próprio Lévi-Strauss, e esse capítulo, portanto, se
74
preocupa em pensar as operações de classificação, as relações que precedem
as classes, bem mais do que estas mesmas – como o mesmo autor sugeriu em
1962, em A lógica das classificações totêmicas (2008, p. 51-90), relações “que
são não apenas concebidas mas vividas”, sendo assim consideradas como e
por um conhecimento concreto, “seus meios e seus métodos, os valores
afetivos que os impregnam”. Portanto, não se trata aqui de se remeter a
objetos substancializados e desvinculados dos arranjos inerentes às relações
que aproximam e afastam as experiências de suas diferentes classificações,
mas de reconhecer a continuidade em que a experiência humana faz seus
cortes de sentido e alterações de natureza.
Em se tratando do universo empírico que esta pesquisa visualiza, o tema
do ingresso nas religiões de matriz africana foi classicamente abordado a partir
de duas categorias tidas, a princípio, como antagônicas: o “dom” e a
“iniciação”. Véronique Boyer, em Le don et l’initiation (1996), ao tratar do
Candomblé e da Umbanda como cultos de possessão, e da possessão tendo
como ponto de convergência dos dois casos o acesso à ajuda de seres
invisíveis, apresenta a “quebra da complementaridade” entre dom e iniciação
como efeito de uma polarização feita pelos filhos e pais-de-santo para
organizar o campo semântico religioso de acordo com seus interesses
contrastantes:
Le don et l’initiation apparaîtront alors moins liés par une opposition
réelle, reconduite à différents niveaux et dans différents contextes,
que par um effet de polarisation permettant d’organiser um vaste
champ sémantique d’autres éléments s’inséreront. (Boyer, 1996,
p.2)
Nessa polarização “irreal” segundo Boyer, porque criada pelos
religiosos estariam, de um lado, os filhos-de-santo querendo fundar seus
próprios terreiros e defendendo para isso a importância da capacidade inata e
inalienável de se comunicar com espíritos sem a necessidade de mediadores,
e, do outro lado, os pais-de-santo, buscando consolidar seus descendentes e
demarcar fronteiras hierárquicas, afirmando assim a prioridade da iniciação na
transmissão dos conhecimentos e segredos da religião. Para Boyer, portanto, o
rompimento da relação de complementaridade entre aquilo que é inato e o que
é aprendido é uma representação das relações de poder do universo religioso
afro-brasileiro. O cenário “real” da relação entre dom e iniciação seria, para ela,
75
aquele em que o “dom de nascença” é reconhecido, reforçado e cultivado pela
iniciação, ou aquele em que a feitura do santo” deveria vir como uma
confirmação e como controle do dom.
A autora ainda comenta que o sincretismo seria uma das conseqüências
da capacidade mediúnica dos religiosos de se relacionar com diferentes
entidades sem a necessária mediação, decorrendo disso novas práticas rituais
e inovações estilísticas, já que a comunicação com os diferentes espíritos
seguiria assim mais a trajetória do próprio médium, do que um conjunto de
normas rituais que lhe poderiam sistematizar; o que contrastaria com os
terreiros mais ortodoxos, aqueles que primam pela iniciação e manutenção de
uma tradição. Ambas as tendências teriam correntes literárias sustentando-as,
uma exotérica e outra acadêmica, o que privilegiaria a imponência daquela
favorável ao aprendizado em detrimento do dom reflexo também da
preferência de antropólogos afrobrasilianistas das últimas décadas do século
XX.
Seguindo os conceitos de Boyer sobre dom e iniciação, Roger Sansi-
Roca, em sua tese de pós-doutorado Fetishes, Images, Commodities, Art
Works: Afro-Brasilian Art and Culture in Bahia (2003), apresenta tal dialética
como sendo a complementação de uma forma de reprodução e fonte central de
valor inalienável no Candomblé, com a ritualização hierárquica da reprodução
de uma tradição, ou seja, de uma dada tendência sincrética com um ideal de
pureza africana. Tendo o valor como uma qualidade atribuída a objetos,
imagens, lugares ou pessoas, e possível de ser descoberto e objetificado
nessas coisas quando elas são separadas de uma prévia totalidade e
reconhecidas como portadoras de uma específica e diferente forma de valor,
Sansi pensa o axé como valor religioso para o Camdomblé. Valor este que se
faz existir e se reproduz em continuidade com a continuidade entre as pessoas
e as coisas, e o processual “espalhamento” do axé junto com o dom.
Mais tarde, em “Hacer el Santo”. Don, Iniciación e historicidad en el
Candomblé de Bahia (2007), artigo baseado nas pesquisas de sua tese, Sansi-
Roca propõe-se a ultrapassar a oposição tradição/sincretismo de Boyer,
tomando dom e iniciação como valores que se implicam mutuamente, sendo
ambos imprescindíveis para a manutenção e a atualização do Candomblé:
76
El conocimiento que la iniciación pierde por el olvido, la desidia, y los
conflictos interpersonales es reemplazado por la inspiración de los
mediums que establecen a través de su don un contacto directo con
los espíritus. En esos rminos, don e iniciación producen una
dialéctica histórica de producción de conocimiento en el cual nuevos
espíritus, objetos y valores son incorporados. (Sansi-Roca, 2007)
Ainda assim, Sansi o transpõe radicalmente as fronteiras da teoria de
Boyer, dom e iniciação continuam categorias essencializadas e substantivadas
nos significados que os antropólogos lhes atribuem. Ao defender que o
sincretismo é a transposição de histórias pessoais e coletivas incorporadas às
práticas do Candomblé graças à historicidade de alguns eventos, e ao opor
uma iniciação tradicional no Candomblé a um caso em que as práticas são
mais baseadas no “dom” que na iniciação, o autor esquece que histórias
pessoais também são coletivas, e que a própria cosmovisão afro-religiosa
tudo o que acontece como tendo acontecido antes, inclusive o passado e o
presente (Anjos, 2006), sendo o próprio Candomblé quem atribui a sua
historicidade aos eventos. Assim, não há espaço para uma visão sincrética das
religiões de matriz africana. Como sugere Anjos, o que há é o cruzamento de
diferentes territórios existenciais, as diferenças não se fundem, elas coexistem.
Algo parecido acontece, na perspectiva do Batuque, com o que Sansi e
Boyer chamam de dom e iniciação. Da forma como foram apresentadas tais
categorias, sua relação supõe uma negatividade: quando se perde o
conhecimento que a iniciação requer, o dom surge como instância de
manutenção das práticas do Candomblé, mesmo que de forma nova ou
transformada. É como se o Camdomblé precisasse da soma de ambos para
ser a sua ntese, como se as próprias religiões não tivessem em sua estrutura
os operadores transformacionais capazes de fazer algo com o que está por vir,
justamente porque o que está por vir veio alguma vez no passado, de onde
vêm orixás, espíritos, entidades. A coexistência das temporalidades permite
perceber que o saber como fazer algo é uma atualização de um saber que é
buscado entre os espíritos, e cuja própria busca supõe que se saiba como
fazê-la da maneira eficaz.
A proposta deste trabalho é tratar a capacidade de comunicação com
77
espíritos e a aprendizagem dos rituais afro-religiosos como instâncias não
separadas, mas também não fundidas. Serão tratadas, assim, como uma
supondo a outra. Conforme o pessoal de religião com quem estudei, todos os
seres humanos possuem a capacidade de se comunicarem com espíritos de
pessoas que morreram e energias da natureza, dos ambientes - segundo
Vitória D’Iemanjá, “porque está tudo na nossa volta”, porque coabitamos, mais
ou menos virtualmente, o mundo. Mas isso pode ser perigoso tanto quanto
pode ser bom, o que requer que se faça algo para que esse contato tome um
sentido. Ao mesmo tempo, a aproximação do conhecimento dos fundamentos
65
da religião intensifica essa potencialidade, quem não havia percebido essa
capacidade de contatar outras energias que não a de seres humanos vivos,
com a iniciação ou a apreensão de alguns fundamentos, intensifica esse
contato tanto mais o percebe.
Os seres humanos podem estar ligados a tudo, estabelecer conexões
mais próximas ou mais profundas com os mais diferentes seres, coisas e
forças, no entanto, se sabe quais e como serão estes contatos à medida
que eles o se dando, e mesmo assim, na maioria das vezes é necessário
saber como descobrir quem está tocando a pessoa, ou com que energias ela
está se envolvendo. Será possível saber pelo jogo de búzios, pelo tarô das
cartas e mesmo pela vidência de alguém experiente na religião. Por isso a
proteção contra o contato com energias e seres maléficos é um dos meios mais
eficazes de se evitar que haja interações indevidas embora com o tempo de
iniciação a pessoa vá exercitando essas relações e aprendendo a reconhecê-
las. O fato de serem indevidas muitas vezes pode querer dizer que tais
relações se o sem que se saiba o que fazer delas, que - no caso de
pessoas que não passaram por rituais iniciatórios ou que mantenham um
contato mais periférico com religiões que trabalham com esta perspectiva -
pode acontecer de serem concebidas e aceitas como relações espirituais
65
Fundamento” é como o pessoal de religião se refere ao saber fazer os rituais religiosos.
Existe, por exemplo, o “fundamento do cemitério”, que são alguns rituais realizados nos
cemitérios, em ocasiões determinadas, e que possuem uma esperada eficácia. A eficácia,
como o modo de alcançá-la, pode variar de terreira para terreira ou mesmo de situação para
situação, mas o fundamento é o “do cemitério” porque existe codificado como algo que todo
mundo deve fazer em certo momento. Pode-se dizer que o fundamento é o próprio ritual, mas
aquela pessoa que não sabe como ou quando desenvolver o ritual é jocosamente chamada de
“sem fundamento”.
78
quando outras explicações vindas de outras formas de conhecimento (o
científico ou mesmo de outras religiões) não esgotam as causas de tais
experiências. Negligenciar isso pode trazer conseqüências drásticas como o
enfeitiçamento (com todos os seus transtornos) e a loucura
66
.
Geralmente, a iniciação no Batuque é tida como a feitura de uma
proteção, e em muitos casos vem depois da iniciação na Umbanda. Muitas
pessoas dizem terem se iniciado na Nação depois de fazerem parte de
correntes umbandistas, porque seu orixá estava cobrando feitura, pois o filho-
de-santo estava exigindo energia demais do seu orixá e não a estava repondo.
Isso porque na Umbanda, os iniciados mantêm contato direto e crescente com
espíritos e forças da natureza, transitam muito entre os vivos e os mortos,
incorporam muitas entidades, desprendem muito axé para isso. O contrário
também pode acontecer, de as pessoas ingressarem primeiro na Nação e
depois se desenvolverem na Umbanda, que é uma religião bem menos
dispendiosa no sentido financeiro, e que trata de resolver problemas mais
imediatos
67
. O que raramente acontece é de, tendo ingressado na Nação de
uma casa que também tem terreira de Umbanda, a pessoa se filie apenas à
primeira; com o tempo ela vai atualizando a proximidade com as entidades que
a acompanham
68
, e é na terreira que se pode fazer algo com elas, que no
66
Os casos de loucura relatados são geralmente situações em que a pessoa deixa de se
reconhecer, se desencontra de si mesma, ouve vozes não-reconhecidas, sente e
presenças, não encontra personalidade nenhuma, se desterritorializa, se deixa tocar por tudo.
Iemanjá, por exemplo, é o orixá que responde pela loucura, é ela que sinaliza, no jogo de
búzios quando alguém está deixando que as emoções desordenadas se sobreponham ao
raciocínio, ao pensamento. Junto a ela, Oxalá é o orixá da clareza, é ele quem clareia os
pensamentos de quem está confuso ou desordenado.
67
Há terreiras em que se “dá a cabeça” para exu, ou seja, quem responderá pelo filho-de-santo
é o seu exu, ao invés de um orixá. Geralmente quando isso acontece, é em casas de
Quimbanda, onde se cultua o povo-do-chão e outros eguns da casa. São feitos sacrifícios
de aves e animais de quatro patas na cabeça da pessoa, assentado o exu na sua cabeça. Mas
nas casas em que pesquisei isso é visto como maléfico, destrutivo, havendo casos de pessoas
que se iniciam no Batuque para desfazer a feitura do exu e fazer a do santo. O exu, neste caso,
é visto como um amigo, um camarada, alguém com quem se troca favores e se busca manter a
amizade, que do contrário, pode acontecer de este amigo se tornar carrasco. Embora haja
assentamento de exus em pedras e imagens e sacrifícios a eles, estes espíritos, assim como
as demais entidades da Umbanda, não “moram” na cabeça do cavalo-de-umbanda.
68
Exus não precisam “estar no mundo” para serem cultuados, basta que se façam as oferendas
que representem o pagamento a um desejo alcançado com a ajuda da entidade, ou mesmo
que sejam o próprio pedido em si. Para Valdemilson Da Oxum, a determinação de qual
oferenda será feita se a partir da escuta das vozes das entidades de cada pessoa, uma
escuta que é individual e particular, o que reflete o tipo de relação que se estabelece entre
aparelho e entidade uma relação direta, pessoal e individualizada. Segundo Valdemilson,
antes de incorporar pela primeira vez os seus exus, a comunicação com a entidade se dava a
partir da escuta pode-se dizer de uma escuta mediúnica já que a propagação do som da voz
79
espaço dos orixás não deve haver manifestação das mesmas. Um exemplo
disso é a crítica de um pai-de-santo aos orixás de outra casa que dançavam
durante um batuque: “Que coisa feia! Essas Iansãs parecem umas
pombagiras!”. Observação que pode existir dada a situacional demarcação
de fronteiras que o pessoal de religião estabelece entre os territórios da
Umbanda e do Batuque. Tais fronteiras se mostram diluídas no mesmo
momento em que o demarcadas. Batuque e Umbanda estão separados aqui
como o o pelo pessoal de religião, mas ninguém deixa de ser umbandista
quando entra para a Nação, nem o contrário. inclusive um único caso entre
as casas que visitei, em que a terreira de Umbanda foi fechada, porque o orixá
do pai-de-santo, que é Bará, “trancava” as incorporações do exus. Os filhos-de-
santo desta casa, então, com a permissão do pai-de-santo, passaram a
freqüentar terreiras de Umbanda em outras casas.
Haja vista a coexistência desses territórios, é importante, então, ter-se
aqui que quando se trata de religiões de matriz africana, está se tratando de
religiões cuja estrutura é sustentada pela possessão por espíritos e divindades
e pelo sacrifício de animais, e que esses dois termos vão se cruzando
diretamente ao passo que se cruzam “dom” e “iniciação”, no que se pode
chamar de estrutura transformacional de tais religiões. Sobre os pilares da
possessão e do sacrifício, Marcio Goldman (1984) sustentou a estrutura
religiosa do Candomblé, e é partindo dessa classificação que venho descrever
o Batuque
69
como uma religião de estrutura semelhante, porém, voltando o
ouvida não se dava pelos meios sicos usualmente conhecidos, era uma voz que
Valdemilson escutava. Era assim, uma relação íntima entre aparelho e entidade. Após
incorporar seus exus pela primeira vez, essa relação não deixa de ser íntima, mas passa a
haver a comunicação, primeiramente gestual, depois falada, com o mundo exterior, com as
outras pessoas. No primeiro estágio a entidade vem ao mundo beber, fumar, comer, dançar,
enfim, receber os pagamentos pelo zelo aos almejos de seu aparelho. Quando ganha a fala,
processo ritual regido pelo exu líder da casa a qual freqüenta o aparelho, além de manter a
relação direta com este, a entidade então passa a ouvir as dúvidas e desejos de quem a
aborda, respondendo as primeiras, oferecendo seus trabalhos pelos últimos. Mas esse
processo pode variar, algumas entidades demorando mais ou menos tempo para passarem
pelas diferentes etapas do desenvolvimento na religião, as quais também podem ser
observadas de maneira diferente, dependendo da terreira.
69
Tratarei da Umbanda, mesmo que de forma mais sucinta, pois além de se mostrar em
continuidade ao Batuque mesmo que fronteiras sejam demarcadas - é partindo dela que
muitos dos casos de iniciação na Nação acontecem, sendo a religiosidade do pessoal de
religião vivenciada na transitoriedade entre as duas religiões dentro do mesmo território
cosmológico. Norton Corrêa, em O Batuque do Rio Grande do Sul, separa as religiões afro-
braileiras no Estado em três “formas rituais”: a “Umbanda” (“Magia Branca”, “Linha Branca”,
“Linha do caboclo” ou “caboclo”), o “Batuque” (“Nação”, “Linha-negra” ou “Magia-negra”) e a
80
olhar para a multiplicidade desses pilares e de suas relações.
Para o pessoal de religião com que este trabalho estuda, a possessão
pode ser tanto uma ocupação (pelos deuses) quanto uma incorporação (pelas
entidades), o cavalo-de-santo é ocupado pelo seu orixá, e em outro momento,
como cavalo-de-umbanda, é incorporado pelo seu exu, caboclo, preto-velho,
entre outros, e fora desse circuito ritual, também pode ser possuído por um
egun, o que geralmente traz conseqüências trágicas. Isso porque todos os
seres que possuem um cavalo-de-santo ou de umbanda são eguns, pois já
morreram, mas não são chamados como tais; a palavra egun é destinada a
denominar aqueles espíritos que não foram doutrinados por nenhuma religião,
que vagam carregando desordem no seu “fluído diferente dos demais,
aceitando qualquer tipo de oferta ou sacrifício. Qualquer pessoa pode ser
possuída por um egun, desde que não esteja devidamente atenta e protegida,
mas nem todas podem ser possuídas por seu orixá e suas entidades
umbandistas. O orixá é feito, precisa ser feito, alimentado pelo sangue do
sacrifício de animais, para que possa nascer e ocupar seu filho, já os espíritos
da Umbanda, precisam ser doutrinados conforme as regras da terreira em que
trabalharão os exus recebem também sacrifício de animais, embora os
caboclos, pretos-velhos e demais espíritos geralmente não requeiram tais
oferendas.
Como já foi descrito no capítulo anterior, “na religião ninguém aquilo
que o tem”, o que supõe que no processo longo e contínuo da feitura do
santo, até o aprontamento, orixá e filho-de-santo vão ganhando axé da mãe ou
pai-de-santo, e em menor grau do padrinho ou da madrinha o axé que verte
ao filho, verte também ao orixá, e assim vão se construindo, se fazendo, um ao
outro. Mas o axé que verte ao filho é destinado a este se construir enquanto
filho-de-santo, e posterior mãe ou pai-de-santo, ou seja, a aprender a fazer seu
santo e depois os santos de seus filhos. O axé que verte ao orixá é o mesmo
axé, pois quanto maior for a parcela de existência atualizada do orixá na vida
do filho-de-santo, mais axé este terá para dar e assim atualizar também a
“Linha-Cruzada” (“Quimbanda”, Linha-negra” ou
“Magia-negra”). Já, José Carlos Dos Anjos,
também trabalhando em Porto Alegre, tratará de um terreiro de Linha Cruzada” como um
território em que se cruzam diferentes dessas religiões, em
um contexto mais próximo ao
universo empírico dessa dissertação, embora aqui as fronteiras sejam mais especificadas pelos
interlocutores.
81
existência de sua pessoa espalhada nos filhos, nas coisas, nos lugares.
Por mais que tudo seja feito, para que qualquer coisa seja feita, ou em
tudo o que é feito, existe uma força que se sente, e que não depende
necessariamente do grau de iniciação, e que se reconhece como sendo a força
do orixá (do exu, do caboclo etc). Segundo Vitória D’Iemanjá, este é o segredo
da religião, um segredo que se descobre e que se faz, mas que não se ensina
porque se sente e cada um sente como sabe que sente: “as pessoas estão
muito acostumadas com respostas certas, tipo dogma, por isso é difícil
responder a certas perguntas e convencê-las de que isso é apenas o que eu
sei, apenas a minha opinião a respeito da experiência que eu tenho”.
Essa relação entre saber algo que foi ensinado e saber coisas que não
se sabe como aprendeu acompanha os mais diferentes momentos da feitura de
uma pessoa de religião, seus orixás, sua terreira, seus filhos mesmo desde
que se sente motivada a “entrar para a religião”. Mas um momento em que isso
é explícito, e novamente demarca fronteiras para mostrar a virtualidade das
mesmas, é a determinação de que uma obrigação deve ser feita. Uma mãe-de-
santo, por exemplo, presume-se que saiba exatamente como transcorrer
durante o chão de um filho-de-santo (ou mesmo do seu), é ela quem determina
o início do ritual, é da disposição de tempo e de axé dela que depende a data
do acontecimento. Porém, mais do que os fundamentos e a organização da
jornada da mãe-de-santo, é o orixá dela quem orienta as particularidades de
como sefeito o ritual para cada filho-de-santo, isso no caso de serem filhos
recém iniciados, pois quanto mais tempo de iniciação, mais maturidade tem o
santo para saber o que deve ser feito e comunicar pelos búzios, ou mesmo
pela voz quando ocupando seu filho
70
.
A mãe-de-santo sabe que é preciso sacrificar aves, mas não sabe
70
Esses princípios podem ser transpostos para a Umbanda. Na terreira de Roberta D’Iemanjá,
ela além de ser a mãe-de-santo no Batuque, também é a cacique da Umbanda, chefiando o
centro espírita umbandista com sua cabocla Jurema e sua sereia Iara, sendo seu exu o chefe
dos exus e sua preta-velha a chefe dos pretos-velhos. São estas entidades que convocam
reuniões e determinam as especificidades dos serviços que devem ser feitos, determinando
também quais seriam eles. Diferente dos orixás, as entidades da Umbanda podem proceder
durante todo um ritual: a cigana de Roberta realizou um casamento entre um casal da terreira,
celebrando a cerimônia do início ao fim, “no mundo”. Como já foi dito sobre os exus, a
comunicação entre os aparelhos e os espíritos que incorporam pode ocorrer pela voz, bem
como as entidades interagem com mais freqüência com as outras pessoas. Incorporar e sair
falando, para uma entidade, é muito comum, embora para um orixá isso seja raro e a
comunicação exija uma maior atenção do filho e de quem o rodeia.
82
quantas, existe uma média, mas o orixá pode querer mais, inclusive pode
querer um animal de quatro patas com o tempo, pode-se prever que as
exigências do santo vão aumentando. Ela sabe em qual etapa do ritual deve
cortar os animais, como deve fazê-lo, mas são alguns sinais na vida do filho e
mesmo da terreira que vão levá-la a consultar seu orixá e descobrir se o ritual
deve acontecer. Há uma média de dias para o recolhimento de quem vai para o
chão, mas ela pode variar conforme a vontade do orixá, se o filho-de-santo
assentou mais orixás além do seu de cabeça, provavelmente o orixá vai querer
estar mais tempo “comendo”, pois o número de animais sacrificados pode ser
maior. Mesmo depois de assentado todo o Orumalé, é o orixá quem decide se
o corte se destinará só a ele, ou se haverá sacrifício para outros orixás. Quanto
mais experiente a mãe-de-santo, mais vezes ela consulta a opinião do santo
nos búzios
71
, antes mesmo deste dar sinal de que algo deve ser feito.
Em outros casos, quando se diz que é o santo quem decide o que será
feito, e muitas vezes como o será, supõe-se que o orixá tenha emitido sinais ao
filho de que este precisa fazer obrigação. Esses sinais, de maneira geral,
podem ser tidos como a sensação de que aquela força que se sente e se sabe
que é o santo não está vertendo no fluxo normal, está mais fraca ou não
perceptível. De forma mais específica, variando de pessoa para pessoa, isso
pode ser percebido em tonturas, desânimos, perturbações perceptivas (visuais,
auditivas, olfativas), doenças, e mesmo na falta de emprego, de dinheiro, na
constante ocorrência de demandas e brigas no ambiente familiar e mesmo de
religião, entre outros problemas não previsíveis. E ao mesmo tempo, todas
essas situações exigem muito axé do orixá, vencer esses obstáculos requer um
dispêndio de energia muito intenso, sobrecarregando o santo na tarefa de
proteger o filho. Um pai-de-santo, por exemplo, que tenha terreira com clientes
e alguns filhos-de-santo, pode supor que terá que fazer obrigação com mais
freqüência que um filho-de-santo ou alguém que não gasta” tanto axé. Tudo
que se faz requer axé, ao mesmo passo que o produz, só que direcionado para
particulares fins.
Acontece de, durante os batuques ou mesmo durante os cortes, as
71
Os búzios são consultados quando se quer saber o que os orixás têm a dizer, as cartas
são o instrumento divinatório das ciganas da Umbanda. Sobre como aprendeu a botar cartas,
Dona Joaquina responde: Com o dom que Deus me deu [risos]”. Ela descreve que consegue
saber o que a pessoa quer saber antes mesmo de ver as cartas.
83
pessoas ficarem esperando o dono da casa se ocupar de seu orixá para que
este anuncie se algo por ser feito com relação à terreira e aos filhos da
casa, desta forma, os filhos-de-santo ouvem o que o santo tem a dizer e depois
que este desocupa a mãe ou o pai-de-santo, armam estratégias de pôr em
execução o que foi ordenado sem que o este saiba que foi seu santo quem
disse. Esse tipo de contato pode acontecer também quando o próprio cavalo-
de-santo precisa fazer alguma obrigação, por estar doente principalmente, e o
seu orixá o ocupa para revelar aos demais o que deve ser feito para salvar o
filho. Tendo alguém que saiba como transcorrer na feitura do fundamento
indicado, a palavra do orixá basta:
já existe aquela palavra e o recado está dado: para ter que fazer
um axé para Bará, um axé para Oxum, um axé para Oxála, um axé
pra isso. Mas é recado, não pode dizer chegou a Oxum, a Oxum te
disse isso assim, não pode falar mesmo. A pessoa não agüenta.
(Joaquina D’Oiá)
Aqui se pode ver que quanto mais difícil é demarcar a alteridade do orixá
com relação ao filho, mais visíveis se tornam as barreiras que evitam que o
cavalo-de-santo se confunda com seu pai. Ao mesmo tempo, quanto menos se
fala em ocupação, maior parece ser a parcela que o orixá ocupa na existência
do filho tanto mais o deus é feito menos o homem se separa dele, quanto
maior o deus no homem mais este deve fazê-lo.
Existem também as exceções, que são os casos de pais ou mães-de-
santo que, obviamente, já são prontos, mas não se ocupam. Dentre as pessoas
de religião que conheci e as terreiras que visitei, apenas um pai-de-santo não
se ocupava, e era o mesmo que praticava o soro (capítulo II) em seus filhos-de-
santo para que estes sentissem a força de seus orixás, e o mesmo que teve a
terreira de Umbanda trancada pelo orixá
72
. Os filhos-de-santo deste sacerdote
geralmente se aprontavam por volta de três anos após a iniciação - período
curto, se levarmos em conta que a média é de sete anos – e logo eram
liberados pelo pai-de-santo para trabalharem por conta própria, para terem
clientes de búzios e axés, e inclusive filhos-de-santo. Em muitos casos o
próprio sacerdote pagava as despesas dos filhos para que estes se
72
Algumas pessoas se arriscam a buscar explicações para o fato de Pai Anarolino não se
ocupar, e a história mais recorrente é a de que seu próprio orixá o teria furtado de se ocupar
como forma de retaliá-lo por alguma ação indevida. Mas os relatos param nesse ponto, e
ninguém fala que ato teria sido este. Até porque não se fala muito nesses assuntos de
ocupação.
84
aprontassem mais rápido, havendo muita circulação de filhos pela sua casa
73
.
Personalidade controvertida no meio religioso, Pai Anarolino era muito bem
visto pelos seus havendo vários relatos de pessoas que, desempregadas, ou
em situação desesperadora, foram iniciadas por ele para terem além da
proteção do santo, uma oportunidade de trabalho. Por outro lado, despertava
curiosidade, inconformidade e até críticas por parte do pessoal de religião de
fora da sua casa; de qualquer forma, Pai Anarolino circulava pelas mesmas
casas que circulei, e muitas outras, é claro, sendo muito prestigiado pelos seus
anfitriões. Segundo Dona Joaquina, o fato de não se ocupar não faz muita
diferença para quem tem o fundamento da religião, para quem tem a prática e
precisa trabalhar: “Não faz, porque se tu já és pronta na religião, o teu Orixá foi
abraçar os teus trabalhos, e passar uma vela, mas eles estão passando toda
aquela força, é teu orixá, que está passando para a pessoa”.
Portanto, mais uma vez, o que Pai Anarolino faz é aceito e ganha
credibilidade porque seu orixá existe e é ele quem envia o axé necessário, ao
mesmo tempo que o que ele faz nada mais é que a atualização desse deus,
que já nasceu com ele.
Assim como se fazem os santos, as oferendas, os serviços de limpeza, e
assim como se sente e se tem o aviso da necessidade deles, e se busca a
orientação dos orixás para isso tudo, assim como muita coisa se faz, outras se
desfazem. É o que acontece quando se trata de feitiço. Feitiço “é coisa feita”
por quem manda e é “um presentinho” para quem recebe. Mas quem faz o
feitiço deve, além de ter a receita com os ingredientes corretos, saber que
entidade irá colocá-lo em execução. Quando se trata de um trabalho para exus,
um trabalho para manipular alguém ou alguma situação, já está claro que a
negociação tem seus termos bem estabelecidos; porém, quando quem deve
“tocar” a vítima é um egun, que desordena, caotiza, a feitura do feitiço exige
muito mais cuidado e conhecimento por parte de quem faz, que a
negociação com o egun deve implicar o mínimo de pessoalidade possível por
aquele que o designa a desordenar a vida de alguém. O egun deve ter mais
73
Em um corte de quatro-pés que assisti na casa de Pai Anarolino, estavam se aprontando 17
filhos-de-santo de uma vez. O ritual começou às 18 horas e terminou às 4 horas da manhã,
foram cortados mais de 200 animais, entre aves e quadrúpedes. E tudo foi realizado na sala de
estar da casa do pai-de-santo, que é contígua ao quarto-de-santo, onde são feitos os cortes.
Pai Anarolino deixou-me fotografar tudo, mas eu não o fiz, pois algumas pessoas se ocupam
durante o corte na cabeça.
85
contato com algum pertence ou alguma parte da pessoa da vítima do que da
do feiticeiro, caso contrário ele será atraído por esse último
74
. Os eguns o
muito fáceis de ser atraídos, portanto, se a pessoa que faz o feitiço querendo a
ajuda de um exu não é de religião, pode ser muito mais provável que o feitiço
atraia um egun (que não é doutrinado), do que uma entidade daquele tipo. E
além disso, além do feitiço dar errado, pode virar-se contra o feiticeiro, se a
pessoa atingida for próxima a ele.
Pode alguém fazer um feitiço para amarrar” outra pessoa, ou seja, para
que esta não saia da sua vida por motivo algum. Pode-se, somado a isso,
“abafar” a pessoa para que ela o perceba que pode ter sido enfeitiçada e
ache tudo o que acontece muito normal. Pode-se fazer qualquer coisa para
qualquer fim, no entanto, pode-se inclusive fazer tudo errado. E, em todos
esses casos, principalmente neste último caso, é preciso fazer algo para que o
feitiço perca o efeito. Pode-se retribuir “o presente” por vingança ou para
equivaler o ônus que se teve, pode-se desfazer o feitiço apenas, e no caso do
feitiço errado, é preciso afastar o egun que causou a confusão. Quando se trata
de afastar um egun, o trabalho é destinado aos orixás, que são quem pode
afastar os eguns, ao mesmo tempo que protegem o desenfeitiçador. Mas, por
mais conhecimento que um pai ou mãe-de-santo tenha, por mais tempo de
iniciação que ele tenha, lidar com os mortos como os eguns requer que se
limpe sempre o canal por onde verte o fluxo de axé do seu orixá. E isso vale
tanto para quem faz o feitiço quanto para quem o desfaz, já que, segundo dona
Joaquina, essas classificações não são nem um pouco fixas, pois “quem sabe
fazer o bem, sabe fazer o mal”:
Não adianta eu atender se não limpar o meu corpo. Se eu não passar
um axé de Xapanã, para tirar o negativo desta pessoa, não resolve
nada. E não adianta ficar fazendo maldade, que suja a mão da
pessoa, se tu vais para o cruzeiro, vais para o cemitério, para e
para cá, tua mão fica suja. Aí tu vais fazer um serviço para o bem e a
outra pessoa diz: "paguei tanto pra Dona Joaquina e não deu nada".
Mas se a mão não está limpa, não adianta nada, não adianta mesmo.
Por isso que a gente limpa o corpo. Lavo a mão com água, com mel,
com perfume, para tirar aquele axé ruim que ficou. (Joaquina D’Oiá)
Na situação do feitiço com egun acontece algo parecido com todos os
74
Sabe-se que existem casas que trabalham só com eguns, com os eguns genéricos, mas isso
é considerado, pelo pessoal de religião com quem estudei, como “magia”, “feitiçaria”, coisas
“do mal”.
86
envolvidos: tanto o feiticeiro quanto o enfeitiçador, pelos motivos já descritos,
ficam, de certa forma, “com as mãos sujas”. com o enfeitiçado, os termos
não seriam esses, mas o próprio fato de ter sido atingido pelo feitiço aponta
para um encontro entre ele e os eguns (doutrinados ou não), uma relação entre
eles, e supõe também que a participação atual do orixá dessa pessoa se faz
urgente na sua proteção. Isso supõe que algo mais deva ser feito, seu orixá,
por exemplo, pois a experiência do feitiço, por mais que tenha passado, é bem
provável que seja revivida, que a pessoa conhece o que é essa
capacidade humana de manter relações com espíritos de mortos. Pensar neles
é quase tocá-los. A experiência da negatividade total, leva muito tempo para
ser recompensada pela sua equivalência em vida.
Enfim, insisti no início deste capítulo quanto a não olhar para iniciados e
não-iniciados como opostos complementares, contrariando um pouco Lévi-
Strauss, justamente porque não via substantivação possível em suas
classificações, portanto, também não nas fronteiras. Pois bem, assim como a
ambigüidade entre “dom” e “iniciação” dilui tais fronteiras nas descrições do
pessoal de religião, a concepção estruturalista de Lévi-Strauss de que os
iniciados seriam o equivalente aos vivos, enquanto os não-iniciados seriam os
mortos, ajuda-nos aqui a entender um pouco mais as operações classificatórias
da religião. Como foi visto no capítulo anterior, a morte deixa de ser vista
como um final ao passo que também é tida como “o fim total”, a vida após a
morte é a condição de existência de tudo o que existe, inclusive da vida. E isso
não quer dizer que uma concepção da morte seja verdade e a outra mentira, ou
que elas se fundam, mas quer dizer que uma supõe a outra, uma sentido à
outra.
87
Capítulo IV
“Se eu morrer hoje, amanhã eu melhoro”
O evento
Nasci num dia 31 de janeiro, mas costumo comemorar meu aniversário
na noite do dia 30. Assim aconteceu no fim de janeiro de 2008. Mudei os
móveis da minha casa de lugar para ampliar o espaço para os convidados,
preparei todas as comidas e aperitivos sozinha, pus a cerveja para gelar e
comentei com umas amigas que haviam aparecido para me cumprimentar que
a champanhe eu comprei porque era meu réveillon. Mais para o fim da tarde,
Juliana chegou para me ajudar com os preparativos e começamos a encher os
balões, que ficariam soltos pelo chão, amarelos, pretos, laranjas e rosas.
havia recebido a confirmação de presença de quase todos os
convidados, então tomei banho cedo, vesti a camiseta branca com uma
imagem grande de o Jorge estampada presente de Madalena e Fernando
e fiquei esperando meu irmão, que vinha de passagem de Arroio Grande
para me dar um abraço pelo aniversário, e não ficaria para a festa. Durante a
espera, organizamos no outro ambiente da sala a mesa com os salgadinhos e
doces, dispostos em pratos decorados com guardanapos em cor-de-rosa
intenso, que mais tarde chamou a atenção de quem chegava, pelas cores
vibrantes combinadas. Faltava apenas o bolo de chocolate, que Clarissa ficara
de fazer e levar na hora em que fosse em definitivo para a festa. Troquei
também as lâmpadas dos abajures por outras coloridas.
Logo que escureceu, aumentamos o volume do som, ligamos as luzes
coloridas e, em seguida, os convidados foram chegando. o lembro a ordem
da chegada de todos. Lembro que a chegada do bolo foi muito comemorada
por todos, lembro de ter dançado com o Cristiano, de me sentir eufórica, de
não conseguir falar - falar causava-me uma grande fadiga, as palavras saíam
atropeladas, cansadas. Lembro também de não ter paciência para beber; era
como se qualquer ação fosse feita numa velocidade muito maior do que o
costume e para isso eu dispensasse muita energia. A música alta era muito
88
agradável e parecia estimular-me frente à demanda de energia. A voz
acompanhava o ar que entrava e saía de meus pulmões, era como se eu
tentasse propagar o som das minhas cordas vocais pela mesma quantidade de
ar que fazia minha respiração. Falar e respirar eram a mesma ação
simultaneamente, no mesmo ritmo. A fala, um som curto, grave e ininteligível.
Lembro de ter vontade de acender as luzes da casa porque a luz da
lâmpada amarela do abajur do ambiente onde estava a mesa com comidas,
refletida nos guardanapos rosa-pink dava-me uma certa vertigem. Na hora de
cantar parabéns, acenderam velas verdes por sobre todo o bolo eram as
velas que um casal de amigos tinha em casa, em razão de serem devotos de
São Jorge e Ogum.
Todas essas lembranças respeitam a ordem cronológica de como foram
sendo recordadas, não sendo possível ordená-las com exatidão na seqüência
como foram mesmo ocorrendo durante o evento. Por isso, uma das últimas
lembranças que tenho da festa em si começa comigo sentada no chão da
cozinha, conversando com a Clarissa sobre a bebida: se a champanhe estava
em uma temperatura boa, se a cerveja não iria congelar... Depois disso,
lembro de pegar do pescoço dela uma corrente no que recordo, não parece
que eu tenha feito muita força para arrancá-la, é como se estivesse solta. A
corrente trazia pendurada uma aliança de ouro, que pertencera a sua avó,
falecida, e uma medalhinha de São Jorge em prata, presente meu dado a ela
no dia do enterro daquela, que coincidiu com meu regresso da praia do
Cassino, onde havia comprado de uma artesã a pequena lembrança.
A questão maior dessa passagem é que não sei o que fiz nem da
aliança, nem da medalha. Guardo a visão da corrente na minha mão,
enroscada em fios de cabelo, e de eu rir disso, satisfeita. Um corte na memória.
E a partir daí meu esforço era o de convencer a amiga de que eu o estava
com a aliança a medalha havia sido encontrada em um canto do chão da
cozinha
75
. Eu acreditava piamente que não estava comigo, e comecei a me
75
Dias depois, antes de viajar para passar o carnaval fora, estive na casa de Jader, um dos
amigos que estavam na minha festa de aniversário e que assistiu o momento em que retirei a
corrente do pescoço da Clarissa. Ele estava com a medalha encontrada no chão da cozinha,
queria devolvê-la. Pediu que eu procurasse a aliança direito porque ela estava comigo, mas eu
não lembrava, e não lembro disso de jeito nenhum.
89
desesperar frente à acusação de que haveria roubado a jóia de valor estimativo
para zombar da amiga. O vácuo entre pegar a corrente e ver a reação dos
outros me confundia, não dava para entender nada - e permanecerá sem
entendimento, visto que a ausência de sentido atribuída pelo vazio de ões
reconhecidas nesse intervalo coloca o sumiço da aliança no meio de um caos.
Era e é essa a sensação que tenho desse momento, de caos. Eu repetia
inúmeras vezes que não tinha sido eu, que não havia motivo para isso, que a
aliança poderia estar debaixo de algum móvel, ter caído e tal... Mas o silêncio
incrédulo dos amigos que estavam na cozinha me apavorava
76
. Mais ainda me
assustava a recusa furiosa de Clarissa em ouvir meus argumentos que, pelo
que lembro, não eram muito elaborados. A última visão que tenho dela dentro
de casa é a de vê-la colocar o bolo de aniversário fora, pelo ralo da pia. Ao
mesmo tempo que não respondia acreditar em mim, esperava em silêncio que
eu lhe devolvesse a jóia da avó falecida. Isso não acontecendo, e não havendo
possibilidade de acontecer, já que eu não sabia mesmo onde encontrar o anel,
ela resolveu ir embora. Fui junto para tentar ao menos convencê-la de que no
dia seguinte, ao arrumar a casa, eu encontraria o que havia perdido e lhe
devolveria. Tudo em vão, e eu sem entender porque era tão difícil aceitar que a
aliança podia estar perdida no meio da bagunça. Para intensificar minha
confusão e meu sentimento de culpa, um outro amigo resolveu nos seguir para
evitar que eu causasse “mais algum dano”.
Ao dar-me por conta disso, a falta de nexo entre as ações e o caos
cegaram-me a razão. Em frente à Igreja do Porto, distante duas quadras da
minha casa, quando Marcos se pôs na minha frente para barrar que eu
seguisse me explicando, uma raiva incontrolável me tomou. Ele não conseguia
mais me segurar, eu tinha então uma força que não imaginava ter, e
descarregava essa força em golpes proferidos no rosto do amigo, nas
76
Em outra ocasião, algum tempo depois de meu aniversário e seus desdobramentos, Clarissa
contou-me que a indignação dela e o silêncio dos outros amigos presentes na cozinha vinha de
eu ter sussurrado no ouvido do Jader que a aliança estava comigo. Todos esperavam que eu
acabasse com aquela brincadeira sem graça de uma vez, mas isso não ocorreu. Segundo ela,
Jader delatou minha confissão tentando convencê-la de ir para casa e de em outro dia, quando
eu estivesse mais calma, pegar as coisas dela de volta. Até então, eu ainda estava convicta de
que de fato a aliança tinha se perdido, ou eu mesma a tivesse perdido, não podia admitir que a
pudesse ter escondido e também o podia negar nem afirmar nenhuma das hipóteses,
que o que tinha na memória era um profundo e irreversível vazio.
90
têmporas - quanto mais ele não se defendia, mais eu batia. Uma força e uma
raiva que não tinham fim, que me faziam sentir maior do que eu era; isso e
mais nada, só força e raiva, nem visão, nem audição, nem a fala, que voltava a
ser novamente os urros antes respirados no telefone.
Vendo isso, Clarissa gritou que parássemos. Ao ouvir o grito, senti medo
dela, medo que ela me batesse, embora não tenha feito a menor menção
disso. Antes que ela fizesse qualquer coisa, deflagrei em pontapés e socos,
derrubei-a e bati muito sei que ela tentou se defender, pois notei marcas em
meus braços no dia seguinte, embora no momento do incidente eu não tenha
percebido a dor. Sentia raiva e sentia medo, e tinha muita força. Marcos, muito
machucado, não podendo ajudá-la chamou outro amigo pelo celular. Este
chegou, tentou me segurar, foi arranhado, e enquanto eu tentava me
desvencilhar os outros dois fugiram. Segui o caminho de casa sozinha, o amigo
que viera apartar foi embora por outro caminho, revoltado com o que vira.
Cheguei de volta e ainda havia alguns convidados, os amigos mais próximos.
Ao perceberem minha camiseta ensangüentada e as mãos esfoladas,
surpresos quiseram saber o que havia ocorrido. Sem saber direito porque
chorava, sem entender porque tanta raiva, sem a menor esperança de que
alguém fosse me compreender ou me dar razão, sabia dizer que havia
batido neles. Em meio à culpa de ter batido nos amigos e a raiva daquele que
tinha tentado encerrar minhas desculpas e argumentos, a sensação que
pontuava era o vazio de sentido daquilo que deflagrara toda a situação. Lembro
de uma amiga dizer que eu parecia uma criança, que aquilo tudo que eu falava
era muito infantil, e lembro de não conseguir dizer nada que pudesse mostrá-la
o contrário. Não havia explicação, não tinha sentido.
Todos foram embora, alguns perplexos, outros irritados. Eu fui dormir e
dormi até o outro dia, quando acordei cedo para limpar a casa e procurar a
aliança. Enquanto fazia isso tentava entender o que havia acontecido comigo e
lembrar as coisas que tinham ocorrido nos intervalos nebulosos. Não encontrei
nada, nem recordação, nem a jóia. Mas havia um pensamento que me parecia
absolutamente coerente, ainda que eu o quisesse esquecer, dá-lo como
ilusório ou como uma mera explicação buscada nas últimas tentativas de
conseguir me redimir do “roubo” que eu não cometera: tinha como certo que os
fatos do dia anterior tinham relação com os fenômenos que eu estudava junto
91
às religiões de matriz africana desde 2006. Pensava eu ter incorporado não sei
qual tipo de entidade, se um cosme
77
, uma pombagira, ou todos eles, um
seguido do outro. poderia ter sido isso, meu comportamento me
desvinculara completamente de mim mesma, e os momentos de inconsciência,
de esquecimento, eram-me algo desconhecido até experimentar a atordoante
sensação de dar por mim sem lembrar o que tinha feito no momento anterior.
Pensava isso, mas o tinha a experiência que me pudesse certificar que era
esse tipo de transe que havia me acometido. Eu tinha essa noção, mas ao
mesmo tempo isso era algo a ser escondido, um segredo meu comigo mesma,
tive vergonha, medo, de assumir que havia “me envolvido demais com meu
objeto de pesquisa”, que ultrapassara os limites de familiaridade impostos por
alguma métrica desconhecida e misteriosa capaz de ditar a distância exata
entre os antropólogos e as pessoas que ele “observa”.
Era segredo, mas eu sabia que não poderia ser por muito tempo, sabia
que dali eu não teria volta, o seria mais a mesma pessoa, indivíduo
indivisível, restrita à minha personalidade una, psicologizada. A possibilidade
do transe me levantava a hipótese de ter escondido a aliança e o lembrar
onde nem como o havia motivos para isso de minha parte, mas que
poderia se cogitar que não era eu, mas uma entidade, as coisas começavam a
ganhar um sentido... Decidi parar de pensar nisso - era 31 de janeiro e eu
começava a organizar a ida ao Balneário dos Prazeres, na noite do dia de
fevereiro, quando começam os festejos em homenagem a Iemanjá. Combinei
com uma amiga de irmos juntas para a praia.
No dia seguinte, conversei pela internet com a amiga em quem havia
batido e ela disse que não me reconhecia. Comentei com minha mãe o
acontecido, ela viu as feridas nas minhas mãos e recomendou que eu o
bebesse mais. Concordei, mesmo sabendo que o álcool pouco tinha a ver com
o assunto. Dormi durante todo esse dia, e à noite Carol passou na minha casa
para irmos fotografar a festa de Iemanjá. Ao chegarmos, nos aproximamos das
terreiras de Umbanda, mas não tive vontade de assistir, senti uma irritação nas
têmporas, minha pressão baixou e retornamos para o centro da cidade logo.
77
Espíritos de crianças, cultuados na Umbanda.
92
As explicações e as terapêuticas
Com a continuidade dos desconfortos e a impossibilidade de disfarçar o
que me incomodava, as primeiras pessoas a tentarem encontrar explicações
para minha mudança de comportamento foram meus familiares.
Na viagem com destino à casa de meu pai, no primeiro dia de carnaval,
o assunto veio à tona com minha mãe: ela estava convicta, graças à formação
na área das ciências biológicas, de que os meus genes eram os culpados da
violência, que tínhamos muitos casos na família dela de pessoas que se
tornavam violentas ao ingerir bebida alcoólica, e que eu estava propensa a
possuir as mesmas potencialidades genéticas. Isso contrariava muito a minha
opinião, mas como que por consolo ou conforto, aceitei a possibilidade sem
argumentar contrariamente. Seguimos viagem e em Arroio Grande visitei
alguns amigos que muito tempo não via, mas não participei do carnaval.
Andava irritada com qualquer coisa, instável, e sabia, por parte do pessoal de
religião, que essa festa não era o melhor lugar para amenizar o que eu sentia
naquele momento pelo contrário, durante o Carnaval são fechados os
quartos-de-santo para qualquer tipo de ritual que exija a presença dos orixás, é
que nessa época os eguns estão soltos
78
, o que torna o evento propício a
brigas, roubos, desentendimentos, acidentes, mortes.
Distanciando-me então da aglomeração e das festas, parti com meus
pais em direção a uma cidade uruguaia próxima. Ao chegarmos a um
restaurante para jantar, comecei a sentir uma inquietação, minhas os
nervosas apontavam uma falta de paciência para tudo, irritabilidade e choro
incontroláveis. Eu precisava me movimentar. Peguei a chave do carro, entrei,
78
O Carnaval é o período em que os orixás não são cultuados. Por isso os eguns, que são os
espíritos que podem ser perigosos, ficam livres por toda parte, o que acarreta no risco de estes
invadirem o mundo dos orixás, caso se abram os quartos-de-santo para serviço, estabelecendo
comunicação entre o mundo dos homens e o dos deuses. Tanto é que há o caso de um pai-de-
santo em Pelotas que despachava as frentes (comidas rituais) dos exus na passarela do
samba, segundo ele “porque eles estão lá”. Os exus estão entre os vivos (humanos) e os
mortos (eguns), e são espíritos de humanos que morreram; têm moralidade controvertida e
estão entre o bem e o mal,o a comunicação entre essas polaridades e também comunicam
o sagrado com o profano, deixando claro que essa comunicação é a própria operação de
classificação das categorias polarizadas. Assim como os exus, há o orixá Bará, que executa
operações bem semelhantes entre os homens e o plano dos orixás. na Umbanda, entre os
exus, uma qualidade destes chamada Exu Bará. No Candomblé da Bahia, o lugar
correspondente ao que Baocupa no panteão do Batuque é ocupado por um orixá chamado
Exu.
93
escutei uma música e a angústia voltou. Tive que sair do carro, e caminhar de
volta ao restaurante fez com que me sentisse melhor. Cheguei mais tranqüila à
mesa onde estavam meus pais. A mãe me olhou e disse que o que eu estava
sentindo era mesmo arrependimento por ter batido nos meus amigos. Respondi
que sim, mas que havia algo mais, uma raiva que fazia com que eu não me
reconhecesse. O pai falou que eu deveria procurar minha psicóloga e também
me benzer. Dizia estar convencido de que não era a filha dele quem estava ali.
Ao voltar para Pelotas, segui seu conselho de buscar tratamento com a
psicóloga. As sessões de terapia foram voltadas para as relações que eu
mantinha com os amigos agredidos e as possíveis motivações que teria para
machucá-los. Tive alguns momentos de tranqüilidade, sempre que estive
acompanhada de pessoas próximas e queridas, nunca em lugares públicos,
como restaurantes ou bares. Só não conseguia ficar sozinha sem que me
acometesse a sensação de ter um nó na garganta, um aperto no peito, de estar
frágil e instável emocionalmente. À noite, a percepção de assombro ficava mais
clara: deitada no quarto, sozinha em casa, eu ouvia barulhos nas panelas da
cozinha, como se alguém as tivesse revirando. Ficar sozinha era assustador,
caminhar pelos corredores do apartamento dava-me a sensação de que meu
corpo era composto de inúmeras pecinhas prestes a se esparramar pelo chão,
tomar banho era quase doloroso, parecia que meu corpo ia escorrer junto com
os pingos d’água que caíam do chuveiro sobre mim. Caminhar sem rumo, de
preferência contra o vento, pelas calçadas pouco movimentadas do bairro onde
moro, era uma das únicas opções de alívio desde que ninguém cruzasse a
minha frente, ou fizesse diminuir o ritmo dos meus passos.
Tentei algumas vezes relatar isso à psicóloga, mas suas interpretações
de minhas descrições jogavam estas para o terreno da dramaticidade, da
representação. A continuidade do tratamento psicoterápico teve seus limites na
incomunicabilidade que se instaurou entre a psicóloga (que pouco conhecia de
religião) e a paciente, que não conseguia desvincular suas angústias do
encontro com a religião. As tentativas da primeira de alcançar as causas do
que eu procurava descrever – tristeza, desânimo – esbarravam na idéia de que
eu estaria incorporando as explicações da religião para acontecimentos que
não diziam respeito ao campo religioso, mas às minhas relações pessoais,
que eu não era de religião. Embora reconhecesse algumas equivalências nos
94
discursos da psicologia e da filosofia afro-religiosa, a terapeuta enxergava que
eu estava representando papéis que o campo religioso me oferecia, e dos
quais eu deveria me desvincular – o que para mim era impossível.
Portanto, concomitante à decisão de fazer terapia psicológica, veio a
inevitabilidade de recorrer à ajuda religiosa. Esta última deveio de uma reunião
com Flávia, minha orientadora. Combinamos de nos encontrar em uma doçaria
no centro da cidade; cheguei primeiro e me senti sufocada dentro. Flávia
chegou logo, me olhou estanhando. Tentei contar o que tinha acontecido, mas
só tinha vontade de chorar. Ela senta na minha frente e antes de conseguirmos
estabelecer uma conversa, disse: “Não é a mesma Marília que estava aqui
quando eu saí de férias, não é a mesma pessoa”. De fato, era a percepção que
eu tinha de mim mesma. o sabia mais o que dizer, não sabia mais o que
sentia, então contei-lhe os fatos.
Ao ar livre me senti melhor. Flávia sugeriu que eu ligasse para Vitória -
até então não eu não tivera coragem para isso
79
. Liguei, mas ela não podia me
atender naquele momento. Nos dirigimos, então, para o centro espírita
kardecista Fabiano de Cristo. Estava fechado. Flávia resolveu telefonar para
sua tia Eleonora, que dirige, em Porto Alegre, um centro espírita não filiado à
Federação Espírita
80
. Conversamos por telefone mesmo, mas primeiro, Flávia
relatou à tia o que havia acontecido. A partir de sua descrição, Dona Eleonora
constatou que o que eu tinha comigo era uma gira
81
. A primeira pergunta que
79
Eu vinha fazendo associações entre bebida, violência, força e Ogum (o orixá dono da
minha cabeça). Sabia que depois de jogar os búzios poderia acontecer de meu orixá querer vir,
ou seja, querer receber obrigação, sacrifício, atualizar sua existência virtual; mais
especificamente, eu poderia ter que me iniciar efetivamente, cumprir obrigações. Só que nem
eu acreditava que isso poderia acontecer comigo, nem mesmo tinha idéia de como isso se
anunciava. Em junho de 2007, pedi para Vitória jogar búzios para saber quem eram meus
orixás, queria escrever um ensaio sobre o jogo e os conceitos de sensibilidade e ciência que o
pessoal de religião utiliza para descrever como se dá o processo divinatório. Reagindo à minha
evidente noção de que aquilo o passaria de uma observação, Vitória fez-me o alerta de que
“jogar a cabeça” poderia corresponder ao primeiro passo “dentro da religião”, que depois disso
meu “pai” poderia querer feitura. Porém, concordou comigo que se eu realmente não quisesse
isso não aconteceria.
80
Isto é, que trabalha também com a ajuda de pretos-velhos e caboclos, entre outros espíritos
não considerados “de luz” pela doutrina seguida nos centros kardecistas mais ortodoxos. O que
não impede que muitos centros espíritas umbandistas sejam seguidores da doutrina de Allan
Kardec.
81
Referência às entidades também chamadas de pombagiras, que são cultuadas na Umbanda,
mas no espiritismo são vistas como espíritos que precisam evoluir e que, portanto, não são
capazes de trazer a luz” de que carecem os seres humanos encarnados. Espíritos femininos
nas falanges de exus umbandistas, são solicitadas a resolverem
questões amorosas, questões
práticas e de disputas pessoais, separam casais, propiciam reconciliações, ajudam a arrumar
95
me fez foi se minha sexualidade era muito reprimida; respondi que não, de
acordo com o que eu tinha por repressão sexual. Ela então disse que o canal
pelo qual a gira teria entrado em contato comigo era o da sexualidade.
Perguntou-me se eu era muito sensível às coisas bonitas, como música ou arte
em geral; respondi que me emocionava com essas coisas. Disse-me que eu
era um tipo de pessoa “hipersensível” e que talvez estivesse me sentindo uma
“selvagem” – isso porque, segundo Dona Eleonora, as giras são fortes e
determinadas e atuam nos nossos instintos. Por fim, declarou-me que tal
espírito ia demorar para sair de minha companhia, mas que se estava ao meu
lado, era para aprender comigo, para “evoluir” espiritualmente e assim deixar
de me atrapalhar. Como ajuda para isso, Dona Eleonora propôs que meu nome
fosse posto nas mesas espíritas de regeneração” e “evolução”. Aceitei a
proposta já me sentindo bastante aliviada pelo sentido que as coisas iam
ganhando. Recebi ainda um alerta final da senhora: “Para contribuir com o
tratamento: bebida, nem pensar! Sexo, com moderação!”
Na noite do mesmo dia, quando fui dormir, tive a sensação de que minha
cama se sacudia, fui para a cama de minha mãe e sonhei sonhos em que eu
tentava gritar mas a voz não saía e algo comprimia meu peito; ao acordar vi
que era a minha própria mão o que estava apertando, deixando-o dolorido.
Então, perturbada com os sonhos e as sensações que vinha tendo, resolvi ligar
para Vitória. Contei superficialmente o que acontecera disse que tinha
incorporado e batido em uns amigos. Combinamos de nos encontrar à tarde na
casa de Diamantino D’Oxalá, seu padrinho na religião. Continuava me sentindo
como se não houvesse um ponto fixo para meu olhar, como se estivesse em
emprego e podem “trancar os caminhos” de
um adversário. Mas nunca, em
hipótese
alguma,
fazem qualquer serviço sem que cobrem seu pagamento, seja um
charuto, uma
bebida, rosas,
jóias, perfumes, galinhas, tudo presenteado quando “estão no mundo” (quando incorporam
seus aparelhos) ou nas suas moradas, nas encruzilhadas, na beira dos caminhos, nos
cemitérios, no mar etc.
No estágio de desenvolvimento do cavalo-de-umbanda a entidade vem
ao mundo beber, fumar, comer, dançar, enfim, receber os pagamentos pelo zelo aos desejos
de seu aparelho. Quando ganha a fala, processo ritual regido pelo exu líder da casa a qual
freqüenta o aparelho, além de manter a relação direta com este, a entidade então passa a ouvir
as dúvidas e desejos de quem a aborda, respondendo as primeiras, oferecendo seus trabalhos
pelos últimos. As pombagiras, em geral, bebem champagne e bebidas do tipo, gostam de
maçãs vermelhas e de temperar suas comidas com mel; num diálogo subversivo com a pureza
do corpo feminino cristão é que surgem as falanges de espíritos de prostitutas, cortesãs,
amantes, os corpos à mostra, a saia arregaçada, a gargalhada escandalosa. Sobre a
Pombagira ver: Kosby, Marília Floôr (2008). Pombagira e a extroversão do pecado feminino.
96
constante tontura, como se meu corpo vibrasse levemente para os lados, uma
parte de mim para cada lado, e a angústia de tentar achar um ponto de
equilíbrio que as fixasse.
Antes de ir à terreira, relatei à Clarissa o que vinha acontecendo nos
últimos dias - pela internet, pessoalmente era impossível, eu ainda tinha medo
de reagir violentamente, e ela, lógico, tinha o mesmo medo somado à
indignação. Contei que ia a um pai-de-santo e que tentaria também descobrir
onde estava a aliança de sua avó. Disse que já não se preocupava tanto com
isso e que ao lembrar das incorporações que a outra avó sofria, as minhas
atitudes passavam a ganhar mais sentido: o comportamento infantilizado e
intempestivo quebrar taças e jogar cadeiras pela janela, além de tudo o mais
que me desvinculava do comportamento habitual. Simultaneamente, aliviada
pela compreensão da amiga, e perseguida pela obsessão de tentar lembrar o
que tinha feito, me dirigi para a casa de Diamantino.
No entanto, percebi que ainda havia o que resolver e que não era o
sentimento de culpa o maior causador de minhas angústias físicas (e
psicológicas, concomitantemente). Caminhar pelo calçadão cheio de gente
ainda me fazia sentir vontade de bater em qualquer pessoa que ficasse na
minha frente, e a conhecida agonia de chorar e sair andando, andando,
andando.
O feitiço, o egun e o alívio
Quando cheguei na casa de Diamantino, Vitória já me aguardava. Todos
se espantaram com minha magreza e com as olheiras profundas. Contei o que
aconteceu, sem entrar em maiores detalhes a princípio, para vermos o que os
búzios diriam. Antes de jogar, Diamantino olhou para as feridas nas minhas
mãos e disse que aquilo o era coisa que pombagira ou exu faça muito
menos orixá - que o que eu fiz nenhum espírito doutrinado faz. Segundo o pai-
de-santo, o que me havia atingido seria um egun.
Na caída dos búzios, Diamantino viu que eu estava “tocada”, ou seja,
que alguém me feito um feitiço. Minha cabeça doía, em cima e nas têmporas,
97
eu tinha a sensação de que estava com a pressão arterial baixa. Ele jogou
mais uma vez para confirmar, e Oxalá Orumilá confirmou a resposta,
apontando que realmente o que eu tinha era um egun encostado. Diamantino,
como que para diagnosticar o que me acontecia, fez-me uma série de
perguntas, enquanto jogava várias vezes os búzios, uma seguida da outra:
“Aconteceu acidente contigo? E roubos? E mortes? Se não aconteceu, toma
cuidado com isso.” Reportei-me então aos últimos meses do ano de 2007,
quando, em um espaço de tempo muito curto todas essas situações me
acometeram: sofri um acidente em que fraturei os dois braços, umas semana
depois tive roubada minha bolsa com documentos e outros pertences, e
presenciei três enterros, dois deles de pessoas muito próximas a mim e á
minha família. Relatei essas lembranças para o pai-de-santo, e daí em diante,
por alguns momentos, ele começou a relembrar para mim os rituais de
sacrifício que eu havia assistido na sua casa não lembro o que puxou esse
assunto, sei que as menções ao sangue e a podridão causavam-me um
mal-estar inexplicável, eu sentia uma dor total e não localizada acompanhada
de uma náusea que quase me fazia dormir, uma sensação de querer acabar de
uma vez com tudo aquilo, comigo mesma, uma impressão de que se eu
morresse naquele dia, no outro eu estaria curada.
Percebendo meu abatimento, Diamantino perguntou se eu estava com
vontade de vomitar; afirmei com a cabeça que sim. Ele replicou: “Eu sei. Tu
estás com vontade de vomitar e tonta porque eu estou te falando de morte.
Tens que te limpar, é certo, vamos fazer uma limpeza de egun
82
”.
Na vez seguinte, a disposição em que os búzios caíram anunciou que
quem me havia feito o feitiço era uma mulher que gostava muito de mim e não
queria que eu saísse da sua vida. Atônita com a contradição, pedi que
Diamantino me encontrasse um sentido para que alguém que gostasse de mim
quisesse me fazer tanto mal. Ele e Vitória responderam que é muito fácil de
isso acontecer, basta que a pessoa faça o feitiço errado, por ignorância ou por
má fé da mãe ou pai-de-santo que a orienta. Eu estava incrédula quanto a isso,
82
Limpeza de egun é um serviço em que se tira o egun do corpo da pessoa, em troca de um
animal sacrificado. Neste caso, como Diamantino é filho de Oxalá, ele sacrificou um galo
branco, abriu as costas do animal (fêmeas são abertas pelo peito) e colocou dentro do corpo
ainda quente uma camiseta minha, sobre a qual eu fiquei em durante um tempo, de frente
para o quarto-de-santo, enquanto ele me passava no corpo os axés de alguns orixás,
escorraçando com palavras e gestos o espírito.
98
sem ver possibilidade de que alguém de meu convívio o fizesse, principalmente
porque eu pensava que os meus amigos possíveis de se envolverem em ações
de feitiçaria seriam bem orientados, já que os enquadrava na categoria
batuqueiro, ou de religião. Diamantino então perguntou se eu sabia quem era
que tinha me “tocado”, eu disse que não e que isso ainda estava muito confuso
para mim. Interrogou se eu queria que ele jogasse para descobrir quem havia
sido pôs um caráter opcional na questão por não considerar estritamente
necessário saber quem era o enfeitiçador, já que isso importaria caso eu
quisesse revidar o feitiço, o que era pouco provável pela forma como as coisas
estavam acontecendo comigo, pela não intencionalidade.
Um pouco menos abatida, por saber que algo poderia ser feito para
sanar minhas dores e perturbações, disse alguns nomes, mas tinha comigo
que qualquer que seja o resultado, a contradição do feitiço “errado” se
sobreporá, encerrando em si a atenção sobre o “toque” em si. Ficava claro que
o fato de ter sido enfeitiçada tinha naquele momento o valor de um anúncio, de
que algo precisava ser feito com relação à minha desproteção, como se
daquela experiência outras pudessem se desdobrar. Portanto, resolvi encarar a
situação como uma etapa a ser transposta: eu precisava melhorar e era isso
que me interessava. Diamantino e Vitória pareciam ter a mesma intenção que
eu.
Ele jogou os zios novamente, e Iemanjá respondeu, essa orixá
responde pelo pensamento e pela loucura. Fui aconselhada então a não ingerir
nenhum tipo de psicotrópico e a procurar um psicólogo para somar-se
paralelamente ao tratamento religioso. Jogou mais uma vez, e disse: “Vamos
lavar essa cabeça?”. Não entendi bem o que era aquilo, mas aceitaria fazer o
que fosse necessário para deixar de sentir o que estava sentindo; meio
insegura, respondi que sim olhando para Vitória, como que esperando saber
dela se eu tinha tomado a decisão certa. O retorno dela é de espanto: “Tu
queres ir para o chão?” Eu respondo que não, e então lembrei que lavar a
cabeça é uma das primeiras obrigações de quem “entra” para a religião. Vitória,
procurando não parecer estar ferindo a autoridade de seu padrinho - o dono da
casa - reforçou que eu não devia ir se não quisesse. Ela sempre se colocou
nessa posição, desde que o fato de eu querer saber sobre religião acenou para
algumas pessoas a possibilidade de estar querendo sondar para depois iniciar-
99
me. Seu argumento era o de que eu não teria perfil para alguém que se sentiria
bem com as obrigações religiosas, que, para ela, eu penso demais sobre as
coisas, busco razão para tudo:
Eu me vejo em ti, apesar de tu teres três vezes mais estudo do que
eu. Porque eu sou muito cobrada pelo meu orixá, eu acabo perdendo
muito pelo fato de ficar tentando achar porquês. Falo isso porque sou
tua amiga, não porque sou tua informante ou porque sou mãe-de-
santo. Do contrário, seria até vantagem para mim se tu quisesses
entrar para a religião. (Vitória D’Iemanjá)
Decidido que eu o iria para o chão, que o que desejava era a solução
mais rápida para desfazer o feitiço, Diamantino jogou novamente os búzios e
viu que então teríamos que fazer uma segurança, mas para Bará, pois,
segundo ele, se fizéssemos para Ogum o dono da minha cabeça -
poderíamos estar “chamando” o orixá, cobrando sua presença, o que me
aproximaria de ter que cumprir obrigação de corte
83
. Além do mais, Diamantino
disse que se fosse meu pai-de-santo não assentaria meu juntó como estava,
teria que trocar minha cabeça para outro orixá; segundo ele, porque Ogum na
cabeça e Ono peito é “uma energia muito violenta, um orixá muito atrevido,
muito difícil de a gente controlar”. Somada à segurança, a limpeza de egun era
algo imprescindível a ser feito. Vitória não discordou. Combinei de voltar no
outro dia com uma camiseta velha e duas correntinhas de prata para a limpeza
e a segurança, respectivamente
84
.
83
Neste caso, a segurança geralmente é feita com uma guia, um colar feito de contas
coloridas, correspondentes ao orixá da cabeça da pessoa. O colar fica durante alguns dias de
molho no sangue do sacrifício de aves (galinha ou galo) referentes a este orixá. Bará é o único
orixá que aceita que seja feita a segurança com um colar de metal.
84
Todo o serviço é cobrado, inclusive o jogo de búzios. Uma das mais recorrentes fofocas que
se escuta no ambiente das terreiras é a acusação de pais ou mães-de-santo que amarram os
clientes, e mesmo os filhos-de-santo, aproveitando-se dos momentos de angústia destes para
ou cobrarem-lhes preços exorbitantes, ou, ao contrário, não cobrarem quase nada, mas
deixarem sempre o serviço pela metade, para que a pessoa precise voltar. Nas idas e voltas á
terreira, é raro que a pessoa não acabe por se iniciar, pois esses pais-de-santo o
manipulando o processo de feitura aos poucos, sempre cobrando por isso, é claro – pois o a
despendido precisa ser reposto, e dinheiro também é axé. Os casos mais extremos desse tipo
de acusação, contam de pais-de-santo que, não tendo mais bens para tirar da pessoa, deixam
de lhe prestar ajuda, restando a ela apenas a alternativa de se iniciar e prestar favores ao
sacerdote, em troca da dívida financeira que se estabelece. também relatos de pais-de-
santo que enfeitiçam eles mesmos os clientes, para que estes fiquem amarrados. Mas é
preciso que fique claro que essa descrição percorre “o lado ruim da religião”, segundo os
interlocutores com quem pesquisei, esse tipo de referência está sempre ligado à maneiras de
100
Por último, perguntei se não teria como saber o que eu tinha feito da
aliança que gerou toda a confusão no meu aniversário. Diamantino disse que
eu tinha escondido e acabara perdendo, e que havia a possibilidade de eu tê-la
engolido. Disse que havia procurado por toda a casa, mas que não
acreditava na segunda hipótese. Dei por encerrada a busca, portanto. Fui com
Vitória até a parada do ônibus e ela se mostrou preocupada com minha
melhora, disse-lhe que me sentia bem melhor, que iria cumprir com os serviços
para garantir que as coisas continuassem melhorando e que me afastaria do
campo pelo menos por um bom tempo. Ela afirmou enfaticamente que era
importante que eu tirasse da cabeça a idéia de que poderia ter sido meu “Pai
Ogum” que tivesse se aproximado de mim no dia do aniversário, e que não
pensasse mais nisso
85
. Além disso, disse que tinha certeza de qual era meu
juntó, que estava certa de que eu era filha de Ogum, pois tinha isso
confirmado em duas mãos de búzios, tanto por ela quanto por Roberta
D’Iemanjá. Não entendi porque ela enfatizou isso, o ônibus chegou logo e
acabei não perguntando.
Voltei na casa de Diamantino no outro dia e realizamos os trabalhos, não
sem antes conversarmos por um bom tempo, já que quando cheguei ele estava
tomando chimarrão com uma filha-de-santo. Comentamos que eu estava
com um semblante melhor - de fato, ter revelado de maneira mais consistente o
que acontecera, e ter recebido a orientação de não procurar sentido onde não
há, me fizeram muito bem, centrei-me no que precisava ser feito para que a
situação mudasse. Diamantino tocou novamente no assunto de ir para o chão,
falar mal de alguém, de creditar as piores qualidades que um pai ou mãe-de-santo pode ter. O
que, é claro, não torna essas descrições irreais, ou imaginárias, mas anunciadoras de certos
valores compartilhados pelo pessoal de religião.
85
Entre meus interlocutores, um dos mitos referentes à transformação de Ogum em orixá
conta o episódio em que ele, enquanto rei de Irê, ao chegar a seu reino durante um período em
que se realizava um ritual sagrado que privava todas e quaisquer pessoas de se dirigirem
umas as outras, extermina a quase totalidade de seus súditos, massacrando-os. Com fome e
sede, cansado de guerrear e esperando recepção calorosa de seu povo, Ogum se sente
desrespeitado, humilhado e desprezado, pensando não ter sido reconhecido. Quando a
cerimônia acaba e a proibição do silêncio cessa, o filho de Ogum e outros cidadãos poupados
rendem-lhe as homenagens esperadas. Percebendo o equívoco, Ogum não se perdoa por
tamanha intolerância, nem ninguém consegue ter noção do arrependimento do rei; sem
conseguir compadecer-se de si mesmo, atormentado e não se julgando mais digno de ser rei,
Ogum crava sua espada no chão, a terra se abre em duas e ele é tragado por ela. Ele vai
então para Orum, o mundo dos orixás, deixa de ser humano e se transforma em deus. Um mito
parecido com este se encontra na coletânea Mitologia dos Orixás, de Reginaldo Prandi.
101
dizendo que mais cedo ou mais tarde isso teria que acontecer, porque eu
circulava muito entre as casas, andava muito na rua. Eu disse não ter vontade
de selar esse compromisso, contei que estava indo viajar, que ia ficar uns
meses no Rio de Janeiro, estudando, e que pretendia me afastar da religião por
conta disso. Ele insistiu dizendo que eu não seria uma filha-de-santo como as
outras, que eu poderia fazer as minhas obrigações num período mais
compactado de tempo, sem precisar estar toda hora lá. Eu mudei de assunto.
Ele disse que eu não era filha de Ogum. Eu mudei o rumo da conversa de
novo, e fiquei de comprar uma imagem de Oxalá no Rio. Enfim, fomos para o
quarto-de-santo.
Fiquei em pé sobre uma camiseta branca com qual tinha dormido à
noite, de frente para o quarto-de-santo, Diamantino me limpou passando os
axés dos orixás, e expurgando o egun em meio às rezas dos santos, me
passou o galo branco que seria sacrificado, e terminou me dando para beber
água da quartinha de Bará. Findo o serviço, deixei as correntinhas de molho no
sangue e combinei de voltar lá antes de viajar para buscá-las. Diamantino disse
que era importante que eu as levasse comigo como proteção. E reforçou:
“cuidado com essas funções de religião no Rio de Janeiro, tem muito dessas
coisas de vodu e de morto-vivo, de revirar cadáver e chupar osso”. Agradeci e
fui embora.
Entre lembrar e ter que esquecer, saber e não pensar: aprendendo
a viver como pessoa de religião
A viagem que eu faria para o Rio de Janeiro tinha como intuito participar
do curso “Rituais, jogos, performances, simbolismos (Etnografias afro-
brasileiras)”, no Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social, do
Museu Nacional/UFRJ, apresentado pelo professor Marcio Goldman. Ou seja,
eu estaria muito longe de me afastar do assunto “religiões de matriz africana”,
“Batuque” ou “Umbanda” e todos os seus predicativos
86
.
86
As descrições feitas a partir daqui são baseadas nos registros que fiz em meu diário de
campo das situações que me reportavam à iminência da iniciação apontada por Vitória quando
jogou búzios para saber meus orixás, ou anunciada por Diamantino no desenfeitiçamento. Tais
102
Logo que começaram as aulas, mergulhei nas leituras que
acompanhavam as discussões em sala de aula, nas quais expúnhamos
aspectos de nossos campos e abordávamos temas caros à literatura
etnográfica sobre as afro-religiões. Ainda colada aos fenômenos ocorridos no
mês anterior, viajei com o compromisso de enviar a Pelotas um artigo para a
conclusão da disciplina do mestrado, ministrada por minha orientadora. O título
do artigo era A nossa nação começa onde as outras terminam e se tratava de
uma etnografia sobre as relações que as idéias de morte, feitiço e possessão
mantinham entre si e para com o complexo de construção da pessoa de
religião, tema que tentei abordar a partir da derradeira experiência que tive com
o mesmo. Concluí o artigo e na tarde do mesmo dia registrei a seguinte
passagem em meu diário de campo:
Sonhei um sonho que não parecia sonho, pois acontecia naquele
lugar e naquela hora; tudo se passava ali, e às vezes eu acordava no
meio do sonho para ver se não havia chegado alguém que pudesse
ver o que estava acontecendo, alguém que servisse como uma
testemunha. O sonho era o seguinte: eu estava ali, naquela cama,
naquele momento, e de repente chegava um homem negro e entrava
no meu corpo pelos meus pés. Eu relutava, tentava dizer que não
queria, mas ele me dizia: “Agora não adianta mais”. Quando não
consegui mais resistir, ele entrou nos meus pés e senti não controlar
mais as minhas pernas, como se elas tivessem vida própria. Eu podia
sentir perfeitamente algo tomando conta do interior das minhas
pernas. Uma sensação muito ruim. Depois consegui dormir. Quando
acordei tinha a impressão de ter dormido dias e dias. (Diário de
campo – 17/03/08)
Na primeira oportunidade que tive de falar com Vitória por telefone,
contei-lhe o sonho. O único comentário que ela fez foi: “Tu não estás pensando
que é o Pai Ogum, não é?”. Respondi que não, que não sabia o que era, e que
tinha achado estranha a maneira de sonhar. Encerramos o assunto e eu
resolvi também parar de pensar nessas questões. Trazia comigo a segurança
que Diamantino havia feito e, apesar de considerar-me afastada do campo,
descobri que a faxineira que trabalhava na casa onde estava hospedada no Rio
era mãe-de-santo num terreiro de Candomblé em Niterói. Marta fazia a faxina
situações estão principalmente relacionadas com as discussões abordadas durante o curso
com o professor Marcio Goldman. Situações também que, à revelia de minhas pretensões de
serem tratadas apenas no plano intelectual, foram vividas sem que eu as pudesse delimitar as
fronteiras da afecção.
103
do apartamento todas as quartas-feiras, e esse era o dia da semana que
acabei por escolher como meu dia de folga, pois não conseguia usar o
computador quando estávamos na companhia uma da outra eu o
conseguia ler o que havia na tela do monitor, pois a enxergava tremendo em
velocidade crescente.
A princípio, não comentei isso com Marta, por receio de ser mal
interpretada, ou simplesmente por isso não ter uma explicação que ela
pudesse me dar de imediato. Marta sabia que eu estudava com religiões de
matriz africana - um dos meninos que moravam comigo havia comentado com
ela portanto, num desses momentos de “bloqueio”, senti-me na liberdade de
contar-lhe que eu vinha estranhando a dificuldade de concentração e de
fluência na escrita que vinha tendo com freqüência (não quis dizer que isso
acontecia nas quartas-feiras, nem como acontecia). Contei superficialmente
que tinha uma segurança de Bará e que era filha de Ogum. Ela foi taxativa: “Se
seu pai é Ogum, ele é que deve ser seu protetor, dar sua proteção para outro
pode ofendê-lo. E esse orixá da sua guia tranca, tanto tranca como abre, ele é
que tem as chaves, que nem o Exu da nossa nação.”. Deixei de usar a
segurança, portanto. E também deixei de pensar nisso, passei a seguir o
conselho de Vitória, de não pensar muito nas coisas que pareciam não ter
explicação.
Mas as aulas no Museu continuavam instigantes e bastante importantes
com relação ao tema que eu pretendia abordar em minha dissertação, qual
seja, o da afecção nos processos de etnografia com religiões de matriz
africana. Tão instigantes que em uma noite, na véspera de um dia de aula,
acordei-me às três horas da madrugada revivendo a situação em que Vitória
me jogou búzios pela primeira vez, com a atenção voltada para um forte motivo
que havia me levado a pedir-lhe que consultasse o oráculo motivo este que
eu esquecera completamente até então. Acordei e anotei a seguinte passagem
em umas folhas que tinha perto da cama:
104
Eu perguntei sobre minha expectativa de vida, porque tinha a
impressão de que era baixa. Falei de uns sonhos que vinha tendo
com uma parente falecida e que ela falava comigo; os sonhos não
tinham imagens, eram a voz dela dizendo que estava perto. Tinha
falecido muito jovem. Eu tinha a impressão que eu o passaria dos
26 anos. A Vitória fazia cara feia e me aconselhava que não
pensasse nisso, que não falasse o nome da falecida. Jogou búzios e
viu que ela estava na minha volta, mas que “cada um deve estar no
seu lugar” (Diário de campo – 19/06/08)
Acordei na manhã seguinte e corri para o diário de campo antigo para
ver se o sonho da noite anterior conferia com as informações anotadas quando
do primeiro jogo de búzios:
Depois de botarmos minha cabeça, ela [Vitória] pergunta se quero
saber mais alguma coisa; respondo que não, mas volto atrás. Conto
dos sonhos em que ouço a voz da tia, digo que acho que vou morrer
cedo. Ela joga, faz cara de dor, e diz: “Sim, ela está na volta. Mas a
solução é não pensar nisso”. [sobre os mortos]: “Marília, é como eu
sempre digo, cada um no seu lugar, não pensa nela, não fala o nome
dela”. Vou falar Ogum e pronuncio egun, ganho uma xingada: “não se
fala essa palavra numa hora dessas [na hora em que se está
consultando o Ifá]!” (Diário de campo – 02/07/07)
Na aula deste dia, quando tocamos no tema da iniciação nas religiões de
matriz africana, Márcio elencou, entre outros motivos que desencadeiam o
estabelecimento de uma ligação com “o mundo dos orixás”, uma certa
necessidade individualista moderna e de classe média de querer saber quem é
seu orixá pessoal, como se este fosse mais um atributo fundido na sua
personalidade sem levar em conta a força que é esse orixá e que está no
meio ambiente, como está em nós, em fluxo, sendo a iniciação o começo de
uma canalização e controle deste fluxo de axé (força) na totalidade da
pessoa
87
. Ouvi e concordei com o professor, mas ao me reportar ao sonho da
noite anterior, percebi existir outros impulsos colados à mera curiosidade de
minha parte em querer saber de quem era minha cabeça. Eu acreditava que
isso não causaria nenhuma transformação mesmo sob os alertas de Vitória-,
já que eu me sentia invulnerável atrás da figura de cientista interessada apenas
em observar, que a minha racionalidade me isolava de qualquer relação com o
pessoal de religião que fugisse de meu controle ou vigília; eu não queria “entrar
87
Complementando a idéia do professor: o orixá não representa nada, ele é. Portanto, saber
quem é o ori que nos governa é começar a entrar em contato mais direto com a energia
(fonte de força) que nos movimenta, que nos o sentido de estarmos mais próximos de estar
vivendo ou morrendo, conscientes de que estamos sempre no meio destes dois estados.
105
para a religião” e, na minha concepção, isso bastava para que eu o fosse
atravessada pelos afetos que permeiam a experiência de quem “decide” se
iniciar, como se essa decisão fosse tomada por uma instância da minha
individualidade, o pensamento racional e intencional, mediado por um “querer”
ou não querer”, isolado de toda a experiência humana que não pudesse se
restringir à minha personalidade e ao meu jeito de pensar e tomar decisões.
Quando pedi para Vitória jogar minha cabeça, algo estava se dando e
fugia ao meu controle e a qualquer explicação que não me assustasse ou
ameaçasse a onipotência de minha razão: eu estava ouvindo a voz de uma
pessoa próxima que havia morrido, uma voz que não vinha pelo ar porque
eu ouvia -, mas que me acordava à noite como se chegasse aos meus
ouvidos vinda deles mesmos. Uma voz com vida própria restrita ao ambiente
dos meus canais auditivos. A insegurança que me abatia, um fenômeno tão
vivo e tão sem explicação, entre outros motivos que desconheço, apontavam-
me Vitória e seus búzios como os únicos capazes de me ajudarem a conhecer
o que me acontecia e darem sentido para o que meu estoque de explicações
“plausíveis” levava a caracterizar como uma “desordem” de personalidade.
Ninguém mais que não fosse alguém de religião poderia, ao meu ver, me dizer
coisas diferentes de que o que acontecia era “coisa da minha cabeça”, que
eram perturbações refletidas do meu ambiente familiar em desarmonia, desejos
meus representados por sonhos.
Ou seja, de alguma forma eu sabia que Vitória teria idéia de quão viva e
autônoma era aquela voz, como eram vivas as pedras para ela, da mesma
forma como as encruzilhadas podiam para ela serem superpovoadas. Assim
como para ela podia ser minha cabeça a morada de um santo, que come, que
cobra, que cresce, que me força e pode me matar, um santo que é feito e
que sempre esteve ali, e é parte de uma energia maior que atravessa o
cosmos. A voz que era a voz de uma morte precoce estava ali e eu precisava
fazer algo com ela, não comigo. Esquecê-la não era possível, que
esquecimento não se controla, como se controlam as lembranças guardadas
nos diários. A saída era, então, conforme Vitória, o chamá-la, não falar o
nome dos que “já partiram”, procurar não pensar nos falecidos nem me
preocupar com a morte (que ainda não era o meu lugar).
Todas essas reminiscências pareciam ter então depois do sonho e da
106
aula um sentido muito maior do que tiveram no tempo em que foram vividas;
na época, segui os conselhos de Vitória e segui vivendo “normalmente”, ainda
envolta, apesar de tudo, no ilusório campo de força de minha invulnerabilidade.
percebi que aquelas experiências apontavam para um dom que eu não
conseguia negar, que eu teria que aceitar como colado à minha experiência
enquanto pessoa, quando me dei por enfeitiçada e olhei para todos os tantos
momentos em que a ausência de sentido dos acontecimentos foi acompanhada
pela ausência da vida nos mais variados graus em que isso pode ser sentido.
Depois de reviver tudo isso, decidi que meu mais novo projeto intelectual
seria pensar sobre “a morte”. Planejei, então, escrever um ensaio para a
conclusão do curso do Museu, no qual traria as noções de morte para o
pessoal de religião com quem estudava, e como a proximidade com a morte
(nos seus variados graus) sinalizava para a proximidade com a iniciação, a
atualização do orixá pessoal de quem se inicia, que é também um novo
nascimento desta pessoa, então com seu duplo.
Voltei para Pelotas em julho, com o compromisso de pensar muito sobre
aquilo que Vitória tinha dito para eu não pensar. Mas, como era apenas um
projeto intelectual, eu ainda não conseguia conceber que pudesse transbordar
para minha vida “pessoal”. Por incrível que possa parecer, meu lugar de
antropóloga ainda me resguardava, intacta e inatingível, longe do lugar dos
nativos, longe das “experiências de campo” – como se a Marília que havia sido
enfeitiçada ou que ouvia vozes metafísicas fosse uma cobaia que a Marília
antropóloga observava a partir de lembranças do passado. Li e discuti muitas
idéias a respeito de antropólogos que foram afetados pelos afetos que
mobilizavam as pessoas com quem estudavam, por terem estado no lugar
destes, e sabia que isso também acontecia comigo. Mas a assunção de que
minha condição era esta estava longe de ser algo limitado ao reconhecimento
público disso, era antes e além de tudo uma questão de viver essa condição
e aceitar que o aprender a vivê-la não estava compartimentado nas
experiências restritas ao espaço ritualístico religioso. No tempo do lugar onde
eu me encontro quando estou no lugar do pessoal de religião, o passado e o
presente estão constantemente por vir.
Somado ao artigo que escreveria para a disciplina do professor Márcio,
eu deveria ainda elaborar o projeto desta dissertação, para defendê-lo em
107
agosto. Como normalmente fazia, entreguei uma cópia do trabalho para Vitória
ler. Ela leu tudo, como sempre, e combinamos de discuti-lo para que cada uma
apontasse suas questões. A conversa que mantivemos na noite em que nos
encontramos para rever o projeto teve um tom de cumplicidade menos arredio
daquele que ela tinha me proposto que deveriam ter nossas conversas sobre
religião. Ela parecia não ter mais o receio que tinha de conversar comigo sobre
religião, antes eu percebia que os assuntos eram sempre cortados, barrados,
circunscritos por ela como havíamos previamente combinado que seriam. A
discussão do projeto teve alguns trechos registrados no meu diário de campo:
Enquanto faz umas caixinhas de madeira, ela me diz que se sente
culpada por não ter me ajudado no dia de meu aniversário, ou mesmo
quando eu liguei dizendo que precisava de ajuda. Eu disse queo a
culpava e que estava bem, apesar de sentir-me diferente. Ela fala que
a sensação de culpa é em relação à sua orixá, que cobrou que ela
tivesse me ajudado. Disse que quando eu fui embora, no dia em que
lhe entreguei o projeto para ler, sentiu algo ruim, acompanhado da
aproximação do seu exu. Disse-me que queria jogar búzios para
saber o que deveria ser feito comigo. Falo que não quero fazer nada,
pois agora me sentia bem. Ela perguntou se eu convivia bem com
esse estranhamento; respondi que sim, que era de alguma forma
uma revelação de um mundo que eu não conhecia, ou não percebia
do lugar onde eu estava. Ela me diz que não concorda que minhas
seguranças tenham sido feitas para Bará, pois Ogum pode não ter
aceitado que o outro orixá me protegesse diz que vai lavar minhas
seguranças na água da praia para desfazê-las. Me pergunta muitas
coisas. Pergunta se eu sei por que as pessoas o sabem que se
ocupam. Eu digo muitas coisas, mas não concluo nada. [...] Pergunta
sobre minha exposição, se eu não acho que as pessoas vão me taxar
de não estar fazendo ciência. Digo que sei que isso pode acontecer,
mas que existe o outro lado. [...] Ela, então, confessa-me que me faz
tantas perguntas porque não as faz para ninguém, não conversa
sobre a ocupação, por exemplo, o sabe se a opinião das outras
pessoas é a mesma dela com relação a isso, pois simplesmente não
se fala nisso. Tento dizer que acho que isso faz parte dos segredos
da religião. Ela me interrompe abruptamente e diz: O segredo da
religião é a força. A força que eu sinto e sei que é o orixá, e sei que é
o exu.” Afirma que o que existe em torno “dessa história de segredo”
é uma impossibilidade de falar e não uma proibição. Ela acha que é
porque o que uma pessoa experimenta não é o mesmo que a outra:
“as pessoas estão muito acostumadas com respostas certas, tipo
dogma, por isso é difícil responder a certas perguntas e convencê-las
de que isso é apenas o que eu sei, apenas a minha opinião a respeito
da experiência que eu tenho”. Diz que o que eu passei não é o
mesmo que ela passou para chegarmos perto da iniciação. Eu
respondo que o que sinto de diferente [depois do desenfeitiçamento]
é algo que o sei explicar, e que o mal-estar vem da parte dessa
incomunicabilidade. (Diário de campo – 19/07/08)
Entre a entrega do projeto da dissertação e a defesa deste, dediquei-me
108
à elaboração do artigo sobre a Cabinda e a morte. Voltei às entrevistas e aos
diários de campo em busca das referências que já havia selecionado a respeito
das sensações de aproximação do orixá, do tabu de se falar sobre a possessão
e do grande mistério de se saber ou não se se é ocupado pelo deus, sobre o
intervalo entre estar ocupado e não estar mais, e o cuidado em se preencher
esse intervalo sem que haja a percepção do ocupado de que esse corte se deu
abruptamente. Pesquiso novamente as passagens em que se fala de feitiçaria
e de como esta se relaciona com uma aproximação da morte, dos desejos de
morte, das doenças graves e acidentes fatais até a falta de sentido de viver e a
sensação de que “a vida não anda”. Pesquisando sobre tudo isso, cheguei a
uma frase emblemática proferida por um pai-de-santo ao tentar diferenciar a
nação de Cabinda das demais nações de Batuque: “A nossa nação começa
onde as outras terminam. A gente pode começar as coisas na morte.” Quando
Fernando me disse isso, percebi que o que ele queria me dizer era que o
grande pioneiro da nação Cabinda, Waldemar Do Xangô Kamuká, falecido,
era um egun cultuado não era exu, nem orixá. Mas a frase dele me pareceu
maior que isso quando tentei encontrar, por exemplo, o que havia entre o mar
ser “a kalunga maior”
88
, de um lado, e de outro, ser “de onde tudo brota, de
onde tudo vem”
89
. Com o pensamento fixo na compreensão destes intervalos e
sem encontrar material empírico que desse conta de descrevê-los, eles
pareciam todos vazios de sentido a ser descrito, negativos.
Entreguei o ensaio parcialmente concluído para que Vitória lesse e me
dissesse se eu não estava equivocada na forma como dizia certas coisas,
que pisava um terreno tão delicado para o pessoal de religião. Ela ficou de ler,
também por isso. Alguns dias depois, Vitória me telefonou e, em tom sério,
disse que precisávamos conversar pessoalmente. Tomei um susto com o tom
da convocação, fiquei apavorada, pensando que teria que ir para o chão o
que mais me impressiona é pensar nos animais que são mortos em sacrifício,
sinto dó, além disso, os compromissos e a responsabilidade para com as
88
Kalunga é cemitério.
89
Dona Joana D’Oyá, sobre Oxum, Iemanjá e Oxalá receberem oferendas na praia e serem os
pais dos outros orixás: “são todos da doçura, mas a Iemanjá é mãe de todos os Orixás, mãe de
tudo. De onde surgem as pedras? Do fundo do mar, do fundo do mar mesmo é que vem vindo
pra cima, vem surgindo pelo mar, vem vindo, vem trazendo, coisas boas.”
109
obrigações que devem ser cumpridas. Encontrei com Vitória no centro da
cidade, para pegarmos o ônibus e irmos até sua casa. O encontro foi tenso,
mas no caminho me disse que eu não precisaria fazer nada para o “Pai Ogum”,
que seria apenas um serviço
90
:
Olho para ela e digo: “minha cabeça está cansada. Estou exausta.
Não quero mais estudar religião”. Ela responde: “Eu sei. É para isso o
serviço, é para a cabeça.”. Conta que Roberta falou que eu estava
entrando em um terreno onde eu poderia me perder, o achar
caminho para sair, nunca mais me encontrar. Falou que eu
esquecesse de falar em balé ou ocupação, pois isso era o fim total”,
“a destruição total”. Enfatizou que ninguém até hoje sabe disso, e que
quem tentou saber enlouqueceu. Deixou claro que o alerta era em
relação a mim, que não estava achando que eu fosse fazer mal à
religião. Discutimos de forma tensa durante um momento, quando
falo que me preocupo também com os julgamentos que podem fazer
das pessoas com quem estudo. Ela responde que os riscos estão
relacionados à minha sanidade e que acha melhor fazermos o serviço
antes da defesa do projeto. Sinto certo alívio em saber que algo
poderia ser feito para diminuir as sensações de confusão e de
melancolia
91
que vinha sentindo. (Diário de campo – 29/07/08)
Concordei em fazer o tal serviço, mas não fiz. As sensações ruins
haviam passado, foi só parar de pensar sobre o que não deveria pensar.
Vitória ainda assistiu minha banca de qualificação e considerou polêmica a
afirmação de uma das participantes de que “a gente nunca vê um batuqueiro
metafísico, pensando, pensando. Batuqueiro não tem que entender, não
precisa entender.” Para Vitória, aquilo não está correto da forma genérica como
havia sido colocado. Segundo ela, o batuqueiro deve saber o que precisa
entender, o que não tem sentido, ninguém entende, nem batuqueiro, nem
antropólogo. O resto, o racionalizável, tendo estudo ou fundamento, é
compreensível, e o batuqueiro pensa sobre isso, filosofa, formula soluções,
busca razões, executa manipulações, dentro do leque de ões criativas que a
vida demanda para ser vivida a própria religião não se faz em dogmas, como
Vitória já havia dito, se faz na experiência, e isso é também pensar, e
sofisticadamente, diga-se de passagem. Marcamos de conversar sobre nossas
90
Se fosse fazer algo para o meu orixá deveria ser um sacrifício animal sobre a minha cabeça,
com o sangue derramado sobre mim. Serviço é todo trabalho em que se faz uma oferenda para
algum orixá, pedindo em troca proteção, ajuda para alguma conquista, abertura de caminhos
etc. Quando se fala em serviço, não se está falando em sacrifício à cabeça, embora alguns
serviços requeiram o corte de algum animal – como a limpeza de egun.
91
Escolhi este termo para descrever o que sentia, pois, segundo o Dicionário Houaiss da
Língua Portuguesa, melancolia quer dizer, entre outros significados: “[..]Estado afetivo
caracterizado por profunda tristeza e desencanto geral [...]”
110
impressões da banca, e nessa conversa, recebi um último aviso:
No meio da conversa [Vitória] me revela que terei que fazer uma guia,
além da segurança, pois Roberta afirmou que eu estaria em um
estágio em que a segurança é uma proteção menor do que o risco
que corro [de ser enfeitiçada, enlouquecer, adoecer, e/ou tudo isso
junto]. Vitória diz que queria fazer tudo bem simples e sem precisar
da minha presença, mas terei que dormir no quarto-de-santo durante
uma noite e marcar as têmporas com sangue de galo. Alerta que não
pode deixar de avisar que é “um passo dentro”. Mas é sem
compromisso entre eu e ela. Diz que tem gente que passa a vida
apenas renovando a guia de ano em ano, sem precisar ir para o
chão. Diz que se eu me cuidar, posso ficar assim também. Pergunto
como devo me cuidar. Ela responde que não posso insistir em fazer
ou pensar coisas que me façam sentir mal, pois insistir nisso seria
exigir uma energia do “pai Ogum” em doses a que o axorô da guia
não corresponde. Pergunto se falar no orixá ou pensar na sua ajuda
não é o mesmo que chamá-lo, o que implicaria em cobranças por
parte do santo. Ela responde que não, pois
ele está próximo de
mim e a guia é suficiente para isso. Fala que posso conversar com
meu santo o quanto quiser. [...] Digo que aceito fazer a guia e que
vou fazer o que estiver ao meu alcance para não precisar de chão.
Pergunto o quanto as possibilidades de evitar o chão estão ao meu
alcance; ela responde que se pudesse fazer uma porcentagem, cerca
de dez por cento de autonomia eu teria quanto a isso, os outros
noventa ficam a cargo do orixá. Decido tentar. [...] Relembro que tudo
começou quando comecei a ouvir a tal voz da parente falecida. Vitória
começa a se contorcer e fazer muita força para que seu exu não
venha, quase incorpora, sentada no quarto. Volta a si e me diz que
falar em orixá não é como falar em morto, que a gente não aumenta a
proximidade com o orixá falando nele, como acontece com o outro.
Afirma que estarei chamando ou sendo cobrada pelo “pai Ogum”
se exigir dele. [...] Comento que eu vou fazer as obrigações sim, pois
não quero sentir novamente o desânimo e a tristeza que vinha
sentido, sem achar motivo para tanto, chegando a pensar que estava
chegando a hora de morrer. Ela então conta que toda vez que as
coisas fogem ao seu controle ou entendimento, lembra do que era
antes de entrar para a religião e do que é agora: “Eu era uma suicida,
Marília, passava os meus dias pensando em uma forma de morrer.
Até que um dia eu cheguei na casa da Roberta – que ainda era minha
vizinha e disse ‘eu preciso morrer, eu tenho que morrer’, daí ela me
borrifou umas coisas e eu parei, passou naquele momento. Depois eu
entrei [na religião]” (Diário de campo – 24/08/08)
Tendo que esperar o mês de agosto passar para fazer a obrigação,
acabei por não procurar mais Vitória por um longo tempo. Voltamos a nos
reencontrar só em novembro, em ocasiões motivadas por outras questões não
religiosas. Decidi que iria aproveitar ao máximo os dez por cento de autonomia
que ela disse caberem a mim e firmei minhas intenções em não precisar selar o
compromisso com a religião, de ter que cumprir com rituais e demais
obrigações. Quando voltei a reencontrar Vitória, ela não me cobrou que fizesse
a obrigação, nem tocamos no assunto.
111
Volto a pensar novamente no tema hoje, no processo de escritura da
dissertação; crendo ter amadurecido melhor a idéia de contingente limiaridade
em que me encontro. Nunca mais fui a cemitérios, não parei mais para pensar
nos mortos que um dia conviveram comigo, e adquiro muitos outros bitos e
medidas de afastamento daquela melancolia vinda não sei de onde, saídas que
eu vou aprendendo conforme vou vivendo, e que tornariam o texto exaustivo se
eu tentasse enumerá-las todas agora até mesmo porque ainda não as
conheço, muitas ainda estarei por criar. Assim, atenta aos processos que me
levariam à necessidade irreversível de iniciação, vou vivendo a vida entre,
entre não fazer obrigações e respeitar as condições que se estabeleceram
quando assumi que estava no mesmo lugar em que se encontra alguém que é
“quase” de religião, ou, que pode estar prestes a ser de.
112
Conclusão
O trânsito da alegria, compartilhada seja numa comida, num copo de
cerveja, numa dança, nos passos do Gexá, nos desfiles dos afoxés,
nos baques dos maracatus, no fumar os cachimbos pelos voduns,
chega como exemplos de uma alegria incontida, geral, oferecida e
democraticamente assumida na adesão e na compreensão do povo
do santo. Alegria e sagrado andam inseparáveis nessas mundovisões
dos terreiros e em outras organizações afro-brasileiras. [...] Alegria é
expressiva e sensorial. Comida, sons, danças, roupas, diversos
materiais – texturas, cores, formatos, combinações e a própria
natureza, fenômenos meteorológicos, juntos compõem um imaginário
que busca atender ao homem, homem feliz, homem comprometido
com essa alegria que incorpora a plenitude do sagrado. (Lody, 2006,
p. 9)
Encontrei-me com essa passagem da introdução do livro “O povo do
santo”, do antropólogo Raul Lody, quando estava começando minhas
pesquisas com religiões de matriz africana, em Pelotas e região, e o texto do
autor me pareceu, na época, descrever reveladoramente os afetos que me
suscitavam a convivência com o pessoal de religião, as grandes festas do
Batuque, a atmosfera de devoção das oferendas, suas cores, cheiros, sabores,
sons e que compuseram a estrutura do trabalho que marcou minha iniciação
como antropóloga, a monografia “Nós cultuamos todas as doçuras”. Ingressava
em uma caminhada repentina e fascinante - para quem concomitantemente
concluía uma monografia na área da sociologia do trabalho -, e as palavras de
Lody, somadas as do primeiro preto-velho que conheci, o qual ao se deparar
com minhas dúvidas sobre qual caminho seguir disse-me “segue a mulher dos
cabelos vermelhos” (a professora que me começava a me orientar nesse
campo), ofereciam-me o pouco de segurança que eu precisava para me
convencer de que estudar a alegria, e com a alegria, dos cultos afro-brasileiros
era, além de um prazer, uma maneira de lidar com os compromissos que iam
se firmando com o pessoal de religião à medida que eu lhes apresentava
gravadores e câmeras fotográficas
92
.
92
Meu ingresso no universo empírico das terreiras se mostrou para os pais e mães-de-santo -
bem como para todo o pessoal que participa da vida nas terreiras e suas relações - como um
meio de levar a “beleza e a fé” dos cultos religiosos de matriz africana para além do campo
religioso, e muitas vezes como instrumento de denúncia por parte dos religiosos com relação
às religiões que, fazendo uso da televisão “denegriam” a imagem da religião “dos negros”.
113
No entanto, se a publicidade e a “divulgaçãodo ambiente das terreiras
estreitaram minha convivência com o pessoal de religião mais do que os
interesses que eu havia colocado em pauta quando planejei minha pesquisa,
foram os segredos e as coisas não divulgáveis ou comentáveis que, com o
tempo, passaram a apontar para a relação que eu pretendia descrever entre a
alegria e a “plenitude do sagrado”. Mas com o tempo, pois essa relação
sofreu graduais aproximações e afastamentos durante o processo
epistemológico do trabalho que apresento nessa dissertação.
Desde o primeiro batuque que participei, fotografando o quarto-de-santo
e as danças dos filhos-de-santo, desde a primeira conversa com uma mãe-de-
santo de quem recebi um pequeno papel com a transcrição da fala de um orixá,
desde que assumi estar participando da vida do pessoal de religião (e eles da
minha) - em uma mínima fração que pudesse parecer foi-me reforçada uma
regra básica de convivência nas terreiras: eu não poderia fotografar os cavalos-
de-santo quando ocupados, não poderia em hipótese alguma atribuir uma ação
do orixá “no mundo” ao seu filho, muito menos conversar com este sobre sua
possessão, sob o grande risco de “enlouquecer” a pessoa. Em detrimento do
medo das denúncias por causa dos sacrifícios de animais ou a acusação de
primitivismo com relação às outras religiões, eu podia fotografar os cortes,
registrar os procedimentos rituais de passar o sangue dos bichos no corpo das
pessoas, desde que tivesse muito cuidado ao divulgá-las; mas ao passo que
essa liberdade me era dada, menos fotos eu fazia desses momentos, podendo
prever a chegada dos orixás e o cessar dos flashes, que além de não poderem
registrar as divindades, ainda traziam o risco de despertarem o cavalo-de-santo
repentinamente no meio do processo de possessão, o que também pode ter
conseqüências prejudiciais à sanidade do filho-de-santo.
Esses perigos e cuidados, então, faziam com que uma inquietação
Desde que comecei a fazer uso da fotografia como técnica de registro das oferendas e das
festas, mostrando o material para o pessoal das terreiras minha presença passou a ser muito
solicitada nas cerimônias das casas que freqüentava. Não acostumados com o tipo de assédio
que minha posição de pesquisadora oferecia, nas primeiras experiências despertei
desconfiança nas pessoas que participavam dos rituais, mas ao compartilharmos as fotos e as
impressões sobre elas, o gravador que eu dificilmente conseguia usar para as entrevistas,
deixou de oferecer tantos riscos e passou a servir como registrador e possível divulgador de
manifestações de protesto com relação ao preconceito, à discriminação e à marginalização,
aos quais ao pessoal de religião relegava sua existência em relação às outras religiões “mais
ricas”.
114
levasse-me a repensar se realmente as palavras de Raul Lody sobre as
“organizações afro-brasileiras” dariam conta de nortear meus objetivos nas
pesquisas com algumas terreiras de Pelotas e região. Ouvindo em tantos
momentos a loucura ser evocada como um dos perigos de não se fazer a
cabeça bem feita” - implicando isso em desde a construção errada do ede
penas
93
até a atribuição de um juntó trocado -, de não se conhecer os limites
entre o que é território dos deuses e o que é dos homens, passando pelo
temido território dos mortos, ouvindo isso, como eu poderia falar de alegria?
Como tratar de alegria, se esse grande medo rondava o sagrado das terreiras?
Vindo da experiência de ter trabalhado em um hospital psiquiátrico durante
quase um ano, que tipo de alegria eu poderia enxergar compartilhada com os
riscos de tamanho sofrimento?
Ao afastar a perspectiva do foco direcionado às opulentas festas e aos
mitos tão ricos, ao circundar as restrições, os tabus e os perigos, tudo aquilo
que é misterioso e obscuro, tornava-se a primeira vista cada vez mais
superficial a alegria descrita por Lody. Era como se a “fé expressiva e
sensorial” que o autor tinha como alegria fosse apenas uma cortina imaginária
a encobrir uma realidade de mistérios e segredos que fariam me afastar da
condição de pesquisadora tanto mais eu tentasse persegui-los.
Só com o tempo, no campo e na cademia, fui percebendo que jamais me
afastara da alegria, e que pelo contrário, havia me aproximado
comprometedoramente da alegria em sua potência mais plena, no universo das
terreiras com quem pesquisava. O que Lody descrevia passou a ser percebido,
então, como algumas graduações de alegria, em oposição, na visão do autor,
ao que seria a tristeza ou manifestações mais introspectivas de fé. Sem querer
desconsiderar o trabalho do autor, mas em outra perspectiva, talvez porque me
deparando com outros agenciamentos do universo afro-religioso, a alegria que
93
Ebó de penas é uma coroa feita com penas das asas dos pombos sacrificados e salpicada
com as plumas do peito destes animais, no centro da cabeça (eledá, que é como se chama a
moleira) do filho-de-santo quando do sacrifício na cabeça. Durante esse processo, o
cortados alguns fios de cabelo do eledá do filho-de-santo, local onde se passa em seguida um
pouco de banha de ori, e em seguida se deposita a guia dele enrolada, que então é banhada
com mel e azeite de dendê, ou mel (dependendo do juntó), para depois receber o sangue
dos demais animais sacrificados. Com um número exato de penas dos pombos se faz uma
coroa em volta da guia, antes de enrolar a cabeça do filho-de-santo com a trunfa, que é o pano
branco sob o qual fica o axorô que o oricome. Segundo alguns religiosos, é a feitura correta
do ebó de penas que garante que o filho-de-santo não enlouqueça em decorrência enquanto o
orixá come.
115
eu então reencontrava era plena e diretamente proporcional à plenitude de um
orixá. Com as descrições que tinha a respeito da ocupação, da relação do
pessoal de religião com esta, do controle sobre a fala acerca da possessão, e
após ser proibida de pensar que pudesse ter sido ocupada por meu orixá em
uma situação que posteriormente foi diagnosticada como sendo decorrente de
um feitiço contra mim, perigo e alegria deixaram de ocupar territórios distantes;
a tristeza também se aproxima, mas só para que a alegria seja constantemente
demarcada. O caminho entre os homens e os deuses é preenchido de perigos
e também de realizações de potencialidades, sendo o deus a potência maior e
insuportável de se vivenciar sem conseqüências devastadoras para uma
existência tão gradualmente reduzida como a dos seres humanos. Nem por
isso os orixás deixam de ocupar seus filhos, nem por isso os homens o
privados de experienciarem a atualização desta enorme potência.
Isso é alegria, para Gilles Deleuze
94
, é poder efetuar uma potência que
se sabe que se tem, é conquistar, conquistar o deus, regozijarmo-nos por
termos chegado aonde chegamos, sermos o que estamos sendo. É estar
alegre pelo que se está sendo capaz de ser e não exatamente pelo que se faz.
Mas como o próprio Deleuze alerta - e como temem as pessoas de religião
“quando se conquista uma potência, ela pode ser potente demais para a
própria pessoa e ela acaba não suportando”. Assim, se poderia pensar, a
princípio, que proibir as pessoas de falarem umas as outras sobre suas
ocupações, ou mesmo de saberem o que acontece durante a possessão, seria
uma maneira de separá-las daquilo que elas podem conquistar, marcando o
poder dos deuses sobre os homens, entristecendo-se estes por estarem
submissos a um poder que os impede de chegarem a ser essa potência que
eles cultivam durante grande parte de suas vidas. Em parte, é importante que
os homens não se valham dessa potência como um poder, submetendo
aqueles que não efetuam essa potencialidade à sua vaidade.
No entanto, dizer não saber sobre a ocupação sob a pena de
enlouquecer a pessoa sobre a qual se fala está mais próximo de um lamento
do que de uma tristeza, se seguirmos o raciocínio de Deleuze. Poupar o
cavalo-de-santo de ouvir sobre a sua possessão está mais para livrá-lo de
94
Em “O abecedário de Gilles Deleuze”, o filósofo francês se reporta a Spinoza para falar de
alegria, tristeza e poder.
116
correr sofrer os riscos dessa potência forte demais do que para privá-los de
conquistar sua efetuação. Um lamento porque quem não fala sobre a ocupação
por dizer não sabê-la, aceita aquilo que não se vê, e mesmo não vendo, não
sabendo bem o que está querendo dizer, se queixa de que o que acontece é
grande demais para ser suportado. É o que Dona Joaquina afirma quando diz
que não se fala para a pessoa que seu orixá deu um recado porque a pessoa
não agüenta” saber disso, ou que não se bota sangue de animal sacrificado em
alguém que está muito mal, muito fraco, pois isso seria “embalar a pessoa para
a morte”. É grande demais.
O lamento, para Deleuze, é a reivindicação dos excluídos, daqueles que
não tem um estatuto, de quem “está fora de tudo”, daqueles que não têm um
lugar, ou que perdem esse lugar na existência, no mundo. Não falar sobre se
ocupar (ou desocupar) o induz às pessoas que elas sejam tristes por não
efetuarem a potência imensa que é serem ocupadas por seu orixá, mas ao ser
uma proibição sem restrições, geral, não as exclui de serem todas capazes de
conquistarem tal potência de ser. O lamento seria, então, na concepção de
Deleuze, a alegria em seu estado mais puro, prudentemente escondida da
vaidade e inveja alheias, e ao mesmo tempo, uma intensa inquietude:
Efetuar uma potência, sim, mas a que preço? Será que posso
morrer? Assim que se efetua uma potência, coisas simples como um
pintor que aborda uma cor, surge esse temor. Ao da letra, afinal,
acho que não estou fazendo Literatura quando digo que a forma
como Van Gogh entrou na cor está mais ligada à sua loucura do que
fazem supor as interpretações psicanalíticas, e que são as relações
com a cor que também interferem. Alguma coisa pode se perder, é
grande demais. Aí está o lamento: grande demais para mim. Na
felicidade ou na desgraça... Em geral, na desgraça. Mas isso é
detalhe. (Deleuze, 1988)
Quando um pai-de-santo diz ter deixado de acreditar nos orixás dos
filhos-de-santo que diziam saber que se ocupavam, nada de diferente acontece
a estes do que àquelas pessoas que ao não se furtarem de dizer e pensar que
“Deus sou eu”, logo evocam para si, a partir daqueles que não o ousam pensar,
o estatuto dos loucos e desacreditados. Deus é grande demais. E para o
pessoal de religião, saber disso, e portanto, lamentar, é o que torna capazes
aos deuses existirem, sem que os homens se percam como os mortos comuns.
Assim, embora, este trabalho o se tenha apresentado em usas
páginas iniciais como disposto a tratar especificamente da possessão e das
117
interdições que a envolvem, e sim da afecção na etnografia dos processos de
feitura da pessoa de religião, foi partindo da noção de alegria (e mesmo do seu
conceito) que consigo agora traçar um fio condutor entre as experiências que
descrevi na etnografia e este constante e ininterrupto processo de atualização
de potências sagradas que é a busca pelo Ser-pleno dos orixás. Que se quase
nunca é atingido efetivamente, ao menos prepara os homens para que outras
potências - algumas tão temidas, como a morte carreguem na sua efetuação
o grau mais crucial de alegria que pode existir para o pessoal de religião, que é
a atualização da vida.
118
Referências
Anjos, José Carlos Gomes dos. 1995. “O corpo nos rituais de iniciação do
batuque”. In: Leal, Ondina Fachel. (Org.). Corpo e significado. Editora da
UFRGS, Porto Alegre, p. 139-153.
Anjos, José Carlos Gomes dos. 2006. No território da Linha Cruzada: a
cosmopolítica afro-brasileira.” Porto Alegre: Editora da UFRGS/ Fundação
Cultural Palmares, 2006.
Barbosa Neto, Edgar R. 2007. "O quem das coisas...". Artigo apresentado ao
curso Elementos de uma Teoria Unificada do Parentesco e da Magia
(Professores Marcio Goldman e Eduardo Viveiros de Castro). PPGAS/Museu
Nacional: Rio de Janeiro.
Bastide, Roger. 1973 (1953). “Estudos Afro-Brasileiros”. Perspectiva, o
Paulo.
Boas, Franz. 1887. “Um ano entre os esquimós”. In: Stoking Jr., George W.
2004. “Franz Boas. A formação da Antropologia Americana, 1883 -1911”.
Contraponto/Ed. UFRJ, Rio de Janeiro.
Boyer, Veronique. 2006. “Le don et l’initiation”, in L’Homme, 138, pp. 7-24.
Correa, Norton. 2006. “O Batuque do Rio Grande do Sul: Antropologia de uma
religião afro-rio-grandense”. Ed. Cultura & Arte, São Luis.
Deleuze, Gilles; Guattari, Félix. 1997. “Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia.
Ed. 34 Ltda, São Paulo.
Deleuze, Gilles. 2008 (1997). “Crítica e clínica”. Editora 34, São Paulo.
Geertz, Clifford. 2008 (1973). “A Interpretação das Culturas”. LTC, Rio de
Janeiro.
Geertz, Clifford. 2005 (2002). “Obras e vidas”. Editora UFRJ, Rio de Janeiro.
Goldman, Márcio. 2006. “Como funciona a democracia: Uma teoria etnográfica
da política”. 7Letras, Rio de Janeiro.
Goldman, Márcio. 2005a. “Jeanne Favret-Saada, os afetos, a etnografia”. In:
Cadernos de Campo n. 13: 149-153.
Goldman, Márcio. 1984. “A possessão e a construção ritual da pessoa no
candomblé”. Dissertação de Mestrado, defendida no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, UFRJ. Rio de Janeiro.
Goldman, Márcio. 2005b. “Formas do Saber e Modos do Ser: Observações
Sobre Multiplicidade e Ontologia no Candomblé”. Religião e Sociedade 25 (2):
119
102-120 – 2005
Guattari, Félix; Rolnik, Suely. 1986. “Cultura: um conceito reacionário?”. In:
Micropolítica. Cartografias do Desejo: 15-24. Vozes, Petrópolis.
Houaiss, Antônio; Salles Villar, Mauro de. 2001. “Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa”. Elaborado no Instituto Antônio Houaiss de Lexicografia e Banco
de Dados da Língua Portuguesa S/C Ltda. Rio de Janeiro.
Latour, Bruno. 1994. “Jamais fomos modernos”. Editora 34, Rio de Janeiro.
Lévi-Strauss, Claude. 1997. “Conclusion”. In: “L’Identité”. Puf, Paris.
Lévi-Strauss, Claude. 2008 (1962). “O Pensamento Selvagem”. Papirus
Editora. Campinas, SP.
Lévi-Strauss, Claude. 2003 (1958) “Antropologia estrutural”. Ed. Tempo
Universitário, Rio de Janeiro.
Lévi-Strauss, Claude. 2008 (1952) “O suplício do Papai Noel”. Editora Cosac
Naif, São Paulo.
Lody, Raul. 2006 (1995). “O povo do santo”. WMF Martins Fontes, São Paulo.
Malinowski, Bronislaw. 1984 (1922). “Argonautas do Pacífico ocidental: um
relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipélagos da Nova
Guiné melanésia”. Abril Cultural, São Paulo.
Oliveira, Roberto Cardoso. 2006. “O trabalho do Antropólogo”. Ed. Unesp, São
Paulo.
Oro, Ari Pedro. 2002. “Religiões Afro-Brasileiras do Rio Grande do Sul:
Passado e Presente”. In: Revista Estudos Afro-Asiáticos, Ano 24, nº2, 2002,
pp. 345 – 384.
Prandi, Reginaldo. 2001. “Mitologia dos Orixás”. Companhia das Letras, São
Paulo.
Rieux, Bernardo. 2005 (1988). “O Abecedário de Gilles Deleuze”. Disponível
em:
http://www.oestrangeiro.net/index.php?option=com_content&task=view&id=67&
Itemid=51
Sansi-Roca, Roger. 2007. “‘Hacer el Santo’. Don, Iniciación e Historicidad en el
Candomblé de Bahia”. In: Joan Bestard (Ed.). Identidades y Contextos II.
Barcelona: Edicions de l’Universitat de Barcelona. (prelo)
Sansi-Roca, Roger. 2003. Fetishes, Images, Commodities, Art Works: Afro-
Brasilian Art and Culture in Bahia. PhD Thesis. University of Chicago
Chicago.
120
Siqueira, Paula; Lima, Tânia Stolze. 2005. Ser afetado”, de Jeanne Favret-
Saada”. In: Cadernos de Campo n. 13: 155-161.
Viveiros de Castro, Eduardo. 2002. “O conceito de sociedade em antropologia”.
In: A inconstância da alma selvagem. Cosac Naify, São Paulo.
Wagner, Roy. 1981. “The invention of culture”. The Uiniversity of Chicago
Press, Chicago.
Zourabichvili, François. 2004. ”Deleuze. Una filosofia del acontecimiento”.
Amorrortu Editores, Buenos Aires.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo